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Copyright © 2021 Jaymin Eve

Capa
Tamara K

Copy Desck
Patrícia Trigo

Revisão
Débora Ratton

Tradução inglês-português
Carolina Brazil

Diagramação
Mylene Ferreira
1º Edição
Livro Digital
Selo Portal
Eve, Jaymin

Todos os direitos reservados.


É proibido o armazenamento ou a reprodução de qualquer parte desta obra, qualquer que seja a forma
utilizada – tangível ou intangível, incluindo fotocópia – sem autorização por escrito do autor.
Esta é uma obra de ficção. Nomes de pessoas, acontecimentos e locais que existam ou que tenham
verdadeiramente existido em algum período da história foram usados para ambientar o enredo.
Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.
Dedicatória
Sinopse
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e três
Trinta e quatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Quarenta
Quarenta e um
Quarenta e dois
Quarenta e três
Quarenta e quatro
Quarenta e cinco
Quarenta e seis
Quarenta e sete
Quarenta e oito
Quarenta e nove
Cinquenta
Cinquenta e um
Cinquenta e dois
Cinquenta e três
Cinquenta e quatro
Cinquenta e cinco
Cinquenta e seis
Cinquenta e sete
Cinquenta e oito
Carta da Autora
Dedicatória

Para todos que sonhavam em ser sequestrados pelo diabo. Porque estamos fodidos de qualquer
forma.
Abrace sua escuridão
Sinopse

Best-seller nº 1 da Amazon americana!


Um romance dark, best-seller do Wall Street Journal e do USA Today.

Quando seu pai tentou matar o lobo alfa do bando, Mera passou a ser excluída, rotulada de traidora,
tratada pior que lixo.
Ela decidiu fugir da alcateia, mas seus problemas ficaram ainda piores quando foi arrastada de volta
pouco antes da primeira transformação.
O tão esperado momento que mudaria para sempre os seus dias foi um desastre. Quando a conexão
aconteceu e seu verdadeiro companheiro se revelou, tudo saiu de controle.
Mera nutria a esperança de um futuro melhor assim que sua loba fitasse sua cara-metade. Mas estava
completamente enganada. Ser rejeitada pela sua alma gêmea foi apenas o começo.
Ao ser desprezada, sua alma gritou por vingança. De alguma forma inexplicável, tocou o mundo das
sombras invocando criaturas horripilantes... como o temido Shadow Beast, o deus criador dos
metamorfos ou, para alguns, o próprio diabo.
Taciturno, sombrio e poderoso, Shadow Beast veio à Terra para descobrir quem estava acessando o seu
mundo. Arrancou Mera de sua alcateia, mantendo-a como refém em seus domínios.
A loba tinha noção de que a besta era mais um diabo do que um anjo, no entanto não conseguia evitar a
atração que sentia.
Ele poderia ser o maior demônio dos mundos sombrios, mas sem dúvida nenhuma era sexy.
Cativa do deus que deveria adorar e temer, agora Mera precisará de toda sua força para resistir ao
demônio.
Um
“Das cinzas, a fênix se erguerá”. Reli essa frase do meu trabalho da
faculdade. Literatura Inglesa tinha nos atingido com nossa primeira grande
tarefa do ano: pediram-nos para discutir em detalhes um romance que
continha algumas falhas graves. Em primeiro lugar, seu uso constante de
alegorias para incutir "significado" na história me deixou louca. Sem
mencionar a prosa. Olha, cara, não me leve a mal, na história certa, eu estaria
maravilhada com o uso impressionante de palavras, com frases fluindo em
um círculo de emoções e luz, fazendo meu coração acelerar e o cérebro
vibrar. Nesse caso, porém, eu queria gritar para o autor apenas chegue ao
ponto, merda.
Minha mãe sempre disse que eu não poderia ser filha dela, porque ela
tinha nascido das estrelas e raios lunares e eu tinha nascido de fatos e
números. Seja lá o que isso signifique. Provavelmente que ela teria gostado
desse romance da Literatura Inglesa — se ela não estivesse bêbada, é claro.
Se fosse por mim, eu não teria escolhido essa história, mas o relatório tinha
que ser feito.
Eu escrevia melhor com uma conexão, então procurei por uma e
encontrei naquela linha. Ela correu repetidamente em minha cabeça,
consumindo meus pensamentos e dominando meu dia. Tudo porque não há
nada que eu adoraria mais do que me levantar das minhas próprias cinzas.
Com vinte e dois anos de idade, veterana na faculdade e nascida no
mais poderoso grupo de metamorfos do mundo, a vida deveria ter sido rosas
e chocolates. Ou estrelas e raios lunares... se eu quisesse piorar as coisas um
pouco mais. E talvez tivesse sido se meu querido velho pai, também
conhecido como Lockhart Callahan, não tivesse decidido morrer desafiando o
alfa, fazendo assim a minha família persona non grata. Nós éramos piores do
que merda nesse bando, e a única razão pela qual ainda estávamos ali, de
acordo com minha mãe, era porque conhecer seu inimigo era melhor do que
tentar fazer outros lá fora como lobos solitários. Um fato sobre o qual eu
tinha dúvidas.
— Mera!

O grito bêbado da mamãe me lembrou que eu a estava evitando essa


manhã. Ela queria dinheiro e o meu, suado, estava escondido por uma razão:
no momento em que eu me transformasse pela primeira vez e tivesse controle
sobre minha loba, sairia dali.
Só mais algumas semanas — pensei. Todos os metamorfos se
transformaram pela primeira vez, sob a lua cheia do solstício de inverno, no
ano de seu vigésimo segundo aniversário. Já era novembro, eu tinha
silenciosamente feito vinte e dois anos no mês passado e, muito em breve,
seria capaz de escapar da maldita bagunça que era essa cidade.
Jogando meu velho tablet dentro da minha mochila surrada, deslizei
uma alça sobre o ombro e pulei pela janela, aterrissando graciosamente no
chão. Nosso apartamento de dois quartos ficava em um ponto comercial no
meio de Torma, uma cidade à beira das montanhas de Santa Cruz, na
Califórnia. Todo o território era propriedade do bando e nosso alfa era o alfa
de todas as alcateias americanas, o que nos tornava os melhores. Isso de
acordo com aquele idiota hipócrita. Pessoalmente, Torma era minha própria
versão do inferno na Terra, e eu mal podia esperar para me livrar dela.
A caminho da escola, segurei forte a mochila e baixei a cabeça para
não chamar a atenção. O saco de pancadas do bando faria bem em não se
anunciar. Fique invisível. Mantenha-se viva. Sobreviva mais um mês.
E levante-se das cinzas.
Dois
Havia apenas um colégio em Torma. A escola Pack. Ela abrangia
desde o jardim de infância até a faculdade. Eu a vinha frequentando desde a
primeira série e como nunca tinha deixado essa cidade — obter permissão
para sair era uma missão por si só — tinha exatamente uma única amiga
com que contar, considerando meus muitos anos presa ali.
— Ei, garota — Simone gritou enquanto eu caminhava pelo portão da
frente, subindo meu caminho pelo jardim.
— Oi, sim — eu disse, chegando ao seu lado em um segundo. — Vejo
que ainda está trabalhando nessa trança.
Simone tinha um cabelo fantástico; ele caía direto até sua cintura,
volumoso e tão preto que quase parecia azul à luz do sol. Ela adorava
experimentar penteados e nas últimas semanas estava tentando uma trança
rabo de peixe. Tentando é a palavra exata.
Seu rosto tão expressivo logo mostrou irritação.
— Por que diabos é tão difícil? — Ela gesticulava para onde a maioria
dos fios já tinham caído soltos. — Eu assisto aos vídeos on-line e essas
cadelas trançam os cabelos até a bunda em cinco segundos, com apenas uma
mão enquanto se filmam, pelo bem do metamorfo. Quer saber, tudo besteira.
Soltei algumas risadas, elegante como sempre.
— Continue trabalhando nisso. Eu definitivamente acho que você está
melhorando. — Mentiras brancas mantiveram o mundo girando, certo?
Ela me lançou um olhar de eu sei o que você está fazendo, mas
obrigada por ser uma grande amiga enquanto caminhamos para a entrada da
escola. Quem quer que tenha construído essa monstruosidade de tijolos em
1847, não tinha pensado muito em praticidade, porque ninguém projetaria
algo para ser tão feio como esse prédio achatado e deprimente, a menos que
esse fosse o estilo mais fácil na época. O único detalhe que salvava eram os
jardins revestidos de madeira, cheios de flores e ervas, que cercavam o
perímetro. Uma pobre tentativa de encobrir o fato de que o prédio precisava
ser demolido e construído novamente.
— Não tenho certeza se posso ficar aqui por mais um ano. — Simone
suspirou, fechando os olhos castanho-escuros dramaticamente. — Quero
dizer, é legal nos impedir de viajar e conhecer novas pessoas? Estou cansada
de todos esses idiotas.
Ela não era a única, mas, legalmente ou não, não podíamos colocar um
pé fora de Torma sem permissão. O que nos deixava presas aqui, com os
mesmos metamorfos com quem crescemos. Metamorfos que eu odiava.
— Eu não teria esperanças em sair até me transformar e aprender a
controlar a fera — eu disse, repetindo a regra principal enquanto segurava as
portas de vidro do prédio para entrarmos.
Pessoalmente, eu não estaria pedindo permissão, mas Simone, ao
contrário de mim, tinha boa posição ali, graças ao lugar de seus pais no
bando: executores das leis do alfa.
Ela soltou outro suspiro exagerado.
— É verdade. Mas, no momento em que isso acontecer, sairemos em
uma viagem épica. Eu já tenho tudo planejado.
Não tive coragem de lhe dizer que estaria longe antes de isso acontecer.
O aniversário de Simone não seria antes de janeiro, o que significava que ela
ainda tinha mais de um ano até a sua primeira transformação, perdendo assim
o solstício de inverno desse ano.
Eu não podia esperar por ela, e não lhe pediria que fosse uma loba
solitária... A maioria deles se tornou um vira-lata nos primeiros anos,
perdendo completamente o controle de sua fera. Vira-latas sempre foram
derrubados pelos bandos, mas para mim era um risco que valia a pena correr.
De um jeito ou de outro, eu seria derrubada, fosse vira-lata ou não. Era
só uma questão de tempo, então por que não me dar pelo menos uma chance
de lutar no mundo real?
— Então — disse Simone, mudando de assunto rapidamente — seu
cabelo... Quero dizer, nós vamos falar sobre ele, certo?
Alcançando-o, tentei passar a mão pelo ninho de pássaro que eu tinha
crescendo em cima da cabeça.
— Merda, esqueci de escovar. Tive que sair daquela caçamba de lixo
correndo hoje de manhã.
Ela me examinou mais de perto.
— Olha, normalmente não dou a mínima nem para o meu próprio... —
Acenou com a mão em direção a sua "trança". — Mas hoje você se superou.
Droga. Havia um banheiro ali perto, então eu entrei e Simone me
seguiu.
Meu cabelo era longo e ondulado, um tipo de onda estúpida que não era
bem um cacho, mas tinha definição suficiente para fazê-lo parecer
constantemente indisciplinado. E era vermelho, a única ruiva na alcateia, para
fazer me enturmar tão mais fácil.
— Você me deixaria cortá-lo? Ou Daphne — sugeriu Simone
inutilmente.
Rangendo os dentes, balancei a cabeça.
— Você sabe que eu não posso gastar cinquenta dólares em um corte.
Tirando o rabo de cavalo, passei os dedos por ele algumas vezes.
Simone parou para ajudar também e, eventualmente, nós o domamos.
— A cor ainda é a tonalidade mais impressionante que eu já vi —
murmurou, passando os dedos através de alguns fios soltos.
Era uma cor incomum, isso era certo. Um borgonha profundo no couro
cabeludo, clareando em um efeito ombré, para acabar loiro nas pontas. Sutil e
natural — e estranho pra caralho.
A história da minha vida, sendo esse mais um motivo para eu ser o
show de horrores do bando. Obrigada, pai.
Ouvimos o som dos alunos passando pela porta e, assim que alguns
calouros entraram no banheiro, nós fugimos. Eu não poderia ficar em
qualquer espaço confinada por muito tempo ou acabaria perdendo a cabeça
com essa porcaria.
O corredor estava lotado, então abaixei a cabeça e segurei a alça da
mochila mais firmemente.
— Você conseguiu terminar a tarefa? — perguntei a Simone, que
estava me bloqueando parcialmente, para que pudéssemos manobrar através
dos alunos metamorfos.
Ela acenou com a cabeça e suspirou simultaneamente.
— Quero de volta as vinte horas da minha vida que eu passei lendo
essa merda, mas... — afirmou ela. — Tipo, foi pior do que aquele da ilha
onde todas as crianças se transformaram em idiotas selvagens.
Eu tremi.
— Odiava esse também. Estou começando a pensar que não sou ligada
a nada com muito realismo.
Ela piscou para mim.
— Você acha que foi realista?
— Meio que me lembra de como nosso bando é liderado — eu disse
tentando, e falhando, soar blasé.
Simone me olhou de lado, antes de menear a cabeça.
— Eu não posso nem discutir com você. É uma ditadura, mas é por isso
que os metamorfos não se transformam em vira-latas. Lobos precisam de um
alfa poderoso, ou nos corrompemos e nossa fera assume o controle. — Seu
rosto se entristeceu. — Não que eu saiba como é isso, tenho que esperar mais
um maldito ano para me transformar.
Dizer que Simone estava chateada por nossa primeira transformação
não acontecer ao mesmo tempo seria um eufemismo, mas a regra tinha sido
passada do criador original até a nossa geração. O deus sombrio que
adoramos, Shadow Beast, determinou como seria e isso não podia ser
anulado.
Lobos tentaram adiantar a transformação no passado, mas ninguém foi
bem-sucedido. É definitivo, chame isso de puberdade do lobo. Talvez porque
envelhecemos lentamente e podemos viver por algumas centenas de anos a
mais que os humanos. Ou talvez, apenas, a fera tenha gostado da idade de
vinte e dois anos. Ninguém conheceu o demônio da nossa espécie para
perguntar a ele.
— Eu quero tanto isso — continuou Simone. — Mas também estou
surtando com a questão da dor. Você sabe como é ruim quando quebro uma
unha, e isso é como...
— Quebrar todos os ossos?
Ela estremeceu.
— Menina, você poderia pelo menos tentar amenizar pra mim?
Eu dei de ombros.
— A dor não me incomoda como antes. O que eu tenho medo é de não
ser capaz de me relacionar com o lobo. E se ela me rejeitar?
Como todas as outras pessoas da minha vida. Sim, eu sei, todos nós
tivemos uma história triste — repeti mentalmente, fungando.
— Não vai — disse Simone com força. — Ela vai te amar, e você vai
caçar coelhos, e será como ter seu segundo melhor amigo embutido em você
para toda a vida.
Ninguém poderia substituir Simone no lugar de melhor amiga número
um, evidentemente... Nem mesmo uma entidade com quem eu compartilhava
a alma.
— Tenho quase certeza de que terei o controle na terceira
transformação — acrescentou Simone, balançando os ombros em uma dança
confiante. — Eu sinto isso.
— Não tenho nenhuma dúvida — eu disse dando significado a cada
palavra.
As duas primeiras transformações sempre são uma bagunça completa,
pois, quando a fera assume, nosso lado humano mal se lembra de nada. A
maioria consegue o controle depois da virada quatro ou cinco, mas eu não iria
relembrar Simone disso e acabar deixando-a para baixo depois do número
três. Ela estava tão determinada.
De qualquer forma, falando por mim, assim que eu tivesse o controle
da minha loba, fugiria dessa porra de cidade.
E nem olharia para trás.
Assim que passamos o corredor principal de armários dos veteranos,
um grupo familiar apareceu em nosso campo de visão. Era fácil detectá-los,
já que os alunos se separaram ao longo do corredor, abrindo passagem para
eles como se fossem da realeza.
Eu supunha que eles eram.
Simone os viu ao mesmo tempo que eu.
— Corra! — ela sussurrou duramente, empurrando-me para a saída
mais próxima.
Mas era tarde demais. Eles me viram, e eu não podia fugir deles.
Especialmente dos dois que já tinham passado pela transformação: Torin
Wolfe e Jaxson Heathcliffe.
Por que diabos eles estavam na faculdade? Eles se formaram no ano
passado, mas, por alguma razão insana, não iam embora.
— Fique!
O comando veio de Torin, futuro alfa do bando Torma. Seu pai, Victor,
nos governava havia cinquenta anos, sem nenhum sinal de que iria se
aposentar. Quero dizer, o fato de ele ter mudado o próprio sobrenome para
Wolfe dizia tudo o que era preciso saber sobre como ele se via e a sua posição
no mundo dos metamorfos.
E Torin, o precioso único filho, era o futuro alfa. Com esse poder, ele
poderia comandar os lobos do bando. Não que de maneira geral precisasse de
ajuda para controlá-los, especialmente as metamorfos, tudo graças aos seus
olhos verdes brilhantes, cabelos escuros cor de chocolate, e o tipo de
mandíbula bem esculpida sobre a qual as histórias de amor eram escritas.
Para mim, porém, ele era um romance de terror, meu pior pesadelo.
Dois dos três se aproximaram, e meu estômago girou enquanto eu me
preparava para o que estava por vir. Embora o comando de Torin fosse
responsável por deter meus passos, agora ele se afastava para deixar seus
amigos se divertirem. Na verdade, Torin nunca havia me machucado
diretamente, mas também não impedia os outros, e isso era tão ruim quanto,
na minha opinião.
Sisily Longeran, a garota alfa do meu ano na escola, começou a me
cercar.
— Mera Callahan — desdenhou —, a cadela ruiva do nosso bando.
Ela adorou enfatizar que eu era a única ali que possuía aquela cor de
cabelo. O resto da alcateia se encontrava em algum lugar entre loiro-mel e o
preto mais escuro das madeixas de um corvo, com todos os tons de cor de
pele incluídos. Eu tinha pele bronzeada e olhos castanhos, o mesmo que
muitos outros, mas meu cabelo...
Um sinal de pare gigantesco anunciando minha presença.
— Sisily Longeran — eu atirei de volta —, a namorada do próximo
alfa. Você e Torin vão fazer bebês tão bonitos.
Lindos, pequenas merdinhas malvadas, mas eu me abstive de
mencionar isso.
O sorriso de Sisily se espalhou enquanto ela se aproximava de Torin.
Eles realmente eram lindos juntos, com sua juba castanha perfeita e olhos
azuis brilhantes tão marcantes quanto sua coloração.
No momento em que ela se transformasse pela primeira vez, depois da
lua do solstício, o vínculo tão esperado entre os dois iria se firmar, e eles
realmente sentiriam essa ligação. A conexão com o companheiro é toda pré-
ordenada. Uma porra de milagre mágico.
Eu tinha um parceiro lá fora também, mas, se fosse algum dos idiotas
na minha alcateia, eu preferiria arrancar meu próprio braço fora com os
dentes.
Sisily parou de flertar com o quase alfa e voltou para mim. Seu
perfume de jasmim, mirtilo e limão envolvia o ambiente junto com ela, e eu
quase sufoquei. Esse cheiro era a assinatura dela, feito pelo Thomas, o mestre
boticário, que artesanalmente produzia todos os nossos produtos de pele, para
que não reagíssemos aos aditivos químicos humanos. E eu odiava a ponto de
ficar nauseada.
Pelo menos o cheiro geralmente me avisava que ela estava por perto,
para que eu pudesse escapar. Mas naquele dia, não.
Ela desnudou os dentes, o peito roncando, e eu, sabendo o que estava
por vir, me preparei enquanto ela me batia contra os armários. Toda a fila
estremeceu sob o ataque, e o calor queimou ao longo das minhas costas. Os
metamorfos curam-se rápido, mas eu não teria essa habilidade até que minha
fera fosse liberada, então, por enquanto, tinha que sofrer e me curar
lentamente, quase como um humano.
— Você é patética — ela cuspiu. — Fraca.
— Como quiser — eu respondi, devolvendo a ela um sorriso sombrio.
O que ela chamava de fraca, eu chamava de ficar viva até poder escapar
deles. Uma alcateia inteira contra um lobo? Sim, quem poderia ganhar com
essas probabilidades?
Eu tinha revidado no início, mas isso só piorou as surras. Então agora
eu escolhi crescer mental e emocionalmente, e ficar mais forte, forjada no
fogo de meu ódio, o tempo todo aguardando até a hora em que eu fosse livre.
— Deixe-a em paz — Simone gritou, incapaz de chegar a mim; Torin
estava deliberadamente em seu caminho.
— Simone, está tudo bem — eu disse, forçando-me a soar tranquila. —
A mana aqui é superdesajeitada; estou acostumada com ela tropeçando e
caindo em mim.
Os rosnados da Sisily ficaram cada vez mais ameaçadores, mas eu não
dei a mínima.
— Pare com isso! — Simone tentou de novo, e realmente desejei que
ela fizesse isso.
Como eu lhe disse muitas vezes, não havia necessidade de nós duas
sermos um alvo. Eu nunca me perdoaria se algo acontecesse com ela.
Felizmente, a posição dos pais dela no bando a salvou do pior tipo de
ataques de bullying, mas alguns valentões ainda encontravam pequenas
maneiras de puni-la por me ter como amiga.
Que porra de amiga leal que ela era; eu mal a merecia.
— Cale-se, Simone — disse Sisily sem desviar o olhar de mim. — Ou
você vai se juntar a sua amiga mestiça, vira-lata.
— Mestiça e vira-lata — eu disse com uma risada forçada. — E, na
semana passada, eu também era uma puta. Quero dizer, minha mãe está
superorgulhosa de mim. Só para você saber.
Suas mãos se fecharam em punhos quando ela veio para quebrar meu
nariz novamente — movimento assinatura dela —, mas foi parada por Jaxson
Heathcliffe.
Meu algoz favorito.
Meu mais velho amigo fora Simone.
Mesmo que definitivamente fôssemos mais inimigos nessa época.
— Eu pensei que tinha dito para você desistir de vir às aulas. —
Inclinando-se para perto, ele deslizou o dedo pela minha bochecha.
Era um movimento gentil, mas a escuridão se formando em seus olhos
cor de café falava de algo diferente.
Um sorriso alegre cruzou meu rosto.
— Disse? Tentei, mas meus professores estavam todos “você vai
repetir de ano” e “vou arrancar seu coro e fazer uma coberta de pele vermelha
para a minha cama”, então eu decidi que talvez não aparecer fosse má ideia.
Porque. Era. Não sou espertinha?!
Honestamente, essa faceta da minha personalidade ia me matar. E eu
não precisava de ajuda nesse departamento.
Jaxson me apertou contra os armários, e a queimadura nas minhas
costas aumentou, mas não fiz barulho. Inclinando-se, ele passou o nariz pelo
meu pescoço, fungando. Nunca tinha feito isso antes, e eu me perguntava se
esse era o momento em que os pecados do meu pai finalmente me
alcançavam e minha garganta seria arrancada.
Quando ele se afastou, seus olhos brilharam, e eu engoli meu próximo
comentário estúpido, escolhendo não encarar, em vez de me focar em seu
rosto. Minha expressão era desafiadora, porque eu nunca admitiria estar
errada para ele. Nunca.
Jaxson era lindo, com pele morena, cabelo preto meia-noite, e um
corpo esguio que não escondia sua força. Fazia sentido que ele fosse o
melhor amigo do futuro alfa. Eles tinham um olhar semelhante — o modelo
dos machos metamorfos tanto em dominância quanto em boa aparência.
Personalidade sábia, porém eles eram repulsivos, pequenos idiotas
retardados.
— Meu pai queria matar você e sua mãe — Jaxson murmurou,
respirando sobre minha bochecha.
Foi a primeira vez que ouvi aquilo, então prestei atenção. Nossos pais
eram melhores amigos, segundo e terceiro na linha do alfa, homens
poderosos e confiantes. O pai do Jaxson foi quem estripou o meu, apenas
alguns segundos depois de ele tentar matar Alpha Victor.
Sem perguntas. Sem julgamento.
— Por que você não deixou a faculdade? — Jaxson me empurrou
novamente. —A verdadeira razão?
Eu o empurrei usando toda a minha força, sem que ele se movesse um
centímetro sequer.
— Que merda aconteceu com você? Nós éramos amigos!
Quando seus pais são melhores amigos, é lógico que vocês crescerão
juntos. Ele tinha sido um irmão mais velho para mim, mas, no momento em
que meu pai traiu o bando, eu perdi tudo.
Seus olhos se escureceram passando do café à turmalina negra, e essa
era a única indicação que eu tinha de que isso ia ser ruim. Sua mão deu lugar
a garras, deslizando pelo meu peito em um único movimento. Cortando
minha camisa e sutiã, deixando grandes vergões vermelhos nos meus seios,
só para ferir a pele. Tinha feito isso deliberadamente; eu nunca tinha visto
ninguém com o controle de Jaxson, e, se quisesse perfurar minha pele, ele
poderia.
— Por que você me odeia tanto? — perguntei calmamente, forçando o
rosto a ficar inexpressivo mesmo com a dor pulsando contra meu peito e nas
costas. — Eu não sou meu pai. Por que os pecados dele agora são meus para
pagar?
Ele balançou o braço de novo, dessa vez socando minha cabeça,
batendo-a em um armário e esmagando o metal para dentro.
— É essa sua porra de rosto. Eu não quero vê-lo.
Com um último olhar de desconfiança, ele girou e saiu. Sisily, sorrindo
como a vadia presunçosa que ela era, correu atrás dele. Torin levou mais um
segundo, até que seus olhos aterrissaram nos meus seios expostos e nas linhas
vermelhas marcadas pelas garras.
— É melhor você se limpar — disse ele rapidamente.
Quando eles se foram, eu afundei de volta contra o armário danificado,
estremecendo como havia feito antes. Minha respiração era rápida enquanto
eu lutava pelo controle e, se eu tivesse uma fera dentro de mim agora,
definitivamente estaria de pé sobre quatro patas. Nossos lobos eram uma boa
fuga da dor e do medo.
— Vamos lá — Simone disse suavemente, puxando meu braço. — Eu
tenho suas roupas extras no meu armário.
Ela guardava umas peças minhas porque, pelo menos uma vez por mês,
meu armário era destruído por algum tipo de brincadeira nojenta. Lixo,
bomba de tinta, sangue, tripas, animais mortos.
Eles não eram criativos, mas eram persistentes.
Minha cabeça estava latejando enquanto eu a seguia, uma mão
segurando a frente da minha camisa para mantê-la fechada. E, enquanto eu
caminhava, um sentimento familiar enchia meu corpo. Pensei nisso como
meu cérebro se distanciando do massacre que era minha vida. Às vezes,
quando as coisas ficavam muito ruins, minha visão se duplicava, no momento
em que a escuridão descia através dela. Uma escuridão que me chamava.
Sanidade fragmentada era a ordem do dia ultimamente.
— Eu tenho que deixar Torma — murmurei, principalmente para mim
mesma.
Simone me lançou um olhar simpático, estendendo a mão para pegar na
minha. Ela já tinha ouvido isso de mim antes, mas não entendia o quão sério
eu falava. Eu não podia mais fazer isso, não por muito tempo.
Minha família estava manchada na cidade.
Meu legado, e o de todos os filhos que eu tivesse, tudo simplesmente
destruído.
Depois de décadas existindo junto ao bando de Torma, o nome
Callahan fora reduzido a dois lobos marginalizados: Mera Callahan, uma
metamorfo quase transformada, e Lucinda Callahan, uma bêbada que mal se
lembrava de que tinha um nome de família.
Nada pelo que valesse a pena lutar por mais tempo. Não aqui, pelo
menos.
No que me dizia respeito, a lua cheia do solstício não chegaria rápido o
suficiente.
Três
O resto do dia passou sem intercorrências. Fui ignorada o tempo todo, o
que me permitiu assistir às minhas quatro aulas, entregar todas as tarefas, e
até almoçar em paz. Minhas costas e o peito pararam de doer depois de um
tempo e, se não fosse pelas memórias da agressão deles, eu estaria me
sentindo quase normal.
As lembranças da violência tendiam a permanecer por mais tempo do
que a dor.
— Você sabe que Victor não vai deixá-la ir — disse Simone enquanto
estávamos do lado de fora da escola, vendo os carros se aproximarem.
A reunião semanal do bando acontecia às segundas-feiras, então todos
eles iriam para as terras do alfa em breve.
Não me preocupei em responder. Essa era uma discussão recorrente
entre nós.
— Ninguém sai da alcateia do Victor, Mera! Não permanentemente.
Ele não vai permitir. Acho que deveríamos pedir férias adiantadas, para
ganhar tempo até que eles nos obriguem a voltar.
Lancei um sorriso para ela.
— Ele vai me deixar ir — eu disse com certeza, saindo do caminho
agora que o estacionamento estava limpo.
Certamente, Victor aceitaria que era melhor não ter um lobo
"contaminado" como eu no grupo.
— Ele mudou o próprio sobrenome para Wolfe — ela chamou minha
atenção. —É um egocêntrico que deseja ter controle e poder sobre todos.
Acenei uma vez antes de partir, mochila na mão e dor no peito. Simone
estava tentando me salvar de cometer um grande erro, eu entendia, mas ela
não tinha vivido a minha vida.
Às vezes, a escolha mais difícil não é tão difícil assim.
O peso em meu corpo desapareceu quando me aproximei da área
central da cidade. Eu estava indo para o meu trabalho pós-escola, a única
salvação que eu tinha — e a chave para a minha fuga dali.
A cidade de Torma tinha cerca de dez mil metamorfos, com uma rua
principal movimentada, onde meu local de trabalho ficava.

— Boa tarde, querida — Dannie me cumprimentou do quarto dos


fundos, quando entrei fazendo o sino tilintar acima da porta.
— Ei, Dan — eu respondi, deixando minha bolsa na gaveta atrás do
balcão.
Dannie, a Viajante, era uma nova recrutada em nosso bando. Aparecera
ali havia dez anos, logo após o assassinato do meu pai, e de alguma forma foi
adicionada ao nosso grupo mais rápido do que qualquer um na história da
alcateia. Ela não tinha família ali, pelo menos nenhuma que admitia ter, e foi
uma das poucas a não tratar a mim e minha mãe como leprosas.
— Oh, querida, o que aconteceu com o seu peito? — perguntou ela,
aparecendo com uma caixa na mão.
Dannie tinha cachos selvagens e loiros sobre a cabeça e era de idade
indeterminada, com apenas algumas linhas marcadas em torno de seus olhos
azuis. Ela também se denominava um pouco cartomante e, mesmo que eu não
acreditasse, essa senhora muitas vezes sabia coisas que não deveria saber.
Como o fato de que eu ostentava algumas marcas sensíveis entre os
seios, apesar das novas roupas estarem cobrindo as evidências.
— Apenas Jaxson e Torin me colocando no meu lugar — eu disse,
inclinando-me para a frente no balcão. — Eu estou bem, de verdade. É
apenas um arranhão e mal dói agora.
Por um segundo, seus olhos abandonaram a tonalidade azul-céu; em
vez disso, eles eram de um roxo-escuro que lembravam poções e beijos na
lagoa à meia-noite.
— Viajei para muitas terras na minha vida — disse ela. — Conheci
mais alfas do que eu poderia contar. Torin está subindo na lista dos meus
menos favoritos, e isso significa alguma coisa.
Olhei para a porta, verifiquei duas vezes que nenhum membro do
bando estava entrando. Dannie dizia coisas assim o tempo todo e, nesse
bando, isso era considerado alta traição, um crime passível de punição severa.
Felizmente, pelo que sei, ela nunca tinha sido pega.
— Você não deveria dizer isso em voz alta — eu avisei, porque me
importava com essa excêntrica.
Ela deixou cair a caixa, acenando para mim.
— Menina, eu não tenho medo daquele saco de pulgas crescido. Você
deve aceitar meu conselho de colocá-lo no lugar dele na próxima vez que ele
ultrapassar os limites com você e sua mãe.
Deixei escapar uma risada nervosa, mas não discuti. Dannie era uma
inofensiva doida varrida, uma velha metamorfo. Mas eu a amava, porque ela
tinha sido mais parecida com uma mãe do que a minha própria nos últimos
anos. E esse trabalho basicamente salvou minha vida.
— Vou colocar a nova encomenda na prateleira — disse a ela, pegando
a pilha já desembalada no banco.
Dannie's Books era a única livraria da cidade e, muito antes de
trabalhar dentro dessas quatro paredes, eu tinha sido uma cliente regular. Os
livros foram minha salvação por anos. Uma fuga da minha vida mundana, às
vezes seriamente terrível. E era por isso que eu estava extremamente cansada
por ter passado horas lendo aquela história estúpida para a minha tarefa
escolar.
Nunca perca tempo com livros ruins. Há muitas histórias incríveis lá
fora esperando para serem descobertas.
Vagando pelas prateleiras, respirei profundamente, absorvendo o cheiro
incrível e único que só os livros tinham. Os mais antigos, da seção "usado",
cheiravam de modo diferente dos novos e, apesar das várias notas aromáticas
que meu nariz de metamorfo captava, eu amei todos os perfumes.
Basicamente todas as boas memórias que tive nos últimos dez anos estavam
ali. Com a Dannie, e especialmente com os livros.
— Oh, aquela nova série sobre metamorfos da Leia Stone também está
aqui — Dannie veio me contar, com a voz abafada pelas prateleiras entre nós.
— Eu separei uma coleção completa para você.
— Eu te amo! — gritei de volta, já animada para encontrar um novo
mundo para onde escapar.
Eu adorava ler a opinião de um autor sobre metamorfos. Alguns deles
conseguiam ser tão precisos que eu tinha certeza de que eram metamorfos
secretamente escrevendo ficção, embora os humanos escrevessem sobre nós
também. Muitas vezes com mais imprecisões, mas eu amava tudo do mesmo
jeito. Para mim, qualquer mundo de fantasia em que eu pudesse me perder
era incrível.
O resto da minha tarde passou rápido e, às dezoito horas, Dannie virou
a placa indicando que a loja estava fechada, trancando a porta. Ainda estava
claro lá fora, apesar de o inverno estar se aproximando. Peguei meu capuz,
enfiei os três livros de bolso na mochila e joguei-a sobre o ombro.
— Você está indo para a reunião? — Dannie perguntou enquanto
vasculhava a caixa registradora.
Ela me pagava todos os dias em dinheiro "por precaução". Nunca me
disse em caso de que, mas eu não me queixava. Essa era a melhor e mais fácil
maneira de juntar dinheiro.
— Se eu tivesse escolha, a resposta seria não — eu disse, meu peito
ficando apertado com a ideia de estar no mesmo lugar que milhares de
metamorfos que me odiavam. — Mas, se eu não aparecer, os capangas do
Victor me rastreiam, me batem e me arrastam até lá mesmo assim. Seria
muito bom evitar a surra.
Eu não estava supondo. Eu sabia disso por experiência própria.
Ela me deu um tapinha no ombro, senti um formigamento gerado pela
sua energia correndo pelo meu braço. Aquelas pequenas descargas
aconteciam muito quando Dannie me tocava. Eu estava acostumada a isso
agora, e até me sentia confortada por essa familiaridade.
— A mudança é inevitável — disse ela, com os olhos perdidos. — Sua
mudança está chegando. Prepare-se para isso.
Engoli em seco imaginando se ela estava fazendo aquela coisa psíquica
novamente. Eu não tinha contado a ela sobre meus planos. Simone era a
única que sabia que eu queria ir embora, mas senti que Dannie também fazia
uma ideia disso — ela sempre via demais.
— Até mais tarde — falou quando eu abri a porta para sair.
— Sim, até lá — respondi, acenando por cima do ombro enquanto saía
para a rua.
Um vento frio passou por mim e percebi que talvez o inverno estivesse
chegando mais rápido do que eu esperava. Fazia sentido. O solstício estava
virando a esquina, e eu estava em contagem regressiva para a chegada
daquele filho da puta havia meses.
O frio estava finalmente chegando.
Sim, eu fui à maldita reunião.
Quatro
— Devemos preparar os filhotes agora para sua mudança no próximo
mês — disse Alpha Victor, mostrando o seu poder ao nos trancar naquele
lugar para que não perdêssemos uma só palavra de seu discurso.
Simone não estava errada ao chamá-lo de egocêntrico. Ele era isso e
muito mais. Meu pai tinha sido o único em nossa história a tentar nocauteá-
lo, e eu ainda não tinha ideia de por que se virara contra seu amigo e alfa. Era
algo que me mantinha acordada à noite, ainda mais depois de um dia
particularmente difícil.
— Decidimos que neste solstício viajaremos ainda mais longe através
das terras do nosso bando — continuou ele, soando satisfeito consigo mesmo.
De acordo com a tradição, apenas o alfa, o beta e seus filhos estariam
conosco para nossa transformação inicial. O resto do bando nos encontraria
mais tarde, e isso aconteceria quando todos os novos transformados
estivessem em ação.
Da minha parte, eu não me importava com nada disso, e tampouco com
a distância que percorreríamos sobre as vastas terras controladas pelo bando
Torma. Eu só me importava com uma coisa, e apenas uma coisa: ter o
controle da minha loba para que eu pudesse fugir.
— Agora entraremos nas conexões com o bando Strigent — disse o
alfa, mudando o assunto rapidamente, como era seu costume. — Recebemos
petições para uma participação completa de todos os lobos sem parceiros.
Espero que mais alguns vínculos verdadeiros aconteçam.
Essas conexões aconteciam algumas vezes por ano e eram uma coisa
importante. Pelo que observei em meus vinte e dois anos, os metamorfos
eram dominados pela necessidade de encontrar seu companheiro. Eu não os
culpava por isso — também gostaria de ter alguém ao meu lado. Alguém que
fosse o par perfeito para mim e me apoiasse incondicionalmente.
Eu estive sozinha, tão sozinha e solitária, por quase toda a minha vida.
Mas em nenhum momento me desesperei o suficiente para querer
acasalar com alguém nesse bando. Quero dizer, era altamente improvável,
exceto por alguma ironia do destino, que de repente eu fosse tão atraente para
um desses idiotas que vinham me atormentando. Certo?

A vida não poderia ser tão injusta.


— Esta noite acontecerá uma das últimas corridas do grupo antes de
nossos filhotes se juntarem a nós — gritou Victor, com sua pelagem loiro-
mel brotando enquanto seu lobo subia à superfície. — Vamos nos
transformar e celebrar com nossas feras.
Gritos soaram ao redor do campo imenso em que estávamos reunidos,
fora da mansão de sessenta quartos e muitos banheiros do alfa. Nada poderia
ser menos modesto que aquele lugar, mas a casa era o de menos, comparada
aos milhares de acres inestimáveis ligados a ela.
Terra selvagem e indomada que o bando cobriria essa noite em sua
corrida.
Os mais jovens entre nós deveriam sair agora, antes que as feras
emergissem. Eu já tinha visto a mudança de humano para lobo antes, é claro,
mas nunca em uma reunião em massa como essa.
Simone agarrou minha mão enquanto o alfa levantava a cabeça e
uivava para o céu, libertando-nos de seu poder.
— Vamos sair daqui — ela disse. — Eu estou com o meu carro.
Nós corremos. Como na escola, era melhor se eu não estivesse ali
quando os instintos básicos dos lobos emergissem.
— Sua mãe está aqui? — perguntou, enquanto nos afastávamos rápido
dali.
Ela foi esperta o suficiente para estacionar perto da saída, onde
ninguém poderia nos bloquear. Essa não foi nossa primeira reunião, e éramos
adeptas à sobrevivência.
— Não a vi — eu disse rápido. — E ela não aceitaria uma carona
nossa, de qualquer maneira. Ela ficaria lá, mudando com eles, tentando forçar
sua entrada no coração de alguém.
Meu pai tinha sido seu verdadeiro companheiro, mas ela não se
importava. A morte dele — a traição dele, como ela dizia — destruiu todos
nós. E eu a entendia. Parte de mim o odiava mais do que eu poderia me
imaginar odiando alguém.
Outra parte sentia falta dele com uma intensidade que me tirava o
fôlego.
Deslizando para dentro da velha picape vermelha da Simone, tentei
acalmar a respiração, mesmo quando meu coração bateu contra o peito. Eu
não estava exausta da corrida. Não, foi o medo que fez isso.

Merda. O temor era tão debilitante. E não pela primeira vez, ao senti-lo,
eu me perguntava como seria viver sem ele. Para... levantar todas as manhãs
e não temer a porra do dia.
Então uma verdade absoluta se abateu sobre mim, enquanto eu tentava
acalmar meu coração pela segunda vez naquele dia: eu deveria ter fugido
anos atrás. O fato de ter ficado ali me colocando nessa posição, para ser
atormentada diariamente, era embaraçoso.
Transformar-me em uma vítima repetidamente era uma vergonha que
eu sentia profundamente em minha alma.
— Tenho que fugir hoje à noite — decidi, a intensidade impressa em
minha voz. — Esta é minha melhor chance. Eles vão correr por horas, e a
cidade estará vazia.
Simone pisou nos freios, o carro cantando pneu até parar.
— Você está brincando comigo? — ela gritou. — Garota, você está a
um mês da sua transformação. Não pode ir agora. Você vai morrer sem um
alfa para guiá-la através da primeira mudança.
Minhas mãos estavam fechadas em punho ao lado do corpo, enquanto a
raiva e a humilhação se apossavam de mim.
— Deixei que me transformassem em uma vadia chorona — eu disse
através de dentes cerrados, a garganta tão seca que mal conseguia pronunciar
as palavras. — Eu vivi com medo por uma década. Passei pelas piores
merdas e humilhações, tenho cicatrizes na pele e na alma que não me deixam
esquecer isso. Por que fiquei tanto tempo? Pelo medo de possivelmente
morrer na primeira transformação? A essa altura, isso seria uma bênção.
Sem mencionar que partir antes da minha mudança diminuiria meu
vínculo com o alfa e tornaria ainda mais difícil para ele me rastrear. E dizer
as palavras em voz alta tornava mais real a possibilidade de fugir antes da
primeira transformação, tudo fazia muito mais sentido. Ir agora. Essa noite.
Simone estava mortalmente silenciosa, com os olhos enormes e cheios
de lágrimas. Ela engoliu em seco mais de uma vez, mas não conseguiu se
controlar.
Estendendo o braço, coloquei minha mão sobre a dela, apertando-a.

— Amo você. Eu nunca teria superado a merda de bagunça que é a


minha vida sem sua ajuda, mas tenho que ir embora. Tenho que correr agora
e nunca olhar para trás.
Ela não discutiu de novo, apenas balançou a cabeça algumas vezes,
lágrimas se derramando e escorrendo por suas bochechas.
— Aonde... — Ela limpou a garganta. — Aonde você vai?
Eu seria um perigo durante as minhas primeiras transformações. Tinha
que encontrar um local seguro, em algum lugar deserto com muito espaço
para eu correr.
— Não sei — admiti sinceramente. — Mas qualquer lugar é melhor do
que aqui.
Ela enterrou a cabeça nas mãos, um soluço escapando.
— Isso não pode ser um adeus — sua voz soava abafada, até que ela
levantou a cabeça novamente. — Você tem sido minha melhor amiga desde
que éramos filhotes. Quero dizer... Vamos, Mera. Pense em tudo de que está
desistindo.
Merda. Ela estava me destruindo.
— E a Dannie? — perguntou ela. E agora estávamos jogando pesado.
— Você nem quer dizer adeus a ela?
Simone não ia me deixar ir sem lutar, e eu já estava tão cansada de
resistir.
— Vou pensar sobre isso, ok? — eu disse dando meu melhor para
parecer natural. — Talvez eu possa durar mais um mês. Quero dizer, o que é
um mês neste grande esquema de tempo?
Ela esfregou os olhos, balançando a cabeça algumas vezes.
— Sim. Você consegue mais um mês. Vou mantê-la segura. Eu posso
fazer isso.
Atravessando o carro, envolvi os braços firmemente em volta dela,
apenas respirando os leves aromas que Simone sempre carregava consigo.
Lavanda, as flores de seu jardim da frente, anis e alcaçuz, que ela
secretamente amava. Eu sentiria falta disso.
Quando terminamos a festa de soluço emocional, Simone pôs o carro
em movimento de novo, levando-me direto para minha porta da frente.
— Vejo você amanhã — disse ela, examinando meu rosto.
Não foi uma pergunta. Minha amiga estava me dizendo que era melhor
que eu estivesse ali no dia seguinte ou ela me bateria.

Acenei com a cabeça, forçando um sorriso.


— Você conseguiu, querida.
Com um último olhar para seu lindo rosto, trança terrível e olhos
gentis, enviei uma esperança silenciosa de que um dia eu seria forte o
suficiente para voltar ali.
E ela me perdoaria pelo que eu planejava fazer.
Cinco
— Lucy, mais pedidos!
Levei algumas semanas, mas finalmente estava respondendo ao meu
nome falso: Lucy Jones. Deixar Torma foi a melhor decisão que já tomei. A
segunda melhor foi ir para uma cidade sem qualquer bando, decidindo me
arriscar sozinha.
A liberdade de acordar sem medo era tudo, e meus únicos pensamentos
negativos atualmente eram sobre quantos anos eu tinha desperdiçado em
Torma quando poderia ter sido livre.
Correndo para o balcão, peguei a bandeja pesada com três
hambúrgueres e cerca de cinquenta toneladas de batatas fritas. Nessa região,
os caminhoneiros famintos praticamente se jogavam dentro da lanchonete,
depois de ficarem na estrada por muitas horas. Essa bandeja de comida
desapareceria rapidamente.
— Aqui está — eu disse com um sorriso, abaixando a bandeja para
distribuir os três pratos, com as batatas fritas compartilhadas no centro. —
Precisam que eu complete as bebidas? — perguntei, notando que estavam
meio vazias.
— Não, tudo bem, amor — disse o homem fortão, seu bigode grisalho
se movendo enquanto mordia o hambúrguer.
Os outros dois estavam devorando a comida também, então soltei uma
risadinha.
— Tudo bem. Eu volto para ver vocês em alguns minutos.
Conferi mais algumas mesas, completando bebida, entregando pedidos,
e o tempo todo eu tinha um sorriso genuíno no rosto. Claro, a vida não era
perfeita. Sentia falta da Simone e da Dannie e sabia que elas estavam
chateadas com o meu desaparecimento repentino. Sem mencionar o estresse
por conta da minha primeira transformação na próxima semana — eu ainda
não tinha descoberto o que fazer sobre isso. Mas sempre convivi com esses
pequenos momentos sombrios ao longo da vida que eu tinha vivido até então.
— Há quanto tempo você está em Hood River? — o bigode grisalho
perguntou quando voltei para encher o refrigerante dele. — Tenho parado
aqui sempre que faço essa rota, por vinte e tantos anos, e nunca vi seu rosto
bonito antes.
Ele era um paquerador inofensivo. Eu gostava disso.
— Não muito tempo. Eu estava de passagem e este lugar conquistou
meu coração, então decidi ficar.
Era a abundância da vegetação ali, um verdadeiro santuário para a
minha loba, que não desejaria nada mais do que se perder na floresta. Melhor
ainda: sem nenhuma alcateia oficial por milhares de quilômetros em todas as
direções.
Hood River tinha muitas vantagens.
— Você é muito jovem para ficar presa em uma cidade chata como esta
— um dos outros zombou.
Ele era mais jovem que o de bigode, e claramente gostava muito da
vida noturna que com certeza não estava disponível nessa pequena cidade.
Eu dei de ombros.
— Chato é meio legal hoje em dia. — Recolhendo seus pratos vazios,
eu lancei para todos eles outro sorriso brilhante. — Posso conseguir mais
alguma coisa para vocês, cavalheiros?
Bigode balançou a cabeça negativamente.
— Só a conta. Obrigado, querida.
Acenei com a cabeça, virando-me para sair. Assim que dei um passo, a
porta da frente se abriu, e o estrondo retumbante ecoou pela lanchonete.
Naquele momento, perdi meu senso de felicidade, pois o medo com que
convivi durante a maior parte da minha vida voltou, e eu desabei no chão.
— Desculpe — disse um homem mais velho, de cabelos grisalhos,
entrando. — Foi um golpe de vento.
Eu não conseguia explicar como meu corpo reagia a situações
inesperadas. Tinha sido caçada e ferida tantas vezes que estava condicionada
a esperar dor. Normalmente dissimulava melhor essas reações, mas, a julgar
pela forma como os três caminhoneiros estavam olhando para mim, dessa vez
eu falhei. Desviando-me dos olhares, sentindo o calor nas bochechas, corri
para pegar a conta deles.
Merda, merda, merda. Recomponha-se, Mera!
Na minha cabeça, repreendi-me por chamar a atenção assim. Por voltar
aos mesmos velhos padrões. As poucas semanas longe do bando claramente
não eram tempo suficiente para eu mudar, não mesmo. Mas eu continuaria
seguindo em frente, forçando-me a lidar com essa nova vida. Eu me recusava
a deixar aqueles bastardos ganharem.
Calculando o pedido completo da mesa dos caminhoneiros, corri até lá
e deixei cair a conta. Os três me observavam em silêncio, e rezei para que não
fizessem perguntas. Felizmente, quando terminei mais algumas mesas, eles
tinham ido embora, e eu peguei as notas, percebendo que tinham pago a conta
e me deixado uma gorjeta muito boa. Estavam com pena de mim, mas tanto
faz. Eu aceitaria.
Mendigos não podem escolher, e eu estava confinada em uma cabana
velha na floresta que precisava de alguns reparos. Esse dinheiro não seria
desperdiçado.
O resto da noite passou entre borrões de bandejas passando,
refrigerantes derramados e gorjetas insignificantes. Fazendo-me ainda mais
grata aos caminhoneiros. Quando finalmente chegou o fim do meu turno,
soltei um suspiro profundo de alívio, esfregando a parte detrás do meu
pescoço para soltar os músculos.
Estava tensa nos últimos dias, sentindo a agitação da fera por dentro.
Essa não foi a primeira vez, mas ela estava muito mais perto da superfície
agora.
Eu podia sentir sua energia. A selvageria que andava dentro de sua
alma. Ela estava pronta para chegar.
— Ótimo trabalho hoje, Lucy.
Virei-me assim que Greg, meu chefe, me tirou dos pensamentos. Como
patrão, ele era muito bom; sua esposa era legal também, mesmo que
raramente visitasse o restaurante.
— Obrigada, Greg — eu disse. — As horas realmente passam voando
quando está cheio assim.
— Meu tipo favorito de noite — disse ele com uma risada estrondosa,
antes de sair para o andar principal.
Sentei-me no banco para contabilizar o dinheiro, separando minhas
gorjetas antes de depositar o resto no pequeno cofre perto dos armários.
Eu tinha me dado bem melhor do que esperava com as gratificações e
seria capaz de comprar aquele aquecedor extra para quando o inverno batesse
ainda mais forte. O frio vinha lentamente esse ano, mas o inverno ia chegar
em breve. Eu queria estar preparada.
— Até mais tarde — falei para todos quando saí.
Era perto da meia-noite e eu tinha alguns quilômetros de caminhada até
em casa, então não perdi tempo, começando com uma corrida de ritmo
médio. De muitas maneiras, Hood River, no Oregon, lembrava a minha casa.
Abundância de florestas, tempo mais frio, mas, ao contrário de Torma, era
uma zona de tráfego. E definitivamente havia um monte de humanos ali.
Era estranho que nenhum metamorfo tivesse feito desse um terreno
permanente ainda, mas, com toda essa floresta, era apenas uma questão de
tempo. Quando isso acontecesse, eu já estaria longe.
Quando estava na metade do caminho, a sensação de tensão
pressionando minha coluna aumentou e, à medida que eu desacelerava,
formigamentos corriam sobre minha pele. Passei mais do que alguns
segundos olhando ao redor, tentando descobrir o que tinha me deixado na
defensiva.
Havia pouca luz de tão longe que estava da cidade. A floresta era
espessa e sinistra ao meu redor e, mesmo com meus sentidos de metamorfo,
era assustador. Não era a primeira vez que eu amaldiçoava minha escolha de
ficar numa cabana isolada, mas, com meu histórico de aluguel inexistente, e
falta de renda estável, esse era o único lugar que poderia conseguir. Eu não
tinha me preocupado muito, pensando que quando me transformasse seria
melhor estar fora da cidade, mas isso me deixava vulnerável, sem ninguém a
quem pedir ajuda.
Por enquanto, tudo o que eu podia fazer era correr e esperar que não
fosse outro metamorfo.
Movendo os braços e pernas com força, corri, focando em respirar e
não pisar em falso. Os metamorfos eram naturalmente graciosos, e minha
visão noturna era fantástica, mas erros eram cometidos em situações como
essas, e eu me recusava a ser a clássica heroína de filmes de terror tropeçando
nos próprios pés e caindo de quatro no chão.
A floresta ficou mais escura ao meu redor quando o caminho familiar
que levava à minha cabana veio à tona. Obrigada, porra.
Acertei o primeiro salto, pulando na varanda enquanto me atrapalhava
tentando encaixar a chave na fechadura. Pela primeira vez, não tive nenhum
problema extra, abri em uma virada, atravessei pela porta e a bati atrás de
mim. Minha respiração saiu em suspiros atormentados enquanto eu tentava
acalmar meus nervos frenéticos.
Não baixei a guarda, pelo contrário, correndo para a cozinha fui buscar
uma arma, os olhos fixos na porta da frente enquanto eu esperava que eles
arrombassem. Depois de cinco minutos de pé no escuro com dois grandes
cutelos agarrados em minhas palmas suadas, eu me arrastei em direção às
janelas. Espiando por cada uma delas, procurei movimento, mas não havia
sinal de ninguém lá fora.
Teria minha imaginação hiperativa conseguido dominar o melhor de
mim?
Andei pelo resto da cabana, ligando uma única lâmpada na sala de
estar. Dois quartos compunham a maior parte dessa habitação frágil pela qual
fizeram muito pouco — exceto pela sua linda e velha lareira de tijolos
vermelhos.
Eu estava muito cansada para me preocupar em mexer nela essa noite,
então só me joguei no banheiro minúsculo e tomei um banho morno antes de
colocar um pijama limpo e rastejar para a cama. Mantive uma lâmina afiada
ao meu lado por precaução, mas não parecia que qualquer ataque estava por
vir. Não essa noite.
Enquanto me aconchegava, comecei a ler um novo livro no meu
telefone. Eu tinha um smartphone velho e de baixa qualidade, um dos
modelos mais antigos, mas tinha o aplicativo Kindle, que era a minha
salvação para conseguir espairecer durante minha fuga.
A série sobre metamorfos que Dannie tinha me presenteado eu já tinha
terminado havia muito tempo, mas essa autora tinha me levado a outros
escritores independentes incríveis, e eu estava atualmente no meio da minha
nova série favorita.
Dragon shifters, será possível?
Quero dizer, eu poderia ser eu mesma uma metamorfo, mas a ideia de
um homem dragão corpulento era simplesmente deliciosa. Esperava que eles
estivessem lá fora, escondidos, e que a ideia não fosse tão fantasiosa quanto a
maioria dos humanos esperaria. Talvez eu pudesse manipular o destino de
alguma forma e conseguir um metamorfo de dragão como companheiro. As
coisas mais estranhas aconteciam e, para ser honesta, eu preferia qualquer
outro metamorfo como companheiro a um lobo. Aqueles sacanas tornaram a
minha vida miserável por dez anos, e eu estava pronta para uma mudança.
Seis
Eu não estava na escala da lanchonete no dia seguinte e, como ainda
estava tensa pela sensação de ter sido observada na noite anterior, decidi me
esconder. Talvez tentar resolver alguns dos problemas na cabana.
Duas horas depois, com a porta pendurada em um ângulo ainda pior, o
banheiro ainda mais cheio de sujeira e espuma, e a geladeira mais vazia do
que nunca, desisti e fui para a cidade pegar comida suficiente para sobreviver
pelo resto da semana.
A lua cheia que vem depois do solstício estava se aproximando, e eu
ainda não tinha um plano. Era inevitável perder o controle da minha loba. Ela
assumiria a liderança como seus primeiros passos para a liberdade e, ao fazê-
lo, eu não tinha ideia de que caminho ela escolheria. A cabana ficava nas
profundezas da floresta e, logicamente, qualquer animal deveria ficar na
natureza, mas, sabendo da minha sorte, ela iria direto para Hood River, para
levar um tiro na bunda desferido por algum humano paranoico.
E, claro, eu teria que sobreviver a essa transformação primeiro.
Apesar dessas preocupações, ainda não me arrependia da minha fuga de
Torma. Meu único lamento era Simone. Sentia tanto a falta dela, e sei que a
magoei saindo assim como fiz. A dor por não falar com minha melhor amiga
me consumia o tempo todo, mas eu sabia que, mesmo um telefonema,
poderia fazer a minha vida atual ruir ao meu redor. O bando estava totalmente
modernizado agora, e eles sabiam como rastrear alguém da mesma maneira
que um humano faria. Eu não podia deixar rastros. Meu telefone estava no
modo avião, o que me ajudava a acessar minha pilha de livros já baixados
para ser lidos, mas não me permitia nenhum contato com os metamorfos.
Quando cheguei à cidade, fui direto para a loja local. Estava meio
cheia, todos parecendo um pouco congelados e miseráveis enquanto
carregavam suas cestas. Ninguém olhou para mim, mesmo que eu
tecnicamente ainda fosse novidade o suficiente para despertar curiosidade.
Minha reticência inicial tinha sido suficiente para impedir seus
questionamentos e atualmente eu era, de modo geral, capaz de fazer compras
em paz.
Fui direto para a seção de congelados. Minha necessidade de carne
tinha aumentado no último mês e, embora fosse difícil tentar pagar os cortes
frescos que minha loba prestes a emergir desejava, era imperativo que ela não
viesse à tona com fome.
— Estou pegando sua proteína — eu murmurei para mim mesma
enquanto ela girava no meu peito, meu estômago rosnando à medida que nos
aproximávamos. —Acalme-se.
Claro, isso não acalmou a alma de lobo completamente, e eu me
perguntei se a cada transformação iria me encontrar com aquela fera que
lutava contra mim. Eu tinha ouvido falar de metamorfos com essa selvageria
em seu lobo, e isso era sempre um ponto de advertência.
Louvada fosse a Fera das Sombras. Eu definitivamente não precisava
de mais uma preocupação. Minha loba não seria selvagem. Repita isso mais
vezes e deve se tornar verdade.
Quando terminei de selecionar comida suficiente para durar a semana,
esperei para pagar e sair, tentando não fazer contato visual com ninguém. Um
frio inquietante percorreu minha espinha algumas vezes e, por um momento,
pensei que tinha visto um rosto familiar, mas, quando olhei novamente, era
apenas o Tom, que trabalhava para seu pai na loja de ferragens alguns
edifícios à frente.
Ele sorriu sem jeito para mim quando nossos olhos se encontraram, e
eu devolvi o sorriso. Era um cara bonito, não muito mais velho que eu, com
olhos castanho-dourados e dentes perfeitos, mas não havia como eu sair com
um humano. Mesmo que não enlouquecessem quando vissem que eu comia
mais do que eles, eu podia levantar seiscentos quilos de uma vez e
eventualmente rosnava, quando aborrecida, além do que, viveria por muito
mais anos do que eles.
E viver muito mais do que alguém que você ama é o meu sinônimo
para tortura.
— Sessenta e oito dólares e vinte e dois centavos — Claudia, a velha
senhora atrás do caixa, cantarolou. — E você está parecendo meio fraca,
querida. Deveria levar um pouco da sopa de frango especial que o Earl fez.
Claudia era da terceira geração nascida ali — sua família havia migrado
do Haiti havia muitas décadas — e sabia absolutamente tudo sobre todos...
Exceto por mim, é claro. Ela falava um milhão de palavras por hora,
conectando suas frases umas às outras e misturando vários pensamentos em
um, o tempo todo questionando as pessoas para obter informações pessoais.
Mas não havia como negar que seu marido Earl fazia uma sopa de galinha
deliciosa.

— Claro — eu disse com um aceno, pegando uma das embalagens. —


Quanto a mais?
Claudia sorriu, os dentes manchados de batom rosa, como sempre.
— Hoje é grátis, querida. Você precisa de um pouco de comida caseira.
— Obrigada — eu disse, entregando o valor correto em suas mãos e
recolhendo minhas sacolas. — Tenha uma boa tarde.
Ela sorriu para mim, e seus olhos astutos me examinaram mais de
perto.
— Você também, querida. Você também.
Precisando ficar longe de seus olhos curiosos e da sensação
desconfortável contínua de ser observada, eu corri para fora e não olhei para
trás. Havia uma boa chance de minha nova personalidade paranoica ser
simplesmente um efeito colateral da minha primeira mudança iminente — era
quase impossível dizer como cada metamorfo reagiria à proximidade de sua
primeira vez. Mas sempre houve uma infinidade de mudanças de
personalidade durante esse período.
Pelo menos, se eu estivesse me sentindo assim devido à transformação,
não havia nenhum perseguidor na minha cola, e eu poderia parar de antecipar
uma possível emboscada a qualquer momento. Seria bom relaxar por alguns
dias.
O vento frio apareceu na longa caminhada para casa e, quando cheguei
à cabana, eu estava metade congelada. A ideia de um pouco de fogo para
aquecer o quarto foi suficiente para que eu me esforçasse para acender a
lareira, e, quando começou a crepitar, eu até cozinhei meu jantar sobre as
chamas.
Um bife mal passado não demora muito para ficar perfeito, de qualquer
forma gostei principalmente do sabor defumado adicionado pelo fogo
produzido. Quando finalmente me arrastei para a cama, depois de acionar o
alarme para começar cedo na lanchonete, eu me perguntei se essa seria minha
vida para sempre. Sozinha. Livros, fogo e comida, meu único consolo.
Quero dizer, por mais solitário que fosse, isso ainda era melhor do que
estar em Torma.
Só tinha que sobreviver a minha primeira metamorfose, porque seria
uma merda se eu morresse antes mesmo de poder viver.

Cheguei cedo para trabalhar no dia seguinte, depois de uma noite com
um sono de merda e inquieto. Graças à loba raspando minha pele como se
fosse fisicamente um animal preso dentro de mim, e não apenas um pedaço
da minha própria alma.
— Lucy!
Tessie Johanson me abraçou enquanto eu entrava pela porta e, dessa
vez, nem sequer hesitei. Ela também era garçonete em tempo integral e tinha
cabelos ruivos flamejantes, mas, ao contrário dos meus, os dela não seriam
vermelhos por muito tempo. Já mudara a cor deles tantas vezes quanto eu
mudava de roupa, e eu não tinha ideia de qual era o seu tom natural.
Ela também era uma abraçadora, e eu tinha levado algum tempo para
me acostumar, mas agora eu meio que gostava.
— Senti sua falta esta semana — disse ela, embora tivessem passado
apenas alguns dias desde que estivemos juntas em um turno. — Nós devemos
ter um dia agitado hoje com o festival na cidade.
Eu sorri, escondendo minha bolsa e jaqueta nos pequenos armários.
— Isso é fantástico. Eu poderia conseguir um pouco de dinheiro extra.
Ela sorriu, seguindo-me quando coloquei meu avental.
— Infernos, sim, eu também. O roxo que eu estou querendo para o meu
cabelo vai precisar de três sessões com Mark. Ele é o melhor, mas o cara
custa caro. — Seus lábios se contraíram. — Tem certeza de que não quer
fazer um corte? Posso marcar um horário para nós duas juntas.
Bufei quando entramos na sala principal do restaurante para começar
nosso turno.
— Eu já disse, comida antes do cabelo. Não tenho dinheiro para
desperdiçar, mas não posso esperar para ver o roxo que você vai escolher.
Ela suspirou, melancolicamente olhando para a longa bagunça trançada
nas minhas costas.

— Seu cabelo tem a cor natural mais incrível que já vi. Mark
oficialmente mataria a própria mãe por uma chance de colocar as mãos nele.
Provavelmente faria isso de graça. — O rosto dela se iluminou. — Vou
perguntar a ele.
Antes que eu pudesse protestar, ela tinha corrido para a própria seção, e
comecei a trabalhar na minha. Como previsto, não houve calmaria o dia todo,
então descobri sobre o parque de diversões itinerante e o festival de comida
que aconteceria na cidade até a semana seguinte, trazendo uma tonelada de
visitantes.
— Você tem que ir lá ver! — um menino de dez anos, excessivamente
entusiasmado, me disse. — Eles têm passeios, brinquedos e algodão-doce.
Sorri para ele enquanto reabastecia seu suco.
— Parece incrível. Estou trabalhando nos próximos dias, mas talvez eu
tenha a chance de dar uma fugida.
Greg, que estava conversando com um dos clientes habituais, deve ter
ouvido minha conversa.
— Sua amiga da Califórnia esteve aqui ontem perguntando sobre você.
Talvez você possa levá-la lá. É definitivamente um dos destaques dos
feriados.
Como se alguém tivesse me encharcado em água gelada, um choque
atravessou minha pele, congelando-me no lugar.
— Minha amiga? — consegui desengasgar.
Ele acenou com a cabeça, ainda parecendo afável, como se não tivesse
ideia da bomba que tinha acabado de cair em mim.
— Disse que estava na cidade para surpreendê-la. Imaginei que ela iria
aparecer na sua casa na noite passada.
De alguma forma não derrubei o jarro que segurava. De alguma forma
não gritei nem saí correndo de lá. De alguma forma consegui calmamente
acenar com a cabeça e ir embora para a área dos fundos.
— Está tudo bem? — Tessie perguntou, empurrando a porta para
deixar os pratos sujos que carregava nos braços.
Livrando-me do pânico, forcei um sorriso natural no rosto, falhando
miseravelmente, a julgar pela expressão no rosto dela.
— Acabei de receber más notícias. Poderia cobrir o resto do meu
turno? Preciso ir para casa rapidamente.

Seu sorriso doce puxou o canto dos lábios ao mesmo tempo que seu
rosto se enrugava de preocupação.
— Claro! Deus sabe que você me cobriu muitas vezes nas últimas
semanas.
— Você é a melhor — eu disse com pressa, pegando minha bolsa e
jaqueta. — Eu vou compensar você.
Mentira total. Essa era a última vez que eu veria qualquer um deles.
Eu não tinha sido paranoica — meu disfarce fora descoberto. E, depois
que pegasse minhas economias na cabana, eu sumiria dali para nunca mais
voltar. Já estava me xingando por ser tão estúpida de não trazer o dinheiro
comigo. Não me sentia segura vagando por aí com milhares de dólares, e
poderia pagar caro por essa decisão brilhante.
— Lucy — Tessie chamou enquanto eu corria porta afora.
Forçando-me a desacelerar, virei a cabeça para trás.
— Tome cuidado lá fora — ela murmurou, e eu me vi olhando para
seus tristes olhos cinzentos.
Era quase como se ela soubesse que era a última vez que nos veríamos
e, com a tristeza despertando em mim, eu me forcei a engoli-la. Não tinha
tempo de me debruçar sobre minhas perdas.
O resto do dia seria sobre sobrevivência.
— Você também — respondi baixinho antes de sair e deixar a
lanchonete para trás para sempre.
Ao contrário de quando fui trabalhar, as barracas de jogos e comida
estavam completamente montadas agora, tendas coloridas visíveis enquanto
eu corria. As ruas estavam cheias como eu não tinha visto ali antes, e estava
claro que esse evento itinerante era um grande negócio. De certa forma, isso
era totalmente uma bênção disfarçada para mim. Quanto mais pessoas, mais
fácil seria esconder minha fuga de Hood River.
A multidão diminuiu quando me aproximei da minha casa na floresta e,
quando eu estava a um quilometro ou mais da cidade, entrei em modo furtivo,
saindo do caminho batido e entrando na densa folhagem. Uma rota direta era
muito arriscada nesse momento.

Quando o ambiente familiar da cabana apareceu em meu campo de


visão entre uma massa de árvores de sequoia, eu desacelerei até parar.
Fechando os olhos, deixei meus sentidos vagarem o mais longe que pude,
procurando por uma perturbação na minha área.
Fiquei lá por pelo menos dez minutos, sem me mover — mal
respirando, sem baixar a guarda. Apesar da falta de um vínculo completo
com a minha loba, quando terminei pude ouvir o barulho de pássaros a
quilômetros de distância, grilos e outros insetos nas proximidades, e o riacho
que estava do outro lado da cabana.
Meus sentidos estavam mais fortes do que nunca, e eu tinha quase
certeza de que ninguém estava esperando. Pelo menos não perto da minha
cabana.
Não relaxei enquanto avançava, com lentidão, tomando o cuidado de
pisar sem fazer ruídos — não é exatamente uma tarefa fácil em uma floresta.
Mas eu estava perto o suficiente da minha transformação e por isso já tinha a
graciosidade de um lobo à minha disposição.
Evitando a porta da frente, contornei ao longo do lado oeste da cabana,
em direção à janela do quarto. Poderia ter sido uma idiota ao não manter meu
dinheiro comigo, mas não estava completamente desprovida de cérebro ou
razão. Se alguém estivesse esperando para me emboscar, tendo se escondido
com sucesso dos meus sentidos, esperaria que eu entrasse pela porta da
frente. Antecipei isso desde o início, e a janela do quarto era meu plano
reserva. Estava sempre destrancada e bem lubrificada, para uma fuga
silenciosa.
Essa parte do meu plano funcionou à perfeição quando o vidro deslizou
silenciosamente, e eu parei mais uma vez, mais cautelosa do que já tinha sido
a minha vida inteira. A sala estava isenta de cheiro e movimento. Não havia
outros batimentos cardíacos ou sensação de nova energia. Levantando a perna
sobre o parapeito da janela, entrei sem fazer nenhum som... Eu estava ficando
boa nessa missão furtiva.
Minha mochila ficava pronta o tempo todo. Tinha dinheiro, algumas
roupas, além de comida e água. Num piscar de olhos, eu a tinha nas costas e
estava escorregando para fora pela janela aberta.
Isso! Silenciosamente me parabenizei quando saí para a floresta,
correndo com menos preocupação em criar barulho. Parecia que ainda não
tinham encontrado minha cabana, e talvez ainda houvesse uma chance de
escapar.

Talvez tivesse sido esse o ponto em que cometi meu primeiro erro: ter
esperança e baixar a guarda. Pensando que eu era tão inteligente ao me safar
com meu dinheiro e a mochila. Já planejando para onde iria dali, para nunca
mais ver Hood River.
Mas eu não era a única correndo pela floresta naquele momento.
Alguém estava esperando por mim, mas não onde eu imaginava. A cabana
era muito óbvia, e aqueles bastardos me embalaram em uma falsa sensação
de segurança quando não havia ninguém lá dentro.
Mas não se engane, eles estavam esperando por mim, e agora eu estaria
em uma luta pela minha vida.
Sete
Sabendo que eu preferiria morrer a ser levada pelo bando de Torma de
novo — E quem mais estaria me perseguindo? —, eu não parei. Se aqueles
bastardos colocassem as mãos em mim, provavelmente fariam os últimos dez
anos com eles parecerem um País das Maravilhas. Eu não podia deixar isso
acontecer. Eu lutaria até a morte se precisasse, porque não voltaria para
Torma.
Minha loba rodopiou dentro de mim lutando para se libertar e, apesar
da impossibilidade de isso acontecer antes da lua cheia, realmente parecia que
ela poderia conseguir forçar a mudança. Meu rosto doía como se minha
mandíbula estivesse se transfigurando, dentes mudando para acomodar a
transformação.
— Meerraaa — uma voz zombando à minha direita.
Outra se juntou à esquerda, ambas familiares e aterrorizantes.
Torin e Jaxson. Futuros alfa e beta.
É claro que Victor os havia enviado atrás de mim — quanto melhor um
metamorfo conhecesse o cheiro e a energia de uma pessoa, mais fácil era
localizá-la. Eu tinha crescido com aqueles idiotas, e eles estavam presos
diretamente a minha energia. Mas por quê? Eu honestamente não esperava
que eles se importassem com a minha fuga, mas, aparentemente, Victor não
estava pronto para libertar nenhum de seus lobos. Mesmo aqueles que ele
odiava.
— Ou é Lucy? — Torin acrescentou, seu riso estava mais perto do que
antes.
Greg disse que tinha sido uma mulher perguntando sobre mim na
lanchonete, mas claramente esses dois estavam lá também. Provavelmente
fora Sisily... A vadia estúpida nunca foi a lugar nenhum sem o alfa e o beta. E
eu sabia que meu chefe não teria dado minhas informações pessoais para
caras estranhos, mas uma mulher era diferente. Greg era da velha guarda.
E isso podia me matar.
Minha velocidade aumentou, mas não havia como eu ultrapassar os
metamorfos. Especialmente se eles liberassem os lobos.
— Vamos, Mera. O bando sente sua falta — acrescentou Torin, sua
risada se fora agora. — O pai não gosta quando os membros da alcateia saem
sem um adeus. Você sabe disso.

Ele estava basicamente correndo lado a lado comigo e, apesar das


probabilidades contra mim, eu segurei a lâmina que estava sempre ao lado da
minha bolsa, preparando-me para a luta.
Alguém me derrubou por trás, e eu bati forte no chão, o peso sólido de
um lobo nas minhas costas. Porra! Girando, eu chutei o lobo menor,
percebendo que devia ser a fêmea.
Ela não hesitou em atacar, e eu queria gritar enquanto suas garras e
dentes rasgavam minha pele. Balançando a lâmina, cortei seu pelo e me
perguntei quem era a cadela em cima de mim. Sisily ainda não tinha se
transformado...
A lâmina entrou através da pele densa que protegia o corpo da loba, e
ela atacou minha garganta, mas consegui colocar um braço em sua boca para
pará-la. Custou-me a pele do braço, mas isso não ia me matar, ao contrário do
que aconteceria se ela rasgasse meu pescoço.
A loba era de uma cor cinza-escura — cor do cabelo muitas vezes
ditava cor de pele, e eu não tinha ideia de quem era cinza no bando. Era de
tamanho médio, também, com olhos castanhos profundos.
— Saia de cima de mim — rosnei e, com uma força desconhecida,
consegui derrubá-la de volta para que eu pudesse ficar de pé.
Sangue pingando no chão e, mesmo com o céu escurecendo, eu podia
confirmar que eram mais do que apenas alguns arranhões. A cadela tinha
atingido algo importante; algo para me preocupar no dia seguinte, se eu ainda
estivesse viva para me importar.
Braços fortes em volta de mim, mordendo os ferimentos que eu já
possuía. Antes que Torin pudesse me esmagar ainda mais, eu o esfaqueei,
bem no peito. Minha lâmina não era prata ou qualquer um dos metais que
reagiam mal à magia do metamorfo. Era basicamente a lâmina de um
canivete de tamanho médio, o que faria um dano mínimo. Exceto quando
esfaqueado no coração. Opa.
Os olhos de Torin se abriram e ele olhou para mim por um segundo
como se não acreditasse no que eu tinha acabado de fazer.
— Tal pai tal filha —murmurou antes de eu me soltar de seus braços e
tropeçou para trás.

Jaxson estava ao lado de seu melhor amigo num piscar de olhos, seu
olhar escurecido fazendo buracos no meu rosto.
— Você vai pagar por isso, Mera — ele rosnou, seu rosto já começava
a mudar enquanto lutava contra seu lobo.
Mostrei o dedo do meio para ele, porque pelo que parecia eu estava
sem meu senso de autopreservação ultimamente.
— Ele não vai morrer por causa disso.
E não iria. Só levaria alguns dias para se recuperar e até lá ele
realmente estaria mal. Os músculos cardíacos faziam muito trabalho no
corpo, e uma lâmina através deles, mesmo para um metamorfo, nunca foi
bom.
— Proteja-o — ouvi Jaxson gritar para a loba desconhecida, e então a
primeira rachadura de ossos me disse que ele estava prestes a mudar.
Eu tinha uma única chance de fugir, porque, se ele me pegasse em sua
forma de lobo, estava tudo acabado. Minha lâmina ainda estava enterrada no
peito do meu inimigo, e, decidindo que seria mais ágil correndo sem minha
mochila, saí de mãos vazias. Irônico, já que eu tinha me arriscado ao buscá-la
na cabana tentando salvar meu dinheiro. Agora eu sabia que estaria melhor se
tivesse saído correndo direto da lanchonete, sem nunca olhar para trás.
Correndo mais rápido do que eu jamais fiz, cheguei à beira da cidade,
pronta para mergulhar nas ruas ainda repletas de pessoas. Lobos tinham uma
regra muito rígida acima de todas as outras: nunca deixe os humanos saberem
de nossa existência. Qualquer metamorfo visto em público estava em uma
série de problemas com seu alfa, especialmente naqueles dias, na era dos
telefones e dispositivos de gravação.
Estar entre os humanos me deu uma chance de escapar, já que Jaxson
teria que ser cuidadoso. Ele teria que mudar de volta e nesse caso também
teria que andar nu por aí. Ele merecia esse tipo de karma, não que esse idiota
confiante se preocupasse com o fato de ficar sem roupas.
Ele não tinha nada com que se preocupar, sinceramente, mas poderia
pelo menos tentar ter um pouco de humildade.
Os sons de um lobo se aproximando me impulsionaram para a frente, e
eu tinha certeza de que estava prestes a fazê-lo quando Jaxson pegou minha
camisa com os dentes, puxando-me de volta. Como era possível que estivesse
tão perto? O filho da mãe se deslocara em segundos.
As pessoas estavam a apenas alguns metros de distância, e eu poderia
ter gritado, mas, se o lobo de Jaxson estivesse no controle, ele mataria todos
eles. Eu não poderia fazer isso. Não com humanos inocentes.
Tive que aceitar meu destino.
Lutando para me libertar, fui parada quando ele atacou minhas costas.
O cara era um homem grande, e um lobo ainda maior. Sem ar, tentei rastejar,
buscando forças para respirar. Jaxson deslizou e me cutucou, então eu estava
de costas, com o peito ofegante, olhando para o lobo negro da cor da meia-
noite.
Presas brilharam na minha cara enquanto ele rosnava, e eu sabia que
este era meu último momento na Terra. Não importava como eu tentasse
lutar, ele era maior e mais forte, e eu estava sucumbindo aos ferimentos que
sujavam meu corpo.
Desculpe, minha loba.
Eu ansiava por conhecê-la melhor, mas não era para ser.
Talvez em nossa próxima vida.
Ela uivou então, um longo e reverberante lamento, que encheu meu
corpo, mas nenhum som emergiu da minha boca. Jaxson se inclinou para
mais perto e assim, com sua mandíbula presa em torno da minha garganta,
ouvi um grito por trás dele. Parecia Torin, mas eu não podia ter certeza,
porque o lobo segurando minha vida em suas mandíbulas afundou os dentes,
puxando a pele, e tudo ficou preto.
Oito
Em algum momento, eu tinha aceitado que não havia como acordar
para outro dia.
Eu tinha visto meu último nascer do sol.
Comido meu último taco.
Cantado minha última canção.
E, embora não tivesse arrependimentos sobre correr e tentar ter uma
vida melhor, estava chateada por morrer. Eu, com certeza, não merecia esse
destino, especialmente nas mãos dos imbecis que fizeram da minha vida um
inferno em primeiro lugar.
Exceto porque a morte ainda não me queria.
Um pouco de água me bateu na cara, seguido de um tapa na bochecha
dolorida.
— Acorde, sua puta estúpida — uma voz rosnou por perto.
À medida que a consciência voltava, a dor se tornava conhecida. Um
gemido escapou dos meus lábios, o som pequeno e patético.
— Deveria tê-la deixado para morrer — a mesma fêmea resmungou. —
Vadia inútil, não faz mais do que ficar deitada na própria imundice. Vergonha
para os metamorfos.
— É preciso ser uma para reconhecer outra — murmurei, palavras
ásperas e quase inaudíveis.
Meus olhos ainda não estavam abertos, mas senti seu cheiro se
aproximando.
— Que merda você acabou de dizer?
Forcei os lábios em um sorriso, mesmo que meu rosto parecesse pegar
fogo.
— Vou falar mais devagar. É... preciso... ser... uma... para...
Nesse ponto eu mal conseguia lembrar o que ela tinha dito. Ela me
chamou de algo... Inútil...? Sem valor?
— Você acabou de me chamar de vadia? — ela surtou, e a dor na
lateral do meu corpo aumentou.
Nesse momento, senti suas unhas cravando-se em mim, suas mãos
semitransformadas.
— Certo — balbuciei. — Quase esqueci. Mas sim, você é uma vadia
arrombada, e espero que pegue herpes e morra de sífilis depois que sua
boceta cair.
Ela rugiu tão alto que teria machucado meus ouvidos, mas eu já estava
com tanta dor que um pouco de incômodo auditivo não era nada preocupante.
Aprofundou as garras em mim e outro gemido fraco saiu.
— Você vai desejar ter morrido no momento em que correu — ela
murmurou, soando alegre. — Meu trabalho é acabar com você até que esteja
implorando pela morte, e então Victor vai assumir.
Agora eu sabia quem era: Glendra, a companheira do alfa. A mãe do
Torin, ou, como eu gostava de chamá-la, a puta do bando.
Era uma metamorfo desagradável que eu odiava havia anos. Andava
atrás de meu pai frequentemente, como um rastro malcheiroso, parecendo
nada além de alguém que desejava a atenção de homens poderosos. Ela
precisava desse prazer e, apesar de ter um verdadeiro companheiro, nunca
conseguia conter seu olhar sedutor. E parte de mim ainda se perguntava se ela
não era metade da razão pela qual meu pai tinha atacado o alfa. Não deixaria
isso de lado, pois só uma cadela como ela para orquestrar deliberadamente o
drama que terminara em assassinato.
Apesar da dor e fadiga, chamei por minha loba, e ela se levantou dentro
de mim como a deusa espiritual perfeita que era. Shadow Beast era nosso
deus, mais diabo do que anjo, e eu precisaria de sua força resiliente para
passar por isso.
A escuridão ia ser minha vocação, e eu permiti que ela me enchesse
para que eu pudesse ser melhor para este lobo.
Movendo a cabeça para a frente, bati contra ela na cara, derrubando seu
traseiro magro longe de mim. Segui com um chute de dois pés, que a atirou
para longe. Seu grito foi cortado por um baque pesado. Ela definitivamente
havia batido em algo forte. Meus olhos estavam abertos o suficiente nesse
momento para vê-la caída, imóvel.
E eu sabia exatamente onde estávamos: nas câmaras de tortura abaixo
da casa principal. Foi ali que minha mãe e eu ficamos quando papai atacou
Victor. Foi ali que fomos submetidos a "questionamentos" até que todos
ficaram satisfeitos, certos de que não tínhamos ideia do que meu pai estava
planejando. O que não fez muita diferença de qualquer maneira; ainda éramos
tratadas como leprosas.
Mas pelo menos eu sabia o caminho a seguir por ali daquela época.
Forro prateado?
Glendra tinha deixado a porta da minha cela aberta, e eu aproveitei para
dar o fora de lá. Correndo o melhor que pude, agradeci a onda de adrenalina,
sabendo que isso poderia me ajudar. Tomando as escadas o mais rápido
possível, lutei contra as náuseas e os giros de cabeça. Não havia tempo para
sucumbir aos ferimentos; eu tinha que ficar em segurança primeiro.
De baixo, ouvi o primeiro som de um uivo. Glendra estava chamando
os outros lobos. Eu esperava ser mais rápida que eles...
Quando cheguei ao primeiro andar, peguei o caminho menos percorrido
em direção a uma saída pela qual eu costumava escapar. Ele ia para o lado da
cozinha menor e, pelo que eu sabia, muito poucos tinham conhecimento
disso. A melhor parte dessa saída era a proximidade com a floresta.
Mais uivos se juntaram aos de Glendra, sons e cheiros de lobos por
todos os lados, mas mantive o foco e não olhei para trás. Por alguma razão,
não tinha morrido com o ataque de Jaxson, e não iria desperdiçar essa
segunda chance.
Quando saí pela porta dos fundos, que estava destrancada, os últimos
raios do luar me banharam, e minha loba uivou em meu peito. Era de manhã
cedo, véspera da lua cheia, e essa foi a melhor notícia que eu poderia ter
recebido. Não só por ter sido energizante para o meu lado animal, mas
também porque o resto do bando estava descansando para a mudança de
solstício no dia seguinte.
Isso me deu alguns minutos extras, o que às vezes era tudo de que um
metamorfo precisava.
Correndo pelo gramado gelado, ignorei a mordida afiada do ar em
minha pele nua. Minhas roupas estavam rasgadas e esfarrapadas, mas
felizmente eram as mesmas que eu estava usando ao ser atacada... quase uma
semana atrás. Se a lua fosse alguma indicação. Droga. Eu estava realmente
me recuperando por tanto tempo?
Uivos soaram de volta para a casa principal, seguidos pelo som distinto
de lobos mudando no ar da manhã. Peguei velocidade, meus pés mal tocaram
o chão enquanto minha loba permanecia mais perto da superfície do que eu já
tinha sentido antes, dando-me sua força, agilidade e sentidos.
Quando cheguei à floresta, a excitação dela aumentou. Nós gostamos
de estar cercados pela natureza assim, e ajudaria a ocultar nossa trilha. Eles
ainda rastreariam meu cheiro, é claro, mas ali havia maneiras de atrasá-los.
Esquivando-me, quase perdi o equilíbrio quando o ataque ocasional de
tontura me atingiu, mas me mantive firme tempo suficiente para chegar ao
grande riacho. Sem hesitação, eu me joguei na água.
Aah. Estava tão frio. O tipo de frio que parecia que eu tinha sido
atingida por um taser, chocando meu sistema neural. O tipo de frio que drena
sua vida e energia se você deixar.
Mas eu não estava pronta para morrer ainda.
Chutando forte, nadei até a superfície, ofegante por ar enquanto minha
cabeça emergia. Lobos, regra geral, não eram nadadores incríveis. A
densidade da nossa fera era uma magia que se transferia para nossa forma
humana, mas eu sempre amei.
Também adorava o fato de que mascarava meu cheiro, e muito poucos
lobos tinham a capacidade de me seguir no córrego. Empurrando através das
sensações entorpecentes nos meus membros, comecei a nadar, ficando abaixo
da superfície o máximo possível. Nenhum predador de verdade vivia nessas
águas frescas, então eu só tinha que ficar de olho nos destroços e no bando.
Em certo momento, as corredeiras me empurraram e eu levei alguns
segundos para relaxar e recuperar um pouco de energia. Logo à frente, havia
uma curva no declive, e foi aí que planejei sair do riacho.
Eu tinha claramente subestimado o quão ferida estava, porque, quando
tentei agarrar a borda, simplesmente não havia força suficiente em meus
punhos para me segurar contra a violência incessante da correnteza.
Minha luta não estava completamente perdida, mas, não importava o
quanto resistisse, eu continuava perdendo força.
Então meus dedos ficaram moles e a correnteza finalmente me arrancou da
borda.
Nove
Quando eu estava prestes a ser sugada para dentro da água escura, uma
mão se envolveu em torno de mim e me puxou para cima com força. O
metamorfo estava escondido atrás de algumas longas folhagens na beira do
riacho, posicionando-se com perfeição para me agarrar.
E eu estava completamente ferrada.
Se eu já não tinha energia para me tirar da água, pensar em lutar seria
uma perda de tempo. Mas que me ferrassem se eu deixasse o velho
metamorfo me pegar sem ao menos resistir.
Eu podia descansar quando estivesse morta.
— Eu sabia — uma voz familiar rosnou. — Você é tão previsível,
Sunny.
Recuei ao ouvir o nome. Um velho apelido que eu não ouvia desde que
meu pai morrera. Mera Callahan era meu nome de nascimento. Meu
sobrenome significava aquela pequena mente brilhante e quando nasci com
um cabelo ruivo, que lentamente se transformou em um tom ombré como o
pôr do sol, meu apelido tinha se tornado "Sunny".
Foda-se o Jaxson por se lembrar disso. E por que diabos ele estava
escolhendo aquele, dentre todos os momentos, para usá-lo novamente?
— Não me chame assim. — Soltei um silvo, tentando puxar minha
mão enquanto eu estava tremendo diante dele. — Você não tem o direito.
Com a luz da manhã, eu não podia ouvir nem cheirar outro lobo por
perto. Jaxson usou seu conhecimento sobre mim para seguir meu caminho,
mas ninguém além dele tinha o mesmo benefício. Talvez ainda houvesse uma
chance de escapar.
— Ninguém espera que um lobo vá para a água — continuou ele, o
tom de voz baixo como um ruído, a expressão escondida nas sombras
lançadas pelas árvores próximas. — Mas você sempre foi diferente. Sempre
se sobressaindo e fazendo alarde disso para chamar nossa atenção.
Cruzei os braços, porque o ar gelado contra as roupas molhadas fazia
meus mamilos se arrepiarem saudando o mundo, e eu odiaria que esse idiota
desleal pensasse que tinha algo a ver com ele.

— Não fiz nada para me destacar — respondi, minha voz estava tão
fria e morta quanto meu coração se sentia atualmente. — Sempre fiquei por
baixo, escondida do mundo, e esmagando meu brilho para não ofender todos
vocês. Você escolheu me manter por perto para torturar, perseguir, observar e
me tornar relevante. Eu teria amado apenas esquecer que você existe.
Ou, melhor ainda, se eles literalmente deixassem de existir.
Jaxson me libertou, e eu esfreguei o pulso, mesmo que não estivesse
particularmente doendo. Ele me circulou, como um caçador cheirando sua
presa, mas, independentemente de me matar ou não, eu estava perdida, era a
mais fraca.
— Por que estou viva? — perguntei sem rodeios. — Você rasgou
minha garganta.
De todos os metamorfos que já tentaram me matar, ele fora o mais
violento e o que provocara mais dor.
Fez uma pausa, a luz banhando suas feições, destacando a expressão
peculiar em seu rosto.
— Eu nunca te mataria, Sunny. — Ele suspirou, parecendo exausto de
repente. —Lace, uma metamorfo que era da cidade vizinha, sentiu seu cheiro
ao passar por lá. Nós já tínhamos colocado uma notificação sobre seu
desaparecimento, e ela nos ligou. Fiz questão de te machucar e fazer parecer
pior do que era para que ela não questionasse nossa força. Nós tínhamos que
ter você de volta aqui o mais rápido possível para se curar.
Lace era a vadia que me atacou.
Eu bufei.
— Se você queria que eu me curasse, então por que eu acordei esta
noite com Glendra na minha cela, garras no meu corpo, e sangue nos olhos
dela?
Seu rosto se transformou, escuridão unindo suas sobrancelhas enquanto
a raiva enchia seus olhos.
— Isso não era para acontecer! Ela está um pouco chateada por causa
do Torin. Ele está muito pior que você e ainda não acordou. O alfa está
tentando forçar a mudança para ajudar no processo de cura.
Minha expressão não mudou. Eles esperavam que eu me sentisse mal
por me defender? Melhor não segurar a respiração esperando que isso
acontecesse.

— E agora? — eu disse com um suspiro.


Ele era um metamorfo na véspera da lua cheia. Sua força superava a
minha, na melhor das hipóteses. E, se a hipotermia não me matasse logo,
meus ferimentos o fariam. Por mais que eu quisesse tentar outra fuga, com o
passar do tempo estava ficando claro que não tinha chances.
Jaxson se inclinou para mais perto, e eu rangi os dentes para não reagir
ao seu cheiro. Por mais que eu o odiasse — o tipo de ódio que me faz querer
empurrá-lo da escada e dizer, "ele caiu" —, ele sempre cheirava como um
guarda florestal sexy. Almíscar e pinheiro, com uma pitada de neve. Um
cheiro realmente arrebatador para uma metamorfo. E, apesar de
provavelmente ser a única virgem de vinte e dois anos de idade no mundo, eu
não podia me queixar da minha libido. Sentia uma intensa atração por alguns
dos homens do bando às vezes. Mas me recusava a fazer sexo com
metamorfos que eu odiava. Sim, eu era exigente assim, mas meu amante
tinha que, no mínimo, não me torturar. Chocante, né?
— Agora — disse Jaxson — você me acompanha de volta à casa
principal do bando e vai ver a porra do curandeiro para que esteja pronta para
sua primeira transformação amanhã.
— Sim, não está acontecendo nada mesmo — respondi, apertando os
braços em volta de mim mesma. — Glendra já deixou claro que vai me
machucar muito e depois me entregar ao Victor. Acho que vou me arriscar
com o rio novamente.
Seu braço varreu-me, tão rápido que eu mal o vi se mexer. Agora os
meus estavam presos ao lado do corpo, e eu não tinha forças para lutar contra
seu agarre. Jaxson sempre foi forte, mas isso era um nível totalmente novo,
mesmo para ele.
— O alfa quer você aqui para a sua primeira transformação — ele
resmungou. — Glendra não vai tocar em você de novo.
Bufei novamente.
— Desculpe-me se não acredito em você. — Mentiram para mim
muitas vezes ao longo dos anos.
Especialmente ele.
Jaxson não parecia se importar se eu acreditava nele ou não,
carregando-me com facilidade enquanto caminhava pela beira do riacho.
Minha loba chorava, não gostando desse domínio sobre nós, e parecia mais
provável que, quando nos virássemos, seríamos alfa o suficiente para ir
contra esses metamorfos.
Minha alma parecia selvagem e, estranhamente, não tínhamos sentido
muito a falta da vida no bando quando corríamos.
Talvez eu me transformasse em um dragão quando chegasse a minha
hora. Eles pareciam ser lobos mais solitários. Sim, eu tinha imaginação fértil.
Minha loba rosnou, como se ela também estivesse cansada do meu monólogo
interior, então passei os próximos dez minutos brindando-a com cada
pensamento estúpido que tive em meus vinte e dois anos de vida. Tantas
merdas e risadas.
Se quer ser minha colega de quarto, é melhor se acostumar, eu avisei.
Não havia mais rosnados ao longo do caminho, mas nesse momento ela
parecia estar me ignorando.
— Por que você fugiu? — Jaxson perguntou me tirando da batalha
mental com uma alma de lobo.
— O quê? — perguntei, minha testa se enrugando pela pura estupidez
dessa pergunta.
— Por que você fugiu? — repetiu.
— Glendra estava tentando me matar, logo depois que você tentou me
matar.
Isso foi idiota de verdade?
Jaxson suspirou.
— Hoje não. Por que você fugiu de Torma?
Oh.
Balancei a cabeça, minha bochecha roçando contra o peito duro que
estava ocupando meu espaço pessoal.
— Você não sabia? Eu sempre quis me esconder em uma cabana velha
de merda em Hood River. É como o sonho dos metamorfos americanos.
Ele rosnou e soou muito mais impressionante que os grunhidos da
minha loba interior.
— Pela primeira vez na vida, pare de bancar a espertinha. Você fugiu
faltando um mês para a sua primeira mudança; não faz sentido. Alguma coisa
aconteceu para que tomasse essa decisão justamente nesse momento?
Não respondi. Não dei nenhuma explicação sobre minhas ações, pois a
forma como era tratada deveria ser razão suficiente. Além do mais, já tinha
desperdiçado muitos anos sendo uma vítima, e não havia nada na face da
Terra que me convencesse do contrário.
— Esta é a primeira vez desde que éramos crianças que você se permite
ficar sozinho comigo — disse eu, mudando de assunto. — Pode ser a última
vez também, se me devolver ao bando.
Um pequeno bufar escapou da minha boca quando ele me soltou,
despejando-me com a bunda no chão. Estávamos à beira da floresta, a única
barreira que restava entre nós e a extensão aberta de terras do bando ao redor
da casa principal.
— Seu pai quase custou tudo à minha família — ele rosnou, olhando
para mim como se eu fosse um pedaço de merda em que tinha pisado. —
Associar-se com você, ou qualquer Callahan, é um beijo de morte.
Minha loba rosnou em sua posição dominante e, antes que eu pudesse
pensar nisso, eu estava de pé, tão rápida e graciosa como jamais poderia ter
sido sem uma pequena ajuda metamorfo. Eu não podia esperar para
finalmente me transformar e ver essas habilidades se fortalecendo.
Não me incomodei em conversar com Jaxson e responder a seus
comentários insanamente injustos, em vez disso desviei o rosto para avaliar a
situação e ver se algum lobo estava se aproximando.
— Você me ouviu? — ele gritou, e ficou muito claro que esperava dez
anos por esse embate, para me nocautear, mas, honestamente, eu tinha
desistido de esperar algo de Jaxson havia muito tempo.
Ele não se moveu um centímetro, então soltei um suspiro.
— Claro, imagino que sua vida ficou superdifícil depois que meu pai
foi rasgado em pedaços, Jax. Você está sempre em minhas orações.
Para a porra do Shadow Beast. Espero que ele dilacere sua bunda
enquanto você dorme.
Ameaças silenciosas expostas. Fato.
Jaxson pareceu surpreso com minha recusa em discutir, mas por que eu
me colocaria em uma disputa que não poderia ganhar? Nos primeiros dias, eu
tinha lutado muito. Repetidamente. E isso só intensificou a tortura a que eles
me sujeitavam. Eu também havia implorado, chorado e me escondido. Tudo
na esperança de apaziguar os valentões para que me deixassem em paz. Mas
nada tinha funcionado.

Depois de alguns anos agindo assim, descobri que minhas reações só


estavam instigando os meus valentões.
Então eu parei.
Eu parei de chorar. Eu parei de revidar. Eu agia como se mal os
notasse... Como se suas provocações não tivessem me incomodado em nada.
E, curiosamente, isso foi o que acabou funcionando. Às vezes eles até me
deixavam em paz por meses. Gloriosos, perfeitos, meses pacíficos.
— Por que está relutando em me levar ao Victor? — desafiei. — Eles
estão me preparando um desfile de boas-vindas? Devo fingir surpresa?
Fingi estar procurando pelo caminho entre as árvores de novo,
esperando minha "surpresa".
Jaxson rosnou, envolvendo meu pulso com os longos dedos e me
puxando enquanto começava a andar. Ele estava definitivamente
murmurando algo sobre a porra da espertinha, mas nesse momento isso me
fez rir.
No segundo em que saímos para a terra aberta, um medo letal passeou
ao longo da minha coluna, e eu me concentrei em respirar através da
ansiedade. Poderia estar de volta àquele lugar, mas ainda estava de pé, e daria
o meu melhor para não demonstrar medo.
— Um dia você vai ficar confusa novamente — disse Jaxson, olhando
para mim. — Um dia vou descobrir a sua fraqueza e, quando fizer isso, você
vai pertencer a mim. Como o destino sempre quis.
O que ele acabou de dizer?
Aproximando-me, bati em seu ombro.
— Como é? Pertencer a você? Isso soa terrivelmente possessivo para
alguém que acha que associar-se com uma Callahan é um beijo de morte.
Sem mencionar que é mais educado levar alguém para jantar antes de tentar
possuí-lo.
De onde ele tirou a ideia de me fazer uma declaração como essa, depois
de toda a merda que me fez passar? Minha vida teria sido muito melhor com
Jaxson ao meu lado e, em vez disso, ele escolheu me abandonar. Pior,
escolheu liderar a porra do esquadrão de tridentes.

Ele piscou, seus olhos castanho-claros brilhando com o sol nascendo no


horizonte.
— Pelo que me lembro da última vez que a levei para jantar, você não
foi uma convidada muito educada.
A recordação me atingiu com força, e doeu, porque eu tinha escondido
todas essas memórias por uma razão. Para me salvar. E uma única declaração
dele trouxe-a direto ao topo novamente.
— Eu tinha comido algo que me fez mal — eu disse relutantemente. —
Não queria vomitar em todos os lugares. Você não deveria ter insistido em
me balançar pelos pulsos.
Eu tinha nove anos, ele tinha dez, e isso tinha acontecido cerca de um
ano antes de tudo ter ido para o inferno na minha vida. Estávamos correndo
em seu quintal enquanto nossos pais preparavam o jantar para a reunião
semanal. Jaxson tinha montado uma pequena mesa especial para nós perto do
enorme carvalho velho, e ele tinha preparado para...
— Minha surpresa de aniversário — eu murmurei, e ele acenou com a
cabeça. Um pequeno sorriso escapou de mim. — Um de nós ficou surpreso,
pelo menos.
Jaxson riu. Ele realmente riu.
— Para ser honesto, eu estava tentando fazer um grande gesto, da
maneira que só um garoto pré-adolescente idiota poderia, e você virou tudo
de cabeça para baixo. Típico em se tratando de Sunny.
Grande gesto.
Foda-se ele e suas palavras gentis. Foda-se ele trazendo esse assunto à
tona, quando havia passado os anos seguintes tentando destruir cada parte de
quem eu era.
— Leve-me ao Victor.
Ele parou com a minha mudança abrupta de tom e tópico.
— Não posso garantir sua segurança quando a entregar — disse ele
muito sério.
Eu ri. Na cara dele.
— Garantir minha segurança? Cara, eu me arriscaria com quase todos
os outros idiotas desse bando se não tivesse que vê-lo novamente.
E, assim, lembrei-o de que éramos inimigos. Que ele estava na minha
lista de merda, não no meu cartão de Natal, e que ele tinha ordens para me
devolver ao alfa.

Dessa vez, quando ele me agarrou, doeu, e eu sem dúvida teria uma
mancha roxa lá no dia seguinte. Tanto faz. Eu não dei a mínima e, felizmente,
nosso tempo de compartilhar memórias inocentes já era.
A última coisa de que eu precisava era desenvolver sentimentos mais
amáveis em relação a qualquer um deles de novo.
Isso seria realmente a coisa mais estúpida que eu poderia imaginar
fazer.
Dez
— Uma vez que você mudar — Victor disse lentamente, seus olhos
cinzentos escuros me levando —, vou amarrá-la a Torma com o vínculo mais
forte que há entre um alfa e sua alcateia. Você vai me servir para o resto de
seus dias.
Todos estavam esperando por nós quando Jaxson me levou de volta
para as terras do bando. Meia dúzia de lobos, incluindo Torin e o pai de
Jaxson, Dean Heathcliffe.
Limpei a garganta.
— Deixe-me entender isso. Você me despreza por causa do meu pai,
fez vista grossa para o tormento que todo o bando me causou ao longo dos
anos, mas agora quer que eu... — Pigarreei antes de continuar. — E me
corrija se eu não estiver correta... Servi-lo? — Eu ri, selando meu destino. —
É melhor você estar dizendo que serei sua empregada, porque, se estiver
falando sobre sexo, prometo que não irá ser feliz com uma loba como eu em
sua cama.
A expressão de Victor se escureceu, sua pele pálida assumindo a cor
loiro-mel de seu lobo assim que ele deu um passo à frente.
— Você acha que é boa demais para foder com o alfa?
Ah, sim. Mil vezes sim, mas, como eu já tinha acabado com a paciência
dele aquele dia, decidi não dizer isso em voz alta. Victor também não gostou
do meu silêncio. Seu punho bateu na minha bochecha, derrubando-me do
degrau. A dor agonizante se arqueou através da minha mandíbula e abaixo da
espinha, a cabeça girando enquanto pontos dançavam em preto e branco
através da minha visão.
Victor se moveu por cima de mim, uma perna em cada lado do meu
tronco.
— Se eu decidir transar com você, cachorrinha mestiça — ele rosnou
—, há muito pouco que você possa fazer para me impedir.
Ele se afastou então, não sem antes dar um chute rápido na lateral do
meu corpo para pontuar o seu adeus.
— Coloquem-na de volta na cela e garantam que ninguém se aproxime
dela — ele rosnou para o filho antes de sair pela porta, arrastando Glendra
com ele.
Ela estava em apuros, mas eu estava muito ocupada tentando não
sucumbir a uma concussão para me preocupar com aquela vadia estúpida. Ela
tinha feito a cama, e agora iria ter que deitar nela com aquele saco de merda
que chamava de companheiro.

Jaxson me pegou primeiro, seu toque foi mais gentil do que eu esperava
quando ele me levantou.
— É a véspera da lua — disse ele em um sussurro. — A cura vai
começar em breve.
— Ugh — gemi, o primeiro som que tinha emitido desde que fora
atingida.
Eu estava muito orgulhosa de mim mesma por nem sequer
choramingar. Victor nunca teria essa satisfação, aquele bastardo doente.
E eu morreria antes de deixá-lo me tocar.
— Vamos levá-la lá para baixo — disse Torin, chegando ao lado de seu
melhor amigo. — Antes que papai volte e faça algo pior.
Talvez tenha sido o golpe na cabeça, mas isso soou um pouco como um
julgamento contra o pai dele. Nunca tinha ouvido Torin mostrar nada além de
um respeito que beirava a reverência ao saco ambulante de esperma que ele
chamava de pai. Interessante. Ou pelo menos teria sido em circunstâncias
normais. Agora eu só estava tentando não desmaiar.
Torin estendeu as mãos para Jaxson, como se ele fosse me levar, mas o
beta-em-treinamento balançou a cabeça.
— Eu a peguei. Vou garantir que fique segura na cela até a
transformação de hoje à noite.
Torin deu de ombros, seu interesse em mim já tinha diminuído,
especialmente quando Sisily colocou sua bunda estúpida na sala, parecendo
fresca e perfeita, apesar de ser tão cedo.
— Mantenha-a viva — Torin murmurou antes de ir embora, deixando-
me com Jaxson.
Eu não estava muito firme para caminhar, então não havia escolha a
não ser deixá-lo me carregar enquanto eu me esforçava muito para vomitar
nele. Outra vez.
Quando ele me colocou em minha cela original, a dor em minha cabeça
estava pior, então eu me encolhi no chão duro. Fechar os olhos ajudou, assim
eu me concentrava em inspirar e expirar regularmente, enquanto rezava para
desmaiar por algumas horas.
Um barulho fora da cela me despertou algum tempo depois, e eu
levemente levantei a cabeça para encontrar Jaxson esparramado contra a
parede em frente às grades, observando-me.
— Canalha — rosnei, estremecendo de dor por causa da pancada no
crânio.
Ele deu de ombros.
— Você não foi atacada em sua cela novamente, então talvez devesse
estar me agradecendo.
— Nem mesmo no meu leito de morte — respondi com toda a doçura
que pude arranjar.
Ele apenas sorriu, e fechei os olhos para bloquear seu rosto. Em algum
momento, cochilei, só para ser acordada novamente por uma voz furiosa.
Quando consegui abrir os olhos, fiquei em êxtase ao ver Dannie enfrentando
o Jaxson, pela primeira vez.
— O que aconteceu com ela? — ela rosnou.
Seu rosto estava virado e eu não conseguia ver, mas sabia a expressão
que ela usaria. Dannie irritada era assustadora.
— Ela insultou o alfa — Jaxson disparou de volta, ficando de pé, ele
mais alto, crescendo sobre ela. — Ela tem sorte de ainda estar viva.
Dannie zombou e Jaxson estreitou os olhos sobre ela.
— O que você está fazendo aqui embaixo? Ninguém deveria estar neste
andar.
Dannie inclinou a cabeça para trás, olhando diretamente nos olhos dele.
— Estou aqui para verificar minha amiga. Não confio em nenhum de
vocês para garantir a segurança dela, especialmente porque o alfa tem grande
prazer em punir aquela pobre garota por um evento que não teve nada a ver
com ela.
Esperei Jaxson discutir com ela, dizendo em detalhes como a traição do
meu pai tinha manchado o nome Callahan, e que todos nós deveríamos sofrer
por isso. Só que... ele não fez.
Seus olhos encontraram os meus por sobre a cabeça dela.
— Ela está acordada se quiser falar com ela — sua voz era sombria.
Dannie, sem dúvida, já sabia que eu estava acordada. Sustentou o olhar
em Jaxson mais um momento e depois girou, fazendo o seu caminho através
das barras.
— Ei, doce menina — disse ela com um sorriso suave, agachada ao
nível dos meus olhos. — Senti sua falta.
A culpa me atingiu em cheio.
— Sou uma idiota — eu me engasguei, forçando-me a levantar,
agradecendo que minha cabeça não estava latejando tão forte.
Dannie riu.
— Sim. Idiota total. Você tem sorte de não estar perto da Simone
quando fugiu pela primeira vez. A boca daquela garota...
Uma explosão de risos escapou de mim, seguida por um gemido,
enquanto a pancada reverberava, com sede de vingança, em minha cabeça.
Quando consegui me sentar, esfreguei a região dolorida, desesperada por
água para lavar o gosto seco da boca.
Uma garrafa deslizou pelo chão em minha direção, batendo na minha
coxa. Peguei e encontrei uma das misturas especiais da Dannie. Ela chamava
de bebida energética, fazia-a para mim quando eu estava para baixo, e,
mesmo que tivesse gosto de bunda, valia a pena pelos resultados.
— Pensei que você poderia precisar de um revigorante antes dessa
noite — disse ela suavemente, com os olhos correndo para onde Jaxson ainda
estava de pé, de braços cruzados, enquanto nos observava de perto.
Confiando nela, tirei o lacre da parte de cima e entornei todo o
conteúdo em um grande gole. O sabor de chicória era um pouco mais salgado
do que o habitual, mas, como sempre, eu apenas travei o nariz e bebi. Quase
que imediatamente, as batidas na minha cabeça aliviaram, e minha visão não
estava mais dobrada.
— Você é uma bruxa — eu brinquei, suspirando com o alívio.
Normalmente, Dannie ria comigo quando eu a chamava assim, mas,
dessa vez, ela apenas sorriu. Um sorriso lento e secreto, e não pela primeira
vez eu me perguntei o quanto realmente sabíamos sobre Dannie, a Viajante.
— Descanse, minha querida — acrescentou ela antes de se afastar. —
Irei vê-la para a transformação de hoje à noite.
Jaxson limpou a garganta.
— Transformações de solstício são exclusivas apenas para alfas e betas.
Dannie torceu o nariz para ele.
— Eu pedi sua opinião? Será que sequer olhei na direção de seu rosto
patético?
Jaxson parecia absolutamente afrontado por alguém lhe dirigir a
palavra assim, mas, antes que ele pudesse abrir a boca e responder, Dannie
iniciou.
— Você tinha tudo em suas mãos, filhote — ela disse baixinho —, e
jogou fora por puro orgulho e medo. Você perdeu o que poderia ter tido e,
quando nossa garota se tornar quem ela realmente é, vai destruir você. Eu,
por exemplo, mal posso esperar para ver isso.
Jaxson balbuciou algo, mas Dannie já estava balançando o rabo fora de
vista, nem se importando com o fato de que um metamorfo furioso estava
semitransformado atrás dela.
Eu tinha sorte de ter uma amiga que achava que eu era algo pelo que
valia a pena perder tempo, quando todos os outros na minha vida — exceto
Simone — tinham simplesmente me jogado fora.
Os olhos negros de Jaxson estavam presos em mim, sua mandíbula
dura e inflexível enquanto a energia e o cheiro de seu lobo preenchiam as
celas subterrâneas.
— Não perca o controle — eu disse sem rodeios. — Não dou a mínima
para o seu problema pessoal com a Dan. Controle suas merdas.
Ele tentou me matar com sua expressão, mas fechei os olhos e coloquei
a cabeça de volta para baixo, determinada a descansar e me curar antes da
mudança da lua cheia. Alguns lobos morriam durante sua primeira
transformação, corpos muito fracos para as almas que abrigavam.
De jeito nenhum eu daria a esses idiotas a satisfação de me ver
sucumbir ao lobo dessa forma. Nem pensar. Eles iam me ver mais forte do
que nunca e um dia, eu esperava que mais cedo ou mais tarde, não seriam
mais uma ameaça para mim.
Onze
Quando a noite chegou, a dor tinha dado lugar a uma energia que
vibrava sob minha pele como se eu tivesse enfiado a mão em uma tomada de
energia. Sempre senti a batida diferente de outro ser em minha alma — usual
para um metamorfo —, mas essa noite era diferente. Ela estava esticando as
pernas e empurrando contra as amarras invisíveis que nos tinham sido
impostas por anos.
Vinte de nós estavam lá, nus, a luz brilhante da lua derramando-se em
nossa pele. Eu estava na parte detrás, tentando desesperadamente não pensar
em quão vulnerável eu era frente a uma tonelada de lobos que me odiavam.
Felizmente, Dannie estava lá comigo, não nua, já que não estava se
transformando, mas foi bom ter uma amiga ao meu lado.
E, felizmente também, meus piores algozes — Jaxson e Torin —
estavam com seus pais. Talvez eu conseguisse passar por isso sem ter que me
associar a nenhum deles.
— Novos metamorfos — gritou o alfa. — Finalmente é hora de
permitir que suas feras se libertem e experimentem o poder que recebemos ao
nos tornarmos um membro puro-sangue do nosso grupo.
Dean se colocou de pé e, mesmo que ele fosse apenas o beta, sua
presença era tão imponente quanto a do alfa. Ele era alto e largo como seu
filho, com cabelos negros e olhos de um azul penetrante. Parecia muito
jovem para ter um filho na casa dos vinte anos, mas essa era a vantagem da
genética dos lobos.
— A lua está quase no seu auge — disse ele com sua voz baixa e cheia
de sotaque. Apesar de ter crescido ali, ele sempre manteve seu rs, estilo
europeu. — Muito em breve, vocês perderão o pensamento consciente e
permitirão que seu lobo finalmente seja livre. Não precisam temer essa
mudança, pois estaremos aqui o tempo todo, mantendo vocês e o resto do
nosso bando seguro.
Uau, que reconfortante. Para todos menos para mim. Eu nunca
esperaria voltar ali para minha primeira transformação, mas teria que dar o
meu melhor agora. Minha loba estava pronta para correr e nada do que eu
fizesse a impediria.
O ar estava congelando, mas eu estava longe de sentir frio. Meu sangue
fervia como o inferno quando inclinei a cabeça deixando o cabelo cair em
ondas soltas pelas costas. À medida que a energia crescia em minhas
vísceras, eu sentia um redemoinho quase insuportável de poder, parecia que
meu cabelo estava girando em torno do meu corpo também.
Quando a lua explodiu com a luz mais brilhante da noite, meus olhos se
fecharam involuntariamente contra o brilho, e meu espírito lobo se tornou
verdadeiramente visível para mim pela primeira vez. Um vermelho ardente
profundo o cobria, como uma aura, e, enquanto ele forçava em direção à
superfície, a barreira que o segurava caiu.
Seja livre. Corra.
Seu calor roçou meu rosto, como uma carícia, mas isso foi o início e o
fim de qualquer toque suave quando a mudança tomou conta de mim. Caindo
sobre as mãos e os joelhos, senti a dor estourar em todos os nervos, enquanto
minhas costas se arqueavam, meu corpo estava se alongando.
— Vou ajudá-la a superar isso...
Eu tinha perdido a maior parte do discurso do alfa, muito focada na
minha loba, mas, quando registrei essas palavras, quase ri em voz alta — a
única coisa que me impediu foi saber que, se abrisse a boca, eu
provavelmente gritaria de agonia. Eu sabia, com certeza, que aquele bastardo
morreria antes de aliviar a minha dor de qualquer forma.
O quebrar dos ossos ecoou através da clareira. Eu não era a única no
meio de uma dor debilitante e, quando meus dedos se quebraram levando-me
a ficar sobre os antebraços, comecei a rezar para que ninguém me atacasse
enquanto eu não tinha a menor chance de me defender.
Shadow Beast. Ajude-me a sobreviver a isso.
Sempre me pareceu divertido adorar uma entidade que era retratada
como uma figura sombria e assustadora vivendo nas sombras, mais animal do
que humano. Sem mencionar que ele literalmente tinha a palavra fera em seu
nome.
Era apenas um apelido, no entanto — ninguém sabia seu nome original.
Era um segredo de longa data, ou uma informação perdida no tempo, até que
eventualmente ele passou a ser conhecido apenas como Shadow Beast.
Aquele que o persegue à noite.
— Liberte seu lobo! — Dean gritou, e dessa vez houve gritos, já que
estávamos no extremo da mudança que nos colocara em um estado entre
humano e animal.

Em algum momento, a parte humana da minha mente desapareceu para


o lobo, e, quando isso aconteceu, a dor foi silenciada.
Livre. Finalmente livre. Correr, correr, correr, correr. Correr ao luar.
Perseguir o coelho e cheirar a presa ao redor. Bando. Família. União. Alfa...
Eu estava perdida, confusa, como todos os lobos recém-transformados.
Ela era instinto, terra sob os pés, luar nas costas, liberdade no coração.
Enquanto ela corria pela floresta, minha consciência humana reergueu-
se do lugar confuso em que se encontrava e, assim, foi sendo filtrada de volta
através de mim. Eu me vi completamente consciente, cavalgando junto ao
corpo ágil de um lobo, e por um segundo surtei.
O que estava acontecendo?
O que empurrou meu cérebro de volta ao modo normal tão
rapidamente?
Correr juntas?
Droga, essa era a coisa mais alucinante que eu já tinha experimentado,
mas também a mais incrível. A loba ainda estava no controle, mesmo depois
que minha consciência estava de volta para mim, e, quando ela mergulhou
nossa cabeça para cheirar o chão, uma pata vermelha e três brancas
apareceram. O resto de mim parecia ser de vários tons de vermelho, assim
como meu cabelo, e eu poderia ter rido da ironia disso. Nenhum metamorfo
de Torma tinha cabelo ruivo, então não havia lobos vermelhos. Agora eu
tinha que ser um farol ao luar, também... Callahans e sua ascendência de
cabeça brilhante.
Corra! Minha loba pressionou novamente e, dessa vez, empurrei a
preocupação de lado, gostando de seu entusiasmo.
Sim! Uma corrida rápida e depois escapamos.
Uma oportunidade tinha sido dada a mim. O fato de que eu estava
consciente para esta corrida enquanto ninguém esperaria por isso significava
que eu poderia tentar escapar. Fugir do bando de novo e, dessa vez, eu nunca
pararia de correr.
Nós duas concordamos com o plano e fomos embora. Qualquer mal-
estar que eu pudesse sentir em estar presente nesse momento sumiu sob nossa
alegria de correr como um lobo. A visão animal era uma mistura de preto,
branco e cinza, com um tom de verde. E, apesar da escuridão na floresta, uma
vez que o brilho da lua deixou nossa pele, ainda podíamos ver tão claramente
como durante o dia. E os aromas... tudo era amplificado dez vezes ao que eu
normalmente cheirava. Agora parecia que eu poderia diferenciar entre os
vários pinheiros, e o pinheiro-cinza despendia o cheiro mais forte. As maiores
árvores tinham raízes profundas e exalavam notas cítricas. As sequoias
tinham um cheiro mais suave, com...
Coelho?
Minha loba perdeu o interesse na floresta no momento em que o cheiro
da pequena criatura nos atingiu. Ela se virou rapidamente, deixando o bando,
perseguindo comida. Estava desesperada para sua primeira refeição e,
aparentemente, coelho estava no menu. Esperava me sentir um pouco enojada
pelo seu desejo de comer uma criatura viva que pulava por aí, mas a repulsa
nunca chegou. Em vez disso, senti seu instinto de caça tão fortemente como
se fosse meu.
Nossos sentidos se focaram completamente sobre a criatura enquanto
perseguíamos seu caminho e, justo quando estávamos prestes a alcançar
nosso objetivo, o cheiro de outro, que claramente estava nos seguindo, contra
o vento me atingiu. Por instinto, caímos e rolamos quando um lobo enorme
mergulhou sobre nós.
Ainda não tínhamos pegado o jeito do nosso novo corpo e habilidades,
então estávamos completamente à mercê do metamorfo muito maior. No
começo pensei que fosse um ataque, mas então, como ele passou a brincar
comigo, percebi o que realmente estava acontecendo: a união dos bandos. O
único problema era que eu sabia quem era esse lobo e, embora ele esperasse
que eu nunca me lembrasse desse momento dele me estimulando, eu
definitivamente me lembraria.
Jaxson não deveria se aproximar assim, mas fugir chamaria sua atenção
sobre a minha consciência atual, então não tive escolha a não ser brincar
junto. Felizmente, minha loba tomou conta de nossos pensamentos
novamente e eu me acomodei para lamentar a vida que eu poderia ter tido se
meu pai não tivesse fodido tudo. Meu pai, que nem estava ali para ver minha
primeira transformação. Tínhamos falado tanto sobre isso. Todos esses
planos e devaneios simplesmente triturados em garras e sonhos fracassados.
Não que os últimos dez anos tenham sido apenas culpa dele. O bando
poderia ter usado uma abordagem diferente, uma mais lógica, que não
punisse os metamorfos inocentes pelas ações de um indivíduo. Jaxson,
especialmente, dele eu esperava uma postura melhor.

Esse momento doeu.


E as memórias dessa noite me assombrariam por anos, mas eu não
podia partir.
A minha loba e o de Jaxson brincaram por horas, como se fossem
velhos amigos. Tecnicamente, eles eram, mas agora seríamos inimigos, e era
isso que precisávamos lembrar acima de tudo.
O bando. Minha loba chorava por mim.
Não, eu a lembrei. O bando não ataca o bando. Eles nos odeiam.
Finalmente livre de seus limites, ela tinha temporariamente esquecido
os últimos dez anos, pega pela sensação de correr livre e estar com seu
bando. Para ela, os lobos nunca tinham sido um problema; foram os lados
humanos que causaram todo o drama.
Deixei-a ter esse momento e, com toda a honestidade, ambas estávamos
gostando.
Quando a lua finalmente perdeu seu brilho, a luz inicial do dia tomando
as terras do bando, sentimos o chamado do alfa puxando os laços que nos
ligavam a esse bando, e a esse sociopata.
Porra! Tínhamos nos esquecido de fugir e agora era tarde demais para
tentar. Eles estariam de olho em mim, então eu teria que esperar outro
momento.
Próxima transformação, com certeza.
Minha loba estava cansada enquanto corríamos com os outros, de volta
para a casa principal da alcateia, e foi só quando o alfa apareceu em meu
campo de visão que me lembrei de mais um fato arrepiante: ele havia dito que
me ligaria a si de uma maneira que eu nunca pudesse escapar.
E eu tinha deixado passar minha única chance de fugir correndo com
um idiota que tinha virado as costas para mim ao primeiro sinal de drama.
Por que fui tão estúpida?
Minha loba não entendeu o problema. Ela achou que éramos fortes o
suficiente para fugir a qualquer momento, mas foda-se... Eles já tinham me
rastreado uma vez, e isso havia acontecido antes de nossos laços serem tão
fortes como eram agora. Se o alfa nos unisse ainda mais...
Seríamos prisioneiras para sempre.

Virei a cabeça, mas Jaxson estava bem atrás de mim, não havia
absolutamente nenhuma maneira de eu escapar. Meu coração bateu forte
quando percebi mais do lobo desaparecendo, ao nos aproximarmos do alfa.
Ele estava de volta à forma humana, nu, esperando por nós. Mais lobos
estavam ali agora — muitos do bando se juntaram à corrida essa noite. Eu
não conseguia ver Dannie, mas esperava que ela estivesse lá fora em algum
lugar. Eu precisava de uma aliada.
Quando minha loba se juntou aos outros, um lobo cinza-escuro correu
para o lado do alfa e começou a mudar. Minha loba avançou em direção a ele
enquanto minhas entranhas irrompiam para a vida, faíscas disparando ao
longo de todos os meus sentidos. A intensidade quase me mandou para o
chão.
Não havia como parar minha fera enquanto ela corria para o lobo
cinzento.
O filho do alfa.
Nosso verdadeiro companheiro.
Doze
Torin ainda não tinha mudado para sua forma humana completa e,
quando a magia estava prestes a envolvê-lo, ele deve ter nos percebido. Os
verdadeiros companheiros só tinham que estar transformados e próximo um
do outro para que os lobos reconhecessem o vínculo com o companheiro.
Eu tinha perdido completamente o controle da minha fera agora,
enquanto corríamos mais rápido que o vento, nossas almas desesperadamente
procurando por aquele que nos faria completas. Aquele que corrigiria os erros
que esse bando nos concedera.
Se eu estivesse no meu juízo perfeito, teria ficado enojada com esse
sentimento. Eu não era do tipo que esperava por um cavaleiro de armadura
brilhante. De maneira nenhuma. Mas os lobos não pensavam como humanos,
e os laços entre companheiros eram sagrados e reverenciados... Valiosos.
Foi o lado humano que ferrou com a magia.
Victor parecia surpreso quando corremos em direção a ele, e eu vi sua
postura se ajustar enquanto ele se preparava para ser atacado. Ele pensou que
éramos como nosso pai, mas não poderia estar mais errado.
Quando parei ao lado dele e fui em direção ao seu filho ainda lobo, a
expressão no rosto do alfa era quase cômica. Torin, enquanto isso, estava na
defensiva, e essa foi a minha primeira indicação de que isso não seria bom.
Não era uma grande surpresa para mim, mesmo que minha loba tivesse
mais fé.
Minhas emoções estavam misturadas, fortemente inclinadas para
descrença, nojo e aborrecimento, mas também havia um fiapo de esperança.
Esperava que esse pudesse ser o momento em que tudo mudaria para mim
nesse bando.
Torin seria o futuro alfa. Ele controlaria todos os lobos e, se eu fosse
sua verdadeira companheira, eles teriam que aprender a me tolerar. Era
possível que os pecados do meu pai deixassem de pesar sobre meus ombros.
Ele se endireitou quando me aproximei, seu lobo era quase o dobro do
meu, de um cinza tão escuro que se aproximava do preto. Havia algumas
manchas de branco no olho direito e duas esbranquiçadas nas patas traseiras,
mas, fora isso, ele era uma fera da meia-noite.

Uma magnífica fera da meia-noite, que não mostrava sinais de marcas


da lâmina que eu tinha enfiado em seu peito.
Torin deu um passo em minha direção, mas, antes de nos tocarmos,
outro lobo saltou entre nós, rosnando e uivando. Eu não conhecia esse, mas,
dada a espessa pelagem cor de mogno, não era muito difícil adivinhar. A cor
da pele combinada com uma possessividade agressiva sobre Torin deixavam
claro quem me enfrentava: Sisily.
E ela estava furiosa.
O lobo dela bateu no meu e, ao contrário de como havia feito Jaxson,
esse encontrão não tinha nada a ver com brincadeira. Era pura violência,
garras e dentes rasgando-me com uma ferocidade que falava de mais do que
querer me colocar no meu lugar. Isso fora planejado puramente para
machucar... Talvez até mesmo matar.
Eu não tinha experiência em lutar em forma de lobo, mas o instinto
emergiu e nós revidamos. Minhas mandíbulas se fixavam em sua carne e,
como ela não estava tão acostumada à dor como eu, soltou uma série de uivos
agudos. O sangue encheu minha boca e pude provar o seu poder enquanto
drenava seu corpo e nutria o meu. Foi uma sensação estranha, mas eu estava
tão envolvida na batalha que não me importei.
— Basta!
O comando do alfa nos congelou no lugar, então fui arrancada dela e
arrastada para a área na frente de Victor. Voltando a ficar de pé, rosnei para o
alfa antes de voltar a atenção para o humano ao seu lado: Torin.
— O que você quer que eu faça, filho? — Victor perguntou, olhando
para mim, seu poder alfa me prendendo no lugar.
A mandíbula de Torin tensa, seus lábios se contraindo, e eu não
conseguia descobrir o que estava acontecendo. Ele era meu amigo. Meu
verdadeiro companheiro. A outra metade da minha alma.
O que ele estava realmente considerando agora?
— Bani-la do bando — disse Torin soando inseguro, mas não retirou
essa declaração. — Nunca mais quero ver o rosto dela novamente.
Doeu como nada que eu já tinha experimentado antes — e isso
realmente significava algo —, bateu em mim como se uma tonelada de tijolos
tivesse sido jogada sobre meu corpo. Em meu coração. Destruindo-me de
uma forma que punhos e tormentos nunca fizeram. Minha loba, tão recém-
libertada, baixou a cabeça para trás e uivou para o céu. Nossa alma estava se
despedaçando em fragmentos de cristal e agonia, o uivo contínuo indo muito
além de nossa habilidade de respirar.
— Bani-la não vai quebrar o vínculo — Victor avisou ao seu filho,
parecendo presunçoso e satisfeito com o que estava prestes a acontecer.
— Vou expulsá-la da minha alma nem que seja a última coisa que eu
faça — Torin cuspiu, agachado para que estivesse olho no olho conosco.
Por um longo momento, nossos olhos permaneceram conectados, ele
nadava em uma emoção desconhecida, a minha sem dúvida era cheia de dor.
Embora a raiva estivesse começando a ultrapassar a agonia, eu a agarrei
como a um bote salva-vidas. A raiva nos faria superar.
— Você é uma desgraça para os metamorfos em todos os lugares —
disse ele lentamente, como se eu tivesse dificuldade em entender. —
Provavelmente não irá se lembrar disso de manhã, mas vai sentir o romper do
nosso vínculo quando eu começar o processo de rejeição.
Ficando de pé em um movimento rápido, ele estendeu a mão e puxou a
nua Sisily em seus braços. Ela tinha cortes e hematomas espalhados pela pele
humana, mas não o suficiente para o meu gosto.
— Sisily será a próxima alfa comigo — disse ele, realmente cravando a
faca — e, se você colocar os pés nesta terra novamente, teremos grande
prazer em matá-la.
Não pensei que algo pudesse me machucar mais do que ouvi-lo dizer
ao pai que me banisse, mas então ele a beijou, com as mãos vagando pelo
corpo dela, com a língua acariciando uma cadela que não era sua
companheira. Dessa vez, quando minha alma gritou, seu uivo soou mais alto
do que eu já tinha ouvido, e foi só quando Victor tentou me tirar do caminho
que notei que estava machucando os outros metamorfos ao meu lado.
Membros da alcateia estavam batendo no chão, cobrindo os ouvidos contra
meu lamento solitário.
— Mate-a! — Victor gritou. — Mate a cadela demoníaca!
Cadela demoníaca? Eu mostraria a ele uma cadela demoníaca.
— Não! — Torin explodiu, mas chegou tarde demais.
Dean Heathcliffe, um amigo da família que se tornara inimigo, tinha
meu pescoço em suas mãos e, quando o torceu bruscamente, eu busquei
profundamente a força para escapar. De jeito nenhum eles me derrubariam.
Nunca mais me curvaria à vontade do bando Torma.
Eu sabia que tinha uma força inexplorada; eu só tinha que encontrá-la.
Minha loba me mostrou o caminho. Seu uivo debilitante era só a ponta
do iceberg. Dando-lhe toda a liberdade, deixei que seu poder disparasse como
uma bala no Universo, e fomos apropriadamente lembradas de que não
nascemos de um espírito humano.
Nós nascemos do Shadow Beast, e foi a ele que ela invocou.
Outro uivo estourou quando Dean tentou quebrar nosso pescoço. Mas
suas mãos escorregaram.
Ele tentou de novo e de novo, mas, a cada vez que o fazia, era frustrado
pelo poder dentro da minha fera.
O mundo passou de preto, branco, cinza e verde para algo nos mais
profundos tons de ameixa. Esse novo panorama se estendia pela paisagem
bem iluminada e uma segunda visão desceu sobre a minha normal.
De repente, pude ver objetos que não estavam lá antes, como se um véu
sombrio tivesse descido sobre o mundo real. As mãos de Dean me soltaram
uma última vez e ele caiu no chão, incapaz de me segurar por mais tempo.
Sacudindo o pelo nos levantamos e, enquanto me inclinava para a
frente, meu nariz se encostou em uma das novas figuras escuras em minha
visão velada. Um ser sombrio que tinha cerca de um e oitenta e três de altura.
Ele reagiu.
A porra da sombra reagiu.
Girou antes de fugir de maneira furtiva.
Minha loba ficou tão chocada quanto eu, nós duas tentando descobrir
que loucura era aquela que tínhamos feito. Ela avançou novamente, tentando
tocar outra sombra — dessa vez parecia uma árvore, que definitivamente não
fazia parte das terras do bando. Os campos ao redor da casa eram
normalmente limpos, então isso era de outro lugar.
Puxando forte na árvore das sombras, uma pequena explosão de poder
enviou uma onda de choque através de mim, e eu fui empurrada para longe
do ramo nebuloso. Ao colidir com o chão, minha loba choramingou,
completamente exausta. Quando a mudança de volta para o ser humano
começou, eu me preparei.

Esperava que isso levasse muito tempo e que doesse pra caralho para
me transformar de volta, mas acabou em poucos segundos, e fiquei parada
para descobrir que todos os outros membros do bando de Torma
permaneciam no chão.
Completamente inconscientes.
Puta merda. O que diabos eu tinha feito?
Treze
Se não fosse pelos meus sentidos recém-melhorados, eu teria pensado
que eles estavam todos mortos. Estava tudo tão quieto, um silêncio estranho
era meu único companheiro enquanto eu caminhava para a frente. As terras
do bando quase nunca ficavam sem algum tipo de folia, fosse na forma
humana ou de lobo, mas, exceto pelo movimento lento dos peitos subindo e
descendo com as respirações, não havia outros sinais de vida.
Meus pés descalços, protegidos pela grama macia enquanto eu pisava
entre os lobos ao meu redor, com muito cuidado para não os perturbar. Tudo
o que eu conseguia pensar era que uma segunda oportunidade perfeita para
escapar tinha sido entregue a mim, e eu não iria desperdiçá-la dessa vez.
Tinha que quebrar esse vínculo com o bando de Torma.
Com Torin. Aquele maldito filho da mãe.
Agora que estava de volta à forma humana, eu queria que houvesse
tempo para esfaqueá-lo novamente, seguindo com uma rápida decapitação.
Não havia como voltar, mesmo para um metamorfo. Mas, por enquanto, eu
teria que me contentar em abandonar a piada de ter um verdadeiro
companheiro — e nunca olhar para trás.
A essa altura, a luz da manhã tinha realmente encontrado seu espaço, e
havia uma parte no sol que sugeria que esse seria um daqueles dias de
inverno "quentes". Geralmente, esses dias eram seguidos por um
congelamento intenso, e todos nós acordávamos cobertos de gelo e neve.
Não que eu fosse estar ali para ver. Minha bunda muito nua estava
dando o fora.
Minha loba chorava suavemente no meu peito, um som triste e
pesaroso. Ela tinha grandes esperanças naquele com quem compartilharia a
alma, e talvez, se o lobo de Torin estivesse no controle, tudo tivesse sido
diferente. Lobos eram honrados de maneiras que os humanos não eram.
Minha loba reclamou de novo, mas não tentou decretar sua vontade
sobre mim. Ela aceitou nosso destino. Muitas feridas existiam entre mim e
Torin para que fossem cicatrizadas, e eu morreria antes de permitir que ele
nos reivindicasse.
Ele não nos quer.

Eu não tinha certeza de quem pensava isso, mas era a porra da verdade,
e eu precisava desprezá-lo, garantir que não tinha uma espada em meu peito
dessa vez.
Corra!
O lobo me tirou da reflexão, e, mesmo que eu estivesse silenciosamente
me movendo pelo campo o mais rápido que podia sem fazer barulho, tinha
vencido um grande obstáculo no meu caminho: Torin.
Ele saíra das sombras... Meu companheiro.
Companheiro rejeitado, para ser mais precisa.
Torin não devia ter sido tão afetado como todos os outros pelo que eu
fiz, e viria direto para mim assim que pudesse. Falando nisso, os outros
pareciam estar se contorcendo agora também.
— O que você acha que está fazendo? — Torin indagou, sua voz era
baixa e ruidosa.
Um rosnado foi derramado dos meus lábios, mais animalesco do que eu
tinha sido capaz de fazer antes dessa noite.
— Estou indo embora — rosnei. — Para nunca mais voltar. Você
deveria estar grato.
Foi a vez de Torin rosnar e, infelizmente, soou muito mais
impressionante. Ele se colocou alguns passos mais perto, os músculos de seus
braços e peito tensos. Como estava nu, foi fácil ver seu pau começar a
endurecer, como se estivesse reagindo a mim, apesar de rejeitar o nosso
vínculo.
Girando, eu saí na direção oposta e consegui uma distância decente
antes que ele me atacasse. Nós lutamos, e não do jeito divertido, mas sim nus.
Não, para mim isso era sobre sobrevivência, e mais uma vez fui frustrada
pela força física superior de um metamorfo masculino.
Se eu sobrevivesse a tudo isso, precisaria desenvolver algumas
habilidades de luta que aumentassem as minhas chances em uma batalha.
Torin me puxou, com as mãos ao redor dos meus bíceps enquanto me
segurava no lugar.
— Você não faz nada sem a minha permissão — ele resmungou. — Eu.
Possuo. Você.

Dei uma joelhada em suas bolas e, fosse como fosse a ereção em seu
pau, já teria ido embora quando ele resgatasse os testículos da garganta. Os
metamorfos eram duros, mas eu não tinha poupado nenhum poder naquele
golpe, e isso foi o suficiente para derrubá-lo, apalpando-se com as mãos.
— Você está morto para mim — eu disse calmamente, não estava
disposta a gastar mais emoção com ele. — Não mostre seu rosto diante de
mim novamente, ou, da próxima vez que eu enfiar um objeto em seu coração,
será algo que o mate.
Ele se atirou em mim de novo, mas eu já estava me movendo, correndo
pelo campo.
— Parem-na! — Victor gritou, um estrondo em seu tom, assim que se
viu completamente acordado novamente.
Eu não olhei para trás, empurrando-me através da exaustão. As pegadas
soavam atrás de mim, mais perto do que eu gostaria, e peguei meu ritmo,
quase completamente aproveitado em energia.
— Sunny — Jaxson assoviou.
Filho da puta.
De alguma forma, encontrei uma pequena reserva de força e passei a
correr ainda mais rápido. Jaxson soltou um palavrão murmurado, o ar
fazendo o menor barulho possível quando ele mergulhou na minha frente
para me atacar. Eu estava esperando por isso — Jaxson e Torin eram tão
semelhantes em seu modo de agir — e, como previ a direção de seu ataque,
eu o afastei.
Minha passada era firme e forte, apesar da fadiga, e eu não perdi
nenhum segundo no movimento de desvio. Se ser um metamorfo não viesse
com toda essa besteira, eu pensaria que foi a melhor coisa que já tinha
acontecido comigo.
— Mera! — esse chamado era de Torin, e eu estava praticamente
recebendo chicotadas dele.
Por que alguém que rejeitou sua companheira seria tão inflexível a
ponto de tirar o seu direito de ir e vir?
Não houve tempo para pensar nisso, porque o alfa deve ter decidido
que bastava e, como estava determinado a estreitar meus laços com o seu
bando, meus pés finalmente perderam um passo e eu caí. Filho da puta. Eu
tinha me esquecido do controle alfa e, mesmo que fosse fraco para mim, foi o
suficiente para me desequilibrar.
Enquanto eu me empurrava para cima, um punho pesado bateu em
minha têmpora, e tudo ficou confuso, cinza ao redor das bordas. Os
metamorfos possuem um soco e tanto, e, embora eu não tivesse ideia de
quem havia me batido, o golpe definitivamente me tirou a realidade.

A cura de um ferimento na cabeça me roubou pelo menos trinta


minutos e, quando voltei à posição de luta, eu já tinha sido levada para a casa
principal do bando e acorrentada a um poste. Um poste de metal reforçado
que parecia inquebrável, mesmo para os metamorfos. Minhas algemas se
chocavam enquanto eu recobrava a consciência.
— Por que ela está no seu quarto? — Sisily rosnou, socando Torin no
peito. Os dois estavam do outro lado do quarto enquanto eu olhava
freneticamente em volta. — Você a rejeitou, e eu a quero morta. Agora
mesmo.
O quarto do Torin. Ele me levou para o quarto dele?
Estava mal iluminado, apenas um pequeno pedaço de luz entrando
através de uma fresta parcialmente aberta, mas, com minha nova visão de
metamorfo, eu não tinha problema em ver Torin e Sisily — ambos vestidos
agora, felizmente — tendo sua pequena discussão.
— Ela é minha prisioneira — disse Torin com uma voz controlada. —
Meu pai me aconselhou a pensar no que quero fazer com ela.
— O que há para pensar? — Sisily gritou ainda mais alto. — Você
disse que me ama. Você quer me fazer sua companheira. Basta matar a vadia
horrorosa e acabar com isso.
O foco dela estava em Torin, mas ele estava me observando, seus olhos
passaram por sobre o ombro dela para encontrar os meus. A cadela
egocêntrica provavelmente nem tinha notado que seu "amor" mal estava
prestando atenção em uma palavra que ela dizia.
Estreitando os olhos, tentei matar Torin com o poder de um simples
pensamento, e um pequeno sorriso inclinou seus lábios. Ignorei a forma como
esse sorriso ainda me afetava, forçando as memórias de sua rejeição para o
topo da minha mente. Era a única coisa que eu precisava lembrar.
Sisily ainda gritava insultos, cada frase menos coerente e mais chorosa
que a outra, mas paralisou completamente quando Torin passou os braços em
volta dela, empurrando aquela cadela metamorfo contra seu corpo. A boca
dele estava na dela no mesmo instante, e isso parecia punição pela minha
falta de reação a ele antes.
Não pude desviar o olhar do desastre. Tortura e dor como forma de
punição, uma agonia escura me encheu enquanto eu olhava.
Sisily gemeu alto, e, como Torin não estava fazendo nada além de
beijá-la, eu tinha que me perguntar se tudo isso era um show para mim.
Inclusive da parte dela.
As mãos de Torin se moveram mais abaixo, para a bunda de Sisily,
arrastando-a para cima enquanto ela passava as pernas em torno dele. A dor
explodiu em meu peito. Ele a tinha embalado contra si no tipo de abraço que
só um verdadeiro companheiro sabe dar. Encenação ou não, essa porra doía.
Eu não conhecia todos os passos que se precisa dar para iniciar uma
ruptura adequada do vínculo com o companheiro, mas sabia que uma
demonstração pública de rejeição como aquela era um dos primeiros. Eu me
recusei a separar os lábios e deixar o uivo subir livre em meu peito,
escolhendo em vez disso morder forte a língua, usando o corte afiado e
sangue para me distrair.
Torin estava tentando me quebrar. Da pior maneira que ele poderia
fazer, com uma mulher que eu detestava. Mas eu era especialista em esconder
a dor, graças aos seus muitos anos me treinando no fogo.
Eu posso fazer isso.
Sisily estava seminua nesse momento, ofegante e gemendo sobre ele
como uma cadela no cio, e, apesar de mal poder respirar através do
fragmento da minha alma, eu não iria ficar sentada ali assistindo, morrendo
de pena de mim mesma.
Não, obrigada.
— Ah, para, Sis — eu soltei, grata que minha voz soasse calma, com
apenas uma pitada de amargura. — Esse pornô a que você tem assistido é tão
antiquado. Ninguém mais diz: "Por favor, por favor, me possua, querido".
Você tem que melhorar suas falas provocantes.
O rosnado de Torin era alto e ecoava, então virei minha expressão falsa
e entediada para ele.
— Tenho que dizer, depois dos anos de rumores, eu esperava um
pouco... mais.
— Meus olhos caíram para a frente de suas calças e, apesar do material fino
do short de basquete que ele usava, não havia nem um sinal remoto de
excitação lá.
Se já não tivesse visto “material” um tanto impressionante, eu poderia
até pensar que ele tinha sido um idiota todos esses anos para compensar o seu
pau minúsculo. Mas não, Torin estava completamente desanimado mesmo
com Sisily se esfregando contra ele. Pobre, burra, desesperada vadia.
— Você deve esperar por um homem que não pensa em você como
uma irmã — eu sugeri como ajuda.
Sisily gritou e pulou em minha direção, mas Torin a parou antes que ela
se aproximasse.
— Ela está com ciúmes. — Ele riu soando presunçoso como um fodão.
— E agora ela pode me ver deitar sua bunda perfeita sobre minha cama e
bater meu pau acima da média na sua boceta apertada.
Eu bufei.
— Apertada... Ah, claro. Don e Shortie já fizeram penetração dupla
com ela — eu estremeci — no mesmo buraco. Mas, você sabe, tenho certeza
de que esses rumores sobre ela mijando um pouco quando ri são muito
exagerados. Os exercícios de Kegel são ótimos, querida. Você realmente
deveria dar uma olhada nisso.
As bochechas de Sisily estavam vermelhas, seus olhos flamejantes
enquanto ela tentava controlar a fúria com respiração profunda. Despejar o
que a minha boca espertinha queria estava me ajudando a compartimentar a
dor — só estava machucando minha alma naquele momento, mas porra,
quem precisava de uma dose desses dois juntos?
Um pouco de escuridão nunca matou ninguém.
Torin tinha aqueles malditos olhos dele em mim novamente,
procurando algo em meu rosto, encarando-me de um modo diferente, como
nunca havia feito antes. Como se estivesse me vendo pela primeira vez. Eu
não gostei. Fez minha loba se contorcer e uma parte de mim ofegar como se
eu fosse a vadia no cio agora. Não. Obrigada.
Como minha expressão apática não se alterou, seus olhos se estreitaram
e, sem tirá-los de mim, ele girou Sisily e puxou sua saia. Quando seu pau
emergiu, um momento depois, ele estava finalmente duro. Acho que havia
descoberto como fazê-lo funcionar de novo.
— Você pediu isso — ele murmurou, e eu me perguntei o que Sisily
pensaria se soubesse que Torin estava transando com ela sem tirar os olhos
dos meus.
Forcei um sorriso a curvar meus lábios.
— Vou dar-lhe algumas dicas. Parece que você precisa de ajuda.
Ele a penetrou, e ela gemeu, com os olhos fechados.
Eu estava desesperada para fazer o mesmo; fechar os olhos e bloquear
os ouvidos, mas me recusei a desviar o olhar. Tudo o que me restava nesse
momento era meu orgulho e, com certeza, o inferno congelaria antes que eu
lhe desse a satisfação de me ver abalada.
Forçando-me a relaxar, eu respirava para dentro e fora fingindo por um
momento que tinha pulado para um vídeo pornô particularmente chato. Entra
e sai, soca aquele pau, olhando para a minha cara como se ele estivesse
memorizando meus traços.
Levantei dois dedos.
— Minha pontuação é de dois em dez — eu disse sem inflexão. — E
isso é apenas para o gemido da Sisily; ela é quase crível.
Torin cerrou os dentes, fodendo-a mais forte e, pela primeira vez desde
que entrara nela, a cadela abriu os olhos. Agora ambos estavam olhando para
a minha alma esfarrapada e dilacerada.
— Ainda bem que você resolveu aquele probleminha de clamídia —
eu disse docemente. — Ouvi que a longo prazo ele pode...
Eu não terminei a frase, porque Torin aparentemente já estava de saco
cheio, lançou Sisily através do quarto com tudo, e ela caiu aos meus pés.
— Vocês duas, saiam da minha vista! — rugiu.
Foi ele quem saiu, explodindo pelo quarto, bolas balançando com a
brisa. Sisily encolheu as mãos e os joelhos respirando ainda ofegante e,
quando levantou a cabeça para rosnar para mim, percebi que isso ia acabar
muito mal.
Eu tinha sido deixada sozinha com uma metamorfo de lobo insatisfeita.
Uma que me odiava. Alguém que estava apaixonado por alguém que não era
seu verdadeiro companheiro.
Oh, quanta alegria.
Quatorze
Sisily, fiel à natureza, avançou, mas, enquanto minhas mãos estavam
presas ao poste, meus pés estavam livres como um pássaro para chutá-la bem
na barriga. Ela fora determinada em sua vingança, mas seu ataque desleixado,
na melhor das hipóteses, dava-me a abertura perfeita para bater forte nela.
Pela segunda vez, voou pelo quarto de Torin e, quando se levantou,
ficou lá estremecendo como se tivesse quase perdido o controle de sua loba e
estivesse prestes a se transformar.
Novos transformados não podiam mudar sem um comando ainda; isso
viria com prática e controle. Mas podíamos nos perder para o lobo se
fôssemos longe o suficiente.
— Vou me certificar de que ele a mate. — Tossiu, seu sorriso frágil e
quebrado, assim como suas palavras. — Você não é nada. Ele a odiou por
tantos anos quanto me amou. — Ela teve que engolir com força antes de
continuar. — Faça as pazes com o hoje. É a última vez que você vai ter isso
aqui.
Especialista em falsos sorrisos, consegui levantar a mão alto o
suficiente para mostrar o dedo. Quero dizer, isso não era realmente uma
escolha. Inclinei a cabeça para trás e gritei o mais alto que pude.
— Shadow Beast, apareça aqui e leve minha alma para o submundo.
Como nosso criador, assumimos que ele existia na terra onde os
metamorfos vão após a morte, e, como Sisily estava determinada a me enviar
ao meu criador naquele dia, eu daria a ela uma mão extra.
Ela parecia assustada pela primeira vez.
— O que diabos está fazendo? Você sabe muito bem que não deve
chamá-lo aqui. — Afastou-se murmurando algo sobre um metamorfo louco e
então correu do quarto.
Uau. Se eu soubesse que isso era tudo de que precisava para assustá-la,
teria tentado invocá-lo havia muito tempo.
Assim que pensei nisso, uma gota de energia gelada traçou minha
espinha. Sutil no começo, foi apenas o suficiente para fazer os pelos finos do
meu corpo se levantarem. Minha loba se moveu, a primeira energia real que
ela mostrava desde a nossa transformação. Nós duas estávamos de luto e
deprimidas, por dentro, pelo menos.

O que é? — perguntei mentalmente, mas ela não podia me responder.


Nessa forma, ela era apenas instinto e eu era o cérebro. Um silêncio cresceu
através do quarto e com ele veio uma sensação de pânico. Uma pressão sobre
mim. Instigando-me a correr. Não era um instinto natural. Isso estava sendo
imposto sobre mim, como a vontade de um alfa. Mas era muito mais forte.
Puxando as amarras com força, lutei mais do que nunca para me
libertar, mas o aço reforçado era inquebrável. Diante dos meus olhos, a luz
deixou o quarto. Não havia outra maneira de descrever o evento, mas juraria
que foi isso que aconteceu.
As lascas de claridade existentes foram lentamente substituídas pela
escuridão, como uma vela sendo apagada. O que...? Era meio-dia, no
máximo, muito cedo para o anoitecer.
E quando é que a noite cai em meros segundos assim?
Paralisei e todo o ruído que pudesse haver na casa principal do bando
também morreu. O único som que eu podia ouvir agora era de uma torneira
pingando em um banheiro de baixo. Gotejamento, gotejamento, gotejamento.
Um baque constante que era tudo o que estava entre mim e o silêncio total. A
escuridão estava completa agora, e, mesmo com a visão de metamorfo, eu
estava tendo problemas para ver qualquer coisa dentro do quarto de Torin.
Havia um eclipse solar de que eu não tinha ouvido falar?
Um evento como esse era geralmente uma grande notícia nos bandos,
porque afetava nossos ciclos de mudança. Era um exagero pensar que um
eclipse acabava de chegar sem aviso prévio.
Minha respiração saiu como um sopro, à medida que o ar ficou frio.
Não é bom. Meus instintos ainda gritavam comigo, mesmo que esse
medo antinatural tivesse, felizmente, enfraquecido para a um nível
controlável.
Onde estavam todos?
Empurrei os pulsos de novo e de novo, até que ficaram em carne viva e
sangrando. A cura começou muito rápido e, eventualmente, parei de
desperdiçar energia, focando-me na minha loba. Chamá-la não fez nada
acontecer — ou ela estava muito exausta ou havia algo extra nessas algemas
enfraquecendo-a. O que nos deixava em uma tonelada de problemas. O que
quer que estivesse acontecendo, eu não gostaria de enfrentar assim,
acorrentada e vulnerável.
A porta se abriu e, quando o cheiro familiar da floresta me atingiu,
fiquei aliviada.
— Mera — ele soprou.
— O que você está fazendo aqui, idiota? — surtei, muito abalada para
usar a minha habitual apatia sarcástica.
Jaxson não respondeu, em vez disso escolheu me agarrar em busca de
minhas mãos. Não discuti ou lutei com ele, porque queria sair dali mais do
que qualquer coisa. Um segundo depois, houve um estalo nas algemas e eu
estava livre.
Esfregando os pulsos, fiquei de pé, meu cérebro já em modo
sobrevivência.
Mais cedo, quando estava claro ali, notei algumas roupas de Torin no
chão, então tateei até encontrá-las, vestindo-as imediatamente. Usar suas
roupas possivelmente usadas era nojento, mas estar nua nesse tipo de situação
era muito pior. Podiam ser só uma camisa e um par de shorts de dormir, mas
pelo menos eu estava coberta.
— O que está acontecendo na casa? — sussurrei quando estava vestida.
Jaxson se aproximou; seu cheiro estava mais forte, mas sem outros
estímulos para me distrair.
— Não tenho ideia — disse ele com pressa. — Dei de cara com isso
quando estava dirigindo de volta da cidade. Eu pude literalmente ver as luzes
desaparecerem, uma escuridão abrangente tomando seu lugar. Até as luzes do
meu carro se apagaram.
Dizer que isso era ruim era um grande eufemismo.
— Como você sabia que eu estava aqui?
Ele parou de se mexer.
— Seu cheiro. Eu poderia encontrá-la em qualquer lugar, Sunny.
Jesus. Merda.
Essas não eram palavras usadas levianamente por metamorfos. O
cheiro significava muito para nós e comprometer a memória de alguém era
mais do que apenas um comportamento normal. Era o comportamento de um
companheiro.
Memórias de seu lobo brincando com o meu me atingiram, a alegria
que nós dois sentimos na ocasião, mas esses momentos nunca seriam fortes o
suficiente para apagar o resto. Nunca.
— Isso poderia ter algo a ver com o que você fez mais cedo? —
perguntou ele seriamente. — Quando você congelou todo mundo com o seu
uivo? Quando descobriu que Torin era seu... verdadeiro companheiro?
Ele quase se engasgou com as últimas palavras, e ficou claro que não
tinha gostado dessa reviravolta no destino. Eu também, cara. Eu também.
— O que você fez no campo? — ele pressionou por mais informações.
Certo. Aquela coisa. Sem mencionar a outra coisa de que ele não tinha
ideia, em que eu aparentemente podia ver sombras e tocá-las.
— Eu honestamente não tenho ideia — disse finalmente. — Estou
trancada nesta sala desde então, por isso o que aconteceu provavelmente não
tem a ver comigo. — Certo?
— Nós deveríamos investigar.
Ele agarrou minha mão, e eu puxei meus dedos para ficarem livres.
Seu lobo rosnou, baixo e ameaçador, não gostando da minha reação.
— Que porra, Mera? — Jaxson falou.
Estendendo a mão, agarrei sua camisa, puxando-o para perto de mim.
— Que porra? Sério? Está de sacanagem comigo? Qual é o seu jogo,
Jaxson? Você me tratou como se eu fosse um pedaço de merda nos últimos
dez anos, mas agora, do nada, está agindo como se fôssemos amigos. Me
chame de cínica, mas algo fede na casa Heathcliffe. — Abaixei a voz. —
Dica: é você.
Jaxson balançou a cabeça. Eu não podia vê-lo, mas ouvi o movimento e
estava perto o suficiente para sentir o ar mudar ao nosso redor.
— Você me abandonou — sua voz era frágil. — Pensei que eu ficaria
feliz com isso, finalmente ter você longe de mim e fora da minha cabeça.
Esperei por isso durante anos, para acabar com o tormento.
Oi?!
— Eu abandonei?
— Você me abandonou — disse ele, interrompendo — e meu lobo
perdeu a cabeça. Nós mal mudamos desde que você desapareceu, e foi só
quando voltou que ele relaxou o suficiente para me deixar entrar.
Aparentemente, você é a conexão. — Ele fez outra pausa. — Para nós dois.
Engoli o comentário raivoso, irritado, malvado que eu queria fazer, e
em vez disso o empurrei com a mão que ainda segurava sua camisa.
— É tarde demais, Jax — eu disse duramente. — Não podemos
recobrar isso.
Um silêncio triste pairava em minha declaração, e eu me perguntava se
nós dois estávamos pensando a mesma coisa: havia muita água sob a ponte e,
se nos deparássemos com sentimentos passados, poderíamos nos afogar.
Quinze
O clima estava tenso entre nós quando saímos do quarto de Torin, mas
havia muito mais com o que nos preocuparmos além da bagunça que era
nosso relacionamento. As terras estavam sob ataque. Não sabíamos como ou
por que, mas estava claro que algo estava muito errado.
— Aonde foi todo mundo? — Jaxson murmurou, guiando-me para o
corredor.
Ainda não conseguíamos ver nada, e não havia som de vida por ali.
— De qualquer forma, por que você estava fora das terras do bando? —
perguntei, ficando perto dele.
— Saí para executar uma missão na cidade — ele murmurou. — E,
como eu disse, quando dirigia de volta, tudo ficou escuro.
Legal. Então nenhum de nós sabia porra nenhuma, exceto que o mundo
tinha se tornado escuro quando não era para isso acontecer.
— Acho que isso pode realmente ser minha culpa — admiti.
Eu estava tentando o meu melhor para ignorar a parte profunda e
desesperada de mim que sabia que eu tinha feito isso ao chamar o Shadow
Beast. Poderia realmente ser coincidência a ausência total de luz minutos
depois de eu ter dito o nome dele?
Ah, qual é, fala sério! Ouvi outras pessoas xingarem e o chamarem. Era
como uma figura de linguagem, certo? Não era um convite literal para acabar
com a terra dele e sacudir a merda toda.
— Não é sua culpa, Meers — respondeu Jaxson, quase instintivamente
me defendendo.
Eu não me incomodava em discutir agora que estávamos do lado de
fora, o ar fresco e gelado batendo em nosso rosto, e finalmente pudemos
enxergar um pouco do que havia a nossa frente.
Ali fora havia uma fonte de luz que eu não conseguia identificar, mas
foi o suficiente para nossa visão metamorfo entrar em ação.
— Isso não é como o anoitecer. É como se uma sombra bloqueasse
completamente o sol.
A Sombra.

Filho da mãe desgraçado.


— Posso sentir o cheiro do bando aqui — disse Jaxson e, pela primeira
vez, essas palavras foram um alívio.
Ele me conduziu ao redor da casa, em direção à entrada da frente com
sua garagem circular. O carro esportivo azul chique de Jaxson estava
estacionado desajeitadamente lá, a porta lateral do motorista ainda aberta,
como se ele tivesse saído com pressa. E logo atrás estava...
— Ahh, porra... — Jaxson murmurou, vendo-os ao mesmo tempo que
eu. — Eles não estavam aqui quando cheguei. — Suas mãos tremiam como
sua voz de lobo.
Centenas de membros da alcateia estavam na frente da casa principal,
como estátuas, olhando para o céu. Para um pequeno ponto de luz brilhante
da meia-noite para ser mais precisa. A bola cintilante que era a fonte de luz.
Jaxson angulou seu corpo na minha frente.
— É mágica.
Podíamos ser metamorfos, mas isso não era realmente magia.
Compartilhávamos nossa alma com feras, e elas nos emprestavam sua energia
e sentidos, dando-nos habilidades extras. Magia, como mover varinhas e
lançar feitiços, era parte da lenda.
Nenhuma criatura sobrenatural que conhecíamos poderia fazer isso.
— Fique atrás de mim — disse Jaxson, aproximando-se do bando.
De jeito nenhum ele me daria ordens, então eu segui em frente no meu
próprio ritmo, ao seu lado. Quando chegamos à frente do grupo, onde Torin e
Victor estavam, eu podia realmente ver o ponto escuro e cintilante de névoa.
Da névoa que atraía o olhar de cada metamorfo presente ali.
Tinha cerca de oito metros de altura, piscando suavemente no ar da
noite; um portal brilhoso da meia-noite que não deveria ser visível contra o
cenário preto, mas era.
— Mera — Jaxson sussurrou me puxando para ficar parada. — Não
mova um músculo.
Puxei o braço para ficar livre.
— Os músculos se movem quer eu queira ou não. Você realmente não
deveria ter dormido durante a as aulas de biologia.
Ele olhou para mim.
— Não é a porra da hora, Sunny. Não. É. A. Hora.
Sorri docemente, esperando que não estivesse tão escuro a ponto de ele
perder o matiz assassino do meu olhar.
— Se você me chamar de “Sunny” mais uma vez, só haverá um
membro funcional deste grupo quando...
Minha ameaça foi cortada por uma onda de ar gelada. Tão fria que,
mesmo com o metabolismo de um metamorfo, eu tremia incontrolavelmente,
minha pele coberta de arrepios.
— É por isso que eu disse para não se mover — Jaxson murmurou tão
baixo, que eu mal podia ouvi-lo. — Essa névoa brilhante está escondendo
algo.
O ar gelado aumentou e, talvez porque eu estivesse olhando
diretamente para a escuridão cintilante, vi o exato momento em que as
sombras abandonaram seu mestre revelando alguém que só poderia ser
descrito como um ser do além-mundo.
Minha boca se secou enquanto eu olhava, congelada pelos ventos que
pareciam vir do Ártico.
Ele foi tocado pela luz. A única que existia atualmente no mundo.
Cabelo de corvo desgrenhado em cachos sobre a cabeça — um penteado que
poderia tê-lo feito parecer angelical, mas não havia nada mais longe da
verdade que isso.
Ele era incrivelmente assustador e perfeitamente pecaminoso.
Talvez fosse sua altura intimidadora, bem maior que a minha, ou talvez
fossem os feixes vermelho-dourados dos seus olhos, piscando entre os dois
com uma intensidade que me fez querer começar a correr e nunca parar.
Eu não me movi, porém era incapaz de arrancar meu olhar dele,
devorando cada detalhe como se estivesse no teste mais importante que eu já
tinha feito. Ele tinha o maxilar proeminente e maçãs do rosto altas, que o
emprestavam a uma etnia que nunca poderia ser definida, porque não existia
no plano terrestre. Suas roupas eram exatamente o que eu esperaria que um
humano usasse: calças escuras, botas de solado pesado, e uma camisa preta
justa marcando suas formas. Mas o corpo por debaixo era impressionante ao
ponto do impossível.
E eu tinha quase certeza de que seus braços musculosos estavam
tatuados também, pelos desenhos que apareciam pela borda da camisa. Elas
deveriam ser difíceis de ver na luz noturna, na pele que era o tom mais escuro
de bronze existente, mas brilhavam suavemente, adicionando mais um
detalhe inacreditável a essa... criatura.
Ele deu um passo em minha direção, seu foco intenso, enquanto as
centelhas de fumaça negra rodopiavam amorosamente em torno de sua
perfeição. Eu não podia desviar meus olhos daquele rosto esculpido pelos
deuses para o pecado, envolto em pele de bronze e olhos profundos.
Olhei fixamente para aquele sonho salpicado de pesadelo. E isso me
assustou.
— Mera! — Jaxson gritou enquanto todos os metamorfos ao nosso
redor entravam em colapso, como se tivessem sido libertados do domínio
magnético deste ser.
Ao mesmo tempo, as sombras se retiraram, recuando das terras do
bando e penetrando de volta nele, até que, mais uma vez, o mundo estava
cheio de luz do meio-dia.
— O que está acontecendo? — Victor rugiu, tendo finalmente
recobrado os sentidos.
Seus olhos correram ao redor, tentando descobrir exatamente quem era
o culpado por sua aparição repentina na frente da casa principal do bando.
Quando seu olhar caiu sobre o macho envolto em fumaça, ele piscou mais de
uma vez, sua raiva morrendo.
— Quem é você? — ele sussurrou.
O cara da sombra não prestou atenção no alfa, os olhos presos em mim.
Eu não tinha ideia de por que ele estava me encarando como se eu fosse o
último sorvete em um dia de verão, mas isso era completamente irritante.
— Quem é você para invadir as terras do bando? — Dean perguntou,
um pouco mais corajoso, ou mais estúpido, do que seu alfa. — Fale agora ou
enfrente as maiores consequências.
Os lábios do homem inclinaram-se, cheios, lábios grossos que
novamente deveriam ter feito esse deus com cara de anjo parecer doce. Mas
eles não fizeram isso.
Seu sorriso era escuro e sinistro, seus olhos cheios de chamas.
Labaredas tão reais que, por um segundo, eu quase esperava sentir calor
escorrendo através das terras do bando. Não havia como negar mais nada que
estivesse diante de nós...
— Shadow Beast — eu sussurrei.
Por isso, fui recompensada com um sorriso.
— Ao seu dispor, filhote.
Fiquei realmente curiosa. Sua voz era profunda e estrondosa com
apenas uma pitada de sotaque escocês. Suspiros soaram ao redor das terras do
bando, e muitos dos metamorfos caíram de joelhos diante dele, curvando-se
para baixo.
Não Victor, porém, o idiota arrogante.
— O que você quer? — perguntou ele, soando confiante, mas notei o
tremor de suas mãos.
Não era surpresa, exceto porque quem estava diante de nós era nossa
divindade. O ser adorado por nossa espécie.
O ser que criara os metamorfos e a quem devíamos uma tonelada de
lealdade.
Shadow Beast se aproximou de mim, ignorando todos os outros.
— Você fez algo hoje, não é, pequena loba?
Engoli em seco.
— Eu o invoquei?
Ele balançou a cabeça.
— Eu já estava procurando por você quando o seu chamado chegou. —
Ele inclinou a cabeça para trás, língua lançada para fora. — Sua energia tem
sabor de quem tocou o Reino das Sombras mais cedo.
Minha garganta estava tão seca que, quando tentei falar, nada mais do
que um chiado emergiu.
— Não.
Shadow Beast estreitou os olhos para mim.
— Não?
Seu calor era mais forte agora, a maioria dos metamorfos recuando,
deixando-me sozinha.
— Eu não toquei no Reino das Sombras — felizmente soei mais
confiante dessa vez. — Você pegou o metamorfo errado.
O que eu tinha a perder mentindo? Ele provavelmente ia me matar de
qualquer maneira.
Ele se aproximou de novo, e eu tentei correr, mas meus pés ficaram
plantados no chão como tocos de árvores inúteis. Quanto mais perto ele
chegava, mais eu tinha que reavaliar sua altura... Porra, ele tinha mais de dois
metros de quarenta.
Exceto por... À medida que ele se inclinava, sua altura se reduzia até
que ele era mais uma vez apenas uma cabeça mais alto do que eu. Mais de
dois metros para um e oitenta em um instante. Ele simplesmente acabou de
mudar a altura porque quis?
Continuei parada enquanto ele se inclinava e passava o nariz ao longo
da minha bochecha. Não estava tocando, mas senti sua energia como se ele
estivesse acariciando todo o meu corpo naquele movimento.
— Cheira a mentira — murmurou perto do meu ouvido e, antes que eu
pudesse reagir, passou as mãos enormes ao meu redor, levantando-me e me
jogando sobre o ombro.
Isso me tirou da minha imobilidade atordoada, e eu gritei, e lutei contra
a sujeição dele. O idiota fez um som resmungando antes de um ataque de dor
que disparou sobre minha pele, um pulso elétrico semelhante a uma arma de
choque.
— Fique quieta e isso não vai doer — ele avisou, qualquer humor
sombrio que estivesse usando mais cedo desaparecera. — Lute comigo, e vou
fazer você desejar ter morrido durante sua primeira transformação.
— Escolhas, escolhas — atirei de volta, caindo na minha resposta
habitual aos grandes valentões. — De qualquer forma, serei eu a decidir?
Ele parou de se mover e me levantou totalmente, como se eu pesasse
uns cinco quilos, segurando-me para que pudesse ver meu rosto claramente.
— Um metamorfo com pensamentos suicidas. Nunca pensei que veria
isso um dia.
Sorri. Eu era muito boa em simular um doce sorriso enquanto meus
olhos diziam vá se foder.
— Você parece um pouco desatualizado, e tenho certeza de que já faz
um tempo desde que esteve perto de qualquer coisa além de sua mão e alguns
lacaios demoníacos, mas há muito tempo é reprovável roubar pessoas.
Enquanto as chamas em seus olhos se alastravam, eu estava levando
choques de novo, dessa vez aumentados para o nível dez enquanto eu gritava.
— Pare! — Victor gritou. — Não pode tocar meus metamorfos assim.
Há leis e você as está quebrando.
A dor da descarga elétrica acabou quando bufei para dentro e para fora
tentando recuperar o fôlego — eu sobreviveria se ele fizesse isso de novo?
— Você acha que pode me desafiar? — Shadow Beast perguntou,
finalmente olhando para o alfa. — Vocês, mortais, me adoram, me oferecem
todos os tributos concebíveis, e ainda assim você me negaria este metamorfo?
Inclinei a cabeça para ver Victor.
— Sério? — Bufei. — Acha que só o bando Torma pode me torturar?
Shadow Beast e eu estávamos olhando para baixo, para o imbecil do
alfa agora.
Victor limpou a garganta.
— Há regras — repetiu. — E, se esse metamorfo é valioso, espero ser
compensado.
Ah, sim. Agora tudo fazia sentido. Ele não estava preocupado com a
minha saúde ou segurança. Ele acabava de ver uma oportunidade de fazer um
acordo com uma entidade poderosa.
— Pai! — Torin surtou, falando pela primeira vez. — Ela é minha
verdadeira companheira e sou eu que tenho que decidir seu destino. Ninguém
mais.
Victor acenou com a cabeça, sua expressão de júbilo.
— Sim, certo! Os verdadeiros laços de companheiros existem acima de
todas as outras regras... Até sua reivindicação sobre a vadia mestiça. Você
não pode levá-la sem a permissão do companheiro dela.
O peito de Shadow Beast estava roncando. Os outros podiam não ter
notado, porque era sutil, mas eu senti a fúria profunda que estava vibrando
nele.
Victor estava prestes a conhecer seu criador — literalmente — e eu não
podia sentir nada além de um sentimento de satisfação depois dos muitos
anos de vida sob seu horrível governo.
Só de pensar nisso meu peito passou a roncar também e, quando
encontrei os olhos de Shadow Beast, dei de ombros.
— Você pode ser um idiota assustador, mas eu odeio este bando.
A dor causada por ele durou alguns segundos, enquanto a desse bando
tinha se prolongado por uma vida inteira.
— Ele me rejeitou — adicionei —, então não há nenhum laço com que
você precise se preocupar. Meu companheiro não aceitou o vínculo.
Tornando sua alegação nula e sem efeito.
— Mera! — Jaxson gritou, soando desesperado e furioso.
Meu nome era um aviso para calar a boca, mas eu nunca tinha sido boa
em prestar atenção a isso. Eu o xinguei.
Torin soltou um uivo estrondoso, suas feições mudando, deixando seu
lobo parcialmente à mostra.
— Nem tive tempo de pensar no vínculo — argumentou. — Talvez eu
tivesse mudado de ideia antes de rompê-lo totalmente.
Eu bufei, torcendo o rosto para o filho da puta mais assustador do
mundo.
— Estou pronta para ir com você agora — eu disse. — Qualquer coisa
para evitar ficar aqui com esse bando de idiotas fracotes.
Mais uivos encheram o ar com meu insulto. Torma estava tão
acostumada a ser a alcateia "mais forte" que qualquer declaração sugerindo
que eles eram fracos era a pior calúnia de todas.
Shadow Beast inclinou a cabeça, olhando para mim novamente, quase
como se eu o tivesse surpreendido de mais de uma maneira. Pessoalmente, eu
gostava de surpreender criaturas demoníacas — era uma das minhas
habilidades mais fortes.
Com apenas um movimento, ele me jogou de volta sobre seu ombro,
caminhando para longe do bando. Eu não podia ver a direção em que
estávamos indo, mas tinha uma visão muito clara da fumaça negra girando ao
nosso redor, cobrindo sua metade inferior quase completamente. Quando
chegou ao seu ombro fortemente musculoso, meu corpo também começou a
desaparecer na escuridão.
Eu estava prestes a ser engolida pela sombra e não podia nem ficar
chateada —estava muito assustada para isso.
— Sunny — Jaxson chamou, sua voz rouca. — Lute.
Eu ri, a fumaça acariciando meus braços em movimentos legais.
— Eu não podia nem lutar com vocês, idiotas, quando éramos crianças.
Você acha que eu posso lutar contra a criatura da escuridão?
Shadow Beast rosnou.
— A escuridão não é meu cartão de visitas, vira-lata. Você fará bem em
se lembrar disso.
Vira-lata. Encantador.
Era meio charmoso com seu sotaque quase escocês.
— Parem-nos! — Victor gritou enviando seus lobos para pegar Shadow
Beast, mas permaneceu atrás, em relativa segurança.
Ou assim ele pensava.
Paramos de nos mover, a fera se transformando enquanto as chamas
lambiam e atravessavam seus braços, o calor tão intenso que eu realmente me
perguntava se iria queimar viva. Essas chamas obedeceram à vontade de seu
criador, arremessadas das pontas de seus dedos e engolindo Victor
completamente.
— Apenas um alfa fraco envia o bando para fazer seu trabalho —
murmurou o Shadow Beast. — Torma é muito forte para alguém como você
controlá-la por mais tempo.
Os gritos de Victor enquanto ele queimava até a morte devem ter sido
ouvidos por toda a cidade, seguidos pelos uivos de seu filho quando este
perdeu o controle e deixou sair o lobo tentando chegar ao pai. Jaxson segurou
suas garras, lutando contra o melhor amigo para trazê-lo de volta, e os dois
foram a última coisa que vi quando Shadow Beast entrou na escuridão —
ou... Sombras? E nós dois desaparecemos.
Dezesseis
Eu realmente não tinha pensado na minha ousadia. O fato de ter me
metido com o Shadow Beast tornou-se o menor de dois males.
A. Porra. Do. Shadow Beast!
O que havia de errado comigo?
— Eu posso andar, você sabe, né — eu disse, cansada de ficar
pendurada sobre seu ombro como um saco de batatas.
Não houve resposta enquanto ele continuava se movendo pela
escuridão... Escuridão que desapareceu quando entramos em um salão
branco. Tipo, num minuto estava escuro e no outro havia luz.
Pisquei algumas vezes ajustando a visão, só para descobrir que esse
salão estava basicamente desprovido de qualquer coisa interessante.
— O que você quer de mim? — instiguei.
— Só cale a porra da boca — ele rosnou. — Você já é um problema
com o qual não quero lidar, mas uma criatura como você não pode ser
deixada livre para tomar suas próprias decisões.
Grosseiro.
— A maioria das mulheres não gosta de ser referida como uma criatura
— eu disse a ele rosnando.
Seu peito resmungou, mas ele não respondeu, e eu tive um forte
pressentimento de que toda a sua coisa de matutar silenciosamente ia
continuar por um tempo. Mas, pelo lado positivo, ele não estava me matando
ou me torturando. Ainda.
— Posso chamá-lo de “Shadow”? — perguntei alguns minutos depois.
O silêncio estava me tentando e, aparentemente, eu era uma lunática com
pensamentos suicidas. — “Shadow Beast” é muito grande. — Fiz uma pausa,
mas ele não respondeu. — Você tem outro nome pelo qual atende? Ou a
mamãe realmente gostava de... uh, escuridão.
Continuei sem resposta.
— Ok, ótimo — chiei, já tinha ido longe demais para parar agora. —
Será “Shadow”!
Ruído no peito. Nenhuma resposta.
Legal. Estávamos fazendo um progresso real.
Depois de algum tempo, comecei a notar que esse salão não era tão
desprovido de vida como eu esperava. Se não de vidas, pelo menos de portas.
Elas estavam muito bem escondidas, cada uma se misturando quase
perfeitamente à parede. Eram tão brancas quanto o entorno delas, dezenas
espalhadas por cada lado.
Estranho, quanto mais atenção eu dava às portas, mais fortes eu as
sentia, até que estava completamente encantada com a sensação inebriante
que emanava debaixo delas.
— O que é este lugar? — sussurrei.
Dessa vez, ele respondeu.
— É um caminho entre a Terra e os outros mundos.
Eu pisquei.
— Literalmente?
Barulho no peito. Tudo bem, ótimo. Eu estava irritando-o de novo.
— Quero dizer, você não tem que me ferir e parecer uma fera
resmungando. É uma pergunta perfeitamente normal para alguém fazer.
— Cale a boca, filhote — ele perdeu a cabeça.
Dessa vez decidi obedecer, o tempo todo esperando permanecer viva o
suficiente para aprender sobre esse novo mundo secreto em que me
encontrava. Ele estava de volta à altura de mais de dois metros agora,
levando-nos ao longo do interminável corredor branco, luz abaixo de nossos
pés e acima de nossa cabeça; sem cessar, as sombras esfumaçadas
continuavam a cercar seu mestre.
— Cada uma dessas portas leva a um lugar de poder e valor — disse
ele, surpreendendo-me. — Alguns deles estão no plano terrestre; outros estão
em reinos que se conectam à Terra. Divindades podem andar por esses
corredores, e muitas de suas casas estão atrás dessas portas.
Ora, ora, veja quem era o tagarela agora. Talvez eu pudesse fazer outra
pergunta e conseguir uma resposta.
— Então...
— Cale a boca.
Okaayyy. Seguindo em frente, então.
Consegui manter a boca fechada enquanto continuávamos ao longo do
corredor, só piscando quando um véu cintilante apareceu no final desse
caminho. Shadow não hesitou, entrando no que parecia um pouco com uma...
igreja.
— Irônico — eu murmurei.
Paramos de forma abrupta e, quando fui nada gentilmente colocada no
chão, olhei para o seu corpo maciço se afastando de mim. Droga, ele era
inacreditável. Ombros impossivelmente largos, com uma escultura escura de
cachos, e a porra de uma arrogância que dizia ao mundo que não fodesse com
ele ou ele o destruiria.
Eu estava ferrada. Esse ser era o filho da puta mais assustador que eu já
tinha visto na vida, e eu estava presa em algum caminho mágico entre
mundos com ele.
Enquanto continuava a se afastar, demorei um minuto para explorar a
sala. Não era tão clara como o corredor artificialmente iluminado. Em vez
disso, o ambiente era aberto e limpo, a decoração, uma mistura de tons pastel
e madeira.
Quilômetros acima de nós, no teto, havia arcos de marfim e, de onde eu
estava, parecia que cenas de batalhas tinham sido esculpidas em ossos.
Espalhadas entre essas esculturas, estavam pontas de aparência mortal —
sentinelas esperando o momento certo para cair do céu e aniquilar sua presa.
Entrando mais na sala, eu me apaixonei um pouco pelas janelas
estreitas, altas, que cruzavam o lado esquerdo e o direito do enorme espaço.
Elas eram quase da altura do teto e absolutamente espetaculares, com picos
arqueados no topo, caindo em curvas naturais nas bases. Colocadas lado a
lado, criando uma ilusão de que toda a parede era uma grande janela.
Era dali que a luz natural inundava a catedral, e eu me aproximei para
ver o que estava lá fora, só para descobrir que não era nada mais do que um
redemoinho de nuvens cheias de luzes cintilantes.
Antes que eu pudesse explorar mais, a fumaça negra apareceu do nada,
girando em torno de minhas pernas, e eu gritei assim que o próprio Shadow
apareceu.
— Você não disse que poderia andar? — perguntou ele, irritado como
sempre. — Não me faça carregá-la novamente.
Prestei continência.
— Sim, senhor. Não sabia que deveria segui-lo. Erro meu.
A maneira brusca com que ele estava me encarando me deixou muito
nervosa.
— Você não tem medo de mim? — disse ele, e sua voz era suave.
Normalmente, isso seria um bom sinal, mas esse era o tipo de
suavidade de um assassino em série logo antes de cortar os dedos de alguém
como um troféu.
Engoli em seco.
— Pelo contrário, estou me mijando nas calças agora.
Seus olhos caíram por um segundo, como se ele estivesse analisando as
roupas estranhas que eu tinha pegado no chão do quarto de Torin. Tenho
certeza de que era a primeira vez que dava a minha aparência mais do que um
olhar superficial, e realmente não parecia impressionado.
Provavelmente namorara deusas ou qualquer outro ser místico lá fora,
então eu tentaria não me ofender.
— Siga — ele gritou, afastando-se novamente.
Dessa vez não abusei da sorte, ficando perto dele enquanto ainda
tentava memorizar tudo na sala. Ao passo que nos aprofundávamos no
espaço, notei pela primeira vez que algumas janelas haviam sumido
repentinamente para abrir caminho para uma porta posicionada abaixo. Como
no salão branco, o design dela também era perfeito e, agora que eu estava
mais perto, era fácil apreciar o entalhe que tinha sido feito para essa sala.
— Isso ainda faz parte do caminho entre mundos? — perguntei.
Ele não se preocupou em olhar para mim.
— De certa forma.
Ok, então. Enigmático e idiota. Eu estava começando a ver de onde os
alfas haviam tirado a arrogância... Herdada de seu criador.
Vagamos por muito tempo pela igreja, seu tamanho era outro aspecto
que eu não notara até que haviam passado dez minutos de andanças por ali, e
tínhamos percorrido apenas a um terço do caminho. Acima de nós, o teto
esculpido à mão crescia cada vez mais elaborado e, quando chegamos a outro
grande portal, eu estava perdidamente apaixonada por esse prédio.
Shadow e seu amigo esfumaçado passaram por esse novo portal,
desaparecendo em qualquer coisa além dele. Foi desconectado de mim, então
sua energia se esvaiu como se nunca tivesse existido. Não havia como dizer o
que estava além desse véu, com sua passagem em uma espiral azul-marinho
completamente obscura.
Hesitei em seguir, imaginando se deveria correr o risco de escapar
agora. Mesmo se acabasse em outro mundo, pelo menos teria nos dado uma
chance. Uma tentativa era tudo de que precisávamos.
Chamei minha loba para ajudar a tomar essa decisão e, quando ela
rodou para a superfície, fiquei aliviada ao sentir sua energia forte mais uma
vez. Correr? — perguntei-lhe.
Minha loba brilhava por dentro, a alma inquieta e insegura sobre a
nossa partida. Shadow Beast era nosso Deus e perturbá-lo não caía bem a ela.
Ele matou alguém tão poderoso como Alpha Victor e nos sequestrou,
eu lhe lembrei. Ele é mais do que perigoso.
Senti sua confiança na minha decisão, e sabia que teria seu apoio no
que fosse. Isso me deu a coragem de que precisava para me mover. Correndo,
fui para a porta mais próxima, já tendo desperdiçado muitos segundos
pensando se deveria fazer isso ou não. Quando a palma da minha mão pousou
sobre a maçaneta da porta branca estampada com flores e espinhos, senti uma
corrente de eletricidade estática e quase puxei a mão para trás.
Se não estivesse tão desesperada, não me arriscaria no que estava além
dessa porta, mas eu não poderia continuar vivendo como prisioneira e vítima.
Quando virei a maçaneta, houve um clique, e uma melodia etérea soou pela
pequena rachadura. Um suspiro escapou de mim, o menor suspiro, e todo o
medo fugiu.
Sim. Essa era a escolha certa. Eu precisava estar nessa terra de beleza,
luz, amor e calor. Meus olhos tremulavam fechados enquanto eu puxava a
porta, pronta para abraçar meu destino.
Antes que eu pudesse dar o passo final, algo duro bateu em mim,
acertando-me pelo lado. A música foi cortada um segundo depois e, à medida
que a névoa em minha cabeça desapareceu, a dor voltou junto com a minha
sanidade.
Shadow Beast pairava sobre mim, olhando para baixo, seus olhos se
estreitavam.
— Você realmente é o metamorfo mais estúpido que eu já conheci.
Quase ficou presa no reino “fae”. — Seus lábios se contorceram em uma
diversão escura. — O que elas fazem com terráqueos que tropeçam em seu
mundo me faz parecer um santo.
Com um último olhar de escárnio para a minha cara patética, ele se
virou e foi embora, então inspirei enviando um pouco de ar para meus
pulmões, tentando me acalmar. Eu não tinha ideia do que "fae" significava,
mas, se fosse abreviação de "fada", como nas histórias de fantasia, então...
QUE PORRA, CARA?
Essa música não era desse mundo, então eu só podia assumir que
Shadow estava falando a verdade sobre o reino “fae”. E, aparentemente, ele
já tinha atravessado o véu, confiando que dessa vez eu não me arriscaria em
outro mundo que eu não entendia.
O cara com certeza superestimava minha inteligência e senso de
autopreservação.
Ou assim pensei até os redemoinhos de seu amiguinho passarem a
minha volta, levantando-me para o ar enquanto eu gritava alto. Ok, então. Ele
tinha enviado reforços, ele tinha zero confiança.
Percebendo que era inútil lutar nessa fase, apenas relaxei na estranha
sensação de ser carregada pelo ar e fechei os olhos brevemente, enquanto
derrapávamos pelo véu escuro. Quando o ambiente ao lado apareceu, eu me
engasguei e tentei com tudo me jogar para fora da fumaça, procurando dar
uma olhada melhor.
— Que merda? — Fiquei embasbacada, tropeçando nos próprios pés.
— Você mora aqui?
Eu queria fazer uma referência a outra fera com uma disposição
crescente, porque, assim como o cara naquele filme, o Shadow Beast da vida
real vivia na maldita biblioteca dos meus sonhos.
Real. Literal. Sonhos. Mas, ao contrário do filme, eu teria expulsado
esse cara, deixando-o ao relento, se isso significasse que eu ficaria com a sua
biblioteca.
Adentrando mais a sala, eu quase babava sobre as prateleiras de
madeira escura que forravam as paredes, correndo os olhos até o máximo que
eu podia ver. Cada uma delas estava cheia de livros — milhares e milhares de
novas aventuras incríveis para descobrir.
Tentando parecer legal, casualmente passeei mais perto da primeira
prateleira, correndo os dedos sobre os muitos livros. A maioria das capas
dessa seção eram de suaves tons de vermelho e cinza, com escrita em
dourado na lombada. A grafia não estava em nenhuma língua reconhecível, o
que só aumentou minha vontade de lê-los.
Fechando os olhos, levei um segundo para respirar profundamente,
inalando os vários aromas em meus pulmões. Deuses, foi perfeito. Se eu
sobrevivesse ao meu tempo com o Shadow Beast, faria minha vida funcionar
para conseguir uma biblioteca como essa. Não importava o custo.
Um estrondo do outro lado dessa magnífica sala chamou minha
atenção, e eu relutantemente me afastei do doce cheiro de aventura, seguindo
a energia dele mais fundo na biblioteca.
Deuses, era enorme. Maior do que o maior shopping que eu já tinha
visto, lembrava uma antiga, gótica, abadia do século XX. E, enquanto a sala
branca anterior era clara e aberta, essa era mais aconchegante e mais
reconfortante, com o tipo de detalhes ornamentais que refletiam uma
avalanche de personagens. Eu particularmente amei os enormes lustres de
cristal — cinco no total —, que foram dispostos uniformemente pelo centro,
pendurados no teto de vinte metros de altura.
Não havia mais tempo para observar e memorizar tudo ali, porque
Shadow tinha claramente chegado ao fim de sua paciência limitada. Até
parecia que, pelo jeito como resmungava comigo, era ele quem tinha sido
sequestrado para fora de sua vida e forçado a lidar com um idiota.
A besta esperou por mim na área de estar dos meus sonhos —
adequadamente feita para estar na biblioteca dos meus sonhos —, cercada por
sofás sólidos e fortemente acolchoados. Em suas costas estava uma crepitante
lareira, revestida com pedra escura.
Ao passar por uns sofás, notei uma pequena mesa com alguns livros
abertos. Será que Shadow estava no meio da leitura quando fora puxado para
a Terra por minhas ações? A vontade de tentar dar uma olhadinha no que ele
gostava de ler me dominou, mas consegui me abster, focando-me na fera em
vez disso.
— É aqui que você mora? — perguntei, minha voz embargada pela
pura perfeição de sua casa.
— Sim.
Balancei a cabeça.
— Ter tanta beleza e conhecimento ao seu alcance está além das
palavras.
Mais uma vez, ele me encarou como se eu tivesse dito algo inesperado,
e decidi calar a boca, deixando-o tomar a palavra. Mesmo que eu ainda
estivesse espiando a biblioteca. Sem abrir um livro, eu sabia que havia
informações ali que humanos e metamorfos matariam para possuir. Histórias
perdidas. Segredos. Feitiços. Magia e vida. E ele tinha tudo para si mesmo.
Novo objetivo: descobrir como arremessá-lo na neve e dominar a
biblioteca.
Dezessete
Ele sentou-se em uma das poltronas de assento único. Uma peça
enorme, eu supunha que para abranger seu tamanho. Mais uma vez, estava
me observando com aqueles olhos tocados pelo fogo que viam tudo.
Despindo-me até chegar no elemento base que constituía minha alma.
Minha loba se mexeu em meu peito, sua energia estendeu a mão para
tocar a própria fera. Shadow não vacilou, apenas aceitou seu toque, e eu não
tinha ideia do que acontecera entre eles, porque ela não me contou, mas senti
como se ela estivesse satisfeita e feliz quando a troca entre eles foi feita.
— Sente-se — ele ordenou.
Decidida a escolher minhas batalhas sabiamente, não lutei,
acomodando-me na cadeira em frente à dele.
Havia dúzias de cadeiras ao nosso redor e tive que perguntar:
— Você recebe muitos visitantes?
Seus olhos queimaram, e eu poderia jurar que redemoinhos de fumaça
negra deslizavam para fora dele enquanto seu rosto se fechava em linhas
duras.
— Eu que falo, filhote.
Eu o encarei. Filhote era um termo usado nos bandos se o metamorfo
fosse uma criança. Chamar um adulto de filhote geralmente significava que
você achava que ele era pequeno, patético, inferior a você... Um insulto.
Exatamente o que esse filho da puta queria dizer.
Mordendo o lábio para não dizer o que estava em minha mente, fui ao
meu lugar feliz: imaginando que todos os livros nessa sala eram meus e eu
ficaria para sempre cercada por sua beleza e conhecimento...
— Você está mesmo me ouvindo? — ele reclamou.
Eu pisquei para ele.
— Desculpe, não sei o que fazer. Achei que, se quisesse que eu
escutasse, teria pedido. Como todo o resto.
Ele se levantou — uma besta gigante e assustadora — e eu perdi a
capacidade de me mover, falar ou respirar. Tudo por dentro se fechou e,
enquanto minha mente gritava, eu não conseguia soltar nenhum som dos
meus lábios.

— Eu poderia matá-la sem colocar um dedo em você — disse ele,


quase coloquialmente, e dessa vez eu estava definitivamente ouvindo. —
Melhor ainda, antes de matá-la, eu poderia fazê-la se machucar de maneiras
que você só imaginou em seus piores pesadelos.
Se eu tivesse a habilidade de entrar em pânico, eu entraria. Como o
objetivo era não me deixar respirar, ele estava definitivamente tendo sucesso
sobre mim. Se não afrouxasse logo, eu iria desmaiar, ficando em uma posição
muito vulnerável perante esse diabo. Felizmente, ele me libertou assim que
manchas escuras começaram a dançar através da minha visão. Desabei para a
frente, tossindo e sufocando, pulmões famintos, desesperadamente tentando
sugar o ar para dentro.
Ele retomou o assento, relaxando — pernas abertas costumavam ser
minha visão favorita dos homens, até que conheci esse megalomaníaco.
— Como eu estava dizendo — resmungou —, preciso que me diga
exatamente o que aconteceu em suas terras hoje cedo. Senti sua energia tocar
o Reino das Sombras.
Sua voz baixou nas duas últimas palavras, ficando mais fria, e eu não
tinha nenhuma pista do que isso significava. Shadow Beast era um enigma, e
eu não tinha referência para suas mudanças de tom. Ele não era metamorfo ou
humano, e eu estava fora do meu ambiente.
Seu peito resmungou por causa do meu silêncio e eu me dei três
segundos para decidir o que fazer. Mentira ou verdade? O que me daria as
melhores chances de sobrevivência? Não fazia ideia se tocar no Reino das
Sombras era proibido ou não.
— Eu realmente não sei o que aconteceu — eu disse, decidindo que
parte da verdade era a maneira de começar.
Sua carranca parecia um velho amigo e eu já estava ficando
acostumada a vê-la — o visual característico de Shadow.
— Não estou tentando tornar as coisas difíceis para você — eu disse a
ele. — Eu realmente não tenho ideia. Hoje foi minha primeira transformação,
solstício de lua cheia e tudo isso.
Eu me abstive de adicionar minha opinião sobre a estupidez de seu
governo, apenas no caso de ele ser do tipo que se ofende facilmente. Por mais
que eu quisesse lhe perguntar por que a idade de vinte e dois anos, agora não
parecia a hora certa.

— Sua primeira transformação? — Ele se moveu para a frente na


cadeira e eu tinha quase certeza de que nunca tinha tido esse tipo de atenção
focada em mim antes.
Shadow certamente sabia como fazer uma garota corar.
E... mijar-se de medo.
— Sim. Primeira vez e, quando o sol começou a nascer, encontrei meu
verdadeiro companheiro. — Parei com a dor da lembrança me fatiando
novamente.
O vínculo não cumprido era como um pedaço de alma esfarrapada
arrastando-se por terra áspera.
— Vejo que sua mente tem problemas para ficar em um só lugar.
Acertando-o com a minha versão de um rosto raivoso, corri para
terminar a história.
— De qualquer forma, como eu estava dizendo, primeira
transformação, fui rejeitada pelo imbecil do meu companheiro, fui atacada e,
por causa da dor profunda da minha rejeição, minha loba ficou agressiva. Isso
foi quando minha visão dobrou, e eu pude ver figuras sombrias que
definitivamente não existiam no plano terrestre normal. — Engoli duramente
a memória. — Tenho quase certeza de que ninguém mais pôde vê-los.
— Você tocou em um — ele afirmou.
— Sim, acho que sim.
— Consegue fazer isso de novo?
Empalideci.
— Por que diabos eu faria isso de novo? Foi assustador e senti algo...
antinatural. Sim, não virei fã.
Ele estalou os dedos.
— Deixe-me reformular. Você vai fazer isso de novo, ou eu vou matar
você e todos que ama.
Merda.
— Bem, quando você coloca assim... — Eu me afastei, desejando que
o chão se abrisse e me engolisse. — O único problema é que não tenho
nenhuma ideia do que eu fiz, e não dá para replicar aquilo simplesmente do
nada.
Esse era provavelmente o ponto em que ele explodiria e me rasgaria em
um milhão de pedaços. Eu realmente só esperava que fosse rápido.
— Transforme-se.
— O que...?
— Você é uma metamorfo. Transforme-se.
Foda-se esse cara. Que ele fosse direto para o inferno. Um sem
biblioteca.
Cuspi as palavras entre dentes.
— Lembra quando eu disse que foi minha primeira vez? Ainda não
posso mudar sem alguém no comando. Regras do Shadow Beast.
Eu deveria realmente estar lembrando você disso, idiota?
A energia bateu em mim trancando meu corpo e, enquanto minha
coluna se arqueava, minha loba uivava e rasgava seu caminho para fora. Em
segundos, eu não estava mais sobre duas pernas, mas de volta à minha forma
vermelha e branca de quatro patas, membros tremendo pela rápida mudança.
Meu cérebro se fundiu rapidamente na loba, rosnando em nosso peito
enquanto corríamos em direção a ele.
Shadow não estava preocupado.
— Você tem a visão dupla?
Nossos rosnados aumentaram. Raiva crescendo. Presas aparecendo.
A fumaça escura envolveu Shadow, que mais uma vez estava me
observando como se eu fosse o único ser existente.
— Você não está vendo agora.
Não foi uma pergunta.
Com um movimento das mãos, ele forçou a mudança em mim
novamente, e o uivo de minha loba se converteu em um grito quando retornei
à forma humana. Foi uma sobrecarga terrível para nosso corpo transformar-se
tão rapidamente, então não era surpresa que tivesse acabado nua, arfando,
quase soluçando, uma verdadeira bagunça no chão.
Shadow não me deu outro olhar, seguindo adiante e desaparecendo por
através do véu.
Soluços silenciosos surgiram enquanto eu lutava contra a fadiga e a
dor... e a solidão de enfrentar esses julgamentos sozinha. Eu nunca teria uma
pausa? Era pedir demais que todos os dias não fossem uma experiência
extremamente dolorosa?

Quando meu pai morreu — foi assassinado, não vamos amenizar as


coisas —, eu chorei muito. Chorei por sua perda, a perda dos meus amigos, e
especialmente a perda do nosso lugar no bando. Minha mãe sempre foi um
pouco ausente, então não me estressei muito com ela, mas até mesmo seu
completo recuo da realidade tinha doído. Tudo nessa merda tinha doído.
Eventualmente, parei de chorar e aprendi a esconder a dor dentro de
mim, mas hoje não consegui encontrar minha fortaleza.
Cinco minutos. Eu me daria cinco minutos para desmoronar e então
teria que juntar tudo novamente.
Shadow não tinha voltado quando me levantei, espanei a bunda nua e
recuperei a camisa parcialmente rasgada, sem me importar com isso. Eu não
estava tão sozinha quanto pensava, pelo contrário, a fumaça escura agora
fazia-se presente. Ignorei-a no início e comecei a explorar a biblioteca/covil
da Fera.
— Seria este um lugar mágico? — em algum momento perguntei à
névoa esfumaçada me seguindo. A sombra de Shadow era aparentemente
meu guardião enquanto seu mestre se fora. — As prateleiras continuam indo
e indo.
Quando não consegui encontrar um fim à vista, desisti e me movi em
direção a uma prateleira. Meus olhos se perderam da realidade quando vi
Uma Canção de Gelo e Fogo de George R.R. Martin, Senhor dos Anéis por
J.R.R. Tolkien, e uma infinidade de histórias de Terry Pratchett alinhadas.
Havia muitos mais livros de fantasias grandiosas e histórias clássicas nessa
seção, e, mesmo que eu fosse fã de tudo referente a joias escondidas no
mundo dos autores independentes nos dias de hoje, meu coração ainda
tremulava sobre um incrível clássico de fantasia.
Mas só fantasia.
Se alguém mencionasse Emily Brontë para mim, mesmo que uma única
vez, eu fugiria gritando.
Com relutância, deixei aquelas prateleiras e fiz a longa caminhada de
volta à lareira e aos sofás aconchegantes. Sem dúvida Shadow voltaria para
me matar mais cedo ou mais tarde, então provavelmente era melhor tentar
descansar um pouco antes do meu assassinato.

Escolhendo o maior sofá perto do fogo, fechei os olhos e forcei a mente


a se acalmar. Eu sabia que minha reação a essa bagunça era estranha. A
maioria das pessoas estaria gritando, sacudindo-se em um canto, ou berrando
até seus olhos pularem para fora. Mas, na verdade, depois de muitos anos no
limite, esperando o momento em que alguém despejaria sua fúria sobre mim
até me ver morta, fiquei imune ao pânico e ao medo.
A exaustão pelos eventos do dia tomou conta de mim e me afundei
mais no veludo macio do sofá. O bastardo do Shadow pode ter sido um velho
imbecil, mas ele tinha bom gosto para itens domésticos.
Enquanto a força do sono e da exaustão pressionava a escuridão em
minha mente, o último pensamento que eu tive foi se eu acordaria
novamente.
Dezoito
Eu não sonhei. Eu tinha quase certeza de que nem havia me movido,
porque, quando me levantei para acordar, desorientada pra caralho, metade
do meu corpo estava dormente. Um formigamento começou imediatamente
quando o sangue fluiu através das minhas extremidades entorpecidas, a cura
de metamorfos consertando tudo o que eu tinha quebrado durante o meu
episódio de sono-quase-morte.
Olhando ao redor, não fiquei surpresa ao me encontrar na mesma
posição em que tinha estado antes. No sofá. Fogo queimando... com as
chamas do mesmo tamanho. Havia quanto tempo eu tinha dormido? Cinco
segundos...
Esse lugar era louco.
— Shadow! — gritei, minha garganta rouca. Limpando-a, tentei de
novo. — Metamorfos morrem sem comida e água.
Ficando de pé, empurrei para longe o último vestígio de sono enquanto
me espreguiçava, esticando o corpo até o limite, a ponto de deixar a boceta à
mostra sob a barra da camisa rasgada. Eu olhei a sombra de fumaça que tinha
despertado comigo — estava chegando perto demais para o meu gosto.
— Aproxime-se e eu vou descobrir como chutar a porra da sua bunda
para o próximo mundo.
Eu tinha visto Os Caça-Fantasmas. Eu poderia lidar com esse demônio
de merda.
Talvez aquela coisa tivesse me entendido, ou talvez fosse mera
coincidência, mas a fumaça recuou a uma distância respeitável. Olhei ao
redor me perguntando se Shadow tinha se irritado tanto assim, a ponto de me
deixar viver o resto dos meus dias aqui na terra da fantasia, com um fogo
mágico aconchegante e estantes intermináveis. Só precisava instalar um
quiosque de chocolate quente e suco, uma estação de hambúrguer e um bar.
Por causa do vinho. E tequila.
Decidindo que eu já estava de saco cheio de esperar que o bastardo das
sombras voltasse para mim, fiz o meu caminho em direção ao véu cintilante,
imaginando se poderia encontrá-lo na sala da catedral. Seguindo em frente
com determinação, não pensei por um minuto que seria permitido sair da
biblioteca, mas não houve resistência quando coloquei o braço primeiro,
testando alarmes ou armadilhas.

Parecia estar tudo limpo.


— Vamos, Inky — eu disse com emoção. Precisava de um nome para a
escuridão esfumaçada, para que pudesse facilmente diferenciá-la de Shadow.
— Parece que estamos indo viver uma aventura.
Passando para o outro lado, eu me perguntei qual era o ponto da
escuridão rodopiante que separava os dois quartos. Será que Shadow podia
impedir que os seres entrassem se quisesse...
Meus pensamentos terminaram abruptamente quando cheguei ao outro
lado.
— O que no... — Engasguei quando uma dúzia de olhos olharam em
minha direção.
Aquela sala de janelas e portas, com um espaço vazio e cheio de luz,
era agora uma agitada colmeia de atividades. E, assim como no covil de
Shadow, havia centenas de prateleiras empilhadas com livros, preenchendo
todos os espaços entre as janelas, pilares e portas.
Eu continuava piscando, como se isso fosse limpar minha visão e eu
fosse ver novamente o espaço vazio.
Um ser minúsculo de pele marrom e cara cheia de rugas veio apressado
em minha direção, e eu ainda estava piscando sem a menor ideia de como
lidar com esse novo mundo.
— Bem-vinda à Biblioteca do Conhecimento, Mera — ele cantarolou.
— Meu nome é Gaster, um duende subterrâneo do clã das Fadas.
Ele acabou de dizer duende? Olhei mais fixamente para sua careca,
rosto redondo e orelhas ligeiramente pontiagudas. Ok, eu conseguia vê-lo
agora.
Engasguei algumas palavras.
— Você fala português?
Ele balançou a cabeça.
— Não, não, não, eu falo dialeto “fae” de nível básico.
— O que... — Fui cortada enquanto ele continuava.
— Você será capaz de falar todos os dialetos, entender toda palavra
escrita e conversar com todos os tipos de raças dentro destas paredes. Você
conhecerá muitos que fizeram suas casas nas dimensões conectadas a esta
biblioteca. Como eu disse, eu sou de Faerie.

Ele ofereceu a mão e eu olhei para ela antes de estender a minha para
segurá-la.
— É um gesto muito humano — notei.
Ele sorriu, atraindo meu olhar para a estrutura incomum de sua face.
Seus olhos eram enormes, ocupando metade do rosto, as íris e pupilas eram
um breu preto sem uma pinta de branco. Tinha cerca de noventa centímetros
de altura, a pele enrugada, retorcida como uma velha raiz de árvore, e ele não
tinha um fio de cabelo sobre si que eu pudesse ver. Eu queria estudá-lo mais
perto, mas me senti rude, então mantive o foco em seu rosto.
— Estudei todas as culturas. Como porteiro aqui, é meu trabalho guiar
todos que pisam nesses corredores.
Ele se curvou e, quando se levantou, finalmente notei que tinha a altura
perfeita para ver bem embaixo da minha camisa. Não que ele tivesse tentado
olhar, mas mesmo assim...
— Por acaso você sabe se há algum lugar para conseguir uma roupa de
reposição? — Gesticulei para a extensão da minha perna nua sob a camisa
rasgada. — Estou ficando sem tecido.
O rostinho de Gaster se iluminou; ele parecia completamente animado
com a perspectiva de ter uma tarefa.
— Sim! Temos um local que pode lhe dar mercadorias em troca de
daems.
Eu pisquei para ele.
— Daem?
Soou como um que merda, e eu nunca tinha ouvido falar desse tipo de
moeda antes.
— É a moeda do Shadow Beast — ele sussurrou. — Mas ele me deu
permissão para liberar uma entrada inicial sem pagamento. Disse que você
futuramente vai compensar isso na biblioteca.
Fiquei completamente chocada ao saber que ele ainda não tinha
planejado a minha morte. Talvez ainda estivesse indeciso. De qualquer
forma, eu estava ali mais uma vez para viver outro dia, e isso era tudo que eu
poderia pedir desse show de horror de que eu chamava de vida.

Olhando ao redor, reparei nos muitos seres que habitavam a Biblioteca


do Conhecimento. Muitos deles eram completamente diferenciados na
aparência. Claramente, estavam todos ali por uma razão: leitura, leitura,
leitura. Devorando o conhecimento existente nessas prateleiras.
— Todo mundo trabalha aqui? — perguntei.
Gaster seguiu minha linha de visão.
— Oh, não. Só os duendes. Meus irmãos trabalham na biblioteca. Os
outros são alguns selecionados do mundo deles, autorizados a acessar as
informações guardadas aqui.
Antes que eu pudesse fazer as outras perguntas que eu tinha, ele
segurou a minha mão, arrastando-me para longe do véu do covil de Shadow
através do longo salão no meio da biblioteca.
— Quantos mundos existem? — sussurrei mais para mim mesma,
quando passamos por dezenas de seres tão diferentes uns dos outros que eu
literalmente não conseguiria memorizar todos com detalhes suficientes.
Gaster riu, um som áspero que era quase desagradável.
— Faz muito tempo que não conheço alguém que não sabia sobre o
mundo sobrenatural. Sobre o Sistema Solaris, que se conecta e se ramifica a
cada uma das terras.
Dei de ombros.
— Quero dizer, eu sou uma metamorfo, então sabia que havia mais do
que humanos lá fora, mas fora Shadow, Inky, e agora você, nunca conheci
nenhum outro.
Ele piscou, aquelas esferas negras tão reflexivas que todas as luzes ao
nosso redor podiam ser vistas nelas.
— Shadow e Inky?
Empurrei a cabeça em direção à escuridão que me seguia.
— Essa coisa e seu mestre.
Gaster acenou com a cabeça, ele entendeu.
— Ah, sim. Eles são os seres supremos por aqui. Nós não mexemos na
seção da biblioteca dele e, em troca, ele não destrói todos nós. Também
catalogamos seus livros. A simbiose funciona. — Seus olhos correram em
direção a Inky, como se ele estivesse repassando essa informação diretamente
para a bolha.
Eu me inclinei para ficar mais perto do nível dele.
— O que é o Sistema Solaris? — sussurrei.
Gaster atirou em mim um sorriso conspiratório, e eu estava meio
apaixonada por esse carinha e sua ajuda. Tenho certeza de que, tirando
Simone e Dannie, nunca ninguém foi tão bom assim comigo.
— É um sistema de transporte alimentado pela biblioteca. Portais de
energia conectados que nos permitem viajar entre a multiplicidade de
mundos. Cada uma das portas aqui — ele acenou com a mão — se conecta a
uma das terras. Então, eu sou um duende de Faerie. — Apontou a porta da
música sedutora pela qual eu quase havia passado. — E Chester ali é um
espírito da água da terra de Karn, que é principalmente água. — Dessa vez,
apontou para uma porta que estava a cerca de três metros de nós,
redemoinhos fracos de azul visíveis num ponto branco.
E Chester... O habitante Karn era extremamente delicado, com a pele
de um tom de azul frio e um corpo tão andrógeno que eu nunca teria sido
capaz de adivinhar o gênero. Talvez, na Karn nem tivessem o tipo de gênero
que eu entenderia. Eles tinham quatro braços, o segundo conjunto um pouco
mais curto, e presumi que eram úteis na água. Não querendo olhar mais,
desviei o rosto, esperando Gaster continuar.
— Marin é um transcendente — disse ele, pegando minha deixa. —
Representando algo próximo aos anjos nas crenças da Terra, eles residem nos
Honor Meadows.
Marin era um ser alto como uma estátua, feminino em aparência. Ela
estava vestida com o que parecia uma armadura preta e dourada, com pele
negra brilhante, e asas de penas cinza emergindo das costas. Asas que se
pareciam muito com as de um anjo.
— Uau— eu sussurrei enquanto assimilava a imagem completa.
Ela era a personificação da beleza, como se cada pedacinho de seu
rosto tivesse sido amorosamente esculpido à perfeição. Seu cabelo comprido
lembrava o de Simone, volumoso e preto-azulado. Ao contrário do de minha
amiga, porém, o de Marin estava em uma trança perfeita, terminando na
altura das panturrilhas.
Fosse o que fosse Honor Meadows, eu só podia presumir que estava
cheio de seres mais angelicais como Marin.

— Você alcança as terras deles por ali — disse Gaster, apontando uma
porta mais abaixo da biblioteca.
Isso era incrivelmente difícil de entender e compreender, mas, talvez
porque eu estivesse dentro dessas paredes cheias de tanto conhecimento, nada
disso parecia me sobrecarregar.
Gaster continuou apontando seres animalescos, semelhantes a um
centauro que fundia humanos e animais. Cavalos, cabras, panteras e híbridos
de pássaros estavam na biblioteca, mas me foi assegurado que na terra de
Brolder havia muitos, muitos outros.
— Há algum ser que é dragão? — perguntei seriamente, ainda meio
existindo em uma ressaca épica do livro da minha última leitura de
metamorfo.
Gaster não perdeu o compasso com minha pergunta aleatória.
— Não dragões como os retratados na Terra, mas temos grandes feras
que vagam pelos mundos.
Grandes feras? Quero dizer, se houvesse algo maior do que o Shadow
Beast lá fora, isso seria uma imagem seriamente assustadora de se ver. Mas
eu estava ali para isso.
Gaster continuou sua jornada através da biblioteca, apresentando-me a
muitas das fadas, incluindo pixies, banshees, sidhe, trolls e ghouls.
— Em Faerie, há centenas de outros — disse ele. — Levaria semanas
para listar todos.
— O Universo é muito maior do que eu esperava. — Respirei,
sentindo-me insignificante e emocionada pelas descobertas do dia.
— Esta é apenas um pequeno pedaço de uma peça maior — disse
Gaster, seu sorriso ainda firmemente no lugar. — Mas hoje não há
necessidade de se preocupar com essa nova vida que você descobriu. Vamos
primeiro encontrar-lhe alguns confortos humanos.
Acenei com a cabeça, seguindo-o assim que ele pegou o ritmo. Suas
pernas podiam ter metade do tamanho das minhas, mas o cara se movia como
um velocista olímpico. Eu comentei sobre isso, brincando como se estivesse
sem fôlego.
— Somos fortes e rápidos — disse ele, olhando-me como se estivesse
seriamente preocupado com a minha saúde. — Não tente acompanhar. Os
duendes são capazes de se moverem em alta velocidade em longas distâncias,
e é melhor lembrar que meus ativos são seus para usar quando você precisar
de apoio em qualquer coisa que estiver fazendo.
Inclinei a cabeça, mais uma vez confusa pela forma como estava sendo
tratada para me sentir "em casa" ali.
— Shadow sabe que você está cuidando de mim assim? — perguntei.
Gaster acenou com a cabeça.
— Oh, sim. Ele sabe. Não se preocupe. Isso tudo estava planejado.
Maravilhoso. Eu me senti muito melhor em fazer parte do plano de
Shadow... Só que não.
Gaster continuou em sua missão, e eu fiquei por perto, tentando ignorar
os vários olhares curiosos ao redor da sala. Provavelmente era olhada com
desprezo por todas as novas terras e seus habitantes na biblioteca, mesmo
assim muitos deles pareciam estar bem interessados em mim. Eu me
perguntava se isso se devia à presença de Inky, que continuava na minha
cola. Ou "metamorfo" seria uma nova raça a cruzar o caminho deles?
Quando chegamos ao início da biblioteca com seu próprio portal
cintilante conectado ao longo salão branco, Gaster parou.
— Este é o quarto da necessidade — disse ele, gesticulando para uma
porta branca simples.
Deu um passo à frente e bateu duas vezes antes que ela se abrisse.
— Seis daems — uma voz desencarnada, quase robótica, ecoou.
Gaster tirou algumas pepitas de ouro cintilantes do bolso minúsculo.
— Certifique-se de obter tudo de que precisa enquanto estiver lá dentro
— ele me disse antes que o duende surpreendentemente forte me empurrasse
para uma sala branca completamente vazia, as moedas tilintando atrás de
mim, desaparecendo no chão perfeito e brilhante. — Espere! — gritei
enquanto a porta batia na minha cara.
— Por favor, fique parada — disse a voz, distraindo-me.
Congelei como se uma explosão de ar gelado jorrasse sobre mim,
arrastando-se pelo meu corpo antes de desaparecer com a mesma rapidez.
— Você precisa de um guarda-roupas completo, produtos de higiene
pessoal e outros itens essenciais.

Eu não poderia dizer se era uma pergunta ou não, mas respondi de


qualquer forma.
— Sim, eu sei. Não tenho nada além desta camisa. — Apontei para o
pano que eu usava.
Um momento de pausa.
— Seus pertences estão sendo enviados para as câmaras do mestre. Por
favor, vá até lá para se limpar e se trocar. Bom dia.
E assim, a porta se abriu, e o mesmo vento gelado me levou para fora
da sala.
Dezenove
Gaster não parecia ter se movido um centímetro, continuava lá, de pé
exatamente onde eu o tinha deixado, sorrindo.
— Uau, a hora passou em um piscar de olhos.
Era eu quem estava piscando incrédula naquele momento.
— Tenho a sensação de que não passou nem um minuto.
Gaster riu como se eu tivesse contado a piada mais engraçada, mas não
comentou nada, em vez disso pegou o caminho de volta através da biblioteca,
só parando quando chegou ao véu de Shadow.
— Não tenho permissão para ir além daqui — disse ele —, mas suas
roupas e outros itens estarão em seu quarto. — Seus olhos brilharam para a
bolha de fumaça. — Basta seguir Inky.
A essa altura, eu tinha descoberto que "Inky" era algo mais do que
apenas uma massa aleatória de escuridão escoada de Shadow. Gaster era
muito respeitoso em relação a ele, mesmo indo tão longe a ponto de lhe
dirigir a palavra diretamente.
Talvez por ser o lacaio de Shadow tenha conquistado respeito. Ou
talvez eu tivesse subestimado a inteligência de Inky, pensando nele como
algo sem substância. Eu teria que parar de assumir ideias de merda nesse
mundo, porque ali todas as regras eram diferentes.
Quando recuei através do véu — que aparentemente poderia manter as
pessoas do lado de fora, assumindo que a declaração de Gaster fosse uma
indicação disso —, quase bati em uma montanha, era a fera. Shadow ficou
parado e em silêncio na escuridão, cabeça inclinada enquanto me observava
de perto. Foda-se esse cara e sua intensidade. Se ele continuasse assim, eu ia
corar ou sofrer uma combustão espontânea, também conhecida como
orgasmo instantâneo.
Quero dizer, se eu não tiver morrido de medo primeiro.
— Você tem duas escolhas.
E lá foi ele, com aquela sua personalidade brilhante.
— Continue — respondi com o sorriso mais falso que eu poderia
produzir.
— Eu te mato agora e contenho a ameaça. — Era a vez dele de sorrir e,
como sempre, aquele tom escuro de seus lábios era aterrorizante. — Essa é a
minha favorita.

Claro que era.


— Honestamente mal posso esperar para ouvir a escolha dois —
debochei. — Dedos cruzados para que envolva minha morte também.
Se o olhar em seu rosto era alguma indicação, eu estava prestes a
conseguir o meu desejo.
— Opção dois — ele cuspiu a frase —, você permanece aqui, sob meu
controle, enquanto descobre como tocou o Reino das Sombras. Também
teremos que reunir as criaturas que você libertou com sua imprudência.
Levantei a mão.
— Ok... Eu tenho tantas perguntas sobre o que você acabou de dizer.
Shadow soltou uma explosão de poder, redemoinhos literais de fumaça
negra balançando em torno de seu rosto.
— Não, não. Sem. Mais. Perguntas. Idiotas.
— Justo, justo o suficiente — eu disse. — Mas você está dizendo que,
quando fiz aquela coisa de visão dupla e alcancei essas criaturas, permiti que
algumas escapassem para o nosso mundo?
Um único aceno.
— E você acha que posso ajudá-lo a resgatá-los e... O que fazemos com
eles se não pudermos acessar o Reino das Sombras novamente?
Seus lábios se estreitaram. Foi um sinal de alerta em que decidi prestar
atenção fechando a boca.
Veja, eu poderia aprender coisas novas. Shadow cruzou os braços,
chamando minha atenção para seus ombros largos, e mais uma vez eu estava
distraída. Ah, sim. Não se deve admirar o deus demônio que pretende matá-
lo.
Um pouco de senso comum, para variar.
— Vamos contê-los até que você descubra como replicar o que fez.
Tenho certeza de que, como a alternativa é a sua morte, você irá gastar muito
tempo e energia em descobrir do que precisa.
Energia nisso? Aqueles ombros largos? Esperem, criaturas das
sombras. Saquei.
Eu acenei com a cabeça.

— Certo. Quero dizer, é um plano sólido, Indiana Jones. Parece que


estamos indo a uma aventura.
Ele me lançou um olhar inexpressivo, e eu não tinha ideia se ele
entendia a referência ou não. Provavelmente era melhor mudar de assunto
antes que ele mudasse para a opção um e me matasse para me calar.
— Então, Gaster, o porteiro da biblioteca aparentemente me comprou
roupas novas. Ele disse que elas estavam aqui em algum lugar.
Apontei para a única outra coisa nessa sala que poderia me levar à
combustão espontânea: a biblioteca. Eu ainda tinha esperança de que Shadow
Beast a deixasse para mim em seu testamento, embora seu status imortal
colocasse um pequeno empecilho nesse plano.
— Siga-me.
Deus, eu adorava nossas conversas. Tão cheias de energia e trocas de
frases inteligentes. Era como viver em uma peça de Shakespeare.
Enquanto eu estava mentalmente rindo de mim mesma, Shadow se
virou e, quando se afastou, notei sua altura crescer. Ele estava na altura de
dois metros enquanto falava comigo, mas eu tinha uma suspeita sorrateira de
que o tamanho de dois metros e meio era mais sua altura natural, pois ele
retornava a esse tamanho a maior parte do tempo.
Foi absolutamente fascinante o modo como ele fez isso, e tudo em que
eu conseguia pensar era... Tudo muda de tamanho? Sim, essa pobre —
tecnicamente ainda virgem — metamorfo de lobo tinha uma vida sexual
muito ativa. Na minha cabeça. Eu sonhava com sexo, tinha um vibrador, e
estava participando ativamente da minha própria sexualidade. Normalmente
sozinha.
Espera a porra de um minuto!
Eu precisava do meu vibrador. Aquele quarto de necessidades
descobrira isso ao avaliar roupas para mim? Caso contrário, eu teria que
encontrar uma amiga garota ali e obter os detalhes sobre o que esse lugar era
capaz de fazer. Por mais legal que Gaster fosse, ele era um seguidor de regras
compulsivo, e isso era demais para mim.
Eu gostava de viver nos setores cinzentos da vida.
Shadow estava no meio da biblioteca sem fim, então peguei o ritmo,
correndo atrás dele. A última coisa que eu queria fazer era irritá-lo quando a
opção um de "ser assassinada" ainda estava na mesa.
Abaixando a cabeça, corri, só no último momento notando que ele
estava parado. Movendo-me para o lado, consegui evitá-lo, mesmo quando
uma das mesas pegou meu quadril e eu estremeci. Não que a “mordida
afiada” durasse muito tempo agora que eu tinha liberado toda a minha força
de metamorfo.
Shadow se aproximou de mim, e de repente eu não estava mais
preocupada com o quadril dolorido.
— Você não implorou ou chorou uma vez sequer — disse ele, com a
voz mais suave do que o normal. — Os poucos metamorfos que caem no
meu mundo nunca são calmos.
Essa foi a segunda vez que ele ficou confuso com a minha falta de
medo em relação a ele.
— Eu implorei e chorei por anos no meu bando — contei-lhe, meu
humor desaparecendo. — Não fez diferença. Percebi que, quando estamos à
mercê de alguém mais forte e mais poderoso, implorando e chorando não
estamos fazendo nada além de dar-lhes algum tipo de gratificação doentia.
Não vou mais criar valentões. Eles não ganham mais nada de mim.
Seus olhos brilharam como chamas, e de uma maneira quase calmante
Inky rastejou para fora para envolver o entorno de seu mestre.
— Você vai aprender a me temer — ele murmurou, e eu tinha poucas
dúvidas de que estava certo.
Afastou-se novamente, e dessa vez eu o segui sem pausa. Fez uma
curva fechada para a direita, em direção a uma grande porta de madeira
esculpida à mão, cor de cereja.
— É aqui que você vai dormir — ele me informou. — Não procure
meus aposentos. Eu vou ma...
— Me matar, sim, entendi.
O calor me consumiu queimando minha pele nua e, não pela primeira
vez, desejei não ter nascido com uma boca tão inteligente.
— Serei submissa — eu disse, jogando os braços para cobrir e proteger
meu rosto do fogo escaldante.
— Submissão — ele resmungou.
Aquele filho da puta.
Seu poder me forçou a ajoelhar-me, e senti a porra da sua satisfação.
Mas ele não receberia mais nada de mim. Fui moldada através de anos de
fogo tão quente como o que ele estava jogando em minha direção, e qualquer
jogo que ele estivesse jogando eu jogaria junto. Mas apenas nos níveis mais
superficiais. Eventualmente, a besta baixaria a guarda. Eventualmente,
qualquer que fosse essa merda toda, ela chegaria ao fim.
Quando isso acontecesse, seria a minha hora de brilhar.
— Quem é seu mestre? — Shadow Beast perguntou, aproximando-se
de mim.
Tudo dentro de mim respondeu a ele, uma lava queimando que
começara devagar em meu corpo enquanto sua energia se fundia com a
minha própria.
— Você é — eu rosnei.
— Você não vai me trair.
— Não irei traí-lo.
Ele estava muito perto agora, e eu não podia arrancar meus olhos de
suas íris flamejantes hipnotizando-me enquanto me seguravam no lugar.
— Eu sou seu dono agora, Raio de Sol, e vou punir toda e qualquer
insubordinação.
Com isso, um uivo sobrenatural soou através da biblioteca, seguido por
uma forte rajada de vento, que me arremessou de volta na porta. Doeu, mas
não tanto quanto meu quadril e, para uma metamorfo, não foi nada. Tinha
sido o aviso de Shadow, e eu sabia que ele poderia realmente me destruir se
escolhesse fazê-lo.
Além disso, ele tinha acabado de me chamar de "Raio de Sol"? Ele
ouviu Jaxson me chamar de "Sunny" em Torma? Ou foi só uma
coincidência...?
De qualquer forma, eu me senti definitivamente nervosa com o que
tinha acabado de acontecer.
Ele exerceu sua vontade sobre mim e eu estava à sua mercê.
Vinte
Shadow Beast saiu tão rápido quanto havia chegado, e eu fui levada
para o meu quarto por Inky, o tempo todo tentando descobrir o que diabos
estava acontecendo.
Dizer que eu estava confusa seria um grande eufemismo.
“Confuso” significaria estar de volta a Torma tentando descobrir como
Shadow Beast tinha abençoado uma união entre mim e aquele filho da puta
egocêntrico de um futuro alfa. Quero dizer, o que diabos eu havia feito de
errado na minha última vida para acabar unida a Torin?
Na verdade, depois de conhecer a própria Fera, eu tinha a suspeita de
que os verdadeiros laços de companheirismo não eram de seu domínio.
Definitivamente ele não é do tipo cupido... De modo algum.
Mas sim, esse era o meu nível habitual de confusão — o companheiro
alfa era a pilha de merda da minha vida normal, e eu estava bem com isso.
Mas isso... isso! Isso era quase inacreditável, meu cérebro era incapaz de
compreender o que estava acontecendo comigo. Ele me dava duas opções,
mas parecia que já tinha escolhido de qualquer maneira. Opção dois:
prisioneira de Shadow Beast.
O filho da puta do Shadow Beast.
Não só isso, mas eu também existia em algum plano mágico — O
Sistema Solaris? — que tinha quartos que levavam a novos mundos. E as
bibliotecas. Duas bibliotecas deslumbrantes e inestimáveis cheias de todo o
conhecimento do Universo. Demais. Demais mesmo.
Parecia uma reação tardia, mas quem poderia me culpar? Qualquer um
nessa situação precisaria de algum tempo para realmente compreender tudo.
Sem mencionar o Shadow Beast e seu novo plano brilhante.
Se eu tivesse que adivinhar como seria ser sequestrada por ele,
apostaria em muita tortura e dor envolvidas. Talvez algum ritual em que ele
comesse meu coração ou algo igualmente bizarro.
Sabendo da minha sorte, os deuses psicopatas provavelmente
colecionavam unhas ou globos oculares.
Bastardos estranhos.

Mas não, em vez disso, ele estava me mantendo refém para que
pudéssemos caçar criaturas das sombras juntos.
Não fazia sentido. Havia mais coisas acontecendo ali de que eu não
estava ciente, e de jeito nenhum eu estava baixando a guarda para aquele
psicopata com aparência de um anjo caído.
Quando muito eu só iria me dobrar para descobrir a fraqueza dele.
Todo mundo tinha uma, e, quando eu descobrisse a de Shadow, iria usá-la
para desintegrar seu mundo começando pela base. Pó. Átomos.
Microrganismos.
Eu seria o prenúncio da morte para os olhos de fogo, com mandíbula
quadrada cortada e conjunto de cachos.
Então eu iria gargalhar até a minha liberdade.
Estalando tudo até meus pés, sentindo-me um pouco melhor com meu
novo plano de jogo, olhei em volta, para minha prisão. Verdade seja dita,
prisão era um pouco de exagero; era um quarto grande com uma cama de
aparência bem decente em um extremo. Dez vezes melhor do que o quarto de
merda que eu tinha em casa.
Abrindo o antigo armário com detalhes em ouro e prata embutidos
delineando o topo curvo, eu pisquei para a quantidade e variedade de roupas
dentro. Passando o olho através delas, notei claramente que tudo lá dentro era
do meu tamanho e estilo. Jeans, shorts, tops e alguns suéteres confortáveis. A
Sala de Necessidade fez mais do que apenas fornecer; ela parecia ler mentes e
memórias para ter certeza de que tudo era como você escolheria para si
mesma.
Superassustador. Mas útil.
E, agora, útil era tudo que eu poderia pedir.
Havia um banheiro pequeno anexo ao quarto, e nas gavetas encontrei
artigos de higiene e maquiagem. Marcas de alto nível da Terra, do tipo em
que eu babaria vendo em revistas mas nunca teria sido capaz de pagar por
conta própria.
As vantagens seriam incríveis se não viessem com um carcereiro
megalomaníaco.
Desde que Shadow havia feito sua saída dramática habitual, decidi
tomar um banho rápido e me limpar. Arrancando a camisa esfarrapada,
suspirei com a água quente batendo contra meus músculos tensos, e por um
momento me permiti desmoronar.
Só por um momento.
Meu ombro bateu contra os ladrilhos quando minha cabeça caiu para a
frente e eu apertei as mãos firmemente. Eu posso fazer isso. Eu posso
sobreviver a isso. Depois de Torma, posso sobreviver a qualquer coisa.
Das cinzas, a fênix se erguerá.
Um mantra era tudo de que uma garota precisava para sobreviver à
vida. Certo?
Uma vez que estava limpa, vestindo uma calcinha com zero buracos —
whaattt? —, jeans e uma camisa branca simples, eu me senti pronta para
descobrir meu lugar nesse mundo estranho. Meus tênis novos eram
silenciosos enquanto eu ia em direção à porta, minha mão se acomodando na
velha maçaneta preta, esperando que estivesse trancada quando eu tentasse
abrir. Porém estava aberta, e eu saí para encontrar Inky girando lá fora, como
a versão assustadora de Gasparzinho.
— Uau, fantástico encontrá-lo aqui — eu disse com falso entusiasmo.
— Senti sua falta na hora em que estávamos separados, Inky. Nunca mais me
deixe.
Ele rodou mais alto, deslizando em torno de minhas roupas novas,
como se estivesse tentando descobrir o que eu estava vestindo.
— É assim que eu normalmente pareço quando não estou seminua —
eu disse com um sorriso.
A sombra negra inchou para dobrar seu tamanho e parecia quase... se
sacudir. Eu ia chamar isso de seu movimento risonho, porque qualquer outra
coisa era muito aterrorizante para contemplar.
Quanto maior ficava, mais definição eu podia ver dentro do que eu
pensava anteriormente como apenas redemoinhos de fumaça sombria. Parecia
um cérebro enorme, com pulsos elétricos disparando entre sinapses. Cérebros
humanos não eram minha especialidade nem nada, mas isso me fez pensar se
Inky era muito mais consciente do que eu pensava originalmente.
Não havia como ser apenas um desdobramento do Shadow Beast...
Inky era definitivamente sua própria marca especial de criatura sobrenatural.
— O que você é? — perguntei, minha curiosidade fazia as palavras
pipocarem de mim. — Você não é como nada que eu já vi antes.
Porra, nem sei por que fiz o movimento seguinte, mas às vezes meu
cérebro é lento. Não há outra explicação para o motivo de eu ter tocado
voluntariamente a fumaça negra. Enquanto a ponta dos meus dedos deslizava
pela escuridão, um frio gelado dominou meu braço antes de eu ser derrubada
de volta sobre a bunda como se alguém tivesse me chutado do outro lado da
sala.
— Merda! — Engasguei, tentando sacudir o frio para fora enquanto
desajeitadamente me levantava. — Eu verdadeiramente não esperava isso.
Inky tinha me tocado antes, mas, aparentemente, essa não era uma via
de mão dupla. Ou talvez tenha sido apenas o primeiro e único aviso para que
eu não me aventurasse onde não era chamada.
Ele se encolheu ficando bem menor, mas definitivamente ainda estava
balançando. Bastardo presunçoso, como Shadow.
Decidindo que tinha desperdiçado tempo suficiente procrastinando,
passei pela entidade de fumaça e entrei na Biblioteca do Conhecimento.
Quando atravessei o véu, um duende estava me esperando do outro lado.
— Gah. — Pulei para trás, quase caindo no covil de Shadow
novamente. — Não fique tão perto, Gaster.
Ele se curvou para me reverenciar.
— Minhas desculpas, senhorita Mera. Eu estive esperando por seu
retorno para que possa continuar a turnê e descrever suas funções.
Parecia que eu estava prestes a ser introduzida ao meu primeiro dia de
trabalho, mas, se isso me levaria a mais conhecimento e uma chance de
encontrar uma maneira de me separar do rei de todas as divindades, então eu
pegaria o que quer que ele jogasse em mim. Se essa biblioteca tivesse o
conhecimento do mundo... tinha que haver algo ali que definisse as fraquezas
do Bastardo do Shadow.
— Lidere o caminho! — eu disse com entusiasmo.
Gaster piscou para mim, aqueles olhos estranhos capturando minha
atenção assim que um brilho verde cobriu o preto, antes de desaparecer.
— Finalmente alguém tão animado quanto eu para aprender — disse
ele, e eu me perguntei se aquele flash de verde era sua felicidade brilhando.
— Totalmente. — Eu me animei por dentro, pronta para conquistar
esse duende e ter um aliado poderoso para questões futuras.
Talvez ele não fosse poderoso no sentido físico, mas alguém que tinha
o papel de "porteiro da Biblioteca do Conhecimento" tinha que ser um amigo
útil para se ter.
Verdade seja dita, eu meio que gostei dele. Pessoas com seu nível de
entusiasmo e excitação infantil pela vida eram poucas e distantes no meu
mundo. Os metamorfos sabiam ser sarcásticos e gostavam de bancar os
fodões; até nossos filhotes eram merdinhas atrevidos.
Quando voltamos pelas muitas estantes, notei que a multidão de seres
que eu tinha visto antes se havia ido, e em seu lugar outros percorriam as
prateleiras, empilhando livros nos braços e saindo novamente pela porta de
seu mundo.
— Então nenhum desses seres dos mundos trabalha aqui? —
perguntei.
Gaster voltou para olhar para mim, aquele sorriso ainda no lugar.
— Ninguém realmente trabalha aqui, mas há algumas dúzias de nós
que mantêm isso aqui funcionando. A Biblioteca do Conhecimento é uma
entidade poderosa e, se cair em mãos erradas... — Pela primeira vez,
enquanto me explicava algo, ele não sorriu.
— Para onde vão todas as prateleiras quando vocês fecham este lugar à
noite? — perguntei, pensando na minha primeira viagem feita com esses
corredores vazios.
Ele me ofereceu uma espécie de olhar em branco.
— Elas não vão a lugar nenhum. As prateleiras permanecem como
estão agora. Nada mudou no Sistema Solaris e na Biblioteca do
Conhecimento desde que comecei aqui há mil anos.
Ignorando o fato de que Gaster tinha pelo menos mil anos, eu me
concentrei no resto do que ele disse.
— Isso não pode estar certo — murmurei. — Quando andei por este
prédio com Shadow, ontem, ou seja lá quando, este salão estava vazio. Tudo
o que eu podia ver eram janelas e portas, mas sem prateleiras ou livros em
tudo.
Gaster levou um segundo para responder, como se estivesse
organizando os pensamentos.
— O mestre devia estar decidindo seu destino — ele finalmente disse,
com a voz mais baixa e menos animada do que o habitual. — Até que isso
fosse decidido, você não poderia acessar todo o dom do conhecimento que
está contido aqui.
Ohh. Certo.
— Shadow provavelmente estava planejando me matar naquele
momento — eu disse. — Então faz sentido.
Gaster jogou as duas mãos para cima, parecendo em pânico.
— Oh, não, eu tenho certeza de que ele não estava. Ele é apenas
cauteloso com estranhos. — Sim, foi só isso.
Estávamos no centro da biblioteca agora, cercados por um monte de
mesas e cadeiras além de alguns pufes gigantes e macios que pareciam
superconvidativos. Infelizmente, não houve tempo para eu mergulhar nas
profundezas deles com um grande livro, porque eu estava no "trabalho".
— É estranho ser a única trabalhando aqui que não é um ser místico —
eu disse.
Gaster acenou com a cabeça.
— Eu sei, mas você não vai se sentir sozinha. Como eu disse, muitos
outros estão sempre aqui para reunir conhecimento. É a maior honra ser
escolhido para examinar a biblioteca.
— Exatamente quantos mundos existem neste Sistema Solaris?
Ele tinha mencionado alguns, é claro, mas minha necessidade de mais
conhecimento aumentava a cada hora que eu permanecia ali. As portas
anônimas me chamavam, exigindo que eu aprendesse sobre elas.
Seus olhos se abriram, esferas negras brilhando pelas luzes cintilantes
acima de nós.
— Oh, você merece um tratamento real. Siga-me.
Foi o que fiz.
Vinte e um
Ele andou tão rápido que teve sorte de eu ser uma metamorfo e capaz
de acompanhar suas pernas curtas e poderosas. Levou-me até o ponto mais
distante da sala, para o véu que escondia o corredor branco da vista.
— Aqui é a diretoria! — Gaster cantarolou.
Eu olhei em volta confusa, tentando descobrir o que ele estava falando.
"Diretoria?"
Ele gesticulava para o véu cintilante.
— Quando não está agindo como um sistema de alerta rápido para
proteger a biblioteca, ele pode ser usado para navegar no Sistema Solaris.
Oh, sim. Essa era uma excelente notícia.
Gaster colocou a mão em um pequeno painel, que fora deslocado até o
véu, e, como era tão branco quanto as paredes, eu realmente não o tinha
notado até que o duende tocou nele.
— Coloque sua mão aqui — explicou ele — e diga “revele”.
No momento em que a palavra deixou seus lábios, o véu cintilante
solidificou-se, transformando-se em um mapa de dois metros e meio de
altura. Um mapa muito detalhado...
Gaster deslizou a tela, ampliando em uma seção específica.
Um mapa muito detalhado e interativo. Muito foda!
— É aqui que estamos, e daqui você pode encontrar todo o resto — ele
foi interrompido por alguém gritando seu nome, uma figura minúscula
correndo em nossa direção.
— Um livro está faltando — disse ela.
Era claramente outro duende, parecendo sem dúvida mais feminino do
que Gaster, com seus cabelos dourados na altura dos ombros e cílios escuros
espessos.
— Essa é Lady Hel — ele me disse. — Ela é uma realeza do mundo
das fadas e me ajuda aqui como parte do rito de passagem para seu papel
final.
Eu acenei com a cabeça como se soubesse do que ele estava falando.
Lady Hel nem olhou para mim, já correndo de volta para a tragédia de um
livro desaparecido.

— Se puder me desculpar por agora, preciso lidar com esse desastre —


disse Gaster com um aceno de cabeça. — Sinta-se livre para navegar no
painel e voltarei em breve.
Eu lhe lancei um sorriso largo. Esse tipo de confiança cega ia colocá-lo
em apuros, mas, por enquanto, eu não faria nada muito louco. Especialmente
não com Inky andando por perto, mantendo-me em seu campo de visão.
— Estarei aqui — prometi.
Ele se foi mais rápido que uma bala, e eu me virei para o telão, pronta
para aprender tudo o que pudesse, não importando quanto tempo eu tivesse.
Primeiro me concentrei no mapa como um todo, ampliando para ver a sala
em sua totalidade. A imagem era dez vezes maior do que eu, então dei alguns
passos para trás.
Olhos de águia sobre a Biblioteca do Conhecimento, eu agora tinha um
claro panorama de todo o cenário. Contei as portas que corriam ao longo de
cada parede: cinco em cada. Elas estavam entre longas filas de prateleiras,
sobre as quais, ao ampliar cada uma delas, eu via livros correspondentes às
terras que existiam do outro lado daquelas portas. Uma perto de Faerie
guardava um pequeno ponto brilhante, então apontei o dedo para ele.
Com uma campainha, uma mensagem apareceu. História do Reino
Fada: Dinastia da Grande Fera e o povo do ar.
Puta merda. Eu ia ser capaz de navegar essa porra toda tão bem com
esse equipamento. Queria poder importar o mapa para um telefone e carregá-
lo comigo em todos os lugares.
As dez portas eram minha prioridade, então apertei o ponto brilhante
mais próximo de mim. A passagem verdadeira estava sobre o meu ombro;
dali eu podia ver que havia um pequeno redemoinho de escuridão no centro.
— Primo seu? — perguntei a Inky, rindo da minha piada estúpida.
Na tela, o quadro com a informação apareceu... Tundera. A Terra dos
Perdidos. Almas negras habitam dentro deste mundo sem luz e, aqui,
encontrarão redenção ou sua verdadeira destruição.
Ok, enigmático e assustador. Superlegal.
A porta ao lado, que eu também podia ver na vida real, era branca, de
aparência normal, não descritiva. A informação apareceu: Valdor. Local de
nascimento de vampiros. Criaturas de luxúria e escuridão. Bebedores da
força vital.
Oh, sim. Cidade dos vampiros.
Espera... Vampiros? Havia vampiros legítimos? Eles estavam no
mundo humano também?
Eu praticamente mergulhei no botão de informação para a próxima,
desesperada para saber sobre toda essa galáxia sobrenatural. A porta ao lado
estava muito abaixo da biblioteca para eu ver, então só esperei a informação
aparecer.
Karn: O mundo é predominantemente água. Habitantes em sua
maioria capazes de existir acima e abaixo.
Este eu já conhecia, e a informação era muito breve para o meu gosto,
mas, felizmente, as prateleiras próximas tinham muito mais informações. Eu
só tinha que começar a ler. Apertei um dos pontos na estante mais próxima da
porta Karn. Ele soou imediatamente. História, regras, regulamentos, fontes de
água.
Eu voltaria a ver isso assim que terminasse ali.
As duas últimas portas desse lado da sala eram Faerie: terra cheia da
magia original. Habitantes de uma variedade de castas, incluindo seelie e
unseelie, demi-fey, e os lurkers. E a última porta apareceu como Tundra
Congelada: sem habitantes conhecidos. Extremo demais para ser explorado.
Bem, isso foi interessante. Eu rapidamente mudei para o outro lado, e
em ordem as portas eram:
Brolder: Local de nascimento dos metamorfos. Híbridos. E feras das
profundezas.
Honor Meadows: a fonte original de luz. Poderosa além do
conhecimento.
Shadow Realm: informações desconhecidas. Erro crítico.
Watchers: aqueles com poder onisciente. Governam muitos. Respostas
para poucos.
Desert lands: nascidas do calor e do fogo, magias e desejos
Pisquei.
— E a porra da atual...? — murmurei em voz alta.
Eu tinha tantas perguntas. Tipo, muitas mesmo.
— Minhas desculpas! — Gaster disse, suas palavras explodindo em
meu cérebro confuso. — Aparentemente, um livro foi mal guardado e, em
geral, a própria biblioteca lida com essa situação, mas, neste caso, ele pode
ter sido colocado em duas categorias, e foi aí que surgiu a confusão...
Ele continuou a divagar, e eu o olhei fixamente, meus pensamentos
ainda nos vários e vastos mundos que se conectavam a esse Sistema Solaris.
A informação sobre eles podia ter sido breve, mas fora suficiente para
capturar meu interesse. Especialmente Brolder, ao que tudo indicava, local de
nascimento dos metamorfos. Shadow estava lá quando nos criou, fazendo sua
própria versão híbrida humana? Ou havia outra explicação?
Falando em nenhuma explicação... O que aconteceu com o Reino das
Sombras? Erro crítico?
— Senhorita Mera?
Gaster olhou para mim, seu rosto enrugado ainda mais crispado com o
que parecia ser preocupação.
— Há dez mundos que estão conectados a esta biblioteca. — Eu me
engasguei.
Ele inclinou a cabeça, seus olhos quase se misturando no marrom de
sua pele enquanto clareavam ligeiramente.
— Onze, na verdade. — Empurrou a cabeça para o telão. — Além
deste está o caminho para os humanos.
Certo. Certo. Eu sabia disso. Eu tinha andado naquele longo salão... ou
fui transportada pela maior parte dele, de qualquer maneira.
Meus olhos miraram em Inky, que estava se aproximando pela primeira
vez desde que o toquei. Como se soubesse que eu estava pensando em
Shadow Beast. Para trás, vadia, alertei mentalmente e, por conta da minha
expressão ou sei lá o que, a nuvem de fumaça parou de se aproximar. Muito
bem, Inky.
— O que há com o Reino das Sombras? — perguntei, voltando-me para
Gaster.
Seu rosto se fechou e ele balançou a cabeça.
— Essa história não é a minha para que eu conte. Agora, por favor,
siga-me.
Ele girou, correndo de volta para a biblioteca, e eu o acompanhei com o
olhar. Acho que aquele era o seu limite, e Gaster não estava disposto a
atravessá-lo. Seguindo o caminho indicado, o silêncio estranho durou cerca
de quinze segundos antes que ele recobrasse seu bom humor habitual.
— O mestre quer que você inicie na limpeza, e você seguirá sozinha a
partir daqui.

Rangendo os dentes, eu não discuti. Sem dúvida, esse era o plano de


Shadow o tempo todo, e eu estava determinada a nunca permitir que ele
soubesse que tinha marcado qualquer ponto contra mim. Claro, eu odiava
limpar mais do que qualquer coisa no mundo, mas iria lá fora e faria um
trabalho perfeitamente adequado na limpeza. Nada como um esforço
moderado para provar um ponto.
Gaster me levou aos materiais de limpeza, todos novos, porque "a
biblioteca geralmente se limpa sozinha", no entanto eu passaria as próximas
horas apoiando-me em uma vassoura e limpando prateleiras sem poeira.
O tempo todo com um sorriso no rosto, porque, foda-se, Shadow Beast.
Ele queria que eu o temesse, e não tinha ideia de quão perto estava dessa
conquista, mas também devia querer que eu o odiasse. Nisso, ele poderia se
considerar bem-sucedido.
Era impossível precisar o tempo correto nessa biblioteca, com seus
constantes convidados rotativos dos mundos. Para passar o dia, levei um bom
número de horas tentando adivinhar de que mundo cada habitante tinha
vindo. Alguns eram muito óbvios — como Karn — enquanto para outros eu
não tinha nenhuma ideia.
A única constante nesse lugar eram as dúzias de duendes que pareciam
seguir Gaster por aí. Eu gostava de observá-los também, os duendes com uma
hierarquia clara que parecia não ter nada a ver com gênero ou posição, e tudo
a ver com inteligência e respeito.
Eles podem ser a raça mais avançada de todas.
Enquanto eu observava as pessoas, aprendendo o máximo que pude e
arquivando tudo para referência futura, meu estômago começou a roncar. E
alto. Girando para Inky, meu perseguidor, eu rosnei.
— Eu preciso comer e dormir. Faça acontecer.
Ele aumentou de tamanho, e pude ver novamente todas as luzes
piscando, girando dentro do vórtice da escuridão. Eu estava muito cansada e
faminta para me importar com o fato de que Inky estivesse quase do meu
tamanho agora e tampouco com a possibilidade de ele me explodir do outro
lado da sala se eu o irritasse. Felizmente, antes de eu ter que lutar com uma
nuvem de fumaça, Gaster apareceu, sorrindo radiante, no lugar.
— Uau, você certamente iluminou o lugar com seu trabalho duro hoje.
Precisei lançar mão de cada grama do meu autocontrole para não socar
a boca dele. Eu disse que gostava dele antes? O que eu estava pensando?
— Irei lhe mostrar o refeitório — ele cantarolou —, onde você pode
obter todo o sustento de que precisa. — Meu espírito se animou, e assim, ele
estava fora da minha lista de merda de novo.
— Graças à besta — rosnei, deixando a vassoura bater no chão.
Que desapareceu em um flash, a magia dessa sala demonstrando em
termos incertos o quão inútil minha varredura tinha sido.
— Estou a cinco segundos de morrer de fome.
Minha loba levantou a cabeça, resmungou balançando meu peito, e
percebi que essa era a primeira vez que a sentia em horas. Ela fora subjugada
ali, calma no meu peito, e às vezes eu me perguntava por que agia como se já
estivéssemos mudando juntas por anos, em vez de uma ou duas vezes. A
estranheza disso, porém, era tão baixa na minha escala de preocupação que
mal lhe dediquei um pensamento.
Não. Minha loba e eu — e nossa relação disfuncional — éramos a parte
normal da minha situação atual de vida.
Triste dizer isso.
Vinte e dois
Alimento. Comida gloriosa. Provavelmente a segunda melhor parte
desse mundo mágico da biblioteca em que me encontrava. Comida e livros,
alguém poderia pedir mais?
— Você come assim todos os dias? — perguntei entusiasticamente à
mulher alguns assentos de distância de mim, enquanto eu enfiava uma grande
fatia de rosbife na boca.
Pelo menos eu esperava que fosse carne, mas, fosse lá o que fosse, o
gosto era bom.
Ela virou-se para mim pela primeira vez, com o nariz enrugado
enquanto me analisava. Eu pisquei de volta para ela.
— Não é muito de falar, hein? — perguntei, limpando a boca com um
guardanapo. — Não se estresse. Posso falar o suficiente por nós duas e, antes
que você perceba, vamos ser amigas.
Seus olhos, uma cor magenta surpreendente, cresceram quando o
choque cruzou seu rosto perfeito. Foi preciso mais alguns momentos de um
olhar estranho para eu colocá-la definitivamente no mundo de Honor
Meadows. Ela tinha aquele brilho de outro mundo dos seres daquela terra, e
um rosto esculpido exatamente como o de um anjo, com certeza.
Limpando a garganta, ficou de pé, as asas escuras de cor âmbar que eu
tinha perdido na primeira análise saltando à vista. Com sua pele pálida
translúcida e os longos cabelos cor de mogno, ela era quase o oposto da
primeira mulher que eu tinha visto de Honor Meadows, mas, se essas duas
fossem referência, todos do seu mundo eram altos, graciosos e perfeitos.
— Você tem homens em seu mundo? Ou outros sexos? — perguntei e,
mais uma vez, ela apenas olhou, claramente não tinha ideia do que fazer
comigo. Ela e Shadow provavelmente poderiam começar um grupo de apoio.
— Só estou curiosa. Acho que é incrível se você só tem um ou nenhum
gênero definido. Rótulos são irritantes de qualquer maneira, certo? E, sério, o
que quer que você esteja fazendo, continue fazendo, porque você é quente
como o inferno.
Sem dúvida, ela agora pensava que a metamorfo meio faminta não era
apenas louca, mas também estava dando em cima dela. Se ao menos... O fato
de eu não poder experimentar uma verdadeira atração sexual por mulheres
quando os homens eram tão idiotas era um dos meus maiores lamentos.
Outra piscada, e então ela girou, retirando-se rapidamente de lá.
Com um encolher de ombros, voltei a comer.
Gaster me deixara no refeitório havia cerca de vinte minutos —
aproximadamente, já que eu estava apenas adivinhando as horas nessa fase
— e, quando me sentei, pequenas criaturas robóticas se aproximaram para
anotar meu pedido. Tinham a mesma altura que Gaster, mas não tinham
rostos, e eram mais como minicabines telefônicas sobre rodas. Eu os
adicionei à minha lista de criaturas a desvendar; a lista interminável.
Agora que a bela mulher de Honor Meadows se fora, havia apenas
alguns outros seres na sala, junto com os robôs-servidores. O refeitório em si
não era tão notável, era basicamente cheio de longas mesas de madeira,
correndo em fileiras com dez ou mais lugares entre cada uma. Em plena
capacidade, comportaria pelo menos algumas centenas de seres, mas essa era
sua única reivindicação à fama.
Pelo resto do meu tempo lá, ninguém se aproximou de mim, e eu me
perguntava se o “Rosto de Anjo” já tinha espalhado a notícia sobre a minha
conversa incessante. Tanto faz. Como se eu precisasse de mais amigos
sobrenaturais que provavelmente me esfaqueariam pelas costas. Simone e
Dannie sempre foram suficientes para mim, e eu só queria que elas
estivessem ali, explorando esse mundo e tendo uma aventura comigo.
Então, mais uma vez, essa experiência arriscada provavelmente me
mataria e, sendo assim, talvez fosse melhor que eu estivesse descobrindo tudo
isso sozinha. O mundo precisava de mais metamorfos como as minhas
melhores amigas, e eu teria que viver permanentemente sedada se algo
acontecesse com elas.
Assim que estendi a mão para pegar uma fatia de bolo de creme de
banana com cobertura de caramelo, um silêncio tomou conta do refeitório.
Quero dizer, havia cerca de oito de nós ali, então não era tão perceptível, mas,
juntando os cabelos arrepiados em meus braços a uma sensação de
formigamento na espinha, eu sabia que havia apenas uma explicação.
Shadow. E ele estava bem atrás de mim.

Parte de mim queria se acovardar e, como isso me irritou, eu me forcei


a dar uma mordida no bolo, deixando os intensos — definitivamente não era
banana — sabores dançarem na minha língua.
Estava delicioso, com toques de caramelo e... rosa? Mais importante, o
golpe do açúcar foi útil para acalmar meus nervos esgotados.
Calor queimando ao longo do meu corpo, qualquer pedaço de pele
exposto formigando como se eu estivesse dançando perto demais de um
incêndio.
Eu ainda não havia me virado.
Sério, por que eu estava jogando jogos de dominação com um deus?
Não havia literalmente uma boa razão, mas eu não conseguia parar.
A segunda mordida de bolo foi ainda melhor do que a primeira, e um
gemido involuntário escapou entre meus lábios. Jesus, Maria, e graças a
Deus pelos doces.
Honestamente, eu nem tinha percebido que era boa de garfo até esse
momento, porque nunca tinha tido a oportunidade de realmente me entregar.
— Você terminou?
Seu rosnado baixo paralisou meus movimentos, sua energia suprimindo
minha capacidade de me mover ou continuar comendo.
— Não exatamente — eu consegui falar.
Seu próximo rosnado veio do fundo do peito, chamas caindo no ar ao
nosso redor, e assim, o refeitório estava vazio. Sem dúvida, Shadow Beast era
temido e respeitado a níveis quase ridículos. Por uma boa razão.
Parte do controle do meu corpo diminuiu, e decidi parar de brincar
quando me virei em direção a ele.
— Oh, ei — eu disse casualmente. — Não tinha visto você.
Fumaça de verdade escapou de suas narinas. Tipo... Fumaça, porra.
Qual é, cara, você poderia ser um pouco mais clichê demoníaco? Chamas
irromperam naqueles olhos deslumbrantes, e lá foi ele, intensificando o clichê
com apenas um toque a mais.
— Sim, sim. Eu entendo. Você está perpetuamente chateado. Precisava
de algo de mim? Ou estou atrasada para minha próxima sessão de limpeza
inútil?
Honestamente, se eu não dormisse logo, provavelmente desabaria em
uma poça de lobo.

— Rastreei uma criatura-sombra — disse a besta, aqueles lábios


carnudos e dentes brancos perfeitos capturando minha atenção enquanto ele
falava.
Shadow me distraiu da pior maneira, e eu queria me odiar por essa
fraqueza, mas... ele era sombriamente delicioso, e eu era apenas humana...
Por assim dizer.
Estava me encarando, sem dúvida, esperando minha resposta, e eu tinha
esquecido o que ele tinha dito.
— Você... Uhh. — Criatura, certo? — Uma criatura-sombra! Ah,
ótimo. Você localizou uma. Vamos pegá-la. — Saltei de forma elegante,
graças a minha loba. — É na Terra? Devo pegar uma jaqueta?
Ele inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse tentando me
entender, mas o segredo do meu sucesso era garantir que ninguém
conseguisse.
— Sim, é na Terra, nas profundezas do Canadá. Você vai precisar de
roupas mais quentes para neutralizar suas fragilidades.
Eu sorri.
— Você está tão certo, Shadow. Obrigada por sempre pensar no meu
bem-estar.
Por alguma razão, não me pergunte qual, resolvi dar um tapinha no
ombro dele quando passei. Do jeito que eu teria feito ao brincar
sarcasticamente com Simone. Mas esse não era a Simone. Esse era um deus,
Shadow Beast, um demônio dos mundos mais sombrios.
Assim como com Inky, tocá-lo sem permissão foi uma péssima ideia,
mas era tarde demais para parar. No momento em que minha mão caiu em
seu ombro, fogo disparou através da minha palma, e meus gritos soaram pelo
corredor. Eu nunca tinha sentido uma dor tão intensa como essa e, quando
puxei a mão, esperava encontrar nada mais do que um toco queimado no final
do braço.
Mas não havia uma marca em mim.
— O que... — balbuciei. — Que porra foi essa?
Ele havia me tocado ao me trazer para esse buraco de merda, e eu não
senti dor.
A altura duplamente gigante de Shadow voltou para apenas um
"gigante" quando ele se aproximou, não parecendo tão irritado quanto eu
esperava.
— Ninguém me toca.
E essa foi toda a explicação dele.
— Então você tentou me queimar de dentro para fora?

Ele balançou a cabeça, os cachos oscilando suavemente com o


movimento, e eu tive a necessidade insana de estender as mãos e passá-las
por eles. Tipo, o filho da puta quase me quebrara um segundo atrás quando
eu o toquei, mas aparentemente eu era viciada em dor.
— Esse é o meu poder — disse ele rapidamente. — Se você não pode
lidar com isso, não entre no fogo.
Eu bufei.
— Certo. Saquei.
Babaca.
Vinte e três
Uma vez que eu estava vestindo jeans, uma jaqueta grossa, luvas e um
chapéu de lã — noventa por cento de certeza de que essas roupas não
estavam no meu armário antes —, andei pela biblioteca com Shadow. Inky
estava perto de nós de novo, esgueirando-se em torno de seu mestre, mas eu
meio que me senti bem com sua presença. Como um reforço extra contra
essas criaturas-sombra. Só o nome já invocava o medo, e eu não tinha certeza
se seria capaz de vê-los sem surtar.
— Como funciona tudo isso? —perguntei como uma distração quando
estávamos perto do corredor para a Terra.
— A maneira como você joga fora palavras aleatórias e acha que elas
formam frases é terrível — disse Shadow, o sotaque dele estava um pouco
mais forte do que o habitual.
Dei de ombros.
— Talvez você não seja esperto o suficiente para me acompanhar.
Ele balançou a cabeça, mas foi impedido de responder quando alguém
de Karn se aproximou, não o tocando, como era aparentemente de sua
preferência, e sussurrou para ele.
Os seres da água ainda eram alguns dos mais incomuns que eu tinha
visto, e isso significava algo, considerando os habitantes de Demi-Fey e
Brolder. Mas, ainda assim, a natureza quase translúcida desses corpos que
pareciam desossados enquanto se deslizavam pelos menores espaços era
absolutamente fascinante.
— O que ele disse? — perguntei.
Shadow inclinou a cabeça na minha direção e, como estava de volta em
seus mais de dois metros de altura, estiquei o pescoço para mantê-lo na
minha linha de visão.
— O que faz você pensar que é qualquer assunto do seu interesse? —
perguntou ele sem rosnado ou resmungos, então eu estava contando isso
como uma vitória.
Dei de ombros mais uma vez.
— Não é, tenho certeza. Mas você está me mantendo prisioneira, e eu
estou curiosa sobre este lugar, então vou fazer perguntas.
Seus lábios realmente se contorceram no mesmo instante e, por um
momento, parecia que ele se divertia comigo.

— Aprenda a fazer as perguntas certas, filhote, e você pode


simplesmente sobreviver.
Ah, ótimo. Muito reconfortante.
Ele se levantou então, pernas longas levando-o através do diretório de
véus cintilantes e para o corredor da Terra. Parecia exatamente o mesmo da
última vez, uma extensão branca do corredor repleta de várias portas.
— Isso leva a outros mundos também?
Ele me disse algo sobre eles da primeira vez, mas juro pela minha vida
que não me lembrava o que era. O medo, sem dúvida, bloqueia tudo nessas
horas.
— Não, não. Os verdadeiros mundos estão todos fora da biblioteca —
disse ele, surpreendendo-me ao ser comunicativo e me dar informações. —
Essas portas levam a outras áreas.
E a informação secou.
Não havia mais tempo para perguntas; ele estava se movendo tão
rápido, basicamente tive que correr para acompanhar. Eu não tinha percebido
como ele entrara nesse salão da primeira vez, ao deixarmos a Terra, mas isso
ficou óbvio quando de repente as paredes brancas se afunilaram e aparecemos
em uma floresta. Uma floresta muito espessa, coberta de neve, a temperatura
do ar, no início da noite, caindo drasticamente, em uma fração de segundo.
Uma brisa gelada atravessou meu corpo, eu tremia, grata por pelo
menos ter tanta roupa me aquecendo. Os metamorfos de lobo não sentiam o
frio como os humanos, mas, quando as temperaturas eram tão baixas, ainda
sofríamos sem proteção.
Shadow fez uma pausa e diminuiu o ritmo de caminhada, levantando a
cabeça e fechando os olhos enquanto respirava profundamente.
— Jáá o per-perdeu-u? — gaguejei, meu corpo demorando mais do
que o esperado para se adaptar à rápida mudança de temperatura.
Ele me lançou um olhar escuro e, na luz excepcionalmente baixa, o
fogo em seus olhos brilhava como um milhão de vagalumes.
— Criaturas do Reino das Sombras não são fáceis de rastrear ou
conter, mas, se forem deixadas para vagar livremente, arrasarão a Terra,
juntamente com seus muitos recursos, tudo estará no chão em questão de
meses.

Eu me encolhi por dentro. Merda. Eu tinha feito isso... Libertara essas


criaturas que poderiam destruir o mundo.
Aproximando-me dele, mas mantendo distância suficiente para não ser
queimada novamente — mesmo que nessa fase um pouco de fogo soasse
meio agradável —, eu olhei ao redor.
— Então, você é capaz de rastreá-los e contê-los?
Ele zombou, como se essa estivesse lá no topo das minhas principais
perguntas estúpidas. E considerando como reagia a muitas delas, havia uma
competição acirrada.
— Você vai aprender a me temer, filhote.
Era a minha vez de zombar, só que a minha voz saiu como um ronco.
— Sim, sim. Então me explique uma coisa. Qual é a vantagem de fazer
todos temerem você? Não parece uma boa maneira de fazer amigos.
Ele parou o que estava fazendo, e mesmo Inky deixou de girar em torno
de seus braços, estabelecendo-se contra seu peito em vez disso.
— Você quer que sejamos amigos?
Dei de ombros.
— Quero dizer, não custa nada, já que vamos ficar presos juntos por
um tempo tentando rastrear essas criaturas da escuridão, certo?
Shadow foi quem se aproximou, sua energia me acariciando, enviando
calor através do meu corpo, o que era quase tão bom quanto um orgasmo.
— Há cinco seres neste mundo que chamo de amigos — ele murmurou,
seu sotaque mais forte do que eu jamais ouvira. — Cinco em quem confio
minha vida, e por quem lutaria até a morte.
Nesse momento, eu estava fora de mim, perdida no meio de sua voz e
poder, mas ele não se aproveitou. Não. Ele se afastou, rasgando o calor
delicioso e levando sua energia para longe de mim.
— Você não está entre os cinco, loba.
Começou a andar, e eu pisquei tentando me trazer de volta à realidade.
O fato de eu não estar entre os cinco seres em que ele confiava sua vida
não deveria ter sido uma surpresa para mim. Meio segundo depois de
conhecer esse cara, eu já tinha sido torturada, sacaneada e amedrontada, mas,
por alguma razão estúpida, eu me senti decepcionada ao ouvi-lo dizer isso.
Talvez, no final da minha estada com o Shadow Beast, ele aumentasse
esse número para seis. Ou talvez me matasse dentro de uma bola de pele
flamejante.
O fato de não saber para que lado tudo isso iria não era tão terrível
quanto eu esperava que fosse. Talvez eu tivesse perdido a cabeça, ou talvez...
talvez fosse aqui que minha vida realmente tivesse começado.
Tudo o que eu tinha que fazer era me manter viva, o que significava
não irritar essa fera — e ficar por perto para ver o que o destino tinha
reservado para mim.
Falando nisso, ele estava correndo novamente, rastreando a criatura
sombra. Não foi exatamente um processo rápido. Caminhamos quilômetros, a
neve ficando mais espessa sob os pés e o ar mais frio em cada parte do meu
corpo exposto aos elementos. Não importava o quanto eu tentasse me
aconchegar na jaqueta, a maior parte de mim ainda se sentia congelada, e
então, quando meus cílios não eram nada mais do que picolés brancos, eu
parei.
— Você está realmente tentando me sacanear com tudo isso? — rosnei,
minha loba uivando dentro do peito. — Por que você é tão inútil em rastrear?
Sim, eu estava cansada. Exausta, mesmo. E eu com certeza, já estava
farta de ser arrastada pela metade das selvas do Canadá, tudo por alguma
chance de tropeçar em uma criatura-sombra.
— O que você disse? — Ele parecia genuinamente surpreso.
— Eu esperava que você fosse melhor em rastrear do que isso —
continuei descuidadamente, todo o meu plano de permanecer viva se
perdendo com meu aborrecimento exausto. — Você está apenas nos guiando
em uma porra de círculo. — Joguei as mãos no ar. — E o que diabos eu
estou fazendo aqui? Por que você precisa de mim? Será que aquele que
libertou as sombras tem que devolvê-los ou algo assim?
— Sim — ele rosnou. — A humana descuidada e patética que libertou
criaturas-sombras para destruir a Terra deve ser a única a reivindicá-las de
volta.
Bem, que merda.
— Parece que você não pode realmente me matar então — eu disse,
encontrando o lado bom.
Mãos enormes, fortes e perfurantes, envolveram meus bíceps me
levantando, de modo que meu rosto ficou na altura do seu. Engoli em seco a
expressão de rosnado dele, na sua perfeição em ser aterrorizante e em tirar o
fôlego.
— Você superestima tanto sua própria importância quanto a da Terra.
Eu não preciso deste mundo. Mas você... Você tem amigos aqui. Até família.
Você faria bem em se lembrar disso.
Seu conselho era sólido, como um conselho deve ser, mas eu estava
consumida pelo fato de que ele estava novamente me tocando sem provocar
dor. Quão extremamente injusto era o fato de que ele pudesse impor uma
relação unilateral entre nós. Isso me fez querer tocá-lo mais do que nunca, só
porque não era permitido.
— Senti aquele rastro de poder novamente — disse ele abruptamente,
rompendo a tensão bem tecida entre nós, deixando-me de pé. — Siga-me.
Eu queria saltar prestando continência, mas ele já tinha ido embora, e
minha ação espertinha seria desperdiçada. Ah, bem. Definitivamente haveria
outra oportunidade.
Shadow moveu-se com determinação agora, aparentemente preso e
focado nessa trilha de energia.
Minha habilidade de acompanhar estava diminuindo e, como minha
loba chorava suavemente no meu peito para ser livre, eu me perguntava se
talvez fosse melhor me transformar. Estava prestes a perguntar a ele quando
nos deparamos com um conjunto particularmente denso de árvores e,
passando por elas, chegamos à beira de um lago congelado.
Quando Shadow Beast me roubou de Torma, estávamos a algumas
semanas do início do inverno, mas esse lugar que estávamos explorando
agora já estava devastado pelo clima glacial, e eu me perguntava se o tempo
estava se movendo mais rápido na Terra do que na Biblioteca do
Conhecimento. Ou estávamos realmente muito ao norte no Canadá?
Não que o tempo realmente importasse quando bem no centro do lago
congelado estava uma... criatura que estava tão além de qualquer coisa que
eu já tinha visto, ela quase roubou meu fôlego.
— É isso? — Eu me engasguei, instintivamente me aproximando de
Shadow.
— Sim. É um abervoq.
Ele disse tão rápido que mal peguei o nome estrangeiro, mas com
certeza eu não poderia perder a criatura em si. Perto do gigante Shadow,
aquilo era um monstro distorcido. A parte de cima parecia um touro, com
chifres enormes, um focinho, e olhos grandes. A metade inferior era um urso
desgrenhado com pele preta que se misturava bem na escuridão ao seu redor.
A escuridão também não era a única coisa que o cercava. Não. Havia
pilhas de carcaças, centenas delas, enchendo o lago de morte.
— Todos os animais. — Eu estava chocada. — Matou todos eles.
Alces, ursos, felinos, coelhinhos. Nada tinha sido poupado de sua ira.
— Abervoq são ladrões de sangue — sussurrou Shadow. —
Semelhantes aos vampiros, entretanto isso é mais do que sobrevivência para
eles. É um esporte. Eles tentarão superar uns aos outros com o maior número
de mortes. São uma das criaturas mais perigosas que existem no Reino das
Sombras.
— Ótimo — respondi muito suavemente, incapaz de desviar o olhar da
criatura da meia-noite urrando para a lua. — Como os paramos?
Eu podia sentir seu olhar analítico sobre mim, pesado, e tinha que
decidir para qual criatura assustadora olhar. Shadow Beast ganhou.
— Você já descobriu como tocar o Reino das Sombras novamente? —
ele me perguntou.
Balancei a cabeça em silêncio. As palavras estavam em meu cérebro,
mas não consegui falar.
— Então teremos que subjugá-lo e contê-lo em uma das salas da prisão
na biblioteca — disse ele —, até que você aprenda a controlar suas
habilidades.
Eu estava balançando a cabeça, o tempo todo pensando sobre essas
aptidões. Que habilidades eu tinha? Os metamorfos de lobo não deveriam ser
capazes de tocar o Reino das Sombras, então por que eu tinha conseguido? E
eu aprenderia a fazer aquilo novamente, rápido o suficiente para impedir que
toda a Terra fosse consumida?
Shadow caminhou pelo gelo, crescendo em tamanho até ficar maior do
que eu já o tinha visto, e mais uma vez eu estava pensando se havia um limite
em suas mudanças de tamanho. E eu veria isso?
Inky cresceu com ele, a massa de redemoinhos inchando até se tornar
uma nuvem de tempestade e escuridão atrás do próprio senhor das trevas. Do
meu ângulo, os dois juntos eram realmente aterrorizantes. Estranhamente,
nesse momento, eu não tinha medo de Shadow. Estávamos lutando do mesmo
lado, e foi bom ter um aliado. Para variar.

Deslizando pelo gelo depois dele, Shadow, que estava muito à minha
frente, estava felizmente abrindo caminho através dos animais mortos
deixados espalhados pela criatura. O sangue permanecia, pintando o gelo em
uma arte grotesca de faixas vermelhas e pretas. Ficou claro que parte desse
sangue já tinha muitos dias, enquanto outras eram respingos vermelhos
frescos da morte.
Minhas botas passaram através daquilo, e eu sabia que tinha que pegar
o ritmo para chegar ao lado de Shadow. Ficou mais difícil manter o equilíbrio
à medida que o sangue ficava mais espesso e gelado em algumas partes,
transformando tudo no equivalente a um grande cubo de gelo negro.
— Segure a onda aí, cara — eu o chamei, quase caindo sobre a carcaça
de um urso negro. — Se vai precisar da minha ajuda, terá que esperar por
mim.
Shadow não se virou, mas o abervoq sim, parando o que estava
fazendo, para olhar diretamente para a minha alma.
Nosso momento foi quebrado quando ele rugiu, saltando por cima de
Shadow para pousar bem diante de mim. O gelo rachou sob seu peso de
mamute e eu tentei recuar, aterrissando a bunda no gelo encharcado de
sangue.
— Que merda foi isso? — berrei. — Você é assustador como o inferno,
abervoq.
Ele rugiu novamente, não gostando do meu julgamento rápido sobre o
quão horripilante ele era.
— Sem ofensa — adicionei em pânico.
Ele fez uma pausa, inclinando a cabeça para o lado, como se estivesse
tentando decidir o que eu era e qual era o gosto do meu sangue. Não esperei
por essa conclusão, chutando e me conectando ao seu corpo peludo. Não
fazia ideia do que esperar quando aterrissasse. Essa coisa teria substância ou
seria como aquelas sombras que eu tinha tocado pela primeira vez em
Torma?
Meu chute o acertou em cheio, e o abervoq deslizou para longe.
Pulando para ficar de pé, eu fiz a pior coisa possível escorregando em
um pouco de sangue fresco, deslizando através do gelo, e involuntariamente
batendo na criatura-sombra. Por instinto, estendi a mão, envolvendo os
braços em torno dele.
Eu estava realmente dando-lhe um abraço de urso agora?
— Segure-o por um momento — Shadow gritou, rapidamente se
aproximando de nós.
O abervoq inclinou a cabeça para trás e rugiu antes de tentar me sacudir
como se eu fosse água caindo sobre sua pele preta.
— Sem problema. — Eu me engasguei, segurando a vida agora. —
Sem pressa.
Enquanto isso, eu estava xingando-o por dentro. Como eu fora parar
nessa situação? E eu viveria o suficiente para salvar a Terra aquele dia?
Vinte e quatro
Em algum momento, o abervoq deve ter percebido que eu não era uma
de suas presas habituais e que, em vez de correr com medo, eu estava
literalmente pendurada como um coala bebê. Ele cheirava estranhamente
quando enterrei a cabeça em sua pele grossa, era como fumaça, poeira e um
cheiro terroso que eu não conhecia.
Não o deixei escapar apesar do meu medo, e talvez tivesse apenas sorte
por estar em uma posição que me mantinha a salvo de suas garras. Ele
parecia preocupado com a possibilidade de cortar o próprio peito, e assim
seus golpes foram suavizados, deixando-nos nessa estranha dança da morte.
Só haveria um vencedor naquele dia e eu estava determinada a sê-lo.
De jeito nenhum sobrevivera a tudo o que eu tinha passado na minha vida
apenas para ser eliminada por uma criatura que nem deveria existir na Terra.
Quando ele rugiu pela décima quinta vez em tantos segundos, minha
loba começou a uivar, e eu também — o chamado do meu povo tocando o
céu escuro acima de nós.
O abervoq parou de se mover, permanecendo de uma forma nada
natural, e, assim como eu, estava tentando descobrir a próxima coisa horrível
que tinha planejado para mim, até que uma de suas garras veio para cima e
acariciou a parte detrás da minha cabeça. Foi um carinho gentil, quase
amoroso, e eu, tensa, esperando a lâmina afiada entrar.
Como tinha acontecido com as centenas de animais mortos que
atualmente nos cercavam. Quero dizer, não havia realmente nada de fofo
sobre esta criatura e, ainda assim, agora, ele estava... me abraçando.
Levantei a cabeça, finalmente corajosa o suficiente para ver seu rosto,
mas tivemos apenas um segundo para trocarmos olhares antes de Shadow
chegar e arrancar o abervoq de mim. Eu voei também, pousando em uma
pilha de cadáveres fedorentos. O ambiente congelado tinha alterado um
pouco o cheiro da morte, mas nadar entre corpos como esses enviou um odor
pútrido de decadência e excremento a minhas narinas. Perto de vomitar meu
jantar, eu me afastei dos cadáveres, tentando segurar a respiração.

Estava coberta de gelo e sangue, mas pelo menos estava viva.


Focada na luta, observei como era unilateral. Poderíamos dizer que o
abervoq estava tomando uma surra daquelas hoje. Quando tudo não passava
de uma bagunça aos pés de Shadow, aproximei-me.
Olhos escuros e brilhantes olhavam para mim, e por que esse olhar me
deixava tão triste?
— Coloque sua mão sobre a criatura — Shadow ordenou.
Eu olhei para ele.
— Por quê?
Seus dentes apareceram, e tive a impressão de que estavam um pouco
mais afiados e letais que o normal.
— Faça o que mandei.
Foda-se você.
— Claro, não se preocupe. Você deveria ter dito isso em primeiro
lugar.
Sua mandíbula estava se contraindo. O olho dele também, eu tinha
certeza. Parecia que meu trabalho ali estava feito.
Apoiando a mão, pressionei o ombro coberto de peles. Shadow tocou
em mim e na criatura, então senti o zumbido de sua energia, mais forte do
que o normal, correndo através de todos nós.
O abervoq soltou um último grito triste, e então ficou em silêncio. Inky
envolveu a besta, levantando-a para o ar, e Shadow partiu novamente em sua
caminhada superdimensionada. Enquanto isso, eu estava em estado de
choque, tentando descobrir o que tinha acabado de acontecer.
Como ele havia me usado para dominar a criatura? Parecia que ele
poderia ter feito isso sozinho. A besta estava escondendo algo de mim, e eu
senti que minha relação com essas criaturas da sombra não tinha nada a ver
com a capacidade de contê-las. Era outra coisa.
Eu precisava da biblioteca. Ela tinha respostas.
— Raio de sol, mova sua bunda! — Shadow gritou sem se virar.
— Não me chame assim! — gritei de volta, não me movendo um
centímetro, mesmo que eu sentisse que estava prestes a congelar até a morte
parada ali.
Shadow apareceu diante de mim, e como ele se moveu tão rápido?
— Você não gosta de “Raio de Sol”? — perguntou, parecendo
genuinamente curioso.
Esfreguei as mãos no pescoço, imaginando se iria receber chicotadas
pelas mudanças de humor dele.
Balancei a cabeça.
— Meu pai me chamava de “Sunny” por conta do nome da nossa
família e do meu cabelo. Era um apelido amoroso, e eu adorava quando ele o
usava. Mas você... Você é o idiota que me sequestrou, ameaçou minha vida, e
me trata como a uma escrava. Você quer que eu me curve a você, pelo amor
de Deus. Não pode me chamar por apelidos bonitos.
Ele sorriu. Aquela curva de seus lábios era sexy demais e, como eu
raramente o via com algo parecido com um sorriso verdadeiro, isso me
derrubou. Perto de Shadow, era impossível esquecer que ele era um deus;
havia muito mais sobre ele.
Prendi o fôlego quando ele se inclinou mais perto de mim.
— Você é uma criatura brilhante, alegre e irritante — ele falou
calmamente —, a quem não consigo matar mesmo quando quero. Então vai
ser “Raio de Sol” e, se você tem um problema com isso, foda-se.
Fiz caretas.
— Por que você fala como um humano, xingando merdas assim?
Seu sorriso tinha desaparecido, mas seus olhos ainda estavam
divertidos, o vermelho e o ouro vibrantes.
— Vivi entre os humanos muitas vezes ao longo dos tempos, de olho
nos meus lobos. Eu me adaptei a todas as línguas e idades. Você vai
descobrir que sou muito bom em adaptação.
Antes que a resposta inteligente que pairava na ponta da minha língua
pudesse emergir, ele estendeu a mão e me pegou nos braços, arrastando-me
sobre o ombro da mesma maneira que havia feito na primeira vez que me
capturou. Dessa vez, não houve dor ou mal-estar enquanto o calor me cercava
eliminando os calafrios. Antes que eu pudesse protestar por estar sendo
carregada — eu odiava ser tratada assim —, estávamos fora do frio e de volta
ao longo corredor entre mundos.

— Não posso entrar neste reino sem a sua ajuda, posso? — perguntei,
descobrindo a resposta quando ele me colocou de pé.
Sua expressão estava fechada novamente, e qualquer humor que havia
existido em seu olhar antes desapareceu.
— Continue fazendo as perguntas certas...
Ele se virou e foi embora, indo na direção em que Inky e a criatura-
sombra esperavam por ele.
— Raio de Sol e Shadow soa como o nome de um casal bonito! —
gritei atrás dele. — Devemos optar por “Raio de Shadow” ou “Soldow” para
abreviar? — Vi os olhos flamejantes antes que ele desaparecesse de vista,
levando a criatura com ele.
Vinte e cinco
Depois de nossas aventuras congelantes, Shadow desapareceu, e passei
os dias seguintes vasculhando a biblioteca, estudando o painel e varrendo os
malditos andares. Gaster ainda era um rosto familiar, prestativo e sorridente,
quase parecia que estávamos nos tornando verdadeiros amigos. Ele até
começou a almoçar comigo ocasionalmente.
Agora estava ocupado com um novo desastre. Alguém de Brolder tinha
cedido a seus instintos animais, e, quando a fêmea não tinha retribuído, houve
uma pequena briga. Aparentemente, em Brolder, a regra é tocar primeiro,
pedir permissão depois, mas eles eram encorajados a lutar se não estivessem
interessados. Devagar, eu estava aprendendo as regras, e essa foi uma que vi
de perto e pessoalmente nesse dia.
O macho metade cavalo e metade fêmea de urso acabou destruindo
cerca de três fileiras de livros, e agora os duendes estavam freneticamente
devolvendo seu lugar sagrado à ordem, supervisionados por Gaster.
O que me deixou almoçando sozinha.
— Por que você varre?
Levantei a cabeça para ver a garota com cara de anjo que ainda sentava
alguns lugares longe de mim. Depois de uma rápida olhada para ter certeza de
que ela estava falando comigo — mesmo que eu fosse a única varrendo uma
biblioteca autolimpante —, eu finalmente respondi.
— Por ordem do Imbecil do Shadow; quero dizer fera. Shadow Beast.
Seus lábios se contorceram enquanto ela brincava com sua comida. Eu
nunca a tinha visto dar uma mordida de verdade apesar do fato de que nos
sentávamos uma próximo à outra quase todos os dias. Eu também nunca a
tinha visto na biblioteca em si. Ela só aparecia no refeitório e nem sequer
comia.
— Ele está tentando dobrar você.
Eu bufei antes de voltar a comer o delicioso bolo de chocolate na minha
frente.
— Ele não tem ideia do que seria preciso para me dobrar.
Seu olhar ainda estava em mim, o peso de seu intenso poder era de
alguma forma um pouco familiar agora. E parecia um grande avanço que ela
tivesse tido tempo para falar comigo. Mesmo que tivessem sido apenas duas
frases.

Nos dias seguintes, ela não apareceu para almoçar, mas ainda estava na
minha cabeça. O enigma que era a cara de anjo. Talvez, da próxima vez que
ela falasse comigo, eu lhe fizesse algumas perguntas também.
— O mestre pediu que você se juntasse a ele para jantar hoje à noite —
disse Gaster, sorrindo para mim enquanto eu limpava entre uma fileira de
livros.
Pelo menos eu estava limpando, até essa declaração, e então a vassoura
tombou em direção ao chão.
Inky, meu companheiro constante, pegou-a antes que ela caísse no
chão.
— Obrigada, cara — eu disse com um sorriso, e Inky inchou para o seu
tamanho maior, balançando enquanto crescia.
Eu estava passando muito tempo de qualidade com uma bolha de
fumaça ultimamente e estava começando a pensar em Inky como um amigo.
Algo que estava em falta ali.
Eu me virei e forcei um sorriso no rosto.
— Por que ele quer que eu vá jantar? — perguntei ao Gaster.
Ele pareceu surpreso.
— Mera, é uma grande honra jantar com o mestre. Você deveria estar
animada.
Balancei a cabeça.
— E mesmo assim não estou. Posso responder que estou doente? É
aquela época do mês, sabe?
Em conversa de metamorfo, aquela época do mês pode significar um
turno de lua cheia ou eu estava prestes a derramar o revestimento do meu
útero. Qualquer um serviria se isso me tirasse do jantar com Shadow.
Inky se sacudiu, rindo, e eu estreitei os olhos.
— Você não ajuda, amigo. Você adora aquela bola de fogo crescida.
Pela primeira vez, eu gostaria de um aliado no meu lado.
Gaster e Inky continuaram a olhar para mim como se não pudessem,
nem por um decreto, entender por que eu não estava no Time Shadow.
Lutando contra a vontade de bater a mão na testa, eu me virei e saí em
direção ao meu quarto. Entrando no covil da Fera, um sentimento de calma
desceu sobre mim. Havia algo genuinamente reconfortante sobre a biblioteca
de madeira escura, com seu fogo sempre em chamas, infinidade de livros, e
decoração masculina mas não opressora. Como a presença de Shadow era
escassa, eu estava começando a imaginar aquele lugar como meu. Continuava
a pesquisar maneiras de matar o Shadow Beast para que eu pudesse ficar com
o seu covil.
O que posso dizer? Os metamorfos eram possessivos em relação a
qualquer coisa que considerassem deles, e essa biblioteca tinha facilmente
entrado nessa categoria.
Pela primeira vez em dias, o rosto de Torin passou pela minha mente, e
minha loba soltou um grito do profundo da alma, o que fez meus olhos
queimarem. Lobos eram geralmente mais possessivos em relação aos
verdadeiros companheiros, mas Torin e eu estávamos condenados desde o
início.
Pelo menos ficar ocupada ajudou a manter aquele idiota fora da minha
mente e a aliviar as rachaduras na minha alma criadas pela sua rejeição. Parte
de mim ansiava por vê-lo uma última vez — para encerrar ou talvez apenas
por curiosidade. Torin estava enraizado em minha energia, minha alma, e
eliminar esse vínculo ia levar muito tempo. Enquanto isso, Shadow e suas
travessuras eram uma boa distração.
De volta ao meu quarto, olhei para o armário em constante mudança.
Nesse dia, ele estava cheio de vestidos de noite, claramente em antecipação à
requisição de comparecimento ao jantar de Shadow. Estendi a mão sobre o
material sedoso. Havia uma gama linda de cores, e eu teria selecionado
muitas dessas roupas se estivesse escolhendo por conta própria. Não que eu
tivesse tido uma ocasião para precisar de qualquer roupa tão chique.
No começo, instintivamente, fui em direção a um vestido preto
modesto, com um decote delicado e de comprimento na altura do tornozelo.
Olhando para ele brevemente, eu estava prestes a puxá-lo do cabide quando
uma onda de aborrecimento me preencheu. Shadow, mais uma vez, estava
impondo sua vontade a mim. Ele não perguntou se eu queria jantar com ele;
ele apenas exigiu.
Eu não entraria lá como um rato recatado sob o polegar de seu raptor.
Não. Foda-se isso. O vestido preto foi devolvido e em seu lugar escolhi um
vermelho ardente que normalmente colidiria com meu cabelo. Mas, neste
caso, era realmente um encontro ombré perfeito, começando escuro no
decote, mergulhando até o final em um tom morango-claro.
Impecável. Não que eu esperasse menos desse lugar mágico.
Então meu vestido estava arrumado, e eu estava me saindo bem com o
resto da mesma forma. Pela primeira vez em dias, meu cabelo saía de seu
tradicional coque, e eu finalmente estreei um pouco da maquiagem chique em
minhas gavetas. Shadow me queria nesse jantar, e ele ia me ter. Cada
centímetro, porra, preparado e aperfeiçoado.
Era hora de lembrar a Shadow que eu não era o animal de estimação de
ninguém.
Vinte e seis
— Que merda é essa? — rosnei, deixando cair o pincel de maquiagem,
que fez um barulho ao se chocar no banco.
Como outras mulheres faziam essa merda parecer tão fácil? Eu estava
começando a simpatizar com Simone e suas tranças. Cabelo e maquiagem
eram difíceis e, a menos que eu quisesse parecer um palhaço, era melhor
limpar tudo e começar de novo.
Quando terminei, meu rosto estava quase nu, com um pouco de sombra
escura na minha linha de visão, um pouco de máscara de cílios, um toque
rosado nas bochechas, e batom vermelho profundo. Isso teria que servir.
Meu cabelo, porém, estava trabalhando para mim pela primeira vez...
Agradeça ao Shad...
Na verdade, dane-se tudo isso. Eu não iria agradecer a ninguém.
Cachos perfeitos caíram pelas minhas costas enquanto eu escorregava
no vestido vermelho e, quando não consegui fechar o zíper, chamei por Inky,
que estava esperando no meu quarto.
— Inky! Amigo, você pode entrar aqui e ajudar?
Os redemoinhos de fumaça escura deslizaram por baixo da porta e eu
tentei não surtar com o quão assustador parecia. Inky é nosso amigo. Ou
“aminimigo”, pelo menos.
— Não consigo fechar o zíper — eu disse, falando com uma fumaça
como se fosse uma entidade viva e que respira. — Você pode me ajudar?
Calafrios gelados percorreram a pele nua das minhas costas — eu não
poderia usar um sutiã com esse vestido — enquanto Inky se aproximava.
Quando ele me tocou, não houve dor, apenas um pulso elétrico gelado sobre
minha pele. Ele não teve nenhum problema em fechar o zíper, e, assim como
todas as outras roupas dali, o vestido se encaixava como se tivesse sido feito
sob medida.
Uma verdade absoluta sobre meu tempo passado ali — eu não poderia
voltar a comprar minhas roupas da forma normal.
Com um último olhar final para o espelho, sorri para o meu reflexo. Eu
realmente tinha que me vestir melhor mais de uma vez a cada vinte anos. Não
me julguem mal. Jeans, camisas e coques altos eram meu estilo, mas havia
algo especial em ser glamourosa de vez em quando.

Essa noite era a minha noite.


Subindo nos saltos correspondentes, que como as roupas haviam
surgido do nada, eu balancei por um minuto antes de encontrar o equilíbrio.
Quando estava pronta, saí do quarto e entrei no covil. Era apropriado que
uma fera tivesse um "covil" e eu me perguntava se chegaria um ponto em que
eu veria sua verdadeira besta. Shadow tinha mesmo um lado mais sombrio?
Caminhando em direção ao véu, percebi que não fazia ideia de onde
esse jantar estava sendo realizado. O único lugar para comer que eu conhecia
era o refeitório, e eu duvidava que era isso que Shadow queria dizer ao
mandar Gaster exigir minha presença no jantar. Especialmente com o estilo
de roupa que me proporcionaram.
Quando me aproximei da lareira, ouvi uma profunda onda de risos e
quase morri. Minha mão caiu sobre o estômago, tentando acalmar o que
parecia ser mil borboletas em uma rave. Risadas?
Eu nunca tinha ouvido Shadow realmente rir, não de uma maneira
aberta e relaxada como essa. Foi desarmador, sedutor, e completamente
irritante. Quem estava com ele causando esse tipo de felicidade?
Incapaz de me ajudar, a curiosidade martelando no peito, meu
estômago ainda uma bagunça, eu me movi, calcanhares clicando no chão à
medida que eu caminhava. O calor do fogo chegou a mim primeiro, cada um
dos meus sentidos se expandiu para tentar pegar um novo perfume ou energia
não natural.
Mas não havia nada.
Quem estava com Shadow era tão poderoso quanto a própria fera,
capaz de mascarar seu poder com facilidade. Inky se enrolou em torno de
mim de repente, e eu paralisei.
— O quê? — sussurrei. — É perigoso?
Fui libertada de imediato e, antes de ter tempo para questionar a nuvem
de fumaça novamente, Shadow se aproximou de mim. O calor que eu
pensava ser do fogo vinha dele. Sua presença aquecia como um líquido
descendo pela minha espinha para se estabelecer em meus pés em um salto de
quinze centímetros.
O olhar de Shadow era pesado, o ouro em seus olhos era como uma
explosão do sol, combinando com as chamas ardentes de seu poder.

— Você está atrasada — disse ele. Como duas palavras poderiam soar
tão sinistras, eu não tinha ideia. — Nós não gostamos de ficar esperando.
Colei meu sorriso mais largo no rosto, rezando para que o batom
vermelho não estivesse manchando meus dentes.
— Uma mulher nunca se atrasa, Shadow. Chegamos precisamente
quando queremos.
Obrigada, personagem fictício, pela citação perfeita mais uma vez —
esperei anos para usar essa. Shadow balançou a cabeça como se não pudesse
parar a vida dele para descobrir o que diabos eu estava falando.
Algo tão comum entre nós.
— Espere, nós? — estourei. — Quem era nós?
Seus dentes brilharam na luz baixa do fogo que estava próximo, e eu
tive a nítida sensação de que estava prestes a ser comida pelo lobo grande e
mau.
— É hora de descobrir o que você é, Raio de Sol. Fora o fato de ser um
pé no saco, claro.
Cruzei os braços.
— Olha, não sei o que fazer. Ser um pé no saco é o meu chamado na
vida. Eu nunca vou parar, nem mesmo para você.
Seus olhos desceram até onde meus braços estavam firmemente presos,
sob meus peitos livres. Essa posição os levava a novos patamares, e, em um
vestido decotado como esse, meus mamilos estavam prestes a saudar o
mundo.
Nós dois olhamos para a exibição impressionante e, com toda a
honestidade, eu não senti necessidade de ser tímida e me cobrir. Meu corpo
era a única coisa que eu tinha, e eu usaria esse filho da puta com orgulho. Ele
me manteve forte e sempre seguindo em frente, e eu era grata todos os dias
por ainda estar viva.
— Então, vai me levar para jantar? — eu finalmente disse, cortando a
tensão no ar.
O foco da fera voltou ao meu rosto, sua mandíbula um pouco mais
rígida, seus olhos ardentes. Ambos provavelmente não tinham nada a ver com
meus peitos e tudo a ver com o fato de ele estar irritado com a minha
existência. Não era como se ele já tivesse me notado de uma forma sexual
antes, Shadow me tratava mais como se eu fosse um animal de estimação que
ele tinha que manter temporariamente vivo.
Isso ficou ainda mais óbvio quando ele estalou os dedos para eu o
seguir enquanto caminhava com Inky em direção aos sofás. Sofás que não
estavam vazios.
Engolindo o choque, parei à beira do brilho das chamas, tentando
absorver todos eles. Eu esperava que houvesse um convidado — já que ele
disse nós —, mas cinco homens estavam sentados ao redor do fogo,
conversando casualmente, taças de cristal cheias de um líquido vermelho-
escuro nas mãos.
Havia uma cadência baixa e hipnótica enchendo o ar enquanto falavam,
e eu não conseguia entender uma palavra. Sua linguagem lírica rodopiou pelo
ambiente em cadências estranhas, e eu estava desesperada para entender as
palavras. Ao contrário da Biblioteca do Conhecimento, porém, ali no covil
não havia nenhum sistema de tradução mágica. Uma verdadeira vergonha,
porque o que eles estavam discutindo os mantinha superanimados.
Mesmo assim, o simples ato de olhar para cada um desses seres
verdadeiramente espetaculares da espécie masculina foi talvez mais do que
suficiente como entretenimento para a noite.
— Ela está aqui — disse Shadow e, quase de imediato, os outros se
calaram e viraram em nossa direção. — Esta é Mera, a metamorfo de que eu
estava falando.
Cinco conjuntos de olhos caíram sobre mim e, em um corpo menos
confiante, um deles teria derretido no chão com o intenso nível de poder e
apelo sexual dentro de uma pequena área. Ser recatada não era meu estilo,
então decidi continuar normalmente.
— Onde Shadow tem escondido vocês cinco? — eu disse,
descaradamente admirando cada um deles...
Espera... Cinco? Shadow havia dito que confiava em cinco seres.
Parecia que eu estava prestes a conhecer os amigos dele. Sorte minha.
Todos eles se levantaram e, à medida que se aproximavam, Shadow se
grudava mais as minhas costas. Eu não tinha ideia de por que ele estava tão
perto de mim, mas estava muito distraída para me preocupar com seu
comportamento estranho.
O primeiro a se aproximar foi um ser alto, de mais de dois metros de
altura, vestido com longos mantos prateados, adornados com o que pareciam
joias reais de cor e tamanho variados. Ele tinha cabelo na altura dos ombros,
tão brancos quanto gelo, de maneira que se, a neve caísse sobre os fios, se
misturaria.
Na verdade ele era, em sua totalidade, construído em tons de prata e
luz, com olhos prateados — mais alongados e parecidos com os dos gatos do
que com os de um humano — brilhando sem piscar. Também tinha orelhas
ligeiramente pontiagudas, as pontas afiladas saindo dos lados de seu cabelo
parcialmente trançado.
— Eu sou Len das Terras de Prata — disse ele em um português
perfeito, estendendo a mão para mim no gesto humano de apertar as mãos.
No momento em que nos tocamos, um formigamento gelado correu pela
minha pele, seu poder surgindo em mim. Não doeu e não foi invasivo o
suficiente para eu me afastar, mas parecia mais do que uma mera troca de
energia.
— Terras de Prata — repeti, minha mão permanecendo firme em seu
aperto.
Ele sorriu, e foi como imaginei que um arcanjo parecia antes de cortar a
cabeça de alguém em uma busca por vingança.
— Sim, eu sou um príncipe da província de prata em Faerie.
Ah, certo.
Decidi manter uma contagem.
Amigo número 1: Len, o príncipe fae prateado.
O olhar de Len estava cheio de travessuras e diversão quando ele me
libertou, e eu não perdi a forma como o desviou direto para Shadow. Len
balançou a cabeça sugestivamente, e eu supus que era o seu sinal, para a fera,
de que não podia me ler, também.
Bom.
O próximo era o oposto de Len. Ainda mais alto, era largo e poderoso
em todos os sentidos, vestido com calças de couro pretas e uma camisa de
manga comprida branca. Seu cabelo escuro era quase raspado a zero em um
estilo fácil de manejar.
Quando ele se aproximou de mim, o azul-escuro muito profundo de
seus olhos permaneceu preso no meu rosto, como se ele estivesse tentando
me ler de longe, e passei muito tempo examinando-o, porque era bonito
demais de se olhar.
Quero dizer, deuses, ele tinha cílios que se podiam ver do espaço
sideral.
— Eu sou Reece, das Terras do Deserto.
Ele não me tocou como Len tinha feito, mas ficou perto o suficiente
para que nós nos tocássemos. Muito perto para estranhos, mas por alguma
razão não me incomodou. Inclinando a cabeça para trás, tentei não soar sem
fôlego.
— Terras do Deserto, hein? Deixe-me adivinhar... Você é um príncipe
também?
Reece não sorriu. Algo me disse que esse cara sorria menos que
Shadow, e por que eu estava tão interessada nesses idiotas sombrios e
danificados?
— Ele é uma divindade — Len apareceu de onde tinha se sentado
novamente. — Compete com o nosso Shadow no poder. E pela ninhada.
Meus lábios se contorceram com isso, e eu já tinha Len encaixado na
categoria de amigo espertinho. Cada grupo tinha um, o palhaço. E embora
isso não se encaixasse em tudo com sua aparência real, moldava-se
perfeitamente à sua personalidade.
Amigo número 2: Reece, a divindade do deserto, era mais difícil de
categorizar, mas uma suspeita se esgueirava em minha mente dizendo que ele
era o músculo.
O próximo a se aproximar tinha cerca de um metro e oitenta de altura,
com o físico mais definido que eu já tinha visto em um homem. Fácil de
dizer, já que ele estava usando o equivalente a cuecas boxer masculinas — e
nada mais.
— Eu sou Alstair — disse ele, sua voz um sussurro através dos meus
sentidos, como uma brisa casual em um dia de verão.
Coloquei minha mão na dele, e foi legal de uma maneira diferente da
do Len. Reconfortante, fazendo minha cabeça girar quando me lembrava dos
dias no riacho.
— Você é de Karn — soprei.
Alstair confirmou com a cabeça.
— Sim.
Balancei a minha também.
— Você não se parece nada com os habitantes que eu vi do seu mundo.
Alstair estava longe das figuras andróginas que eu tinha observado
anteriormente do mundo da água. E, embora sua pele tivesse um leve tom
azul, não era translúcida como a de seus irmãos. Seu cabelo era a minha parte
favorita, apesar de ser um emaranhado de cachos verdes e azuis que surgiam
em sua cabeça. Eles combinavam com seus olhos, que eram quase
completamente como água, com um ponto minúsculo de pupila no centro.
— Sou um guerreiro da minha espécie — disse Alstair baixinho, e mais
uma vez o simples ato de falar, vindo dele, era calmante. — Uma raça rara
que nasce nesta posição, encarregada de manter nosso povo seguro.
Amigo número 3: Alstair, o guerreiro da água.
O frio e calmo neste grupo cabeça quente.
— É muito bom conhecê-lo — eu disse baixinho, adotando seus modos
inconscientemente.
— E eu a você — ele devolveu antes de retornar ao seu lugar perto de
Len.
Reece ainda não tinha voltado aos assentos e, em vez disso,
permaneceu ao lado de Shadow, os dois gigantes na sala, de pé, nas minhas
costas, certificando-se de que eu em nenhum momento me sentisse
completamente relaxada.
Eu podia sentir os olhos de Shadow em mim, observando e avaliando
como cada um de seus amigos poderosos se aproximava. Fazia sentido que
esses fossem as pessoas de confiança da fera, cada um deles forte e poderoso.
Seus iguais... ou quase.
O penúltimo era definitivamente um dos Honor Meadows, e sua
aparência respondeu à minha pergunta acerca da existência de figuras
masculinas lá. Assim como as fêmeas do seu mundo, esse macho era uma
visão a ser observada.
Asas de puro ouro nas costas, ele usava um simples par de calças
pretas, deixando o resto de sua pele dourada à mostra. Seus longos cabelos
castanho-mel, em uma trança espessa de estilo complexo, entrelaçavam-se de
um jeito que nenhum humano conseguiria fazer. E seus olhos eram tão
escuros, que quase parecia que íris e pupila eram uma única coisa.
Eu sou Galleli.
Essas três palavras caíram em minha cabeça enquanto eu olhava em
volta freneticamente, tentando descobrir o que diabos estava acontecendo.
— Galli nunca fala em voz alta — disse Len, o mestre de cerimônias
não oficial para esse encontro de apresentações. — Você vai se acostumar à
voz dele na sua cabeça.
Engoli em seco.
— Você pode ler meus pensamentos?
Ele balançou a cabeça.
A não ser que me permita ter acesso à sua mente. Estou simplesmente
enviando minhas palavras da maneira mais confortável para mim.
Não sei se era confortável para mim, mas eu não ia dizer isso a ele.
— Quais são suas habilidades especiais em Honor Meadows?
Parecia que todos os amigos de Shadow ocupavam uma posição de
poder e adoração em seu respectivo mundo, e eu tinha certeza de que esse
cara não era diferente.
Eu sou um dos Escolhidos. Somos dotados de poder e habilidades
extras, considerados oráculos de uma espécie. Imagens do futuro e do
passado vêm aleatoriamente para nós.
— Como um médium?
Aqueles olhos negros se aborreceram.
Nada parecido com um médium.
Ok, então.
Amigo número 4: Galleli, não é um médium.
Ele se virou abruptamente e se afastou, e agora foi colocado
firmemente no local de falante reticente. De mais de uma maneira.
E, por mais espetacular que ele fosse para olhar, também me fez sentir
desconfortável de uma forma que os outros que vieram antes dele não tinham
feito. Havia uma fúria reprimida fervendo abaixo da superfície, e ela poderia
irromper a qualquer momento, então decidi que era necessário manter
distância daquele em particular.
O último do grupo de amigos se aproximou e, quando o fez, fiquei
surpresa ao ver que ele era o mais clássico humano em sua beleza. Pele de
bronze, olhos verdes marcantes, cabelos loiros despenteados, mais curtos nas
laterais, com um pouco mais de comprimento em cima. Mas, enquanto ele
parecia um humano geneticamente abençoado, sua energia estava longe de
ser normal.
— Sou Lucien.
No momento em que ele tocou minha mão, um choque de eletricidade
gelada me atingiu, e eu me engasguei. Isso o fez sorrir, e eu tive um
vislumbre de incisivos afiados antes que eles desaparecessem de vista
novamente.
— Valdor — eu arrisquei.
Ele acenou com a cabeça.
— Claro que sim. É bom ver que você é inteligente e incrivelmente
bonita. — Ele se inclinou mais perto. — Eu sou um mestre vampiro de
Valdor, e acho que você deveria se livrar da fera mal-humorada e fugir
comigo. Eu a encheria de joias e mais tesouros do que você poderia precisar.
Amigo número 5: Lucien, o mestre vampiro.
O galanteador — eu estava esperando por ele.
— Vamos lá — ele disse de uma maneira encantadora, trazendo seu
rosto para perto do meu, inclinando a cabeça para pousar um beijo em minha
mão.
— Chega — Shadow exigiu interrompendo pela primeira vez. — Você
está aqui para me ajudar a descobrir o que ela é, não para a seduzir.
Bufei.
— E eu pensei que era difícil perder minha virgindade em Torma.
Aparentemente, vai ser ainda mais difícil aqui...
Houve um silêncio mortal enquanto eu me encolhia, seis conjuntos de
olhos fixos em mim, alguns arregalados de choque, outros com interesse.
— Você está tentando me dizer... — Shadow começou. — Que você é
intocada?
As risadas saíram de mim antes que eu pudesse pará-las.
— Definitivamente não. Eu me toquei mais vezes do que posso contar.
Mais silêncio, embora houvesse alguns sorrisos ao redor da sala agora
— Len e Lucien em particular.
Shadow se inclinou ficando mais perto.
— Não finja que não entendeu. Você sabe o que estou perguntando...
Você nunca foi tocada por outra pessoa?
Uau, esse não era o tipo de conversa que eu esperava ter em uma sala
cheia de homens poderosos. Como não era da conta deles, passei por
Shadow, tomando cuidado para não o tocar antes de cair em um sofá macio.
— É melhor um de vocês, idiotas, buscar comida para mim — eu disse
rabugenta. — Já que isso deveria ser um jantar.
Houve risos, embora Reece e Shadow, que ainda estavam fazendo sua
“coisa executor estoico”, permanecessem em silêncio.
— Ela realmente não nos teme — disse Len, balançando a cabeça. Ele
inclinou-se para a frente em seu assento. — Por que você não tem medo de
nós, cordeirinho?
Eu imitei seus movimentos, cruzando as pernas enquanto me inclinava
para a frente, sem dúvida mostrando a todos muito mais decote do que eles
esperavam ver naquela noite.
— Fui torturada por homens poderosos a minha vida toda. Crescendo
no meu bando como uma marginal, há muito pouco que não foi infligido a
mim além do estupro. Em algum momento tive que parar de temer minha
morte e começar a viver por cada dia que conseguia permanecer na Terra. Eu
escolho abraçar meu poder e força; e nunca mostrar meu medo. Essa é quem
eu sou agora, e não vou mudar por ninguém. Nem mesmo por vocês, seis
filhos da puta assustadores.
Len não estava mais sorrindo. Em vez disso, ele estava me encarando
como se eu tivesse mostrando a minha bunda nua, balançando pompons e
fazendo uma festa.
Reece deu seu primeiro passo do lado de Shadow, observando-me de
perto de uma maneira que não tinha feito até esse momento. Ele não disse
nada e, enquanto ainda parecia um pouco chateado, grande parte da raiva
tensa tinha deixado sua mandíbula. Minhas palavras haviam descongelado
um pouco o frio dele. Muito pouco.
— Você não precisa nos temer — disse Alstair calmamente, chamando
minha atenção, que estava em Reece.
Shadow resmungou.
— Fale por si mesmo. Ainda estou tentando descobrir se o melhor é
matá-la e esquecer a Terra. Me pouparia um monte de problemas.
Mostrei o dedo para ele, por que não, certo?
Seus olhos se escureceram, e ele veio em minha direção, crescendo em
tamanho.
— Ah, porra. Ela já era agora. — Lucien gemeu. — Shadow vai virar a
fera incontrolável e todos nós vamos ter que pegar os pedaços. Deixe-a em
paz, cara — ele gritou. — Ela é linda demais para ficar em pedacinhos.
— Silêncio — Reece exigiu. — Esta é a propriedade de Shadow, e ele
vai escolher o que fazer com ela.
Então mostrei o dedo para ele também, porque, foda-se, cara.
Len estava histérico nesse momento, metade fora de sua cadeira
enquanto segurava o estômago e ria.
— Foda-se. — Ele bufou. — Espero que Shadow traga para casa mais
humanos perdidos para brincarmos. Esta é a noite mais interessante que eu
tive em anos.
— Chega! — Shadow resmungou, e era quase impossível entendê-lo
com tanta fúria em suas palavras. — Caiam fora. Agora.
Seus amigos não se importaram com sua mudança de humor,
demorando para se levantarem e terminando a bebida. Metade deles acenou
ou disse adeus e deixou o covil. A outra metade provavelmente pensou que
Shadow iria me matar essa noite e que nunca mais me veriam.
E poderiam estar certos.
Vinte e sete
Uma vez que a sala estava quase vazia, notei que Reece continuava ali,
parado no que eu apelidei de seu visual. Braços cruzados, sem expressão,
olhos me despindo até o âmago.
Ele era definitivamente Shadow, o segundo.
— Está tudo bem, Reece — Shadow, o primeiro, resmungou. — Eu só
preciso colocar uma metamorfo de lobo em seu lugar.
Shadow um e dois trocaram um breve olhar, e ficou claro que já
existiam anos suficientes de amizade entre eles para uma comunicação sem
palavras.
Reece dirigiu-me um olhar solidário, mas não disse mais nada enquanto
saía da sala.
Sozinha com Shadow, tudo parecia ter um toque mais assustador; a fera
parecia estar lutando uma batalha interna.
— Por que esse vestido? — ele finalmente cuspiu as palavras. —
Vermelho é um gatilho para mim. Em muitos aspectos.
Ótimo. Olhei para os cachos longos e vermelhos que caíam sobre meus
ombros.
— Isso não estava no livro de regras — eu disse a ele. — Você deve
imprimir uma cópia para a próxima pessoa que sequestrar.
— Você obedece a regras? — perguntou ele, um pouco da fúria e raiva
em sua voz desaparecendo.
Eu dei de ombros.
— Só se eu concordar com elas. Não é como se eu estivesse tentando
ser completamente obstinada sem motivo, mas tenho uma mente própria, e eu
escolho usá-la.
Ele estava em minha frente num piscar de olhos, muito rápido para que
eu antecipasse a morte que estava chegando. Apesar da minha ousadia, tremi
enquanto ele se inclinava para passar as mãos sobre meu corpo sem me tocar.
Eu não conseguia respirar, ou pensar, ou mesmo falar enquanto seu calor me
acariciava deslizando através da minha pele nua e abaixo do meu vestido. Os
bicos dos meus mamilos estavam tão duros agora que só a sensação da seda
contra eles me fez engolir um gemido.

Tinha que haver algo fundamentalmente errado comigo, com uma parte
de mim que, mesmo quando estava tremendo de medo, antecipando meu
último suspiro, ficava excitada pela brutalidade de uma fera. O gosto do seu
poder na minha língua era inebriante, minhas pernas se apertaram quando a
necessidade me preencheu.
A loba choramingou no meu peito, e foi um eco fantasmagórico de
como ela tinha reagido a Torin. Shadow era sedutor para nós duas.
— Algo em sua mente, Raio de Sol? — perguntou ele, outra onda de
calor rolando através de mim.
— Foda-se. Você — consegui cuspir, felizmente não soando tão
excitada quanto eu estava.
Sua risada era escura e sem graça.
— Você não faz isso, aparentemente, e talvez, apenas talvez, eu tenha
descoberto exatamente como fazê-la entrar na linha.
Sim, não. Nunca acontecera. Quero dizer, eu gostava de pau — em
teoria — tanto quanto qualquer mulher heterossexual, mas não seria aquela
garota. Não nesse dia.
Foi preciso cada grama de força de vontade que eu possuía para me
afastar.
— Você nunca vai me domar assim — eu disse a ele, orgulhosa de mim
mesma por não deixar uma única nota de hesitação soar em minhas palavras.
— Nunca vou me dobrar.
Me curvar, sim. Mas dobrar era uma história totalmente diferente.
Eu saí então, correndo o mais rápido que pude em um vestido e com
saltos. Pela primeira vez, Inky não vinha bem atrás de mim, e eu estava grata
por ter uma noite sozinha. Precisava de um momento longe deles. Longe
daquela intensidade.
Quando cheguei ao meu quarto, bati a porta atrás de mim, inclinando-
me para trás e respirando profundamente. Alguns minutos depois, percebi
que Shadow não viria atrás de mim, e isso tinha que significar uma coisa: o
convite tinha sido um teste. Mais um.
Eu não podia dizer se eu tinha falhado ou não, e, mesmo quando seu
poder caiu como uma cascata sobre minha pele nua e me fez querer escalar
aquela fera e foder com ele até gritar, eu estava orgulhosa de mim mesma por
dizer não.

O equilíbrio de poder já estava muito distorcido entre nós, e, se em


algum momento conseguisse me dominar completamente, ele se tornaria meu
dono de maneiras que eu não poderia permitir.
Em vez disso, eu faria o que qualquer mulher forte, proativa e excitada
deveria fazer: descansar essa noite e no dia seguinte encontrar alguém para
tirar minha virgindade. Tirando o poder de Shadow completamente.
Ele cometera um grande erro usando seu domínio contra mim dessa
forma. Acordara uma necessidade sombria e perigosa que eu estava
suprimindo por muito tempo.
Jogando-me no chuveiro, rasguei o vestido usando minha força de
metamorfo quando não consegui alcançar o zíper. Foi uma pena arruinar algo
tão bonito, mas ele já tinha sido arruinado pelos eventos dessa noite de
qualquer maneira, e eu precisava tirá-lo.
Quando já estava debaixo d'água, abri ao máximo, até o ponto de
congelar, deixando a cabeça apoiada contra a parede. O tremor em meus
membros não tinha diminuído; o fogo no meu interior queimava mais quente
do que nunca, e eu me perguntei se talvez estivesse perto da lua cheia na
Terra. Meu sangue nunca tinha fervido assim antes.
Girando-me para colocar as costas contra a parede, eu lentamente
deslizei para me sentar no chão da pequena cabine de chuveiro. A água
gelada era como fogo contra minha pele excessivamente sensível, e meu
corpo doía, um forte tremor batendo constantemente entre minhas coxas.
Fechando os olhos, trinquei os dentes.
Minha mão direita deslizou pelos meus seios, brincando com os
mamilos; suavemente no início, até que depois foi ficando mais forte. A dor
foi um alívio bem-vindo e um gemido escapou. Ao mesmo tempo, minha
outra mão patinou entre as coxas, deslizando para o líquido que se acumulava
lá.
No primeiro toque dos meus dedos no clitóris, gemi novamente,
jogando a cabeça para trás contra a parede, enquanto trabalhava sobre a
protuberância apertada em meu centro. Fosse pela lua cheia ou por Shadow
Beast, o fato era que eu estava completamente perdida em prazer, e se fosse
ele que estivesse me tocando agora, eu poderia ter lhe prometido qualquer
coisa.

— Puta que pariu — solucei, meus dedos se movendo mais rápido


enquanto eu deslizava dentro da minha boceta.
O rosto de Shadow passou pela minha cabeça; a maneira como ele
havia mantido o olhar dominante fixado em mim a noite toda, durante cada
uma das apresentações de seus amigos. Tão sombriamente sedutor, o tempo
todo me despindo com os olhos, enxergando através do meu vestido...
Eu gritei quando o orgasmo me dominou com tanta força que, enquanto
tentava sugar ar suficiente para não morrer, quase me engasguei com a água
escorrendo pelo meu rosto.
O prazer durou muito mais do que o normal e, quando terminei, eu me
senti fodida de mais de uma maneira. Principalmente pelo fato de que não
podia deixar isso acontecer novamente.
Nunca mais meus orgasmos teriam algo a ver com Shadow.
Vinte e oito
— Vejo que continua varrendo.
Essa foi a terceira vez que Rosto de Anjo falou diretamente comigo.
Pela primeira vez, eu estava mal-humorada, minha loba arranhava meu peito
com a necessidade de se transformar pressionando contra mim.
Resmunguei de volta.
— Vejo que ainda está mexendo na comida em seu prato sem nunca
colocar nada na boca.
Ela sorriu, deixando cair o pão que estava batendo contra o prato.
— Não precisamos consumir comida no meu mundo, mas eu amo o
perfume, então me sento aqui para apreciá-lo o máximo que posso.
Olhei para ela.
— Você não come?
Ela riu da incredulidade óbvia no meu tom.
— Nós não comemos comida, não. Isso não é o que sustenta minha
raça, mas cheira tão sedutor.
Bati as mãos na mesa.
— Você está brincando comigo?
Notei o divertimento dançando através de seus olhos deslumbrantes.
— Os humanos sempre foram meus favoritos quando se trata de uma
deliciosa troca de frases. — Ela me encarava de perto. — E você... Você é
especial.
Eu funguei.
— Confie em mim, não sou especial. Estou apenas animada. Todas
vocês, criaturas sobrenaturais, são tão perfeitinhas que quando alguém que
realmente gosta da vida normal aparece, vocês acham que é uma criatura
incomum que precisa ser estudada.
Angel balançou a cabeça.
— Não, é mais do que isso. Desde a primeira vez que se sentou perto
de mim, sem nem perceber que ninguém se senta comigo a minha mesa, eu
senti um zumbido de energia vindo de você. Minha curiosidade em relação a
você cresceu a cada almoço que compartilhamos...
Minha loba escolheu aquele momento para avançar, enviando-me para
uma meio mudança antes que eu a colocasse sob controle. Fiquei de pé e
agarrei a borda da mesa.
— Não quero ser rude, porque estou adorando nosso recente momento
de união, mas você sabe de um lugar onde eu posso me transformar e correr?
Ela não perdeu um segundo.
— Eu sei sim, na verdade... Você gostaria de visitar minha casa?
Fiquei pálida.
— Tem certeza? Quero dizer... Fui avisada para não sair daqui.
Ela estava de pé também, uma cabeça acima de mim, parecendo a
deusa acima de todas as deusas. Nesse momento qualquer um se sentiria
inseguro se não estivesse lutando contra sua alma de lobo.
— Você está com medo, filhote? — perguntou.
Outro estremecimento e onda de energia.
— Não, não. Só... me leve para...
Não era necessário mais palavras. Angel enrolou a mão dela em volta
da minha, e então estávamos na biblioteca, diante da bela porta dos prados.
Inky, que deve ter estado por perto mesmo que eu não o tivesse visto no
refeitório, inchou em uma enorme névoa para tentar nos bloquear.
Angel o afastou.
— Eu vou cuidar dela. Você sabe que não é bem-vindo em Honor
Meadows, e não preciso lembrá-lo de que não é do seu interesse ficar no meu
caminho.
Inky começou a acender, sinapses visíveis dentro da fumaça, mas
Angel não mostrou medo. Ela apenas o colocou de lado.
— Voltaremos em breve— disse ela, abrindo a porta.
A luz mais brilhante que eu já tinha visto me fez fechar os olhos
brevemente, e eu me perguntava como essa tinha se transformado em minha
vida agora. Prestes a passar por uma porta aleatória em um novo mundo, com
um ser que tinha feito pouco mais do que grunhir e me encarar por algumas
semanas.
Mas nada disso importava. Esse foi meu primeiro gosto de liberdade
em muito tempo, e minha loba e eu estávamos totalmente prontas para isso.
Honor Meadows tinha uma sensação calmante no ar, a luz e o calor me
lembrando do final do verão em Torma. Cheirava bem também, dando-me
vibrações de biscoitos da vovó, grama fresca e chuva persistente no
horizonte. Talvez o negócio dessa terra fosse fornecer o ambiente perfeito
para se sentir em paz. Porque era exatamente o que estava acontecendo.
— Esta é a minha casa — disse Angel, acenando com as mãos para
abranger os arredores imaculados, que incluíam um longo campo pontilhado
com flores em tons de ouro. — Você pode correr aqui com sua loba — disse
ela, com o rosto mais relaxado do que eu já tinha visto. — Eu sou a última da
minha linhagem familiar e voarei acima de você para mantê-la segura.
Por instinto, eu a abracei. Mais uma vez, tinha que haver algo errado
comigo para continuar fazendo isso, mas felizmente o poder de Angel não me
fez colidir com uma nova realidade. Nossas energias se encontraram e se
misturaram, e eu senti um arrepio na pele. Foi estimulante e reconfortante ao
mesmo tempo.
Quando recuei, esperei que sua carranca voltasse, mas, em vez disso,
ela olhou para mim com admiração.
— Incomum — murmurou, mas era muito tarde para perguntar mais,
pois eu perdia a batalha para a minha fera.
Um uivo gigante crescia preso em minha garganta até que joguei a
cabeça para trás e me liberei para o mundo. Só houve tempo para tirar minhas
roupas antes que a mudança quebrasse meus ossos e me reconstruísse como
uma loba. Uma muito animada, que se sentia em casa nessa terra, saltando e
uivando enquanto se batia contra as pernas de Angel de uma maneira
tipicamente canina.
Saímos correndo pela luz, ar fresco. Era obviamente diferente da Terra;
poderíamos até nos mover mais rápido, com muito menos fadiga. Quando
saltei e subi muito alto pela segunda vez, Angel riu.
— Temos menos gravidade aqui — ela gritou de cima, suas asas se
expandiram completamente enquanto ela ficava comigo. — Corra como o
vento, lobo corredor.
Eu o fiz, e foi a melhor coisa que eu tive em... desde que eu me
lembrava. Só eu, minha loba, e um anjo da guarda lá em cima. Eu nunca
cheguei ao fim de seu campo de grama dourada, e nunca vi nada mais nessa
terra, nem mesmo uma mancha no céu de açafrão.
Quando estávamos exaustas e a necessidade de correr tinha
desaparecido, caímos, descansando a cabeça sobre as patas, permitindo que a
natureza dupla de nossa mente flutuasse enquanto gozávamos dessa
temperatura perfeita. Depois de um cochilo curto, acordamos e encontramos
Angel sentada por perto, olhando para o horizonte. Como sempre, ela estava
indescritivelmente linda e... um pouco triste.
— Pronta para voltar para casa, lobinha? — perguntou ela quando
levantei a cabeça. — A fera deve estar furiosa e por isso provavelmente seja
melhor não a irritar mais.
Assenti com a cabeça, voltando a ficar de pé e seguindo-a enquanto ela
abria uma porta para a biblioteca. Como Shadow, aqueles com acesso
pareciam ser capazes de abrir uma porta onde quisessem.
Angel não me seguiu, e olhei para trás para encontrá-la emoldurada à
porta, o brilho de Honor Meadows atrás dela.
— Vejo você no almoço — disse ela, e então a porta estava firmemente
fechada.
Sem nenhuma vontade de voltar à minha forma humana — e tínhamos
esquecido nossas roupas de qualquer maneira —, decidi dar a minha loba
mais tempo para esticar as pernas. Nós nos recostamos através das
prateleiras, indo onde o instinto permitia, e foi bom até que avistei Inky lá na
frente, inchado, quase do tamanho de uma parede. Ainda estava no "modo
irritado" e eu tinha uma leve suspeita de que deveria ficar quieta por um
minuto. Dar a ele e Shadow tempo para se acalmarem.
Abaixando a cabeça, passei pelo primeiro conjunto de prateleiras,
seguindo a parede até que voltei para o véu da frente, saindo para o corredor
branco. Minha loba estava um pouco no controle no momento, e tinha
vontade de voltar para Torin... Para aquele a quem estávamos ligadas pelo
destino.
Eu, por outro lado, não tinha tal desejo, mas a loba estava liderando o
caminho.
Antes de chegarmos ao ponto onde era possível ir para a Terra, uma
porta branca nos distraiu. Ou a minha loba, mais precisamente, já que eu
estava realmente confusa sobre o que estávamos fazendo.
Ela pressionou o nariz contra a porta, que sem qualquer esforço se
abriu. Quando entramos, estava escuro, apenas a luz da porta salpicando para
dentro, mas não o suficiente para eu ver mais do que um par de pés.
Deveríamos ir embora.
Meu desejo mental foi ignorado pela vadia teimosa que era minha loba
e, quando ela entrou mais, deixei minha própria curiosidade criar asas —
parecia que eu realmente não queria impedi-la, de qualquer maneira.

À medida que entrávamos mais fundo na sala, a escuridão nos encobria


completamente, e eu sabia que não estávamos sozinhas. Senti algo pairando
fora de vista, e foi só quando um urro familiar quebrou o silêncio que tudo
ficou surpreendentemente claro.
O abervoq. A criatura das sombras. Minha loba nos levou direto para a
prisão, e ela agora estava se preparando para ele, cabeça jogada para trás
enquanto uivava em troca. Que porra é essa?
Nossos olhos se ajustaram o suficiente para que a grande forma
entrasse em meu campo de visão, seus membros contidos por correntes
grossas. E, ainda assim, a loba se aproximou sem hesitação, então, para o
meu choque, ela se deitou contra a pele da criatura. O abervoq soltou um
último urro, mas não nos arranhou até a morte. Em vez disso, uma pata
envolta ao nosso redor quase protetoramente, e, mais uma vez a salvo da ira
de Shadow Beast, dormimos.
Vinte e nove
Os rugidos me acordaram.
Eu não estava mais na minha forma de lobo, minha desorientação
durou alguns segundos antes de as memórias voltarem: correndo em Honor
Meadows com Angel, fugindo de Inky, e depois me escondendo...
Eu me esforcei para me levantar, ou pelo menos tentei, mas havia um
braço peludo pesado sobre mim, segurando-me no lugar. O abervoq! Porra.
Que merda. Porra! O que diabos minha loba estava pensando ao escapar
direto para essa cela e... Como eu não estava morta?
O braço se mexeu, levantando-se o suficiente para que eu pudesse rolar
debaixo dele. Tropeçando no caminho de volta para a porta, finalmente
encontrei a parede, tateando através dela para a saída. Quando abri, a luz
enchendo o pequeno espaço de novo, soltei um grito baixo no instante em
que Shadow saía das sombras e tornava sua presença conhecida.
— Oh, olá — eu comecei a falar, meus nervos explodindo. — O que
você está fazendo aqui?
Seu corpo vibrou — não havia outra maneira de descrevê-lo — e uma
nova iluminação encheu a sala enquanto as chamas lambiam sua pele na
forma de um lobo. Oh, meu metamorfo. Pisquei, incapaz de arrancar os olhos
do lobo em chamas que Shadow usava quase como uma armadura por cima
de seu verdadeiro eu.
— Lobo demônio do fogo — soprei.
Eu já tinha ouvido os rumores sobre Shadow Beast se transformando
em um demônio do fogo, mas pensava que eram histórias exageradas. Havia
tantos contos passados sobre a fera, alguns dizendo que ele tinha três metros
de altura, outros, que ele comia a alma dos mortos. Falavam de seus olhos de
fogo e garras afiadas. Uma história se misturava a outra até que se tornou
difícil saber qual era verdade.
Considerando o quão próximas algumas delas estavam da realidade,
alguém deveria questionar se a teoria de que ele comia a alma também era.
— Você parece chateado — eu disse estupidamente.
Eufemismo do ano ali, mas eu não tinha ideia do que dizer para
acalmar a situação.

Silêncio.
Nem uma palavra sequer.
Se as marcas em sua mandíbula eram alguma indicação — oh, e aquela
fera demoníaca flamejante —, ele estava muito chateado para falar.
— Minha loba meio que levou a melhor sobre mim — acrescentei,
acalmando minhas palavras mesmo quando meu próprio aborrecimento
crescia.
Eu não precisava de uma besta psicopata perdendo a merda do controle
porque eu não havia feito exatamente o que ela queria. Antes que as palavras
repercutissem, tentei passar por ele, cansada e pronta para apagar as
memórias das últimas vinte e quatro horas.
Shadow fez seu movimento instantâneo, aparecendo na minha frente, o
brilho de seu lobo ardente mais brilhante do que nunca na escuridão ao redor.
— Qual é o seu problema, cara? — eu surtei. — Fomos correr como
lobo, e ela decidiu brincar com a criatura sombra, e então tiramos um cochilo.
Nenhum. Grande. Problema.
Ele envolveu as mãos ao meu redor, palmas tão grandes que cobriram
metade do meu corpo. Quando me puxou para cima e contra si, eu vacilei na
onda de calor que tomava conta de mim. Não havia dor e, em vez de afastá-lo
como qualquer pessoa normal faria, reagi como uma loba recentemente
transformada — excitada e nua — faria.
Passei as pernas em volta dele e o puxei para ainda mais perto.
O rosto de Shadow desceu até o meu, o fogo de seu lobo demônio
desaparecendo.
— Você pertence a mim — disse ele, sua voz nada mais do que um
estrondo de fúria e demônio. — Não a Honor Meadows. E não às criaturas
das sombras. Não para o bando de lobos. Não para nenhum deles — sua voz
estava mais alta do que eu já tinha ouvido. — Nenhum outro pode reivindicar
você enquanto eu o faço. Seria muito bom você se lembrar disso, loba.
Seus lábios estavam muito perto e, conforme cada palavra forte
emergia, eles ficavam mais próximos. Meu corpo doeu quando me pressionei
com mais força contra ele. Não era como se eu tivesse perdido as palavras
que ele tinha dito — sua afirmação dominante e possessiva —, mas naquele
momento eu não dava a mínima.

— O que você quer de mim? — soprei. — Se acha que tem uma


reivindicação sobre mim, então o que diabos vai fazer com isso?
Fui louca para desafiá-lo? Sim. Mas eu ia fazer isso de qualquer
maneira?
Com toda certeza!
— Vou descobrir o que você é — ele rosnou. — Então, quando eu
descobrir isso... sua utilidade para mim, digamos, terá se esgotado.
Humm. Bom, okay então.
O abervoq rugiu por trás de nós, diferentemente de seu modo habitual
— melancólico, no mínimo. Eu tinha a sensação de que estava triste porque
eu tinha ido embora, e ainda acorrentado à parede, ele não podia me alcançar.
Os olhos de Shadow correram sobre minha cabeça em direção à
criatura que berrava.
— Eu vou te entender — ele me avisou. — E, quando eu fizer isso,
qualquer ameaça que você represente para mim ou o Reino das Sombras será
eliminada.
Blá-blá-blá.
— Sim, já entendi. Você quer me matar. Está triste por não poder me
matar. Você só sonha em me matar. É só uma dança divertida.
Ele me soltou, mas, já antecipando esse movimento, caí facilmente de
pé. Dessa vez, quando me mexi ao seu redor, ele me deixou ir.
Ao chegar à porta, voltei por um segundo.
— Não machuque o abervoq. Tenho certeza de que não tem ideia do
que o negócio comigo significa.
— Saia.
Tá bom, então.
Felizmente, não parecia haver uma maneira de Shadow matar essas
criaturas, ou ele teria feito isso desde o início. Atirando um último olhar
preocupado atrás de mim, dei outro passo em direção à porta, mas por alguma
razão não consegui sair.
Shadow não se virou de volta para mim, mas parecia saber que eu ainda
estava lá.
— Não vou machucar a criatura — rosnou, claramente relutante em
me dar qualquer garantia. — Não posso prometer o mesmo para você depois
de sua insubordinação.
Mostrando a língua para suas costas, decidi que era o melhor que
conseguiria. Só tinha que esperar que ele tivesse mais honra do que as
histórias diziam. Verdade seja dita, Shadow tinha um temperamento
absolutamente forte, e havia aquele assassinato a sangue-frio do Victor —
que tinha sido inesperadamente merecido —, mas na maior parte ele não era
instável. Todas as suas ações eram controladas e estrategicamente planejadas.
Essa foi a primeira vez que o vi realmente perder o controle. Eu o tinha
empurrado longe demais, de acordo com meu único talento.
— Vou verificar o abervoq — gritei enquanto corria para fora da porta,
batendo-a atrás de mim.
Depois da sala escura, o corredor estava brilhante o suficiente para
fazer minha cabeça girar e pontos dançarem diante dos meus olhos.
E eu senti pânico. Todo esse medo louco. Lidar com Shadow me
distraiu brevemente, mas agora não podia deixar de lembrar que eu tinha tido
um cochilo com um abervoq. Uma das criaturas mais temidas no Reino das
Sombras.
Por que eu estava fazendo amizade com esse ser?
Possíveis explicações passaram pela minha cabeça, cada uma mais
improvável do que a última. Mas, quer dizer, na verdade, até agora alguma
coisa que aconteceu foi realmente exagerada?
Trinta
Shadow ficou longe de mim por dias e, pela primeira vez, isso me
incomodou. Eu me encontrava com uma tonelada de perguntas sem respostas
e, depois de muitas noites sem dormir, estava desesperada para ver seu rosto
ranzinza. Quero dizer, ele era um deus, com séculos de vida e conhecimento
sob seu domínio. Ele tinha que saber de algo útil e eu estava ansiosamente
precisando de respostas.
— Vejo que continua varrendo — disse Angel, explodindo através de
meus pensamentos sombrios.
Em algum momento meu apelido "Cara de Anjo" tinha se transformado
em Angel, e agora eu não conseguia pensar nela por nenhum outro nome.
Dei-lhe um sorriso, sentindo-me ligeiramente animada por vê-la em seu
local normal de almoço.
— Você está realmente brincando comigo neste momento? Por acaso o
inferno congelou?
Ela inclinou a cabeça.
— É isso que os humanos pensam que o inferno é? Um mundo de fogo
e tortura?
Acenei com a cabeça.
— Sim, na maior parte, é tudo sobre enxofre e queimar. Condenação
eterna. Blá-blá.
Ela estava avaliando o que eu havia dito, sua testa franziu.
— E essa é a pior vida pós-morte que as mentes humanas poderiam
criar? Porque, para mim, eu poderia ser queimada dia após dia, dadas outras
possibilidades. Isso é só dor física...
A cor magenta de seus olhos se aprofundou, girando em uma espiral de
magma, e, por alguma razão, eu esperava que a cor se derramasse de suas íris
e vazasse por suas bochechas.
— Você já viveu um inferno pior do que queimar, não é? — perguntei.
Ela não respondeu, o pão de sempre em suas mãos enquanto o usava
para embeber em uma sopa que ela nunca iria provar. Por um momento eu
me apavorei, ao perceber que ultrapassara os limites e que os pequenos
motivos que eu tinha conseguido para ter uma amizade com ela seriam
destruídos.

— Sim — disse ela, e senti uma pontada ao pensar em seu sofrimento.


— E eu pegaria fogo eternamente, de olhos fechados, vendo a morte deles.
Sua voz vibrou com um tipo de tristeza que vinha do profundo da alma,
enterrada em sua própria essência — criando uma mulher que nunca seria
inteira novamente. Meu coração doeu e tive que oferecer todo o conforto que
eu pudesse.
— Se pudesse aliviar seus demônios — eu disse, estendendo a mão e a
colocando na dela —, eu faria isso. Mesmo custando caro para mim mesma.
Espero que um dia seus tormentos se acalmem, e que você encontre a paz.
Eu tinha demônios, e talvez essa fosse a razão pela qual nos tornamos
amigas. Os de Angel se deram bem com os meus e, embora eu já soubesse
que não tinha sofrido perdas como ela tinha, consegui entender. E eu a
apoiaria como pudesse.

Afinal, uma mulher com uma amiga leal ao seu lado poderia
literalmente destruir ou salvar mundos.
Angel apertou minha mão antes de me soltar, e sua energia pareceu um
pouco mais leve quando ela voltou a brincar com a comida. Com uma risada,
voltei para o meu prato também, e permanecemos em um silêncio amigável.
Quando ela finalmente se levantou para sair, limpei a garganta.
— O que uma garota tem que fazer para descobrir seu nome? Quero
dizer, você é “Angel” para mim agora, mas eu ainda gostaria de saber o seu
verdadeiro nome.
Quando ela virou a cabeça para trás, travessuras dançaram em seus
olhos, a cor muito mais leve do que antes.

— Eu não uso mais o meu nome. No que me diz respeito, ele está
morto e enterrado, como meu coração.
Pelo amor de todos os fodidos em todos os lugares. Ela era
incrivelmente trágica, e eu já odiava que minha amiga tivesse passado por
esse tipo de tormento.

— Será Angel, então. — Respirei fundo, minha garganta ficando


apertada.

Ela agradeceu com a cabeça.

— Eu gosto assim. Vejo você amanhã, Mera.


Então ela se foi em uma enxurrada de cabelo de mogno e asas cor de
âmbar. Meu apetite desapareceu quando olhei para minha comida meio
comida, imaginando como eu a tinha interpretado tão mal desde o início. A
princípio, eu havia pensado que sua atitude em relação a mim se devia ao
nosso status muito diferente na vida. Eu era uma humilde metamorfo e ela era
essa deusa de mulher. Mas então Angel me disse que ninguém nunca se
sentara à sua mesa...
Exceto por uma metamorfo idiota. Que de alguma forma teve a sorte de
angariar seu interesse.
Pulei quando uma mão caiu em meu ombro. Inclinando a cabeça para
trás, encontrei Angel em cima de mim.
— Obrigada — ela sussurrou. — Você é a primeira a falar comigo em
quinhentos anos. Eu venho aqui para sentir o cheiro da comida e a energia,
mas, fora isso, estou sempre sozinha.
Eu tinha entendido tudo tão errado.
Pulando para ficar de pé, eu me virei e a envolvi com os braços,
segurando o mais fortemente que pude.
— Você nunca terá que ficar sozinha de novo. Se precisar de ajuda ou
alguém com quem conversar... ou qualquer coisa... venha até mim. Sou sua
amiga agora. Sua família, se é disso que precisa. Podemos nos proteger neste
mundo.
Ela me segurou como se sua vida dependesse disso e, apesar do leve
esmagamento das minhas costelas, eu nem sequer tentei me afastar. Quando
finalmente nos separamos, Angel sorriu brilhantemente, e eu fui atingida pela
percepção do quão perfeito era o nome que escolhera para ela.
Colocou a mão em meu peito, logo acima dos meus seios.
— Chamamos nossa família de treasora. Nosso tesouro. Estou honrada
em trazê-la para fazer parte da minha.
Sua mão livre então foi para seu próprio peito, pressionando contra a
armadura que ela usava, e um brilho explodiu dele, caindo contra sua palma e
logo em meu peito. A corda brilhante de ouro deslizou em mim, uma
sensação de formigamento tomou conta.

— Estamos ligadas agora — ela murmurou. — Um vínculo que vai


ficar mais forte com o tempo. Em alguns anos, você será capaz de me
alcançar com seus pensamentos. E eu vou fazer o mesmo.

Fiquei sem fôlego e confusa quando ela se afastou e me deu um aceno


final antes de novamente sair, dessa vez de verdade.
Uau!!!!
Fiquei lá, em choque, contente e confusa com o que ela tinha feito. Mas
gostei.
— É uma grande honra — disse uma voz profunda atrás de mim.
Virei-me para encontrar Shadow casualmente encostado contra uma
parede, seu ombro apoiado de uma maneira que fez seu bíceps já
impressionante ficar ainda maior. Naquele dia ele estava vestido casualmente,
com jeans rasgados, uma camisa apertada estilo Henley, de mangas
compridas, e botas verdes do exército amarradas nas panturrilhas. Pareceria
humano, se não fosse pela altura impossível e pelo rosto abençoado pelos
deuses. Quanto mais perto dele eu estava, mais sua beleza me cativava. Do
topo de seus cachos até a ponta das suas botas, não havia uma falha nele.
Pelo menos não fisicamente.
— Honra? — ecoei, ainda um pouco desorientada com as ações de
Angel.
— Que ela se relacione com você de tal maneira.
Ele se endireitou e caminhou em minha direção.
— E, mais uma vez, aqui está você, reunindo aliados poderosos ao seu
lado. Aliados que ninguém mais poderia domar, não importa o quanto tenham
tentado.

— Angel é uma aliada poderosa?

Seu sorriso foi breve.

— Angel, não é? Sim, isso se encaixa. Digamos que ela é um dos


poucos seres que pode realmente se defender de mim.

Ele parecia estar se divertindo com isso, nem um pouco ameaçador —


exceto por uma pequena chama queimando em suas íris. Sentindo que eu
deveria desviar a atenção dele de Angel, cuja existência só era permitida
porque ela era reservada, limpei a garganta.
— Você precisava de mim para alguma coisa?
Ele confirmou com a cabeça.
— Estamos no rastro de outra criatura do Reino das Sombras. Hora de
sair.
Sorri.
— Cara, qualquer coisa é melhor do que varrer. Até a caça de demônios
supera isso aqui fácil.
Seus olhos ficaram um pouco mais largos.
— Você ainda está varrendo?
Confirmei com a cabeça.
— Sim. Isso me deu alguns bons músculos no braço, mas sua biblioteca
já é impecável, não está ficando mais limpa.
Contraindo os lábios sutilmente, ele disse:
— Vou encontrar outra coisa para mantê-la ocupada.
E me veio o pensamento assustador de que talvez sua "outra coisa"
fosse muito pior do que o que eu tinha feito até agora.
— Você sabe, varrer é ótimo — adicionei com pressa. —
Definitivamente estou fazendo um estrago em toda essa... hum...poeira.
Ele balançou a cabeça.
— Vamos, Raio de Sol. Vamos pegar a próxima criatura antes que
mate mais de seus preciosos humanos.
Pela primeira vez, até que ouvir esse temido apelido não me chateou.
Correndo atrás dele, eu o alcancei em segundos, quase tropeçando em uma
entidade esfumaçada.
— Inky! — exclamei. — Não o vejo há dias. Como você está, amigo?

Inky inchou, faíscas voando quando ele se envolveu em torno de mim.

— Isso é bom, hein? — eu disse com uma risada. — Sim, senti sua
falta também.

Shadow atirou em mim um olhar estranho, calculista, mas sem a


malícia que ele normalmente mostrava em minha presença.
— Não está mais perto de me decifrar, não é? — eu disse com um
sorriso.
Não que estivesse surpresa, já que também não tinha me esforçado, mas
ainda assim era divertido insultá-lo.
— Estou começando a ter uma imagem mais clara — disse ele,
balançando a cabeça como se estivesse juntando tudo. — Muito mais clara.
Algo me disse que, no momento em que ele descobrisse meus segredos,
qualquer apelo que ele tivesse encontrado em me manter por perto
desapareceria muito rapidamente. Hora de voltar para a mulher misteriosa
que valia mais viva do que morta. Pelo bem de todo o meu planeta.
Trinta e um
Voltar à Terra deveria ter sido como voltar para casa, mas descobri que,
quanto mais tempo eu ficava longe, mais difícil era me readaptar ali. Eu não
era mais uma metamorfo comum que não sabia nada sobre o Sistema Solaris,
e parecia impossível algum dia ser aquela garota ingênua novamente.
— Siga-me — disse Shadow, saindo para um campo largo e gramado.
Onde quer que estivéssemos dessa vez, estava quente, e eu olhei para a
luz do sol brilhante.
— É verão? — perguntei, tentando seguir meu rumo enquanto olhava
para o céu azul profundo, impecável exceto por algumas nuvens escuras
preparando uma tempestade no horizonte.

Em um palpite, parecia que estávamos em algum lugar ao sul, pelo


menos nos EUA.
— A estação fria terminou, sim — disse Shadow, puxando a escuridão
em torno de si mesmo, como se o sol o estivesse ofendendo. Foi a coisa mais
estranha de se ver, com sombras literais pairando sobre sua pele, forçando a
luz a se afastar.
Inky se aproximou também e, no dia brilhante de verão, pude ver mais
pigmentos e cores na fumaça do que nunca.
— Verão — eu refleti. — Então eu estive em seu covil por meses?
Eu não poderia conciliar isso. Parecia ter passado um mês no máximo,
mas, a julgar pelo calor, tinha que ter passado pelo menos seis desde que eu
tinha sido roubada das terras do bando.

Shadow encolheu os ombros.

— O tempo é uma restrição humana. Eu não o acompanho


obsessivamente do jeito que vocês fazem. Mas... — Ele levantou a cabeça
como se estivesse cheirando o ar. — É julho.

Ele simplesmente... farejou o mês? Ok, incrível. O que mais ele poderia
fazer com esses sentidos?
Espere, o quê? Julho.
— Como isso é possível? — Puxei o ar com calma.
Passaram-se quase sete meses desde que ele me roubou da Terra.
Simone e Dannie teriam definitivamente assumido que eu estava morta
nesse momento — minha mãe na certa nem notara que eu tinha ido embora
— e eu me senti mal com a ideia de sete meses terem simplesmente
desaparecido da minha vida.
— Preciso ver meu bando! — gritei explodindo e parando Shadow em
seus rastros.
Ele se virou, altura caindo baixo o suficiente para que eu só tivesse que
inclinar a cabeça, para trás, oitenta graus para ver seu rosto.
— Quer voltar para o seu bando? Não a tratei com respeito o tempo
todo que você esteve em minha presença?
Havia um aviso nessas palavras, como se ele quisesse que eu
escolhesse minha resposta com muito cuidado.
Então, como sempre, eu não fiz.

— Eu não iria tão longe quanto respeito, mas você tem sido... menos
idiota do que eu esperava — forcei um sorriso, porque eu precisava que ele
me desse isso —, mas minha razão para querer voltar ao meu bando é
simplesmente avisar às duas únicas metamorfos no mundo com que me
importo que não estou morta. Já se passaram sete meses, e nesse tempo todo
eles não têm ideia do que aconteceu comigo.

Suas pupilas se dilataram enquanto ele me avaliava, examinando meu


rosto, procurando um significado mais profundo em minhas palavras.

— Eu poderia enviar Inky?

Foi muito divertido saber que ele tinha adotado meu apelido para seu
amigo fumaça, mas eu riria disso outra hora. Naquele momento, eu estava
focada em uma verdade apenas: sete meses longe das minhas terras.

— Acho que isso pode assustá-las, considerando que Inky não pode
falar e, mesmo que pudesse, elas sem dúvida correriam primeiro e fariam
perguntas depois.

Shadow deu de ombros, e eu me recusei a me distrair com eles hoje.

— Levarei o seu pedido em consideração.


Ele se afastou, terminou a conversa e, de alguma forma, eu soube que
isso era tudo o que tiraria dele. Tentaria de novo no dia seguinte. Isso era
muito importante para deixar passar.
— Onde estamos? — perguntei, correndo para alcançá-lo, limpando da
testa o suor já acumulado nesse calor intenso. — Em algum lugar ao sul, com
certeza.
Dessa vez ele não parou, e eu tinha uma leve suspeita de que não queria
me dizer para evitar que eu tentasse escapar. Mas por que eu faria isso?
Shadow me encontraria não importava o quão rápido ou longe eu corresse, e,
quando ele me pegasse, minha vida provavelmente estaria perdida.

Eu não superestimaria a importância da Terra para mim ou para ele. O


cara mal dava meia merda de importância a qualquer coisa, que dirá a nós.
— Acho que estamos na Columbia — disse ele rapidamente. — Se os
humanos não decidiram mudar o nome dos países devido a mudanças em
massa desde que estive aqui pela última vez.
Com licença? Quando foi que houve a porra de mudanças em massa
pela última vez? Ele era tão velho quanto os dinossauros ou algo assim? E eu
realmente queria saber isso? Eu estava muito mais confortável pensando nele
como um jovem chicoteador de cerca de alguns milhares de anos de idade.

Hora de mudar de assunto.

— Por que é tão difícil sentir as criaturas-sombra? Você sentiu... só


dois deles em todo esse tempo.

Tinha passado um mês na biblioteca — sete meses na Terra,


aparentemente — e esse era apenas o segundo em seu radar. Pela primeira
vez, ele não me ignorou ou resmungou.
— Eu só posso senti-los quando eles usam suas várias habilidades.
Caso contrário, são praticamente indetectáveis. Todos nós sabemos como
esconder nossa energia quando descansamos.

Não só quando descansava, se Shadow fosse algum tipo de referência


nisso. Eu quase nunca podia senti-lo exceto quando estava muito perto e,
mesmo assim, algo me dizia que ele ainda estava controlando o fluxo de
poder ao nosso redor.
Não havia mais tempo para pensar sobre isso, porque aparentemente
tínhamos chegado ao nosso destino: um campo verde e marrom irregular,
coberto com grandes espinhos e manchas de grama completamente morta —
como se um bando de cães selvagens tivesse mijado sobre o lugar, deixando
anéis perfeitos de morte. Estávamos sob uma das únicas árvores, uma peça
antiga e retorcida que poderia estar meio morta se não fosse por alguns
raminhos novos crescendo no alto.
Shadow não se movia, olhando para a terra, com a cabeça inclinada de
uma maneira que me dizia que ele estava procurando. A criatura não era
imediatamente visível e, assim que comecei a procurar com a fera, senti algo
grudar em minha pele. Olhei para baixo para ver uma substância pegajosa
rastejando pelo meu braço direito. Que...? Pisquei mais quando aquilo atingiu
minha cara, e por mais que quisesse fazer uma piada sexual, agora não era o
momento.
Por que essa merda nojenta está sobre mim?
Shadow mergulhou para me segurar no momento em que aqueles fios
pegajosos se enrolavam através do meu corpo me apertando, e eu fui puxada
para o céu. Ele me pegou a tempo e felizmente foi forte o suficiente para me
libertar daquilo que me puxava com intensidade.
— Ah — ele disse quando pousamos em segurança no chão, suas mãos
firmes em torno do meu bíceps.
— Ah? — gritei. — Ah?! O que diabos é ah?
— Aquilo é um sprecker; um demônio aranha.
Por Deus, o que é isso?
Shadow estava perto o suficiente para bloquear o céu acima, então eu
me inclinei para trás para tentar ver ao seu redor. Os galhos se estenderam
por cima de nós, e eu pensei que tinha pegado algum movimento, mas foi
embora antes que eu pudesse ter certeza.

— Aquilo quase me pegou — eu disse, tentando controlar os


batimentos cardíacos. — Minha loba poderia ter lutado contra ele?

Shadow estava me observando de perto, suas mãos ainda em mim, o


calor marcando minha pele.
— Você poderia ter tentado lutar — disse ele —, mas o veneno nas
gotículas em sua pele acabaria por infiltrar-se em seu sangue, deixando-a
muito fraca. O sprecker só tem que esperar você aparecer, e ele se move em
supervelocidade, subindo e esquivando-se de uma maneira que muito poucos
podem fazer.
Sua expressão não mostrou nenhuma preocupação com o veneno
correndo e sendo absorvido pela minha pele, mantendo a palma das mãos em
meu rosto. O calor bateu em mim, o fogo de seus olhos queimando
intensamente quando ele correu as mãos através de minhas bochechas. Seu
toque não era suave; a pele de suas palmas era áspera. Eu não tinha certeza de
como isso funcionava para um deus com a pele sempre se recuperando, mas
era o que era. O pior era que, toda vez que seu toque pegava em minha pele,
meu estômago fazia algum redemoinho, calor se acumulando embaixo do
meu intestino.
Realmente muito lá embaixo.
Quando o fogo dele limpou minha pele e sangue do resíduo de
sprecker, eu estava respirando mais pesado do que estava acostumada. Ele
tirou as mãos, e eu fui capaz de pensar com muito mais clareza.

— Como vamos pará-lo? — perguntei, tentando me afastar, porque ele


ainda estava muito perto para a minha sanidade.
Tipo... Esse não era o momento para ter um colapso mental e lamber
um deus das sombras, certo? Isso seria simplesmente uma má ideia, não
importa o quão curiosa eu estava sobre a reação dele.

A árvore nas minhas costas me impediu de ficar mais longe e, quando


Shadow se inclinou para mais perto, eu quase perdi o controle.

— Você pode me deixar ir agora, Raio de Sol — ele murmurou, e esse


foi o ponto em que notei minhas mãos presas em sua camisa como se tivesse
sido eu a puxá-lo para perto.
Bem, foda-se.
Fazendo uma careta, rosnei e o empurrei para longe.
— Discutível sua opinião sobre quem está segurando quem, cara. — Na
dúvida, desvie o assunto e culpe todos, menos a si mesma.
— Aí vem — disse Shadow, esquecendo-se de mim e focando a
atenção mais uma vez no céu.
Um suspiro ficou preso em minha garganta quando uma
monstruosidade cinza veio à tona. Não tinha as oito pernas de uma aranha,
mas havia vários membros. Muito mais do que oito, embora alguns fossem
muito pequenos e inúteis, mas pelo menos seis dos que estavam perto de sua
cabeça peluda pareciam fortes e habilidosos enquanto corria. E de quantos
olhos uma criatura realmente precisava?
— Ele quer você — disse Shadow, toda a força de seu olhar
encontrando o meu. — Estou tão chocado, e você?
Eu o encarei.
— Você... Você acabou de usar sarcasmo?

Ele meio que encolheu os ombros, mas todos nós sabíamos a verdade.
Shadow Beast tinha acabado de... tipo brincar comigo, e eu tinha conseguido
testemunhar isso. Talvez espalhasse essas histórias se voltasse para a vida no
bando. Ou talvez inventasse algumas ainda mais assustadoras, porque,
brincadeiras à parte, sua dureza não tinha sido subestimada. Como ele estava
prestes a provar.
Dobrando suas pernas poderosas, lançou-se na árvore e, como se
estivesse encarnando o Tarzan, lançava-se para cima indo de galho em galho.
— Você não pode voar? — gritei com ele.
Shadow fez uma pausa.

— Onde estaria a diversão em persegui-los assim? Não, eu prefiro ir


atrás deles com um pouco mais de dificuldade.
Lunático. Ele era um maluco de verdade.
— Fique aí — ele disse. — Vou voltar para você neutralizá-lo.
Cruzando os braços, direcionei os olhos para Inky.

— Seu mestre é uma besta louca, você sabe disso, certo? Você é amigo
de alguém que gosta de perseguir demônios... por diversão! — Balancei a
cabeça. — Precisamos de novos amigos.
Shadow pousou forte em nossa frente, o chão tremendo no baque
sólido. Assim que ele retornou ao seu tamanho habitual, havia um sorriso
genuíno em seu rosto.
— Não subo em uma árvore há quinhentos anos. Esqueci como é
divertido.
Eu pisquei e pisquei, imaginando se tinha batido a cabeça. Ou talvez o
veneno tivesse conseguido se infiltrar em meu sangue e eu estivesse
alucinando. Shadow parecia quase... feliz. Eu não fazia ideia do que pensar
sobre isso.
Acariciando o rosto algumas vezes, eu me dei um tapa firme tentando
acordar de qualquer sonho que fosse esse. Mãos seguraram a minha antes que
eu pudesse tentar de novo.
— Não — disse ele, sério de novo. — Não faça isso.
Ao virar a cabeça, tentei ver sua expressão, mas ele já tinha se afastado,
estendendo a mão para pegar a criatura cinzenta prestes a nos atacar. O
sprecker cobriu Shadow quase completamente em sua substância venenosa e
pegajosa, mas isso não foi suficiente para impedir a fera de usar sua magia
das sombras para prendê-lo em um pequeno e adequado embrulho.
— Sua vez, Raio de Sol — ele me disse sem me olhar.
A expressão aberta que tinha usado antes desaparecera, um semblante
inexpressivo em seu rosto, escondendo todas as suas emoções mais profundas
nas muitas camadas que era Shadow Beast.
Por um segundo tive um pouco mais dele para memorizar, mas, como
sempre, desapareceu antes de eu ter aproveitado mais do que apenas um
aperitivo.
A parte mais assustadora foi constatar que, dessa vez, um aperitivo não
estava nem perto de ser o suficiente.
Trinta e dois
Uma vez que Shadow tinha o sprecker preso em uma das prisões de
porta branca, eu o fiz me mostrar o abervoq. Que, felizmente, parecia estar
em perfeita saúde. Chateado por estar enjaulado, berrando ao me ver, mas
ileso pelo que pude constatar.
Depois disso Shadow partiu e me deixou com os meus próprios
assuntos, então comecei a me perguntar para onde ele ia todas as vezes que
desaparecia da minha frente. Ele tinha uma amante em algum lugar? Ou
estava visitando seus amigos no mundo deles?
Eu queria segui-lo, mas ele sempre ia tão rápido — estava lá um
minuto e se ia no outro, desaparecendo em sombras esfumaçadas, como se
pudesse usá-las para transportá-lo. O que me deixava sem ideia de como
rastreá-lo. Em vez disso, concentrei-me no meu segundo passatempo
favorito: vasculhar a biblioteca para aprender sobre os mundos.
A maior parte do que eu tinha aprendido entre as varridas eram
informações gerais sobre as várias terras e seus habitantes. Eu gostava de
combinar isso com observações da vida real dos seres que frequentavam a
biblioteca e, através de ambos, sentia que tinha uma compreensão razoável
dos dez mundos.

Bem, nove. Ninguém sabia nada sobre o Reino das Sombras. Exceto o
próprio Shadow, e ele não era do tipo que gostava de compartilhar coisas.

— Eu realmente quero visitar os mundos — disse a Gaster, seguindo-o


para ajudar a arquivar livros. — Tipo, cada um deles pelo menos uma vez
para que eu possa experimentar as diferenças.
Ele inclinou a cabeça para trás, mãos ainda se movendo enquanto
colocava livros sem olhar. De alguma forma, o duende simplesmente sabia
onde ficavam.
— A maioria deles seria mais do que bem-vindo a sua exploração.
Alguns não são tão hospitaleiros, mas, se quiser que eu componha um guia de
viagem para você, eu ficaria feliz em fazer isso no meu tempo livre.
Eu o abracei pegando o pobre coitado completamente de surpresa.
Ninguém ali abraçava aleatoriamente — o que, pelo que parecia, era uma
tradição da Terra — então eu continuava assustando esses pobres seres.

— Obrigada, Gaster! E, mesmo sabendo que você não tem tempo livre,
se puder encontrar algum, eu adoraria ter um guia de viagem.
Não havia como entrar nos mundos sem ajuda. Eu não falava as
línguas, não podia me misturar, e não tinha ideia dos muitos e variados
perigos que com certeza existiam. Mas se Gaster me desse esse guia...
ajudaria muito.
— Sei que Honor Meadows é muito parecido com a Terra — eu disse.
— E adoro visitar a Angel, mas realmente espero ver pelo menos alguns dos
outros mundos.
Gaster concordou com a cabeça, olhos de volta em seus livros.
— Honor Meadows com certeza é familiar para você, exceto pela
maneira como eles usam magia no lugar da tecnologia e da ciência. Eles são
seres baseados na natureza em muitos aspectos.
Eu sabia tudo isso da minha pesquisa, mas sempre gostava de ouvir
sobre os mundos.
— Eles passam sua magia através das linhas familiares? — perguntei
para confirmar.
— Oh, sim — Gaster exclamou. — Quanto maior e mais forte for a sua
linha familiar, ou foi, mais magia e terra você controlará.
Isso me fez pensar em Angel, eu tinha quase certeza de que não sobrara
ninguém de sua família. Seria por isso que ela era tão poderosa? Ou essas
mortes realmente a enfraqueceram em termos de poder?
— Senhorita Mera!
Eu girei e Lady Hel correu em minha direção. A semi-fey real não
costumava falar diretamente comigo, mas parecia que ela tinha uma
mensagem.
— Ei, Lady — eu disse com um sorriso. — Como vai?
Ela ficou brevemente confusa com minha frase antes de colocar um
sorriso de volta.
— Mestre quer que a gente liberte você do dever de varrer. Você pagou
seu empréstimo inicial e agora pode passar para outras tarefas. Ele não tinha
certeza do que você gostaria de fazer em vez disso. Tem alguma ideia?
Gaster parecia em êxtase com essa notícia.
— Você pode vagar por aí agora e conferir mais livros.
Claramente não tinha escapado da atenção dele que, enquanto eu estava
"varrendo", eu tinha conseguido fazer um monte de leitura também.
— Isso soa incrível... — Percebi um rosto familiar, que apareceu e
sumiu de volta nas prateleiras. Alguém com quem eu precisava
desesperadamente falar. — Deixe-me vagar por um tempo. Talvez uma nova
tarefa venha até mim — finalizei, distraída.
Gaster e Lady Hel não pareciam ter notado.
— Oh, sim, ideia fantástica — disse ele. — Você explora as muitas
prateleiras, lê os livros que chamam sua atenção, mas não tenta desbloquear
nenhum livro que tenha uma inserção chave neles.
Isso me chamou a atenção.
— Inserir chave?
Ele girou e percorreu as prateleiras mais próximas antes de
aparentemente encontrar um desses títulos "intocáveis".
— Veja isso — disse ele, segurando a lombada do livro perto do meu
rosto. De imediato, notei a pequena inserção de metal, com seu orifício
perfeitamente redondo. — Eles estão bloqueados para a segurança do leitor
ou para proteger informações confidenciais. Vai lhe exigir muita força se
você tentar quebrar a fechadura, e eu não tenho certeza se você seria forte o
suficiente...
Ele ficou mudo, mas todos nós entendemos a essência do que ele estava
dizendo.
— Não se preocupe, Gaster — eu disse. — Há muito para ler aqui sem
que eu tenha que me preocupar com a possibilidade de queimar os olhos.
Ele estava todo sorridente novamente, satisfeito que seu aviso tenha
sido entregue com sucesso, enquanto colocava o livro não autorizado de volta
na prateleira.
— Chame se precisar de mim — ele pediu emocionado antes de se
apressar novamente.
Se eu tivesse um décimo de sua energia, provavelmente seria muito
mais realizada do que realmente era.
Mas não havia tempo para me preocupar com minha preguiça, e então
entrei em modo furtivo, perseguindo o macho que eu tinha visto antes: Len
das Terras de Prata. Essa foi a primeira vez que vi algum amigo de Shadow
ali, e eu não iria desperdiçar essa oportunidade.
O fae estava vestido com roupas prateadas novamente, essas ainda mais
elaboradas e requintadas do que o último conjunto. Como ele andava com
tantas pedras preciosas e todo aquele metal adornando os braços estava além
da minha compreensão, mas isso não parecia um empecilho para ele, que
agarrou então alguns livros aleatórios. Estava procurando por algo específico,
e quase tudo deixava um olhar decepcionado em seu rosto.
— Você poderia ajudar, em vez de espreitar nas sombras — disse ele,
sem se virar. — Um jogo de palavras planejado.
Trocadilho proposital? Era algum tipo de busca sobre Shadow que eu
não estava entendendo.
Eu saí de trás das prateleiras.
— Há quanto tempo sabia que eu estava lá?
Ele riu, um som profundo e rico que eu tinha certeza de que continha
toda a magia do mundo, se a sensação ao longo da minha pele fosse alguma
indicação.
— Eu a vi antes mesmo de você nascer, doce loba. Não há lugar onde
possa se esconder.
O quê?
— Ok, claro, isso faz sentido. — Nem mesmo remotamente. — Mas
de verdade... Você precisa de alguma ajuda com a sua pesquisa?
Ele balançou a cabeça.
— Não, não. Estou procurando há muito tempo para recuperar uma joia
especial que deveria ter sido passada através da minha família. Foi roubada
por alguém em quem confiamos. Há muito pouca chance de que ela um dia
seja recuperada e, ainda assim, quando tenho tempo livre, ainda procuro
através dos livros qualquer menção a isso.
Ele empurrou a cabeça para as prateleiras, embora qualquer movimento
fosse tão suave que não pudesse realmente ser descrito como um empurrão.
— Os faerie se atualizam usando magia. Só que nunca há nada de novo
sobre nossa pedra e, sem ela, estamos significativamente enfraquecidos.
Eu tinha lido mais do que alguns livros faerie e tinha uma boa ideia do
que ele estava falando.
— Você pode armazenar magia em suas joias para aumentar seu
próprio poder, certo?
Era por isso que ele usava tantos em sua pessoa, e porque sua família
era particularmente poderosa, apesar da joia desaparecida. A realeza não
tinha nascido nessa posição em sua cultura; eles a tinham tomado à força. Eu
também sabia que as gemas que podiam armazenar poder eram raras em
Faerie, cada uma delas muito bem guardadas por aqueles que as possuíam.
Len parecia um pouco impressionado com o meu conhecimento, seus
olhos prateados brilhando.
— Correto, filhote. Pedras diferentes têm capacidades diferentes. A que
foi tirada é uma pedra de explosão solar amarela extremamente rara, com
capacidade de armazenamento quase ilimitada. A lenda diz que veio de uma
gota de luz pura, a única de seu tipo. — Ele balançou a cabeça. — Não faz
sentido que aqueles que a tomaram não a usem e ainda assim... se o fizessem,
haveria um registro. A última menção notável à pedra solar é do dia em que
foi roubada da minha família.
Pensei nisso.
— Como se a roubasse por uma razão específica que ainda não existe?
Ele soltou um suspiro de pesar.
— Isso é o que me preocupa. Tecnicamente, eles poderiam estar
armazenando lascas de energia dentro da pedra todos os dias, o que não a
ativaria. Com o passar dos anos, ainda acumulariam poder suficiente para
devastar Faerie... ou o Sistema Solaris. Precisamos descobrir quem roubou e
pará-los antes que a usem contra nós. — Sua frustração era óbvia. — É meu
trabalho proteger minha família e meu reino. Não posso falhar nessa tarefa.
— Você já perguntou ao Shadow?
No momento em que disse isso, eu me arrependi, especialmente quando
o sorriso de Len cresceu, genuína diversão dançando através de suas feições.
Agora parecia que eu pensava em Shadow como nosso único salvador, e
discutir só cavaria o buraco mais fundo.
— Apesar dos rumores — Len parecia divertido —, Shadow não sabe
tudo. E, por mais útil que meu amigo seja às vezes, neste assunto Faerie, ele
não pode ajudar.
Parte de um riso escapou de mim.
— Rumores? Aposto que ele próprio começou com isso.

Len parecia se esforçar para evitar o riso.


— Um verdadeiro amigo nunca conta.
Ele era um verdadeiro amigo; todos eles eram. Eu não tinha dúvidas de
que, se alguém tentasse machucar um dos seis, o resto retaliaria sem piedade.
— Vocês têm sorte de ter um ao outro — eu disse. — Tenho certeza de
que, sendo tão poderoso quanto você, é difícil encontrar amigos em quem
possa confiar. Fico feliz que tenha conseguido o impossível.
O olhar de Len estava me dissecando, lendo sob minhas palavras.
— Somos uma amizade criada em sangue, nascida no campo de
batalha, onde muitos de nós lutamos contra o outro. O destino decidiu que
seríamos mais fortes do mesmo lado, especialmente depois que Shadow
salvou metade de nós... E o resto é história.
— Shadow salvou você?
Ele confirmou com a cabeça.
— Oh, sim. Ele sempre foi um lobo solitário sem lado para lutar, de um
mundo além do alcance.
Finalmente, chegamos a um tema de conversa em que eu estava mais
interessada. Shadow e o que aconteceu com o Reino das Sombras. Quero
dizer, por que não havia informações sobre isso? Por que sua porta fora
selada, tornando Shadow o único daquele mundo aqui?
Fora as minhas criaturas, é claro.
Meu desejo desesperado de saber os porquês, como, e quem era quem
dessa situação fora a razão pela qual eu perseguira o fae. Ele não se afastou
quando me inclinei mais.
— Por que Shadow está aqui, e não no mundo dele?
Len balançou a cabeça.
— Vai ser preciso mais do que um rosto bonito para me fazer contar
segredos sobre aquele cara. Ele me chutaria a bunda e, confie em mim, dói
quando ele faz.
— Então tenho que perguntar a ele — eu disse com um suspiro.
O sorriso de Len desapareceu.
— Você é mais corajosa perto dele do que a maioria dos mortais.
Imortais também, na verdade, tirando nós cinco. Não dê a ele nenhum
controle; ele irá respeitá-la mais.
Balancei os ombros.
— Não é da minha natureza me acovardar. Ou ele vai me matar ou não,
mas enquanto isso tenho uma vida para viver e uma personalidade para polir
praticando confiança.
Len passou o polegar na minha bochecha, o movimento em um flash.
Era desconcertante a rapidez com que todos esses caras se moviam — se eles
atacassem, eu estaria morta antes de vê-los chegando.
— Vamos jantar de novo hoje à noite — murmurou. — Você deveria
vir.
Antes que eu pudesse responder, Len desapareceu no ar e fiquei
olhando ao redor tentando descobrir como ele tinha feito isso.
— Vocês vão ter comida de verdade dessa vez? — gritei para o espaço
vazio.
Minha única resposta foi uma risada profunda, e então sua energia
desapareceu da biblioteca.
Trinta e três
Quando terminei minha leitura na biblioteca, parti em direção ao
refeitório, mas não havia sinal de Angel, então fui para o covil tomar banho e
me trocar. A menção de Len ao jantar daquela noite despertou minha
curiosidade, e eu quis dar uma olhada. Principalmente para que pudesse
aprender observando esses seres poderosos. Shadow sabia muito sobre mim,
e eu sabia muito pouco sobre ele. Era um equilíbrio desigual de poder e eu
odiava isso mais do que qualquer coisa.
Eu não era tão estupidamente ingênua para não estar atenta a Shadow e
seu plano maior com meu trabalho aqui. Ele não me disse quase nada sobre
suas ações nos bastidores e, não importava o que estivesse planejando, isso
me incluía. De certa forma, eu provavelmente não gostaria.
Ele disse que precisava de mim para dominar as criaturas das sombras,
e essa era a razão pela qual eu ainda estava ali e saindo com ele, mas estava
quase certa de que era besteira. Ele não precisava de mim. Ele os subjugara e
os enjaulara basicamente sozinho nas duas vezes.
Estava me mantendo ali por outra razão, e eu precisava de mais
informações para descobrir essa merda se quisesse ter alguma esperança de
sobreviver.
Para esse jantar, não me preocupei em vestir um vestido sexy, em vez
disso optei por calças de couro, botas pretas na altura dos joelhos, com um
salto decente para aumentar minha altura entre os gigantes, e um top branco
apertado, que cobri com uma jaqueta de couro curta e preta. Droga, eu ia
sentir falta desse armário mais do que tudo quando saísse desse lugar. Talvez
pudesse levá-lo comigo, e o covil também, porque ambos eram itens dos
sonhos.
Eu estava sozinha quando saí do meu quarto; mesmo Inky se via
disperso nos últimos dias. Shadow estava "confiando" muito mais em mim, e
isso parecia uma armadilha em que eu estava prestes a ser pega. Eu também
meio que sentia falta da bolha de fumaça. Especialmente quando não tinha
ideia de onde era o jantar.
— Fazendo o que, Raio de Sol?
Não pulei porque eu era muito legal para me assustar com essa merda.
Especialmente na frente de Shadow.
Esperava que ele não pudesse ouvir meu coração batendo como um
maldito tambor no peito.
— Len me convidou para o seu jantar — eu disse rapidamente.
Ele recolocou os livros em suas prateleiras particulares, girando
enquanto seu olhar lentamente acariciava cada centímetro de couro do meu
corpo.
— E você está vestida assim?
Era impossível dizer o que ele pretendia com isso, porque seu tom e
expressão facial não me deram nenhuma dica que ajudasse a compreender
essas palavras. Em um palpite, ele não parecia impressionado, mas, quer
saber...
— Foda-se, parceiro. Ninguém dita o que eu uso, e hoje eu sou uma
visão mais coberta do que eu era na última vez que você me convidou para
jantar.
Sua mandíbula se contorceu, olhos ardentes, mas ele não forçou o
assunto.
— Você já descobriu como tocar o Reino das Sombras?
Engoli em seco.
— Então ainda quer que eu faça isso?
As chamas lambiam seus braços e fiquei surpresa com o tempo que
tinha passado desde que eu vira esse tipo de irritação em sua expressão.
— Sim, eu quero muito que você descubra. Essa é de fato sua única
tarefa nos próximos dias, enquanto rastreio mais uma criatura sombria.
Cruzei os braços.
— Não tenho ideia de como fiz isso! Tipo, nem uma única pista. Minha
alma estava quebrada, meu coração, doendo, e eu estava sendo atacada. A
menos que possamos replicar isso...
Ele agarrou a borda da minha jaqueta de couro, usando-a
exclusivamente para me içar no ar e deixar nosso rosto a meros centímetros
de distância. Seu rosto, que estava a mais de dois metros do chão.
— Se eu tiver que replicar o pior momento da sua vida, Raio de Sol,
vou fazê-lo. O dia todo, todos os dias. Não há nada mais importante do que
descobrir como... devolver as criaturas para o reino.
Ele mudou de tom na última hora naquela frase. Estávamos de volta à
sua história de "precisar devolver as criaturas das sombras". Não que não
fossem importantes, sem dúvida eram, mas havia algo mais. Algo que tinha a
ver com a razão pela qual seu reino fora fechado.
— Você teve tempo suficiente para se instalar aqui — disse ele
duramente. — Eu lhe dei mais espaço e liberdade do que a qualquer outro sob
minha custódia. Não me provoque mais, e nunca se esqueça de que sou seu
dono, loba. Se eu quisesse, poderia destruí-la em um piscar de olhos.
Esse não era o mesmo Shadow que me levara para fora em busca do
sprecker. Aquele parecia mais leve, aberto... Como se estivesse se
acostumando a minha presença. Este Shadow agora em minha frente era o
mesmo cabeça-dura assustador que me roubara do bando de Torma.
— Vou adicionar esse item à minha lista de afazeres. — Sufoquei antes
de sacudir as pernas, esperando que ele me deixasse descer.
Só que ele não o fez.
— Repita a lista para mim.
— Deixe-me descer, idiota — atirei de volta.
Ele me sacudiu, e a força que esse cara tinha era assustadora, mas
felizmente, até agora, ele não estava usando isso contra mim de forma
alguma. Até agora.
— Lista!
Encarando-o com cada centímetro da minha habilidade gritante, cuspi
cada palavra para ele.
— Descobrir. Como. Tocar. O Reino das Sombras.
Ele me puxou para mais perto, e eu pude sentir todas as linhas duras de
seu corpo. Não que ele parecesse notar o quão perto estávamos, estava muito
ocupado impondo seu poder sobre mim.
— O que mais está em sua lista?
Pisquei rapidamente.
— Por que isso importa? Já que o que você quer é o número um,
certamente, não dá a mínima para os meus outros objetivos.
Uma risada baixa e sombria.
— Correto, mas também preciso saber o que está distraindo você.
Shadow tinha chegado ao fim de sua paciência, e estava ficando muito
claro que eu provavelmente deveria ter passado pouco mais de cinco
segundos tentando descobrir como tinha tocado o Reino das Sombras.
Não havia expressão nenhuma sobre as linhas duras de seu rosto. Eu
não ia sair dali sem obedecer à vontade dele. Com um huff, eu disse a
verdade.
— Aprender sobre os dez mundos, ler todos os livros da biblioteca,
descobrir seus segredos e perder minha virgindade, então não serei a única
virgem metamorfo de vinte e dois anos no mundo.
Uma pausa prolongada.
— Você pretende transar com alguém na biblioteca?
Foi isso que chamou sua atenção? Não o fato de eu estar tentando
descobrir todos os segredos dele?
Eu dei de ombros.
— Ainda não decidi exatamente quem, mas estou abrindo uma seleção
com certeza. Quero dizer, uma garota tem necessidades.
Seu olhar caiu em direção aos meus seios mal enjaulados no top
branco, e em seguida foram imprensados contra seu peito.
— É isso mesmo?
Me. Fodi.
Estava quente ali? Teria ele explodido em chamas de novo?
— Eu proíbo isso — ele finalmente disse.
Uou... Espere um segundo...
— Sem chance, cara. Minha vida pessoal não é da sua conta.
Seus lábios estavam tão perto dos meus que eu quase podia prová-los.
Se eu colocasse minha língua para fora...
— E se sua virgindade for a razão pela qual você teve a pureza e
inocência para passar pelos bloqueios do Reino das Sombras?
Eu zombei.
— Em primeiro lugar, a virgindade não é o que torna alguém inocente
e, confie em mim, Shadow, estou longe de ser pura. Em segundo lugar, não
tem cabimento essa sua ideia de que a minha virgindade possa ter algo a ver
com isso; você está apenas tentando tornar a vida difícil para mim. — Eu o
golpeei no peito, o que não causou nem uma marca nele, já que estávamos
tão perto. — Não vai acontecer. Eu esperei o suficiente.
Um olhar contemplativo cruzou seu rosto e eu me perguntei que
besteira ele estava pensando agora.
— Ninguém vai nem olhar para você duas vezes se eu der a ordem,
sabe disso, certo? Você teria mais chance de perder a virgindade em uma ilha
deserta em que só habitam pássaros.
Eu nem queria pensar num cenário assim.
— Está me desafiando? — estourei, o tempo todo me dizendo para
calar a boca.
Eu estava dando a ele toda a munição para bloquear meus planos. Se
tivesse guardado isso tudo para mim, ele não teria sido tão esperto.
— Você não é um desafio — disparou de volta. — Você vive só da
minha vontade. O que a faz pensar que pode ser melhor do que eu, de
qualquer forma?
Então era assim.
— Aposto que posso perder a virgindade nas próximas duas semanas.
Você é a imbecil mais idiota, Mera.
Uma diversão cruel dançou em seus olhos, e eu resisti à vontade de
puxá-los para fora.
— Você aposta? E quais são as condições?
Abortar, abortar.
— Se eu ganhar, você me deixa voltar para meu bando e ver meus
amigos.
— E quando eu ganhar?
Shadow, seu arrogante imbecil.
— Na pequena chance de você ganhar, o que quer?
Seu sorriso era nada menos que aterrorizante.
— Se eu ganhar, você vai se submeter a mim de uma maneira que não
fez até agora. Chega de brigas. Chega de pesquisa. Você vai devolver os
livros que acha que está escondendo debaixo da cama e aceitar seu lugar
aqui. No fundo do poço.
Jesus. A perspectiva de isso acontecer provocou um frio profundo em
meu corpo. Minha alma realmente doía com a ideia de perder minha vontade
de lutar. Ele poderia tirar isso de mim, vi em seu olhar, mas eu tinha colocado
essa aposta na mesa, e agora não podia recuar.
— Você está pedindo demais. — Eu me engasguei. — As recompensas
estão irregulares. Não é justo.
Com a cabeça inclinada para a direita, ele parecia considerar minhas
palavras.
— Quem lhe disse que a vida é justa?
Zombei.
— Sei melhor do que a maioria que não é, mas, nesta situação, não vou
aceitar uma aposta que foi distorcida a seu favor. — Balancei a cabeça. —
Não, não, não. Se você ganhar, vou parar de lutar tanto, mas não vou me
submeter a você completamente. Não do jeito que está querendo. Terá que
aceitar o máximo que posso dar.
Seus lábios pressionados um contra o outro, diminuindo sua plenitude,
olhos ainda me avaliando.
— Tudo bem. Você nunca vai ganhar, de qualquer maneira, mas estou
curioso para vê-la em modo de luta. Que os jogos comecem.
Ele me libertou, mas não o deixei ter a vantagem dessa vez, envolvi os
braços ao redor do pescoço dele e puxei seu rosto para mais perto do meu.
— Você está cedendo, idiota. — Eu fervia, minhas pernas envolvendo
tão firmemente sua cintura, os braços em volta de seu pescoço. Apertei-me
mais ainda contra ele, sentindo o pulso quente do prazer por dentro. — Estou
pronta para sair deste estado, e não vou deixar ninguém me parar.
Seu rosnado era baixo e furioso e, antes que eu pudesse pensar através
de minhas ações confusas, ele girou e nos bateu nas prateleiras atrás de mim,
para que seu grande corpo pudesse engolir completamente o meu. Minhas
costas doíam, mas não o suficiente para impedir que o gemido emergisse com
a vibração na minha boceta. Seu poder era como um vibrador de alta
qualidade, especialmente quando eu estava sentindo através de cada linha do
meu corpo.
— Você pertence a mim — ele resmungou. — Cada parte de você. Até
que eu decida que não.
Suas mãos estavam debaixo da minha bunda para me empurrar mais
forte contra ele, esfregando meu clitóris de uma maneira que eu sabia que era
deliberada. Outro gemido escapou, mesmo quando eu queria arrancar seu
rosto.
— Você vai ser aquele que vai me fazer ganhar a aposta? — Eu
engasguei, prestes a gozar.
Ele riu. Na verdade, uma risada escrota e, se não fosse pelo pau duro
pressionado contra o meu corpo, eu poderia ter pensado que não tinha se
sentido nem um pouco afetado. Fisicamente, pelo menos, ele não era tão
blasé como sempre demonstrava ser.
Não que isso importasse. Ele faria tudo ao seu alcance para me impedir
de ganhar a aposta, e eu faria tudo ao meu alcance para ganhá-la. Como ele
tinha acabado de dizer: que os jogos começassem.
Trinta e quatro
Mais tarde naquela noite, enquanto eu estava deitada na minha cama,
minha respiração ainda forte e irregular, tendo acabado de gozar com tanta
força que o suor cobria meu corpo, tentei descobrir o que tinha acontecido no
covil. Um minuto de luta, seguido da encoxada, e a aposta...
O que eu estava realmente pensando ao desafiá-lo? Todos ali temiam
aquele bastardo... Todos! Eu não tinha a menor chance. Mas tinha que tentar.
Não estava em mim apenas rolar e aceitar a derrota, mesmo que meu ser
estúpido merecesse.
O resto da minha noite foi repleta de um sono inquieto, e acabei
ligando a luz para desenterrar os livros que guardava debaixo da minha cama.
Livros que eu realmente não precisava esconder, já que Shadow parecia saber
tudo o que eu estava fazendo desde que eu havia pisado nesse lugar.
Provavelmente devido ao delator, Inky.
Olhei para a nuvem de fumaça, que se materializara algumas horas
atrás, felizmente depois do orgasmo, e pairava por aí como um cheiro ruim.
— Você me traiu — eu disse olhando para ele. — Você me delatou
para Shadow.
Ele cresceu em um grande sopro de nuvem negra e, enquanto as
sinapses eram deflagradas em minha direção, tive o pensamento estranho de
que estava tentando se comunicar.
— Não posso entendê-lo, não importa o quão grande você fique — eu
disse com um rosnado. — Por que não foge e diz ao seu mestre que estou
lendo de novo?
Verdade seja dita, esses livros eram da biblioteca de Shadow, e o
bastardo controlador, sem dúvida, sabia quando algo era tocado lá. Mas no
meu estado rabugento, sem sexo, faminta, porque não houve jantar, era claro
que eu estava procurando uma briga. Inky era o único por perto em quem eu
podia descontar, então ele teria que lidar com isso.
Ele cresceu ainda mais, então virei as costas e fingi que não estava lá, o
tempo todo lendo meu exemplar roubado sobre o Reino das Sombras. Pelo
que o painel de controle me disse, não havia exatamente nenhum livro sobre
esse assunto na Biblioteca do Conhecimento. Pelo menos nenhum sem
fechadura. Na biblioteca de Shadow, por outro lado, eu tinha descoberto
cinco livros inteiros sobre o reino, e não havia dúvida de que existiam mais
escondidos — era muito mais difícil pesquisar sem um aparelho de busca.
Nas opções que encontrei, porém, os detalhes eram bastante escassos.
Alguns fatos que eu tinha aprendido: o Reino das Sombras era na
verdade o reino mais semelhante à Terra, em relação à estrutura. Eles tinham
povos terrestres e aquáticos, e muitos habitantes que gostavam de sol, surfe e
neve. Dependendo de onde moravam. Mas havia uma escuridão nessa terra
que não estava na nossa. Um verdadeiro submundo de criaturas-sombra que
eram consideradas de nível inferior, controladas pela realeza. Aqueles com
magia e poder — como o próprio Shadow — mantinham-nos como guardas,
animais de estimação e diversão. O que tornava minha teoria de que ele
apenas fingia precisar da minha ajuda para contê-los muito mais plausível.
Sem saber o nome verdadeiro de Shadow, eu não poderia dizer se ele
era citado nesses livros, mas havia muitas menções à família real, seus
casamentos arranjados, e os deveres que assumiram em cada uma de suas
terras. Ele tinha que ser da realeza; era impossível que possuísse tanto poder
de outra forma, a menos que Inky de alguma maneira o tivesse empoderado.
A pior parte era que nenhum dos livros detalhava o feitiço na porta ou a
razão pela qual o Reino das Sombras tinha sido cortado do Sistema Solaris.
Alguém sabia, com certeza... E eu não estava fazendo as perguntas
certas.
Como foi que eu toquei?
Isso por si só poderia ser o maior mistério de todos, uma vez que estava
bastante claro que, em geral, apenas aqueles nascidos do Reino das Sombras
poderiam acessar seu poderoso submundo de energia. Mas eu tinha uma
teoria de que era minha conexão com Shadow Beast. Os metamorfos
nasceram dele e, talvez na minha dor, minha alma tenha alcançado uma
antiga conexão entre metamorfo e fera. E então, o vínculo entre a fera e o
mundo de onde ele se originara.
Soltando o livro, fechei os olhos, procurando uma maneira de tocar o
reino novamente. Recordando a dor da rejeição de Torin, agora menos
intensa; eu me acostumei a viver com a perda, então como poderia replicar
essas emoções e a maneira como minha visão havia dobrado, como
acontecera no passado...
Bati na cama, livros espalhados por toda parte.

Ao longo da minha vida, quando o bullying ou os ataques estavam


piores, eu tinha essa pequena duplicação da minha visão. Um evento que eu
tinha escondido do mundo, fingindo que não estava perdendo a cabeça,
quando na verdade sabia que não era normal. Se tivesse sido eu tocando em
Shadow, e através dele, no Reino das Sombras o tempo todo?
Para replicá-lo, porém, eu teria que me colocar em uma posição onde
eu genuinamente temia pela minha vida ou sofria abuso intenso.
Estranhamente, apesar de suas tendências idiotas, com Shadow isso ainda não
tinha acontecido, e isso significava que eu precisava de outra pessoa.
Sem dúvida, um dos mundos poderia criar momentos de terror. O que
Shadow disse sobre Faerie...? O que fazem com terráqueos que tropeçam em
seu mundo me faz parecer um santo.
Faerie era um mundo onde eu poderia tentar e, conhecendo Len, ele me
ajudaria a navegar por lá sem acabar morta. Ele era amigo de Shadow, então
certamente, se eu explicasse do que precisava, me ajudaria nessa missão. Mas
seria realmente suficiente para trazer minha visão dupla se eu estivesse com
alguém que pudesse me proteger? Foi tão difícil prever o que poderia
desencadear a visão dupla, e forçá-la parecia um convite para o desastre.
Quando a manhã chegou, eu não estava perto de uma conclusão sobre o
que fazer para trazer a visão dupla, mas eu tinha adicionado um monte de
novas teorias para obsessivamente ponderar sobre elas por dias. Noite bem
aproveitada. Mas naquele dia eu tinha uma aposta para ganhar.
Com isso em mente, eu me arrastei para fora da cama e me vesti com
minhas roupas normais. Não estava planejando andar nua para ganhar uma
aposta — não por enquanto— e, com toda honestidade, esperava encontrar
uma conexão antes de fazer sexo. Seria bom se eu pudesse perder a
virgindade com alguém por quem estivesse genuinamente atraída, com uma
personalidade que não me fizesse querer esfaqueá-lo.
Então minha tarefa era falar com o maior número de visitantes que
pudesse, e ver com quem eu sentiria uma conexão. Então, mesmo que
estivesse assistindo, Shadow veria que eu não estava fazendo nada diferente
do que fazia antes, e talvez, depois de uma semana ou mais, ele desistisse de
se importar. Então era assim que eu agia naquele dia: cordial, calma e casual.
Os três cês.
Com sorte, seguido de pau.
Trinta e cinco
A biblioteca estava quieta quando entrei. Isso por si só não era tão
estranho. Muitas vezes os duendes que dirigiam o lugar eram os únicos ao
redor. Mas hoje, juntamente com o fato de que eu estava tentando ganhar essa
aposta e Shadow tinha me avisado que ele ia dificultar, havia um fedor dele
no ar.
Gaster apareceu depois de alguns minutos, correndo por aí com um
braço cheio de livros.
— Ei, Gaster! — chamei acenando para ele.
Olhos frenéticos correram na minha direção e, exceto por uma resposta
rápida "Muito ocupado, desculpe", ele nem sequer fez contato visual. Isso
aconteceu repetidamente, ninguém se aproximando de mim, falando comigo,
ou olhando na minha direção, se pudesse evitar isso. As poucas vezes que
alguém acidentalmente me encarou, o pânico em seu rosto era evidente. Pelo
menos teria sido se eu não estivesse completamente furiosa com essa
besteira.
Quando chegou a hora do almoço, segui meu caminho para a mesa,
pedindo em poucas palavras aos robôs que serviam. Aparentemente não
estavam fora dos limites, porque eu não podia fazer sexo com eles.
Enquanto esperava, tentei controlar a respiração e me acalmar.
— Shadow avisou a todos — disse Angel. — O cretino é imbatível
quando é desafiado.
Em meu estado de fúria, eu não tinha nem notado que ela estava lá.
— Você está autorizada a falar comigo? — perguntei, irritada.
Ela deu de ombros, uma maçã na mão hoje, aberta com pequeno corte
na casca. Talvez o cheiro fosse mais forte assim.
— Shadow não pode me controlar. Não tenho medo dele ou de suas
estratégias particulares de persuasão. Ele sabe disso, e nós chegamos a nossa
trégua.
Eu bufei.
— Bem, parece que tenho que perder minha virgindade com você.
Ela se virou totalmente para mim, abandonando a fruta.
— O que é uma virgindade?

Oh, uau. Bem, essa ia ser uma conversa interessante.


— Então, tipo, humanos quando não fizeram sexo... — Parei quando
ela sorriu. — Você sabe, não é?
Sua risada era um dos sons mais bonitos que eu já ouvira.
— Sim, realmente passei muito tempo monitorando o mundo humano.
Eu sou bastante fluente em suas línguas e expressões.
— Por que você monitorou a Terra?
Encolheu os ombros.
— Negócios familiares, de certa forma. De olho em certas famílias
humanas, garantindo sua longevidade e segurança.
Engoli em seco.
— Como um anjo da guarda?
Aqueles olhos antigos repousaram em mim, nas profundezas repletas
de dor e memórias.
— Sim, algo assim.
Por alguma razão, isso me atingiu mais forte do que quase tudo o que
aprendi nessa biblioteca de fantasia. Anjos da Guarda eram tidos como uma
coisa de Deus, e talvez fosse daí que vinham as escrituras — seres míticos de
Honor Meadows, vistos ao redor da Terra...
Ela riu novamente.
— Eu ainda sou a mesma idiota reticente que você conheceu no
primeiro dia aqui. Não me pinte com uma auréola ainda.
Meus lábios se contorceram e eu não conseguia parar de rir.
— Ok, justo.
Ela se aproximou um pouco mais, com asas esbarrando em mim
enquanto se acomodava.
— Agora vamos avaliar o seu problema com Shadow.
Eu adorava ter uma amiga para conversar, porque eu ia precisar de toda
ajuda que pudesse ter.
— Qual é o seu plano atual? — ela começou.
Dando uma mordida em meu sanduíche, mastiguei algumas vezes
pensando sobre isso.
— No começo, pensei em usar a biblioteca como campo de caça. Fale
com todos que passaram, e veja se alguma faísca aconteceu naturalmente.
Mas, como Shadow decidiu jogar duro, preciso ser um pouco mais agressiva
na minha abordagem.
Dando outra mordida, suspirei com os sabores deliciosos dançando em
minha língua. Pelo menos um aspecto do dia ainda era bom.
— Na biblioteca não funcionará — disse Angel. — Você terá que
escolher uma terra e fazer seu jogo sexual lá.
Acenei com a cabeça, engolindo antes de falar.
— Sim, esse era o plano B. Eu só estava com medo de tropeçar em um
mundo desconhecido e de alguma forma ser morta.
Os lábios de Angel se contraíram.
— E a Terra?
Paralisei.
— Nem sequer pensei na Terra. — Mais uma vez, provando que,
quanto mais tempo eu passava longe do meu planeta natal, menos me sentia
conectada a ele. — Mas faz sentido. É meu mundo, então, naturalmente, eu
me viro muito melhor por lá.
Sem mencionar que os caras humanos eram basicamente paus
ambulantes. Eles pensavam com a cabeça de baixo, e não tinham escrúpulos,
então não seria difícil levar alguém para casa por uma noite.
Angel estava rindo de novo, e eu literalmente nunca a tinha visto tão
animada e relaxada.
— Às vezes, a solução mais simples é a melhor.
— Como irei chegar à Terra com Shadow em meus calcanhares
tentando impedir? — eu me perguntava, sabendo que ele já teria se
antecipado a isso, sabendo que eu usaria uma porta para escapar e ganhar a
aposta.
— Talvez eu tenha uma ideia — disse Angel, baixando a voz a ponto
de eu ter que me inclinar para frente tentando ouvi-la. — Mas você vai ter
que ficar quieta por alguns dias até Shadow se encontrar com os amigos para
sua noite de jogos semanais.
Eu sabia que aqueles cretinos não estavam tendo jantares chiques.
Provavelmente era cerveja e pôquer, ou seja lá qual for a versão sobrenatural
dos deuses para isso.
— Eu posso fazer isso — disse com um aceno. — Posso envolvê-lo em
uma falsa sensação de sucesso se não reagir ao nível de restrição que ele
impôs neste lugar.

Angel sorriu.
— Oh, sim, e, melhor ainda, quero que você passe esses dias tentando
mesmo seduzir o próprio Shadow. Dessa forma, ele vai achar que você tirou a
atenção da biblioteca e direcionou para ele. Vai gostar desse joguinho e não
vai perceber nossa armação.
Havia algo sobre o esquema que fazia meu sangue bombear mais forte
por todo o corpo, e esfreguei as mãos juntas com prazer.
— Sim! Estou aqui para isso — eu disse a ela. — Só me diga do que
precisa, e estarei em cima dele.
Angel deu um tapinha no ombro, suas asas se espalhando atrás dela
quando se levantou. Vamos conseguir, minha amiga. Nem se preocupe com
isso.
— Ela se virou para sair com os olhos pousando em Shadow, que
aparentemente tinha acabado de entrar no refeitório. Então, com um último
sorriso na minha direção, Angel foi embora.
Shadow caminhou até mim, parecendo presunçoso pra caralho. Sem
mencionar que estava mais quente do que o normal, seu cabelo despenteado e
úmido, os restos de suor em sua testa. Ele parecia que tinha vindo direto de
um treino, ainda suado, mas duvidei que estivesse puxando ferro em uma
academia. Os deuses não precisavam fazer isso para serem trincados, então
provavelmente estava lutando.
Eu tinha pena de quem era seu pobre oponente.
— Como está sendo hoje para você? — Shadow perguntou, afundando-
se na cadeira que Angel tinha acabado de desocupar.
Uma bebida apareceu em sua mão, uma mistura prateada, e mais uma
vez lembrei-me de suas habilidades e poder.
Poder que ele estava usando contra mim, mas me senti um pouco mais
confiante com Angel do meu lado.
Ela tinha um plano, e falando em... Eu sorri amplamente.
— Tem sido ótimo! Tenho uma tonelada de trabalho já terminado, a
comida está excepcionalmente ótima, e acabei de ter uma conversa com
minha amiga. É bom ter uma amiga por perto... Me faz sentir um pouco
menos a falta de Simone e Dannie.

Apenas parcialmente uma mentira — ainda sentia falta dos meus outros
amigos horrivelmente.
Com os olhos sombrios, ele me observou de perto.
— E nenhum outro problema?
Balancei a cabeça mantendo a mesma expressão relaxada.
— Não que eu tenha notado. — Meu olhar estava mais focado quando
encontrou com o dele. — E você? Algum problema no seu mundo?
Encontrou outra criatura sombra para rastrearmos?
Inclinando-se para trás em sua cadeira, ele cruzou os braços, ombros
largos batendo-me como as asas de Angel faziam. Não havia dor, como
costumava acontecer quando ele me tocava.
— Quer saber sobre meus problemas? — desdenhou soando como se
não acreditasse em mim.
Inclinando-me para mais perto, não fiquei surpresa com o olhar
suspeito que ele mantinha focado em mim.
— Sim, eu quero. Você é um dos poucos que não estão muito ocupados
para falar comigo hoje — agindo como se não estivesse irritada com aquilo,
mas era um meio para um fim — e estou genuinamente curiosa sobre sua
vida. Em especial sobre o dia a dia, como você dirige a biblioteca e seu covil.
Se a suspeita tivesse uma face, seria o rosto dele, mas Shadow
embarcou em meu interesse falso.
— Certo, bem, já que perguntou, passei a manhã lidando com o
contingente Faerie. O clã de prata e aqueles do reino das esmeraldas estão
tendo uma pequena batalha sobre um terreno que supostamente está cheio de
pedras preciosas. Analisar os escritos antigos para encontrar direitos de
propriedade é mais demorado do que você imagina, e, como estou agindo
como intermediário nisso, estou prestes a ir para Faerie e cavar a porra do
terreno para ver se alguma dessas joias existe.
Eu estava mais interessada do que gostaria de admitir na vida de
Shadow, inconscientemente inclinando-me para a frente.
— Então esse é o seu papel aqui, na biblioteca? Aquele que
supervisiona tudo e impede que todos os visitantes de outros mundos caiam
no caos?

Shadow confirmou com a cabeça quando Inky levantou-se para girar


em torno dele.
— De certa forma. Eu estava lá no início, quando a biblioteca estava
sendo formada, e desde então sou o guardião da vasta gama de
conhecimentos que ela contém. Venho fazendo o meu melhor para garantir
que não caia em mãos erradas. Minha proteção também se estende a qualquer
um que resida dentro dessas paredes, a menos que quebrem uma das regras.
Sou chamado para mediar situações mais do que gostaria, mas não desistiria
do meu poder ou controle por nada.
— E ainda assim está disposto a deixar a Terra sucumbir com as
criaturas das sombras?
Ele deu de ombros.
— A Terra tecnicamente não faz parte do Sistema Solaris. Só está
ligada porque uma vez decidi participar de algumas das melhores corridas e
bebidas do deserto com Reece, e então quando ele me desafiou a usar meu
poder para deixar um legado duradouro... metamorfos nasceram.
Bufei.
— Você estava em Brolder na época?
Shadow acenou com a cabeça, e tudo fazia sentido.
— Nós somos o produto de uma aposta entre bêbados — eu disse
balançando a cabeça. — Legal.
Shadow deixou cair sua garrafa ainda cheia sobre a mesa. O barulho me
distraiu e, quando olhei para cima, ele já tinha girado a cadeira em minha
direção, estendendo a mão para pegar os braços da minha cadeira e me puxar
para perto também. Agora estávamos cara a cara, minhas pernas presas entre
as dele.
— Que jogo você está jogando, Sunny?
Engasguei.
— Não, você não pode me chamar assim. Raio de Sol é uma coisa,
mas “Sunny”... — Solucei, e, por mais que me recusasse a chorar na frente
dele, ouvir o apelido usado pelo meu pai vindo do meu sequestrador feriu
duramente meu peito. Como um pequeno corte, mas cada respiração
aumentava a ferida, derramando mais e mais sangue.

— Ele ainda chama você assim, sabia? — murmurou, não se afastando


de mim.
Estava arrastando minha cadeira mais perto a cada palavra, até que eu
estava praticamente no colo dele.
— Que-Quem faz?
Meu pai estava morto, então a quem ele se referia? Jaxson?
— Eu lhe disse aonde todas as portas levam ao longo do corredor para
a Terra? — perguntou ele, sabendo muito bem que não havia dito.
— Não.
— Algumas são prisões, como você sabe — disse ele lentamente,
desenhando essa besteira. — Outros são armazéns para objetos mágicos que
são muito perigosos para estar na natureza. — Certo, certo. Vamos ao ponto,
cara. — Há também algumas portas incrivelmente especiais que levam a
versões diferentes de uma vida após a morte. Eu ofereço uma escolha para os
metamorfos caídos, dependendo de como me sinto sobre seu legado na Terra.
Meu coração errou uma batida, meus olhos queimando quando as
lágrimas os encheram. Orgulho à parte, eu não conseguia me impedir de
reagir ao que ele estava dizendo.
— Você viu meu pai?
Foi um sussurro. Uma frase curta e simples, que queimou como se
tivesse sido marcada em minha pele.
— Eu o acompanhei até sua vida pós-morte.
Minhas mãos estavam se movendo, envolvendo seus bíceps enquanto
eu o segurava com cada grama da minha força.
— Posso vê-lo? Por favor?
A dor registrada um segundo depois — eu era tão apegada à
possibilidade de ter outro momento com meu pai, que tinha esquecido o que
acontecia quando tocava Shadow.
— Argh, merda! — gritei, arrancando as mãos e tentando respirar
profundamente o suficiente para superar a dor.
Ai, ai, aaiiiii. Por que isso doía tanto?
E ainda assim, de alguma forma, ainda doía menos do que saber que
meu pai estava atrás de uma dessas portas, e Shadow era o único capaz de
permitir.
Trinta e seis
— Você não pode vê-lo.
Eu sabia que as palavras estavam vindo, eu podia vê-las em seu rosto,
mas ainda assim... Eu estava sangrando até a morte agora? Ele tinha
balançado todas as esperanças do mundo na minha frente para depois rasgá-
las.
— Por quê? Por favor. Esqueça a aposta. Eu me submeterei se você me
permitir ver o meu pai. — Eu estava implorando, sim, e não tinha nenhum
arrependimento sobre isso.
Tudo na minha vida mudou quando meu pai escolheu atacar o alfa, e eu
precisava saber por quê. Precisava do encerramento. E precisava saber se
poderia amar mais uma vez livremente o homem que me criara, mas que
também arruinara minha vida.
Eu tinha tantas necessidades. Era como fogo alimentando todos os
meus pensamentos e ações.
— Por favor, Shadow.
Por uma breve fração de segundo, quase pareceu arrependido mesmo
antes de pronunciar suas próximas palavras.
— Não há como os vivos conversarem com os mortos. Não funciona
assim.
Minha loba uivava e um soluço sufocado escapou dos meus lábios.
— Eu o odeio. — Eu me engasguei com a raiva. — Sei que há uma
maneira. Você só não quer me ajudar.
— Eu poderia matá-la e então você teria todas as conversas que quer —
ele retrucou. — Os vivos não podem conversar com os mortos.
— E ainda assim, de alguma forma, você fez isso — eu me enfureci
com ele, tentando me soltar. — Você o ouviu usar meu apelido, então isso
significa que, a menos que você esteja morto, é possível.
O rosto dele estava a centímetros do meu. Um forte sopro de ar bateu
contra meus lábios, e eu inalei seu cheiro intoxicante.
— Ouça atentamente, filhote — disse ele em um estrondo de
aborrecimento. — Eu cruzo a linha entre a vida e a morte. Todas as sombras
fazem. Se você aprender a tocar o mundo das sombras novamente, talvez,
apenas talvez, tenha a mesma habilidade que eu para entrar na vida pós-
morte. Mas até lá... — Ele me empurrou para trás com tanta força que minha
cadeira deslizou pelo chão e eu acabei a muitos metros dele. — Até lá, não
me questione.
Dane-se ele. Por que sempre foi assim? Empurre e puxe, quente e frio,
vida e morte. Nunca conseguimos encontrar nosso equilíbrio, e talvez não
houvesse um entre nós... Talvez nós dois fôssemos yin, com muita escuridão
na alma.
Shadow continuava ali, sua expressão mais uma vez neutra enquanto
ele olhava para mim. Normalmente, esse posicionamento me desafiava a
resistir, então eu estava pelo menos tentando não me submeter, mas eu não
podia me mover. Tinha sido derrubada, o ar roubado dos meus pulmões.
— Você tem mais treze dias — disse ele quando se virou e saiu,
levando sua energia e poder consigo.
Eu me afundei mais na cadeira, agarrando com toda força a lateral da
mesa. Meu pai estava ali. Logo abaixo do corredor do lugar onde eu estava.
Mas qual era a porta? Eu deveria abrir cada uma delas até encontrar o reino
da morte?
Colocando-me de pé novamente, corri em direção à biblioteca, apenas
para colidir em cheio com Shadow, que claramente estava esperando por
mim. Ele passou os braços ao meu redor, puxando-me para cima sem nenhum
esforço, então eu estava completamente à sua mercê.
— Tão previsível, pequena loba — ele ronronou. — Você nem me deu
tempo suficiente para sair da biblioteca.
Rosnei para ele, lutando... lutando tão ferozmente como já tinha feito
antes.
— Por que você estava esperando por mim?
Ele sorriu e eu joguei a cabeça para trás, uivando com toda a força dos
meus pulmões. Um som tão familiar quanto o que eu tinha produzido ao ser
rejeitada por meu companheiro. O uivo que derrubara os metamorfos e me
deixara tocar no Reino das Sombras.
Minha visão dobrou quando a náusea subiu, pronta para entrar em
erupção como um vulcão.
— É isso — disse Shadow soando muito satisfeito. — Construa a partir
disso, Mera. Construa um caminho que você possa seguir.
Ignorando-o, deixei minha loba sair, atacando-o assim que fui
parcialmente transformada. Quando mordemos o pescoço dele, houve
resistência, nossas presas não encontrando tração alguma. Não pudemos
perfurar a pele dele. A fera era muito forte para mim.
— Você está perdendo tempo — gritou comigo, despreocupado com a
minha tentativa de matá-lo. — Precisa abrir a porta para o Reino das
Sombras.
Porta.
Quando minha loba se mexeu para descer, ele me colocou em pé, e nós
saímos o mais rápido que pudemos em direção à porta. Minha visão de lobo
também foi dobrada, tornando tudo mais sombrio do que o normal.
Felizmente, a biblioteca estava vazia, sem seus visitantes regulares,
então tínhamos um caminho livre, com apenas Shadow Beast na minha cola.
E eu tinha literalmente uma cauda de lobo agora. Dessa vez, em nossa visão
dupla, não parecia haver nenhum residente do Reino das Sombras por perto
para tocar, ou talvez fosse mais difícil chegar ao reino deles partindo da
biblioteca? Estranho, já que a porta estava ali, e agora, ao nosso alcance.
Ao contrário da última vez que olhei para ele, havia uma fumaça
evidente cobrindo toda a porta agora, muito parecida com Inky. Não era a
mesma coisa, pois podíamos sentir a diferença. Inky era energia
relativamente positiva, enquanto a que cobria a porta tinha sido puxada das
profundezas do Inferno.
Uma energia infernal que minha loba não queria tocar. Nós recuamos,
mas Shadow não aceitou nada disso, pressionando atrás de nós, usando sua
vontade para nos impulsionar para a frente.
Um gemido escapou quando nosso nariz tocou um galho repleto de
escuridão que havia escapado de algo maior. Aquilo recuou, assim como nós,
mas mais uma vez nosso retrocesso foi bloqueado por um idiota gigante.
Shadow não nos permitiria perder uma chance de quebrar as barreiras
em sua terra. Enquanto o corpo da minha loba era empurrado para a frente, a
fumaça se enrolava ao nosso redor, traiçoeira e fria, e um breve pensamento
me alertou sobre minha falta de informações sobre esse mundo, eu realmente
deveria ter pressionado mais por respostas.
Especialmente porque ele tinha sido bloqueado em primeiro lugar.
Os avisos estavam lá por uma razão, e deveríamos ter obedecido.
Porque eu tinha a suspeita de que abrir o Reino das Sombras poderia ser a
única coisa que destruiria todos nós.
Trinta e sete
Nossa visão não estava mais em tons de preto e branco com nuances
cinzentas, e não havia mais uma visão dupla da paisagem que simplesmente
não conseguíamos tocar.
Agora permanecíamos suspensos em uma escuridão eterna.
Essa escuridão era uma entidade viva, respirando, que já existia lá no
início e continuaria por muito tempo depois que o resto de nós se fosse. O
primeiro toque na minha pele foi gelado e invasivo, fazendo minha loba
querer correr e se esconder simultaneamente, mas também havia uma parte de
nós... Essa parte minúscula e curiosa... que não se rebelava com a sensação.
Ela abraçou a escuridão, abrindo nossa alma para deixar faíscas dela
rastejarem para dentro. Foi tão lento que nem percebemos o que estava
acontecendo no início e, quando percebemos, bem, digamos que nenhuma de
nós se importou.
— Mera! — ele disse meu nome com um estalo de comando. — Você
não deve abraçar a escuridão.
Eu entendi cada uma das palavras, mas o verdadeiro significado foi
perdido. Aquela nova realidade tão sombria era tudo sobre o que eu sabia... E
eu ansiava por isso.
— Pelo amor de Deus — uma voz murmurou de perto. — Pelo menos
abra a maldita porta antes de deixá-la consumir sua alma.
Talvez tenha sido a declaração idiota, ou apenas um momento de
clareza, mas o rosnado de Shadow nos tirou do nosso estado atordoado a
tempo para que eu me agarrasse ao que restava de mim e da minha loba,
rolando para o lado e chamando a mudança de volta para o estado humano.
Pela primeira vez — em nossa experiência de mudança muito limitada
juntas — minha loba realmente lutou comigo. Ela não queria abrir mão do
controle, e nossa batalha silenciosa continuou por muito mais tempo do que
eu esperava.
— Transforme-se! — Lá foi ele me comandando de novo, mas dessa
vez agradeci a ajuda.
Minha loba cravou as garras nele quando Shadow colocou as mãos em
mim. — Ela pertence a mim! Solte-a.
Meu grito era baixo e gutural enquanto a mudança me rasgava,
violenta, ardente, e me queimando viva. A dor que senti ao tocar Shadow sem
permissão não era nada perto dessa nova forma de tortura. Mas quando tudo
foi dito e feito, voltei a mim mesma, ofegante e soluçando no chão
imaculado, nua e exausta.
Shadow ainda estava me tocando, seu poder surgindo na minha pele.
— Você tem algumas explicações a dar, Raio de Sol. Se não morrer
antes que eu a aqueça.
Arrepios arrasaram meu corpo, quase ao ponto de provocar convulsões.
Shadow deve ter me levantado, porque a próxima coisa que eu senti foi o
bater de jatos de uma água quente derramada sobre minha pele congelada.
— Pare — eu chorei. — Isso dói.
Eu estava lutando, mas a armadilha de aço que era Shadow não cedeu
nem um centímetro.
— Deixe-me ir. — Chorei no peito dele. — É demais. Devolva-me à
escuridão.
— Lutarei contra a escuridão para mantê-la viva — ele murmurou
contra minha pele.
Talvez fosse delírio, mas, pela primeira vez, parecia possessivo da
maneira que um homem seria em relação a uma mulher. Não do jeito que um
deus faz com seu animal de estimação.
Ou talvez eu fosse apenas um animal de estimação muito importante.
— Shadow — gemi, minha cabeça clareando à medida que o frio que
estava despedaçando meus ossos ia se aliviando.
— Você só precisa se aquecer — disse ele baixinho, e minha cabeça
doía e apreciava os ruídos baixos de sua voz.
Quando me soltou, eu esperava cair no chão, mas, em vez disso, ele
enrolou um braço em volta da minha cintura para me estabilizar, enquanto o
outro esfregava minhas costas, enviando-me mais calor, usando sua marca
particular de poder de fogo.
Foi então que percebi que estava nua, e ele estava no chuveiro comigo,
completamente encharcado.
— Suas roupas — murmurei ilogicamente.
— Não tem importância — respondeu ele. — Você quase morreu; é
mais importante se concentrar nisso.

— Idiota — eu murmurei de volta, meus olhos tremulando fechados


quando uma exaustão pura e consumista me mandou para a terra dos sonhos.
— Você sabe, Raio de Sol — foi a última coisa que ouvi antes de tudo
ficar completamente escuro.

No meu mundo eu já tinha acordado algumas vezes de ressaca. Não


muito, porque uma mãe alcoólatra meio que me impediu de beber em
excesso, mas Simone conseguiu subtrair — da coleção de seus pais — uma
ou duas garrafas. Nas duas vezes terminamos tudo e, como tinha sido antes
da nossa primeira transformação, definitivamente sofremos as consequências.
Acordar da porta do Reino das Sombras que tentava me possuir não foi
nada parecido com aquilo. Era mais como a morte me levando para a vida
pós-morte, uma batida dolorosa do meu cérebro de cada vez.
Quando abri os olhos, a luz partiu minha cabeça em dois, e eu rolei
para vomitar do lado da cama. Vomitar com dor de cabeça só piorou a dor,
então, claro, vomitei de novo. Ciclo vicioso bem ali.
— Você vai ter que limpar tudo isso.
Ele parecia sem graça, e eu me senti do mesmo jeito quando segurei um
olho aberto para fuzilá-lo com um olhar letal.
— O que fez comigo? — reclamei, limpando a boca enquanto me
segurava, apática, do lado da cama.
Uma cama que definitivamente não era minha.
Eu deveria ter percebido imediatamente, porque, embora não houvesse
nada de errado com meu colchão — era incrivelmente confortável —, esse
era uma nuvem de luxo. Os lençóis eram muito macios para serem de
qualquer material da Terra, e cheiravam tão bem como...
Pulei para ficar de pé, gemendo ao fazer isso.
— Estou na sua cama.
Olhando ao redor tão rápido quanto minha cabeça doendo permitiria,
tentei ver tudo na "cama proibida". Procurei por isso várias vezes, mas não
havia sinal de outro quarto em todo o covil.
— Este era o mais próximo — disse Shadow. — Mais alguns segundos,
e o feitiço escuro na porta do Reino das Sombras teria consumido você.
Ele estava sentado em uma cadeira de couro larga, cor de oliva, com o
encosto muito alto, mais alto do que ele com seus mais de dois metros. Os
braços estavam relaxados nos apoios laterais, uma camisa branca de manga
comprida envolvendo os músculos impressionantes. Suas pernas longas
estavam vestidas em jeans desbotados, um homem esparramado. E, o tempo
todo, aqueles olhos vermelho-dourados examinavam meu rosto.
Ele parecia um homem que estava sentado lá por muitas horas,
esperando pacientemente.
— O que realmente aconteceu? — perguntei, aliviada por sentir uma
ligeira diminuição na batida em minha cabeça.
— O que aconteceu é que você é mais fraca do que eu esperava e,
quando teve a chance de romper um feitiço muito poderoso na porta do Reino
das Sombras, você só conseguiu quase morrer.
Certo.
— Sou boa em quase morrer — disse conversando, optando por não me
preocupar em ficar com raiva de Shadow enquanto ele agia como um babaca
— Mas talvez, se você tivesse sido um pouco mais aberto ao falar sobre o
Reino das Sombras e que tipo de feitiço há na porta, não estaríamos nesta
situação.
Shadow balançou a cabeça, inclinando-se para a frente a fim de me
atrair com seu olhar intenso.
— Perceba, você não deveria precisar de alguma informação para fazer
o que era necessário. Você só tinha que ser forte o suficiente para quebrar o
feitiço sem que ele consumisse sua alma.
Consumindo minha alma. Bem, isso não soava divertido. Passando as
mãos pelo corpo, como se eu pudesse verificar se tudo ainda estava intacto,
eu sentia apenas a pele nua. Piscando para ver os lençóis sedosos agrupados
em volta da minha cintura, os peitos pendurados para o mundo ver, eu
balancei a cabeça.
— Bem, droga. Por que você não me disse que eu estava
completamente nua?
O peito de Shadow retumbou enquanto ele ria.
— Você não age como nenhuma das virgens que eu já conheci.
Bufei, ainda não tentando me cobrir. Nesse ponto estava sentada ali sei
lá por quanto tempo e encobrir meu corpo agora seria redundante.
— Pelo visto, algumas delas foram sacrificadas por você ao longo dos
anos, eu acho.
Balançando a cabeça, abandonou a cadeira e caminhou para mais perto
de mim. Eu engoli a secura na garganta. Como alguém poderia ir de quase
morte para tesão louco em poucos minutos estava além de mim, mas, ei, pelo
menos eu não era chata.
Quando ele parou acima de mim, inclinei a cabeça para trás.
— Mera — disse ele, sua voz não expressando nada.
— Shadow — eu respondi.
— Você precisa sair da minha cama, se vestir, escovar os dentes, e
encontrar o maldito caminho de volta para o Reino das Sombras. Antes que
seja tarde demais.
Oh. Bem, tudo bem então.
Evitando o vômito, deixei cair as pernas do lado da cama dele enquanto
tirava um momento para olhar ao redor, já que essa provavelmente seria a
única vez que eu seria convidada para seus aposentos secretos.
O quarto era sombriamente masculino, é claro — o rei das trevas não
seria pego nem morto com nada diferente disso — e parecia ser dominado
principalmente pela cama enorme. Fora isso, havia uma televisão, e eu olhei
com saudade para ela. Fazia meses que eu não me entregava ao meu amor por
filmes antigos e seriados bregas, e saber que Shadow tinha uma moderna TV
ali era uma sacudida da realidade.
Senti saudades de casa.
— Quantos canais você tem aqui? — perguntei meio brincando,
empurrando a cabeça em direção à tela plana maciça.
A expressão de Shadow era de incredulidade.
— Todos eles.
Todos. Eles?
— Inveja — eu chorei, em uma pobre imitação de Napoleão Dinamite
e, sabe da maior...? Ele realmente sorriu.
— Talvez, se descobrir como cumprir a única tarefa que dei a você, eu
lhe dê algum tempo com a tela.
— Como uma criança — eu debochei. — Devo chamá-lo de “papai”
também?
O vermelho-dourado em seus olhos transformou-se em preto, e eu nem
sequer tentei fingir que tinha entendido mal o duplo sentido do que eu tinha
acabado de dizer. Eu não tinha esquecido o plano de Angel, e a experiência
de quase morrer não ia me impedir de cumprir minha parte.
— Saia antes que eu a faça curvar-se perante mim — Shadow
resmungou, sua voz mais profunda do que nunca. — Me chamar de “papai”
será a menor de suas preocupações.
Claro, isso atingiu meu peito como o tiro lancinante de uma flecha
mágica, uma que nunca perderia seu alvo. O meu pai. Foi ele quem começou
tudo isso e quase me matou por conta de um reino escuro. Seria a última vez
que eu me aproximaria dos meus últimos suspiros por causa daquele homem?
Deveria dizer "foda-se" e deixá-lo ir agora? Senti como se tivesse lutado pelo
meu pai tanto quanto possível, e ainda assim não conseguira liberar minha
última esperança por respostas. Minha última esperança de vê-lo mais uma
vez.
Minha cabeça estava uma bagunça devido ao drama paterno quando eu
tropeçara nesse quarto, só para perceber que não tinha prestado atenção na
porta por onde eu deveria sair, e quando procurei ao redor não havia nada a
ser encontrado. Apenas um conjunto de prateleiras familiares perto do fogo.
Bem, aparentemente, seu quarto era como o corredor para a Terra: só Shadow
poderia encontrá-lo.
Meu quarto, felizmente, não estava tocando música ambiente e, quando
entrei, eu me afundei contra a porta, desejando que a fraqueza do meu corpo
desaparecesse. Minha loba se sentia como uma concha de si mesma nesse
momento, e parecia tão fora do normal que eu estava genuinamente
preocupada.
Fazendo uso de toda a força que eu tinha, soltei a porta e fiz o meu
caminho para o banheiro, onde meio que me afoguei na tentativa de ficar
limpa e clarear a cabeça também. Quando terminei, um banho de água quente
interminável — eu me sentia muito mais como o meu eu habitual. Só que
com um monte de perguntas e um desejo renovado de descobrir o que tinha
provocado aquela porta para o Reino das Sombras a ponto de ela reagir
assim.
Por que foi fechado para todos?
Puxei a roupa que eu gostava de pensar como o meu estilo "saia da
minha frente ou vou chutar sua bunda", incluindo calças de couro preto, botas
também de couro na altura da coxa, com um salto decente, e uma blusa
branca, que eu enfiei para dentro das calças. Trancei o cabelo — tentativa
ruim, mas melhor do que a de Simone — e saí para obter algumas respostas.
Trinta e oito

Entrando na biblioteca, eu estava com a cara de vadia descansada


pronta para qualquer um que olhasse na minha direção. Felizmente, Shadow
tinha preparado o lugar para isso, e cada ser que estava lá ia se espalhando no
momento em que eu aparecia em seu campo de visão. Eu tinha
temporariamente esquecido que estava fora dos limites de uma outra maneira,
mas isso nem importava.
O que importava era a porta.
O Reino das Sombras.
Ele tinha me chamado e eu ia descobrir o que era aquele filho da puta.
Marchando em direção a ele, saltos batendo no chão duro, não deixei
meu foco vacilar. Contornando a esquina, parei ao ver a porta em si. Não era
mais não descritiva. Em vez disso, a escuridão que eu tinha visto na minha
visão dupla era clara como o dia para todos verem. Como um portal de
fumaça, deslizando para cima e para baixo, bloqueando a entrada real.
Estendendo a mão, eu parei de tentar tocá-la, em vez disso contornei
por cima, experimentando a energia. Eu quase podia sentir o frio e o sabor
metálico do feitiço na minha língua, e com ele veio a lembrança de estar
presa no meio da escuridão, incapaz de me libertar.
— Ouvi dizer que você viveu uma pequena aventura.
Reconheci a voz de trovão de Reece e seu sotaque áspero.
Sem preocupar em me virar, rosnei.
— Se você não está aqui para fazer sexo comigo para que eu possa
ganhar a aposta com Shadow, então caia fora. — Não que eu estivesse
particularmente atraída por Reece, exceto pelo fato de admirar seus cílios
bonitos, mas nesse momento eu aceitaria quase qualquer um para vencer
Shadow.
Uma risada profunda soou atrás de mim.
— Tudo faz sentido agora — comentou. — Muito sentido.
Puxando minha mão da escuridão, acenei para ele.
— Você não está fazendo um pingo de sentido. Por favor, vá embora.
Não preciso de distração.

Ele não se mexeu. Eu podia sentir sua poderosa presença da mesma


forma que sentia Shadow, como se estivesse muito perto de uma usina, ondas
de energia vagando pela minha pele.
— E se eu lhe contar sobre o feitiço que mantém este mundo como
nosso refém? — perguntou ele casualmente.
Minha curiosidade era muito grande para ignorar qualquer informação
possível, então eu girei, estendendo a mão para segurar nele antes de lembrar
que era uma péssima ideia tocar esses caras sem permissão. Era tarde demais,
porém, quando minhas mãos caíram em seu peito; felizmente, ao contrário de
quando tocava Shadow, eu não senti nada de Reece, exceto um músculo
excepcionalmente firme, e um cheiro de algo seco e terroso.
Ele olhou para as minhas mãos, não disse uma palavra e, apesar da
risada que eu pensei ter ouvido, seu rosto lindo era mais uma vez estoico.
Arrancando minhas mãos dele, engoli grosseiramente.
— Por favor, preciso entender.
Ele acenou com a cabeça.
— Você vai entender tanto quanto eu puder ajudar, mas não tenho
todas as respostas. Os segredos de Shadow são só dele. Eu só posso falar
sobre esse feitiço.
A decepção quase me derrubou até que me lembrei que o feitiço em si
ainda era muito importante.
— Esse feitiço é uma entidade viva — disse ele, aqueles olhos azul-
escuros voltados para a porta sombreada. — É alimentado por uma fonte
desconhecida que acreditamos estar no Reino das Sombras. — Sua voz
baixou, acariciando meus sentidos.
Havia uma sensualidade inata sobre aquele que eles chamavam de
divindade do deserto.
Shadow, o segundo.
— O feitiço é incrivelmente inteligente — continuou Reece. — Ele se
adapta. Toda vez que descobrimos uma maneira de bloquear sua força e
ficamos a poucos segundos de abrir a porta, ele se reagrupa retomando sua
forma, atirando-nos de volta para o início de nossa investigação. Pior do que
no começo, porque o que quer que a gente faça de melhor para conseguir é
inútil. Isso contraria tudo. O feitiço se adapta, ele aprende.

Ótimo. Um feitiço precoce e genial construído de escuridão eterna.


Exatamente o que todos nós precisávamos em nossa vida.
— Já fez com outro o que fez comigo?
Nenhum de nós fingiu que não sabia da minha dança com a escuridão.
Shadow tinha claramente ido direto para seus amigos conselheiros, e eu não o
culpava — eu teria seguido exatamente o mesmo caminho.
— Nunca. E pelo que posso dizer, ele não se adaptou a você ou à sua
energia. — Reece me olhou de perto. — De alguma forma, você fez algum
dano deixando-o em evidência... — Acenou para os redemoinhos de fumaça.
— Ele parece incapaz de se esconder e isso é um bom sinal.
Eu resmunguei.
— Mas é só isso? Até onde sei, não estamos mais perto de atravessar.
Eu não posso tocá-lo sem que minha alma fique toda fria e escura, então qual
é o próximo passo?
Ele me deu um tapinha no ombro, e eu fiquei surpresa com esse tipo de
gesto reconfortante.
— Não seja tão dura consigo mesma. Mudar é um bom sinal, mesmo
que ainda não saibamos por quê. Uma coisa é certa: ter você por perto vai
tornar a vida muito interessante.
Fechando os olhos brevemente, tentei acalmar minha mente frenética.
— Ainda não entendo por que sou a escolhida. Por que isso está
acontecendo comigo, já que fui insignificante minha vida inteira?
O rosto de Reece se via inexpressivo, mas seus olhos estavam mais
quentes do que eu já tinha visto, aqueles cílios incríveis emoldurando-os
como retratos gêmeos em sua alma. Estendendo a mão, ele empurrou um fio
do meu cabelo para trás.
— Não há nada insignificante em você, Mera Callahan. Desde o
primeiro momento em que entrou na sala usando a cor preferida de Shadow,
eu sabia que você ia virar a vida do meu amigo de cabeça para baixo. Foi
uma preocupação, no começo, mas agora... — Ele inclinou a cabeça. —
Agora estou curioso para ver até onde tudo isso vai.
A cor de Shadow...? Bem, isso explicava muito.
Reece me cutucou gentilmente.
— Ninguém é chamado à grandeza até a hora certa, Mera. Este é o seu
tempo.

— Grandeza? — Respirei fundo.


Ele acenou com a cabeça.
— A elevação vem de muitas formas. Algumas óbvias, outras nem
tanto, mas há uma constante que todos chamados à grandeza têm em comum:
você será empurrada para além da sua zona de conforto, quebrada e reduzida
a cinzas, mas, a partir disso, vai subir e ser mais do que jamais pensou que
poderia ser.
Das cinzas, a fênix se erguerá.
O fato de ele ter escolhido essa analogia exata para usar tinha que
significar algo.
— Não tenho certeza se estou pronta para o que este mundo tem
reservado para mim — eu disse, meus medos transbordando. — Mas, como
ainda estou respirando, e ainda estou lutando, vou desvendar essa porta.
Descobrirei minha conexão com o Reino das Sombras.
Fui cortada quando Shadow apareceu em uma nuvem de escuridão
esfumaçada.
— Devemos voltar à Terra — disse ele, queimando energia ao seu
redor. — Múltiplas criaturas-sombra se acumularam. Mova sua bunda, Raio
de Sol. Temos que caçar.
Se o destino da Terra não estivesse em jogo, eu teria dito onde ele
poderia enfiar sua ordem. Mas, infelizmente, como era a vadia idiota que
libertara essas criaturas em primeiro lugar, eu realmente precisava assumir
alguma responsabilidade por devolvê-las. E, apesar do meu conhecimento de
que Shadow era realmente o único fazendo todo o trabalho para capturá-las,
se ele me quisesse lá, eu iria... Para o caso de. Talvez tenha ajudado o fato de
as criaturas terem mostrado um nível inesperado de interesse em mim.
— O abervoq e o sprecker prestaram muita atenção em mim — eu
disse, minha mente juntando as peças. — Não pode ser uma coincidência que
ambas as vezes eles focaram em mim.
Shadow cruzou os braços, ainda olhando um pouco atormentado.
— Você era o alvo natural, sendo mais fraca e não ameaçadora.
— Sim, é verdade — eu disse —, e foi o que eu pensei inicialmente
também. Mas o abervoq não estava interessado em me atacar. Verdade seja
dita, acho que nem o sprecker estava. E, embora eu não seja especialista em
criaturas-sombra, eles me pareceram muito mais curiosos do que assassinos.
Dois conjuntos de olhos estavam paralisados nos meus e, eu tinha que
confessar, faz maravilhas para a autoestima de uma garota manter e segurar a
atenção de um par de deuses. Claro, estava claro que eu era algum tipo de
ímã de sombras, mas, fosse como fosse, poderia fingir por um pouco mais de
tempo que era minha personalidade brilhante que os atraía.
— Ela tem razão — disse Reece finalmente, assentindo como se
minhas palavras estivessem fazendo mais sentido do que ele esperava. —
Existe alguma possibilidade de alguém do seu mundo ter escorregado através
do véu nos últimos vinte e dois anos? —perguntou ao amigo.
Shadow inclinou a cabeça, arrogância enrugando a testa enquanto ele
me olhava.
— Ela é tão humana, no entanto. Frágil e impotente. Não há nenhuma
maneira de que possa ser do meu reino.
Forcei um sorriso brilhante.
— Você deve pegar este humano frágil e impotente e ir para a Terra,
hein? Uma vez que aparentemente temos um mundo para salvar e você não
pode fazê-lo sem a minha frágil e impotente ajuda.
Os lábios de Shadow se contorceram, e recebi um sorriso de Reece.
— Vamos, loba — disse a fera, virando-se para sair.
— Você esqueceu “frágil e impotente’” — eu gritei para ele.
Reece continuou a olhar para mim, um pequeno meio sorriso ainda
gravado em seus lábios.
— O quê? — perguntei, enrugando o nariz. — Ele disse isso.
A divindade encolheu os ombros.
— Você está certa. É interessante, no entanto...
Não pergunte. Não pergunte!
— O que é interessante?
— Que ele deixe você afrontá-lo tanto. Os últimos metamorfos
aprenderam rapidamente que Shadow não sofre insubordinação por muito
tempo.
Engoli em seco, pensando em Victor.
— Será que ele regularmente mata os metamorfos que não obedecem a
todas as suas ordens?

Que tipo de psicopata faria isso?


— Ele não mata aleatoriamente, por diversão — disse Reece, como se
estivesse pessoalmente defendendo a pessoa de Shadow. — Só se lutarem
contra o controle dele.
Eu... só. Isso foi basicamente a mesma coisa.
— Vocês dois precisam de ajuda — esbravejei. — O cérebro de vocês
não funciona normalmente.
Reece apenas riu, sem parecer ofendido, e ao menos esse pequeno
momento, pelo que eu podia ver, aquecia o deus do deserto em relação a
mim.
Para mim tudo era sobre pequenas vitórias nesses últimos dias.
Trinta e nove
Shadow não sabia, mas, dessa vez, eu tinha outro plano para realizar
enquanto estivéssemos na Terra. Claro, o primeiro passo era salvar os
humanos da criatura, mas o segundo era descobrir se eu poderia fugir dele.
Precisava saber exatamente quanto tempo ele levaria para me encontrar e,
quando me encontrasse, eu poderia até aprender os meios que ele costumava
usar para me rastrear.
Isso me ajudaria a cobrir meu rastro quando o plano de Angel entrasse
em vigor.
Uma experiência perigosa pela qual eu provavelmente seria punida,
mas valeria a pena por qualquer conhecimento que eu pudesse ganhar. Não
achei que ele me mataria, pelo menos ainda não. A fera queria ver se eu podia
abrir a porta para o Reino das Sombras — eu estava entendendo que esse era
o seu objetivo final. Não se importava em devolver as criaturas, já que elas
poderiam, claro, permanecer nas prisões indefinidamente.
Shadow precisava que a porta se abrisse, por razões pessoais que não
estava compartilhando comigo, então eu estava razoavelmente certa de que
ele não iria me matar. Ainda. E esse parecia ser um momento tão bom como
qualquer outro para um teste de fuga.
— Corra! — Shadow berrou, aparentemente em um humor pior do que
o habitual.
— O que houve, bundão? — perguntei.
Ele parecia estar tentando decidir entre suspirar ou me matar, mas, com
uma força de caráter muito maior do que a que eu tinha, conseguiu abster-se
de ambos.
— Não houve nada de novo. Só estou cansado de limpar suas bagunças
e não ter recompensa por isso.
Por um segundo me perguntei de que recompensa ele estava falando.
Eu deveria chupar o pau dele ou algo assim? Quero dizer, com certeza não
me lembrava de qualquer conversa sobre recompensa... Oh, espere.
O Reino das Sombras.
Ele queria que eu desbloqueasse o Reino das Sombras. Francamente
falando, parecia que ele precisava mais de uma chupada, na minha opinião. O
cara estava um pouco nervoso.
— O que quer que esteja pensando, precisa parar agora.
Levantei a cabeça, imaginando se ele poderia ler mentes também.
— Seu cheiro muda quando você está excitada — disse ele sem
rodeios. — Sem mencionar a respiração rápida e a dilatação da pupila. Sinais
clássicos que você não pode ou não se preocupa em esconder.
— E por que eu deveria esconder? — perguntei com uma leve virada
de ombros. — Resposta natural aos estímulos, e uma necessidade normal de
metamorfo. Você não tem necessidades?
Ele mostrou os dentes para mim.
— Minhas necessidades estão sendo atendidas.
Uma emoção quente e penetrante me atingiu, quase me fazendo
tropeçar. Eu me recusei a acreditar que era ciúme, já que Shadow não era
nada mais do que meu carcereiro temporário, de quem eu ficaria livre em
breve. De jeito nenhum eu estava tendo a síndrome de Estocolmo e me
apaixonando por ele.
Tudo o que tínhamos era uma atração física ou, mais precisamente, era
tudo o que eu tinha. Shadow Beast pode ter me tratado um pouco melhor do
que a seus outros prisioneiros, mas ambos sabíamos que eu era apenas um
meio para um fim. Tive que entrar na realidade e parar de criar falsos laços
entre nós antes que começasse a rabiscar corações amorosos com nossas
iniciais neles.
Hora de mudar de assunto.
— Onde na Terra estamos desta vez?
Seus olhos se estreitaram.
— Você não reconhece essa área?
Dei outra olhada por ali.
— Não, acho que não...
O sol da manhã estava fraco e havia um frio no ar, o que me dizia que
tínhamos passado mais uma vez para a próxima estação do ano.
— Espere... Tem cheiro de Califórnia.
— É — disse ele.
— Torma, Califórnia? — arrisquei.
— E eles chamam os humanos de lentos — ele debochou. — Sim,
estamos no extremo oeste do território de sua alcateia, para ser exato. Uma
massa de criaturas- sombra se reuniram aqui, e tenho certeza de que até você
pode descobrir o motivo disso.
— Por minha causa — sussurrei, olhando em volta pelo campo.
Shadow concordou com a cabeça.
— Essa é a minha teoria. Foi aqui que os libertou e sua energia é forte
nestas terras. Eles estão procurando você, por alguma razão.
Sem dúvida, a força da minha energia se devia aos vinte e dois anos
que eu tinha vivido, respirado e sangrado em Torma. Era a casa da minha
família. As terras do meu bando. O único lugar para o qual eu quase queria
nunca mais voltar, exceto para deixar meus amigos saberem que estava viva e
segura.
Talvez eu tivesse a chance de vê-los naquele dia.
Minha loba levantou a cabeça, olhando em torno de suas terras, e eu
senti sua vontade de ver Torin. Ou pelo menos o lobo dele. Não ficávamos
tão perto dele havia quase um ano — a julgar pelo tempo —, e a tentação
para atravessar o solo em sua direção era forte.
Eu precisava de uma distração.
— Com quais criaturas estamos lidando?
Shadow não chamou minha atenção pelo meu tom frenético.
— Há um abervoq, um falaster, e dois grekins, pelo que posso sentir.
Finalmente, uma distração sólida. Novas criaturas sombrias.
— O primeiro eu conheço, mas você vai ter que explicar os outros dois.
Ele gesticulava para que eu desse um passo à frente, direcionando-me
para o outro lado do campo.
— Um falaster é a mistura entre uma centopeia gigante e uma anaconda
— disse ele, e enruguei o nariz com a imagem que isso trouxe à mente. —
Eles não têm bocas ou olhos, mas podem sentir o cheiro de uma gota de
sangue a quilômetros de distância. Gostam de esmagar suas vítimas
embrulhando cada vez mais apertado, até que, eventualmente, as consomem
através da absorção da pele.
— Isso soa... delicioso — eu disse empregando tanto sarcasmo quanto
pude reunir. — E o grekin?
Ele fez uma careta.
— Acho que são os meus menos favoritos. Trapaceiros, sua estatura
minúscula e diminuta acalma os seres em uma falsa sensação de segurança.
Mas, se você virar as costas, os dois vão rasgá-la em pedaços, rindo
loucamente sobre isso o tempo todo.
— Dois deles? É assim que sempre atacam?
Shadow confirmou com a cabeça.
— Sim, eles gostam de se mover em pares. Isso torna um trabalho mais
fácil para iniciar seus truques.
Notícias simplesmente fantásticas.
— Há algo normal em seu mundo? Qualquer criatura que não esteja
tentando matar tudo ao seu redor?
Shadow fez uma pausa, e eu trombei em suas costas, não esperando que
ele parasse tão de repente.
— Opsss, desculpe!
Ele não comentou sobre eu ser tão desajeitada, e nós dois sabíamos que
eu não o tinha machucado, então o episódio foi imediatamente esquecido.
— Meu mundo é a terra mais bonita que já vi — ele me disse elevando
a voz, ao rever pedaços de memórias perdidas. — Sinto saudades todos os
dias e me irrita saber que meu legado não está sendo cumprido. Mas a vida
nem sempre funcionou do jeito que deveria para mim. — Quando ele se
aproximou, minha mão tremeu querendo se esticar e tocá-lo. A memória da
dor me parou, e foi quando percebi que não tinha doído quando me choquei
com ele.
Estranho...
— Eu prometo, Mera — disse ele, distraindo-me —, que, se me ajudar
com o que preciso, vou garantir que o resto de sua vida seja cheia de todos os
dons, poderes e posses que você poderia desejar.
— Eu sabia que não se importava com as criaturas —murmurei. —
Você só precisa do reino aberto. — Porque ele tinha um legado não cumprido
lá, aparentemente.
Não que alguém se surpreendesse com isso. Shadow transbordava
poder e importância, ambos seriam desperdiçados sem um legado.
— Tem sido uma prioridade para mim há muito tempo — disse ele,
ainda em clima de compartilhamento. — Voltar ao Reino das Sombras.
— Por que você veio aqui em primeiro lugar? — perguntei esperando
que a resposta dele fosse algo blasé como... “Eu queria uma aventura” ou
“era um desafio”.

Então ele me chocou.


— Fui traído — sua voz endureceu e mais uma vez eu estava olhando
para um Shadow assustador. — Por um em quem eu confiava acima de todos
os outros. Mas, com sua ajuda, posso finalmente corrigir muitos erros. A hora
deles está chegando e, quando voltar ao meu reino, vou espalhar o que resta
deles por muitos mundos.
Caramba.
— Lembre-me de não trair você — eu disse tentando aliviar o clima.
Shadow não estava nem aí para tudo aquilo.
— Você não viverá o suficiente para se preocupar com isso se tentar
algo assim.
— Muito justo.
Eu pulei então, quando uma enorme queda de árvores e galhos
balançou acima de nós. Shadow girou para se agachar na minha frente, e um
segundo depois minha loba subiu à superfície, dando-me seus sentidos
enquanto nos preparávamos para um ataque.
Quarenta
Ainda em modo furtivo, meio agachado com os braços para fora,
Shadow começou a rastejar através das árvores. Eu o segui, porque, o que
mais poderia fazer? Havia pelo menos quatro criaturas-sombra lá fora e, por
mais fé que tivesse em Shadow, eu me perguntava se havia um número de
criaturas que provariam ser demais para ele.
E o que isso significaria para mim? As criaturas das sombras me
matariam e me consumiriam? Ou eu faria mais uma vez amizade com
monstros?
Acho que estávamos prestes a descobrir.
— Hoje realmente espero que você seja tão durão quanto sua reputação
sugere — murmurei. — Meu estômago parece que tem um enxame de
mosquitos zumbindo nele, e eu não gosto disso.
Ele parou de se mover, voltando para me ver.
— Mosquitos? Tenho certeza de que essa não é a expressão.
Dei uma risada nervosa.
— Honestamente, está muito além das borboletas neste momento.
Shadow balançou a cabeça como se fizesse todo sentido, antes de se
virar novamente e soltar um rosnado baixo. Ele saltou para a frente,
arrebatando algo do nada.
Não, não era alguma coisa... Era um sprecker.
— Nem sabia que um desses estava aqui — disse ele, olhando ao redor.
— Mas... é apenas uma distração.
Eu estava a dois metros de distância, e essas palavras me fizeram
mover a bunda em direção a ele.
Só alguns passos, mas já era tarde demais.
Meus braços foram presos em ambos os lados, um aperto firme e
inflexível, e, quando um objeto pesado bateu na lateral da minha cabeça,
Shadow soltou um uivo selvagem, as chamas vermelhas brilhantes de seus
olhos foram a última coisa que eu vi quando fui arrastada para longe. Não, na
verdade, a última coisa era uma dúzia ou mais de criaturas-sombra descendo
sobre ele, bloqueando seu caminho para mim.
O golpe não tinha sido forte o suficiente para me nocautear e eu já
estava lutando — tinha acabado de me acostumar com o último psicopata que
tinha me tirado da minha vida sem permissão. Não tinha tempo para me
adaptar a outro.
Minhas mãos se transformaram em garras, lutando e arranhando, mas
meus capturadores me seguraram em tal posição que era difícil alcançá-los.
Eles pareciam ser pequenos, apesar da força com que seguravam, e, não
importava o que fizesse, eu não poderia me soltar.
Gravetos me arranharam enquanto eu era arrastada e, por mais que eu
arranhasse o chão, não havia como interromper o passo do meu sequestrador.
Tinha que ser um grekin, porque o falster não deveria ter uma força assim,
mas, novamente, poderia ter sido uma criatura completamente nova. Havia
tantas criaturas inesperadas sobre Shadow, e isso significava que eles se
uniram para esconder sua energia... Emboscada clássica.
— Deixe-me ir! — gritei, finalmente encontrando minha voz. — Eu
ordeno que vocês me libertem.
As palavras fluíram de mim com mais do que apenas a força de uma
voz humana — a energia da loba as empurrou e... E querem saber? As
criaturas pararam, liberando-me na mesma hora.
Ofegante, girei para o lado, ignorando o protesto do meu corpo sobre o
abuso que tinha acabado de sofrer. Quando me levantei, o movimento
repentino piorou a dor, mas havia adrenalina e raiva suficientes para me
manter em movimento.
Um chiado foi a primeira coisa que registrei e, quando duas sombras
passaram por mim, eu mal consegui rastreá-las.
— Parem!
Eu sabia que o comando iria funcionar; tinha aproveitado a mesma
energia que sentira ao tocar o Reino das Sombras. Não que eu fosse contar
ao Shadow, é claro, mas acabava que ele estava certo; eu só tinha que
encontrar o caminho e continuar seguindo-o.
As duas criaturas pararam piscando dentro e fora de foco, terminando
em posições meio agachadas, olhando para mim. Eles não pareciam nada que
eu já tinha visto antes, mas, se eu tivesse que associá-los a qualquer coisa,
seria a um leprechaun. Não passavam da altura dos joelhos — os meus, não
as pernas gigantes de Shadow —, não usavam roupas, mas também não era
como se estivessem nus. Eles não tinham partes do corpo como as de um
humano.
Dois tocos de árvore com olhos negros reluzentes, uma linha como uma
boca, braços e pernas semelhantes a galhos, e uma habilidade de se mover tão
rápido, eles eram quase vertiginosos. Exceto, aparentemente, quando eu
permitia que minha loba subisse à superfície, usando seu poder para detê-los.
— O que você quer comigo? — perguntei. Essas foram as primeiras
criaturas-sombra que tive a oportunidade de questionar, e não estava
desperdiçando. — Aonde vocês estavam me levando?
Eles conversaram comigo, um rápido barulho de fogo estalando, e fora
da biblioteca não havia nenhuma maneira de eu entender sua língua.
— Foda-se — murmurei.
Um deles inclinou a cabeça, observando-me de perto.
— Foda-se.
Pisquei. Ele estava me repetindo, ou falava português também?
— O. Que. Vocês. Querem. Comigo? — eu espaçava cada palavra,
usando gestos de mão para obter o meu ponto de vista.
— Foda-se! — repetiu o mesmo. — Foda-se, foda-se.
Muito bom. Quer dizer, eu amei a repetição e tudo mais, mas era difícil
ter uma conversa completa com apenas minhas palavras favoritas.
— Mera!
Girei com o grito, e não porque era Shadow atacando em minha direção
como um louco em uma missão. Mas porque não era.
Esse grito veio totalmente de outra pessoa.
Alguém que mandara minha loba para um estado de confusão enquanto
ela rosnava e arranhava meu peito, e eu não tinha ideia se ela estava tentando
chegar a Torin para matá-lo ou se para fodê-lo, mas ela o queria de qualquer
maneira.
— Não, pare — eu implorei. — Ele nos rejeitou.
— Foda-se rejeitada. — Um chiado severo de palavras de um dos
gêmeos gremlins.
Foi o outro dessa vez, e agora eles tinham duas palavras em português
em seu arsenal. A minha favorita e a menos.
— Mera Callahan, ordeno que fique onde está! — Torin gritou, meio
lobo para fora enquanto decolava através do campo que nos separava.
Provavelmente eram apenas alguns quilômetros, mas ele cobriria isso em
pouco tempo.
Levantei o pé, dando um passo para trás, e outro, antes de me virar e
correr para longe. Voltando para onde eu tinha visto Shadow pela última vez.
O comando alfa dele não me segurou.
Em algum momento, meus laços com Torma foram danificados o
suficiente para que nem mesmo seu comando pudesse me manter refém, sem
dúvida deixando Torin confuso como o inferno enquanto ele corria atrás de
mim.
Minha loba chorava, implorando para que eu reconsiderasse e o
ouvisse, e fodesse... Fiquei tentada.
Como era justo que ele pudesse me rejeitar, e me quebrar uma e outra
vez, e, ainda assim, minha alma quisesse reivindicar nosso vínculo? Mas não
importava. Eu seria mais forte do que esse desejo. Eu protegeria nós duas.
Senti quando ele estava perto, então mudei de direção, enquanto ainda
me movia para onde tinha deixado Shadow. Pelo menos eu esperava que
fosse a direção certa — os grekins tinham me arrastado para muito longe
pelo que eu podia ver, aqueles bastardos espertinhos.
Torin estava perto, seu lobo semitransformado era mais rápido do que o
meu humano quebrado e machucado. Tudo o que eu tinha para mim era pura
determinação para não acabar ao seu alcance. Eu não tinha ideia do que Torin
faria comigo se me pegasse, mas havia uma chance de ele me matar para não
ter que lidar com os restos do nosso vínculo.
A morte de um verdadeiro companheiro geralmente resultava em uma
quebra mental irreparável para o outro metamorfo, mas Torin provavelmente
pensava que, por não querer esse vínculo, ele se recuperaria mais fácil.
De qualquer forma, eu não podia me deixar cair em suas mãos.
Precisava lutar com tudo o que tinha e, com sorte, já que eu não era mais a
mesma metamorfo que havia sido roubada de Torma meses atrás, eu tinha
uma nova arma para enfrentá-lo. Como minhas habilidades do Reino das
Sombras.
Como as criaturas das sombras... ainda congeladas pelo meu comando.
Posso usá-los para atrasar Torin?
— Eu liberto vocês! — gritei, enviando a energia para o mundo,
esperando que não estivesse muito longe para alcançá-los.
Agora eu só tinha que ficar fora do alcance de Torin tempo suficiente
para deixar aqueles pequenos bastardos leprechaun fazer o seu pior. Torma
poderia ter que procurar por um novo alfa antes que esse dia acabasse.
Quarenta e um
Meu ritmo estava diminuindo à medida que a marcha de Torin se
aproximava, e foi só quando o assovio agudo dos grekins chegou aos meus
ouvidos que eu me permiti um momento para me virar e avaliar a situação.
Torin soltou um rugido quando eles se envolveram em torno de suas
pernas, os três indo para baixo em um tombo. O novo "alfa dos alfas" não se
preocupou em tentar negociar uma trégua com eles; só usou as garras
parcialmente transformadas para rasgá-los antes de graciosamente saltar de
volta sobre os pés.
Torin deve ter sido capaz de vê-los mesmo em hipervelocidade, porque
seu próximo golpe fez um deles voar.
Completamente encantada assistindo a essa luta, eu estupidamente
deixei de tentar escapar. A ideia de que pudesse ver Torin levar uma surra era
muita tentação, mas eu tinha muitos arrependimentos quando seus olhos
furiosos se cruzaram com os meus.
— Não se mova nem mais um passo — ele avisou, a cerca de trinta
metros de distância. — Ou eu vou virá-la de joelhos e bater na sua bunda até
que esteja vermelha e doendo.
Pisquei.
— Você ameaçou seriamente me espancar como punição? — Eu ri. —
Você é uma piada. Eu gosto dessa merda, Torin. Você vai ter que se esforçar
mais do que isso para me ameaçar.
Isso o pegou de surpresa, e ele vacilou, apenas o tempo suficiente para
uma segunda rodada de ataque grekin.
— Foda-se é nossa! — eles gritaram.
Era a minha vez de olhar para a criatura, porque eu estava começando a
entender o que ela estava dizendo. Eles pensavam que meu nome era foda, ou
pelo menos esse era o novo nome adotado por eles para mim. E pareciam
pensar que eu lhes pertencia.
— Foda-se não é de vocês — eu gritei de volta. — Quero dizer, Mera.
Meu nome é Mera.
— Foda-se é nossa — gritou o outro, desaparecendo da vista com um
raio.
O que diabos foi isso?

— Você e eu precisamos conversar — disse Torin, soando um pouco


menos enfurecido.
Um grekin o atacou novamente, mas ele apenas arrancou-o com um
chute rápido. O bastardo não estava tendo problemas em vê-los e eu não
conseguia entender por que sempre eram um borrão para mim.
Minha loba subiu à superfície, como um sinal de que eu deveria ter
usado seus sentidos em vez dos humanos, mais restritos, que eu tendia a
favorecer. Opa, desculpe. Momento de idiotice por não descobrir como Torin
via os grekins. Os sentidos dos lobos podem acompanhar.
Torin se moveu, correndo em minha direção, e eu tinha demorado
muito para fazer qualquer coisa, exceto esperar pelo golpe enquanto
simultaneamente me preparava para lutar com ele. Porque eu o faria. Eu
lutaria com tudo o que tinha em mim.
Quando se aproximou de mim, Torin se agachou em uma posição típica
de ataque, sua intenção de me pegar. Abracei minha loba, permitindo que a
energia dela me enchesse enquanto me colocava em oposição a ele, caindo no
chão e girando para que assim pudesse passar a mão na sua coxa, enquanto
ele passava por mim.
— Foda-se é nossa! — gritou um grekin, tentando me agarrar
novamente, mas, dessa vez, eu podia vê-los chegando, graças a minha loba,
que permanecia perto da superfície.
Meu punho bateu em seu rosto.
— Foda-se não é sua — rosnei.
Torin se recuperou muito mais rápido do que eu esperava, com as mãos
segurando em meus braços enquanto me tirava do chão e contra seu corpo.
Foi um movimento tão alfa. Shadow tinha feito isso em mim mais de uma
vez, mas não foi o mesmo com Torin. Ele era grande, mas não o Grande
Shadow. Com a fera para comparar a ele, Torin parecia um menino, sem anos
suficientes de experiência para endurecê-lo. Um dia ele teria, mas não hoje.
— Deixe-me ir, seu filho da puta — eu gritei, batendo a cabeça para a
frente tentando atingir seu queixo.
Torin soltou um estrondo rugindo.
— Puta!
— Deus, sim, eu sou. Você só percebeu isso agora? Idiota lento.
— Puta é nossa! — um grekin chiou, saltando para o ombro de Torin e
envolvendo os braços de graveto em torno de seu pescoço.
Seria puta um upgrade de foda? Não importava, desde que me dessem
uma chance de fugir. Arrancando-me dos braços de Torin, consegui colocar
os pés de volta no chão, mas estava muito lenta de novo.
Deslizando pela grama, fui puxada para trás quando Torin envolveu
uma mão em volta do meu tornozelo.
— Shadow! — gritei, finalmente recorrendo ao “ás na minha manga”;
ele tinha que estar em algum lugar próximo.
— Quem é Shadow? — Torin gritou, arrastando-me de volta para ele
com um puxão forte.
Ele me levantou de novo e, dessa vez, em vez de gritar na minha cara,
ele me beijou. Um encontro firme de seus lábios contra os meus, o poder
subindo entre nós enquanto o vínculo que tinha sido rejeitado, mas não
completamente cortado, ganhava vida.
— Não! — chorei tentando afastar a cabeça, mas ele me segurou,
forçando sua energia em mim. Forçando o poder dele a se misturar com o
meu. Forçando-me de uma forma que nenhuma mulher — ou homem —
jamais deve ser forçada. Meu joelho doía com a tentativa de machucá-lo,
mas, não importava o quanto batesse, não era suficiente para impedi-lo.
Então eu o mordi. O mais fortemente que pude, dentes rasgando seus
lábios com força e o sangue esguichado em minha boca. Com um rosnado,
Torin me empurrou de volta, com o rosto trovejante e as sobrancelhas
franzidas.
— Que porra, Mera? Somos almas gêmeas! Você me pertence... O que
diabos há de errado com você?
O que havia de errado comigo? O QUE HAVIA DE ERRADO
COMIGO?
— Você é tão delirante quanto seu pai — eu rosnava. — E eu não
pertenço a ninguém.
Os grekins tinham desaparecido nesse momento, deixando apenas
Torin e eu no terreno Torma.

— Você vai aprender — ele disse, nem mesmo tentando esconder seu
narcisismo. — Eu passei por um longo ano desde que você se foi, Mera, e a
única coisa que descobri é que um metamorfo é mais forte com seu
verdadeiro companheiro.
Uma risada de escárnio me escapou e eu lambi meus lábios secos, ainda
provando seu sangue.
— Não sou um amuleto para ser carregado na esperança de aumentar o
seu poder.
Ele se moveu em minha direção, com as mãos para fora para agarrar
meu rosto, mas dessa vez o vi chegar, desviando e chutando para derrubá-lo.
Se não estivesse tão focado em me beijar de novo, teria visto esse movimento
e o evitado. Pensar com a cabeça de baixo era a falha fatal de um homem.
— Eu não pertenço a ninguém — sibilei enquanto ele se espalhava no
chão. — Eu rejei...
Minhas palavras para tentar romper nosso vínculo foram cortadas pelo
rugido de Shadow e, sem mentira, foi um alívio saber que ele estava bem e
poderia me tirar de Torin. Meu plano anterior de tentar escapar e ver até onde
eu chegaria definitivamente teria que esperar mais um dia. Já que,
aparentemente, minha alma gêmea tinha decidido que queria reivindicar sua
companheira/troféu.
— Shadow — Torin soprou, olhando em pânico e ao mesmo tempo
furioso. — É ele quem você estava chamando? A porra do Shadow Beast?
Com um sorriso, eu me inclinei mais perto.
— Entre vocês dois eu o escolheria sempre, Torin.
Ele tentou me agarrar de novo, mas Shadow estava lá agora, uma visão
gloriosa enquanto suas chamas enchiam o campo de calor.
E quem diria que eu ficaria tão aliviada ao ver aquele idiota gigante e
assustador.
Com a sua fera aflorada, Shadow bateu uma única vez contra o peito do
alfa, enviando Torin em um voo através do campo. Uma satisfação obscura
me preencheu; o idiota merecia isso e muito mais.
Apesar do perigo mortal de enfrentar Shadow — ele viu essa besta
destruir seu pai com pouco mais do que um pensamento —, Torin não
hesitou em se reerguer e tentar atacar. Uma bravura que eu normalmente
admiraria, mas, nesse caso, eu o colocaria na categoria muito estúpido para
viver.
— Você não pode tê-la, fera — ele gritou. — Eu sou seu verdadeiro
companheiro e não vou libertá-la para você.
Shadow estava furioso, suas chamas crescendo à medida que sua altura
disparava para a mais alta que eu já tinha visto. Ele se moveu e então estava
firmemente plantado entre mim e Torin, e na altura atual eu estava apenas
olhando para sua bunda.
— Shadow — sussurrei tocando a parte inferior das suas costas. O
calor engoliu minha mão, mas não me queimou; eu não era o seu alvo hoje.
— Vamos embora. Ele não vale a pena. Temos as criaturas para nos
preocupar.
Ele me ignorou e, dessa vez, havia uma pequena corrente de
eletricidade em meu braço, um aviso para tirar minha mão dele. Foi o que eu
fiz.
— Você não pode ignorar as leis que estabeleceu na criação de
metamorfos! — Torin gritou mais essa besteira.
Tentei ver em volta de Shadow, para determinar onde estava o alfa
idiota, mas, toda vez que me movia, ele ainda me bloqueava completamente a
visão.
— Tão facilmente quanto eu criei sua espécie, eu poderia destruir você
— Shadow respondeu.
O riso de Torin soou leve, mas eu o conhecia havia anos e era o
suficiente para saber que ele estava longe de relaxar.
— Veja, não acho que isso seja estritamente verdade. Eu tenho feito
algumas pesquisas ao longo do último ano, e acontece que agora somos uma
parte importante da estrutura de poder desse mundo e... de você. Sem os
metamorfos, você não estaria carregando o nível atual de energia a que se
acostumou.
O calor fluiu de Shadow com uma intensidade que me disse que ele
estava a ponto de perder o controle completamente.
— Com quem você tem falado? — perguntou ele. — Não há nenhuma
maneira desse conhecimento estar escrito em nenhum livro em qualquer lugar
na Terra.
Torin riu novamente.
— Sim, veja, temos um amigo em comum. Ela esteve no seu mundo.
Esteve em muitos mundos, vagando por aí, e não foi preciso muita persuasão
para convencê-la a contar alguns de seus segredos.

Viajante. Dannie era uma andarilha. Era assim que ela sempre se
chamava.
Dessa vez não me incomodei em ir devagar, jogando-me para o lado
para que pudesse contornar Shadow.
— Se você a machucou, Torin — gritei, minha voz mudando quando
minha loba apareceu —, eu vou matar você.
Os olhos de Torin se encontraram com os meus, e foi a primeira vez
que nos olhamos de verdade desde que ele começara a tentar me perseguir.
— Venha para casa comigo, Mera, e eu garanto que Dannie não se
machucará mais.
Meus membros tremiam e, quando o calor queimou através do meu
corpo, eu me perguntava se algo disso estava dentro de mim, ou se era tudo
fogo de Shadow. Ele estava pressionado contra a minha coluna.
— Você pode me beijar contra minha vontade — eu cuspi em Torin. —
Você pode me tocar, e me arrastar, e me machucar. Você sempre teve mais
poder do que eu, mas a única coisa que nunca terá de mim é minha submissão
voluntária a você. Pergunte ao Shadow aqui. Minha independência é a parte
de mim que eu preservo acima de tudo.
— Ele beijou você contra sua vontade? — as palavras de Shadow eram
afiadas, cada sílaba cortando como uma lâmina.
Engoli em seco.
— Sim, ele fez. Duas vezes. Pouco antes de você chegar até nós, então
agora devo a ele um nariz quebrado ou dois.
O calor subiu ao redor da fera, e eu quase me engasguei quando Torin
caiu de joelhos, gritos ecoando dele. Levantei a cabeça para ver o rosto de
Shadow, ele estava olhando o alfa de cima para baixo com um olhar
impassível — chamas em seus olhos.
Puta merda!
Eu sabia exatamente o que estava acontecendo, tinha sentido esse poder
em particular antes, e, embora nunca fosse sentir pena de Torin, queria ser a
pessoa a quebrar aquele canalha.
— Shadow — eu disse, colocando a mão em sua pele ardente. — Está
tudo bem. Posso lidar com ele.
Seu peito retumbou, mas ele não discutiu quando libertou Torin. O alfa
se arrastou até ficar de pé, os ombros arfando enquanto ele sacudia a dor.
Esperei pelo ataque, mas ele decidiu não responder da mesma maneira,
escolhendo um caminho diferente.
Estendeu as mãos para mim e deu um passo trêmulo para a frente.
— Volte para casa comigo, Mera — ele implorou com a voz rouca — e
podemos trabalhar nossa dinâmica. Sei que você sempre quis ser bem
recebida de volta ao grupo, e agora você tem isso. A companheira do alfa
nunca temerá por sua vida.
Ele tinha alcançado minha alma e tocado meu mais profundo desejo. O
desejo que eu tinha desde que era pré-adolescente. Desde que perdera meu
pai. Desde que meu mundo em Torma implodira.
Mas, apesar de sua aparente sinceridade, eu sabia a verdade: ele me
controlaria pelo impulso de poder que nosso vínculo trazia.
— E a Sisily? — perguntei com uma risada debochada.
— O que tem ela? — ele disparou de volta muito rápido. — Ela
obedece ao alfa, como todos os meus lobos fazem, e tudo o que eu decidir
que funcionará melhor para nós três é o que vai acontecer.
Pulei para a frente, preparada para matar esse porra estúpido como se
fosse a última coisa que eu faria. Ninguém podia esquecer o que ele tinha
insinuado lá e, se ele pensava que poderia começar seu próprio harém, então
iria acordar com uma lâmina no peito. Outra vez.
Torin e eu caímos em um emaranhado de membros, e eu mudei no
mesmo instante, a dor era quase insignificante perto da minha fúria. Minha
loba não perdeu tempo, indo diretamente rasgar a garganta de Torin, e no
início o alfa não lutou comigo — meu ataque o pegara de surpresa, mas seus
instintos de sobrevivência começaram momentos depois, e então ele também
mudou parcialmente. Era tarde demais, porém, com Shadow mergulhando na
luta e me puxando para cima e para fora de lá antes que Torin pudesse
conseguir uma única mordida.
— Você é um par muito fraco para ela — disse a fera ao metamorfo
ensanguentado. — E, se tentar tocá-la novamente, eu abandonarei o poder
que você me fornece e limparei sua espécie deste mundo.
Torin cuspiu um pouco de sangue quando os cortes visíveis em sua
garganta começaram a cicatrizar — infelizmente, eu não tinha atingido nada
muito importante.
— Você pode reivindicá-la por agora enquanto rastreia suas criaturas-
sombra, mas ela não é sua. — Torin não mostrou medo, e eu honestamente
não sabia de onde vinha essa bravura.
Shadow deve ter tido o mesmo pensamento, pois fúria e sangue
estavam de volta em seus olhos.
— Você demonstrou brevemente as razões pelas quais foi escolhido
como companheiro dela, mas é muito pouco e tarde demais.
— Nunca — Torin ferveu. — Se há mais alguma coisa que aprendi no
último ano, é que só a morte é permanente.
O riso cínico de Shadow soou quando ele se virou, com minha loba
ainda em seus braços, e pisou em direção ao portal da biblioteca.
— Você colocou sua morte disponível no Universo, vira-lata. Vamos
esperar que o Universo não decida aceitar esse desafio.
— Conheço a sua fraqueza, Shadow Beast — Torin gritou atrás de nós,
finalmente conseguindo ficar de pé, assim que desaparecemos de vista e a
Terra foi isolada de nós.
As chamas iluminaram o corredor branco e, se eu não estivesse em
segurança nos braços dele, teria queimado até a morte com o inferno que se
espalhara ao nosso redor. Shadow marchou em silêncio e, a julgar por sua
expressão, era melhor manter meus pensamentos para mim mesma.
Mas, por Dannie, eu arriscaria sentir sua ira.
Iniciando a mudança de volta para humana, gritei com a dor dos ossos
quebrando e sendo recuperados, e não poderia ser ignorada novamente.
Shadow me segurou enquanto eu passava por toda agonia, e de alguma forma
ele tornou esse momento melhor... E pior. Quando era finalmente uma
humana arfando, tossindo, tremendo, eu lhe dei um tapinha no ombro.
— Tenho que voltar — eu disse com urgência. — Eles estão
machucando minha amiga por minha causa. Bem, você e eu, e é nossa
responsabilidade ajudá-la.
— Eu cuidarei disso.
— O que isso significa? — reclamei. — Precisamos cuidar disso agora.
Por favor. Não é negociável.
Sua mão parou em minha bunda nua, um tapa firme, e quando seu
poder passou por mim eu gritei. Não doeu exatamente, mas tinha sido um
aviso.
Um aviso para calar a boca. Ele tinha que saber que não havia como
isso acontecer.

Chutando, comecei a lutar mais contra o seu corpo e, pelo meu esforço,
recebi outro tapa na bunda. Dessa vez, sua mão apertou ao ponto do
desconforto enquanto ele me segurava no lugar, seus longos passos
continuando.
Dane-se! Vá para o inferno! Então, agora ele estava me ignorando e
esperando que eu confiasse que cuidaria disso. E por que diabos estava me
espancando como a uma criança birrenta?
Nada fervera meu sangue mais do que isso, e o fato de que a mão dele
ainda estava em minha bunda segurando-a quase possessivamente me fez
querer... Bem, merda, estava me deixando agitada. Não estar nua agora teria
sido excelente, mas, mais uma vez, mudei antes de pensar nas consequências.
Atacar Torin tinha valido a pena, no entanto.
— A conversa sobre Dannie ainda não acabou — avisei a Shadow. —
Vamos revisitá-la muito em breve. No entanto, tenho algumas outras
perguntas que precisam de respostas também.
— Claro que você tem — ele resmungou.
Eu o ignorei e tentei ridiculamente ignorar sua mão também.
— O que aconteceu com todas essas criaturas-sombra? Até as pequenas
árvores e o leprechaun desapareceram...
Silêncio.
— Você capturou e aprisionou todos enquanto eu estava lidando com
Torin? — Nesse momento nós dois paramos de fingir que ele precisava da
minha ajuda para dominá-los.
Silêncio de novo.
— O que está escondendo de mim, Shadow? O que é tão importante no
Reino das Sombras para que você me mantivesse por perto apenas pela
chance de eu abrir a porta?
O silêncio era mais pesado, como se isso fosse possível. Tínhamos
entrado na biblioteca nesse momento e, assim que a sala brilhante entrou em
meu campo de visão, senti uma onda de exaustão. Mudanças rápidas ainda
drenavam minha energia.
Shadow não parou. Ele não falou de novo. Eu nem tinha certeza se ele
estava respirando, mas as chamas continuavam a se alastrar em uma altura
impressionante, felizmente não incendiando a biblioteca. A magia ali devia
protegê-la de tempestades selvagens de Shadow Beast. Caso contrário,
imaginei, ela teria sido queimada antes.
Quando chegamos ao covil dele, fui colocada no meu quarto.
— Shadow? — perguntei. — Precisamos falar sobre Dannie. E as
criaturas das sombras. Talvez até sobre Torin. É tudo importante.
Ele fez uma pausa à porta, sem se voltar.
— Da próxima vez que eu voltar — ele disse —, você abrirá a porta
para o Reino das Sombras, ou eu mesmo a matarei. — Pausa. — Esse é o
único detalhe importante com que precisa se preocupar.
Então, com uma onda de fogo que alcançava a moldura da porta,
deixando um rastro de brasas queimadas e fuligem para trás, ele saiu do
quarto, trancando-me dentro.
Quarenta e dois
— Deixe-me sair!
Por dias fiquei esmagando o punho contra e gritando para uma porta
imóvel.
Caindo para a frente, fechei os olhos e me perguntei se talvez Shadow
tivesse decidido que essa fosse a maneira mais fácil de lidar comigo. Eu tinha
água no banheiro, e levaria meses ou mais para enfraquecer por falta de
comida, então não havia perigo iminente, a menos que ele se esquecesse de
mim para sempre.
E talvez esse fosse o seu plano. Mas eu tinha amigos e família para
cuidar, e precisava ganhar essa aposta se essa fosse a única maneira de fazê-
lo manter a palavra e me permitir visitar as terras do bando novamente.
De acordo com meus cálculos, eu tinha uma semana para cumprir meu
lado dessa aposta e, pelas poucas pessoas que eu amava, faria o que fosse
preciso.
O que fosse preciso.
Só tinha que sair dali primeiro.
A natureza redundante de bater contra uma porta que fora selada com
algo mais forte do que o que um lobo poderia quebrar tinha finalmente me
alcançado, mas eu estava literalmente acabada, sem mais ideia do que fazer.
Tentei chamar Angel, mas, claramente, nosso vínculo ainda não era maduro o
suficiente para que ouvíssemos os pensamentos uma da outra.
Eu até cheguei a colocar notas escritas, “SOS”, debaixo da minha porta.
Tive que rasgar papel de um dos livros roubados que estavam no meu quarto
— isso doía, mesmo que fosse uma daquelas páginas em branco na parte
detrás. Eu tinha usado delineador para escrever uma carta de "Ajude-me" e,
como ninguém tinha me resgatado, claramente profanara um livro por nada.
Eu tinha adicionado isso à minha lista de merdas pelas quais Shadow pagaria.
Também procurei passagens escondidas no quarto, mas não havia nada
a ser encontrado.
Nessa fase, eu sairia pelo Reino das Sombras se pudesse descobrir
como tocá-lo. Irônico, uma vez que esta era a única coisa que Shadow queria
de mim, a razão pela qual ele me trancara em primeiro lugar.

Se eu desbloqueasse o reino, talvez até ficasse livre para voltar para


Torma, apostar nisso ou não. Quero dizer, não que eu fosse para o grupo, não
importava o que Torin pensasse que ia acontecer, mas eu voltaria tempo
suficiente para me assegurar de que Dannie e Simone estavam bem. Então
abraçaria a liberdade como nunca havia feito antes.
Torin. O que se passava com aquele metamorfo idiota? Desde quando
decidira mudar de ideia sobre querer o verdadeiro vínculo com a
companheira? Parecia uma conquista pelo poder, sem mencionar o controle
— ele não queria que sua verdadeira companheira vagasse livremente pelo
mundo.
Não que ele tivesse que se preocupar muito com isso... Eu quebraria o
vínculo assim que estivéssemos frente a frente de novo.
Nesse momento, eu estava esparramada pela cama, deixando todos
esses pensamentos me consumirem. A falta de comida não estava me
deixando fraca ainda, mas eu estava cansada. Talvez fosse hora de um
cochilo. Talvez em meus sonhos eu encontrasse o caminho para o mundo das
sombras, abrisse a porta, e a fera me libertasse do seu porão.
Talvez eu finalmente descobrisse o que não estava sacando sobre o
feitiço que bloqueava a porta. O que não estávamos percebendo? E, com toda
a honestidade, como eu resolveria esse mistério quando um bando de deuses
poderosos e idiotas não eram capazes?
Em algum momento das minhas reflexões e estresse, eu desliguei, o
estômago resmungando era meu único companheiro. Meus sonhos assumiram
o mesmo fio escuro dos pensamentos, cortes de vermelho e ouro espalhados
por um mundo sombrio. Eu estava correndo, perseguindo, caçando. A loba
estava no controle quando deixamos as cores se deslizarem sobre nós. Só que
não tínhamos um corpo de verdade. Éramos lobos, mas não éramos o lobo
que conhecíamos na Terra. Este lobo abraçava o fogo e a escuridão. Esse
lobo poderia mudar da forma sólida e se tornar uma sombra. E, quando
éramos sombra, éramos poderosas... Invencíveis.
A sensação era arrebatadora, e eu nem sequer tentei lutar como quando
nos perdemos na escuridão. Era ali que deveríamos estar o tempo todo. Essa
era a minha vocação... Meu destino. O Reino das Sombras...

Eu me levantei, sacudindo a desorientação desse sonho num piscar de


olhos, mesmo quando minha respiração ficou ofegante com a lembrança.
Parecia tão real. Na minha língua, eu ainda podia provar a fumaça árida da
terra pela qual tínhamos viajado; sentir os tendões frios da névoa na minha
pele; desejando a vasta liberdade que estava sendo apresentada diante de
mim.
Meu peito saltava enquanto lutava contra a dupla sensação de existir
entre dois lugares. Se eu estivesse mesmo no Reino das Sombras naquele
sonho? Ou foi apenas uma manifestação de Shadow exigindo que eu
descobrisse como abrir a porta?
A desorientação não desapareceu, mesmo depois de muitos minutos
sentada, e balancei a cabeça, esbofeteando as bochechas algumas vezes.
Tropeçando em meus pés, um corpo tremendo inteiro era minha próxima
opção, seguido de uma ducha fria. Fechei os olhos primeiro e balancei os
braços e pernas, que formigavam a cada movimento, como se meus membros
tivessem dormido por muito mais tempo do que aquele sonho havia indicado.
Ainda assim, uma segunda visão sombria persistiu, bem na minha visão
periférica. Eu avistava o movimento escuro ao lado, mas, quando me virei,
não estava lá. A visão dupla me deixou enjoada e então corri para o banheiro,
ajustando o chuveiro ao ponto de congelar enquanto pulava totalmente
vestida. Fechando os olhos completamente, deixei a cabeça cair contra a
parede.
O choque da água gelada fez o truque, então a corrida da minha mente
se acalmou, e, quando finalmente reabri os olhos, as sombras tinham
desaparecido de vista. Ajustando a temperatura da água, afundei-me sob o
fluxo mais quente, abraçando as pernas. Minha bochecha repousou contra
meus joelhos, enquanto eu contemplava a possibilidade de ter tocado o Reino
das Sombras em sonhos — e talvez tivesse libertado mais criaturas em algum
lugar.
Depois que finalmente me acalmei, meus pensamentos se centraram na
estupidez de quebrar a conexão com o único lugar em que eu precisava estar,
acima de todos os outros. Eu deixaria o medo agarrar-me e perderia a minha
oportunidade. No futuro, tinha que fazer melhor do que isso, ou ficaria presa
nesse quarto para o resto da minha vida.
Quando eu estava farta de mim mesma, derramei as roupas molhadas
no chão do banheiro, caminhando nua no quarto principal. Minha linha de
visão estava no chão enquanto eu marchava para a frente, furiosa com a
minha estúpida tomada de decisão, então não reparei no intruso em meu
quarto.
Ele mergulhou sobre mim, uma criatura da escuridão que eu nunca
tinha visto antes, e caí nua, gritando pra caralho. No momento em que a
criatura e minha carne se conectaram, o fogo correu pelos meus receptores de
dor, assim como quando Shadow me tocava.
Ele assobiou para mim em uma língua estrangeira, que ignorei
enquanto tentava atingi-lo no rosto com o cotovelo, atirando-o para longe de
mim. Quando o contato entre nós se quebrou, a dor desapareceu e, exceto por
duas queimaduras de mão entre meus seios e ombros, não havia outras
marcas em minha pele. Pelo que pude ver.
Minha atenção se voltou totalmente para o espectro sombrio, assim que
ele inclinou a cabeça para o lado, observando-me. Mais sons guturais
emergiram.
— Eu não falo sua língua, criatura-sombra — avisei com as mãos para
a frente para o caso de precisar me defender de novo.
Agora que ele não estava em cima de mim, tive tempo de realmente
olhar para o que enfrentava. Essa criatura em particular tinha quatro braços,
dois de cada lado do corpo, como um tipo de quadrúpede, suas pernas
traseiras curvas segurando-o ereto. O rosto era parecido com o de um lobo,
focinho estendido, dentes afiados, olhos escuros e brilhantes. Ele se
encaixava no estereótipo do reino das sombras, em tons de cinza e preto, e
não era feliz.
Mais acenos com os braços e sons estranhos.
— Pelo amor de Deus — eu o amaldiçoei, correndo para o lado e em
torno dele. — Shadow! — gritei batendo à porta, usando todo o meu peso
corporal. — Inky! Gaster!
Um desses idiotas tinha que estar por perto.
Certamente, Shadow tinha sentido a perturbação; ele sentira isso na
primeira vez que toquei no Reino das Sombras.
Eu só tinha que aguentar tempo suficiente até que ele chegasse e me
libertasse dessa maldita prisão.
Girando e pressionando as costas contra a porta, fiquei surpresa ao ver
que a coisa ainda estava na mesma posição, observando-me de perto. Quando
nossos olhos se encontraram, deu um passo à frente, e eu me preparei.

Na adrenalina da expectativa de ser atacada, eu tinha esquecido que


havia controlado as criaturas-sombra em minha última viagem à Terra. Algo
que não tive tempo de contar a Shadow ou a ninguém.
Será que posso controlar isso também?
— Pare — eu ordenei. — Não dê mais um passo.
Ele avançou.
Merda!
Fosse lá o que essa criatura fosse, parecia forte, com uma presença
dominante. Era quase real quando ficou olho no olho comigo, sobre as patas
traseiras de lobo. E o fato de que era muito forte para que eu controlasse não
era bom presságio em relação a minha chance de sobrevivência.
Especialmente combinado com um poder de fogo semelhante ao de Shadow.
— O que você quer? — perguntei insanamente, uma vez que ele falava
por gestos e barulhos.
Ele deu um passo em frente, sem fazer nenhum som, pois era
claramente mais esperto do que eu e sabia que não podíamos nos comunicar.
Eu não tinha para onde recuar, já pressionada contra a porta, então, quando
alguém a arrombou, fui voando para a frente, meu rosto batendo no chão, a
dor subindo pelo meu nariz e bochechas.
— Ugh — gemi, provando sangue enquanto me arrastava com as mãos
e os joelhos.
Desse ângulo, eu não tinha ideia de quem tinha quebrado a porta. Fora
Shadow? Ou poderia ser outra besta que queria me matar também? Talvez
“quatro braços” tivesse um amigo?
Talvez eu tivesse batido a cabeça com muita força e isso tudo fosse um
sonho? Ou Shadow me matara enquanto eu dormia e essa era minha vida pós-
morte?
Eram tantas perguntas.
Tão poucas respostas.
A história da minha vida.
Quarenta e três
Meu nariz já tinha sarado quando me levantei, e me foquei nas duas
figuras rosnando uma para a outra. A visão de um homem familiar de mais de
dois metros de altura, com ombros largos e um emaranhado de cachos, foi um
grande alívio. Shadow se ergueu sobre a criatura com cara de lobo, o que
normalmente seria um excelente sinal, mas ele usava uma expressão estranha
que eu não gostava. Não era medo, mas ele estava confuso, e uma coisa era
clara: essa não era uma criatura-sombra normal.
Os dois começaram a assobiar se movendo para a frente e para trás, e
eu queria entender o que estavam dizendo. O rosto de Shadow era a escuridão
personificada enquanto ele olhava para mim, e eu queria poder tirar minha
bunda nua e ensanguentada desse espaço, porque esses caras significavam
sérios problemas.
— O que diabos está acontecendo? — perguntei, limpando sangue do
queixo. — O que é essa criatura?
Shadow me encarou como se eu fosse o monstro na sala.
— O que você fez? — perguntou ele. — Você libertou Igorna do reino.
Ele é um membro de alto nível de uma das famílias reais.
Igorna. Era um nome, não apenas uma classificação de criaturas.
Aparentemente, esse era muito diferente dos outros. Um membro da realeza.
— E ele disse que você tentou controlá-lo. — Ele sentiu a atração de
um alfa para obedecer.
Opa. Eu tinha me entregado e, honestamente, nenhum deles estava no
clima para aturar minhas mentiras sobre o que tinha acontecido.
— Eu meio que controlei algumas criaturas-sombra na Terra, mas não
tenho ideia de como fiz isso, então não se incomode em perguntar. É tanto
um mistério para mim como é para você.
Shadow estendeu a mão e a fechou em volta do meu braço, puxando-
me para perto de si. — Não se aproxime dele — avisou-me.
Bufei.
— Não estava planejando isso. Eu já tenho as cicatrizes desde a
primeira vez que ele me atacou.

Shadow estava parado e, enquanto ainda não tinha tirado os olhos de


Igorna, eu podia sentir seu foco.
— Que cicatrizes?
Levantando o cabelo comprido, mostrei ao mundo meus seios, porque,
nesse momento, essa era a menor das minhas preocupações. Crédito a
Shadow, seus olhos caíram sobre as mãos impressas em minha pele, marcas
alguns tons mais escuras do que o bronzeado do meu peito, e não desceram
mais.
Seus lábios diminuíram. Um sinal muito ruim em se tratando de
Shadow, pelo que eu viria aprender.
— Vista-se — ele ordenou, liberando-me de seu olhar de sondagem e
sua mão firme. — Parece que Igorna e eu precisamos ter algumas palavras
sobre tocar minhas posses.
Controlando a vontade de lhe lembrar que eu não era a posse de
ninguém, decidi que aquele não era o momento e fiz o que me ordenavam.
Caminhei permanecendo perto da parede para não cruzar com Igorna.
Chegando ao meu armário, olhei por cima do ombro para encontrar seus
olhos redondos me observando.
Shadow se aproximou, seu peito roncando como um aviso. Igorna
levantou o lábio e rosnou em troca, mostrando algumas presas
impressionantes, mas não se moveu. Isso foi reconfortante. Talvez Shadow
ainda tivesse vantagem contra esse cara de lobo.
Quando ninguém se mexeu, virei-me e agarrei a primeira roupa que
minha mão tocou, puxando um suéter de algodão, uma camisa cinza e meias.
Porra, porque o armário mágico tinha me dado meias, e não calcinhas, mas eu
não estava a fim de discutir. Notei, quando puxei a camisa para baixo, que a
marca no meu peito tinha sumido, o poder de cura do metamorfo tinha
eliminado aquilo.
Mas o dano já estava feito com Shadow e seu temperamento. O meu
também, para ser honesta.
O uivo estava alto quando eu me arrastei ao longo da parede, os olhos
de Shadow estalando direto para mim. Igorna virou-se também, e não tinha
como eu dizer o que ele estava pensando com tantas características incomuns.
— O que ele está dizendo? — perguntei a Shadow, incapaz de suportar
o suspense por mais tempo. — Eu o puxei para cá do Reino das Sombras? Ou
só abri uma porta e ele caminhou?

Shadow não respondeu, muito ocupado em uivar e observar a criatura,


e eu estava a um segundo de perder a paciência quando ele finalmente disse.
— Igorna não sabe o que aconteceu. Ele estava caçando quando sentiu
sua presença. Seguir a energia resultou nele atravessando nosso mundo. O
príncipe não está feliz em encontrar-se trancado fora do Reino das Sombras.
— A porta para o mundo das sombras na biblioteca ainda está
trancada? — perguntei imaginando se eu tinha feito mais do que apenas
sonhar que entrara no Reino das Sombras. — Talvez eu tenha desbloqueado
enquanto estava lá.
Como se eu o tivesse convocado com essa pergunta, Inky entrou no
meu quarto, girando seu caminho em torno de Shadow.
— A porta permanece inalterada. Você a contornou como de costume.
— Então, o que podemos fazer com nosso novo convidado? —
perguntei. — E eu soltei mais alguma coisa dessa vez?
A mandíbula de Shadow podia cortar vidro, de tão tensa, seus lábios
cerrados, e ele soltou um suspiro.
— Não tive tempo de investigar se há outros, e Igorna vai ser um
problema, porque o poder que essa criatura exerce está próximo do meu.
Especialmente enquanto estou nessa forma.
Nessa forma?
— Você tem outra forma?
Minha mente enlouqueceu tentando imaginá-lo mudando. Ele queria
dizer aquela coisa de lobo ardente que ele fazia? Ou havia um lado
completamente diferente de Shadow? Era como o de Igorna? Ou isso era algo
totalmente diferente?
Talvez ele tivesse feito metamorfos semelhantes à sua imagem.
— Você precisa sair do quarto agora, Mera — disse ele, seu tom não
permitia debates.
Caminhando em direção à porta, eu me vi hesitando, virando-me para
trás para olhar para ele.
— Você vai ficar bem, Shadow?
— Tudo bem! — ele rosnou. — Nós dois só precisamos ter uma
conversinha.

Igorna soltou um uivo mais alto do que havia soltado até agora, e eu
não gostei do som disso. Mas aquele não era um lugar para mim, em uma
batalha entre feras das sombras. Só tinha que esperar que Shadow provasse
mais uma vez os rumores verdadeiros e fosse o mais assustador de todos.
Quarenta e quatro
Correndo do meu quarto, fui direto para a Biblioteca do Conhecimento.
A vontade de correr de volta para Shadow era forte, mas não havia nada que
eu pudesse fazer para ajudá-lo a não ser entrar no meio e morrer. Ele era o
mais assustador, mais fodão que eu já conhecera, e eu tinha que ter fé que
poderia se manter vivo. Sem mencionar que o canalha me trancara por dias,
então, eu ficaria de luto se ele morresse?
Quando entrei na biblioteca, não consegui assimilar a normalidade de
tudo. Brilhante e arejada, cheia de seres passeando ao redor, fazendo suas
pesquisas. Como se nenhum deles soubesse dos dias em que eu estivera
presa. Ou os novos perigos sombrios que eu trouxera para o nosso meio.
Marchando pelas prateleiras, ignorei os olhares confusos. Eles nunca
tinham visto uma garota em uma missão em busca de comida?
— Srta. Mera! — uma voz alegre chamou minha atenção. — Você
finalmente terminou seu projeto de pesquisa! Sentimos sua falta.
Fiz uma pausa, voltando-me para encontrar Gaster e seu sorriso
genuíno atrás de mim. Engolindo a fúria, forcei um riso. Ao ficar presa no
quarto, sentira-me muito traída por ele... Por todos. Pensando que sabiam que
eu estava presa, e ninguém tinha sequer colocado alguma comida debaixo da
porta. Logicamente, eu sabia que era estupidez esperar que alguém fosse
contra Shadow, mas ainda assim tinha doído.
— Projeto de pesquisa?
Ele acenou com entusiasmo.
— Oh, sim. Shadow disse que você estava ajudando-o e que queria
permanecer imperturbável.
Ele disse, não é? Devolvi o sorriso.
— Shadow é um mentiroso. Eu estava trancada em meu quarto, uma
prisioneira, sem comida ou entretenimento. Então, se me der licença...
Marchei, mas não antes de ver sua expressão murchar. Sim, isso foi
cruel e maldoso da minha parte com alguém que não merecia, mas eu estava
com fome e estressada, e esse nunca foi um bom momento para me
encurralar com algum tipo de felicidade estúpida.
Quando cheguei ao refeitório, a primeira coisa que fiz foi procurar
Angel, mas seu lugar estava vazio. Típico. Finalmente saí da minha prisão e
minha única amiga estava desaparecida. Ela claramente tinha uma vida que
não me envolvia e a vadia carente que eu era não gostava disso. Com sorte,
ela pelo menos notara que eu estava desaparecida e perguntara a alguém
sobre mim. Eu tinha que acreditar que havia uma criatura sobrenatural ali que
se importava comigo. Já que Shadow, claramente, não.
Inky apareceu do nada, enrolando-se em volta de mim, como se
quisesse me lembrar que se importava.
— Você se importa? — eu disse, expulsando-o. — Você é apenas o
puxa-saco de Shadow, e isso significa que não posso confiar em você.
Inky inchou e já fazia um tempo desde que eu o via fazer isso, então
olhei, hipnotizada pela beleza de suas sinapses brilhantes. Por um minuto,
antes de me forçar a me afastar. Era hora de começar a me distanciar de
Shadow e qualquer coisa ligada ao seu mundo.
Os pequenos garçons de metal se esconderam — eu tinha me
acostumado à presença de seres do tipo robótico, tendo aprendido que eles se
originaram na terra das Fadas. Normalmente, não gostava de ser servida, mas,
pelo que eu sabia, eles não se importavam com as tarefas que lhes eram
dadas. Afinal, tinham sido criados pela fae com o único propósito de servir.
O “rosto" quadrado de metal não tinha olhos ou boca, então não havia como
dizer se estavam felizes, mas de alguma forma eu duvidava até que sentissem
emoções como essas.
Ou talvez estivesse justificando, porque eu realmente amava o serviço
eficiente deles.
Uma vez que fiz meu pedido, eu me sentei tentando ignorar meu
estômago estrondoso e a pequena parte de mim que estava preocupada com
Shadow.
— Por que você ainda está sentada aqui? — Eu me virei para ver Angel
à minha direita.
— Você acabou... — Olhei em volta para tentar descobrir como ela
chegara ali tão rápido e sem que eu percebesse.
Ela tinha aparecido do nada? Ou podia se mover em supervelocidade?
— Shadow está ocupado com outra entidade poderosa — ela sussurrou,
inclinando-se perto do meu ouvido. — Meus espiões me disseram que ele vai
ficar fora por pelo menos algumas horas. Vamos arranjar uma transa para
você.
Eu deveria estar de pé correndo para o corredor e para fora dali, mas
hesitei.
— Preciso de comida primeiro. Não como há dias.
Ela se inclinou para trás, olhando-me mais profundamente, com as
sobrancelhas franzindo a testa.
— Deixe-me adivinhar. Shadow não tinha você em um projeto de
pesquisa. — Balancei a cabeça e ela fez um barulho irritado. — Preciso bater
nele.
Eu também, garota. Eu também.
— Ele me trancou no meu quarto com a intenção de me deixar lá até
que eu descobrisse como abrir o Reino das Sombras. Tentei chamá-la através
do nosso vínculo, mas provavelmente não tenho ideia de como ele de fato
funciona.
Seu rosto angelical se transformou por um momento em algo que se
assemelhava a um prenúncio de vingança até a morte. Não era menos bonito,
mas era aterrorizante em sua intensidade. O tipo de rosto que quando
direcionado a alguém o faz correr.
— Nosso vínculo levará tempo para amadurecer — ela respondeu — e
eventualmente você vai me sentir como parte de sua energia, de uma maneira
semelhante ao seu lobo.
Concordei com a cabeça, porque isso fazia sentido.
— E Shadow — ela rosnou —, é o próximo da minha lista para
destruir. Perguntei a ele especificamente sobre você, e não aprecio ser
enganada.
Suspirei.
— Tecnicamente, ele não mentiu. Shadow me deixou lá para descobrir
como abrir a porta para o Reino das Sombras. Acho que era o "projeto
especial dele".
— Mentir por omissão ainda é mentir. Eu estava perguntando pelo seu
bem-estar e deixá-la morrer de fome não é garantir a saúde ideal.
Aprendi que, quanto mais formal seu discurso era, mais irritada ela
estava.
Não questionei.
— Bem, tenho certeza de que não vai querer discutir sobre o
planejamento da morte dele. Deixe-me saber se você quiser alguma ideia.
Seu sorriso era brilhante, se não um pouco frágil, já que a raiva ainda
beliscava seu rosto.
— Ouvi dizer que o sinal de uma verdadeira amizade na Terra é
encontrar alguém que o ajude a esconder um cadáver.

Meu sorriso combinava com o dela.


— Exatamente, minha amiga. Exatamente. E, se a necessidade surgir
para você, não hesite em me pedir ajuda. Sou totalmente sua parceira. Sem
fazer perguntas.
Angel me abraçou, e um pouco da tensão que estava aumentando
dentro de mim nos últimos dias aliviou. Sobre o ombro dela, uma dúzia ou
mais de rostos chocados foram aparecendo em nossa direção, e eu não fiquei
surpresa. Esse era um comportamento muito incomum para qualquer um ali,
muito mais ainda para alguém de Honor Meadows.
Eu a apertei firmemente em troca e ela soltou uma longa rajada de ar.
— Outro hábito humano com o qual eu poderia me acostumar — ela
murmurou. — Eu sempre vi isso de longe, e agora entendo as expressões que
eles usavam.
Suas palavras amoleceram meu coração e mais da minha raiva e tensão
foram liberadas. Fazia muito tempo que não recebia um abraço tão afetuoso
assim, e absorvi tudo como a triste metamorfo que eu era.
Quando nos afastamos, nenhuma de nós sabia o que dizer — não
éramos realmente o tipo de garotas que tinha emoções mais suaves, então,
com uma rápida limpada de garganta, nos concentramos na comida que havia
chegado, cortesia de um garçom. A comida de Angel sempre aparecia alguns
minutos depois que ela se sentava, mesmo que eu nunca a tivesse visto fazer
um pedido. Era uma habilidade que eu desejava possuir, mas pelo menos meu
pedido não estava muito atrás do dela.
Caí de boca na comida como se não comesse havia meses. Os
metamorfos não lidam bem com a privação de alimentos, mesmo que
tecnicamente possamos passar muito tempo entre as refeições. Nesse dia,
tudo tinha o gosto da melhor coisa que eu já comera. O pão era doce com
manteiga suficiente, e o guisado era quente, especiarias e sabores explodindo
na minha língua. Havia também essa deliciosa bebida frutada e borbulhante,
que lembrava refrigerante, só que mais leve com menos açúcar.
Angel balançou a cabeça, uma gargalhada rouca acompanhava o
momento.
— Eu não invejo muito os mortais, mas, quando você come com tal
deleite, isso me faz ansiar por um momento semelhante de alegria.
— Tem certeza de que não pode comer a comida com que brinca?

Ela deu de ombros.


— Eu não preciso dela para sustento, mas talvez...
Com olhos curiosos, ela levantou um pedaço de pão amanteigado em
direção aos lábios. Inalou cheirando a comida primeiro, como todos os
verdadeiros amantes da gastronomia fazem, e então seus dentes atacaram, ela
mastigou pensativa antes de enrugar o rosto e cuspir tudo.
— Ok, isso não é bom — exclamou. — Talvez eu não esteja perdendo
nada.
Eu ri, e o riso se transformou em uma risada encorpada. Seu rosto
estava tão desapontado e enojado. Que decepção depois de todo esse tempo
em que ela ficara imaginando o gosto.
— Talvez da próxima vez devamos tentar chocolate — eu sugeri. — É
sua melhor aposta em encontrar uma comida para corresponder ou superar
suas expectativas.
Seus olhos estreitos não transmitiam muita confiança sobre isso, mas
ela não discutiu.
— Devemos descobrir esse chocolate na Terra? — perguntou
lembrando-me de que inicialmente havia me procurado para tentar me afastar
enquanto Shadow estava ocupado com Igorna.
Uma oportunidade que eu deveria ter arrebatado com as duas mãos,
mas, por alguma razão, eu ainda estava hesitando.
— Shadow está lutando contra uma criatura poderosa — murmurei,
inclinando-me para mais perto. — Foi mais forte do que qualquer um dos
outros que reunimos. Não devemos verificar para ter certeza de que ele está
bem?
Ela apertou os lábios, ignorando minha pergunta.
— Como você ficou coberta de sangue?
Foi então que me dei conta de que eu estava sentada ali em sua
companhia por vinte minutos, com o rosto manchado de sangue, e ela não
tinha perguntado nada até agora.
— Você não notou que eu estava ensanguentada até agora?
— Eu notei — ela respondeu rapidamente. — Mas pensei que, se você
quisesse que eu soubesse por que, teria trazido o assunto à tona. É educado
não perguntar.
Eu gentilmente empurrei-a.
— É óbvio que você passou muito tempo da sua vida rodeada de
violência, já que nem se incomodou com alguém casualmente almoçando
coberta de sangue.
Os demônios emocionais que atormentavam Angel queimavam em seus
olhos expressivos.
— Palavras mais verdadeiras nunca foram ditas. A violência está no
meu sangue, no sangue da minha família, e meu passado e futuro serão
pintados em tons de vermelho. — Ela riu sem humor. — Metaforicamente
falando, já que eu não sangro na mesma cor que um humano.
Bem, isso foi interessante. Mas não houve chance de perguntar a ela
sobre a cor do seu sangue, porque um rugido dividiu o ar com força
suficiente para me derrubar. Angel me pegou antes que eu desse de cara no
chão e, enquanto ela me arrastava com o tipo de força que eu associava com
o Shadow Beast, nós duas encaramos o que estava vindo em nossa direção.
De alguma forma, eu me senti um pouco mais confiante com minha
amiga ao meu lado.
Quarenta e cinco
— Fique atrás de mim — ordenou Angel, arqueando o corpo para a
frente em uma pose projetada para golpear forte e rápido. — É um caçador de
sombras.
Nunca tinha ouvido falar de um caçador de sombras, mas os tons tensos
na voz dela me disseram que eram más notícias. Eles também provavelmente
estavam aqui por minha causa e, mais uma vez, eu estava provando que
minha bunda estúpida era muito perigosa para ser deixada sozinha.
Isso foi realmente culpa de Shadow, com sua insistência em me
conectar ao Reino das Sombras.
Sim, eu estava satisfeita com noventa por cento da culpa recaindo sobre
ele.
— Atrás — ela disse novamente quando comecei a escorregar ao seu
redor.
— Garota, não me escondo dessa maneira — eu lhe disse de volta. —
Eu nunca confiei em ninguém para lutar minhas batalhas antes, e não estou
prestes a começar com você. Estamos juntas.
É bom poder esperar por um cavaleiro de armadura brilhante que venha
salvar você — esse era o sonho de muitas jovens metamorfos, mas não o
meu. Meu cavaleiro teria, sem dúvida, aparecido coberto de metal
enferrujado e preparado para me decepcionar várias vezes. Por que esperar
por isso? Por que ter esperança quando já está provado que é inútil?
Angel só balançou a cabeça, mas não discutiu.
— Além disso — adicionei —, eu sei e reconheço que você é dez vezes
mais fodona do que eu. Mas sempre estarei com você.
Antes que ela pudesse responder, mais rugidos rasgaram a sala, e minha
loba mexeu-se no meu peito, tentando avançar com um uivo próprio. Tive a
sensação de que chamar a atenção para nós era uma má ideia, então a
tranquei o melhor que pude.
Dois caçadores de sombras entraram em nosso campo de visão,
cobertos da cabeça aos pés de preto, marchando rapidamente ao longo das
fileiras de mesas. A inquietação da minha loba ficou ainda mais forte e eu
tive que me perguntar por que tudo no Reino das Sombras a fazia reagir tão
violentamente. Poderia ser apenas sobre uma conexão com Shadow Beast?
Ou era outra coisa?
E eu resolveria esses mistérios antes que uma dessas criaturas me
destruísse?

— Dois deles — Angel sussurrou, e houve um tremor de luz ao longo


de sua pele na hora em que suas asas estouraram livres, armas aparecendo em
ambas as mãos. Eram lâminas curvas, ouro cintilante e prata, com pontas
perversamente afiadas nas extremidades.
— Por que eles estão aqui? — sussurrei. — E como vamos tirá-los
daqui?
Ela se inclinou mais para a frente, aquelas lâminas balançando em
torno de suas mãos com o tipo de habilidade que eu nunca seria capaz de
possuir — se eu tentasse algo remotamente parecido com isso, cortaria meus
malditos braços.
Talvez ela realmente não precisasse de mim ao seu lado.
— Nunca ouvi falar que eles estivessem fora do Reino das Sombras —
disse ela, sem se preocupar em esconder o aborrecimento. — Eles são usados
para reunir qualquer criatura que escape do controle real. Como caçadores de
recompensas sobrenaturais. O que estão fazendo aqui, eu não tenho ideia,
mas o fato de que chegaram enquanto Shadow está ocupado é uma má
notícia.
Com a quase certeza de que a culpa era minha, eu tinha que fazer tudo
ao meu alcance para garantir que ninguém se machucasse. E eu realmente
tinha que descobrir como mandá-los de volta, porque agora o lado de cá da
porta estava ficando lotado desses seres. Sem mencionar que tudo fazia
sentido, estava claro por que aquela porta tinha sido barrada, em primeiro
lugar. Criaturas-sombra eram como o Shadow Beast — perigoso e
incontrolável. Apenas um deles no Sistema Solaris era mais do que
suficiente.
Outro rugido quebrou o silêncio antinatural, seguido pelo som de
confusão enquanto todos se dispersavam da sala de jantar, tentando escapar
de qualquer destino que esses dois tivessem em mente.
— O que há sob a capa dos caçadores? — murmurei. — Eu nem vi a
cabeça deles se mover quando gritaram.
Angel balançou a cabeça, mantendo o foco sem vacilar.
— Ninguém sabe. Eles sempre usam as coberturas, e os gritos são
debilitantes para qualquer coisa mais fraca em energia do que eles. Que é
quase tudo.
Excelente.
— Ainda estamos de pé, pelo menos.
Olhar o lado positivo não era geralmente o meu forte, mas eu precisava
de um hoje. Talvez Angel e eu pudéssemos pelo menos segurá-los até a ajuda
chegar.
A menos que nós fôssemos a ajuda...
— Eu já lutei com um caçador de sombras antes — disse ela, girando
as lâminas novamente — e um não é páreo para mim, mas dois...
As palavras não ditas obviamente estavam lá. Ela não fazia ideia se
aguentava dois.
— Vou ser a distração irritante — eu disse ao mesmo tempo que veio
outro grito, muito mais alto dessa vez, e quase me derrubou. — Isso pode lhe
dar uma vantagem.
Eles estavam no meio do refeitório, e Angel continuou tentando me
tirar do caminho. Quando era óbvio que eu não ia me mover, ela soltou um
huff e lançou-se para a frente, decidindo atacar primeiro.
Suas asas lançaram uma poderosa rajada de ar, que derrubou ambas as
figuras camufladas para trás, mas o rosto dos dois permaneceu bem
escondido na escuridão dos capuzes. A essa distância, eu poderia dizer que
eles eram altos e solidamente construídos, com uma névoa preta cobrindo-os
por completo.
Angel acertou o mais próximo, sua arma cortando em um arco rápido,
ao mesmo tempo que soltava a lâmina da mão esquerda, enviando-a em um
voou através da mesa. O segundo caçador conseguiu se desviar do golpe, mas
a lâmina curva voltou a tempo para Angel, que a atirou novamente, tudo
enquanto se esquivava dos golpes do outro oponente, com quem ela estava
cara a cara.
Os gritos eram ensurdecedores, e eu lutei contra a vontade de cobrir os
ouvidos e rastejar sob a mesa. Se Angel pudesse de alguma forma lutar com
dois caras com lâminas voadoras mágicas sozinha, eu poderia conseguir ficar
em meus pés e não me acovardar como uma cadela. Tive que fazer jus à
minha grande conversa sobre lutar minhas próprias batalhas, e no mínimo
isso significava ficar de pé.
Minha loba arranhou contra sua gaiola metafórica tentando forçar uma
mudança. Depois de um momento de hesitação, decidi que talvez devesse
deixá-la ter a liderança ali. Eu tinha mais armas como lobo, mas ainda havia
uma pequena preocupação sobre a maneira estranha como ela agia em torno
de criaturas sombrias.
— Saia daqui — gritou Angel, sem ouvir meu debate interno. —
Encontre Shadow.
Esse era o passo lógico a tomar, mas havia todas as chances de ele estar
bastante ocupado. Certamente, se não fosse assim, Shadow já teria sentido o
frio desses dois caçadores — sua energia gelada era como um tapa na cara
com um saco congelado de bolas.
Mude! Minha loba não estava aceitando um não como resposta, e sem
mais tempo para me preocupar com o caminho certo, eu a libertei e deixei a
transformação passar por mim. A dor acabou em um piscar de olhos, e eu
nunca havia mudado tão rápido. Uma grande conquista se eu não estivesse
prestes a lutar contra um caçador coberto pela escuridão.
Minha loba não tinha medo desses seres e, como eu estava escondida
dentro de sua alma, não houve hesitação quando atacamos. Juntas atacamos,
quando sozinha eu teria me esquivado.
Quando nos agarramos o manto escuro, Angel soltou um grito.
— Não toque na escuridão deles!
Era tarde demais para parar. Minhas mandíbulas já estavam presas ao
redor do manto, arrancando-a do corpo. A loba e eu queríamos saber o que
estava abaixo daquilo.
Tinha um gosto estranho, o material com cheiro almiscarado e em
decomposição. Não havia odor até nos conectarmos a ele, mas no momento
em que o manto estava em nossa mandíbula, fomos atingidas por rajadas de
morte e sangue.
Isso não deteve minha loba, que foi cruel em seu ataque, com mais e
mais tiras sendo arrancadas do caçador. Angel continuou gritando avisos para
mim, mas eu estava além de ouvir.
Os caçadores gritaram mais alto do que nunca, mas não doeu nada
dessa vez.
— Como diabos você está fazendo isso, loba? — Angel gritou tão perto
do meu ouvido que fui forçada a ouvi-la...
Forçada a pensar sobre o que ela estava dizendo.
Tocá-los foi aparentemente um grande erro, por razões que eu
desconhecia. Havia muita coisa que eu não sabia sobre esse mundo;
informações que, sem dúvida, seriam úteis enquanto eu estava na linha de
frente lutando.
Como eles não haviam nos matado ainda, não paramos, optando por
aumentar o ataque, visando o mais alto para alcançar seu "rosto".
Descargas afiadas de energia escorregaram em nossa pele quando ele
revidou. Sentimos o golpe, mas não veio acompanhado de dor real. Mais de
sua capa escura caiu no chão, e minha loba quase foi cortada em dois quando
uma lâmina de foice passou rente a nossa cabeça e se enfiou fundo no capuz
do caçador.
Seu grito foi diferente dessa vez. Mais agudo com menos força. O
primeiro grito fora um ataque, mas esse era dor. Angel estava batendo no
local para causar mais danos.
O manto preto tremulava para o chão e nós recuamos, olhando para ele.
Qualquer substância que estivesse segurando o caçador tinha desaparecido
com o golpe da espada de Angel, deixando para trás um feixe de material
escuro.
O segundo ato de batalha de Angel foi acompanhado por um
movimento de suas asas, que batiam no caçador restante, antes que ele
também fosse despachado com suas lâminas.
Suas espadas incríveis e perversamente afiadas...
Se eu não achasse que de alguma forma me mataria com elas, tomaria
posse dessas agora mesmo.
Quando estávamos paradas em cima de duas poças de material, ela
girou para mim, com o peito batendo enquanto corria o olhar sobre minha
fera. Tentando arrancar meus segredos...
— Vocês, minha amiga — ela gritou —, não são humanas ou
metamorfos.
Nós olhamos para ela, minha loba tão confusa quanto eu. O que diabos
isso significava?
Quarenta e seis
Gaster chegou logo depois disso, e, como não estava pronta para ficar
nua na frente do mundo novamente, eu ainda estava em forma de lobo.
— Oh, meu Deus — ele engasgou, olhando para o que restava dos
caçadores. — Você os derrotou sozinha!
Angel fez uma careta.
— A porta do Reino das Sombras ainda está selada?
Ele acenou com a cabeça de uma maneira rápida e nervosa.
— Essa foi a primeira coisa que verifiquei, porque, se a porta estivesse
aberta, teríamos muito mais com o que nos preocupar do que alguns
caçadores.
Eles estavam falando sobre a porta que Shadow estava desesperado
para abrir... Certo? Aparentemente, ninguém sabia dessa informação e não
parecia que ficariam felizes se soubessem. Mas Shadow fazia o que Shadow
queria ali, estava tudo muito claro, sem ninguém corajoso ou forte o
suficiente para ir contra ele.
Mas teria sido interessante ver a reação deles se soubessem.
Talvez eu deixe essa informação escapar em algum momento, só para
dar uma agitada nas coisas.
— Há mais caçadores, você acha? — Gaster perguntou nervosamente.
— Enviei um alerta pelas terras, e vou aguardar as respostas e conselhos.
Angel balançou a cabeça.
— Não há mais na biblioteca. Eu me sintonizei com a energia deles, e
está ressoando vazio agora que foram despachados.
Gaster olhou para baixo novamente, como se não pudesse acreditar que
eles estavam mortos.
— Teríamos tido problemas sem você. Graças aos deuses, foi uma
benção.
Ele a reverenciou, então, segurando a pose respeitosamente.
Inclinei a cabeça para trás para ver o rosto dela e, mesmo na visão em
escala cinza do lobo, ficou claro que Angel estava irritada com o título e a
reverência.
— Eu fiz o que qualquer um na minha posição faria, e, honestamente,
se não fosse por Mera-lobo, eu poderia não ter tido a chance de derrubar os
dois.

Minha loba se envaideceu um pouco. Tínhamos sido uma boa


distração, sem sofrer nada ao atacar a capa dos caçadores.
Gaster, que estava quase cara a cara comigo nessa forma, aproximou-
se, olhando nos meus olhos.
— Como você foi capaz de ajudar, Srta. Mera? Os caçadores de
sombras são muito temidos, e tocá-los é tocar a morte para um mortal. Sua
alma se perde para eles. Você deve ter tido muita sorte para evitar o toque
deles.
Uau, tudo bem. Então agora sabíamos o que acontece quando um
mortal os toca.
Angel arqueou uma sobrancelha para mim.
— Sim, muita sorte — disse ela. — Eu erroneamente assumi que ela
sabia sobre eles. Esqueci que todo o conhecimento do Reino das Sombras foi
há muito tempo suprimido pela própria fera.
Agora entendi porque o aviso dela tinha vindo tarde demais para me
impedir de comer um caçador. Ser um estranho ímã de sombras fora útil
nesse dia, impedindo-me de perder minha alma... O que soou um pouco
assustador.
— Você encontrou Shadow? — Angel perguntou tirando o foco de
mim, como a verdadeira amiga que ela era. — Certamente, ele estaria
interessado em uma pequena invasão de pessoas-sombra.
Gaster fez outro daqueles movimentos rápidos da cabeça.
— Eu tentei encontrá-lo, mas não há nenhum sinal dele em lugar
nenhum.
Uma gota de medo se mexeu no fundo, no lugar onde eu não podia
odiar Shadow. Se Igorna tivesse feito o que eu achava impossível? Se ele
tivesse ferido ou matado Shadow, deixando os metamorfos à mercê de uma
vida sem seu deus? Eu não tinha ideia se Shadow já tinha feito algo benéfico
para nós, mas era bom saber que ele existia.
Eu tinha que vê-lo.
Quando saímos em direção ao quarto, Angel gritou para mim:
— Tenha cuidado. Confie em seus instintos.
Minha loba soltou um uivo respondendo em concordância antes de
correr para a Biblioteca do Conhecimento, que já não era uma sala pacífica e
tranquila. Parecia que um tornado tinha passado por ela, os caçadores tinham
causado uma tonelada de merda e danos antes de entrar no refeitório.

Mais uma vez, uma criatura sombra me procurara. E, mais uma vez, eu
não tinha a mínima ideia do porquê.
Entrando no covil momentos depois, estava tudo calmo e silencioso, ao
contrário do caos da biblioteca. Qualquer magia das Sombras que mantinha
este lugar um santuário parecia ainda estar intacta. Apenas silêncio, e um ar
frio cortante...
Espere, frio? Nunca fez frio aqui...
Mudando de direção, minha loba desviou em direção ao meu lugar
favorito com seus sofás macios e fogo rugindo. Um fogo que, pelo que eu
sabia, nunca tinha se esgotado ou mesmo queimado baixo.
Até esse exato momento.
Nem um grão de chama era visível, o interior escurecido parecia estar
frio havia dias. Minha loba nos guiou para a frente, choramingando enquanto
um verdadeiro medo entrava em nosso peito.
Shadow tinha sumido. Se o fogo tinha se apagado, isso significava que
a energia da fera não estava mais presente para mantê-lo funcionando? Ele
tinha encontrado uma maneira de voltar para o Reino das Sombras com
Igorna? Ou a criatura conseguira destruí-lo?
As perguntas giravam em minha cabeça e, mesmo na minha forma de
lobo, com emoções humanas mudas, estávamos com medo. Indo em direção
ao meu quarto, nós nos movemos lentamente, não querendo ser emboscadas.
Rastejando pelas pilhas de livros, notei que nada fora destruído, então, além
da falta de fogo, não havia como dizer que algo estava errado. Mas no fundo
da minha alma, o lugar onde eu acreditava que o instinto surgia, eu senti a
mudança.
E não gostava disso.
Quando chegamos ao meu quarto, a porta estava entreaberta — nunca
estava entreaberta. Então agora tínhamos dois distúrbios no status quo, e isso
era tudo de que eu precisava para saber que estávamos completa e totalmente
ferradas. Rastejando para dentro, permiti que meus sentidos vagassem
livremente primeiro.
Não havia nada. Sem cheiro, batimentos cardíacos, ressonância de
poder ou presença física. Caminhando mais para dentro da sala, fiquei
aliviada ao ver o quarto parecendo vazio e intocado. Nenhuma luta maciça
tinha acontecido ali, estava claro, e eu não perdi mais tempo, retornei à forma
humana e coloquei roupas novas.
Grata por ter tido a chance de comer e por minha energia não estar
completamente esgotada mesmo depois de uma transformação rápida, joguei
uma jaqueta sobre o top e puxei minhas botas. Saí correndo do quarto, meu
objetivo era voltar para a Biblioteca do Conhecimento, encontrar Gaster, e
forçá-lo a me contar tudo sobre o Reino das Sombras. Já não aceitaria a
resposta de merda dele de que não é da minha conta.
Sim, desculpe, mano, quando dois mundos começam a colidir, qualquer
detalhe sobre eles passa a ser da conta de todos.
A biblioteca havia recuperado um pouco de sua compostura quando
retornei, os duendes corrigindo qualquer coisa que tivesse sido perturbada
pelos caçadores. Aqueles dois cortaram um caminho de destruição através
das prateleiras em sua jornada em direção a Angel e a mim. E uma das
minhas maiores perguntas pendentes era por que eles tinham como alvo... a
mim.
A menos que fosse Angel o primeiro foco de eliminação, como um dos
poucos seres que poderia chutar o traseiro deles. Parecia narcisista continuar
pensando que essa merda de drama de sombra estava toda centrada em torno
de mim, mas, porra, isso continuava vindo sempre no meu caminho.
— Mera!
Eu esperava que a chamada viesse de Angel, mas na verdade era Len, o
amigo de vestes prateadas e de língua prateada de Shadow.
— Você precisa vir comigo — disse ele com pressa.
Balancei a cabeça.
— Não, não posso. Tenho que encontrar Gaster ou Angel. Tenho tantas
perguntas que precisam de respostas...
Ele estendeu a mão, colocou na minha testa e quase imediatamente a
escuridão nublou minha mente.
— Seu filho da mãe — mal pronunciei as palavras antes que o que ele
tinha feito tivesse efeito total, e eu caí em seus braços.
Quarenta e sete
Acordei lutando, rosnados no peito enquanto os uivos da minha loba
soavam livres. Por alguns segundos, fiquei presa entre loba e mulher, graças à
magia fae que Len usou em mim. Lembrei-me claramente de como a energia
dele tinha começado na ponta dos meus dedos e trabalhado até que meu
cérebro estivesse sobrecarregado, e eu tinha desmaiado.
E agora eu estava pronta para chutar a porra de uma bunda fae.
Rolando para fora da superfície macia, caí no chão silenciosamente,
meio agachada enquanto olhava ao redor. Eu estava em um jardim. Não, na
verdade, o jardim era muito mais um eufemismo, para ser precisa.
Eu me encontrava no epicentro da parte mais perfeita da natureza que
eu já tinha visto. Flores corriam por quilômetros, em cores que não existiam
no plano terrestre. Pontilhadas entre árvores, tão magníficas e grandiosas que
toda a cena parecia ser uma representação pintada de perfeição.
E o cheiro. Meu Deus. Quando dei um passo à frente, uma enorme
avalanche de perfumes me atingiu. Não tinha como eu estar na Terra ou na
biblioteca e, considerando que foi Len quem decidiu me deixar ali, isso me
levava a uma conclusão lógica.
Eu estava em uma terra proibida para mim e já tinha sido avisada de
que nunca deveria pisar ali.
Faerie.
O que fazem com terráqueos que tropeçam em seu mundo me faz
parecer um santo.
Esse aviso era muito mais assustador agora.
Shadow era um bastardo de sangue-frio que não pensava nada além de
me forçar, punir e possuir, como se eu fosse um móvel que ele tinha, e me
avisara sobre esse lugar.
Sim, eu estava ferrada e, quando colocasse as mãos em Len, arrancaria
o cabelo bonito da cabeça bonita dele.
Incapaz de ficar parada quando parecia que eu estava sob ataque —
apesar da completa falta de algo alarmante ao meu redor —, rastejei para a
frente através das faixas de flores. Fiz um esforço enorme para não tocar em
nada e, meia dúzia de passos depois, passei por um monte de flores amarelas
como margaridas. Margaridas que tinham três metros de altura, com espinhos
roxos até as hastes. Do outro lado delas estavam cachos florais mais curtos,
em um rosa quase ofuscante em sua intensidade.
Essas flores, acima de todas as outras, chamaram-me a atenção. Meus
passos vacilaram, e eu me vi estendendo a mão para correr a ponta dos dedos
ao longo de suas hastes aveludadas. Elas eram quase perfeitas demais, sem
uma única falha em sua folhagem ou variação nas pétalas.
A perfeição me deixou desconfortável. Nada vivo poderia parecer tão
impecável, e ainda assim senti sua energia. Toda a natureza tinha, e essas
flores eram particularmente fortes. Parando um pouco antes de meus dedos
fazerem contato, inalei um último suspiro de seu doce cheiro, antes de seguir
em frente.
— Pare, Mera!
O comando me fez puxar a mão de volta, meu coração trovejando no
peito. Porra, eu tinha perdido a cabeça lá por um minuto e quase tinha feito
exatamente o que prometera não fazer. Não toque, coma ou interaja com
Faerie. Essa era a velha lenda urbana e eu tinha todos os motivos para aceitá-
la, até que as flores me atraíram.
Len, meu sistema de avisos, chegou mais perto, vestido de forma mais
casual do que eu já o tinha visto antes. Seu manto prateado tinha ido embora,
revelando um conjunto impressionante de ombros largos envoltos em uma
simples camisa preta de manga comprida. Eu nunca o tinha visto usando uma
roupa tão escura, e o contraste era admirável com sua coloração prateada.
Ele era esguio comparado a Shadow, mas a maioria dos homens era, e
agora, com as mangas arregaçadas até o topo dos antebraços, era possível ver
o músculo bem definido. As calças pretas apertadas não faziam nada para
esconder o resto de seu físico, e era surpreendentemente óbvio como ele tinha
se desenvolvido em tal flerte. As mulheres se atiravam em alguém assim. A
maioria das mulheres..., mas eu não.
Assim que Len estava em uma distância razoável, eu andei para a
frente, puxei o braço para trás e bati o punho em seu rosto. Confusão passou
por suas feições enquanto sua cabeça girava.
— Merda, Mera — gemeu, esfregando a bochecha. — Para que isso?
Eu rosnei, um som de lobo selvagem.
— Como você se atreve a me arrastar até aqui sem minha permissão?

Len inclinou a cabeça, ainda parecendo confuso com o quão chateada


eu estava.
Batendo um dedo em seu peito enquanto eu lutava contra a vontade de
bater nele de novo, esbravejei.
— Se mais um de vocês, idiotas, achar que tem o direito de tirar minha
vontade, descobrirei como garantir que respirem seu último suspiro.
— Tecnicamente, não precisamos respirar — disse Len.
Ignorando-o, eu o olhei com desprezo.
— Todos vocês viram a última versão submissa de mim.
Eu o golpeei de novo, mesmo que a ponta do meu dedo estivesse
começando a doer de ser pressionado tão firmemente contra seus músculos
do peito. Len estendeu o braço e agarrou minha mão, impedindo-me de
movê-la novamente.
— Estou salvando sua maldita vida. — Era a vez dele de rosnar, e foi
impressionante para um não metamorfo. — Shadow disse que havia criaturas
de seu mundo soltas, muitas das quais estariam procurando por você. Ele
queria que ficasse protegida enquanto ele as detém antes que o próximo
apocalipse comece.
Eu me curvei para a frente.
— Shadow está vivo?
Eu posso não ter admitido para mim mesma, mas uma parte de mim
tinha chorado por aquele imbecil desde o momento em que eu tinha visto a
lareira fria e vazia.
Len riu.
— Claro que ele está. Nada vai matar Shadow.
Fechando os olhos, soltei um suspiro.
— Por que não me disse isso na biblioteca? Teria sido muito mais fácil
do que o que você fez.
Ele deu de ombros.
— Teria sido, mesmo? Você é bem conhecida por ser um tanto
argumentativa e eu literalmente não tinha tempo a perder. Se algo tivesse
acontecido com o pequeno ímã de sombra dele, meu amigo não ficaria feliz
comigo.
Len não tinha medo de Shadow — sua amizade era obviamente longa e
verdadeira —, mas ele respeitava o poder da fera, e esse sempre foi um lugar
seguro para ficar.

— Não importa a situação, você não tem o direito de tirar minha


vontade de mim — eu disse, minha voz mais calma.
Parte de mim ainda estava chateada, pronta para lutar com ele, mas na
verdade Len me deixou atingir um golpe decente e não devolvera o favor. E,
se ele estava literalmente tentando me salvar, então eu sem dúvidas lhe devia
um pedido de desculpas. Que colocaria no correio. Com o resto das tantas
outras que tinha para dar.
— Eu entendo — disse Len. — Não vai acontecer de novo.
Certo. Com certeza. Muito reconfortante.
— Então, e agora? — Suspirei. — Eu só fico aqui no seu jardim que
não posso tocar, esperando Shadow me chamar como se fossem os anos 1900
na Terra?
— Você não esqueceu aquela coisa sobre não tocar nas flores, hein? —
Len sorriu.
— Os humanos são mais espertos do que os créditos que recebem.
Não me incomodei em informá-lo de que provavelmente era tão
humana quanto ele, de acordo com Angel.
— Seu aviso para “parar” não foi exatamente sutil. E eu conheço as
fábulas desta terra. Só perdi a cabeça por um momento com essa flor em
particular.
O sorriso de Len cresceu mais.
— Oh, sim, ela é a minha querida mais sedutora. Mas também não é
boa em brincar com estranhos. — Ele se virou abruptamente, passeando em
direção às flores rosa-vibrantes e, quando estendeu a mão para tocá-las, elas
se transformaram completamente em uma única entidade, com uma enorme
boca aberta e dentes afiados formados por espinhos. Espinhos que não eram
visíveis em sua outra forma.
— Eles gostam de embalar suas presas em uma falsa sensação de
serenidade — disse Len, continuando a acariciar o maldito monstro vegetal
como se fosse um gatinho bonito. — Nunca confie em nada tão bonito.
Levantei uma sobrancelha.
— Já me antecipei a você. Por que diabos acha que eu luto tanto contra
Shadow e sua banda de psicopatas alegres?
Len abandonou as flores assustadoras e eu olhei fascinada enquanto
elas voltavam ao seu estado doce e inocente. Ninguém esperaria que sob essa
fachada perfeita houvesse uma planta que comia pessoas no café da manhã.
— Você acha que somos a banda do Shadow? Como sabe que eu não
sou o vocalista?
Todos eles tinham uma compreensão surpreendentemente forte da
minha língua, e eu tinha uma leve suspeita de que, como Angel, tinham
passado mais do que um pouco de tempo na Terra.
— Notei que você não negou a parte dos psicopatas.
Ele deu de ombros.
— Psicose está nos olhos de quem vê. E, verdade seja dita, há muito
pouco que não fizemos em nossa longa vida, nem todos vão entender como
nosso poder ou mente funciona. Então... Sim, há verdade no que você disse.
— Sem discussão por mim — eu disse forçando-me a manter uma cara
séria.
Olhei em volta de novo, ignorando seu sorriso. Eu não podia ofender
esse cara, isso era claro, então parei de incomodar e, em vez disso, apontei
para a terra de Faerie.
— Você vai me mostrar o lugar?
O sorriso de Len desbotou rapidamente.
— Você deve ficar aqui nos jardins imortais. Este mundo não é gentil
com aqueles que carregam fraquezas humanas. É melhor não provocar a terra
fae.
Pisquei para ele.
— Ok, então. Acho que foi o aviso mais estranho que já recebi, mas
vou prestar atenção, não se preocupe.
Len me levou de volta à plataforma em que eu tinha acordado e, agora
que não estava focada nas flores, eu via que se tratava de uma grande laje de
pedra coberta por um manto grosso e macio. Fora para lá que seu manto
prateado tinha ido — eu não tinha notado até agora.
— Desculpe por ter batido em você — eu disse baixinho, olhando para
a evidência de que ele não era um completo idiota.
Len só cutucou meu ombro.
— Eu mereci. Esqueci-me do consentimento, faes não são os melhores
em reconhecer consentimento, especialmente a realeza, mas a maioria das
nossas fêmeas são submissas de uma maneira que humanos e metamorfos não
são, então geralmente isso não é um problema. Pessoalmente... prefiro o fogo.
Nossos olhos se encontraram e, mesmo não havendo faísca real entre
nós, eu apreciava sua confissão. Na verdade, isso era exatamente o que eu
esperava encontrar na biblioteca para que pudesse ganhar a aposta. Uma
conexão com alguém que eu achasse atraente. Len preenchia todos os
requisitos a esse respeito, mas... eu precisava da faísca. Não precisava ser o
incêndio florestal que Shadow criava, mas pelo menos uma pequena chama.
Droga. Eu estava ferrada, e certamente parecia que não ia ganhar a
aposta agora.
Não era possível que Shadow houvesse orquestrado todo esse evento só
para garantir que eu ficaria presa em Faerie pelo resto dos dias da aposta.
Quarenta e oito
O resto da minha tarde — era de tarde, certo? — foi gasto no jardim de
Len. Acontece que esta era sua terra privativa, cultivada nos últimos mil
anos, e ninguém estava autorizado a entrar sem sua permissão. As plantas
literalmente comiam quem tentasse.
Duas sentinelas sentaram-se na entrada da frente. Flores maciças com
uma enorme abertura no centro, seu interior, basicamente uma fileira cheia de
dentes afiados. Elas lembravam versões ogro de plantas carnívoras, e,
aparentemente, se o arrebatarem em sua boca enorme, você está acabado.
Nem mesmo Len poderá libertá-lo antes que eles esmaguem seu corpo.
— Mas eles não vão me comer agora? — perguntei de novo, pela
décima vez, quando nos aproximamos um pouco demais para meu conforto.
— Você vai ficar bem estando comigo.
O sorriso de Len estava relaxado, e eu normalmente tomo isso como
um bom sinal, mas estava aprendendo que ele não se estressava muito. Um
ser que era basicamente imortal, tinha vivido mais de mil anos de vida, e era
um príncipe poderoso, não se preocupava com plantas assassinas.
Ao contrário de mim, que não queria morrer pela boca de uma planta.
Como virgem, ainda a ser iniciada. Tipo... Foda-se, não.
Quando terminei a aventura no jardim botânico, parei de andar, e Len
olhou para trás com sobrancelhas levantadas.
— Posso comer comida aqui? — perguntei, com fome e irritada, já que
estava sendo forçada a entrar em outra prisão por cortesia de Shadow.
Fosse para me manter segura ou não, eu era uma metamorfo adulta e
deveria ser consultada antes que algum homem das cavernas me arrastasse
pelo cabelo.
O mínimo que podiam fazer era me alimentar.
— Estou curioso para ver como nossa comida afeta você — ele
finalmente disse, olhos prateados examinando meu rosto, como se estivesse
procurando uma falha. —Mas não vamos arriscar. Vou me aventurar de volta
para a biblioteca e obter algum sustento.

Não revire os olhos para o príncipe fae excessivamente dramático. Ele


tem plantas carnívoras sentinelas.
— Eu apreciaria isso, gentil senhor. — Eu meio que me curvei para ele
com uma risada.
Ele não riu como eu esperava. Em vez disso, com o rosto sério, andou
em minha direção e baixou a cabeça para pressionar um breve beijo na minha
bochecha. Quando se afastou, eu pisquei, pois ele realmente era
deslumbrante. O brilho prateado de sua magia, os contornos perfeitos de seu
rosto e o charme que ele exalava com pouco ou nenhum esforço o tornavam
bastante devastador para fêmeas cheias de hormônios.
— Fique segura, linda — disse ele baixinho. — Não toque nas plantas.
Ele se movia como uma de suas folhas, à deriva ao longo de uma
ventania. Em um único salto gracioso, foi embora, e eu estava sozinha nesse
jardim de... do Eden. Plantas assassinas e tudo mais.
Voltando ao banco de pedra que eu tinha quase certeza que não me
devoraria, decidi esperar lá para me salvar de ser acidentalmente assassinada
via planta. Era mais suave do que eu lembrava e, quando me estendi,
inclinando-me para trás em meus braços, fechei os olhos deixando o calor
desse mundo me abraçar. Era a temperatura perfeita, não úmida ou muito
quente, mas como um dia de primavera. Por mais agradável que fosse,
porém, havia essa corrente de magia no ar, e isso me disse que esse clima,
assim como as plantas, não era bem real.
Toda faerie era assim? Um mundo tão infundido com magia que o
aspecto natural fora perdido para o que o fae queria criar? E isso realmente
importava? Os humanos tentaram controlar seu mundo com tecnologias, e a
maioria das quais não funcionou muito positivamente, se a infelicidade geral
da população indicasse alguma coisa. Talvez a magia em Faerie tivesse sido
mais bem-sucedida em seus resultados finais.
A calma no ar me fez fechar os olhos e me estender pela plataforma. Eu
não deveria estar cansada, mas a vontade de cochilar me superou, e mesmo
que fosse provavelmente uma manobra deste jardim para que pudesse me
consumir, decidi ceder à tentação e deixar a nebulosidade passar por mim.
Cochilos eram obra de Deus. Que Deus, eu não tinha ideia, mas
certamente até Shadow adorava cochilar. Eu tinha que acreditar que mesmo
animais sociopatas precisavam de um tempo de inatividade.

Por um período indeterminado de tempo, permaneci na minha


aconchegante festa de soneca, e foi só depois de uma mão quente ser
pressionada em minhas bochechas que a consciência voltou. Ainda
desorientada, eu gemia suavemente enquanto a mão se movia pelo meu
pescoço, pelo centro do meu peito, e sobre o meu estômago, acariciando a
pele nua onde minha camisa tinha subido.
O fogo queimou junto com esse toque, aquecendo até o meu núcleo, e
quando minhas costas se arquearam um gemido escapou. No mesmo instante,
meu cérebro clicou no fato de que eu estava sendo tocada por alguém... ou
algo desconhecido.
Meus olhos se abriram e no segundo que levei para olhar ao redor,
descobri que estava completamente sozinha ou... Eu me engasguei com um
suspiro quando Shadow entrou em meu raio de visão. Ele não estava nem
perto de mim e, mesmo tão rápido quanto era, não acho que poderia ter se
movido tão velozmente. Ele estava de volta na entrada, abrigado entre as
plantas sentinelas, com as mãos em cada um de seus troncos, como se
estivesse cumprimentando seu cachorrinho favorito.
O que tinham aqueles caras para tratar essas plantas como animais de
estimação favoritos?
— Shadow — chamei sem fôlego, meu corpo ainda queimando e
doendo. Eu me sentia carente, como se estivéssemos muito perto da parte boa
e isso tivesse sido roubado de nós. — O que você está fazendo aqui?
Com um tapinha final nas plantas assassinas, ele caminhou em minha
direção. Levou alguns minutos para me alcançar, consolidando meus
pensamentos de que não poderia ter me tocado.
Como ele estava em sua altura mais gigante, tive que levantar o
pescoço para ver seu rosto. Semanas pareciam ter passado desde que eu
vislumbrara suas feições sombrias e masculinas, e só a visão de seu cabelo e
lábios cheios me fez levantar os joelhos e me jogar para a frente em direção a
ele.
— Pensei que você estava morto — eu disse, minha voz rouca e
abafada quando colidi com seu peito. — O fogo tinha se apagado.
Shadow permaneceu parado como uma estátua enquanto eu o segurava,
e um momento depois a sanidade me pegou — eu estava abraçando a porra
do Shadow Beast. Então eu o soltei e tentei voltar para trás, seus braços se
moveram, e ele me fechou em um abraço.
Espere... o quê?
Minha alma gritou enquanto ele me apertava firme em seus braços, e eu
me vi um pouco sufocada. Um abraço de Shadow era como encontrar a pedra
mais rara e desejável do mundo e, pelo momento mais breve, eu a segurei em
minha mão.
Ele se afastou muito rápido, mas tinha acontecido e, como meu coração
batia contra meu peito, eu soube que não havia como negar que era afetada
por ele. Quero dizer, ele sempre foi a causa de um incêndio em meu corpo,
hormônios ficando loucos por sua mera presença. Nos primeiros dias, eu o
achava o cara mais fodão e sexy que eu já tinha visto. Quer dizer, qualquer
um estaria nessa, mas tinha sido um interesse superficial.
O que eu estava sentindo agora era mais. Profundo.
Aquele abraço significou alguma coisa para mim.
Quão estúpida eu era para me preocupar com um deus que nunca
poderia se importar comigo fora da minha utilidade para abrir a porta para o
seu reino? Sim. Superestúpida.
Certamente, ele voltaria a ser um total idiota — e todos sabíamos que
ele iria —, eu poderia devolvê-lo a um lugar de ódio no meu coração. Isso era
mais seguro e saudável para todos os envolvidos.
Shadow parecia estar me observando tão de perto quanto eu a ele, mas
eu esperava que nenhum dos meus sentimentos mais suaves por ele
estivessem à mostra em meu rosto; ele já tinha muito poder sobre mim,
baseado apenas em nossa relação no mundo. Deus versus metamorfo era
fácil. Todos apostariam em Shadow. Era a lógica.
E a última coisa que ele precisava saber era que minhas emoções
estavam agora envolvidas. Emoções levavam as pessoas a fazerem besteiras e
sacrificarem sua moral... Eu nunca lhe daria esse poder. Nunca.
— Você notou que o fogo se apagou na biblioteca? — perguntou ele
finalmente.
— Claro que sim — exclamei, pronta para entrar nesse tópico. — O
covil é com certeza mais frio e estéril sem ele.
Minhas palavras o surpreenderam, se o leve clarão em suas pupilas
seguido por aqueles lábios pecaminosos sendo pressionados era qualquer
indicação.
— Eu precisava usá-lo para um feitiço — disse ele, e prestei muita
atenção, porque, quando Shadow estava em um clima de compartilhamento,
eu aprendia muito com ele. — As chamas evocarão as criaturas das sombras
para um lugar, economizando-me a energia de rastreá-las individualmente.
Maneira mais fácil de minimizar os danos.
Opa. Eu realmente tinha que parar de causar danos em tudo.
— Por que não usou o fogo na primeira vez que toquei nas sombras?
Olhar enigmático.
Deveria ter adivinhado que era tudo o que eu teria, mas dessa vez não o
deixei escapar, encarando-o e cruzando os braços — eu estava falando sério
sobre querer uma resposta.
Shadow soltou um suspiro antes de me chocar — novamente —
sentando-se ao meu lado na borda da pedra. Esse era o verdadeiro Shadow
Beast? Eu deveria ter feito algumas perguntas de segurança cujas respostas só
ele saberia? Talvez precisássemos de um código secreto, porque ele estava
agindo totalmente fora do personagem.
— O fogo protege meu covil quando eu não estou lá — disse ele, o
sotaque mais profundo em sua voz rouca. — Eu nunca o desperdiçaria,
especialmente em uma situação com que eu poderia lidar por conta própria.
As circunstâncias atuais são um pouco mais complexas, no entanto, e para
economizar tempo e energia decidi utilizar as armas mais poderosas.
— E por que você está aqui, e não acompanhando o fogo? —
questionei, esperando que seu bom humor para compartilhar continuasse.
Ele se concentrou em mim com aquele seu jeito desconcertante.
— O feitiço para rastrear todas as criaturas do Reino das Sombras me
afetaria também. Ele vai se infiltrar em quase todos os mundos, exceto faerie.
Sombras não são bem-vindas aqui, então aqui vamos permanecer até que o
feitiço tenha realizado todo seu objetivo.
Uma risada escapou de mim.
— Você está me dizendo que poderia ter sido varrido no feitiço
também, mesmo que o tenha lançado?
Seus lábios se ergueram.
— Sim. O poder das minhas chamas está além de todas as outras.
Ninguém é imune, e, mesmo que sua energia seja a chave para a minha, eu
não teria sido capaz de resistir à sua atração.
Interessante.
— Não sabia que tinha fraquezas quando se tratava de magia — eu
disse soando como se estivesse brincando, mas era a verdade.
Shadow balançou a cabeça.
— Todo mundo e tudo neste mundo tem fraquezas. Alguns têm mais do
que outros.
Eu lancei um olhar incrédulo, para que ele pensasse que eu era a flor
mais frágil do mundo. O que ele tinha que lembrar, porém, era como nesse
jardim, às vezes, a flor mais delicada tinha a mordida mais forte.
— Você tem muitos pontos fracos?
Ele riu, um som que genuinamente parecia divertido.
— Você é agradável com sua franqueza.
Eu nunca tinha sido chamada de "agradável" antes, e ele não disse isso
como um elogio, mas, vindo de Shadow, eu estava tomando isso como um.
— Você não vai me dizer, vai?
Uma faísca de fogo brilhou em seus olhos.
— Sem chance, Raio de Sol. Dois seres neste mundo sabem qual é
minha fraqueza, e eu não irei adicionar um terceiro.
Era a minha vez de rir.
— Justo.
Se todos os cinco melhores amigos dele não sabiam, então tenho
certeza de que não estava na lista de cartões de Natal.
Meu estômago escolheu aquele momento para resmungar, lembrando
que eu estava com fome.
— Len foi buscar comida — eu disse defensivamente quando Shadow
olhou minha barriga como se ela estivesse prestes a criar pernas e começar a
andar por aí.
— Eu sei, eu sei. Eu o aliviei do dever de guarda, então agora cabe a
mim mantê-la viva.
Meu sorriso desapareceu quando o encarei diretamente.
— Quero dizer, você está realmente qualificado para esse trabalho?
Você basicamente tentou me matar diariamente desde que nos conhecemos. E
isso sem contar os dias em que me trancou no meu quarto sem comida.
Shadow colocou o braço ao meu redor, um movimento repentino, e
então eu estava cercada por seu calor. Deveria ter sido demais, mas foi
estranhamente perfeito.
— Você só está viva por minha causa, Mera — disse ele, sem vestígios
de brincadeira em suas palavras. — Eu poderia tê-la matado a qualquer
momento e, apesar de meu julgamento insistir que você pode ser um dos
motivos da minha queda, você ainda está respirando.
Foi só quando ele me tirou do lugar que percebi algo extraordinário. Eu
o tinha abraçado antes. Eu havia feito o primeiro movimento, e não houve
dor. Não era a primeira vez recentemente que isso acontecia — mas ignorei
das outras vezes, pensando que ele tinha me visto chegar e parara a dor. Mas,
dessa vez, eu o havia pegado completamente de surpresa e, ainda assim,
nenhum fogo se espalhara pelas minhas terminações nervosas.
O que isso significava?
Antes que eu pudesse perguntar, ele me colocou em pé.
— Vamos lá. Vamos pegar comida. Temos um dia ou dois antes de
poder sair da Faerie, então teremos que nos sentir em casa.
Esse era o meu único foco então.
— Posso sobreviver aqui, fora deste jardim?
Shadow voltou a usar sua máscara de mistério, nada em seu rosto
exceto uma aceitação resignada de ficar preso comigo.
— Eu vou mantê-la viva, Raio de Sol.
Por alguma razão, isso parecia uma promessa.
Uma, pela primeira vez, na qual eu realmente acreditei.
Quarenta e nove
Ao contrário de Len, Shadow não parecia se estressar sobre deixarmos
o jardim que era magicamente escondido.
Quando saímos para encontrar Inky do outro lado das sentinelas, eu
entendi por quê. Ao lado de Shadow e Inky, nada nos atacaria. Até as flores
ao redor pareciam estar se inclinando para trás de nós, criando um caminho
agradável e claro.
— O que é Inky? — perguntei ao Shadow quando pisamos em um
caminho de jardim que parecia ter uma casa enorme bem no final dela.
Quer dizer, na verdade, casa não era o certo... Era uma megamansão. E
estava flutuando. O fae sabia como fazer essa coisa de viver muito bem... se o
luxo e a magia fossem seus dons, é claro.
Shadow me olhou de lado.
— Você não pode pensar que eu vou lhe dizer isso. Está ligado a mim,
e não lhe darei nenhuma arma contra mim.
Hummm. Então Inky pode ter informações sobre suas fraquezas, de
alguma forma...
Ficou claro pela expressão de Shadow que eu não iria descobrir mais
nada sobre nenhum deles dois naquele dia, então desisti de me preocupar e
me concentrei em observar cada parte da Faerie que eu pudesse ver. Desde
que abri a porta e ouvi aquela música, a necessidade de ir ali tinha se
enraizado dentro de mim. Como se aquela melodia tivesse entrado na minha
alma quando eu não estava olhando.
— Como posso estar aqui sem sofrer nenhum efeito ruim? — perguntei
ao Shadow quando paramos antes do palácio flutuante.
Eu queria tanto examinar o prédio, mas meu foco estava preso naquela
besta enigmática ao meu lado. Como sempre, sua mera presença encobria
todo o resto.
— Você não entrou por sua própria vontade, então Faerie não pode
aprisioná-la.
— Sério? Len nunca me disse isso. — Essa nova informação me fez
refletir. — Acho que isso explica o jeito como me levou. Ele deveria ter dito
alguma coisa; eu teria sido muito mais condescendente. — Em vez disso, o
fae me deixara bater nele e ainda se desculpara admitindo um erro. O que
foi... interessante.

O sorriso de Shadow era quente, como muitas vezes vi quando estava


com seus amigos.
— A magia é uma entidade viva e, como tudo o que existe, tem regras.
Faerie é mais mágica do que qualquer um dos mundos e, uma vez que você
conhece as regras, é um local perfeito para visitar. Se você não as conhece,
porém, ele vai comê-la viva. Len tinha suas razões para tratar a situação do
jeito como fez.
Merda, agora me sentia mal. Tinha sido um período de muita tensão,
em primeiro lugar lutando contra os caçadores...
Espere!
— Toquei nos Caçadores das Sombras — eu disse, lembrando-me de
repente da mais recente ocorrência estranha em relação a mim e a minha loba.
— E eles não roubaram minha alma, ou seja lá o que deveria acontecer.
Silêncio. Um longo silêncio ecoando.
Droga, diga alguma coisa. Algo reconfortante.
Em vez disso, com uma expressão ilegível, Shadow me ignorou,
voltando-se para pressionar as mãos na parede do prédio. O edifício parou de
ser cintilante e brilhante, assim que um conjunto de escadas apareceu,
levando até um grande conjunto duplo de portas.
— Shadow — eu o chamei, precisando de alguma reação sua.
Ele fez uma pausa, um pé no primeiro degrau.
— Regras normais não a governam, Raio de Sol. Aparentemente a ideia
de que sua origem é do reino está crescendo. Não há outra explicação para o
que você pode fazer.
Eu queria gritar, a tensão dentro de mim ameaçando explodir à medida
que crescia em intensidade.
— Como? A porta está trancada há milhares de anos! Como eu
passaria? E eu me pareço com meus pais...?
Ele se voltou para atrás, olhando para mim.
—Não tenho ideia do que significa ou como é possível, e até que
tenhamos a porta aberta não vamos descobrir.
Seus olhos estavam me dizendo que essa era a razão pela qual exigia
tanto que eu me concentrasse na tarefa, mas nós dois sabíamos que ela era
uma tarefa para ele e mais ninguém. Descobrir o que eu era tinha acabado de
se transformar em uma divertida aventura paralela.
Ele caminhou de volta para mim, estendendo a mão para tocar meu
rosto. Foi o movimento mais estranho, quase gentil.
— Não se estresse com isso hoje. Nenhuma resposta virá mesmo que
você busque na sua mente. Pense dessa forma... Você ainda está viva. Ainda
lutando. Você sobreviveu ao que noventa por cento dos metamorfos não
sobreviveriam, e isso não pode ser uma coisa ruim. Nós vamos chegar à
verdade em algum momento. Até lá, basta abraçar a vida que você está
vivendo.
Porra, acho que essa versão da fera ancestral filósofa não estava errada,
e provavelmente não faria mal seguir seu conselho.
Por enquanto.
Shadow começou a subir as escadas novamente, e dessa vez eu o segui,
por fim tendo a minha chance de realmente examinar o palácio deslumbrante.
Tive que suspirar enquanto olhava todos os aspectos. Ele vinha direto de um
conto de fadas — irônico, visto que o nome do lugar em que estávamos
significa justamente "Fada" — com paredes de pedra brancas, salpicadas de
cristais brilhantes, canhões e várias torres, tudo coberto por níveis de
elegantes telhados cinza-escuro.
Era ainda maior do que eu pensava inicialmente e, enquanto seguia
Shadow até o topo da escada, engasguei com o tamanho das portas duplas.
Elas deviam ter mais de seis metros de altura e largura, e assim de repente
ambas silenciosamente se abriram para nos permitir entrar, deixando-me de
olhos arregalados, ainda olhando ao redor.
A entrada era branca, bastante ofuscante, com apenas algumas peças de
arte na parede. A arte ali não era estática como as pinturas na Terra, no
entanto; as imagens giravam e se moviam, polvilhadas com magia brilhante
enquanto retratavam flores, cachoeiras e um oásis. Eram tão reais, que
parecia que eu poderia entrar nelas e literalmente estar na imagem.
Pelo que eu sabia, ali em Faerie, isso era realmente possível.
— Esta é a casa do Len? — perguntei.
Era elegante e prateada como ele, mas algo não se encaixava ao mesmo
tempo. Era moderna e minimalista. O exterior era muito ornamentado e, à
medida que avançávamos, o resto se via assim também. Tapeçarias ricas,
grandes móveis para acomodar alguém acostumado ao conforto, e respingos
de vermelho e ouro que me lembravam de uma pessoa...
— É minha — disse Shadow, confirmando minha nova teoria. — Eu
gosto de manter uma residência aqui, e você estará a salvo das magias
estrangeiras enquanto permanecer dentro dela.
Ele me levou até as escadas, Inky ao meu lado enquanto caminhávamos
para o segundo andar. Ali havia uma biblioteca. É claro. Eu estava
começando a ter a sensação de que Shadow era um pouco obcecado por
livros, e isso só aumentava seu sex appeal. E, droga, ele não precisava de
ajuda nesse departamento.
Entrando na biblioteca, Shadow se dirigiu ao centro e a um conjunto de
sofás semelhantes aos de seu covil. Inky foi com ele, mas eu atravessei em
direção à extensão das janelas que iam do chão ao teto, emolduradas em aço
preto, mostrando o mundo abaixo.
Parando diante delas, olhei para a paisagem.
— Estamos nos movendo! — exclamei, notando o cenário que se
modificava rapidamente abaixo.
Eu não esperava que Shadow me ouvisse — ele realmente não estava
tão perto —, mas, quando me virei para ele, foi para descobrir que estava de
alguma forma ao meu lado. Foi tão rápido que tive que reconsiderar minha
ideia sobre o que havia acontecido no jardim durante meu cochilo. Shadow
havia mesmo me tocado, ou teria sido outro ser? Mas fora um toque tão
sensual, e isso não fazia sentido, então provavelmente tinha sido apenas um
sonho muito vívido.
Essa era a minha ilusão, e eu estava inclinada a acreditar nela.
— Nada está parado em Faerie — disse ele, e tive que puxar o fio do
pensamento para me lembrar do que estávamos falando.
Minha mente estava presa no calor que se acumulava em meu corpo e
escorria até o meu...
— Nada está parado?
O rosto de Shadow foi revelado por uma explosão de luz solar dourada
que escolhera aquele momento para se pulverizar dramaticamente através da
janela. Estávamos voando por entre um monte de nuvens baixas e, à medida
que se dissipavam, a luz ficava mais brilhante do que nunca, enquanto abaixo
de nós havia... lava. Apenas uma imensidão vermelha fluindo.

— A paisagem aqui muda tão frequentemente quanto as imagens que


enfeitam minhas paredes — explicou Shadow.
Tentar fazer minha mente aceitar todo esse conceito não era fácil.
Humanos e metamorfos gostavam de coisas fixas. Era familiar, e isso era
reconfortante.
— E o jardim de Len? Ele não se moveu.
Shadow sorriu.
— Você é rápida. Gosto disso em você. A maioria dos humanos
demoram uma eternidade para acompanhar a conversa.
Mostrei a língua para ele.
— Melhor?
Acenou com a cabeça.
— Isso é mais o nível que eu espero de sua espécie. Mas, sim, o jardim
do Len é uma pequena seção fixa. Há muitos assim espalhados por aqui, mas
eles não se conectam a qualquer outra coisa, então você ainda precisa
encontrar um meio de transporte.
Por isso ele tinha uma casa flutuante ali. Era basicamente a versão
Faerie de um motorhome.
Virando a cabeça, voltei-me para a vista, notando algumas pequenas
ilhas pontilhadas entre os rios de lava.
— Podemos voltar para a Biblioteca do Conhecimento daqui?
Shadow balançou a cabeça.
— Não, há apenas algumas entradas de Faerie para a biblioteca.
Teremos que retornar ao jardim do Len em dois dias para podermos voltar. É
o portal mais próximo deste lado da grande divisão.
Excelente, eu realmente queria saber o que era essa grande divisão.
Espero aprender muito mais em nossos dias aqui.
— Para trás, Mera — disse Shadow de repente.
Enruguei a testa para ele, imaginando o que diabos estava falando...
Inky explodiu, seu tamanho vinte vezes maior, e eu quase fiquei presa
em sua fumaça preta.
— Estamos sob ataque? — gritei, cobrindo a cabeça enquanto me
abaixava para o lado.

Shadow riu, e eu parei, porque isso não parecia alguém preocupado.


Isso claramente não era um ataque, mas, o que estava acontecendo?
Inky continuou a inchar, e a faísca de luzes dentro ficou mais brilhante,
e brilhante, até... uma caixa deslizar de dentro dele. O que diabos está
acontecendo aqui?
Shadow parecia se divertir com a minha expressão enquanto eu olhava
para aquela imagem um tanto perturbadora.
— Sua comida chegou — disse ele.
Esfreguei a mão no rosto, abrindo a boca para falar antes de fechá-la
novamente. Inky tinha dado à luz uma maldita caixa de comida, e agora eu
tinha que comê-la?
Meu estômago rosnou de novo, mais alto do que antes.
Sim, então, ok, eu provavelmente comeria. Mas mesmo assim...
— Como é que ele fez isso?
Shadow, a fera dos segredos, apenas sorriu.
Jogando as mãos no ar, girei e soltei um huff irritado por tudo ser um
segredo nesse mundo. Minha natureza curiosa ficava louca com todas aquelas
perguntas sem resposta, e parecia que Shadow estava fazendo isso
deliberadamente nesse momento.
Embora agora eu soubesse que Inky estava possivelmente ligado à sua
fraqueza, talvez ele estivesse apenas sendo mais cauteloso sobre revelar
qualquer informação ligada ao seu pequeno lacaio.
— Inky tem laços com a biblioteca que vão além das normas — disse
Shadow após alguns segundos de silêncio constrangedor. Eu não esperava
que ele respondesse, então fiquei realmente chocada. — Ele também está
conectado a mim, e entre nós dois é permitido que ele forme um pequeno
portal mágico. Que vem a calhar às vezes.
Inky se enrolou em torno de nós dois, e eu arrastei a ponta dos dedos ao
longo da escuridão. Em algum momento, assim como com Shadow, passei a
tocá-lo sem qualquer repercussão. Como isso era possível, eu não tinha ideia,
mas não estava chateada. Havíamos feito progressos no tempo em que
estivera com eles. Shadow podia confiar apenas em cinco seres no mundo,
mas eu não era mais a inimiga que fora no início.
Para testar a teoria, casualmente escorreguei por Inky e deixei minha
mão roçar a pele da mão de Shadow, que estava parada na lateral de seu
corpo. Só um arranhão. Mas não havia dor.
Eu não podia impedir o sorriso largo e triunfante de cruzar meu rosto.
Shadow atirou em mim um meio sorriso, como se soubesse exatamente o que
eu estava fazendo.
— Não fique muito confortável, pequena loba — ele me avisou. —
Você deve tomar cuidado para se proteger a todo custo.
Concordei com a cabeça.
— Sempre tive, Shadow. E eu sempre vou ter. Já falharam muitas vezes
comigo para que eu seja de outra maneira.
Ele não parecia convencido, mas tudo bem. Eu tinha sido subestimada
tantas vezes quanto tinha sido decepcionada na minha vida.
Deixando os avisos vagos de lado, o resto do meu tempo com Shadow
foi tranquilo. A caixa era como um piquenique extravagante, com sanduíches,
saladas e alguns frios. Shadow não comeu comigo, mas permaneceu por perto
enquanto eu mergulhava naquele banquete. Quando eu estava cheia e não
cabia nem mais um delicioso pedaço de comida dentro, a caixa fechou. Eu
olhei tristemente e Shadow soou divertido quando disse:
— É magicamente selado. Tudo vai ficar fresco e preservado lá dentro.
Soltei um suspiro de alívio.
— Bom, porque desperdiçar comida é um pecado.
Shadow, que estava esparramado em seu sofá em frente a mim, sorriu
preguiçosamente.
— O pecado é o meu cartão de visitas, Raio de Sol. Foi nisso que
construí toda a minha reputação, e a razão pela qual me vi expulso da minha
terra.
Ele podia não estar comendo, mas tinha uma bebida na mão, volteando
o copo para que o líquido âmbar girasse. Parecia relaxado e, como atualmente
não podia ir a outro lugar para escapar de mim, decidi perguntar sobre o
Reino das Sombras.
Inclinando-me para a frente, enfiei um travesseiro fofo contra meu
peito, levantando a cabeça sobre ele.
— Fale-me sobre o Reino das Sombras — eu disse baixinho. — Por
que a porta está bloqueada? E como diabos eu estou trazendo seres de lá para
cá?
Seu primeiro instinto foi negar-me a informação; eu vi isso na
expressão fechada que substituiu suas características relaxadas.

— Isso me envolve — lembrei. — E você está me pedindo para


completar uma tarefa sem me dar todas as informações de que preciso para
fazê-lo. Para preservar nossa sanidade, e possivelmente nossa vida, agora é
hora de me dizer.
Seu rosto permaneceu impassível, o idiota teimoso.
— Por que a porra da porta está bloqueada? — perdi a cabeça e essas
palavras saíram um pouco mais gritantes do que eu esperava.
— Por minha causa — ele disparou de volta. — Eu nasci como o
próximo Ser Supremo, o verdadeiro herdeiro, e minha família conspirou
contra mim, tomando minha coroa e poder. Fui traído por aqueles em quem
eu deveria confiar e, quando me atiraram para o espaço além do meu mundo,
eles barraram a porta com um feitiço que nunca fui capaz de superar.
Havia uma dor profunda enterrada sob sua expressão cínica. Por
milhares de anos, sua família o mantinha longe de sua casa... Sua terra.
Filhos da puta.
— E eu que pensei que a tragédia da minha família era ruim —
murmurei.
Isso é muito foda. Mesmo que você tenha feito algo terrível para
merecer a ira deles, ninguém deve ser impedido de entrar em casa.
As chamas de Shadow rugiram ganhando vida ao seu redor, uma bola
de fogo gigante, que se transformou em seu lobo flamejante. Eu nunca o tinha
visto mudar para uma besta literal, mas dessa vez, como as chamas se
estabeleceram na forma de um lobo, suas outras características se
transformaram também. Seu rosto cresceu alongado como seus braços
estendidos, garras salientes até a ponta dos dedos.
Meu coração se acelerou, uma resposta natural ao medo. Esta era
Shadow Beast em toda a sua glória — ou pelo menos noventa por cento dela.
A versão Shadow de fogo era realmente uma visão para ser admirada.
— Shadow — murmurei enquanto ele se levantava, de pé com três
metros de altura, a escuridão dos demônios dançando ao redor de seu corpo
enquanto as chamas subiam mais alto.
— Não haverá perdão e esquecimento — ele resmungou e, a cada
palavra, o lobo em seu rosto e voz era mais evidente. — Preciso que a porta
se abra para que possa rasgá-los todos em pedaços e dançar sobre seu túmulo.

Eu estava de pé também, sentindo uma grande necessidade de me


submeter. O poder que ele emanava enquanto fera ultrapassava o homem,
juntamente com o estrondo de sua voz, quase me colocou de joelhos. Esse era
o deus que criara meu povo, aquele que era temido, reverenciado e amado por
metamorfos do mundo todo.
— Vou ajudá-lo a abrir a porta — eu prometi dando ênfase a cada
palavra. — Pela primeira vez, essa tarefa realmente faz sentido para mim.
Entendo por que você me manteve por perto agora... Sou a única em todo
esse tempo que foi capaz de contornar o feitiço na porta. Um feitiço que o
afasta de sua terra, família e destino.
Ele finalmente começou a se acalmar; o fogo recuou, e seu rosto
recobrou as feições do homem bonito e sombrio contra a feroz besta
majestosa. Quando retornou ao estado anterior, pude finalmente relaxar, não
mais atraída pelo poder de seu lobo de fogo. Verdade seja dita, eu não sabia
qual lado dele eu preferia, e não tinha ideia do que isso significava, o fato de
que esperava vê-lo como lobo novamente em breve.
Ele chegou mais perto de mim, a energia andando em sua pele
enquanto ele deixava ir a fera.
— Você é a primeira em mil anos a ser capaz de tocar o Reino das
Sombras — ele me disse em uma voz mais profunda do que deveria ser
possível. — Não sei como ou por que... Você não é como nada que eu já
encontrei na minha vida, e não sei o que fazer com você.
Seguindo em frente, não pude mais lutar contra o desejo. Shadow tinha
quebrado o controle que tinha sobre si mesmo e, ao fazê-lo, me chamara tão
fortemente que não pude resistir. Seu olhar era cautelosamente curioso,
observando de perto, mas não me impedindo. Pouco antes que eu pudesse
tocá-lo, uma melodia agradável e baixa entrou pela biblioteca.
Shadow congelou, sua cabeça virando em direção à janela, onde a vista
do que podíamos ver não era nada além de uma névoa roxa do céu.
— Merda! — disse ele em um estalo. — Len, seu idiota.
— O que é isso? — perguntei, com o medo sufocando minha voz.
Ele rosnou, o peito inteiro roncando.
— É o eclipse lunar faerie. Suas cinco luas convergirão para uma, e
sobre esta terra o tempo de fertilidade começará.
Engolindo seco a informação, dei um passo, tremendo, em direção à
janela.
— Tempo de fertilidade?
A música reverberou cada vez mais alto, mais rápido, e eu gemi, meus
joelhos enfraquecidos, cedendo. Quando bati contra o chão, meu corpo estava
inexplicavelmente aceso, em uma mescla de prazer e dor. O calor de
excitação que muitas vezes sentira não era nada comparado a essa nova onda
de desejo e necessidade em meu corpo.
— Deuses — gritei, as pernas tremendo enquanto minhas mãos
deslizavam pelo meu corpo, indo direto para minha boceta dolorida, em uma
necessidade desesperada de aliviar a tensão.
— Mera — disse Shadow, aproximando-se. — Você deve lutar contra a
tentação.
Minhas mãos tremiam e eu poderia dizer que, quando me forcei a
sentar, minha calcinha estava encharcada. O tecido se esfregou contra o meu
clitóris e eu realmente quase gozei.
— Não posso lutar contra — eu disse choramingando. — Isso dói.
A dor era como uma facada no estômago, e não importava como eu me
movia ou me contorcia, nada a aliviava. Shadow me agarrou em seus braços,
e então ele estava correndo, indo para longe das janelas. Mas não havia como
escapar da música. Ele flutuou sobre ventos mágicos, carregado pela poeira
de Faerie, que tinha sido projetada para tecer através da essência do nosso
ser.
— Fae são férteis apenas uma ou duas vezes por ano — Shadow
soando como se estivesse falando apenas para me distrair. — Eles usam essa
música para incentivar o crescimento populacional.
— Soa como uma droga de estupro— falei enrolando a língua, minha
mente enevoada quando chamas começaram a queimar em meus dedos e
seguir pelo braço antes de ferozmente dominar meu corpo.
— Não — ele disse sem rodeios. — Sua mente não é capaz de lutar
como um fae faria. A música é um encorajamento, não controle da mente.
Mas pelo visto está batendo forte em você.
Eu o ouvi murmurar algo sobre virgens e coisas assim, mas estava
muito longe para me importar. Quando o fogo estava prestes a explodir em
meu centro e já havia enchido o resto de mim, Shadow me jogou de bunda
em um chuveiro e virou o termostato da água para frio gelado, encharcando-
me completamente.
— Você deve lutar contra o fogo, Mera — disse ele sério.
Minha risada sufocada contou tudo a ele. Eu não tinha nenhuma
esperança no inferno.
Cinquenta
O choque gelado da água me ajudou momentaneamente a recuperar a
compostura. O fogo, que ainda rugia em minhas veias e no corpo, foi
silenciado o suficiente para que eu pudesse me puxar para cima e empurrar os
longos e encharcados fios de cabelo do meu rosto. Shadow estava parado à
porta do grande chuveiro revestido de cobre, olhando para mim com uma
expressão ilegível no rosto.
Via de regra, este seria o ponto em que o constrangimento se tornaria
evidente — eu tentei literalmente sair na frente dele. Mas eu não conseguia
reunir nada além de um gemido com mais excitação pulsando dentro de mim.
A música subiu mais forte e meu corpo se arqueou no ritmo da batida. A água
fria me atingiu dolorosamente, mas não foi o suficiente para lutar contra a
atração.
— Apenas vá embora — rosnei, as mãos lutando para tirar as roupas,
que se esfregavam contra a minha pele sensível. — Deixe-me cuidar disso
sem que alguém fique me olhando como um pai desaprovador.
Não que eu me lembrasse como era ter um desses.
Shadow fez seu barulho estranho com o peito, soando frustrado e
irritado.
— Não estou fazendo isso de propósito — gritei e de alguma forma
lágrimas escorriam pelo meu rosto ao mesmo tempo.
Eu esperava que a água dissimulasse isso.
— Você não terá alívio com seu próprio toque — ele finalmente disse,
e então estava debaixo d'água comigo.
No momento em que a água correu por seu rosto seguindo os traços de
suas feições perfeitas, gritei.
— Você não está ajudando — eu disse, sugando o ar e ficando com
meio pulmão cheio de água. Tudo nele estimulou meus sentidos. Shadow e
essa música combinada eram letais para mim e meus hormônios — eu não
podia lutar individualmente e, juntos, não havia nenhuma chance.
— Você precisa de mim ou não vai sobreviver a essa noite — disse ele
intensamente.
Isso chamou minha atenção através da névoa em minha cabeça.
— O que você quer dizer?

Seus olhos vermelhos como a lava que estava fora da janela


encontraram os meus. Não só encontraram, mas se prenderam e exigiam.
— Você sabe exatamente o que eu estou dizendo, Raio de Sol. Você
não pode lidar com a música inteira... Vai piorar.
— Por que não podemos ir embora? — Chorei enquanto minhas costas
se arqueavam novamente e, como Shadow estava no chuveiro comigo, acabei
pressionada contra a perna dele, meu corpo tentando se contorcer para aliviar
a dor.
— É tarde demais para sair — ele respondeu.
Antes que eu pudesse dizer outra palavra, ele caiu de joelhos diante de
mim, e eu me engasguei quando chegou o mais perto possível.
— Vou ajudá-la. Mas apenas hoje.
Eu gemi, as lágrimas ainda caindo, e minha esperança de que ele não
tinha notado se desfez quando estendeu a mão para a frente e passou o
polegar através da minha bochecha, limpando-as.
— A dor é passageira — ele me lembrou. — E eu vou substituí-la por
prazer.
— Por favor — implorei.
— Você vai me odiar amanhã — disse ele —, mas eu posso viver com
isso. O que eu não quero ver é você sofrendo quando posso acabar com isso.
— Não estou drogada — lembrei, palavras ficando difíceis por conta
do latejamento em meu corpo. — Minha mente está clara. Minha vagina, por
outro lado, não está nada feliz. Com essas palavras, a dor em minha boceta
aumentou a ponto de minhas mãos irem para aquele caminho novamente.
Shadow me pegou com as duas mãos e como um sorriso lento inclinou
os lábios.
— Vamos fazê-la feliz então.
Graças aos malditos deuses.
Minha camiseta estava meio acima da cabeça e Shadow não perdeu
tempo arrancando. Quando eu estava apenas com um sutiã preto, seios
saltando enquanto eu continuava tentando encher meus pulmões de ar, ele
olhou para mim.
Sem dúvida eu parecia um rato afogado, mas as chamas queimaram
mais quentes em seus olhos, e eu tomei isso como um sinal de que ele não ia
odiar completamente isso. Quando eu estendi a mão em direção a sua camisa,
ele balançou a cabeça.
— Não, isso é sobre você esta noite, Raio de Sol. Deixe-me fazer o que
faço melhor.
Eu não gostava disso, mas não havia como lutar com ele. Shadow tinha
o poder, e eu estava desesperada... Precisava dele. A dor estava piorando e eu
não tinha esquecido o que ele tinha dito — eu não sobreviveria à música
inteira sem a ajuda dele.
Em meros segundos, Shadow me despiu completamente, deixando-me
nua, com um emaranhado de roupas no chão do chuveiro. No momento em
que a onda de água atingiu meu clitóris, ele veio, forte e rápido. Foi um
choque, como se tivesse tocado uma cerca elétrica. Prazer e dor se
misturaram e me esfaquearam, mas, quando acabou, eu me senti mais
dolorida e pior do que nunca.
— Você não pode consertar isso sozinha — ele me lembrou.
Eu gemi.
— Então, como você pode consertar isso?
Brilhantemente as íris vermelho-douradas e um sorriso perverso eram
minha única resposta, e então ele me levantou com uma mão, levando-me
para fora do chuveiro. Seu poder de fogo nos secou quando chegamos à cama
e, quando me jogou de volta nos lençóis macios e frios, eu me contorci.
Aquele orgasmo não tinha ajudado nem um pouco.
Enquanto eu me movia, Shadow estendeu uma das enormes mãos e a
colocou em meu peito, mantendo-me no lugar. Eu queria gritar, mas,
enquanto ele me segurava, seu poder controlava tudo. Ele baixou a cabeça e,
direto como sempre, não fez desvios no caminho para o meu clitóris. Assim
que senti o primeiro golpe firme de sua língua, seguido por seus lábios
sugando o feixe de nervos, enviei um grito silencioso, era mais prazer do que
eu podia assimilar sem explodir.
A mão me segurando começou a se mover lentamente sobre meu corpo,
enquanto sua língua acariciava minha boceta, e o próximo orgasmo me fez
realmente gritar, mãos arranhando a cama, tentando encontrar tração. O
domínio de Shadow não diminuiu, pois ele se recusou a deixar que eu me
movesse, mesmo enquanto eu era devassada por sua boca.
Um dedo da mão que estava lentamente traçando meu corpo deslizou
para dentro, e eu estava tensa, precisando de alguns momentos para me
ajustar enquanto ele continuava a me comer como se eu fosse o melhor
sorvete que ele já tinha provado. Em poucos segundos, aquele dedo
encontrou meu lugar favorito e, quando ele me acariciou, o prazer latente
cresceu novamente por dentro.
— Filho da puta — eu chorei quando voltei a mim, dessa vez
imaginando se iria desmaiar.
Não aconteceu, mas foi por pouco.
Ele desacelerou depois disso, e eu felizmente senti um alívio na
necessidade dentro de mim. Parecia que ele estava certo, afinal a intensidade
do feitiço foi diminuindo com sua "ajuda".
Quando a última rodada de prazer desapareceu, senti meu corpo relaxar
na cama, e, pela primeira vez desde que a música começara, não havia
nenhuma vontade esmagadora de arrancar minha própria pele.
Shadow levantou a cabeça, dedos ainda explorando casualmente meu
corpo.
— Está funcionando?
Eu acenei com a cabeça.
— Sim, não é tão ruim. Aaaahhhh , gritei quando ele bateu naquele
ponto lá dentro novamente. — Mas, pelo amor dos metamorfos, por favor,
não pare.
A visão de seu longo corpo deitado entre minhas pernas, olhos
semicerrados enquanto ele olhava para mim, dedos me trazendo prazer como
eu nunca senti...
— Me fode — chorei, o próximo orgasmo me atingindo forte e rápido
novamente, arrastando o prazer por todo o caminho da minha coluna pela
sensação dele me tocando.
Shadow balançou a cabeça.
— Talvez eu devesse agradecer ao Len depois de tudo.
Minha cabeça era uma bola suave e agradável de névoa depois de
incontáveis orgasmos, então não tentei ler essa fala muito profundamente.
— Eu também — concordei.
A risada baixa de Shadow enviou rajadas de ar quente sobre minha pele
sensível, e, com outra onda de música, eu arquei, então ele me encontrou no
meio do caminho, sua boca mais uma vez provando que esse deus com
certeza não tinha sido celibatário em seus muitos anos vivo.
Durante a noite, ele não me tocou de outra forma nem me permitiu
tocá-lo. O objetivo disso era apenas aliviar a minha dor no decorrer desse
feitiço, e ele estava atento de uma forma avassaladora. Era frustrante o fato
de que ainda se escondesse tanto de mim, mas não fiquei surpresa. Era só um
dever para ele. Talvez um de que ele gostasse, mas ainda assim um dever.
Seria estúpido da minha parte pensar em outra coisa.
Cinquenta e um
Gemi quando a luz brilhou por trás dos meus olhos fechados e, rolando,
parei ao sentir os lençóis muito mais sedosos do que os da cama em que eu
dormia no covil. Quê? Onde é que eu estou?
Enquanto forçava meus olhos a ficarem abertos, tudo doía, até minhas
pálpebras enquanto tentava levantar a cabeça. Ugh... Por que estou tão
exausta? A fadiga me pressionou, um peso sentado em meu peito, e minha
boca estava tão seca, que senti como se tivesse sido deixada para assar no
deserto por um mês.
O quarto ao meu redor era completamente desconhecido e, quando
finalmente me levantei, minha cabeça girou. O mal-estar escorreu pelo meu
estômago e, quando os lençóis caíram para revelar um conjunto de seios nus
— meus —, as memórias da noite anterior brilharam através do meu cérebro.
Caramba, porra.
Faerie. A música. A dolorosa necessidade que transformou meu corpo
em um inimigo com que eu não podia lutar.
E Shadow... Oh, deuses.
Shadow me deu mais orgasmos em uma noite do que eu já tivera em
toda a minha vida. Ele era habilidoso, implacável e totalmente imparável
quando se decidia por algo. E esse algo tinha sido me fazer passar pela
música faerie.
Memórias colidiram comigo, intensas e inabaláveis, e meu maldito
corpo traidor queria mais. Era como se tivéssemos sido condicionados agora,
e um mero pensamento sobre Shadow Beast fazia meus membros tremerem
com o calor e a umidade agrupados em meu centro.
Isso ia ser um problema que eu teria que enfrentar em algum momento,
mas, por enquanto, a missão fingir que ontem não aconteceu estava a todo
vapor. Só tinha que encontrar algumas roupas primeiro. Não que isso
realmente importasse. Não havia muito do meu corpo que Shadow não
conhecesse agora, exceto minha boca. Ele nunca me beijara, e eu não tinha
tocado nele. Fora tudo unilateral pelo que me lembrava... O foco apenas em
mim.
Algumas mulheres podem até adorar isso, mas para mim foi uma
memória agridoce.
Como não havia roupas ao meu redor, enrolei o lençol em volta de mim
mesma e arrastei-o da cama quando saí. Minhas pernas levaram alguns
segundos para se estabilizarem e, considerando que era uma metamorfo
sentindo as sequelas da noite tão fortemente, eu sabia que o que quer que o
feitiço faerie tivesse feito a mim, ele ainda estava fazendo seu caminho para
fora do meu sistema.
Depois de mancar como um cavalo recém-nascido, finalmente
recuperei o equilíbrio e mais uma vez pude me mover livremente sem
problemas. Uma rápida verificação do quarto e do banheiro e me vi sem
opções de roupas — sem dúvida porque Shadow era um ser mágico que
usava roupas apenas por conveniência.
O que me deixou com uma opção: ir lá fora e encarar a música. Talvez,
magicamente, ele pudesse me dar algumas roupas também. Eu usei o
banheiro primeiro, grata porque era parecido com o da Terra. Quase tudo de
Shadow era baseado em coisas a que eu estava familiarizada, e isso me dizia
que, apesar de sua atitude blasé em relação a ela, ele realmente amava a
Terra, talvez um pouco mais do que aos outros mundos.
Quando entrei na biblioteca, parecia estar vazia. Em um palácio desse
tamanho, tinha que haver uma tonelada de outros quartos onde Shadow
poderia estar, mas fiquei um pouco surpresa por não o encontrar ali. Um
rápido olhar pela janela me disse que ainda estávamos dando zoom pelo
mundo, e abaixo estava o que parecia uma tundra de gelo verde, com
manchas pontilhadas de água entre as terras congeladas.
Faerie era um extremo atrás do outro, mas a sensação de paz que eu
experimentava ali era estranhamente forte. Paz e fome, já que aparentemente
uma noite de intenso prazer tinha me drenado por inteiro. Relutantemente
deixando de observar a vista, encontrei minha reivindicação, uma caixa de
comida com água, frutas e um sanduíche — tudo refrigerado e fresco, como
Shadow havia prometido —, que eu devorei.
Quando fiquei saciada, arrastei um dos sofás até as janelas e me
espalhei de volta na superfície macia, levantando os pés em um grande painel
de vidro para ver o cenário passar. Quando eu poderia experimentar Faerie
novamente? Não queria perder nada.
Não éramos o único palácio flutuando sobre a terra, com muitas outras
casas, ilhas à deriva, e grandes propriedades pontilhadas através do horizonte.
Nenhum deles chegava muito perto; a magia estava claramente envolvida em
manter tudo funcionando sem problemas.
Senti Shadow antes de vê-lo e, sabendo que seria estranho, não
importava o que eu fizesse, decidi não virar para encará-lo primeiro. Porque
eu era uma covarde, sim.
— Len está aqui — ele resmungou, em cima de mim.
O som de sua voz profunda fez algo comigo que eu nunca tinha
experimentado antes. Meu corpo subiu para a vida, cada célula, sinapse, e me
forçou a ficar de pé para dar atenção, como se o meu mestre tivesse chegado.
Não! Abaixe-se, sua vadia desleal.
Eu não poderia dar a Shadow qualquer poder extra sobre mim. Já tinha
dito isso antes, e era mais importante agora: ele já tinha muito controle sobre
mim. Minha loba uivava em meu peito, e eu não podia dizer se ela queria
rolar para Shadow também, ou se estava me lembrando de que ainda
tínhamos um companheiro de verdade. Sabia que parte da alma dela não tinha
desistido de Torin.
Não precisamos de nenhum dos dois, eu lhe lembrei. O uivo dela
morreu, mas estava muito inquieta quando me concentrei em Shadow.
— Ok, legal — eu disse o mais casualmente que pude, parando de
observar a paisagem para finalmente encontrar seu olhar. — Por algum
motivo? Para nos avisar sobre outro feitiço sexual estranho que ele esqueceu
de mencionar?
Seus olhos estavam em chamas de ouro e, apesar das minhas memórias
confusas, eu poderia dizer que ele não tinha esquecido uma única coisa sobre
a noite passada. Felizmente, não me forçou a lidar com os fatos — deixando-
me esconder um pouco mais.
— Venha. Vou lhe mostrar.
Segurei o lençol mais apertado.
— Você tem alguma roupa aqui para mim? — perguntei.
As chamas se apagaram quando seus olhos caíram ao longo do meu
corpo.
— Inky pode obter algumas.
Claro que ele poderia.
Shadow se afastou, e eu não entendi como fez o tique em sua
mandíbula. Não havia tempo para analisar demais o que isso significava,
porque ele estava de volta em minutos, com um conjunto de roupas que me
serviam perfeitamente. Usei o quarto para me vestir, calcinha, camisa preta,
um jeans skinny, e um par de botas pretas de motoqueiro, que amei mais do
que qualquer sapato que já tive na vida.
Meu cabelo estava uma bagunça completa depois de ser deixado para
secar enquanto também era sacudido em minhas ondas de prazer, então não
havia muito que eu pudesse fazer, exceto pentear com os dedos através dos
cachos emaranhados e deixá-lo como uma massa de insanidade em minhas
costas. Não que eu estivesse tentando impressionar alguém, de qualquer
maneira. Aparentemente, eu não era nada mais do que um dever para
Shadow, e como era ridículo pensar que poderíamos ter mais do que uma
noite de prazer como essa — ele era um maldito deus, pelo amor de Deus —
eu precisava trazer minha cabeça de volta ao status quo.
Quando voltei para a biblioteca, Shadow e Inky estavam esperando por
mim e, juntos, eles me levaram para fora da sala, subindo outro conjunto de
escadas que eu não sabia que estava lá. Os ombros largos de Shadow
desapareciam no andar seguinte, eu seguia, e minha boca se abriu enquanto
eu ponderava perguntando-me se a biblioteca ainda era meu quarto favorito.
Era um observatório. Todo o andar, tão grande quanto o de baixo, tinha
gigantescas janelas do chão ao teto.
— Uau — exclamei me aproximando.
Parecia que tínhamos um ponto de vista muito maior para ver tudo,
mesmo que fosse apenas um andar acima.
— Shadow é obcecado por paisagens e livros — disse Len, entrando de
onde quer que estivesse.
Seus olhos estavam brilhando, e ele estava novamente vestido com o
manto prateado, seu cabelo puxado para trás em uma trança, mostrando os
traços perfeitos de seu rosto.
— Paisagens e livros — respondi. — Não há nada de errado com isso.
— Eram duas das minhas coisas favoritas na vida também, mas eu me abstive
de admitir isso em voz alta.
Quando Len me alcançou, beijou minha bochecha como se fôssemos
velhos amigos, e o peito de Shadow resmungou ao mesmo tempo, o que fez
Len rir.
— Acalme-se, mano. Só estou dizendo olá.
Empurrando os dois, fechei a cara.
— Sem toques de qualquer um de vocês, ok? Apenas me mostre o que
estava prestes a fazer aqui em cima.
Nenhum deles perdeu tempo, caminhando para longe da janela, em
direção a um canto intensamente iluminado ao fundo, onde uma... cadeira
prateada brilhante estava.
— No Reino das Sombras — disse Shadow, de pé atrás de mim,
próximo o suficiente para que eu quase sentisse seu toque — temos a prática
de marcar nossa pele usando energia das criaturas que controlamos... das
névoas. É a única “tinta” que contorna nossas habilidades de cura. — Ele
gesticulava para onde Len estava agora agitado ao redor, colocando dois
potes cintilantes na bandeja sobre a mesa. Ambos os frascos pareciam abrigar
um mini-Inky de escuridão turva. — Consegui trazer uma pequena lasca
comigo e, com o tempo, ela continuou a crescer. Então, nós lentamente
adicionamos a mim. — Ele virou-se para o amigo. — Len pode infundi-la na
minha pele usando magia fae. Ele está aqui para terminar minhas costas.
Minha respiração estava um pouco pesada. Sempre tive um fraco para
homens tatuados, especialmente se cobrissem suas costas inteiras. Eu era
superficial assim.
Vira tatuagens em Shadow algumas vezes, e definitivamente me
perguntava como ele tinha conseguido marcar a pele — parecia que eu estava
finalmente recebendo uma resposta para uma das minhas perguntas.
Shadow parecia presunçoso quando piscou para mim, seus olhos
absorvendo minha expressão facial, que provavelmente estava mostrando
todos os meus pensamentos. Quando estava prestes a se mudar para a cadeira,
ele se inclinou e murmurou perto da minha orelha:
— Eu poderia cheirar sua excitação em qualquer lugar agora, Raio de
Sol.
Engolindo com raiva uma maldição e um gemido, apertei as coxas e me
forcei a não pensar mais nisso.
— Pare de flertar e tire a camisa — ordenou Len. — Eu só tenho
algumas horas antes que minha família exija minha presença. — Ele fez uma
careta quando disse isso, e eu tive a sensação de que não gostava muito de
reuniões familiares.
Shadow agarrou a camisa pela nuca, puxando-a para cima e sobre a
cabeça. Foi um movimento rápido, e então tudo o que pude ver foi a pele
tatuada sobre os músculos. Enquanto Len tinha um corpo esbelto, Shadow
não — ele era grande sem ser muito volumoso. Com abdômen perfeito,
ombros largos e definição perfeita na parte superior do corpo, ele parecia uma
obra de arte, e eu não me refiro à obra de arte tatuada em sua pele. Sendo tão
alto, deveria ter sido difícil construir músculos pesados, mas ele claramente
não era um humano ou metamorfo e tinha conseguido isso muito bem.
Tive que morder a língua para impedir que a baba escapasse.
— Você já tem muita tinta — notei, grata por não ter soado tão sem
fôlego quanto me sentia.
Shadow olhou para as palavras inscritas — pelo menos assumi que
eram palavras, já que não estavam no meu idioma — dançando em seu peito.
Abaixo delas havia várias imagens do que pareciam bestas e monstros.
— Estas foram feitas em casa — disse ele calmamente, passando a mão
sobre elas.
As tatuagens se moviam com seu toque, a tinta escura girando. Parte de
mim queria estender a mão, também, e ver se fariam a mesma coisa para
mim.
— Na cadeira, Besta — disse Len, interrompendo.
Ele se ajustou no assento tornando-o plano, e Shadow deitou-se de
bruços.
Quando a besta estava acomodada, ombros apoiados sobre a borda da
cadeira, eu me aproximei e olhei para a tatuagem que ainda estava pela
metade em suas costas.
— Fantástico.
Incrivelmente fascinante.
Era uma árvore da morte, uma enorme e única peça que mostrava uma
cena sombria, onde vários crânios estavam crescendo ou aninhados em
galhos envolvidos em um redemoinho de fumaça. Havia espaço perto do topo
que não estava concluído, e foi ali que Len começou a trabalhar.
Ele posicionou um dos frascos na mão e, quando soltou o fecho de
prata, a fumaça girou para fora. Parecia que ia escapar, mas a magia de Len a
pegou antes que conseguisse, os dois se misturaram enquanto ele girava a
mão através da espinha de Shadow. Não havia agulhas ou máquinas
envolvidas, apenas uma magia fae que era claramente a chave para marcar a
fumaça de sombra na pele ainda não marcada. Pelo menos do lado de fora do
Reino das Sombras.
As duas horas seguintes passaram num piscar de olhos para mim
enquanto eu via a magia se desenrolar. Shadow e Len conversavam, o tipo de
velhos amigos que se conheciam muito bem e tinham um milhão de histórias
das merdas que tinham feito ao longo dos anos. Foi bom sentar e vê-los
juntos, ouvir suas brincadeiras e, quando Len teve que sair, a imagem nas
costas de Shadow estava quase terminada. Seria mais do que espetacular
quando estivesse concluída.
— Vejo você em breve — disse Len, beijando minha bochecha
novamente antes de sair pela parede. Devo ter olhado assustada, porque
Shadow balançou a cabeça. — Ele vai ficar bem.
De alguma forma, eu não tinha dúvidas de que ficaria.
Depois disso comi mais, tirei um longo cochilo e, quando chegou a
hora de voltar para a biblioteca, Shadow e eu tínhamos restabelecido com
sucesso nosso relacionamento anterior. Sem constrangimento algum.
Quero dizer, em boa parte.
Quando voltamos ao jardim familiar em que eu tinha acordado pela
primeira vez, nós silenciosamente saímos e, de lá, foi uma viagem fácil de
volta para a biblioteca. Invejei a maneira como eles podiam abrir portas. Será
que tinham noção do poder que possuíam nas mãos — a capacidade de pular
entre mundos e nunca ser um prisioneiro? Os metamorfos, apesar de todas as
forças, ainda eram muito mais próximos dos humanos do que os deuses. Não
era um fato que realmente me preocupasse até que me encontrei vivendo em
uma biblioteca cheia de seres tão além da minha compreensão. Mas, embora
estivesse fora da minha realidade em quase todos os sentidos possíveis, eu
ainda estava viva, eu contabilizava isso como uma vitória.
A biblioteca estava tranquila quando entramos pela porta faerie; os
poucos duendes ao redor me atiraram olhares confusos, até que viram
Shadow ao meu lado. Então eles apenas balançaram a cabeça e voltaram para
o que estavam fazendo.
Não me admira que ele fosse um bastardo presunçoso. Cercado por
simpatizantes.
— Não é saudável, você sabe.
Ele encontrou meu olhar, suas sobrancelhas ligeiramente levantadas.
— Você percebe que eu não leio pensamentos, certo? A aleatoriedade
das suas palavras é surpreendente.
— Tanto faz, cara. — Eu ri e mostrei o dedo pra ele. — Quero dizer,
como isso ajuda você a evoluir seu caráter ou aprender com seus erros?
Shadow mostrou os dentes para mim.
— O que a faz pensar que eu cometo erros?
Suspirei.
— É exatamente o que eu estou falando. Todos cometem erros; é assim
que funciona.
Ele deu de ombros enquanto continuava a me levar pela biblioteca em
direção ao corredor da Terra.
— Não sei o que lhe dizer, Raio de Sol. Fui projetado assim pelo
Universo, um predador perfeito.
E onde estava a mentira? Fosse qual fosse o seu papel para preencher
esse mundo, ele parecia estar fazendo um trabalho fantástico nele. Havia
criado um subgrupo de humanos ao nos fundir com almas animais. Quem
mais poderia anunciar uma reivindicação à fama como essa?
— Só não espere que eu comece a beijar sua bunda — murmurei. —
Você ainda é o inimigo.
Dessa vez foi um sorriso real, perverso e tentador.
— Oh, sim, Raio de Sol. Você tornou isso muito óbvio. Exceto ontem à
noite quando estava gritando a porra do meu nome.
Jesus. Minhas coxas se fecharam novamente, mas não corei — eu não
daria a ele a satisfação. Havia algo que tinha que ser dito sobre o meu tempo
em Faerie, no entanto.
— Obrigada por me ajudar — eu disse a ele seriamente. — Não me
lembro de tudo, mas a dor antes era realmente insuportável.
Ele fez uma pausa no corredor branco.
— Foi minha culpa, não verifiquei o calendário fae antes de decidir
usá-lo como uma zona segura. Era minha obrigação corrigir o meu erro.
Meu sorriso era brilhante o suficiente para cegar uma pessoa.
— Tudo o que eu ouvi lá foi que você não é tão perfeito como parece
pensar.
Ele balançou a cabeça, ombros balançando enquanto deixava um
barulho de riso escapar.
— Não force a barra, filhote. Eu ainda posso matá-la se a tentação me
dominar.
Isso foi quase uma ameaça de brincadeira. Não que ele não fosse capaz
de me matar, mas pelo menos se sentiria mal por me matar agora, então
estávamos fazendo progressos em nosso relacionamento. E, felizmente, o que
acontecera em Faerie não nos mandara dez passos para trás.
A negação estava funcionando muito bem.
Cinquenta e dois
O feitiço de Shadow foi projetado para atrair todas as criaturas para o
mesmo lugar. Novamente, na área da montanha de Torma.
— Por que aqui? — perguntei.
— A maioria deles já estava aqui, é claro — disse ele rapidamente. —
Você sendo o ímã de sombras que é.
Ah, havia um duplo significado para isso agora, e eu novamente me
lembrei de ontem. Foi o um acordo único. A porra de uma vez. Eu precisava
enfiar isso na minha cabeça e seguir em frente. Talvez, se eu continuasse a
repetir essas palavras, meu corpo traidor finalmente entrasse nos eixos.
— Espero um dia descobrir o que há sobre mim que ignora as regras
normais que governam você e essa terra — eu murmurei.
Shadow me lançou um olhar ilegível, mas não havia tempo para
responder, porque tínhamos chegado à central das Criaturas-Sombra.
— Bolas de merda — eu disse, meu fôlego sumindo da garganta
quando vi dezenas ou mais criaturas capturadas em um enorme círculo de
fogo que eles não conseguiam atravessar. O fogo de Shadow era tão durão
quanto ele. — São tantos!
Ele acenou com a cabeça.
— Sim, parece que desta vez você abriu uma infinidade de portas do
reino. Felizmente, nos altos escalões, você conseguiu libertar apenas Igorna e
os dois caçadores, então o resto não deve dar muita dor de cabeça.
— O que aconteceu com Igorna?
O rosto de Shadow ficou envolto em uma satisfação sombria.
— Depois de um pouco de convencimento, ele está tirando um cochilo
em uma das celas.
Um cochilo... Sim, claro, isso soava plausível.
— Como vamos levá-los de volta? Para o seu mundo? — Estava
começando a se tornar um problema maior com tantos deles desse lado da sua
porta agora.
A expressão de Shadow tornou-se introspectiva.
— Tenho pensado muito sobre isso nos últimos dias. No começo eu
estava focado em abrir a porta, mas agora... E se nós estivermos olhando para
ela da maneira errada? O feitiço na porta não é claramente nenhuma barreira
para você, já que você continua abrindo seus próprios portais temporários no
Reino. Se descobrirmos como, há uma chance de você agir como um canal, e
uma porta mais permanente pode ser estabelecida. Então eu posso usar o meu
poder para devolver as criaturas, e talvez até mesmo entrar também.
Balancei a cabeça quando deixei a ideia marinar em meu cérebro.
— Sim, nós não tentamos isso antes. Parece que eu posso ter uma ideia
de como fazer sem precisar contornar o feitiço na porta.
Os lábios de Shadow inclinaram-se o suficiente para dar-lhe um olhar
sinistro.
— Uma vez que eu destruir aquele que criou o feitiço, a porta não será
mais barrada. Só tenho que entrar no reino primeiro.
Ele teria sua vingança, e eu seria jogada de lado, sem mais nenhuma
serventia para ele.
Eu esperava que restasse mais do que um pedaço de mim quando isso
acontecesse, porque estava claro que Shadow faria quase tudo para alcançar
seu objetivo final e buscar vingança.
Não havia mais tempo para estresse, porque ele estava caminhando
pelo chão rochoso em direção às criaturas. Não nevara muito em Torma, mas
ainda estava frio e, a julgar pelo solo gelado, estávamos perto do solstício de
inverno. O que significava...
Simone estava prestes a realizar sua primeira transformação.
Eu precisava vê-la antes que isso acontecesse, mesmo que ela
provavelmente me batesse por não tentar voltar mais cedo. Também
precisava ver Dannie e ter certeza de que ela estava segura e bem. Shadow
havia dito que ela seria cuidada, mas novamente eu precisava vê-la com meus
próprios olhos.
Enquanto caminhávamos, a destreza da minha loba me impediu de
escorregar no gelo e cair de bunda, eu finalmente cheguei ao lado de Shadow
inteira. Nós dois estávamos do lado de fora do anel de chamas que mantinha
as criaturas rosnando, rondando, lutando a distância.
— Você gostaria que eu tentasse abrir o caminho aqui? — perguntei.
Shadow balançou a cabeça.
— Não, quero mandá-los de volta de uma vez, os caçadores, Igorna e
os outros que encurralamos.

— Angel matou os caçadores — eu o lembrei.

— Você não pode nos matar com armas que não nasceram do Reino
das Sombras — ele devolveu. — As lâminas de Angel são formidáveis, mas
não nasceram da sombra. Ela apenas destruiu a estrutura física, e aqui, sem as
névoas, é mais difícil encontrar energia para nós reabastecermos. Eu os
tranquei antes que eles conseguissem recuperar o poder total.
Certo. Certo. Essa fora a razão pela qual ele não havia matado as
criaturas em primeiro lugar, mas apenas as trancado. A menção às “névoas"
me lembrou de suas tatuagens, e isso estimulou minha curiosidade de uma
forma totalmente nova e abrangente.
O nome quase parecia... familiar. Mas o flash de um déjà-vu não
poderia ter sido mais do que um choque aleatório de energia, porque eu não
tinha conhecimento dessas névoas a que ele se referia.
Shadow tocou as chamas e, ao contrário de um mortal normal, ele não
foi queimado até a morte por manusear fogo. Em vez disso, as labaredas
pareciam saltar em suas palmas e carinhosamente afagá-lo.
Virando-se de costas para mim, ele concentrou toda a atenção no fogo.
— Obrigado — murmurou, seguindo com um monte de palavras em
língua estranha.
Soavam quase como uma canção, as expressões, uma melodia rítmica
reconfortante, e a magia seguia cada batida.
Levei um segundo para entender o que ele estava fazendo: liberando
seu feitiço. Shadow recuou e as chamas aumentaram, envolvendo as criaturas
completamente em uma bola de fogo. Estava tudo em silêncio no campo
agora, todos os urros e rugidos cortados pela energia desse feitiço.
A bola subiu no ar com as criaturas a bordo, seguindo-nos quando
começamos a andar. Quando nos aproximamos da borda de um afloramento
rochoso, a porta para a biblioteca apareceu, e eu brevemente peguei um
movimento externo com o canto do olho, mas ele se foi quando olhei mais
fixamente.
Provavelmente um coelho ou uma raposa — essas florestas estavam
cheias de animais, apesar da presença de metamorfos em seu meio. Desejei
que tivesse sido um metamorfo para que eu pudesse passar uma mensagem
para minhas amigas. Mais uma vez, eu estava saindo sem vê-las e, sempre
que isso acontecia, um pedacinho da minha alma se encolhia. Mesmo que não
parecesse, já tinha se passado um ano. Um ano sem saber que estavam bem.
— Shadow — eu disse abruptamente, fazendo-o parar de caminhar.
— Eu não posso sair sem verificar minhas amigas. Sei que disse que cuidaria
da Dannie... Você jura que ela está bem?
Eu estava observando-o de perto, procurando a verdade em seus olhos.
— Ela tinha ido embora quando eu fiz uma visita a Torma — ele me
disse. — Existem rumores de que ela escapou, e eu não consegui farejá-la
nas proximidades ou sentir sua energia. — Seus olhos não estavam
mentindo, mas eu também não me sentia tranquila com essa informação. Ou
com a falta de, na verdade. — Ela é astuta — acrescentou como se a
conhecesse — e algo me diz que eles só a seguraram porque ela permitiu. Ela
vai ficar bem. Você a verá novamente.
Permaneci focando-me em seu olhar, mas ele não vacilou. Não que o
meu fosse quebrar Shadow, mas eu tinha que mostrar que levava isso muito a
sério. Ele acenou com a cabeça como se respeitasse o fato, e eu me perguntei
se isso era mais um passo positivo em nosso relacionamento. As coisas entre
nós não estavam muito claras, e eu não sabia como lidar com minhas
emoções sobre isso.
— Vamos levar essas criaturas de volta para a biblioteca — disse
Shadow, lembrando-me do real motivo de estarmos ali.
— Sim — eu disse, dando um último suspiro nesse ar familiar, um
leve desejo por minha alcateia deslizando através de mim antes de desatar tão
facilmente quanto eu guardava minha loba ao terminarmos um turno.
Parte de mim nem se lembrava de ter estado em Torma, mas minha
loba sentia falta do bando e, verdade seja dita, uma pequena parte de mim
também.
Quando entramos no salão branco, deixando para trás os campos
invernais da Terra, segui Shadow, que não perdeu tempo. O fogo encheu o
corredor de luz e calor até chegarmos à próxima prisão. Shadow liberou as
criaturas em uma sala extragrande, e, depois que eles caíram do fogo, ele
selou a porta com sua energia. Energia que se parecia muito com Inky —
uma nuvem de fumaça se instalando sobre a entrada. A energia de Shadow e
Inky era a mesma, e isso não me surpreendeu nem um pouco. Eu já tinha
descoberto que, o que quer que fosse Inky, estava ligado irrevogavelmente a
Shadow Beast, e eles nunca poderiam ser separados completamente.
— Eu Vou comer o jantar no covil — disse Shadow uma vez que nossa
tarefa estava completa.
Não pude evitar uma risada.
— Como você chamava todas as suas merdas antes de me conhecer?
Ele não riu, mas sua expressão foi divertida.
— É um traço humano querer rotular tudo. Algumas coisas apenas são,
sem necessidade de título ou substantivo adequado.
Isso me pareceu estranho, mas eu não discuti, porque provavelmente
era uma característica humana. Quando entramos na Biblioteca do
Conhecimento, ela funcionava como de costume. Vários habitantes dos
mundos, espalhados, pesquisando tudo e me dando um pequeno vislumbre de
culturas em que eu provavelmente nunca conseguiria me enxergar.
A familiaridade era agradável, porém, como o negócio de criaturas-
sombra poderia finalmente ter ficado para trás, nós até tínhamos um plano de
jogo sólido dali para a frente.
Tudo era uma questão de pesquisar. Para variar.
Cinquenta e três
Antes de chegarmos ao covil, fomos emboscados por Gaster. O duende
estava muito entusiasmado com a notícia de que o problema das sombras
tinha acabado por enquanto, e que tínhamos um plano para devolvê-los ao
reino.
Shadow permaneceu reservado ao conversar com o duende, dando
respostas curtas... Se é que respondia a tudo. Ninguém além de mim podia
forçar a barra com o grande bruto, e eu ficava feliz em aceitar que o que quer
que ele falasse era lei. Se o duende soubesse que o único foco de Shadow era
realmente voltar para o Reino das Sombras, para se vingar daqueles que o
haviam injustiçado, parte do seu entusiasmo poderia desaparecer.
Ou... provavelmente não.
A confiança cega que todos tinham em Shadow era surpreendente.
Quando estávamos prestes a entrar no covil, ouvi meu nome ecoar pela
sala e me virei. Eu me engasguei ao ver Angel, que estava enfeitada como
uma guerreira. A garota estava completamente coberta em uma armadura
prata, que com certeza fora moldada em seu corpo, fixada ao redor das asas,
com tantas lâminas que perdi a conta das alças saindo de vários lugares.
— O que aconteceu? — perguntei, correndo em direção a ela. — Honor
Meadows entrou em guerra?
Ela não disse uma palavra, apenas jogou os braços ao meu redor me
abraçando como se pensasse que nunca mais me veria. Eu não conseguia
respirar, mas não me importei, porque esse foi um dos melhores abraços que
já recebi. Eu me afundei nela e segurei por bastante tempo, precisando da
conexão emocional que só uma amiga pode dar. Caras e sexo são ótimos e
tudo mais, mas, se você nunca teve uma melhor amiga estilo “tentar ou
morrer tentando”, está perdendo uma conexão insubstituível.
Uma de que precisamos para sobreviver.
— Você foi embora — disse ela quando se afastou, com a voz
embargada, mesmo que seus olhos estivessem secos. — Procurei nas terras e
questionei em todas elas, mas ninguém sabia o que tinha acontecido. E nosso
maldito vínculo... É melhor começar a amadurecer, porque eu não posso lidar
com o estresse de você vagando por aí por conta própria.
Então Shadow se juntou a nós e, em um instante, a amiga de luto se foi,
sendo substituída por uma guerreira durona. As armas estavam em suas mãos
tão rápido, que eu não consegui rastrear o movimento, e ela nem hesitou em
atacá-lo. O que me chamou atenção, e que mais admirei, foi a postura de
Shadow, que não agiu como se tê-la como oponente fosse motivo de piada.
Ele deu-lhe o tipo de atenção que ela merecia, tratando-a como uma
adversária digna, e assim o casal lutou.
Shadow apareceu com uma lâmina preta e esfumaçada do ar, e eu me
perguntei brevemente se era Inky, manifestado em outra forma.
Normalmente, ele estaria por perto, mas eu não podia vê-lo em qualquer
outro lugar.
Angel lutou com foco único, atacando uma e outra vez, nunca cedendo
ou dando-lhe um centímetro. Ela estava além de espetacular, e eu
honestamente não sabia para quem estava torcendo no final. Eu meio que
queria que os dois ganhassem, para ser honesta, mas como amava Angel e
não odiava Shadow naquele dia, provavelmente era melhor separá-los.
— Pessoal — eu comecei, na tentativa de interromper sua intensa
necessidade de furar um ao outro. — Vamos falar sobre isso durante o jantar.
Eu estou bem.
Sem resposta ou pausa. Estávamos começando a atrair uma multidão, e
eu não precisava disso para me transformar em nada mais do que era.
Conhecendo Shadow, ele iria querer provar um ponto, uma vez que todos os
seus servos estavam assistindo. Tive que detê-los antes que o pior
acontecesse.
Com uma respiração profunda, fiz a coisa mais estúpida que eu poderia
pensar, mas também a única ação segura para os fazer parar com a luta. Pulei
entre os dois, bem na hora em que Angel girou e bateu com sua lâmina
maciça, superafiada. Ela me viu no último instante, gritando um "não", mas
era tarde demais para cessar o ataque. Esperando não ser cortada em dois,
levantei um braço e me preparei para a dor.
Tudo depois disso passou a se mover em câmera lenta e, mesmo que
minha destruição estivesse se aproximando, eu vi o resto dela cair com uma
curiosidade quase alheia. O rugido de Shadow ensurdeceu todos na sala,
colocando a maioria deles de joelhos e, quando a faísca de seu poder atingiu
meus ombros, fui empurrada para fora do caminho no momento em que a
lâmina cortou meu braço.
— Chega! — Shadow gritou sem me soltar. Sua voz baixou
dramaticamente. — Eu a mantive segura, Melalekin. — Só Angel e eu
poderíamos ter ouvido essas palavras. — Você não tem motivos para duelar
comigo.
Seu peito estava pesado, olhos ainda cheios de horror com o que ela
quase tinha feito.
— Da próxima vez não serei tão tolerante, Darkor — ela murmurou,
também muito baixo. Foi só uma conversa entre nós três. — Lembre-se disso.
Então, com um olhar suave para mim, ela girou e saiu.
Minha respiração ainda era rápida, a sensação de que eu estava mais
perto da morte do que nunca pairando sobre mim. Shadow tinha me salvado,
e eu não conseguia pensar em mais nada. Exceto talvez... Eu acabava de
aprender o nome verdadeiro deles?
Era um conhecimento tão insignificante, e ainda assim parecia
incrivelmente grande para mim. Como se tivesse sido introduzida em um
clube exclusivo. Eu me senti muito privilegiada por ter outro pequeno pedaço
dos dois seres com quem havia passado mais tempo ali.
Levei um momento para perceber o calor saindo de Shadow Beast. Ele
estava furioso, mesmo que ninguém mais soubesse, porque seu rosto era
impassível. Não me libertou do seu poder, voltando-se para entrar no covil.
Eu não tinha ideia de por que ele ainda estava me segurando junto ao peito
daquele jeito, mas a parte traidora de mim que estava um pouco a fim dele
não queria discutir o assunto. Era o tipo de cuidado possessivo que mexia
com a minha cabeça. Minha e da minha loba. Nós duas queríamos rolar e
ronronar como uma gatinha.
Quando Shadow atingiu a barreira de seu covil, e assim que ele
começou a passar, as luzes piscaram. Eu nunca tinha visto isso acontecer
antes, mas não pareceu nada alarmante... Pelo menos não para mim.
Shadow fez uma pausa, seu olhar inclinando-se para procurar acima de
nós. Depois de me pôr gentilmente de pé, ele me colocou para atrás dele.
— O fogo foi restaurado — disse baixinho. — Vá para o covil.
— Não — recusei, colocando a mão contra suas costas. Os músculos
estavam firmes sob o meu toque; ele estava tenso, e isso me preocupava. —
O que está acontecendo?
A cintilação de luzes devia ser uma preocupação urgente para ele reagir
daquele jeito.
— Raio de Sol, pela primeira vez em sua maldita vida, me escute. Você
precisa fugir agora...
Suas palavras foram cortadas quando a biblioteca mergulhou na
escuridão. Um segundo depois, o fogo de Shadow veio à vida, o calor
dominava tudo menos a mim.
Ele começou a avançar, mas chegou tarde demais. Quem tinha
desligado as luzes nos atacou, duas figuras escuras aparecendo. Antes que
Shadow pudesse matá-los onde eles estavam, um arco de pó escuro e
brilhante atingiu nós dois, e, quando me engasguei com a poeira, Shadow
caiu de joelhos ao meu lado.
Desorientada pelo que estava no pó, eu mal registrei que tinha sido
agarrada, mãos pesadas me levantando e carregando pela biblioteca coberta
pela escuridão.
— Não! — Tossi mais da poeira alojada na minha garganta.
Eu estava lutando contra aquilo, lutando muito mal, mas era melhor do
que nada.
— Sunny, pare. Sou eu.
Fiz uma pausa com a voz familiar: Jaxson.
Como Jaxson fora parar ali? E o que ele havia feito com a biblioteca e
Shadow? De jeito nenhum esse metamorfo poderia ter conseguido jogar um
feitiço sobre eles sem alguma ajuda séria.
— Deixe-me ir, droga — rosnei antes de tossir novamente.
O pó estava pegajoso em minha garganta, agarrado com muita
intensidade.
— Estamos resgatando você, sua vadia idiota — isso veio de Torin, que
aparentemente estava ali para fazer essa porra também.
— Shadow vai rasgar vocês dois em um milhão de pedaços — eu disse,
minha voz rouca. — É melhor sair daqui agora e esperar que ele nunca
descubra que foram vocês.
Jaxson, ainda me carregando, não diminuiu o ritmo.
— Vamos bloquear a porta — disse ele com pressa. — Nós vamos ser
capazes de mantê-lo fora por um período de tempo indefinido. Você estará
segura.
— Eu nunca estive em perigo, seus idiotas — eu rosnava. — Libertem-
me agora ou Shadow será a menor de suas preocupações.
Eu libertei minha loba e ela veio rosnando para a superfície enquanto
partes de nós iam se transformando para que pudéssemos cortar aqueles que
nos seguravam.
— Use mais do pó do dia seguinte — Torin disparou. — Acerte-a e
leve essa idiota para fora. Shadow Beast chegou até ela; vamos precisar
destruí-la.
Me destruir? Oh, cara, eu ia mostrar a ele o quão errado estava...
Na escuridão, um tapa do pó me atingiu na cara, pior do que antes, eu
me engasguei e sufoquei com a substância. Minha vontade de lutar se
dissolveu ficando reduzida a nada e, quando respirei mais da mistura nojenta,
a escuridão me engoliu completamente.
Deixando-me vulnerável com os dois machos que eu mais odiava no
mundo.
Cinquenta e quatro
A sensação de acordar em lugar e situação desconhecida foi uma das
piores que eu já tinha experimentado, e isso vinha acontecendo demais
ultimamente. Eu precisava mudar minha escolha de vida — porque essa porra
não era saudável.
O que quer que o alfa e seu beta tivessem usado para me submeter tinha
deixado para trás uma ressaca furiosa, e uma vez que terminei de vomitar bile
e tudo mais que estivesse em meu estômago, eu me virei para me encontrar
acorrentada a uma cama. Apenas por um tornozelo, mas era uma corrente de
prata, reforçada e muito forte para que eu pudesse quebrar — algo que eu
soube depois de várias tentativas de me libertar.
Quando a pancada na cabeça aliviou um pouco, eu me levantei para ver
o ambiente melhor. Estava no quarto do Torin. Tinha um sentimento terrível
sobre o que isso significava; o alfa não estava brincando a última vez que nos
encontramos e agora cumpria sua palavra colocando-me em um harém com
Sisily. Eu tinha que acabar com o vínculo agora — permanentemente. Só
precisava esperar até que ele estivesse na sala e perto o suficiente para
garantir que funcionasse.
Outra onda pulsante de dor atravessou minha cabeça quando me
perguntei novamente o que havia no pó com o qual eles nos atingiram. Que
tipo de substância poderia fazer isso com Shadow e a Biblioteca do
Conhecimento? Quero dizer, como diabos os metamorfos puderam entrar na
biblioteca sem ajuda, em primeiro lugar?
Ou será que eles nos seguiram?
Houve aquele movimento que eu tinha visto quando estávamos
deixando Torma com a bola de fogo. Eu tinha descrito como uma raposa ou
coelho, notando pele nos arbustos, mas poderia ter sido mais. Poderiam ser
dois metamorfos cabeças-duras pensando que estavam me salvando. O tempo
todo querendo se vingar de Shadow.
A porta do quarto se abriu antes que eu pudesse pensar mais sobre isso,
Torin entrando com sua arrogância de merda. Minha loba mexeu-se em meu
peito, mas não foi como da última vez que ela reagiu a ele. A saudade e a
necessidade se foram. A vontade de se submeter ao seu alfa e companheiro
tinha desaparecido por conta da nossa fúria pelo que ele tinha feito conosco.
Depois de todos os anos de bullying e tormento, depois de me rejeitar, o fato
de ele pensar que poderia entrar na minha vida e tomar qualquer decisão por
mim fazia meu corpo queimar em cólera.
Eu ansiava por seu sangue. Debaixo das minhas unhas e na minha boca
enquanto arrancasse a garganta dele.
— Olá, companheira — disse ele alegremente. — Estou aqui para
libertá-la agora que sei que você não vai sofrer qualquer efeito colateral.
Eu não disse uma palavra, apenas olhei para baixo com o tipo de olhar
que teria preocupado um metamorfo mais inteligente. Este idiota era tão
egocêntrico para se preocupar em olhar de perto o suficiente para ver a morte
nos meus olhos.
Enquanto suas mãos envolviam meu tornozelo, ele acariciava-o com
lentidão, e eu me forcei a continuar respirando uniformemente.
— Você está feliz por estar de volta, querida? — perguntou ele, com a
estupidez habitual.
Minha mandíbula estava tão fechada que eu não podia falar, mas
consegui responder com um aceno de cabeça, e ele pareceu feliz o suficiente
com isso.
— Você vai esquecer seu tempo com Shadow em breve — acrescentou
ele, enquanto a corrente acoplada a minha perna finalmente foi liberada.
No momento em que isso aconteceu, minha loba assumiu o controle.
Eu não tinha percebido, absorvida em minha própria fúria, que ela estava
absolutamente fora de controle, e em segundos nós mudamos. Como lobo, fiz
exatamente o que meu pai tentara ao atacar o alfa de Torma. Eu não esperava
que Torin antecipasse o ataque, mas de alguma forma o idiota sabia.
— Pare!
Era um comando revestido de poder alfa e, ao contrário do que
acontecera da última vez, quando eu estava em minha forma humana, ele
realmente controlou minha loba. Nós rosnamos e lutamos, mas, como
tecnicamente esse ainda era o meu bando, fui forçada a seguir as regras da lei
da alcateia. Embora seu controle ainda fosse frágil, na melhor das hipóteses.
— Vamos correr — acrescentou e mudou para o lobo tão rápido que eu
teria ficado impressionada se ele não fosse tão idiota.
Minha loba tentou atacar de novo, mas ele a manteve trancada com a
magia alfa, nossas pernas só conseguiam se mover quando o estávamos
seguindo, assim como ele queria. Ela não lutou de novo, e eu sabia que no
fundo minha loba ainda tinha uma pequena esperança de reivindicar seu
companheiro, sem importar o quão chateada ela estava agora.
Meu lado humano, em contrapartida, nunca pararia de tentar arrancar a
cara desse filho da puta.
Torin manteve seu poder sobre nós durante toda a corrida, e
experimentei um sentimento agridoce ao cruzar aquelas terras com meu
companheiro, embora mais uma vez fosse uma maldita prisioneira. Tempos
melhores surgiriam em breve, tempos em que eu não seria uma vítima de
todos os poderosos idiotas que achavam que podiam impor sua vontade a
mim.
Nesse momento eu odiava todos eles.
Quando Torin terminou, voltamos para a casa principal, e ele saltou ao
meu redor como um cachorrinho brincalhão. Minha loba não respondeu, nós
duas estávamos cansadas dele. Por fim, ele voltou à forma humana,
desaparecendo para voltar vestido com Jaxson ao seu lado. Eles se sentaram
na minha frente, e eu olhei para o meu amigo mais antigo — que virara
inimigo. Mesmo através da minha visão de lobo, ele parecia cansado; tinha
envelhecido no último ano.
— O que podemos fazer para provar que é aqui que você deveria estar?
— perguntou ele, inclinando-se para a frente enquanto me olhava. — Torin
está no comando agora e ele vai garantir que ninguém mais a culpe pelo erro
do seu pai. Você não tem ideia do que passamos para tê-la de volta. Não
entendo por que você não está extremamente grata.
Minha loba rosnou, um som mais profundo do que qualquer outro que
eu já tinha emitido antes quando ela entrava em modo furioso, alimentada
pela raiva que fervia por anos dentro de nós. Se esses dois fodidos não
fossem cuidadosos, eu traria a totalidade do Reino das Sombras para baixo,
sobre nossa cabeça, com minha fúria.
— O que você quer de nós? — Torin questionou, um sorriso estúpido
em seu rosto. — E se eu lhe der algo primeiro para mostrar que levo a sério a
ideia de consolidar nosso vínculo?
Eu precisava estar de volta em forma humana para que pudesse gritar
com eles, mas isso me deixaria nua na frente desses dois idiotas, e então eu
teria um novo combo de problemas.
Felizmente, antes que eu tivesse que escolher entre uma pedra e um
lugar seguro, alguém novo chegou rasgando a grama, roupas na mão, e
lágrimas escorrendo pelo rosto. Simone caiu na minha frente, com o rosto
destruído, as mãos tremendo enquanto segurava a roupa em minha direção.
— Eu posso fazer sua vida melhor do que você poderia imaginar —
disse Torin e, quando tirei meus olhos da minha amiga, foi para encontrá-lo
todo presunçoso e seguro em sua imponência.
Pensando que me tinha exatamente onde ele queria ao manter minha
melhor amiga na minha frente.
O pior é que ele estava certo. Eu desistiria de muita coisa por esse
momento com Simone. Muita coisa.
— Vamos deixar você para se vestir — disse Jaxson, que me conhecia
muito melhor do que Torin poderia esperar.
Minha independência sempre foi importante, mesmo antes de minha
família ter fodido nosso lugar no bando, e eu odiava ser vigiada.
Torin queria discutir, mas, quando Jaxson proferiu algo perto de seu
ouvido, ele soltou um suspiro e seguiu seu amigo sem maiores
desentendimentos. Quando eles estavam fora de vista, a energia que me
continha foi aliviada para que eu pudesse voltar à forma humana. Puxei os
suéteres que Simone trouxera para mim, corpo e mãos tremendo enquanto eu
lutava para me recompor.
— Mera — suspirou, ainda de joelhos no meio do campo.
Era como se ela não pudesse fazer as pernas funcionarem, o choque
tornando-a imóvel.
Com o coração batendo contra o peito, a intensidade desse momento
era ainda mais forte do que eu esperava, e caí de joelhos também. Não tinha
ideia de como tudo isso ia ser. Apesar de seus cabelos negros, Simone tinha o
temperamento de uma ruiva, assim como eu, e ela provavelmente reagiria de
duas maneiras: ou perderia a merda do controle e gritaria comigo até
desmaiar. Ou ela...
Ela se lançou para a frente, com os braços me envolvendo firmemente
enquanto soluços a sufocavam.
— Eles me disseram que você estava viva — ela balbuciou —, mas não
confio em nenhum desses bastardos.
Devolvi o abraço com igual força, se não mais, respirando seu cheiro, o
anis particularmente forte nesse dia. Antes que eu percebesse, nós duas
estávamos gritando e tentando falar um milhão de coisas ao mesmo tempo.
— Senti tanto a sua falta!
— Foi o ano mais longo sem você aqui!
— Vou matar esses filhos da puta metamorfos!
— Como você pôde me deixar aqui com eles!
Continuamos, até termos a maior parte da nossa raiva e angústia
aliviadas, tudo isso sem deixar o abraço da outra. Quando as lágrimas
finalmente diminuíram, nós nos sentamos lado a lado, e eu dei meu primeiro
suspiro real desde que fora roubada de Shadow. Uma espécie de inalação
profunda e purificadora.
— Não posso ficar aqui — eu disse a ela calmamente. — Senti sua falta
todos os dias, preocupada com você, e chorei porque não tinha certeza se a
veria de novo, mas nem mesmo por você vou ficar em Torma com este
bando.
O rosto de Simone era feroz.
— Eu nunca esperaria isso. Estou mais do que disposta a sair daqui
para sempre. Até meus pais... Eles se recusaram a fazer qualquer coisa para
me ajudar a encontrá-la. Nem uma coisa!
Alcancei a mão dela, apertando-a firmemente.
— Você é a melhor amiga que eu poderia desejar. Ficou ao meu lado
por tantas vezes que, honestamente, nunca poderei retribuir. Mas essa jornada
em que estou agora... — Suspirei. — É perigosa e não quero que você se
arrependa da decisão de vir comigo. Não quero que se machuque.
Simone se esticou, gesticulando para a trança quase perfeita em seu
cabelo.
— Se posso aprender a trançar meu cabelo, eu posso fazer qualquer
coisa. Já me transformei duas vezes. Estou me relacionando bem com minha
loba. Você não tem que se preocupar comigo.
Ela não entendia. Ela nunca seria capaz de entender, a menos que
experimentasse o mundo como eu tinha feito no ano passado. A vida de
Shadow não era para os fracos de coração e, por mais que ela estivesse cheia
de fogo e força, minha amiga fora mais protegida do que eu. Ela tinha sido
mimada pelos pais, não importa o quanto os odiasse nesse momento.
Eu não poderia roubá-la, mesmo que ela pensasse querer isso agora.
— Amo você — eu disse. — E agora não tenho escolha a não ser ficar,
porque não sei como abrir a porta para a biblioteca, mas, quando descobrir
isso, eu vou embora. Estou ajudando Shadow com algo bastante importante, e
ele não pode fazê-lo sem mim.
Ela piscou para mim.
— Shadow?
Merda. Como explicar isso a ela?
— Shadow Beast — comecei — não é exatamente como dizem os
contos. Ele é definitivamente assustador e poderoso. Ele é o alfa, mais do que
um pouco possessivo, e várias vezes ao longo do último ano sonhei em
esfaqueá-lo no peito. Mas também há algo... algo a mais sobre ele. Algo
profundo e inesperado. Ele é surpreendentemente nobre e bom; quando você
não o está irritando.
Sua boca estava entreaberta, os olhos tão largos como discos enquanto
ela silenciosamente olhava para mim.
— Você está apaixonada pelo Shadow Beast? — Ela finalmente se
engasgou. — O demônio de nossos pesadelos? O deus que criou
metamorfos? — Inclinando-se, ela colocou uma mão na minha testa para
verificar se eu estava com febre.
Com uma risada, gentilmente peguei sua mão. Isso seria o auge da
porra da estupidez. Mas eu precisava terminar essa tarefa.
Ela torceu o nariz.
— Certamente, ele não precisa de você para nada. Não a culpo por
querer ficar por lá, garota. De acordo com os membros do bando que o viram,
ele é a coisa mais sexy em duas pernas que este mundo já viu.
— Não apenas neste mundo — eu murmurei, irracionalmente irritada
porque outros estavam falando dele dessa forma.
Simone empalideceu.
— Não quero saber. Mal assimilei o fato de que você finalmente está
aqui. Viva. Depois de tanto tempo.
Meu sorriso era genuíno, e era estranho ter um momento de felicidade,
enquanto o resto de mim estava em um minipânico, dado o que tinha
acontecido com Shadow e a biblioteca...
Voltando-me para Simone, baixei a voz.
— Você tem alguma ideia do que eles fizeram para me afastar de
Shadow? Eles usaram algum tipo de pó.
Simone olhou em volta rapidamente, seu olhar correndo para a
esquerda e para a direita, antes de se aproximar ainda mais e sussurrar o mais
rápido que podia.
— Eu não sei nada com certeza. Eles me mantêm fora das discussões
porque mostrei várias vezes que sou o Time Mera. Mas tem algo a ver com
Dannie. Eles a seguraram eras, e eu tentei entrar e ajudá-la, mas, quando
descobri um caminho através de seus guardas, ela tinha ido embora. — Sua
voz vacilou enquanto ela respirava rapidamente. — Havia sangue por toda
parte, infelizmente, Mera. Tanto sangue que eu não tenho certeza que mesmo
um metamorfo poderia ter sobrevivido.
Tudo ficou parado ao meu redor enquanto o barulho branco enchia
minha cabeça. Shadow disse que Dannie tinha escapado, mas pelo que
Simone tinha visto...
Ela não tinha escapado ilesa.
Cinquenta e cinco
Simone segurou-me enquanto eu tinha o meu minicolapso e, quando
terminei, eu me levantei, minha loba enfurecida em meu peito. Em
circunstâncias normais, depois de uma corrida ela estaria cansada, mas a
notícia de Dannie ferida nas mãos desse bando nos deixou, ambas, prontas
para tentar o segundo round para matar aqueles covardes.
A única coisa que me segurava era o fato de que, se eu os pressionasse
muito agora, eles poderiam me matar, e eu não poderia deixar isso acontecer
antes de saber que Shadow e a biblioteca estavam bem. Sem mencionar todos
os outros no Sistema Solaris de quem eu gostava bastante.
Simone ficou de pé, uma nova energia animando seu rosto, e acenou
com a cabeça. O que quer que ela estivesse pensando, chegou a uma
conclusão, e agora estava pronta para compartilhar seu plano.
Inclinando-se perto da minha orelha, ela agiu como se estivesse me
abraçando de novo.
— Haverá uma reunião secreta hoje à noite para os executores e os
principais membros do bando — ela sussurrou. — Acho que vai ser sobre
você e tudo o que aconteceu. Eu não queria contar, porque tenho medo de
que você se mate lutando contra eles, mas definitivamente temos que
descobrir o que fizeram.
Segurei sua camisa enquanto a abraçava.
— Sim, eu sei. Preciso ir à reunião. Melhor você só me dar as
coordenadas, e pode ficar em casa, onde é seguro...
Ela balançou a cabeça, afastando-se de mim.
— Sem chance, vadia. Eu vou estar ao seu lado, assim como deveria ter
ficado quando você foi levada.
Eu fiz uma careta.
— Você não viu o que Shadow fez com Alpha Victor? Ele é
absolutamente implacável e impiedoso quando está com raiva. Se você o
atrapalhasse, não teria feito nada além de morrer. E, se tivesse feito isso por
mim, eu teria ficado tão zangada que pelo menos duas vidas teriam que
passar antes que a perdoasse.
Seus olhos se encheram de lágrimas e ela balançou a cabeça
novamente.
— Quando percebi que você tinha fugido de Torma pouco antes de sua
transformação, eu me culpei. Se eu tivesse sido uma amiga mais solidária,
teria fugido com você.
Engoli em seco enquanto meus olhos queimavam.
— Sinto muito por sair assim, garota. Especialmente depois de dizer
que eu não faria.
Sua voz era feroz e ela me sacudiu um pouco.
— Não foi sua culpa. Tive muito tempo para pensar... Bem, sobre tudo.
Você viveu o inferno, e eu não fiz nada para ajudar. Nada de verdade.
Isso não era nem de longe uma verdade. O amor e o apoio dela
salvaram minha vida mais de uma vez. Simone continuou antes que eu
pudesse responder.
— Quando você foi levada pelo Shadow Beast, prometi que, se você
voltasse para mim, eu nunca mais a deixaria ir. Não posso quebrar essa
promessa... Por favor, não insista.
Sustentamos o olhar pelo que pareceu uma eternidade, e finalmente
acenei com a cabeça, vendo em seu rosto a mesma determinação que tinha
visto em mim por anos. Na verdade, tomar decisões por ela era tão ruim
quanto Shadow fazendo isso por mim. Eu não era mais forte ou mais esperta
que Simone e, desde que ela conhecesse todos os riscos, não era meu trabalho
ficar em seu caminho.
— Ok. Apenas saiba que quase morri vinte vezes ou mais desde que fui
tirada daqui — eu disse a ela. — Se para você está tudo bem viver à beira da
morte, não vou ficar no seu caminho.
Ela zombou.
— Nós já vivemos assim. Tenho certeza de que estar em Torma é como
viver no portão do Diabo de qualquer maneira. — Houve uma pausa, e nós
rimos.
— Eu literalmente tenho vivido com o Diabo — bufei.
Simone me deu um sorriso.
— Eu sei.
Nós duas rimos e tive que balançar a cabeça com a ironia do meu
último ano. Para os metamorfos, Shadow era Deus, Diabo, besta, pecador e
santo. Ele era o pacote completo de yin e yang. Escuro e claro. Bom e ruim.
Eu morava na casa do Diabo havia um ano, e isso significava a experiência
mais forte e mais independente de tudo que eu já tinha vivido ali, sob a regra
do bando.
— Vamos detê-los — eu disse com convicção.
O rosto de Simone era feroz, seus lábios cerrados enquanto ela
estreitava os olhos.
— Nós vamos. Preciso ir para casa agora para seguir meus pais. Vou
mandar uma mensagem para você com as coordenadas.
Eu tive que fazer outra careta.
— Não tenho telefone.
Ela sorriu.
— Guardei um antigo que era seu. — Do bolso dela, tirou meu celular,
totalmente carregado e em perfeitas condições para um velho pedaço de
merda. — Eu esperava que um dia você ligasse para o seu número, então
nunca deixei a bateria acabar.
Minha garganta estava apertada quando a abracei mais uma vez.
— Amo você. Tenha cuidado ao seguir seus pais e me mande uma
mensagem assim que souber o local.
— Eu vou — ela sussurrou, apertando-me enquanto girava e partia.
Coloquei o telefone no bolso quando Jaxson e Torin retornaram — eles
claramente ficaram por perto.
— Viu? — a primeira e única palavra de Torin enquanto sorria para
mim.
Eu me fiz de idiota.
— Vi, o quê?
Seu sorriso desapareceu, escuridão rolando através de seus olhos.
— Viu o que posso lhe oferecer se parar de lutar comigo? Você não
será uma prisioneira ao meu lado. Será uma fêmea alfa, ligada ao alfa de
todos os alfas.
Inclinei a cabeça para o lado, como se estivesse analisando o que ele
estava dizendo. Verdade seja dita, eu não poderia julgá-lo apenas por sua
estupidez e arrogância, mas, felizmente, ele não podia ler meus pensamentos.
— Só preciso de algum tempo — menti. — E, sendo totalmente
honesta, estou ficando bastante irritada com homens pensando que podem
jogar seu peso e poder ao redor e me arrastar pelo cabelo. Você realmente
deve pensar sobre a sua abordagem daqui para a frente; quero dizer, se quer o
tipo de relacionamento poderoso que está me ofertando.
Mantê-los felizes até a reunião era meu novo lema. Esperava conseguir
essa noite todas as informações de que precisava sobre Shadow, a biblioteca
e, igualmente importante, sobre Dannie. Eu precisava saber se eu tinha uma
amiga para vingar ou não. Se a tivessem machucado, eu descobriria como
fazê-los implorar pela morte.
Essa ideia trouxe um sorriso ao meu rosto. Claro, Torin, o idiota que
ele era, pensou que eu estava sorrindo para ele.
— Você tem, querida. Nós vamos governar este maldito mundo e ter os
filhotes mais bonitos.
Meu estômago tremia com o simples pensamento de tocá-lo. O pau
dele estava provavelmente meio apodrecido por estar dentro de tantas
metamorfos. Especialmente Sisily. Falando nisso, eu me perguntava onde
aquela cadela estava. Ela sabia que eu tinha voltado? Sabia que Torin queria
reivindicar o vínculo agora? Por que ela não estava ali para arrancar meus
olhos?
— Como está minha mãe? — perguntei-lhes de repente.
Não porque eu realmente me importasse, ela não tinha sido nada para
mim por anos, mas parecia que eu deveria pelo menos perguntar.
Jaxson deu um passo à frente, pegando minha mão. A repulsa que senti
por Torin não estava lá para ele, mas eu ainda não queria o seu toque.
Quando afastei a mão, ele parecia surpreso, mas se recuperou rápido o
suficiente.
— Sua mãe entrou em depressão quando você foi levada pelo Shadow
Beast — disse ele lenta, suavemente, e meu estômago se apertou com seu
tom.
Eu conhecia esse tom. Era o jeito dele de dar a má notícia.
— Vá direto ao ponto, Jax! — surtei.
— Fui vê-la, e ela estava inconsciente — disse ele com pressa.
Torin cortou.
— Eu coloquei os melhores curandeiros para cuidar do caso dela, mas
não havia nada que eles pudessem fazer. O abuso sofrido pelo corpo dela foi
muito grande. Nem mesmo a genética dos metamorfos poderia salvá-la.
— Sinto muito, Sunny — acrescentou Jaxson.
A dor foi um baque maçante em meu peito quando eu soube que o
último membro da minha família finalmente se fora. Estava mais sozinha do
que nunca... Um golpe que eu não estava esperando ao perguntar sobre ela.
— O que aconteceu com o corpo dela? — Respirei fundo.
O ritual dos metamorfos consistia em queimar os restos mortais, mas só
depois que um membro da família mandasse o ente querido para Shadow
Beast com suas bênçãos. Minha mãe não tinha família sem mim, então eu não
tinha certeza do que eles tinham feito.
— Meu pai a abençoou para a vida após a morte — disse Jaxson.
A raiva lutou contra a dor maçante, e era mais nítida, mais colorida do
que minha dor jamais seria.
— O homem que assassinou o verdadeiro companheiro dela? Esse foi o
metamorfo que você pensou que era uma ótima escolha para enviá-la para a
próxima vida?
Eu silenciosamente adicionei outro nome à minha lista: Dean
Heathcliffe.
Cada um deles pagaria, mesmo que eu levasse a vida toda. Não se
tratava de vingança... Era sobre corrigir erros que não deveriam ter
acontecido.
É... talvez fosse a mesma coisa, mas, que seja, ninguém disse que eu
era perfeita.
— Sentimos muito, Mera — disse Jaxson. — Torin e eu queríamos
dizer isso há muito tempo.
Torin cruzou os braços, não se preocupando em abrir sua boca estúpida
enquanto deixava seu beta falar por ele. O que eu havia feito de errado para
ter esse cão mestiço como companheiro? Precisava perguntar ao Shadow
sobre isso... se o visse de novo.
— Que tal você me compensar? — eu disse, mais uma vez mentiras
saindo por entre meus dentes. — O que exatamente aconteceu quando vocês
dois entraram na Biblioteca do Conhecimento.
Os amigos trocaram um olhar antes de se virarem para mim.
— Você realmente precisa saber? — Torin ficou magoado. — Quero
dizer, tudo o que importa é que está de volta. Amanhã vamos convocar uma
reunião e apresentá-la como a companheira do alfa. É exatamente para isso
que você tem trabalhado, certo?
Não pude impedir um rosnado de escapar; Torin não deixou passar em
branco, sua expressão se escurecendo. Mas o que ele esperava? A última
coisa que eu sempre quis era ser sua companheira. Eu queria ficar longe
desse bando assim que pudesse, então isso era meio que meu pior pesadelo.
Mantenha a paz. Mantenha a paz.
Apenas mais algumas horas.
Cinquenta e seis
Jaxson teve que sair depois disso para os afazeres do bando, deixando-
me sozinha com Torin. Agora que seu amigo se fora, o alfa tinha perdido um
pouco de sua arrogância, seu rosto inseguro quando ele perguntou:
— Você talvez... gostasse de dar uma caminhada?
Minha loba levantou a cabeça, o interesse dela estava ali. O meu era
inexistente, mas eu estava jogando um jogo longo agora, então não podia
vacilar.
— Claro. Isso seria bom.
Como fazer depilação com cera. Na minha forma de lobo.
Ele não me tocou enquanto caminhávamos, mas estava mais perto do
que eu queria, especialmente quando uma pequena parte de mim gostava do
zumbido do vínculo entre nós.
— Você ficou surpresa? — perguntou ele, e isso me espantou o
suficiente para que eu parasse de andar.
— Sobre o quê?
Minha mente estava constantemente girando entre ele, Jaxson e
Shadow, e eu não tinha ideia do que especificamente ele estava perguntando.
— Em saber que sou seu verdadeiro companheiro?
Aaah. Eu me forcei a caminhar de novo, e ele me pegou.
— Pensei que seria Jaxson — finalmente admiti, sendo honesta com ele
provavelmente pela primeira vez desde que eu tentara arrancar sua garganta.
— Nós sempre tivemos um vínculo mais profundo que o normal. Quero
dizer, depois do meu pai, essa conexão foi para a merda, mas antes disso...
ele era o meu cara. E eu honestamente pensei que, se fosse alguém daqui,
seria Jax.
A risada de Torin soou abafada.
— Sim, a briga horrorosa que tivemos depois que você saiu meio que
indicou que ele tinha o mesmo sentimento. Você foi quase o ponto de ruptura
em nossa vida de amizade. Mais uma vez.
— Você ainda fez dele seu beta — eu disse com um encolher de
ombros.
Torin concordou com a cabeça.
— Jaxson é o melhor metamorfo que já conheci. Ele merece ser alfa e é
definitivamente o melhor homem para você, mas o destino obviamente
decidiu que não ia acontecer dessa vez, então cabe a mim ser... — Ele
hesitou. — O que você merece. Você e Torma.
Consegui encobrir a descrença com uma tosse.
Torin percebeu, no entanto, e surpreendentemente abaixou a cabeça,
sorrindo.
— Sim, eu poderia ter imposto isso a você de modo implacável, mas,
para ser franco, não esperava que lutasse comigo tão bravamente. Estávamos
resgatando você e, depois de meio ano tentando desenvolver meu plano, foi
um pouco anticlímax saber que você nem queria ser resgatada.
Sim, acho que, do ponto de vista deles, eu poderia estar agindo um
pouco fora do normal. Talvez não soubessem a verdadeira profundidade do
meu ódio por eles. Como poderiam ter pensado de outra forma depois do
tratamento do bando comigo, eu nunca saberia, eles eram caras burros, afinal.
— Você disse antes que eu quase destruí sua amizade com Jaxson
novamente. Por que de novo?
Eu nunca soube que eles haviam lutado e não podia esmagar minha
curiosidade sobre o que isso significava.
Pela primeira vez desde que começamos esse bate-papo, Torin parecia
cauteloso, mas, para seu crédito, ele não tentou mentir para mim.
— Quando seu pai atacou o meu pela primeira vez — seus olhos
estavam doloridos com a menção de seu pai executado —, eu avisei ao
Jaxson que ele tinha que deixá-la ir embora. Ele se recusou, mesmo
colocando a própria vida em jogo. Estava claro que sua posição neste bando
tinha acabado e, se ele quisesse ser beta, não poderia perder o respeito como
os Callahans tinham feito. Ele não tinha outra escolha.
Minha cabeça estava girando, e havia uma dor estranha em meu peito,
como uma indigestão.
— Eu não sabia disso. Ele lutou para continuar meu amigo?
Torin confirmou.
— Sim. Nós não conversamos por um mês e, em quase todas as
oportunidades, ele tentou me socar até me derrubar.
Eu vivia em um mundo de dor, tristeza e medo naquela época, então era
tudo muito obscuro, mas eu meio que me lembrava de Jaxson ainda por perto
por um curto período de tempo depois da morte do meu pai.
— Por que ele desistiu da missão de ficar comigo?
O rosto de Torin estava rígido e inflexível, o alfa nele brilhando
claramente, como a porra do dia.
— O pai dele e o meu se reuniram e ensinaram a Jaxson algumas
lições de vida. Ele quase não sobreviveu e, se não fosse pela minha
intervenção, eles poderiam tê-lo matado. Ainda assim conseguiram quebrar
algo dentro do meu amigo naquele dia, algo que não vi mais até
recentemente. Sua força e vontade voltaram com vingança, e duvido que haja
algo neste mundo que possa afastá-lo de você agora.
Engoli um soluço... De jeito nenhum choraria na frente do Torin. Mas
essa pequena história, que era quase inacreditável e ainda assim explicava
tanto, era como uma adaga totalmente nova em meu peito.
— Que teias emaranhadas nós tecemos — murmurei. — Eu não tinha
ideia de que Jaxson tinha passado por tanta coisa para tentar me salvar. —
Não nego a merda que ele me fez passar, mas saber disso me ajudava a
entender e a perdoá-lo um pouco.
Torin riu e no mesmo instante inclinou-se para a frente, fechando as
mãos em volta dos meus antebraços, puxando-me para ficar parada frente a
frente com ele.
— Ele não vai deixá-la ir facilmente. E aqui está minha proposta...
Lutarei lado a lado com ele para conquistá-la, e você pode decidir quem é o
melhor companheiro para você. Eu a ouvi antes, falando sobre fazer as
próprias escolhas, acho que tenho o suficiente para oferecer e eu vou ter
prazer em competir com Jax.
Meus olhos estavam tão arregalados agora que eu estava genuinamente
preocupada com a possibilidade de caírem da porra da minha cabeça. Nunca
tinha visto Torin assim, tão aberto e vulnerável. Deixando suas emoções
visíveis no rosto.
Minha descrença deve ter brilhado como um holofote.
— Sei que fiz muito pouco para convencê-la disso, mas mudei no
último ano — disse ele baixinho. — Tenho minhas prioridades. Enfrentei
algumas verdades duras das quais fui protegido na minha juventude. Não sou
o mesmo metamorfo ou homem que você conheceu, Mera. Estou muito perto
de ser digno de você. Só me dê uma chance de provar isso.
Minha loba uivava, e ela queria arriscar, porque esse era nosso
verdadeiro companheiro. Aquele que completaria nossas almas de uma forma
que nenhum outro jamais poderia. Mas eu não confiava nesse novo Torin,
não importava o que ele estava falando. Ainda havia tanto por dizer, tantos
segredos, e eu não tinha ideia do que acontecera com Dannie.
Sem mencionar que parte de mim ainda estava esperando Shadow fazer
sua aparição. Talvez estupidamente, mas era o que era.
Engolindo as emoções sutilmente, eu me afastei do alfa.
— Vai ser preciso muito mais do que palavras perfeitas, Torin — eu
disse calmamente, minha voz tremendo apesar da resolução de não ser
afetada. — Eu também não sou a mesma metamorfo que era há um ano, e
agora você vai ter que trabalhar extraordinariamente para provar seu valor.
Ele sorriu e, pela primeira vez, não era um sorriso falso.
— Desafio aceito, querida. Você será cortejada como nunca foi antes.
Meu coração palpitou, mas eu desliguei aquele traidor. Tínhamos uma
missão, e eu não seria dissuadida por ele, não importava o que acontecesse.
Torin podia ter virado uma nova criatura, mas eu tinha minhas dúvidas. Um
lobo alguma vez realmente mudava sua pele? Eu estaria por perto tempo
suficiente para descobrir?
Cinquenta e sete
Minha tarde com Torin foi esclarecedora e, honestamente, se não
houvesse muitos anos de história fodida entre nós, eu teria ficado encantada
como o inferno pelo alfa de Torma. Ele parecia diferente: maduro, calmo e
intuitivo. Ele crescera muito desde que a morte de seu pai o forçara a assumir
a posição de alfa, mas eu aparentemente não era o tipo de garota que perdoa,
porque minha raiva ardente ainda era uma piscina sem fim que ele mal tinha
tocado.
Mas eu não tinha odiado completamente o dia.
Torin ficara comigo até o fim do jantar, antes de pedir licença, dizendo
que tinha negócios de que tratar. Eu apenas sorri e acenei com a cabeça, não
me preocupando em segurá-lo. Foi um grande sinal. Isso significava que a
reunião estava em ação, e eu só tinha que esperar pela mensagem da Simone.
Ela tinha enviado uma mais cedo com "trabalhando" e um emoji como o
conteúdo. Sem dúvida, era necessário ser vaga, para o caso de algum dos
nossos telefones cair em mãos erradas.
Torin me deixou na casa principal. Ela estava vazia a maior parte do
dia, mas agora estava cheia de executores, que sem dúvida estavam ali para
me acompanhar. Esse novo ingrediente tornaria a ideia de escapar mais
complexa, mas eu tinha muita experiência entrando e saindo desse lugar,
conhecia algumas saídas e estava bastante certa de que nenhum desses
cabeças ocas estaria ciente. Tudo bem, desde que Simone me enviasse o local
o mais rápido possível.
Alguns minutos antes das oito, meu telefone tocou em meu bolso. Eu
não estava sozinha, então nem reagi. Em vez disso, passei mais cinco minutos
conversando com todos, que me receberam como se eu fosse um membro
valioso perdido do grupo. Não aqueles que tantas vezes tentaram me quebrar
em um ponto ou outro.
Por sorte, eu era uma excelente atriz, porque nenhum vestígio do meu
ódio por eles fez aparição.
Com o aparelho queimando na calça, eu finalmente bocejei e segui meu
caminho para a cama. Quando eu disse que queria ir para o quarto de Torin,
fiquei satisfeita com sorrisos de alguns de seus simpatizantes. Era fácil ver
quem estava no Time Torin. Infelizmente para ele, eu estava no Time Mera, e
estaria fazendo o que diabos fosse melhor para mim. Tenho que amar a mim
mesma primeiro, senhoras.

Três metamorfos me escoltaram até o quarto dele e notei que quase


todos eram homens. Não era assim que funcionava normalmente — as
mulheres eram tão duras quanto os homens e muitas vezes tinham posições
na área de segurança, mas Torin estava claramente promovendo o clube do
pau durante seu reinado.
Provavelmente algo em que Sisily tinha insistido. Exceto... Se ela
tivesse desaparecido, assim como Dannie. Alguma merda séria tinha
acontecido na minha ausência, e eu ia ter que fazer horas extras para
acompanhar todas as notícias.
Assim que estava segura no quarto de Torin, peguei correndo o telefone
para encontrar quatro palavras de Simone. Escola. Teatro. Quinze minutos.
Certo, bem, eu ia levar pelo menos esse tempo para correr em forma humana,
mas, se eu fosse como um lobo, chegaria lá na metade do tempo.
Quando comecei a planejar, enviei uma mensagem de volta para
Simone. Estarei lá em dez minutos. Distração primeiro.
Sua resposta foi instantânea. Distração em breve.
Fiz uma pausa. Bem, isso poderia ser ainda mais fácil se eu não tivesse
que descobrir os dois passos do meu plano. Simone tinha mais do que alguns
truques na manga, então eu a deixaria tentar primeiro.
Para me preparar, procurei no quarto de Torin, encontrando uma
pequena mochila que eu usava para guardar um conjunto de roupas,
certificando-me de que estava fechada — lobos lutavam contra zíperes.
Quando eu estava preparada, Simone tinha vindo com uma distração, os
alarmes do perímetro brilhando a distância. Eu sabia como os executores
funcionavam, então primeiro rastejei para a cama, completamente vestida e
fingindo estar meio adormecida. A porta se abriu, e eu me levantei, piscando
enquanto esfregava os olhos contra a luz.
— O que está acontecendo? — choraminguei segurando os lençóis no
peito, como uma donzela em perigo.
Os dois caras olharam ao redor, seguindo o protocolo para manter a
segurança do quarto.
— Fique aqui, companheira do alfa — disse um negro alto com um
rosto sério.
Eu não o conhecia pessoalmente, e me perguntava se ele era um novo
membro do bando. Não que eu me importasse, na verdade.

Ele era claramente bom em seu trabalho. Rápido e eficiente, mas, como
não lhe dei razão para desconfiar de mim, não notou nada.
— Posso ajudar? — perguntei quando se afastaram.
Alguém me dê um Oscar de melhor atriz desse bando.
Ambos balançaram a cabeça.
— Não, por favor. É nosso trabalho mantê-la segura. Provavelmente
eram apenas animais desligando os alarmes.
Sim, talvez. Animais enviados pela minha melhor amiga mal-
humorada. Ela era uma guardiã, assim como Angel estava provando ser
também. Duas amigas ferozes, destemidas e duronas. Isso quase compensava
o fato de eu ser a verdadeira companheira de Torin.
Acenei com a cabeça, forçando um sorriso.
— Ok. Bem, por favor, mantenha-me atualizada.
Eles me saudaram ao sair e, quando a porta se fechou, eu me
descaracterizei abandonando a aparência de pessoa legal, rolando para fora da
cama. A mochila foi colocada onde minha loba poderia facilmente agarrá-la,
a porta da frente abriu apenas com um toque, e então chamei a energia da
minha fera para a superfície, esperando que minha transformação fosse
silenciosa contra o caos lá fora.
A remodelagem dos ossos nunca seria agradável, mas, com mais da
magia infundida em minha alma, levou apenas um clique no tempo, e então
eu era uma loba. Nessa forma, tínhamos foco laser, pegando o pequeno saco
em nossa boca e facilitando a saída pela porta. O corredor estava vazio, como
eu esperava. O alfa e sua família estavam sempre no lado mais amplo da
propriedade, deixando a entrada do outro lado para ser guardada por seus
servos.
Mais uma vez, a covardia deles ia custar-lhes, e saí como uma ladra
durante a noite. Essa velha casa estava cheia de entradas secretas, pequenos
armários que levavam a becos, e corredores na lavanderia, que usei mais de
uma vez para escapar de idiotas em meu encalço. Minha baixa estatura, tanto
em forma humana quanto de lobo, atuou em meu favor algumas vezes.
Ninguém cruzou meu caminho quando cheguei à lavanderia raramente
usada. Claro, quando empurrei a porta, ela estava firmemente fechada e,
mesmo com toda a força que minha loba tinha, polegares e a habilidade de
abrir portas não eram parte deles.
Merda. Isso exigiria que eu me transformasse, e depois me
transformasse de novo, mas três mudanças em tão pouco tempo me
esgotariam a ponto de eu ser bastante inútil se uma briga surgisse.
Desperdicei alguns minutos preciosos contemplando outras opções,
apenas para ouvir os metamorfos voltando para esse lado do prédio. A
distração acabou e logo eu ficaria presa. O que me deixou sem outra opção.
Minha loba, entendendo o plano, não lutou contra a mudança, permitindo-me
voltar para nossa pele humana. Abri a porta em um piscar de olhos, correndo
para dentro e fechando-a firmemente.
Respirando fundo enquanto procurava a energia para me transformar
novamente, eu apenas soltei todo o controle e esperava que minha loba
respondesse, fazendo pelo menos metade do trabalho para mim. Ela não me
decepcionou e, quando a transformação chegou de novo, a dor estava pior,
mas acabou tão rápido quanto havia começado. Tive que me sentar no chão
por um minuto ou mais para me recuperar, mas havia força em nosso corpo
enquanto nos levantávamos, então pegamos a mochila e fomos para a parede
em que ficava a saída. Era um daqueles corredores de metal da velha guarda,
áspero em alguns lugares, mas eu o tinha usado vezes suficientes para saber
os pontos que deveria evitar.
Quando o ar fresco nos atingiu, ainda mais energia voltou, e eu me
movi rapidamente em direção ao riacho. A água era minha vantagem para
encobrir meu cheiro e rastros e, depois de alguns quilômetros ao longo dessa
margem do riacho, eu acabaria em uma estrada principal, pronta para ir direto
para a escola.
Porra, eu adorava quando um plano se encaixava.
Cinquenta e oito
A escola estava envolta em escuridão. Nenhum sinal de vida de fora.
Mas meus sentidos eram mais fortes do que isso e, quando encontrei o teatro
principal vazio, farejei aqueles bastardos, encontrando-os no subsolo do
prédio. Essa era a sala onde adereços, fantasias e iluminação eram mantidos.
Os metamorfos não se interessavam realmente em atuação ou peças
escolares, mas sempre tinham uma produção por ano. Depois disso, tudo era
prontamente descartado nessa sala.
E espalhados entre isso agora estavam os altos escalões do bando
Torma.
Rastejei ao longo de uma das vigas, seguindo o cheiro de Simone. Ela
estava agachada em uma plataforma no alto da sala — uma daquelas tábuas
de madeira puxadas por alavanca que eles usavam para mover personagens
ao redor do palco.
Era o ponto de vista perfeito para observar, sem estar perto o suficiente
para que nos farejassem. Eu não podia sentir o cheiro de ninguém abaixo,
nem mesmo em forma de lobo, então sabia que estaríamos seguras.
— Você chegou bem na hora — Simone murmurou, estendendo a mão
para tirar a mochila da minha boca.
Minha mudança de volta foi difícil. Primeiro, porque minha loba não
queria partir quando estávamos em uma sala de inimigos; segundo, porque
minha energia estava esgotada, e terceiro, porque tínhamos que fazer isso em
silêncio quase completo.
Simone olhou com preocupação enquanto eu arfava no chão.
— Tive que mudar duas vezes — gemi suavemente, enquanto me
colocava de pé.
Ela atirou em mim um olhar simpático enquanto me ajudava a tirar as
roupas da mochila e a me vestir com meus membros trêmulos. Só um par de
moletom muito grande para mim, mas me sentia melhor quando estava
coberta.
Não havia mais tempo para me recuperar, porque os metamorfos lá
embaixo estavam começando. Torin se afastou para deixar Dean Heathcliffe
tomar a palavra, e esse filho da puta tinha algo interessante a dizer.
— O pó obtido do explorador provou ser frutífero — começou ele, e
havia aplausos por toda a sala enquanto aqueles bastardos celebravam sua
vitória. — O sacrifício de uma virgem e a magia de uma prostituta-sombra
resultaram no poder de interromper a energia de seu pequeno portal mágico, e
agora eles estão impedidos de voltar.
Mais aplausos.
Torin e Jaxson permaneceram em silêncio, porém de braços cruzados
enquanto estavam lado a lado. Eu me vi tentando ler a expressão no rosto
deles a cada minuto, qualquer coisa que pudesse indicar se tinham sido parte
de... ou talvez até instigado esse plano. Mas eram impassíveis.
Um metamorfo levantou a mão antes de gritar uma pergunta.
— Isso vai enfraquecer a fera? Será que ele ainda será capaz de nos
punir?
Dean sorriu, parecendo um maníaco ele olhou em torno da sala.
— Como disse a andarilha logo antes de destruirmos o corpo dela para
fazer o feitiço, isso é exatamente o que vai acontecer.
Meu suspiro — e o de Simone — estava escondido por risos e
excitação, mas não ouvi mais nada que fosse dito enquanto meu corpo
esquentava como se eu tivesse pulado em um pote de água fervente.
— Mera! — Simone chorou, mas foi um sussurro insignificante contra
a fúria crescente dentro de mim.
Minha visão começou a dobrar quando o fogo correu pelo meu corpo,
como se eu estivesse canalizando o poder de Shadow. Senti sua presença no
momento em que Dean soltou uma risada raivosa.
— E nós nunca teríamos sido capazes de matar aquela cadela-sombra
errante se não fosse por Shadow Beast. Ele estabeleceu as bases para
construir sua própria destruição.
Todos riram de novo, mas meu mundo caiu debaixo de mim enquanto
um uivo sobrenatural soava pela sala.
Shadow os ajudou a matá-la?
Shadow mentira para mim e me traíra pelos seus próprios meios, justo
quando eu começava a confiar nele.
Shadow, que eu sentia que estava ali naquele momento, porque eu tinha
conseguido tocar o Reino das Sombras novamente.
Não houve tempo para contemplar isso, porém, porque os metamorfos
abaixo ficaram em silêncio enquanto sentiam o cheiro da destruição que
marchava em direção a eles. Outro rugido cortou a noite e colocou os lobos
de joelhos. O som era lindo em seu terror e, enquanto a luz deslizava da sala,
sombras rastejando pelo ambiente, ar pesado e grosso, deixei um sorriso
amargo cruzar meu rosto.
O diabo finalmente havia chegado. E ele não estava sozinho.
Com o fogo de um milhão de anjos vingadores cavalgando na minha
pele, chamas dançando acima do meu corpo, eu saí da borda da plataforma.
Os gritos de Simone soavam aos meus ouvidos quando caí.
Foi como saltar de uma pequena pedra quando graciosamente bati no
chão, endireitando-me para ficar cara a cara com o Diabo. Usávamos chamas
gêmeas, e sua expressão era um portal oco da morte. Quando nossos olhos se
encontraram, deixei um sorriso lento cruzar meu rosto. Ao lado de Shadow,
Lucien pigarreou, mas parecia inseguro demais para falar. Reece também.
Porque eles viram a verdade do que estava acontecendo ali. Havia um
novo terror esperando nos bastidores por Shadow. Um terror que ele não vira
chegar.
Eu.
Carta da Autora

Ahhhhhhhh!! Ok, então, espero realmente que você não tenha jogado
longe seu livro/Kindle no final, porque sim, tudo terminou com um pouco de
emoção. Mas o pensamento por trás disso era... “publique o livro 2
rapidamente, antes que te localizem e te matem.” Hah!
Então, por enquanto: não me odeie. Não jogue seu livro/Kindle fora.
Não convoque Lúcifer para me destruir... Ou melhor faça isso, a ideia até que
soa bem.
Na verdade, espero que tenha adorado esta história com um pouco de
escuridão e muita intriga. Começou com uma única imagem. Um demônio
segurando uma mulher. Era difícil interpretar com certeza, mas vi
possessividade, seres sombrios e o tipo de romance épico que poderia destruir
mundos.
E mesmo que este seja apenas o livro 1 na trilogia, estou tão
apaixonada pelos meus personagens... Eu só quero me deliciar com o fogo
deles e ver isso se desenrolar.
De qualquer forma, obrigada por ler, agradeço muito a todos vocês, e,
quando o demônio aparecer, mande-o para mim. Vou acrescentá-lo ao time.

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