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Rejeitada (Shadow Beast Shifters Livro 1)
Rejeitada (Shadow Beast Shifters Livro 1)
Capa
Tamara K
Copy Desck
Patrícia Trigo
Revisão
Débora Ratton
Tradução inglês-português
Carolina Brazil
Diagramação
Mylene Ferreira
1º Edição
Livro Digital
Selo Portal
Eve, Jaymin
Para todos que sonhavam em ser sequestrados pelo diabo. Porque estamos fodidos de qualquer
forma.
Abrace sua escuridão
Sinopse
Quando seu pai tentou matar o lobo alfa do bando, Mera passou a ser excluída, rotulada de traidora,
tratada pior que lixo.
Ela decidiu fugir da alcateia, mas seus problemas ficaram ainda piores quando foi arrastada de volta
pouco antes da primeira transformação.
O tão esperado momento que mudaria para sempre os seus dias foi um desastre. Quando a conexão
aconteceu e seu verdadeiro companheiro se revelou, tudo saiu de controle.
Mera nutria a esperança de um futuro melhor assim que sua loba fitasse sua cara-metade. Mas estava
completamente enganada. Ser rejeitada pela sua alma gêmea foi apenas o começo.
Ao ser desprezada, sua alma gritou por vingança. De alguma forma inexplicável, tocou o mundo das
sombras invocando criaturas horripilantes... como o temido Shadow Beast, o deus criador dos
metamorfos ou, para alguns, o próprio diabo.
Taciturno, sombrio e poderoso, Shadow Beast veio à Terra para descobrir quem estava acessando o seu
mundo. Arrancou Mera de sua alcateia, mantendo-a como refém em seus domínios.
A loba tinha noção de que a besta era mais um diabo do que um anjo, no entanto não conseguia evitar a
atração que sentia.
Ele poderia ser o maior demônio dos mundos sombrios, mas sem dúvida nenhuma era sexy.
Cativa do deus que deveria adorar e temer, agora Mera precisará de toda sua força para resistir ao
demônio.
Um
“Das cinzas, a fênix se erguerá”. Reli essa frase do meu trabalho da
faculdade. Literatura Inglesa tinha nos atingido com nossa primeira grande
tarefa do ano: pediram-nos para discutir em detalhes um romance que
continha algumas falhas graves. Em primeiro lugar, seu uso constante de
alegorias para incutir "significado" na história me deixou louca. Sem
mencionar a prosa. Olha, cara, não me leve a mal, na história certa, eu estaria
maravilhada com o uso impressionante de palavras, com frases fluindo em
um círculo de emoções e luz, fazendo meu coração acelerar e o cérebro
vibrar. Nesse caso, porém, eu queria gritar para o autor apenas chegue ao
ponto, merda.
Minha mãe sempre disse que eu não poderia ser filha dela, porque ela
tinha nascido das estrelas e raios lunares e eu tinha nascido de fatos e
números. Seja lá o que isso signifique. Provavelmente que ela teria gostado
desse romance da Literatura Inglesa — se ela não estivesse bêbada, é claro.
Se fosse por mim, eu não teria escolhido essa história, mas o relatório tinha
que ser feito.
Eu escrevia melhor com uma conexão, então procurei por uma e
encontrei naquela linha. Ela correu repetidamente em minha cabeça,
consumindo meus pensamentos e dominando meu dia. Tudo porque não há
nada que eu adoraria mais do que me levantar das minhas próprias cinzas.
Com vinte e dois anos de idade, veterana na faculdade e nascida no
mais poderoso grupo de metamorfos do mundo, a vida deveria ter sido rosas
e chocolates. Ou estrelas e raios lunares... se eu quisesse piorar as coisas um
pouco mais. E talvez tivesse sido se meu querido velho pai, também
conhecido como Lockhart Callahan, não tivesse decidido morrer desafiando o
alfa, fazendo assim a minha família persona non grata. Nós éramos piores do
que merda nesse bando, e a única razão pela qual ainda estávamos ali, de
acordo com minha mãe, era porque conhecer seu inimigo era melhor do que
tentar fazer outros lá fora como lobos solitários. Um fato sobre o qual eu
tinha dúvidas.
— Mera!
Merda. O temor era tão debilitante. E não pela primeira vez, ao senti-lo,
eu me perguntava como seria viver sem ele. Para... levantar todas as manhãs
e não temer a porra do dia.
Então uma verdade absoluta se abateu sobre mim, enquanto eu tentava
acalmar meu coração pela segunda vez naquele dia: eu deveria ter fugido
anos atrás. O fato de ter ficado ali me colocando nessa posição, para ser
atormentada diariamente, era embaraçoso.
Transformar-me em uma vítima repetidamente era uma vergonha que
eu sentia profundamente em minha alma.
— Tenho que fugir hoje à noite — decidi, a intensidade impressa em
minha voz. — Esta é minha melhor chance. Eles vão correr por horas, e a
cidade estará vazia.
Simone pisou nos freios, o carro cantando pneu até parar.
— Você está brincando comigo? — ela gritou. — Garota, você está a
um mês da sua transformação. Não pode ir agora. Você vai morrer sem um
alfa para guiá-la através da primeira mudança.
Minhas mãos estavam fechadas em punho ao lado do corpo, enquanto a
raiva e a humilhação se apossavam de mim.
— Deixei que me transformassem em uma vadia chorona — eu disse
através de dentes cerrados, a garganta tão seca que mal conseguia pronunciar
as palavras. — Eu vivi com medo por uma década. Passei pelas piores
merdas e humilhações, tenho cicatrizes na pele e na alma que não me deixam
esquecer isso. Por que fiquei tanto tempo? Pelo medo de possivelmente
morrer na primeira transformação? A essa altura, isso seria uma bênção.
Sem mencionar que partir antes da minha mudança diminuiria meu
vínculo com o alfa e tornaria ainda mais difícil para ele me rastrear. E dizer
as palavras em voz alta tornava mais real a possibilidade de fugir antes da
primeira transformação, tudo fazia muito mais sentido. Ir agora. Essa noite.
Simone estava mortalmente silenciosa, com os olhos enormes e cheios
de lágrimas. Ela engoliu em seco mais de uma vez, mas não conseguiu se
controlar.
Estendendo o braço, coloquei minha mão sobre a dela, apertando-a.
Cheguei cedo para trabalhar no dia seguinte, depois de uma noite com
um sono de merda e inquieto. Graças à loba raspando minha pele como se
fosse fisicamente um animal preso dentro de mim, e não apenas um pedaço
da minha própria alma.
— Lucy!
Tessie Johanson me abraçou enquanto eu entrava pela porta e, dessa
vez, nem sequer hesitei. Ela também era garçonete em tempo integral e tinha
cabelos ruivos flamejantes, mas, ao contrário dos meus, os dela não seriam
vermelhos por muito tempo. Já mudara a cor deles tantas vezes quanto eu
mudava de roupa, e eu não tinha ideia de qual era o seu tom natural.
Ela também era uma abraçadora, e eu tinha levado algum tempo para
me acostumar, mas agora eu meio que gostava.
— Senti sua falta esta semana — disse ela, embora tivessem passado
apenas alguns dias desde que estivemos juntas em um turno. — Nós devemos
ter um dia agitado hoje com o festival na cidade.
Eu sorri, escondendo minha bolsa e jaqueta nos pequenos armários.
— Isso é fantástico. Eu poderia conseguir um pouco de dinheiro extra.
Ela sorriu, seguindo-me quando coloquei meu avental.
— Infernos, sim, eu também. O roxo que eu estou querendo para o meu
cabelo vai precisar de três sessões com Mark. Ele é o melhor, mas o cara
custa caro. — Seus lábios se contraíram. — Tem certeza de que não quer
fazer um corte? Posso marcar um horário para nós duas juntas.
Bufei quando entramos na sala principal do restaurante para começar
nosso turno.
— Eu já disse, comida antes do cabelo. Não tenho dinheiro para
desperdiçar, mas não posso esperar para ver o roxo que você vai escolher.
Ela suspirou, melancolicamente olhando para a longa bagunça trançada
nas minhas costas.
— Seu cabelo tem a cor natural mais incrível que já vi. Mark
oficialmente mataria a própria mãe por uma chance de colocar as mãos nele.
Provavelmente faria isso de graça. — O rosto dela se iluminou. — Vou
perguntar a ele.
Antes que eu pudesse protestar, ela tinha corrido para a própria seção, e
comecei a trabalhar na minha. Como previsto, não houve calmaria o dia todo,
então descobri sobre o parque de diversões itinerante e o festival de comida
que aconteceria na cidade até a semana seguinte, trazendo uma tonelada de
visitantes.
— Você tem que ir lá ver! — um menino de dez anos, excessivamente
entusiasmado, me disse. — Eles têm passeios, brinquedos e algodão-doce.
Sorri para ele enquanto reabastecia seu suco.
— Parece incrível. Estou trabalhando nos próximos dias, mas talvez eu
tenha a chance de dar uma fugida.
Greg, que estava conversando com um dos clientes habituais, deve ter
ouvido minha conversa.
— Sua amiga da Califórnia esteve aqui ontem perguntando sobre você.
Talvez você possa levá-la lá. É definitivamente um dos destaques dos
feriados.
Como se alguém tivesse me encharcado em água gelada, um choque
atravessou minha pele, congelando-me no lugar.
— Minha amiga? — consegui desengasgar.
Ele acenou com a cabeça, ainda parecendo afável, como se não tivesse
ideia da bomba que tinha acabado de cair em mim.
— Disse que estava na cidade para surpreendê-la. Imaginei que ela iria
aparecer na sua casa na noite passada.
De alguma forma não derrubei o jarro que segurava. De alguma forma
não gritei nem saí correndo de lá. De alguma forma consegui calmamente
acenar com a cabeça e ir embora para a área dos fundos.
— Está tudo bem? — Tessie perguntou, empurrando a porta para
deixar os pratos sujos que carregava nos braços.
Livrando-me do pânico, forcei um sorriso natural no rosto, falhando
miseravelmente, a julgar pela expressão no rosto dela.
— Acabei de receber más notícias. Poderia cobrir o resto do meu
turno? Preciso ir para casa rapidamente.
Seu sorriso doce puxou o canto dos lábios ao mesmo tempo que seu
rosto se enrugava de preocupação.
— Claro! Deus sabe que você me cobriu muitas vezes nas últimas
semanas.
— Você é a melhor — eu disse com pressa, pegando minha bolsa e
jaqueta. — Eu vou compensar você.
Mentira total. Essa era a última vez que eu veria qualquer um deles.
Eu não tinha sido paranoica — meu disfarce fora descoberto. E, depois
que pegasse minhas economias na cabana, eu sumiria dali para nunca mais
voltar. Já estava me xingando por ser tão estúpida de não trazer o dinheiro
comigo. Não me sentia segura vagando por aí com milhares de dólares, e
poderia pagar caro por essa decisão brilhante.
— Lucy — Tessie chamou enquanto eu corria porta afora.
Forçando-me a desacelerar, virei a cabeça para trás.
— Tome cuidado lá fora — ela murmurou, e eu me vi olhando para
seus tristes olhos cinzentos.
Era quase como se ela soubesse que era a última vez que nos veríamos
e, com a tristeza despertando em mim, eu me forcei a engoli-la. Não tinha
tempo de me debruçar sobre minhas perdas.
O resto do dia seria sobre sobrevivência.
— Você também — respondi baixinho antes de sair e deixar a
lanchonete para trás para sempre.
Ao contrário de quando fui trabalhar, as barracas de jogos e comida
estavam completamente montadas agora, tendas coloridas visíveis enquanto
eu corria. As ruas estavam cheias como eu não tinha visto ali antes, e estava
claro que esse evento itinerante era um grande negócio. De certa forma, isso
era totalmente uma bênção disfarçada para mim. Quanto mais pessoas, mais
fácil seria esconder minha fuga de Hood River.
A multidão diminuiu quando me aproximei da minha casa na floresta e,
quando eu estava a um quilometro ou mais da cidade, entrei em modo furtivo,
saindo do caminho batido e entrando na densa folhagem. Uma rota direta era
muito arriscada nesse momento.
Talvez tivesse sido esse o ponto em que cometi meu primeiro erro: ter
esperança e baixar a guarda. Pensando que eu era tão inteligente ao me safar
com meu dinheiro e a mochila. Já planejando para onde iria dali, para nunca
mais ver Hood River.
Mas eu não era a única correndo pela floresta naquele momento.
Alguém estava esperando por mim, mas não onde eu imaginava. A cabana
era muito óbvia, e aqueles bastardos me embalaram em uma falsa sensação
de segurança quando não havia ninguém lá dentro.
Mas não se engane, eles estavam esperando por mim, e agora eu estaria
em uma luta pela minha vida.
Sete
Sabendo que eu preferiria morrer a ser levada pelo bando de Torma de
novo — E quem mais estaria me perseguindo? —, eu não parei. Se aqueles
bastardos colocassem as mãos em mim, provavelmente fariam os últimos dez
anos com eles parecerem um País das Maravilhas. Eu não podia deixar isso
acontecer. Eu lutaria até a morte se precisasse, porque não voltaria para
Torma.
Minha loba rodopiou dentro de mim lutando para se libertar e, apesar
da impossibilidade de isso acontecer antes da lua cheia, realmente parecia que
ela poderia conseguir forçar a mudança. Meu rosto doía como se minha
mandíbula estivesse se transfigurando, dentes mudando para acomodar a
transformação.
— Meerraaa — uma voz zombando à minha direita.
Outra se juntou à esquerda, ambas familiares e aterrorizantes.
Torin e Jaxson. Futuros alfa e beta.
É claro que Victor os havia enviado atrás de mim — quanto melhor um
metamorfo conhecesse o cheiro e a energia de uma pessoa, mais fácil era
localizá-la. Eu tinha crescido com aqueles idiotas, e eles estavam presos
diretamente a minha energia. Mas por quê? Eu honestamente não esperava
que eles se importassem com a minha fuga, mas, aparentemente, Victor não
estava pronto para libertar nenhum de seus lobos. Mesmo aqueles que ele
odiava.
— Ou é Lucy? — Torin acrescentou, seu riso estava mais perto do que
antes.
Greg disse que tinha sido uma mulher perguntando sobre mim na
lanchonete, mas claramente esses dois estavam lá também. Provavelmente
fora Sisily... A vadia estúpida nunca foi a lugar nenhum sem o alfa e o beta. E
eu sabia que meu chefe não teria dado minhas informações pessoais para
caras estranhos, mas uma mulher era diferente. Greg era da velha guarda.
E isso podia me matar.
Minha velocidade aumentou, mas não havia como eu ultrapassar os
metamorfos. Especialmente se eles liberassem os lobos.
— Vamos, Mera. O bando sente sua falta — acrescentou Torin, sua
risada se fora agora. — O pai não gosta quando os membros da alcateia saem
sem um adeus. Você sabe disso.
Jaxson estava ao lado de seu melhor amigo num piscar de olhos, seu
olhar escurecido fazendo buracos no meu rosto.
— Você vai pagar por isso, Mera — ele rosnou, seu rosto já começava
a mudar enquanto lutava contra seu lobo.
Mostrei o dedo do meio para ele, porque pelo que parecia eu estava
sem meu senso de autopreservação ultimamente.
— Ele não vai morrer por causa disso.
E não iria. Só levaria alguns dias para se recuperar e até lá ele
realmente estaria mal. Os músculos cardíacos faziam muito trabalho no
corpo, e uma lâmina através deles, mesmo para um metamorfo, nunca foi
bom.
— Proteja-o — ouvi Jaxson gritar para a loba desconhecida, e então a
primeira rachadura de ossos me disse que ele estava prestes a mudar.
Eu tinha uma única chance de fugir, porque, se ele me pegasse em sua
forma de lobo, estava tudo acabado. Minha lâmina ainda estava enterrada no
peito do meu inimigo, e, decidindo que seria mais ágil correndo sem minha
mochila, saí de mãos vazias. Irônico, já que eu tinha me arriscado ao buscá-la
na cabana tentando salvar meu dinheiro. Agora eu sabia que estaria melhor se
tivesse saído correndo direto da lanchonete, sem nunca olhar para trás.
Correndo mais rápido do que eu jamais fiz, cheguei à beira da cidade,
pronta para mergulhar nas ruas ainda repletas de pessoas. Lobos tinham uma
regra muito rígida acima de todas as outras: nunca deixe os humanos saberem
de nossa existência. Qualquer metamorfo visto em público estava em uma
série de problemas com seu alfa, especialmente naqueles dias, na era dos
telefones e dispositivos de gravação.
Estar entre os humanos me deu uma chance de escapar, já que Jaxson
teria que ser cuidadoso. Ele teria que mudar de volta e nesse caso também
teria que andar nu por aí. Ele merecia esse tipo de karma, não que esse idiota
confiante se preocupasse com o fato de ficar sem roupas.
Ele não tinha nada com que se preocupar, sinceramente, mas poderia
pelo menos tentar ter um pouco de humildade.
Os sons de um lobo se aproximando me impulsionaram para a frente, e
eu tinha certeza de que estava prestes a fazê-lo quando Jaxson pegou minha
camisa com os dentes, puxando-me de volta. Como era possível que estivesse
tão perto? O filho da mãe se deslocara em segundos.
As pessoas estavam a apenas alguns metros de distância, e eu poderia
ter gritado, mas, se o lobo de Jaxson estivesse no controle, ele mataria todos
eles. Eu não poderia fazer isso. Não com humanos inocentes.
Tive que aceitar meu destino.
Lutando para me libertar, fui parada quando ele atacou minhas costas.
O cara era um homem grande, e um lobo ainda maior. Sem ar, tentei rastejar,
buscando forças para respirar. Jaxson deslizou e me cutucou, então eu estava
de costas, com o peito ofegante, olhando para o lobo negro da cor da meia-
noite.
Presas brilharam na minha cara enquanto ele rosnava, e eu sabia que
este era meu último momento na Terra. Não importava como eu tentasse
lutar, ele era maior e mais forte, e eu estava sucumbindo aos ferimentos que
sujavam meu corpo.
Desculpe, minha loba.
Eu ansiava por conhecê-la melhor, mas não era para ser.
Talvez em nossa próxima vida.
Ela uivou então, um longo e reverberante lamento, que encheu meu
corpo, mas nenhum som emergiu da minha boca. Jaxson se inclinou para
mais perto e assim, com sua mandíbula presa em torno da minha garganta,
ouvi um grito por trás dele. Parecia Torin, mas eu não podia ter certeza,
porque o lobo segurando minha vida em suas mandíbulas afundou os dentes,
puxando a pele, e tudo ficou preto.
Oito
Em algum momento, eu tinha aceitado que não havia como acordar
para outro dia.
Eu tinha visto meu último nascer do sol.
Comido meu último taco.
Cantado minha última canção.
E, embora não tivesse arrependimentos sobre correr e tentar ter uma
vida melhor, estava chateada por morrer. Eu, com certeza, não merecia esse
destino, especialmente nas mãos dos imbecis que fizeram da minha vida um
inferno em primeiro lugar.
Exceto porque a morte ainda não me queria.
Um pouco de água me bateu na cara, seguido de um tapa na bochecha
dolorida.
— Acorde, sua puta estúpida — uma voz rosnou por perto.
À medida que a consciência voltava, a dor se tornava conhecida. Um
gemido escapou dos meus lábios, o som pequeno e patético.
— Deveria tê-la deixado para morrer — a mesma fêmea resmungou. —
Vadia inútil, não faz mais do que ficar deitada na própria imundice. Vergonha
para os metamorfos.
— É preciso ser uma para reconhecer outra — murmurei, palavras
ásperas e quase inaudíveis.
Meus olhos ainda não estavam abertos, mas senti seu cheiro se
aproximando.
— Que merda você acabou de dizer?
Forcei os lábios em um sorriso, mesmo que meu rosto parecesse pegar
fogo.
— Vou falar mais devagar. É... preciso... ser... uma... para...
Nesse ponto eu mal conseguia lembrar o que ela tinha dito. Ela me
chamou de algo... Inútil...? Sem valor?
— Você acabou de me chamar de vadia? — ela surtou, e a dor na
lateral do meu corpo aumentou.
Nesse momento, senti suas unhas cravando-se em mim, suas mãos
semitransformadas.
— Certo — balbuciei. — Quase esqueci. Mas sim, você é uma vadia
arrombada, e espero que pegue herpes e morra de sífilis depois que sua
boceta cair.
Ela rugiu tão alto que teria machucado meus ouvidos, mas eu já estava
com tanta dor que um pouco de incômodo auditivo não era nada preocupante.
Aprofundou as garras em mim e outro gemido fraco saiu.
— Você vai desejar ter morrido no momento em que correu — ela
murmurou, soando alegre. — Meu trabalho é acabar com você até que esteja
implorando pela morte, e então Victor vai assumir.
Agora eu sabia quem era: Glendra, a companheira do alfa. A mãe do
Torin, ou, como eu gostava de chamá-la, a puta do bando.
Era uma metamorfo desagradável que eu odiava havia anos. Andava
atrás de meu pai frequentemente, como um rastro malcheiroso, parecendo
nada além de alguém que desejava a atenção de homens poderosos. Ela
precisava desse prazer e, apesar de ter um verdadeiro companheiro, nunca
conseguia conter seu olhar sedutor. E parte de mim ainda se perguntava se ela
não era metade da razão pela qual meu pai tinha atacado o alfa. Não deixaria
isso de lado, pois só uma cadela como ela para orquestrar deliberadamente o
drama que terminara em assassinato.
Apesar da dor e fadiga, chamei por minha loba, e ela se levantou dentro
de mim como a deusa espiritual perfeita que era. Shadow Beast era nosso
deus, mais diabo do que anjo, e eu precisaria de sua força resiliente para
passar por isso.
A escuridão ia ser minha vocação, e eu permiti que ela me enchesse
para que eu pudesse ser melhor para este lobo.
Movendo a cabeça para a frente, bati contra ela na cara, derrubando seu
traseiro magro longe de mim. Segui com um chute de dois pés, que a atirou
para longe. Seu grito foi cortado por um baque pesado. Ela definitivamente
havia batido em algo forte. Meus olhos estavam abertos o suficiente nesse
momento para vê-la caída, imóvel.
E eu sabia exatamente onde estávamos: nas câmaras de tortura abaixo
da casa principal. Foi ali que minha mãe e eu ficamos quando papai atacou
Victor. Foi ali que fomos submetidos a "questionamentos" até que todos
ficaram satisfeitos, certos de que não tínhamos ideia do que meu pai estava
planejando. O que não fez muita diferença de qualquer maneira; ainda éramos
tratadas como leprosas.
Mas pelo menos eu sabia o caminho a seguir por ali daquela época.
Forro prateado?
Glendra tinha deixado a porta da minha cela aberta, e eu aproveitei para
dar o fora de lá. Correndo o melhor que pude, agradeci a onda de adrenalina,
sabendo que isso poderia me ajudar. Tomando as escadas o mais rápido
possível, lutei contra as náuseas e os giros de cabeça. Não havia tempo para
sucumbir aos ferimentos; eu tinha que ficar em segurança primeiro.
De baixo, ouvi o primeiro som de um uivo. Glendra estava chamando
os outros lobos. Eu esperava ser mais rápida que eles...
Quando cheguei ao primeiro andar, peguei o caminho menos percorrido
em direção a uma saída pela qual eu costumava escapar. Ele ia para o lado da
cozinha menor e, pelo que eu sabia, muito poucos tinham conhecimento
disso. A melhor parte dessa saída era a proximidade com a floresta.
Mais uivos se juntaram aos de Glendra, sons e cheiros de lobos por
todos os lados, mas mantive o foco e não olhei para trás. Por alguma razão,
não tinha morrido com o ataque de Jaxson, e não iria desperdiçar essa
segunda chance.
Quando saí pela porta dos fundos, que estava destrancada, os últimos
raios do luar me banharam, e minha loba uivou em meu peito. Era de manhã
cedo, véspera da lua cheia, e essa foi a melhor notícia que eu poderia ter
recebido. Não só por ter sido energizante para o meu lado animal, mas
também porque o resto do bando estava descansando para a mudança de
solstício no dia seguinte.
Isso me deu alguns minutos extras, o que às vezes era tudo de que um
metamorfo precisava.
Correndo pelo gramado gelado, ignorei a mordida afiada do ar em
minha pele nua. Minhas roupas estavam rasgadas e esfarrapadas, mas
felizmente eram as mesmas que eu estava usando ao ser atacada... quase uma
semana atrás. Se a lua fosse alguma indicação. Droga. Eu estava realmente
me recuperando por tanto tempo?
Uivos soaram de volta para a casa principal, seguidos pelo som distinto
de lobos mudando no ar da manhã. Peguei velocidade, meus pés mal tocaram
o chão enquanto minha loba permanecia mais perto da superfície do que eu já
tinha sentido antes, dando-me sua força, agilidade e sentidos.
Quando cheguei à floresta, a excitação dela aumentou. Nós gostamos
de estar cercados pela natureza assim, e ajudaria a ocultar nossa trilha. Eles
ainda rastreariam meu cheiro, é claro, mas ali havia maneiras de atrasá-los.
Esquivando-me, quase perdi o equilíbrio quando o ataque ocasional de
tontura me atingiu, mas me mantive firme tempo suficiente para chegar ao
grande riacho. Sem hesitação, eu me joguei na água.
Aah. Estava tão frio. O tipo de frio que parecia que eu tinha sido
atingida por um taser, chocando meu sistema neural. O tipo de frio que drena
sua vida e energia se você deixar.
Mas eu não estava pronta para morrer ainda.
Chutando forte, nadei até a superfície, ofegante por ar enquanto minha
cabeça emergia. Lobos, regra geral, não eram nadadores incríveis. A
densidade da nossa fera era uma magia que se transferia para nossa forma
humana, mas eu sempre amei.
Também adorava o fato de que mascarava meu cheiro, e muito poucos
lobos tinham a capacidade de me seguir no córrego. Empurrando através das
sensações entorpecentes nos meus membros, comecei a nadar, ficando abaixo
da superfície o máximo possível. Nenhum predador de verdade vivia nessas
águas frescas, então eu só tinha que ficar de olho nos destroços e no bando.
Em certo momento, as corredeiras me empurraram e eu levei alguns
segundos para relaxar e recuperar um pouco de energia. Logo à frente, havia
uma curva no declive, e foi aí que planejei sair do riacho.
Eu tinha claramente subestimado o quão ferida estava, porque, quando
tentei agarrar a borda, simplesmente não havia força suficiente em meus
punhos para me segurar contra a violência incessante da correnteza.
Minha luta não estava completamente perdida, mas, não importava o
quanto resistisse, eu continuava perdendo força.
Então meus dedos ficaram moles e a correnteza finalmente me arrancou da
borda.
Nove
Quando eu estava prestes a ser sugada para dentro da água escura, uma
mão se envolveu em torno de mim e me puxou para cima com força. O
metamorfo estava escondido atrás de algumas longas folhagens na beira do
riacho, posicionando-se com perfeição para me agarrar.
E eu estava completamente ferrada.
Se eu já não tinha energia para me tirar da água, pensar em lutar seria
uma perda de tempo. Mas que me ferrassem se eu deixasse o velho
metamorfo me pegar sem ao menos resistir.
Eu podia descansar quando estivesse morta.
— Eu sabia — uma voz familiar rosnou. — Você é tão previsível,
Sunny.
Recuei ao ouvir o nome. Um velho apelido que eu não ouvia desde que
meu pai morrera. Mera Callahan era meu nome de nascimento. Meu
sobrenome significava aquela pequena mente brilhante e quando nasci com
um cabelo ruivo, que lentamente se transformou em um tom ombré como o
pôr do sol, meu apelido tinha se tornado "Sunny".
Foda-se o Jaxson por se lembrar disso. E por que diabos ele estava
escolhendo aquele, dentre todos os momentos, para usá-lo novamente?
— Não me chame assim. — Soltei um silvo, tentando puxar minha
mão enquanto eu estava tremendo diante dele. — Você não tem o direito.
Com a luz da manhã, eu não podia ouvir nem cheirar outro lobo por
perto. Jaxson usou seu conhecimento sobre mim para seguir meu caminho,
mas ninguém além dele tinha o mesmo benefício. Talvez ainda houvesse uma
chance de escapar.
— Ninguém espera que um lobo vá para a água — continuou ele, o
tom de voz baixo como um ruído, a expressão escondida nas sombras
lançadas pelas árvores próximas. — Mas você sempre foi diferente. Sempre
se sobressaindo e fazendo alarde disso para chamar nossa atenção.
Cruzei os braços, porque o ar gelado contra as roupas molhadas fazia
meus mamilos se arrepiarem saudando o mundo, e eu odiaria que esse idiota
desleal pensasse que tinha algo a ver com ele.
— Não fiz nada para me destacar — respondi, minha voz estava tão
fria e morta quanto meu coração se sentia atualmente. — Sempre fiquei por
baixo, escondida do mundo, e esmagando meu brilho para não ofender todos
vocês. Você escolheu me manter por perto para torturar, perseguir, observar e
me tornar relevante. Eu teria amado apenas esquecer que você existe.
Ou, melhor ainda, se eles literalmente deixassem de existir.
Jaxson me libertou, e eu esfreguei o pulso, mesmo que não estivesse
particularmente doendo. Ele me circulou, como um caçador cheirando sua
presa, mas, independentemente de me matar ou não, eu estava perdida, era a
mais fraca.
— Por que estou viva? — perguntei sem rodeios. — Você rasgou
minha garganta.
De todos os metamorfos que já tentaram me matar, ele fora o mais
violento e o que provocara mais dor.
Fez uma pausa, a luz banhando suas feições, destacando a expressão
peculiar em seu rosto.
— Eu nunca te mataria, Sunny. — Ele suspirou, parecendo exausto de
repente. —Lace, uma metamorfo que era da cidade vizinha, sentiu seu cheiro
ao passar por lá. Nós já tínhamos colocado uma notificação sobre seu
desaparecimento, e ela nos ligou. Fiz questão de te machucar e fazer parecer
pior do que era para que ela não questionasse nossa força. Nós tínhamos que
ter você de volta aqui o mais rápido possível para se curar.
Lace era a vadia que me atacou.
Eu bufei.
— Se você queria que eu me curasse, então por que eu acordei esta
noite com Glendra na minha cela, garras no meu corpo, e sangue nos olhos
dela?
Seu rosto se transformou, escuridão unindo suas sobrancelhas enquanto
a raiva enchia seus olhos.
— Isso não era para acontecer! Ela está um pouco chateada por causa
do Torin. Ele está muito pior que você e ainda não acordou. O alfa está
tentando forçar a mudança para ajudar no processo de cura.
Minha expressão não mudou. Eles esperavam que eu me sentisse mal
por me defender? Melhor não segurar a respiração esperando que isso
acontecesse.
Dessa vez, quando ele me agarrou, doeu, e eu sem dúvida teria uma
mancha roxa lá no dia seguinte. Tanto faz. Eu não dei a mínima e, felizmente,
nosso tempo de compartilhar memórias inocentes já era.
A última coisa de que eu precisava era desenvolver sentimentos mais
amáveis em relação a qualquer um deles de novo.
Isso seria realmente a coisa mais estúpida que eu poderia imaginar
fazer.
Dez
— Uma vez que você mudar — Victor disse lentamente, seus olhos
cinzentos escuros me levando —, vou amarrá-la a Torma com o vínculo mais
forte que há entre um alfa e sua alcateia. Você vai me servir para o resto de
seus dias.
Todos estavam esperando por nós quando Jaxson me levou de volta
para as terras do bando. Meia dúzia de lobos, incluindo Torin e o pai de
Jaxson, Dean Heathcliffe.
Limpei a garganta.
— Deixe-me entender isso. Você me despreza por causa do meu pai,
fez vista grossa para o tormento que todo o bando me causou ao longo dos
anos, mas agora quer que eu... — Pigarreei antes de continuar. — E me
corrija se eu não estiver correta... Servi-lo? — Eu ri, selando meu destino. —
É melhor você estar dizendo que serei sua empregada, porque, se estiver
falando sobre sexo, prometo que não irá ser feliz com uma loba como eu em
sua cama.
A expressão de Victor se escureceu, sua pele pálida assumindo a cor
loiro-mel de seu lobo assim que ele deu um passo à frente.
— Você acha que é boa demais para foder com o alfa?
Ah, sim. Mil vezes sim, mas, como eu já tinha acabado com a paciência
dele aquele dia, decidi não dizer isso em voz alta. Victor também não gostou
do meu silêncio. Seu punho bateu na minha bochecha, derrubando-me do
degrau. A dor agonizante se arqueou através da minha mandíbula e abaixo da
espinha, a cabeça girando enquanto pontos dançavam em preto e branco
através da minha visão.
Victor se moveu por cima de mim, uma perna em cada lado do meu
tronco.
— Se eu decidir transar com você, cachorrinha mestiça — ele rosnou
—, há muito pouco que você possa fazer para me impedir.
Ele se afastou então, não sem antes dar um chute rápido na lateral do
meu corpo para pontuar o seu adeus.
— Coloquem-na de volta na cela e garantam que ninguém se aproxime
dela — ele rosnou para o filho antes de sair pela porta, arrastando Glendra
com ele.
Ela estava em apuros, mas eu estava muito ocupada tentando não
sucumbir a uma concussão para me preocupar com aquela vadia estúpida. Ela
tinha feito a cama, e agora iria ter que deitar nela com aquele saco de merda
que chamava de companheiro.
Jaxson me pegou primeiro, seu toque foi mais gentil do que eu esperava
quando ele me levantou.
— É a véspera da lua — disse ele em um sussurro. — A cura vai
começar em breve.
— Ugh — gemi, o primeiro som que tinha emitido desde que fora
atingida.
Eu estava muito orgulhosa de mim mesma por nem sequer
choramingar. Victor nunca teria essa satisfação, aquele bastardo doente.
E eu morreria antes de deixá-lo me tocar.
— Vamos levá-la lá para baixo — disse Torin, chegando ao lado de seu
melhor amigo. — Antes que papai volte e faça algo pior.
Talvez tenha sido o golpe na cabeça, mas isso soou um pouco como um
julgamento contra o pai dele. Nunca tinha ouvido Torin mostrar nada além de
um respeito que beirava a reverência ao saco ambulante de esperma que ele
chamava de pai. Interessante. Ou pelo menos teria sido em circunstâncias
normais. Agora eu só estava tentando não desmaiar.
Torin estendeu as mãos para Jaxson, como se ele fosse me levar, mas o
beta-em-treinamento balançou a cabeça.
— Eu a peguei. Vou garantir que fique segura na cela até a
transformação de hoje à noite.
Torin deu de ombros, seu interesse em mim já tinha diminuído,
especialmente quando Sisily colocou sua bunda estúpida na sala, parecendo
fresca e perfeita, apesar de ser tão cedo.
— Mantenha-a viva — Torin murmurou antes de ir embora, deixando-
me com Jaxson.
Eu não estava muito firme para caminhar, então não havia escolha a
não ser deixá-lo me carregar enquanto eu me esforçava muito para vomitar
nele. Outra vez.
Quando ele me colocou em minha cela original, a dor em minha cabeça
estava pior, então eu me encolhi no chão duro. Fechar os olhos ajudou, assim
eu me concentrava em inspirar e expirar regularmente, enquanto rezava para
desmaiar por algumas horas.
Um barulho fora da cela me despertou algum tempo depois, e eu
levemente levantei a cabeça para encontrar Jaxson esparramado contra a
parede em frente às grades, observando-me.
— Canalha — rosnei, estremecendo de dor por causa da pancada no
crânio.
Ele deu de ombros.
— Você não foi atacada em sua cela novamente, então talvez devesse
estar me agradecendo.
— Nem mesmo no meu leito de morte — respondi com toda a doçura
que pude arranjar.
Ele apenas sorriu, e fechei os olhos para bloquear seu rosto. Em algum
momento, cochilei, só para ser acordada novamente por uma voz furiosa.
Quando consegui abrir os olhos, fiquei em êxtase ao ver Dannie enfrentando
o Jaxson, pela primeira vez.
— O que aconteceu com ela? — ela rosnou.
Seu rosto estava virado e eu não conseguia ver, mas sabia a expressão
que ela usaria. Dannie irritada era assustadora.
— Ela insultou o alfa — Jaxson disparou de volta, ficando de pé, ele
mais alto, crescendo sobre ela. — Ela tem sorte de ainda estar viva.
Dannie zombou e Jaxson estreitou os olhos sobre ela.
— O que você está fazendo aqui embaixo? Ninguém deveria estar neste
andar.
Dannie inclinou a cabeça para trás, olhando diretamente nos olhos dele.
— Estou aqui para verificar minha amiga. Não confio em nenhum de
vocês para garantir a segurança dela, especialmente porque o alfa tem grande
prazer em punir aquela pobre garota por um evento que não teve nada a ver
com ela.
Esperei Jaxson discutir com ela, dizendo em detalhes como a traição do
meu pai tinha manchado o nome Callahan, e que todos nós deveríamos sofrer
por isso. Só que... ele não fez.
Seus olhos encontraram os meus por sobre a cabeça dela.
— Ela está acordada se quiser falar com ela — sua voz era sombria.
Dannie, sem dúvida, já sabia que eu estava acordada. Sustentou o olhar
em Jaxson mais um momento e depois girou, fazendo o seu caminho através
das barras.
— Ei, doce menina — disse ela com um sorriso suave, agachada ao
nível dos meus olhos. — Senti sua falta.
A culpa me atingiu em cheio.
— Sou uma idiota — eu me engasguei, forçando-me a levantar,
agradecendo que minha cabeça não estava latejando tão forte.
Dannie riu.
— Sim. Idiota total. Você tem sorte de não estar perto da Simone
quando fugiu pela primeira vez. A boca daquela garota...
Uma explosão de risos escapou de mim, seguida por um gemido,
enquanto a pancada reverberava, com sede de vingança, em minha cabeça.
Quando consegui me sentar, esfreguei a região dolorida, desesperada por
água para lavar o gosto seco da boca.
Uma garrafa deslizou pelo chão em minha direção, batendo na minha
coxa. Peguei e encontrei uma das misturas especiais da Dannie. Ela chamava
de bebida energética, fazia-a para mim quando eu estava para baixo, e,
mesmo que tivesse gosto de bunda, valia a pena pelos resultados.
— Pensei que você poderia precisar de um revigorante antes dessa
noite — disse ela suavemente, com os olhos correndo para onde Jaxson ainda
estava de pé, de braços cruzados, enquanto nos observava de perto.
Confiando nela, tirei o lacre da parte de cima e entornei todo o
conteúdo em um grande gole. O sabor de chicória era um pouco mais salgado
do que o habitual, mas, como sempre, eu apenas travei o nariz e bebi. Quase
que imediatamente, as batidas na minha cabeça aliviaram, e minha visão não
estava mais dobrada.
— Você é uma bruxa — eu brinquei, suspirando com o alívio.
Normalmente, Dannie ria comigo quando eu a chamava assim, mas,
dessa vez, ela apenas sorriu. Um sorriso lento e secreto, e não pela primeira
vez eu me perguntei o quanto realmente sabíamos sobre Dannie, a Viajante.
— Descanse, minha querida — acrescentou ela antes de se afastar. —
Irei vê-la para a transformação de hoje à noite.
Jaxson limpou a garganta.
— Transformações de solstício são exclusivas apenas para alfas e betas.
Dannie torceu o nariz para ele.
— Eu pedi sua opinião? Será que sequer olhei na direção de seu rosto
patético?
Jaxson parecia absolutamente afrontado por alguém lhe dirigir a
palavra assim, mas, antes que ele pudesse abrir a boca e responder, Dannie
iniciou.
— Você tinha tudo em suas mãos, filhote — ela disse baixinho —, e
jogou fora por puro orgulho e medo. Você perdeu o que poderia ter tido e,
quando nossa garota se tornar quem ela realmente é, vai destruir você. Eu,
por exemplo, mal posso esperar para ver isso.
Jaxson balbuciou algo, mas Dannie já estava balançando o rabo fora de
vista, nem se importando com o fato de que um metamorfo furioso estava
semitransformado atrás dela.
Eu tinha sorte de ter uma amiga que achava que eu era algo pelo que
valia a pena perder tempo, quando todos os outros na minha vida — exceto
Simone — tinham simplesmente me jogado fora.
Os olhos negros de Jaxson estavam presos em mim, sua mandíbula
dura e inflexível enquanto a energia e o cheiro de seu lobo preenchiam as
celas subterrâneas.
— Não perca o controle — eu disse sem rodeios. — Não dou a mínima
para o seu problema pessoal com a Dan. Controle suas merdas.
Ele tentou me matar com sua expressão, mas fechei os olhos e coloquei
a cabeça de volta para baixo, determinada a descansar e me curar antes da
mudança da lua cheia. Alguns lobos morriam durante sua primeira
transformação, corpos muito fracos para as almas que abrigavam.
De jeito nenhum eu daria a esses idiotas a satisfação de me ver
sucumbir ao lobo dessa forma. Nem pensar. Eles iam me ver mais forte do
que nunca e um dia, eu esperava que mais cedo ou mais tarde, não seriam
mais uma ameaça para mim.
Onze
Quando a noite chegou, a dor tinha dado lugar a uma energia que
vibrava sob minha pele como se eu tivesse enfiado a mão em uma tomada de
energia. Sempre senti a batida diferente de outro ser em minha alma — usual
para um metamorfo —, mas essa noite era diferente. Ela estava esticando as
pernas e empurrando contra as amarras invisíveis que nos tinham sido
impostas por anos.
Vinte de nós estavam lá, nus, a luz brilhante da lua derramando-se em
nossa pele. Eu estava na parte detrás, tentando desesperadamente não pensar
em quão vulnerável eu era frente a uma tonelada de lobos que me odiavam.
Felizmente, Dannie estava lá comigo, não nua, já que não estava se
transformando, mas foi bom ter uma amiga ao meu lado.
E, felizmente também, meus piores algozes — Jaxson e Torin —
estavam com seus pais. Talvez eu conseguisse passar por isso sem ter que me
associar a nenhum deles.
— Novos metamorfos — gritou o alfa. — Finalmente é hora de
permitir que suas feras se libertem e experimentem o poder que recebemos ao
nos tornarmos um membro puro-sangue do nosso grupo.
Dean se colocou de pé e, mesmo que ele fosse apenas o beta, sua
presença era tão imponente quanto a do alfa. Ele era alto e largo como seu
filho, com cabelos negros e olhos de um azul penetrante. Parecia muito
jovem para ter um filho na casa dos vinte anos, mas essa era a vantagem da
genética dos lobos.
— A lua está quase no seu auge — disse ele com sua voz baixa e cheia
de sotaque. Apesar de ter crescido ali, ele sempre manteve seu rs, estilo
europeu. — Muito em breve, vocês perderão o pensamento consciente e
permitirão que seu lobo finalmente seja livre. Não precisam temer essa
mudança, pois estaremos aqui o tempo todo, mantendo vocês e o resto do
nosso bando seguro.
Uau, que reconfortante. Para todos menos para mim. Eu nunca
esperaria voltar ali para minha primeira transformação, mas teria que dar o
meu melhor agora. Minha loba estava pronta para correr e nada do que eu
fizesse a impediria.
O ar estava congelando, mas eu estava longe de sentir frio. Meu sangue
fervia como o inferno quando inclinei a cabeça deixando o cabelo cair em
ondas soltas pelas costas. À medida que a energia crescia em minhas
vísceras, eu sentia um redemoinho quase insuportável de poder, parecia que
meu cabelo estava girando em torno do meu corpo também.
Quando a lua explodiu com a luz mais brilhante da noite, meus olhos se
fecharam involuntariamente contra o brilho, e meu espírito lobo se tornou
verdadeiramente visível para mim pela primeira vez. Um vermelho ardente
profundo o cobria, como uma aura, e, enquanto ele forçava em direção à
superfície, a barreira que o segurava caiu.
Seja livre. Corra.
Seu calor roçou meu rosto, como uma carícia, mas isso foi o início e o
fim de qualquer toque suave quando a mudança tomou conta de mim. Caindo
sobre as mãos e os joelhos, senti a dor estourar em todos os nervos, enquanto
minhas costas se arqueavam, meu corpo estava se alongando.
— Vou ajudá-la a superar isso...
Eu tinha perdido a maior parte do discurso do alfa, muito focada na
minha loba, mas, quando registrei essas palavras, quase ri em voz alta — a
única coisa que me impediu foi saber que, se abrisse a boca, eu
provavelmente gritaria de agonia. Eu sabia, com certeza, que aquele bastardo
morreria antes de aliviar a minha dor de qualquer forma.
O quebrar dos ossos ecoou através da clareira. Eu não era a única no
meio de uma dor debilitante e, quando meus dedos se quebraram levando-me
a ficar sobre os antebraços, comecei a rezar para que ninguém me atacasse
enquanto eu não tinha a menor chance de me defender.
Shadow Beast. Ajude-me a sobreviver a isso.
Sempre me pareceu divertido adorar uma entidade que era retratada
como uma figura sombria e assustadora vivendo nas sombras, mais animal do
que humano. Sem mencionar que ele literalmente tinha a palavra fera em seu
nome.
Era apenas um apelido, no entanto — ninguém sabia seu nome original.
Era um segredo de longa data, ou uma informação perdida no tempo, até que
eventualmente ele passou a ser conhecido apenas como Shadow Beast.
Aquele que o persegue à noite.
— Liberte seu lobo! — Dean gritou, e dessa vez houve gritos, já que
estávamos no extremo da mudança que nos colocara em um estado entre
humano e animal.
Virei a cabeça, mas Jaxson estava bem atrás de mim, não havia
absolutamente nenhuma maneira de eu escapar. Meu coração bateu forte
quando percebi mais do lobo desaparecendo, ao nos aproximarmos do alfa.
Ele estava de volta à forma humana, nu, esperando por nós. Mais lobos
estavam ali agora — muitos do bando se juntaram à corrida essa noite. Eu
não conseguia ver Dannie, mas esperava que ela estivesse lá fora em algum
lugar. Eu precisava de uma aliada.
Quando minha loba se juntou aos outros, um lobo cinza-escuro correu
para o lado do alfa e começou a mudar. Minha loba avançou em direção a ele
enquanto minhas entranhas irrompiam para a vida, faíscas disparando ao
longo de todos os meus sentidos. A intensidade quase me mandou para o
chão.
Não havia como parar minha fera enquanto ela corria para o lobo
cinzento.
O filho do alfa.
Nosso verdadeiro companheiro.
Doze
Torin ainda não tinha mudado para sua forma humana completa e,
quando a magia estava prestes a envolvê-lo, ele deve ter nos percebido. Os
verdadeiros companheiros só tinham que estar transformados e próximo um
do outro para que os lobos reconhecessem o vínculo com o companheiro.
Eu tinha perdido completamente o controle da minha fera agora,
enquanto corríamos mais rápido que o vento, nossas almas desesperadamente
procurando por aquele que nos faria completas. Aquele que corrigiria os erros
que esse bando nos concedera.
Se eu estivesse no meu juízo perfeito, teria ficado enojada com esse
sentimento. Eu não era do tipo que esperava por um cavaleiro de armadura
brilhante. De maneira nenhuma. Mas os lobos não pensavam como humanos,
e os laços entre companheiros eram sagrados e reverenciados... Valiosos.
Foi o lado humano que ferrou com a magia.
Victor parecia surpreso quando corremos em direção a ele, e eu vi sua
postura se ajustar enquanto ele se preparava para ser atacado. Ele pensou que
éramos como nosso pai, mas não poderia estar mais errado.
Quando parei ao lado dele e fui em direção ao seu filho ainda lobo, a
expressão no rosto do alfa era quase cômica. Torin, enquanto isso, estava na
defensiva, e essa foi a minha primeira indicação de que isso não seria bom.
Não era uma grande surpresa para mim, mesmo que minha loba tivesse
mais fé.
Minhas emoções estavam misturadas, fortemente inclinadas para
descrença, nojo e aborrecimento, mas também havia um fiapo de esperança.
Esperava que esse pudesse ser o momento em que tudo mudaria para mim
nesse bando.
Torin seria o futuro alfa. Ele controlaria todos os lobos e, se eu fosse
sua verdadeira companheira, eles teriam que aprender a me tolerar. Era
possível que os pecados do meu pai deixassem de pesar sobre meus ombros.
Ele se endireitou quando me aproximei, seu lobo era quase o dobro do
meu, de um cinza tão escuro que se aproximava do preto. Havia algumas
manchas de branco no olho direito e duas esbranquiçadas nas patas traseiras,
mas, fora isso, ele era uma fera da meia-noite.
Esperava que isso levasse muito tempo e que doesse pra caralho para
me transformar de volta, mas acabou em poucos segundos, e fiquei parada
para descobrir que todos os outros membros do bando de Torma
permaneciam no chão.
Completamente inconscientes.
Puta merda. O que diabos eu tinha feito?
Treze
Se não fosse pelos meus sentidos recém-melhorados, eu teria pensado
que eles estavam todos mortos. Estava tudo tão quieto, um silêncio estranho
era meu único companheiro enquanto eu caminhava para a frente. As terras
do bando quase nunca ficavam sem algum tipo de folia, fosse na forma
humana ou de lobo, mas, exceto pelo movimento lento dos peitos subindo e
descendo com as respirações, não havia outros sinais de vida.
Meus pés descalços, protegidos pela grama macia enquanto eu pisava
entre os lobos ao meu redor, com muito cuidado para não os perturbar. Tudo
o que eu conseguia pensar era que uma segunda oportunidade perfeita para
escapar tinha sido entregue a mim, e eu não iria desperdiçá-la dessa vez.
Tinha que quebrar esse vínculo com o bando de Torma.
Com Torin. Aquele maldito filho da mãe.
Agora que estava de volta à forma humana, eu queria que houvesse
tempo para esfaqueá-lo novamente, seguindo com uma rápida decapitação.
Não havia como voltar, mesmo para um metamorfo. Mas, por enquanto, eu
teria que me contentar em abandonar a piada de ter um verdadeiro
companheiro — e nunca olhar para trás.
A essa altura, a luz da manhã tinha realmente encontrado seu espaço, e
havia uma parte no sol que sugeria que esse seria um daqueles dias de
inverno "quentes". Geralmente, esses dias eram seguidos por um
congelamento intenso, e todos nós acordávamos cobertos de gelo e neve.
Não que eu fosse estar ali para ver. Minha bunda muito nua estava
dando o fora.
Minha loba chorava suavemente no meu peito, um som triste e
pesaroso. Ela tinha grandes esperanças naquele com quem compartilharia a
alma, e talvez, se o lobo de Torin estivesse no controle, tudo tivesse sido
diferente. Lobos eram honrados de maneiras que os humanos não eram.
Minha loba reclamou de novo, mas não tentou decretar sua vontade
sobre mim. Ela aceitou nosso destino. Muitas feridas existiam entre mim e
Torin para que fossem cicatrizadas, e eu morreria antes de permitir que ele
nos reivindicasse.
Ele não nos quer.
Eu não tinha certeza de quem pensava isso, mas era a porra da verdade,
e eu precisava desprezá-lo, garantir que não tinha uma espada em meu peito
dessa vez.
Corra!
O lobo me tirou da reflexão, e, mesmo que eu estivesse silenciosamente
me movendo pelo campo o mais rápido que podia sem fazer barulho, tinha
vencido um grande obstáculo no meu caminho: Torin.
Ele saíra das sombras... Meu companheiro.
Companheiro rejeitado, para ser mais precisa.
Torin não devia ter sido tão afetado como todos os outros pelo que eu
fiz, e viria direto para mim assim que pudesse. Falando nisso, os outros
pareciam estar se contorcendo agora também.
— O que você acha que está fazendo? — Torin indagou, sua voz era
baixa e ruidosa.
Um rosnado foi derramado dos meus lábios, mais animalesco do que eu
tinha sido capaz de fazer antes dessa noite.
— Estou indo embora — rosnei. — Para nunca mais voltar. Você
deveria estar grato.
Foi a vez de Torin rosnar e, infelizmente, soou muito mais
impressionante. Ele se colocou alguns passos mais perto, os músculos de seus
braços e peito tensos. Como estava nu, foi fácil ver seu pau começar a
endurecer, como se estivesse reagindo a mim, apesar de rejeitar o nosso
vínculo.
Girando, eu saí na direção oposta e consegui uma distância decente
antes que ele me atacasse. Nós lutamos, e não do jeito divertido, mas sim nus.
Não, para mim isso era sobre sobrevivência, e mais uma vez fui frustrada
pela força física superior de um metamorfo masculino.
Se eu sobrevivesse a tudo isso, precisaria desenvolver algumas
habilidades de luta que aumentassem as minhas chances em uma batalha.
Torin me puxou, com as mãos ao redor dos meus bíceps enquanto me
segurava no lugar.
— Você não faz nada sem a minha permissão — ele resmungou. — Eu.
Possuo. Você.
Dei uma joelhada em suas bolas e, fosse como fosse a ereção em seu
pau, já teria ido embora quando ele resgatasse os testículos da garganta. Os
metamorfos eram duros, mas eu não tinha poupado nenhum poder naquele
golpe, e isso foi o suficiente para derrubá-lo, apalpando-se com as mãos.
— Você está morto para mim — eu disse calmamente, não estava
disposta a gastar mais emoção com ele. — Não mostre seu rosto diante de
mim novamente, ou, da próxima vez que eu enfiar um objeto em seu coração,
será algo que o mate.
Ele se atirou em mim de novo, mas eu já estava me movendo, correndo
pelo campo.
— Parem-na! — Victor gritou, um estrondo em seu tom, assim que se
viu completamente acordado novamente.
Eu não olhei para trás, empurrando-me através da exaustão. As pegadas
soavam atrás de mim, mais perto do que eu gostaria, e peguei meu ritmo,
quase completamente aproveitado em energia.
— Sunny — Jaxson assoviou.
Filho da puta.
De alguma forma, encontrei uma pequena reserva de força e passei a
correr ainda mais rápido. Jaxson soltou um palavrão murmurado, o ar
fazendo o menor barulho possível quando ele mergulhou na minha frente
para me atacar. Eu estava esperando por isso — Jaxson e Torin eram tão
semelhantes em seu modo de agir — e, como previ a direção de seu ataque,
eu o afastei.
Minha passada era firme e forte, apesar da fadiga, e eu não perdi
nenhum segundo no movimento de desvio. Se ser um metamorfo não viesse
com toda essa besteira, eu pensaria que foi a melhor coisa que já tinha
acontecido comigo.
— Mera! — esse chamado era de Torin, e eu estava praticamente
recebendo chicotadas dele.
Por que alguém que rejeitou sua companheira seria tão inflexível a
ponto de tirar o seu direito de ir e vir?
Não houve tempo para pensar nisso, porque o alfa deve ter decidido
que bastava e, como estava determinado a estreitar meus laços com o seu
bando, meus pés finalmente perderam um passo e eu caí. Filho da puta. Eu
tinha me esquecido do controle alfa e, mesmo que fosse fraco para mim, foi o
suficiente para me desequilibrar.
Enquanto eu me empurrava para cima, um punho pesado bateu em
minha têmpora, e tudo ficou confuso, cinza ao redor das bordas. Os
metamorfos possuem um soco e tanto, e, embora eu não tivesse ideia de
quem havia me batido, o golpe definitivamente me tirou a realidade.
Ele ofereceu a mão e eu olhei para ela antes de estender a minha para
segurá-la.
— É um gesto muito humano — notei.
Ele sorriu, atraindo meu olhar para a estrutura incomum de sua face.
Seus olhos eram enormes, ocupando metade do rosto, as íris e pupilas eram
um breu preto sem uma pinta de branco. Tinha cerca de noventa centímetros
de altura, a pele enrugada, retorcida como uma velha raiz de árvore, e ele não
tinha um fio de cabelo sobre si que eu pudesse ver. Eu queria estudá-lo mais
perto, mas me senti rude, então mantive o foco em seu rosto.
— Estudei todas as culturas. Como porteiro aqui, é meu trabalho guiar
todos que pisam nesses corredores.
Ele se curvou e, quando se levantou, finalmente notei que tinha a altura
perfeita para ver bem embaixo da minha camisa. Não que ele tivesse tentado
olhar, mas mesmo assim...
— Por acaso você sabe se há algum lugar para conseguir uma roupa de
reposição? — Gesticulei para a extensão da minha perna nua sob a camisa
rasgada. — Estou ficando sem tecido.
O rostinho de Gaster se iluminou; ele parecia completamente animado
com a perspectiva de ter uma tarefa.
— Sim! Temos um local que pode lhe dar mercadorias em troca de
daems.
Eu pisquei para ele.
— Daem?
Soou como um que merda, e eu nunca tinha ouvido falar desse tipo de
moeda antes.
— É a moeda do Shadow Beast — ele sussurrou. — Mas ele me deu
permissão para liberar uma entrada inicial sem pagamento. Disse que você
futuramente vai compensar isso na biblioteca.
Fiquei completamente chocada ao saber que ele ainda não tinha
planejado a minha morte. Talvez ainda estivesse indeciso. De qualquer
forma, eu estava ali mais uma vez para viver outro dia, e isso era tudo que eu
poderia pedir desse show de horror de que eu chamava de vida.
— Você alcança as terras deles por ali — disse Gaster, apontando uma
porta mais abaixo da biblioteca.
Isso era incrivelmente difícil de entender e compreender, mas, talvez
porque eu estivesse dentro dessas paredes cheias de tanto conhecimento, nada
disso parecia me sobrecarregar.
Gaster continuou apontando seres animalescos, semelhantes a um
centauro que fundia humanos e animais. Cavalos, cabras, panteras e híbridos
de pássaros estavam na biblioteca, mas me foi assegurado que na terra de
Brolder havia muitos, muitos outros.
— Há algum ser que é dragão? — perguntei seriamente, ainda meio
existindo em uma ressaca épica do livro da minha última leitura de
metamorfo.
Gaster não perdeu o compasso com minha pergunta aleatória.
— Não dragões como os retratados na Terra, mas temos grandes feras
que vagam pelos mundos.
Grandes feras? Quero dizer, se houvesse algo maior do que o Shadow
Beast lá fora, isso seria uma imagem seriamente assustadora de se ver. Mas
eu estava ali para isso.
Gaster continuou sua jornada através da biblioteca, apresentando-me a
muitas das fadas, incluindo pixies, banshees, sidhe, trolls e ghouls.
— Em Faerie, há centenas de outros — disse ele. — Levaria semanas
para listar todos.
— O Universo é muito maior do que eu esperava. — Respirei,
sentindo-me insignificante e emocionada pelas descobertas do dia.
— Esta é apenas um pequeno pedaço de uma peça maior — disse
Gaster, seu sorriso ainda firmemente no lugar. — Mas hoje não há
necessidade de se preocupar com essa nova vida que você descobriu. Vamos
primeiro encontrar-lhe alguns confortos humanos.
Acenei com a cabeça, seguindo-o assim que ele pegou o ritmo. Suas
pernas podiam ter metade do tamanho das minhas, mas o cara se movia como
um velocista olímpico. Eu comentei sobre isso, brincando como se estivesse
sem fôlego.
— Somos fortes e rápidos — disse ele, olhando-me como se estivesse
seriamente preocupado com a minha saúde. — Não tente acompanhar. Os
duendes são capazes de se moverem em alta velocidade em longas distâncias,
e é melhor lembrar que meus ativos são seus para usar quando você precisar
de apoio em qualquer coisa que estiver fazendo.
Inclinei a cabeça, mais uma vez confusa pela forma como estava sendo
tratada para me sentir "em casa" ali.
— Shadow sabe que você está cuidando de mim assim? — perguntei.
Gaster acenou com a cabeça.
— Oh, sim. Ele sabe. Não se preocupe. Isso tudo estava planejado.
Maravilhoso. Eu me senti muito melhor em fazer parte do plano de
Shadow... Só que não.
Gaster continuou em sua missão, e eu fiquei por perto, tentando ignorar
os vários olhares curiosos ao redor da sala. Provavelmente era olhada com
desprezo por todas as novas terras e seus habitantes na biblioteca, mesmo
assim muitos deles pareciam estar bem interessados em mim. Eu me
perguntava se isso se devia à presença de Inky, que continuava na minha
cola. Ou "metamorfo" seria uma nova raça a cruzar o caminho deles?
Quando chegamos ao início da biblioteca com seu próprio portal
cintilante conectado ao longo salão branco, Gaster parou.
— Este é o quarto da necessidade — disse ele, gesticulando para uma
porta branca simples.
Deu um passo à frente e bateu duas vezes antes que ela se abrisse.
— Seis daems — uma voz desencarnada, quase robótica, ecoou.
Gaster tirou algumas pepitas de ouro cintilantes do bolso minúsculo.
— Certifique-se de obter tudo de que precisa enquanto estiver lá dentro
— ele me disse antes que o duende surpreendentemente forte me empurrasse
para uma sala branca completamente vazia, as moedas tilintando atrás de
mim, desaparecendo no chão perfeito e brilhante. — Espere! — gritei
enquanto a porta batia na minha cara.
— Por favor, fique parada — disse a voz, distraindo-me.
Congelei como se uma explosão de ar gelado jorrasse sobre mim,
arrastando-se pelo meu corpo antes de desaparecer com a mesma rapidez.
— Você precisa de um guarda-roupas completo, produtos de higiene
pessoal e outros itens essenciais.
Mas não, em vez disso, ele estava me mantendo refém para que
pudéssemos caçar criaturas das sombras juntos.
Não fazia sentido. Havia mais coisas acontecendo ali de que eu não
estava ciente, e de jeito nenhum eu estava baixando a guarda para aquele
psicopata com aparência de um anjo caído.
Quando muito eu só iria me dobrar para descobrir a fraqueza dele.
Todo mundo tinha uma, e, quando eu descobrisse a de Shadow, iria usá-la
para desintegrar seu mundo começando pela base. Pó. Átomos.
Microrganismos.
Eu seria o prenúncio da morte para os olhos de fogo, com mandíbula
quadrada cortada e conjunto de cachos.
Então eu iria gargalhar até a minha liberdade.
Estalando tudo até meus pés, sentindo-me um pouco melhor com meu
novo plano de jogo, olhei em volta, para minha prisão. Verdade seja dita,
prisão era um pouco de exagero; era um quarto grande com uma cama de
aparência bem decente em um extremo. Dez vezes melhor do que o quarto de
merda que eu tinha em casa.
Abrindo o antigo armário com detalhes em ouro e prata embutidos
delineando o topo curvo, eu pisquei para a quantidade e variedade de roupas
dentro. Passando o olho através delas, notei claramente que tudo lá dentro era
do meu tamanho e estilo. Jeans, shorts, tops e alguns suéteres confortáveis. A
Sala de Necessidade fez mais do que apenas fornecer; ela parecia ler mentes e
memórias para ter certeza de que tudo era como você escolheria para si
mesma.
Superassustador. Mas útil.
E, agora, útil era tudo que eu poderia pedir.
Havia um banheiro pequeno anexo ao quarto, e nas gavetas encontrei
artigos de higiene e maquiagem. Marcas de alto nível da Terra, do tipo em
que eu babaria vendo em revistas mas nunca teria sido capaz de pagar por
conta própria.
As vantagens seriam incríveis se não viessem com um carcereiro
megalomaníaco.
Desde que Shadow havia feito sua saída dramática habitual, decidi
tomar um banho rápido e me limpar. Arrancando a camisa esfarrapada,
suspirei com a água quente batendo contra meus músculos tensos, e por um
momento me permiti desmoronar.
Só por um momento.
Meu ombro bateu contra os ladrilhos quando minha cabeça caiu para a
frente e eu apertei as mãos firmemente. Eu posso fazer isso. Eu posso
sobreviver a isso. Depois de Torma, posso sobreviver a qualquer coisa.
Das cinzas, a fênix se erguerá.
Um mantra era tudo de que uma garota precisava para sobreviver à
vida. Certo?
Uma vez que estava limpa, vestindo uma calcinha com zero buracos —
whaattt? —, jeans e uma camisa branca simples, eu me senti pronta para
descobrir meu lugar nesse mundo estranho. Meus tênis novos eram
silenciosos enquanto eu ia em direção à porta, minha mão se acomodando na
velha maçaneta preta, esperando que estivesse trancada quando eu tentasse
abrir. Porém estava aberta, e eu saí para encontrar Inky girando lá fora, como
a versão assustadora de Gasparzinho.
— Uau, fantástico encontrá-lo aqui — eu disse com falso entusiasmo.
— Senti sua falta na hora em que estávamos separados, Inky. Nunca mais me
deixe.
Ele rodou mais alto, deslizando em torno de minhas roupas novas,
como se estivesse tentando descobrir o que eu estava vestindo.
— É assim que eu normalmente pareço quando não estou seminua —
eu disse com um sorriso.
A sombra negra inchou para dobrar seu tamanho e parecia quase... se
sacudir. Eu ia chamar isso de seu movimento risonho, porque qualquer outra
coisa era muito aterrorizante para contemplar.
Quanto maior ficava, mais definição eu podia ver dentro do que eu
pensava anteriormente como apenas redemoinhos de fumaça sombria. Parecia
um cérebro enorme, com pulsos elétricos disparando entre sinapses. Cérebros
humanos não eram minha especialidade nem nada, mas isso me fez pensar se
Inky era muito mais consciente do que eu pensava originalmente.
Não havia como ser apenas um desdobramento do Shadow Beast...
Inky era definitivamente sua própria marca especial de criatura sobrenatural.
— O que você é? — perguntei, minha curiosidade fazia as palavras
pipocarem de mim. — Você não é como nada que eu já vi antes.
Porra, nem sei por que fiz o movimento seguinte, mas às vezes meu
cérebro é lento. Não há outra explicação para o motivo de eu ter tocado
voluntariamente a fumaça negra. Enquanto a ponta dos meus dedos deslizava
pela escuridão, um frio gelado dominou meu braço antes de eu ser derrubada
de volta sobre a bunda como se alguém tivesse me chutado do outro lado da
sala.
— Merda! — Engasguei, tentando sacudir o frio para fora enquanto
desajeitadamente me levantava. — Eu verdadeiramente não esperava isso.
Inky tinha me tocado antes, mas, aparentemente, essa não era uma via
de mão dupla. Ou talvez tenha sido apenas o primeiro e único aviso para que
eu não me aventurasse onde não era chamada.
Ele se encolheu ficando bem menor, mas definitivamente ainda estava
balançando. Bastardo presunçoso, como Shadow.
Decidindo que tinha desperdiçado tempo suficiente procrastinando,
passei pela entidade de fumaça e entrei na Biblioteca do Conhecimento.
Quando atravessei o véu, um duende estava me esperando do outro lado.
— Gah. — Pulei para trás, quase caindo no covil de Shadow
novamente. — Não fique tão perto, Gaster.
Ele se curvou para me reverenciar.
— Minhas desculpas, senhorita Mera. Eu estive esperando por seu
retorno para que possa continuar a turnê e descrever suas funções.
Parecia que eu estava prestes a ser introduzida ao meu primeiro dia de
trabalho, mas, se isso me levaria a mais conhecimento e uma chance de
encontrar uma maneira de me separar do rei de todas as divindades, então eu
pegaria o que quer que ele jogasse em mim. Se essa biblioteca tivesse o
conhecimento do mundo... tinha que haver algo ali que definisse as fraquezas
do Bastardo do Shadow.
— Lidere o caminho! — eu disse com entusiasmo.
Gaster piscou para mim, aqueles olhos estranhos capturando minha
atenção assim que um brilho verde cobriu o preto, antes de desaparecer.
— Finalmente alguém tão animado quanto eu para aprender — disse
ele, e eu me perguntei se aquele flash de verde era sua felicidade brilhando.
— Totalmente. — Eu me animei por dentro, pronta para conquistar
esse duende e ter um aliado poderoso para questões futuras.
Talvez ele não fosse poderoso no sentido físico, mas alguém que tinha
o papel de "porteiro da Biblioteca do Conhecimento" tinha que ser um amigo
útil para se ter.
Verdade seja dita, eu meio que gostei dele. Pessoas com seu nível de
entusiasmo e excitação infantil pela vida eram poucas e distantes no meu
mundo. Os metamorfos sabiam ser sarcásticos e gostavam de bancar os
fodões; até nossos filhotes eram merdinhas atrevidos.
Quando voltamos pelas muitas estantes, notei que a multidão de seres
que eu tinha visto antes se havia ido, e em seu lugar outros percorriam as
prateleiras, empilhando livros nos braços e saindo novamente pela porta de
seu mundo.
— Então nenhum desses seres dos mundos trabalha aqui? —
perguntei.
Gaster voltou para olhar para mim, aquele sorriso ainda no lugar.
— Ninguém realmente trabalha aqui, mas há algumas dúzias de nós
que mantêm isso aqui funcionando. A Biblioteca do Conhecimento é uma
entidade poderosa e, se cair em mãos erradas... — Pela primeira vez,
enquanto me explicava algo, ele não sorriu.
— Para onde vão todas as prateleiras quando vocês fecham este lugar à
noite? — perguntei, pensando na minha primeira viagem feita com esses
corredores vazios.
Ele me ofereceu uma espécie de olhar em branco.
— Elas não vão a lugar nenhum. As prateleiras permanecem como
estão agora. Nada mudou no Sistema Solaris e na Biblioteca do
Conhecimento desde que comecei aqui há mil anos.
Ignorando o fato de que Gaster tinha pelo menos mil anos, eu me
concentrei no resto do que ele disse.
— Isso não pode estar certo — murmurei. — Quando andei por este
prédio com Shadow, ontem, ou seja lá quando, este salão estava vazio. Tudo
o que eu podia ver eram janelas e portas, mas sem prateleiras ou livros em
tudo.
Gaster levou um segundo para responder, como se estivesse
organizando os pensamentos.
— O mestre devia estar decidindo seu destino — ele finalmente disse,
com a voz mais baixa e menos animada do que o habitual. — Até que isso
fosse decidido, você não poderia acessar todo o dom do conhecimento que
está contido aqui.
Ohh. Certo.
— Shadow provavelmente estava planejando me matar naquele
momento — eu disse. — Então faz sentido.
Gaster jogou as duas mãos para cima, parecendo em pânico.
— Oh, não, eu tenho certeza de que ele não estava. Ele é apenas
cauteloso com estranhos. — Sim, foi só isso.
Estávamos no centro da biblioteca agora, cercados por um monte de
mesas e cadeiras além de alguns pufes gigantes e macios que pareciam
superconvidativos. Infelizmente, não houve tempo para eu mergulhar nas
profundezas deles com um grande livro, porque eu estava no "trabalho".
— É estranho ser a única trabalhando aqui que não é um ser místico —
eu disse.
Gaster acenou com a cabeça.
— Eu sei, mas você não vai se sentir sozinha. Como eu disse, muitos
outros estão sempre aqui para reunir conhecimento. É a maior honra ser
escolhido para examinar a biblioteca.
— Exatamente quantos mundos existem neste Sistema Solaris?
Ele tinha mencionado alguns, é claro, mas minha necessidade de mais
conhecimento aumentava a cada hora que eu permanecia ali. As portas
anônimas me chamavam, exigindo que eu aprendesse sobre elas.
Seus olhos se abriram, esferas negras brilhando pelas luzes cintilantes
acima de nós.
— Oh, você merece um tratamento real. Siga-me.
Foi o que fiz.
Vinte e um
Ele andou tão rápido que teve sorte de eu ser uma metamorfo e capaz
de acompanhar suas pernas curtas e poderosas. Levou-me até o ponto mais
distante da sala, para o véu que escondia o corredor branco da vista.
— Aqui é a diretoria! — Gaster cantarolou.
Eu olhei em volta confusa, tentando descobrir o que ele estava falando.
"Diretoria?"
Ele gesticulava para o véu cintilante.
— Quando não está agindo como um sistema de alerta rápido para
proteger a biblioteca, ele pode ser usado para navegar no Sistema Solaris.
Oh, sim. Essa era uma excelente notícia.
Gaster colocou a mão em um pequeno painel, que fora deslocado até o
véu, e, como era tão branco quanto as paredes, eu realmente não o tinha
notado até que o duende tocou nele.
— Coloque sua mão aqui — explicou ele — e diga “revele”.
No momento em que a palavra deixou seus lábios, o véu cintilante
solidificou-se, transformando-se em um mapa de dois metros e meio de
altura. Um mapa muito detalhado...
Gaster deslizou a tela, ampliando em uma seção específica.
Um mapa muito detalhado e interativo. Muito foda!
— É aqui que estamos, e daqui você pode encontrar todo o resto — ele
foi interrompido por alguém gritando seu nome, uma figura minúscula
correndo em nossa direção.
— Um livro está faltando — disse ela.
Era claramente outro duende, parecendo sem dúvida mais feminino do
que Gaster, com seus cabelos dourados na altura dos ombros e cílios escuros
espessos.
— Essa é Lady Hel — ele me disse. — Ela é uma realeza do mundo
das fadas e me ajuda aqui como parte do rito de passagem para seu papel
final.
Eu acenei com a cabeça como se soubesse do que ele estava falando.
Lady Hel nem olhou para mim, já correndo de volta para a tragédia de um
livro desaparecido.
Deslizando pelo gelo depois dele, Shadow, que estava muito à minha
frente, estava felizmente abrindo caminho através dos animais mortos
deixados espalhados pela criatura. O sangue permanecia, pintando o gelo em
uma arte grotesca de faixas vermelhas e pretas. Ficou claro que parte desse
sangue já tinha muitos dias, enquanto outras eram respingos vermelhos
frescos da morte.
Minhas botas passaram através daquilo, e eu sabia que tinha que pegar
o ritmo para chegar ao lado de Shadow. Ficou mais difícil manter o equilíbrio
à medida que o sangue ficava mais espesso e gelado em algumas partes,
transformando tudo no equivalente a um grande cubo de gelo negro.
— Segure a onda aí, cara — eu o chamei, quase caindo sobre a carcaça
de um urso negro. — Se vai precisar da minha ajuda, terá que esperar por
mim.
Shadow não se virou, mas o abervoq sim, parando o que estava
fazendo, para olhar diretamente para a minha alma.
Nosso momento foi quebrado quando ele rugiu, saltando por cima de
Shadow para pousar bem diante de mim. O gelo rachou sob seu peso de
mamute e eu tentei recuar, aterrissando a bunda no gelo encharcado de
sangue.
— Que merda foi isso? — berrei. — Você é assustador como o inferno,
abervoq.
Ele rugiu novamente, não gostando do meu julgamento rápido sobre o
quão horripilante ele era.
— Sem ofensa — adicionei em pânico.
Ele fez uma pausa, inclinando a cabeça para o lado, como se estivesse
tentando decidir o que eu era e qual era o gosto do meu sangue. Não esperei
por essa conclusão, chutando e me conectando ao seu corpo peludo. Não
fazia ideia do que esperar quando aterrissasse. Essa coisa teria substância ou
seria como aquelas sombras que eu tinha tocado pela primeira vez em
Torma?
Meu chute o acertou em cheio, e o abervoq deslizou para longe.
Pulando para ficar de pé, eu fiz a pior coisa possível escorregando em
um pouco de sangue fresco, deslizando através do gelo, e involuntariamente
batendo na criatura-sombra. Por instinto, estendi a mão, envolvendo os
braços em torno dele.
Eu estava realmente dando-lhe um abraço de urso agora?
— Segure-o por um momento — Shadow gritou, rapidamente se
aproximando de nós.
O abervoq inclinou a cabeça para trás e rugiu antes de tentar me sacudir
como se eu fosse água caindo sobre sua pele preta.
— Sem problema. — Eu me engasguei, segurando a vida agora. —
Sem pressa.
Enquanto isso, eu estava xingando-o por dentro. Como eu fora parar
nessa situação? E eu viveria o suficiente para salvar a Terra aquele dia?
Vinte e quatro
Em algum momento, o abervoq deve ter percebido que eu não era uma
de suas presas habituais e que, em vez de correr com medo, eu estava
literalmente pendurada como um coala bebê. Ele cheirava estranhamente
quando enterrei a cabeça em sua pele grossa, era como fumaça, poeira e um
cheiro terroso que eu não conhecia.
Não o deixei escapar apesar do meu medo, e talvez tivesse apenas sorte
por estar em uma posição que me mantinha a salvo de suas garras. Ele
parecia preocupado com a possibilidade de cortar o próprio peito, e assim
seus golpes foram suavizados, deixando-nos nessa estranha dança da morte.
Só haveria um vencedor naquele dia e eu estava determinada a sê-lo.
De jeito nenhum sobrevivera a tudo o que eu tinha passado na minha vida
apenas para ser eliminada por uma criatura que nem deveria existir na Terra.
Quando ele rugiu pela décima quinta vez em tantos segundos, minha
loba começou a uivar, e eu também — o chamado do meu povo tocando o
céu escuro acima de nós.
O abervoq parou de se mover, permanecendo de uma forma nada
natural, e, assim como eu, estava tentando descobrir a próxima coisa horrível
que tinha planejado para mim, até que uma de suas garras veio para cima e
acariciou a parte detrás da minha cabeça. Foi um carinho gentil, quase
amoroso, e eu, tensa, esperando a lâmina afiada entrar.
Como tinha acontecido com as centenas de animais mortos que
atualmente nos cercavam. Quero dizer, não havia realmente nada de fofo
sobre esta criatura e, ainda assim, agora, ele estava... me abraçando.
Levantei a cabeça, finalmente corajosa o suficiente para ver seu rosto,
mas tivemos apenas um segundo para trocarmos olhares antes de Shadow
chegar e arrancar o abervoq de mim. Eu voei também, pousando em uma
pilha de cadáveres fedorentos. O ambiente congelado tinha alterado um
pouco o cheiro da morte, mas nadar entre corpos como esses enviou um odor
pútrido de decadência e excremento a minhas narinas. Perto de vomitar meu
jantar, eu me afastei dos cadáveres, tentando segurar a respiração.
— Não posso entrar neste reino sem a sua ajuda, posso? — perguntei,
descobrindo a resposta quando ele me colocou de pé.
Sua expressão estava fechada novamente, e qualquer humor que havia
existido em seu olhar antes desapareceu.
— Continue fazendo as perguntas certas...
Ele se virou e foi embora, indo na direção em que Inky e a criatura-
sombra esperavam por ele.
— Raio de Sol e Shadow soa como o nome de um casal bonito! —
gritei atrás dele. — Devemos optar por “Raio de Shadow” ou “Soldow” para
abreviar? — Vi os olhos flamejantes antes que ele desaparecesse de vista,
levando a criatura com ele.
Vinte e cinco
Depois de nossas aventuras congelantes, Shadow desapareceu, e passei
os dias seguintes vasculhando a biblioteca, estudando o painel e varrendo os
malditos andares. Gaster ainda era um rosto familiar, prestativo e sorridente,
quase parecia que estávamos nos tornando verdadeiros amigos. Ele até
começou a almoçar comigo ocasionalmente.
Agora estava ocupado com um novo desastre. Alguém de Brolder tinha
cedido a seus instintos animais, e, quando a fêmea não tinha retribuído, houve
uma pequena briga. Aparentemente, em Brolder, a regra é tocar primeiro,
pedir permissão depois, mas eles eram encorajados a lutar se não estivessem
interessados. Devagar, eu estava aprendendo as regras, e essa foi uma que vi
de perto e pessoalmente nesse dia.
O macho metade cavalo e metade fêmea de urso acabou destruindo
cerca de três fileiras de livros, e agora os duendes estavam freneticamente
devolvendo seu lugar sagrado à ordem, supervisionados por Gaster.
O que me deixou almoçando sozinha.
— Por que você varre?
Levantei a cabeça para ver a garota com cara de anjo que ainda sentava
alguns lugares longe de mim. Depois de uma rápida olhada para ter certeza de
que ela estava falando comigo — mesmo que eu fosse a única varrendo uma
biblioteca autolimpante —, eu finalmente respondi.
— Por ordem do Imbecil do Shadow; quero dizer fera. Shadow Beast.
Seus lábios se contorceram enquanto ela brincava com sua comida. Eu
nunca a tinha visto dar uma mordida de verdade apesar do fato de que nos
sentávamos uma próximo à outra quase todos os dias. Eu também nunca a
tinha visto na biblioteca em si. Ela só aparecia no refeitório e nem sequer
comia.
— Ele está tentando dobrar você.
Eu bufei antes de voltar a comer o delicioso bolo de chocolate na minha
frente.
— Ele não tem ideia do que seria preciso para me dobrar.
Seu olhar ainda estava em mim, o peso de seu intenso poder era de
alguma forma um pouco familiar agora. E parecia um grande avanço que ela
tivesse tido tempo para falar comigo. Mesmo que tivessem sido apenas duas
frases.
Nos dias seguintes, ela não apareceu para almoçar, mas ainda estava na
minha cabeça. O enigma que era a cara de anjo. Talvez, da próxima vez que
ela falasse comigo, eu lhe fizesse algumas perguntas também.
— O mestre pediu que você se juntasse a ele para jantar hoje à noite —
disse Gaster, sorrindo para mim enquanto eu limpava entre uma fileira de
livros.
Pelo menos eu estava limpando, até essa declaração, e então a vassoura
tombou em direção ao chão.
Inky, meu companheiro constante, pegou-a antes que ela caísse no
chão.
— Obrigada, cara — eu disse com um sorriso, e Inky inchou para o seu
tamanho maior, balançando enquanto crescia.
Eu estava passando muito tempo de qualidade com uma bolha de
fumaça ultimamente e estava começando a pensar em Inky como um amigo.
Algo que estava em falta ali.
Eu me virei e forcei um sorriso no rosto.
— Por que ele quer que eu vá jantar? — perguntei ao Gaster.
Ele pareceu surpreso.
— Mera, é uma grande honra jantar com o mestre. Você deveria estar
animada.
Balancei a cabeça.
— E mesmo assim não estou. Posso responder que estou doente? É
aquela época do mês, sabe?
Em conversa de metamorfo, aquela época do mês pode significar um
turno de lua cheia ou eu estava prestes a derramar o revestimento do meu
útero. Qualquer um serviria se isso me tirasse do jantar com Shadow.
Inky se sacudiu, rindo, e eu estreitei os olhos.
— Você não ajuda, amigo. Você adora aquela bola de fogo crescida.
Pela primeira vez, eu gostaria de um aliado no meu lado.
Gaster e Inky continuaram a olhar para mim como se não pudessem,
nem por um decreto, entender por que eu não estava no Time Shadow.
Lutando contra a vontade de bater a mão na testa, eu me virei e saí em
direção ao meu quarto. Entrando no covil da Fera, um sentimento de calma
desceu sobre mim. Havia algo genuinamente reconfortante sobre a biblioteca
de madeira escura, com seu fogo sempre em chamas, infinidade de livros, e
decoração masculina mas não opressora. Como a presença de Shadow era
escassa, eu estava começando a imaginar aquele lugar como meu. Continuava
a pesquisar maneiras de matar o Shadow Beast para que eu pudesse ficar com
o seu covil.
O que posso dizer? Os metamorfos eram possessivos em relação a
qualquer coisa que considerassem deles, e essa biblioteca tinha facilmente
entrado nessa categoria.
Pela primeira vez em dias, o rosto de Torin passou pela minha mente, e
minha loba soltou um grito do profundo da alma, o que fez meus olhos
queimarem. Lobos eram geralmente mais possessivos em relação aos
verdadeiros companheiros, mas Torin e eu estávamos condenados desde o
início.
Pelo menos ficar ocupada ajudou a manter aquele idiota fora da minha
mente e a aliviar as rachaduras na minha alma criadas pela sua rejeição. Parte
de mim ansiava por vê-lo uma última vez — para encerrar ou talvez apenas
por curiosidade. Torin estava enraizado em minha energia, minha alma, e
eliminar esse vínculo ia levar muito tempo. Enquanto isso, Shadow e suas
travessuras eram uma boa distração.
De volta ao meu quarto, olhei para o armário em constante mudança.
Nesse dia, ele estava cheio de vestidos de noite, claramente em antecipação à
requisição de comparecimento ao jantar de Shadow. Estendi a mão sobre o
material sedoso. Havia uma gama linda de cores, e eu teria selecionado
muitas dessas roupas se estivesse escolhendo por conta própria. Não que eu
tivesse tido uma ocasião para precisar de qualquer roupa tão chique.
No começo, instintivamente, fui em direção a um vestido preto
modesto, com um decote delicado e de comprimento na altura do tornozelo.
Olhando para ele brevemente, eu estava prestes a puxá-lo do cabide quando
uma onda de aborrecimento me preencheu. Shadow, mais uma vez, estava
impondo sua vontade a mim. Ele não perguntou se eu queria jantar com ele;
ele apenas exigiu.
Eu não entraria lá como um rato recatado sob o polegar de seu raptor.
Não. Foda-se isso. O vestido preto foi devolvido e em seu lugar escolhi um
vermelho ardente que normalmente colidiria com meu cabelo. Mas, neste
caso, era realmente um encontro ombré perfeito, começando escuro no
decote, mergulhando até o final em um tom morango-claro.
Impecável. Não que eu esperasse menos desse lugar mágico.
Então meu vestido estava arrumado, e eu estava me saindo bem com o
resto da mesma forma. Pela primeira vez em dias, meu cabelo saía de seu
tradicional coque, e eu finalmente estreei um pouco da maquiagem chique em
minhas gavetas. Shadow me queria nesse jantar, e ele ia me ter. Cada
centímetro, porra, preparado e aperfeiçoado.
Era hora de lembrar a Shadow que eu não era o animal de estimação de
ninguém.
Vinte e seis
— Que merda é essa? — rosnei, deixando cair o pincel de maquiagem,
que fez um barulho ao se chocar no banco.
Como outras mulheres faziam essa merda parecer tão fácil? Eu estava
começando a simpatizar com Simone e suas tranças. Cabelo e maquiagem
eram difíceis e, a menos que eu quisesse parecer um palhaço, era melhor
limpar tudo e começar de novo.
Quando terminei, meu rosto estava quase nu, com um pouco de sombra
escura na minha linha de visão, um pouco de máscara de cílios, um toque
rosado nas bochechas, e batom vermelho profundo. Isso teria que servir.
Meu cabelo, porém, estava trabalhando para mim pela primeira vez...
Agradeça ao Shad...
Na verdade, dane-se tudo isso. Eu não iria agradecer a ninguém.
Cachos perfeitos caíram pelas minhas costas enquanto eu escorregava
no vestido vermelho e, quando não consegui fechar o zíper, chamei por Inky,
que estava esperando no meu quarto.
— Inky! Amigo, você pode entrar aqui e ajudar?
Os redemoinhos de fumaça escura deslizaram por baixo da porta e eu
tentei não surtar com o quão assustador parecia. Inky é nosso amigo. Ou
“aminimigo”, pelo menos.
— Não consigo fechar o zíper — eu disse, falando com uma fumaça
como se fosse uma entidade viva e que respira. — Você pode me ajudar?
Calafrios gelados percorreram a pele nua das minhas costas — eu não
poderia usar um sutiã com esse vestido — enquanto Inky se aproximava.
Quando ele me tocou, não houve dor, apenas um pulso elétrico gelado sobre
minha pele. Ele não teve nenhum problema em fechar o zíper, e, assim como
todas as outras roupas dali, o vestido se encaixava como se tivesse sido feito
sob medida.
Uma verdade absoluta sobre meu tempo passado ali — eu não poderia
voltar a comprar minhas roupas da forma normal.
Com um último olhar final para o espelho, sorri para o meu reflexo. Eu
realmente tinha que me vestir melhor mais de uma vez a cada vinte anos. Não
me julguem mal. Jeans, camisas e coques altos eram meu estilo, mas havia
algo especial em ser glamourosa de vez em quando.
— Você está atrasada — disse ele. Como duas palavras poderiam soar
tão sinistras, eu não tinha ideia. — Nós não gostamos de ficar esperando.
Colei meu sorriso mais largo no rosto, rezando para que o batom
vermelho não estivesse manchando meus dentes.
— Uma mulher nunca se atrasa, Shadow. Chegamos precisamente
quando queremos.
Obrigada, personagem fictício, pela citação perfeita mais uma vez —
esperei anos para usar essa. Shadow balançou a cabeça como se não pudesse
parar a vida dele para descobrir o que diabos eu estava falando.
Algo tão comum entre nós.
— Espere, nós? — estourei. — Quem era nós?
Seus dentes brilharam na luz baixa do fogo que estava próximo, e eu
tive a nítida sensação de que estava prestes a ser comida pelo lobo grande e
mau.
— É hora de descobrir o que você é, Raio de Sol. Fora o fato de ser um
pé no saco, claro.
Cruzei os braços.
— Olha, não sei o que fazer. Ser um pé no saco é o meu chamado na
vida. Eu nunca vou parar, nem mesmo para você.
Seus olhos desceram até onde meus braços estavam firmemente presos,
sob meus peitos livres. Essa posição os levava a novos patamares, e, em um
vestido decotado como esse, meus mamilos estavam prestes a saudar o
mundo.
Nós dois olhamos para a exibição impressionante e, com toda a
honestidade, eu não senti necessidade de ser tímida e me cobrir. Meu corpo
era a única coisa que eu tinha, e eu usaria esse filho da puta com orgulho. Ele
me manteve forte e sempre seguindo em frente, e eu era grata todos os dias
por ainda estar viva.
— Então, vai me levar para jantar? — eu finalmente disse, cortando a
tensão no ar.
O foco da fera voltou ao meu rosto, sua mandíbula um pouco mais
rígida, seus olhos ardentes. Ambos provavelmente não tinham nada a ver com
meus peitos e tudo a ver com o fato de ele estar irritado com a minha
existência. Não era como se ele já tivesse me notado de uma forma sexual
antes, Shadow me tratava mais como se eu fosse um animal de estimação que
ele tinha que manter temporariamente vivo.
Isso ficou ainda mais óbvio quando ele estalou os dedos para eu o
seguir enquanto caminhava com Inky em direção aos sofás. Sofás que não
estavam vazios.
Engolindo o choque, parei à beira do brilho das chamas, tentando
absorver todos eles. Eu esperava que houvesse um convidado — já que ele
disse nós —, mas cinco homens estavam sentados ao redor do fogo,
conversando casualmente, taças de cristal cheias de um líquido vermelho-
escuro nas mãos.
Havia uma cadência baixa e hipnótica enchendo o ar enquanto falavam,
e eu não conseguia entender uma palavra. Sua linguagem lírica rodopiou pelo
ambiente em cadências estranhas, e eu estava desesperada para entender as
palavras. Ao contrário da Biblioteca do Conhecimento, porém, ali no covil
não havia nenhum sistema de tradução mágica. Uma verdadeira vergonha,
porque o que eles estavam discutindo os mantinha superanimados.
Mesmo assim, o simples ato de olhar para cada um desses seres
verdadeiramente espetaculares da espécie masculina foi talvez mais do que
suficiente como entretenimento para a noite.
— Ela está aqui — disse Shadow e, quase de imediato, os outros se
calaram e viraram em nossa direção. — Esta é Mera, a metamorfo de que eu
estava falando.
Cinco conjuntos de olhos caíram sobre mim e, em um corpo menos
confiante, um deles teria derretido no chão com o intenso nível de poder e
apelo sexual dentro de uma pequena área. Ser recatada não era meu estilo,
então decidi continuar normalmente.
— Onde Shadow tem escondido vocês cinco? — eu disse,
descaradamente admirando cada um deles...
Espera... Cinco? Shadow havia dito que confiava em cinco seres.
Parecia que eu estava prestes a conhecer os amigos dele. Sorte minha.
Todos eles se levantaram e, à medida que se aproximavam, Shadow se
grudava mais as minhas costas. Eu não tinha ideia de por que ele estava tão
perto de mim, mas estava muito distraída para me preocupar com seu
comportamento estranho.
O primeiro a se aproximar foi um ser alto, de mais de dois metros de
altura, vestido com longos mantos prateados, adornados com o que pareciam
joias reais de cor e tamanho variados. Ele tinha cabelo na altura dos ombros,
tão brancos quanto gelo, de maneira que se, a neve caísse sobre os fios, se
misturaria.
Na verdade ele era, em sua totalidade, construído em tons de prata e
luz, com olhos prateados — mais alongados e parecidos com os dos gatos do
que com os de um humano — brilhando sem piscar. Também tinha orelhas
ligeiramente pontiagudas, as pontas afiladas saindo dos lados de seu cabelo
parcialmente trançado.
— Eu sou Len das Terras de Prata — disse ele em um português
perfeito, estendendo a mão para mim no gesto humano de apertar as mãos.
No momento em que nos tocamos, um formigamento gelado correu pela
minha pele, seu poder surgindo em mim. Não doeu e não foi invasivo o
suficiente para eu me afastar, mas parecia mais do que uma mera troca de
energia.
— Terras de Prata — repeti, minha mão permanecendo firme em seu
aperto.
Ele sorriu, e foi como imaginei que um arcanjo parecia antes de cortar a
cabeça de alguém em uma busca por vingança.
— Sim, eu sou um príncipe da província de prata em Faerie.
Ah, certo.
Decidi manter uma contagem.
Amigo número 1: Len, o príncipe fae prateado.
O olhar de Len estava cheio de travessuras e diversão quando ele me
libertou, e eu não perdi a forma como o desviou direto para Shadow. Len
balançou a cabeça sugestivamente, e eu supus que era o seu sinal, para a fera,
de que não podia me ler, também.
Bom.
O próximo era o oposto de Len. Ainda mais alto, era largo e poderoso
em todos os sentidos, vestido com calças de couro pretas e uma camisa de
manga comprida branca. Seu cabelo escuro era quase raspado a zero em um
estilo fácil de manejar.
Quando ele se aproximou de mim, o azul-escuro muito profundo de
seus olhos permaneceu preso no meu rosto, como se ele estivesse tentando
me ler de longe, e passei muito tempo examinando-o, porque era bonito
demais de se olhar.
Quero dizer, deuses, ele tinha cílios que se podiam ver do espaço
sideral.
— Eu sou Reece, das Terras do Deserto.
Ele não me tocou como Len tinha feito, mas ficou perto o suficiente
para que nós nos tocássemos. Muito perto para estranhos, mas por alguma
razão não me incomodou. Inclinando a cabeça para trás, tentei não soar sem
fôlego.
— Terras do Deserto, hein? Deixe-me adivinhar... Você é um príncipe
também?
Reece não sorriu. Algo me disse que esse cara sorria menos que
Shadow, e por que eu estava tão interessada nesses idiotas sombrios e
danificados?
— Ele é uma divindade — Len apareceu de onde tinha se sentado
novamente. — Compete com o nosso Shadow no poder. E pela ninhada.
Meus lábios se contorceram com isso, e eu já tinha Len encaixado na
categoria de amigo espertinho. Cada grupo tinha um, o palhaço. E embora
isso não se encaixasse em tudo com sua aparência real, moldava-se
perfeitamente à sua personalidade.
Amigo número 2: Reece, a divindade do deserto, era mais difícil de
categorizar, mas uma suspeita se esgueirava em minha mente dizendo que ele
era o músculo.
O próximo a se aproximar tinha cerca de um metro e oitenta de altura,
com o físico mais definido que eu já tinha visto em um homem. Fácil de
dizer, já que ele estava usando o equivalente a cuecas boxer masculinas — e
nada mais.
— Eu sou Alstair — disse ele, sua voz um sussurro através dos meus
sentidos, como uma brisa casual em um dia de verão.
Coloquei minha mão na dele, e foi legal de uma maneira diferente da
do Len. Reconfortante, fazendo minha cabeça girar quando me lembrava dos
dias no riacho.
— Você é de Karn — soprei.
Alstair confirmou com a cabeça.
— Sim.
Balancei a minha também.
— Você não se parece nada com os habitantes que eu vi do seu mundo.
Alstair estava longe das figuras andróginas que eu tinha observado
anteriormente do mundo da água. E, embora sua pele tivesse um leve tom
azul, não era translúcida como a de seus irmãos. Seu cabelo era a minha parte
favorita, apesar de ser um emaranhado de cachos verdes e azuis que surgiam
em sua cabeça. Eles combinavam com seus olhos, que eram quase
completamente como água, com um ponto minúsculo de pupila no centro.
— Sou um guerreiro da minha espécie — disse Alstair baixinho, e mais
uma vez o simples ato de falar, vindo dele, era calmante. — Uma raça rara
que nasce nesta posição, encarregada de manter nosso povo seguro.
Amigo número 3: Alstair, o guerreiro da água.
O frio e calmo neste grupo cabeça quente.
— É muito bom conhecê-lo — eu disse baixinho, adotando seus modos
inconscientemente.
— E eu a você — ele devolveu antes de retornar ao seu lugar perto de
Len.
Reece ainda não tinha voltado aos assentos e, em vez disso,
permaneceu ao lado de Shadow, os dois gigantes na sala, de pé, nas minhas
costas, certificando-se de que eu em nenhum momento me sentisse
completamente relaxada.
Eu podia sentir os olhos de Shadow em mim, observando e avaliando
como cada um de seus amigos poderosos se aproximava. Fazia sentido que
esses fossem as pessoas de confiança da fera, cada um deles forte e poderoso.
Seus iguais... ou quase.
O penúltimo era definitivamente um dos Honor Meadows, e sua
aparência respondeu à minha pergunta acerca da existência de figuras
masculinas lá. Assim como as fêmeas do seu mundo, esse macho era uma
visão a ser observada.
Asas de puro ouro nas costas, ele usava um simples par de calças
pretas, deixando o resto de sua pele dourada à mostra. Seus longos cabelos
castanho-mel, em uma trança espessa de estilo complexo, entrelaçavam-se de
um jeito que nenhum humano conseguiria fazer. E seus olhos eram tão
escuros, que quase parecia que íris e pupila eram uma única coisa.
Eu sou Galleli.
Essas três palavras caíram em minha cabeça enquanto eu olhava em
volta freneticamente, tentando descobrir o que diabos estava acontecendo.
— Galli nunca fala em voz alta — disse Len, o mestre de cerimônias
não oficial para esse encontro de apresentações. — Você vai se acostumar à
voz dele na sua cabeça.
Engoli em seco.
— Você pode ler meus pensamentos?
Ele balançou a cabeça.
A não ser que me permita ter acesso à sua mente. Estou simplesmente
enviando minhas palavras da maneira mais confortável para mim.
Não sei se era confortável para mim, mas eu não ia dizer isso a ele.
— Quais são suas habilidades especiais em Honor Meadows?
Parecia que todos os amigos de Shadow ocupavam uma posição de
poder e adoração em seu respectivo mundo, e eu tinha certeza de que esse
cara não era diferente.
Eu sou um dos Escolhidos. Somos dotados de poder e habilidades
extras, considerados oráculos de uma espécie. Imagens do futuro e do
passado vêm aleatoriamente para nós.
— Como um médium?
Aqueles olhos negros se aborreceram.
Nada parecido com um médium.
Ok, então.
Amigo número 4: Galleli, não é um médium.
Ele se virou abruptamente e se afastou, e agora foi colocado
firmemente no local de falante reticente. De mais de uma maneira.
E, por mais espetacular que ele fosse para olhar, também me fez sentir
desconfortável de uma forma que os outros que vieram antes dele não tinham
feito. Havia uma fúria reprimida fervendo abaixo da superfície, e ela poderia
irromper a qualquer momento, então decidi que era necessário manter
distância daquele em particular.
O último do grupo de amigos se aproximou e, quando o fez, fiquei
surpresa ao ver que ele era o mais clássico humano em sua beleza. Pele de
bronze, olhos verdes marcantes, cabelos loiros despenteados, mais curtos nas
laterais, com um pouco mais de comprimento em cima. Mas, enquanto ele
parecia um humano geneticamente abençoado, sua energia estava longe de
ser normal.
— Sou Lucien.
No momento em que ele tocou minha mão, um choque de eletricidade
gelada me atingiu, e eu me engasguei. Isso o fez sorrir, e eu tive um
vislumbre de incisivos afiados antes que eles desaparecessem de vista
novamente.
— Valdor — eu arrisquei.
Ele acenou com a cabeça.
— Claro que sim. É bom ver que você é inteligente e incrivelmente
bonita. — Ele se inclinou mais perto. — Eu sou um mestre vampiro de
Valdor, e acho que você deveria se livrar da fera mal-humorada e fugir
comigo. Eu a encheria de joias e mais tesouros do que você poderia precisar.
Amigo número 5: Lucien, o mestre vampiro.
O galanteador — eu estava esperando por ele.
— Vamos lá — ele disse de uma maneira encantadora, trazendo seu
rosto para perto do meu, inclinando a cabeça para pousar um beijo em minha
mão.
— Chega — Shadow exigiu interrompendo pela primeira vez. — Você
está aqui para me ajudar a descobrir o que ela é, não para a seduzir.
Bufei.
— E eu pensei que era difícil perder minha virgindade em Torma.
Aparentemente, vai ser ainda mais difícil aqui...
Houve um silêncio mortal enquanto eu me encolhia, seis conjuntos de
olhos fixos em mim, alguns arregalados de choque, outros com interesse.
— Você está tentando me dizer... — Shadow começou. — Que você é
intocada?
As risadas saíram de mim antes que eu pudesse pará-las.
— Definitivamente não. Eu me toquei mais vezes do que posso contar.
Mais silêncio, embora houvesse alguns sorrisos ao redor da sala agora
— Len e Lucien em particular.
Shadow se inclinou ficando mais perto.
— Não finja que não entendeu. Você sabe o que estou perguntando...
Você nunca foi tocada por outra pessoa?
Uau, esse não era o tipo de conversa que eu esperava ter em uma sala
cheia de homens poderosos. Como não era da conta deles, passei por
Shadow, tomando cuidado para não o tocar antes de cair em um sofá macio.
— É melhor um de vocês, idiotas, buscar comida para mim — eu disse
rabugenta. — Já que isso deveria ser um jantar.
Houve risos, embora Reece e Shadow, que ainda estavam fazendo sua
“coisa executor estoico”, permanecessem em silêncio.
— Ela realmente não nos teme — disse Len, balançando a cabeça. Ele
inclinou-se para a frente em seu assento. — Por que você não tem medo de
nós, cordeirinho?
Eu imitei seus movimentos, cruzando as pernas enquanto me inclinava
para a frente, sem dúvida mostrando a todos muito mais decote do que eles
esperavam ver naquela noite.
— Fui torturada por homens poderosos a minha vida toda. Crescendo
no meu bando como uma marginal, há muito pouco que não foi infligido a
mim além do estupro. Em algum momento tive que parar de temer minha
morte e começar a viver por cada dia que conseguia permanecer na Terra. Eu
escolho abraçar meu poder e força; e nunca mostrar meu medo. Essa é quem
eu sou agora, e não vou mudar por ninguém. Nem mesmo por vocês, seis
filhos da puta assustadores.
Len não estava mais sorrindo. Em vez disso, ele estava me encarando
como se eu tivesse mostrando a minha bunda nua, balançando pompons e
fazendo uma festa.
Reece deu seu primeiro passo do lado de Shadow, observando-me de
perto de uma maneira que não tinha feito até esse momento. Ele não disse
nada e, enquanto ainda parecia um pouco chateado, grande parte da raiva
tensa tinha deixado sua mandíbula. Minhas palavras haviam descongelado
um pouco o frio dele. Muito pouco.
— Você não precisa nos temer — disse Alstair calmamente, chamando
minha atenção, que estava em Reece.
Shadow resmungou.
— Fale por si mesmo. Ainda estou tentando descobrir se o melhor é
matá-la e esquecer a Terra. Me pouparia um monte de problemas.
Mostrei o dedo para ele, por que não, certo?
Seus olhos se escureceram, e ele veio em minha direção, crescendo em
tamanho.
— Ah, porra. Ela já era agora. — Lucien gemeu. — Shadow vai virar a
fera incontrolável e todos nós vamos ter que pegar os pedaços. Deixe-a em
paz, cara — ele gritou. — Ela é linda demais para ficar em pedacinhos.
— Silêncio — Reece exigiu. — Esta é a propriedade de Shadow, e ele
vai escolher o que fazer com ela.
Então mostrei o dedo para ele também, porque, foda-se, cara.
Len estava histérico nesse momento, metade fora de sua cadeira
enquanto segurava o estômago e ria.
— Foda-se. — Ele bufou. — Espero que Shadow traga para casa mais
humanos perdidos para brincarmos. Esta é a noite mais interessante que eu
tive em anos.
— Chega! — Shadow resmungou, e era quase impossível entendê-lo
com tanta fúria em suas palavras. — Caiam fora. Agora.
Seus amigos não se importaram com sua mudança de humor,
demorando para se levantarem e terminando a bebida. Metade deles acenou
ou disse adeus e deixou o covil. A outra metade provavelmente pensou que
Shadow iria me matar essa noite e que nunca mais me veriam.
E poderiam estar certos.
Vinte e sete
Uma vez que a sala estava quase vazia, notei que Reece continuava ali,
parado no que eu apelidei de seu visual. Braços cruzados, sem expressão,
olhos me despindo até o âmago.
Ele era definitivamente Shadow, o segundo.
— Está tudo bem, Reece — Shadow, o primeiro, resmungou. — Eu só
preciso colocar uma metamorfo de lobo em seu lugar.
Shadow um e dois trocaram um breve olhar, e ficou claro que já
existiam anos suficientes de amizade entre eles para uma comunicação sem
palavras.
Reece dirigiu-me um olhar solidário, mas não disse mais nada enquanto
saía da sala.
Sozinha com Shadow, tudo parecia ter um toque mais assustador; a fera
parecia estar lutando uma batalha interna.
— Por que esse vestido? — ele finalmente cuspiu as palavras. —
Vermelho é um gatilho para mim. Em muitos aspectos.
Ótimo. Olhei para os cachos longos e vermelhos que caíam sobre meus
ombros.
— Isso não estava no livro de regras — eu disse a ele. — Você deve
imprimir uma cópia para a próxima pessoa que sequestrar.
— Você obedece a regras? — perguntou ele, um pouco da fúria e raiva
em sua voz desaparecendo.
Eu dei de ombros.
— Só se eu concordar com elas. Não é como se eu estivesse tentando
ser completamente obstinada sem motivo, mas tenho uma mente própria, e eu
escolho usá-la.
Ele estava em minha frente num piscar de olhos, muito rápido para que
eu antecipasse a morte que estava chegando. Apesar da minha ousadia, tremi
enquanto ele se inclinava para passar as mãos sobre meu corpo sem me tocar.
Eu não conseguia respirar, ou pensar, ou mesmo falar enquanto seu calor me
acariciava deslizando através da minha pele nua e abaixo do meu vestido. Os
bicos dos meus mamilos estavam tão duros agora que só a sensação da seda
contra eles me fez engolir um gemido.
Tinha que haver algo fundamentalmente errado comigo, com uma parte
de mim que, mesmo quando estava tremendo de medo, antecipando meu
último suspiro, ficava excitada pela brutalidade de uma fera. O gosto do seu
poder na minha língua era inebriante, minhas pernas se apertaram quando a
necessidade me preencheu.
A loba choramingou no meu peito, e foi um eco fantasmagórico de
como ela tinha reagido a Torin. Shadow era sedutor para nós duas.
— Algo em sua mente, Raio de Sol? — perguntou ele, outra onda de
calor rolando através de mim.
— Foda-se. Você — consegui cuspir, felizmente não soando tão
excitada quanto eu estava.
Sua risada era escura e sem graça.
— Você não faz isso, aparentemente, e talvez, apenas talvez, eu tenha
descoberto exatamente como fazê-la entrar na linha.
Sim, não. Nunca acontecera. Quero dizer, eu gostava de pau — em
teoria — tanto quanto qualquer mulher heterossexual, mas não seria aquela
garota. Não nesse dia.
Foi preciso cada grama de força de vontade que eu possuía para me
afastar.
— Você nunca vai me domar assim — eu disse a ele, orgulhosa de mim
mesma por não deixar uma única nota de hesitação soar em minhas palavras.
— Nunca vou me dobrar.
Me curvar, sim. Mas dobrar era uma história totalmente diferente.
Eu saí então, correndo o mais rápido que pude em um vestido e com
saltos. Pela primeira vez, Inky não vinha bem atrás de mim, e eu estava grata
por ter uma noite sozinha. Precisava de um momento longe deles. Longe
daquela intensidade.
Quando cheguei ao meu quarto, bati a porta atrás de mim, inclinando-
me para trás e respirando profundamente. Alguns minutos depois, percebi
que Shadow não viria atrás de mim, e isso tinha que significar uma coisa: o
convite tinha sido um teste. Mais um.
Eu não podia dizer se eu tinha falhado ou não, e, mesmo quando seu
poder caiu como uma cascata sobre minha pele nua e me fez querer escalar
aquela fera e foder com ele até gritar, eu estava orgulhosa de mim mesma por
dizer não.
Silêncio.
Nem uma palavra sequer.
Se as marcas em sua mandíbula eram alguma indicação — oh, e aquela
fera demoníaca flamejante —, ele estava muito chateado para falar.
— Minha loba meio que levou a melhor sobre mim — acrescentei,
acalmando minhas palavras mesmo quando meu próprio aborrecimento
crescia.
Eu não precisava de uma besta psicopata perdendo a merda do controle
porque eu não havia feito exatamente o que ela queria. Antes que as palavras
repercutissem, tentei passar por ele, cansada e pronta para apagar as
memórias das últimas vinte e quatro horas.
Shadow fez seu movimento instantâneo, aparecendo na minha frente, o
brilho de seu lobo ardente mais brilhante do que nunca na escuridão ao redor.
— Qual é o seu problema, cara? — eu surtei. — Fomos correr como
lobo, e ela decidiu brincar com a criatura sombra, e então tiramos um cochilo.
Nenhum. Grande. Problema.
Ele envolveu as mãos ao meu redor, palmas tão grandes que cobriram
metade do meu corpo. Quando me puxou para cima e contra si, eu vacilei na
onda de calor que tomava conta de mim. Não havia dor e, em vez de afastá-lo
como qualquer pessoa normal faria, reagi como uma loba recentemente
transformada — excitada e nua — faria.
Passei as pernas em volta dele e o puxei para ainda mais perto.
O rosto de Shadow desceu até o meu, o fogo de seu lobo demônio
desaparecendo.
— Você pertence a mim — disse ele, sua voz nada mais do que um
estrondo de fúria e demônio. — Não a Honor Meadows. E não às criaturas
das sombras. Não para o bando de lobos. Não para nenhum deles — sua voz
estava mais alta do que eu já tinha ouvido. — Nenhum outro pode reivindicar
você enquanto eu o faço. Seria muito bom você se lembrar disso, loba.
Seus lábios estavam muito perto e, conforme cada palavra forte
emergia, eles ficavam mais próximos. Meu corpo doeu quando me pressionei
com mais força contra ele. Não era como se eu tivesse perdido as palavras
que ele tinha dito — sua afirmação dominante e possessiva —, mas naquele
momento eu não dava a mínima.
Afinal, uma mulher com uma amiga leal ao seu lado poderia
literalmente destruir ou salvar mundos.
Angel apertou minha mão antes de me soltar, e sua energia pareceu um
pouco mais leve quando ela voltou a brincar com a comida. Com uma risada,
voltei para o meu prato também, e permanecemos em um silêncio amigável.
Quando ela finalmente se levantou para sair, limpei a garganta.
— O que uma garota tem que fazer para descobrir seu nome? Quero
dizer, você é “Angel” para mim agora, mas eu ainda gostaria de saber o seu
verdadeiro nome.
Quando ela virou a cabeça para trás, travessuras dançaram em seus
olhos, a cor muito mais leve do que antes.
— Eu não uso mais o meu nome. No que me diz respeito, ele está
morto e enterrado, como meu coração.
Pelo amor de todos os fodidos em todos os lugares. Ela era
incrivelmente trágica, e eu já odiava que minha amiga tivesse passado por
esse tipo de tormento.
— Isso é bom, hein? — eu disse com uma risada. — Sim, senti sua
falta também.
Ele simplesmente... farejou o mês? Ok, incrível. O que mais ele poderia
fazer com esses sentidos?
Espere, o quê? Julho.
— Como isso é possível? — Puxei o ar com calma.
Passaram-se quase sete meses desde que ele me roubou da Terra.
Simone e Dannie teriam definitivamente assumido que eu estava morta
nesse momento — minha mãe na certa nem notara que eu tinha ido embora
— e eu me senti mal com a ideia de sete meses terem simplesmente
desaparecido da minha vida.
— Preciso ver meu bando! — gritei explodindo e parando Shadow em
seus rastros.
Ele se virou, altura caindo baixo o suficiente para que eu só tivesse que
inclinar a cabeça, para trás, oitenta graus para ver seu rosto.
— Quer voltar para o seu bando? Não a tratei com respeito o tempo
todo que você esteve em minha presença?
Havia um aviso nessas palavras, como se ele quisesse que eu
escolhesse minha resposta com muito cuidado.
Então, como sempre, eu não fiz.
— Eu não iria tão longe quanto respeito, mas você tem sido... menos
idiota do que eu esperava — forcei um sorriso, porque eu precisava que ele
me desse isso —, mas minha razão para querer voltar ao meu bando é
simplesmente avisar às duas únicas metamorfos no mundo com que me
importo que não estou morta. Já se passaram sete meses, e nesse tempo todo
eles não têm ideia do que aconteceu comigo.
Foi muito divertido saber que ele tinha adotado meu apelido para seu
amigo fumaça, mas eu riria disso outra hora. Naquele momento, eu estava
focada em uma verdade apenas: sete meses longe das minhas terras.
— Acho que isso pode assustá-las, considerando que Inky não pode
falar e, mesmo que pudesse, elas sem dúvida correriam primeiro e fariam
perguntas depois.
Ele meio que encolheu os ombros, mas todos nós sabíamos a verdade.
Shadow Beast tinha acabado de... tipo brincar comigo, e eu tinha conseguido
testemunhar isso. Talvez espalhasse essas histórias se voltasse para a vida no
bando. Ou talvez inventasse algumas ainda mais assustadoras, porque,
brincadeiras à parte, sua dureza não tinha sido subestimada. Como ele estava
prestes a provar.
Dobrando suas pernas poderosas, lançou-se na árvore e, como se
estivesse encarnando o Tarzan, lançava-se para cima indo de galho em galho.
— Você não pode voar? — gritei com ele.
Shadow fez uma pausa.
— Seu mestre é uma besta louca, você sabe disso, certo? Você é amigo
de alguém que gosta de perseguir demônios... por diversão! — Balancei a
cabeça. — Precisamos de novos amigos.
Shadow pousou forte em nossa frente, o chão tremendo no baque
sólido. Assim que ele retornou ao seu tamanho habitual, havia um sorriso
genuíno em seu rosto.
— Não subo em uma árvore há quinhentos anos. Esqueci como é
divertido.
Eu pisquei e pisquei, imaginando se tinha batido a cabeça. Ou talvez o
veneno tivesse conseguido se infiltrar em meu sangue e eu estivesse
alucinando. Shadow parecia quase... feliz. Eu não fazia ideia do que pensar
sobre isso.
Acariciando o rosto algumas vezes, eu me dei um tapa firme tentando
acordar de qualquer sonho que fosse esse. Mãos seguraram a minha antes que
eu pudesse tentar de novo.
— Não — disse ele, sério de novo. — Não faça isso.
Ao virar a cabeça, tentei ver sua expressão, mas ele já tinha se afastado,
estendendo a mão para pegar a criatura cinzenta prestes a nos atacar. O
sprecker cobriu Shadow quase completamente em sua substância venenosa e
pegajosa, mas isso não foi suficiente para impedir a fera de usar sua magia
das sombras para prendê-lo em um pequeno e adequado embrulho.
— Sua vez, Raio de Sol — ele me disse sem me olhar.
A expressão aberta que tinha usado antes desaparecera, um semblante
inexpressivo em seu rosto, escondendo todas as suas emoções mais profundas
nas muitas camadas que era Shadow Beast.
Por um segundo tive um pouco mais dele para memorizar, mas, como
sempre, desapareceu antes de eu ter aproveitado mais do que apenas um
aperitivo.
A parte mais assustadora foi constatar que, dessa vez, um aperitivo não
estava nem perto de ser o suficiente.
Trinta e dois
Uma vez que Shadow tinha o sprecker preso em uma das prisões de
porta branca, eu o fiz me mostrar o abervoq. Que, felizmente, parecia estar
em perfeita saúde. Chateado por estar enjaulado, berrando ao me ver, mas
ileso pelo que pude constatar.
Depois disso Shadow partiu e me deixou com os meus próprios
assuntos, então comecei a me perguntar para onde ele ia todas as vezes que
desaparecia da minha frente. Ele tinha uma amante em algum lugar? Ou
estava visitando seus amigos no mundo deles?
Eu queria segui-lo, mas ele sempre ia tão rápido — estava lá um
minuto e se ia no outro, desaparecendo em sombras esfumaçadas, como se
pudesse usá-las para transportá-lo. O que me deixava sem ideia de como
rastreá-lo. Em vez disso, concentrei-me no meu segundo passatempo
favorito: vasculhar a biblioteca para aprender sobre os mundos.
A maior parte do que eu tinha aprendido entre as varridas eram
informações gerais sobre as várias terras e seus habitantes. Eu gostava de
combinar isso com observações da vida real dos seres que frequentavam a
biblioteca e, através de ambos, sentia que tinha uma compreensão razoável
dos dez mundos.
Bem, nove. Ninguém sabia nada sobre o Reino das Sombras. Exceto o
próprio Shadow, e ele não era do tipo que gostava de compartilhar coisas.
— Obrigada, Gaster! E, mesmo sabendo que você não tem tempo livre,
se puder encontrar algum, eu adoraria ter um guia de viagem.
Não havia como entrar nos mundos sem ajuda. Eu não falava as
línguas, não podia me misturar, e não tinha ideia dos muitos e variados
perigos que com certeza existiam. Mas se Gaster me desse esse guia...
ajudaria muito.
— Sei que Honor Meadows é muito parecido com a Terra — eu disse.
— E adoro visitar a Angel, mas realmente espero ver pelo menos alguns dos
outros mundos.
Gaster concordou com a cabeça, olhos de volta em seus livros.
— Honor Meadows com certeza é familiar para você, exceto pela
maneira como eles usam magia no lugar da tecnologia e da ciência. Eles são
seres baseados na natureza em muitos aspectos.
Eu sabia tudo isso da minha pesquisa, mas sempre gostava de ouvir
sobre os mundos.
— Eles passam sua magia através das linhas familiares? — perguntei
para confirmar.
— Oh, sim — Gaster exclamou. — Quanto maior e mais forte for a sua
linha familiar, ou foi, mais magia e terra você controlará.
Isso me fez pensar em Angel, eu tinha quase certeza de que não sobrara
ninguém de sua família. Seria por isso que ela era tão poderosa? Ou essas
mortes realmente a enfraqueceram em termos de poder?
— Senhorita Mera!
Eu girei e Lady Hel correu em minha direção. A semi-fey real não
costumava falar diretamente comigo, mas parecia que ela tinha uma
mensagem.
— Ei, Lady — eu disse com um sorriso. — Como vai?
Ela ficou brevemente confusa com minha frase antes de colocar um
sorriso de volta.
— Mestre quer que a gente liberte você do dever de varrer. Você pagou
seu empréstimo inicial e agora pode passar para outras tarefas. Ele não tinha
certeza do que você gostaria de fazer em vez disso. Tem alguma ideia?
Gaster parecia em êxtase com essa notícia.
— Você pode vagar por aí agora e conferir mais livros.
Claramente não tinha escapado da atenção dele que, enquanto eu estava
"varrendo", eu tinha conseguido fazer um monte de leitura também.
— Isso soa incrível... — Percebi um rosto familiar, que apareceu e
sumiu de volta nas prateleiras. Alguém com quem eu precisava
desesperadamente falar. — Deixe-me vagar por um tempo. Talvez uma nova
tarefa venha até mim — finalizei, distraída.
Gaster e Lady Hel não pareciam ter notado.
— Oh, sim, ideia fantástica — disse ele. — Você explora as muitas
prateleiras, lê os livros que chamam sua atenção, mas não tenta desbloquear
nenhum livro que tenha uma inserção chave neles.
Isso me chamou a atenção.
— Inserir chave?
Ele girou e percorreu as prateleiras mais próximas antes de
aparentemente encontrar um desses títulos "intocáveis".
— Veja isso — disse ele, segurando a lombada do livro perto do meu
rosto. De imediato, notei a pequena inserção de metal, com seu orifício
perfeitamente redondo. — Eles estão bloqueados para a segurança do leitor
ou para proteger informações confidenciais. Vai lhe exigir muita força se
você tentar quebrar a fechadura, e eu não tenho certeza se você seria forte o
suficiente...
Ele ficou mudo, mas todos nós entendemos a essência do que ele estava
dizendo.
— Não se preocupe, Gaster — eu disse. — Há muito para ler aqui sem
que eu tenha que me preocupar com a possibilidade de queimar os olhos.
Ele estava todo sorridente novamente, satisfeito que seu aviso tenha
sido entregue com sucesso, enquanto colocava o livro não autorizado de volta
na prateleira.
— Chame se precisar de mim — ele pediu emocionado antes de se
apressar novamente.
Se eu tivesse um décimo de sua energia, provavelmente seria muito
mais realizada do que realmente era.
Mas não havia tempo para me preocupar com minha preguiça, e então
entrei em modo furtivo, perseguindo o macho que eu tinha visto antes: Len
das Terras de Prata. Essa foi a primeira vez que vi algum amigo de Shadow
ali, e eu não iria desperdiçar essa oportunidade.
O fae estava vestido com roupas prateadas novamente, essas ainda mais
elaboradas e requintadas do que o último conjunto. Como ele andava com
tantas pedras preciosas e todo aquele metal adornando os braços estava além
da minha compreensão, mas isso não parecia um empecilho para ele, que
agarrou então alguns livros aleatórios. Estava procurando por algo específico,
e quase tudo deixava um olhar decepcionado em seu rosto.
— Você poderia ajudar, em vez de espreitar nas sombras — disse ele,
sem se virar. — Um jogo de palavras planejado.
Trocadilho proposital? Era algum tipo de busca sobre Shadow que eu
não estava entendendo.
Eu saí de trás das prateleiras.
— Há quanto tempo sabia que eu estava lá?
Ele riu, um som profundo e rico que eu tinha certeza de que continha
toda a magia do mundo, se a sensação ao longo da minha pele fosse alguma
indicação.
— Eu a vi antes mesmo de você nascer, doce loba. Não há lugar onde
possa se esconder.
O quê?
— Ok, claro, isso faz sentido. — Nem mesmo remotamente. — Mas
de verdade... Você precisa de alguma ajuda com a sua pesquisa?
Ele balançou a cabeça.
— Não, não. Estou procurando há muito tempo para recuperar uma joia
especial que deveria ter sido passada através da minha família. Foi roubada
por alguém em quem confiamos. Há muito pouca chance de que ela um dia
seja recuperada e, ainda assim, quando tenho tempo livre, ainda procuro
através dos livros qualquer menção a isso.
Ele empurrou a cabeça para as prateleiras, embora qualquer movimento
fosse tão suave que não pudesse realmente ser descrito como um empurrão.
— Os faerie se atualizam usando magia. Só que nunca há nada de novo
sobre nossa pedra e, sem ela, estamos significativamente enfraquecidos.
Eu tinha lido mais do que alguns livros faerie e tinha uma boa ideia do
que ele estava falando.
— Você pode armazenar magia em suas joias para aumentar seu
próprio poder, certo?
Era por isso que ele usava tantos em sua pessoa, e porque sua família
era particularmente poderosa, apesar da joia desaparecida. A realeza não
tinha nascido nessa posição em sua cultura; eles a tinham tomado à força. Eu
também sabia que as gemas que podiam armazenar poder eram raras em
Faerie, cada uma delas muito bem guardadas por aqueles que as possuíam.
Len parecia um pouco impressionado com o meu conhecimento, seus
olhos prateados brilhando.
— Correto, filhote. Pedras diferentes têm capacidades diferentes. A que
foi tirada é uma pedra de explosão solar amarela extremamente rara, com
capacidade de armazenamento quase ilimitada. A lenda diz que veio de uma
gota de luz pura, a única de seu tipo. — Ele balançou a cabeça. — Não faz
sentido que aqueles que a tomaram não a usem e ainda assim... se o fizessem,
haveria um registro. A última menção notável à pedra solar é do dia em que
foi roubada da minha família.
Pensei nisso.
— Como se a roubasse por uma razão específica que ainda não existe?
Ele soltou um suspiro de pesar.
— Isso é o que me preocupa. Tecnicamente, eles poderiam estar
armazenando lascas de energia dentro da pedra todos os dias, o que não a
ativaria. Com o passar dos anos, ainda acumulariam poder suficiente para
devastar Faerie... ou o Sistema Solaris. Precisamos descobrir quem roubou e
pará-los antes que a usem contra nós. — Sua frustração era óbvia. — É meu
trabalho proteger minha família e meu reino. Não posso falhar nessa tarefa.
— Você já perguntou ao Shadow?
No momento em que disse isso, eu me arrependi, especialmente quando
o sorriso de Len cresceu, genuína diversão dançando através de suas feições.
Agora parecia que eu pensava em Shadow como nosso único salvador, e
discutir só cavaria o buraco mais fundo.
— Apesar dos rumores — Len parecia divertido —, Shadow não sabe
tudo. E, por mais útil que meu amigo seja às vezes, neste assunto Faerie, ele
não pode ajudar.
Parte de um riso escapou de mim.
— Rumores? Aposto que ele próprio começou com isso.
Angel sorriu.
— Oh, sim, e, melhor ainda, quero que você passe esses dias tentando
mesmo seduzir o próprio Shadow. Dessa forma, ele vai achar que você tirou a
atenção da biblioteca e direcionou para ele. Vai gostar desse joguinho e não
vai perceber nossa armação.
Havia algo sobre o esquema que fazia meu sangue bombear mais forte
por todo o corpo, e esfreguei as mãos juntas com prazer.
— Sim! Estou aqui para isso — eu disse a ela. — Só me diga do que
precisa, e estarei em cima dele.
Angel deu um tapinha no ombro, suas asas se espalhando atrás dela
quando se levantou. Vamos conseguir, minha amiga. Nem se preocupe com
isso.
— Ela se virou para sair com os olhos pousando em Shadow, que
aparentemente tinha acabado de entrar no refeitório. Então, com um último
sorriso na minha direção, Angel foi embora.
Shadow caminhou até mim, parecendo presunçoso pra caralho. Sem
mencionar que estava mais quente do que o normal, seu cabelo despenteado e
úmido, os restos de suor em sua testa. Ele parecia que tinha vindo direto de
um treino, ainda suado, mas duvidei que estivesse puxando ferro em uma
academia. Os deuses não precisavam fazer isso para serem trincados, então
provavelmente estava lutando.
Eu tinha pena de quem era seu pobre oponente.
— Como está sendo hoje para você? — Shadow perguntou, afundando-
se na cadeira que Angel tinha acabado de desocupar.
Uma bebida apareceu em sua mão, uma mistura prateada, e mais uma
vez lembrei-me de suas habilidades e poder.
Poder que ele estava usando contra mim, mas me senti um pouco mais
confiante com Angel do meu lado.
Ela tinha um plano, e falando em... Eu sorri amplamente.
— Tem sido ótimo! Tenho uma tonelada de trabalho já terminado, a
comida está excepcionalmente ótima, e acabei de ter uma conversa com
minha amiga. É bom ter uma amiga por perto... Me faz sentir um pouco
menos a falta de Simone e Dannie.
Apenas parcialmente uma mentira — ainda sentia falta dos meus outros
amigos horrivelmente.
Com os olhos sombrios, ele me observou de perto.
— E nenhum outro problema?
Balancei a cabeça mantendo a mesma expressão relaxada.
— Não que eu tenha notado. — Meu olhar estava mais focado quando
encontrou com o dele. — E você? Algum problema no seu mundo?
Encontrou outra criatura sombra para rastrearmos?
Inclinando-se para trás em sua cadeira, ele cruzou os braços, ombros
largos batendo-me como as asas de Angel faziam. Não havia dor, como
costumava acontecer quando ele me tocava.
— Quer saber sobre meus problemas? — desdenhou soando como se
não acreditasse em mim.
Inclinando-me para mais perto, não fiquei surpresa com o olhar
suspeito que ele mantinha focado em mim.
— Sim, eu quero. Você é um dos poucos que não estão muito ocupados
para falar comigo hoje — agindo como se não estivesse irritada com aquilo,
mas era um meio para um fim — e estou genuinamente curiosa sobre sua
vida. Em especial sobre o dia a dia, como você dirige a biblioteca e seu covil.
Se a suspeita tivesse uma face, seria o rosto dele, mas Shadow
embarcou em meu interesse falso.
— Certo, bem, já que perguntou, passei a manhã lidando com o
contingente Faerie. O clã de prata e aqueles do reino das esmeraldas estão
tendo uma pequena batalha sobre um terreno que supostamente está cheio de
pedras preciosas. Analisar os escritos antigos para encontrar direitos de
propriedade é mais demorado do que você imagina, e, como estou agindo
como intermediário nisso, estou prestes a ir para Faerie e cavar a porra do
terreno para ver se alguma dessas joias existe.
Eu estava mais interessada do que gostaria de admitir na vida de
Shadow, inconscientemente inclinando-me para a frente.
— Então esse é o seu papel aqui, na biblioteca? Aquele que
supervisiona tudo e impede que todos os visitantes de outros mundos caiam
no caos?
— Você vai aprender — ele disse, nem mesmo tentando esconder seu
narcisismo. — Eu passei por um longo ano desde que você se foi, Mera, e a
única coisa que descobri é que um metamorfo é mais forte com seu
verdadeiro companheiro.
Uma risada de escárnio me escapou e eu lambi meus lábios secos, ainda
provando seu sangue.
— Não sou um amuleto para ser carregado na esperança de aumentar o
seu poder.
Ele se moveu em minha direção, com as mãos para fora para agarrar
meu rosto, mas dessa vez o vi chegar, desviando e chutando para derrubá-lo.
Se não estivesse tão focado em me beijar de novo, teria visto esse movimento
e o evitado. Pensar com a cabeça de baixo era a falha fatal de um homem.
— Eu não pertenço a ninguém — sibilei enquanto ele se espalhava no
chão. — Eu rejei...
Minhas palavras para tentar romper nosso vínculo foram cortadas pelo
rugido de Shadow e, sem mentira, foi um alívio saber que ele estava bem e
poderia me tirar de Torin. Meu plano anterior de tentar escapar e ver até onde
eu chegaria definitivamente teria que esperar mais um dia. Já que,
aparentemente, minha alma gêmea tinha decidido que queria reivindicar sua
companheira/troféu.
— Shadow — Torin soprou, olhando em pânico e ao mesmo tempo
furioso. — É ele quem você estava chamando? A porra do Shadow Beast?
Com um sorriso, eu me inclinei mais perto.
— Entre vocês dois eu o escolheria sempre, Torin.
Ele tentou me agarrar de novo, mas Shadow estava lá agora, uma visão
gloriosa enquanto suas chamas enchiam o campo de calor.
E quem diria que eu ficaria tão aliviada ao ver aquele idiota gigante e
assustador.
Com a sua fera aflorada, Shadow bateu uma única vez contra o peito do
alfa, enviando Torin em um voo através do campo. Uma satisfação obscura
me preencheu; o idiota merecia isso e muito mais.
Apesar do perigo mortal de enfrentar Shadow — ele viu essa besta
destruir seu pai com pouco mais do que um pensamento —, Torin não
hesitou em se reerguer e tentar atacar. Uma bravura que eu normalmente
admiraria, mas, nesse caso, eu o colocaria na categoria muito estúpido para
viver.
— Você não pode tê-la, fera — ele gritou. — Eu sou seu verdadeiro
companheiro e não vou libertá-la para você.
Shadow estava furioso, suas chamas crescendo à medida que sua altura
disparava para a mais alta que eu já tinha visto. Ele se moveu e então estava
firmemente plantado entre mim e Torin, e na altura atual eu estava apenas
olhando para sua bunda.
— Shadow — sussurrei tocando a parte inferior das suas costas. O
calor engoliu minha mão, mas não me queimou; eu não era o seu alvo hoje.
— Vamos embora. Ele não vale a pena. Temos as criaturas para nos
preocupar.
Ele me ignorou e, dessa vez, havia uma pequena corrente de
eletricidade em meu braço, um aviso para tirar minha mão dele. Foi o que eu
fiz.
— Você não pode ignorar as leis que estabeleceu na criação de
metamorfos! — Torin gritou mais essa besteira.
Tentei ver em volta de Shadow, para determinar onde estava o alfa
idiota, mas, toda vez que me movia, ele ainda me bloqueava completamente a
visão.
— Tão facilmente quanto eu criei sua espécie, eu poderia destruir você
— Shadow respondeu.
O riso de Torin soou leve, mas eu o conhecia havia anos e era o
suficiente para saber que ele estava longe de relaxar.
— Veja, não acho que isso seja estritamente verdade. Eu tenho feito
algumas pesquisas ao longo do último ano, e acontece que agora somos uma
parte importante da estrutura de poder desse mundo e... de você. Sem os
metamorfos, você não estaria carregando o nível atual de energia a que se
acostumou.
O calor fluiu de Shadow com uma intensidade que me disse que ele
estava a ponto de perder o controle completamente.
— Com quem você tem falado? — perguntou ele. — Não há nenhuma
maneira desse conhecimento estar escrito em nenhum livro em qualquer lugar
na Terra.
Torin riu novamente.
— Sim, veja, temos um amigo em comum. Ela esteve no seu mundo.
Esteve em muitos mundos, vagando por aí, e não foi preciso muita persuasão
para convencê-la a contar alguns de seus segredos.
Viajante. Dannie era uma andarilha. Era assim que ela sempre se
chamava.
Dessa vez não me incomodei em ir devagar, jogando-me para o lado
para que pudesse contornar Shadow.
— Se você a machucou, Torin — gritei, minha voz mudando quando
minha loba apareceu —, eu vou matar você.
Os olhos de Torin se encontraram com os meus, e foi a primeira vez
que nos olhamos de verdade desde que ele começara a tentar me perseguir.
— Venha para casa comigo, Mera, e eu garanto que Dannie não se
machucará mais.
Meus membros tremiam e, quando o calor queimou através do meu
corpo, eu me perguntava se algo disso estava dentro de mim, ou se era tudo
fogo de Shadow. Ele estava pressionado contra a minha coluna.
— Você pode me beijar contra minha vontade — eu cuspi em Torin. —
Você pode me tocar, e me arrastar, e me machucar. Você sempre teve mais
poder do que eu, mas a única coisa que nunca terá de mim é minha submissão
voluntária a você. Pergunte ao Shadow aqui. Minha independência é a parte
de mim que eu preservo acima de tudo.
— Ele beijou você contra sua vontade? — as palavras de Shadow eram
afiadas, cada sílaba cortando como uma lâmina.
Engoli em seco.
— Sim, ele fez. Duas vezes. Pouco antes de você chegar até nós, então
agora devo a ele um nariz quebrado ou dois.
O calor subiu ao redor da fera, e eu quase me engasguei quando Torin
caiu de joelhos, gritos ecoando dele. Levantei a cabeça para ver o rosto de
Shadow, ele estava olhando o alfa de cima para baixo com um olhar
impassível — chamas em seus olhos.
Puta merda!
Eu sabia exatamente o que estava acontecendo, tinha sentido esse poder
em particular antes, e, embora nunca fosse sentir pena de Torin, queria ser a
pessoa a quebrar aquele canalha.
— Shadow — eu disse, colocando a mão em sua pele ardente. — Está
tudo bem. Posso lidar com ele.
Seu peito retumbou, mas ele não discutiu quando libertou Torin. O alfa
se arrastou até ficar de pé, os ombros arfando enquanto ele sacudia a dor.
Esperei pelo ataque, mas ele decidiu não responder da mesma maneira,
escolhendo um caminho diferente.
Estendeu as mãos para mim e deu um passo trêmulo para a frente.
— Volte para casa comigo, Mera — ele implorou com a voz rouca — e
podemos trabalhar nossa dinâmica. Sei que você sempre quis ser bem
recebida de volta ao grupo, e agora você tem isso. A companheira do alfa
nunca temerá por sua vida.
Ele tinha alcançado minha alma e tocado meu mais profundo desejo. O
desejo que eu tinha desde que era pré-adolescente. Desde que perdera meu
pai. Desde que meu mundo em Torma implodira.
Mas, apesar de sua aparente sinceridade, eu sabia a verdade: ele me
controlaria pelo impulso de poder que nosso vínculo trazia.
— E a Sisily? — perguntei com uma risada debochada.
— O que tem ela? — ele disparou de volta muito rápido. — Ela
obedece ao alfa, como todos os meus lobos fazem, e tudo o que eu decidir
que funcionará melhor para nós três é o que vai acontecer.
Pulei para a frente, preparada para matar esse porra estúpido como se
fosse a última coisa que eu faria. Ninguém podia esquecer o que ele tinha
insinuado lá e, se ele pensava que poderia começar seu próprio harém, então
iria acordar com uma lâmina no peito. Outra vez.
Torin e eu caímos em um emaranhado de membros, e eu mudei no
mesmo instante, a dor era quase insignificante perto da minha fúria. Minha
loba não perdeu tempo, indo diretamente rasgar a garganta de Torin, e no
início o alfa não lutou comigo — meu ataque o pegara de surpresa, mas seus
instintos de sobrevivência começaram momentos depois, e então ele também
mudou parcialmente. Era tarde demais, porém, com Shadow mergulhando na
luta e me puxando para cima e para fora de lá antes que Torin pudesse
conseguir uma única mordida.
— Você é um par muito fraco para ela — disse a fera ao metamorfo
ensanguentado. — E, se tentar tocá-la novamente, eu abandonarei o poder
que você me fornece e limparei sua espécie deste mundo.
Torin cuspiu um pouco de sangue quando os cortes visíveis em sua
garganta começaram a cicatrizar — infelizmente, eu não tinha atingido nada
muito importante.
— Você pode reivindicá-la por agora enquanto rastreia suas criaturas-
sombra, mas ela não é sua. — Torin não mostrou medo, e eu honestamente
não sabia de onde vinha essa bravura.
Shadow deve ter tido o mesmo pensamento, pois fúria e sangue
estavam de volta em seus olhos.
— Você demonstrou brevemente as razões pelas quais foi escolhido
como companheiro dela, mas é muito pouco e tarde demais.
— Nunca — Torin ferveu. — Se há mais alguma coisa que aprendi no
último ano, é que só a morte é permanente.
O riso cínico de Shadow soou quando ele se virou, com minha loba
ainda em seus braços, e pisou em direção ao portal da biblioteca.
— Você colocou sua morte disponível no Universo, vira-lata. Vamos
esperar que o Universo não decida aceitar esse desafio.
— Conheço a sua fraqueza, Shadow Beast — Torin gritou atrás de nós,
finalmente conseguindo ficar de pé, assim que desaparecemos de vista e a
Terra foi isolada de nós.
As chamas iluminaram o corredor branco e, se eu não estivesse em
segurança nos braços dele, teria queimado até a morte com o inferno que se
espalhara ao nosso redor. Shadow marchou em silêncio e, a julgar por sua
expressão, era melhor manter meus pensamentos para mim mesma.
Mas, por Dannie, eu arriscaria sentir sua ira.
Iniciando a mudança de volta para humana, gritei com a dor dos ossos
quebrando e sendo recuperados, e não poderia ser ignorada novamente.
Shadow me segurou enquanto eu passava por toda agonia, e de alguma forma
ele tornou esse momento melhor... E pior. Quando era finalmente uma
humana arfando, tossindo, tremendo, eu lhe dei um tapinha no ombro.
— Tenho que voltar — eu disse com urgência. — Eles estão
machucando minha amiga por minha causa. Bem, você e eu, e é nossa
responsabilidade ajudá-la.
— Eu cuidarei disso.
— O que isso significa? — reclamei. — Precisamos cuidar disso agora.
Por favor. Não é negociável.
Sua mão parou em minha bunda nua, um tapa firme, e quando seu
poder passou por mim eu gritei. Não doeu exatamente, mas tinha sido um
aviso.
Um aviso para calar a boca. Ele tinha que saber que não havia como
isso acontecer.
Chutando, comecei a lutar mais contra o seu corpo e, pelo meu esforço,
recebi outro tapa na bunda. Dessa vez, sua mão apertou ao ponto do
desconforto enquanto ele me segurava no lugar, seus longos passos
continuando.
Dane-se! Vá para o inferno! Então, agora ele estava me ignorando e
esperando que eu confiasse que cuidaria disso. E por que diabos estava me
espancando como a uma criança birrenta?
Nada fervera meu sangue mais do que isso, e o fato de que a mão dele
ainda estava em minha bunda segurando-a quase possessivamente me fez
querer... Bem, merda, estava me deixando agitada. Não estar nua agora teria
sido excelente, mas, mais uma vez, mudei antes de pensar nas consequências.
Atacar Torin tinha valido a pena, no entanto.
— A conversa sobre Dannie ainda não acabou — avisei a Shadow. —
Vamos revisitá-la muito em breve. No entanto, tenho algumas outras
perguntas que precisam de respostas também.
— Claro que você tem — ele resmungou.
Eu o ignorei e tentei ridiculamente ignorar sua mão também.
— O que aconteceu com todas essas criaturas-sombra? Até as pequenas
árvores e o leprechaun desapareceram...
Silêncio.
— Você capturou e aprisionou todos enquanto eu estava lidando com
Torin? — Nesse momento nós dois paramos de fingir que ele precisava da
minha ajuda para dominá-los.
Silêncio de novo.
— O que está escondendo de mim, Shadow? O que é tão importante no
Reino das Sombras para que você me mantivesse por perto apenas pela
chance de eu abrir a porta?
O silêncio era mais pesado, como se isso fosse possível. Tínhamos
entrado na biblioteca nesse momento e, assim que a sala brilhante entrou em
meu campo de visão, senti uma onda de exaustão. Mudanças rápidas ainda
drenavam minha energia.
Shadow não parou. Ele não falou de novo. Eu nem tinha certeza se ele
estava respirando, mas as chamas continuavam a se alastrar em uma altura
impressionante, felizmente não incendiando a biblioteca. A magia ali devia
protegê-la de tempestades selvagens de Shadow Beast. Caso contrário,
imaginei, ela teria sido queimada antes.
Quando chegamos ao covil dele, fui colocada no meu quarto.
— Shadow? — perguntei. — Precisamos falar sobre Dannie. E as
criaturas das sombras. Talvez até sobre Torin. É tudo importante.
Ele fez uma pausa à porta, sem se voltar.
— Da próxima vez que eu voltar — ele disse —, você abrirá a porta
para o Reino das Sombras, ou eu mesmo a matarei. — Pausa. — Esse é o
único detalhe importante com que precisa se preocupar.
Então, com uma onda de fogo que alcançava a moldura da porta,
deixando um rastro de brasas queimadas e fuligem para trás, ele saiu do
quarto, trancando-me dentro.
Quarenta e dois
— Deixe-me sair!
Por dias fiquei esmagando o punho contra e gritando para uma porta
imóvel.
Caindo para a frente, fechei os olhos e me perguntei se talvez Shadow
tivesse decidido que essa fosse a maneira mais fácil de lidar comigo. Eu tinha
água no banheiro, e levaria meses ou mais para enfraquecer por falta de
comida, então não havia perigo iminente, a menos que ele se esquecesse de
mim para sempre.
E talvez esse fosse o seu plano. Mas eu tinha amigos e família para
cuidar, e precisava ganhar essa aposta se essa fosse a única maneira de fazê-
lo manter a palavra e me permitir visitar as terras do bando novamente.
De acordo com meus cálculos, eu tinha uma semana para cumprir meu
lado dessa aposta e, pelas poucas pessoas que eu amava, faria o que fosse
preciso.
O que fosse preciso.
Só tinha que sair dali primeiro.
A natureza redundante de bater contra uma porta que fora selada com
algo mais forte do que o que um lobo poderia quebrar tinha finalmente me
alcançado, mas eu estava literalmente acabada, sem mais ideia do que fazer.
Tentei chamar Angel, mas, claramente, nosso vínculo ainda não era maduro o
suficiente para que ouvíssemos os pensamentos uma da outra.
Eu até cheguei a colocar notas escritas, “SOS”, debaixo da minha porta.
Tive que rasgar papel de um dos livros roubados que estavam no meu quarto
— isso doía, mesmo que fosse uma daquelas páginas em branco na parte
detrás. Eu tinha usado delineador para escrever uma carta de "Ajude-me" e,
como ninguém tinha me resgatado, claramente profanara um livro por nada.
Eu tinha adicionado isso à minha lista de merdas pelas quais Shadow pagaria.
Também procurei passagens escondidas no quarto, mas não havia nada
a ser encontrado.
Nessa fase, eu sairia pelo Reino das Sombras se pudesse descobrir
como tocá-lo. Irônico, uma vez que esta era a única coisa que Shadow queria
de mim, a razão pela qual ele me trancara em primeiro lugar.
Igorna soltou um uivo mais alto do que havia soltado até agora, e eu
não gostei do som disso. Mas aquele não era um lugar para mim, em uma
batalha entre feras das sombras. Só tinha que esperar que Shadow provasse
mais uma vez os rumores verdadeiros e fosse o mais assustador de todos.
Quarenta e quatro
Correndo do meu quarto, fui direto para a Biblioteca do Conhecimento.
A vontade de correr de volta para Shadow era forte, mas não havia nada que
eu pudesse fazer para ajudá-lo a não ser entrar no meio e morrer. Ele era o
mais assustador, mais fodão que eu já conhecera, e eu tinha que ter fé que
poderia se manter vivo. Sem mencionar que o canalha me trancara por dias,
então, eu ficaria de luto se ele morresse?
Quando entrei na biblioteca, não consegui assimilar a normalidade de
tudo. Brilhante e arejada, cheia de seres passeando ao redor, fazendo suas
pesquisas. Como se nenhum deles soubesse dos dias em que eu estivera
presa. Ou os novos perigos sombrios que eu trouxera para o nosso meio.
Marchando pelas prateleiras, ignorei os olhares confusos. Eles nunca
tinham visto uma garota em uma missão em busca de comida?
— Srta. Mera! — uma voz alegre chamou minha atenção. — Você
finalmente terminou seu projeto de pesquisa! Sentimos sua falta.
Fiz uma pausa, voltando-me para encontrar Gaster e seu sorriso
genuíno atrás de mim. Engolindo a fúria, forcei um riso. Ao ficar presa no
quarto, sentira-me muito traída por ele... Por todos. Pensando que sabiam que
eu estava presa, e ninguém tinha sequer colocado alguma comida debaixo da
porta. Logicamente, eu sabia que era estupidez esperar que alguém fosse
contra Shadow, mas ainda assim tinha doído.
— Projeto de pesquisa?
Ele acenou com entusiasmo.
— Oh, sim. Shadow disse que você estava ajudando-o e que queria
permanecer imperturbável.
Ele disse, não é? Devolvi o sorriso.
— Shadow é um mentiroso. Eu estava trancada em meu quarto, uma
prisioneira, sem comida ou entretenimento. Então, se me der licença...
Marchei, mas não antes de ver sua expressão murchar. Sim, isso foi
cruel e maldoso da minha parte com alguém que não merecia, mas eu estava
com fome e estressada, e esse nunca foi um bom momento para me
encurralar com algum tipo de felicidade estúpida.
Quando cheguei ao refeitório, a primeira coisa que fiz foi procurar
Angel, mas seu lugar estava vazio. Típico. Finalmente saí da minha prisão e
minha única amiga estava desaparecida. Ela claramente tinha uma vida que
não me envolvia e a vadia carente que eu era não gostava disso. Com sorte,
ela pelo menos notara que eu estava desaparecida e perguntara a alguém
sobre mim. Eu tinha que acreditar que havia uma criatura sobrenatural ali que
se importava comigo. Já que Shadow, claramente, não.
Inky apareceu do nada, enrolando-se em volta de mim, como se
quisesse me lembrar que se importava.
— Você se importa? — eu disse, expulsando-o. — Você é apenas o
puxa-saco de Shadow, e isso significa que não posso confiar em você.
Inky inchou e já fazia um tempo desde que eu o via fazer isso, então
olhei, hipnotizada pela beleza de suas sinapses brilhantes. Por um minuto,
antes de me forçar a me afastar. Era hora de começar a me distanciar de
Shadow e qualquer coisa ligada ao seu mundo.
Os pequenos garçons de metal se esconderam — eu tinha me
acostumado à presença de seres do tipo robótico, tendo aprendido que eles se
originaram na terra das Fadas. Normalmente, não gostava de ser servida, mas,
pelo que eu sabia, eles não se importavam com as tarefas que lhes eram
dadas. Afinal, tinham sido criados pela fae com o único propósito de servir.
O “rosto" quadrado de metal não tinha olhos ou boca, então não havia como
dizer se estavam felizes, mas de alguma forma eu duvidava até que sentissem
emoções como essas.
Ou talvez estivesse justificando, porque eu realmente amava o serviço
eficiente deles.
Uma vez que fiz meu pedido, eu me sentei tentando ignorar meu
estômago estrondoso e a pequena parte de mim que estava preocupada com
Shadow.
— Por que você ainda está sentada aqui? — Eu me virei para ver Angel
à minha direita.
— Você acabou... — Olhei em volta para tentar descobrir como ela
chegara ali tão rápido e sem que eu percebesse.
Ela tinha aparecido do nada? Ou podia se mover em supervelocidade?
— Shadow está ocupado com outra entidade poderosa — ela sussurrou,
inclinando-se perto do meu ouvido. — Meus espiões me disseram que ele vai
ficar fora por pelo menos algumas horas. Vamos arranjar uma transa para
você.
Eu deveria estar de pé correndo para o corredor e para fora dali, mas
hesitei.
— Preciso de comida primeiro. Não como há dias.
Ela se inclinou para trás, olhando-me mais profundamente, com as
sobrancelhas franzindo a testa.
— Deixe-me adivinhar. Shadow não tinha você em um projeto de
pesquisa. — Balancei a cabeça e ela fez um barulho irritado. — Preciso bater
nele.
Eu também, garota. Eu também.
— Ele me trancou no meu quarto com a intenção de me deixar lá até
que eu descobrisse como abrir o Reino das Sombras. Tentei chamá-la através
do nosso vínculo, mas provavelmente não tenho ideia de como ele de fato
funciona.
Seu rosto angelical se transformou por um momento em algo que se
assemelhava a um prenúncio de vingança até a morte. Não era menos bonito,
mas era aterrorizante em sua intensidade. O tipo de rosto que quando
direcionado a alguém o faz correr.
— Nosso vínculo levará tempo para amadurecer — ela respondeu — e
eventualmente você vai me sentir como parte de sua energia, de uma maneira
semelhante ao seu lobo.
Concordei com a cabeça, porque isso fazia sentido.
— E Shadow — ela rosnou —, é o próximo da minha lista para
destruir. Perguntei a ele especificamente sobre você, e não aprecio ser
enganada.
Suspirei.
— Tecnicamente, ele não mentiu. Shadow me deixou lá para descobrir
como abrir a porta para o Reino das Sombras. Acho que era o "projeto
especial dele".
— Mentir por omissão ainda é mentir. Eu estava perguntando pelo seu
bem-estar e deixá-la morrer de fome não é garantir a saúde ideal.
Aprendi que, quanto mais formal seu discurso era, mais irritada ela
estava.
Não questionei.
— Bem, tenho certeza de que não vai querer discutir sobre o
planejamento da morte dele. Deixe-me saber se você quiser alguma ideia.
Seu sorriso era brilhante, se não um pouco frágil, já que a raiva ainda
beliscava seu rosto.
— Ouvi dizer que o sinal de uma verdadeira amizade na Terra é
encontrar alguém que o ajude a esconder um cadáver.
Mais uma vez, uma criatura sombra me procurara. E, mais uma vez, eu
não tinha a mínima ideia do porquê.
Entrando no covil momentos depois, estava tudo calmo e silencioso, ao
contrário do caos da biblioteca. Qualquer magia das Sombras que mantinha
este lugar um santuário parecia ainda estar intacta. Apenas silêncio, e um ar
frio cortante...
Espere, frio? Nunca fez frio aqui...
Mudando de direção, minha loba desviou em direção ao meu lugar
favorito com seus sofás macios e fogo rugindo. Um fogo que, pelo que eu
sabia, nunca tinha se esgotado ou mesmo queimado baixo.
Até esse exato momento.
Nem um grão de chama era visível, o interior escurecido parecia estar
frio havia dias. Minha loba nos guiou para a frente, choramingando enquanto
um verdadeiro medo entrava em nosso peito.
Shadow tinha sumido. Se o fogo tinha se apagado, isso significava que
a energia da fera não estava mais presente para mantê-lo funcionando? Ele
tinha encontrado uma maneira de voltar para o Reino das Sombras com
Igorna? Ou a criatura conseguira destruí-lo?
As perguntas giravam em minha cabeça e, mesmo na minha forma de
lobo, com emoções humanas mudas, estávamos com medo. Indo em direção
ao meu quarto, nós nos movemos lentamente, não querendo ser emboscadas.
Rastejando pelas pilhas de livros, notei que nada fora destruído, então, além
da falta de fogo, não havia como dizer que algo estava errado. Mas no fundo
da minha alma, o lugar onde eu acreditava que o instinto surgia, eu senti a
mudança.
E não gostava disso.
Quando chegamos ao meu quarto, a porta estava entreaberta — nunca
estava entreaberta. Então agora tínhamos dois distúrbios no status quo, e isso
era tudo de que eu precisava para saber que estávamos completa e totalmente
ferradas. Rastejando para dentro, permiti que meus sentidos vagassem
livremente primeiro.
Não havia nada. Sem cheiro, batimentos cardíacos, ressonância de
poder ou presença física. Caminhando mais para dentro da sala, fiquei
aliviada ao ver o quarto parecendo vazio e intocado. Nenhuma luta maciça
tinha acontecido ali, estava claro, e eu não perdi mais tempo, retornei à forma
humana e coloquei roupas novas.
Grata por ter tido a chance de comer e por minha energia não estar
completamente esgotada mesmo depois de uma transformação rápida, joguei
uma jaqueta sobre o top e puxei minhas botas. Saí correndo do quarto, meu
objetivo era voltar para a Biblioteca do Conhecimento, encontrar Gaster, e
forçá-lo a me contar tudo sobre o Reino das Sombras. Já não aceitaria a
resposta de merda dele de que não é da minha conta.
Sim, desculpe, mano, quando dois mundos começam a colidir, qualquer
detalhe sobre eles passa a ser da conta de todos.
A biblioteca havia recuperado um pouco de sua compostura quando
retornei, os duendes corrigindo qualquer coisa que tivesse sido perturbada
pelos caçadores. Aqueles dois cortaram um caminho de destruição através
das prateleiras em sua jornada em direção a Angel e a mim. E uma das
minhas maiores perguntas pendentes era por que eles tinham como alvo... a
mim.
A menos que fosse Angel o primeiro foco de eliminação, como um dos
poucos seres que poderia chutar o traseiro deles. Parecia narcisista continuar
pensando que essa merda de drama de sombra estava toda centrada em torno
de mim, mas, porra, isso continuava vindo sempre no meu caminho.
— Mera!
Eu esperava que a chamada viesse de Angel, mas na verdade era Len, o
amigo de vestes prateadas e de língua prateada de Shadow.
— Você precisa vir comigo — disse ele com pressa.
Balancei a cabeça.
— Não, não posso. Tenho que encontrar Gaster ou Angel. Tenho tantas
perguntas que precisam de respostas...
Ele estendeu a mão, colocou na minha testa e quase imediatamente a
escuridão nublou minha mente.
— Seu filho da mãe — mal pronunciei as palavras antes que o que ele
tinha feito tivesse efeito total, e eu caí em seus braços.
Quarenta e sete
Acordei lutando, rosnados no peito enquanto os uivos da minha loba
soavam livres. Por alguns segundos, fiquei presa entre loba e mulher, graças à
magia fae que Len usou em mim. Lembrei-me claramente de como a energia
dele tinha começado na ponta dos meus dedos e trabalhado até que meu
cérebro estivesse sobrecarregado, e eu tinha desmaiado.
E agora eu estava pronta para chutar a porra de uma bunda fae.
Rolando para fora da superfície macia, caí no chão silenciosamente,
meio agachada enquanto olhava ao redor. Eu estava em um jardim. Não, na
verdade, o jardim era muito mais um eufemismo, para ser precisa.
Eu me encontrava no epicentro da parte mais perfeita da natureza que
eu já tinha visto. Flores corriam por quilômetros, em cores que não existiam
no plano terrestre. Pontilhadas entre árvores, tão magníficas e grandiosas que
toda a cena parecia ser uma representação pintada de perfeição.
E o cheiro. Meu Deus. Quando dei um passo à frente, uma enorme
avalanche de perfumes me atingiu. Não tinha como eu estar na Terra ou na
biblioteca e, considerando que foi Len quem decidiu me deixar ali, isso me
levava a uma conclusão lógica.
Eu estava em uma terra proibida para mim e já tinha sido avisada de
que nunca deveria pisar ali.
Faerie.
O que fazem com terráqueos que tropeçam em seu mundo me faz
parecer um santo.
Esse aviso era muito mais assustador agora.
Shadow era um bastardo de sangue-frio que não pensava nada além de
me forçar, punir e possuir, como se eu fosse um móvel que ele tinha, e me
avisara sobre esse lugar.
Sim, eu estava ferrada e, quando colocasse as mãos em Len, arrancaria
o cabelo bonito da cabeça bonita dele.
Incapaz de ficar parada quando parecia que eu estava sob ataque —
apesar da completa falta de algo alarmante ao meu redor —, rastejei para a
frente através das faixas de flores. Fiz um esforço enorme para não tocar em
nada e, meia dúzia de passos depois, passei por um monte de flores amarelas
como margaridas. Margaridas que tinham três metros de altura, com espinhos
roxos até as hastes. Do outro lado delas estavam cachos florais mais curtos,
em um rosa quase ofuscante em sua intensidade.
Essas flores, acima de todas as outras, chamaram-me a atenção. Meus
passos vacilaram, e eu me vi estendendo a mão para correr a ponta dos dedos
ao longo de suas hastes aveludadas. Elas eram quase perfeitas demais, sem
uma única falha em sua folhagem ou variação nas pétalas.
A perfeição me deixou desconfortável. Nada vivo poderia parecer tão
impecável, e ainda assim senti sua energia. Toda a natureza tinha, e essas
flores eram particularmente fortes. Parando um pouco antes de meus dedos
fazerem contato, inalei um último suspiro de seu doce cheiro, antes de seguir
em frente.
— Pare, Mera!
O comando me fez puxar a mão de volta, meu coração trovejando no
peito. Porra, eu tinha perdido a cabeça lá por um minuto e quase tinha feito
exatamente o que prometera não fazer. Não toque, coma ou interaja com
Faerie. Essa era a velha lenda urbana e eu tinha todos os motivos para aceitá-
la, até que as flores me atraíram.
Len, meu sistema de avisos, chegou mais perto, vestido de forma mais
casual do que eu já o tinha visto antes. Seu manto prateado tinha ido embora,
revelando um conjunto impressionante de ombros largos envoltos em uma
simples camisa preta de manga comprida. Eu nunca o tinha visto usando uma
roupa tão escura, e o contraste era admirável com sua coloração prateada.
Ele era esguio comparado a Shadow, mas a maioria dos homens era, e
agora, com as mangas arregaçadas até o topo dos antebraços, era possível ver
o músculo bem definido. As calças pretas apertadas não faziam nada para
esconder o resto de seu físico, e era surpreendentemente óbvio como ele tinha
se desenvolvido em tal flerte. As mulheres se atiravam em alguém assim. A
maioria das mulheres..., mas eu não.
Assim que Len estava em uma distância razoável, eu andei para a
frente, puxei o braço para trás e bati o punho em seu rosto. Confusão passou
por suas feições enquanto sua cabeça girava.
— Merda, Mera — gemeu, esfregando a bochecha. — Para que isso?
Eu rosnei, um som de lobo selvagem.
— Como você se atreve a me arrastar até aqui sem minha permissão?
— Você não pode nos matar com armas que não nasceram do Reino
das Sombras — ele devolveu. — As lâminas de Angel são formidáveis, mas
não nasceram da sombra. Ela apenas destruiu a estrutura física, e aqui, sem as
névoas, é mais difícil encontrar energia para nós reabastecermos. Eu os
tranquei antes que eles conseguissem recuperar o poder total.
Certo. Certo. Essa fora a razão pela qual ele não havia matado as
criaturas em primeiro lugar, mas apenas as trancado. A menção às “névoas"
me lembrou de suas tatuagens, e isso estimulou minha curiosidade de uma
forma totalmente nova e abrangente.
O nome quase parecia... familiar. Mas o flash de um déjà-vu não
poderia ter sido mais do que um choque aleatório de energia, porque eu não
tinha conhecimento dessas névoas a que ele se referia.
Shadow tocou as chamas e, ao contrário de um mortal normal, ele não
foi queimado até a morte por manusear fogo. Em vez disso, as labaredas
pareciam saltar em suas palmas e carinhosamente afagá-lo.
Virando-se de costas para mim, ele concentrou toda a atenção no fogo.
— Obrigado — murmurou, seguindo com um monte de palavras em
língua estranha.
Soavam quase como uma canção, as expressões, uma melodia rítmica
reconfortante, e a magia seguia cada batida.
Levei um segundo para entender o que ele estava fazendo: liberando
seu feitiço. Shadow recuou e as chamas aumentaram, envolvendo as criaturas
completamente em uma bola de fogo. Estava tudo em silêncio no campo
agora, todos os urros e rugidos cortados pela energia desse feitiço.
A bola subiu no ar com as criaturas a bordo, seguindo-nos quando
começamos a andar. Quando nos aproximamos da borda de um afloramento
rochoso, a porta para a biblioteca apareceu, e eu brevemente peguei um
movimento externo com o canto do olho, mas ele se foi quando olhei mais
fixamente.
Provavelmente um coelho ou uma raposa — essas florestas estavam
cheias de animais, apesar da presença de metamorfos em seu meio. Desejei
que tivesse sido um metamorfo para que eu pudesse passar uma mensagem
para minhas amigas. Mais uma vez, eu estava saindo sem vê-las e, sempre
que isso acontecia, um pedacinho da minha alma se encolhia. Mesmo que não
parecesse, já tinha se passado um ano. Um ano sem saber que estavam bem.
— Shadow — eu disse abruptamente, fazendo-o parar de caminhar.
— Eu não posso sair sem verificar minhas amigas. Sei que disse que cuidaria
da Dannie... Você jura que ela está bem?
Eu estava observando-o de perto, procurando a verdade em seus olhos.
— Ela tinha ido embora quando eu fiz uma visita a Torma — ele me
disse. — Existem rumores de que ela escapou, e eu não consegui farejá-la
nas proximidades ou sentir sua energia. — Seus olhos não estavam
mentindo, mas eu também não me sentia tranquila com essa informação. Ou
com a falta de, na verdade. — Ela é astuta — acrescentou como se a
conhecesse — e algo me diz que eles só a seguraram porque ela permitiu. Ela
vai ficar bem. Você a verá novamente.
Permaneci focando-me em seu olhar, mas ele não vacilou. Não que o
meu fosse quebrar Shadow, mas eu tinha que mostrar que levava isso muito a
sério. Ele acenou com a cabeça como se respeitasse o fato, e eu me perguntei
se isso era mais um passo positivo em nosso relacionamento. As coisas entre
nós não estavam muito claras, e eu não sabia como lidar com minhas
emoções sobre isso.
— Vamos levar essas criaturas de volta para a biblioteca — disse
Shadow, lembrando-me do real motivo de estarmos ali.
— Sim — eu disse, dando um último suspiro nesse ar familiar, um
leve desejo por minha alcateia deslizando através de mim antes de desatar tão
facilmente quanto eu guardava minha loba ao terminarmos um turno.
Parte de mim nem se lembrava de ter estado em Torma, mas minha
loba sentia falta do bando e, verdade seja dita, uma pequena parte de mim
também.
Quando entramos no salão branco, deixando para trás os campos
invernais da Terra, segui Shadow, que não perdeu tempo. O fogo encheu o
corredor de luz e calor até chegarmos à próxima prisão. Shadow liberou as
criaturas em uma sala extragrande, e, depois que eles caíram do fogo, ele
selou a porta com sua energia. Energia que se parecia muito com Inky —
uma nuvem de fumaça se instalando sobre a entrada. A energia de Shadow e
Inky era a mesma, e isso não me surpreendeu nem um pouco. Eu já tinha
descoberto que, o que quer que fosse Inky, estava ligado irrevogavelmente a
Shadow Beast, e eles nunca poderiam ser separados completamente.
— Eu Vou comer o jantar no covil — disse Shadow uma vez que nossa
tarefa estava completa.
Não pude evitar uma risada.
— Como você chamava todas as suas merdas antes de me conhecer?
Ele não riu, mas sua expressão foi divertida.
— É um traço humano querer rotular tudo. Algumas coisas apenas são,
sem necessidade de título ou substantivo adequado.
Isso me pareceu estranho, mas eu não discuti, porque provavelmente
era uma característica humana. Quando entramos na Biblioteca do
Conhecimento, ela funcionava como de costume. Vários habitantes dos
mundos, espalhados, pesquisando tudo e me dando um pequeno vislumbre de
culturas em que eu provavelmente nunca conseguiria me enxergar.
A familiaridade era agradável, porém, como o negócio de criaturas-
sombra poderia finalmente ter ficado para trás, nós até tínhamos um plano de
jogo sólido dali para a frente.
Tudo era uma questão de pesquisar. Para variar.
Cinquenta e três
Antes de chegarmos ao covil, fomos emboscados por Gaster. O duende
estava muito entusiasmado com a notícia de que o problema das sombras
tinha acabado por enquanto, e que tínhamos um plano para devolvê-los ao
reino.
Shadow permaneceu reservado ao conversar com o duende, dando
respostas curtas... Se é que respondia a tudo. Ninguém além de mim podia
forçar a barra com o grande bruto, e eu ficava feliz em aceitar que o que quer
que ele falasse era lei. Se o duende soubesse que o único foco de Shadow era
realmente voltar para o Reino das Sombras, para se vingar daqueles que o
haviam injustiçado, parte do seu entusiasmo poderia desaparecer.
Ou... provavelmente não.
A confiança cega que todos tinham em Shadow era surpreendente.
Quando estávamos prestes a entrar no covil, ouvi meu nome ecoar pela
sala e me virei. Eu me engasguei ao ver Angel, que estava enfeitada como
uma guerreira. A garota estava completamente coberta em uma armadura
prata, que com certeza fora moldada em seu corpo, fixada ao redor das asas,
com tantas lâminas que perdi a conta das alças saindo de vários lugares.
— O que aconteceu? — perguntei, correndo em direção a ela. — Honor
Meadows entrou em guerra?
Ela não disse uma palavra, apenas jogou os braços ao meu redor me
abraçando como se pensasse que nunca mais me veria. Eu não conseguia
respirar, mas não me importei, porque esse foi um dos melhores abraços que
já recebi. Eu me afundei nela e segurei por bastante tempo, precisando da
conexão emocional que só uma amiga pode dar. Caras e sexo são ótimos e
tudo mais, mas, se você nunca teve uma melhor amiga estilo “tentar ou
morrer tentando”, está perdendo uma conexão insubstituível.
Uma de que precisamos para sobreviver.
— Você foi embora — disse ela quando se afastou, com a voz
embargada, mesmo que seus olhos estivessem secos. — Procurei nas terras e
questionei em todas elas, mas ninguém sabia o que tinha acontecido. E nosso
maldito vínculo... É melhor começar a amadurecer, porque eu não posso lidar
com o estresse de você vagando por aí por conta própria.
Então Shadow se juntou a nós e, em um instante, a amiga de luto se foi,
sendo substituída por uma guerreira durona. As armas estavam em suas mãos
tão rápido, que eu não consegui rastrear o movimento, e ela nem hesitou em
atacá-lo. O que me chamou atenção, e que mais admirei, foi a postura de
Shadow, que não agiu como se tê-la como oponente fosse motivo de piada.
Ele deu-lhe o tipo de atenção que ela merecia, tratando-a como uma
adversária digna, e assim o casal lutou.
Shadow apareceu com uma lâmina preta e esfumaçada do ar, e eu me
perguntei brevemente se era Inky, manifestado em outra forma.
Normalmente, ele estaria por perto, mas eu não podia vê-lo em qualquer
outro lugar.
Angel lutou com foco único, atacando uma e outra vez, nunca cedendo
ou dando-lhe um centímetro. Ela estava além de espetacular, e eu
honestamente não sabia para quem estava torcendo no final. Eu meio que
queria que os dois ganhassem, para ser honesta, mas como amava Angel e
não odiava Shadow naquele dia, provavelmente era melhor separá-los.
— Pessoal — eu comecei, na tentativa de interromper sua intensa
necessidade de furar um ao outro. — Vamos falar sobre isso durante o jantar.
Eu estou bem.
Sem resposta ou pausa. Estávamos começando a atrair uma multidão, e
eu não precisava disso para me transformar em nada mais do que era.
Conhecendo Shadow, ele iria querer provar um ponto, uma vez que todos os
seus servos estavam assistindo. Tive que detê-los antes que o pior
acontecesse.
Com uma respiração profunda, fiz a coisa mais estúpida que eu poderia
pensar, mas também a única ação segura para os fazer parar com a luta. Pulei
entre os dois, bem na hora em que Angel girou e bateu com sua lâmina
maciça, superafiada. Ela me viu no último instante, gritando um "não", mas
era tarde demais para cessar o ataque. Esperando não ser cortada em dois,
levantei um braço e me preparei para a dor.
Tudo depois disso passou a se mover em câmera lenta e, mesmo que
minha destruição estivesse se aproximando, eu vi o resto dela cair com uma
curiosidade quase alheia. O rugido de Shadow ensurdeceu todos na sala,
colocando a maioria deles de joelhos e, quando a faísca de seu poder atingiu
meus ombros, fui empurrada para fora do caminho no momento em que a
lâmina cortou meu braço.
— Chega! — Shadow gritou sem me soltar. Sua voz baixou
dramaticamente. — Eu a mantive segura, Melalekin. — Só Angel e eu
poderíamos ter ouvido essas palavras. — Você não tem motivos para duelar
comigo.
Seu peito estava pesado, olhos ainda cheios de horror com o que ela
quase tinha feito.
— Da próxima vez não serei tão tolerante, Darkor — ela murmurou,
também muito baixo. Foi só uma conversa entre nós três. — Lembre-se disso.
Então, com um olhar suave para mim, ela girou e saiu.
Minha respiração ainda era rápida, a sensação de que eu estava mais
perto da morte do que nunca pairando sobre mim. Shadow tinha me salvado,
e eu não conseguia pensar em mais nada. Exceto talvez... Eu acabava de
aprender o nome verdadeiro deles?
Era um conhecimento tão insignificante, e ainda assim parecia
incrivelmente grande para mim. Como se tivesse sido introduzida em um
clube exclusivo. Eu me senti muito privilegiada por ter outro pequeno pedaço
dos dois seres com quem havia passado mais tempo ali.
Levei um momento para perceber o calor saindo de Shadow Beast. Ele
estava furioso, mesmo que ninguém mais soubesse, porque seu rosto era
impassível. Não me libertou do seu poder, voltando-se para entrar no covil.
Eu não tinha ideia de por que ele ainda estava me segurando junto ao peito
daquele jeito, mas a parte traidora de mim que estava um pouco a fim dele
não queria discutir o assunto. Era o tipo de cuidado possessivo que mexia
com a minha cabeça. Minha e da minha loba. Nós duas queríamos rolar e
ronronar como uma gatinha.
Quando Shadow atingiu a barreira de seu covil, e assim que ele
começou a passar, as luzes piscaram. Eu nunca tinha visto isso acontecer
antes, mas não pareceu nada alarmante... Pelo menos não para mim.
Shadow fez uma pausa, seu olhar inclinando-se para procurar acima de
nós. Depois de me pôr gentilmente de pé, ele me colocou para atrás dele.
— O fogo foi restaurado — disse baixinho. — Vá para o covil.
— Não — recusei, colocando a mão contra suas costas. Os músculos
estavam firmes sob o meu toque; ele estava tenso, e isso me preocupava. —
O que está acontecendo?
A cintilação de luzes devia ser uma preocupação urgente para ele reagir
daquele jeito.
— Raio de Sol, pela primeira vez em sua maldita vida, me escute. Você
precisa fugir agora...
Suas palavras foram cortadas quando a biblioteca mergulhou na
escuridão. Um segundo depois, o fogo de Shadow veio à vida, o calor
dominava tudo menos a mim.
Ele começou a avançar, mas chegou tarde demais. Quem tinha
desligado as luzes nos atacou, duas figuras escuras aparecendo. Antes que
Shadow pudesse matá-los onde eles estavam, um arco de pó escuro e
brilhante atingiu nós dois, e, quando me engasguei com a poeira, Shadow
caiu de joelhos ao meu lado.
Desorientada pelo que estava no pó, eu mal registrei que tinha sido
agarrada, mãos pesadas me levantando e carregando pela biblioteca coberta
pela escuridão.
— Não! — Tossi mais da poeira alojada na minha garganta.
Eu estava lutando contra aquilo, lutando muito mal, mas era melhor do
que nada.
— Sunny, pare. Sou eu.
Fiz uma pausa com a voz familiar: Jaxson.
Como Jaxson fora parar ali? E o que ele havia feito com a biblioteca e
Shadow? De jeito nenhum esse metamorfo poderia ter conseguido jogar um
feitiço sobre eles sem alguma ajuda séria.
— Deixe-me ir, droga — rosnei antes de tossir novamente.
O pó estava pegajoso em minha garganta, agarrado com muita
intensidade.
— Estamos resgatando você, sua vadia idiota — isso veio de Torin, que
aparentemente estava ali para fazer essa porra também.
— Shadow vai rasgar vocês dois em um milhão de pedaços — eu disse,
minha voz rouca. — É melhor sair daqui agora e esperar que ele nunca
descubra que foram vocês.
Jaxson, ainda me carregando, não diminuiu o ritmo.
— Vamos bloquear a porta — disse ele com pressa. — Nós vamos ser
capazes de mantê-lo fora por um período de tempo indefinido. Você estará
segura.
— Eu nunca estive em perigo, seus idiotas — eu rosnava. — Libertem-
me agora ou Shadow será a menor de suas preocupações.
Eu libertei minha loba e ela veio rosnando para a superfície enquanto
partes de nós iam se transformando para que pudéssemos cortar aqueles que
nos seguravam.
— Use mais do pó do dia seguinte — Torin disparou. — Acerte-a e
leve essa idiota para fora. Shadow Beast chegou até ela; vamos precisar
destruí-la.
Me destruir? Oh, cara, eu ia mostrar a ele o quão errado estava...
Na escuridão, um tapa do pó me atingiu na cara, pior do que antes, eu
me engasguei e sufoquei com a substância. Minha vontade de lutar se
dissolveu ficando reduzida a nada e, quando respirei mais da mistura nojenta,
a escuridão me engoliu completamente.
Deixando-me vulnerável com os dois machos que eu mais odiava no
mundo.
Cinquenta e quatro
A sensação de acordar em lugar e situação desconhecida foi uma das
piores que eu já tinha experimentado, e isso vinha acontecendo demais
ultimamente. Eu precisava mudar minha escolha de vida — porque essa porra
não era saudável.
O que quer que o alfa e seu beta tivessem usado para me submeter tinha
deixado para trás uma ressaca furiosa, e uma vez que terminei de vomitar bile
e tudo mais que estivesse em meu estômago, eu me virei para me encontrar
acorrentada a uma cama. Apenas por um tornozelo, mas era uma corrente de
prata, reforçada e muito forte para que eu pudesse quebrar — algo que eu
soube depois de várias tentativas de me libertar.
Quando a pancada na cabeça aliviou um pouco, eu me levantei para ver
o ambiente melhor. Estava no quarto do Torin. Tinha um sentimento terrível
sobre o que isso significava; o alfa não estava brincando a última vez que nos
encontramos e agora cumpria sua palavra colocando-me em um harém com
Sisily. Eu tinha que acabar com o vínculo agora — permanentemente. Só
precisava esperar até que ele estivesse na sala e perto o suficiente para
garantir que funcionasse.
Outra onda pulsante de dor atravessou minha cabeça quando me
perguntei novamente o que havia no pó com o qual eles nos atingiram. Que
tipo de substância poderia fazer isso com Shadow e a Biblioteca do
Conhecimento? Quero dizer, como diabos os metamorfos puderam entrar na
biblioteca sem ajuda, em primeiro lugar?
Ou será que eles nos seguiram?
Houve aquele movimento que eu tinha visto quando estávamos
deixando Torma com a bola de fogo. Eu tinha descrito como uma raposa ou
coelho, notando pele nos arbustos, mas poderia ter sido mais. Poderiam ser
dois metamorfos cabeças-duras pensando que estavam me salvando. O tempo
todo querendo se vingar de Shadow.
A porta do quarto se abriu antes que eu pudesse pensar mais sobre isso,
Torin entrando com sua arrogância de merda. Minha loba mexeu-se em meu
peito, mas não foi como da última vez que ela reagiu a ele. A saudade e a
necessidade se foram. A vontade de se submeter ao seu alfa e companheiro
tinha desaparecido por conta da nossa fúria pelo que ele tinha feito conosco.
Depois de todos os anos de bullying e tormento, depois de me rejeitar, o fato
de ele pensar que poderia entrar na minha vida e tomar qualquer decisão por
mim fazia meu corpo queimar em cólera.
Eu ansiava por seu sangue. Debaixo das minhas unhas e na minha boca
enquanto arrancasse a garganta dele.
— Olá, companheira — disse ele alegremente. — Estou aqui para
libertá-la agora que sei que você não vai sofrer qualquer efeito colateral.
Eu não disse uma palavra, apenas olhei para baixo com o tipo de olhar
que teria preocupado um metamorfo mais inteligente. Este idiota era tão
egocêntrico para se preocupar em olhar de perto o suficiente para ver a morte
nos meus olhos.
Enquanto suas mãos envolviam meu tornozelo, ele acariciava-o com
lentidão, e eu me forcei a continuar respirando uniformemente.
— Você está feliz por estar de volta, querida? — perguntou ele, com a
estupidez habitual.
Minha mandíbula estava tão fechada que eu não podia falar, mas
consegui responder com um aceno de cabeça, e ele pareceu feliz o suficiente
com isso.
— Você vai esquecer seu tempo com Shadow em breve — acrescentou
ele, enquanto a corrente acoplada a minha perna finalmente foi liberada.
No momento em que isso aconteceu, minha loba assumiu o controle.
Eu não tinha percebido, absorvida em minha própria fúria, que ela estava
absolutamente fora de controle, e em segundos nós mudamos. Como lobo, fiz
exatamente o que meu pai tentara ao atacar o alfa de Torma. Eu não esperava
que Torin antecipasse o ataque, mas de alguma forma o idiota sabia.
— Pare!
Era um comando revestido de poder alfa e, ao contrário do que
acontecera da última vez, quando eu estava em minha forma humana, ele
realmente controlou minha loba. Nós rosnamos e lutamos, mas, como
tecnicamente esse ainda era o meu bando, fui forçada a seguir as regras da lei
da alcateia. Embora seu controle ainda fosse frágil, na melhor das hipóteses.
— Vamos correr — acrescentou e mudou para o lobo tão rápido que eu
teria ficado impressionada se ele não fosse tão idiota.
Minha loba tentou atacar de novo, mas ele a manteve trancada com a
magia alfa, nossas pernas só conseguiam se mover quando o estávamos
seguindo, assim como ele queria. Ela não lutou de novo, e eu sabia que no
fundo minha loba ainda tinha uma pequena esperança de reivindicar seu
companheiro, sem importar o quão chateada ela estava agora.
Meu lado humano, em contrapartida, nunca pararia de tentar arrancar a
cara desse filho da puta.
Torin manteve seu poder sobre nós durante toda a corrida, e
experimentei um sentimento agridoce ao cruzar aquelas terras com meu
companheiro, embora mais uma vez fosse uma maldita prisioneira. Tempos
melhores surgiriam em breve, tempos em que eu não seria uma vítima de
todos os poderosos idiotas que achavam que podiam impor sua vontade a
mim.
Nesse momento eu odiava todos eles.
Quando Torin terminou, voltamos para a casa principal, e ele saltou ao
meu redor como um cachorrinho brincalhão. Minha loba não respondeu, nós
duas estávamos cansadas dele. Por fim, ele voltou à forma humana,
desaparecendo para voltar vestido com Jaxson ao seu lado. Eles se sentaram
na minha frente, e eu olhei para o meu amigo mais antigo — que virara
inimigo. Mesmo através da minha visão de lobo, ele parecia cansado; tinha
envelhecido no último ano.
— O que podemos fazer para provar que é aqui que você deveria estar?
— perguntou ele, inclinando-se para a frente enquanto me olhava. — Torin
está no comando agora e ele vai garantir que ninguém mais a culpe pelo erro
do seu pai. Você não tem ideia do que passamos para tê-la de volta. Não
entendo por que você não está extremamente grata.
Minha loba rosnou, um som mais profundo do que qualquer outro que
eu já tinha emitido antes quando ela entrava em modo furioso, alimentada
pela raiva que fervia por anos dentro de nós. Se esses dois fodidos não
fossem cuidadosos, eu traria a totalidade do Reino das Sombras para baixo,
sobre nossa cabeça, com minha fúria.
— O que você quer de nós? — Torin questionou, um sorriso estúpido
em seu rosto. — E se eu lhe der algo primeiro para mostrar que levo a sério a
ideia de consolidar nosso vínculo?
Eu precisava estar de volta em forma humana para que pudesse gritar
com eles, mas isso me deixaria nua na frente desses dois idiotas, e então eu
teria um novo combo de problemas.
Felizmente, antes que eu tivesse que escolher entre uma pedra e um
lugar seguro, alguém novo chegou rasgando a grama, roupas na mão, e
lágrimas escorrendo pelo rosto. Simone caiu na minha frente, com o rosto
destruído, as mãos tremendo enquanto segurava a roupa em minha direção.
— Eu posso fazer sua vida melhor do que você poderia imaginar —
disse Torin e, quando tirei meus olhos da minha amiga, foi para encontrá-lo
todo presunçoso e seguro em sua imponência.
Pensando que me tinha exatamente onde ele queria ao manter minha
melhor amiga na minha frente.
O pior é que ele estava certo. Eu desistiria de muita coisa por esse
momento com Simone. Muita coisa.
— Vamos deixar você para se vestir — disse Jaxson, que me conhecia
muito melhor do que Torin poderia esperar.
Minha independência sempre foi importante, mesmo antes de minha
família ter fodido nosso lugar no bando, e eu odiava ser vigiada.
Torin queria discutir, mas, quando Jaxson proferiu algo perto de seu
ouvido, ele soltou um suspiro e seguiu seu amigo sem maiores
desentendimentos. Quando eles estavam fora de vista, a energia que me
continha foi aliviada para que eu pudesse voltar à forma humana. Puxei os
suéteres que Simone trouxera para mim, corpo e mãos tremendo enquanto eu
lutava para me recompor.
— Mera — suspirou, ainda de joelhos no meio do campo.
Era como se ela não pudesse fazer as pernas funcionarem, o choque
tornando-a imóvel.
Com o coração batendo contra o peito, a intensidade desse momento
era ainda mais forte do que eu esperava, e caí de joelhos também. Não tinha
ideia de como tudo isso ia ser. Apesar de seus cabelos negros, Simone tinha o
temperamento de uma ruiva, assim como eu, e ela provavelmente reagiria de
duas maneiras: ou perderia a merda do controle e gritaria comigo até
desmaiar. Ou ela...
Ela se lançou para a frente, com os braços me envolvendo firmemente
enquanto soluços a sufocavam.
— Eles me disseram que você estava viva — ela balbuciou —, mas não
confio em nenhum desses bastardos.
Devolvi o abraço com igual força, se não mais, respirando seu cheiro, o
anis particularmente forte nesse dia. Antes que eu percebesse, nós duas
estávamos gritando e tentando falar um milhão de coisas ao mesmo tempo.
— Senti tanto a sua falta!
— Foi o ano mais longo sem você aqui!
— Vou matar esses filhos da puta metamorfos!
— Como você pôde me deixar aqui com eles!
Continuamos, até termos a maior parte da nossa raiva e angústia
aliviadas, tudo isso sem deixar o abraço da outra. Quando as lágrimas
finalmente diminuíram, nós nos sentamos lado a lado, e eu dei meu primeiro
suspiro real desde que fora roubada de Shadow. Uma espécie de inalação
profunda e purificadora.
— Não posso ficar aqui — eu disse a ela calmamente. — Senti sua falta
todos os dias, preocupada com você, e chorei porque não tinha certeza se a
veria de novo, mas nem mesmo por você vou ficar em Torma com este
bando.
O rosto de Simone era feroz.
— Eu nunca esperaria isso. Estou mais do que disposta a sair daqui
para sempre. Até meus pais... Eles se recusaram a fazer qualquer coisa para
me ajudar a encontrá-la. Nem uma coisa!
Alcancei a mão dela, apertando-a firmemente.
— Você é a melhor amiga que eu poderia desejar. Ficou ao meu lado
por tantas vezes que, honestamente, nunca poderei retribuir. Mas essa jornada
em que estou agora... — Suspirei. — É perigosa e não quero que você se
arrependa da decisão de vir comigo. Não quero que se machuque.
Simone se esticou, gesticulando para a trança quase perfeita em seu
cabelo.
— Se posso aprender a trançar meu cabelo, eu posso fazer qualquer
coisa. Já me transformei duas vezes. Estou me relacionando bem com minha
loba. Você não tem que se preocupar comigo.
Ela não entendia. Ela nunca seria capaz de entender, a menos que
experimentasse o mundo como eu tinha feito no ano passado. A vida de
Shadow não era para os fracos de coração e, por mais que ela estivesse cheia
de fogo e força, minha amiga fora mais protegida do que eu. Ela tinha sido
mimada pelos pais, não importa o quanto os odiasse nesse momento.
Eu não poderia roubá-la, mesmo que ela pensasse querer isso agora.
— Amo você — eu disse. — E agora não tenho escolha a não ser ficar,
porque não sei como abrir a porta para a biblioteca, mas, quando descobrir
isso, eu vou embora. Estou ajudando Shadow com algo bastante importante, e
ele não pode fazê-lo sem mim.
Ela piscou para mim.
— Shadow?
Merda. Como explicar isso a ela?
— Shadow Beast — comecei — não é exatamente como dizem os
contos. Ele é definitivamente assustador e poderoso. Ele é o alfa, mais do que
um pouco possessivo, e várias vezes ao longo do último ano sonhei em
esfaqueá-lo no peito. Mas também há algo... algo a mais sobre ele. Algo
profundo e inesperado. Ele é surpreendentemente nobre e bom; quando você
não o está irritando.
Sua boca estava entreaberta, os olhos tão largos como discos enquanto
ela silenciosamente olhava para mim.
— Você está apaixonada pelo Shadow Beast? — Ela finalmente se
engasgou. — O demônio de nossos pesadelos? O deus que criou
metamorfos? — Inclinando-se, ela colocou uma mão na minha testa para
verificar se eu estava com febre.
Com uma risada, gentilmente peguei sua mão. Isso seria o auge da
porra da estupidez. Mas eu precisava terminar essa tarefa.
Ela torceu o nariz.
— Certamente, ele não precisa de você para nada. Não a culpo por
querer ficar por lá, garota. De acordo com os membros do bando que o viram,
ele é a coisa mais sexy em duas pernas que este mundo já viu.
— Não apenas neste mundo — eu murmurei, irracionalmente irritada
porque outros estavam falando dele dessa forma.
Simone empalideceu.
— Não quero saber. Mal assimilei o fato de que você finalmente está
aqui. Viva. Depois de tanto tempo.
Meu sorriso era genuíno, e era estranho ter um momento de felicidade,
enquanto o resto de mim estava em um minipânico, dado o que tinha
acontecido com Shadow e a biblioteca...
Voltando-me para Simone, baixei a voz.
— Você tem alguma ideia do que eles fizeram para me afastar de
Shadow? Eles usaram algum tipo de pó.
Simone olhou em volta rapidamente, seu olhar correndo para a
esquerda e para a direita, antes de se aproximar ainda mais e sussurrar o mais
rápido que podia.
— Eu não sei nada com certeza. Eles me mantêm fora das discussões
porque mostrei várias vezes que sou o Time Mera. Mas tem algo a ver com
Dannie. Eles a seguraram eras, e eu tentei entrar e ajudá-la, mas, quando
descobri um caminho através de seus guardas, ela tinha ido embora. — Sua
voz vacilou enquanto ela respirava rapidamente. — Havia sangue por toda
parte, infelizmente, Mera. Tanto sangue que eu não tenho certeza que mesmo
um metamorfo poderia ter sobrevivido.
Tudo ficou parado ao meu redor enquanto o barulho branco enchia
minha cabeça. Shadow disse que Dannie tinha escapado, mas pelo que
Simone tinha visto...
Ela não tinha escapado ilesa.
Cinquenta e cinco
Simone segurou-me enquanto eu tinha o meu minicolapso e, quando
terminei, eu me levantei, minha loba enfurecida em meu peito. Em
circunstâncias normais, depois de uma corrida ela estaria cansada, mas a
notícia de Dannie ferida nas mãos desse bando nos deixou, ambas, prontas
para tentar o segundo round para matar aqueles covardes.
A única coisa que me segurava era o fato de que, se eu os pressionasse
muito agora, eles poderiam me matar, e eu não poderia deixar isso acontecer
antes de saber que Shadow e a biblioteca estavam bem. Sem mencionar todos
os outros no Sistema Solaris de quem eu gostava bastante.
Simone ficou de pé, uma nova energia animando seu rosto, e acenou
com a cabeça. O que quer que ela estivesse pensando, chegou a uma
conclusão, e agora estava pronta para compartilhar seu plano.
Inclinando-se perto da minha orelha, ela agiu como se estivesse me
abraçando de novo.
— Haverá uma reunião secreta hoje à noite para os executores e os
principais membros do bando — ela sussurrou. — Acho que vai ser sobre
você e tudo o que aconteceu. Eu não queria contar, porque tenho medo de
que você se mate lutando contra eles, mas definitivamente temos que
descobrir o que fizeram.
Segurei sua camisa enquanto a abraçava.
— Sim, eu sei. Preciso ir à reunião. Melhor você só me dar as
coordenadas, e pode ficar em casa, onde é seguro...
Ela balançou a cabeça, afastando-se de mim.
— Sem chance, vadia. Eu vou estar ao seu lado, assim como deveria ter
ficado quando você foi levada.
Eu fiz uma careta.
— Você não viu o que Shadow fez com Alpha Victor? Ele é
absolutamente implacável e impiedoso quando está com raiva. Se você o
atrapalhasse, não teria feito nada além de morrer. E, se tivesse feito isso por
mim, eu teria ficado tão zangada que pelo menos duas vidas teriam que
passar antes que a perdoasse.
Seus olhos se encheram de lágrimas e ela balançou a cabeça
novamente.
— Quando percebi que você tinha fugido de Torma pouco antes de sua
transformação, eu me culpei. Se eu tivesse sido uma amiga mais solidária,
teria fugido com você.
Engoli em seco enquanto meus olhos queimavam.
— Sinto muito por sair assim, garota. Especialmente depois de dizer
que eu não faria.
Sua voz era feroz e ela me sacudiu um pouco.
— Não foi sua culpa. Tive muito tempo para pensar... Bem, sobre tudo.
Você viveu o inferno, e eu não fiz nada para ajudar. Nada de verdade.
Isso não era nem de longe uma verdade. O amor e o apoio dela
salvaram minha vida mais de uma vez. Simone continuou antes que eu
pudesse responder.
— Quando você foi levada pelo Shadow Beast, prometi que, se você
voltasse para mim, eu nunca mais a deixaria ir. Não posso quebrar essa
promessa... Por favor, não insista.
Sustentamos o olhar pelo que pareceu uma eternidade, e finalmente
acenei com a cabeça, vendo em seu rosto a mesma determinação que tinha
visto em mim por anos. Na verdade, tomar decisões por ela era tão ruim
quanto Shadow fazendo isso por mim. Eu não era mais forte ou mais esperta
que Simone e, desde que ela conhecesse todos os riscos, não era meu trabalho
ficar em seu caminho.
— Ok. Apenas saiba que quase morri vinte vezes ou mais desde que fui
tirada daqui — eu disse a ela. — Se para você está tudo bem viver à beira da
morte, não vou ficar no seu caminho.
Ela zombou.
— Nós já vivemos assim. Tenho certeza de que estar em Torma é como
viver no portão do Diabo de qualquer maneira. — Houve uma pausa, e nós
rimos.
— Eu literalmente tenho vivido com o Diabo — bufei.
Simone me deu um sorriso.
— Eu sei.
Nós duas rimos e tive que balançar a cabeça com a ironia do meu
último ano. Para os metamorfos, Shadow era Deus, Diabo, besta, pecador e
santo. Ele era o pacote completo de yin e yang. Escuro e claro. Bom e ruim.
Eu morava na casa do Diabo havia um ano, e isso significava a experiência
mais forte e mais independente de tudo que eu já tinha vivido ali, sob a regra
do bando.
— Vamos detê-los — eu disse com convicção.
O rosto de Simone era feroz, seus lábios cerrados enquanto ela
estreitava os olhos.
— Nós vamos. Preciso ir para casa agora para seguir meus pais. Vou
mandar uma mensagem para você com as coordenadas.
Eu tive que fazer outra careta.
— Não tenho telefone.
Ela sorriu.
— Guardei um antigo que era seu. — Do bolso dela, tirou meu celular,
totalmente carregado e em perfeitas condições para um velho pedaço de
merda. — Eu esperava que um dia você ligasse para o seu número, então
nunca deixei a bateria acabar.
Minha garganta estava apertada quando a abracei mais uma vez.
— Amo você. Tenha cuidado ao seguir seus pais e me mande uma
mensagem assim que souber o local.
— Eu vou — ela sussurrou, apertando-me enquanto girava e partia.
Coloquei o telefone no bolso quando Jaxson e Torin retornaram — eles
claramente ficaram por perto.
— Viu? — a primeira e única palavra de Torin enquanto sorria para
mim.
Eu me fiz de idiota.
— Vi, o quê?
Seu sorriso desapareceu, escuridão rolando através de seus olhos.
— Viu o que posso lhe oferecer se parar de lutar comigo? Você não
será uma prisioneira ao meu lado. Será uma fêmea alfa, ligada ao alfa de
todos os alfas.
Inclinei a cabeça para o lado, como se estivesse analisando o que ele
estava dizendo. Verdade seja dita, eu não poderia julgá-lo apenas por sua
estupidez e arrogância, mas, felizmente, ele não podia ler meus pensamentos.
— Só preciso de algum tempo — menti. — E, sendo totalmente
honesta, estou ficando bastante irritada com homens pensando que podem
jogar seu peso e poder ao redor e me arrastar pelo cabelo. Você realmente
deve pensar sobre a sua abordagem daqui para a frente; quero dizer, se quer o
tipo de relacionamento poderoso que está me ofertando.
Mantê-los felizes até a reunião era meu novo lema. Esperava conseguir
essa noite todas as informações de que precisava sobre Shadow, a biblioteca
e, igualmente importante, sobre Dannie. Eu precisava saber se eu tinha uma
amiga para vingar ou não. Se a tivessem machucado, eu descobriria como
fazê-los implorar pela morte.
Essa ideia trouxe um sorriso ao meu rosto. Claro, Torin, o idiota que
ele era, pensou que eu estava sorrindo para ele.
— Você tem, querida. Nós vamos governar este maldito mundo e ter os
filhotes mais bonitos.
Meu estômago tremia com o simples pensamento de tocá-lo. O pau
dele estava provavelmente meio apodrecido por estar dentro de tantas
metamorfos. Especialmente Sisily. Falando nisso, eu me perguntava onde
aquela cadela estava. Ela sabia que eu tinha voltado? Sabia que Torin queria
reivindicar o vínculo agora? Por que ela não estava ali para arrancar meus
olhos?
— Como está minha mãe? — perguntei-lhes de repente.
Não porque eu realmente me importasse, ela não tinha sido nada para
mim por anos, mas parecia que eu deveria pelo menos perguntar.
Jaxson deu um passo à frente, pegando minha mão. A repulsa que senti
por Torin não estava lá para ele, mas eu ainda não queria o seu toque.
Quando afastei a mão, ele parecia surpreso, mas se recuperou rápido o
suficiente.
— Sua mãe entrou em depressão quando você foi levada pelo Shadow
Beast — disse ele lenta, suavemente, e meu estômago se apertou com seu
tom.
Eu conhecia esse tom. Era o jeito dele de dar a má notícia.
— Vá direto ao ponto, Jax! — surtei.
— Fui vê-la, e ela estava inconsciente — disse ele com pressa.
Torin cortou.
— Eu coloquei os melhores curandeiros para cuidar do caso dela, mas
não havia nada que eles pudessem fazer. O abuso sofrido pelo corpo dela foi
muito grande. Nem mesmo a genética dos metamorfos poderia salvá-la.
— Sinto muito, Sunny — acrescentou Jaxson.
A dor foi um baque maçante em meu peito quando eu soube que o
último membro da minha família finalmente se fora. Estava mais sozinha do
que nunca... Um golpe que eu não estava esperando ao perguntar sobre ela.
— O que aconteceu com o corpo dela? — Respirei fundo.
O ritual dos metamorfos consistia em queimar os restos mortais, mas só
depois que um membro da família mandasse o ente querido para Shadow
Beast com suas bênçãos. Minha mãe não tinha família sem mim, então eu não
tinha certeza do que eles tinham feito.
— Meu pai a abençoou para a vida após a morte — disse Jaxson.
A raiva lutou contra a dor maçante, e era mais nítida, mais colorida do
que minha dor jamais seria.
— O homem que assassinou o verdadeiro companheiro dela? Esse foi o
metamorfo que você pensou que era uma ótima escolha para enviá-la para a
próxima vida?
Eu silenciosamente adicionei outro nome à minha lista: Dean
Heathcliffe.
Cada um deles pagaria, mesmo que eu levasse a vida toda. Não se
tratava de vingança... Era sobre corrigir erros que não deveriam ter
acontecido.
É... talvez fosse a mesma coisa, mas, que seja, ninguém disse que eu
era perfeita.
— Sentimos muito, Mera — disse Jaxson. — Torin e eu queríamos
dizer isso há muito tempo.
Torin cruzou os braços, não se preocupando em abrir sua boca estúpida
enquanto deixava seu beta falar por ele. O que eu havia feito de errado para
ter esse cão mestiço como companheiro? Precisava perguntar ao Shadow
sobre isso... se o visse de novo.
— Que tal você me compensar? — eu disse, mais uma vez mentiras
saindo por entre meus dentes. — O que exatamente aconteceu quando vocês
dois entraram na Biblioteca do Conhecimento.
Os amigos trocaram um olhar antes de se virarem para mim.
— Você realmente precisa saber? — Torin ficou magoado. — Quero
dizer, tudo o que importa é que está de volta. Amanhã vamos convocar uma
reunião e apresentá-la como a companheira do alfa. É exatamente para isso
que você tem trabalhado, certo?
Não pude impedir um rosnado de escapar; Torin não deixou passar em
branco, sua expressão se escurecendo. Mas o que ele esperava? A última
coisa que eu sempre quis era ser sua companheira. Eu queria ficar longe
desse bando assim que pudesse, então isso era meio que meu pior pesadelo.
Mantenha a paz. Mantenha a paz.
Apenas mais algumas horas.
Cinquenta e seis
Jaxson teve que sair depois disso para os afazeres do bando, deixando-
me sozinha com Torin. Agora que seu amigo se fora, o alfa tinha perdido um
pouco de sua arrogância, seu rosto inseguro quando ele perguntou:
— Você talvez... gostasse de dar uma caminhada?
Minha loba levantou a cabeça, o interesse dela estava ali. O meu era
inexistente, mas eu estava jogando um jogo longo agora, então não podia
vacilar.
— Claro. Isso seria bom.
Como fazer depilação com cera. Na minha forma de lobo.
Ele não me tocou enquanto caminhávamos, mas estava mais perto do
que eu queria, especialmente quando uma pequena parte de mim gostava do
zumbido do vínculo entre nós.
— Você ficou surpresa? — perguntou ele, e isso me espantou o
suficiente para que eu parasse de andar.
— Sobre o quê?
Minha mente estava constantemente girando entre ele, Jaxson e
Shadow, e eu não tinha ideia do que especificamente ele estava perguntando.
— Em saber que sou seu verdadeiro companheiro?
Aaah. Eu me forcei a caminhar de novo, e ele me pegou.
— Pensei que seria Jaxson — finalmente admiti, sendo honesta com ele
provavelmente pela primeira vez desde que eu tentara arrancar sua garganta.
— Nós sempre tivemos um vínculo mais profundo que o normal. Quero
dizer, depois do meu pai, essa conexão foi para a merda, mas antes disso...
ele era o meu cara. E eu honestamente pensei que, se fosse alguém daqui,
seria Jax.
A risada de Torin soou abafada.
— Sim, a briga horrorosa que tivemos depois que você saiu meio que
indicou que ele tinha o mesmo sentimento. Você foi quase o ponto de ruptura
em nossa vida de amizade. Mais uma vez.
— Você ainda fez dele seu beta — eu disse com um encolher de
ombros.
Torin concordou com a cabeça.
— Jaxson é o melhor metamorfo que já conheci. Ele merece ser alfa e é
definitivamente o melhor homem para você, mas o destino obviamente
decidiu que não ia acontecer dessa vez, então cabe a mim ser... — Ele
hesitou. — O que você merece. Você e Torma.
Consegui encobrir a descrença com uma tosse.
Torin percebeu, no entanto, e surpreendentemente abaixou a cabeça,
sorrindo.
— Sim, eu poderia ter imposto isso a você de modo implacável, mas,
para ser franco, não esperava que lutasse comigo tão bravamente. Estávamos
resgatando você e, depois de meio ano tentando desenvolver meu plano, foi
um pouco anticlímax saber que você nem queria ser resgatada.
Sim, acho que, do ponto de vista deles, eu poderia estar agindo um
pouco fora do normal. Talvez não soubessem a verdadeira profundidade do
meu ódio por eles. Como poderiam ter pensado de outra forma depois do
tratamento do bando comigo, eu nunca saberia, eles eram caras burros, afinal.
— Você disse antes que eu quase destruí sua amizade com Jaxson
novamente. Por que de novo?
Eu nunca soube que eles haviam lutado e não podia esmagar minha
curiosidade sobre o que isso significava.
Pela primeira vez desde que começamos esse bate-papo, Torin parecia
cauteloso, mas, para seu crédito, ele não tentou mentir para mim.
— Quando seu pai atacou o meu pela primeira vez — seus olhos
estavam doloridos com a menção de seu pai executado —, eu avisei ao
Jaxson que ele tinha que deixá-la ir embora. Ele se recusou, mesmo
colocando a própria vida em jogo. Estava claro que sua posição neste bando
tinha acabado e, se ele quisesse ser beta, não poderia perder o respeito como
os Callahans tinham feito. Ele não tinha outra escolha.
Minha cabeça estava girando, e havia uma dor estranha em meu peito,
como uma indigestão.
— Eu não sabia disso. Ele lutou para continuar meu amigo?
Torin confirmou.
— Sim. Nós não conversamos por um mês e, em quase todas as
oportunidades, ele tentou me socar até me derrubar.
Eu vivia em um mundo de dor, tristeza e medo naquela época, então era
tudo muito obscuro, mas eu meio que me lembrava de Jaxson ainda por perto
por um curto período de tempo depois da morte do meu pai.
— Por que ele desistiu da missão de ficar comigo?
O rosto de Torin estava rígido e inflexível, o alfa nele brilhando
claramente, como a porra do dia.
— O pai dele e o meu se reuniram e ensinaram a Jaxson algumas
lições de vida. Ele quase não sobreviveu e, se não fosse pela minha
intervenção, eles poderiam tê-lo matado. Ainda assim conseguiram quebrar
algo dentro do meu amigo naquele dia, algo que não vi mais até
recentemente. Sua força e vontade voltaram com vingança, e duvido que haja
algo neste mundo que possa afastá-lo de você agora.
Engoli um soluço... De jeito nenhum choraria na frente do Torin. Mas
essa pequena história, que era quase inacreditável e ainda assim explicava
tanto, era como uma adaga totalmente nova em meu peito.
— Que teias emaranhadas nós tecemos — murmurei. — Eu não tinha
ideia de que Jaxson tinha passado por tanta coisa para tentar me salvar. —
Não nego a merda que ele me fez passar, mas saber disso me ajudava a
entender e a perdoá-lo um pouco.
Torin riu e no mesmo instante inclinou-se para a frente, fechando as
mãos em volta dos meus antebraços, puxando-me para ficar parada frente a
frente com ele.
— Ele não vai deixá-la ir facilmente. E aqui está minha proposta...
Lutarei lado a lado com ele para conquistá-la, e você pode decidir quem é o
melhor companheiro para você. Eu a ouvi antes, falando sobre fazer as
próprias escolhas, acho que tenho o suficiente para oferecer e eu vou ter
prazer em competir com Jax.
Meus olhos estavam tão arregalados agora que eu estava genuinamente
preocupada com a possibilidade de caírem da porra da minha cabeça. Nunca
tinha visto Torin assim, tão aberto e vulnerável. Deixando suas emoções
visíveis no rosto.
Minha descrença deve ter brilhado como um holofote.
— Sei que fiz muito pouco para convencê-la disso, mas mudei no
último ano — disse ele baixinho. — Tenho minhas prioridades. Enfrentei
algumas verdades duras das quais fui protegido na minha juventude. Não sou
o mesmo metamorfo ou homem que você conheceu, Mera. Estou muito perto
de ser digno de você. Só me dê uma chance de provar isso.
Minha loba uivava, e ela queria arriscar, porque esse era nosso
verdadeiro companheiro. Aquele que completaria nossas almas de uma forma
que nenhum outro jamais poderia. Mas eu não confiava nesse novo Torin,
não importava o que ele estava falando. Ainda havia tanto por dizer, tantos
segredos, e eu não tinha ideia do que acontecera com Dannie.
Sem mencionar que parte de mim ainda estava esperando Shadow fazer
sua aparição. Talvez estupidamente, mas era o que era.
Engolindo as emoções sutilmente, eu me afastei do alfa.
— Vai ser preciso muito mais do que palavras perfeitas, Torin — eu
disse calmamente, minha voz tremendo apesar da resolução de não ser
afetada. — Eu também não sou a mesma metamorfo que era há um ano, e
agora você vai ter que trabalhar extraordinariamente para provar seu valor.
Ele sorriu e, pela primeira vez, não era um sorriso falso.
— Desafio aceito, querida. Você será cortejada como nunca foi antes.
Meu coração palpitou, mas eu desliguei aquele traidor. Tínhamos uma
missão, e eu não seria dissuadida por ele, não importava o que acontecesse.
Torin podia ter virado uma nova criatura, mas eu tinha minhas dúvidas. Um
lobo alguma vez realmente mudava sua pele? Eu estaria por perto tempo
suficiente para descobrir?
Cinquenta e sete
Minha tarde com Torin foi esclarecedora e, honestamente, se não
houvesse muitos anos de história fodida entre nós, eu teria ficado encantada
como o inferno pelo alfa de Torma. Ele parecia diferente: maduro, calmo e
intuitivo. Ele crescera muito desde que a morte de seu pai o forçara a assumir
a posição de alfa, mas eu aparentemente não era o tipo de garota que perdoa,
porque minha raiva ardente ainda era uma piscina sem fim que ele mal tinha
tocado.
Mas eu não tinha odiado completamente o dia.
Torin ficara comigo até o fim do jantar, antes de pedir licença, dizendo
que tinha negócios de que tratar. Eu apenas sorri e acenei com a cabeça, não
me preocupando em segurá-lo. Foi um grande sinal. Isso significava que a
reunião estava em ação, e eu só tinha que esperar pela mensagem da Simone.
Ela tinha enviado uma mais cedo com "trabalhando" e um emoji como o
conteúdo. Sem dúvida, era necessário ser vaga, para o caso de algum dos
nossos telefones cair em mãos erradas.
Torin me deixou na casa principal. Ela estava vazia a maior parte do
dia, mas agora estava cheia de executores, que sem dúvida estavam ali para
me acompanhar. Esse novo ingrediente tornaria a ideia de escapar mais
complexa, mas eu tinha muita experiência entrando e saindo desse lugar,
conhecia algumas saídas e estava bastante certa de que nenhum desses
cabeças ocas estaria ciente. Tudo bem, desde que Simone me enviasse o local
o mais rápido possível.
Alguns minutos antes das oito, meu telefone tocou em meu bolso. Eu
não estava sozinha, então nem reagi. Em vez disso, passei mais cinco minutos
conversando com todos, que me receberam como se eu fosse um membro
valioso perdido do grupo. Não aqueles que tantas vezes tentaram me quebrar
em um ponto ou outro.
Por sorte, eu era uma excelente atriz, porque nenhum vestígio do meu
ódio por eles fez aparição.
Com o aparelho queimando na calça, eu finalmente bocejei e segui meu
caminho para a cama. Quando eu disse que queria ir para o quarto de Torin,
fiquei satisfeita com sorrisos de alguns de seus simpatizantes. Era fácil ver
quem estava no Time Torin. Infelizmente para ele, eu estava no Time Mera, e
estaria fazendo o que diabos fosse melhor para mim. Tenho que amar a mim
mesma primeiro, senhoras.
Ele era claramente bom em seu trabalho. Rápido e eficiente, mas, como
não lhe dei razão para desconfiar de mim, não notou nada.
— Posso ajudar? — perguntei quando se afastaram.
Alguém me dê um Oscar de melhor atriz desse bando.
Ambos balançaram a cabeça.
— Não, por favor. É nosso trabalho mantê-la segura. Provavelmente
eram apenas animais desligando os alarmes.
Sim, talvez. Animais enviados pela minha melhor amiga mal-
humorada. Ela era uma guardiã, assim como Angel estava provando ser
também. Duas amigas ferozes, destemidas e duronas. Isso quase compensava
o fato de eu ser a verdadeira companheira de Torin.
Acenei com a cabeça, forçando um sorriso.
— Ok. Bem, por favor, mantenha-me atualizada.
Eles me saudaram ao sair e, quando a porta se fechou, eu me
descaracterizei abandonando a aparência de pessoa legal, rolando para fora da
cama. A mochila foi colocada onde minha loba poderia facilmente agarrá-la,
a porta da frente abriu apenas com um toque, e então chamei a energia da
minha fera para a superfície, esperando que minha transformação fosse
silenciosa contra o caos lá fora.
A remodelagem dos ossos nunca seria agradável, mas, com mais da
magia infundida em minha alma, levou apenas um clique no tempo, e então
eu era uma loba. Nessa forma, tínhamos foco laser, pegando o pequeno saco
em nossa boca e facilitando a saída pela porta. O corredor estava vazio, como
eu esperava. O alfa e sua família estavam sempre no lado mais amplo da
propriedade, deixando a entrada do outro lado para ser guardada por seus
servos.
Mais uma vez, a covardia deles ia custar-lhes, e saí como uma ladra
durante a noite. Essa velha casa estava cheia de entradas secretas, pequenos
armários que levavam a becos, e corredores na lavanderia, que usei mais de
uma vez para escapar de idiotas em meu encalço. Minha baixa estatura, tanto
em forma humana quanto de lobo, atuou em meu favor algumas vezes.
Ninguém cruzou meu caminho quando cheguei à lavanderia raramente
usada. Claro, quando empurrei a porta, ela estava firmemente fechada e,
mesmo com toda a força que minha loba tinha, polegares e a habilidade de
abrir portas não eram parte deles.
Merda. Isso exigiria que eu me transformasse, e depois me
transformasse de novo, mas três mudanças em tão pouco tempo me
esgotariam a ponto de eu ser bastante inútil se uma briga surgisse.
Desperdicei alguns minutos preciosos contemplando outras opções,
apenas para ouvir os metamorfos voltando para esse lado do prédio. A
distração acabou e logo eu ficaria presa. O que me deixou sem outra opção.
Minha loba, entendendo o plano, não lutou contra a mudança, permitindo-me
voltar para nossa pele humana. Abri a porta em um piscar de olhos, correndo
para dentro e fechando-a firmemente.
Respirando fundo enquanto procurava a energia para me transformar
novamente, eu apenas soltei todo o controle e esperava que minha loba
respondesse, fazendo pelo menos metade do trabalho para mim. Ela não me
decepcionou e, quando a transformação chegou de novo, a dor estava pior,
mas acabou tão rápido quanto havia começado. Tive que me sentar no chão
por um minuto ou mais para me recuperar, mas havia força em nosso corpo
enquanto nos levantávamos, então pegamos a mochila e fomos para a parede
em que ficava a saída. Era um daqueles corredores de metal da velha guarda,
áspero em alguns lugares, mas eu o tinha usado vezes suficientes para saber
os pontos que deveria evitar.
Quando o ar fresco nos atingiu, ainda mais energia voltou, e eu me
movi rapidamente em direção ao riacho. A água era minha vantagem para
encobrir meu cheiro e rastros e, depois de alguns quilômetros ao longo dessa
margem do riacho, eu acabaria em uma estrada principal, pronta para ir direto
para a escola.
Porra, eu adorava quando um plano se encaixava.
Cinquenta e oito
A escola estava envolta em escuridão. Nenhum sinal de vida de fora.
Mas meus sentidos eram mais fortes do que isso e, quando encontrei o teatro
principal vazio, farejei aqueles bastardos, encontrando-os no subsolo do
prédio. Essa era a sala onde adereços, fantasias e iluminação eram mantidos.
Os metamorfos não se interessavam realmente em atuação ou peças
escolares, mas sempre tinham uma produção por ano. Depois disso, tudo era
prontamente descartado nessa sala.
E espalhados entre isso agora estavam os altos escalões do bando
Torma.
Rastejei ao longo de uma das vigas, seguindo o cheiro de Simone. Ela
estava agachada em uma plataforma no alto da sala — uma daquelas tábuas
de madeira puxadas por alavanca que eles usavam para mover personagens
ao redor do palco.
Era o ponto de vista perfeito para observar, sem estar perto o suficiente
para que nos farejassem. Eu não podia sentir o cheiro de ninguém abaixo,
nem mesmo em forma de lobo, então sabia que estaríamos seguras.
— Você chegou bem na hora — Simone murmurou, estendendo a mão
para tirar a mochila da minha boca.
Minha mudança de volta foi difícil. Primeiro, porque minha loba não
queria partir quando estávamos em uma sala de inimigos; segundo, porque
minha energia estava esgotada, e terceiro, porque tínhamos que fazer isso em
silêncio quase completo.
Simone olhou com preocupação enquanto eu arfava no chão.
— Tive que mudar duas vezes — gemi suavemente, enquanto me
colocava de pé.
Ela atirou em mim um olhar simpático enquanto me ajudava a tirar as
roupas da mochila e a me vestir com meus membros trêmulos. Só um par de
moletom muito grande para mim, mas me sentia melhor quando estava
coberta.
Não havia mais tempo para me recuperar, porque os metamorfos lá
embaixo estavam começando. Torin se afastou para deixar Dean Heathcliffe
tomar a palavra, e esse filho da puta tinha algo interessante a dizer.
— O pó obtido do explorador provou ser frutífero — começou ele, e
havia aplausos por toda a sala enquanto aqueles bastardos celebravam sua
vitória. — O sacrifício de uma virgem e a magia de uma prostituta-sombra
resultaram no poder de interromper a energia de seu pequeno portal mágico, e
agora eles estão impedidos de voltar.
Mais aplausos.
Torin e Jaxson permaneceram em silêncio, porém de braços cruzados
enquanto estavam lado a lado. Eu me vi tentando ler a expressão no rosto
deles a cada minuto, qualquer coisa que pudesse indicar se tinham sido parte
de... ou talvez até instigado esse plano. Mas eram impassíveis.
Um metamorfo levantou a mão antes de gritar uma pergunta.
— Isso vai enfraquecer a fera? Será que ele ainda será capaz de nos
punir?
Dean sorriu, parecendo um maníaco ele olhou em torno da sala.
— Como disse a andarilha logo antes de destruirmos o corpo dela para
fazer o feitiço, isso é exatamente o que vai acontecer.
Meu suspiro — e o de Simone — estava escondido por risos e
excitação, mas não ouvi mais nada que fosse dito enquanto meu corpo
esquentava como se eu tivesse pulado em um pote de água fervente.
— Mera! — Simone chorou, mas foi um sussurro insignificante contra
a fúria crescente dentro de mim.
Minha visão começou a dobrar quando o fogo correu pelo meu corpo,
como se eu estivesse canalizando o poder de Shadow. Senti sua presença no
momento em que Dean soltou uma risada raivosa.
— E nós nunca teríamos sido capazes de matar aquela cadela-sombra
errante se não fosse por Shadow Beast. Ele estabeleceu as bases para
construir sua própria destruição.
Todos riram de novo, mas meu mundo caiu debaixo de mim enquanto
um uivo sobrenatural soava pela sala.
Shadow os ajudou a matá-la?
Shadow mentira para mim e me traíra pelos seus próprios meios, justo
quando eu começava a confiar nele.
Shadow, que eu sentia que estava ali naquele momento, porque eu tinha
conseguido tocar o Reino das Sombras novamente.
Não houve tempo para contemplar isso, porém, porque os metamorfos
abaixo ficaram em silêncio enquanto sentiam o cheiro da destruição que
marchava em direção a eles. Outro rugido cortou a noite e colocou os lobos
de joelhos. O som era lindo em seu terror e, enquanto a luz deslizava da sala,
sombras rastejando pelo ambiente, ar pesado e grosso, deixei um sorriso
amargo cruzar meu rosto.
O diabo finalmente havia chegado. E ele não estava sozinho.
Com o fogo de um milhão de anjos vingadores cavalgando na minha
pele, chamas dançando acima do meu corpo, eu saí da borda da plataforma.
Os gritos de Simone soavam aos meus ouvidos quando caí.
Foi como saltar de uma pequena pedra quando graciosamente bati no
chão, endireitando-me para ficar cara a cara com o Diabo. Usávamos chamas
gêmeas, e sua expressão era um portal oco da morte. Quando nossos olhos se
encontraram, deixei um sorriso lento cruzar meu rosto. Ao lado de Shadow,
Lucien pigarreou, mas parecia inseguro demais para falar. Reece também.
Porque eles viram a verdade do que estava acontecendo ali. Havia um
novo terror esperando nos bastidores por Shadow. Um terror que ele não vira
chegar.
Eu.
Carta da Autora
Ahhhhhhhh!! Ok, então, espero realmente que você não tenha jogado
longe seu livro/Kindle no final, porque sim, tudo terminou com um pouco de
emoção. Mas o pensamento por trás disso era... “publique o livro 2
rapidamente, antes que te localizem e te matem.” Hah!
Então, por enquanto: não me odeie. Não jogue seu livro/Kindle fora.
Não convoque Lúcifer para me destruir... Ou melhor faça isso, a ideia até que
soa bem.
Na verdade, espero que tenha adorado esta história com um pouco de
escuridão e muita intriga. Começou com uma única imagem. Um demônio
segurando uma mulher. Era difícil interpretar com certeza, mas vi
possessividade, seres sombrios e o tipo de romance épico que poderia destruir
mundos.
E mesmo que este seja apenas o livro 1 na trilogia, estou tão
apaixonada pelos meus personagens... Eu só quero me deliciar com o fogo
deles e ver isso se desenrolar.
De qualquer forma, obrigada por ler, agradeço muito a todos vocês, e,
quando o demônio aparecer, mande-o para mim. Vou acrescentá-lo ao time.