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MARINA DUDA
CURITIBA
2021
MARINA DUDA
CURITIBA
2021
MARINA DUDA
Orientador: _______________________
________________________________
Prof. Membro da Banca
Curitiba, de de 2021
E a deusa me acolheu benévola, e na sua a minha
mão direita tomou, e assim dizia e me interpelava:
(Parmênides de Eleia)
RESUMO
The present work intends to understand how the speeches that compose public
opinion legitimize the politics of death by the state. Before entering the central question,
it's intended to investigate the concept of politics of death from three authors, namely
Michel Foucault, Giorgio Agamben, and Achille Mbembe. Later, from the conception
of politics of death formulated initially, five cases are critically analyzed from the
perspective of speeches in the Brazilian context that, directly or indirectly, touch the
state's action in the decision on death. The first of these refers to the Vala de Perus
and its relation with the discourse of the internal enemy, followed by the case of federal
intervention in the state of Rio de Janeiro and the issue of public security, deforestation,
and economic speech, and, finally, the question of the black population and racial
speech. Outlined the relation between discourses and the legitimation of politics of
death, the role of law in this context is investigated, based on the relationship between
state and legal order developed in the theories of Hans Kelsen and Max Weber.
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 7
2 AS POLÍTICAS DA MORTE ................................................................................. 9
2.1 A QUESTÃO BIOPOLÍTICA EM FOUCAULT ....................................................... 9
2.2 AGAMBEN E O PARADOXO DO HOMO SACER .............................................. 11
2.3 A NECROPOLÍTICA SOB A ÓTICA DE MBEMBE ............................................. 15
3 O DISCURSO E A LEGITIMAÇÃO DAS POLÍTICAS DA MORTE.................... 20
3.1 A VALA DE PERUS E O DISCURSO DO INIMIGO INTERNO........................... 20
3.2 A INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO DE JANEIRO E A QUESTÃO DA
SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................................... 24
3.3 A QUESTÃO DAS PERIFERIAS E O DISCURSO NEOLIBERAL ...................... 28
3.4 A QUESTÃO DOS DESMATAMENTOS COMO DISCURSO ECONÔMICO ..... 33
3.5 A QUESTÃO DA POPULAÇÃO NEGRA E O DISCURSO RACIAL ................... 37
4 O DIREITO FRENTE AOS DISCURSOS E ÀS POLÍTICAS DA MORTE .......... 43
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 52
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 55
7
1 INTRODUÇÃO
Afinal, a própria lei maior veda qualquer decisão que venha nesse sentido. Ao
mesmo tempo, é cada vez mais nítido que, mesmo em um estado democrático de
direito, é possível determinar, diante de algumas circunstâncias, a vida e a morte das
populações e possibilitar ou impossibilitar a concretização do direito à vida. O presente
trabalho, portanto, busca esclarecer esse marco da modernidade, fundamentado pelo
conceito de biopolítica em Foucault, para entender como o estado se apropriou do
poder sobre os processos biológicos.
decisão sobre a morte. Em primeiro lugar, o estudo sobre o caso da Vala de Perus e
a sua relação com o discurso do inimigo interno, seguido pela intervenção federal no
Rio de Janeiro e a questão da Segurança Pública, a situação das periferias e o
discurso neoliberal, a questão dos desmatamentos como discurso econômico e, por
último, a população negra e o discurso racial.
2 AS POLÍTICAS DA MORTE
Para entender o fundamento do autor quanto ao fato histórico, vale fazer uma
diferenciação relevante suscitada por ele no livro Homo Sacer: O poder soberano e a
vida nua - entre a vida nua, ou seja, a natural e comum a todos os seres a que ele
denomina zoé, e a vida politizada, que seria a inserida na comunidade como uma
maneira de viver, a que ele denomina bíos. Ambos os termos são contemplados a
partir da tradição grega e da leitura de Platão e Aristóteles.
Na obra Meios sem fim: notas sobre a política, então, Agamben relaciona estes
termos para justificar a razão pela qual considera a Declaração dos Direitos do
Homem relevante nesse sentido:
Como o próprio Agamben revela, o motivo pelo qual a Declaração dos Direitos
do Homem assume um marco na história da biopolítica é a inscrição de um
acontecimento da vida natural (o nascimento), na ordem do Direito. A partir de então,
o simples fato de nascer implicará pertencer a uma comunidade política, sendo o
estado a instituição responsável por resguardar a vida biológica ou vida nua, como
Agamben se refere. Essa vida nua que, na antiguidade, estava sob o cuidado dos
deuses e que na Grécia antiga, por exemplo, se distinguia da vida política exercida na
pólis, agora é inserida na ordem jurídica.
Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade - mesmo a mais moderna -
decide quais sejam os seus "homens sacros". É possível, aliás, que este
limite, do qual depende a politização e a exceptio da vida natural na ordem
jurídica estatal não tenha feito mais do que alargar-se na história do Ocidente
e passe hoje - no novo horizonte biopolítico dos estados de soberania
nacional - necessariamente ao interior de toda vida humana e de todo
cidadão. A vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma
categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente
(AGAMBEN, 2002, p. 146).
Outro aspecto interessante trazido pelo autor e que contribui para as reflexões
sobre políticas de morte é quanto o papel que o estado de exceção ocupa nas
democracias modernas, de modo a definir quem está ou não submetido às leis, ou
seja, quem é o homo sacer. Nesse sentido, em diálogo com as obras de Hannah
Arendt, Agamben utiliza o paradigma dos campos de concentração para demonstrar
como há espaços institucionalizados onde a lei pode não ser aplicada.
Hannah Arendt uma vez observou que, nos campos, emerge em plena luz o
princípio que rege o domínio totalitário e que o senso comum recusa-se
obstinadamente a admitir, ou seja, o principio segundo o qual "tudo é
possível". Somente porque os campos constituem, no sentido que se viu, um
espaço de exceção, no qual não apenas a lei é integralmente suspensa, mas,
além disso, fato e direito se confundem sem resíduos, neles tudo e
verdadeiramente possível. Se não se compreende esta particular estrutura
jurídico-política dos campos, cuja vocação é justamente a de realizar
estavelmente a exceção, o incrível que aconteceu dentro deles permanece
totalmente ininteligível (AGAMBEN, 2002, p.117).
Os campos, nesse sentido, são ambientes nos quais o estado de exceção não
mais é provisório, mas definitivo, é a própria regra. Mbembe1, posteriormente, retoma
essa ideia ao afirmar que na estrutura jurídica e política do campo de concentração,
“[...] o estado de exceção deixa de ser uma suspensão temporal do estado de direito.
De acordo com Agamben, ele adquire um arranjo espacial permanente, que se
mantém continuamente fora do estado normal da lei” (MBEMBE, 2018, p. 124).
1Achille
Mbembe, filósofo e teórico político camaronês, dialoga com as obras de Foucault e Agamben
para desenvolver seu conceito de necropolítica
15
[...] sob quais condições práticas se exerce o direito de matar, deixar viver ou
expor à morte? Quem é o sujeito dessa lei? O que a implementação de tal
direito nos diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada à morte e sobre a
relação antagônica que coloca essa pessoa contra seu ou sua assassino/a?
Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas
contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da
luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e
absoluto? (MBEMBE, 2018, p. 123).
Ainda, Franco interpreta sob a ótica de Mbembe que nas nações colonizadas
habitam os “selvagens”, cujas vidas são “entregues às necessidades e às
determinações que a natureza lhes impunha” (FRANCO, 2018, p. 84). Essas vidas,
assim, são estrangeiras, estranhas, ameaçadoras. Nesse contexto, não há espaço
para o reconhecimento da morte do “selvagem”. Mbembe, partindo dessa
compreensão, identifica essa forma de operar do estado de exceção nas colônias em
2Fábio Luís Ferreira da Nóbrega Franco, psicanalista e doutor em Filosofia, desenvolve a sua tese
sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil a partir dos casos da vala clandestina em Perus,
São Paulo. Para tanto, investiga os limites das elaborações de Foucault, Agamben e Mbembe.
18
3TELES, Maria Amélia de Almeida; LISBOA, Suzana Keniger. A vala de Perus: um marco histórico na
busca da verdade e da justiça. In: Vala Clandestina de Perus: desaparecidos políticos, um capítulo
não encerrado da história brasileira. São Paulo: Instituto Macuco, 2012.
21
4 A Comissão Nacional da Verdade teve como propósito maior, conforme a própria lei que o institui, o
resgate da verdade histórica durante os períodos ditatoriais acerca das várias violações de direitos, de
modo a tornar efetivo o direito de memória. Foram esclarecidos, até a sua extinção, mortes,
desaparecimentos e torturas promovidas pelo Estado brasileiro.
22
socialista foi nítido. Nas palavras de João Goulart em 13 de março de 1964, transcritas
pela Empresa Brasileira de Comunicações, pedia-se:
Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela
reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de
todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação
econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil. (EBC, 2014)
5HALL, Clarence W; WHITE, Willian L. “A nação que se salvou a si mesma”. In: Seleções do Reader’s
Digest, nº 274, nov. de 1964, p. 93-120.
23
Por fim estava tudo preparado. A inflação piorava dia a dia; a corrupção
campeava; havia inquietação por toda a parte – condições perfeitas para os
objetivos comunistas. O governo do presidente João Goulart estava crivado
de radicais; o Congresso, cheio de instrumentos dos comunistas. Habilmente,
anos a fio, os extremistas de esquerda tinham semeado a idéia de que a
revolução era inevitável no Brasil. Dezenas de volumes eruditos foram
escritos acerca da espiral descendente do Brasil para o caos econômico e
social; a maioria concordava em que a explosão que viria seria sangrenta,
comandada pela esquerda e com um elenco acentuadamente castrista.
(HALL; WHITE, 1964, p. 96)
SEGURANÇA PÚBLICA
6 CHOMSKY, Noam. Novas e Velhas Ordens Mundiais. São Paulo, Scritta, 1996.
25
Apesar das críticas, o decreto teve seus efeitos até o final de 2018, enquanto a
Reforma da Previdência (PEC 287/2016) havia sido travada no Congresso Nacional e
o número de crimes patrimoniais em áreas nobres do estado do Rio de Janeiro eram
amplamente divulgados após o carnaval. Segundo relatório elaborado pelo Centro de
Estudos de Segurança e Cidadania8, da Universidade Candido Mendes, “a injeção de
1,2 bilhão de reais de recursos federais não produziram mudanças significativas na
segurança pública do Rio” (CESeC, 2019, p. 1) e que,
9 Todos os dados foram extraídos do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre
segurança pública de 2012. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/120705_sips_segurancapublica.pdf. Acesso
em: 25 de nov. de 2020.
10 GUIMARÃES, MARIA. Cada medo é um medo. Pesquisa Fapesp, São Paulo, 2012. Disponível em:
https://revistapesquisa.fapesp.br/cada-medo-%C3%A9-um-medo/. Acesso em: 25 de nov. de 2020.
28
Quando um animal é posto numa situação que percebe como risco de perder
a vida – um rato dentro de uma gaiola com um gato, por exemplo –, ele
rapidamente a memoriza. Nos dias seguintes, basta pôr o rato na gaiola,
ainda que sem o gato, para suscitar uma reação idêntica de pânico
paralisante. (FAPESP, 2012)
Nesse sentido, vale a análise de Bauman sobre o medo: “Há muito mais
infortúnios sendo proclamados iminentes do que aqueles que acabam realmente
ocorrendo, de modo que sempre podemos esperar que este ou aquele desastre
recentemente anunciado acabe nos ignorando.” (BAUMAN, 2008, p.14)
O neoliberalismo pode ser definido como uma doutrina econômica e social que
resgata conceitos e ideais do liberalismo clássico para se opor ao Estado de Bem-
Estar e propor um modelo de governo no qual a sua presença no mercado e na
sociedade é reduzida, ou seja, a intervenção de tudo o que é público se dá em limites
restritos e previamente definidos. De acordo com Marilena Chauí11:
11
Chauí, Marilena de Souza. O totalitarismo neoliberal. Revista Anacronismo e Irrupción: Revista de
teoría y filosofía política clásica y moderno, Buenos Aires, vol. 10, Nº 18, p. 307-328, maio – out.
2020. Disponível em: https://publicaciones.sociales.uba.ar/index.php/anacronismo/article/view/5434.
Acesso em: 25 de nov. de 2020.
29
De acordo com a filósofa, entretanto, esses ideais teriam ganhado força maior
a partir dos anos de 1970, quando as reduzidas taxas de crescimento econômico e
altas taxas de inflação foram a causa de crises e lançaram dúvidas sobre o sistema
capitalista. O neoliberalismo, nesse cenário, oferecia explicações para os problemas
que surgiam e as crises. Conforme Chauí,
[...] estas, diziam eles, fora causada pelo poder excessivo dos sindicatos e
dos movimentos operários que haviam pressionado por aumentos salariais e
exigido o aumento dos encargos sociais do Estado. Teriam, dessa maneira,
destruído os níveis de lucro requeridos pelas empresas e desencadeado os
processos inflacionários incontroláveis. (2020, p. 309)
12FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção
Tópicos)
30
Thatcher - Não posso dar uma resposta breve. Acho que o senhor parte de
suposições totalmente erradas. Os objetivos principais da sociedade na qual
acredito são a liberdade, a justiça e a livre iniciativa. Nada disso pode ser
obtido fora do império da lei e sem um Judiciário independente. A
prosperidade de uma nação provém da livre iniciativa de cada um e de uma
situação em que a lei é igual para todos. Governos não criam riqueza, quem
faz isso são as indústrias e os serviços. É o povo, com sua própria bagagem
e sua própria capacidade de iniciativa, que cria empresas. (VEJA, p. 8-9)
13 Thatcher, Margaret. A receita da leoa. Veja, São Paulo, n. 10, p. 7-10, 9 de mar. de 1994. Entrevista
concedida a Marco Antônio de Rezende. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/acervo/#/edition/33211?page=8§ion=1. Acesso em: 15 de nov. de 2020.
32
14Os dados foram retirados da Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas realizada
pelo IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-
agencia-de-noticias/releases/28294-pesquisa-pulso-empresa-entre-as-empresas-que-estavam-
fechadas-na-1-quinzena-de-junho-39-4-encerraram-atividades-por-causa-da-pandemia. Acesso em:
15 de nov. de 2020.
33
15A estatística foi extraída da Síntese de Indicadores Sociais 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-
agencia-de-noticias/noticias/25883-abandono-escolar-e-oito-vezes-maior-entre-jovens-de-familias-
maispobres#:~:text=No%20pa%C3%ADs%2C%20cerca%20de%20737,menor%20no%20Sudeste%2
0(6%25). Acesso em: 15 de nov. de 2020.
34
16Uiá Freire Dias dos Santos, historiador social, desenvolve sua tese de mestrado no tema “Negociação
e conflito na administração do Pau-Brasil: a Capitania de Porto Seguro (1604 – 1650)”. Para tanto,
retoma a dinâmica inicial na história do Brasil.
17As informações relativas ao desmatamento tropical e ilegal no Brasil foram extraídas do relatório da
Florest Trends, instituição sem fins lucrativos sediada em Washington DC – EUA que atua na
preservação ambiental. Disponível em: https://www.forest-trends.org/wp-
content/uploads/imported/for168-consumer-goods-and-deforestation-letter-14-0916-hr-no-crops_web-
pdf.pdf. Acesso em: 15 de nov. de 2020.
35
Conforme reza a Constituição Federal, em seu artigo 225, “Todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
18 Dados extraídos de tabelas publicadas pelo portal de notícias do INPE. Disponível em:
http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5465.
19 O comentário foi divulgado pelo portal de notícias da Globo em julho de 2019, esclarecendo que a
declaração teria sido feita em maio do mesmo ano. Disponível em:
https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2019/07/31/governador-do-ac-diz-a-produtores-para-nao-
pagarem-multas-de-crimes-ambientais-quem-manda-sou-eu.ghtml.
36
recebida, garantido que não deixaria que o Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac),
afetasse de alguma maneira quem deseja trabalhar.
Seria quase como se a natureza fosse algo contra o qual se precisa lutar para
extrair riquezas, o que nem sempre procede na realidade. Sabe-se, por exemplo, que
o extrativismo vegetal não-madeireiro pode gerar bom retorno financeiro aos estados,
movimentando a economia regional e contribuindo para a renda das populações
locais. Como exemplo, cabe mencionar o comércio do açaí no norte do país.
22 Dados extraídos do Canal Brasil 500 anos, do IBGE, que apresenta um panorama sobre a ocupação
no território brasileiro ao longo de sua história, com vistas a demonstrar por meio de gráficos e
estatísticas a contribuição por grupos étnicos distintos no país. Disponível em:
https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros.html. Acesso em 27 de nov.
De 2020.
38
Conforme relatório, a taxa de homicídio por 100 mil jovens em 2017 foi de 98,5,
enquanto entre a população branca esse número era de 34,0. Esses e outros dados
que se repetem ao longo dos anos reforçam a existência de desigualdades que
apontam para questões de raça que encontram fundamento na história do país e no
relativamente recente histórico de escravidão. Deixando de lado, por um breve
momento, a constituição das questões raciais na atualidade, especialmente em
relação à população negra, cumpre trazer à tona alguns teóricos já mencionados que
buscaram explicar essas questões no campo da política.
Foucault que, como visto, desenvolve a sua teoria com fundamento nas
relações de biopoder, desenvolvidas na Modernidade, entende que o racismo é a
chave para explicar como um poder que em princípio tem a função de potencializar a
vida, pode exercer a sua função de morte. Na aula de 17 de março de 1976, descrita
no livro “Em defesa da Sociedade”, o autor nos traz a seguinte problemática:
23 Dados referentes ao informativo divulgado pelo IBGE, com os resultados centrais do estudo
Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 28 de nov. de
2020.
39
A partir dessa constatação, Foucault deixa claro que não pretende afirmar que
o racismo surge apenas nesse contexto ou que seria algo relativamente recente, mas
que este passou a cumprir um papel central dentro da lógica do biopoder que,
oportunamente, se pôde detalhar. Para ele, o racismo se inseriu como mecanismo de
funcionamento do Estado na Modernidade, de modo que se pode afirmar que: “quase
não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite
e em certas condições, não passe pelo racismo.” (FOUCAULT, 2005, p. 304) e, assim
poderíamos complementar, independentemente do grupo alvo.
Com isso, justifica que tal constatação se dá pelo fato de que o racismo permite
decidir o que deve viver ou morrer, e que ele assume duas funções fundamentais
dentro dessa lógica do poder estatal. Em primeiro lugar, a qualificação de
determinadas raças como de inferiores pode “fragmentar, fazer cesuras no interior
desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder.” (FOUCAULT, 2005, p. 305). Em
segundo lugar, como explica o próprio Foucault, o racismo tem como papel
permitir uma relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: [...] "quanto mais
você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá". Eu diria que essa
relação ("se você quer viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que
você possa matar") afinal não foi o racismo, nem o Estado moderno, que
inventou. É a relação guerreira: "para viver, é preciso que você massacre
seus inimigos". (FOUCAULT, 2005, p. 305)
É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte
política, a expulsão, a rejeição, etc. (FOUCAULT, 2005, 306)
Para o autor, isso está em perfeito acordo com a lógica do biopoder, justamente
porque invoca o fortalecimento biológico como dependente da eliminação de vidas
que enfraquecem essa sociedade, esse corpo social. Tudo isso a partir de uma
hierarquização entre indivíduos enquanto espécie, fomentada pelo discurso racial. É
interessante transportar essas explanações de Foucault para pensarmos, na realidade
brasileira, a normalização da exclusão de determinados indivíduos da sociedade, seja
do mercado de trabalho seja do espaço público, ou mesmo uma afirmação de sua
existência como um risco à própria segurança.
41
Uma morte que pode não ser propriamente biológica, mas também política,
social. A partir das observações formuladas por Foucault, assim como outros autores
que o tiveram por base, entre eles o próprio Mbembe, e comparando os dados
relacionados à realidade brasileira, se pode considerar as políticas de morte nesse
contexto. Vale ressaltar, ainda, a questão cultural implícita que perpetua violências
diretas ou indiretas e que dão causa a condições de existência restritas, dificuldade
O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para
que o Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete.
E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem
essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o
poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em qualquer sentido. Assim o Estado
é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se
justifica pelo fato de fazer direito. (KELSEN, 1998, p. 316)
25 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Edição - São Paulo: Martins Fontes, 1998.
44
Seu argumento é que os atos de Estado, como criar leis, são, na verdade,
atos de indivíduos que criam leis. Esses indivíduos são autorizados
juridicamente a fazer tais atos. Dizer que o Estado cria o direito, significa
apenas dizer que estes indivíduos, autorizados juridicamente, criam o direito.
E isso só quer dizer, no fundo, que o direito regula a sua própria criação.
(DUTRA, 2004, p. 62)
O poder do Estado não uma instância mística para além da eficácia de sua
ordem jurídica. O poder do Estado funde-se com a eficácia da norma jurídica.
Portanto, o Estado não existe independentemente da ordem jurídica,
26 DUTRA, Delamar José. A legalidade como forma do estado de direito. Kriterion: Revista de
Filosofia, Belo Horizonte, v. 45, nº 109, p. 57-80, jun. de 2004. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/kr/v45n109/v45n109a04.pdf>. Acesso em: 22 de nov. de 2020.
45
podendo ou não, ser enformado pelo direito e exercido por ele; não, eles
(Estado e direito) são a mesma coisa. (DUTRA, 2004, p. 63)
Ainda, de acordo com o autor, “Para Weber, pode haver Estado sem direito,
mas não direito sem Estado” (DUTRA, 2004, p. 59). Vejamos, então, como se constitui
o raciocínio de Weber formulado em sua obra Economia e Sociedade27.
A partir dessa análise sociológica, Weber constata que o Estado não pode ser
definido por seu conteúdo material. Isso porque ao longo da história cada um tomou
para si tarefas distintas, das quais não se pode fazer uma análise unificada. Identifica,
entretanto, que se pode definir os estados modernos por seu meio específico de estar
na sociedade, que é o uso legítimo da força.
Ou seja, por óbvio, essa entidade não é a única capaz de usar da força para
impor a sua vontade, mas o único autorizado a fazê-lo, enquanto “[...] a todas as
demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de exercer
coação física na medida em que o Estado o permita” (WEBER, 2004, p. 525-526).
Dando continuidade ao raciocínio, Weber, assim como Kelsen, conclui que o Estado
se constitui por uma relação entre indivíduos sobre indivíduos com suporte na coação.
No entanto, sob seu ponto de análise, entende que “Para que ele subsista, as
pessoas dominadas têm que se submeter à autoridade invocada pelas que dominam
no momento dado.” (WEBER, 2004, p. 526). E para compreender como isso se dá,
elenca em sua obra fundamentos de legitimidade pelo qual se pode sustentar essa
dominação. São eles: a tradição, o carisma e a legalidade.
28AGAMBEN, Giorgio. Trad. Iraci D. Poleti. Estado de Exceção. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
(Estado de Sítio).
48
b) sigilo de correspondência;
Assim, se tem em mente duas hipóteses: a primeira que o Direito, a todo tempo,
regula a vontade do Estado, estando este submetido à ordem jurídica, sendo que o
Direito pode tanto reforçar a sua vontade quanto negá-la no contexto das políticas de
morte. A segunda é que o Direito regula em partes a vontade do Estado, deixando
certa zona de incerteza e discricionariedade para que a vontade deste prevaleça, a
exemplo dos dispositivos excepcionais, entre outros. O Estado, por meio do próprio
Direito, então, poderia impor a sua vontade, invocando a necessidade ou urgência.
Sabe-se que a norma é produzida por legisladores, que são cidadãos e estão
inseridos na sociedade, vivenciando contextos e experiências em comunidade. Sendo
assim, os discursos predominantes em uma determinada conjuntura podem dar causa
a conteúdos jurídicos com força de lei. Um exemplo recente que demonstra a relação
entre discurso, vontade do Estado e vontade do Direito é a adoção, por parte das
autoridades, de falas que alertam para a necessidade de combate à corrupção e a
criminalidade no país por meio de um sistema penal rígido.
50
É pelo Direito que se pode barrar atos e delinear cenários possíveis de escolha
ao Estado, assim como estabelecer sanções àquelas vontades pelas quais, como diz
Mbembe, “as populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o
status de “mortos-vivos”.” (MBEMBE, 2018, p. 146). Cabe ao jurista estar atento às
normas postas, fazendo uma análise crítica sobre o contexto de sua elaboração, os
discursos que foram tecidos em sua edição e os reflexos práticos que ela pode vir a
ter quando inserida na realidade brasileira.
52
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das investigações formuladas ao longo deste trabalho, conclui-se que,
de fato, a partir da modernidade, o estado passa a se apropriar da vida biológica dos
cidadãos como objeto de gestão, tomando como sua a responsabilidade. Enquanto
na Idade Média ao final do século XVIII o estado exerce seu poder sobre a vida por
meio do “fazer morrer e deixar viver”, sem uma preocupação maior, portanto, com
outros aspectos da vida natural, a partir do século XIX nota-se uma inversão de lógica.
O poder passa a ser exercido para o “fazer viver e deixar morrer”. Preocupa-
se, portanto, com a potencialização da vida humana. Seja porque a vida é sinônimo
de produtividade seja porque passa a ser considerada, em determinado momento
histórico, como princípio máximo de um estado justo. O conceito nos faz compreender
os mecanismos pelos quais o poder pode interferir na vida biológica.
Mbembe, por outro lado, diz que nos países colonizados, em especial, a
necropolítica encontra como precedente a escravidão, na qual o estado de exceção é
permanente para determinados indivíduos considerados “selvagens” e, portanto,
entregues à vida nua, e não à vida política europeia. Para estes, é possível suspender
a norma, uma vez que estão fora da racionalidade humana. Esse imaginário colonial
explicaria relações que, atualmente, pode expor à morte determinados grupos.
Diante desse impasse, faz-se necessária uma análise contextual pelo aplicador
do Direito. É preciso entender que tanto as pessoas que compõem a entidade estado
54
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª. ed.
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https://veja.abril.com.br/acervo/#/edition/33211?page=8§ion=1. Acesso em: 15
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