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T HOMAS KEATfNG

'....

O Mistério
de Cristo
A LITURGIA COMO EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL

T RADUÇÃO

Milton Camar90 Mota

I
Título original:
Tire mysrery of Clrrist: tire lirurgy as spiritua/ experience
© 2001. The Continuum Publishin g Company. ew York, Y
ISBN 0-8264-0697-1

PREPARAÇÃO: Cario A. Bárbaro Sumário


D IAGRAMAÇÃO: Paula R. R. Cassan
Revisão: Maurício B. Leal

Prefácio .. ....... ... ... .. .. ... .. .. .... ..... ..... ... ..... ... .. ... 7
O poder do ritual - 9; Transmitindo o mistério de Cristo -
II ; As cinco presenças de Cristo na liwr9ia - I 8

1. O Mistério do Natal- Epifania ... .. .... . ... .... .... . ... ... 23
Edições Loyola
Rua 1822 n• 347 - lpiranga Introdução - 23; O Mistério do atai- Epifania - 26;
042 16-000 São Paulo. SP A anunciação - 29;A visitação - 37; atai - 41 ; Epifania
Caixa Po tal 42.335 - 042 18-970 - São Paulo. SP
(§) ( 11) 6914-1922 - 45; A importância das Bodas de Caná - 49
® (11) 6163-4275
2. O Mistério Páscoa- Ascensão ......... ..... ... . ... ........ 53
Home page e vendas: www.loyolacom.br
Editorial: loyola@loyola.com.br Introdução - 53;A quaresma e a condição humana - 54;As
Vendas: vendas@loyola.com.br tentações no deserto - 60; A cranefi9uração - 64; O filho
Todos os din!itos f't!sen·ados. Ne11/i11ma parte desta obra pode pródi90 - 68; Marta e Maria - 75; A unção em Betânia -
ser rt!prod11:ida 011 transmitida por qoolquer fomw e/011
qooisquer meios (eletr611ico ou mecânico. it1c/11i1rdo foux:6pio 78; O pai e eu somos um - 83;A paixão - 85; Pai, como eu,
e gravação} 011 orqufrodo em qoolquer sis1emo 011 banco de
dados sem P<'rmissõo escrito do Editora. teu filho, posso me tornar pecado? - 9 I; O sepultamento -
ISB : 85-15-030 12-8 93; A unção do corpo de Jesus - 96; As mulheres visitam o
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo. Brasil, 2005 sepulcro - 99; Maria de Afá9dala se encontra com o Cristo
ressuscitado - 104; a estrada para Emaús - 11 O; A apari-
ção no quarto de cima - 114; Cristo satiefaz as dúvidas de
Tomé - 11 8; Cristo aparece a seus ami9os no mar da Galiléia
- 122;A ascensão - 126

3. O mjstério do Pentecostes . ...... . ...... . .. . . . .... . .... . . 131


Introdução - 131 ; Afesta de Pentecostes - 132

4. Tempo Comum ........ . .... .. ...... . .. ... ... . .. . .... . ... .. 137
Introdução - 137; As bem-aventuranças - 138; Verdadeira
felicidade - 138; Um novo tipo de consciência - 144; Es- Prefácio
tender a mão - 147; Os oraus superiores de felicidade -
15 1;A bem-aventurança última - l 54;As parábolas - 157;
O reino de Deus - 157; Os talentos - 162; Incidentes do
ministério de j esus - 165; Pedro em Cefarnaum - 166; Faze-
te ao lar90 - 168; Pedro no la90 de Genesaré - 170; A mis-
são dos setenta e dois - 17 1

Apêndice 1 ... . ............................................. 179


E PIRITUALIDADE E A TEOLOGIA cristãs não podem
O Rosário - 179
ser separadas. Deus as uniu num laço indissolúvel.
Apêndice 2 .. . .... . ......... . .... . . ............ ....... .. .... 181 A liturgia reverencia e manifesta essa unidade vi-
A liwr9ia contemplativa - 18 1
tal . Ela se destina sobretudo a transmitir "a mente de Cristo"',
a consciência que Jesus manifestou da Realidade Última como
Abbá, o Deus da compaixão infinita. Abbá é, ao mesmo tempo,
totalmente transcendente e totalmente preocupado com a con-
dição humana. Se as pessoas que participam da liturgia têm
uma preparação e uma compreensão adequadas, essa experiên-
cia de Deus é transmitida numa intensidade crescente.
Essa transmissão pode ocorrer por uma apreensão do
Mistér io de Cristo, por uma infusão do amor divino, ou por

1. 1Cor 2, 16.

7
O Mistério de Cristo Prefácio

ambos ao mesmo tempo. Também pode ocorrer para além de como sacramenwm, é traduzida como "mistério" (mistério) ou
qualquer percepção psicológica, na escuridão e na imediação "sacramento" (sacramento). No contexto da liturgia, essas duas
da pura fé. Nesse caso, ficamos sabendo dela apenas mediante palavras são sinônimas e se referem a um sinal ou símbolo sa-
seus frutos em nossa vida. Seja qual for a maneira pela qual grado - pessoa, lugar ou coisa - de uma realidade espiritual
ocorre a transmissão do Mistério de Cristo, ele é sempre reco- que transcende tanto todos os sentidos como os conceitos ra-
nhecido como puro dom ou graça. No contexto do Mistério cionais que deles dependem.
de Cristo e de nossa participação nele, a graça é a presença e a Por exemplo, a vida histórica e a atividade de Jesus são
ação de Cristo não apenas nos sacramentos da Igreja e na ora- sinais da presença da Palavra Eterna de Deus, à qual sua humani-
ção, mas também na vida diária. dade estava indissoluvelmente ligada. O fato de realmente ter
A oração contemplativa é a preparação ideal para a liturgia. ocorrido essa união é o conteúdo fundamental da fé cristã. Co-
Esta , por sua vez, quando executada de maneira apropriada, mo ela ocorreu é o Mistério da Encarnação. Quando falamos
promove a oração contemplativa. Juntas, elas auxiliam o proces- dos "Mistérios" de Cristo, nós nos referimos a suas atividades
so de conversão a que o Evangelho nos chama. Elas nos fazem redentoras, especialmente sua paixão, morte e ressurreição, e
perceber que nós mesmos , como membros do Corpo de Cris- aos sacramentos que perpetuam suas atividades pelo ministério
to, somos a vanguarda da Nova Criação inaugurada pela ressur- da Igreja. Essas ações visíveis, verificáveis são sinais que contêm
reição e ascensão de Cristo. sua presen ça e sua ação aqui e agora. Quando ocorre a ação de
Nos retiros dos quais essas conferências fizeram parte, qua- Jesus Cristo, seja onde for, a vida de De us é transmitida.
tro a cinco horas do dia eram dedicadas à oração contemplativa,
seguindo o m étodo da oração de centramento. A oração con- Ü PODER DO RITUAL
templativa em comum é uma poderosa experiência aglutinadora,
assim como uma forma profunda de liturgia. A prática diária da Uma numerosa multidão seguia Jesus e o esmagava. Uma mu-
oração contemplativa, feita em comum ou privadamente, refina lher que sofria de hemorragias havia doze anos - ela sofrera
a capacidade de ouvir a palavra de Deus em níveis de atenção muito por causa de numerosos médicos e gastara tudo o que
possuía sem melhora alguma; pelo contrário, seu estado pio-
cada vez mais profundos e receptivos. Quando a palavra bíblica
rara - , esta mulher, pois, soubera o que se dizia de Jesus. Ela
de Deus e os ritos sacramentais abrem caminho até nossos senti-
aproximou-se por detrás dele na multidão e tocou-lhe a veste.
dos e nosso aparato reflexivo e penetram o nível intuitivo de Ela dizia consigo m esma : "Se eu conseguir tocar ao menos suas
nosso ser, as imensas energias do Espírito são liberadas, e nossa vestes, serei salva". Logo estancou-se-lhe a hemorragia e ela
consciência se transforma gradualmente na m ente de Cristo. percebeu em seu corpo que estava curada do seu mal. Imedia-
O significado dos termos no título deste livro talvez precise tamente Jesus percebeu que uma força saíra dele. Voltou-se para
de explicação. A palavra grega mysterion, traduzida para o latim a multidão e dizia: "Quem foi que tocou minhas vestes?"

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O Mistério de Cristo Prefácio

Seus disdpulos lhe diziam : "Tu vês a multidão que te compri- de de sua Presença. O ritual com o disciplina se destina a sensibi-
me e perguntas: ' Quem me tocou?'" Mas ele olhava em derre- lizar nossas faculdades para a sacralidade de toda a realidade.
dor para ver quem fizera aquiJo. Então a mulher, sabendo o Há uma variedade imensa de rituais no culto oficial da
que lhe sucedera, veio lançar-se temerosa e a tremer a seus Igreja. O Ano Litúrgico é o mais abrangente e profundo.
pés e lhe disse toda a verdade. Ele, porém , lhe disse: "Minha
O Ano Litúrgico concentra-se nas três grandes idéias teoló-
filha, a tua fé te salvou; vai em paz e fica curada do teu mal"
gicas que formam o cerne da revelação cristã: luz, vida e amor
(Me 5,28 -35).
divinos. Elas constituem o desdobramento gradual da graça, o
A mulher acometida por hemorragia era parte de uma compartilhamento gratuito da natureza de Deus conosco.
imensa multidão que esmagava Jesus enquanto ele tentava abrir Como foco primário da atividade divina, cada uma enfatiza
passagem. Esse incidente aponta o significado do ritual. Ri- um estágio ou aspecto especial da autocomunicação de Deus.
tuais são símbolos, gestos, palavras, lugares· e coisas que têm Todas essas idéias teológicas estão contidas de forma conden-
um significado sagrado. São a vestimenta de Deus, por assim sada em cada celebração da Eucaristia. No Ano Litúrgico, elas
dizer, e estão impregnados com o poder salvífico de Deus. Deus, são expandidas para ser estudadas e saboreadas uma a uma;
é claro, não usa r oupas. Jesus, seu filhó tornado humano, usa- assim podemos procurar e assimilar as riquezas contidas em
va. E assim, ao tocar a orla de suas vestes, a mulher é curada de cada uma. Esse maravilhoso arranjo aumenta o poder da Euca-
seu longo sofrimento. ristia de transmiti-las. A luz divina é então experimentada co-
Há uma fascinante analogia entre sua fé humilde e o que mo sabedoria, a vida divina como fortalecedora e o amor divi-
fazemos ao celebrar a liturgia. Quando a mulher tocou a veste, no como transformador.
emanou de Jesus um poder de cura. O poder de cura está saindo
de Cristo quando nos aproximamos dos rituais sagrados com fé ;
estamos batendo à po r-ta de seu poder de cura e manifestando a T RA SMIT I DO O M I ST ÉRI O DE CRI STO

m edida de nossa fé . Claro, rituais podem se tornar rotina.Tem os


No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o
então que nos esforçar para renovar a fé em seu poder de cura.
verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus. Tudo
Podemos também exagerar o ritual com a multiplicação se fez por m eio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito.
excessiva de ritos. Ornamentos em demasia ou em pouca quan- Nele estava a vida, a vida era a luz dos homens, e a luz brilha
tidade dificultam a transmissão do poder de cura inerente ao nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um ho-
uso ponderado do ritual. Os ritos sagrados, com o as vestes de mem enviado por Deus; o seu nome era João. Ele veio como
Jesu s, não têm poder por si mesm os. Eles apenas revestem a testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos
realidade oculta n eles. Para tocar Jesus não devemos evitar os cressem nele. Ele não era a luz, mas devia dar test emunho da
rituais ou tentar contorná-los, mas atravessá-los rumo à realida- luz.O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumi-

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O Mistério de Cristo Prefácio

na todo homem . Ele estava no mundo e, por ele, o mundo foi brevivência e segurança, afeição e estima, poder e controle
feito, e o mundo não o conheceu. Ele veio para o que era seu, obre a vida. Esses programas não podem funcionar na vida
e o seus não o acolheram . Mas aos que o receberam, aos que
adulta, embora todo mundo se empenhe em torná- los funcio-
crêem em seu nome, ele deu o poder de e tornarem fi lhos de
nais. A felicidade pode ser encontrada apenas na experiência
Deus. Esses não nasceram do sangue, nem de um querer de
de união com Deus, a experiência que também nos une às ou-
carne, nem de um querer de homem , mas de Deus. E o Verbo
tras pessoas na família humana e a toda a realidade.
se fez carne e habitou entre nós e nó vimos a ua glór ia; glória
es a que, Filho único cheio de graça e de verdade, ele tem da Esse retorno à unidade é a boa nova que a liturgia procla-
par tedo PaiUo 1, 1-14) . ma. Ela se aproxima de onde estamos. Abarca nosso ser com
todas as suas faculdades e potencialidades num compromisso
O Prólogo de João nos apresenta o p lano eterno de Deus
com o desenvolvimento pessoal e o desenvolvimento coletivo
em que Cristo ocupa posição central. O Verbo Eterno, o silên-
da familia humana, levando a estados superiores de consciên-
cio do Pai ganhando expressão plena, entrou no mundo e se
cia. A plenitude madura desse processo desenvolvimenta1 é o
manife tou como ser humano. Por causa de seu infinito poder,
que Paulo denomina pleroma. A liturgia é o veículo supremo
o Verbo Eterno incorporou a família humana inteira em sua
para transmitir a vida divina manifestada em Jesus Cristo, o
relação divina com o Pai.
ser divino-humano. Quando Jesus, por sua ressurreição e ascen-
Nó , que omos incompletos, confu os e crivados com as
ào, entrou em sua vida trans-histórica, a liturgia se tornou a
con eqüências do pecado original, constituímos a família huma-
extensão de sua humanidade no tempo. As comemorações do
na que o Filho de Deus assumiu . A confiança básica da mensa-
Ano Litúrgico são, por assim dizer, as vestes que tornam visí-
gem de Jesus é nos convidar para a ação divin a, que é o único
,·el a Realidade oculta mas transmitida em ritos sacramentais.
remédio para a difícil situação humana. Sem a experiência da
O Ano Litúrgico desenvolveu-se no curso dos primeiros
união divina, nós nos sentimos alienados de nós mesm os, de quatro séculos sob a influência da visão contemplativa do Evan-
Deus, da outras pessoas e do cosmo. Daí, procuram os sucedâ-
gelho vivenciada pelos Padres da Igreja. É um program a abran-
neos de felicidade, para a qual estamos predestinados mas que gente destinado a habilitar o povo cristão para assimilar as gra-
não sabemo como encontrar. ças especiais ligadas ao eventos principais da vida de Je us. O
Es a desorientada procura da felicidade é o estado huma- plano divino, de acordo com Paulo, é compartilhar conosco o
no que o Evangelho aborda. A primeira palavra que Jesus profe- conhecimento do Pai que per tence ao Verbo de Deus pela natu-
re quando entra em seu ministér io é "Arrependei-vos", que reza e ao homem Cristo Jesus que foi unido a esse Verbo. Essa
significa "mudai a direção em que estais procurando por felicida- consciência se cristaliza na notável expressão de Je us, Abbá,
de". A felicidade não pode ser encontrada nos programas molda- traduzida como "Pai". Abbá implica uma relação de rever ência,
dos na infância e baseados nas necessidades individuais de so- afeição e intimidade. A experiência pessoal de Deus como Abbá

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O Mistério de Cristo Prefácio

por parte de Jesus é o cerne do mistério transmitido pela li- ção da festa da coroação da estação. Percebemos o poder da
turgia . O Ano Litúrgico fornece o máximo de comunicação luz, da vida e do amor divinos quando esses grandes temas
dessa consciência. A cada ano ele fornece, revive e transmite o deixam de ser idéias meramente teológicas e se tornam nossa
alcance inteiro do Mistério de Cristo. À medida que o proces- experiência pessoal . É esse o propósito último da Liturgia. A
so continua ano após ano, como uma árvore acrescentando no- cada ano, o Ano Litúrgico fornece um curso completo em teo-
vos anéis a seu crescimento, nós cr escemos para a maturidade logia moral, dogmática, ascética e mística. Mais importante,
em Cristo. E a expansão de nossa experiência de fé individual ele nos capacita a viver a dimensão contemplativa do Evange-
manifesta a personaildade coletiva em desenvolvimento da Nova lho - a relação estável e madura com o Espírito de Deus que
Criação, chamada por Paulo de "Corpo de Cristo". O "Corpo nos permite agir habitualmente sob a inspiração dos dons do
de Cristo", ou simplesmente "o Cristo", é para Paulo o símbo- Espírito tanto na oração como na ação.
lo do desdobramento da familia de Cristo em consciência de O Ano Litúrgico é uma produção extraordinária, que abor-
Cristo, ou seja, na experiência da Reaildade Última como Abbá da todos os níveis de nosso ser ao mesmo tempo e incita nossa
por parte de Cristo. Cada um de nós, como células vivas no resposta. Os textos litúrgicos para as várias festas e estações
corpo de Cristo, contribui para esse plano cósmico por nosso são justapostos para trazer à luz a importância espiritual da
crescim ento na fé e no amor e pelo apoio dado ao mesmo cresci- vida, morte e ressurreição de Jesus. Na medida em que o Ano
mento nas outras pessoas. Daí o imenso valor da adoração cole- Litúrgico é um curso da instrução cristã, talvez um nome me-
tiva, do compartilhamento e da celebração da experiência do lhor para ele eja "Escritura aplicada", por causa de seu caráter
Mistério de Cristo numa comunidade de fé. eminentemente prático.
Todo o panorama dos mistérios da vida de Jesus é con- O Ano Litúrgico apresenta os eventos da vida de Jesus na
densado numa única celebração eucarística. O Ano Litúrgico forma de um drama. Ele os comemora de maneira similar a
distribui tudo o que está contido nessa única explosão de luz, um documentário. Um documentário retrata situações r eais e
de vida e de amor divinos, de modo que possamos assimilar assim nos envolve mais do que um drama.
mais facilmente a importância dessas idéias teológicas ao vi- A televisão oferece uma analogia fascinante para o modo
venciá-Las uma a uma. Na estação Natal- Epifania, o foco é a como a liturgia comemora o desenrolar da vida de Cristo como
idéia teológica da luz. a estação Páscoa, o foco é a idéia teo- eventos que estão ocorrendo aqui e agora. Por exemplo, a TV
lógica de vida. Na estação Pentecostes, o foco é a idéia teológi- apresenta notícias ou eventos esportivos ao vivo. Coisas que
ca do amor. Cada uma dessas idéias teológicas é comunicada estão ocorrendo no outro lado do mundo se tornam presentes
mediante um prolongado período de preparação que leva à em nossa sala. Uma celebração litúrgica não é um evento ao
celebração da festa principal. Cada grande t erna continua a ser vivo no sentido comum , pois Jesus não está mais entre nós; ela
desenvolvido nas festas subseqüentes, culminando na celebra- torna os eventos de sua vida presentes espiritualmente mediante

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O Mistério de Cristo Prefácio

a comunicação da graça vinculada a cada um deles e celebrada A érie de festas que e segue à celebração do Natal concre-
sacramentalmente. O que aconteceu vinte séculos atrás se pre- tiza sua profunda significação. A graça do Natal é de tal magnitu-
sentifica em nosso coração. Isso a televisão não pode fazer. de que não pode ser apreendida numa só explosão de luz. So-
Continuando essa analogia, a cobertura da televisão alter- mente a celebração da festa de coroação da Epifania revela tudo
0 que e tá contido na idéia teológica da luz divina.
na entre close-ups e tomadas de longa distância. Por exemplo, ao
O alcance inteiro do mistério de Cristo é vivenciado em
cobrir um evento esportivo, a câmara normalmente oferece uma
nÍ\'ei cada vez mais profundos de as imilação enquanto celebra-
visão panorâmica do estádio e então um dose, focando a ação do
mos a estações litúrgicas e suas divcr as festas ano a ano. A
desempenho de um único jogador. Depois retorna a uma toma-
liturgia não nos oferece um m ero assento nas arquibancadas
da de longa distância e vemos a agitação e a alegria da multidão.
de cobertas, nem mesmo na primeira fil eira. Somos convida-
Essa alternância lembra precisamente como a liturgia foca nos-
do a participar do próprio evento, a absorver seu significado
sa atenção na idéia teológica principal de cada estação litúrgica.
e relacionar-nos com Cri to em todos os níveis de seu ser como
Cada estação nos apresenta uma visão geral da idéia teológica
também de nos o próprio ser. Essa relação progressiva com
corrente, enquanto as festas particulares dentro da estação for-
Cristo é o principal impulso das estações litúrgicas e de sua
necem close-ups da ação de Jesus em nós e no mundo.
capacidade de envolver todas as nossas faculdades: vontade,
Por exemplo, o Mistério do Natal- Epifania começa com
intelecto, memória, imaginação, sentidos e corpo. A transmis-
a estação do Advento, um período estendido de preparação ão dessa relação pessoal com Cristo - e através dele com o
que culmina na festa do Natal. No Primeiro Domingo do Adven- Pai - é o que Paulo chama de mysterion, a palavra grega para
to, a câmera litúrgica nos dá uma ampla visão da vinda tríplice mistério ou sacramento, um signo externo que contém e comu-
de Cristo. Nos domingos seguintes, somos apresentados às três nica a realidade sagrada. A liturgia nos ensina e nos capacita,
figuras centrais do Advento : Maria, a Virgem Mãe do Salvador ; enquanto celebramos os mistérios de Cristo, a percebê-los não
João Batista, que apresentou Jesus aos que primeiro ouviram ó como evento históricos, mas como manifestações de Cris-
sua mensagem; e Isaías, que profetizou a vinda de Cristo com to aqui e agora. Por esse contato divino com Cristo, nós nos
extraordinária precisão setecentos anos antes do acontecimen- tornamos Ícone de Cri to, ou eja, manifestações do Evange-
to. As disposições e o comportamento deles tornaram-se mo- lho nas formas e cores cambiantes da vida diária.
delos vivos para imitarmos. Dessa maneira, a liturgia desper ta A consciência de Cristo nos é transmitida na liturgia de
em nós desejos similares àqueles dos profe tas que ansiaram acordo com nossa preparação. A melhor preparação para rece-
pela vinda do Me ias. Somos assim preparados para o nasci- ber essa transmissão é a prática regular da oração contemplativa,
mento e piritual de Je us por nos a participação no desdobra- que refina e aumenta nossa capacidade de ouvir e responder à
mento do Mistério do atai- Epifania. palavra de Deus nas Escrituras e na liturgia. O desejo de assimi-

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O Mistério de Cristo Prefácio

lar e ser assimilado na experiência que Cristo tem da Realidade momento-presente. É ne se entido que Cristo está pre ente
Última como Abbá também caracteriza a oração contemplativa . m todo o tempo - passado, presente e futuro. Está presente para
A liturgia é a maneira de De us, par excellence, de transmi- nó na medida em que estam os presentes para o momento pre-
tir a consciência de Cristo. É o lugar principal onde ela ocorre . ente. O momento presente transcende todo o tempo e ma-
Ela faz uso do ritual para preparar a mente e o coração do nife ta simultaneamente a eternidade no tempo cronológico.
celebrantes. Se o rnas devidamente pre parados, ela prende nos- O kairós é o momento em que a eternidade e nossa vida tem-
ª atenção em todos os níveis de no o ser, e a graça especial da poral e encontram . Na perspectiva do kairós, o tempo é tempo
festa é, de fato, comunicada. para cr escer e transformar-se, e também para a comunidade
cristã se espalhar no mundo e se tornar a pleroma, a plenitude
de tempo quando Cristo erá tudo em todos2 •
As Cl r co PRE El'\ÇA DE CRI TO NA LITUR GIA
O momento presente como um encontro com Cristo é
O s onze di d pulos e dirigiram à montanha na Galiléia con- celebrado de maneira especial em cada Eucaristia. Cada Eucaristia
forme a ordem de Jesus. Quando o viram , eles o adoraram, reúne todos os modos diferentes pelos quais Cristo está presen-
embora no inkio tivessem alimentado dúvidas. Jesus aproxi- te para nós em todo o desenvolvimento de nossa vida cronológica.
mou-se deles e Lhes dirigiu estas palavras: "Toda a autoridade A Eucaristia é a celebração do desenrolar de nosso período de
me foi dada no céu e sobre a terra. Ide, pois; de todas as nações ' i da cronológico até a plenitude da vida-de-Cristo em nós, e de
fazei discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do nosso potencial transcendente de nos tornarmos di'inos.
Espírito Santo, ensinando-as a guardar tudo o que vo orde- Toda vez que celebramos a Eucaristia, manifestam-se cin-
nei. Quanto a mim, eis que eu esto u convoco todos os dias, até co presenças distintas de Crist o 3 •
a consumação dos tempos" (Mt 28, 16-20).
A primeira presença de Cristo ocor re quando nos reuni-
Esse trecho é a incumbência que Jesus deu aos apóstolos mos em seu nome para adorar a ele e ao Pai que ele manifesta .
para levar sua doutrina e a experiência do Pai para todo o mundo Apenas por se reunfr para reconhecer o u adorar Cristo a co-
e para sempre. munidade cristã torna Cristo presente. Qualquer grupo reunido
Como notamos, a liturgia exprime o todo do Mistério de em seu nome se torna um centro da presença de Cristo: "Onde
Cristo na celebração de uma única Eucaristia. No Ano Litúrgico, do is o u três estiverem reunidos em meu nom e, eu estou no
os tesouros contidos numa só Eucaristia são separados de sua
profunda unidade e celebrados individualmente no curso de
2. Cl 3, 11.
um ciclo anual. Na liturgia, o tempo eterno penetra cada mo-
3. Cf. Walter ABBOT, SJ (ed .) , Constituição sobre a Liturgia
mento do tempo cronológico. Os valores et ernos que irrom- agrada, The Documents oJVatican li, para de crição das quatro pri -
pem no tempo cronológico são postos à nossa disposição no meiras presenças.

18 19
O Mistério de Cristo Prefácio

meio dele ". Es a verdade se manifesta em muita da apari- profundamente. O poder da proclamação do Evangelho de co-
ções de Jesu após sua ressurreição. Numa oca ião em que os municar a presença e a ação de Cristo exige que ela eja cercada
di cipulo estavam reunidos por medo da autoridades, com as por rituai de honra e pecial.
porta fechadas e trancadas, Je us apareceu repentinamente A terceira presença de Cristo ocorre durante a oração
em seu meio. De onde veio? Talvez tenha vindo direto do cen- eucari tica, em que a paixão, a morte e a ressurreição de Cristo
tro de seu coraçõe e se materializado em forma corporal. No e tornam presentes. Os elementos do pão e do vinho também
início, pensaram tratar-se de um fantasma e tiveram medo. representam a dádiva de nós mesmos. A consagração dessas dá-
Talvez tivessem ainda mais medo de que a autoridade tam- divas no corpo e sangue de Cristo significa nossa incorporação
bém pudessem entrar, já que Jesus pudera. Em todo caso, quan- como células individuais no corpo de Cristo, a Nova Criação da
do nos reunimos para a oração e entramo no lugar de adora- humanidade redimida que está gradualmente amadurecendo ao
ção, Jesus entra conosco em seu corpo glorificado, pronto para longo do tempo rumo à plenitude de Cristo, o pleroma.
inundar cada um de nós, de acordo com nossa abertura para A quarta presença de Cristo ocorre no serviço de comu-
ua vinda, com as riquezas da luz, da vida e do amor divinos. nhão. Nesse momento, os elementos consagrados pão e vinho
A segunda maneira pela qual Cristo está presente na Euca- ão apre entados para que cada um de nó os consuma, a fim
ristia é durante a proclamação do Evangelho. O leitores não são de que, por nos a vez, sejamos transformados no organismo
apenas comunicadores dos textos sagrados, mas do próprio Cris- maior do corpo de Cristo. O Espírito assimila-nos no corpo
to. Es e fato está admiravelmente exemplificado na história cris- de Cristo assim como assimilamos os elementos pão e vinho
tã. Muitas pessoas experimentaram um chamado direto de Cristo em nosso corpo material. A recepção da Eucaristia é, portan-
para um comprometimento total ao ouvir deter minado texto to, um compromisso de nos abrirmos ao processo de transfor-
evangélico proclamado na liturgia.As palavra do Evangelho têm mação em Cristo. Cristo, em sua natureza humana e divina,
poder para atingir o coração. Cada vez que se proclama o Evan- vem a nós na Eucaristia na Comunhão Sagrada não apenas por
gelho, o texto tem o potencial de comunicar o que o E pírito alguns minutos passageiros, mas para empre. Além disso, cada
está tentando nos dizer neste momento em no sa vida. Quando recepção da Eucaristia sustenta e aumenta a Presença que já
nos conectamos com essa mensagem, vivenciamo o que Paulo existe de recepções anteriores. A presença de Cristo que emer-
chama de "uma palavra de sabedoria". Uma palavra de abedoria gi u da comunidade, que foi proclamada no Evangelho e que se
não é apenas um dito sábio. É uma palavra que penetra nos o presentificou na oração eucarística entra agora em nosso cor -
coração de tal modo que temos interna consciência de que Deus po, nos a mente e nosso ser mais íntimos à medida que assimi-
está falando conosco. Gostemos disso ou não, sabemo que a lamo o Mi tério da Fé.
palavra de Deus, como uma espada, penetrou no so ser mais ote-se a e trutura ascendente de sas presenças. Cada uma
íntimo. Conforme o caso, ela nos enche de prazer ou nos desafia é mai sublime do que a anterior.

20 21
O Mistério de Cristo

Por maravilhosas que sejam essas dádivas da presença de


Crist o, elas ser vem apenas para nos despertar para a Presença
suprema, a Presença que já está presente. Embora essa Presen-
ça não seja especifi cam ente mencionada na Constituição sobre a
litur9ia sa9rada, ela parece pressuposta . Todos os sacramentos,
t oda oração, todo ritual destinam -se a nos despertar para nos-
1
sa natureza crística, da qual nós e todas as nossas faculdades
estão em ergindo em todo m om ento microcósmico. Jesus, ao
dar a incumbência aos apóstolos, parece falar dessa experiên-
O M istério do Natal- Epifan ia
cia: "Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos!" O Evange -
lho de Marcos exprime isso com m ais clareza: "Ide pelo mun-
do inteiro, proclamai o Evangelho a todas as criaturas" .
Esse texto se refere apenas ao m undo geográfico? Essa é a
inter pretação habitual, mas não esgota o profundo significado
do texto. Somos convidados ou, mais exatamente, recebemos
a ordem de ir para os mundos em expansão ciue se abrem para Zacarias, seu pai, ficou repleto do Espírito Santo e profetizou
nós à medida que passamos de um nível de fé para outro. É dizendo: "Bendi to seja o senhor, Deus de Israel, porque visitou
co mo se Jesus dissesse : "Saia dos limites estreitos de suas idéias o seu povo e realizou sua über tação . .. " (Lc 1,67-68)
preconcebidas e seus sistemas de valores pré-embalados! Pe-
A "Visitação" de Deus é a experiência da presença de Deus,
netre em todo nível possível da consciência humana! Entre na
o Grande Mistério q ue se deu a conhecer na Palavra encarna-
plenitude da união divina e, então, a partir dessa experiência,
da . Este é o sentido da celebração do Natal-Epifania.
pregue o Evangelho para todas as criaturas e as transforme pela
autorização ciue a união e unidade comigo instilará em você" .
O amo r divino nos faz apóstolos em nosso ser mais Ínti - I N TR O DU ÇÃO
mo. De lá vêm a presença e o exemplo irr esistíveis que podem
transformar o m undo. M ISTÉRIO DO NATAL- E PlFAl IA é a celebração da trans-

missão da luz divina. A estação litúrgica começa


com o Advento, um período de intensa prepara-
ção para compreender e aceitar as três vindas de Cristo. A pri-
meira é sua vinda histó rica na fraqueza humana e na manifesta-

22 23
O Mistério de Cri sto O Mistério do Natal-Epifan ia

ção de sua divindade ao mundo; a segunda é sua vinda e piri- Bati mo de Jesus, os acramentos do Batismo e da Confirma-
tual em nosso ser mais íntimo pela celebração Utúrgica do Mis- ção ão prefigurados e dados de antemão. Ele purifica seu povo
tério do Natal- Epifania; a terceira é sua vinda final no fim dos e o prepara para a união com ele.
tempos em sua humanidade glorificada. A união estabelecida entre Cristo e nós no Batism o e
a festa do Natal , a alegre expectativa exemplificada pela aprofundada pela Confümação é con umada na Eucaristia, o
Virgem Maria, por João Batista e Isaías - e compartilhada por acramento da união divina. A Eucaristia e seus efeitos transfor-
nós na Uturgia do Advento - cumpre-se. Cristo nasce de novo madores são prefigurados pela transformação de água em vi-
em nosso coração pelo aumento de sua luz em nós, e as conse- nho por Jesus nas bodas de Caná, enquanto a festa de casamen -
qüências de nossa união com ele começam a se desdobrar. to imboliza as alegrias da união divina, o fruto maduro das
Nas festas que se seguem, tudo o que está contido na explo- graça transformadoras do Pentecostes.
são de luz dhrina no Natal é gradualmente revelado, culminan - Eis um sumário da doutrina da liturgia no Mistério do
do na festa da Epifania, que é a festa de plenitude e coroação Natal- Epifania:
do Mistério do Natal- Epifania. À clara luz da Epifania, a fé na
divindade de Jesus e em nos a incorporação nele como mem- 1. A natureza humana se une ao Verbo Eterno, o Filho de
bros de seu corpo místico é a luz (nossa estrela guia) gue nos Deus, no Útero da Virgem Maria: Advento.
capacita a segui-lo e ser transformados nele. 2. O Verbo Eterno aparece em forma humana como a luz
Enquanto a idéia teológica da luz ainda predomina na fes- do mundo: Natal.
ta da Epifania, as idéias teológicas de luz e de amor divino
3. Ele manifesta sua divindade por ua humanidade : Epi -
também aparecem, apontando os grandes mistérios da Páscoa
fania.
e do Pentecostes ainda por vir. Experimentamos a antecipação
da graça vivificante da Páscoa e as graças transformadoras do 4. Por seu Batismo no Jordão, ele purifica a Igreja, a ex-
Pentecostes. A Uturgia comemora , juntamente com a vinda dos tensão de seu corpo no tempo, e santifica a águas do
Magos, dois outro evento que simbolizam as graças da Pás- Batismo : Epifania e o Domingo eguinte.
coa e do Pentecostes: o Batismo de Jesus no Jordão e a transfor-
5. Ele toma eu povo para si em casamento espiritual ,
mação da água em vinho na festa de bodas em Caná.
transformando-o em si mesmo : Epifania e o Segundo
Jesus buscou o batismo nas mãos de João não para ele
Domingo seguinte.
mesmo, mas para nós, os membros de seu corpo mí tico. Sua
descida às águas do Jordão prefigura ua paixão e morte, e sua 6. Aprendem os as conseqüências práticas de er membros
subida para fora do rio e a descida do Espírito prefiguram sua do corpo místico de Cristo : a Segunda Leitura para os
ressurreição e seu dom do Espírito no Pentecostes. Assim, no Domingos no Tempo Comum sub eqüente à Epifania.

24 25
O Mistério de Cristo O Mistério do Nata l- Epifania

Ü MI T É RIO DO NATAL- E PIFA IA liturgia, contanto que seja devidamente pre parado e que
a liturgia seja executada com sensibiHdade e reverência.
A palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no Cada estação ütúrgica tem um período de preparação que
deserto. Ele percorreu toda a região do Jo rdão, proclamando no di põe para a celebração da festa cümática. A festa do Na-
um batismo de com·ersão, com vistas ao perdão dos pecados tal é a primeira explosão de luz no de enrolar do Mistério do
como está escrito no LiHo dos oráculos do profeta Isaías: "Uma Natal- Epifania. Teologicam ente, o Natal é a revelação do Ver-
voz clama no deserto:' Preparai o caminho do enhor, endireitai bo Eterno que se fez carne. Mas é preciso tempo para celebrar
suas veredas"' (Lc 3, 2-4) 1 •
e penetrar tudo o que esse evento realmente contém e envol.-
O Advento é a celebração das três vindas de Cristo: sua ve. O máximo que podemos fazer na noite de Natal é arfar em
vinda na carne, que é o foco primário da festa de Natal; sua maravilhamento e regozjjo com os anjos e pastores que foram
vinda no fim dos tempos, que é um dos temas subjacentes do os primeiros a vivenciá- la. Os ruversos aspecto do Mistério
Advento; e sua vinda na graça, que é sua vinda espiritual em da luz di\rina são examinados um a um nos dias que se seguem
nos o coração pela celebração eucarística do mist ério do Na- ao Natal. A liturgia de embrulha com cuidado os maravilho os
tal- Epifania. tesouros contidos na explosão inicial de luz. Na verdade, não
Sua vinda na graça em seu nascim ento em nós enfatiza o apreendemo a importância toda do Mist ério até passar pelos
impulso primário da Liturgia, que é a transmissão da graça, não dois outro ciclos. À meruda que a luz ruvina fica mais bri-
apena a comemoração do evento hi t órico. A sim , a liturgia lhante, ela revela o que contém, ou seja, 'rida ruvina; e vida
comunica as graças comemoradas nas estações e festas litúrgicas. dfrina revela que a Realidade Última é amor.
Epifania é a festa de coroação do Natal. Tendemos a pen-
Essas giram em torno das três grandes idéias teológicas conti-
ar no Natal com o a festa maior, mas na reaüdade é apenas o
das na revelação de Jesus: luz, vida e am or dj vin os. Cada esta-
início. Ele desperta nosso apetite pelos tesouros que serão reve-
ção do ano litúrgico - Natal- Epifania, Páscoa- A censão, Pen-
lado nas fe tas eguintes. A grande iluminação do Mistério do
tecostes - salienta um aspecto particular do mi tério da sal-
atal- Epifanfa e dá quando percebemos que a luz ruvina mani-
vação, a autocomunicação gratuita de Deus. O restante do Ano
fe ta não apena que o Filho de Deus se tornou um er huma-
Litúrgico flui desses três temas principais e inve tiga suas im -
no , ma que somos incorporados como membros \rl\"OS em seu
plicaçõe práticas.
corpo. Es a é a graça especial da Epifanfa. Em vista de ua rugru-
O Ano Litúrgico se inicia com a idéia teológica da luz
dade e de seu poder ruvinos, o Filho de Deu reúne em si a
divina. E o que é essa luz? Você descobre dando atenção à
famíHa humana inteira, do passado, do presente e do futuro.
>.lo momento em que o Verbo Eterno é proferido fora do seio
1. Evangelho do Segundo Domingo do Advento. da Trindade e caminha para a condição humana, ele se doa para

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O Mistério de Cristo O Mistério do Nacal-Epifania

toda as criaturas. No ato da criação, Deus, em certo entido, ritual é levar-no à consciência de ua Pre ença interior e de
morre. Ele deixa de e tar sozinho e, em virtude de sua ativida- ua união conosco. A potencialidade para es a con ciência é
de criadora, envolve-se totalmente na aventura humana. Ele inata em nós por sermo humanos, ma ainda não a concretiza-
não pode ser indiferente. Qualquer teologia que opina que e le mo . Todas as trê vindas de Cristo e baseiam no fato de que
não se preocupa não é a revelação de Jesus. Pelo contrário, o e tamo em Deus e Deus e tá em nós; elas nos convidam a
ignificado da vida e da men agem de Jesus é que o Reino de evoluir de nossa limitação humana para a vida de Cristo. Cris-
Deus está "ao alcance da mão": o todo de Deus está agora à to veio, mas não inteiramente: es e é o estado allitivo do ho-
disposição de cada ser humano que o queira. mem. A conclu ão do Reino de Deus (pleroma) ocorrerá pela
A Epifania é, então, a manifestação de tudo o que está con- evolução gradual dos cristãos em direção da idade madura de
tido na luz do Natal; é o convite para nos tornarmos divinos. A Cr i to. Enquanto i o, todo er humano e toda instituição hu-
Epifania revela oca amento entre as naturezas divina e humana mana, por mais antas que sejam, são incompletos.
de Jesus Cristo. Também revela o chamado de Deus à Igreja (o Na luz do Mistério do atai- Epifania, percebemos que a
chamado a nós, é claro) para se transformar ao entrar no ca a- união com Cristo não é algum tipo de happy hour espiritual. É
mento espiritual com Cristo e e tornar totalm ente humana. uma luta com os poderes do mal que matou Jesus e que pode
A vinda de Cristo em nossa vida consciente é o fruto ma- nos matar se entramos em seu caminho. Como vivemos na con-
duro do Mfatério do Natal- Epifania. Pressupõe uma presença dição humana, a luz divina está constantemente sendo de afiada
de Cristo que já está em nós, esperando ser desp ertada. Isso por forças repressoras e regressivas em nós como indivíduos e
poderia ser chamado de quarta vinda de Cristo, mas não é uma dentro da sociedade, nenhuma das quais quer ouvir falar obre
'rinda no sentido estrito pai já está aqui. O Mistério do Na- amor, cer tamente não sobre amor abnegado. A mensagem evan-
tal- Epifania nos convida a tomar posse do que já é nos o. Como géüca do ser viço não é facilmente ouvida . Daí precisarmos apro-
formula Thomas Merton, devemos "nos tornar o que já so- fundar e alimentar nossa fé por uma liturgia que nos capacite
mos". O Mistério do Natal- Epifania, como a vinda de Cri to com a energia para continuar mostrando amor aconteça o que
em nossa vida, nos faz conscientes do fato de que ele já e tá acontecer. Esse poder nos é comunicado no Mi tério do Natal-
aqui como nosso verdadeiro eu - a realidade mais profunda Epifania de acordo com nossa capacidade receptiva atual.
em nós e em toda a outras pes oas. Já que Deus toma para si
a condição humana, todo mundo é potencialmente divino. Pela
A ANU CIAÇÀO
Encarnação de seu Filho, Deus inunda toda a família humana
- passada, presente e futura - com uas majestade, dignida- O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia
de e graça. Cristo habita em nós de maneira mist eriosa, mas chamada Nazaré, a uma jovem, prometida em casamento a um
real. O propó ito principal de toda liturgia, toda oração e todo homem chamado José, da família de David; e essa jovem se

28 29
O Mistério de Cristo O Mistério do Nata l-Epifania

chamava Maria . O anjo \'eio à presença dela e lhe disse: "Ale- gar pelas palavras de ataniel: "Será que pode air alguma coi-
gra-te, Ó tu que tens o favor de Deus, o Senhor está contigo". a boa de Nazaré?"3
A e tas palavras, ela ficou grandemente perturbada, e e per- Parece que Maria tinha sido chamada por Deus para se
guntava o que podia significar esta saudação. O anjo lhe disse: decücar a Ele mecüante um compromisso ceUbatário. Ao m es-
"Não temas, Maria, poi obtiveste graça junto a Deus. Eis que mo tempo, e la e tava na ambígua posição de ser "prometida
engra,;darás e darás à luz um filho, e lhe darás o nome de Jesus. em casame nto a um ho mem chamado José". Não conhecemos
Ele será grande e será chamado filho do Altís imo. O senhor o detalhes d essa relação ou o teor do acordo entre eles. O
Deus lhe dará o trono de David , seu pai ; ele reinará para sem- celibato era uma e colha rara naq ueles cüas, especialmente para
pre sobre a familia de Jacó, e o seu reino não terá fim". Maria uma mulher. O fato de Maria ser Üvre para mostrar inovação e
d.is e ao anjo : "Como se fará isso, visto que não tenho relações flexibi lidade a respe ito das expectativas p opulares d e seu tem-
conjugais?" O anjo lhe respondeu: "O Espírito Santo virá so- po e ambiente é uma incücação d e sua maturidade espiritual.
bre ti e o poder do Altíssimo te cobr irá com a sua sombra; e ua e colha da virgindade pressupõe urna convicção sobre o
por isso aquele que vai nascer será anto e será chamado filho que De us que ria que ela fizesse. Ela, ao que parece, per suacüu
de Deus. E eis que Elisabete, tua parenta, está também para Jo é a concordar com essa idéia. Segundo os costumes judai -
dar à luz um filho em sua velhice e já está em seu sexto mês, cos da época, e la já tinha o compromisso de ser sua mulher em
ela que era chamada estéril , pois nada é impossível a Deus". ,·irtude do noivado.
Maria disse então : "Eu sou a serva do enhor. Aconteça-me Então vem a visita-surpresa do m ensageiro de Deus. Como
segundo a tua palavra!" (Lc 1,26-38) 2 • muitas parábolas incücarão mais tarde, a ação de De us é impre-
"isível. As vezes, a surpresa é maravilhosa, como quando uma
O Advento é com o o te mpo d e gestação, e m que uma pessoa encontra um tesouro esconcüdo no campo. Em o utras
nova vida começa a se fazer conhecida . A luz do Natal cresce ocasiões, se Deus dá a conhecer alguma exigên cia ou desafio , a
em cada um de nós à mecüda que a estação do Advento progri- surpresa é e xperimen tada como o fun d o mundo de alguém
d e, manifestand o-se por clarões d e insi9ht que traze m suges- - seu p equeno ninho é estraçalhado. Esses eventos ocorrem
tões da luz deslumbrante do Mistério do atai- Epifania . regularmente na vida de Maria e José. Essa é apenas a prime ira
Maria é a figura chave no Advento. Nesse te xto o uvimos vez e m que Deus, sem ser convidado , se introm ete em sua
o anúncio pe lo Anjo Gabriel de sua futura maternidade. Pe lo vida e a põe d e pe rnas para o ar. A aceitação do que Jesus prega
que sabe mos, Maria era uma moça de 14 ou 15 anos, vivendo mais tarde como o reino (re inado) d e Deus implica a pronti-
numa cidade atrasada. Nazaré não tinha boa r eputação , a jul- d ão de permitir que Deus entre em nossa vida da maneira que

2. Evangelho do Quarto Domingo do Advento. 3. Jo 1,46.

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifania

lhe aprouver e a qualquer momento - incl usive agora. ão João Batista tinha arri cado sua integridade como profeta
amanhã, mas agora! O reino de Deu é o que acontece; e tar ao apontar Je us como o Messias, aquele que salvaria seu povo
aber to para o reino é estar preparado para aceitar o que aconte- do pecados. Depois da confrontação entre João e Salomé, ele
ce. 1 o não ignifica que compreendemos o que e tá acontecen- foi jogado na pri ão. Ele representa aquele que sofre por causa
do. A maioria das provações con iste em não sabermos o que da justiça e do amor. No confinamento solitário, separado de
e tá acontecendo. Se oubéssemos que estávamos cumprindo eu discípulos, ele pode ter caído em depressão. Começou a
a vontade de Deus, as provações não nos incomodariam tanto. ter dúvidas se teria apontado o homem certo. Jesus bebia e
Aqui Maria se confronta com um dos cenários farnritos comia com pecadores públicos. Nem ele nem seus cüscípulos
de D eus, que poderia ser chamado de cülema. Este não consis- ob er vavam os jejuns costumeiros. Jesus, que tinha feito ami-
te na escolha entre o que é obviam ente bom e o que é obvia- zade com prostitutas e coletores de impostos e encorajado o
mente mau - isso é uma tentação - mas em não saber o que
estilo de vida Üvre e fácil de seus discípulos, poderia ser real-
é bom e o que é mau. O cülema pode surgir em outra forma:
mente o Messias? João foi tentado a pensar: "Cometi um terrí-
não e pode decidir qual de dois bens aparentes é a vontade de
vel engano?" Aqui estava um homem perto do fim da vida, mas
Deu . Para uma consciência delicada, is o provoca profund o
pa ando pela pior crise que já precisara enfrentar.
problema. A perturbação vem de querermo fazer a vontade
Note-se a aflitiva encruzilhada. João tinha indicado Jesus
de Deus e não saber o que ela é. Em conseqüência cüsso, nos
como o Messias, mas Jesus não estava agindo como se esperava
entimo cü vicüdos entre duas cüreções. Dois bens aparentes
que agis e o Me sias. Então João enviou seus discípulos a Jesus
mas opostos exigem nossa total ade ão, e ambos parecem ser a
vontade de Deus. É freqüente pes oas em jornada espiritual se para perguntar: "És tu o Messias ou devemos esperar outro?" A
verem em tais dilemas, que podem se tornar ainda mais rigo- questão mostra toda a extensão do problema de consciência
rosos à med ida que a jornada pro segue. Esse é tipo de diJema que ele estava enfrentando. Ele deveria agora negar aquele que
que ocorre numa crise vocacional como "Devo entrar numa antes proclamara ser o Messias? Esta foi sua grande dúvida. Ele
ordem contemplativa? Tenho deveres para com as outras pes- não con eguia decidir que curso eguir. Então enviou eus dis-
soas que parecem ser importantes, mas sinto um forte chama- cípulo para questionar a própr ia pessoa em cuja identidade
do para a solidão". A atração para a solidão num ministério ele havia arr iscado sua missão profética - segundo uas pró-
ativo é uma dos diJemas clássico com que muitas vezes as pes- prias palavras, aquele "do qual não sou digno de, curvando-
oa em ministér ios ativos se deparam . lndivíduos em comuni- me, de atar-lhe as correias das sandáHas".
dades enclausuradas têm experiência oposta. a pre ença dos cüsdpulos de João, Je us operou vários
Eis outro exemplo que mostra como pode se tornar rigo- milagres que ele sabia que reconfortariam João, cumprindo a
ro a essa provação. profecia de 1 aías que fala do cego ganhando vi ão e do pobre

32 33
O Mistério de Cristo O Mistério do Natal- Epifania

ouvindo a pregação do Evangelho. Is o significou a re olução de \'Ocação, doença e morte são todas experiências que Deu
do dilema de João. u a para destruir suas idéias ou expectativa .
Por que João sofreu tão t errível dilema bem no fun da Quando estamos absolutamente certos de que Deus de-
vida? Às veze o dilema se destina a nos libertar do últimos eja duas coisas que parecem ser completamente oposta ,
vestígios de condicionamento cultural, incluindo no so condi- e tamo num di lema clássico. O próprio Jesus enfrentou o
cionamento cultural religioso. Os meios de que nece sitáva- maior dos dilema de todos no Jardim de Getsêmani. Pediu- e
mos na primeira parte de nossa jornada e piritual (mas dos a ele, o inocente, que recebe se o pecado por nossa cau a; pe-
quais podemos pa sara depender demais) são aos poucos re- diu-se a ele, que conheceu a bondade de Deus como nenhum
movidos. Uma das maneiras clássicas de removê-los é um dile- outro er humano conheceu ou poderá conhecer, que aceitasse
ma que nos força acre cer além dos limites de nossa cuJtura, o ine,·itável resultado de e identificar com nos os pecado , ou
das influências da tenra infância e de nos a formação religiosa eja, o entimento de total alienação de Deus.
inicial. Familia, valores étnicos e religiosos são importantes e
A experiência do dilema atingiu Maria, como vimos, aos
podem nos apoiar por certo tempo e em certo lugar na jorna-
cu 14 ou 15 anos. Ela havia armado um plano para sua vida
da espiritual, mas não no lugar da total liberdade que é a ambi-
de acordo com o que firm em ente acreditava era vontade de
ção de D eus para cada um de nós. Talvez fossem as idéias pre-
Deu . Então veio o Anjo Gabriel e lhe disse: "Deus quer que
concebidas de João sobre ascetismo que Deus queria demolir
eja a mãe do Me sias".
para libertá-lo, nos últimos dias de ua \ida, para aceitar a ,-in-
Maria ficou imensamente perturbada com a men agem
da de Deus em qualquer forma, incluindo pelo comer, pelo
do anjo. O pilares de toda a sua jornada e piritual foram aba-
beber e pela compaixão do verdadeiro Messias.
lados. Ela não podia entender como Deus a levara a acreditar
Jesus, pelos milagres que operou na pre ença do di cípu-
lo de João, disse portanto a João em resposta à sua questão: que Ele queria que fosse virgem , para depois receber a mcn a-
"Meu amigo , não cometeste um erro. Sou o Messias. Mas o gem: "Quero que ejas mãe". "Como se fará i so, vi to que não
Messias não se Limita a tuas idéia do que ele deve ser e de tenho relaçõe conjugais?", foi a respo ta de Maria.
como de,·e se comportar» . Notem a cautela de sas palanas. Ela não diz que não fará
1 so diluiu o dilema de João. Até mesmo pessoa antas i o, mas delicadamente levanta o problema de como pode er
podem se atolar em idéias preconcebidas ou sistemas de valo- feito, pois"não tenho (nem terei) relações conjugais". Em outras
res pré-embalado , difícei de abandonar. Elas podem ter for - palavras ela toma o dilema e re peito amente o coloca no colo
te exp ectativa re lativas a como Deus deve agir ou a como a de Deu . "Criaste o problema'', ela parece dizer, "por favor,
jornada e piritual e a oração devem e de enYoh-er. Guerra, r olvei-o. ão estou dizendo sim.Tampouco estou dizendo não.
perseguição, falência, perda de uma pessoa amada, mudança Por favor, dizei-me como es e problema deve ser resokido".

34 35
O Mistério do Natal-Epifania
O Mistério de Cristo

O anjo então explica: "O Espírito anto virá sobre ti". Em A V I I TAÇÀO

outra palavras, ua maternidade erá fora do curso normal da


aquele tempo, Maria partiu às pressas, rumo à região monta-
procriação. Ela será capaz de consentir is o porque Deu e t á nhosa, para uma cidade de Judá. Ela entrou na casa de Zacarias e
criando algo absolutamente inaudito na experiência humana: saudou Elisabete. Ora, quando Elisabete ouviu a saudação de Maria,
uma Mãe Virgem. a criança pulou em seu eio e Elisabete ficou repleta do Espírito
A notícia trazida pelo anjo e suas conseqüências rompe- Santo. Ela deu um grande grito e diss :"Tu és bendita mais do que
ram totalmente o planos de Maria para sua vida. Sua mãe logo todas as mulheres; bendito é também o fi-uto do teu ventre! Como
ficou sabendo de sua misteriosa gravidez. José ficou tão irrita- me é dado que ' 'enha a mim a mãe do meu Senhor? Poi quando a
do que cogitou abandoná-la. Em outras palavras, essa gravidez tua saudação ressoou aos meus ouvidos, eis que a criança saltou de
colocou sua Yida de pernas para o ar. Em vez de er uma moça alegria em meu eio. Bendita aquela que creu: o que lhe foi dito da
resp eitável, noiva de José, ela agora parecia ser alguém que parte do Senhor se cumprirá!" (Lc 1,39-45)4.

tinha se envolvido em relações pré-maritais. Ela passou a ser Observam os que Maria, após que tionar o anjo cuidado-
uma das muitas pessoas mal-afamadas em sua mal -afamada ci- amente, uperou seu dilema com um salto de confiança. Seu
dade. O mesmo Deus que a tinha inspirado a escolher uma di lema foi re olvido de maneira absolutamente inesperada: ela
vida celibatária tornou-a a mãe do Mes ias. e tornou Virgem e Mãe ao mesmo tempo, demonstrando que
Como seres humanos, não podemos presumir que Deus não existe dilema que Deus não possa resolver. Nem mesm o
fará algo que nunca foi feito antes (embora o anjo tenha dito: João Batista e Maria puderam escapar ao entusiasmo de D eus
"Nada é impossível a Deus"). Mas podemo estar certos de de fazê-lo mai santos ainda. As dificuldade dão a Deus a opor-
que, se permitirmos que as energias criativas do dilema façam tunidade para refinar e purificar nos a motivação, e a nó uma
seu trabalho, em algum momento nos veremos num estado oportunidade para realizar uma rendição maior.
superior de consciência. De repente, vamos perceber um novo Deus no prepara para a recepção de sua palavra da ma-
modo de ver toda a realidade. No o velho mundo chegará ao neira que um agricultor lavra o campo a fim de prepará- lo
fim. Uma nova relação com Deus, conosco e com outras pes- para a semente. A preparação de Deu é como um trator gra-
soas surgirá baseada no novo nível de compreensão, percepção dando a terra. Indo de um lado, ele ra ga o solo e o revolve;
e união com Deu que iniciamo . O dilema nos liberta para indo pelo lado oposto ele faz o mesmo ao entrecruzar o cam-
cre cer numa relação expandida com toda a realidade, come- po. Mas, por todo lugar que pas a, ele de enterra pedras, cada
çando por Deu . Durante o Advento, enquanto celebramo a uma endo uma possível destruidora da semente que virá.
vinda renovada da luz divina, recebemo encorajamento para
no abrir para a ,rinda de D u do modo que Ele e colher. E sa
4. Evangelho do Segundo Domingo do Te mpo Comum .
é a dispo ição que no abre completamente para a luz.
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36
O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifania

O Advento é um tempo de preparação. Deu preparou o ção pessoal como células vivas no corpo de Cristo. O momen-
olo do coração de Maria com graça incr ívei , culminando no to presente é o momento em que a eternidade (tempo ,·erti-

dilema que lhe permitiu alcançar um novo nível de auto-rendi- cal) irrompe em nossa vida. Assim, a vida ordinária, tal como
ção. A fim de gerar em seu corpo o Verbo de Deus, ela primei- é, contém o convite para e tornar divina.
ro teve de concebê-lo e gerá-lo espiritualmente. Quando ve- Maria nos mostra, pela vinda do Verbo Eterno a seu cor -
mos alguém realizando uma atividade virtuo a, isso pressupõe po, o que fazer com o tempo vertical. Assim que apreendemos
uma imensa preparação. Ele trouxe Maria até o ponto em que 0 fato de que o Verbo de Deus está vivo dentro de nós, percebe-
podia cumprir seu plano eterno. Ois e Paulo:"No tempo desig- mo que não estamos sozinhos. Somos habitados por Deus.
nado, Deus enviou seu filho, nascido de uma mulher". Deu está vivendo em nós não como estátua ou pintura, mas
A união de Maria com D eus era tão grande que ela foi capaz como energia pronta para dirigir todas as nossas ações momento
de trazer Deus ao mundo fisicamente. Todas as imagens do Anti- a momento. Daí a necessidade de uma disciplina de oração e
go Te tamente referentes à presença de Deu cristalizam-se ne- ação para nos sensibilizar para a energia divina que Paulo cha-
la. Tendo recebido o Verbo de Deus fisicamente em seu corpo, ma de E pírito ou pneu ma, que traduzimos como Deus.
Maria contribuiu , a partir de sua sub tância humana, para a for - Qual é a primeira resposta de Maria ao dom da maternida.:'
mação da nO\·a pessoa divino-humana. O nascim ento de Jesus de divina? Ela vai ver sua prima Elisabete, que, por acaso, está
foi também o advento de um novo aspecto do tempo. A palavra esperando um bebê e precisa de ajuda com tudo que uma ges-
grega para o "tempo designado" é kaiIÓs. O kairós é o tempo eter- tante faz quando se prepara para um bebê: faze r fraldas, pre-
no que irrompe no tempo cronológico, é um tempo vertical que parar o berço de vime, tricotar meias e toucas. Foi isso que ela
corta o tempo horizontal. Em resultado disso, todo o Mistério imaginou que Deus queria que fizesse. Nunca lhe ocorreu con-
de Cristo está inteiramente disponível a qualquer momento. tar a ninguém sobre seu incrível privilégio. Ela simplesmente
A liturgia celebra certos evento especiais a fim de nos fez o que fazia normalmente : foi servir alguém em necessida-
ensibiüzar para o fato de que todo momento é sagrado. O de. É isso o que a ação divina está sempre sugerindo: ajude
tempo é tempo para crescer, nada mais. O tempo é tempo alguém próximo, de uma maneira simples mas ,erática. Quan-
para tran formar todo os elemento da ,·ida de modo que do você aprende a amar mais, pode ajudar mai .
possamos manifestar Cristo em nosso tempo de vida cronoló- Maria não foi aconselhar Elisabete; não foi evangelizar Eli-
gico. O exemplo de Maria está aturado de ímbolos cati van- sabete; foi preparar as fraldas. lsso é a verdadeira religião : ma-
te para nos despertar para a apropriada resposta humana ao nifestar Deus de uma forma apropriada no momento presente.
Verbo Eterno, que entra no tempo cronológico e o transfor- O anjo havia dito que Eüsabete logo teria um bebê. Maria disse:
ma . O pleroma ou "plenitude do tempo" de que fa la Paulo, em ""É mesmo? Ela deve precisar de ajuda; irei imediatamente.... Ela
que Cristo ser á "tudo em todos", depende de nossa contribui- partiu "às pressas", manifestando sua avidez em servir sem pen-

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifania

sar em sua própria condição, incluindo, presumo, o que José Os primeiros cristãos parecem ter tomado a evangelização
ou sua mãe estavam pensando sobre sua gravidez inesperada. num sentido muito Üteral , pregando a palavra de Deus como
Maria entrou na casa de EUsabete e a cumprimentou . A e fosse um fim em si m esmo. Como eram santos, sua prega-
Presença que ela carregava dentro de si foi transmitida para Eü- ção teve grande efeito, mas não um efeito tão grande quanto o
sabete pelo som de sua voz. Em resposta, o bebê no útero de te temunho dos mártires de sangue e, mais tarde , dos mártires
Elisabete pulou de alegria; ele foi santificado pelo modesto cum- de consciência . O essencial se quer emos difundir o Evangelho
primento de Maria. As maiores obras de Deus ocorrem sem que é a transformação de nossa própria consciência. Se isso aconte-
façamos nada de espetacular. São quase efeitos colaterais de fa- ce, e na medida em que acontece, as ações usuais se tornam
zermos as coisas comuns que devemos fazer. Se você for trans- eficazes em comunicar o Mistério de Cristo para quem quer
formado , todos em sua vida também serão. Em certo sentido, que entre em nossa vida.
criamo o mundo em que vivemos. Se você derramar amor em Uma pessoa santificada é como uma estação de rádio o u
todo lugar aonde vai, esse amor começará a retornar; não pode TV em'iando sinais. Quem tiver o aparato r eceptivo apropria-
ser de outro modo. Quanto mais damos, mais recebemos. do poderá receber a transmissão. O que Maria nos ensina com
Seguindo o exemplo de Maria, a prática fundamental para ua visita a Eüsabete é que o som de sua voz despertou o poten-
curar as feridas do sistema do falso eu é cumprir os deveres de cial transcendente em outra pessoa sem ela dizer nada. Ela era
nosso trabalho na vida. Isso inclui ajudar as pessoas que con- implesm ente Maria, a Arca da Aliança, ou seja, aquela em que
tam conosco. Se a oração atrapalha , há algum mal -entendido. Deu estava habitando. Assim , quando Maria a saudou, a crian-
Algumas pessoas devotas pensam que, se suas atividades em ça no ventre de Elisabete pulo u de alegria. Sua potencialidade
casa ou no trabalho atrapalham o caminho da oração, há algo divina foi totalmente despertada. E a de Eüsabete também.
de errado com suas atividades. Pelo contrário: há algo de erra- Ela foi preenchida pelo Espírito Santo. Esse é o tipo mais subü -
do com a oração delas. me de comunicação. Transmissão não é pregação como tal. A
A oração contemplativa nos permite ver os tesouros da transmissão é a capacidade de despertar em outras pessoas a
santificação e as oportunidades de crescimento espiritual pre- pró pria potenciaüdade delas para se tornar divinas.
sentes todos os dias na vida ordinária. Se alguém é realmente
transformado, pode andar pela rua, beber uma xícara de chá
ATAL
ou apertar a mão de alguém e derramar vida divina no mundo.
o cristianismo, motivação é tudo. Quando o amor de Cristo No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o
é a principal motivação, as ações usuais transmitem amor divi- Verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus. Tudo
no. Esse é o testemunho cristão fundamental; é evangelização se fez por meio dele; e sem ele nada se fez do gue foi feito.
em sua forma primária. ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifania

nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um ho- Sarx se refere à condição humana fechada em si mesma,
mem em;ado por Deus; o seu no me era João. Ele veio como decaída, e não intere sada em se elevar. É a condição humana
testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos
comprometida com a obrevivência biológica para seu próprio
cres em nele. Ele não era a luz, mas devia dar testemunho da
benefício e o do clã, tribo, nação ou raça.
luz. O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, Üumi -
O termo grego soma se refere ao corpo enquanto ele se
na todo homem. Ele estava no mundo e, por ele, o mundo foi
feito, e o mundo não o conheceu . Ele veio para o que era seu,
abre para a evolução: é a condição humana aberta para o desen-
e os seus não o acolheram. Mas aos que o receberam, aos que volvimento. "O Verbo se fez carne" significa que, ao tomar o-
crêem em seu nome, ele deu o poder de se tornarem filhos de bre si a condição humana com todas as suas conseqüência ,
Deu . Esses não nasceram do sangue, nem de um querer de Je us injetou em toda a famíüa humana o princípio de trans-
carne, nem de um querer de homem, mas de Deus. E o Verbo cendência, dando ao proces o evolucionário um impulso decisi-
se fez carne e habitou entre nós e nós vimos a sua glória; glória ''º rumo à consciência de Deus.
essa que, Filho Único cheio de graça e de \·erdade, ele tem da Na Epístola aos Romanos, Adão é o símbolo da soüdarieda-
parte do Pai Oo 1,1 -14). de na carne (sarx). Todos com partilham a sarx de Adão, formando
A festa do Natal é a celebração da luz divina irrompendo com ele uma personalidade coletiva. Cristo, assumindo a condi-
na consciência humana. Essa luz é de um brilho tal que, à pri - ção humana exatamente como ela é, vai até uas raízes e se
meira vista, é impossível apreender todo o seu significado. Só torna a fonte de uma nova personalidade coletiva aberta à
uma percepção intuitiva como a dos pastores pode desfrutá-la. transcendência. O Espírito, o princípio da transcendência, über-
Mais tarde, quando nossos olhos se ajustam à luz, percebemos ta a condição humana (sarx) para o movimento em ·direção da
ao poucos tudo que está contido ne se Mistério, cuJminando no,·a per a nalidade coletiva que Paulo chama de Corpo de Cris-
na festa de coroação da Epifania, a manifestação do divino no to. 1ossa participação no Corpo de Cristo tem urna significa-
Bebê de Belém. ção coletiva e cósmica. Dizer "não"a essa participação é o signi-
Vamos tentar apreender o significado do Verbo que e fez ficado primário do pecado no Novo Testamento. É a escolha de
carne. A palavra do Novo Testamento para carne é sarx. Sarx sig- permanecer apenas carne (sarx), ou eja, de ser dominado pe-
nifica a condição humana - o níveis incompletos, não-evoluí- los programas autocentrados de feücidade. É resolver sair do
dos, imaturos da consciência humana. Significa natureza humana plano divino para a transformação da consciência humana na
em sua sujeição à pecaminosidade. Jesus não assunúu simples- con ciência de Cristo. Essa transformação é o próprio Natal. É
mente um corpo e uma alma humanos; assumiu a condição hu- o processo de crescimento que o Evangelho inaugura e ao qual
mana real em sua inteireza, incluindo as necessidades instintivas omos chamados. A natureza humana autocentrada busca cami-
da natureza humana e o condicionamento cultural de seu tempo. nhos cada vez melhore para permanecer tal como é, porque

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifania

is o parece garantir sua sobre,·ivência. Mas escolher o status divina está di ponível. Agora é o tempo de se arriscar acre cer
quo é optar pela solidariedade com Adão e rejeitar "o Cristo". mai . Continuar crescendo é estar na vanguarda da evolução
"Mas aos que o receberam, ele deu o poder de e torna- humana e da jornada espiritual. A ação divina pode pôr nossa
rem filho de Deus", ou seja, de conhecer sua Fonte divina . ,,ida de pernas para o ar; pode nos chamar para várias formas
E e é o Mistério do Verbo que se fez carne. Carne não signifi- de erviço. A prontidão para toda eventualidade é a atitude de
ca implesmente pele e ossos; significa o valores mundano quem entrou na liberdade do Evangelho. O compromisso com
de programas autocentrados de felicidade mantidos firmemente o novo mundo que Cristo está criando - a nova personalida-
no lugar por hábitos conscientes ou inconscientes ou por su- de coletiva da humanidade redimida - exige fl exibilidade e
peridentificação com a familia, a tribo ou a nação. Cristo, ao se desapego: a prontidão para ir a qualquer lugar ou a lugar ne-
juntar à família humana, sujeitou- e às conseqüência da carne nhum, para morrer ou viver, para descansar ou trabalhar, para
e ao mesmo tempo a introduziu no princípio de redenção de e tar doente ou saudável, para assumir um ser viço e largar ou-
todos os níveis pré-racionais de con ciência. osso próprio tro.Tudo é importante quando estamos nos abrindo para a cons-
de envolvimento em estados superiore de consciência é a van- ciência de Cristo. Essa consciência transforma no sos concei-
guarda da per onalidade coletiva do Cristo, o desenrolar gra- to mundanos de egurança na segurança de aceitar, pelo amor
dual do novo Adão no tempo. Todo ato motivado por e a vi ão de Deus, um futuro desconhecido. A maior segurança é assu-
- toda cura do corpo, da alma e do mal social - está contri- mir e e risco. Tudo o mais é perigoso.
buindo para o crescimento do Corpo de Cristo e, daí, para o A luz do Natal é uma explosão de insioht que modifica toda
pleroma. 1 o ocorrerá quando indivíduos suficiente entrarem a no sa idéia de Deus. Nossas maneiras infantis de pensar em
na consciência de Cristo e a tornarem sua . Deu são deixadas para trás. Quando voltamos nossos olhos en-
A alegria do Natal é a int:Wção de que todas as limitações cantado para o Bebê na manjedoura, nosso er mais intimo se
ao crescimento para estados superiores de consciência foram abre para a nova consciência que o Bebê trouxe a este mundo.
superadas. A luz divina atravessa tudo: e curidão, preconceito,
idéias preconcebidas, valores pré-embalados, falsas expectati-
EPIFA I IA
,.a , mentira e hipocrisia . Ela no apresenta a verdade. Agir
pela verdade é fazer Cristo crescer não só em nó mesm os, O primeiro texto recorda a manife tação de Je u em ua
ma nos outros. Assim , os deveres e evento rotineiro da vida Pe oa divina aos gentios:
diária se tornam sacramentais, embebidos de implicações eter-
A e ta palavras do rei, eles e pu eram a caminho, e ei que o
nas. É o que celebramos na liturgia. O kairós, "o tempo designa-
a tro que tinham ,; to no O riente ª''ançava à ·ua frente até
do", é a9ora. De acordo com Paulo, "O tempo da salvação é parar em cima do lugar onde e tava o menino. À ''i ta do astro,
agora", ou eja, agora é o tempo em que toda a misericórdia cntiram uma alegria muito grande. Entrando na ca a, viram o

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal- Epifania

menino com Maria, sua mãe, e pro trando-se prestaram-lhe E as três leituras fazem parte da celebração da Epifania,
homenagem; abrindo seus escrínio , ofereceram-lhe por pre- a fc ta de coroação do Mistério do atal- Epifania e a plena
sente ouro, incen o e mirra (Mt 2,9- 12). revelação de tudo o que a luz do Natal contém . A manifestação
O segundo recorda a manjfestação de Jesus em ua Pessoa de Jesus em sua divindade aos gentios, nas pessoa dos mago ,
é uplementada por dois outros eventos que ão manife tações
di\ina aos judeus no rio Jordão:
da natureza divina de Jesus de um período posterior em sua
Ora, naqueles dias , Jesus veio de Nazaré na Galiléia e fez- e
vida. A liturgia é, primordialmente, uma parábola do que a
batizar por João no Jordão. o momento em que ele subia da
graça está realizando agora; ela não leva em conta considera-
água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito como uma pomba
çõe históricas e ju tapõe t extos para apresentar a significação
descer sobre i. E dos céus veio uma voz: "Tu é meu filho
ublime do que está sendo transmitido de uma maneira invisí-
bem-amado, aprouve-me escolher-te" (Me 1,9- 1 1) .
vel pelos signos vi Ívei .
O terceiro recorda a manifestação de Jesu em sua Pe oa O primeiro texto descreve as manifestações da divindade
dfrina a seus di d pulos nas bodas de Caná. de Je u aos magos. Eles vinham dos confins do mundo e são
Ora, no terceiro dia, houve núpcias em Caná da Galiléia, e a ímbolos perenes dos que buscam genuinamente a verdade.
mãe de Jesus estava lá. Jesus também foi com·idado às núpcias, O Batismo de Je us no Jo rdão e as bodas de Caná são in-
como também os seus disópulo . Como falta se vinho, a mãe corporados à celebração a fim de expandir a persp ectiva da
de Jesus lhe dis e: "Eles não têm vinho". Mas Jesus lhe respon- qual per cebem os a divindade de Jesus. O Batismo de Jesus po r
deu: "Que queres de mim, mulher? A minha hora ainda não João representa a manifestação da divindade de Jesus aos ju-
chegou". ua mãe disse aos que serviam: "Fazei tudo o que ele deu , o mo mento em que Jesus entrou por completo em ua
vos disser". Havia lá seis talhas de pedra destinadas às purifica- mi ão para a salvação da familia humana. eu Batismo no Jordão
ções dos judeus; ela continham cada uma duas ou três medi- é um antegozo das graça da Páscoa e do Pentecost es, em que
das. Jesus di se a eles: "Enchei de água e as talhas"; e ele en-
celebramos os Mistérios da vida e d o amor divinos. A de cida
cheram-nas até a borda. Je u lhe di e: "Agora tirai um pouco
de Je u às águas do Jo rdão antecipa sua de cida aos sofrimen-
e levai ao mordomo". Eles a levaram e ele prO\'OUa água conver-
to de sua paixão e morte; ua saída do Jo rdão simboliza ua
tida em vinho - ele não abia de onde aquilo ,;nha, ao contrá-
re urreição; e a descida da Pomba prefigu ra o derramamento
rio dos que erviam e que tiraram a água - ; por is o ele se
do Espírito Santo no Pentecostes.
dirigiu ao recém-casado e disse: "Todo mundo oferece primei-
ro o bom vinho e, quando o convivas já estão alegre , faz er- Toda a água foi antificada po r seu contato com o corpo
vir o meno bom . Mas tu guardaste o bom vinho até agora!"Tal de Je us no Jordão. Al ém di so, cada gota de água no unfrerso,
foi, em Caná da Galiléia, o início do inais de Je u . Ele mani- cm vi rtude do Bati mo de Jesus, tornou-se um veículo da gra-
festou a ua glória, e eus di ópulo creram nele Uo 2, 1-12). ça. Todo tipo de aflição, imboüzado pela água do Jordão,

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O Mistério de Crisco O Mistério do Nata l- Epifania

tornou-se um veículo da graça. Até mesmo o sofrimento, que mordomo disse ao jovem: "Tu guardaste o bom vinho até ago-
é conseqüência direta do pecado, tornou-se uma fonte inexau- ra". E se é o vinho do Espírito que alegra o coração de todos
rível de graça. Isso não significa que o sofrimento é um fim em que dele bebem .
si mesmo, mas que tem de ser aceito, atravessado e transcendi-
do. É o toque - a presença - de Jesus que transforma o
A IMPORTÂ C IA DA B ODA DE C A Á
ofrimento num veículo de santificação.
O terceiro texto de creve as bodas de Caná, em que Je us A Epifarua , como celebração do casamento do Filho de
marufestou sua divindade aos cüsdpulos. Deu com a natureza humana, revela a mais profunda importân-
A Epifarua celebra o casamento, por assim dizer, entre a cia do Verbo Eterno que se torna um ser humano. Além disso,
Igreja e Cristo; nós, claro, somos a Igreja. Desse modo, a festa é nosso chamado pessoal não apenas para a rencüção à fé, mas
de casamento é um ímbolo da celebração das núpcias C:Üvinas
para a transformação em vida e amor C:Üvinos. A fe ta de casa-
na alma dos que experimentaram a luz, a vida e o amor C:Üvinos
mento, ocorrendo numa cidadezinha afastada, torna-se o símbo-
que essa luz contém. O novo vinho é o princípio transcenden-
lo do mais fantástico evento na história humana, o exemplo
te que Cristo trouxe para o mundo ao assumir em si a natureza
mai impressionante de como o t empo eterno entra no tempo
humana . A família humana inteira é absorvida nessa nova vida,
cronológico e o tran forma. O que acontece quando o vinho
que foi inserida de uma vez por todas no coração de Deus pela
começa a acabar e os noivos correm risco de constrangimento
Encarnação e pelo trabalho redentor de Jesus. O novo vinho é
torna-se um evento cósmico. O que Jesus faz na festa de casa-
a men agem do Evangelho, uma mensagem que anuncia que
mento é o símbolo do que ele realizará mais tarde por sua pai-
esse processo está ocorrendo. Essa é a melhor notícia que ja-
xão, morte e ressurreição. A água estocada nas jarras é símbo-
mais houve! A família humana tornou-se C:Üvina! Pelo Batismo,
lo do velho Adão, da solidariedade na incompletude e no peca-
aceitamos nosso convite pessoal e, ao lutar com o sistema do
do humanos. Jesus pega e sa água e a transforma em vinho -
falso eu, gradualmente entramo na câmara nupcial - a cons-
ciência permanente, pela fé , de nossa união com Cristo que não apenas em água nova, mas em algo totalmente cüferente ! A
nos aceita no seio da Trindade. Como os sere humanos foram natureza espumante, inebriante do vinho é o símbolo da expe-
formado da terra, a própria terra, representada por nó e em riência de refrigério, entusiasmo e contentamento que caract e-
nós, é ab orvida no Verbo Eterno. No ere humanos, Deus riza os frutos do Espírito.
alcança o nível mai alto pos Ível de autocomunicação e une As jarras de água eram exigidas para a purificação de acor-
tudo o que criou formando uma unidade com Ele me mo. do com o costume judaico, durante e após a refeição. Note-se
A consumação flnaJ , quando "Deus será tudo em todo ", que cada jarra continha de 76 a 1 14 litros quando cheia até a
ocorre quando o novo vinho é servido para todo mundo. O borda. Ao todo, são quase 700 litros. Depois do mi lagre, havia

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O Mistério de Cristo O Mistério do Natal-Epifan ia

vinho suficiente para satisfazer um exército! A implicação é bodas de Caná significa a consumação do casamento
que não há limite para o novo vinho do Evangelho. espiritual de Cristo com a natureza humana e com cada
Quem são os com·idados?Você e eu, é claro. Vemos nesse um de nós em particular.
milagre a revelação da união de Cristo com a famí lia humana, Cada um desses três convites ascendente depende, cla-
um casamento que é consumado na Eucaristia e que transpor- r o, de nosso consentimento. Como células vivas no Corpo
ta os convidados para a ova Criação. A personalidade coletiva de Cristo, somos envolvidos no processo que está se moven-
da nova humanidade é chamada Corpo de Cristo. O Corpo de do rumo ao pleroma. Esse t ermo descr eve o desenvolvimento
Cristo cresce pelo processo de nosso despertar pessoal para a da consciência de Cristo compartilhado por todas as célula
vida divina. Assim, todo mundo é convidado para esse banque- indiYiduais no Corpo coletfro de Cristo. Esse movimento
te de casamento. Se concordam os em participar, recebemos o transcendente é como fermento na massa, elevando-nos de
nosso sentimento de eu-separado para a vida do Espírito, sim-
dom do Espírito sem medida , como a superabundância de vi-
bolizada pelo novo vinho.
nho que Jesus providenciou para o casal constrangido.
Podemos nos aferrar ao velho Adão e à solidariedade com
Os três eventos histór icos escolhidos pela Liturgia da Epi-
ele, ou aceitar o Espírito que nos convida ao cr escimento pes-
fania exprimem esse movimento de incorporação em Cristo e
oal e coletivo iümitado em Cristo, o novo Adão. Esse incrível
de transformação da consciência.
convite exprime-se numa piada.
1. A manifestação da natureza divina do Bebê aos Magos Maria, a Mãe de Jesus, percebe o iminente constrangi-
significa o chan1ado para a divina união ampliada a to- mento do casal e diz ao filho: "Eles não têm vinho". Jesus res-
das as pessoas - do passado, do presente e do futuro ponde: "A minha hora (kairós) ainda não chegou". Como se
- em virtude da transformação de Cristo em mem- dissesse: "Minha autoconsciência como o Filho de Deus ainda
bro de nossa raça. não chegou ao fim, e esse ato a anteciparia".
Ela diz aos que servem: "Fazei tudo o que ele vos disser".
2. A manifestação da natureza divina de Jesus aos judeus
Je u concorda e lhes diz que encham as jarras de água e dêem
pela voz dos céus depois de seu Batismo no Jordão sig-
um pouco dela ao mordomo para que a prove . Quando o
nifica nosso chamado à união divina. A família humana
mordomo prova a água agora transformada em vinho, fi ca atô-
e cada um de nós somos purificados pelas águas do ba-
nito. É de longe o melhor vinho que já provou. Ele fica tão
tismo e preparados para o casamento espiritual com o
impressionado que se dirige ao casal de noivos e diz: "Todo
Filho de Deus.
mundo oferece primeiro o bom vinho e, quando os convivas já
3. Por fim, a manifestação da natureza divina de Jesus aos estão alegres, faz servir o menos bom. Mas tu guardaste o bom
apóstolos pela transformação da água em vinho nas vinho até agora!"

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O Mistério de Crisro

A piada não é apenas engraçada. Ela deve nos manter numa


risada alegre pelo re to de nossa vida . . . de fato, por toda a
eternidade. Devemos dar cambalhota, pular, plantar bananei-
ra! Nem mesmo uma dança Litúrgica sati faz as exigências de -
a festa . O Amor Divino é nosso em superabundância. Essa é a 2
luz revelada quando os present es dos magos, simbolizando os
te ouros interno de Cristo, ão aber tos. Todos esse presentes
são nossos, justamente agora, na liturgia eucarística. O novo
vinho do Espír ito está sendo servido. O Mistério da Páscoa-Ascensão

aquele dia, conhecereis que eu estou no meu Pai e que vós


e tais em mim e eu em vós. Quem se apega aos meus manda-
mentos e o ob er va, este me ama: ora, aquele que me ama
erá amado por meu Pai, e eu, por minha vez, o amarei e m e
manifestarei a ele Uo 14, 20-2 1).

l ~T R O D U Ç Ã O

s ID EIA TEOLÓGICA da vida e do amor divinos, ante-


cipadas na Epifania, a festa da coroação do Misté-
rio do NataJ- Epifania, entram agora em foco claro.
Mai uma vez, há um período prolongado de preparação (Quares-
ma) para a festa principal , que é a Páscoa. O domingos depois da
Páscoa desenvolvem a significância e o fruto da ressurreição de
Cri to, culminando na festa de coroação da estação, a Ascensão.

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