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Maria da Penha
vai à Escola

NJM

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Núcleo Judiciário

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SEX
Maria da Penha
vai à Escola
Abordagem Técnica
das situações de

VIOLÊNCIA
SEXUAL
COMPOSIÇÃO COMPOSIÇÃO DA COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA
ADMINISTRATIVA DO NJM ADMINISTRAÇÃO DA SECRETARIA DE DA SECRETARIA DE ESTADO
Fabriziane Figueiredo Stellet Zapata SUPERIOR DO MPDFT ESTADO DA EDUCAÇÃO DE SEGURANÇA PÚBLICA
JUÍZA DE DIREITO DO DISTRITO FEDERAL Júlio Danilo Souza Ferreira
Gislaine Carneiro Campos Reis PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA DO Hélvia Miridan Paranaguá Fraga SECRETÁRIO DE ESTADO
JUÍZA DE DIREITO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS SECRETÁRIO DE ESTADO DE EDUCA- Milton Rodrigues Neves
ÇÃO DO DISTRITO FEDERAL - SEEDF
Josmar Gomes de Oliveira SECRETÁRIO EXECUTIVO DE SEGURANÇA PÚBLICA
Fabiana Costa Oliveira Barreto
JUIZ DE DIREITO Ana Cláudia Nogueira Veloso
PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA Agnaldo Mendonça Alves
CHEFE DE GABINETE
Luciana Lopes Rocha SECRETÁRIO EXECUTIVO DE GESTÃO INTEGRADA
JUÍZA DE DIREITO
VICE-PROCURADORIA-GERAL
JURÍDICO-ADMINISTRATIVA COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA
COORDENAÇÃO DO NJM
DA SECRETARIA DE ESTADO DE
Selma Leite do Nascimento Sauerbronn de Souza JUSTIÇA E CIDADANIA DO DF COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA

FICHA
Mariana Barros Rodrigues da Cruz PROCURADORA DE JUSTIÇA DA POLÍCIA CIVIL DO
Supervisora do NJM Marcela Passamani
DISTRITO FEDERAL

C N I C A Marcia Maria Borba Lins


VICE-PROCURADORIA-GERAL DE
SECRETÁRIA DE ESTADO DE JUS-


TIÇA E CIDADANIA DO DF Robson Cândido da Silva
Supervisora-Substituta do NJM JUSTIÇA INSTITUCIONAL DELEGADO-GERAL DA PCDF
Jaime Santana de Sousa
EQUIPE TÉCNICA DO NJM André Vinícius Espírito Santo de Almeida SECRETÁRIO-EXECUTIVO Ana Carolina Litran Andrade
PROCURADOR DE JUSTIÇA DELEGADA-CHEFE DA DELEGACIA ESPECIAL
DE ATENDIMENTO À MULHER- DEAM I
Alfredo Valente Júnior Cíntia Costa da Silva
Cristiane Rodrigues A. de Matos
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA
Brasil. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Denise Siqueira Chaves COMPOSIÇÃO
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA DA SECRETARIA
B823m Territórios.
Leonardo Alves Rodrigues ADMINISTRATIVA DA PMDF
Maria da Penha vai à escola: abordagem técnica das situações
de violência sexual [livro eletrônico] / Tribunal de Justiça do DO TJDFT João Wesley Domingues
DA DEFENSORIA PÚBLICA DA MULHER DO DF
CEL QOPM Márcio Cavalcante de Vasconcelos
Distrito Federal e dos Territórios. - Brasília : TJDFT, 2021.
Desembargador Romeu Gonzaga Neiva Maíra de Queiroz M. Lustosa Mendes
DO DISTRITO FEDERAL Éricka Filippelli COMANDANTE GERAL
224 p.
PRESIDENTE DO TJDFT Dra. Maria José Silva Souza de Nápolis SECRETÁRIA DE ESTADO
Marcos Francisco de Souza CEL QOPM Hércules Freitas
Elaborado pela equipe do Núcleo Judiciário da Mulher — NJM DEFENSORA PÚBLICA-GERAL
Desembargadora Ana Maria Duarte A. Brito Maressa Neris Veloso Vandercy Camargos SUBCOMANDANTE GERAL
ISBN : 9788560464326 1º VICE-PRESIDENTE DO TJDFT SECRETÁRIA ADJUNTA
Miguel Ricardo de Carvalho Vargas CEL QOPM Reginaldo de Souza Leitão
1. Violência sexual. Desembargadora Sandra De Santis M. Farias Priscila de Oliveira Parada SUBDEFENSORES PÚBLICOS-GERAIS CHEFE DO ESTADO MAIOR
Melo Regina Márcia Raposo Rocha
CDU 343.232:396 2º VICE-PRESIDENTE DO TJDFT João Carneiro Aires e Leonardo Melo Moreira
Renata Beviláqua Chaves
Desembargadora Carmelita I. A. do Brasil Dias Thales Eduardo de Oliveira Martins
CORREGEDORA DO TJDFT
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA gacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente do Dis-

AUTORES
&
DA ORDEM DOS DA CÂMARA LEGISLATIVA trito Federal - DPCA, entre os anos de 2017-2019, desenvolveu
ADVOGADOS SECCIONAL DO DISTRITO FEDERAL em parceria com a Universidade de Brasília - UnB o Protocolo

AUTORAS
DO DISTRITO FEDERAL de Polícia Judiciária para Depoimento Especial de Crianças e
Rafael Cavalcanti Prudente
PRESIDENTE Adolescentes, capacitando policiais civis de todo o Brasil. Co-
Délio Lins e Silva Jr.
PRESIDENTE Rodrigo Delmasso
fundadora do @revellas, um espaço de atendimento especia-
VICE-PRESIDENTE lizado e integrado no atendimento de mulheres e vulneráveis.
Cristiane Damasceno Leite Vieira
CO-PRESIDENTE Deputada Júlia Lucy
PROCURADORA DA MULHER DA CLDF ANDRÉIA SOARES DE OLIVEIRA
Márcio de Souza Oliveira
BENEDITO RODRIGUES DOS SANTOS
SECRETÁRIO GERAL
Bacharela em Direito, especialista em Direito Público e em Di-
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA reito Constitucional. Foi servidora da Secretaria de Estado de Mestre em Ciências Sociais Antropologia pela Pontifícia Uni-
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA DA SECRETARIA NACIONAL DE Educação do Distrito Federal por 7 anos, atuando como mo- versidade Católica de São Paulo, Doutor em Antropologia pela
DA UNIVERSIDADE POLÍTICAS PARA MULHERES nitora, apoio administrativo e supervisora escolar. É servidora Universidade da Califórnia Berkeley, Pós-Doutor pelas universi-
DE BRASÍLIA Cristiane Rodrigues Britto do TJDFT desde 2017 e por dois anos fez parte da equipe do dades Johns Hopkins e da Califórnia em Los Angeles. Foi Profes-
Márcia Abrahão Moura SECRETÁRIA NACIONAL DE POLÍ- Núcleo Judiciário da Mulher, setor que, no âmbito do poder sor e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de Goiás e
TICA PARA AS MULHERES
REITORA judiciário, é responsável pela gestão das políticas públicas de na Universidade Católica de Brasília. Atualmente é pesquisador
Enrique Huelva Unte rnbäumen Dinah Andrade de Sena e Silva prevenção e enfrentamento da violência contra as mulheres. associado do International Institute for Child Rights and Deve-
SECRETÁRIA ADJUNTA NACIONAL DE PO-
VICE-REITOR lopment (IICRD), Universidade de Victoria, Canadá. Sua linha
LÍTICAS PARA AS MULHERES
de pesquisa é Cultura contemporânea e relações humanas. Seus
Geraldine Grace da Fonseca da Justa ANA CRISTINA MELO SANTIAGO
COMPOSIÇÃO ADMINISTRATIVA temas de pesquisa são: Formações culturais globais, contextos
DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE POLÍTICAS DE EN-
DO CENTRO UNIVERSITÁRIO FRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES locais e construção de subjetividades. Cidadania, direitos hu-
Foi Delegada de Polícia no Distrito Federal por 25 anos. Espe- manos de crianças e adolescentes e políticas públicas. Poder,
DE BRASÍLIA Gleyce Anne Cardoso
cialista em Segurança Pública e Política Criminal e Penitenciá-
COORDENADORA-GERAL DE ACES- alteridade e formas de violência contra crianças e adolescentes.
Getúlio Américo Moreira Lopes ria pela UNIRIO, atuou em diversas unidades da Polícia Civil e
REITOR
SO À JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DA Urbanismo e formas de subjetivação. Antropologia da emoção.
REDE DE ATENDIMENTO À MULHER da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Fe- Estudos históricos e socioantropológicos da infância e da ado-
Edevaldo Alves da Silva deral. Sob sua gestão, no ano de 2013, a Delegacia Especial de
VICE-REITOR
lescência e processos de construções/negociações identitárias.
Atendimento à Mulher do Distrito Federal - DEAM, por meio Possui expertise em estudos etnográficos comparativos entre
do Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inqué- Brasil e Estados Unidos. Tem realizado consultorias de longa du-
rito (CPMI) da Violência contra Mulher, foi apontada como ração para organismos das Nações Unidas, Fundo das Nações
a melhor delegacia da mulher do país. Integrou a Oficina Na- Unidas para Infância UNICEF-Brasil e organizações não-gover-
cional de Validação das Diretrizes Nacionais de Investigação, namentais internacionais como a Childhood Brasil.
Processo e Julgamento de Feminicídio. Finalista do Prêmio
Cláudia 2018 na categoria Políticas Públicas. À frente da Dele-
CRISTIANE RODRIGUES ASSUNÇÃO DE MATOS LIZ-ELAINE DE SILVÉRIO E OLIVEIRA MENDES MYRIAN CALDEIRA SARTORI RENATA BEVILÁQUA CHAVES

Bacharela em Serviço Social e Mestra em Política Social pela Uni- Promotora do Ministério Público do Distrito federal e Terri- Graduada em Pedagogia e bacharela em Relações Internacio- Psicóloga do TJDFT desde 2009, atuando com o tema de vio-
versidade de Brasília. É assistente social do TJDFT desde 2008 e tórios. Especialista em Direito Público pelo Centro Universitá- nais pela Universidade de Brasília e especialista em Educação lência doméstica familiar e abuso sexual contra crianças e ado-
atua na temática de violência doméstica e familiar há 13 anos. rio do DF. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de à distância. Foi supervisora do Núcleo Judiciário da Mulher – lescentes. Formação em psicodrama pelo instituto Cosmos de
Atualmente, compõe a equipe do Núcleo Judiciário da Mulher. Brasília. É colaboradora do Núcleo de Gênero do MPDFT e no NJM/TJDFT e coordenadora-geral do Ensino Fundamental no Psicodrama. Em formação em TRE (Trauma Realising Exercises
biênio 2017/2018 exerceu a coordenação dos núcleos de direi- Ministério da Educação - MEC. Atualmente é Diretora de Polí- – exercícios para redução do estresse).
tos humanos. Representa o MPDFT no conselho de defesa dos ticas e Diretrizes da Educação Básica do MEC.
GISLAINE CARNEIRO CAMPOS REIS direitos humanos e nos comitês distritais de defesa da liberda-
de religiosa e de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Integra SILVIA RENATA MAGALHÃES LORDELLO BORBA SANTOS
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos REGINALDO TORRES ALVES JR.
a rede Conexão de Proteção à Infância e à Adolescência no
Territórios há 17 anos. Titular do Juizado de Violência Domés- Psicóloga e Pedagoga pela Universidade de Brasília, com mes-
contexto das Diversidades Sexual e de Gênero no DF.
tica e Familiar contra a Mulher de Santa Maria. Pós-gradua- Doutor em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de trado em Psicologia pela Universidade de Brasília e doutorado
da em Direito Administrativo pela Universidade Católica de Brasília (2013) com estágio doutorado financiado pela CAPES em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília.
Brasília e em Atendimento a Pessoas em Situação de Violência MARCIA BORBA LINS na University of Alabama (EUA) em 2012 na área de entre- Atualmente é docente do Programa de Pós-Graduação em Psi-
pela Universidade UniRedentor/RJ e pós-graduanda em Di- vistas forenses com crianças vítimas de violência. Psicólogo cologia Clínica e Cultura e da graduação em Psicologia na Uni-
reitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global Assistente social graduada na Universidade de Brasília, analista e Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília (2005). versidade de Brasília. Atuou como coordenadora do Centro de
pela PUCRS. Participou do curso intensivo de “Violência Do- judiciário do TJDFT há 23 anos. Pós-graduada sociodramatis- Especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Ado- Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP), serviço-escola de
méstica e Crimes de Gênero- A Experiência Espanhola” na Uni- ta, tutora do Conselho nacional de Justiça- CNJ, formadora e lescentes pela Universidade de São Paulo (2006). Atualmente Psicologia na UnB e também foi editora associada do periódi-
versidade de Sevilha em 2018 e do curso intensivo “Direito Pe- supervisora nacional no Depoimento Especial. Possui expe- é Analista Judiciário na área de Psicologia no Tribunal de Jus- co Psicologia: Teoria e Pesquisa. É coordenadora do Laboratório
nal e Violência Doméstica. Crime de Gênero e Abuso Contra riência em atendimento individual e grupal em situações de tiça do Distrito Federal e Territórios, onde exerce a função de de Família, Grupos e Comunidade (LABFAM), na UnB. Orienta
Menores” na Universidade Tor Vergata de Roma em 2016. Juí- violência contra criança e adolescente, violência familiar e de supervisor do Centro de Referência para Proteção Integral da mestrado e doutorado em temas relacionados às Intervenções
za Coordenadora do Núcleo Permanente Judiciário de Solução gênero. Atualmente é servidora do Núcleo Judiciário da Mu- Criança e do Adolescente em Situação de Violência Sexual da Psicossociais no campo das vulnerabilidades. Os projetos de
de Conflitos e Cidadania da Mulher em Situação de Violência lher- NJM/TJDFT. Vara da Infância e da Juventude. Formador de Supervisores e pesquisas mais recentes envolvem temáticas como sexting, vio-
Doméstica e Familiar (NJM)/TJDFT) desde 2018. Palestrante Entrevistadores Forenses com Certificação pelo Conselho Na- lência sexual, gênero, empregabilidade de travestis e transexuais,
sobre temas relacionados à Lei Maria da Penha em diversas cional de Justiça. Um dos organizadores do Protocolo Brasi- medidas socioeducativas, políticas públicas na área de direitos
instituições da Rede de Proteção e Atendimento à Mulher. MARCOS FRANCISCO DE SOUZA leiro de Entrevista Forense (PBEF), referendado pelo Conselho humanos. Desenvolve orientações também no campo das In-
Nacional de Justiça. Tem experiência na área de Psicologia, tervenções terapêuticas, principalmente voltadas aos adoles-
Assistente social do TJDFT, Mestre em Política Social pela Uni-
com ênfase em Psicologia Jurídica, atuando principalmente centes e jovens e suas famílias, na abordagem sistêmica.
versidade de Brasília, professor do curso de Especialização em
nos seguintes temas: psicologia jurídica, avaliações psicosso-
Serviço Social, Justiça e Direitos Humanos da Universidade
ciais para o contexto judicial, entrevistas forenses, avaliação da
Católica de Brasília no período de 2012 a 2015; Consultor e
violência sexual infantil.
Pesquisador em Políticas, Projetos e Pareceres Sociais.
C
omo é difícil ficar silente em face à reali- Desta maneira, esse livro é um instrumento ofer-
dade que a nossa sociedade tem enfren- tado à população para o enfrentamento da agres-
tado, uma vez que o silêncio fere tanto são em sua complexidade, além de apresentar a
quanto um atentado. Ainda mais quando a vio- intensidade com que suas consequências violam
lência não se traduz apenas pela agressão física, os Direitos Humanos, devendo, portanto, suscitar
mas por meio de inúmeros incidentes que ferem a formalização de denúncia e, trazer para o siste-
e fazem sangrar a alma do indivíduo. ma de justiça e policiamento, o aprimoramento
de mecanismos de impedimento aos agressores.
As cicatrizes são profundas e as marcas causam
angustia e aflição, por isso se faz necessário edu- Por fim, para a promoção da justiça e da paz, é
car para prevenir. Então, nas páginas desta obra, mister que as manifestações da violência sejam

APRESENTAÇÃO
há informações indispensáveis que permitem ao conhecidas e discutidas na sociedade contempo-
leitor compreender e ajudar pessoas em situa- rânea com transparência e visibilidade, deixando
ções de violações de direitos, a fim de garantir claro e inequívoco a sua afronta.
a proteção das crianças e adolescentes, especial-
mente, as meninas e jovens mulheres na escola. Reforçando o caráter da promoção da paz no que
Hélvia Miridan Paranaguá Fraga depende de cada um como escolha pessoal, logo,
Secretária de Estado de Educação do Distrito Federal Na trama das relações, o tecido social clama por há de multiplicar nas escolas como prevenir e tra-
mudanças na estrutura de defesa e amparo para tar agravos resultantes da violência, pois essa ação
quem sofre violências, e nesse quesito, a abordagem revela o engajamento em fortalecer a rede prote-
dos artigos e do curso Maria da Penha Vai à Escola tiva das meninas e mulheres em nossa sociedade.
permitem ser um guia prático para essa quebra dos
paradigmas e contribuem no sentido de se ter uma
postura acolhedora com as vítimas, sem torná-las
culpadas, mas educando pessoas a serem solidárias
“Palavra não é privilégio de algumas pessoas, mas o direito de todos”.
e parceiras em quebrar o ciclo de violência.
PAULO F R E I R E
Como Magistrada na área Criminal, pude obser- de crianças e adolescentes no contexto escolar e
var a triste ubiquidade desses delitos, com gran- contatos da rede de proteção e acolhimento.
de incidência no âmbito doméstico, principal-
mente contra menores de idade. A presente obra busca consolidar e difundir o tra-
balho do programa Maria da Penha vai à Escola no
Se a ignorância e o silêncio alimentam as terríveis combate à violência sexual. É fruto da cooperação
estatísticas em nosso país, o remédio encontra-se de autores com notório saber, oriundos de várias
na educação, com a disseminação do conheci- disciplinas e de diversas instituições. A primeira
mento acerca da prevenção e da repreensão. parte deste livro apresenta ensaios sob os vieses
jurídico, familiar, institucional e prático, que alme-

INTRODUÇÃO
O programa Maria da Penha vai à Escola nasceu jam promover a reflexão crítica. A segunda parte
em 2014, por iniciativa do Núcleo Judicial da Mu- reproduz o conteúdo do curso ministrado para
lher do TJDFT, e concretizou-se com parcerias profissionais da educação e da rede de proteção,
com o GDF, o MPDFT, as Polícias Civil e Militar, na esperança de que esse conhecimento possa al-
a Defensoria Pública do DF, a Câmara Legislativa, cançar maior parcela de nossa população.
Desembargadora Sandra De Santis Mendes de Farias Mello a OAB, a UnB, o CEUB e a Secretaria Nacional de
2º Vice-Presidente do TJDFT Políticas para as Mulheres. O projeto tem como A violência sexual contra crianças e adolescentes é
alvo a comunidade escolar, e como foco a educa- assunto de primeira ordem em nossa sociedade, a
ção para prevenir e também para coibir a violên- quem não é mais dado o direito de cerrar os olhos
cia contra a mulher. para tão dolorosos fatos. Precisamos vencer a cul-

O
padre jesuíta Antônio Vieira, missionário Em especial, no que se refere à violência sexu- tura do silêncio, inclusive nos lares, sem qualquer
nas terras brasileiras do século XVII, redigiu: al contra crianças e adolescentes, a cultura do Como desdobramento natural de sua atuação, tipo de preconceito com as vítimas. Contra as tre-
“A cegueira que cega cerrando os olhos não silêncio é um dos fatores determinantes para a o programa oferece, desde 2019, o curso “Maria vas da ignorância, impõe-se a luz da educação. E
é a maior cegueira, a que cega deixando os olhos perpetuação desses crimes, que levam à estigma- da Penha vai à Escola: abordagem técnica em si- cabe a nós dar o primeiro passo, como profissio-
abertos essa é a mais cega de todas.” A frase resu- tização das vítimas, por agir o violador com coer- tuações de violência sexual”. Entre o conteúdo, nais, responsáveis e cidadãos com capacidade de
me o tratamento tradicional de nossa cultura para ção baseada no medo e na vergonha. incluem-se informações para os profissionais da construir uma realidade mais favorável e próspera
questões dolorosas e consideradas tabus. educação, orientações para escuta especializada para nossas crianças e adolescentes.
14 PARTE I CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA 74 PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS
CRIANÇAS E ADOLESCENTES DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO

16 30 ANOS DOS MARCOS LEGAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS DE CRIANÇAS E DOS 76 APRESENTAÇÃO
ADOLESCENTES
78 MÓDULO I GÊNERO E VIOLÊNCIA SEXUAL
32 VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
Aula 01 Conceituando Gênero 79
42 CRIANÇAS, ADOLESCENTES E VIOLÊNCIAS: UM OLHAR PROTETIVO DA REDE Aula 02 Relacionando gênero e violência sexual 85
Aula 03 Violência Sexual contra criança e adolescente 97
50 DEPOIMENTO ESPECIAL E ESCUTA ESPECIALIZADA: REFLEXÕES SOBRE A LEI Nº
13.431/2017 E O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 108 MÓDULO II LEI MARIA DA PENHA E LEGISLAÇÕES DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE
70 ATUAÇÃO DA DELEGACIA DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE – DPCA
Aula 1 Crimes Sexuais 109
Aula 02 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 125
Aula 03 Sistema de Garantia de Direitos da Criança e
do Adolescente (SGDCA) e a Lei 13.341 137

150 MÓDULO III IDENTIFICAÇÃO, ACOLHIMENTO, ESCUTA ESPECIALIZADA E ENCAMI-


NHAMENTO DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
Aula 01 Identificação 151
Aula 02 Acolhimento e Escuta Especializada 165
Aula 03 Encaminhamento 181

194 MÓDULO IV PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA SEXUAL


Aula 01 O Papel da Escola no nfrentamento à Violência Sexual 195
Aula 02 Propostas Pedagógicas com Crianças 201
Aula 03 Propostas Pedagógicas com Adolescentes 211
14 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL
15

A R A
E R P
H E C
CO N A R A
E N T
N F R U A L
E S E X
N C I A S
L Ê N ÇA
VIO C R I A
T R A E S
N T
PARTE I CO
E A D O L E SC E N
16 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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A Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 12, estimulou os estados partes a criar oportunidades
30 ANOS DOS MARCOS LEGAIS para que a criança seja ouvida “em todos os processos judiciais ou administrativos que a afetem, seja direta-
mente, seja por intermédio de um representante ou de um órgão apropriado, em conformidade com as regras
DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS DE processuais da legislação nacional”. Já o ECA instituiu e/ou especializou os diversos órgãos que compõem o
sistema de garantia de direitos. O balanço realizado demonstra o entrelaçamento destes dois diplomas legais.
CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES
⇢ A CONJUNÇÃO HISTÓRICA QUE PROPICIOU A
ELABORAÇÃO DO ECA NOS ANOS 1980
Benedito Rodrigues dos Santos
A CONJUNTURA HISTÓRICA

⇢ APRESENTAÇÃO A elaboração do ECA foi fruto de uma conjunção histórica que entrecruzou alguns processos de curta e
longa duração:
Neste artigo faço um balanço dos 30 anos de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente
O século da universalização dos direitos da criança, promovidos pelas Nações Unidas.
(ECA). Optei por um tom mais ensaístico para que, na condição de observador participante e participante
observador – fui membro do grupo de redação do anteprojeto que deu origem ao ECA –, possa fazer uma A crítica (acadêmica e ativista) de um século de intervenções do estado associadas, em um
reflexão mais livre do pagamento de tributos a todos aqueles que escreveram e vêm escrevendo sobre os primeiro momento, ao caritativismo religioso e à ação filantrópica e, posteriormente, conjuga-
direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Outro motivo para isso é que utilizei vastamente o material que das com a perspectiva correcional-repressiva dos governos militares, as quais geraram a Política
sistematizei para subsidiar as palestras ministradas sobre os 30 anos do ECA, e também sobre os 30 anos da Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM).
Convenção sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas (ONU). A construção dos novos movimentos sociais, em especial do movimento de defesa dos direitos
da criança e do adolescente (1981 – 1988).
Considerando o diálogo que está sendo realizado nesta publicação sobre a escuta protegida de crianças e
adolescentes, o foco deste balanço será o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGD). A redemocratização do país liderada pelo processo constituinte e nova legislatura no Congresso
A Lei 13.431/2017, conhecida como a Lei da Escuta Protegida, estabelece o sistema de garantia de direitos da Nacional com parlamentares mais identificados com a justiça social.
criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Seus dois marcos fundamentais foram exatamen- As histórias institucionais e pessoais dos participantes do chamado Grupo de Redação do ECA.
te a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).
18 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
19

⇢ A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA: A importância desta Convenção, expressa no fato de ser a normativa das Nações Unidas mais ratificada em
todo mundo – ratificada por todos os países (196), com exceção dos Estados Unidos -, pode ser significativa
O século passado deve ser lembrado, na história da proteção de crianças e adolescentes, como a era em aqui, nesta apresentação, por algumas de suas mais destacadas conquistas:
que este segmento social conquistou o “direito de ter direitos”. A mobilização de crianças e adolescentes,
ativistas sociais, formuladores de políticas, representantes da comunidade diplomática de vários países do * A transformação dos princípios estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos da Criança
mundo resultou no reconhecimento formal de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. em um marco normativo internacional da proteção integral de crianças e adolescentes, o qual
estabelece explicitamente os compromissos dos estados partes na efetivação desses direitos;

* A inserção dos direitos da criança no rol dos direitos humanos, reafirmada a indissociabilidade
O leque dos direitos conquistados é amplo: civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Menciono aqui,
nesta trajetória de conquista de direitos, os três documentos das Nações Unidas, sobre a temática, mais
e inegociabilidade desses direitos.
importantes pela ênfase específica na proteção de crianças e adolescentes:
* A potencialização de instrumentos jurídicos legais concretos, no âmbito nas legislações nacionais,
* A Declaração sobre proteção da criança de 1º, esta Declaração estabelece que: “A criança os quais possibilitam a defesa de crianças e adolescentes contra as violações aos seus direitos.
1924, aprovada pela Liga da Nações, organismo gozará todos os direitos enunciados nesta De-
antecessor da Organização das Nações Unidas claração. Todas as crianças, absolutamente sem * O estabelecimento de marco normativo orientador do processo de formulação, implementa-
– ONU, a qual insta autoridades de todos os qualquer exceção, serão credoras destes direi- ção, monitoramento e avaliação de políticas públicas para o segmento criança e adolescente;
países do mundo a oportunizarem condições
para o desenvolvimento saudável de crianças
tos, sem distinção ou discriminação por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião polí-
* E como um subproduto, a articulação/organização de um movimento internacional de solida-
riedade com as crianças e adolescentes de todo o mundo, particularmente aquelas vivendo em
e adolescentes e envidarem esforços para que tica ou de outra natureza, origem nacional ou situação de vulnerabilidade social e acometidas por todas as formas de violência.
estas recebam atenção especial e prioritária em social, riqueza, nascimento ou qualquer outra
casos de adversidades sociais. condição, quer sua ou de sua família”. Dados do Comitê dos Direitos da Criança, mecanismo criado pela Convenção sobre os Direitos da Criança
para monitorar sua implementação, apontam avanços que motivam a comemoração desses seus 30 anos
* Um pouco mais de 30 anos mais tarde, as Na- * Exatamente 30 anos mais tarde, a ONU apro- de existência. Por meio das mais 80 sessões realizadas, dos mais de 800 relatórios de países apresentados ao
ções Unidas aprovaram a Declaração dos Di- vou a Convenção sobre os Direitos da Criança
Comitê para informar o status de sua implementação e dos mais de 4.800 relatórios alternativos de ONGs,
reitos da Criança de 1959, a qual instituiu a e do Adolescente (1989), instrumento este so-
é possível destacar significativos avanços como:
Doutrina da Proteção Integral e a universali- bre o qual me deterei nesta apresentação.
dade dos direitos da criança. Em seu Princípio
* Aumento substancial no número de países que contam com legislações protetivas dos direitos
de crianças e adolescentes. Estudo realizado pelo UNICEF em 2015, em uma mostra de 52 paí-
ses, demonstra que a maioria toma decisões importantes com base na Convenção.
20 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
21

* Crescimento global no número de crianças frequentando escolas em todo o mundo. Veja abaixo os principais marcos históricos da constituição do MDCA:
* Incremento da participação de crianças e adolescentes na defesa de seus direitos em todas as 1980 » 1984 1986 » 1990 1988
regiões do mundo.

* Contudo, esses relatórios apresentados nos oferecem também a dimensão dos desafios globais O movimento das
alternativas de atendi-
A criação do Movimento Nacional de Meni-
nos e Meninas de Rua e a articulação de
A constituição do Fórum
Nacional de Organizações
ainda por ser vencidos na implantação da Convenção, particularmente relativo à escala da vio-
lência praticada contra crianças e adolescentes, como a venda e tráfico para fins de trabalho e mento a meninos e meni- outras redes nacionais como Pastoral do Não-Governamentais de
exploração sexual; o envolvimento de crianças e adolescentes em conflito armado; o número nas de rua (Unicef, Menor e da Frente Nacional de Defesa dos Defesa dos Direitos da
de crianças vivendo sem cuidados parentais ou cuidados alternativos; o nível violações de direi- SAS-MPAS, Funabem). Direitos da Criança conectada à Frente Criança – Fórum Nacional
tos contra crianças imigrantes; as dimensões das violações de direitos de contra crianças com Municipalista dos Prefeitos pela Infância. DCA.
deficiência; e a preocupante situação da violação aos direitos humanos de adolescentes em
conflito com a lei, em várias partes do mundo, particularmente daqueles privados de liberdade.
Este amplo movimento social conseguiu incluir na Constituição Federal de 1988 dois artigos, os quais pela
* Sinergia histórica: O ECA como expressão nacional da Convenção sobre os Direitos da Criança. primeira vez na história constitucional do país institui o direito de ter direitos e o paradigma da proteção
No Brasil não há como falar da Convenção dos Direitos da Criança sem falar do Estatuto dos integral. Duas campanhas de mobilização social conjugaram os esforços para que se alcançasse esse resul-
Direitos da Criança e do Adolescente. ECA incorpora um século de conquistas em favor dos tado afirmativo: “Criança e Constituinte” (articulada pelo MEC, foco no 0-6 anos) e “Criança Prioridade
direitos da criança e do adolescente. Nacional” (organizações recém-criadas articuladas pelo Fórum Nacional DCA, apoio Unicef).

* Entre 1981 – 1989 enquanto um Grupo de Trabalho, em âmbito internacional, elaborava as Os esforços de concepção do ECA se iniciaram imediatamente após a promulgação da Constituição Federal,
inúmeras versões da Convenção sobre os Direitos da Criança, no Brasil se constituía um amplo
em 1988. Três iniciativas que estavam ocorrendo separadamente se juntaram para conformar o Grupo de
movimento em favor dos direitos da criança e do adolescente (MDCA), o grupo de redação do
Redação do ECA: (i) a da Coordenação da Curadoria do Menor, do Ministério Público do Estado de São
ECA e também se elaborava o anteprojeto do ECA.
Paulo – que estava elaborando uma revisão do Código de Menores; (ii) a do Fórum Nacional DCA, cuja
proposta buscava regulamentar a nova Constituição a partir da estrutura dos artigos 227 e 228; e (iii) a da
Assessoria Jurídica da Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (Funabem), que trabalhava em antepro-
jeto de normas gerais.
22 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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No início de 1989 esse grupo de trabalho já possuía um anteprojeto, o qual foi apresentado simultaneamen-
te às duas casas legislativas com intuito de se ganhar a precedência nas proposições de leis regulamentado- PRINCIPAIS LEGISLAÇÕES QUE ALTERARAM
ras da nova Constituição: o PL 1.506/89, negociado com Nelson Aguiar e Benedita da Silva e apresentado OU COMPLEMENTARAM O ECA
como de autoria do Dep. Nelson Aguiar e o PLS 193/89 apresentado no senador por Ronan Tito, em 30 de
junho de 1989. O PLS tramitou primeiro, foi aprovado no Senado em 25/05/1990 e enviado à Câmara dos LEI nº 12.010, DE 3 DE AGOSTO DE 2009 (Convivência Familiar e Adoção)
Deputados sob o PL 5.172/90, em 30 de maio de 1990. Esse PL deu origem ao ECA, aprovado em finais de
LEI nº 12.594, DE 18 DE JANEIRO DE 2012 (Sinase)
junho e sancionado pelo Presidente da República em 13 de julho de 1990.
LEI nº 12.696, DE 25 DE JULHO DE 2012 (Conselhos Tutelares)
Uma sinergia histórica fez com que o trâmite do projeto de ratificação da Convenção e o Projeto de Lei
que deu origem ao ECA, tramitassem concomitantemente no Congresso Nacional Brasileiro. A cronologia LEI nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014 (Menino Bernardo)
desses trâmites aponta uma feliz coincidência: o ECA foi aprovado em julho de 1990 e a Convenção ratifi-
LEI nº 13.257, DE 8 DE MARÇO DE 2016 (Marco da Primeira Infância)
cada pelo Congresso Nacional em setembro desse mesmo ano. Mais do que uma sincronia temporal, uma
equivalência normativa: o recém aprovado ECA, foi uma das primeiras legislações do mundo a contemplar LEI nº 13.509, DE 22 DE NOVEMBRO DE 2017 (Entrega voluntária)
em uma lei nacional a doutrina, os princípios e as diretrizes estabelecidas na Convenção.
LEI nº 13.431, DE 04 DE ABRIL DE 2017 2017 (Escuta protegida)
Por ocasião de sua aprovação o ECA foi saudado como a “expressão jurídica de um projeto mais amplo de trans-
formação político cultural do status da infância na sociedade brasileira, denominado ‘Projeto Cidadão Criança Ci- A despeito dos inúmeros projetos de lei que preveem a redução de direitos, de maneira geral, as leis apro-
dadão Adolescente’”. E também “um marco ‘civilizatório’ na forma de conceber e tratar a criança e o adolescente”. vadas mantiveram a essência do ECA e aprimoraram o seu texto original.
A força instituinte do ECA inspirou a reforma de pelo menos 15 diplomas legais latino-americanos.
Os aspectos essenciais do ECA são: a declaração dos direitos capitais (à vida e saúde, liberdade, respeito e

⇢ AS ATUALIZAÇÕES E COMPLEMENTAÇÕES AO ECA


dignidade, direito a convivência familiar e comunitária, educação, cultura esporte e lazer, profissionalização
e proteção no trabalho); a prevenção da violência (fortalecida pela Lei menino Bernardo); a diretrizes da
política de atendimento (políticas sociais básicas + proteção especial); diretrizes, descentralização, conse-
O processo dinâmico de constituição da cidadania de crianças e adolescente instituído pelo ECA vem sendo
lhos, fundos; as medidas de proteção (aplicadas pelos conselhos tutelares e pelo Poder Judiciário); a regula-
aperfeiçoado e complementado por uma série de legislações posteriormente aprovadas. Vale destacar aqui: as
mentação da aplicação e execução das medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes que praticam
alterações no Código Penal relacionadas para coibir a violência sexual contra crianças e adolescentes; a Lei do
ato infracional (Justiça da infância e juventude).
Sistema Nacional Socioeducativo; a Lei da Convivência Familiar e da Adoção; o Marco Normativo da Primeira In-
fância e, mais recentemente, a Lei 13.431/2017, denominada Lei do Atendimento Integrado e da Escuta Protegida.
24 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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⇢ A CONFORMAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DE Os números anteriormente mencionados oferecem as dimensões desse SGD. Especialistas vinculados aos
organismos internacionais avaliam que talvez o Brasil possua o maior sistema de proteção, baseado nos
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
direitos da criança, do mundo.
Os resultados desses esforços legislativos vão gradualmente impactando a realidade brasileira. Um dos seus resul-
tados mais expressivos foi a instituição de um sistema de proteção de crianças e adolescentes baseado em direi- Contudo, na nossa percepção, mais importante do que as dimensões desse Sistema, vale medir seu signifi-
tos, na doutrina da proteção integral, em contraposição às doutrinas da situação irregular e do bem-estar social. cado pelos resultados obtidos. E aqui adianto um dos nossos desafios centrais: os impactos desse sistema
nas políticas públicas para infância e juventude, nas decisões do sistema de justiça e na vida das crianças e
Com o propósito de “tirar a lei do papel” e torná-la uma realidade, no campo dos mecanismos de participa- adolescentes são ainda muito pouco conhecidos. Uma pergunta chave que se pode fazer é de que maneira
ção social no processo de formulação e monitoramento de políticas públicas, o ECA instituiu os conselhos esse SGD vem contribuindo para construção da cidadania de crianças e adolescentes no país?
de direitos da criança e do adolescente nos âmbitos municipal, estadual e federal.
Desta maneira o SGD da Criança e do Adolescente é também configurado nas intersecções com outros
De maneira inovadora, o Brasil criou um mecanismo de aplicação de medidas administrativas, visando sistemas setoriais como o Sistema Único de Saúde, o Sistema Único de Assistência Social, o Sistema Edu-
prevenir a judicialização ou desjudicializar aspectos da proteção de crianças e adolescentes que são efetiva- cacional (em processo de estruturação) e o Sistema de Justiça, os quais por sua vez vêm experienciando
mente de justiça social, e não de natureza jurídico-legal, que os são os conselhos tutelares. significativos avanços institucionais, ao longo desses 30 anos.

No campo da segurança e justiça o ECA e leis posteriores instituíram um conjunto de órgãos como unidades AS TESES SOBRE O IMPACTO DO ECA NESSES 30 ANOS, AS PRINCIPAIS QUESTÕES A SEREM RES-
policiais e núcleos, centros e varas especializadas em infância e juventude.
PONDIDAS E OS GRANDES DESAFIOS A SEREM SUPERADOS.
OS NÚMEROS DESSE SISTEMA CHAMAM NOSSA ATENÇÃO (DADOS DE 2010): As reflexões e o balanço da implementação do ECA me levaram as elaborar as teses abaixo sobre os 30 anos
5.084 Conselhos de Direitos - cobertura 91,4% de vigência do ECA:
5.472 Conselhos Tutelares - cobertura 98,3%
Delegacias especializadas em infância e juventude nas capitais dos estados. Tese 1» Houve avanços substantivos na disseminação da nova cultura de direitos da criança e do
26 estados brasileiros com Centros operacionais das promotorias adolescente e no marco de proteção jurídica (adoção, acolhimento institucional, conflito c/ a lei).
de Justiça da Infância e da Juventude.
796 Núcleos especializados em infância e adolescência das Defensorias Públicas (34,7%) Com o ECA, o país ganhou um importante instrumento de instituição do paradigma de direitos da criança
e do adolescente e deu início a um novo modo de governar crianças e adolescentes. Hoje este é o principal
133 varas especializadas na infância e juventude (competência exclusiva) e
instrumento normativo a regular matérias jurídicas relacionadas à criança e ao adolescente como aquelas
1.137 com competência cumulativa.
relacionadas aos direitos fundamentais, aos cuidados alternativos, ao conflito com a lei.
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potencial “integralizador” das políticas para infância. Observa-se uma ‘concorrência’ de atuação Conselhos de
Tese 2» Foram verificados avanços arrítmicos e desiguais nas diversas esferas (poder executivo
Direitos e Conselhos de Assistência Social na proteção especial e, ainda, uma certa competência por fundos:
e judiciário), no campo das políticas sociais e regiões geográficas (estados e municípios).
cerca de 86% dos CMDCAs são vinculados administrativamente as pastas da Assistência Social.

Em relação ao Poder Executivo, do ponto de vista da gestão das políticas, houve a criação expressiva de ór- Em nível nacional, falta um mecanismo de coordenação da política de atendimento dos direitos da criança
gãos colegiados, com a participação de segmentos do governo e de segmentos da sociedade (mulher, crian- (intersetorial). Os órgãos das políticas setoriais geraram seus sistemas únicos são setorializados, sem a cria-
ça, idoso), bem como temáticos (igualdade racial). Os conselhos de direitos da Criança e do Adolescente ção de mecanismos articuladores das ações setoriais. Também falta o desenvolvimento de um modelo de
estão entre os com maiores índices de institucionalização. gestão municipal que organize as contribuições da profusão de conselhos e a implementação efetiva de um
sistema de informação que solucione a precariedade da produção de dados.
As políticas setoriais de educação, saúde e assistência registraram avanços na institucionalização de políticas
e programas que impactaram na redução da mortalidade infantil, na diminuição do número de crianças Em resumo, embora tenha se verificado um alto grau de instituição das diversas organizações do SGD, se
e adolescentes fora da escola. Hoje as crianças da geração ECA têm mais chances de sobreviver e acessar a verifica um baixo nível de institucionalidade: pouca prioridade vem sendo dada aos conselhos de direitos
educação pública e gratuita. e conselhos tutelares, bem como ao orçamento da criança e do adolescente; pequeno avanço na especiali-
zação de órgãos nos sistemas de segurança e justiça. Dados do CNJ demonstram a existência de varas com
No Poder Judiciário embora se registrassem avanços no marco jurídico e na especialização da justiça, esses competência exclusiva em apenas 5% das comarcas, aproximadamente 160 varas, em todo o país. Embora
avanços foram mais tímidos durante a primeira década de vigência do ECA. No final da segunda década, leis os conselhos tutelares tenham se transformado em uma caixa de ressonância da violência praticada contra
como a 13.431/2017 demandaram do sistema de justiça a implantação de metodologias inovadoras para crianças e adolescentes, falta, contudo, alinhamento procedimental e protocolar na averiguação dos casos
a escuta protegida de criança, buscando gerar avanços na área da Justiça Criminal, que vinha sendo pouco de violência, na aplicação de medidas e no acompanhamento dos casos. As crianças e adolescentes são re-
permeável as regras de proteção de crianças e adolescentes instituídas pelo ECA. vitimizados no seu contato com o SGD (rede de proteção e sistema de justiça, sobretudo por falta de uma
ação coordenada entre rede de serviços e órgãos de segurança e justiça.
Embora o país tenha composto o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, seus órgãos
possuem baixos níveis de institucionalização e articulação entre si. Os conselhos de direitos não possuem
força instituinte e sua incidência tem sido frágil, insuficiente para provocar quebra dos paradigmas tradicio- Tese 3» Baixo impacto dos investimentos realizadas na proteção especial nos indicadores de
nais de gestão de políticas.
violência contra crianças e adolescentes.

Faltam padrões de alinhamento na construção das políticas (saúde, assistência, tipos de proteção e benefícios).
Os conselhos de direitos da criança e do adolescente têm dedicado mais esforços às medidas de proteção es- No âmbito da proteção especial, o país elaborou e implementou planos de enfrentamento a diversas formas
pecial uma vez que as políticas sociais básicas têm seus próprios conselhos setoriais, resultando em um baixo de violações contra os direitos da criança e do adolescentes, dentre estes devemos mencionar: as duas edi-
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ções do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (2000 e 2014);
as duas edições do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (2004 e 2009); o Plano Nacional de Tese 4» Baixo impacto em questões estruturais que afetam o cumprimento dos direitos de
Convivência Familiar e Comunitária (2006); o Plano Nacional Primeira Infância (2010) e o Plano Nacional crianças e adolescentes como os níveis de pobreza, de racismo e discriminação de gênero.
Decenal Socioeducativo (2013). Mais recentemente o UNICEF vem apoiando a elaboração e implementa-
ção de planos estaduais de prevenção e redução dos homicídios de adolescentes e jovens. Neste campo, da Embora as crianças pobres da geração ECA vivam em lares que convivem com patamares de renda um pou-
proteção especial, os dois resultados mais efetivos e de maior escala, foram a redução das taxas de subregis- co melhores do que em décadas anteriores, as políticas econômicas associadas às políticas assistenciais de
tro de nascimento e do trabalho infantil. transferência de renda, tem produzido resultados muito tímidos na distribuição de renda do país.

Contudo, a exceção feita à redução da ordem de quase 60% nos últimos 20 anos do trabalho infantil, as O balanço acima suscita questões que podem orientar novos debates e novas pesquisas:
ações que vem sendo desenvolvidas no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes – a ela-
boração de planos, a criação de órgãos e programas – parecem não ter produzido significativos impactos
nos perversos indicadores de violência, muito agravados com a pandemia do coronavírus.
* Quais são os motivos desses avanços irregulares e desse baixo impacto da garantia de direitos
proposta pelo ECA na melhoria das condições de vida de crianças e adolescentes?

Uma das razões está relacionada com os limites das políticas especializadas e com a ênfase na proteção * Pensando no texto da lei: a concepção de política especializada, as diretrizes e os mecanismos
social especial. No seu artigo 86, o ECA afirmou que o atendimento dos direitos da criança e do adolescente estabelecidos para formulação e implementação da política de “atendimento” dos direitos da
se faria por conjunto articulado entre políticas básicas e medidas de proteção especial. Ao longo desses anos criança e do adolescente (art. 86) foram e continuam sendo os mais adequados?
não tem sido possível lograr uma atuação articulada sobretudo pelo fato de as políticas sociais básicas se-
rem estruturadas de forma setorizada, tornando muito difícil produzir estratégias para um segmento social: * A aposta do ECA na universalização dos direitos sociais (fundamentais) e na democracia par-
ticipativa (conselhos, etc) ofereceu ferramentas suficientes para a solução dos problemas es-
no caso as crianças e adolescentes. Por sua vez, o país ainda não logrou estabelecer políticas de prevenção
truturais que afetam a vida nossas crianças e adolescentes? Estão estes fatores relacionados a
de todas as formas de violência contra crianças e adolescentes.
aspectos do texto da Lei ou a sua implementação (circunscrito à cultura de baixo nível de law
Constata-se, na implementação das ações, muita ênfase na proteção especial, com pouca incidência sobre as enforcement no Brasil)?
causas estruturais dos problemas (a violência), devido a adoção de um conceito equivocado de proteção espe- Em resumo, diante deste mesmo balanço quais ainda são os grandes desafios na implementação do ECA?
cial como uma política em si mesma. Não se pode resolver o problema da violência somente atendendo às víti-
mas. Isto é importante, mas não suficiente para impedir que perpetradores continuem praticando a violência. * O baixo nível de institucionalidade do Sistema de Garantia de Direitos – SGD, evidenciado na
fragilidade do funcionamento dos seus órgãos e na falta de padrão metodológico;
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* A falta de articulação entre as políticas econômicas, políticas sociais básicas (setoriais) e as me-
didas de proteção especial para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social;
⇢ CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto o amplo movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente continua encetando es-
* A ênfase na proteção especial com pouca incidência sobre as causas estruturais dos problemas;
forços para superar os desafios acima mencionados, duas áreas vêm revitalizando as energias do MDCA: a

* A falta de políticas de prevenção de todas as formas de violência contra crianças e adolescen- das políticas para primeira infância e a da implementação da Lei 13.431/2017.
tes. Considerando que grande parte da violência contra crianças e adolescentes é perpetrada
dentro de casa, se faz premente levar a políticas de direitos humanos para um contingente No caso da Lei, por exemplo, houve um crescimento exponencial do número de projetos de depoimento no
significativo de lares brasileiros; país: em 2003 eram apenas dois, na comarca de Porto Alegre, hoje já há mais de 900 em todo o país.

* Os níveis de revitimização de crianças e adolescentes no seu contato com o SGD, incluindo as Para finalizar, ao celebrar os 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e
instituições da rede de serviços e os sistemas de segurança e justiça. do Adolescente o Estado Brasileiro deve reafirmar seu compromisso de, junto com as autoridades e organi-
zações da sociedade civil brasileira, envidar esforços para que o país possa cumprir as metas estabelecidas
O caminho para a superação de muitos desses desafios pode ser, parcialmente, encontrado nas recomenda-
no acordo “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” - ODS, particularmente em relação ao item 16.2,
ções do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas ao Estado brasileiro, após Brasil haver apresen-
que propõem a eliminação de todas as formas de violência contra crianças e adolescentes até 2030.
tado o seu último Relatório, em 2012:

* Maiores investimentos na implementação do Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças


e Adolescentes;

* Fortalecimento dos esforços para combater a discriminação e a estigmatização e exclusão so-


cial de crianças que vivem na pobreza em áreas urbanas marginalizadas, como favelas, crianças
em situação de rua e crianças e meninas afro-brasileiras e indígenas;

* Priorização do Orçamento Criança;


* Criação e implementação de mecanismos de coordenação intersetorial de políticas integrais de
proteção às crianças e adolescentes;

* Melhoria nos sistemas de produção de dados;


* Implementação de mecanismos independentes de monitoramento das políticas para infância.
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de violência. Como vivemos em um país marcado pelo machismo estrutural, precisamos rever vários mitos
VIOLÊNCIA SEXUAL que se encontram muito presentes em nossa sociedade. Vamos recordar algumas frases que conhecemos
a respeito da violência e que muitas pessoas reproduzem sem ver o absurdo de seu conteúdo. É comum
INTRAFAMILIAR ouvirmos “foi estuprada porque estava com uma roupa provocante”, “a mulher tem que servir seu marido
senão ele vai procurar se satisfazer de outra forma”, “ o homem não é capaz de controlar seus impulsos se-
xuais” e tantas outras. Rimos e reproduzimos piadas que envolvem a mulher e que a tratam como lazer do
Silvia Lordello homem. Essa fala cultural sobre a mulher é tão internalizada que, mesmo quando a menina é violentada, ela
chega a acreditar que tem culpa pela roupa que está usando ou por despertar desejos por ter o corpo que
tem. Lordello e Costa (2017), apresentam um exemplo em seu texto de quão grave pode ser esse mito sus-
Um dos temas mais importantes e desafiadores para a rede de proteção é o da violência sexual intrafamiliar. tentado pela cultura. As autoras contam o caso de Carla, adolescente de 16 anos grávida de estupro come-
Isso porque é um fenômeno que ocorre no campo privado e com uma dinâmica própria. Temos observado tido por alguém que não conseguia identificar, uma vez que era submetida por sua avó à exploração sexual.
nos últimos tempos casos que foram veiculados na mídia e que provocam grande mobilização social, mas A adolescente acreditava que o uso de roupas curtas teria sido o motivo de ter sido violentada e havia sido
vemos pelos jornais e pela internet que as pessoas sabem muito pouco sobre esse tema. Conhecer essa di- aconselhada a evitar o uso desse tipo de roupa nas instâncias judiciais pelas quais havia passado. Vejam a
nâmica ajuda a detectar os sinais dessa grave forma de violação de direitos. Para organizar de forma didática gravidade desse tipo de ideia sustentada, inclusive pelo Estado, nas orientações dos agentes públicos.
algo tão complexo, vamos abordar neste capítulo três temáticas muito importantes para a compreensão
Precisamos esclarecer esses mitos. Primeiro, a pessoa que foi violada é sempre vítima, nunca culpada. No
e intervenção no campo da violência sexual intrafamiliar, que versarão sobre: a) Aspectos culturais que re-
caso das crianças e adolescentes isso ainda é mais alarmante. O adulto da relação sabe exatamente o que
vestem a violência sexual intrafamiliar, b) Dinâmica da violência sexual intrafamiliar e c) Impactos na vida
está fazendo e imputar à criança ou a/ao adolescente a culpa é um enorme erro que, infelizmente, ainda é
da família e das crianças e adolescentes. Acreditamos que tais conteúdos são necessários para fundamentar
comum. A criança ou adolescente se encontram em pleno desenvolvimento e muitas vezes não reconhe-
intervenções e principalmente, atuar de forma preventiva e protetiva nesse campo.
cem que o que estão vivenciando trata-se de uma violência. Imagine que no âmbito familiar quem deveria
proteger é quem viola. Como uma criança pode desconfiar que a pessoa que ela confia é capaz de lhe fazer
⇢ ASPECTOS CULTURAIS QUE REVESTEM A algum mal? E mesmo se ela desconfiar que há algo errado e seu ofensor ameaçar de matar sua família, caso
VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR ela conte, como terá coragem de pedir ajuda? Nunca, sob nenhuma justificativa, uma criança ou adoles-
cente pode ser culpada pelo ato sexual violento de um adulto. Precisamos reagir a esse tipo de afirmação e
Os primeiros sinais dessa violência se encontram na própria cultura. Podemos encontrá-los materializados combater a naturalização desses argumentos.
nas piadas que abordam a mulher de forma pejorativa, por exemplo, ou na forma como as mulheres são
retratadas nas músicas e nas novelas. O primeiro passo que precisa ser dado é o de desnaturalizar esse tipo
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Outro mito a ser rebatido é que crianças fantasiam e que os relatos delas são inconsistentes. Esse mito é isso a violência não é sentida de imediato. No caso das crianças e adolescentes, pessoas da família, com laços
grave, pois ouvimos os relatos infantis a partir de uma ótica de adulto. Cobramos da criança uma explica- consanguíneos ou com laços de afeto com status de familiares (padrinhos, cuidadores, padrastos, etc) apro-
ção numa lógica a qual seu nível cognitivo e desenvolvimental não alcança. Nós é que muitas vezes não veitam da confiança e sentimento da criança e vão apresentando propostas que se iniciam por brincadeiras
conseguimos ver o que a criança está expressando. Temos que observar os gestos, brincadeiras, desenhos e e vão se complexificando em carinhos sexualizados que visam a gratificação sexual do ofensor, sem que ela
linguagem simbólica que podem demonstrar comportamentos sexualizados, revelando possíveis violações. tenha a ideia clara de que está experienciando uma violência.
Não deve se subestimar os sinais emitidos pela criança.
A família é considerada a principal esfera protetiva e transmissora de valores em nossa sociedade. Mas em
Os mitos são muitos, mas pela brevidade do capítulo vamos apontar somente mais um. É comum o mito das alguns lares a família representa mais risco do que proteção. Se as estatísticas mostram que a violência se-
pessoas acharem que uma criança ou adolescente vai apresentar repulsa por seu ofensor. Muitas vezes ouvi- xual se apresenta majoritariamente em contextos que são familiares, esse dado precisa ser considerado pela
mos que se tivesse sofrido violência sexual, uma criança jamais ficaria confortável ou receptiva na companhia rede protetiva. Alguns dados alarmantes foram apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
dele. Isso é diferente quando falamos em violência sexual intrafamiliar, pois esse ofensor é alguém que tem em setembro de 2019: um recorde de violência sexual. São 66 mil vítimas de estupro no Brasil, sendo a maio-
uma relação próxima com a criança. É ele quem a leva para passear, que compra lanche e leva na escola. Muitas ria meninas de até 13 anos (53,8%), o que representa 4 meninas sofrendo violência sexual por hora no país.
vezes ela nem reconhece que o desconforto é uma violência e acha que aquele comportamento faz parte das É importante salientar que a 50,9% dos estupros são com meninas negras. Identificar esses e outros quadros
atitudes previstas a um cuidador. Mesmo quando ela reconhece, a criança ou adolescente quer que só aquilo que caracterizam a violência sexual intrafamiliar em nosso país nos permite pensar em como acionar os
pare, mas não deseja mal ao seu ofensor. Isso porque ela o vê mais como pai, avô, tio do que como alguém mecanismos de detecção da violência como uma estratégia que não cabe só aos equipamentos sociais do
que lhe faz mal. Isso não ocorre só na violência sexual. Na violência psicológica e física observa-se uma criança Estado, mas a todos os cidadãos. Essa é uma tarefa de toda a sociedade: garantir que crianças e adolescentes
indignada com uma surra ou xingamento, mas depois ela mesmo defende o familiar, dizendo que mereceu. sejam vistos como sujeitos de direitos e combater, de forma intransigente, as violações a eles dirigidos.
Essas violências naturalizadas em nossa cultura precisam ser revistas e combatidas, pois isso dificulta a respon-
sabilização do agressor e retorna a culpabilização para as próprias pessoas que sofreram a violência. A literatura nacional e internacional é unânime em alertar que o maior perigo mora dentro de casa (Costa
et al., 2016; Coutinho & Morais, 2018). Isso porque a relação dos ofensores sexuais é construída, na maior

⇢ DINÂMICA DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR


parte das vezes, pela confiança e pelo afeto. Com esses elementos presentes, dois fenômenos são comuns:
um reconhecimento muito tardio de que a situação desconfortável se tratava de uma violência e quando
E SUAS ESPECIFICIDADES se reconhece, ainda assim, há um grande período entre descobrir e revelar. Algumas vezes, abusos sexuais
crônicos, realizados por um tempo prolongado só são descobertos por situações alarmantes como uma
Como já mencionamos, a violência sexual intrafamiliar se difere das outras violências sexuais no que se gravidez, por exemplo. Há situações em que essas violações ocorrem desde a infância, mas que ao chegar à
refere à dinâmica na qual esse processo ocorre. E podemos dizer que é um processo, pois essa violência se adolescência se concretizam, após a primeira menstruação, na forma de gestação decorrente dos estupros
baseia numa relação de poder, na qual os papéis não são simétricos e vai ocorrendo de forma gradativa, por que já ocorriam há tempos. Essa situação tem se mostrado, infelizmente, um indicador da violência que só é
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descoberta nas Unidades de Saúde. A família muitas vezes leva a criança ou adolescente à consulta em vir- ou exigirem que seja mantido um segredo, afirmando desmenti-las caso contem, são pessoas que agem ar-
tude de desconfortos físicos e é surpreendida pela constatação dessa violência descoberta nesse contexto. A dilosamente no ambiente para praticarem seus atos libidinosos, esperando oportunidades sem testemunha.
partir da constatação do fato é que se verificam as histórias e as crianças e adolescentes revelam os abusos Isso dificulta ainda mais que a criança ou adolescente violentada tome coragem para contar ou mesmo
sexuais aos quais se submeteram por tanto tempo. Na maior parte das vezes e coerentes com as estatísticas sinta que seu relato terá crédito, quando tomar a difícil decisão de revelar.
apresentadas, os abusos ocorreram dentro da casa e com familiares, mas não foram revelados por ameaças
que colocariam em risco as pessoas mais vinculadas à criança. Além da construção de uma vinculação na qual a relação abusiva seja sutil aos olhos da criança e do ado-
lescente, como ocorre na maior parte dos casos, outro aspecto comum é que as vítimas não conseguem
Entretanto, ainda com essas dificuldades, de acordo com Marra e Costa (2018), as crianças são mais propensas nominar como violência o que sofrem. Para elas, é apresentado um conteúdo sexualizado como brincadeira
a revelar as violências sexuais do que os adolescentes, mas isso leva em torno de 27 meses. As autoras hipote- secreta ou como vantagens em se fazer aquele tipo de carícia, ou mesmo fazer acreditar que faz parte do
tizam que a criança tenha menor clareza dos impactos de uma revelação para seus familiares, sobretudo para papel desempenhado nos cuidados realizar aquela carícia. É comum ouvir pelo ofensor que aquilo é bom
mães e avós, que são as pessoas mais buscadas para esse fim. Adolescentes possivelmente temem o sofrimento para ela, é melhor ser com alguém da família do que com alguém de fora, que ao ver TV pode-se imitar
que será gerado em suas genitoras e protelam esse momento. Outro grande desafio é que entre o período de aquele treino de beijo e tantas outras desculpas para dar uma roupagem aceitável ao que é inaceitável.
revelação à família e a denúncia ou procura de um serviço de atendimento também há um grande interva-
lo. Quando isso ocorre sem a interferência de um equipamento do Estado, ou seja, ocorre internamente na Com essa dinâmica tão peculiar é comum que a criança ou adolescente não reconheça a violência ou que,
família, há muito temor em tornar pública a violência. A família costuma tomar providências internas como mesmo após revelarem o abuso sexual cometido, voltem atrás, negando o fato, o que chamamos de retra-
modificar a organização familiar ou responsabilizar o ofensor, mas essas medidas se tornam pouco efetivas na tação. A pessoa que revelou a violência costuma observar quais são as reações de quem a escuta. Diante da
interrupção da violência. Um objetivo que precisa ser perseguido é interromper a violência e ativar a proteção, falta de credibilidade ou de uma alta reatividade de quem recebe a notícia, as vítimas retroagem em seus
minimizando ao máximo os lapsos temporais (Habigzang, Ramos, & Koller, 2011; Santos & Del´Aglio, 2010). relatos e desistem de expressar a verdadeira versão da violação sofrida. É fundamental que olhemos para
a retratação, compreendendo que ela faz parte dessa dinâmica. Algumas famílias sentem certo alívio com
Essas informações aumentam ainda mais a responsabilidade sobre uma educação sexual que precocemente retratações e voltam a naturalizar violências, por acreditar que o relato duvidoso ou negado seja um sinal
aborde estratégias de autoproteção e que conscientize a população sobre os sinais emitidos pelas crianças e da volta ao equilíbrio familiar após o episódio.
adolescentes a respeito da violência que experienciam em seus lares. Outro grande desafio é o de dar crédito
ao relato da vítima. De acordo com Lordello e Costa (2017), a violência sexual intrafamiliar estabelece uma Um último aspecto que compõe a dinâmica, diz respeito à triste situação da vítima se sentir desamparada
sedução intencional e paulatina de quem possui papel na hierarquia familiar ou por pessoas que exercem a ponto de aceitar a situação tão gravosa a qual se vê impossibilitada de interromper (Antony & Almeida,
cuidado e poder. Com isso, o silenciamento é maior, pois são pessoas que não levantam suspeitas e qualquer 2018). Autores chegam a denominar como adaptação, por se tratar de uma desistência da criança ou ado-
rompimento do segredo costuma evocar questionamentos e desconfianças sobre a veracidade do relato. lescente de tentar mudar essa realidade e terminar por adaptar-se às violações, imaginando que não há
Mesmo aquelas que fazem uso de recursos de coerção, como ameaças de fazerem mal a outros familiares outra solução possível. Isso faz com que se desencorajem de tentar comunicar o abuso sofrido e com isso,
perpetua-se por longos períodos tal situação.
38 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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Todos os exemplos que podemos citar são impactantes, mas vejam esses dois fragmentos de casos reais: costumam expressar o impacto de forma muito dolorida, como mostra o exemplo de Larissa, uma adoles-
Amanda (nome fictício) era uma adolescente que sofria abusos sexuais perpetrados por seu avô materno cente que teve viveu a violência em sua casa: “Meu próprio pai me violentou e eu senti que morri por dentro. Eu
desde os oito anos de idade. Aos quinze, ficou grávida e assim teve que contar à família. Embora a mãe tenha fui morrendo durante anos. Vi minha morte sem poder fazer nada”.
conseguido tomar providências e apoiá-la, escutou da filha que ela tinha desistido de tentar transmitir a men-
sagem de que o avô não era tão legal como pensavam. Nas palavras dela: “depois que ele começou a fazer tudo Há autores que mencionam alguns impactos que podem marcar a vida dessas crianças e adolescentes, so-
isso comigo eu pareço que eu perdi as forças, sabe? Eu me sentia um nada. Você vai falar isso para quem? Quem é que bretudo no futuro, em sua vida amorosa, relacionamento e sexualidade. Pode ocorrer ausência de desejo,
vai te ajudar? Eu via assim... ele já tá destruindo a sua vida, eu pensava, né? (Lordello & Costa, 2020). O outro caso anorgasmia, tendências para os extremos como assexualidade e hipersexualidade e principalmente a perda
menciona claramente a retratação. Vanuza (nome fictício), 15 anos, após seu parto de gêmeas revelou na en- de confiança nas pessoas, evitando vinculações e relacionamentos em virtude de uma constante atitude
fermaria do hospital que os bebês eram frutos de violência sexual por parte de seu padrasto. Após a revelação persecutória. A baixa estima, sentimentos de menos valia e culpa também podem se fazer presentes.
mãe a acusou pelos abusos e a destratou perante todos. Ela voltou atrás e negou o fato. Diante da confirmação
por exame de DNA, os procedimentos de abrigamento foram realizados, pois além de tudo morava em área Diante de tantos impactos, é importante estar atento aos sinais que podem ser emitidos pelas crianças e
rural e o seu retorno à casa, com as filhas, poderia ter consequências letais (Lordello & Costa, 2018). adolescentes. Os mais comuns são as evidências de uma erotização precoce, que não se mostra compatível
com o nível desenvolvimental da criança, como falas, desenhos e comportamentos que só poderiam ser
Esses e vários outros exemplos, infelizmente, são muito comuns, conforme comprovam as estatísticas. A cada notados em uma criança que estivesse exposta a alguma cena ou material erótico. Nomes e desenhos envol-
hora, 4 meninas até 13 anos sofrem abusos sexuais, sendo a maior parte por pessoa conhecida e dentro do am- vendo órgãos sexuais em detalhes, com posições sexuais ou outros elementos que deveriam ainda ser des-
biente doméstico. Essa triste realidade precisa ser combatida. É responsabilidade de todo cidadão se envolver conhecidos devem ser objetos da atenção. Uma vez uma criança de 4 anos desenhava um pênis ejaculando
com essa temática, seja na forma de ensino e difusão das estratégias de autoproteção ou na responsabilidade e ao contar sobre o desenho, percebeu-se que presenciava um primo masturbando-se, em clara denúncia
cidadã de comunicar ao Conselho Tutelar ou ao Disque 100 qualquer suspeita de violências com qualquer pessoa. de violação sexual, mas que lhe fora apresentado como uma brincadeira secreta entre primos.

Atitudes sexuais impróprias para a idade, assim como demonstrar conhecimento sobre atividades sexuais por
⇢ IMPACTOS NA VIDA DA FAMÍLIA E DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES falas, gestos, atitudes, masturbação compulsiva independente do ambiente, brincadeiras sexualizadas, mudan-
ças de comportamento e infecções urinárias de repetição são exemplos de sinais indiretos que sugerem situ-
Não há dúvida de que a violência deixa marcas que nunca se apagam. As consequências são sempre senti- ações de violência que podem não estar sendo percebidas como tal pela criança. Além disso, há sinais físicos
das, embora dependam de variáveis e da forma como cada pessoa consegue lidar com essa experiência trau- em área genital, IST, e, como já mencionado, a própria gravidez. Mudanças de comportamento como recusa
mática. Alguns fatores são importantes como a idade, o desenvolvimento psicológico, o tipo de violência, a em ficar com alguém, tristeza profunda/ ou automutilação, sensação de desamparo, pesadelos e distúrbios
frequência, a duração e a natureza dos abusos sexuais, a gravidade das agressões, o vínculo do autor com a do sono, ataques de raiva/ medos inexplicáveis de lugares e pessoas, enurese, encoprese e outras regressões,
vítima, as medidas que são tomadas para prevenir violações futuras e a forma como cada pessoa significa a agressividade, isolamento, falta de confiança nas pessoas devem sempre ser observados e investigados.
experiência de abuso. Na maior parte dos casos, as crianças e adolescentes que passam por essa experiência
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⇢ CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS

Antony, S., & Almeida, E. M. de. (2018). Vítimas de violência sexual intra- Lordello, S. R., & Costa, L. F. (no prelo). Violência sexual intrafamiliar e
O objetivo do capítulo foi apresentar o conteúdo que todo cidadão deveria estar informado sobre a violên- familiar: uma abordagem gestáltica. Revista do NUFEN, 10(2), 184-201. gravidez na adolescência: Uma leitura bioecológica. Psicologia: Teoria e
cia sexual intrafamiliar, para que possa, ao compreender como ela se dá, poder intervir de forma a coibi-la e https://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n02ensaio41 Pesquisa. Número especial.

a evitá-la. Nossa tarefa, como sociedade, é combater a naturalização da violência sexual. Combater significa Costa, P. R., Grossi, M. P., & Macarro, M. J. M. (2016). “Não dói o útero e Lordello, S. R., & Costa, L. F. (2017). Gestação decorrente de violência
sim a alma”: A violência sexual que fere, que mata, que dilacera as mu- sexual: compreendendo sentidos para pensar a intervenção. In D. M.
se posicionar, não aceitar o machismo estrutural e não subestimar cenas que são de violência entenden- lheres do Brasil. Caderno Espaço Feminino, 29(2), 1981-3082. https:// Amparo, E. R. Lazzarini, I. M. Silva, L. Polejack. Psicologia Clínica e Cultu-
do-as como brincadeiras ou aceitando-as como tradição da cultura. Além disso, precisamos notificar e doi.org/ 10.14393/CEF-v29n2-2016-9 ra Vol. 3. (pp.421-445). Technopolitik.
denunciar violências que presenciamos, mesmo se ainda for só uma suspeita. Proteger nossas crianças e Coutinho, MML & Morais, NA. (2018). O processo de revelação do Marra, M. & Costa, L. (2018). Entre a revelação e o atendimento: família
adolescentes é uma tarefa de todos. Não podemos nos isentar e permitir que isso seja delegado somente à abuso sexual intrafamiliar na percepção do grupo familiar. Estudos e e abuso sexual. Avances en Psicología Latinoamericana, 36(3), 459-475.
Pesquisa em Psicologia, 18(1), 93-113. Recuperado em 20 de maio de doi: http://dx.doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.3564
família ou ao Estado. Até porque, no caso da violência intrafamiliar, a família não representa um lugar de 2020, de https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/arti-
cle/view/38111/27563 Santos, S. S., & Dell’Aglio, D. D.. (2010). Quando o silêncio é rompido:
segurança e sim de risco. o processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil. Psico-
Habigzang, L. F., Ramos, M. S., & Koller, S. H. (2011). A revelação de logia & Sociedade, 22(2), 328-335. https://doi.org/10.1590/S0102-
Outra tarefa importante é mapear a rede de serviços. Saber com quem contar em casos de violação de abuso sexual: as medidas adotadas pela rede de apoio. Psicologia: 71822010000200013
Teoria e Pesquisa, 27(4), 467-473. https://doi.org/10.1590/S0102-
direitos pode auxiliar muito as ações de proteção e prevenção da violência. Conhecer os serviços da nossa 37722011000400010
cidade, os Programas de Atendimento às Vítimas, o Conselho Tutelar, os órgãos da justiça, saúde e educa-
ção com quem podemos contar podem ser extremamente importantes para encorajar que todos possam
se sentir seguros para agir quando estiverem diante de violações. Articular esses serviços da rede para que
possam atuar em parceria é outra missão importante dos equipamentos do Estado. Para os profissionais,
além dessa articulação, outros requisitos são essenciais, como a atuação de forma interdisciplinar e a capaci-
tação constante. Por fim, prover subsídios para as políticas públicas e ter políticas que sejam efetivas em sua
execução é um dos principais pilares para que a violência sexual intrafamiliar seja prevenida e enfrentada
com o apoio de toda a sociedade.
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Ressai, todavia, a necessidade de um olhar especial para a vítima que é parte importantíssima no sistema
CRIANÇAS, ADOLESCENTES de responsabilização, mas não pode continuar associada à mera prova processual. A vítima não pode estar
unicamente ligada ao resultado esperado de uma punição. Não pode carregar sozinha o trauma de um cri-
E VIOLÊNCIAS: UM OLHAR me e o peso da consequência processual de uma eventual absolvição ou punição.

PROTETIVO DA REDE Os interesses da vítima e principalmente suas vulnerabilidades devem entrar no foco de atuação de todos.
E se essa vítima é criança ou adolescente, mais forte a vulnerabilidade.

Durante séculos na história do mundo, a criança representou um “rascunho”, “um projeto” de um ser adul-
Gislaine Carneiro Campos Reis to. Um ser humano equiparado por vezes em suas necessidades a animais e em outras tantas até menor em
importância. Sob o ponto de vista jurídico, sequer era considerado um sujeito de direitos.

A violência contra as crianças e adolescentes é um tema necessário, com várias nuances a serem considera- De fato, as mulheres e as crianças só recentemente passaram a ser reconhecidas juridicamente, bem como
das e requer atuação integrada e capacitada para a devida proteção. são historicamente e em todas as partes do mundo vítimas de crimes praticados em razão de sua condição.

Um olhar multidisciplinar, com diálogo horizontal entre conhecimentos e exercício de atribuições é o que Nesse contexto, então, tem-se a vulnerabilidade etária e, no caso das meninas, vulnerabilidade etária soma-
torna intenso o poder da rede de proteção e também da de responsabilização. E nesse cenário tem-se de da à de gênero, que se acrescem a outras tantas vulnerabilidades como a social, a racial e a étnica.
fato o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes.
Ademais é preciso dizer que a violência em razão da idade, da condição de um ser ainda em desenvolvimen-
No contexto da violência, o Direito Penal surge como sistema estatal de responsabilização que por muito to é perversa. Essa violência é extremamente banalizada, considerada pedagógica e corretiva, e muitas vezes
tempo se mostrou isolado de outras disciplinas, de outros saberes. Sempre com eminente caráter punitivo, e se inicia dentro do local onde era para ser o mais seguro, o lugar de aprendizado social, a própria família.
controle social seletivo e de teórica prevenção geral. O foco do Direito Penal tradicional sempre foi o réu.
E qual é o problema de viver em um lar violento? O risco da reprodução transgeracional da violência; de efei-
A responsabilização criminal é uma das formas de quebra do silêncio. É marco social do que não pode ser tos psicológicos nefastos, traumas, problemas de saúde de toda ordem que sequer podem ser mensurados
admitido como conduta. É meio de transformação de mentalidades também. E o réu, nesse cenário, é a e, ainda, a evidente ameaça ou lesão à integridade física de forma direta.
figura que atrai por óbvio toda a atuação do sistema estatal.
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São séculos e mais séculos de uma visão solidificada da criança como mero objeto, pura submissão, força de No Brasil, essa mudança de percepção da violência contra crianças e adolescentes e fundamental baliza
trabalho, ausência de fala e principalmente, descrédito da fala! legislativa que alça à condição de fonte norteadora de toda a legislação infraconstitucional, ocorreu com a
publicação da Carta Magna em 1988, que em seu artigo 227 preceitua:
A violência continua imensa, as estatísticas mostram isso diariamente. A normalização e banalização des-
sa violência contra as crianças e adolescentes também. A Unicef, no trabalho “A Familiar Face: Violence in
the lives of children and adolescentes (Um rosto familiar: A violência na vida de crianças e adolescentes –
relatório disponível somente em inglês) utiliza dados mundiais para esclarecer quatro formas específicas
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e
de violência: violência disciplinar e exposição à violência doméstica durante a primeira infância; violência na
ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
escola; mortes violentas de adolescentes; e violência sexual na infância e na adolescência.” (Unicef, 2017). Vê-se
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberda-
claramente que a violência perpassa as várias fases da vida de crianças e adolescentes e de diversas formas.
de e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
É inafastável também reconhecer que muitas dessas violências acontecem em espaços de confiança e de
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
cuidado, escamoteada de correção e com tantos malefícios para alguém que é indefeso, considerado pela
lei absoluta ou relativamente capaz e em franco desenvolvimento físico, mental e psicológico.
Vê-se que as crianças e adolescentes são colocadas como sujeitos de direitos que requerem conduta prote-
Todavia, paulatinamente, vem ocorrendo uma mudança social no sentido de não mais se reconhecer a le- tora e atuante em seu desenvolvimento não como mero cuidado moral, mas como dever e um dever geral,
gitimidade dessas violências de modo geral. Essa deslegitimação que vem sendo construída nas sociedades elencando o legislador constitucional a necessária atuação do Estado, da família e da sociedade nesse mister.
também se reflete e dialoga com importantes marcos legislativos que nas ultimas décadas começaram a
surgir e vêm sendo incrementados. Em 1990, já sob as luzes do novo regramento constitucional, é publicado o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (Lei 8.069/90), que trouxe um olhar para muito além do punitivo, indicando várias ferramentas
O primeiro Tribunal de Menores do mundo foi criado no fim do século XIX, em Illinois nos EUA (1899). E de proteção, de cuidado, de responsabilização para quem tem o dever de atuar de modo eficiente para o
vários países pelo mundo passaram a criar códigos de menores utilizando-se dessa nomenclatura, já aban- desenvolvimento pleno da criança e do adolescente. É uma lei integrativa e multidisciplinar que estampa,
donada, pois carregava em si, de forma pejorativa, a ausência de reconhecimento da criança e adolescente sem dúvida, a necessidade de trabalho em rede para que a sua implementação seja concretizada. E, ao con-
como sujeito de direitos. No Brasil, o primeiro foi denominado Código Mello Matos (Decreto 17943-A de trário do que prega o senso comum, não é uma lei eminentemente criminal, com enfoque punitivista, pelo
1927). Mas todos com foco em mecanismos punitivos e coercitivos voltados muito mais para o controle de contrário, busca criar mecanismos institucionais, sociais e delimitar cuidados e obrigações como dever geral
crianças e adolescentes em situação de delinquência, abandono ou situação irregular. para o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes. E esse é o objetivo precípuo, fomentar estrutura
de atenção que possibilite evitar ambiente pernicioso, violação de direitos, ofensas à integridade em todos
os seus aspectos, o que impacta diretamente, inclusive, na aplicação da parte punitiva do estatuto.
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Nesse contexto histórico, em 2006, passou a vigorar a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Embora o seu foco ram a vítima para o foco também do Direito Penal. Que alçaram a vítima e seu contexto social e familiar à
seja o combate à violência de gênero, é instrumento de extrema importância, pois passa a não reconhecer esfera de proteção necessária.
a legitimidade da violência no lar, na família, entre aqueles que têm o dever de cuidado e proteção. As re-
lações familiares e íntimas de afeto deixam de ser assunto meramente privado. E, importa lembrar, quanto E para dar cumprimento aos preceitos normativos e exigência de uma vida sem violência para todas as crianças
uma mulher é protegida e são afastadas violências no âmbito doméstico, protege-se de igual modo outra e adolescentes, é preciso entender e dialogar com outros saberes; é preciso entender as reações neurológicas
geração, as crianças e adolescentes, quebrando estereótipos e paradigmas relacionais. de uma vítima acuada que pode ser de paralisação, fuga, anestesia e isso em abuso sexual é fundamental; é
preciso entender o que um relatório psicossocial pode extrair de um contexto familiar. É preciso qualificar juri-
Quando é firmado o pacto social de que a violência doméstica não pode ser tolerada e que o Estado a par- dicamente essas informações para proteger, para punir, responsabilizar e para garantir direitos.
tir de então irá sim atuar de forma firme para enfrentá-la se está, de maneira direta, clamando e impondo
respeito ao desenvolvimento pleno e livre de violências às crianças e adolescentes. Nesse contexto de violências que acometem crianças e adolescentes e que representa o extremo da desqua-
lificação do outro como sujeito de direitos e aniquilação da vontade, liberdade e dignidade desses indivídu-
Outro marco legislativo de extrema importância é a Lei 13.431/17, regulamentada pelo Decreto 9.603/18, os é a violência sexual.
que acrescenta outras formas de proteção às crianças e adolescentes e destaca de modo muito contundente
a revitimização institucional como também uma das formas de violência avançando, assim, no princípio da A violência sexual contra crianças e adolescentes é também cruel não só pelos atos praticados e consequ-
proteção integral. Referida lei é clara nesse sentido ao preceituar que: ências nefastas, mas também pelo modo comumente utilizado para a sua prática quando esta ocorre no
âmbito doméstico.

Primeiramente porque praticamente retira as possibilidades de defesa da vítima devido, dentre outros fa-
Art. 4o Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das
tores, à desproporcionalidade física, de desenvolvimento motor, de fala e psicossocial. Em acréscimo, é im-
condutas criminosas, são formas de violência:
posta uma hierarquia não só etária, mas de obediência, respeito social e familiar. E, por fim, soma-se o fato
(...) de que não raro há clara confusão do que seria um lugar de afeto e de como as violências sexuais podem ser
IV - violência institucional, entendida como a praticada por instituição interpretadas como exteriorização desse suposto afeto e cuidado.
pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
É uma violência funesta e de difícil revelação e responsabilização porque atinge crianças inclusive de tenra
idade cujo desenvolvimento cognitivo e psicossocial ainda é precário em todos os sentidos. Envolve crianças
Todos esses recentes avanços legislativos têm em comum a previsão de uma atuação multidisciplinar e in- e adolescentes que por vezes ainda não têm formado sequer o pensamento abstrato e conceitual. Também
terinstitucional. É o reconhecimento claro de que o sistema de justiça, sozinho, não é capaz, com a mera é próprio dessa fase etária a memória ser fragmentada. Ou seja, inúmeros fatores que favorecem a prática
aplicação da lei fria, de atender às necessidades do sistema, do réu e também da vítima. São leis que trouxe-
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de violências sexuais de forma escamoteada, às escondidas, com ameaças subliminares, praticadas sob uma REFERÊNCIAS
falsa percepção de cuidado.
AMARO, Sarita (Org.). Crianças e Adolescentes: olhares interdisciplina- PASSINATO, Wânia; MACHADO, Bruno; ÁVILA, Thiago (Org.). Políti-
res para questões do nosso tempo. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2016. cas Públicas de Prevenção à Violência Contra a Mulher. São Pau-
Nesse cenário, a aplicação dos preceitos legais, da melhor técnica, das normas de proteção e dos diversos lo: Marcial Pons; Brasília: Fundação Escola, 2019.
AMARO, Sarita (Org.). Violência intrafamiliar contra crianças. Lis-
saberes em prol do acolhimento, amparo, e cuidado na formação e desenvolvimento de crianças e adoles- boa: Chiado, 2016. UNICEF. Familiar Face: Violence in the lives of children and adoles-
centes é o instrumento eficiente para afastar violências. E a atuação da rede de modo concatenada, arti- centes. 2017. Disponível em: < https://data.unicef.org/resources/a-fa-
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência contra crianças e adoles- miliar-face/> . Acesso em: abril de 2021.
culada é fundamental para o alcance também da responsabilização criminal. Não é fácil para uma vítima centes: questão social, questão de saúde. Rev. bras. saúde matern.
infant., Recife, 1(2):91-102, maio-ago., 2001. VISION OF HUMANITY. Global Peace Index 2018. Disponível em: <
se revelar em ambiente de desproteção, denunciar uma violência, se mostrar frágil. A denúncia também https://www.visionofhumanity.org/wp-content/uploads/2020/10/
tem um preço. Ao mesmo tempo em que representa rompimento de violências, pode ser um momento MOURA, Solange M.S.Rolim de; ARAÚJO, Maria de Fátima. A Materni- Global-Peace-Index-2018-2.pdf>. Acesso em: abril de 2021.
dade na História e a História dos Cuidados Maternos. Psicologia Ciên-
de rompimento familiar, do meio social, de afastamento, de constrangimento, de cobranças, de descrédito. cia e Profissão, v.24, n.1, p.44-55, 2004.
Somente um olhar cuidadoso, com aplicação de técnicas corretas, com formação ampla acerca dos direitos, OLIVEIRA, Antonio Carlos de. Abuso sexual intrafamiliar de crianças
da estruturação das instituições, das possibilidades de cuidado de acionamento de mecanismos de prote- e a família como totalidade. O Social em Questão, Ano XV, n. 28, p.
233-262, 2012.
ção, de monitoramento, de apoio psicossocial, atento às vulnerabilidades todas que envolvem o contexto
pessoal e familiar da criança e do adolescente podem transformar de verdade esse momento da denúncia
tão difícil como uma fase libertadora da violência e como caminho para experiências de cuidado.

Todo esse percurso da rede de acolhimento, atendimento e responsabilização deve ser trilhado de mãos da-
das, com o exercício de suas atribuições e deveres constitucionais de modo estruturado e harmônico. O de-
safio é imenso, mas a vontade e a atuação firme, comprometida e competente devem ser sempre maiores.
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de Justiça (STJ), passou a integrar o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA),
DEPOIMENTO ESPECIAL robustecendo o regime de cuidado para orientar as interações de agentes, órgãos e entidades públicos com
crianças e adolescentes em situações de violência interpessoal, comunitária e/ou institucional. Após uma rá-
E ESCUTA ESPECIALIZADA: pida contextualização sobre o SGDCA serão discutidos o depoimento especial e a escuta especializada, como
modalidades de entrevistas de crianças e adolescentes em instâncias administrativas e/ou policiais e judiciais.
REFLEXÕES SOBRE A LEI Nº 13.431/2017 Ao final, consideramos que a Lei nº 13.431/2017 deve ser compreendida como parte de um sistema mais
amplo de cuidado integral de crianças e adolescentes, sendo necessário garantir tanto o direito de expressão

E O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS como o direito ao silêncio e a preservação dos direitos humanos com prioridade absoluta.

DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ⇢ O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE E O PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Liz-Elainne de Silvério e Oliveira Mendes1 A Convenção dos Direitos da Criança concentra os principais consensos da comunidade internacional sobre
os direitos da criança e do adolescente, com respeito à diversidade e à condição de pessoa em desenvolvi-
mento, merecedora de dignidade e especial proteção (FARINELLI e PIERINI, 2016). No Brasil, a Convenção
Resumo. O artigo traz reflexões sobre a Lei nº 13.431/2017 ou “Lei da Escuta Protegida” no âmbito do Sistema foi promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990 e serviu de referência para a Lei nº
de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, problematizando a escuta especializada e o depoimento 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA, assim como a Constituição Federal de 1988,
especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências.
adotou o sistema de proteção integral, rompendo com a “doutrina da situação irregular” prevista no Código
Palavras-chave: crianças – adolescentes – escuta especializada – depoimento especial – direitos humanos
de Menores (1979), que considerava a criança e o adolescentes como objetos de intervenção e “vinculava a
oferta de proteção à declaração prévia de algum tipo de incapacidade”, assumindo um viés “paternalista e
⇢ INTRODUÇÃO moralizante” (ANDRADE e MACHADO, 2018, p. 29).

A proposta deste artigo é tematizar, por meio de uma abordagem descritiva, os modelos de entrevistas de O sistema de proteção integral compreende a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e de espe-
crianças e adolescentes estabelecidos na Lei nº 13.431/2017, que inspirada na Resolução nº 20/2005 do Con- cial proteção por parte do Estado, da sociedade e da família, em face da condição peculiar de pessoas em
selho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e na Recomendação nº 33/2009 do Superior Tribunal processo de desenvolvimento. Na década de 1980, alguns movimentos sociais como o Movimento Nacional
de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), a Pastoral do Menor e o Movimento de Defesa dos Direitos da
1 Promotora de Justiça no Distrito Federal (MPDFT), com atuação no Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (NEVESCA), mestra em
Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
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Criança e do Adolescente (FÓRUM DCA) tiveram participação marcante durante a assembleia constituinte
em defesa dos direitos humanos da infância e juventude (FERREIRA, 2013).
⇢ A LEI Nº 13.431/2017 E AS REGULAMENTAÇÕES E RECOMENDAÇÕES
NO ÂMBITO DO PODER EXECUTIVO E DOS CONSELHOS
A Constituição Federal de 1988 reservou um capítulo específico sobre a criança e o adolescente, estabele- NACIONAL DE JUSTIÇA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
cendo a prioridade absoluta das políticas públicas de interesse do público infanto-juvenil (PINHEIRO, 2001,
A Lei nº 13.431/2017 reconhece o direito humano à informação de crianças e adolescentes e assegura a
apud FERREIRA, 2013). O desafio desse processo de aprimoramento dos direitos humanos das crianças e
efetiva participação deles em procedimentos administrativos, policiais e judiciais, compondo o Sistema
dos adolescentes continua sendo abreviar o distanciamento entre os dispositivos legais e a efetiva fruição
de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), mediante alteração da Lei nº 8.069/90 (Es-
de direitos. Nesse contexto, o artigo 2º da Resolução CONANDA nº 113/2006 estabelece como atividades
tatuto da Criança e do Adolescente), pela criação de mecanismos para prevenir e coibir violências, com
de controle a implementação de ações preventivas de ameaças à violação dos direitos da criança e do ado-
medidas de assistência e proteção específicos à condição peculiar de vítima ou testemunha de violência. A
lescente, como também a existência de mecanismos e instâncias que garantam a apuração e a reparação de
Lei nº 13.431/2017 dialoga com o artigo 227 da Constituição Federal, com a Convenção sobre os Direitos
danos, no âmbito civil, administrativo ou criminal. O artigo 14 da Lei nº 13.431/2017 determina a adoção
da Criança, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e com a Resolução nº 20/2005 do Conselho
de ações articuladas, abrangentes e coordenadas para o acolhimento e o atendimento integral de crianças
Econômico e Social das Nações Unidas, que recomendam primazia dos direitos humanos e equilíbrio entre
e adolescentes em situação de violência, evitando-se a fragmentação e a descontinuidade dos serviços de
interferências na vida privada de crianças e adolescentes e exigências para a produção de provas que asse-
proteção à infância e à juventude.
gurem resultados justos na prestação jurisdicional (BRASIL, 2017).
Os órgãos de promoção e defesa dos direitos humanos devem se pautar pela abrangência e integralidade
O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) tem seus princípios, eixos e dire-
na atenção às necessidades das crianças e dos adolescentes, priorizar a capacitação interdisciplinar conti-
trizes definidos na Resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
nuada, desenvolver e aprimorar mecanismos de informação e monitoramento de suas ações, com avaliação
(CONANDA). O SGDCA constitui-se na articulação e na integração das instâncias públicas governamentais
periódica dos resultados, planejamento e coordenando o atendimento, visando à celeridade e à redução de
e da sociedade civil para execução de normatizações e de mecanismos de proteção, defesa e controle para
intervenções pelos profissionais (BRASIL, 2017).
efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, nos níveis Federal, Estadual/Distrital e Muni-
cipal. O SGDCA busca a interoperabilidade das políticas públicas para garantia dos direitos humanos de
crianças e adolescentes nas áreas prioritárias da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança
pública, orçamento, relações internacionais e diversidade, resguardando-os de qualquer negligência, discri-
minação, exploração, violência, abuso, crueldade ou opressão.

A Resolução CONANDA nº 113/2006 é um instrumento normativo elaborado com ampla participação da


sociedade civil e que melhor define o SGDCA quanto aos seus eixos (promoção, defesa e controle dos direi-
54 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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tos humanos) e princípios (proteção integral, prevalência do melhor interesse e prioridade absoluta), mas às entidades implicadas no processo de apuração de ilícitos criminais, a cargo das autoridades policial ou
é a Lei nº 13.431/2017 que, suprindo a lacuna existente para garantir o acesso efetivo às políticas públicas judicial. O depoimento especial, por ser mais formal e abranger os fatos sob investigação para fins de res-
e à Justiça nas situações de ameaça e violação de direitos humanos, estabelece como deve ser a interface ponsabilização criminal do(a)(s) autor(a)(es) de violências, deve ser gravado e realizado, com prioridade,
de crianças e adolescentes com as instâncias governamentais, além de contemplar uma tipologia própria perante o sistema de Justiça, sempre que possível uma única vez, para reduzir a exposição da criança ou do
das violências endereçadas ao público infanto-juvenil e prescrever um sistema protetivo específico para o adolescente a procedimento revitimizador. Uma interpretação conjugada do artigo 8º da Lei nº 13.431/2017
manejo dos fatores de risco e proteção, com medidas protetivas de urgência em favor de crianças e adoles- com os artigos 28 §1º e 100 do ECA2 permite inferir a viabilidade do depoimento especial nas ações de
centes vítimas e testemunhas de violência. natureza cível e de família, adaptando-se o protocolo da entrevista ao tipo de demanda, o que melhor
atende à condição da criança e do adolescente como sujeitos de direito e pessoa em desenvolvimento, pois
A Resolução CONANDA nº 113/2006 estabelece diretrizes para o funcionamento dos serviços públicos em é um expediente com protocolos para protegê-los da sobrecarga emocional durante a atividade probatória
regime de descentralização nos níveis municipais, estaduais, distrital e federal, com interoperacionalidade que envolve pessoas próximas ou familiares com quem mantém fortes vínculos sociais e afetivos. A Lei nº
nas áreas da saúde, assistência social, educação, segurança pública e sistema de Justiça. Alguns Estados e 13.431/2017 prevê nos artigos 3º e 6º a aplicação facultativa às vítimas e testemunhas de violência entre
Municípios, mesmo antes do advento da Lei n 13.431/2017, criaram centros de atendimento integrados, 18 e 213 anos, sendo as situações omissas interpretadas à luz do que dispõe o ECA e a Lei Maria da Penha.
concentrando em um único espaço os principais serviços da rede de proteção à infância e à juventude. A É facultado às crianças e aos adolescentes prestarem depoimento diretamente à autoridade judiciária, que
ausência de equipamentos de atendimento integrado não deve ser um obstáculo para a interoperabilidade deve ser capacitada com o protocolo de entrevista forense. A Resolução nº 299/2019 do Conselho Nacional
dos serviços, exigindo-se, no entanto, maior esforço das instituições para um atendimento célere e não de Justiça (CNJ) recomenda assistência jurídica à criança e ao adolescente para a tomada de depoimento
revitimizador. No Distrito Federal, o Decreto nº 34.517/2013 instituiu o Centro de Atendimento a Crianças direta por juízas/es, conforme artigos 14 e 18 (CNJ, 2019).
e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual (Centro 18 de maio), com o objetivo de realizar atendimento
inicial das vítimas de violência contra a dignidade sexual, como de suas respectivas famílias, minimizando a A Lei nº 13.431/20174 foi regulamentada no Poder Executivo pelo Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018
revitimização ao evitar sucessivas escutas não qualificadas e conferindo maior celeridade aos procedimen- e no Poder Judiciário pela Resolução CNJ nº 299, de 05 de novembro de 2019. O Conselho Nacional do Minis-
tos de proteção às vítimas e familiares (DISTRITO FEDERAL, 2018). tério Público (CNMP) publicou um guia prático para auxiliar o trabalho de seus integrantes no fortalecimento
do SGDC contendo também esclarecimentos sobre a atuação mais célere, com mínimo de intervenções, e
A Lei nº 13.431/2017 é conhecida como “Lei da Escuta Protegida” uma vez que define e diferencia os tipos
de entrevistas de crianças e adolescentes envolvidos em situações de violência como vítimas ou testemu-
2 O artigo 28 §1º do ECA estabelece que em demandas de guarda, tutela ou adoção “sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interpro-
nhas. A escuta especializada está definida no artigo 7º da lei como uma oitiva informal realizada por agentes fissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada (BRASIL, 1990).
3 A aplicação facultativa da Lei nº 13.431/2017 às vítimas e testemunhas de violência entre 18 e 21 anos é especialmente recomendável para tomada de depoimentos que visem
dos serviços de proteção e se limita apenas ao estritamente indispensável para cada tipo de intervenção, elucidar crimes contra a dignidade sexual, diante da exposição exacerbada da privacidade e do potencial revitimizador desses procedimentos nas instâncias policiais e judiciais.
4 O artigo 26 da Lei nº 13.431/2017 estabeleceu prazo máximo de 60 (sessenta) dias, contados do início da vigência (04/05/2018), para edição de atos normativos necessários à sua
especialmente nas áreas da saúde e da assistência social. O depoimento especial está conceituado no artigo efetividade. O artigo 27 concedeu prazo de 180 (cento e oitenta) dias para Estados, Distrito Federal e Municípios criarem normas sobre o sistema de garantia de direitos, no âmbito
de suas competências. E o artigo 23 estabelece prioridade dos juizados de violência doméstica e familiar para julgamento e execução de fatos compreendidos como violência contra
8º da lei como uma oitiva formal, regida por protocolos e realizada por agentes capacitados e vinculados crianças e adolescentes até serem criadas varas especializadas. Essas normatizações não foram cumpridas pelos órgãos e entidades competentes até a finalização deste artigo, em
maio de 2021. É preciso considerar que os órgãos do Poder Judiciário têm autonomia para aprovar suas leis de organização judiciária.
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protetiva inclusive em investigações de natureza criminal. O Decreto 9.603/2018, no artigo 8º, determina que
o Poder Público, por todas as esferas de governança, deve assegurar condições adequadas para que crianças
⇢ APROXIMAÇÕES ENTRE O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA DE JUSTIÇA
e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sejam acolhidas e protegidas e possam se expressar livre-
mente em um ambiente compatível com suas necessidades, características e particularidades. O artigo 9º do O acesso pleno à Justiça para crianças e adolescentes em contexto de violência está contemplado em diver-
decreto federal determina que os serviços, os programas e os equipamentos devem desempenhar suas ativida- sas normas de direito internacional como a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Resolução nº 20/2005
des de forma integrada e coordenada e que, preferencialmente no âmbito dos conselhos de direitos das crian- do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, o protocolo adicional à Convenção de Palermo, a
ças e adolescentes, devem ser implementados comitês gestores para o acompanhamento da integração dos Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e a Convenção de Belém do
serviços setoriais e a definição dos fluxos entre os serviços da rede e as intervenções dos sistemas de segurança Pará, para citar apenas alguns dos documentos internacionais de direitos humanos. No plano doméstico, a
e Justiça. O artigo 2º da Resolução CNJ nº 299/2019 recomenda que tribunais estaduais e federais estabeleçam Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha e mais recentemente a
convênios com atribuições e fluxos para atendimento interinstitucional dos casos de violência contra crianças Lei nº 13.431/2017 contemplam o acesso à Justiça como direito público, universal e gratuito, com remédios
e adolescentes, preferencialmente com o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do adequados à prevenção, erradicação e combate a ameaças e lesões aos direitos infanto-juvenis, asseguran-
Brasil, as Secretarias de Segurança Pública, de Assistência ou Desenvolvimento Social e de Saúde, de Educação do-se a reparação total de danos e a resolução dos conflitos segundo o princípio do melhor interesse da
e com o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. criança e do adolescente, reconhecida a prioridade absoluta desse público pela Constituição Federal. O
acesso à Justiça para crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências deve superar barreiras
Os artigos 7º e 8º da Resolução CNJ nº 299/2019 dispõem sobre a obrigatoriedade da instalação de salas procedimentais que impeçam a apreciação dos fatos por quaisquer das instâncias do sistema de Justiça. Os
apropriadas para a realização de depoimentos especiais em todo o território nacional, contendo mobiliários agentes públicos devem ser capacitados para atuar em perspectiva de gênero, raça e outros marcadores de
e equipamentos físicos e tecnológicos necessários para o depoimento especial, como recomendado pelo desigualdade e exclusão, abstendo-se de práticas discriminatórias e revitimizadoras. As atividades de inves-
Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense. E o artigo 15 da resolução prescreve a obrigatoriedade de capa- tigação criminal devem reunir evidências para o esclarecimento e a comprovação dos fatos, buscando com
citação específica de magistrados e profissionais das áreas da psicologia e do serviço social que atuam na prioridade a proteção das vítimas, evitando-se que o depoimento delas seja o único meio para constituir
realização do depoimento especial. A resolução ainda estabelece no artigo 10 que profissionais da área de prova no processo judicial de responsabilização dos/as autores/as de violências.
antropologia devem integrar a equipe técnica para depoimento especial de criança ou adolescente perten-
cente aos Povos e Comunidades Tradicionais. O artigo 4º da Lei nº 13.431/2017 nomeia como violência institucional as práticas de instituições públicas ou
conveniadas que propiciem revitimização, como, a princípio, pode acontecer pela repetição desnecessária
de depoimentos de crianças e adolescentes. No artigo 21, a Lei nº 13.431/2017 elenca as medidas protetivas
de urgência que podem ser requeridas pelo Ministério Público, pela autoridade policial, nas situações de ris-
co pessoal, pela própria criança ou adolescente representada ou assistida por representantes legais ou pelo
conselho tutelar. As medidas de proteção emergenciais possibilitam que a criança e o adolescente fiquem
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resguardados do contato direto com os autores da violência, permitem também o afastamento do lar dos Criminal. Os Conselhos Federais de Psicologia e de Serviço Social emitiram entendimentos5 contrários à
autores de violência e podem ensejar o requerimento de prisão preventiva, de produção antecipada de pro- participação de profissionais dessas áreas no chamado “depoimento sem dano” e, depois, “depoimento es-
vas e de inclusão em programas de proteção às vítimas e às testemunhas sob ameaças de morte. O artigo pecial”, mas com o advento da Recomendação CNJ nº 33/20106 psicólogos e assistentes sociais integrantes
13 da Lei nº 13.431/2017 prescreve o dever de todos de comunicar ao conselho tutelar ou aos serviços de dos quadros de servidores dos tribunais nacionais passaram a colaborar com as oitivas. As principais críti-
recebimento de denúncias, a exemplo do disque 100, ou a autoridade policial e ao Ministério Público ações cas da metodologia da entrevista forense é que primeiro não eliminam o risco de práticas revitimizantes e
ou omissões, em locais públicos ou privados, que constituam violência contra a criança ou adolescente. Já segundo, os profissionais de áreas interdisciplinares seguem rígidos roteiros de entrevistas que os tornam
no artigo 14 a lei nº 13.431/2017 determina a implementação de políticas no âmbito dos sistemas de justiça, meros intérpretes do discurso dogmático penal e da fala das crianças e adolescentes, deixando de exercer o
segurança pública, assistência social, educação e saúde de forma articulada, coordenada e efetiva, buscando papel primordial de suas profissões, ou seja, “compreender as condições objetivas de vida da família, a situa-
acolhimento e atendimento integral às vítimas de violências (BRASIL, 2017). ção da criança e do adolescente em seu contexto familiar e apreender as razões ético-políticas e sociais que
atravessam os processos de violência e negligência com a infância e adolescência” (MOLLER, DINIZ, 2019, p.

⇢ AS ENTREVISTAS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 61). Uma outra crítica é que a ampliação dos tipos de violências que ensejam a realização de depoimentos
especiais, enfatizam respostas repressivas que minimizam questões de fundo econômico, social e cultural
VÍTIMAS OU TESTEMUNHAS DE VIOLÊNCIA atreladas às formas de opressão de classe, de raça, etária e de gênero e são incapazes de gerar transforma-
ções concretas sobre as relações sociais e psíquicas estabelecidas (MOLLER, DINIZ, 2019).
O sistema de garantia de direitos reconhece que as crianças e os adolescentes podem se manifestar livre-
mente sobre violências que sofreram ou presenciaram, como também podem escolher permanecer em A resposta criminal às violações de direitos humanos de crianças e adolescentes com a responsabilização de
silêncio, como assegurado no artigo 5º da Lei nº 13.431/2017. autoras/es de violências não pode dissociar-se de intervenções protetivas, nas áreas da saúde, assistência social,
educação, segurança pública dentre outras. A escuta especializada e o depoimento especial encontram de-
A Lei nº 13.431/2017 segue as orientações da Resolução nº 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Na-
fensores entre os que compreendem ser direito humano das próprias crianças e adolescentes expressarem as
ções Unidas (ECOSOC), que sugere a formulação de protocolos para colheita de declarações, a capacitação
violências que sofreram ou presenciaram, contribuindo também para que a responsabilização criminal tenha
de psicólogos e assistentes sociais, a preparação dos ambientes para a recepção das crianças e dos adoles-
resultados mais equânimes e justos, condizentes com as garantias do devido processo legal. Acreditamos que
centes e a realização dos depoimentos fora das salas de audiências, evitando-se contato direto das vítimas
a Lei nº 13.431/2017, ao expressamente garantir o direito ao silêncio, elegeu em ordem de importância as me-
com os autores de violências. A lei preconiza o respeito à vulnerabilidade decorrente da condição especial
5 Durante o VI Congresso Nacional de Psicologia, realizado em Brasília, entre 14 a 17 de junho de 2007, foi aprovada moção para definir o entendimento de que o depoimento “sem
de pessoa em desenvolvimento e do contexto de violência. A urgência em regulamentar modelos de oitivas dano” não diz respeito à prática psicológica e que o melhor enquadramento técnico para o profissional de psicologia é no espaço das Varas de Infância e Juventude, pois durante
as inquirições típicas de depoimento, esses profissionais se limitam a reproduzir a fala e a lógica dos operadores jurídicos. Em 29 de junho de 2010, o Conselho Federal de Psicologia
de crianças e adolescentes sobre violências principalmente contra a dignidade sexual decorreu das dificul- emitiu a Resolução nº 10, com o objetivo de regulamentar a “escuta psicológica”, mas esse ato perdeu seus efeitos por decisão judicial em 2012, uma vez que o Conselho Nacional de
Justiça editou no mesmo ano a Recomendação nº 33/2010 (SILVA, 2019). O Conselho Federal de Serviço Social aprovou a Resolução nº 554/2009 que “dispõe sobre o não reconhe-
dades de produção de provas para a responsabilização de autores de violência perante o Sistema de Justiça cimento da inquirição de vítimas crianças e adolescentes no processo judicial, sob a metodologia do depoimento sem dano (DSD), como atribuição e competência do profissional
assistente social”. Esta resolução também teve seus efeitos declarados nulos em 2012(MOLLER, DINIZ, 2019).
6 A Recomendação nº 33/2009, do CNJ instou os tribunais de todo o país a criarem “serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas nos pro-
cessos judiciais” (CNJ, 2009).
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didas de proteção às crianças e aos adolescentes e não os procedimentos para responsabilizar as/os autoras/es cesso judicial que poderá resultar na responsabilização penal das/os autoras/es de violências. É possível que
de violências, mesmo se há evidências de graves violações de direitos humanos, como decorrentes de ofensa à durante a fala espontânea da criança ou do adolescente nas mais diversas “portas de entrada” dos serviços
dignidade sexual. Nesse sentido, “procedimentos voltados a sobrecarregar a criança com a produção da prova da rede de proteção sejam colhidas informações importantes tanto para os procedimentos de proteção
precisam ser repensados e reexaminados à luz dos direitos humanos, da proteção integral e dos conhecimen- quanto para o processo de responsabilização e, nesses casos, as informações podem ser compartilhadas
tos específicos disponíveis em diferentes áreas do saber” (AZAMBUJA, 2013, p. 493). entre os serviços públicos da rede de proteção e do sistema de Justiça, preservando-se o sigilo.

A diferença entre escuta especializada e depoimento especial pode ser compreendida de acordo com a A Lei nº 13.431/2017 recomenda que o depoimento especial seja, sempre que possível, realizado uma única
finalidade de cada procedimento. A escuta especializada destina-se a reunir elementos informativos para vez, prescrevendo, no artigo 11, que o depoimento especial deve ser produzido em antecipação de pro-
construir um plano de segurança e proteção integral, mapear serviços essenciais e monitorar a execução das vas sempre que a vítima é menor de 07 anos de idade, independente do crime, e sempre que o crime seja
políticas públicas específicas para as crianças, os adolescentes e suas famílias. O depoimento especial busca contra a dignidade sexual, independente da idade da vítima. Nas situações especificadas no artigo 11, a
reunir elementos probatórios para subsidiar ações de responsabilização, principalmente na esfera criminal e autoridade policial deve evitar realizar o depoimento especial e instrumentalizar o inquérito policial ou as
nos crimes com violência sexual. A escuta especializada se resume ao verbo ouvir, enquanto o depoimento peças de informação com elementos mínimos para que a/o representante do Ministério Público requeira
especial ao verbo inquirir. com brevidade o depoimento especial em sede de antecipação de provas, assegurando desse modo que o
depoimento especial seja realizado uma única vez. Em alguns casos, porém, é recomendável que a autori-
Qual a diferença entre inquirir e ouvir a criança? “Inquirir” significa perguntar, inda- dade policial realize, desde logo, o depoimento especial, como nas situações de atuação em flagrante ou
gar, fazer perguntas direcionadas, investigar, pesquisar. “Ouvir”, por sua vez, significa
escutar o que ela tem a dizer, dar ouvidos, dar atenção às palavras da criança [...] se indispensável para subsidiar requerimento de medidas cautelares urgentes, como buscas domiciliares e
Nesse sentido, Alves (1994) explica: Escutar é complicado e sutil [...] Não é bastante ter prisões preventivas (MPDFT, 2020).
ouvidos para ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.
[...] A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor [...]. Arriscamos dizer que a Lei nº 13.431/2017 poderia ter prescrito a escuta especializada como única e não
Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele repetível forma de oitiva de crianças e adolescentes em contexto de ameaças e violações de direitos huma-
diz não fosse digno de descansada consideração [...] E precisasse ser complementado nos, com prévia capacitação dos profissionais da rede, protocolos e rigores metodológicos, além de recursos
por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir
é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade (AZAMBUJA, tecnológicos para preservação em arquivo digital seu conteúdo, sendo que a escuta especializada poderia
2013, p. 492-493). ser aproveitada, eventualmente, como fonte de prova em processos judiciais que perseguem a responsabi-
lização dos autores de violências, garantindo-se o exercício da ampla defesa e do contraditório dos investi-
Enquanto a escuta especializada tem interesse pelo contexto de riscos e vulnerabilidades pessoais, familiares
gados/acusados a posteriori, à semelhança do que acontece com lados técnicos produzidos por peritas/os
e comunitárias das vítimas para propiciar suporte à equipe interdisciplinar da rede de serviços na escolha
em corpos de delito apresentados nos autos do inquérito policial ou da ação penal. Acreditamos que desse
dos tipos de intervenções e medidas protetivas mais apropriadas, o depoimento especial busca principal-
modo seria possível realmente diminuir a quantidade de oitivas das vítimas e priorizar falas espontâneas e
mente reunir evidências sobre fato(s) penalmente relevante(s), para respaldar, na maioria dos casos, pro-
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escutas despretensiosas e respeitosas, ou seja, verdadeiramente protetivas. É claro que nem todas as circuns- los de entrevista forense, (re)produz danos pelo alto potencial revitimizante da prática, o que não se justifica
tâncias ou nuances dos fatos seriam esclarecidas durante a escuta especializada, mas, por outro lado, essas para prestigiar a imaginada e inatingível “busca da verdade real”.
contingências também se aplicam ao depoimento especial.
O artigo 18 da lei n.º 8.069/1990 afirma que “é dever de todos velar pela dignidade da
A escuta especializada poderia ser aproveitada para a produção de perícia interdisciplinar7 contribuindo criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, vio-
lento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Afirmar que a inquirição da criança,
para um SGDCA mais efetivo no propósito de assegurar a defesa dos direitos humanos das crianças e dos segundo os princípios do contraditório e da ampla defesa, é indispensável à busca da
adolescentes, colocando-os a salvo de qualquer forma de constrangimento e opressão ou mesmo violência verdade real é pensar pequeno. A nova ordem constitucional conclama a mudança,
institucional. No ambiente formal e pouco amigável dos fóruns as crianças e os adolescentes são instados no não de nomenclatura, mas de princípios, “não podendo mais a criança ser usada como
depoimento especial a esmiuçar em detalhes os episódios violentos arquivados em suas memórias, os quais instrumento para chegar a tão buscada verdade real, em desprezo aos prejuízos e des-
já foram revelados em outras instâncias e contexto, mas ali na “salinha” do fórum, em regra bem servida confortos que a inquirição lhe causa”. A elevação dos índices de condenação do réu pela
prática de estupro de vulnerável, não significa maior proteção à vítima, como querem
com móveis, estantes, brinquedos e recursos de imagem e som, eles mais uma vez precisarão recontar e in- os defensores da nova lei. Inadmissível expor a criança a uma nova violência, agora de
felizmente reviver tais experiências. As/os atrizes/atores processuais alimentam expectativas de que durante natureza institucional, submetendo-a ao depoimento, em especial os menores de doze
os depoimentos especiais, os relatos serão feitos sem embaraços ou contradições, com organização dos anos. Mais do que a condenação do réu, urge que se efetive a proteção integral àqueles
acontecimentos em uma narrativa linear e impecável, situada em dias, meses e anos da forma mais didática que estão em fase especial de desenvolvimento e que foram guindados, pelo constituin-
possível, não importando se tudo ocorreu quando as vítimas eram bem pequenas ou se foram tantas as te, à condição de prioridade absoluta sobre todos os demais bens jurídicos protegidos
pela Carta Maior (AZAMBUJA, 2019, p. 87).
vezes que foram submetidas às mesmas violências que perderam as contas de qual foi o ano, o mês ou o dia
em que cada uma aconteceu. Indagações do tipo “tocou por cima ou por baixo da roupa?”, “estava vestido No Estado do Mato Grosso o ato interinstitucional e conjunto nº 1/2021 implementou o Protocolo Integrado
ou despido?”, “por que esperou tanto tempo para contar?”, “como ou quando reagiu aos atos praticados?”, de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência, conforme a Lei nº 13.431/2017
dentre outras perguntas constrangedoras ainda são frequentes nas práticas de depoimento especial. e seu fluxograma. No protocolo a revelação espontânea, a escuta especializada, a perícia judicial e o depoi-
mento especial foram diferenciados da seguinte forma:
Compartilhamos, portanto, das mesmas críticas ao depoimento especial realizadas por AZAMBUJA (2019),
pois a submissão da criança e do adolescente a um depoimento solene e protocolar em delegacias e fóruns Revelação espontânea: escuta da criança ou adolescente com atenção, sem qualquer
intervenção do interlocutor, com posterior registro do relato (devendo ser efetuadas as
desafia a essência dos princípios da proteção integral e do superior interesse da infância, ao submetê-los a
notificações previstas no art. 13, caput, da Lei nº 13.431/2017); b) Escuta especializada:
um procedimento que, mesmo aprimorado com as orientações da Lei nº 13.431/2017 e regido por protoco- procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente
perante órgão da rede de proteção, limitado o relato ao estritamente necessário para
7 A perícia interdisciplinar, segundo AZAMBUJA (2013, p. 501) “costuma ser desprezada pelos defensores dos métodos de inquirição... [No entanto], reafirmamos a defesa da utiliza-
ção do trabalho interdisciplinar, com assistentes sociais, pediatras e psicólogos, capacitados para o trabalho com crianças vítimas de violência sexual. Laudos são meios de prova e o cumprimento de sua finalidade (art. 7º da Lei nº 13.431/2017 e art. 19 do Decreto nº
como tal precisam ser reconhecidos. Assim como as lesões físicas são apuradas por médico-legista, em perícia realizada em consultório, sem a interferência de outro técnico e sem o
acompanhamento em tempo real por magistrado, advogados e réu, a constatação dos danos sociais e psíquicos há que ser apurada por assistentes sociais e psicólogos, cujos laudos 9.603/2018); c) Depoimento Especial: procedimento de oitiva de criança ou adolescente
técnicos devem ser levados aos autos do processo, constituindo‑se prova da materialidade. vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (art. 8º da
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Lei nº 13.431/2017 e art. 22 do Decreto nº 9.603/2018); d) Perícias judiciais: procedimen- esforço de cooperação para que as instituições implicadas na proteção de crianças e adolescentes e na res-
to de assistência ao juiz quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou ponsabilização dos autores de violência compreendam melhor o papel de cada uma na efetivação do SGD-
científico próprios de determinadas áreas do saber, previstas nos Códigos Processuais CA. No Distrito Federal observamos alguns entraves que postergam a construção conjunta de protocolos e
Civil e Penal. §1º Todos os procedimentos deverão ser realizados em local apropriado e
acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade de crianças fluxogramas para a implementação adequada e abrangente da Lei nº 13.431/2017, como a não priorização
e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (art. 10 da Lei nº 13.431/2017 e art. do depoimento especial em incidente de antecipação de provas e, uma única vez, perante o poder judiciá-
23, parágrafo único, do Decreto nº 9.603/2018); §2º. A revelação espontânea ocorrerá rio, sobretudo na elucidação dos crimes de natureza sexual ou com vítimas menores de 7 anos; a escassez
em qualquer local, na família, entre amigos, na escola, durante um atendimento de de profissionais capacitados para a escuta especializada e o depoimento, com tempo de espera longo para
saúde, geralmente no ambiente onde a criança ou o adolescente se sinta seguro para essas entrevistas, e a não implementação das varas especializadas para o processamento e o julgamento de
relatar a violação de direito; §3º A escuta especializada deve ser realizada pela rede
de proteção, de modo que o relato da criança ou adolescente seja colhido por pesso- crimes contra crianças e adolescentes, tampouco a remessa desses feitos aos juizados de violência domésti-
as capacitadas, especialmente por meio de programas, serviços ou equipamentos que ca e familiar contra as mulheres.
proporcionem atenção e atendimento integral e interinstitucional às vítimas ou teste-


munhas de violência, compostos por equipes multidisciplinares especializadas; §4º O
depoimento especial de crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência REFLEXÕES SOBRE O DEPOIMENTO ESPECIAL
será realizado perante a autoridade policial ou judiciária.
A metodologia de realização do depoimento especial “consiste em retirar a vítima ou testemunha infantil
É esperado que as demais Unidades da Federação estabeleçam protocolos e fluxogramas compatíveis com
da sala de audiências, encaminhando-a para sala adaptada, onde também estaria instalado equipamento
suas estruturas, independente da existência dos centros integrados, para evitar a sobreposição dos serviços
audiovisual para transmissão de seu depoimento (MOLLER, DINIZ, 2019, p. 58). Existem diversas modela-
ou, ao contrário, a falha nas intervenções para medidas protetivas, priorizando-se em caso de escassez de
gens de tipos ideais de salas para depoimento especial, conjugadas ou não às salas de audiências onde se
recursos humanos o acompanhamento de situações que conjugam vulnerabilidade social e risco pessoal,
encontram juízes, promotores de justiça, advogados e defensores públicos e a pessoa investigada ou acusa-
como em geral se observa nos contextos de abuso sexual intrafamiliar. O fluxograma pactuado no Estado do
da de ilícito penal (nas ações de natureza criminal) ou demais partes (nas ações de natureza cível). Contudo,
Mato Grosso pelos órgãos e entidades implicados no atendimento de crianças e adolescentes em situação
a pandemia da Covid-19 exigiu dos tribunais de Justiça de todo país o aprimoramento das tecnologias para
de violência contempla rotinas detalhadas para cada área ou setor, discriminando o passo-a-passo segundo
colheita de oitivas e interrogatórios, o que viabilizou 100% do trabalho desenvolvido em audiências por
o tipo de abordagem e a competência ou a atribuição. No Distrito Federal e em muitas outras Unidades da
meio remoto. Atualmente, não há necessidade de que as salas adaptadas para depoimento especial estejam
Federação não foi possível ainda construir um fluxograma tão abrangente como o que foi desenvolvido no
situadas em determinados fóruns e varas, pois é possível que o depoimento especial se realize em confor-
Mato Grosso. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios emitiu em 2020 uma nota técnica com
midade com os protocolos forenses, estando as partes e os operadores jurídicos em qualquer circunscrição
o entendimento sobre a Lei nº 13.431/2017, contendo orientações para toda a rede de serviços interdisci-
judiciária ou comarca. O que permanece indispensável é a equipagem do espaço para o conforto da criança
plinar, incluindo o conselho tutelar e os sistemas de Justiça e segurança pública, sugerindo um fluxograma
e do adolescente e a interlocução por meio de profissionais das áreas da psicologia, da antropologia ou do
básico como ponto de partida para um futuro protocolo interinstitucional. Ainda é preciso intensificar esse
66 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
67

serviço social, previamente capacitados para a entrevista e para o acolhimento psicossocial das crianças e PBEF foram compiladas sugestões para facilitar a transformação de perguntas frequentes em feitos que bus-
adolescentes visando a redução dos danos. cam esclarecer violências principalmente de natureza sexual. No anexo do documento há um roteiro síntese
dos principais estágios do depoimento especial (CHILDHOOD, UNICEF, CNJ, 2020).
O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) não foi concebido como uma simples tradução do Na-

⇢ CONSIDERAÇÕES FINAIS
tional Children’s Advocacy Center (NCAC), sendo resultado de um amplo trabalho de pesquisa que levou em
consideração a equivalência conceitual e outros critérios científicos para atender ao enquadramento legal
das entrevistas infanto-juvenis no Brasil. O PBEF pode ser utilizado em depoimentos especiais realizados nas
A lei nº 13.431/2017 corrobora outros importantes normativos que reforçam o dever de diligência do Brasil
unidades policiais e judiciais. O PBEF contém diversas prescrições para evitar violências institucionais, como
na proteção integral à infância e à juventude, promovendo aproximação entre o SGDCA e o sistema de Jus-
a proibição de interrupção do relato livre, o que também teria, como afirmado no documento, a função
tiça e segurança pública, ao definir as formas de interação de criança e adolescente vítima ou testemunha
de conferir maior confiabilidade ao relato, pela não indução das respostas. As perguntas são intermediadas
de violência nas diversas instâncias administrativas, policiais e judiciais. A Lei nº 13.431/2017 tem sido mais
pelas autoridades que realizam a entrevista direta com as crianças e os adolescentes, a quem cabe avaliar a
divulgada como “Lei da Escuta Protegida” porque inovou ao diferenciar a escuta especializada do depoi-
melhor forma de transmitir a informação considerando a capacidade cognitiva e os aspectos socioculturais
mento especial como modalidades de entrevistas de crianças e adolescentes, que devem ter assegurado
de cada criança e adolescente. O PBEF recomenda que não devem ser realizadas perguntas sugestivas, ou
tanto o direito de livre expressão como o direito ao silêncio. A Lei nº 13.431/2017 trouxe recomendações e
seja, perguntas que acrescentem informações não previamente anunciadas pela própria criança ou adoles-
prescrições que ainda precisam ser amplamente debatidas pela sociedade civil, em especial nos conselhos
cente sobre aspectos específicos da violência ou da autoria, deixando expresso que se deve evitar a “forte
participativos e deliberativos de direitos da criança e do adolescente, assim como pelas entidades públicas
expectativa” do que a criança deve dizer, o que, convenhamos, não é algo simples de avaliar. Também é pres-
que integram o SGDCA, em todas as esferas de governança, buscando o amadurecimento do trabalho arti-
crito ser defeso quesitar fatos que transfiram às crianças e aos adolescentes a responsabilidade pela situação
culado e coordenado para efetiva proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, a exemplo do
que resultou na violência alvo da investigação, o que foi inclusive exemplificado como exemplo de violência
que tem sido feito de forma exitosa no Estado do Mato Grosso.
institucional. Também foi assegurado como estratégia para a entrevista forense que durante o depoimento
especial a autoridade judiciária que presida o ato determine a retirada da pessoa investigada da sala de au-
diências, como por vezes ocorre nas ocasiões em que “o profissional especializado verificar que a presença,
na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente
em situação de risco” (CHILHOOD, UNICEF, CNJ, 2020, p. 19). O ponto alto do protocolo, pensamos, é o que
sugere estratégias para “transformar” as perguntas das partes e das autoridades policiais e judiciárias, com o
propósito de evitar constrangimentos ou indução de respostas. Ao invés de repetir as perguntas às crianças
e aos adolescentes, espera-se que os profissionais especialistas formulem questionamentos mais abertos,
empregando-se de repertório linguístico adequado ao desenvolvimento da criança e do adolescente. No
68 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
69

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FERREIRA, Adeilza C. F. O Sistema de Garantia de Direitos e os Desafios 15 jun. 2018.
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70 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
71

Para isso, existem diversos canais como o registro da ocorrência policial propriamente dita, de forma presen-
ATUAÇÃO DA DELEGACIA cial numa delegacia de polícia ou pela delegacia eletrônica (https://delegaciaeletronica.pcdf.df.gov.br/); pelo
nº 197, onde denúncias podem ser feitas inclusive de forma anônima; por documentos contendo o relato
DE PROTEÇÃO À CRIANÇA do fato entregues na delegacia; comunicações ao Conselho Tutelar da área que acionará a Polícia.

E AO ADOLESCENTE – DPCA No entanto, em temáticas como a aqui em debate, o trabalho policial vai além e se integra numa grande
rede formada por diversos outros atores - Educação, Conselhos Tutelares, Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, Saúde, etc.

Ana Cristina Melo Santiago Diante do tripé “proteção, investigação e responsabilização”, a atuação desses atores precisa ser coordenada
e integrada, já que cada um desses aspectos é extremamente importante e não podem ser afastados em
nenhum momento.
A Polícia Civil, também conhecida como Polícia Judiciária, possui importante papel no combate aos mais
diversos tipos de violação de direitos praticados em desfavor de crianças e adolescentes, uma vez que nas Na Polícia Civil do Distrito Federal, contamos com 3 (três) delegacias de polícia especializadas no atendi-
atribuições constitucionalmente definidas, cabe a ela realizar investigações criminais, por meio de Inquérito mento de crianças e adolescentes: a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente - DPCA, situada no
Policial ou Termo Circunstanciado, colaborando com o Sistema de Justiça Criminal, coletando indícios da Complexo da Polícia Civil ao lado do Parque da Cidade; a Delegacia da Criança e do Adolescentes 1 - DCA 1
prática de infração e de sua autoria, ou mesmo, durante o desenvolvimento desse trabalho, concluindo pela e a Delegacia da Criança e do Adolescente 2 - DCA 2, localizadas na EQN 204/205, na Asa Norte, e na Praça
inexistência do delito ou pela autoria diversa da preliminarmente apontada. da Estrela, Q. 1, em Taguatinga, respectivamente.

Não restam dúvidas que sua atividade esteja diretamente ligada à persecução penal e à responsabilização A DPCA atua naquelas situações em que crianças e/ou adolescentes forem vítimas de qualquer tipo de vio-
dos autores, desvinculada, no entanto, da acusação e da defesa. Aqui, interessa-nos a verdade real dos fatos. lação (maus-tratos, violência sexual, crimes cibernéticos, etc).
Importa dizer que a investigação criminal, por afetar direitos fundamentais de todos os envolvidos – vítimas
e investigados -, e ser o marco inicial para uma persecução penal bem sucedida, deve pautar-se de forma Já as DCAs 1 e 2 entram em cena quando um adolescente pratica uma conduta considerada criminal, ou
técnica, legal e imparcial. seja, um ato infracional.

Basta a suspeita e apenas ela para que Polícia Civil seja imediatamente comunicada, a essa instituição cabe Urge relembrar que é considerada criança, nos termos da lei, a pessoa com até doze anos incompletos, e adoles-
o esclarecimento do fato. cente aquela entre doze e dezoito anos incompletos, sendo que somente esses últimos praticam atos infracionais.
72 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE I - CONHECER PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
73

Importante ressaltar que a DPCA não atua com exclusividade, ou seja, a delegacia da área do fato também Atualmente, as oitivas realizadas em toda a Polícia Civil do Distrito Federal seguem o Protocolo de Polícia
pode apurar delitos em que crianças e adolescentes sejam vítimas. Judiciária para Depoimento Especial de Criança e Adolescente desenvolvido pela DPCA em parceria com a
Universidade de Brasilia - UnB.
Aquela delegacia de polícia que primeiro tomar conhecimento do fato será a responsável pela investigação.
A nova legislação, a qual estabelece a observância de requisitos para realização do depoimento especial,
O que a DPCA realiza com exclusividade são as oitivas, intituladas depoimento especial, de crianças e ado- em especial no que tange a obrigatoriedade utilização de protocolos, aliada as especificidades do trabalho
lescentes vítimas ou testemunhas de violência menores de 7 (sete) anos em qualquer caso. desenvolvido na polícia judiciária motivaram a criação de um protocolo específico à esfera policial baseado
nas disposições da Lei da Escuta Protegida, onde as peculiaridades da conduta criminosa fundamentais para
A partir da edição da Lei nº 13.431/2017 (Lei da Escuta Protegida) e de seu Decreto regulamentador - Decreto nº a tipificação da infração e delimitação de seus contornos sejam exploradas, de forma técnica e absoluta-
9.603/2018, foi estabelecido um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha mente protetiva.
de violência, assim como algumas alterações ao Estatuto da Criança e do Adolescente foram introduzidas.
Este protocolo sistematizou de modo científico, as técnicas utilizadas nacional e internacionalmente, sem-
Com isso, a doutrina da proteção integral ganhou importante reforço normativo, na medida em que, visan- pre sob a perspectiva da proteção integral e da diminuição dos danos da revitimização da criança e adoles-
do a prevenção, foram estabelecidos mecanismos para coibir a violência, bem como medidas de assistência cente na coleta do Depoimento Especial e da garantia dos direitos fundamentais do investigado - na esfera
e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência. de Polícia Judiciária.

Definiram-se, por conseguinte, as duas formas de coleta da narrativa de criança ou adolescente, como ga-
rantia do direito de ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, ou, não menos importante, o de perma-
necer em silêncio: a ESCUTA ESPECIALIZADA, como sendo o procedimento de ENTREVISTA sobre situação
de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente
ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e provimento de cuidados; e o DE-
POIMENTO ESPECIAL, que é o procedimento de OITIVA de criança ou adolescente vítima ou testemunha
de violência perante a Autoridade Policial ou Judiciária com a finalidade de produção de provas.

Desde sua inauguração no ano de 1999, a DPCA realizava tais oitivas, inicialmente mediante a utilização
de uma combinação de técnicas preconizadas nos protocolos de entrevistas forenses reconhecidos pela
comunidade acadêmica.
PARA
URSO
DO DO C D A
NTEÚ
N A I S
CO
S S I O
O F I S DA
PR Ã O E
CA Ç ÃO
ED U T E Ç
P R O
E D E
PARTE II RE D
76 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
77

os profissionais da educação a abordar estas situ- TJDFT, professoras da UnB. Para melhor aprovei-
APRESENTAÇÃO ações. Assim, em 2019 foi lançado o curso “Maria tamento, o curso foi dividido em quatro módulos.
da Penha vai à Escola: abordagem técnica das situ-

O
MÓDULO I MÓDULO II
Programa Maria da Penha vai à Escola foi de multiplicadores do Programa e capacitação de ações de violência sexual”. O curso teve como ob- VIOLÊNCIA SEXUAL LEI MARIA DA PENHA E LEGISLAÇÕE DE
PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
idealizado em 2014 para fomentar parce- profissionais das instituições partícipes, conforme jetivo contribuir com a formação de profissionais
rias e criar, junto com os atores da rede – demandas e especificidades de cada uma. da rede (da educação e das instituições partícipes Conceituando Gênero Lei Maria da Penha

em especial a Educação –, soluções e estratégias do Projeto Maria da Penha vai à Escola) no tema da Relacionando gênero Estatuto da Criança e
e violência sexual do Adolescente
para a prevenção e o enfrentamento da violência De maneira complementar, foi construído um cur- violência sexual, bem como no atendimento e enca-
so com carga horária de sessenta horas, e realiza- Violência sexual contra Lei nº 13.431/2018 e o
contra as mulheres. A parceria está amparada no minhamento das situações de violência sexual iden- criança e adolescente Sistema de Garantias de Direitos
objeto do Acordo de Cooperação Técnica do Pro- do de forma híbrida (com encontros presenciais, tificadas no contexto escolar. A primeira edição do
grama Maria da Penha Vai à Escola, que conta com conteúdo e atividades em plataforma digital) em curso foi realizada na modalidade semipresencial, MÓDULO III MÓDULO IV

14 partícipes. Este acordo possibilitou a realização parceria com o Centro de Aperfeiçoamento dos com 45h/a a distância e 15h/a presencial, e contou IDENTIFICAÇÃO, ACOLHIMENTO, PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA SEXUAL
ESCUTA ESPECIALIZADA E
de cursos e atividades de formação para as institui- Profissionais da Educação – EAPE. O curso permitiu com a participação de 46 profissionais da educa- ENCAMINHAMENTO DAS
O papel da escola no
SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL
ções que subscrevem o Acordo e fazem parte da o aprofundamento das temáticas discutidas a nível ção e da rede de proteção às mulheres. A 2ª edição enfrentamento à violência sexual
Identificação
Rede de Proteção às Mulheres do Distrito Federal. local e a formação de profissionais de todas as qua- curso foi adaptada para o formato completamente Propostas pedagógicas
Acolhimento e com crianças
torze CREs do DF, e resultou no ebook “Maria da virtual, em virtude do contexto de pandemia e das Escuta Especializada
Considerando o papel estratégico que a escola tem Penha vai à escola : educar para prevenir e coibir Propostas pedagógicas
necessárias medidas de distanciamento social, no Encaminhamento com adolescentes
na proteção das crianças, este programa realizou a violência doméstica e familiar contra a mulher”, ano de 2020, e capacitou mais 60 profissionais da
centenas de atividades, cujos resultados encontram- disponível em https://www.tjdft.jus.br/informacoes/ educação e da rede de proteção. Esperamos que o material aqui disponível pos-
-se publicados na página do MPVE, disponível em cidadania/centro-judiciario-mulher/documentos-e- sa auxiliá-lo(a) na compreensão do fenômeno da
https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/ -links/e-book-maria-da-penha-vai-a-escola. O curso Maria da Penha Vai à Escola: Abordagem violência sexual contra a mulher adulta e contra
centro-judiciario-mulher/o-nucleo-judiciario-da- técnica no atendimento e encaminhamento das si- crianças e adolescentes, além da implementação
-mulher/projetos/eixo-comunitario/maria-da-pe- Situações de violência sexual são complexas, cheias tuações de violência sexual é resultado da parceria da Lei Maria da Penha e outras legislações especí-
nha-vai-a-escola. A cooperação entre os parceiros de peculiaridades, e necessitam de uma capacita- entre TJDFT e a EAPE/SEEDF. Participaram da cons- ficas, bem como na identificação, atendimento e
do Programa permite, além das ações que aconte- ção adequada para auxiliar no seu enfrentamento. trução do conteúdo dos cursos juízes, promotora encaminhamento das situações de violência. Por
cem diretamente junto às Coordenações Regionais O contato com os profissionais de educação nos do MPDFT, delegada da Polícia Civil, servidores do fim, serão abordadas propostas pedagógicas para
de Ensino e outras Gerências da SEEDF, o desenvol- cursos, oficinas e atividades do MPVE explicitou a prevenção da violência sexual.
vimento de diversas oficinas, seminários, formação uma demanda para um curso voltado para ajudar
78 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
79

AULA 01

CONCEITUANDO GÊNERO

MÓDULO I
OBJETIVOS DE APRENDIZADOS

→ Conceituar gênero;
GÊNERO E → Relacionar gênero e violência;

→ Exemplificar formas de violência de gênero.


VIOLÊNCIA SEXUAL
Adentrar na temática da violência de gênero é
GÊNERO
reconhecer a importância dos movimentos feministas
Este módulo tem o objetivo de criar um espaço de reflexão em gênero é uma palavra usada para identifi- que visibilizaram a violência contra mulheres e
torno de dois temas: Gênero e Violência Sexual. car e diferenciar homens e mulheres numa promoveram seu enfrentamento, bem como
dada sociedade a partir de uma construção reconheceram que tal violência não era uma questão
Ao final do presente módulo vocês poderão atuar como agen- social do significado do que é ser homem e de ordem privada, mas sim, uma “questão política e de
tes multiplicadores (as) de uma perspectiva teórica que situa a o que é ser mulher. saúde pública, envolvendo os direitos humanos de
violência sexual como uma violência baseada em relações desi- mulheres” (Lourdes Bandeira 2011).
guais de gênero.

Professores Conteudistas » Márcia Maria Borba Lins (TJDFT); Marcos Francisco de


Souza (TJDFT); Myrian Caldeira Sartori (TJDFT); Renata Bevilaqua Chaves (TJDFT)
80 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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A violência, de uma maneira geral, cometida contra crianças, adolescentes (de 0 aos 18 anos) e mulheres
MACHISMO Entende-se ainda, que o machismo, como controlador perpassa por uma questão de gênero. Isso quer dizer que as relações que se estabelecem cotidianamente
das relações sociais e das relações íntimas de afeto, rea- estão permeadas por comportamentos machistas e adultocêntricos, caracterizados por expressões desi-
baseia-se na negação da igualdade de
firma não apenas as desigualdades de poder, mas a guais de poder apreendidas e reforçadas socialmente. Na violência sexual, incluem dominação, exploração
direitos e deveres, enaltecendo as caracterís-
ameaça que ela significa à mulher, por meio de todo de gênero, raça, classe social e/ou faixa etária. (ANDI, 2002).
ticas atribuídas culturalmente ao sexo
tipo de violência, inclusive a violência sexual nas rela-
masculino em detrimento do sexo feminino.
ções familiares e extrafamiliares. Bandeira (2011) cita que a violência contra a mulher se constitui em fenômeno social persistente, multifor-
me e articulado por facetas psicológica, moral e física. Suas manifestações são maneiras de estabelecer uma
relação de submissão ou de poder, implicando sempre em:

SITUAÇÕES INTIMIDAÇÃO
ISOLAMENTO DEPENDÊNCIA
DE MEDO PARA A MULHER

É considerada como uma ação que envolve o uso da força real ou simbólica, por parte de alguém, com a
finalidade de submeter o corpo e a mente a vontade e liberdade de outrem.

Zanello (2018, p. 232) destaca que gênero é fundamental para análise da violência. A autora observa que a
violência exerce um papel de reafirmação do que é esperado enquanto comportamento do “ser homem’.
A violência contra mulher é apreendida nos processos primários de socialização, bem como na sociabili-
dade da vida adulta. Soares (1999) afirma: “portanto, não se caracteriza como patologia ou como desvio
Ao se analisar a dinâmica e o contexto em que muitas das violências contra a mulher foram praticadas,
individual, mas sim como ‘permissão social’ concedida e acordada com os homens na sociedade”.
percebe-se que o homem não estava desempenhando os papéis de provedor ou chefe de família: es-
A violência de gênero é reconhecida como um fenômeno social e tem suas raízes em diversos fatores: tava desempregado, se sentia humilhado no contexto familiar e social (entre conhecidos e pares). Essa
dinâmica não justifica a violência cometida, no entanto nos ajuda a compreender a importância de ter
um olhar para as questões de gênero.
HISTÓRICOS CULTURAIS INSTITUCIONAIS FAMILIARES INDIVIDUAIS
Zanello cita Saffiotti (2004) para respaldar tal análise, quando afirma que o poder apresenta duas fases, a potência
na socialização dos homens, e a impotência na socialização das mulheres. Acredita que os homens convivem mal
com a impotência e, quando vivenciam o sentimento de impotência é então que praticam a violência.
82 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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SUBJETIVAÇÃO Zanello. (2018) descreve os processos de subjetivação para sab er m ai s


se refere à forma como sujeitos reelaboram e corporal e afetiva na construção do ser homem e ser O documentário “The Mask you live in” aborda a pressão da sociedade sobre aquilo que pode ou não
vivenciam as aprendizagens adquiridas nos mulher na nossa cultura. A autora afirma que os homens ser considerado “masculino” e como isso pode afetar os nossos jovens.
contextos e relações sociais e culturais, e desta são interpelados socialmente pelo “dispositivo da eficá-
forma criam sua percepção de mundo e da cia”, expresso pelas virilidades sexual e laborativa. Apesar
própria identidade. Trata-se, portanto, do proces- de as duas estarem interligadas, o foco aqui será na dis- O documentário está disponível no Youtube e pode ser acessado pelo link https://www.youtu-
so de tornar-se pessoa, não como categoria bioló- cussão em torno da virilidade sexual e como ela está re- be.com/watch?v=k4yFShxUb2E
gica, mas como categoria sociológica. lacionada com a construção da violência de gênero.
Observa-se que essa mesma construção sociocultural marca a essência das mulheres para ser esposa, mãe,
Segundo a autora os homens foram socializados a partir de uma lógica de virilidade com um rol de quali-
filha, cuidadora, além de ser fiel, companheira, amiga, boa mãe, dentre outros.
dades considerados inatos ao sexo masculino, tais como: potência sexual, coragem, resistência física e moral
entre outros. Bandeira (2011) pontua:

Para atingir tal “essência” ou ideal de masculinidade, os meninos devem endurecer por meio de: tipos de “o patriarcado é demarcado na carne e não é sutil, porém, mais forte é a demarcação
brincadeiras, roupas, esportes, além de mensagens de endurecimento das emoções (não chorar, não mos- simbólica, que quando quebrada, responde com a morte, uma vez que não podemos
trar os sentimentos). romper como reprodutoras da ordem social e biológica que nos foi imposta assim, como
a manutenção das estruturas de poder e dominação disseminadas na ordem patriarcal”.
MISOGINIA Ressalta ainda, que qualquer expressão que o associe a
Caracteriza-se pela repulsa, desprezo, aversão e uma característica feminina deve ser totalmente repu- PATRIARCADO
ódio às mulheres e se expressa de diversas formas, diada. Daí surgem comportamentos misóginos. “As Patriarcado é um sistema social em que homens adultos mantêm o poder primário e predominam em funções
tais como: exclusão social, hostilidade, discrimina- mulheres devem ser desejadas, mas nunca se deve de- de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. No domínio da família, o
ção sexual, prática de atos de violência física e sejar ser igual a elas”. (Zanello 2018, p 221) pai (ou figura paterna) mantém a autoridade sobre as mulheres e as crianças.
emocional, depreciação da figura feminina.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Patriarcado
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RESUMINDO
AULA 02
VIOLÊNCIA RELAÇÕES HIERÁRQUICAS E DESIGUALDADES DE PODER
DE GENÊRO RELACIONANDO GÊNERO E
VIOLÊNCIA SEXUAL
A violência sexual marca a mulher na sua subjetividade no sentimento de inferioridade,
INFERIORIZAÇÃO
como uma “não pessoa” como um “objeto”

Em uma relação de dominação e poder, a violência anula a vontade do outro; invade a


DOMINAÇÃO/PODER vontade e o corpo da mulher. Ao expropriar o outro da sua condição de sujeito permite
espaço para praticar o poder e dominação
OBJETIVOS DE APRENDIZADO
CONT ROLE Implica na sujeição e controle de uma pessoa sobre a outra.
→ Relacionar gênero com a violência sexual;

SUBORDINAÇÃO
Violência é compreendida como o exercício do poder masculino, a qual exerce o caráter de
mediação das relações entre homens e mulheres como meio de garantir a subordinação dos
→ Apontar os obstáculos presentes na análise da
violência sexual que enfatiza a questão biológica
homens sobre as Mulheres. e patológica do agressor;

INTIMIDAÇÃO
Intimidação pela força de uma pessoa em situação de superioridade em relação a outro em
situação de inferioridade física, etária, emocional, geração, classe etc. → Identificar as questões de gênero presentes nos
discursos dos autores de violência sexual.
A violência é executada com a intenção de explorar o sujeito vítima a fim de conseguir sua
EXPLORAÇÃO posse, por meio do sofrimento, destruição enquanto pessoa e, algumas situações, sua morte
física ou emocional.
Vamos retomar algumas questões abordadas na Aula 01 a fim de relacionar gênero e violência sexual, em
A violência, muitas vezes, há utilização de armadilhas para ameaçar, de desqualificação
DESQUALIFICAÇÃO suas especificidades.
pessoal para atingir o objetivo de praticar a violência sexual.

O agressor ao praticar a violência que garantir a posse corporal e emocional para satisfazer Em consonância com a abordagem de Zanotta (1999), em situações de violência sexual percebe-se um
POSSE
seu desejo de dominação. discurso, construído social e culturalmente, no qual o homem assume o papel de “sujeito de conquista” e
a mulher o papel de “objeto a ser conquistado”, mesmo que com o uso da força e da dominação. À mulher
AMEAÇAS
Em muitas situações a violência sexual é construída por meio de um jogo de sedução e não se permite o papel ativo na conquista e mesmo seu “não” nesse jogo de sedução é interpretado como
poder, de obediência e de ameaças a mulher/ criança e adolescente.
um sim, como uma forma de seduzir aos homens.

CHANTAGENS Chantagens emocional, manipulação, permeiam o discurso do abusador.


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Segato (1999. P. 387) nomeia o estupro acometido por desconhecidos nas ruas como “estupro cruento”
RELATO DAS FALAS DE UM AUTOR DE VIOLÊNCIA SEXUAL (ZANOTTA, 1999, P. 310) como uma violência de gênero que se diferencia pelo “potencial de força física e pelo poder de morte de
“Vamos conversar aqui um pouquinho! Vamos brincar um pouco. Você sabe do que estou falando{...} um indivíduo sobre o outro” A autora define estupro como “o uso e o abuso do corpo do outro, sem que
Olha, tem todo esse tempo que vocês moram em Brasília, que eu quero você. Eu só tava deixando você o outro participe com intensão ou envolvimento compatível”. (p.388)
crescer mais um pouquinho {...} – Você acha que eu tô brincando sua ordinária...
A autora salienta que o estupro “anula o desejo da mulher”. A construção sociocultural estimula uma re-
Você também quer. Eu sei que você quer”. “Todos os homens fazem com as mulheres: Elas sempre
lação de gênero “perversa” em torno do “imaginário erótico e no imaginário de poder” onde a mulher se
dizem não, mas sempre querem” (p.335)
encontra no lugar da passividade e o homem é o ser ativo na relação, que o corpo da mulher é o apoderado
e o do homem é do de “apoderar e de se servir do corpo da mulher”.
Daí, diversas campanhas buscam reafirmar que “Não é não”, colocando em discussão conceitos como o de
consentimento. Essa abordagem é importante porque joga luz às situações de violências sexuais como o
estupro. Nesta aula, utilizaremos a palavra “estupro” sob uma perspectiva sociológica. O conceito jurídico Nesta situação, a vítima parou para urinar. Observe as frases utilizadas pelo autor para justificar a vio-
será abordado no módulo II. lência sexual que cometeu. “Eu sei que errei. Errei porque mantive relação com ela{...} e errei porque
por ter vasculhado a bolsa dela, ela dizia que não tinha dinheiro e eu levei cinco mil cruzeiros... Eu tirei
ela como prostituta, altas horas na rua e tirando a roupa na frente da gente” (Zanotta. 1999 p. 306)

Nesse discurso machista que justifica e intensifica a violência sexual, o homem, o verdadeiro macho, seria
aquele viril, o que exerce ao máximo sua sexualidade, o que possuiu mais mulheres no seu histórico. Segun-
do Zanello (2011, p.232): “os homens se constituem em uma exigência de mostrar sempre uma potência
inesgotável, potência essa medida em termos de quantidade. Quanto mais, mais macho”

Para ilustrar essa dinâmica, convém assistir o vídeo a seguir disponível em:
https://www.ted.com/talks/tony_porter_a_call_to_men?language=pt-br

Vídeo disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=LPo1M5f5hLk Outra questão muita discutida pelo senso comum é a virilidade e/ou agressividade como um fator biológi-
co, nato ao homem. Sobre este tema, as análises de gênero demonstram que esta visão da sexualidade como
impulso biológico instintivo é historicamente aplicada muito mais à sexualidade masculina, que domina,
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controla e é violenta, justamente por ser dificilmente controlável: “a ideologia dominante enfatiza que a do-
minação, o controle e, até mesmo, a violência masculinas na sexualidade são ‘naturais‘“. Seguem falas de dois autores de violência sexual: “Eu tava ébrio, nós esta bebendo desde cedo ... O
homem é fraco demais” (Zanotta, 1999. p.306)
Neste entendimento, a ideia de que os homens têm um impulso sexual muito maior e, às vezes, insaciável
“pode ser usada para legitimar (...) o estupro, a prostituição, o exibicionismo, a promiscuidade masculina e a exis- Zanotta (1999) na análise dos discursos realizado nas entrevistas com estupradores, observa que há uma
tência da pornografia” (Birke, 1986: 20), na medida em que “as explicações biológicas sugerem, efetivamente, justificação por parte deles para ato de violência em nome:
que um homem não é totalmente responsável por suas ações” (Birke, 1986: 25).

Referindo-se a experimentos nos quais entre 33% e 50% dos homens “normais” se autoclassificaram como
* da “fraqueza masculina” como algo derivado na “natureza do homem”,
“capazes de estuprar”, Bleier sugere que “o estupro não está muito longe nem das fantasias sexuais corriqueiras * culpabilizando o uso da droga e ou álcool,
dos homens nem da realidade do leito marital” (Bleier, 1984: 185) (ver também Lisak, 1991; Silva, 1979).
* até mesmo a tentação do diabo no momento de fraqueza.
Entende-se que o estupro além de ser uma violência física, psicológica apropriação do corpo, é também Observou-se no estudo realizado pela autora banalização das atitudes cometidas por parte dos homens,
uma relação de poder onde o agressor exibe sua virilidade e violência sobre o corpo da mulher e/ou de su- com a consequente naturalização e objetificação dos corpos das mulheres, tidas como “vadias”, “prosti-
jeitos em situação de vulnerabilidade, tais como crianças e adolescentes (meninas e meninos), do que uma tutas”, mulheres constituídas fora dos padrões de conduta aceitos culturalmente, as quais são percebidas
busca pelo prazer sexual. como passíveis de controle e usufruto masculino.

“A violência sexual não constitui uma pulsão sexual irreprimível masculina, mas “uma questão de poder,
afirmado a partir de relações assimétricas e dominadoras de homens contra mulheres/meninas, de “ Ela quer ter mais liberdade e eles (os pais) ... Passou o dia fora com as amigas {...} O que tem de moci-
adultos contra crianças e adolescentes”. Para Saffioti, os estudos indicam não ser possível aceitar o nha nova por aí que não é mais virgem” ( fala do estuprador) ( Zanotta, 1999. p 314)
argumento de que a sexualidade masculina é incontrolável, enquanto a feminina é domável. Tanto que
Bandeira (1999, p. 397) expõe que a violência não é um ato irracional, “ se assim o fosse estaria naturalizada,
os agressores costumam buscar locais privados ou ermos ou, no caso da violência sexual no contexto
ou seja, todos os homens seriam potencialmente violentos, cuja herança estaria inscrita na bagagem biona-
doméstico, esperam a mãe, pai ou a responsável sair ou estar muito ocupado para então agredir as
tômica do indivíduo” afirma que ao contrário que as pesquisas mostram que o agressor “ explicita as marcas
vítimas. A pesquisadora reforça que a violência sexual contra meninas e mulheres não constitui uma
culturais adquiridas ao longo do seu processo de socialização”. No estupro está presente a ideia de força,
ação isolada de pessoas consideradas anormais. Ao contrário, integra a organização social de gênero, ou
dominação e anulação do outro como sujeito, “ao expropriar o outro de sua condição de sujeito, rompe-se
seja, faz parte da gramática sexual que regula as relações homem-mulher”.
a comunicação e cria-se um espaço para poder exercer a dominação que, por sua vez, nega a independência
HELEITH SAFFIOTI (1997)
e a autonomia do outro”.
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ardilosamente no interior da família” (pag. 155). O que significa que o ambiente familiar representa seara
Sobre a cultura do estupro, assista ao vídeo no link: https://www.youtube.com/watch
fértil para a construção de vínculos que possibilitariam a prática de violência sexual utilizando-se a sedução
v=7a2uY64IwXY&feature=youtu.be
e manipulação como estratégias.
Outra questão a se observar é a interseccionalidade que permeia o fenômeno da violência de gênero e,
Além disso, a violência sexual dentro do ambiente familiar também está amparada pelos constructos sociais
consequentemente, a violência sexual.
androcêntricos e misóginos.
Mireya Suárez (1999) ao analisar os discursos dos policiais que trabalham com a temática de violência se-
Relato de uma Diante do exposto, pensar na coibição, na prevenção e no
xual, argumenta que a violência acontece em todas as classes sociais, entretanto há um número maior de
vítima de Durante um tempo, atendimento à violência de gênero exige pensar o fenô-
violência nas classes mais desfavoráveis economicamente. A autora avalia que nessas classes os sujeitos têm
violência sexual após minha tentativa meno de forma complexa com atuações multissetoriais e
menos acesso às políticas públicas, inclusive, de segurança pública. Ademais, há que se atentar à invisibili-
de suicídio, ele mudou multidisciplinares, objetivando intervir na estrutura e
dade da violência nas classes sociais mais privilegiadas, que tendem a ocultar as situações vivenciadas por
comigo.(...) Me deixou um conjuntura do fenômeno, organizador da nossa realidade
receio de sua publicitação.
tempo em paz. Bem, eu social de maneira tão desigual e violenta às mulheres.
achava que ele tinha me deixado em paz. Um
Zanello (2011) traz a importância da interseccionalidade para pensar gênero de formal plural e situada,
dia, ele trouxe um suco e insistiu para que eu Nas situações de violência sexual se terá como parâme-
“nem todo homem nem toda mulher estão similarmente situados”. Observa-se que aspectos como raça,
tomasse. Eu não queria (...)Emagreci 12 tro a forma mais abrangente: um referencial que não se
classe, etnia, sexualidade, idade, religião e outras características configuram e interferem na dinâmica de
quilos. Mas tomei o suco e, em seguida, restrinja à dimensão individualizante do estupro, mas
uma relação de gênero e podem, consequentemente, permear a violência de gênero submetendo alguns
dormi. Quando acordei, estava em cima da que se articule com a construção social da qual decor-
grupos a uma situação de mais vulnerabilidade.
cama, nua, e tudo em mim doía: seios, re, ainda que os agentes, ofensor e ofendida estejam
INTERSECCIONALIDADE
vagina, ânus. Acordei tonta e não sabia o que inevitavelmente em tela. Pois, como exposto anterior-
é a intersecção do gênero com outros marcadores sociais (classe social, cor, idade, etnia, orientação sexual, estava acontecendo. Quando fiquei melhor, mente, a violência sexual, nesses casos, está associada
religiosidade etc). As diversas categorias sociais passam a ser tratadas como marcadores de diferenças sociais perguntei a ele o que tinha no suco e ele à ideia de desigualdade de força e poder, de gênero e
aos quais também correspondem formas específicas de opressão e desigualdade. Estes marcadores podem respondeu: amor. (...) classe entre os atores (Lordello, 2013). Desta forma,
facilitar ou representar obstáculos para o acesso aos direitos. qualquer ação do Estado que tenha apenas o objeti-
Suxberger,J,R. INVISÍVEIS MARIA Histórias Além das vo de intervir individualmente no sujeito agressor sob
Quanto à violência sexual incestuosa, Bandeira e Almeida (1999) pontuam que a violência sexual, não ocor- Quatro Paredes. Pónos pág 77 a 84 – 2018 Brasília, uma perspectiva patológica pode descontextualizar o
editora Tagore.)
re de repente, ela é planejada, articulada: “não é linear e espontânea ou imprevisível, vão sendo produzidas fenômeno da violência de gênero.
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Sendo assim, estratégias para minimização desse tipo de violência devem se pautar em uma intervenção eficaz
por parte do Estado objetivando uma proposta que combata a violência de gênero contra a mulher por parte
⇢ ASPECTOS RELACIONADOS AO IMPACTO DA
VIOLÊNCIA NA MULHER E NA MENINA:
dos (as) agressores (as), por meio de intervenções que trabalhem a redução de crenças legitimadoras e per-
petuadoras do uso de violência e as justificativas para comportamentos abusivos. Deve-se também promover Os estudos demonstram que os impactos da violência doméstica e familiar contra a mulher são de diferen-
a ampliação da visão de mundo no que tange a violência, gênero, masculinidade, justiça, direitos e cidadania. tes ordens, desde o impacto nas relações sociais, até em sua subjetividade, atingindo sua integridade física e
emocional. Desse modo, a mulher em situação de violência pode apresentar comportamentos que causam
reações atípicas. Abaixo, listamos algumas situações que são desencadeadas pela vítima ao vivenciar um
contexto de violência doméstica e familiar:

A vítima não consegue narrar a violência de forma organizada, demonstra desorientação e confusão. Compreender que situações
traumáticas podem afetar partes do cérebro (volume diminuído do hipocampo, relativa diminuição na ativação do hemisfério
esquerdo e a diminuição na atividade do córtex pré-frontal, do cíngulo anterior e da área de Broca) interferindo na capacidade de
sintetização, categorização e integração da memória traumática em uma narrativa coerente e coesa.

Se a vítima não reagiu é porque ela consentiu. A vítima não escolhe como reagir, a dinâmica de violência conduz a uma
desorganização provocada pelo impacto do trauma. Sendo assim, muitas vezes, a vítima não consegue reagir, congelan-
Conforme documentado na literatura, existem graves consequências do estupro, de curto e longo prazo,
do/paralisando frente à violência. As seguintes perguntas podem ajudar a identificar o congelamento: a) sentiu-se incapaz
que se estendem no campo físico, psicológico e econômico.
de se mover; b) percebeu tremores no corpo; c) sentiu-se anestesiada na situação; d) sentiu-se separada do próprio corpo;
e) sentiu medo de morrer
Além de lesões que a vítima pode sofrer nos órgãos genitais (principalmente nos casos envolvendo crian-
ças), quando há o emprego de violência física, muitas vezes ocorrem também contusões e fraturas que, no A vítima está afirmando que a culpa é dela, que ela provocou a situação. A exposição a constantes situações de violên-
limite, podem levar ao óbito da vítima. cia (perigo) promove alterações cerebrais, dentre elas, distorções do pensamento. Desta forma, é importante avaliar o
contexto em que esta fala é produzida, pois além do aspecto pontuado anteriormente, existem as questões sociais que
O estupro pode gerar gravidez indesejada e levar a vítima a contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST). fundamentam esse tipo de discurso.

A vítima mostra-se agressiva com a intervenção policial. A exposição a situações traumáticas pode aumentar o tamanho da
Em termos psicológicos, o estupro pode redundar em diversos transtornos, incluindo “depressão, fobias, ansiedade, amígdala cerebral, a qual é responsável por sinalizar situações de perigo, desta forma, estando a amígdala aumentada, as rea-
uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático” [Faúndes et al. (2006, p. 128)]. ções ao medo também ficam, o que pode provocar reações consideradas desproporcionais por parte da vítima.

A vítima está irritada, está sorrindo/ gargalhando, está entorpecida. A vítima pode apresentar alterações de humor invo-
A conjunção das consequências físicas e psicológicas leva ainda à perda de produtividade para a vítima, mas
luntárias advindas das experiências traumáticas vivenciadas.
também impõe uma externalidade negativa para a sociedade em geral.
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RESUMINDO
CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA NA SAÚDE BIOPSICOSSOCIAL DA MULHER

Lesões abdominais e torácicas; Contusões e edemas; Síndrome de dor crônica; Invalidez; Há um discurso de justificação do sexo sem consentimento que passa pela ideia de que homens são seres
FÍSICAS
Fibromialgia; Fraturas; Distúrbios gastrointestinais; Síndrome do cólon irritável; Lacerações
e abrasões; Lesões oculares; Limitações físicas. incapazes de conter suas necessidades sexuais. Em muitas situações de atendimento às partes envolvidas em
processos da Lei Maria da Penha, justifica-se a violência sexual com a afirmação de que homens possuem um
Alcoolismo; Consumo de drogas; Depressão e ansiedade; Distúrbios alimentares e do sono;
PSICOLÓGICAS Sentimentos de vergonha e de culpa; Fobias; Perturbação de pânico; Inatividade física; instinto incontrolável que precisaria ser saciado, o qual decorreria de suas características físicas e biológicas.
EMOCIONAIS Baixa autoestima; Perturbação de stress pós-traumático; Perturbações psicossomáticas;
Tabagismo; Comportamento suicida e de autoagressão; Comportamento sexual de risco. Esse discurso é perigoso na medida em que desresponsabiliza o autor da violência sexual e culpabiliza a
mulher – que deve estar sempre disponível, independentemente de seu querer para satisfazer a necessidade
Perturbações de foro ginecológico; Esterilidade; Doença inflamatória pélvica; Complicações
SEXUAIS E do companheiro.
REPRODUTIVAS na gravidez, aborto espontâneo; Disfunção sexual; Doenças sexualmente transmissíveis,
incluindo HIV/SIDA; Aborto realizado em condições de risco; Gravidez indesejada.
A ideia de que homens não podem controlar seus instintos sexuais, os quais são insaciáveis e fora da pos-
CONSEQUÊNCIAS Mortalidade relacionada com a SIDA; Mortalidade materna; Feminicídio; Homicídio;
Suicídio.
sibilidade de controle e renúncia, é preocupante e favorável a continuidade do machismo, pois quando se
MORTAIS
naturaliza esse discurso abre-se pouco espaço para mudanças, uma vez que dificilmente conseguimos
Isolamento social e familiar; Absenteísmo no trabalho; baixa produtividade laboral, perda transformar aquilo que nos foi dado pela natureza, nossas características genéticas.
SOCIAIS de emprego; Abandono de atividade educacional; anomia social; irritabilidade com familia-
res e amigas (se exclui socialmente); busca excessiva por ajuda nas Instituições (alegando
outros motivos que não a violência); Na socialização de meninos em nosso país, tem se enfatizado a construção de uma masculinidade apoia-
Fonte: Adaptado de Krug et al, 2002, p. 101 da na eficácia sexual. Os homens são estereotipados como seres naturalmente viris, que não devem recu-
sar nunca a oportunidade de se relacionar sexualmente, que não dispõem de mecanismos para controlar
seus desejos sexuais. Não se percebe uma educação voltada para a renúncia sexual e a frustração de seus
No Brasil, existem normas para o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual relativas à saúde.
desejos. Por outro lado, cria-se a imagem de uma mulher passiva, sem direito de dizer não, a qual tem o
O Ministério da Saúde, em sua nota técnica, não recomenda tratamento profilático contra Doenças
dever de satisfazer sexualmente seu parceiro quando ele assim o quiser, abrindo espaço para um discurso
Sexualmente Transmissíveis se o estuprador é conhecido e se a agressão vinha ocorrendo de forma
de objetificação da mulher.
continuada e sistemática, ou se não houve penetração anal ou vaginal. Em relação ao aborto legal,
relacionado à gravidez por consequência do estupro, o Código Penal não exige qualquer documento
para a sua prática, a não ser o consentimento da mulher. Obviamente, isso não exime da necessidade
de orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis. Contudo, caso ela não o faça, o direito
ao abortamento não lhe pode ser negado.
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Esses papéis de gênero são representados em comédias românticas, literatura, propagandas, piadas, refor- AULA 03
çando e banalizando a violência sexual. Outra crença advinda desse contexto é a de que haveria menos
estupros se as mulheres se comportassem, remetendo a ideia de que as mulheres provocam os homens com VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA
seus corpos e formas de vestir e a eles não se apresenta escolha, exceto o cometimento do estupro.
CRIANÇA E ADOLESCENTE
A escola é um espaço privilegiado para desconstruir esses discursos e propor novas formas de socialização
para as crianças e adolescentes.

OBJETIVOS DE APRENDIZADO:
Para concluir essa Aula, assista à vídeo-aula da Professora da UnB, Dra Silvia Lordello, disponí-
vel pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=YxqUpAyOjBI → Relacionar gênero com a violência sexual contra criança e adolescente;

→ Apontar as diferenças entre o agressor abusador e o agressor pedófilo;

→ Reconhecer as principais características do fenômeno da violência sexual.

Geralmente, quando sabemos que uma criança ou adolescente (a maioria do sexo feminino) foi vítima de
violência sexual somos tomados por um sentimento de “raiva”, “revolta” e “indignação” porque, diferente de
outras violações de direito das crianças e adolescentes, existe uma intensa reprovação moral e uma imensu-
rável intolerância social a esse tipo de crime.

Por outro lado, quando procuramos explicações para o fenômeno, tendencialmente somos interpelados a
saber “quem cometeu essa barbaridade”, de forma que, ao tomar conhecimento de que possa ter sido (ou que
foi) um adulto do gênero masculino (isso não significa que mulheres do gênero feminino também não possam
ser) imediatamente o qualificamos como “doente”, “psicopata”, “pedófilo”, “monstro”, e por aí em diante.
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Quando se afirma que a violência sexual é causada por um “doente” que precisa ser preso (responsabilizado Por isso é que, apesar de ser recorrente no cotidiano social e presente no dia a dia dos profissionais da edu-
criminalmente) e/ou que precisa de tratamento, estamos (sem querer e sem saber) patologizando a violên- cação, o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes está repleto de explicações e inter-
cia sexual cometida contra uma criança ou adolescente. pretações que, ainda, oferecem respostas e intervenções rasas, incompletas e superficiais porque não dão
conta de sua amplitude, dinamicidade e complexidade. Ou seja, pouco se sabe, realmente, sobre as suas
E, ao tornar doença todo e qualquer ato sexual cometido por um adulto contra uma criança e adolescente, indivi- reais causas; os seus impactos ao longo da vida da criança ou adolescente; as formas de acolher as supostas
dualizamos e particularizamos o fenômeno como produto de uma ação estrita e essencialmente de um indivíduo, vítimas e os encaminhamentos necessários.
como se o contexto social e cultural daquele indivíduo não interferisse na sua liberdade e autonomia de escolha.
Vejamos a dimensão do problema:
para sab er m ai s No Brasil, 70% das vítimas de estupro A realidade do Distrito Federal não foge à regra. Em 2017, a
Os termos pedófilo e abusador não são sinônimos. Muitas vezes o termo pedófilo é utilizado para são crianças e adolescentes. Destas, Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal
se referir a toda violência sexual contra crianças e adolescentes. Entretanto, tal termo utilizado ge- 89% são do sexo feminino. E mais, 87% registrou 883 casos de estupros, dos quais 543 foram
nericamente mascara a real situação que está intrínseca nesse tipo de violência. Assim, conforme dos abusos sexuais ocorrem na família praticados contra crianças e adolescentes. Destes, 93%
falado anteriormente, a violência sexual é fenômeno social, em uma cultura adultocêntrica, que está ou envolvem pessoas da convivência da tiveram como autor alguém conhecido da vítima, e em
diretamente implicada por questões de gênero. Desta forma, os abusadores são indivíduos machistas criança ou adolescente. 78% dos casos a violência sexual ocorreu dentro de casa.
que exercem uma relação de poder com um sujeito mais vulnerável, não sendo portadores de uma
patologia clínica. Pedofilia é um conceito que se refere a um transtorno mental no qual a pessoa sente
prazer sexual quando tem estímulos que envolvam crianças ou quando necessariamente precisa delas Não estamos falando de algo que ocorre isolada e esporadicamente. Por isso é importante conhecer mais e
para se excitar. A Pedofilia é uma doença identificada na CID-10 (Classificação Estatística Internacional melhor o fenômeno. Então, o que é importante saber sobre esse tipo de violência que tem como principal
de Doenças e Problemas Relacionados á Saúde, uma lista com as doenças conhecidas e descritas pela alvo crianças e adolescentes do sexo feminino?
Organização Mundial da Saúde).
* A violência sexual atinge qualquer criança ou adolescente, independente de sexo, idade, classe
social, raça/etnia, religião, orientação sexual e condição física.
ATENÇÃO! Estudos mostram que, das situações de violência sexual contra crianças e adolescentes,
mais de 80% são praticadas por abusadores. Destarte que, tal diferença é fundamental para compreen- * As estatísticas mostram que os crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes são
der que a violência é produzida social e culturalmente, por esse motivo somos também, responsáveis cometidos em sua maioria, mas não só, por homens com vínculo de parentesco. Há casos de
pela desconstrução das relações hierárquicas de poder. mulheres abusadoras sexuais.
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* Pessoas que violentam sexualmente crianças e adolescentes não são, necessariamente, “loucas” com as vítimas que, na sua maioria, são meninas e adolescentes do sexo feminino. Pronto! Está dado o mote para
ou “doentes mentais”. As pesquisas mostram que menos de 10% dos abusadores sexuais de refletirmos sobre a violência sexual contra as meninas e as adolescentes como uma violência de gênero.
crianças e adolescentes foram diagnosticados como pedófilos. Então podemos dizer que cerca
de 80% dos abusadores sabem exatamente o que estão fazendo, e mais, sabem que o que estão Para cada nove meninas vitimizadas sexualmente Quando explicamos o fenômeno com o
fazendo é algo reprovado socialmente, é crime e que podem ser penalizados. há um menino nas mesmas condições. O abuso olhar patologizador, resulta daí uma conse-
sexual incestuoso dá-se numa relação díspar, quência básica: desconsiderar que a violên-
* A violência sexual não é violência apenas quando envolver penetração vaginal ou anal, mas atravessada pelo poder. Na maioria dos casos, o cia sexual contra criança/adolescente é, aci-
quando o autor induzir a vítima a fazer ou receber carícias nas partes íntimas ou ao longo do abuso é perpetrado por adultos do sexo masculino. ma de tudo, o produto de uma construção
corpo; ou quando há verbalização de palavras ou termos eróticos ou pornográficos na frente social e cultural de relações de gênero.
(Saffioti, 1995).
da criança; quando há exposição da vítima a fotos, revistas e vídeos eróticos e pornográficos;
quando um adulto fotografa e expõe a nudez da criança em sites e redes sociais; quando o au- Isso significa que ela reproduz duas desigualdades básicas: a desigualdade de geração (porque existe uma
tor a induz a assistir e/ou praticar atos eróticos e sexuais na presença de outras pessoas. diferença de idade e de condição física e psicológica entre quem agride e quem é agredida sexualmente); e

* A violência sexual não é caracterizada apenas pela frequência, gravidade e intensidade dos atos a desigualdade de poder (porque cria-se uma relação de imposição, submissão, dominação, exploração e
subordinação do autor sobre a vítima).
praticados. Há crianças que só revelam os abusos depois de meses e anos de sofrendo a vio-
lência, enquanto outras revelam logo nas primeiras investidas do abusador. Portanto, torna-se
Muitos abusadores procuram conhecer a rotina da família da criança para encontrar (ou criar) momentos
desnecessário questionar a criança sobre o momento em que começou a violência.
para praticar o abuso, fora do alcance dos olhos de terceiros. Outras vezes, forçam ou induzem a criança a
* A violência sexual envolve uma relação complexa e dinâmica entre a vítima e o agressor, muitas estabelecer o “pacto do silêncio” ou “pacto do segredo”, por meio de sedução, intimidação e ameaças.
vezes baseada na construção de um pacto de silêncio permeado por estratégias de sedução,
persuasão, controle, recompensas e ameaças, criando bloqueios emocionais que impedem a A grande pergunta é: O que (ou quem) dá ao abusador o estatuto de autoridade para que ele pratique a
vítima de revelar os abusos. Portanto, torna-se totalmente contraindicado o questionamento violência sexual?
sobre o porquê da criança não ter revelado a violência antes.
E a resposta é: a nossa cultura sexista, machista, patriarcal e capitalista que, historicamente, reproduz pen-
Mas, o que isso tudo tem a ver com gênero? Por que que para entender a violência sexual contra crianças samentos e práticas de “coisificação”, “sexualização”, “mercadorização” do corpo da mulher de um lado, e
e adolescentes é preciso entender sobre gênero? hipervalorização do potencial sexual masculino. E aí vocês podem se perguntar: “Mas estamos falando de
crianças e adolescentes, e não de adultos”.
Se olharmos com lentes de aumento para as estatísticas nacionais e locais, veremos que ganha destaque aqueles
abusos sexuais cometidos por adultos (majoritariamente do sexo masculino) que possuem algum tipo de vínculo
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Exatamente. Entretanto, queremos reforçar que essa apropriação do corpo feminino começa antes mesmo Situações que exemplificam isso são: a discussão em torno da exploração da imagem da criança conhecida
de a criança nascer e se reproduz ao longo da infância, da adolescência, da fase adulta e da envelhescência. como MC Melody, propagandas que expõem e erotizam o corpo de crianças, concursos de beleza infantil.
Sim, porque nem mulheres idosas estão isentas de sofrerem violência doméstica e familiar, inclusive violên-
cia sexual. É como se nascer mulher (ou melhor, biologicamente fêmea) já reservasse aquilo que a socióloga
brasileira Heleieth Saffiotti chama de “destino de gênero” ou “uma estrada de via única”.

Esse destino de gênero está colocado, também, para as meninas e as adolescentes na medida em que estão subme-
tidas, assim como as mulheres adultas, à dominação masculina e, também, são utilizadas para 03 funções básicas:

* Força de trabalho (a exemplo da exploração do trabalho infantil e do acúmulo da dupla jorna-


da escola- tarefas domésticas tradicionalmente atribuídas a elas na divisão sexual do trabalho);

* Reprodutora de outros seres humanos (a exemplo de casamento infantil e gravidez na ado-


lescencia);

* Objeto de satisfação sexual dos homens, (com destaque para a sexualização, exploração sexu-
al e a erotização infantil promovida pelos meios de comunicação).

Se verificarmos ao longo da história da humanidade veremos que, em determinados períodos e em determi-


nadas sociedades, durante muito tempo, a criança foi coisificada e objetificada para atender a determinados
interesses econômicos, políticos, ideológicos e culturais. A violência sexual aparece como uma das expres- para sab er m ai s
sões desse processo de coisificação e objetificação das meninas pela simples condição de ser “menina” e das Erotização infantil:
adolescentes pela simples condição de ser “adolescente”.
* Sexualização da criança,
* Estimulação que acontece antes da fase em que a criança estaria preparada para compre-
ender tal estímulo,

* Violação ao direito, ao respeito à dignidde de crianças e adolescentes


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A pesquisa realizada pela ONG internacional Save the children, em 2017, apontou que o Brasil é um dos pio-
Em resumo, entendemos que ter uma visão linear de causa-efeito para compreender e enfrentar a violência
res países do mundo para ser menina. A pesquisa mostrou que, do total de países pesquisados (144), o Brasil
sexual contra crianças e adolescentes pode retirar do profissional a sua capacidade de repensar os valores e
aparece na 102º posição entre os países com maiores desigualdades de gênero que colocam as meninas em
crenças machistas, patriarcais e capitalistas que se tornam legitimadoras de vários tipos de violência dentro
situação maior de vulnerabilidades para vários tipos de violência, se comparadas aos meninos.
e fora do ambiente escolar; assim como de criar, preventivamente à violência sexual, espaços alternativos
Site: https://www.savethechildren.org/ de convivência humana e social, dentro e fora da escola, que considerem a condição de cidadã e de sujeito
de direitos das crianças e adolescentes.
Convém que o olhar crítico do profissional alcance as relações hierárquicas e desiguais que social e histo-
ricamente conformam as disputas e correlações de força entre homens e mulheres, e entre homens e as A fim de ampliar esse olhar no sentido de compreender o fenômeno da violência sexual e conhecer os
meninas/adolescentes. meios de enfrenta-lo, bem como o papel da escola nesse processo, serão abordadas nos próximos Módulos
temáticas como:
Daí a importância de o profissional da educação recorrer ao referencial de gênero durante o acolhimento
e a escuta de uma criança ou adolescente supostamente vítima de violência sexual e, ao fazê-lo o relacione * a história da infância e juventude;
com os outros marcadores sociais (raça/etnia, classe social, condição física, idade, territorialidade, religiosi-
dade e orientação sexual) e, assim, dará a real noção do que torna particular e singular a história da violência
* as legislações sobre crianças e adolescentes (Lei Maria da Penha, Código Penal, ECA, Lei
13.431/17);
sexual de cada criança ou adolescente.
* o Sistema de Garantia de Direitos;
* o Trabalho em Rede, conhecendo as competências legais e institucionais de cada instituição;
A par da escola ser um dos principais lugares onde a criança ou adolescente relata violências sofridas em
suas casas e por seus familiares (inclusive a violência sexual), sabemos que muitos (as) educadores (as)
não se sentem à vontade e seguros para ouvir os relatos. Outros (as) até suspeitam da ocorrência, mas não * os parâmetros e fluxos de atendimento dos casos no contexto escolar;
* aquisição técnicas para propiciar o ambiente acolhedor e a escuta especializada das situações
sabem qual é a melhor maneira de abordar a aluna e nem para onde encaminhar. Nada que a busca de co-
nhecimento, a experiência e supervisão não consigam resolver.
de violência sexual que cheguem ao conhecimento do profissional.

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema que não tem uma única visão e resposta, e Para finalizar a aula, assista ao vídeo “Querido Papai”, que procura sensibilizar a sociedade para a construção
precisa de soluções conjuntas e articuladas entre a escola e outras instituições que podem oferecer assistên- da violência de gênero.
cia médica, psicossocial e jurídica para a criança e a família, mas também instituições que vão se encarregar
de investigar o crime e penalizar o suposto agressor. https://www.youtube.com/watch?v=ulgtn524-_0
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AULA 1

CRIMES SEXUAIS

MÓDULO II
OBJETIVOS PRINCIPAIS:

→ Identificar a evolução das normas brasileiras quanto


LEI MARIA DA PENHA E LEGISLAÇÕES DE à previsão e tipificação dos crimes sexuais;

→ Distinguir os estupros cometidos contra vítimas


PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE adultas e contra crianças e adolescentes.

Vamos começar?

Antes de começar o Módulo II, vamos rever o percurso do cur- A violência sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde - OMS como
so. Você já completou todas as aulas do primeiro módulo e
“todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais inde-
agora vamos seguir com as reflexões acerca da Lei Maria da Pe- sejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade
nha e as legislações de proteção à criança e adolescente. de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação
desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho”.
Fonte: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS

Ainda segundo o organismo das Nações Unidas, “a coerção pode ocorrer de diversas formas e por meio de
diferents graus de força, intimidação psicológica, extorsão e ameaças.”

Professores Conteudistas » Andréia Soares de Oliveira (TJDFT); Cristiane Rodrigues Assun-


ção de Matos (TJDFT);Márcia Maria Borba Lins (TJDFT).
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Além disso, a violência sexual também pode acontecer se a pessoa não estiver em condições de dar seu
consentimento, quando sob efeito de álcool ou outras drogas, dormindo ou mentalmente incapacitada, Art. 213 Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
entre outros casos. carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
A violência sexual abrange, dentre outros exemplos:
Para o doutrinador Júlio Fabbrini Mirabete, “ao tutelar a dignidade sexual, protege-se um dos vários aspec-
* Estupro praticado por pessoas conhecidas, desconhecidas e até dentro de um relacionamento; tos essenciais da dignidade da pessoa humana, aquele que se relaciona com o sadio desenvolvimento da

* Tentativas sexuais indesejadas ou assédio sexual, que podem acontecer na escola, no local de
sexualidade e a liberdade de cada indivíduo de vivenciá-la a salvo de todas as formas de corrupção, violência
e exploração”, e que evoluir a tutela de crimes contra os costumes para contra a dignidade sexual evidencia
trabalho e/ou em outros ambientes;
“o deslocamento do objeto central de tutela da esfera da moralidade pública para a do indivíduo.
* Abuso de pessoas com incapacidades físicas ou mentais; Assim, a partir da reforma trazida pela lei 12.015/2009, o bem jurídico tutelado passou a ser outro, pois o
* Abuso sexual e/ou estupro de crianças e adolescentes. foco da proteção já não era mais a forma como homens e mulheres deveriam se comportar sexualmente
Acerca das leis nacionais que tratam da violência sexual, é importante entender o contexto histórico antes perante a sociedade deste século, mas sim a tutela da liberdade e da dignidade sexual das pessoas. Isso por-
de adentrar nos tipos penais propriamente ditos. que, com a inovação penal, o referido artigo ficou assim:

O Código Penal Brasileiro, decretado no ano de 1940, passou (e ainda passa) por mudanças para se ade- ESTUPRO
quar às evoluções sociais, bem com para atender às novas perspectivas que permeiam as relações entre as
pessoas. Nesse sentido, em 2009 ocorreu uma significativa alteração legal no que diz respeito aos crimes “Art. 213- Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
sexuais, até então tratados como crimes contra a honra. A Lei 12.015/2009 deu novo título ao conjunto carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
dessas normas, antes chamado “Dos Crimes Contra os Costumes”, passando a ser rotulado “Dos Crimes Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Contra a Dignidade Sexual”. Isso porque, quando da edição da norma, o bem jurídico tutelado era a honra § 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de
e costumes valorizados à época. Note-se que a preocupação legal era a de normatizar e limitar a liberdade 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
sexual da mulher, único sujeito passivo possível do crime de estupro, limitando a autoria ao homem, pois Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
a norma exigia, necessariamente, a conjunção carnal para a tipificação do crime de estupro. O artigo que § 2o Se da conduta resulta morte:
tratava deste crime, até 2009, tinha a seguinte redação:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.” (NR)
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Desse modo, além da ampliação dos sujeitos ativo (autor) e passivo (vítima), que agora podem tanto ser homens Art. 7º, III da Lei Maria da Penha prevê a violência sexual como “qualquer conduta que a constranja a pre-
quanto mulheres, a reforma legal englobou os atos libidinosos8 diversos da conjunção carnal também como es- senciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
tupro (antes previstos no agora revogado art. 214, que tratava do crime de atentado violento ao pudor). uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; que a impeça
de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prosti-
Para que ocorra o estupro, o constrangimento deve se dar por meio violência (física) ou pela grave ameaça, tuição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
configurada quando a coação moral de um sujeito procura impor sua vontade à outra pessoa para que esta direitos sexuais e reprodutivos”.
faça o que lhe é determinado sob pena de sofrer grave dano a um bem jurídico (a simples ameaça pode
configurar o crime de violência sexual mediante fraude - Art. 215, do CP). Assim, qualquer dessas condutas praticadas contra (ex)esposa, (ex)namorada, (ex)companheira, filha, mãe,
irmã, etc. por alguém no âmbito da unidade doméstica ou da família ou que tenha ou tenha tido relação ín-
VIOLENCIA SEXUAL tima de afeto, além das sanções insertas no Código Penal, são reconhecidas como violência contra a mulher

66.041 REGISTROS EM 2018


O MAIOR JÁ REGISTRADO 180 ESTUPROS
POR DIA
CRESCIMENTO
DE 4,1%
prevista pela Lei Maria da Penha.

QUEM SÃO AS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA SEXUAL


81,8% DO SEXO FEMININO 53,8% TINHAM ATÉ 13 ANOS É POSSÍVEL QUE UMA MULHER CASADA SEJA
50,9% NEGRAS E 48,5% BRANCAS 4 MENINAS DE ATÉ 13 ANOS ESTUPRADAS POR HORA VÍTIMA DE ESTUPRO DE SEU PRÓPRIO MARIDO?
Sim. O estupro é um crime que acontece a partir do constrangimento ilegal que objetiva à conjunção
carnal ou ao ato libidinoso não consentido, independentemente da relação que haja entre autor e vítima.
13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública
Quando ocorre entre cônjuges, a conduta é ainda mais grave, da qual incorre aumento de pena (Art. 226,
https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/
II, do CP), configurando, neste caso, violência domestica e familiar contra a mulher conforme art. 7º, III, da
Ainda nesse aspecto, é importante esclarecer que, além do crime de estupro previsto no Código Penal e para além Lei Maria da Penha.
da tipificação penal, a Lei Maria da Penha estabelece um rol de violências sexuais às quais as mulheres podem ser
submetidas no contexto doméstico e familiar, ou seja, por alguém da rede social da vítima, e não por desconhecidos.

8 Ato libidinoso é todo ato de satisfação da libido, isto é, de satisfação do desejo ou apetite sexual da pessoa. Além da conjunção carnal (penetração do pênis na vagina), entende-se
como ato libidinoso o sexo oral ou anal, a masturbação, o beijo lascivo e todo e qualquer ato humano realizado com o fim de satisfazer ao desejo sexual. Apalpar ou abraçar, lamber
ou simplesmente tocar partes do corpo humano podem ser atos libidinosos, bem como a contemplação lasciva (quando a vítima é obrigada a explorar o próprio corpo para satis-
fazer a libidinagem do outro),caso que dispensa o contato físico entre os envolvidos.
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Quando a violência sexual ocorre contra crianças e adolescentes, o Estado pune o(a) agressor(a) de ma-
https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-sema-
neira ainda mais severa. Isso porque sendo a vítima menor de idade, considera-se esse indivíduo ainda em
nal/estupro-praticado-contra-menor-entre-18-e-14-anos-x-estupro-contra-menor-de-14-vulneravel
processo de construção da personalidade e, assim incapaz de deter a plena maturidade para julgar a ade-
quação das experiências e influências a que está exposto, principalmente as de cunho sexual. Por vezes, a
criança e o adolescente sequer tem discernimento acerca das condutas criminosas as quais está submetido,
razão pela qual a legislação oferece maior proteção a esta pessoa, tratada, inclusive, como vulnerável
quando menor de 14 anos. ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Art. 217-. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de
A própria Constituição Federal, em seu Art. 227, §4º determina que “A lei punirá severamente o abuso, a 14 (catorze) anos:
violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.” A partir desta previsão e do princípio constitu-
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
cional da proteção integral à criança e ao adolescente, as leis tipificam os crimes contra a dignidade sexual
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
de crianças e adolescentes de maneira individualizada. No caso do estupro, o Código Penal faz a previsão
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para
do delito em distintos dispositivos de acordo com a idade:
a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
...
Artigo 213 caput do CP § 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se
ESTUPRO Pena » 6 a 10 anos de independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido
reclusão relações sexuais anteriormente ao crime.

ESTUPRO Artigo 213, § 1º do CP


CONTRA MENOR Pena » 8 a 14 anos de É imprescindível entender que a vulnerabilidade em razão da idade é absoluta, ou seja, independe do consenti-
ENTRE 14 E 18 ANOS reclusão mento da vítima menor de 14 anos, mesmo que haja algum tipo de relacionamento com o autor, ou ainda que
o(a) jovem abusado(a) possua experiência sexual anterior. Trata-se de um critério objetivo, unicamente etário,
não cabendo alegar qualquer responsabilidade da criança ou adolescente que sofre este tipo de violência.
ESTUPRO DE Artigo 217-A do CP
MENOR DE 14 ANOS Pena » 8 a 15 anos de
(VULNERÁVEL) reclusão
116 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Acesse no link ao lado para assistir o vídeo “Desmascarando o abuso”, resultado da parceria entre Childhood O Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual contra a Criança e o Adolescente do MPDFT
Brasil, Canal Futura, Fundação Vale e Unicef Brasil. O vídeo busca diferenciar exploração, pedofilia, assédio considera que o abuso sexual deturpa as relações socioafetivas e culturais entre adultos e crianças ou ado-
e estupro. Tudo com uma linguagem lúdica e de fácil entendimento. lescentes ao transformá-las em relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas.

https://www.youtube.com/watch?list=PL6ezBjfEAXFkRSeWZeYkoaBTHaJ-WpD0G&time_conti-
ECA E A PROTEÇÃO CONTRA O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
nue=322&v=X3wU-uAUmR8
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omis-
Os demais vídeos da série “Que abuso é esse?” podem ser acessados pelo link: https://www.
são, aos seus direitos fundamentais.
childhood.org.br/informe-se-e-saiba-como-agir
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer
Ainda nesse aspecto, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA traz em seu bojo diversos dispositivos tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
que preconizam a proteção da criança e do adolescente em situação de violência sexual. É importante en- Art. 101, § 2 o Sem prejuízo da tomada de medidas emergenciais para proteção de vítimas de violência ou
tender que, além da conjunção carnal compreendida no crime de estupro, o abuso sexual é configurado abuso sexual e das providências a que alude o art. 130 desta Lei, o afastamento da criança ou adolescente
pela violência sexual que abrange, inclusive: do convívio familiar é de competência exclusiva da autoridade judiciária e importará na deflagração, a

* carícias; pedido do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no
qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa.
* manipulação das partes íntimas; Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsá-
* voyeurismo ; 9 vel, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da mora-
dia comum.
* exibicionismo; Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito
* produção, compra, armazenamento de pornografia infantil, dentre outras condutas. ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Redação dada pela Lei nº 11.829, de 2008)

Muitas vezes o agressor pode ser um membro da própria família ou pessoa com quem a criança convive, ou Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
ainda alguém que frequenta o círculo familiar.

9 *Voyeurismo: Excitação sexual que consiste na observação de uma pessoa no ato de se despir, ou de contemplá-la nua ou realizando atos sexuais.
118 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Assista à videoaula da Dra. Luciana Lopes Rocha, juíza titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra Ainda não existem estatísticas acerca do estupro corretivo, no entanto, o “Dossiê Sobre Lesbocídio no Brasil”
a Mulher de Taguatinga e Coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher para compreender a importância do dis- atesta que no ano de 2017 foram notificados 54 assassinatos de lésbicas no Brasil, sendo que em 3% dos
senso (falta de consentimento) na caracterização do estupro e sobre os desafios e consequências que permeiam casos houve estupro seguido de morte. O que evidencia o estupro corretivo, muitas vezes, são as agres-
este crime a partir da Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro (Illinois Rape Myth Acceptance Scale – IRMA). sões verbais proferidas pelo(a) autor(a) enquanto violenta a vítima. Nesses casos, a violência empregada é
um castigo, uma punição pela negação da mulher ao homem, que emprega a violência sexual como uma
https://www.youtube.com/watch?v=XXc4qx7Wfx8 “cura” à homossexualidade, bissexualidade ou transexualidade. Comentários como “você vai conhecer um
homem/mulher de verdade e aprender a gostar disso” ou “você vai virar mulher/homem de verdade” evi-
ESTUPRO COLETIVO denciam a não aceitação e a tentativa de “retificar” a orientação sexual de outras pessoas.

A Lei 13.718/2018, que alterou e acrescentou alguns A pesquisa que resultou neste gráfico comprova que é den-
Art. 226 a pena é aumentada:
dispositivos ao Código Penal, tornou ainda mais grave tro de casa e no meio familiar que as mulheres lésbicas são
(...)IV- de 1/3 a 2/3, se o crime é praticado: o chamado estupro coletivo, que ocorre quando mais majoritariamente violentadas. Nesse estudo, 96% das agres-
de uma pessoa pratica um ato de libidinagem contra sões foram cometidas por homens e 1% por mulheres. Em
alguém, passando a seguinte previsão: 2% das agressões há registros de ambos os gêneros como
a) mediante concurso de agressores. Em 1% dos casos notificados o gênero do autor
ESTUPRO
COLETIVO 2 (dois) ou mais agentes; não é identificado. (Fonte: https://www.generonumero.me-
ESTUPRO CORRETIVO
dia/no-brasil-6-mulheres-lesbicas-sao-estupradas-por-dia/)
O estupro cometido na tentativa de controlar o com-
Em relação ao estupro, convém estarmos atentos para a importância do atendimento
portamento social ou sexual da vítima é uma inovação
b) para controlar o das vítimas pelos profissionais da rede. Em agosto de 2013, foi sancionada a Lei n º
ESTUPRO também trazida pela Lei 13.718/2018. Nesses casos, o
CORRETIVO comportamento social 12.845, conhecida como a Lei do Minuto Seguinte, a qual dispõe sobre o atendimento
crime é motivado por preconceito e ódio, e é come-
ou sexual da vítima obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Desde então, os hos-
tido na tentativa de “corrigir” uma característica da
pitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral
vítima, como sua identidade de gênero ou orientação
e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos
sexual. Considerando a gravidade da violação sofrida
decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assis-
pela vítima, a Lei majora a pena de estupro conforme
tência social antes mesmo de qualquer denúncia ou registro de boletim de ocorrência.
disposto ao lado.
http://www.leidominutoseguinte.mpf.mp.br/
120 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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A disponibilização e divulgação de cenas de sexo, nudez ou pornografia de uma pessoa, sem a autorização Outro crime relacionado a divulgação de imagens íntimas é a chamada SEXTORSÃO, que se caracteriza por
desta, com o objetivo de praticar vingança ou humilhação, caracteriza o crime da pornografia de vingança chantagem e/ou ameaça de se divulgar imagens íntimas para:
(termo em inglês Revenge Porn). Até recentemente, esta prática ensejava em crime contra a honra, no entan-
to, a Lei 13.718/2018 acrescentou ao Código Penal o Art. 218-C, classificando a conduta como crime contra * forçar alguém a favores sexuais para satisfazer sua lascívia (estupro – Art. 213, do CP);
a dignidade sexual com a seguinte redação:
* exigir que alguém faça ou deixe de fazer algo (constrangimento ilegal – Art. 146, do CP); ou
DIVULGAÇÃO DE CENA DE ESTUPRO OU DE CENA DE ESTUPRO
* obter indevida vantagem econômica (extorsão – Art. 158, do CP).
DE VULNERÁVEL, DE CENA DE SEXO OU DE PORNOGRAFIA
http://www.safernet.org.br/sextorsao/stop-sextortion.html#
Art. 218-C Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir,
publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou
sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que
contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a
sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: VOCÊ SABE O QUE É SEXTING?
Sexting é um termo de origem inglesa derivado da contração das palavras sex e
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
texting, e refere-se a conteúdos sensuais e eróticos divulgados e compartilhados por
É importante entender que o mero registro não autorizado da intimidade sexual de alguém também enseja meio de telefones celulares. Teve sua origem quando apenas os torpedos SMS eram
em conduta criminosa tipificada pelo Código Penal no Art. 216-B. Neste caso, o delito se configura com a pro- possíveis para as trocas de mensagens via celular. Contudo, a evolução tecnológica e
dução, fotografia, filme ou registro de cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado os mais recentes aplicativos de troca de mensagens (Whatsapp, Messenger, Insta-
sem autorização dos participantes, mesmo que não haja nenhuma divulgação das imagens capturadas. gram, Snapchat, etc) tornou possível o compartilhamento de fotos e vídeos, inclusive
os de conteúdo erótico, e essa é uma prática cada vez mais comum entre os jovens.
No entanto, lembramos que crime de Pornografia de Vingança somente é reconhecido quando a vítima é
maior de idade.

Isso porque, conforme já explanado, a criança e o adolescente não têm a capacidade de consentimento
reconhecida, razão pela qual, em sendo o sujeito passivo deste delito, o crime está sob a tutela do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Vide Art. 240/ECA).
122 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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SEXTORSÃO ⇢ COMO CONVERSAR EM CASA E NA ESCOLA DIÁLOGO É A Muito se falou sobre o crime de importunação sexual, conduta
MELHOR FORMA DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL também inserida no ordenamento jurídico em 2018 com a in-
DICAS PARA DEBATER NA ESCOLA PREVENÇÃO clusão do Art. 215-A no Código Penal, conhecida como a “Lei do
Toda e qualquer prática, sem o
→Dialogar sobre o que os alunos fazem e veem na Internet; Assédio”, uma vez que, até então, esta conduta não era punida
consentimento da vítima, relacio-
→Propor às crianças e adolescentes uma reflexão e discussão dos limites da intimidade num espaço pelo Estado por falta de previsão legal. Isso porque os comporta-
nado ao prazer ou ato sexual.
público como a Internet; mentos descritos neste tipo penal excediam a mera contraven-
ção de “importunação ofensiva ao pudor”, mas não poderiam ser
→Ensinar como buscar ajuda caso alguém na Internet obrigue a fazer algo contra sua vontade. Toques indesejados, principalmente
se forem direcionados a partes mais tratadas como estupro, por serem condutas menos graves.
erotizadas do corpo
DICAS PARA A FAMÍLIA Desse modo, a partir de movimentos sociais e casos práticos
Esfregadas do órgão sexual
→Mantenha um diálogo aberto com adolescentes e crianças para conhecer o que fazem online e poder emblemáticos, que evidenciavam uma verdadeira lacuna legal,
orientá-las. A sexualidade faz parte da educação e crianças e adolescentes precisam de orientações; Beijos, lambidas e mordidas o Código Penal foi mais uma vez atualizado, passando a crimi-
nalizar o assédio também nos espaços públicos.
→Dialoguem sobre direitos sexuais, dúvidas e curiosidades para que saibam que pode contar com vocês Ejaculações
quando precisarem; Este crime prevê detenção de 1 (um) a 5 (cinco) anos para quem
Sugestivas encoxadas e pressiona-
→Não confunda a capacidade técnica de crianças e adolescente usarem a Internet e celulares com a mentos da genitália em partes do “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com
maturidade e capacidade crítica de interpretar e resolver situações de problema na rede; corpo da vítima o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
→Proibir não educa nem previne. Uma relação de confiança e muito diálogo ainda são as melhores PENA 1 a 5 anos de reclusão A importunação sexual é caracterizada por aqueles atos que
tecnologias;
constrangem e ofendem a dignidade a partir da prática de ato
→Provoque conversas sobre a noção que adolescentes tem de privacidade e se entendem a dimensão públi- LUGARES MAIS RECORRENTES
libidinoso de outra pessoa a fim de se satisfazer sexualmente.
ca dos ambientes digitais, reforçando que as leis valem na rede como valem em qualquer espaço público; Lugares lotados costumam ser os mais
Em suma, são interações de cunho sexual não consentidas.
recorrentes para casos de importuna-
→Caso tenha filho ou filha que seja vítima, não condene ou recrimine. O mais importante é acolher e
ção, já que a proximidade oferecida
proteger para minimizar a angústia da vergonha que sentem justamente em relação aos pais e amigos e Esse assédio acontece, por exemplo, com o beijo forçado, to-
favorece o contato corporal inicial.
amigas. É importante estar juntos não apenas para resolver racionalmente, mas principalmente para ques indesejados (“mão boba”), quando os cabelos são puxa-
TREM ÔNIBUS SHOWS FESTA
apoiar psicologicamente neste momento de crise. dos ou a vítima é agarrada pelo braço em uma festa, e até mes-
A importunação sexual pode mo por cantadas invasivas, dentre outras condutas.
acontecer em qualquer lugar.
Fonte: SaferNet https://new.safernet.org.br/content/infografico-como-denunciar-sextorsao
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Nesta aula estudamos diversos crimes sexuais normatizados no Código Penal, na Lei Maria da Penha e no AULA 02
Estatuto da Criança e do Adolescente, além de inovações penais que buscaram abranger condutas antes
não previstas pela lei. ESTATUTO DA CRIANÇA E
PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
DO ADOLESCENTE (ECA)
ART. 218-C, CP

OBJETIVOS DE APRENDIZADO:
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
→ Identificar o histórico dos direitos das crianças
ART. 215-A, CP e dos adolescentes no Brasil;
ESTUPRO VAMOS
ART. 213, CP RECAPITULAR?
→ Descrever os avanços a partir da Constituição de 1988 e do ECA;

Estupro entre cônjuges → Apontar o modelo de proteção de atendimento à


Art. 226, II, CP e Art. 7º, III, SEXTORSÃO criança e ao adolescente como sujeitos de direitos.
da Lei Maria da Penha
Estupro de vulnerável
Art. 217-A, CP
No Brasil foram desenvolvidos três amplos modelos de proteção jurídico-social voltados para crianças e adoles-
Estupro coletivo REGISTRO NÃO AUTORIZADO centes como parte do processo de reconhecimento destes como sujeitos de direitos, conforme destacado por
Art. 226, IV, a, CP
DA INTIMIDADE SEXUAL Santos et al. (2009, p.23). De acordo com esses autores, o primeiro modelo foi denominado como “soberania pa-
Estupro corretivo terna associada ao caritativismo religioso”, e esteve em voga durante o período colonial, sob o pilar da sociedade
ART. 216-B, CP
Art. 226, IV, b, CP
patriarcal, que enfatizava o governo da família sobre as crianças e os jovens. Cabe ressaltar que tal modelo, cen-
Nas próximas aulas, serão estudadas as legislações e demais previsões que garantem os direitos das crianças trado na figura do homem, subjugava crianças, jovens e mulheres. Além disso, não havia intervenção do Estado
e dos adolescentes em situação de violência sexual. na família, e a igreja atuava em uma perspectiva caritativa com viés religioso, do ponto de vista moral.

O segundo modelo, “do estado de bem-estar social à ação filantrópica”, vai de 1850 até a década de 1970.
Nesse período, o Estado passa a intervir nas relações sociais, e consequentemente na família, por meio de
uma ação reguladora e normatizadora da vida familiar (SANTOS, et al, 2009, p.25).
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SAIBA MAIS Ressalta-se que tal intervenção do Estado se dava basicamente em do Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990. Tal convenção considera que “criança é todo ser humano
O termo “menor”, inicialmente relação às famílias pobres, com ênfase na infância e adolescência menor de 18 anos”, e previu o princípio do “interesse superior da criança”. Essa normativa internacional,
utilizado para designar o ser “delinquente” ou “abandonada”, reforçando práticas estigmatizan- que ressalta uma gama de direitos e proteção a qual a criança contribuiu, juntamente com o processo de
humano na faixa etária anterior tes em relação às camadas mais pobres da população. No período redemocratização e a mobilização popular, para a construção de uma legislação que considerasse a criança
àquela em que são concedidos os em voga, surgiu a doutrina da “situação irregular”, e, ainda, uma e ao adolescente como sujeitos de direitos.
direitos plenos do cidadão (maio- nova conotação à categoria “menor”.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, fruto
ridade civil), vai gradualmente se Proteção integral deve levar em conta “o paradig-
O terceiro modelo, de “direitos da criança associados à ação eman- de interesses contraditórios, embates políticos e luta
tornando uma categoria sociológi- ma jus-humanista da indivisibilidade dos Direitos
cipatória cidadã” (SANTOS, et al., 2009, p. 28), foi construído no de movimentos sociais, adota a Doutrina da Proteção
ca, estigmatizante de todas as Humanos e da integralidade na sua proteção”.
processo de redemocratização que o país vivenciou a partir da dé- Integral, considerando a criança e o adolescente como
crianças pobres, em situação de NOGUEIRA NETO, 2009, p. 09 e 10
cada de 1980. Nesse período, os movimentos sociais, a visão crítica sujeitos de direitos e prioridade absoluta.
rua ou que transgrediam as leis”
de profissionais que atuavam na questão da infância e juventude e,
(SANTOS, et al., 2009, p.57).
ainda, o contexto de abertura democrática, permitiram que fosse Essa perspectiva referência a construção da normativa constitucional no que tange aos direitos da criança e
evidenciada a violência institucional das Fundações Estaduais do do adolescente. Dessa forma, a Constituição Federal preconiza que:
Desta forma, a partir da doutrina
Menor (FEBEMs), que até aquele momento não havia sido proble-
da proteção integral todas as
matizada (VOGEL, 2009, p. 314).
crianças e adolescentes são vistos Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
como sujeitos de direitos. Portan- e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
Tal contexto contribuiu para udanças na concepção política de
to, por mais que possa parecer ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
atendimento e legislação relativas à criança e ao adolescente. Alia-
um simples ato de encurtar a familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimina-
-se a isso as preocupações de âmbito internacional, que culmina-
forma como se identifica esse ção, exploração, violência, crueldade e opressão.
ram na elaboração de importantes documentos que influenciaram
grupo etário, a expressão carrega
o texto constitucional e a Lei n.º 8.069/1990 (Estatuto da Criança e
um significado bastante depre-
do Adolescente) quanto aos direitos da criança e do adolescente.
ciativo e totalmente descompas-
sado com as normas vigentes. Dentre os documentos formulados nesse contexto, destaca-se a
Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia
NÃO COMETA ESSE ERRO !!!!
Geral das Nações Unidas em 1989 e promulgada no Brasil por meio
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O contexto de abertura democrática e de atuação de movimentos sociais em prol dos direitos da criança e A invenção da Infância: https://www.youtube.com/watch?v=h1WiZoQ6Sj8&t=10s.
do adolescente contribui para a criação, no início da década de 1990, do Estatuto da Criança e do Adoles- TV Justiça Oficial - Documentário: História de 30 anos do ECA: https://www.youtube.com/wat-
cente - ECA, o qual também considera que: ch?v=jmYLjxIgAFc

CONVENÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES- CDC- 1989


Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, essência da CDC coloca Criança como objeto de Criança como Sujeito de
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. para o mundo uma tutela (Doutrina de Direitos (Doutrina da
Com o ECA, busca-se o rompimento com práticas estigmatizantes e excludentes que incidiam, em ampla mudança paradigmática Situação Irregular) Proteção Integral)
escala, sobre a infância pobre, que era o principal objeto de políticas de controle social (RIZZINI e PILOTTI,
2009, p. 323). Nesse sentido, observa-se que os referidos aparatos legais representam importantes avanços A simples leitura do art. 1º das duas edições do Código de Menores, comparada ao último art. 1º, já denota
no reconhecimento de direitos da criança e do adolescente e instituem a responsabilidade compartilhada claramente a mudança da nova legislação, que trata universalmente todas as crianças e adolescentes a par-
(família, sociedade e Estado) para a efetivação desses direitos. tir do mesmo patamar de sujeitos de direitos. Confira:

LINHA DO O século XVIII ainda enxergava as crianças como “menores” que precisariam de alguma proteção do Estado,
TEMPO
DO CÓDIGO DE MENORES AO ECA 1927 –
por meio de um sistema disciplinador. O processo de infantilização inicia-se a partir de um interesse acentuado
pela educação da criança desenvolvido pelo Estado, com objetivos de assegurar uma população adulta saudá- Art.1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de
SÉCULO XVIII vel, adaptada e produtiva. (Escola) 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistên-
Apenas no século XIX a criança foi objeto da primeira norma legal de proteção( 1919, Trabalho) Antes da cia e proteção contidas neste Código.
CF legislação brasileira sobre crianças e adolescentes era marcada pelo que se denominou de Doutrina da
Situação Irregular, que permeou todo o conjunto das políticas sociais brasileiras com um caráter paternalis- 1979 - Art. 1º Esta Lei dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores.
ta, assistencialista e Objeto de tutela. indiscutivelmente, houve uma mudança paradigmática. A visão da 1990 - Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
“criança-objeto” da “criança menor” é confrontada por forte mobilização social que percebia a criança
SÉCULO XIX como sujeito de direitos (PINHEIRO, 2006).
Dentre os instrumentos previstos no ECA, está o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
Em nível internacional, em 1959, a Organização das Nações Unidas – ONU promulga a Declaração Universal
dos Direitos da Criança: criança passa a ser considerada, pela primeira vez na história da infância, prioridade
CONANDA, cuja principal atribuição é a de definir, por meio de uma gestão compartilhada entre representantes
ano 1959 absoluta bem como, sujeito de direitos. do governo e da sociedade civil, as diretrizes para a Política Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes.
Brasil: Mulheres, crianças não eram sujeitos de direito – CF/88, Convenção Internacional dos Direitos da Crian-
ano 1988 ça 1989 (ONU -1989 e assinada pelo Brasil -1990), e ECA/90. https://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda
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131

No sentido de efetivar o Sistema de Garantia de Direitos, o CONANDA estabeleceu a resolução 113, de 19


Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
de abril de 2006, que estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes - SGDCA,
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na
que define os papéis, limites, responsabilidades e competências em diferentes níveis e âmbitos. O SGDCA
forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais .
pressupõe, portanto, a ação de vários órgãos ou instituições de forma integrada.
O artigo 18 do ECA considera que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-
Para melhor visualizar a atuação desses órgãos ou instituições, o ECA distribuiu o Sistema de Garantia de -os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. A ame-
Direitos das Crianças e dos Adolescentes em três eixos norteadores: aça ou a violação de direitos passa a garantir à criança e ao adolescente uma série de medidas de proteção:

EIXO PROMOÇÃO EIXO DEFESA EIXO CONTROLE Art. 98 As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre
O eixo da promoção ou O eixo defesa ou responsabilização O controle ou vigilância das que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
atendimento caracteriza-se dos direitos de crianças e adoles- ações públicas de promoção e I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
pelo desenvolvimento da centes caracteriza-se pela garantia defesa dos direitos da criança e II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
“política de atendimento dos do acesso à Justiça, ou seja, pelo re- do adolescente se dará por meio III - em razão de sua conduta.
direitos da criança e do ado- curso às instâncias públicas e meca- de espaços de discussão coleti-
No que se refere à violência doméstica contra crianças e adolescentes, cabe ressaltar que há o entendi-
lescente” e subdivide-se em nismos jurídicos de proteção legal va, onde estejam presentes
mento do direito à convivência familiar. Desse modo, as medidas de proteção preveem a manutenção dos
três tipos: programas, servi- dos direitos humanos, gerais e espe- órgãos governamentais e enti-
vínculos familiares. O ECA tem ainda como princípios a responsabilidade parental e a prevalência da família
ços e ações públicas. ciais, da infância e da adolescência. dades sociais (Childhood, 2014).
(art.100, parágrafo único, incisos IX e X). Entretanto, o Estatuto tem a seguinte previsão:
Assistência Social Conselho Tutelar Poder Judiciário Conselhos de Direito
Saúde Segurança Pública Ministério Público Conselhos Setoriais
Art. 130 Art. 130: Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual
Educação Defensoria Pública Ouvidoria Tribunais de Contas dos Estados e
Serviços de Atendimento Socioeducativo Municípios impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar,
Serviços de Acolhimento Institucional
como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.

Em uma perspectiva de proteção integral e de garantia de direitos, cabe ressaltar a previsão do artigo 141
https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/como-combate-lo/sgdca/ do ECA, que garante o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e
ao Poder Judiciário.
O ECA declara a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e prioridade absoluta, além de afirmar a
doutrina da proteção integral, que considera a criança e o adolescente em sua integralidade tanto no que se
refere aos seus direitos quanto à política de atendimento a eles destinados.
132 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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SAIBA MAIS!

O parágrafo único do artigo 100 do ECA ressalta os princípios que regem as medidas de proteção. Tais VI. intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situa-
princípios remetem a importantes direitos a serem garantidos à criança e ao adolescente, que confirmam a ção de perigo seja conhecida;
tese, ao menos no âmbito legal, de que se tratam de sujeitos de direitos, prioridade absoluta e pessoas em
desenvolvimento: VII. intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições
cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente;
I. condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares
dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal; VIII. proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo
em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;
II. proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei
deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares; IX. responsabilidade parental: a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus
deveres para com a criança e o adolescente;
III. responsabilidade primária e solidária do poder público: a plena efetivação dos direitos assegurados a
crianças e a adolescentes por esta Lei e pela Constituição Federal, salvo nos casos por esta expressa- X. prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser
mente ressalvados, é de responsabilidade primária e solidária das 3 (três) esferas de governo, sem pre- dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou,
juízo da municipalização do atendimento e da possibilidade da execução de programas por entidades se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta;
não governamentais;
XI. obrigatoriedade da informação: a criança e o adolescente, respeitado seu estágio de desenvolvimento
IV. interesse superior da criança e do adolescente: a intervenção deve atender prioritariamente aos inte- e capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser informados dos seus direitos, dos
resses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto;
XII. oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em separado ou na companhia dos pais,
V. privacidade: a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como os seus pais ou responsável, têm direito a ser
respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada; ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção, sen-
do sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente, observado o disposto
nos §§ 1o e 2o do art. 28 desta Lei.
134 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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O ECA avança tanto na descrição dos direitos da criança e do adolescente, quanto no detalhamento para sua No Distrito Federal, os Conselhos Tutelares são vinculados à Secretaria de Justiça e Cidadania.
efetivação. Contudo, a efetivação desses direitos depende de uma série de fatores, tais como dotação orçamentá-
ria, correta utilização de recursos e mecanismos de articulação entre as diferentes políticas sociais que de modo http://conselhotutelar.sejus.df.gov.br/o-que-e/
transversal atendem crianças e adolescentes, quais sejam saúde, educação, assistência social, dentre outras.
No que se refere aos mecanismos de proteção social, a criação do Sistema Único de Assistência Social –
Com o ECA, busca-se superar uma perspectiva centralizadora e burocratista de atuação, bem como a histó- SUAS representa um importante avanço em relação à política de assistência social, que impacta a efetivação
rica “falta de articulação e integração das instâncias, organismos e programas, voltados para o atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
a crianças e adolescentes” (VOGEL, 2009, p.313). Tendo em vista a perspectiva de sujeitos de direitos, priori-
dade absoluta e a consideração de que devem ser atendidas em sua integralidade, o artigo 86 do ECA. Com Com o SUAS, as ações de assistência social passam a ser organizadas a partir de dois tipos de proteção social:
a previsão da política de atendimento no ECA, surgem, ou são reestruturados, diferentes aparatos institucio- a proteção social básica e a proteção social especial:
nais, tais como delegacias de proteção, varas e promotorias da infância e da juventude, conselhos tutelares,
bem como os conselhos de direitos e as conferências no âmbito municipal, distrital, estadual e nacional. PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL

Tem como objetivo prevenir situações de


Nogueira Neto (2003) considera os Conselhos Tutelares como o que de mais original e inovador se criou Tem por objetivo prover atenções socioas-
risco por meio do desenvolvimento de
com o ECA. Quanto às funções desses conselhos, o referido autor ressalta: sistenciais a famílias e indivíduos que se
potencialidades e aquisições, e o fortaleci-
encontram em situação de risco pessoal e
mento de vínculos familiares e comunitá-
social, por ocorrência de abandono, maus
A proteção de crianças e adolescentes com direitos ameaçados rios. Destina-se à população que vive em
tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual,
ou violados é a atividade mais importante de um conselho tute- situação de vulnerabilidade social decor-
uso de substâncias psicoativas, cumpri-
lar e se manifesta com a aplicação de medidas especiais de prote- rente da pobreza, privação (ausência de
mento de medidas socioeducativas, situa-
ção, previstas no Estatuto - Aqui está a mais importante e efetiva renda, precário ou nulo acesso aos serviços
ção de rua, situação de trabalho infantil,
das atividades de um conselho tutelar, isto é, quando ele presta públicos, dentre outros) e, ou, fragilização
entre outras.
proteção especial a crianças e adolescentes credores de direito, isto de vínculos afetivos – relacionais e de
é, com seus direitos ameaçados ou violados, quando ele luta pelo pertencimento social. Unidade de atendimento» Centro de Refe-
reconhecimento e pela garantia desses direitos. rência Especializado de Assistência Social -
Unidade de atendimento» Centro de Refe-
CREAS
De acordo com o artigo 131 do ECA, “o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, en- rência de Assistência Social - CRAS
carregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei”.
136 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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RESUMINDO AULA 03

Não obstante as previsões legais a respeito da políti-


SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
ca de atendimento aos direitos da criança e do ado- DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
lescente e de sua articulação, vários limites estão
postos na realidade social para que tal articulação (SGDCA) E A LEI 13.341
de fato ocorra.

A fragmentação e seletividade das ações das dife-


rentes políticas sociais que atuam no atendimento OBJETIVOS PRINCIPAIS:
a crianças e adolescentes que tenham seus direitos
violados acabam por comprometer ainda mais as → Descrever as principais inovações da Lei 13.431;

condições sociais destes e contribuir para sua revi- → Apontar as diferenças entre Depoimento Especial e Escuta Especializada;

timização. Tal contexto tem um profundo impac- → Reconhecer o papel da escola no SGDCA.
to em relação à violência doméstica e familiar con-
tra crianças e adolescentes, já que compromete o
atendimento a esta questão em uma perspectiva A proposta dessa aula é, de início, contextualizar o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescen-
de proteção integral e de modo articulado. te vítima ou testemunha de violência (SGDCA) com a entrada em vigor da Lei nº 13.431/201, 04/04/2017
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm inspirada na Resolução nº
No módulo seguinte abordaremos o atendimento 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) e na Recomendação nº 33/2009 do
e acolhimento de crianças e de adolescentes em Superior Tribunal de Justiça (STJ). Depois, há uma breve diferenciação entre os dois modelos de entrevistas
situações de violação de direitos. de crianças e adolescentes especificados nos artigos 7º e 8º da Lei nº 13.431/2017.

A Lei nº 13.431/2017 para ser efetivamente aplicada depende de arranjos institucionais e investimentos
públicos que assegurem a continuidade das políticas sociais de atenção à infância e à juventude e a capaci-
tação contínua dos agentes públicos.
138 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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O sistema de garantia de direitos não está expresso no corpo da lei.13.431. O parágrafo único, do artigo 2º
SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS
prescreve que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desenvolverão políticas integradas
e coordenadas para o fim de garantir direitos humanos das crianças e dos adolescentes, resguardando- EIXO PROMOÇÃO EIXO DEFESA EIXO CONTROLE
os de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão. Nesse
aspecto, não inova a legislação, considerando o que já prescreviam os artigos 5º e 86 do Estatuto da Criança →Assistência Social → Conselho Tutelar → Conselhos de Direito
e do Adolescente (ECA).
→Saúde → Segurança Pública → Conselhos Setoriais
A lei nº 13.431/2017 anuncia o “sistema de garantira de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemu- →Educação → Defensoria Pública → Tribunais de Contas dos
nha de violência”, mediante alteração da Lei nº 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), pela criação Estados e Municípios
→Serviços de Atendimento → Justiça
de mecanismos para prevenir e coibir a violência, mediante medidas de assistência e proteção, reportan- Socioeducativo
do-se ao artigo 227 da Constituição Federal, à Convenção sobre os Direitos da Criança e à Resolução nº →Ministério Público
→Serviços de Acolhimento
20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. →Ouvidoria
Institucional
A Resolução nº 113, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA estabe-
lece, desde 2006, o sistema de garantia de direitos, com eixos de defesa, promoção e efetivação dos direitos EIXO NORTEADOR → ARTICULAÇÃO DE REDES
humanos, pela garantia do acesso à justiça, pela constituição de uma política de atendimento transversal e
Enquanto não especificado em lei um outro tipo de sistema de garantias de direitos das crianças e dos ado-
intersetorial, que promova a satisfação básica das necessidades das crianças e dos adolescentes e conte com
lescentes (SGCA), acredita-se que a Resolução nº 113/2006 do CONANDA seja o instrumento que melhor
a ampla participação da sociedade, dos conselhos de direitos e dos conselhos tutelares.
defina esse sistema, pois dialoga com a Lei nº 13.431/2017 e com o Decreto nº 9.603/2018, de 10/12/2018

https://www.youtube.com/watchv=W8tQqrsXg_E https://w w w2.camara .leg .br/legin/fed/decret/2018/decreto-9603-10-dezembro-


-2018-787431-publicacaooriginal-156922-pe.html

A resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, defi- A Resolução nº 113/2006, estabelece diretrizes para o funcionamento dos serviços em regime de descentra-
ne no artigo 1º que o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente “constitui-se na articulação lização nos níveis municipais, estaduais, distrital e federal, com interoperacionalidade nas áreas da saúde,
e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação dos instrumentos assistência social, educação, segurança pública e sistema de Justiça. Alguns Estados e Municípios, mesmo
normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para efetivação dos di- antes do advento da Lei n 13.431/2017, criaram centros de atendimento integrados, concentrando em um
reitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual Distrital e Municipal”. único espaço os principais serviços da rede de proteção. A ausência desses equipamentos de atendimento
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integrado não impede o trabalho articulado em rede, embora exija um esforço maior das instituições para das políticas setoriais que integram os eixos de promoção, controle e defesa dos direitos da criança e do
um atendimento mais célere e não revitimizador. O sistema de garantia de direitos pode ser entendido, adolescente compõem o sistema de garantia de direitos e são responsáveis pela detecção dos sinais de
portanto, como um regime de normas, composto pela Lei nº 13.431/2017 e por outros dispositivos que violência. O artigo 8º também do decreto, de modo aberto e impreciso, afirma que o Poder Público asse-
compartilham dos mesmos princípios e finalidade, em respeito à Constituição Federal e à Convenção dos gurará as condições adequadas para que crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sejam
Direitos da Criança. O diálogo entre essas fontes possibilita o desenho dos sistemas e subsistemas de garan- acolhidas e protegidas. competência do sistema de garantia de direitos para atividades de controle social
tias de direitos nos níveis de governança municipal, estadual e federal. quanto à efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua
integralidade. Insere-se nas atividades de controle a implementação de ações preventivas de ameaças à
Talvez pela pouca referência à normatização e à organização de um sistema (amplo) de garantia de direitos, violação dos direitos da criança e do adolescente, como também a existência de mecanismos e instâncias
a Lei nº 13.431/2017 esteja sendo mais disseminada como “Lei da Escuta Protegida” por distinguir os tipos que garantam a apuração e a reparação de danos, no âmbito civil, administrativo ou criminal.
de entrevistas de crianças e adolescentes, em contexto de violência. A escuta especializada é uma oitiva
informal realizada por agentes dos órgãos de proteção e se limita apenas ao estritamente indispensável para O acesso pleno à Justiça para crianças e adolescentes em contexto de violência é um direito previsto na
cada tipo de intervenção, na área da saúde, da assistência social e jurídica ou da segurança pública e do Convenção sobre os Direitos da Criança, na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente
sistema de Justiça. O depoimento especial é por disposição legal gravado e formal, regido por protocolos, e, mais recentemente, na Resolução nº 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Apli-
realizado por agentes capacitados e vinculados às entidades implicadas no processo de apuração de fatos cam-se também às vítimas de sexo/gênero feminino a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
definidos como crime ou contravenção, a cargo das autoridades policial ou judicial. Violência contra a Mulher, a Lei Maria da Penha e a Convenção de Belém do Pará.

O direito de acesso à Justiça é multidimensional e deve assegurar às vítimas de violência, especialmente crian-
Art. 7º Escuta especializada é o procedi- Art. 8º Depoimento especial é o procedi- ças e adolescentes, acesso gratuito, prioritário, com remédios integrais, apropriados ao contexto de violência,
mento de entrevista sobre situação de mento de oitiva de criança ou adoles- e que possam prevenir a ocorrência de novas violações. O acesso à Justiça deve eliminar barreiras procedimen-
violência com criança ou adolescente pe- cente vítima ou testemunha de violência tais que impeçam a apreciação dos fatos por instâncias do sistema de Justiça. Deve ser assegurado às vítimas a
rante órgão da rede de proteção, limita- perante autoridade policial ou judiciária. assistência jurídica. Os agentes públicos precisam ser capacitados para atuar em perspectiva de gênero, raça
do o relato estritamente ao necessário e desigualdade socioeconômica, abstendo-se de práticas discriminatórias e revitimizadoras.
para o cumprimento de sua finalidade.
O artigo 4º da Lei nº 13.431/2017 nomeia como violência institucional as práticas de instituições públicas ou
conveniadas que possam resultar em revitimização, como, em princípio, pode acontecer pela repetição des-
No dia 10 de dezembro de 2018, entrou em vigor o Decreto nº 9.603, regulamentando alguns dos artigos da necessária de oitivas. No artigo 21, a Lei nº 13.431/2017 elenca as medidas protetivas de urgência que podem
Lei nº 13.431/2017. O Art. 7º do decreto dispôs que os órgãos, os programas, os serviços e os equipamentos ser requeridas pela autoridade policial, em situação de risco, pelo Ministério Público ou pela própria criança
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e adolescente, por meio de seus representantes legais ou de conselheira/o tutelar. As medidas de proteção escolha dos tipos de intervenções protetivas mais apropriadas, a finalidade do depoimento especial é
emergenciais possibilitam que a criança e o adolescente em risco fiquem resguardados do contato direto com obter evidências sobre fato(s) penalmente relevante(s), para respaldar, eventualmente, um processo judicial
o autor da violência, permitem também o afastamento cautelar do investigado do lar ou do local perante o sistema de Justiça, que poderá resultar na responsabilização das/os autoras/es. Quanto a fala
espontânea da criança ou do adolescente as informações podem ser compartilhadas entre os serviços pú-
As Medidas Protetivas de Urgência previstas no artigo 21 da Lei nº 13.431/2017 por serem específicas para crian- blicos da rede de proteção e do sistema de Justiça, preservando-se o sigilo.
ças e adolescentes representam importante avanço no ordenamento jurídico para a proteção de crianças e ado-
lescentes do sexo/gênero masculino, que não se beneficiavam das medidas protetivas da Lei Maria da Penha. A Lei nº 11.341/2017 recomenda que o depoimento especial seja, sempre que possível, realizado uma única
vez, determinando, inclusive, o procedimento de antecipação de provas para os depoimentos de vítimas
com até 07 (sete) anos de idade, independente do crime, e, para os depoimentos de fatos relacionados aos
REVITIMIZAÇÃO LEI 13431/2017 crimes contra a dignidade sexual, independentemente da idade das vítimas.
É o processo de expor a vítima reiterada- Garante escuta protegi-
mente a situações que podem disparar da e evita a revitimização A PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS
conteúdos traumáticos, trazendo-lhe sofri- de crianças e adolescen- À luz do CPC/73, a produção antecipada de provas destinava-se a antecipar a produção de determi-
mento emocional e consequências danosas tes vítimas de violência. nados meios de prova, sob a justificativa de que a parte não poderia aguardar a fase instrutória do
ao seu contexto psicossocial
processo principal, que era o momento previsto para a sua produção.

A Lei Nº 13.431, de 4 de abril de 2017, caracteriza quatro tipos de violência contra


A entrevista da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência no sistema de garantia de direi- criança e adolescente, e o decreto N 9.603, de 10 de dezembro de 2018, que regula-
ATENÇÃO!!
tos reconhece que as crianças e os adolescentes podem se manifestar livremente sobre violências que sofreram menta a lei 13.431.
ou presenciaram. No âmbito do sistema de Justiça e da rede de proteção a criança e o adolescente, enquanto
sujeitos de direitos, podem decidir se desejam prestar declarações ou se preferem permanecer em silêncio.

A finalidade da escuta especializada é o interesse pelo contexto de riscos e vulnerabilidades pessoais e


familiares das vítimas, para subsidiar o profissional ou a equipe interdisciplinar da rede de serviços na
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⇢ CATEGORIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA LEI 13.431 VIOLÊNCIA SEXUAL

Entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar con-
VIOLÊNCIA FÍSICA
junção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio
Entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal eletrônico ou não, que compreenda:
ou que lhe cause sofrimento físico;
* Abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins
sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiros;

* Qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao * Exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em ativi-
adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agres- dade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma
são verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou
(bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional; por meio eletrônico;

* O ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da * Tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o aloja-
criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por mento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o
quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de
cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este; coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabi-
lidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação.
* Qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime
violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do am-
biente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha.
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VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL RESUMINDO

Entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
Esta aula não se ocupou em detalhar a escuta especializada e o depoimento especial, uma vez que eles
§ 1º Para os efeitos desta Lei, a criança e o adolescente serão ouvidos sobre a situação serão trabalhados no módulo III, apenas realçou algumas características desses institutos e os relacionou
de violência por meio de escuta especializada e depoimento especial. com as atividades próprias dos sistemas protetivo e de Justiça. Argumentou-se que os espaços institucionais
§ 2º Os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça adotarão de proteção e de reparação dos danos necessitam de um esforço conjunto e contínuo, para reduzir a siste-
os procedimentos necessários por ocasião da revelação espontânea da violência. mática violação de direitos humanos. O que foi exposto como possível significado para o sistema de garantia
§ 3º Na hipótese de revelação espontânea da violência, a criança e o adolescente de direitos de criança e adolescente permanece em disputa e outros trabalhos podem abordar esse tema por
serão chamados a confirmar os fatos na forma especificada no § 1º deste artigo, salvo meio de outras perspectivas. A lei nº 13.431/2017 reforça o ideal de atuação integrada e articulada, por
em caso de intervenções de saúde. meio de estratégias de transversalização e intersetorialização dos serviços públicos. A lei teve o mérito de
§ 4º O não cumprimento do disposto nesta Lei implicará a aplicação das sanções previstas regulamentar as formas de participação de crianças e adolescentes perante os sistemas protetivo e de Jus-
na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) . tiça, com a garantia do livre exercício do direito de expressão e de não serem revitimizados. O SGDCD para
se efetivar precisa superar as resistências nas posturas organizacionais tradicionalmente fragmentadas, para
um avanço no desempenho da atuação em rede, sendo essencial nesse processo a qualificação/sensibiliza-
ção dos agentes públicos, a maior participação da sociedade civil e investimentos orçamentários suficientes
nas políticas públicas.
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150 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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AULA 01

IDENTIFICAÇÃO

MÓDULO III
OBJETIVOS

IDENTIFICAÇÃO, ACOLHIMENTO, ESCUTA → Relacionar os sinais e os sintomas apresentados pela


criança ou adolescente em situação de violência;

ESPECIALIZADA E ENCAMINHAMENTO → Identificar os procedimentos adotados pelo modelo


Bioecológico para avaliar os riscos e proteção às
crianças e adolescentes em situação de violência.
DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
Nas aulas anteriores, apresentamos e discutimos a questão da violência sexual pela perspectiva de gênero;
as leis correlacionadas ao tema deste curso, e neste módulo veremos a identificação, acolhimento e enca-
minhamento das situações de violência sexual contra criança e adolescente. Nessa primeira aula, vamos
tratar da identificação das situações de violência contra crianças e adolescentes identificadas nas escolas,
ressaltando a importância de adoção de procedimentos que evitem a revitimização.

Reconhecer a violência sexual contra crianças e adolescentes para a tomada de medidas visando à proteção
destas a fim de garantir a responsabilização das pessoas apontadas como autoras de violação de direitos é
uma tarefa complexa que necessita do olhar atento dos profissionais que interagem com essas crianças e
adolescentes em ambientes importantes ao seu desenvolvimento, como é o caso da escola.

Professores Conteudistas » Márcia Maria Borba Lins (TJDFT);


Reginaldo Torres Alves Júnior (TJDFT)
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A violência sexual refere-se ao envolvimento de crianças e de adolescentes em atividades sexuais com As crianças e adolescentes em nosso país vivem em con-
um adulto, ou com qualquer pessoa mais velha, em que existe diferenças de idade, de tamanho, de texto histórico e social em que seus direitos fundamentais
força ou de poder (Sanderson, 2005, Saffioti, 2000; Sanderson, 2005). Muitas crianças e adolescentes O PROBLEMA estão assegurados em lei e os episódios nos quais figuram
revelam situações de violência sexual, mas seus relatos são desacreditados por pessoas a sua volta, seja PODE ESTAR como vítimas são mais reconhecidos e combatidos.
na família ou mesmo em outros ambientes sociais, como escolas, igrejas e outras comunidades.
MAIS PERTO No Brasil, busca-se combater a violência por meio de

DO QUE VOCÊ
Entretanto, os estudos sobre como a criança fala sobre situações de violência sexual indicam que as um amplo conjunto de códigos e documentos norma-
dificuldades delas em narrar esses fatos podem ser explicadas por vários fatores: idade, natureza da re- tivos. Sob a ótica constitucional, os artigos 6º e 227 con-
lação afetiva com o suposto autor da violência, suporte ou a falta deste por parte do cuidador, nível de IMAGINA solidam direitos humanos a todas as crianças de não
trauma, tipo de violência sofrida, frequência de sujeição à violência, características de personalidade serem invadidas em seu corpo para satisfazer as neces-
da vítima, entre uma série de outros fatores (Malloy, Lyon, & Quas, 2007, Lamb, Hershkowitz, Orbach, sidades sexuais de seus responsáveis ou de terceiros. Es-
& Esplin, 2008a; Malloy, La Rooy, Lamb, & Katz, 2011). ses direitos procuram garantir-lhes a proteção integral
por meio da responsabilidade solidária tripartite entre
Para iniciar a discussão sobre a temática da violência sexual contra crianças e adolescentes e os fato- o Estado, a Sociedade Civil e a Família:
res que influenciam na identificação das situações de violências, assistam ao vídeo do Dr. Reginaldo
Torres Alves Júnior. É dever da família, da sociedade e do Estado assegu-
rar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
BLOCO 01 - VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES/TJDFT
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
Quando a violência sexual ocorre no contexto familiar, essa modalidade de violação frequentemen-
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
te caracteriza-se como uma interação relacional danosa (Azevedo & Guerra, 1993; Cicchetti & Toth,
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
2005; Furniss, 1993). Isso ocorre porque o ambiente familiar falha em proporcionar as experiências
toda forma de negligência, discriminação, exploração,
necessárias ao desenvolvimento saudável de crianças.
violência, crueldade e opressão.
A dinâmica familiar que aprisiona crianças e adolescentes na violência sexual intrafamiliar, também se
(Constituição Federal, 1988, Artigo 227).
alimenta de fatores de ordem social e cultural que são reflexos de exercício transgredido e desequili-
brado das relações de poder entre os atores sociais (Saffioti, 2000; von Trotha, 2007; Wieviorka, 1997).
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Sob a ótica das medidas protetivas do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, além de tornar com-
pulsória a notificação de casos suspeitos e confirmados de violência, os atos sofridos por crianças vítimas PACTO DO SEGREDO O qual o abuso é mantido em segredo por
de violência poderão implicar a adoção de medidas que interferem no vínculo que essas crianças mantêm uma relação assimétrica e de poder do abusador em relação a
com suas famílias de origem por meio de medidas como: o acolhimento institucional (abrigamento), a per- criança e o adolescente, além do que, muitas vezes, atendendo a
da ou alteração de guarda, o afastamento do autor da violência do domicílio comum e os encaminhamen- uma série de conveniências que vão desde o receio de perder o
tos obrigatórios para tratamentos de saúde para a criança e para os seus responsáveis. respeito da comunidade, do escândalo social até a pressão da
própria família, temerosa de não mais contar com certas benesses
O ECA também fornece subsídios para a atuação legal e para a aplicação de punições mais severas, nos ca-
sos de crianças e adolescentes vítimas de outras modalidades de violação, tais como aquelas decorrentes do SEGREDO Os abusos são mantidos em segredo, devido às amea-
uso, da posse, da transmissão, da comercialização de suas fotos e imagens para fins sexuais. ças e barganhas do abusador e aos sentimentos de vergonha e
medo da vítima (Furniss, 1993; Habigzang & Caminha, 2004),
Conforme visto no módulo anterior, sob a ótica criminal, os atos de violação sofridos pelas crianças cita- além de acreditar , que sua fala será desacreditada nos diversos
das enquadram-se como crimes contra a liberdade sexual com agravantes de pena quando há relação de contextos, e do temor das possíveis consequências para família.
responsabilidade e afinidade, conforme a nova reformulação do Código Penal. Os pais e responsáveis de
crianças vítimas de violência sexual, sob a ótica do Código Civil, podem perder ou terem suspenso judicial- Em conjunto com o segredo, é comum a experiência do desamparo aprendido, do aprisionamento na
mente o poder familiar, pois há o reconhecimento de que o abuso sexual implica a transgressão do poder relação, da negação e da demora e dificuldade de falar sobre as experiências abusivas. Esses elementos se
e do dever de cuidar e de educar. constituem em importante barreira para que a criança ou o adolescente fale sobre esses assuntos. O pacto
de silêncio e a acomodação à situação abusiva são responsáveis por uma verdadeira cifra ruim e vergo-
Apesar de todos os sistemas normativos descritos anteriormente, os possíveis danos sofridos por crianças nhosa para uma sociedade (Azevedo & Guerra, 1993), pois as estimativas apontam que 28% das vítimas
como as mencionadas nem sempre são reconhecidos pelo sistema jurídico e de proteção de forma adequa- jamais revelaram episódios abusivos em entrevistas para o sistema de proteção e 47% demoram pelo menos
da, o que representa em uma barreira para garantir que o abuso pare e que essas crianças sejam de fato cinco anos para revelar o abuso (Smith et al., 2000).
protegidas (Faleiros & Faleiros, 2001). Isso decorre do fato da dificuldade que muitas crianças e adolescen-
tes têm em contar sobre o que lhes aconteceu, tendo em vista que o segredo faz parte do jogo relacional
patogênico do qual se alimenta o abuso sexual (Cicchetti & Toth, 2005). Muitas crianças não falam sobre
experiências de violência devido ao fato de serem impedidas de falar por um pacto do silêncio (Azevedo
& Guerra, 1993) em que podem participar pessoas de seu convívio. O segredo é parte do fenômeno da
acomodação à situação abusiva (Azevedo & Guerra, 1993; Furniss, 1993; Summit, 1983).
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O Desamparo Aprendido nas situações de crianças e de adolescentes vítimas de violências: a partir de Dados de pesquisas apontam que a revelação da narrativa sobre a violência é fortemente influenciada
um contexto de violência contínua, as vítimas utilizam comportamentos em seus esforços de proteger a si pela “distância” do vínculo relacional entre autor e vítima: quanto mais próximo o vínculo, maior a
mesmo de ameaças percebidas. Elas vêm de contextos de violência, onde tiveram experiência de mágoas, dificuldade de revelação; quanto mais distante o vínculo, menor a dificuldade de revelação (Buzawa,
rejeição e medo, suas defesas podem ser pronunciadas em tentativas de manter o controle e evitar à violên- Hotaling, & Byrne, 2007). Desse modo, a literatura e a experiência profissional apontam que a dificul-
cia. Elas podem se tornar prisioneiras da relação abusiva e acreditar naquilo que o vitimizador quer que elas dade para se falar da violência é a regra, e não a exceção. Na mesma linha, os estudos internacionais
acreditem, e passam a ter medo de confrontá-lo, e algumas vezes, temem pela sua própria vida. revelam que o caráter familiar e doméstico da violência constitui-se em uma importante barreira para
a revelação (Kendall-Tackett, Williams, & Finkelhor, 1993; Priebe & Svedin, 2008).

Para saber mais, acesse: https://dictionary.apa.org/learned-helplessness


Por outro lado, uma série de características “pressiona” o abuso sexual para ser revelado: trata-se de uma
Além da dificuldade de crianças e adolescentes em falar sobre a violência sexual, esta deixa poucos ves- forma de violação dos direitos da pessoa – uma violação da integridade do corpo e do desenvolvimento
tígios capazes de serem identificados por perícia médica e não é facilmente testemunhada por terceiros, saudável da sexualidade humana, que tem o alto potencial de trazer consequências para a saúde mental de
tendo em vista que a interação envolve frequentemente apenas o autor e a vítima (Habigzang, Koller, crianças vitimadas (Drezett et al., 2001; Fowler & Chanmugam, 2007; Habigzang, Damásio, & Koller, 2013;
Azevedo, & Machado, 2005). Os casos de abuso sexual que são passíveis de identificação por perícia Hébert, Tremblay, Parent, Daignault, & Piché, 2006).
médico-forense também são pouco frequentes – as estimativas giram em torno de 10% à 13% de expe-
riências abusivas denunciadas (Drezett et al., 2001; Habigzang et al., 2005). As evidências físicas, quando O abuso sexual também pode resultar em problemas relacionados à sexualidade, por exemplo:
presentes, têm um importante impacto no reconhecimento jurídico da violação de direitos para aplica-
Comportamentos sexualizados não esperados para a idade;
ção de medidas e sentenças (Myers, 1998). Entretanto, quando ausentes, resta apenas a palavra da criança
e do adolescente. É por isso que se faz necessário acolher adequadamente crianças e adolescentes que
Ampla variedade de diagnósticos de transtornos mentais (transtorno de estresse pós-traumático,
revelam situações de violência.
transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos de personalidade, dentre outros);

Sérios problemas de saúde (ideação suicida e atos tentados ou consumados de autoextermínio).

Vários mediadores podem contribuir para um comprometimento ou não da saúde psicológica e social, tais
como o suporte dos cuidadores, habilidades de enfrentamento, sexo, gênero, idade, personalidade, natureza
do evento abusivo, estresse relacionado à revelação, a recorrência dos eventos, etc. (Spaccarelli, 1994).
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Quanto à identificação e intervenção de possíveis violências física e sexual e as demais violências contra
crianças e adolescentes, é importante pontuar que os atores sociais e institucionais que atuam diretamente
com este público devem se preocupar em contextualizar a realidade apresentada. EXERCÍCIO PRÁTICO DE RECONHECIMENTO DO RISCO E CONSEQUÊNCIAS DA
VIOLÊNCIA SEXUAL:
Para tanto, o modelo Bioecológico do Desenvolvimento de Bronfenbrenner é, atualmente, o referencial
mais completo e utilizado pelos profissionais para avaliar e identificar as possíveis vulnerabilidades e riscos Tarefa: Escolha um ou mais de um caso a seguir e responda as seguintes questões:
em que as crianças e os adolescentes possam estar inseridos.
Avalie o caso e indique (marque com “x”) quais fatores de risco nos três níveis (socieda-
de e comunidades, relações interpessoais e individuais) estão presentes no caso.
No modelo ecológico, Bronfenbrenner sugere que, para compreender a experiência de uma pessoa,
deve-se considerar o ambiente imediato no qual ela se encontra, mas também compreender que este A seguir, identifique as consequências para a criança ou adolescente, conforme apre-
ambiente está conectado a outros mais distantes que afetam sua vida, ainda que esta nem participe sentado no caso.
diretamente deles. Há conjunto de estruturas que se interferem mutuamente e afetam conjuntamente
o desenvolvimento da pessoa. Cada uma das estruturas é chamada pelo autor de: microssistema (pes- Analise a identificação dos fatores de risco; bem como os sinais e sintomas nas dimen-
soais), mesossistema (relacionais e familiares), exossistema (comunitários) e macrossistema (culturais). sões emocionais, cognitivo, interpessoais e comportamentais.

Para conhecer mais sobre o modelo Bioecológico de Bronfenbrenner, acesse a tese de doutorado da Dra. Sílvia EFEITOS
Lordello http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13674/1/2013_SilviaRenataMagalhaesLordelloBorbaSantos.pdf EMOCIONAIS

Para dar continuidade à nossa discussão sobre a identificação de situações EFEITOS


VIOLÊNCIA EFEITOS
de violência sexual contra crianças e adolescentes, assistam ao vídeo do Dr. SINAIS
COGNITIVOS SEXUAL INTERPESSOAIS
SINTOMAS

Reginaldo Torres Alves Júnior e posteriormente realize o exercício prático de SINAIS E SINTOMAS
estudos de caso proposto para avaliar riscos e proteção sob a perspectiva do
modelo Bioecológico. EFEITOS
COMPORTAMENTAIS
EAPE - TJDFT Parte 1 https://www.youtube.com/watch?v=l5G9HK_zyVc
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Caso:___________________________________________________________________________
Caso 1 Carolina
FATORES DE RISCO: SOCIEDADE & COMUNIDADES

* Papéis de gênero rígidos * Desarticulação institucional das políticas de preven-

* Status ção e intervenção Um educador social contou que a criança Carolina, de 8 anos, lhe disse que sua mãe estava depri-
de inferioridade da infância e juventude em re-
lação aos adultos * Apoio social às punições corporais mida, se sentia mal, e ficava deitada na cama. O educador notou que a menina teve uma queda

* Políticas de saúde, sociais, e econômicas inadequadas


para estabilidade e equidade socioeconômica
* Índices elevados de pobreza e desemprego no desempenho escolar em comparação com o ano anterior. Apesar disso, Carolina ainda se por-
tava como uma criança extremamente dócil e ficava muito triste sempre que não atendia o que
FATORES DE RISCO: RELAÇÕES INTERPESSOAIS
lhe era esperado em sala de aula. Isso fez com que a criança começasse a chorar muito porque
não conseguia ir bem nas tarefas. A menina explicou algum tempo depois para o educador que a
* Problemas de saúde física, mental e de desenvolvi-
mento de algum membro da família
* Isolamento
apoio social
da comunidade ou falta de rede de
mãe não estava mais tomando o remédio e indo ao tratamento porque tinha que pegar dois ôni-

* Rompimentos nas relações familiares ou violência en-


tre outros membros da família
bus e, além disso, a mãe não conseguia sair de casa. Carolina relatou que ficava preocupada com
a mãe e tentava deixá-la feliz. De início, Carolina levava café na cama para a mãe. Algumas vezes,
a mãe dizia que precisava de um abraço e de carinho e pedia a ela que a abraçasse. A mãe dizia
FATORES DE RISCO:INDIVIDUAIS – CRIANÇA E ADOLESCENTE
para Carolina que, por ser mulher, tinha que aprender a cuidar das pessoas. Carolina contou que
* Abaixo de quatro anos de idade ou adolescente * Uso/abuso de álcool ou drogas fazia isso muito contente, mas isso nunca era o suficiente. Um dia, a mãe pediu que ela se deitasse
* Não ser querida ou desejada ou falha em atender as * Envolvimento em atos criminosos em sua cama, massageasse suas costas, e lhe desse um grande abraço. Isso começou a acontecer
expectativas dos pais
* Experiências de estresse intenso (social, financeiro)
* Apresentar necessidades especiais, choro persistente
ou problemas físicos * Dificuldade de formação do vínculo com a criança
quase todos os dias. A mãe de Carolina pedia a ela que lhe massageasse não só as costas, como
também os peitos. A intimidade aumentou ainda mais e Carolina passou a massagear e fazer um
ainda bebê
* Fatores de Risco: Individuais – Pais e Cuidadores * Desconhecimento sobre desenvolvimento de crian-
carinho na “perereca” da mãe, a pedido dela, para fazê-la feliz. Por vários meses, a mãe de Carolina

* Dificuldade de formação do vínculo com a criança ain- ças ou apresentar expectativas irrealistas também massageava a filha para agradecê-la por ter sido tão carinhosa e dizia a ela que todas as
da bebê
* Uso/abuso de álcool ou drogas mulheres nasceram para cuidar e para deixar as pessoas felizes. Embora Carolina se sentisse con-
* Dificuldade de nutrir de afeto a criança * Envolvimento em atos criminosos fusa e triste a respeito do que acontecia, não queria decepcionar a mãe, por isso estava chorando
* Terem sido vítimas de abusos na infância * Experiências de estresse intenso (social, financeiro) muito na instituição.
* Desconhecimento sobre desenvolvimento de crianças
ou apresentar expectativas irrealistas

Referências: OMS, 2016. Child maltreatment fact sheet


Sanderson (2005) Abuso sexual em crianças (adaptado)
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Caso 2 Natália Caso 3 Carlos

Natália, então com 5 anos, chegou bastante agressiva em sala de aula, machucando os colegas de Carlos, um rapaz de 15 anos, vinha chegando à escola muito machucado e com marcas de
classe e respondendo à professora. Em outra ocasião a menina foi vista por coleguinhas no banheiro hematomas no corpo. Como tinha muita confiança no professor de educação física, que o
pedindo para tocar e ver os órgãos genitais de alguns amiguinhos. A menina disse que não conse- conhecia há vários anos, o menino disse ao professor que participava de atividades sexuais, nas
guia entender por que os adultos estavam sendo “muito chatos” com ela, principalmente a sua mãe, quais era chicoteado por um homem que ele conheceu aos 12 anos pela internet. Ainda que
que estava chamando um tio de quem ela gosta muito, de “muito mau”. Para ela, o tio nunca a tinha embaraçado, o adolescente disse que fazia isso porque queria e contou que na primeira vez que
magoado, era sempre simpático e gentil e gostava dela. Também não conseguia entender por que se encontraram, teve uma relação sexual com esse homem que Carlos conheceu na internet.
não podia mais ver esse parente, que sempre tinha sido tão legal para ela. Natália tinha raiva da mãe, Carlos disse que não gostou muito porque ficou muito machucado. Esse homem era uma
que, a seu ver, a estava impedindo o relacionamento “especial” dos dois. A mãe de Natália foi cha- pessoa mais velha que lhe ofereceu dinheiro para acompanhá-lo até seu quarto de hotel e até
mada e disse que a filha foi abusada sexualmente dos 3 aos 5 anos por um familiar bem próximo e hoje eles se viam com frequência em troca de dinheiro. O dinheiro ajudava em casa porque sua
disse ainda que, apesar de afastar a menina dessa pessoa, não conseguia entender como a filha que- avó cuidava sozinha de toda a família, mas estava com dificuldades de continuar trabalhando
ria ficar perto do tio, que na verdade era um primo distante. Isso irritava muito a mãe de Natália que porque teve que iniciar um tratamento de câncer. Carlos concordava em continuar vendo o ho-
confessou que disse à filha, em um momento de raiva, que não gostava mais dela. A mãe sentia que mem e contou que não usava preservativo. Ele explicou que depois de ter relações, o homem
sua filha tinha “perdido a inocência” porque, ao contrário dela, que também tinha sido abusada na se mostrava muito amável, abraçando, acariciando, afagando o menino, e dando-lhe bastante
infância, não agiu do mesmo modo e se afastou e tinha raiva do seu agressor. O abusador de Natália, atenção. Carlos disse que gostava desse aspecto dos encontros e sentiu que isso, mais do que
ao contrário, se apresentava como amoroso, carinhoso e afetuoso. Mesmo proibindo os contatos o dinheiro, era sua recompensa por ter deixado o homem violentá-lo da primeira vez. Carlos
entre a filha e o “tio”, a menina mostrava-se irritada e inconformada. O tio frequentemente fazia contou que também foi abusado dos 8 aos 10 anos pelo irmão mais velho e entendia que o que
Natália se “sentir” especial e a chamava de “minha princesinha” e por isso podia fazer o que queria e aconteceu entre ele e o seu irmão era um abuso, mas não achava que esse homem também ti-
na hora que queria. Natália passou a se comportar como uma pequena tirana em casa e na escola. nha abusado dele, porque ele consentira em trocar sexo por afeto. Carlos disse que não queria
O tempo todo o “tio” falava mal da mãe de Natália, dizendo à menina que sua mãe não cuidava fazer exames de sangue no posto de saúde porque tinha medo do resultado.
muito dela e que ele era o único no mundo que o fazia. Natália passou a acreditar que sua mãe não
gostava mais dela. Como era muito atencioso e parecia gostar de brincar com ela por horas (coisa
que a mãe nem sempre podia fazer), Natália não tinha escolha a não ser acreditar no tio. Como era
“especial” o relacionamento, dizia ele, só eles dois podiam realizar as brincadeiras “especiais” e, sem
o tio, Natália começou a envolver os amiguinhos em brincadeiras sexualizadas no banheiro.
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AULA 02

Caso 4 Laura Vitória ACOLHIMENTO E ESCUTA


O padrasto de Laura Vitória, de 13 anos, abusava sexualmente dela desde que a menina tinha ESPECIALIZADA
7 anos. Para lidar com os assédios noturnos, Laura Vitória tentou negar o que estava acon-
tecendo pensando em coisas boas e desejando que o abuso acabasse logo. Algumas vezes
imaginava que estava fora do seu corpo para não ser capaz de sentir o que acontecia. Laura
Vitória ficava aérea em sala de aula. A garota era percebida como uma menina que evitava OBJETIVOS:

fazer amigos, se isolando dos demais colegas de classe e dos professores. Quando Laura Vitó-
ria foi para uma nova escola, uma menina espalhou “boatos” de que ela ficou grávida de “um
→ Relacionar os procedimentos da Escuta Especializada no atendi-
mento às crianças e aos adolescentes em situação de violência no
homem bem de vida”. Laura Vitória ficou aterrorizada e deixou de frequentar a escola. Laura contexto do SGDCD na rede de promoção;
não conseguia entender como a garota havia descoberto e começou a se cortar nos braços
com gilete. Pensamentos de acabar com a própria vida, que aconteciam no passado, voltaram
→ Identificar as diferenças entre os procedimentos adotados pela SG-
DCA no contexto de responsabilização (Depoimento Especial) e no
a ocorrer de forma mais intensa. Quando foi chamada pelo diretor da escola para retornar contexto de promoção e ou proteção (Escuta Especializada);
para as aulas, Laura Vitória se sentia constrangida e amedrontada demais para revelar a verda-
de. Negou os “boatos” e assegurou ao diretor que o padrasto nunca faria algo tão reprovável. → Apontar algumas providências de proteção às situações de violação
dos direitos das crianças e adolescentes que chegam à escola.
Mesmo quando teve a oportunidade para revelar o abuso sexual, o medo das consequências
de admitir a verdade pesou mais do que a oportunidade de acabar com o abuso, que sempre
esteve presente na consciência de Laura Vitória. A mãe, do mesmo modo, disse ao diretor
que era impossível ter ocorrido qualquer coisa entre a filha e o marido, pois ele é uma pessoa
honesta e trabalhadora e jamais poderia fazer algo de tão terrível, insinuando que era um ab- Nesta segunda aula, vamos tratar do acolhimento e Escuta Especializada das situações de violência contra
surdo ter aquela conversa. Sabe-se, entretanto, que o padrasto é o único provedor da família. crianças e adolescentes identificadas nas escolas, ressaltando a importância de adoção de procedimentos
Sobre a gravidez, a mãe disse que Laura Vitória tinha um namoradinho e, em uma viagem que evitem a revitimização.
de férias em outro Estado distante, engravidou. Para a mãe, Laura Vitória deverá morar com
a avó materna naquele Estado, pois está “dando muito trabalho”, e a família já decidiu que No trabalho de profissionais que atuam contexto escolar é possível que ocorram revelações de crianças e
quem vai cuidar do neném será ela e o marido, que sempre quiseram ter um menino. adolescentes.
166 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Na chamada revelação “intencionalmente velada” há uma escolha para Na revelação acidental a criança narra o abuso apenas após uma terceira
não contar o abuso, porém, em algum momento da vida, a pessoa é capaz pessoa testemunhá-lo ou observar suas evidências físicas ou emocionais:
de narrar sua experiência, por exemplo: “minha mãe entrou no quarto e viu o que ele estava fazendo comigo. Aí ela o ti-
rou de lá, o mandou ir embora. Depois ela perguntou se tinha acontecido outras
“...eu queria ter contado para alguém, tipo para a mi- vezes. Só aí eu contei tudo”.
nha mãe, mas nunca quis contar porque não queria
Todos os cinco tipos de re-
ficar incomodando ninguém com as minhas coisas”.
Nesse tipo de revelação, apesar de esforços de tercei- Na revelação acidental, a criança não estava sujeita de forma intensa à dinâ- velação requerem trata-
ros, a criança poderá negar sua real experiência abu- mica do aprisionamento na relação abusiva (Olson, Daggs, Ellevold, & Ro- mentos distintos do ponto
siva diante de abordagens diretas. gers, 2007), pois os eventos acidentais externos possibilitaram a revelação. de vista profissional, espe-
Porém não é possível falar em prontidão para a criança desvelar a experiên- cialmente as experiências
A revelação “desencadeada” por memórias reativadas ocorrem a partir de
Estudos apontam que exis- cia, uma vez que ela ainda estava sujeita à dominação abusiva e não revelou daquelas crianças mantêm
algum evento disparador, por exemplo: “um dia eu tive essa lembrança bem
tem diferentes formas de antes da ocorrência do evento externo. veladas suas experiências
forte e foi como se tudo viesse à tona. Essas imagens do que aconteceu estavam
revelação. Reconhecer essas por escolha decorrente de
vindo e vindo, mas eu não me lembrava que tinha sido desse jeito”. Nesse tipo de
modalidades de revelação Na revelação proposital, a criança deliberadamente deseja revelar o abuso, nor- sentimentos de vergonha,
revelação, processos mentais complexos são responsáveis pela ocultação da
pode ser útil nas providên- malmente para alguém de sua confiança: “eu não aguentava mais aquilo, então de ameaça ou do medo das
experiência, independentemente da intervenção de terceiros interessados em
cias de acolhimento e enca- eu criei coragem e contei para a minha mãe”. Nesse caso, os prejuízos e danos físi- possíveis consequências ne-
ajudar e favorecer o desvelar da possível violência sofrida.
p a
minhamento do caso para cos e emocionais superaram a dinâmica de aprisionamento na relação abusiva, gativas (Goodman-Brown,
proteção. não sendo necessária a intervenção direta externa de nenhuma pessoa para a Edelstein, Jones, & Gordon,
Na revelação comportamental ou por tentativas verbais indiretas há uma
criança desvelar sua experiência, a não ser a existência de uma rede de relacio- 2003). Desse modo, acolher
necessidade de comunicação não verbal por meio de ações indiretas: “eu
namento de pessoas em que ela possa confiar e pedir ajuda. e encaminhar de forma ade-
lembro que quando eu estava no terceiro ano eu tinha pavor de ir para casa. Aí
os professores perguntavam: por que você não quer ir para casa? Daí eu dizia: quada a violência sexual
A escola é o local onde, privilegiadamente, se reproduzem, mas também se re-
eu não quero voltar para casa! Eu queria que alguém soubesse o que estava poderá contribuir para a
fletem na aprendizagem, muitas das VIOLÊNCIAS que os nossos alunos e alunas
acontecendo, mas eu tinha muito medo de falar”. Nesse tipo de revelação há efetiva proteção de crianças
vivenciam no espaço doméstico e familiar. Está provado que crianças e adoles-
uma motivação maior para a criança narrar o abuso, embora de maneira e adolescentes.
centes que vivenciam ou são vítimas de violências tem uma tendência maior de
não verbal. As evidências demonstradas pela criança podem permitir que
reproduzir o comportamento violento nas suas relações.
pessoas significativas ao seu redor sejam capazes de compreender a men-
sagem e fornecer ajuda.
168 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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A violência de sexual é um tipo de violência que atinge prioritariamente meninas e que, em regra, ocorre na esfera Diante disso, o profissional pode se perguntar: “se eu não devo saber nada sobre o caso, qual o meu papel?”
doméstica e familiar tendo como violador, majoritariamente, homens com estreito vínculo com a menina. Este Nesse caso, depende de como a demanda chegou à Escola. Mas é preciso ter em mente que ESCUTAR é
tipo de violência está fundamentada nas relações de gênero constituídas na sociedade machista e patriarcal. diferente de INVESTIGAR.

Entende-se, que o enfrentamento não só à violência sexual, mas a todas as outras formas de violação de Independentemente da via de chegada da demanda, os objetivos da escuta são:
direitos das crianças e adolescentes SÓ É POSSIVEL a partir de um esforço CONJUNTO, ARTICULADO
e INTEGRADO de todos (ESTADO, FAMÍLIA E SOCIEDADE). A violência sexual é um fenômeno complexo, * Criar um ambiente acolhedor (empatia, confiança, sigilo, espaço reservado);
dinâmico e multifacetado, que envolve basicamente uma desigualdade de geração e de poder.
* Reforçar positivamente a atitude de falar ou de comunicar a situação como demonstração de
cuidado com a vítima;
O olhar sobre esta violência também precisa ser múltiplo e dinâmico, o que implica uma compreensão para
além dos mitos e das crenças, exigindo formação contínua, leitura e muita prática, uma vez que a escuta de * Informar sobre a necessidade de interromper a situação;
uma criança exige qualificação específica e especializada. (Lei N. 13.431/2017)
* Destacar a proibição legal do profissional de “omitir” a situação e a necessidade de acionar os
VIOLENCIA SEXUAL órgãos de proteção;

66.041 REGISTROS EM 2018


O MAIOR JÁ REGISTRADO 180 ESTUPROS
POR DIA
CRESCIMENTO
DE 4,1% * Explicar que as atitudes que serão adotadas terão o objetivo de garantir a sua segurança e pro-
teção, oferecer apoio psicológico, médico e social, assim como de responsabilizar a(s) pessoa(s)
QUEM SÃO AS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA SEXUAL que fez (fizeram) ou que está(ão) fazendo coisas “ruins” com ela e para ela.
81,8% DO SEXO FEMININO 53,8% TINHAM ATÉ 13 ANOS
50,9% NEGRAS E 48,5% BRANCAS 4 MENINAS DE ATÉ 13 ANOS ESTUPRADAS POR HORA ALGUMAS POSSIBILIDADES DE INTERVENÇÃO NA SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA

Para mais informações, acesse o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública em: https://www.forumseguran-
Situação 1 Se foi o(a) próprio(a) aluno(a) que contou?
ca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf
Empatia. Espaço reservado; manter sigilo; não pedir detalhes; não fazer perguntas fechadas; nem perguntar se
É de extrema importância que cada ator do Sistema de Garantia de Direitos saiba exatamente qual a parte ela falou para alguém da família; não instigar a narrativa; explicar que ela não precisa se sentir “culpada”, nem
que “te cabe no latifúndio da violência sexual”. “vergonha” e nem “medo”; dizer que pode acontecer com qualquer menina ou qualquer mulher; dizer que o que
aconteceu é uma coisa séria; que precisa ser interrompida; que você precisará acionar a rede de atendimento
Nesse sentido, como minimizar os impactos psicológicos, familiares e sociais que podem causar na vida da criança
para dar o suporte que ela precisa; que isso pode trazer algumas mudanças na sua rotina e na da sua família, mas,
e da família? Ao profissional de educação cabe não investigar, não pré-julgar, não prever intervenções, não im-
se ocorrer, será para evitar que isso volte a acontecer; que os adultos precisam ser responsabilizados por coisas
plantar memórias falsas e não sugestionar. É fundamental entender que o papel de investigação é da POLÍCIA.
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“ruins” que podem causar nas crianças e adolescentes; que o Conselho Tutelar será acionado; que provavelmente Situação 4 Se foi alguém da família que falou para
Em todos os casos, a certeza sobre o aconte-
ela será encaminhada para a Delegacia para ser acolhida, e para você falar com detalhes sobre isso (dizer que o(a) profissional?
cimento da violência é dispensável. O ECA
são profissionais capacitados, cuidadosos, atenciosos); se ela tiver irmãos e irmãs dizer que a sua atitude poderá,
Empatia; Espaço reservado, também não precisa dispõe que, havendo mera suspeita, o caso
inclusive, ajudar a proteger os seus irmãozinhos de também virem a sofrer com isso também (evitar de usar as
pedir detalhamento e nem investigar, porque se deve obrigatoriamente ser comunicado ao
palavras “abuso”, “violência sexual”, “prisão”, “que o pai ou padrasto sairá de casa ou poderá ser preso”.
você registrar o que tiver sido falado ou mesmo se a CONSELHO TUTELAR, podendo enviar
pessoa depois em juízo falar que contou para você cópia para o MPDFT.
Situação 2 Se foi o(a) profissional que percebeu?
em detalhes, você poderá ser arrolada como teste-
Espaço reservado; conversar com a criança primeiro (atendimento pedagógico); fazer perguntas gerais com munha; Restringir a escuta, a dar informações sobre Veja o fluxo de atendimento não como algo
enfoque na identificação de dificuldade observadas em sala de sala, na aprendizagem; de como estão as o que pode acontecer, o que a Lei fala, a necessida- em “efeito cascata”, mas como um rio que
coisas em casa; como é sua rotina fora da escola; quem mora na residência; quantos trabalham; quantos de- de de proteger a criança e de encaminhar para os corre em círculo, por isso que “Go and Back”
sempregados; se tem irmãos/irmãs; se ela passa parte do tempo na presença de adultos; o que gosta de fazer órgãos competentes; geralmente, não precisa pedir entre as instituições é fundamental. Além
quando está em casa. Lembre-se: nunca fazer qualquer pergunta de cunho sexual ou erótico. São perguntas sigilo ou sugerir que a pessoa escolha declarar para disso, o atendimento que compõe esse fluxo
circulares, para identificar possíveis sinais. Se aparecer algo explicito ou se os sinais indicarem uma suspeita a família que levou o caso à escola, porque geral- não exaure no mero cumprimento de uma
de abuso sexual. Acionar o Conselho Tutelar. mente quem procura a Escola ou Conselho Tutelar função institucional ou de um papel profis-
não tem interesse em dizer que fez a denúncia. sional, uma vez que o foco principal é a vida,
Situação 3 Se foi outro(a) aluno(a) que contou? a saúde e o bem-estar da criança ou adoles-
Para iniciar a discussão cente que teve o seu direito sexual violado.
Empatia; Espaço reservado; A forma de conduzir a escuta dependerá da idade da aluna (Depende da idade
sobre O Acolhimento
da criança que conta. Se for uma criança as orientações terão que ser adaptadas à fase de desenvolvimento nas situações de violên- Evite convocar os pais e responsáveis em si-
dela; se for adolescente, da mesma forma); Conversar sobre o fato, como soube; acolhe-la e faze-la se sentir cia contra crianças e tuação de suspeita de violência para atendi-
segura para contar o que sabe; esclarecer que a sua atitude pode evitar que a amiga (amigo) continue a pas- adolescentes, assista ao mentos na escola, pois os dados demons-
sar por essa situação; repetir itens do primeiro tópico “quando a aluna conta”; ao final, não precisa pedir ao vídeo do Dr. Reginaldo tram que mais de 80% os autores da violên-
aluno que guarde segredo, deixe que ele mesmo decida se vai revelar para amiga que revelou o segredo ou Torres Alves Júnior.
cia são pessoas da família da criança e do
se manterá o sigilo. Como é uma situação delicada e difícil, o profissional pode sugerir de chamar a suposta
adolescente. Desse modo, os efeitos da con-
vítima para conversarem juntas (a vítima, a amiga e o profissional. https://youtu.be/6c0WBA1tsa0 vocação podem gerar a retratação da vítima
e/ou outras consequências.
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⇢ RELEMBRANDO
No contexto da instituição de ensino, segundo o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente – SGDCA exemplificado na Lei N. 13.431/2017, a escola tem a função de promoção dos direitos das
crianças e dos adolescentes. ESCUTA ESPECIALIZADA DEPOIMENTO ESPECIAL

Assim, diante de qualquer situação de suspeita de violação de direitos, o profissional de educação deve- SGDCA: Promoção e Proteção SGDCA: Delegacias e Sistema de Justiça
rá comunicar o fato aos órgãos de responsabilização do SGDCA (Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia,
Sistema de Justiça), cabendo à Delegacia de Polícia e ao Sistema de Justiça investigar o fato e, se for o caso, Acolhimento: Escola, CREAS, CRAS, Saúde Recuperação de memória do fato
proceder à oitiva da criança.
Objetivo: conhecer contexto da criança Sala neutra, sem elementos
No Distrito Federal, quando a situação é judicializada, as vítimas são submetidas ao depoimento especial que causem distração
(Lei N. 13.431/2017). Sala lúdica, com elementos para interação
Entrevista investigativa
Escuta especializada de cuidado e proteção
PROCEDIMENTOS DA LEI N. 13.431/2017 Protocolo Estruturado - técnicas
DEPOIMENTO ESPECIAL: é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemu- Interação aberta comprovadas cientificamente
nha de violência perante autoridade policial ou judiciária.
Profissionais capacitados Profissionais capacitados no Protocolo
ESCUTA ESPECIALIZADA: é o procedimento de entrevista sobre a situação de violência com crian- Brasileiro de Entrevista Forense- PBEF
ça ou adolescente perante órgão de proteção, limitando o relato estritamente ao necessário para -

cumprimento de sua finalidade.

Decreto nº 9.603, Art 19 § 4º: A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o
processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o
cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados.
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Outrossim, um possível acolhimento de crianças e/ou adolescentes em situação de violência, deve pautar- Primeiro passo A criança/adolescente necessitam de local apropria-
-se em fundamento técnico e com objetividade, tendo sempre como prisma a questão de evitar a sugestio- APRESENTAÇÃO » Explique quem é
do para conversar, assim procure um local privado e, se possível,
você e seu papel institucional.
nabilidade e a revitimização. agradável com ambiente lúdico.

Sugestionabilidade é a tendência de um indivíduo em incorporar informações distorcidas, CONSTRUÇÃO DA EMPATIA » Toda escuta necessita primeiramente de um rapport, ou seja, um aco-
provindas de fontes externas, de forma intencional ou acidental, às suas recordações pesso- Conheça a criança /adolescente, lhimento. Inicie com uma sua apresentação. Explique quem é você e
ais. Da mesma forma que a estrutura da pergunta, a frequência com que esta é apresentada fale de temas agradáveis. seu papel institucional, mesmo que a criança e o - adolescente já lhe
à criança também contribui para aumentar o risco de sugestionabilidade. Ceci & Bruck conheça- relembre-; ofereça um copo de água; pergunte se ela está
(1995), a partir de uma análise científica do testemunho infantil, enfatizam que as entrevistas BUSQUE CONVERSAR sobre o cotidiano confortável e explique o porquê de você querer conversar com ela.
sugestivas repetidas podem ter o efeito de produzir falsos relatos. dela com perguntas abertas. Ex: “Sou ... e eu converso com crianças que estão chegando atrasadas
Evite questionamentos fechados. na escola para que eu possa entender ...mas antes eu queria te conhe-
Revitimização é o processo de expor a vítima reiteradamente a situações que podem dispa- cer mais”. Importante para uma boa entrevista que não entre direta-
rar conteúdos traumáticos, trazendo-lhe sofrimento emocional e consequências danosas ao REGRAS » Explique que, neste contexto, mente na sua demanda, mas que interaja com assuntos neutros.
seu contexto psicossocial. ele/ela pode e corrigir, e é importante
que as coisas sejam contadas como Segundo passo Conhecer a criança/adolescente antes de entrar no
aconteceram. Seu papel é protegê-la. motivo que os trouxe a Escuta, faz parte da construção da empatia
Violência institucional é aquela praticada por instituição pública ou conveniada que gera,
entre o profissional e a criança/adolescente. Neste momento, conhe-
dentre outras situações, a revitimização.
ça a criança/adolescente, fale de temas agradáveis, o que ela gosta de
Se a criança ou adolescente trouxer
alguma SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA fazer, se divertir etc. Se eles trouxerem alguma situação desagradável,
Os profissionais da rede de proteção têm o objetivo de promover o cuidado e atenção às víti-
que não seja uma situação de violação de direitos, evite, ex: “eu hoje
mas, e NÃO são responsáveis pela investigação dos fatos.
tirei nota baixa”, o profissional acolhe e retoma o diálogo para coisas
CONHEÇA A REDE SOCIOFAMILIAR agradáveis. Não faças muitas perguntas. Dê pausas, tolere o silêncio.
E Se a criança / adolescente trouxer alguma situação de violação de direitos:
FIQU O(A)! Muitas perguntas confunde a criança e atrapalha o fluxo da memó-
T
ATEN →Acolha. Explique seus direitos, não prolongue a fala e acione a rede de proteção.
ACOLHA E EXPLIQUE
ria. o profissional tem que treinar a escuta; crianças/adolescentes não
→O Conselho Tutelar sempre deverá ser comunicado. à criança/adolescente sobre seus direitos tem o hábito de serem ouvidas plenamente.Busque conversar sobre
o cotidiano dela com perguntas abertas. Evite questionamentos fe-
→Lembre-se: não investigue!
chados, tais questionamentos podem trazer respostas sugestionáveis,
ACIONE O
que podem levar a fatos que não aconteceram
CONSELHO TUTELAR
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Terceiro Passo Geralmente crianças/adolescentes não cos- FLUXO DE ENCAMINHAMENTO Assista ao vídeo Defenda-se – Marista e entenda mais sobre o papel da Rede de Pro-
tumam falar de si, mas de responder a demanda do adulto. Revelação espontânea da criança para professor(a) teção nas situações de violação dos direitos das crianças e adolescentes.
Na Escuta Especializada a criança/adolescente falam mais,
Se a criança e ou adolescente
assim é preciso que eles entendam que neste contexto existe https://defenda-se.com
trouxerem alguma situação de
algumas regras: Explique que, ele/ela pode te corrigir, e é im-
violação de direitos ao profes-
portante que as coisas sejam contadas como aconteceram.
sor(a) ou outro(a) profissional ⇢ DEPOIMENTO ESPECIAL X ESCUTA ESPECIALIZADA (LEI 13.431/2017)
da Escola espontaneamente:
Quarto passo Conheça a rede sociofamiliar, pergunte DEPOIMENTO ESPECIAL É o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou
sobre a família, quem mora, quem ela considera família, testemunha de violência perante autoridade policial ou judicial. É a denominada entrevista
quem são os amigos, qual lazer, instituições religiosas etc. investigativa.
importante também, conhecer o ambiente escolar, se tem
amigos, como é ela na escola etc. ESCUTA ESPECIALIZADA É o procedimento de escuta de criança ou adolescente sobre a situação de violên-
cia perante órgão de proteção do SGDCA (escola, saúde, assistência, centros especializados, etc.) limitando
Quinto passo Depois, aos poucos, oriente a escuta para estritamente ao necessário para cumprimento de sua finalidade de proteção social de provimento de cuidado.
avaliar possíveis situações de vulnerabilidades e encami-
nhamentos. E importante que o profissional busque não
introduzir informações externas que a criança não trouxe, Acolhimento
⇢ QUAL O PAPEL DA ESCOLA?
procure ouvir a criança e o adolescentes e a partir dela use
facilitadores, tais como: “um-hum”; “ que Mais” “ você está Encaminhamento ao SOE O Art. 11 do Decreto 9.603/2018 determina que, na hipótese de o profissional de educação identificar ou a
ou á Equipe de Apoio criança ou adolescente revelar atos de violência, inclusive no ambiente escolar, ele deverá:
dizendo...” ex: “você me disse que na sua casa tá difícil e por
isso você está chegando atrasada, me fale mais sobre isso”.
Avaliação pelo SOE ou * Acolher a criança ou adolescente;
Sexto passo Se a criança/adolescente trouxer alguma si-
Equipe de Apoio
* Informar à criança ou adolescente, ou ao responsável ou à pessoa de referência, sobre seus di-
tuação de violência, Escute! Mas não prolongue a fala. reitos, procedimentos de comunicação à autoridade policial ou ao Conselho Tutelar;
Ex: “entendi... o que aconteceu é muito grave, eu preciso Relatório de Encaminhamento
te proteger, não precisa detalhar mais isso agora.... você * Encaminhar a criança ou adolescente, quando couber, para atendimento emergencial ao órgão
do SGDCA vítima ou testemunha de violência;
falará sobre isso em outro momento”. Antes de acionar Encaminhamento da Situação
a rede, reserve um tempo para acolhimento e depois, * Comunicar ao CONSELHO TUTELAR;
ACIONE A REDE DE PROTEÇÃO.
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E Os profissionais de educação são responsáveis pela proteção e cuidado, mas não são
* INTRODUZA O TÓPICO DA CONVERSA Converse sobre o cotidiano da criança e do adoles-
FIQU O(A)! cente e busque temas agradáveis. Depois oriente a escuta para avaliar possíveis situações de
T responsáveis pela investigação dos fatos. Por isso, ATENÇÃO! Diante da mera sus-
ATEN
vulnerabilidade e possíveis encaminhamentos. NÃO INTERROMPA. TOLERE O SILÊNCIO Deixe
peita, DENUNCIE. a criança e o adolescente falar livremente. A interrupção atrapalha o fluxo da memória. Valori-
ze o silêncio. A conversa precisa de pausas.
Em situação de revelação, estes profissionais devem ouvir atentamente, sem inter-
rupção. Acolha, mas não prolongue a fala da criança ou adolescente. Explique seus * NÃO OFEREÇA PRÊMIOS E NÃO ESTIMULE FANTASIA A criança e o adolescente podem se
direitos, acione os órgãos de responsabilização do Eixo norteador do SGDCA de sentir estimulados a falar sobre situações que não aconteceram ou alterá-las para ter atenção
acordo com as respectivas competências e SEMPRE encaminhe ao Conselho Tutelar; do adulto ou para ser premiado. Dessa forma, não utilize falas como: “Se você me contar eu te
dou... (ou) eu te deixo fazer...”.
Violência Institucional: entendida como a praticada por instituição pública ou con-
veniada, inclusive quando gerar revitimização; * TODOS TEMOS REAÇÕES EMOCIONAIS. NÃO PRESSIONE Todos nós temos reações emocio-
nais no relato de situações de violência, então calma! A criança e o adolescente podem chorar,
Eixo norteador do SGDCA: É a articulação de redes. Busque parcerias. Compartilhe ficarem tristes ou terem emoções inesperadas como rir compulsivamente; é normal. Não se
suas potencialidades e dificuldades; desespere! Acolha. Ofereça água, lenço e espere o tempo do outro

Não carregue sozinho(a) o problema! Todos somos responsáveis pela proteção!


* USE FACILITADORES “Um-hum”, repetir em forma de pergunta a última frase da criança: “
Você está me dizendo que (...)”

* NÃO USE PERGUNTAS FECHADAS Evite perguntas que podem ser respondidas apenas com
⇢ ESCUTA ESPECIALIZADA
sim ou não, como “Você gosta dele(a)?”, “Você tem medo?”. Evite, também, perguntas de múl-
tipla escolha, como “Você gosta da mamãe, do papai ou da vovó?”. Priorize questionamentos

* CRIE UM AMBIENTE FAVORÁVEL Crie um ambiente favorável para a conversa, que seja seguro abertos como “Me conte o que aconteceu”; “Me conte como foi seu dia?”
e privado. A sala pode conter elementos lúdicos que facilitem a interação com a criança e o
adolescente (almofada, bichos de pelúcia, quadros).
* NÃO INTRODUZA QUALQUER DETALHE Sobre o que aconteceu (o fato de violência) e quem
fez (a pessoa que praticou a violência). Se a criança trouxer alguma situação de violência, aco-
lha. Não investigue.
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* EVITE EXPRESSAR JULGAMENTOS E EVITE CONTATO FÍSICO Não opine sobre o possível AULA 03
autor(a) da violência nem sobre o comportamento da vítima. Ela já foi violada corporalmente,
portanto, evite contato físico. Utilize palavras de acolhimento e conforto. É aconselhável a in- ENCAMINHAMENTO
teração apenas verbal.

* NÃO DESCONSIDERE OS SENTIMENTOS. FINALIZE. Evite falar: “Não chore... Não fique triste”.
Ao final do acolhimento utilize as seguintes palavras: “Você não é culpada(o) pelo que acon- OBJETIVOS:
teceu.”, “Você agiu certo ao me contar.”, “Alguma coisa mais que eu precise saber?” Trabalhar
medos: “Direito de proteção e obrigação de promover ajuda”. Acionar rede interna e externa de → Relacionar o papel da escola na rede de proteção;

proteção da vítima: “Agora eu preciso tomar algumas providências para lhe deixar segura(o)”. → Identificar as instituições do SGDCA e seus respectivos papéis na
rede de proteção;
Tenha acesso aos infográficos da Escuta Especializada:
→ Descrever as possibilidades de encaminhamentos das situações
identificadas.
https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/centro-judiciario-mulher/documentos-e-links/
arquivos/infografico-mpve-orientacoes-para-escuta-especializada-no-contexto-escolar.pdf

Nesta terceira aula, vamos tratar dos encaminhamentos das situações de violência contra crianças e adolescentes
identificadas nas escolas, ressaltando a importância de adoção de procedimentos que evitem a revitimização.

Os atores e atrizes da rede de proteção necessitam de atenção e alguns cuidados técnicos e éticos em rela-
ção a um possível contato com uma situação de suspeita de violência. Associar os cuidados éticos com os
cuidados técnicos implica no reconhecimento da especificidade da intervenção realizada, seu papel pro-
fissional, a finalidade da instituição e a capacitação continuada sobre a temática.

Nesse sentido, a atuação dos profissionais da educação em relação à suspeita de qualquer violação dos di-
reitos das crianças e dos adolescentes deve ter como objetivo a comunicação aos órgãos responsáveis pela
responsabilização e sempre ao Conselho Tutelar.
182 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Os atores e atrizes da rede de proteção necessitam de atenção e alguns cuidados técnicos e éticos em rela- É dever do profissional da educação informar à crian-
ção a um possível contato com uma situação de suspeita de violência. Associar os cuidados éticos com os ça e ao adolescente vítimas da violência o efeito da
cuidados técnicos implica no reconhecimento da especificidade da intervenção realizada, seu papel pro- sua fala e as atitudes que serão tomadas para sua pro-
fissional, a finalidade da instituição e a capacitação continuada sobre a temática. teção. A Convenção Internacional dos Direitos da
Criança e a Lei 13.431/2017 reconhecem que eles são
Nesse sentido, a atuação dos profissionais da educa- sujeitos de direitos e, portanto, têm direito à livre ex-
ção em relação à suspeita de qualquer violação dos pressão e à informação.
direitos das crianças e dos adolescentes deve ter como
objetivo a comunicação aos órgãos responsáveis pela O profissional da educação deverá, principalmen-
responsabilização e sempre ao Conselho Tutelar. te, assegurar que as crianças e os adolescentes víti-
mas de violências tenham suas falas resguardadas
http://conselhotutelar.sejus.df.gov.br/o-que-e/ de qualquer situação vexatória e de exposição na
Para saber mais, acesse:
comunidade escolar. Deverá também propor, no
O dever de comunicar, algumas Informações Importantes: contexto escolar, mecanismos de proteção à víti-
http://www.planalto.
ma e seus familiares.
* O ECA , no seu artigo estabelece multa de 3 a 20 salários mínimos de referência(aplicando-se o gov.br/ccivil_03/leis/
L8069compilado.htm
dobro em caso de reincidência) para médico ou responsável por estabelecimento de saúde e de Proteger a identidade de crianças e adolescentes
professores ou responsável por estabelecimento de ensino casos de suspeita de violência con- nesses contextos deve ser um compromisso ético
tra criança e adolescente, assim entende-se o dever desses profissionais no encaminhamento https://www.unicef.org/
profissional, conforme os Arts. 17 e 100 do ECA.
das suspeitas de violência. brazil/convencao-sobre-
-os-direitos-da-crianca
* A notificação da suspeita pode interromper a trajetória de violência.
* A notificação da suspeita possibilita a adoção de medidas de proteção, além de desencadear a
investigação criminal e, se for o caso, a identificação do autor.

* O artigo 13 do ECA : Os casos de suspeita de violência contra criança e adolescente serão


obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de
outras providências legais.
184 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
185

EIXO PROMOÇÃO E PROTEÇÃO Para iniciar a discussão sobre o encaminhamento das situações de violência con-
tra crianças e adolescentes, assista ao vídeo do Dr. Reginaldo Torres Alves Júnior
Identificação das situações de violência e acompanhamento no âmbito escolar
EDUCAÇÃO (não exposição da criança no contexto docente e discente) prevenindo consequên-
cias como a evasão. https://youtu.be/BbGHEgGCh74
Trabalhar ações preventivas.

Adoção de medidas profiláticas, tratamento de agravos e acompanhamento do


Entende-se que os profissionais que atuam na promoção, prevenção e na intervenção das situações de vio-
quadro de violência (anteriores e sequelas), além da notificação compulsória e co-
lência contra crianças e adolescentes devem pensar em intervenções conjuntas e articuladas com os demais
SAÚDE municação externa.
atores e atrizes sociais para que possam atuar na situação de vulnerabilidade e promover a proteção daquelas.
Acompanhamento e atendimento especializado.
As instituições e as pessoas que integram o Sistema de Garantia de Direitos – SGDCA devem, cada vez mais,
compreender a importância de uma ação articulada. Somente com essa articulação e o seu fortalecimento
ASSISTÊNCIA
Atendimento especializado (suporte social, emocional, jurídico-social, etc). será possível pensar na construção de uma sociedade que se quer, cada vez mais justa e igualitária. Uma lei só
SOCIAL
se legitima quando os cidadãos denunciam ou provocam ações que possam fazer desencadear uma reação
daqueles que legalmente devem restaurar direitos.
Aplicação de medidas de proteção definidas no Art. 101 do Estatuto da Criança e do
CONSELHO
Adolescente; recebimento de denúncias para verificação e encaminhamento aos O SGDCA enfatiza a importância da articulação de redes no combate e enfrentamento à violência contra a
TUTELAR
órgãos do SGD conforme as atribuições específicas que cada situação demanda. criança e o adolescente. Entende-se como paradigma redes pressupor o fenômeno de forma complexa e mul-
tifacetada. Desta forma, os atores e atrizes da rede de proteção devem pensar em acionar a rede, não como um
mero encaminhamento, mas como uma parceria de intervenção de enfrentamento à realidade apresentada.
Pensar em redes é um trabalho sem hierarquia de saber e poder, compartilhando informações e saberes, inter-
https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/crianca-e-adolescente/parametros-de-es- vindo de forma articulada entre as instituições envolvidas na busca de soluções e respostas conjuntas.
cuta-de-criancas-e-adolescentes-em-situacao-de-violencia.pdf
186 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
187
SUSPEITA DE SITUAÇÃO VIOLÊNCIAS REDE DE PROTEÇÃO À CRIANÇA ESCOLA
E AO ADOLESCENTE Rede de promoção
de políticas públicas
PROVIDÊNCIAS CONSELHO TUTELAR
e proteção so SGD
Órgão público municipal que tem como missão representar a sociedade na
Registrar em ata ou documento oficial DEFENSORIA PÚBLICA proteção e na garantia dos direitos de crianças e de adolescentes contra
O direto fundamental à assistência jurídica qualquer ação ou omissão do Estado ou dos responsáveis legais, que resulte
Acionar o Conselho Tutelar integral e gratuita, incumbida da missão de na violação ou ameaça de violação dos direitos estabelecidos no ECA .
É importante conhecer os conselheiros prestar orientação jurídica e defesa dos necessita-
tutelares da sua comunidade ASSISTÊNCIA SOCIAL
Rede de promoção de políticas
Notificação compulsória por escrito ao DELEGACIA DE POLÍCIA públicas e proteção SGD.
Conselho Tutelar Delegacia de proteção a criança e ao adoles-
Pode-se encaminhar cópia ao Ministério Público cente, como atendimento inicial, concebidas
como uma política de segurança para a
Acompanhar de forma efetiva o
população infanto-juvenil.
encaminhamento à rede de ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS
proteção- fomentação de parcerias ONGs são associações da sociedade civil que se declaram
MINISTÉRIO PÚBLICO com finalidades públicas e sem fins lucrativos, que desen-
Protocolo Estruturado - técnicas Defesa independente da sociedade. O volvem ações em diferentes áreas.
comprovadas cientificamente Ministério Público (MP) tem como ´papel
fiscalizar e proteger os princípios e interesses JUSTIÇA
Buscar parceiras para facilitar a aplicação A função do Poder Judiciário é garantir os direitos
fundamentais da sociedade SAÚDE
de medidas de proteção com os atores individuáis, coletivos e sociais e resolver conflitos entre
Rede de promoção de
e atrizes da Rede de Proteção à criança cidadãos, entidades e Estados. A Vara da Infância tem
políticas públicas e
e ao adolescente. competência de assegurar os diretos do ECA
proteção SGD.
188 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
189

Assista ao vídeo da Dra. Ana Cristina Santiago, delegada da Delegacia de Prote- ⇢ ALGUMAS ESTATÍSTICAS IMPORTANTES!
ção à Criança e ao Adolescente – DPCA e conheça o trabalho da DPCA na rede
de proteção e responsabilização às situações de violação dos diretos das crianças
e dos adolescentes.

https://www.youtube.com/watch?v=0szeBdiorxI&feature=youtu.be

FLUXO DE NOTIFICAÇÃO
SUSPEITA DE VIOLÊNCIA

ESCOLA

CONSELHO
RESPONSABILIZAÇÃO PROTEÇÃO
TUTELAR

DELEGACIAS MEDIDAS DE
PROTEÇÃO SAÚDE
MINISTÉRIO
PROMOTORIA ASSISTÊNCIA
PÚBLICO
DA INFÂNCIA SOCIAL Fonte: https://i.pinimg.com/736x/77/fa/06/77fa0658222ac8b35294076e24818b80--search.jpg
CENTRO
JUSTIÇA CRIMINAL JUSTIÇA INTEGRADO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DA INFÂNCIA 18 DE MAIO
190 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
191

Os dados apontam que uma em cada cinco crianças sofre ou sofreu algum tipo de violência sexual. BIBLIOGRAFIA DO MÓDULO III

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192 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
193
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194 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
195

AULA 01

O PAPEL DA ESCOLA
NO ENFRENTAMENTO
MÓDULO IV
À VIOLÊNCIA SEXUAL

PREVENÇÃO À
OBJETIVOS PRINCIPAIS

VIOLÊNCIA SEXUAL → Conceituar prevenção;

→ Apontar o papel da escola na prevenção à violência sexual;

→ Identificar alguns pressupostos básicos importantes nas ações de preven-


ção à violência sexual.

Vamos começar?

Nas aulas dos Módulos anteriores, você já discutiu temas muito importantes para compreender o contexto
da violência sexual, as legislações importantes para o tema, a rede de atendimento às situações e as formas
de acolhimento e encaminhamento.

Nesse último módulo vamos procurar discutir um pouco o papel de prevenção na escola, bem como algu-
mas estratégias de abordagem conforme as diferentes faixas etárias.

Professores Conteudistas » Márcia Maria Borba Lins (TJDFT); Ressalta-se que a proposta não é de entregar algo pronto e acabado, mas principalmente de apresentar alguns
Myrian Caldeira Sartori (TJDFT) pressupostos e direções para auxiliá-los a abordar a temática com maior segurança e tranquilidade na sala de aula.
196 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
197

O termo prevenção no campo da saúde, enquadra-se no modelo que preconiza um contínuo nos cuidados de vulnerabilidade, seja por apresentarem fatores de risco. Desta forma, focam em alguma vul-
e abordagem nos indivíduos para designar um conjunto de ações voltadas a evitar a expansão de uma doen- nerabilidade, conteúdos relativos a um alvo.
ça em determinada região ou população, foca-se na alteração dos comportamentos e das práticas pessoais
e sociais, no sentido de promoção da saúde individual e coletiva. * A Prevenção Indicada: inclui as estratégias adotadas quando às situações de violência já ocorre-
ram e espera-se cessar a agressão e diminuir suas consequências. Estratégias de prevenção indi-
No entanto, enquanto conhecimento científico, a prevenção, nas últimas décadas, alterou em um aumento cadas e formas de encaminhamentos foram estudadas no módulo III. Desta forma, a prevenção
de qualidade e conceptualização e eficácia das intervenções desenvolvidas. (Albee,1996). indicada decorre das anteriores, detectada onde há mais necessidade, de prevenção ao agravo.

Para mais informações sobre o assunto, acesse: https://www.sicad.pt/PT/Intervencao/PrevencaoMais/


* A Prevenção Ambiental: Tem o objetivo da alteração das normas sociais, que intervêm na trans-
formação dos contextos: culturais, sociais, físicos, econômicos que estão relacionados à violência.
SitePages/Home%20Page.aspx
O relatório mundial sobre a prevenção da violência (2014) apresenta sete estratégias para reduzir as múlti-
No âmbito do enfretamento à violência, utilizaremos a prevenção ou intervenção preventiva que tem como plas formas de violência, sendo seis delas voltadas para a prevenção:
objetivo fornecer aos indivíduos e/ou grupos os conhecimentos e competências necessárias para lidarem
Desenvolver relacionamentos seguros, estáveis e protetores entre crianças e seus
com os riscos, os fatores que promovem a sua facilitação da instalação do comportamento do risco, bem
genitores e cuidadores;
como promovendo o desenvolvimento fatores de proteção.
Desenvolver em crianças e adolescentes as habilidades para a vida;
Desta forma, a prevenção contempla os seguintes níveis:
Reduzir a disponibilidade e o uso nocivo do álcool;
LEMBRETE * Prevenção Universal: Dirigida a toda população, sem avalia-
Reduzir o acesso a armas de fogo e facas;
ção prévia de risco, sendo: programas em larga escala, campa-
Atuar na prevenção só é
nhas, conteúdos que beneficiam a todos. Dessa forma, espera-se
possível se houver clareza e Promover igualdade de gênero, visando prevenir a violência contra a mulher;
que ao se trabalhar as causas, por meio, de medidas de antecipa-
compreensão sobre a dinâ-
ção, seja possível combater a violência antes de seu surgimento. As Mudar normas culturais e sociais que apoiam a violência;
mica dos contextos de sur-
ações de prevenção universal são direcionadas a toda a população.
gimento da violência, uma Criar programas de atendimento às vítimas, incluindo identificação e cuidados.
vez que exige uma conduta
profissional técnica e ética.
* A Prevenção Seletiva: é dirigida a subgrupos ou segmentos
da população, diz respeito às ações direcionadas ao público mais
https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2015/11/1579-VIP-Main-report-Pt-Br-26-10-2015.pdf
suscetível à situação de violência, seja por estarem em situação
198 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
199

Essa perspectiva direcionada a estratégias de prevenção tem como pres- Por isso nas próximas aulas vamos procurar apresentar estratégias que ataquem as causas e as estruturas
SOCIEDADE
JUIZADO DA CIVIL suposto acreditar que a violência é um fenômeno previsível e evitável. que potencializam a violência sexual contra meninas e mulheres.
INFÂNCIA E
Não quer dizer que seja simples, com apenas uma causa.
JUVENTUDE
As estratégias e ações realizadas pela escola podem ter, didaticamente, duas abordagens:
CONSELHOS Como visto nas aulas anteriores, a violência sexual é multicausal, envol-
PROMOTORIA
DE
TUTELARES
ve questões sociais, culturais e individuais e, portanto, deve ser estudada * Uma abordagem no nível macro, que inclui processos sociais, estratégias de mudança coleti-
INFÃNCIA
como um fenômeno complexo e por isso exige um trabalho articulado va e ações que abordem os valores e conceitos promotores de uma cultura de paz e igualdade
E JUVENTUDE
entre as diversas instituições da rede, as quais possuem papéis definidos. entre os gêneros;
ÓRGÃOS
CONSELHOS
DE
DIREITO
GOVERNAMEN
TA IS
Daí a importância de delinearmos de forma mais clara o papel da
* Uma abordagem no nível micro, que inclui ações e estratégias relacionadas a atitudes, compor-
tamentos pessoais dos indivíduos que compõem a escola.
escola nessa dinâmica.
Dessa forma, convém reforçar alguns pressupostos básicos do trabalho de prevenção da violência sexual no
A escola é entendida como espaço dedicado a educação da consciência ambiente escolar:
VOCÊ SABIA dos indivíduos enquanto seres históricos e protagonistas de sua tra-
Que em 2004, por reconhe- jetória e lugar no mundo. Essa concepção aborda a escola não apenas * Discutir e apresentar conceitos sobre violência com crianças e adolescentes exige preparação,
cer a importância da escola como espaço de transferência de conhecimento, mas principalmente reflexão e conhecimento teórico, a fim de garantir uma abordagem técnica e ética.
na proteção das crianças e
dos adolescentes, o Governo
como espaço de formação política, transformação social e cultural.
* As crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e, portanto, devem ser considerados como
agentes protagonistas na construção do conhecimento. O acesso à informação de qualidade é
Federal desenvolve o proje- Nesse sentido, a escola tem papel essencial na construção de estraté-
direito da criança e do adolescente e, portanto, deve ser protegido e garantido pela escola, em
to ESCOLA QUE PROTEGE , gias para mudança de normas sociais e culturais que objetificam as
parceria com outros órgãos.
que tem como objetivo pro- mulheres, reforçam estereótipos de gênero e estabeleçam estruturas
mover ações educacionais e de dominação e desigualdades de poder. * Considerando que os estereótipos rígidos de gênero e a objetificação da mulher na sociedade
preventivas para reverter a são fatores determinantes na ocorrência da violência sexual, a escola deve atuar em estratégias
Além disso, a escola é um espaço privilegiado para se discutir a que promovam a equidade de gênero e a cultura da paz.
violência contra crianças e
violência uma vez que muitos conflitos acontecem no próprio am-
adolescentes.
biente escolar entre as crianças e jovens, sendo oportunidade para se * A violência sexual intrafamiliar envolve o contexto doméstico e por isso seu enfrentamento
http://portal.mec.gov.br/secad/ discutir as relações sociais e interpessoais e as estratégias para se cons- deve incluir atores da rede de proteção e responsabilização, daí a necessidade de a escola co-
arquivos/pdf/escqprote_ nhecer as instituições e os procedimentos de encaminhamento em uma perspectiva
truir uma cultura de paz, baseada na cooperação e respeito mútuo.
eletronico.pdf
200 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
201

* A infância e a adolescência são momentos de grande mudanças na identidade e personalidade AULA 02


do indivíduo, estando especialmente sujeitos à influência externa. Por isso os profissionais da
educação devem estar atentos ao vocabulário, recursos didáticos e abordagens pedagógicas PROPOSTAS PEDAGÓGICAS
utilizadas nas intervenções em sala de aula, considerando a faixa etária.
COM CRIANÇAS
* A educação sexual é estratégia de prevenção à violência uma vez que permite a abordagem de
aspectos relacionados ao corpo, à saúde e ao respeito mútuo.

* Cada sujeito possui múltiplos aspectos identitários, construídos discursivamente por fatores OBJETIVOS PRINCIPAIS
históricos e culturais. Esses marcadores (etnia, sexo, gênero, sexualidade, raça, classe social, etc)
devem ser levados em consideração na preparação das sequências pedagógicas e na escolha → Relacionar os objetivos nas atividades de prevenção à violência
dos recursos didáticos. sexual para crianças;

A sexualidade é uma energia, uma força vital, um impulso que pode encontrar várias formas de ex- → Descrever propostas de atividades pedagógicas para abordar a
temática com crianças;
pressão. Está presente desde o nascimento e permanece em todas as experiências emocionais e cons-
truções afetivas do ser humano, até sua morte. A sexualidade se apresenta de diferentes formas, → Apontar fontes de apoio e pesquisa para acesso a recursos didáticos.
transformando-se ao longo dos anos. Não está conectada somente aos órgãos genitais nem tam-
pouco à relação sexual, mas compreende uma série de processos psicológicos e físicos de sensações, Antes de iniciar essa aula, gostaríamos de enfatizar que o enfoque aqui será as estratégias de prevenção e
sentimentos, trocas afetivas, necessidade de carinho e contato e necessidade de aceitação. Sabendo enfrentamento à violência sexual, no entanto, um trabalho completo pode abordar de maneira mais geral a
que a sexualidade não se manifesta apenas nas regiões genitais, mas funciona como um impulso educação sexual na sala de aula.
para vários outros aprendizados e para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente,
cada etapa do desenvolvimento possui características próprias, comuns da idade e define a constru- Existem muitos trabalhos de qualidade sobre esse tema, mas para uma referência mais didática e objetiva,
ção de aspectos psicológicos, físicos, emocionais. recomendamos o livro “Educação sexual na sala de aula: relações de gênero, orientação sexual e igualda-
Calorine Arcari – curso Pipo e Fifi de étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças”, da Jimena Furlani (2016).

Para finalizar esse tópico, assista à videoaula do Dr. Reginaldo Torres Alves Jr., psicó- O início de um trabalho de prevenção à violência sexual na escola deve passar pela avaliação das práticas e
logo e analista judiciário do TJDFT. Clique sobre o link para assistir. programas transversais presentes nos diferentes espaços da instituição: no currículo, nos murais, na confi-
guração dos espaços das salas de aula e demais salas de aprendizado, nas atividades de educação física, na
https://www.youtube.com/watch?v=-aHkwgYZ2z4&t=4s
organização dos eventos e celebrações temáticas.
202 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
203

Avalie junto à equipe da escola se essas organizações e espaços: Esses questionamentos são importantes porque perpassam as estruturas e jogam luz sobre questões
muitas vezes invisibilizadas, seja pela falta de reflexões que possibilitam a nomeação dos fenômenos,
→Reforçam estereótipos de gênero e a dualidade entre meninos e meninas; seja pela naturalização.

→Objetificam os corpos das meninas e mulheres, seja por meio de imagens ou palavras;
Quando dizemos que “meninas são mais adiantadas em questões de sexualidade, pensam muito cedo em
→Invisibilizam o feminino, por meio da utilização do tratamento genérico no masculino; namoro, que isso faz parte da biologia, amadurecem mais cedo, despertam antes para essas questões, etc”,
→Criam obstáculos para a participação das meninas nos eventos, esportes ou estamos naturalizando um processo que é influenciado por questões socioculturais. É necessário um olhar
espaços de decisão; mais crítico e reflexivo sobre essa dinâmica que possibilite à escola repensar sua contribuição no processo
de objetificação das meninas, erotização da infância e reforço dos estereótipos de gênero. Só assim será
→Responsabilizam as meninas pelo comportamento de outrem, ao justificarem
possível propor estratégias que provoquem mudanças e potencializem iniciativas mais pontuais, realizadas
a violência a partir de suas roupas, falas, posturas, posições, etc;
na sala de aula. A escola precisa incluir a discussão em suas reuniões pedagógicas, cursos, capacitações e
→Geram maior responsabilidades para as meninas sobre os cuidados e afazeres comuns. projeto político-pedagógico.

A Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal(SSP/DF) em


Em relação ao nível mais interpessoal e individual, convém realizar uma avaliação que considere como a escola tem parceria com a Secretaria de Educação do DF, ONU Mulheres lan-
lidado com os problemas e conflitos entre as crianças e entre profissionais e crianças. Em equipe procure avaliar: çou dois vídeos de animação da Turma da Mônica com a temática
do enfrentamento à violência contra a mulher. O vídeo Juntos
→Quando surgem conflitos entre meninos e meninas como a questão é
pela Igualdade é direcionado para crianças de 7 a 11 anos.
resolvida pela escola?
→Existe uma perspectiva de gênero quando são trabalhadas as situa- https://www.youtube.com/watch?v=cIQqEx0LQ2U
ções de bullying?
→As crianças se sentem bem com seus corpos? Sabem nomear e identificar as
diferentes partes do corpo? Discutem os cuidados e higiene que devem manter?
→A mediação dos conflitos envolve reflexões sobre a necessidade de desconstrução do machismo
e misoginia? As crianças são estimuladas a nomear e identificar esses fenômenos?
→As crianças entendem o conceito de privacidade? Ficam à vontade para fazer perguntas sobre o tema?
Tomam decisões adequadas a sua idade?
204 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Em relação a possíveis estratégias pedagógicas a serem realizadas em sala de aula, convém reforçar que tra- É importante que a criança perceba que o espaço da escola é um lugar onde há acolhimento, transparência,
balhar o tema da violência sexual com criança é essencial porque possibilita o rompimento das situações de sinceridade e confiança.
violência antes de iniciada ou logo em seu início. Dito isso, gostaríamos de elencar alguns cuidados impor-
tantes a serem considerados no trabalho, tendo em vista a responsabilidade dos profissionais da educação: Procure formas adequadas para responder as seguintes perguntas que podem surgir em sala de aula com
crianças em torno de 4 a 8 anos de idade:
A temática deve ser abordada de forma técnica, participativa e interdisciplinar;

A escola precisa ser um espaço seguro, onde as crianças possam conversar com os professores para
* Professor(a), o que é Viagra?
tirar suas dúvidas; Convém antes de responder procurar saber de onde a criança trouxe a informação. Em geral, a dúvida
não deve alcançar os detalhes do ato sexual, exceto se houver uma exposição maior a conteúdo por-
A abordagem deve considerar a faixa etária das crianças, seu vocabulário e nível cognitivo-emocional; nográfico. São úteis questões como: “Onde ouviu a palavra?”, “o que você acha que é?”, etc. A partir
As atividades pedagógicas devem ser realizadas em coeducação, envolvendo igualmente meninos das informações da criança pode-se fornecer alguma resposta mais breve como “é um medicamento”
e meninas; ou “é uma marca de remédio”.

Esteja atento(a) ao vocabulário utilizado na condução das aulas e na escolha dos recursos pedagógicos. As * Professor(a), meu irmão me disse que eu nasci do sexo?
respostas às questões levantadas pelas crianças devem considerar seu nível cognitivo e de desenvolvimento. O diálogo e a interação com as crianças requerem abrir mão de nossa visão adultocêntrica e procurar
alcançar seu mundo, lógica peculiar e suas próprias concepções. Em geral, perguntas desse tipo nos
Muitas das vezes, cabe um olhar mais curioso do profissional no sentido de descobrir quais as motivações e
remetem a uma avaliação imediata, cheia de preconceitos e temores. Diante delas, sugere-se uma
circunstâncias que estão em torno da pergunta.
abordagem tranquila e transparente, que mostre segurança e simplicidade.
Também convém adotar uma postura aberta e horizontal. Frases do tipo “isso não é coisa de criança” ou
Nessa fase da infância, a linguagem da criança é marcada pelo sincretismo, o que quer dizer que não há
“que é isso? Onde ouviu falar disso?” afastam a criança, geram vergonha e medo e não contribuem para um
uma busca intencional pelas causalidades. A pergunta em questão tem mais a ver com a forma como
diálogo transparente e voltado à construção do conhecimento e proteção.
o problema foi colocado e o mistério em torno dele do que com a curiosidade em si sobre o ato sexual.
Assista ao vídeo, clicando no link e reflita. Em muitas situações, a melhor respos-
ta para o questionamento da criança é uma boa pergunta.
* Professor(a), minha mãe me disse que pinto é xingamento.
Algumas perguntas devem ser vislumbradas como oportunidades para desconstruir estereótipos, criar
https://www.youtube.com/watch?v=R7_EzS7fXDA vínculos, abordar o tema de forma natural e com respeito à diferença. Diante de uma afirmação como a
colocada, os profissionais podem apresentar os nomes das partes do corpo, abordando a diversidade de
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nomenclaturas, como forma de reconhecer a Atividades de prevenção à violência sexual com crianças pequenas podem ajudá-las a:
ATENÇÃO!
multiplicidade e a diferença como algo posi-
tivo e que enriquece o convívio e a visa social.
Se a criança trouxer, nas interações com o
professor ou com os colegas, palavras e com-
* Identificar o momento em que a pessoa adulta ultrapassa os limites da sua intimidade, causan-
A diversidade linguística é também uma ex- do-lhe vergonha, medo ou constrangimentos;
portamentos erotizados, que não condizem
pressão da pluralidade pessoal e social e deve
ser trabalhada como uma forma de promo-
com o vocabulário e atitudes comuns para * Reconhecer o espaço da escola como local de confiança, apoio e encorajamento nos casos de haver
sua faixa etária, o profissional deverá ficar dúvidas, receios, medos, vergonha por parte da criança na denúncia de situações de abuso. Relem-
ver e valorizar as diferenças sociais. bramos que, diante do fato de a maior parte dos casos de violência sexual se dar no ambiente intra-
atento, pois pode ser um indício de que a
familiar, a criança, em muitas situações, apresenta um sentimento dúbio, contraditório, relatos con-
* Professor(a), o que é sexo? criança esteja sendo exposta a conteúdo
pornográfico ou sendo vítima de violência fusos e não lineares, cabendo à escola o papel protetivo e a responsabilidade pelo encaminhamento.
Assim como colocado nas observações re- sexual. Lembre-se que para o encaminha-
O site da Childhood tem algumas orientações sobre temas que podem ser abordados em trabalhos de pre-
ferentes à primeira pergunta, aqui também mento do caso ao Conselho Tutelar, basta a
venção à violência sexual com crianças de 4 a 6 anos.
convém esclarecer o contexto e intenção da suspeita do profissional da educação.
criança ao fazer essa pergunta. A partir de
suas colocações, o(a) professor(a) poderá * Os corpos de meninos e meninas mudam * Abuso sexual é quando alguém toca em suas
trabalhar com o vocabulário da criança, apre- quando crescem; partes ou pede que você toque em suas partes
sentando o tema de forma adequada a sua íntimas;
faixa etária. O discurso da criança vai se dar
“Se em sua fase de desenvolvimento cabe
* Explicações simples sobre o processo de nasci-
com base nas interações sociais estabelecidas
apenas a curiosidade sobre órgãos sexuais,
sobre diferenças anatômicas entre gêneros e
mento dos bebês; * É abuso sexual, mesmo que seja por alguém
que você conhece;
no passado. Dessa forma, as perguntas e pa- sobre questões corporais, o fato de ela estar * Regras sobre limites pessoais (como não tocar em
lavras utilizadas pela criança nos dizem sobre reproduzindo cenas ou perguntas com ero- partes íntimas de crianças); * Abuso sexual nunca é culpa da criança;
suas interações, bem como sobre o acesso
aos conteúdos de forma deliberada, intencio-
tização excessiva pode revelar que está
sendo submetida a algum tipo de estimula-
* Respostas simples a todas as perguntas sobre o * Se um estranho tenta levá-lo com ele ou ela,
corpo humano orientar a correr e contar para os pais, professor,
nal ou por observação de um ambiente com ção, ou seja, o discurso socializado vigora, vizinho, policial ou outro adulto.
a presença desses conteúdos. sendo internalizado ou naturalizado para a
criança como uma mudança provocada de Para acessar todo o texto clique no link: https://www.childhood.org.br/educacao-sexual-para-a-
fora para dentro.”(Lordello, 2014) -prevencao-do-abuso-sexual-de-criancas-e-adolescentes.
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Um livro muito recomendado que procura abordar a prevenção à violência sexual com crianças bem pe-
quenas é o Pipo e Fifi, uma obra da Caroline Arcari. Clique nos links para ter acesso ao vídeo com a contação
da historinha, bem como para acessar recursos pedagógicos com download gratuito.

https://www.pipoefifi.org.br/publicacoes-gratuitas

AUTOPROTEÇÃO
https://www.youtube.com/watch?v=bc6EoyqXSIM Pode ser ensinada para crianças a partir de 3 anos
Video: “Livro premiado Pipo e Fifi - prevenção de violência sexual”

3 A 5 ANOS A PARTIR DOS 5 ANOS A PARTIR DOS 8 ANOS

Nessa idade as crianças já A criança pode aprender Deve-se iniciar um trabalho


podem aprender a identifi- noções de segurança pesso- de informação sobre as con-
car as partes íntimas e o que al, assim como ela já apren- dutas sexuais que são acei-
ela não pode permitir que de, por exeplo, situações de tas, de acordo com crenças e
façam com o seu corpo. risco como atravessar a rua. convicções de cada família.

Fonte: Childhood Brasil

Para mais informações acesse: https://www.childhood.org.br/educacao-sexual-para-a-preven-


cao-do-abuso-sexual-de-criancas-e-adolescentes

Ensinar a criança a identificar situações de violência sexual e a buscar ajuda são ações importantes, no
entanto, os profissionais devem estar atentos para não culpabilizar as crianças ou responsabilizá-las pela
denúncia. A escola tem papel fundamental na identificação dos sinais da violência sexual e no encaminha-
mento das suspeitas aos órgãos responsáveis.
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AULA 03

PARA PROPOSTAS PEDAGÓGICAS


REFLETIR

A sexualidade humana ainda é vista como tabu, por isso as metodologias


COM ADOLESCENTES
utilizadas devem ser preparadas estrategicamente antes de serem imple-
mentadas no espaço educacional. Para tanto, os profissionais de ensino devem estar capacitados
sobre o fenômeno da violência sexual e preparados tecnicamente para elaborar estratégias de
OBJETIVOS PRINCIPAIS:
prevenção e enfretamento à violência. Entender que a sexualidade como o desenvolvimento
humano deve ser compreendida como um processo contínuo na formação do sujeito. → Relacionar os objetivos nas atividades de prevenção à violência
sexual para adolescentes;
Trabalhar de forma preventiva é investir na educação sexual desde os primeiros anos de vida da
criança, é pensar em preparar esse sujeito para as mudanças que virão no seu desenvolvimento
→ Descrever propostas de atividades pedagógicas para abordar a
temática com adolescentes;
humano, na pré-adolescência, na adolescência e na fase adulta. Entender que a sexualidade
humana está presente em todas as idades, e cabe aos professores adaptá-las a linguagem a idade
→ Apontar fontes de apoio e pesquisa para acesso a recursos didáticos.

da criança e durante o processo de desenvolvimento ir introduzindo novos temas e assuntos.

Precisamos inverter a lógica da prevenção como algo pontual e linear, as quais crianças e adoles-
centes não são tratados como sujeito de direitos e, por isso são “poupados” de qualquer contato Assim como enfatizamos na Aula 02, gostaríamos de reforçar que o objetivo desse curso é o de abordar es-
em torno do tema da educação sexual. Essa lógica limitada do fenômeno da violência sexual acar- tratégias pedagógicas que abordem mais diretamente o tema da violência sexual. No entanto, a prevenção
reta atuar, muitas vezes, apenas na prevenção secundária ou terciária quando a situação de vulne- da violência sexual pode estar incluída em um programa mais amplo e permanente da escola que envolva
rabilidade e ou a violência já esteja instalada. temáticas como: igualdade de gênero, educação sexual, direitos humanos, ECA, igualdade étnico-racial,
respeito às diferenças, dentre outras.

A adolescência é considerada o período da vida entre os 12 e 18 anos, de acordo com o Estatuto da Criança
e Adolescente (ECA). É importante diferenciar a adolescência (período de mudanças de ordem emocional,
social e de vida sexual) da puberdade (período de maturação biológica).
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A adolescência é caracterizada, em geral, pelo interesse em: O currículo em movimento da Secretaria de Educação do DF prevê o tema “Sexo, Sexualidade e Gêneros”
no programa do 1º ano do Ensino Médio, dentro da Área Ciências Humanas – Dimensão Multiletramentos,
→Conhecimento de si, Natureza, Transformação e Sociedade.

→Autonomia pessoal,
A prevenção à violência sexual pode ser abordada de forma mais direta dentro dessa proposta ou ser abordada
→Dependência econômica da família, de forma transversal e integrada durante qualquer um dos anos do Ensino Médio, por meio de temas como:

→Projeções de futuro profissional e mercado de trabalho, * Envolvimento sexual e afetivo;


→Percepção de novos sentimentos afetivos, * Gravidez e suas implicações na vida de uma pessoa;
→Responsabilidade e cidadania, * Desigualdades sociais perante os sexos e como propiciam a violência;
→Percepção da sua sexualidade e orientação sexual e de- * Violência sexual e o uso das tecnologias;
finição da identidade de gênero.
* Conceitos de consentimento, privacidade, intimidade.
Fonte: FURLANI, 2016.

Essa fase de transição e transformação de uma mentalidade e emocionalidade infantil para uma emocio- http://www.cre.se.df.gov.br/ascom/documentos/subeb/cur_mov/5_ensino_medio.pdf
nalidade adulta, é caracterizada por mudança significativa na forma de interagir com as pessoas e de se
perceber no mundo. É essencial que sejam abordados conteúdos que instrumentalizem os estudantes a:

* identificarem situações de violência sexual,


* problematizarem estereótipos de gênero que vulnerabilizam as meninas em suas relações afetivas,
* atentarem para as consequências de suas atitudes no âmbito da sexualidade,
* desenvolverem estratégias e recursos para romperem relacionamentos abusivos e se protege-
rem de situações de violência sexual,

* utilizarem de forma responsável e segura as tecnologias e redes sociais.


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O site da Childhood tem algumas orientações sobre temas que podem ser abordados em trabalhos de pre- Em termos de recursos pedagógicos, o trabalho com adolescentes pode envolver:
venção à violência sexual com:
* Produção de texto;
CRIANÇAS E ADOLESCENTES DE 7 A 12
ANOS EM FASE DE PRÉ-PUBERDADE:
CRIANÇAS E ADOLESCENTES DE 7 A 12
ANOS EM FASE DE PUBERDADE:
* Leitura crítica de letras de música;
* Discussão a partir de campanhas contra a violência sexual;
* O que esperar e como lidar com as * Regras de encontros; * Leitura crítica e produção de tirinhas;
mudanças da puberdade;
* Noções básicas de reprodução,
* Produção de curtas metragens;
* O abuso sexual pode ou não envol- gravidez e parto;
ver o toque;
* Riscos da atividade sexual (gravi- * Rodas de conversa em torno de problemáticas;
* Como manter a segurança e limites dez e doenças transmitidas);
* Estudos de casos;
pessoais quando conversar ou co-
nhecer pessoas on-line; * Noções de contracepção. * Discussão em torno de reportagens e campanhas publicitárias
* Como reconhecer e evitar situações Qualquer que seja a opção didática do(a) professor(a) é importante estar atento(a) para:
sociais de risco.
* Realizar atividades em coeducação, envolvendo no mesmo espaço meninas e meninos;
https://www.childhood.org.br/educacao-sexual-para-a-prevencao-do-abuso-sexual-de-criancas-e-adolescentes * Desenvolver um olhar crítico que questione os estereótipos de gênero e desnaturalize a violên-
cia sexual;

* Proponha formas positivas de relacionamentos afetivos e cuidados com o corpo;


* Estimule a autorresponsabilidade.
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A fim de possibilitar o apoio no desenvolvimento de atividades em sala de aula seguem alguns recursos Propagandas e campanhas publicitárias são ótimos recursos
didáticos úteis e propostas de discussão: para se discutir a objetificação do corpo feminino e sua erotiza-
ção. Lembre-se de abordar o tema com um olhar crítico e uma
abordagem teórica que desconstrua os estereótipos e apresen-
te argumentos teóricos. Assim, o(a)s estudantes poderão ir
para além do senso comum.

Ao propor uma discussão a partir de uma propaganda, esteja aten-


to(a) para não reforçar os estereótipos ou a objetificação da mu-
lher. Procure associar a forma como essas tecnologias naturalizam
e intensificam a violência de gênero, sobretudo a violência sexual.

Os conteúdos abordados no primeiro Módulo do curso são mui-


to importantes para apoiá-lo(a) nisso.

VAI TOMAR DORMINDO (MC ROBA CENA)


Se dormir, se dormir, se dormir
Outro recurso interessante são as músicas Vai to vai to vai tomar dormindo
brasileiras. O site http://mmpb.com.br/ traz Vai to Vai tomar dormindo
Vai to vai to vai to vai to vai tomar dormindo
uma grande quantidade de letras de música
Em menos de dez segundos, você ja acorda rindo.
que reforçam estereótipos de gênero e natu- Toma! Toma! Toma! Toma! Toma! Toma!
Textos e imagens: Como as mostradas ao lado podem ser um bom recurso para iniciar uma roda de con- ralizam a violência contra a mulher. Toma! Toma! Toma! Toma!
Na madrugada ela prometeu, que ia acabar comigo sentando,
versa na turma. A(o) professora pode discutir com o(a)s estudantes que comportamentos são falsamente Agora vem com o papo que tá aqui cheia de sono,
considerados pela sociedade como provas de amor em um namoro? Esses comportamentos são mais dire- A música ao lado está disponível no site MMPB
Rôba Cena tá cantando então escuta isso daqui!
cionados a um determinado gênero? Como um relacionamento amoroso poderia enriquecer nossas vidas? e pode ser utilizada para tratar do crime de es- Se dormir, se dormir, se dormir
Como sabemos se estamos em um relacionamento violento? O que fazer para buscar ajuda? tupro de vulnerável. Nesse caso, sugere-se que Vai to vai to vai tomar dormindo
sejam abordados também conceitos como Vai to Vai tomar dormindo
Vai to vai to vai to vai to vai tomar dormindo
consentimento e responsabilidade penal. Em menos de dez segundos, você já acorda rindo.
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A Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal(SSP/DF) em parceria com a Secretaria de Educação do Uma forma muito interessante de se abordar a prevenção à violência sexual é trabalhar o conceito de con-
DF, ONU Mulheres lançou dois vídeos de animação da Turma da Mônica com a temática do enfrentamento à sentimento. As tirinhas abaixo do Alli Kirkham trazem essa temática de forma lúdica e bem esclarecedora.
violência contra a mulher. O vídeo Papo Reto, com a Turma da Mônica Jovem , busca ajudar os adolescentes
entre 12 a 17 anos a identificar indícios de comportamentos que podem tornar um relacionamento abusivo.
Segue o LINK: https://www.youtube.com/watch?v=fOB8Ed2e24E

GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA
Ao entrar na sala de aula, a professora vê um grupo de O estudo de caso é uma forma de se discutir a partir de
adolescentes conversando animadamente num clima de
uma situação concreta temas importantes para a
segredo. A professora se aproxima e percebe que o grupo
está falando sobre uma de suas alunas, chamada Tamires. prevenção à violência sexual. O(a) professor(a) pode
Tamires, uma jovem de 15 anos, mora com a mãe e mais apresentar a história e em seguida dividir a turma em
dois irmãos de uma segunda união da mãe. Apesar de não
demonstrar interesse especial pelos estudos, ela costuma
grupos em coeducação propondo perguntas para
frequentar a escola com assiduidade. Entretanto, no último direcionar a discussão. Ao final, abre-se a roda para
mês Tamires vem faltando muito às aulas. Naquela
semana ela ainda não havia comparecido ao colégio. A
compartilhar as conclusões às quais os grupos chegaram.
professora sabe que ela vem enfrentando problemas fami-
liares. Desde que o segundo marido da mãe foi embora, há Ao lado, uma proposta de estudo de caso para discutir
6 meses, a mãe passa a maior parte do tempo fora de casa,
trabalhando, e cabe a Tamires cuidar dos irmãos menores. gravidez na adolescência, disponível no livro Educação se-
A professora se aproxima do grupo e pergunta: “Escutei xual na sala de aula, de Jimena Furlani.
vocês falando o nome da Tamires. Vocês sabem se acon-
QUESTÕES SUGERIDAS
teceu alguma coisa com ela? Estou preocupada, pois ela
tem faltado muito às aulas”.
Por que a gravidez na adolescência é vista como
As jovens se entreolham, ficam em silêncio, e uma delas
diz: (Final 1) “A Tamires está grávida e disse que vai
um problema da juventude hoje?
parar de estudar”.
Em sua opinião a gravidez é responsabilidade da menina
(Final 2) “ A Tamires estava grávida e fez um aborto no Acesse o link abaixo para encontrar outras tirinhas do mesmo autor.
início desta semana... Soubemos que ela não está pas- ou do menino?
sando bem”.
O que você mudaria na sua vida ou o que você faria se
Questões: 1. Se você estivesse no lugar desta professora, https://www.geledes.org.br/estupro-e-consentimento-explicados-em-simples-tirinhas/
você aproveitaria esse fato para abordar, em sala de você soubesse que está grávida?
aula, a questão da gravidez na adolescência? 2. Em sua
opinião, o tema do aborto deve fazer parte da discussão Ter filho(a)s pode ser uma escolha, uma decisão pessoal?
sobre gravidez e métodos anticoncepcionais? 3. Como E quando?
você abordaria a questão do aborto? (MEC/CLAM, 2006)
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Alguns jogos podem o(a) professor(a) a deixar a discussão sobre o tema mais interessante e participativa.
Outros dois conceitos importantes de serem traba-
Um exemplo é o “Jogo – Vamos ‘fica’”, proposto no livro “Educação Sexual na sala de aula, de Jimena Furlani.
lhados com adolescentes é a privacidade e intimida-
de. Esses conceitos podem ser explorados junta-
Descrição: A discussão consiste em problematizar frases afirmativas, apresentadas ao grupo, pelo(a)
mente com a problemática do uso de redes sociais
professor(a), previamente escolhidas para discussão de um tema específico.
e aparelhos eletrônicos, alertando para os riscos de
envio de nudes e a sextorção.
Frases sugeridas para o tema namoro:
O namoro ajuda na vivência da amizade, da intimidade e de experiências amorosas e sexuais;
A campanha #iternetsemvacilo da Unicef tem vá-
No Brasil, o relacionamento amoroso casual e sem compromisso é denominado, pelos adolescen- rios vídeos interessantes que podem ser utilizados
tes, “ficar”; para a discussão dessa temática. Acesse os links
Nem todas as pessoas (adultos ou adolescentes) namoram ou “ficam” com alguém; abaixo para visualizar os vídeos.
Para que um relacionamento seja de qualidade a responsabilidade é de ambos o(a)s parceiro(a)s;
Num namoro, nem sempre as pessoas querem manter relações sexuais;
https://www.youtube.com/watch?v=QNNWZsW2cHA&list=PLg5IhsOl5bLWLpGL9Egiymu5Qsa-
Ter tido vários namoros pode significar um direito de escolha. 7pkWiP&index=3 Video: “[UNICEF] #InternetSemVacilo​| Sexting
Sequência

A atividade se inicia com o(a) professor(a) fixando um painel na parede da sala, que apresenta seus https://www.youtube.com/watch?v=uhQJ9PtMcIs&list=PLg5IhsOl5bLWLpGL9Egiymu5Qsa-
frases sobre o tema, uma abaixo da outra, sem rigor na sequência. As frases são numeradas e estão 7pkWiP&index=5 Vídeo “[UNICEF] #InternetSemVacilo​| Privacidade”
cobertas por faixa (não devem ser vistas, a princípio); apenas o número deve ser visto.

O grupo é dividido em duas equipes mistas, e disposto em formato de ferradura voltado para a
parede onde se encontra o painel. Através de sorteio, cada equipe será responsável por três frases.
Um(a) voluntário(a) sorteia um dos números. Em seguida, retira a proteção da pergunta sorteada,
para que o grupo todo discuta. A equipe, cujo número lhe pertence, tem a prioridade de manifestar
a opinião sobre a frase afirmativa. Todos os alunos e alunas devem falar. Opiniões discordantes,
mesmo que originárias da mesma equipe, devem ser consideradas.
222 MARIA DA PENHA VAI À ESCOLA » ABORDAGEM TÉCNICA DAS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA SEXUAL PARTE II CONTEÚDO DO CURSO MINISTRADOS PARA PROFISSSIONAIS DA EDUCAÇÃO E DA REDE DE PROTEÇÃO
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Convém ressaltar a importância de se abordar esses temas de forma completa e propositiva. Após as discus- BIBLIOGRAFIA DO MÓDULO IV
sões e problematizações o(a) professor(a) poderá sugerir produções de textos, vídeos, músicas e desenhos
ALBEE, George W. Revolutions and counterrevolutions in preven- LORDELLO, Silvia R. M. Desenvolvimento infantil: a revelação da crian-
que reforcem a importância de uma convivência igualitária entre meninos e meninas, que garanta uma vida tion. 1996. ça pela linguagem. In: SANTOS, Benedito Rodrigues dos; GONÇALVES,
sem violência. Itamar Batista; VASCONCELOS, Gorete (Org.). Escuta de crianças e
ARCARI, C. Pipo e Fifi. Prevenção de Violência Sexual na Infância. Edi- adolescentes em situação de violência sexual: Aspectos Teóricos
tora Cores, 1ª edição, 2013. e Metodológicos. Brasília: Editora da Universidade Católica de Brasí-
Também é muito importante que durante as discussões o(a) professor(a) aponte as formas de se realizar a BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Es-
lia, 2014.

denúncia ou se pedir ajudar. tatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Relatório Mundial sobre
1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ Prevenção da Violência. Traduzido pelo Núcleo de Estudos da Vio-
L8069Compilado.htm>. Acesso em 11. jan. 2019. lência da Universidade de São Paulo (NEVUSP), USP, São Paulo, 2014.
Nesse sentido, é essencial que o(a)s profissionais da educação estejam preparado(a)s para apoiar o(a)s estu- Disponível em <www.nevusp.org/relatorio-mundial-sobre-a-pre-
CHILDHOOD. Educação sexual para a prevenção do abuso sexual de
dantes e realizar os devidos encaminhamentos. crianças e adolescentes: Como falar sobre sexualidade e prevenção do
venção-da-violencia-2014>
abuso sexual com crianças e adolescentes de acordo com cada faixa SICAD. Prevenção: Enquadramento. Disponível em: <http://www.
etária. 2019. Disponível em:< https://www.childhood.org.br/educa- sicad.pt/PT/Intervencao/PrevencaoMais/SitePages/Home%20Page.
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lescentes>.
SCHENER, Bruna. Estupro e consentimento explicados em simples
FURLANI, Jimena. Educação sexual na sala de aula: relações de tirinhas. Portal Geledés, 2015. Disponível em: < https://www.gele-
gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial numa pro- des.org.br/estupro-e-consentimento-explicados-em-simples-tiri-
posta de respeito às diferenças. Autêntica, 2016. nhas/>. Acesso em: 07/05/2021.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Currículo Em Movimento da
Educação Básica: Ensino Médio. Brasília: Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal, 2010.
PRODUÇÃO GRÁFICA: COORDENADORIA DE EDITORAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO
MPVE NJM
Maria da Penha vai à Escola Núcleo Judiciário da Mulher
ISBN E-book: 9788560464326

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