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DO ORImINAL

Copyright& 1974 by G/L Publications


PUBLICADO ORIGINALMENTE POR
Regal Books Division
Ventura, California, EUA

Myrian Talitha Lins

Kleber Faria & Marcelo Silva


Foro GAapa
Stock Photos
COMPnSIÇÃO E IMPRESSÃO
o numeroso exército de homens, mulheres e crianças
te deram generosamente de seus bens terrenos, para que
Ficha catalográfica elaborada poe Ligiana Clemente do Carmo. CRB 8/6219
“Os sawis ouvissem a mensagem do evangelho — com
Richardson, Don.
O totem da paz / Don Richardson ; tradução de gratidão, dedicamos estas páginas:
Myrian Talitha Lins; 2.ed. — Belo Horizonte ; Betânia, 2000
312p.: 21em.

Título original: Peace child, cl974.


ISBN 85-358-0023-9
1. Evangelismo. 2. Tribo Saw.
L Lins, Myrian Talitha, trad.IL Título.
CDD 266

zº EDIÇÃO, 2000

oduç
É proibida a reprtotal ão
ou parcial deste livro, sejam quais forem os meios
empregados: elerrónicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros,
por escrito são
sem permis dos editores.
TODOS DS DIREITOS RESERVADOS PELA
Editora Betânia S/€
Ruu Padre Pedro Pinto, 2435, Venda Nova
31570-000 Belo Horizonte, MG
Caixa Postal SDIO, 31611-570 Venda Nova, MG

PRINTED IN BRAZIL
Meus sinceros agradecimentos ao Dr Myron Bromley,
notável lingúista e assessor de tradução da United Bible
ERELORUIÇÃO .<sinresnarsncao comes eriocagco role codiriasie anaoa oiee 9
Society, e ao Rev, George Lazenby, escritor, missionário e
vice-diretor da escola Melbourne Bible College, pelos seus PRIMEIRA PARTE
O Mundo dos Sawis
proveitosos reparos feitos a este manuscrito.
1, Embaixador em Haenam .....,....eseesereneneeseresteneeres 19
E Cevado com Amizade ..x.seemeeseniscecieraesireenessiisasasidos 31
Minha gratidão também à minha esposa Carol pelas horas
3, A Sombra do Homem Branco... 45
incontáveis que empregou em datilografá-lo. “4. Os Tuans Estão Chegando! ...........
sis 54
EO Herói de Uma Lenda :...i...ssisis
ssa massirssesseatintios 66

SEGUNDA PARTE
Dois Mundos se Encontram

“6: A Gênese de Uma Missão ....eremseeesmseriiaes 84


7. Atravessando a Cortina de Madeira... 100
8-0 Fim de Uma Era iii iii 117
RO Deuses dos Céus miss steeceigiiisatersenesiceremraranra 129
O. A Sorte em Uma Canoa...........rsrereerererreneneeeases 139
11. Um Batismo de Estranhezas ...... emma 144
12. Um Patriarca do Tumdu..eeeeeiiessiieers 153
5 E O Totem da Paz

13. Uma Guer a Porta .........essesserenereeseea


à Minhra 164
14.0 Than Come Midlos .....emeercecesesserreeeerenavaccentinas 173
15. Reunião na Casa dos Homens .........cceeeemeeeeereemass 182
16. Uma Crise no Kronkel ......eeseeseceasesamerermacenraneros 198
17. Amanhã — Água Fresca! «ii. sesseseeseasererereeseseneasees 207
TERCEIRA PARTE
Um Mundo Transformado

|8, Silêncio na Casa dos Homens .......esermunerreaesceraees 225


19. No Meio dos Crocodilos .....ceeeneeeeremanerrererensaess 237
20). Meu Fígado Estremece .....uesemesasereceresesererreneesesr 250
21.0 Morto: VIVO see ontosnci
ssesas a cresrinereai cas 254
rco miados
Introdução
taase 260
22. A Força do Aumamay ..sasiseniseeseiarecertentormento
23. Olhos Avermelhados Pela Vigília ..........csseneceneereros 274
24, A Longa Jornada ......seereeseerseeserepeseronacensrncrenerees 285 “O povo sawi que habita na antiga área holandesa da Nova
25. Deixando o Casulo Ancestral......emerseeessesesensees 293 (uiné constitui uma das inúmeras tribos —- estimadas em
26. Past-Seriptum ceseeteceneeraceceçerrtecenescasaceranminencenresos 305 aqua ntrocentas— que povoam a região ocidental daquele país,
a ue agora se chama Trian Ocidental, ou Irian Jaya. Cada um
bstés grupos tribais é uma unidade distinta e singular, um
eijueno mundo em si mesmo, com seu próprio acervo de
ndas e seu próprio senso de humor.
Em 1962, cu e minha esposa Caro! fomos morar entre os
is. Enquanto estudávamos seu idioma, lutando com suas
Complexas estruturas gramaticais e procurando conhecer a
Eultura do povo, fomos gradualmente tomando consciência
le sua visão do mundo,
E suando afinal conseguimos penetrar Os profundos signi-
ficados de suas lendas é costumes, descobrimos que estáva-
nos convivendo e trabalhando com uma gente que tinha a
1 traição em elevadissimo conceito. Em muitas das narrativas
|
E] Istúricas que compunham sua tradição, e que os pais pas-
. av vam para os filhos ao pé das fogueiras noturnas, os heróis
ram homens que haviam conquistado a simpatia e amiza-
le de outrem com o expresso objetivo de mais tarde trair o

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DO DOS,
10 EE O Totem da Paz Introdução
ce o
agônicos — e vitoriosos! — no sentido de sondar, até às suas
amigo, matá-lo e devorá-lo. A frase com que definiam tal
profundezas, um dos mais violentos grupos culturais do
prática era:
mundo, para depois nos comunicarmos com seus membros
“Engordar com amizade, para depois fazer à matança.”
* de maneira significativa,
Logo que reconhecemos que este culto da traição era par-
— O resultado disso, cremos, foi uma jornada em direção a
te integrante da filosofia de vida dos sawis, entendemos por
uma melhor compreensão entre os povos, que poderá infun-
que havíamos experimentado certo choque cultural, assim
dir no leitor um interesse maior e mais sensibilidade para
que passáramos a residir entre eles. Aquilo nos ajudou a com-
com as minorias ameaçadas desta nossa terra.
preender também o porquê do sentimento de estranheza que
— Don Richardson
permeava nosso relacionamento com eles. Entretanto, está-
vamos certos de que Deus nos enviara ali, com à finalidade
de ganhá-los para Cristo, para superar, após algum tempo,
aquela devoção à traição, que integrava suas vidas havia sé-
culos, talvez milênios.
O artifício que o Senhor nos revelou para chegarmos 20
coração daquele povo foi o emprego do princípio da analogia
da redenção — a-aplicação de verdades espirituais aos costu-
mes locais. Descobrimos que Deus já fizera uma provisão
para a evangelização desses homens, introduzindo em sua
cultura vários exemplos de analogia da redenção, Estes exem-
plos acabaram se tornando portas de acesso para nós, passa-
gens secretas pelas quais o evangelho penetrou na cultura
sawi, e deu origem a uma revolução entre eles, que era, a um
só tempo, espiritual e social.
E enquanto cu e Carol lhes transmitíamos a mensagem
do evangelho usando de analogias como a da “oferenda de
uma criança para a paz” e outras mais, aguardávamos em
expectativa a atuação do Espírito Santo para ver se ele iria
realmente usar esta técnica de comunicação para efetuar a
regeneração destes antropófagos caçadores de cabeças. E ele
usou!
Numa época em que toda a humanidade está rapidamen-
te se tornando interdependente, dentro de uma única comu-
nidade interglobal, a comunicação entre duas culturas diver-
sas inevitavelmente começa a ser uma necessidade premen-
te do homem. O Totem da Paz retrata nossos esforços
IRIAN OCIDENTAL INCONÉSIA
armtiga Nova Grint violandesa

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Primeira Parte

O Mundo dos
Sawis
UM

Embaixador em
Haenam
Logo que o so] surgiu, Yae espiou por entre as ripas que
eu inpunham o assoalho de sua casinha no alto da árvore, no
povoado de Mauro, e contemplou a caudal escura do rio
IKronkel, acerca de treze metros abaixo. Com seus olhos ne-
Eros e calmos, examinou bem as folhas flutuando na super-
ficie lisa das águas, Elas iam corrente abaixo, com uma velo-
Wldade cada vez menor, prova de que a maré do Arafura,a
Auarenta quilômetros dali, para o oeste, principiava a deter o
ranço do Kronkel em direção ao mar. Não demoraria, e a
orça do oceano reverteria completamente o curso das águas.
É durante algumas horas obrigaria a corrente negra e salpicada
E algas do Kronkel a retornar ao imenso ventre dos pânta-
hos adjacentes que o havia gerado, Yae esperava este mo-
mento para iniciar sua jornada rio acima, levado pela cor-
inteza.
Sua esposa, Kautap, estava assentada no chão, pernas cru-
as à oriental, junto ao fogãozinho. O filhinho mais novo,
da sem nome, dormia em seu colo, acomodado sobre as
ras trançadas de seu volumoso saiote de capim. Inclinan-
y-se por sobre a criancinha, ela borrifou água na alva fari-

OITO
à o > O Potem da Paz “Embaixador em Hoenam ai 21

nha de sagu que espalhara na paleta de casca de árvore, à sua “E abaixo dos joelhos: Na ponta do nariz, que era perfurada,
frente. Com movimentos lentos, misturou farinha e água, introduziu, todo orgulhoso, um estilete de osso, de cerca de
formando uma pasta, olhos incomodados pela fumaça que quinze centímetros de comprimento, que cortara do fêmur
escapava do fogão meio abafado. le um porco, e cujas pontas afiara.
Mini, seu filho mais velho, de dois anos de idade, brinca- , Se seu objetivo fosse uma dança tribal, que duraria toda a
va tranquilamente ao lado, sobre uma esteira. Por único brin- no ite, teria que adicionar à estes enfeites ainda outros — uma
quedo, tinha uma caveira humana, que rolava pelo chão, pluma cor de fogo de uma ave-do-paraíso, uma tira de pele
com suas órbitas vazias € inexpressivas voltadas para O teto do marsupial, dourada ce marrom, um enfeite de penas de
enegrecido de fuligem. Com o correr dos tempos ela tomara jacatua branca, tudo isto completado com pinturas em bran-
uma coloração ocre brilhante pelo constante manuseio, já bo e vermelho, feitas de conchas marinhas pulverizadas e
que fora guardada como recordação do pai de Yae, falecido ter à vermelha, Contudo, desta vez, sua missão seria diplo-
havia muito tempo. Também servia como amuleto, para es- mática é não festiva, por isso ele se conténtou em usar ape-
pantar os maus espíritos. Para o pequeno Min, porém, não as o adorno branco e dourado de osso e as fitas trançadas.
passava de um brinquedo de aspecto atraente, Usando uma tenaz, Kautap retirou o pão de sagu de sobre
Yae dirigiu-se à mulher. is brasas, bateu de leve para afastar os pedaços de folha quei-
— Uvur haramavi maken; du famud es. O curso do rio nada que se haviam apegado a ele, e estendeu o bocado ain-
está quase virando. Prepare logo meu pão de sagu, disse sem fumegante ao marido. Yac comeu metade dele e guardou
se voltar para ela, outra metade em seu bornal de fibras, juntamente com
Com seus escuros-e habilidosos dedos, ela trabalhou a lho naco de carne de porco que a mulher defumara ao fogo
massa, dando-lhe um formato alongado, e colocou-a sobre momentos antes. Enfiou o braço pela alça da sacolinha equi-
as brasas. Enquanto isto, o marido se aprontava com seus librando-a no ombro. Depois, retirou do porta-armas, que
adornos, preparando-se para a viagem. Recobriu-se com uma lbava no teto, um arco de mais ou menos 1,80 m de com-
tanga de capim fino, a qual, na tribo sawi, só podia ser usada imento, feito de tronco de palmeira negra, Uma das pon-
por homens que já tivessem abatido pelo menos um inimigo s era provida de uma garra de casuar, para que lhe valesse
em batalha — e ele já matara cinco. Além disso, pegara a imo lança, no caso de ter de enfrentar uma luta corpo a
cabeça de três de suas vítimas, o que era indicado pelos três brpo. A seguir, ele escolheu um punhado de suas
braceletes de presas de porco selvagem, os quais, depois de po iteagudas flechas de bambu. Segurando arco e flechas
bem polidos, eram ostentados à altura do cotovelo esquerdo. uma das mãos, tirou, por último, o seu remo, o qual, jun-
sua habilidade de caçador era comprovada também pelo amente com o escudo de guerra, o tambor, o machado de
seu sudafen, o colar de quase dois metros de circunferência, dedra, lança, canoa e arco, compunha a principal e mais
que ele, a seguir, colocou ao redor do pescoço, em duas vol- importante parcela de seu quinhão terreno.
tas. Cada um dos animais que ele abatera — porcos do mato, , O zemo era uma notável mostra de artesanato sawi, Fa-
crocodilos, cáes ou marsupiais — colaborara com uma presa picado de uma só peça de madeira, de três metros de com-
para seu colar. Fitas de junco, belamente entretecidas, tam- pr mento, ele constava de uma ampla pá retangular na base,
bém adoravam seus braços musculosos, e as pernas, acima » qual estavam gravados desenhos exóticos. No punho, via-

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> O Totem de Paz
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se esculpido em alto-relevo uma imagem ancestral. Acima


dela, e por toda a extensão do cabo estavam as farpas de
madeira, e mais a garra de casuar na ponta, indicando que,
assim como o arco, aquele remo também se constituía uma
arma de guerra.
Yae saiu para a varanda. Cercavam-no mais seis casas de
árvore que formavam coma sua a aldeia de Mauro. Pareciam
flutuar ao brilho dourado da manhã, desajeitadas, com suas
cúpulas arredondadas em forma de cone. Todas tinham cer-
ca de treze métros de comprimento, mas sua altura do chão
variava entre dez e dezesseis metros, suspensas sobre os
emaranhados dos arbustos, firmando-se nos troncos delga-
dos das árvores. Além destas, havia ainda duas “casas lon-
gas”, que se situavam à altura de cerca de seis metros.
Nem todas as famílias sawis se davam ao trabalho de cons-
truir casas de árvore, e assim expunham-se a sofrer ataques
de surpresa do inimigo, tornando-se mais vulneráveis do que
os que habitavam no alto, e que contavam com a vantagem
de uma visão mais ampla dos arredores. Numa casa de árva-
re as mulheres e crianças abrigavam-se em relativa seguran-
ça, enquanto maridos, pais e irmãos faziam chover setas sobre
algum intruso, ou então desciam à terra para rechaçar o ini-
migo numa luta com lanças, waru mim.
Quando Yae começou sua descida pela longa escada de
cipós, Rautap ergueu a voz numa queixa.
— Por que você tem que ir a Haenam tantas vezes? Sua
pele não se aflige de ir lá?
O homem continuou a descer.
-— Se não fosse por meus amigos, não iria, explicou em
resposta,
A escada descrevia uma linha inclinada pará debaixo da
casa. Assim, estava sempre protegida das tempestades tropi-
cais e se achava à sombra. Completou a descida sem se apoiar
uma só vez a ela, pisando cada um daqueles precários de-
graus com perfeito controle de equilíbrio.

DORA
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RGIRIS LO
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2a => O Totem da Faz xador em Eaenam eta
Embaixo, próximo à escada, estava seu irmão menor, Sao, Kautap ficou a observar o marido até vê-lo desaparecer,
assentado sobre um toco de árvore, aquecendo-se ao sol, na carranca de preocupação sombreando-lhe o rosto mo-
desejando que 6 calor dele pudesse expulsar o tremor de no pela famaça. Em seu colo, o bebê remexeu-se e desatou
malária que o sacudia. Agora, toda a aldeia já estava banha- Eobórar. Achegou a criança ao seio e amamenton-a. Deseja-
da pela luz causticante do sol, que erguia vapor das folhas A que Yae desistisse daquela idéia de promover uma associ-
molhadas de orvalho. Yae dirigiu ao mano algumas palavras o entre sua aldeia, Mauro, e Haenam.
de conforto, mas o outro não conseguiu corresponder, pois tes
seu queixo batia incontrolavelmente. Um bando de cacatuas alçou vôo gralhando ruidosa-
Alguns metros, rio abaixo, estavam seu primo Wasi e suas Ent quando a canoa de Yac irrompeu, de repente, por
três esposas, colocando numa canoa suas foices de cortar tr o rendilhado da folhagem da margem do rio, ainda
sagúciro, preparando-se para uma jornada ao interior da sel- À direção à cabeceira. Um crocodilo, que dormitava so-
va. Yae gritou para Wasi: a ponta de um tronco flutuante, despertou ao barulho
— Estou indo para Haenam, e só voltarei após o anoitecer. aves, bocejou olhando por uns instantes na direção
Vou convidar nossos amigos para a festa de bisim, na lua fee, e depois mergulhou de barriga na água, corpo e
nova. à tomando um sentido vertical, enquanto ele busca-
O primo desejou-lhe boa viagem e depois pisou na proa 1Eibio.
)
da pequena embarcação, impulsionando-a para o meio do Ya continuou a deslizar suavemente em seu barco. Atin-
rio. As três mulheres acomodaram-se na parte dianteira : a curva seguinte e passou-a, meditando nos eventos que
da canoa. Duas delas carregavam seus bebês às costas, am feito dele o embaixador em Haenam, uma comuni-
suspensos por sacolas especiais, As três ergueram os Te- é sawi que ficava mais acima do rio.
mos ao mesmo tempo, e partiram corrente abaixo, em Apto meses atrás, quando caçava gansos selvagens na nas-
busca da embocadura do pequeno afluente que às condu- e do Aym, encontrara-se inesperadamente com um gru-
ziria ao pantanal de sagúeiros, Um fio de fumaça despren- NR isrens de Haenam. Logo que os vira, inclinara-se na
dia-se de um punhado de brasas amontoadas num vaso y estendendo a mão para agarrar o arco, mas um deles
de barro aos pés de Wasi. Eram sua reserva de fogo. Com ) nais alto — rapidamente gritara para ele,
elas, iria acender o fogão, para preparar a refeição da tar- à Konahari! Não pegue este arco! Eu 0 conheço. Seu nome
de, utilizando o sagu fresquinho que teriam colhido no : Sou aparentado com você, dissera o homem alto:
charco. Mas cle pegara o arco assim mesmo, embora não tivesse
Yac depositou arco e flechas no fundo de seu barco, e, a locado flecha na corda. Fitando o outro, indagou:
seguir, embarcou nele. Com um movimento firme, girou a Como se chama?
proa estreita da canoa, para a direção da cabeceira do rio. No “Meu nome é Kauwan. Sou o filho mais novo do padastro
mesmo momento, as folhas que boiavam à superfície das iu mãe, foi a resposta,
águas em direção ao mar, pararam completamente. Quando E frs que veio até o rio Aym? Com certeza, você e seus
ele atingiu a primeira curva, clas também começaram a se inheiros andam nos espionando, replicou Yae em tom
mover após ele, corrente acima, sl jo.

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O Totem da Paz inbaixedor en Haeriam E40 Ee 27
26

(Os dois se abraçaram, e os quatro amigos de Kauwan ex-


piessaram sua aprovação. Fora então que este lhe fizera aquela
muposta.
= Escute, Yae. Há muito tempo que o povo kayagar, os
issos vizinhos do leste, vem nos atacando, Já perdemos
itos dos nossos à ponta de suas lanças. Por isso deseja-
nos fazer um acordo de paz com a gente de Mauro para
Le rmos cruzar livremente este território, e cortar sagu em
Nosas fronteiras deste lado, Expliquei aos homens de
jenam que precisamos de auxílio de um homem que atue
o intermediário entre nós e vocês. Tem que ser uma pes-
que circule livremente entre sua aldeia e a nossa, E você
“fnais indicado. Quero apontá-lo como intermediário. Se
NÉ concordar, venha a Haenam daqui a três dias, Vou ficar
perá-lo, para protegê-lo em sua chegada.
Os outros quatro também garantiram que protegeriam
E e como risco da própria vida, se necessário.
ue sentiu o coração pulsar mais rapidamente. Os seus
m hos e amigos em Mauro também já começavam a se
pixar das investidas que sofriam por parte do povo de
nat, que lhe ficava à oeste. Se conseguisse esse acordo
iiz-com Haenam, poderiam colher tranguilamente o
— Não é verdade, disse Kauwan, Hoje de manha atirei num
E das palmeiras maduras que havia no terreno neutro,
porco do-mato, e estamos seguindo o rastro de sangue que ele
ido entre Mauro e Haenam, e seu povo não precisaria
deixou. For assim que viemos parar aqui. Veja só. Ah está uma
riscar a chegar perto da fronteira de Asmat, à procura
marca de sangue na grama, e as pegadas dele na lama. E são
Himento.
recentes. Venha aqui. Quero abraçá-lo. Nós somos pareéntes,
Yae já ouvira sua mãe fazer referências a Kauwan, mas
“Om o tempo, talvez Haenam e Mauro resolvessem se
lgar e atacar os povoados de Asmat e Kayagar, e assim
mesmo assim hesitou, O outro retirou do bornal uma
ieguiriam a paz para as duas, com seus inimigos de am-
faquinha de bambu, e cortou uma mecha de seu cabelo ne-
os lados. E sendo os principais arquitetos do plano, Yac e
gro e grosso. Embrulhou numa folha e estendeu a Yae.
ivan poderiam até ter esperanças de galgar posições de
Tranguilizado por este gesto, geralmente aceito como um
or prestígio dentro do mundo sawi. Os homens dos ou-
atestado de sinceridade, Ya remou para junto dele, pegou a
Pelas que tivessem filhas em idade de casar certamente
dádiva que lhe era oferecida, e deixou-a cair dentro de sua
este oferecimento, Kauwan demonstrara que
Putiniam inclinados a promover o enlace delas com os
sacola, Com
| esse modo estariam avançando para atingir o ideal de
desejava estreitar relações de amizade com ele,
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haixador em Haenam

à Alguns objetos apenas — seriam um preço barato que


todo homem sawi! possuir um harém com cinco belas espo- » pagaria por uma transação tão importante.
sas. Vas ainda assim Yae não tomou logo a decisão. Desejava
Yae já tivera duas esposas, mas uma delas, para tristeza BUT QUtro pequeno teste. Convidou Kauwan e seus amigos
sua, contraira a piã, e fora definhando, padecendo muito com Que o acompanhassem à sua casa para uma breve visita, a
aquelas feridas purulentas, até morrer. Agora tinha apenas p de discutirem a questão um pouco mais. Se eles estives-
Kautap. Desde que sua segunda mulher falecera, Yae vivia mn dispostos a confiar em sua proteção e se arriscassem a
constantemente obcecado pelo pensamento de arranjar ou- Eni-lo, isto seria mais uma prova de que seu desejo de fa-
tra para tomar seu lugar, e depois, mais outras. Agora, re- 7 um acordo de paz com o povo de Mauro era genuíno e
pentina e inesperadamente, parecia que iria poder realizar fundo.
este sonho — se ele pudesse mesmo confiar na promessa de Eauwan respondeu com um sorriso franco:
Kauwan e seus quatro amigos. “Ficaríamos felizes em acompanhá-lo, mas nossas es-
Yae fitou o primeiro com ar de dúvida, O olhar do outro às é filhos estão às margens do Hanai esperando que vol-
tinha um brilho de sinceridade. O fato de ser aparentado | p | Com a carne de porco, Temos que encontrar a presa,
com sua mãe-era um forte elemento a seu favor. Além disto, lê-la é levá-la para casa antes do anoitecer.
ele olerecera, voluntariamente, uma mecha de cabelos a Yae. 0) motivo da recusa era justo, pensou Yae. Ele agora tinha
E quanto à história de que o povo de Haenam estava sendo tomar a decisão sem mais perguntas. Se não aceitasse,
importunado pela gente de Kayagar e forçado a se afastar 2 à honra que agora lhe era oferecida por Kauwan e tam-
cada vez mais para o oeste, também era verdade. Ele já ouvi- 5 vantagens decorrentes acabassem ficando com algu-
ra comentários a este respeito por toda a região. (putra pessoa de Mauro. Ah, se isto acontecesse, ele não
Por outro lado, ele sabia também que havia algumas pes- erdoaria!
soas da família Kangae, de Haenam, que ainda sustinham o “pelo contrário, ele aceitasse, poderia cair numa cilada
querelas não solucionadas com outros de Mauro. Será que ler a vida.
ele podia confiar na proteção de Kauwan e seus companhei- ps entranhas vibraram com uma sensação de temor.
ros, se o clã dos Kangae resolvesse se vingar quando ele apa- hu | mesmo sabor de suspense que formava o ingredien-
recesse por lá? Os quatro braceletes de presas de porco que ico das lendas sawis, € que o haviam fascinado desde a
Kauwan ostentava no braço à altura do cotovelo indicavam hola. Mas agora ele era o herói que se detrontava com
que ele era um guerreiro valente, com quem se podia contar.
Mas podia ser também que ele estivesse mais ligado aos lu repente, como que brotando daquele redemoinho de
Kangae do que à mãe de Yae. Has, veio-lhe a decisão.Tirou a faquinha de bambu de
Começou então a questionar Kauwan habilmente, procu- próprio bornal, e cortou uma mecha do seu cabelo e es-
rando descobrir que tipo de relacionamento mantinha com eua Kauwan, que a pegou com um sorriso,
aquela família. Imediatamente o outro percebeu seu objeti- pois, deu um passo à frente, pegou o outro firmemen-
vo ao fazer aquelas perguntas, e assegurou-lhe que o chefe plo antebraço, e disse:
do clã dos Kangac já dissera que eles aceitariam objetos de Samarikon, es! Está combinado; eu irei!

Ge css 0.0.
valor para reparação do erro, e não exigiram vidas huma-
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GOO OO VI;
o EE O Totem da Paz

— E:se nós encontrarmos o porco do mato que caçamos


pode estar certo de que vou guardar metade do seu fígado em
conserva para que você o coma conosco no terceiro dia, pro-
meteu Kauwwan.
A isto Yae replicou:
DOIS
— Timin Konahari! Obrigado, amigo!
Então se separaram, cada um tomando seu rumo, Ao
empenhar sua palavra, Yae praticamente selara sua sorte,
qualquer que ela fosse. A não ser que ele tivesse evidências Cevado com
concretas de que se tratava de um ato de traição, ele não
poderia mudar de idéia, pois se o fizesse, seria tachado de
covarde. Teria que ir a Haenam dentro de três dias.
E teria que ir sozinho. Ninguém se atreveria a acompanhá-
Amizade
lo, sem um convite formal dos outros. Era melhor assim. Se
ele corresse todos aqueles riscos sozinho, também não teria
Juando a manhã já ia em meio, o sol provocara gotículas
que partilhar com mais ninguém as honras que lhe adviriam funspiração em sua testa, e ele já alcançava 4 embocadu-
do feito.
W afluente Hanai, que o conduziria ao território de
um, Deixava agora o Kronkel - o amplo canal (sessenta
tos de largura) de águas rebrilhantes, é entrava pelo es-
U Hanai, logo sentindo sua pele se refrescar à sombra da
à vegetação que ladeava o riacho, nas duas margens.
noi «se para beber um pouco, apanhando a água com a
a da mão, mas não a bebia diretamente das mãos.
a vlea atirava para o alto e depois a aparava com a boca
pia Se à bebesse de outro modo, estaria ferindo sua dig-
E pessoal. Além disso seria mais perigoso, O rio era
ado por espíritos maus, e se a pessoa não bebesse do
o correto, eles poderiam invadir seu corpo, quando a

Muda a sede, endireitou as costas, e ergueu os olhos


ba arbustos que, à sua frente, se inclinavam sobre o rio,
stava, à espreita, a caveira de um infeliz kayagar liqui-
por Nair, um dos mais temidos guerreiros de Hacnam.
lava suspensa de um galho. As órbitas vazias haviam
o
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32 >> O Totem
da Paz Rudo com Amizade ce o:
lhada JApÓS O saravon, Kauwan abraçara Yae calorosamente. Em
sido recheadas com uma resina vegetal escura ponti vida, os outros homens haviam descido de suas casas, e,
um as-
de sementes de cor vermelho vivo, 0 que lhe dava
s, à por um, o abraçaram também, imitando o exemplo do
pecto aterrador. Das orelhas pendiam penas esvoaçante im tro — todos, com exceção dos componentes do clã dos
eira longa. Nair
dando-lhe a impressão de possuir uma cabel gar, que aguardavam o momento da reparação, para de-
gos de
a colocara ali para servir de advertência para os inimi
' poderém expressar quaisquer gestos de boa vontade em
Haenam,
na €s- be do estranho.
Yae sorriu ao se recordar de como sentira arrepios
quando Ewan conduzira Yae para a casa dos homens — uma
pinha da primeira vez que a vira havia sete meses, trução alongada, feita de toras de árvores, de cerca de
mas
fizera a primeira viagem a Haenam. Ficara muito tenso, É e cinco metros de comprimento, onde as mulheres só
procurara armar-se de toda a sua coragem e se forçara a pros- nm entrar se fossem convidadas. Kawwan concedera a
e,
seguir. Com uma remada vigorosa, passara pela caveira, fp assento de honra, uma esteira de palha, novinha em
O
por fim, despontara na planície onde se situava Haenam. | que ocupava o centro do amplo aposento.
e
povoa o recebera calmamente, e Kauwan fora até a margem bg se vira cercado por vinte dos principais guerreiros
o acolhera de braços abertos. rejo, homens como Maum, Giriman, Mahaen, Nair,
No momento em que ele conduzira a canoa até a margem
ado be à Warahai, cujos nomes eram temidos entre os sawis,
e pisara em terra, Kauwan retirara seu arco e um punh
fle- bp kayagares como pelos asmates. Eles se alterna-
de flechas, de entre uns arbustos. Escolhera uma das
em indagações de cortesia sobre sua família. Atrás de-
chas, e, balançando a mão direita, voltara-se de costas para Auivam os mais jovens, ouvindo tudo e guardando um
Yae, encarando seu povo. Com um grito gutural, dera um p respeitoso. No momento seguinte, foram servidos a
salto para o alto, e depois começara à correr de um para ou-
, bolinhos de sagu, recém-preparados pelas mulheres,
tro, do povo para O recém-chegado. as próprias casas. À travessa em que estavam era bela-
Depois passara a berrar frases de desafio, entremeadas de
e decorada com motivos ancestrais. Yae esperou educa-
uma espécie de grunhido de raiva simulada.
o até que todos fossem servidos, e depois começou a
— Meu amigo pode chegar, dizia. Ele veio aqui a meu con-
ata- gom eles.
vite, Quem é que vai querer atacá-lo? Ele não será maltr
potou que aos poucos a conversa fora encaminhada
do. Minha mão é forte!
à questão do acerto das contas antigas, os ultrajes não
Era à tradicional demonstração de poderio denominada
dos que a família dos Kangac ainda sustinha contra os
saravón, um ato cuja finalidade era acalmar os possíveis te-
tes de Mauro. Mas ele estava preparado para enfren-
mores dos visitantes, e, ao mesmo tempo, dar oportunidade
tu: ão, e retirou de sua sacola um bom número de
a quem tivesse intenções hostis, de se manifestar Se não
sen- au inhas de pedra, grandes conchas marinhas, e outros
tivesse sido recebido com este saravon, Yae não teria se
Haenam observaram a cena tran- 4 de valor que o povo de sua aldeia enviara por ele,
tido seguro. Os homens de
lateral de suas casas, a maioria Elio de saldar seu débito com o clã dos Kangae.
quilamente, da plataforma , homem de nome Giriman apanhara aquele tesou-
deles assentados com uma perna estendida e a outra flexio-
joelho dobrado. ido um sorriso de satisfação, e os levara para os
nada, O queixo apoiado no
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o E O Totem da Paz do com Amizade

cas, esperan- jpotar nas casas elevadas que o rodeavam, e nas outras
Kangaes, que ainda se achavam em suas malo
ara o pedaço Estavam mais ao nível do chão também.
do a reparação. Depois, Kauwan lhe apresent
a guardar para Aquilo fora apenas o começo, Nos últimos sete meses
de fígado de porco defumado que prometer
para saborcá-lo vis itara Haenam dez vezes ao todo, e em cada uma destas
ele. Yae tomara-o € o enfiara em seu bornal
does recebera a mesma acolhida calorosa. Sua confiança se
mais tarde.
ia Kangae, , E e so e, até o momento, quando ele se
Pouco depois, Giriman retornara com à famíl
ndo assim a imava do r pela undéci
que trocara o toque de mãos com Yae, confirma to de tiara end META a
grupo, passan-
aceitação do resgate oferecido, e se reunira ao
or já conhecia a majoria dos homens de Haenam
do a seguir atentamente a conversação.
procuraram ipme e estava tão seguro de suas boas intenções para
Seguira-se um período em que os homens:
nas lutas e le quanto as de seus próprios familiares de Mauro.
cummular Yae de elogios, falando de suas proezas
dade dos | ecrta de que nesse mesmo dia muitos deles aceitariam
caçadas. Depois a palestra mudara para à perversi
uma cessação Vite para irem com ele ao seu povoado, para serem
kayagares e asmates, e para a necessidade de
de uma apro- fonvidados de honra na festa de bisim, que se realiza-
de hostilidades entre Mauro é Haenam, através
inimigos. “Apos esta última solenidade, então, começariam a
ximação entre eles para o afastamento de seus
o desejo de o planos de um ataque conjunto contra os kayagares
A certa altura, Yae se colocou de pé E expôs
interiormente
regressar para Mauro, e, ao fazê-lo, estremecera
ima tes.
-lo à trai- no da primeira vez, Kawwan foi até a margem do rio
pois sabia que se houvesse algum plano para matá
lestariam. puebê-lo, e o conduziu à casa dos homens. Os outros —
ção, seria aquele o momento em que eles se mani
acompanha- iqueles meses haviam se tornado seus amigos — tam-
Mas isso não acontecera. De boa vontade eles o
o sawi: Hi chegando, um por um, € se assentaram ao seu
ram até a canoa, e se despediram com O brad
, enquanto lormando um círculo. A conversa tomava o mesmo
“Aminahayo!” e ficaram a repeti-lo várias vezes
K idável das vezes anteriores, sendo pontilhada de
ele remava Hanai abaixo, em direção ao Kronkel.
ia que o tas, coroadas com gargalhadas alegres. As costumei-
Ainda se lembrava da sensação de alívio e alegr
atrás. Al- essas de comida foram trazidas e colocadas diante de
dominara durante a viagem de volta, sete meses
casa de lo começou à comer com seus anfitriões. Depois en-
cançara seu lar ao anoitecer, subira para o alto de sua
alta voz, Bic ntou o convite para que comparecessem à dança,
árvore e, de pé na plataforma lateral, gritara em
sawi:
para todos os seus vizinhos, no elogúente idioma
contra m toi o primeiro a responder.
— Onde está o ódio que o povo de Haenam tinha
consertei OE se tornou um bom amigo meu, disse ele. Natural-
nós? Hoje cu cortei todas as línguas da ira. Hoje eu
água Feu irei a esta bisim em Mauro.
a trilha para Haenam que havia se estragado. Espalhei
Wacom também assegurou-lhe que iria, no que foi se-
fria (paz! entre as duas aldeias!
fo dos a por Kauwan. No final, doze homens haviam aceitado
E entremeara sua exposição com o grito de triun
ouvir, com Ivite, Yae sentiu-se satisfeito. Em seguida, entrega-
sawis: “Hi — Aga!” parando vez por outra para
urso fize- Uma corda de fibras de árvore, e lhe pediram que
prazer, o murmúrio animado que seu pequeno disc
AGIR LR UIGSIIGZISS
PGE DO DK
O Totem da Paz lo com Amizade ESSA 37
36 ED

que faltavam na cena que aguardavam havia sete meses — a transfor-


fizesse nela tantos nós quantos fossem os dias
para a festa, ão que agora se processava nas feições de Yae.
çou 3
Yae tomou da corda despreocupadamente e come “om malévola satisfação, seus olhos como que bebiam
tarefa, Mahaen spetáculo — aquela confiança tranquila foi gradualmente
atar os nós. Enquanto estava entregue a esta
ligeiramente
olhou significativamente para Giriman, é ergueu lo substituída por um terror abjeto; a esperança repenti-
l. O outro hente foi dando lugar a um sombnio desespero. Nos me-
as sobrancelhas num gesto quase imperceptíve
que, por sua ue se seguiriam, eles iriam se empolgar com as descri-
entendeu o sinal e transmitiu-o para Maum,
altura, todos
vez o passou a Kani, e este para Yamasi. A esta d cada detalhe da cena que observavam naquele mo-
Vagaro- lo de verdade, e se esforçariam para superar uns aos
os homens presentes já se haviam apercebido dele.
esteira de pa-
samente, Mahaen enfiou o braço direito sob a N nas narrativas de como os olhos de Yae se haviam
e ponteagu-
lha sobre a qual se assentava, e retirou uma longa ido, e os lábios haviam tremido, e como seu corpo se
r.
da adaga, feita do fêmur de um gigantesco casua ta de um suor frio. A casa dos homens iria vibrar com
Yamasi € Fisadas, a cada nova descrição da cena.
Procurando: agir com naturalidade, Giriman,
o tem-
Maum se puseram de pé, fingindo espreguiçar, ao mesm permaneceu sentado, paralisado e asfixiado pelo medo.
ira do porta-
po que sacavam suas compridas lanças de made an des um passo à frente, postando-se bem diante dele,
te uns para
armas suspenso no teto. Sorrindo maliciosamen lança em riste, pronto para o ataque. O outro viu seus
Yae, enquanto E se moverem, e ouviu sua voz sibilante pronunciar as
os outros, ergueram as armas sobre a cabeça de
este ainda se achava inclinado atando os nós. Outros homens H palavras:
do grupo também pegaram suas armas. Machadinhas de pe- Tuwi asonai makaerin! Nós estávamos a engordá-lo
dra, lanças, arcos e flechas começaram à surgir de sob as estei- mm zade, preparando-o para a matança.
ras como se invocados por um passe de mágica, Puma frase em lingua sawi, que, em três palavras bre-
pé, em si- Y Drtais, expressavam um dos mais arraigados costu-
Todos os homens armados permaneceram de
tomou de | À cultura sawi — o culto da traição. Por ela, Yae com-
lêncio, e se aproximaram de Yae, O único que não
tara con- bu que fora intenção deles matá-lo desde o primeiro
uma arma foi Kauwan. Ele simplesmente se recos
para o amigo, e há “crendo que ele voltaria ali muitas vezes, haviam
tra a parede de palha de sagúciro, sorrindo
a de fazer os ho adiar sua morte. Matá-lo num dos contatos iniciais
mantendo a conversa, enquanto ele terminav
nós. ot tentar-se com um ato vulgar, que qualquer um que
os
Yae percebeu o silêncio e a sombra escura que aos pouc ossec habilidade na arte da traição poderia realizar, Mas
pele, mas
foi se formando ao seu redor. Sentiu calafrios na ur uma afeição enganosa por um período de vários
esforçou-se para erguer O TOSLO, mant endo ainda uma ex- | E depois consumar a morte como eles o faziam ago-
s, e de-
pressão otimista, Primeiramente deu com as arma fla vma destreza especial na traição, e isto constituía
pois com uma visão mais apavorante — 0$ olhos de seus joia das lendas sawis.
alan-
amigos. Todos os olhares estavam cravados nele, arreg lules guerreiros de Haenam estavam apenas pondo em
rvar bem a ftia vez mais uma velha tradição de seu povo. O pró-
do-se numa expectativa ávida, procurando obse
presencia-
fisionomia de Yae. Foi então que aqueles homens E estava bem ciente das lendas que agora serviam de

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o ED O Totem da Faz iuudo com Amizade

as Nguém vibrou-lhe um golpe de machadinha nas costas,


estímulo para aqueles homens. Seu erro fora pensar que baixo das espáduas, e ele tombou para a frente no assoalho
histórias estivessem divorciadas da vida real, ao acreditar
plhas de sagúeiro, sufocado de dor. Uma seta aguda atra-
que seus interesses pessoais e políticos do momento fossem isou:a parte posterior de sua coxa e a ferroada dela desper-
mais relevantes que as forças das tradições. | nele uma fúria súbita. Ergueu-se de um salto, e com O
Vendo aquelas lanças ainda erguidas em sua direção, Yae usa escorrer-lhe pelo corpo, atirou-se contra seus algozes,
começou a tomar peso da sua situação. Para iniciar, por que momento em que alguém atravessou-o com uma lança
IN

viera a Haenam? Fora ali porque confiara em Kauwan. harriga da perna. Eles se limitaram a afastar-se um pou-
n-
Kauwan? Onde estaria ele? Talvez ainda houvesse espera as conservando o cerco ao redor dele,
ças. caiu de bruços, e ficou a espiar por entre uma larga
Um grito sufocado escapou de seus lábios. é | que havia no assoalho da casa dos homens, Viu as
— Kauwan! Onde está você? Proteja-me, Kauwan! has lá embaixo, levantando o bico, cacarejando alvoro-
Kauwan olhou para ele, espiando por entre dois dos guer- pelo alarido que vinha lá de cima. Lembrou-se de que
reiros que rodeavam Yae. vp Témo fincado na terra macia da margem do rio. Se
- Eu disse a eles que isto não estava certo, falou com voz saltar para o chão e alcançá-lo, poderia utilizar sua
calma e pausada, levemente sarcástica. Disse que você era à fina como arma, e matar pelo menos um ou dois de-
meu amigo, é que não deveriam fazer isto, mas O Maum em vingança pela sua morte,
prometeu-me sua filha em casamento se eu não interferisse. Enetrou na fenda, de cabeça para baixo, e deixou-se es-
É uma pena, meu amigo, mas não vou socorrê-lo. ur, mas a lança atravessada em sua perna travou-o ali,
— Não diga isto, Kauwan, gritou Yae, angustiado. Cum- lo-o suspenso de pernas para o alto. Contorcendo-se
pra sua promessa!
P adamente, ele não podia fazer nada, a não ser espe-
Tentou erguer-se, mas Maum o atingiu do lado com a | 08 homens desceram rapidamente pelas escadas que
lança. Imediatamente começou uma terrível algazarra ao seu nas duas extremidades da casa, e correram em direção
redor, pois os guerreiros liberavam a tensão que haviam con-
ir onde ele estava, entesando arcos e assentando suas
tido até ali, e se aproximaram ainda mais dele, Yae caiu de 4 de bambu. As mulheres e crianças também vieram
joelhos, « apelou a Kauwan novamente, rogando por miseri- ido encantadas pela inesperada oportunidade de parti-
córdia, e ao mesmo tempo procurando arrancar à lança de pois agora a vítima estava ao alcance delas também.
seu corpo, mas sem conseguir. quanto as crianças atiravam suas flechinhas contra Yae,
Kauwan vitou-lhe as costas, dizendo apenas:
Iheres erguiam seus pesados bastões de malhar o sagu,
— Você deveria ter me dado uma criança para oferenda de amlhe golpes na cabeça. Os cães da aldeia corriam de
paz. Se o tivesse feito eu o protegeria. ado para outro por entre os pés das pessoas que estavam
Ao ouvir aquilo, acudiu-lhe à mente um quadro de imen- ll, lambendo como podiam o sangue gotejante, e sol-
sa ternura, embora distorcido pelo sofrimento — Kautap as-
) E amidoo toda vez que acontecia de alguém lhes
sentada junto ao fogo, e o bebê, ainda sem nome, dormindo
ja pisada.
em seu colo. O bebê! Somente aquela criança poderia tê-lo
gado afinal ele estava morto, um dos guerreiros reti-
salvo. Mas agora era tarde demais.

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rou a lança que o retinha < seu corpo despencou, esmagan- jento, e começou a dançar de júbilo pela grande honra
do algumas hastes de bambu que estavam no chão. Os ho- E lhe cra conferida.
mens dançavam freneticamente 20 redor do cadáver, com Logo que o sangue parou de correr, alguns homens o pe-
brados de vitória, cada um deles exaltando o papel que tive- im e subiram com ele para a casa dos homens pela esca-
ra na trama de traição e morte. Alguns se inclinavam e e Tipas deixando os cães a lamber o sangue que mancha-
passaram a arrancar lanças e flechas espetadas no corpo e jo e os arbustos que havia ao redor. Primeiramente,
dilacerado. deram sobre o assoalho algumas folhas de bananeira,
Depois, o alto e musculoso Maum aproximou-se com sua Eno centro do aposento, e então depositaram sobre elas
machadinha de pedra, que acabara de afiar, pendurada a tira- po sem cabeça. Imediatamente, enxames de moscas se
colo. Sendo à homem que comprara o silêncio de Kauwan, una nas feridas abertas.
reivindicava a si O direito à cabeça do morto. Os outros lhe dr os dos guerreiros começaram a retirar do cadáver os
abriram passagem, e ele se chegou para o cadáver erguendo o aos quais diziam ter direito. Kauwan foi até a beira
instrumento o mais alto que podia. Depois, com pancadas & apoderou-se do remo.
fortes, vibrou a arma várias vezes sobre o pescoço do outro, três homens indicados por Maum para desmembrar O
até cortar os tendões e vértebras, e separar completamente a | adiantaram-se tendo nas mãos suas afiadas faquinhas
cabeça: A operação foi acompanhada por crianças de olhos nba, Os espectadores gritaram animadamente pedin-
arregalados que piscavam a cada golpe. ta ou aquela parte do corpo, e Maum aprovava a cada
Nesse momento, Warahai, um amigo de Maum, acercou- br sua vez. Depois, começou o esquartejamento,
se dele conduzindo seu filho Emaro. Maum levantou a cabe- q into eles se ocupavam em repartir o corpo, as mulhe-
ça de Yae, estendendo-a na direção do menino. Warahai vol- lp não podiam entrar na casa dos homens a menos que
tou-se para o filho e exclamou: à convidadas, tomaram dos tambores de seus respecti-
— Seu nome é Yae! pidos, pais e irmãos e começaram num bailado inces-
Emaro fora um nome provisório, A criança o usara até à diante e para trás, ao lado da casa. Entoando um
que pudesse receber o nome de uma vítima, sacrificada es- sono, ritmado, num tom agudo e penetrante, elas
pecialmente para aquele fim. Embora alguns dos parentes e fcom movimentos regulares, os tambores de pele de
amigos mais chegados pudessem continuar a chamá-lo de fúlados com sangue humano. Seus pesados saiotes de
Emaro, dali por diante, seu “nome forte” seria Yae. E os po- Meumpanhavam o andamento dos tantãs dos instru-
deres sobrenaturais que haviam estado com Yae, a partir ia, Penachos amarelos, de aves-do-paraíso, movendo-se
daquele momento, seriam adicionados às energias espirituais bi sol, adicionavam colorido à cena. Era um dia quente,
do menino que recebera seu nome, te peratura atingindo o máximo, e o suor gotejava e
A seguir, Maum mandou avisar a uma mulher de nome 1 4 pelo corpo delas. Crianças nuas aderiram ao festejo,
Anai que a queixada dele lhe seria dada para que pendurasse ne “se umas às outras, saltando excitadamente de ale-
ao pescoço é a ostentasse durante o cerimonial chamado eren, tando para o ar pequenos pedaços de madeira,
que geralmente era efetuado após a decapitação do morto. les que já haviam provado carne humana, começa-
Quando recebeu o recado, a mulher deu um grito de conten- nbar dos outros que não desejavam fazê-lo, assegu-

5000090909 8S SOIS
na? o

DNA NINA
. E O Totem da Paz “CGevado com Amizade cce
Esquna Por “através do onfício feito. Os amigos apresentavam-lhe folhas
rando-lhes que era como carne de porco ou de
sos)? ou travessas de madeira para que ele colocasse nelas os pe-
que eles tinham que ser tão kerkerivap (escrupulo
por con- “daços que lhes caberiam, e que mais tarde saboreariam com
Alguns dos que foram incentivados, acabaram
cordar. bed O resto da carne. Maum mesmo não comeria parte alguma
— Fadimakon govay! É lógico que eu vou comer: “dos miolos.
s as riam € respoó : — Depois disto, ele realizou a cerimônia denominada yagon,
pre A fat fadon, hava ke fadyfem gani? Como é “na qual ele espetou a cabeça de Yae na ponta de seu arco, e,
“em seguida, ergueu-o segurando em posição inclinada, de
que vocês agúentam comer carne humana? À
estranhe-
Mas no fim, todos iriam superar a sensação de modo que a parte superior ficasse do lado de fora do apo-
iam sem-
za e terminar comendo. Contudo todos se recordar sento. Então deu-se início ao banquete canibalesco, segui-
de provar “do de um complexo ritual a que chamavam eren, para O
pre do temor que cercara à primeira experiência
que cruzar (qual as mulheres eram convidadas a ocupar uma das extre-
carne humana. Era um umbral que todos tinham
dia em que Inidades da sala. O maxilar foi entregue à mulher de nome
para penetrar na última área da cultura sawi. No
olhos se 'Anai, que o colocou ao redor do pescoço, como um orna-
a pessoa provava aquela carne, era como Se seus
mento vahoso.
abrissem, e ela passasse à conhecer 0 bemeo mal.
já haviam
Depois que todas as partes do corpo de Yae
te
m cozidas “Quando as suspeitas de Kautap se confirmaram, e a mor-
sido cortadas e colocadas sobre grelhas para sere
homens te do seu marido ficou constatada, ela rapou a cabeça, des-
nos diversos fogareiros que havia no aposento, 05
mulheres e da sua casinhola pranteando, e se atirou na lama, junto
solteiros deixaram a casa. Juntamente com as
na saída margem do rio, contorcendo-se incontrolavelmente em
crianças, eles se dirigiram para à borda da mata,
o. ngústia. Depois tomou da machadinha de pedra de Yae e
irou-a às águas para que o espírito do marido a utilizasse
ae Maum se certificou de que eles já se encontra-
apoiada jo mundo dos mortos. Os parentes do morto abateram o
vam a uma boa distância, colocou a cabeça no chão,
e de um fnco do mato que ele domesticara e estava engordando para
sobre um dos lados, tomou de uma pedra alongada
projetada festa com o povo de Haenam, a fim de que ele
bastão, e inclinou-se sobre ela. Outro homem acercou-se
e segurou a cabeça com força para que o primeiro
pudesse imbém acompanhasse o espírito do dono,
longos Depois, toda a aldeia começou a prantear a morte de Yae.
enterrar nela a pedra. As moscas que pousavam nos
cada Porriam de um lado para outro, batendo fortemente os pés
cílios do morto procuravam voltar às suas posições após
Ipe do bastão. ly chão, suas casas se sacudindo perigosamente no alto das
se atas- ivures. Durante os três meses que se seguiriam, os tambo-
= Os jovens, as mulheres e as crianças tinham que
ouvir O bs do povoado estariam silentes em sinal de respeito pelo
tar da área porque era apsar (proibido), para eles,
ruído do crânio se rachando. Quando aquele ritual estiv esse lissamento do vizinho é amigo.
seria Kautap compôs um hino fúnebre, que entoava seguida-
encerrado, então poderiam regressar, € à celebração
4h te, enquanto lágrimas lhe corriam pelo rosto coberto de
começou a retirar os miolos do interior do crânio, zas
Ê

20 09090000000
nem ,

LINA PECA PES PE SAP SASISI AI

Xá ES PS
aa = O Tatem da Paz

Quem irá punir os filhos-da traição?


Quem irá destruir aqueles que engordam
suas vítimas com afeição?
Oh! Quem os deterá? TRÊS
sante, os
Movidos por aquele lamento contínuo e inces
nça
parentes de Yae se reuniram € trataram de planejar vinga

A Sombra do
de rês-
contra os homens de Haenam. Qualquer outro tipo
fora de
posta para a pergunta de Kautap estaria inteiramente
passa ndo de
cogitações. E a notícia da canção de Kautap foi

Homem Branco
mente,
boca em boca, espalhando-se pela selva, €, eventual
chegou até os ouvidos de Maum.
Terminada à seca, as terríveis tempestades de monções
es de
se abateram impiedosa é ruidosamente contra as pared
que
folha de sagúeiros da casa dos homens, Toda a campina
cercava a aldeia de Haenam estava alagada. Eventualmente, os homens de Haenam conseguiram a
Ao ouvir as palavras do lamento fúnebre de Kautap, Maum des "jada paz com os kayagares que habitavam nas cabecei-
o pelos
apenas sorriu. E seu único comentário mal foi ouvid pis do Kronkel. Renovaram uma antiga aliança que tinham
tem-
que se achavam à sua volta, abafado pelo bramido da go m duas aldeias sawis — Yahamgit e Yohwi. Unidos, os três
pestade: poi pados atacaram 0 inimigo, infringindo-lhe pesadas der-
“É verdade. Quem poderá nos vencer?” totas, deste modo, levando-os a implorar a paz,
Depois, ele bocejou e se estendeu sobre sua esteira para , Por seu turno, o povo de Mauro também conseguiu reali-
ger-
fazer a sesta, e cobriu-se com um lado dela a fim de prote o uma aliança com as aldeias de Esep, Sanapai, Tiro e
fres-
se do vento frio e úmido que penetrava em rajadas pelas Wasohwi, e assim equilibraram a luta contra as localidades
tas da parede, À caveira de Yae, sem 0 maxilar, rolou para le fala asmate, situadas na embocadura do mesmo rio.
até
perto dele, quando puxou a esteira sabre si, Ele a polira * Para vingar a morte de Yae, os guerreiros de Mauro tam-
ficar lisa € lustrosa, Pegou-a e colocou-a sob a cabeça, à guisa Em se utilizaram de um recurso traiçociro — sua aliança
Rom os habitantes de Esep. Estes se encontravam em boas
de travesseiro. Pouco depois, dormia profundamente.
Blações com o povo de Haenam. Aproveitando-se disso, os
iomens de Esep convidaram os de Haenam para uma festa
mi sua aldeia, festa essa que duraria toda a noite. Nove de-
bs aceitaram o agradável convite.
É enquanto a dança se realizava, na noite trangúila, mas
tira, os guerreiros de Mauro desceram o rio Aym em suas
nbarcações, silenciosos como fantasmas, e, ao se aproxi-

DOS
A,

ASR
PNL
so o O Totem da Paz A Sombra do Homem Branco 4 dESEdS — 47

marem de Esep, espalharam-se em leque, formando um cir- Coisa ou pessoa chamada tuan. Como houvesse apenas pou-
culo ao redor da povoação. Aos primeiros raios da aurora, “60 mais de meia dúzia de sawis que entendiam as duas lín-
fecharam o cerco, e, quando a claridade já lhes permitia dis- Eguas, transcorreu bastante tempo antes que estes chegas-
tinguir entre amigos (de Esep), e inimigos (de Haenam!), ata- “sem a uma compreensão razoável do que fosse um tuan.
caram em massa, Segundo as notícias, os relatos pareciam indicar que se
De repente, o canto dos dançadores e o pulsar dos tambo- Wutava de seres muito grandes.
res, começou a diminuir, até extinguir-se de todo, sendo en- Aterrador!
volvidos pelos crescentes brados dos homens de Mauro que Dizia-se, porém, que eram pacíficos.
iniciavam o ataque. Os homens de Escp galgaram rapida- “Assim já era melhor.
mente as escadas para suas casas de árvore, e procuravam “Entretanto possuíam armas que cuspiam fogo e produziam
impedir que os de Haenam buscassem refúgio nelas. Os nove im barulho semelhante ao ronco do trovão.
que iam ser mortos, tentaram escapar por entre as sombras, Até aqueles guerreiros experimentados estremeceram.
enquanto se ouvia pela aldeia o som surdo de lanças rasgan- Contava-se também que eles se opunham fortemente à
do carne, ça de cabeças e ao canibalismo.
Cinco deles conseguiram fugir, embora deixassem atrás “Que bom que os kayagares (terríveis caçadores de cabe-
de si claros rastros de sangue, brilhando à luz do sol que Is) e os asmates (também caçadores e canibais) estavam
despontava. Os que não tiveram êxito foram Huyahan, Sao, m contato direto com eles, e poderiam vir a se modificar.
Asien e Yamhwi. Os dois povoados coligados, Mauro e Esep, ' Sua pele tinha a cor alva da farinha de sagu, logo que é
regalaram-se na carne das quatro vítimas, enquanto Haenam
E

passou vários dias e noites lamentando ruidosamente os seus “Como devem ser feios!
mortos. = E SEU corpo era frio,
Após este episódio, os guerreiros de Haenam fizeram vá- K po poderia dar-se o caso de que eles não fossem huma-
rias incursões aos territórios de Mauro e Esep, na esperança
de surpreenderem pequenos grupos de homens, mulheres e Ocabelo deles era liso ou ondulado, nunca encarapinhado,
crianças no mato, colhendo sagu. Não obtendo sucesso, pro- vestiam com peles muito estranhas. Além disto, suas
jetaram um outro modo de vingar-se, usando meios mais | tim entas cobriam quase todo o corpo. Poucas partes fica-
indiretos. Mas nesse ínterim ocorreram três eventos com-
ln à vista.
pletamente imprevistos. Devia ser muito difícil conhecê-los bem,
Depois que uma paz satisfatória foi estabelecida com os À maioria dos informantes dizia que nunca haviam visto
kayagares e asmates, essas aldeias passaram a ter um diálo- us do sexo feminino, embora outros mais distantes afir-
go mais frequente com seus vizinhos do alto e do baixo igsem que existia um pequeno número delas.
Kronkel. No decorrer destes contatos, notaram que um novo les devem precisar de lutar muito para conseguir espo-
termo fora introduzido na língua, uma palavra nunca antes pod que elas são tão poucas.
óuvida. Tanto os kayagares, a leste, como os asmates, à 0€s- Tão estranhos quanto os próprios tuans eram os objetos
te, falavam cada vez mais entusiasticamente acerca de uma ; os quais eles comerciavam. Os principais eram um tipo
LG A a? a? =, »”, = =” = g vz y AVALIA
o
so To O Totem
da Par A Sambra do Homem Branco RPE 49

superior de instrumento cortante chamado kapak, que ser-


entre homens e espíritos, o seu mundo estaria bem. É verda-
via para derrubar árvores; OS parangs, utilizados para abrir de que vez por outra terríveis epidemias assolavam os povoa-
caminho na mata € os pisans, para esquartejar a caça. Havia
“dos, mas os espíritos sempre lhes concediam um longo in-
tervalo entre uma e outra, para que as tribos pudessem se
também uns bastôezinhos denominados korapi, que eram
Tefazer,
excelentes para acender fogo. E os sukurus que eles possuíam
Entretanto, se um destes tuans, que não gozavam de har-
eram melhores para rapar as suiíças dos que as faquinhas de
monia perfeita com os espíritos, viessem a introduzir nos
bambu dos sawis. Também havia os mata kail [anzóis) e as
h los € trilhas de suas terras um novo tipo de óleo corporal,
kawas (linhas de pescar) com os quais pegavam peixes até
talvez o equilíbrio de seu pequeno universo fosse quebrado.
nos rios maiores. Assim não precisavam esperar que as águas
o 5 espíritos poderiam vir a tomar represálias por esta ousa-
dos riachos abaixassem para arpoá-los com lanças ou com
a intrusão em seus domínios, E seus antepassados não lhes
flechas.
haviam ensinado o que fazer para aplacar a ira deles numa
Contava-se ainda que havia também os rusi nos quais era
fituação tão singular como esta, Por outro lado, os próprios
mais fácil ver-se a própria alma do que na superfície lisa da
À ans poderiam ser espíritos também, € talvez precisassem
laguna do pântano. Outro produto de grande interesse para
pr apaziguados, e, como seria trabalhoso descobrir a manei-
eles era uma substância branca c fina, chamada garam, que,
correta de agir a fim de acalmar a ira destes novos espíri-
segundo se dizia, era bem mais salgada que o pó escuro de
à. Se já lhes cra penoso existir numa atmosfera dualista,
folha de sagúeiro torrada que eles utilizavam para temperar
cia por gentee espíritos, como fariam para sobreviver
os alimentos. Outro objeto que os tuans forneciam era o
1 que lhes apresentasse três tipos de seres: espíritos,
sabun, um elemento que, misturado com água e aplicado à
pele, retirava não somente as sujeiras, mas até mesmo o óleo ans e homens?
Esta era a questão crucial que começava a inquietar a
natural! da pele. E por último, acreditava-se que os tuans tam-
bém dispunham de várias magias que chamavam de obat, & ente dos sawis, e que se ia agravando cada vez mais à me-
que curavam as febres e fechavam feridas com muito mais da que os kayagares e asmates continuavam a adverti-los
eficácia do que as feiticeiras dos sawis. $ Os misteriosos fenômenos denominados tuans. Era um
E como a cada dia estas histórias fascinantes fossem pas- Plema inteiramente
: novo; um tipo de ameaça que seus
e strais nunca haviam tido de enfrentar, e, por isso, não
sando de aldeia em aldeia, os sawis começaram a se indagar
já nada em seu passado cultural que pudesse orientar a
se queriam ou não conhecê-los. Os benefícios materiais que
geração sobre como deveria agir em relação aos tuans.
adviriam de um contato com eles eram tentadores; mas, €
quanto às implicações sobrenaturais que eles não saberiam t vam completamente sozinhos para resolver o caso, E
prever! Nos tempos passados, seus ancestrais haviam esta- é estremeciam ante a possibilidade de tomar uma decisão
k afetaria profundamente o seu destino e selaria a sorte de
belecido uma espécie de ligação com os espíritos que habita-
vam nos-nios e nas matas.
Is pequeninos.
, rise se agravou subitamente quando lhes sobreveio um
“Estes espíritos aceitaram o óleo de nosso corpo”, diziam
ndo imprevisto, que os pegou de surpresa. O povoado
eles.
E enquanto perdurasse esta frágil coexistência pacífica Ma jenam se mudara para uma outra localidade, às mar-
GV ABA
DOR POR GO GAI,
DOOR
UP GPS GGI
9095030000 0%0
o To O Totem da Paz j Sombra do Homem Branco eee o
gens do afluente chamado Sagudar, e que ficava próximo ao br; gueu o machado por sobre o ombro direito, e vibrou um
território dos kayagares. furte golpe contra a base do tronco,
Certo dia, uma canoa cheia destes kayagares fortes e de Hadi riu consigo mesmo ao observar o gesto dé recuo dos
queixo proeminente desceu o rio. Com eles ia um guerreiro sp ctadores ao ruído diferente do aço penetrando na ma-
atowaem de nome Hadi. Este falava fluentemente três lín- feira. O outro puxou o machado, e deu mais três machada-
guas: kayagar, sawi e a sua própria, às na árvore, que acabaram por derrubá-la, lançando-a no
Quando a canoa já estava bem perto de Haenam, Hadi à,b. Empolgados pelo grandioso feito, os hoineris de Haenam
gritou-lhes animadamente no idioma sawi: Imeçaram a gritar entusiasmados, € ficaram a gritar duran-
— Estes kayagares têm uma coisa muito especial para uns três minutos. Com quatro golpes daquele objeto, Hurip
mostrar a vocês! irubara uma árvore que nunca conseguiriam abater com
E logo que ele saltou em terra, os guerreiros de Haenam nos de quarenta, usando sua machadinha de pedra.
começaram a descer lentamente de suas casas. Um kayagar Os sawis convidaram Hadi, Hurip e os outros kayagares para
de nome Hurip, que ficara na canóoa, inclinou-se e tomou E n com eles à casa dos homens. Depois que todos se aco-
de um estranho objeto que estava a seus pés. Seus olhos ! + omaravilhoso instrumento chamado kapak foi pas-
brilhavam de satisfação ao observar a expressão de espanto b de mão em mão, para permitir que cada um fizesse um
que se estampou na fisionomia dos sawis. Ergueu o objeto te acurado, Com uma expressão de respeito, os sawis afa-
bem alto, acima de sua cabeça, Depois abriu a enorme im O fabuloso objeto, soltando exclamações de espanto e
bocarra, é, em voz profunda, pronunciou algumas palavras ração ao constatar a dureza do aço, a agudeza do corte ou
em sua língua: fpeso Quase não acreditavam que uma lâmina tão mais
— Isto é um kapak! traduziu Hadi. que a machadinha comum pudesse ser manipulada com
Imediatamente, os homens do povoado puseram-se a força, sem se quebrar nem ficar lascada.
rodeá-lo boquiabertos. Fitavam o estranho objeto com o llurip
i estava inchado de orgulho por ser O primeiro a apre-
mesmo grau de interesse com que um astronauta olharia para toda uma aldeia uma maravilha totalmente des-
para um produto de uma civilização extraterrena. O kapak fuida para ela. Depois, relatou como tivera que vender
era mais ou menos do tamanho de uma mão, e possuía uma e scus filhos a um kayagar, do povoado de Araray, uma
lâmina afiada e brilhante de cerca de dez centímetros de lar- do sudeste, com a finalidade de obter este kapak, Os
gura, A extremidade oposta ao corte era arredondada, em en de Araray possuíam muitos destes kapaks, porque
formato de um anel grosso, no qual Hurip intraduzira a ponta fum tuan morando ali com eles. Atualmente, todos os
de um cabo de madeira, ligeiramente afunilado. ps kayagares estavam comerciando com Araray e Kepi,
A princípio, se aqueles homens viram qualquer similari- ele; levavam porcos e crianças para trocarem por
dade entre o tal objeto € as suas machadinhas de pedra, era dos e outros tesouros dos tuans. Alguns dos homens
uma semelhança bem vaga. Mas, depois, Hadi apontou para | H1 pensado em perguntar à Hurip se não desejava ven-
uma árvore nova, à margem do rio, e solicitou a Hurip que Il | machado, mas ao ouvi-lo mencionar que dera uma
desse uma demonstração de como se usava aquele instru- Ro ele, desistiram.
mento. Hurip encaminhou-se, então, para junto da árvore, 4 um longo silêncio, um jovem guerreiro sawi, mus-

SSIS ISISDSS 556656594646S5


E O Totem da Paz Sombra do Homem Branco cet os
,
culoso é forte, de nome Kani, que se encontrava 30 fundo ainda dos guerreiros de Mauro pela morte de seu irmão
ergueu a voz. “Huyahan e dos outros três homens que haviam sido liquida-
— Hurip, por que este tuan veio morar em Araray? “dos naquela cilada de Escp. Se o povo de Hacnam fosse se
Depois que a indagação foi interpretada para o idioma de vingar, teria que fazê-lo o mais depressa possível, antes que
Hurip, este deu de ombros. Him fuan aparecesse por ali, pois nesse caso talvez não pu-
— Vocês devem estar pensando que os tuans são como nós! Elessem se vingar nunca mais.
falou. Se a gente se muda de um lugar para outro, é porque Instantes depois, Hurip, Hadi e seus amigos reiniciaram
este outro lugar tem mais sagúeiros no ponto de colheita, ou a jornada rio acima, após prometerem aos sawis que se
porque está a fugir de seus inimigos, ou então porque seu pai vessem machados disponíveis para vender, eles seriam os
já morou neste outro lugar. Mas os tuans não gostam muito Fimeiros a serem avisados.
de sagu, e parecem não ter inimigos também. Além disso, “Hurip e seus companheiros tinham ido até ali com o úni-
não se sentem muito ligados à terra de seus antepassados. n propósito de se divertirem com o espetáculo de deixarem
Vão para onde querem, € ficam onde desejam ficar. Ninguém da uma comunidade boquiaberta ao ver pela primeira vez
sabe o que eles vão fazer nem por quê. Tudo o que sabemos mn machado de aço. Sem o saber, porém, haviam feito mui-
é que onde quer que vão levam muitos destes machados na ma

Primeiramente, eles haviam esclarecido a questão dos


Alguns sawis assoviaram, demonstrando sua admiração.
* -

tn 5, de uma vez por todas para aquela gente. Agora, aque-


a

Mas Kani insistiu cm sua pergunta. Sawis sabiam como agir se um tuan aparecesse por ali.
— Se um tuan vier para cá, O que vai nos acontecer? tardecer, eles já haviam chegado a um acordo sobre o
Quando Hadi traduziu, Hurip respondeu imediatamen- é fariam em tal caso, acordo este que logo teria o apoio
te. dezoito aldeias da tribo dos sawis.
— Vocês, Os sawis, ainda gostam de cortar a cabeça uns Em “segundo lugar, deixaram o jovem Kani convencido de
dos outros, e comem carne humana também. Se um tuan já estava na hora de realizarem outra encenação do ve-
vier para cá, tenho certeza de que vocês terão que parar com tema chamado tuwi asonai man. Outros “porcos” deviam
isto. Se não pararem, ele atirará fogo em vocês. Também "engordados para a matança”, a fim de vingarem a morte
vocês terão que fazer a karia. E em troca de karia, O tuan Wvahan, antes que aparecessem os tuans, para 0 caso de
lhes dará muitos Kapaks, parangs e pisaus. Iipossível efetuarem a vingança após a vinda deles. E
Nenhum daqueles homens sabia que esta nova palavra, ty Os ataques frontais à aldeia de Mauro houvessem fa-
karia, significava “trabalho”. E alguns deles voltaram a o, 9 ingrediente que teriam de usar seria mais uma vez a
assoviar de admiração. Outros ficaram subitamente quie- Eude.
tos, meditando sobre o fato de nunca mais comerem carne fas antes que as intenções homicidas de Kani se concre-
humana nem cortarem a cabeça uns dos outros, & sobre O em, ocorreu um terceiro evento que iria abalar o mun-
perigo que corriam de serem queimados com fogo. vi até seus fundamentos.
Kani foi um destes que não assoviou. Estava pensando
justamente que nem ele nem seu povo haviam se vingado
NS
a

GREGOS
AS POA PIA
ESTES ENS ESTES A A o a, A SA, 1?

POR POO
RO R
POR IO
QUATRO

Os Tuans Estão
Chegando!
Sendo um povo de hábitos seminômades, os sawis nunca
reconstruíam suas habitações, quando sc fazia necessário.
Sempre que as estacas sobre as quais se apoiavam começa-
vam a se deteriorar, eles simplesmente se mudavam para
um outro local, e edificavam novas casas.
Assim, quando as residências de Haenam no afluente Sagudar
principiaram a entrar em declínio, eles conseguiram um acordo
com outra tribo sawi de nome Kamur, e estabeleceram um novo
núcleo residencial na embocadura do rio Autap, no lado norte
do Kronkel, fora de seu próprio território. Cerca de quatrocentas
pessoas mudaram-se para esta nova localidade,
Então suas “casas longas” e casas de árvore se espalhavam
ao longo da margem do rio, cobrindo uma vasta área de cente-
nas de metros de extensão, dominando o maior trecho em
linha reta, encontrado na região dos sawis. O povo chamava-
o de kidari, e poderíamos traduzir este vocábulo como “rodo-
via”. O restante do curso do rio era tortuoso, e apresentava
inúmeras curvas. Tanto assim que não se viam trechos de
mais que oitocentos metros de comprimento, de cada vez.
Mas no kidari a vista alcançava cerca de três quilômetros,
descortinando um canal quase que totalmente desimpedido.

OODO O DO AO
so O Totem da Paz "Puans Estão Chegando! €ec—€CER- 57
Foi neste lugar que Kani finalmente pôde trabalhar nos 1 um dos lados do barquinho para puxá-lo mais para a
detalhes de seu engenhoso plano de traição, com o qual es- Fra, parou também, o corpo tenso, olhos fixos nos reflexos
perava solucionar a questão daquela mágoa contra os ho- 1 da água.
mens de Mauro, e que o obcecava. Contudo ele temia que o Jo centro da canoa, Maum, Yamasi, Haero e Sinar tam-
plano falhasse, se não conseguisse a adesão de seus amigos &1 haviam entrado no rio e começado a retirar da canoa as
de Haenam. indes postas de carne de porco do mato, esquartejadas de
Laboriosamente, ele passava € repassava em sua mente Ico, e que haviam trazido da floresta. Mas eles também
os argumentos que empregaria para conseguir 9 apoio ne- Metiveram, e a caça tinta de sangue escorregou de suas
cessário. Considerou também os nomes das pessoas em quem ps, caindo de volta no fundo da embarcação.
poderia confiar para revelar os detalhes do projeto. Sentiu Às crianças nuas, de pele bronzeada, que brincavam por
que havia o perigo de algum deles não concordar com cle, e om arcos e flechas, ficaram repentinamente silenciosas,
delatá-lo ao inimigo. per am-se a escutar, o medo transparecendo nos olhos. A
Certo dia, Kani estava fumando seu longo cachimbo de versa das mulheres morreu. Cessou o rachar da lenha.
bambu, quando sua filha Norom lhe gritou; loentes pararam de tossir. Os únicos ruídos que se ouvia
- Navo, kabi sai! Papai, vem vindo uma canoa! toda aldeia eram o vagido de um bebê, e o zunido das
Kani voltou-se e olhou rio abaixo, observando a embarca- Hares de moscas que adejavam ao redor.
ção que se aproximava. Finalmente cla se dirigiu para a mar- Pora um barulho estranho, que ecoara à distância. Um
gem. Dentro dela estavam oito de seus parentes mais chega- in desconhecido, um ruído como de latejar. Kani cerrou o
dos. O coração de Kani começou a pulsar mais fortemente, rolho alarmado. Era como se um gigantesco coração ti-
pois ele estivera justamente aguardando que retornassem de ie começado a pulsar, fazendo com que todo o universo —
sua caçada, Finalmente eles voltavam para casa. Nesse ins- a água, as árvores, a terra — tremesse juntamente com
tante, decidiu que no mesmo dia iria expor a eles, em confi-
dência, seu engenhoso plano. Xe pé à margem do rio, Maum procurou repassar todos
Ao ver os amigos atracarem a canoa por entre os juncos ipos de sons que guardava na lembrança, Em vão, Nunca
da beira do rio, Kani recolocou entre os lábios o cachimbo, e ira nada semelhante, Se tivesse sido um som uniforme,
tragou profundamente a fumaça, apertando os olhos malicio- Ro O de um trovão, ele diria que fora causado pela quebra
samente. Nenhuma das pessoas que se achavam naquela milhares de imensos vagalhões, que se teriam formado
“casa longa” notou que os cantos de sua boca se curvavam “uma forte tempestade de monções, nas planícies enla-
num sorriso. De repente, porém, o sorriso desapareceu de Me s ao longo do mar de Arafura, Ou então, se os interva-
seus lábios. Na margem do rio, Sauni, seu irmão de clã, ele- e suas batidas fossem irregulares, poderia concluir que
vara o remo-lança € enterrara sua ponta fina na lama, por l tempestade estava se formando ao longe.
entre a vegetação ribeirinha. Mas ele também ficou paralisa- Mas era uma pulsação regular, que desafiava qualquer
do. ição plausível. Estava certo de que não se tratava de
Mavu, outro de seus irmãos de clã, que instantes antes pi uido provocado por nenhum fenômeno da natureza.
saltara da canoa, pisara na água rasa, e inclinando-se, agar- | grave demais para ser comparado ao de ruflar de tambo-

SOSTSCSTIOSISIS
GGI GG GIBI
58 > O Totem da Paz ds Juans Estão Chegando! et os
res festivos de alguma aldeia sawi. Também, não conhecia Desta vez, porém, os homens se reuniram às mulheres
nenhum animal que produzisse um som assim tão constan- m sua fuga para a floresta, por causa da possível origem
te. Só havia uma interpretação — o ruído era de origem sobre- Mobrenatural do fenômeno. Além de carregar filhos e armas,
natural. Esta possibilidade inspiraria somente um tipo de p pcuravam levar também tantas esteiras quantas conseguis-
sentimento no coração do sawi — terror, E Maum sentia ago- pm. Estariam assim preparados para dormir no mato, caso
ra o feto gélido daquele pavor crescendo-lhe monstruosamen- Jise necessário.
te na boca do estômago, expulsando-lhe o fôlego dos pul- :punto mulheres e crianças se aprofundavam mais selva
mões, com uma força que parecia a ponto de paralisar-lhe os entro, Kani, Maum e outros guerreiros de Haenam e Kamur
batimentos cardíacos. raram tomando posições estratégicas na entrada da
Subitamente ocorreram-lhe ao pensamento algumas das inha que circundava a aldeia. Agitados, examinavam as
palavras pronunciadas por Hurip, que Hadi interpretara para Ivens que passavam assopradas pelos ventos; olhavam as
eles, é então soltou um grito de advertência para os outros: uas do rio e depois viravam-se para trás, estudando a flo-
— Yot gwadivi saido! Ele vem para cuspir fogo! ita que lhes estava às costas, prontos para embrenhar-se
Kani largou do cachimbo e se pós de pé de um salto, sol- la em questão de momentos. Perto dali, um garoto kamur
tando a fumaça apressadamente de seus pulmões. Agarrou “nome Isai, desobedecendo à ordem de fugir que lhe fora
areo é Ilecha com uma das mãos, e com a outra pegou um de da por um irmão mais velho, trepou a uma árvore para
seus filhos, e num gesto rápido, acomodou-o às suas costas. har O rio por sobre os arbustos da margem.
Sua esposa passou outra criança para os braços de Norom, a Depois que o vozerio das mulherese e crianças se perdeu
filha mais velha, e tomou a outra, colocando-a em suas cos- distância, os homens tocaiados voltaram a escutar o ruí-
tas, ) latejante que se aproximava, Estava bem mais audível
Por toda a parte se ouvia o ruído de pés em movimento, Dra. A terra fofa do pântano parecia tremer ao compasso
de gritos e chamados que sempre antecediam o começo de le, A princípio, parecia provir de todos os lados, ecoando
uma evacuação dos sawis. As “casas longas” oscilavam e ran- l floresta, mas aos poucos eles foram percebendo que aque-
giam com a agitação de seus ocupantes correndo em busca som partia de um ponto a oeste. Mas o elemento que o
das saídas, e descendo as escadinhas de ripas. As crianci- E uZzia ainda se dirigia para o sul, e isto deu a Kani a terrí-
nhas menores agarravam-se ao pescoço de seus pais, já que svelação do que se passava— ele estava dobrando a curva
estes tinham nos braços suas esteiras e outros de seus per- mio para o sul. E se assim fosse, depois da outra
tences rudimentares, Ya cle estaria novamente vindo na direção norte, e breve
Tanto o povo de Haenam como o de Kamur já haviam pas- Exiria 40s olhos deles.
sado por isto antes. O primeiro sinal da aproximação de uma “Naquele momento, o prodígio ambulante chegou ao pon-
flotilha de canoas de guerra dos kayagares ou asmates sempre Púnde, de acordo com a previsão de Kani, voltaria a seguir
ocasionava a mesma corrida frenética, embora mais organiza- nu mo norte. O barulho ficava cada vez mais forte, à me-
da, em demanda da segurança da mata. A única diferença era li que se aproximava do local onde se haviam postado.
que nestas ocasiões, somente as mulheres e crianças fugiam, e os nervosas entesaram arcos e colocaram setas neles,
os homens ficavam para enfrentar o inimigo. b Dra Os sawis não estivessem muito certos de que teriam
GRILL
GRI
SSISLARA ISOSIS
o E O Totem da Paz
ds Tuans Estão Chegando! 44 61

enhum sucesso. Os rudes selvagens habitantes destas pa-


coragem de atirar contra a calamidade que chegava. Foi gens agrestes que se achavam fora do controle governa-
então que, de repente, o barulho passou a soar tão alto que
ental, eram, em geral, excessivamente cautelosos, e não se
alguns deles entraram em pânico e fugiram. Os que perma-
Fiscavam a instalar suas aldeias em lugares visíveis, para
neceram, sentiam a pele se enregelar e o cabelo da nuca se em chegasse pelo rio. Estando irremediavelmente fragmen-
arrepiar.
ly em pequenas unidades, por causa de seus conflitos in-
Mal crendo no que presenciavam, viram formarem-se dian- Fhos, O povo da maioria das comunidades não contava com
te de seus olhos ondas enormes, maiores que qualquer uma
Proteção que a vantagem numérica lhes ofereceria contra
que tinham visto naquelas curvas do Kronkel, protegidas
: síveis intrusos. Por esta razão, usavam do recurso de se
pela selva densa. Agora elas atravessavam a vegetação da blegerem construindo seus lares em pontos mais escondi-
beira do rió, varrendo a margem de terra. As árvores atingi- Hj, nO recesso da selva. O comandante militar holandês
das começaram a balançar é a sacudir violentamente de
E chefiava a expedição nunca poderia imaginar que nesta
um lado para outro. No instante seguinte, a força-monstro
nt eles já haviam passado por quatro aldeias sawis
que gerava aquelas ondas iria surgir. Kani sentiu seu cora- ligadas em seus esconderijos do baixo Kronkel, e, nem
ção quase parar,
É, ao fazê-lo, levara 0 pavor a cada alma que ouvira o ru-
trop
Ir dos motores diesel.
Os dois barcos cobertos dobraram a última curva do É no momento em que retomaram o rumo norte, apare-
rio, seus dois motores diesel pulsando quase em unisso- diante deles a impressionante visão de um conjunto de
no. Flutuando no topo de cada um deles, a bandeira ver- Ms de árvore, de um povoado sawi. Esta aldeia é uma ex-
melha, branca e azul da Holanda, Sua jornada fora inicia- ÃO, pensou o comandante, enquanto examinava as estra-
da havia vários dias, partindo de Agats, O mais próximo
5 casinholas daquele povo que tivera coragem de cons-
posto do governo holandês, localizado na costa do mar de suas habitações nas margens de um dos grandes ros.
Arafura, acerca de setenta e cinco quilômetros ao norte da da se via a hrmaça desprendendo dos arqueados telhados
foz do Kronkel. Sua missão — explorar a pouco conhecida ape de algumas delas, mas dos habitantes, nem sinal.
região da extremidade sul do distrito administrativo de
tam para a mata, deduziu. O chefe da equipe ordenou
Agats, que até o momento estava sem qualquer supervi- Con tinuassem a busca, rio acima, sem parar na aldeia.
são do governo. Estavam em busca também de um local
tz depois que eles tivessem explorado o Kronkel até o
para o estabelecimento de um posto naquela área. Que-
9 em que era navegável e retornassem, o povo do luga-
riam formar ali um centro de envio de tropas policiais,
à tivesse se recobrado do susto, e se animasse a semos-
com a finalidade de pôr fim ao canibalismo e às incessan-
tes caçadas de cabeças humanas que se sabiam serem co- nquanto isto, OS guerreiros que os observavam do meio
muns nesta região selvagem.
Dustos estavam certos de que 0 casario que haviam
A busca já durava vários dias, e seguia naquela região pan-
: pRso estava prestes a ser destruído, e nada havia que
tanosa o curso sinuoso de rios como o Kronkel, tentando
Essem fazer para evitá-lo. De que valeriam suas flechas
localizar os núcleos de população nativa existentes ali, além um bu contra monstros que se moviam tão rapidamente,
dos já conhecidos asmates. Até o momento não tinham tido
GRASI RAL AGA GANG RAS
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O Totem da Paz Os Tuans Estão Chegando: E e-q4ES- 63
a? Ad

e eram tão imensos que faziam


mal os comportava?
O TÃO parecer pequeno, já que
DOEliasear a ne
sando a noite entre os
mavam mais, Kani Kayagares, e deveriam regressar no dia seguinte, ocasião em
E quando os dois monstros se aproxi aque attavessariam a região dos sawis. A questão era se deviam
sentidos, pois via perfei-
apertou os olhos duvidando de seus ju não tentar entrar em contato com aqueles estranhos fo-
cobertura do barco, seus
tamente vários homens de pé sob à steiros, ou se deviam apenas deixar que passassem, como
ens, olhando para a al-
corpos envoltos em estranhas roupag viam feito no dia anterior.
ra como a dele, mas os
deia. Alguns deles tinham pele escu
como os rosados pães Es o dos mais idosos guerreiros kamures, Kigo
outros tinham rostos que brilhavam la “aiumu,sun otereceram-1-se para tentar um encontro
: o
amis-
de sagu quando batidos pelo sol.
ível,
Kani tirou a conclusão mais lógica poss E npos atrás”, disseram, “vivemos no meio de um povo
do!” exclamou.
“São os tuans! Os tuans estão chegan im do auyu, lá pelos lados do leste. E ainda nos recorda-
os navios prossegui-
Balançando às suas próprias ondas, de sua língua. Talvez alguns destes homens falem o idi-
do kidari, deixando
ram em seu caminho pela longa tota 1 auyu. Quando eles passarem de volta, corrente abaixo
arapitado entre os ga-
para trás as aldeias gêmeas, [sai, enc js nos postar à embocadura do afluente Tumdu e ás
go retornar. Apurando
lhos de sua torre de vigia, sentiu o fôle E para eles. Se se aproximarem, tentaremos falar com el
em meio ao ruído dos
os ouvidos, ele conseguira distinguir lingua dos auyus.”
s. ão
motores, O tom grave de vozes humana então, no dia seguinte, sob os olhares de centenas de
entado sob o toldo
Depois, um homem que se achava ass abrigados na segurança relativa da selva, Kigo, Hato é
da bandeira e agitara Os
do barco, se colocara de pé ao lado tj se postaram à beira do rio, tremendo de prado pro-
probabilidade de olhos
braços em direção à mata, pensando na
sou que talvez ele o tdo controlar o tremor dos joelhos que os acomete logo
humanos estarem à espreita. Isai pen E ram a pulsação do motor diesel que chegaya pelo
agem de galhos e fo-
tivesse avistado, apesar de sua camufl : eu-lhes que se transcorreu um século antes que
da árvore, Como é que
lhas, e se encolheu atrás do tronco + monstros surgissem à vista, e viessem em direção
?
uma pessoa podia ter olhos tão possantes : hativos. Esforçando-se para disfarçar o temor, os três
ram do longo das
Naquela noite os dois barcos ancora Iv ali, de pé, seus corpos nus tremendo, e tendo nas
das terras kayagares,
margens do Kronkel, bem no interior | dádivas apaziguadoras — alimentos — e conjecturan-
tenas de pessoas do
tendo por teto apenas as estrelas, Ali cen
vindas dos tuans, e próprios não acabariam se tornando alimento para
lugar, mais familiarizadas com as idas e e car- Nes que se aproximavarn.
peixes, sagu
acorreram para os barcos a fim de vender om quase se deixaram cair no chão de alívio ao cons-
, lâminas de barbear,
ne de porco, recebendo em troca fósforos que o primeiro passava de largo, lançando a seus
o, até mesmo os
contas de colares e tabaco. Entretant s ondas formadas pelo seu casco. Mas depois
a claridade das lâm-
kayagares achavam brilhantes demais Mina acenavam tremulamente para os passantes o
rádios transistorizados
padas de querosene, e Os barulhentos o, de repente, desligou o motor, e girou, voltando-
ão.
pareciam estar além da sua compreens los. Nervosamente, Kigo disparou a matraquear em
Haenam e Kamur
Naquele mesmo instante, OS anciãos de

- ES
OORI)
DDO 360666005 ASPIRINA
555
64 FE» O Totem da Paz Es Tuans Estão Chegando! E gpEE dE = 65

auyu, enquanto Numu e Hato apoiavam-no, assentindo com Hho para se descobrir a lâmina de barbear. Mostrou-lhes tam-
a cabeça. Os oficiais do governo os espiavam curiosamente, À como se empurrava para fora a parte interior da caixa
de sob o toldo da embarcação. de lósforos, a fim de abri-la, e como se tirava o palito e o
Então, do navio, veio uma voz cordial que os saudou em batia contra o lado do estojinho para se obter o fogo. A se-
auyu, € imediatamente os três sentiram cada músculo de uir, demonstrando uma paciente condescendência, ensinou-
seu corpo tenso relaxar de alívio. Talvez agora houvesse es- es que cra preciso colocar a isca naqueles ganchos encur-
perança de que afinal poderiam sobreviver ao temido encon- dos para que se pudesse pegar o peixe. Findas as explica-
tro. As mãos dos visitantes se estenderam por sobre a Des, voltou rio acima para sua aldeia, e, nos dias que se
amurada do barco, aceitando os presentes oferecidos e retri- guiram, ele siu bastante da ignorância dos sawis que não
buindo com objetos seus também. Além do homem de rosto Nheciam coisas tão simples, esquecendo-se de que ele pró-
escuro que lhes falara em auyu, Kigo, Hato € Numu avista- to aprendera aquelas coisas havia apenas alguns meses.
tam outros, incrivelmente altos, de pele alva, e que também Entretanto, para Kigo, Hato e Numu, o principal valor
conversavam entre si numa linguagem feita de sons estra- eles tesouros não era tanto seu uso na prática, mas sim
nhos, € com vozes muito graves. o de que constituíam troféus objetivos que atestavam de
Aqueles deviam ser os tuans. Scu rosto era claro e tinha encontro com seres que eles pensavam pertencer a uma
um aspecto tão terrível que os três selvagens não suporta- at totalmente diferente, Na realidade, aquelas preciosida-
vam fitá-los frontalmente, preferindo olhá-los apenas de re- Es ignificavam muito mais que isto - eram evidências con-
lance. Mas no momento seguinte, o barco ligou os motores, as de que três corajosos sawis haviam estendido suas
afastou-se da beirada do rio, é pouco depois já lá se ia matra- Mes € cruzado uma barreira cultural equivalente a milha-
queando barulhentamente pelo kidari abaixo, atrás de seu ide anos de civilização humana,
“irmão”,
Sentindo-se ainda enfraquecidos pela longa tensão, Kigo,
Hato e Numu voltaram-se para 3 mata e viram os homens
de Haenam e Kamur deixando furtivamente seu refúgio de
arbustos. Depois, quando perceberam que os barcos já iam
bem distantes é eles estavam a salvo, todos aqueles sawis
correram impulsivamente em direção aos três heróis.
Orgulhosamente, Kigo, Hato e Numu exibiram as lâmi-
nas, fósforos, varas de pescar e anzóis que traziam, erguen-
do-os diante dos olhares curiosos de todos. Naturalmente,
nenhum deles sabia o que eram aqueles objetos nem para
que serviam,
Foi somente vários dias depois que apareceu ali um kayagar
mais bem informado, que, com modos excessivamente os-
tentosos, mostrou-lhes como se removia o invólucro verme-
ASPIRE
SODA
) Herói de Uma Lenda at agr 67

qinda não tratamos de vingar a morte de nosso irmão


luyahan. O que pensam disto?
Os outros ficaram em silêncio, sentindo-se levemente
vergonhados por terem se esquecido completamente de
(INCO mn dever tão solene, e terem deixado passar tanto tempo
m pensar nele.
Talvez vocês se tenham esquecido de Huyahan, conti-
ju Kani, mas eu não posso esquecê-lo, Acho que devemos

O Herói de Igú-lo, mesmo que tenhamos que fazê-lo sob a ameaça

D guerreiro deu uma profunda tragada em seu cachimbo,


Uma Lenda to os outros três observavam suas feições.
Pretende que façamos outra incursão a Mauro? inda-

Já tentamos atacá-los várias vezes. Agora chega, res-


ey Kani. Tenho um plano melhor
os a motor fora tão
Aquele breve contato com 05 dois barc Conte-nos seu plano, irmão mais velho, replicou Sauni.
que durante as domine
dramático para aqueles selvagens, Ds homens de Wasohwi, principiou ele, estendendo a mão
a coisa. Pouco js
que se seguiram não se falou de outr Egurava o cachimbo em direção ao sul, onde ficava o po-
a mesma patrulha rs e
chegou às aldeias a notícia de que | mencionado, são irmãos dos matadores de Huyahan, e
Pirimapun, no Ur ção
lecera um posto do governo em lguns amigos no clã dos Kangae que moram na outra
o para mais palestras.
asmate, e isto foi motivo de assunt idade de nossa povoação. Será que isto não lhes sugere
€esqueceu-se por algum
mesmo Kani se integrou à corrente
de traição contra os que
tempo de prosseguir em seus planos três ouvintes sorriram maliciosamente à conclusão
não durou muito. As TECOT-
considerava seus inimigos. Mas que lhes ocorreu, mas depois Mavu franziu o sobro-
começaram a se dn
dações das duas embarcações logo u
ios voltaram a ter prioridade naq
cer, e os velhos anse mo conseguiremos que venham até aqui? indagou.
tiram numa cami- Emos organizar uma festa, uma dança para a noite
a dia as duas esposas de Kani par Wnviar-lhes um convite, foi a resposta de Kani,
é vazante, à cata de ca-
nhada pela lama ribeirinha, na mar fas quem irá levar-lhes o convite? Os Kangae são
convidou Maura, Mavu a
marão. Achando-se a sós, Kami do povo de Wasohwi realmente, mas não tém o cos-
heu bem o seu cachim
Sauni para subirem à sua casa. Enc irtá-los. Além disto, eles certamente se recusariam
aos outros. E enquanto O
com tabaco, acendeu-o e o passou f conosco.
o aposento, ele come-
doce e úmido aroma de fumo enchia | Nos irmãos do clã dos Kangae não precisam ser in-
-lhes suas idéias. bj) à resposta firme de Kani. Vamos deixar que eles
nosso meio,
Gm só. Os tuans já estão aparecendo em

DO DO PO IYSIY VARIOS ORI


68 ==> O Totem da Faz O Herói de Uma Lenda ae 69

pensem que é um convite sincero. Eles só saberão de nosso & povo de Mauro vibrara aquele terrível golpe contra os ho-
plano depois que virem os cadáveres de seus amigos de “mens de Haenam, matando e devorando Huyahan e seus
Wasohwi estendidos no chão. rês companheiros. A esta altura, o povo de Wasohwi, na
— Então quem irá lá para trazer as vítimas até nós? insis- certa, já devia ter se esquecido totalmente do ocorrido. E
tia Mavu. n pesmo que ainda se lembrassem, dificilmente suspeitariam
— Tá se esqueceu, retrucou Kani calmamente, que um que os parentes de Huyahan iriam objetivar sua vingança
homem de nosso clá é aparentado com os de Wasohwi pelo contra Mauro, tramando um ato contra eles, os de Wasohwi.
lado de sua mãe, é vai visitálos muitas vezes? é eles deviam pensar que se corressem algum perigo, seus
Os três assoviaram admirados. imigos do clã dos Kangae, que viviam em Haenam, os avisa-
— Você se refere a Mahaen! exclamou Maum. Como es- Ram. E na outra extremidade da aldeia, havia ainda a fami-
pera convencê-lo a trair o povo de sua própria mãe? | dos Kubhai, onde poderiam contar com a proteção de
Kani já tinha preparado a resposta há muito tempo. Mahaen. Nas tradições de seu povo, não havia nenhuma
— Sei que não existem meios de persuadir Mahaen a fa- Indicação de que um homem pudesse trair os familiares de
zer isto, disse explicitamente, e depois continuou em tom a própria mãe.
sigiloso, mas temos um modo de obrigá-lo a fazer isto. — Oingrediente principal do plano era, naturalmente, o fato
Fez uma pausa e depois prosseguiu, le lançarem mão do velho costume tribal chamado waness,
- Alguém terá que impor-lhe o compromisso do waness. a obrigar Mahaen a se aliar a eles. Os três auxiliares da
Aí ele fará tudo que dissermos. 0 ispiração agora estavam ansiosos para saber o que Kani
Os três ouvintes arregalaram os olhos de espanto às pala- nha em mente para conseguir isto.
vras do amigo. Será que alguém já se propusera a fazer o - Maum foi o primeiro a expressar sua curiosidade com
mesmo antes, a se utilizar deste velho costume tribal, o lação a este ponto.
waness, com a finalidade de obrigar um homem a trair seus — Irmão mais velho, diga-nos, qual de nós você acha que
parentes próximos, o povo de sua mãe? 2 impor o débito do waness sobre Mahaen?
Parecia-lhes que Kani estava desenvolvendo ainda mais o Kani sorriu, orgulhoso pela facilidade com que consegui-
culto da traição, feito pelos sawis, levando-o a atingir novos | que eles aderissem à sua trama. Agora ele contava com
estágios de sofisticação, e indo além de tudo que seus ances- “atenção total, e, por isso, procurou escolher bem as pala-
trais haviam sonhado até mesmo em seus momentos de S, ào expor-lhes a maneira como uia se utilizar de sua
maior perspicácia. Com isto Kani se revelava um herói de implicidade.
proporções gigantescas, um legendário em potencial, e esta- — Não será nenhum de nós, irmãos, respondeu tranqui-
va lhes oferecendo o privilégio de participar com ele desta mente, seus olhos negros correndo de um rosto para ou-
façanha, que criaria uma nova lenda, o

Os três homens achavam-se como que fascinados pela Fez uma pausa para deixar que a curiosidade deles se agu-
singularidade do plano de Kani. Logicamente, a originalida- Ese ainda mais, € depois continuou:
de da idéia, por si só já aumentava grandemente suas possi- - Não será nenhum de nós. Terá que ser a velha Wario, a
bilidades de sucesso. Já decorrera bastante tempo desde que je de vocês!

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70 a O Totem da Piz fundo de Uma Lenda 6 si 71

er em meio às borrascas do primitivismo, o tade-asen,


Mavu ficou paralisado. Maum tocou o peito com as pon-
tas dos dedos e depois soltou um longo assovio, uma nota mo é chamado este relacionamento no idioma sawi, tem
grave em escala descendente, que para os sawis indicava enor- je ser defendido a todo custo. Pois ali, Os pais só costu-
me espanto, Sauni recostou a cabeça para trás e deixou esca- im dar suas filhas em casamento, se tiverem a certeza de
par um lamento - “Uunuuuuuuu” — externando a pena que E com isto obtêm vantagens sociais.
sentia de Mahaen por causa do choque que o aguardava. Kani estava agora lançando mão deste nobre ideal que
Agora, os três homens se entreolhavam num mudo reco- iva à preservação da cultura sawi, e propondo que, pela
Jivação de débito de waness, ele fosse utilizado para obri-
nhecimento da engenhosidade de Kani. Wario era, nada mais
um homem a enganar os familiares de sua mãe, e levá-
nada menos, que a mãe de Waib, a bela jovem que estava
prometida a Mahaen, e que, em breve, se tornaria sua quar- 'à morte. Era como se um mestre do xadrez houvesse
ta esposa. Se a velha Wario, a futura sogra de Mahaen, fosse goberto uma nova série de lances, para o velho jogo. Kani,
a pessoa que lhe imporia o débito do waness, então o infeliz
liberadamente, remansjava diversos elementos constan-
de sua cultura, apresentando uma variação de um tema
guerreiro estaria amarrado ao tipo de juramento mais solene
que havia nos limites do universo dos sawis. ixo, conhecido como tuwi asonai man.
Mavu, Maum e Sauni não conseguiram disfarçar sua ad-
Para um sawi do sexo masculino, nada havia de mais sa-
ração. Percebiam que se achavam em presença de um novo
grado do que seu relacionamento com aqueles que lhe haviam
dado sua filha ou filhas em casamento. Tão grande era o
hi de seu povo, e que, se o plano de Kani desse certo, uma
va saga estaria nascendo, uma saga que, com o decorrer
respeito dos homens sawis pelos seus sogros, que nem mes-
mo se permitiam pronunciar seus nomes em voz alta, Refe-
“tempos, iria se incorporar à imensa caudal do folclore
1, Sabiam também que, sendo seus auxiliares na trama,
riam-se a eles sempre pela designação de tade. Eles lhes tra-
ziam presentes de grandes quantidades de carne de porco do is nomes figurariam na lenda.
mato ou de bolinhos, e isso regularmente, muitas vezes às O próprio Kani sentia-se altamente gratificado ao repas-
custas de sua própria prole. E o seu sentimento de dever para pos detalhes de seu projeto. Sauwai, O seu pai fora ele pró-
com eles era tão forte, que superava O que os ligava aos pró- b um herói que dera origem a muitas lendas, um homem
prios pais € à esposa e aos filhos. los feitos na arte da traição eram recontados em muitas
Numa sociedade de características quase que totalmente leias, à noite, ao pé do fogo. Agora, o filho estava igualan-
bárbaras, haveria sempre o perigo de que as hostilidades | senão ultrapassando o ideal estabelecido pelo pai,
mútuas viessem a reduzir as possibilidades de intercâm- “Maum e Sauni, na qualidade de filhos da velha Wario
bios matrimoniais entre clãs conflitantes, ameaçando as- ituros cunhados de Mahaen, imediatamente concederam
sim a existência dos indivíduos, para não dizer da própria e! nissão a Kani para que procurasse sua mãe, e lhe apre-
sociedade. intasse sua estranha proposta.
Disso resultou então esta intensificação do instinto de teen
autopreservação, manifestada através deste recurso de dar “Entre as tribos selvagens que povoavam o sudoeste da
elevada prioridade ao relacionamento entre genros e sogros. luva Guiné, o papel da mulher na arte da crueldade não era,
3

Embora outras ligações pao entrar em declínio e se des- imo talvez se pense, o de mera espectadora. Entre os auyus,

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ED O Totem da Paz ro! de Uria Lenda Gg og 73

por exemplo, quando os guerreiros retornavam de um ata- quais eram seus filhos — haviam acabado de lhe apresen-
que cujo principal objetivo fosse a caçada de cabeças huma- à Eles aguardavam a resposta.
nas, aqueles que não trouxessem pelo menos uma de volta, à tomou da tenaz e virou os pãezinhos de sagu que esta-
eram recebidos com bordoadas. Em todas as tribos, muitas tozendo sobre as brasas. Por entre as frestas da parede de
vezes eram as mulheres que mais incitavam os homens a ha de palmeira, entreviu lá fora a figura esbelta de sua
procederem à vingança da morte de seus queridos que hou- n filha Waib, que se achava de pé numa canoa, boiando
vessem sido abatidos em circunstâncias ultrajantes. Eram k águas escuras do Kronkel. A moça brincava alegremen-
sempre-elas que introduziam o doce veneno da lisonja, que atirando água em uma amiga que se encontrava em outro
levava os guerreiros a sentir que valia a pena arriscar a vida, vo, com a pá de seu remo.
Muitos dós sawis tinham imensa satisfação em arrastar Wario depôs a tenaz no chão, e fitou o rosto de Kani que a
suas vítimas, já feridas, até a aldeia, para que as mulheres llva inquisitivamente,
tivessem o prazer de acabar de matá-las a pauladas, com seus “Na verdade, eu sempre senti muito a morte de Huyahan,
bastões de malhar o sagu. [Era vedado às mulheres o uso de e cla.
arco e flecha, os quais não podiam nem tocar, pois, se elas se Depois acrescentou as palavras fatais;
tornassem peritas no manejo de armas tão perigosas, os ho- Chamem Mahaen!
mens correriam perigo. As várias lendas com relação às ten
amazonas, que abundam na Nova Guiné, serviam de adver- Mahaen subiu para a “casa longa” de Maum e se assentou
tência para eles.) Esteira que ali fora colocada para ele. Era um homem alto.
Por fim, a cerimônia sawi denominada eren, à qual uma às músculos desenvolvidos, seus braceletes de rabo de porco
moça ou senhora compareceria ostentando no pescoço o brilhante colar sudafen que exibia garbosamente falavam
maxilar de uma vítima recente, era a prova máxima de en- feitos na caça e na luta, Maum, Sauni, Mavu e Kani
volvimento emocional do sexo feminino na prática da caça à am sentados diante dele para distraí-lo, enquanto Wario,
cabeça. Maca às costas de Mahaen, fingia lidar com o fogo. Aos pés
Nas ocasiões — aliás bem raras - em que uma mulher estavam os pãezinhos de sagu que acabara de assar.
tinha um papel mais saliente no desenrolar de um tuwi egando um deles, ela veio por trás dele e inclinou-se ao
asqnai man, sua parte era relembrada com destaque, cada lado com o pretexto de oferecer-lhe o petisco. Mahaen
vez que a história fosse narrada. A velha Wario estava bem a jeu à mão distraidamente para pegá-lo, e nem notou o
par destas coisas, como de resto todas as outras mulheres ho de satisfação que por uns instantes luziu nos olhos
sawis. E Kani tinha certeza de que ela não recusaria esta rara quatro homens que observavam a ele e à velha. Tampou-
oportunidade que ele lhe ofereceria de se incorporar à lenda, ve tempo de reparar que a conversa fora abruptamente
tu Errompida no meio de uma sentença.
A velha Wario, com as feições denotando um certo nervo- É) que aconteceu em seguida foi em meio a uma movimen-
sismo, estava sentada em sua esteira de palha, a cabeça ra- io súbita. Wario, ao invés de colocar o pão sobre a mão que
pada, segundo determinava o costume sawi para as viúvas, he estendera, abaixou o braço e tocou com ele a genitália de
ponderando sobre a sugestão que os quatro homens — dois iaen. Com um gesto ágil, escapou de seu alcance, é colo-

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7a iate 3 O Totem da Paz O Herói de Uma Lenda 75

cando-se diante dele, levou o pão à boca. Foi com uma expres-
são de horror nos grandes olhos negros, que Mahaen viu Wario
morder a ponta do alimento que tocara em seu corpo. Ao pre-
senciar aquilo, ele se encolheu todo, como um animal acuado
que tivesse acabado de ser apanhado na armadilha.
Waness!
Com este terrível ato, Wario havia, repentinamente, des-
viado todo o curso de seu destino para um novo rumo, que
ele ainda ignorava qual fosse. Não havia remédio para ele.
Ao sujeitar-se à suprema humilhação de comer um pedaço
de pão que tocara a parte íntima do corpo de Mahaen, Wario
impusera sobre ele um débito de grandes proporções, acres-
cido do fato de ela ser sua sogra,
Só havia um modo de saldar a dívida que agora ele con-
traíra para com ela. Primeiramente, precisava indagar-lhe o
que deveria fazer para compensá-la da humilhação auto-
inflingida. Depois, o que ela determinasse, ele tinha de rea-
lizar, custasse o que lhe custasse. Se não O fizesse, Wario teria
que continuar a carregar aquela vergonha, e toda a comuni-
dade se sentiria eternamente ofendida por ele. Uma coisa
estava clara: a ordem que ela tinha em mente para lhe dar
deveria ser abominável, senão ela não teria recorrido 30 su- A notícia se espalhou rapidamente como fogo em capinzal.
premo recurso do waness. A repulsa que ele sentiria ao obe- Primeiro, chegou aos ouvidos dos habitantes de todos os
decer aquela prescrição, que ainda desconhecia, representa- povoados ao longo do Kronkel. Depois foi abrindo uma tri-
va exatamente o fator de equilíbrio que compensaria a mu- lha para o sul até às margens do Cook, e depois do Juliana.
lher pela vergonha sofrida. Para o norte, foi seguindo um caminho que a levou aos sawis
Os cinco espectadores esperavam em silêncio pela sua e asmates, ao longo do Yeem. Por fim, após ter se estendido
decisão, enquanto Mahaen fitava inexpressivamente a estei- até Faraes, ela foi diminuindo de intensidade até tomar pro-
ra sobre a qual se assentava. Seu rosto se abrasava ao lem- porções de um leve rumor, e morrer de todo às margens do
brar da vergonha de sua sogra. Por fim, depois de vários mi- Au.
nutos, uma expressão de derrota cobriu suas feições, e, com A notícia foi berrada em sawi, narrada em atohwaem,
os olhos presos aos pés da mulher, pronunciou, em voz re- trovejada em kayagar, em auyu € em asmate, Era o relato da
signada as palavras que eles estavam aguardando. traição de Mahaen contra os parentes de sua própria mãe.
— O que você quer que eu faça? Para Haenam, foi uma nova coroação da infâmia; para
ten Wasohwi, um inferno ardente de tristeza e feroz indignação.
SG
CLSGS ZAS
VAGAO AO DO DOI: 0450500000
REGRAS NAN PNAIPS
. FE O Totem da Paz lerói de Uma Lenda <p 4 dESEjo 77

Pais, mães, irmãos € irmãs rolavam em cinzas, as vozes rou- O orador contaria sua história com cinco ou seis sen-
cas de tanto prantear, os olhos avermelhados pelas lágrimas ngas rápidas, saltando no chão, balançando a cabeça de
escaldantes. im lado para outro e segurando a lança em riste, Quando
Oito homens de Wasohwi haviam acedido pronto e confian- fminava sua exposição, todo o grupo recomeçava a gri-
temente ao convite de Mahaen, para irem a uma dança em desta vez em louvor ao grande feito descrito. Aí en-
Haenam. Suas canoas chegaram ao entardecer, exatamente |, OS tambores reencetavam seu agonrento murmurar,
no momento em que os jovens de Haenam, resplendentes que retratando o intervalo de tempo no qual a tra-
em suas pinturas corporais e adornos de plumas, começa- já cra preparada e consumada, e que mediava entre um
vam a ruflar os tambores para à dança. Um grupo formado Wutro feitos de gloriosa traição. Cerca de cinco minutos
pelos mais influentes homens da aldeia, liderados por Kani, pois, Os instrumentos novamente se fariam ouvir com
foram até a praia receber os visitantes, pera ruflar significativo, para anunciar mais uma histé-
O próprio Kani escolheu de entre eles um homem de nome ostentação de sede de sangue, por parte de um outro
Fusuman, e levou-o à sua casa para comer sagu e bolinhos
de larva. Fusuman concordou em segui-lo até sua elevada A toada dos que cantavam consistia inteiramente de síla-
casa de árvore. O mesmo fizeram Sauni, Warahi, Mavu, “sem sentido algum. Os sawis nunca usavam a música
Maum, Boro, Yamasi, e Paha, cada um escolhendo um dos imo um veículo para transmitir uma mensagem; usavam-
convidados e levando-o à sua casa. Não havia no ar o míni- ! apenas para excitar os sentidos. Para eles, o meio era a
mo indício de que ocorreria uma traição, Algumas pessoas jensagem. Aquela sequência de sons variados e sílabas sem
do povoado até ignoravam o terrível destino que aguardava Exo eram apenas um dos muitos efeitos vocálicos que com-
os oito visitantes, " am aquela representação.
O sol retirou sua luz, desaparecendo nos horizontes da “E assim os cantadores entoavam sua melodia enquanto
selva. A lua cheia elevou seu rosto pálido de tons ambarinos, estrelas se moviam no céu, e os fogões lançavam chamas
espiando agourentamente por entre estrias de nuvens cin- eiE ais que scg entreviam pelas frestas das paredes de
zentas e galhos de árvores frondosas. Os dançadores, agru- Ima de sagúeiro. Os convidados banqueteavam alegremente
padosà sombra das casas de árvore, endereçavam às estrelas to com seus anfitriões, deleitando-se com a confraterni-
estranhas cadências em tom menor, Cada cadência termi- são, as palavras amáveis, o riso feliz e despreocupado, sem
nava com uma longa escala descendente, as vozes pronunci- inhar que o verdadeiro banquete deveria se realizar bem
ando um demorado “Uuuuuuuuu”, enquanto os tambores luis tarde e ignorando que um homem de seu próprio san-
perseveravam em seu batido constante. E, Mahaen, os atraíra para ali, a fim de que se tornassem
Vez por outta, uma aceleração no ritmo dosiinstrumentos, à comida que seria servida neste banquete.
ocasionaria uma momentânea explosão de gritos selvagens, Kani foi o primeiro a atacar. Ele e Fusuman haviam desci-
num clímax de excitação. E de entre o rumor surdo do tumul- y para o chão e se reunido aos dançadores. Num rápido
to, um guerreiro ergueria a voz, em um agudo falsete, e narra- jumento de silêncio, quando se haviam calado cânticos e
ria, em brados, os detalhes de alguma morte que cometera. imbores, Kani escutou o trinado distante de um haragu,
Os outros então quedariam em silêncio para ouvi-lo. jual certo de que a aurora não tardaria a romper. Então ele

OCO DES,
EP PN
78 Ei =->- O Totem da faz Heniide Uma Lenda E == 79

convidou Fusuman para subir novamente à casa, para fuma- = O que está esperando? indagou Kani. Eu já degolei o
rem um pouco.
Quando o outro já estava confortavelmente sentado, tra- Maum soltou um curto assovio de admiração, e entrou
gando profundamente de seu longo cachimbo de bambu, Kani 4 casa. Kani desceu apressadamente. Mal chegou embai-
aproximou-se por trás dele no escuro, empunhando um fa- ), Ouviu o ruído da lança, e os gritos abafados da vítima de
cão de aço, que “comprara” de um kayagar recentemente. sto, um homem de nome Aidon. Dali dirigiu-se para
Retesou os músculos e vibrou um golpe certeiro e forte con- 1 de Mavu, e não viu que Aidon vinha aos trombalhões
tra a base do crânio de Fusuman. Pensava que a bordoada à mesma escada que ele descera havia pouco. Quando
poderia pelo menos paralisar sua vítima, se não a matasse, E al Maum conseguiu arranjar outra lança, € saiu em per-
mas à arma estava muito cega. Os kayagares sempre guarda- guição de Aidon, este já desaparecera na escuridão, dei-
vam para si as mais afiadas, indo atrás de si apenas uma trilha de sangue, que só seria
Fusuman caiu de bruços, engasgado. Kani pegou outra de sível dentro de mais um quarto de hora.
suas Tecentes aquisições, um machado de ferro. Fusuman Quvindo Kani falar do sucesso de sua empresa, Mavu tam-
rolou no chão ficando de costas. Olhou para Kani que avan- im resolveu eliminar seu convidado, Eseger, mas conse-
çava para ele, à luz bruxuleante do fogo. flu apenas feri-lo, pois foi estorvado pela presença de suas
- Ave! Ave! Irmão! Irmão mais velho! gritou. iposas e filhos na casa. Eseger fugiu noite adentro, sangrando
—No ke ave don nom! Ukeden! Não me chame de irmão. in
imbém, o tantá dos tambores abafando seus gritos de ad-
Vou matá-lo! replicou o outro. E srtência para os companheiros que ainda pudessem estar
A lâmina de ferro abateu-se sobre ele mais uma vez, e Ds.
mais outra. O barulho despertou as duas esposas de Kani, Hani e Warahai também tiveram sucesso em matar e de-
mas as crianças continuaram a dormir placidamente. Yac, a Npitar seu visitante, um rapaz de nome Seg. Tausi e Mahaeri
mais velha, começou a abanar o fogo para reativá-lo, a fim bram mortos também, enquanto que Iri e Meramer escapa-
de que pudesse enxergar melhor o que se passava. Viu o E com ferimentos.
marido inclinado sobre Fusuman, decapitando-o. Suas per- A luz do dia revelou então quatro corpos prontos para O
nas estavam vermelhas, tintas com o sangue de sua vítima. squartejamento. Os outros quatro, por um sobre-humano
Kani colocou a cabeça junto ao corpo, e saiu de casa. Os si orço da vontade, ainda conseguiram voltar para sua al-
tambores ainda ruflavam, embora em ritmo mais preguiço- leia, correndo através de quilômetros e quilômetros de selva
so. O canto dos haragus agora enchia toda a aldeia, já que os É| pantánal denso, vindo a sucumbir aos ferimentos nos de-
primeiros clarões da alvorada iluminavam o céu para os la- graus de suas respectivas moradas.
dos do nascente. ty
Kani correu à casa de Maum, e subiu pela escada. O outro Durante as semanas de festejos que se seguiram os habi-
veio recebê-lo à porta. Kani perguntou-lhe num sussurro: tantes de Haenam deram honras e glórias a Kani e Mahaen.
— Já matou 0 seu? OD fato de que quatro dos homens haviam escapado de ser
Maum se coçou num gesto lento, e respondeu: Ú
Wecapitad os e devorados, não desmereceu em nada as come-
— Ainda não, morações, O que importava realmente não era o número de

S60600950009000
o EEEDb=>s> O Totem da Par À Eercii de Uma Lenda «eg gEdt— 81

vítimas, e sim a engenhosidade do ato de traição que as trou- Tinham sido necessários quase dois mil anos para que a
xera até ah. mensagem deste novo sistema de valores saísse da Galiléia e
Kani e Mahaen juntos tinham dado origem à uma nova Mhegasse aos pantanais miasmáticos do sudoeste da Nova
narrativa histórica, Eles haviam dado uma grande amplitu- quiné. E neste percurso ela já havia desafiado e lutado con-
de ao velho ideal do povo sawi; um ideal que as milhares de ya o barbarismo em suas múltiplas formas, na mente de
gerações de seus ancestrais haviam concebido, sistematiza- milhões de pessoas, e o havia derrotado, pois esta mensa-
do e aperfeiçoado no decorrer dos séculos e milênios. Trata- Jem era fortemente penetrante. Nunca foi coibida por obs-
va-se do fato de se utilizarem da afeição para cevar a vítima iculos terrenos, já que seu poder é sobrenatural. Nunca
para a matança, e de terem prazer e se deleitarem em con- o
soderia ser intimidada, pois ela, em si, é o antídoto do medo.
templar a miséria e a destruição de outrem. Este ideal era | Esta mensagem nunca fugiria acossada por nenhuma for-
simbolizado inconscientemente pelo costume de, vez por pá de trevas, porque ela é a própria luz. Nunca seria enver-
outra, usarem a caveira de suas vítimas como travesseiro, pnhada por seguidores simples demais, rudes ou até mes-
embora, na verdade, a cabeça dos parentes recebesse, na maio- n D iletrados; pelo contrário, ela se deleita em executar suas
ria das vezes, a sua preferência. A cabeça das vítimas costu- tratégias mais sutis por intermédio de pessoas assim. Para
mava ficar coberta de fuligem pela exposição ao fogo. ssespero de seus inimigos, ela triunfa mesmo quando seus
Assim como toda filosofia, uma vez firmada e aceitos os ileptos são dizimados pela lança ou pela espada.
seus princípios hásicos, arrasta irresistivelmente seus adep- Trata-se da mensagem do evangelho de Jesus Cristo. Seu
tos para conclusões dogmáticas, assim também esse concei- ropósito - por sinal irredutível - é persuadir pessoas de “toda
to de vida e sucesso dos sawis encontrara finalmente sua ribo, língua, povo e nação” a se arrependerem e se reconci-
expressão máxima na traição de Kani e Mahaen, Homens, irem com Deus através de Jesus Cristo. Esta mensagem
mulheres e crianças agora viam neles a culminância da ca- atava para invadir os domínios do povo sawi; estava para se
pacidade humana, elrontar cara a cara com o culto da traição numa luta espi-
Contudo aquele momento de glórias estava para enfren- itual sem tréguas, pela posse da alma de homens e mulhe-
tar um grande desafio. E não somente a posição deles mas ks e crianças. Seria um confronto da oração e da pregação
também o culto da traição que eles defendiam iria se defron- bm a lança e as setas ponteagudas; da fé e da esperança com
tar com algo de que os sawis nunca haviam ouvido falar — barbarismo sistematizado; um encontro do amor e da mi-
um teste de valores, Pricórdia com o terror e o mal entrincheirados naquelas
Nem Kani nem Mahaen sabiam ainda que cerca de dois apens.
mil anos antes de eles próprios existirem, um outro herói A invasão estava para ser iniciada; a luta iria começar
infinitamente supremo, lançara um novo conceito de vida bEo; à reconciliação seria iniciada muito breve. Pois exata-
totalmente baseado em amor. Era uma filosofia diame- jente naqueles dias os primeiros mensageiros daquele grande
tralmente oposta à mentalidade dos sawis como de resto "rói estavam para chegar e habitar entre os sawis.
o era à mentalidade de milhões de pessoas que se consi-
deravam muito mais sábios que povos semelhantes aos
sawis.
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DO ASA
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ENSAIA
LAO ZO DOO O
ODO DO DO DÃO
segunda Parte
Dois Mundos se
Encontram
ç Unese de Uma Missão «pao 85

O ano era 1955; seus ouvintes, o corpo discente da es-


lo bíblica Prairie Bible Institute, uma organização em
Eenvolvimento, situada nas planícies invernais do Ca-
SEIS «lá, próximo de uma cidadezinha chamada Three Hilla.
"Sentado atrás dele, o notável diretor da escola, o $r. L. E.
nxwell, inclinou-se para diante, (Esta escola é um centro
treinamento missionário que, em parte, conta com sus-

A Gênese de hto próprio.) Igualmente grisalho, e com um forte ar de


lerminação estampado no semblante, ele era a síntese do
h épido e vigoroso idealismo do instituto.

Uma Missão o falar àquele grupo de estudantes, Vine sentiu-se do-


Edo por uma forte impressão de objetividade. As outras
golas que visitara em seu itinerário talvez pudessem se
jar de mais alto nível de escolaridade, e de alunos mais
parados que os daquele instituto cujo lema era: Formar e
O orador era um velho inglês, muito magro, de setenta
ciptinar soldados de Cristo. Mas ao fazer o apelo para a
e um anos de idade. Firmou as mãos grandes e ossudas no
ja pioneira de fincar a bandeira do evangelho de Cristo no
púlpito, e fixou os olhos nos setecentos estudantes que
eter or da Nova Guiné Holandesa, entre tribos isoladas é
compunham seu auditório, e que aguardavam sua palavra
tencialmente hostis, ele estava cônscio de que o fator pri-
em silêncio. Seu cabelo branco estava todo penteado para
prdial a ser considerado não seria alta escolaridade e cul-
trás; os óculos, espetados no meio de seu nariz anguloso.
| embora tais coisas não devessem ser absolutamente
Sob os tufos das sobrancelhas espessas, os olhos cinzén-
joradas. As qualidades essenciais que deveriam compor o
tos brilhavam com uma intensidade que os anos não ha-
fáter dos futuros pioneiros naquele trabalho seriam: uma
viam arrefecido.,
inabalável, a autonegação e o cultivo de uma íntima co-
Havia algo em sua pessoa que parecia magnetizar seus
unhão com Deus. E estes eram os principais qualificativos
ouvintes, assentados diante dele no imenso salão nobre da
* o corpo docente do Prairie Bible Institute procurava in-
escola. Três palavras se fizeram ouvir, pronunciadas numa
le: nos alunos, tanto pelo seu próprio exemplo de vida,
voz profunda, pelos lábios do ancião — trés palavras emoldu-
mo pela instrução que davam, uma aplicação da verdade
radas pelo seu próprio tom de dignidade e fervor.
blica à vida de cada um.
“Nova Guiné Holandesa.”
Ebenezer Vine conhecia muito bem a história da forma-
Com estes três vocábulos, o Sr. Ebenezer G. Vine, secre-
oc do desenvolvimento da escola. Desde sua fundação
tário do concílio de Filadélfia de uma sociedade missionária
1 1922, numa casa de fazenda, e com um grupo inicial de
internacional, a Regions Beyond Missionary Union (União
fo alunos, ela crescera bastante, e se tornara a maior ins-
missionária das regiões distantes) introduziu o assunto de
fuição de treinamento missionário do Canadá. Devidoà
sua palestra.
e ênfase que ali se dava ao trabalho de missões estran-

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4 sis 87
86 E O Tutém da Biz A Gênese de Uma Missão

geiras, mais de mil e cem dos três mil estudantes por ela risco de levar a culpa da morte do paciente, se seus esforços
graduados tinham dedicado a vida à obra missionária no falharem. Terá que se munir de forças para suportar a soli-
exterior, enquanto centenas de outros passavam a traba- dão, o cansaço ea frustração, Mas acima de tudo, terá que se
lhar como pastores ou obreiros na pátria. Com base nestes fortalecer com o poder do Senhor para combater as forças do
dados, aquele pregador sabia que cerca de 35% dos alunos príncipe das trevas, que, tendo tido estas centenas de tribos
que o escutavam no momento estariam seguindo para os presas em suas garras, durante séculos e séculos, não irá
campos do mundo, sob a orientação de várias das socieda- desistir delas facilmente. em
des missionárias conhecidas. E as tribos da Nova Guiné O velho pregador fez uma pausa, e O silêncio começou a
Holandesa, gente sem Cristo e sem salvação, necessitava ado naquele imenso auditório.
desesperadamente do empenho de alguns deles, pensava a Há seteRE prosseguiu ele, agora recordando, conheci
ele, enquanto com palavras candentes extravasava 0 anseio aqui mesmo nesta escola um soldado de nome Paul Gesswein,
de seu coração, descrevendo a terra sawi e seu povo violen- que regressava da frente de batalha na Nova Guiné. Disse-me
to e imprevisível. ele:
— A Nova Guiné Holandesa, prosseguiu ele, é a parte oci- É — “Sr Vine, quero lhe fazer duas perguntas. A primeira é
dental de uma ilha de quase dois mil quilômetros de exten- a seguinte: será que esta missão está ciente de que existem
são, situada ao norte da Austrália, e que é banhada pelo ocea- milhares de pessoas habitando no interior da Nova Guiné
no Pacífico, Está localizada na região tórrida, logo ao sul da Holandesa, isoladas de tudo, e ainda sem a mensagem do
linha do equador, embora no interior de sua área encontrem- elho?”
se cadeias de montanhas, com picos cobertos de gelo e que Domo éé que você sabe disso?“ indaguei. E ele replicou:
atingem a altitude de cinco mil metros. Em outras regiões, — “Tm de nossos aviões militares desapareceu quando
podemos nos perder em pantanais insalubres, onde uma sobrevoava aquela região. Eu tomei parte nas operações de
enervante umidade é constantemente alimentada por chu- busca. Quando passamos sobre algumas áreas que não cons-
vas torrenciais e por um calor sufocante. “tam dos mapas, descobrimos, com espanto, inúmeros válos,
— Você que me ouve pode ser chamado a fazer a primeira povoados de aldeias cercadas por extensas áreas verdes.
incursão em uma zona onde tribos inteiras desconhecem — Então indaguei dele;
qualquer tipo de controle governamental, onde o povo for- — “Qual é sua segunda pergunta?”
mula suas próprias leis, e onde a selvageria é um modo de — “Será que a missão não estaria interessada em ajudar-
vida. É possível que tenha de pregar e se expressar numa “me a levar o evangelho àquela gente?” foi a resposta, ”
língua que nunca foi falada por nenhum estrangeiro. Lá não — Sabendo que uma resposta positiva a tal indagação iria
haverá o auxílio de dicionários, gramáticas, ou quaisquer resultar numa complexidade de fatos, procurei informá-lo
outros compêndios didáticos — você terá que compilar sua primeiramente de que nós já nos achávamos empenhados em
própria gramática, cinco frentes de trabalho: Índia, Nepal, Congo (atual Zaire),
— Encontrará costumes que irão confundi-lo, mas que você Peru e Bornéus. Depois, deixei-me entusiasmar um pouco pela
precisará analisar e compreender, se quiser obter sucesso. idéia, e acrescentei: “Mas vou ver o que se pode fazer”
Tentará tratar de terríveis moléstias tropicais, e correrá O — Alguns meses depois, após muito estudo e oração por

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ss ED O Totem da Paz pese de Uma Missão 4 89
parte do concílio, tive o prazer de escrever a Paul Gesswein, ado por outrem —mas para pregaro evangelho de Cristo
dizendo-lhe: “O concílio da missão aprovou seu pedido. Es- periões onde seu nome nunca foi mencionado, nem ao
tamos enviando requerimento ao governo da Holanda, soli- jos uma vez, então quero dizer-lhes que nossa missão
citando permissão para penetrar no interior da Nova Guiné “pronta a considerar as suas qualificações. e
Holandesa.” “Por quanto tempo ainda aquelas tribos perdidas terão
— Mas pouco depois recebemos a notícia de que o gover- Esperar para ouvir falar daquele que há dois mil anos
no holandês rejeitara nosso pedido, argumentando que suas peut + e ressuscitou para que eles fossem salvos? Nos últi-
forças policiais não podiam assumir a responsabilidade de vem anos, os mensageiros de Cristo têm se contentado
proteger nossos missionários do perigo representado pelos juupar somente as áreas mais acessíveis da faixa costei-
canibais. Continuamos tentando. Eu mesmo atravessei 0 Nas, agora, chegaram as novas ordens de avançar — para
Atlântico três vezes para advogar nossa causa junto ao go- erior!
verno de Haia. Só muito recentemente foi que recebemos O Senhor está ansioso para estabelecer seu reino de
autorização para entrar. yr naquelas regiões sombrias, onde presentemente impe-
— Agora O caminho para o interior está aberto. A missão erucldade. Dois homens e suas esposas já foram à frente
Missionary Aviation Fellowship [Asas de Socorrol, da Califór- Cesto belecer uma cabeça de ponte, e estão na expectativa
nia já tem um monomotor operando, e poderá transportar tan- iceberem mais reforços. Quem irá e os auxiliará a ex-
to passageiros como suprimentos, da nossa missão ou de ou- elir esta pequena arrancada?
tras, para o campo principal, chamado Bokondini, que está si- Polo bastante. Deus tinha mesmo a intenção de frutifi-
tuado bem no coração do planalto central. Paul Gesswein e
"à visão que dera ao velho líder missionário. Um dos jo-
nosso outro obreiro voluntário, Bill Widkin, auxiliaram no pre- N que o ouviam era Bill Mallon. Em menos de três anos,
paro das instalações de Bokondini, e agora estão planejando sua esposa, Barbara, iriam se unir a Paul e Joy Gesswein
subir as montanhas, e ir até um povo chamado danis, do Vale 4 outro casal, Bill é Mary Wibdin, em seu ministério com
Escuro. Enquanto isto, suas esposas ficarão trabalhando nos Manis do Vale Escuro. Nos primeiros quatro anos, Bill de-
projetos de logística, na costa norte, aguardando até que haja pu-se ao estudo do idioma falado no local e à preparação
segurança para elas irem se reunir aos maridos. uma estrutura gramatical para facilitar o aprendizado da
Neste ponto, o orador estendeu a mão direita em direção ua aos missionários que viessem depois.
aos alunos e prosseguiu: outro ponto daquele salão nobre estava David Martin,
— Não posso crer que Deus iria abrir diante de Regions nais jovem aluno de sua classe, Também ele sentiu o to-
Beyond Missionary Union (União missionária das regiões je da mão de Deus a chamá-lo. O mesmo aconteceu com
distantes) este novo e magnífico portal, para que apenas dois | tColton, que mais tarde se tornaria sua esposa. Jun-
casais entrassem por ele, Deve haver outros a quem Deus ente com Bill e Barbara, aqueles dois iriam ter o ensejo
está chamando para se juntar a eles. E alguns destes podem E ver milhares de guerreiros danis queimarem seus fetiches
estar assentados justamente aqui, à minha frente. Se qual- pmamentos de guerra como resultado do seu trabalho de
quer um de vocês sentir que o Senhor o está chamando para gação do evangelho.
esta tarefa especial - não para edificar sobre um fundamento Em um outro canto, um jovem imigrante holandês, de
É A? Z A, a? a
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90 oii» O Totem da Paz “A Génese de Uma tHissão «Greg ga dai= 91

nome John Dekker, ouvia atentamente 0 pregador. Ele tam- “a, que foram engrossar as fileiras da missão Regions Beyond.
bém iria, com sua esposa Helen, empreender um novo avan- E em 1965 o número de seus obreiros foi elevado para mais
ço, estendendo a obra até um recanto do Vale Escuro deno- “de trinta. A esta altura, a vida de cerca de quatorze mil pa-
minado Kanggime, que na língua dani quer dizer “lugar da “puanos — um povo que ainda vivia na idade da pedra — fora
morte”, Através do trabalho deles, este “lugar da morte” fi- “profundamente transformada, pelo seu ministério de prega-
cou repleto de vida, pois milhares de seus habitantes recebe- “ção, cura € ensino,
ram a Cristo em seu coração. Cinco anos depois, em 1971, o número de adesões eleva-
Além destes, houve também duas moças, Judith Eckles e “ra-se para 21.000, Também o grupo de missionários cresceu
Winifred Frost, que começaram a sentir que seu futuro esta- bastante, e estes, reunidos a 176 recém-doutrinados líderes
ria, de certo modo, ligado ao que aquele homem dizia. E “nativos, conseguiram estabelecer mais de cem congregações
realmente, daí a alguns anos, elas foram juntar-se à equipe e inúmeras escolas e clínicas médicas, nas altas encostas €
da missão das regiões distantes que se encontrava no Vale “nos pantanais das terras baixas.
Escuro dedicando-se ao ministério do ensino e do aconse- Tribos inteiras eram salvas, de forma dramática, de uma
lhamento, e assistindoa enfermos, na igreja que principiava ppressão milenar exercida sobre eles pela superstição e sel-
a se formar como resultado de seus esforços. vageria. Passaram a desfrutar não apenas da bênção de uma
Em outra parte da assistência, um jovem casal originário integridade espiritual através do evangelho, mas também de
da zona rural do Estado de lowa, nos Estados Unidos, tam- “uma grande paz e segurança social, como nunca haviam co-
bém escutava atento — era Philip e Phyliss Masters. E pouco “nhecido antes. A este quadro foi adicionada depois a educa-
tempo depois, eles estariam participando das oportunidades ção, que veio fortalecê-los contra a impiedade de explorado-
ilimitadas que existiam no Vale Escuro. Mais tarde prosse- “res mal intencionados que procuravam tirar partido de sua
guiriam para o interior, a fim de iniciar a obra em Korupun, ingenuidade, como acontece tantas vezes às tribos despreca-
onde estavam os kimals, um povo de caráter instável e vidas de certas partes do mundo.
irritadiço. Treze anos mais tarde, Philip iria morrer às mar- * Médicos e enfermeiras, trabalhando em clínicas situadas
gens do rio Reug, com o corpo traspassado por cem flechas no meio da selva, em pouco tempo conseguiram erradicar a
dos guerreiros da tribo Yali. Sua esposa, Phyliss, seguindo praga da piã que os assolava; também auxiliavam no comba-
uma orientação do Espírito Santo e sentindo-se confortada te às epidemias de gripe, sarampo e coqueluche que havia
por ele, regressou ao Vale Escuro com seus cinco filhos para tanto tempo dizimava aquelas gentes distantes da civiliza-
continuar a obra iniciada. “ção. E em meio a tudo isto, os missionários se viam às vezes
Outro dos que se encontravam no auditório era Richard mulados de gentilezas e expressões de gratidão por parte
Hale, que mais tarde trabalharia, juntamente com sua espo- daqueles milhares de indivíduos que reconheciam — mais
sa Wanda, durante três anos nas ilhas Salomão. Depois, iriam que qualquer forasteiro — a imensa transformação sofrida
transferir-se para a Nova Guiné Holandesa onde permane- por eles quando aceitaram a Cristo.
ceriam apenas um ano por questão de saúde. Naturalmente, tudo isso só foi possível através de muito
Além destes, vieram outros voluntários de escolas evan- esforço. Naqueles anos, centenas de milhares de horas de
gélicas da América do Norte, Inglaterra, Alemanha e Austrá- trabalho missionário haviam sido investidas em evangelismo,
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2» EDb>o> O Totem da faz A Gênese de Uma Missão a 93

no estudo das imtrincadas regras gramaticais dos idiomas “4 terra apresenta sob a forma de seus charcos e cadeias de
tribais, na compilação de dicionários, na preparação de alfa- “montanhas. A Nova Guiné Ocidental logo passou a centra-
betos para línguas ainda não colocadas em forma escrita; na lizar a maior parte das atenções de Asas de Socorro, exigindo
construção de casas, escolas e clínicas; na abertura de pistas uma movimentação constante de até oito aparelhos tanto
de pouso em terreno antes recoberto de selva; em viagens
por montanhas geladas; no desbravamento de rios sinuosos; Gesswein, Vine e os outros pioneiros desta obra nova esti-
no estudo dos costumes e crendices daquelas tribos exóti- “naram a população do interior em termos de dezenas de mi-
cas; na pregação do evangelho e na alfabetização daqueles Ihares. Na realidade, cerca de 300.000 pessoas, vivendo em
que correspondiam à mensagem de forma positiva; na tra- pondições bem primitivas, seriam descobertas antes que todo
dução das Escrituras; na medicação de enfermos e no trata- p território fosse desbravado. As seis missões empenhadas no
mento de feridas; no julgamento de questões entre facções estabelecimento de igrejas evangélicas ali, auxiliadas pelos ser-
beligerantes; na contratação, supervisão e pagamento de tra- viços aéreos de Asas de Socorro, vitam um total de 125.000
balhadores; em consertos de geradores elétricos, máquinas destes indivíduos da cifra acima mencionada, expressar sua
lavadoras, motores de popa é gravadores de fita magnética; fé cristã antes do final de 1971.
tcisão pela
na manutenção da correspondência com os sustentadores * Muitos destes convertidos igualaram — e alguns até supe-
da obra que se achavam na pátria; na escrituração das finan- taram — a fé e devoção dos próprios missionários. Alguns
ças; em palavras de encorajamento aos desanimados, de pa-
cificação para os encolerizados e de consolo para os desespe- frentaram a morte por sua fé, com triunfo e resignação, ape-
rados, na recepção de visitantes; na preparação de pedidos lando aos seus assassinos para que recebessem a Cristo. Ao
de suprimentos, feitos com meses de antecedência, em ora- “tentar defendê-los, Stan Dale, missionário da RBMU, origi-
ção pelo auxílio financeiro necessário; é em agradecimento a “mário da Austrália, foi ferido pelas flechas inimigas cinco
Deus pelo extraordinário privilégio de participar de sua obra “vezes. a
ali, Dois anos depois, Stan foi morto juntamente com Philip
Tudo isto pode ser dito a respeito dos missionários da Masters, por ocasião de uma sublevação dos yalis. Poucos
Regions Beyond Missionary Union (RBNU), e também do "meses depois da morte deles, este povo hostil começou a
trahalho de outras missões, tais como: Unevangelized Fields “mudar sensivelmente de atitude. Em breve, dezenas de al-
Mission [missão aos campos não-evangelizados), The “deias acolhiam bem os evangelistas cristãos da igreja do Vale
Evangelical Alliance Mission (missão da aliança evangélica); “Escuro. Pouco depois, centenas deles começaram a voltar-se
Asia and Pacific Christian Mission (missão cristã da Ásia e “para Cristo, incluindo muitos dos que haviam matado aque-
Pacílico!; Christian Missionary Alliance (Aliança Cristã Mis- les quatro mártires cristãos.
sionária]; Australian Baptist Mission Society (sociedade mis- Mas em 1955, quando Ebenezer Vine soltou aquele seu
sionária batista australiana) e da Missionary Aviation “desabafo perante os alunos do Instituto Prairie, tudo isto
Fellowship [Asas de Socorro]. O maravilhoso ministério do ninda estava envolto nas brumas do futuro. Entretanto, sen-
ar desta última possibilita às outras seis manterem um con- do eu um dos setecentos ouvintes que ali se achavam naque-
trole adequado da selva e vencerem as imensas barreiras que le dia, pareceu-me que Deus de repente aparecera entre nós
a? A a? Na? o
Z e e, 2, AZ = = “ a? a? a? a? na a, a
EED=> OQ Totem de Paz Dinese de Uma Missão == 95

com um certo plano de trabalho, à procura de pessoas que tras culturas. Orientado pela paz de Deus, matriculei-me
pudesse utilizar para a execução deste plano. | Prairie em outubro de 1953.
Também eu tive a inconfundível sensação de que era um A i, pelo ensino dinâmico da escola, o contato com es-
dos que ele estava chamando, Deixei a capela de cultos e Jantes de ideais semelhantes aos meus e com missio-
dirigi-me ao dormitório sentindo o peso daquela mensagem. r bs de várias partes do mundo, tive a confirmação de
Estava ansioso para ficar a sós com Deus é orar. Queria per- je Deus me chamava para servi-lo no extérior No entan-
guntar-lhe o seguinte: | vinda havia uma questão. Eram muitas as opções de tra-
“Será este o campo de trabalho que tens para mim? É isto lho, inúmeros os campos que pediam obreiros, e muitos
que queres que eu faça?” É povos que aguardavam sua hora de ouvir a pregação do
Contava então vinte anos. Havia três anos passara pela ingelho. Assim, o problema se ampliou bastante; em que
experiência de uma nova vida em Cristo, do amor de Deus e ar deste imenso e vasto mundo Deus desejava que eu o
do gozo de conhecer o Senhor pessoalmente. Isto aconteceu visse?
num momento de crise em minha vida, Eu clamei a Jesus, e, Durante os três anos seguintes, a Tesposta a esta pergun-
subitamente, ele se apresentou a mim — vivo! Em dois mil parecia sempre longe de mim. Por fim, em 1955, enquan-
anos não envelhecera nem um pouco. Vim a descobrir que "meditava nas palavras de Ebenezer Vine, meu coração
ainda possuia o mesmo poder de transformar vidas huma- meçou a bater mais fortemente é pareceu-me ouvir uma
nas e de conquistar nossa dedicação, que já havia demons- interior que me dizia: “Esta é a obra.”
trado dois séculos atrás, pela narrativa dos evangelhos. “Depois disto, tanto a chamada como minha decisão de
Agora, aqueles capítulos e versos — velhos, desgastados, endê- la iriam passar por severos testes. Várias decepções e
arcaicos — começaram a se revestir de um novo significado moras vieram como que bloquear a saída; mas o chamado
para mim, pois Deus me concedia o dom do entendimento Ersistia— apelando, atraindo-me fortemente.
para perceber o que eles tinham estado a me dizer durante Outra aluna do Prairie, que se achava presente quando
todos os anos anteriores, em que eu os lera, E daí em diante, mezer Vine entregou sua palestra acerca da Nova Guiné
com Cristo no centro de meu universo, as coisas principia- hlandesa, era a bela jovem Carol Soderstrom, de Ohio. E
ram a fazer mais sentido. Era servindo-o que minha existên- | assim que nós dois, primeiro, separadamente e depois,
cia adquiria dimensões eternas. Conhecê-lo pessoalmente, idos, dedicamo-nos a nos préparar para servir ao Senhor
falar dele a outros seria, doravante, meu objetivo máximo quela terra. Seguindo-se a nossa formatura do instituto,
na vida. E se falar dele num lugar onde já era conhecido cons- samos três anos em outras atividades: Carol fazendo o
tituía um privilégio maravilhoso, proclamar o seu nome onde lrso de enfermagem, e eu trabalhando como pastor e líder
ele nunca fora pronunciado seria um privilégio muito maior. |e juventude da igreja. Ambos buscávamos maior experiên-
Com estes conceitos em mente, comecei a estudar o mapa la no trabalho cristão.
do mundo e à procurar uma escola evangélica que pudesse Em agosto de 1960, nós nos casamos. Nos meados do
me proporcionar o conhecimento bíblico de que carecia, e no seguinte, fizemos o curso de linguística de verão da
formar em mim o espírito necessário para que eu comuni- Iniversidade do Estado de Washington, na cidade de Seattle.
casse o evangelho, da melhor maneira possível, a pessoas de : m novembro daquele mesmo ano, nascia Stephen, nosso

DOCSIC IT GIG DOCES EA.


> O Totem da Paz dênese de Uma Missão «4-adddo= 97
primeiro filho. Pouco depois conseguimos o visto de entrada Wpitaleira. Muitos dos grupos tribais daquela zona ainda
na Nova Guiné Holandesa. Partimos de Vancouver, por mar, Mticam o canibalismo e são caçadores de cabeça. Além dis-
no navio Oriana, no dia 19 de março de 1962, € aportamos à não se pode confiar neles. O clima é quente e úmido, e o
em Sentani, um posto aéreo da costa norte da ilha, no dia 13 is insalubre possível.
de abril, Uma semana depois, Dave Steiger, um piloto de » Entretanto resolvemos pedir a você « Carol que consi-
Asas de Socorro, levou-nos em nossa primeira excursão pelo fem-a possibilidade de irem para lá. Compreendemos que
interior, Descemos em Karubaga, que é a principal sede da sam ter escrúpulos em levar o pequeno Stephen para um
RBMU no Vale Escuro. ar assim, e se preferirem outra área, podem dizer. Contu-
Ali vimos homens seminus, portando machadinhas de | Se sentirem a orientação de Deus com relação a uma
pedra, c mulheres guarnecidas apenas de saiotes de capim, fa tribo do sul que está sob nossa responsabilidade, o ca-
trabalhando em suas plantações de batata-doce; utilizando- iho estará aberto para vocês.
se de varetas de madeira. Fomos recebidos na pista de pouso Passamos dois dias em oração, buscando a face do Se-
por Philip e Phyliss Masters, é por nossos colegas de classe buy, & depois demos nossa resposta para David.
David e Margaret Martin e Winnie Frost, juntamente com Iremos de bom grado para uma das tribos do sul. Quan-
outros missionários da missão e centenas de danis. poderemos partir?
Após as saudações e apresentações dei uma volta com No dia 19 de maio um piloto de Asas de Socorro, de nome
David Martin pelos arredores, enquanto ele me iniciava em ink Worthington, levou-nos de avião, de Karubaga até as
alguns fatos relativos à cultura daquele povo, é me fazia um Inícies do sul, Vimos com admiração as majestosas mon-
rápido resumo do trabalho da RBMU entre eles. Por fim has das imediações do monte Wilhelmina subitamente
a a parte que eu e Carol iríamos ter no futuro daquela karem de altitude, caindo de cinco mil metros para o ní-
obra, [do mar. À nossa frente, surgiam, brilhantes, os pântanos
David parou é estendeu o olhar para o relvado planalto de ile-esmeralda da região, recortados de rios e riachos,
Karubaga, alcançando as montanhas pontilhadas de aldeias Eejantes com seus extensos sagúeirais, que se estendiam a
danis. ler de vista. Em algum ponto daqueles pântanos, iría-
= Ainda há muito para se fazer aqui, no Vale Escuro, mas bs construir nosso lar, e viver no meio de canibais e caça-
na última reunião conjunta dos obreiros do campo, discuti- fes de cabeças.
mos bastante a respeito da grande necessidade das outras Por fim, a linha costeira do mar de Arafura apareceu
tribos, que ainda estão sem a pregação do evangelho. Entra- ante de nossos olhos, assim que Hank Worthington vi-
mos em entendimentos com The Evangelical Alliance Ny O avião Cessna em direção ao nosso destino: um pos-
Mission [TEAM], e nos encarregamos de uma grande parte Edo governo holandés, de nome Pirimapun. Ali, um casal
da planície pantanosa que vai do sul desta cadeia de serras E missionários da TEAM, o Dr. Ken Dresser e sua esposa
até às margens do mar de Arafura, ia, havia estabelecido uma nova cabeça de ponte en-
— Um casal já se dirigiu para aquela área — John e Glenna vs asmates do sul. Nossos colegas de missão, o casal
McCain. Há cinco meses estão trabalhando entre um povo ln é Glenna McCain, também se achavam no posto.
chamado kayagar. Pelo que dizem, a região é tudo, menos faviam viajado através do pântano em seu barco a mo-
GRI IPIGPIPGNGPR
OE AO DO AO DO POA,
so EBbo> O Totem da Paz WC ênese de Uma Missão ARA 99

tor, para nos receber e nos conduzir até seu local de traba- hento de Michael Rockfeller, filho do ex-governador do Es-
lho, entre os kayagares. ido de Nova Iorque, ocorrido havia sete meses, num local
Naquela tarde, enquanto tomávamos um refresco na sala e distava dali cerca de trinta e cinco quilômetros, para o
de estar da casa dos Dresser — uma construção de alumínio, brte. E tanto os MeCain como os Dresser falavam anima-
do tipo pré-fabricada - eu e Carol pudemos nos familiarizar amente e com abundância de informações sobre suas inte-
melhor com aqueles dois notáveis casais, que nos haviam pssantes experiências entre os kayagares e asmates.
precedido nestes “confins da terra”. Para John e Glenna aquela Por tim, indaguci de John McCain a que outra tribo, das
paisagem de charco não representara grande novidade visto e estavam sob a responsabilidade da RBMU, ele pensava
serem originários do Estado da Flórida nos Estados Unidos, je eu é Carol deveríamos nos dirigir.
tendo vivido próximo aos pantanais da costa ocidental da- — Depois de pesarmos bem todos os fatores envolvidos
quele Estado. Eram pessoas calmas, determinadas € pareciam À questão, respondeu ele, cu c Glenna recomendamos a
profundamente dedicadas à tarefa de transmitir a mensa- * uma tribo que vive a nordeste dos kayagares, um povo
gem do evangelho ao povo kayagar, habitando uma região ado sawi,
que já obrigara um casal de missionários a regressar à pátria poros todos aqueles anos de preparação e espera, a sim-
com saúde alquebrada. & menção do nome do povo ao qual dedicariamos nossa
Ken Dresser, um inteligente médico canadense, já enfren- a deixou-nos empolgados. Os sawis! Repeti a palavra
tara também muitas dificuldades e frustrações que a maio- jentalmente várias vezes. Quase podia sentir seu sabor na
ria das pessoas talvez considerasse insuperáveis. E ele sabia pnta da língua. Tinha o mesmo toque de mistério inexcru-
que ainda enfrentaria muitas mais. No entanto seus olhos rel que permeava a mata que se via aos fundos da casa dos
irradiavam uma grande paz e contentamento, que pareciam FEsSser,

constantes nele. Sua esposa, Sylvia, partilhava desta sua for- “No dia seguinte, pela manhã, despedimo-nos de Ken e
ça interior, trabalhando alegremente ao lado do marido na E e partimos de Pirimapun, seguindo pelo sinuoso rio
sala de operações de seu hospital na selva, e cuidando do lar k em direção à casa de John e Glenna, que ficava numa
e dos filhos. Passaram-se muitos anos antes que os asmates eia kayagar chamada Kawen, que distava sessenta quilô-
demonstrassem à primeira reação positiva para com seu jetros dali e estava situada bem no meio dos pantanais de
ministério de cura físicae espiritual. ciros.
Durante o curso da conversa, Ken colocou-nos a par dos
fatos históricos daquelas remotas plagas. Cerca de duzentos
anos atrás, o navegador britânico, o Capitão James Cook,
ancorara seu navio no ponto próximo àquele lugar da costa e
enviara um barco à terra, à procura de água potável, Entre-
tanto, até onde o Dr. Dresser conseguia entender, os asmates
não conservavam em sua tradição 0 mínimo vestígio deste
evento histórico.
Falaram-nos também do trágico e misterioso desapareci-

29595009 00CCS SR,


undo
a Cortina
Ivess de Madeira «Seg apa 101

n, todas as vezes que cle era obrigado a afastar-se, deixan-


ps sozinhos naquele recanto isolado. Outro auxiliar de-
era o feroz cão da família, de nome Patches. Além disso
SETE via ali um aparelho de rádio pelo qual elas poderiam pedir
burro, sé tal se fizesse necessário,
Quando à dia clareou de todo, já nos encontrou subindo
wtreito canal do rio Cook que nos levaria à Pirimapun.

Atravessando a feava-nos um brilhante panorama verde-esmeralda de


n es relvadas, graciosas palmeiras e densas moitas de
juiros, formando um amplo e ventilado espaço para os

Cortina de Madeira idos de garças brancas, patos de plumas claras, e gansos


Er negro que esvoaçavam para o alto fugindo à nossa
em. Mais no alto, por cima de nossas cabeças, hordas
is de enormes morcegos seguiam um curso invariá-
Pp ara o sul, como se fossem dirigidos por uma mente si-
A lancha fluvial de John McCain, de cerca de nove metros tra. Cansados da longa jornada noturna sob as estrelas,
de comprimento, que fora batizada com o nome de Ebenezer breve esconderiam suas horríveis cabeças por entre as
[em honra de Ebenezer Vine) balouçava suavemente junto 14 membranas de suas asas, é dormiriam durante todo O
ao ancoradouro, enquanto a carregâvamos de combustível e |, milhares deles empoleirados, de cabeça para baixo, em
suprimentos, nas escuras horas que antecediam o romper aum arvoredo do interior da selva.
da manhã. Perto dali, dentro da casinha de alumínio, a luz Quatro horas depois chegamos a Pirimapun, onde o
agradável das lâmpadas de querosene brilhava alegremente. à Ken Dresser da missão The Evangelical Alliance Mission
Glenna e Carol preparavam o alimento que iríamos levar ] nos aguardava para se unir a nós nessa primeira
para a viagem. Um pouco mais adiante viam-se as formas ativa de fazer contato com a tribo sawi. Passamos a re-
escuras das “casas longas” dos kayagares, formadas em duas seu barquinho com motor de popa, para o caso de a
fileiras ao longo do trilho iluminado de estrelas do rio Cook. a Ebenezer apresentar algum problema em alguma parte
Às 5:30h já estávamos a caminho. O motor da lancha - En ita do interior. Partindo de Pirimapun, dirigimo-nos para
de fabricação Volkswagen — tossiu e entrou em funciona- Norte através do mar de Arafura, procurando a embocadu-
mento. John apontou a proa do barco em direção rio abaixo. ps rios que nos levariam ao território sawi.
Da doca, nossas esposas acenaram um adeus; Carol, segura- tun
va nosso filhinho Stephen, que acabara de despertar, Seu ros três dias de viagem, nossa lancha alcançou a embo-
rostinho achegado ao cabelo louro da mãe era quase invisí- a do Kronkel, e começou a seguir o mesmo curso sinu-
vel à luz azulada do amanhecer Ao lado delas postava-se o que os barcos fluviais holandeses haviam seguido cerca
Herep, o chefe kayagar que anteriormente já se revelara ca- Eis anos antes. Nesse méio tempo, havíamos explorado
paz de cuidar fielmente da família de John, e das proprieda- o Au e entrado em contato com três aldeias sawis - Mauro,

LADA PO OI PANA 500500090900S


S
e FD O Totem da Paz ruvessandoa Corti na E o
de Madeira 108

Hahami e Ero. Em todas elas, mulheres e crianças haviam Wasohrwi. Rumando para o norte, dobramos uma curva fe-
se refugiado no mato ao sentirem nossa aproximação, mas shada e chegamos à antiga localização das aldeias de Haenam
alguns homens ficaram na praia para nos receber, Naqueles Kamur, onde os dois barcos holandeses haviam assustado
breves encontros, já me foi possível destacar algumas pala- às habitantes dos dois povoados, havia dois anos. Agora aque-
vras do idioma sawi, o que entretanto era um insignificante | sítio estava tão tomado pela vegetação que mal dava para
começo no aprendizado de uma língua que provavelmente pé-lo.
continha milhares e milhares de vocábulos. A seguir, estendia-se à nossa frente um longo trecho em
Na quarta aldeia, Sato, todas as casas ficaram vazias à inha reta, que mais tarde eu viria a saber chamar-se kidari.
nossa chegada — toda a população fugiu de pavor. Subi a uma Esta parte do rio daria um bom local de pouso para um
das casas de árvore, e deixei um pequeno presente bem no Nidroavião, comentei com John McCain.
centro do assoalho, como prova de nossas boas intenções “Na extremidade do kidari, vimos mais casas de árvore,
para com eles. Prosseguindo na viagem, deixamos de atingir emanescentes de outra aldeia abandonada, Sabíamos que
dois povoados de nomes Mori e Tamor, como viemos a saber k continuássemos em frente entraríamos em território
depois, por estarem eles escondidos nas profundezas da sel- avagar, por isso dirigimos o barquinho para a terra, eapor-
va. Todavia conseguiríamos fazer uma boa idéia do número lumos próximo à embocadura de outro afluente do Kronkel.
da população sawi que habitava ao longo do rio Au. Baltamos na praia, no mesmo montículo de terra onde
Agora esperávamos encontrar um número ainda maior Kigo, Hato c Numu, tinham se postado para esperar pelos
ao longo do Kronkel. O processo de dobrar inúmeras curvas barcos à motor, dando uma excepcional demonstração de
do rio tomou o restante das horas do dia, Por isso, logo que toragem.
deixamos para trás as duas aldeias grandes dos asmates, si- Mas, desta vez, não havia ninguém para nos receber. A
tuadas no baixo Kronkel, e avançamos o suficiente para nos a silenciosa erguia-se contra o fundo claro do céu, como
sentirmos em segurança, ancoramos no meio do canal é pre- ue formando uma muralha em torno daquela clareira, para
paramos a refeição noturna, eriar ali um anfiteatro onde uma disputa estava para se tra-
No dia seguinte, pela manhã, fizemos uma rápida incur- Par. Fiquei à ouvir o vento murmurando através daquelas
são em direção à cabeceira do rio no barquinho de Ken tonstruções abandonadas, assoviando pelos telhados de sapé
Dresser, deixando a Ebenezer parada no canal, Preferimos o megrecidos de fuligem. Um peixe cortou as águas claras e
barquinho por ser mais ligeiro que a lancha, Fazendo as cur- | impidas da superfície sombreada de árvore do afluente.
vas a uma velocidade de vinte e cinco nós, logo saímos do o aspecto selvagem do lugar parecia escarnecer de mim.
território dos asmates, e começamos a descobrir vestígios de Parecia haver algo no cenário que me dizia zombeteiramen-
população sawi sob a forma de casas de árvore abandonadas,
que agora deterioravam em suas palafitas. - “Eu não sou como sua terra, o Canadá, tão civilizada e
Passamos pela embocadura do Hanai, afluente do Kronkel, maleável. Sou toda emaranhada e impenetrável. Sou quente
que nos conduziria ao local onde ocorrera, alguns meses & úmida, alagada de chuvas. Eu sou lamaçais que chegam à
antes, um fato ainda desconhecido para nós: os homéns de sua cintura; sou espinhos de sagleiros de quinze centime-
Haenam haviam matado e devorado quatro guerreiros de tros de comprimento. Eu sou cobras venenosas, piranhas e

IB DIA;
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a se 105
o FEB O Totêmi da Paz tin
Atravessandoa Corde Madeira

crocodilos. Eu sou malária e desinteria; sou hepatites e fila- “à presença de três estranhos, completamente vestidos, e à
rioses. um barquinho diferente. Depois, como que desfraldando a
“Aqui seu idealismo é nada. Seu evangelho de Cristo nunca bandeira amarela da crista, ela deu um “mergulho” e a se-
veio colocar escrúpulos na consciência de meus filhos. Você “guir alçou vôo afastando-se de nós, gralhando histericamen-
pensa que os ama, mas espere até conhecê-los bem, se é que te como se para avisar a selva de que a sua mentira havia
poderá realmente chegar a conhecê-los. Você pensa que está “sido descoberta.
preparado para me conquistar, compreender meus mistérios Todavia, por entre os cipós da mata, um jovem nativo de
e mudar minha natureza. Mas eu posso facilmente sobrepujá- nome Seg achava-se à espreita, seguindo todos os nossos
lo com minhas trevas, minha inacessibilidade, minha bra- movimentos com certa apreensão: E quando embarcamos
talidade indiferente, minha indolência, minha morbidez de- putra vez, ele se virou e saiu apressadamente por entre as
senfreada, a total estranheza de meus elementos. sombras da floresta, para contar ao povo de Kamur acerca de
“Pense outra vez antes de se arriscar a sofrer uma desilu- nossa passagem por ali.
são. Não está vendo que isto aqui não é lugar para sua espo- * Antesde regressarmos à Ebenezer, resolvemos subir o rio
sa? Não sou lugar para seu filho e nem para você...” um pouco mais, à procura de mais evidências da população
As vozes das folhagens da arena pareceram aumentar num cawi. Mas encontramos apenas outras casas apodrecendo ou
crescendo, e depois ir morrendo suavemente por entre os terrenos abandonados.
emaranhados de gavinhas enroscadas e cipós retorcidos. Foi então quenos defrontamos com dois homens kayagares
Voltei-me e olhei para John e Ken que me esperavam junto ; canoa. Eles conheciam John McCain, pois já haviam
ao botezinho, Por trás deles, via o convidativo trecho do rio, viajado pela bacia do Cook. Falando o idioma deles, John
rebrilhando ao sol. O ponto onde me achava era ligeiramen- conseguiu ficar sabendo que não havia mais nenhuma al-
te elevado. As casas apodrecendo davam testemunho de uma leia sawi para a cabeceira do riacho. Informaram também
população escondida na selva que nos cercava. O pequeno mue a aldeia abandonada pela qual acabávamos de passar
afluente talvez pudesse nos conduzir para mais perto de ou- thamava-se Kamur. Contaram-nos que 0 povo dela havia se
tros centros de população, mais para o norte. mudado recentemente para a nascente do afluente que víta-
Está mentindo, pensei, Este charco também é parte do mos.
mundo que meu Pai criou, Sua divina providência pode nos * Pedimos-lhes que nos guiassem até a nova localização de
resguardar aqui como o faz em qualquer outro lugar do mun- Kamur. Eles hesitaram, mas, quando lhes oferecemos recom-
do. Foi então que a paz de Deus veio sobre mim e senti como pensa, concordaram. Dissemos-lhes que se assentassem em
se aquele lugar fosse o meu lar, Meu lar! Virei-me para Ken e “sua canoa, e depois passamos uma corda pela extremidade
John e disse-lhes: da proa. A seguir, Ken ligou o motor de popa do bote, € dai a
- É aqui que eu quero construir a sede. “pouco disparávamos rio abaixo, tendo em nossa companhia
Eles acenaram a cabeça, concordando. A sorte estava os dois kayagares de olhos arregalados, agarrando-se com
lançada. E no alto, sobre nossas cabeças, uma cacatua bran- “todas as forças nas bordas da canoa.
ca voou para um galho de árvore semelhante a um cinturão, — Quando chegamos à foz do afluente pelo qual deveriamos
e inclinou a cabeça para nos fitar, desacostumada que estava intrar, a direção da maré mudara, € vários troncos de árvo-
VARIAR LRILGPAI GS
O III;
RO
co ED O Totem da Paz Atuavessandoà Corti na ERES
de Madeira 107

res bloqueavam parcialmente a entrada do canal, Era evi- “Agora, porém, tinham tomado a decisão — seria uma cartada
dente que o bote de Ken nunca poderia navegar naquela con- decisiva.
fusão de toras, mas pensamos que talvez a canoa dos No dia anterior, haviam conduzido ao interior da selva as
kayagares, por ser mais leve, pudesse deslizar por sobre elas. mulheres e crianças da aldeia, para que se refugiassem ali,
Eue John entramos dificultosamente no estreito barquinho, údeixa do-as aos cuidados dos homens mais velhos da povoa-
e partimos ribeiro acima, deixando Ken junto ao seu bote. çã », juntamente com suas posses mais valiosas. Depois,
Antes que houvéssemos navegado uma centena de metros, ]logo após o nascer do sol, eles haviam se reunido perto da
percebemos, porém, que nem a embarcação dos kayagares embocadura do Hanai, onde quatro canoas novas se acha-
estava encontrando volume de água suficiente para flutuar, vam carregadas e prontas para seguir. Presentemente apro-
e desistimos de tentar subir a correnteza. Voltamos para o gimavam-se da foz do riacho, ao termo do primeiro trecho
rio maior, ao encontro de Ken. lo percurso.
Após havermos pago os kayagares por sua ajuda, inicia- Kani agachou-se na extremidade lisa da primeira canoa, e
mos nossa descida em direção à lancha, Sentiamo-nos um Espiou por entre os ramos de árvores para a brilhante
pouco frustrados por não havermos entrado em contato com amplidão do Kronkel, Seria horrível lançarem-se no espaço
nenhum sawi, no rio Kronkel, mas nossa tristeza ia durar aberto, para dar de frente com uma frotilha de guerra dos
pouco, amates. Mas o rio achava-se desimpedido, e Kani afundou
ten y remo nas águas, e saiu para o Kronkel. Os outros seguiram
exemplo,
Kani e mais trinta e nove guerreiros de Haenam e Yobwi | Com a outra ponta do remo cortando o ar bem acima de
impeliam suas canoas escuras, serpcando cautelosamente Ruas cabeças, viraram corrente acima em direção ao territó-
através do túnel de vegetação que ladeava o curso do afluen- lo dos kayagares, preferindo o percurso mais longo a fim de
te Hanai. Fardos de farinha de sagu e larvas de escaravelho pitar as tribos asmates, que lhes eram hostis, e que habita-
tostadas ocupavam os espaços vagos por entre os pés dos am a parte baixa do rio. Sabiam ser possível chegar ao rio
remadores. Vários papagaios vocjavam na ponta de suas Puok, cortando pelas alagadas planícies kayagares, já que
cordinhas, como se fossem pequenos borrões vermelhos, vt es últimos, recentemente, estavam se tornando gradual-
azuis e verdes. Frangos silvestres, encarapitados sobre os mente mais amigáveis para com seus antigos inimigos, os
pacotes de farinha também contemplavam o cenário. Wwis. Não esperavam encontrar nenhuma dificuldade por
Os quarenta homens estavam iniciando um novo tipo de arte dos kayagares, mas assim mesmo haviam carregado
aventura — uma viagem até o posto do governo, chamado Wuas embarcações com centenas de flechas ponteagudas e
Pirimapun, onde tencionavam comerciar seus produtos. s quarenta arcos feitos de tronco de coqueiro.
Havia quase dois anos que eles ouviam histórias acerca de “Eos viajantes já haviam entrado pelo kidari, quando, de
Pirimapun, que lhes eram contadas pelos habitantes das al- pente viram sua coragem ser testada até o limite máximo.
deias kayagares e atohwaens, situadas ao longo do rio Cook. À sua frente, partindo de algum ponto além da próxima cur-
Várias vezes, eles haviam tentado reunir coragem para ini- a do kidari, e, portanto, fora de seu ângulo de visão, um
ciar à temida excursão, mas sempre o medo os havia retido, Estranho ruído semelhante ao zumbido de um vespão, que-

DESC,
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GIP GIGIAR
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Mnuvessando a Cortina de Madeira RED 109

brava o silêncio da manha, e vinha em sua direção, aumen-


tando assustadoramente.
Repentinamente, surgiu diante de seus olhos um barqui-
nho de cor amarelo-claro, que deixava atrás de si um esgui-
cho de água, Nele havia três figuras, recorbertas de uma pele
de cor brilhante, Tuans! Imediatamente, seguiu-se um terri-
vel pandemônio nas quatro canoas.
te

Logo que entramos no kidari, Ken apontou para alguma


coisa que se achava bem à nossa frente. Voltando-nos, vimos
as quatro canoas cheias de homens que só poderiam ser sawis.
Meu coração deu um salto, assim que pousei os olhos neles.
O aparecimento de nosso bote deixou-os em pânico. Al-
guns saltaram de suas canoas e mergulharam no rio, bus-
cando a segurança dos juncos da margem, enquanto outros
mancjavam seus remos desesperadamente tentando manter
o barco equilibrado em meio à confusão reinante. Os que
ficaram na canoa não tiveram tempo de fugir
Em questão de segundos, estávamos junto a eles, e John
lhes gritava em kayagar que não se atemorizassem. Com
eles estava Hadi, o guerreiro atohwaen que falava fluente- Emparelhando o bote de Ken com uma das canoas, toca-
mente os idiomas kayagar e sawi, além da sua própria lín- nos pontas de dedos com um dos guerreiros mais próxi-
gua. Ouvindo as palavras tranquilizadoras de John, Hadi nos, 20 mesmo tempo que pronunciávamos a saudação sawi:
apressou-se a interpretá-las para os sawis em voz bem clara "Konahario!”, um recurso que funcionara muito bem nas
e audível, e conseguiu superar o terrível barulho daqueles deias que havíamos visitado na bacia do rio Au, Ouvindo-
quarenta homens nervosos. Todos eles tinham corpos flexí- à, Os homens do Kronkel também responderam exuberante-
veis, rijos e musculosos, e estavam nus, ostentando apenas ente. E, para relaxar a tensão, começaram a repetir a pala-
seus adereços e correias braçais. A maioria deles estava mes- pra aos gritos: “Konahario!”, dirigindo-a a nós, em berros
mo tremendo, o que fazia com que seus barquinhos tremes- do altos que quase chegaram a nos assustar.
sem também, Por seu turno, a agitação das canõas se comu- | Enquanto isto, aqueles que haviam se escondido por en-
nicava à escura superfície do rio que ondulava em ressonân- ta vegetação, foram saindo dali, um por um, nadando de
cia com os temores dos quarenta guerreiros, e o quadro todo volta para suas canoas, Distribuímos, então, entre eles, cer-
dava a impressão de que homens, canvas e natureza esta- by de uma dúzia ou mais de latas vazias, que havíamos guar-
vam todos em perfeita harmonia. ado para este fim. Eles as pegaram rapidamente. Tal artigo
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era altamente apreciado entre aquela gente, cujos únicos re- amates. E se ele sobrevivesse à passagem pelo território
servatórios de água eram pedaços de bambu eco. Nenhuma umate, ainda teria que se aventurar a uma jornada até o
daquelas latas seria menosprezada e jogada fora. Seriam usa- ar, uma experiência completamente desconhecida para ele.
das indefinidamente até que se enferrujassem e acabassem. Embora tivesse vivido toda a sua vida a apenas trinta €
Então John ficou sabendo através de Hadi que o grupo Ínco quilômetros — em linha reta — do mar de Arafura, nun-
estava se dirigindo para Pirimapun. à pusera os olhos nele, Contudo, já escutara várias descri-
- E isto para eles é uma grande empreitada! exclamou pes terríveis a respeito dele, naturalmente, relatos de se-
Ken Dresser. Provavelmente é a primeira vez na história da inda ou terceira mão. Muitas vezes, durante a temporada
tribo que eles se arriscam a deixar seu próprio território para s monções ocidentais, ele ouvira o rugido distante dos
ir ao encontro da civilização. E Deus, providencialmente, lilhares de altos vagalhões que rolavam dia e noite sobre as
planejou tudo direitinho, levando-nos a resolver fazer esta lanícies lamacentas do Arafura. E quando as escutava tre-
Excursão na mesma ocasião em que eles iniciavam sua jor- ja só de pensar como seria horrível chegar perto do mons-
nada, para que os encontrássemos. D que produzia barulho tão medonho.
E ele tinha razão. Pois se nós tivéssemos resolvido regres- Por outro lado, que aventura maravilhosa não sena tal
sar alguns minutos antes, teríamos passado pela foz do Hanai nada, E como seu prestígio entré o povo aumentaria, se
bem antes de a expedição sawi ter desembocado por ela. à retornasse são e salvo. À narrativa de seu feito poderia
Naquele primeiro contato, nossa atenção ficou toda con- cantar pelo menos três tribos, pois Hadi falava três idio-
centrada em Hadi — e não em Mahaen, Kani é Maum, os us. Aquela jornada marcaria época na história do seu povo,
homens da liderança. O motivo era que a personalidade bri- His ele conheceria melhor os tuans, e tal conhecimento
lhante de Hadi, seu aparente destemor, € mais seus présti- iriria caminho para futuros contatos com eles.
mos como intérprete fizeram-nos crer que ele seria de gran- “Os benefícios em potencial — concluiu Hadi — pesavam
de valia em nossos futuros contatos com os sawis. John con- pis que os perigos a que se arriscaria.
vidou-o a vir conosco no barco a motor até a lancha Ebenezer, » Irei com vocês! respondeu a John, ainda tremendo.
para seguir conosco até Pirimapun e depois até Kawem, onde “Nós nos alegramos, ao passo que os amigos dele o fita-
se reuniria aos outros viajantes novamente, no dia seguinte. n preocupados, evidentemente temendo pela sua seguran-
Assim, durante a viagem eu teria oportunidade de estabele- nda não haviam tido tempo de fazer os mesmos cálcu-
cer um contato pessoal com ele, e quem sabe, aprender um E que o outro fizera.
pouco mais da língua sawi. Foi então que John, sabiamente, resolveu convidar mais
Ao ouvir o convite, Hadi empalideceu, apesar de sua tez deles para vir conosco, para atenuar as possíveis dúvidas
escura. Quase víamos seu estômago dando voltas, sob a ten- je Hadi ainda tivesse, e ao mesmo tempo amenizar o sen-
sa musculatura abdominal, enquanto ele ponderava as im- mento de solidão que poderia lhe sobrevir durante o traje-
plicações de nosso oferecimento. Aceitar seria entregar a vida O escolhido foi um sorridente rapaz de nome Er (pássa-
à mercê incerta daqueles três estranhos seres que talvez nem | Seguindo o exemplo de Hadi, que era mais velho que ele,
fossem humanos. Significaria também aventurar-se com eles | corajosamente, aceitou o convite.
pela temida região dos diabólicos antropófagos que eram os “Ajudamos ambos a entrarem no barco, assegurando fir-
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=> O Totem da Piz iuvessandoa Cortina de Madeira a 113

memente a0s outros sawis que encontrariam Hadi e Er, sãos ha de céu, que nunca alcançávamos, e depois virava para o
e salvos, em Kawem, quando por ali passassem no dia se- yu) rumo a Pirimapun.
guinte. Depois, com um último “Konahario!”, partimos, Logo que a lancha passou a navegar sobre as ondas do
deixando-os parados lá, ainda ligeiramente aturdidos, a olhar- pano, os dois nativos agarraram-se à balaustrada, temero-
nos através do esguicho levantado pelo motor de popa. Ins- mente. Coloquei uma das mãos no ombro de Hadi, e, voz
tantes depois, chegamos ao fim do kidari, e saímos dele, pros- em “calma, sussurrei-lhe duas palavras do idioma sawi que
seguindo em nossa jornada de regresso até o mar de Arafura, le próprio me ensinara havia poucas horas.
distante dali sessenta quilômetros, pelo rio sinuoso. “= Tadan nom! Não tenha medo!
tun “Hadi fitou-me, e aos poucos seu rosto foi-se abrindo num
Trinta minutos depois, atingimos o local onde ancorára- srriso confiante que lhe iluminou as feições.
mos à lancha é a encontramos exatamente como a havia- = Tadan haser! Não estou com medo! replicou ele, e, para
mos deixado. Amarramos o bote à sua popa, e reiniciamos var o que dizia, largou do corrimão. Er imitou-o.
a viagem em direção ao mar. Sentei-me junto a Hadi e Er,
ten
em cima da cabine, e comecei a arrancar do primeiro ou- Chegando à embocadura do Cook, em Pirimapun, Ken
tros vocábulos da língua sawi, com o auxílio de John resser desprendeu seu bote e nos deixou, enquanto eu €
McCain, que se encontrava abaixo de nós, ao leme, falan- h 1 prosseguíamos em frente, na escuridão da noite, ilumi-
do-lhe em kayagar. indo as curvas do rio com holofotes.
Quando estávamos nos aproximando da primeira aldeia “À 1:00h da madrugada divisamos o contorno escuro da
asmate, Hadi e Er ficaram tensos pelo medo, e não davam isa de John, contra a claridade difusa do céu estrelado. Nossa
mais atenção às perguntas que eu lhes fazia. Tive que deixar imeira excursão ao território sawi estava encerrada. Logo
o estudo da lingua para depois que atravessássemos a temi- je pisei no ancoradouro, senti os braços de Carol envol-
da região. Os-asmates, um povo magro, de aparência esquá- ndo-me em meio às sombras.
lida, simplesmente se postaram em fila ao longo da margem = Tudo bem? perguntei, sussurrando-lhe ao ouvido.
do rio, contemplando-nos inexpressivamente e fitando a Perfeito! respondeu alegremente,
Ebenezer que ia deixando uma trilha de ondas a seus pés. Sabe de uma coisa? Trouxemos dois sawis conosco! in-
Logo que viramos a última curva do Kronkel « demos com Wmei-a, ainda desconhecendo o fato de que Hadi pertencia
o mar, Hadi e Er soltaram exclamações de surpresa. Ao lon- tri bo atohwaem.
ge, via-se a linha do horizonte ao mar de Arafura, Era como à Percebi uma onda de alegria brotar dentro dela, quando
se houvessem estendido um arame de uma margem à outra, ipiou por cima de meu ombro, buscando as figuras indis-
na boca do rio, ligando os dois pantanais de mangue que se tas de Hadi e Er, parcialmente visíveis à iluminação da
achavam de um lado e de outro. Avermelhado pelos reflexos ncha,
do entardecer, seu brilho era tão ofuscante que ardia nos olhos | Logo que os dois se achavam acomodados, eu e Carol nos
se tentássemos fitá-lo diretamente, Hadi e Er devem ter pen- iguciramos quietamente para o quarto onde Stephen dor-
sado que estávamos penetrando num vazio, ao ver que a ja na caminha protegida por um mosquiteiro que John
Ebenezer prosseguia intrepidamente em direção àquela li- ieparara para ele. Cheguei a lanterna acesa perto dele para
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de Madeira
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clarear seu rostinho redondo e seu cabelinho louro espigado, epusessem, fossem clas sâtanicas ou de ordem cultural,
procurando não despertá-lo. E ficamos os dois ali, de mãos que este bendito contágio de alegria se espalhasse entre
dadas, contemplando pensativamente aquela visão de angé- queles homens estranhos e amedrontados que encontrá-
lica serenidade que era o nosso filho, Qualquer que fosse a mos pela manhã no rio Kronkel. Quanto tempo ainda
sorte que nos aguardava entre os sawis, boa ou má, Stephen varia para que isto acontecesse, não saberia calcular. Só
partilharia dela conosco. Mas estávamos certos de que seria úbia que minha vida não estaria completa enquanto tal
boa. ÃO se realizasse.
Nossa confiança em Deus achava-se mum alto nível e cres- tros)
cendo cada vez mais. Animados por um espírito de confian- Do outro lado da aldeia de Kawen veio um grito:
ça e otimismo, nunca paramos para pensar seriamente que = Os sawis estão chegando!
uma terrível doença do charco poderia roubar do rosto de Eu, Hadi e Er interrompemos o estudo da língua, e nos
nosso filhinho aquele colorido saudável, nem que qualquer caminhamos para
a ponta do ancoradouro
de John McCain.
outro perigo grave ameaçasse nossa segurança. “Se Deus é vam eles! Quatro canoas avançavam em fila indiana,
por nós, quem será contra nós?” era o lema que-nos susti- jntendo-se próximas da margem norte do rio e da vegeta-
nha dia € noite. o de juncos, parecendo querer passar de largo pelo povoado.
Além disso, parecia-nos que aquele entusiasmo que nos adi e Er ergueram os braços, chamando a atenção deles, e
reconfortava não tinha origem em nós mesmos, mas nos era pediatamente as quatro embarcações viraram-se e vieram
comunicado pela presença de Deus ali, Era como se ele, após im nossa direção.
ter esperado por tanto tempo para ver realizada a tarefa que Os trinta e oito remadores pareciam tensos € preocupa-
desejava executar entre os sawis por nosso intermédio, esti- 8, quando atracavam as canoas junto à doca. Estando ago-
vesse, ele próprio, vibrando ao ver que finalmente chegara o bem distantes de seu torrão natal, tinham mais consciên-
dia. Nunca me ocorrera antes que Deus pudesse vibrar de y Ea estranheza da situação. E ainda teriam que remar mais
entusiasmo, que o Deus onipresente no tempo e no espaço Essenta quilômetros para chegarem a Pirimapun. Herep,o
pudesse, por assim dizer, seccionar uma parte de seu ser cons- fc kayagar, veio correndo da aldeia de Kawen para saudar
ciente e aplicá-lo a uma região do mundo, é viver um mo- à viajantes. Dois ou três deles entregaram a Herep alguns
mento futuro por antecipação, como se não estivesse sem- ipetos com larvas de besouro tostadas, como uma espécie
pre no futuro. é salvo conduto.
Everdade, pensei, Deus está feliz,
e nós somos como crianci- A esta altura, Hadi e Er já haviam acedido em ficar conos-
nhas que se contagiam com o contentamento do Pai. Este p durante mais algum tempo, para nos ensinar a língua, e
pensamento só serviu para erguer ainda mais nosso senti- asim os outros prosseguiram sem eles. Dois dias depois es-
mento de expectativa a respeito do que Deus estava prépa- ivam de volta, tendo vendido suas mercadorias na “grande
rando para nós no mundo dos sawis. ade” de Pirimapun. Fatigados até os ossos e muito quie-
Com renovados anseios, oramos a Deus suplicando-lhe 9 após haverem remado sessenta quilômetros contra a cor-
que a mensagem de redenção por seu Filho Jesus Cristo Enteza, ficaram a descansar sentados sobre os remos ou nas
pudesse derrubar todas as barreiras que porventura se lhe alas das canoas, enquanto Hadi c Er ajuntavam as coisas

GOIS SOTO.
o E-s> O Totem da Paz

que lhes havíamos dado em pagamento pelos quatro dias de


estudo da língua.
Depois que Hadi e Er tomaram seus lugares em duas das
embarcações, John McCain deu ao primeiro uma mensa-
gem em código, antes que os quatro barquinhos partissem.
— Você e seu povo devem passar alguns dias pescando no
Kronkel, disse ele.
Hadi sorriu, compreendendo, e traduziu para os sawis. OTTO
Significava que eles deveriam ficar de vigia, à nossa espera,
pois pretendíamos voltar ali, embora ainda não soubésse-
mos exatamente quando seria,
Até o momento, ainda não reveláramos nem aos kayagares
nem aos sawis nossa intenção de residir no Kronkel, com O Fim de Uma Era
receio de que a notícia, se dada prematuramente, pudesse
causar rivalidade entre as tribos, ou mesmo entre aldeias.
Pois os kayagares faziam questão de que eu e Carol ficásse- Às 7:00h da manhã daquele dia de junho de 1962 as duas
mos em seu território. incas kayagares já estavam carregadas, e os seis remado-
Enquanto os barquinhos se afastavam, Hadi e Er ficaram 4, prontos. Uma delas oscilava ao peso de dois tambores
olhando para trás e acenando para nós — dois entusiastas € taço, de cinquenta e cinco galões cada. A outra estava bem
otimistas extrovertidos no meio de um grupo de homens fanjada, e continha um amplo mosquiteiro para proteção
determinados e austeros. Fora relativamente fácil ganhar a intra insetos, a cama de enrolar, ferramentas para constru-
confiança e a afeição de Er e Hadi. Mas, e quanto aos outros? D e outros objetos para pagamento dos trabalhadores, To-
Ainda era muito cedo para prever qual seria a atitude bá- j estas coisas me haviam sido emprestadas por John
siça da maioria deles. Mas logo iríamos ficar sabendo, ECain, já que nosso equipamento ainda não chegara dos
tados Unidos.
ije; Carol é Stephen em despedida e embarquei na se-
inda canoa. Clenna entregou-me um recipiente com água
pvida para beber e um lanche para o almoço. Agradeci-lhe,
wrtimos dah com John dando as últimas instruções aos
nadores kayagares.,
O plano era cortar caminho indo de canoa pelos panta-
is do rio Kronkel, a fim de renovar O contato com os sawis
E a casa temporária, enquanto John voltaria a
ipun com à Ebenezer para terminar a construção do
E izém que havíamos iniciado ali. Daí a cinco ou seis dias,

PN TSC SST SINCSGNTTES


o BD>> O Totem da Paz | Fim de Uma Era et o.
John iria seguir para o norte pela linha costeira até o Kronkel, “Comecei a perceber que havia uma espécie de conspiração.
e depois subir o rio e reunir-se a mim para ajudar-me a ter- Afinal de contas, meus auxiliares também eram kayagares, e
minar a casa que eu estaria fazendo à beira do rio. lo se mostravam muito desejosos de que os sawis ficassem
Enquanto avançávamos pelas planícies alagadas, o silên- bm: os machados de aço, facas e outros objetos que cu natu-
cio da selva pareceu nos engolfar. Era uma calma perturbada ilmente iria ter para distribuir de tempos em tempos. Com-
apenas pelo ruído das remadas e o bulício do capim kunai vendi que tentavam erguer uma espécie de barreira para
acariciando os lados da canoa. Ao alto, vez por outra, surgiam brigar-me a escolher a aldeia de Amyam.
halos de luz solar, brilhando por entre o toldo da vegetação, , John McCain já me advertira de que bem cedo o povo
emprestando um clarão enevoado às densas florestas de sa- iquela região iria provar minha força de vontade para ver se
gúeiros que iam surgindo à distância, depois das planícies. inseguiam intimidar-me, e era da maior importância que
Pouco depois, penetramos nos aglomerados sagúeiros, e passasse no teste, porque senão eu e Carol nos veríamos
o curso da água foi ficando sensivelmente mais estreito. isoberbados de problemas, daí em diante, € terminariamos
Durante duas horas, seguimos por um canal bastante sinuo- ifraquecidos ou desanimados. Então é isso, pensei, e decidi
so e depois saímos novamente na planície que nos levaria ao arredar pé.
Kronkel. Neste ponto fomos interceptados por três canoas 'A insistência e a gritaria prolongou-se por duas horas.
lotadas de barulhentos kayagares, gritando em alta voz e jutras canoas juntaram-se ao nosso séquito, aumentando a
apontando para a frente. são. Vendo-me incapaz de argumentar com eles em
Eles tinham deduzido — por causa do equipamento que cu malguer dos idiomas que eles entendiam, deixei-me ficar
estava transportando — que minha intenção era construir uma entado quieto, esperando o desenrolar dos acontecimentos.
casa em algum lugar da bacia do Kronkel, e haviam decidido felizmente, eles interpretaram meu silêncio como aquies-
que o local seria sua aldeia, Amyam. kn cia, e começaram a comemorar, gritando em uníssono,
Pareciam estar dizendo mais ou menos o seguinte: oclamando em alto e bom som que a sorte lhes sorrira,
“Tuan, não vá para junto dos sawis. Eles matam as pessoas ando-lhes um tuan só deles, para enriquecê-los a todos.
e as devoram. Venha para o nosso povoado. Em nossa aldeia Então ergui os olhos e vi, logo à frente, uma aldeia, que
existem muitos outeiros e nós o ajudaremos a construir uma via ser Amyam. Os kayagares das canoas que me cerca-
casa bem boa. Venha para nossa terra! Venha para nossa al- am começaram a bater com a extremidade inferior do remo
deia! Venha para nossa aldeia!” intra o lado de suas barcas, para amunciar a chegada triun-
A gritaria deles já estava se transformando em tumulto, al do tuan de Amyam, à sua nova capital, Logo que entra-
quando nos dirigíamos para o Kronkel. Tentei em vão abafar Nos no povoado, meus remadores olharam para mim inqui-
suas esperanças. Fazendo uso de meu parco vocabulário Itivamente, apontando para Amyam e dizendo que devía-
kayagar e indonésio, pedi aos remadores que explicassem a nos parar lá,
eles que eu estava me dirigindo para uma aldeia sawi deno- — Seviterus ke Kamur! Vamos direto para Kamur! disse-
minada Kamur Contudo eles próprios, 20 transmitirem a hes com determinação, falando uma mistura de indonésio
mensagem, não se achavam muito interessados em conven-
cer Os outros. “Eles recomeçaram a remar meio desanimados, e foi aí
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que aconteceu um fato significativo. Uma enorme canoa im indicando vários afluentes desaguando no Kronkel,
kayagar veio rapidamente pelo flanco direito e fechou-me a pencionando os nomes das aldeias sawis que poderiam ser
frente, obrigando nossa canoa a seguir para a praia, Enquan- lingidas, se entrássemos em cada um daqueles territórios,
to isso, o povo da aldeia também vinha correndo para nós, subíssemos até as suas cabeceiras nos pantanais dos sa-
gritando, acenando, chamando e suplicando que ficássemos. PiTOS.
Sentia-me pesaroso de ter que desapontá-los, mas rete- Um dos riachos apontados era o Sumdu,
sando todos os músculos para manter o equilíbrio, pus-me = Por ele se chega a Wiar, informaram.
de pé naquela estreita embarcação com meus metro € oiten- O que se seguia, na margem esquerda, era o Baitom, que
ta e cinco de altura e bradei: is levaria a Yohwi, o povoado onde morava Hadi.
- Vamos direto para Kamur! Hadi? repeti. Rápido! Entre no Baitom e vamos até onde
Um pesado silêncio caiu sobre todos. Durante alguns se- É mora. Quero vê-lo antes de prosseguir para Kamur,
gundos, fiquei em dúvida se eles aceitariam minha ordem Penetramos no sombreado curso do Baitom, e seguimos
ou reagiriam com amargura. Mas foi então que os homens ir ele cerca de um quilômetro e meio com a selva se
que se achavam na canoa que nos barrava o caminho, afas- Ensando cada vez mais ao nosso redor. De repente, demos
taram-na para um lado com a fisionomia carregada. E vaga-
pn uma enorme clareira, e vimos seis “casas longas" enfi-
rosamente nós remamos de volta ao centro do rio e prosse- radas em ambas as margens do rio.
guimos em nossa jornada. Meus remadores kayagares gritaram:
Eu passara no primeiro teste, e, no entanto, sentia-me » Hadi, tuan Don está aqui!
muito triste. Eu, um mensageiro de Cristo, havia recusa- Ouvimos o barulho de pés correndo apressadamente den-
do um convite tão caloroso de um povo tão necessitado. ida casa, e alguns de seus ocupantes, despertados subita-
Contudo eu sabia que mais tarde Amyam ouviria o evan- nte de suas sestas, já se preparavam para fugir, enquanto
gelho em sua própria língua, dos lábios de John McCain, 1 ou dois deles se deram ao trabalho de verificar quem
e isso tornava a situação deles menos precária que a dos ava chegando. Reconhecendo-me, desceram alegremente
sawis, que ainda não contavam com um pregador que lhes tada abaixo, para nos receber em sua aldeia. Hadi estava
falasse em seu próprio idioma. Mas apesar de tudo, o povo balhando na selva, mas alguns homens foram procurá-lo
de Amyam conquistou um lugar todo especial em meu à trouxeram para casa. Foi como um encontro de velhos
coração naquele dia, e pelos anos afora, eu iria orar por m ROS.
eles com maior ardor do que por qualquer outra aldeia Hadi convidou-me a entrar em sua casa, onde nos senta-
kayagar. jus para conversar, utilizando o vocabulário ainda escasso
tun je cuaprendera com ele: Eu não tinha a mínima noção das
Avançando pelas águas rápidas do Kronkel, apressadamen- pras de gramática que regiam a aglutinação das palavras €
te passamos por uma região que, no passado, numa época de lormação das frases naquela língua nunca antes analisada.
muita intrangiilidade, fora a “terra-de-ninguém”, que sepa- 418, 40 que parecia, ele compreendia bem a maior parte do
rava os territórios dos kayagares e dos sawis. Quando pene- E cu estava dizendo.
tramos na região dos sawis, meus remadores kayagares fo- A certa altura mencionei que me achava a caminho de
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Kamur a fim de erguer minha casa no antigo local da aldeia. Ligar estava para ser submetido a uma operação de rejuve-
Hadi fitou-me em silêncio, espantado, não querendo crer no jescimento. Ainda não havia o mínimo sinal da presença
que ouvia, e pensando que talvez houvesse entendido mal o de nenhum sawi nas imediações, nem tampouco tínhamos
que eu lhe disse em meu sawi mutilado, Repeti a informa- empo de parar e procurá-los, já que nos restava apenas
ção enfaticamente e desta vez ele entendeu, e a traduziu aos ima hora antes do escurecer. Escolhemos uma casa que
outros que haviam se agrupado ao nosso redor, é imediata- stava em melhores condições e transportamos para ela
mente um coro de assovios e exclamações se fez ouvir numa jnssa bagagem. O assoalho ainda estava forte para supor-
manifestação entusiástica do contentamento que tomou r nosso peso, apesar dos inúmeros rombos. Fizemos o
conta do povo. intar, e depois estendemos as esteiras no chão para passar
— Hadi, gostaria que você viesse a Kamur e me ajudasse a noite,
erguer minha casa, disse-lhe, Pouco antes do amanhecer, fomos despertados pelo baru-
- Der! Ótimo! respondeu ele, dando um largo sorriso. ho de uma tempestade que se avizinhava. Em questão de
Irei amanha! istantes, ela se abateu sobre nós com tamanha fúria que a
Quando me levantei para partir, Hadi colocou a mão no a construção parecia oscilar ao impacto dela. A manhã
meu ombro, apontou para a extremidade oposta de sua “casa | la em meio quando o temporal amainou o suficiente para
longa”, onde havia um rapaz deitado, doente, impedido de Niciarmos o trabalho.
participar da alegria do momento, Distribuí as tarefas entre meus seis auxiliares do seguin-
- Meu filho Amwi está muito doente, disse. Será que você “modo: dois navegariam pelo afluente acima, para tentar
pode fazer alguma coisa por ele? contrar a atual localização da aldeia de Kamur, levando
Caminhei até onde se encontrava 0 jovem, inclinando- fesentes para os chefes e convidando-os para virem me ver.
me para passar debaixo de alguns porta-armas suspensos do tês deles iriam à mata munidos de machados para cortar
telhado, carregados de arcos, flechas, lanças e as peneiras de foncos de árvores que servissem de suporte para a casa. O
trabalhar com sagu que todos os moradores dos pântanos ltimo ficaria comigo para ajudar-me a preparar o terreno,
possuíam. Não tendo ainda muita prática na diagnose de sbastando-o.
enfermidades tropicais, calculei que fosse malária e minis- à Depois que os outros partiram, ficou comigo um rapaz de
trei-lhe a medicação apropriada. pme Hedip. Nosso objetivo era limpar a área, retirando os
Depois, eu e Hadi nos abraçamos em despedida e parti de pÓs que presentemente ocupavam o local onde cu me pro-
Yohwi, Hadi acompanhou-nos, seguindo pela margem unha a erguer minha casa. Nós nos entregamos a esta ope-
alagada do Baitom, assegurando-me várias e várias vezes de lição, brandindo facões, para um lado e para outro. A selva
que iria a Kamur para encontrar-se comigo, logo que tivesse pmeçou a se render, vagarosa e relutantemente, e a terra foi
colhido bastante sagu que desse para alguns dias. Depois, paro ndo deshastada, mas era muito baixa. Eu sabia que
perdi-o de vista encoberto pela mata. E construísse num nível tão baixo, teríamos água sob o
E ten asoalho durante Os vários meses da estação chuvosa.
Às 5:00h da tarde chegamos ao ponto da antiga localiza- “Continuamos a cortar e cortar, até que, a certa altura,
ção de Kamur, com suas edificações apodrecendo. Aquele ledip apontou-a faca para um determinado ponto do terre-
FSB GN GI PGR IB ISRR VAGA LILI GIRGIGRGR
OO OO DOE DO 7
ed o.
ao EEE O Totem da Paz À Pim de Uma Era

no a seus pés, que entrevíamos por entre raízes retorcidas. jernas, é a contração nervosa dos supercílios. Eu também
Olhei; ali começava uma elevação. Procuramos acompanhar Wtava tremendo um pouco, mas procurei disfarçar. Desta
a elevação, e, para nossa alegria, vimos que ela atingia a uma z, não havia ali nem John, nem Ken para me socorrer; não
altura de cerca de um metro e meio acima do nível do panta- ja Ebenezer nem o barquinho motor de Ken, se uma re-
nal que a cercava. Um monte de terra, daquela altura, era ada apressada se fizesse necessária,
uma raridade na região, e provavelmente não seria atingido Um encontro entre dois estranhos de características cul-
pela enchente senão durante o ápice dela, que não duraria lrais semelhantes é uma coisa; mas um encontro entre Es-
mais que algumas semanas.
anhos de características culturais diferentes é outra coisa
Ao que parecia, Stephen iria ter um lugar seco para brin- m diversa. Representávamos as duas extremidades opos-
car. |s do amplo e variado espetro cultural da humanidade. Es-
Duas horas depois, interrompemos a operação limpeza va mos um diante do outro, e a atmosfera ao redor parecia
por causa da chegada dos dois primeiros homens que haviam npregnada de tensão.
partido para procurar Kamur, levando presentes para os che- “Vários milênios antes, os seus ancestrais e os meus ti-
fes. Eles sornam de satisfação. ham feito parte de um único povo e viviam juntos, usando
- Encontramos, tuan, disseram, | mesmas armas e ferramentas, buscando os mesmos obje-
— Onde estão eles? perguntei. vos, e falando a mesma língua. Depois, haviam se afastado
Um dos kayagares ergueu o remo e apôntou na direção do ps dos outros, enfrentando não apenas condições climáti-
rio. Olhei para lá e distingui por entre a ramagem ribeirinha 45 diferentes, mas diversos estilos de vida também. Haviam
cinco ou seis canoas que se aproximavam vagarosamente. irgido variações genéticas de metabolismo, cor da pele, ca
Ainda não conseguia divisar bem os homens que vinham Elo e proporções corporais, que se solidificaram por causa
nas embarcações mas sabia que eles me observavam. | isolamento de ambos os grupos. As mutações lingúísti-
Os dois kavagares gritaram qualquer coisa para eles, e, às tinham apagado completamente a lingua-tronco, deixan-
então, uma após outra, as canoas foram saindo de entre as à Órfãos os vários idiomas provenientes dela, os quais con-
nuaram a divergir cada vez mais, até que, por fim, não ha-
folhagens, e cu pude ver duas ou três dezenas de musculosos
guerreiros sawis. Pareciam exaustos. Seus olhares estavam a nelas o mínimo vestígio que pudesse revelar que eram
eravados em mim, mas não faziam o mínimo ruído. Aos
poucos, porém, foram se aproximando em resposta aos ape- E. na; após todos aqueles séculos de mudanças nos te-
los dos kayagares. Seus arcos de tronco de palmeira prepara- m transformado tanto que os dois grupos pareciam total-
dos, corda entesada, jaziam a seus pés, quando eles se ergue- mente estranhos um ao outro, a providência nos reunia no-
E:
ram em suas canoas completamente nus. jrmente para demonstrar...
Acerquei-me da beira do rio e gritei; te
— Konahário! Enquanto os mais jovens permaneciam em suas canoas,
Não houve resposta. A proa das canoas embicou na praia, és dos homens mais velhos pisaram em terra, e, caute-
mas eles continuaram de pé a fitar-me. Agora já estavam nsamente, aproximaram-se de mim. E os kayagares, ten-
bem mais perto. Eu já percebia o tremor de scus braços e o falhado em sua tentativa de evitar que eu viesse ficar

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S8S
o TED O Totem da Por F q de Uma Era ag dida 127
entre os sawis, agora revelavam uma atitude inteiramen- febrava num clamor forte, em voz cava, um brado deno-
te diversa. Percebi que eles estavam se sentindo muito or- ado hahap kaman. Era o grito pelo qual expressavam
gulhosos de seu papel de mediadores deste novo encon- a alegria, mas que só era emitido em coro com outros.
tro. Com modos que lembravam amas instruindo crianci- || brado despertou em mim uma sensação de estranheza
nhas, eles procuravam encorajar os sawis a chegarem mais listurada com alegria, e foi tão intensa que meu couro
perto, às vezes repreendendo-os brandamente, por sua rude ibeludo começou a formigar. Eles fizeram com que eu me
relutância. intisse como um jogador de beisebol que conseguisse rea-
De repente, um dos três deu um passo à frente colocan- mr a corrida da vitória, num jogo do campeonato nacio-
do-se bem diante de mim. Seu olho direito, outrora, fora |. E com todos os olhares fixos em mim, compreendi que
vazado por uma flecha, e ele ficara cego, mas o esquerdo os havia conquistado. Tive que me conter para não sal-
tinha uma expressão sagaz. Ergui a mão em sua direção. Ele f e dançar de alegria.
correspondeu ao meu gesto. Quando a gritaria começou a diminuir, outro barulho se
Durante alguns instantes nós nos medimos mutuamen- E nuvir Girei nos calcanhares e olhei o rio — estava coalha-
te, € depois tocamos dedos um com o outro. Aos poucos à de canoas de Amyan e Yohwi. Hadi e todo o seu grupo
aquela estática emocional foi cedendo, e aquela aguda sen- Vegavam ao nosso encontro, batendo os remos nos lados
sação de estranheza diminuiu. Éramos igualmente huma- sembarcações, criando enorme alvoroço. Ao vê-los e ouvi-
nos... ambos de carne e osso... homens, | Os homens de Kamur romperam em nova gritaria. E antes
Ele sorriu. 1a
E 0 “segundo tempo” de hahap kaman se encerrasse, os
— Meu nome é Hato, ros pararam repentinamente de bater remos, e deram
— Meu nome é Don, respondi, apertando sua mão. pao seu brado de hahap kaman, agitando os remos, e
Os outros dois homens se acercaram e também tocaram endo-se nas canoas para provocar ondulações na super-
minha mão, dizendo cada um por seu turno: k l da água,
— Meu nome é Kigo. à aqueles bombardeios vocais foram se repetindo, repe-
— Meu nome é Numu. ido como uma troca de passes entre a terra e o rio. Era a
Mais uma vez os três corajosos se revelavam. ldação dos sawis, que correspondia às nossas vinte c uma
À esta altura seus companheiros deixaram as canoas e se as de canhão. E ela marcava o fim de uma era de isola-
agruparam ao nosso redor, e os konaharios começaram a vi- e!ento e o alvorecer de uma época de interação.
brar nos ares. Apontei para o terreno recém-limpado e falei- te
lhes de minha intenção de erguer ali uma casa para morar. Se eu não tivesse estado ali como emissário de Cristo para
— Der! Der! Der! Ótimo! Ótimo! responderam eles. ivocar aquele acontecimento, um outro emissário de um
Pedi-lhes então que me arranjassem cascas de tronco de Wiro governo o teria feito posteriormente, e, logicamente,
palmeira cortadas, para eu fazer o assoalho, e eles promete- jm objetivos bem diversos e com outras consequências.
ram trazê-las no dia seguinte. eles que defendem a tese de que os grupos tribais que
Subitamente, os gritos e exclamações se intensificaram, pda restam na terra sejam deixados intactos, não compre-
crescendo como uma só onda de regozijo, que depois se em como tal idéia é ingênua. Neste mundo já não há
AGR GBGBLPI GPL
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CO D OG SSSSSSSSSSSSS
e EEE O Totem do Paz

lugar para que quem quer que seja possa ser deixado em
paz, Já está mais do que provado que, se os missionários não
forem a tais lugares —e eles vão para dar — madeireiros, caça-
dores de jacarés, mineradores, plantadores, etc., irão lá — para
tomar. À questão, portanto, não é se alguém deve ir, porque,
obviamente alguém irá. A questão agora é: será que a pessoa
mais bem-intencionada chegará lá primeiro?
Sendo eu o primeiro que alcançava os sawis, era meu ob- NOVE
jetivo conjugar minha lealdade a Deus e às Escrituras, a um
profundo respeito por aquela gente e sua cultura. O ponto-

Deuses dos Céus


chave da situação era descobrir se as premissas básicas desta
cultura se achavam em posição contrária aos ensinos bíbli-
cos, e se isto me impossibilitaria de manter minha fidelida-
de aos dois ideais, Era o que eu desejava descobrir.
Mas primeiramente precisava construir minha casa.
Contando com mais trabalhadores à nossa disposição, ter-
namos logo o desbastamento do terreno. A esta altura os
jagres haviam voltado trazendo uma canoa carregada de
: DO uadeinse vigas e então eu fiz o delineamento do local
Ito onde a casa devia ser erguida, no centro da elevação, €
Neceia colocar os toros em seus lugares. Não tinha prática
marcenaria, mas após haver trabalhado com John McCain
onstrução de um pequeno armazém em Pirimapun, apren-
à alguns princípios básicos de construção com toras de ma-
A, que por sinal é bem diferente de trabalhar com vigas pre-

DO a poco signo também as canoas de Haenam.


Dtícia de minha chegada os alcançara nos profundos re-
os da selva, nas matas do sul da bacia do Kronkel. Agora
4 um ponto claro no meio de um irriquieto grupo de
Entos nativos kayagares, atohwaens e sawis — represen-
e três tribos que na maior parte do tempo se considera-
hostis entre si, c raramente se achavam
em relações pa-
5. E cada um daqueles homens poderia explodir num
p de fúria a uma simples palavra de provocação. Quase

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o ED O Totem do Paz dpuses dos Céus =
todos traziam consigo seus remos — que eram também uma pou, e também os outros que já começavam a mostrar-se
lança — ou a adaga de osso, na correia do braço. Além disso, Igeiramente agitados.
seus arcos achavam-se nas canoas, entesados e prontos para | Todavia não demorou muito e as murmurações provoca-
uso imediato. Era difícil concentrar-me no trabalho, preocu- às pela tensão principiaram outra vez com seu borbulhar.
pado como estava em vigiá-los, procurando detectar o menor me preocupava, no receio de que o dia de minha chegada
indício de rixa que pudesse surgir, antes que começasse a se |l ficasse marcado para sempre na memória dos sawis, por
transformar em problema. Contudo consegui fazer a demar- E derramamento de sangue. Percebendo que não havia mais
cação razoavelmente bem. da que eu pudesse fazer para atalhar o conflito iminente,
Com o passar das horas, comecei a ficar admirado com a fguci das ferramentas e orei a Deus, pedindo-lhe que inter-
profunda calma que Deus estava me concedendo. Eu parecia e no caso. Naquele instante, veio do alto o rumor de
estar encerrado numa cápsula de paz, que aparava todos os 1)E vião, acalmando prontamente o tumulto que se forma-
dardos de possíveis alarmes, é emprestava uma nota de au- “entre aqueles guerreiros irrequietos.
toridade à minha voz, conferindo enorme peso às poucas “Naturalmente! Envolvido pelas emoções experimentadas
palavras que eu conhecia. Aqueles selvagens dos pântanos quela tarde, eu me esquecera completamente que John
atendiam aos meus pedidos, como se não tivessem outra Cain entrara em contato com a missão Asas de Socorro
escolha senão obedecê-los. jo rádio, c combinara uma tentativa de pouso no rio
Depois que as dezesseis vigas estavam colocadas, à inter- inkel, para entregar-me um carregamento de querosene.
valos de um metro, iniciei uma operação bate-estaca para teriormente, eu já tentara avisar ao meu grupo de guer-
enterrá-las bem fundo no terreno lodacento. Pedi a vários ros que o aparelho iria chegar logo, mas, pelo que eu pude
grupos de trabalhadores para, em turno, subirem a uma es- | não haviam entendido nada do que lhes dissera.
pécie de plataforma provisória e erguerem a marreta e de- 1 ado graças a Deus pelo seu perfeito senso de oportuni-
pois deixá-la cair sobre a viga. Isto serviu para distraí-los; >, tirei a camisa, pronto para fazer sinais aos pilotos quan-
sua atenção ficou toda concentrada no trabalho. Começa- assem sobre nós, e depois fiquei a observar a reação de
ram a rir e conversar animadamente. » belicosos companheiros. Todos aqueles nativos, natu-
Mas logo que terminou à operação, Os murmúrios reco- mente, já tinham visto ou ouvido falar de aeroplanos pas-
meçaram, € olhares furiosos iam de um a outro. Em certo Ido a grandes alturas. Muitos deles também tinham lem-
momento, um kayagar alto, um chefe de nome Yae, rompeu ça de aparelhos fazendo vôos rasantes sobre suas aldeias,
numa torrente de palavras. Eu não sabia dizer se ele estava s anos antes. Provavelmente, tratava-se de caças mili-
exortando o grupo à calma ou simplesmente assoprando mais DO nstralianos à procura de sinais de incursão japonesa
as brasas dos rancores que já existiam contra os sawis. Te- interior, ou vice-versa. Mas eles estavam convencidos de
meroso de que a segunda suposição fosse a verdadeira, pos- E todos os aviões eram seres sobrenaturais, de vida pró-
tei-me atrás dele, e coloquei a mão de leve em seu ombro, à,e ainda não os haviam associado com os tuans.,
Como meus conhecimentos do idioma kayagar não fossem À reação normal deles à aproximação de um aeroplano
suficientes para a situação, passei a falar-lhe em inglês, em lugir para o mato cerrado e se encolher de pavor, E, a
tom apaziguador Quase no mesmo instante, Yae se acal- E algum tempo antes, um de seus videntes havia
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132 cof fes p= O Totem da Paz Birses dos Céus ga 133

divulgado — e com sucesso — a idéia de que os aramaso (aviões) do minhas tentativas de explicar a chegada iminente do
eram alérgicos a espinhos, e que, portanto, o lugar mais se- jão, é haviam aceitado a idéia de que o aramaso não lhes
guro para se ocultar deles seria no meio de um espinheiro. ria nenhum mal, mas simplesmente vinha ao encontro
Esta noção era perfeitamente verdadeira, já que realmente à tuan.
nenhum piloto deseja espinhos nos pneus. Mas ela foi causa Desejavam ver que tipo de transação portentosa se reali-
de muito desconforto para o povo, pois após a passagem de iria quando o deus do céu se encontrasse com o deus da
um avião, eles tinham primeiramente que retirar-se de entre JAH.

os espinhos, e depois extrair da pele os que tinham ficado tre


nela, e nesse processo levavam vários dias. Entretanto já se Hank Worthington examinou bem a faixa longa e escura
haviam passado muitos anos desde que o último aparelho kidari à procura de possíveis obstruções que o impedis-
fizera seu vôo rasante por ali. E nunca, na história da região, m de pousar convenientemente no rio. Percebendo que
um deles havia pousado em seu território. nva limpo, tocou de leve na superfície, e depois partiu
De olhos esbugalhados, os guerreiros esquadrinhavam o Wamente sobrevoando as copas das árvores adjacentes, para
painel azul e branco de céu e nuvens, procurando algum si- guar as condições de saída, mais tarde, Ao seu lado,
nal daquele intruso roncador, desejando desesperadamente entava-se Paul Pontier, também veterano de muitos pousos
que ele passasse à distância. E subitamente, lá estava ele jneiros arriscados nas remotas regiões da Nova Guiné
outra vez, voando baixo, um objeto escuro contra o fundo de mandesa.
nuvens, zumbindo, primeiro sobre uma curva distante, e Os dois pilotos se entreolharam e fizeram um aceno posi-
depois, girando abruptamente sobre outra curva, e vindo em w, Hank girou o Cessna 180, e mergulhou por entre as
nossa direção. Gritos de pavor brotavam de todos os lados, s muralhas que circundavam a mata. As altas árvores de
e, num crescendo, foram se unindo até se tornar um clamor deira de lei e as “casas longas” da curva oposta aproxima-
agudo de extremo pânico. Homens e rapazes precipitaram- n-se rapidamente, como se divisados através de uma len-
se em direção à selva. Como me senti satisfeito de que não mom, de mira telescópica.
houvesse ali mulheres e crianças para se submeteren tam- ten
bém a uma fuga tão penosa. Dlhei de relance para Hato. Todo o seu corpo estava
Quando o aparelho fez sua primeira passagem sobre o trto de suor, enquanto seguia, com seu olho bom as
local onde nos achávamos, acenei com a camisa, e notei que bluções do aparelho para pousar. Kigo e os outros tre-
o piloto abaixou a asa num gesto de entendimento. Depois, am, e foram recuando logo que os flutuadores começa-
encaminhei-me para a margem do rio, para aguardar o pou- m a arrancar do rio o seu esguicho de espuma. À certa
so, e descobri, para minha surpresa, que um pequeno grupo jura, Hank Worthington acelerou o motor a fim de con-
de homens ali se achava, bem aconchegados uns aos outros, ipvar o aparelho sob controle, e facilitar a aproximação
tremendo de medo, mas recusando-se a fugir. terra. Os músculos de Hato como que se desfizeram
Kigo e Hato estavam entre eles, mas ao que parecia, 1 água, e ele correu para mim, buscando refúgio às mi-
Numu achara que aquilo já era demais para ele. Os outros tas costas.
eram alguns chefes que aparentemente haviam compreen- Por uns breves instantes, pareceu-me partilhar das sensa-
ESSES SAP PSA PEA LAPA PASSASSE: - SES SEN TA
PEIES DSI DPI DPI IPS EM LA ARARA S ENNIO LENA LBA
134 FE = O Totem da Pas pus es dos Céus EE 135

ções que dominavam os homens que me rodeavam. Encon- Depois olhou inquisitivamente para mim e perguntou:
trei-me a fitar o hidroavião com os olhos daqueles homens - Está tudo bem?
primitivos e estremeci. Depois aquilo passou evolteia ser o - Perfeito, repliquei, mas sem lhe contar que sua chega-
homem do século vinte, que se achava à espera de uma carga “tinha abafado um início de briga entre aqueles grupos
de querosene que lhe era trazida por um hidroavião. fitagônicos.
Logo que Hank desligou o motor, a gritaria do povo to- “— Estamos vindo de Kawen. Sua esposa e filho estão bem.
mou conta do lugar, com grande impacto. Girando a cabeça ja mandou-lhe uma carta, disse Hank, entregando-me um
para trás, vi dezenas de homens semi-escondidos na orla da ivelope sobrescritado com a letra de Carol.
mata, muitos deles tinham os braços estendidos na direção E aqui está um pacote que ela lhe envia, acrescentou
do Cessna contorcendo os dedos como se quisessem mantê- 1) do avião, atirando-me um embrulho.
lo afastado. 'Apanhei- o.
De repente, Hank e Paul abriram as portas, um de cada Quando j já estavam prontos para partir, Paul Pontier en-
lado do aparelho, provocando outra explosão de gritos de stou-se a um dos suportes da asa e meneou a cabeça. O sol
susto. Depois então, pisaram sobre os Alutuadores, e excla- va se pondo. Os nativos se aproximavam novamente —
mações de assombro partiram de todos os lados, E naquele »s estranhos, cabelos revoltos, grandes e encurvadas
momento, um grande mistério foi desfeito — o aramaso era sas de porco atravessadas na ponta do nariz.
apenas o veículo dos tuans. Mas, apesar de tudo, as vozes = Se fôssemos julgar os fatos pelo lado humano, eu lhe
amigas saudando-me em inglês ainda lhes pareciam vindas via: Pule neste avião e vamos embora! disse-me Paul. Mas
de outro mundo, plo que você não deseja partir; estou certo?
Os flutuadores bateram na parte rasa do rio acerca de trinta “Estava me sondando, para ver se, por baixo daquela capa
metros da margem. Entrei na água e fui até eles. Carreguei tranquilidade, eu não estaria escondendo um imenso pa-
Hank nas costas até a praia enquanto Paul Pontier descarre- + € desejando ser levado dali,
gava no rio vários latões de querosene. A princípio nenhum — Nada disso, Paul, respondi. Estou apenas começando.
dos sawis queria chegar perto de nós, mas, aos poucos, con- — Está bem, disse ele. Cuide-se bem. Vamos ficar orando.
venci Hato e Kigo a se acercarem mais. Trocaram um toque Paul subiu na cabine no momento em que Hank acena-
de mãos com Hank, descobrindo que poderiam se avizinhar | despedindo -se, e bateu a portinhola de seu lado. A pon-
dele em segurança. de uma das asas achava-se ao alcance de minha mão.
Depois disto, eles se mostraram mais dispostos a entrar e ei-a e girei o aparelho, colocando-o de frente para o
na água e caminhar sob aquelas imensas asas negro-amare- nal aberto do Kronkel. A hélice girou uma vez, e o motor
tas, e carregar latas de combustível para a terra. Abrimos um fncou. O esguicho de água levantado pelo hidroavião atin-
dos tambores grandes que eu trouxera de Kawen, e derrama- unos como uma rajada de chuva, com os nativos corren-
mos nele o querosene de cerca de dez latas. Enquanto o que- | em todas as direções, lembrando folhas secas sopradas
rosene era despejado ali, Hank passou a examinar o bando e ly vento. Sozinho, de pé na margem do rio, fiquei a ob-
de guerreiros, agora ligeiramente mais trangúilizados, que var o aviãozinho,o “Mike Papa Bravo”, como o chama-
emergia da mata saltando e gritando. jam, deslizando furiosamente kidari abaixo, e depois er-

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o TED O Totem da Paz uses dos Céus ee o
guendo-se acima das árvores e desaparecendo entre as nu- tirar a luva do desafio à face dos espíritos que alegavam
vens. bntrolar o universo sawi.
tun “O desacato fora feito. A luta poderia ser iniciada a qual-
Já estava de tardinha, e a maioria dos nativos presentes se Ner momento.
dispersou, partindo em suas canoas, pois desejavam chegar te
em casa ainda com dia claro. Antes de partirem, dei-lhes Achava-me de pé entre vistosos troncos de gigantescas
instruções acerca do tipo de material para construção que vores de madeira de lei, sentindo-me pequeníssimo, opresso
deveriam trazer-me no dia seguinte, se fossem voltar. Al- lo temor, e enterrado até os tornozelos no solo macio da
va.
guns deles decidiram dormir nas velhas casas dali mesmo,
para ficarem mais próximos, € começarem a trabalhar cedo Mas não estava sozinho. Por entre as árvores surgiu um
no dia seguinte. ito de sawis, que avançava vagarosamente em minha
O último problema que eu tinha de enfrentar naquele dia feção. Na frente vinha Hato. Ele chegou bem perto e se
seria como tomar banho. Estava um pouco receoso de croco- istou diante de mim, seu único olho examinando -me com
dilos, serpentes aquáticas e piranhas, e não desejava me ar- Explicável solenidade. Seus lábios se moviam, mas eu não
riscar a um mergulho no Kronkel; por isso, simplesmente utava nada do que dizia. Parecia lançar sobre mim o peso
me postei de cuecas à beira do rio, e fui tirando dele baldes E ima responsabilidade muito premente.
de água e despejando sobre mim. Depois, ensaboei-me, e a Depois, Kigo apareceu ao lado de Hato, pronunciando
seguir, enxagúei-me com mais baldes de água. tras palavras que eu não escutava— os olhos negros im-
Naturalmente, os outros abandonaram seus fogõezinhos frando alguma coisa com uma firmeza inexorável. A se-
para observar aquela estranha operação. Era a primeira vez ir veio Tumo, o filho de Numu, que também me encarou;
que viam sabão, e que viam alguém utilizá-lo. Sentia seus E seguido por Hadi, Er e muitos outros cujos nomes e
olhos presos à minha pele branca, e comecei a me indagar o NtOS eu estava aprendendo a conhecer. Alguns deles apon-
que estariam dizendo, com aquele murmúrio agitado que aum para si mesmos, e depois para suas mulheres e filhos,
me cercava de todos os lados. E nos observavam preocupados da borda do pantanal que
Mais tarde, eu viria a saber que não era somente do bran- )s cercava.
co de minha pele que falavam. Estavam interessados tam- Percebi que me tornava cada vez mais sensível à intrín-
bém na espuma de sabão que descia do meu corpo para as ga humanidade de cada um daqueles indivíduos. Gros-
águas do Kronkel. Pois sabiam que, juntamente com a espu- lros, infelizes, mutilados, singulares em suas feições, ou
ma, estava entrando no rio um elemento novo, e aquilo po- gobertos de infecções escamosas de fungos — como al-
deria trazer consigo graves consegiuências. Tratava-se do óleo ns deles — todos eram intensamente necessitados, em
de meu corpo. fu mudo reconhecimento de uma carência profunda e
— Que será que os espíritos vão pensar? indagavam eles. jexprimível,
Como será que vão reagir? A intensidade de sua súplica era como a de um condena-
Fosse como fosse, cu já tinha deixado o meu óleo no rio 4 que buscasse a suspensão de sua pena. E eles lançavam
Kronkel, sem saber que, aos olhos do povo, isto equivalia a bre mim a responsabilidade de conseguir esta suspensão.

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138 af O Totem da Paz

A tensão que a responsabilidade exercia sobre mim ia se tor-


nando um fardo intolerável.
Acordei de repente, transpirando muito, atormentado pelo
desejo de proporcionar alívio aqueles homens aflitos e suas
mulheres e filhos. Fiquei deitado, durante cerca de uma hora,
DEZ
sentindo-me oprimido pela ansiedade,e permaneci diante
de Deus, suplicando-lhe que aquela suspensão que fora assi-
nada com sangue, tanto tempo atrás, se tornasse realidade
para aquelas ovelhas perdidas dos pantanais. Pouco antes do
alvorecer, ele enviou a resposta, dando-me a certeza de que
A Sorte em
Uma Canoa
conseguiria o que desejava.
te)
A aurora revelou o segredo de sua chegada primeiramente
a umas aves de nome haragu, que o comunicaram às aves-
do-paraíso, que por sua vez O passaram às cacatuas, que O
trombetearam para os papagaios, que por seu turno o trans- “Ombros largos, quadris estreitos, os seis rernadores kayagares
mitiram a todos os barulhentos habitantes canoros do an- jerg am os remos na água compassadamente, com mo-
a

dar superior da floresta. Juntos, eles soltaram uma sinfo- mentos precisos, impulsionando a estreita embarcação pela
nia sonora tão majestosa quanto os próprios albores da ma- mosfera
mn abafada do pantanal alagado, avançando lentamen-
drugada. “metro a metro. À nossa frente, um bando de delgadas
Começamos a trabalhar bem cedo, lutando com os pesa- observava nossa aproximação por entre os ramos de
dos toros de madeira para colocá-los em cima das vigas ver- olitária ilhota de árvores ahos. E à medida que a esguia
ticais, e pregá-los no lugar certo. Mais tarde, John McCain o ja de nossa canoa cortava as águas é chegava junto a elas,
chegou com a Ebenezer, trazendo um carregamento de toras avam vôo, ruflando as asas graciosamente em direção a
de mangue para fazer as traves do assoalho. Juntos recobrimos Dt a moita de ahos, onde se instalavam até que atingisse-
o piso com casca de tronco de palmeira, e fizemos a armação psos aquele ponto. Desta forma, como um albatroz acompa-
das paredes e do teto com estacas recortadas. Depois, fize- jando um navio no mar, elas como que guiavam nosso
mos a varanda, portas, janelas, degraus, e balcão da cozinha, irquinho através daquele oceano de relva, banhado de sol.
enquanto os trabalhadores sawis e kayagares terminavam 0 De sob a sombra de um toldo que eu adaptara no centro
telhado de sapé e colocavam as paredes que eram feitas de À Canoa, um par de olhos azuis, intensamente comunicati-
folhagens de sagúeiro. js, me espiavam por sobre o ombro de Carol. Ao fitar-me,
No dia 10 de julho pagamos nossos auxiliares, e-eu parti eiramente, eles se suavizaram numa expressão de reco-
para Kawem, deixando com os sawis uma declaração breve: ecimento pessoal, e depois se arregalaram de espanto ao
— Volto daqui a três dias... com minha esposa e meu fi- passar rápido de uma garça branca que voou ao lado. Uma
lho. jdozinha pequerrucha se estendeu para tocar o ciciante ca-
RS GAP SGA PIER
GISLENE
PR = ad O Totem da Paz Sorte em; Uma Canoa =
pim kunai. Uma voz clara, vibrando com a alegria dos in- - De pé em sua canoa, Narai mergulhou profundamente a
fantes, soltou uma exclamação qualquer ao vôo apressado onta fina do remo numa moita de capim. Depois colocou a
de um bando de patos; um rostinho travesso ergueu-se con- rte mais larga atravessada sobre o barco e sentou-se sobre
templando, enlevado, a ruidosa passagem de um casal de la. É assim, ancorado no tufo de capim, passou a observar o
grotescos búceros., ho, à espera de alguma coisa.
Com a vivacidade própria de um bebê de sete meses, Pensou nos estranhos eventos ocorridos nos últimos
Stephen começava a tomar conhecimento de seu novo meio Eses, eventos estes sem precedentes na história dos sawis,
sentiu seu pulso se acelerar, O momento aterrorizante da
ambiente. Achava-o totalmente maravilhoso. Não via nele
qualquer sombra de perigo, e se deliciou com sua beleza iegada dos dois barcos a motor... o inesperado encontro
agreste, até o momento em que, ainda arrebatado pela imen- im os três tuans no kidari.,. a eletrizante odisséia de Hadi e
sa diversidade de luzes, sons e estruturas, ele foi amamen- É. à primeira viagem dos sawis a Pirimapun... a volta de
tado e depois dormiu embalado pelo balanceio suave da m dos tuans para construir uma casa junto ao rio Tamdu...
canoa. Chegada do arumaso... a vinda do tuan de Kawen dias de-
Bem mais adiante, à linha do horizonte, marcada pelo pis, para ajudar na edificação da casa, e, por fim, a partida
contorno verde-escuro da floresta, rebrilhava ao fulgor do Ss dois tuans, sendo que um deles prometera regressar três
meio-dia, Aos poucos, ela foi se aproximando de nós, e, de ns depois com a esposa e filho,
repente, havíamos deixado para trás o pantanal, e passamos Ou quem sabe teriam entendido mal sua linguagem de
a deslizar à sombra das árvores, ao penetrarmos no curso do nais?
Kronkel. Levados pela corrente do rio que descia para o oeste “Já era o terceiro dia. Acerca de cinco quilômetros rio abai-
— pouco depois passamos por Amyan, onde homens, mulhe- b, à população de Haenam, juntamente com a de Kamur e
res e crianças nos observavam espantados, à primeira visão hwi, estava reunida e pronta. Postados de intervalo em
de uma mulher de cabelos louros, e de um bebê igualmente tervalo, pelas curvas do rio, outros vigias esperavam o si-
louro repousando em seu regaço. a! que Narai daria, para transmiti-lo ao seguinte.
Agora o sol já ultrapassara bastante o seu auge. Nossos O tempo corria. O Kronkel também.
remadores foram se cansando, sentindo o torpor do ar para- “Narai relanceou os olhos por sobre os ombros para o sol
do do entardecer, que parecia pesar sobre o pântano. Carol Ie morria. Talvez aquele tuan que por razões desconheci-
molhou seu lenço na água do rio para refrescar a testa do 5 aparecera ali de uma hora para outra para construir uma
menino. O calor intenso e a umidade do ambiente começa- sidência às margens do Tumdu, resolvera...
vam a afetar nossos sentidos. O tempo parecia mais lento, e | Bem lá adiante, no alto do rio, um raio de sol incidiu sobre
até os peixes saltavam cm câmara lenta. As longas curvas do in remo molhado, e chamou a atenção de Narai. Depois a
Krônkel se estendiam e pareciam ainda mais longas quando ha escura de uma canoa kayagar surgiu à vista, avançando
chegávamos a elas. m direção ao vigilante solitário, por entre os rebrilhantes re-
Minha maior preocupação era chegar ao meu destino an- xos de luz na água. Narai inclinou-se para diante, e, vagaro-
tes do escurecer. imente, começou a desprender o remo da moita de capim.
teto las ficou esperando, Então ele viu um auspicioso lampejo de
GALP IRAS
ABRI SOS PISAR,
A A,
ZA

PENA PE PN PO
o ES O Totem da Paz pre em Uma Canoa 2 qa 143

cor viva em meio aos remadores kayagares. Colocando-se de


pé em seu barquinho, chegou aos lábios uma corneta de bam-
bu, e emitiu um sinal longo, em tom grave.
Daí a segundos, 0 sinal foi repetido para a aldeia distan-
te. Sorrindo em expectativa, Narai preparava-se para €s-
coltar ao seu destino a embarcação que se aproximava.
Agora o sol não era mais que uma massa de pontos
incandescentes que afundavam por trás das folhagens de
um bambual.
top
De repente, lá estava um sawi navegando ao nosso lado.
— Konahari! gritei-lhe.
— Konahari! respondeu sorrindo.
Logo depois outro e mais outro desses navegadores sur-
giram ao lusco-fusco azul do entardecer, deslizando sobre 0
Kronkel em pequeníssimas canoas que não mediam mais
que cinco metros de comprimento, Quando afinal chega-
mos à última curva, seis ou sete destas embarcações haviam
se incorporado à nossa caravana, e os ocupantes gritavam
pará seus amigos, à frente, em linguagem fluente, conclu- Nossos remadores foram silenciando à medida que desli-
indo cada sentença sempre com um longo e enfatizado mos para a margem. Tocamos em terra bem aos pés dos
“qvuuvuuu!”, ros armados.
Encontrando-nos já no último trecho do percurso, eu e
Carol procuramos espiar adiante, por entre pernas € re-
mos, procurando entrever nossa casa, e...? Mas não está-
vamos preparados para o que vimos. Cerca de duzentos
guerreiros armados estavam enfileirados na margem do
rio e surgiram diante de nossos olhos, suas silhuetas es-
curas recortadas contra a luz vermelho-ouro do poente.
Plumas adornavam seus cabelos e lanças. Mais ao fundo,
próximo da pequena casa de toras que eu e John terminá-
ramos de construir havia três dias, um grupo, em igual
número, de mulheres e crianças, nos observava, soltando
exclamações à meia voz, comentando nossa estranha apa-
rência.

DO DO DO DO PO OA
41

Um Batismo
de Estranhezas
- Olhe só para eles! sussurrou Carol.
Agora mais perto, podíamos enxergar claramente a berrante
pintura branca e ocre com que haviam besuntado o rosto. Em
contraste com ela, suas órbitas oculares pareciam orifícios
negros. Víamos também perfeitamente as espinhelas das li-
nhas de farpas que recobriam suas lanças de alto a baixo.
Ouvíamos o murmúrio ciciado de sua conversa em voz baixa,
que se elevava à medida que a agitação crescia dentro deles.
Era difícil acreditar que se tratava das mesmas pessoas que
poucos dias antes haviam nos auxiliado com tanta docilidade,
recolhendo o material para a construção de nossa casa. Naque-
les dias, fora fácil esquecer que, apesar de seus gestos amáveis e
seu cândido entusiasmo, eles ainda eram antropófagos e caça-
dores de cabeças. Mas agora era isto que eles lembravam.
Será que eu interpretara mal suas intenções? Seria esta a
sua maneira de expressar boas-vindas? Ou quem sabe era
outra coisa? Será que eu não me precipitara ao interpretar
como ordem de Deus a idéia de trazer Carol e Stephen para
aqui, agora? Ouvia meu coração pulsando fortemente, como
se estivesse dentro de uma câmara de eco.

3650605060 06000535
Q
146 EE O Totem da Biz pn Batismo de Estranhezas «saga
cEa 147

Alguns sawis entraram na água e agarraram as bordas de tusiasmado. Outra pessoa segurou meu ombro. Hato! Seu
nossa canoa. nico olho brilhava com uma expressão diferente. Algumas
“Senhor, será que cometi uma tolice? Estes homens nun- Is mulheres sawis mais idosas afagavam Carol e Stephen,
ca aprenderam a respeitar nem um policial, quanto mais a sredulamente. Os homens também começavam a fechar
ti? E aqui estamos nós - um homem com sua esposa e filho, go círculo. E a tarde caiu.
a quase cem quilômetros de distância do mais próximo pos- “Devolvi Stephen aos braços de Carol, a fim de ter os bra-
to do governo, e totalmente indefesos, a não ser pela presen- 4 livres para abrir caminho entre o povo, em direção à casa,
ça do teu Espírito. itante uns cinguenta metros. Entretanto, a esta altura, os
“Será que não estamos sendo guiados e impulsionados rreiros formavam um grupo tão compacto que era im-
Tre

apenas por um sentimento muito humano de presunção?” Esível andar, Nada podíamos fazer a não ser nos subme-
E enquanto os sawis arrastavam a embarcação mais para a mos a seus desejos e ficar parados.
terra, impelindo-a para a margem lamacenta do no, ouvi a res- De repente, o murmário abafado foi aumentando e se
posta, que partia de meu próprio coração. Era a paz, aquela paz nsformando, até se tornar num brado de esa! esa! esa! Às
que, mesmo que eu estivesse sendo levado apenas pela presun- nhas costas, alguém soltou um grito agudo, uma ordem.
ção, tinha um ponto a seu favor - em um momento de crise, tava-se de um sinal; mas para quê?
ela ainda se fazia presente . Então pensei: certamente, se minha Carol olhou para mim, enquanto Stephen nos fitava a
motivação não viesse de Deus, aquela paz teria me abandona- j e outro vivamente. Os claros olhos azuis de minha espo-
do agora! Sem se deixar pressionar pelo alarme que vinha de jinda estavam radiantes, confiados, sem o menor indício
meus sentidos, aquela paz zombava das argumentações do ra- indagação: “Por que você nos trouxe aqui?” Vendo seu
ciocínio, e dava forças à certeza que havia no fundo do meu ser, uy, Stephen voltou a relaxar sobre seu ombro, e mais uma
Mas, e Carol? E Stephen? tive a certeza de que me casara com a pessoa certa.
Ajoelhei-me, estendi os braços e tirei o garoto de sob 0 Todavia o teste ainda não havia terminado.
toldo, onde se achava no colo da mãe. Em meus braços, ele 'Ão sinal expedido, um intenso ruflar de tambores explodiu
deu um sorriso angelical para nossos anfitriões, em suas pin- nosso redor, fazendo-nos estremecer involuntariamente.
turas de guerra, estendendo para eles os bracinhos gordu- Mando por entre a multidão, consegui entrever um dos ins-
chos. Carol também saiu de debaixo do toldo e se postou a mentos. Era estreito no meio, alargando nas extremida-
meu lado. Ela se mostrava emocionada e deslumbrada, mas | e todo ele, e sua ampla alça, estavam enfeitados com exó-
não dava qualquer demonstração de temor 45 símbolos ancestrais. A membrana superior era de pele
Movendo-se com cautela, os remadores que se achavam jicaré, marchetada de preto, e colada com sangue humano,
na parte dianteira da canoa pisaram em terra, abrindo cami- Fequal ainda se viam as marcas escuras do que escorrera
nho para nós. Caminhamos até a ponta do barquinho e saí- 5 beiradas, e se secara, tornando-se parte dos adornos.
mos dele, e logo nos achamos envolvidos pela multidão. Os singularidade dos sawis.
outros três remadores nos seguiram, transportando nossa Pouco à pouco, os batedores de tambor foram sincroni-
bagagem sobre-os ombros. ido o ritmo dos instrumentos até chegarem a um conjun-
Alguém agarrou-me pelo braço direito. Hadi! Estava todo qnificado, constante e ressonante, mediante o qual todos

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se lançaram num paroxismo de gritaria selvagem, saltando v Us, antes da criação do mundo. Conserva-nos fiéis a ela ca
dando estocadas para o alto com as lanças. E ali de pé, no | Capacita-nos com teu Santo Espírito.
centro de todo o tumulto, nós examinávamos aqueles rostos “Que a tua vontade seja feita entre este povo, como é feita
animados por um entusiasmo selvagem, sentindo-nos des- 9 céus. E se algum bem lhes advier através da nossa pes-
Jumbrados pela forte intensidade de suas emoções, e seu to- , Seja a honra toda tua!"
tal envolvimento na comemoração daquele evento. E ele respondeu:
Depois, a gritaria foi se transformando numa espécie de A paz de Deus, que excede todo o entendimento, guar-
cantochão, é os saltos, em movimentos de dança, na qual id o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus.”
grupos de guerreiros bailavam aproximando-se de nós cada sora tudo estava bem. Nosso relacionamento com ele
vez mais, parecendo querer nos engolfar. É como um batis- | reformulado. Senti uma renovada vitalidade brotar den-
mo, pensei, Um batismo com características primitivas. Um de mim,
batismo de estranhezas. tp
Subitamente, à luz azulada do entardecer, sentimo-nos en- De repente, a multidão começou a se mover por entre as
volvidos por uma Presença mais sensível que a da multidão. A as, conduzindo-nos para a casa. Depois, perante os tos-
mesma Presença que nos levara a confiar em Cristo, e depois | degraus que eu fizera alguns dias antes, abriram um ca-
nos transportou através de continentes é oceanos até essa cla- ho para permitir-nos chegar até eles. Subimos para a
reira no meio da selva. Diante dela, fugiram todos os pensa- Mlesta varanda, e nos viramos para olhá-los. Um tremen-
mentos e sentimentos superficiais e senti como que uma son- amor eclodiu no ar. Homens e meninos estavam sal-
dagem profunda de minhas verdadeiras motivações. ido, ruflando tambores e cantando, em voz bem alta. Atrás
“Missionário”, indagava ela, “por que você veio aqui?” es, as mulheres dançavam também, num grupo separa-
Era uma pergunta que eu ouvira muitas vezes dos lábios de seus saiotes de capim ondulavam como vagalhões do
incrédulos, e rebatera. Mas agora era o meu Senhor que a coloca-
va diante de mim, e não havia meios de escapar a ela. Os olhos Enquanto fitávamos aqueles guerreiros com seus rostos
de cada um daqueles dançadores sawis pareciam endereçá-la a uidos para nós, percebi claramente que não haviam tido a
mim. Suas vozes pareciam cantá-la; seus tambores, ecoá-la, n ção de nos assustar. Carregavam suas lanças do mes-
Recordei as respostas que havia dado no passado, rejei- | modo que uma guarda de honra militar empunharia suas
tando-as uma a uma. Os argumentos secundários, incidentais netas. Cada gesto, cada traço de pintura, cada nota en-
haviam perdido toda a sua força. Nem poderia um idealismo la fora em nossa homenagem,
elevado suportar a feição tetradimensional que nossa tarefa De alguma forma, os kayagares conseguiram atravessar o
assumira. vo com nosso carregamento de suprimentos. Retirei uma
A colocação da nova pedra fundamental demorou apenas terna de um dos pacotes e entrei em casa, adiante de Carol,
alguns segundos. Depois, então, respondi, me seguia carregando Stephen que espiava tudo de olhos
“Senhor Jesus, é por ti que nos encontramos nesta terra, Egalados. Vendo-nos entrar, os sawis começaram a dan-
sendo batizados não em água, mas na realidade dos sawis. lentamente ao redor da casa, até que a cercaram de todos
Isto é um novo batismo nesta obra que tu preparaste para ados. O barulho de vozes, tambores, batidas de pés pare-
LING INSIRA PENIS ENSINO EIS PES PE PES
o EE O Totem da fas

cia querer atravessar as frágeis paredes de ramos de sagúeiro


da casinhola,
Percorremos todo o interior de nossa nova residência
revistando-a à luz da lanterna. Aos nossos pés, dezenas
de grilos negros fugiam a se esconder da claridade, en-
quanto no teto uma enorme rã aborícola saltava desespe-
radamente de viga em viga, contemplando-nos com seus
olhos esbugalhados. Mas não eram só os olhos da rã que
estavam fixos em nós. Voltando-me vi que um bom nú-
mero dos nativos havia abandonado o grupo que cantava
e se reunira na varanda, e nos fitava através da telinha da
janela.
Com eles ainda a observar-nos, preparei uma lâmpada de
querosene, e acendi-a, esquecendo-me de que esta era a pri-
meira vez que manuscava um objeto destes diante dos sawis.
À vista do inesperado jorro de luz, eles fugiram atabalhoados.
Ninguém se preocupou em procurar os degraus — simples-
mente abandonaram o navio, saltando por sobre a balaus-
trada. Felizmente, a varanda encontrava-se a apenas um
metro e meio acima do nível do chão.
Lá fora, os tambores se calaram subitamente, € O canto
foi sumindo até ficar apenas um leve vagido. Ouvimos o in-
confundível rumor de pés correndo para a segurança das tre-
vas. Coloquei a lâmpada sobre um balcão e apressei-me a
sair para o quintal a fm de trangúilizá-los.
Foi então que compreendi por que haviam corrido. Toda a
casa estava iluminada como se fosse um destes espantalhos
de cabaça, com luz no seu interior. Pelas centenas de frestas
da parede, através de cada porta e janela, a luz estonteante
de quinhentas velas da pequenina camisa do lampião espan-
tava as trevas.
Não éramos os únicos a ser batizados num mar de estra-
nhezas.
— Tadan nomo! Tadan nomo! Kee nawain! gritei para eles.
Não tenham medo. Voltem!
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a?

Ed
o TED O Totem da Paz

Vagarosamente, Hadi, Hato e outros retornaram, mais


calmos ao constatarem que aquele clarão provinha de um
aparelho, e não significava que eu, Carol e Stephen havía-
mos nos transformado, subitamente, em deuses que brilha-
vam com um poder sobrenatural, DOZE
Alguns minutos depois, os tambores recomeçaram com
seu batido rítmico, e os dançadores, recobrada a calma, vol-
taram a circundar nossa casa, embora num raio ligeiramen-
te mais amplo.
Enquanto Carol preparava nosso jantar num fogãozinho,
Um Patriarca
estendi mum canto nossa esteira-leito e cobri-a com um
mosquiteiro. Logo que foi possível, deitamos os três sob o
cortinado. Apesar do pulsar constante dos tambores bem do Tumdu
perto de nós, do outro lado da parede, Stephen caiu no sono
em poucos minutos, e ouvimos sua respiração branda junto
a nós. Eu e Carol demoramos um pouco mais.
Movendo-se pesadamente por entre as sombras, o imen-
Alguns dos que dançavam agora empunhavam tochas, que
Erval
| sentiu o faro de polpa de sagu recém-cortado, e vi-
rebrilhavam de forma fantasmagórica por entre as frestas da
li-se na direção dele. Enfiando o longo focinho sob a bar-
parede de folhagem de sagúeiro.
pa de vegetação, avançou com facilidade, perpassando os
— Feche os olhos, querida, sussurrei para Carol, e diga-
iranhados de cipó e ramos de árvores, que deslizavam
me o que está vendo.
» plano inclinado de seu pescoço ouriçado e pelo seu dor-
— Vejo quilômetros e quilômetros de planícies relvadas
passando por nós, e as garças voando. Sinto o balanço da Atravessou uma pequena clareira na mata banhada de
canoa. Agora é o pôr-do-sol, e toda aquela gente está dançan- Do outro lado dela, estava um sagúeiro derrubado e seu
ico ostentava um longo corte longitudinal exatamente
do ao nosso redor. Mas não tenho medo. Sinto-me diferente,
como se Deus houvesse me dado um novo tipo de estrutura e voltada para ele. Caminhou em direçãoà palmeira.
emocional para que eu possa viver aqui, No centro da clareira, porém, parou abruptamente, en-
E realmente ele dera. E a mim também. findo as quatro patas no solo lodacento da selva, pronto
Aquele estreito contato com corpos humanos — num ven- q fugir instantaneamente em qualquer direção: Um novo
tre latejante de sons e mentalidades estranhas — fora a forma jr se misturava ao cheiro acre da polpa, o dos humanos.
que Deus usara para nos transformar em criaturas que podi- om um grunhido raivoso, o animal girou a imensa cabeça de
am respirar a atmosfera diferente deste mundo primitivo — Fado para outro, esquadrinhando atentamente a mata. Não se
sem efeitos nocivos - para que pudéssemos servi-lo nesta inguia movimento algum, a não ser o deslizar sombrio de gi-
parte do mundo também. Escos morcegos, vistos contra o fundo das estrelas, nenhum
Contanto, é claro, que conseguíssemos aprender seu ídio- lhe chegava aos ouvidos, a não ser o silvo agudo das cigarras e
ma e penetrar em seus mistérios. Wixar de um coro de rãs, num pântano próximo.
FSB IBIIBZIBIIR
CO O DO O DO DOS 2
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O Totem da Bu pt Patriarca do Tumdu E 155

O odor de carne humana não era estranho para o javali, “Minutos depois, o caçador emergiu de trás de seu escon-
já o encontrara diversas vezes, principalmente em clareiras rijo de ramagens, com o arco entesado e a flecha pronta,
como esta, onde os humanos iriam para recolher sagu, mas E pximou-se lentamente do porco e tocou-o com a ponta
geralmente eles o faziam durante 0 dia. A noite pertencia a | pé. Percebendo que estava morto, relaxou a tensão do
LO.
ele, ao animal.
Atreveu-se a farejar mais de perto o aromático corte no | Hato retornou ao esconderijo, e ali apanhou seis dos ra-
tronco da palmeira. Descobriu que a polpa mais próxima à ls menores da árvore. Voltando ao lugar onde se achava a
abertura fora toda retirada. Para conseguir um pouco dela, ca abatida, colocou-os no chão ao redor do animal, de dois
teria que enterrar a ponta do focinho mais para o miolo do à dois, um 20 lado do outro com as pontas se sobrepondo.
tronco. pois, ajoclhou-se, e começou e entrelaçar as pontas so-
Examinou uma vez mais os arbustos das imediações. 0 Epostas de cada dupla. Isto feito, tirou de seu bornal uma
luar rebrilhando em suas presas recurvadas. Depois enfiou a freita faquinha de bambu, reclinou-se sobre o javali, é en-
cabeça pelo tronco adentro e passou a saborear a massa doce igou-se à longa tarefa de esquartejá-lo.
e esfarinhada da polpa da palmeira. O orifício era do tama- Enquanto trabalhava, um feérico círculo de luz cercava
nho exato. | corpo nu —era o luar brincando nas asas das centenas de
Quase no mesmo instante, uma longa flecha de bambu squitos que adejavam ao redor Sobre sua cabeça, vaga-
foi disparada através de uma fresta entre as ramagens de um pes rebrilhavam por entre elevados emaranhados de ci-
sagleiro. De detrás das folhas veio o estalido leve de um 5, enquanto que nos recessos da floresta, fogos fátuos se
arco de cipó sendo esticado até o seu ponto máximo de ten- guiam da vegetação em decomposição, como um exército
são. Mas o animal não o percebeu. Scus ouvidos escutavam olhos luminosos.
apenas o ruído da própria mastigação. De repente, porém, ca ocorrera àquele guerreiro que em outras partes do
sentiu-se invadido por uma dor aguda que lhe penetrava em indo o universo pudesse oferecer ao homem um outro
linha reta e ia até o coração. À flecha atravessara-o de um AE pe paisagem, que não fosse a do pantanal. E mesmo que
lado a outro. e lhe ocorrido tal idéia, nunca poderia ele conceber
Antes mesmo que o cipó do arco parasse de zunir, o ani- E lente mais propícioà habitação do homem, que este
mal já retirara o focinho do tronco de sagúeiro, e arquejava agora o cercava e do qual se apercebia através dos senti-
violentamente, o ar explodindo dos pulmões. Guinchando
terrivelmente, ele se arremeteu para o lado oposto da clarci- Dividiu o corpanzil do animal em três partes, cada uma
ra, com o sangue jorrando de seu corpo como se escoasse de intendo carne, ossos e vísceras. Colocou cada parte no cen-
duas torneirinhas, de cada invólucro que preparara com as ramagens de
Girou a cabeçorra apressadamente para encarar o inimi- úciro com as pontas entrelaçadas. Depois enrolou cada
go que o atormentava, mas o adversário ainda não se achava j com as folhagens, e amarrou as pontas. Ficou assim
à vista, Foi então que suas patas dianteiras se dobraram, ce- fi três fortes embalagens de caça, cada uma contendo cer-
dendo ao seu peso. Cuspindo sangue, ele caiu de lado e ficou de vinte e sete quilos de carne e ossos. Por fim, fez algu-
imóvel. faiças com tiras de cipó, e atou-as aos pedículos das ra-

SESSSCSSSCSSES
156 Fis => O Totem da Pis H Iutriarca
do Tumdu nf ER 157

magens. Depois pegou um dos fardos e alçou-o para as cos- vida — piscando à luz brilhante do sol, estendido sobre um
tas. jício leito de folhas. Yami, uma das netas de Hato, abanava
A esta altura, o dia já estava amanhecendo. Curvado ao bre à criancinha uma grande ramagem, para espantar as
peso de sua carga, Hato pegou seu arco e flecha, inclusive a variáveis moscas que infestam toda a selva.
que usara para matar o porco € que estava coberta de sangue. 'No alto, um garoto de nome Badep, encarapitado nos
Huminado pelo clarão difuso da madrugada, ele poderia ser imos galhos de uma kabi, vigiava o lugar, para que
assemelhado a qualquer um de seus ancestrais, em todos os Cursores asmates, caçadores de cabeças, não entrassem
aspectos, com exceção de um só. “atraídos pelo ruído feito pelas mulheres em seu traba-
Voltando ao esconderijo, Hato inclinou-se e pegou do chão p. Estava de olhos atentos também para os bandos de
o facão de aço, novinho em folha, e que utilizara para cortar patuas que voejavam em círculos sobre a floresta, Qual-
os galhos com que fizera o tapume para se ocultar. Ganhara- e agitação estranha entre elas prenunciava a aproxi-
o do tuan por tê-lo ajudado a construir sua casa, Era esta a ição de um inimigo. Não era sem razão que os sawis
única diferença que havia entre ele e um de seus ancestrais — pitas vezes chamavam as cacatuas de ragedep, *
mas era uma enorme diferença. ielador”.
E enquanto a selva despertava ao som das orquestrações tu”
dos miríades de exemplares de sua fauna canora, Hato diri- Dutro dos filhos de Hato, um ágil rapazola de nome
gia-se para sua morada, próxima às cabeceiras do Tumdu. io, esgueirou-se cautelosamente por entre as aléias do
Mais tarde, dois de seus muitos filhos iriam até ali para re- itano que representava a maior fonte de alimentação
colher os outros dois volumes de carne. | Tumdu. Ao seu lado, erguiam-se os sagúeiros de até
ter () metros de altura— indo ao encontro do sol, suas imen-
Sirowi e Imati, duas das quatro esposas de Hato, ocupa- É ramagens se arqueando ligeiramente para formar um
ram seus lugares, uma de cada lado de um elevado sagúeiro. 4 de abóbadas segmentadas, sombreando as grandes
Começaram a golpeá-lo fortemente com machadinhas de E nas de charco. Agilmente, Amio ladeava as poças
pedra, cada uma de seu lado do tronco, até as fibras da espes- ores saltando de raiz em raiz, muitas delas com for-
sa casca escura da árvore se enfraquecerem. O gigantesco s grotescas.
tronco oscilou e depois tombou, enterrando um terço de sua Repentinamente, em uma das lagunas, uma lampreia sal-
volumosa haste no solo macio da selva. |, e chamou sua atenção. O rapaz acocorou-se numa raiz
Enquanto Imati abria a casca de um dos lados, Sirowi icou à espera, arco e flecha prontos. Outro peixe saltou, e
começou a preparar a gamela para o processamento do sagu. Is outro. Amio se pôs de pé examinando as árvores ao
Depois de descascarem a árvore, tomaram o miolo da pal-
meira e cortaram em pedaços a polpa fibrosa, usando para Por fim, entre as colunatas de troncos de palmeiras, en-
isto seus enxós de pedra. A seguir, lavaram as fibras na tina, E o que procurava, uma árvore chamada os. Retiran-
recolhendo a solução de água e farinha que escorria da pol- » seu cinto de capim— única peça de vestuário que usava
pa. Aquele era o seu alimento vital. a faca de aço, Amio recortou várias embiras da casca da
De um lado, estava o bebê de Imati, com duas semanas - A face interior da embira rebrilhava com a seiva, um
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=== qd O Totem da Paz po Patriarca do Tumdu 159
158

Esviavam dos longos espinhos que serviam de defesa à


líquido grosso e esbranquiçado. O rapaz carregou asembiras
st dessas palmeiras, quando ainda eram novas. Deten-
para a laguna, e ali começou à estregá-las uma na outra, so-
b-se junto a uma das límpidas fontes do Tumdu, inclina-
bre-a superfície das águas.
m-se e, estendendo a mão, pegaram dali dois saquinhos
Daí à pouco, uma sombra leitosa escorria espalhando-
! palha de palmeira entrelaçada que ali haviam colocado
se até o centro da lagoazinha, e ia avançando para O seu
Hs dias antes.
fundo escuro, Amio repetiu o mesmo processo em vários
“Os dois saquinhos continham uma massa fofa e macia de
pontos à beira da água, até que toda ela estivesse impregna-
ras de folhas-embriões. Elas as haviam retirado do interior
da daquela seiva clara, Depois, atirou fora a casca da árvo-
ponta de um tronco de sagúeiro que tombara ao solo.
re, apanhou novamente seu arco e entesou-o, colocando na
hando a água que escorria pelas frestas da sacola de palha,
corda uma flecha própria para pescaria. Não foi preciso es-
perar muito.
jurvavam com prazer as contorções de vários camarões de
la doce que tinham se escondido na massa fibrosa, Os
Logo depois, um peixe assomou à superfície, contorcen-
parões não resistiam ao apelo de um esconderijo tão per-
do de dor, os olhos cégados pela substância esbranquiçada.
Amio soltou a flecha e ela atravessou o peixe que ficou a
) +.

pm grande habilidade, Kimi e Sayo cortaram, com as


espadanar por ali, carregando a flecha consigo. Numa das
prias mãos, várias folhinhas de um capim alto de cerca
voltas, passou perto do rapaz. Este agarrou a seta pela ponta,
um metro e oitenta, envolveram nelas os crustáceos vi-
e retirou sua presa da lagoa,
, e depois recolocaram as armadilhas para camarões de
A esta altura, outros peixes estavam subindo à tona, Apa-
ta num dos escuros baixios do Tumdu, Dali seguiram para
nhou todos eles. A seguir, preparou ele também sua embala-
gjuna mais próxima, € para a seguinte, até completarem a
gem de folhagem de sagúeiro, e envolveu nela os peixes. Mas
la, retornando ao ponto inicial, onde haviam deixado as
não sem antes remover as venenosas espinhas das membra-
irmes sacolas para seus volumes juntamente com as
nas dorsais das lampreias. Assim não aconteceria de colocar
tas, e guardaram as embalagens de camarão dentro das
o fardo às costas e sentir as espinhas enterrando-se em sua
las. Em seguida, pegaram suas aguçadas varetas feitas
pele através das folhas.
foncos de palmeira, e foram abrindo caminho com elas
Amio dirigiu-se para a casa de árvore. Chegou ali ao mes-
“um cerrado capinzal, cortando seus grossos pedículos
mo tempo que seus dois irmãos mais velhos regressavam
abaixo da superfície da água, Desbastando as folhas,
com os fardos de came fresca do javali que Hato, o pai deles,
vam o miolo da planta — que era sua parte nutritiva - €
deixara na mata, Neste ínterim, as outras duas esposas de
guardando no interior das sacolas.
Hato cozinhavam a carne que ele trouxera pela manhã, pro-
Jepois, colocaram-nas a tiracolo, e seguiram em dire-
duto de sua caçada noturna.
tan
À sua casa, detendo vez por outra, para arrancar as fo-
has tenras de uma árvore chamada sinaham, ou sacu-
Kimi e Sayo, duas das filhas mais velhas de Hato, con:
im akakor, em busca de seu fruto maduro. De vez em
versavam em voz baixa, avançando pelo meio de um es-
ndo paravam também para retirar dos pés ou tornoze-
pesso bosque de sagúeiros pequenos, seus longos saiotes
ima sanguessuga que se lhes apegara, atirando-a para
de capim balouçando ao ritmo de seus passos, quando se
E/ o A a A A, A A A e o, - a
160 > O Totem da Por m Patriarca do Tamdu Ag = 161

um lado, tudo isto sem que a palestra sofresse a mínim Reunidos no alto, ao nível das copas das árvores, os mem-
quebra. os da família comiam pedaços de carne assada, ouvindo o
tn lato de Hato acerca de sua façanha na caça do javali, Após
Enquanto isto, Sirowi e Imati já haviam lavado cerca de iver descansado durante a parte da manhã, agora ele se
trinta e dois quilos de farmha de sagu na gamela. Depois que hava perfeitamente refeito. O ancião caolho tinha nas mãos
a farinha estava depositada no fundo da vasilha, derrama ma das orelhas do anima! enquanto falava. Um carrapato
vam fora à água, e chamuscavam com tochas a parte extern 1 da orelha do animal à procura de um novo hospedeiro,
de cada fardo de sagu, para que a camada exterior endureces- issou à mão dele. Calmamente, Hato pegou o inseto e
se. Depois, esta camada dura seria retirada, quebrada em tou-0 ao fogo que ardia a seu lado.
pedaços, e estes distribuídos entre os presentes. Seria a refes- Com uma faguinha de bambu, recortou um círculo no
ção do meio-dia, uma refeição reforçada, ptro da membrana pilosa da orelha do animal e depois
Várias crianças iriam até ali apenas para participar deste ou outro pedaço circular no interior do primeiro, dan-
lhe a forma de um anel. Enfiou o anel pelo seu arço abai-
regalo. Iriam brincar com sua porção, esticando seu pedaço
de du rayp (sagu de goma) até que se rebentasse e batesse de [reunindo-o a outros troféus, souvenirs de outros porcos
volta em suas mãos, divertindo-se e rindo a valer. Enquanto E abatera.
os pequenos mascavam seu sagu, Sirowi e Imati dividiram o Durante todo o tempo em que fazia sua exposição, jazia a
restante dele em pequenas embalagens a fim de transportá | lado, na esteira, uma flecha longa de cerca de metro e
lo para casa. lo, feita de caniço, e toda manchada de sangue. Eta raro
tros intecer que uma seta atravessasse o corpo de uma caça, de
Quando as diversas pessoas da família, encarregadas dos wa lado, sem encontrar o empecilho de um osso. E tam-
vários tipos de alimento, chegaram à base da casa de árvore, j era raro o arqueiro conseguir atirá-la com força suficien-
primeiramente depositaram seus volumes de provisões nas nra varar completamente a carcaça do animal.
três canoas da família, ancoradas por entre os juncos da bei- Mato era um desses homens — tinha quatro esposas que
ra do Tamdu, depois subiram para seu lar. Hato lhes dissera am bem com ele, gozava do respeito de seus onze filhos,
que neste dia todos voltariam para o antigo povoado. Por- às prazeres de um crescente número de netos, além de ser
tanto não havia necessidade de subirem à casa de árvore com Error de seus inimigos de todos os lados. Hato era um
os pesados fardos. fiarca que vivia às cabeceiras do Tumdu.
As provisões eram bem abundantes. Além da carne de ) que mais poderia ele desejar? Olhou para seu facão novo.
porco, do sagu, dos peixes e camarões, do miolo de capim reu o dedo pelo corte brilhante. E, na verdade, de que
aquático e das folhas e frutos, havia ainda um bom número a ele realmente precisava?
de larvas de besouro que se remexiam na vasilha, uma víbo- Mais facões, machados e facas, naturalmente. Seu facão
ra que Hanay matara com uma flecha quando voltava com à faca de Amio seriam apenas as primeiras de uma série.
carne de porco, e uma ave que Badep abatera quando monta- inha esperanças de que, no futuro, todas as suas esposas
va guarda por causa dos invasores asmates. Alguns dos garo: hos possuíssem pelo menos um facão, um machado €
tos menores também haviam caçado rãs e lagartos. | faca, cada um. Isto significaria tempo e trabalho, pois o
SEE LS DES DEE ES A PERA POA a a? a o A, A, A, a? a? a? 4? o
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o EED>> O Totem da Paz | Patriarca do Tumdu Aedes 163

tuan já deixara bem claro que não tinha intenção de distri- som de gritaria distante foi ficando mais audível. E de
buir tais objetos como presentes. Mas para Hato isto não era nidos, também.
problema. Ele e sua família estavam acostumados ao traba- Depressa! berrou Hato. Está havendo uma luta bem no
lho. tal da casa do tuan.
Mas será que havia mais alguma coisa? Também estava
claro que o tuan e sua nyonya tencionavam reorientar 0
mundo sawi, mas ele ainda não sabia imaginar que forma-
ção teria aquele novo universo. Contudo estava muitíssi
mo curioso para descobrir mais detalhes dos planos do ca-
sal.
— Es aphaem ke hafem! Vamos à aldeia! gritou ele, pon-
do-se de pé.
Os fogões foram apagados com água borrifada das vasi-
lhas de bambu. As esteiras enroladas; as caveiras dos am.
cestrais foram atadas às vigas do telhado, para aguardarem
ali o retorno do clã. Os bebês colocados em portadores es-
peciais e depois afixados às costas das mães. Tudo pronto,
a longa fileira começou a descer a escadinha em direção às
canõas,
teor)
Após uma hora de jornada pelo curso tortuoso do
Tumdu, Hato e sua família chegaram ao local onde o rio
desaguava no Kronkel. Já avistavam a pequenina casa
quadrada do tuan, em sua clareira, e rodeada de outras
clareiras maiores onde alguns dos habitantes de Kamur,
Haenam e Yohwi haviam erguido residências temporárias, «
se preparavam para construir suas casas permanentes mais
tarde. Um fio de fumaça escura erguia-se lentamente do
marrom-avermelhado de um monte de sapé recém-seca-
do.
De repente, o olho de Hato divisou alguma coisa mais, «
ele notou que não era apenas fumaça que cortava os ares do
pequeno povoado. Hastes de caniço branco lampejavam como
agulhas ao cruzarem o espaço pouco acima das copas das
árvores, antes de caírem de volta ao chão. Neste instante,
LESBIAN S
E Guerra à Minha Porta EEE 165

bs da casa, e entrei. Atendendo ao meu grito de aviso,


fo] tirara Stephen da cama, onde ele tirava seu soninho
arde, c o carregara para nossa despensa. Ali, a segunda

TREZE (de o protegeria de alguma seta atirada ao acaso que atra-


lasse a telinha das janelas, ou entrasse pelas frestas da
Ede exterior da casa. Deixando Carol e o menino resguar-
bs, fui até a porta da frente, e olhei para fora.

Uma Guerra à
4 maioria dos homens de Kamur estava agora espalhada
| quintal e no terreno que medeava entre a casa e o rio,
E havíamos desbastado. Outros haviam tomado posição
do oposto do pequeno abrigo que eu utilizava para estu-
Minha Porta A guarda atacante de Hacnam postava-se do outro lado
um Er trecho pantanoso que se lhes interpunha,
s em uma longa fila. Nenhum deles procurava se
Ec atrás de qualquer tipo de proteção, demonstrando
— Carol! gritei, procurando elevar a voz acima do tumulto jisso que preferiam lutar em campo aberto,
que me cercara repentinamente. Tire o garoto de perto das Ds que haviam trazido suas lanças para a luta, enterra-
janelas! Pnas no chão, com a ponta para cima, ficando com as
Agarrando os papéis em que fazia anotações sobre o estu “livres para manejar o arco. Fixando no inimigo um
do da língua sawi, corri em direção à casa, serpeando po! it hostil, começaram a andar de um lado para outro, er-
entre o grupo de guerreiros armados que haviam surgido do ne O-se na ponta dos pés, para soltar as flechas, e depois
repente, vindo dos lados de Kamur. Ao mesmo tempo, Nara, hando-se de novo, evitando assim proporcionar ao ini-
meu instrutor no idioma, desaparecia na floresta, tomando p um alvo fácil, ou saltando para um lado, a fim de se
a direção oposta. livar às brilhantes hastes que lampejavam em sua dire-
Enquanto corria, olhei para os lados de Haenam, onde uda a sua atenção achava-se concentrada na ação mor-
um segundo batalhão de homens raivosos já começava a ati já que as flechas zuniam a velocidades que ultrapassa-
rar flechas contra os atacantes. Vi três delas cortarem os ares, Ee quilômetros por hora, e qualquer descuido, mesmo
bem lá no alto, e procurei calcular qual seria sua trajetória : por uma fração de segundo, poderia ser-lhes fatal.
Todas pareciam vir diretamente contra mim. Corri para trás Xe E ribos os lados, os guerreiros mais experimentados
da casa, buscando o abrigo da coberta. Uma, duas, três favam a linha de frente, atirando e se esquivando, numa
atingiram a terra caindo a uma distância de mais ou menos incia de cerca de cinquenta metros. Os menos treinados
treze metros, e bem longe do ponto onde eu pensara que | Sua maioria rapazes de menos de vinte anos — ficavam
iriam tombar. | trás, lançando as setas para o alto, a fim de que estas
O constante zunido das cordas de arco vibrando mistura fem em chuva sobre o inimigo, vindo de cima. Portanto
va-se aos brados de guerra, quando alcancei os degraus tra um dos combatentes era obrigado a dar toda a sua aten-
GALA
OS SOS
166 >> O Totem da hus E Guerra à Minha Ponta ag 167

ção às flechas que lhe eram atiradas pelos flancos, ao nível 5 com as quais você acaba de entrar em contato, pode ser
do chão, e que vinham com maior ímpeto & precisão, 10 batado para a eternidade, precisamente agora que você
mesmo tempo em que agira sob a enervante possibilidade do lh se preparando para lhes entregar uma mensagem que
ser atingido na cabeça ou nos ombros por uma flecha pontu: fica ouviram
da vinda do alto. Quando um guerreiro esgotava as flechas Reaja, rapaz! Faça alguma coisa! E enquanto estiver agin-
que trouxera consigo, ele simplesmente agarrava as que es: “não se esqueça, nem por um momento, de que isto é
tavam no chão, ao seu redor, e as atirava de volta contra à !
inimigo. Adiantei-me para 6 primeiro degrau a fim de gritar-lhes
Na retaguarda, de ambos os lados, estavam as mulheres, ee, mas no momento em que abri a boca, hesitei.
Brandiam ameaçadoramente seus bastões de malhar sagu, wu gritasse, poderia desviar a atenção de um deles, justa-
berrando maldições contra os adversários por sobre as cabe: te no momento em que uma flecha lhe fosse endereçada.
ças dos homens de seus respectivos povoados, batendo 09 eria, deste modo, ser a causa secundária da morte ou
pés furiosamente, ou soltando gemidos de apreensão. Mata são de algum deles.
para trás ainda, as crianças subiam em troncos caídos, ou alvez fosse melhor eu correr para o quintal acenando os
tocos de árvores, para apreciar melhor o espetáculo. os. Certamente, todos iriam parar de atirar, pois sabiam
A tensão começou a recrudescer, enquanto combatentes , Se me matassem, não haveria muitos outros tuans que
e espectadores esperavam ansiosamente que a primeira fle- Nessem vir para cá ocupar meu lugar. Todavia, por outro
cha atingisse um alvo humano, pois sabiam que logo que Kib, eles poderiam estar mais interessados em ganhar a ba-
um deles fosse atingido, seus inimigos se concentrariam num , do que em ter um tuan em suas terras.
ataque em massa contra ele, a fim de inflingir-lhe mais teri: Foi então que me lembrei de um conselho que alguém me
mentos, enquanto estivesse momentaneamente ocupado Mi dado:
com a primeira flechada ou desarmado. Como nenhum de: Flenha muita cautela ao procurar agir como pacificador.
les quisesse ser esta vítima inicial, os lutadores se moviarm ta apenas uma flecha no lugar certo, para encerrar seu
com grande agilidade, reagindo aos ataques com reflexos stério, se não sua vida.”
rapidíssimos, demonstrando o máximo de acuidade de que É verdade, pensei. Veja só aqueles homens. Eles sabem o
um homem é capaz. E fazer no meio daquela chuva de flechas. Eu não. Prova-
Saí para a varanda, a circulação saturada de adrenalina, xnente, se orar e confiar, nenhum deles sairá ferido. Natu-
disposto a tomar alguma atitude, mas ainda paralisado pela ente, Deus não exigirá que eu intervenha, sendo que
indecisão. Passaram-se alguns segundos e então um pensa E ohero bem a lin...
mento me ocorreu: Isto é real! Aceite a realidade, rapaz; você Um clamor infernal sacudiu a arena de luta. Os homens
não está assistindo a um filme, nem sonhando. Haenam pensavam que uma de suas flechas havia atingi-
Estes homens são gente de verdade, e estão tentando Mimo, mas seu brado de vitória fora prematuro, No últi-
matar-se uns aos outros. Cada um deles está diante da bocarra EEnstante, Tumo saltara, e a flecha passara sob suas per-
escancarada da morte, como se fossem para ela um petisco : Exatamente Tumo, um dos homens por cuja salvação
tentador, Neste exato momento, um destes seres vivos, pes- stava tanto.

FOGOS
168 DSe ed O Totem da Paz ju Guerra à Minha Porta afsdio.
ago 169

Mas os guerreiros de Haenam procuraram tirar partido ticulando para que eu voltasse, mas fui chegando cada
do momentâneo desequilíbrio de Tumo, concentrando nele | mais perto.
um ataque em massa, chovendo flechas ligeiras sobre ele. Senti o “carisma” de Deus percorrendo meu ser. Os ho-
Minha inquietação aumentou, Eu sabia que se o matassem, ns de Kamur, meio perturbados, passaram a se mover em
os guerreiros de Kamur não iriam descansar enquanto não sção ao rio, na tentativa de afastar de mim as setas de
matassem um deles também. Senti que se tornava de vital am, mas minha intervenção já bastara para provocar a
importância que a luta fosse interrompida antes que hou- errupção do clímax do combate. Aquele crescendo dimi-
vesse derramamento de sangue. fra. Senti-me inundado de gozo. A fuzilaria de flechas ces-
“Bem-aventurados os pacificadores”, pareceu-me ouvir |, dando lugar a uma grande gritaria irrompida dos dois
uma voz interior dizer, “porque serão chamados filhos de bs. Os homens começaram a agitar os arcos, em vez de
Deus.” Pacificar é parte de minha responsabilidade, deduzi; Esá-los. Entretanto, ainda se achavam visivelmente con-
e por que haveria eu de pensar que uma obrigação de impli- bados.
cações tão sérias pudesse ser fácil, ou sem dores nem riscos? Agora que eu interrompera a luta, como é que iria solucio-
Talvez o verdadeiro ato de pacificação, deva, por necessida- “a crise que a provocara? Era óbvio que a briga poderia se
de, implicar em riscos para o pacificador. rar novamente, se não se tomassem providências para
Além disso, a verdadeira batalha que está sendo travada Seguir uma solução pacífica. Agora eu precisava de pala-
aqui não é entre os habitantes de Kamur e Haenam, mas 5, & lá estava eu completamente sem fala, no meio da
sim entre esta selvageria e o evangelho que eu prego. Tudo ltidão.
que eu fizer diante deste povo estabelecerá um precedente. Vguém agarrou-me pelo cotovelo esquerdo, com mão fir-
Se eu me deixar ficar aqui, estarei estabelecendo o preceden- à Virei, e encontrei-me fitando o único olho de Hato. Seu
te de não interferir. Preciso dar agora um passo inicial, de- rera sério. Estava arfando.
monstrando claramente uma linha de conduta que irei fir- Than, parecia dizer, espere aqui. Eu cuido disto,
mando e fortalecendo com o decorrer do tempo. julter um profundo suspiro de alívio, quando o vi passar
Desci os degraus de um salto, gritando o vocábulo sawi puim e se postar bem em frente dos guerreiros kamures,
mais fácil e valioso dentre quantos aprendera e ainda iria Emerosamente voltando as costas para O grupo de Haenam.
aprender: jendo a voz para superar o murmúrio que se ouvia, ele
— Est Chega! ieçou a repreender os amigos com palavras fulminantes,
Agachei-me e, orando intensamente, avancei para a pon- lingua sawi, Serenados, os homens de Kamur abaixaram
ta do campo de luta onde se encontravam os homens de pmas.
Kamur, e principiei a acenar aos de Haenam para que pa- às guerreiros de Haenam, porém, ainda fomentavam sua
rassem de atirar, Os que se achavam na extremidade da fa. Com certeza deve haver alguém deste lado a quem eu
fila onde eu me colocara, pararam imediatamente, mas Ma recorrer, pensei. Rapidamente, corri os olhos pelo pân-
no meio e no flanco oposto, a batalha prosseguia. Arman- | no campo de Haenam, à procura de alguém, qualquer
do-me de coragem, continuei a aproximar-me deles. Al.
guns homens de ambos os grupos tentaram dissuadir-me, bi então que avistei Hadi, de pé sobre um toco de árvore,
GAIA PBP GIRA
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170 fi e O Totem da Pu. Ima Guerta à Minha Porta E ad 171

com os braços cruzados, observando a cena tranquilamente. la casa, tinham decidido que também trariam suas esposas
Lógico! Hadi era a pessoa indicada. filhos, removendo-os do pantanal de sagúeiros onde nor-
— Hadi! gritei, catando as palavras certas, você... você fala! palmente residiam. Trabalhando em equipe, famílias intei-
Por uns instantes ele me fitou boquiaberto, como se es: is haviam erguido apressadamente as saurai, ou casas tem-
pantado com aquela ordem, mas depois saltou do toco e, ) s, ao nível do chão. Seriam utilizadas como abrigo
colocando-se frente a frente com os guerreiros de Haenam, rovisório, enquanto comemoravam nossa chegada, e en-
passou a berrar-lhes, com sua voz maravilhosa, que se acal Wanto construíam as residências permanentes, as anep,
massem. isas altas, e que deveriam estar prontas antes que as tem-
terço stades de rmonções alagassem os charcos.
Reunir três aldeias numa só, era uma experiência que os Assim, foi com muita alegria que, após aquela nossa pri-
sawis dificilmente empreenderiam e de que tinham recorda. pira noite passada entre os sawis - com muito ruflar de tam-
ções muito escassas. Era o tipo de empresa que facilmente és — a claridade de um novo dia revelou-nos a presença de
terminaria em derramamento de sangue. Mesmo a recentc 8 aldeias que tencionavam residir permanentemente conos-
tentativa de reunir apenas duas delas numa das extremida | Sabíamos que aquilo facilitaria grandemente nossa interação
des do kidari, terminara numa batalha, ocasião em que Hato Im as tribos e aumentaria nossas possibilidades de dar-lhes a
perdera o olho direito. Não era pois de se admirar que as istência médica, da qual necessitavam tão desesperadamente.
comunidades sawis preferissem deixar extensas áreas de sel. Nos três dias e três noites que se seguiram, quase que
va densa e desabitada, de permeio entre eles e seus vizinhos n te!ptamente toda a população continuou a bater os tam-
mais próximos, até mesmo dos mais apreciados, para servir tes, a cantar e a dançar. Tal comemoração foi interrompida
lhes como uma espécie de pára-choques. nas uma vez, quando um avião de Asas de Socorro fez um
No caso presente, o forte motivo que levara os habitantes de gundo pouso no Kronkel, trazendo-nos, entre outras coisas,
Kamur, Haenam e Yohwi a se unirem fora a novidadee as facili à pequeno transmissor de rádio, que seria nosso único meio
dades — e talvez certa dose de prestígio — que lhes adviria
do fato Comunicação imediata com o mundo exterior, Quando afi-
de viverem lado a lado com dois seres extremamente raros, « | deram por encerrada a comemoração-monstro, a maioria
que criam ser uma fonte, potencialmente ilimitada, para supni Es, como Hato, por exemplo, retornou às suas habitações
mento de machados, facões, facas, lâminas, espelhos, varas de a para reunir suprimentos antes de encetar a constru-
pescar, anzóis, e quem sabe de que mais. O povo de Kamur sabia p das casas permanentes na nova localização da aldeia.
que tinha direito de viver perto do tuan pela razão lógica de que Já se passara uma semana, desde que chegáramos, e O
este escolhera a sua terra para nela edificar sua casa. Os de vo acabava de regressar da selva, todos na melhor das dis-
Haenam e Yohwi reivindicaram seu direito de proximidade por ições com as canoas repletas de provisões frescas - mas
que tinham sido os primeiros a entrar em contato com ele, se que imediatamente a boa camaradagem de que haviam
Sendo assim, concordaram em experimentar um com irutado durante os três dias de danças, se esvaíra, e Kamur
partilhamento do terreno. Durante os três dias em que eu lacnam haviam tido um sério conflito bem defronte de
estivera ausente, quando fora a Kawem buscar Carol tha casa. Ficamos admirados de ver como sua atitude
Stephen, os homens que me haviam auxiliado na edificação ja se modificar tão instantaneamente.
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172 EE O Totem da Pus

O futuro de nossa comunidade recém-formada revelava


se muito sombrio, Se ao menos pudéssemos impedir um
derramamento de sangue enquanto aprendíamos a língua,
críamos que talvez então conseguíssemos conservar as três
povoações unidas.
Mas, como descobrimos depois, era uma esperança va.
QUATORZE

O Tuan Come
Miolos
O pequeno bando de garotos sawis foi vagarosamente se
roximando da janela iluminada, aventurando-se a tomar
ha posição que anteriormente apenas os anciãos da tribo
Pam se atrevido a ocupar. A princípio, a lâmpada do tuan
ha cegado com seu forte clarão, e os intimidou um
co com seu chiado constante, mas, aos poucos, os olhos
“5 haviam se acostumado à luz, e sua coragem se fortale-

Olharam para o interior da casa. Somente as paredes de


ma de sagúciro apresentavam um aspecto familiar. Tudo
nais, da lâmpada às cortinas amarelo -vivo era novidade
ra eles. Balcões, uma mesa, cadeiras, toalhas de mesa,
ps é tigelas, facas, garfos e colheres, quadros nas pare-
7 um fogão de querosene, eram objetos estranhamente
Irigantes para os curiosos moleques do pântano,
Aproximando-se mais uns dos outros a fim de se senti-
mn mais seguros, eles viram o tuan € a nyonya se assenta-
n com o bebê. Viram quando o tuan pegou uma fume-
Nite tigela de comida, e passou a tirar porções dela e colo-
AASP
LEDS
IIS GIP SGAN PAPA PAPA PAPA PS
174 EO > D Totem da Par Come Miolos 4d 175

car em seu próprio prato. Seus olhos se arregalavam numa Asyman respondeu, mas não entendi todas as palavras
mistura de fascínio e horror. Eles se entreolhavam e estre E pronunciou a não ser a última:
meciam, Amynahai! Vá embora!
Por fim, um deles expressou em palavras o que todos es- Outras pessoas haviam assomado à porta de suas casas e
tavam pensando. hem me acenavam para que me afastasse. Nesse inte-
- Asem mohop ke manken! |, à mulher parara de gritar
Abruptamente, eles deixaram a varanda e dispararam em ntindo-me um pouco constrangido pela minha intro-
meio às trevas para a aldeia de Kamur, e espalharam, de casa Wsão aparentemente indesejada, e também pela nossa in-
em casa, com vozes veladas, uma notícia incrível. Do inte- acidade de entender as explicações, resolvi afinal voltar
rior das diversas “casas longas” os mais velhos retrucaram: | casa ainda ignorando o que se passava. Antes de pegar-
—- Vocês devem estar enganados! 4 no sono, ouvimos novamente os berros da mulher, em
- Vão lá e vejam vocês mesmos, disseram os meninos. ervalos espaçados. Então, pouco antes do alvorecer, fo-
A curiosidade aguçada, os homens de Kamur imediata- 5 despertados por um grande choro em Kamur.
mente se aglomeraram na varanda fronteira da casa do tuan. tela manha, ficamos sabendo que uma mulher de nome
Erguendo o rosto, vimos apenas o branco de seus olhos bri jo morrera ao dar à luz filhos gêmeos. As crianças tam-
lhando em meio à escuridão. Saudamo-los, mas não respon- à morreram. Mesmo que houvessem sobrevivido, à pai
deram, Seus olhos se voltaram para o alimento que comiía- a que matar uma delas, para atender à crença dos sawis
mos. que o segundo bebê a nascer, era, na verdade, um espi-
— É verdade ! exclamou um deles, em palavras ininteligi- 4 maligno que estava tentando invadir a comunidade
veis para nós, É verdade mesmo! O tuan está comendo mio- avés da pessoa de uma criança, e nascendo juntamente
los! a ela. Naquele mundo dominado pelos demônios, nem
Indagando-me qual seria a razão de toda aquela agitação, Emo o ventre materno estava a salvo de uma invasão
levei à boca outra garfada de macarrão. nica.
to Pranteando juntamente com os sawis pela morte de Maso,
Eu estava para apagar a lâmpada e ir dormir, quando ou- | gemíamos ansiando pelo dia em que 05 sawis compre-
vimos uma mulher gritando em grande aflição. Tomei da que podíamos ajudá-los até em questões tão inti-
lanterna de pilha, e, caminhando cautelosamente entre to- como um parto, e confiariam em nós para receber toda
cos de árvores & raízes grossas, dirigi-me para as “casas lon- talquer assistência que pudéssemos dar-lhes.
gas” de Kamur, rodeadas de um halo de fumaça. Ren
— Por que esta mulher está gritando? perguntei em voz Parol estava tentando treinar Haimai para que se tornas-
alta da entrada da povoação. Ima espécie de empregado da casa. Depois de ele haver
Um homem de nome Asyman olhou para fora, pela porta hido a lavadora a gasolina com água bem quente, ela
de sua casa, E acenou-me para que me afastasse. Permaneci istrou-lhe como colocava o sabão em pó. Quando reunia a
onde estava, e perguntei novamente, ipa suja para lavar, ela viu um saquinho de chá, já usado,
- Por que esta mulher está chorando? | cima da pia, Entregou-o a Haimai, explicando-lhe, em

SOS ICSIGIS TODO SGAN


176
EE O Totem da Pu an Cone Miolos GAie 177

um sawi meió estropiado, que devia atirá-lo no lixo. Embora xa toráxica. Mavu respondeu enterrando toda uma lâmi-
parecesse meio confuso, ele saiu com o saquinho de chá na | de flecha para porco na coxa de Nair.
mão. (Quando cheguei ao palco da luta, Mavu ainda estava rai-
Instantes depois, Carol chamou-me para que ligasse 0 Ro, mas não havia mais ninguém para se bater com ele,
motor da lavadora para ela. Depois, ela girou o botão para quela clareira de aldeia, salpicada de sangue. Percebendo a
colocar o batedor em funcionamento. Quando estava para 1 idade dos ferimentos, gritei para Carol pedindo-lhe que
mergulhar as primeiras peças de roupa na água espumante, iividenciasse ataduras e penicilina, é fiquei ali, para impe-
parou. ijue Mavu procurasse tirar partido das más condições de
- Don, que são estes pontinhos escuros que estão na água s dois oponentes. Quando acabamos
de limpar e atar to-
da máquina? Os ferimentos e de aplicar injeções de antibiótico, nossas
Enfiei a mão é tirei um pouco de água ensaboada, e exa- bs estavam tintas de sangue.
minei os pontinhos pretos. Pedacinhos de folha de chá! Quando estávamos saindo, fitei Mavu, diretamente nos
try) Ds, desejando poder falar-lhe alguma coisa. Mas o que
Anteriormente, naquele mesmo dia, um homem alto, de ria dizer? Sabia que se lhe dirigisse qualquer repreensão
nome Yakub, da aldeia de Atohwaem, anunciou sua intén- “quase haver matado dois homens, ele simplesmente da-
ção de tomar Fasaha, uma viúva de Haenam, como sua ter- le ombros, como a dizer: “E daí!” Por isso, em vez de
ceira esposa. Uma parte do povoado estava de acordo com o cendê-lo disse-lhe em linguagem simbólica:
negócio, mas um homem chamado Nair, que morava nó Você manchou de sangue as mãos de minha esposa,
outro extremo da aldeia, protestou, dizendo que a viúva de» Meu comentário pegou-o de surpresa. Olhou rapidamen-
via ser dada a ele, ara as mãos de Carol, e a súbita revelação de como era
Ao meio-dia, Nair ficou sabendo que os parentes de Fasaha by rangedora a cena que ele ajudara a criar, pareceu assustá-
haviam decidido contrariamente à sua proposta, e, apoiado MHavu piscou, temendo ter, inconscientemente, cometido
por seu irmão Paha, saiu de casa nervoso, berrando ameaças Erro de consequências cósmicas,
contra Yakub, Dois amigos deste, Mavu e Sinar, saíram tam. | desejava falar-lhe de uma outra Pessoa, cujas mãos
bém para enfrentar os dois raivosos. Imediatamente, os qua- iam ficado ensangúentadas, por sua causa, e nesse
tro começaram a lutar, enquanto as mulheres de ambas as fora realmente um ato de implicações cósmicas,
partes gritavam histericamente, como se uma sirene de alar não tinha palavras. Ainda não. Então tive que deixá-
me houvesse disparado. A
Lt, tremendo interiormente, como ele iria me confessar
A briga não durou mais que alguns segundos, Mavu foi o
primeiro a atacar, investindo com sua kafan, uma lança far p tes
pada, cujos aguilhões eram ligados por um cipó. Atingiu Paha Jom a aplicação das injeções de penicilina para evitar
no quadril. Vendo o irmão gotejar sangue, Nair atirou uma ço es, OS três pacientes logo melhoraram dos ferimen-
aguçada flecha de bambu, própria de matar porcos, contra que de outro modo poderiam ter sido fatais. Ao afastar-
Sinar. A haste pontuda atravessou facilmente os músculos O perigo de morte, conseguimos evitar também o come-
da parte superior do braço de Sinar, e penetrou um pouco na a rixa entre os dois grupos, que, depois de iniciada,

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178 fado O Totem da Dus Come Miolos «6a — 179

poderia se estender por anos e anos. Neste caso, a ameaça de Wm por nossas paredes e telinhas das janelas caçando mos-
contenda ocorrera entre dois clas conflitantes dentro de uma durante o dia, e pernilongos e mariposas à noite. Além
mesma aldeia, Haenam. No entanto, nossa maior preoct tas, bandos de pássaros noturnos € morcegos vocjavam
pação era impedir uma rixa de sangue de proporções ben torno da casa a noite toda, devorando pernilongos e mari-
maiores que poderia surgir entre Haenam e Kamur. 15, que para ali eram atraídos pelo clarão do lampião.
Sentindo que a tarefa sobre nossos ombros era uma ques: mcertas épocas do ano, as tanajuras reproduziam-se aos
tão de vida ou de morte, decidimos adiar por um ano 4 s na mata que circundava o local, e convergiam para
construção de nossa casa definitiva, a fim de nos dedicar: a casa logo que o lampião era aceso ao anoitecer. Entra-
mos de corpo e alma ao trabalho de decifrar o idioma sawi, | em enxames pelo nosso living profusamente ilumina-
e aprender a língua no mais breve espaço de tempo posst: E se atiravam contra o vidro da lâmpada, e a seguir tom-
vel. Com alguns reparos aqui e ali, a nossa pequena im ofuscadas, debatendo-se, sobre as páginas de um li-
“caixinha de sapé” deveria ficar razoavelmente habitável, 4 e estivéssemos lendo, ou atravancando os espaços en-
desde que nos dispuséssemos a suportar os enxames de 5 teclas da máquina de escrever, se estivéssemos traba-
insetos e outros exemplares da fauna selvagem que vez poi ido nela. Às vezes também se embaraçavam em nosso
outra logravam entrar em nossa casa, pelas frestas da pare lo, ou subiam pelas mangas de nossa roupa,
de de palma de sagúeiros ou pelos vãos que havia entre à las nos obrigaram a formar o hábito de ir para a cama
parede e o telhado. 5 cedo.
Aplicamos inseticida de ação residual nas pilastras de su | ey
porte da casa, e a substância serviu bem para manter à distân leu objetivo diário era estar em contato com o idioma
cia os cupins e outros insetos rastejantes que precisam da um! pelo menos durante dez horas. Desta vez, três ou qua-
dade da terra para sobreviverem. Mas os insetos voadores como seriam empregadas em trabalho com instrutores da lín-
baratas, grilos, moscas, pernilongos, etc., moviam uma persc: | para tentar descobrir palavras novas, aprender a for-
guição constante contra nós e nossos suprimentos básicos. io das frases e estruturas gramaticais. O restante do
Algumas espécies de vida animal da selva pareciam tra- po dedicava-me a visitar os lares sawis ou a casa dos
balhar em combinação umas com as outras. Os grilos, por hens, à viajar com eles pelas selvas, ou ir a outras aldei-
exemplo, na escuridão da noite, roiam nossos mosquiteiros, | ouvira conversa deles à beira do rio, tentando partici-
abrindo-lhes grandes rombos, permitindo que os pernilongos fazendo perguntas ou respondendo às deles de modo
penetrassem nossa linha de defesa, trazendo consigo os licativo.
debilitantes parasitas da malária, os vírus de dengue e larvas em intérpretes que nos auxiliassem, muitas vezes tínha-
de filária, Também os ratos roíiam as vasilhas de plástico E que chegar ao significado de algumas palavras pelo pro-
onde guardávamos os alimentos, dando chance assim à que by de eliminação. Se eu pisasse num toco de pau e este
as hordas de formigas e baratas estragassem o conteúdo de- jebrasse, um sawi exclamaria; “Getar haser!” Eu já sa-
las. juchaser significava “não”, portanto concluiria que getar
Entretanto, contávamos também com alguns aliados. Mi- Ilicava “forte”, e o homem estava dizendo que o pau so-
núsculas aranhas saltadeiras e brilhosas lagartixas verdes va- ue pisei não era forte.

SESCSISOSOSAOS SSSSSNSSISSNSES
O Totem do Ns an Come Mialos «gif 181

ti acompanhante nativo abanou a cabeça tristemente e

"Tuan, go nigi kabi mar jah!”


Calçulei que ele estava dizendo: “Você tinha que se incli-
| para o outro lado”, ou então: “Cuidado com os jacarés!”
is, alguns meses depois, quando repassava minhas anota-
's, descobri que o que ele dissera, fora:
an, você não se ajeita bem com nossas canoas!”
j assim, dia a dia, íamos ampliando nossa cabeça de pon-
lingúística, palavra por palavra. Num dado momento,
endemos os vocábulos sawis que expressavam alegria,
Iteza, teimosia, tolice e raiva. Agora já podíamos falar de
isas emoções.
N ais tarde, descobrimos outros termos que significavam
sax, arrepender, perdoar, julgar e amar, e assim começamos
netrar o véu interior das expressões abstratas. Agora já nos
Vamos com maior liberdade, ganhávamos confiança... está-
Para verificar se minha dedução estava correta, apontava OS quase prontos para começar. O paraíso da comunicação
para um objeto qualquer, que fosse frágil, e mencionava as ma parecia cada vez mais próximo.
palavras getar haser. Ou será que ainda estaria longe?
O informante poderia então confirmar, respondendo:
“Esawab! O tai getar haser — inapi!”
Então eu suporia que esawab significava “é verdade”; o
tai significava “isto também”, e inapi, “fraco”. Teoricamen-
te, então, a afirmação completa teria sido:
“É verdade! Isto também não é forte — é fraco!”
Este método, na melhor das hipóteses, apresentava mui
tos pontos fracos, principalmente no início, quando contá
vamos com poucos vocábulos para orientarmos nossa linha
de raciocínio. Muitas vezes, um olhar perplexo ou uma sú
bita risada de incredulidade nos indicavam que tinhamos
que retornar ao ponto de partida, e tentar por outro cami
nho.
Certa vez, quando tentava aprender a remar de pé sobre
uma estreita canoa sawi, perdi o equilíbrio e caí na água
FGFLG DID INDIE
DEPOIS, SANDS
se : e, “ A, A, 4? a, A, a? a A, 4 AM

ZRAIP IP RAIP AP RAIP IPI IPI IA,


união na Casa dos Homens ns 183

itégias de guerra; uma tribuna para a oratória, para o hu-


jor obsceno ou para gabolices exageradas; um acobertamento
jra as raras e ocasionais ligações homossexuais; um mata-
QUINZE uro para as orgias canibalescas.
Eu tencionava fazer dela um areópago para proclamar a
ensa gem do Filho do Deus Vivo, um portal de entrada pelo
Il o evangelho atingiria cada um daqueles lares enfuma-

Reunião na Casa
los das “casas longas” de Haenam e Yobwi. Mas isto não
concretizaria sem luta.
O primeiro obstáculo cra a língua. Falar o idioma sawi

dos Homens
elava-se um exercício mais complicado do que simples-
inte alinhar algumas palavras. Muitas vezes descobríamos
uma palavra era apenas uma raiz à qual um número
rentemente ilimitado de sufixos ou grupos de sufixos po-
jam ser aglutinados.
A tempestade que se abatera sobre a aldeia durante toda a Cada verbo, por exemplo, tem dezenove tempos apenas
noite amainara um pouco, mas a ventania ainda soprava “modo indicativo. Até então, eu conseguira descobrir as
acima da copa das árvores, quando eu me dirigia vagarosa- ções de somente um terço daqueles dezenove tempos.
mente para a casa dos homens de Haenam-Yohwi, com mi im disso, cada tempo é conjugado na primeira pessoa e na
nhas anotações nas mãos, caminhando por um trilho de tra” pessoa, perfazendo um total de trinta e oito termina-
poças de água, pingos de chuva e uma névoa luminosa, bem é verbais para serem consideradas, toda vez que desejás-
cedo naquela manhã. os fazer qualquer declaração no modo indicativo.
A casa dos homens ficava um pouco à parte, perto do rio, Um outro grupo de terminações estava gradualmente se
como se fosse um severo guardião das fileiras gêmeas de “ca- dando ao meu entendimento — o subjuntivo da língua,
sas longas” recentemente construídas pelo povo de Haenam sistema que expressava os “ses”, os “terias” ou os “deve-
e Yohwi. Para um forasteiro, a casa dos homens não seria . er”, etc., da língua. Além desses, eu estava percebendo
muito diferente da costumeira habitação dos sawis — era ape- ps sinais da existência de um imperativo, um conjunto
nas uma “casa longa” que, por alguma razão, ficara fora de fixos para se expressar ordens na segunda pessoa,
alinhamento, e talvez ostentasse algumas caveiras ou ossadas Aparentemente, as raízes dos verbos concretos se torna-
de animais em seus portais, testemunhando de alguma pro À como fantasmas etmológicos que poderiam assumir
eza de seus ocupantes. ze formas diversas, antes mesmo que se agregassem a
Mas aos olhos dos sawis, a casa dos homens não é uma quaisquer sufixos, Uma forma de raiz dava ao sujeito
morada comum. Ela representa o Pártenon de sua cultura. E aspecto de singular, outra de plural. Ainda havia outras
uma sala de banquetes para se homenagear convidados ilus: indicavam uma ação dirigida para um objeto ou no sin-
tres; um poço de idéias onde são fomentadas as grandes cs ou no plural. Existiam formas que indicavam opera-
ARAL IRAS
SPSS SUSI
184 SE O Totem da Paz Reunião na Casa dos Homens EA 185

ções que eram costumeiras ou progressivas, ou repetidas ou * Além disso, após um exame mais acurado, eu teria dito
recíprocas, ou experimentais, ou conclusivas ou parciais, €x- ue eram poetas também — existe toda uma classe de ver-
cessivas ou obstruídas. hos sawis que são aplicados a objetos inanimados personi-
Na língua sawi, qualquer sequência de pensamentos tem ados, para que eles se expressem também. Se uma flor
que ser formulada numa perfeita ordem de tempo, sem ne- em um perfume agradável ela está dizendo fok! fok! para
nhuma parte omitida. A gramática tem correspondência lossas narinas. Se além disso ela é bela, está dizendo ga!
perfeita para que se possam formar sequências de longa ação ga! para nossos olhos. Quando uma estrela cintila, está
de modo fluente e claro. issurrando; sevair! sevair! Se nossos olhos brilham, estão
Cada afirmação tem que ser designada como sendo infor- amando: si! si! Se a lama espirra à nossa passagem, está
mação de primeira mão ou de segunda. Os sawis não dei- | rmurando sos! sos! No universo sawi não são apenas os
xam ninguém receber os méritos que pertencem ao pensa- mens que se comunicam, as coisas também o fazem,
mento de outrem; e nem permitem que alguém fuja às res tres
ponsabilidades de suas próprias declarações, É uma socieda- Subi à casa dos homens trepando por um tronco de pau
de que rejeita qualquer situação dúbia e não tolera coisas ifrado, Assentei-me numa esteira de palha rodeado pe-
sem nexo. Ela rejeitaria uma tradução de Alice no País das homens de Haenam e Yohwi. Não se pareciam muito
Maravilhas com a mesma força que o óleo repele a água. Ela nos filósofos-poetas que sua língua parecia dar a enten-
aprecia as declarações precisas e a exatidão cirúrgica. é Senti-me como se estivesse assentado em presença de
Houve vezes, em que pensei que os componentes de meu | grande mistério. Como era possível que uma cultura
cérebro fossem entrar em curto-circuito antes que eu apren- ligada ao barbarismo pudesse gerar uma língua tão refi-
desse a falar bem o idioma sawi. E no entanto, aprender a a, “tão lógica e tão perfeita? Talvez a faculdade de pensar
língua representava realmente um grande feito. Muitas ve: Wlamente e os reflexos aguçados de que precisavam para
zes eu me sentia como deve se sentir um matemático que feviver num contexto tão eivado de violência, tivesse
trabalha na solução de um problema difícil e descobre novas jado por produzir neles também aquela excelência lin-
fórmulas que funcionam como passe de mágica.
A língua sawi é maravilhosamente específica em seu vo: ju dar-se-ia o caso de a língua sawi ser produto de uma
cabulário. Em nossa língua, abrimos os olhos, o coração, jem remota, quando os homens tinham aspirações mais
abrimos uma porta, uma lata e até os olhos de outrem. Tudo plexas? Eu já percebera que os sawis dedicavam uma
isto com um único verbo — abrir. Mas em sawi, nós fagadon ada estima, uma veneração quase compulsória aos seus
os olhos, anahagkon à coração, tagavon a porta, tarifan à is. Talvez a origem de tal fato não fosse apenas um
lata, e dargamon os olhos de outra pessoa. À sentimentalismo.
Se alguém tivesse me mostrado um enunciado qualquer rmaneci alguns minutos em silêncio, sentado entreeles,
numa gramática sawi e me pedido para adivinhar que tipo de tando ajustar-me psicologicamente ao estranho modo
pessoas a haviam formulado, eu teria dito que fora feito por aqueles homens, a quem eu devia falar e à própria
um grupo de filósofos pedantes, obcecados por uma entediante era de meditação da casa dos homens, com suas ca-
preocupação com criar minúcias e expressá-las bem. fole órbitas sombrias, duas armas, esteira, o fogo
VAGAS
GSI
GESITI TIRSS TG NS ASSES UNDIRR
186 EE O Totem da Tuas ão na Casa dos Homens e EE 187

bruxuleante, e teias de aranha, pesadas de gordura e fuli- ossas respectivas filosofias de vida. É isto representava uma
gem. irreira ainda mais difícil de transpor que a da língua. De
Apesar de existirem em seu modo de vida vários aspectos gum modo, eu teria que encontrar uma ponte para atra-
que me repugnavam, era difícil deixar de respeitar aqueles ssar aquele abismo que nos separava.
guerreiros que me rodeavam. Cada um deles era um perito ten
naturalista, conhecendo desde a infância os nomes e costu- Coloquei as anotações na esteira à minha frente e come-
mes de centenas de exemplares da fauna bem como da flora 1. Primeiramente, tive que cunhar um nome para Deus,
Qualquer um deles se deixados a sós numa região desabitada, à língua sawi — Myao Kodon, “o maior dos espíritos”. De-
conseguiria sobreviver, enquanto cu, se não recebesse socor- »is, procurei descrevê-lo. Expliquei que ele não habitava
ro de fora, iria perecer. enas em um tronco submerso ou numa palmeira de sagu,
Também eram homens de grande coragem e de vontade mo os hamares dos sawis, mas sua pessoa ocupava todo o
forte. Eles conseguiam se mover habilmente em meio a uma ucaterra.
chuva de flechas; e muitas vezes se arriscavam a ser estripados — Na verdade, acrescentei, estamos sentados dentro dele,
às presas de terríveis javalis. E o que é mais notável, eles ste exato momento,
sabiam transformar uma área aparentemente agreste em um “Eles correram os olhos pelo aposento, admirados com tal
fabuloso e bem sortido supermercado, onde os víveres eram issibilidade.
gratuitos, bastando pegá-los. E ainda mais, faziam isso, semi = No caso dos hamares, por exemplo, continuei, vocês se
destruir a selva, am da feitiçaria para mantê-los afastados de suas aldeias,
Basicamente, havia apenas duas pressuposições que eu
A

e até dos seus corpos. Mas não existe nenhum amuleto


tinha em comum com eles — a crença num mundo sobrena im fetiche que possa manter Myao Kodon à distância. Ele
tural e na importância de um intercurso entre este mundo O pode ser detido pela feitiçaria. Ele está em toda a parte,
sobrenatural e os homens. Os sawis criam na existência de linguém pode fugir dele.
uma hierarquia de demônios e de espíritos desencarnados “Uma expressão de total desamparo estampou-se na físio-
dos mortos. Estes espíritos existiam totalmente à parte de- mia de alguns deles.
les, quando não eram maléficos. Eu cria num Deus infinito, E como todas as coisas — o sol, a lua, o clima, o rio, a
embora pessoal, um Deus que ama a justiça e a misericór-
resta, Os animais € as pessoas — estão no interior dele, ele
dia,
be de tudo, acerca de todos. Não podemos vê-lo, mas ele
Os sawis estavam convencidos de que nenhum infortú.
s vê.
nio lhes sucedia por mero acaso. Era sempre causado poi
Além disto, ele controla tudo com grande facilidade, do
demônios, os quais, por sua vez, podiam ser ativados ou re
freados através de atos de feitiçaria. Eu trazia comigo a certe- esmo modo que nós determinamos os movimentos de
jssos músculos. Sem ele, o vento não pode soprar, nem a
za de que todas as coisas são ou permitidas ou ordenadas
va cair. O sol não pode brilhar, nem a lua despontar. As
pela divina providência, que, por sua vez, tâmbém podia ser
influenciada pelas nossas orações. intas não podem crescer, e nem os bebês serem concebi-
Fora disto, não havia muitos outros pontos comuns em , Sem que ele o permita.

PAPA LILI
FUII DRDS TINT:
URA SNS SENTES
O Totem da ha Bunido na Casa dos Homens AEE 189

mensamente aquele costume. Enquanto ouvia Gar repetin-


|, com suas próprias palavras, os meus pensamentos, des-
Obri muitas coisas a respeito da mentalidade sawi. Por ou-
4 lado aquele intervalo me concedia tempo para armar a
tença seguinte um pouco melhor, sintaticamente. E o que
7 mais importante: a cada vez que Gar repetia o que eu
a, ele estava reforçando a mensagem de um modo que
se tornava cansativo.
Continuei a ampliar, linha por linha, o contraste entre os
Esquinhos e cínicos espíritos cuja sombra terrível pairava
Ibre cada aspecto da vida sawi, e o infinito Deus criador
jo amor pela justiça e misericórdia tinha-o impelido a uma
sca profundamente sacrificial do homem perdido. Eu que-
à dar-lhes uma base sólida para que fizessem uma livre
púlha entre aqueles espíritos e Deus. Alguns pareciam de-
iteressados. Outros escutavam admirados e boquiabertos
imo se espantados de ouvir, expressos em sua própria lín-
, Conceitos com que nunca haviam sonhado, eles que eram
donos do idioma.
Falei-lhes de Deus criando o homem, em meio a um
indo belíssimo e abundante, e depois do advento do mal
Kani e alguns outros inclinaram-se para diante, ouvindo aten comunidade humana, e a secular promessa de um liber-
tamente. Anteriormente, só tinham recebido do mundo exte dor, e, por fim, a maravilhosa nova da vinda deste liberta-
rior peças e objetos concretos. Agora ouviam falar de idéias E Eu já estava chegando ao ponto culminante da narrati-
Pareciam muito interessados, Edescrevendo o ministério de Jesus entre os judeus, quan-
Quando recomecei minha palestra, um homem de nome | de repente, Maum bocejou ruidosamente, estendeu a
Gar entrou e assentou-se bem à minha frente. Após ouvir « o, pegou a faca e um pedaço de cipó partido ao meio, que
absorver cada sentença que eu dizia, ele se virava para Os ichava na esteira ao seu lado.
companheiros e repetia cuidadosamente tudo que eu disse Fixou uma das pontas entre dois dedos do pé, esticou-o
ra. Em alguns pontos, ele corrigia meus erros, colocando me começou a apará-lo com a faquinha. Estava preparan-
minhas palavras em linguagem mais clara, adicionando al anova corda de arco. Parecia ter se desligado comple-
guns comentários de seu próprio consenso, alguns dos quais mente da palestra.
eram completamente errôneos. “Alguns dos outros também retomaram as conversas in-
Era uma regra de boa educação, e a princípio achei aquilo rompidas. Senti que se eu estivesse falando acerca dos
um pouco desconcertante mas depois acabei por apreciar Rates, dos kayagares ou dos auyus, e não dos judeus, eles

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190 >> O Totem da Pis união na Casa dos Homens «GSE 191

teriam continuado a escutar-me. De qualquer modo, esgota “Um temor gelado percorreu-me a espinha. Tentei protes-
ra-se seu limite de atenção. Quem quer que fossem os ju afirmando que Jesus era quem representava o bem. Ele
deus, eram pessoas muito remotas para eles. à o Filho de Deus, o Salvador; disse que traí-lo fora um
Nas palestras subsequentes, ampliei mais a parte da vida e o, mas nada do que dizia conseguia apagar aquele brilho
ministério de Jesus, procurando imprimir neles a realidade e prazer selvagem que luzia em seus olhos,
relevância da pessoa de Cristo para a vida deles, mas aparen
Ko
| inclinou-se para diante e exclamou:
temente não obtive sucesso. Os sawis não estavam acostu- Foi um verdadeiro tuwi asonai man! — e O que seria
mados a projetar-se mentalmente para outras culturas e ou O: tuwa asonai man?
tras situações que fossem tão profundamente diversas da sua Levantei-me e deixei a casa dos homens, sentindo-me
Somente uma vez em minha exposição, mereci uma rea fimido por um enorme desânimo. Estendi o olhar pelo
ção significativa por parte deles. Eu estava falando da traição fitano e fitei a casinha que construíramos. Pareceu-me
um
de Judas Iscariotes para com o Filho de Deus. Achava-me a jnumento à inutilidade. Caro! estava na varanda admi-
meio caminho da explanação, quando notei que todos ouviam trando medicamentos a alguém, e Stephen brincava numa
atentamente. Davam atenção integral a todos os detalhes: Bira, às suas costas. Seria aquilo o máximo que poderia-
durante três anos Judas se mantivera em comunhão intima fazer pelos sawis? Apenas tratar do corpo físico enquanto
com Jesus, partilhando do mesmo alimento, viajando nas mago de seu ser permanecia distante e inacessível?
mesmas estradas. Os homens ainda estavam discutindo a história e se di-
Era difícil imaginar que qualquer dos companheiros de ftindo com ela, quando me encaminhei para casa. Sozi-
Cristo pudesse ao menos conceber a idéia de trair uma pes- na pequena coberta que me servia de escritório, come-
soa tão importante. E se alguém chegasse a ter tal idéia, a a orar. Mas enquanto orava, as misteriosas palavras que
pessoa menos provável para tomar tal decisão seria um dos fino pronunciara ficaram passando e repassando em minha
componentes do círculo de seus discípulos de confiança. E, inte, Instantes depois, peguei de uma caneta e escrevi a
no entanto, acontecera, pois Judas, um dos amigos de Jesus, E nha frase num cartãozinho.
resolvera atraiçoá-lo, e levou a cabo o monstruoso ato sozi- Tuwi asonai man! Seus componentes básicos eram bem
nho, sem que nenhum de seus camaradas desconfiasse de úples. Tirwi significa “porco”. Ason é “apanhar”, que com
sua trama. Erminação ai toma o sentido de particípio passado, “apa-
Chegando ao clímax da história, Maum soltou um assovio ado”. Man significa simplesmente “fazer”.
de admiração. Kani e vários dos outros tocaram o peito com "Tendo apanhado um porco para fazer...” Fazer o quê?
a ponta dos dedos, num gesto que denotava grande assom- Fui até a porta e chamei Narai, um dos meus auxiliares
bro. Outros sorriram. estudo da língua. Quando chegou, pedi-lhe que me expli-
A princípio, fiquei parado, sem entender o que se passa- se o que queria dizer aquela frase: Tuiwi asonai man. Narai
va. Depois, finalmente, compreendi tudo: para eles, Judas hou para fora, pela janela, e indicou com o queixo um
era o herói da história. Sim, Judas, o homem que eu procu- Mozinho de porco do mato que Hato apanhara na mata.
rara retratar como o inimigo da verdade e do bem, que fora fora domesticado e agora vagucava livremente pelo po-
inspirado por Satanás:
O Totem da Has unido na Casa dos Homens
De SS 193
o EEE

— Tuan, quando Hato pegou aquele porco, ele o levou para * Enquanto ele continuava a relatar outros casos de clás-
ca traição sawi, eu estava raciocinando. Entendia agora
sua casa. O animal comia em sua mão, e ele o defendia dos
IC OS sawis não eram apenas cruéis, mas ele glorificavam
cães da aldeia. Agora ele já está solto, passeando por aí, mas
eldade. Seu maior prazer consistia em observar 0 so-
Hato ainda lhe atira restos de comida todos ós dias. O porco
mento e o desespero de outros. Haviam superado há
sente-se seguro e protegido, além de bem alimentado. Ele
tem liberdade para andar por onde quiser Mas quando ficar
juito tempo o conceito de assassinato, que consideravam
maivr, O que vai lhe acontecer? bisa de leigos, e passaram a adotar um estilo muito mais
— Hato e sua família irão abatê-lo para comer sua carne, ançado em que a traição era exaltada como virtude, e
respondi. isiderada o objetivo máximo de suas vidas.
- E o porco agora tem alguma idéia disto que irá aconte Matar simplesmente já não apresentava nenhum prazer
cer?
ta eles. Às vezes até sc arriscavam a deixar que a vítima
— Não tem a mínima idéia. 5 escapasse a fim de atingir os mais altos níveis de sofis-
— Istô mesmo, concordou Narai. Tuwi asonai man signi- ão num tuwi asonai man. Foi por isso que a história de
fica fazer com um homem a mesma coisa que Hato está fas os interessou tanto. Ela apelara aos recônditos de sua
fazendo com este animal: engordá-lo com amizade para ma, provocando neles uma reação profunda, quase sub-
abaté-lo depois sem que ele o suspeite. pino
Narai ficou a observar meu rosto, notando o efeito que Mudas encarnava o ideal supremo de um sawi, enquanto
suas palavras haviam causado em meu semblante. fisto, que fora a vítima de seu ato traiçoeiro, não significa-
— E isto acontece realmente? indaguei ingenuamente. ada para aqueles homens agrupados naquela casa dos
- Sim, acontece, replicou ele rapidamente, e começou a com: mens.
tar-me à história de um forasteiro que vinha à Haenam fre Era minha tarefa reverter completamente aquela situa-
quentemente. Na primeira visita, ele fora recebido festivamen 4 Com base nas Escrituras, não me era possível fazer-lhes
te, exaltado com elogios, e convidado a voltar várias vezes. À hínima concessão; e nem poderia considerá-los genuina-
história terminava com os próprios anfitriões do homem tor inte convertidos enquanto abrigassem no coração esta trá-
nando-se seus matadores — o alimentado tornou-se alimento à ideologia. Mas como poderiam um homem e uma mu-
Depois Narai continuou e relatou a traição de Kani « sozinhos, reverter totalmente a filosofia de vida de todo
Mahaen contra os parentes deste último que moravam em à povo, uma filosofia que já se achava arraigada em sua
MWasohwi, Quando encerrou, fiquei sentado em silêncio, com pat ituição havia talvez milhares de anos?
pletamente pasmado. Bem no fundo do meu ser, eu estava certo de que uma
— Mas se Mahaen cometeu um crime destes, arrisquei, ra apresentação dos fatos do evangelho não bastaria. Tam-
como é que ele é tão popular, e tantos homens lhe promete ico desejava recorrer à técnica chamada “escolar”, utili-
ram suas filhas em casamento? a por alguns, e que consistia em se considerar a atual
A expressão que percebi no olhar de Narai revelou-me ção como indoutrinável e concentrar todos os esforços
que ele não entendia a razão de minha pergunta, pois ela em crianças, criando escolas evangélicas, onde centenas de-
si já era a resposta... nprenderiam as verdades do evangelho e receberiam in-
; G Na vz G Z Z Z Z Ss 4 $ S
194 >> O Torem da Pas o na Casa
dos Homens Sa
ce 195

fluência cristã, com vistas a uma vitória na segunda ou ter o com que eles já haviam se familiarizado mental e emo-
ceira geração. bnalmente. Mas os sawis nunca tinham ouvido falar de
Eu queria a geração atual. E queria ganhá-la em seu pró n deiros, e muito menos— até onde eu sabia— haviam con-
prio terreno, junto aos seus próprios fogões, Se o evangelho ido a idéia de um inocente morrer pelo pecado de ou-
não podia conquistar homens como Mahaen, Kani, Hato o It,

Kigo, então não era a mensagem que se dizia scr. Tomemos o caso do próprio Jesus, por exemplo, Conside-
Estava disposto a agir, mas também sentia-me impedido, ado-se a situação apenas superficialmente, seria de se es-
de prosseguir. Não sabia o que fazer para iniciar a luta contra par que alguém disposto a realizar um ministério tão sin-
esse enigma cultural. Dirigi-me para casa, para almoçar, la: Wir como o dele encontrasse pela frente uma grande bar-
mentando interiormente. qn de comunicação, Na verdade, porém, Jesus fez uso dos
Senhor, será que no mundo todo, em todas as épocas, 1 ismos recursos de comunicação já utilizados, com suces-
tua mensagem já se defrontou com uma filosofia mais con- por seu antecessor, João Batista.
trária a ela do que esta? Será que já existiu no mundo outra conversa com Nicodemos, Jesus comparou-se à ser-
ideologia mais oposta ao evangelho do que esta? E será que te de bronze que Moisés levantara no deserto, para a qual
algum gutro homem já teve que se defrontar com um pro» hebreus deviam olhar para serem curados da mordidura
blema de comunicação mais difícil do que este que tu me cobras. Nicodemos não podia deixar de ver o paralelo:
entregaste? |s é o objeto de nossa fé; se não olharmos para ele, pere-
João Batista, por exemplo. O seu problema comparado mos.
com o meu era muito simples. Ele pregava o batismo de ar: já com Natanael, ele se comparou à escada que o patri-
rependimento dos pecados a um povo que já estava a par do 4 Jacó vira em sonho, e por onde subiam e desciam os
que fosse um rito batismal, e conhecia outros conceitos reli bs de Deus. Natanael também não poderia deixar de
giosos, como perdão de pecados. ender o paralelo: Jesus é a ponte de ligação entre Deus e
Ele proclamava a vinda do Messias a um povo que já aguar Wo er.

dava o aparecimento deste Messias havia milhares de anos, ira a multidão de judeus que buscava um suprimento
E quando o Messias surgiu, João só precisou enunciar uma snatural de alimento, ele se apresentou como o maná
sentença, e todos os hebreus que ouviram, ficaram cientes fadeiro.
g Disse ele:
do objetivo da sua vinda: “Eis o Cordeiro de Deus que tira 0 Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu... Porque o
pecado do mundo.” de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo.”
João proclamou a mensagem uma vez, esperou vinte º É evidente que um extenso trabalho de base havia sido
quatro horas, e repetiu-a no dia seguinte: “Eis o Cordeiro de à, preparando os hebreus para o reconhecimento do Mes-
Deus!” E tão perfeita foi sua declaração, tão completa, que |O Deus soberano fizera esse trabalho milênios antes,
dois de seus próprios discípulos imediatamente o deixaram cando a cultura judaica com inúmeras analogias da re-
e seguiram a Jesus, ção, que apontavam aquele que havia de vir. João Batista
O sacrifício de carneiros já era parte integrante da cultura lis provocaram grande impacta ao revelar quem era 0
do povo hebreu desde os primórdios da sua história. Era um Eito Cumprimento daquelas analogias. Elas haviam sido
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196 RR => O Totem da Fu união na Casa dos Homens CAES 197

preparadas três milênios antes, para serem aplicadas na hora gançar os sawis. Tinha que haver um meio, mas qual se-
certa, e exatamente daquela maneira! a?
O evangelho, como mensagem estranha para o mundo, “Senhor”, orei em voz alta, caminhando para casa, “pre-
conseguiu vencer a primeira barreira étnica pelo uso não só bo de tua ajuda.”
dos milagres, mas também e de forma mais significativa, try
das analogias hebraicas da redenção. Fora essa a arma estra “Carol escutou atentamente a exposição que lhe fiz duran-
tégica escolhida por Deus para apresentar Cristo ao seu povo 'D almoço, a respeito da natureza do problema.
Tal recurso reduziu ao minimo os problemas de comuni Você acha que é possível que eles estejam...
cação enfrentados por João Batista, por Jesus e pelos apósto: «nos engordando com amizade para o abate? comple-
los. Posteriormente o escritor da carta aos hebreus se apro | É bem provável que esta idéia já lhes tenha passado pela
fundou ainda mais na sua utilização. beça, mas o fato de sermos a única fonte para consegui-
Quando o evangelho foi levado aos gregos, o apóstolo p machados de aço deve pesar bastante em nosso favor,
João pôde apresentar-lhes Cristo como o Logos, utilizam O menos para 0 presente momento. Minha preocupação
do-se, para isso, de um termo tirado da filosofia helenista. Dr é: como vamos destruir esta sua glorificação da trai-
“No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, c q à antes que ela nos destrua?
Logos era Deus!... E O Logos se tornou carne e habito » Deus sempre tem uma solução, disse Carol. Tem que
entre nós.” o
e tr uma forma.
Olhando pensativamente para a casa dos homens na al Ponderei que se Jesus em pessoa estivesse presente àquela
deia de Haenam, que ficava do outro lado do pântano, pare: inião realizada na casa dos homens, ele não se deixaria
cia-me que Deus não se dera ao trabalho de preparar tan br. E mesmo que houvesse apenas uma única solução,
bém os sawis para a chegada do evangelho. Os hebreus... “encontraria. Mas Jesus não se achava lá fisicamente.
sim! Os gregos... também! Até mesmo meus ancestrais anglo: O que havia era apenas um homem e uma mulher que
saxões tinham um termo pagão — god (deus) - que alguém ham esperanças de poder representá-lo bem, e que acredi-
soube utilizar para lhes ensinar algo extremamente melhor am que o Espírito de Jesus estava habitando e operando
que adorar árvores € rochas, 4. Portanto este Espírito teria que revelar-lhes o segredo
Mas na língua dos sawis não havia uma palavra que do 0 seu Senhor teria utilizado, pois de outro modo não
signasse Deus. Nem mesmo o conceito de divindade clem, ja esperanças.
tinham. Não havia ali o costume de sacrificar cordeiros, ou. fendo como último recurso uma dependência total de
qualquer outra analogia da redenção, que eu pudesse usai is, dispusemo-nos a esperar que o tal segredo nos fosse
Eu tinha a impressão de que Deus me levara aos confirm jado. Não tínhamos a mínima idéia a respeito da forma
da terra para me deixar às voltas com um problema de co = qual ele se apresentaria. Sabíamos apenas que viria de
municação maior que o enfrentado por qualquer dos após: | e seria abençoado por ele.
tolos ou profetas. Mas, e se eu estivesse avaliando mal 4 No dia seguinte, uma luta de proporções sérias começou
situação? mente entre Haenam e Kamur
Com certeza a graça divina encontraria uma maneira de.
LIBRA
LGUNSLB
DONS MSL UEL LAS
e” A a? a? a? a? a? a? a? a a? a? —-
Crise no Kronkel E 199

gado. Geralmente, o castigo infantil não é visto com


é olhos e o motivo apresentado é: mesu furamake gani —
se o risco de se quebrar seu espírito. Chamemos a isto
DEZESSEIS ina às avessas.
À criança sawi é treinada para conseguir tudo o que dese-
implesmente pela força da violência ou de acessos de có-
à Ela é constantemente encorajada a otaham, “vingar-

Uma Crise no | cada vez que é insultada ou magoada, Além disso, ela
constantemente diante de si o exemplo dos pais, já que
idultos sempre procuram tomar fortes represálias contra

Kronkel hs OS que os ofendem, isto sem mencionar as constantes


tições de histórias e lendas que exaltam a violência e a
são, dando-lhes o cunho de deveres tradicionais.
nós dezesseis ou dezoito anos de tal condicionamento,
roduto final é um jovem com um instinto de luta tão
Na maioria dos países da terra, O treinamento militar dos gado, que às vezes nem a força natural da autopreservação
homens só é iniciado no período da adolescência. Entre qu fe reprimi-lo mais. E numa situação tão primitiva quanto
sawis, porém, ele começa na infância. Edo sudoeste da Nova Guiné, as crianças que forem cria-
Mais de uma vez, vi pais darem uma ordem a um filho de | num padrão mais dócil, logo se tornarão numa presa
três ou quatro anos, e depois ter que repeti-la muitas vezes, pois | presa seus inimigos.
a criança mal o ouvia, e até o ignorava como sc ele nem estivesse Não é de se admirar, portanto, que toda uma população
ali. Inutilmente, o pai fala e repete a ameaça; depois, ele se vira uma aldeia logo se coloque em guarda, com lanças e fle-
para um amigo e se gaba de queo filho realmente tem Jawai - , à mínima palavra de provocação. Tampouco nos sur-
uma vontade forte, E o garoto ouve o pai gabar-se disto, EnE emos — já que vivíamos no meio de três povoados for-
Todas as crianças sawis sabem que se fizerem pirraça « los de pessoas assim— quando chegamos a contar qua-
insistirem nela, conseguirão o que desejam. Já vi crianças * lutas próximas de nossa casa, somente nos dois pri-
pequeninas, que ainda não aprenderam a nadar atirarem-se iros meses que passamos entre os sawis. Depois disto,
no rio para obrigar um dos pais ou irmão mais velho a is demos a conta.
salvá-las às pressas. Neste número não estão incluídas as costumeiras brigas
Nas raras ocasiões em que um pai bate num filho real- família, quando, por exemplo, um marido resolvia casti-
mente com a intenção de castigá-lo, a criança muitas vezes | a esposa, atirando uma flecha em seu braço ou perna; ou
revida e bate no pai também; e se não o faz, atira-se ao chão tão espancando suas costas com um molho de varas em
num violento acesso de raiva para tentar dobrar os pais. Es- as; ou obrigando-a a sentar-se a um canto da casa du-
tes, por seu turno, aceitam tal reação do filho, e deste modo & dias seguidos, a fita r e se ela se atrevessea
a parede,
o encorajam a agir do mesmo modo da próxima vez que for ar os olhos para as crianças ou para outro parente, batia-

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200 ES O Totem du us “Crise no Kronkel a O 201
lhe com violência. Este último castigo era chamado yukop Deu certo. Aquela inquietante suspeita de que o tuan tal-
hauhuyap, e era infligido às esposas jovens, cujos olhares tivesse alguma ligação com poderes sobrenaturais des-
muitas vezes se dirigiam na direção de outros homens. inhecidos para os sawis, aliado a uma forte impressão de
Acabamos nos acostumando a ver sangue todos os dias, 4 le p tuan não estava simplesmente tomando o partido de
ouvir o ruído de pés correndo para a luta; ao grito unido da imani, mas também zelava pessoalmente pelo bem-estar
massa de homens encolerizados; ao zunido dos arcos e am Atae, ganharam a batalha.
ruído cavo de malhos batendo em corpos humanos; ao berra Deu meio-dia. Samani apareceu, estava fora de si de ódio.
agudo e histérico das mulheres batendo nas paredes de pa era um homem magro, de aspecto doentio, e absoluta-
lha de suas “casas longas” com os pesados socadores de sagu, nte não poderia com Atae. Para surpresa de todo o povoa-
protestando violentamente contra alguma injustiça. “Atae fez uma declaração pública voltando atrás em sua
Se os sawis e outras tribos semelhantes se tivessem de laração anterior, A fim de não ficar mal, ele deixou bas-
senvolvido nas técnicas modernas de guerra, acrescido à sua te claro que mudara de idéia somente “em respeito ao
psicose de matar, eles destruiriam meio mundo. Tentar re- in Don”. E para minha surpresa, pouco depois, Atae e
primir a violência e a contra-violência numa cultura destas, mani se tornaram bons amigos. Também eu e Atae nos
seria o mesmo que tentar obrigar centenas de computadores namos amigos.
a dar soluções exatamente opostas aquelas para as quais to» Mas nem sempre era fácil assim. Houve uma outra oca-
ram programados. b em que nosso sorridente amigo Er quase foi morto. Ele
De vez em quando eu lograva obter sucesso. Um exemplo vera cortejando uma jovem, quando subitamente, o pai,
disso foi a ocasião em que Atae anunciou que queria para s| ig € irmãos dela se voltaram contra ele. Quando corri em
a esposa de Samani — que só possuía uma — para ser sus | socorro, estava com três flechas no corpo.
terceira esposa, e se O outro não gostasse da idéia, ele pode Um avião de Asas de Socorro passava por perto, e eu cha-
ria vir se defrontar com ele para ser morto, Subi à casa de fo piloto, George Boggs, e solicitei-lhe que transportasse
Atae, sentei-me a seu lado junto ao fogo, e me apressei 4 para um hospital missionário que ficava 150 quilômetros
argumentar com cle falando-lhe do castigo que lhe adviria norte. Ali as flechas com suas farpas, que estavam pro-
de Deus, se tratasse Samani daquele modo. Ele me ouviu idamente enterradas nele, poderiam ser retiradas com ci-
atentamente, piscando de espanto, enquanto minhas pala- gia. Dez minutos depois, o avião pousava no Kronkel, e
vras penetravam sua mente. Seu arco e flechas estavam à fela altura cu já convencera os parentes de Er a conceder
mão, no colo, prontos, à espera de que Samani chegasse ali missão para que ele fosse levado para o hospital.
para o confronto. Pelo menos foi o que pensei, Mas logo que George levan-
— Se eu, o tuan, estou satisfeito com uma esposa, por que | vôo novamente, partindo do kidari, e levando Er para o
você precisa de três? perguntei-lhe, procurando utilizar qual conhecido, ouvi um grito de raiva às minhas costas. Ama,
quer tipo de argumento que me ocorria. Agora que vocês já pão mais velho de Er entesou o arco: cu tinha uma fle-
receberam a mensagem de Cristo, são mais responsáveis do | apontada contra mim,
que antes, Se você fizer isto, estará ofendendo terrivelmente » Você mandou meu irmão embora, berrou ele. Nunca
a Myao Koidon, is vou ver meu irmão,

SONGS COSTA
202 = AR O Totem da us ma Crise no Kronkel Ret 203

Mas antes que ele disparassea flecha, um grupo de sawis té nos colocado de permeio entre grupos em luta para
dominou-o rapidamente, lançando-o 20 chão e desarman- Entar fazer cessar as hostilidades. No entanto o ódio ain-
do-o. à aumentava entre Haenam e Kamur, como se fosse uma
Mais ou menos uma semana depois, o avião regressou ré irreprimível.
trazendo Er de volta, feliz e refeito, exibindo orgulhosamen- Parecia que não mais poderíamos evitar a morte iminen-
te as pontas de flechas que haviam sido removidas de seu de pelo menos uma pessoa, o que significaria o começo de
corpo, “enquanto ele dormia”. Falou ainda de fatos espanto» ma longa e sangrenta animosidade, e a consequente disper-
sos tais como elevados picos de montanhas, chão coberto de o E três aldeias. Por isso, eu instava com os principais
pedras — coisa rara naquela região pantanosa - e por fim fa s de Haenam e Kamur, implorando-lhes que entras-
lou também de um bondoso homem da tribo dani [um cren- E: num acordo de paz, mas eles não me atendiam. Feliz-
te) que o acolhera como se fosse seu irmão. ente, o grupo de Hadi, a aldeia de Yobwi, mantinha-se ge-
Mais tarde, ouvi Ama —o homem que havia me ameaça: mente à parte,
do — tentando combinar com outro homem o seguinte: Certo dia, ocorreu-me subitamente um pensamento que
— Vamos nos ferir um ao outro, para podermos ir neste Efe parar. “Você insiste com eles para que vivam em paz”,
lugar onde Er foi. º para mim mesmo, “na suposição de que a paz seja pos-
ten para este povo. Entretanto, para haver paz, é necessário
Foi Ama também quem provocou a luta mais séria que e cada facção esteja convencida das boas intenções da ou-
presenciamos, depois que já residiamos no Kronkel havia PRA

cinco meses. Um jovem de Haenam chamou-o de “pele do Todavia, será que aqui entre os sawis, onde o tuwi asonai
jacaré”, e ele se sentiu grandemente ofendido. Reuniu os jo un se apresenta como uma ameaça constante, alguém pode
vens de Kamur e, com eles, atacou Haenam. Mais tarde, 08 | certeza de que os outros são sinceros em seus desejos de
principais chefes das duas aldeias também se envolveram jz? Cada grupo conhece perfeitamente a habilidade que o
no caso, e, desta vez, deixaram bem claro que não iam se ttr O tem de se utilizar da amizade como meio de traição.
deixar convencer a parar enquanto não infligissem perdas ao dos sabem que, a qualquer momento, um deles pode Jan-
grupo oponente. “mão do compromisso do waness para fechar a boca dos
Durante cinco meses, havíamos nos esforçado para evi- tros, e até de uma pessoa que normalmente apoiaria um
tar mortes por violência, não somente pelas vidas que pu prdo de paz.
déssemos poupar, mas também para que nossa comuni- “Agora eu entendia a razão por que, quando eu lhes implo-
dade, que se compunha dos três povoados, permanecesse à que vivessem em paz, eles me respondiam:
intacta, Já tivéramos que medicar e atar inúmeros feri ““Tuan, você simplesmente não compreende a situação.”
mentos graves, havíamos aplicado centenas de injeções Agora eu compreendia que, onde a traição é justificada
de penicilina, berrado reprimendas até ficar roucos, já tí- pensamento geral, é impossível haver uma paz genuína.
nhamaos orado até ficar com os olhos pesados pela falta de | muitos, muitos séculos, os ancestrais dos sawis haviam
sono; tínhamos argumentado, rogado; tínhamos gasto di mo que amarrado a tribo inteira a uma roda de moinho de
nheiro em vôos de emergência para cuidados médicos, e tas incessantes.
FUI
TUSD ISTINDUIRARS R
a
SILAS
EAGE
LENA IARA IARIA SLAIA SIGENGIS
204 O Totem do bus ma Crise no Kronkel aee
ego 205

Ss pequenos e isolados. Com os inimigos em potencial lon-


E de suas vistas, as chances de derramamento de sangue
tam bem reduzidas. As moléstias contagiosas se propaga-
m mais lentamente numa região em que a população se
icontrava mais espaçada. Também em comunidades me-
úres, as pessoas dependiam mais umas das outras, e, por
ho, valorizavam mais a vida uns dos outros. Em pequenos
upos, também, tinham mais facilidade para se esconde-
dos inimigos externos.
“Compreendi, por fim, que eu e Carol, ao atraí-los para
na vida comunitária, havíamos, inconscientemente, con-
Ibuído para roubar a Haenam, Kamur e Yohwi o isolamen-
de que careciam para continuar a viver em relativa paz.
ande se concluia que, para o próprio bem deles, devíamos
Irtir, Seria um remédio meio amargo, mas eu reconhecia
je, sem nós, eles se espalhariam pela mata, voltando aos
Is recantos no coração da selva, e ficariam em paz. Nesse
ferim, eu procuraria alcançar outras comunidades sawis
is para o norte, e mais tarde, segundo esperávamos, vol-
iriamos ali para tentar trabalhar com cada uma delas —
Muitos milênios depois, vamos descobrir que a roda ain menam, Kamur e Yohwi — separadamente, realizando um
da está girando e os descendentes daqueles primeiros sawis istério itinerante.
ainda se desgastam no esforço de se conservar fora do alcan * Eu e Carol oramos a Deus juntos, buscando dele a orien-
ce dela, Eu desejava libertá-los da roda, Já estavam presos à são a respeito desta decisão, e depois conversei com os
ela havia muito tempo. Mas eu não sabia o que fazer. jmens de Haenam e Kamur em suas respectivas casas dos
O que mais me espantava era o fato de ainda restarem pmens.
alguns sawis. Com o índice de mortalidade infantil ali ultra Como vocês não conseguem viver em paz uns com os
passando a 50% e a média de vida provavelmente inferior à itros, disse-lhes, está claro que devemos deixá-los. Se con-
vinte e cinco anos, cles absolutamente não podiam se dar ao n uarmos aqui, não demorará muito é alguns homens se-
luxo de se matarem uns aos outros, acrescendo-se a isto à à mortos. Depois vocês se verão empenhados numa cons-
fato de que sofriam perdas às mãos dos asmates, kayagares v nte luta de vingança, que ceifará muitas vidas. Existem
pelas enfermidades existentes. No entanto, teimavam em
ML aldeias sawis junto ao rio Au - Tamor, Sato, Ero e
continuar agindo daquela forma. hami. Iremos para lá para ver se estão vivendo em paz
Cheguei à conclusão de que o segredo de sua sobrevivên itre si, e tentaremos ensinar para elas.
cia encontrava-se no costume de residirem sempre em gru Minhas palavras provocaram uma discussão tumultuada
GA GRALGLIPLIGIRGR
SESC S GSE OO
DO OO DX
206 o O Totem da Par

nas duas casas, Voltei para casa, indagando-me interiormente


se-agora as duas aldeias não iriam culpar-se mutuamente
pela nossa decisão de nos retirarmos, e recomeçar os ata-
ques. Ou então, podia acontecer de os dois povoados concluí-
rem que, já que não iríamos mais abastecê-los de remédios e
machados de aço, talvez eles pudessem encontrar outra uti-
DEZESSETE
lidade para nós. Quando a noite caiu, ainda escutávamos a
discussão que prosseguia violentamente nas duas casas dos
homens.
Eu lutava contra um sombrio desespero, agravado dupla-
mente pelo pensamento de que para Carol, agora esperando
Amanhã - Água
Fresca!
nosso segundo filho, seria muito dificultosa uma nova mu-
dança para outra casa na selva, e de que Stephen, que con-
traíra malária, estava cada vez mais pálido e enfraquecido.
Eu acabara de apagar o lampião quando ouvi um grito do
lado de fora de nossa porta dos fundos. Peguei uma lanterna,
e saí para a varanda de trás. O foco de luz revelou-me os = Começar a paz? indaguei duvidando, pois o que o ho-
rostos graves de vários dos principais guerreiros das duas hem dissera fora: “Amanhã vamos salpicar água fria uns
facções: Kani, Mahaen, Maum, Hato, Kaiyo, Kigo e outros. los outros.”
— Tuan, suplicou um deles em tom solene, não nos dei- “Agua fria” é a expressão que os sawis empregam para
imbolizar paz. Portanto, salpicar água fria uns nos outros
xe,
— Mas eu não quero que vocês se matem, repliquei. O podia significar fazer a paz. Mas será que falavam a sé-
— Tuan, nós não vamos nos matar uns aos outros,
O homem que falava fez uma pausa, depois continuou
firmemente.
— Tuan, amanhã vamos começar a paz. 1 mais que uma mera paralisação da luta por um es-
ço extremo de afastamento mútuo, a não ser que um
ps lados fosse ingênuo bastante para confiar plenamente
) outro, o que era pouco provável, à vista das histórias
Iwis bem presentes na lembrança de todos. Portanto, ou
tavam apenas me enganando, ou então meus conceitos
tavam para ser derrubados; Tinha esperanças de que a
gunda opção fosse a verdadeira, Mas não fazia a míni-
W idéia sobre que prova de sinceridade poderiam dar uns
is Outros, que pudesse afastar completamente a hipóte-
208 fã => O Totem da Paz Amanhã - Água Fresca! 209

se de que o acordo de paz fosse apenas mais um tuwi


asonai man.
Dormimos pouco naquela noite, vivendo na expectativa
dos fatos que o novo dia nos traria, Entre os sawis também
foram poucos os que dormiram. Escutamos o murmúrio de
suas vozes durante grande parte da noite, em meio aos trila
dos agudos de miríades de cigarras.
Pela madrugada, enquanto a cor e a movimentação retor-
navam às “casas longas”, à selva e ao rio, eu e Carol ficamos
a espiar pela janela. Uma fumaça de odor penetrante subia
dos fogões, evolando-se para O alto através dos telhados de
sapé; galos cantavam, cães ladravam e os porcos em
barafustavam-se por baixo das casas, à cata de restos de sagu.
Mas não havia homem, mulher ou criança à vista. A não ser
pelos ruídos dos animais, imperava um silêncio mortal por
toda a parte, como acontecia muitas vezes, antes de uma
batalha.
Depois vimos Mahaen e sua esposa mais velha descerem
pela escada de sua casa, em Haenam, e virem em direção à
Kamur. À seguir, outras pessoas de Haenam — homens, mu
lheres e crianças — desceram e ficaram a contemplar Mahaen
e sua esposa que iam se afastando. Mahaen levava nas cos: * Syado espiou por sobre os ombros de Mahaen e viu 0 povo
tas uma criança — um de seus filhos. Sua esposa, Syado, so Kamur reunido, à espera, olhando os três que se aproxima-
luçava convulsivamente. Im, na expectativa do que estava para suceder. Começou a
Eu e Carol saímos para a varanda, tensos. mer fortemente, ou de pavor, ou pelo impacto de sua gran-
Agora o povo de Kamur, em massa, descia também de dor, não sabíamos bem por quê. De repente, ela limpou as
suas casas. Sentimos a tensão aumentar enquanto Mahacr) nas, arrancou o garotinho dos ombros do marido, e saiu
e sua esposa prosseguiam na caminhada, observados por forrer de volta com ele para Haenam, gritando,
centenas de espectadores, inclusive nós próprios. Os três ji Mahaen correu atrás dela, tentando tirar-lhe a criança, mas
estavam mais perto de nós. Carol tocou em meu braço num Ito segurou o menino com uma força enorme, gerada pelo
gesto de apreensão, quando pudemos enxergar melhor a ex hespero. Giriman, o filho mais velho de Mahaen, destacou-
pressão de profunda determinação no semblante do homem, la multidão e correu em direção à mãe com a intenção de
e as lágrimas que escorriam dos olhos de Syado. A criancinha, di «la. Com um brado de frustração, Mahaen deu as costas
agarrada ao pescoço do pai, parecia passiva e inconsciente de à Os dois e começou a andar de um lado para outro, defronte
que algo de incomum pudesse acontecer. povo de Haenam, gritando palavras ininteligíveis para nós.

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210 FED O Totem da Por Inanhã — Água Fresca! EgES da 21

Evidentemente, Syado e Giriman haviam-no impedido de hamado Kaiyo afastar-se da multidão, e subir rapidamen-
consumar seu intento, que ainda desconhecíamos. E agora ou- * as escadas de sua casa,
tras mulheres apertavam os filhinhos contra o peito, gritando ter)
apreensivamente, Os homens corriam de um lado para outro, “O coração de Kaiyo pulsava fortemente quando ele se afas-
berrando e gesticulando. A aldeia estava em grande tumulto, pu furtivamente de sua esposa, Wumi, e subiu os degraus
Ouviu-se um grito agudo vindo de Kamur, e nos voltamos E ripas que conduziam para sua casa. Mahaen falhara! Sinau
para a direção de onde ele partira, No centro da aldeia, algu- imbém falhara! Tanto um como o outro possuíam muitos
ma coisa estava se passando. Deixei Carol na varanda, e cor- lhos, e, no entanto, nenhum dos dois tivera coragem de
ri para um ponto de onde teria melhor ângulo de visão. Fi- itregar um deles.
quei ali assistindo à cena. Vi um homem de nome Sinau Kaiyo tinha apenas um filhinho, Biakadon, de seis meses
tomar um meninozinho nos braços e erguê-lo bem alto, aci- é idade, que estava deitado ali na esteira de palha. Aproxi-
ma de sua cabeça, à vista de todos. Mas a seguir, ele entregou jou-se do bebê, sentindo o corpo tenso, o coração compri-
a criança para seu irmão, Atae, dizendo, com as feições con- findo -se no peito, ao pensamento do que iria fazer. Biakadon
traídas por uma indescritível angústia: hou para o pai e sorriu ao reconhecê-lo. Cerrou as mãozi-
— Não terei coragem de entregá-lo eu mesmo, bradou, has e bateu os bracinhos morenos ao perceber que ia ser
Atac, faça isto por mim. imado no colo do pai.
Atae tomou o garotinho nos braços e começou a marchar “Preciso fazer isto”, disse Kaivo consigo mesmo. “Não
em passos firmes em direção a Haenam. Mas Sinau, o pai, não Nverá outro jeito de acabar com as brigas. E se as brigas não
conseguia tirar os olhos da figurinha indefesa de seu filho. Era Pabarem o tuan irá embora.”
como se o pequenino fosse um poderoso ímã a atraí-lo. Kaiyo estendeu os braços e pegou Biakadon. Sozinho, no
Com os olhos marejados e contorcendo as mãos em de- josento vazio, aconchegou ao peito o corpinho macio, mor-
sespero, Sinau, repentinamente, deu um salto em direção a pe palpitante do filhinho, num último abraço. Por um ins-
eles, e arrancou o menino dos braços de Atae, gritando: nte, pensou na dor que seu gesto causaria a Wumi, mas não
— Mudei de idéia! Não vou deixar levá-lo. via outra saída. Ergueu os olhos para o clarão da porta, na
Todos pareciam dar-lhe razão, mas apesar disso 0 tu- tra extremidade da casa, e começoua avançar
em direção a
multo não cessou. Estranhas forças opostas, atração « &, braços e pernas tremendo, o semblante crispado pelos
repulsão, estavam criando uma incrível tensão entre ntimentos contraditórios que rugiam em seu interior.
Haenam e Kamur. Do lugar privilegiado em que me encon- 'Wumi, a mãe de Biakadon, achava-se no meio do povo
trava, eu podia sentir aquelas forças como que se chocando quieto e ruidoso, absorvida pelo problema geral, conjectu-
ao meu redor, quase com uma violência física. Senti meu ndo se a paz seria conseguida ou não. Naturalmente, se no
cabelo da nuca se eriçar, ao perceber que as duas aldeias, mn alguém conseguisse chegar ao ponto de entregar um fi-
agora, estavam em completa desordem, como se estivesse O para O inimigo, deveria ser alguém que tivesse muitos
realizando o penoso parto de um plano que deveria nascer, hos, e não fosse sentir muito a perda de um só, Por esta
mas que estava se revelando dificilimo. A certa altura, en- ão, era fora de cogitação que ela e Kaiyo pensassem em
trevi, com o canto do olho, um robusto homem de Kamur itregar Biakadon.
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212 RE O Totem da Pas manhã — Água Fresca! «ARE
ng dto 213

"Mas onde está Kaiyo?” indagou-se ela, No mesmo momento, porém, dois outros pensamentos
Poucos minutos antes ele estava junto dela. Com uma às dominavam além da compaixão que sentíamos por
ponta de apreensão, virou os olhos negros para sua casa, no mi. Um era nossa preocupação pela sorte de Biakadon.
momento exato em que seu marido saltava para o chão, no al seria o destino que o aguardava?
lado oposto da casa, e partia correndo em direção a Haenam, Forcei minha atenção a desviar-se da triste cena que era o
carregando Biakadon nos braços. btrimento de Wiumi, e segui Kaiyo com os olhos até Haenam.
Durante alguns instantes, ela se deixou ficar paralisada
embrei-me dos sacrifícios de infantes levados a efeito pelos
pelo choque, não acreditando no que via, dizendo a si mes-
nanitas dos tempos bíblicos, e resolvi que, se a vida de Biakadon
ma que o fato de Kaiyo estar correndo naquele sentido com
1 sse correndo perigo, eu usaria de todos os recursos ao meu
o menino não significava nada, era apenas coincidência. De
por para arrebatá-lo deles, e devolvê-lo aos braços de sua mãe.
repente, a consciência da realidade caiu pesadamente sobre
A segunda emoção que me dominava era uma enorme
ela. Wumi soltou um grito € saiu correndo atrás do marido,
suplicando-lhe com todas as suas forças, que não fizesse
iriosidade. O que estariam eles fazendo? Por que seria aquilo
aquilo. pcessário?
A intensidade do sofrimento de Wumi abalava minhas
Mas Kaiyo nem olhou para trás. Sua figura ampla foi se
tornando cada vez menor à medida que se distanciava dela. speranças de que Biakadon voltasse logo para ela, pois sig-
Wumi sentiu os pés se afundando num pequeno lamaçal. ficava que a decisão que Kaiyo tomara — fosse ela qual fos-
Em sua angústia, ela se desviara da estradinha. bp — era irreversível,
Agora não havia mais esperanças. Ele já estava longe de- te
mais; já alcançara o povo de Haenam, postado, à espera, junto Kaiyo arfava — o peito subindo e descendo de emoção —
ao casario. Mesmo a esperança de que ele no último minuto tando chegou à entrada de Haenam. Os principais anciãos
voltasse atrás, já se esvaíra. a aldeia estavam reunidos à sua frente, fitando a criança
Com um grito de desespero, Wumi deixou-se tombar na ue Kaiyo segurava em seus braços, Kaiyo examinava a filei-
lama onde havia-se atolado. Contorcendo-se desesperada- de rostos inimigos diante de si, Estavam todos ali: Maum,
mente, ela ficou a repetir lamentosamente: Wii, Mahaen, Nair.
— Biakadon! Biakadon! Meu filho! Então ele avistou o homem que escolhera, e bradou seu
teem ome:
Não me lembro de qualquer outra ocasião em minha vida “— Mahor!
em que tivesse sentido piedade de um ser humano, como Mahor adiantou-se de um salto, os olhos brilhando de
senti de Wumi naquele momento. Olhei de relance para nossa moção. Kaivo e Mahor aproximaram-se um do outro. To-
casa e vi Carol apertando Stephen em seus braços. Compre- bs os homens, mulheres e crianças de Hacnam haviam se
endi que ela sentia o mesmo que eu, partilhando da profun- igrupado ao redor deles, o rosto radiante pela antevisão do
da tristeza de Wumi por saber o que nosso filho significava estava para acontecer. Às suas costas, Kaiyo ouvia o mur-
para nós. Stephen olhava para a mãe, espantado com as lá- qúrio de entusiasmo de seu próprio povo que-os observava
grimas que lhe escorriam pelo rosto. e uma certa distância.

SEOSCSCSCSCSCS SIS SNCT CSN CSUND


214 O Totem da Pns lunanhã - Água Fresca! = 215

— Kaiyo, você quer defender os interesses do povo de


jenam diante de seu povo?
— Quero, respondeu Kaiyo, estendendo os braços para
N anaen.
— Então eu lhe dou meu filho e também meu nome.
Quando Kaiyo pegou o pequenino Mani das mãos de
ahaen, um repentino clamor de protesto partiu de algu-
nas pessoas ao fundo. Eram parentes do menino que haviam
cabado de se dar conta do que se passava.
Kaiyo estava prestes a dar uma resposta a Mahaen pela
lerenda, quando este lhe disse:
— Vai, Vai embora, depressa!
Kaiyo girou nos calcanhares e fugiu em direção a Kamur
om seu novo filho, Mani, Foi em vão que os parentes do
nroto tentaram alcançá-lo.
* Logo que Kaiyo partiu, Mahor voltou-se para a população
e Haenam e gritou:
— Ini tim ke kanenai arkivi demake, ysyny asimdien!
Aqueles que aceitam esta criança como oferenda de paz, ve-
Kaiyo e Mahor achavam-se frente a frente. ham aqui e imponham as mãos sobre ela.
— Mahor, começou Kaiyo, você quer defender os interes: | E foi então que todos - jovens, velhos, homens e mu-
ses do povo de Kamur perante seu povo? eres, prontamente se puseram em fila e foram passan-
— Quero, respondeu Mahor, Defenderei os interesses do jo por Mahor, e colocando a mão, cada um por seu tur-
povo de Kamur perante o meu povo. O, sobre o pequenino Biakadon, demonstrando sua acei-
- Então eu lhe dou o meu filho, e também o meu nome, ão do tratado de paz com o povo de Kamur. A mesma
disse Kaiyo estendendo o pequeno Biakadon para Mahor que jerimônia teve lugar em Kamur logo que Kaiyo ali che-
o tomou nos braços ternamente. ou com o filhinho de Mahaen nos braços. Desse mo-
— Hl-aaaa! Isto basta! gritou Mahor. Pode estar certo de mento em diante, Kaiyo passou a atender pelo nome de
que irei defender a paz entre nós. Mahaen.
Nas duas aldeias ergueram-se brados de hahap kaman, Enquanto isto, Wumi se arrastara para fora do atolei-
com tal alarido, que a própria terra parecia tremer de emo- ID, € retornara para casa, cambaleante, chorando. Era uma
ção. Agora, todos iriam chamar Mahor de Kaiyo. ela mulher, mas agora parecia uma figura solitária,
Repentinamente, Mahaen surgiu outra vez na frente da marcada pela dor, coberta de placas de lama endurecida,
multidão. Olhou para Kaiyo, ergueu bem alto um de seus bs pés à cabeça. Seus clamores eram como ecos dos la-
filhos infantes, e gritou: mentos que partiam de Haenam, daqueles que se encon-
GS
SLOX 26X 26X SL
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GLS
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Fada
o TD O Totem da Pa» 21?

travam igualmente desolados. Algumas parentas de Wumi,


mulheres mais idosas, acercaram-se dela e começaram a
chorar com ela, numa tentativa baldada de suavizar sua
dor.
Nesse ínterim, Biakadon e Mani eram levados para as
casas dos homens de suas respectivas famílias adotivas,
para serem aprontados para a comemoração da paz. Era a
primeira vez — pelo que me lembrava - que eu via um
número tão grande de sawis reunidos num só lugar, sem
que nenhum deles empunhasse pelo menos uma arma de
guerra.
Enquanto os garotinhos estavam sendo enfeitados, os
rapazes se adornaram com plumas nos cabelos, tomaram
seus tambores, e se puseram a dançar. Consegui tirar um
deles do grupo e trazê-lo à parte. Queria fazer-lhe algumas
perguntas.
O nome do rapaz era Ari. Orgulhosamente, ele me pôs a
par do que se passava,
— Kaiyo deu seu filho a Haenam para ser um tarop tim,
uma oferenda de paz, e Mahaen, por sua vez, deu-nos um
tarop tim.
— Por que isto é necessário? indaguei. No instante em que Ari disse isto, um pensamento lon-
— Tuan, você mesmo tem insistido conosco para que viva- gínguo começou a despontar no fundo de minha mente.
mos em paz. Não sabe que é impossível haver paz, sem que Contudo era uma idéia muito vaga, e não lhe dei muita
uma criança seja oferecida ao inimigo como oferenda de paz? atenção.

Abanei a cabeça, e creio que ele me achou extremamente , Ainda estava chocado com os fatos que presenciara.
ignorante. Ari olhou-me muito espantado. Ainda me doía de pena por Kaiyo, Wumi, Biakadon e os
— Você quer dizer que os tuans conseguem viver em paz putros. Ainda me sentia estarrecido diante da ardente
sem... motivação e da consumada força de vontade que levava
Ele fez uma pausa, meditando profundamente, e depois dois homens a uma superação quase sobre-humana do
seu rosto se abriu repentinamente demonstrando ter com- instinto paternal, como a que eu vira. Ainda estava eletri-
preendido. gado pela súbita descondensação da atmosfera beligeran-
— Ah! exclamou ele. Agora entendo. Vocês, os tuans, nun- te, e quase não querendo crer nesta nova era de paz que se
ca brigam uns com os outros e por isso não precisam dar prenunciava.
uma criança como oferenda de paz. Às vozes dos jovens que dançavam elevaram-se claras e
DESSES NPSF PIPA PN PROD PC PES PO PS PS RE PESDENSA PENIS PS PS PSP PNI PNR PSL PES PS
218 REP O Totem
da Piz A manhã - Água Fresca! «gde 219

jubilosas, acima do rufar destacado de seus instrumentos. Senti-me aliviado e preocupado a um só tempo. Alívia-
Ao escutá-las, dei-me conta de que, após seis meses de ter- to por saber que as duas criancinhas não corriam risco
ror, sustos e tensão, eu praticamente esquecera o que signi- de sofrerem maus tratos. E preocupado, porque os índi-
ficava sentir-me leve e feliz. Mas seria correto sentir-me ces de mortalidade infantil ali eram tão elevados que a
leve e feliz às custas do sofrimento de Wumi, Kaiyo c paz que fora comprada a um preço tão alto para o senti-
Mahaen? mento humano poderia se esvair antes mesmo de come-
— Tuan, você não compreende..., haviam dito eles. qar a vigorar. Uma queda acidental no rio, um encontro
Se eu soubesse que meus apelos de paz iriam fazer com fortuito com uma serpente venenosa, ou um ataque sú-
que pais tivessem que entregar seus filhos, e com que mães bito de malária cerebral bastariam para invalidar aquele
caíssem no desespero, e que aqueles bebês fossem lançados terrível sacrifício, c anular os esforços angustiosos da-
para um destino desconhecido, o que eu teria decidido? Dei- queles pais.
xar as mães continuarem a amamentar os filhos de seu Portanto — concluí — esta paz depende da sobrevivência
próprio ventre e permitir que aqueles homens violentos se tas duas crianças. À pequenina campainha que ecoava
matassem uns aos outros? Não sabia que escolha eu teria em meu subconsciente soou um pouco mais forte e quase
feito. taptou minha atenção.
Mas aqueles trezentos sawis haviam imposto as mãos tro)
sobre um filho de paz & agora cantavam e riam. É em minha As duas criancinhas agora estavam prontas, seus braços
mente aquela luzinha começava a brilhar um pouco mais & pernas adornados com pequeninos braceletes feitos de
intensamente. Bipó trançado, aos quais estavam atados fios dourados de
tn fibras de palmeira. Watiro, uma das mulheres mais proe-
— O que acontecerá a Biakadon e Mani? indaguei, Serão minentes de Kamur, saiu de sua aldeia segurando o peque-
feridos? jo Mani em seus braços. Subiu a um montículo de um
Eu ainda mé conservava em guarda, pensando que aquela ferreno elevado, e parou — sua figura alta € ereta voltada
festividade, promovida por aquela gente imprevisível, pode- para Haenam. Do mesmo modo, uma mulher importante
ria ser apenas um prelúdio para o sacrifício de vidas huma- fe Haenam adiantou-se com Biakadon no colo, e postou-se
nas, ou talvez mais tarde, se o acordo de paz fosse violado, ante de Watiro, a uma distância de cerca de cinquenta
Biakadon e Mani fossem imolados como reféns. netros.

Ari apressou-se a tranquilizar-me, De repente, os homens e rapazes de Kamur avançaram,


— Eles não sofrerão dano algum, tuan, disse ele. Pelo con- passando por Watiro, batendo os tambores e cantando. Um
trário, as duas aldeias vão proteger a vida desses “filhos de po semelhante veio também de Haenam, partindo do
paz” com mais cuidado do que protegem seus próprios fi- bentro da aldeia, passando por seu filho recém-adotado, o
lhos. Porque se Biakadon morrer, então o povo de Kamur ilho de paz, até se acharem frente a frente com seus anti-
não estará mais obrigado ao acordo de paz com Haenam. E Jos inimigos, a meio caminho dos dois povoados. Todos
se Mani morrer, será Haenam que estará desobrigado de cum- orriam uns para os outros. Até mesmo o irrequieto Ama
prir o acordo conasco. igora se mostrava sorridente para Huyaham que o insulta-

ESSES SESSIONS
-

ao Es
220 EE >> O Totem da Par manhã - Água Fresca! desafiado 221

ra. O sacrifício de Kaiyo fora mais forte que o orgulho de Depois que Haenam e Kamur concluíram sua histórica
Ama. omemoração, carregando para casa em triunfo seus penho-
Os tambores continuavam em seu ruflar constante, e vá- fes de paz, vivos € alegres, chamei Narai é meus auxiliares
rias pessoas se adiantavam até o outro grupo e trocavam ho estudo da língua, e nos encaminhamos pars minha saleta
presentes de machados, facões, facas, conchas ou colares de lo estudos, e assentei-me para ter com eles uma longa e sé-
presas de animais. Vim a saber depois que aqueles que troca- ja conversa,
vam presentes, trocavam também de nomes, ty
Assim cada homem de Kamur ganhou um nome de Parecia que a configuração geral das coisas começava a
Omar forma. Eu pensara que a cultura sawi se assentava
Haenam para ser adicionado ao seu próprio nome. Daí em
bbre uma única coluna — a completa divinização da vio-
diante, sempre que alguém de Haenam se dirigisse a ele,
Ência com suas terríveis manifestações de traição, caça
teria que chamá-lo pelo nome que lhe viera de Hacnam, in-
5 cabeças humanas e o canibalismo, apoiados, quando
dicando com isto que não mais o considerava um estranho,
Ecessário, pelo inexcrutável compromisso do waness. Sob
mas o acolhia do mesmo modo que acolheria o homem de te ponto de vista, a paz stria inacessível, pois uma ati-
sua aldeia cujo nome ele agora possuía. lide de boa vontade nunca teria crédito num contexto
Pela mesma forma, o povo de Kamur deveria dirigir-se bmo o do tuwi asonai man e do waness. A autodestrui-
aos homens de Haenam pelo seu nome “kamuriano”, aco- o desta cultura violenta só era impedida por uma frag-
lhendo-os como se fossem realmente as pessoas de Kamur mentação em pequenos grupos isolados, separados uns
cujos nomes traziam. Para facilitar a identificação a ambos PS outros.
os lados, os homens que trocavam nomes entre si eram se- À teoria parecia lógica e certa. No entanto, na pré-his-
melhantes no porte e na reputação. Dria os ancestrais dos sawis tinham conseguido o que
te úrccia teoricamente impossível. Haviam encontrado um
Depois que a troca de presentes terminou, uma estranha podo de provar a sinceridade uns dos outros, e estabele-
dança foi iniciada, Primeiramente, os homens de Kamur se mn à paz mesmo sob a terrível ameaça do tuwi asonai
reuniram num grupo bem compacto, enquanto os de Haenam han e do waness. Entre os sawis, qualquer demonstração
giravam ao redor deles formando um círculo fechado. De- * amizade era suspeita, a não ser sob uma condição. Se
pois, os homens de Haenam saltaram para um lado e forma- im homem desse um filho para seus inimigos, então ele
ram seu grupo, enquanto os de Kamur giravam ao seu redor. pderia merecer confiança. Isto, e somente isto, era uma
Por fim-a dança atingiu o seu clímax com uma gritaria esfu- rova de sinceridade que eliminaria qualquer sombra de
ziante. vida.
Batizei esta dança de “você e eu; eu e você”. Ela simbo- E todos os que impunham as mãos sobre o filho que
lizava o mútuo abraço de paz dos dois povoados. Aquela bre dado, estavam se comprometendo a não usar de vio-
luzinha nos porões da minha mente começou a brilhar ncia contra os que o haviam oferecido, nem lançar mão
bw recurso do waness para destruí-lo. Novamente escutei
mais fortemente agora, como se desejando que eu à ou-
ele sininho interior, mas desta vez eu lhe dei atenção.
visse.
BIBLIA
EAR A SA A MO A ER A HA A A
222 of O Totem
da Piz

Entendi a mensagem e soltei uma exclamação de assom-


bro.
Ali estava a chave que eu estivera pedindo a Deus.

Terceira Parte

Um Mundo
ransformado

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DO O DO >
DEZOITO

Silêncio na Casa dos


Homens
“Quando já me aproximava da casa dos homens de
[ienam-Yohwi levando minhas anotações, parei um instante
ra observar algumas crianças sawis que brincavam no rio.
pumas estavam de pé dentro das canoas, e batiam com os
mos na superfície do Kronkel para espirrar água nas ou-
as. Algumas outras estavam a mergulhar no Tumdu sal-
ido dos galhos de um ajuntamento de árvores ahos, seus
brpos esguios e molhados brilhando ao sol e fazendo acro-
cias, suas risadas reverberando pelos cantos, seus mergu-
jos provocando ondas no rio.
Já havia dois meses que desfrutávamos de uma situação
fciftica — o tarop estava dando certo,
Houvera somente uma ocasião em que temêramos que a
iz fosse ser quebrada. Um porco pertencente a um homem
Kamur havia sido morto nas proximidades da aldeia. O
prietário do animal suspeitava que alguém de Haenam
lesse ser o culpado. Encolerizado, ele e alguns amigos
y viam pegado de suas armas e partido em direção ao outro
nvoado, quando, subitamente, Kaiyo interveio.
Sendo ele o homem que recebera de Haenam a criança
CALAR RIU LIBRAS
XXO ESSES
226 EE O Totem da Poz iêncio no Casa dos Homens ga
ag 227

que selaria o acordo de paz, cabia-lhe a responsabilidade, por médio que a própria cultura implantara. O sofrimento de
todos reconhecida, de arbitrar nas demandas que houvesse ivo e Mahaen e das duas mães havia realmente apagado
entre Haenam e Kamur, Acercando-se dos homens que esta as duas povoações toda aquela ânsia de guerra.
vam a ponto de romper o tratado, Kaiyo estendeu os braços, Na verdade, havia duas colunas de sustentação da cultu-
e agarrou o principal deles pelos lobos das orelhas. Pensei Sawi, € não apenas uma. Através dos tempos, a sobrevi-
que o outro fosse reagir violentamente a um tratamento tão ncia daqueles povos havia se apoiado ora numa, ora na
humilhante, mas ele o aceitou. Deteve-se, abaixou 0 arco, € itra, Sua vida em comunidade era como um homem que
passou a ouvir o apelo que Kaiyo lhe fazia. tivesse de pé sobre uma das pernas, e, quando se cansava,
Nesse ínterim, alguém chegou correndo trazendo Mani, judava para a outra.
o garoto de Haenam que a tribo adotara, e colocou-o diante “Havia dois meses que eu estava analisando cada aspecto
de Kaiyo. Este soltou as orelhas do outro, e impôs as mãos sta segunda pilastra, procurando assimilar seu vocabulá-
sobre Mani, dizendo: j abstrato, é preparando uma estratégia. E agora, no mo-
— Tarop tim titindakeden. Apelo em nome da criança que ento em que galgava os degraus da casa dos homens de
nos foi dada para a paz. fenam e Yohwi, senti-me mais uma vez dominado por
E depois prosseguiu: nela estimulante vibração interior que realmente não era
— Se este menino tivesse morrido, então você estaria livre Enas minha.
para fazer o que deseja. Mas ele não morreu: ainda está vivo, º te
cu sou aqui oraendep hobhan — o advogado de Haenam. Vocês Vocês viram como fiquei chocado quando Kaiyo en-
não podem lutar contra Haenam. Meu braço é forte. igou Biakadon a vocês, disse-lhes, estalando vários de-
Depois disto, Kaiyo voltou a agarrar as orelhas do ho 4 alternadamente como fazem os sawis quando estão
mem é ficou a puxá-las. O outro então virou-se e caminhou ISOS.
humildemente para sua casa, seguido pelos amigos. Se as “Quando vi Wumi contorcendo-se na lama por causa de
pessoas ofendidas perseverassem em seu intento, Kaiyo to: à sofrimento, estive a ponto de correr para cá, tomar o
maria seus arcos é os quebraria. À seguir, iria cortar as pon- pino, e devolvê-lo a ela,
tas de quaisquer lanças que tencionassem usar e atirar no Mahaen, Mahor e os outros achavam-se silenciosos, se-
rio as outras armas de que dispusessem. Indo minha linha de raciocínio.
Mas como os implicados haviam voltado para suas casas, Disse a mim mesmo várias vezes: “Ah! se fosse possi-
Kaiyo passara a investigar a possibilidade de alguém de haver paz sem se passar pelo triste transe de perder um
Haenam haver abatido o porco. Por fim, chegou-se à conclu jo”, Mas vocês diziam: “Não existe outro modo.”
são, tanto numa como na outra aldeia, de que o porco fora nclinei-me um pouco para diante e coloquei a mão direi-
morto por um espião de alguma das comunidades adjacen- ispalmada no assoalho de palha de sagúeiro.
tes, com a intenção de trazer malefícios a Kamur, » Vocês tinham razão!
A crise fora superada. O acordo do tarop próvara seu va- Todos os homens que sc achavam naquela casa, tinham
lor. Viva, a criança que simbolizava a paz era, na verdade, os cravados em mim.
um antídoto à glorificação da violência feita pelos sawis, um “Quando parei para meditar no assunto, compreendi que
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228 As O Totem da Pur incio na Casa dos Homens 229

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vocês e seus avós não foram os únicos que descobriram que |
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para haver paz era necessário entregar um filho ao inimigo A A ea de dd


Myao Kodon, aquele Espírito de quem sou mensageiro, já e dia li du , Nº

declarou a mesma coisa, À verdadeira paz nunca será possi id


vel sem que haja esta oferenda de paz, na forma de uma
criança. Nunca!
Por alguma razão, os sawis haviam deixado de lado o cos:
tume de repetir tudo que eu dizia. Agora, isto não lhes pare
cia mais necessário. Já não me consideravam um mero visi-
tante na casa dos homens.
— Myao Kodon deseja que os homens vivam em paz com
ele, e também uns com os outros, e, por isso, resolveu mar
dar uma oferenda de paz, uma criança que iria, de uma vez
por todas, estabelecer esta paz para sempre, e não apenas
por certo período de tempo. Tinha que ser uma pessoa mui
to boa e muito forte. O problema era: quem ele poderia esco:
lher? Entre os filhos dos homens não havia nenhum que
fosse suficientemente bom e forte para se constituir num
tarop eterno.
Fiz uma pausa e examinei seus rostos. A curiosidade de-
les estava se aguçando.
- E quem foi que ele escolheu? perguntou Mahaen as: “— Deus tinha apenas um Filho - como Kaiyo — e deu-o
sando ao fogo um espeto de larva de besouro. im mesmo, exatamente como fez Kaiyo, O filhinho que
Respondi-lhe com outra pergunta, cê entregou, Mahaen, não era como um refugo. Você não
— Quem foi que Kaiyo deu — o filho dele ou o de outro ptendia se livrar dele. Não! Era seu filho querido. Biakadon
homem? ) era um filho amado. Mas o Filho de Deus era ainda
— Ele deu seu próprio filho, foi a resposta, is precioso.
— E você, Mahaen, deu o seu filho, ou o de outra pessoa! Mahaen torceu o nariz como que a dizer: “Eu entendo!”
— Dei o meu, respondeu Mahaen, naturalmente revivendo — fá notei que vocês respeitam muito os conceitos que
a agonia por que passara. es vieram de seus ancestrais. Agora vão ouvir o que Os
- Deus também fez isto, exclamei imediatamente após estrais dos tuans falam sobre o Filho tarop de Deus.
a resposta de Mahaen, e depois olhei para os lados, em Abri a Bíblia, e comecei a lêla em Isaías, traduzindo as
direção à parede, um gesto que significava: “Pensem nis lavras para o idioma sawi:
to!” “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; O
Depois prossegui: Wverno está sobre os seus ombros; € O seu nome será; Ma-

SOSOSISOGSOSES
230 fp O Totem da bis llêncio na Casa dos Homens 6a 231

ravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Prín avagares, para o povo
de Auyu, para Atohwaem, e para vocês
cipe — Tarop — da Paz; para que se aumente o seu governo e aImnmocT

venha paz sem fim.” - E quando você, Kaiyo, entregou Biakadon ao povo de
Depois li do Evangelho de João: Haenam você fez questão de escolher a pessoa a quem dese-
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o j à confiar a vida de seu filho, E escolheu aquele que pensa-
seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pere- a ser o homem certo para isto, Mahor. Mas quando Myao
ça, mas tenha a vida eterna.” Kodon procurou um homem que merecesse receber o seu
Os homens inclinavam-se para diante, espiando o estra- rop, não achou ninguém. Nenhum de nós merecia rece-
nho volume de folhas de papel, a caderneta aberta em mi- her à oferenda de paz de Deus, o seu Filho. Mas será que
nha mão, admirados pela mensagem estar encerrada nelas « vao Kodon disse: “Já que eles são todos indignos, não vou
pela minha habilidade de retirá-la dali, e transmiti-la a eles, jes dar o meu Filho?”
Mahaen olhou atentamente e depois indagou: Aqueles semblantes estavam voltados para mim com uma
— É dele que você tem falado? De Yesus? ixpressão solene, cercados pelas espirais de fumaça que se
- Ele mesmo! repliquei. wolavam dos diversos fogareiros, aguardando a resposta que
— Mas você disse que um amigo dele o traiu. Se Yesus era k lhes daria,
um tarop, traí-lo foi um grande erro. Nós temos uma ex- — Não; ele não agiu assim. O que ele disse foi: “Kwai fidae-
pressão que define tal ato. Chamamos a isto de tarop gaman:. Hakon! Vou dar meu Filho assim mesmo!”
É a pior coisa que alguém pode fazer Depois virei-me novamente para Kaiyo.
— Você está com a razão outra vez, disse, fitando Mahaen — Kaiyo, suponhamos que alguém o advertisse de que, se você
bem nos olhos, Desprezar o Filho tarop de Deus é a pior intregasse Biakadon para o povo de Haenam, eles o despreza-
coisa que se pode fazer. jam e poderiam até matá-lo, você teria lhes dado seu filho?
Comecei a pensar com meus botões. Até aquele momen- — É lógico que não! respondeu ele.
to Judas havia sido um super herói para os sawis. Agora era -— Mas no caso de Yesus, prossegui, Myao Kodon já sabia
o vilão. E antemão que os homens iriam desprezá-lo, e matar o Fi-
— Fale mais, disse Mahaen colocando de lado seu espeto jo que ele lhes mandaria como oferenda de paz.
com as larvas de besouro assadas. Uma expressão de intenso enlevo surgiu nas feições de
ten o, ao perceber qual seria minha próxima declaração.
Algumas horas depois, eu repetia a mesma história na “— Mas Myao Kodon nos ama tanto que...
casa dos homens de Kamur. “A casa dos homens estava em profundo silêncio.
— Quando você, Kaivo, entregou Biakadon, seu intento — ,.. deu seu único Filho, de bom grado, mesmo sabendo
era derramar água fria em apenas um povoado: Haenam. ue os homens o rejeitariam e o matariam. Mas, na verdade,
Mahaen entregou Mani para vocês, com o intuito de estabe- ela sabedoria de Myao Kodon, as pessoas que derramaram
lecer a paz com uma aldeia apenas, a de vocês. Mas o Yesus sangue de Yesus, acabaram criando uma raendep, um meio
é um Tarvp para todos os homens, e não somente para uma “expiação, para aplacar a ira de Deus contra os homens,
aldeia e não apenas para os tuans, mas para os asmates, os — Eles o mataram por maldade, mas Myao Kodon era tão
GAGARIN
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232 EEE O Totem da Par Silêncio na Casa dos Homens 233

maravilhoso, tão inteligente, que nem mesmo o pior dos ho-


mens poderia frustrar seu plano. Tudo o que este homem fi-
zesse só serviria para fortalecê-lo ainda mais. E se não fosse
assim, não haveria esperanças para nenhum de nós.
Eu já estava me preparando para narrar a vitoriosa ressur
reição daquele Filho que se tornaria a oferenda de paz, quan
do fui interrompido por um angustioso gemido de Hato. A
expressão que havia no olhar daquele patriarca espantou-me
— era de uma dor profunda.
Amio, o filho dele, explicou:
— Pouco tempo antes de você chegar, meu pai entregou
um filho aos kayagares como oferenda de paz. Eles levaram
a criancinha, mas não deram outra para nós.
O moço pestanejou, e prosseguiu:
— Depois ficamos sabendo que eles mataram a criancinha
e a devoraram,
Soltei uma exclamação de horror. Estendi o braço e to
quei a mão de Hato, sentindo todo o meu ser unir-se ao dele
numa muda compreensão de sua angústia.
De dentro daquele invólucro de tristeza, ouvi a voz de
Amio que continuava sua explanação.
— Descobri depois que os kayagares não selam a paz com Ainda estarrecido com este complexo de novas revelações,
a imposição de mãos no tarop vivo, como nós fazemos, mas nedei-me em silêncio, pensativo, quando a voz de Hato
sim comendo a carne da criança tarop. Deste modo, mesmo hegou até mim, num tom suave.
que a criança morra acidentalmente, isto não ocasiona o fim - Myao Kodon nohop kahane savos kysir nide!
do período de paz, pois ela ainda estará vivendo no interior Meus olhos encheram-se de lágrimas, ao ouvir aquilo. Ele
de cada um deles! lissera:
— O povo de Haenam e Yohwi nos repreendeu, dizendo: “Myao Kodon deve ter ficado triste como eu fiquei.”
“Vocês de Kamur não compreendem bem os kayagares; só tee)
conhecem o povo de Auyu, Se tivéssemos sabido que vocês * No dia seguinte, entreguei a mesma mensagem na casa
tencionavam dar uma criança tarop para os kayagares, nós is homens da aldeia de Seremeet, que ficava a alguns qui-
os teríamos avisado.” pmetros rio abaixo, e vi outras figuras embaçadas pela fu-
— E foi por isto que quase tivemos uma briga com os haça inclinarem-se para a frente, a escutarem atentamente.
kayagares no dia em que você chegou aqui para construir à = Nocaso de uma criança sawi que é entregue como tarop,
sua casa, acrescentou alguém. sse-lhes, vocês a recebem corporalmente, em suas casas, €

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234 fino O Totem da Paz Silêncio na Casa dos Homens dae 235

ela se torna dependente de seus cuidados e atenções. Mas “sobre ele, pela fé, e seu Espírito virá habitar em seus cora-
com o Tarop de Deus não sucede assim. Ninguém o recebe ções, para mantê-los sempre no caminho da paz.
corporalmente. Fiz uma pausa para buscar novo contato com o Espírito
— Então como é que a gente o recebe? indagou um ouvin- Santo, antes de continuar,
te atento de nome Morkay. - Se as crianças tarop de vocês, que eram fracas, pude-
— Recebemos o Filho de Myao Kodon, acolhendo seu Es- “ram conseguir-lhes a paz, pensem em como será maior a paz
pírito em nosso coração, respondi. Então ele passa a ser nos- que o perfeito Tarop de Deus lhes trará.
so protetor e provedor. E quando o Espírito de Yesus habita Foi então que ouvi novamente aquela mesma exclama-
em nosso coração, Myao Kodon também nos dá seu nome. ção suave, anasalada, que escutara no dia anterior, ao térmi-
Realizamos o hauwat, a troca de nomes, com o Deus dos no das reuniões de Haenam e Kamur. Os sawis a denomi-
céus e da terra, nam yukop kekedon yah motaken. Ela exprime uma pro-
— Ele associa nosso nome com o de seu Filho, e nos acei- f nda preocupação. Ouvia os pequenos estalidos vocálicos
ta em honra de seu Filho. Depois, ele passa a habitar em nós tomo que espocando por toda a sala.
e nós nele, assim como os homens se misturaram uns com Um homem de nome Sieri expressou em palavras o pen-
os outros na dança da paz. Samento geral.
Um murmúrio indistinto de conversa fez-se ouvir em * - Sin bohos! É verdade! Nossas crianças tarop não são
ambas as alas que ficavam nos lados do corredor central. urtes. Certa vez conheci um homem que deu um filho tarop
Quando o rumor começou a decrescer gradualmente, ergui- Ros inimigos. Aguardou alguns dias e depois arriscou-se a
me a fim de fazer a aplicação da analogia, como havia feito azer uma visita de cordialidade ao povoado ao qual entrega-
nas reuniões de Kamur e Haenam. Todos os olhos estavam o filho. Mas quando se aproximava da casa dos homens,
fixos em mim, na expectativa do que eu iria dizer, quando lguns guerreiros saíram dela rapidamente, ameaçando-o
me pus de pé ao lado de uma espécie de estrado, onde havia om suas lanças.
uma pilha de lenha para secar. Então ele perguntou:
- Durante um número incalculável de luas, seus pais e — Por que estão me atacando? Eu lhes dei meu filho.
avós, para conseguir a paz, deram seus filhos uns aos outros, E eles responderam:
sem saber que Myao Kodon já havia providenciado uma per- — Você nos deu seu filho, mas ele morreu ontem à noite.
feita oferenda de paz para todos os homens — seu próprio D que faz aqui?
Filho. E como os filhos de vocês não eram fortes, a paz dura- E a seguir o mataram.
va pouco tempo. As crianças morriam, e aí a guerra recome- “A narrativa suscitou uma nova onda, ainda mais ruidosa,
cava. é estalidos yukop kekedon yah motaken. Alguns coçavam
— Foi por essa razão que Myao Kodon enviou-me aqui: à cotovelo, assentados nas esteiras de palha, como que a in-
para falar-lhes a respeito desta oferenda de paz que é forte - ngar a si mesmos: “O que devemos fazer?”
o tarop que foi realizado de uma vez por todas, Yesus. De “Pela expressão de seus semblantes compreendi que não
agora em diante, as mães sawis poderão conservar seus filh:- ivia apenas descoberto um perfeito paralelo entre sua cul-
nhos - Deus deu o seu Filho a vocês, Imponham as mãos ira e o evangelho, mas também havia tocado no ponto

- Edi Ea Ea Eira Epa Pra Eno a Ea E Pa Fa 4 SONS NNI


236 ff— O Totem da Piz

nevrálgico dela— a evidente insuficiência da oferenda de paz


dos sawis, E eles todos pestanejavam, enquanto eu, delibera
damente, continuava a tocar naquele ponto sensivel.
Sabiam que aquele conceito da criança oferenda de paz
representava o máximo que podiam fazer por si próprios
DEZENOVE
Agora, porém, acabavam de descobrir - como eu descobrira
havia nove anos — que o máximo que o homem pode faze:
ainda não é suficiente. Estavam chegando à compreensão de
que o verdadeiro eu de cada um de nós está nos esperando
no Filho de Deus.
No Meio dos
E se não encontramos nosso verdadeiro ser ali então o
perdemos. Para sempre!
Sentei-me novamente entre eles e comecei a falar-lhes
Crocodilos
acerca da mudança de comportamento que se seguia ao re
cebimento de uma criança como oferenda de paz. Estava tra-
cando outra linha paralela entre sua cultura e 0 evangelho - Durante os meses de março, abril e maio de 1963, conti-
a crença comum no arrependimento. Nuei a ampliar mais a mensagem acerca da oferenda de paz de
Mais uma vez houve silêncio profundo na casa dos ho Deus, nas casas dos homens de inúmeras aldeias sawis, € a
mens. te nvidá-los, sem pressões, a que aceitassem o padrão de paz
que Deus oferecia, recebendo-o no coração. Kami, Mahaen,
Mato e alguns outros escutavam atentamente, e até com certo
impenho, mas todas as vezes que chegavam no limiar de uma
decisão, recuavam.
- Oprincipal obstáculo era o temor de uma reação desfavo-
vel por parte dos demônios. Como iriam os espíritos rece-
ber este abandono radical das tradições ancestrais que o tuan
lhes propunha? Se os demônios reagissem contrariamente —
eles criam que certamente o fariam — será que o tuan e seu
[Deus protegeriam de infortúnios aqueles que cressem, jun-
mente com suas esposas e filhos? Os argumentos para que
veitassem a oferenda de paz que Deus havia feito na pessoa
le seu Filho eram fortes e bem razoáveis, e, além disso, qua-
le todos agora compreendiam bem por que o tuan e sua es-
jOsa tinham vindo morar entre eles - mas, na prática, o que
hes adviria de tudo isto?

FSBSPSGISDGNDGNDLGNDIER DOTE
238 fo 3 O Totem da Paz No Meio dos Crocodilos «EEE 239
Por minha vez, eu estava me indagando o que mais seria “sofrer mudanças drásticas. Logo, logo, recenscadores iriam
necessário para se conquistar aqueles homens e suas famílias visitar todas as aldeias que pudessem encontrar. Patrulhas
para Jesus. Eu já apresentara o Senhor através de uma analo- policiais iriam gradualmente fazer com que os nativos cum-
gia da redenção retirada de sua própria cultura. Já havia apli- issem a lei. Professores subvencionados pelo governo abri-
cado a lição que Deus mesmo providenciara, e, ao fazê-lo, escolas públicas, com a implantação do idioma indo-
havia ido ao encontro de sua necessidade intelectual de en- Nésio. A procura da madeira de lei e de outros valiosos tipos
tender a mensagem do evangelho, Já colocara diante deles os de vegetação aumentaria, Em algumas áreas, a caça ao cro-
elementos básicos da fé. No entanto, ainda faltava alguma Codilo seria intensificada — até quase ao ponto de provocar
coisa que precipitasse sua entrega total ao Senhor. 2 extinção — por causa de sua valiosa pele,
Que outros argumentos persuasivos poderia lhes apre- Companhias ocidentais de prospecção de petróleo e co-
sentar? Mal sabia eu que Deus ainda possuía em reserva bre iriam, de um dia para o outro, instalar inúmeras bases
outras formas mais fortes de persuasão para Os sawis, e na selva primitiva. Muito breve, o silvo das cigarras e os
não calculava o quanto nos custaria ser agentes desta per- piados das aves-do-paraíso, em alguns lugares, seriam so-
suasão. brepujados pelo ronco dos geradores a diesel, pelo rumor in-
try lermitente dos motores de helicópteros e pelo estouro de
Em maio de 1963, o governo holandês passou o controle Finamites atirando pedreiras para os céus.
da Nova Guiné Holandesa para a Organização das Nações E o que seria mais significat ivo seriam abertas as
ainda;
Unidas, cedendo à Indonésia a soberania do governo, o que Omportas da migração em massa, para pessoas provenientes
se efetivaria oito meses mais tarde. Mas não seria senão al- le ilhas superpopulosas como Java, Sumatra e Celebes, e, den-
guns anos depois que os sawis e outras tribos semelhantes ro de um período equivalente ao de uma geração, os sawis,
teriam conhecimento do impacto abalador que este evento Ssim como os outros oitocentos mil habitantes da Nova
político iria ter em seu futuro. uiné, se tornariam a minoria populacional em sua própria
De um modo geral, o programa do governo holandês quan- ira. Estas eram apenas algumas das transformações de grande
to à ocupação fora apenas estabelecer alguns postos bem dis- to que ameaçavam os horizontes da selva em 1963 — trans-
tanciados entre si, deixando entre um e outro imensas áreas brmações estas que na certa iriam lançar os sawis e outras
de selva, praticamente intactas e sem supervisão. Foi devido Fibos igualmente despreparadas num estado de grave
h
a esta linha de ação, que incentivava um mínimo de desen- sequilíbrio cultural, apatia, e até à extinção, a menos que...
ESC

volvimento na região, que tribos como os sawis foram deixa- “À menos que nós, os primeiros agentes dessa transfor-
das à vontade até por volta do início da década de sessenta. lação, que haviam passado a residir entre eles, pudéssemos
As vastas áreas que se encontravam sem supervisão só eram indicioná-los para sobreviverem no mundo moderno. Para
visitadas ocasionalmente por alguns patrulheiros, explora- inseguir isto, precisávamos transmitir-lhes não somente à
dores, cientistas, mineradores ou caçadores, que, mesmo perança cristã com respeito à vida eterna, mas também
então, quase nada tiravam delas, e alteravam bem pouco de mn código de ética que fosse suficientemente rígido para
sua configuração geral. irvir-lhes de apoio durante esta conturbada transição da
Sob o controle da Indonésia, porém, essa região viria a ade da pedra para 0 século vinte.
“A, A, a a

PLS LAS SAS S SILAS LESS


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A IRIS PAGAS
240 => O Totem da Paz No Meio dos Crocadilos «fo 241

E para ser bem compreendida, esta ética devia estar de tam a vigilância. No dia vinte de maio, um bom número
algum modo associada à sua cultura atual, Também devia deles - homens, mulheres e crianças — estavam apanhan-
prepará-los para distinguirem o bem do mal, em contextos do camarões num dos atoleiros à margem do Kronkel,
novos & estranhos, e motivá-los a escolher o bem, a fim de quando de repente viram o matagal se mover e surgir à
assegurar seu bem-estar pessoal, E para permanecer, ela te- gua frente um bando de sawis armados, Somente um ho-
ria que ser gerada por uma inabalável confiança no imutável! mem escapou, remando desesperadamente corrente abai-
amor de Deus e sua justiça. ko, com um pedaço de lança enterrado às costas. Quanto
Eu estava plenamente convicto - da planta dos pés ao los outros, pouco depois, suas cabeças estavam espetadas
alto da cabeça — de que a Bíblia que cu tinha em mãos era à ha ponta dos arcos, e estes se achavam fincados no chão,
provedor indicado por Deus para implantar este código de unto à casa dos homens da aldeia de Mauro, formando
ética entre eles, E, como tal, era a chave para o bem-estar do ima fileira, de frente para a carne deles que fritava nos
povo sawi, tanto neste mundo como no vindouro. Mas, para bgões embaixo.
operar eficientemente, ela precisava conquistar um elemen- Temendo uma represália em massa por parte dos
to essencial, que apesar de todas as nossas orações, palavras imates,
ama o povo de Mauro mudou-se mais para o interior
de persuasão e esforços, ainda não conquistáramos — uma à selva, perto dos pântanos de sagúeiros. Também a aldeia
reação favorável por parte deles. E Seremeet se mudou receando que, não encontrando
E o tempo de que dispúnhamos para realizar este traba- Nauro, os asmates prosseguissem rio acima, e se lanças-
lho de condicionamento cultural dos sawis estava se escoan- em contra eles.
do rapidamente. ' Haenam, Kamur e Yohwi também consideraram a hipó-
Nesse ínterim, enquanto os diplomatas de Nova Torque, s de abandonarem sua locação à margem do rio, mas de-
Haia e Jakarta assinavam seus documentos rebuscados, a bis resolveram permanecer, a fim de nos proteger
caçada de cabeças e o canibalismo persistiam ao longo do rio = Com os três povoados unidos, diziam Hato e Kigo, con-
Kronkel. Alguns meses antes, vários asmates do baixo mos com guerreiros em número suficiente para resistir aos
Kronkel haviam degolado e devorado sete jovens sawis da mates, mesmo que nos ataquem com um grande grupo.
aldeia de Mauro. Tempos depois, em maio de 63, os asmatcs E depois Hato continuou em tom solene:
tentaram evitar a represália que os sawis certamente lhes — Tuan e nyonya, abandonamos a prática do canibalismo
inflingiriam, enviando ao povo de Mauro vários presentes Eaça de cabeças por causa de ambos, mas o povo que nos
pacíficos, como reparação pelo mal. Estes aceitaram as dádi rc à... ele girou o arco num ângulo de 180 graus, indicando
vas, e prometeram manter a paz, mas na realidade, conside: horizonte.
ravam aquele pagamento como não tendo valor algum. Al- '— Eu sei, respondi. Sei também que se eu e Carol sairmos
gumas facas, colares de presas de cães e outros adornos não qui vocês voltarão imediatamente ao canibalismo e à caça
tinham o mesmo valor que uma criança oferecida pela paz, « Cabeças de seus inimigos, pois ainda não pediram ao Tarop
de modo algum seriam pagamento suficiente para compen eus para dar-lhes um coração novo.
sar a perda de sete rapazes. , Hato meditou por uns instantes, e depois comentou:
Pensando haver resolvido a questão, os asmates relaxa- Sin bohos komai! Acho que tem razão.

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= O Totem da Paz No Meio dos Grocodilas ce o
Em junho daquele ano, viajei com Carol e Stephen para “minutos ele se acostumará e relaxará a tensão, como fize-
Kambaga, um posto situado no planalto central, de clima ram Hadi e Er naquela primeira vez que viajaram na lancha
mais ameno, para aguardarmos o nascimento de nosso se E cneeer?, pensei.
gundo filho. Ele nasceu no dia 21 de junho, sob a assistência Dez minutos depois, estávamos passando por uma cur-
do Dr. Jack Lang, da RBMU. Demos-lhe o nome de Shannon va, acerca de três quilômetros de Kamur, onde o rio era cer-
Douglas. tado de floresta nos dois lados, quando, de repente, Mavo
te Dlhou para trás e começou a acenar freneticamente para que
No dia 1.º de julho voltamos para junto dos sawis, tra gu me desviasse para um lado. Devia haver um tronco flutu-
zendo nosso encantador bebe, e mais uma hóspede. Winifred indo à nossa frente, pensei, e imediatamente dei uma gui-
Frost, nossa colega do Canadá, resolvera passar alguns dias lada um pouco brusca para a esquerda. A canoa começou a
de suas férias conosco, para observar o processo de estabele firar. À quilha que eu pensara nos iria dar maior estabilida-
cimento da obra numa nova tribo. A esta altura, já havia- le parecia não estar adiantando nada.
mos adquirido um motor de popa de dezoito cavalos, e uma Tente; recuperar o equilíbrio, girando novamente para a
canoa de cerca de seis metros de comprimento. Fora confec- feita, mas era tarde. Em um segundo — um instante de
cionada por Hato, Maum e Kani, sob nossa supervisão, € Rorror que me pareceu eterno — vi Carol agarrada ao bebê de
possuía duas características que as embarcações dos sawis feze dias, Shannon, afundar na água e desaparecer de vista.
jamais haviam conhecido: uma quilha especial para aumen- Pi Stephen caindo nas profundezas escuras. Winifred e Mavo
tar sua estabilidade, e um suporte para o motor. linda se inclinavam para o outro lado da canoa, num esfor-
No dia 4 de julho, à tardinha, preparamos um lanche e O inútil, quando esta virou sobre nós.
partimos com Winifred e as duas crianças para um passcio Então, eu também caí na água, ainda seguran o cabo
dodo
de barco, rio acima, saindo de Kamunr, e levando conosco Eme do motor. Escutava indistintamente o rugido abafado do
nosso ajudante sawi, um rapazinho de nome Mavo, para nos hotor ainda pulsando debaixo da água e o zumbido da hélice
guiar e auxiliar quando fosse preciso. Logo que nos afasta é girava perigosamente perto de meu ombro. Depois o motor
mos da margem, eu disse a Mavo para se assentar bem ria arou, e nos encontramos imersos em silêncio, flutuando no
frente, na proa, e procurar avistar os troncos submersos que Entro do Kronkel, um rio infestado de crocodilos.
porventura se achassem em nossa rota. Winifred e Mavo emergiram quase no mesmo instante e
— Mavo, se vir alguma tora de árvore, acene os braços é agarraram à quilha da canoa emborcada. Temendo os cro-
para mim, disse-lhe aumentando a velocidade da embarca: bdlilos, Mavo saltou imediatamente para o topo da embar-
ção para doze nós. ação, e se assentou ali, estático, Carol, Stephen e Shannon
Ele assentiu com a cabeça, mas logo que o zumbido do NO estavam à vista.
motor aumentou, vi seus olhos se arregalarem de medo. Pura — Deus, ajude-me! clamei, orando desesperadamente, Te-
ele, nós estávamos voando a uma velocidade perigosa sobr ho que encontrá-los antes que a correnteza nos afaste uns
a superfície lisa e escura do rio. Doze nós era três vezes 4 js outros.
velocidade a que Mavo estava acostumado na água. Agar E depois um segundo pensamento acudiu-me à mente:
rou-se às bordas da canoa, nervosamente. “Dentro de alguns « € antes dos crocodilos.”

SEOSSSOSOSOS: OSDOSCSSTESES
244 => O Totem da Par
No Meio dos Grocodilos «ADESE = 245

Compreendi que não adiantaria tentar enxergá-los sob a - Mavo, está vendo Stephen daí? gritei-lhe sentindo mi-
água, pois a coloração escura das algas do Kronkel não nos ha aflição recrudescer.
permitia mais que uns sessenta centímetros de visibilidade. * Minha pergunta pareceu despertá-lo de seu estupor. Cor-
Por isso, nadei para o ponto onde vira Carol submergir e eu os olhos pela água; examinando-a detidamente, e depois
comecei a tatear em todas as direções, debaixo da água, mo pontou numa certa direção.
vendo braços € pernas, para ver se a tocava de algum modo. * Com renovada esperança, nadei na direção indicada, e vi
Súbito, o rostinho de Shannon surgiu à superfície bem à b que Mavo havia divisado —uma pequena mancha alourada,
minha frente. Carol devia tê-lo atirado para cima para que ue mal se via à flor da água turva do Kronkel. Um segundo
eu o visse, pensei, e, rapidamente, agarrei-o e entreguei-o, lepois, Stephen estava em meus braços. Naturalmente, a
com seu cobertorzinho gotejante, aos braços de Mavo. No sta altura, ele já devia ter engolido água, pensei. Enganara-
mesmo instante, Shannon começou a chorar alto. ne. Deus, em sua misericórdia, dera-lhe o senso de não ten-
— Ótimo! disse comigo mesmo. Isto significa que ele não ar respirar dentro dágua. Logo que o trouxe para fora, ele
sorveu água para os pulmões. E
SD
-
O profundamente e começou a chorar, Momentos de-
No momento em que eu girava para procurar Stephen e
]

úis, Mavo tinha outra criança nos braços.


Carol esta subiu à superfície. Agarrei-a pelo pulso, e arras- Agora, teria que tratar de levar todos para a terra. Devia-
tei-a para junto da canoa. nos abandonar a canoa e nadar para a margem com as duas
Agora Stephen. Examinei rapidamente a face das águas, lancinhas? Avistei nosso balde de plástico, onde havíamos
procurando algum sinal dele, mas nada, nem mesmo uma blocado o lanche, flutuando ali perto. Poderíamos tentar
mãozinha aparecia à flor dágua. svaziar a embarcação, utilizando-o, mas isto levaria pelo
Via apenas os reflexos de luz das ondas que criáramos nenos uns dez minutos. Na certa nem os crocodilos nem as
com nossa movimentação. E abaixo da água apenas escuri- normes serpentes aquáticas que abundavam no Kronkel nos
dão. ariam tempo para isso.
Em algum ponto daquela massa escura, meu filhinho de O problema era que se um dos crocodilos interceptasse
ano e meio estava se debatendo, talvez já afundando em di. mn de nós enquanto nadávamos para a margem, não tería-
reção aos lodaçais sem fim do leito do Kronkel, sete metros os nada em que nos segurar para impedir que ele nos ar-
abaixo. Lutando contra ondas de desespero que me assalta- istasse para o fundo. E se o animal fosse um dos maiores,
vam, estendi novamente braços e pernas, tentando cobrir à ria impossível salvar-nos mesmo que nos agarrássemos à
maior espaço possível. Não encontrei nada. noa.
— Talvez esteja preso sob a canoa. Pai do céu, conserve Os * Se ao menos houvesse por ali alguém com uma canoa!
crocodilos afastados. buco provável, pensei; lembrando -me de que dentro de uma
De repente, ocorreu-me a idéia de que Mavo, do lugar bra a noite iria cair, e ninguém iria estar longe da aldeia
onde se encontrava no alto da embarcação poderia enxergar Este momento,
melhor do que eu, que tinha contra mim os reflexos de luz = Deus, ajude-nos! gritei novamente, de todo o coração.
na água. Isto, se Stephen ainda se encontrasse a menos de
Foi então que ouvimos o ruído de remadas vigorosas, a-
um metro da tona. rca de uns duzentos metros de nós, a canoa negra de um
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2dá = — me O Totem
da Paz No Meio dos Crocodilos ada = 247

sawi emergiu da embocadura de um pequeno afluente. Nos- fias consegiiências entre os sawis, e geralmente 0 responsá-
sos olhos divisavam, aos poucos, duas figuras na canoa - vel era punido com recriminações amargas e até mesmo der-
Taeri, o pai de Mavo, e a irmãzinha deste, Aray. fimamento de sangue.
— Depressa, Taeri, gritou Mavo, procurando ser ouvido Mavo estava em dificuldades e sabia disto. Apavorado,
acima do choro dos meninos. ele se encolhia diante de Hato e dos outros percebendo que a
E o velho Taeri já estava quase quebrando o remo. iva deles aumentava a cada momento,
Um minuto depois, paravam junto de nós, brecando a Subitamente, Hato virou-se para mim tendo nas mãos
barca com os longos remos de madeira. Ajudaram Carol a um longo pedaço de cipó grosso.
subir para a estreita embarcação. Logo que ela se acomodou * — Tuan, disse ele. Diga apenas uma palavra, e eu o chico-
no barco de Taeri, Mavo passou-lhe os dois garotos. cio com este pedaço de cipó.
Percebendo que a canoa era muito estreita, Winifred pre- Senti que ele esperava uma plena aquiescência de mi-
feriu nadar até a margem, do que se arriscar a um segundo ilha parte. Carol e Winifred encaminhavam-se para casa
acidente, Taeri ia remando a seu lado, pronto a utilizar a bom as crianças, Passei por Hato e coloquei o braço nos
aguçada ponta superior de seu remo se algum crocodilo re- pmbros trêmulos de Mavo. Olhando para o velho líder
solvesse atacá-la, jretamente em seus olhos, disse com voz calma, perante
Enquanto se dirigiam para lá, cu e Mavo viramos nossa pdos.
canoa, e começamos a esvaziá-la utilizando o balde de plás- | — Nenhum de vocês erguerá um dedo contra meu amigo
tico e as mãos em concha, Notei que o rapaz, vez por outra, Mavo. Sem sua ajuda, eu teria perdido um de meus filhos no
me lançava olhares aflitivos. jo. Enquanto eu viver, Mavo será para mim como um filho
Remando contra a corrente, chegamos em casa pouco nuito querido.
antes do escurecer, tremendo de frio por causa das roupas A expressão carrancuda do semblante de Hato transfor-
ensopadas, e nervosos pela lembrança da terrível tragédia hou-se completamente. Os outros sawis estavam escutan-
que quase nos ocorrera. O povo das aldeias se enfileirou na lo em silêncio, num espanto mudo.
praia, ansioso para nos indagar acerca do que acontecera. “= Em vez de culpar Mavo, vamos juntos agradecer a Myao
Logo que saltamos em terra, passamos a narzar-lhes o ocor- údon por nos ter salvo desta tragédia.
rido. Ao fazê-lo procurei deixar bem claro que a culpa do Primeiramente, Hato abaixou o chicote de cipó, e de-
acidente era toda minha. Dis inclinou a cabeça, Os outros seguiram seu exemplo, e
Mas ninguém deu atenção. Todos os homens presentes icaram a ouvir as palavras com que expressei meu agrade-
voltaram-se para o pobre Mavo, e passaram a repreendê-lo « imento ao Senhor, em sua língua, Quando abri os olhos,
a ameaçá-lo por ter sido tão descuidado com o tuan e sua Mavo me fitava intensamente, os olhos marejados de lágri-
família. iq

Foi então que compreendi por que Mavo estivera tão te “Depois, ajudou-me a retirar da canoa o motor alagado e
meroso logo após o acidente, Como uma canoa virada signi- Wrregá-lo para casa. Teríamos que trabalhar muito para
ficava a perda de valiosos machados, facções e facas, quando blocá-lo novamente em funcionamento.
não de vidas humanas isto era considerado um crime de sé- tee
PGR APLBA:
SENSE
Do O Totem da Paz O Meio dos Crocodilos =
No domingo seguinte, falei a um grande grupo de sawis e Naquela mesma noite, após haver enxugado e guardado a
de atohwaens reunidos ali, entregando-lhes uma mensagem tima peça de louça do jantar, Mavo parou junto a mim,
intitulada: “Cristo carregou nossos pecados.” Após a reunião, fitando-me em silêncio, esperando que eu notasse o apelo
um alto jovem atohwaem de nome Yodai aproximou-se de que havia em seu olhar. Instantes depois, ele também se di-
mim. Tendo domínio do idioma sawi, ele estivera ouvindo o figia para casa com a mesma alegria inundando todo o seu
evangelho interessadamente havia vários meses. ser. Abrira-se uma fenda naquela primeira coluna.
Muitas vezes ficava em nossa varanda um longo tempo, A segunda coluna, agora, tinha predominância.
observando-nos silenciosamente, vendo-nos trabalhar, fazer
as refeições, orar, conversar e brincar com as crianças. Vez
por outra, ele nos ajudava entretendo Stephen, ou levando-o
a passear. Ele se comovera muitissimo, quando soubera do
acidente que sofrêramos no rio.
Olhando-me, falou de modo simples e calmo:
— Já me sinto preparado para confiar neste Jesus que veio
de Deus.
Levei-o à parte e ensinei-lhe como orar. Fiquei alegre ao
notar que começou a orar em saw, pois queria ouvi-lo. Mas
após as primeiras sentenças, ele parou é pediu-me permis-
são para terminar a petição em sua própria língua, pois que-
ria expressar seus sentimentos a Deus com mais liberdade.
— Naturalmente, Yodai, respondi.
Imediatamente, brotou de seus lábios uma torrente de
sons em atohwaem. Eram palavras completamente minteli-
gíveis para mim, mas o brilho que havia em seu rosto quan-
do encerrou, revelou-me que Deus compreendera o que ele
dissera, e aceitara tudo. Deleitando-nos na presença do Se-
nhor, partimos para casa.
Mavo estivera nos observando de uma certa distância, gi-
rando constantemente uma varinha que tinha nas mãos.
A alegria que Yodai demonstrava nas feições despertou
em seu interior um estranho sentimento de inveja. De al-
gum modo, ele compreendeu instintivamente que aquela
mesma alegria o aguardava. Chegara a sonhar com ela. Ago-
ra, ele a desejava, não importavam as consequências, quais-
quer que fossem elas,

SEOSSSSSSSSSESS SESNSSISSNISNISGSTES
Meu Fígado Estremece GG Ed 251

todos os sawis, de nunca pensar, dizer, comer, beber e nem


tentar fazer nada que não houvesse sido previamente san-
gionado pelos ancestrais. Quem assim agisse, ganharia o
VINTE ipíteto de baidam — tolo. Alguns já o haviam tachado de
baidam, quando, juntamente com Kigo e Numu, resolve-
ficar a postos e enfrentar os barcos holandeses, três
nnos atrás.

Meu Fígado Mas a decisão que iria anunciar agora, naquela casa dos
homens, parecia-lhe muito mais ousada. Se eles o haviam
ham: do de baidam quando se dispusera a um encontro com

Estremece
à desconhecido, o que era um fato de aspecto meramente
Ísico, quanto mais agora.
— Suas palavras fizeram meu fígado estremecer [Você des-
sertou um anseio dentro de mim), disse ele em voz baixa,
has resoluta.
Entretanto, Yodai e Mavo eram bem jovens, e, de modo “— Myao Kodon fidasir Tarop Tim fasi fofadivi! continuou
algum, poderiam ser considerados homens importantes de tom a voz embargada numa mistura de receio e propósito
suas respectivas tribos. E para que aquela cultura fosse trans- lefinido.
formada, fazia-se necessário que os patriarcas também acei- * Eu estivera imaginando como séria que um chefe sawi
tassem o evangelho. Isto aconteceu na casa dos homens de fla se expressar quando dissesse aquilo. Agora já sabia, pois
Kamur, algumas semanas depois. tato havia dito: “Quero a oferenda de paz de Deus.” E o
Eu terminara de exaltar uma vez o Filho de Deus como om de suas palavras falava ga! ga! aos meus ouvidos.
oferenda de paz a nós, e estava pedindo, em um tom de voz Acerquei-me dele e coloquei a mão em seu ombro. Ele
bem trangúilo, a qualquer um que desejasse a paz de Deus, baixou os braços, e parecia estranhamente desligado de mim
que o recebesse em seu coração, quando... dos outros homens assentados ao redor, que nos fitavam
— Tuan Don! dosos. Seu olhar se fixou num ponto às minhas costas,
Virei-me para 0 lado de onde viera a voz. Hato pusera-sc radiando uma nova e maravilhosa luz. Não havia dúvida.
de pé, e fitava-me em cheio, os pés bem firmados no assoalho ira a alegria espiritual.
de palma de sagúeiro. Seus braços musculosos cruzados bem — Ele entrou em seu coração? sussurrei.
no alto do peito, à maneira de um chefe. Seu tórax subia « — Ota es! Ele entrou! respondeu, e depois acrescentou:
descia, arfando pela emoção, e alguns músculos faciais se us av! É Jesus!
contratam. Via seu único olho brilhar como carvão em bra- Afastei-me um pouco de Hato e vi que os olhos de todos
sa, através da fumaça que enchia o aposento. às Outros sawis presentes naquela sala estavam fixos em mim.
Desde a infância, a formação recebida de parentes « Pompreendi que não precisava explicar-lhes o que se passa-
amigos havia instilado nele o propósito, partilhado por à, Eles também sentiam a gloriosa presença da Pessoa que
FSSGGE
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252 FER O Totem da Paz
Meu Figado Estremece <efmafidiã= 253

entrara no coração de seu chefe. Alguns começaram a coçar passamos a doutriná-los quase que diariamente, sempre que
os cotovelos. Outros sé remexiam incomodados. estavam na aldeia.
Daí em diante, as coisas melhorariam ou piorariam; mas Certo dia perguntei a Hato.
nada iria continuar na mesma. - O que fez você tomar a decisão de aceitar o Tarop de
Deus?
tres)
Para os hebreus, ele era o Cordeiro de Deus; para os gre- E ele respondeu:
gos, o Logos; mas para Os sawis era o Tarop Tim Kodon — a — Quando vi que o Tarop de Deus lhe concedeu paz até
perfeita oferenda de paz, o perfeito cumprimento daquela po momento em que seus filhos quase se afogaram, compre-
analogia da redenção. Era como se essa analogia fosse uma endi que tudo que você dissera a respeito dele devia ser ver-
bomba-relógio que durante séculos estivera a pulsar naquela dade. Concluí que ele poderia cuidar de nós também.
região — e agora atingira o momento de detonação, com a Agora os colegas e amigos de Hato, Yodai e Mavo, das
pregação do evangelho. Dali em diante, cada sawi que dei- Suas respectivas aldeias e de todas as outras das cercanias,
xasse de aceitar a Cristo não estaria simplesmente se opon- Estavam a observá-los cuidadosamente, aguardando, como
do a uma filosofia alheia ao seu modo de vida, mas estaria que em suspense, para ver se a reação dos espíritos iria ser
rejeitando a pessoa em quem o mais elevado conceito ideo- mais forte do que os três pioneiros calculavam. Quanto à
lógico de sua própria cultura tomava forma palpável. conversão destes outros sawis, seria necessário um processo
Corri para casa radiante, e procurei Carol, Contei-lhe a de persuasão bem maior, e eu tremia só de pensar o que
respeito da decisão de Hato, e ela respondeu: precisaria acontecer conosco para que atingíssemos este ní-
— Kimi, a filha dele, também orou comigo hoje de ma- vel de persuasão.
nhã. Contou-me que seu pai lhe dissera que queria a oferenda E eu tinha razão de tremer.
de paz de Deus, e ela resolveu recebê-la também.
Abracei Carol, e juntos começamos a agradecer a Deus
pela bênção, mas fomos interrompidos por um toque nos
joelhos e uma vozinha infantil nos falando em sawi:
— Navo! Papai!
Era Stephen que queria unir-se a nós em nossa alegria.
Tomei-o ao colo, entre nós dois. Seu rostinho exibia nova-
mente as boas cores da saúde restaurada.
— Querida, sussurrei com os lábios junto aos cabelos dou-
rados de Carol, este lugar contém... contém... Como eu po-
deria expressar aquilo? ...contém uma sensação de ser o cen-
tro da vontade de Deus.
- Bu sei, respondeu ela. Sinto a mesma coisa!
Duas semanas depois, quase todos os membros da fami-
lia de Hato partilhavam da decisão do patriarca. Eu e Carol]
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- ES E ES ES End Ea Ed EM ES EA Ea
O Morto Vivo As age dao 255

disse eu a Carol, antes de partir em direção à casa para onde


haviam levado o morto.
Se eu tivesse ficado em casa naquele dia, tudo teria sido
mais fácil. Eu poderia ter partilhado da sua dor à distância, e
nunca ficaria sabendo da verdade. Mas alguma coisa parecia
atrair-me para aquele lugar fatal, fazendo-me galgar aqueles
VINTE EUM instáveis degraus de ripas, cruzar aquele portal baixo, e me
postar junto àquelas figuras nuas dos pranteadores que se
contorciam. Era algo que me fazia permanecer naquele apo-
sento carregado do horror da morte, onde o ar parecia irres-

O Morto Vivo
pirável, de tão pesado; onde cada rosto estava contraído de
angústia por uma alma humana, e onde os gemidos chega-
am a meus ouvidos como uma explosão a custo contida.
Baixei os olhos, e, espiando por entre braços € pernas à
| frente, entrevi o cadáver nu, estendido sobre uma
— Warahai morreu! esteira de capim. A mãe do morto, à velha Augum, estava
O grito ecoou como um trovão ribombando, por entre as figachada junto a0 corpo do filho, cobrindo-lhe a área genital
casas da aldeia de Haenam, naquele terrível dia de janeiro de Com as mãos e o rosto enrugado.
1964. Espantados, aqueles homens, mulheres e crianças cor- Seu gesto tinha origem na crença sawi de que a alma do
reram para a varanda de suas casas logo que o portador da morto às vezes permanecia algum tempo nos órgãos genitais,
trágica notícia ancorou a canoa na água rasa, diante da al fhesmo depois que outras partes do corpo já tivessem morri-
deia, Estendeu o longo remo na direção do kidari, fazendo
com que os olhos de todos se voltassem para lá. Qutros parentes mais próximos se deitavam sobre suas
Três embarcações lotadas estavam se aproximando rapi- Cima magras e sobre o peito do morto, gritando seu nome,
damente, precedidas por um som trêmulo, agourento. Era o x iscando-o na pele, ou queimando-o com borralho quente
lamento de morte dos sawis. Alguns dos espectadores da al- fuma vã tentativa de provocar nele algum movimento que
deia também começaram a soluçar. E quando as três embar- hes desse impressão de vida.
cações se aproximaram mais, vários daqueles homens e De vida! Olhei novamente, Sim; o morto estava respi-
mulheres desceram apressadamente, e se lançaram ao rio, ando! Um calafrio percorreu-me a espinha, Deveria ser por-
num pranto desesperador. que os pranteadores estavam a comprimir-lhe a caixa toráxica,
Nós os observávamos de nossa casa, e vimos as três ca- pensei. Cheguei mais perto para ver melhor sem obstáculo
noas atracarem, ێ a figura inerte de Warahai ser levada para llgum, mas agora as pessoas estavam agitando-o ainda mais
uma das “casas longas”, aos ombros de seus amigos. R não podia me certificar se o que vira fora realmente um
- Que pena que o tenham levado para a selva justamente lovimento respiratório.
quando nosso tratamento começava a fazer-lhe algum bem, * Estendi a mão vagarosamente, e segurei o braço de Warahai.
SAGAGR AGA LAG GRAR
ABOA
PO S
POOR
256 SE O Totem da Paz O) Marto Vivo «4-4 257

Com uma intensa sensação de expectativa, comprimi o dedo Eu ainda estava falando, quando Anai, a esposa dele, olhou
no ponto em que sentiria o pulso. Imediatamente, senti um para Mavu grandemente espantada, e perguntou;
latejar muito débil. — Será que os tuans não sabem nada a respeito da morte?
Enquanto me esforçava para me colocar novamente de A resposta que Mavu deu a Anai deixou-me atônito. Ele
pé, meu temor transformou-se em emoção. e:
— Tenho uma boa notícia para dar a vocês, disse-lhes, - Lógico que não; pois os tuans nunca morrem, e por
agitando os braços para chamar a atenção deles. Vocês estão Isso não devemos esperar que saibam o que é a morte. Preci-
pensando que nosso amigo está morto. Talvez seja porque amos ter paciência com eles.
sua respiração ficou muito fraca, e todos pensaram que ela Então os sawis pensavam que éramos imortais!
havia parado, e tão desesperados ficaram que nem notaram — Você está enganado, Mavu, protestei. Nós, os tuans
que ele voltou a respirar normalmente. stamos sujeitos à morte, tanto quanto vocês. Meu pai mor-
Foram precisos vários minutos para deter a torrente de quando eu era pequeno. Eu sei o que é morte.
lamentações o suficiente para ser ouvido. Estava ansioso pelo Mavu c mais alguns outros deram mostras de surpre-
momento em que lhes daria a notícia, e veria o desespero ja. Eu acabara de destruir um mito. Mas depois ele conti-
desaparecer de seus semblantes, sendo substituído pela es- juou.
perança de que Warahai se restabeleceria. — Está bem; contudo vocês conhecem a morte à maneira
Por fim, Mavu atendeu aos meus apelos, e gritou: Ds tuans. Entretanto — e aqui ele olhou hesitantemente para
— Silêncio, o tuan está querendo dizer alguma coisa! | figura letárgica de Warahai que arfava levemente — é lógico
O barulho cessou, restando apenas os soluços e gemidos e não entendem a morte à maneira dos sawis.
dos parentes mais próximos. Foi então que consegui anun- — Por que diz isso, Mavu?
ciar-lhes: — Porque você está pensando que Warahai ainda está vivo.
— Warahai não está morto! proclamei. Seu pulso ainda — Mas você mesmo está vendo que ele ainda respira.
está batendo. Se observarem bem, verão que ele ainda está Mayu sorriu para mim, com um ar de condecendência, e
respirando. Epois prosseguiu, num tom de quem instrui uma criança.
Pensei que correriam para Warahai, a fim de verificar
seu * —Warahai ainda está respirando, porque se encontra numa
pulso, e ver se estava mesmo respirando. Ninguém fez isto. bndição de vida aparente que chamamos aumamay, Mui-
Ninguém lançou nem mesmo um olhar para onde ele se achava is vezes, quando uma pessoa morre, O corpo continua fun-
— seu tórax agora claramente subindo e descendo ao compasso pnando durante algum tempo, depois que a alma já saiu
da respiração. Apenas me fitaram com olhares sombrios, como lele. Mas não dura muito.
se irritados por aquela interrupção de seu pranto. - E como é que vocês fazem distinção entre 0 aumamay
“Será que não estão entendendo?” perguntei-me, repetin- “um estado de inconsciência temporária? contrapus.
do a mensagem, e concluindo: Mavu sorriu novamente.
— Podem parar de chorar. Eu e Carol vamos dar a Warahai - Os espíritos nos informam.
os melhores remédios que tivermos. Talvez ele se restabe- - E como é que eles se comunicam com vocês? insisti.
leça. Alguns dos pranteadores que estavam por ali começavam
258 o > O Totem da Paz O Morto Vivo «4 «EA 259

a se impacientar, O assunto em discussão era tão elementar Meu coração batia fortemente, Warahai não parecia um
para eles, que a repetição se fazia enfadonha, e não queriam doente em condições recuperáveis. Seu estado de inconsci-
prolongar a interrupção de sua lamentação por mais tempo. “ência lembrava um coma em estágio final, bem semelhante,
O choro recomeçou ao nosso redor. por sinal, a este conceito de morte que os sawis denomina-
— Eles se comunicam através de uma feiticeira, explicou vam aumamay. Eu estava me arriscando muito. Parecia que
Mavu simplesmente. tudo depunha em favor de Aham.
- E quem foi a feiticeira que declarou que Warahai está — Se Warahai sarar, se ele abrir os olhos e conversar com
no estado de aumamay? indaguei erguendo a voz em meio vocês, ese alimentar — então entenderão que eu disse a ver-
ao murmúrio que crescia. tlade em nome de Jesus. Mas se... (Eu ia dizer; “Se ele mor-
Mavu indicou com o queixo, voltando-o na direção de fer...” mas interrompi-me, pois lembrei-me de que não en-
uma feiticeira de Haenam, de nome Aham, Virei-me e olhei tenderiam isto, já que o consideravam morto.!.... sc o seu
para ela. A mulher sustentou meu olhar como se perceben- so parar de bater, podem crer em Aham, se quiserem.
do nele um desafio. Mavu riu sem constrangimento algum.
— Aham teve uma visão hoje de manhã. Viu a alma de — Warahai nunca poderá se restabelecer!
Warahai abandonar o corpo, deixando em aumamay. | — Guarde os remédios para os vivos! ajuntou outra pes-
— Ela diz que ela viu, intervim, pensando rapidamente. qa.
Mavu não pareceu entender minha insinuação. Aham era Então o velho Boro, de cabelos grisalhos, colocou-se de
a mais famosa feiticeira de nossa comunidade de três aldeias, pé. Era o irmão mais velho de Warahai. Deu uma ordem em
Os sawis nem cogitavam de duvidar de sua palavra. Dim áspero, para alguns jovens que se achavam assentados
Os pranteadores estavam novamente agitando Warahai, perto dele.
berrando em seus ouvidos, fustigando-o com tições de fogo — Vão preparar a arca mortuária!
Sob tal tratamento, e em sua condição debilitada, antes do Os moços pegaram seus facções e saíram, obedecendo às
pôr-do-sol estaria morto. E assim a crença dos sawis com palavras de Boro, Depois este olhou para mim € disse algo
respeito ao aumamay se fortaleceria. E Aham, a feiticeira, ue me fez sufocar de pavor.
teria precipitado a morte de um enfermo que, de outro modo, — Vamos sepultar Warahai hoje mesmo!
talvez nos fosse possível salvar.
Perante Deus, tomei uma decisão. Ergui os braços e gritvi
pedindo silêncio. Aham estava observando -me nervosamen
te. Quando o rumor cedeu, apresentei-lhes um desafio,
— Aham disse a vocês, em nome dos demônios, que
Warahai já está morto. E eu lhes digo, em nome de Jesus,
que ele ainda está vivo, A alma ainda está aí, em seu corpo.
Agora peço-lhes que parem de pranteá-lo, Parem de queimá:
lo com estas brasas. Permitam-nos orar por ele e tratar dele
Se ele se restabelecer...
Ex ASSES SAP
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O APOIO PO IO GOI;
A Força do Aumamay ea
oo Ao TR 261

talmente, e amarrada nas esteiras, nem mesmo teria possi-


bilidades de se contorcer para se libertar e cair ao chão, para
amar a atenção e ser acudida. Então, só lhe restava cair
VINTE E DOIS num delírio de terror, até morrer de fome e sede, quando não
da própria enfermidade.
“Pobre Warahai!” pensei, olhando seu corpo abatido, “Você
saiu entre ladrões: as crenças de seu povo, ladras de almas. E

A Força do 1 sei que não poderei passar de largo, como o sacerdote e o


evita, apenas porque sua cultura é diferente da minha. Cui-
darei de você, Warahai!”

Autmamay | — Sinto muito, Boro, disse em voz alta. É apsar (proibido)


para mim deixar um homem ser sepultado quando ainda
Está respirando. Não vai insistir em enterrá-lo e deixar que
uy me sinta culpado de cometer tal crime; vai?
Boro pestanejou, e ficou a pensar por alguns instantes.
Para os sawis, sepultar significa envolver o cadáver numa Depois virou-se e chamou os moços que iam construir a
esteira de capim, apertando-o fortemente, atá-lo firmemen- lirna-caixão, para que voltassem,
te, passando cipós pelo pescoço, cintura e tornozelos, e de- Corri os olhos ao redor e disse para os outros.
pois colocá-lo numa arca mortuária suspensa, do tamanho
- Vou permanecer aqui o resto da tarde, para não permi-
aproximado de um caixão, cuja altura varia entre um e cinco
tir que queimem Warahai com brasas e gritem em seus ouvi-
metros. E como tinham plena convicção de que uma pessoa DOS.
oficialmente declarada em aumamay estava morta, não ti-
* Fui até a porta da “casa longa” e chamei Carol, Minutos
nham o mínimo escrúpulo em deixá-la nesta arca-túmulo.
depois ela veio trazendo remédios, e aplicou uma injeção em
Estremeci ao pensar no incontável número de homens,
Warahai. Boro, Mavu, Augum e Aham se entreolharam per-
mulheres e crianças que, no passado, teriam sido colocados
plexos, e depois, ao que parece, decidiram simplesmente
nestas caixas mortuárias e deixadas ali, apesar de se acha-
guardar, em vez de se arriscar a provocar um conflito de
rem apenas inconscientes. Talvez, mais tarde, recuperassem
léias. Estavam certos de que Warahai pararia de respirar
a consciência e compreendendo sua sina teriam clamado po!
intes do anoitecer.
socorro em vão por causa das esteiras apertadas ao redor do
Quatro dias depois, ainda estávamos lutando para salvar
corpo, que sufocavam seus gritos. Ninguém que por ali pas-
vida de Warahai, e resistindo à pressão da opinião geral que
sasse, ouvindo seus gemidos, iria se importar de investigar,
O queria enterrado, por considerá-lo morto. Warahai dera
pois julgaria ser apenas um caso de aumamay que estava
guns sinais de melhora, mas não o suficiente para abalar a
durando um pouco mais que o normal,
brença sawi do aumamay ou na infalibilidade da suposta
E como a base da caixa era inclinada para impedir que o
Visão de Aham.
corpo escorregasse para fora, a pessoa, enfraquecida, natu
— Os remédios estão prolongando o aumamay além do

SOS CSCCGEGS SENSO NTSONNT


o TE O Totem da Faz A Força
do Aumamay cet
normal, mas não vão trazer sua alma de volta, era a dedução “Seria tão simples para ti curá-lo. Não desejas receber 0
deles. louvor que tentamos conquistar para ti, do coração e mente
Eagora, no instante em que as trevas caíam, no anoitecer deste povo?”
do quarto dia, todos os sinais de melhora nas condições de Desesperado, comprimi o pulso de Warahai pela última
Warahai desapareciam, e seu estado piorava rapidamente.
Nossa fé, para aquele momento de crise, estava quase sc “Por que não consegui que tua graça operasse em nosso
f) r? ”
findando. Tínhamos os olhos vermelhos pelas três noites
mal dormidas no afã de proteger o enfermo dos pranteadores, Senti sua pele latejar de encontro ao meu dedo; batia fra-
e nos momentos de oração para afastar a pertinaz aproxima- tamente mas num ritmo constante. A batalha ainda não
ção da morte. Hato e outros crentes sawis mostravam-se erminara.
apreensivos a nosso respeito, com receio de que se esgotasse — Por que começaram a prantear assim? indaguei,
a paciência dos parentes de Warahai. Alguém me respondeu em alta voz, olhos espantados.
Cansados e confusos, eu e Carol nos sentamos para jan- - Aham teve outra visão, disse. Desta vez ela viu um es-
tar, quando, repentinamente, um forte clamor brotou da casa pírito pegar a alma de Warahai e devorá-la. Agora estamos
onde jazia Warahai, O mesmo pensamento cruzou nossa “ Os de que não há mais possibilidade de você conseguir
mente — o pulso deve ter parado. que a alma dele volte ao corpo. Os espíritos querem que o
Agarrei um lampião de querosene e parti correndo em Enterremos pela manhã bem cedo.
direção à “casa longa”. Estava lotada de gente gritando, cho- Por entre as sombras, vi Aham a observar-me, e seu rosto
tando, batendo os pés. Abrindo caminho até o centro do povo, Escuro exibia uma expressão de triunfo. Ela se cansara de ver
vi que haviam recomeçado a prática de comprimir e quei- a infalibilidade questionada. Havia inventado um modo
mar o corpo imóvel de Warahai. Talvez isto agora não impor- as com tudo aquilo imediatamente.
te mais, pensei, estendendo a mão e tomando o pulso dele. Percebi que murmúrios de descontentamento começavam
"Senhor Deus, será que tu nos abandonaste nesta crise, À brotar de entre as sombras ao meu redor. A velha mãe de
para sermos derrotados?” clamei numa angústia silenciosa. Warahai movia-se para a frente € para trás, menosprezando
Segurei o pulso de Warahai e procurei os batimentos, ao ssas intenções de tentar reviver seu filho. De trás e dos
mesmo tempo que enviava aos céus uma petição muda. dos, ouvia vozes dizerem:
“Senhor Deus, será que tu irás deixar passar esta oportu- — Vai! Deixe Warahai conosco!
nidade de destruir uma crença que, há séculos, está conde- De repente, no meio da escuridão, veio uma voz amiga €
nando milhares de vítimas a uma morte prematura?” incera. Era Narai, um dos crentes da povoação, que era meu
Ainda não encontrara o pulso, liar no estudo da língua.
"Se Warahai morrer, a crença neste aumaniay ficará ain- = Tuan, você não entende a morte como os sawis a en-
da mais arraigada no coração deste povo, pois os teus servos lendem. Será melhor sair,
a desafiaram e saíram derrotados.” Quvi outras vozes em meu interior que o apoiavam.
Agora, toda a casa sacudia. Era muito difícil manter o “Você já fez o que podia”, diziam elas. “Se Deus quisesse
equilíbrio naquele lugar de iluminação difusa. ar-lhe vitória neste caso, ele já o teria feito há muito tempo.
A A, - A, A, A A, A, 4 aà es a? e A
264 af =p =p O Totem da Pas A Força do Aumamay sf fd 265

Deixe os parentes dele agora se responsabilizarem pelos seus mais achegado a mim, embora nessa ocasião não estivesse
atos. totalmente convencido de que aquela decisão fosse sábia.
“Os olhos de Warahai já estão vidrados. O estertor da morte — Warahai ainda está vivo. Ajude-me a provar isto! supli-
já está em sua garganta. Ele deve mesmo morrer em menos quei-lhe.
de vinte e quatro horas. Não vale a pena criar um tumulto. As feições de Mahaen espelharam a firmeza da decisão
o seu orgulho que não quer aceitar a derrota: Desista!” tomada.
Mas então tentei imaginar-me no dia seguinte dando 0 — Fisahaemakon! Eu o carregarei! disse ele.
consentimento para enrolarem Warahai, ainda respirando, Depositei o lampião no assoalho e ergui o corpo inconsci-
na mortalha da: esteira de capim, vendo-os envolver o seu ente € inerte, e coloquei-o sobre as costas de Mahaen, Este
rosto, e amarrar os fios de cipós ao redor dele. Mais tarde, vacilou ao peso de Warahai. Quando nos dirigiamos para a
após haver falhado nesta primeira tentativa, eu procuraria porta, ouvi manifestações de raiva partindo de todos os la-
armar-me de coragem para contestar sua crença no aumamay. “dos.
Não; não iria permitir que o sepultassem. Kimi, 0 irmão mais novo de Warahai, adiantou-se, de ar-
Tentei reunir bastante coragem — a mesma coragem que mas na mão, pronto a impedir-nos. Mahaen hesitou.
Deus já me dera para superar outras crises — mas ela havia se — Continue em frente! ordenei.
dissipado, e já se desintegrava dentro do casulo de desespero — Tuan, Warahai está morto! gritou Mahaen, começando
que me dominava. Apresentei a Deus o meu espírito vazio, a enfraquecer diante da pressão da multidão.
para que ele o revestisse de novo ânimo. E ele o revestiu; e a — Ele não está morto. Siga em frente!
coragem cresceu e se fortaleceu, alimentando-se no próprio De repente, outro jovem, Aidon, destacou-se do grupo de
desespero que matara a que havia antes. Poucos instantes pessoas que protestavam.
depois, já estava pronto para entrar em ação, - Eu o ajudarei a carregá-lo! disse ele com firmeza, pe-
— Senhor, o que devo fazer? gando as pernas de Warahai, e colocando-as sobre seus om-
— Tire Warahai daqui. DTOS.

— Mas, Senhor, para isto eu precisaria de ajuda. E quem, Reanimado, Mahaen saiu pela porta, e desceu à escada de
desse povo todo, irá ajudar-me? Estou praticamente sozinho. ripas, seguido de Aidon.
- Olhe à sua volta, Eu estava de olho em Kimi e nos outros, Não estavam
Relanccei os olhos ao redor, e imediatamente o rosto gra- preparados para este estratagema inesperado. Tomados de
ve e magro de Mahaen destacou-se à luz do meu lampião. Surpresa, eles nos seguiram através da escuridão da noite,
— Mahaen, venha cá. gritando.
Ele veio, como se não tivesse outra escolha. — Tragam Warahai de volta! Tragam-no de volta!
— Vou colocar Warahai em suas costas, sussurrei-lhe ao Prosseguimos em frente, até chegar ao depósito. Fechei a
ouvido, € logo que o fizer, carregue-o para fora daqui, e leve- borta diante deles. Augum, a mãe de Warahai, começou a
o para o meu depósito. Irei abrindo caminho adiante de você. saltar de um lado para outro, junto à nossa porta, chorando
Mahaen examinou meu rosto. Como poderia ele concor- amargamente, enquanto Kimi berrava:
dar comigo? Nos últimos meses, ele fora se tornando cada vez — Than, deixe-me levá-lo de volta para a “casa longa”!

FSGSCSGNCSTNCSNCSGNCSTES PSOE OSGNTGETINIRA


o EB» O Totem da Paz “A Força do Aumamay ee
- Não, respondi no tom de voz mais firme possivel. E mesmo assim alguns deles morriam, e não estavam tão
Pouco depois, a multidão se dispersava, cada um seguin- mal quanto ele.
do para sua casa, Durante duas horas continuaram a gritar — Tenho certeza de que nenhum médico do mundo lhe
de raiva, e principiei a imaginar se não iriam se incitar até o dana esperanças de vida; a não ser por um...
ponto de invadirem a pequena construção. E eles poderiam — milagre? completei. Isto é tudo que podemos esperar
perfeitamente tê-lo feito. “apora.
Perto da meia-noite, a aldeia silenciou. Aidon voltou para Mais tarde, Mavo surgiu de repente à porta de nossa casa.
sua casa, enquanto Mahaen permaneceu comigo para vigiar — Tuan, sussurrou ele, Kimi e outros parentes de Warahai
o corpo imóvel de Warahai. À meia-noite, Carol foi reunir-se “estão se encaminhando para cá. Kimi está escondendo uma
a mim no depósito. Mahaen ficou em silêncio, ouvindo-nos “adaga de osso às costas. Tenha cuidado.
orar pelo restabelecimento de Warahai, e depois cantando Agradeci a Mavo €& espici para fora através da telinha da
um hino de louvor a Deus. Quando raiou a aurora, despertei janela, Avistei o grupo que se aproximava. Seus olhares esta-
ouvindo um rumor estranho no peito de Warahai. Com a “vam carregados de mágoa e rancor, Pareciam querer dizer:
pneumonia, Os pulmões dele estavam-se enchendo de líqui- “Por que está nos obrigando a prolongar esta situação por
do. Para evitar que ele morresse sufocado, usei meu hidrô- “mais tempo? Se não fosse por você, Warahai já estaria sepul-
metro para bateria com o objetivo de retirar, por meio de tado. Você está simplesmente dificultando as coisas para nós.”
sucção, o líquido de seus brônquios. — Kimi! gritei subitamente. Você está escondendo uma
Algum tempo depois, Carol apontou para a última caixa faca de osso às costas — leve isto embora do meu quintal
de ampolas de penicilina, e disse: imediatamente,
— Este homem sozinho está acabando rapidamente com Espantado, Kimi entregou a arma para um garoto que se
nosso suprimento de remédios, e não está adiantando nada. “achava por perto, que logo a levou de volta para a aldeia.
Devo continuar? tus
— Não, repliquei. Se esses medicamentos pudessem va- Ao pôr-do-sol, Kimi, Boro e outros parentes de Warahai,
ler-lhe de alguma coisa, na certa já teria havido uma melho- voltaram à nossa casa, demonstrando uma atitude concilia-
ra. Outros doentes vão precisar deles, De agora em diante, tória.
recorreremos à oração, e apenas a ela, — Tuan, ainda achamos que Warahai está morto € deve
Baixamos o olhar para Warahai. Sua respiração estava se ser sepultado, mas resolvemos respeitar seus desejos. Per-
tornando gradualmente mais fraca, À pele lembrava um per- mita-nos levá-lo de volta para casa, e lhe daremos nossa
gaminho velho, recobrindo seu corpo, que era quase só es- palavra de que não o prantearemos mais e nem o colocare-
queleto. Os olhos, entreabertos, de pálpebras fixas, já pareciam mos na urna mortuária, enquanto seu pulso estiver baten-
contemplar o mundo vindouro. do. Quando cle parar, então, nós o chamaremos para que
— No hospital onde fiz meu curso de enfermagem, doen- veja por si mesmo que ele parou. Só então nós o sepultare-
tes que se achavam em condições semelhantes às de Warahai mos.
eram tratados com alimentação intravenosa, e dispúnhamos Senti meu coração encher-se de gratidão para com eles.
de aparelhagem elétrica para extrair fluído de seus pulmões. Pelo menos eu conseguira uma vitória parcial, embora ainda

SOS LOGAR,
268 BE => O Totem da Paz A Força do Aumamay a = mm 269

tivesse esperanças de que algo maior acontecesse. Dei-lhes Pela manhã, a aldeia de Haenam mostrava-se estranha-
permissão para levarem Warahai outra vez para a “casa lon- mente silenciosa, Encaminhei-me vagarosamente naquela
ga”, Seu estado de coma era mais profundo que anterior direção, Yamasi, um dos irmãos de Warahai, estava parado
mente. junto ao trilho que conduzia para lá, Estava aparando uma
A noite caiu e notei que os parentes de Warahai foram “vareta, e fingiu não perceber a indagação que havia em meu
fiéis à palavra dada. Não ouvi qualquer rumor de choro ou “olhar. Então não tive outro jeito senão fazer a pergunta.
comoção, vindo dos lados de Haenam. Haviam sido cinco — Como está ele?
dias de luta — como será que terminaria tudo aquilo? Por Yamasi deu-me uma olhada rápida, parecendo meio cons-
quanto tempo ainda Warahai continuaria respirando, enquan- “trangido, e respondeu:
to Deus aguardava seu momento de intervir? — Ele conversou conosco.
Em agonia de espírito, peguei nosso livro de leituras — Ele falou?
devocionais diárias, e abri-o na página marcada 30 de janci- - Falou.
ro. Procurei a meditação noturna, e comecei a ler em voz Meu coração saltava cabriolas dentro do peito.
alta: — Ele conversou com a mãe dele. Ele disse: “Não fique
— Ó tu que ouves as petições... Os olhos do Senhor estão triste, mãe,”
sobre o justo e seus ouvidos atentos ao seu clamor... Ouvirei * Deixei Yamasi ali e subi os degraus da casa como sg esti-
quando ele clamar a mim, pois sou Deus misericordioso... vesse pisando nas nuvens. Warahai abriu os olhos e fitou-
Ele realiza os desejos dos que o temem... Ó Senhor, tu és 0 me quando me inclinei sobre ele. Sua respiração era trangii-
nosso Deus; não permitas que os homens prevaleçam con- la e normal.
tra ti... Se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a res- — Konahari, Warahai! disse-lhe.
peito de qualquer cousa que porventura pedirem, ser-lhes-á — Konahari! respondeu ele.
concedida por meu Pai que está nos céus. Estava deitado de costas sobre o colo de sua mãe, Sua
Nós dois estávamos ali assentados, entreolhando-nos, 20 esposa e filhos e outros parentes achavam-se agrupados ao
suave clarão do lampeão. Se houvéssemos recebido apenas redor, Peguei seu pulso. A frialdade da morte próxima se fora.
uma promessa no meio de um longo trecho, já teria sido Os batimentos cardíacos estavam bem mais fortes.
bom demais. Mas havíamos subitamente encontrado várias A casa, normalmente barulhenta, estava silenciosa como
promessas, as quais pareciam saltar da página, como que uma catedral. Corri os olhos ao redor, pousando o olhar em
competindo umas com as outras para ver qual delas nos er- cada rosto. Um por um, todos os parentes de Warahai abai-
gueria O ânimo. ixaram a vista para o assoalho,
Sorrimos um para o outro, olhos marejados pela emoção = Homens mortos dizem konahari? indaguei em voz sua-
e irritados pelo cansaço, mas, de repente, sentiamo-nos trans-
bordar de alegria. Mesmo que tivéssemos escutado uma voz Depois de alguns instantes de um silêncio constrangedor,
nos falando, não teríamos entendido a mensagem do Senhor nlguém respondeu,
com maior clareza do que a recebemos naquele momento. — Não. Um homem morto nunca diz konahari.
Deus ouvira nossas orações. - E sea alma de Warahai tivesse sido arrancada e devora-
VAR
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IPI IPI IRIA
VADE GO ORI,
“ o, A, e a? a A

ANT AS
270 fd O Totem de Paz A Força do Aumamay «Ed egiis ido 271

da por um demônio, será que ele estaria aqui olhando para ele na mata, Aquilo me entristeceu bastante. Ele não es-
nós, como vocês estão vendo? prossegui. tava conseguindo comer o sagu passado que lhe ofere-
- O que nos disseram foi uma mentira, declarou Mahaen ciam. Insisti com eles para que providenciassem um tipo
em tom solene. melhor de alimentação. E para dar o exemplo, eu e Carol
Olhei ao redor procurando Aham, mas ela não se encon- passamos a enviar-lhe de presente um pouco de comida
trava presente. fresca.
- Estivemos a ponto de sepultar um homem vivo, disse Alguns dias depois, Boro, Aham, Kimi, Yamasi e outros
Boro, fitando a parede. dos parentes de Warahai manifestaram claramente que ha-
- Como Jesus é bom! exclamou a velha Augum, afagan- viam decidido rejeitar a Cristo, apesar de à misericórdia de
do a testa de Warahai. Deus haver-se manifestado na cura de Warahai.
Corri para casa, para contar a novidade a Carol, e regres- — E na verdade vocês são livres para rejeitar o Filho de
samos juntos, trazendo comida para o doente. Ele passara Deus, se preferirem assim. Mas lembrem-se de uma coisa,
vários dias sem se alimentar. Depois que ele se alimentou, adverti-os, vocês já têm conhecimentos que nenhum de seus
louvamos a Deus abertamente pelo pleno restabelecimento ancestrais possuiu, e Deus os julgará de acordo com este
de Warahai, e depois dirigimo-nos para Kamur, a fim de par- onhecimento, O mesmo Deus que agora lhes mostra sua
ticipar a alegre notícia aos crentes dali. ondade, também pode castigar.
No dia seguinte, quatro dos principais homens de Haenam = Os que quiserem crer podem fazê-lo, replicou Boro. Nós
aceitaram a Cristo. Um deles era o marido de Aham. Outro continuaremos como estamos.
foi Mahaen. Outro ainda era Kani, o “mestre da traição”, de Sem dizer mais palavra, virei-me e saí, Do lado de fora da
Haenam. casa de Boro, um grupo de crentes de Haenam estava à mi-
Mais tarde, na “casa longa” de Seremeet, Morkay se pôs à espera. Caminhamos juntos em direção a um pequeno
de pé. Suas feições que já eram normalmente iluminadas ilão de reuniões que havíamos erguido numa elevação.
por uma aura de nobreza, agora espelhavam uma nova luz. Outros dos que haviam crido no Senhor recentemente
— Myao Kodon demonstrou que sua mão é forte, disse , dedesceram de suas casas e se reuniram a nós na jubilosa con-
ele. Quanto a mim, eu creio nele. do, enquanto prosseguíamos. Ali estavam meu amigo
Sieri e seu filho Badan seguiram o exemplo de Morkay, « Mahaen e a formosa Waiv, a filha da velha Wario, que em
metade da população da aldeia fez o mesmo, antes que se breve se casaria com ele.
passassem dois anos. Com eles vinham também Amus e sua noiva Aiyam, se-
Quando regressei de Seremeet, visitei Warahai novamen- fguidos pelo atencioso Kani que carregara consigo tantas lem-
te, e encontrei-o assentado sozinho junto ao fogão. Ele me b iranças sombrias, durante tanto tempo, e mais Yodai, Hadi,
saudou alegremente. Assentei-me e conversei com ele, e de- um punhado de outros crentes atohwaens de Yohwi que os
pois, antes de partir, fiz uma oração. Pelo que pude perceber, icompanhavam, e um bando de crianças que riam alegre-
ele também passara a ter uma fé genuína em Cristo. E hente. Embora ainda não compreendessem bem o que se
Fiquei sabendo que a família de Warahai não fizera ne- assava, eram levadas a participar espontaneamente de nos-
nhum esforço no sentido de colher alimento fresco para a alegria,

CSS CGSN NTSNCS ES SEOSSNDOSGES TINTA


272 O Totem da Paz A Força do Aumamay ed = 273

Carol entregou-me uma caixa de papelão. Quando come-


cei a abri-la, um pesado silêncio caiu sobre a congregação.
— Hoje temos uma surpresa para vocês.
Tirei da caixa um punhado de blocos brancos, nos quais
havíamos escrito algumas letras. Depois, procurando assu-
mir um ar de quem fala confidencialmente, sussurrei-lhes
em voz audível:
— Vamos ensinar vocês todos a ler.
Todas as mãos — de velhos e jovens — se estenderam avi-
damente em nossa direção quando passamos a distribuir os
primeiros exemplares de uma cartilha na língua sawi. A li-
ção inicial seria aprender a segurar os livros de cabeça para
cima. A segunda, abrir uma página de cada vez. Hato sorriu
“abertamente. Estava aprendendo rapidamente.
Aquela atividade foi como um agradável interlúdio de cal-
“ma, antes que nos sobreviesse o choque seguinte.

No interior do salão, os crentes de Kamur nos aguarda-


vam. Achavam-se presentes Hato, suas esposas e seus filhos
e filhas. Kaiyo, o homem que dera a criança da oferenda de
paz, e cujo gesto me abrira os olhos. Mavo, nosso auxiliar
silencioso; o simpático Isai, o garoto que subira a uma árvo
re para observar os barcos motorizados que haviam passado
por sua aldeia.
Além destes, havia também Mairah, o pai de Isai, que
este conduzira a Cristo; havia Seg, o moço que estivera a
espiar-me secretamente no dia em que fora ali pela primeira
vez, a fim de escolher o local em que construiria minha casa,
e me pusera de pé no centro daquela arena de vegetação. O
último era Amhbwi, um crente sincero, que fora levado a
Cristo pelo testemunho de Mavo.

SOSCSCSIOSIOSIO
Olhos Avermelhados Pela Vigília
A SE — 275

sua dor por meio daquele cerimonial que os séculos não ha-
viam destruido.
Subitamente, um jovem, parente do morto, colocou-se
VINTE E TRÊS entre duas das estacas que serviam de suporte para a arca, e
“começou a dançar freneticamente, gritando o nome do mor-
to. E enquanto dançava, larvas e partículas do corpo em de-
composição que se desprendiam da plataforma que sacolejava

Olhos Avermelhados Facima de sua cabeça, começaram a cair sobre seus ombros,
testa e cabelos. Iniciara-se a segunda parte da demonstração
de desespero.

Pela Vigília O diapasão do lamento foi crescendo, em solidariedade


(para com a extrema devoção do jovem. A certa altura, o ra-
paz saiu de debaixo da arca e encaminhou-se tropegamente
(para uma laguna trangúila de um rio próximo. Agora que
aquela prova estava encerrada, e ele se atrevia a relaxar um
As frágeis estacas da arca mortuária balançavam aos fre- pouco, começou a ter convulsões de vômito, pois achava-se
néticos solavancos dos pranteadores. Alguns se apoiavam dominado por ondas de enjôo. Gemendo ânsias de vô-
contra elas gemendo em terrível agonia, os braços estendi- mito, numa mistura de sofrimento e náuseas, ele deixou seu
dos para o cadáver no alto, abrindo e fechando os dedos como torpo mergulhar na água purificadora.
se estivessem tentando agarrar um pouco da substância da Todos os olhares se voltaram para os homens que se en-
alma que partira. Outros haviam subido até a pequena pla- Contravam na plataforma, ao redor do cadáver, O estágio se-
taforma, e a rodeavam, à maneira de corvos, girando ao re- juinte do cerimonial dependia da decisão deles. Talvez não
dor do corpo, berrando como os gênios da morte. tivessem coragem de cumpri-lo.
Estavam recobertos de lama. O ar estava impregnado do Fitando atentamente o horrível espetáculo diante deles,
mau cheiro exalado pelo cadáver, mas eles suportavam tudo bs homens em questão ajoelharam-se formando um círculo
de boa vontade. Moscas enormes adejavam ao redor de seus jompacto, Suas mãos tremiam. Seus músculos tornaram-se
rostos, mas eles não se importavam. BASOS.
Haviam aguardado durante nove dias e nove noites calo- De repente, um dos homens ergueu o braço, estendendo-
rentos, enquanto o mau cheiro se intensificava c os enxa- » sobre o corpo, €, a seguir, dando um berro estridente e
mes de moscas aumentavam. Tinham ficado esperando jun orrendo, enterrou o punho fechado bem dentro da cavida-
to à “casa longa” mais próxima, sentados em esteiras, respi- de do corpo em putrefação. Durante alguns segundos, no
rando aquele odor. Isto se constituía no primeiro estágio de fosto do homem, estampon-se uma expressão de choque e
um processo sawi de veneração dos mortos, denominado indescritível palidez, gravando na memória de quantos o
gefam ason. Agora, porém, os parentes estavam realizando fontemplavam uma cena que recordariam para sempre. Por
os rituais restantes do gejam ason, prontos a demonstrar im, desfalecendo com a sobrecarga emocional, ele deixou-
AGR LIRA LP LILI
CHORO PO AO OA SOSCSSNSCONINE
276 Re» O Totem
da Paz
Olhos Avermelhados Pela Vigília fossa 277

se tombar num dos lados da plataforma, arrastando consigo


Durante nove dias, após a sua morte, eu estivera a me
a mão que gotejava matéria em decomposição. O terceiro
“fazer perguntas deste tipo. Tivera esperanças de que Warahai
estágio havia sido completado.
permanecesse vivo como uma prova real das misericórdias e
Os outros pranteadores o carregaram para a “casa longa”,
'do poder divino. Mas Deus levara para si a evidência.
e o deitaram sobre uma esteira de palha, onde ficou a espe-
Entretanto, eu podia contar com alguns consolos. À cren-
rar, até que lhe foi levada uma refeição de sagu recém-prepa-
“ça dos sawis no aumamay fora profundamente abalada, em
rada. Pegando o alimento com a mão direita, a que estava
todos os lugares onde chegara a notícia do restabelecimento
contaminada, levou-o à boca e comeu, enquanto os outros
“de Warahai. A fé dos crentes se fortalecera, e haviam ocormi-
ao seu redor gemiam com incrível intensidade. O quarto «
“do muitas conversões.
último estágio da demonstração de desespero havia sido con-
Dei um suspiro profundo, e fui para casa. Ali cheguei no
sumado.
“mesmo instante em que uma canoa, conduzida por um só
O clímax da emoção já havia passado. A maioria dos
homem, tocava em terra bem diante de nossa morada. Ele
pranteadores se dispersou, dirigindo-se lentamente para suas
“me saudou quando pisei nos primeiros degraus.
casas, no momento em que o dourado entardecer punha um
— Konahari! respondi, De onde está vindo?
clarão avermelhado nas copas dos elevados sagúeiros que
— Casa de Boro, junto ao afluente Sagudar, respondeu. Eles
cercavam sua clareira,
realizaram uma cerimônia em memória de Warahai hoje, e
Um grupo deles permaneceu chorando junto da arca
“como sou aparentado com eles, achei que deveria assistir
mortuária: Boro, Augum, Yamasi e Kimi. E enquanto chora-
— Que cerimônia? indaguei. Pensei que Warahai tivesse
vam, gritavam em voz alta o nome da pessoa cujo cadáver
“sido sepultado há nove dias.
fora violado: Warahai.
— — E foi, replicou o homem. Tian, o senhor nunca ouviu
ten
falar do gefam ason? Isto significa entrar em contato com o
Fachos de luz avermelhada penetravam as sombras que
“mau cheiro.
me cercavam, Por que Deus permitira que ele morresse?
— Não. E o que é gefam ason?
Durante dez dias ele fora recobrando as forças, e até mesmo
Ele fincou o remo na terra, e olhou para mim parecendo
saíra de casa, Algumas vezes, ficara acordado até tarde con-
pronto a falar. Depois, tendo pensado melhor, desculpou-se,
versando com amigos. Todavia, no décimo primeiro dia de
dizendo que precisava seguir em frente, pegou o remo nova-
convalescença, ele caiu na inconsciência, sem qualquer in-
mente, c ia passando por mim para se retirar.
dicação prévia, E no décimo terceiro dia, morreu.
Coloquei a mão em seu braço.
Teria sido a falta de alimentação adequada que o matara?
— Acho melhor contar-me, disse-lhe.
Como eu lamentava não ter-lhe enviado mais ovos e frutas
— Receio que não aprove, tuan.,
de nosso magro suprimento! Ou será que os crentes sawis
- De qualquer jeito, vou ter que saber mais cedo ou mais
tinham razão quando diziam que Deus preferira cumprir
tarde, retruquei.
minhas palavras de advertência para Boro, desse modo apre-
| Eelesabia que era verdade. Apoiado no remo, começou a
sentando àqueles incrédulos um tipo mais forte de persua-
descrever o antiguíssimo costume cuja horrível execução ele
são?
presenciara naquele mesmo dia,
E = md O Totem da Faz Olhos Avermelhados Pela Vigília «SO 279

tres) te
À noite, eu e Carol ficamos acordados, perturbados por Atravessei vagarosamente a ruela pantanosa que separa-
esta nova revelação acerca da mente sawi. Então isso era va:as duas fileiras de “casas longas” de Haenam e Yohwi. Os
outra das coisas que Boro escolhera, ao rejeitar a Cristo. lamentosos sons agudos de uma canção fúnebre dos sawis
Como é que tal costume pudera encontrar aceitação por iam se tornando cada vez mais altos, à medida que me apro-
parte deles? Que terrível sentimento de tragédia o inspira- ximava do ponto em que se achava a pessoa que a entoava,
ra? E como devia ser forte e profunda aquela fórça negra Sentada junto ao fogão, a pele enegrecida de fuligem, uma
que fizera com que milhares de gerações continuassem a mulher velha e desdentada, balançava-se para diante e para
perpetuar um ritual que era repulsivo até para eles mes- trás, pranteando a morte de Warahai.
mos! A maioria das palavras de seu cântico era ininteligível para
Atormentado pela minha aparente impossibilidade de mim, pois sua voz era entrecortada de soluços. Tentei em
penetrar o âmago desse enigma, suspirei alto, em meu vão compreender as palavras da mensagem. Então avistei
travesseiro. Que deveria fazer a respeito disso! Como po- Mahaen. Ele descera a escadinha de sua casa, e vinha ao
deria eu combater algo que nem mesmo conseguia enten- meu encontro.
der? — Mahaen, explique-me o que aquela mulher está dizendo.
Sabia muito bem que não bastava dizer-lhes simplesmen- —- Ela diz o seguinte:
te: “Olhem aqui, parem de fazer isto. É repugnante.” Eles já
sabiam que era. Obviamente, a própria repugnância do ritual, “Palavras de remon! Palavras de remon! Por que demoram
de algum modo, estava relacionada ao seu objetivo. Era como tanto? Por causa desta demora, a morte levou meu filho!
no caso do waness, em que a pessoa se valia deliberadamen- “Palavras de remon! Palavras de remon! Nossos olhos es-
te de um ato repugnante para provocar um compromisso tão avermelhados de esperar sua vinda!
forçado. “Palavras de remon! Palavras de remon! Será que vocês
Então sustive a respiração na garganta. Será que era isto? virão do alto rio? ou virão de baixo?
“Palavras de remon! Palavras de remon! Apressem-se, se-
Sentei-me na cama, raciocinando.
não a morte levará a todos nós, e não restará ninguém para
Será que o ritual chamado gefam ason era simplesmente
acolhê-las quando chegarem.”
um modo de se tentar impor um compromisso de waness,
neste caso, não sobre um indivíduo, mas em todo o mundo Toda a pungência deste poema sawi, visto dentro do con-
do sobrenatural? A idéia começava a tomar forma em meu “texto sombrio da aldeia enlutada, e acompanhado dos la-
cérebro. “mentos da velha, era algo de aterrador,
Mas com que objetivo um débito destes seria imposto em - Mahaen, o que é remon? perguntei-lhe em voz sussur-
larga escala, por números incontáveis de sawis através dos rada, mas cheia de ansiedade.
séculos? Poderia ser a idéia de conseguir uma possível anu- Voltamos para meu escritório de telhado de sapé, e Mahaen
lação da morte no futuro? Eu estava resolvido a fazer mais “passou a explicar-me,
averiguações, prosseguindo nesta mesma linha de pensamen- — Remon é o que acontece com uma lagarta quando esca-
to. O dia parecia demorar a amanhecer. “pa da morte transformando-se em borboleta. Ela arrebenta o
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da Paz Olhos Averrielhados Pela Vigília EE=EERI= 281

casulo, e passa a viver num novo corpo. Esta palavra descre- Mahaen parou abruptamente e olhou-me de relance, num
ve também o processo pelo qual um camaleão ou uma ser- gesto rápido.
pente desprende a pele velha e surge com a pele nova. — Você já ouviu falar de gefam ason? perguntou.
Compreendi então que o vocábulo remon tinha um sig- - Já sei o que os homens têm que fazer para cumprir as
nificado aproximado ao de nosso termo “regeneração”. exigências do ritual. O que ainda não sei é a razão por que o
— E que são estas palavras de remon? indaguei. realizam,
— Conta-se que há muito tempo atrás os homens tam- — Nós o observamos, porque nossos ancestrais o faziam,
bém desfrutavam do privilégio de remon 0 seu corpo, e con- respondeu ele em tom defensivo.
tinuavam a viver eternamente. Então houve uma briga entre Era a resposta predileta dos sawis, uma resposta que ser-
um camaleão e um karasu (ave). O camaleão, que simboli- via para todas as perguntas difíceis. Ignorei-a.
zava o remon, disse que os homens continuariam livres do — Você pode dar esta resposta para os seus filhinhos, mas
poder da morte. O karasu — por ser muito frágil e vulnerável não para mim, comentei sorrindo.
— era o símbolo da morte. Ele insistia na idéia de que os Mahaen riu.
homens também tinham que morrer, como ele morria, e — É verdade, tuan. Não sei que outra resposta poderia dar...
imediatamente começou a preparar as estacas para construir & sua voz foi morrendo lentamente.
a primeira arca mortuária, Ele estava pensando. Pensou por muito tempo, e eu fi-
— E o que aconteceu? * quei esperando, pés enterrados na lama até os tornozelos, a
— O camaleão ficou a repetir: “Rimi! Rimi! Renovar! Re- Caneta entre os dedos e descansando sobre a caderneta, aguar-
novar!” E estas eram as palavras de remon, Mas a ave dizia: dando a resposta.
“Sanay! Sanay! Apodrecer! Apodrecer!'” E a discussão conti- * — Talvez seja porque... principiou ele, e eu comecei a es-
nuou, até que, por fim, o camalcão desistiu e cedeu ao dese- crever as palavras que ele dizia em sawi: ... rigav hohos savos
jo do pássaro. Daquele dia em diante, os homens começa- “keroho farakotai remon sin fatar ni naha gani!... quando o
ram a morrer. “homem atingir o ápice do sofrimento, então as palavras de
— E por que o camaleão desistiu? remon virão mais depressa!
— Ninguém sabe. Deve ter acontecido alguma coisa, mas Agradeci a Mahaen e resolvi interrogar também meus
esquecemos o que foi. outros auxiliares no estudo da língua. Alguns deles não qui-
- É a história termina aí? seram aventurar nenhuma opinião sobre o significado do
— Não. Nossos ancestrais disseram que um dia as pala- “Kefam ason. Outros deram opinião semelhante à de Mahaen.
vras de remon voltarão a nos visitar E depois disso, os que E outros ainda, que não tinham um conceito formulado so-
ainda estiverem vivos renovarão seus corpos como o camaleão bre o assunto, concordaram imediatamente quando lhes ex-
e a lagarta. Então não haverá mais morte. “pus a explicação dada por Mahaen.
Comecei a vibrar interiormente ao perceber o amplo sig- — Mas eu descobrira pelo menos algumas evidências leves
nificado do que Mahaen acabava de me contar Lembrei-me “de que tanto o compromisso de waness quanto o cerimonial
então de perguntar-lhe: do gefam ason haviam brotado da mesma raiz, isto é, da
— E o que o gefam ason tem a ver com isto? crença de que quando uma pessoa não alcança um determi-
FSESZ
GGI IRL GIGA
OX OX O
RENAN SDS LN SDSOK OSTSCDSSSSSCS
o TD O Totem da Paz Olhos Avermelhados Pela Vigília E 283

nado objetivo por meio da força ou da persuasão, ela pode — Suas palavras eram palavras de remon! E elas já chega-
consegui-lo, submetendo-se à mais extrema humilhação ou ram até aqui. Primeiro, elas trazem o remon de sua vida
mortificação. Em outras culturas, esta mesma inclinação interior, através da habitação do Espírito Santo em seu cora-
pode se manifestar sob formas diferentes, quais sejam: uma ção; depois, de acordo com a promessa das Escrituras, ocor-
tendência para a dor, penitências, jejuns de protesto, auto- rerá o remon de seus corpos, no Dia de Cristo!
flagelação e suicídio de protesto. — Vocês já estão dizendo há muito tempo que seus olhos
O Novo Testamento tem uma solução singular e muito estão vermelhos de vigiar, à espera da promessa de remon —
simples para os que se acham cativos desta quase universal espero que não estejam tão vermelhos que não possam reco-
e imperiosa necessidade de auto-expiação - a humilhação de nhecer que ela já chegou. E se vocês crerem que as palavras
Cristo é sua morte na cruz em nosso favor. Somente seu de Jesus são as verdadeiras palavras de remon, será que ain-
sacrifício pode impor um compromisso de waness sobre as da vão precisar de continuar na prática do gefam ason, nos
leis assestadas contra a humanidade culpada. Sua ressurrei- cadáveres de seus entes queridos?
ção é a única chance de esperança de remon que podemos Hato levantou-se imediatamente.
ter, Senti que minha estratégia para lutar contra aquela ob- — Graças a Deus que você nos contou isto. Agora pode-
sessão mórbida e quase psicopática que os sawis tinham por mos cessar com esta horrível prática! exclamou ele.
cadáveres, estava começando a se formar em minha mente. Depois virou-se para seus familiares ali presentes e deu-
Mais cedo ou mais tarde, o governo da Indonésia iria proi- lhes instruções bem rigorosas.
bir a observação do gefam ason por razões sanitárias, mas - Quando eu morrer, deixem meu corpo apodrecer em
isto não resolveria a questão da carência espiritual do povo, paz. Se vocês realizarem o gefam ason, estarão demonstran-
que dera origem a este costume bárbaro. A cultura sawi ha- do claramente que não crêem na promessa de remon dada
via lutado durante milênios em busca de uma solução para o por Jesus.
desespero que sobrevém ao homem em face da morte, e não Todos eles fizeram um gesto de assentimento.
a encontrara. A doutrina da ressurreição de Cristo era o an- E um por um todos os outros crentes se levantaram e
tíidoto divino para este desespero, e a crença sawi com rela- fizeram aos seus amigos o mesmo pedido que Hato fizera.
ção ao retorno das palavras de remon representava a analo- “Agora, pelo menos para os crentes, não seria necessária a
gia através da qual este antídoto chegaria até eles. ordem do governo, para que o gefam ason fosse abolido en-
Convoquei os crentes de Haenam, Yohwi e Kamur para uma tre OS sawis, pois o evangelho já começava a destruí-lo, E
reunião. Hato, Kaiyo, Mahaen e outros ficaram a escutar-me enquanto os crentes falavam, coloquei-me diante de Deus,
atentamente, enquanto lhes apresentava um sumário de meu em silêncio, maravilhado pelo seu poder.
raciocínio. Comecei contando-lhes como Cristo ressuscitara à = Graças te dou, ó Pai, por teres lançado os fundamentos
seu amigo Lázaro, que estivera morto, e depois descrevi sua pró- “para o ministério do evangelho entre este povo. Os sawis
pria ressurreição, três dias após à sua morte. Por fim concluí: desconheciam inteiramente nossa herança judaico-cristã, e,
— Ele ressuscitou a muitos da morte. Ele próprio ressur- “HO entanto, tu operaste providencialmente, colocando estas
giu de entre os mortos. Ele proclamou ser ele mesmo a res- analogias da redenção em sua cultura, há séculos, a fim de
surreição e a vida, em pessoa. que um dia pudéssemos descobri-las e aplicá-las, para tua
z 9? a? RA A, nd

É POLOS PO GO GO DAR A
o TD O Totem da Paz

glória, Teu interesse por eles se manifestou não apenas no


fato de lhes teres enviado mensageiros teus, mas também
no de teres preparado sua cultura para receber a mensagem.
— Assim como preparaste os hebreus e os gregos, tam-
bém fizeste com os sawis, pois eles não eram pequeninos

VINTE E QUATRO
demais, nem pagãos demais para receberem tua providên-
cia.
— Entretanto, é a tua Palavra — e não as analogias nela
contidas — que constituem o teu padrão de vida para os ho-
mens. Agora, mais do que nunca, entendo por que és cha-
mado o Deus da sabedoria, do amor e do poder.
— Glória a ti! A Longa Jornada
Vagarosamente, nossos cinquenta convidados provenien-
tes da aldeia de Mauro foram surgindo na brilhante superfí-
cie do kidari em meio a tênues nuvens de água evaporada,
movendo-se cautelosamente, ao girar a proa de suas estrei-
tas canoas, para se aproximarem da terra. Haviam aceitado
nosso convite, porém...
De pé, na orla da praia próxima a Haenam, Kani o herói
de uma saga, observava, sozinho, os homens que chegavam.
Eu compreendia o que se passava em sua mente. Procuran-
do agir com calma, cheguci-me por detrás dele e coloquei a
mão em seu ombro, enquanto a leve brisa da manhã perpas-
sava O capim kunai que nos rodeava. Ele não se voltou para
mim.
— Kani, disse em voz trangúila, após todos estes anos,
finalmente consegui convencer os homens de Mauro à es-
quecer o ódio e a desconfiança, e vir aqui encontrar-se com
você e seu povo, neste lugar. Agora você...
- Tuan, interrompeu-me, estes homens são os mesmos
que mataram meu irmão Huyaham, e quase me mataram
2865 == AR O Totem da Paz A Longa Jornada Ee gESEER 287

Levando uma das mãos às costas, tocou uma horrível ci- do-se para o ancoradouro na embocadura do afluente Tumdu.
catriz deixada em seu corpo por uma lança de Mauro. Kani seguia-os com os olhos.
Senti uma sombra de apreensão. Será que eu errara ao Com profunda tristeza, deixei Kani e encaminhei-me para
julgar que aquele era o momento adequado para tal visita? O ancoradouro, a fim de receber os convidados. Quando me
Talvez a fé recente de Kani ainda não fosse bastante resisten- acercava deles, notei que seu olhar se dirigia para Kani e para
te para superar os velhos imperativos da raça, num instante as “casas longas” de Haenam. Também eles estavam se re-
de tentação. Os homeas de Mauro achavam-se agora bem cordando daqueles acontecimentos passados. Será que nun-
mais próximos, confiados nas promessas de segurança que ca poderiam esquecer o dia fatal, quando um embaixador de
eu lhes havia dado. Sua confiança em mim era quase palpá- sua aldeia partira para Haenam, e não mais regressara?
vel, e parecia uma linha que se estendia deles para onde eu Enquanto acolhia nossos visitantes de Mauro ouvi um
me encontrava. — Brito que partia do casario de Kamur, do outro lado de nossa
— Kani, repliquei-lhe ao mesmo tempo que lutava contra tasa, e que indicava que outro grupo havia chegado — os si-
o desânimo que brotava em meu coração, estou vendo a ci- lenciosos e reservados habitantes do povoado de Wiyar. Eles
catriz do seu ferimento, e entendo perfeitamente essa má- também atracaram suas embarcações em terra com movi-
goa profunda que existe em sua lembrança. Também sei o mentos cautelosos, e depois se mantiveram juntos, foriman-
que foi que seus antepassados lhe ensinaram a fazer com do um grupo compacto, enquanto os homens de Kamur saí-
pessoas que agem do modo como estes homens agiram com am para recebê-los, Contudo havia um rapaz de Kamur que
você, eu sabia não se reuniria aos seus na recepção ao povo de
— Mas os seus antepassados nunca chegaram a conhecer Wiyar. O nome deste moço era Beray. Seis anos antes, os
o que você conhece, Kani, aquele perfeito Tarop, que foi en- guerreiros de Wiyar haviam devorado o pai de Beray.
tregue aos homens e ainda está vivo. Por causa dele, Deus o ter
perdoou, meu amigo. E por causa deste mesmo Tarop você Quando a manhã já ia em meio, não apenas nossos con-
deve perdoar os guerreiros de Mauro. Perdoe-os, Kani, per- vidados de Mauro e Wiyar, mas também centenas de ou-
doe-os! tros sawis, das aldeias de Esep, Seremeet e Kagas, haviam
Aquele homem que havia matado Fusuman impiedosa- amarrado suas canoas junto ao nosso ancoradouro à em-
mente virou-se para mim ce fitou-me com uma expressão 'bocadura do Tumdu. Era o Dia de Natal — a data que esco-
indefinível, Eu aguardava sua resposta esperançosamente, lhêramos para promover a nossa primeira festa de grandes
mas ele não disse nada, nem mesmo no instante em que 0 proporções, reunindo mais de uma aldeia, Era a maior de
ruído dos remos do povo de Mauro chegava aos nossos ouvi- que os sawis tinham notícia, Enquanto a carne de cinco
dos. porcos do mato chiava sobre os fogos onde era assada, as
E eu pensei: “Todos estes anos de cuidados, orações, es- moças preparavam espetos com milhares de larvas de be-
peranças e esperas... será que foi tudo em vão? Senhor, será souro que se contorciam nas vasilhas, e as tostavam acima
que este homem realmente crê em ti, ou terei sido iludido?” as chamas, e suas mães enrolavam em folhas de vohom
Hoje saberei com certeza. Hoje... centenas de finos pãezinhos de sagu, aprontando-os para
As embarcações dos visitantes passaram por nós, dirigin- Serem também levados ao fogo.

OASIS
288 pe O Totem da Paz A Longa jornada ng 289

Fizéramos tudo para que o dia fosse festivo, mas havia — Lembra-se de que lhe contei que meu pai certa vez deu
inúmeras dificuldades, Por exemplo, muitos de nossos con- aos kayagares uma criança tarop, e mais tarde veio a saber
vidados recusavam-st a confraternizar uns com os outros e que eles haviam matado e devorado a criancinha?
com o povo de Haenam, Yohwi e Kamur. Preferiram antes Acenei que sim, e Amio prosseguiu.
manter-se à parte, formando pequenos grupos, parecendo — Este homem que está deitado nesta canoa é a pessoa a
apreensivos e em constante estado de alerta. quem meu pai deu o seu filho. É o mesmo homem que ma-
Foi então que sobreveio a crise. tou e devorou meu irmãozinho, Tuan, há anos que estou
Uma comprida canoa kayagar surgiu, descendo o rio, tra- esperando uma oportunidade para...
zendo um homem doente, com pneumonia, quase à morte. A esta altura eu também estava tremendo. O espírito de
Seguido por um grupo de rapazes, encaminhei-me para a Natal não estava sendo muito bem recebido nas margens do
beira do Kronkel, a fim de examinar o enfermo. Logo que o Kronkel naquele dia. Primeiro fora Kani, depois Beray; ago-
vi, reconheci Hurip, o guerreiro kayagar que fora a primeira ta, Amio... não estivera eu sendo idealista demais ao esperar
pessoa a mostrar um machado de aço para o povo de Haenam, “que perdoassem seus inimigos por amor a Cristo? Talvez
alguns anos atrás. Ajoelhei-me ao lado da embarcação e to- “algum dia eles perdoassem, mas era provável que ainda fos-
mei seu pulso. Sua respiração era entrecortada e difícil. se cedo demais...
Antes que terminasse a contagem dos batimentos de seu Durante alguns instantes permaneci sem fala diante de
pulso, ouvi uma voz às minhas costas, uma voz carregada de “Amio, pedindo a Deus sabedoria. Então, uma lembrança
ódio e de amargura, que dizia: antiga ocorreu-me, vinda do fundo de minha meniória. Es-
- Tuan, o senhor não vai dar remédio para esse homem, “tendi os braços e agarrei as duas orelhas de Amio. Ele se
vai? espantou, mas não procurou soltar-se. Ficou a ouvir atenta-
Reconheci a fala de Amio, o filho de Hato. Olhando por mente.
sobre os ombros, vi o vulto esguio e escuro do rapaz que me — Tarop tim titindakeden! Apelo para a oferenda de paz!
falava. Estava tremendo de raiva. disse-lhe.
— Você deseja que Hurip morra? indaguei. - À criança que meu pai deu a Hurip como oferenda de
— Sim! respondeu-me, a voz sibilando de ódio. paz está morta. Foi o próprio Hurip quem a matou, respon-
Levantei-me inquieto e encarei Amio. deu ele imediatamente.
— Por quê? = Mas a criança que Deus nos deu como oferenda de paz
Percebi que o jovem estava desarmado, mas eu sabia que está viva! retruquei-lhe. E como ela está viva, você não pode
bastaria uma palavra sua e seus amigos acorreriam para ele vingar-se de Hurip, Perdoe-o Amio, em nome de Jesus.
com suas armas. Nesse ínterim, outros kayagares, amigos Continuei segurando suas orelhas.
de Hurip, também passavam a segurar firmemente seus re- O conflito interior do jovem cresceu de intensidade che-
mos-lança. Percebiam a existência de um problema, embora gando quase a tomar proporções aterradoras, depois passou
não compreendessem nossa conversa no idioma sawi. a decrescer. E pouco depois dava lugar ao fulgor de uma nova
A voz de Amio estava sufocada de emoção quando res- Compreensão que se estampava em seu rosto. A primeira
pondeu; Coisa que notei a seguir foi que ele estava olhando para bai-

NADAL
US OIE,
A, Na

>
o TD O Totem da Paz A Longa Jornada == q 291

xo, para seu inimigo agonizante, com uma luz de ternura do sob as festivas folhas de palmeira que adornavan os por-
nos olhos. tais, e penetraram no amplo salão de ar ameno, a pele formi-
Soltei as orelhas dele, e, sentindo meus olhos marejarem- gando ao desacostumado contato com a acolhida franca que
se de lágrimas, dirigi-me ao rapaz da maneira mais natural parecia impregnar a própria atmosfera que respiravam.
possível, e disse-lhe: Percebi que uns três ou quatro deles, acossados por súbi-
— Amio, preciso que alguém me ajude a carregar Hurip tos acessos de temor, ainda lançavam olhares nervosos para
para a casa dos doentes. trás, como que medindo a distância que os separava de suas
Numa decisão súbita, Amio endireitou os ombros e dis- canoas e remos. Mas lógo a seguir relaxavam, pestanejando
se: espantados com a alegria que irradiava do semblante daque-
— Tuan, deixe-me carregar Hurip sozinho. les homens e mulheres transformados, e cujo convite eles
Dois dos kayagares colocaram o doente sobre as costas haviam aceitado,
de Amio, e depois ficaram a observar atônitos, enquanto o “Naturalmente, isto deve ser verdadeiro”, diziam os olhos
rapaz carregava o enfermo meio inconsciente para nossa de muitos deles. “Esta camaradagem é real demais, para ser
clínica, onde Carol já o esperava com uma injeção recém- depois substituída pela terrível possibilidade do tuwi asonai
preparada. Caminhando atrás de Amio, notei que outra man”
pessoa testemunhara a mudança que se operara no coração E era!
do jovem — tratava-se de Kani. Quando passei por ele, diri- Quando a festa começou, Carol, Stephen e Shannon, nosso
giu-me um olhar calmo que me deu a certeza de que não segundo filho, já se haviam reunido a mim. Sentamo-nos e
havia mais razões para temer quaisquer represálias de sua ficamos apreciando os crentes sawis de diversas aldeias le-
parte com relação aos nossos convidados do povoado de vantarem-se de seus lugares e atravessarem q salão agora
Mauro. lotado, para colocar aos pés de seus antigos inimigos oferen-
Meio estonteado pela alegria, dei um profundo suspiro de das de sagu, larvas tostadas, e carne de porco do mato, E
alívio. O dia já estava começando a se parecer com um dia enquanto assim faziam, o cântico vibrante dos hinos natali-
de Natal. nos dos sawis enchia o recinto, agradecendo a Deus por ter-
Depois que Amigo deixou Hurip aos cuidados de Carol, nos dado seu Filho, o melhor de todos os presentes,
descemos juntos o trilho em direção à nossa igrejinha de A seguir, Isai, agora um pregador alfabetizado, pôs-se de
telhado de sapé, onde tudo já estava pronto para a comemo- pé, e leu um verso das Escrituras que eu traduzira para o
ração. Dezenas de crentes sawis procuravam se confraterni- “Sawi especialmente para aquela ocasião: “Porque um meni-
zar com os outros convidados, alguns ainda reticentes e até no nos nasceu, um filho se nos deu...” E aquelas palavras
o momento ainda preferindo ficar junto de seus remos-lança foram permeando o ambiente e sendo recebidas com imen-
E suas canoas. “Sa capacidade de percepção e uma compreensão que talvez
Contudo, ante a suave persuasão dos crentes, estes gru- “Sejam raras nos crentes ocidentais. Corri os olhos ao redor
pos de visitantes ressabiados foram, um a um, cedendo aos da sala e vi o rosto arrebatado daqueles crentes, não admi-
seus rogos, e começaram a descer em direção ao salão, Olhos ando bolas de Natal, fitas e fios prateados, pois tais coisas
arregalados e indagadores, eles entraram no recinto, passan- poderiam não ter significado algum para eles, mas expres-

DOSES
NE GAS
» EBD O Totem
da Paz

sando intensa adoração à criança que se constituía na


oferenda de Paz de Deus. Era a adoração ao Príncipe da paz,
que nascera, não somente em Belém da Judéia, mas tam-
bém no interior de-seus corações.
Naquele momento recordei-me de outros natais passa- VINTE É CINCO
dos, natais nervosos, comemorados entre ramos de pinhei-
ros recobertos de neve de minha terra, no Canadá. Mas ne-
nhum daqueles natais podia se comparar a este Natal vivido
nesta selva quente, testemunhando o triunfo do espírito de
perdão no coração de um povo, para quem a vingança fora a
Deixando o Casulo
Ancestral
própria essência da vida.
A jornada até ali fora longa, mas ainda não se encerrara.
Stephen tocou meu braço, despertando-me de meu deva-
neio. Apertei sua mãozinha, e a de Shannon, e inclinei-me
para diante a fim de ouvir melhor a mensagem que Isai pro-
feria. Em 1972, o sistema de pensamento cristão já estava
Foi o melhor Natal de minha vida. aprofundando suas raizes na mente sawi, Homens que an-
tes maltratavam e até torturavam suas esposas, consideran-
do-as apenas como um objeto de propriedade sua, ou como
meras escravas, agora estavam reconhecendo abertamente
seus direitos à posição de auxiliares e companheiras que de-
viam ser amadas. A monogamia começava a tomar O lugar
da poligamia, e era considerada a situação ideal para o casa-
mento, embora os polígamos ainda conservassem suas es-
posas.
Mulheres que antes se davam a crises tempéramentais,
gritarias histéricas e linguajar ofensivo, agora manifestavam
uma personalidade nova, cheia de calor humano, que era
bem mais convincente, Os filhos não estavam mais sendo
preparados para a guerra. Estranhos e mesmo antigos inimi-
gos agora podiam aceitar convites para festas, sem receio
algum de serem atraiçoado com o tuwi asonai man. A práti-
ca do gefam ason e o compromisso do waness não passavam
mais de recordações desagradáveis.
Antes mesmo que a mão firme do governo chegasse ali,
FLS GESZ INDI DIR IRAS
»
L Es
AGO PO GOI,
Cas Cao
294 O Totem da Paz Deixando o Casulo Ancestral EEE 295

— Construir rios é tarefa para os espíritos, e não para os


homens, haviam dito eles na primeira vez que eu sugerira
esta última empresa.
Mesmo assim realizaram a obra em um mês, sem sofrer
nenhuma represália do mundo sobrenatural.
: €- AM
e ” 4 PR Mas o maior desafio que receberam, e o que exigiu maior
£ . o.
E é E amplitude de mente, foi a construção de nossa catedral sawi,
a Jal = Em 1972, o povo de Yohwi regressou ao nosso meio e ergueu
E ALR a
dd
TE suas casas ao longo de um dos flancos da pista. Os homens
de Seremeet também haviam aceitado nosso convite para
construírem suas habitações do outro lado dela, Agora nos-
sa comunidade era constituída de quatro aldeias, com uma
população de cerca de oitocentas pessoas.
Nosso salão de reuniões — que já sofrera reparos para
E)

ampliação de sua capacidade, em duas ocasiões — estava pe-


PRO

queno demais para as reuniões normais, e não acomodava


nem um quinto do povo que afluía para cá duas ou três vezes
Pis

por ano, para assistir aos nossos “banquetes de amor”. Em


os líderes sawis que eram cristãos já estavam começando a tais circunstâncias, tínhamos que realizar a reunião ao ar
observar algumas leis civis, embora ainda existissem mui- livre, ficando, portanto, à mercê do instável clima tropical.
tos incrédulos que preferiam solucionar seus problemas pela Deste modo, fomos nos conscientizando, cada vez mais, da
lei do arco, da flecha, da lança e das adagas. E sempre que os necessidade de uma estrutura maior que pudesse resolver a
oficiais do governo ou patrulheiros policiais penetravam nos questão não só de nossa crescente comunidade cristã de
domínios dos sawis, encontravam uma acolhida respeitosa Kamur, mas também das multidões que acorriam ao nosso
por parte daquelas pessoas, pois elas já haviam sido instruí- meio nos dias especiais, vindas das povoações vizinhas.
das acerca das normas e programas do governo. — Ela deverá ter capacidade para mil pessoas, expliquei
tes aos líderes da igreja sawi. E deverá ter formato circular com
Uma das crenças que os sawis haviam herdado de seu pas- um telhado cônico. Se fizermos de outro modo, não será
sado distante era a idéia de que era loucura realizar qualquer suficientemente forte para resistir às tempestades de mon-
coisa que seus ancestrais não tivessem previamente sanciona- ções, considerando-se seu tamanho e os materiais que te-
do. Naturalmente, já haviamos abalado consideravelmente este mos para utilizar.
hábito arcaico ao contratá-los para levar a efeito a construção Não mencionei nada acerca de nossa falta de equipamen-
de uma pista de pouso, uma ponte de ferro sobre o Tumdu e to pesado, nem da inexperiência dos trabalhadores que esta-
um canal de seis quilômetros de extensão, ligando o Kronkel a riam se empenhando na construção — os crentes sawis — e do
um outro sistema Aluvial que ficava ao norte. encarregado que deveria supervisionar a obra — eu.

DIDO
Deixando o Casulo Ancestral ue a 297

Nos dias que se seguiram, os anciãos da igreja estudaram


minha sugestão cuidadosamente. À decisão achava-se intei-
ramente nas mãos deles, já que o prédio seria propriedade
deles, e não minha, Seriam eles quem teriam o trabalho de
buscar e preparar os milhares de vigas de madeira, dezenas
de milhares de ramagens de sagúeiro para o telhado, cente-
nas de metros de cipó para atar as vigas, e outros materiais
da selva que seriam utilizados no projeto. A única contribui-
ção dos tuans seria os três tonéis de pregos de aço para os
suportes principais, algumas ferramentas para o serviço, al-
gumas folhas de alumínio adquiridas de segunda mão - que
seriam empregadas na confecção da cumeeira, além da su-
pervisão técnica,
Finalmente eles me procuraram,
— OQ senhor acha que temos possibilidades de construí-
lo? indagaram.
- Vocês têm uma longa prática na construção de ca-
sas suspensas em árvores, e creio que conseguirão cons-
truir o templo, respondi. Se não tivessem esta experiên-
cia, eu nem teria apresentado tal sugestão. Este projeto
é apenas uma extensão da tradição iniciada pelos seus
ZANo$

ancestrais.
No domingo seguinte, os líderes da igreja sawi apre-
sentaram um apelo aos crentes no sentido de que cada
homem, mulher e criança desse seu apoio ao empreendi-
mento,
— Se pensarmos apenas em nós mesmos, poderemos nos
ajeitar com um prédio menor, explicou Amhwi, o principal
dos anciãos. Mas nós — e o tuan também — acreditamos que
podemos erguer uma casa maior, que possa abrigar os cren-
tes de outras povoações, assim como seus convidados que
queiram reunir-se conosco, sob o mesmo této, para ouvir a
Palavra de Deus, e desfrutar deste espírito de unidade que o
Senhor nos deu, uma unidade com que nossos antepassados
jamais sonharam.

La NS
Deixando o Casulo Ancestral rag 299

— Será uma casa de paz, na qual nossos antigos inimigos


poderão assentar-se conosco à mesa do Senhor, e uma casa
de oração em favor das tribos que nos cercam e que ainda
estão sem o conhecimento de Deus.
— E neste trabalho não poderemos esperar nenhum tipo
de remuneração do tuan, acrescentou outro ancião, O tuan
trouxe a Palavra de Deus até nós, mas agora temos que assu-
mir a responsabilidade de fazê-la avançar. Aqueles que con-
cordarem com isto devem fazê-lo apenas pelo amor que têm
à Deus e pelo desejo de que outros conheçam sua Palavra.
A reação foi imediata. Logo se ouviram gritos de aprova-
ção partindo de todos os cantos da sala.
- Asvfem! Asyjem! Vamos construí-lo! Vamos construí-
lo! diziam eles.
Após a Ceia do Senhor, todos os crentes se reuniram no
local escolhido para a construção do templo, e se deram as
mãos em círculo. Com um espírito de ávida expectativa, eles
se dedicaram a Deus para a realização da tarefa. No dia se-
guinte, os homens começaram a cortar madeira de lei, para
prepararem as vinte € quatro vigas que serviriam de suporte
para o telhado, Cada uma media cerca de sete metros de
comprimento e pesava quase setenta e cinco quilos. Esta parte
dos trabalhos - uma das mais importantes — levou várias
semanas.
A seguir, os construtores foram procurar nas florestas as
vinte e quatro toras de sereg, cujo comprimento em média
era de treze metros. Estas toras eram destinadas aos caibros
do telhado; cada um destes caibros seria ajustado à extremi-
dade superior de cada viga vertical, e depois colocado em
posição inclinada, em direção à cumecira. Neste ponto do
trabalho, tivemos que fazer uma interrupção — que aliás fora
longamente aguardada — a construção ficou paralisada du-
rante algum tempo.
Recebêramos pelo rádio o comunicado de que um casal
de missionários canadenses, filiados à REMU — John e Esther
00 «ED==> O Totem
da Paz Deixando o Casulo Ancestral «Ef 301

Milss — deveria chegar dentro de alguns dias para participar inclinasse para o norte, os que estavam ao sul, corrigiriam a
de nosso trabalho entre os sawis. Os crentes se espalharam inclinação.
pela mata, em busca de alimento para nossa festa de recep- Em dois dias, todos os pilares com os caibros do telhado
ção. E quando, afinal, John e Esther chegaram, viajando em neles atados achavam-se em seus lugares, sobre nossas ca-
um avião de Asas de Socorro, quase mil sawis foram recebê- beças, apontando para um centro comum. Fiquei ligeiramente
los, e ergueram uma saudação ruidosa, que foi seguida por atônito. Imaginara que as pontas superiores dos caibros fos-
uma grande comemoração. Depois, então, iniciamos imedia- sem arriar, cedendo ao próprio peso, e tinha feito o cálculo
tamente o trabalho de construção de uma nova casa, que permitindo uma certa folga, que me daria a altura final de
seria a residência do casal. treze metros, no seu ponto máximo — a mesma altura das
Encerrada a casa, voltamos nossa atenção novamente para casas suspensas dos sawis. Mas eles não cederam,
o prédio do templo. Enquanto homens e mulheres sawis Devido a alguma característica especial do sereg, cada
continuavam a empilhar centenas de postes preparados, John uma das vigas permaneceu exatamente no lugar, como se
encetóu a tarefa de unir os mastros do telhado às vigas de sua extremidade superior não tivesse peso algum. Isto sig-
madeira de lei, amarrando-os firmemente. Isto feito, demar- nificava que a cumeeira iria ter uma altura consideravel-
camos uma área em forma circular, com cerca de vinte e mente maior que treze metros. Mas eu não sabia ao certo
cinco metros de diâmetro, cavamos os vinte e quatro bura- qual seria a diferença. Os talentos dos sawis para trabalhar
cos para Os suportes com espaços regulares entre um e outro tranquilamente nas grimpas das árvores iria se constituir
ao longo desta circunferência, e assentamos em cada um num fator preponderante para a fase final de nosso traba-
deles a base de cada viga. lho.
Não dispondo das facilidades de um guindaste, tivemos Começou então o segundo estágio da operação, com o
de encontrar um meio de erguer do chão as imensas vigas e processo de ligar as vigas do telhado uma às outras, forman-
segurá-las firmemente no ângulo certo, enquanto outros do um rijo cone, que apresentava uma envergadura de quase
derramavam argila em suas bases. E à maneira como conse- vinte e oito metros de vão, mas era suficientemente resis-
guimos foi a seguinte: amarramos cerca de vinte pedaços de tente para suportar a força das ventanias das monções, que
cipós nas vigas, do méio até o topo, e depois mandamos que algumas vezes atingiam a velocidade de setenta e cinco qui-
alguns homens os segurassem, enquanto outros os empur- lômetros por hora. Lembrei-me de um fato da biografia de
ravam com forquilhas. Depois que cada viga estava parcial- John Patton, um missionário do século XIX, que trabalhou
mente erguida, os homens que seguravam os cipós podiam nas Novas Hébridas:
puxá-las até atingirem posição perfeitamente vertical. “Em pouco tempo a construção (igreja) estava termi-
Eram também os homens encarregados dos cipós que nada, e os aniwans se sentiam muito satisfeitos pela obra
mantinham a viga firme no lugar, sem balançar Sempre que haviam realizado com as próprias mãos. Ela media
que uma delas oscilava para um lado, para O oeste, por cerca de vinte e um metros de comprimento por oito de
exemplo, os dois ou três homens que se achavam a leste largura, é as paredes tinham quatro metros de altura —
puxariam seus cipós, até que ela novamente tomasse po- um prédio útil e prático, que todos haviam esperado du-
sição perfeitamente vertical. Do mesmo modo, se ela se rante anos.
302 O Totem da Paz Deixando q Casulo Ancestral RS 303

uma estrutura forte que não cedia nem ao peso de vinte ho-
mens saltando de um lado para outro, em cima dela.
Naturalmente os caibros do telhado que inicialmente eram
de treze metros, tiveram de ser emendados com outros me-
nores para atingirem o centro do telhado, que se achava a
mais de vinte metros de altura do solo. Aumentamos o diá-
metro do edifício para vinte € sete metros, fazendo uma es-
pécie de aba, que ia além dos pilares de madeira de lei, e
assim a área coberta ficou em quase dois mil metros quadra-
dos.
Mais tarde, fizemos uma pequena torre de alumínio de
seis metros para a cumecira, e a colocamos no lugar, elevan-
do a altura total para quase vinte e sete metros. Esta torre
pesava cerca de cento e trinta e cinco quilos. Levamos mais
ou menos meia hora para erguê-la até o lugar que ocuparia
4 f u l y ME RER Mo no alto da cúpula, arrastando-a sobre uma inclinação de 45º,
“Mas, infelizmente! um furacão varreu a ilha e a igreja foi e encorajados pelos gritos de entusiasmo de centenas de pes-
destruída." soas que se encontravam em terra,
Muito maior seria o risco que correria nosso “templo A seguir, colocamos a cobertura do telhado feita de rama-
sawi”, com uma area básica quatro vezes maior que a do gens de sagúeiro. Isto levou duas semanas.
salão dos aniwans. Depois revestimos o piso do interior do salão com cerca
Desejando fortalecer a concha da cúpula, instruí os ope- de mil metros cúbicos de argila, a fim de elevá-lo um pouco
rários para que pregassem ripas no sentido horizontal, do para que ficasse acima do nível das inundações, na tempora-
lado de dentro e de fora dos caibros de modo que o telhado se da de chuvas. Também o modelamos em forma cônica -uma
assemelhasse a uma gigantesca cesta de fibras entrelaçadas. enorme tigela emborcada. E a área escavada ao sul da igreja
Por medida de segurança, pregamos estas ripas bem próxi- mais tarde se tornaria, na época de chuvas, uma espécie de
mas umas das outras, de maneira que era impossível uma tanque, onde se refletia a figura da grande estrutura.
pessoa cair passando entre elas. Como já se esperava, quan- Para completar o projeto, precisávamos de bancos para
to mais nos aproximávamos do cume, mais rijo sé tornava o mil pessoas assentadas. Não dispúnhamos de serrarias, €
cone, Os sawis estavam admirados de encontrarem-se tra- por isso os crentes sawis tiveram de preparar as centenas de
balhando a uma altura de dezoito ou vinte metros, sobre tábuas à mão.
Em junho de 1972 os crentes fizeram a dedicação deste
edifício de reuniões para a glória de Deus. Embora algumas
vezes precisemos fazer reparos em sua cobertura de sapé, a
* Da biografia de Patton de autoria de Charles D. Michael, intitulada
John Gibson Patton. construção propriamente dita já resistiu a inúmeras tem-
SUS
LG USZUS
LADEIRA PN BOI IO;
PN PS
304 SER = O Totem da Paz

pestades de monções sem ao menos tremer. Os próprios sawis


não sabem que construíram uma estrutura que talvez seja a
maior obra circular do mundo, feita com madeira não traba-
lhada.,
Os antigos hábitos e crenças não mais importunam os
sawis. Estão começando a achar o mundo de seus antepas-
sados extremamente restrito, e por isso estão deixando o
casulo ancestral. Agora, temos novas esperanças que são tão VINTE E SEIS
elevadas quanto o próprio templo dos sawis, e estas esperan-
ças levam-nos a partir em busca de novos horizontes, tanto
religiosos como seculares, embora os meios de que dispo-
nham para atingir estes objetivos ainda sejam tristemente
inadequados.
Post-Scriptum
Entretanto, no âmago deste novo mundo existe algo es-
treitamente relacionado ao seu passado singular — a história
de uma oferenda de paz. É a história de uma criança que, de Seis homens asmates estão deitados de bruços, um ao lado
uma forma toda especial, se tornou a sua oferenda de paz, do outro, sobre uma esteira, no centro da sala da casa dos
uma criança-oferenda que é o cumprimento de um mito do homens da aldeia. Três deles são habitantes da povoação e
passado e uma orientação para o seu futuro. Ela é a força frequentam a casa regularmente. Os outros três são antigos
sustentadora da segunda pilastra que na realidade deveria inimigos, de uma aldeia distante, que vieram até ali para um
ser sempre a primeira, acordo de paz. As seis esposas dos seis homens também se
acham presentes, de pé no meio deles, cada uma com um dos
pés sob o tórax do marido e o outro sob
a bacia, enquanto seus
calcanhares tocam o peito e o quadril do homem que está
deitado próximo ao seu marido e às costas dela.
Depois, entram na casa os anciãos das duas aldeias, con-
duzindo seis crianças, três de cada um dos povoados que
promove o acordo. As crianças, olhos arregalados, estão be-
lamente adornadas com braceletes entrelaçados e borlas de
fibras de folha de sagúeiro. Uma a uma, elas são instruídas a
se deitarem de bruços e se arrastarem por dentro deste túnel
humano, passando sobre as costas dos homens e entre as
pernas das mulheres, À medida que cada uma vai saindo no
final do “túnel”, alguém a carrega e a embala como se fosse
um recém-nascido,
306 O Totem da Paz
Post-Seriptum ARES 307

Ainda hesitante, o missionário se encaminha até a porta


para verificar o uso desta nova combinação de palavras. Er-
gue as mãos pedindo silêncio e depois grita numa linguagem
ligeiramente vacilante:
— Viemos trazer-lhe ki wone, as palavras de vida!
Ele não sabia que com aquela única sentença podia
deflagrar uma revolução. No início foi quase imperceptível,
pois os jovens € as crianças não estavam prestando atenção
às palavras deste estrangeiro que viera de um lugar distante,
mais distante que as montanhas mais distantes.
Mas alguns dos mais idosos entenderam a mensagem.
Velhos sábios de cabeça grisalha viraram-se e fitaram o ho-
mem branco, pestanejando espantados como se tivessem
acabado de despertar de um sono que durara séculos. Nas
profundezas de seu ser, uma mola que estivera encolhida
durante eras começou a se distender, pondo em movimento
Esta passagem formada pelos corpos dos seis homens e um mecanismo que os conduzia à reflexão. Lábios entrea-
das seis mulheres é uma representação simbólica de um ca- bertos, eles principiaram a repetir as palavras que lhes traziam
nal de parto comunitário, através do qual três crianças de
a mensagem que demorara tanto a chegar. Estremecendo de
cada grupo encenam um novo nascimento e pelo qual pas-
vibração, e apoiando-se em bastões, os sábios passaram a
sam a pertencer à aldeia inimiga. Enquanto viverem, elas se conferenciar entre si,
constituirão num traço de união vivo ligando as duas comu- — A pele dele é como a pele nova de uma cobra que des-
prendeu o couro velho, disse um deles.
nidades, evitando assim a guerra.
— E ele está falando de ki wone! acrescentou outro.
Paz — através de um novo nascimento,
— Está acontecendo exatamente o que nossos avós disse-
term
ram que aconteceria! comentou um terceiro.
Um missionário que trabalha entre os danis ocidentais
— Quando a imortalidade voltar para a humanidade, os
de Irian Jaya (novo nome dado pelo governo indonésio à an-
primeiros a aprender seus segredos serão homens que virão
tiga Nova Guiné Holandesa ou Irian Ocidental) acaba de
de uma terra que fica do outro lado das montanhas. Chega-
descobrir a forma de reunir dois vocábulos muito importan-
rão até aqui é revelarão o segredo para nós. A pele deles é
tes. Um deles é ki |vida). O outro é wone (palavras),
branca porque estão constantemente sendo renovados como
Junto à entrada de seu gabinete de estudos, do lado de
as cobras. Prestem bastante atenção ao que disserem senão
fora da porta, está sentado um grande número de danis, de
o nabelan-kabelan — minha pele, sua pele) ou a imortalida-
aspecto feroz, seus ornamentos de presas de porco e de con-
de, passará de largo por vocês.
chas cauri brilham sobre o fundo escuro de sua pele, a cabe-
Agora O missionário já se encontrava ocupado com ou-
leira enegrecida de fuligem.
LESSA a? a? a? a? a? A, a? A “ -
308 EA O Totem
da Paz Post-Scriptum Enf 309

tras tarefas, ainda ignorando o despertamento que estava a sam se desvanecer ao surgimento radioso da glória divina,
elevar à tensão do grupo que o cercava. Naquela noite, quan- depois de haverem cumprido a missão que Deus lhes deter-
do o vale inteiro rompeu em cântico, ele começou a se inda- minou.
gar que tipo de comemoração estaria sendo realizada. Somente aqueles que forem até onde estas analogias es-
No dia seguinte, pela manhã, milhares de danis cercaram tão, e as pesquisarem, é que poderão encontrá-las.
sua casa, perguntando: teus
— Oque devemos
fazer para receber estas palavras
de vida? Stephen, Shannon e Paul se achegaram mais para junto
tes de Carol que lia uma história de um livro já bem antigo e
As analogias da redenção ou fatores de ligação que Deus puseram-se a escutar atentamente, Era a história da volta do
concede ao homem são a forma aprovada pelo Novo Testa- Filho Pródigo.
mento, para à transmissão do evangelho de uma cultura para — E o filho voltou para a casa de seu pai. Este
o viu de
outra. E somente no Novo Testamento encontramos a fór- longe e saiu correndo a encontrá-lo. Agarrou-o pelo pescoço
mula certa para discernimento e para nos apropriarmos de- e beijou-o, e o filho começou a chorar.
las, uma fórmula que devemos aprender a aplicar. Neste ponto ela fez uma pausa e perguntou:
Algumas dessas analogias se evidenciam nas lendas e re- - Shannon, por que será que o filho chorou?
gistros antigos. Olenos, o portador do pecado; Balder, o ino- Os olhos azuis de nosso filho arregalaram-se por um
cente, morto por cães de caça, e no entanto destinado a go- momento enquanto ele ponderava na pergunta. De repente,
vernar o novo mundo; o homem justo, idealizado por ergueu os olhos brilhantes e disse:
Sócrates; o deus desconhecido dos atenienses, uma analogia — Porque o pai o agarrou pelo pescoço.”
que aliás foi aproveitada pelo apóstolo Paulo; o Logos dos Carol, Stephen e eu caímos na risada, enquanto Shannon
gregos, aproveitado pelo apóstolo João; o cordeiro do holo- e Paul nos fitavam espantados, sem compreender.
causto, dos judeus, aplicado por João Batista e por Paulo. Lá fora soaram as notas suaves de uma corneta de bam-
Existem ainda outras analogias da redenção, incrustradas bu. Amhwi convocava os crentes para a classe bíblica notur-
e escondidas em culturas do presente — em estado dormen- na, Deixei Carol e os garotos ali para terminarem a história,
te, encoberto, latente — tais como o tarop e as palavras de atravessei o gramado banhado de luar e segui juntamente
remon dos sawis, o nabelan-kabelan, a esperança de imorta- com as outras pessoas que se dirigiam para a classe. Sentei-
lidade dos danis, tão arraigada no coração da tribo e a ceri- me no fundo da sala superlotada, e fiquei a ouvir o dirigente,
mônia de novo nascimento dos asmates. Existem ainda ou- Ele leu um pequeno trecho das Escrituras, à luz de uma lan-
tras que falam de um lugar de refúgio, e lendas que evocam
a queda do homem, o dilúvio e uma escada que une céus €
terra.
* No original inglês, as palavras usadas na descrição do gesto do
E quantas outras haverá ainda, aguardando que alguém são de linguagem antiga, “He fell on his neck”, e siificariam, do Déda
pai
as descubra, esperando o momento de serem usadas para a letra, Ele caiu sobre o pescoço”, e deram à criança & impressão de que o
libertação daqueles que crêem nelas? Estão esperando que E O are abr a noto que pedi ai que O pal atitc g6
tra O e abraçou-o pelo pes De coç
tal confusão
o,de idéias
alguém as substitua pela mensagem de Cristo, para que pos- deriva a graça da história. (N. da T) a
” A a? a? us? e a? a, a, a? e, nz o
SCG ST SZ ISLAS
so FEbS>> O Totem da Paz Post-Scriptum <a at!

terna, e depois passou a dissertar sobre ele. Fiquei a ouvi-lo, estas lembranças me conduziram para um trilho estreito que
observando admirado a ilustração que ele apresentava. seguia em direção do Tumdu.
- Lembram-se do que Kaiyo dizia às pessoas que amea- Segui por ele até 0 seu termo, um ponto elevado do terreno,
cavam romper a paz que ele estabelecera? Ele apontava para bem ao lado das águas quietas do rio. Baixei os olhos, fitando o
a criança tarop, e explicava: “Se este menino tivesse morri- capim kunay que agora se mostrava molhado pelo orvalho, pen-
do, então vocês poderiam fazer o que quisessem. Mas ele sando nos dois homens que ali estavam sepultados. Dois ho-
não morreu. Ainda está vivo e eu sou o defensor da paz, mens que eu aprendera a amar profundamente. Dois homens
responsável por ela. Ninguém pode quebrá-la. Minha mão é que, dura sua existência
nte , muitas vezes hav meiam
fitado com
forte” uma capacidade de compreensão bem raras nesta terra.
- Portanto, se alguém vier tentar-nos para praticar o mal, Um deles era Kayio, Fora morto havia quatro anos, víti-
podemos dizer-lhe: “Olhe, Deus colocou em meu coração o ma de um repentino surto de violência que irrompeu dentro
Espírito de seu Filho, a sua oferenda de paz. Se este Espírito dos limites de Kamur. Mas as lições que ele me ensinara
de paz houvesse morrido ou ido embora e me abandonado, persistiam.
eu estaria livre para praticar o mal, mas ele não está morto, O outro? Recordei o momento, três anos atrás, quando
nem me abandonou. Ele ainda vive em meu coração para eu e Carol regressávamos de uma viagem e ficamos sabendo
conservar-me no caminho do bem. E sua mão é forte! Não que Hato falecera de pneumonia, durante nossa ausência.
posso praticar este mal que você sugere.” Ele se fora tão rapidamente!
A reação dos ouvintes foi entusiástica, Aquele estranho, de um olho só, que fora o primeiro a
— Estas palavras são certas, dizia um. tocar meu braço, naquele mesmo local rodeado de vegeta-
— É. Vamos todos responder assim, falava outro. ção, que depois se tornara o meu lar; o amigo que confiara
Ou então: em mim mesmo em situações que não entendia bem; o ho-
— Nós entendemos! mem segquioso que tão prontamente apreendeu o sentido do
- E por que não estamos observando mais o cerimonial Mistério que desejava conquistá-lo.
do tarop entre nossas aldeias? continuou Amhwi. É porque As eras precedentes haviam transformado tanto os ho-
Deus se sentiria ofendido. Ele perguntaria: “Será que minha mens, que éramos completamente estranhos um ao outro.
oferenda de paz, o meu Filho, não basta? Vocês pensam que Entretanto, a providência nos aproximou. Por quê? Para de-
precisam dar seus filhos uns aos outros, depois que já dei o monstrar que Cristo é o cumprimento do verdadeiro ego de
meu?” cada homem.
Sem fazer ruído, saí da sala para o ar fresco da noite, e Virei-me e afastei-me lentamente dos dois túmulos sem
encaminhei-me para casa, Pouco depois, passava pela pe- identificação, e passei a caminhar ao longo da relva que
quena coberta que me servia de gabinete de estudos, e onde margeava o Tumdu. Uma paz enorme parecia permear tudo
trabalhara horas incontáveis, com os intrincados meandros e todas as coisas. Parecia descer nos raios de luar; parecia
da língua sawi, e onde agora laborava na versão do Novo brilhar na cintilação das estrelas e entre os reflexos da água,
Testamento para 0 idioma deles, presentemente nos capítu- Parecia vibrar no canto dos pássaros, e no eco da voz de
los finais. Recordações começaram a afluir-me à mente; € Ambwi, agora distante.

CODES,
» ma

o TED O Totem da Paz

Ela trouxe, à minha memória, a lembrança de uma outra


voz que, embora houvesse sido silenciada pela morte, ainda
ecoava, vinda daquele mundo diferente, de onde nós viéra-
mos; a voz firme e apelativa de um ancião de cabelos bran-
cos:
“Vocês encontrarão muitos costumes e crenças que irão
confundi-los, mas que precisarão compreender...
“O Senhor está ansioso para estabelecer seu reino de amor
naquelas plagas sombrias onde agora habita apenas a cruel-
dade...
“Quem irá?”

Lembrei-me de como todo o meu ser respondeu com uma


certeza que não dava lugar a qualquer outra opção:
“Eu irei!”
Estendi o braço para abrir o portão, e, quando o toquei,
senti-me inundado por uma alegria imensa — uma alegria
“que não era apenas minha,

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