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3.

Arthur Findlay

NO LIMIAR DO
ETÉREO

Pelo maravilhoso fe-


nômeno da "voz direta",
em notáveis experiências
mediúnicas, o Autor con-
sidera irrefutavelmente
provadas a sobrevivên- Entre a Terra e o Céu
cia e a comunicação dos
mortos.

Outros estudos, como


o do éter, da vida dos
Espíritos, das condições
do outro mundo, etc, fi-
zeram que todo o livro
merecesse o elogio de
sábios espiritistas ingle-
ses e fosse vertido para
várias linguas.

ANTAÜ DU MIL JAUOJ...

Bêla romano, de Emma-


nuel, ricevita de la me-
'diumo Francisco Cândido
Xavier, kaj tradukita de
Porto Carrelro Neto.
Francisco Cândido Xavier

Entre a Terra e o Céu

Pelo Espírito
de

anbré XuÍ3

19 5 4

FEDERAÇÃO ESPIRITA BRASILEIRA


(Departamento Editorial)
Bua Figueira ãe Melo, 41O e Avenida Passos, $0
Rio DE JANEIRO
índice
PÁGS.

Entre a Terra e o Céu 7

I — Em torno da prece 9
II — No Cenário terrestre 13
III — Obsessão 18
IV — Senda de provas 23
V — Valiosos apontamentos 29
VI — Num lar cristão 35
VII — Consciência em desequilíbrio . . 42
VIII — Deliciosa excursão 50
IX — No Lar da Bênção 56
X — Preciosa conversação 61
XI — Novos apontamentos 68
XII — Estudando sempre 75
XIII — Análise mental 81
XIV — Entendimento 86
XV — Além do sonho 93
XVI — Novas experiências 99
XVII — Recuando no tempo 105
XVIII — Confissão 111
XIX — Dor e surpresa 117
XX — Conflitos da alma 123
Composto e impresso XXI — Conversação edificante 130
nas oficinas da
XXn — Irmã Clara 135
— FEDERAÇÃO —
XXIII — Apelo maternal 141
85-RF; 10.000 - L; 954 XXIV — Carinho reparador 147
XXV — Reconciliação 154
XXVI — Mãe e filho 160
PÁGS.

XXVTI — Preparando a volta 166


XXVIH — Retorno 172
XXIX — Ante a reencarnação 178
XXX — Luta por renascer 184
XXXI — Nova luta 190
XXXII — Recapitulação 200
XXXIII
XXXIV


Aprendizado
Em tarefa de socorro
• 208
218
&nire a XLerra c o Céu
XXXV — Reerguimento moral 227
XXXVI — Corações renovados 234 Desta história, recolhida por André Luis entre a
XXXVn — Reajuste 241 Terra e o Céu, destacam-se os impositivos do respeita
que nos cabe consagrar ao corpo físico e do culto in-
XXXVIII — Casamento feliz • • 248
cessante de serviço ao bem, para retirarmos da roma-
XXXIX — Ponderações 255 gem terrena as melhores vantagens à vida imperecível.
XL — Em prece • • 261 Neste livro, não somos defrontados por qualquer
situação espetaculosa. Nem heróis, encarnando virtu-
des dificilmente acessíveis. Nem anjos inabordáveis.
Em cada capítulo, encontramos a nós mesmos, com
nossos velhos problemas de amor e ódio, simpatia e
desafeto, através da cristalização mental em certas-
fases do caminho, na penumbra ãe nossos sonhos im-
precisos ou na sombra das paixões que, por vezes, nos
arrastam a profundos despenhadeiros.
Em quase todas as páginas, temos a vida comum
das almas que aspiram à vitória sobre si mesmas, va-
lendo-se dos tesouros do tempo, para a aquisição de
luz renovadora.
Aqui, os quadros fundamentais da narrativa nos-
são intimamente familiares...
O coração aflito em prece.
A mente paralisada na ilusão e na dor.
O lar varrido ãe provações.
A senda fustigada de lutas.
O desvario do ciúme.
O engano da posse.
Embates do pensamento.
Conflitos da emoção.
E sobre a contextura dos fatos puros e simples-
paira, por ensinamento central, a necessidade de va- En Ire a Terra e o Céu
lorização dos recursos que o mundo nos oferece para
a reestruturação do nosso destino.
Em muitas ocasiões, somos induzidos a fitar a
amplidão celestial, incorporando energia para conquis-
tar o futuro; entretanto, muitas vezes somos cons-
trangidos a observar o trilho terrestre, a fim de en- i
tender o passado a que o nosso presente deve a sua
origem. EM TORNO DA PRECE
Neste livro, somos forçados a contemplar-nos por
dentro, no chão de nossas experiências e de nossas No Templo do Socorro ( 1 ) , o Ministro Clarên-
possibilidades, para que não nos falhe o equilíbrio à cio comentava a sublimidade da prece, e nós o
jornada redentora, no rumo do porvir. ouvíamos com a melhor atenção.
Dele surge a voz inarticulada do Plano Divino, — Todo desejo — dizia, convincente — é ma-
exortanão-nos sem palavras: nancial de poder. A planta que se eleva para o
— A Lei é viva e a Justiça não falha! Esquece alto, convertendo a própria energia em fruto que
o mal para sempre e semeia o bem cada dia!... Ajuda alimenta a vida, é um ser que ansiou por multipli-
aos que te cercam, auxiliando a ti mesmo! O tempo car-se . . .
não pára, e, se agora encontras o teu "ontem", não — Mas todo petitório reclama quem ouça —
olvides que o teu "hoje" será a luz ou a treva do teu interferiu um dos companheiros. — Quem teria
"amanhã"!... respondido aos rogos, sem palavras, da planta?
O venerando orientador respondeu, tranquilo:
EMMANUEL — A Lei, como representação de nosso Pai
Celestial, manifesta-se a tudo e a todos, através
Pedro Leopoldo, 23 de Janeiro de 195Jf. dos múltiplos agentes que a servem. No caso a
que nos reportamos, o Sol sustentou o vegetal, con-
ferindo-lhe recursos para alcançar os objetivos que
se propunha atingir.
E, imprimindo significativa entonação à voz,
continuou:
— Em nome de Deus, as criaturas, tanto quan-
to possível, atendem às criaturas. Assim como pos-
suímos em eletricidade os transformadores de ener-
gia para o adequado aproveitamento da força,
temos igualmente, em todos os domínios do Uni-
verso, os transformadores da bênção, do socorro,
do esclarecimento... As correntes centrais da vida
partem do Todo-Poderoso e descem a flux, tran-

(1) Instituição da cidade espiritual em que se


encontra o Autor. — Nota do Autor espiritual.
substanciadas de maneira infinita. Da luz suprema em nome de Deus, que nos criou a todos para o
à treva total, e vice-versa, temos o fluxo e o re- Infinito Amor e para a Infinita Sabedoria...
fluxo do sopro do Criador, através de seres incon- Quebrando o silêncio que se fizera natural para
táveis, escalonados em todos os tons do instinto, a nossa reflexão, o irmão Hilário perguntou:
da inteligência, da razão, da humanidade e da an- — Contudo, como interpretar o ensinamento,
:gelitude, que modificam a energia divina, de acordo quando estivermos à frente de propósitos malignos ?
com a graduação do trabalho evolutivo, no meio um homem que deseja cometer um crime estará
em que se encontram. Cada degrau da vida está também no serviço da prece?
superlotado por milhões de criaturas... O caminho
da ascensão espiritual é bem aquela escada mila- — Abstenhamo-nos de empregar a palavra
grosa da visão de Jacob, que passava pela Terra «prece», quando se trate do desequilíbrio — adu-
e se perdia nos c é u s . . . A prece, qualquer que ela ziu Clarêncio, bondoso —, digamos «invocação».
seja, é ação provocando a reação que lhe corres- E acrescentou:
ponde. Conforme a sua natureza, paira na região — Quando alguém nutre o desejo de perpe-
em que foi emitida ou. eleva-se mais, ou menos, trar uma falta está invocando forças inferiores e
recebendo a resposta imediata ou remota, segundo mobilizando recursos pelos quais se responsabili-
as finalidades a que se destina. Desejos banais en- zará. Através dos impulsos infelizes de nossa alma,
contram realização próxima na própria esfera em muitas vezes descemos às desvairadas vibrações
que surgem. Impulsos de expressão algo mais no- da cólera ou do vício e, de semelhante posição, é
"bre são amparados pelas almas que se enobreceram. fácil cairmos no enredado poço do crime, em cujas
Ideais e petições de significação profunda na imor- furnas nos ligamos, de imediato, a certas mentes
talidade remontam às alturas... estagnadas na ignorância, que se fazem instrumen-
tos de nossas baixas realizações ou das quais nos
O mentor generoso fêz pequeno intervalo, como tornamos deploráveis joguetes na sombra. Todas
a dar-nos tempo para refletir e acentuou: as nossas aspirações movimentam energias para o
— Cada prece, tanto quanto cada emissão de bem ou para o mal. Por isso mesmo, a direção^
força, se caracteriza por determinado potencial de delas permanece afeta à nossa responsabilidade.
frequência e todos estamos cercados por Inteligên- Analisemos com cuidado a nossa escolha, em qual-
cias capazes de sintonizar com o nosso apelo, à quer problema ou situação do caminho que nos
maneira de estações receptoras. Sabemos que a é dado percorrer, porquanto o nosso pensamento
Humanidade Universal, nos infinitos mundos da voará, diante de nós, atraindo e formando a rea-
grandeza cósmica, está constituída pelas criaturas lização que nos propomos atingir e, em qualquer
de Deus, em diversas idades e posições... No Rei- setor da existência, a vida responde, segundo a
no Espiritual, compete-nos considerar igualmente nossa solicitação. Seremos devedores dela pelo que
os princípios da herança. Cada consciência, à me- houvermos recebido.
dida que se aperfeiçoa e se santifica, aprimora em O Ministro sorriu, benevolente, e lembrou:
si qualidades do Pai Celestial, harmonizando-se, — Estejamos convictos, porém, de que o mal
gradativamente, com a Lei. Quanto mais elevada a é sempre um círculo fechado sobre si mesmo, guar-
percentagem dessas qualidades num espírito, mais dando temporariamente aqueles que o criaram, qual
.amplo é o seu poder de cooperar na execução do se fora um quisto de curta ou longa duração, a
Plano Divino, respondendo às solicitações da vida, dissolver-se, por fim, no bem infinito, à medida
que se reeducam as Inteligências que a ele se aglu-
tinam e afeiçoam. O Senhor tolera a desarmonia,
a fim de que por intermédio dela mesma se efetue
o reajustamento moral dos espíritos que a susten-
tam, de vez que o mal reage sobre aqueles que o
provocam, auxiliando-os a compreender a excelên-
cia e a imortalidade do bem, que é o inamovível II
fundamento da Lei. Todos somos senhores de nos-
sas criações e, ao mesmo tempo, delas escravos NO CENÁRIO TERRESTRE
infortunados ou felizes tutelados. Pedimos e obte-
mos, mas pagaremos por todas as aquisições. A Numa sala ampla, em que numerosas entida-
responsabilidade é princípio divino a que ninguém des trabalhavam solícitas, Clarêncio recebeu da jo-
poderá fugir. vem um pequeno gráfico que passou a examinar,
Nesse instante, uma jovem de semblante calmo cauteloso.
penetrou no recinto e, dirigindo-se ao nosso orien- Em seguida, comentou, espontâneo:
tador, falou algo aflita: — Ainda agora, falávamos de responsabilida-
—- Irmão Clarêncio, uma de nossas pupilas do de. Eis um fato que nos ilustra os conceitos.
quadro de reencarnações sob suas diretrizes pede E, exibindo o documento que trazia nas mãos,
socorro com insistência... explicou:
— E' um apelo individual urgente? — indagou — Temos aqui uma oração comovedora que
o Ministro, preocupado. superou as linhas vibratórias comuns do plano de
— E' assunto inquietante, mas numa prece matéria mais densa. Parte de uma devotada ser-
ref ratada. vidora que se ausentou de nossa cidade espiritual,
O prestimoso instrutor convidou-nos a acom- há precisamente quinze anos terrestres, para de-
panhá-lo e seguimo-lo, atentamente. terminadas tarefas na reencarnação. Não seguiu,
porém, desassistida. Permanece sob nossa orien-
tação. O nascimento e o renascimento, no mundo,
sob o ponto de vista físico, jazem confiados a leis
biológicas de cuja execução se incumbem Inteligên-
cias especializadas, contudo, em suas característi-
cas morais, subordinam-se a certos ascendentes do
espírito.
O Ministro deteve-se alguns instantes, analisan-
do a pequenina e complicada ficha, todavia, como
se provocasse a continuidade da lição que recebía-
mos, meu companheiro considerou:
— Mas, indiscutivelmente, na reencarnação há
um programa de serviço a realizar...
Sim, sem dúvida — aclarou o instrutor —,
quanto mais vastos os recursos espirituais de quem
retorna à carne, mais complexo é o mapa de tra-
balho a ser obedecido. Quase todos temos do pre- Operadora mencionada apareceu irradiando bonda-
térito expressivo montante de débito a resgatar de e simpatia.
e todos somos desafiados pelas aquisições a fazer. — Irmã — disse Clarêncio, preciso —, este
Nisso está o programa, significando em si uma gráfico regista aflitivo apelo de Evelina, cuja volta
espécie de fatalidade relativa no ciclo de experiên- ao aprendizado na carne foi garantida por nossa
cias que nos cabe atender; entretanto, a conduta organização. Parece-me estar a pobrezinha em ex-
é sempre nossa e, dentro dela, podemos gerar cir- tremas dificuldades...
cunstâncias em nosso benefício ou em nosso des- — Sim — concordou a interpelada —, Evelina,
favor. Reconhecemos, assim, que o livre arbítrio, apesar da fragilidade do novo corpo, vem susten-
também relativo, é uma realidade inconteste em tando imensa luta moral. O pai, sobrecarregado
todas as esferas de evolução da consciência. Não' de questões íntimas, tem a saúde periclitante e a
podemos olvidar, contudo, que, em todos os planos, madrasta vem sofrendo obstinada perseguição, por
marchamos em verdadeira interdependência. Nas parte de nossa desventurada Odila.
linhas da experiência física, até certo ponto, os — A genitora de Evelina?
filhos precisam dos pais, os doentes necessitam — Sim, ela mesma. Ainda não se resignou a
dos médicos e os moços não prescindem do aviso perder a primazia feminina no lar. Há dois anos
dos mais velhos. Aqui, a habilitação depende dos empenho energia e boa vontade por dissuadi-la.
educadores, o amparo eficiente exige quem sai- Vive, porém, enovelada nos laços escuros do ciúme
ba distribuí-lo, e a transferência de domicílio para e não nos ouve. O egoísmo desbordante fá-la es-
trabalho enobrecedor, quando se trata de Espíritos quecida dos compromissos que abraçou. Zulmira,
sem méritos absolutos, reclama o endosso de auto- por sua vez, a segunda esposa de Amaro, desde a
ridades competentes. morte do pequenino Júlio caiu em profundo aba-
— Mas, que vem a ser uma oração refratada? timento. Como não ignoramos, o pequeno desen-
— indagou o meu colega, mordido de curiosidade. carnou afogado, consoante as provas de que se
Hilário fora igualmente médico no mundo e, fêz devedor. A madrasta, contudo, que chegou a
tanto quanto eu, permanecia em tarefas ligadas à desejar-lhe o desaparecimento por não amá-lo, en-
responsabilidade de Clarêncio, adquirindo conheci- contrando-se sob as sugestões da mulher que a
mentos especializados. precedeu nas atenções do marido, crê-se culpada...
— A prece refratada é aquela cujo impulso Evelina, depois de perder o maninho em trágica»
luminoso encontrou a direção desviada, passando circunstâncias, acha-se desorientada, entre o geni-
a outro objetivo. tor aflito e a segunda mãe, em desespero... Ainda
ante-ontem, pude vê-la. Chorava, comovedoramen-
Inclinávamo-nos a desfechar novas perguntas,,
te, diante da fotografia da mãezinha desencarna-
no entanto, o orientador sossegou-nos, esclare-
da, suplicando-lhe proteção. Odila, porém, envolvida
cendo :
nas teias das próprias criações mentais, não se
— Esperem. Reconhecerão comigo que nos mostra capaz de corresponder à confiança e à ter-
achamos todos imanados uns aos outros. nura da menina. Ela, entretanto, tem insistido com
Em seguida, falou para a jovem que o obser- tal vigor na obtenção de socorro espiritual que as
vava, respeitosa: suas rogativas, quebrando a direção, chegam até
— Chame a irmã Eulália. ;aqui, de tal m o d o . . .
Alguns momentos passaram, rápidos, e a co-
Reparávamos o pequeno gráfico em silêncio/- para o mal. Hoje, é servidor categorizado numa
Sustando a pausa longa, o Ministro fixou Hi- ferrovia...
lário e indagou: \ Em seguida, passámos a gracioso quarto pró-
— Compreendem agora o que seja uma orarão ximo.
refratada? Evelina recorre ao espírito materno que Encantadora adolescente de catorze anos bor-
não se encontra em condições de escutá-la, mâs a dava iniciais num lenço de linho.
solicitação não se perde... Desferida em elevada Magra e triste, parecia concentrar a mente
frequência, a súplica de nossa irmãzinha vara os nos Olhos grandes e serenos. Não nos assinalou
círculos inferiores e procura o apoio que lhe não a presença, mas, ao contacto das mãos espirituais
faltará. do Ministro, revelou indefinível contentamento in-
Passeando em nós o olhar muito lúcido, con- terior.
cluiu : Instintivamente, desviou o olhar do pano alvo
— Desejariam cooperar conosco na tarefa as- e fixou-o num retrato de mulher que pendia da
sistencial ? parede. Sorriu, enlevada, qual se conversasse com
Sem dúvida, o caso fascinava-nos a atenção. a imagem, enquanto Clarêncio nos dizia:
O orientador, no entanto, recomendou espe- — Esta é a nossa Evelina, cuja reencarnação
rássemos dois dias. Desejava inteirar-se, a sós, de foi por nós organizada, faz alguns anos. A foto-
todas as ocorrências, para instruir-nos com segu- grafia é uma lembrança da mãezinha que já par-
tiu. Evelina está ligada aos pais, através de imen-
rança, quando estivéssemos a usufruir-lhe a com-
so amor, desde séculos remotos. Veio ao encontro
panhia.
de criaturas e situações das quais necessita para
Nossa excursão, todavia, foi mareada e, no a garantia da própria ascensão, mas trouxe tam-
momento preciso, achávamo-nos a postos. bém consigo a tarefa de auxiliar os progenitores.
Sem delonga na viagem, Clarêncio, Eulália, No momento, acredita-se amparada pela mãezinha,
Hilário e eu encontramo-nos em residência modes- entretanto, pelos méritos já acumulados na vida
ta, mas confortável, num dos bairros do Rio de espiritual, é ela mesma quem continua socorrendo
Janeiro. o coração materno, ainda em l u t a . . .
O relógio citadino acusava exatamente vinte
Abracei, comovido, a mocinha extática, que se
e uma horas. guardava em luminoso halo de tranquilidade e, por
Entrámos. alguns instantes, meditei na grandeza do amor e
Em estreito compartimento, à guisa de gabi- na sublimidade da oração.
nete de trabalho e biblioteca, um homem de trinta
e cinco anos presumíveis lia, com visíveis sinais de
preocupação, um manual de mecânica.
Na secretária singela, désdobravam-se publi-
cações diversas, denunciando-lhe os estudos.
Clarêncio, assumindo com mais propriedade o
papel de mentor do nosso grupo, informou, gentil:
— Este é Amaro, o chefe da casa. Tem, no
longo pretérito, complicados compromissos. Em
muitas ocasiões, usou projetis e lâminas de ferro
• /
y

V \ • <:
/ primeira esposa de Amaro e mãezinha de Evelina,
dolorosamente transfigurada pelo ciúme a que se
recolheu. Empenhada em combater aquela que con-
sidera inimiga, imanta-se a ela, através do veículo
ni / perispirítico, na região cerebral, dominando a com-
plicada rede de estímulos nervosos e influenciando
os centros metabólicos, com o que lhe altera pro-
OBSESSÃO fundamente a paisagem orgânica.
Penetrámos o mais espaçoso aposento da casa, — Mas, porque não há reação por parte da
perseguida? •— inquiri, perplexo.
onde uma senhora de aspecto juvenil repousava
abatida e insone. — Porque Zulmira, a nossa amiga encarnada,
Moça de vinte e cinco anos, aproximadamente, caiu no mesmo padrão vibratório — aclarou o ins-
mostrava no semblante torturado harmoniosa be- trutor. — Ela também se devotou ao marido com
leza. O rosto delicado parecia haver saído de uma egoísmo aviltante. Amaro sempre foi pai afetuosís-
tela preciosa, todavia, com a suavidade das linhas simo. O matrimónio anterior deixou-lhe um casal
fisionômicas contrastavam a inquietação e o pavor de filhinhos, mas o pequeno Júlio, formosa crian-
dos olhos escuros e o abandono dos cabelos em ça de oito anos, perdeu a existência no mar. A
desalinho. segunda mulher nunca suportou, sem mágoa, o
carinho do genitor para com os órfãos de mãe.
Ao lado dela, descansava outra mulher, sem
o veículo físico. Revoltava-se, choramingava e doía-se constante-
mente, diante das menores manifestações de ter-
Recostada num travesseiro de grandes dimen- nura paternal, entrelaçando-se, por isso mesmo,
sões, dava a ideia de proteger a moça indiscuti- com as desvairadas energias da irresignada com-
velmente enferma, contudo, a vaguidão do olhar e panheira de Amaro, arrebatada pela morte. Em
o halo obscuro de que se cercava, não nos deixa- suas preocupações doentias, Zulmira chegou a de-
vam dúvida quanto à sua posição de desequilíbrio sejar a morte de uma das crianças. Pretendia
interior. Conservava a destra sobre a medula alon- possuir o coração do homem amado, com absoluto
gada da senhora vencida e doente, como se qui- exclusivismo. E porque as atenções de Amaro se
sesse controlar-lhe as impressões nervosas, e fios concentravam particularmente sobre o menino, mui-
cinzentos que lhe fluíam da cabeça, à maneira de tas vezes emitiu silenciosamente o anseio de vê-lo
tentáculos dum polvo, envolviam-lhe o centro co- afogar-se na praia em que se banhavam. Certa
ronário, obliterando-lhe os núcleos de força. manhã, custodiando os enteados, separou Evelina
Indiferentes ambas à nossa presença, foi pos- do irmão, permitindo ao petiz mais ampla incursão
sível observá-las atentamente, identificando-se-lhes nas águas. O objetivo foi atingido. Uma onda rá-
a posição de verdugo e de vítima. pida surpreendeu o miúdo banhista, arrojando-o
Arrancando-nos da indagação silenciosa em que ao fundo. Incapaz de reequilibrar-se, Júlio voltou
nos demorávamos, Clarêncio explicou: cadaverizado à superfície. O sofrimento familiar
— A jovem senhora é Zulmira, a segunda foi enorme. O ferroviário sentiu-se psiquicamente
orientadora deste lar, e a irmã desencarnada que distanciado da segunda esposa, classificando-a como
presentemente lhe vampiriza o corpo é Odila, a relaxada e cruel com os filhinhos. Zulmira, a seu
turno, acabrunhada com o acontecimento e g u a r / a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou mesmo
dando consigo a responsabilidade indireta pelo de- a morte do corpo.
sastre havido, caiu obsidiada ante a influência per- — Mas, então —- clamou Hilário, contrafei-
niciosa da rival que a subjugava do plano invisível. to —, como extinguir essa união indébita? Não
Clarêncio fêz ligeiro intervalo e continuou: será justo afastar o algoz da vítima?
— O sentimento de culpa é sempre um colapso Clarêncio sorriu e ponderou:
da consciência e, através dele, sombrias forças se — Aqui, o quadro é diverso. Na esfera car-
encontram... Zulmira, pelo remorso destrutivo, nal, a cápsula física é precioso isolante das ener-
tombou no mesmo nível emocional de Odila e am- gias desequilibradas de nossa mente, entretanto,
bas se digladiam, num conflito de morte, inacessí- em nosso plano de ação, no problema que obser-
vel aos olhos humanos comuns. E' um caso em vamos, essas forças desbordam ameaçadoras sobre
que a medicina terrestre não consegue interfe- a infortunada mulher, cujo corpo pode ser compa-
rência. rado a uma lâmpada de fraca receptividade, sobre
a qual seria perigoso arremessar uma corrente
Calara-se o Ministro. superior à capacidade de resistência a que se en-
Qual se nos registasse a presença por intui- quadra. A inutilização seria completa.
ção, Odila movimentou-se e, agarrando-se à pobre
senhora com mais força, gritou: — Que poderíamos fazer? — indagou Hilário,
desapontado.
— Ninguém a libertará! Sou infeliz mãe espo-
— Precisamos atuar na elaboração dos pen-
liada. . . Farei justiça por minhas próprias mãos!... samentos da infortunada irmã que tomou a inicia-
E contemplando a enferma com expressão ter- tiva da perseguição. E' imprescindível dar outro
rível, acrescentava: rumo à vontade dela, deslocando-lhe o centro men-
— Assassina! Assassina!... Mataste meu fi- tal e conferindo-lhe outros interesses e diferentes
lhinho ! Morrerás t a m b é m ! . . . aspirações.
A doente abriu desmesuradamente os olhos. ;— E não podemos começar, exortando-a?
Extrema palidez cobriu-lhe a face. O Ministro, sereno, obtemperou sem alterar-se:
Não ouvia as palavras da adversária que lhe •— Talvez, assim de momento, não pudéssemos
era invisível, mas, envolta na onda magnética que ou não soubéssemos. A preparação é indispensável.
a enlaçava, sentia-se morrer. — Nada custa uma conversação de censura...
Clarêncio afagou-lhe a fronte e disse, calmo: — alegou meu companheiro, admirado.
— Pobre m o ç a ! . . . — Sim, uma doutrinação pura e simples seria
Hilário e eu, instintivamente, abeirámo-nos de cabível, contudo, não podemos esquecer que a or-
Odila para afastá-la com a presteza possível, mas ganização cerebral da vítima permanece excessi-
o instrutor generoso deteve-nos com um gesto, ad- vamente martelada. Nossa intervenção no campo
vertindo : espiritual de Odila deve ser envolvente e segura
— A violência não ajuda. As duas se encon- para evitar choques e contrachoques, que repercu-
tram ligadas uma à outra. Separá-las à força seria tiriam desastrosamente sobre a outra. Nem doçura
a dilaceração de consequências imprevisíveis. A prejudicial, nem energia contundente...
exasperação da mulher desencarnada pesaria de- O instrutor dirigiu piedoso olhar às duas mu-
masiado sobre os centros cerebrais de Zulmira e lheres e prosseguiu:
— A questão nesta casa surge realmente me-
lindrosa. E' necessário buscar alguém que já tenha
amealhado na alma bastante amor e bastante en-
tendimento para conversar com o poder criador
da renovação.
Refletiu alguns intantes e aduziu:
— Contamos em nossas relações com a irmã ir
Clara. Rogaremos o concurso dela. Modificará
Odila com o seu verbo coroado de luz, inclinando-a SENDA DE PEOVAS
ao serviço da conversão própria. Por agora, de
nossa parte, somente nos é possível a dispensação» Zulmira ausentara-se do corpo, mas não des-
de algum alívio e nada mais. frutava a paz que se lhe estampara na máscara
Recomendou a Eulália assistisse Evelina para física.
o refazimento psíquico de que a menina necessita- Enlaçada por Odila, a cujo olhar dominador
va e, em seguida, aplicou recursos magnéticos so- se inclinava, submissa, não nos identificou a pre-
bre Zulmira, em passes calmantes, de longo curso. sença.
Qual se fosse brandamente anestesiada, a en-
ferma passou da irritação à serenidade e pareceu Com evidentes sinais de terror, ouvia as objur-
dormir aos olhos do esposo que chegara, de man- gatórias da rival que a acusava, exclamando:
sinho, acomodando-lhe os travesseiros. •— Que fizeste de meu filhinho? Assassina!
assassina! Pagarás muito caro a intromissão no
lar que é somente m e u ! . . . Destroçarei tua vida,
não me furtarás o afeto de A m a r o . . . Armarei o
coração de Evelina contra t i ! . . .
— Não, n ã o ! . . . — respondia a vítima. —
Não matei! não foi eu quem m a t o u ! . . .
— Hipócrita! acompanhei os teus pensamen-
tos, teus desejos, teus v o t o s . . .
Zulmira desembaraçou-se, de inopino, dos bra-
ços que a envolviam e correu para fora, seguida
pela outra.
Esclarecendo-nos, bondoso, Clarêncio observou:
— Quando a pobrezinha consegue sossegar o
corpo, cai no pesadelo agitado. Acompanhemo-las.
Dirigem-se à praia, onde ocorreu a morte do pe-
quenino. Premida pelo assédio de nossa irmã de-
sequilibrada, Zulmira ainda não se libertou das
aflitivas reminiscências de que se vê possuída.
Pusemo-nos na direção do mar, antecipando-as
no trajeto.
sorriso. Zulmira, pouco a pouco, permitiu que o
E, enquanto nos afastávamos, a conversação
ódio lhe ocupasse o coração e deixou que o ciú-
fêz-se ativa.
me a enceguecesse a ponto de suspirar pelo desapa-
— Não posso compreender porque a infeliz se recimento do alegre rapazinho. Despreocupava-se
declarou inocente... — comentou Hilário, pensa- intencionalmente pela assistência que lhe devia e
tivo. abandonava-o às extravagâncias, características de
— Porque tamanha provação se não é ela a sua idade, alimentando o secreto anseio de pre-
autora do crime? — inquiri por minha vez. senciar-lhe o fim. Chegava mesmo a estimular-lhe
O Ministro, porém, informou, preciso: indébitas incursões na via pública, admitindo que
— Segundo as anotações que já recolhemos da algum veículo podia fazer o que não tinha coragem
irmã Eulália, Zulmira não é propriamente a auto- de realizar com as próprias m ã o s . . . Foi nessa
ra, mas, com loucas ciumadas do marido, desejou disposição de espírito que acompanhou a família
ardentemente a morte da criança, chegando mesmo ao banho matinal, em clara manhã domingueira.
a favorecê-la. Para não repetirmos esclarecimentos Entregues ao contentamento da excursão, Ama-
aos quais já nos reportámos, faremos ligeiro re- ro e a filhinha distanciaram-se, de algum modo,
trospecto, tão minudenciado quanto possível, exa- numa lancha pequena, enquanto Zulmira assumia
minando o problema aflitivo do casal. a guarda do garoto. Foi então que o cérebro da
moça deixou nascer escuras divagações. Não seria
Depois de breve pausa, prosseguiu: aquele o momento azado para consumar o velho
— Amaro experimentava imensa devoção afe- propósito? E se relegasse o menino a si mesmo?
tiva pelo filhinho. Quando Júlio adoecia, desvela- Decerto, Júlio, em sua curiosidade infantil, não
va-se à cabeceira do petiz com ilimitada ternura. resistiria à atração para o seio das á g u a s . . . Nin-
Sabendo-o sem o carinho materno e reconhecendo guém poderia culpá-la. Passou do projeto à ação e
que a madrasta não primava pelo amor, junto dos de pronto se afastou. Em se vendo a sós, o caçula
enteados, passava a dormir ao lado do caçula, ro- de Amaro interessou-se mais vivamente pelas con-
deando-o de mimos. Quando tornava Et CciSel. cada chas multicores a se multiplicarem na areia, per-
dia, confiava-se a longas conversações com o filho, seguindo-as, encantado, pelo mar a dentro, até que
lendo-ihe histórias ou escutando-lhe, atencioso, as uma onda veloz lhe chicoteou o corpo tenro, obri-
narrativas infantis. Assemelhavam-se a dois ve- gando-o a mergulhar. A criança gritou, pedindo-
lhos amigos, a se bastarem um ao outro. Zulmira, -lhe amparo... Realmente, poderia ter retrocedido
em razão disso, ralada de despeito, passou a ver alguns passos, salvando-a, mas vencida pelos si-
no menino um adversário de sua felicidade domés- nistros pensamentos que lhe dominavam a cabeça,
tica. A dedicação de Evelina para com o genitor esperou que o mar concluísse o horrível trabalho
não lhe doía tanto. A filha mais velha era mais que não tivera coragem de executar. Quando no-
doce e mais reservada. Comedida em suas mani- tou que o enteado havia desaparecido, começou a
festações, sabia dividir gentilezas, sem olvidar a. clamar por socorro, de alma repentinamente do-
segunda mãe em seu culto de amizade. A madras- brada pelo remorso, mas era t a r d e . . . Amaro acor-
ta nada sentia contra ela, mas o pequeno exci-
reu, precipite, e, com o auxílio de companheiros,
tava-a. Júlio, no extremado apego ao genitor, cos-
retirou para fora o corpinho inerte. Torturado,
tumava exagerar-se em traquinadas e caprichos
que Amaro desculpava sempre, com benevolente chorou amargosamente a perda do filhinho, recri-
26 ANDRÉ LUIZ
ENTRE A TERRA E O CÉU 2T

minando a mulher. Foi então que Zulmira, domina- Clarêncio, no entanto, guardando a intuição
da pelo arrependimento e atormentada pela noção «Iara do serviço imediato a fazer, para não delon-
de culpa, desceu, em espírito, ao padrão vibratório gar-se em digressões filosóficas, retomou o fio
de Odila que a seguia, em silêncio, revoltada. central do assunto, esclarecendo:
Enquanto se mantinha com a paz de consciência,
defendia-se naturalmente contra a perseguição in- — Júlio trazia consigo a morte prematura no
visível, como se morasse num castelo fortificado, quadro de provações. Era um suicida reencarna-
mas, condenando a si mesma, resvalou em deplo- do . . . A segunda esposa de Amaro, porém, sofre
rável perturbação, à maneira de alguém que de- o resultado dás infelizes deliberações que albergou
sertasse de uma casa iluminada, embrenhando-se no espírito. Padece o retorno das vibrações envene-
numa floresta de sombra. nadas que arremessou na direção do menino. Pelo
ciúme, criou ao redor de si mesma um ambiente
O Ministro fêz leve pausa de repouso e pros- pestilencial, em que os seus próprios pensamentos
seguiu: malignos conseguiram prosperar, assim como um
— A pobre senhora, desde esse dia, perdeu a fruto apodrecido desenvolve em si mesmo os ver-
ventura doméstica e a tranquilidade própria. Ela mes que o devoram, convertendo-se igualmente em
e o marido respiram agora sob o mesmo teto, qual pasto de outros vermes que o alcançam. Supon-
se fossem estranhos entre si. do-se responsável pela morte da criança, de vez
que asilou o delituoso plano a que nos referimos,
— Mas, à frente da Lei, Zulmira é culpada? Zulmira abandonou-se ao mal que trazia consigo,
— perguntei com interesse. imantando-se, ainda, ao mal de que a adversária
O sábio mentor sorriu, significativamente, e é portadora, e tornou-se, por isso, enferma e de-
considerou: mentada .
— Não, no sentido real da Lei, Zulmira não
é culpada. — E o pequeno, em toda a história? — inqui-
ri, admirado.
Entretanto, deitando-nos um olhar mais ex-
pressivo que de costume, continuou: —- Júlio foi conduzido à região que lhe é pró-
pria.
— Todavia, quem de nós não é responsável
pelas ideias que arroja de si mesmo? Nossas in- — Mas, Odila não poderia vê-lo, certificando-se
de toda a verdade?
tenções são atenuantes ou agravantes das faltas
que cometemos. Nossos desejos são forças men- •—• Infelizmente — explicou o venerando ins-
tais coagulantes, materializando-nos as ações que, trutor —, a infortunada criatura tem o centro ge-
no fundo, constituem o verdadeiro campo em que nésico plenamente descontrolado e isso lhe impede
a nossa vida se movimenta. Os frutos falam pelas a visão mais ampla. Não consegue querer senão
árvores que os produzem. Nossas obras, na esfera o marido, em vista do apego enlouquecedor aos
viva de nossa consciência, são a expressão gritante vínculos do sexo, que a paixão nada faz senão des-
de nós mesmos. A forma de nosso pensamento dá virtuar. Odila possui admiráveis qualidades morais
feição ao nosso destino. que jazem, por enquanto, eclipsadas... Desencar-
nou em largo vigor de seu idealismo feminino, sem
Hilário e eu ouvíamos, enlevados, sem pesta- uma fé religiosa capaz de reeducar-lhe os impulsos,
nejar. justificando-se, desse modo, a superexcitação em
que se encontra. Semelhante estado, contudo, é
transitório e esperamos se submeta, de boa von-
tade, ao tratamento de reajuste que lhe será dis-
pensado, em breve. Melhorada a situação dela,
creio que o problema terá imediata e construtiva
solução. V
Ia perguntar algo de novo, mas atingíramos
a praia e Clarêncio determinou nos puséssemos a VALIOSOS APONTAMENTOS
observar.
Alcançáramos a orla do mar, em plena noite.
A movimentação da vida espiritual era aí mui-
to intensa.
Desencarnados de várias procedências reencon-
travam amigos que ainda se demoravam na Terra,
momentaneamente desligados do corpo pela anes-
tesia do sono. Dentre esses, porém, salientava-se
grande número de enfermos.
Anciães, mulheres e crianças, em muitos as-
pectos diferentes, compareciam ali, sustentados pe-
los braços de entidades numerosas que os assistiam.
Conversações edificantes e lamentos doloridos
chegavam até nós.
Serviços magnéticos de socorro urgente eram
improvisados aqui e a l é m . . . E o ar, efetivamente,
confrontado ao que respirávamos na área da cida-
de, era muito diverso.
Brisas refrescantes sopravam de longe, car-
reando princípios regeneradores e insuflando em
nós delicioso bem estar.
— O oceano é miraculoso reservatório de for-
ças — elucidou Clarêncio, de maneira expressiva — ;
até aqui, muitos companheiros de nosso plano tra-
zem os irmãos doentes, ainda ligados ao corpo da
Terra, de modo a receberem refazimento e repouso.
Enfermeiros e amigos desencarnados desvelam-se
na reconstituição das energias de seus tutelados.
Qual acontece na montanha arborizada, a atmos-
fera marinha permanece impregnada por infinitos
recursos de vitalidade da Natureza. O oxigênio
sem mácula, casado às emanações do plancto, con-
verte-se em precioso alimento de nossa organização
espiritual, principalmente quando ainda nos acha- Nesse ponto das explicações, porém, o Minis-
mos direta ou indiretamente associados aos fluidos tro abanou a cabeça e ajuntou:
da matéria mais densa. — Nossa ação, contudo, está subordinada à
Passávamos agora na vizinhança de uma dama lei que nos rege. No problema de nossa irmã, o
extremamente abatida, quase em decúbito dorsal concurso de nosso plano conseguirá tão somente
à frente das águas, recolhendo o auxílio magnético angariar-lhe reconforto. A moléstia, em razão das
provas que lhe assinalam o roteiro pessoal, atingiu
de um benfeitor que se iluminava no serviço e na
insopitável extensão.
oração.
Clarêncio deixou-nos por momentos, conversou — Quer dizer que ela, agora, apenas se habi-
algo com um amigo, a pequena distância, e regres- lita à morte calma? — indagou Hilário, atencioso.
sou, informando: — Justamente — confirmou o orientador. —
Com a cooperação em curso, despertará no corpo
— Trata-se de irmã do nosso círculo pessoal, desfalecente mais serena e mais confortada. Repe-
assediada pelo câncer. Foi retirada do veículo fí- tindo as excursões até aqui, noite a noite, habi-
sico, através da hipnose, a fim de obter a assis- tuar-se-á, com entendimento superior, à ideia da
tência que lhe é necessária. partida, transmitindo aos familiares resignação e
— Mas — objetei, curioso — esse tipo de tra- coragem para o transe da separação; aprenderá
tamento pode sustar o desequilíbrio das células a contribuir com o seu esforço, no sentido de ali-
orgânicas? a doente conseguirá curar-se, de modo viar-lhes as aflições pela humildade que edificará,
positivo? dentro de si m e s m a . . . pouco a pouco; desligar-
O Ministro sorriu e aclarou: -se-á da carne enfermiça, acentuando a luz inte-
— Realmente, na obra assistencial dos espí- rior da própria consciência, a fim de separar-se
ritos amigos, que interferem nos tecidos sutis da do ambiente que lhe é caro, como quem encontra
alma, é possível, quando a criatura se desprende na morte física valiosa liberação para serviço mais
parcialmente da carne, a realização de maravilhas. enobrecido. E, assim, em algumas semanas, mos-
Atuando nos centros do perispírito, por vezes efe- trar-se-á admiravelmente preparada ante o novo
tuamos alterações profundas na saúde dos pacien- caminho...
tes, alterações essas que se fixam no corpo somá- Clarêncio silenciara.
tico, de maneira gradativa. Grandes males são O assunto requisitava-me a novas observações.
assim corrigidos, enormes renovações são assim — Nesse c a s o . . . — comecei a falar, hesitante.
realizadas. Mormente quando encontramos o ser- O Ministro, porém, sorriu compreensivo e ata-
viço da prece na mente enriquecida pela fé trans- lhou, esclarecendo: \
formadora, facilitando-nos a intervenção pela pas-
sividade construtiva do campo em que devemos — Já sei a tua conclusão. E' isso mesmo. A
operar, a tarefa de socorro concretiza verdadeiros enfermidade longa é uma bênção desconhecida en-
milagres. O corpo físico é mantido pelo corpo es- tre os homens, constitui precioso curso preparató-
piritual a cujos moldes se ajusta e, desse modo, a rio da alma para a grande libertação. Sem a mo-
influência sobre o organismo sutil é decisiva para o léstia dilatada, é muito difícil o êxito rápido no
envoltório de carne, em que a mente se manifesta. trabalho da morte.
Nesse instante, contudo, Zulmira e Odila da-
vam entrada na praia, em sítio não longe de nós. dade, deixa-me viver! Liberta-me! Compadece-te de
Clarêncio recomendou-nos atenção. mim!...
Rodeámo-las, prestamente, qual se fossem ir- — Nunca! nunca! — bradava a interlocutora,
mãs enfermas, sota a nossa guarda. friamente — tua falta é imperdoável. Mataste!
Nem uma nem outra nos identificavam a pre- Deves confessar o delito perpetrado, à frente da
sença. Tão-pouco pareciam interessadas pelo movi- polícia!... Dobrar-te-ei a cerviz! Serás recolhida
à penitenciária, para que te mistures às delinquen-
mento no logradouro. tes de tua l a i a ! . . .
A primeira esposa de Amaro centralizava o
olhar sobre a presa, enquanto que a vítima revelava — Não! não! — suplicava Zulmira, com sinais
na expressão facial o intraduzível terror dos que comoventes de angústia.
se abeiram do extremo desequilíbrio. — Se não aniquilaste meu filho — bradava a
Zulmira ensaiava o gesto de quem se propunha outra, cruel —, devolve-o aos meus braços! Devol-
ve-o! devolve-o!
a regressar precipitadamente a casa, mas, contida
pela companheira, avançava, entre a aflição e o Nesse momento, ambas se achavam à frente
de determinada nesga da praia.
pavor.
Os olhos da pobre obsidiada adquiriram estra-
E, repetindo as mesmas acusações que já ou- nho fulgor.
víramos, Odila martelava o cérebro da outra, rei- — Foi aqui! — rugiu a perseguidora, rude-
terando, desapiedada: mente — aqui consumaste o sinistro plano de ex-
— Recorda o crime, infeliz! lembra-te da hor- tinção da nossa felicidade...
rível manhã em que te fizeste assassina! onde Qual se fora tangida de secretos impulsos, a
colocaste meu filho? porque afogaste um inocente? segunda mulher de Amaro desprendeu-se dos braços
— Não, não! — gritava a pobrezinha demen- que a constringiam e, penetrando as águas, cla-
tada — não fui eu! juro que não fui eu! Júlio foi mava, aflita:
tragado pelas o n d a s . . . — Júlio! J ú l i o ! . . .
— E porque não velaste pela criança que meu Odila, no entanto, perturbada e ensandecida,
marido levianamente confiou às tuas mãos infiéis? pôs-se-lhe no encalço.
acaso, não te acusa a própria consciência? onde Sentindo-lhe a aproximação, Zulmira rodou so-
situas o senso de mulher? Pagar-me-ás alto preço bre os calcanhares e disparou de volta ao lar.
pelo relaxamento delituoso... Não permitirei que Acompanhámos as duas, na competição a que
Amaro te ame, alimentarei a antipatia dele contra se entregavam, sem perdê-las de vista.
ti, atormentarei as pessoas que te desejarem so-
correr, destruirei a própria casa de que te apos- Varando a casa, incontinenti, dando a ideia
saste e me pertence!... Impostora! impostora!... de que o corpo adormecido era poderoso magnete
— Sim, s i m . . . — concordava Zulmira, terrifi- a atraí-la, Zulmira despertou, alagada de suor, con-
servando no cérebro de carne a impressão de que
cada —, não matei, mas não fiz o que me competia vagueara em terrível pesadelo.
para salvá-lo! Perdoa-me! perdoa-me! prometo em-
penhar-me no refazimento da paz de t o d o s . . . Serei Tentou gritar, mas não conseguiu.
uma escrava de teu marido e restituí-lo-ei aos teus Faleciam-lhe as forças em colapso nervoso,
braços; converter-me-ei em serva de tua filhinha, 2
cujos passos orientarei para o bem, mas, por pie-
insopitável. A dispneia castigava-a com violência,
enquanto as coronárias se mostravam intumescidas.
Clarêncio aproximou-se e aplicou-lhe fluidos
salutares e repousantes.
Acalmou-se-lhe o coração, vagarosamente, o
campo circulatório tornou à feição normal. Foi en- VI
tão que a desventurada senhora conseguiu gemer,*
clamando por socorro. NUM LAR CRISTÃO
Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não
só para cooperar, a favor de suas melhoras, mas
também para registar os ensinamentos possíveis, e,
solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos
judiciosas ponderações.
— Sim •— disse —, para auxiliar em processos
dessa natureza, é preciso marchar para a frente,
mas, para compreender o serviço que nos compete
e avançar com segurança, é necessário voltar à
retaguarda, armando-nos de lições que nos escla-
reçam.
Não sabíamos como interpretar-lhe a palavra,
entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, de-
pois de ligeira pausa:
— Para realizarmos um estudo geral da situa-
ção, convém o contacto com outras personagens
do drama que se desenrola. Ser-nos-á interessante,
para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domi-
cílio espiritual em que estagia.
— Oh! será um prazer! — clamei, contente.
— Poderíamos seguir agora? — perguntou Hi-
lário, encantado.
O Ministro refletiu por segundos e observou:
— Nas responsabilidades que esposamos, não
é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o
objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não
nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.
Pensou, pensou... e aduziu:
— Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acom-
panhar duas de nossas irmãs encarnadas à visita-
ção dos filhinhos que as precederam na grande
viagem da morte e que se encontram no mesmo
sítio em que Júlio se demora asilado. Poderemos Dona Antonina colocou sobre a toalha muito
substituir nossa cooperadora no serviço a fazer. alva dois copos com água pura, tomou um exem-
Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistên- plar do Novo Testamento e sentou-se.
cia às nossas amigas e examinaremos a situação Logo após, falou carinhosamente:
da criança. — Se não me falha a memória, creio que a
Anotando a preciosa lição de trabalho que prece de hoje deve ser feita por Lisbela.
aquelas expressões encerravam, aguardamos a noi- A pequenita levou as minúsculas mãos ao ros-
te próxima, com ansiedade real. to, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa
Na hora aprazada, descemos à matéria densa, e, cerrando os olhos, recitou:
em busca das irmãs-que seguiriam conosco. — Pai Nosso que estais no Céu, santificado
Deixou-nos o Ministro numa casinha singela de seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja
remota região suburbana, depois de informar-nos: feita a vossa vontade assim na Terra como nos
— Aqui reside nossa irmã Antonina, com três Céus, o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai
dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou. Inca- as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nos-
paz de vencer as tentações da própria natureza, sos devedores, não nos deixeis cair em tentação e
o marido abandonou-a, há quatro anos, para com- livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o
prometer-se em delituosas aventuras. A dona da poder e a glória para sempre. Assim seja.
casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligên- Lisbela abriu os olhos, de novo, e procurou
cia numa fábrica de tecidos e educa os rebentos silenciosamente a aprovação maternal.
do lar com acendrado amor ao Evangelho de Nosso Dona Antonina sorriu, satisfeita, e exclamou:
Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as — Você orou muito bem, minha filha.
dívidas que trouxe do pretérito próximo. Perdeu, E dividindo agora a atenção com os dois me-
há meses, o pequeno Marcos, de oito anos, atacado ninos, entregou o Evangelho a um deles, convi-
de fulminante pneumonia, com quem se encontrará, dando :
depois da prece que proferirá com os pequeninos.
— Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cris-
Trarei comigo a outra companheira de nossa via-
tã para os nossos estudos da noite.
gem. Quanto a vocês, auxiliem nas orações e nos
O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, res-
estudos de Antonina, até que eu volte, de modo
tituindo o livro às mãos maternais.
a seguirmos todos juntos.
A genitora, emocionada, leu os versículos vinte
Hilário e eu penetrámos a sala desataviada e e um e vinte e dois do capítulo dezoito das ano-
estreita.
tações do apóstolo Mateus:
Uma senhora ainda jovem, mas extremamente
— «Então Pedro, aproximando-se dele, disse:
abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crian-
— Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão
ças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma
contra mim e eu lhe perdoarei ? Até sete ? Jesus lhe
loura pequerrucha, certamente a caçula da família,
disse: — Não te digo que até sete, mas até seten-
que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.
ta vezes sete.»
Num recanto do compartimento humilde, tris-
te velhinho desencarnado como que se colocava à Calou-se dona Antonina, como quem aguarda-
escuta. va a manifestação de curiosidade dos jovens apren-
dizes .
ENTRE A TERRA E O CÉU 3£)
O pequeno Henrique, iniciando a conversação,
perguntou, com simplicidade: sentamos nossa mágoa a um companheiro dessa
—- Mãezinha, porque Jesus recomendava um espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por
perdão, assim tão grande? isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar in-
Demonstrando vasto treinamento evangélico, a finitamente, para que o amor, em nosso espírito,
senhora replicou: seja como o Sol brilhando em casa limpa.
— Somos levados a crer, meus filhos, que o Expressivo intervalo fêz-se notar.
Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas O jovem Haroldo, de semblante apoquentado,,
as faltas do próximo, inclinava-nos ao melhor pro- interferiu, indagando:
cesso de viver em paz. Quem não sabe desvenci- — Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos
lhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se perdoar sempre?
do mal. Uma pessoa que esteja parada em lem-
— Como não, meu filho?
branças desagradáveis caminha sempre com a irri-
tação permanente. Imaginemos vocês na escola. — Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior
de todas?
Se não conseguirem esquecer os pequeninos abor-
recimentos nos estudos, não poderão aproveitar as — Ainda assim.
lições. Hoje é um colega menos amigo a preparar E, observando-o, inquieta, dona Antonina acen-
lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção tuou :
do guarda enfadado em razão de algum equívoco. — Porque tratas deste assunto com tamanha
Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciên- preocupação ?
cia ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligin- — Refiro-me ao papai — disse o menino algo
do a professora, desmoralizando a escola e preju- triste —, papai abandonou-nos quando mais preci-
dicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que sávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos
não sabe desculpar vive comumente isolada. Nin- fêz?
guém estima a companhia daqueles que somente
derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou — Oh! meu filho! — comentou a nobre mu-
da censura. lher — não te detenhas nesse problema. Porque
alimentar rancor contra o homem que te deu a
Nessa altura do ensinamento, dona Antonina vida? como condená-lo se não sabemos tudo o que
fitou o primogênito e perguntou: lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nos-
— Você, Haroldo, quando tem sede preferiria so bem estar se ele estivesse conosco, mas, se de-
beber a água escura de um cântaro reGheado de vemos suportar a ausência dele, que os nossos me-
lodo?
lhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu
— A h ! isso não — replicou o mocinho muito filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em
sério —, escolherei água pura, cristalina... que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo,
— Assim somos também, em se tratando de é credor de teu maior carinho. Há serviços que não
nossas necessidades espirituais. A alma que não podemos pagar senão com amor. Nossa dívida para
perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso com os pais é dessa natureza...
cheio de lama e fel. Não é coração que possa re- Recordando talvez que a família se achava num
confortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar- curso de formação cristã, a dona da casa acres-
-nos a vencer nas dificuldades da vida. Se apre- centou :
— Um dia, quando Moisés, o grande profeta»
foi ao monte receber a revelação divina, uma das
mais importantes determinações por ele ouvidas solicitou a Henrique fizesse a oração de encerra-
do Céu foi aquela em que a Eterna Bondade nos mento .
recomenda: •— «Honrarás teu pai e tua mãe». A O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao
Lei enviada ao mundo não estabelece que devamos Senhor abençoasse a mãezinha e o trabalho ter-
analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos minou .
cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amo- A dona da casa repartiu com os pequenos al-
roso respeito, sejam eles quais forem. guns cálices da água cristalina que Hilário e eu
A reduzida assembleia recolhia as explicações, magnetizáramos e, logo após, pensativa e saudosa,
de olhos felizes e iluminados. retirou-se com os filhinhos para a câmara em que
Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ain- se recolheriam todos juntos.
da ponderou:
— Compreendo, mãezinha, o que a senhora
quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de
nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Te-
ríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.
Dona Antonina enxugou, apressada, as lágri-
mas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação
do filhinho, e continuou:
— Seria um erro permitir a queda de nossa
confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao en-
contro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada
lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qual-
quer ideia triste, em torno da memória do anjo que
nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham
no Além aqueles que amamos.
Nesse ponto da conversação, Lisbela inquiriu,
graciosa:
— Mãezinha, Marcos nos vê?
— Sim, minha filha — esclareceu dona Anto-
nina, emocionada —, ele nos ajuda em espírito, pe-
dindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa
vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com
as nossas melhores recordações.
Dona Antonina, porém, pareceu asfixiada por
enormes saudades. Enquanto os meninos comen-
tavam com interesse os ensinamentos da noite, de-
morava-se absorta, mentalizando a imagem do pe-
quenino . . .
Quando o relógio assinalou o fim do culto,
natureza devem ser reservados para pessoas afli-
tas como eu, que trazem um vulcão no centro do
crânio...
Assim dizendo, alteraram-se-lhe as feições fi-
vn sionômicas .
Afigurou-se-nos mais distante da realidade,
CONSCIÊNCIA EM DESE- mais inconsciente.
Gritando quase, continuou:
QUILÍBRIO -— Tudo teria sido modificado se me houves-
sem facultado o encontro com o novo Generalíssi-
Consoante as recomendações que havíamos m o . . . Sua Alteza compreender-me-ia a situação.
recebido, aguardámos dona Antonina, no estreito Era propósito do Marechal requisitar-me para seu
recinto em que se processara o culto familiar.
serviço exclusivo, entretanto, por influência do meu
Agora, conseguíamos reparar o ancião desen- miserável perseguidor, sofri transferência injusta...
carnado com mais atenção. Conservando integrais Nosso inesperado amigo vasculhou com os olhos
remanescentes da vida física, abatido e trêmulo, os recantos da sala, qual se temesse a presença
parecia inquieto, dementado...
de alguma testemunha invisível, e prosseguiu:
Tentámos debalde uma aproximação. — Ouçam, porém, o que lhes digo! Ele não.
Não nos via. somente pretendia afastar-me dos favores do Ma-
Lembrei ao meu companheiro que poderíamos rechal xloente, mas planejava furtar-me a mulher...
densificar o nosso veículo, pela concentração da Lola Ibarruri! como não haveria de querê-la com
vontade, e apressámo-nos na providência. a paixão que me inspirou? Porque teria eu de se-
Em momentos breves, fornecendo a impressão guir para Fecho dos Morros? O intento de me
de recém-chegados, atraímos-lhe o interesse. prejudicarem era evidente. Sem dúvida, fui cons-
trangido a sair, mas não fui além de Tacuaral. O
O velhinho precipitou-se para nós, exclamando:
General Polidoro não me abandonaria... Devia re-
— São oficiais ou praças? Estão pró ou con- gressar a Luque e regressei... O infame Esteves,
tra?
contudo, agira sem descansar... Além de assaitar-
Aquele olhar esgazeado era efetivamente o de -me os direitos de enfermeiro no Quartel General,
um louco.
desviara a atenção de L o l a . . . A formosa Ibarruri
Hilário e eu trocámos impressões de curiosi- não mais me pertencia. Entregara-se ao amigo
dade e espanto. desleal... Nossa pequena chácara de laranjeiras
E antes que nos pronunciássemos, começou a e nosso jardim estavam esquecidos... Quem disse
chorar, convulsivamente, acentuando: que não me sacrifiquei na aquisição da encantadora
— Quem trouxe aqui a ideia de perdoar? em casinha, por mim confiada à pérfida mulher? Du-
que ponto me situaria na questão? devo perdoar rante um mês longo e terrível, suspirei pelo re-
ou ser perdoado? Não entendo a necessidade de torno aos carinhos d e l a . . . Quando tornei ao lar,
discussão em torno de um assunto como esse entre naquela estrelada noite de Maio, encontrei-a nos
fraca mulher e três crianças... Comentários dessa braços do traidor... Lola tentou desculpar-se, mas
surpreendi-os j u n t o s . . . Quis vingar-me, de imedia-
to, espetando-o com meu punhal, todavia, as tropas
deixariam a cidade, daí a três dias, e o meu ini- tanto tempo de convívio com este monstro a fi-
migo, que se esgueirara na sombra, ante a minha tar-me, imperturbável, não bastaria à expiação que
aproximação deu-se pressa em viajar, a serviço, me compete ao resgate? Se eu confessasse o crime
u o rumo de Itauguá... O ódio passou a dominar- e me demorasse por menos tempo no cárcere, não
-me, enceguecendo-me... Encontrá-lo-ia em algu- estaria redimido, diante dos tribunais?
ma parte, abraçá-lo-ia com a mesma cordialidade Sentindo que algo nos caberia dizer à guisa
fingida com que me abraçara pela primeira vez e de consolo, afaguei-lhe a cabeça branca e falei,
arrancar-lhe-ia a v i d a . . . Assim fiz. . . Aparentei tentando ser gentil:
ignorar a realidade e büsquei-o, sorrindo... e, sor- •— Acalme-se, meu irmão! quem de nós não
rindo, envenenei-o... Creiam, contudo, que somen- terá desacertado no caminho da vida? sua dor não
te me abalancei a semelhante ato, porque ele era é única... Também nós trazemos o espírito pejado
impudente, libertino, c r u e l . . . Assassinar-me-ia, se de aflitivas recordações. As lágrimas de desespe-
eu não tivesse o arrojo de liquidá-lo... ração desajudam a a l m a . . .
Pelas citações que ouvíramos, percebi que o
Fêz breve pausa e, em seguida, ajoelhando dian-
nosso interlocutor se reportava ao tempo da Guer-
te de nós, passou a clamar, de novo, em alta voz:
ra do Paraguai e, buscando penetrar o labirinto
— O h ! . . . para mim, estou certo de que pra-
de suas palavras que estabeleciam ligação do pas-
tiquei a justiça, mas este homem realmente não
sado com o presente, indaguei:
me abandona! Lutei t a n t o ! . . . Casei-me e organizei
grande família!... Devotei-me à religião, desfrutei — A que novo Generalíssimo se refere?
os benefícios dos santos sacramentos e admiti que — A h ! ignoram?
tudo estivesse amplamente solucionado, entretanto, E dando-nos a ideia de quem vivia profunda-
depois de retirar-me do corpo físico sob a imposi- mente arraigado a particularidades do pretérito,
ção da velhice e da enfermidade, longe de encon- aduziu:
trar o céu que parece cada vez mais distante de — Recordo-me com precisão... Sim, a procla-
mim, reconheço que este homem continua a per- mação dele era de 16 de A b r i l . . . O Príncipe D .
seguir-me por d e n t r o ! . . . Faz muitos anos que me Gastão de Orleães era o novo comandante em che-
despedi dos ossos fatigados e perambulo, aflito e fe, mas muito me pesava o afastamento do Ma-
infeliz, carregando o inferno, dentro de m i m ! . . . rechal . . .
A princípio, procurei o sepulcro, na esperança de — Qual deles? — perguntei, reavivando-lhe a
soerguer meus restos e, esoondendo-me neles, es- memória.
quecer. . . esquecer... Compreendendo, porém, que — O Marechal Guilherme Xavier de Souza.
meu desejo era de todo frustrado, fugi para sem- Era meu amigo, meu protetor... Doente, cansado,
pre do lugar que me asila os despojos e devoro precisava de m i m . . . contudo, afastaram-me dele...
ruas e praças, buscando autoridades que me so- Esteves, o cão infiel...
corram.. . Nesse instante, porém, a voz extinguiu-se-lhe
Depois de passar as mãos pelo rosto, enxu- na garganta. Esbugalharam-se-lhe os olhos e, como
gando as lágrimas, continuou: se estivesse atenazado no íntimo por forças terrí-
veis, insondáveis à nossa observação, começou a
— O' senhores, por quem s ã o ! . . . ainda mes- queixar-se, desesperado:
mo que o meu erro fosse tão clamoroso assim,
— A h ! não posso continuar!... Ele, novamen-
te ele, a crescer dentro de mim! Observa-me com Quando o infortunado ancião procurava abra-
asco e ainda lhe ouço as últimas palavras no es- çar-me, Clarêncio chegou, guiando a outra pupila
tertor da m o r t e . . . Não! Não! — bradava ele, ago- que nos acompanharia na excursão.
ra, com evidentes sinais de angústia — hei-de li- Simpática e humilde, após cumprimentar-nos,
bertar-me! hei-de libertar-me! Tenho f é ! . . . manteve-se a distância. O mentor, num átimo, com-
Comovidamente, acerquei-me do pobrezinho e preendeu o que se passava. Vimo-lo concentrar-se
considerei: por momentos, densificando-se para auxiliar com
mais presteza.
— Sim, meu amigo, a fé representa o mila-
groso salva-vidas de todos os náufragos. Você tem Saudado pelo velhinho, afagou-lhe a fronte e
orado? tem pedido a Jesus amparo e assistência? avisou-nos :
— Sim, s i m . . . — Permanece dementado. A mente dele fi-
— E ainda não lhe chegou qualquer sinal de xou-se em recordações que o obcecam.
socorro celeste? Mais experiente que nós outros, guardou-o nos
O infortunado centralizou em mim o olhar in- braços com paternal carinho, conquistando-lhe a
quieto e informou: confiança e inquiriu:
— Que procura, meu irmão?
— Há alguns dias, fui à Igreja do Rosário,
recordando como sempre a visita que fiz até lá, na — Venho suplicar o socorro de Antonina, mi-
véspera de minha partida para a guerra, e tanto nha neta. E' a única pessoa que se lembra de mim
rezei que tive a felicidade de ver o Marechal, que com a m o r . . . Dentre os numerosos membros de mi-
me apareceu, de súbito... Estava mais moço e in- nha família, só ela me oferece asilo na o r a ç ã o . . .
compreensivelmente refeito... Roguei-lhe proteção, E, porque reiniciasse as referências lamurio-
ao que me respondeu, informando que o meu caso sas, o Ministro colocou a destra sobre a cabeça de
seria tomado em apreço, que eu descansasse, pois nosso interlocutor, como a sondar-lhe o íntimo em
ainda que os nossos erros sejam grandes, maior é minuciosa perquirição e, em seguida, informou:
a compaixão de Deus que nunca nos desampara... — Temos aqui nosso irmão Leonardo Pires,
E, exibindo um gesto de profundo abatimento, desencarnado há cerca de vinte a n o s . . . Quando
acrescentou: t jovem, foi empregado do Marechal Guilherme Xa-
— Mas, até agora, não tive o menor sinal de vier de Souza e hoje conserva a mente detida num
renovação do caminho... crime de envenenamento em que se envolveu, quan-
Acariciei-lhe a nevada cabeça e considerei, co- do integrava as forças brasileiras acampadas em
movidamente : Piraju, no Paraguai. Podemos conhecer o delito,
em suas particularidades, na tela das recordações
— Esteja convencido, porém, de que a bon- que o atormentam... E' um domingo de festa em
dade de Jesus não nos faltará. campanha... 11 de Julho de 1 8 6 9 . . . A missa é
— Prometa ajudar-me! compadeça-se de mim! celebrada em pleno campo por um frade capuchi-
— gritou o infeliz. nho. . . O Conde d'Eu, com a luzida oficialidade do
De coração, intimamente tocado por semelhan- seu Quartel General, está presente... Nosso ami-
te apelo, hipotequei-lhe a decisão de colaborar em go, muito moço ainda, aparece no corpo da infan-
sua paz e soerguimento. taria. Não se mostra, porém, interessado nas gra-
ves advertências do sacerdote, no ato religioso, nem com à\ imagem do assassinado que se revitaliza,
no apelo ardente e patriótico do Generalíssimo, que cada dia, na memória dele, ao influxo das suges-
pronuncia brilhante e inspirada alocução para os tões da própria consciência que se considera culpa-
comandados- . . Fita com impertinência um com- d a . . . Como vemos, é a Lei de causa e efeito a
panheiro recém-chegado de Itauguâ, enfermeiro em cumprir-se, natural...
serviços especiais... E' José Esteves, irrequieto
Nesse instante, porém, Antonina, em seu veícu-
brasileiro de olhos escuros e inteligentes, de gar- lo sutil, surgiu à porta da câmara em que o seu
boso porte, com os seus trinta anos bem feitos... corpo dormia, vindo ao nosso encontro.
Partilha com o nosso amigo o afeto de linda mu-
lher desquitada, que abandonou o marido e um
filho pelo prazer da aventura... Pires, o irmão
que observamos, inconformado com os favores da
criatura amada para com o patrício que ele odeia,
finge ignorar-lhe a situação e insinua-se maneiro-
so e gentil. . . Terminada a festa, convida Esteves
para refeição mais íntima... E, juntos, comentam
entusiásticos as noitadas do Rio, ansiosos pelo re-
torno às seduções da retaguarda... Esteves entro-
sa-se com as impressões de Leonardo, confia nele
e conversa, loquaz, até que o vingativo colega, na
taverna improvisada, lhe oferece um copo de vi-
nho com o veneno f a t a l . . . O companheiro bebe,
experimenta estranhas vertigens e morre prague-
jando . . . O acontecimento é recebido com admira-
ção. . . Um médico argentino é chamado a opinar e
verifica o envenenamento, contudo, as autoridades
julgam o silêncio mais acertado... As tropas de-
veriam seguir rumo a Paraguari e o caso é encer-
rado sem maior investigação... Leonardo acompa-
nha o Exército para a vanguarda e tenta esquecer
o ocorrido... Convive ainda com a requestada mu-
lher, por mais algum tempo, mas, de regresso à
terra natal, desinteressa-se dela e casa-se no Bra-
sil, deixando vários descendentes... Desencarna,
valetudinário; todavia, no leito de morte, reconhece
que a lembrança do crime lhe castiga o mundo in-
terior. . . Olvida quase todos os demais episódios
da existência para centralizar-se apenas n e s s e . . .
José Esteves já reencarnou, demorando-se agora
em outros setores de luta, mas Leonardo Pires vive
irmãs no circuito fechado de nossas forças, em-
preendemos a formosa romagem.
Quem na Terra poderá imaginar as deliciosas
sensações da alma livre?
VTTT
Viajando com a rapidez do pensamento, avan-
çámos à frente da sombra noturna, largando para
DELICIOSA EXCURSÃO trás o deslumbramento da aurora, em colorido e
cantante dilúculo... .
O velhlndo desencarnado demonstrava absoluta Atingindo formosa paisagem, banhada de sua-
indiferença, ante a descrição do nosso orientador, ve luz, em que um parque imponente e acolhedor
mas, como se a presença da nobre senhora lhe se distendia, fixei o semblante de nossas compa-
despertasse novo interesse, fitou-a, de olhos subi- nheiras, que se mostravam extáticas e felizes.
tamente iluminados, e bradou: Dona Antonina, amparando-se em Clarêncio
— Antonina! Antonina!... Socorre-me. Tenho qual se fora uma filha apoiada, nos braços pater-
medo! muito m e d o ! . . . nos, inquiriu, maravilhada:
A interpelada, que fora do corpo denso se mos- — Porque não transformar esta excursão em
trava muito mais delicada e mais bela, fixou-o, transferência definitiva? Pesa o corpo, à maneira
triste, e inquiriu com amargurado semblante: de insuportável cruz de carne, quando conseguimos
— Vovô, que fazes? sentir a Terra, de l o n g e . . .
O ancião curvou-se e implorou: — E' verdade — concordou a outra irmã, que
— Ajuda-me! Todos na família me esquece- se sustentava em nós —, porque não nos é dado
ram, com exceção de ti. Não me abandones!... permanecer, olvidando os pesares e os dissabores
Ele, o meu ferrenho inimigo, me tortura por den- do mundo?
tro. Assemelha-se a um demônio, morando em mi- — Compreendemos — ajuntou o Ministro, ge-
nha consciência. . .
neroso —, compreendemos quanta inquietação pun-
Tentava agora enlaçá-la, aflito, mas Clarêncio ge o espírito reencarnado, mormente quando des-
interferiu, indicando-nos: perto para a beleza da vida superior, entretan-
— Ouça, amigo! Nossos irmãos prometeram to, é indispensável saibamos louvar a oportunidade
ampará-lo e, decerto, cumprirão a palavra. Nossa de servir, sem jamais desmerecê-la. Achamo-nos
abnegada Antonina, no momento, precisa ausen- ainda distantes da redenção total e todos nós, com
tar-se, em nossa companhia, por algumas horas. alternativas mais ou menos longas, devemos abra-
E abraçando-o, paternal, recomendou: çar a luta na carne, de modo a solver com digni-
— Você pode igualmente auxiliá-la. Guarde-lhe dade nossos velhos compromissos. Somos viajores
a casa, enquanto os meninos repousam. Amanhã, nos milênios incessantes. Ontem fomos auxiliados,
receberá, por sua vez, o socorro de que necessita. hoje nos cabe auxiliar.
O velho sorriu conformado e aquietou-se. . Ã medida que avançávamos, ondas de perfume
Deixando-o a sós, na sala estreita, saímos para acentuavam-se, em torno de nós, revigorando-nos
a noite. as energias e induzindo-nos a respirar a longos
Entrelaçando as mãos, e conservando nossas sorvos.
Flores de contextura delicada pendiam abun-
dantemente de árvores vigorosas, embalsamando as turalmente, desceriam do Céu para a Terra, pre-
leves virações que sussurravam encantadoras me- ferindo a posição de angustiadas servas invisíveis,
lodias . . . trocando a resplendente glória da liberdade pelos
Como se trouxesse agora todo o busto engri- dolorosos padecimentos da prisão, de vez que a
naldado de luz, Clarêncio sorria, bondoso. ventura maior de quem ama reside em dar de si
Emudecera-se-lhe a palavra. mesmo, a favor das criaturas amadas...
Sentíamo-nos todos magnetizados e enterne- As duas mulheres ouviram as sensatas ponde-
cidos ante a beleza do quadro que nos prendia a rações sem dizer palavra.
admiração. Finda a pausa ligeira, o instrutor continuou:
Antonina, porém, como se estivesse irradiando — Somos devedores uns dos o u t r o s ! . . . Laços
insopitável curiosidade, mesclada de alegria, voltou mil nos jungem os corações. Por enquanto, não há
a exclamar: paraíso perfeito para quem volta da Terra, tanto
— Ah! se morrêssemos h o j e ! . . . se a carne quanto não existe purgatório integral para quem
não nos pesasse m a i s ! . . . regressa ao humano sorvedouro! O amor é a for-
O Ministro, contudo, imprimindo mais grave ça divina, alimentando-nos em todos os setores da
entonação à voz, mas sem perder a brandura que vida e o nosso melhor patrimônio é o trabalho com
lhe era peculiar, considerou, de imediato: que nos compete ajudar-nos, mutuamente.
—• Se hoje abandonassem o veículo de maté- Na paisagem banhada de luz, experimentei mais
ria densa, quem diz que seriam felizes? Quem de alta veneração pela Natureza, que, em todas as es-
nós obterá a suprema ventura, sem a perfeita su- feras, é sempre um livro revelador da Eterna Sa-
blimação pessoal? bedoria. . .
E, fitando Antonina com bondade misturada Nossas irmãs, tocadas por júbilo inexprimível,
de compaixão, observou: afiguravam-se-me formosas madonas de sonho, re-
— Agora, vocês visitarão filhinhos abençoados pentinamente vivificadas, diante de nós.
que a morte lhes arrebatou temporariamente ao — E' pelo trabalho •— prosseguiu o orienta-
convívio terrestre. Vocês se sentem como que num dor — que nos despojamos, pouco a pouco, de
palácio dourado, em pleno paraíso de amor, mas, nossas imperfeições. A Terra, em sua velha ex-
e os filhinhos que ficam? Haverá Céu sem a pre- pressão física, não é senão energia condensada em
sença daqueles que amamos? Teremos paz sem época imemorial, agitada e transformada pelo tra-
alegria para os que moram em nosso coração? balho incessante, e nós, as criaturas de Deus, nos
Imaginemos que as algemas do cárcere físico se mais diversos degraus da escada evolutiva, apri-
partissem agora... O atormentado lar humano cres- moramos faculdades e crescemos em conhecimento
ceria de vulto na saudade que as tomaria de as- e sublimação, através do serviço... O verme, ar-
salto. . . A lembrança dos filhos aprisionados no rastando-se, trabalha em benefício do solo e de si
Planeta acorrentá-las-ia ao mundo carnal, à ma- mesmo; o vegetal, respirando e frutescendo, ajuda
neira de forte raiz retendo a árvore no solo escuro. a atmosfera e auxilia-se. O animal, em luta pe-
Os rogos e os gemidos, as lutas e as provas dos rene, é útil à gleba em que se desenvolve, adqui-
rebentos menos felizes da existência lhes falariam rindo experiências que lhe são valiosas, e nossa
ao espírito mais imperiosamente que os cânticos alma, em constantes peregrinações, através de for-
de bem-aventurança dos filhos afortunados e, na- mas variadas, conquista os valores indispensáveis
à sublime ascensão... Somos filhos da eternidade, desservir. Nossa afetividade, por enquanto, padece
em movimentação para a glória da verdadeira vida deploráveis inclinações. Sem o esquecimento tran-
e só pelo trabalho, ajustado à Lei Divina, alcan- sitório, não saberíamos receber no coração o adver-
çaremos o real objetivo de nossa marcha! sário de ontem para regenerar-nos, regenerando-o.
Antonina, que parecia mais acordada que a A Lei é sábia. De qualquer modo, porém, não olvi-
sua companheira, para a contemplação do excelso demos que nosso espírito assinala todos os passos
quadro que nos circundava, perguntou, com enlevo: da jornada que lhe é própria, arquivando consigo
—• Porque não guardamos a viva recordação mesmo todos os lances da vida, para formar com
de nossas existências anteriores? não seria bendita eles o mapa do destino, de acordo com os princípios
felicidade o reencontro consciente com aqueles que de causa e efeito que nos governam a estrada, mas
mais amamos?!.. . somente mais tarde, quando o amor e a sabedoria
— Sim, é i m . . . — confirmava Clarêncio, en- sublimarem a química dos nossos pensamentos, é
quanto nossa deliciosa excursão prosseguia, céle- que conquistaremos a soberana serenidade, capaz
re — mas, na condição espiritual em que ainda de abranger o pretérito em sua feição t o t a l . . .
nos situamos, não sabemos orientar os nossos de- O Ministro fêz ligeiro intervalo, sorriu pater-
sejos para o melhor. Nosso amor ainda é insigni- nalmente para nós e rematou:
ficante migalha de luz, sepultada nas trevas do — A Lei, contudo, é invariavelmente a Lei.
nosso egoísmo, qual ouro que se acolhe rio chão, Viveremos em qualquer parte, com os resultados
em porções infinitesimais, no corpo gigantesco da de nossas ações, assim como a árvore, em qualquer
escória. Assim como as fibras do cérebro são as trato do solo, produz conforme a espécie a que se
últimas a se consolidarem no veículo de carne em subordina.
que encarnamos na Terra, a memória perfeita é O firmamento parecia responder às sugestões
o derradeiro altar que instalamos, em definitivo, da palestra admirável.
no templo de nossa alma, que, no Planeta, ainda Bandos de aves mansas pousavam na ramaria
se encontra em fases iniciais de desenvolvimento. que brilhava não longe de nós.
E' por isso que nossas recordações são fragmentá- O Sol apresentava perceptíveis raios diferen-
rias . . . Todavia, de existência a existência, de as- tes, até agora desconhecidos à apreciação comum
censão em ascensão, nossa memória gradativamente na Terra, provocando indefiníveis combinações de
converte-se em visão imperecível, a serviço de nos- cor e luz.
so espírito imortal... Por abençoada e colorida colmeia de amor, har-
—- Mas se pudéssemos reconhecer no mundo monioso casario surgiu ao nosso olhar.
os nossos antigos afetos, se pudéssemos rever os Centenas de gárrulas crianças brincavam entre
semblantes amigos de outras eras, identificando- fontes e flores de maravilhoso jardim.
- o s . . . — aventurou Antonina, reverente.
— Retomar o contacto com os melhores, seria
recuperar igualmente os piores — atalhou Clarên-
cio, bondoso — e, indiscutivelmente, não possuímos
até agora o amor equilibrado e puro, que se con-
sagra aos desígnios superiores, sem paixão. Ainda
não sabemos querer sem desprezar, amparar sem
parque, como a solicitar-lhes proteção e carinho
para as nossas associadas de excursão, e disse-nos,
em seguida:
— O pequeno Júlio não se encontra no grupo.
Ainda sofre anormalidades que lhe não permitem
o convívio com as crianças felizes. Acha-se no lar
DC da irmã Blandina. Rumemos para lá.
Em poucos minutos, chegávamos diante de pe-
NO LAR DA BENÇÃO quenino castelo muito alvo, em que se destacavam
as ogivas azuis, coroadas de trepadeiras em flor.
Clarêncio movimentou a destra, indicando-nos Atravessámos extenso jardim, embalsamado de
o quadro sublime a desdobrar-se sob a nossa vista. aroma.
Doce melodia que enorme conjunto de meninos Rosas opalinas, ignoradas na Terra, de mistura
acompanhava, cantando um hino delicado de exal- com outras flores, desabrochavam profusamente.
tação do amor materno, vibraVa no ar. A irmã Blandina recebeu-nos sorridente, apre-
Aqui e ali, sob tufos de vegetação verde-clara, sentando-nos uma senhora simpática que lhe fora
muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos avozinha no mundo.
braços. Mariana, nossa nova amiga, cumprimentou-nos,
— E' o Lar da Bênção — informou o instru- bondosa.
tor, satisfeito. — Nesta hora, muitas irmãs da Findas as saudações usuais, Clarêncio tocou,
Terra chegam em visita a filhinhos desencarnados. direto, no assunto.
Temos aqui importante colónia educativa, misto de Desejávamos avistar o pequeno Júlio, que ha-
escola de mães e domicílio dos pequeninos que re- via desencarnado por afogamento.
gressam da esfera carnal. Blandina, que em plena juvenilidade trazia nos
O Ministro, porém, interrompeu-se, de impro- olhos os característicos de sublime madureza de
viso. espírito, respondeu gentilmente:
Nossas companheiras pareciam agora tomadas — A h ! com muito prazer! ,
de jubilosa aflição. E, encaminhando-nos a iluminada peça, orna-
Vimo-las desgarrar, de inopino, qual se fos- mentada de róseos enfeites, onde um menino repou-
sem atraídas por forças irresistíveis, precipitando- sava num leito muito branco, explicou, sem afe-
-se para os anjinhos que cantarolavam alegremente. tação :
Enquanto a que nos era menos conhecida enlaçava — Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez
louro petiz, com infinito contentamento a expres- completamente. Ainda grita sob pesadelos inquie-
sar-se em lágrimas, dona Antonina abraçou um pe- tantes, como se estivesse a sofrer sob as águas.
queno de formoso semblante, gritando, feliz: Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer
— Marcos! M a r c o s ! . . . mais receptivo ao nosso carinho. Insiste pela vol-
— Mãezinha! Mãezinha!... — respondeu a ta a casa, todos os dias.
criança, colando-se-lhe ao peito. Acercámo-nos do berço largo em que des-
cansava.
Clarêncio fêz sinal para as irmãs vigilantes,
que se responsabilizavam pelos entendimentos na O menino lançou-nos um olhar de atormentada
desconfiança, mas, contido pela ternura da irmã teu valor pode chorar, assim por nada? Imagina!
que o assistia, permaneceu mudo e impassível. Temos três médicos em casa. E' impossível que a
— Ainda não se mostrou em condições de par- dor não fuja apressada.
tilhar os estudos com os outros? — perguntou o Logo após, sentou-o numa poltrona e solicitou
Ministro, interessado. a colaboração de Clarêncio.
— Não — informou a interpelada, solícita —, O Ministro, cuidadoso, pediu-lhe abrisse a boca
aliás, os nossos benfeitores Augusto e Cornélio, que e, surpreendidos, notámos que a fenda glótica, prin-
nos amparam frequentemente, são de parecer que cipalmente na região das cartilagens aritenóides,
ele não conseguirá adquirir aqui qualquer melhora apresentava extensa chaga.
real, antes da reencarnação que o aguarda. Traz O orientador aplicou-lhe recursos magnéticos
a mente desorganizada por longa indisciplina. especiais e, em poucos instantes, Júlio voltou à
Bem humorada, acrescentou: tranquilidade".
— E' um paciente difícil. Felizmente, dispo- — Então? — falou Blandina, amparando-o,
mos da cooperação de nossa devotada Mariana, que afetuosa — onde está agora a garganta dolorida?
o adotou por filho espiritual, até que retorne ao E, visivelmente satisfeita, acrescentou:
lar terrestre. Foi preciso segregá-lo neste quarto, — Já agradeceste ao nosso benfeitor, meu
tamanha é a gritaria a que se entrega por vezes. filho?
— Mas não tem recebido o tratamento mag- O menino, hesitante, caminhou para o Minis-
nético aconselhável? — indagou Clarêncio, aten- tro, beijou-lhe a destra com respeitoso carinho e
cioso. balbuciou:
— Diariamente recebe o auxílio necessário — — Muito agradecido.
esclareceu Blandina, com humildade —, eu mesma Blandina ia dizer algo, mas Júlio correu para
sou a enfermeira. Passes e remédios não faltam. o seu regaço, choramingando:
— E a irmã conhece o caso em suas particu- — Mãezinha, tenho s o n o . . .
laridades ? A abnegada jovem acolheu-o, com ternura, re-
— Sim, conheço. Eulália tem vindo até nós. conduzindo-o ao repouso.
Lastimo que a mãezinha de nosso doente não esteja Quando tornou à sala, Clarêncio informou que
em condições de ampará-lo. Creio que o concurso doara ao enfermo energias anestesiantes. Notara-o
dela poderia insuflar-lhe novas forças. Entretanto, fatigado, resolvendo, por isso, induzi-lo ao descanso.
com exceção da irmãzinha que se lembra dele nas E, talvez porque nos percebesse o cérebro es-
orações, ninguém mais da família o ajuda. fogueado de indagações, quanto àquela minúscula
— Mãezinha! Mãezinha!... — clamou o pe- garganta ferida, depois da morte do corpo, o Mi-
queno, em voz rouca, erguendo-se e enlaçando Blan- nistro explicou:
dina, pálido e inquieto. — E' pena. Júlio envolveu-se em compromis-
—r Que te incomoda, meu filho? sos graves. Desentendendo-se com alguns laços afe-
— Dói-me a garganta... — lamentou-se o tivos do caminho, no século passado, confiou-se a
rapazinho. extrema revolta, aniquilando o veículo físico que
A jovem benfeitora abraçou-o, osculando-Ihe lhe fora emprestado por valiosa bênção. Renden-
os cabelos, e recomendou: do-se à paixão, sorveu grande quantidade de cor-
— Não te aflijas. Como é que um moço de rosivo. Salvo a tempo, sobreviveu à intoxicação,
mas perdeu a voz, em razão das úlceras que se lhe
abriram na fenda glótica. Ainda aí, não se confor-
mando com o auxílio dos colegas que o puseram
fora de perigo, alimentou a ideia de suicídio, sem
recuar. Foi assim que, não obstante enfermo, bur-
lou a vigilância dos companheiros que o guarda- X
vam e arrojou-se a funda corrente de um rio, nela
encontrando o afogamento que o separou do en-
voltório carnal. Na vida espiritual, sofreu muito, PRECIOSA CONVERSAÇÃO
carregando consigo as moléstias que ele mesmo in-
fligira à própria garganta e os pesadelos da asfi- Blandina, que parecia bastante versada nas
xia, até que reencarnou, junto das almas com as questões da infância, associando-se à conversação
quais se mantém associado para a regeneração do que Clarêncio desenvolvia, considerou, com inte-
pretérito. Infelizmente, porém, encontra dificulda- resse: fc

des naturais para recuperar-se. Lutará muito, an- — Efetivamente, a Lei é invariável, contudo,
tes de incorporar-se a novo patrimônio físico. a criança desencarnada muitas vezes é problema
Registávamos aqueles apontamentos com dolo- aflitivo. Quase sempre dispõe de afeiçoados que a
rosa admiração. Uma criança doente é sempre um seguem, de perto, amparando-lhe o destino, entre-
espetáculo comovedor. tanto, tenho observado milhares de meninos, que,
Não nos atrevíamos a manifestar nossos pen- pela natureza das provações em que se envolveram,
samentos de estranheza, todavia, o prestimoso ami- sofrem muitíssimo, à espera de oportunidades fa-
go, assinalando-nos decerto as dúvidas, acentuou: voráveis para a aquisição dos valores de que ne-
— Há poucos instantes, comentávamos a su- cessitam .
blimidade da Lei. Ninguém pode trair-lhe os prin- E sorrindo, bondosa, acrescentou:
cípios. A Bondade Divina nos assiste, de múltiplas — O caso de Júlio não é para mim dos mais
maneiras, amparando-nos o reajustamento, mas em dolorosos. Tenho visitado departamentos de reajus-
todos os lugares viveremos jungidos às consequên- te em que se demoram irmãos nossos, arrancados
cias dos próprios atos, de vez que somos herdeiros à carne, violentamente, como frutos verdes da ár-
de nossas próprias obras. vore em que se desenvolvem... Processos de mente
O assunto constituía preciosa sugestão para enfermiça que só abençoadas estações regenerati-
interessantes estudos, mas, antes de enunciar qual- vas na carne conseguem c u r a r . . .
quer pergunta, busquei aspirar, a longos haustos,
as baforadas frescas de vento, que carreavam para — Poderíamos receber de sua experiência al-
o recinto vagas sucessivas de agradável perfume. guns exemplos objetivos? — indagou Hilário,
curioso.
— A h ! são m u i t o s ! . . . — ponderou a nossa
interlocutora, gentil — temos para demonstração
mais prática os absurdos da megalomania intelec-
tual. Há pessoas, na Terra, que não se acautelam
contra os desvarios da inteligência e fazem da as-
túcia e da vaidade o clima em que respiram. Insis-
tem na inércia do coração, abominam o sentimento
elevado que interpretam por pieguismo e transfor- -se dos filhinhos, lhes favorecem a morte. O in-
mam a cabeça num laboratório de perversão dos fanticídio inconsciente e indireto é largamente pra-
valores da vida. Não cuidam senão dos próprios ticado no mundo. E como o débito reclama resgate,
interesses, não amam senão a si mesmos. Não per- as delongas na solução dos compromissos assumi-
cebem, contudo, que se ressecam interiormente e dos acarretam enormes padecimentos nas criaturas
nem imaginam os resultados cruéis da cerebração que se submetem aos choques biológicos da reen-
para o mal. Frequentemente, na luta mundana, carnação e vêem prejudicadas as suas esperanças
avultam na condição de dominadores poderosos, de quitação com a Lei.
com vastíssimo potencial de influência sobre ami- Ante a pausa que se fizera natural, inquiri:
gos e adversários, conhecidos e desconhecidos. Mas, — Mas a Lei não traçará princípios inamo-
esse êxito é ilusório. Caem sob o guante da morte víveis? Pretenderá a irmã dizer que uma criança
com grande alívio dos contemporâneos e passam pode desencarnar, fora do dia indicado para a sua
a receber-lhes as vibrações de repulsa. Semelhan- libertação ?
tes criaturas naturalmente são vítimas de si mes- — Sim, sem dúvida — atalhou o Ministro, que
mas e sofrem os mais complicados desequilíbrios nos escutava —•, há um programa estruturado na
mentais. Depois de períodos mais ou menos longos Espiritualidade para as nossas tarefas humanas,
de purgação, após a transição da morte, voltam entretanto, pertence-nos a condução dos próprios
à carne, necessitados de silêncio e solidão para se impulsos dentro delas. Em regra geral, multidões
desvencilharem dos envoltórios inferiores em que de criaturas cedo se afastam do veículo carnal,
se enredaram, assim como a semente precisa do atendendo a serviços de socorro e sublimação, mas,
isolamento na cova escura para desintegrar os ele- em numerosas circunstâncias, a negligência e a ir-
mentos pesados que a constringem para novo de- reflexão dos pais são responsáveis pelo fracasso
sabrochar . dos filhinhos.
, A moça esboçou inteligente sorriso e conti- — Aqui — explicou Blandina, delicada —, re-
nuou: cebemos muitas solicitações de assistência, a bene-
— Imaginemos que a terra se recusasse a fício de pequeninos ameaçados de frustração. Te-
auxiliar as sementes que esperam reviver. O solo mos irmãs que por nutrirem pensamentos infelizes
expulsá-las-ia, e, em vez dos germens libertados envenenam o leite materno, comprometendo a es-
para a vitória da plantação, teríamos tão somente tabilidade orgânica dos recém-natos; vemos casais
pevides secas, em aflitiva inquietude, desorientan- que, através de rixas incessantes, projetam raios
do a lavoura. Em verdade, a maioria das mães é magnéticos de natureza mortal sobre os filhinhos
constituída por sublime falange de almas nas mais tenros, arruinando-lhes a saúde, e encontramos mu-
belas experiências de amor e sacrifício, carinho e lheres invigilantes que confiam o lar a pessoas
renúncia, dispostas a sofrer e a morrer pelo bem- ainda animalizadas, que, à cata de satisfações doen-
-estar dos rebentos que a Providência Divina lhes tias, não se envergonham de ministrar hipnóticos
confiou às mãos ternas e devotadas, contudo, há a entezinhos frágeis, que reclamam desvelado ca-
mulheres cujo coração ainda se encontra em plena r i n h o . . . Em algumas ocasiões, conseguimos res-
sombra. Mais fêmeas que mães, jazem obcecadas tabelecer a harmonia, com a recuperação desejável,
pela ideia do prazer e da posse e, despreocupando- no entanto, muitas vezes somos constrangidas a
assistir ao malogro de nossos melhores propósitos.
— Nesses casos... —• interferi, buscando maio- caminho não é o mesmo. Almas ainda encarcera-
res esclarecimentos. das no automatismo inconsciente, acham-se relati-
Blandina, porém, percebendo-me a indagação vamente longe do auto-governo. Jazem conduzidas
íntima, adiantou: pela Natureza, à maneira das criancinhas no colo
— Nesses casos, ainda e sempre, a Lei é inva- maternal. Não sabem desatar os laços que as apri-
riável. As provas e tarefas sofrem dilação no tem- sionam aos rígidos princípios que orientam o mun-
po, mas serão cumpridas, afinal. Aquilo que não do das formas e, por isso, exigem tempo para se
se realiza num século, pode efetuar-se em outro. renovarem no justo desenvolvimento. E' por esse
Nossa boa vontade e nossa aplicação aos Desígnios motivo que não podemos prescindir dos períodos
Divinos podem abreviar qualquer espécie de servi- de recuperação para quem se afasta do veículo fí-
ço. Quem persiste na direção do bem, mais cedo sico, na fase infantil, de vez que, depois do con-
atinge a vitória. flito biológico da reencarnação ou da desencarna-
E com o formoso sorriso que lhe bailava no ção, para quantos se acham nos primeiros degraus
semblante juvenil, acrescentou: da conquista de poder mental, o tempo deve fun-
— Não vale fugir às responsabilidades, por- cionar como elemento indispensável de restauração.
que o tempo é inflexível e porque o trabalho que E a variação desse tempo dependerá da aplicação
nos compete não será transferido a ninguém. pessoal do aprendiz à aquisição de luz interior,
Hilário, que acompanhava a conversação com através do próprio aperfeiçoamento moral.
extremo interesse, considerou: Encantava-nos a exposição clara e simples de
— Antigamente, na Terra, conforme a teolo- nossa interlocutora, cuja. palavra tangia com tanta
gia clássica, supúnhamos que os inocentes, depois felicidade graves problemas da vida.
da morte, permaneciam recolhidos ao descanso do Em suas fórmulas verbais singelas e acessí-
limbo, sem a glória do Céu e sem o tormento do veis, penetrávamos inquietantes enigmas da pueri-
inferno, e, nos últimos tempos, com as novas con- cultura .
cepções do Espiritualismo, acreditávamos que o me- Blandina sabia associar a compreensão e a
nino desencarnado retomasse, de imediato, a sua graça, instruindo-nos com discernimento.
personalidade de adulto... Comovido, diante das anotações que lhe defi-
—• Em muitas situações, é o que acontece — ' niam a valiosa posição cultural, ponderei:
esclareceu Blandina, afetuosa — ; quando o Espíri- — Usando semelhantes apontamentos, podemos
to já alcançou elevada classe evolutiva, assumindo entender, com mais segurança, os processos dolo-
o comando mental de si mesmo, adquire o poder de rosos das enfermidades congênitas e das moléstias
facilmente desprender-se das imposições da forma, insidiosas que assaltam a meninice no mundo. Sem-
superando as dificuldades da desencarnação prema- pre fui possuído de aflitivo assombro, à frente do
tura. Conhecemos grandes almas que renasceram mongolismo e da epilepsia, da encefalite letárgica
na Terra por brevíssimo prazo, simplesmente com e da meningite, da lepra e do câncer, na tenra
o objetivo de acordar corações queridos para a organização infantil...
aquisição de valores morais, recobrando, logo após — E que dizer dos desastres irremediáveis —
o serviço levado a efeito, a respectiva apresen-
considerou Hilário, com emoção —, dos desastres
tação que lhes era costumeira. Contudo, para a
que arrebatam adoráveis flores do lar, deixando
grande maioria das crianças que desencarnam, o
inconsoláveis pais e mães? Por vezes numerosas,
3
66 ANDRE LUIZ ENTRE A TERRA E O CEU (¡Y

procurei resposta às terríveis inquirições que nos somente há três anos terrestres me vejo, de novo,
atormentam, perante corpinhos dilacerados, nos hos- na vida espiritual. Não pude acariciar um filhinho,
pitais de sangue, sem conseguir ausentar-me do es- ém meus sonhos recentes de mulher, mas hoje sei
curo labirinto. que preciso reeducar-me no amor de mãe, consoan-
— Sim — esclareceu a enfermeira, bondosa —, te os débitos que contraí no passado. Realmente,
as reparações nos martirizam na carne, mas, sem sinto grande afeição pelas crianças, contudo, tenho
elas, não atingiríamos o próprio reajustamento. igualmente enormes dívidas morais para com elas...
— Cada qual de nós renasce na Terra — apre- 0 assunto descambava para um círculo parti-
ciou o Ministro — a exprimir na matéria densa cular, que devia ser sagrado aos nossos olhos.
o patrimônio de bens ou males que incorporamos Por isso mesmo, Clarêncio fêz mudo sinal para
aos tecidos sutis da alma. A patogenia, na essên- mim e a conversação foi canalizada para outro
cia, envolve estudos que remontam ao corpo espi- rumo.
ritual, para que não seja um quadro de conclusões
falhas ou de todo irreais. Voltando à Terra, atraí-
mos os acontecimentos agradáveis ou desagradá-
veis, segundo os títulos de trabalho que já con-
quistámos ou conforme as nossas necessidades de
redenção.
Bem humorado, acentuou:
— A carne, de certo modo, em muitas circuns-
tâncias não é apenas um vaso divino para o cres-
cimento de nossas potencialidades, mas também
uma espécie de carvão milagroso, adsorvendo-nos
os tóxicos e resíduos de sombra que trazemos no
corpo substancial.
Reparei, então, com mais insistência, a figura
suave de Blandina. Porque se dedicara ela, assim,
a trabalhos tão complexos? Não seria mais justo
ouvir aquela conversação, dos lábios da simpática
Mariana, que ali se achava, junto de nós, em sua
posição de matrona respeitável? Externei os meus
pensamentos, perguntando, com discrição, à jovem
o porquê da grave tarefa de que se incumbia.
Blandina apagou a luz do sorriso que lhe ador-
nava o semblante, como flor aberta que se fechas-
se, de súbito.
Pesado silêncio pairou no recinto.
Mas, generosa e simples, adoçou a expressão
fisionômica e falou, quase conselheira!:
— Fui casada em minha última existência e
ENTRE A TERRA E O CfiflJ 6&

pertamento espiritual ao nosso alcance. A cultura


intelectual pode não ser condição básica de nossa
felicidade, no entanto, é imperativo de engrande-
cimento de nossa alma. Quem não sabe ler, não
sabe ver como deve.
E, sorrindo, acrescentou:
— A evolução, a competência, o aprimoramen-
NOVOS APONTAMENTOS to e a sublimação resultam do trabalho incessante.
Quanto mais se nos avulta o conhecimento, mais
Hilário, aderindo à renovação da palestra, in- nos sentimos distanciados do repouso. A inércia
dagou da irmã Blandina se ela era a dirigente do opera a coagulação de nossas forças mentais, nos
parque em que nos achávamos, ao que ela infor- planos mais baixos da vida. O serviço é a nossa
mou, com humildade: bênção.
— Não me atribua tamanho crédito. Tenho Nesse instante, com referências tão sublimes
tarefas variadas aqui e alhures, entretanto, sou ao trabalho, voltámo-nos instintivamente para a
mera servidora. O nosso educandário guarda mais devotada Mariana, que se mantinha silenciosa, ao
de duas mil crianças, mas, sob a minha guarda, nosso lado.
permanecem apenas doze. Somos um grande con- Estaria ela ligada aos compromissos de pro-
junto de lares, nos quais muitas almas femininas teção à infância?
se reajustam para a venerável missão da mater-
nidade e conosco multidões de meninos encontram à pergunta que Hilário desfechou, com deli-
abrigo para o desenvolvimento que lhes é neces- cadeza fraternal, respondeu polidamente:
sário, salientando-se que quase todos se destinam — Quanto a mim, coopero com minha neta
ao retorno à Terra para a reintegração no apren- nos serviços que lhe foram conferidos aqui, entre-
dizado que lhes compete. tanto, a minha tarefa pessoal mais importante se
verifica num templo católico, a que me vinculei
— E a direção central? — inquiriu meu co- profundamente, quando de minha última reencar-
lega, esmiuçador. nação.
— Não reside aqui. O parque é uma das vá-
rias dependências de vasto estabelecimento de as- Aquela afirmativa excitava-nos a curiosidade.
sistência e educação, do qual somos hoje tutelados. A alusão a um «templo católico» denunciava filia-
No fundo, nossa casa é uma larga escola, dotada ção sectária.
com todos os recursos indispensáveis ao nosso apro- Mariana, efetivamente, emudecera, enquanto
veitamento. Os melhores processos de habilitação Blandina se confiava a precioso extravasamento de
espiritual funcionam conosco, em benefício dos que suas elevadas emoções. Estariam, ali, espiritual-
vão renascer na carne e dos que se dirigirão, mais mente divorciadas uma da outra?
tarde, às Esferas Superiores. A venerável irmã, que mostrava o halo de sim-
— Mas possuem aqui até mesmo os cursos patia das mulheres admiráveis quando alcançam a
primários de alfabetização? madureza, sorriu, benevolente, e acentuou:
— Como não? — falou nossa jovem amiga — — Não estranhem. Partilho com Blandina o
precisamos movimentar todas as medidas de des- estudo das leis divinas para renovar-me em espí-
rito, com vistas ao grande futuro, mas o amor que
ainda trago por velhos companheiros de luta hu-
mana constrange-me a larga demora, no serviço do fanatismo e da discórdia. Ainda assim, supe-
de cooperação, na antiga casa de fé religiosa a rando tais obstáculos, é sempre possível algo fazer
•que me afeiçoei. em benefício do próximo.
— Aliás -— ponderou o Ministro, sensato —, — Durante a missa, por exemplo — prosse-
o auxílio divino é como o Sol, irradiando-se para guiu Hilário, observador —, é viável o seu trabalho
todos. As instituições e as almas que se voltam de cooperação ?
para o Pai Celestial recebem o suprimento de re- Mariana fixou uma expressão facial de bom
cursos de que necessitam, segundo as possibilida- humor e aduziu:
des de recepção que demonstrem.
— Somos grandes falanges de aprendizes da
Interessado, porém, nos apontamentos que sur- fraternidade, em ação. Por mais desagradáveis se
giam, cada vez mais valiosos, Hilário indagou: nos mostrem os quadros de luta, a nossa obrigaçãa
— Em que base se formará o processo de au- é servir.
xílio nas igrejas? Com o impedimento de nossa Finda ligeira pausa, continuou:
comunicação direta, como será possível cooperar
em favor dos nossos irmãos católicos romanos? — Quando a missa obedece a pura convenção
social, funcionando como exibição de vaidade ou
— Muito simplesmente — esclareceu Mariana, poder, a nossa colaboração resulta invariavelmen-
prestimosa —, o culto da oração é o meio mais te nula.
seguro para a nossa influência. A mente que se E, sorrindo:
coloca em prece estabelece um fio de intercâmbio
natural conosco... — Que teríamos a fazer num ato bajulatório,
em que os devotos da fortuna material ou da per-
— Mas não de maneira ostensiva •— alegou versidade incensam a desregrada conduta de pes-
o nosso companheiro, estudioso. soas inescrupulosas? Há missas solenes de consa-
— Pelo pensamento — explicou a interlocuto- gração a políticos astuciosos e a magnatas do ouro
ra, respeitável. — A intuição beneficia em toda que, em verdade, são reais sacrilégios, em nome
parte, e, quanto mais alto é o teor de qualidades do Cristo. Por outro lado, há missas de almas que
nobres na criatura, mais ampla é a zona lúcida de constituem escárnio à dor dos que foram recolhi-
que se serve para registar o socorro espiritual. dos pela morte, quais as que são mandadas cele-
O culto público, indiscutivelmente, qual vem sendo brar por parentes ambiciosos que, por vezes, até
levado a efeito, nos tempos modernos, não favo- mesmo se alegram com a ausência do morto, ávi-
rece o contacto das forças superiores com a mente dos que se mostram de lhes pilharem os despojos,
popular. Os interesses rasteiros, conduzidos à igre- na corrida a testamentos e cartórios. Essas mis-
ja, constituem sólido entrave contra o auxílio ce- sas fortemente adubadas a dinheiro estão para
leste. E a preocupação de riqueza e pompa, quase eles tão frias, como os túmulos em que se lhes
sempre mantida pelo sacerdócio nos ofícios, inuti- asilou a carne desfigurada. Mas, se o ato religioso
liza, por vezes, os nossos melhores esforços, por- é simples, partilhado por mentes e corações since-
que, enquanto a atenção da alma se prende a ros, inclinados à caridade evangélica e centraliza-
exterioridades, as forças contrárias ao bem e à dos na luz da oração, com os melhores sentimentos
luz encontram facilidades positivas para a cultura que possuem, o culto se reveste de grande valor,
pelas vibrações de paz e carinho que arremessa
na direção daquele a quem é endereçado. Frequen-
temente, as missas humildes, realizadas aos pri- — Ah! — . comentou Mariana, sincera — o
meiros cânticos da manhã, são as mais favoráveis trabalho é complexo e divide-se em múltiplos se-
ao nosso concurso. Podemos, com mais segurança, tores. Não está limitado à esfera da experiência
articular as possibilidades ao nosso alcance e am- física. Inumeráveis são as almas que, desligadas
bientá-las a benefício daqueles que esperam de nós do corpo, recorrem aos altares, implorando escla-
o amparo necessário. ' recimento... Outras, depois da morte, confiam-se
Hilário pensou alguns instantes, valendo-se do a desequilibradas emoções, invocando a proteção
intervalo que surgira na conversação e obtemperou: dos Espíritos santificados... E' preciso corrigir
— Possuímos nas igrejas a questão do patro- aqui e ajudar aiém. . . Agora, devemos injetar um
cínio. Imaginemos que determinado templo foi er- pensamento reeonstrutivo nessa ou naquela men-
guido à memória de Gerardo Majela. Isso expressa te extraviada, depois, é imprescindível harmonizar
uma obrigação para o grande místico europeu? circunstâncias, em favor desse ou daquele neces-
sitado . . . A maioria das pessoas aceita a religião,
— Certamente não se trata de uma obrigação mas não se preocupa em praticá-la. Daí nasce o
escravizante, mas de um serviço que lhe honra o terrível aumento das aflições e dos enigmas.
nome e que merecerá dele certo reconhecimento A lógica de Mariana encantava-nos.
mesclado de responsabilidade. Devemos reconhe-
cer, contudo, que o trabalho do bem, qualquer que Hilário, porém, prosseguiu indagando, perscru-
ele seja, permanece ligado a Jesus. No entanto, tador.
se algum servo do Senhor está ligado a obra por — Mas, apesar de consciente da verdade que
fazer, tanto quanto lhe seja possível desdobrar- a separação do veículo físico nos impõe, acredita
-se-á para enriquecê-la de bênçãos. a irmã que a organização católica é suficiente para
— M a s . . . e na hipótese de algum santuário conduzir o mundo moderno?
surgir, dedicado a suposto herói da virtude? Figu- Ela sorriu com tristeza e redarguiu:
remos alguém da Terra sendo conduzido ao altar — Meu amigo, entre cooperar e aprovar, há
por imposição da autoridade humana, sem mérito sensível diferença. A sociedade ajuda a criança
bastante, à frente do Senhor... Os crentes encar- sem infantilizar-se. As igrejas nascidas do Cristia-
nados atribuir-lhe-iam poder de que não consegui- nismo caminham para grande renovação. O pro-
ria dispor... Em que situação estaria o templo gresso assim exige. As ideias de céu e inferno e
que lhe fosse consagrado? os excessos de natureza política, na hierarquia
Mariana registou a pergunta, cortesmente, e eclesiástica, estabeleceram grandes perturbações
explicou: para a alma popular. Entretanto, cabe-nos con-
— Numa contingência dessas, mensageiros de siderar as religiões que envelhecem como frutos
Jesus responsabilizar-se-iam pela instituição, dis- fortemente amadurecidos. A polpa alterada pelo
tribuindo aí os benefícios adequados aos mereci- tempo deve ser colocada à margem, contudo, as'
mentos e necessidades de cada um. sementes são indispensáveis à produção do futuro.
Auxiliemos as igrejas antigas, em vez de acusa-
— E o tipo de assistência? é de renovação - a s . Todos somos filhos do Pai Celestial e onde
espiritual ou de mero socorro aos crentes encar- houver o mínimo gérmen de Cristianismo aí sur-
nados? girão recursos de recuperação do homem e da co-
letividade para o Cristo, Nosso Senhor.
A conversação era fascinante e as perguntais
pareciam brilhar ainda, nos olhos de Hilário, ma-
ravilhado tanto quanto nós, ante as elucidações
que recebia, mas a hora esgotara-se.
Um sinal de Clarêncio fêz-nos sentir que ha-
víamos alcançado o momento da volta.
XII

ESTUDANDO SEMPRE
Ãs despedidas, retomámos as excursionistas
sob a nossa guarda e, em pouco tempo, achávamo-
-nos, de novo, no caminho terrestre.
Da faixa de luz solar, tornámos à imersão
na sombra noturna, mas o espetáculo do céu não^
diminuíra em beleza, porque as primeiras cores da
alvorada tingiam o distanciado horizonte.
Clarêncio restituiu a companheira de Antonina
ao lar, depois de afetuoso adeus. E, sem maiores
delongas, demandámos o ninho doméstico de nossa
amiga.
Antonina mostrava-se calada,, tristonha...
Dir-se-ia teimava em permanecer, para sempre,
junto do pequenino que a precedera na longa via-
gem da morte. Todavia, em penetrando o estrei-
to santuário familiar, dirigiu-se apressadamente ao
quarto, de coração novamente atraído para os ou-
tros filhinhos.
O Ministro, paternal, fê-la deitar-se e aplicou-
-Ihe recursos magnéticos sobre os centros corticais.
A mãezinha de Marcos demonstrou experimen-
tar leve e doce vertigem...
Atendendo ao orientador, demorámo-nos em
observação, notando que a Antonina de nossa ma-
ravilhosa viagem aderira ao corpo denso, qual se
fora por ele sugada, à maneira de formosa mu-
lher, de forma sutil e semi-lúcida, repentinamente
engulida por bainha de sombra. Em se justapondo
ao cérebro físico, perdera a acuidade mental com
que se caracterizava junto de nós. Com a fisiono-
mia calma e feliz, despertou no veículo pesado... lembrança para ela redundaria em saudade mortal.
Contudo, Antonina não mais nos viu. — Como isso é lamentável! — alegou o meu
companheiro, penalizado.
Era agora simplesmente a mulher humana,
nas cobertas agasalhantes do leito, acomodada à O Ministro, todavia, explicou, paciente:
escuridão do recinto. — Cada estágio na vida se caracteriza por
Lembrava-se, sim, do passeio ao Lar da Bên- finalidades especiais. 0 mel é saboroso néctar
ção, mas através de impressões a se esfumarem, para a criança, mas não deve ser ministrado indis-
rápidas. criminadamente. Reclama dosagem para não vir
Só a imagem do filhinho, tema central do seu a ser importuno laxativo. O contacto com o reino
amor, lhe persistia clara e movimentada na me- espiritual, enquanto nos demoramos no envoltório
mória. . . terrestre, não pode ser dilatado em toda a exten-
são, para que nossa alma não afrouxe o interesse
Nossa presença e todas as demais particula-
de lutar dignamente, até o fim do corpo. Antonina
ridades do voo sublime lhe acudiam à lembrança
lembrar-se-á de nossa excursão, mas de modo vago,
por acessórios fantásticos a se lhe perderem nos
como quem traz no campo vivo da alma um belo
obscuros escaninhos da imaginação.
quadro de esbatidos contornos. Recordar-se-á, po-
Como quem seleciona preciosidades, a conso- rém, do filhinho mais vivamente, o bastante para
lada mãezinha procurava, ansiosa, nos arquivos sentir-se reconfortada e convicta de que Marcos a
da própria mente, todas as palavras que ouvira do espera na vida maior. Semelhante certeza ser-lhe-á
filho abençoado, buscando retê-las no escrínio do doce alimento ao coração.
coração. Por isso, das valiosas observações de Cla-
rêncio, em poucos minutos não lhe restava na alma O silêncio passou a dominar o recinto, mas
qualquer reminiscência. Clarêncio quebrou-o, quase de imediato, convidan-
Antonina movimentou-se, fêz luz e ouvimo-la do-nos a socorrer o velhinho que nos aguardava.
pensar, vibrante: — «Oh! meu Deus, que alegria! Dormitava o ancião numa velha cadeira.
pude vê-lo perfeitamente! quero guardar a recor- — Será sono? — perguntou Hilário, mais novo
dação deste sonho divino!... Marcos, Marcos, que que eu na vida do Além. -
saudades, meu f i l h o ! . . . » •— Sim — confirmou o instrutor, benevolente
O Ministro abeirou-se dela, acariciou-lhe a ca- —, na fase em que se encontra, Leonardo subordi-
beça, como se a envolvesse em fluidos calmantes na-se a todos os fenômenos da existência vulgar.
« a simpática senhora restabeleceu a sombra no Não prescinde, assim,- do repouso para refazer-se.
recinto. Examinámo-lo mais detidamente.
Abraçando a caçula que repousava ao seu lado, Sem dúvida, o ancião trazia um veículo seme-
novamente dormiu. lhante ao nosso, segundo os princípios organogê-
— Nossa amiga não poderá guardar positivas nicos que presidem à constituição do corpo espiri-
recordações — informou Clarêncio com atenção. tual, contudo, mostrava-se tão pesado e tão denso
— Mas, porquê?—indagou Hilário, admirado. como se ainda envergasse a túnica de carne.
— Raros Espíritos estão habilitados a viver na
Terra, com as visões da vida eterna. A penumbra Deixei a Hilário os pruridos de curiosidade que,
interior é o clima que lhes é necessário. A exata em outro tempo, me assaltavam de inopino.
Após lhe observar o aspecto desagradável, meu
colega inquiriu sobre as razões de tal obscureci- passado, em tentativas heróicas de auxílio e rea-
mento . justamento .
O Ministro não se fêz rogado e explicou: E, sorrindo, acrescentou:
— O psicossoma (*) ou o perispírito da defini- — Na família consanguínea ou na família hu-
ção espírita não é idêntico de maneira absoluta em mana, obtemos o que buscamos. Quem já acertou
todos nós, assim como, na realidade, não existem as próprias contas com a justiça, pode confiar-se
dois corpos físicos totalmente iguais. Cada cria- aos sublimes rasgos do amor.
tura vive num carro celular diferente, apesar das Em seguida, Clarêncio deteve-se na contem-
peças semelhantes, impostas pela lei das formas. plação do velhinho que repousava e continuou co-
No círculo de matéria densa, sofre a alma encar- mentando, mais particularmente com Hilário:
nada os efeitos da herança recolhida dos pais, en- — Conforme a vida de nossa mente, assim vive
tretanto, na essência, a lei da herança funciona nosso corpo espiritual. Nosso amigo entregou-se,
invariavelmente do indivíduo para ele mesmo. De- demasiado, às criações interiores do tédio, ódio, de-
temos tão somente o que seja exclusivamente nosso sencanto, aflição e condensou semelhantes forças
ou aquilo que buscamos. Renascemos na Terra, em si mesmo, coagulando-as, desse modo, no veícu-
junto daqueles que se afinam com o nosso modo lo que lhe serve às manifestações. Daí, esse as-
de ser. O dipsômano não adquire o hábito desre- pecto escuro e pastoso que apresenta. Nossas obras
grado dos pais, mas sim, quase sempre, ele mesmo ficam conosco. Somos herdeiros de nós mesmos.
já se confiava ao vício do álcool, antes de renas- —• M a s . . . e se nosso irmão trabalhasse? se
cer. E há beberrões desencarnados que se aderem depois da morte procurasse conjugar o verbo ser-
àqueles que se fazem instrumentos deles próprios. vir? — inquiriu meu colega, preocupado.
E, imprimindo grave entono à voz, ponderou: — A h ! indiscutivelmente o trabalho renova
— A hereditariedade é dirigida por princípios qualquer posição mental. Gerando novos motivos
de natureza espiritual. Se os filhos encontram os de elevação e novos fatores de auxílio, o serviço
pais de que precisam, os pais recebem da vida os estabelece caminhos outros que realmente funcio-
filhos que procuram. nam como recursos de libertação. Por isso mesmo,
Lembrei-me repentinamente de alguns dos o constante apelo do Senhor à ação e à fraterni-
grandes gênios da Humanidade, que produziram dade se estende, junto de nós, diariamente, através
filhos monstruosos ou medíocres. Mas, vindo ao en- de mil m o d o s . . . Todavia, quando não nos devo-
contro do meu pensamento, o orientador observou: tamos ao trabalho, enquanto nos demoramos na
•— No campo das grandes virtudes, os pais vestimenta terrestre, mais difícil se faz para nós
usam, por vezes, a compaixão reedificante, empe- a superação dos obstáculos mentais, porque a in-
nhando-se em tarefas de sacrifício. Temos no mundo dolência trazida do mundo é tóxico cristalizante de
mulheres e homens admiráveis que, consolidando nossas ideias, fixando-as, por vezes, durante tempo
qualidades superiores na própria alma, se dispõem indefinível. Se pretendemos possuir um psicosso-
a buscar afetos que permanecem a distância, no ma sutilizado, capaz de reter a luz dos nossos me-
lhores ideais, é imprescindível descondensá-lo, pela
sublimação incessante de nossa mente, que preci-
sará, então, centralizar-se no esforço infatigável
(*) Do grego: psykhé, alma, espírito, e soma, do bem. E' para esse fim que o Pai Celestial nos
corpo. —- (Nota da Editora.)
concede a dor e a luta, a provação e o sofrimen-
to, os únicos elementos reparadores, suscetíveis de
produzir em nós o reajuste necessário, quando nos
pomos em desacordo com a Lei. \
Lá fora, porém, as aves matutinas anunciavam
o novo d i a . . . XIII
A tênue claridade da manhã penetrava o re-
cinto .
Clarêncio lembrou que para socorrer o ancião ANÁLISE MENTAL
ensandecido não dispensaríamos algum trabalho
de análise da mente, e, porque semelhante servi- O relógio terrestre assinalava meia-noite e três
ço demandaria talvez a cooperação de companhei- quartos, quando tornámos ao singelo domicílio de
ros encarnados, que não deviam ser incomodados Antonina.
na paisagem diurna, o Ministro convocou-nos à A casinha dormia, calma.
retirada. Acocorado a um canto, o velho Leonardo man-
O prosseguimento da tarefa assistencial, desse tinha-se na sala, pensando... pensando...
modo, foi marcado para a noite seguinte. Adensámo-nos, ante a visão dele, e, reconhe-
cendo-nos, ergueu-se e começou a gritar:
— Ajudai-me, por amor de Deus! Estou pre-
so ! p r e s o ! . . .
Clarêncio, bondoso, convidou-o a acomodar-se
na poltrona simples e induziu-o à prece.
O velhinho, contudo, alegou total esquecimento
das orações que formulara no mundo, crendo que
apenas lhe serviriam as palavras decoradas, mas
o orientador, elevando a voz, com o intuito evi-
dente de sossegá-lo na confiança íntima, pronun-
ciou comovente súplica à Divina Providência, im-
plorando-lhe proteção e segurança para quem se
mostrava tão desarvorado e tão infeliz.
Emocionados com aquela petição que nos re-
novava igualmente as disposições interiores, obser-
vámos que o avô de Antonina se aquietara, re-
signado .
Clarêncio, logo após a oração, começou a
aplicar-lhe forças magnéticas no campo cerebral.
O paciente revelou-se mais intensamente aba-
tido.
A cabeça pendeu-lhe sobre o peito, desgover-
nada e sonolenta.
82 ANDRfi LU^Z
/ ENTRE A TERRA E O CÉU 83

Fitando-nos de modo significativo, o Ministro


ponderou: / de matéria carnal. No grande futuro, o médico ter-
— A corrente de fdrça devidamente dinami- restre desentranhará um labirinto mental, com a
zada no passe magnético arrancá-lo-á da sombra mesma facilidade com que atualmente extrai um
anestesiante da amnésia. Poderemos, então, son- apêndice condenado.
dar-lhe o íntimo com mais segurança. Assistido por Hilário arregalou os olhos, espantado, feliz.
nossos recursos, a memória dele regredirá no tem- E exclamou, em voz quase gritante:
po, informando-nos quanto à causa que o retém — A h ! Freud, como viste a verdade!... como
junto da neta, aclarando-nos, ainda, sobre prová- detinhas a r a z ã o ! . . .
veis ligações que nos conduzirão à chave do socor- O orientador fixou-o, paternalmente, e aduziu:
ro, a benefício dele mesmo. — Freud vislumbrou a verdade, mas toda ver-
— Mas o retrocesso das recordações poderá dade sem amor é como luz estéril e fria. Não
verificar-se, de improviso? — indagou Hilário, per- bastará conhecer e interpretar. E' indispensável
plexo . sublimar e servir. O grande cientista observou as-
— Sem dúvida — respondeu o instrutor —, a pectos de nossa luta espiritual na senda evolutiva
memória pode ser comparada a placa sensível que, e catalogou os problemas da alma, ainda encarce-
ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens rada nas teias da vida inferior. Assinalou a pre-
recolhidas pelo espírito, no curso de seus inume- sença das chagas dolorosas do ser humano, mas
ráveis aprendizados, dentro da vida. Cada existên- não lhes estendeu eficiente bálsamo curativo. Fêz
cia de nossa alma, em determinada expressão da muito, mas não o bastante. O médico do porvir,
forma, é uma adição de experiência, conservada para sanar as desarmonias do espírito, precisará
em prodigioso arquivo de imagens que, em se su- mobilizar o remédio salutar da compreensão e do
perpondo umas às outras, jamais se confundem. amor, retirando-o do próprio coração. Sem mão
Em obras de assistência qual a que desejamos mo- que ajude, a palavra erudita morre no ar.
vimentar, é preciso recorrer aos arquivos mentais, O Ministro, contudo, calou-se, dando-nos a en-
de modo a produzir certos tipos de vibração, não tender que o momento não comportava digressões
só para atrair a presença de companheiros ligados filosóficas.
ao irmão sofredor que nos propomos socorrer, como Acariciou, ainda por alguns instantes, a cabeça
também para descerrar os escaninhos da mente, do ancião e, em seguida, chamou-o, de manso:
nas fibras recônditas em que ela detém as suas
— Leonardo, recorda! Volta ao Paraguai, onde
aflições e feridas invisíveis.
adquiriste o remorso que hoje te retalha o cora-
— Quer dizer então q u e . . . ção! A dor, quase sempre, é culpa sepultada dentro
A frase de Hilário, porém, se lhe apagou nos de n ó s . . . Retrocedamos ao ponto inicial de teu
lábios, porque o Ministro atalhou, completando-lhe sofrimento!... Recorda! Recorda!. . .
a conceituação:
— A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e O velhinho, diante de nosso intraduzível as-
deve sofrer intervenções para reequilibrar-se. Mais sombro, acordou de olhos transtornados.
tarde, a ciência humana evolverá em cirurgia psí- Ergueu a fronte, mas seu rosto alterara-se de
quica, tanto quanto hoje vai avançando em técnica maneira sensível.
operatória, com vistas às necessidades do veículo Sustentava, iniludivelmente, os traços funda-
mentais, mas fizera-se mais jovem.
84 ANDRÉ L U Í ?
• , /'
• /
pino, e vimo-la realmente mais bela, todavia, me-
Registando a surpreendente transfiguração, Hi- nos serena e menos espiritualizada.
lário interferiu, perguntando: Favorecendo-nos o máximo proveito nas obser-
— Oh! que força mágica será esta? vações, o Ministro falou em voz baixa:
Nosso orientador fitou-o, sereno, e esclareceu: — Nossa irmã exige tão somente leve auxílio
— Não nos esqueçamos de que temos diante magnético para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade
de nós o veículo espiritual, por excelência vibrátil. anormal do reencontro para cair na posição vibra-
O corpo da alma modifica-se, profundamente, se- tória do passado, de vez que ainda não se encontra
gundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. quitada com a Lei.
. Isso, aliás, não é novidade. Na própria Terra, a Aterrada, Antonina rojou-se de joelhos aos pés
máscara física altera-se na alegria ou no sofrimen- do ancião que se rejuvenescera ao influxo dos pas-
to, na simpatia ou na aversão. Em nosso plano, ses de Clarêncio e gritou:
semelhantes transformações são mais rápidas e — Leonardo!... Leonardo!...
exteriorizam aspectos íntimos do ser, com facilida-
Ele, porém, irradiando no olhar ódio e pade-
de e segurança, porque as moléculas do perispírito cimento intraduzíveis, bradou:
giram em mais alto padrão vibratório, com movi- — Enfim!.. . E n f i m ! . . .
mentos mais intensivos que as moléculas do corpo
E prorrompeu em pranto convulso.
carnal. A consciência, por fulcro anímico, expres- Estupefactos, ouvimos Clarêncio que nos infor-
sa-se, desse modo, na matéria sutil com poderes mava, generoso:
plásticos mais avançados.
Clarêncio relanceou o olhar pelo recinto e acres- — Repararam? Antonina é Lola Ibarruri reen-
carnada. Leonardo está vinculado a ela por laços
centou :
de imenso amor. Ambos procedem de lutas enor-
— Entretanto, não nos descuidemos do serviço mes, na teia infinita do tempo. A mulher irrespon-
a fazer. sável de ontem, hoje é mãe amorosa e digna, à pro-
Nesse ínterim, Leonardo soerguera-se. cura da própria regeneração. Tendo abandonado
Parecia animado de estranha energia. outrora o marido, foi induzida a desposar um ho-
O corpo, não obstante continuar obscuro e pas- mem animalizado, com quem se encontra igualmen-
toso, revelava-se desempeñado. / te enleada por laços do pretérito e que, em não a
Repentinamente refeito, vigoroso e móbil, cla- entendendo agora, votou-a ao esquecimento. Rece-
mou: beu, contudo, antigos associados de destino por fi-
— Lola! Lola! estás aqui? Sinto-te a presen- lhos do coração, que conduz para o bem. Em contra-
ç a . . . Onde te ocultas? Ouve-me! ouve-me! posição às facilidades delituosas do passado, atra-
Com inexprimível espanto, vimos dona Anto- vessa atualmente aflitivos obstáculos para viver.
nina escapar do aposento, no corpo espiritual com Simpatia incoercível inclinou-nos para aquela
que a divisáramos na véspera. mulher em provas tão ríspidas.
Avançou ao nosso encontro, extremamente sur- O ensinamento que a vida ali nos ofertava era
preendida, e, avistando o avô transfigurado, como efetivamente sublime.
se fosse tangida no imo da personalidade por mis- A voz do orientador, no entanto, era clara e
teriosa influência, estampou súbita alteração facial, segura a recomendar:
renovando-se igualmente aos nossos olhos. — Ajudemos. O momento determina auxiliar.
As linhas do semblante modificaram-se, de ino-
— Leonardo, perdoa-me!... Sofri m u i t o . . .
Enlouqueceste, é verdade! Mas, a perturbação que
me atacou era mais lastimável, mais amargosa!...
Sabes o que seja o caminho da mulher aviltada,
entre o arrependimento e a aflição? Meditaste, al-
gum dia, no martírio do coração feminino, relegado
XIV â penúria e ao abandono? Refletiste, alguma vez,
na desilusão e na fome da meretriz desprezada e
ENTENDIMENTO doente? Acaso, poderás perceber o que seja a fla-
gelação de quem espera a morte, sob o sarcasmo
Antonina, modificada, esfregava os olhos com» de todos, entre a sede e o suor? Tudo isso co-
quem não desejava acreditar no que via, mas, re- nheci ! . . .
signando-se à evidência, continuou: — Matei, porém, por tua c a u s a . . . — tarta-
— Compadece-te de mim! compadece-te!... mudeou o mísero, infundindo compaixão.
— Lola, donde vens? — perguntou o infeliz.
— Naquele tempo — alegou a infortunada —,
— Não me induzas a lembrar!... fiz pior. Exterminei minha a l m a . . . Esposa, tro-
— Não lembrar? Que condenado no tormento- quei o altar doméstico pelo mentiroso tablado do
da expiação será capaz de esquecer? A culpa é um gozo fácil; mãe, envileci o mandato que Deus me
fogo a consumir-nos por dentro... concedera, crestando todas as flores de minha fe-
— Não me reconduzas ao passado!... licidade ! . . .
— Para mim é como se o tempo fosse o mes-
mo . O inferno não tem horas diferentes... A dor •—• Pudeste, no entanto, realizar o reerguimen-
paralisa a vida dentro de n ó s . . . to que ainda não consegui... Foste, em suma,
feliz!...
— E' preciso olvidar...
— Nunca! O remorso é um monstro invisível — Feliz? — bradou Antonina, semi-desespe-
que alimenta as labaredas da c u l p a . . . A consciên- rada — acusas-me de infiel, quando, como tantos
cia não d o r m e . . . outros, te cansaste de mim, procurando outras no-
— Não me rebentes o coração! • vidades e outros rumos!... Vi-me sozinha, enferma,
— E acaso o meu não vive estraçalhado? aniquilada... Debalde busquei afogar no vinho do
O diálogo prosseguia comovente e Antonina, prazer a horrível impressão do abismo em que me
genuflexa, explodindo em angustiosa crise de lágri- precipitara, porque, quando o desencanto e a en-
mas, implorou com mais força: fermidade me relegaram à margem da vida, acor-
— Não golpeies minhas feridas mal cicatriza- dou-se-me a consciência, inculpando-me, desapieda-
das! Não se rouba ao devedor o ensejo de pagar! da. . . A morte recolheu-me na vala da miséria,
— Entretanto, por ti — gemeu o interlocu- como um carro de higiene pública reclama o lixo
tor —, enredei-me no crime... Amei-te e perdi-me. da sarjeta... Estarás habilitado a compreender-me
Trazias nos olhos a traição disfarçada... Oh! Lola, o sofrimento em toda a extensão ? ! . . . Por muitos
porquê, porquê ? . . . anos, vagueei aflita, como ave sem ninho, refu-
E, ante o doloroso acento com que essas pala- giada no espinheiro de dor que cultivara em mim
m e s m a . . . Esmolei proteção, junto daqueles que me
vras eram pronunciadas, a pobre mulher suplicou,
baviam sido afetos estimulantes da juventude...
mais triste:
Ninguém se recordava de m i m . . . Não me cabia — Agora, que te capacitas de minhas dificul-
dades, perdoa-me!... Não me move outro desejo
recolher uma gratidão que eu não semeara... Até senão o de renovar-me! Sofri muito, aprendi dura-
que um d i a . . . mente ! . . . Peço a proteção da Divina Bondade para
Antonina passou a destra pela fronte pálida, todos aqueles que me não compreenderam e pro-
como se evocasse velhas recordações fortemente curo sinceramente olvidar as ofensas que outros
trancadas na memória. Seu olhar adquirira a as- me assacaram, como desejo sejam esquecidas as
sustadiça expressão dos enfermos que a febre torna ofensas que pratiquei contra os o u t r o s ! . . . Não me
dementados. reconduzas, pois, ao passado!... Compadece-te de
Findos alguns instantes, exibiu no rosto a sur- mim!...
presa de quem se banha num relâmpago de luz.
Parecendo haver encontrado a imagem que an- Reparávamos, com assombro, que Leonardo e
Antonina, sob o controle paternal de Clarêncio, se
siosamente procurara, continuou: mantinham detidos na posição vibratória em que
— . . . até que um dia, senti que me chamavas haviam subitamente caído.
com pensamentos de carinho e de p a z . . . Rememo-
ravas alguns traços elogiáveis de nossa vida, re- Porque não se recordavam os dois do paren-
tesco que os reunia?
compondo na lembrança as festas que organizáva-
mos em favor dos combatentes mutilados... A s Nosso instrutor, assinalando-nos a indagação,
tuas divagações, arrancando ao pretérito as raras socorreu-nos, esclarecendo:
reminiscências felizes que poderíamos identificar, — Encontram-se ambos imobilizados em certo
caíram sobre mim como bálsamo refrigerante.. . momento do pretérito, num encontro provocado por
Chorei aliviada e adormeci em tua casa, no acon- influência magnética. Em tais recursos utilizados
chego da família que tiveste a ventura de cons- por nosso plano, no tratamento salutar das molés-
tituir. . . tias da alma, determinados centros da memória se
Interrompeu-se Antonina, figurando-se-nos in- reavivam, ao passo que outros empalidecem. As
capaz de prosseguir recordando. Via-se que esbar- sensações do presente dão lugar às sensações do
rara com insuperáveis impedimentos íntimos. passado, para efeito de reajustamento perante o
Emudecera, torturada pela incapacidade mne- futuro. O fenômeno, porém, é momentâneo. A bre-
mónica que a assaltara de improviso, contudo, o ves minutos, regressarão à consciência normal, me-
nosso orientador acercou-se dela e afagou-lhe a lhorados para a boa luta.
cabeça, deixando perceber que a auxiliava magne- A explicação não podia ser mais satisfatória,
ticamente na recuperação das próprias forças. nem mais simples.
— Não posso saber — gritava Leonardo —,. O Ministro continuava prestando assistência à
não posso saber! Desde que meu espírito foi ocupa- nossa amiga, qual se Antonina não devesse avançar
do por «ele», não consigo coordenar as ideias que na faixa de lembranças.
me são próprias... Sim, certamente sou culpado... Aceitando-lhe os apelos, Leonardo como que
Tens r a z ã o . . . Podias ter recebido meu concurso. . . arrefecera o ímpeto inicial de desesperação.
Não me cabia pensar em ti como se fosses tão* Fitava-a, agora, quase que piedosamente, mas,
somente mulher... longe de albergar qualquer sentimento positivo de
Mais calma, a. pobre interlocutora suplicou» •ordem superior, arrancou do próprio íntimo nova
triste:
ANDRÉ LUIZ ENTREI A TERRA E O CÉU 91
90

onda de cólera, que lhe tingiu a máscara fisionô- Notámos que os três protagonistas da cena que.
se improvisara jaziam repentinamente hipnotizados
mica. por vibrações de assombro e desespero.
Cerrando os punhos, bradou, desvairado:
Leonardo, porém, dando um salto à retaguar-
— Sim, sim, entendo-te... Foste suficientemen- da, bradou:
te infeliz... Mas, porque trago comigo o fantasma
— Agora! agora, sim!... Vieste mesmo! Vejo-
«dele» ? Ter-se-á convertido num demônio intangível -te, fora de minha cabeça, vejo-te como é s ! . . . Li-
para arrasar-me a existência? Estaremos no in- quidemos nossa c o n t a . . . Risca-me dentre os vivos
ferno, sem saber, agarrados um ao outro? Viverei ou eu te riscarei!...
dentro dele, quanto ele vive dentro de mim? Por-
que me não permite o verdadeiro repouso? se pro- — Piedade! piedade!... — suplicava Antoni-
na, lacrimosa.
curo dormir, desperta-me, cruel; se tento olvidar,
Pires, no entanto, parecia não ouvi-la, sob o
agiganta-se-me no pensamento!... olhar de Esteves que o observava, com visível re-
Desequilibrado, Pires ergueu para o teto os pugnância .
punhos retesos, ensaiou alguns passos no recinto
estreito e passou a clamar: Semi-apavorado e pondo-se em guarda, sacudi-
do pelas próprias reminiscências, o recém-chegado
— Esteves, homem ou diabo, onde estiveres, respondeu, agressivo:
em mim ou fora de mim, corporifica-te e v e m ! . . .
Estou pronto! acertemos a diferença!... Vítima ou — Conheço-te e odeio-te!... Assassino, assas-
sino ! . . .
carrasco, aparece! que meu pensamento te encon-
tre e te t r a g a ! . . . Que as forças do nosso destino Engalfinhar-se-iam, sem dúvida, como animais
nos reúnam, enfim, corpo a c o r p o ! . . . enfurecidos, mas o nosso orientador interferiu, de
Alguns instantes decorreram, quando fomos imediato, imobilizando-os prontamente.
surpreendidos pela entrada de nova personagem Tocado pelo Ministro, Esteves enxergou-nos e,
na sala. surpreendido, aquietou-se.
Era um homem de seus trinta e cinco anos Clarêncio confiou-o à nossa vigilância e, diri-
presumíveis, que se abeirava de nós, igualmente gindo-se a Leonardo, em voz segura, concitou:
fora do vaso físico. — Meu amigo, extirpa da mente a ideia do
crime. Achas-te cansado, enfermo. Receberás a
Passeou no recinto esgazeado olhar, dando-nos
medicação de que necessitas.
a impressão de que não nos percebia a presença,
e, ofegante e contrariado, qual se estivesse ingres- Num átimo, ausentou-se e regressou trazendo
sando ali, constrangidamente, deteve-se apenas na ao recinto dois amigos de nosso plano, os quais
transportaram Leonardo, semi-inconsciente, para
contemplação de Leonardo e Antonina, reconhecen- um santuário de reajuste, em que mais tarde nos
do-os, estarrecido e agoniado. receberia a assistência.
Clarêncio, junto de nós, informou, prestimoso:
— Sob a positiva invocação de Leonardo, E s - Em seguida, nosso instrutor acomodou Esteves
na poltrona singela, recomendando-lhe esperar-nos.
teves, parcialmente libertado pelo sono, comparece
ao desafio. O repouso noturno favorece tais enten- O novo companheiro, amedrontado, obedeceu
automaticamente.
dimentos, pela atração magnética mais intensiva-
mente facilitada, quando o envoltório de matéria, Logo após, amparando Antonina, procurámos
restituí-la ao quarto particular.
densa exige recuperação.
Considerámos, então, que se grande fora a ven-
tura da pobre senhora na véspera, naquela noite
assemelhava-se, desditosa, a um trapo de sofri-
mento.
Encontrámos grande dificuldade para recompô-
-la em espírito e para religá-la à vestimenta carnal,, XV
quase inerte.
Revelava-se imensamente confrangida. ALÉM DO SONHO
Por mais de duas horas mereceu-nos especial
atenção. Somente depois de considerável esforço^ Tornando a Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o
de Clarêncio, conseguiu refazer-se. Vimo-la acor- braço amigo, mas o moço prorrompeu em súplica:
dar, exausta e entontecida. — Não me prendam! não me prendam! Sou a
Algo aliviada, Antonina acreditou-se liberta de vítima!...
estranho pesadelo. Ainda assim, sem saber explicar O Ministro absteve-se de continuar em sua afe-
a razão, torturada e apreensiva, continuava solu- tiva manifestação. '
çando . . . No passo vagaroso de quem carrega um fardo
de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a
via pública, regressando ao aconchego doméstico.
Seguimo-lo à pequena distância.
Renovava-se o dia.
Pedestres marchavam diligentes, na direção do
trabalho.
Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui
e ali, começavam a transitar pelas ruas.
Em breve tempo, o rapaz, seguido de nosso
grupo, estacionou à frente de vasto conjunto resi-
dencial .
Grande relógio próximo exibia o mostrador.
Cinco horas e trinta minutos.
Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em
seguida, desapareceu no interior.
Entrámos.
Em momentos rápidos, achávamo-nos diante
dele, que se esforçava por reaver o corpo físico.
O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o, afetuo-
samente, e Esteves, pouco a pouco, recuperou a
calma natural.
Mantinha-se em suave modorra, quando o des-
pertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.
O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amar-
rada, guardando a impressão de mau sonho. retirava de tão detestável presença, mas, enquanto
Vestindo-se, apressado, notámos que minúsculo o homem me repelia, a mulher me provocava o
maior enternecimento... Por mais estranho que
cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos
pareça, experimentava o desejo de agredi-lo e de
a leitura de um nome: — «Mário Silva, Enfer-
acariciá-la, ao mesmo tempo. Achava-me em expec-
meiro» . tativa, quando o criminoso avançou para mim, com
E o nosso instrutor reafirmou: o propósito evidente de liquidar-me, ao passo que
— Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário a pobrezinha procurava defender-me. Estava atô-
Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfer- nito, ignorando se o condenado pretendia assassi-
magem. Ouçamo-lo por alguns momentos. nar-me, ali mesmo, quando tentei uma reação à
O moço atendeu às obrigações da higiene e, altura! Cego de incompreensível rancor, ia preci-
logo após, foi recebido em pequena sala do aparta- pitar-me sobre ele, quando, rápido, apareceu um
mento por simpática velhinha, em cujo olhar adi- delegado policial, seguido de dois guardas, que en-
vinhamos a ternura de mãe. traram na contenda, impedindo-nos o mau impul-
Depois de saudação carinhosa, a senhora in- so. O chefe, segundo percebi, de um só golpe conte-
dagou bem humorada: ve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se, vencido,
— Onde esteve esta noite, meu filho ? Seu sem- conquistando-me um respeito tão grande que, real-
blante carregado não me engana. mente, apesar do desejo de ouvir a mulher ajoe-
— Um sonho horrível, mamãe. lhada, em soluços, não arredei pé do lugar em que
E fixando gestos expressivos, entre os goles me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápi-
do café notificou: das, o delegado trouxe, então, à cela outros aju-
— Sonhei que alguém me chamava, a distân- dantes que arrastaram meu adversário para fora...
cia, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum Logo após, acomodando-me numa velha cadeira,
doente em estado grave, não vacilei. Corri ao ape- reconduziu a jovem para o interior do cárcere...
lo, mas, ao invés de topar um quarto de enfer- Estampou na fisionomia a expressão de quem
mo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada se propunha inutilmente lembrar-se e, decorridos
e húmida... longos instantes de reticência, rematou:
E, com os recursos de imaginação de que dis-
punha para corresponder às requisições da mente, — Depois... depois, não consigo precisar as
o rapaz continuou: recordações... Sei apenas que me pus a correr,
em fuga para nossa casa, de vez que os policiais
— Era um perfeito cubículo de prisão, onde
se mostravam igualmente dispostos a recolher-me.
me surpreendi encarcerado, de repente, junto de
um criminoso de mau aspecto e de infortunada mu- Temendo o xadrez, acordei estremunhado e aba-
lher em p r a n t o . . . Senti tanta simpatia pela moçp, tido . . .
desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha A velhinha, que escutava, atenciosa, comentou,
catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que calma:
nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimen- — Há sonhos que valem por terríveis pesa-
to me tomou de assalto, junto deles, principalmen- delos . . .
te ao lado do infeliz, cujo olhar se me afigurava
c r u e l . . . Perguntava, a mim mesmo* porque me não — E' o que senti — concordou Mário, preo-
cupado .
A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acres- O filho, indiscutivelmente enfadado, reergueu-
centou : -se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça bran-
— Meu filho, o sonho terá alguma relação com ca e concluiu:
a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou — O relógio é inflexível. O sonho passou e,
não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem agora, é a realidade que me espera. Devo cooperar
que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser no serviço operatório de duas crianças, às oito em
interpretado como sendo o esposo dela? ponto. Não me posso demorar. O hospital não
O rapaz cobriu-se de leve palidez, mostrou-se cogita de pesadelos.
mais taciturno e falou, triste: Mostrou um sorriso forçado e despediu-se.
— Quem sabe? A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até
— Você nunca mais teve notícia de nossa an- à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa...
tiga companheira? Preparando-nos para a retirada, trazia o meu
— Não. Tenho apenas a informação de que cérebro castigado por obsidiantes interrogações.
mora aqui mesmo, onde o marido é ferroviário de Encontráramos um novo capítulo na história
importância. „ da oração de Evelina?
— Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos Amaro e Zulmira, mencionados pelo enfermei-
anos de convivência, tantos projetos de felicidade!... ro, seriam as mesmas personagens que havíamos
Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de visitado anteriormente?
dois f i l h o s ! . . . Dispunha-me à inquirição, quando o olhar de
O moço fixou um gesto de amargura e ob- Clarêncio cruzou com o meu. Registando-me a es-
servou: tranheza, informou:
— Ora, mamãe, evitemos recordações sem pro- — Já sei o teor de tuas interrogações. Real-
veito. Zulmira não deve reaparecer em minha me- mente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira,
mória e esse Amaro que ela desposou é um ponto a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia
negro em meu coração. Creio que o melhor senti- desposá-la, mas foi preterido no coração dela por
mento para eles dois em minha vida íntima é o Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O pas-
ódio com que os reúno em minha lembrança. Não sado fala no presente. Acham-se enredados numa
desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que teia de compromissos que lhes reclamam resgate.
residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nos- — E reencontrar-se-ão para o desdobramento
sa transferência para outro r u m o . . . das lutas redentoras em que se envolvem? — per-
E, transcorridos alguns instantes, ajuntou: guntou Hilário, admirado.
— Meu sonho foi um simples pesadelo. Algu- — Inevitavelmente — acentuou o instrutor
ma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação com voz segura.
alimentar... A dona da casa, mãe devotada e sensível, me-
A senhora sorriu, desapontada, e aduziu: ditando no sonho do filho, embora movimentando
— Cá por mim, estou certa de que, à noite, automaticamente a vassoura, orava por ele, rogan-
reencontramos as pessoas que amamos ou detesta- do a Jesus o abençoasse.
mos. Nosso Espírito, no sono, procura os afetos ou Anotávamos-lhe as reflexões na mente preo-
os desafetos do caminho para acertar as próprias cupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar
contas. Disso, não tenho qualquer dúvida. à mulher escolhida. Conhecia-lhe o temperamento
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enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado
e vencido...
O pensamento em prece escapava-lhe da ca-
beça, como tênue esguicho de luz.
Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe for-
ças calmantes, que lhe sossegaram o coração. XVI
Em seguida, o orientador no-la apresentou,
generoso:
— Nossa irmã Minervina é velha conhecida. NOVAS EXPERIÊNCIAS
Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem
sabido conduzir, admiravelmente. Coração abnega- Noite fechada e alta, tornámos ao domicílio do
do, alma rica de f é . enfermeiro, seguidos de Clarêncio, que. funcionava,
Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas. como sempre, junto de nós, por mentor diligente
De regresso, reparando que estávamos desejo- e amigo.
sos de seguir Mário Silva para obter maiores in- Mário Silva, estirado nos lençóis, debalde pro-
formes, no desenvolvimento de nossa história que curava dormir.
começava a ser fascinante, o Ministro recomendou: O sonho da véspera castigava-lhe o pensamento.
— Não convém incomodar nossos amigos no Ruminando as impressões da manhã, refletia
curso das obrigações diuturnas, provocando eluci- de si para consigo: — «seria realmente Amaro, o
dações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. rival, quem lhe surgira na forma de um criminoso?
Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo fí- e aquela mulher chorosa e acabrunhada seria, por-
sico se refaz a alma invariavelmente procura o lu- ventura, Zulmira, a companheira de infância, que
gar ou o objeto a que imanta o coração. ainda lhe feria as recordações? onde o motivo de
Ouvimos o orientador e aquietámo-nos. semelhante reencontro? Teimava em afastar para
Cabia-nos aguardar a noite, quando se esten- longe as reminiscências da mocidade... por isso
deriam as nossas experiências. mesmo, não acreditava estivesse nele próprio a cau-
sa do estranho pesadelo... Permanecia convicto de
que alguém o chamara, nitidamente, pronunciando
palavras que o constrangiam a atender... Estaria
Zulmira em apuros? E esta, acaso se recordaria
dele? E se as suas conjeturas expressassem a ver-
dade, teria o direito de reaproximar-se ? Não ima-
ginava isso possível... A chaga do brio retalhado
ainda lhe sangrava no coração. Não seria justo
acudi-la, nem mesmo a pretexto de socorrer. Co-
nhecia-lhe o esposo de relance, mas o suficiente
para detestá-lo, com todas as reservas de ódio de
que se sentia capaz. Ainda mesmo que a mulher,
outrora querida, lhe suplicasse assistência, cabia-
-lhe ser surdo aos seus r o g o s . . . »
Hipóteses inquietantes e perguntas sem respos-
ta lhe assediavam o cérebro toldado de apreensão
e rancor. novo companheiro padece angustioso complexo de
fixação. Embora tenha o seu caso particular, algo
A antiga aversão pelo rival preponderava, do- suavizado pelas lutas da carne, que, por vezes, cons-
minando-o.
tituem abençoado entretenimento, não consegue di-
Porque não voltar ao sonho da noite anterior, luir a obcecante recordação do inimigo. A mágoa,
de modo a tentar uma solução? é-lhe inquietante ferida mental. Enquanto se dis-
A figura de Amaro crescia-lhe no campo mental. trai nas tarefas comuns, alheia-se, de alguma sor-
«Se as almas podiam efetivamente reencon- te, ao tormento oculto que transporta consigo, mas,
trar-se, fora do corpo — prosseguia divagando — , em se vendo espiritualmente a sós, dá curso ao>
decerto conseguiria rever o adversário e revidar... ódio coagulado, desde muito, no coração. Obser-
Se fora invocado em sonho, era lícito invocar quem vemo-lo !
quisesse... Chamaria o renegado esposo de Zul- Mário desceu para a rua, à maneira de louco,
mira a explicar-se. Concentraria nele o poder do e, inalando o ar refrescante da noite, forneceu a
pensamento. Buscá-lo-ia onde estivesse.» impressão de quem se revigorava, de súbito, pas-
O Ministro contemplava-o, compadecido. sando a gritar, com voz estridente:
Valendo-se dos minutos para ensinar-nos algo
proveitoso, observou: — Amaro, ladrão! Amaro, usurpador! apare-
ce ! Se tens dignidade, afronta-me a vingança!...
— A paixão cega sempre. Nossa vida mental Não tremerei!... Onde ocultaste a mulher qué eu
é a nossa vida verdadeira e, por isso, quando a pai- amo ?! Responde, responde!...
xão nos ocupa a fortaleza íntima, nada vemos e Silva caminhava semi-ébrio, sem direção, con-
nada registamos senão a própria perturbação. tudo, arremessava as palavras no ar, com veemên-
Em seguida, aplicou passes balsamizantes so- cia e segurança.
bre o rapaz, que se virava, desajustado, no leito. Havíamos dobrado esquinas diversas e eis que,,
Mário, qual se houvera sorvido brando anes- quando menos esperávamos, surge alguém ao en-
tésico, relaxou os nervos e descansou o comboio contro dele, em plena via pública.
físico, mas, ressurgindo em nosso plano, começou
Copiando o impulso do ferro atraído pelo ímã,
a extravasar os sentimentos que lhe senhoreavam
o esposo de Zulmira, em seu corpo sutil, corres-
o espírito.
pondia ao chamado estranho do inimigo, desligado»
Não nos assinalava a presença, continuando, parcialmente da carne.
porém, sob a nossa observação, em seus mínimos
movimentos. Defrontaram-se, a princípio, altivamente, en-
tretanto, logo após, com as maneiras do homem
Espantadiço e tateante, vagueou pelos ângulos mais educado, Amaro esboçou delicado recuo, re-
do quarto no veículo perispirítico, extremamente velando-se preocupado em evitar conflitos e abor-
condensado.
recimentos .
Todavia, pouco a pouco, esgazearam-se-lhe os O enfermeiro, porém, de ânimo revel, bradou,
olhos, dando-nos a ideia de quem se detinha em desconcertante:
aflitivos quadros íntimos.
— Não te acovardes, bandido! Não f u j a s ! . . .
Anotando-nos o assombro silencioso, o instru- Temos contas a a j u s t a r ! . . .
tor socorreu-nos, explicando:
O ferroviário, contudo, afastava-se, rápido.
— Qual acontece ao nosso amigo Leonardo, o O adversário, no entanto, sem arrefecer no
ímpeto, seguia-o, inflexível, longe de renunciar ao
escuro propósito de agressão. ciado em teu favor. Desejaria realmente servir-te,
Acompanhávamos ambos, quarteirão a quar- entretanto, a g o r a . . .
teirão, até que esbarrámos à entrada do abrigo — Hipócrita! — tornou Mário, enfurecido —
doméstico que já conhecíamos, onde Amaro dispôs- não creio em tua palavra de lobo disfarçado. Rou-
-se ao ajuste pacífico. baste-me a única felicidade que eu esperava do
mundo! a única felicidade que era m i n h a ! . . .
Demonstrando-se interessado em defender a
Amaro fixou triste sorriso e obtemperou:
tranquilidade familiar, o dono da casa estacou à
porta, aguardando o provocador. — E acreditas que eu seja feliz? Admites no
casamento apenas a exaltação dos sentidos inferio-
— Então — bradou Silva, exasperado —, é res? Crês que o homem consorciado deva encon-
aqui o ninho das serpentes?
trar na mulher simplesmente uma escrava? Amo
Levantando os punhos contra o rival humil- em Zulmira a companheira e a irmã que me cabe
de, prosseguiu, rixento: proteger. Nem ela e nem eu encontrámos na expe-
— Pagar-me-ás muito caro a intromissão! In- riência conjugal a ventura das afeições cor-de-rosa,
fame enganador, onde puseste a mulher que era em que o desejo contentado é como a flor que mor-
minha felicidade e minha vida? Quebraste-me os re num d i a . . . Temos padecido muito, Mário. Não
sonhos, aniquilaste-me os ideais!. . . Homem terrí- ignoras que me casei em segundas núpcias. Zul-
vel, que fizeste de mim? Sou apenas máquina de mira, por isso mesmo, não terá recolhido em mim
trabalho, sem fé e sem esperança!... a perfeita alegria que lhe seria lícito esperar. Nos-
— Eu não sabia, não sabia!... — alegou Ama- sa aproximação começou por uma série de desajus-
ro, desapontado — nunca tive a intenção de ofen- tes, que culminaram com a morte do meu caçula,
der-te ! num terrível desastre... Desde então, nossa casa
— Maldito! como sabes dissimular! onde está é um espinheiro de sofrimento... Minha esposa
Zulmira? devo exterminar-te para restituir-lhe a adoeceu gravemente e eu mesmo, até agora, con-
independência ? tinuo agoniado e desfalecente... Saberias, porven-
tura, o que seja a desdita de um pai que chora
E afrontado pela serenidade do outro, o enfer- sem lágrimas, mortalmente ferido? Se dívidas pos-
meiro acentuou:
suo para com a Divina Providência, podes acredi-
— Não me reconheces, acaso? tar que não tenho amargado pouco, a fim de res-
— Sim, reconheço-te — falou o interlocutor sarci-las. ..' A morte para mim não passaria de
num suspiro —, és Mário Silva, pessoa a quem bênção libertadora. Como podes observar, não me
devoto consideração e respeito. vejo em condições de aceitar-te o desafio! Estou
— Consideração e respeito? que deslavado fin- dilacerado e, mais que dilacerado, vencido...
gimento! onde a prova de apreço, se me arrancaste
a noiva, engodando-a com mentirosas promessas? Com enternecedora inflexão de súplica, acen-
— Somente soube de tua velha afeição por tuou:
ela quando meus compromissos no matrimônio não — Se ainda consagras amor à criatura que
admitiam qualquer recuo. Se alguém, todavia, me desposei, ajuda-nos com a tua compreensão!... Se
houvesse comunicado lealmente quanto se desen- te fiz algum mal, inconscientemente, perdoa-me!
rolava, em torno de minha preferência, teria renun- Perdoa-me pelas angústias da minha existência de.
condenado a horríveis provas m o r a i s ! . . .
Mário Silva, com espanto nosso, retribuiu com
escandalosa gargalhada.
— Desculpar? Nunca! — exclamou jactancio-
so. — Pelo tom da conversa, concluo que a justiça
começou a expressar-se, devidamente, mas abreviá-
-la-ei com as minhas próprias m ã o s . . . Meu des-
forço é certo, meu ódio é inexorável!... XVII
Amaro não mais respondeu.
Vimo-lo curvar a cabeça em oração fervorosa. RECUANDO NO TEMPO
Suaves irradiações de esmeraldina luz escapavam-
-lhe da fronte. As palavras inarticuladas de que
se servia, para implorar socorro, alcançavam-nos o Depois do nosso esforço de auto-condensação,.
espírito, qual se fossem ondas caloríferas e harmo- para o necessário ajuste vibratório, Clarêncio abei-
niosas de humildade e confiança. rou-se dos dois amigos, com o amoroso poder que
lhe era característico e, em nos reconhecendo, Má-
Silva, incapaz de sensibilizar-se, ante a rendi- rio assoeiou-nos a presença ao pesadelo da véspera
ção comovente, prosseguia gritando:
e passou a clamar:
— Porque silencias, covarde? Fala, fala! Ex-
plica-te ! . . . Reage! Dominaste Zulmira, mas não — Meu caso não é com a polícia!... não pre-
me dobrarás um milímetro!... Criminosos de tua cisamos de qualquer delegado a q u i ! . . .
laia não merecem compaixão!... — Acalma-te, amigo! — respondeu o Ministro,
Nessa altura do diálogo, Clarêncio convocou- atencioso. — Não somos quem julgas. Estamos
-nos, paternal: aqui para que te lembres... E' indispensável te
— Respondamos à prece de Amaro, com o recordes.
auxílio fraterno. E, situando a destra na fronte do enfermeiro,
Arrastados pela simpatia e pela emoção, acom- reparámos que Mário Silva aquietava-se, de repente.
panhámos o nosso orientador, sem hesitar. O semblante dele acusou estranha metamor-
fose.
Afigurou-se-nos mais elegante, mais jovem.
Abriu desmesuradamente os olhos, depois de
alguns momentos, e exclamou, semi-aterrado:
— Ah! a g o r a ! . . . agora me l e m b r o ! . . . Meu
agressor de ontem é Leonardo P i r e s . . . Como po-
deria esquecê-lo assim tão infantilmente? como
não rememorar? Disputávamos a mesma mulher...
Achávamo-nos em Luque, quando conheci a can-
tora e bailarina admirável... Lola Ibarruri! Quem
senão ela poderia oferecer-me o bálsamo do esque-
cimento ?! Realmente fiz tudo para separá-los...
Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la
feliz! Lola trazia consigo a beleza, a juventude e
a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife
dos sonhos m o r t o s . . . Deu-me o repouso de que
minhalma necessitava..! restaurou-me. Mas... que
domingo terrível aquele da praça embandeirada, em Nosso instrutor afagava-lhe a cabeça com o
P i r a j u ! . . . Deslocavam-se as forças para a caça ao evidente intuito de reavivar-lhe a memória.
inimigo... Imaginava, porém, a melhor maneira — Ah! sim!... — prosseguiu Mário Silva, alar-
de reencontrar a mulher querida e, naquela manhã mado — ausentei-me de Assunção com o espírito
de terrível memória, consegui a simpatia de Frei irremediavelmente desiludido...
Fidélis, antes da m i s s a . . . O caridoso capuchinho De olhar vagueante, como se surpreendesse o
auxiliar-me-ia, advogando-me a c a u s a . . . Lola não passado ao longe, nos recôncavos da noite, conti-
deveria movimentar-se, entretanto, poderia, por mi- nuou :
nha vez, tornar à retaguarda!... Os maiorais eram
meus a m i g o s ! . . . Obteria, por isso, o favor do — Nos arredores da formosa capital para-
Príncipe!... Arquitetava meus planos, quando en- guaia, construíra minha casa e era f e l i z ! . . . Lina
contrei Leonardo... Não supunha conhecesse ele era o tesouro de meu coração... Minha amiga e
a deserção da companheira e procurei agradá-lo, minha esposa, minha esperança e minha razão de
aceitando-lhe a companhia. . . O suculento repasto s e r . . . Descendente de uma das famílias de Mato
exigia algum trago de vinho e Pires não hesitou, Grosso, aprisionadas pelo inimigo, na invasão de
ministrando-me o veneno que trazia às ocultas!... Dezembro de 1864, encontrei-a sem parentes, asi-
Ah! bandido! bandido!... lada por respeitável família, que a adotara por fi-
lha estremecida!... A h ! quando lhe fitava os olhos
Mário levou as mãos à garganta, como se aí claros e doces, sentia-me transportado a céus imen-
registasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, sos. . . Era tudo o que a mocidade ideara de mais
gemendo de dor. lindo para o meu c o r a ç ã o . . . Nela encontrava a
O Ministro, paciente, aplicou-lhe recursos mag- divina novidade de cada dia e, apesar das vicis-
néticos balsamizantes e o rapaz levantou-se, atur- situdes da guerra, mergulhávamo-nos ambos na
dido. rósea corrente dos mais belos s o n h o s . . . O próprio
Marquês de Caxias conheceu-a e animou-nos a
Amaro, que se mostrava igualmente transtor- união... Foi assim que, em Janeiro de 1869, quan-
nado, acompanhava a cena com manifesta aflição. do a trégua nos atingira, um sacerdote consagrou-
Clarêncio ajudou o enfermeiro a firmar-se de -nos o casamento... O Conselheiro Paranhos pro-
novo sobre os pés e perguntou, concitando-o a re- meteu ajudar-nos, tão logo regressássemos ao Bra-
lembrar: sil, para que o nosso consórcio fosse devidamente
festejado... Vivíamos tranquilos, como duas aves
— Por que razão te afeiçoaste à cantora, com entrelaçadas no mesmo ninho, quando tive a des-
tamanho desvario? porque não atendeste aos avi- graça de levar ao nosso templo doméstico dois
sos da consciência, que, decerto, te rogava não
companheiros de trabalho e de i d e a l . . . Armando
despertasses o ódio naquele que te aniquilaria o
corpo físico? e Júlio... Sim, seriam eles amigos ou abutres ?
Sei apenas que Lina e eles se fizeram íntimos em
Apresentando a expressão de um louco, Mário pouco t e m p o . . . Com à desculpa de aliviarem os
desferiu desconcertante gargalhada e bradou: sofrimentos da campanha, os dois passaram a gas-
— Porque amei Lola Ibarruri? porque não tive tar, em nosso pequeno santuário de ventura, todo
escrúpulos em arrebatá-la ao companheiro que a o tempo que lhes era disponível. Descansava mi-
retinha nos braços? nhalma na confiança sincera, até que um d i a . . .
O semblante do narrador alterou-se, de súbito.
Esgares de amargura modificaram-lhe a feição. , — Lina, que passei a odiar, era demasiado
Imprimindo à voz lúgubre acento, continuou, cruel. Achava-me não longe de Assunção, depois
atormentado: de três meses sobre a mágoa terrível que me fora
assacada, quando vim a saber que Júlio fora igual-
— Até que, um dia, encontrei Lina e Júlio mente escarnecido por ela. Certo dia, de volta ao
abraçados um ao outro, como se o tálamo conju- lar, encontrou-a nos braços de Armando, o outro
gal lhes pertencesse.
amigo que parecia consagrar-nos estima fraternal.
Cravou em nós o olhar agora coruscante e Menos forte que eu mesmo, Júlio esqueceu-se do
terrível e acrescentou: revés com que me dilacerara, semanas antes, e,
— Compreenderão, acaso, a dor do homem que cego de absorvente afeição, ingeriu grande dose de
se vê irremissivelmente atraiçoado pela mulher em corrosivo... Socorrido a tempo, na caserna, con-
que se apoia para viver? Entenderão o incêndio seguiu sobreviver, mas, incapaz de suportar os ma-
que lavra no espírito flagelado de quem, num mi- les corpóreos decorrentes da intoxicação, depois de
nuto, vê destruídas as esperanças da vida intei- alguns dias embebedou-se deliberadamente e arro-
r a ? . . . Tudo é treva para quem carrega consigo jou-se às águas do Paraguai, aniquilando-se, en-
mesmo o carvão dos enganos mortos! Não quis fim. . . Depois disso, nada mais soube. A morte
acreditar no que via e interpelei a mulher ama- aguardava-me em P i r a j u . . . O destino marcara-me,
da. . . Lina, porém, atirou-me em rosto o mais frio impiedoso...
desprezo... Afirmou, rudemente, que não podia
Mário fixou desagradável carantonha e acen-
amar-me, senão como irmã que se compadece de tuou:
um companheiro necessitado, que me desposara
simplesmente para fugir às humilhações que expe- — Sou um poço de fel. Não posso modificar-
rimentava numa terra estrangeira e que eu, efeti- - m e . . . Haverá paz sem justiça e haverá justiça
vamente, deveria desaparecer... Envergonhado, in- sem vingança?
voquei a proteção de superiores amigos e fugi de Nosso orientador ergueu a voz calmante e con-
Assunção... Eu era, contudo, um homem diferen- siderou, generoso:
t e . . . A segurança de caráter que cultivava, brioso, — E' necessário esquecer o mal, meu amigo.
fora abalada nos alicerces... Viciei-me... Confiei- Sem aquela atitude de perdão, recomendada pelo
-me ao álcool e ao j o g o . . . Do militar responsável, Cristo, seremos viajores perdidos no cipoal das tre-
desci à condição de aventureiro infeliz... Foi as- vas de nós mesmos. Sem amor no coração, não
sim que encontrei Lola e Leonardo e não hesitei teremos olhos para a luz.
em exterminar-lhes a felicidade... E' muito difícil Silva dispunha-se a responder, entretanto, Ama-
albergar respeito aos outros, quando fomos pelos ro fizera ligeiro movimento e mostrou-se-nos singu-
outros desrespeitado. larmente renovado. Seu veículo espiritual parecia
haver regredido no tempo. Revelava-se mais leve
Valendo-se da pausa que se evidenciava, es- e mais ágil e sua face impressionava pelos traços
pontânea, Clarêncio indagou:
juvenis.
— E nunca recebeste notícias da esposa?
Buscou aproximar-se do enfermeiro num gesto
Mário Silva, reconduzido à personalidade de
Esteves pela influência magnética, exibiu sarcástico natural de cordialidade, todavia, em lhe observando
sorriso e informou: o rosto metamorfoseado, o antagonista bradou en-
tre o ódio e a angústia:
— Armando! Armando!... Pois és tu? O Ama/
ro que hoje detesto é o mesmo Armando de ontem/?
onde me encontro? enlouqueci, porventura?!... i
Instruindo-nos, cuidadoso, Clarêncio falou, rá-
pido:
— Não precisei despender grande esforço paifa XVIII
que a memória de Amaro tornasse ao pretérito.
O sofrimento reparador conferiu-lhe à mente e à
sensibilidade recursos novos. Bastou-me tocá-lo de CONFISSÃO
leve, para que aproveitasse a digressão do antigo
companheiro, recuperando as recordações da época Amaro, cujo semblante exibia os sinais de re-
em estudo... novação a que nos reportámos, começou a dizer,
O esposo de Zulmira procurava estender braços comovido:
amigos ao adversário que o contemplava, galvani- — Sim, recordo-me perfeitamente... A madru-
zado de assombro, contudo, recuando, de repente, gada do Ano Bom de 1869 ficou marcada para
como animal ferido, Mário gritou em desespero: sempre em nossa memória... Abordaríamos As-
— Não, não! hão te acerques de mim! não me sunção, procedendo de Santo Antônio, em angustio-
provoques, não me provoques!... sa expectativa... A curiosidade abafava a exaustão...
O Ministro, no entanto, situando-se entre os Lembro-me de que, antecedendo-se ao desembar-
dois, pediu, comovidamente: que, Esteves procurou-nos, solicitando-nos o con-
— Tenhamos calma! Respeitemo-nos uns aos curso fraterno para a solução de um problema que
outros! reputava importante para o futuro que o aguar-
E, dirigindo-se particularmente ao enfermeiro, dava. . . Éramos três amigos inseparáveis na ca-
determinou, sem afetação: serna e achávamo-nos os três j u n t o s . . . Ele, Júlio
— Agora, é o momento de nosso amigo. Co- e e u . . . Na incerteza das ocorrências que nos espe-
mentaste o pretérito à vontade. E' indispensável rav&m, pedia-nos, na hipótese de perecer em com-
que Amaro fale por sua vez. A justiça, em qual- bate, notificar sua morte à jovem Lina Flores, que
quer solução, deve apreciar todas as partes inte- conhecera, dias antes, em Villeta... Referiu-se, en-
ressadas . tusiástico, ao amor que os ligava e aos projetos
Contido pela força moral da advertência, Má- que formavam, considerando o p o r v i r . . . Preocu-
rio calou-se e, voltados então para o ferroviário, pados com a aflição do companheiro, reconfortá-
que se fizera mais simpático pela serenidade de que mo-lo com palavras de compreensão e esperança,
se investira, continuámos à escuta. colocando-nos em guarda... A capital paraguaia,
porém, revelava-se fatigada e desprevenida... Ja-
mais olvidarei a gritaria dos nossos, triunfantes,
em se vendo seguros sobre a presa, criando afliti-
vos problemas para as autoridades... Revejo ainda
a fisionomia risonha de Esteves, quando se reco-
nheceu são e s a l v o . . . Em breve, comunicava-nos
o consórcio. Ninguém realmente podia casar-se em
campanha, mas o enlace efetuou-se às ocultas, sob
a bênção de um sacerdote e com a tolerância dos aconteceu. Esteves afastou-se, primeiramente rio
dirigentes da ocupação, atendendo-se à circunstân/ abaixo, na direção de Villeta, de onde havia tra-
cia de que a noiva era uma pobre menina brasileira^ zido a esposa e onde se achavam, retardados, al-
desde muito aprisionada... f guns camaradas enfermos, aos quais prestaria as-
Amaro fêz pequena pausa, recobrando energias sistência. . . Nada mais soube dele, a não ser que
e continuou: hpvia morrido misteriosamente em Piraju...
— Recordo-me de que Júlio e eu fomos em I Evidenciando enorme padecimento moral, dian-
visita ao lar de Esteves, pela primeira vez, em Fe- te daquelas evocações, Silva estremeceu e, apro-
vereiro do mesmo áno, contudo, colocados à frente veitando o intervalo que se fizera, bradou, ago-
de Lina, ambos nos sentimos incompreensivelmente niado:
ligados àquela jovem bela e simples, cuja presença I — E a tua participação no infortúnio de minha
exerceu, de imediato, sobre nós, intraduzível atra- casa? quem me convencerá de que também não te
ção. . . Guardei comigo a surpresa que me possuía, achavas de parceria com Júlio, na destruição de
mas Júlio, impulsivo e irrequieto, veio a mim ex- minha felicidade ? Infames!...
travasando o coração... A esposa de Esteves do-
minara-lhe a mente, de súbito... Se pudesse ha- Clarêncio, afetuoso, acomodou o enfermeiro
ver chegado, antes do companheiro — acentuava irritado, recomendando-lhe esperar a narração, até
enamorado —, não lhe cederia o l u g a r . . . Susten- o fim.
tava a impressão de que Lina já lhe havia surgido Amaro não perdera a calma.
em sonhos... E, desse modo, várias vezes repetiu Assinalou a objurgatória do adversário, fixan-
confidências que me tocavam as fibras mais ínti- do triste sorriso, e continuou:
mas. Anotando-lhe o estado dalma e reconhecendo
o direito de Esteves sobre a mulher que despo- — Sim, minha confissão deve ser exata e com-
sara, tentei retrair-me... Calquei o sentimento e pleta. . . Entendendo que Lina e Júlio se haviam
procurei o olvido necessário... A paixão de Júlio ajustado para a vida comum, tentei distanciar-me...
era demasiado forte para resignar-se. Insinuou-se Temia por mim mesmo. Lina, no entanto, como
junto à recém-casada, cobriu-a de gentilezas e, pro- que me registava a inclinação imanifesta... Dei-
vavelmente, quem sabe? nas vicissitudes da guerra tava-me olhares que me acordavam, simultanea-
e quase criança para guardar-se, como era preciso, mente, para a alegria e para a dor. Queria apro-
nas responsabilidades do casamento, Lina envol- ximar-me e fugir dela, ao mesmo t e m p o . . . A
veu-se nas atenções do rapaz, fazendo-lhe conces- princípio, tentei; contudo, o afastamento do Mar-
sões . . . Recordo-me do dia em que Esteves me pro- quês de Caxias deixava as tropas com larga pro-
curou, desolado, comentando o golpe que recebera... visão de tempo para diversões... Instado talvez
Chorou debruçado nos meus ombros. Desejava de- pela companheira, Júlio constrangia-me a frequen-
saparecer, aniquilar-se... Fiz-lhe observar, porém, tar-lhe a casa. O jogo alegre e o chá saboroso
a inoportunidade de qualquer violência... Enfer- reuniam-nos os três, noite a n o i t e . . . Amedron-
meiro bem conceituado e protegido do Conselheiro tado, ante o sentimento que a moça despertava
Silva Paranhos, nosso embaixador em missão ex- em meu coração, não somente porque não devia
traordinária, junto às Repúblicas do Prata, não perturbar-lhe a harmonia doméstica, mas também
lhe seria difícil a retirada de Assunção... Assim porque possuía uma noiva no Brasil, busquei iso-
lar-me, de n o v o . . . Reparando, todavia, o assédio
de Lina, resolvi asilar-me no trabalho mais intensq jmente no Rio, casei-me e fui f e l i z . . . Numa noite
e consegui a designação para servir na vigilância de chuva forte, minha esposa e eu tornávamos do
noturna do Palacete Resquin, onde a oeupaçã» teatro, quando os cavalos em disparada colheram
concentrava todos os assuntos e documentos de pobre mulher embriagada na via pública... O co-
interesse do nosso P a í s . . . Èla, entretanto, não cheiro sofreou os animais e desci a socorrê-la...
desistiu do propósito de que se animava. Certa E enquanto minha companheira continuava o tra-
noite, procurou-me, disfarçada em mulher do povoí.. jeto para a casa, procurei internar a mísera cria-
A sós comigo, confessou-se... Declarava-se ator- tura para a assistência imediata... Guardas e
mentada, aflita... Sentira-se amada por Esteves populares auxiliaram-me a empresa, mas com ines-
e via-se ardentemente querida por Júlio, mas não quecível assombro, quando a mulher foi recolhida
pudera interessar-se pela felicidade junto deles, ao leito, de ventre rasgado a esvair-se em sangue,
odiando-os por f i m . . . nela identifiquei Lina Flores... Por dois dias lutou
Amaro confiou-se a longa pausa e continuo^: contra a m o r t e . . . A infeliz reconheceu-me, rela-
— Quem poderá explicar os enigmas do cora- cionou as desditas que atravessara, desde que se
ção humano? quem possuirá bastante visão para viu sozinha no Paraguai, esclareceu que viera ao
surpreender os caminhos da alma? Incapaz de do- Rio à minha procura e emocionou-me com a nar-
minar-me, cometi a falta de assumir um compro- ração do drama angustioso em que vivia, tentando
misso espiritual que não me competia... Lina agar- a recuperação da felicidade que perdera para sem-
rou-se ao meu afeto com o vigor da hera numa pre . . . Morreu revoltada e sofredora, amaldiçoan-
construção sem defesa... E foi assim que, em cer- do o mundo e as criaturas.. .
ta manhã de Maio, meu companheiro encontrou-nos
Amaro interrompeu-se, titubeante.
j u n t o s . . . Desesperado, Júlio ingeriu grande quan-
tidade de corrosivo, mas, amparado suficientemen- Mário Silva, estupefacto, fixava-o, entre o de-
te, foi s a l v o . . . Debalde, porém, submeteu-se ao sespero e o pavor.
tratamento na caserna. Adquiriu estranhos pade- Notava-se que o ferroviário esforçava-se, em
cimentos da garganta e do esôfago e, não sabendo vão, para reaver novas faixas da memória.
como suportar as provações físicas e morais, ar- Nosso instrutor, contudo, afagou-lhe a fronte,
rastou-se, um dia, até às águas do Paraguai, su- envolvendo-o em renovadas forças magnéticas, e
pondo encontrar na morte a paz que procurava... perguntou:
Experimentando pesados remorsos, por minha vez — Onde voltaste a vê-la?
perdi a afeição que me algemava à mulher que nos O interpelado esboçou o sorriso de quem reco-
atraíra e infelicitara e fugi dela, fugi incorporan- lhera a resposta em si mesmo e informou:
do-me às tropas que combateriam os derradeiros — A h ! sim... reencontrei-a na vida espiritual.
remanescentes de Solano Lopez, na Cordilheira... Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de
Prometi-lhe a volta, todavia, terminada a luta, tor- sofrimento depurador. . . Compreendi a extensão
nei à pátria por outros caminhos, decidido a ja- de meu débito e prometi ressarci-lo... Ampará-
mais reencontrá-la... -los-ia... Auxiliaria os dois na senda terrestre...
Amaro, mais comovido, passou a destra pelo Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa
rosto e prosseguiu, depois de breve pausa: de redenção. . . Sim, sim, o destino!... E' preciso
solver os compromissos do passado, conquistando
— Dez anos correram, apressados... Nova- o futuro!...
/ . / ' • J
Calou-se o esposo de Zulmira, visivelmente fa-f
tigado, mas o enfermeiro, não obstante contidé
pela força paternal de Clarêncio, começou a chamar
por Júlio, emitindo brados terríveis.

XIX

DOE E SUEPEESA
— Júlio! Júlio! comparece, covarde!... •— bra-
mia o enfermeiro, possesso.
E percebendo talvez a simpatia que Amaro nos
conquistara* à face da serenidade com que supor-
tava a situação, prosseguiu, invocando, revel:
— Comparece para desmascarar o patife que
procura comover-nos! Júlio, odeio-te! Mas é neces-
sário apareças! Acusa teu desalmado assassino!...
O Ministro procurava contê-lo, bondoso, mas
Silva, como potro indomesticado, gesticulava a es-
mo e continuava, conclamando:
— Júlio!... Júlio!...
Sim, Júlio não respondeu à chamada, entre-
tanto, alguém surgiu, surpreendendo-nos a atenção.
A irmã Blandina, em pessoa, qual se fora no-
minalmente intimada, estacou junto de nós.
Envolvidos na doce luz que nos banhou, de
improviso, aquietámo-nos, perplexos, à exceção de
Clarêncio que se mantinha calmo, como se aguar-
dasse semelhante visita.
Depois de saudar-nos, Blandina rogou, hu-
milde :
— Irmãos, por amor a Jesus, atendei!... Temos
Júlio, sob a nossa guarda. Acha-se doente, aflito...
Vossos apelos individuais alteram-lhe o modo de
ser... Poderia colocar-se mentalmente ao vosso en-
contro, contudo, atravessa agora difíceis provas de
reajuste... Venho implorar-vos caridade!... Com-
padecei-vos de quem hoje se esforça por olvidar
o que foi ontem para regenerar-se amanhã, com
eficiência!...
Havia tanta aflição e tanta ternura naquela te beneficie a alma ulcerada!... Não nos cabe pre-
rogativa que a vibração do ambiente modificou-se, judicar o caminho de quem procura a regeneração
de súbito. que lhe é necessária!...
Comecei a entender com mais clareza a trama Ante o olhar de Mário, espantadiço e agoniado,
obscura do romance vivo que abordávamos. Júlio, o Ministro considerou:
o menino doente, era o companheiro que voltava — Lina, hoje, com imensas dificuldades, tenta
na condição de filho do amigo com quem outrora alcançar a altura do casamento digno e, superando
se desaviera... tremendos obstáculos, constrói os alicerces da mis-
Não pude, porém, alongar divagações, porque são de maternidade para a qual se encaminha...
Silva, provavelmente revoltado contra a emoção que Ajudemo-la com as nossas vibrações de compreen-
nos senhoreava o espírito, passou a reclamar, de são e carinho. Quando amamos realmente, antes
novo: de tudo é a felicidade da criatura amada que nos
— Anjo ou mulher, não lutarei contra o sor- interessa...
tilégio! Não lutarei! mas preciso arrojar este ban- Nosso grupo avançou algo mais.
dido ao despenhadeiro que merece por suas desla- Junto de nós, Blandina mantinha-se em prece.
vadas mentiras!... Que Júlio permaneça no céu O orientador abeirou-se da doente, com atenção
ou no inferno, sob a custódia dos arcanjos ou dos respeitosa, e mostrou-lhe o rosto ossudo e triste
demônios, todavia, exijo que a verdade surja, in- ao enfermeiro que, ao reconhecê-la, bradou, ater-
teira ! . . . Recorro ao testemunho de Lina! que Lina rado:
compareça! que ela deponha! Se nos achamos aqui, — Zulmira! Zulmira, então, é Lina que volta?
convocados pelo destino que nos algema uns' aos O Ministro acariciou-lhe a cabeça e informou,
outros, que a pérfida mulher seja ouvida igual- conciso:
mente. . . — Sim, regressou em companhia de Armando,
Nosso instrutor, assumindo a chefia espiritual em dolorosas reparações. O consórcio para eles não
do grupo, convidou com energia e brandura: foi o castelo de flores de laranjeira, mas sim uma
— Lina encontra-se não longe de nós. En- associação de interesses espirituais para o trabalho
tremos . regenerativo. Armando, em luta no plano da vida
A determinação foi obedecida. real para reerguer-se, aceitou o compromisso de
Na penumbra do quarto que já conhecíamos, reconduzi-la à dignidade feminina, amparando-lhe
a segunda esposa de Amaro jazia subjugada pela as angústias silenciosas...
outra. Estupefacto, Silva exclamou, cambaleante:
Enquanto Odila se nos afigurava mais ranco- — Quer dizer então que Zulmira me traiu duas
rosa e mais dura, Zulmira revelava-se mais abatida. vezes ?
Clarêncio enlaçou Mário, como um pai que re- — Não te refiras à traição — corrigiu Cla-
colhe um filho, carinhosamente, e, apontando, a rêncio, sem alterar-se —, é imprescindível compre-
enferma, esclareceu, generoso: ender! Armando, ontem, escutou apelos inferiores,
— Amigo, acalma-te! Lina Flores, atualmente, incompatíveis com as responsabilidades de que se
padece na forja da luta e do sacrifício, a fim de via depositário. Hoje, é compelido a responder, em-
recuperar-se. Apaga a labareda de ódio que te bora constrangido, a requisições de natureza edi-
requeima o coração! Deixa que nova compreensão ficante, às quais, em verdade, não lhe será lícito
fugir. Lina Flores reclama alguém que a recambie Somente a vingança me convém, não quero per-
ao serviço renovador, a fim de que se habilite a doar ! não quero perdoar!...
auxiliar Júlio, devidamente. Todos somos devedo- Novamente enraivecido e inquieto, como fera
res uns dos outros. As almas aprimoram-se, grupo solta, erguia os punhos cerrados contra a desditosa
a grupo, à maneira de pequenas constelações, gra- mulher que jazia no leito, em lastimável prostra-
vitando em torno do Sol Magno, Jesus-Cristo!... ção. Seu veículo espiritual rodeava-se agora de um
Como um astro que se distancia do núcleo em que halo cinzento-escuro, que despedia raios desagra-
se integra, abandonaste a órbita de velhos compa- dáveis e perturbantes.
nheiros de evolução, caindo, pelas vibrações de afe- Nosso orientador libertou-o da influência mag-
tividade e ódio, no centro de forças em que Leo- nética com que lhe tolhia as energias.
nardo Pires e Lola Ibarruri aguardam-te a precisa Tão logo se reconheceu sem o controle que lhe
cooperação, de modo a se liberarem perante a Lei. sofreava os movimentos, Silva retrocedeu, excla-
Amaro, noutro tempo, separou Zulmira e Júlio, es- mando :
tabelecendo espinheiros dilacerantes entre os dois... — Não suporto mais! não suporto m a i s ! . . .
Agora, cabe-lhe reuni-los no carinho familiar, para E correu para o seio da noite.
que na posição de mãe e filho se reajustem na afei- Clarêncio recomendou-nos seguir-lhe o passo,
ção santificadora... Antigamente, isolaste Leonar- enquanto prestaria assistência ao ferroviário e à
do da afetuosa assistência de Lola, criando emba- esposa, em colaboração com Blandina. O enfermei-
raços asfixiantes à própria marcha... Prepara-te ro, decerto — informou o Ministro prestimoso —,
na fé para congregá-los, de novo, no templo do- retomaria o corpo denso em aflitivas condições de
méstico, igualmente na condição de filho e mãe, de saúde. Passes anestesiantes deviam favorecê-lo.
maneira a se redimirem para a bênção do amor Não podia lembrar a experiência grave daquela
p u r o . . . Nossas ações são pesadas na Justiça Di- hora. A aventura provocada pela insistência men-
vina. . . Não podemos enganar o Supremo Senhor. tal dele mesmo era suscetível de perigosas conse-
Nossos débitos, por isso mesmo, devem ser resga- quências.
tados, ceitil a ceitil...
Num átimo, Hilário e eu achámo-nos ao lado de
A ligeira preleção trouxera-nos enorme pro- Silva, que aderia ao envoltório de carne com o au-
veito . tomatismo da molécula de ferro, atraída pelo ímã.
Amaro dobrara a cerviz, revelando-se disposto Examinámo-lo, atentamente.
a obedecer aos ditames de natureza superior, fos- O peito arfava-lhe, sibilante.
sem como fossem. O coração acusava-se desgovernado, sob o im-
Silva, no entanto, não parecia desperto para pério de insopitável arritmia.
as verdades que Clarêncio pronunciara. De imediato, entrámos em ação, sossegando-
Hipnotizado na contemplação da mulher que- -lhe o campo mental, quanto possível, através de
rida, demonstrava-se indiferente. sedativos magnéticos.
Depois de fitá-la, absorto, entre o carinho e Ainda assim, apesar dos passes, pelos quais foi
a aversão, quebrou a quietude que envolvera o completamente envolvido de energias revigorado-
recinto, rugindo, desesperado: ras, o moço acordou agoniado, hesitante e trêmulo,
— Não posso modificar-me, desgraçado de como se estivesse fugindo de medonhas tempesta-
m i m ! . . . Odiarei! odiarei a infame que v o l t o u ! . . . des no mundo íntimo.
Semi-inconsciente, despendeu vários minutos
para identificar-se.
O pensamento surgia-lhe atormentado, nebu-
loso. . .
Tentou locomover-se, mas não conseguiu. Sen-
tia-se chumbado à cama, quase na situação de um XX
cadáver repentinamente desperto.
Buscou alinhar recordações, contudo, não pôde. CONFLITOS DA ALMA
Sabia tão somente que atravessara grande pe-
sadelo cujas dimensões lhe não cabiam na memória. Voltando à residência de Amaro, ainda conse-
Suarento, aflito, sentia-se morrer... guimos observá-lo, fora do veículo denso, em con-
Instintivamente orou, suplicando a Proteção versação com Odila, sob o amparo direto de nosso
Divina. orientador.
Bastou essa atitude dalma para ligar-se, com
mais facilidade, aos fluidos restauradores que lhe A primeira esposa do ferroviário, identificando
administrávamos. o marido, provavelmente com o auxílio de Clarên-
cio, abandonara Zulmira por instantes e ajoelhara-
Pouco a pouco, readquiriu os movimentos li-
-se-lhe aos pés, rogando, súplice:
vres e levantou-se, ingerindo uma pílula calmante.
Amedrontado, sentou-se no leito e, mergulhan- — Amaro, expulsa! Corre com esta mulher de
do a cabeça nas mãos, falou, sem palavras, de si nossa casa! Ela furtou a nossa p a z . . . Matou nosso
para consigo: — «Estou evidentemente conturbado. filho, prejudica Evelina e transtorna-te!...
Amanhã, consultarei um psiquiatra. E' a minha Apontando a enferma com terrível olhar, acen-
tuava :
única solução».
Sim — concordei comigo mesmo —, o ódio — Porque reténs semelhante intrusa?
gera a loucura. Quem se debate contra o bem, cai O interpelado, muito triste, esforçava-se por
nas garras da perturbação e da morte. dirigir a atenção no rumo de nosso instrutor, mas
Com semelhante raciocínio, afastei-me. talvez torturado pelo reencontro com a primei-
Clarêncio aguardava-nos. ra mulher, mal-humorada e enfurecida, perdera a
Era preciso continuar na lição. serenidade que lhe caracterizava habitualmente o
semblante.
Enquanto junto de nós, versando os problemas
de ordem moral que lhe absorviam a mente, sus-
tentara calma invejável, com aristocrática pene-
tração nos problemas da vida, ali, perante a mu-
lher que lhe dominava os sentimentos, revelava-se
mais acessível ao desequilíbrio e à conturbação.
Mostrava-se interessado em responder às objur-
gatórias que ouvia, entretanto, extrema palidez fi-
sionômica denunciava-lhe agora a inibidora emoção.
Situado entre Odila e Zulmira, parecia dividir-
-se entre o amor e a piedade.
A genitora de Evelina prosseguia gritando, Valendo-me da excursão para o Lar da Bênção,
com inflexão enternecedora, no entanto, imóvel, o indaguei do Ministro quanto a certo enigma que
marido assemelhava-se a uma estátua viva, de dú- me feria a imaginação.
vida e sofrimento. Esteves, ao tempo da guerra do Paraguai, so-
Esperava que o nosso orientador, qual aconte- frera tanto quanto Júlio o suplício do veneno.
cera minutos antes com o ferroviário, reconduzisse Porque surgiam em ambos efeitos tão díspares?
a mente de Odila às impressões do pretérito, a fim O menino ainda trazia a garganta doente, ao passo
de acalmar-lhe o coração, e cheguei a falar-lhe, que o enfermeiro, Vitimado por Leonardo, não pa-
nesse sentido, mas Clarêncio - informou, bondoso: recia haver conhecido qualquer consequência mais
— Não, não convém. Nossa história cresceria grave...
demasiado por espraiar-se excessivamente no tem- Clarêncio, sorrindo, explicou afetuoso:
po. E' aconselhável nossa sustentação no fio de — Não tomaste em consideração o exame das
trabalho nascido na prece de Evelina. causas. Esteves foi envenenado, enquanto Júlio se
Reparando que o ferroviário manifestava es- envenenou. Há muita diferença. O suicídio acar-
tranha aflição, o Ministro acercou-se dele e pater- reta vasto complexo de culpa. A fixação mental
nalmente afastou-o de Odila, transportando-o para do remorso opera inapreciáveis desequilíbrios no
o leito em que o seu carro físico repousava. corpo espiritual. O mal como que se instala nos re-
A pobre desencarnada tentava agarrar-se a ele, cessos da consciência que o arquiteta e concretiza.
clamando em desconsolo: Vimos Leonardo Pires com a imagem de Esteves
— Amaro! Amaro! não me abandones assim! atormentando-lhe a imaginação e observámos Jú-
O relógio-carrilhão da família assinalava três lio, enfermo até agora, em consequência de erros
da manhã. deliberados aos quais se entregaram há quase oi-
O dono da casa acordou, abatido. tenta anos. O pensamento que desencadeia o mal
Esfregou os olhos, sonolento, guardando a encarcera-se nos resultados dele, porque sofre fa-
ideia de ainda estar ouvindo o apelo que vibra- talmente os choques de retorno, no veículo em que
va no ar: se manifesta.
— Amaro! Amaro! E, à frente das silenciosas reflexões que me
O abalo do reencontro fora nele muito forte. absorviam, acrescentou:
Na tela mnemónica permanecia tão somente a fase — E' natural que assim seja.
última de sua incursão espiritual — a imagem de Atingíramos a graciosa residência de Blandina.
Odila, que se lhe afigurava implorando s o c o r r o . . . Entrámos.
Da palestra que alimentara conosco não res- O choro de Júlio infundia compaixão.
tava traço algum. Após saudarmos a devotada Mariana, que o
Deixando-o entregue à lembrança fragmentária assistia com desvelo maternal, o Ministro exami-
que lhe assomava à consciência como simples so- nou-o e notificou à irmã Blandina, algo inquieta:
nho, partimos. — Estejamos tranquilos. Espero conduzi-lo à
A irmã Blandina solicitava-nos concurso ime- reencarnação em breves dias.
diato, em favor do pequeno Júlio, que confiara aos — Sim, essa providência não deve tardar —
cuidados de Mariana, enquanto nos buscava a com- considerou nossa amiga, atenciosa.
panhia. Assinalando-nos decerto a curiosidade, de vez
que também percebia Hilário interessado em ad- mas Clarêncio, reparando que não nos cabia fugir
quirir informações e conhecimentos em torno dos do quadro ambiente, voltou-se para a garganta
problemas que anotávamos de perto, o instrutor enferma de Júlio e continuou:
convidou-nos a observar a infortunada criança, co- — Não nos afastemos das observações práti-
municando : cas, para estudar com clareza os conflitos da alma.
— Como não desconhecem, o nosso corpo de Tal seja a viciação do pensamento, tal será a de-
matéria rarefeita está intimamente regido por sete sarmonia no centro de força, que reage em nosso
centros de força, que se conjugam nas ramificações corpo a essa ou àquela classe de influxos mentais.
dos plexos e que, vibrando em sintonia uns còm Apliquemos à nossa aula rápida, tanto quanto nos
os outros, ao influxo do poder diretriz da mente, seja possível, a terminologia trazida do mundo,
estabelecem, para nosso uso, um veículo de células para que vocês consigam fixar com mais segurança
elétricas, que podemos definir como sendo um cam- os nossos apontamentos. Analisando a fisiologia
po eletromagnético, no qual o pensamento vibra do perispírito, classifiquemos os seus centros de
em circuito fechado. Nossa posição mental deter- força, aproveitando a lembrança das regiões mais
mina o peso específico do nosso envoltório espiri- importantes do corpo terrestre. Temos, assim, por
tual e, consequentemente, o «habitat» que lhe com- expressão máxima do veículo que nos serve pre-
pete. Mero problema de padrão vibratório. Cada sentemente, o «centro coronário» que, na Terra, é
qual de nós respira em determinado tipo de onda. considerado pela filosofia indu como sendo o lótus
Quanto mais primitiva sê revela a condição da de mil pétalas, por ser o mais significativo em
mente, mais fraco é o influxo vibratório do pen- razão do seu alto potencial de radiações, de vez
samento, induzindo a compulsória aglutinação do que nele assenta a ligação com a mente, fulgurante
ser às regiões da consciência embrionária ou tor- sede da consciência. Esse centro recebe em primei-
turada, onde se reúnem as vidas inferiores que lhe ro lugar os estímulos do espírito, comandando os
são afins. O crescimento do influxo mental, no demais, vibrando todavia com eles em justo regime
veículo eletromagnético em que nos movemos, após
de interdependência. Considerando em nossa expo-
abandonar o corpo terrestre, está na medida da
sição os fenômenos do corpo físico, e satisfazendo
experiência adquirida e arquivada em nosso pró-
prio espírito. Atentos a semelhante realidade, é aos impositivos de simplicidade em nossas defini-
fácil compreender que sublimamos ou desequilibra- ções, devemos dizer que dele emanam as energias
mos o delicado agente de nossas manifestações, de sustentação do sistema nervoso e suas subdi-
conforme o tipo de pensamento que nos flui da visões, sendo o responsável pela alimentação das
vida íntima. Quanto mais nos avizinhamos da es- células do pensamento e o provedor de todos os
fera animal, maior é a condensação obscurecente recursos eletromagnéticos indispensáveis à estabi-
de nossa organização, e quanto mais nos elevamos, lidade orgânica. É, por isso, o grande assimilador
ao preço de esforço próprio, no rumo das gloriosas das energias solares e dos raios da Espiritualidade
construções do espírito, maior é a sutileza de nos- Superior capazes de favorecer a sublimação da
so envoltório, que passa a combinar-se facilmente alma. Logo após, anotamos o «centro cerebral»,
com a beleza, com a harmonia e com a luz reinan- contíguo ao «centro coronário», que ordena as per-
tes na Criação Divina. cepções de variada espécie, percepções essas que,
na vestimenta carnal, constituem a visão, a audi-
Ouvíamos as preciosas explicações, enlevados, ção, o tato e a vasta rede de processos da inteli-
gência que dizem respeito à Palavra, à Cultura, caso de Júlio, observamo-lo como autor da pertur-
à Arte, ao Saber. E' no «centro cerebral» que bação no «centro laríngeo», alteração que se ex-
possuímos o comando do núcleo endocrínico, refe- pressa por enfermidade ou desequilíbrio a acompa-
rente aos poderes psíquicos. Em seguida, temos o nhá-lo fatalmente à reencarnação.
«centro laríngeo», que preside aos fenômenos vo-
cais, inclusive às atividades do timo, da tiróide e — E como sanará ele semelhante deficiência?
das paratiróides. Logo após, identificamos o «centro — perguntei, edificado com os esclarecimentos ou-
cardíaco», que sustenta os serviços da emoção e vidos.
do equilíbrio geral. Prosseguindo em nossas obser- Com a serenidade invejável de sempre, o Mi-
vações, assinalamos o «centro esplénico» que, no nistro ponderou:
corpo denso, está sediado no baço, regulando a — Nosso Júlio, de atenção encadeada à dor
distribuição e a circulação adequada dos recursos da garganta, constrangido a pensar nela e pade-
vitais em todos os escaninhos do veículo de que cendo-a, recuperar-se-á mentalmente para retificar
nos servimos. Continuando, identificamos o «cen- o tônus vibratório do «centro laríngeo», restabele-
tro gástrico», que se responsabiliza pela penetração cendo-lhe a normalidade em seu próprio favor.
de alimentos e fluidos em nossa organização e, por E decerto para gravar, com mais segurança,
fim, temos o «centro genésico», em que se localiza a elucidação, concluiu:
o santuário do sexo, como templo modelador de — Júlio renascerá num equipamento fisiológi-
formas e estímulos. co deficitário que, de algum modo, lhe retratará
O instrutor fêz pequena pausa de repouso e a região lesada a que nos reportamos. Sofrerá in-
prosseguiu: tensamente do órgão vocal que, sem dúvida, se
— Não podemos olvidar, porém, que o nosso caracterizará por fraca resistência aos assaltos mi-
veículo sutil, tanto quanto o corpo de carne, é cria- crobianos, e, em virtude de o nosso amigo haver
ção mental no caminho evolutivo, tecido com re- menosprezado a bênção do corpo físico, será defron-
cursos tomados transitoriamente por nós mesmos tado por lutas terríveis, nas quais aprenderá a
aos celeiros do Universo, vaso de que nos utilizamos valorizá-lo.
para ambientar em nossa individualidade eterna a Em seguida, porém, o instrutor desdobrou vá-
divina luz da sublimação, com que nos cabe de- rias operações magnéticas, a benefício do pequeno
mandar as esferas do Espírito Puro. Tudo é tra- enfermo, que se mantinha calmo, e, com os agra-
balho da mente no espaço e no tempo, a valer-se decimentos das duas solícitas irmãs que nos ou-
de milhares de formas, a fim de purificar-se e san- viam, atentamente, despedimo-nos de retorno ao
tificar-se para a Glória Divina. aiosso domicílio espiritual.
Clarêncio afagou a garganta doente do me-
nino, dando-nos a ideia de que nela fixava o objeto
de nossas lições, e aduziu:
— Quando a nossa mente, por atos contrários
à Lei Divina, prejudica a harmonia de qualquer
um desses fulcros de força de nossa alma, natu-
ralmente se escraviza aos efeitos da ação desequi-
librante, obrigando-se ao trabalho de reajuste. No
de equilíbrio que nos outorgará o trânsito definitivo
para as eminências do Espírito Puro.
— Ah! sim — concordou o Ministro, com gra-
ve entono —, para que tivéssemos na Crosta Pla-
netária um vaso tão aprimorado e tão belo, quanto
CONVERSAÇÃO EDIFICANTE o corpo humano, a Sabedoria Divina despendeu mi-
lênios de séculos, usando os multiformes recursos
da Natureza, no campo imensurável das f o r m a s . . .
Enquanto regressávamos ao nosso círculo de Para que venhamos a possuir o sublime instrumen-
trabalho e de estudo, para articular novas provi- to da mente em planos mais elevados, não podemos
dências de auxílio, em favor dos protagonistas da esquecer que o Supremo Pai se vale do tempo
história que a vida estava escrevendo, concluí que
infinito para aperfeiçoar e sublimar a beleza e a
não me cabia perder a oportunidade de mais amplo
entendimento com o nosso orientador, com alusão precisão do corpo espiritual que nos conferirá os
aos esclarecimentos que nos fornecera, acerca do valores imprescindíveis à nossa adaptação à Vida
perispírito. Superior.
— Compete-nos, então — observou Hilário,
Assim como o homem comum mal conhece o atencioso —, atribuir importante papel às enfer-
veículo em que se movimenta, ignorando a maior midades na esfera humana. Quase todas estarão
parte dos processos vitais de que se beneficia e no mundo, desempenhando expressivo papel na re-
usando o corpo de carne à maneira de um inquilino generação das almas.
estranho à casa em que reside, também nós, os
desencarnados, somos compelidos a meticulosas me- — Exatamente.
ditações para analisar a vestimenta de que nos ser- — Cada «centro de força» — ponderei — exi-
vimos, de modo a conhecer-lhe a intimidade. girá absoluta harmonia, perante as Leis Divinas
que nos regem, a fim de que possamos ascender
Efetivamente, em novas condições na vida es-
piritual, passamos a apreciar, com mais segurança, no rumo do Perfeito Equilíbrio...
o corpo abandonado à Terra, penetrando os segre- — Sim — confirmou Clarêncio —, nossos des-
dos de sua formação e desenvolvimento, sustenta- lizes de ordem moral estabelecem a condensação de
ção e desintegração, mas somos desafiados pelos fluidos inferiores de natureza gravitante, no campo
enigmas do novo instrumento que passamos a uti- eletromagnético de nossa organização, compelindo-
lizar. Lidamos, na Vida Maior, com o carro sutil -nos a natural cativeiro em derredor das vidas
da mente, pelo menos na esfera em que nos situa- começantes às quais nos imantamos.
mos, acentuando, pouco a pouco, os nossos conhe- Hilário, conduzindo mais longe as próprias
cimentos, quanto às peculiaridades que lhe dizem divagações, perguntou:
respeito. — Imaginemos, contudo, um homem puramen-
Reparei que Hilário, pela expressão dos olhos, te selvagem, a situar-se em plena ignorância dos
demonstrava não menor anseio de saber. E, enco- Desígnios Superiores, que se confia a delitos indis-
rajado pela atitude do companheiro, desfechei a criminados . . . Terá nos tecidos sutis da alma as
primeira questão, considerando: lesões cabíveis a um europeu super-civilizado, que
se entrega à indústria do crime?
— Inegavelmente, será difícil alcançar o gran-
Clarêncio sorriu, compreensivo, e acentuou:
132 ANDRÉ LUIZ ENTRE A TERRA E O CÉU 133:

— Sigamos devagar. Comentávamos, ainda há Calara-se o instrutor, mas o assunto era por
pouco, o problema da evolução. Assim como o demais importante para que eu me desinteressasse
aperfeiçoado veículo do homem nasceu das formas dele apressadamente.
primárias da Natureza, o corpo espiritual foi ini-
Recordei os inúmeros casos de moléstias obs-
ciado também nos princípios rudimentares da in- curas de meu trato pessoal e aduzi:
teligência. E' necessário não confundir a semente
com a árvore ou a criança com o adulto, embora — Decerto a Medicina escreveria gloriosos ca-
surjam na mesma paisagem de vida. O instrumen- pítulos na Terra, sondando com mais segurança os
to perispirítico do selvagem deve ser classificado problemas e as angústias da a l m a . . .
como protoforma humana, extremamente condensa- — Gravá-los-á mais tarde — confirmou Cla-
do pela sua integração com a matéria mais densa. rêncio, seguro de si. — Um dia, o homem ensinará
Está para o organismo aprimorado dos Espíritos ao homem, consoante as instruções do Divino Mé-
algo enobrecidos, como um macaco antropomorfo dico, que a cura de todos os males reside nele
está para o homem bem-posto das cidades moder- próprio. A percentagem quase total das enfermi-
dades humanas guarda origem no psiquismo.
nas. Em criaturas dessa espécie, a vida moral está
começando a aparecer e o perispírito nelas ainda Sorridente, acrescentou:
se encontra enormemente pastoso. Por esse mo- — Orgulho, vaidade, tirania, egoísmo, pregui-
tivo, permanecerão muito tempo na escola da expe- ça e crueldade são vícios da mente, gerando per-
riência, como o bloco de pedra rude sob marteladas, turbações e doenças em seus instrumentos de ex-
pressão .
antes de oferecer de si mesmo a obra-prima...
Despenderão séculos e séculos para se rarefazerem, No objetivo de aprender, observei:
usando múltiplas formas, de modo a conquistarem — E' por isso que temos os vales purgatoriais,
as qualidades superiores que, em lhes sutilizando depois do túmulo... a morte não é redenção...
a organização, lhes conferirão novas possibilidades — Nunca foi — esclareceu o Ministro, bon-
de crescimento consciencial. O instinto e a inteli- doso. — O pássaro doente não se retira da con-
gência pouco a pouco se transformam em conhe- dição de enfermo, tão só porque se lhe arrebente
cimento e responsabilidade e semelhante renovação a gaiola. O inferno é uma criação de almas dese-
outorga ao ser mais avançados equipamentos de quilibradas que se ajuntam,, assim como o charco
manifestação... O prodigioso corpo do homem na é uma coleção de núcleos lodacentos, que se con-
Crosta Terrestre foi erigido pacientemente, no cur- gregam uns aos outros. Quando de consciência
so dos séculos, e o delicado veículo do Espírito, nos inclinada para o bem ou para o mal perpetramos
planos mais elevados, vem sendo construído, célula esse ou aquele delito no mundo, realmente pode-
mos ferir ou prejudicar a alguém, mas, antes de
a célula, na esteira dos milênios incessantes...
tudo, ferimos e prejudicamos a nós mesmos. Se
E, com um olhar significativo, Clarêncio con- eliminamos a existência do próximo, nossa vítima
cluiu : ' . receberá dos outros tanta simpatia que, em breve,
— . . .até que nos transfiramos de residência, se restabelecerá, nas leis de equilíbrio que nos go-
aptos a deixar, em definitivo, o caminho das for- vernam, vindo, muita vez, em nosso auxílio, muito
mas, colocando-nos na direção das esferas do Es- antes que possamos recompor os fios dilacerados
pírito Puro, onde nos aguardam os inconcebíveis,, de nossa consciência. Quando ofendemos a essa
os inimagináveis recursos da suprema sublimação. ou àquela criatura, lesamos primeiramente a nos-
sa própria alma, de vez que rebaixamos a nossa
dignidade de espíritos eternos, retardando em nós
sagradas oportunidades de crescimento.
— Sim —- concordei —, tenho visto aqui afli-
tivas paisagens de provação que me constrangem
a meditar...
— A enfermidade, como desarmonia espiritual XXII
— atalhou o instrutor —, sobrevive no perispírito.
As moléstias conhecidas no mundo e outras que
ainda escapam ao diagnóstico humano, por muito
IRMÃ CLARA
tempo persistirão nas esferas torturadas da alma,
conduzindo-nos ao reajuste. A dor é o grande e Na noite imediata às experiências que descre-
abençoado remédio. Reeduca-nos a atividade men- vemos, o Ministro convidou-nos a visitar a Irmã
tal, reestruturando as peças de nossa instrumen- Clara, a quem pediria socorro em favor do escla-
tação e polindo os fulcros anímicos de que se vale recimento de Odila.
a nossa inteligência para desenvolver-se na jorna- Eu me sentia cada vez mais atraído para cr
da para a vida eterna. Depois do poder de Deus, romance vivo daquele grupo de almas que o destino
é a única força capaz de alterar o rumo de nossos enleara em suas teias.
pensamentos, compelindo-nos a indispensáveis mo- Se me fosse permitido, voltaria de imediato
dificações, com vistas ao Plano Divino, a nosso para junto de Mário Silva rebelado, ou para junto
respeito, e de cuja execução não poderemos fugir de Amaro paciente, a fim de observar o desdobra-
sem graves prejuízos para nós mesmos. mento da história, cujos capítulos jaziam gravados
nas páginas vivas de seus corações.
Nosso domicílio, porém, estava agora à vista.
Todavia, era necessário esperar.
Os raios dourados da manhã varriam o hori-
Enquanto buscávamos a intimidade de Clara,
zonte longínquo.
descia o luar em prateados jorros sobre a paisagem
Despediu-se o Ministro, paternal.
que se tapizava de flores.
Aquele era um dos momentos em que, desde
Com o cérebro preso às preocupações resul-
muito, se devotava ele à oração.
tantes do trabalho que nos exigia a atenção, algo
indaguei de Clarêncio quanto à cooperação que pre-
tendíamos solicitar.
Por que motivo rogaria ele o concurso de ou-
trem, quando se dirigira com tanto êxito à mente
de Esteves e Armando, reencarnados? não lhes
favorecera o retrocesso da memória, até os recua-
dos dias da luta no Paraguai? porque não conse-
guiria doutrinar também a desditosa irmã enferma?
O Ministro ouviu-me, tolerante, e redarguiu:
— Iludes-te. Nem sempre doutrinar será trans-
formar. Efetivamente, guardo alguma força mag-
nética suficientemente desenvolvida, capaz de ope-
rar sobre a mente de nossos companheiros em
recuperação; no entanto, ainda não disponho de a serviço da palavra. Podem partilhá-la conosco.
sentimento sublimado, suscetível de garantir a re- Nossa aula é uma simples conversação...
novação da alma. Sem dúvida, dentro de minhas Fitando bondosamente o Ministro, rematou:
limitações, estou habilitado a falar à inteligência, — Sentem-se. Sou eu quem pede perdão por
mas não me sinto à altura de redimir corações. fazê-los esperar mais um pouco. Em breves ins-
Para esse fim, para decifrar os complicados labi- tantes, todavia, entraremos em nosso entendimento
rintos do sofrimento moral, é imprescindível haver mais íntimo.
atingido mais elevados degraus na humana com- E, voltando à poltrona que nada tinha de cá-
preensão . tedra, sem qualquer atitude professoral, tão gran-
Dispunha-me a desfechar novo interrogatório, de era o doce ambiente de maternidade que sabia
contudo, nosso orientador indicou-nos bela edifica- irradiar de si, começou a dizer para os aprendizes:
ção próxima. — Conforme estudamos na noite de hoje, a
Cercada de arvoredo, que servia de enfeite a palavra, qualquer que ela seja, surge invariavel-
espaçosos canteiros de flores, a residência de Clara mente dotada de energias elétricas específicas, li-
figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso inter- bertando raios de natureza dinâmica. A mente,
nato para moças. como não ignoramos, é o incessante gerador de
Até certo ponto, não nos enganáramos. força, através dos fios positivos e negativos do
A nossa anfitriã não morava num estabeleci- sentimento e do pensamento, produzindo o verbo
mento de ensino, entretanto, mantinha em casa que é sempre uma descarga eletromagnética, regu-
um verdadeiro educandário, tão grandes e luzidas lada pela voz. Por isso mesmo, em todos os nossos
eram as assembleias instrutivas que sabia orga- campos de atividade, a voz nos tonaliza a exterio-
nizar. rização, reclamando apuro de vida interior, de vez
Recebeu-nos em extenso salão, onde era aten- que a palavra, depois do impulso mental, vive na
ciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos de base da criação; é por ela que os homens se apro-
variadas condições, que se instalavam à vontade, ximam e se ajustam para o serviço que lhes com-
em grupos diversos, sem qualquer ideia de escola pete e, pela voz, o trabalho pode ser favorecido
assinalando o ambiente em sua feição exterior. òu retardado, no espaço e no tempo.
De olhos rasgados e lúcidos a lhe marcarem Dentro da pausa ligeira que se fizera espon-
magnificamente o semblante com os traços aristo- tânea, simpática senhora interrogou:
cráticos do rosto emoldurados pela basta cabeleira, — Mas, para que tenhamos a solução do pro-
Clara parecia uma jovem madona, detida entre os blema, é indispensável jamais nos encolerizarmos ?
melhores dons da mocidade e da madureza. Es- — Sim — elucidou a instrutora, calma —,
tendeu-nos as mãos pequenas e finas, responden- indiscutivelmente, a cólera não aproveita a nin-
do-nos às saudações com alegria sincera. guém, não passa de perigoso curto-circuito de nos-
Nosso orientador rogou excusas, pela nossa sas forças mentais, por defeito na instalação de
interferência no trabalho. nosso mundo emotivo, arremessando raios destrui-
— Não se incomodem — acentuou a interlo- dores, ao redor de nossos passos...
cutora, encantadoramente natural —, achamo-nos
Sorrindo bem humorada, acrescentou:
num curso rápido, acerca da importância da voz
— Em tais ocasiões, se não encontramos, jun-
to de nós, alguém com o material isolante da ora- a expressão da frase, como se gradua a emissão
ção ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas elétrica...
energias estabelece os mais altos prejuízos à nos- E, ante a assembleia que lhe registava os en-
sa vida, porque os pensamentos desvairados, em se sinamentos com justificável respeito, prosseguiu,
interiorizando, provocam a temporária cegueira de depois de ligeiro intervalo:
nossa mente, arrojando-a em sensações de remoto — Nossa vida pode ser comparada a grande
pretérito, nas quais como que descemos quase sem curso educativo, em cujas classes inumeráveis dá-
perceber a infelizes experiências da animalidade in- mos e recebemos, ajudamos e somos ajudados. A
ferior. A cólera, segundo reconhecemos, não pode serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre
e nem deve comparecer em nossas observações, re- a nossa melhor conselheira, mas, em alguns aspec-
lativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo tos de nossa luta, a indignação é necessária para
em descontrole, cujo contacto pode gerar as mais marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados
estranhas perturbações. de rebelião ante as Leis do Senhor. Essa elevada
Um moço, com evidente interesse nas lições, tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à
argumentou: violência e jamais deve perder a dignidade de que
— E se substituíssemos o termo «cólera» pelo fomos investidos, recebendo da Divina Confiança
termo «indignação»? a graça do conhecimento superior. Basta, dentro
Irmã Clara pensou alguns instantes e redar- dela, a nossa abstenção dos atos que intimamente
guiu : reprovamos, porque a nossa atitude é uma corrente
de indução magnética. Em torno de nós, quem se
— Efetivamente, não poderíamos completar os simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos
nossos apontamentos, sem analisar a indignação vê fazer. Nosso exemplo, em razão disso, é um
como estado dalma, por vezes necessário. Natural- fulcro de atração. Precisamos, assim, de muita cau-
mente é imprescindível fugir aos excessos. Contra- tela com a palavra, nos momentos de tensão alta
riar-se alguém a propósito de bagatelas e a todos do nosso mundo emotivo, a fim de que a nossa
os instantes do dia será baratear os dons da vida, voz não se desmande em gritos selvagens ou em
desperdiçando-os, de modo inconsequente, sem o considerações cruéis que não passam de choques
mínimo proveito para si mesmo ou para os outros. mortíferos que infligimos aos outros, semeando es-
Imaginemos a indignação por subida de tensão na pinheiros de antipatia e revolta que nos prejudi-
usina de nossos recursos orgânicos, criando efeitos carão a própria tarefa.
especiais à eficiência de nossas tarefas. Nos casos
de exceção, em que semelhante diferença de poten- Um amigo que acompanhava os ensinamentos,
cial ocorre em nossa vida íntima, não podemos es- com interesse invulgar, perguntou, respeitoso:
quecer o controle da inflexão vocal. Assim como — Irmã Clara, como devemos interpretar as
a administração da energia elétrica reclama aten- perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez
ção para a voltagem, precisamos vigiar a nossa e a diplofonia?
indignação principalmente quando seja imperioso — Sem dúvida — informou a instrutor^, solí-
vertê-la através da palavra, carregando a nossa cita —, os órgãos vocais experimentam igualmente
voz tão somente com a força suscetível de ser apro- lutas e provações quando reclamam reajuste. Por
veitada por aqueles a quém endereçamos a carga intermédio da voz, praticamos vários delitos de ti-
de nossos sentimentos. E' indispensável modular rania mental e, através dela, nos cabe reparar os
débitos contraídos. As enfermidades dessa ordem
compelem-nos ao trabalho de recuperação no si-
lêncio, de vez que, sofrendo a alheia observação,
aprendemos pouco a pouco a governar os próprios
impulsos, afeiçoando-os ao bem.
A orientadora, que falava com absoluta sim- XXIII
plicidade e à maneira de um anjo maternal dirigin-
do-se aos filhinhos, comentou, ainda por alguns
minutos, o tema singular com surpreendente pri- APELO MATERNAL
mor de definição.
Depois, finda a aula, permaneceram no belo A paisagem doméstica, na residência de Amaro,
domicílio tão somente algumas jovens que encon- não mostrava qualquer alteração.
travam em nossa anfitriã desvelada benfeitora. Zulmira, atormentada por Odila, que realmen-
Clara convidou-nos a pequena peça contígua te lhe vampirizava as forças, jazia no leito, apática
e o Ministro deu-lhe a conhecer o objetivo de nossa e desolada, como estátua viva de angústia e medo,
visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a escutando o vento que zunia, lá f o r a . . .
fim de modificar-se. A interlocutora perguntou, com Mais magra e mais abatida, exibia comovedo-
carinho, quanto às particularidades do serviço que ramente a própria exaustão.
pretendíamos realizar.
Irmã Clara, depois de expressivo entendimento
Clarêncio resumiu o drama que nos empolgava com o nosso orientador, solicitou que nos manti-
a atenção. véssemos a pequena distância, e, abeirando-se da
Quando se inteirou de que amargurada mulher genitora de Evelina, que tanto quanto a enferma
devia renunciar ao companheiro que permanecia na não nos percebia a presença, alongou os braços
Terra, vimos imensa compaixão se lhe estampar em prece.
no rosto. Seus olhos enevoaram-se de lágrimas que
não chegaram a c a i r . . . Sob forte emoção, acompanhei o formoso qua-
Compreendi que a nobre instrutora, aureolada dro que se desdobrou, divino, ao nosso olhar.
de soberanos valores morais, trazia consigo profun- Gradativamente, o recinto foi invadido por vas-
das mágoas imanifestas. Certamente, buscávamos to círculo de luz, do qual se fizera a instrutora
reconforto para um coração infeliz num coração o núcleo irradiante. Assemelhava-se nossa amiga
que talvez estivesse padecendo ainda m a i s . . . a uma estrela repentinamente trazida à Terra, com
— Pobre criatura! — disse a orientadora, co- os dois braços distendidos em forma de asas, pres-
movida . tes a desferir excelso v o o . . .
E, afirmando-se com tempo bastante para au- Cercava-a enorme halo de dourado esplendor,
sentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a seguir- como se ouro eterizado e luminescente lhe emol-
-nos generosamente. durasse a forma leve e sublime... Dos revérberos
dessa natureza, passavam as irradiações a tona-
lidades diferentes, em círculos fechados sobre si
mesmos, caminhando dos reflexos de ouro e opala
ao róseo vivo, do róseo vivo ao azul celeste, do
azul celeste ao verde claro e do verde claro ao vio-
leta suave, que se transfundia em outros aspectos
a me escaparem da apreciação... Naturalmente ofuscada pelo brilho de que se
envolvia a visitante inesperada, começou a chorar,
Tive a ideia de que a irmã Clara se convertera suplicando:
no centro de milagroso arco-íris, cuja existência
nunca pudera vislumbrar. — Anjo de Deus, socorre-me! socorre-me!...
Fizera-se a casa excessivamente estreita para — Odila, que fazes ? — interrogou a emissária
aquela abençoada fonte de raios balsamizantes e com inesquecível inflexão de ternura.
indefiníveis. — Estou aqui, vingando-me por a m o r . . .
Reparei que a própria Odila se aquietara como — Haverá, porém, algum ponto de contacto
entre amor e vingança?
que dominada por branda coação.
Extático, mal consegui articular alguns monos- Indicando timidamente a triste companheira
sílabos, procurando esclarecimento em nosso ins- que jazia acorrentada ao leito, Odila tentou con-
trutor. servar a atitude que lhe era característica, excla-
mando, cruel:
— Irmã Clara — informou o Ministro, igual-
mente enlevado — já atingiu o total equilíbrio — Devo alijar a intrusa que me assaltou a
dos centros de força que irradiam ondulações lu- casa! Está miserável mulher tomou-me o marido
e assassinou-me o filhinho!... Quem ama faz jus-
minosas e distintas. Em oração, ao influxo da tiça pelas próprias m ã o s ! . . .
mente enaltecida, emite as vibrações do seu sen-
timento purificado, que constituem projeções de — Pobre filha! — revidou Clara, abraçando-a.
harmonia e beleza a lhe fluírem do ser. Se parti- — Quem ama semeia a vida e a alegria, comba-
lhássemos com ela a mesma posição evolutiva, tendo o sofrimento e a m o r t e . . . Quando nosso
entraríamos agora em relação imediata com o ele- culto afetivo se converte em flagelação para os que
vado plano de consciência em que se exterioriza seguem ao nosso lado, não abrigamos outro senti-
e, então, em vez de somente observarmos este mento que não seja aquele do desvairado apego a
deslumbramento de luz e cor, perceberíamos a men- nós mesmos, na centralização do egoísmo aviltante.
sagem glorificada que lhe nasce do coração, de vez Achamo-nos à frente de infortunada irmã, arro-
que as irradiações sob nossos olhos são música e jada a dolorosa prova. Não te dói vê-la derrotada
e infeliz?
linguagem, sabedoria e amor do pensamento a ex-
pressar-se maravilhoso e v i v o . . . A sintonia espi- — Ela desposou o homem que a m o ! . . . — so-
ritual perfeita, porém, só é possível entre aqueles luçou Odila, mais dominada pela influência magné-
que se confundem na afinidade completa... tica da mensageira que impressionada por suas
belas palavras.
A mensageira transfigurada parecia mais bela.
Avançou para a primeira esposa de Amaro e — Não seria mais justo — ponderou Clara
cobriu-lhe os olhos com a destra lirial. sem afetação — considerar que ele a desposou?
— Reparem — disse Clarêncio, feliz — : ela E, acariciando-lhe a cabeça agora trêmula, a
instrutora aduziu:
guarda o poder de ampliar a visão. Odila identi-
ficar-lhe-á a presença, assim como a vemos. — Odila, o ciúme que não destruímos, enquan-
Com efeito, vimos que a genitora de Evelina, to dispomos da oportunidade de trabalhar no corpo
tocada por aqueles dedos celestes, proferiu um gri- denso, transforma-se em aflitiva fogueira a calci-
to de encantamento selvagem e caiu de joelhos. nar-nos o coração, depois da morte. Acalma-te! A
mulher de carne, que eras, precisa agora oferecer
\
lugar à mulher de luz que deves ser. A porta do — A intrusa invejava-lhe a posição no carinho
lar terrestre, onde te supunhas rainha de pequeno de Amaro. \
império sem fim, eerrou-se com os teus olhos ma- — Sim —r- concordou Clara, afetuosa —, admi-
teriais! A passagem na Terra é um dia na escola... to que Zulmira assim se conduzisse. E' inexperien-
Todos os bens que desfrutávamos no mundo de te ainda e a ignorância enquanto nos demoramos
onde viemos constituíam recursos do Senhor que na Terra pode impedir-nos a visão, mas não seria
no-los concedia a título precário. Por lá, raramen- justo, tão somente por isso, atribuir-lhe a morte
te nos lembramos de que o tesouro do carinho do pequenino... Medita! A verdadeira fraternidade
doméstico é algo semelhante a sementeira precio- ajudar-te-á a sentir naquela que te sucedeu no lar
sa, jpujos valores devemos estender... uma filha suscetível de recolher-te o afeto e a
Começamos a obra de amor no lar, mas é orientação... Em lugar de forjares uma inimiga
necessário deserivolvê-la no rumo da Humanidade na sinistra bigorna da crueldade, edificarás uma
inteira. Temos um só Pai que é o Senhor da Bon- dedicação nobre e leal para enriquecer-te a vida.
dade Infinita, que nos centraliza as esperanças... Retirando a luz do teu amor das chamas combu-
Somos, assim, todos irmãos, partes integrantes de rentes do inferno de ciúme em que padeces pela
uma família s ó . . . Já te imaginaste no lugar de própria vontade, serás realmente para o homem
Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades e afli- querido e para a filha que clama por tua assistên-
ções? Já te colocaste na condição do esposo que cia uma inspiração e uma b ê n ç ã o ! . . .
asseveras amar? Se te visses no mundo, sem a Talvez porque Odila, quase vencida, simples-
companhia dele, com os filhinhos necessitados de mente chorasse, a mensageira afagava-lhe os ca-
consolo e sustentação, não sentirias reconhecimen- belos, acrescentando:
to por alguém que te auxiliasse a protegê-los ? Con-
sideras somente os teus problemas... Entretanto, — Sei que sofres igualmente como mãe ator-
o homem amado permanece no cárcere de escuros mentada... Recorda, contudo, que nossos filhos per-
padecimentos íntimos a debater-se com enigmas in- tencem a D e u s . . . E se a morte~ colheu a criança
quietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo... que estremeces, separando-a dos braços paternais,
é que a Vontade Divina determinou o afastamento...
— Não me fales assim! — imprecou a inter- A mensageira amimava-lhe a fronte, dando-nos
pelada, com evidentes sinais de angústia — odeio a impressão de que a submetia a suaves operações
a infame que nos roubou a felicidade... magnéticas.
— Odila, reflete! Esquece-te de que a mulher Depois de alguns instantes em que apenas ou-
sempre é mãe? O túmulo não te restituirá o corpo víamos os soluços de Odila transformada, a vene-
que a Terra consumiu, e, se desejas recuperar a rável amiga acentuou:
ternura e a confiança do companheiro que deixaste — Porque não te dispões a clarear o próprio
na retaguarda, é preciso saber amá-lo com o es- caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e em-
pírito. Modifica os impulsos do coração! Não su- balá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te
ponhas Amaro capaz de querer-te, transtornada consagrares inutilmente à vingança que te cega os
qual te encontras, entre as farpas envenenadas do olhos e enregela o coração?
despeito, caso chegasse, de repente, até n ó s . . . Clara, certo, alcançara o ponto sensível daque-
— Ela, porém, matou meu f i l h o ! . . . la alma atribulada, porque a infortunada genitora
— Como podes provar semelhante acusação? de Evelina, qual se arrojasse para fora de si mes-
ma todos os pesares que lhe senhoreavam os sen-
timentos, gritou, como fera jugulada pela dor:
— Meu f i l h o ! . . . Meu f i l h o ! . . . /
E seu pranto convulsivo se fêz ^nais angustia-
do, mais comovente. /
A emissária do bem abraçou-á com maternal
carícia e falou-lhe aos ouvidos: / XXIV
— Rejubila-te, irmã querida^ Grande é a tu*
felicidade! Podes ajudar e isso Representa a ven- CARINHO REPARADOR
tura maior! Nada te impede auxiliar o companheiro
da humana experiência, ao alcance de tuas mãos, Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi in-
e basta uma prece de amor puro, com o testemu- ternada numa instituição de tratamento, por alguns
nho de tua compreensão e de tua piedade, para dias, e, durante sete noites consecutivas, visitámos
que venças a reduzida distância entre o teu sofri- Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim
mento e o filhinho idolatrado!... Há vinte e dois de auxiliar o soerguimento dela.
séculos espero por um minuto igual a este para • A segunda esposa de Amaro mostrava-se me-
meu saudoso e agoniado coração, de vez que os lhor. Mais silenciosa. Mais calma.
meus amados ainda não se inclinaram para mim!... Não saíra, porém, da inércia a que se reco-
A voz de Clara parecia mesclada de lágrimas lhera.
que não chegavam a surgir. Alijara a excitação de que se via objeto, mas
Dominada pelas vibrações da mensageira ce- prosseguia entregue a extrema prostração.
leste, Odila agarrou-se a ela, prosseguindo em cho- Subnutrida, apática, sustentava-se no mais ab-
ro convulso, enquanto a instrutora repetia com soluto desânimo.
desvelos de mãe: Atendendo-nos à inquirição habitual, Clarên-
— Vamos, filha! Vamos à procura de nossa cio observou, prestimoso:
renovação com J e s u s ! . . . — Acha-se agora liberta, contudo, reclama es-
Amparando-a, Clara conduziu-a para fora, co- tímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a
lada ao próprio peito. vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto.
Junto de nós, Clarêncio informou: A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. Â
— Agora, Zulmira poderá recuperar-se. A ad- medida que se lhe restaure a visão espiritual, a
versária retirou-se sem a violência que lhe prejudi- primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo
caria o campo mental. de renúncia e fraternidade para construir o futuro
E, acompanhando o nosso orientador, afastámo- que lhe interessa.
-nos por nossa vez, embora conservando a atenção Zulmira, com efeito, continuava livre e tran-
presa à continuação de nossa edificante aventura. quila.
As peças do corpo funcionavam com irrepreen-
sível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia
faltando...
A máquina mostrava-se reequilibrada, entre-
tanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas
providências.
Transcorrida uma semana, Irmã Clara convi- ra, então completamente transfigurada — sou eu!
dou-nos a breve entendimento. sou eu quem te pede coragem e fé, serenidade e
Comunicou-nos que Odila revelava grande valor na tarefa a realizar!...
transformação.
—• Estou farto, f a r t o . . . — clamou ele, agora
Submetida à assistência magnética, a fim de
em lágrimas a lhe verterem, copiosas.
sondar o passado, reconhecera o impositivo de sua
colaboração com o marido para alcançarem ambos Odila, sustentada pela venerável amiga, levan-
a vitória real nos planos do espírito. tou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os
cabelos, perguntou, em voz comovida:
Suspirava pelo reencontro com o filhinho, dis- — Farto de quê?
punha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e
à filhinha... — Sinto-me entediado da v i d a . . . Casei-me, de
novo, como deves saber, acreditando garantir a se-
E, para tanto, combateria a repulsa espontâ- gurança de nossos filhos para o futuro, entretanto,
nea que experimentava por Zulmira, a quem auxi- a mulher que desposei nem de longe chega a teus
liaria como irmã, reajustando-se devidamente para
p é s . . . Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, en-
fortalecê-la e ampará-la.
contrei o desapontamento que não sei disfarçar!...
A benfeitora mostrava-se satisfeita. E, fitando-a com enternecedora expressão, co-
Recomendava-nos trouxesse Amaro, tão logo mentou, triste:
pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite
próxima, até à casa espiritual de refazimento em — Nosso Júlio morreu num desastre, quando
que Odila se encontrava. encerrava para mim as melhores aspirações, nossa
filha se estiola num quarto sem alegria e a ma-
Do entendimento entre ambos, resultariam de- drasta que lhes impus apodrece num l e i t o ! . . . Ah!
certo os melhores efeitos. Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho
A mãezinha de Evelina estava reformada e rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na
daria provas do reajuste, efetuando o primeiro es- eternidade, mas a morte não v e m . . .
forço para a reconciliação.
A esposa, compreensivelmente mais bela pelos
A solicitação de Clara foi alegremente aten- pensamentos redentores que agora lhe manavam
dida.
do ser, com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe
Depois de meia-noite, quando o ferroviário se com inflexão inesquecível:
rendeu à branda influência do sono, guiámo-lo ao — Sim, Amaro, compreendo! Também eu pa-
sítio indicado. deci muito, no entanto, hoje reconheço que a nossa
No aposento claro e florido do santuário de dor é agravada por nós mesmos... Porque have-
recuperação em que Odila se localizava, aguarda- mos de converter a distância em rebelião e a sau-
va-nos a instrutora junto dela. dade em venenoso fel? porque não reconhecer a
O pai de Júlio, que seguia menos consciente Majestade Suprema de Deus, na orientação de nos-
ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mu- sos destinos? não temos sabido cultivar o amor
lher que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que que é sacrifício na Terra para a edificação de nosso
lhe eia possível em tais circunstâncias, e excla- paraíso espiritual... Temos exigido quando deve-
mou, enlevado: mos dar, dilacerado quando nos cabe recompor!...
— Odila!... O d i l a ! . . . Amaro, é preciso acalmar o coração para que a
— Amaro! — respondeu a antiga companhei- vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder
de nós, a fim de receber dos outros o concurso — Todavia — ponderou o moço, triste —, sa-
de que necessitamos... Na aspereza de meus sen- bes quanto te a m o ! . . .
timentos deseducados, vinha eu adubando o espi-
nheiro do ciúme, atormentando-te o pensamento — Não ignoras, por tua vez, que o teu coração
e perturbando a nossa casa! Mas, em alguns dias constitui para mim o tesouro maior da vida, en-
rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos tretanto, hoje vejo o horizonte mais l a r g o . . . Va-
problemas, usando a chave da boa vontade!... leria realmente o brilho dos oásis fechados? Ser-
Quero melhorar-me, progredir, reviver... viria a construção de um palácio, em pleno deserto,
onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade
O ferroviário contemplou-a, carinhoso e reve- os viajores que passassem por nós, mortificados
rente, e acentuou, desalentado: de sede e fome? como categorizar o carinho que
— Isso não impede a terrível realidade. Acha- se pervertesse no isolamento, a pretexto de con-
mo-nos em dois mundos diferentes... Infortunado servar a ventura só para si? Renovemo-nos, Ama-
que sou! sinto-me desarvorado e infeliz!... ro! Nunca é tarde para recomeçar o b e m ! . . . Tra-
— Achava-me igualmente assim, contudo, pro- balhemos, valorizando o tempo e a v i d a ! . . .
curei no silêncio e na oração o roteiro renovador. Tocado talvez nas fibras mais íntimas, o pai
— Que fazer de Zulmira, colocada entre nós de Evelina chorava convulsivamente, infundindo
como empecilho à nossa verdadeira união? piedade...
— Não raciocines desse modo! ela não perma- Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara con-
neceria em tua estrada sem motivo justo. vidou-nos a excursão através do grande jardim
Nesse instante, Clarêncio abeirou-se do ferro- próximo.
viário e, tocando-lhe a fronte com a destra, ofere- A breves instantes, achávamo-nos em plena
ceu-lhe ao campo mental o retorno imediato às contemplação do c é u . . .
recordações das dívidas por ele contraídas no Pa- Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado
raguai . recanto para a conversação a sós.
Amaro estremeceu e continuou escutando. Notámos que a orientadora se preocupava em
— Se Zulmira foi situada no templo de nosso deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro
amor — prosseguiu Odila, admiravelmente inspi- ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam
rada —, é que nosso amor lhe deve a bênção da a confortadoras confidências, distanciámo-nos, de
felicidade de que nos sentimos possuídos... algum modo, admirando a beleza da noite.
— S i m . . . s i m . . . — aprovava agora o inter- Maravilhoso, o firmamento cintilava.
locutor, de posse das reminiscências fragmentárias Longínquas constelações como que nos acena-
que lhe assomavam do coração. vam, indicando glorioso f u t u r o . . .
— Interpretemo-la por nossa filha, por irmã Virações suaves deslizavam, de leve, quais se
de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, ami-
para o bem. O lar não é apenas o domicílio dos mando-nos a cabeça.
c o r p o s . . . E' o ninho das almas, em cujo doce Flores de rara beleza vertiam do cálice raios
aconchego desenvolvemos as asas que nos trans- de claridade diurna, como pequeninos e graciosos
portarão aos cumes da glória eterna. Aceitemos reservatórios do esplendor solar.
a provação e a dor, como abençoadas instrutoras Irmã Clara fascinava-nos com a sua palavra
de nossa romagem para D e u s . . . brilhante. Com simplicidade encantadora, comen-
tarolou baixinho uma canção que lhe recordava o
tava suas viagens a outras esferas de trabalho e tempo em que se consorciara pela primeira vez,
realização, exaltando em cada narrativa o amor tornou, sorridente, ao quarto de dormir.
e a sabedoria do Pai Celestial.
Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente
Por largo tempo, embevecidos, permutámos im- e exclamou:
pressões acerca da excelsitude da vida que se nos
revela sempre mais surpreendente e mais bela, em — Vamos, querido! Estendamos a nossa feli-
cada plano da Criação. cidade! Zulmira espera por nosso a m o r . . .
Avizinhava-se o novo d i a . . .
Tornámos à presença do casal para devolver
o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao térmi-
no do grande entendimento, apresentavam o rosto
pacificado e radiante.
Irmã Clara guardou a pupila nos braços e as
duas seguiram-nos a romagem de volta.
Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho
e calmo.
Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instru-
tora nos advertiu:
— Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.
O relógio marcava seis da manhã.
À maneira de colegial em dia de prova, a trans-
figurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema
expectação...
Amaro recuperou o corpo físico, descerrando
os olhos com excelentes disposições.
Não conseguira relacionar os aspectos parti-
culares da excursão, mas conservava no cérebro
a indefinível certeza de que estivera com a primei-
ra esposa em «algum lugar» e que a vira reani-
mada e feliz.
Distendeu os braços com a deliciosa tranqui-
lidade de quem encontra o fim de longa e aflitiva
tensão nervosa.
Levantou-se, reparando que o dia começava
alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e
a beleza haviam renascido nele próprio.
Sentia vontade de rir e cantar...
E, depois de ausentar-se do banheiro, onde can-
A enferma, por certo, desde muito perdera o
contacto com qualquer manifestação afetiva por
parte do companheiro, e, assim, ao lhe ver o sem-
blante carinhoso e feliz, exibiu larga nota de es-
panto .
XXV — Zulmira! — perguntou ele, inclinando-se
para o seu rosto ossudo e desconsolado — estás
RECONCILIAÇÃO realmente melhor?
—: S i m . . . s i m . . . — suspirou a interpelada,
Amaro não registou o convite da companheira hesitante.
desencarnada, em forma de palavras ouvidas, mas — Escuta! Hoje, amanheci pensando em nós,
recebeu-o como silencioso apelo à vida mental. em nossa felicidade... Não julgas seja tempo de
Dirigiu-se a pequenina copa, pensando em Zul- reagirmos contra o sofrimento que nos cerca? preo-
mira, com o insopitável desejo de comunicar-lhe cupo-me por ti, acamada e abatida, desde a morte
o estranho contentamento de que se via possuído. de Júlio...
Não seria justo envolver a esposa doente na Notei que do tórax de Amaro emanava largo
onda de alegria em que se banhava? fluxo de energia radiante, assim como um jacto de
Vimos que Odila tremeu um instante, ao lhe raios de luz verde-prateada que envolveram o bus-
observar a súbita felicidade com a perspectiva de to de Zulmira, despertando-lhe emotividade incoer-
restauração do carinho para com a segunda mulher. cível .
Compreendi o esforço que a iniciativa lhe recla- A desventurada senhora começou a corar, dan-
mava ao coração feminino e, mais uma vez, reco- do-nos a impressão de que os fluidos arremessados
nheci que a morte do corpo não exonera o Espírito sobre ela lhe lavavam o coração.
da obrigação de renovar-se. No fundo, não podia Clarêncio, calmo, informou:
sentir, de imediato, plena isenção de ciúme, entre- — Como vemos, a sinceridade dispõe de recur-
tanto, aceitava o ideal de sublimação que se lhe sos característicos. Emite forças que não deixam
implantara no sentimento e não parecia disposta margem a enganos. O sentimento puro com que
a perder a oportunidade de reajuste. Amaro se dirige agora à esposa é fator decisivo
Anotando-lhe a queda de forças, Clara abei- para que ela se reerga e se cure.
rou-se dela e falou, maternal: O ferroviário, auxiliado por Odila, enxugou as
— Prossigamos firmes. Todo bem que fizeres lágrimas que corriam copiosas daqueles olhos ma-
a Zulmira redundará em favor de ti mesma. Não cerados e tristes e continuou:
esmoreças. Ajuda-te. A vontade, à procura do bem, — Peço confies em mim! afinal de contas, so-
realiza milagres em nós mesmos. O sacrifício é mos companheiros um do o u t r o . . . como poderei
o preço da verdadeira felicidade. ser feliz sem o teu concurso? não nos casamos para
O abraço afetuoso da benfeitora infundiu-lhe chorar...
energias novas. — Amaro! — exclamou a interlocutora ago-
Os olhos dela brilharam outra vez. niada, conservando ainda os últimos resíduos men-
Enlaçada ao marido, impeliu-o docemente ao tais do complexo de culpa em que se torturava
leito em que a pobre doente repousava. — como te agradeço a alegria desta h o r a ! . . . En-
tretanto, a imagem de Júlio não me sai da lem- a luz da compreensão e do trabalho, nossa casa
brança . . . Sinto que o remorso me persegue. Não desaparecerá... Teu pai e eu não podemos dispen-
fiz tudo o que eu devia para salvar o filhinho que sar-te o concurso. Da saúde e da paz de Zulmi-
me confiaste!... ra depende a feliz continuação de nossa tarefa...
— Esqueçamos o passado — asseverou o es- Deus não nos reúne para a indiferença ou para
poso, decidido —•, todos pertencemos a Deus e acre- o egoísmo e sim para o serviço salutar de uns
dito que a Divina Vontade vive conosco, em toda pelos o u t r o s ! . . .
parte. Indiscutivelmente, Júlio nos faz muita fal- — Mãezinha — explicou a jovem extática —,
ta, mas não podemos renunciar à vida que o Céu tenho orado, tenho pedido ao seu coração nos au-
nos concedeu. E' imprescindível lutar, procurando xilie . . .
a vitória.
— Sim, Evelina, sei que em tua abnegação
Ligado à mente da primeira esposa, que tudo não te descuidas da prece. Jesus terá recebido teus
fazia por ajudá-lo, prosseguiu com enternecedora rogos. ¡ . Achava-me surda, vitimada pelo ruído
inflexão de voz: destruidor de minha própria incompreensão. Sinto,
— Não olvides que pertencemos aos compro- porém, que minhalma desperta h o j e . . . e vejo que
missos morais que assumimos... O carinho do meu nos compete algo fazer para restaurar o valor de
caçula significava muitíssimo para o meu coração, teu pai e a alegria de nossa c a s a . . .
contudo, não pode ser mais importante que o nos- — Continuarei orando...
so a m o r ! . . . Refaze-te! Vivamos nossa v i d a ! . . .
Temos Evelina e a nossa felicidade!... — Não olvides a prece, querida, mas a súplica
que não age pode ser uma flor sem perfume. Pe-
A doente sentou-se, de olhos reanimados e di- çamos o socorro do Senhor, algo realizando para
ferentes . contribuir em seu apostolado divino... Comecemos
E, enquanto o esposo acomodava-se ao lado por refundir a confiança em tua nova mãe. Faze-
dela, vimos Odila, de fisionomia satisfeita, dirigir-se -te melhor para e l a . . . Procura-a, desdobra-te no
ao quarto da filha. trabalho de preservação da tranquilidade domés-
Instintivamente acompanhámo-la, de modo a tica, a fim de que Zulmira se veja segura de teu
assisti-la em qualquer dificuldade. Ela, porém, com afeto e de teu entendimento filial... Uma rosa
inefável surpresa para nós, colocou a destra sobre sobre a mesa, uma vassoura diligente, uma peça
a fronte da menina, solicitando-lhe a presença. de roupa cuidadosamente guardada, uma escova no
Findos alguns instantes, Evelina, em Espírito, lugar que lhe compete, são serviços de Jesus, no
voltou ao aposento em que seu corpo repousava. santuário da família, com os quais devemos valo-
Vendo a mãezinha, correu a abraçá-la. rizar o pensamento religioso... Não te detenhas
Fundiram-se ambas num amplexo longo e co- tão somente nas boas intenções. Movimenta-te no
movedor, misturando-se as lágrimas. trabalho encorajador da harmonia. Sê o anjo do
— Enfim! e n f i m ! . . . — clamou a jovem ma- serviço em nossa casinha singela! Zulmira necessi-
ravilhada . ta de uma irmã, de uma f i l h a ! . . . Aproveita a
— Minha filha! minha filha! oportunidade e f aze o m e l h o r ! . . .
E, em seguida, a genitora descansou nela os Evelina, com indefinível contentamento a ilu-
olhos inflamados de esperança, pedindo súplice: minar-lhe o rosto, enlaçou a mãezinha com extre-
— Evelina, ajuda-nos! Se não nos unirmos sob mada ternura e beijou-a, muitas vezes.
Logo após, passando a obedecer à mensageira, Fixando a madrasta, com embevecimento, a
retomou o corpo carnal e acordou deslumbrada. menina acrescentou:
Tão grande se lhe afigurava a própria ventura — Quero ser melhor, mais diligente e mais
que detinha a impressão de estar descendo da ale- a m i g a ! . . . Papai, você e eü seremos doravante
gria celestial. mais felizes.
A imagem de Odila, carinhosa e bela, ocupa- A pobre senhora suspirou reconfortada e
va-lhe, agora, todo o espelho da mente. aduziu:
Estendeu as mãos em torno como se ainda — Sem dúvida alguma, Odila deve ser o nos-
pudesse tocar a genitora com os dedos de carne, so gênio protetor... E' muita alegria nesta manhã
conservando perfeita lembrança da inolvidável en- para que a nossa ventura seja simples sonho ou
trevista. mera coincidência!
Intensamente feliz, ergueu-se de um salto e Aquele testemunho de gratidão, partido com
a melhor espontaneidade da mulher considerada,
vestiu-se.
até então, por inimiga, tocou as recônditas fibras
Finda a higiene rápida, vimos Odila recolhê-la da primeira esposa de Amaro que, incapaz de su-
nos braços, conduzindo-a igualmente até Zulmira. portar a emoção, começou a chorar entre o reco-
Induzida pela influência materna, passou pela nhecimento e o regozijo.
copa e chegou junto da madrasta, oferecendo-lhe Irmã Clara abraçou-a e falou, humilde:
pequena bandeja com a leve refeição da manhã. — Chora, minha filha! Chora de júbilo! Em
Amaro e a companheira receberam-na, encan- verdade, quando o amor sublime penetra em nosso
tados. ©oração, a luz do Senhor passa a reger os passos
— Meu Deus — disse a doente, sorrindo — , de nossa vida.
tenho a impressão de que um anjo penetrou nossa
casa. Tudo hoje amanheceu contentamento e bom
ânimo!...
Evelina alcançou o leito, reuniu os dois côn-
juges num só abraço e falou, jubilosa:
— Sonhei com Mãezinha! Vi-a tão nítida, como
se ainda estivesse conosco. Afirmou que necessita-
mos de amor e recomendou seja eu para Zulmira
a filha que ela não t e m ! . . . Ah! que felicidade!...
Mamãe ouviu minhas preces!
O ferroviário anotou, satisfeito, a informação,
guardando, porém, consigo mesmo as recordações
da noite para não ferir as suscetibilidades da com-
panheira, e Zulmira, a seu turno, embora lembrasse
os repetidos pesadelos que atravessara, sentindo-se
atormentada pelos ciúmes de Odila, abafou as pró-
prias reminiscências, para aderir com toda a alma
ao otimismo daquele abençoado momento de paz e
renovação.
isso, o amor puro não te faltará. De ora em diante,
serás aqui bem-aventurada mensageira, de vez que
o teu coração permanecerá em serviço dos anjos
guardiães de nossos destinos, que velam por nós
abnegadamente, esperando-nos na Vida Mais Alta.
Cedendo o carinho de teu companheiro à outra mu-
lher, de cuja colaboração necessita ele para redi-
MAE E FILHO mir-se, conquistaste nele novo patrimônio de afe-
tividade, e, aproximando a filhinha daquela a quem
A alegria plena coroara o trio doméstico. devemos querer como irmã, adquiriste o mereci-
Mostrando a expectativa de uma colegial preo- mento indispensável para recuperar o filhinho, cujo
cupada em receber a aprovação dos mentores, Odila futuro poderás orientar... Hoje mesmo, estarás
ergueu os olhos lacrimosos para Irmã Clara, per- ao lado de teu J ú l i o . . .
guntando :
Odila, transfigurada, estampou no semblante
— Terei agido corretamente? a luz da felicidade que lhe fluía do mundo interior.
Lia-se-lhe no rosto a necessidade de uma frase
estimulante. O Sol inundava a Terra de raios vivificantes,
quando a reconduzimos ao hospital, com a promes-
A venerável amiga conchegou-a de encontro
ao coração. sa de buscá-la, mais tarde, para a viagem ao Lar
da Bênção.
— Venceste, valorosa — disse, terna — ; com-
preendeste o santo dever do amor. Abençoarás para Com efeito, transcorridas algumas horas, quan-
sempre este maravilhoso dia de renúncia e doação do a pausa dos nossos compromissos de trabalho
de ti mesma. nos ofereceu a oportunidade precisa, convocámo-la
Vimos Odila colar-se a ela, à maneira de uma ao reencontro. i
criança nos braços maternais, chorando copiosa- Sustentada nos braços de Clara, a mãezinha
mente . de Júlio revelava inexcedível contentamento.
— Não te comovas tanto assim! — apelou a Era a primeira vez, depois da morte física, que
benfeitora, osculando-lhe os cabelos. se confiava a romagem tão linda, prorrompendo
Sensibilizando-nos igualmente, a primeira es- em exclamações admirativas, ante os surpreenden-
posa de Amaro respondeu com dificuldade: tes jogos da luz.
— Meu pranto não é de sofrimento... Sinto- Nas vizinhanças do sítio para o qual nos diri-
-me agora leve e f e l i z . . . como não compreendia gíamos, inalava o ar tonificante a longos haustos,
eu assim, antes ? ! . . . deslumbrando-se na visão da Natureza saturada
— Sim — elucidou Clara, de modo significa- de perfumes e adornada de flores.
tivo —, perdeste peso espiritual, habilitando-te à Extasiou-se na contemplação das centenas de
elevação de nível. Nossas paixões inferiores iman- pequeninos, que brincavam festivamente. Muito pá-
tam-nos à Terra, como o visco prende o pássaro lida, de atenção presa à multidão infantil, na pro-
a distância das alturas... cura ansiosa do filho, achava-se mentalmente mui-
B, afagando-a, acentuou, bondosa: to distanciada de nosso grupo. Por isso mesmo,
— Vamos! Deste agora o amor puro e, por deixava-se conduzir qual se fora um autômato.
Acompanhando Clarêncio, atingimos a residên-
— Sim, a Escola das Mães apresenta vastas
cia de Blandina, que nos acolheu com a gentileza disponibilidades — informou Blandina, prestimosa.
habitual.
— Odila poderá entregar-se com segurança à ta-
Entrámos. refa assistencial que Júlio exige. Receberá todos
Não houve necessidade de muitas palavras. os recursos...
Atraída pelo grande berço que se levantava
à nossa vista, Odila precipitou-se sobre o menino — Aflige-me encontrá-lo assim — alegou a
enfermo, bradando, alarmada: genitora preocupada, indicando o pequeno enfer-
mo —, não posso atinar com a razão de uma úlcera
— Meu filho! Júlio! Meu f i l h o ! . . . tão grande, sem o corpo de c a r n e . . . não tenho
Indubitavelmente, a Sabedoria Universal colo- bases para entender de uma só vez tudo quanto
cou imperscrutáveis segredos no carinho materno. vejo, mesino porque também eu andava louca, in-
Algo de milagroso e divino existe nos laços que capaz de raciocinar...
unem mães e filhos que, por enquanto, não pode-
mos apreender. Reparei que o Ministro e a Irmã Clara se en-
A criança doente transformou-se, de súbito. treolharam, de modo expressivo, dando-me a ideia
Indefinível expressão de felicidade cobriu-lhe de que conversavam, através do pensamento.
o semblante. Assinalando as doloridas referências maternas,
— Mãe! M ã e ! . . . — gritou, respondendo. a instrutora designou com a destra o nosso orien-
E alongou os braços, agarrando-se-lhe ao busto. tador, ajuntando bem humorada:
Em lágrimas, Odila retirou-o instintivamente — Clarêncio tem a palavra elucidativa.
do leito, beijando-o enternecida. — Sim — ponderou o Ministro, cauteloso —,
Quando se lhe asserenou a desbordante emoti- nossa irmã, como é natural, encontrará pela frente
vidade, sentou-se ao nosso lado, trazendo o filho variados problemas ligados ao caminho de elevação
ao colo. que lhe é próprio. Achamo-nos todos infinitamente
longe do Céu que fantasiávamos na Terra e cada
Júlio, completamente modificado, contava-lhe
qual de nós detém consigo deficiências que será
quanto lhe doía a garganta, mostrando-lhe a glote
extensamente ferida. preciso superar. O passado reflete-se no presente.
E terminada que foi a hora comovente que nos Sorrindo, acrescentou:
empolgara a todos, Blandina abriu a conversação — Nosso destino é assim como o rio. Por mais
geral, acentuando, contente: diferenciado se encontre, à distância da nascente
que lhe dá origem, está sempre ligado a ela pela
— Sabíamos que a Divina Bondade não dei-
corrente em ação contínua...
xaria o nosso doentinho sem a ternura maternal.
Júlio agora terá junto dele a insubstituível dedi- — Procurarei compreender — disse Odila mais
cação. segura de si —, sou mãe e não posso desveneilhar-
-me da obrigação de amparar meu filhinho. Dis-
Odila, que se mostrava compreensivelmente
conturbada, ante a posição orgânica do menino, pensar-lhe-ei todos os cuidados imprescindíveis ao
nada respondeu; contudo, Clara considerou, afe- seu bem-estar. Sinto que a felicidade pode ser
tuosa : conquistada no mundo a que fomos trazidos pela
renovação... Trabalharei quanto estiver ao meu
— Esperamos localizar nossa amiga no Par- alcance para ver Júlio integralmente refeito. Hoje,
que, por algum tempo, e, certo, sentirá prazer em novos ideais me banham o coração. E' imperioso
encarregar-se do pequenino.
esforçar-me. Todos os que amamos virão ter co- necessária a cada dia. Toda precipitação gera de-
nosco, mais cedo ou mais t a r d e . . . Esperanças di- sastres. Além do mais, não nos cabe a vaidade
ferentes me animam o espírito. Amanhã, no por- de qualquer antecipação a providências que serão
vir talvez próximo, terei meus familiares aqui, de agradáveis e construtivas ao amor de nossa irmã.
novo, e não posso olvidar a necessidade de algo fa- Sentindo-se ainda plenamente integrada no carinho
zer para conseguir o abrigo de que necessitamos... materno, ela própria assumirá a responsabilidade
Passeou o olhar vago e cismarento pelo recinto do trabalho alusivo à reencarnação do pequeno.
como se estivesse contemplando remotos horizon- Advogando ela mesma essa medida e destinando-se
tes e 'concluiu: a criança ao seu antigo lar, encontrará no assunto
— Um lar... a felicidade restaurada... a bên- abençoado serviço de fraternidade, ao mesmo tem-
ção do reencontro... po que se reconhecerá mais responsável. Se mo-
Por largo tempo, o comentário edificante bri- vêssemos as decisões, Odila observar-se-ia anulada
lhou na sala, aquecendo a chama da amizade e da em sua capacidade de agir, ao passo que, confiando
confiança em nossos corações. a ela as deliberações que o caso reclama, adquirirá
Blandina e Mariana prometeram cooperar, in- novo interesse para auxiliar Zulmira, de vez que
sistindo para que Odila se demorasse junto delas, a segunda esposa de Amaro substituí-la-á na con-
até situar-se, em definitivo, no educandário a que dição de mãe, oferecendo novo corpo ao filhinho...
se destinava. Admirado com os apontamentos ouvidos, vi-me
A renovada senhora aceitou, reconhecidamente. satisfeito na inquirição.
Despedimo-nos, felizes. Clarêncio, todavia, com o sorriso natural que
Após nos separarmos de Clara, retomando o lhe marcava habitualmente o semblante, aduziu,
caminho de volta ao nosso domicílio espiritual, jul- ealmo:
guei conveniente interpelar o instrutor, acerca dos — A vida é uma escola e cada criatura, dentro
problemas que me esfervilhavam no cérebro. dela, deve dar a própria lição. Esperemos agora
Porque não esclarecer Odila, com respeito ao alguns dias. Interessada em socorrer o filhinho
pretérito de Júlio? Seria aconselhável deixá-la en- doente, a própria Odila virá até nós, lembrando
tregue a informações deficientes, quando lhe co- para ele a felicidade da volta à Terra.
nhecíamos extensamente os enigmas da organização
familiar? porque não lhe explanar francamente o
impositivo da reencarnação do menino?
Clarêncio, como de outras vezes, ouviu sereno
e generoso.
Quando acabei o interrogatório, replicou sem
alterar-se:
— A primeira vista, seria efetivamente esse
o caminho a seguir, entretanto, as recordações da
pretérito não devem ser totalmente despertadas,
para que ansiedades inúteis não nos dilacerem o
presente. A verdade para a alma é como o pão
para o corpo que não pode exorbitar da quota
mesmo, a reencarnação para Júlio era o único ca-
minho a seguir.
O corpo físico funcionaria como abafador da
moléstia da alma, sanando-a, pouco a p o u c o . . .
XXVII
Que fizera o menino no pretérito para receber
semelhante punição?
A pobre senhora enxugava as lágrimas que lhe
PREPARANDO A VOLTA caíam espontâneas.
Clarêncio, profundo conhecedor do sofrimento
Quatro semanas correram céleres, quando fo- humano, falou como sacerdote:
mos realmente procurados por Odila, no Templo — Odila, o passado agora não é o remédio
do Socorro, para um entendimento particular. próprio. Atendamos à hora que passa. Temos Jú-
Clarêncio, Hilário e eu recebemo-la quase sem lio extremamente necessitado à nossa frente e o
surpresa. alívio dele é o nosso objetivo mais imediato.
Vinha algo triste e preocupada. A mãezinha resignada concordou num gesto
Com respeitosa delicadeza, contou-nos a expe- silencioso.
riência inquietante que atravessava. — Também creio — prosseguiu o nosso ins-
Júlio prosseguia apresentando na fenda glótica trutor, imperturbável — que a reencarnação do
a mesma ferida. Instalara-se com ele em aposentos pequeno é urgente medida se desejamos observá-lo
adequados na Escola das Mães e ao filhinho dis- no caminho da própria recuperação.
pensava todo o cuidado suscetível de reerguer-lhe — Irmã Clara recomendou-me viesse rogar-lhe
as energias, entretanto, a luta continuava... Re- o concurso. Ajude-me, abnegado a m i g o ! . . .
cursos medicamentosos e passes magnéticos não — Somos todos irmãos — ajuntou Clarêncio
faltavam, contudo, não surtiam efeito. generoso — e achamo-nos uns à frente dos outros
Daria tudo para vê-lo forte e feliz. para a prestação do serviço mútuo. Nosso Júlio
Esperava a descoberta de algum milagre, capaz não é uma criatura comum e, por esse motivo, não
de atender-lhe o anseio de mãe, no entanto, vi- seria justo renascer no mundo a esmo, como plan-
sitara em companhia de Blandina outros setores ta inculta germinando à toa, no mato da vida in-
de assistência à infância torturada; vira inúmeras ferior. Assim sendo, analisemos o quadro de tuas
crianças infelizes, portadoras de problemas talvez relações afetivas. . .
mais dolorosos que aqueles do filhinho bem-amado. Depois de ligeira pausa, acrescentou:
Apavorara-se. — Tens grande plantio de amizades puras na
Jamais supusera a existência de tantas enfer- Terra? Em questões de auxílio, não podemos perder
midades depois da morte. os nossos sentimentos de vista. Tanto para entrar
Tentara obter os bons ofícios de vários ami- no reino do espírito, como para entrar no reino
gos, para esclarecer-se convenientemente, e todos, da carne, em melhores condições, não podemos pres-
à uma, repetiam sempre que os compromissos mo- cindir da cooperação de amigos sinceros que nos
rais adquiridos conscientemente na carne somente conheçam e nos amem.
na carne deveriam ser resolvidos, e que, por isso — Ah! sim, compreendo... — exclamou a in-
terlocutora com algum desapontamento. — Sempre
Quando Odila se despediu, desfechámos sobre
ocupada com a nossa casa e com a nossa família, o instrutor algumas perguntas que nos fustigavam
nunca pude efetivamente cultivar tantas afeições, a cabeça.
como seria de desejar. Amaro, p o r é m . . . A reencarnação como lei exigia o concurso da
— Perfeitamente — atalhou o Ministro, com- amizade para cumprir-se? os desafetos da vida in-
pletando-lhe a frase —, estou certo de que Ama- fluíam em nosso futuro? o trabalho reencarnatório
ro continuará sendo para o menino um admirável não seria uma imposição natural?
companheiro, entretanto, não podemos dispensar no Clarêncio ouviu, atencioso, as indagações e res-
cometimento o concurso de Zulmira. Precisamos pondeu, satisfeito:
dela no trabalho maternal. Para isso, é impres- — A lei é sempre a lei. Cabe-nos tão somente
cindível te faças mais devotada, mais amiga... Um respeitá-la e cumpri-la. Nossa atitude, porém, pode
esforço pede outro. Sem o lubrificante da coope- favorecer-lhe ou contrariar-lhe o curso, em favor
ração, a máquina da vida não funciona. ou em prejuízo de nós mesmos. O renascimento na
Os olhos de Odila faiscaram de esperança. carne funciona em condições idênticas para todos,
— Tudo farei por ajudá-la, auxiliando a mim contudo, à medida que se nos desenvolvem o co-
mesma — disse, comovida —, entendo mesmo nesse nhecimento e o amor, conseguimos colaborar em
imperativo de fraternidade a doce determinação do todos os serviços do aperfeiçoamento moral em nos-
Senhor, constrangendo-me a operosa boa vontade sas recapitulações. A alma, como a planta, pode
para com ela. Realmente — acentuou, sorrindo —, ressurgir em qualquer trato de solo, mas não se-
reparo quão sublime é a Infinita Bondade do Céu. ria justo relegar sementes selecionadas a terrenos
A princípio lutei contra Zulmira, desejando ser ama- incultos. A reencarnação, por si, tanto quanto ocor-
da de meu esposo, agora devo lutar em favor de re nos reinos inferiores à evolução humana, obe-
nossa irmã por amar o meu filho. Muito erramos, dece a princípios embriogênicos automáticos, com
disputando o amor dos outros, entretanto, corri- bases na sintonia magnética; contudo, em se tra-
gimo-nos e acertamos o passo, quando procuramos tando de criaturas com alguns passos à frente da
amar... multidão comum, é possível ajustar providências
— Sem dúvida, as tuas conclusões são lumi- que favoreçam a execução da tarefa a cumprir.
noso ensinamento — concordou o Ministro, bem Nesses casos, a plantação de simpatia é fator de-
humorado — ; em tudo vemos a Eterna Sabedoria. cisivo na obtenção dos recursos de que necessita-
— Devo buscar alguma regra específica? mos . . . Quem cultiva a amizade somente na famí-
— Creio — ponderou o nosso orientador — lia consanguínea, dificilmente encontra meios para
que as tuas visitas afetuosas ao antigo lar, conso- desempenhar certas missões fora dela. Quanto mais
lidando-lhe a harmonia, são a providência básica extenso o nosso raio de trabalho e de amor, mais
para que Júlio encontre um clima de confiança. ampla se faz a colaboração alheia em nosso be-
Admito que o nosso pequeno reclama especiais nefício .
atenções, considerando-se-lhe a posição de enfer- — E quando, desprevenidos, deixamos que a
mo, para quem a reencarnação apresenta obstácu- antipatia cresça em derredor de nós? — inquiriu
los justos. Hilário, com interesse.
O entendimento alongou-se por mais tempo, — Toda antipatia conservada é perda de tem-
entre os conselhos paternais do Ministro e a sin- po, em muitas ocasiões acrescida de lamentáveis
cera humildade da visitante.
compromissos. O espinheiro da aversão exige longos
trabalhos de reajuste. Em várias circunstâncias, física, e, logo após, sustentada pelas companheiras,
para curar as chagas de um desafeto, gastamos aproximou-se do pequeno enfermo, identificando-o,
muitos anos, perdendo o contacto com admiráveis espantada.
companheiros de nossa jornada espiritual para a — Será Júlio, meu Deus?
Grande Luz. — E' verdadeiramente Júlio! — confirmou Odi-
la, fraternal — para ele te rogamos socorro! nosso
A palavra de Clarêncio impunha-nos graves
reflexões e talvez por isso a quietação baixou so- pequeno precisa renascer, Zulmira! poderás auxi-
bre nós. liá-lo, oferecendo-lhe o regaço de mãe?
Vimos a interpelada em lágrimas de alegria.
Soubemos, mais tarde, que a genitora de Eve-
Inclinou-se sobre ò menino, afagando-o com
lina passou a dispensar envolvente carinho ao fer-
roviário e à companheira doente, que, à custa de intraduzível ternura, e falou em voz quase sufo-
muito esforço dela, restabeleceu afinal a saúde cada pela comoção:
orgânica. — Estou pronta! Devo a Júlio cuidados que
lhe neguei... Louvo reconhecidamente a Deus por
Preparando o retorno do filhinho, Odila asso- esta graça! Sinto que assim nunca mais serei as-
ciou-se, de coração, à tarefa de restaurar-lhes a saltada pelo remorso d% não haver feito por ele
harmonia conjugal e o contentamento de viver. quanto me competia!... Será meu filho, s i m ! . . .
Foi assim que, transcorridas algumas semanas, Conchegá-lo-ei de encontro ao peito! O' Senhor,
recebemos um convite da Irmã Clara para uma vi- ampara-me!...
sita ao Lar da Bênção. Abraçou o menino enfermo e afigurou-se-nos,.
Em noite próxima, Odila conduziria a segunda desde então, incapaz de qualquer sintonia conosco.
esposa de Amaro ao encontro de Júlio, como der- Talvez religada, de súbito, a inquietantes re-
radeira preliminar do trabalho reencarnatório. cordações da fixação mental que atravessara, pare-
No momento aprazado, achávamo-nos a postos. ceu-nos cega e surda, sob o império de inesperada
Blandina, Mariana, Clarêncio, Hilário e eu, pa- introversão. /
lestrando animadamente em aposentos reservados O Ministro, atendendo ao apelo de Clara, abei-
na Escola das Mães, cercávamos o alvo berço em rou-se dela e amparou-a, recomendando:
que o doentinho gemia de quando em quando. — Convém seja nossa irmã restituída ao lar
Assistida por irmã Clara, Odila demandara o terrestre. O choque repetido será prejuízo grave.
antigo ninho doméstico, no propósito de acompa- Amanhã, reconduziremos nosso pequeno ao santuá-
nhar Zulmira até nós. rio doméstico de onde veio, confiando-o, enfim, à
Decorrido algum tempo de expectação, as três tarefa do recomeço.
chegaram, envolvidas em luminosa onda de paz. A sugestão foi obedecida.
Enlaçada pelos braços das duas protetoras, a E enquanto Zulmira voltava ao templo fami-
ex-obsidiada parecia feliz, não obstante a impres- liar, arquivávamos nossa expectação, à espera do
são de medo e insegurança que lhe transparecia dia seguinte.
do olhar.
Respondeu-nos as saudações com a estranheza
de quase todos os encarnados que alcançam as es-
feras superiores da vida espiritual, antes da morte
A palestra esmoreceu, talvez porque o assunto
nos compelisse a severa meditação.
Hilário e eu, refletindo na absoluta harmonia
da Lei, calámo-nos cismarentos, à espera da noite,
quando integraríamos a caravana da amizade que
XXVIII restituiria a criança enferma ao ninho antigo.
Com efeito, avizinhava-se a madrugada, quan-
RETORNO do alcançámos a residência do ferroviário, envol-
vida em sombra.
Preocupados com o caso de Júlio, no dia ime- Odila trazia nos braços o filho irrequieto e
diato indagámos do orientador sobre a planificação gemente, enquanto o Ministro, Irmã Clara, Blan-
do serviço reencarnatório, ao que Clarêncio infor- dina, Mariana, Hilário e eu rodeávamos ambos, em
mou, conciso: silêncio.
— O problema é doloroso, mas é simples. Tra- Penetrámos a sala humilde.
ta-se tão somente de ligeira prova necessária. Júlio Qual se houvera sorvido invisível anestésico, o
sofrerá o aflitivo desejo de permanecer na Terra, menino emudeceu.
com o empréstimo do corpo físico a prazo longo, Junto de nós, o orientador, solícito, explicou:
entretanto, suicida que foi, com duas tentativas de — O doentinho encontra grande alívio em con-
auto-aniquilamento, por duas vezes deverá experi- tacto com os fluidos domésticos. O reequilíbrio da
mentar a frustração para valorizar com mais se- alma no ambiente que lhe é familiar no mundo
gurança a bênção da vida terrestre. Depois de constitui base firme para o êxito da reencarnação.
estagiar por muitos anos nas regiões inferiores Não prosseguiu, contudo.
de nosso plano, confiando-se inutilmente à revol- Irmã Clara fêz-lhe expressivo aceno e o nosso
ta e à inércia, já passou pelo afogamento e agora instrutor penetrou, sozinho, a câmara conjugal, sem
enfrentará a intoxicação. Tudo isso é lastimável, dúvida para certificar-se quanto à conveniência de
no entanto... confiarmos o pequenino à sua futura mãe.
E mostrando significativa expressão fisionômi- Transcorridos alguns minutos, Clarêncio veio
ca, ajuntou: ao nosso encontro, convidando-nos a entrar.
— Quem aprenderá sem a cooperação do so- Enternecedor espetáculo desdobrou-se à nossa
frimento ? vista.
— Penso, contudo, no martírio dos p a i s . . . Zulmira em Espírito estendeu-nos braços fra-
— considerou Hilário, hesitante. ternos. Estava bela, radiante de alegria... E, quan-
— Meus amigos — falou o Ministro, genero- do recebeu Júlio, conchegando-o ao próprio peito,
so —, a justiça é inalienável. Não podemos iludi-la. pareceu-me sublimada madona, aureolada por ma-
Com o desequilíbrio emocional de Amaro e Zulmi- ternidade vitoriosa.
ra, no pretérito, Júlio arrojou-se a escuro despe- Odila chorava.
nhadeiro de compromissos morais e, na atualidade, Clarêncio ergueu os olhos para o Alto e orou,
reabilitar-se-á com a cooperação deles. Ontem, o em voz comovedora:
casal, por esquecê-lo, inclinou-o à queda, hoje, por — Senhor, abençoa-nos!... De almas entre-
amá-lo, garantir-lhe-á o soerguimento. laçadas na esperança em teu infinito amor e no
ela, instintivamente, à maneira de um molusco a
júbilo que nasce da obediência aos teus desígnios, acomodar-se na própria concha.
aqui nos achamos, acompanhando um amigo que Júlio dormira plàcidamente, enfim.
volta à recapitulação! Dá-lhe forças para subme-
Abraçado ao colo materno, parecia fundir-se
ter-se resignado à cruz que lhe será a salvação!...
nele.
O' Pai, sustenta-nos na grande estrada redentora
em que o obstáculo e a dor devem ser nossos guias, De outras vezes, acompanhara trabalhos pre-
fortalece-nos o bom ânimo e a serenidade e mode- paratórios de reencarnação, que exigiam concurso
ra-nos o coração para que saibamos servir-te em ativo de técnicos do assunto e de benfeitores da
qualquer circunstância!... Sobretudo, Senhor, rc- vida superior, mas ali o fenômeno era demasiado
gamos-te auxilies a nossa irmã que investe sagra- simples. O corpo sutil do menino como que se jus-
das aspirações femininas no apostolado maternal! tapunha aos delicados tecidos do perispírito ma-
Santifica-lhe os anseios, multiplica-lhe as energias ternal, adelgaçando-se gradativamente aos nossos
para que ela se honre contigo na divina tarefa de olhos.
criar!... Irmã Clara e as companheiras oscularam a
A palavra do Ministro, saturada de paternal futura mãezinha, que tentava recuperar o corpo
amor, desse amor que nos atinge o espírito até à denso, conduzindo consigo o pequeno confortado
fonte oculta das lágrimas, levara-nos à comoção. e desfalecente e retirámo-nos, tomados da alegria
Zulmira, todavia, sensibilizou-nos ainda mais. que nasce, pura, da obrigação bem cumprida.
Atraída pelo poder magnético da oração, avançou Odila encarregou-se da assistência a Zulmira,
com o menino colado ao regaço até junto de nosso e Clarêncio prometeu seguir, de perto, os serviços
orientador, e ajoelhou-se. naturais daquela gravidez incipiente.
Aquela humildade ingênua lembrava-me a nar- Quando nos vimos, de novo, a sós, as indaga-
ração evangélica da viúva de Naim com o filho ções surgiram, imperiosas.
morto aos pés do Cristo e não pude conter o pranto
O Ministro, com a paciência admirável de to-
que me vertia do coração.
dos os dias, tomou a palavra e esclareceu:
Igualmente tocado por aquele gesto espontâ-
neo de confiança e fé, o Ministro voltou-se para — A reencarnação no caso de Júlio não re-
ela e afagou-lhe a cabeça, transfigurado. clama de nossa esfera cuidados especiais. E' uma
descida experimental ao campo da matéria densa,
Algo de sublime devia ter acontecido na alma com interesse tão somente para ele mesmo e para
daquele missionário da abnegação que me habitua- os familiares que o cercam. Todavia, se a exis-
ra a querer com extremado carinho. tência do filho de Amaro estivesse destinada, no
Jorro estelar descia da Altura, inflamando-lhe momento, a influenciar a comunidade, se ele fosse
a fronte e da destra que acariciava a irmã genu- detentor de méritos indiscutíveis, com responsabi-
flexa projetavam-se raios de safirina l u z . . . lidades justas nos caminhos alheios, o problema
Maravilhosos instantes de expectação correram seria efetivamente outro. Forças de ordem supe-
sobre nós. rior seriam fatalmente mobilizadas para a inter-
Em seguida, sustentando-a nos braços, Clarên- ferência nos cromossomas, garantindo-se o embrião
cio reergueu-a, eonduzindo-a ao leito com a criança. do veículo físico de maneira adequada à missão
Zulmira, desde então, afigurou-se-nos integral- que lhe coubesse...
mente concentrada no filhinho, que se enlaçou a
— E se o reencarnante fosse um homem de Ante a pausa ligeira do Ministro, Hilário per-
larga intelectualidade? — inquiriu Hilário, estu- guntou, respeitoso:
dioso . — O sfeio maternal, desse m o d o . . .
— Mereeer-nos-ia cautelosa atenção na estru- Nosso n\entor completou-lhe a definição, res-
tura cerebral, para que lhe não faltasse um instru- pondendo : \
mento à altura de seus deveres na materialização — E' um vaso anímico de elevado poder mag-
do pensamento. nético ou um molde vivo destinado à fundição e
refundição das formas, ao sopro criador da Bon-
— E se fosse um médico? um grande cirur- dade Divina, que, em toda a parte, nos oferece
gião por exemplo? — perguntei por minha vez. recursos ao desenvolvimento para a Sabedoria e
— Receberia assistência aprimorada na forma- para o Amor. Esse vaso atrai a alma sequiosa
ção do sistema nervoso, assegurando-se-lhe pleno de renascimento e que lhe é afim, reproduzindo-lhe
domínio das emoções. o corpo denso, no tjempo e no espaço, como a terra
Porque não mais indagássemos especificamen- engole a semente para doar-lhe nova germinação,
te, o instrutor continuou: consoante os princípios que encerra. Maternidade
é sagrado serviço espiritual em que a alma se de-
— Contudo, em milhares de renascimentos, na mora séculos, na maioria das vezes aperfeiçoando
Terra, os princípios embriogênicos funcionam, au- qualidades do sentimento.
tomáticos, cada dia. A lei de causa e efeito exe- A palestra prosseguia valiosa, mas o tempo
cuta-se sem necessidade de fiscalização da nossa nos convocava a outros misteres e, em razão disso,
parte. Na reencarnação, basta o magnetismo dos fomos constrangidos a interromper o nosso enten-
pais, aliado ao forte desejo daquele que regressa dimento, em torno do que havíamos visto.
ao campo das formas físicas. De retorno ao corpo
físico, estamos invariavelmente animados de um
propósito f i r m e . . . seja o anseio de alijar a dor
que nos atormenta, a aspiração de conquistas es-
pirituais que nos facilitem o acesso à Vida Supe-
rior, o voto de recapitular serviços mal feitos ou
o ideal de realizar grandes tarefas de amor en-
tre aqueles a quem nos afeiçoamos no mundo. De
modo geral, a maioria das almas que reencarnam
satisfazem à fome inquietante de recomeço. Quem
não atendeu com exatidão ao trabalho que a vida
lhe delegou, depressa se rende ao impositivo de
repetição da experiência e o ressurgimento na luta
física aparece por bênção salvadora. Milhões de
destinos se reestruturam dessa forma, qual se re-
faz uma grande floresta. A sementeira cresce,
estimulada pelo magnetismo do solo; a existência
corpórea germina de novo, incentivada pelo mag-
netismo da c a r n e . . .
ra demonstrava admirável despertamento para a
vida. A segunda esposa de Amaro modificara-se
de modo sensível. Como as pessoas felicitadas por
novos títulos, de confiança no trabalho, revelava-se
mais alegre e mais cônscia das obrigações que lhe
XXIX competiam.
A transfusão fluídica era ali evidente.
O organismo materno assemelhava-se a um
ANTE A REENCARNAÇÃO alambique destinado a sutilizar as energias do re-
encarnante para restituí-las, decerto, a ele mesmo,
Na noite imediata, atendendo-nos a solicitação, na formação do novo envoltório.
Clarêncio conduziu-nos ao domicílio do ferroviário,
para observações. Registando-nos o assombro, o instrutor expli-
cou com a sua habitual gentileza:
Penetrámos respeitosamente o quarto em que — A reencarnação, tanto quanto a desencar-
Odila nos recebeu, contente e gentil. nação, é um choque biológico dos mais apreciáveis.
Tudo lhe parecia desdobrai-se com segurança. Unido à matriz geradora do santuário materno,
Júlio dormia. em busca de nova forma, o perispírito sofre a in-
Não mais acordara, informou a guardiã, feliz. fluência de fortes correntes eletromagnéticas, que
Tinha a impressão de que o reencarnante desapa- lhe impõem a redução automática. Constituído à
recia pouco a pouco, na constituição orgânica de base de princípios químicos semelhantes, em suas
Zulmira, como se a futura mãezinha fosse um fil- propriedades, ao hidrogênio, a se expressarem atra-
tro miraculoso a absorvê-lo. vés de moléculas significativamente distanciadas
A genitora desencarnada mostrava-se satisfei- umas das outras, quando ligado ao centro genésico
ta e esperançosa. Preferia ver o filhinho confiado feminino experimenta expressiva contração, à ma-
ao sono profundo. As aflições e os gemidos dele neira do indumento de carne sob carga elétrica
lhe haviam dilacerado o coração. de elevado poder. Observa-se, então, a redução
O renascimento, por esse motivo, representava volumétrica do veículo sutil pela diminuição dos
uma bênção para as inquietantes responsabilidades espaços inter-moleculares. Toda matéria que não
maternais de que se via detentora. serve ao trabalho fundamental de refundição da
Observámos que Júlio se caracterizava por forma é devolvida ao plano etereal, oferecendo-nos
enorme diferença. . o perispírito esse aspecto de desgaste ou de maior
fluidez.
O corpo sutil do menino denotava espantosa
transformação. Adelgaçara-se de maneira surpre-- — Quer dizer e n t ã o . . . — aventurou Hilário,
endente. em sua curiosidade construtiva.
Tive a ideia de que ele e Zulmira, alma com —- Quero dizer que os princípios organogêni-
alma, se fundiam um no outro. A moça ganhara eos essenciais do perispírito de Júlio já se encon-
em plenitude física e vivacidade espiritual quanto tram reduzidos na intimidade do altar materno, e,
perdia o menino na apresentação exterior. Julio à maneira de um ímã, vão aglutinando sobre si
adormecera aliviado, ao passo que a jovem senho- ©s recursos de formação do novo vestuário de car-
ne que lhe será o vaso próximo de manifestação.
— E a forma a rarefazer-se sob nospos olhos? de crescimento para a imortalidade. Nas linhas
— inquiriu meu colega, espantado. / infinitas do instinto, da inteligência, da razão e da
— Está em ativo processo de dissolução. sublimação, permanecemos todos vinculados à lei
E, com a bela serenidade que lhfe assinala o do renascimento como inalienável condição de pro-
espírito, continuou elucidando: gresso. Atacamos experiências múltiplas e reca-
— Também o corpo físico parece dormir na pitulamo-las, tantas vezes quantas se fizerem ne-
desencarnação, quando, na realidadej começa a res- cessárias, na grande jornada para Deus. Crisálidas
tituir as unidades químicas que o /compõem à Na- de inteligência nos setores mais obscuros da Na-
tureza que lhos emprestou a título precário, ape- tureza evolvem para o plano das inteligências frag-
nas com a diferença de que a alma desencarnada, mentárias,, onde se localizam os animais de ordem
ainda mesmo quando em deploráveis condições de superior que, por sua vez, se dirigem para o reino
sofrimento e inferioridade, avança para a liberta- da consciência humana, tanto quanto os homens,
ção relativa, ao passo que, em nos reencarnando, pouco a pouco, se encaminham para as gloriosas
sofremos o processo de volta às teias da matéria esferas dos anjos.
densa, não obstante orientados por nobres objeti- O instrutor, entretanto, voltou-se para o leito
vos de evolução. E' por isso que, conduzidos à em que mãe e filho jaziam, intimamente associa-
reconstituição orgânica, revivemos, nos primeiros dos, e sentenciou:
tempos da organização fetal, embora apressada-
— Preocupemo-nos, porém, com o serviço da
mente, todo o nosso pretérito biológico. Cada ser
que retoma o envoltório físico revive, automatica- hora presente. Estudemos o caso sob nossa obser-
mente, na reconstrução da forma em que se ex- vação para que o nosso dever de solidariedade seja
primirá na Terra, todo o passado que lhe diz bem cumprido.
respeito, estacionando na mais alta configuração O apontamento reajustou-nos.
típica que já conquistou, para o trabalho que lhe Hilário que, tanto quanto eu, se mostrava in-
compete, de acordo com o degrau evolutivo em teressado em aproveitar a lição, fixando o quadro
que se encontra. sob nossos olhos, pediu uma explicação tão simples
quanto possível acerca da comunhão físio-psíquica
A maneira simples pela qual Clarêncio esflora- de Zulmira e Júlio naquele instante, ao que Cla-
va problemas tão complexos, induziam-nos a subli- rêncio respondeu, após refletir alguns momentos:
mados pensamentos, quanto à magnitude das Leis — Imaginemos um pêssego amadurecido, lan-
Universais.
çado à cova escura, a fim de renascer. Decomposto
Ali, diante de um caso comum de reencarna- em sua estrutura, restituirá aos reservatórios da
ção, auxiliado apenas pelas nossas preces no culto Natureza todos os elementos da polpa e dos de-
à fraternidade, obtínhamos vastas elucidações so- mais envoltórios que lhe revestem os princípios
bre o plano geral da existência. vitais, reduzindo-se no imo do solo ao embrião mi-
Inspirado talvez na mesma faixa de reflexões núsculo que se transformará, no espaço e no tem-
que me preocupavam o espírito, Hilário inquiriu: po, em novo pessegueiro.
— Os princípios que analisamos funcionam em O ensinamento não podia ser mais lógico, mais
igualdade de circunstâncias para os animais? preciso.
— Como não? — replicou o nosso orientador, — Então, por isso — acrescentou Hilário, estu-
paciente — todos nos achamos na grande marcha dioso — é que as crianças desencarnadas recla-
mam período de tempo mais ou menos longo para nidade magnética entre si; desse modo, os progeni-
demonstrarem crescimento mental, como ocorre na tores fornecem determinados recursos ao Espírito
existência c o m u m . . . reencarnante, mas esses recursos estão condiciona-
dos às necessidades da alma que lhes aproveita a
— Isso acontece com a maioria /— informou cooperação, porque, no fundo, somos herdeiros de
o Ministro —, de vez que há exceções na regra. nós mesmos. Assimilamos as energias de nossos
Em muitas circunstâncias, semelhante imposição pais terrestres, na medida de nossas qualidades
não existe. Quando a mente já desenvolveu certas boas ou más, para o destino enobrecido ou tortu-
qualidades, aprimorando-se em mais altos degraus rado a que fazemos jus, pelas nossas conquistas
de sublimação espiritual, pode arrojar de si mes- ou débitos que voltam à Terra conosco, emergindo
ma os elementos indispensáveis à composição dos de nossas anteriores experiências.
veículos de exteriorização de que necessite em pla-
nos que lhe sejam inferiores. Nesses casos, o Es- — Somos então levados a crer que Júlio trans-
pírito já domina plenamente as leis de aglutinação portará consigo a enfermidade que sofria em nosso
da matéria, no campo de luta que nos é conhecido plano, à maneira de alguém que, em se mudando
e, por esse motivo, governa o fenômeno da própria de domicílio, não modifica o quadro orgânico...
reencarnação sem subordinar-se a ele. — observou Hilário, com sensatez.
— Isso mesmo — elucidou o Ministro, satis-
Fitávamos o semblante calmo de Zulmira, que
respirava serena, feliz. feito —-, o problema é de natureza espiritual. Du-
rante a gravidez de Zulmira, a mente de Júlio per-
— O problema de Júlio, no entanto — consi- manecerá associada à mente materna, influencian-
derei —, afigura-se-nos bastante doloroso... do, como é justo, a formação do embrião. Todo o
— Doloroso mas educativo, quanto o de mi- cosmo celular do novo organismo estará impregna-
lhares de criaturas, cada dia, na Terra — ponde- do pelas forças do pensamento enfermiço de nosso
rou Clarêncio, imperturbável. — Nosso companhei- irmão que regressa ao mundo. Assim sendo, Júlio
ro vencido e enfermo, em razão de compromissos renascerá com as deficiências de que ainda é por-
adquiridos na carne, na carne encontrará caminho tador, embora favorecido pelo material genético
ao próprio reajuste. que recolherá dos pais, nos limites da lei de he-
— E a questão da hereditariedade ? — indagou rança, para a constituição do novo envoltório.
meu companheiro, reverente. — Júlio, perdendo o Depois de breve pausa, concluiu:
corpo sutil em que chorava atormentado, ressur- — Como vemos, na mente reside o comando.
girá na existência física sem a moléstia que o A consciência traça o destino, o corpo reflete a
apoquentava, por herdar fatalmente os caracterís- alma. Toda agregação de matéria obedece a im-
ticos biológicos dos pais? pulsos do espírito. Nossos pensamentos fabricam
O orientador sorriu, de maneira expressiva, e as formas de que nos utilizamos na vida.
asseverou: Calou-se o instrutor.
— A hereditariedade, qual é aceita nos conhe- Odila tomou a palavra comentando as suas
cimentos científicos do mundo, tem os seus limi- esperanças para o futuro.
tes. Filhos e pais, indubitavelmente, ainda mesmo Conversámos de novo, animadamente.
quando se cataloguem distantes uns dos outros, E, logo após, uma prece do Ministro encerrava
sob o ponto de vista moral, guardam sempre afi- para nós a deliciosa reunião.
A pobre senhora apenas gemia, semi-sufocada,
exausta...
O esposq, e a filha desdobravam-se em carinho,
procurando reanimá-la, mas Zulmira, que deixára-
XXX mos, trinta dias antes, corada e bem disposta, re-
velava-se agora profundamente abatida.
LUTA POR RENASCER Drogas variadas alinhavam-se em prateleira
próxima.
Um mês correra célere sobre os acontecimentos Nosso instrutor examinou-as, cuidadosamente,
que vimos de narrar, quando Odila nos procurou, e, percebendo-nos a admiração, disse comovido:
suplicando ajuda. — Zulmira reclama nosso concurso diligente.
Precisamos garantir-lhe o êxito na missão esposada.
Vinha triste, atormentada. Carinhosamente, aplicou-lhe recursos magnéti-
Zulmira, incompreensivelmente para ela, havia cos, detendo-se de modo particular na região do
contraído perigosa amigdalite. cérebro e na fenda glótica.
Sofria muito.
A doente acusou melhoras imediatas.
Por seis dias consecutivos, informou nossa ami- Reabilitou-se o movimento circulatório.
ga inquieta, achava-se no trabalho de vigilância. A febre decresceu, propiciando-lhe repouso, e
Esforçara-se, quanto lhe era possível, por li- o sono reparador surgiu por fim, favorecendo-lhe
berá-la de semelhante aborrecimento físico, entre- a recuperação.
tanto, via baldadas todas as providências. Hilário indagou sobre a causa da moléstia in-
Desolada, induzira Amaro a trazer um médico, sidiosa, que tão violenta se apresentara, ao que
no que foi obedecida, mas o facultativo não atinava Clarêncio respondeu, seguro:
com a causa íntima da enfermidade e, ignorando — A questão é sutil. A mulher grávida, além
a verdadeira posição da cliente, poderia ameaçar- da prestação de serviço orgânico à entidade que se
-Ihe a tarefa maternal com a aplicação de recursos reencarna, é igualmente constrangida a suportar-
impróprios. -lhe o contacto espiritual, que sempre constitui um
Rogava-nos, por isso, socorro imediato. sacrifício quando se trata de alguém com escuros
Clarêncio não se delongou na assistência pre- débitos de consciência. A organização feminina,
cisa. durante a gestação, sofre verdadeira enxertia men-
Era noite, quando demandámos o ninho do- tal. Os pensamentos do ser que se acolhe ao
méstico que já se nos fizera familiar. santuário íntimo, envolvem-na totalmente, determi-
Zulmira, no leito, demorava-se em aflitiva pros- nando significativas alterações em seu cosmo bio-
tração. Cabelos em desalinho, olheiras arroxeadas lógico. Se o filho é senhor de larga evolução e
e faces rubras de febre, parecia aguardar a che- dono de elogiáveis qualidades morais, consegue au-
gada de alguém que a auxiliasse na eliminação da xiliar o campo materno, prodigalizando-lhe subli-
crise. madas emoções e convertendo a maternidade, ha-
A supuração das amígdalas poluíra-lhe o há- bitualmente dolorosa, em estação de esperanças e
lito e lhe impunha dores lancinantes. alegrias intraduzíveis, mas no processo de Júlio
observamos duas almas que se ajustam nas mes-
tendo converter aquela hora de fraternidade tan-
mas dívidas e na mesma posição evolutiva. In- to quanto possível em hora de estudo, recordou
fluenciam-se, mutuamente. algumas de suas experiências médicas, acrescen-
O Ministro fêz longa pausa, tornando aos pas- tando: j
ses, a benefício da enferma.
— E' comum a verificação de exagerada sen-
Odila acompanhava-o, atenciosa.
sibilidade na mulher que engravida. A transfor-
De todos nós, parecia ela a mais preocupada mação do sistema nervoso, nessas circunstâncias,
com as lições ouvidas. Identificava-se-lhe o inte- é indiscutível. Muitas vezes, a gestante revela de-
resse de tudo aprender para tornar-se ali mais útil. créscimo de vivacidade mental e, não raro, enuncia
Findos alguns instantes, Clarêncio continuou: propósitos da mais rematada extravagância. Há
— Se Zulmira atua, de maneira decisiva, na mulheres que adquirem antipatias súbitas, outras
formação do novo veículo do menino, o menino se recolhem a fantasias tão inesperadas quanto
atua vigorosamente nela, estabelecendo fenômenos injustificáveis. Em muitas ocasiões na Terra, per-
perturbadores em sua constituição de mulher. A guntei a mim mesmo se a gravidez, na maioria
permuta de impressões entre ambos é inevitável dos casos, não acarreta temporária loucura...
e os padecimentos que Júlio trazia na garganta O orientador sorriu e obtemperou:
foram impressos na mente maternal, que os re-
— A explicação é muito clara. A gestante é
produz no corpo em que se manifesta. A corrente
uma criatura hipnotizada a longo prazo. Tem o
de troca entre mãe e filho não se circunscreve à
campo psíquico invadido pelas impressões e vibra-
alimentação de natureza material; estende-se ao
ções do Espírito que lhe ocupa as possibilidades
intercâmbio constante das sensações diversas. 0s
para o serviço de reincorporação no mundo. Quan-
pensamentos de Zulmira guardam imensa força
do o futuro filho não se encontra suficientemente
sobre Júlio, tanto quanto os de Júlio revelam ex-
equilibrado diante da Lei, e isso acontece quase
pressivo poder sobre a nova mãezinha. As mentes
sempre, a mente maternal é suscetível de registar
de um e de outro como que se justapõem, man-
os mais estranhos desequilíbrios, porque, à manei-
tendo-se em permanente comunhão, até que a Na-
ra de um médium, estará transmitindo opiniões e
tureza complete o serviço que lhe cabe no tempo.
sensações da entidade que a empolga.
De semelhante associação, procedem os chamados
«sinais de nascença». Certos estados íntimos da — Afligia-me observar — lembrou Hilário,
mulher alcançam, de algum modo, o princípio fe- com interesse — a inopinada aversão de muitas
tal, marcando-o para a existência inteira. E' que gestantes contra os próprios maridos...
o trabalho da maternidade assemelha-se a delica- — Sim, isso ocorre sempre que um inimigo
do processo de modelagem, requisitando, por isso, do pretérito volta à carne, a fim de resgatar dé-
muita cautela e harmonia para que a tarefa seja bitos contraídos para com aquele que lhe servirá
perfeita. de pai.
Em seguida, o Ministro, com devoção paternal, — Temos, contudo, os casos — ponderei, curio-
so — em que na ribalta do mundo vemos filhas
levou a efeito diversas operações magnéticas de
que foram evidentemente fortes desafetos das mães
auxílio à cavidade pélvica, afirmando a necessi-
em passado remoto ou próximo, tal a animosidade
dade de socorro ao útero, em vista do complicado que lhes caracteriza as relações. Reparamos que,
e difícil desenvolvimento de Júlio reencarnante. em tais ocorrências, as filhas são muito mais afins
Meu colega, avançando mais longe, talvez ten-
com os pais, vivendo psiquicamente em harmoniosa Revelava-se a gestante, efetivamente, em con-
associação com eles e distanciadas espiritualmente dições ameaçadoras.
das mãezinhas que, por vezes, tudo fazem debalde As náuseas repetidas provocavam a gradativa
para quebrar as barreiras de separação. Em liga- incursão da anemia.
ções dessa natureza, surgirão obstáculos à reen-
carnação ? Clarêncio, porém, submeteu-a a passes mag-
néticos de longo curso, prometendo que a medida
Clarêncio fitou-me de maneira significativa e se faria seguir das melhoras necessárias.
respondeu: Deveres diversos convocavam-nos a presença,
— De modo algum. A esposa, por devotamen- em outros setores.
te ao companheiro, cede facilmente à necessidade
da alma que volta ao reduto doméstico para fins Ainda assim, depois das despedidas, Hilário
regeneradores e, em se tratando de alguém com perguntou pelo motivo de semelhante fenômeno,
intensa afinidade junto ao chefe do lar, vê-se o que, declarou ele, em toda a sua experiência mé-
marido docemente impulsionado a oferecer maior dica na Terra não conseguira explicar.
coeficiente afetivo à companheira, de vez que se •— Estamos certos de que a ciência do porvir
sente envolvido por forças duplas de atração. Sob ajudará a mulher na defesa contra essa espécie
dobrada carga de simpatia, dá muito mais de si de aborrecimento orgânico — asseverou o Ministro,
mesmo em atenção e carinho, facilitando a tarefa com segurança —, encontrando definições de or-
maternal da mulher. dem fisiológica para tais conflitos, mas, no fundo,
A elucidação clara e lógica satisfez-nos ple- o desequilíbrio é de essência espiritual. O orga-
namente . nismo materno, absorvendo as emanações da en-
tidade reencarnante, funciona como um exaustor
Palestrámos ainda por alguns minutos, nos
de fluidos em desintegração, fluidos esses que nem
quais o nosso orientador ministrou variadas ins-
truções a Odila, habilitando-a para socorros de sempre são aprazíveis ou facilmente suportáveis
emergência. pela sensibilidade feminina. Daí, a razão dos en-
gulhos frequentes, de tratamento até agora mui-
Regressámos, edificados, ao nosso círculo de to difícil.
trabalho comum, no entanto, depois de alguns dias,
a primeira esposa do ferroviário tornou até nós, Semelhante nota oferecia-nos valioso material
solicitando nova intervenção. de meditação.
Zulmira, informou aflita, atravessava estarre- O tempo desdobrou-se semana após semana.
eedora crise orgânica. Insistimos na visitação à residência de Amaro,
Vômitos incoercíveis perturbavam-na, cruel- de quando em quando, convocados ou não para o
mente . trabalho, até que, certa manhã, Odila veio até nós
Não tolerava a mais leve alimentação. com o júbilo de uma criança feliz, anunciando que
O sistema digestivo apresentava alterações o menino tornara à luz terrestre.
profundas. De conformidade com a aprovação da pequena
O médico agia baldadamente, visto que o es- família, chamar-se-ia novamente Júlio.
tômago da enferma zombava de todos os recursos. Comungámos da sua profunda alegria e, com
Não nos delongámos para a execução do tra- a solidariedade dos amigos sinceros, voltámos a
balho assistencial. abraçá-lo.
Dantes, procurava assistência para Zulmira,
agora demandava auxílio para Júlio.
O menino, assaltado por teimosa amigdalite,
jazia prostrado, febril.
XXXI Dirigimo-nos incontinenti para o lar do ferro-
viário .
Com efeito, o vento soprava, húmido, sobre o
NOVA LUTA largo espelho da Guanabara. As ruas, pela vesti-
menta pesada dos transeuntes, davam ao Rio o
O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de aspecto de uma cidade fria.
esperança no jardim do lar, todavia, sempre mir- Alcançámos, sem detença, o domicílio de Amaro.
rado, enfermiço. O quadro, a nossa vista, era indubitavelmente
Desvelavam-se os pais por assisti-lo conve- constrangedor.
nientemente, contudo, por mais adequados se cate- Penetrámos o aposento em que a criança ge-
gorizassem os tratamentos recalcificantes, trazia mia semi-asfixiada, no instante preciso em que o
doloroso estigma na garganta. médico da família efetuava meticuloso exame.
Extensa ferida na glote dificultava-lhe a nu- Clarêncio passou a reparar-lhe todos os movi-
trição. mentos .
Farinhas suculentas concorriam com o leite A garganta minúscula apresentava extensa
materno para robustecê-lo, mas em vão. placa branquicenta e a respiração se fazia angus-
Entretanto, apesar dos cuidados que exigia, era tiada, sibilante.
uma bênção de felicidade para os genitores e para O instrutor meneou a cabeça, como se fora de-
a irmãzinha, que sentiam em seu rostinho tenro frontado por insolúvel enigma, e colocou a destra
um ponto vivo de entrelaçamento espiritual. na fronte do facultativo, compelindo-o a refletir
Muitas vezes, conchegámo-lo ao coração, re- com a maior atenção.
memorando os trabalhos que lhe haviam precedido Zulmira e Evelina, sem perceber-nos a presen-
o regresso ao mundo, assinalando a ternura oti- ça, fitavam o médico, preocupadas.
mista com que Odila, transformada em generosa Após longo silêncio, o clínico voltou-se para
protetora da família, lhe acompanhava o desa- a dona da casa, afirmando:
brochar. — Creio devamos procurar um colega ime-
O pequerrucho já começava a falar por mo- diatamente. Enquanto a senhora telefona para o
nossílabos, em vésperas do primeiro ano de renas- marido, chamando-o da oficina, trarei comigo um
cimento, quando nova luta surgiu. pediatra.
O inverno chegara rigoroso e vasto surto de A torturada mãezinha conteve a custo as lá-
gripe espalhara-se ameaçador. grimas que lhe borbulhavam dos olhos.
A tosse e a influenza compareciam pertinazes, O médico tornou, cismarento, à via pública,
em todos os recantos, quando, num dia de grande e, enquanto Evelina, rápida, corria até o armazém
trabalho para nós, eis que a genitora de Evelina próximo para dar ciência ao genitor de quanto
veio, novamente, ao nosso encontro. ocorria, Zulmira, presumindo-sé a sós, abraçou-se
ao doentinho e, chorando livremente, ciciou:
— O' meu Deus, com tanto amor recebi o Em minutos breves, atravessávamos o pórtico
filho que me enviaste!... Não me deixes agora de vasto hospital, onde o nosso amigo procurou
sem ele, Senhor!... a sala em que certamente se recolhia para os tra-
balhos que lhe diziam respeito.
O, pranto que lhe corria na face queimava-me
o coração. Chegados a estreito recinto, fomos defronta-
dos por uma surpresa que nos impunha verdadeira
Nada pude indagar, em vista da emotividade estupefação.
que me tomara o espírito, mas o nosso orientador, Mário Silva, em seu traje branco, palestrava
sereno como sempre, exclamou, compadecido: com dona Antonina que acomodava ao colo a pe-
— A difteria está perfeitamente caracterizada. quena Lisbela, pálida e ofegante.
A deficiência congenial da glote favoreceu a im- A jovem senhora, que não mais víramos, aguar-
plantação dos bacilos. E' imprescindível o socorro dava o especialista, trazendo a filhinha à consulta.
urgente. Amparadas por Silva, francamente atraído
O instrutor começou a mobilizar recursos as- para a simpática visitante, ambas tiveram acesso
sistenciais de maior expressão, quando o ferro- a gabinete particular, onde o facultativo diagnos-
viário, desolado, ingressou no aposento. ticou uma pneumonia.
Conversando com a mulher, tentava reanimá- Antonina foi aconselhada a voltar, de imedia-
-la, quando o pediatra, conduzido pelo colega, deu to, ao ambiente doméstico, para a medicação da
entrada na humilde residência. filha.
A penicilina devia ser administrada sem qual-
Ambos os médicos submeteram o petiz a pro- quer dilação.
longado exame, permutando impressões em voz Mário, demonstrando imenso carinho pela crian-
baixa.
ça, prontificou-se a assisti-la.
O especialista, apreensivo, após manifestar a Traria um automóvel e atenderia ao caso pes-
suspeita de crupe, reclamou a análise de labora- soalmente.
tório, decidindo transportar consigo mesmo o ma- O chefe passeou o olhar pelo mostrador do
terial necessário à inspecção. relógio e aquiesceu, ressalvando:
Ao sair, prometeu opinar, dentro de algumas — Bem, você pode cooperar com as nossas
horas. Notificou ao pai agoniado que tudo lhe clientes, mas preciso de seu concurso em bairro
fazia crer tratar-se de garrotilho. Entretanto, re- distante, às vinte e duas horas.
servava o diagnóstico definitivo para depois. Se O rapaz assumiu o compromisso de regressar
a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro a tempo e um táxi recolheu o trio, rolando na di-
de confiança para a aplicação do soro adequado. reção da casinha que visitáramos, certa vez.
Mantendo vigilância junto ao doentinho, o Mi- Ante o inesperado daquele encontro, sentimos
nistro recomendou-nos, a Hilário e a mim, acom- necessidade de um entendimento seguro com o nos-
panhar o pediatra, de modo a prestar-lhe a cola- so orientador.
boração possível ao nosso alcance. Tornando ao quarto, onde o pequeno Júlio pio-
Seguimo-lo sem hesitar. rava sempre, fizemos breve relato do acontecido.
O crepúsculo, encharcado de uma garoa fina, Clarêncio escutou com interesse e ponderou,
caía rápido. preocupado:
— Não podemos perder tempo. Dirijamo-nos As oito em ponto, Antonina, sem afetação,
a casa de Antonina. A Lei está reaproximando os convidou com simplicidade:
nossos amigos uns dos outros e Mário precisa for- — Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangé-
talecer-se para exercitar o perdão. Os raios de lico. Quer ter a bondade de partilhá-lo?
ódio da parte dele podem apressar aqui o serviço Incompreensivelmente feliz, o rapaz concordou,
inevitável da morte. de pronto.
Corremos ao domicílio da valorosa mulher. A reunião, nessa noite, foi efetuada ao redor
Com efeito, depois de haver iniciado o tra- do leito de Lisbela, que não desejava perder o be-
tamento providencial da menina, agora acamada, nefício das orações.
Silva fixava a dona da casa, perguntando a si mes- Um copo de água pura foi colocado junto à
mo onde vira aquele torturado perfil de madona... cabeceira da pequenina.
Guardava a nítida impressão de haver conhecido E, de Novo Testamento em punho, acomodados
Antonina em algum l u g a r . . . os companheiros, Antonina recomendou a Henrique
Agradavelmente surpreendido, sentia-se ali fizesse a rogativa inicial.
como se fora em sua própria casa. O menino recitou o «Pai Nosso» e, em seguida,
E a simpatia não se patenteava tão somente pediu a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com
no coração dele. A senhora e os filhos cercavam- enternecedora súplica.
-no de atenções. Vimos o nosso orientador acercar-se do re-
Intimamente deslumbrado, o enfermeiro decla- cipiente de água cristalina, magnetizando-a, em
rava de viva voz estar experimentando uma paz favor da enferma que parecia expressivamente con-
que há muito não conhecia, com o que Antonina fortada, ante a oração ouvida, e, logo após, abei-
se regozijava, sorrindo. rar-se de Silva, que lhe recebeu as irradiações.
Percebendo que Haroldo e Henrique se mos- — Quem abrirá hoje o Livro? — perguntou
travam apaixonados pelas disputas esportivas, deu Haroldo, com graciosa malícia, fitando o hóspede
curso a animada conversação em torno do futebol, inesperado.
conquistando-lhes o carinho. — Certamente nosso amigo nos fará essa hon-
A mãezinha, preparando o café, ingressava no ra — disse a genitora, indicando o enfermeiro.
alegre entendimento, de quando em quando, a fim Mário, ignorando como expressar a felicidade
de podar o entusiasmo dos meninos, quando a que lhe fluía do coração, acolheu o pequeno volu-
palavra deles se evidenciava menos construtiva. me, sob a atenção de Clarêncio, que lhe tocava o
Somente no decurso da afetuosa palestra, vie- busto e as mãos, influenciando-o para a descoberta
mos a saber que nossa amiga se enviuvara. O do texto adequado.
esposo, segundo notícias recebidas de metrópole dis- O moço, algo trêmulo na participação de um
tante, havia falecido num desastre, vitimado pela serviço espiritual inteiramente novo para ele, sem
própria imprudência. perceber o amparo que o envolvia, abriu em de-
Lemos no olhar de Silva o contentamento com terminada passagem, qual se agisse a esmo, pas-
que obtinha semelhante informe. sando o livro a Antonina, que leu em voz pausada
Começava a registar insopitável interesse pela o versículo vinte e cinco do capítulo cinco das ano-
vida naquele ninho agasalhante que se lhe afigu- tações do Apóstolo Mateus: — «Concilia-te depres-
rava pertencer-lhe. sa com o teu adversário, enquanto te encontras a
caminho com ele, para que não aconteça que o tuação a nosso respeito. Mais vale para nós o acor-
adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue do pacífico que a demanda mais preciosa, porque
ao oficial para que sejas encerrado na prisão.» a vida não termina neste mundo e é possível que,
A dirigente do culto, que, naquela noite, se buscando a justiça em nosso favor, estejamos cris-
revelava mais retraída, pediu a interpretação dos talizando a cegueira do egoísmo em nosso próprio
meninos que, de modo ingênuo, se reportaram às coração, caminhando para a morte com aflitivos
experiências da escola, afirmando que sempre ad- problemas. Coração que conserva rancor é cora-
quiriam a paz, buscando desculpar as faltas dos ção doente. Alimentar ódio ou despeito é esten-
companheiros. Haroldo asseverava que a profes- der inomináveis padecimentos morais no próprio
sora sempre sorria contente, quando lhe via a boa espírito.
vontade e Henrique salientou haver aprendido no Silva estava pálido.
culto do lar que era muito mais agradável o es- Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo
forço de viver em harmonia com todos. de ser.
A palestra parecia ameaçada de esmorecimen- Tão desajustado se revelou escutando aqueles
to, mas o nosso orientador aproximou-se de Anto- apontamentos que Antonina, em lhe registando a
nina e, impondo-lhe a destra sobre a fronte, como estranheza, ponderou, sorrindo:
que a impelia ao comentário justo. — O senhor decerto nunca teve inimigos.,.
— Haroldo — indagou a genitora, de olhos Um enfermeiro diligente será, sem qualquer dúvi-
brilhantes —, como devemos interpretar um ini- da, o irmão de t o d o s . . .
migo em nossa vida? — S i m . . . sim, não tenho adversários... —
O menino replicou, sem pestanejar: gaguejou o moço, constrangido.
— Mãezinha, a senhora nos ensinou que con- Mas, na tela mental, sem que ele pudesse con-
servar um inimigo em nosso caminho é o mesmo trolar a eclosão das próprias reminiscências, apa-
que manter uma ferida perigosa em nosso corpo. receram Amaro e Zulmira, como os desafetos que
— A definição foi bem lembrada — falou a ele, no âmago do espírito, não conseguia desculpar.
viúva com espontaneidade encantadora — ; sem a Odiava-os, sim, odiava-os — pensou de si para
compreensão fraterna que nos garante o culto da consigo —, jamais suportaria um acordo com se-
gentileza, sem o perdão que olvida todo mal, a melhantes adversários. Entretanto, a sinceridade
existência na Terra seria uma aventura intolerável. da interlocutora encantava-o. Aquela viúva jovem,
Além disso, quando Jesus nos ditou a lição que cercada de três filhinhos, superando talvez obstácu-
recordamos hoje, indubitavelmente considerava que los dos mais inquietantes para viver, constituía
a razão nunca vive inteira ao nosso lado. Se fo- um exemplo de quanto podia edificar o espírito de
mos ofendidos, em verdade também ofendemos por sacrifício. Em nenhum ambiente encontrara antes
nossa vez. Precisamos desculpar os outros para aquele calor de fé pura necessário às grandes cons-
que os outros nos desculpem. Quando abraçamos truções de ordem moral. Além de tudo, laços, de
o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os vigorosa afinidade impeliam-no"para aquela mulher,
meios ao nosso alcance, a justa conciliação com com quem se simpatizara à primeira vista. Por
todos os que se encontrem conosco em desarmonia, mais vasculhasse as próprias lembranças, não con-
prestando-lhes serviço para que renovem a coneei- seguia recordar onde, como e quando a conhecera.
Sentia, porém, que a palavra dela lhe impunha A viúva serviu o café reconfortante, acompa-
indefinível bem-estar... nhado de um bolo humilde.
Fitando-a, com enternecimento, perguntou: A conversação prosseguia animada, todavia, o
— A senhora julga que devemos procurar a hóspede consultou o relógio e reparou que o tempo
conciliação com qualquer espécie de inimigos? lhe exigia a retirada. ,
— Sim — respondeu a interpelada sem hesitar. Deu instruções a Antonina, quanto à medica-
— E quando os adversários são de tal modo ção da doentinha, e pediu, respeitoso, para voltar
inconvenientes que a simples aproximação deles no dia imediato, não somente para rever Lisbela,
nos causa angústia? mas também para palestrar com os amigos.
Antonina compreendeu que algo doloroso vi- A senhora e as crianças aquiesceram, felizes,
nha à tona daquela consciência que lhe ouvira a afirmando-lhe que seria sempre benvindo, e Mário,
dissertação, ocultando-se, e obtemperou: ' com um sentimento novo a lhe brilhar nos olhos,
seguiu dentro da noite, como quem caminhava tan-
— Entendo que há sofrimentos morais quase, gido por abençoada esperança, ao encontro de novo
intoleráveis, entretanto, a oração é o remédio efi- destino.
caz de nossas moléstias íntimas. Se temos a in-
felicidade de possuir inimigos, cuja presença nos
perturba, é importante recorrer à prece, rogando
a Deus nos conceda forças para que o desequilíbrio
desapareça, porque então um caminho de reajuste
surgirá para nossa alma. Todos necessitamos da
alheia tolerância em determinados aspectos de nos-
sa vida.
Os olhos de Mário cintilaram.
— E quando o ódio nos avassala, ainda mes-
:

mo quando não desejemos ? — inquiriu, preocupado.


— Não há ódio que resista aos dissolventes
da compreensão e da boa vontade. Quem procura
conhecer a si mesmo, desculpa facilmente...
Silva empalidecera.
Antonina percebeu que o tema lhe fustigava
o coração e, amparada por nosso instrutor que a
enlaçava, paternal, rematou considerando:
— Um homem, porém, na sua tarefa, é um
missionário do amor fraterno. Quem socorre os
doentes, penetra a natureza humana e entra na
posse da grande compaixão. As mãos que curam
não podem o d i a r . . .
Em seguida, o primogênito da casa fêz a prece
de encerramento.
Entretanto, algo interferia em suas reflexões.
Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho,
tomavam-lhe a tela mental. Parecia-lhe ouvir, de
novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher
valorosa, repetindo-lhe ao coração:
xxxn «As mãos que curam não podem o d i a r . . . »
«Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o
BECAPITULAÇÃO irmão de t o d o s . . . »
«A.vida não termina neste m u n d o . . . »
De volta ao hospital, o enfermeiro não en- «Precisamos desculpar os outros para que os
controu pessoalmente o chefe, qüe se ausentara, outros nos desculpem...»
constrangido por serviço urgente, mas recebeu das Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colo-
mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções. cá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:
O rapaz leu a ficha, atenciosamente. — Entre, Mário! conforta-me reconhecer que
Um menino, perfeitamente caracterizado nas receberemos o concurso de um a m i g o . . .
indicações, atacado de crupe, exigia socorro ime- E, indicando o quarto próximo, acrescentou:
diato . — Zulmira está lá dentro com o nosso filhi-
De posse do endereço e munindo-se do mate- nho. Já me entendi com o médico pelo telefone
rial imprescindível ao tratamento, Silva rodou num e sei que o crupe foi positivado.
ônibus para a casa de Amaro. O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinal-
Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não mente .
ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto. Varou a câmara, perturbado, lívido.
Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia Quando viu a mulher que amara apaixonada-
gentileza e contentamento na saudação, tartamu- mente, trazendo o pequenino ao colo, registou sú-
deava alguns monossílabos, desapontado, espanta- bita vertigem de revolta.
diço... Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha
Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez aflição lhe oprimia o peito.
do rosto. A volúpia da vingança enceguecia-o...
Então — refletia, acabrunhado — era aquela Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção — pen-
casa que lhe cabia atender? Se soubesse de ante- sava de olhos fixos na maternidade dolorosa que
mão, teria solicitado um substituto. Não pretendia ali se exteriorizava em mortificante padecimento.
reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia Contemplou a criancinha que a dispneia agi-
distanciado... Abominava o homem que lhe fur- tava, e deu curso a incontida animosidade. Tinha
tara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira a impressão de odiá-la, de longa data. Ele próprio
sem observar-se tocado de insólita aversão... Mui- se surpreendia, sobressaltado... Como podia de-
ta vez, rememorando o passado, calculava quanto testar, assim, um inocente com tanta veemência?
ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência... Mas, acreditando justificar a terrível disposição de
Porque lhe competia revê-la? porque salvar-lhe o
espírito com a circunstância de achar-se, ali, o
filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe
fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não
a casa?
procurou analisar-se. A ideia de que Amaro e a
esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do Zulmira rira-se dele, anos a n t e s . . . não lhe cabia
petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço. rir-se agora?
A felicidade daquele templo doméstico dependia, De semblante rude, recomendou fosse a crian-
naquela hora, de sua atuação. E se cooperasse com ça restituída ao leito e, logo após, tateou-lhe a
a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a de- sensibilidade.
saparecer? A pergunta criminosa traspassou-lhe o De pensamento martelado pelas ideias recolhi-
pensamento como um estilete de treva. das no estudo evangélico da noite e contido pela
Contudo, a lembrança do culto de oração, no suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.
lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça. Ainda assim, como se carregasse um gênio in-
As consóladoras afirmações da mãezinha de fernal na própria mente, assinalou as criminosas
Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos: sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfo-
«Vale sempre mais o acordo pacífico...» gueado.
«Não devemos nutrir qualquer espécie de A ministração de medicamento impróprio, de-
aversão...» certo, favoreceria a rápida extinção do enfermo.
«Quem ajuda é ajudado...» Júlio encontrava-se à beira da sepultura... apenas
«Ninguém se eleva aos mais altos níveis da o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...
vida com o endurecimento espiritual...» Todavia, o semblante de Antonina dominava-
«Nunca sabemos realmente até que ponto so- -lhe a memória, exaltando o perdão.
mos ofendidos ou ofensores...» Se viesse àquela casa na véspera — considerou
«O perdão é vitória da l u z . . . » consigo mesmo —, teria exterminado o petiz sem
Os retalhos da palestra edificante afiguravam- piedade... Recorreria à eutanásia para justificar-
-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expan- -se intimamente.
são dos malignos desejos. Naquela hora, porém, os princípios evangélicos
Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe da fraternidade e da conciliação, como pensamentos
na consciência em breve minuto... intrusos, atenazavam-lhe a consciência.
Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva tor- Esperou, silencioso, a reação do menino ofe-
turada, que o reconheceu de pronto, tentando cum- gante e embora assinalasse graves complicações
primentá-lo . que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com
Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispon- o médico responsável, fêz a aplicação do soro anti-
do-se ao serviço. diftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se
— Mário! — implorou a pobre senhora, ago- em veneno destruidor.
niada — compadeça-se de nós! ajude-nos! Esperei Reparamos que as mãos de Mário expeliam
meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios... escura substância, mas Clarêncio, pousando a des-
Será crível deva agora vê-lo morrer? tra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de se-
Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que melhantes forças.
lhe emudeceram a garganta. Ante o assombro com que observávamos a
Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca exteriorização daquele visco enegrecido, nosso ins-
lhe impunha inquietação, mas naquele instante so- trutor elucidou de boa vontade:
berana indiferença enrijecia-lhe o espírito. Que lhe — São fluidos deletérios do ódio com que Sil-
importava a dor da mulher que o abandonara? va, inconscientemente, procura envolver a infeliz
criança, contudo, as nossas defesas estão funcio- roviário se despejava porta a fora, em busca do
nando. pediatra.
Odila, que chamara Blandina e Mariana até Minutos longos de espera foram vividos no
nós, acompanhava a medicação, ansiosamente. quarto estreito.
— Abnegado amigo -— dirigiu-se, inquieta, ao Uma hora escoou, vagarosa e terrível...
nosso orientador —, acredita que Júlio possa recu- Preocupado, o médico auscultou a criança e,
perar-se ? logo após, convidou o pai desolado a entendimento
Clarêncio, que estabelecera extensa faixa mag- mais íntimo, anunciando:
nética em torno do doentinho, preservando-o contra — Surgiu o colapso irremediável. Infelizmente
a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, é o fim. Se o senhor tem fé religiosa, confiemos
paternal: o caso a Deus. Agora, somente a concessão divina...
— Odila, é tempo de penetrares a verdade. Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada
O menino deixará o corpo talvez em breves horas. respondeu.
O futuro dele exige a frustração do presente. For- O pediatra trocou ideias com Silva, que se
talece-te, contudo... A Vontade Divina, expressa fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomen-
na Lei que nos rege, faz sempre o melhor. dando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pe-
E talvez porque nossa irmã decepcionada en- quenino, por mais algumas horas.
saiasse nova perquirição, o devotado condutor pe- Um sedativo administrado em Zulmira compe-
diu-lhe, calmo: liu-a ao repouso.
Júlio, em coma, respirava dificilmente.
— Não indagues agora. Saberás mais tarde.
Enquanto isso, a noite avançava... A madru-
Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.
gada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver
A interlocutora recompôs a expressão fisio-
o céu povoado de cintilantes constelações.
nômica, denunciando humildade e disciplina.
Reparando que a mulher e a filha descansa-
O enfermeiro fitava o pequeno, qual se esti- vam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima,
vesse a hipnotizá-lo para a morte, observando-lhe como quem procurava consolo, no seio agasalhante
as contrações faciais.
da noite, e começou a chorar em silêncio.
Os genitores fixavam igualmente a criança, Ao lado da criancinha agonizante, o enfermei-
em tremenda expectativa. ro observava-lhe a atitude sofredora e humilde,
Em dado instante, Júlio estremeceu, empali- reconhecendo-se tocado no imo dalma.
decendo. Porque lutara contra semelhante inimigo? —
Descontrolara-se-lhe o coração. pensava, ensimesmado. — Amaro assemelhava-se
Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, a uma estátua de martírio silencioso. Estava ali,
procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era
voz menos dura: um homem de bem, devotado à retidão. Decerto,
— Convém a presença imediata do nosso fa- já havia amargado muito. O rosto, sulcado de ru-
cultativo. Receio um choque anafilático de conse- gas precoces, que lhe detinham o pranto, falava
quências fatais. da cruz de experiências difíceis que lhe pesava
Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo nos ombros. Quantos problemas inquietantes teria
socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o fer- defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo
rigor da sorte? Como pudera ele, Mário Silva, ser — Se é de teu desígnio que o nosso filhinho
ali tão cruel? Rememorou as passagens da hora parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor
de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evan- e luz! Concede-nos, porém, a precisa coragem para
gelho estribava-se nas melhores razões. Mais valia suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade
conciliar-se depressa com o adversário que enter- e d o r ! . . . Dá-nos resignação, fé, esperança!... Au-
rar um espinho de remorso no próprio peito, e ele xilia-nos a entender-te os propósitos e que a tua
notava, triste, que o remorso como lâmina acera- vontade se cumpra hoje e s e m p r e ! . . .
da lhe retalhava o coração... Amaro e a esposa, Jactos de safirina claridade escapavam-lhe do
indiscutivelmente, poderiam ter manifestado des- peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco,
confiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, en- adormeceu.
tretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigan-
abertos... Se o haviam ferido, noutro tempo, não do-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão
se achavam agora sob o guante de terrível flage- que busca tépido ninho de carícias.
lação? Rendia graças a Deus por não haver inje- Tocado nas fibras mais recônditas do ser e
tado substâncias tóxicas no doentinho agora mo- percebendo que a morte ali estendera as suas gran-
ribundo, mas não teria, acaso, concorrido para des asas, Silva experimentou violenta comoção ,a
abreviar-lhe a morte? Experimentava o desejo de constringir-lhe a alma. Convulsivo choro agitou-
abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, -lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que
mas sentia vergonha de si m e s m o . . . parecia nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe
na consciência:
Durante quase duas horas permaneceram ali,
os dois, calados e impassíveis. — Assassino! Assassino!...
Desorientado e inseguro, o moço correu para
A aurora começava a refletir-se no firmamen- a via pública, achando-se, atormentado, no seio da
to em largas riscas rubras, quando o ferroviário sombra fria, soluçando...
abandonou a meditação, aproximando-se do filhi-
nho quase morto.
Num gesto comovente de fé, retirou da parede
velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira
do agonizante. Em seguida, sentou-se no leito e
acomodou o menino ao colo com especial ternura.
Amparado espiritualmente por Odila, que o enla-
çava, demorou o olhar sobre a imagem do Cristo
Crucificado e orou em alta voz:
— Divino Jesus, compadece-te de nossas fra-
quezas!... Tenho meu espírito frágil para lidar com
a morte! Dá-nos força e compreensão... Nossos
filhos te pertencem, mas como nos dói restituí-los,
quando a tua vontade no-los reclama de v o l t a ! . . .
O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai so-
fredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade
de oração, prosseguiu:
\ ENTRE A TERRA E O CffiU 209

natural, regressando à Terra, em elogiáveis con-


dições de harmonia consigo mesmo.
— Mas voltará, assim, em tão pouco tempo?
— perguntei,, admirado.
— Esperamos que assim seja. Deve atender
xxxm ao crescimento, de qualidades nobres para a vida
«terna que sòniente o retorno à escola da carne
poderá facilitar.! Além disso, precisa conviver com
APRENDIZADO Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confrater-
nizar-se realmente com eles, segundo o amor puro
Amaro e a família, coadjuvados por alguns «jue o Cristo nos, ensinou.
vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, — Essas anotações — ponderei — lançam nova
quando rumámos de volta ao Lar da Bênção. claridade em nosso estudo da vida. Compreende-
Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, mos, assim, que as moléstias complicadas e longas
se mostrava aliviado e tranquilo, como nunca o guardam função específica. Os aleijões de nascen-
vira até então. ça, o mongolismo, a paralisia...
Enquanto as nossas irmãs permutavam ideias, — Sim — confirmou o orientador —, por ve-
com respeito ao futuro, indaguei do orientador, zes é tão grande a incursão da alma nas regiões
acerca da serenidade que felicitava agora o pe- de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela
quenino . a viagem de volta à normalidade.
Clarêncio informou, prestimoso: Sorrindo, acrescentou:
— Júlio reajustou-se para a continuação regu- — O tempo de inferno restaurador correspon-
lar da luta evolutiva que lhe compete. O renasci- de ao tempo de culpa deliberada. Em muitas fases
mento malogrado não teve para ele tão somente a de nossa evolução, somos imantados às teias da
significação expiatória, necessária ao Espírito que carne, que sempre nos reflete a individualidade in-
deserta do aprendizado, mas também o efeito de trínseca, assim como a argila é conduzida ao calor
um remédio curativo. A permanência no campo da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado
físico funcionou como recurso de eliminação da fe- ao cadinho fervente. A depuração exige esforço,
rida que trazia nos delicados tecidos da alma. A sacrifício, paciência...
carne, em muitos casos, é assim como um filtro Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o ho-
que retém as impurezas do corpo perispiritual, li- rizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que
berando-o de certos males nela adquiridos. parecia nascer num mar de luz e ouro.
— Isso quer dizer... Muito longe, esmaeciam as estrelas, e, perto
O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acen- de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tan-
tuando : gidas pelo vento.
— Isso quer dizer que Júlio doravante poderá Contemplando a imensidão, Clarêncio consi-
exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando me- derou:
recimento para obter uma reencarnação devidamen- — Quando nosso espírito apreende alguma nes-
te planejada, com elevados objetivos de serviço. ga da glória universal, desperta para as mais su-
Terá, por alguns meses conosco, desenvolvimento blimes esperanças. Sonha com o acesso às esferas
divinas, suspira pelo reencontro com amores san- vés do nosso amigo ferroviário — indaguei —, onde
tificados que o esperam em vanguardas distantes, estaria? \
aceitando, então, duros trabalhos de reajuste. Que
representa, em verdade, para nós, alguns decênios — Depòjs de haver eliminado o próprio eorpo,
de renunciação na Terra, em confropto com a ex- satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por
celsitude dos séculos de felicidade hm mundos d© muitos anos às tristes consequências do ato deli-
sabedoria e trabalho enaltecedor?!/... berado, amargando nos círculos vizinhos da Terra
as torturas do envenenamento a se lhe repetirem
— Ah! se os homens percebessem!... — obtem- no campo mental. A morte prematura, quando tra-
perei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos duz indisciplina, diante das leis infinitamente com-
prejudica no mundo. passivas que nos governam, constrange o Espírito
— Entenderão algum dia —f objetou Clarên- que a provoca a dilatada purgação na paisagem
cio, otimista — ; todos os seres progridem e avan- espiritual. Não podemos trair o tempo, e a exis-
çam para Deus. O homem terrestre crescerá para tência planificada subordina-se a determinada quo-
o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso ta de tempo, que nos compete esgotar em trabalho
da dor. O embrião do jequitibá, com os anos, se justo. Quando esses recursos não são suficiente-
converte em tronco vetusto, rico de beleza e uti- mente aproveitados, arcamos com tremendos dese-
lidade, e o espírito, com os milênios, transforma-se quilíbrios na organização que nos é própria.
em gênio soberano, coroado de amor e sabedoria. — Sofreria, porém, a sós?
Depois de um minuto de silenciosa adoração — Nem sempre — informou o instrutor — ;
à Natureza, o instrutor continuou: quando não se achava em martirizada solidão, via-
— Volvendo ao caso de Júlio, não podemos -se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o
olvidar que milhares de Inteligências, entre o ber- pensamento.
ço e o túmulo, estão procurando a própria recu- Ante a nossa curiosidade indagadora, acres-
peração. Ã medida que se nos aclara a consciência centou:
e se nos engrandece a noção de responsabilidade,
— Os pensamentos dele se alimentavam na
reconhecemos que a nossa dignificação espiritual
é serviço intransferível. Devemos a nós mesmos atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que
quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal. lhe serviam de pontos básicos ao ódio. Ensinava
Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde
— Importante observar — disse Hilário, pen- o coração e, efetivamente, todos nos imantamos,
sativo — como a vida reclama, no refazimento em espírito, às pessoas, lugares e objetos, aos quais
da paz, a conjugação daqueles que entraram em
se liguem os nossos sentimentos.
guerra uns com os o u t r o s . . . No passado, Júlio
— Mas Júlio estava em contacto com eles nas
arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a in-
fluência de Amaro, e Zulmira, após indispor-se com esferas espirituais ou nas experiências do mundo
Silva... físico?
— Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a
— E, agora — completou Clarêncio —, réabi- vida, em qualquer setor de luta, ê invariável. En-
lita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo tretanto, por detestar Amaro mais profundamente,
a rearmonizar-se com o enfermeiro. E' natural pesava com mais intensidade sobre ele. O ferroviá-
seja assim. rio, na existência do Espaço, conheceu-lhe a per-
— Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, atra- seguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as
queixas, nas regiões purgatoriais e, ao /ée reencar- impositivos da prudência. Como se fossem ataca-
nar, na atual condição, foi seguido de" perto por dos por subitânea loucura, desatendem a todos os
Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o ne- conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem,
cessário concurso à formação do novo corpo. Em depois, com problemas de enorme gravidade, quan-
razão da leviandade de Amaro, quando na perso- do não acordam sob a neblina de imensas desilu-
nalidade de Armando, caminhara para o suicídio. sões . Agora compreendo... Na base dos sonhos
Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas
o amigo transformado em desafeto, companheiro a que não se pode f u g i r . . .
esse do qual reclamava a renovarão da oportuni-
dade perdida. — Sim — confirmou o Ministro —, grande
número de paixões afetivas no mundo correspon-
Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu: dem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a
-— Entre o credor e o devedor há sempre o fio realidade consegue tratar com êxito. Em muitas
espiritual do compromisso. ocasiões, por trás do anseio de união conjugal,
— Amaro teria tido, dessa forma, uma juven- vibra o passado, através de requisições dos amigos
tude algo conturbada — ponderei com objetivo de ou inimigos desencarnados, aos quais devemos co-
estudo. laboração efetiva para a reconquista do veículo
— Sim, como acontece à maioria dos moços de carnal. A inquietação afetiva pode expressar es-
ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou curos labirintos da retaguarda...
para o ideal da paternidade. Em sonhos, fora do
Refletindo nas lutas da alma, atirada às ex-
corpo denso, encontrava-se com o adversário que
periências da vida com tantos enigmas a solver,
lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de recon-
acudiu-me à lembrança antiga questão que habi-
ciliação, pensava no casamento com extremado de-
tualmente me vinha à cabeça.
sassossego, desejoso de saldar a conta que reco-
nhecia dever. Muito jovem ainda, encontrou Odila — E os anjos de guarda? — inquiri.
que o aguardava, consoante o acordo por ambos Diante da surpresa que assomou ao semblante
levado a efeito, na vida espiritual; no entanto, as do nosso orientador, acentuei, reverente:
vibrações de Júlio eram efetivamente tão incômo- — Perdoe-me, mas ainda sou estudante inci-
das que a primeira esposa do nosso amigo não con- piente da vida espiritual. Os anjos de guarda estão
seguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em nossa esfera?
em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal
com ela se baseia em doces afinidades. Somente Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:
depois da primogênita é que se ambientou para a — Os Espíritos tutelares encontram-se em to-
incorporação do suicida em sofrimento... das as esferas, contudo, é indispensável tecer algu-
mas considerações sobre o assunto. Os anjos da
— Este ponto' de nossa conversação — lem- sublime vigilância, analisados em sua excelsitude
brei, respeitoso — faz-me recordar os conflitos in- divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva. Des-
teriores de muitos rapazes e de muitas moças na velam-se por nós, dentro das Leis que nos regem,
Terra. As vezes se arrojam ao casamento com todavia, não podemos esquecer que nos movimen-
absoluta inaptidão para as grandes responsabilida- tamos todos em círculos multidimensionais. A ca-
des, qual se estivessem impulsionados por molas deia de ascensão do espírito vai da intimidade do
invisíveis, sem qualquer consideração para com os abismo à suprema glória celeste.
Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lá- que define o Espírito celeste que vigia a criatura
bios do instrutor, que prosseguiu: em nome de Deus ou pessoa que se devota infini-
— Será justo lembrar que estamos plasmando tamente a outra, ajudando-a e defendendo-a. Em
nossa individualidade imperecível no espaço e no qualquer região, convivem conosco os Espíritos fa-
tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiên- miliares de nossa vida e de nossa luta. Dos seres
cias. A ideia de um ente divinizado e perfeito, mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a
invariavelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar
caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não con- nas almas que se querem ou que se afinam umas
corda com a justiça. Que governo terrestre desta- com as outras, dentro da infinita gradação do pro-
caria um de seus ministros mais sábios e especia- gresso. A família espiritual é uma constelação de
lizados na garantia do bem de todos para colar-se, Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos
indefinidamente, ao destino de um só homem, qua- Céus. Aquele que já pode ver mais um pouco au-
se sempre renitente cultor de complicados enigmas xilia a visão daquele que ainda se encontra em
e necessitado, por isso mesmo, das mais severas luta por desvencilhar-se da própria cegueira. Todos
lições da vida? porque haveria de obrigar-se um nós, por mais baixo nos revelemos na escala da
arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que
a passo, um homem deliberadamente egoísta ou nos ama a impelir-nos para a elevação. Isso pode-
preguiçoso? Tudo exige lógica, bom-senso. mos verificar nos círculos da matéria mais densa.
— Com semelhante apontamento quer dizer Temos constantemente corações que nos devotam
que os anjos de guarda não vivem conosco? estima e se consagram ao nossoí bem. De todas as
— Não digo isso — asseverou o benfeitor. afeições terrestres, salientemos, para exemplificar,
E, com graça, aduziu: a devoção das mães. O espírito maternal é uma
— O Sol está com o verme, amparando-o na espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez
furna, a milhões e milhões de quilômetros, sem que circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custó-
o verme esteja com o Sol. dia dos filhos. Além das mães, cujo amor padece
As irmãs que seguiam conosco, lado a lado, muitas deficiências, quando confrontado com os
embevecidas na contemplação do céu, comentavam princípios essenciais da fraternidade e da justiça,
carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente temos afetos e simpatias dos mais envolventes,
distanciadas de nossa conversação. capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não
O apontamento de nosso orientador impunha- obstante condicionados a objetivos por vezes egoís-
-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o ticos. Não podemos olvidar, porém, que o admi-
silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, rável altruísmo de amanhã começa na afetividade
reconhecendo que o assunto demandava elucidação estreita de hoje, como a árvore parte do embrião.
mais ampla, continuou: Todas as criaturas, individualmente, contam com
— Anjo, segundo a acepção justa do termo, louváveis devotamentos de entidades afins que se
é mensageiro. Ora, há mensageiros de todas as lhes afeiçoam. A orfandade real não existe. Em
condições e de todas as procedências e, por isso, nome do Amor, todas as almas recebem assistên-
a antiguidade sempre admitiu a existência de anjos cia onde quer que se encontrem. Irmãos mais ve-
bons e anjos maus. Anjo de guarda, desde as con- lhos ajudam os mais novos. Mestres inspiram dis-
cepções religiosas mais antigas, é uma expressão cípulos. Pais socorrem os filhos. Amigos ligam-se
partiram do enfermeiro, como que envenenando o
a amigos. Companheiros auxiliam companheiros. nosso doentinho?
Isso ocorre em todos os planos da Natureza e, — Se não estivéssemos junto dele — disse o
fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na Ministro —, teriam efetivamente abreviado a mor-
carne e os que já atravessaram o escuro passadiço te da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cum-
da morte. Os gregos sabiam disso e recorriam aos prido; entretanto, aqueles pensamentos escuros de
seus gênios invisíveis. Os romanos compreendiam Mário voltaram para ele mesmo. Emitiu-os, com
essa verdade e cultuavam os numes domésticos. O o evidente propósito de matar e, em razão disso,
gênio guardião será sempre um Espírito benfazejo experimenta o remorso de um autêntico assassino.
para o protegido, mas é imperioso anotar que os A graciosa residência de Blandina, para onde
laços afetivos, em torno de nós, ainda se encon- nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista.
tram em marcha ascendente para mais altos níveis Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:
da vida. Com toda a veneração que lhes devemos, — Permaneçamos convencidos, minha filha, de
importa reconhecer, nos Espíritos familiares que que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, re-
nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do ceberemos da vida, de acordo com as nossas pró-
bem, mas ainda singularmente distanciados da an- prias obras.
gelitude eterna. Naturalmente, avançam em linhas
enobrecidas, em planos elevados, todavia, ainda sen-
tem inclinações e paixões particulares, no rumo
da universalização de sentimentos. Por esse mo-
tivo, com muita propriedade, nas diversas escolas
religiosas, escutamos a intuição popular asseve-
rando : — «nossos anjos de guarda não combinam
entre si», ou, ainda, «façamos uma oração aos an-
jos de guarda», reconhecendo-se, instintivamente,
que os gênios familiares de nossa intimidade ainda
se encontram no campo de afinidades específicas, e
precisam, por vezes, de apelos à natureza superior
para atenderem a esse ou àquele gênero de serviço.
Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclareci-
mentos do instrutor represavam-se em nossa alma,
por inesquecível preleção, compelindo-nos a grande
silêncio.
Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao
orientador, sensibilizada:
— Generoso amigo, podemos estar realmente
convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?
— Perfeitamente. A Lei funcionou, exata. Não
há lugar para qualquer dúvida.
— E aqueles jactos de pensamento escuro que
Fundas olheiras roxas contrastavam com a
acentuada palidez do rosto desfigurado.
Recaíra na introversão em que a conhecêra-
mos. Rememorava o afogamento do pequeno en-
teado e, longe de saber que o retivera nos braços
xxxrv como filho abençoado de sua ternura, sentia-se na
condição de ré infortunada no banco da justiça.
EM TAREFA DE SOCORRO Decerto — pensava, agoniada —, sofria a pu-
nição divina. Aquela morte do pequeno, quando
Na noite do dia seguinte, fomos inesperada- tudo fazia crer que ele cresceria para a ventura
mente visitados por Odila, que nos pedia socorro. do lar, correspondendo-lhe à expectativa, era dolo-
A preocupada amiga, agora ciente do drama rosa pena imposta ao seu maternal coração. A h !
escuro que se desenrolara no passado próximo para devia ter sido pronunciada perante os juízes da
melhor entender as inquietudes do presente, com- Sabedoria Celeste. No mundo, ninguém lhe conhe-
preendia as necessidades de Amaro e Júlio, aos cia o remorso de guardiã invigilante e cruel, mas
quais amava por esposo e filho do coração, e ro- fora sem dúvida identificada pelos tribunais de
gava assistência para Zulmira, novamente acamada. mil olhos do Direito Incorruptível. Não amparara
Atendendo a apelos de Evelina, tornara ao convenientemente o filhinho de Odila, relegando-o
ambiente doméstico para soerguer o bom ânimo a intencional abandono... Agora, perdia inexpli-
daquela que a sucedera na direção do lar, e vol- cavelmente o rebento que lhe definia a esperança
tara, aflita. no grande futuro. Valeria erguer-se e disputar
Arrojara-se Zulmira a profundo abatimento. aquilo que para ela representava a dor de viver?
Reconhecia-se esmagada. O complexo de culpa re-
Recusava remédio e alimentação.
tomara-lhe o cérebro e enfermara-lhe o coração.
Enfraquecia assustadoramente.
Sabia agora que a permanência dela no mundo Reparámos que diversos medicamentos se ali-
e na carne se revestia de excepcional importância nhavam à cabeceira, mas nosso instrutor exami-
para o seu grupo familiar e, atenta a isso, conti- nou-os, auscultou a doente e informou:
nuava intercedendo. — O remédio de Zulmira é daqueles que a
A rápida informação da mensageira impres- farmácia não possui. Virá dela mesma. Precisamos
sionava e comovia pelo tom de amorosa aflição refazer-lhe a esperança e o gosto de viver. Des-
em que era vazada. controlou-se-lhe, de novo, a mente. Desinteressou-
Não nos delongámos na resposta. -se da luta e a abstenção de alimentos acarreta-lhe
Era mais de meia-noite, na cidade, quando atra- a inanição progressiva.
vessámos a porta acolhedora da casa do ferroviário
que, desde muito, constituía para nós valioso ponto — E o reencontro com o filhinho? — p e r g u n -
de ação. tou Hilário — não seria o melhor processo de
restaurar-lhe o bom ânimo?
A dona da casa, de pensamento fixo nas der-
radeiras cenas da morte do pequenino, jazia no — E' o que esperamos — concordou o Mi-
leito em prostração deplorável. nistro —, todavia, Júlio, na fase que atravessa,
Emagrecera de modo alarmante. requisita, pelo menos, uma semana de absoluto re-
f ..
pouso e, até lá, é indispensável entreter-lhe as encontrando-o em pesadelo aflitivo, contido no lei-
energias. to à custa de poderosos anestésicos.
Em seguida, Clarêncio entrou em ação, aplican- Com surpresa para nós, uma freira desencar-
do-lhe recursos magnéticos, com o nosso humilde nada rezava, junto dele.
concurso. Interrompeu as preces, a fim de saudar-nos,
A tensão nervosa de Zulmira, porém, atingira acolhendo-nos com simpatia.
o apogeu e apenas conseguimos sossegá-la, de al- — Estava certa — disse delicada e confiante
guma sorte, sem conduzi-la ao sono reparador que — de que Nosso Senhor nos enviaria o socorro
seria de desejar. justo. Desde algumas horas, ocupo aqui o serviço
Odila, fortalecida, tomava-a aos seus cuida- de vigilância. A posição do nosso amigo — e in-
dos, quando fomos defrontados por imprevisto fe- dicou Mário estendido na cama — é francamente
anormal e temo a intromissão de Espíritos dia-
nômeno .
bólicos .
Mário Silva, desligado do corpo denso, com a
Clarêncio assumiu o aspecto de simples visi-
rapidez de um relâmpago, penetrou o quarto, de tante, vulgarizando-se ao olhar da religiosa, que
olhos esgazeados, à maneira de louco, contemplou se sentia evidentemente encorajada com a nossa
a doente por alguns instantes e afastou-se. presença.
Volvemos nossa indagadora atenção para o
— E' enfermeira? — perguntou nosso instru-
Ministro, que esclareceu, sem detença: tor, cortês.
— E' sabido que o criminoso habitualmente — Não sou propriamente do serviço de saúde
volta ao local do crime. O remorso é uma força — replicou a interpelada —, mas colaboro no hos-
que nos algema à retaguarda. pital onde Silva trabalha.
E porque nos inclinássemos à procura do vi- Fitou o moço semi-adormecido e aduziu, pie-
sitante inesperado, o instrutor aquietou-nos, reco- dosa:
mendando : — E' um cooperador devotado às crianças
— Aguardemos. Mário voltará. doentes e a cuja assiduidade e carinho muito pas-
Com efeito, Silva, depois de alguns minutos, sámos a dever.
regressou ao aposento. Com a mesma expressão E, numa linguagem genuinamente católica ro-
de dementado, fixou a pobre enferma e, dessa vez, mana, rematou:
rojou-se de joelhos, exclamando: — Muitas almas benditas têm descido do Céu
— Perdão! p e r d ã o ! . . . sou um assassino! um para testemunhar-lhe agradecimento. Isso tem acon-
assassino!... tecido tantas vezes que, com alguns médicos e as-
Levantámo-nos, instintivamente, com o propó- sistentes, fêz-se credor das melhores atenções de
sito de socorrê-lo, mas tocado de longe pela nossa nossa Irmandade.
influência magnética, qual se fora alcançado por Usando o tato que lhe era característico, nosso
um raio, o enfermeiro projetou-se para fora. orientador indagou:
— Infortunado amigo! — falou o Ministro, — Como soube a irmã que o nosso amigo se
contristado. — Sofre muito. Ajudemo-lo a soer- achava assim tão conturbado?
guer-se. — Não recebemos qualquer notificação direta,
Num átimo, ganhámos o domicílio de Mário, contudo, ele não compareceu hoje às tarefas ha-
bituais e isso foi suficiente para indicar-nos que Clarêncio agradeceu o carinho que transparecia
algo de grave estava acontecendo. Nossa superio- daquelas palavras e expôs que a nossa passagem
ra designou-me para verificar o que havia. Desde por ali era rápida, o bastante para ministrar o
então, estou presa, de vez que não supunha a exis- socorro preciso.
tência de tantos Espíritos das trevas na vizinhança.
A interlocutora encareceu a necessidade de co-
A palavra da freira saturava-se de tanta bon- municar-se com o hospital, quanto ao cooperador
dade espontânea e evidenciava uma fé pura tão em agitada prostração, e, prometendo voltar em
encantadoramente ingênua, que a curiosidade me breves minutos, ausentou-se à pressa.
espicaçou o íntimo. A tentação de pesquisar o fas-
cinante problema daquele caridoso esforço assis- A sós conosco, o orientador, embora de aten-
tencial me constrangia a interferir no assunto, mas ção ligada ao enfermeiro, explicou, atenciosamente:
um olhar de Clarêncio bastou para que Hilário e — Nossa irmã pertence à organização espiri-
eu nos mantivéssemos em respeitoso silêncio. tual de servidores católicos, dedicados à caridade
— E' comovente pensar na sublimidade de sua evangélica. Temos diversas instituições dessa na-
missão, depois de ausentar-se do corpo terrestre tureza, em cujos quadros de serviço inúmeras enti-
— falou o Ministro, bondoso, talvez provocando al- dades se preparam gradualmente para o conheci-
guma elucidação direta, capaz de satisfazer-nos. mento superior.
— Sim, trabalhamos sob a direção de Madre — Sob a direção de autoridades ainda ligadas
Paula — informou a interlocutora, sincera —, que à Igreja Católica? — perguntou Hilário, admirado.
nos explica ser a enfermagem nas casas públicas — Como não? todas as escolas religiosas dis-
de tratamento uma forma de purgatório benigno, põem de grandes valores na vida espiritual. Como
até que possamos merecer novas bênçãos de Deus. acontece à personalidade humana, as crenças pos-
— Mas, irmã, vê-se de pronto que o seu cora- suem uma região clara e luminosa e uma outra
ção está comungando a paz do Senhor. ainda obscura. Em nossa alma, a zona lúcida vive
Ela baixou humildemente os olhos e ponderou: alimentada pelos nossos melhores sentimentos, en-
— Não penso assim. Sou uma pobre religiosa, quanto que, no mundo sombrio de nossas experiên-
em trabalho para resgatar os próprios pecados. cias inferiores, habitam as inclinações e os impul-
No leito, Mário gemia inquieto. sos que ainda nos encadeiam à animalidade. Nas
O Ministro pareceu despreocupar-se da pales- religiões, o campo da sublimação está povoado pelos
tra de ordem pessoal e passou a afagar a fronte espíritos generosos e liberais, conscientes de nossa
do enfermo, dando-nos a ideia de que só ele devia suprema destinação para o bem, ao passo que, nas
atrair-nos o interesse. linhas escuras da ignorância, ainda enxameiam as
A freira acercou-se respeitosamente de nosso almas pesadas de ódio e egoísmo.
instrutor e disse, calma: E, sorrindo, o Ministro acentuou:
— Irmão, Madre Paula costuma dizer-nos que — Achamo-nos em evolução e cada um de nós
os ouvidos de Deus vivem no coração das grandes respira no degrau em que se colocou.
almas. Estou certa de que escutastes minhas ro- — Ela, porém, terá penetrado a verdade com
gativas. Tenho-vos por emissários da Corte Celes- que fomos surpreendidos, depois da morte? — per-
te. Acredito que, desse modo, me compete a obri- guntei, intrigado.
gação de confiar-vos nosso doente. — Cada Inteligência — respondeu o orienta-
dor, enigmático — só recebe da verdade a porção — A maior lição aqui, André, é a da semen-
que pode reter. teira que produz, inevitável. Mário Silva, na posição
Silva, no leito, dava inequívocos sinais de enor- de enfermeiro, não obstante a ruinosa impulsivi-
me angústia. dade em que se caracteriza, tem sido prestimoso
Não ignorava que o meu dever de assisti-lo e humano, tornando-se credor do carinho alheio.
era trabalho inadiável, todavia, o encanto espiritual Segundo vemos, não é um homem devotado às lides
da religiosa singularmente arraigada aos hábitos religiosas. E' irritável e agressivo. De ontem para
terrestres me excitava de tal maneira a curiosidade hoje, chega a sentir-se criminoso... Entretanto,
que não pude conter a indagação espontânea. é correto cumpridor dos deveres que abraçou na
— Mas essa freira sabe que deixou o mundo, vida e sabe ser paciente e caridoso, no desempe-
sabe que desencarnou e prossegue, assim mesmo, nho das próprias obrigações. Com isso, granjeou
como se via antes? a simpatia de muitos e encontramo-lo fraternal-
— Sim — confirmou o instrutor imperturbável. mente guardado por uma freira reconhecida...
— B estará informada de que a vida se es- O ensinamento era efetivamente comovedor.
tende a outras esferas, a outros domínios e a ou- Dispunha-me a prosseguir no comentário, con-
tros mundos? perceberá que o céu ou o inferno tudo, Silva começou a gemer e o Ministro, incli-
começam de nós mesmos? nando-se para ele, demorou-se longo tempo a aus-
O orientador meneou a cabeça, dando mostras cultá-lo .
de negativa e acrescentou: Em seguida, Clarêncio reergueu-se e falou:
— Isso não. Ela não oferece a impressão de — Pobre amigo! permanece impressionado com
quem se libertou do círculo das próprias ideias para a morte de Júlio, conservando aflitivo complexo de
caminhar ao encontro das surpresas de que o Uni- culpa. Tem o pensamento ligado ao pequenino mor-
verso transborda. Mentalmente, revela-se adstrita to, à maneira de imagem fixada na chapa fotográ-
às concepções que elegeu na Terra, como sendo fica. Passou o dia acamado, sob extrema pertur-
as mais convenientes à própria felicidade. bação. Observo que não foi a casa de Antonina,
— E ninguém a incomoda aqui por viver as- conforme previa. Sentiu-se vencido, envergonha-
sim distante do conhecimento real do caminho? d o . . . Entretanto, somente nossa irmã possui para
O orientador assumiu feição mais carinhosa- ele o remédio indispensável...
mente paternal para comigo e ajuntou: Depois de pausa ligeira, indagámos se não nos
— Antes de tudo, deve nossa irmã merecer-nos seria possível socorrê-lo, de modo mais positivo,
a maior veneração pelo bem que pratica e, quanto através de passes, ao que Clarêncio respondeu, se-
ao modo de interpretar a vida, não podemos es- guro de si:
quecer que Deus é Nosso Pai. Com a mesma tole- -— O auxílio dessa natureza ampara-lhe as for-
rância, dentro da qual Ele tem esperado por nossa ças, mas não resolve o problema. Silva deve ser
mais elevada compreensão, aguardará um melhor
atingido na mente, a fim de melhorar-se. Requisita
entendimento de nossa amiga. Cada Espírito tem
uma senda diversa a percorrer, assim como cada ideias renovadoras e, no momento, Antonina é a
mundo tem a rota que lhe é peculiar. única pessoa capaz de reerguê-lo com mais segu-
E, fixando-me com particular atenção, ob- rança .
servou: Recordei instintivamente o drama que se de-
senrolara ao tempo da Guerra do Paraguai, pa-
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recendo-me ouvir, de novo, a narração do velho
Leonardo Pires.
Assinalando-me o pensamento, o Ministro pon-
derou:
— Tudo na vida tem a sua razão de ser.
Noutra época, Silva, na personalidade de Esteves, xxxv
aliou-se a Antonina, então na experiência de Lola
Ibarruri, para se afogarem no prazer pecaminoso,
com esquecimento das melhores obrigações da vida. REERGUIMENTO MORAL
Atualmente, estarão reunidos na recuperação jus-
ta. Os que se associam na leviandade, à frente Consoante o programa traçado, regressámos,
da Lei, acabam esposando enormes compromissos no dia imediato, estagiando primeiramente no lar
para o reajustamento necessário. Ninguém confun- de Zulmira, cuja posição orgânica era mais aflitiva.
de os princípios que regem a existência. A pobre senhora mostrava-se mais pálida, mais
Decidia-me a desfechar novas interrogações, abatida.
mas Clarêncio, pousando afetuosamente o indica- O médico cercara-a de drogas valiosas, entre-
dor sobre os meus lábios, recomendou: tanto, a infortunada criatura démorava-se em pro-
— Cessa a curiosidade, André! Quando pas- funda exaustão.
samos a explanar sobre a Lei, nossa conversação Amaro e Evelina desvelavam-se, preocupados,
adquire o sabor de eternidade, e a imposição de todavia, a torturada mãezinha deixava-se morrer.
serviço nos condiciona ao minuto que passa. Diante da nossa apreensão manifesta, o Mi-
E, indicando o enfermeiro excitado, anunciou: nistro apenas afirmou:
— Na tarde de amanhã, voltaremos para con- — Aguardemos. Numa equipe, quase sempre
duzi-lo à residência de nossa irmã. Por intermédio a melhora de um companheiro pode auxiliar a me-
de Antonina, habilitar-se-á para o indispensável lhora de outro. A recuperação de Silva, ao que me
reerguimento. Por agora, não podemos fazer mais. parece, influenciará nossa amiga, na defesa contra
Decorridos alguns instantes, a freira regressou a morte.
à nossa presença, assistida por outra irmã, que Não se delongou por muito tempo na inter-
nos cumprimentou com atenciosa reserva. venção magnética.
Ambas haviam sido designadas para a tarefa Sem detença, procurámos o domicílio do en-
de auxílio ao cooperador doente. A congregação fermeiro, encontrando-o superexcitado quanto na
encarregar-se-ia de todos os trabalhos de vigilân- véspera, mas abnegadamente assistido pelas freiras
cia e enfermagem espiritual, enquanto Silva assim que persistiam, dedicadas, na oração.
permanecesse. As religiosas desencarnadas acolheram-nos com
Depois de breve diálogo, saudámo-las com res- carinho, comunicando que o doente prosseguia em
peitosa cordialidade e nos retirámos, com a pro- desespero.
messa de voltar no dia seguinte. Clarêncio, contudo, assegurou-lhes otimista que
Mário passearia conosco e, após entreter-se, vol-
taria melhor.
Em seguida, abeirou-se do enfermo e, tocan-
do-lhe a fronte cõm a destra, orou sem alarde.
Qual se recebesse preciosa transfusão de for- to o hóspede parecia esmolar-lhe, em silêncio, aju-
ças fluídicas, Silva aquietou-se como por encanto. da e compreensão.
Revelou-se mais calmo, não obstante entris- Percebendo-lhe a angústia oculta, a jovem viú-
tecido. va induziu-o à conversação particular, em singelo
A expressão facial que lhe denunciava a su- recanto da sala, onde atendia com os filhinhos ao
blevação interior transformou-se-lhe no semblante culto da oração.
em dolorosa serenidade. O enfermeiro pediu-lhe desculpas por tratar
Nosso orientador desenvolveu alguns passes de assunto pessoal e, começando por justificar a
de auxílio e notificou: sua ausência na véspera, de frase a frase entrou
— Silva experimenta enorme necessidade de na faixa dolorosa do próprio coração, desabafando...
ouvir a palavra de Antonina, contudo, está hesi- Lembrou que ali, junto dela, recebera ensina-
tante. Afirma-se intimamente envergonhado. Crê- mentos da mais elevada significação para ele e,
-se responsável pela morte da criança e teme o por esse motivo, não vacilava em descerrar-lhe o
contacto com a nobreza espiritual de nossa irmã, espírito desolado, implorando compaixão e socorro.
apesar de sentir-se arrastado para ela. Buscare- Tentando confortá-lo, a interlocutora escutou-
mos, porém, auxiliar-lhes a reaproximação. -Ihe a narrativa até ao fim.
Acariciou a fronte do moço atormentado e Mário reportou-se à juventude, comentou os
acentuou: problemas psíquicos de que se via rodeado, desde
— O desabafo descarregar-lhe-á a atmosfera a infância, descreveu-lhe o amor que nutrira pela
mental, favorecendo-lhe o alívio e a recepção de moça que o abandonara em pleno sonho, relacionou
elementos renovadores. as provas que lhe haviam castigado o brio de ra-
Em seguida, o instrutor abraçou-o, envolven- paz, salientou o esforço que despendera para re-
do-o em amorosa solicitude. Aquele amplexo afe- cuperar-se e, por fim, extremamente conturbado,
tuoso e longo figurou-se-nos um apelo às energias explanou sobre o reencontro com a ex-noiva e com
recônditas do rapaz que, de imediato, levantou-se o ex-rival, junto do pequenino agonizante... Refe-
e vestiu-se. riu-se ao ódio inexplicável que sentira pelo anjinho
Ignorando como explicar a si mesmo a súbita moribundo, encareceu os benefícios do culto evan-
resolução que o movia, desceu para a rua, segui- gélico em sua alma incendiada de revolta e amar-
do de perto por nosso cuidado, e tomou o carro gura, expondo-lhe a convicção de haver contribuído
que o transportaria até à residência da simpática para a morte da criancinha que detestara, à pri-
família que o acolhera carinhosamente na ante- meira v i s t a . . .
-véspera. Guardava a impressão de haver descido a tor-
Antonina e os filhos abriram-lhe os braços, mentoso inferno moral.
alegremente. Antonina sentiu por ele a piedade amorosa com
A pequena Lisbela, encantada, dependurou-ser que as mães se dispõem ao soerguimento espiritual
-lhe ao pescoço, depois de um beijo comovente. dos filhos sofredores e rogou-lhe serenidade.
Achava-se ainda acamada, mas refeita e feliz. Silva, contudo, em pranto convulsivo, era um
Qual se convivesse com Mário, de longo tempo, doente que reclamava mais ampla intervenção.
a dona da casa fitou-o, apreensiva. Atraída irresistivelmente para ele, a nobre ami-
Preocupada, anotou-lhe o abatimento, enquan- ga deixou de sublinhar o tratamento com a palavra
«senhor» e, fazendo-se mais íntima, obtemperou,
carinhosa: mirável segurança que lhe era peculiar e falou,
firme:
— Mário, quando caímos é preciso levantar,
— Mário, você acredita na reencarnação da
a fim de que o carro da vida, em seu movimento
alma?
incessante, não nos esmague. Conhecemo-nos há
dois dias, no entanto, sinto que profundos laços de E porque o interlocutor a contemplasse, com
fraternidade nos reúnem. Não acredito estejamos estranheza, continuou sem ouvir-lhe a resposta:
aqui juntos, obedecendo a simples acaso. Decerto, — Todos somos viajores no grande caminho
as forças que nos dirigem a existência impelem-nos da eternidade. O corpo de carne é uma oficina em
aos testemunhos afetivos desta hora. Enxugue as que nossa alma trabalha, tecendo os fios do pró-
lágrimas para que possamos ver o caminho... Com- prio destino. Estamos chegando de longe, a revi-
preendo o seu drama de homem rudemente pro- vescer dos séculos mortos, como as plantas a re-
vado na forja da vida, entretanto, se posso pedir- nascerem do solo profundo... Naturalmente, você,
-Ihe alguma coisa, rogar-lhe-ia bom ânimo. Amaro, Zulmira e Júlio estão recapitulando algu-
Fixando-o com mais doçura no olhar, prosse- ma tragédia que ficou distanciada no espaço e no
guiu, depois de leve pausa: tempo, mas viva nos corações. E, mediante o ca-
rinho de sua confissão espontânea, não duvido de
— Também eu tenho lutado muito. Lutado e
minha participação em algum lance da luta que
sofrido. Casei-me por amor è vi-me espoliada em
motivou os acontecimentos da atualidade. Amor e
minhas melhores esperanças. Meu marido, antes
de encontrar a morte, relegou-nos a dolorosa pe- ódio não se improvisam. Resultam de nossas cons-
núria. Quando mais intensa era a nossa agonia truções espirituais nos milênios. Provavelmente,
doméstica, vi um filhinho morrer ao toque das afli- alguma responsabilidade me compete nos serviços
tivas provações que nos flagelavam a c a s a . . . Gra- em cuja execução você se comprometeu. Nossa con-
ças a Deus, todavia, reconheço que seríamos tão fiança imediata, nossa associação neste assunto
somente ignorância e miséria sem o auxílio da dor. sem qualquer base prévia, essa simpatia fraternal
O sofrimento é uma espécie de fogo invisível, plas- com que você vem a mim e o interesse com que
mando-nos o caráter. Não se deixe abater, assim. lhe ouço a exposição me autorizam a admitir que
Você está moço e as suas realizações no mundo o presente está refletindo o -passado. E, em razão
podem ser as mais elevadas... disso, ofereço-me para cooperar com o seu esforço
de algum m o d o . . .
— Mas estou certo de que sou um assassi-
n o ! . . . — soluçou o rapaz, desacoroçoado. — Colaborar? — atalhou o moço, quase alu-
cinado — é impossível... O menino está m o r t o . . .
— Quem poderia confirmá-lo ? — exclamou An-
Envolta nas irradiações de Clarêncio, Antoni-
tonina, com mais ternura na voz. — E' indispen-
na alegou com sensatez:
sável recordemos que, atento à profissão, atendeu
você a um menino completamente entregue ao do- — E quem nos diz que Júlio não possa voltar
mínio do crupe. O pequenino Júlio, à sua chegada, à Terra? quem nos pronunciará incapazes de algo
já estaria ofegante, sob as asas da morte. fazer a benefício da criancinha que partiu?
— Como? como? — indagou, atônito, o infeliz.
— Mas, e a impressão? e o remorso? Sinto-me — Escute, Mário. O egoísmo não se revela
derrotado, aflito... Tenho medo de mim m e s m o . . . feroz tão somente em nossas alegrias. Muitas ve-
A nobre senhora fitou o hóspede com a ad- zes, comparece também, asfixiante e terrível, em
nossas dores. Isso se verifica, quando em nossa
sionamos o coração na escura fortaleza da vaidade
mágoa pensamos apenas em nós. Você se decla-
e não sabemos c e d e r . . .
ra delinquente, amargurado, vencido, qual se fos-
se um herói repentinamente arrojado do altar da Apegando-se ao socorro moral que lhe era
admiração pública à poeira da desconsideração. lançado, o enfermeiro suplicou, pesaroso:
Admito que concentrar demasiada atenção em cul- — Antonina, creio em sua amizade e na ele-
pas imaginárias é mera vaidade a encarcerar-nos vada compreensão que flui de suas palavras. Aju-
na angústia vazia. Enquanto lastimamos á' nossa de-me! não vim aqui senão rogar auxílio e discer-
imperfeição, perdemos a hora que seria justo uti- nimento. Exponha você mesma o que devo fazer.
lizar em nossa própria melhoria. Dê-me um plano. Perdoe-me a intimidade, tenho
sido um homem sem fé . . . Não tenho autoridades
E, modificando a inflexão de voz, que se fêz ou amigos para quem apelar... Não nos conhece-
algo mais firme,- acrescentou: mos senão há dias, mas encontrei em seu coração
•— Você já meditou no padecimento dos pais e em sua casa algo novo para meu pobre espírito...
feridos pela separação? já refletiu nos sonhos ma- Suporte-me e ampare-me por amor de Deus, em
ternos, despedaçados? porque não estender frater- cuja providência você crê com tanta sinceridade!...
nos braços aos progenitores na sombra do infortú- A jovem viúva, sentindo-se verdadeiramente
nio? Creio na imortalidade da alma e na redenção irmã dele, acariciou-lhe as mãos quais se fossem
dos nossos erros, penso que a renovação do dia velhos conhecidos; e agora, igualmente em lágri-
é um símbolo da graça do Senhor sempre repetida mas de emotividade e reconhecimento, convidou-o
em nosso caminho, para que lhe aproveitemos o a visitarem juntos o casal sofredor, na noite se-
tesouro de bênçãos no crescimento ou no reajuste... guinte .
Porque não visitar você o lar de nossos desven- Confiaria Henrique e Lisbela aos cuidados de
turados amigos, nesta hora em que naturalmente uma parenta e seguiriam para a residência de Ama-
precisam de carinho e solidariedade? E' possível ro, em companhia de Haroldo. Desejava auxiliá-lo,
que a Divina Bondade esteja reservando ali algum a ele, Mário, na justa recuperação, e, para esse
serviço para o seu propósito de elevação. Quem fim, estimaria acompanhá-lo, de maneira a ser
sabe? A volta de Júlio pode efetuar-se. Para isso, mais útil.
porém, será necessário reerguer o ânimo materno...
O moço aceitou a gentileza, exultante.
Passando da energia de conselheira à ternura Estava convencido de que, ao lado de Anto-
de irmã, aduziu, carinhosa: nina, encontraria uma solução.
— Deixaria você a outrem o privilégio de se- Um sorriso de reconforto assomou-lhe aos lá-
melhante serviço? bios e foi assim que deixámos o enfermeiro ator-
— Não tenho coragem! — lamentou o rapaz, mentado, sob a eclosão de nova e abençoada es-
chorando. perança.
— Não, Mário! Em ocasiões dessas, não é a
coragem que nos falha e sim a humildade. Nosso
orgulho neste mundo, apesar de inconsequente e
vão, é por demais envolvente e excessivo. Não sa-
bemos liberar a personalidade segregada no visco
de nosso exagerado amor próprio. Em suma, apri-
sas por não haver reaparecido, como reconhecia
de seu dever.
A ocorrência desnorteara-o.
•Caíra de cama, impressionado com o aconte-
cimento que lhe não cabia esperar.
XXXVI Falava realmente comovido, porque, lembrando
os derradeiros minutos da criança, represavam-se-
CORAÇÕES RENOVADOS -lhe os olhos de lágrimas que não chegavam a cair.
Aquela emotividade manifesta, aliada à humil-
Trêa dias haviam corrido sobre a libertação dade sincera que Silva deixava transparecer, to-
de Júlio. cava o coração de Amaro, que se descerrou mais
De novo, ao lado de Zulmira, nas primeiras ho- amplamente.
ras da noite, reparávamos-lhe a profunda exaustão... — Percebi — disse o dono da casa — a dor
O enfraquecimento progressivo impusera-lhe que o envolveu no momento justo em que nosso
perigosa situação orgânica. anjinho era arrebatado pela morte. Sua aflição me
O próprio Clarêncio, depois de auscultá-la, ano- comoveu muito, não só pelo devotamente do pro-
tou, apreensivo: fissional que nos assistia, mas também pela afe-
-— Nossa irmã reclama socorro mais seguro. tividade pura do amigo que, há tanto tempo, se
O esgotamento é quase completo. distanciara de nossos olhos.
A enferma recebia-lhe a assistência magnética, A generosidade do ex-rival, por sua vez, in-
quando Mário, Antonina e Haroldo deram entrada fluenciava o enfermeiro de modo decisivo.
em sala próxima. As vibrações de afabilidade e carinho que se
Deixámos nosso instrutor com a doente e de- desprendiam do apontamento afetuoso modifica-
mandámos a peça em que se efetuaria o encontro vam-lhe o íntimo.
familiar. Mário passou a sentir balsamizante desafogo.
O ferroviário e a filha faziam as honras da E, enquanto Evelina se afastava para atender
casa. à madrasta doente, reportou-se à tortura moral
Amaro, acolhedor, dava mostras de grande alí- que o assaltara, assim que viu Júlio inerte, deten-
vio. O sorriso, embora triste, era largo e espon- do-se na breve descrição do complexo de culpa
tâneo, demonstrando o contentamento interior de que o acometera. Teria seguido com segurança a
quem via terminar velha e desagradável desavença. indicação do especialista? Enganar-se-ia, porven-
Mário, porém, surgia constrangido e desajei- tura, na dosagem da medicação?
tado, enquanto Antonina irradiava simpatia e bon- Na ligeira pausa que surgiu, natural, Amaro
dade, cativando, de improviso, a amizade dos an- tornou à palavra, acrescentando, bondoso:
fitriões . — Não havia motivo para tamanha preocupa-
O enfermeiro apresentou a jovem senhora e ção. Desde a primeira visita médica, compreendi
o filhinho por amigos particulares e depois, eviden- que o nosso filhinho estava condenado. O soro foi
temente instruído pela companheira, iniciou a pa- o último recurso.
lestra, comentando a penosa impressão que lhe E, com dolorida resignação, acentuou:
causara o falecimento do pequenino e pedia escu- — Não é a primeira vez que atravesso uma
provação dessa ordem. Há tempos, sofri a perda — E' muita alegria sentir-lhe a nobreza dal-
do caçula de meu primeiro matrimônio, estranha- ma — comentou Antonina, entusiástica — ; na es-
mente afogado numa de nossas raras excursões até sência, desejamos ser cristãos sinceros e a sua ge-
à praia. Confesso que só me faltou enlouquecer. nerosidade me permite entrever a beleza do Cristo
Entretanto, apeguei-me à religião para não soço- nas vidas nobres.
brar e hoje compreendo que somente nos compete Amaro não conseguiu responder.
acatar os desígnios de Deus. Não passamos de Um táxi parou à porta e, de imediato, o mé-
criaturas necessitadas de socorro divino, a cada dico da família entrou para a inspecção.
instante de nossa experiência humana. Depois das saudações usuais, passou ao quarto
— Sem dúvida — interferiu Antonina, otimis- da enferma e, porque o dono da casa se propusesse
ta —, sem apoio espiritual, não avançaríamos um segui-lo, recomendou-lhe permanecesse na sala com
passo no terreno da verdadeira harmonia íntima. as visitas, de vez que tencionava submeter a doen-
A morte do corpo nem sempre é o pior que nos te a meticuloso exame, pretendendo ouvi-la a sós.
possa acontecer. Quantas vezes os pais são cons- Evelina veio ter conosco e, acompanhando o
trangidos a acompanhar a morte moral dos filhos, facultativo com o nosso olhar, vimo-lo carinhosa-
no crime ou na viciação que não conseguem inter- mente recebido por Clarêncio e Odila, que se nos
romper? Também perdi um dos rebentos que Deus mostraram à porta.
me confiou, mas procurei acomodar-me à saudade
A conversação passou a desdobrar-se em torno
sem revolta, porque a Sabedoria do Senhor não
de Zulmira.
deve ser menosprezada.
O chefe da família, preocupado, discorria so-
— Que prazer ouvi-la! — disse o ferroviário, bre a esposa acamada, encarecendo a delicadeza
com discreta satisfação — após afeiçoar-me, com da situação.
mais empenho, ao Catolicismo, na leitura de Santo
Agostinho, observo que abençoada renovação se Zulmira, que adoecera com a enfermidade do fi-
fêz em mim. lhinho, desde a morte dele, não mais se alimentara.
E fitando a interlocutora, com mais atenção, Não obstante todos os conselhos médicos e
aduziu: todos os apelos afetivos, demonstrava-se alheia, no
mais amplo desinteresse pela vida.
•— A senhora é também católica?
Antonina sorriu, delicada, e informou: Enfraquecia, de modo alarmante.
— Não, senhor Amaro, em matéria de fé, acei- Como se quisesse dar notícias de seu círculo
to a interpretação evangélica do Espiritismo, en- particular ao atento enfermeiro, relacionou os de-
tretanto, isso não impede que estejamos procurando sajustes psíquicos da companheira, antes da vinda
o mesmo Mestre. do filhinho que a morte lhes arrebatara ao con-
vívio .
— A h ! sim, Jesus é o nosso porto — acentuou
o anfitrião, liberal —, não entendo a religião por Zulmira, com a maternidade triunfante, como
elemento separatista. A senhora, na condição de que se renovara.
espírita, e eu, na posição de católico, possuímos Revelara-se mais alegre, mais viva.
uma só linguagem na fé que nos identifica. Creio Readquirira a saúde plena.
que a Providência Divina, como o Sol, brilha para Com a desencarnação da criança, nova crise
todos. de contratempos invadira-lhe a casa.
i E, erguendo os olhos para o ex-rival, disse,
A moléstia asilara-se, ali, de novo, entre as em voz quase suplicante:
quatro paredes. J \—- Amaro, permita-me! quero auxiliar a doen-
Mário, a permutar significativos olhares /Com te de algum m o d o ! . . . Afinal de contas, somos
Antonina, de quando em quando se situava entre todos, agora, bons irmãos.
a perplexidade e o desencanto. O chefe da casa, comovido, abraçou-o reco-
A confissão de Amaro constituía um testemu- nhecidamente.
nho de humildade pura. — Obrigado, Silva!
Em muitas ocasiões, fantasiara-o, na própria Nada mais conseguiu dizer.
imaginação, qual se fora um poço de orgulho e De olhos angustiados, dirigiu-se para o apo-
arrogância e, por muitas vezes, surpreendera-se em sento da mulher, envolvendo-a em manifestações
acalorados solilóquios, rixando com ele em pensa- de carinho.
mento . Antonina, colocando Haroldo junto a uma pilha
Agora, reparava que o antagonista era um de revistas velhas, pôs-se à disposição de Evelina
homem comum, tanto quanto ele necessitado de para qualquer atividade caseira, enquanto Mário
paz e compreensão. e o médico partiam, velozes, em busca do material
O entendimento prosseguia mais afetuoso, necessário.
quando o clínico tornou à sala. Transcorrida uma hora, a câmara da enferma
De semblante torturado, dirigiu-se ao ferro- se iluminava mais intensamente para o serviço a
viário, notificando: fazer.
— Amaro, a providência é quase impossível Zulmira, admirada, reconheceu Mário, todavia
quando a previdência não funciona. A posição de era enorme a prostração para que pudesse demons-
Zulmira piorou muitíssimo nas últimas horas. O trar interesse ou desprazer. Apresentada a Anto-
soro aplicado desde ontem não trouxe o resultado nina, limitou-se a endereçar-lhe alguns monossíla-
preciso. O abatimento é enorme. Creio indispen- bos, com um breve sorriso de reconhecimento.
sável uma transfusão de sangue ainda esta noite, Assumindo a direção da enfermagem, a jovem
para que não sejamos amanhã surpreendidos por viúva parecia uma figura providencial.
obstáculos insuperáveis.
Amparou a doente com carinho, auxiliou o
Amaro empalideceu.
clínico nas tarefas do momento e, cativando a gra-
Antonina voltou-se em silêncio para Silva, como
tidão dos novos amigos, colaborou com Evelina para
a dizer-lhe, de coração para coração: — «Não he-
que todas as medidas alusivas à higiene se efe-
site. E' a sua hora de ajudar. Aproveite a opor-
tuassem harmoniosas.
tunidade.»
Realizada a transfusão, a enferma entrou na
Mário, acanhado, levantou-se maquinalmente e,
reação característica, contudo, Silva, fosse porque
antes que Amaro fizesse qualquer referência ao
estivesse de si mesmo enfraquecido ou porque a
assunto, apresentou-se ao médico, explicando:
quantidade de sangue tivesse sido demasiada, pas-
— Doutor, se a minha cooperação for aceita,
sou a acusar profundo abatimento.
sentirei prazer nisso. Sou doador de sangue no
Em seus olhos, porém, brilhava uma luz di-
hospital em que trabalho. Um telefonema seu ao
ferente .
pediatra amigo, a quem o senhor recorreu no caso
Afigurava-se-lhe haver perdido as inquietações
de Júlio, pode confirmar as minhas palavras.
que o martirizavam. Adquirira a noção de que sé
reabilitara, perante a própria consciência. Trou-
xera aos ex-adversários o próprio coração em for-
ma de visita fraterna. E as suas próprias forças
insufladas no campo orgânico da mulher que lhe
fora a bem-amada, como que lhe favoreciam-a au- \ XXXVII
sência dos velhos pensamentos de mágoa que, por
tanto tempo, lhe haviam flagelado a vida /íntima.
Registando-lhe a queda de energias, o médico
i REAJUSTE
ministrou-lhe, de imediato, os recursos aconselhá- \
veis, permanecendo Mário, desse modo, cômodamen^ Quando os amigos se afastaram, Clarêncio cer-
te instalado em larga poltrona, junto dqs amigos. cou Zulmir^, de cuidados especiais, aplieando-lhe
Despediu-se o facultativo, mais animado. passes de reconforto.
Antonina, sem afetação, ajudou no preparo do A injeção de sangue renovador lhe fizera gran-
café, que foi saboreado por todos, enquanto a con- de bem.
versação era reatada com alegria. Pouco a pouco, acomodaram-se-lhe os centros
Foi então que a viúva se ofereceu para voltar. de força.
Era industriaria e, na posição de mãe, res- Desde a 'desencarnação do filhinho, a pobre
ponsabilizava-se por três crianças, entretanto, po- criatura não desfrutava tão acentuado repouso,
deria dispor de dois dias. quanto naquela hora.
Amaro salientou a dificuldade para encontrar Nosso instrutor recomendou a Odila prepa-
uma enfermeira Ou governanta para horas difíceis rasse o pequeno Júlio para o reencontro com a
e aceitou a gentileza. mãezinha.
Antonina, contente, prometeu regressar, tra- Zulmira vê-lo-ia, buscando energias novas.
zendo Lisbela, na manhã seguinte. Estava conven- E enquanto nossa irmã se distanciava para
cida de que a menina conseguiria entreter Zulmira, o desempenho da missão que lhe fora cometida, o
com as suas infantilidades, mitigando-lhe o coração orientador falou, otimista:
saudoso de mãe. — Um sonho reconfortante é uma bênção de
Evelina abraçou-a, encantada. Simpatizara-se saúde e alegria para os nossos irmãos encarnados.
com Antonina, como se fossem duas irmãs. íamos responder, mas a doente, à semelhança
Algo reanimado e positivamente feliz, Mário das pessoas na hipnose profunda, levantou-se em
dispôs-se à retirada e um táxi foi trazido. Espírito, contemplando-nos, surpresa.
Num ambiente de construtiva cordialidade, de- O olhar dela, admiravelmente lúcido, falava-
senvolveu-se a reconfortante despedida. -nos de sua ansiedade maternal.
E Silva, fitando a companheira de excursão Clarêncio afagou-a, como se o fizesse a uma
com reconhecimento e carinho, sentiu-se reconci- filha, rogando-lhe calma e fé.
liado consigo mesmo, irradiando a alegria silenciosa Desdobrava-se-lhe a preleção carinhosa, quan-
de quem retorna à felicidade. do partimos.
Amparada em nossos braços, Zulmira volitou
sem perceber.
Observei que o espetáculo magnificente da Na-
tureza não lhe feria a atenção. Introvertida, ape- terno é um tesouro inapreciável, contudo, não de-
nas a imagem da criancinha morta lhe ocupava a vemos olvidar que todos somos filhos de Deus,
tela mental. / nosso Eterno Pai! Acalma-te! Pede ao Senhor os
O Lar da Bênção mostrava-se maravilhoso. recursos necessários para que o teu devotamente
Flores de rara beleza coloriam a estrada e seja um auxílio positivo ao pequenino necessitado!...
embalsamavam-na de suave perfume. / Tocada por essas palavras, Zulmira desfez-se
Aqui e ali, doces melodias vibravam no ar. em pranto.
A glória fulgurante do céu induzia-nos à ora- Enlatada afetuosamente por Odila, que ten-
ção de reverência e louvor ao Pai Celestial, mas tava soerguer-lhe o ânimo, reconheceu a primeira
a pobre mulher que seguia conosco parecia insen- esposa de Amaro e recordou a luta que haviam
sível à excelsitude do ambiente, à facei da tortura atravessadQj quando do afogamento do pequeno
interior de que se via possuída, obrigando-me a irmão de Evelina.
reconhecer, mais uma vez, que o paraíso da alma, O remorso voltou a refletir-se-lhe na mente
em verdade, reside onde se lhe situa;o amor. e, atribulada, exclamou:
Reparei que para a devoção afetuosa de Zul- — Odila! perdoa-me, perdoa-me!... agora vejo
mira não importava o rumo. Qualquer indaga- o inferno que te impus, despreocupando-me de teu
ção, perante aquela ternura atormentada, resulta- filhinho... Hoje, pago com lágrimas minha deplo-
ria inútil. rável displicência! Ajuda-me, querida i r m ã ! . . . Sê
Creio que, se, ao invés da refulgente luz do para o meu Júlio a guardiã que não fui para o teu!
Lar da Bênção, apenas víssemos trevas, para aquele A interpelada acariciou-a, compadecidamente,
espírito agoniado de mãe o quadro seria de verda- e ajuntou:
deiro paraíso, desde que pudesse reter nos braços — Tem paciência! a aflição é um incêndio que
o filhinho inesquecível. nos consome... Paguemos à vida o tributo da con-
Quem poderá definir com exatidão os indevas- formação na dor, para que sejamos efetivamente
sáveis segredos que Deus colocou nos corações que dignas do socorro celestial...
amam? E, beijando-a nos olhos, aduziu:
Quando penetrámos o berçário, onde o menino — Enxuga as lágrimas que te fustigam inu-
repousava, sob a abnegada vigilância de Odila e tilmente. A serenidade é o nosso caminho de rees-
Blandina, a sofredora mãezinha tentou arrojar-se truturação espiritualr Não te reportes ao passado...
sobre a criança sonolenta, sendo delicadamente ad- Vivamos o presente, fazendo o melhor ao nosso
vertida por nosso orientador, que a sustentou, pa- alcance.
ternal, asseverando: —• Agora, porém, que sofro as agruras de mi-
— Zulmira, não perturbes o pequenino se o nha prova — acentuou Zulmira, em tom amargo —,
amas. penso em teu anjinho...
— E' meu filho! — bradou, semi-desvairada. Odila, conchegando-a de encontro ao peito,
— Não ignoramos que Júlio se asilou na Terra conduziu-a para mais perto do menino adormecido
em teu regaço e, por isso, fomos teus companhei- e, indicando-o, aclarou, satisfeita:
ros na presente viagem para que amenizes a tua — Ouve! meu filhinho é também o teu. Júlio
dor. Entretanto, não admitas que o egoísmo te de hoje é o nosso Júlio de ontem. Pesados com-
ensombre a a l m a ! . . . Certamente, o carinho ma- promissos com o pretérito obrigaram-no a aceitar
/
ENTRE A TERRA E O CÉU 245

as dificuldades do momento... Em nosso apren-


dizado de agora, teve a existência frustrada/por seus esponsais, e o imanifesto ciúme que nutria,
duas vezes, a fim de valorizar, com segurança, a diante das atenções que Amaro lhe dispensava, e
bênção da escola terrestre. reconheceu que a Providência Divina, ligando-o ao
seu coração de mãe, lhe sublimara os sentimentos...
Ante a companheira perplexa, acrescentou, con-
vincente : j Agora sentia por ele inexpressável carinho e
iluminado a m o r . . .
— O corpo de carne é uma veste que o nos-
so Júlio usou de dois modos diferentes, por nosso De espírito assim transformado, via em Odila
intermédio. não mais a rival, mas a benfeitora que, sem dú-
vida, lhe seguira de perto a transfiguração.
E sorrindo:
— Como vemos, somos duas mães, partilhando Enlaçou-se a ela, em pranto silencioso, qual
o mesmo amor. se lhe fora filha a ocultar-se nos braços maternais.
A primeira esposa de Amaro, imensamente co-
Notávamos que Zulmira, admirada, estimaria movida, correspondia-lhe as manifestações afetivas,
algo perguntar, mas o choque da revelação como afagando-lhe os cabelos.
que lhe imobilizara a garganta.
— Convém-lhe o repouso — afirmou Clarên-
No imo dalma, decerto algo lhe alterara o cio, amigo —, qualquer recordação agora lhe agra-
campo emotivo. varia o conflito mental.
Secaram-se-lhe as lágrimas, ao passo que o
Odila desembaraçou-se da companheira,, dei-
olhar se lhe fazia mais brilhante.
xando-a a sós no descanso justo, e seguiu-nos.
Afigurava-se-nos uma estátua viva de intra- Despedindo-nos, o instrutor aconselhou fosse
duzível expectação. Zulmira mantida no berçário mais algumas horas.
Sem resistência, deixou-se conduzir pelos bra- Desse modo, o corpo denso seria mais amplamente
ços de Odila até um leito próximo, para ajustar-se beneficiado pelo sono reparador.
ao repouso preciso. Voltaríamos para reconduzi-la à residência ter-
Agora sim — pensava, surpreendida —, co- restre, de maneira a garantir-lhe, tanto quanto
meçava a compreender... Júlio prematuramente possível, as melhoras gerais.
expulso da experiência material pelo afogamento, Afastámo-nos, assim, para regressar em breve.
ao mundo tornara em nova tentativa que redun- Com efeito, transcorrido o tempo que o nosso
dara em frustração... instrutor julgou indispensável, tornámos ao Lar
Porquê? porquê? da Bênção para restituir nossa amiga ao ninho
O pensamento dolorido intentava penetrar os distante.
segredos do tempo, arrastando-a ao passado remo- O relógio marcava nove da manhã, quando a
to, mas o cérebro doía-lhe, dilacerado... Realmen- enferma, sob a nossa vigilância, despertou no cor-
te, não lhe seria possível naquelas circunstâncias po físico.
qualquer incursão no domínio das reminiscências,
mas percebia, enfim, a Bondade Eterna que reúne Zulmira, retomando o equipamento cerebral
as almas nos mesmos laços de trabalho e espe- mais denso, não conseguiu articular a lembrança
da excursão que se lhe afigurou, então, delicioso
rança do caminho redentor... Lembrou a animo-
sonho.
sidade fria que experimentara por Júlio, logo após
Guardava a impressão nítida de que revira o
filhinho em «alguma parte» e semelhante certeza Há momentos na vida em que somos castiga-
lhe restaurara a calma e a confiança. dos pela fome de fé e Antonina era uma fonte
Sentia-se mais leve, quase feliz. irradiante de otimismo e firmeza moral.
Evelina, atendendo-lhe o chamado, identificou^ Evelina e Lisbela retiraram-se para o interior
-lhe as melhoras, rendendo graças a Deus. da casa, atentas à limpeza doméstica e as duas
A jovem, contente, trouxe Antonina e Lisbela amigas passaram a mais íntimo entendimento.
ao quarto. A viúva chegara cedo com a filhinha, A colaboração de Antonina fora realmente pro-
com o melhor desejo de cooperar. videncial, porque, ao deixarmos o domicílio do fer-
A doente saudou-as, satisfeita. Recordava-se, roviário, reparámos que Zulmira, de alma restau-
de modo impreciso, da noite anterior e agradeceu rada, ao toque de novas esperanças, mostrava no
o cuidado de que se via objeto. Aceitou o café rosto a tranquilidade segura de abençoada conva-
substancioso que lhe foi trazido e tão reanimada lescença .
se sentia que, sem qualquer cerimônia, confiou a
Antonina as impressões renovadoras de que se via
dominada.
Permanecia convicta de que vira Júlio e abra-
çara-o . . . Onde e como ? não saberia dizer. Mas
o contentamento que a felicitava era bem o teste-
munho de que recolhera naquela noite benefícios
reais.
— Felizmente, a transfusão de sangue foi co-
roada de pleno êxito! — exclamou Evelina, en-
cantada .
— Sim — disse Antonina, concordando —,
a providência terá sido das mais proveitosas, no
entanto, estou certa de que dona Zulmira terá re-
encontrado o filhinho no plano espiritual, readqui-
rindo novo ânimo para a luta.
Aquela asserção confiante foi registada pela
enferma com sincera alegria.
— A senhora julga então" possível? — inda-
gou a dona da casa, de olhos faiscantes.
— Como não? — aduziu Antonina, confortada
— a morte não existe como a entendemos. Do
Além, nossos amados que partiram estendem-nos
os braços. Tenho igualmente um filho na Vida
Maior que vem sendo para mim precioso susten-
táculo.
A enferma demonstrou invulgar interesse nat
conversação.
lizes. Aquela moça, viúva e digna, cada vez crescia
mais na admiração deles e, dentro de suas limi-
tadas possibilidades, o ferroviário começou a fazer
pela educação inicial dos meninos quanto lhe era
possível, associando o enfermeiro em todos os seus
XXXVIII empreendimentos em semelhante direção.
Certa manhã de claro domingo, achávamo-nos
de passagem no domicílio de Amaro, ainda em ser-
CASAMENTO FELIZ viço da saúde de Zulmira, quando Silva veio ao
encontro do amigo para aguardar a chegada de
A tempestade de sentimentos, no grupo de Antonina com as crianças. Todo o grupo familiar
almas sob nossa observação, amainou, pouco a combinara um almoço, ao ar livre, em parque pró-
pouco... ximo.
Júlio, na vida espiritual, aguardava sem so-
frimento a ocasião oportuna de regresso ao campo O Ministro, manifestando um olhar de satis-
físico, e Zulmira, sob a influência benéfica de An- fação, comentou:
tonina, renovara-se para a alegria de viver. — Graças a Jesus, vemos nosso enfermeiro
Mário Silva, transformado pela orientação da efetivamente modificado. Mais alegre, acessível,
jovem viúva, afeiçoara-se a ela, profundamente, bem disposto...
habituando-se-lhe ao convívio. — Dir-se-ia que uma revolução explodiu den-
Sólida amizade fizera-se entre as personagens tro dele — asseverei, concordando.
de nossa história. — O amor é assim — acentuou nosso instru-
Semanalmente se visitavam, com intraduzível tor, imperturbável —, uma força que transforma
contentamento para Evelina, que se convertera em o destino.
pupila de Antonina, tão grande a afinidade que Talvez porque Hilário ensaiasse malicioso sor-
lhes caracterizava as predileções e tendências. riso, o orientador acrescentou:
O templo doméstico de Amaro transfigurara-se.
— Pude consultar o programa traçado para
O otimismo infiltrara-se, ali, consolidando mo-
a reencarnação de Antonina, quando em nossas
radia nos corações.
atividades de socorro ao irmão Leonardo Pires, e
Passeios domingueiros começavam a surgir, e
sei que ela se comprometeu a colaborar, maternal-
Silva, agora unido a todos, parecia voltar à j u -
ventude nascente. mente, para que ele obtenha novo corpo na Terra.
A camaradagem social modificara-lhe a feição» Na condição de Lola Ibarruri, foi a causa do enve-
Perdera a taciturnidade em que se mergulha nenamento que lhe exterminou a paz íntima, falta
a maioria dos solteirões. essa que nossa irmã, na atualidade, espera ressar-
Lisbela apegara-se a ele com extremado cari- cir. Acariciará por filho do coração quem lhe foi
nho e os irmãos Haroldo e Henrique dele fizeram outrora companheiro de aventuras, encaminhando-
o confidente de todas as realizações infantis. -lhe a educação de ordem superior...
Várias vezes Amaro e a esposa acompanharam O apontamento nos comovia.
com amoroso respeito o culto evangélico na resi- Admirado, Hilário obtemperou:
dência de Antonina, retirando-se, edificados e f e - — Silva, desse m o d o . . .
ENTRE A TERRA E O CfiU 251

Clarêncio, contudo, interrompeu-lhe a frase,, rajado —, a hora presente exige método, recon-
completando: forto, proteção... Um pouso doméstico é investi-
mento dos mais preciosos para o futuro.
— Silva e Leonardo enlaçaram-se em compli-
— No entanto, considero que o coração no meu
cadas dividas um para com o outro. Desde muito
peito assemelha-se a um pássaro entorpecido. Sin-
tempo, cultivam o espinheiro da aversão recíproca.
to-me francamente incapaz de uma paixão...
Induzidos agora às teias da consanguinidade, espe-
ramos se reeduquem. Da Lei ninguém f o g e . . . — Que tolice! — ajuntou o interlocutor, bem
humorado — a felicidade é quase impraticável nas
Como se a mente do ferroviário nos sorvesse
afeições impulsivas que estouram do sentimento à
a conversação, ligando-se a nós pelos fios invisíveis
maneira de champanha ilusória...
do pensamento, vimos Amaro bater, de leve, nos
E, sorrindo, acentuou:
ombros do companheiro, dizendo-lhe, conselheiral:
— O amor dos namorados, com noventa graus
— Escuta, Mário. Não me assiste o direito de
à sombra, por vezes é simples fogo de palha, dei-
qualquer interferência em tua vida, entretanto, sen-
xando apenas cinza. Ã medida que se me alonga
tindo-te por meu irmão, venho refletindo acerca do
a experiência no tempo, reconheço que o matrimô-
f u t u r o . . . Não te parece que Antonina seja a mu-
nio, acima de tudo, é união de alma com alma.
lher digna do teu ideal de homem de bem?
Falo com o discernimento do homem que se con-
O interpelado corou, encabulando-se, e porque
sorciou por duas vezes. A paixão, meu caro, é res-
nada respondesse, o amigo prosseguiu:
ponsável por todas as casas de boneca que ofere-
— Desde o teu regresso à nossa amizade, ob- cem por aí espetáculos dos mais tristes. A amizade
servo com respeito crescente a distinção dessa mu- pura é a verdadeira garantia da ventura conjugal.
lher, cuja aproximação tem sido uma bênção em Sem os alicerces da comunhão fraterna e do res-
nossa casa. Moça ainda, pode fazer a felicidade de peito mútuo, o casamento cedo se transforma em
um lar que seria um santuário para as tuas expe- pesada algema de forçados do cárcere social.
riências. Comove-me anotar-lhe os sacrifícios de
Mário ouvia as reflexões do companheiro, entre
mãe jovem, quando, com a tua aliança, preservaria
enlevado e surpreso.
a própria saúde, indiscutivelmente tão preciosa a
Sim, pensava, desde que se aproximara de An-
tanta gente. Já me inteirei da posição dela na fá-
tonina, pela primeira vez, nela sentira a mulher
brica em que trabalha. E' querida de todos. Para
ideal, capaz de entender-lhe o coração.
muitas colegas, tem sido a enfermeira e a irmã
abnegada de sempre. Seus chefes veneram-lhe a Devotara-se a ela e aos três pequeninos com
conduta irrepreensível. Isso é admirável numa viú- imenso carinho e inexcedível confiança.
va de apenas trinta e dois anos. Além disso, repa- Aquele lar generoso e singelo incorporara-se-
ro-lhe os filhinhos unidos ao teu coração, como se -lhe à existência.
te pertencessem. Não te dói vê-la enfrentar sozi- Se fosse compelido à separação, por qualquer
nha a batalha em que se consome? circunstância, indubitavelmente se sentiria lesado
O enfermeiro, algo refeito da estupefação que em suas mais caras alegrias...
lhe assomara do íntimo, replicou, humilde: Enquanto Amaro se confiava às considera-
— Compreendo... Tenho examinado essa pos- ções do minuto rápido, Silva ia memorando, me-
sibilidade, no entanto, não sou mais uma criança... morando. . .
— Por isso mesmo — revidou o amigo, enco- A figura de Antonina penetrava-lhe agora os
recessos do coração. O valor e a humildade com dos noivos, ofereceram o lar para a cerimônia que,
que a nobre criatura afrontava os mais difíceis pro- no dia marcado, se realizou com o ato civil, na
blemas tocavam-lhe as fibras recônditas do ser. mais acentuada simplicidade.
O sacrifício permanente pelos filhos, realizado com Muitos companheiros de nosso plano acorreram
sincera alegria, o desprendimento natural das futi- à residência do ferroviário, inclusive as freiras de-
lidades que costumam cegar o sentimento feminino, sencarnadas que consagravam ao enfermeiro par-
a solidariedade humana com que sabia pautar as ticular estima.
relações com o próximo e, sobretudo, o caráter
cristalino de que dava provas em todos os lances A casa de Zulmira, enfeitada de rosas, regor-
gitava de gente amiga.
da vida comum, apareciam, naquele instante, em
sua imaginação, de modo diferente... A felicidade transparecia de todos os sem-
blantes .
Absorto, parecia contemplar as roseiras lá fora,
indiferente ao mundo exterior. A noite, na casinha singela de Antonina, reu-
niram-se quase todos os convidados, novamente.
Longos momentos passou, assim, revivendo e
meditando o passado. Os recém-casados queriam orar, em companhia
dos laços afetivos, agradecendo ao Senhor a ven-
Em seguida, como se despertasse de longa fuga tura daquele dia inolvidável.
mental, encarou o amigo frente a frente e con-
cordou: O telheiro humilde jazia repleto de entidades
afetuosas e iluminadas, inspirando entusiasmo e
— Amaro, tens razão. Não posso desobedecer esperança, júbilo e paz.
ao comando da vida.
Quem pudesse ver o pequeno lar, em toda a
Não puderam, contudo, prosseguir. sua expressão de espiritualidade superior, afirma-
A viúva e os filhinhos chegaram, felizes, pro- ria estar contemplando um risonho pombal de ale-
vocando a presença de Zulmira e Evelina que vie- gria e de luz.
ram à recepção, alegremente. Na salinha estreita e lotada, um velho tio da
Deixámos nossos amigos na doce algazarra da noiva levantou-se e dispôs-se à oração.
intimidade doméstica e voltámos ao nosso templo Clarêncio abeirou-se dele e afagou-lhe a cabe-
de serviço. ça que os anos haviam encanecido, e seus engelha-
Muitas indagações assaltavam-nos o pensamen- dos lábios, no abençoado calor da inspiração com
to, todavia, Clarêncio limitou-se a dizer: que o nosso orientador lhe envolvia a alma, pro-
— O tempo é como a onda. Flui e reflui. Da nunciaram comovente rogativa a Jesus, suplican-
nossa sementeira havemos de colher. do-lhe que os auxiliasse a todos na obediência aos
Transcorridos alguns dias, amigos espirituais seus divinos desígnios.
de Antonina trouxeram-nos as boas-novas do con- Lágrimas serenas velavam-nos o olhar.
trato promissor. Terminada a prece, Haroldo, Henrique e Lis-
Mário e a jovem viúva esperavam efetuar o bela, vestidos de branco, distribuíram licores e gu-
matrimônio em breves dias. loseimas .
Visitámos o futuro casal, diversas vezes, antes Emocionados, acercâmo-nos dos nubentes para
do enlace, que todos nós aguardávamos, contentes. as despedidas.
Amaro e Zulmira, reconhecidos aos gestos de Abraçando-os, vimos junto deles que Eveli-
amizade e carinho que recebiam constantemente na, no fulgor de súa primavera juvenil, aceitava
a proteção carinhosa de um rapaz que a fitava,
enamorado.
O Ministro sorriu e explicou-nos:
— Este é Lucas, irmão de Antonina, atual-
mente futuroso gráfico na capital paulista, cuja
bela formação espiritual associar-se-á, em breve, XXXDC
com a primogênita de Amaro, para a execução das
tarefas que a esperam no mundo. PONDERAÇÕES
Cortando-nos a possibilidade de excessivas in-
quirições, o instrutor acrescentou:
Decorrido um mês sobre os esponsais de Silva,
— Tudo é amor no caminho da vida. Apren- certa noite, por solicitação de Odila, fomos em
damos a usá-lo na glorificação do bem, com o nos- busca de Zulmira e Antonina para uma reunião
so próprio trabalho, e tudo será bênção. íntima, no Lar da Bênção.
Retirámo-nos, satisfeitos. Ambas,-'alegres, revelavam-se enlevadas fora
E porque o dever nos convocava a distância, do corpo denso.
seguimos à frente, tentando assimilar com o nosso
Enlaçadas e felizes, contemplavam a Terra e
abnegado orientador a preciosa conjugação do ver-
o céu, tocadas de sublime esperança.
bo servir.
Reduzida assembleia de amigos aguardava-nos
no domicílio de Blandina, em meio de cativantes
manifestações de carinho e de apreço.
Dentre todas as afeições presentes, sobreleva-
va-se Irmã Clara, que viera igualmente ter conosco.
As duas excursionistas, ao contacto daquele
ambiente de genuína fraternidade, rendiam-se ao
êxtase da paz e da alegria.
Afigurava-se-lhes haver encontrado o paraíso,
tão pura se lhes desenhava no semblante a exal-
tação interior.
No recinto amplo que Blandina adornara de
flores, permutavam-se frases amigas e consolado-
ras impressões.
Multiplicadas notas de beleza enriqueciam a
conversação, quando Antonina, mais lúcida que a
companheira, indagou pela razão do favor de que
se viam aquinhoadas.
O reconhecimento transbordava-lhes do cora-
ção, à maneira do perfume a evadir-se do frasco.
Clara afagou-a, de leve, e explicou, maternal-
mente :
— Filhas, em nossa romagem na vida, atra-
vessamos épocas de sementeira e fases de colheita. neno destruidor. Guardemos cautela. O preço da
Na missão da mulher, até agora, vocês receberam verdadeira paz reside no sacrifício de nossas exis-
do tempo os choques e os enigmas plantados a dis- tências . Não há sublimação sem renúncia no caste-
tância. Com a humildade e a fé, com o bom âni- lo da alma, como não há purificação no cadinho,
mo e o valor moral, venceram árduos conflitos que
sem o concurso do fogo que acrisola os m e t a i s ! . . .
lhes fustigavam as melhores aspirações. Foram dias
Clara fitou Antonina, de modo particular, e
obscuros do pretérito refletidos no presente, contu-
do, agora, asserenou-se-lhes a estrada. A paciên- aduziu:
cia a que se devotaram evitou a formação de nuvens — Filha, nossa Zulmira compreende hoje, sem
da revolta e o céu se fêz, de novo, claro e alen- necessidade de maior incursão no passado, o santo
tador. E' como se o dia renascesse, resplendente dever de asilar o pequeno Júlio no santuário ma-
de luz. O campo da existência exige mais trabalho terno . . .
e o tempo de semear ressurge alvissareiro. Percebemos que a instrutora, registando o im-
perativo do descanso mental para a segunda esposa
A palestra em torno cessara de repente. do ferroviário, que vinha de terminar longas re-
Os circunstantes buscavam ouvir a benfeitora, fregas na preservação da própria saúde, buscava
significando, com o silêncio, que nela se encarnava poupar-lhe exercícios mnemónicos.
para nós a sabedoria.
— Nossa amiga — prosseguiu, indicando Zul-
Depois de ligeiro intervalo, nossa amiga con- mira com o olhar — está consciente de que a ma-
tinuou : ternidade a espera de novo, em tempo b r e v e . . .
— Agora, que a oportunidade favorece a re- E você?
novação, é preciso saber reconstruir o destino. Não Com a irradiante bondade que habitualmente
olvidemos. A vida reduz-se a triste montão de tre- lhe marcava a expressão fisionômica, acentuou:
va, quando não se faz plena de trabalho. Fujamos — Recorda-se das experiências antigas e per-
à velha feira da lamentação onde a inércia vende manece atenta às razões que lhe inspiraram o se-
os seus frutos amargosos! Para levantar, porém, gundo matrimônio?
a escada de nossa ascensão, é imprescindível ba- Ante a surpresa que se estampou no semblante
nhar o espírito, cada dia, na fonte viva do amor, da interpelada, a. orientadora, num gesto que nos
do amor que recompensa a si mesmo com a ale- era conhecido, nas operações magnéticas de Cla-
gria de dar! O Pai Celeste é onipresente, através rêncio, acariciou-lhe a fronte, de leve, e repetiu:
do amor de que satura o Universo. O sentimento
— Lembre-se! lembre-se!...
divino é a corrente invisível em que se equilibram
os mundos e os seres. Do Trono Excelso nasce Bafejada pelo poder de Irmã Clara, em deter-
o eterno manancial que sustenta o anjo na altura minados centros da memória, Antonina fêz-se pá-
e alimenta o verme no abismo. A mulher é uma lida e exclamou, controlando a própria emoção:
taça em que o Todo-Sábio deita a água milagrosa — Sim, sou eu a cantora! Revejo, dentro de
do amor com mais intensidade, para que a vida mim, os quadros que se f o r a m ! . . . Os conflitos no
se engrandeça. Irmãs, sejamos fiéis ao mandato Paraguai!... Uma chácara em Luque!... a família
recebido. Em militas ocasiões, quando nos prende- ao abandono! José Esteves, hoje M á r i o . . . Sim,
mos à lama do egoísmo ou ao visco do ódio, po- percebo o sentido de minhas segundas núpcias!...
luímos o líquido sagrado, transformando-o em ve- Denotando aflição no olhar, acrescentou:
— E Leonardo? onde está Leonardo, o infeliz?
ENTRB A TERRA E O CEU 259

— Não precisa dilatar reminiscências — disse


Clara, bondosa — ; não nos achamos num gabinete líbrio e discernimento em todas as decisões... Para
de experimentos e sim numa reunião fraternal. desobrigar-nos da grande tarefa que a maternidade
Fitando-a significativamente, ajuntou: nos impõe, é imprescindível entender-lhes o psi-
— Basta que você se recorde. quismo diferente do nosso, a exigir, muitas vezes,
Em seguida, repartindo a atenção entre as um tipo de felicidade que não se harmoniza com
duas, prosseguiu: o nosso modo de ser. Saibamos, assim, prepará-los,
sem egoísmo, para o destino que lhes compete!
— Brevemente, vocês serão chamadas a novo O carinho escravizante assemelha-se a um mel en-
esforço, no apostolado materno. Zulmira recolherá venenado, enredando-nos na sombra. Conservemos
o nosso Júlio na concha do coração e você, Anto- nosso espírito arejado pela justiça, para que a nos-
nina, restituirá a Leonardo Pires, seu avô e asso- sa afetividade seja uma bênção com a possibilidade
ciado de destino, o tesouro do corpo terrestre. No de educar os que nos cercam, na escola do trabalho
santuário doméstico, as afeições transviadas se re- salutar!...
compõem, a fim de que possamos demandar o
futuro, ao clarão da felicidade. Filhas, ninguém Na pausa que surgiu, espontânea, Zulmira in-
avança sem saldar as próprias contas com o pas- dagou com simplicidade:
sado. Paguemos, desse modo, os débitos que nos — Abnegada benfeitora, como agir para solu-
aprisionam aos círculos inferiores da vida, aprovei- cionar os problemas com segurança?
tando o tempo de detenção no resgate, em maior — Vocês superaram dias alarmantes de crise
aprimoramento de nós mesmas. Amemos, aperfei- espiritual — informou a orientadora, prestimosa
çoando-nos! Identifiquemos no lar humano o cami- — e conquistaram o ensejo de reestruturação do
nho de nossa regeneração! A família consanguínea próprio destino. Agora, repitamos, é tempo de se-
na Terra é o microcosmo de obrigações salvadoras mear. Valorizemos a oportunidade de reaproxima-
em que nos habilitamos para o serviço à família ção. São vocês dois núcleos de força, suscetíveis
maior que se constitui da Humanidade inteira. O de operar valiosas transformações nos grupos do-
parente necessitado de tolerância e carinho repre- mésticos a que se ajustam. Façamos da amizade
senta o ponto difícil que nos cabe vencer, valen- o entendimento fraterno que tudo compreende e
do-nos dele para melhorar-nos em humildade e tolera, movimenta e ajuda, na extensão do Sumo
compreensão. Um pai incompreensivo, um esposo Bem. A vizinhança e a convivência, no fundo, são
áspero ou um filho de condução inquietante, sim- dons que o Senhor nos concede a benefício de nosso
bolizam linhas de luta benéfica, em que podemos próprio reajuste.
exercitar a paciência, a doçura e o devotamente Porque Zulmira e Antonina ensaiassem per-
até ao sacrifício!... Especialmente, no tocante aos guntas novas, Clara acentuou:
filhos, não nos esqueçamos de que pertencem a — Não temam. A prece é o fio invisível de
Deus e à vida, acima de t u d o ! . . . Na esfera carnal, nossa comunhão com o Plano Divino e, à luz da
a Providência Divina nos sela a memória, no favor oração, viveremos todos juntos. Em todas as dú-
do renascimento, envolvendo-nos com o sopro re- vidas, prefiramos para nós a renunciação constru-
novador de abençoada esperança! Por isso mesmo, tiva. Situar a responsabilidade de nosso lado é
não nos cabe olvidar que os filhos são sempre la- facilitar a solução dos problemas.
ços preciosos da existência, requisitando-nos equi- Sorridente, rematou:
— Não nos esqueçamos do privilégio de servir.
Logo após, o pequeno Júlio foi trazido ao re-
cinto por vasto cortejo de gárrulas crianças.
Risos e lágrimas se misturaram no louvor à
Bondade Divina.
Depois de algumas horas consagradas ao re-
conforto, escoltámos, de novo, as duas mães, recon-
duzindo-as ao campo físico para o sublime labor XL
no lar terrestre.
EM PRECE
Depois de um ano sobre o casamento de An-
tonina, dirigimo-nos todos juntos à residência do
ferroviário, na qual tantas vezes nos reuníramos
entre a prece e a expectação.
A vida marchara como sempre...
Júlio e Leonardo haviam renascido em paz,
quase que ao mesmo tempo, trazendo ao mundo
elevados programas de serviço. Recém-chegados à
Terra, sorriam ingenuamente para nós, conchega-
dos ao colo materno.
Amaro e Zulmira, Silva e Antonina, cônscios
das obrigações que haviam assumido, prosseguiam
juntos, entrelaçados na mesma compreensão fra-
ternal .
O singelo domicílio mostrava-se magnificamen-.
te florido, superlotado de amigos sorridentes.
- Lucas e Evelina celebravam os esponsais.
Nos dois planos, entre encarnados e desencar-
nados, tudo era esperança e alegria, paz e amor.
Os noivos fitavam-se venturosos e Odila, na
função de sacerdotisa do lar, ia e vinha, pondo e
dispondo na direção do acontecimento.
Entardecia, quando o juiz, com a felicidade de
todos, lido o contrato de matrimônio, pronunciou
o clássico «declaro-vos casados em nome da Lei».
Oscularam-se os nubentes com inexcedívél afe-
to e vimos espantados que Odila, em muda oração,
se transfigurava, coroando-se de luz. Desvelou os
olhos que se nos afiguraram mais lúcidos e con-
templou a filha, embevecidamente.
Obedecendo, porém, a secreto impulso, ao in-
vés de caminhar na direção de Evelina, dirigiu-se
para Zulmira, enlaçando-a em lágrimas. dos outros, no cultivo ãa paz, pelo esforço
Havia naquele gesto tanto carinho natural e no bem.
tanto reconhecimento espontâneo-, que intensa emo- Tu que consagraste a ventura ãoméstica,
tividade nos tomou de assalto. Transfundiam-se nas bodas ãe Caná, transforma a água viva
ali dois corações maternos, na mesma vibração de ãe nossos sentimentos em dons inefáveis ãe
paz, haurida na vitória interior pelo dever bem trabalho e alegria.
cumprido. Reflete o teu amor na simplicidade ãe nos-
Envolta na faixa de ternura em que se via sa existência, como o Sol se retrata no fio
mergulhada, a segunda esposa de Amaro começou ãágua humilde.
a chorar, possuída de inexprimível contentamento, Guia-nos, Mestre, para o teu coração que
como se inarticulada melodia do Céu lhe invadisse, anelamos eterno e soberano sobre os nossos
por inteiro, o coração. ãestinos, e que a tua bonãaãe comande a nos-
Ali mesmo, homem tocado de fé viva, o dono sa vida ê o nosso voto ardente, agora e para
da casa rogou a Antonina pronunciasse o agrade- sempre. Assim seja.
cimento a Jesus.
A esposa de Silva não vacilou. Calara-se Antonina.
Cerrando as pálpebras, parecia procurar-nos Doce exaltação emotiva pairava em todos os
em espírito, qual antena vibrátil, atraindo a onda semblantes.
sonora. Odila, sensibilizada, reunia Amaro e Zulmira
Clarêncio abeirou-se dela e, tocando-lhe a fron- nos braços, quais se lhe fossem filhos do coração.
te com a destra, entrou em meditação. Fitei a esposa de Silva, de quem o Ministro
Suavemente impulsionada pelo Ministro, nossa se afastara, e lembrei a noite em que lhe visitei
amiga orou com sentida inflexão de voz: o domicílio pela primeira vez.
Nunca me esqueci da excursão em que fomos
Amado Jesus, abençoa a nossa hora fes- designados para acompanhá-la em visitação ao fi-
tiva que te oferecemos em sinal ãe carinho e lhinho, quando ignorávamos totalmente a importân-
gratidão. cia de sua participação no drama que iríamos viver.
Ajuda aos nossos companheiros que hoje Dirigi-me ao instrutor e indaguei se ele, Cla-
se consorciam, convertendo-lhes a esperança rêncio, conhecia a posição de nossa amiga, ao tem-
em doce realidade. po de nosso primeiro contacto.
Ensina-nos, Senhor,, a receber no lar a — Sim, s i m . . . — respondeu, gentil —, mas
cartilha ãe luz que nos deste no mundo — não lhes dei a conhecer antecipadamente a signifi-
generosa escola ãe nossos corações para a vida
imortal. cação dela no romance vivo que estamos acompa-
nhando, porque todos nós, meu amigo, precisamos
Faze-nos compreender, no campo em que reconhecer que o trabalho é a nossa lição. Mova-
lutamos, a rica sementeira ãe renovação e fra- mos a mente no serviço que nos compete e adqui-
ternidade em que a todos nos cabe aprender
e servir. riremos a chave de todos os enigmas.
O apontamento era dos mais expressivos, mas
Que possamos, enfim, ser mais irmãos uns não pude delongar a conversação, de vez que Irmã
Clara, agora abraçada a Odila, convidava-nos ao mas que nos afligiam de perto, o Ministro abraçou-a
regresso.
e recomendou, paternal:
Entre adeuses caridosos, Lucas e Evelina ha- — Odila, enquanto celebramos tua vitória, dize
viam tomado o auto que os conduziria a experiên- que céu procuras!
cias novas na capital bandeirante.
A festa alcançara o f i m . . . Ela caminhou para Irmã Clara e osculou-lhe
a destra, num gesto mudo de reconhecimento e,
Ao lado de nosso orientador, perguntei, reve- depois, voltando-se para o nosso instrutor, respon-
rente:
deu com humildade:
— Nossa história terminará, assim, com um
casamento risonho, à moda de um filme bem aca- — Devotado benfeitor, meu lar terrestre é o
bado? meu paraíso...
Clarêncio estampou o sorriso de sua velha sa- — Mas não ignoras que o domicílio do mundo
bedoria e falou: não te pertence mais.
— Não, André. A história não acabou. O que — Sim — concordou a interlocutora, respei-
passou foi a crise que nos ofereceu motivo a tantas tosa —, sei disso, entretanto, desejo servir a ele,
lições. Nossos amigos, pelo esforço admirável com sem que ele seja m e u . . . Amo meu esposo por ines-
que se dedicaram ao reajuste, dispõem agora de quecível companheiro da vida eterna, abençoando
alguns anos de paz relativa, nos quais poderão re- a admirável mulher a quem ele agora pertence e
plantar o campo do destino. Entretanto, mais tar- que passei a querer por filha de minha ternura...
de, voltarão por aqui a dor e a prova, a enfermi- Amo meus filhos, apesar de saber que não podem
dade e a morte, conferindo o aproveitamento de presentemente sentir o calor de meu coração...
cada um. E' a luta aperfeiçoando a vida, até. que Deus sabe que hoje amo sem o propósito de ser
a nossa vida se harmonize, sem luta, com os Desíg- amada, que me proponho oferecer-me sem retri-
nios do Senhor. buição, a fim de aprender com Jesus a dar sem
receber...
O Ministro não logrou prosseguir.
Nossa caravana, constituída por dezenas de A emoção embargou-lhe a voz.
companheiros, iniciara a volta. De nosso lado, tínhamos nossos olhos mareja-
dos de pranto.
A viagem, diante do firmamento que acendia
flamejantes lumes, não podia ser mais b e l a . . . Visivelmente comovido, Clarêncio levantou-lhe
Chegados, porém, ao Lar da Bênção, notámos a fronte submissa, afagou-lhe os cabelos e, colo-
que Odila chorava copiosamente. cando-lhe uma flor de luz sobre o peito, exclamou:
Aquela alma varonil de mulher vencera a ba- — Onde permanece o nosso amor, aí fulgura
talha consigo mesma, no entanto, não parecia sa- o céu que sonhamos. Mereces o paraíso que pro-
tisfeita com o próprio triunfo. Clara conseguira- curas . Retorna, Odila, ao teu lar quando quiseres.
-Ihe brilhante posição de trabalho nas esferas mais Sê para o teu esposo e para as almas que o seguem
altas, contudo, nossa heroína revelava-se em penosa o astro de cada noite e a bênção de cada dia! O
consternação. amor puro outorga-te esse direito. Volta e a m a . . .
E, quando te ergueres do vale humano, teu coração
Penetrando o santuário de Blandina, onde tan- será como faixa de sol, trazendo ao Cristo os co-
tas vezes nos reuníramos para examinar os proble- rações que pastorearás no campo imenso da vida!
Odila ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos vene-
ráveis .
Nesse instante, funda saudade assomou-me à
alma opressa.
Experimentei a estranha sensação do pai que
busca inutilmente os filhos arrebatados ao seu ca-
rinho. Ave distante da paisagem que a vira nascer,
vi-me atormentado pelo anseio de recuperar, de
imediato, o meu n i n h o . . .
Lágrimas quentes derramavam-se de meu co-
ração pela concha dos olhos e, temendo perturbar
a harmonia reinante, demandei o jardim próximo SÉRIE «ANDRÉ LUIZ»
e, sozinho, fitei o firmamento, pintalgado de es-
trelas . . . I — Nosso Lar
O vento que soprava célere parecia dizer-me:
— «Confia!...» O perfume das flores, de passa- II — Os Mensageiros
gem por mim, apelava em silêncio: — «Não te de- m — Missionários da Luz
tenhas!» E as constelações faiscantes, pendendo da
Altura, davam-me a impressão de acenos da luz IV — Obreiros da Vida Eterna
eterna, concitando-me sem palavras: — «Luta e V — No Mundo Maior
aperfeiçoa-te! A plenitude do teu amor brilhará V I — Agenda Cristã
também um d i a ! . . . »
VII — Libertação
Então, numa prece de agradecimento ao Pai
Celestial, percebi que meu espírito pacificado sor- VIII — Entre a Terra e o Céu
ria, de novo, ao toque inefável de sublime espe-
rança. VENDAS PELO SERVIÇO DE
REEMBOLSO POSTAL
FIM
FRANCISCO CANDIDO XAVIER
FRANCISCO CANDIDO XAVIER
OS MENSAGEIROS
NOSSO LAR Esta obra, da famosa «Série
Já consagrada nos meios cultu- André Luiz», segue as mesmas
rais e espíritas do País, pelas pá- normas de «Nosso Lar». O Autor
espiritual, ex-médico patrício, re-
ginas sublimes e reveladoras que lata o afanoso trabalho dos Espí-
encerra, é a primeira obra da ex- ritos mensageiros do Bem, fazen-
traordinária coletânea de André do sobressair a figura do gene-
Luiz, obra que nos entreabre uma roso benfeitor Aniceto, , a quem
nesga do Infinito, deixando ver ele acompanhou até o ambiente
terráqueo, em excursão de novos
os surpreendentes panoramas que aprendizados.
nos aguardam após a morte do Em todas as situações de so-
corpo físico. corro aos necessitados, verifica-se
Para aquilatar-lhe o valor, bas- o quanto é importante o fator mo-
ral no quadro de serviço dos que
ta transcrever o que disse o P r o -
se consagram às atividades nobres
fessor Lorenz: «Tenho lido algu- da f é .
mas descrições dos planos astrais, Páginas de profunda emotivida-
em várias línguas; porém nenhu- de apresentam lições de inestimá-
ma tão clara e persuasiva, como vel importância para todos os es-
píritas e não espíritas, e por isso
o excelente NOSSO L A R . Graças
é que recomendamos insistente-
a Deus por tão abençoada luz!» mente a leitura desta obra.
FRANCISCO CANDIDO XAVIER

FRANCISCO CANDIDO XAVIER


OBREIROS DA VD3A
ETERNA
MISSIONÁRIOS DA LUZ
Nos baixos planos espirituais e
na crosta planetária, o Espírito André Luiz nos descreve, nos
de André Luiz acompanha abne- vinte capítulos deste seu excelente
gados obreiros no desempenho de livro, os mais diversos fenômenos,
dignificantes missões. Fatos dolo- desde a preparação, no Espaço,
rosos, e ao mesmo tempo emocio- do Espírito a reencarnar, a fe-
nantes, descerram-se a cada pági- cundação do óvulo, a gestação, o
na, quebrando as fantasias e as nascimento da Terra, até a sua,
quimeras que nos embalavam e volta para o Espaço, através do
mostrando a realidade viva a que fenômeno denominado morte, e,
não podemos fugir, na lei de cau- bem assim, todos os processos me-
sa e efeito. diúnicos, inclusive os da incorpo-
Materializações no Além, tem- ração e da psicografia, vistos, to-
pestades magnéticas para a depu- dos eles, do outro plano da vida,
ração do ambiente espiritual, ex- do Espaço. Obsessões, passes, ma-
cursões de auxílio aos sofredores terializações, todos os fenômenos
e revoltados, apreciações cientí- passam pela frente do leitor em
ficas sobre problemas diferentes, quadros tão vivos, tão reais, que
observações minuciosas quanto à nos dão a sensação de os estar
desencarnação, — são alguns dos presenciando.
pontos focados pelo admirável Au-
tor dessa obra-prima.
Ao público. apresen-
tamos, n a tradução
irrepreensível do Dr.
Guillon Ribeiro, a 4*
edição revista e cui-
FRANCISCO CANDIDO XAVIER dadosamente impressa
d a monumental obra
NO MUNDO MAIOR mediúnica:

André Luiz, nesta obra, tece in- OS QUATRO EVAN-


formações, comentários e revela- GELHOS
ções sobre um tema de magna im-
portância — a loucura. de
Com certo espírito científico, J. B. Eoustaing
mas numa exposição cativante e
acessível a qualquer inteligência Obra de estudo e me-
média, o ilustrado Autor estuda, ditação metódica dos
através de fatos concretos, que Evangelhos, avulta pe-
são verdadeiros dramas emocio- la sua grandiosidade e
nais, as causas que nos conduzem profundeza, encerran-
aos desequilíbrios mentais. do toda uma revelação
Capítulos como «A Casa Men- de verdades divinas.
tal», «Estudando o Cérebro», «No «Preciosa e sagra-
Santuário da Alma», «Sexo», «Es- da», no dizer de Be-
tranha enfermidade», «Psicose afe- zerra de Menezes, a
tiva», têm arrancado exclamações obra de Roustaing tem
de admiração de inúmeros médi- t u d o quanto é preci-
cos, devido aos seus interessan- so para recomendar-so
tíssimos ensinos reveladores que aos estudiosos do Es-
vêm clarear problemas ainda obs- piritismo Cristão.
curos à Medicina atual.
A matéria se distri-
bui em quatro grossos.'
volumes brochados, de
composição compacta,
c o m vários índices e
todos cheios de apoi*
tilas.
E. D'ESPÉRANCE

No País das Sombras


E' a empolgante história da vida da médium
inglesa Elisabete d'Espérance, que fielmente se auto-
biografa, narrando todos os escolhos, tropeços e
maravilhas que a sua mediunidade lhe proporcio-
nou desde a infância.
Os homens ilustres e os sábios que a estuda-
ram, em diferentes países, proclamaram-na como
uma das maiores médiuns de materialização, quiçá
o único que não caía em transe ou sono hipnótico
durante o processamento dos fenômenos.
A mundialmente famosa médium se revela pri-
morosa escritora, dona de um estilo corrente, ani-
mado, vigoroso, e os extraordinários fatos por ela
narrados, o são com clareza e simplicidade.
Leiam este livro e depois digam conosco : é ma-
ravilhoso!

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

Ave, .Cristo!
Extraordinário romance histórico do Espírito
de Emmanuel, repleto de lances dolorosos e como-
vedores, e que será lido com proveito e prazer por
todos os cristãos, mesmo pelos que não sejam ini-
ciados em Espiritismo.
O enredo se desenvolve no século III de nossa
era, em várias cidades do então já decadente Im-
pério Romano, tendo por fundo o quadro das per-
seguições ao Cristianismo, com seus heróicos már-
tires queimados ou chacinados pelas feras, nos
circos e anfiteatros.

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