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Fabiana Nanô

A Leseira Itinerante
Histórias de um psiquiatra pelas estradas, matas e
rios do sul do Pará

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Este livro é dedicado a todos aqueles que buscam
se livrar de suas amarras.

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Sumário
Prefácio……………………………………………………….…… 4
Apresentação ………………………………………………..…… 5
Capítulo 1 ……………………………………………………….… 8
Capítulo 2 ………………………………………………………... 16
Capítulo 3 …………………………………………………...…… 36
Capítulo 4 ………………………………………………………... 59
Capítulo 5 ………………………………………………………... 77
Capítulo 6 ………………………………………………….....… 100
Capítulo 7 ……………………………………….......……...….. 119
Capítulo 8 …………………………………………………....…. 130
Capítulo 9 …………………………………………………….… 145
Capítulo 10 …………………………………………………...… 162
Capítulo 11 ………………………………………………...…… 186
Capítulo 12 …………………………………………………...… 204
Capítulo 13 …………………………………………………..…. 221
Capítulo 14 …………………………………………………...… 234
Capítulo 15 ……………………………………………………... 250
Capítulo 16 …………………………………………………..…. 269
Capítulo 17 - O começo de um fim …………………………... 284
Anexo ………………………………………………..………….. 289
Referências ……………………………………...……………... 293

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Prefácio

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Apresentação

O vazio entre as palavras me escapa. Nele, está o indizível: a própria


realidade. Uma realidade que foge ao caráter limitador da escrita e que começou em
2012, quando me encontrei com Geraldo Sales pela primeira vez. Eu desembarcava
em Tucuruí, dava meus primeiros passos pela pista do pequeno aeroporto daquela
cidade no sul do Pará, e o vi. Não o conhecia pessoalmente, mas não precisei de
muito para identificá-lo. Sorrimos um para o outro. Foi empatia à primeira vista.

Geraldo, psiquiatra e poeta que atua no sul do Pará, é daquelas pessoas que
carregam em si a capacidade de mudança. E comigo não foi diferente. Ele
transformou a minha vida em uma noite de calor naquelas terras paraenses, quando
me perguntou, durante um jantar em um restaurante, se eu gostaria de escrever um
livro sobre a história dele.

Eu havia ido a Tucuruí para escrever uma reportagem sobre o trabalho de


Geraldo para um jornal francês com o qual colaborava. Não imaginava receber um
convite daquele tipo. Aceitei, mas não sabia muito bem o que estava fazendo... Tinha
um emprego estável em São Paulo, onde atuava como repórter. Não via
compatibilidade entre aquele emprego e o futuro livro. Um frio na barriga tomou conta
de mim. Um medo que, nos meses seguintes, me tomou algumas noites de sono, mas
nunca me paralisou. A cada dia eu entrava mais e mais nas veredas da saúde mental,
nos igarapés da Amazônia, nas palavras que comporiam meu livro.

Pedi demissão, e me mudei de mala e cuia para o outro trabalho. O trabalho


mais profundo que realizei até agora. Uma verdadeira imersão -- em mim.

Passei a ler, estudar, pesquisar tudo relativo à saúde mental e ao sul do Pará,
um pedaço de Amazônia bastante maltratado. Durante meses, planejei minha viagem,
escrevi um roteiro de trabalho, programei entrevistas. Estava preparada para tudo,
menos para o que aconteceu. Assim que iniciei meu trabalho de campo, descobri-me
grávida. No sul do Pará.

Foi uma surpresa, um baque, uma bela pedra preciosa no meio do caminho.
Eu havia pesquisado tanto, lido tanto, planejado tanto aquele trabalho de campo, que
o imprevisto -- e que imprevisto! -- me pegou de jeito.

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Com a notícia, tive que reorganizar tudo e, principalmente, tive que interromper
a viagem antes do programado. Comecei a sentir enjoos que impediram que seguisse
estrada. Retornei a São Paulo e, como pude, preenchi dentro de mim, e do livro, este
vazio -- a minha ausência em municípios onde já havia combinado hospedagem,
transporte e entrevistas.

Não podia me conformar com toda essa mudança. Por diversas vezes, brigava
com a sensação de que estava tudo fora do lugar, tudo fora do que eu tinha planejado.
Não queria aceitar. As pessoas me diziam que era assim mesmo, que o bom da vida é
o imprevisível. Mas, para mim, aquele imprevisível era demais. Tinha prejudicado o
meu livro, algo pelo qual eu tanto havia lutado. E, agora, tinha que preparar enxoval de
bebê e pesquisar berço para comprar. Realmente, não via como a maternidade
poderia me ajudar naquele momento. Não via como conciliar o livro e o bebê que
estava a caminho.

Em meio a todo esse turbilhão, nasceu Catarina. E, por muitas semanas,


depois que ela nasceu, eu cheguei a ter a certeza de que não conseguiria terminar
meu livro. Somente quando ela fez seis meses, e com muito apoio da parte do meu
marido e da minha mãe, consegui retomar a escrita. Ou melhor, iniciar a escrita.

Eu já havia escrito algumas passagens quando estava grávida, gestando bebê


e livro. Contudo, depois que Catarina nasceu, descartei a maior parte. E, praticamente,
comecei um novo livro. Uma nova escrita.

Porque a maternidade havia aflorado o melhor de mim. A maternidade me


proporcionou as âncoras para que eu me sentisse segura para escrever com a alma, o
ventre e o coração. E, quase um ano depois, após um longo processo de aceitação e
de imersão, nasceu o livro.

Hoje eu sei que, sem a Catarina, fonte da minha alma, que jorra estas
palavras, esta obra não teria sido a mesma. Se é assim, é graças a ela e à
maternidade, que me desvendou partes de mim antes escondidas em algum canto do
meu ser.

Mas outras pessoas também tiveram papel importante para a realização deste
livro. E eu gostaria de agradecê-las especialmente: ao Geraldo, que me abriu as
portas de um novo mundo; à Alice, companheira fotógrafa, que topou se aventurar
comigo; ao meu marido Lui, um amor muito melhor do que qualquer amor que eu já
sonhei; à minha mãe e ao meu irmão, Gilda e Daniel, seres que constituem o meu ser;
ao meu pai, Carlos Eduardo, em memória, que desde 2008 carrego comigo em minha

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estrada; aos meus sogros, Alberto e Lucila, a família que meu coração adotou; ao
Nonato, pelas palhaçadas e pela divertida hospitalidade em Tucuruí; ao Marajá, pelas
viagens de voadeira pelas águas do rio Tocantins; ao casal César e Mariana e seus
filhos Francisco e Ricardo, pela hospitalidade em Parauapebas; ao Octávio, por
acreditar nesta obra desde o princípío; e a todos os entrevistados desse livro, pela
confiança em compartilhar comigo as suas histórias.

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1.

Entra no igarapé,

e deixa o igarapé entrar em ti

Gersa

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Os pés descalços, sujos e rachados, tocavam, suaves, o piso frio de pedra.
Esculpidos com as marcas do viver, desenhavam no chão um grande círculo negro e
mestiço que contrastava com o assoalho branco. Eram muitos. Vinham de todas as
partes daquele pedaço desmatado de Amazônia, onde não se sabe quem é mais
castigado, se a mata, se os homens. Era mais uma manhã ensolarada de quarta-feira,
e lá estavam eles, em busca de ajuda. Na terra do sol escaldante, aquela gente
procurava luz. E tiveram a coragem de vislumbrar, com um frio na barriga, fruto do
desconhecido, a pequena casa com portão de ferro azul descerrado. Atravessaram o
batente e percorreram o curto corredor que separava a entrada do amplo salão. Ao
entrar naquele novo mundo, foram recebidos com palmas e uma canção entoada em
coro. Os abraços e sorrisos carinhosos logo dissipavam os temores dos que ali
chegavam. O salão acolhia. “Seja benvindo olerê, seja benvindo olará, paz e amor
para você, que veio participar”, era o refrão que embalava os novatos. Confortados,
pensaram que talvez houvesse uma saída para suas angústias. Uma saída que
refletia-se no olhar dos outros. Daqueles presentes, naquela manhã, no Centro de
Atenção Psicossocial (Caps) de Tucuruí.

No interior do Pará, onde a água e as árvores são mais abundantes que as


pessoas, o salão do Caps se destacava. Só fazia encher-se mais e mais de gente. Era
dia de terapia comunitária. Todos formavam uma roda à espera não de falar de si, mas
de escutar o outro. Impossível distinguir pacientes e funcionários, e inútil seria fazer tal
distinção: naquele Caps, a 400 quilômetros de Belém, todos se tratavam.

Semblantes sofridos apareciam ao lado de outros, serenos. Os cabelos negros


ora se apresentavam lisos, ora encaracolados. As roupas velhas encobriam corpos
minguados em uma existência de necessidades. As pernas musculosas expunham
marcas, manchas de sol e pelos, muitos pelos. Os padrões de beleza estavam
distantes desse lugar, onde brotavam vidas em que tudo era falta. Vidas dilaceradas
por séculos de exploração e de esquecimento. Vidas em busca de um fio de
esperança.

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Aguardavam a chegada dele. Eram quase oito horas da manhã. O sol já
castigava o asfalto cintilante, mas não os alcançava: o salão, aberto nas laterais, era
coberto por telhas que o protegiam também das torrenciais tempestades amazônicas.
E tornava agradável o ambiente, alegre, iluminado e tomado pelo murmúrio das
conversas.

Foram subitamente silenciados pelos passos firmes no corredor. Era o médico.


Mas logo se via que era um médico único, cheio de peculiaridades, posto que também
caboclo e poeta. Surgia de roupa colorida, sorrindo e abraçando, exibindo a pele
morena, os cabelos espessos e a barba grisalha. Apesar da baixa estatura, tinha ares
de leão. Sua presença impunha respeito, bem-estar, segurança. Seu olhar, sensível,
porém impassível, pousou na multidão que abria para ele um espaço na roda. Geraldo
Sales, o psiquiatra que havia concebido aquele Caps nos confins do Pará, estava
pronto para se misturar aos outros -- aos miseráveis de corpo, não de alma -- e
conduzir mais uma sessão de terapia comunitária. Parou a um canto da roda e
introduziu a conversa com a pergunta costumeira:

-- Por que acordei triste hoje?

Os olhares angustiados afundaram-se em infinitas respostas. Poucos tinham a


audácia de contar suas histórias de sofrimento. Muitos aguardavam para ouvi-las. A
escuta, neste espaço, tinha mais valor que a fala. Mas, naquela manhã, eles
acabaram por escutar o que ninguém ousou imaginar:

-- Doutor, eu vim comunicar que não aguento mais ver meu pai chegar bêbado
em casa e bater na minha mãe. Ontem foi o último dia que ele fez isso. Hoje eu vou
matar ele.

A frase fora proferida por um homem robusto, de olhos desesperados, que


havia cruzado a entrada do Caps a passos rápidos de guepardo, pronto para o ataque.
Meteu-se no meio da roda, interrompeu a sessão e quebrou a paz do lugar ao fazer
seu anúncio. O espanto era geral.

Geraldo observou o homem alterado, sem se deixar abalar por suas


declarações. Elas, no entanto, o tocaram profundamente. Ele não dispunha de receita
médica para o que se apresentava. Precisava criar. Precisava ser imprevisível, numa
terra imprevisível.

Pediu para uma terapeuta encaminhar o paciente a um recinto fechado do


Caps. Passou a conduta da terapia comunitária para outra assistente, enquanto

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dirigia-se ao cômodo. Providenciou faixas pretas de vendar olhos, boias do tipo
espaguete e um repertório de músicas: os acordes de Kitaro invadiram a sala. Era
uma tempestade tropical, cujos sons tornavam-se ainda mais tenebrosos no escuro da
faixa que vendou aqueles olhos angustiados. O homem recebeu das mãos do médico
as boias, e, com elas, a ordem:

-- Bate nesse desgraçado do teu pai! Esse covarde, bêbado, safado! Bate
nesse canalha!

Os gritos agoniados e as fortes pisadas no chão descarregavam tensões


acumuladas em anos de tristezas, desalentos, desilusões. O homem xingava,
esbravejava, errava pelo cômodo ensandecido, enquanto erguia os espaguetes para
lançá-los com raiva contra as paredes. Precisou em uma catarse de horas eternas
matar o pai interno que o afligia, até desabar esgotado no chão. Acalmou-se, à
melodia da nova trilha que reproduzia cantos de pássaros e sons de cachoeiras.
Geraldo aproximou-se dele. O médico sabia em que momento estavam. Depois da
tempestade, vem a calmaria. Era hora da reconciliação.

-- Agora, nós vamos celebrar o perdão. Perguntaste ao teu pai se, quando
criança, ele não viu o pai dele bater na mãe dele? Perguntaste ao teu pai o que ele
quer dizer com a cachaça? Por que ele toma cachaça? Por que ele virou um
alcoólatra?

O homem mirava com assombro o médico, que prosseguiu:

-- Pede perdão ao teu pai. E traga-o ao Caps para se tratar do alcoolismo.

No dia seguinte, pai e filho estavam sentados, lado a lado, no salão aberto da
pequena casa de portão azul. Aguardavam, pacientes, a consulta com a psicóloga.
Depois de uma semana, em outra quarta-feira ensolarada, integravam a roda
conduzida, novamente, por Geraldo. Desta vez, o homem que queria matar o pai
estava de mãos dadas com ele e ansiava por encontrar, talvez na voz e no olhar do
outro, alento e esperança. Assim como o seu pai.

Desejavam um fio de vida, onde tudo era desolação.

...

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Desde o princípio, foi assim. Geraldo era uma usina criadora. Inventava, na
ânsia de ajudar pessoas desprovidas de tudo, vivendo numa terra de misérias. Ele já
havia há muito compreendido que a cartilha ortodoxa da psiquiatria não se enquadrava
em solo amazônico. Por isso, realizou sua primeira sessão de terapia comunitária à
noite, embaixo de uma mangueira e ao redor de um panelão borbulhante de capim
santo. O ano era 1997.

Um bico de luz iluminava o chão de terra batida e as silhuetas baixas e


cansadas, repousando sob a escuridão do céu estrelado. Entre os integrantes da roda,
estava uma senhora que havia caminhado as dez quadras que separam o bairro da
Companhia de Habitação (Cohab) da frente da casa de seu Aristeu, no bairro
tucuruiense de São Sebastião, onde transcorria a sessão noturna. Quando o médico
caboclo, após apresentar-se e introduzir a conversa, perguntou por que eles tinham
acordado tristes naquele dia, ela foi a primeira a levantar o braço.

-- Doutor, tem esse meu vizinho, que é senhor de idade e mora sozinho, num
barraco ao lado do meu. Uns moleques foram lá e tacaram fogo no barraco. Quando
acordei hoje de manhã, fui olhar o vizinho. Ele estava sentado no sofá, todo velho,
todo sujo. E o barraco dele no chão. Confesso que estou preocupada.

Geraldo ouviu com atenção e intuiu a gravidade do caso. Entrou com a mulher
em seu Fusca branco, comprado alguns meses antes para auxiliá-lo em seu trabalho,
e dirigiu-se à casa do homem. Durante o percurso, ligou para a Secretaria de Saúde
para solicitar que encaminhassem uma ambulância ao local. Quando chegou ao seu
destino, mais um destino de ruas de terra e casas de madeira, pediu licença para
montar no muro do quintal da senhora, que separava a casa dela da do homem. Lá de
cima, mirou o barraco vizinho: o velho, enfermo e maltrapilho, permanecia imóvel, sem
forças, sentado no que havia restado de um sofá.

-- Como é o nome dele? -- perguntou Geraldo, em voz baixa, à mulher.

-- Severino -- respondeu ela.

Mais uma vez, a realidade impunha fantasia: só criando era possível dar conta
daquela dureza. O médico, sagaz, inventou rápido.

-- Severiiino -- chamou, numa toada suave, quase celestial.

Ao ouvir o som misterioso, vindo de cima, o homem espantou-se. Saiu do


estado letárgico para mexer-se, inquieto, no sofá. Aquilo só podia ser obra do diabo,
pensou. Era preciso livrar-se.
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-- Sai, Satanás! – bradou, devolvendo o chamado.

E esperou. Como nada acontecesse, voltou a permanecer imóvel. Contudo,


passados alguns minutos, a voz desconhecida tornou a provocá-lo, como uma
muriçoca pegajosa, que não desiste de picar.

-- Severiiino!

-- Sai, Satanás! -- gritou novamente o homem, cada vez mais apreensivo.

-- Severiiino! Sou eu, Deus! Eu vim te salvar, Severino!

Confuso, o homem levantou-se e começou a andar pela casa. Buscava a


salvação divina, mas encontrou outra, terrena: quando aproximou-se da cerca, um
homem caiu-lhe em cima. A mesma voz, antes celestial, adquiriu tom humano, grave e
incisivo:

-- Severino, eu sou o doutor Geraldo, médico psiquiatra. Vim te ajudar. Vou te


levar ao hospital, porque você está doente.

O velho deixou-se levar. A ambulância já o aguardava na porta de sua casa.


Quando chegou ao hospital, foi encaminhado diretamente para a UTI, devido a um
quadro grave de anemia. Após se acomodar em leito hospitalar, fez um único pedido:
queria que lhe trouxessem seu pequeno rádio de pilhas.

Geraldo buscou, por conta própria, o aparelho. Ao entregá-lo ao homem, disse


que avisaria a gestão municipal do ocorrido e pediria que reconstruíssem o barraco
caído. Severino agradeceu. O psiquiatra, mais uma vez, entrou em seu Fusca branco.
Parou em frente ao prédio da prefeitura e comunicou às autoridades municipais o que
havia acontecido. Saiu de lá com a garantia de que, no dia seguinte, uma equipe seria
mandada ao local para iniciar os trabalhos de reconstrução. Naquela noite, Geraldo foi
dormir tranquilo.

Pela manhã, depois de acordar, o psiquiatra voltou ao local do crime. Nada de


equipe, nada de obra. Nem naquele dia, nem nos outros.

Triste destino: Severino, após receber alta do hospital, foi internado na Casa
dos Idosos, onde passou seus últimos dias. Não viu sua casa novamente. Sua
derradeira conexão com o mundo foi o pequeno rádio de pilhas, seu companheiro de
tantos anos.

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-- Pelo menos a vida dele foi salva -- pondera o médico, na tentativa de
conformar-se.

Não adianta.

O gene da indignação sempre permeou a sua vida.

Quem um dia foi Deus, também foi pai. As histórias do psiquiatra são
intermináveis, e estão suspensas em um tempo e um espaço mágicos. Geraldo estava
de passagem por Belém, sua cidade natal, quando recebeu uma ligação telefônica do
capitão da Polícia Militar em Tucuruí. Soube pelo oficial que um paciente seu tinha
escalado a torre da Rádio Floresta, a mais famosa do município, e estava sentado em
uma de suas grades metálicas, em inconsolável espera. Aquele era o lugar mais alto
de Tucuruí. Prostrado, o homem tinha posto as pernas para fora e ameaçava se jogar.

-- Pula! Pula! -- gritava o povo na rua.

Uma repórter de televisão andava dizendo que a causa de tudo tinha sido uma
briga com a namorada. O capitão, sem saber como proceder, resolveu ligar para o
psiquiatra.

-- Qual é o nome dele? -- perguntou o médico ao policial.

-- Washington -- respondeu o capitão.

-- Ele é preto ou branco?

-- Branco.

-- Então, fala para a repórter se calar que não é nada disso.

O homem que se encontrava nas alturas tinha sido criado em Tucuruí pelo pai,
originário do Piauí, e a mãe, paulista. Certo dia, o pai resolveu voltar para a terra natal
ao lado da amante. E a mãe resolveu retornar a São Paulo com seu outro filho.

Washington ficou aos cuidados da avó. Não tardou para que o menino,
abandonado, começasse a agredir a tutora e a quebrar tudo em seu novo lar. Afinal,
ele mesmo estava quebrado, por dentro. E queria quebrar-se também por fora. Passou

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a esticar-se no asfalto das ruas, na esperança de que algum carro o atropelasse.
Subia em postes e pendurava-se em cabos de alta tensão, esperando ser
eletrocutado. Ninguém o via. Quando finalmente chegou ao lugar mais alto de Tucuruí,
nada restava. Apenas o extremo: ou alguém o salvava, ou diria adeus a um mundo
que, desde o princípio, só o maltratou.

Pelo telefone, Geraldo solicitou ao capitão que subisse as grades da torre e se


aproximasse de Washington. Após cumprir o pedido, o oficial colocou o celular ao lado
da mão do homem e avisou que o psiquiatra estava na linha. Washington hesitou.
Mirou o aparelho, como se guardasse o enigma do universo. Finalmente, atendeu.

-- Desce daí agora que a partir de hoje eu sou teu pai.

A voz cortante do médico ecoou nas entranhas de uma existência perdida. A


ordem paterna estava lá, para ser obedecida. Aliviado, o homem esticou os braços em
direção ao capitão e, com a ajuda dele, tocou os pés no chão.

Os mesmos pés que, agora, integram a roda da terapia comunitária no Caps de


Tucuruí. Um canto o convida. “Seja benvindo olerê, seja benvindo olará, paz e amor
para você, que veio participar.” Ele abre um sorriso, sentindo-se acolhido.
Vislumbrando um fio de esperança. Apesar de todo o cuidado que recebeu, passou
um ano chamando o psiquiatra de pai. Depois, parou. Depois, sumiu. Geraldo, hoje,
desconhece o paradeiro de Washington. Assim como o destino de muitos outros
pacientes, que se foram. Foram-se de uma cidade que já foi outra.

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2.

Foto: Alice Arida

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O sol laranja desponta no horizonte, entre as baixas colinas verdes da vila de
Alcobaça, e tinge de rosa as águas fundas e escuras do rio Tocantins. Cardumes de
tucunarés nadam tranquilamente, acompanhando o movimento das canoas de
pescadores. Ao longe, gaivotas levantam voo com suas longas asas e seu grito curto e
agudo, à procura de alimento. A floresta densa, úmida e escura, exala sons
misteriosos e impõe respeito ao homem. Um canto de galo ecoa de um ponto remoto
do vilarejo: é o canto rotineiro que antecipa a chegada do trem. Minutos depois, os
moradores do lugar ouvem os apitos da máquina a vapor e o barulho áspero das
pesadas rodas a friccionar pela estrada de ferro. As rodas que anunciam a vinda de
mais um carregamento de castanhas e diamantes, extraídos do médio e baixo
Tocantins.

O imponente rio Tocantins, que forma a maior bacia hidrográfica inteiramente


brasileira, a Tocantins-Araguaia, nasce no norte de Goiás e sobe 2.416 quilômetros na
geografia nacional, atravessando Tocantins, Maranhão e Pará. Neste estado, ele
deságua no oceano Atlântico, depois de passar por Belém e a costa leste da ilha do
Marajó, o maior arquipélago fluviomarinho do mundo. Suas águas, que oscilam
conforme as épocas de cheia ou de seca, juntam-se com as do rio Araguaia na região
conhecida como Bico do Papagaio, na tríplice fronteira entre Tocantins, Maranhão e
Pará. Juntos, os dois rios formam uma bacia de 803 mil km², o equivalente a 9% da
superfície do Brasil. Embora o Tocantins, o vigésimo quinto rio mais extenso do
planeta, seja navegável por dois mil quilômetros durante o período das cheias, ele
apresenta certas quedas d’água que, em alguns trechos, atrapalham o curso das
embarcações. Entre elas, estão as corredeiras de Itaboca, localizadas no percurso de
duzentos quilômetros que vai de Alcobaça a Marabá, no sentido sul.

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O rio Tocantins. Crédito: Alice Arida

Para ter uma alternativa à navegação, no começo do século passado o


governo decidiu construir uma estrada de ferro, essa mesma pela qual passava o trem
carregado de castanhas. Nesses primeiros anos do século XX, a produção da
semente amazônica andava, literalmente, a todo vapor. Todo o médio e baixo
Tocantins estava ocupado por castanhais: a região apresentava a maior concentração
da planta em toda a Amazônia.

Nativa do bioma, a castanheira se impõe às outras árvores por ser uma das
mais altas e longevas da floresta. Ela chega a atingir 55 metros e, quando cultivada,
pode produzir por mais de cem anos. Seu tronco grosso, retilíneo, majestoso, tem de
um a dois metros de diâmetro. Suas folhas, de 20 a 35 centímetros de comprimento,
são abundantes apenas na copa, de onde miram com privilégio o restante da floresta.
O fruto de casca dura nasce de uma pequena flor verde-esbranquiçada e tem forma
de ouriço. Um ouriço de castanheira pode medir até 15 centímetros de diâmetro e
pesar dois quilos. Dentro dele, estão guardadas de 8 a 24 sementes – as famosas
castanhas-do-pará ou castanhas-da-amazônia.

No começo do século passado, as castanhas-do-pará eram muito apreciadas


na Europa e nos Estados Unidos, para onde eram exportadas em grandes
quantidades. A fim de chegar a estes destinos, a semente deveria sair de Belém. E,
para chegar a Belém, deveria atravessar o Tocantins. No meio do caminho, contudo,

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estavam as corredeiras de Itaboca. E a linha de ferro tinha por missão driblá-las. Os
operários iniciaram as obras em 1905 e, por quarenta anos, não pararam de trabalhar.
Em 1944, foi finalmente inaugurada a Estrada de Ferro do Tocantins (EFT). Três anos
depois, em 1947, a vila de Alcobaça emancipou-se da cidade de Baião e ganhou
status de município: agora, chamava-se Tucuruí.

Por conta das obras da linha férrea, o lugar havia experimentado um


considerável aumento demográfico. Como faltava pessoal, o governo decidiu estimular
a migração compulsória de nordestinos pobres, que não vislumbravam alternativas na
terra árida e seca e ansiavam por uma vida melhor na região que descarrega no
oceano 20% da água doce do mundo. O que encontraram foi trabalho pesado,
forçado, escravo. Muitos acabaram morrendo de exaustão. Outros, de doenças, como
a malária e a gripe. Uma parcela ainda topou com os antigos moradores das baixas
colinas que margeiam o rio: homens das tribos indígenas Assurini, Parakanã e Gavião.
Sentindo-se ameaçadas com a invasão de seu território, essas etnias realizaram
diversos ataques aos trabalhadores. Estes, por sua vez, não hesitaram em pegar em
armas e sair à procura daqueles que eram vistos pelos brancos como um “empecilho”
ao desenvolvimento econômico. Promoveram matanças, das quais também foram
vítimas.

Assim nasceu a Estrada de Ferro do Tocantins, escrevendo mais uma linha de


violência, opressão e tragédia na recente história da Amazônia.

Vez por outra, o trem percorria os 117 quilômetros da ferrovia carregado de


diamantes, no lugar de castanhas. As pedras eram oriundas da região do Bico do
Papagaio, por onde se espalhavam garimpos que atraíam mais itinerantes em busca
de um eldorado para fazer riqueza. E que traziam consigo mais violência e agressão à
terra.

Por inúmeras vezes, o trajeto de seis estações até Alcobaça foi percorrido pela
máquina a vapor. Em 1973, o governo do general Emílio Garrastazu Médici decidiu
desativar a ferrovia, já que o comércio de castanha havia decaído. As plantações
estavam sendo destruídas, e a terra, queimada, para dar lugar a enormes pastagens
de gado.

Mas o destino de Tucuruí não seria virar alimento para bois e vacas. Eram
outros os planos federais para o município que abrigava a última linha da estrada de
ferro.

19
...

Onde um dia correu o trem da Estrada de Ferro do Tocantins, hoje é um


enorme lago. De Marabá a Tucuruí, toda a região foi inundada. A floresta ficou
submersa. Povoados desapareceram. Animais morreram. Pessoas ficaram sem lar.

Este lago é, na verdade, um grande reservatório. Um dos maiores do país, feito


para a maior barragem do país: a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, concebida em pleno
regime militar, quando projetos megalomaníacos habitavam a cabeça de governantes
que viam na Amazônia um imenso “vazio demográfico”, pleno de árvores e água, a ser
dominado.

Em dezembro de 1975, os operários fincaram as primeiras estacas no pequeno


canteiro de obras do que viria a ser a quarta maior usina hidrelétrica do planeta. Por
dez anos, eles trabalharam de forma ininterrupta no objetivo de barrar um rio
caudaloso, que dá nome a uma bacia hidrográfica complexa. Para o governo, era um
desafio construir a usina. Mas um desafio de engenharia. Era como se as populações
locais não existissem. A hidrelétrica da “Operação Amazônia” passou por cima de
milhares de indígenas e ribeirinhos que conviviam com o rio Tocantins desde tempos
imemoriais e sabiam, por experiência ancestral e intuitiva, que uma vida não é
suficiente para se conhecer um rio. E que a tentativa de domá-lo não viria sem
contrapartidas.

Mas os tecnocratas de Brasília foram surdos às poucas pressões sociais que


surgiram numa época desacostumada a liberdades. Sem informar ou consultar a
população local, enviaram a Tucuruí trabalhadores que, certo dia, apareceram na
cidade carregando os sacos de concreto que seriam usados na construção da
barragem. As obras da chamada “primeira etapa” de construção persistiram por 18
anos. Foi só em 1992, já sob regime democrático, que os 12 geradores principais
entraram em funcionamento conjunto, produzindo em média 4,2 mil megawatts. Foram
construídos ainda mais dois geradores auxiliares, para serem usados caso algum
gerador principal quebrasse.

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A usina hidrelétrica de Tucuruí funciona com as comportas fechadas de junho a dezembro.

Crédito: Fabiana Nanô

Mas o primeiro gerador principal passou a funcionar bem antes, em 1984.


Neste ano, o rio Tocantins foi enfim barrado por um monstro de concreto com 10
quilômetros de extensão. O desnível provocado pela usina era de 70 metros: a
montante, surgiu um reservatório de 3 mil km², o equivalente a sete Baías da
Guanabara. É o segundo maior lago artificial do país, com uma área de influência que
se estende por 250 quilômetros, até Marabá.

Dezenas de povoados tiveram de ser realocados para o enchimento do


reservatório. Entre eles, Breu Branco, Repartimento e Jacundá. Antes privilegiadas
pela presença do rio, estas vilas passaram a ser localidades de beira de estrada, com
uma população miserável e desenraizada. Tucuruí, por sua vez, conheceu mais uma
explosão demográfica desordenada. À época da EFT, o município tinha 6 mil
habitantes. No pique da obra da hidrelétrica, chegaram 23 mil trabalhadores, muitos
acompanhados de suas famílias. Também vinham, de todas as partes do país, toda
sorte de pessoas interessadas em fazer dinheiro. Tucuruí fervilhava, o capital girava a
cidade. Mas, com ele, apareceram surtos de malária e outras doenças. E os índices
sociais ficaram muito abaixo da média nacional.

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Em sua maioria, os peões da obra eram, novamente, nordestinos que fugiam
da seca em busca do sonho da abundância amazônica. Pessoas que desejavam
mudar de vida, cansadas de uma existência de escassez. Mais uma vez, ao invés do
eldorado de opulência, encontraram um trabalho extenuante. E, além disso,
temporário: quando as obras da usina terminaram, viram-se sem ter para onde ir.
Tornaram-se forasteiros sem raiz e sem cultura, num lugar, para eles, sem sentido.

As populações locais também viram suas vidas se reduzirem a quase nada. Os


que viviam a montante da hidrelétrica, nas vilas invadidas pelo lago, presenciaram
suas casas e suas histórias serem afogadas. Foram forçados a migrar para outros
vilarejos, onde passaram a atravessar os dias de forma ainda mais precária do que
antes. Os que viviam a jusante, abaixo da barragem, não tiveram que se deslocar.
Eles permaneceram lá, à beira do rio. Mas passaram a sofrer de outro mal: o de ver o
peixe, o alimento de todas as noites, desaparecer, e a água do rio, fonte de suas
plantações, ficar envenenada.

Para todas essas pessoas, não houve alternativa. A época do trem, das
castanhas e dos diamantes já pertencia a um passado distante. A história de Tucuruí
havia sido dividida em um antes e em um depois. Seu novo destino era gerar energia.
Não para a população local, que desconhecia e continuava a desconhecer a luz
elétrica. Mas para grandes multinacionais.

Desde o início controlada pela Eletronorte – hoje Eletrobras Eletronorte,


concessionária pública de energia elétrica criada em 1973, justamente para viabilizar o
projeto de Tucuruí –, a hidrelétrica foi levantada de forma concomitante a uma fábrica
da Albrás, um consórcio japonês do ramo do alumínio. A fábrica fica situada em
Barcarena, a 50 quilômetros de Belém, e produz alumínio e alumina a partir de uma
imensa jazida de bauxita localizada no rio Trombetas, oeste do Pará, avaliada em 1,7
bilhão de toneladas. O alumínio é o produto industrial que mais demanda energia. Os
japoneses, atentos a esta característica, quiseram participar dos gastos da construção
da usina de Tucuruí, em troca de subsídios. Os custos da obra, no entanto,
extrapolaram em muito o orçamento inicial -- as denúncias de corrupção só não vieram
à tona devido ao período histórico pelo qual passava o país. O consórcio japonês,
contrário ao superfaturamento, resolveu desfazer o acordo com o governo brasileiro.
Não pôs um iene na obra.

Ainda assim, quando usina e fábrica foram inauguradas, esta última usufruiu de
um subsídio que, ao longo de 20 anos, de 1984 a 2004, chegou a US$ 2 bilhões,
segundo contabilizou o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto. A fábrica da Albrás é

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responsável por 1,5% do consumo energético de todo o Brasil – ela, sozinha, consome
mais do que todo o estado do Pará. Graças a essa energia, a fábrica consegue suprir,
sozinha, 15% da necessidade japonesa de alumínio. Por ano, 450 mil toneladas do
metal são exportadas diretamente para o país asiático, no que representa o maior
processo de transferência industrial do século passado, de acordo com Lúcio Flávio.
Ocorrida pouco depois da crise do petróleo de 1973, essa transferência possibilitou ao
Japão fechar todas as suas fábricas de alumínio sem sofrer desabastecimento. E com
uma vantagem: o metal passou a entrar no país a um preço mais baixo do que os
próprios japoneses poderiam conseguir, se ainda contassem com fábricas em seu
território.

Frente a tais interesses industriais e financeiros, os paraenses ficaram em


segundo plano, assim como o meio ambiente e a navegabilidade do rio Tocantins. Os
avanços do gigante de concreto, porém, não pararam por aí. Entre 1998 e 2006,
ocorreu a chamada “segunda etapa” de construção da usina, que tinha por meta
ampliar sua capacidade. De 12 geradores, a barragem passou a ter 23, movidos por
14 milhões de litros de água por segundo, que passaram a produzir 8,3 mil megawatts
e transformaram Tucuruí na quarta maior hidrelétrica do mundo – atrás apenas da
chinesa Três Gargantas (19 mil megawatts), a brasiguaia Itaipu (14 mil megawatts) e a
venezuelana Guri (10,2 mil megawatts).

Tucuruí é a maior hidrelétrica inteiramente brasileira, mas seu projeto


apresenta muitas falhas. Uma delas diz respeito à sua capacidade. Apesar do enorme
reservatório, funciona com seu potencial pleno apenas cinco meses por ano, de
janeiro a maio. Quando o período de cheias é particularmente benévolo, a usina
trabalha a todo vapor até julho. Mas nem sempre isso ocorre, o que significa que a
barragem fica parada na maior parte do ano, produzindo apenas 3,3 mil megawatts,
um fator de capacidade inferior aos 50% considerados como limite mínimo aceitável
internacionalmente.

Além disso, por 25 anos não houve meio de atravessar o rio Tocantins. As duas
eclusas, que começaram a ser levantadas em 1979, seriam inauguradas apenas em
2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Elas não estavam previstas no
projeto original da Eletronorte para Tucuruí. Pela empresa, o rio seria barrado e ficaria
intransponível - condição que transgride o Código das Águas, uma lei federal de 1934.
Por pressão, a Eletronorte incluiu no projeto a realização das duas eclusas, que hoje
estão entre as maiores do mundo, com capacidade para 40 milhões de toneladas de
carga. A tarefa de construção foi transferida para outra companhia, a Portobrás,

23
estatal que viria a ser extinta durante a onda de privatização, nos anos 1990. Como as
eclusas demoraram décadas para entrar em funcionamento, seu custo também
extrapolou em muito o orçamento inicial. E seu uso é restrito. Destinam-se a receber
algumas cargas comerciais, de multinacionais que atuam no ramo siderúrgico e de
mineração e que não fazem nada além de reproduzir o modelo colonial de exploração
da Amazônia. Não há vontade política nem econômica para o desenvolvimento interno
e local.

Uma das eclusas da hidrelétrica de Tucuruí. Crédito: Fabiana Nanô

Milhares de famílias vivem sem perspectivas nas 1.600 ilhas do reservatório. O


enorme lago submergiu 6,5 milhões de toneladas de madeira, a linha de ferro da EFT
e as corredeiras de Itaboca. Modificou o mapa geográfico do Brasil de forma drástica e
profunda. Mas também sublime: os pedaços de terra, exibindo uma floresta
exuberante, em meio à agua calma, refletindo as nuvens do céu, enchem os olhos de
quem os vê.

Um desses pares de olhos pertencia ao clínico e gastroenterologista Geraldo


Sales, então com 41 anos. Em 1993, sentado em uma poltrona de avião, num voo de

24
Belém a Tucuruí, ele baixou o olhar e mirou pela primeira vez a composição artística
do lago. Sentiu uma pontada no coração. Tinha sido convidado para ficar uma semana
na cidade. Ao avistar a magnífica paisagem, soube de imediato que aquele era o seu
lugar.

...

As pernas do menino nunca paravam de correr. Saíam apressadas do antigo


sobrado de Belém em direção à rua, onde escalavam frondosas mangueiras e
ansiavam por jogar futebol ao lado de outras pernas amigas, no terreno baldio aos
fundos do imóvel. Corriam, corriam, corriam. Na volta à casa, o garoto trepava nas
árvores, mais uma vez, para colher suculentas mangas maduras e levá-las de
presente à mãe.

Apesar da baixa estatura, Raimundo Geraldo Viana Sales logo se destacou nas
atividades esportivas do colégio. Era dos jogadores mais ágeis em modalidades como
vôlei e basquete. No colegial, chegou a ganhar uma plaqueta de prata como melhor
atleta do ano. O gosto por esportes veio por influência do avô materno, Wagner
Studart Viana, com quem tinha uma convivência quase diária. Wagner era ferrenho
admirador do Paysandu e ocupou vários cargos de diretoria no clube de futebol
paraense. Passou para os netos esta paixão. Até hoje, Geraldo torce com fervor pelo
seu time paraense do coração, embora seja também flamenguista. E nunca deixou de
correr. Houve um tempo em que acordava às quatro horas da madrugada para
percorrer dezoito quiômetros. Graças a essa rotina, exibe um corpo atlético que deixou
marcas duradouras, visíveis mesmo aos 63 anos. É um físico que começou a ser
moldado muitos anos antes, ainda em Belém, onde o garoto nasceu.

No coração do bairro nobre de Nazaré, na capital paraense, Geraldo dividia o


espaçoso sobrado com os pais, Laércio Cardoso Sales e Maria Guilhermina Viana
Sales, e os seis irmãos, Rui Guilherme, Eliana Maria, Conceição de Maria, Laércio
Wagner, Ana Lúcia e Carlos Eduardo -- na ordem do mais velho ao mais novo. Ele
também passava longas temporadas na casa de seus avós maternos, no bairro
belenense de São Brás. Lá, o menino fez amizades que leva até os dias de hoje.

As brincadeiras de rua e a paixão pelos esportes vieram ao lado dos estudos


no colégio da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde seu pai era professor.

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Laércio era formado em Medicina, mas acabou por trilhar o caminho da Odontologia.
Virou um grande especialista em câncer de boca, disciplina a qual ministrava na
UFPA.

Quando foi criado na universidade um colégio de ponta para filhos de


funcionários, Laércio não hesitou em matricular suas crianças na instituição. Geraldo
passava lá as manhãs e as tardes. Praticava esportes, participava de competições e
maratonas e assistia aulas de música, artesanato, religião e datilografia.

Neste lugar, ele também conheceu o tempo da adolescência e suas


intempéries. Ao lado destas, porém, surgiu um dom. Veio uma ânsia de passar para o
papel angústias, fantasias, amores, devaneios. Quando Geraldo, aos 14 anos,
começou a transcrever seus sentimentos, eles apareceram em forma de versos. Assim
nasceu o poeta Gersa. Autor de inúmeros poemas, alguns amorosos, outros
indignados, todos verdadeiros. Sua sede de lírica deu origem a dois livros, Degraus,
publicado em 1990, e Um Segundo Lance, de 1991, e à participação em uma
coletânea chamada A Lira na minha terra - poetas antigos e contemporâneos do Pará,
de 1996.

Os dois livros de poesia de Gersa. Crédito: Montagem/Divulgação

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Gersa nunca se preocupou com a forma nem com a técnica. Suas palavras
sempre brotaram férteis durante uma viagem de ônibus, em um banco de praça ou ao
som de uma canção familiar. Vêm em enxurradas, e em poucos minutos irrompe a
poesia. É um poema, mas é também um alívio para uma alma em uma incessante
busca de si mesma. Uma alma faminta, que consolidou-se quando o jovem Geraldo
optou pelo curso de Medicina na UFPA, assim que o colegial terminou.

A partir de então, o poeta Gersa nunca mais abandonaria o médico Geraldo. Ao


longo dos anos, os dois caminhariam lado a lado, como uma agradável sombra que
troca de lugar para acolher a todos. Foi Gersa quem impulsionou o estudante Geraldo
a procurar, já no primeiro ano de faculdade, em 1973, as rodas de serestas, das quais
participava compondo poemas, inspirados pelos acordes dos instrumentos musicais
dos amigos.

O poeta também testemunhou a militância estudantil do universitário. Ainda no


primeiro ano de graduação, Geraldo começou a frequentar o Diretório Acadêmico.
Logo foi convidado a integrar a gestão do DA. Tomou parte em uma série de eventos
estudantis, entre eles o I Festival de Música e Poesia do Pará, realizado em 1974, no
campus da universidade. Embora não tenha sido finalista, Geraldo participou do
festival com três poemas.

Tais eventos causavam alvoroço nas autoridades públicas, preocupadas em


manter com pulso firme o regime ditatorial então vigente no país. Era uma época de
bocas fechadas e poucos olhares. Mesmo assim, em 1974, Geraldo resolveu participar
da organização de um debate sobre a questão indígena na Amazônia, ao lado de dois
antropólogos da Funai (Fundação Nacional do Índio): quase foi preso na ocasião. Mais
tarde, seu envolvimento com a militância estudantil o levou a escutar boatos de que
havia uma certa movimentação na floresta do interior do Pará. Assim como seus
colegas, Geraldo não tinha muitas informações sobre o que acontecia. Os jornais não
noticiavam. Só anos depois soube-se que a região do Araguaia havia sido palco de
uma guerrilha.

À época, Geraldo não deu atenção aos boatos. Por diversas razões, ele se
afastava cada vez mais do movimento estudantil. A família e a poesia falavam mais
alto. E também a profissão, pois, a partir do quarto ano de graduação, Geraldo
afundou-se nos grossos livros de Medicina, incorporou a prática médica e ingressou
de vez no ambiente hospitalar. Passou a vestir-se de branco e a conviver diariamente
com a dor, o sofrimento e a morte.

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Assim que terminou a graduação, em 1978, decidiu especializar-se em Clínica
Médica e Gastroenterologia. Prestou Mestrado na Escola Paulista de Medicina, em
São Paulo, e passou os sete anos seguintes na capital paulista. Lá, conheceu a
paulistana Thaís Helena Nascimento Veiga, uma morena de pele bronzeada quatro
anos mais jovem que ele. Foram casados por 23 anos. Deste relacionamento,
nasceram dois filhos, Carolina, de 30 anos, e Rafael, de 24 anos.

Thaís acompanhou a trajetória do marido quando ele se formou no Mestrado e


engatou o Doutorado, ainda pela EPM. No entanto, Geraldo começou a ter
dificuldades na pós-graduação, por conta de disputas internas. Ele achava que seu
trabalho não estava sendo valorizado. Sentia-se humilhado. Talvez por isso, nesta
época, tenha começado a frequentar o curso de psicossomática. As aulas não
estavam incluídas em seu currículo: o interesse do médico era genuíno. Geraldo
fascinava-se com o tema. Adivinhava um impulso, ainda fraco, dentro de si, quando
assistia aos debates. Mas não deu ouvidos à intuição. Perseverou no Doutorado em
Gastroenterologia, apesar dos obstáculos, que tornavam-se cada vez mais difíceis.

Em uma tarde de 1985, foi conversar com Thaís, que estava grávida de cinco
meses de Carolina, a primeira filha do casal. Manifestou à mulher seu
descontentamento com o Doutorado e disse que cogitava largar tudo e voltar para
Belém. Thaís fixou o olhar no marido. Se fosse esta a sua vontade, então ela iria com
ele.

E assim foi. Geraldo retornou à terra onde nasceu, sem finalizar o Doutorado.
Em pouco tempo, arranjou um emprego no Hospital dos Servidores do Estado do
Pará, o Hospital Ophir Loyola, para trabalhar com uma proposta de reformular a
maneira de se exercer estudo e pesquisa. Foi nessa época que sua vida começou a
se transformar de forma definitiva.

No mesmo ano em que voltou para sua cidade natal, Geraldo recebeu a notícia
que seu irmão caçula, Carlos Eduardo, quinze anos mais novo que ele, apresentava
sintomas de sofrimento psíquico. Em 1985, Carlos Eduardo morava no Rio de Janeiro,
onde cursava Direito e Educação Física.

A família ficou consternada. Em Geraldo, porém, o sofrimento de Carlos


Eduardo atingiu a camada mais profunda de sua alma. O médico passou a
acompanhar cada passo do irmão caçula. Ele ainda não sabia, mas vivia uma nova
realidade que o sensibilizaria a ponto de auxiliá-lo em seu caminho profissional.

28
...

Anos mais tarde, depois de optar por seguir as veredas da psiquiatria, Geraldo
olha para trás e acredita que o sofrimento psíquico do irmão não foi a única causa de
suas escolhas, mas certamente as influenciou. Em todo caso, não se arrepende:

-- Se influenciou, ótimo -- acredita. -- Eu me encontrei. Na saúde mental,


aprendi o que é ser médico, o que é ser homem, o que é ser humano.

Faz uma curta pausa antes de prosseguir com o balanço de seu caminho
profissional e pessoal. E, com semblante pleno e sereno, como se pairasse em águas
calmas depois de forte tempestade, confessa:

-- Ir para a psiquiatria foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida.

O psiquiatra caboclo Geraldo Sales e o rio Tocantins. Crédito: Fabiana Nanô

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Foram vinte anos de estudos e trabalho como gastroenterologista clínico até
Geraldo encontrar o seu lugar na Medicina. Antes de optar pela psiquiatria, ele trilhou
um longo caminho que, aos poucos, o fez descobrir sua verdadeira vocação.

O médico, hiperativo, nunca parava. Estava sempre em movimento. No


Hospital dos Servidores, logo resolveu criar a Semana do Professor Visitante em
Clínica Médica, em parceria com a Escola Paulista de Medicina. Embora tivesse
interrompido o Doutorado, Geraldo manteve o vínculo com a instituição. Todo mês, um
professor de Clínica Médica da EPM visitava o hospital belenense para ministrar aulas
e ofecerer supervisão.

Em uma de suas idas a São Paulo para a elaboração do projeto da Semana,


Geraldo encontrou-se com o clínico Antônio Carlos Lopes. Juntos, eles decidiram
fundar a Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM). A criação da SBCM ocorreu
em uma sala do Hospital São Paulo, com a presença de poucos médicos. O ano era
1989. Hoje, a sociedade conta com 12 mil sócios e está presente em 18 estados do
país.

Depois de criá-la, Geraldo articulou-se para fundar a Seção Norte da SBCM,


em Belém. Graças a seu esforço, o I Congresso Brasileiro de Clínica Médica ocorreu
na capital paraense, em 1991, e reuniu mais de 800 participantes. Geraldo presidiu o
evento.

Geraldo Sales (ao centro) preside o I Congresso Brasileiro de Clínica Médica. Crédito: Acervo SBCM

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O médico também se envolveu na criação de um núcleo de estudo e pesquisa
em patologia da Amazônia e em um grupo de discussão em hepatologia, chamado
Clube do Fígado, em uma clínica médica de Belém. Seu reconhecimento cresceu, e
ele passou a fazer parte do time de colaboradores do Jornal Brasileiro de Medicina, ao
lado de médicos como o cardiologista Adib Jatene e o gastroenterologista Moacyr
Pádua Vilela.

Quando o acreano Adib Jatene assumiu o Ministério da Saúde, em 1992,


decidiu criar um programa para melhorar a situação da saúde pública em seu estado
natal. Quarenta e dois médicos foram convidados para integrar o Programa
Emergencial de Saúde para o Acre. Entre eles, Geraldo. No avião, rumo ao extremo
oeste do país, o paraense, exultante, foi escolhido para coordenar a equipe de
médicos. Estavam previstos três meses de permanência. Geraldo ficou dez. No Acre,
ele aprimoraria sua prática médica e conheceria não apenas outra cultura amazônica,
mas também uma parte ancestral de sua família paterna.

O primeiro indício da revelação familiar surgiu dentro de uma agência bancária


de Rio Branco: a mulher que atendeu Geraldo também era Sales. Logo descobriram
que eram primos. E Geraldo soube que seu bisavô, pai de seu avô, havia migrado do
Ceará para o estado amazônico durante o primeiro ciclo da borracha, no começo do
século XX. Lá, ao lado do irmão, fundou um seringal, nomeado Grajaú. Do seringal,
nasceu uma vila, que passou a ser comandada pelo irmão: o bisavô de Geraldo havia
decidido fazer a vida no Pará. Em Belém, ele teria um filho, Raimundo Geraldo da
Silva Sales, que se tornaria um grande comerciante do bairro árabe da capital
paraense. Era o avô paterno do médico.

O primeiro Raimundo Geraldo fez a vida em Belém. Já o segundo teria destino


distinto. Embora trabalhasse na capital, Geraldo passou a ouvir, com frequência cada
vez maior, o nome de uma cidade até então desconhecida para ele. Era Tucuruí.

Da primeira vez, teve que arranjar uma ambulância para um paciente que
precisava ser encaminhado à UTI, recurso possível só em Belém. O paciente estava
em estado grave e havia feito o trajeto de 400 quilômetros que separam a capital
paraense da cidade interiorana em um avião monomotor. A ambulância recebeu-o no
aeroporto de Belém e transportou-o ao Hospital dos Servidores. Geraldo foi chamado
para ver o doente. Reconheceu-o imediatamente: era um antigo colega de faculdade.
O médico emocionou-se. Queria ofertar cuidados, mas pouco podia fazer para salvar a

31
sua vida. O paciente estava em estado terminal, e morreu algumas horas depois. Da
segunda vez, a ambulância trouxe do pequeno município um ex-prefeito que estava
com câncer. O tumor consumiu o ex-governante em poucos dias. De novo essa cidade
na minha vida, pensou Geraldo.

A terceira vez foi decisiva. Ela nasceu de uma trombada entre Geraldo e uma
colega que era médica pediatra, nas escadas do Hospital de Servidores. Pois o porte
atlético do médico impedia que ele usasse o elevador: Geraldo preferia sempre subir
os andares do hospital de escada. Em uma manhã, ao escalar correndo os degraus,
bateu de frente com Nazaré Peres Vieira. Os dois caíram no chão. Ergueram-se rindo
e cumprimentando-se. A médica aproveitou a ocasião para fazer um inusitado convite
ao colega de trabalho:

-- Geraldo, o estado vai encampar o hospital da Eletronorte em Tucuruí. Bora


lá?

O clínico espantou-se. Era a terceira vez que ouvia aquele nome.

-- Tás doida? -- retrucou.

-- Tens a cara daquilo -- insistiu Nazaré.

-- Eu não sei nem onde fica Tucuruí -- reforçou o gastroenterologista.

Dentro de uma semana, Geraldo estava sentado numa poltrona de avião,


contemplando a bela paisagem, composta por lago e floresta, que se descobria abaixo
de sua janela.

32
A composição do lago de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

...

Ao pisar em solo tucuruiense, o médico conheceu o município, frenético e


desordenado, e a calma e organizada Vila Permanente, construída para abrigar os
trabalhadores e funcionários ligados à hidrelétrica. A Vila, como é chamada, é área de
segurança nacional, controlada pelo governo federal. Um conjunto de casas e ruas
tranquilas, rodeadas de mato, compõem este pedaço de área pública, protegida por
guaritas e cancelas e vigiada por homens do Exército e da Polícia Militar. Há um
comércio, restaurantes, um supermercado, uma igreja, um pátio de uso coletivo, uma
rodoviária, uma escola e, claro, um hospital: o Hospital Regional de Tucuruí (HRT).
Era essa instituição que Geraldo ajudaria a implantar, ao lado de Nazaré. Em 1993, os
dois trabalharam duro para que o Regional, como é conhecido, fosse um polo de
referência na região. Conseguiram. Nazaré foi a primeira diretora do HRT, e Geraldo,
seu vice.

33
À esquerda, vista da tranquila Vila Permanente e, à direita, o desordenado município de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

Ele ainda atendia como clínico geral e gastroenterologista. Travou contato com
muitos pacientes pobres e analfabetos. Quando os encontrava, olhava fundo em seus
olhos, como se tentasse desvendar algum segredo.

Talvez por conviver com o sofrimento psíquico do irmão caçula, talvez por ter
nascido com o gene da indignação, o fato é que Geraldo, certo dia, foi bater à porta
das autoridades da Secretaria de Saúde. Perguntou a elas qual era a política pública
no campo da saúde mental no município.

-- Doente mental, a gente amarra e evacua -- ouviu da boca de uma autoridade.

Inconformado, o médico foi investigar o que se passava. Descobriu que Tucuruí


tratava seus pacientes psiquiátricos, no ano de 1995, com remédios controlados,
quando possível, ou com internações em manicômios de outras cidades, como Belém,
Altamira, a oeste do estado, ou Araguaína, no Tocantins. Voltou a refletir sobre a frase
do homem público. Aquelas palavras o tocaram profundamente. Não podia deixar que
corressem soltas, livres de impedimentos. Decidiu que as transformaria em outras.
Como um pajé, símbolo de transformação e de espiritualidade, daria origem a uma
nova sentença: “cidadão em crise, a gente acolhe e cuida junto com a família e a
comunidade”.

Olhou para o céu, como se das nuvens colhesse inspiração. Baixou o olhar
para o lago fundo de águas calmas e declarou, firme, a si mesmo:

-- Quero criar um movimento aqui. Agora eu vou fazer a minha Guerrilha do


Araguaia.

Deu os primeiros passos. Era o início de uma revolução.

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O rio Tocantins, seus barcos, suas matas e seus habitantes. Crédito: Fabiana Nanô

35
3.

A Leseira Itinerante

Uma pedra a menos na saúde do Pará.


Um veleiro de dois mastros singra a baía Marajoara em direção à
Trilha do Tucunaré, capitaneada por uma cabocla de neurônios
impregnados pelo pitiú amazônico, convicta de que a natureza não
é permissiva, mas ao mesmo tempo apaixonada pelos meios de
existência que o homem cria, sua luta e resistência.
Ao seu lado, um exemplo de sobrevivência social, oriunda da seca
nordestina, um médico que trata de sentimentos reais e, com
humor, ignora se houve erro ou não de Descartes, mas acredita que
‘se o bode vive, logo penso’...!
(Uma super cultura e uma maravilhosa inteligência preguiçosa.)
A humilde e ousada embarcação atracou recentemente e de
maneira suave no porto principal do ‘Rio dos Gafanhotos’ ou ‘Rio
das Formigas’, ao sudeste do Pará, trazendo pelas mãos da
tripulação uma proposta revolucionária (pelas verdades) e teatral,
pelo brilho e pela fome dos atores, na interpretação permanente de
Acusadores e Madalenas... Um manejo simples de resistir e querer
mudar a incredulidade absoluta e diminuir a intensidade do estigma
social.
‘Tormento gemendo, temendo, mas sonhando e acreditando.’
Oxalá! Por que não…

Gersa

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Foram os livros de saúde mental seu próximo alvo. Geraldo os lia
compulsivamente. Um mundo de cores e texturas se abriu à sua frente, como uma
cortina densa e vermelha que se descerra sobre o palco, desvendando a peça teatral
da vida. Era aquilo que ele havia desejado tanto tempo. Era aquilo que almejava.

Em meio a esta busca, foi procurar auxílio na Secretaria de Estado de Saúde


Pública do Pará, a Sespa. Descobriu que o órgão promovia um treinamento em saúde
mental, coordenado pela enfermeira Maria Selma Nascimento. O programa, inspirado
no movimento brasileiro de reforma psiquiátrica, tinha por meta capacitar pessoas na
área e debater saúde mental em vários municípios do estado.

Geraldo se inscreveu e, ao travar contato com o conteúdo do curso,


enlouqueceu. Mergulhou nos estudos com tamanha intensidade que permaneceu
pouco tempo na posição de aluno. Logo foi convidado a mudar de posto, de ouvinte a
orador: passou a dar treinamento junto com a equipe liderada por Selma. Ao lado
deles, percorreu as longas estradas do sul do Pará, para apresentar as novas ideias
no campo da saúde mental a cidadãos de terras longínquas, afastadas da
movimentação pela qual passava o país naquele ano de 1996. Começou aí a
experiência que o poeta Gersa chamou de Leseira Itinerante:

-- Fui para Marabá, Repartimento, Conceição do Araguaia. Viajei todo o sul do


Pará para dar treinamento junto com eles. Para você ver o grau de euforia em que eu
estava... A sede que eu tinha -- relembra Geraldo. -- Este curso me fez descobrir toda
a minha força e as motivações profundas pelo trabalho que faço.

As novas diretrizes para a saúde mental iam contra a manutenção de


manicômios e dos espaços fechados nos quais a loucura tinha até então sido
enclausurada. Agora, apregoavam a implementação de uma série de serviços abertos
à sociedade, entre eles os chamados Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

37
Quando ouviu falar pela primeira vez dos Caps, durante o treinamento da
Sespa, Geraldo esticou a cabeça e mexeu-se inquieto na cadeira. Era como se um
sonho, estacionado nas profundezas do inconsciente, tivesse enfim vindo à tona, em
impetuosa torrente. Criar um Caps em Tucuruí passou a ser o eldorado de riqueza e
opulência do médico. Ele começou a trabalhar incessantemente para isso. Acreditava,
de alma e de coração, que era possível construir um novo paradigma da saúde mental
no município que o acolhia de forma tão generosa.

Para isso, ele jogou toda sua prática para os pés. Todas as suas teorias,
invenções, criações, foram rapidamente transferidas para baixo: elas caminhavam em
direção à comunidade. Era um presságio do que viria a acontecer, meses mais tarde,
em Tucuruí.

Tudo começou com a formação de uma equipe. Geraldo conseguiu reunir uma
psicóloga, uma enfermeira, uma assistente social e quatro técnicas de enfermagem.
Juntos, eles passaram a atender pacientes psiquiátricos em uma sala de um posto de
saúde no bairro da Cohab. O atendimento era individual e também em grupo. Havia
um ambulatório de crise, onde assistiam casos de depressão, neuroses, psicoses,
alcoolismo e dependência química. Quando a situação era mais grave, o paciente era
internado durante alguns dias na Enfermaria de Clínica Médica do Hospital Regional
de Tucuruí.

Dessa forma, Geraldo iniciou-se nas veredas da saúde mental.

Vez por outra, ele e sua equipe também saíam às ruas de Tucuruí em
passeatas com grandes faixas convidativas, que convocavam todos a “construir uma
sociedade sem manicômios”. Um carro de som os acompanhava. Ao microfone, os
manifestantes propagavam os ideiais da reforma psiquiátrica brasileira e os
ambiciosos projetos que reservavam para Tucuruí. Logo notaram que, quando se
tratava de loucura, os muros eram muito mais altos do que supunham. Eram quase
intransponíveis. Na rua, todos os transeuntes desviavam o rosto. Os moradores, ao
tomar conhecimento do motivo das passeatas, retornavam a suas casas, acuados.
Alguns ganhavam coragem para enfrentar os manifestantes, questionando a ideia de
soltar os loucos, de extinguir as grades que os aprisionava.

Como resposta, Geraldo lançou mão do teatro. Pediu aos manifestantes para
dramatizarem. Em um, foi colocada uma camisa de força. Outro interpretou o carrasco
do hospício. E ambos representaram a versada cena, tão cotidiana e tão invisível, das
atrocidades cometidas dentro dos chamados hospitais psiquiátricos do país.

38
Geraldo (de branco) percorre as ruas de Tucuruí ao lado de sua equipe, de pacientes e seus familiares.

Crédito: Arquivo pessoal

Depois de percorrer todas as ruas de Tucuruí, o médico estacionava na


principal praça pública do município e discursava, no microfone, sobre a necessidade
de um Caps. Construir um Centro de Atenção Psicossocial em Tucuruí era uma
obsessão para Geraldo. Ele tinha grandes planos para a população miserável -- de
corpo, não de alma -- com a qual agora convivia. Sua prática era inspirada no
movimento brasileiro de reforma psiquiátrica, mas também em duas grandes figuras
nascidas bem longe daquelas terras: os italianos Mario Tommasini e Franco Basaglia.
Este último sempre foi uma fonte inesgotável de sabedoria não só para o médico
paraense, mas para muitos outros psiquiatras mundo afora. Afinal, foi Basaglia o
primeiro a se rebelar contra os muros físicos e simbólicos da loucura. Foi ele quem
plantou a semente que germinaria e se multiplicaria por todos os cantos, como uma
luz irradiante que atinge os mais remotos eldorados do planeta.

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Jornal regional noticia os novos serviços de saúde mental disponíveis em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

Nascido em Veneza, no ano de 1924, Basaglia passou doze anos ligado à


universidade e ao mundo acadêmico após formar-se em Medicina. Em 1961, decidiu
abandonar os estudos universitários e assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de
Gorizia, na fronteira com a Eslovênia. Nessa instituição, travou contato pela primeira
vez com a realidade dos manicômios. Indignou-se para sempre. A partir desse
momento, a desmantelação dos hospitais psiquiátricos passou a ser sua razão de
viver.

Em Gorizia, ele foi barrado pelo poder local, conservador. Ele tentou realizar
seu sonho, então, em Parma, ainda no norte da Itália. Novamente, foi impedido.

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Foi em Trieste, na tríplice fronteira entre Itália, Eslovênia e Croácia, que o
psiquiatra finalmente encontraria o ambiente político favorável para fazer a sua
revolução. Nesta pequena cidade portuária, descobriu-se como homem e como
médico e ficou mundialmente reconhecido.

Em 1970, quando assumiu a direção do hospital psiquiátrico triestino de San


Giovanni, Basaglia soube o que o aguardava. A instituição abrigava 1101 internos,
distribuídos em 19 pavilhões -- onze masculinos e oito femininos.

Sua primeira providência foi extinguir a divisão por sexo. Os pavilhões


tornaram-se mistos. Em seguida, a classificação segundo diagnóstico ou
comportamento foi abolida. Não havia mais “agudos e crônicos”, “tranquilos e
agitados”. Desta forma, a lógica manicomial começava a ser rompida. O próximo
passo foi libertar os internos das amarras institucionais: eles foram informados de que
não estavam mais confinados. Não apenas voltariam a ter acesso ao “lado de lá”, de
fora, mas voltariam a viver “lá”, lá fora. Alguns retornaram para casa. Outros foram
viver nos chamados apartamentos de grupo, imóveis ocupados por ex-pacientes na
comunidade. Uma parcela ainda foi elevada à categoria de “hóspede” dentro do
hospital. Eram ex-internos que receberam alta e, por não disporem de recursos
próprios para sua subsistência na cidade, ganharam um espaço dentro da instituição,
para morar com total autonomia.

Concomitante ao seu trabalho de abertura em San Giovanni, Basaglia


esforçou-se para estabelecer estruturas de apoio no que chamou de “território”, o
espaço da comunidade. Dessa forma, a pessoa com transtorno mental, à medida que
se desvinculava do hospital psiquiátrico, passou a ser assistida por centros de saúde
mental espalhados por Trieste e pelo serviço de emergência do hospital geral do
município. Foi criada uma rede múltipla, que oferecia atendimento e tratamento a
qualquer momento do dia e da noite.

As mudanças foram brutais. E efetivas. Em 1973, a Organização Mundial de


Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como referência para a
pesquisa no campo da saúde mental. A condecoração atraiu centenas de interessados
em ver de perto as transformações em curso. A cidade italiana encheu-se de
jornalistas, historiadores, sociólogos, antropólogos, estudantes, voluntários e vários
profissionais ligados à área da saúde, ansiosos por conhecer as novas relações de
vida.

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Em 1978, as profundas transformações levaram enfim ao fechamento do
manicômio de Trieste. Era o primeiro hospital psiquiátrico no mundo a abrir seus
pavilhões e a não aceitar mais internações. No mesmo ano, o Parlamento italiano
aprovou a lei nacional de número 180, que leva o nome do psiquiatra. Desde então, a
Lei Basaglia pressiona a sociedade italiana pela extinção completa de manicômios e a
sua substituição progressiva por uma rede territorial de apoio e assistência ao cidadão
com transtorno mental.

Foi a realização de um sonho de proporções gigantescas. Basaglia estava


convencido de que a instituição psiquiátrica não servia à terapêutica, mas ao controle
social de pessoas marginalizadas. Fazer emergir da humilhação o sujeito, conhecer as
histórias e os desejos por trás de pacientes que não sabiam mais viver senão de forma
institucionalizada era o anseio mais íntimo do italiano. Basaglia não queria apenas
derrubar os muros físicos do manicômio. As principais barreiras, para ele, eram as
simbólicas. Em sua luta incessante, ele pretendia recuperar o canto de pássaros sem
voz, para que assobiassem junto com os demais.

Seu trabalho ressoou no mundo todo. Inclusive no Brasil. Em 1979, o psiquiatra


foi convidado para proferir conferências em diversas cidades do país, entre elas São
Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A influência de Basaglia passou a ser
fundamental para um grupo de profissionais da área da saúde que havia se reunido
em torno do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), criado nos anos
1970.

Durante uma década, de 1978 a 1987, o MTSM lutou por novos paradigmas na
área da saúde mental. Organizou dezenas de eventos, no intuito de reunir cada vez
mais profissionais, pacientes e familiares. No início, as reivindicações eram difusas.
Iam de aumento salarial a melhorias na infraestrutura dos hospitais psiquiátricos.
Nesse ínterim, algumas denúncias das atrocidades cometidas dentro das instituições
psiquiátricas vieram à tona. O alvoroço causou muita resistência, por parte dos mais
variados setores.

Finalmente, em 1987, o movimento explodiu, com uma pauta mais direcionada:


substituir os manicômios por uma rede de serviços em saúde mental ancorada no
território. Neste ano, foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em
Brasília. Em Bauru, no interior de São Paulo, o II Congresso Nacional dos
Trabalhadores em Saúde Mental lançou pela primeira vez o lema “Por uma sociedade
sem manicômios”. Hoje, este é o lema principal do 18 de Maio, o Dia Nacional da Luta
Antimanicomial.

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Ainda em 1987, na capital paulista, foi fundado o primeiro Centro de Atenção
Psicossocial do país, o Caps Professor Luiz da Rocha Cerqueira. Em Santos, no litoral
paulista, foi inaugurado o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps). Também
foram criadas cooperativas, associações e residências para egressos da Casa de
Saúde Anchieta, o principal hospital psiquiátrico da cidade litorânea, que começava a
ser desmantelado.

Na onda de todos esses acontecimentos, o ex-deputado Paulo Delgado


apresentou, no Congresso Nacional, o projeto de lei 3.657/89, com vistas às
transformações na área da saúde mental. Depois de doze anos de tramitação, foi
finalmente aprovada a Lei 10.216, de abril de 2001. Conhecida como Lei Paulo
Delgado, institui a reforma psiquiátrica brasileira. O texto prioriza o atendimento dos
pacientes em serviços abertos na comunidade e estabelece que a internação da
pessoa com transtorno mental deve ser efetuada somente em último caso. Além disso,
proíbe a internação em instituições asilares: os hospitais gerais devem receber os
pacientes em crise e encaminhá-los para os chamados leitos psiquiátricos, a serem
criados nesses mesmos hospitais gerais.

Embora represente um avanço, o texto da lei da reforma psiquiátrica brasileira


não determina, de forma progressiva e definitiva, o fechamento de manicômios. Por
isso, em pleno século XXI, o Brasil ainda conta em seu território com estas instituições
fechadas, onde se cometem crimes silenciosos e cotidianos que não vêm à luz do
público, dos “de fora”.

Por outro lado, a legislação inscreve nos códigos do país um movimento


atuante desde a década de 1970. Esta passagem oficial para o mundo das leis
possibilitou o cumprimento de medidas até então deixadas de escanteio e provocou
um aumento significativo de Caps e de outros serviços territoriais por todo o Brasil.

...

Basaglia não viveu para ver todas essas mudanças. Em 1980, dois anos
depois da aprovação da Lei 180 na Itália, o psiquiatra contraiu um tumor no cérebro
que o consumiu em poucos meses. Ele morreu em sua casa de Veneza, onde nasceu.
Tinha 56 anos.

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Ainda na década de 1960, quando trabalhava em Gorizia, o primeiro hospital


psiquiátrico com o qual travou contato, Basaglia foi procurado pelo secretário de saúde
da província de Parma. Seu nome era Mario Tommasini. Encontraram-se pela primeira
vez em um café de Pádova. O secretário havia ouvido falar das mudanças que o
psiquiatra implementava e queria apresentar a Basaglia seus planos para tornar mais
“humano” o hospital de sua província. Durante a conversa, porém, Tommasini teve a
impressão de que o médico escutava-o desinteressado. Mesmo assim, na despedida,
recebeu com satisfação um convite para ir conhecer as transformações em Gorizia.

O secretário acabou por ir diversas vezes àquela província. Ficou


deslumbrado. E presenciou, também, as dificuldades do psiquiatra com o poder local.
Em Parma, o governo era de esquerda: se Basaglia fosse para lá, poderia enfim
consumar a sua revolução. Tommasini fez o convite ao médico. Basaglia aceitou,
embora, mais uma vez, parecesse desacreditado.

Durante os dois anos e meio em que permaneceu em Parma, o psiquiatra fez


passar pela cidade um furacão. Seu trabalho era vivo, intenso, apaixonado. Contudo,
como ele havia intuído, o poder local começou a dificultar suas iniciativas. Basaglia foi
então convidado pelo governo de Trieste para assumir a direção do hospital de San
Giovanni, com carta branca para realizar o que bem desejasse. Teve razão de deixar
Parma.

Tommasini, decepcionado, perdeu o médico, mas não a vontade política. As


ideias de Basaglia o haviam transformado profundamente. O secretário trabalhou
arduamente para desativar o manicômio de Parma. Alcançou não só este objetivo,
mas todos os outros: desativou o orfanato, o asilo de idosos, a prisão, o cárcere para
menores e a instituição para deficientes de Parma. Para ele, essas instituições de
assistência social nada mais eram senão espaços de segregação.

E, com o fim delas, a cidade, pôde, enfim, conhecer uma nova realidade.

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Os olhos de Geraldo brilharam no momento em que tomaram conhecimento
das trajetórias de Basaglia e Tommasini. Os dois italianos eram uma fonte de
inspiração para o paraense, os mentores que passaram a guiar suas decisões, nesses
primeiros passos que dava no campo da saúde mental.

Embora estivesse trabalhando na área desde 1996, Geraldo ganhou o título de


especialista em Psiquiatria, concedido pela Associação Médica Brasileira e a
Associação Brasileira de Psiquiatria, somente em março de 1998. Uma banca de
examinadores veio de São Paulo e do Rio de Janeiro para selecionar os candidatos às
30 vagas disponíveis para a especialização na Universidade do Estado do Pará
(Uepa), em Belém. A prova era oral, e os candidatos deviam entrar em grupos de
cinco para expor suas arguições aos examinadores. Geraldo ficou em primeiro lugar.
Toda a banca lhe deu nota dez.

-- Eu estava eufórico, né? Já estava militando na saúde mental, já estava


aprontando miséria. Estava a mil por hora. Eu disse a uma mulher da banca que
queria ser um Tommasini marajoara. Ela me olhou assim, deve ter pensado, égua,
esse cara é doido -- brinca.

Em seguida, ele explica:

-- Quer dizer, eu queria fazer o que o Tommasini tinha feito com o Basaglia na
Itália: mudar a história da saúde mental.

Em 26 de setembro de 1998, seis meses depois de concluir a especialização


em Psiquiatria, Geraldo cumpriu o vaticínio proferido à banca de examinadores. Nesta
data, foi enfim inaugurado o Centro de Atenção Psicossocial de Tucuruí.

O primeiro Caps do interior do Pará era como um filho para Geraldo. O médico
lutava desde 1996 pela sua construção. Passou três anos na rua, realizando
passeatas, discursos e batendo à porta de autoridades locais e estaduais para
apresentar seu projeto. Elas o recebiam e o escutavam com interesse duvidoso.
Colocavam um termo ao encontro com falsas promessas, que logo se dissipavam. Se
o intuito era desencorajá-lo, não surtiram efeito.

Certa tarde, por ocasião da inauguração da Junta Comercial de Tucuruí,


encontrava-se no município o então governador do estado Almir Gabriel. O governante

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era visto acenando e sorrindo para fotos ao lado de outras figuras públicas, entre elas
o então prefeito de Tucuruí Claudio Furman. Várias pessoas os rodeavam. Em meio à
multidão, Almir Gabriel sentiu uma mão firme segurar seu braço.

-- Governador, tem um minuto?

O homem voltou o rosto, instigado pela energia e força daquela mão. Deparou-
se com um caboclo baixo e moreno, que o encarava com olhos determinados.

-- Diga.

Geraldo atropelou-se em uma torrente de palavras. Apesar de todos os seus


esforços, nada tinha alcançado. Nenhuma autoridade havia se empenhado, ao lado
dele, na construção do Caps. Até aquele momento, ninguém o tinha realmente
escutado.

Antes de iniciar a carreira pública, Almir Gabriel havia sido médico. Ao ouvir as
palavras de Geraldo, pedindo um novo paradigma na saúde mental no município,
lembrou-se de que, quando garoto, em Belém, empinava pipa ao lado do muro do
hospital psiquiátrico Juliano Moreira, hoje desativado. À época, uma conhecida do
governador havia sido internada lá. O homem sabia dos percalços atravessados pela
mulher, e também andava informado a respeito do movimento da reforma psiquiátrica
brasileira. Intuía a importância da construção de uma nova rede de saúde mental, da
qual o Caps é parte fundamental. Olhou para Cláudio Furman e pediu que fosse criado
um convênio entre Estado e Prefeitura para a criação do centro. Em seguida, dirigiu-se
novamente a Geraldo e garantiu que liberaria a verba necessária.

-- Em quanto tempo você acha que inaugura o Caps? -- perguntou ao


psiquiatra.

O médico, sentindo seu sonho se concretizar, não titubeou:

-- Três meses.

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Geraldo (ao centro) e a primeira equipe de saúde mental que inaugurou o Caps de Tucuruí.

Crédito: Arquivo pessoal

Na tarde de 26 de setembro de 1998, uma grande festa marcou a inauguração


do Caps de Tucuruí. Batizado de Casa Machado de Assis, o centro homenageava o
grande escritor brasileiro, autor do conto “O Alienista”. Escrito ainda no século XIX,
este texto é um dos primeiros manifestos críticos à psiquiatria ortodoxa e à instituição
psiquiátrica.

Em Tucuruí, o Caps já nasce rompendo as amarras institucionais. Duas


características o distinguem: as portas sempre abertas e a roda de terapia
comunitária. Esta era a principal ferramenta de Geraldo no tratamento a residentes de
uma terra onde tudo é coletivo. Nela, ele encontrou um caminho a trilhar, em meio a
tantas pedras. Em pouco tempo, a terapia comunitária tornou-se o seu talismã.

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Jornal regional noticia a criação do Caps de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

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Antes da inauguração do Caps de Tucuruí, a terapia comunitária já havia
entrado na vida de Geraldo. Em 1994, em Belém, ele encontrou-se pela primeira vez
com Adalberto Barreto, psiquiatra, antropólogo, filósofo e teólogo cearense. Adalberto
era o criador da técnica da terapia comunitária, a qual usava desde 1987 na Favela do
Pirambu, uma das maiores de Fortaleza.

Naquele ano de 1994, Adalberto fora convidado pelo governo do estado do


Pará para ministrar, em Belém, o curso “Cuidando de quem cuida”. Geraldo foi
convidado a acompanhar as palestras. Sua identificação com Adalberto foi imediata.
Ele conheceu as ideias do colega nordestino, a quem considera um mestre e tutor, e
também a técnica criada por ele. Os dois acabaram por criar uma relação que é uma
via de mão dupla. Se, para Geraldo, Adalberto sempre foi um grande mestre, para o
cearense, o paraense sempre foi um grande irmão. Ele coloca Geraldo em pé de
igualdade quando peço para me contar o que significou este encontro no Pará, para
onde o nordestino acabou por ir diversas vezes.

-- O Geraldo é um criador, é uma pessoa que está sempre em movimento,


sempre construindo, sempre inovando, sempre multiplicando, e ele tem a capacidade
de colocar em movimento quem está com ele. E a terapia comunitária tem que ser
movimento.

Não demorou para que Geraldo iniciasse o curso da técnica. O ano era 1996, e
o paraense, como bom aluno, sentia-se bastante instigado. Ao longo das aulas, ele
soube que a terapia comunitária atua na promoção da saúde e na prevenção de
doenças. Ela faz parte da atenção primária à saúde, também conhecida no Brasil
como Atenção Básica. A Atenção Básica é a principal ponte entre o cidadão e o
serviço público de saúde; é a porta de entrada do usuário ao SUS (Sistema Único de
Saúde). Programas do Ministério da Saúde como os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (Nasf) e o Programa Saúde da Família (PSF) também fazem parte da Atenção
Básica.

Mas o que atraiu Geraldo não era só o caráter preventivo da terapia


comunitária. Era o fato de a técnica integrar os saberes médico e popular, coletivo e
individual. Ele pôde compreender melhor essa dinâmica quando viajou para Fortaleza,
a fim de acompanhar de perto o trabalho de Adalberto. Há pelo menos dez anos, o
psiquiatra e teólogo cearense usava a técnica em Pirambu, para onde foi levado por
intermédio de seu irmão, Ayrton Barreto. Ayrton era advogado e atuava no Centro de

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Direitos Humanos de Pirambu, onde realizava atendimento jurídico para os moradores
da favela. Ele conhecia bem a realidade do lugar e os problemas de seus clientes.
Sabia da importância que teria lá a presença de seu irmão, médico.

Adalberto havia passado seis anos na Europa, onde realizou sua formação em
Antropologia e Filosofia, a especialização em Psiquiatria – ele era formado em
Medicina, curso concluído ainda no Ceará – e terminou a formação em Teologia.
Retornou ao Brasil em 1982, guiado pelo desejo primário de ajudar seu povo, de
integrar seu saber médico e teórico ao saber popular e às suas raízes do Sertão
Nordestino, pois era natural de Canindé. Em 1983, ele chega a Pirambu. Em 1987,
cria oficialmente a técnica da Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa.

Geraldo conhece o trabalho de Adalberto Barreto, em viagem ao Ceará. Crédito: Arquivo pessoal

Geraldo, ao presenciar uma sessão de terapia comunitária com Adalberto,


ficou impressionado com o que viu. Formada a roda, o cearense listava algumas das
regras da sessão. Só era permitido falar em primeira pessoa: ao orador era imperativo
usar o “eu”. Aos que escutavam, era proibido interromper, fazer julgamentos ou dar
conselhos. O silêncio deveria reinar enquanto o outro falava.

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Estes e outros pontos esclarecidos, dava-se início à sessão. Alguns
participantes eram convidados a expor seus problemas. O grupo, então, elegia uma
das histórias. A pessoa cujo drama foi escolhido discorria sobre ele de forma
minuciosa. Em seguida, os participantes que passaram por situações semelhantes
eram convocados a relatar como as superaram. Por fim, o grupo fazia um balanço da
conversa.

Para muitos dos participantes, o simples fato de ouvir os problemas que seus
amigos e familiares atravessavam já os curava de seus problemas. A escuta é,
sempre foi, o melhor dos remédios. Ao ouvir o outro, sua dor diminui. E saber que
outros conseguiram solucionar dramas semelhantes também ajudava a visualizar uma
luz no fim do túnel. Para a comunidade, a terapia comunitária mostrava toda a sua
força, união e capacidade. A comunidade soube, a partir dessas rodas humanas, que
possuía muitos recursos próprios para lidar com vários tipos de situação.

Já para Geraldo, a terapia comunitária representava uma arma. Pois, ao travar


contato com a técnica, ele não teve dúvidas:

-- Era o arsenal bélico que faltava para eu fazer a minha revolução.

Na terapia comunitária, o paraense descobriu como integrar sua terra à sua


prática médica. Como tratar e incluir neste tratamento as ervas medicinais, o saber
dos índios, a cultura negra e quilombola, os rituais de umbanda, a doutrina espírita, e o
seu José e a dona Maria da Comunidade.

Ao retornar a Tucuruí, implantou a terapia comunitária no posto de saúde da


Cohab, onde trabalhava. Quando as obras do Centro de Atenção Psicossocial
iniciaram, a principal preocupação da equipe de saúde mental era ter um espaço para
as rodas de terapia. Foi decidido que o Caps teria um amplo salão, coberto por telhas
e aberto nas laterais. Todos os dias, alguém ia vistoriar se a construção andava
conforme o planejado. Quando a reforma terminou, a equipe, exultante, pôde reunir
mais de cem pessoas nas sessões de terapia. E, assim como o imóvel, que havia se
transformado, os pacientes foram acolhidos nas rodas ao som do coro que cantava,
batia palmas e requebrava os quadris, para cima e para baixo:

-- O seu João vai ter que entrar na olaria do Caps! O seu João vai ter que
entrar na olaria do Caps! Desce como um vaso velho e quebrado, sobe como um vaso
novo! Desce como um vaso velho e quebrado, sobe como um vaso novo!

51
...

Em seu longo percurso até a criação do Caps de Tucuruí, Geraldo esbarrou


com vários tipos de políticos. E, em meio a tantos desinteressados, ou com outros
interesses que não servir aos cidadãos que os elegeram, o psiquiatra topou com raras
autoridades íntegras. Era o caso de Célio Kennedy, médico pediatra que assumiu o
comando da Secretaria de Saúde de Tucuruí em 1997, quando uma nova gestão
tomou posse no município. Célio recebeu com satisfação Geraldo em seu gabinete. O
então secretário já tinha ouvido falar do psiquiatra que tanto chacoalhava a rede
pública de saúde da cidade, e ansiava por ouvir suas propostas.

-- O que dizer de uma conversa com uma pessoa com conhecimento de causa
e interessada em mudanças substanciais numa temática secularmente discriminada?
Era tudo que eu precisava enquanto gestor. Uma pessoa interessada como o doutor
Geraldo Sales já me bastava. Mas logo percebi que ele não estava só. E daí para
frente vimos como é fácil fazer quando se conta com as pessoas que têm o saber e
desejam compartilhar suas experiências. O Caps era uma ideia moderna que não
tínhamos e que estava dando certo em outras cidades de referência maior.
Precisávamos passar por essa experiência nova e boa.

Célio fez tudo o que estava ao seu alcance enquanto gestor para a viabilização
do Caps de Tucuruí. Ultrapassou dificuldades financeiras e políticas e presenciou, com
grande alegria, todos os benefícios advindos desta batalha:

-- Muitas foram as satisfações, desde a inauguração [do Caps], a empolgação


da equipe com uma unidade diferenciada apresentando os melhores resultados, a
mudança de atitude da população frente ao assunto e aos movimentos dos usuários
que extrapolavam as fronteiras do município e até do estado. Mas a maior satisfação
foi ver a recuperação e reinserção social e laboral de grande parte dos usuários.

E estas histórias de superação não foram poucas.

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Sessão de terapia comunitária no salão aberto do Caps de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

...

As sessões de terapia comunitária conduzidas por Geraldo chegavam a reunir


mais de cem pessoas no Caps. Participava gente não só de Tucuruí, mas também de
outros municípios da região. O psiquiatra entusiasmava-se com os que vinham de
longe. Eles eram um exemplo de perseverança. Entre eles, havia uma paciente que,
todas as quartas-feiras, era citada pelo psiquiatra na roda de terapia. Ela percorria um
trajeto de 300 quilômetros entre o Caps e a sua casa, na zona rural de Pacajá, a cerca
de 150 quilômetros de Tucuruí. Chamava-se Soneide Alves de Souza. Geraldo não
deixava passar uma oportunidade de elogiar seu esforço em integrar a roda do Caps.
Não era para menos: persistente, Soneide está no Caps até hoje.

Embora bela, vistosa e vaidosa, quando começou a frequentar o Caps Soneide


permanecia quieta, quase imóvel, a um canto da roda de terapia. Passaram-se meses
até que ficasse à vontade para compartilhar sua história. Quando deu o passo à frente
e entrou no meio do círculo, sua primeira frase, quase fúnebre, indicou o tom da
conversa:

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-- Eu já andei nas mãos da morte muitas e muitas vezes. Por padrasto, por
marido, por tudo. Andou mais perto de eu morrer que de viver.

Soneide, como ela mesma se define, é uma fruta que não amadureceu:
arrancaram verde da árvore e botaram para murchar.

Aos quatro anos, foi abandonada pela mãe, que fugiu da zona rural de
Imperatriz, onde havia dado à luz a garota e a outros cinco filhos. Imperatriz é a
segunda cidade mais populosa do Maranhão, com 235 mil habitantes, e se situa perto
da divisa com o Pará. Soneide e os irmãos ficaram aos cuidados do pai, pedreiro e
carpinteiro. Não demorou para que ela fosse entregue pelo pai a um antigo
companheiro, a quem a garota chamava de “tio”. O homem levou-a embora para o
Pará, junto com a família dele. Foram viver na zona rural de Pacajá, município
paraense de 41 mil habitantes localizado na BR-230, a Transamazônica. A garota,
hoje mulher, não se recuperaria mais destes primeiros laços cortados. Foi o início de
um duro destino.

-- Eu nunca fui conformada com a vida, pelo que passei. De ser criada sem pai,
sem mãe. A gente nunca acostuma mais. A minha mãe, o amor é afastado, por conta
da convivência que não teve. Aí eu errei, eu fui para frente e voltei para trás. Eu gosto
da minha mãe, do meu pai, do meu pessoal tudo. Mas eu gosto de longe, porque não
convivi com eles. Eu gosto mais do povo da rua do que dos de casa.

A sentença vale tanto para seus pais quanto para o seu marido. Na zona rural
de Pacajá, Soneide travaria contato com homem que selaria para sempre sua vida.
Era irmão de seu padrasto, pai de quatro filhos e vinte e dois anos mais velho que ela.
O homem não escondia sua pretensão: desejava-a. A menina, então com 12 anos,
não pôde contar com a salvaguarda do padrasto, pois era justamente ele quem pedia
para que ela fosse morar com o tio. Soneide recusava à exaustão.

Certo dia, porém, foi despachada para cortar macaxeira para a refeição. A
plantação ficava afastada da casa, mas ela foi. Quando deu por si, notou que havia
sido seguida. Desesperou-se ao ficar frente a frente com o tio. Ainda olhou para os
lados, mas não havia volta. O homem a agarrou, arrancou sua roupa e a violentou lá
mesmo, em cima da areia bruta.

-- Eu era criança. Eu nunca nem tinha menstruado na minha vida. Aí, eles
fizeram um remédio para mim, para eu poder ficar boa, porque eu fiquei feia de jeito.
Estava traumatizada, não tava? Pois é, fiquei traumatizada.

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A partir deste dia, a vida de Soneide seria marcada pelos abusos sexuais e
pelas agressões físicas do homem. Depois de violá-la, ele a botou dentro da casa
dele. Soneide já não tinha mais quem a acolhesse. A construção de madeira estava
plantada na roça, entre Pacajá e Novo Repartimento. Tiveram dez filhos juntos. O
primeiro veio assim que a garota menstruou, aos 14 anos. Nunca foram casados no
papel: ele ainda é casado com a ex-mulher, de quem nunca se divorciou. A antiga
companheira o largou, por causa de suas violações. Soneide ocupou seu lugar. Desde
então, vive atormentada.

-- Ele vai pra roça, eu fico em casa, os meninos sentados, eu morta de


necessidade, louca, doida de necessidade, pensando que não tem sabão, não tem
arroz, não tem farinha, não tem açúcar, não tem nada. Esse homem trabalhando e
ninguém vê nada.

Este é seu drama cotidiano. Todas as manhãs, o marido sai dizendo que vai
trabalhar. Quando o sol se põe, ele retorna à casa, as mãos vazias e cheirando a
álcool. Bêbado, xinga a mulher. Bate nela. De corda, de facão, com as próprias mãos.
Soneide suporta, quieta. Os filhos não podem acudir a mãe. Os que transpõem a
barreira do pai, levam também eles surras. Alguns, de tanto conviver com o sofrimento
no próprio lar, traumatizaram-se. Sua saúde mental tornou-se frágil, a exemplo dos
laços familiares.

Em Soneide, tudo é luta para sobreviver. Resiliente, ela supera todas as


adversidades. Consegue arranjar comida para o dia. Caminha quilômetros para buscar
cinco litros de água, e carrega-os sozinha na volta para o lar. Percorre os 150
quilômetros que separam sua casa de Tucuruí para anunciar na rádio deste município
os itens que faltam em seu domicílio. Já ganhou até fogão, além de roupas e utensílios
de cozinha. Mas, como este esforço não fosse suficiente para suprir as necessidades
de sua família, passou a esconder do marido sacos de café e de milho para revender
na cidade, a fim de garantir alguns trocados. Amiúde, o homem descobre os sacos e
torna a descer a mão na mulher. Soneide esquece onde os coloca. Seu juízo está
ficando ruim, como ela mesma diz. Quando o homem, por acaso, os encontra, vai ter
com ela. A mulher assume seus atos: já não tem mais medo de apanhar, nem de
morrer.

-- Sabe por que não tenho medo de ele me matar? Porque ele vem me
matando. E, se ele me matar, morri. Tanto faz.

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De madrugada, Soneide chega a acordar três vezes, decidida a matar o
marido. Desce da rede e pisa no chão com cautela, para não acordar os filhos. Se não
há fresta de luz, acende uma lamparina. Se não há lamparina, põe fogo num tição
para iluminar o caminho e desviar das crianças. Facão em mãos, aproxima-se da rede
do marido. Neste ponto, ela hesita. Deus nunca deixou que ocorresse uma tragédia.

Foram inúmeras as tentativas de fugir, de deixar tudo para trás. Soneide


arruma as malas e chama os filhos para acompanhá-la. No batente da porta, volta.
Sente que está toda atada, toda amarrada. É maldição. Já foi se consultar com cigana,
com cientista, com curandeiro, com macumbeiro. Já foi também até a igreja. De nada
adiantou.

Agora, no Caps, ela busca uma nova vida. Não sabe se vai conseguir. Mas,
pelo menos, está mais aliviada. Porque teve, enfim, a coragem de compartilhar a sua
história.

Soneide. Crédito: Alice Arida

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Dez anos atrás, era este o enredo cotidiano de Soneide. Era sua vida, seu dia
a dia. Desde então, ela frequenta o Caps. Nunca mais deixou o lugar. Hoje, aos 48
anos, vive em uma casa em um bairro pobre de Tucuruí, mas paga suas contas.
Largou o marido. Ele ainda vive na roça, ao lado de um dos filhos do casal. Soneide
mora na cidade com três filhos, dois meninos e uma menina: Iracema, sua caçula de
13 anos.

Depois de muito conversar com suas amigas e com a equipe do Caps, ela
resolveu procurar amparo jurídico na Defensoria Pública e na “Maria do Pará”, o órgão
público de assitência às mulheres. Por meio de uma advogada, soube que o marido
poderia ficar até três anos na cadeia por causa de suas agressões. Mas Soneide não
quis. Alega que não quer que os filhos vejam o pai preso. Preferiu entrar em um
acordo com o homem: quer que ele lhe dê uma casa. É seu maior sonho.

-- Na minha casa, eu tenho minhas coisas, meu fogão, minha geladeira, minha
cama, meu sonzinho. Tenho assim, coisa de pobre. Não coisa de rico, mas de pobre
eu tenho. Eu tinha vontade de ter uma casa com tudo coisa nova. Mas como eu não
posso…

Ela aguarda. Enquanto isso, passa seus dias na companhia dos três filhos. Seu
maior orgulho é Iracema. Diz que é uma garota bonita, estudiosa, interessada. Pede a
Deus que a filha nunca mude. É Iracema quem mais a ajuda: ela anota palavras no
papel para que a mãe, devido ao juízo vexado, não se esqueça de sua história.

-- Tem hora que eu sei das coisas e tem hora que eu não sei. Tem hora que eu
não sei de nada. E tem hora que eu sei de tudo. Mas visto o que eu era, ó… O Caps
me ajudou muito, porque eu não me amava nadinha. Eu acho que, se eu não tivesse
vindo para cá, eu não era mais nem viva -- confessa Soneide.

Há manhãs em que ela está boa e assiste a toda sessão de terapia


comunitária. Em outras, porém, anda cabisbaixa e introspectiva. Nesses dias soturnos,
o verme que habita sua cabeça volta a incomodar. É ele o responsável pela mancha
negra de sangue em seus cabelos, que coça, coça, coça. Sintomas de uma fruta que
não amadureceu. Mas, se não amadureceu, também não murchou:

-- Minha irmã, quando eu vim para Tucuruí, eu era doente, doente. Ainda me
sinto doente, mas nem tanto. Pelo que eu era, eu estou bem. Não estou boa, mas
estou bem.

57
Como muitos, Soneide vislumbrou uma pequena luz a partir do momento em
que integrou a roda do Caps. Como muitos, vinha de longe. Mas logo criou raízes
naquele lugar. Lá, depois de anos de trabalho árduo, encontrou a força interior para
mudar o seu destino. Tudo graças ao seu esforço, mas também à magia de uma casa
que vive para ajudar os outros.

58
4.

Um manejo de luz

Abandono a rotina profissional para atender o chamado da


Necessidade Obrigatória, de ouvir com mais atenção o clamor da
loucura. Preparo o ambiente, parto inseguro e confiante pela Trilha
do Tucunaré, até o Porto do Repensar, para viver a maratona do
amor, largada com o rompimento da loucura oficial, encerrada após
três dias de exercício democrático, com vitória da saúde mental, tão
bem-treinada pela cidadania.

Gersa

59
Como o perfume suave e adocicado de uma flor que inebria todo o ambiente,
aquela casa exalava uma poderosa energia. Antes de ser Caps, o pequeno imóvel era
um almoxarifado. Mas, se em tempos passados servia como depósito de materiais,
lugar onde os objetos permaneciam estagnados, agora sua natureza era fazer fluir
pessoas e sentimentos. E não eram só profissionais da área da saúde que
movimentavam o centro. Das rodas de terapia comunitária participava também dona
Isabel, uma das mais conhecidas espíritas de Tucuruí. Ela era cega, mas enxergava
mais do que todos os outros participantes e auxiliava a equipe do Caps energizando
as sessões. Ao seu lado, trabalhava dona Morena, uma das maiores umbandistas da
cidade. Dona Morena era contratada do Caps: fazia parte da equipe ministrando
massagens nos pacientes. A presença dessas duas líderes espirituais no Caps era
significativa de uma região onde a Medicina ocidental sempre encontrou dificuldades
para fincar suas bases. E elas ainda receberam um intenso aporte ao seu trabalho
com a vinda de Gatha, uma xamã cearense, neta de índia. Gatha era formada na
filosofia de Osho, adquirida quando morou na Índia. Assim que voltou ao Brasil, Gatha
foi trabalhar ao lado de Adalberto Barreto. Ficou em Pirambu por dez anos. Neste
período, por intermédio de Adalberto, ela aterrissou no Pará. Em Tucuruí, ensinou a
Geraldo e a uma equipe de saúde mental que chegava a trinta pessoas diversas
técnicas de cura, entre elas reiki e massoterapia. Houve uma intensa troca de energias
e ensinamentos. Gatha retornaria diversas vezes ao lugar que recebeu com carinho
seu conhecimento indiano e ancestral.

60
Geraldo recebe os ensinamentos de Gatha. Crédito: Arquivo pessoal

Geraldo incentivava essa abertura a líderes religiosas e espirituais no Caps.


Sua noção de trabalho em rede extrapolava a área da saúde. Ele queria integrar.
Sempre integrar. Talvez por isso também se recusasse a trabalhar em recintos
fechados. Mesmo dentro do Caps, sempre lançava mão do amplo salão, aberto nas
laterais. Reunia todos os pacientes debaixo da cobertura de telhas para suas sessões
de terapia comunitária, e também para tomar parte nos vários grupos terapêuticos da
casa. Para ele, nada fazia sentido se não fosse pensado no coletivo. E na
comunidade.

Em pouco tempo, o Caps começou a ficar pequeno. Geraldo e sua equipe


sentiam a necessidade de se abrir mais e mais. De expandir o amor, o cuidado, a
escuta.

Foram para a rua. Médico e equipe começaram a perambular por vários


espaços pobres e doentes de Tucuruí e de seu entorno, levando seu conhecimento
científico e recebendo de volta, com prazer e satisfação, o saber e a gratidão popular.

Ao longo dos anos, Geraldo e sua equipe passaram por todos os bairros da
cidade, conheceram todas as comunidades, fizeram rodas de terapia em creches e

61
brinquedotecas, em escolas públicas e privadas, em asilos de idosos, em um quartel
da Polícia Militar e até em uma terra indígena e em um vilarejo quilombola. Geraldo
caminhava, caminhava, caminhava. E nunca se cansava.

-- Acho que, um dia, eu sonhei que o ser humano não pode pensar só com a
cabeça. Ele tem que pensar também com os pés. Quem pensa com os pés caminha
em direção à comunidade, em direção à mudança, à transformação, à revolução.

A partir do dia em que Geraldo aliou a cabeça aos pés, ficou completo.

Caminhando, ele chegou até o cárcere de Tucuruí, onde um detento havia


tentado suicídio. Era um homem que se dizia inocente, estava preso por engano e, na
cadeia, caiu em depressão. Geraldo foi chamado ao lugar para realizar uma sessão de
terapia comunitária. Com um policial apontando uma arma para protegê-lo, ele
trabalhou, ao lado dos detentos, o mote da prisão interior e do espaço de liberdade
dentro da cadeia. Após a conversa, o homem melhorou. Tempos depois, foi solto: sua
inocência havia sido reconhecida.

Geraldo (à direita, de calça jeans, encoberto por um detento) realiza uma sessão de terapia comunitária no cárcere
público de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

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Enquanto isso, Geraldo continuava a caminhar. Afundando os pés nas ruas de
terra batida, ele foi bater à porta de um assentamento do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra. À época, o MST estava prestes a completar duas décadas
de existência. Foram meses de negociação com o movimento para a realização de
uma sessão de terapia comunitária. Por fim, Geraldo conseguiu formar a roda humana
em um assentamento. Era noite e, sobre o chão de terra, foi feita uma grande fogueira.
Assim como o fogo, a chama ardente que morava dentro do psiquiatra e do poeta foi
acesa. Geraldo fixou o olhar nas flamas, em firme concentração. Em seguida,
setenciou que a terapia só acabaria quando a última labareda se apagasse.

Foram quatro horas de catarse, nas quais o médico trabalhou o mote da


valorização da terra interior e do sentido de pertença. Ao som das canções de Chico
Buarque, sobretudo de Funeral de um lavrador, que, para Geraldo, representava no
campo artístico o que aquelas pessoas viviam no campo real. Foi uma intensa troca.
Essa terapia noturna simbolizou tudo o que Geraldo sempre buscou em suas
caminhadas: criar espaços de troca, de escuta e de fala.

-- Eu sou rico naquilo em que você é pobre, e sou pobre naquilo em que você é
rico. Esta frase sempre guiou a minha prática -- diz.

Geraldo nomeou seu trabalho nas comunidades e nos espaços doentes de


Tucuruí de Saúde Mental Perambulante. Ele costuma dizer que colocou “rodinhas” no
Caps. Em suas andanças por este programa, foi de encontro a todos os “miseráveis
de corpo, não de alma”, como ele mesmo define. Foram essas pessoas que o
ensinaram a ser gente:

-- Eu aprendi muito com esses miseráveis de cidadania. Aprendo, até hoje.


Eles me ensinaram a ser homem, a ser médico. Eu era um alienado, e amadureci
muito com eles -- conta. -- Eles me tiraram da minha alienação universitária e me
apresentaram à universidade da vida. Me trataram, e de graça, sem cobrar nada. Nem
um tostão. Com eles, eu saí do autismo institucional, saí do unitário e fui em direção
ao comunitário. Botei a rede para balançar. Porque a rede tem que balançar.

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Sessão de terapia comunitária realizada à noite, ao redor de uma fogueira, em um assentamento do MST no
Pará.

Crédito: Arquivo pessoal

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Jornal regional noticia o programa Saúde Mental Perambulante, em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

...

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-- Comunidade, vem cá! Vem mostrar a tua força e o teu caminhar!
Comunidade, vem cá! Vem mostrar a tua força e o teu caminhar! Já vou, já vou!
Atender o chamado com muito amor! Já vou, já vou! Atender o chamado com muito
amor!

Assim começavam as sessões de terapia comunitária conduzidas por Geraldo,


no Caps e nas comunidades. Com música. A música é o alimento da alma. Acalma os
impulsos mais primitivos do homem e pode alegrar os espíritos mais deprimidos.
Geraldo sabia disso: ele nunca deixou que faltasse música no Caps. Entre as
principais atividades da casa, estavam as aulas de violão e de dança. Quem
preparava as coreografias era um técnico de enfermagem, Deuzimar Costa Carvalho,
mais conhecido como “professor Gil”. Ele contava com toda uma equipe de pacientes
entusiasmados para criar os passos de dança. Tinha um braço direito, que se
chamava Rosália, e um braço esquerdo, que se chamava André. Esse trio fez a dança
no Caps deslanchar e se tornar quase um carro-chefe do lugar. A atividade ganhou
tanta importância que, em pouco tempo, foi criado o programa Caps Dance.

Dançavam todos ao ritmo do carimbó, da guitarrada, do choro, da lambada. No


início, apresentavam-se em escolas, faculdades, creches e outras instituições de
Tucuruí. Depois, passaram a competir em concursos locais. Começaram a ser
finalistas e a ganhar prêmios. O grupo havia crescido em número e importância. E os
holofotes voltaram-se para eles. Foram chamados para se apresentar em outras
cidades grandes do interior do Pará, como Marabá, e em vários municípios do entorno
do lago. No auge, chegaram até Belém. Realizaram várias apresentações no Teatro
da Paz, o mais importante da capital, onde foram ovacionados pelo público em pé. Ao
longo dos anos, reuniram 27 prêmios, um deles adquirido no Encontro Internacional de
Dança do Pará, ocorrido em Belém, em 2003.

Dançar era tão terapêutico quanto escutar as histórias dos outros nas rodas de
terapia comunitária, sentir amolecer os músculos tensos nas sessões de massoterapia
e nos diversos outros grupos terapêuticos da casa ministrados pela equipe
multidisciplinar, ou receber aquela onda boa de energia vinda das três líderes
espirituais -- dona Isabel, dona Morena e Gatha -- que transitavam pelo lugar a convite
de Geraldo. Até hoje, mesmo sem a presença de Gil, que saiu do Caps em 2010, a
dança é uma forte tradição no Caps. Todas as semanas, pela manhã, a equipe ou os
próprios pacientes organizam uma atividade em torno da música. Seja uma aula
coreografada, seja um desfile, seja uma roda de dança.

Enquanto houver música e dança, estará viva a alma do Caps de Tucuruí.

66
Caps de Tucuruí realiza quadrilha de festa junina em uma escola municipal. Crédito: Alice Arida

...

Ela vem chegando. A passos gingados, requebrando como ela só. Exibindo os
cabelos encaracolados e a pele morena e curtida, denunciado a meia-idade que bate à
porta. Vem chegando de óculos escuros, esboçando um sorriso maroto e balançando
os quadris largos, espremidos no vestido vermelho, apertado e decotado. É ela:
chegou a Moral. Carmem France Conceição Lima tem 46 anos, mas desliza para o
meio da roda como se tivesse vinte. Anima a todos com seus passos de dança, que
desempenha com destreza. E parece feliz.

Mas, se por fora ela contagia o ambiente com sua alegria, por dentro, ela sofre.
Há vinte anos, Carmen sofre. Sofre e tenta eliminar as angústias na dança, a válvula
de escape que a faz esquecer todas as suas dores. A insuperável morte da mãe, seis
anos atrás, e o resguardo quebrado quando nasceu Alexandre, seu filho mais velho,
hoje com 20 anos. Esses dois eventos a deixaram com sequelas para a vida inteira.
Quando Alexandre tinha dois anos, Carmem deu à luz Renata. É ela quem cuida da
mãe, como pode. Os três dividem com o avô, pai de Carmem, uma casa escura, de

67
janelas fechadas e parca iluminação, perto da praça central de Tucuruí. No imóvel, a
bagunça, a falta de limpeza, a desorganização, a louça suja, os móveis antigos e
quebrados, os objetos amontoados e as dezenas de garrafas pet reunidas a um canto
da cozinha mal cheirosa tornam o cenário tão desolador quanto o transtorno mental de
Carmen. Ambos se misturam: não se sabe onde um começa e outro termina.

Para afastar as adversidades materiais e espirituais, Carmem tornou-se uma


das mais hábeis dançarinas do Caps. Não pode encontrar brecha em meio de roda
que se mete no meio e bota os quadris largos para requebrar, com sorriso gostoso no
rosto. E desce até o chão, enquanto os outros cantam e batem palma.

Para ela, todos esses outros são “moral”. Não à toa ganhou como apelido o
mesmo vocativo pelo qual chama as pessoas, conhecidas ou não. Depois de
apresentar seu passo de dança, exibe o sorriso de poucos dentes e pergunta para
qualquer um na roda:

-- Moral, quer que eu cante para você?

Com olhos esperançosos, aguarda a resposta afirmativa, para entoar uma das
poucas canções de seu repertório. É a sua favorita: uma versão, criada por ela
mesma, da canção Can’t take my eyes off of you. Abre a boca, puxa o ar e prepara os
pulmões para cantar, em alto e bom tom, o refrão tantas vezes versado:

-- I love you, baby! Ali, ali, ali! I love you, baby! Ali, ali, ali! I love you, babiii!

Não desafina uma nota. Abre novamente um sorriso de satisfação, como se


aguardasse a aprovação do ouvinte. Só descansa depois de estar segura que agradou
aos outros.

Ao seu lado, Alex Jansem Pinto aguarda a sua vez de se enfiar no meio da
roda. Se em Carmem os distúrbios são mentais, nele eles o são também físicos.
Embora tenha 28 anos, Alex vive como se fosse uma criança de oito, por causa do
retardo mental. Mas não só: ele tem todo o lado direito do corpo paralisado, e sua fala
é quase incompreensível.

Sua condição, contudo, parece pouco incomodá-lo. Alex é carismático, tem


olhos vivos de criança e um sorriso sincero e alegre no rosto. É querido por todos,
inclusive por sua família, que sempre o acolheu e cuidou dele. Suas deficiências
nunca representaram uma barreira. Alex dança como se estivesse imune a qualquer
tipo de amarra: faz o corpo magro e atlético plantar bananeiras com uma agilidade que
poucos têm no Caps.
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Alex. Crédito: Alice Arida

A paixão pela música e pela dança o levou a ganhar dois prêmios em


concursos nos quais realizou uma apresentação solo. Conquistou os troféis de melhor
bailarino no Tucuruí Dança e no Tucuruí Shopping Dança de Rua. Apesar de levar
todo o mérito por essas premiações, Alex não as exibe, nem as carrega com orgulho
para mostrá-las aos outros. Seus olhos já dizem: quando se tem amor pelo faz, pouco
importa a recompensa. E pouco importam as barreiras.

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Carmem, hoje, alegra o céu com suas danças e canções.

Ela não sofria apenas de transtorno mental. Tinha também Aids, condição que
a levou deste mundo em uma madrugada de junho de 2015.

Recebo consternada a notícia de sua morte. Eu gostava muito dela, e já havia


escrito esta passagem do livro sobre ela. Claro que decidi mantê-la.

Assim como mantenho Carmem, e seu gingado, e seu canto, dentro de meu
coração.

Carmem. Crédito: Alice Arida

...

A música esteve presente no trabalho de Geraldo desde o início. Ele


apresentou as canções da terapia comunitária já na primeira sessão que conduziu, na

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frente da casa de seu Aristeu, no bairro tucuruiense de São Sebastião, naquela noite
de 1997. Na ocasião, Geraldo levou seu conhecimento aos moradores, mas também
aprendeu sobre suas vidas e seu entorno. Deste último, fazia parte uma série de
casebres precários, escuros e pobres. Em um deles, funcionava a creche da Tia
Socorro. Geraldo pôde observar as crianças, que corriam e brincavam no quintal. Nos
fundos do terreno, vislumbrou um poço artesiano e, bem próximo dele, a fossa onde
os pequenos faziam suas necessidades. Não precisava ser médico para constatar: o
risco de contaminação por doenças era altíssimo naquelas condições. Naquele
momento, um só pensamento tomou conta de seu ser. Vou mudar isto, proferiu o
médico a si mesmo. Nasceu, aí, a iniciativa Tucuruí, Adote uma Creche.

Ao lado de alguns profissionais de sua equipe, Geraldo formulou uma


“carteirinha” -- um pedaço de papel recortado, com espaço para colocar os dados da
pessoa colaboradora, assim como os meses nos quais havia colaborado -- e foi atrás
de interessados, sobretudo amigos e colegas médicos, em contribuir para a
construção de uma nova creche. No meio dessa busca, uma empresária, dona de uma
rede de supermercados da cidade, decidiu doar um terreno, também no bairro de São
Sebastião, para a nova casa. Além disso, um cantor local, que havia feito um show no
município, destinou uma parte de sua arrecadação para a iniciativa.

Nessa carteirinha formulada por Geraldo, foram colocados versos da canção


Prelúdio, de Raul Seixas. “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só.
Mas sonho que se sonha junto, é realidade.” Pelo menos em Tucuruí, naquele ano de
1997, os versos do cantor baiano se concretizaram: em poucos meses, a creche da
Tia Socorro ganhou novo terreno e foi, enfim, reconstruída.

O trabalho de Geraldo extrapolava os liames da saúde mental.

A carteirinha da iniciativa “Tucuruí, adote uma creche”. Crédito: Arquivo pessoal

71
...

Em outro momento, os versos de Raul foram postos em prática naquela cidade


do interior do Pará, onde um psiquiatra que também era poeta, clínico e caboclo, havia
decidido romper o autismo institucional e botar a rede para chacoalhar. Desta vez, foi
no Lar dos Idosos. Lá, Geraldo realizou uma bonita roda de terapia comunitária. Mas,
ao presenciar o cotidiano dos anciãos, percebeu que alguns comiam separados do
restante. Eram os hansenianos: as pessoas que, ao lado dos loucos, mais sofrem com
a rejeição dos outros.

-- Não havia um espírito de família lá dentro -- conta Geraldo.

Em sua visão, o espírito de família é fundamental para a mudança em qualquer


instituição de assistência. Não à toa, no Caps de Tucuruí, é muito comum ver
pacientes e funcionários se referindo ao lugar como “a família Caps”. É como se fosse
uma extensão de suas casas: um lugar acolhedor, onde podem falar, ouvir, se
expressar. Sobretudo, onde se respeitam e são tratados com igualdade.

No Lar dos Idosos, Geraldo passou a realizar várias sessões de terapia


comunitária, no intuito de acabar com a segregação. E também decidiu levar a cabo
outro projeto na instituição: o de fazer os idosos, cegos de catarata, voltarem a
enxergar.

Naquele tempo, havia chegado de Belém um médico oftalmologista. Marco


Antônio Rosa Tomé logo conheceu o trabalho de Geraldo em Tucuruí e, ao travar
contato com ele, ouviu com atenção seus conselhos:

-- Marco, para você ter sucesso profissional, você precisa dedicar um pouco da
tua vida ao outro -- disse Geraldo.

Em seguida, o psiquiatra o levou para conhecer o Lar dos Idosos. Mostrou ao


seu colega oftalmologista todos os anciãos que não enxergavam por conta da
catarata, e que não tinham dinheiro para a cirurgia de retirada. O oftalmologista
comoveu-se. E entendeu o recado do colega conterrâneo. Operou todos de graça.

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Em sua prática revolucionária, Geraldo recebia como recompensa muitos
abraços e agradecimentos. De pacientes, da equipe, de autoridades públicas. Mas
houve vezes em que ele teve de lidar com agressões. Foi o caso de uma noite em que
estava voltando para casa, em seu Fusca branco 1978, quando um automóvel que
vinha atrás do seu jogou luz alta, como pedindo para o médico estacionar. Era um
carro de uma companhia aérea transportando dois funcionários do aeroporto, que
correram esbaforidos em direção ao psiquiatra:

-- Doutor Geraldo, o senhor pode nos ajudar? Um passageiro deu uma gravata
em um piloto em pleno voo, e o avião, que estava indo para Belém, teve que fazer um
pouso de emergência em Tucuruí. Daria para o senhor ir conosco até o aeroporto
agora?

Sem hesitar, Geraldo encaminhou-se ao local. A polícia já se encontrava lá. O


psiquiatra conversou com os homens da força pública e levou o cidadão em crise, um
engenheiro de classe média que vinha de Marabá, a um hospital particular de Tucuruí.
Lá, o homem foi internado e recebeu medicamentos que o tranquilizaram.

Na manhã seguinte, ao passar visita, Geraldo encontrou-o em bom estado.


Deu alta. E foi acompanhá-lo na viagem a Belém, pela mesma companhia aérea.
Antes de entrar no avião, porém, olhou bem fundo nos olhos do paciente. Égua, eu
não tirei esse cara do surto, pensou. E, como pôde, ministrou uma injeção no homem
antes de decolar.

Já sentado em sua poltrona, ao lado do engenheiro, Geraldo pediu para o


comandante ler um recado para todos os passageiros. Na mensagem, ele dizia que
era psiquiatra e estava a bordo com um paciente sob seus cuidados. Durante o voo,
tudo corria bem, e Geraldo se sentiu à vontade para começar a conversar com o
passageiro sentado à sua frente. Não percebeu o que estava por vir. E já era tarde
quando sentiu uma leve brisa em sua face esquerda: recebeu um soco que deixou seu
rosto imediatamente inchado. Olhou para o paciente, sobressaltado. Ao contrário do
que esperava, o homem, depois da agressão, virou-se para o outro lado, encostou a
cabeça na janela e dormiu. Até a chegada a Belém.

Geraldo teve tempo de ir atrás das providências a serem tomadas antes que o
avião pousasse na capital. Mas ficou desnorteado ao descobrir que o Samu (Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência) não transportava pacientes psiquiátricos. Assim
que o avião aterrissou, a família do engenheiro estava lá no aeroporto, aguardando-o.
Geraldo os encontrou e orientou-os a encaminhar o paciente ao Hospital de Clínicas

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Gaspar Vianna, que possui leitos psiquiátricos. Os familiares concordaram. Antes de
deixar o local, contudo, perguntaram o que havia acontecido com o rosto do médico,
que estava roxo.

-- Ele me deu um soco, mas não tem problema. Isto faz parte do meu trabalho -
- disse. -- Não se preocupem, ele vai ficar bem.

Passaram-se seis meses. De volta à sua cidade natal, Geraldo encontrou um


colega psiquiatra. O homem parecia feliz em vê-lo.

-- Geraaaldo! -- cumprimentou-o, abrindo o sorriso e os braços. -- Égua, faz


tempo que eu estou te procurando! Eu tenho um paciente que não para de falar de ti.
Ele quer se desculpar de um soco que te deu.

Os dois sorriram seus sorrisos mais sinceros. Mal sabia o engenheiro que,
mesmo antes de agredir o psiquiatra de Tucuruí, este já o havia perdoado. Pelo soco,
e por todo o resto. O coração de Geraldo era pequeno para conter todo o amor por
seu trabalho.

Mas, mesmo no amor, há limites. Em Geraldo, eles surgiram em uma tarde de


tempestade cruel, típica da região a amazônica. Um aguaceiro denso, acompanhado
de raios e trovões, que fez os animais se recolherem às suas tocas e derrubou árvores
frondosas, centenares. Mas que também durou um quarto de hora. O intervalo de um
recado: avisaram Geraldo que um paciente estava em surto em sua casa.

O médico esperou alguns minutos, o tempo de a chuva passar, e entrou em


seu Fusca, rumo à casa do homem. Seu plano era medicá-lo no local e, em seguida,
levá-lo para internação no Hospital Regional de Tucuruí. Ao estacionar o carro em seu
destino, avistou o homem deitado na rede, em frente à sua casa, balançando-se, em
estado letárgico. Neste momento, o psiquiatra teve uma ideia da qual se arrependeria
com amargura. Ele resolveu reunir quatro transeuntes que se diziam dispostos a
ajudá-lo e deu as seguintes orientações:

-- Cada um segura de um lado. Dois de vocês seguram os braços direito e


esquerdo, e os outros dois seguram as pernas direita e esquerda. Eu vou contar até

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três. Quando chegar no três, a gente parte para cima dele. Vocês seguram ele e eu
faço a injeção. Tudo bem?

Geraldo relembra com pesar o que se seguiu, em aberta autocrítica:

-- Isso foi um grande erro meu. Não deveria ter feito isso. Quando chegou no
três, ele se levantou da rede, de repente, e todo mundo correu. Ficou eu e ele, eu na
cara dele. Ele era altamente agressivo. Comecei a correr, mas escorreguei na lama e
caí. Ele começou a me chutar, e meus óculos caíram.

Do fundo do lamaçal, com a vista embaralhada, Geraldo ainda conseguiu


distinguir o gesto de seu paciente em crise. O homem havia pego uma grande pedra
do chão, e estava com a rocha apontada para a sua cabeça. O médico previu o pior.
Achou que fosse morrer. A pedra era enorme, o paciente era alto e forte, e estava
surtado.

Como em um milagre, porém, o curso da rocha foi desviado: o homem


vislumbrou os óculos italianos de Geraldo, que estavam caídos no chão enlameado.
Em um movimento mecânico e braçal, começou a triturá-los. Geraldo aproveitou a
brecha para erguer-se do chão e, num átimo de segundo, correu até a casa da vizinha.
Tentou várias vezes pular o muro: o nervosismo era tamanho que ele não conseguia.
Por fim, adentrou o imóvel, todo arranhado e machucado. Com as mãos tremendo,
discou no celular o número da Secretaria Municipal de Saúde e solicitou uma
ambulância para ele mesmo. Precisava ser socorrido.

Foram infindáveis minutos. A noite caía, mas a ambulância não chegava. De


repente, do meio do lamaceiro, apareceu um dos garotos que deveria ter ajudado
Geraldo a dar uma injeção no paciente em surto. O menino corria em direção a ele:

-- Tio! Tio! Ele voltou, está lá deitado na rede de novo!

Geraldo pôs a cabeça para fora e viu seu Fusca, que continuava estacionado
na frente da casa do paciente. Em mais um ato de fé, decidiu contar com a boa
vontade do garoto para retornar a seu carro. Pediu para o menino fazer “ok” com a
mão caso o homem continuasse letárgico em sua rede. O menino ficou o tempo todo
com o dedão para cima. Geraldo, então, pôde sair da casa da vizinha e correr em
direção ao automóvel.

-- Eu nunca vi um Fusca pegar tão rápido -- conta. -- Entrei no carro e fui direto
para a Secretaria de Saúde, direto para o gabinete do secretário, direto para o

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pescoço dele. Estava enlouquecido. Se eu, que estou a trabalho, pedi socorro,
imagina um paciente morrendo.

As autoridades municipais não haviam enviado uma ambulância para socorrê-


lo. Não era a primeira vez em que Geraldo corria risco de morte. Nem a primeira vez
que era agredido. Ele já tinha levado o soco forte no avião. Este episódio, contudo, o
traumatizou: decidiu prometer a si mesmo que nunca mais apanharia de paciente
nenhum.

Tem conseguido cumprir a promessa. Um verdadeiro triunfo para um médico


que, em diversas ocasiões, teve que agir sozinho, sem equipamento, sem ajuda, numa
terra esquecida do país, com brasileiros invisíveis aos próprios brasileiros.

76
5.

Foto: Alice Arida

77
Ao mesmo tempo em que realizava profundas mudanças nos paradigmas da
saúde mental em Tucuruí, com a inauguração do Caps e a realização de terapias nas
comunidades, Geraldo envolvia-se ativamente no movimento nacional de luta
antimanicomial. Uma atividade complementava a outra. O psiquiatra participava das
reuniões do Núcleo de Luta Antimanicomial em Belém e era integrante do Fórum
Popular de Saúde Mental. Com essas articulações, conseguiu levar para Tucuruí o II
Encontro Paraense do Movimento de Luta Antimanicomial. Ocorrido entre os dias 24 e
27 de setembro de 1998, o evento foi intitulado de O Farol da Cidadania e abarcou a
saúde do branco, do negro e do índio. Geraldo sediou as palestras em diversos pontos
do município -- a exemplo do que ele já fazia em sua prática profissional. Levou todos
os participantes do encontro para o Caps e também para duas comunidades próximas
onde prestava atendimento: o vilarejo quilombola de Jutaí, a 80 quilômetros de
Tucuruí, e a aldeia indígena dos Asurini do Tocantins, a 25 quilômetros. Nesta última,
palestrou um grande amigo de Geraldo, o psiquiatra Marcos de Noronha, 58 anos, que
estava pela primeira vez na cidade nortista.

Marcos morava em Florianópolis e havia conhecido Geraldo pouco tempo


antes, por intermédio de Adalberto Barreto. No sul do país, o psiquiatra também
trabalhava -- e trabalha, até hoje -- com rodas de terapia comunitária. O que ele viu em
Tucuruí, porém, o impressionou. Pela inovação e pela vivacidade do trabalho. Ele
mesmo teve uma prova dessa criatividade à flor da pele durante a sua participação no
encontro.

-- Em 1998, Geraldo teve a capacidade de organizar no interior do Pará, em


Tucuruí, um evento que ficou para a história -- conta. -- A maneira como ele elaborou o
evento e as surpresas que todos tivemos com a programação até hoje recordamos.
Por exemplo, a visita à aldeia fazia parte da programação. Eu, como convidado,
participei de todas as atividades e ainda não tinha feito a minha contribuição. Quando
subimos no ônibus que nos levaria até a aldeia, Geraldo me revelou que minha
palestra seria para os Asurini. Meu Deus!, eu pensei. Falar para índios, além da

78
dificuldade de comunicação, pois precisaríamos de um intérprete, seria o maior
desafio de todos os eventos que já participei. Geralmente, estas sociedades
tradicionais deixam o local do encontro se o discurso do palestrante não for de seu
interesse. Simplesmente virariam as costas e voltariam às suas atividades. Quando
chegamos, atrasados, os homens da aldeia haviam partido para caçar. Foram
chegando no momento em que iniciei meu discurso. Médicos muitas vezes tem um
linguajar muito técnico e pouco comunicativo. Eu vinha de uma experiência iniciada
em Londrina, no Paraná, quando ainda estudava Medicina, onde montei a Rádio
Saúde e contava com o apoio da Escola de Comunicação. Cabia aos colegas de
comunicação me ajudarem a refinar meu discurso. Na aldeia, usei todos os recursos
que dispunha, de expressão e autenticidade. Falei de forma intimista e me regojizei
daquele rico momento, do interesse dos aldeões pelas informações que pude
transmitir e pelo meu interesse, de longa data, pelo conhecimento das sociedades,
como as deles, tradicionais.

Além de deixar aliviado e radiante a comunidade dos Asurini, Marcos ainda


sentiria grande satisfação ao conhecer outra comunidade, a de negros, que também
fazia parte do evento. Foi recebido de braços abertos e despediu-se daquela terra com
o coração pleno e tranquilo. Retornou diversas vezes ao Pará. A amizade entre os
dois, Marcos e Geraldo, só cresceu desde então.

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O psiquiatra Marcos de Noronha, no centro da roda, palestra para índios Asurini, durante o II Encontro Paraense do
Movimento de Luta Antimanicomial. Crédito: Arquivo pessoal

...

Em suas itinerâncias pelas comunidades do entorno de Tucuruí, Geraldo


chegou a Jutaí. Lá, ele prestou atendimento aos moradores e negociou a realização
do II Encontro Paraense de Luta Antimanicomial. Jutaí recebeu com alegria as
dezenas de participantes do encontro. Este pequeno povoado, de pouco mais de mil
habitantes, fica situado na margem direita do rio Tocantins, a cerca de 80 quilômetros
de Tucuruí. Suas ruas de terra e casas de madeira, com quintais cheios de galinhas,
tipitis e pés de cupuaçu, fazem conjunto com o barracão de alvenaria e a modesta
igreja de janelas vermelhas. Dentro da paróquia, descansam pequenas imagens de
santos, dispostas sobre suportes de madeira parafusados nas paredes azuis. Fitas
coloridas pendem do teto, protegido por uma cobertura de telhas, sob a qual estão
dispostos uma dezena de bancos de madeira.

Em um vilarejo onde a população, formada por pescadores e agricultores,


desconhece a maior parte dos órgãos do Estado e da sociedade, a Igreja Católica
procura ser uma das poucas instituições a preencher esta lacuna. Representa uma
força política e religiosa que leva um pouco do “mundo dos brancos” para a

80
comunidade. Mas lá, como em outros lugares, o culto católico acabou por adquirir tons
locais. Foi assim que a pequena igreja da praça central de Jutaí passou a ser palco de
um belíssimo ritual: a Ladainha da Santíssima Trindade.

Único meio de os fiéis manifestarem sua força e sua fé, em um povoado sem
padre fixo e sem missa semanal, o culto da Ladainha representa mais que um rito. É a
cultura viva de um povo esquecido. Todo ano, Jutaí para durante um dia para tomar
parte do ritual católico. Há uma longa procissão, que sai da igreja e atravessa toda a
vila, percorrendo a mata, as plantações, pontes e riachos para, enfim, retornar à
paróquia. Enquanto os homens carregam uma cruz com a Santíssima Trindade, as
mulheres entoam em coro rezas ancestrais, cantadas em latim.

Mulheres entoam o canto da Ladainha na pequena igreja de Jutaí. À esquerda, de óculos, o psiquiatra cearense
Adalberto Barreto. Crédito: Arquivo pessoal

Geraldo, ao presenciar o ritual, encantou-se com a tradição. Mas logo viu que
eram os mais velhos que a mantinham. Soube por eles que os mais jovens estavam
desinteressados, esquivavam-se do compromisso de passar para frente um culto
antigo e difícil de aprender.

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O psiquiatra sensibilizou-se com a situação. Iniciou no vilarejo um trabalho não
só médico e social, mas também cultural. Queria ajudá-los. Ele sabia que resgatar o
canto da Ladainha era uma forma de manter acesa a chama de uma comunidade que,
aos poucos, se perdia em meio ao chamado “desenvolvimento econômico” da região.

Para pôr em prática seu plano, resolveu negociar com o pessoal da Rádio
Floresta, uma das mais ouvidas em Tucuruí, a realização de um sorteio: a cada quatro
jovens de Jutaí que aprendessem a Ladainha, era sorteada uma bicicleta.

A fim de comunicar aos moradores sua intenção, ao retornar ao povoado


chamou para acompanhá-lo João Marques, conhecido locutor da Rádio Floresta.
Juntos, eles anunciaram o projeto para algumas famílias reunidas embaixo do
barracão. E foram atrás dos jovens.

Mas estes partiam. Apesar da proposta tentadora, seguiam rumo à cidade,


onde tinham a certeza de que encontrariam mais oportunidades de estudo e de
emprego. Jutaí só oferece escola até o Ensino Fundamental. O adolescente que quer
cursar o Ensino Médio é obrigado a migrar para municípios próximos, como Tucuruí,
Breu Branco, Baião. E trabalhar para pagar o aluguel, pois os parentes não possuem
imóveis nesses lugares.

Por estes e outros motivos, a iniciativa de Geraldo e da equipe da Rádio


Floresta não vingou. Ainda hoje, os jovens continuam migrando, despedindo-se de
seus familiares para tentar a vida em outro lugar. Empreendem, no sentido inverso, o
percurso feito, trinta e cinco anos antes, por seus ascendentes. Em 1980, estas
pessoas molharam os pés e suaram a camisa para fincar as primeiras estacas no
atual vilarejo. Este é um ano bem conhecido na região: foi quando o rio Tocantins teve
uma cheia enorme, que inundou vários pedaços de terra. Entre eles, a antiga ilha onde
moravam os descendentes de escravos e cabanos reunidos na comunidade de Jutaí.
Trinta e oito famílias tiveram que se deslocar. Instalaram-se onde hoje moram cerca
de mil habitantes, que lutam para regularizar o território como quilombola.

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O vilarejo de Jutaí, a 80 quilômetros de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

O morador José Afonso Alves está entre os que chegaram a percorrer os


corredores de um fórum em Belém atrás das papeladas. Conhecido no vilarejo como
Davino, ele tem certeza de que ver sua terra reconhecida como remanescente de
quilombos vai ajudar a preservar a cultura de seus antepassados e passar esta
sabedoria adiante para os mais novos.

-- Para mim, já não resta mais nada. Mas eu gostaria, mesmo assim, com essa
idade, de deixar uma porta aberta para os meus filhos e para os meus vizinhos. Seria
muito melhor – afirma este senhor sorridente de 63 anos, corpo magro e cabelos
grisalhos.

No fórum da capital, ele animou-se ao conhecer, durante uma reunião, os


projetos de pessoas ligadas às associações que lutam pela cultura quilombola.

-- Tem muita coisa boa para resgatar para dentro das comunidades.
Infelizmente, nós não temos pessoas que falem por nós lá fora. A gente não tem
conhecimento. Como a gente vai sair daqui? Direto pra onde? Falar com quem? Tá
morrendo a cultura, porque não tem ninguém para puxar para nós esse gancho aí,
para dizer, é essa a porta que você vai entrar.

Como a maioria dos habitantes de Jutaí, Davino formou-se na escola da pesca


e da lavoura. As mãos calejadas e a pele negra, enrugada do sol, o confirmam. Criou

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toda a sua família assim, singrando a canoa pela manhã e arando a terra à tarde. Mas,
se por um lado ele entende como ninguém as águas e as matas, por outro seu
desconhecimento das normas do Direito e da Política tornam imensa a tarefa de
proteger a cultura de sua gente.

Seu Davino, em Jutaí. Crédito: Fabiana Nanô

Enquanto eles aguardam pelo nada, já que não têm quem os ajude com o
processo pela regularização de suas terras, Jutaí transforma-se quase que por tabela.
De forma desordenada, vai seguindo o fluxo dos avanços trazidos pela modernidade.
A maioria das casas já são de alvenaria, algumas vias foram pavimentadas, há um
restaurante, ônibus diários para Tucuruí e Breu Branco -- município ao qual pertence --
e, embora os celulares não tenham sinal, foi instalada no vilarejo uma antena. Já não
há mais o trapiche, que antes recebia quem chegasse ao povoado de barco pelo rio
Tocantins. Ele foi destruído pela correnteza e pelas sucessivas tempestades e
enchentes. Com ele, foram-se também os sonhos dos mais velhos, saudosos de uma
época boa, como é o caso de Floriano Pereira de Souza, 48 anos:

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-- As casas eram de palha, e o piso, de terra, mas a gente tinha fartura e uma
vida mais despreocupada. Você sustentava a família sem sair de casa e sem
emprego. Hoje, para levar sobrevivência do que comer para dentro de casa, tem que
ter um emprego ou fazer alguma coisa. Antigamente era diferente. E para nós resgatar
isso tá difícil.

A seu lado, sentado num banco de madeira no barracão da comunidade,


Davino reforça as palavras do amigo:

-- Aquela época de botar uma malha bem aqui no porto e esperar dez ou vinte
minutos, puxar ela e já vir o peixe, acabou. E nós tinha isso aqui como abundância.

Para eles, tudo começou a mudar a partir da cheia histórica do rio Tocantins,
em 1980. Nesse tempo, circulava por Jutaí e região um padre, de nome Geraldo, que,
em vez de rezar missa, falava de política. Reunia todos na pequena igreja e, na hora
da homilia, nem mencionava o Evangelho: começava a entoar um longo discurso
sobre a usina. Alguns dos presentes, com um misto de surpresa e decepção,
levantavam-se e deixavam a igreja, em protesto. Outros, porém, o ouviam com
atenção. Davino era um deles.

Nessa época, a hidrelétrica estava sendo construída e técnicos da Eletronorte


visitavam com frequência o vilarejo. Diziam que, para os moradores de Jutaí, nada
mudaria. Segundo o discurso oficial, não haveria transformações no meio ambiente --
e, portanto, na qualidade de vida -- das localidades situadas abaixo da barragem,
como é o caso daquele povoado. Pelo contrário. Na visão da empresa, a usina traria
prosperidade a todas as comunidades de seu entorno assim que fosse inaugurada, em
1984.

O padre Geraldo pregava que este discurso era em parte verdadeiro. Ele
costumava dizer que os moradores de Jutaí aproveitariam, sim, um período de
abundância. Mas, dentro de alguns anos, teriam dificuldades. Davino comprova:

-- Hoje tá na cara o que ele falava. Mudou 90%. O peixe fugiu e, com a água
envenenada que vem lá da usina, a terra mudou totalmente. Eu, que estou no plantio
de cacau, venho lutando e não estou conseguindo uma produção que venha dar o que
gastei.

Em diversas ocasiões, ele e outros moradores de Jutaí se reuniram com


representantes da Eletronorte, a fim de relatar as mudanças em seu meio de vida e
pedir uma indenização. Há três décadas, eles esperam. Como resposta, receberam

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recentemente a notícia de que a empresa pretende dragar o rio Tocantins, no que
seria uma “terceira etapa” de construção.

-- Isso vai acabar com os 10% de peixe que restaram -- profetiza Davino.

A preocupação está estampada no rosto dos moradores mais antigos do lugar.


Eles temem o futuro da comunidade. Perguntam-se como vão ensinar às novas
gerações um ofício em que terão dificuldades. Não sabem como passar adiante sua
sabedoria ancestral. Só sabem que, se quiserem resgatar os ensinamentos dos
antepassados, devem trabalhar juntos. Pois, em Jutaí, não existe indivíduo. Tudo é
feito em conjunto, e só há sentido naquilo que é coletivo. Estes descendentes de
quilombolas lutam para viver em harmonia entre si, e também com a natureza. Mas o
povo “de fora” está tornando esta batalha diária cada vez mais árdua. Não à toa Maria
de Jesus, 63 anos, conhecida no vilarejo como Margarete, prevê como serão difíceis
os próximos anos. Ela é uma das que sabem que a destruição do meio ambiente não
vem sem contrapartidas. Por isso, para ela, só há uma constatação, feita com
assombro:

-- O povo tá acabando com a natureza, e quem sofre é o próprio povo.

A comunidade de Jutaí se réune no barracão. Geraldo, ao centro, abraça Davino. Atrás do médico, usando óculos e
uma blusa branca com detalhes vermelhos, está Margarete. Agachado à direita, de camiseta cinza, está seu Luiz
Alves, ex-morador de Jutaí que fez a ponte entre nós e a comunidade. Em pé (segundo à esquerda), está o vereador
Marajá, que nos guiou de voadeira, pelo rio Tocantins, de Tucuruí até Jutaí. Crédito: Fabiana Nanô

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Seu Davino não viveu para ver sua terra germinar.

É com pesar que recebo a notícia, numa manhã cinzenta de abril de 2015, que
ele faleceu de um ataque cardíaco fulminante.

Se, em vida, as autoridades lhe bateram as portas na cara e lhe negaram


pedidos e auxílios, em morte não foi diferente. Mas, em relação à comunidade, seu
Davino colheu o que plantou durante todos os seus dias neste mundo: seu enterro
estava cheio, veio gente de todos os cantos daquela região, e milhares de lágrimas
correram as faces e pingaram na terra.

A terra que, quem sabe, um dia, germinará.

...

Há outro tipo de comunidade, além da quilombola, que também só sabe viver


se for em respeito mútuo com a natureza. E que, por isso mesmo, padece com a falta
de reconhecimento, a destruição do meio ambiente e, como pode, luta para preservar
o que sobrou de um saber que está se perdendo. São as comunidades indígenas.
Geraldo, como bom caboclo, caminhou até elas. O psiquiatra se envolveu
particularmente com os Asurini do Tocantins, moradores da Terra Indígena (TI)
Trocará, situada a 25 quilômetros de Tucuruí.

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Entrada da Terra Indígena (TI) Trocará, onde moram os Asurini do Tocantins. Crédito: Fabiana Nanô

Os Asurini do Tocantins são um povo antigo da região, um dos primeiros a


travar contato com o homem branco. Hoje, vivem devastados por conta da usina.
Geraldo não hesitou em fazer um trabalho de regaste com eles, tanto da parte cultural
quanto da parte da saúde mental. Como não tinha apoio, tirava dinheiro do próprio
bolso para se deslocar até a aldeia e montar as rodas de terapia comunitária.
Trabalhava por amor, mas não só.

Foi numa tarde de sol quente, em Belém, que ele descobriu o que o movia a
ajudar os índios às custas do próprio bolso. Geraldo retornava para a capital depois de
uma jornada intensa e exaustiva, na qual havia participado dos cursos de terapia
comunitária e de massoterapia, ministrados por Adalberto Barreto, em uma localidade
perto da cidade paraense. Com o psiquiatra, estava dona Morena, aquela umbandista
de Tucuruí que era contratada do Caps. Ela realizava o curso de massoterapia para
potencializar a grande energia que possuía nas mãos. Os dois desceram do ônibus e
foram tomar um café na casa da avó materna do psiquiatra. Dona Iéié, como era
conhecida Maria Ribeiro Viana, morava em um apartamento em frente à rodoviária, e

88
os recebeu com carinho, como era de costume, mas com um olhar um tanto
desconfiado, como percebeu o neto.

Geraldo deixou estar. Semanas mais tarde, retornou à casa da avó. Perguntou
a ela o que havia acontecido naquela ocasião. A mãe do psiquiatra, filha de dona Iéié,
havia comentado que a avó achava que o neto estava andando com uma “gente
estranha”, uma referência clara à dona Morena, filha de índios. Geraldo percebeu que
o incômodo da avó estava relacionado a essas origens. Do fundo de sua alma, o
psiquiatra que habitava o corpo do neto emergiu:

-- Vó, será que a senhora não se olhou no espelho?

Dona Iéié tomou um susto. Ficou calada. Demorou um tempo até que
começasse a falar. Ela, então, contou ao neto toda a sua história. Também tinha
origens indígenas: era descendente dos Tembé, habitantes ancestrais das terras do
nordeste do Pará. E sofreu muito preconceito por isso. Sobretudo, porque casou com
um homem de família escocesa. Wagner Studart Viana apaixonou-se pela garota
morena e tímida de São Miguel do Guamá, próximo a Belém, e a aceitou por inteiro.
Mas sua família, não. Talvez, por isso, ele não tenha passado o sobrenome Studart
adiante. A única filha que tiveram, Maria Guilhermina Viana Sales, é mãe de Geraldo e
hoje está com 87 anos.

Em seu tempo, Dona Iéié reprimiu seus instintos mais primários. Naquele dia,
porém, eles vieram à tona. A avó, embalada pela torrente de palavras, não conseguiu
contar tudo para o neto. Cheio de compromissos, o médico teve que se despedir e
voltar para Tucuruí. Três meses depois, Geraldo recebeu, com pesar, a notícia da
morte da avó. Ela tinha 87 anos e morreu como queria, deitada numa rede. Ao tomar
parte no velório, Geraldo recebeu uma carta das mãos de sua mãe:

-- Sua avó mandou lhe entregar -- disse Guilhermina.

Ele abriu rapidamente o envelope, ávido por ler aquelas letras. Pousou os
olhos no papel e acompanhou a primeira frase: “Continuando a nossa conversa…” Na
carta, conservada até hoje pelo médico, dona Iéié terminava de revelar sua narrativa
de vida. Mas o neto não se contentou. Queria continuar a prosa.

É por isso que Geraldo, até hoje, fala com a avó.

...

89
É também por isso que, em uma tarde ensolarada do ano de 1998, o psiquiatra
caboclo deslocou-se, às pressas, ao mercado municipal de Tucuruí. Queria comprar
uma rede e pregá-la no Hospital Regional de Tucuruí, a fim de receber na instituição o
pajé Nakawaé. Última autoridade espiritual dos Asurini do Tocantins, Nakawaé havia
sido picado por uma jararaca em plena aldeia, onde vivia isolado em uma oca. O pajé
nunca tinha deitado numa cama. Foi contra a vontade para o hospital, onde chegou já
com poucas chances de sobreviver. Geraldo o recebeu, condolente, e ouviu com
atenção o seu pedido, traduzido por sua filha:

-- Meu pai quer morrer deitado numa rede.

O psiquiatra foi atrás de atender a solicitação. Apesar da reprovação de alguns


colegas e superiores, martelou as paredes da Enfermaria de Clínica Médica do
hospital e pregou nelas o tecido de fios entrelaçados. Poucas horas depois, Nakawaé
suspirou pela última vez. Seu semblante estava sereno, posto que repousava no leito
que sempre havia sido a sua vida.

Depois de sua morte, ninguém o substituiu. Há quase vinte anos, a aldeia


Trocará não tem chefe espiritual. Este é um dos motivos mais fortes pelos quais a
cultura Asurini se perde nos fios dos dias. Há outros, como o intenso convívio com o
homem branco. Os Asurini estão entre os povos da região com histórico de contato
mais antigo. Ele remonta ao século XVII, quando os índios adivinharam os primeiros
colonizadores que invadiam as margens do rio Tocantins, armados de espingardas e
facões. Os colonizadores eram como gafanhotos: eram uma praga. Dizimaram quase
todos os índios que encontraram pela frente, em uma guerra feroz e sangrenta, com
ataques de ambos os lados. Porque, se foram mortos, os índios também mataram.
Eram grandes guerreiros, e resistiram por muito tempo. O homem branco, porém,
lutava uma luta desigual. Além do mais, carregava consigo doenças das quais os
índios nunca tinham ouvido falar.

Apesar de tudo, os moradores ancestrais da região, hoje acuados em ínfimos


pedaços de terra, ainda são a raiz do lugar: diz-se que Tucuruí, em língua tupi-guarani,
significa “rio de formigas” ou “rio de gafanhotos”. E os gafanhotos, hoje, dominam o
território. Há quatro séculos, esses homens forasteiros insistem em “povoar” as
margens do rio Tocantins. Na região de Alcobaça, toparam com homens das etnias
Gavião e Parakanã. E também com os Asurini, moradores seculares da margem
esquerda daquele enorme e volumoso curso d’água.

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Índia asurini e seu filho. Crédito: Alice Arida

A princípio, o contato, embora quase sempre violento, era pequeno. No início


do século XX, porém, veio a primeira grande mudança. Operários, muitos deles
nordestinos miseráveis que migraram para a Amazônia atraídos pelo sonho da
abundância, iniciaram a construção da Estrada de Ferro do Tocantins (EFT),
concebida no intuito de contornar as cachoeiras do Itaboca, para facilitar o
escoamento da produção de castanhas do médio e baixo Tocantins. Munidos de arco
e flecha, os Asurini enfrentavam com coragem e obstinação os trabalhadores
encarregados da obra, que invadiam seu território. Estes revidavam os ataques
armados de espingardas e granadas. Atacavam homens, mulheres e crianças. Os
Asurini começaram a ficar acuados. Entraram em contato com o SIP, o Serviço de
Proteção ao Índio -- antecessor da Funai, a Fundação Nacional do Índio --, para
adquirir mais proteção.

Os ataques persistiram. E não vinham apenas de operários forasteiros. Certa


manhã, na década de 1970, já sob a assistência da Funai, os Asurini acordaram com
barulho de tratores bem próximos às ocas. As máquinas estavam sendo usadas na
construção da rodovia TransCametá, que liga Tucuruí ao município de Cametá, 200

91
quilômetros ao norte. Os índios não foram informados do projeto, embora a rodovia
cortasse o seu território. À época, o governo militar, presidido pelo general Emílio
Garrastazu Médici, estava mais interessado em abrir frentes de atração para famílias
do sul e do nordeste do país, sem levar em conta os povos originários da floresta. A
presença da estrada, hoje BR-422, mudou radicalmente a vida dos índios. Se antes só
era possível alcançar o território deles pelo rio, agora a rodovia permitia o acesso por
carros, camionetes, caminhões, bicicletas, ou mesmo a pé. Até as crianças passaram
a fazer a caminhada de 25 quilômetros até a cidade de Tucuruí.

A construção da TransCametá foi o início dos tormentos dos Asurini. Ainda na


década de 1970, os índios topariam novamente com mais uma leva de operários
nordestinos que haviam migrado para a Amazônia seduzidos pelas propostas do
governo. Desta vez, construíam a obra que causaria, sem dúvida, o maior impacto na
vida dos índios.

O ano de 1975 marcou o início da construção da hidrelétrica de Tucuruí, e dos


pesadelos dos Asurini. Eles moravam – e moram, até hoje -- a jusante da usina e,
portanto, não tiveram que se deslocar. O mesmo não ocorreu com os índios Parakanã,
que moravam a montante e receberam uma indenização e alguns benefícios do
governo para mudar de área, já que o reservatório inundou completamente o território
onde viviam. Os Asurini não receberam nem indenização nem benefícios, pois,
segundo o discurso oficial, o meio ambiente a jusante da barragem não sofreria
alterações. Essa etnia continuaria a viver como antes, com caça e pesca abundantes.

Não foi o que ocorreu. Os pesadelos dos Asurini vieram não só da


transformação de todo o ecossistema de seu entorno, devido à barragem, mas
também de Tucuruí, situada a poucos quilômetros. Com a explosão demográfica, a
cidade entrou na morada dos índios. Com a invasão do núcleo urbano, vieram
doenças, drogas e bebidas.

Em 1980, cinco anos depois do início das obras, o rio Tocantins subiu como
nunca antes. A cheia histórica é atribuída pelos Asurini à barragem. Por causa dela,
tiveram de se deslocar das margens do rio para dentro da floresta, uma região mais
alta, de terra firme. Passaram a viver à beira do igarapé Trocará, um afluente do rio
Tocantins.

Depois da mudança de área, os índios receberam a visita de homens da Funai,


que queriam demarcar o seu território. E essa foi uma das poucas benesses trazidas

92
pela construção da usina: em 1982, a Terra Indígena Trocará, com quase 22 mil
hectares, foi totalmente regularizada pelo governo.

Na TI Trocará, aos poucos, alguns benefícios foram chegando. Como o


município de Tucuruí já invadia o território asurini e a presença da usina e da rodovia
TransCametá afetou todo o modo de vida dos índios, eles exigiram, como
contrapartida, o fornecimento de energia elétrica gratuita. A partir do momento em que
toda a TI foi contemplada com luz elétrica, os Asurini pediram geladeiras, a fim de
guardar os alimentos, que ficaram escassos depois da construção da hidrelétrica. Em
seguida, foi a vez de televisões e aparelhos de som. A aldeia também passou a contar
com sistema de bombeamento e distribuição de água encanada. Foram construídas
fossas para saneamento, além de um poço artesiano. Ao longo dos anos, os índios
receberam voadeiras, filtros de cerâmica, lanternas, pilhas, mosquiteiros, sementes,
mudas, máquinas de costura, carrinhos de mão, anzóis, malhas, querosene,
espingardas e munição. Depois, foram levantadas algumas casas de alvenaria. Há
cinco anos, surgiu uma nova escola, um novo posto de sáude e um centro cultural.

Quando se deram conta, os Asurini já não moravam mais em ocas e não


sabiam mais construí-las; já não tinham mais um pajé para se consultar; já não
realizavam mais os rituais de seus antepassados; e já não conseguiam mais caçar e
pescar.

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Casa de alvenaria na aldeia Trocará. Crédito: Alice Arida

Hoje, a aldeia, que, no total, conta com cerca de 600 habitantes, está dividida
em três. Os índios dizem que essa separação, ocorrida muitos anos atrás, tem como
objetivo fazer a segurança do território. Em parte, é verdade. A TI Trocará é um dos
poucos lugares de mata nativa em meio à devastação da floresta do entorno para a
abertura de fazendas de gado. Muitos moradores de Tucuruí invadem o território dos
índios em busca de animais para caçar. Para se proteger, os Asurini contam só
consigo mesmos. Por outro lado, houve muitas brigas entre as lideranças políticas da
aldeia. E a bebida e as igrejas neopentecostais, que aos poucos se instalaram no
lugar, acirraram essas disputas. Como consequência, os índios dividiram-se.

O rol de problemas não para por aí. Com os aparelhos de som, os jovens
promovem festas aos finais de semana, regadas a álcool, forró e brega. Os mais
velhos reclamam, aprofundando a finca que passou a existir entre as diferentes faixas
etárias. As televisões e os celulares ficam ligados o dia inteiro, transformando as
formas tradicionais de relacionamento entre os índios. As geladeiras criaram na aldeia
outras maneiras de distribuição de alimentos: muitos não precisam mais ir à procura
do que comer. Algumas famílias que trabalharam para o governo passaram a usufruir
de benefícios como aposentadoria, salário para deficientes e salário-maternidade.
Esse dinheiro provocou uma pequena concentração de renda, mudando toda a
estrutura social da aldeia. A nova escola do lugar, construída em 2010, vai da
Educação Infantil ao Ensino Médio e busca incluir os jovens e as crianças na cultura

94
asurini, com o ensino da língua nativa. Mas é uma instituição atrelada ao Estado e,
portanto, limitada. Deve seguir o cronograma oficial e o ensino da língua portuguesa
padrão. Está longe de suprir as carências culturais dos mais jovens. Estes se
interessam mais pelas atividades esportivas. Hoje, a TI Trocará conta com cerca de
125 atletas, que disputam competições locais e estaduais e também participam dos
Jogos dos Povos Indígenas, promovido pelo Ministério do Esporte. São estes jovens
os que mais se envolvem com álcool e com as festas aos finais de semana.

O mais velhos lutam para resolver estes problemas. Muitas vezes, sem
sucesso. Eles encontram dificuldades até para trabalhar com o mais primário, como as
ervas medicinais do lugar. Dizem ter medo de atrair o interesse dos pesquisadores das
universidades, que vão patentear remédios sem dar nenhum retorno aos índios. Por
isso, a saúde da aldeia, sobretudo das crianças, piora a cada dia.

Crianças asurini. Crédito das fotos: Alice Arida

Por todos esses motivos, os índios receberam com agrado o suporte e os


cuidados da equipe de saúde mental de Tucuruí. Durante anos, Geraldo deslocou-se à
aldeia para organizar as rodas de terapia comunitária, prestar atendimento -- não só

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psiquiátrico, mas também clínico, de acordo com a sua formação -- e chamar os
Asurini para o Caps e para as outras comunidades de Tucuruí. Fez um trabalho com
adultos e com crianças, as mais atingidas pelos surtos e epidemias e pela
desestrutura de suas famílias.

Hoje, depois de anos de devoção, Geraldo não frequenta mais a aldeia. E se


entristece ao ver a cultura asurini definhar aos poucos. A maioria dos adolescentes
que participavam das rodas de terapia comunitária tornaram-se evangélicos. A
diversidade de instituições que, desde tempos remotos, atuam junto à comunidade
criou uma faca de dois gumes: se, por um lado, buscam ajudar os Asurini a preservar
sua cultura e modo de vida tradicional, por outro oferecem uma gama de serviços e
benefícios que vão afastando os índios de suas origens.

O pajé Nakawaé morava em uma oca como forma de resistir à febre de


construção de casas de alvenaria na aldeia. Só dormia em rede. Só falava a sua
língua. Só manuseava as suas ervas e plantas. Por toda a sua resistência, ele tinha
livre acesso ao Caps de Tucuruí e à equipe de saúde mental. As pessoas que
frequentavam o lugar deleitavam-se ao beber de sua sabedoria. E intuíam, em seus
sangues, essas mesmas origens. Muitos foram afortunados ao encontrá-las. Porque
todos naquela casa estimulavam a busca de cada um por suas raízes indígenas. A
começar pelo próprio psiquiatra, que era médico, poeta e caboclo.

96
Índio Asurini, na aldeia Trocará. Crédito: Alice Arida

Houve uma garota que, ao se envolver com as rodas de terapia comunitária no


Caps, resolveu empreender essa busca por suas origens indígenas. Ela era filha de
mãe branca e pai índio. Vivia com a mãe na cidade e não conhecia o pai. Passava os
dias agoniada por conviver com esse buraco dentro de si. Chegou a ficar com
depressão. A equipe de saúde mental logo se deu conta de que a menina, que, não
por acaso, tinha grande poder nas mãos e muita facilidade para mexer com ervas,
poderia desenvolver esses dons se buscasse preencher esse vazio. Estimularam a
garota a ir atrás do pai. E ela foi. No dia em que o conheceu, sua depressão sumiu.

Quem se lembra desta história é a assistente social Tânia Monteiro, 52 anos.


Durante os anos em que trabalhou no Caps, Tânia não só se envolveu com enredos
desse tipo, mas também recebeu, com enorme gratidão, o apoio e a sabedoria de
mais uma descendente de índios: Gatha. Em suas idas a Tucuruí, a xamã cearense
buscava transmitir seus conhecimentos de reiki e de massoterapia aos funcionários e
pacientes do Caps -- conhecimentos que Tânia absorveu como uma aluna obediente.
Mas seria outro o motivo que tornaria esta a assistente social, natural de Bragança

97
Paulista, no estado de São Paulo, profundamente grata à cearense: foi Gatha quem
recuperou o movimento de suas pernas.

Quando participou da primeira terapia no Caps, em 2001, Tânia só andava com


a ajuda de uma bengala. Por muitos anos, ela ficou impossibilitada de caminhar,
devido a uma doença autoimune com a qual nasceu, a gamopatia monoclonal de
significado indeterminado. Esta enfermidade fez com que proteínas grudassem em
seus músculos e entravassem seus passos. Ela tinha enormes dificuldades de
movimento quando foi convidada pelo marido, um engenheiro florestal amigo de
Geraldo, a participar do encontro de um grupo dentro do Caps. Tânia resolveu ir para
acompanhá-lo. Chegou mancando, apoiando-se na bengala. Ao adentrar o lugar, viu
Gatha. E foi amor à primeira vista.

Gatha fazia no Caps um trabalho que envolvia muita dança e movimentos do


corpo. Tânia, ao participar dessas terapias, foi adquirindo confiança. Certa manhã, ao
chegar ao Caps, foi acolhida com especial atenção pela cearense. Gatha sabia que
havia chegado a hora. Pediu para a amiga deixar de lado a bengala:

-- Eu estou aqui, qualquer coisa eu te seguro -- garantiu.

A partir desse dia, Tânia não precisou mais do apoio. E seu envolvimento com
o Caps começou a crescer, a ponto de ela ser convidada, por Gatha, a escrever um
projeto para fazer um trabalho voluntário na instituição. Foi aceita. Por um ano, Tânia
coordenou um grupo, chamado Grupo dos Quatro Elementos, dentro da casa. No
começo, participavam apenas dois pacientes. Aos poucos, a sala foi enchendo.
Quando deu por si, Tânia viu, com grande satisfação, o recinto lotado. A partir do
sucesso de seu trabalho, foi contratada para atuar no Caps, ao lado da equipe de
saúde mental. Ela decidiu, então, fazer um curso à distância de Serviço Social, pois
sentia falta de uma profissional dessa área no lugar. Com diploma em mãos e usando
de toda a sua experiência adquirida em um curto, porém intenso, período de tempo,
montou vários grupos de terapias alternativas durante a sua permanência em Tucuruí,
que durou até 2008. Neste ano, Tânia mudou-se, por opção, para o município de
Pimenta Bueno, em Rondônia. Passou seis anos lá e mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde hoje realiza outro tratamento para combater a doença com a qual nasceu.

Ao relembrar sua passagem pelo Pará, Tânia ri, e confessa que sente falta do
calor das rodas de terapia comunitária e da vivacidade dos grupos terapêuticos da
casa. Eles restam em sua memória, guardados com carinho, como as melhores
lembranças de um tempo feliz:

98
-- Foi um período de muita criatividade e inspiração. A gente tinha uma
conexão muito forte, e o Geraldo era uma pessoa com muita disponibilidade, ele nos
apoiava bastante. Acreditou muito no potencial da equipe dele. Cada um era um braço
dele. Senão, não teria acontecido. E as pessoas também acreditavam naquilo. A gente
via o paciente melhorando, isso era muito prazeroso. A terapia comunitária abre muito
esse espaço da sabedoria popular, da confiança, da escuta e da fala. Isso enriquecia,
fazia com que as pessoas se curassem. Nós compartilhávamos uns com os outros,
pegávamos na mão, nos envolvíamos totalmente com a comunidade. Recursos a
gente não tinha, era tudo muito simples. Tínhamos os colchonetes e o salão. Muitas
vezes, no começo, eu tinha que levar o meu aparelho de som de casa. O que a gente
tinha era amor. Tudo era feito com muito amor, com muita entrega, com muita
determinação. É aquela coisa doce do homem, aquela humildade, aquela coisa de
coração, aquela coisa da terra. Foi um tempo único.

99
6.

Foto: Alice Arida

100
Tucuruí vivia uma revolução no campo da saúde mental. O Caps reunia uma
equipe que chegava a trinta pessoas, as rodas de terapia comunitária aconteciam no
centro e em todos os bairros do município, além da comunidade de Jutaí e da TI
Trocará. Os grupos terapêuticos do Caps, que utilizavam com toda a sua força as
terapias alternativas, o trabalho potente de líderes religiosas e a valorização do saber
popular curavam. Como a hidrelétrica, o trabalho criado por Geraldo e sua equipe
transbordava movimento e inovação. O psiquiatra estava eufórico. Depois de tantos
anos de corredores hospitalares, finalmente colocara para fora, como todo vigor, o
revolucionário que havia dentro de si.

Alguns jornais locais começaram a se interessar. Publicaram fotos e


reportagens que logo atraíram a atenção do maior diário do Pará, O Liberal. Este
jornal consagrou, em sua edição de domingo, uma reportagem dedicada à Tucuruí.
Depois dela, Geraldo começou a ficar conhecido. Recebia ligações de pessoas
interessadas em ir para Tucuruí, a fim de presenciar as mudanças em curso, e era
convidado a proferir palestras sobre o seu trabalho. Um desses convites veio de
Adalberto Barreto. O psiquiatra cearense viajava com frequência a Tucuruí, a fim de
auxiliar seu colega paraense a implantar a terapia comunitária no Caps. Em uma de
suas idas ao estado nortista, comunicou a Geraldo que a Prefeitura de Paris
promoveria várias conferências por conta de uma semana dedicada à criança e ao
adolescente.

-- Te prepara, porque tu vais comigo, para falar sobre o teu trabalho -- avisou o
cearense, que também participaria do evento.

Adalberto havia passado seis anos de sua vida universitária no velho


continente. Morou na Itália, na Alemanha e na França, onde fez a maior parte de sua
formação teórica -- ele é graduado em Teologia, Filosofia, Antropologia e Medicina,
com especialização em Psiquiatria. Por conta dessa vivência, Adalberto até hoje
transita com desenvoltura pelos corredores de grandes universidades europeias. E
conseguiu convênios para que Geraldo mostrasse seu trabalho não só em Paris, mas
101
também em Marselha, Lyon e Grenoble. A viagem começou na França, em 19 de
novembro de 1999, e terminou dez dias depois, em Londres, na Inglaterra, onde
Geraldo proferiu sua palestra, intitulada Saúde Mental Comunitária Itinerante, diante
de uma sala lotada e um público bastante interessado.

À esquerda: Geraldo realiza palestra na França com Adalberto Barreto (à direita) e dois integrantes do Projeto 4 Varas,
em Pirambu.

À direita: Geraldo e o psiquiatra francês Michel Boussat, que o recebeu em Paris. Crédito das fotos: Arquivo pessoal

Depois da conferência, ele e Adalberto foram encontrar uma amiga do


psiquiatra cearense em um restaurante da capital inglesa. Fátima Gondim era uma
psicóloga que estava na Inglaterra para realizar sua dissertação de Mestrado em
saúde mental. Ela morava na cidade de Canterbury, no sudeste do país, e foi a
Londres ao lado de seu orientador, o britânico Charles Watters. Fátima conhecia
Adalberto de um curso que ela realizara em Brasília, em 1993, ministrado pelo
cearense. Ela não conhecia Geraldo. Encontrou-o pela primeira vez naquela noite, no
restaurante, e não demorou a encantar-se com o trabalho do paraense. Resolveu que
iria para Tucuruí para ver com os próprios olhos o movimento criado por ele.

Em janeiro de 2000, dois meses depois desse primeiro encontro, Fátima


aterrissou no interior do Pará. Ficou uma semana, mas foi como se tivesse
permanecido um mês, tamanha a intensidade de seu envolvimento. Suas impressões
ficaram registradas em sua dissertação de Mestrado, A Comparative Study of the
English and Brazilian Mental Health System Focusing on the Role of the Users’
Involvement (Um Estudo Comparado dos Sistemas de Saúde Mental Inglês e
Brasileiro Focando no Papel do Envolvimento do Usuário, em tradução livre),
finalizada em 2000, pela University of Kent at Canterbury. Em seu trabalho, Fátima

102
compara serviços públicos de saúde mental na Inglaterra e no Brasil. Os dois
exemplos brasileiros citados por ela são o programa Saúde Mental Perambulante, de
Geraldo, no Pará, e o Projeto 4 Varas, de Adalberto, no Ceará. Ao comparar os dois
países, Fátima logo se deu conta de que, na Inglaterra, havia uma rede de apoio e de
subsídios do governo muito mais forte do que no Brasil. A liberdade para criar, porém,
era menos estimulada em terras inglesas. No Brasil, os dois psiquiatras realizavam
trabalhos com recursos e apoio mínimos, mas que davam resultados excepcionais em
pouco tempo -- e a ponto de curar centenas de pacientes com pouco uso de
medicamentos, para admiração da psicóloga.

Quinze anos depois de sua primeira ida a Tucuruí, Fátima relembra suas
conclusões depois da visita ao Pará:

-- Quando eu fui, em 2000, o Caps era mais ou menos novo, mas já estava
muito desenvolvido em termos de terapia comunitária. E não só terapia comunitária,
mas também todas as bases para você trabalhar com as comunidades, com líderes,
tinha uma benzedeira que ia lá no Caps, uma pessoa que fazia massagem, tinha
voluntários, e era muito aberto à população. Eu fiquei bem impressionada em ver
como eles tinham vários grupos diferenciados, que trabalhavam com corpo, com arte.
Uma coisa que me impressionou também era como eles já saíam para as ruas. Eles já
faziam terapia nos bairros, ou então iam com as pessoas para as praças. E, quando
eles iam para os bairros, era um trabalho que tinha um lado preventivo também.
Apareciam muitas pessoas que nem pensavam em se tratar, e iam aparecendo, e
nisso elas se vinculavam ao Caps. Então o Caps ia para as comunidades. E você
trabalhava com várias pessoas, não só as que precisavam de cuidados. E tinha
também o acolhimento, que era diário. Até hoje há dificuldade para que os Caps
tenham esse acolhimento diário, essas portas abertas. E lá já tinha nessa época. Eu
achei super interessante.

Em abril de 2003, a psicóloga retornou a Tucuruí. Dessa vez, em companhia


de Charles Watters. O pesquisador inglês também estava interessado em conhecer as
mudanças em curso naquela cidade do interior do Pará. Geraldo os recebeu de braços
abertos e um tanto inquieto. Naquela semana, havia ocorrido um grande assalto à
agência do Banco do Brasil em Tucuruí, e os policiais estavam abalados e
estressados. O psiquiatra contou aos dois visitantes que havia convidado os policiais
para fazerem um trabalho de relaxamento no Caps. E eles foram. Chegaram em
grupo, fizeram o acolhimento e participaram de uma sessão de terapia corporal e de

103
massoterapia, para grande surpresa de Fátima e de Charles. Eles ficaram encantados
com essa experiência.

-- Isso fala da boa articulação entre o Caps e a comunidade -- relembra a


psicóloga. -- E também da diminuição do estigma e do preconceito. Porque se os
policiais, que são profissionais que têm um nível de poder importante na cidade, vão
para o Caps, é porque o preconceito diminuiu.

Naquele ano de 2003, Fátima já havia retornado da Inglaterra e se


estabelecido novamente em Brasília, onde mora desde os 20 anos de idade -- ela tem
59 e é natural de João Pessoa. Ao longo de sua carreira, a psicóloga conheceu muitos
Caps pelo Brasil e se envolveu com muitos projetos ligados à saúde mental. Nenhum
deles a fascinou tanto quanto a experiência de Tucuruí. É por isso que ela não hesita
em assegurar:

-- Eu vejo Tucuruí como um polo muito inovador em relação à saúde mental


comunitária e em relação à implementação das políticas de saúde no Brasil.

E as lembranças que a psicóloga carrega de Tucuruí não são apenas


profissionais. Até hoje, Fátima mantém um afetuoso laço de amizade com Geraldo. É
apenas uma das -- muitas -- amizades que o paraense plantou, e colheu, e continua
colhendo, ao longo de seus anos de revolução em saúde mental.

104
Reportagem sobre Tucuruí no jornal O Liberal, o maior do Pará. Crédito: Arquivo pessoal

105
Jornal de Tucuruí noticia a ida do pesquisador britânico Charles Watters ao município do interior do Pará. Crédito:
Arquivo pessoal

...

106
Pouco depois de retornar da Europa, Geraldo foi agraciado com um prêmio no
XVII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em dezembro de 1999, em
Fortaleza.

O programa Saúde Mental Perambulante ficou em primeiro lugar entre os


trabalhos realizados na área psicossocial no país. A honraria atraiu ainda mais gente a
Tucuruí. E Geraldo apreciou a presença, na cidade que adotara como sua, de pessoas
do Brasil inteiro interessadas em conhecê-lo.

107
A Saúde Mental Perambulante, de Tucuruí, ganha prêmio no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em
Fortaleza.

Crédito: Arquivo pessoal

108

O fotógrafo Pedro Martinelli foi uma delas.

Pedro Martinelli estava envolvido no projeto de um livro a respeito de novas


experiências em Saúde pelo Brasil, e soube do trabalho de Geraldo depois que a
Saúde Mental Perambulante de Tucuruí ganhou o prêmio no Congresso de Fortaleza.
Em uma manhã quente e ensolarada, o psiquiatra recebeu o telefonema do fotógrafo:

-- Doutor Geraldo, quem fala é Pedro Martinelli. Soube do teu trabalho, que
ganhou um prêmio no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, e gostaria de acompanhá-lo
por alguns dias em Tucuruí. É para a realização de um livro.

-- Quando quiseres -- foi a resposta do médico.

Geraldo não sabia de quem se tratava. Naquele ano de 1999, Pedro Martinelli
já tinha duas décadas de fotojornalismo nas costas. Já havia trabalhado em A Gazeta
Esportiva, o Diário do Grande ABC, O Globo, Veja e chefiado o Estúdio Abril. Desde
1994, dedicava-se à documentação da vida do homem da Amazônia, com fotografias
que eram, além de uma profunda imersão nos personagens, verdadeiras poesias.

Por isso, não demorou para que Pedro Martinelli aterrissasse em terras
tucuruienses. Hospedou-se em um hotel junto com o jornalista Marcelo Macca,
encarregado de escrever o texto sobre a experiência de Tucuruí. Depois de desfazer
as malas, o fotógrafo realizou sua segunda ligação telefônica para o psiquiatra:

-- Doutor Geraldo, aqui é novamente Pedro Martinelli. Vim junto com um


jornalista. Estamos hospedados no hotel da Vila Permanente.

-- Então, aguardem que eu já estou chegando -- respondeu o médico.

Geraldo foi ter com eles de carro. A empatia entre psiquiatra e fotógrafo foi
imediata. Pedro Martinelli passou uma intensa semana em Tucuruí, acompanhando o
médico dia e noite. O fotógrafo conheceu o Caps, participou de sessões de terapia
comunitária, foi convidado a entrar na casa de pacientes e até navegou pelo rio
Tocantins, para adentrar na comunidade de Jutaí. Toda essa rica vivência foi retratada
por ele e descrita por Marcelo Macca no livro Cuidados pela Vida - Crônicas e
Receitas de Saúde no Brasil, lançado em 2000.

109
Apesar das infindáveis andanças pelos mais afastados rincões do país e dos
mais de quarenta anos de fotojornalismo, Pedro Martinelli, hoje com 65 anos, relembra
com carinho de sua vivência em Tucuruí e, especialmente, do encontro com Geraldo:

-- Ele foi uma figura marcante na minha vida. Foi especial. O trabalho dele era
muito inusitado... E eu achei interessante a figura humana do indivíduo. A gente se
deu super bem, pelo jeitão dele, a gente andava para cima e para baixo. Eu ia para o
Caps, nunca tinha visto a metodologia, o tratamento, o louco, né, e eu fiquei envolvido
com as histórias que ele me contava dos loucos, de como ele chegou lá, como
encontrou as pessoas, o amarra e evacua, o hospital. Fiquei entusiasmado com essas
histórias, fiquei com ele para cima e para baixo, indo na casa de louco… E ele nunca
pegou uma figura tão disponível para andar junto, é diferente chegar um sujeito com
prazo e dar uma voltinha. A gente ia para o bar, convivi com ele uma semana, dia e
noite. Meu sistema de trabalhar é esse também, de ir conviver com as pessoas, os
personagens, só assim que dá para fazer uma fotografia interessante.

Geraldo e o fotógrafo Pedro Martinelli (à direita), em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

Geraldo percebeu todo este envolvimento do fotógrafo. Na opinião dele, de


todas as pessoas que foram a Tucuruí para conhecer o seu trabalho, Pedro Martinelli
foi quem mais mergulhou de cabeça.

110
O fotógrafo diz que ficava maravilhado, por exemplo, ao ver os pacientes do
Caps apresentarem uma peça de teatro na praça central de Tucuruí. Segundo ele, a
peça chamava-se Não Varra o Lixo para Baixo do Tapete. Na época, as implicações
desta exposição ficaram claras para ele:

-- Os comerciantes passaram a conviver com esses loucos que ficavam soltos,


ao invés de ficar dentro de casa tomando remédio. As pessoas estavam habituadas a
conviver com aqueles caras.

O momento que mais o comoveu, no entanto, foi a sessão de terapia realizada


com operários no canteiro de obras da Eletronorte. Em 1999, estava em curso a
“segunda etapa” de construção da usina. A capacidade da hidrelétrica de Tucuruí
estava sendo ampliada, de uma geração de energia de 4,2 mil megawatts para 8,3 mil
megawatts, o que a tornaria a quarta maior hidrelétrica do mundo. Assim como na
“primeira etapa” de construção, a vinda de trabalhadores pobres, oriundos de outras
partes miseráveis do país, sem raiz nem laços com a cultura local, desencadeou
problemas sociais ligados à falta de vínculos, ao uso de drogas e de álcool e à
violência como resposta a todos esses obstáculos. Geraldo foi chamado para realizar
um trabalho terapêutico com os operários. As sessões eram realizadas bem cedo pela
manhã, antes do início do turno dos trabalhadores. Na semana que passou em
Tucuruí, Pedro Martinelli o acompanhou. E surpreendeu-se com o que viu:

-- Ele mandava os caras darem as mãos. Você nunca imaginaria que aqueles
machões fossem dar a mão um para o outro. E ele, com jeito, mandava fazer uma
roda e falava: vamos dar as mãos. Depois, mandava os caras fecharem os olhos,
mandava eles se concentrarem, mandava respirarem fundo. Ele ia falando
pausadamente e aquilo ia entrando na cabeça das pessoas. Ele deixava os caras
hipnotizados. Quando eu olhava, eles estavam todos serenos, relaxados, até eu
entrava naquela, se bobeasse eu dormia. Era incrível o que ele fazia com o grupo. Ele
tinha uma capacidade espiritual muito grande.

111
Terapia no canteiro de obras da Eletronorte, em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal

As mulheres também foram contempladas nessas rodas. Durante a segunda


etapa de construção, muitas delas haviam sido chamadas para participar das obras,
inclusive para trabalhar na condução de guindastes e para realizar outras tarefas mais
complexas. Apesar de sua competência e dedicação, as operárias passaram a sofrer
assédio e discriminação por parte de seus colegas homens. Geraldo, mais uma vez,
foi solicitado para realizar uma roda de terapia comunitária.

Quando chegou ao canteiro de obras, o psiquiatra pôs homens e mulheres em


pé de igualdade em torno de si. Ele no meio, rodeado por semblantes masculinos e
femininos. E tratou de buscar, na roda, que os outros homens sentissem, como ele
sentia, esta igualdade.

Aquilo que ele pedia aos seus semelhantes não era nada banal. E raramente
acontecia em uma terra de abusos cometidos, em sua maioria, pelos machos locais.
Geraldo, em suas andanças pelo interior do Pará, cansou de trombar com histórias
desse tipo.

112
Proteger a filha de sete anos de abusos sexuais é a principal preocupação de
Maria Josiane da Silva, 28 anos. Ela nos recebeu em sua casa, no bairro do Getat,
oeste de Tucuruí, após batermos palmas para que abrisse a porta.

-- Vocês são as jornalistas de São Paulo? -- são as primeiras palavras que


essa morena de olhos doces e sorriso sincero nos dirige.

Entramos em uma pequena sala bem-arrumada, com dois sofás dispostos de


um lado e uma estante do outro. A limpeza e organização impressionam, contrastam
com outros lares que visitamos. É lá onde mora Josivaldo Aparecido dos Santos, 46
anos, um dos mais assíduos pacientes do Caps. Maria Josiane é sua cunhada, casada
com seu irmão Denivaldo. Como Denivaldo trabalha durante o dia, Maria Josiane
divide os cuidados de Maria Emília com o cunhado, a quem tem grande consideração:

-- O Josi é um cunhado irmão mesmo. Uma bênção, o Josivaldo.

Ela conta que fica aliviada de poder contar com o Josivaldo para cuidar da filha
pequena durante o dia, na ausência de Denivaldo. É um luxo que poucas mulheres do
interior do Pará, sobretudo da zona rural, têm.

Maria Josiane e Maria Emília. Crédito: Alice Arida

Maria Josiane largou o trabalho como empregada doméstica para ficar em


casa. Passou a trabalhar com vendas de confecções e comésticos enquanto Maria

113
Emília está na escola. E não quer saber de deixar a garota aos cuidados de outra
pessoa:

-- Meu medo maior é dela. Para cuidar bem, para dar banho direitinho, deixar
na escola, pegar… Como vai ser a educação dessa pessoa para ensinar para ela?
Quero dar a educação o máximo que eu puder para ela. Ensinar o que é certinho.
Falei com meu esposo, ele disse para ficar na venda mesmo. Ontem ela trouxe a
primeira tarefinha da escola para casa. Eu até chorei, lembrei de quando eu trazia e
minha mãe me ensinava. O Josi me ajuda muito em casa com ela. É uma pessoa que
sempre me deu confiança, de eu deixar ela em casa com ele, se for preciso ele dá
comidinha, coloca ela para dormir, nunca tive nenhum problema de desconfiar, de ter
medo de deixar. Umas pessoas já me perguntaram, eu falei, não, o Josi não é doente
mental, ele sabe o que é certo e o que é errado, eu converso com ele e ele entende as
coisas.

Assim como Maria Josiane, Josivaldo não deixa ninguém chegar perto da
menina. Certa feita, ela voltou da escolinha com um amigo. O tio logo proibiu a entrada
do menino na casa, em um gesto prontamente elogiado pela cunhada:

-- Não pode vacilar, esses meninos daqui são muito salientes. Aqui tudo
começa muito cedo. Muito precoce, a gente tem que estar de olho -- assegura Maria
Josiane, antes de adquirir um tom mais incisivo sobre o assunto: -- Eu falo muito
abertamente com o Josi sobre isso, eu não escondo e nem tenho dúvida, será se eu
falo. Eu falo, sim. Porque a gente não pode negar que a maioria dos abusos acontece
dentro da própria casa. A gente não pode esconder isso. E sempre ter aquele cuidado
de conversar mesmo. Não pode, porque a cada dia que passa tá ficando mais difícil.
Na maioria dos casos, os abusos acontecem dentro da própria casa, da própria
família. É tio abusando da sobrinha, é pai, tem casa que, Jesus, a própria mãe... É um
negócio de louco, fica fora dos nossos limites. Por isso, aqui em casa eu converso
abertamente, para cuidar. Não judiar, não malinar, porque acaba com a vida da
família.

A preocupação está estampada no rosto de Maria Josiane. E não é um


exagero. Ela conhece histórias em várias casas de seu entorno. Primo com prima,
irmão com irmã. Faz parte de seu dia a dia ouvir os lamentos, as raivas, as angústias,
os esforços imensos para buscar o perdão por parte dessas mulheres violentadas.
Não conseguem. Elas giram em falso. E Maria Josiane arregala os olhos, no
desespero de que o pior aconteça à sua filha.

114
Mas não por parte de Josivaldo. O tio brinca:

-- Tem tanta mulher por aí, eu vou pegar uma menininha pequena? Sou doido,
não.

Em uma terra violenta e violentada, o apreço e o carinho que Josivaldo tem


pela sobrinha é louvável. Todas as tardes, ele ajuda Maria Josiane nos cuidados com
a menina e com a casa. Lava louça, prega as roupas no varal, ajuda a cozinhar e a pôr
a mesa. Quando tudo está em ordem e a garota está tirando a soneca da tarde, vai
para o computador. Jogar é seu passatempo predileto: ele passa horas em frente à
tela, tentando ultrapassar os mais duros obstáculos e combater os mais valentes
inimigos. Busca no jogo o que sempre buscou em sua vida. Pois, à sua maneira, Josi
é um vencedor. É o herói de sua própria história, como tantos outros brasileiros
anônimos, que lutam na intrincada teia dos dias e conquistam, silenciosamente, suas
vitórias cotidianas.

Natural de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, Josivaldo é o mais velho de


três irmãos. Mas, ao contrário de Nerivaldo e Denivaldo, Josivaldo vivia calado e
contido. Era avesso a contatos sociais. Tinha problemas de fala e de coordenação
motora. Não bastassem essas dificuldades, foi diagnosticado com a Síndrome de
Klinefelter, na qual homens, devido a uma variação cromossômica, desenvolvem mais
os hormônios femininos do que os masculinos. Isto resulta, entre outras
características, em seios maiores, ausência de barba e atrofia do órgão genital.

No tempo em que Josivaldo recebeu o diagnóstico, sua mãe já havia falecido.


Ela morreu muito cedo, quando os três filhos ainda eram pequenos. Os meninos
ficaram aos cuidados do pai, um funcionário da Camargo Corrêa que decidiu deixá-los
em São Paulo, sob a responsabilidade da avó materna, pois tentaria a vida em
Tucuruí, onde a empreiteira construía uma usina. Depois de três anos, retornou à
capital paulista para pegar os garotos de volta e levá-los ao Pará. O estado nortista
seria, enfim, a nova e definitiva casa da família.

Embora fosse um bom pai, o homem vivia com mulheres que ora cuidavam dos
enteados, ora os maltratavam. Assim foi crescendo Josivaldo. Calado, recolhido,
ensimesmado, sofrendo com seus fantasmas interiores. Quem o conhecia, professava,
secretamente, que não encontraria saída. O pai era uma dessas pessoas. Cansou de
bater na porta de médicos, de gastar com consultas e tratamentos. Na opinião dele, o
filho não ia conseguir. José Paulino dos Santos não viveu a tempo de ver. Ele morreu

115
em 1992, e deixou os três garotos, já na faixa dos vinte anos, morando sozinhos na
casa que é da família até hoje.

Dez anos depois, Denivaldo conheceu Maria Josiane. Os dois se casaram, e


Josivaldo passou a dividir o lar com o irmão do meio, Nerivaldo. Nessa época, andava
sujo, maltrapilho, saía todas as noites para a rua e só voltava no raiar do dia, bêbado.
Brigava com o irmão. Em uma discussão mais tensa, chegou a botar Nerivaldo para
correr debaixo de facão. A relação entre os dois definhava. Cansado e desnorteado,
Nerivaldo resolveu levar o irmão ao Caps. Corria o ano de 2002. Pela primeira vez,
Josivaldo travou contato com outras realidades, e viu que a sua tinha saída. No
mesmo ano, Denivaldo o chamou para morar com ele e a sua esposa. O caçula
percebia que o irmão mais velho não estava bem. E Maria Josiane lembra até hoje
quando viu Josivaldo passar pela porta de sua casa para morar com eles. O homem
cheirava mal, tinha os cabelos compridos, sujos e desarrumados, as roupas rasgadas,
e os sapatos, velhos. Apesar de seu esforço para cuidar do cunhado, as noites de
bebedeira não cessaram. Josivaldo saía, voltava tarde da rua, Denivaldo também
brigava com ele.

A casa onde moram Maria Josiane, Maria Emília, Denivaldo e Josivaldo. Crédito: Alice Arida

116
Desta vez, porém, algo de diferente acontecia. A participação do Caps na vida
de Josivaldo -- e, portanto, de toda a família -- ia aumentando, cada vez mais. Com a
ajuda do centro, ele encontrou conforto e alternativas em pessoas e em terapias e
também soube que poderia receber um benefício do governo por ser deficiente. Era
com esse dinheiro que Maria Josiane comprava -- e compra, até hoje -- roupas,
sapatos e itens de higiene para o cunhado.

Ao mesmo tempo que o envolvimento de Josivaldo com o Caps se


aprofundava, nasceu Maria Emília. Era 2008. Foi então que, depois de muitas batalhas
e muito esforço conjunto da família, tudo mudou. De um ambiente de brigas,
bebedeiras e desentendimentos, eles passaram a desfrutar de amor e respeito.

-- Aqui, a gente tem que cuidar um do outro -- explica Maria Josiane. -- Não
adianta a gente querer tratar as pessoas mal, com ignorância, porque tudo aqui a
gente precisa um do outro. Às vezes eu estou mal, cansada, tenho arritmia, ou às
vezes eu esqueço o remédio, peço pra ele trazer, ele traz com água. E com ele não é
diferente. Deus me deu esse entendimento, que eu tenho de cuidar das pessoas que
convivem comigo no dia a dia. Não adianta eu querer tratar uma vizinha bem, uma
amiga bem, se eu não cuido de casa. O importante, em primeiro lugar, é a nossa
família, depois as outras pessoas. Muitas vezes eu deixava aqui em segundo lugar, e
essas pessoas em primeiro lugar, e ele falava, isso não é certo, primeiro lugar nós
aqui em casa, depois as outras pessoas. Ele começou a falar e eu botei em prática.

Tal mudança de comportamento, vinda de Josivaldo, só foi possível na


convivência com o Caps, para onde ele segue todas as manhãs, sempre bem-vestido,
bem-perfumado e bem-humorado. Com a ajuda da equipe de saúde mental, conseguiu
largar a bebida e as más amizades, e aprendeu a integrar a família em sua vida. Hoje,
só anda aprumado; seu quarto é limpo, e sua cama, cheirosa e arrumada, como ele
faz questão de nos mostrar quando visitamos a sua casa. Suas roupas estão bem-
dispostas no armário, ao lado de perfumes e sapatos lustrados. Josivaldo costuma
usá-los quando está com a namorada, Analice. Mostra, orgulhoso, uma foto de sua
“gata” e diz que ela vai toda semana visitá-lo.

117
Josivaldo mostra seu quarto, durante nossa visita à sua casa em Tucuruí. Crédito: Alice Arida

Se o pai não viveu para ver, a tia materna dos três irmãos ocupou seu lugar.
Depois de 35 anos, dona Alzira arrumou as malas e partiu de São Paulo rumo a
Tucuruí, para ver os sobrinhos. Os olhos não acreditaram quando pousaram em um
sorridente e efusivo Josivaldo, que participava de uma apresentação no Caps.
Emocionados, os dois abraçaram-se. Ele havia conseguido. Em seus braços, a tia,
atônita. Foi uma vitória. Mais uma na vida deste herói brasileiro, fervoroso em sua luta
cotidiana e silenciosa por dias melhores.

118
7.

Vera

Meu véu sonhado era jogado em leitos prostibulares das igrejinhas

Meu corpo, minha alma e meu véu hoje pertencem aos ratos que
fedem a esperma do passado

Na morte, me enterrem com a camisola vermelha e meu véu, meus


imaginários de amor.

Gersa

119
Ela não foi cozinheira, nem faxineira, nem lavadeira, nem operária e nem dona
de casa, mas sua história, mais do que todas as outras, se confunde com a de
Tucuruí. Mesmo hoje, aos 57 anos, Vera Félix de Moraes carrega a cidade dentro de
si. Oriunda de um pequeno vilarejo de Goiás, ela chegou ao município paraense na
década de 1970, e viveu seu auge junto com ele. Foram dez anos de frenesi, durante
a construção da usina -- de 1975 a 1985. Depois, ambos decaíram. Vera é um pedaço
do que a cidade hoje representa: mora em um puxadinho de uma casa em um bairro
pobre de Tucuruí, onde espreme seus pertences em um modesto cômodo
transformado em quarto e sala, cozinha e banheiro. Não há água encanada no lugar, e
a única janela permanece todo o tempo fechada, enquanto o pequeno ventilador
busca, sem sucesso, suprir a falta de ventilação. Há migalhas de pão e de milho
espalhadas por todos os cantos, para servir de comida aos ratos. Vera confessa: ela
teme ser comida por eles, se não lhes der alimento.

Os ratos são o motivo de ela só dormir de mangas. Durante o dia, Vera coloca
roupas estampadas e coloridas, combinando com as sapatilhas, cuidadosamente
calçadas nos pés pequenos e delicados. Os cabelos curtos estão sempre tingidos --
ora ela está loira, ora morena -- e as unhas, sempre pintadas. Não há brecha no rosto
sem maquiagem.

Se a vaidade permanece, todo o resto foi embora. Vera entra no Caps com o
olhar triste, perdido, como se a desesperança tivesse tomado todo o seu ser. Basta ela
abrir a boca, porém, que surge um resquício do sucesso dos anos 1970. Vera perdeu
tudo na vida, mas guardou a ginga manhosa no falar daquela época. Ela ainda se
expressa com a boca, as mãos e os olhos -- cada um a sua vez e todos em conjunto,
em uma harmonia muito bem-treinada. De tempos em tempos, estala a língua, fixa o
olhar no horizonte e suspira. Emite várias exclamações ao longo de seu discurso e,
entre uma frase e outra, faz pausas planejadas, na intenção de seduzir seu
interlocutor. São heranças do tempo em que Vera só usava salto alto, blusa decotada
e minissaia. E em que era das prostitutas mais procuradas de Tucuruí.

120
Tudo começou quarenta anos atrás, quando Vera pisou pela primeira vez no
município paraense. Vinha trazida por uma conhecida, que a pôs às pressas dentro de
um carro. A garota tinha vinte e poucos anos e já havia passado por algumas cidades
de Goiás e por Brasília, onde começou na profissão que levaria pelo resto da vida. Foi
parar em Tucuruí por causa do grande fluxo de homens que atravessavam o país à
procura de emprego na cidade, em ebulição durante a construção da usina. A
princípio, Vera não gostou do que viu:

-- Eu cheguei aqui... Eu nunca tinha visto uma cidade tão pobre na minha vida,
não vou negar, não. Aqui era uma cidadezinha bem... bem pequenininha, eu não
botava fé que aqui seria como é. A hora que eu entrei aqui eu me arrependi. A
comadre me viu, eu desci essa Lauro Sodré todinha. Nós não era comadre ainda,
sabe. Tava revoltada de ela ter me arrebocado para me trazer para cá, sabe.
Revoltadíssima. Arrebocado assim, porque ela me pegou na estrada e fez questão de
me trazer, sabe. Aqui é uma cidade que tudo era pobre, os telhados tudo sujo, as
casas de madeira suja. As casas aqui... ixi... eu nem sei se naquela rua do Escorre
Água tivesse alguma de alvenaria. Era tudo casa de tábua, menina.

A rua do Escorre Água era famosa em Tucuruí: aquele era um dos maiores
bordéis da época da construção da usina. Hoje, o terreno abriga uma igreja
evangélica. Mas Vera, em seu tempo, nunca chegou a trabalhar no Escorre Água. Foi
para casas pequenas, que, segundo ela, quando caía a noite, ficavam abarrotadas de
homens. Não tinha dia que ficasse sem trabalho:

-- Eu fui para a casa da Pisca, que era uma casinha humilde, simples, mas toda
semana vendia cem grados de cerveja. E nenhuma de nós inquilinas bebia cerveja.
Imagine você, cem grados de cerveja por semana. Várias doses, refrigerante, bebida e
coisa, sabe, uma casinha pequena. Imagina as grandes...

121
Vera e seus trejeitos. Crédito das fotos: Alice Arida

Toda noite, às sete horas em ponto, havia um cliente bebendo no bar e


esperando por ela. Vera não sabe dizer quantos homens conheceram seu corpo. Só
sabe que, em meio a todos os riscos de contrair uma doença venérea, foi ficar de
cama justo por causa da picada de um mosquito. Assim que chegou a Tucuruí, pegou
malária. E quase morreu. Depois de algumas semanas, não ficava mais de pé, não
comia, não falava uma frase conexa. Quando a levaram ao hospital, só conseguia
andar de quatro, com as mãos pregadas no chão. E sentia uma felicidade imensa
dentro de si. Ela lembra com nostalgia os dias em que caminhou lado a lado com a
doença:

-- A malária é uma doença... Ela não é uma doença, ela é uma benção. Você
se sente seduzida por ela. A doença mais fascinante que existe na face da Terra acho
que é a malária. Você não quer sarar, você quer acompanhar ela, você implora de
joelho para que ela te leve. Parece que é um mundo encantado, fascinante,
fascinador, que chama, que espera, e você dorme e acorda sonhando. Eu já estava
nesse estado. A malária é uma doença que encanta você para te levar. Essas pessoas
que morrem por aí de malária, elas morrem cheias de felicidade. Tem morte de todos
os jeitos. Tem as que encantam. Você vai com muito gosto, prazer, na hora que ela...
na hora que ela resolver. Você tá sonhando, tá inebriada esperando por ela. Eu tava
desse jeito… Mas não me deixaram morrer.

Como uma fênix que renasce das cinzas, Vera conseguiu curar-se da
enfermidade. E, após voltar a andar que nem gente, voltou a fazer o que mais gostava:
trabalhar. Começou a frequentar uma boate maior, a Casa do Capixaba.

122
-- Só lá no Capixaba tinha quase mil mulher. Eu nunca morei lá, não. Eu ia lá.
Mas era tudo aquelas gaiolinhas, tudo pequenininho os quartos, sabe. Mas passa de
duas, três, para o mesmo quarto. Na hora que chegava colocava tudo no mesmo
quarto. Olha, você não calcula a quantidade de mulher que vinha do Brasil inteiro…
Aqui era uma cidade que eu vou lhe contar uma coisa viu, menina, isso aqui corria
dinheiro, olha... Vocês foram em Altamira?

Nós duas, eu e Alice, a fotógrafa que me acompanha, negamos com a cabeça.


Pergunto se ela acha que Altamira é hoje o que Tucuruí foi há quarenta anos. Situada
à beira do rio Xingu, cerca de 400 quilômetros a oeste de Tucuruí, Altamira sedia os
operários que trabalham na construção da usina de Belo Monte, que pretende superar
a vizinha conterrânea e ocupar o posto de terceira maior do mundo.

-- Vai lá para vocês ver -- sugere Vera. -- Pelo que dizem… Só que naquele
tempo daqui eu acho que o dinheiro era mais forte, aqui era muito mais forte, e eu
acho que essa daqui teve dez vezes mais sucesso do que aquela. Mas lá tem muito
sucesso. Mas vocês não calculam o que foi aqui, gente, é só vivendo para vocês
acreditarem. Sério, sério, sério, sério. Os bolsos dos homens pesava de dinheiro. É...
Essas pessoas que você vê aí abaixo de não sei o quê, já teve dinheiro na porta deles
era de cardume, assim, de pegar com rodo. Não souberam fazer... Mas aqui corria
dinheiro que pesava no bolso. Aqui não é uma cidade linda nem sei por quê.

Assim como Tucuruí, Vera também terminaria abandonada. As duas foram


decaindo, decaindo, cada vez mais. A ex-prostituta, que em seu auge chegou a ficar
amigada com empresários, delegados, engenheiros, comerciantes e até com um
milionário cujo nome ela não revela, hoje carrega só a roupa do corpo. Ela mesma
afirma que Tucuruí, depois da barragem, ficou destinada ao fracasso. E ela, à derrota.

-- Eu tinha muitas amizades, pessoas importantes que me amava, que gostava


de mim, que se eu tivesse em um lugar ruim me tirava. Toda minha vida eu tive essa
felicidade, mas aí eu derrapei esses anos todinho no mesmo lugar, e continuo
derrapando, sem me encontrar -- conta. -- Até que, para falar a verdade, nos anos
noventa eu passei mesmo a andar abaixo de quem pede esmola, completamente
desorientada, descabriada.

Todo este pesar era consequência de infinitas madrugadas regadas a bebidas,


cigarros e drogas. Vera revela que era viciada em Mandrix, Desbutal e Dexamyl.
Esses medicamentos, que faziam grande sucesso entre jovens na década de 1970 -- e

123
que, posteriormente, foram retirados do mercado --, atuavam como psicotrópicos,
alterando a atividade mental, o comportamento, a percepção da pessoa.

Além das drogas, Vera envolveu-se com homens agressivos, que se metiam
em brigas, iam presos e eram liberados, muitas vezes após ela pagar a fiança. Ela
também tinha sangue quente, entrava em brigas e terminava atrás das grades. Foram
tantos os descaminhos na vida que seu juízo começou a ficar vexado.

No ano de 1988, no início de sua decadência, Vera sentiu pairar sobre a sua
cabeça o inferno. Era um dia de domingo, ao meio-dia em ponto. Ela vai avisando:
aqueles que querem entender que demônio a atingiu empreenderão uma tarefa
impossível.

-- Ninguém além de mim é capaz de imaginar o que seja isso, e pelo que eu
passei. Eu me lembro como se fosse hoje...

Foi o início de sua sina, daquilo que passou a chamar de “mal espiritual”.
Desde então, Vera não toma mais café. Foi por causa do café que adoeceu, acredita.
E também por causa da macumba que fizeram para ela, e que tornou eterno seu
sofrimento:

-- Meu estado de mente é muito grave. Eu fiquei, olha... Eu sou uma mulher, eu
sou a sombra do que eu fui. Eu não sou mais nem a sombra -- diz, pesarosa,
enquanto as primeiras lágrimas descem pelas bochechas pintadas com blush. -- Não
tem um dia da minha vida para mim não chorar. Eu não sei... Eu nem sei como é que
eu to viva, gente. Eu nem sei como eu to viva, depois de passar por tudo que eu
passei. Eu não entendo...

Faz outra pausa antes de se dirigir a mim:

-- Olha, você era menina, não era? Em 1988, você não era criança? Você já
conhece outros países, já aprendeu a se virar, a tomar banho, a ler, a estudar, quantos
anos da vida, né? Imagine meu problema ser desde esse tempo. Será que ainda tem
saída pra mim?

Diante da pergunta, fico sem palavras e sem gesto. Não sei o que pensar, nem
para onde olhar: agora sou eu quem está perdida. A meu lado, Alice tenta acalmar
Vera. Com seu jeito delicado, Alice diz que sim, que há saída e que para isso é preciso
seguir as orientações medicamentosas da equipe do Caps. Então, Vera, mais lúcida
que nunca, desaba:

124
-- Viver anestesiada de remédio é a solução até morrer?

Continuo atônita. É Alice quem conduz agora a conversa, buscando tranquilizar


nossa amiga. Após se acalmar, Vera conta que, no início, conseguia esconder dos
outros seu estado de espírito. Enquanto disfarçava o problema para os amigos e
conhecidos, passava na casa de todos os macumbeiros e macumbeiras da cidade em
busca de tratamento.

-- Eu sabia que não era remédio para médico -- afirma.

Nos terreiros, pedia benção, seguia rituais, tomava infusões. Eram os pais de
santo que a acudiam para acalmá-la. Durante doze anos, assim foi, e ela, que ama a
Bíblia e tem orgulho de ser da legião de São Jorge, seu patrono, aprendeu a ler mão,
a tirar cartas e a decifrar os astros. Ia melhorando e piorando. Até que, na virada do
milênio, a cruz pesou de vez. No ápice do desespero, Vera resolveu fazer algo que
não deveria. Não revela o que foi: só diz que houve vingança, por parte de uma
macumbeira. Desse dia em diante, não pôde mais disfarçar. A falta de juízo ficou
escancarada:

-- Ela [a macumbeira] mandou na primeira quinta-feira de 2001. De quinta para


sexta-feira, à meia-noite em ponto, que ela chegou de cheio. E a cruz voltou. Foi um
ano desesperador, que eu não sabia mais se eu escondia [o problema]. O olho direito
dilatou, a loucura tava estampada na minha face, a sobrancelha levantou, ficou muito
alta do lado direito, e a outra normal. Eu colocava o cabelo assim para esconder, se
via aquele cabelo horrível, o estado que eu fiquei… A minha boca... ela... ela saiu do
local, ela saiu do normal, ela derramava tudo que eu ia comer, que eu ia beber. Mas
era tudo escondido. Eu desmaiava, eu vivia constantemente procurando um lugar para
mim cair morta. A cruz voltou, mas voltou pesada, com peso dobrado do que já tinha
carregado. De todas as maneiras eu teria me arrependido, foi melhor eu ter feito o que
eu fiz, mas é… assim... é…problema espiritual é difícil de a gente se expressar,
porque todos os dias eu não sabia qual era a infelicidade que eu ia enfrentar, se era
do tamanho, mas era sempre do tamanho maior que a do outro dia.

Vera tentou se livrar da sina de todas as formas possíveis. Estudava,


pesquisava, mas sempre voltava aos terreiros. Em 2003, finalmente chegou ao Caps.
O problema espiritual virou, então, mental, segundo ela. Ela passou a frequentar as
rodas de terapia comunitária, os grupos terapêuticos da casa e a se consultar com
Geraldo e os psicólogos do lugar. Mas, se o tratamento mudou, sua dor e sua angústia
permaneceram as mesmas:

125
-- Não entendo, todo dia eu choro. Cadê eu? Não sei.

Assim como Soneide, que escapou da morte muitas e muitas vezes, Vera não
sabe como está viva. Na verdade, da primeira vez em que livrou-se de morrer, ainda
habitava a barriga da mãe. Quem queria matá-la era o seu pai. O homem era dentista,
mas sua verdadeira vocação, segundo Vera, era matar gente. Matava por gosto. E
queria matar a filha, dentro da barriga da mãe. A mulher, gestante, já não dormia:

-- Se ela dormisse, meu pai me matava -- diz Vera. -- A minha mãe arrumou
quatro homens para matar meu pai. Meu pai percebeu, levaram meu pai, mas meu pai
levou todo mundo. Morreu todos os cinco. A minha mãe teve culpa de cinco mortes
por causa da minha vida. Eu tenho sangue de gente ruim, mas minha mãe era
decidida e disposta. Ela era decidida que ninguém ia me matar, e não me matou, não.

Até os sete anos, quando ainda era anjo, Vera viveu com os avós paternos no
pequeno vilarejo de Goiás. Lá, tudo pertencia ao seu avô, um homem muito rico. O
nome do lugar permanece em segredo. Se ela revelar, todo mundo vai saber quem ela
é da noite para o dia, garante. Apenas assegura que foi criada com tudo do bom e do
melhor, embora esta condição não tenha evitado que ela fugisse de casa para entrar
de vez nos cabarés. Durante toda a sua vida de prostituta, não passou necessidade.
Só quando o problema espiritual veio é que os apertos começaram.

Nos anos 1990, sem dinheiro, Vera passava fome. Vivia vagando pelas ruas de
Tucuruí, perdida no mundo. Até que não aguentou e decidiu aliviar as angústias nas
drogas. Descobriu que, se não tiravam o apetite, pelo menos amenizavam o tormento
de não ter o que comer. E todos os outros tormentos, internos e externos, que
infernizavam a sua vida. Por muitos anos, esta foi sua única saída:

-- A droga, ela me acalma. Ela me dá calma. Mas o que está ao meu redor me
passa ódio -- diz.

Ao redor de Vera, estavam os vendedores de droga, os dependentes químicos,


as prostitutas, os moradores de rua, os loucos, os famintos -- todos os renegados
sociais. E foi no meio deles que ela assentou sua casa -- lá onde, segundo ela, só tem
traficante, fofoqueira, ladrão e viciado.

Era um lugar escuro e frágil, castigado pelas tempestades amazônicas. Para


comprar drogas, Vera alugava o único cômodo de seu lar. Punha um guarda-roupa e
uma cortina para deixar mais reservado o canto da cama, e via as moças subirem e
descerem as escadas, na companhia dos homens. Meninas que tinham idade para

126
serem suas netas cobravam cinco reais pelo programa. Geravam um movimento que,
garante a ex-prostituta, nem se comparava ao dos anos de construção da usina:

-- Essa rua, a mesma rua que eu lhe falei, de tanto dinheiro que correu, ficou..
olha, todos os outros lugar tem movimento, menos lá... as pessoas que tem
movimento dali, vixe maria... é difícil vender... não vende nem meio grado de cerveja
por noite. Aquele movimento que tinha, de cem grados? Não existe. E você não
imagina o quanto de pessoas ricas, e ricas e ricas mesmo, que andava com nós nessa
rua que ninguém hoje mais passa quase.

Ainda assim, Vera conseguia faturar vinte reais cada vez que alugava seu
cômodo. Com o dinheiro em mãos, descia para a rua e ia direto comprar droga.

De tanto ficar dopada, não percebeu que, um dia, sua casa ia cair. Era uma
tarde em que o céu despencava em águas torrenciais. Vera, já sem reação, acordou
com os bombeiros entrando pela sua porta para resgatá-la. Perdeu o único bem que
lhe restava, a única referência de solidez, de estabilidade, que tinha. Mas sobreviveu.
Mais uma vez, livrou-se da morte.

Em sua vida, ela acha que se livrou até de virar animal de quatro patas, por
causa de macumba. De tanto ser salva, estancou. Hoje, atravessa os dias sem ânimo,
ausente, anestesiada. Chora sempre. Ao longo de nossa conversa, chora várias
vezes. Repete e repete que está feia, fracassada. Que, quando jovem, era bonita,
vaidosa e só usava salto, pois não gostava de sua altura. Agora, Vera só usa
sapatilhas. Não se importa mais de ser baixa:

-- Quando eu era jovem, eu tinha medo de ficar velha. E, agora que eu sou
velha, não quero mais ser jovem.

Neste ponto, ela para sua narração. Cansou-se. Depois de horas contando a
sua história, quase sem interrupção da nossa parte, ela finalmente decide que é tempo
de acabar. Como é de seu feitio, dispara:

-- Pois é, a entrevista foi das pior que tu já viu na vida, não foi?

-- Foi ótima -- respondemos Alice e eu, em uníssono.

-- Isso vai para o livro? Só umas partezinhas, né? Só vale duas ou três partes -
- afirma e faz sua pausa costumeira antes de seguir, olhando para cima, em tom
reflexivo: -- Será que eu to viva quando o livro for publicado?

127
Recolhemos o gravador e a máquina fotógrafica e levantamos das cadeiras e
do sofá de uma das salas de consultório do Caps. Continuamos a conversar com Vera
em direção à saída. Ela, então, nos convida para ir conhecer a sua casa. Vamos a pé,
em uma caminhada que dura cerca de 15 minutos. Durante o percurso, ela nos
pergunta se é verdade que as prostitutas de luxo de São Paulo chegam a ganhar mil
reais por noite. Eu sabia que, para algumas prostitutas, o valor estava muito acima
disso. Mas fiquei sem graça de dizer. Limitei-me a assentir com a cabeça, e comentei
que algumas faturavam até dois mil reais.

Vera deteu-se, boquiaberta. Dois mil reais! Ela não acreditava:

-- Quer dizer então que, se vocês quisessem, vocês estavam ricas! --


comentou.

Eu também me detive, sem jeito e meio estupefata:

-- Mas deve ser uma vida bem difícil, né, Vera? -- questionei.

-- Difícil? Difícil nada!

Um tanto desconcertada, para além da insinuação de Vera, dei-me conta do


quão imenso é o abismo social no Brasil. As diferenças socioeconômicas estavam
escancaradas: uma ex-prostituta de Tucuruí não pode alcançar o que é ganhar dois
mil reais por noite, enquanto uma prostituta de luxo de São Paulo não consegue
imaginar como vive uma companheira sua do norte do país.

Nem nós, Alice e eu, conseguimos imaginar. Mas vislumbramos um fragmento


dessa miséria quando Vera tirou da bolsa as chaves do pequeno portão surrado de
seu lar. Antes de nos convidar a entrar, ela apontou para o terreno baldio ao lado,
onde parecia passar um riacho, e disse que morava lá até a sua casa desabar. Em
seguida, abriu o portão de entrada. Duas cadelas e seis filhotes vieram ao nosso
encontro, em busca de carinho. Deparamo-nos com um grande quintal. À direita,
ficava a casa principal, onde mora uma família. À esquerda, estava o modesto cômodo
onde mora aquela que foi uma das prostitutas mais concorridas da época de
construção da usina. E que, hoje, não tem dinheiro nem para pagar o aluguel: é a
prefeitura quem cobre este custo para ela.

Assim que Vera abre a porta de seu cômodo, as duas cadelas e os seis filhotes
iniciam um movimento repetitivo de entrar e sair do aposento, como se buscassem
algo. A ex-prostituta, então, tira da bolsa uma sacola com restos do almoço do Caps --
a comida que sobrou do prato dela e de outros pacientes -- para alimentar os animais.
128
Em seguida, nos convida para conhecer o quintal. O lugar está sujo, há muito lixo
espalhado pelo chão e um tanque enorme, com água turva e parada. Passamos cerca
de uma hora com Vera em sua casa e nos despedimos pouco antes da chegada de
mais uma tempestade torrencial.

No dia seguinte, decidimos levar ao Caps algumas fotos tiradas por Alice
durante nossa estadia em Tucuruí. São fotos dos pacientes em diferentes atividades
realizadas no local. Demonstrando interesse, Vera pede para olhar as imagens. Após
manusear uma por uma, seu semblante, antes curioso, torna-se sombrio. Ao final, ela
dá seu veredicto:

-- Quem quiser ter pesadelo à noite é só tirar foto nossa.

Crédito: Alice Arida

129
8.

Cidade Vermelha

Cidade vermelha, manchada de sangue, portas abertas, triste canção. A


loucura fez moradia, parece estar maltrapilha. A cor da loucura é feita de
psicodelismo. Tudo é sombrio, às vezes não, é colorido, mas que ofusca.
Enrijece o solto, desprende o que está aguilhotinado, mas não adianta,
continua na prisão feita de amarras pesadas, porém invisíveis.

Os loucos da Cidade Vermelha perguntam desesperados se ela mudará de cor,


que surpresa, ela apenas se tornará cinza.

Um fala: “Falta aquecimento aqui!”. Outro diz: “Estou para pegar fogo! Que
coisa, a minha temperatura muda sem a minha permissão!”.

“Está ficando maluco?”, perguntam os normais.

“Que é isso! Eu só estou sofrendo, e muito.”

E as lágrimas rolam e rolam feito fonte amargorosa, parece não ter fim e o
começo eu desconheço.

Loucura, por que me pegaste? Você é pegajosa demais e tem um poder que
supera o meu. Se eu pudesse eu te afogaria no fundo do mar e tu morrerias, te
afogaria e eu riria de ti como quem se satisfaz com a emoção pura. Mas você
não me deixa, persiste e insiste em acompanhar a minha vida, você me deixa
quase sem vida, dá vontade de morrer. Você me destrói a alma, me aprisionou

130
e faz graça de mim feito um bêbado irreverente e soberbo. Luto para arrancá-la
de mim, mas é um combate vencido e eu sou o perdedor.

A depressão bate em minha porta e me arrasta pelas torrentes de lágrimas e


eu sinto meu corpo definhar, minha alma levitar. Acredito que estou ouvindo
vozes e ela dizem: “Te mata! Te mata!”. É um barulho ensurdecedor, acho que
estou vendo algo, são pessoas andando e falando, mas não consigo perceber,
está tudo tão confuso, fico discutindo com os meus fantasmas. Vejo pessoas
me amarrarem, elas estão querendo me matar.

Quando acordo do pesadelo encontro-me numa casa cheia de leitos, todos


estão fardados e andam como zumbis, mas existem alguns que estão de
branco e logo me dizem: “Bem-vindo ao hospital psiquiátrico!”. Triste realidade!
Mas que bom que a loucura foi embora. Contemplo através da janela, e o dia
branco me diz: “Bem-vindo ao mundo da razão!”

Relato de um paciente

131
Ela chamava-se Maria Rita e, por ser pioneira, levou atrás de si um batalhão.
Foi a primeira paciente de Geraldo a ser internada no Hospital Regional de Tucuruí.
Maria Rita deu entrada no pronto-socorro do HRT em uma tarde ensolarada de 1996.
A profissional de plantão que a atendeu levou-a para internação na Enfermaria de
Clínica Médica. Teve início, aí, uma longa saga: a saga da aceitação de pessoas com
transtorno mental dentro do hospital. Uma luta que dura até hoje.

Aquela tarde com Maria Rita foi tumultuada. Geraldo não estava, e a relação
entre paciente e funcionários não se deu de forma amigável. Na manhã seguinte, ao
chegar ao Regional para passar visita, o psiquiatra encontrou uma das profissionais
que havia atendido Maria Rita na porta do pronto-socorro, esperando-o. Assim que
avistou o médico, ela correu a seu encontro, nervosa:

-- Doutor Geraldo, venha ver o que a tua doida fez no meu carro.

Geraldo seguiu-a, apreensivo. Ele logo percebeu que não tinha pacientes:
eram “seus doidos” e “suas doidas”.

-- Veja isto, doutor Geraldo – disse a mulher, aflita, apontando para o retrovisor
do automóvel. O espelho estava quebrado e entortado.

-- A paciente fez isso? -- perguntou o médico.

A mulher balançou a cabeça, em sinal de afirmação. Inabalável, Geraldo


mandou chamar Maria Rita.

-- Maria Rita, tu fizeste isto?

A paciente consentiu. Geraldo, então, voltou-se para a funcionária e, em um


ato quase instantâneo, sugeriu que fosse à polícia abrir um boletim de ocorrência
contra Maria Rita por danos materiais. Em seguida, dirigiu-se à paciente:

-- Maria Rita, por que tu fizeste isso?

132
-- Porque ela me tratou mal -- respondeu a mulher.

-- Então, Maria Rita, vai à delegacia de polícia, eu te levo até lá se você quiser,
e abre um boletim de ocorrência contra ela por assédio moral.

Depois de proferir a sentença, Geraldo pousou o olhar assertivo na funcionária


do hospital. E pediu confirmação:

-- Tudo bem?

Ela não respondeu. Desse dia em diante, parou de incomodar.

Na manhã seguinte, contudo, o psiquiatra era novamente aguardado. Assim


que entrou pela porta do pronto-socorro do hospital, foi avisado:

-- Doutor Geraldo, vai ver o que a tua doida fez lá na Enfermaria de Clínica
Médica, que acabou de ser pintada.

O psiquiatra encaminhou-se ao local a passos rápidos. Assim que abriu a porta


do setor, deparou-se com um grande desenho em uma das paredes: nele brincavam,
felizes, os personagens da Turma da Xuxa. Encantado diante da cena colorida, o
médico não conseguiu conter a sua aprovação e, sorrindo, emitiu sua opinião sobre
aquela arte:

-- Poxa, ficou até mais bonito…

-- Ainda faz graça – sussurrou, provocativo, um servidor do hospital.

Depois desse episódio, Geraldo correu o risco de interromper as internações


no HRT. Sua obstinação, porém, vencia qualquer obstáculo. O preconceito e o
estigma eram enormes, mas o amor e a garra com que ele e sua equipe trabalhavam
os superavam.

E foi assim que começaram as primeiras internações de pacientes psiquiátricos


na Enfermaria de Clínica Médica do Hospital Regional de Tucuruí.

...

Pouco tempo depois de começar a internar seus pacientes no Regional,


Geraldo começou a receber telefonemas anônimos e bilhetes com ameaças. “Tira teu

133
louco do hospital, senão tu vais ver o que acontece contigo”, era, em geral, o conteúdo
das mensagens. Houve um dia em que elas tomaram forma e viraram realidade. Foi
em uma tarde na qual o psiquiatra entrou em seu Fusca branco e saiu de casa rumo
ao hospital. No trajeto, havia uma ladeira. Ao começar a descê-la, Geraldo viu, à sua
frente, uma das rodas de seu carro. Ela havia se desparafusado. O Fusca, oscilante,
foi indo em direção à calçada. Enquanto isso, o psiquiatra, desesperado, previa a
tragédia. O carro, entretanto, e quase que por milagre, parou próximo à porta de uma
borracharia.

Um senhor, negro e idoso, saiu de dentro do lugar. Observou silencioso o


automóvel e, minutos depois, deu seu veredicto:

-- Tentaram lhe matar -- disse, dirigindo-se a Geraldo.

O psiquiatra, assustado, perguntou por quê. O dono da borracharia, então,


apontou para as quatro rodas do Fusca:

-- Desparafusaram todas as rodas de seu carro. Alguém quis lhe matar.

Geraldo nunca soube quem foi. Só soube que, daquele momento em diante -- e
embora sentisse verdadeiro prazer em realizar suas terapias em espaços abertos --,
teria de intensificar o seu trabalho dentro de uma instituição. Dentro do Hospital
Regional de Tucuruí. Reuniu uma equipe e, juntos, começaram a dar treinamentos e
capacitações para vários funcionários do Regional que agora conviviam com os
pacientes psiquiátricos internados.

Em sua fala, durante essas capacitações, Geraldo costumava sempre emitir


sua opinião a respeito do chamado “sossega leão”, uma mistura de várias drogas -- a
maioria delas causadoras de depressão no sistema nervoso central -- ministradas em
pacientes em surto. Segundo ele, a aplicação do “sossega leão” era uma mania
nacional oriunda do dia a dia dos hospitais psiquiátricos, mas não era a conduta
correta.

Ele estava discorrendo sobre este assunto em uma reunião com outros
médicos do Regional, quando foi interrompido por um colega:

-- Geraldo, em time que está ganhando a gente não mexe.

O psiquiatra pensou em responder, mas deixou estar. Passados alguns dias,


no entanto, ele foi chamado ao hospital, durante seu sobreaviso, para examinar um
paciente que havia surtado. Ao entrar no pronto-socorro, encontrou o homem bastante

134
tranquilizado. Desconfiou. Perguntou à enfermeira responsável quem era o médico
que estava de plantão. Era o tal. E Geraldo foi ter com ele:

-- Quer dizer que em time que está ganhando a gente não mexe? – provocou.

Em seguida, pediu para a telefonista ligar para a delegacia de polícia, pois


queria denunciar o seu colega. O homem, temeroso, o impediu:

-- Não, não precisa disso, Geraldo -- disse, apreensivo. -- Fica tranquilo que, a
partir de hoje, eu não faço mais isso.

O psiquiatra pousou o telefone no gancho.

Naquele ano de 1996, tinha vencido mais um obstáculo. Eles continuariam a


aparecer aos borbotões nos dez anos que se seguiram a este episódio. O tempo em
que Geraldo internou seus pacientes na Enfermaria de Clínica Médica do Regional.

Em 2006, após uma década de batalhas, processos burocráticos, capacitações


e sensibilizações, o psiquiatra e sua equipe conseguiram, enfim, fazer com que fosse
habilitada e oficializada a criação de um setor especializado, dentro do Regional, para
os pacientes com transtorno mental. Era uma ala exclusiva do hospital, com quatro
enfermarias – duas femininas e duas masculinas – e oito leitos psiquiátricos. Sem
hesitar, Geraldo a chamou de Ala Psicossocial. A denominação “psiquiátrica” não fazia
sentido para um médico que sempre buscou, em sua prática, a reinserção familiar e
social de seus pacientes. Também por isso, assim que a Ala Psicossocial foi
inaugurada, o psiquiatra estabeleceu, como precondição, que o paciente atravessasse
sua internação acompanhado de um familiar ou pessoa próxima. A família deveria
fazer uma escala de horários para ficar ao lado de seu parente durante todo o período
de internação -- um intervalo que durava, em média, cinco dias.

Esta Ala Psicossocial do HRT era, assim como o Caps de Tucuruí -- criado dez
anos antes --, um filho não biológico para o médico e para o poeta.

135
Um dos quartos da Ala Psicossocial do HRT. Crédito: Alice Arida

...

Uma semana depois da inauguração da Ala Psicossocial do Hospital Regional


de Tucuruí, Geraldo foi procurado por um funcionário do hospital. O homem queria
conversar em particular com o médico. Quando ficaram a sós, ele iniciou sua fala:

136
-- Doutor Geraldo, o senhor se lembra daqueles bilhetes e telefonemas
anônimos? Era eu quem fazia isso. – confessou. -- Eu quero me redimir, doutor
Geraldo. E queria me redimir fazendo parte da sua equipe.

O psiquiatra balançou a cabeça negativamente.

-- A minha equipe já está formada – asseverou. – Agora, se tu te vias no


espelho quando vias o cidadão em crise, é porque tu nunca assumiste a tua condição
de negro e de homossexual. Assume a tua negritude e a tua homossexualidade que tu
vais ser o homem mais feliz do mundo. Este é o teu problema.

Surpreso, o funcionário ficou sem palavras. Desistiu de sua demanda. E


Geraldo seguiu com seu trabalho. Um ano depois, porém, seria a vez de o médico
ficar surpreso. Era Carnaval e, entre os carnavalescos, estava o funcionário, pleno e
sorridente, caminhando pelas ruas de Tucuruí fantasiado de baiana. Geraldo sentiu
uma pontada de felicidade no coração. Em meio a tantos espinhos, ele plantou e
colheu uma rosa: o homem, enfim, havia se assumido por inteiro.

Mas eles continuaram a ser invisíveis. Como se todos os males pelos quais
sofressem se resumissem a seus transtornos mentais, e nada mais.

Geraldo nunca se esquece de uma noite em que recebeu um telefonema da


equipe de plantão no hospital. Avisaram:

-- Doutor Geraldo, tem uma paciente tua aqui. Ela veio acompanhada da mãe.

O médico perguntou o que tinha a moça. Não souberam responder. Talvez


uma dor de cabeça, mas nada grave. Só disseram que ela estava calma, não estava
em surto. Ninguém quis examiná-la.

Na manhã seguinte, Geraldo chegou bem cedo ao Regional. E ele viu, nas
duras e velhas cadeiras da sala de espera, a jovem deitada, enrolada em um cobertor
e com a cabeça encostada no colo da mãe. Logo percebeu que elas não estavam
bem, que havia algo de errado. Aproximou-se, com a preocupação estampada no
rosto, e perguntou a elas o que havia ocorrido. A moça descobriu-se e, para espanto
dos presentes, deixou entrever o sangue entre as pernas.

137
Ela tinha transtorno mental, mas não naquele momento. E abriu a boca para
anunciar o que, diante de toda aquela vermelhidão perturbada e inquieta, todos já
sabiam:

-- Doutor, sofri um aborto espontâneo.

...

Naquela ocasião, foi a enfermeira Carmen Lúcia quem ajudou Geraldo. O


psiquiatra não abria mão desta belenense, que fazia parte de sua equipe e trabalhava
com ele desde 1998 no Caps de Tucuruí. Em 2002, Carmen passou a atender também
no Regional. Antes da criação da Ala Psicossocial, a enfermeira se compadecia ao
entrar na Enfermaria de Clínica Médica e deparar-se com seus pacientes deixados de
lado, a um canto da sala, sem assistência. Muitas vezes, encontrava-os contidos.
Como Geraldo, indignava-se. Juntou-se ao médico em vários treinamentos,
capacitações e sensibilizações dentro do hospital. Também foi testemunha das
resistências, tanto da diretoria quanto dos funcionários, quanto à criação de um setor
especializado só para eles no HRT. Ela, porém, nunca desistiu. Assim como Geraldo,
tem verdadeiro amor por seu trabalho. Um amor que habita seus olhos doces e seu
sorriso largo.

138
Carmen Lúcia abraça uma paciente internada na Ala Psicossocial do HRT. Crédito: Alice Arida

Desde a criação da Ala Psicossocial, e até hoje, Carmen Lúcia de Araújo Paes
é a única enfermeira do setor. Aos 45 anos, ela divide o espaço com uma equipe
composta por sete técnicos de enfermagem e um psiquiatra, Geraldo.

Há dez anos, Carmen percorre os corredores da Ala Psicossocial. Há dez


anos, ela espera por uma reforma. A estrutura física do lugar nunca mudou. Depois de
uma década de uso, está velha e obsoleta. Os trâmites para a reforma andam a
passos lentos. No dia anterior à nossa visita, Carmen havia recebido a visita de
autoridades da Coordenação Estadual de Saúde Mental e transmitido a eles todas as
mudanças que precisariam ser feitas. Está ainda aguardando uma resposta.

-- O espaço aqui é muito pequeno. Às vezes, a gente precisa colocar mais


leitos, porque recebemos mais pacientes – diz. – E precisaríamos, por exemplo, de um
terapeuta ocupacional exclusivo, porque os pacientes precisam de terapia, precisam
estar ocupados. Só que não há espaço para eles trabalharem. E os psicólogos vêm
apenas quando são chamados, porque são dois psicólogos para o hospital inteiro.

Apesar das dificuldades, a Ala Psicossocial do HRT tem grande importância


para o sul e também para o norte do Pará. É o único lugar especializado para onde

139
são encaminhados os pacientes de toda a região. Em 2013 e 2014, Tucuruí recebeu
pacientes de Breu Branco, Novo Repartimento, Abaetetuba, Goianésia do Pará,
Castanhal, Parauapebas, Jacundá, Pacajá, Baião, Tailândia, Cametá e Conceição do
Araguaia. Além do Hospital Regional de Tucuruí, só o Hospital das Clínicas Gaspar
Vianna, em Belém, possui leitos psiquiátricos. Estas duas instituições atendem todo o
estado do Pará.

Um dos leitos da Ala Psicossocial do HRT. Crédito: Alice Arida

A pouca oferta é consequência da resistência que existe em torno das pessoas


com transtorno mental. Embora a lei da reforma psiquiátrica brasileira, que prevê leitos
psiquiátricos em hospitais gerais, esteja prestes a completar 15 anos, ainda há muitos
fantasmas rondando a saúde mental. Médicos, profissionais da saúde, funcionários de
hospitais, autoridades das três esferas e familiares ainda não querem enxergar a
loucura.

Por ocasião de nossa visita à Ala Psicossocial do HRT, Carmen e as três


pacientes com transtorno de bipolaridade internadas naquele dia permaneceram o

140
tempo todo enclausuradas dentro do setor. Incomunicáveis com o resto do hospital.
Carmen explicou a situação da seguinte maneira:

-- A porta fica fechada. A gente não abre, pela resistência dos outros
profissionais em relação a essa Ala. Eles falam que têm medo que os pacientes saiam
e façam algum mal.

A enfermeira sempre buscou enfrentar esses medos propagando informação e


conhecimento. Na mesma época em que foi inaugurada a Ala Psicossocial do
Regional, ela começou a dar aulas no curso de Enfermagem no campus da Uepa
(Universidade Estadual do Pará) em Tucuruí. Até hoje, transita pelas salas de aulas
ministrando um curso intitulado Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiatria. Alguns
de seus alunos passaram a trabalhar com saúde mental em municípios da região. E
são eles que a substituem na Ala Psicossocial quando ela está ausente ou não pode
comparecer a um plantão ou chamado de sobreaviso. Pois, ainda hoje, os enfermeiros
do hospital não querem cuidar dos pacientes com transtorno mental, e Carmen tem de
recorrer a seus estudantes.

Carmen Lúcia e seu sorriso acolhedor. Crédito: Alice Arida

141
Ela chegou ao cargo de professora na Uepa graças a uma especialização em
Saúde Mental pela mesma instituição. É a única enfermeira de Tucuruí com este
certificado. E foi atrás dessa pós, porque queria entender melhor os pacientes com os
quais convivia desde que passou em um concurso público para uma vaga de
enfermeira em Tucuruí. Belenense de nascimento, ela vinha do município de Novo
Repartimento, a 90 quilômetros de Tucuruí. Assim que pisou na cidade da hidrelétrica,
em 1998, foi informada de que a vaga de enfermeira no Caps estava livre:

-- Uma psicóloga me falou que era muito difícil preencher aquela vaga,
ninguém queria ficar. Aí eu disse, tudo bem, eu vou. E comecei a gostar. A gente
construía junto, trabalhávamos muito a questão da discriminação, e eu comecei a me
envolver mesmo. Fui me aperfeiçoando, e ficava muito incomodada de não ter mais
para dar a eles. Eu via que eles precisavam de mais.

Em 2002, ela finalmente iniciou sua especialização, em Belém. Foi mais uma
barreira a ultrapassar. Carmen conta que não conseguiu liberação, por parte da
prefeitura, para realizar o curso na capital. Nem o hospital de Tucuruí, onde também
trabalhava além do Caps, lhe deu suporte. Ela tinha de trocar plantões e escalas de
horários para se deslocar até Belém, a fim de concluir o curso. Com o suor das
próprias mãos e o dinheiro do próprio bolso, conseguiu.

Depois da pós, seu trabalho deslanchou. Ela criou vários grupos terapêuticos
dentro do Caps. Ao lado de uma psicóloga, formou um grupo de terapia de família, no
qual buscava amparar a família do portador de transtorno mental. E elaborou também
um grupo de terapia bioenergética, no qual trabalhava, sobretudo, com a respiração.
Juntas, elas conseguiam, nesses grupos, cuidar de alguns pacientes sem o uso de
medicação. Eram casos de fobias, ansiedade, insônia, stress pós-traumático e
depressões leves, sem sintomas psicóticos. Carmen abre o sorriso e fala com grande
alegria sobre esta vitória sua:

-- As pessoas interagiam, o grupo mesmo se ajudava, um com a história do


outro. Porque a gente acha que o nosso problema é maior, mas, quando ouvimos um
outro que é maior, pensamos, poxa, se ele superou, eu supero também. Nós
trabalhávamos muito a escuta. Foi muito intenso.

No Caps, Carmen era a enfermeira mais destacada. Ela recepcionava os


pacientes, fazia triagem, conduzia o acolhimento e as sessões de terapia comunitária,
participava dos grupos terapêuticos. Conhecia todos os pacientes do lugar, seus

142
familiares e suas histórias. Todo esse envolvimento só foi possível, segundo ela,
graças à interação de toda a equipe:

-- A gente tinha uma ligação muito boa com o Geraldo. Uma coisa muito
positiva na saúde mental, eu acho, é esse trabalho com uma equipe multiprofissional.
De escutar... olha, Geraldo, essa medicação não está boa, esse paciente está assim...
Foi muito bom esse nosso diálogo. Isso tem que existir em saúde mental, é
fundamental.

A partir de um momento, porém, essa ligação foi cortada. Mudanças na equipe


provocaram mudanças no funcionamento do Caps. E Carmen, depois de mais de dez
anos trabalhando como enfermeira da casa, viu seus frutos serem tolhidos. Cada vez
mais. Testemunhou o desprezo de outros funcionários às suas iniciativas, e passou a
sentir-se um peixe fora d’água. Até que não aguentou. Pela primeira vez em sua vida,
desistiu. Desde 2011, não está mais no Caps. Foi ela quem resolveu sair, embora esta
decisão não tenha sido inteiramente pessoal. Ela deixa entrever as dificuldades de
gestão que a encurralaram:

-- Saí pela questão da política. Eu preferi ir embora. Estava me sufocando


trabalhar, já não dava mais. Mas eu me senti perdendo um filho, porque eu tinha uma
dedicação... me sentia mãe de cada um – revela.

Ela conversou com cada paciente a respeito de sua saída. Não queria que eles
sentissem que ela os abandonava. Continuou a vê-los no hospital, onde ainda
trabalha. Mas a saída do Caps a abalou profundamente. Todas as noites, Carmen
chorava. Vivia nostálgica, angustiada. Fora acometida de enfermidade da mesma
ordem das que tratava. E, se agora convivia com uma dor no peito e uma tristeza sem
fim, por outro lado tinha mais tempo livre. Com o passar dos meses, foi cuidar de si.
Depois de tantos anos acolhendo e ouvindo o outro, ela finalmente foi buscar quem a
acolhesse e escutasse. Melhorou. Hoje, ao olhar para trás, pode dizer, com
segurança, que, apesar de tudo, não se arrepende. Sua trajetória é linda demais para
que a arranquem dela:

-- Foi uma história muito grande de amor. Eu adoro ser enfermeira e, para mim,
trabalhar com saúde mental é um preenchimento muito grande. Eu não consigo me
ver fora da saúde mental.

Depois de expressar esses sentimentos, Carmen se detém, pensativa. Por fim,


decide proferir as palavras que povoam seus pensamentos:

143
-- Eu também tenho vontade de fazer um livro, sobre essa questão da escuta.
Porque eu já escutei tantas histórias... São quinze anos escutando história. É muita
coisa.

Ela, então, abre seu sorriso largo, cheio de amor, e nos convida a conhecer as salas e
corredores do setor por onde transita há uma década. E onde ouviu tantas histórias
quantas nuvens há no céu.

Crédito: Alice Arida

144
9.

“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela


velha opinião formada sobre tudo.”

Versos de Raúl Seixas

145
Em seus primeiros passos em Tucuruí, Carmen escolheu caminhar em
passeatas ao lado de Geraldo e de outros profissionais da equipe de saúde mental.
Foi para a rua e, nestas andanças, acabou por adentrar em casas de famílias sofridas,
que, sem saber como cuidar de seus filhos portadores de transtornos mentais, os
confinaram. Na ausência de assistência médica e de manicômios na cidade, mães e
pais montaram estruturas equivalentes a estas instituições fechadas dentro de seus
próprios lares. Trancaram seus filhos em pequenos cômodos sujos, nos fundos dos
quintais. Acorrentaram seus pés e passaram as ralas refeições por frestas embaixo da
porta.

Estarrecida, Carmen descobriu que este tipo de tratamento acontecia menos


por má fé que por falta de auxílio e de informação. Ao embrenhar-se nesses recintos
sombrios e mirar com tristeza as condições em que viviam estas pessoas, ela só
conseguia agir com um intuito, o de confiar a si mesma que não veria mais este tipo de
situação.

Sua atitude inicial foi voltar-se à família. Ela queria escutar as queixas e
explicações dos parentes. Estes diziam que não aguentavam mais, já tinham
enfrentado várias internações e não viam outra saída a não ser enclausurar o filho ou
irmão que ameaçava se matar e matar os outros. Carmen os ouvia com atenção e
compaixão e, em sua vez de falar, passava as informações sobre a reforma
psiquiátrica brasileira e sobre os serviços de saúde mental que agora se encontravam
disponíveis em Tucuruí.

Alguns portadores de transtornos mentais foram retirados desses manicômios


domiciliares e levados ao Caps para serem tratados e medicados, enquanto outros,
que apresentavam um quadro mais grave, foram internados no Regional. No início,
houve muita desconfiança por parte de alguns familiares. Mas, com o tempo e a
melhora dos pacientes, as resistências diminuíram. Geraldo costuma dizer que a
família é parte de sua equipe. Para Carmen, ela é fundamental:

146
-- A família é nossa aliada, ela tem que nos ajudar na recuperação do paciente.
E precisa ser tratada, pois também adoece.

No Caps, familiares de pacientes foram aos poucos encontrando um espaço


para desabafar e expor suas dúvidas, angústias, medos e dificuldades. Hoje, deparar-
se com pessoas confinadas em suas próprias casas remete a um passado cronológico
distante de Tucuruí. Nos pacientes, porém, este passado interior ainda permeia suas
histórias de vida entrecortadas.

...

Por ocasião de nossa visita à Ala Psicossocial do Regional, Carmen relembra


os pacientes acorrentados que encontrou em seu percurso:

-- Uma delas foi essa aqui. Graciete, como chamava a sua tocadinha?

Do fundo do corredor, uma mulher morena e encorpada, no auge de seus 39


anos, inicia uma caminhada em nossa direção, a passos curtos e rápidos. Ela chega
bem perto de nós e nos dirige seu olhar enérgico:

-- Cadeinha. Minha mãe fez uma cadeia, passou corrente no meu pé, fiquei
dois meses acorrentada, dormindo numa cama de cimento, eu chamo de necotrério. É
necotrério, porque é feito de cimento.

Em seguida, nos mesmos passos curtos e rápidos, Graciete se desloca até seu
leito hospitalar e volta, trazendo nas mãos uma chave:

-- É a chave da minha cadeinha – diz, levantando o braço para nos mostrar o


objeto.

De repente, ela para. Por alguns segundos, Graciete sai de seu estado de
dispersão e permanece concentrada, com os olhos fixos no bloco de notas que seguro
entre as mãos. Rapidamente, ela muda de assunto:

-- Me chamo Graciete Franco Vasco, quer que escreva? -- pergunta, excitada.

Faço um sinal afirmativo com a cabeça e ofereço meu caderno a ela. Graciete,
então, desliza a caneta pelo papel, em letras de traços fortes e tremidos.

147
-- Tá tremendo, porque eu tô querendo fumar -- explica.

Não dá tempo de ir atrás de um cigarro. Graciete fica inebriada com a entrada


em cena, naquele momento, de Emílio Alexandre Francês, 55 anos, psicólogo que
atende a Ala Psicossocial do Regional e também o Caps.

-- Chegou o melhor psicólogo do mundo – diz ela, correndo para abraçar


Emílio. -- Sabe por quê? Porque ele trabalha com amor. Se você trabalha por dinheiro,
então você não é digno do seu salário. Você tem que ser amante... Tem que casar
com o seu emprego. A Carmen é casada com o serviço dela. O doutor Emílio também

é casado com o serviço dele.

Graciete abraça Emílio, psicólogo do Regional e do Caps de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

Internada havia 21 dias, Graciete estava na fase eufórica de seu surto de


bipolaridade. Sua história marcada pelo isolamento no próprio lar deixou feridas das
quais não consegue mais se desvencilhar. Sobretudo, porque ainda vive no local onde
foi vítima e algoz. O pequeno cômodo recebeu janela e porta, mas guarda as mesmas
características da época em que encerrou Graciete. A fossa de cimento, onde fazia
suas necessidades, continua lá, mas ela não ousa usá-la. No período em que ficou

148
encarcerada, não havia água para limpar seus excrementos, o que tornava o cheiro
insuportável e atraía ratos e baratas. No momento da refeição, o prato ralo que
aparecia por uma pequena fresta na porta não saciava sua fome e, junto ao mau
cheiro, a deixava enjoada; na hora de dormir, as muriçocas não a deixavam em paz:
picavam seu corpo inteiro, durante toda a noite. Graciete chorava, gritava de dor e de
raiva, mordia, agredia a si mesma e batia, batia, até amassar a porta de ferro que a
prendia. Foram três meses padecendo no inferno.

-- Fedia, fedia, fedia... Era terrível. Não era comparação com cadeia, era mais
do que uma cadeia. Eu passei quase um mês sem me banhar, fiquei podre. Tava
fedendo. Podre, podre, podre, podre.

Graciete sofreu, mas também fez sofrer. Ela mostra ter consciência disso ao
falar da mãe, idosa, viúva e idealizadora da cadeinha, única saída encontrada para
conter a filha em surto:

-- Minha mãe montou a cadeinha por amor. Foi por amor. Senão eu me matava
– afirma. -- E hoje, por amor, ela quebrou a cadeia, botou uma portinha, botou uma
janelinha. Eu tô morando lá, eu amo meu lugarzinho, é meu cantinho, só meu. Tem a
caminha de cimento, mas também tem um colchão agora, tem rede, posso me
balançar, posso ouvir hino, gosto de cantar hino, adoro cantar hino.

Desde que iniciou a batalha para se tratar, Graciete logo foi buscar ajuda na
igreja evangélica. E, em sua trajetória, a religião sempre caminhou lado a lado com o
Caps. Pois ela não sofre apenas de bipolaridade: também padece de uma vida inteira
de misérias. Nascida em Jatobal, no entorno do lago, mudou-se aos cinco anos para
Tucuruí, junto com a família. Não chegou a concluir o Ensino Fundamental. Começou
a trabalhar como empregada doméstica e, ainda adolescente, conheceu a vida da rua
e da noite. Aos 16 anos, teve uma filha. A menina seria seu único tesouro em meio a
uma rotina de drogas, roubos e prostituição. Ainda hoje, Graciete só abre o sorriso
quando fala da garota:

-- Minha filha é linda, linda, linda. É Joyce o nome dela, uma princesa. Tem
vinte e um anos e é casada com o rei. Joyce e Leandro. A gente chama ela de
princesa, e ele, de rei. Eles moram em Altamira. Têm carro, notebook, ele comprou um
tablet para ela, têm moto. Tá vendo eu aqui? Pensa em mim jovem. Pensa em mim
com a idade de vinte e um anos que ela tem. Eu tô velha. Mas minha filha é linda. Sem
exagero, ela é linda. É uma princesa.

149
Sem saber, Joyce deu à mãe a força interior para sair do círculo vicioso que a
amarrava. Mas os anos de roubos, drogas e prostituição deixaram sequelas. E, de
tanto viver atormentada por seu passado, hoje Graciete o nega:

-- Eu não gosto de mentira, não gosto que me chamem de prostituta, não gosto
que me chamem de ladrona, não gosto que me chamem de drogada. Essas três
palavras, não usa comigo. Se mexer com meu eu, eu viro violenta. Eu, eu, eu. Tudo
tem que ser nosso, não mexa com meu eu, não. Você não conhece eu.

Uma paciente idosa, que ouvia a conversa da porta, percebe o nervosismo


momentâneo de Graciete e a interrompe:

-- Vem cá, deixa eu te dar um beijo.

-- Tá – concorda Graciete.

Ao receber o carinho, ela fica serena:

-- Ó, isso me acalma, viu? Vamos escovar os dentes? -- sugere para a outra


paciente.

As duas saem juntas a caminho do banheiro. Na volta, Graciete vem em nossa


direção carregando uma boneca. Revela que quer dá-la de presente a Joyce, para que
a filha não tenha vontade de engravidar. Aos 39 anos, Graciete ainda não é avó, algo
incomum entre mulheres com filhas de 21 anos no sul do Pará. Ela se assusta com a
possibilidade de ter uma neta e revela que ainda quer ter filhos. Talvez porque dar vida
à outra pessoa renove suas esperanças e afaste, cada vez mais, o passado aterrador
que ainda a assombra.

Graciete caminha pelos corredores da Ala Psicossocial do HRT com sua boneca. Acima, à direita, detalhe do
leito de Graciete. Crédito: Alice Arida

150
...

Das trevas de um modesto cômodo, nos fundos de uma casa escura, surge
Remyr Simões Mousinho, 52 anos. Portador de esquizofrenia, ele também foi forçado
ao enclausuramento em seu próprio lar. A família, que não via outro meio de conter
suas crises violentas, nas quais agredia a todos e proferia sentenças de morte,
montou um quarto lúgubre no quintal, separado da casa principal, e o confinou lá
dentro. A única comunicação com o mundo exterior era uma pequena fresta na porta,
por onde Remyr enfiava a boca aberta de feridas e gritava para o mundo suas
agonias.

Durante muito tempo, Remyr sofreu. Antes de ser isolado, gerou um histórico
de crises que assustaram seus pais e os sete irmãos, entre eles Verinha, de quem é
gêmeo. Durante os surtos, ele, que é alto e robusto, quebrava tudo dentro de casa e
dizia que mataria quem visse pela frente. Também se agredia. Chegou a pegar uma
gilete e a cortar os pulsos. Foi para o hospital com uma forte hemorragia. Quando
entrou no pronto-socorro, estava enrolado em um lençol todo ensanguentado e
carregava um balde com o próprio sangue. Foi salvo. Mas, pouco tempo depois,
aterrorizou novamente sua família ao reunir todos os colchões da casa no quintal e
tacar fogo neles. Quando os parentes foram acudir, Remyr, transtornado, os expulsou
de casa. Sem saber o que fazer, presos em uma época em que a internação nos
manicômios paraenses eram a regra e Geraldo ainda não havia chegado a Tucuruí, os
familiares decidiram recorrer à polícia. Remyr ficou dez dias preso em uma cela

151
especial, na delegacia do município. A única pessoa que tinha permissão para entrar
na cela era Verinha, que, miúda e magra, dava banho no irmão toda amedrontada,
rezando para que ele não surtasse naquele momento.

Por diversas vezes, Remyr foi internado. Ficou cinco meses no Juliano Moreira,
em Belém. De lá, guarda lembranças de choques elétricos e da impossibilidade de
voltar para casa. Embora recebesse alta, Remyr pegava a ambulância que faria o
trajeto até Tucuruí, pela estrada que ainda era de terra batida, mas não chegava a
retornar a seu lar. Assim que pisava em sua cidade natal, voltava a ter crises.
Enlouquecia no minuto em que encontrava seus familiares. Sem alternativa, voltava
para Belém, rumo ao Juliano Moreira, na mesma ambulância que o havia trazido do
manicômio.

Para o sanatório de Altamira, ele foi duas vezes. Na primeira, em 1989,


conheceu a realidade de um lugar que, mesmo sem superlotação, era difícil de
suportar. Remyr foi um dos poucos pacientes a sobreviver com um mínimo de
dignidade dentro do hospício. Ele trabalhava durante o dia, ajudava a banhar os outros
pacientes e a medicá-los. Às vezes, saía do sanatório e caminhava os seis
quilômetros que separavam o casarão do centro de Altamira. Apesar disso, todos os
dias, ao cair da noite, amargurava-se. Era hora do jantar, e Remyr já sabia: receberia
das mãos do funcionário um prato ralo de uma sopa fria e intragável. Revoltava-se:

-- Pô, eu botando quente aqui, desde seis da manhã até uma hora dessas, e
vocês vêm oferecer essa sopa? Eu não vou querer comida de restaurante, mas isso
nem porco não come, entendeu?

Ele tinha razão de reclamar. Era ele quem dava de comer aos porcos do lugar,
e também cuidava da horta. Mesmo sem ter como se banhar depois, pois faltavam no
sanatório todos os itens de higiene, como sabonetes e toalhas. Apesar das
dificuldades, Remyr suportou oito meses de internação. Por isso, da segunda vez que
foi mandado para lá, resistiu. Foram necessários dez homens para contê-lo e colocá-lo
dentro do carro. Remyr foi levado à força para o hospício, mas retornou dentro de uma
semana. O ano era 1997 e poucos sabiam, mas Tucuruí passava por uma ebulição no
campo da saúde mental, depois da chegada de um novo psiquiatra no município. Foi
Geraldo quem tirou Remyr do manicômio de Altamira.

A afinidade entre os dois foi imediata. Geraldo não era o primeiro psiquiatra de
Remyr, mas foi quem mais lhe estendeu as mãos e ajudou a caminhar com as
próprias pernas. Com a inauguração do Caps, aos poucos Remyr melhorou. Nunca

152
mais foi internado, a não ser por alguns dias na Ala Psicossocial do Regional, durante
crises que ficaram cada vez mais espaçadas e suaves. Agora, em vez de agredir a si e
a todos, Remyr fantasiava-se de Raul Seixas, seu maior ídolo, e subia no banco da
praça principal de Tucuruí para cantar as músicas do baiano.

Do fundo de uma aparência perigosa e amedrontadora, emergiram os traços


fortes de sua personalidade. Surgiu uma pessoa inteligente e divertida, cheia de graça,
que gosta de fazer brincadeiras. E não demoro a descobrir que Remyr é meu colega
de profissão:

-- Você também é jornalista? – pergunto.

-- Sou, mas é nascido, não é registrado, não – responde ele, prontamente.

Desde que melhorou, Remyr mostrou aos familiares e a todos os moradores de


Tucuruí sua verdadeira vocação: a de ser repórter. Tudo começou entre os corredores
cheios de cheiros do mercado municipal. Lá, entre barracas abarrotadas de ervas
milagrosas, plantas medicinais e garrafas pet cheias de tucupi, ele passou a reunir os
recados dos comerciantes e de frequentadores do lugar, para levá-los à rádio do
mercado, patrocinada pela prefeitura. Em pouco tempo, foi carinhosamente apelidado
de “o repórter da feira sem salário”.

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Detalhes do mercado municipal de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

Hoje, não trabalha mais lá. Agora, Remyr só trafega por estúdios com água
gelada e ar-condicionado. Ele colabora com três programas da tradicional Rádio
Floresta, a mais ouvida em Tucuruí e em todo o entorno do lago, e no ar há mais de
trinta anos. Do meio-dia às duas horas da tarde, ele participa do Tucuruí Agora,
apresentado por João Marques, conhecido locutor da região. Das duas às quatro da
tarde, colabora com o Esporte Floresta. E, das seis da tarde às sete da noite, ajuda o
Bate Bola com as últimas notícias do mundo esportivo. Remyr é apaixonado por
esportes. Todos os dias, assiste ao Globo Esporte, na Globo, e ao Jogo Aberto, na
Band, para se informar e levar as novidades do assunto para a rádio. E, para
complementar seu trabalho, não abre mão do pequeno e velho telefone que fica ao
lado de sua cama:

-- Do telefone do meu quarto, eu entro em contato com o mundo. Entendeu


como é? Aqui o repórter é bem-informado -- garante.

Criado há mais de vinte anos, Tucuruí Agora é transmitido não só na cidade,


mas também em todos os municípios da vizinhança.

-- E, na internet, até na Inglaterra – brinca Remyr.

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Ele ajuda o programa levando os mais variados recados, como quem são os
aniversariantes da semana, quem passou no vestibular, quem irá se casar, quem está
comemorando bodas de ouro e de prata, quem teve filho.

-- Nesse caso, eu leio a mensagem do nascimento e faço uma observação no


final: é mais um remista, eu coloco – afirma, gracejando com o nome de seu time
paraense de coração, o Remo.

Remyr, confortavelmente sentado no sofá de sua casa. Crédito: Alice Arida

Transmitido de segunda-feira a sábado, Tucuruí Agora faz sucesso pelo


destaque às notícias locais e por oferecer, a cada programa, uma cesta básica doada
por uma rede de supermercados aos que pedem ajuda à Rádio Floresta – Soneide,
em suas idas a Tucuruí em busca de auxílio, foi uma delas. Remyr colabora com João
Marques procurando quem precise da cesta e, às vezes, incrementa-a com o dinheiro
oferecido a ele por seus conhecidos. Pois, em algumas ocasiões, as pessoas pedem
que ele leve seus recados à rádio em troca de uma pequena quantia. Sob nenhuma
hipótese Remyr aceita. Quando não consegue se desvencilhar da oferta, doa o
dinheiro junto com a cesta básica aos necessitados.

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Se ele trabalha por amor, não deixa de receber uma renda mensal. Seu
dinheiro vem da aposentadoria por invalidez, no valor de um salário mínimo, e de um
serviço na casa lotérica: ele cobra para comprar números da Mega-Sena para seus
conhecidos.

Não à toa, toda Tucuruí o conhece. E também sabe de sua doença. Alguns
cumprimentam a família por ter tido a sabedoria de integrar um membro, portador de
esquizofrenia, ao seio familiar e à sociedade. Outros, contudo, ainda fazem
provocações. Remyr, habituado, já sabe como revidar:

-- O pessoal às vezes tá na fila da Mega-Sena, né, aí tinha um conhecido, ele


falou alto assim, Remyr, tu enfrenta fila, rapá? Eu falo, rapá, eu sei o que tu tá
querendo dizer. Olha, eu sou lá do Caps, mas eu enfrento fila, pago passagem de
ônibus, se tiver uma idosa eu dou a minha vez para ela, se tiver uma mulher grávida
também, para depois não ficarem falando. Aí ele ficou sem jeito, sabe? Ficou calado.
Falando bem alto, entendeu como é? Porque se a gente for falar, ah, tem problema,
eu falo, e quem que não tem? Eu tenho esse problema, mas eu sei muito mais coisa
do que gente que, se diz, tem mais conhecimento. Muitas vezes tem mais a teoria,
mas não tem a prática.

Até chegar a esse discurso, foram anos de trabalho, autoconhecimento e


aceitação. No início de seu tratamento com Geraldo, em 1997, Remyr sentia-se
destruído, depois de tantos anos de crises contínuas e de confinamentos em
sanatórios e em sua própria casa. Soube, na época, que a equipe de saúde mental
realizava sessões de terapia comunitária no posto de saúde da Cohab, já que o Caps
ainda não havia sido inaugurado. Foi para lá, para participar de uma. Assim que
começou a sessão, uma psicóloga, do meio da roda, pediu para que os participantes
fechassem os olhos e imaginassem uma parte do corpo da qual gostassem. Remyr
interrompeu a sessão, protestando:

-- Só um momentinho, doutora, eu acho que a senhora está fazendo é pouco,


não está? Porque olhe para isto – disse, apontando para o seu corpo. -- Eu tenho
alguma coisa que preste aqui? Eu vou é me retirar.

Remyr não via nada de bonito nele. E, desde esse dia, evita participar das
rodas de terapia comunitária. À medida que foi melhorando e adquirindo
independência, também foi se afastando do Caps. Hoje, quase não frequenta o lugar.
Vai só para pegar remédio. Diz que não gosta de ver os outros pacientes. Para ele, o
Caps concentra muita burrice. Sua inteligência é muita se comparada à dos outros

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frequentadores. Não esconde sua aversão a Rômulo, paciente envolvido com drogas
que vive perambulando pelas ruas de Tucuruí, com um pedaço de pano cobrindo as
partes íntimas:

-- Ele sai até de saia na rua – queixa-se Remyr. -- Aí eu penso assim, olha eu,
com camisa do Remo novinha, agenda debaixo do braço, bem-perfumado, tênis,
cabelo igual ao do Fábio Jr. E aí aparece o Rômulo sujando a nossa categoria.

Mas nem sempre foi assim. A partir do momento em que começou a frequentar
o Caps, Remyr foi envolvido pela atmosfera do lugar, e também se envolveu
profundamente. Certa vez, viajou até Brasília, pelo Caps, para tomar parte em um
encontro nacional de saúde mental. Na ocasião, ficou hospedado no estádio Mané
Garrincha, ao lado de outros participantes. Ele recorda com entusiasmo da viagem:

-- Era reunião de maluco do Brasil todo. Na hora do congresso, eles


anunciavam: tá chegando caravana de Santo André! Tá chegando caravana da Bahia!
Eu falava, ih, rapá, o Raúl Seixas não veio, não?

Desde jovem, Remyr é apaixonado pelo cantor baiano. De certa forma, Raul
Seixas ajudou-o a sair de suas crises e a aceitar a sua condição. Remyr tinha por volta
de vinte anos quando começou a apresentar os primeiros surtos. Na década de 1980,
ele tomava caixas de remédios que eram consumidos como drogas. A família pensou
que ele era dependente químico, e o enviou para tratamento em Belém. Mas o
psiquiatra que o consultou na época informou os familiares que Remyr tinha, na
verdade, esquizofrenia. As drogas apenas “escondiam” a doença.

Foi um choque para todos. Neste momento, começou a batalha para que
Remyr tomasse os medicamentos controlados que o ajudariam a conviver com o
transtorno mental. No início, ele recusava. Negava a sua condição. A família era
obrigada a misturar os remédios em sucos e vitaminas. Foram dez anos até que ele
aceitasse tomar as pílulas.

Hoje, tudo mudou. É ele quem liga para a irmã gêmea, Verinha, perguntando,
em tom de brincadeira, onde está a sua esposa:

-- É o remédio – conta Verinha, rindo. -- Sem o remédio, ele mesmo diz que
viaja na maionese, que o cérebro dele está fora de órbita.

Detentora da tutela de Remyr, Severa Romana Mousinho Corsino, a Verinha,


administra a renda dele e cuida de sua casa, das contas a pagar, das roupas e da
alimentação. Ele mora sozinho no imóvel onde nasceu, cresceu, foi aprisionado e
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libertado. Depois da morte da mãe viúva, em 2010, os irmãos decidiram deixá-lo
morando na casa, que pertence a toda a família. Embora espaçoso, o lugar é escuro,
como todas as construções de Tucuruí, e infestada de ratos que caminham sob o piso
e sobre o teto. Mas Remyr não se importa. Pelo contrário. Orgulha-se de possuir um
teto para chamar de seu:

-- Eu devia de ganhar prêmio por morar debaixo do mesmo telhado há


cinquenta anos, entendeu? Tira só dois anos fora. Então, eu tô há quarenta e oito
anos. Já pensou?

De seu canto, ele atravessa os dias em reportagens televisivas. Através delas,


sai de Tucuruí em direção ao mundo. Conhece inúmeras cidades, só de vê-las na tela.
E guarda datas e fatos. Sabe, por exemplo, o que aconteceu de importante no ano em
que nasceu. Tem a resposta na ponta da língua quando lhe faço esta pergunta:

-- Nasci em 1963, quando o John Kennedy foi assassinado nos Estados Unidos
– informa, rapidamente.

Remyr, Verinha e detalhes da casa da família, onde Remyr mora. Crédito: Alice Arida

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Se não está assistindo TV ou trabalhando na Rádio Floresta, está lendo jornal.
Todos os dias, recebe em casa o Jornal da Amazônia, que, segundo ele, tem as
mesmas notícias que O Liberal, o maior do Pará, mas é mais barato. Assim que
termina sua leitura, telefona para a irmã, que é professora particular e dá aulas de
reforço, para contar as notícias do dia. Paciente, Verinha o escuta. Às vezes, são
várias ligações em um só dia:

-- Tem dia que eu estou dando aula, ele me liga. Dá um minuto, ele liga de
novo. Passa o dia todinho assim – desabafa. -- Mas, do que nós já passamos, para
mim está ótimo. Eu agradeço a Deus vinte e quatro horas, porque se eu for contar o
que nós já sofremos... Eu não gosto nem de lembrar muito, sabe, porque são cenas
muito tristes.

Hoje, este passado amargo ficou guardado na memória. Desde que iniciou o
tratamento com Geraldo, Remyr melhorou muito. Como consequência, toda a sua
família também. E já é possível relembrar as situações em que os risos foram mais
marcantes que as dores. Como, por exemplo, a consulta que fizeram a dois com um
clínico geral de Tucuruí. Pois, há alguns anos, Remyr se viu obrigado a tratar de
diabetes. Verinha, por sua vez, sempre teve problema de enxaqueca e pressão alta.
Os dois resolveram, então, ir juntos a uma consulta com o clínico. Ao se sentar na
frente do médico, Remyr foi logo se apresentando. Disse que era irmão gêmeo de
Verinha, o que causou espanto no homem, já que a fisionomia dos dois é muito
diferente. Remyr brincou com a situação:

-- Sorte dela que nós somos de placentas separadas. Se fôssemos da mesma


placenta, eram dois doidos aqui na sua frente – disse, tirando risos do médico. – E
ainda tem mais, ela ia dizer que tinha casado com o Gianecchini, e eu, com a Xuxa.

Todo esse gracejo surgiu depois da reinserção de Remyr no seio familiar e na


sociedade, e também com o uso controlado dos medicamentos. Remyr os recebe
todas as manhãs das mãos de Antônio, o marido de Verinha. Antônio é um presente
que a família ganhou com a construção da barragem em Tucuruí. Eles viram toda a
transformação da cidade onde nasceram a partir do momento em que foi escolhida
para abrigar a usina. E aprovaram:

-- Inclusive, eu gostei, porque meu cunhado, que é esposo da Verinha, veio pra
cá e casou com a minha irmã, e eu gosto dele – diz Remyr.

Em sua trajetória, este portador de esquizofrenia não só passou a gostar das


pessoas, como também ganhou fãs. E sua história mexeu profundamente com a única

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irmã que tem além de Verinha. Marília Mousinho, 57 anos, acabou por envolver-se
com a doença do irmão e com a de todos os outros pacientes do Caps. Por dez anos,
de 2005 a 2014, ela, que é assistente social, foi coordenadora do centro. Conhece
todos os pacientes, seus familiares e suas casas. Visita-os com frequência. Sabe de
suas necessidades.

Marília está no Caps desde o início de sua construção. Participou de sua


inauguração, em 1998. Fez parte da primeira equipe, e de todas as outras que se
seguiram. Comoveu-se com as histórias de vários usuários. E encontrou seu amor
maior graças a uma das pacientes do lugar. Antônia Paixão é uma mulher baixa,
morena e com retardo mental. Doze anos atrás, apareceu grávida no Caps. Marília
sabia que Antônia e sua família viviam em condições de extrema pobreza em Tucuruí:
enquanto coordenadora do Caps, havia organizado um mutirão ao lado de outras duas
funcionárias para promover uma limpeza no imóvel onde vivia toda a família da
paciente. Encontraram ratos, baratas, todos os tipos de animais e suas fezes,
espalhadas por todos os cantos da casa.

De certa forma, Marília temia pelo futuro da bebê que Antônia abrigava em sua
barriga. Mas, depois de nove meses, como manda a natureza, nasceu Gabriela.
Sempre zelosa, Marília passou a levar pacotes de fraldas e latas de leite em pó para a
bebê, na casa de Antônia.

Uma tarde, porém, deteve-se, perplexa, no batente do portão. As outras


crianças da casa, famintas, devoravam as latas de leite em pó. Marília entrou afobada
no imóvel. Encontrou Gabriela em seu berço, suja de fezes e com picadas pelo corpo
inteiro. No mosquiteiro, identificou fezes de gato. Ficou agoniada. E não pensou duas
vezes: pegou a bebê no colo e a levou para a sua casa.

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À esquerda: Gabi na casa de Verinha. Crédito: Alice Arida

À direita: Antônia (à direita) posa para foto ao lado de Soneide, durante uma apresentação de festa junina no
Caps de Tucuruí. Crédito: Fabiana Nanô

Até completar cinco anos, Gabriela morou com Marilex, cunhada de Marília e
de Verinha. Depois, foi para a casa de Marília. Hoje, aos 12 anos, Gabriela é uma
garota plena por ter quatro mães, como ela mesma acredita: são elas Antônia, Marília,
Marilex e a Nossa Senhora. A menina também toca flauta e estuda para passar no
vestibular de Medicina. Diz que admira a profissão, pois os médicos salvam vidas. Seu
sonho é ser pediatra.

Por anos, Marília deteve a tutela de Gabriela. Em 2015, finalmente ela pôde
registrar a garota como sua filha adotiva, em uma decisão reconhecida pela Justiça.

Mas a história de Gabriela nunca foi arrancada dela. Ela sabe quem é sua mãe
biológica e, desde bebê, frequenta o Caps. Todos os pacientes a adoram. Dão a ela
presentes e abraços carinhosos. Com a mãe, nunca deixou de trocar carícias e afetos.
Antônia olha para a filha com ternura e agradece:

-- A Gabriela vai salvar a gente.

161
10.

Foto: Alice Arida

162
É manhã, e o sol está começando a esquentar as ruas de uma cidade sem
árvores no meio da Amazônia. Desço do ônibus acompanhada de Alice. Percorremos
o nosso trajeto diário a passos lentos, apreciando a vista, os cheiros, as cores, as
pessoas. À nossa frente se descortina o mercado municipal, com seus odores de
frutas, ervas, café, tapioca, coco, peixes e galinhas. Estas últimas viram frango na
hora, de acordo com a escolha e a preferência dos clientes. Há sangue, muito sangue,
no chão das tendas que vendem a carne das aves. Urbanas que somos, olhamos para
o piso com um pouco de nojo -- estamos demasiado acostumadas a comprar aquele
frango asséptico e cheio de hormônios, cuidadosamente embalado em bandejas de
plástico e dispostos de maneira atraente nas prateleiras dos supermercados.
Seguimos pelas laterais do mercado, sem adentrá-lo. Estamos caminhando na rua, já
que a calçada está maltratada e é quase inexistente nesse trecho -- e em muitos
outros -- da cidade. Camionetes e moto-táxis passam velozes por nós, quase sem nos
ver. Assim que alcançamos a esquina, voltamos a cabeça para a esquerda, como para
ter certeza de que ela estaria lá. Sim, ela estava: a pequena casa branca e azul, com
portões abertos. E, sim, o Zé do Café também estava lá, fazendo a guarda da porta,
segurando sua xícara de plástico e tentando enrolar seu tabaco barato num pedaço de
papel.

Zé do Café é conhecido de todos no Caps. É um negro baixo, moribundo e


cego de um olho. Está sempre com uma caneca de plástico em uma das mãos,
pedindo café para quem quer que seja. Na outra, segura o cigarro, improvisado com
tabaco enrolado em folha de papel sulfite. Sua fala é quase incompreensível. Mas ele
ri uma risada gostosa, escancarando uma boca de poucos dentes e babando sobre
sua roupa, suja na maioria das vezes. Da primeira vez que eu o vi, fiquei um tanto
ressabiada, e um tanto enojada. Não sabia como me aproximar dele, talvez nem
quisesse. Em momento algum, ele recuou diante do meu distanciamento. Todos os
dias, assim que chegava ao Caps, Zé do Café vinha em minha direção, estendendo a
mão para me cumprimentar, sorrindo, babando e rindo sua risada gostosa, como se
estivesse escrachando o mundo. Aos poucos, fui me acostumando com seu jeito.

163
Quando dei por mim, percebi que ansiava por encontrá-lo na porta do Caps. Estender
a mão para ele, brincar com ele. E rir com ele essa mesma risada debochada.

Ao contrário do que muitos pensam, José Caetano da Silva, 45 anos, não tem
problemas com bebida. Ele mal bebe. Gosta mesmo é de um bom café. Ou ruim, tanto
faz. E, apesar das dificuldades de fala, articula muito bem seus pensamentos e se faz
entender com poucos e intrincados balbucios. Em uma manhã, no Caps, ele se sentou
ao meu lado e começou a contar sua história de vida e como havia perdido a visão do
olho esquerdo. Nesse dia, Alice o havia presenteado com uma foto dele, tirada por ela.
Zé do Café pediu para que guardássemos a foto conosco. Ficamos com a imagem até
o final da tarde, quando nós o acompanhamos na volta para a sua casa. Ficamos
surpresas ao descobrir que Zé do Café tinha um lar, e tinha família. Ele tinha onde
dormir. Tinha quem o acolhesse.

Ao se despedir de nós, balbuciou:

-- Foto.

Alice e eu finalmente lhe entregamos o retrato. Nessa noite, Zé do Café foi


dormir feliz. Na manhã seguinte, ele nos aguardava na entrada do Caps, com sorriso
no rosto, cigarro e caneca de plástico na mão, rindo e babando. Exalava um cheiro
azedo, uma mistura de sujeira da rua, café, tabaco e urina. Dentro do Caps, os odores
também eram particulares: uma mescla do cheiro de cada paciente -- muitos dos quais
não haviam se banhado no dia anterior --, da comida que era preparada na cozinha
para o almoço, e das próprias instalações do local, com seu aroma característico.

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Zé do Café e sua risada escrachada. Crédito: Alice Arida

Nossa primeira surpresa, ao acompanhar o dia a dia da casa, foi perceber que
as atividades, quando são realizadas, acabam cedo, em geral entre nove e dez horas
da manhã. Os pacientes, então, aguardam a chamada para o almoço, às onze horas.
Assim que terminam de comer, ficam sem ter o que fazer. Alguns voltam para casa ou
para a rua. Outros assistem televisão, geralmente ligada na Globo, no salão aberto.
Na parte da tarde, quase não há atividades -- que, em geral, se resumem a rodadas
de bingo e de dominó, partidas de futebol e oficinas de música e de desenho.

É um Caps muito diferente daquele fundado em 1998, com uma grande equipe
disposta a mudar os paradigmas da saúde mental em Tucuruí, com lideranças firmes e
apoio político do governo local. Dezessete anos depois, o Caps mudou e, com ele,
seus frequentadores, que parecem andar em círculos sem sair do lugar. Geraldo antes
vivia extasiado com suas sessões lotadas de terapia comunitária, às quartas-feiras.
Hoje, já não mais as conduz; passou o bastão para outras pessoas da equipe, que não
conseguem reunir mais de trinta participantes nas rodas.

Parte desta inércia aparece nos desenhos dos pacientes. Antônia, mãe de
Gabriela, rabisca sempre a mesma flor, e a colore sempre da mesma cor. Outro
paciente, Argemiro Siqueira Alves Filho, tem fixação por uma casa, pintada sempre de
azul.

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Houve uma depressão no cotidiano do Caps, e os funcionários fazem o que
está ao seu alcance para driblar a falta de apoio das gestões municipal e estadual.
Maria Ruth Coimbra Ribeiro, belenense de 47 anos, terapeuta ocupacional em Tucuruí
desde a época em que a equipe de saúde mental trabalhava no posto de saúde da
Cohab, perdeu a conta de quantas vezes tirou dinheiro do bolso para suprir as
carências da casa. Ela já comprou bola para as partidas de futebol, brindes e outros
presentes para atividades como bingo ou dominó, canetas e lápis para as oficinas de
desenho e também para a sala da administração, além de itens pessoais para os
pacientes. Ruth, inclusive, cuida da alimentação e da medicação de alguns deles, e
nunca deixou de auxiliá-los em situações que não estavam inseridas em seu roteiro de
trabalho. Por exemplo, quando Antônia estava grávida de Gabriela, era Ruth quem a
acompanhava no exame pré-natal, já que a família da mulher, miserável e
desestruturada, não tinha como assumir este compromisso. No hospital, os
funcionários perguntavam a Ruth se ela era parente da gestante. “Apenas amiga”,
respondia. Não deixava de ser uma verdade. A terapeuta se envolveu tanto com as
histórias de vida dos pacientes do Caps que se relaciona com eles como pessoa, não
como servidora pública.

-- Depois de tanto tempo, a gente já consegue entender alguns deles. Porque é


preciso entender mais a fundo para poder ajudar -- explica. -- E não é uma ajuda que
está organizada, bonitinha. Você não pode só fazer o seu trabalho quadradinho. Você
tem que, às vezes, fazer outras coisas. Esse é o verdadeiro Caps de Tucuruí. É você
entrar nessas histórias mesmo e se misturar. É você ter que ir lá cuidar da pessoa,
senão ela não dá conta. Eu acho que esse é o grande diferencial daqui. Você está
sempre envolvido demais com os pacientes. Quando a gente diz que é uma família, é
verdade.

Em sua prática profissional, Ruth sempre buscou potencializar este tipo de


relação. Ela nunca ficou satisfeita com atividades ocupacionais dentro do Caps. Acha
que seu verdadeiro trabalho está fora da instituição, está nas ruas, nos bairros e nas
comunidades. Por isso, promove partidas de futebol no ginásio poliesportivo da cidade
e adora organizar as apresentações das quadrilhas de festa junina, de Carnaval, do 18
de Maio -- o Dia da Luta Antimanicomial -- e os desfiles de outras datas
comemorativas. Nessas ocasiões, os pacientes e a equipe do Caps se apresentam em
escolas, creches, faculdades, além de vários órgãos públicos, como o quartel da
Polícia Militar.

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Sempre que pode, Ruth promove saídas com os pacientes, para os mais
variados espaços da cidade. Certa vez, organizou uma ida ao cinema de um shopping
de Tucuruí. Muitos pacientes, por serem de baixa renda, nunca haviam entrado no
local. Ruth conversou com a gerente do cinema, que se mostrou prontamente
receptiva. E foi uma festa:

-- Ela ficou encantada, nem pediu carteirinha. A gente bateu foto, dividiu pipoca
e refrigerante... Depois, fomos uma segunda vez, e eu sempre falando para eles que
eles podiam ir sozinhos se quisessem, era só mostrar a carteirinha.

A carteirinha à qual Ruth se refere é a do Passe Livre, que oferece aos


portadores de transtorno mental, além da circulação gratuita por Tucuruí e pelas
outras cidades do Brasil, gratuidade em sessões de cinema, apresentações de circo e
de teatro, e também a livre entrada em jogos em estádios. Ter garantido esses direitos
aos pacientes do Caps é um dos triunfos de Ruth. Ela sempre os orienta sobre como
obtê-la, em um movimento que está integrado à sua incessante busca para driblar o
preconceito e a falta de informação e de conhecimento em relação à loucura.

Sintoma deste desconhecimento acontece quando ela recebe no Caps


pacientes vindos de outros órgãos da rede pública de saúde, com queixas como dor
de dente ou um dedo quebrado:

-- Isto ainda é um problema para nós. Eles [os funcionários dos outros órgãos
da rede pública de saúde] mandam de volta para o Caps os pacientes daqui que vão
sozinhos [a esses outros órgãos] e que muitas vezes não são atendidos, porque
mostram a carteirinha do Caps. Às vezes, a gente tem que voltar com eles até onde
eles estavam para orientar o pessoal da rede básica, pois no Caps não temos
tratamento dentário ou clínico.

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A terapeuta ocupacional Ruth Coimba participa de uma atividade com música e dança no Caps de Tucuruí. Crédito:
Alice Arida

Além da falta de conhecimento, o preconceito ficou patente para ela em um


episódio ocorrido em Jutaí, em 1998, durante o II Encontro Paraense de Luta
Antimanicomial, do qual ela participou ao lado de um grupo de pacientes. A certa
altura, um deles resolveu tirar a camisa e sair caminhando sozinho por uma estrada.

-- Falaram para mim que ele era grande, forte, estava alterado e fugindo. O
termo foi fugindo -- ressalta. -- Aí, eu fui ver o que era. Fui atrás dele com outra
paciente. Descobrimos que ele não estava fugindo. Ele era daquela comunidade, tinha
tirado a camisa e estava de shorts para se banhar. A estrada levava para o rio, e nós
fomos com ele. Ele, por ser grandão, fazia os gestos, e as pessoas, por não fazerem
parte dessa realidade, estranharam. Nós apenas acompanhamos, ele tomou banho e
ficamos conversando. Depois, outros pacientes se juntaram ao nosso grupinho.

Para subverter o preconceito, Ruth exercita diariamente a sua criatividade.


Uma das grandes sacadas que ela teve a alegria de usufruir -- ao lado de todos os
outros servidores do Caps -- foi posta em prática na kombi que está a serviço do
órgão, para o transporte dos pacientes. Quando o automóvel transitava pelas ruas de
Tucuruí, quem estava do lado de dentro ouvia os transeuntes gritando pelas calçadas:

-- Olha lá os doidos passando!

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Como solução ao impasse, a kombi ganhou um grande adesivo colado em sua
traseira, com os dizeres provocativos “doido é tu”. Ruth diverte-se com a ideia:

-- Doido é tu que não participa, que não se integra, que não está perto. Porque
todos nós temos uma história para contar.

A kombi que está a serviço do Caps de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

Ela mesma tem a dela: ainda em Belém, o pai abandonou a família quando ela
era pequena. A mãe, professora da rede federal, teve que se virar para criar os três
filhos. Hoje, o irmão de Ruth é médico e mora com a família em São Luís, no
Maranhão, enquanto a irmã trabalha como professora de História na rede municipal de
Tucuruí. A mãe não aguentou a saudade dos filhos e também se mudou para a cidade
interiorana. À sua maneira, Ruth soube lidar com esse problema familiar. E, à sua
maneira, anos mais tarde decidiu criar a sua própria família: adotou João Gabriel,
quando ele ainda era recém-nascido.

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Na época em que estava procurando um bebê para adotar, perguntaram para
Ruth se havia problema ser um menino moreno. A maioria das famílias queria uma
menina de pele clara.

-- Até aí você vê o preconceito -- pondera.

Ruth não apenas aceitou João Gabriel,como desde sempre busca inseri-lo na
complexa teia de seu cotidiano ligado à saúde mental. O garoto, que, aos oito anos, já
está quase do tamanho da mãe, está acostumado a frequentar o Caps e fez amizade
com vários pacientes, sobretudo com Zé do Café. Ruth não esconde do filho nem a
realidade em que vive, nem a sua história. João Gabriel sabe que tem pais biológicos
e uma mãe que o cria. É ela quem lhe explica a situação das pessoas de seu entorno:

-- Aqui nós temos esse problema de falta de condições, falta de orientações.


Resulta em transtorno mental, uso de drogas, uso de álcool. Para você acabar com o
transtorno, você teria que acabar com essas situações. Não é que seja a única causa
dos transtornos. Mas é uma causa muito grande -- acredita.

Com alguns pacientes portadores de transtornos genéticos, Ruth conseguiu


realizar um bonito trabalho de superação. Ela teve uma grande satisfação ao organizar
uma viagem ao sítio do irmão de Argemiro, aquele que só desenha a casa azul -- e
que diz ser a casa de campo do irmão. O lugar fica situado na outra margem do rio
Tocantins, oposta à de Tucuruí. A terapeuta reuniu um grupo pequeno de pacientes
para ir ao local. Entre eles, estava José Ribamar Alves Bezerra, o Riba, de 47 anos,
nascido com oligofrenia e dificuldades motoras em algumas partes do corpo,
sobretudo nas pernas. Riba tinha pavor de subir e descer escadas, de entrar em um
barco e ter de sair dele. Ruth conta como foi a experiência:

-- Há um mito muito grande, mas que é preciso cuidado, com a questão de


atravessar o rio. Ah, não pode ir. Ah, eles vão dar trabalho. Ah, eles vão pular da
barca. Mas, se aqui eles se comportam, então por que não pode levar? Fomos duas
vezes, e na segunda eu levei o Ribamar. Para subir na barca foi um desespero, para
descer foi outro desespero. Mas, para mim, foi uma vitória, porque atravessar o rio,
quando as pessoas diziam que não podia, e ver a felicidade dele de se banhar…

Ela abre um sorriso, iluminando o semblante. Em seguida, recorda:

-- Quando eu cheguei aqui, o Riba não subia barrancos, era muito limitado. Há
uns dois anos, fomos dançar quadrilha num lugar alto. Tinha que subir uma escada
enorme, ele disse que não ia. Nós pegamos na mão dele e conseguimos fazer ele

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subir. Hoje em dia, ele busca superar isso. Ele também não sabia jogar dominó, agora
já está jogando. E é uma festa, porque às vezes ele bate.

Ribamar, à esquerda, participa de uma rodada de bingo no Caps de Tucuruí. À direita, sua irmã Francisca posa para
foto no Caps. Crédito: Alice Arida

Ruth conhece bem a história de Ribamar. E conhece toda a sua família. Ele
tem duas irmãs. Uma delas, Francisca, de 46 anos, frequenta o Caps com ele, pois
também é oligofrênica -- isto é, tem um grau de retardo mental. Muitas vezes,
Francisca vai ao Caps acompanhada da filha de 14 anos, Raíssa. Ruth diz que é uma
família desestruturada. Quem busca atar esses nós quebrados é dona Raimunda, a
matriarca da casa. A terapeuta sugere que conversemos com a mulher, para adentrar
sua realidade. Foi assim que Dona Raimunda se tornou uma de nossas primeiras
entrevistadas.

É Francisca quem nos guia no caminho para a casa onde mora com a mãe, o
pai, o irmão, Ribamar, e a filha mais nova, Raíssa. A construção, bem-cuidada e feita
de alvenaria, fica no bairro de Jardim Paraíso, perto do Caps. Vamos a pé. Dona
Raimunda nos espera. Ela sabe que estamos indo entrevistá-la. Foi Francisca quem a
avisou.

Francisca é uma negra alta, bonita, corpulenta, de cabelo curto, voz fina e
risada aguda. É mãe de duas garotas, Raiana, 17 anos, e Raíssa, 14 anos. A mais

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velha engravidou e teve filho aos 14, de um homem trinta anos mais velho que ela. A
caçula, de vez em quando, frequenta o Caps junto da mãe, mas não apresenta
transtornos mentais. É esquentada e maliciosa. Tem pernas longas e uma cintura que
começa a delinear-se acima dos shorts apertados. Assim como a irmã, pegou gosto
pela rua desde cedo. Aos 10 anos, já sumia de casa para atravessar o rio e ir à praia
na margem direita do Tocantins, à procura de brigas, drogas e homens. Voltava depois
de uma semana, toda machucada. Ninguém sabia por onde havia andado. Quando
mudou de escola, já no primeiro dia de aula voltou com arranhões: havia brigado com
uma menina. Ela segue o exemplo da irmã mais velha, Raiana, que, apesar do filho
pequeno, recusou a vida de dona de casa. Brigou com o pai da criança, e só pensa
em voltar para a vida dos becos de Tucuruí.

Na casa delas, quem segura a bronca de dois filhos com retardo mental, duas
netas desajustadas e um marido alcoólatra é a matriarca, Raimunda Alves Bezerra, 70
anos. Assim que adentramos a casa, ela vem ao nosso encontro. É baixa, magra e
exibe uns olhos doces, serenos e tristes. A voz miúda e calma, versada num único
tom, explica esse olhar numa das primeiras frases que profere:

-- A minha barra é muito pesada. Porque sou eu que tenho mais uma
compreensão de entender eles. Quando a gente tem pessoas especiais na família da
gente… -- ela suspira, e continua: -- No início, o pai não queria aceitar os filhos como
eles são, e eu sempre fui quem segurei a barra toda a vida. Toda a vida segurei a
barra. Até hoje. Corro para tudo.

Depois desse desabafo, dona Raimunda conta que foi ela quem incluiu os
filhos em instituições públicas de assistência social, entre as quais o Caps. Ribamar foi
o primeiro a ir, em 1996, quando Geraldo ainda atendia no posto de saúde da Cohab.
Em 2001, foi a vez de Francisca começar a frequentar o Caps, já estabelecido no
bairro de Mangal, perto do cais e do mercado municipal. Para a mãe, foi um alívio.

-- Pela situação deles, se não tivesse o Caps seria muito difícil para mim.
Porque ficar com esse povo dentro de casa sem nenhuma atividade, não tem quem
aguente.

Dona Raimunda cansou de participar das sessões de terapia comunitária, com


as quais diz ter aprendido muito. Emocionava-se ao escutar as histórias dos outros e
ao ouvir a própria história, saída da boca trêmula. Às festividades, jamais deixou de
comparecer:

-- Sou igual jornalista. Quando tem um evento, eu vou lá e fico filmando. Pouco

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estou lá, mas sempre estou junto. O Caps, para mim, faz parte da minha vida, me
ajuda muito, porque meus filhos ficam lá, e o horário que eles ficam lá, eu estou
tranquila. Eu não fico todo dia lá, mas quando eu passo, falo com o pessoal, pergunto
se está tudo bem. Ligo. Porque eu sou para muita coisa. Eu que administro toda a
família.

Dona Raimunda, à esquerda, e Francisca e Raíssa, à direita. Crédito: Alice Arida

No começo, eram todos iguais. Estudavam juntos, na mesma escola, os quatro


filhos de Raimunda -- além de Ribamar e Francisca, havia Maria Vilani e Gilberto -- e
seu marido. Eles estavam em Tucuruí há pouco tempo. O marido de dona Raimunda
havia partido do Maranhão em direção à cidade paraense em 1977, atraído pelas
novas oportunidades oferecidas pela construção da hidrelétrica. Conseguiu ser fichado
na Camargo Corrêa, empreiteira da obra, e trouxe a família - esposa, sogra e os
quatro filhos - depois de cinco meses. Ribamar e Francisca foram estudar na mesma
escola que os irmãos mais velhos, mas lá descobriram que os dois não
acompanhavam o ritmo dos colegas. Eram especiais. E para o ensino especial foram.
Demorou até dona Raimunda aceitar a situação e compreender que, na verdade,
dentro da condição deles, os filhos não tinham problemas:

-- Eles são perfeitos, mas eu digo assim, nas especialidades que eles têm.

Para chegar a essa conclusão, foram necessários muitos anos de aprendizado.


Tudo começou quando ela ouviu o que não queria da boca de um dos primeiros
médicos que atendeu os seus dois filhos. E que supostamente deveria ampará-la. Não
foi o que aconteceu:

173
-- Na situação das pessoas deficientes ou especiais, poucas famílias levam a
sério. Para elas, essas pessoas não têm valor, não têm progresso, não têm futuro. E
não é assim. Eu lembro que o primeiro médico deles... Até hoje eu me lembro. É uma
coisa que até hoje me ajuda a superar o baixo astral quando eu penso de ter, né. Era
neurologista, e falou para mim um dia, dona Raimunda, não adianta eu passar
remédio para os seus filhos, porque a senhora vai comprar remédio caro, dar para
eles, mas eles nunca vão ser alguém na vida. E naquela hora me atingiu muito, lá
dentro do meu coração, mas eu não... Eu sou uma pessoa muito compreensiva, eu
fiquei quieta, não disse nada. Só escutei ele. E como um médico me falou daquela
maneira, eu não tinha como apreender ele. Ainda não tinha experiência de lutar, tinha
descoberto naqueles dias [a doença dos filhos]. Aí, voltei para casa. Quando foi um
dia, o diretor [da escola do ensino especial] me chamou e perguntou se tinha levado
meus filhos ao médico. Eu contei tudo. Ele me disse, olha, dona Raimunda, não se
preocupe, pois médico nenhum tem o direito de falar isso. De falar que meu filho não
vai ser ninguém, não vai ser uma pessoa melhor, não vai saber a base que ele sabe
hoje. Aí, ele me orientou direitinho, como lutar com meus filhos, como superar as
críticas, como superar preconceito. Quando alguém falar mal dos meus filhos, não me
deixar levar por eles. Responder na calma. E hoje meus filhos são além daquela
época.

Nos percalços de sua vida, dona Raimunda ora silenciava, ora respondia.
Como, por exemplo, quando uma vizinha perguntou se tinha filhos.

-- Tenho -- ela respondeu.

-- Estudam?

-- Estudam.

-- Onde?

-- Eles estão no ensino especial.

-- Ah, já sei, são aqueles doidinhos que ficam ali na parada de ônibus,
esperando o ônibus chegar -- alfinetou a mulher.

Dona Raimunda não deixou estar:

-- Não, eles não são doidos. Eles têm dificuldade de aprender, mas doidos eles
não são.

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Em outras ocasiões, a matriarca nem precisou falar. Foi o caso de outra
vizinha, que não deixava o filho dela brincar com Francisca e Ribamar:

-- Quando eu menos esperava, chego na reunião do ensino especial, está lá a


mulher sentada na fila do banco. O filho dela, descobriram, tinha problema na cabeça,
pior do que o dos meus. Também fiquei quieta, não disse nada. Mas tive dó dela, né?
Não é porque nós somos perfeitos que nós vamos esnobar de quem não é. Tem tanta
lição para nós no mundo... ninguém pode dizer, hoje eu estou assim, amanhã ainda
está, né? Tem que saber respeitar a si mesmo.

Hoje, a maior satisfação de dona Raimunda é ver que os dois filhos


oligofrênicos ultrapassaram em muito os primeiros diagnósticos dados pelos médicos.
Fazem quase tudo sozinhos e sabem andar por Tucuruí sem pedir ajuda a ninguém:

-- Eles têm muitos amigos, são mais conhecidos do que eu -- brinca.

E são tranquilos. Quase nunca têm crises a ponto de serem agressivos.


Quando isso ocorre, geralmente é por um motivo forte e exterior a eles. Dona
Raimunda conta que, poucos meses antes de nossa visita, Ribamar entrou em um
desses momentos. Ficou nervoso, arredio e não queria frequentar o Caps. Sua
sobrinha Raiana aproveitou a ocasião para provocar o tio e brigar com ele, o que o
deixou ainda mais perturbado. Em uma tarde, Ribamar teve uma crise forte e quebrou
metade da casa. Dona Raimunda, desesperada, conseguiu ajuda a muito custo. Uma
equipe de resgate foi buscar seu filho para interná-lo no Regional. Durante essa
internação, que durou alguns dias, a equipe do Caps buscava convencê-lo a voltar a
frequentar o local. Foram necessárias algumas semanas para que Ribamar voltasse a
ser ele mesmo. Este episódio foi um ponto fora da curva de sua existência:

-- Precisa muito para ele se transtornar -- conta dona Raimunda. -- Todo


mundo fica se perguntando o que aconteceu com o Ribamar. Eu mesma acho que o
nervosismo dele não foi criado só aqui [dentro de casa]. Acho que teve algo lá por fora
que ele não gostou e começou a criar isso. Porque ele ficou sem querer sair de casa
muito antes da desavença [com a Raiana]. A desavença só ajudou. Por que eu penso
isso? Porque há dias ele não queria ir para o Caps. Então, eu entendi que não foi por
aqui que ele pegou essa agressão dele. Alguma coisa ele não gostou, ou alguém feriu
ele sem querer, ou ele percebeu, porque eles são muito vivos. Você não pensa que vai
fazer algo que ofenda eles que eles não sintam, que eles não saibam, porque eles
sabem. Acho que foi algo assim, mas ele não disse nem para o doutor Geraldo, nem
para Marília, nem para ninguém. Nem para mim. Eu fui quem... Na minha expectativa,

175
eu concluí. Porque eu sou quase a memória desses meninos. Se eles adoecem,
precisa descobrir, sentir, que eles estão doentes. Porque eles não falam.

Apesar de tudo, dona Raimunda garante que não sofre pelos filhos. Ela se
preocupa por eles, mas sofrer, não. Sua cota de sofrimento está na morte acidental de
Gilberto, seu segundo filho, em 1985, quando ele tinha 20 anos, e nas duas netas,
filhas de Francisca. São elas um enigma que a matriarca não consegue resolver em
sua cabeça. Pois Vilani, sua filha mais velha, de 51 anos, lhe deu a neta Maeli, que
hoje tem 28 anos e mora em Altamira, onde estuda, trabalha e sabe fazer suas
amizades, segundo a avó.

-- Por que eu não sei criar essas duas, a Raiana e a Raíssa, se eu criei ela?

São muitas as perguntas sem resposta numa terra devastada pelo homem. No
meio do caos e da miséria, crescem seres resilientes. Dona Raimunda é um deles.
Sua capacidade diária de se reinventar sintetiza-se na sentença que leva dentro de si
como um talismã, e que profetiza como um presságio:

-- Não tem vitória sem luta. Tem que lutar para vencer.

Ribamar e Francisca estão acostumados a percorrer as ruas de Tucuruí na


kombi do Caps, aquela que tem o adesivo Doido é Tu na traseira. Na dianteira do
automóvel, está o paulistano José Luiz Martins, o seu Zé Luiz, 59 anos. É ele quem
pilota o automóvel dia e noite, segundo as necessidades e os imprevistos do Caps e
dos pacientes. Nessas andanças, seu Zé Luiz diz que transformou-se. E passou a
enxergar a si mesmo em perspectiva:

-- O Caps é uma lição de vida, aprendi muito. Eu era um cara mais agitado,
mais nervoso, mais ignorante, e melhorei muito vindo para cá. Aprendi a ter mais
paciência, a compreender os outros, coisa que às vezes não dá tempo de a gente
parar para pensar. Aqui, como a gente vê muitas situações difíceis, a gente começa a
se autoanalisar e ver que realmente é complicado, temos que ser mais humanos.

Há 22 anos em Tucuruí, seu Zé Luiz não começou trabalhando com saúde


mental. Em sua vida, ele jamais imaginou que seria servidor de um Caps. Quando

176
morava em São Paulo, atuava como fotógrafo. Mas decidiu ir morar em Tucuruí depois
de conseguir um emprego em uma firma atacadista de Uberlândia. Ficou por dez anos
na empresa, como vendedor na praça de Tucuruí e região. Em seguida, foi trabalhar
como gerente em uma rede de supermercados de Tucuruí. Foi quando ele sentiu
vontade de se estabilizar de outra forma. Prestou concurso para a prefeitura e, de um
total de 80 vagas para auxiliar administrativo, ficou em 41º lugar. Isso foi em 2006. E
seu Zé Luiz sentiu essa aprovação como uma grande vitória para ele. Seu primeiro
local de trabalho foi a Câmara dos Vereadores, para onde foi lotado em 2007. Em
2008, ano de eleições municipais, seu Zé Luiz resolveu participar da campanha de um
dos candidatos, um homem que acabou perdendo o pleito. O pessoal da Câmara não
aprovou o envolvimento dele com o candidato derrotado, que tinha uma rixa com o
prefeito eleito. Transferiram-no ao Caps, para trabalhar na administração do centro.
Foi um tipo de punição, mas teve o efeito contrário:

-- Foi a melhor coisa que eles fizeram na vida, porque eu adorei. Eu trabalho
aqui, porque gosto, senão já tinha pedido para ir para outro local.

Apesar de ter sido transferido para o órgão para se ocupar da administração,


seu Zé Luiz logo percebeu que não havia motorista fixo para a kombi. Resolveu propor
para a prefeitura o pagamento de hora extra, durante o período da tarde, para que
ficasse responsável pelo transporte dos pacientes e da equipe. E é assim que seu Zé
Luiz passa seus dias a transitar por todas as ruas e becos de Tucuruí na kombi Doido
é Tu.

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Abaixo: seu Zé Luiz conduz pacientes do Caps na kombi Doido é Tu para uma apresentação de festa junina
em uma escola municipal. Crédito: Alice Arida

Toda semana, ele faz algumas paradas no Regional. Para o hospital, vai
quando os pacientes estão em surto e precisam ser internados -- uma tarefa que exige
cautela. Em geral, ele sai do Caps com uma equipe -- um enfermeiro e uma técnica de
enfermagem -- em direção

à casa da pessoa. O grupo jamais faz uso da força. Buscam convencer na conversa –
um processo que pode durar horas, mas é bem-sucedido na maioria dos casos.
Quando a situação é mais grave, eles chamam o Corpo de Bombeiros. Estes
tampouco usam da força, mas seguem um protocolo. Antes de entrar na casa, por
exemplo, perguntam se o paciente está ou não com objetos cortantes. Só depois de
cumprir todo um roteiro estabelecido é que entram no imóvel para buscar a pessoa.
Mesmo assim, às vezes há falhas. Por causa delas, seu Zé Luiz já chegou a correr
risco de morte durante o transporte de um paciente:

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-- Da última vez que fomos com os bombeiros, havia dois casos na mesma
hora. O rapaz que fomos buscar havia sido internado no manicômio de Imperatriz, no
Maranhão. Como acabou o manicômio lá, a irmã trouxe para a mãe, e a mãe não
sabia nem como cuidar. Ele pegava era pedaço da perna dele e comia, arrancava os
cabelos e comia, e a mulher agoniada e com medo... A gente foi para lá. Chegamos lá,
conseguimos convencer, e os bombeiros, por segurança, amarraram ele e colocaram
na kombi. Aí a gente foi para a outra paciente. Ela tava toda suja, enlameada e tava
surtada, tinha quebrado o quarto todinho dela, derrubado geladeira, fogão, tava tudo
no chão... Os bombeiros conseguiram jogar uma água nela para tirar um pouco da
lama, colocaram ela na viatura e a gente foi. Quando chegamos ao Regional, eu
estava com o rapaz, e a viatura dos bombeiros, com a mulher. Quando abri a porta da
kombi, o cara tava soltinho. Se fosse perigoso demais, ele tinha me atacado. Eles
amarraram, mas ele se soltou dentro da kombi. Corri um risco.

Essas e outras histórias compõem o dia a dia de um homem que aprendeu a


valorizar sua casa, sua família, seu trabalho. Entre uma e outra visita domiciliar e uma
ida ao Regional para uma internação, seu Zé Luiz constrói os significados de sua
existência:

-- Tem uns que, quando vou buscar em casa, eu fico vendo onde mora, a cama
onde vai dormir, o que vai jantar, ou será que vai jantar? Então, a gente começa a
analisar, a vida da gente é boa e às vezes a gente reclama, né? Tem gente que come
aqui ou lancha e vai para a rua, porque não tem onde dormir. Não tem casa. Eu
penso, poxa, a gente consegue pegar a pessoa, trazer, dar banho, botar uma roupa,
levar para o hospital, aí em quatro dias dá alta e vai para a rua de novo, não tem onde
ficar. Isso que é cruel. Me corta o coração. Como essa pessoa vai mudar?

Tal contexto em relação aos pacientes se encaixa com o da instituição, o


próprio Caps. Quase vinte anos depois de sua fundação, a falta de apoio político de
diversas gestões municipais transformou uma casa rica em vivências em um lugar um
tanto estagnado. Desde que foi transferido para lá, há sete anos, seu Zé Luiz não viu o
local ser pintado; as cadeiras de macarrão, antes abundantes no Caps, hoje são
minguadas; o computador e a impressora são emprestados; eles já chegaram a
receber blocos de papel da gestão anterior com a recomendação de usarem o verso, a
fim de aproveitar a folha; a kombi está rodando sem estepe, enquanto seu Zé Luiz
aguarda pacientemente a gestão autorizar a compra de um novo pneu; não há
material para as atividades dos pacientes; e a equipe, apesar da boa vontade, também
se cansa de tirar dinheiro do próprio bolso para ajudar o órgão a funcionar.

179
Quando vai haver apresentação ou desfile por ocasião de uma data
comemorativa, eles já conhecem as barreiras a serem enfrentadas para solicitar as
roupas para o evento. Marília Mousinho, na época em que era coordenadora do Caps,
chegou a pagar a uma costureira pelos vestidos e camisetas que os pacientes usaram
em uma apresentação de quadrilha de festa junina. Ela recebeu o reembolso da
prefeitura depois de quase um ano.

Na cozinha, a equipe do Caps se reveza. Há merendeiras nos períodos da


manhã e tarde, mas nem sempre elas podem ir. Durante nossa estadia, uma delas
estava doente. Os outros funcionários tiveram de fazer uma escala para designar
quem iria preparar as refeições em cada dia da semana. Todos assumiram o
compromisso:

-- Isso é gostar do que a gente faz -- traduz seu Zé Luiz.

Tendas no mercado municipal de Tucuruí, que fica perto do Caps e por onde transitam muitos pacientes da
casa de saúde. Crédito: Alice Arida

Há sobreviventes no Caps. Funcionários que passaram por duros períodos de


politicagem dentro do órgão e conseguiram permanecer em seus cargos. Outros, não.
É o caso da enfermeira Carmen Lúcia e também de Melanie Cristina Odorício,
psicóloga de 46 anos. Paulista de Pereira Barreto, Melanie chegou a Tucuruí
acompanhada dos três filhos para morar na mesma cidade do pai, um funcionário da

180
Eletronorte. Ela havia acabado de passar por um divórcio e foi buscar carinho e
conforto nos braços paternos. Terminou por encontrar, além desse afago, um trabalho
que a marcou para o resto da vida.

Em Tucuruí, ela foi apresentada a Geraldo por conta de sua área de atuação,
voltada a terapias alternativas. Nessa época, ainda não era graduada em Psicologia.
Tinha formação em Sociologia, mas trabalhava com algo bem distinto. Sua grande
marca, contudo, era que trabalhava por amor. E este traço Geraldo logo percebeu
nela.

-- Ele gostou do meu currículo e me falou muito sobre a história dele e os


sonhos dele em relação à saúde mental -- conta ela, rememorando a primeira vez em
que conversou com o médico. -- Eu lembro que ele me disse, eu te dou carta branca
para você fazer o que você sabe aqui dentro. E eu fiquei surpresa, porque ele não me
deu uma direção específica. Ele me deu toda essa força, de “vai e faz” e, como eu
gosto muito de desafios, eu fui. Comecei a caminhar, a aprender... Eu não sou
medrosa, o que eu não tinha certeza eu perguntava para o Geraldo, ele me dava as
coordenadas, o que podia fazer, o que não podia, e eu ia assim, com tudo, e deu
muito certo. Foi algo que me realizou muito.

Melanie passou a coordenar dois grupos que aconteciam pela manhã no Caps:
o grupo de musicoterapia e o de autoconhecimento. No início, havia muita resistência
dos pacientes para com ela. A psicóloga atribui este distanciamento ao fato de ela ser
“de fora”. Mesmo sendo forasteira, contudo, ela era determinada. E estava lá por
amor. Enfrentou a resistência com aceitação. Não dos outros em relação a ela, mas
dela em relação aos outros:

-- Eu passei a aceitar as pessoas como elas estavam, como elas eram.

Deu certo. Se antes seus grupos reuniam no máximo cinco pessoas, em pouco
tempo Melanie abarcava trinta, quarenta participantes em suas atividades
terapêuticas. Caiu no gosto de todos os pacientes e seus familiares, graças a um
processo de aceitação que não foi fácil, como ela mesma conta:

-- Na época, os nossos pacientes chegavam pela manhã sem tomar banho,


descuidados, e abriam os braços... Chegando assim, com o braço naquele portão, e
abriam um sorriso e iam te abraçar... Umas duas vezes eu olhei para trás e era comigo
mesmo esse abraço, eu falei, meu deus. Assim, sujo, sem tomar banho, com aquele
cheiro muito ruim, e eu aprendi muito ali. Eu me entreguei para esses abraços. Depois,
fui junto com a equipe levando uma ideia de que a gente precisava ensinar a questão

181
do autocuidado, e foi tudo muito natural… Eu aprendi a amar aquelas pessoas, e fui
amada, então foi muito lindo.

Durante os anos em que permaneceu no Caps, Melanie viu seu trabalho ser
bastante valorizado por Geraldo. Porque ela era obstinada e, em certas ocasiões, foi o
braço direito do psiquiatra. Por isso, quando seu posto foi ameaçado, Geraldo brigou
por ela. Corria o ano de 2001, e uma nova gestão assumira a prefeitura de Tucuruí. O
Caps, que até então usufruía de apoio político, conheceu o descaso do governo local
empossado. E conheceu a falta de mantimentos, a falta de material, a falta de pessoal
-- o que, como consequência, levou ao declínio das atividades e dos grupos
terapêuticos. A equipe passou a tirar dinheiro do próprio bolso para comprar alimentos
para as refeições do dia, para comprar material, para dar o suporte que podiam aos
pacientes. Alguns funcionários não resistiram à politicagem e foram tirados de seus
cargos. Outros, como Melanie -- que era contratada, e não concursada --, optaram por
sair. Ela resolveu fazer as malas e mudou-se mais uma vez, desta feita para Foz do
Iguaçu, no Paraná, onde a filha mais velha e a mãe moravam. Os outros dois filhos a
acompanharam.

Hoje, o que resta do Caps de Tucuruí para Melanie são as lembranças e os


aprendizados, que garante levar para a vida inteira. Esta vivência no sul do Pará
influenciou todas as outras que vieram depois. E o traço mais marcante de todas elas
é o amor. Porque o amor sempre foi o pilar de seu trabalho. E, segundo ela, foi
também o pilar do trabalho de todos os seus colegas de Caps de Tucuruí:

-- O que eu achava mais incrível era que 90% das pessoas da equipe se
importava com quem estava ali dentro, paciente ou familiar. Por isso eu digo, é um
trabalho que tem a ver com amor. Você pode ser um excelente profissional, mas, se
não tiver amor pela causa que você está defendendo, o resultado é outro. Eu penso
que tudo o que foi feito lá, é porque a maior parte da equipe tinha amor pela causa. E
eu acredito que o amor por uma causa, seja ela qual for, faz toda diferença.

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Virando a esquina do mercado municipal, avista-se o Caps de Tucuruí. Crédito: Alice Arida

...

Não há dúvidas de que os funcionários do Caps gostam do que fazem, e fazem


por amor. Entretanto, eles acabam assumindo muitas tarefas por conta do descaso
das gestões públicas. Durante minha conversa com seu Zé Luiz, em uma sala do
Caps, perguntei a ele se, no município, havia programas do Ministério da Saúde como
o De Volta Para Casa, que prevê o repasse de uma quantia mensal a egressos de
hospitais psiquiátricos, para auxiliar em sua reinserção no meio social. Ele me disse
que não.

O Programa De Volta Para Casa foi criado em 2003 e, em 2015, abarcou 4.374
pessoas em 270 municípios, com um gasto de R$ 12,5 milhões entre janeiro e julho.
Nenhuma delas na região de Tucuruí, segundo me confirmou o Ministério da Saúde.

Outra iniciativa que não viu seus dias em Tucuruí foi o da cooperativa social
para geração de renda aos pacientes do Caps e seus familiares. Existe uma linha de

183
financiamento do Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério do Trabalho e
Emprego, para a criação de uma associação desse tipo. Mas ninguém em Tucuruí
batalhou o suficiente para que a cooperativa fosse uma realidade no município da
Saúde Mental Perambulante.

Este é um dos grandes arrependimentos de Geraldo. E não foi o único.

...

Visito a casa de Geraldo em uma tarde ensolarada de domingo. Estamos lá


para recolher mais material para a realização deste livro. Ele retira de um armário na
sala uma pilha enorme de papéis -- livros, certificados, documentos, recortes de
jornais e revistas, tudo relativo ao seu trabalho. Do meio da papelada, ele separa
algumas folhas grampeadas. E me mostra. Era um projeto que escreveu em 1997 para
a realização de um Caps Fluvial no rio Tocantins -- uma ideia dele, que ele tentou
implementar na mesma época em que inaugurou o Caps de Tucuruí.

De acordo com o psiquiatra, neste projeto, a sigla Caps significaria Centro


Amazônico de Proteção Social -- e não Centro de Atenção Psicossocial. O médico
caboclo imaginava um centro que funcionaria em uma barca e que percorreria várias
comunidades ao longo do rio Tocantins -- aldeias indígenas, vilarejos quilombolas,
localidades ribeirinhas, enfim, todo tipo de povoação que compõe a paisagem
amazônica.

Esta barca funcionaria como uma aldeia, com várias ocas. Cada oca receberia
um tipo de terapia ou grupo terapêutico -- entre elas, a equoterapia, isto é, a terapia
com cavalos, um sonho que Geraldo quis levar também para o Caps de Tucuruí, sem
sucesso. Haveria uma farmácia viva na barca, ou aldeia -- plantas medicinais da
região utilizadas não só para a cura das pessoas, mas também para valorizar o saber
milenar e o sabor amazônico.

Geraldo queria atender, nesse Caps, pacientes com transtornos psiquiátricos e


pessoas nas mais variadas situações de risco: vítimas de escalpelamento por acidente
em barco a motor, dependentes químicos e crianças e adolescentes filhos de pais
alcoólatras.

O médico conta que lutou, lutou, lutou, para ver este sonho virar realidade.

184
Bateu na porta de autoridades de todas as esferas -- municipal, estadual e federal --
com o projeto nas mãos. Foram anos de batalha.

Naquela tarde, é com amargura que Geraldo me anuncia que o Caps Fluvial,
talvez seu projeto mais audacioso -- e aquele que, segundo ele, mais respeitaria a
singularidade amazônica --, nunca saiu do papel.

185
11.

“Leseira é um abestamento momentâneo que acomete ao leso.


Temos, na Amazônia, algumas expressões derivadas:

‘deixa de ser leso’, ‘para de leseira’.

A leseira baré ocorre entre os amazonenses devido ao sol muito


quente, que queima alguns neurônios. Dizem que todo amazonense
tem seus

três minutos de leseira por dia.

A leseira itinerante nada mais é do que se fingir de leso por


algumas horas (dias) e percorrer os municípios do sul e sudeste do
Pará e falar de saúde mental, do preconceito contra a loucura,
sensibilizando desde o prefeito até o menos graduado servidor
público do município, através de treinamento e manifestações em
praça pública, usando o teatro como ferramenta.”

Geraldo Sales

186
-- Agora eu vou voar -- sentenciou Geraldo em voz alta.

O médico estava parado em frente à porta de entrada do Caps, e tinha


acabado de discutir com outros profissionais da instituição em suas dependências.
Estava desiludido com o rumo tomado pelo centro de saúde. Acreditava que, devido à
influência de uma gestão pública desinteressada e à presença de certos funcionários,
a política de saúde mental pela qual tanto tinha lutado -- entre os anos de 1995 e 2000
-- havia se transformado em politicagem dentro do órgão a partir de 2001, quando
mudou a gestão municipal. E ele decidiu que, se antes ele havia colocado rodinhas
nos pés e caminhado por toda Tucuruí e arredores, naquele momento iria pôr asas
nos braços e viajar por toda a Amazônia.

Pouco antes, o psiquiatra caboclo havia recebido um convite do governo


federal. O Ministério da Saúde, então comandado por José Serra, estava implantando
o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. O objetivo do
programa, na época apenas um projeto-piloto, era melhorar o atendimento e a relação
entre profissionais da saúde e usuários do SUS. Geraldo foi convidado para fazer
parte da primeira equipe de construção do PNHAH, criado em 2001. Ficou
encarregado de coordenar toda a região Norte do país. Resolveu deixar o Caps de
Tucuruí e a Ala Psicossocial do HRT em segundo plano e ir atrás de novas realidades
amazônicas. Passou a viver em hotéis e aviões. Conheceu todas as capitais nortistas
e consumiu tempo e energia para implantar, em alguns hospitais públicos da região,
as mudanças na assistência da saúde previstas pelo programa. Entre elas, estavam a
alta compartilhada, na qual o paciente só recebe alta se ela for dada por toda a equipe
multidisciplinar que o atende; a visita aberta, em que os familiares não precisam seguir
regras rígidas e estritas para visitação; o prontuário eletrônico; e a criação de um
grupo de discussão sobre humanização.

187
À esquerda, Geraldo participa de uma reunião da PNH, em Brasília. À direita, o então ministro da Saúde, o
psiquiatra Humberto Costa (centro), discursa em Brasília sobre a PNH. Crédito das fotos: Arquivo pessoal

Jornal O Liberal, em sua edição de 20 de outubro de 2001, destaca atuação de Geraldo no PNHAH. Crédito: Arquivo
pessoal

188
A partir de 2003, com a mudança de governo, o programa virou política -- a
PNH, Política Nacional de Humanização, agora comandada por Humberto Costa,
então ministro da Saúde no primeiro governo Lula. Geraldo trabalharia ainda mais dois
anos como coordenador da região Norte da política que ficou conhecida como
Humaniza SUS. Em 2005, depois de muitas viagens, reuniões e dedicação, pediu para
sair:

-- Realmente, foi um desgaste muito grande. Teve uma hora que eu não
aguentei. E tinha uma coisa me esperando de volta no Pará, que era a saúde mental.

O psiquiatra havia passado cinco anos de sua vida afastado de seus filhos não
biológicos, como ele define o Caps de Tucuruí e a Ala Psicossocial do HRT. Voltou a
atender seus pacientes com a determinação de quem busca e encontra em seu
trabalho uma fonte inesgotável de coragem, sabedoria e vigor.

Em uma de suas consultas, Geraldo reencontrou uma família da zona rural de


Breu Branco, a 25 quilômetros de Tucuruí. O pai era produtor de arroz e era o único da
família que não apresentava transtorno mental. A mãe e os dois meninos eram
portadores de esquizofrenia e já se tratavam há um tempo em Tucuruí. Geraldo estava
acostumado a receber os quatro para atendimento conjunto. Por isso estranhou,
naquela tarde, ao ver apenas o pai e um dos filhos entrar pela porta da sala onde os
esperava.

-- Cadê a sua esposa e seu outro filho? -- perguntou o psiquiatra.

-- Não é, doutor, é que só deu para comprar duas passagens de ônibus com o
dinheiro da safra de arroz desse mês -- explicou o agricultor.

Como num lampejo, uma ideia passou pela mente do médico, que já estava
cansado de ver seus pacientes se deslocarem por conta própria, e muitas vezes sem
nenhum recurso, para conseguir uma consulta médica. Ele, então, resolveu anunciar
seus pensamentos em voz alta:

-- Pois o senhor não vai mais precisar vender arroz para pagar a passagem de
ônibus. A partir de hoje, eu vou aonde o senhor estiver.

Nesse dia, Geraldo saiu do Caps de Tucuruí em direção ao sul do Pará. E,


nesse dia, ele tornou-se o psiquiatra de 15 mil pacientes -- 7 mil cadastrados em
Tucuruí e outros 8 mil espalhados pelo sul do estado.

189
As primeiras cidades para as quais se direcionou foram Goianésia do Pará e
Jacundá, a 90 e 160 quilômetros de Tucuruí, respectivamente. Um trajeto de uma hora
e meia de carro, feito todas as sextas-feiras e sábados pelo médico.

Desde que havia chegado a Tucuruí, Geraldo já realizava uma intensa troca
com esses municípios, que são próximos da cidade da hidrelétrica. Muitos moradores
e profissionais de saúde de Goianésia e de Jacundá iam a Tucuruí para vivenciar o dia
a dia do Caps. E Geraldo também deslocava-se pela estrada para prestar atendimento
nessas localidades. Os laços foram se estreitando e, em 2005, o psiquiatra foi peça
fundamental na criação e reformulação dos Caps desses municípios. Esta primeira
experiência abriu as portas para muitas outras que se seguiram. E Geraldo entendeu
que havia passado para outra etapa de seu trabalho: agora, ele realizava o que
chamava de “matriciamento comunitário” para criação de Caps e formação de equipes
de saúde mental em municípios do sul do Pará. O matriciamento comunitário -- termo
criado por ele -- era, em suma, apoio, orientação e atendimento por parte do médico
para os Caps e as equipes de saúde mental nessas cidades. Todas elas estão
situadas abaixo de Tucuruí: são Breu Branco, Jacundá, Goianésia do Pará,
Parauapebas, Canaã dos Carajás, Xinguara, Tucumã, Ourilândia do Norte, Rio Maria,
Redenção e Conceição do Araguaia.

O poeta chamou esta nova vivência de Leseira Itinerante.

A Leseira Itinerante começou muito antes, em 1996, quando Geraldo resolveu


percorrer as estradas do sul do Pará ao lado da equipe de saúde mental da Sespa
(Secretaria de Saúde do Estado do Pará) para dar treinamento sobre o assunto em
municípios como Marabá e Conceição do Araguaia. Para Geraldo, a Leseira Itinerante
nada mais era do que se fingir de leso por algumas horas -- ou dias -- e percorrer
essas cidades para falar de saúde mental e do preconceito contra a loucura.

Mas o termo “leseira” não foi escolhido por ele de forma aleatória. Ele foi
emprestado. Geraldo inspirou-se no escritor amazonense Márcio Souza, que cunhou
no imaginário amazônico a expressão “leseira baré”. Nas palavras deste autor
manauara, a palavra leseira ganha um significado bem diferente do que estamos
acostumados:

190
“É possível dizer que a população amazônica encontrou um estilo para resistir,
uma maneira de enfrentar a voracidade de tantos projetos e até mesmo para
sobreviver às elites regionais. Esse estilo, que é uma demonstração de superioridade
cultural, pode ser chamado de leseira.

Nos dicionários, ser leso quer dizer ser tolo, molenga e preguiçoso. Ainda não
há registro da nova acepção do termo, que é também um conceito filosófico-
existencial. Mas já há leseiras plenamente identificadas, como a leseira baré, que é a
leseira amazonense, mas especificamente de Manaus, daí o baré. Ou a leseira
marajoara, que é essencialmente paraense. No futuro muitas outras leseiras serão
identificadas, demonstrando a sofisticação de seu processo inventivo.

Mas o que é leseira? Como identificar tal estilo de resistência? Quando um


nativo da Amazônia se olha no espelho, vê lá no fundo de seus olhos um sinal de que
não foi feito para obedecer certas leis, especialmente econômicas. Por isso, a leseira é
algo elusiva, pode ser uma forma aguda de esnobismo ou uma ironia. Ela é às vezes
pacífica, outras vezes ostensiva, mas nunca rápida demais a ponto de ferir o ritmo de
banzeiro, que é o ritmo regional.

[...] a leseira é uma prática existencial poderosa e foi a única arma que se
mostrou eficaz para impedir que muitos projetos da ditadura militar fossem totalmente
implantados, que ainda vai livrar a região de tanta solidariedade não solicitada, pois há
uma exata medida de leseira em todos os escalões, em todas as classes sociais, em
todas as almas.” (Souza, 2009, p. 230-231)

Pois que comece de vez a Leseira Itinerante.

191
Geraldo e eu, rumo ao sul do Pará. Crédito: Alice Arida

Descemos de carro o mapa do Brasil pela PA-150, que vai até Marabá, a
cidade mais importante da região. Passamos por Goianésia do Pará e Jacundá, onde
Geraldo não mais presta matriciamento comunitário. Há mais de sete anos ele não
frequenta o Caps de Jacundá. Por isso, durante nosso percurso, resolvemos parar no
município para conhecer -- ou reconhecer -- o Caps. Estamos Alice, Geraldo e eu. O
psiquiatra entra no centro apresentando-se e dizendo que, há muitos anos, realizou
matriciamento comunitário ali. Pergunta por algumas pessoas que atuaram com ele
naquela época, mas nenhum dos funcionários presentes sabe ao certo onde elas
estão.

À primeira vista, o Caps de Jacundá parece um lugar aconchegante. É arejado,


colorido, tem boa estrutura. No entanto, como ficamos no máximo quinze minutos na
casa, não foi possível descobrir se seu funcionamento é bom. Só sei que, no tempo da

192
nossa visita, não vi pacientes circulando pelo órgão. Era uma sexta-feira -- o que pode
explicar esta ausência, pois, na maioria dos Caps onde Geraldo prestou matriciamento
comunitário, as sextas-feiras eram dia de visita domiciliar ou reunião entre a equipe.

Retornamos para o carro e seguimos até Marabá por uma estrada considerada
regular pela Confederação Nacional do Transporte (CNT). Fazemos uma pequena
parada na cidade para almoçar e seguimos por outra estrada, a BR-155, até Xinguara,
500 quilômetros ao sul de Tucuruí. O trajeto de 250 quilômetros entre Marabá e
Xinguara, um trajeto que poderia ser feito em duas horas e meia, é feito, normalmente,
em cinco horas ou mais. Sob todos os aspectos, a BR-155 é considerada péssima
pela CNT. Há trechos de terra e trechos em que os buracos, enormes, tomam toda a
rodovia. Não há sinalização. E, se a intenção do viajante é conhecer a floresta
fechada, ficará frustrado. Estamos na região mais desmatada da Amazônia, o sudeste
do Pará. Um desmatamento que começou no século passado, durante o ciclo da
castanha e do diamante, e atingiu seu auge neste século, com a abertura de pastos
para fazendas de gado. Passamos por várias ao longo de nosso tortuoso percurso
pela BR-155 -- algumas, inclusive, bem conhecidas, pertencentes a políticos.

Paisagem do sul do Pará, a região mais desmatada da Amazônia, onde abundam enormes fazendas de gado. Crédito:
Alice Arida

No meio de nosso trajeto, paramos novamente. Desta vez, saímos do carro


para conhecer o memorial ao massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de
abril de 1996, quando 19 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (MST) foram mortos pela Polícia Militar do Pará, durante o governo de Almir
Gabriel -- o mesmo médico e governador que auxiliou na fundação do Caps de
Tucuruí. Neste dia fatídico, os sem-terra protestavam contra a demora na

193
desapropriação das terras da fazenda Macaxeira, conhecido castanhal nos anos 1950,
1960 e 1970. Até hoje, nenhum policial ou jagunço foi indiciado pela ação. E, até hoje,
os latifúndios -- antes grandes castanhais, hoje enormes fazendas de gado -- ocupam
a maior parte da região.

O memorial ao massacre encontra-se na margem da BR-155, em um ponto


conhecido como Curva do S, perto do município de Eldorado dos Carajás. Panos
rasgados, muitas cruzes, uma placa quase escondida e troncos de castanheiras
queimadas – eram 19 árvores, mas algumas já foram cortadas – tentam reacender
uma memória nacional que só não foi completamente esquecida porque o MST, todo
mês de abril, relembra seus mortos.

Memorial ao massacre de Eldorado dos Carajás. Crédito: Alice Arida

Seguimos caminho. Ao final de um dia inteiro de viagem, depois de quase dez


horas de carro -- com muito enjoo da minha parte --, chegamos, finalmente, a
Xinguara. A “capital do boi gordo”, como diz a placa de boas-vindas.

194
É de se imaginar que a maior parte dos moradores da cidade -- e da região --
não seja paraense. São fazendeiros do sul e do centro-oeste do país que povoam
essas clareiras. Gente de fora que foi para o sul do Pará atraída por uma imensidão de
terra a ocupar, nem sempre de forma legal, mas sempre a um custo muito mais baixo
do que conseguiriam em suas terras natais.

As diferenças culturais estão presentes até na culinária. Se, em Belém, o povo


se orgulha de comer muito jambu, tucupi, tacacá e tucunaré, descendo o mapa do
Brasil a partir de Goianésia só se vê churrascarias. Em Xinguara, não há jambu. Nem
peixes. Muito menos tucupi. Nos restaurantes, o menu tem como base a carne bovina
-- e os frequentadores degustam os pratos vestindo chapéus de abas largas,
camisetas xadrezes, calças jeans justas, cintos com grandes fivelas e botas pontudas
de couro.

Desde 2008, Geraldo presta matriciamento comunitário em Xinguara. Ele vai


uma vez por mês para este município de 40 mil habitantes, cortado pela BR-155 e
povoado de casas humildes e ruas de terra, de um lado, e ricas fazendas de gado com
helipontos, de outro. Quando o médico chegou a este rincão do país, o Caps de lá já
existia. O centro fora criado em 2006, mas funcionava com um viés psiquiátrico
ortodoxo e era muito dependente de uma clínica de internação em Araguaína,
município de 165 mil habitantes no norte de Tocantins e o maior centro urbano da
região. Araguaína supria a demanda psiquiátrica da maioria dos municípios do sudeste
paraense, onde a cultura da internação era bastante arraigada. Os pacientes -- muitos
dos quais nem tinham transtornos psiquiátricos, apenas apresentavam crises
momentâneas -- eram encaminhados para a clínica São Francisco. Esta funcionava
como manicômio tradicional, com quartos abarrotados de pessoas nuas, alimentando-
se de fezes e vivendo de maneira degradante. Hoje, este hospício não existe mais.
Mas, na época em que Geraldo chegou para prestar matriciamento comunitário na
região, ainda era intenso o tráfego de “ambulâncias” -- na verdade, kombis -- que
faziam o trajeto entre Pará e Tocantins pelas precárias estradas locais, a fim de
internar pessoas que logo virariam gado, a exemplo das centenas de fazendas do
entorno.

Esse tráfego humano desapareceu a partir do momento em que Geraldo


começou a prestar matriciamento comunitário em Xinguara e em outros municípios do
sudeste paraense. E o psiquiatra ainda teve de ouvir reclamação. Chocolate, um dos
motoristas das kombis que realizavam o trajeto quase diário, queixou-se ao médico,
em tom meio sério, meio gozador:

195
-- Pô, doutor, o senhor deixou a gente sem trabalho.

Mas Geraldo não estava para queixas, nem provocações. Seguiu em frente:
eram muitas as mudanças a serem implementadas. Do Caps de Xinguara, o psiquiatra
reformulou todo o funcionamento. Conseguiu reunir uma equipe multidisciplinar de
saúde mental interessada e ensinou a todos a técnica do acolhimento. O acolhimento
é uma atividade que acontece em roda e geralmente é a primeira do Caps. Nela, todos
os funcionários se reúnem com todos os pacientes em um grande círculo. Todos
batem palmas, dão boas-vindas, cantam as músicas da terapia em grupo. O
funcionário que está conduzindo o acolhimento diz algumas palavras -- de amor, de
amparo, de bem-estar. Depois de uma hora, a roda se desfaz e os pacientes são
encaminhados para consultas, oficinas ou grupos terapêuticos.

O acolhimento é uma boa oportunidade para os profissionais do Caps


observarem os pacientes e perceberem quem está bem naquele dia e quem não está.
Geraldo ensinou todos os funcionários do Caps de Xinguara a conduzir esta atividade.
Ele também falou sobre a importância da integração com a família e a comunidade no
tratamento à pessoa com transtorno mental, e realizou debates e reuniões para
orientar sobre abordagem do paciente durante as crises. Esses encontros foram feitos
pelo médico não só no Caps, mas em outras unidades de saúde do município -- como
a UPA (Unidade de Pronto Atendimento), que havia acabado de ser inaugurada
quando visitamos Xinguara.

Outro traço do psiquiatra que surpreendeu os funcionários do Caps de


Xinguara foi o fato de ele realizar consultas coletivas. Geraldo sempre entrava no
consultório junto com uma enfermeira, psicóloga ou assistente social -- geralmente,
quem coordenava o Caps --, enquanto o paciente ia acompanhado de um familiar ou
amigo -- ou até mais de um, conforme a situação. Ele fazia isto por segurança e
também para compensar sua ausência nos outros 28 dias do mês -- afinal, eram as
enfermeiras, psicólogas, assistentes sociais e ténicas de enfermagem que conviviam
dia a dia com os pacientes.

Dona Cida, 57 anos, portadora de transtorno bipolar, usufruiu com alegria


destas consultas coletivas no Caps de Xinguara. Quem a acompanhava eram o filho e
a nora. E foi na humilde casa do Caps que Maria Aparecida Slompo Rodrigues
encontrou o seu segundo lar.

196
O Caps de Xinguara. Crédito: Alice Arida

...

197
Ela veio de longe, muito longe. Nasceu no sul do país, mas seu coração
acabou por pertencer ao norte -- ao sol do norte. Dona Cida é de Campo Mourão, no
Paraná, mas mora desde 1981 em Xinguara. E não pensa mais em empreender o
caminho inverso:

-- Fabiana, eu vou te falar uma coisa com sinceridade -- começa ela, expondo
um de seus traços marcantes, o de chamar as pessoas pelo nome. -- Gosto muito da
minha terra, é claro, não gosto nem que comente mal do meu estado do Paraná, mas
se fosse para eu ir embora de Xinguara... Eu amo Xinguara, gosto muito daqui, já
moro aqui há trinta e quatro anos, mas, se um dia fosse para eu ir embora de
Xinguara, eu acho que eu não voltaria para o sul. Só por causa do frio -- ela ri. -- Que
eu acho que eu não acostumo mais com o clima frio. Eu acho que eu iria era mais
para o norte brasileiro.

Dona Cida chegou em Xinguara quando Xinguara nem Xinguara era. Os


primeiros habitantes povoaram o lugar, encravado entre os rios Xingu e Araguaia -- daí
o nome da cidade --, em 1976. Seis anos depois, em 1982, Xinguara ganhou status de
município. Nessa época, dona Cida já morava nesse rincão do país. Ela subiu o mapa
do Brasil em uma viagem de vários dias para acompanhar a mãe e o pai, que
resolvera abrir uma serraria em uma região “nova”, que prometia grandes
oportunidades. Nesse tempo, a estrada de Campo Mourão até Guaraí, no norte do
Tocantins, era de asfalto. O restante dona Cida conta:

-- De Guaraí para Xinguara era só terra. Tinha dia de eles rodarem seis
quilômetros das seis da manhã até as seis da tarde. Era atoleiro em cima de atoleiro.
Então, eles levaram um período de treze dias para vir de Guaraí a Xinguara, um total
de trezentos e sessenta quilômetros. Aí, quando estavam se aproximando de
Xinguara, a minha mãe dizia que meu pai falava, olha Xinguara, estamos chegando
em Xinguara. Eram aquelas luzezinhas de vela, lamparina de óleo diesel. Aí, quando
minha mãe chegou na entrada aqui, que era o entroncamento do Xingu que se
chamava na época, existia só um posto de gasolina, que era o posto Comaxim. Eles
armaram rede, porque chegaram à noite.

Por seis meses, a mãe de dona Cida dormiu em uma barraca, dessas de
camping, enquanto o marido construía a casa de madeira onde passariam o resto de
suas vidas. No ano seguinte, os dois receberam a filha, então com 22 anos e já viúva -
- dona Cida perdeu o marido em 1981, em um acidente de moto. Foi para o sul do

198
Pará com o filho de 3 anos e o irmão, deficiente visual. Lá, passaram treze anos
tranquilos, até que ela apresentou sua primeira crise. E, então, os tempos difíceis
começaram.

Interrompo a história de dona Cida e pergunto como ela se sente nesses


momentos. Ela faz uma longa pausa e fica com olhar distante, como se preferisse não
lembrar, ou não guardar em seu coração este tipo de lembrança. Mas segue em
frente:

-- Fabiana, eu não me lembro. Quando eu estou em crise, eu não lembro o que


eu faço, entendeu? Eu só não fico agressiva. Eu cheguei a ficar agressiva na segunda
crise. Não de bater nos outros, mas eu quebrei vidro de casa, trinco de porta. Porque
meu filho e minha mãe, eles eram obrigados a fechar a porta do quarto. O muro da
minha casa é chamuscado, e eu não pegava banco, não pegava nada para subir, para
poder pular o muro. Eu ia me arrastando assim, com as pernas e os braços, não sei de
que jeito. Eles contam, porque eu não lembro. Para pular o muro, porque eu queria ir
para a rua, eu queria ir para a rua. Eu pegava a Bíblia, punha embaixo do braço e
queria ir para a rua. Meu filho chegou a me pegar duas e meia da madrugada, no setor
onde eu moro, de camisola, com a Bíblia embaixo do braço, para pregar a palavra de
Deus lá no setor onde eu moro. Eu não lembro, eles que me contam. Sabe, de chegar
ao ponto de eu ligar para a delegacia de polícia. Eles tiveram que esconder celular
meu. Chegou ao ponto de eu ir na Casa Maria do Pará dar parte do meu filho, sabe?
Chegou ao ponto de eu ir no hospital municipal fazer laudo de corpo de delito. Exame
de corpo de delito sem ter marca nenhuma pelo corpo, nada. Contra o meu filho, que
eu queria porque queria que prendessem o meu filho, entendeu? Porque era ele que
saía atrás de mim. Porque, quando me deu essa crise, eu já não tinha pai, e minha
mãe tinha problema de enfisema pulmonar, e meu irmão deficiente visual. Então, era o
meu filho que corria atrás de mim. Ele corria atrás de mim para o meu bem, e eu
achava que ele queria me bater, queria me maltratar, entende? Então, eu não recordo
isso. Eu tomava banho e não usava sabonete, não usava shampoo, eu queria tomar
banho toda hora porque eu estava suja, eu só entrava debaixo do chuveiro, me
molhava e vestia roupa limpa. Esqueci senha de cartão de banco. Já me deu, essa foi
a segunda crise, foi a mais forte que eu tive. A primeira eu não cheguei a internar,
porque eu fiquei no apartamento de uma amiga minha em Goiânia. Ela que ficou, que
foi quando eu fui para um centro neurológico, que foi lá que foi descoberto, que eu
tenho transtorno bipolar. O doutor Geraldo me pegou um pouco nas escuras, porque
até laudo médico do meu transtorno eu rasguei. Rasguei documentos que tinham
valor. Dando faxina dentro de quarto, rasgando coisas que tinham valor, queimando,

199
botando fogo. Sabe, cheguei a botar fogo até em colchão. Então, me deu duas crises
bem pesadas. Agora, a última crise que me deu, ela foi mais passiva. Eu vinha no
Caps, ficava ansiosa, andando para lá e para cá, as meninas me acalmavam,
entravam em contato pelo celular com o doutor Geraldo, o doutor Geraldo mudava o
esquema da medicação. Aí eu achava que não resolvia, porque eu queria que fizesse
efeito o remédio na hora, sabe? Mas agora, graças a Deus, eu estou me sentindo
bem.

Dona Cida. Crédito: Alice Arida

Foi nesta crise, a terceira e última de dona Cida, que ela passou a ter
acompanhamento com Geraldo no Caps de Xinguara. Na primeira, em 1994, ela foi se
tratar em Belém, pois tinha -- e tem, até hoje -- plano de saúde. Comprava os caros
medicamentos que tratam este tipo de doença com desconto, pelo plano. Agendava
consultas com psiquiatra particular. Mesmo assim, depois de alguns anos, optou pelo
Caps e pelo tratamento na rede pública de saúde de seu município. E não pensa mais
em largar. Afeiçoou-se:

-- Eu já sinto saudade, quando eu vou embora, na quinta-feira, aqui do Caps. E


eu penso que só tenho que vir na segunda. Eu sinto saudade da equipe, da família

200
Caps, dos funcionários, dos médicos que atendem aqui, então eu já sinto falta do
carinho que a gente tem aqui também. Eu já me apeguei nos funcionários, pode trocar
de funcionário ou não, mas eu me apeguei com amor mesmo, por causa do
acolhimento amoroso que a gente encontra nesse centro de saúde.

Quando dona Cida conheceu Geraldo, corria o ano de 2011 e ela estava
atravessando seu terceiro surto. Não teve mais crises desde então. Mas este
autocontrole não veio por mágica, nem milagre: é consequência de um grande
esforço, de seu envolvimento com as terapias e o dia a dia do Caps e também de uma
forte consciência em relação aos remédios que tem de tomar, como ela mesma
assegura.

-- Eu não vou mais na conversa dos outros, Fabiana. Para de tomar essa
medicação que você vai se viciar nela, ou você vai ficar dependente dela, ou Jesus te
cura. Eu não caio mais nessa conversa. Eu tenho que ficar ciente que eu não posso
ficar sem medicação. E eu tenho que obedecer o meu médico. Eu tenho que ficar
ciente disso. Deus cura, Jesus já curou pessoas com depressão, com transtorno
também. Mas eu já me conscientizei que eu tenho que tomar remédio para o resto da
minha vida.

Para qualquer pessoa, esta é uma condição difícil de aceitar. Quem aceita,
porém, consegue administrar melhor a doença. É o que percebi em minhas conversas
com pacientes do Caps no sul do Pará. E é o que me confirmou dona Cida:

-- A minha crise, eu sinto que ela me ajuda com a medicação. A medicação é o


principal, para mim. Agora, o que me ajuda bastante também, muito, são as terapias.
Depois que eu passei mesmo a frequentar [o Caps], a não vir atrás só da receita,
como eu fazia antes... Muitas vezes, não era nem eu que vinha atrás da receita, era o
meu filho, porque eu não estava em condições de mim mesma acompanhar o meu
tratamento só. Que hoje meu filho não tem mais condições, e nem minha nora tem
condições, de vir comigo às consultas. Então, eu joguei essa responsabilidade para
mim. Eu tenho que ser responsável, eu tenho que ser consciente. Quem dava as
medicações primeiro, a Dyone [Collares, então coordenadora do Caps de Xinguara]
entregava a medicação na mão do meu filho. Eram o meu filho e a minha nora que me
medicavam, que davam a medicação no horário correto. Porque eu não tinha
condições de eu mesma tomar a minha medicação. Hoje, eu já tenho condições de
tomar a minha medicação sem orientação de ninguém. É claro que com orientação
médica, né. Mas sem orientação de alguma outra pessoa. Eu mesma tomo os meus
medicamentos só. Consegui decorar o nome de cada um. E, hoje, eu também já

201
consigo fazer minhas tarefas de casa. Eu já sei que falta sal na minha cozinha, eu já
sei que falta açúcar, eu já sei que falta café, eu já sei que falta meu sabonete. Então,
eu já sei. Já sei que sou eu que tenho que me virar para ir atrás da minha receita para
eu comprar. Primeiro, era tudo meu filho, a carga era toda em cima do meu filho,
entendeu? Pois é, já estou dando conta de cuidar da minha declaração de Imposto de
Renda, porque através do próprio transtorno eu deixei de declarar, o Leão me pegou.

Reapropriar-se das tarefas do cotidiano foi uma das maiores vitórias de dona
Cida, e ela dá a devida importância a isso. Por outro lado, à medida que a medicação
a ajudava a ficar boa, ela ia recordando os maus momentos pelos quais passou -- as
fortes crises e os episódios de preconceito, numerosos entre as pessoas portadoras
de transtorno mental.

-- Com a medicação fez eu me recordando, as fases anteriores, minha


autoestima foi lá embaixo. Eu mesma me difamei quando eu estava em crise, isso
minhas primas contam. A minha médica de confiança que eu tinha lá em Belém
também me contou, psicóloga que me acompanhou. Eu mesma me difamei, eu
mesma dizia palavras feias para mim mesma. Eu mesma xingava eu mesma. Eu
mesma me depravava, entende? Hoje eu já não tenho mais esse tipo de ação quando
eu entro em crise. Então, eu posso te dizer, sabe, Fabiana, que pelo que eu já passei
de 1994 para cá, eu já posso falar que eu estou bem, que eu estou melhor. E que eu
vou ficar melhor ainda. Já ganhei autocofiança. Já não tenho mais aquele complexo
que eu tinha. Hoje eu já não tenho vergonha de falar que eu tomo remédio controlado.
Antes, eu tinha vergonha de dizer que eu tomava remédio controlado. Aí tem pessoas
que perguntam porque eu tomo remédio controlado. Aí às vezes não tem nem como
você responder, porque a pessoa não te entende, sabe? Eu aprendi a dizer não,
Fabiana. Porque eu não sabia o que era a palavra não. Além dos problemas meus,
que eu não dava conta de resolver, eu queria resolver os problemas dos outros. Lá no
Hospital das Clínicas, onde eu fui internada, no Gaspar Vianna, na capital, eu já tinha
saído da crise, eu não estava tão bem ainda, eu queria ajudar os outros pacientes que
estavam em crise. Então, eu hoje aprendi a falar não pra mim mesma.

Todo este entendimento melhorou até as relações familiares de dona Cida. Ela
conta que aprendeu a delimitar o seu espaço e o espaço do filho, da nora, dos dois
netos e do irmão, que há alguns anos começou a fazer tratamento de hemodiálise em
Redenção, situada 100 quilômetros ao sul de Xinguara. A família acostumou a se
deslocar com certa regularidade ao município, que é maior que Xinguara e oferece
mais tratamentos médicos e medicamentos.

202
Em Xinguara, a oferta nesta área é restrita, e a população sofre com esta
carência. Mas também se habituou: como em tudo no Pará, como em tudo no norte do
Brasil, as pessoas estão habituadas a permanecer invisíveis para o restante do país.
E, à sua forma, resistem.

Dona Cida, porém, não deixa passar em branco. É por isso que, quando
pergunto o que ela gostaria que melhorasse, sua resposta é imediata:

-- Fabiana, eu te falo uma coisa do fundo do meu coração. Eu gostaria que


melhorasse era o Ministério da Saúde enviar com mais frequência medicamentos de
remédio controlado para a Farmácia Municipal. Ou que o Ministério da Saúde enviasse
para a Farmácia Popular do Brasil mais medicações controladas também. Que
entrasse em contato com a rede Caps para não faltar medicamento, porque, ao
mesmo tempo que eu estou tendo condições de comprar medicação, tem uma pessoa
que ganha o salário mínimo que não tem condições de comprar aquela medicação.
Porque os pacientes, são milhares de pacientes com problemas de transtornos
mentais. Que o doutor Geraldo deixou bem explicado, né? O porquê muitas vezes da
depressão, que está sendo uma das doenças que mais está tendo no nosso país, no
mundo todo. Então, que não faltasse, era o que eu mais desejo, é que não falte esse
tipo de medicação. Porque eu já passei por crises terríveis, e eu sei que é muito triste
esse tipo de doença mental. E outra coisa que eu gostaria também, Fabiana, além dos
medicamentos controlados, é que o Ministério da Saúde colocasse assim, atendimento
mais rápido, na rede, tanto estadual como municipal. Porque muitas vezes os médicos
daqui pedem exames para os pacientes do Caps. Quando o resultado do exame sai já
está próximo da outra consulta. Então, talvez o organismo do próprio paciente já tenha
mudado. Porque às vezes demora. Porque a demanda é tanta… Eu fui fazer um
exame de hemograma completo, vou tentar mostrar para o doutor Renaldo [José
Pimenta, então clínico geral do Caps de Xinguara], que ele me solicitou há dois
meses. Foi marcado para eu colher o sangue dia 25 de junho! Como eu ia colher o
material, se eu tinha a consulta antes [a consulta no Caps estava agendada para o dia
12 de junho]? Talvez para mim, que tenho plano de saúde, é fácil. Talvez para mim,
que tenho dinheiro naquele dia, é fácil. E para quem não tem?

Olho para dona Cida e fico sem palavras. A pergunta, retórica, ressoa. E fica
ressoando. Até hoje está ressoando. Ninguém ainda a respondeu.

203
12.
A mulher nua

A nua na rua,
A louca na tua,
Tirando a roupa do outro, humano como eu.
Na rua da doida,
A louca na tua,
Invisível na rua.
Tetas frias e lambuzadas,
Concerto para fotografia,
Solo de clarinetas.
A louca és tu,
Acorrentada em mim,
Olhares proibidos na rua,
Revelando o corpo esquizofrênico,
Entregue ao pudor.
A doida sumiu,
No lixo, trocado por bônus,
Sorrisos irônicos,
Antes do entardecer.

Gersa

204
O maranhense Givaldo Ferreira foi, talvez, quem me deu o depoimento mais
contundente sobre o que é ser um esquizofrênico. Encontrei-o pela primeira vez no
Caps de Xinguara, em uma manhã de sol que começava a esquentar. Ele ouvia
interessado a minha conversa com Maria Aparecida Slompo Rodrigues, na entrada do
Caps, onde há uma grande varanda coberta e onde são realizadas as rodas de
acolhimento e de terapia comunitária. Quando terminei de entrevistá-la, ele quis contar
para mim a sua experiência como portador de transtorno mental. Suas palavras foram
tão precisas e preciosas que, ao reler a entrevista, meses depois, não encontrei meios
de editá-la. Decidi colocá-la aqui por inteiro.

A história de Givaldo não reflete em absoluto a história de outros


esquizofrênicos. Afirmar isto seria um erro. Mas acredito que ela dá uma dimensão do
sofrimento dessas pessoas, o que ajuda na compreensão da doença.

Decidi manter as expressões e a forma particular dele de falar, a exemplo do


que tenho feito com os outros personagens deste livro. Nem sempre o português de
Givaldo segue a norma culta e padronizada. Mas como acredito que existem muitos
Brasis e muitas línguas portuguesas dentro desses vários países, optei por expor a
riqueza dessa linguagem em sua forma mais pura.

Com vocês, Givaldo Ferreira.

Você pode contar um pouco mais da sua história?

Meu nome é Givaldo, tenho 35 anos (em 2013, quando a entrevista foi feita), passei
por uma vida cruel um tempo passado, já melhorei, então vou contar um pouco da
minha história. Eu era um cara normal, tive uma infância boa, brinquei muito, uma
juventude, vinte anos, dezoito anos, muito bom também, tive uma mulher, aí passei

205
um ano e dois meses com ela, nós teve um filho, aí toquei eu mais ela, aí eu cheguei a
separar dessa mulher minha, aí depois que eu separei dela, começou o transtorno
mental na minha cabeça, sabe. Comecei a ficar doente, se passava muita coisa sobre
mim, sabe, tipo coisas, eu ouvia muitas vozes. Às vezes, eu estava deitado e eu ouvia
aquelas vozes, falavam comigo alto mesmo, diziam que iam me proteger, que eu era
uma pessoa forte, que ia ter condição, que não era para eu me preocupar. E aquilo, eu
acordado, ficava ouvindo aquilo, ficava meditando, né. Ficava acordado, assim, mas
aquela voz alta, muito pesada, tipo uma pessoa falava para mim, mas eu olhava para
um lado, olhava para o outro e não via ninguém falando comigo, aí eu falava, com o
meu sentimento, falava com aquela mesma voz, eu falava ‘mas por que eu estou com
esse pensamento’, e aquela voz dizia para mim ‘não, não se preocupa não, estou
contigo, estou para te ajudar’. Mas ela não me falava o nome, não, falava que ia me
ajudar. Aquilo foi se alterando, foi se alterando na minha cabeça, aí eu comecei a ter
pânico das pessoas, comecei a ter medo das pessoas, só ia trabalhar num lugar. As
vozes atrapalham muito, sabe. Eu ia trabalhar... não tenho profissão ainda, não... eu
trabalho em serviços gerais. Aí eu ia trabalhar com as pessoas, eu tinha medo das
pessoas. Aí eu ficava com aquele medo, às vezes a pessoa falava alguma coisa de
mim eu achava que aquela pessoa ia me matar, me enforcar, eu via aquilo na minha
cabeça, sabe, aquela pessoa, tinha tipo uma visão, sabe, eu via aquela pessoa mais
aquele outro me pegava, diz que me algemava assim, me amarrava para trás, me
chicoteava, me batia, botava eu para carregar uma cruz nas costas, sempre ouvia
isso. Aí eu ficava com pânico, aí reagia contra essas pessoas, sabe, para mode a
imaginação reagia contra as pessoas. Aí eu tinha vários constrornos que eles falam,
eu ficava problemático, aí um tempo eu soube da minha cabeça que a minha família
tinha ganhado na Telesena, tinha ganhado... a cabeça falava para mim, a imaginação,
né. Que eles tinham ganhado na Telesena e estavam escondendo o dinheiro de mim.
Aí eu ficava com raiva da minha irmã, discutia com a minha irmã, aí eu ficava em casa
sozinho, que eu morava sozinho em uma casa. Aí aquela voz não deixava eu dormir à
noite, dizia que minha mãe ia voltar, você vê como são as coisas, dizia que minha mãe
ia voltar no corpo de outra pessoa para morar comigo. Para ser tipo uma esposa para
mim, sabe. Era para mim esperar ela. E eu ouvia essas coisas tudo acordado, não era
dormindo, não, era acordado. Aí eu comecei a ver essas loucuras, eu ficava andando
nos lugares, caçando trabalho com as borocas nas costas, ninguém me dava trabalho.
Eu saía correndo com medo das pessoas, dos lugares, das cidades por onde eu
passava. Eu saía com medo das pessoas, achando que as pessoas queriam me pegar
e me pregar numa cruz, que eu tinha muito essa ilusão, sabe. Das pessoas me
pregando numa cruz. Mas eu nunca tinha na realidade se aquilo era uma certeza,

206
aquilo que me atormentava muito, que me perturbava muito. Aí eu já estava
começando, depois que eu cheguei das outras cidades, comecei a chegar aqui em
casa, aqui em Xinguara, eu morava em casa sozinho, aí eu começava a guardar
facão, foice, vários tipos de ferramentas que diz que era para me proteger das
pessoas, que as pessoas iam me atacar e era para mim reagir contra as pessoas. Aí
uma vez eu queria matar um cara, eu que ficava com essas imaginações, né, aí eu
reagia contra as pessoas, sem motivo nenhum, né. Mas não cheguei a matar, não,
cheguei a ferir uma pessoa lá, por causa dessas imaginações minhas, dessa doença.
Outra vez eu tentei matar um cara, corri atrás do cara com uma foice, para matar o
cara com uma foice. Eu tava deitado em casa, ele chegou para chamar o sobrinho
dele que tava dentro de casa, aí eu dizia que aquele veio chamar o sobrinho dele para
me pegar, para me amarrar e sair me arrastando numa moto. Aquela cabeça, sempre
aquele movimento mental, pesava muito. Aí o cara chegou, chamou o sobrinho dele
dentro de casa, aí eu peguei uma foice e saí atrás desse cara, falei ‘eu vou te matar’, o
cara, era conhecido meu, falou ‘rapaz, que é isso’, eu falei ‘eu vou te matar’, o cara
falou ‘rapaz, tu não vai me matar não, você tava brincando’, aí eu falei ‘eu vou te matar
mesmo’, aí eu chamei a foice com toda força, aí ele desviou, a foice passou assim e
eu saí correndo atrás desse coitado, saiu doido, caiu e levantava, e eu correndo atrás
dele, mas não consegui reagir, não consegui matar ele, sabe. Mode essa doença
minha, aí depois eu fui para um hospital de custódia. Mas, sobre isso, passou muitas
coisas sobre mim, isso eu vivi agora que eu passei quatro anos no hospital de
custódia, quatro anos e cinco meses, tomando remédio, sem drogas, tomava bebida
alcoólica de vez em quando, e aquilo virava uma bagunça, e eu vou contar o seguinte,
esse tipo de doença é uma coisa muito engraçada, é tipo um espírito sabe. Tipo um
encosto. Tipo um encosto ruim que encosta na pessoa e a pessoa fica dominada. Não
tem controle mental nem no corpo também. A pessoa faz vários tipos de coisa. E eu
sofri muito mesmo, passei fome, minha família me abandonou, eu ficava doente noite
e dia, não dormia, passava a noite acordado, ia para cemitério no meio da noite,
aquela voz mandava eu levantar, sentia aquela voz dizendo ‘você tem que ir no
cemitério acender umas velas, que é para te proteger também’. Eu levantava à uma
hora da manhã, o cemitério longe de casa, arrumava umas velas e saía com isqueiro,
ia no cemitério, acendia vela lá, pulava o muro, ficava acendendo vela, me deitava em
cima das catatumbas das pessoas, a cabeça mandava eu deitar, aquelas vozes, né,
dizendo que aquilo ia me proteger, que aquilo era a coisa certa para mim, que eu tinha
que fazer aquilo, era acender vela para aquelas pessoas, e era muita coisa, vinha
mulher pelada na mente, diz que eu ia ficar em casa que mulher vinha transar comigo,
fazia assim, tipo, sentia aquelas ilusões, que me deixou na desgraça, mas graças a

207
deus se acabou, né. Sofri muito no hospital de custódia, quatro anos e cinco meses,
briga, confusão, lá é ruim demais, lá em Belém. É muito ruim, muito triste. É pessoas
abandonadas, doente mental que não melhora mais parece, toma remédio, os
remédios lá é tudo contrário, eles dão remédio, depois dão outros, não tem psiquiatra,
só tem psicólogo, e psicólogo não sabe passar remédio, aí vira bagunça, lá é um
sofrimento, dá muita briga, morte. O tempo que eu estive lá morreram cinco pessoas,
cinco caras que eu conhecia. Lá é gente misturada, é bandido, cara que rouba vai
para lá, cara doido, doente mental, gente que matou os pais. Agora eu ouvi a senhora
falando, esses problemas de se matar eu nunca tive também não, de querer me matar.
Mas eu tive imaginação de fazer mal para os outros, querer furar os outros, querer
matar os outros, é uma coisa muito triste. Nunca pude entender como aquilo se
tornava na minha cabeça.

Mas era como se fosse outra pessoa fora de você?

Tipo, outra pessoa fora, justamente. Eu ficava quieto, deitado numa rede, e aquela voz
que chegava na minha cabeça, e meu cérebro, eu não sei se aquilo se tornava
imaginação, porque a gente pensa, né, mas eu não sei, porque aquilo era muito alto,
era muito pesado, sabe, aquele vozeirão, parece que tinha uma pessoa, mas eu
olhava para um lado, pro outro, aí chegava aquela voz, ‘não, não carece olhar pro lado
que eu to junto contigo, eu moro contigo, eu to dentro de ti, não carece você olhar pros
lados, para parede, não vai ter ninguém, eu to dentro de ti, eu sou você’. Aí eu falava,
‘mas o que você quer comigo?’. Aí aquela mente dizia, ‘você vai conseguir as suas
coisas, com mais tempo você... quando você me dominar, você vai conseguir as
coisas’. É tipo uma coisa que eu tinha que ter controle sobre aquilo, e eu não
conseguia ter. Dizia que eu ia ser prefeito da cidade aqui, aí eu chegava na prefeitura,
sentava na cadeira lá, ficava olhando para foto do Lula, aquelas coisas. A imaginação
muito louca... aí eu ficava com aquelas ilusões, aquela voz na cabeça... quase que
isso não acaba, mas Deus ajudou que acabou. Sofri muito, mas acabou.

E você conseguiu controlar em algum momento?

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Rapaz, essa voz, o controle dela era assim.. por tempo. Ela vinha, perturbava, e da
vez quando eu ficava... aquela imaginação que vinha refletia outra imaginação. Tinha
vez que eu conseguia debater ela assim, para ela maneirar mais, para não ficar
perturbando muito a minha cabeça, ela já aquietava mais, ela já maneirava mais, mas
se eu ficasse dando asa para ela, como diz o ditado, se eu ficasse com a cabeça
quieta, aquilo era muitas horas, à noite eu não dormia, tinha que ficar sempre falando
alguma coisa com ela, não sei como eu conseguia aquilo, eu ouvia e falava ao mesmo
tempo no pensamento. É cruel, o sofrimento é muito cruel.

E o que você sentia quando ela falava?

Eu sentia frieza no corpo. Esmorecia o corpo, sentia aquela frieza, e com aquela
frieza, com aquela fraqueza do meu corpo, ela começava a se alterar mais, crescer
mais aquelas conversas, aquele bate-papo mental.

Você tinha medo?

Não tinha medo dela. Isso começou em 2001 e terminou em 2008, então começou aos
poucos, eu passei mais de cinco anos com esse problema, junto com a família, depois
a família me abandonou, depois eu fui para uma clínica, outra clínica em Araguaína.
Mas eu menti, passei dois meses lá e disse que estava bom, aí me tiraram. Aí eu saí e
fiquei ruim. Muito em depressão, muito ruim. Quando eu saí dessa clínica eu fiquei
mais biruta ainda. Mas a voz tinha vez que eu dominava ela, tipo de coisa que nem eu
soube entender que diacho era aquilo. Eu era um rapaz normal, sempre trabalhei,
sempre gostei de ter minhas coisinhas, tive minha esposa, tudo. Quando eu larguei
essa esposa minha, parece que foi, assim, um azar, sabe. Quando eu larguei ela, com
cinco dias, dez dias, eu já tava começando a variar. Aí os outros diziam que era
macumba. Eu não sei se foi macumba que ela fez para mim, mas isso me atrapalhou
muito minha vida, e foi aumentando, aumentando, até chegou esse ponto que eu
cheguei quase a matar o cara. Aí fui preso, por tentativa de homicídio. Fui para Belém.
Já estava sendo alta periculosidade para a população. Um cara muito agressivo,
pensando maldade, querendo fazer as coisas ruins. Mas não era que eu queria, aquilo
me obrigava a fazer aquilo, sabe. Ficava pensando que as pessoas iam me fazer o
209
mal, que elas iam me amarrar numa cruz, principalmente essas besteiras. Sempre tive
isso, que as pessoas iam me pregar numa cruz, igualmente Jesus, depois iam botar
uns pedaços de pau e o fogo beirando a cruz onde eu tava amarrado, tocava fogo, me
queimava, me sapecava e eu amarrado na cruz, aquela coisa. Aí eu ficava muito
assombrado com aquilo. Aí mode aquilo eu ficava com medo das pessoas. Aí por eu
ter medo das pessoas, como eu não queria reação, fazer alguma coisa, eu saía fora,
saía da cidade. Ficava todo sem controle. Sofri demais da conta. Pro jeito que eu to
hoje, to igualmente eu era antes. Foi assim, primeiro bom, segundo ruim, terceiro eu
estou bom. O segundo ponto da minha vida foi muito ruim, o primeiro foi bom, foi
minha infância, trabalhei muito nos meus 18 e 19 anos.

A infância foi onde?

Aqui mesmo, em Xinguara. Sou maranhense, mas me criei aqui. Sou de Barra do
Corda. Minha família nunca teve esse problema. Mas eu já tenho outro problema, sou
epiléptico também. Isso foi com mais ou menos oito anos de idade. Mas agora tem um
ano que não sofro de epilepsia mais.

E como essas coisas foram melhorando?

Para falar a verdade, depois do sofrimento, quando eu fui para Belém. Sofri demais.
Quando eu cheguei lá a vice-diretora era uma psiquiatra, uma mulher muito ruim,
muito má. E lá é o seguinte, tratamento com psiquiatra é outro nome lá, sei que é um
hospital de custódia. Na frente, é um hospital na aparência, mas embaixo é grade,
castigos e funcionários... Quando eu fui para lá, eu sofri demais, eu fui meio
adoentado, aí era muita injeção, os caras me algemavam nas grades, me
espancavam, me judiavam, me faziam vários tipos de coisa. Passava fome, eu não
comia mais, comida muito ruim, um frango velho e cru muito desajeitado, ruim demais
da conta. E por aquele sofrimento, aqueles remédios que eles me davam não dava
certo comigo, ficava pior, me entortava todo, ficava tremendo, aí passava para outro
remédio, passava para outro, e aquele sofrimento, e aqueles funcionários me
agredindo, e aquele alvoroço de vida sofrida, aí com aquilo foi sumindo. Foi sumindo
da mente… Aí arrumaram remédio que deu certo para mim, esse que eu to tomando
210
agora deu certo para o meu corpo. Não fico mais pensativo... Agora eu fiquei normal.
Mas eu sofri demais.

E esse remédio você encontrou em Belém?

Lá em Belém, no hospital de custódia.

Como você saiu de lá?

Eu saí, porque.. foi muito cruel para mim sair. Nesses quatro anos e cinco meses eu
fiz duas perícias para avaliar se eu tava um cara normal. Na primeira, eu peguei
medida de segurança, porque me avaliaram e disseram que eu fiz por querer matar o
cara, porque eu era doente mental e não podia sair para a sociedade. Então, eu
peguei mais um ano de medida de segurança. Na outra vez, com tanto tempo já, Deus
abençoou que eu saí. Eu contei tudo certinho, falei da minha vida, ela fazia as
perguntas, eu respondia.

Era com a vice-diretora?

Aquela vice-diretora saiu, entrou outra. Essa nova doutora era uma pessoa que não
ligava pros internos, os internos sofriam muito. Não tinha pasta para escovar os
dentes, sabão para tomar banho, a cela muito fedida, colchão podre, colchão fedendo
demais, cela muito suja, cara peregrinando, roupa rasgada, fedendo. A coisa lá era
muito cruel, sabe. Se não tiver uma administração de uma pessoa boa, o interno sofre
demais. Sofre demais da conta.

Lá tinha choque?

211
Choque eles não davam, mas porrada eles davam. A covardia do funcionário. Tanto
ele espancava aquele mais fraco, como ele colocava aquele outro para brigar com
aquele outro. O emprego dele era para observar o que o interno precisa na hora do
perrengue, da briga para ele apartar. Eu tinha raiva por causa disso, eles não faziam o
que você pedia. Um favor eles não faziam. Então, era o seguinte, na hora de um
perrengue, de uma briga, eles eram os primeiros a te espancar. Eles faziam você
brigar com um cara. Você dizia ‘ó funcionário, lá naquele bloco que eu estou, tá
ocorrendo isso e isso, vai dar briga’. Aí o que ele dizia, ‘mas mete o pau nele, quebra
um pau da cama, arrebenta o cara, pega um cabo de vassoura, mete o pau nele,
quebra o cara’. Ele incentivava a pessoa a fazer as coisas. Aí quando você tava
naquilo, ele chegava e espancava. Quando você tava brigando, você chamava a
direção, você ia ser espancado por ele, ele te dava empurrão, dava tapa no pé da
cabeça, te algemava na grade, e deixava duas horas, três horas. Pelado, só de cueca,
muitas vezes era nu. Nuzinho. Deixava o cara três dias, dois dias, só de cueca, num
lugar lá que era um castigo. Os castigos, você vê, dava até dó. Uns quadradinhos, mal
o cara deita, estica o pé. Uns quadradinhos bem pequenininhos. A comida já vem uma
miséria, aí o quadradinho que eles dão lá que é o castigo, o cara passa dez, quinze
dias num castigo daquele. Você imagina só? Para você urinar você tem que gritar.
Chama, chama, chama, ele dá o quê? Uma garrafa. Para o cara mijar dentro da
garrafa. Você mija dentro daquela garrafa, e enche aquela garrafa, aí você vai pedir
outra, cadê outra? Você tem que mijar pro lado de fora, pro lado do corredor. E
quando eles veem isso, eles acham ruim. Aí eles vão dar tapa no cara, porque o cara
mijou do lado de fora, e por que não pediu para levarem ele ao banheiro, mas eles não
levam. Só é castigo, porrada, e tudo mais. O cara tem precisão, tá afim de dar uma
barrigada, fica horas e horas batendo na grade. Aí lá vem o infeliz, lá vem logo de
dois, três, ‘que que é?’, ‘quero ir no banheiro’, ‘demora um pouquinho aí, caralho’, ‘pô,
funcionário, estou apertado e tal’, aí manda o cara esperar e ele sai. Aí ele sai e deixa
o cara se cagando lá. Aí muitas vezes o cara arruma um saco, caga dentro do saco e
joga para lá. Aí não tá nem ligando se vai apanhar. Maior seboseira, maior judiação lá.
Muito castigo.

Quando você chega lá... igualmente vai várias pessoas, entrevista, ‘nossa, o pessoal
diz que aqui é ruim’, olha assim né, ‘tratamento psiquiátrico aqui é muito bom’, e vai lá
naquela cozinhona lá, ‘nossa, aqui é muito bom’, agora vai descer o castigo dos
presos lá, tava 205 presos lá. Duzentos e cinco internos, preso não. Imagina só,
duzentos e cindo internos para um lugarzinho daquele que é pequeno. É muito interno
demais, moça.

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E ninguém ligava?

O pessoal... vamos supor, aqui está o corredor e aqui o bloco. Bloco 1 aqui, 2 aqui, 3,
4... Aí eles passavam reto só. Ali na frente estava a grade, fechada, os coitados dos
internos estavam lá. Não diziam nada, porque tinham medo. Ficavam olhando,
aparecia gente de paletó, era mulher bem arrumada, eles iam dizer o quê? Não falava
nada, ficava só olhando. Só abanava a mão, ia lá no fim do corredor e voltava. Pronto,
acabou. Para eles já estava bom, aí ia lá para a outra parte, onde fica a diretora. Lá
que é bom, o céu e as estrelas. Lá é outra vida, né? Ar condicionado, comidinha
reservada, diferente. Aí eles achavam que nós estávamos passando bem. Mas nós
não passava bem lá, passava muito mal. De quatro anos e cinco meses que eu passei
lá... cara lá dorme no chão, não tem colchão. No chão, bruto assim. Parente
abandonou, sabe, não tem roupa, a roupa toda rasgada, caindo, aquela coisa, chama
de moafento, né. Aí chama o cara de moafento, não toma banho, também não tem
banho, não tem pasta, não tem sabão, não tem nada. Aquela cela fica fedida demais,
rastro de chinelo, fica uma seboseira... a coisa lá é feia. Aí com esse castigo tão
imenso, esse castigo que Deus me deu tão grande, peço até perdão, Deus me deu um
castigo tão grande, que eu sofri tanto, que aí acabou. O problema acabou. Mas eu
estou tomando remédio, né?

E faz quanto tempo que você saiu de lá?

Eu saí em fevereiro (de 2013). E vim para cá.

E como você conheceu o Caps?

O Caps já falaram lá. Já foi passado de lá. Então, você vai pro Fórum, você vai passar
um ano não sei do quê, tem na minha carteira, um ano comparecendo no Fórum, e
você tem que ir no Caps que é para você tomar remédio sempre, para ficar tomando
remédio sempre. Aí me informaram sobre o Caps, eu cheguei aqui, perguntei, eu nem

213
sabia que tinha isso aqui. Sou velha guarda aqui nessa cidade e nem sabia que tinha.
Aí descobri que era aqui o Caps, que arrumava esse remédio, mexia com esses
tratamentos, né, aí eu achei melhor. Porque eu pensei o seguinte, vai ser bom,
porque, se Deus me livre e guarde, eu chega a adoecer, já sei com quem eu procurar
ajuda, né. Aqui tem psiquiatra, tem psicóloga, tem outras pessoas, então já peço
ajuda, né. Se, Deus me livre, chegar a me atacar, eu já chego para eles, já bato a real,
já conto a história para eles, para ver se eles me ajudam, me internam, se o remédio
não estiver adiantando mais, eu já falo para eles, né. Eu já tenho uma ajuda. Já tenho
o apoio deles, está me servindo demais da conta. São pessoas boas, educadas. Eu
gosto de vir para cá, é bom demais aqui. Aí eu já tomo meu remédio, mas até agora,
esses tempos, eu não adoeci mais, não.

Você vem todo dia?

Não, eu estava vindo de terça e quinta-feira. Fazer uma ginástica, mas eu estava
trabalhando, né. Não teve jeito de eu vir mais.

Você continua trabalhando?

Não, o cara parou com a obra. Nós tava fazendo a construção e parou. Agora estou
sem serviço, aí eu venho para cá.

E você faz a oficina também?

Não, isso aí, eu não nego para você, isso aí tinha lá onde eu estava. Mas isso aí o
seguinte: eu não sei se isso é importante para a nossa vida, mas o negócio é que eu
não gosto disso. Nunca gostei. Isso aí tinha demais lá... Rapaz, me bota eu para
capinar, arrancar o mato, lavar louça. Mas esse negócio de ficar desenhando, fazer
não sei o quê... não cola comigo, não. Não dá certo comigo, não tenho paciência.

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Você gosta de roça?

De roça mesmo, serviço braçal.

Eles estão com projeto de fazer horta... Tem mais a ver contigo?

Aí é mais melhor. Uma coisa dessa já encaixa comigo. Aí para ficar fazendo isso aí é
só coisa para menina mesmo, coisa para mulher, mulher gosta mais disso aí.
Desenhar eu não sei, e fazer crochê não tá no meu barco.

E é com o doutor Geraldo que você está se consultando?

É. O doutor Geraldo e o doutor Renaldo [José Pimenta, então clínico geral do Caps de
Xinguara].

E você se dá bem com eles?

Rapaz, legal demais eles. Gente boa eles. Atende bem a gente, tem o maior carinho,
ele ouve bastante a pessoa. Quando você estiver precisando de alguma coisa, eles dá
ouvido mesmo. Ajuda a pessoa. Tem muita diferença de onde eu tava lá, para
conversar com o doutor lá... Nossa senhora.

Era difícil para conversar com o médico?

Nossa... com médico, com a psicóloga. Para conversar com a psicóloga era muitas e
muitas semanas, muitos dias você mandando recado, mandando recado. Aí aquela

215
fuleragem do caralho. ‘ah, não pode hoje, só amanhã’. Aí chega amanhã e nunca vem
esse dia. Nunca chegava. Era ruim.

E em Xinguara você mora sozinho?

Não, com minhas irmãs. Me abandonaram só quando eu ficava bêbado. Agora já


voltou.

E o seu filho?

Meu filho está em Água Azul. Tá com um mês que eu vi ele. Doze anos. Tá bom no
estudo já, tá fazendo a 6ª série (no ano de 2013, quando ocorreu a entrevista).
Esperto ele. Eu fiz só a 3ª série, ele já está na 6ª ... tá bom demais. Eu sofri muito esse
tempo todo. Viver uma vida daquelas... Aquelas perturbações, perdia as coisas. Tá
doido, que vida triste. Eu não entendi ainda o que que leva o cara a criar uma doença
daquela na mente, eu não entendi ainda. Porque eu larguei a mulher de boa, tranquilo.
Não fiquei na cachaçada, não fiquei usando droga, e a coisa foi surgindo aos poucos.
Aos poucos, sabe. Foi aumentando, aumentando, foi passando os anos, foi crescendo,
foi mudando o jeito, uma vez tava de um jeito, outra vez tava de outro, o tempo passou
e eu fiquei um cara muito agressivo, muito esquisito.

Era todo dia que você escutava?

Todo dia. Toda dia era perturbação. Em 2007, 2008, que ela tentou mais. Nossa
senhora, era perturbação demais. Eu ia ser morto se eu não tivesse ido para Belém.
Os caras iam me matar. O pessoal já estava com raiva de mim. Dizendo que eu
andava só bêbado, caçando conversa. Mas não era bêbado, não, moça. Era doente
que eu andava. Eles achavam que eu estava bêbado, bebendo cachaça, essas coisas.
Meus parentes me livraram de morte um bocado de vezes. Meu sobrinho não deixava,
‘não mata meu tio, não, meu tio não é isso, não é aquilo’ e tal. E eles, ‘ah, porque esse

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tio de vocês tá doido, não sei o quê, tá enchendo o saco’. Eles querendo tirar minha
vida, mas meu sobrinho não deixava. Mas agora sarei, graças a Deus.

Para você ver como a coisa não parece normal, né. De um lado, ela dizia que estava
me protegendo, do outro lado, já tinha outro tipo de visão. Que era aquela visão de ver
as pessoas e imaginar que elas iam me atacar. Do outro lado, não, ficava ouvindo que
ela ia me proteger, que eu ia ser não sei quem, mas sendo que aquilo nunca
acontecia. Nunca aconteceu nada de bom comigo. Era uma coisa que dava para ver
que era uma doença, um problema mental. Não é uma coisa certa uma coisa dessas.
Isso é uma doença, é um treco muito sério no cérebro do cara que criou e aquela
coisa mexe com o cérebro do cara, o cara começa a pensar as coisas erradas. Vamos
supor, de um galo cantar, ele pensa que (o galo) está falando o nome dele. Se eu
estiver doente e o galo cantar, eu vou olhar pro galo e achar que ele está falando o
meu nome. Para você ver, é tudo imaginação. Que deixa o cara doente mesmo,
esquisito.

E quantos anos você tinha quando começou?

Vinte e quatro anos. Foi em 2001. Eu fui internado em 2008.

No começo não era todo dia que você ouvia?

Não era, justamente. Era temporário. Chegou uma vez que aí era todo dia. Ela
perturbava, sabe. Aí minha família ficou com medo de mim, achando que eu ia matar
alguém de casa. Nós já é de família pobre mesmo, os coitados saiu fora de mim. Me
deixaram rodado.

(Fala de crack. Diz que tem um amigo viciado e que, se você ouve as conversas dele,
você se assombra. Diz esse amigo que viu o diabo três vezes. Givaldo diz que já
fumou maconha várias vezes, mas crack nunca. Fala da pedra, oxi. Diz que quem
fuma pedra fica doido também. Fica pirado, muito agressivo.)

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Os seus amigos de antes das crises... Você conseguiu resgatar essas amizades
ou mudou um pouco?

Mudou muito. A vizinhança... ela pegou preconceito. Hoje eu vejo, pelo que eu vejo
hoje as pessoas têm preconceito comigo. Eles não chegam igualmente chegava, não.
Já olha de longe, ‘ih, rapaz, é o Givaldo’. Já fica todo desconfiado, tá entendendo?
Para mim não ir até eles, e eles não vir até mim. Eles já ficam se escondendo de mim,
as pessoas de hoje. Tá mais ruim. A família também... Um dia desses eu peguei a
minha irmã, (eu estava) vindo do serviço, sol quente, chapeuzão bem grandão, tava
vindo, cheguei em casa, a casa de tábua, né, de 1984, a nossa casa é antiga. Aí eu
cheguei, minha irmã, ela é professora, mora do lado, casinha de tijolo a dela, aí eu fui
chegando e ouvi aquele bafafá lá no fundo, eu parei, ‘deixa ver o que é isso aqui’, aí
eu fiquei calado. Pessoal surtando. A minha irmã falando para a minha outra irmã para
me internar de novo, sabe. Me colocar no mesmo canto onde eu tava. Rapaz... aí eu
não gostei, não. Ficaram com preconceito, com frescura comigo, dizendo que eu
estava agressivo, que eu to mexendo não sei com quem, agora eu não to vendo isso,
que tudo o que eles falam, o que a família fala, eles estão dizendo que é verdade.
Tudo o que um fala, o outro acredita. Se diz assim ‘o Givaldo acabou de cortar o
pescoço de um’, eles acreditam. Se o Givaldo, com o perdão da palavra, comeu
merda, eles acreditam. Se o Givaldo bateu no sobrinho, eles acreditam. Tudo assim,
contra eu. Eu vivo no meio deles, porque não tem para onde eu correr ainda. Mas eu
vivo de um jeito assim... humilhado. Você não pode falar nada, você tem que pisar
maneiro, você tem que ver o que vai falar, para onde você vai você tem que dizer. Eu
não falava nem para minha mãe, tenho que dizer para a minha irmã para onde é que
eu vou, se to tomando meu remédio, ‘é, porque a gente só quer você aqui bonzinho’ e
começa com aquelas piadas, né. ‘Nós só quer tu perante nós bom, não quer ver tu
doido’, aí começa. Aí eu fico calado, né. Tomando remédio, aí fica essa humilhação,
sabe. Muito ruim. E os amigos se afastaram. Aí aproveitaram o caso de antes, eu
estava maluco já demais, marcando na rua, negócio de confusão em boteco, fazendo
vários tipos de coisa. E já doente eu inventava de beber cachaça. Bebia uma pinga,
uma dose... se eu tomasse duas doses, o homem tava morto, era duas doses e eu
tava lascado. Ali eu tava para brigar, tava para discutir, mas não era bêbado, já era
biruta. Aí o pessoal viu aquilo, reviraram as costas para mim. Eu não vi, também eu
não ligava para ninguém, né. Não me importava com ninguém, gostava dela era só

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mesmo. Aí agora, depois que eu cheguei, eu ouvi os caras falando isso já, dizendo
que eu mudei, que antigamente não falava comigo porque eu estava igual um doido,
daquelas conversas, então hoje eu estou vendo eles, mas eles estão com diferença,
chegando em mim mais devagar. Mas eles têm cisma comigo. Mas a pior coisa que
tem, eu não pensava em ter isso na minha vida, eu tive minha mãe, não conheci meu
pai, mas não imaginava que minha vida ia virar uma coisa feia dessa não. Eu tenho
que batalhar muito para mim ter amizade, ter aquela confiança, sabe. Porque minha
vida está uma tristeza.

E as suas irmãs vêm ao Caps?

A mais nova veio. Veio já umas quatro vezes. Elas ficam me falando que tá me
ajudando. Falaram pro doutor que eu tava tomando cerveja, é mentira. O pessoal fala
demais. Que o cara já tem um problema, né. Aí por causa desse problema todo mundo
aproveita. Aí você vai falar com eles... não tem ninguém ao teu lado. Você vai falar
uma coisa, não vê ninguém a teu favor. Não tem como. É realmente um preconceito,
porque eu não tenho mais a imaginação, eu não fico fora de hora, eu não fico bebendo
cachaça. Então, eles ficam com aquele preconceito, que ‘tu é doido’, fica com aquelas
brincadeiras, sabe, e eu não gosto muito dessas brincadeiras, porque isso dá agonia
demais no cara. Se o cara é uma coisa, então deixa o cara para lá, não fala. Não fala
que isso irrita muito os pensamentos. Às vezes, você tá quieto, o cara fica te tirando.
Essas coisas não pega bem. Já falei lá em casa, ‘ó, vocês parem com isso, porque se
ocorrer alguma coisa, eu não tenho nada para perder’. Falando palavrões comigo...
apelidando a pessoa, botando apelido. Mas até agora tá indo bem, tá dando para
aguentar.

219
Givaldo. Crédito: Alice Arida

220
13.

Foto: Alice Arida

221
-- Alô, capitão? Aqui quem fala é o sargento. Estou com o soldado ao meu
lado, capitão. Já disse que o senhor está chegando, mas ele não quer tomar o
remédio.

-- Positivo, sargento. Coloque o soldado na linha -- respondeu Geraldo.

O paciente pôs o telefone no ouvido:

-- Alô, soldado? Aqui é o capitão -- prosseguiu o médico. -- Soldado, estou


pegando o avião do Exército para levar seus uniformes e medalhas, e você não quer
tomar o remédio? Como fica isso, soldado?

Silêncio. Minutos depois, a mesma voz entra na linha:

-- Capitão, aqui é o sargento novamente. Quero avisar que o soldado tomou o


remédio.

Foi em Ourilândia do Norte, 650 quilômetros ao sul de Tucuruí, que Geraldo


encontrou o profissional de saúde mental que mais marcou a sua vida e o seu
trabalho. Wanderley Pereira, 37 anos, não tinha formação técnica nem teórica. Não
era graduado, muito menos especializado. Adquiriu todo o seu conhecimento na
universidade da vida, e foi com esta bagagem que ele se envolveu com o Caps de
coração e de alma, a ponto de entrar com os pacientes nos delírios deles. E a encenar
estes delírios.

Wanderley chegou ao Caps de Ourilândia no começo de 2012, para atuar


como técnico de enfermagem. A exemplo de Geraldo, fez uma revolução dentro do
órgão, criado em 2010. Uma de suas primeiras providências foi ir atrás de
cabeleireiros do município de 30 mil habitantes, a fim de montar parcerias. Homens e
mulheres que trabalhavam em salões de beleza foram convidados a ir ao Caps para
cortar cabelos e fazer barbas, unhas, maquiagem, depilação, hidratação. Funcionários

222
e pacientes, sem esconder os sorrisos, tiravam fotos e faziam montagens mostrando o
“antes” e o “depois”. Essas tardes de beleza eram uma festa. E eram uma terapia,
como ressalta Wanderley:

-- Você mostrava para a pessoa que o mundo não tinha acabado, que a vida
continua, que aquilo era só um momento pelo qual ela estava passando.

O envolvimento do técnico de enfermagem foi tão profundo que ele chegou a


levar remédios para um paciente no serviço dele, para que o homem não entrasse em
crise. E não se esquece de quando foi atrás da família de outro paciente que tinha
fugido de casa aos 14 anos. O homem, à época, estava com 50. Wanderley conseguiu
organizar o reencontro familiar, uma das cenas mais emocionantes que já viu.

Por tudo isso, ficou com o coração apertado quando foi chamado para sair do
Caps, no final de 2013. Wanderley trabalhou pouco mais de um ano no lugar, mas
deixou lá uma grande parte de si. E levou consigo os ensinamentos de uma vida:

-- A gente aprende a se conhecer melhor diante do sofrimento do outro.

Não conheci Wanderley pessoalmente. Nem Ourilândia do Norte. Alice e eu


tivemos que interromper nossa viagem em Xinguara, por conta da minha gravidez.
Comecei a sentir enjoos que impediram que eu seguisse estrada.

É por isso que todas as entrevistas reunidas neste capítulo foram feitas à
distância. São conversas por e-mail, Whatsapp e Facebook. Não são frutos de um
encontro físico, mas têm o seu briho particular. As minhas vivências paraenses
continuam a partir do próximo capítulo.

...

Durante sua estadia no Caps de Ourilândia, Wanderley conheceu o enfermeiro


Jander Vieira, 30 anos. Os dois começaram a trabalhar na mesma época, no início de
2012, mas com uma diferença: enquanto Wanderley era contratado, Jander era

223
concursado. E, além disso, o enfermeiro já tinha uma longa carreira no campo da
saúde mental -- nem sempre vivenciada de forma intensa e engajada, contudo.

Ele começara a trabalhar nessa área em 2008, quando foi lotado para o Caps
de Tucumã, uma cidade de 36 mil habitantes vizinha a Ourilândia, distante dela
apenas 11 quilômetros. Desde pequeno, Jander mora em Tucumã. Ele é goiano de
nascimento, e realizou a graduação em Enfermagem em Goiânia. Assim que terminou
o curso, retornou ao Pará e foi trabalhar no Caps de Tucumã, que existe desde 2004.
Oito meses depois de sua entrada, em agosto de 2008, Jander conheceu Geraldo.

O médico também havia sido convidado para realizar matriciamento


comunitário no Caps de Tucumã, o qual ingressou em abril de 2009. Este encontro
mudou a vida do enfermeiro e a forma como ele encarava a sua profissão. Se, na
faculdade, foi orientado a manter uma distância formal em relação aos pacientes e a
reservar o seu trabalho ao uso de psicofármacos, agora ele se via questionando estes
preceitos. No início, Jander teve muita dificuldade em atravessar estas mudanças.
Elas foram penosas, porém tiveram efeito permanente:

-- Em pouco tempo aprendi a amar o trabalho em saúde mental, e sigo firme e


a cada dia mais apaixonado pelos caminhos da loucura e do cuidado -- diz ele. --
Porque é impossível não se apaixonar por um trabalho cuja finalidade é promover o
combate ao estigma e ao preconceito e que, acima de tudo, trata de um resgate de
identidade. Um trabalho que vai muito além da entrega do remédio controlado, que
realmente promove a reabilitação psicossocial do indivíduo, devolvendo seu status de
cidadão e resgatando seu papel no meio social e familiar.

Assim como Wanderley, Jander mergulhou de cabeça nas veredas da saúde


mental. E a riqueza que experimentou foi inestimável. Ele relembra com carinho a
primeira vez em que foi visitar o Caps de Tucuruí, como parte de suas andanças:

-- Ele (Geraldo) solicitou à Secretaria de Saúde que me proporcionasse as


condições para realizar um treinamento com ele no município de Tucuruí, no Caps e
no Hospital Regional. Esse treinamento foi um divisor de águas na minha carreira. Ali,
ele apresentou para mim os frutos e as conquistas que advêm de um trabalho de
saúde mental bem-feito. E, nesse período, de aproximadamente uma semana, tive
acesso a mais conhecimento de saúde mental do que em todos os meus estágios
curriculares em clínicas psiquiátricas. Voltei para casa com muitos anseios e o sonho
de aproximar minha realidade daquela que o Geraldo e a equipe de Tucuruí
construíram.

224
Nesta visita, Jander surpreendeu-se com o que, para ele, sempre foi o traço
mais marcante do médico: a defesa da multidisciplinaridade no trabalho do Caps.
Geraldo era o psiquiatra, mas sabia que a casa só funcionaria bem se os outros
profissionais da equipe tivessem seu trabalho tão valorizado quanto o dele.

-- Foi muito marcante observar a forma como ele combate com veemência a
construção do trabalho centrado exclusivamente no saber médico. Ele é um profundo
incentivador da responsabilidade compartilhada e da valorização dos diversos
saberes.

Depois de conhecer o dia a dia do Caps de Tucuruí, Jander voltou para


Tucumã com a certeza de que poderia mudar o cenário da saúde mental em seu
município. Por quatro anos, ele trabalhou para isso. Mas era contratado. Em 2012,
passou no concurso para ocupar o posto de enfermeiro no Caps de Ourilândia do
Norte, a poucos minutos de carro de Tucumã.

É por isso que, desde maio de 2012, Jander percorre diariamente os 11


quilômetros que separam as duas cidades para implementar, no município vizinho, o
trabalho no qual acredita.

...

Em Tucumã, com a mudança de gestão municipal, a partir de 2013, a maioria


dos profissionais da equipe do Caps foi chamada a sair. Eram quase todos
contratados. Inclusive Geraldo, que deixou de prestar apoio matricial no município.
Com isso, seu trabalho não teve continuidade.

Quem vê esta mudança com muito pesar é a psicóloga Marineide Ferreira, 53


anos. Por oito anos, ela foi coordenadora do Caps de Tucumã. Desde que saiu, em
2012, atende alguns pacientes do Caps em seu consultório particular, já que eles
dizem que não encontram mais no lugar o atendimento de antes. Marineide lamenta,
pois foi ela quem, desde o princípio, batalhou para a criação de um Caps em Tucumã.
Em 2004, era conselheira de saúde no município. Acompanhou todo o trâmite para a
aprovação do projeto de criação do centro no município e, em 2005, quando o Caps já
tinha um ano de funcionamento, entrou lá para atuar como psicóloga e coordenadora.
Realizou um trabalho profundo e envolvente durante quase uma década. Por isso, não
se conforma com as mudanças atuais:
225
-- Nossa equipe colocou a saúde mental em evidência não só no município,
mas na região. Pessoas que viviam abandonadas, esquecidas, encontraram uma nova
forma de viver, de produzir, de serem respeitadas e hoje estão regredindo, pois não
recebem mais a atenção profissional necessária para continuar o processo em que
estavam. A saúde mental hoje, em Tucumã, passou de atendimento multiprofissional
para medicamentoso. Lamentável. Fico indignada, pois, como coordenadora do Caps
por oito anos, deixei tudo organizado e especifiquei o processo de cada paciente. Era
bem simples dar continuidade, lógico que com a visão da nova equipe adequando as
ações. Mas o que se viu foi uma descaracterização do programa, pois a atual equipe
não tem experiência na área de saúde mental.

Durante o tempo em que permaneceu no Caps, Marineide percebeu que era


possível realizar seus sonhos. Este foi o maior aprendizado que leva consigo daqueles
anos. E sua maior satisfação -- assim como as de Jander e Wanderley -- era ver os
pacientes não apenas melhorarem, mas voltarem a fazer parte de um círculo social e
familiar.

Como exemplo, ela cita a história de um morador de rua conhecido como


“doido da latinha”, um jovem de 20 anos que, desde os 10, vivia vagando pelas ruas
da cidade. Tornou-se um homem agressivo, espancava e era espancado, e tinha a
fala prejudicada. Em 2008, Marineide, juntamente com a Secretaria de Assistência
Social, tentou, como pôde, reconstruir o histórico do “doido da latinha”. Descobriu a
sua família e os seus comprometimentos sociais. Chamou a equipe do Caps para se
aproximar dele. O homem, relutante no início, começou a frequentar diariamente o
centro. Participava dos acolhimentos, realizava terapia comportamental e iniciou um
tratamento medicamentoso a partir das orientações de Geraldo. Ele se abriu à
comunidade, e a comunidade se abriu a ele. Foi um grande triunfo para a equipe do
Caps:

-- Desde 2008, o “doido da latinha” tem nome Vitoriano, que é seu nome de
batismo. Ele continua catando latinha pela cidade, pois é a profissão que escolheu, e a
desempenha muito bem. Tem seu rendimento econômico, se sustenta e ajuda renda
familiar, que é extremamente pobre -- conta Marineide.

Além de ver seus pacientes melhorar, há outra vitória que a deixa


extremamente orgulhosa. Foi a de ver o número de internações se reduzir a zero.
Antes da chegada de Geraldo, os pacientes em crise de Tucumã e de Ourilândia eram
encaminhados para a clínica psiquiátrica de Araguaína, a exemplo do que ocorria em
Xinguara. Havia uma cultura local muito forte de que, para resolver a crise, a

226
internação era indispensável. Não foi fácil mudar esta ideia. Mas foi possível. O
enfermeiro Jander relembra:

-- Em menos de um ano, reduzimos as internações por motivos psiquiátricos a


zero, e presenciamos de forma maravilhosa a recuperação de inúmeros pacientes
graves, que tiveram suas vidas de volta, impactadas pelas ações de uma equipe
comprometida e preparada.

A partir do momento em que Geraldo atuou como matriciador nos Caps de


Tucumã e Ourilândia do Norte, ele também realizou capacitações e treinamentos em
várias unidades de saúde além do Caps, a fim de levar seu conhecimento sobre a
abordagem na crise. Estas unidades, como a Unidade Mista de Saúde e os leitos das
enfermarias de clínica médica dos hospitais conveniados do município -- nenhum dos
dois municípios possui hospital municipal --, passaram a receber pacientes em crise
para internações de poucos dias. Os familiares foram orientados a permanecer ao lado
do paciente durante todo o tempo de internação, a exemplo do que ocorre em Tucuruí.
E a equipe do Caps acompanha o paciente desde o momento em que é acionada até
a total remissão dos sintomas, também a exemplo do que ocorre em Tucuruí.

Este novo procedimento reduziu a zero o número de encaminhamentos de


pacientes de Tucumã e Ourilândia para a clínica psiquiátrica de Araguaína. E eles não
foram os únicos municípios da região que usufruíram deste benefício.

Conceição do Araguaia é um município bonito e agradável. Tem 45 mil


habitantes e fica à beira do rio Araguaia, 360 quilômetros ao sul de Tucumã. É
também a cidade mais antiga da região. Foi fundada em 1908 por um frei francês de
nome Gil Vilanova, que havia desembarcado naquelas brenhas do país em 1888, a fim
de catequizar índios Kaiapó. Esta e outras marcas da história da cidade são ofuscadas
pela deslumbrante vista do rio Araguaia. Ele esconde cicatrizes que nunca somem e
que, volta e meia, se abrem em feridas doídas. Pois Conceição também foi marcada
pelos mistérios e silêncios do episódio da história brasileira que se cunhou chamar de
Guerrilha do Araguaia. Uma luta no meio da floresta amazônica entre algumas
dezenas de militantes do PCdoB e milhares de soldados e oficiais do Exército do
regime opressor, ocorrida entre 1972 e 1974. A Guerrilha do Araguaia não aconteceu

227
exatamente em Conceição. Seu palco principal está 250 quilômetros acima da cidade,
na região conhecida como Bico do Papagaio, na confluência entre os estados do Pará,
Maranhão e Tocantins. Mas os ecos do episódio chegaram ao município e se
enraizaram nele, como em toda a região. Os conceicionenses sabiam e sabem: sobre
o assunto, é melhor silenciar.

Havia porém outro silêncio, que era menos evidente, mas estava presente em
muitos lares do município. Era o silêncio dos “loucos” que, amiúde, tinham seus braços
amarrados à força, e seus corpos, jogados dentro das kombis com destino à “clínica
de repouso” de Araguaína. Toda semana, pelo menos duas pessoas em crise eram
encaminhadas para lá. Havia semanas em que iam quatro, seis pessoas.

Quando era assim, corria o ano de 2005. Neste ano, assumiu a Secretaria de
Saúde de Conceição do Araguaia uma pedagoga com especialização em Saúde
Pública. Domingas Alves de Sousa, 48 anos, havia presenciado em Conceição, um
ano antes, cenas que a deixaram estarrecida: pessoas tidas como loucas haviam sido
amarradas dentro de seus próprios lares, e eram mantidas em pequenos cômodos, em
condições deploráveis. Ao ver esses destroços humanos, a futura secretária de Saúde
sentiu aperto no peito. Sentiu também que algo urgente precisava ser feito. Mas,
quando finalmente assumiu a Secretaria, ela não sabia por onde começar.

Passou, assim, o primeiro ano. No início de 2006, Domingas se encontrou com


uma servidora da Sespa, a Secretaria Estadual de Saúde do Pará, e compartilhou com
ela suas preocupações a respeito da saúde mental em seu município.

-- Sei quem pode te ajudar -- disse a mulher. -- É um psiquiatra que mora em


Tucuruí, uma pessoa maravilhosa. Ele ama o que faz. Vou te passar o número dele.

Domingas conheceu Geraldo, e um mundo novo de descobertas e


aprendizados se desvendou para ela, em um campo que sempre a intrigou.

Em menos de um ano, no dia 4 de outubro de 2006, o Caps de Conceição do


Araguaia foi inaugurado, com sede própria. Os dois, psiquiatra e secretária,
trabalharam intensamente ao lado de uma psicóloga, Maria Gorette Jorge, 53 anos,
para a criação do centro. Gorette, após a criação do Caps, tornou-se coordenadora do
lugar. Elas também, cada uma à sua maneira, eram apaixonadas pelos devaneios da
mente humana. E fizeram seu trabalho com amor, responsabilidade e muita
determinação.

228
Como é comum nesse campo, encontraram muitos obstáculos, devido ao
estigma e ao preconceito. No início, alguns legisladores municipais se opuseram ao
projeto do Caps, dizendo que não havia necessidade de um órgão deste tipo na
cidade e que a Secretaria de Saúde estava criando problemas onde não existia.
Funcionários do hospital municipal resistiam em recepcionar e atender pacientes em
crise. Integrantes de algumas equipes do Programa Saúde da Família não queriam se
envolver em ações de saúde mental. Mesmo o Ministério da Saúde demorou sete
meses para oficializar a portaria de criação do Caps de Conceição e a liberação dos
recursos. Entre outubro de 2006 e maio de 2007, quem bancou o Caps foi o município,
graças à sensibilização e ao envolvimento do então governo de Conceição.

Todos esses percalços apareceram em outros municípios do sul do Pará nos


quais Geraldo prestou matriciamento comunitário. E, da mesma forma, no outro polo,
as satisfações foram semelhantes: reunir uma equipe de profissionais engajados na
causa da saúde mental, acompanhar o dia a dia dos pacientes e perceber sua
melhora, reduzir a zero o número de internações em clínicas psiquiátricas e, no lugar,
realizar internações de alguns dias em hospitais gerais. Estes são triunfos partilhados
por quase todos os integrantes das equipes de saúde mental dos Caps no sul do Pará
-- reunidos no chamado 12º Centro Regional de Saúde da Sespa.

Domingas era secretária de Saúde e não chegou a compor a equipe do Caps


de Conceição. Mas seus aprendizados foram profundos e mostraram que não é
preciso trabalhar na área para entender do assunto. Saúde mental não é apenas um
campo de conhecimento da medicina. Saúde mental é a própria vida, como mostra a
fala da pedagoga:

-- Aprendi que não há loucos, como popularmente são tachados os pacientes


com algum transtorno ou sofrimento mental. Loucura é não acolhermos estes
pacientes, atendendo-os dentro de suas necessidades. Aprendi também que o
trabalho deve ser feito com a família, pois, nos casos onde há pelo menos um membro
da família acompanhando o paciente e sendo acompanhado pelo Caps, o resultado é
significativo e exitoso. Aprendi também que o paciente não adoece sozinho. A família
ou parte da família adoece junto, e, por isso, o tratamento não pode ser só do paciente
isoladamente. Aprendi também que a loucura é subjetiva, e que o limite entre loucura
e lucidez é tênue.

As palavras de Domingas traduzem o trabalho que foi realizado no Caps de


Conceição durante oito anos seguidos. Com a mudança de gestão, a partir de 2013,

229
houve mudanças na equipe. Geraldo foi substituído, assim como outros profissionais.
E o trabalho em saúde mental não teve continuidade.

-- Confesso que tenho grandes preocupações, porém não posso julgar a atual
equipe, pois não os conheço -- diz Domingas.

Ela ficou no cargo de secretária municipal da Saúde de Conceição até 2008,


quando assumiu a direção do 12º Centro Regional de Saúde da Sespa, onde
permaneceu um ano. Hoje, Domingas mora em Colinas do Tocantins, no Tocantins,
onde cursa Psicologia. Mas ela não se esquece dos tempos de Conceição e de sua
intensa vivência com Geraldo:

-- A atuação do doutor Geraldo sempre foi além da clínica. Sua luta pela área o
destaca como profissional de saúde mental. O seu gostar de saúde pública e a relação
que ele cria com os pacientes, vendo-os como seres únicos e respeitando-os em suas
singularidades, é seu diferencial.

A psicóloga Gorette, que foi coordenadora do Caps até a sua saída do centro,
em 2012 -- quando mudou-se para São Luís, no Maranhão --, compartilha da mesma
dor de Domingas em relação à mudança de gestão:

-- Estou bem-resolvida quanto ao meu afastamento do Caps, mas tenho a


dizer, por algumas observações em visitas e algumas falas de pacientes, colegas e
gestores, que muitas ações que estavam dando certo pararam de ser feitas, o que
sem dúvida tem comprometido todo um trabalho que era referência.

Geraldo sempre teve um carinho especial pelo Caps de Conceição. Envolveu-


se com os pacientes, com a história do lugar. Propôs a criação de um setor
especializado para pacientes psiquiátricos no hospital municipal -- e batalhou por ela.
Graças a este trabalho, hoje existe uma ala no hospital de Conceição com dez leitos
psiquiátricos, aguardando habilitação por parte do estado para entrar em
funcionamento. Ainda faltam funcionários -- inclusive um psiquiatra -- e equipamentos
e, como em tudo em saúde mental, a demora para a abertura deste setor por parte
das autoridades públicas é enorme.

Por tudo isso, foi com muita dor no coração -- e também com uma pontada de
surpresa -- que Geraldo recebeu a notícia, em uma noite obscura, de que não
prestaria mais matriciamento comunitário no município. Desde esta mudança, ocorrida
em 2013, as cores que compõem o dia a dia do Caps de Conceição tornaram-se um
pouco mais escuras.

230

No percurso de 200 quilômetros entre Conceição do Araguaia e Xinguara,


encontra-se Redenção. Este município de 75 mil habitantes fica incrustado bem no
meio da estrada entre os outros dois. Nele, Geraldo também buscou, em seu trabalho
de apoio matricial, criar um Caps e formar uma equipe de saúde mental engajada.
Conseguiu apenas o primeiro.

O Caps de Redenção foi criado em 2010. Por esses tempos, morava no


município uma médica paranaense que havia se casado com um paraense da região.
Elaine Pigosso, 38 anos, começou a trabalhar no centro no início de 2011. Logo no
seu primeiro dia no emprego novo, conheceu Geraldo, que passava pela cidade para
prestar matriciamento apenas uma vez por mês. A empatia entre eles foi imediata. Ela
era clínica geral, mas, com os ensinamentos do psiquiatra, aprendeu a abordar
pacientes em surto e passou a conviver com inúmeras histórias de transtorno mental.
E, assim como alguns profissionais do Caps, ficou feliz ao ver a melhora de alguns
deles:

-- Inclusive um que, antes de eu entrar no Caps, tinha mordido o pescoço da


própria mãe e, depois de tratado, cuidava da mesma, que era cadeirante -- conta.

Apesar dessas gotas de satisfação, não tardou para que aparecessem os


primeiros conflitos de interesses. Elaine, que atendia diariamente no Caps, não
concordava com muitas das atitudes da coordenação da unidade. Chegou um
momento em que as diferenças ficaram insustentáveis. Com a mudança de gestão, a
partir do início de 2013, ela decidiu sair do Caps. Pouco tempo depois, divorciou-se e
decidiu mudar de cidade.

Ao contrário de seu colega paraense, para ela, envolver-se com saúde pública
foi uma experiência dolorosa, da qual ainda guarda muitas mágoas e rancores. Elaine
tinha de conviver não só com maus profissionais. Havia uma politicagem muito forte
dentro do órgão:

-- A estrutura era precária, como em todos os órgãos públicos de saúde da


região. Mas a minha maior dificuldade foi conciliar a política com a medicina. Os
coordenadores não eram nada capacitados. Eram quase analfabetos. Cometiam erros
grosseiros de ortografia, mas estavam engajados nos partidos e ganhavam o cargo
231
como prêmio pela campanha política. Depois, usavam o serviço como apoio
eleitoreiro. E o coordenador também tinha que ser a favor do desvio de medicações e
tinha que elaborar falsos relatórios a respeito do funcionamento do serviço, a fim de
driblar a fiscalização para não ocorrer o corte da verba por parte do governo.

Elaine, apesar da sua boa vontade, não conseguiu trabalhar neste ambiente --
e nem Geraldo, que deixou de prestar matriciamento comunitário em Redenção
também em 2013.

A médica, depois que saiu do Caps, viu andarilhando pelas ruas de Redenção
aquele mesmo paciente que, depois de recuperado, cuidava da mãe cadeirante. O
homem estava quase nu e vagava, novamente, em surto, pelos becos e ruelas da
cidade.

No retorno da estrada entre Redenção e Xinguara, há um pequeno município


de 17 mil habitantes que se chama Rio Maria. O lugar fica distante de Xinguara
apenas 27 quilômetros, algo em torno de quinze ou vinte minutos de carro pela
rodovia. Um percurso realizado às pressas numa manhã de 2009 pela psicóloga Maitê
Palmeira, 33 anos. Naquele dia, Maitê saiu bem cedo de Rio Maria. Levava a seu lado,
em seu automóvel, um paciente que precisava de atendimento psiquiátrico e cuja
família queria internar. Como em Rio Maria não havia psiquiatra, Maitê havia
vislumbrado uma alternativa ao impasse no profissional que atendia uma vez por mês
em Xinguara. Ela havia tomado conhecimento do médico por meio de um colega
assistente social, que trabalhava na Secretaria de Saúde de Rio Maria. O homem,
porém, havia alertado a psicóloga que os dois municípios, Xinguara e Rio Maria, não
eram pactuados, e que, portanto, havia o risco de que o médico não a atendesse.
Mesmo assim, ela foi.

Maitê e o paciente chegaram no meio de um acolhimento conduzido por


Geraldo. Assim que viu os dois entrando pelo portão de ferro, o médico parou o que
estava fazendo e perguntou por que estavam ali. A psicóloga relatou o problema. Para
sua surpresa, Geraldo não só a auxiliou naquele momento, mas também lhe passou
seu número de telefone e disse que iria ajudá-la em outros casos e no que mais ela
precisasse.

232
Naquele ano de 2009, em Rio Maria não existia Caps e Maitê não fazia parte
de nenhuma equipe de saúde mental. Ela era psicóloga do Programa Saúde da
Família e atendia em cinco unidades de saúde do município -- uma em cada dia da
semana. Em todos esses locais, Maitê notava a presença de pacientes com
transtornos mentais e buscava atendê-los como podia -- em seu consultório, em grupo
ou particular -- e evitar ao máximo as internações. Depois que conheceu Geraldo,
percebeu a necessidade do psiquiatra no município. Passou a batalhar para sua
contratação, efetivada em 2010. Neste ano, os dois começaram a trabalhar juntos para
fazer um projeto de criação do Caps em Rio Maria. Maitê realizava os procedimentos
burocráticos, enquanto Geraldo a orientava e lhe dava incentivo moral.

Ela, porém, encontrava grandes dificuldades. As tarefas que assumia lhe eram
um fardo. Era ela quem ia encontrar o psiquiatra em Xinguara, uma vez por mês.
Gastava a gasolina do próprio carro para buscá-lo e levá-lo de volta. Quando o salário
do médico atrasava ou não vinha, era ela quem resolvia a pendência. Tudo
relacionado a Geraldo em Rio Maria, de acordo com ela, era ela quem se
responsabilizava:

-- Parecia que só eu via a importância dele no município.

A este peso, veio outro: o de ver a demora e o desinteresse das autoridades


públicas em aprovar o projeto do Caps em Rio Maria.

Maitê sentiu-se desestimulada por todos esses obstáculos. Assim como Elaine,
sentiu que não conseguia se adequar ao serviço público de saúde. Em 2011, saiu do
SUS e passou a atender em consultório particular. De seus três anos de serviço
público, ela guarda apenas uma boa lembrança:

-- Trabalhar com o Geraldo foi uma experiência muito boa, pois era uma
pessoa correta no meio de tantas incorretas. Ele se preocupava com o paciente, não
era uma pessoa vendida e não estava ali somente por dinheiro, fazendo um trabalho
nas coxas. Ele defende o que vê que é correto, sem medo de se comprometer.

No início de 2013, entrou em funcionamento, sem a presença de Geraldo, o


Caps de Rio Maria. Nenhum crédito pelo esforço de construção foi dado a Maitê, que
já estava fora da rede pública. A psicóloga sentiu o desacato. Por vingança e mágoa,
nunca pisou no lugar.

233
14.

Se nossa sociedade considera que ataques cardíacos, ataques de


pânico, buraco de ozônio, homicídio, genocídio, suicídio, combates
étnicos, tiroteios em colégios, contendas religiosas, recessão,
depressão, vício em drogas, etc., são algo perfeitamente normal e
sadio -- então, sim, a cabala pode deixá-lo louco.

Eu quero ser doida, pela vida, por mim e pelas pessoas que estão
perto de mim, mesmo que eu não as conheça. Porque a energia
delas me afeta, e a minha afeta elas. Quero dar o melhor de mim,
para que se lembrem de mim e se sintam melhor. Se elas não
estiverem perto de mim, que saibam que tem alguém longe e que
sente a falta delas.

Uma coisa que nunca te disse: eu já pensei em me matar. Mas


penso no sofrimento da minha mãe. E isso não é luz, é escuridão.

Se quero o bem das pessoas perto de mim, tenho que ficar bem
para cuidar delas também.

Relato de uma paciente

234
-- O que a gente percebe é que, muitas vezes, as pessoas que estão à frente
dos Caps têm cargos políticos. E o Caps de Goianésia não caiu de paraquedas, não
veio para se desviar mais um dispositivo no município, não. Ele tem toda uma história
de luta. É como se fosse um filho gestado, e isso não tem para ninguém. Os outros,
não. De repente, politicamente, muda a coordenação do serviço, coloca alguém
político que não entende nada, aí não articula, não chama para ação, aí não vai para
frente. É uma mera figura representativa num cargo. E os recursos dificilmente
chegam aonde é para… ser. Esse que é o problema.

Em poucas palavras, a psicóloga Socorro Helena Lima dos Santos, 55 anos,


resumiu a situação da maioria dos Caps no sul do Pará -- e, quiçá, de vários
municípios Brasil afora. Foram essas dificuldades que desestimularam a médica
Elaine, a psicóloga Maitê, a enfermeira Carmen Lúcia e, com certeza, muitos outros
profissionais interessados em trabalhar com saúde mental no país. E que não viram
meio de conciliar seu trabalho com a politicagem dentro dos órgãos públicos.

-- O Caps deve funcionar de acordo com a política nacional de saúde mental --


continua Socorro. -- Tem acolhimento, tem programa terapêutico. Os profissionais
daqui, quando eles entram na equipe, eles começam a entender isso, e aí não dá para
fazer de conta. Isso... como eu posso dizer... precisa ser até verificado, porque como
eu posso apresentar uma produção para o Ministério (da Saúde) se eu não tiver
população aqui? Como eu posso dizer... porque os Caps têm um elenco de atividades
para serem feitas. E como nos Caps que vocês veem por aí aparece gente só no dia
do médico? Que não têm um programa estipulado por uma equipe mínima? Tu não vê
eles almoçando, tomando café da manhã… O que está acontecendo?

Socorro tem propriedade para falar do assunto, pois conhece a realidade dos
Caps no sul do Pará e também porque, com ela, foi diferente. Eterna apaixonada pela
área em que atua, a psicóloga fez questão de lutar pela saúde mental no município
que adotou como seu.

235
Nascida em Castanhal, a 70 quilômetros de Belém, Socorro casou-se com um
homem de Goianésia do Pará, a 400 quilômetros de sua cidade natal, e mudou-se de
mala e cuia para o interior do estado. Corria o ano de 1995. Depois de fincar suas
raízes em Goianésia, ela abriu um consultório particular e também começou a
trabalhar como psicóloga na rede municipal de Educação.

Dois anos depois, em 1997, um psiquiatra que chacoalhava a rede pública de


saúde de Tucuruí, vizinho a Goianésia, começou a atender no hospital municipal da
cidade. Por oito anos, todas as sextas-feiras, Geraldo pegava seu carro e percorria os
85 quilômetros de estrada que separam Tucuruí de Goianésia para prestar
atendimento a pacientes do município vizinho, que não possuía Caps e era bastante
carente em serviços de saúde mental. Socorro não estava a par, apesar de ter um
consultório na cidade. Ela foi conhecer Geraldo só em Tucuruí, quando levou seus
pacientes particulares a um Caps que, naquele tempo, fervilhava em atividades de
saúde mental, com uma equipe completa e muita movimentação de pacientes.

-- Tua cidade não tem prefeito, não? -- provocou o psiquiatra, ao vê-la entrar
pelo salão aberto do Caps de Tucuruí.

Há tempos, Geraldo cutucava a gestão municipal de Goianésia para a


necessidade de um Caps e de serviços de saúde mental na cidade. Se essas
provocações não interessaram as autoridades públicas locais, elas tocaram fundo no
coração de Socorro.

A psicóloga, depois de conhecer Geraldo, decidiu criar um Caps em Goianésia.


Para atingir este objetivo, ela fez uma planilha com os nomes de seus pacientes
particulares e suas demandas. Em seguida, foi ao hospital municipal para investigar os
serviços de saúde mental existentes. Encontrou uma porta com uma pequena placa,
onde lia-se “saúde mental”. Socorro entrou no recinto e viu uma enfermeira
dispersando remédios para os pacientes.

-- Eles só tomavam diazepam, lexotan, tudo no pan… Criando uma nova legião
de dependentes químicos -- conta.

A psicóloga descobriu que os 180 pacientes que eram atendidos no setor não
tinham, na verdade, acompanhamento médico. Resolveu pegar a ficha de cada um
deles com a enfermeira e juntar os dados com a sua demanda do consultório. Depois
deste procedimento, foi ter com a coordenadora municipal de Atenção Básica. A
mulher a auxiliou a escrever o projeto e a protocolá-lo na Câmara Municipal. Uma vez
aprovada no Legislativo, a papelada deveria passar pelo Conselho Municipal de Saúde

236
para, em seguida, ser aprovada pela Secretaria de Saúde. Foi neste momento que
Socorro conheceu as barreiras burocráticas -- e políticas -- para a aprovação de um
Centro de Atenção Psicossocial. Foram três tentativas frustradas de fazer passar o
projeto do Caps pelo Conselho. Os integrantes do órgão divergiam politicamente dos
da Secretaria. Além disso, eram muitos os políticos -- sobretudo legisladores -- que
não viam a necessidade de um Caps no município.

-- Só vai dar mais despesa -- diziam a Socorro.

A psicóloga perdeu as contas de quantas vezes ouviu que “aquele negócio”


não ia sair. Inclusive da boca de prefeitos e secretários de Saúde.

Quando, em 2005, mudou a gestão municipal de Goianésia, Socorro conseguiu


abrir um canal de negociação. Por intermédio de uma conhecida, encontrou-se com
integrantes do novo governo. E levou toda a papelada para que eles analisassem.
Todos ficaram entusiasmados com o projeto e, enfim, começaram a trabalhar para sua
concretização.

Assim nasceu o Caps de Goianésia. Ele foi inaugurado com uma grande festa
em setembro de 2005. Por três anos, foi a gestão municipal de Goianésia do Pará que
custeou as despesas do Caps, dos profissionais do órgão e de todas as atividades e
consultas que promoviam, pois a portaria do Ministério da Saúde foi expedida apenas
em 2008.

Socorro surgiu como a diretora do Caps. Ela saiu da Educação e foi para a
Saúde, a fim de coordenar as ações em saúde mental no município.

-- E, hoje em dia, quando eu vejo eles aí, eu fico muito feliz. Eu digo para eles
que eles são os protagonistas daqui. Eles que não podem deixar isso afundar. Eles
são os responsáveis por isso aqui. Porque não pode trabalhar ninguém aqui que
maltrate eles. Que não acolha eles. Eu digo isso para eles. E eles têm voz.

Para ratificar esta constatação, Socorro conta a história de quando um ladrão


tentou levar do Caps a televisão e o aparelho de DVD no qual os pacientes assistiam
filmes durante as sessões de Cinematerapia. Embora o furto tenham sido mal-
sucedido, o homem, em um acesso de raiva, jogou o aparelho de DVD no chão e
quebrou-o. Era noite. Na manhã seguinte, um grupo de quatro pacientes, indignados,
decidiu ir até o gabinete do secretário de Saúde para reivindicar os seus direitos:

-- Secretário, nós não estamos aqui, porque a doutora Socorro mandou. Por
sinal, ela nem sabe que nós estamos aqui. Mas nós queremos que o senhor
237
providencie o nosso vídeo, que o bandido lá destruiu. É só isso que a gente está
pedindo.

A psicóloga relata com orgulho este episódio. Não é para menos: ele é fruto de
um trabalho intenso, amoroso e determinado. Socorro lutou e foi vitoriosa. Mas seu
triunfo não ofuscou sua humildade. E, sem nenhum esforço, ela faz transparecer esta
virtude:

-- Isso não é meu, não é da gestão, é deles. Eles têm que ter o cuidado, têm
que zelar por isso. E eles têm essa consciência. Estamos aqui de passagem, e é por
isso que eu sempre digo: que outras pessoas façam até melhor.

À esquerda, acima, Socorro posa para foto no Caps de Goianésia do Pará. À direita, oficina de desenho e pintura no
Caps. À direita, abaixo, os arquivários da casa e, à direita, a farmácia do centro de saúde. Crédito das fotos: Alice Arida

238

As paredes brancas e o piso frio de cerâmica denotavam a simplicidade da


sala. O lugar era iluminado, espaçoso e bem-ventilado. As cadeiras de plástico haviam
sido reunidas a um canto do recinto, para permitir que a roda humana fosse formada.
Mais uma vez, os semblantes eram morenos e enrugados de sol, e os pés e as mãos,
calejados de uma vida de trabalho na roça. As peles expunham marcas de dor e de
sofrimento, mas os lábios esboçavam sorrisos. Ao final, cantavam, batiam palmas e
abraçavam-se.

Terminava, assim, o II Encontro de Saúde Mental de Goianésia do Pará,


realizado em outubro de 2007. Presentes na roda estavam Geraldo, Socorro e
autoridades públicas. Eles receberam o carinho das pessoas que frequentavam o
Caps e que usufruíam dos serviços de saúde mental agora existentes no município,
graças ao comprometimento da gestão.

Geraldo ganhou presentes, agradecimentos e muitos abraços. Quando chegou


a vez de Socorro abraçá-lo, o amplexo foi longo, longo, longo, e apertado. O médico
não se conteve.

-- Chora! Chora! Chora! -- entoaram os participantes em coro.

O psiquiatra emocionou-se e permitiu que as lágrimas deslizassem pelo seu


rosto. Naquele momento, provou que, para ele, nunca houve pedestal. Mais do que
nunca, ele se misturou aos outros. Não aos seus pacientes. Àqueles que, como ele,
eram humanos.

...

Em 2013, Geraldo deixou de prestar matriciamento comunitário no Caps de


Goianésia do Pará. Mudou a gestão, mudaram os profissionais.

Socorro, no entanto, mantém-se como diretora. É ela quem coordena tudo,


com pulso firme, e acompanha todas as atividades, desde o café da manhã e o
acolhimento até os grupos terapêuticos. No Caps de Goianésia, há sessões semanais

239
de Cinematerapia, Massoterapia, Relaxamento, Musicoterapia, Meditação, além de
oficinas de teatro, de poesia e de jogos.

E o próximo passo de Socorro é montar uma associação com fins lucrativos


para geração de renda para pacientes do Caps. Segundo ela, a Associação de Saúde
Mental de Goianésia do Pará recebeu CNPJ pela Receita Federal em 2012 e busca
uma parceria com a Fundação Curro Velho, com sede em Belém e mantida pelo
governo do estado do Pará, para geração de renda a partir de atividades ligadas à arte
e cultura -- como artesanato, dança, música, teatro. Esta ambição da psicóloga denota
o quanto o Caps de Goianésia é vivo e atuante, graças ao trabalho dela e de sua
equipe.

Não muito longe de Goianésia, porém, existe outro Centro de Atenção


Psicossocial que funciona de maneira oposta ao coordenado por Socorro. Em Breu
Branco, 60 quilômetros a oeste de Goianésia, uma pequena casa, meio antiga, meio
abandonada, abriga o Caps da cidade. Lá vê-se gente só no dia do médico. Nessas
datas específicas, o lugar fica lotado de pacientes aguardando as consultas. Quem
atende é Geraldo. Um pouco decepcionado, ele passa em revista todos os pacientes e
dispersa receitas. Em Breu Branco, ele desistiu. Embora esta cidade de 55 mil
habitantes seja distante apenas 20 quilômetros de Tucuruí, um percurso de meia hora
de carro, ele não conseguiu concretizar seu trabalho de matriciamento comunitário no
município vizinho.

Desde que havia chegado a Tucuruí, na década de 1990, Geraldo atendia


pacientes de Breu Branco. Primeiro, ele realizava seu trabalho como clínico.
Posteriormente, atendeu como psiquiatra. Nunca perdeu uma oportunidade de
provocar ou pressionar a gestão municipal local a criar uma rede de serviços em
saúde mental. Sem sucesso. O Caps de Breu Branco surgiu apenas em 2008 -- a
habilitação pelo Ministério da Saúde veio somente em outubro de 2009 -- e nunca
funcionou de acordo com a política nacional de saúde mental. Lá, não há sessões de
terapia comunitária nem grupos terapêuticos. Falta material para as atividades mais
básicas, como desenho ou relaxamento. Uma janela foi quebrada e assim
permaneceu -- não chega verba para consertá-la. A sala de terapia ocupacional está
praticamente vazia. Há três salas que funcionam como consultórios: em duas delas,
há apenas uma mesa e uma maca; na última, há apenas uma mesa. A quinta sala
funciona como farmácia, onde os profissionais da casa guardam os remédios que
serão distribuídos para os pacientes no dia do médico.

240
Nos fundos do Caps, existe um quintal abandonado: entulhos ocupam os
cantos do pequeno espaço aberto, enquanto um capim desgovernado cresce por todo
lado. O lugar bem poderia ser usado para atividades terapêuticas. Mas, para o quintal,
assim como para tudo no Caps de Breu Branco, não há apoio da gestão municipal. Os
profissionais do lugar cansaram de mandar ofícios solicitando verba para o bom
funcionamento do centro. Estão aguardando uma resposta até agora.

Caps de Breu Branco. Crédito: Alice Arida

Direcionamo-nos, Alice e eu, ao Caps de Breu Branco, em uma manhã de


setembro. Era quarta-feira, mas não era dia do médico -- portanto, o Caps estava
vazio. Ao abrir a porta do lugar, vimos apenas duas funcionárias atrás do pequeno
balcão de recepção. Uma delas era a nossa entrevistada do dia: a assistente Rosália
Lemos Cavalcante, 43 anos. Rosália nos esperava meio ansiosa e meio tensa. Olhou
para baixo e falou para dentro quando fomos cumprimentá-la. Por um momento, achei

241
que aquele encontro não fosse dar em nada. Mas, segundos depois, ela nos convidou
a entrar em uma das salas de consultório, para fazer a entrevista. Finalmente.

Há dias, eu procurava contato com ela. Rosália estava ciente, mas não
retornava minhas ligações. Naquela manhã, explicou-se:

-- Eu não sabia se ia ter coragem de contar a minha história para vocês.

Não era para menos. Rosália é uma paciente que virou servidora do Caps. E
eu queria descobrir como havia sido essa mudança. Para isso, inevitavelmente ela
teria que nos contar a narrativa de sua vida. E Rosália é uma mulher bastante
sensível. Mas não só. Eu soube mais tarde: ela também é uma vitoriosa.

Começou sua fala relembrando as duas gravidezes -- sem saber que eu estava
grávida. Na primeira, quando tinha 19 anos, disse que engordou 25 quilos. Era
magrinha, magrinha, mas, assim que pegou barriga, alcançou os 80 quilos. Não podia
passar meia hora sem comer. Chegou a desmaiar de fome. Assim se passaram os
nove meses. Em setembro de 1991, nasceu Ana Paula, e então Rosália conheceu as
angústias do resguardo. Teve crises e brigou com o marido. E acha que foi neste
momento de sua vida que tudo começou: os tormentos, a doença. Mas Rosália seguiu
em frente. Passou pelo pós-parto e, dois anos depois, viu seu ventre crescer
novamente.

Em sua segunda gravidez, foi informada de que estava com toxoplasmose,


uma doença causada por um protozoário e que pode dar febre, cansaço, dores e
manchas no corpo e ser transmitida para o feto. Ela teve câimbra na costela,
desmaiou diversas vezes e perdeu a conta de quantas noites passou sem dormir.
Angustiava-se por ter de ir ao hospital regularmente para tomar injeções. No oitavo
mês de gestação, de repente, emagreceu oito quilos. Nessa época, Rosália, que
nasceu em Fortaleza e mudou-se aos oito anos para Tucuruí, morava na roça, a 12
quilômetros da cidade, e ia de bicicleta, com o marido e o barrigão, visitar o médico.
Eles percorriam as estradas de terra esburacadas até a margem do rio Tocantins,
onde pegavam uma pequena balsa até Tucuruí. Certa vez, ao chegar ao Regional com
fraquezas, dores e tonturas, foi maltratada pelo médico que a atendeu:

-- Eu tava passando mal, e ele disse que era frescura minha -- conta.

Rosália penou muito nesta gravidez. E, apesar dos riscos e das dores, Renata
nasceu saudável e sem indícios de toxoplasmose. Rosália tinha 22 anos quando teve
sua segunda e última filha. As crises, porém, não pararam. Pelo contrário.

242
Intensificaram-se. Não tardaram a surgir os sintomas da doença que carregaria pelo
resto de sua vida, o transtorno bipolar. No princípio, porém, Rosália atribuía tudo o que
sentia ao marido:

-- Ele demonstrava ser uma pessoa quando a gente namorava. Quando a


gente se casou, aí ele tinha dois lados. Não era porque ele queria, era tipo assim, de
repente. Um stress, alguma coisa modificava ele. E como eu era, assim, muito amada,
muito paparicada pelos irmãos, pela mãe, minha mãe sempre fez de tudo para dar o
melhor para mim, por mais humilde que fosse a nossa vida, eu tinha muito amor na
casa da minha mãe. Então, eu estranhei, sabe. Só que, no começo, eu nunca revidei.
Os mals (sic), as palavras, entendeu, tortuosas que ele me falava. Eu nunca revidava.
Aquilo foi acumulando dentro de mim. Passava seis meses, um amor de pessoa. Aí,
vamos supor, seis meses vinha aquela outra pessoa, grossa. Ao mesmo tempo que de
manhã tava ótima, à tarde já não tava. E uma pessoa evangélica, não bebia nem
nada, e eu ficava imaginando por quê. Por que essa transformação de humor? Por
isso que, quando ele me levou para o Caps, que eu acho que já tinha pegado tanta
carga negativa... Como eu não tinha uma irmã para desabafar, ele me proibia de usar
que fosse uma base na unha, um batom carinho que fosse... que toda mulher tem sua
vaidade, né? Eu fui criada com a minha mãe, por mais amor que seja, mas num
sistema rígido. Então, quando eu casei, piorou aquela rigidez. Eu não tinha liberdade
de me arrumar, era aquela saiona lá embaixo. Hoje, todo mundo fala que eu renovei
uns quinze a vinte anos. Pela forma que eu me arrumo, que eu tenho liberdade de me
arrumar hoje. Antes não, era do jeito dele.

Desde o primeiro período de resguardo até Ana Paula completar seis anos,
Rosália sofreu. Corria o ano de 1997 quando foi levada pelo marido ao posto de saúde
da Cohab, onde aconteciam sessões de terapia comunitária conduzidas por um novo
psiquiatra que havia chegado a Tucuruí, e onde uma equipe de saúde mental oferecia
assistência. A cearense foi uma das primeiras pacientes a ser atendida por este
pessoal. O Caps de Tucuruí ainda nem existia. Rosália acompanhou toda a evolução
do trabalho de Geraldo, e ficou feliz ao presenciar a inauguração da Casa Machado de
Assis:

-- Eu amo demais o doutor Geraldo. Para mim, é meu pai do Caps -- conta.

Justamente por ser pai, os dois tiveram inúmeras discussões. Rosália não
esconde o que a deixa descontente nas consultas com o médico, e diz abertamente
para nós o que já falou abertamente para ele:

243
-- Eu, como paciente, tenho esse depoimento. Que os médicos, eles não
ouvem os pacientes. Eles ouvem o acompanhante. Muito mais. Acho que 85% eles
ouvem o acompanhante. Ele não olha dentro do olho do paciente, igual o psicólogo
olha e escuta realmente, qual é a versão? Ele já vai passando o remédio. Eu queria
que ele tratasse nós dois, porque, se eu tava daquele jeito, era consequência das
grosserias dele (do marido). Mas, para o médico, é o paciente. Aí, já me aplicaram
uma injeção lá, e eu fui para o Regional dopada, fiquei dois dias e duas noites. E eu
acho assim, a partir do momento em que começa a tomar medicamento, pronto.
Enquanto puder adiar, levar no psicólogo, numa terapia, interagir, antes da medicação,
melhor. Depois que começa a tomar medicação, é difícil. Para você sair. A gente tem
que ter um pensamento muito positivo, tem que buscar uma força gigante, para
conseguir superar. Porque não é fácil.

Os medicamentos fazem parte da vida de Rosália desde os seus vinte e


poucos anos e ela se sente agoniada, porque, no fundo, pressente que não
conseguirá se livrar nem deles, nem da doença. É uma angústia permanente com a
qual teve que aprender a conviver. Às vezes, Rosália se sente bem e, então, passa
meses sem ver os remédios. Nesse período, ela renova sua esperança e torce para
que não precise mais deles. Até que chega o dia em que ela dorme e acorda diferente.

-- Quando eu percebo que estou precisando (dos remédios)? Quando eu


começo a ter insônia. Isso tudo, eu fiquei com sequelas. Eu não sei se Deus um dia
vai me curar, sabe. Mas eu fiquei, o meu é bipolar. É até uma alegria... tem que saber
e me dizer. Foi um choque muito forte de tristeza, uma perca. Só que muitas vezes tu
é normal para fazer as coisas do dia a dia, mas para essas coisas a família não toma
uma atitude de saber e levar para gente. Tu continua sendo normal para pegar as
porretadas da vida, entendeu. Eu acho assim, enquanto a família não se conscientizar,
desse lado aí, não vai encaixar o verdadeiro tratamento. É muito mais difícil para a
família do que para o paciente quando tá passando por esse problema, porque, quem
tá cuidando do paciente, aquele paciente, ele maltrata muito mais com palavra aquela
pessoa que tá ali, presente. Mas só que muitas vezes o paciente se sente sufocado
também. No meu caso, eu, graças a Deus, nunca tive problema de querer fazer o mal
para a minha pessoa, nunca agredi ninguém. O pessoal fala que o meu surto é um dos
surtos mais bonitos, porque eu danço, eu me alegro, eu me arrumo mais. Por isso que
eu falava que quando eles pensam que eu to ruim é que eu to boa. Sabe qual a fase
mais difícil da minha vida, se é que bipolar é assim mesmo? É quando... o período que
eu fico triste. Que eu não consigo me estressar, não porque eu não saiba, porque eu
fico com falta de memória. E aí eu tenho vergonha de começar a falar, pensar em falar

244
uma palavra e sem querer sair outra. Aí, para não ficar envergonhada, eu evito
conversar. Esse é o período que eles, a família, pensam que eu estou bem e é quando
eu não estou. E eu nunca me tratei nesse período, porque eu não consigo pedir ajuda.
Tu acredita? Eu não consigo pedir ajuda. Eu tenho vergonha de pedir ajuda. Não sei
por quê.

Nesse ponto da conversa, Rosália chora. Estamos, Alice e eu, caladas.


Podemos, por um segundo, apalpar o sofrimento de uma vida inteira. Mas esse
segundo não é suficiente.

Pergunto se ela sabe diferenciar essas fases do surto. Ela diz que não. Na sua
cabeça, é tudo muito confuso:

-- É assim... do nada. Tu dorme e tu acorda diferente. E é um período que eu


sofro muito. Porque eu sou inteligente, e eu não consigo... ser o que eu sou. Tenho
dificuldade até de fazer o normal. As coisas simples do dia a dia, sabe.

Quem conhece Rosália sabe do que ela fala. Ela sempre foi uma mulher
trabalhadora e estudiosa. A muito custo, interrompeu os estudos quando casou, aos
18 anos. Ela cursava a sétima série e gostava daquilo. Foi morar na roça com o
marido e passou a invejar os jovens que iam para a cidade estudar. Prometeu a si
mesma que voltaria aos livros assim que suas filhas estivessem mais velhas.

Enquanto isso, quando não estava em crise, Rosália cuidava da casa, fazia
faxina, comida, lavava roupa e cuidava das meninas. Só não podia se arrumar, por
ordens do marido. Os dois não se davam no dia a dia. Ele era um bom pai, mas não
servia para ela como companheiro. E chegou um momento em que Rosália sentiu uma
necessidade brutal de acabar com essa dependência. Resolveu tomar uma atitude.
Ela mesma aponta a saída:

-- Eu tinha que fazer o quê? Estudar, né. Eu tinha que lutar pelo meu futuro.

Contra a vontade do homem, Rosália voltou a estudar. Matriculou-se em um


curso supletivo e mergulhou nos livros. Conseguiu concluir a oitava série -- hoje, nona
série -- e, em seguida, realizou o Ensino Médio Modular. O marido, ao vê-la
empenhada nos estudos, passou a incentivá-la. Ele ficava com as meninas para que
Rosália pudesse finalizar a escola.

Depois que terminou o Ensino Médio, ela voltou a ficar em casa. Foram anos
de muita ansiedade e muitas atividades no Caps, onde Rosália buscava a força para
atingir os seus objetivos. Por três anos, ela almejou encontrar um emprego. Mas este
245
não chegou. Então, ela se deu conta de que, mais uma vez, precisaria batalhar por
aquilo que buscava. Resolveu bater na porta da prefeitura de Breu Branco, e saiu de lá
com um cargo de auxiliar administrativo na Secretaria de Educação. Era contratada,
mas, assim que saíram os editais de concurso público, prestou. Passou na sétima
colocação no concurso para auxiliar administrativo na prefeitura. Ela continuou
trabalhando na Secretaria de Educação, mas guardava um segredo para si:

-- Meu sonho sempre foi trabalhar no Caps. Para tentar ajudar a fazer aquilo
que fizeram comigo, que me ajudaram lá dentro, eu também fazer a minha parte aqui.

Mas ela não demonstrava a ninguém esta vontade. Por isso, surpreendeu-se
quando foi convidada a ocupar o cargo de auxiliar administrativo no Centro de Atenção
Psicossocial de Breu Branco. Uma enfermeira do lugar havia visitado o Caps de
Tucuruí e soube, pelos servidores de lá, que Rosália frequentava o centro do
município vizinho e estava envolvida em diversas atividades, sobretudo a dança -- ela
era o braço direito do professor Gil e bolava com ele todas as coreografias do Caps de
Tucuruí. A mulher decidiu chamar Rosália para uma conversa, para saber se ela
gostaria de ir para o Caps de Breu Branco:

-- Gente, foi assim, tudo! Eu fiquei tão feliz!

Desde 2009, Rosália procura organizar atividades ocupacionais no Caps de


Breu Branco, como artesanato, costura, dança. Mesmo sendo auxiliar administrativo,
mesmo sem apoio da gestão municipal, mesmo sabendo que o Caps onde trabalha
funciona mais como um ambulatório. Para ela, isto não importa. Seu desejo maior
ultrapassa todas essas barreiras:

-- Tenho muita fé que um dia a gente vá mudar a história do Caps de Breu


Branco. Eu vou lutar para que isso aconteça, se Deus quiser.

246
Rosália, no Caps de Breu Branco. Crédito: Alice Arida

Este sonho não demoraria a ver a luz do dia se dependesse do amor que ela
tem dentro de si. Um amor que ela demonstrou com todo o seu brilho quando se
separou do marido. O homem conhecera outra mulher, com quem se casou e teve
dois filhos. Rosália não sentiu ódio, nem remorso. Cinco meses depois da separação,
relacionou-se com um rapaz dez anos mais novo, com quem ficou um ano e meio.
Este homem a ajudou a esquecer as más lembranças do casamento e mostrou-lhe o
que era o amor verdadeiro. Foi um relacionamento tão tranquilo que Rosália nem
sentiu quando terminaram. Passaram-se alguns meses e ela conheceu, enfim, seu
atual esposo, com quem está há sete anos, mas não é casada:

-- Eu não pretendo casar mais. Traumatizei. Eu aprendi que homem nenhum


me tira a minha paz. Se eu perceber que está me fazendo mal, eu termino. Porque,
para mim, é eu, é Deus e eu, e eu em primeiro lugar. Por quê? Se eu não estiver bem,
eu não vou cuidar bem da minha filha, não vou dar amor para o meu neto, não vou dar
amor para quem está do meu lado. Se tá me fazendo mal, é porque não me ama. E eu
não mereço. Eu mereço tudo de bom, porque eu sou boa, não é?

Depois da separação, Rosália e o ex-marido tornaram-se amigos. Ela nos


conta que frequenta a casa dele e de sua nova família, a mulher e os dois filhos.
Todos passam juntos datas comemorativas. Até hoje, o ex-marido a ajuda e a protege.

247
Nunca teve preconceito em relação à sua doença. Nem ele, nem os outros dois
homens com quem Rosália se relacionou.

Ficamos, Alice e eu, surpresas com essa informação. Rosália havia


conseguido o que pouquíssimas pessoas conseguem. E descobrimos, mais tarde, que
esta não havia sido a única reconciliação da vida dela. Havia mais: ela tinha 28 anos
quando, depois de dezesseis anos, reencontrou o pai. O homem havia fugido e
abandonado a família depois de uma tragédia na qual viu-se envolvido, em Tucuruí.
Rosália era uma menina, tinha 12 anos à época. Cresceu com outros três irmãos -- na
verdade, eram quatro, mas um irmão decidiu fazer a vida em outro estado -- e vendo a
mãe costurar de dia e de madrugada para sustentar a família. Uma vez por ano, a
mulher comprava quatro ou cinco tecidos para fazer os vestidos da filha. E era aquilo
que Rosália usava o ano inteiro.

Por 24 anos, até a sua morte por infarto fulminante, em 2008, quando tinha 60
anos, a mãe de Rosália nunca quis saber de homem nenhum. Dizia que aguardava a
volta do marido e, enquanto isso não acontecia, vivia casada com Deus. Rosália
respeitava a opinião da mãe, mas, quando entrou na adolescência, sentiu uma onda
de revolta se espalhar pelo seu corpo em mudança. Renegou o pai e enfiou as
lembranças e angústias paternas em um canto afastado de seu ser, como se
quisesse, ou pudesse, se livrar delas. O que se provou impossível: já na fase adulta,
ela voltou a remexer nessas memórias. E veio, de repente, uma vontade de fazer as
pazes. Reconciliar. Ela já sabia que o pai vivia em Mato Grosso. Pegou Renata, sua
filha caçula e com cinco anos à época, e rumou para a rodoviária de Tucuruí, com o
coração cheio de apertos. Tomou o ônibus e, nas horas seguintes, procurou aliviar a
ansiedade observando a paisagem. Dois mil quilômetros de estrada a esperavam. Um
percurso longo, do qual ela se lembra até hoje:

-- Gente, Cuiabá é longe. Eu nunca tinha saído só na minha vida, eu fui mais
essa menina. Eu fui com o dinheiro da passagem e um dinheiro para a gente comer no
caminho. Gente, eu reconheci a letra do meu pai. Ele me esperou, me esperou, o
ônibus atrasou, eu cheguei três horas da madrugada lá em Cuiabá, ele deixou um
bilhete com um táxi, e eu reconheci a letra do meu pai. Quanto tempo... dezesseis
anos depois.

Quando, enfim, reencontraram-se, Rosália recorda que o homem abraçou a


neta primeiro e, depois, ela. Esta lembrança a marcou. Hoje, ela diz que o entende: ela
mesma já é avó de um garoto de dois anos, filho de Ana Paula, e garante que é como
ser mãe duas vezes, tamanho o amor.

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Quatro anos depois desta viagem, o pai de Rosália faleceu. E nunca em sua
vida ela sentiu tanto quanto naquele momento que tinha cumprido a sua missão: havia
reencontrado, abraçado, beijado, conversado, desabafado e resolvido as pendências
com o homem. Antes disso, dele ela só guardava duas reminiscências:

-- Só uma vez que ele mandou um dinheiro, a minha mãe comprou um tecido e
fez um vestido para mim. Até hoje eu guardo esse vestido. Assim, a lembrança do que
o meu pai tinha me dado. Era isso que eu tinha. E uma vez só que eu falei no telefone
com ele, que eu lembro. Só uma vez.

Ao final da nossa conversa, Rosália nos pergunta o que achamos da história


dela.

-- É uma história de superação -- disse eu.

-- Não é uma história fácil. Quando você me fala que você gosta de dançar, de
se expressar… É vida. Acho que você conseguiu -- confirmou Alice.

Rosália abre um sorriso. Parece que está mais aliviada de ter conversado com
a gente, de ter conseguido contar a sua história. E retribui:

-- Eu também gostei do depoimento de vocês para mim.

Um clima de bem-estar se instala na sala de consultório. E saio de lá com a


impressão de que estive diante de uma história especial. Como todas as histórias
desse livro. Como todas as histórias dos milhões de brasileiros que povoam os sertões
descampados e os becos das cidades desse país, e que guardam consigo tesouros
despercebidos e escondidos sob os fios dos dias. É preciso cavoucar: primeiro, para
encontrá-los; depois, para dar o devido respeito e amor a eles.

249
15.

Apelo

Eu só quero de volta

As gaivotas que fugiram do meu mar.

Gersa

250
Eram três as experiênicas de vida que ela, quando jovem, recusava para si:
morar em cidade do interior, trabalhar no serviço público e ser dona de empresa.
Quem nos diz isso é Gleide Lacerda, 50 anos, moradora de Parauapebas, 430
quilômetros ao sul de Tucuruí, ex-diretora de Atenção Básica no município e dona de
um dos laboratórios de diagnósticos mais conhecidos da cidade. Ironia do destino, foi
justamente tudo aquilo que ela acreditava ser o oposto do que desejava que
preencheu sua vida, a ponto de ela garantir que não sai mais do “Peba”, como a
cidade foi carinhosamente apelidada por seus moradores, e que apaixonou-se
loucamente pelo SUS no tempo em que trabalhou na rede:

-- Eu sou uma pessoa antes da saúde pública, e outra, depois -- garante.

Seu trabalho como diretora da Atenção Básica aconteceu entre 2006 e 2009,
quando ela já havia trilhado boa parte de seu caminho profissional. Natural de
Itarantim, município de 20 mil habitantes no sertão baiano, Gleide, uma morena de
pele clara, viveu em Salvador por duas décadas de sua vida -- o tempo de formar-se
em Bioquímica e engatar um emprego que se prolongou por vinte anos em um hospital
particular da capital baiana. Foi dispensada depois de atingir o cargo mais alto da
empresa.

Não tinha dado nem um mês que Gleide estava desempregada quando
recebeu o convite de uma amiga ortodontista:

-- Sabe, Gleide, tem uma cidade legal lá no Pará.

-- Pará? Tá doida? Eu não -- respondeu a bioquímica.

-- Bora, vamos lá conhecer, a cidade está crescendo muito, você podia montar
um laboratório lá, talvez -- insistiu a amiga.

-- Eu, montar laboratório? Deus me livre, quero ter empresa, não.

251
Gleide foi. Pouco tempo depois de pisar pela primeira vez em Parauapebas,
município de 180 mil habitantes no interior do Pará, arranjou uma parceria e inaugurou
um laboratório particular de diagnósticos, serviço que logo ficou conhecido por sua
excelência. A ponto de um cliente, certo dia, fazer uma sugestão à baiana:

-- Gleide, você podia trabalhar na prefeitura. O laboratório do hospital municipal


daqui é tão desorganizado! Por que você não vai trabalhar lá?

-- Trabalhar em laboratório de hospital público? Nem pensar! -- respondeu ela.

Mas o homem insistiu. E ela começou a pensar nas pessoas que compunham
aquelas imensas filas na porta do hospital, no serviço que precisavam e não tinham.
Resolveu ir ao lugar, para analisar a situação: a bagunça era tanta que os usuários
realizavam exame de sangue e o laboratório liberava resultado de exame de urina.
Perplexa, decidiu bater à porta da Secretaria de Saúde e oferecer uma consultoria
para o laboratório do hospital. Saiu de lá com um documento assinado pelo órgão,
dando carta branca para ela realizar um diagnóstico da situação em quinze dias. De
graça.

Por quinze dias, Gleide trabalhou das seis da manhã às nove da noite sem
receber um tostão. Montou um relatório que cobria o serviço laboratorial da cidade
inteira -- os médicos, os enfermeiros, os usuários, a demanda, os postos de saúde, os
desperdícios, a falta de controle. Quando apresentou seu trabalho às autoridades
públicas, elas ficaram perplexas. Dias depois, chamaram-na para reformular todo o
serviço, por um período de seis meses. E assim Gleide deu seus primeiros passos na
rede pública de saúde.

Ela mal tinha terminado de realizar seu trabalho de melhoria no laboratório do


hospital municipal quando foi convidada para ser diretora de Atenção Básica no
município. Corria o ano de 2006. Gleide hesitou por uma semana: não sabia se
permanecia no controle de sua empresa ou se mergulhava de vez no serviço público.
Escolheu o segundo.

-- Assumi a Atenção Básica e me apaixonei pelo SUS. Foi tudo o oposto do


que eu esperava. Comecei a estudar os programas, a fazer algumas viagens e a
entrar na vida real das pessoas, o outro lado do mundo que a gente para cá não
conhece. Nossa vida é muito confortável, a gente estuda, faz faculdade, tem família,
tem carro, tem trabalho, a gente vive bem. Nossos problemas, a gente luta, mas
sempre encontra amparo. E, quando eu cheguei aqui na cidade, fui conhecer o outro
lado da história.

252
Gleide passou a trabalhar de domingo a domingo, entrando às seis e meia da
manhã e sem hora para sair. Ela quis conhecer cada programa governamental
contemplado pela Atenção Básica -- saúde da mulher, saúde da criança, saúde do
idoso e, no meio deles, saúde mental -- e cada posto de saúde, urbano e rural, de sua
alçada. Chegava ao local, conversava com os funcionários e com os usuários, na
ânsia não só de entender o seu trabalho, mas também de passar um recado aos
servidores:

-- Eu não tinha nada a perder, só tinha a ganhar. Porque, se tirassem meu


emprego, meu salário, não me faria tanta falta, porque não era dele que eu vivia. Eu
fui mesmo pelo amor, depois que eu comecei a me envolver foi pelo amor. E nisso eu
comecei a incomodar muita gente. Porque esse tipo de entendimento da parte de uma
diretora para um funcionário acaba te dizendo: a gente vai ter que trabalhar e eu quero
resultados. Você está ganhando salário, eu também, então a gente tem que fazer o
programa funcionar e as coisas têm que melhorar.

Neste percurso, ela topou com funcionários públicos que ocupavam cargos por
favores políticos e outros que já estavam acostumados a não trabalhar ou, em suas
palavras, “não tinham produtividade”. Descobriu demandas onde não havia, usuários
que não existiam, visitas domiciliares que estavam registradas apenas no papel. Isto,
por um lado, a desestimulou. Por outro, ela encontrou muita gente disposta a realizar
um bom trabalho. Eram estas pessoas que incentivavam Gleide, que a animavam, que
a ajudavam a seguir em frente. E, entre essas pessoas, estava Geraldo.

O encontro entre os dois, diretora e psiquiatra, se deu pouco tempo depois de


Gleide se debruçar sobre as diretrizes da política nacional de saúde mental. Ela
entendeu o que eram os Caps e a importância da formação de uma equipe
multidisciplinar, além da integração com a família e a comunidade, para o tratamento
de pessoas com transtornos mentais. E foi atrás de implementar um serviço de saúde
mental em Parauapebas.

Sua primeira descoberta -- e também uma surpresa -- aconteceu quando ela


soube que o município alugava, há oito meses, uma casa onde deveria funcionar o
Caps. Apesar desse custo, o lugar não estava em atividade:

-- Não, porque faltava o rodapé, porque tinha capim no quintal, porque faltava
talvez uma lâmpada... Detalhe eu não me lembro, mas faltavam coisas muito fáceis de
serem resolvidas -- conta Gleide. -- Isto, para mim, nunca tem limite. Você falar, a sala
tá limpa, mas a parede... não, a gente conserta. Vamos arrumar tijolo e cimento e a

253
gente conserta a parede, e vai funcionar. Não tem limite. Quando eu tinha, na verdade,
vários pacientes necessitados na rua que eu ainda não conhecia. E fui perguntar para
a pessoa responsável por que o Caps não estava funcionando. Quando eu entendi, eu
falava, não, mas isso não é problema. A gente consegue alguém para tirar o capim, a
gente consegue isso para pintar a parede... Qualquer problema que me via com oito
meses sem solução, eu dizia não… Eu tava num momento que, se a tinta faltava, eu
fazia uma vaquinha e conseguia. Se não tivesse dinheiro para comprar, eu pedia para
alguém doar e conseguia. Se tivesse uma telha quebrada, tinha que fazer licitação da
telha na prefeitura, eram seis meses para saber quem ia vender a telha, não interessa,
eu consigo uma telha doada, eu vou lá e coloco. Não tinha tempo para a gente não
fazer a coisa acontecer. Eu estava com gás, estava com amor, estava com
disponibilidade, estava com tudo. E nesse movimento ninguém ficava na minha frente
me impedindo, não.

Por isso, menos de um mês depois de assumir a coordenação de Atenção


Básica no município, Gleide viu o Caps de Parauapebas ser inaugurado. Era agosto
de 2006, e o órgão começou a funcionar com quase nenhuma verba, pouco
equipamento e uma equipe mínima, formada em sua base por dois psicólogos, uma
assistente social e um psiquiatra, Geraldo Sales -- que ia apenas uma vez por mês
prestar matriciamento comunitário em Parauapebas, mas deixou na cidade marcas
indeléveis. Gleide traduz este sentimento em relação a ele ao nos dar seu depoimento
sobre esta época:

-- Quando eu conheci Geraldo foi que eu fui perceber quanta coisa boa tinha
para se fazer. E quanto amor, quanta dedicação, quanto movimento tinha dentro dele.
Ele era louco igual a mim. Falei, pronto, bastava um desses na minha frente para a
gente fazer a coisa acontecer -- conta, rindo.

Ao longo dos meses, Geraldo ensinou à equipe do Caps de Parauapebas a


prática do acolhimento e a formação de grupos de atendimento a partir da primeira
triagem. Gleide acompanhou tudo. Participou das rodas de acolhimento e de terapia
comunitária, tomou café da manhã no Caps, conheceu os grupos terapêuticos.
Marchou ao lado de Geraldo, da equipe de saúde mental e de pacientes em passeatas
realizadas em Parauapebas no 18 de Maio, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Nestas ocasiões, os manifestantes divulgavam as já não tão recentes diretrizes da
política nacional de saúde mental -- mas que eram uma novidade para a população
local -- e interpretavam as frequentes cenas de violência oriundas do cotidiano dos
manicômios. Tudo a exemplo do que, uma década antes, havia ocorrido em Tucuruí. A

254
movimentação foi parar nos jornais no dia seguinte, e o Caps de Parauapebas passou
a receber muitos pacientes.

Apesar de ocupar o cargo de diretora da Atenção Básica, Gleide se envolveu


tanto com saúde mental que teve uma reação exagerada. Ela mesma assume esta
postura:

-- Algumas vezes, eu saía do eixo. Tava doente, tava em surto e não tinha
dinheiro para comprar remédio, às vezes eu ia lá e comprava com o meu cheque. Não
tinha médico para atender, eu botava no particular e pagava do meu bolso. Algumas
brigas você tem que ter. Mas você tem que ter critérios, e eu não tinha critérios. Era
um ser humano que estava precisando de ajuda, mas ia ter ajuda de qualquer forma,
nem que eu tivesse que fazer o que tivesse que fazer, mas eu realmente não tinha
limites.

Este exagero ficou patente na relação de Gleide com seu Zé, um morador de
rua de meia-idade barbudo e de unhas compridas. Toda noite, ao retornar do trabalho,
a diretora encontrava seu Zé sempre no mesmo lugar: sentado na sarjeta de uma
calçada, entre um lixão e uma casa modesta. Certa noite, resolveu oferecer-lhe um
prato de jantar. Os dois iniciaram uma relação que, a princípio, foi amistosa.
Conversavam bastante, e seu Zé começou a gostar da companhia de Gleide. Ela, no
entanto, ultrapassou a barreira da amizade. Sem interrogar o homem, uma noite
comunicou a ele que gostaria de alugar um cômodo, para que ele tivesse um teto onde
morar. Desse dia em diante, seu Zé mudou de atitude. Botou fogo no pequeno quarto
alugado e, no dia marcado por Gleide para que se apresentasse perante os órgãos
públicos a fim de tirar seus documentos, sumiu. Seu Zé desapareceu. Nunca mais foi
visto. Gleide tem remorso até hoje. Sente por não saber onde ele está:

-- Eu mexi tanto com a vida deste homem que ele não se encaixava... ele
sumia. Depois eu me sentia culpada. Cara, se seu Zé tivesse no lixão tava vivo até
hoje lá, levando a vidinha dele, fumando o cigarrinho dele. Eu tirei tanto ele do habitat
onde ele tava lá na vida dele, que ele... não sei o que aconteceu com ele. E ele deve
me culpar para o resto da vida dele. O que eu tinha que futricar com a vida dele, né?
Podia levar a comidinha dele lá de vez em quando, mas queria dar casa para ele.
Levei ele para minha casa, dei banho, cortei as unhas, lavei tudo, cortei a barba, na
minha casa. Não adiantou. Seu Zé não gostava de mim, mas eu queria ser a mãe de
seu Zé.

255
Não só dele. Gleide queria ser a mãe de todos. Queria abarcar todos os
miseráveis -- de corpo, não de alma -- em sua enorme ânsia de mudar o mundo.
Assim como um dia perdeu seu Zé, meses depois ela perdeu o poder de mudança em
suas mãos.

A notícia veio no final de 2009: seu contrato não seria renovado. A princípio,
Gleide não entendeu. Ela tinha uma boa relação com o pessoal da Secretaria de
Saúde e era conselheira do município. Estava à frente de todas as decisões
relacionadas à Saúde em Parauapebas. A Secretaria, no entanto, não a avisou sobre
o fim de sua contratação nem explicou o porquê desta decisão. Esta resolução a
tomou de pesar. Hoje, a ex-diretora acredita que o pano de fundo para sua saída
repentina da Atenção Básica sejam os inúmeros conflitos políticos que colecionou ao
longo de quatro anos no cargo. Ela não aceitava trabalhar ao lado de pessoas que não
queriam produzir ou que estavam lá para ocupar postos partidários. Ela os colocava
para apresentar resultados. E, neste gesto, criou muitos inimigos.

Com o tempo, Gleide aceitou seu afastamento. E não deixa de elogiar o SUS
no balanço que faz sobre sua passagem de quatro anos pela rede pública de saúde,
um sonho que nunca sonhou, mas que deixou marcas perenes em sua vida:

-- Foram as coisas mais belas que eu fiz. Eu sei que, mesmo que as coisas
não tenham se mantido como nós começamos, como nós sonhamos, muita coisa foi
mudada, muita coisa foi feita. Conseguimos fazer um trabalho com muito esforço, mas
com muito resultado.

E isto só foi possível graças aos amigos que Gleide encontrou em seu caminho
e que a ensinaram que o bem, embora menos visível, também existe:

-- O bem é muito silencioso. O mal, não. O mal tem um poder explosivo maior,
tem mais barulho, tem a mídia. Ainda é o que aparece com mais facilidade. Mas tem
muita gente fazendo o bem, trabalhando pelo próximo. Nesta minha passagem pela
Secretaria de Saúde, descobri pessoas que se movimentam, pessoas que auxiliam,
pessoas que dão o que têm e o que não têm para ajudar.

Hoje, o laboratório de diagnósticos do hospital municipal de Parauapebas


voltou a ser desorganizado, e o Caps do município não funciona de acordo com a
política nacional de saúde mental. Gleide observa consternada estas mudanças. Um
sentimento apenas a alivia: ela está certa de que fez a sua parte.

256
Jornal regional noticia inauguração do Caps de Parauapebas. Crédito: Arquivo pessoal

...

Os sonhos da baiana agora são outros. E, antes de nos revelar dois deles, ela
faz questão de ressaltar um dos maiores aprendizados que leva dos anos de trabalho
conjunto com Geraldo: a recusa em trabalhar em consultório particular fechado. Foi
um aprendizado que começou a ser moldado já nas primeiras vezes em que Gleide
telefonou para o psiquiatra, com uma demanda específica:

-- Geraldo, tem alguns pacientes que precisam de acompanhamento, mas eles


têm condições de pagar uma consulta particular… -- insinuava.

-- Quem quiser saúde mental vai para o Caps, é lá que eu atendo -- respondia,
impassível, o médico.

-- Não, mas eles não precisariam usar, de repende, o espaço… -- insistia a


diretora.

257
-- Gleide, todos têm as necessidades na mesma linha. Qualquer paciente que
você queira, rico ou pobre, que possa pagar ou não. É o SUS que arca com a saúde
mental e eu atendo no SUS, no Caps. Então você direcione todos para lá, que eles
farão o acolhimento -- redarguia Geraldo.

-- Não, mas é que…

-- Eu não quero trabalhar em consultório particular, a portas fechadas --


interrompia o médico. -- Não é esta a proposta, Gleide. Pode mandar para o Caps que
todos passarão pelo mesmo atendimento.

Quase por obrigação, Gleide encaminhava pacientes com maior poder


aquisitivo à rede pública de saúde. Com o tempo, porém, ela aceitou este
procedimento. E, ao final de sua gestão, já era entusiasta dessa prática:

-- Essa característica dele me chamou muito a atenção, porque hoje você vê o


contrário. O médico não tem disponibilidade, a não ser que ganhe muito bem... mas ir
pelo amor, porque quer levar o seu conhecimento para o SUS, pois esse é o seu
papel, nossa, isso é uma coisa raríssima. Eu fiquei encantada, depois comecei a falar:
é verdade, você tem razão, continue assim, se quiserem vão para lá, se não quiserem,
não vão, saiam da cidade, mas saúde mental é lá no Caps.

Depois de explicar todo este contexto e todo esse aprendizado, Gleide enfim
nos revela um de seus grandes sonhos:

-- O meu sonho é que um dia a gente possa no Brasil não precisar pagar
convênio, que todos nós possamos usar o serviço público da saúde. Não pelo
dinheiro, mas porque eu quero usar o serviço público, porque ele é bom e tem
qualidade. E que todos nós tenhamos o dever de fazer ele funcionar e o direito de
usar. Já pensou se todos nós fôssemos ao SUS? Que coisa magnífica, chegar em
Brasília, Salvador, aqui, você precisar de uma consulta e ter acesso a essa consulta.
Outro dia veio um homem aqui [no laboratório particular dela] com o filho com febre.
Eu falei que tinha laboratório no hospital de graça, mas ele disse que demorava sete
dias para sair o resultado. Hemograma sai em uma hora. Tem demanda? Tem, mas
sete dias? É um pouco demais para quem está com febre. A gente podia fazer uma
coisa melhor, né? Uma realidade menos dura.

Seu outro sonho, como era de se esperar, é voltar a trabalhar com saúde
mental.

258
Um dos motivos pelo qual Gleide se apaixonou por esta área, segundo ela, é
justamente o silêncio em que é mantida. E Gleide não gosta de silêncios. Quer falar --
e quer dizer o indizível, o perturbador, o lado obscuro que nos habita.

-- Você vê, o paciente que tem algum distúrbio, algum problema, primeiro que
já vive o preconceito, que é uma coisa terrível, e o que gera esse preconceito?
Geralmente é a ignorância. Ignorância do outro que vê o paciente como quem não tem
jeito, como excluído da sociedade, excluído da família... As pessoas não conhecem,
nunca ouviram falar disso, até o dia em que explode um problema na sua casa e você
não sabe como lidar. A gente tem que diminuir a ignorância para ajudar, porque não é
à toa que alguém da sua família tem problema mental. Poderia ser você. Então, a
família tem que chegar junto, a sociedade tem que chegar junto, a saúde pública tem
que chegar junto. O que você quer? Deixar lá dois meses internado, dopado, você vai
cuidar da sua vida, sua mãe vai cuidar da vida dela? Não é essa a política de saúde
mental. A família tem que ter responsabilidade sobre o paciente também. E todos nós
da sociedade.

Gleide não deixa estar. Quando percebo esta sua característica, relato nossa
dificuldade em conhecer o Caps de Parauapebas. Ela se move inquieta na cadeira.
Não tarda a garantir que vai nos ajudar.

Ao final de nossa conversa, combinamos de nos encontrar no dia seguinte,


pela manhã, para dar cabo à epopeia.

Pego o celular e tento ligar para o lugar pela décima vez. Na verdade, já perdi
a conta de quantas vezes liguei e ninguém atendeu. Quando, finalmente, ouço a voz
de uma pessoa do outro lado da linha, é sempre a mesma enfermeira que fala. E ela
tem a resposta na ponta da língua:

-- Para agendar visita, só falando com a coordenadora.

Claro, eu nunca consigo localizar a coordenadora, e a enfermeira não me


passa o endereço do Caps de Parauapebas. Fico no escuro. Até o dia da entrevista
com Gleide. Foi a ex-diretora de Atenção Básica quem nos levou, Alice e eu, até a
instituição. Naquela manhã, percorremos as ruas esburacadas de Parauapebas até

259
estacionar o carro em frente a uma casa com muro alto e um portão entreaberto.
Entramos.

Não havia ninguém no lugar, a não ser a enfermeira. A mesma que sempre
atendia o telefone. De cara, achamos estranho, pois, nos outros Caps que visitamos
pelo sul do Pará, sempre havia atividades no período da manhã. Em Parauapebas, ao
contrário, o lugar estava vazio e as três salas da casa -- que funcionavam como
consultórios, com mesas e macas -- estavam de portas fechadas. A parte externa
parecia abandonada, com capim alto e algumas cadeiras de plástico dispostas de
forma aleatória no pátio. Na porta da cozinha, lia-se em uma pequena placa “Entrada
somente para funcionários” – algo também incomum em outros Caps abertos que
conhecemos e onde Geraldo prestou matriciamento comunitário. O recado fixado
naquela porta já indicava a segregação em que vive o órgão. Apesar dos esforços de
Gleide, de Geraldo e de outras pessoas da equipe de saúde mental que já não
trabalham mais lá, o Caps de Parauapebas não conseguiu romper com as amarras da
cidade. É muito mais psiquiátrico do que psicossocial. Tiramos algumas fotos, mas
fomos impedidas pela enfermeira:

-- Apenas com autorização -- disse ela, contrariada e nos apressando.

Caps de Parauapebas. Crédito das fotos: Alice Arida

Após a visita de dez minutos, entendemos por que algumas pessoas nos
alertaram que o Caps de Parauapebas funciona, na verdade, como um “mini
manicômio”. Dá-se um nome mais suave, mas não se quebra a lógica manicomial.
Esta sempre foi uma preocupação dos envolvidos com o movimento da reforma

260
psiquiátrica no Brasil. E, infelizmente, é uma realidade em muitos Caps espalhados
pelo país.

O Centro de Atenção Psicossocial de Parauapebas é do tipo Caps II. Os Caps I


são idealizados para municípios de mais de 15 mil habitantes, os Caps II, para cidades
de mais de 70 mil habitantes, e os Caps III, para aglomerados urbanos com mais de
150 mil habitantes. Parauapebas tem 180 mil habitantes. A portaria do Caps da
cidade, expedida em setembro de 2006 pelo Ministério da Saúde, jamais foi
modificada -- é ela o instrumento que pode transformar Caps II em Caps III.

Parauapebas, por sua vez, é das cidades que mais crescem no Pará e no
Brasil. É uma cidade nova, com menos de trinta anos. Foi emancipada de Marabá em
1988 e, menos de dez anos depois, em 1996, já contava com 75 mil habitantes. Nos
vinte anos seguintes, a cidade ganhou mais 105 mil moradores, 64% dos quais com
menos de 29 anos. Quase todos estes jovens são migrantes. Vêm de diversos rincões
do Brasil, desde o Sul até o Nordeste. Há muita gente do Centro-Oeste. É raro
encontrar alguém que tenha nascido em Parauapebas e que possua fortes laços com
este eldorado perdido no meio da Amazônia. A maioria apronta as malas e segue
rumo à cidade em busca das inúmeras oportunidades de emprego oferecidas pela
Vale e pelas empresas que realizam trabalhos terceirizados para esta que é uma das
maiores mineradoras do planeta.

Pois Parauapebas está localizada a 30 quilômetros da maior mina de ferro do


mundo, a mina de ferro de Carajás, controlada pela Vale desde o início da extração,
na década e 1980.

Meu primeiro contato com a mina de ferro de Carajás ocorre quando estou no
avião. Da janela, sobrevoando a Amazônia, a bandeira do Brasil me aparece em cores
vivas: a floresta densa e úmida, com seu verde-escuro entrecortado pelo azul-escuro
das águas dos igarapés, que refletem o azul-celeste do céu e o calor do sol, aquele sol
em chamas, escaldante. Meus olhos brilham diante da paisagem deslumbrante. Fico

261
inebriada com tanta beleza e chego a me esquecer, por um momento, de todas as
mazelas que pairam por aquelas terras. Não por muito tempo. De repente, deparo-me
com enormes crateras fundas na terra. Em meio àquela sublime imensidão verde e
azul, elas me fazem lembrar que o lema positivista da bandeira está inscrito em solo
amazônico. São crateras imponentes, que deixam escancarado: aqui está o progresso
do Brasil. Aquele progresso visto sob a ótica exclusiva do desenvolvimento
econômico. A floresta fica para trás, e a terra funda, roxa e vermelha, em carne viva,
não deixa espaço a suspeitas – estamos, sim, diante da maior mina de ferro do
mundo.

Mina de ferro de Carajás. Crédito: Alice Arida

Descoberta na década de 1960, a mina de ferro de Carajás guarda 18 bilhões


de toneladas do minério de maior qualidade encontrada no planeta -- uma pureza de
67%. Ela fica situada na Serra dos Carajás, 450 quilômetros ao sul de Tucuruí e 700
metros acima do nível do mar, uma altitude elevada para os padrões amazônicos.

A fim de explorar o enorme potencial da mina, o governo lançou, em 1982, o


Projeto Grande Carajás (PGC), em uma área de 900 mil km², um décimo do território
nacional. A Vale, que à época ainda era estatal, pagou uma generosa indenização

262
pelo controle da área e passou a deter um território imenso para explorar, situado
entre o sudeste do Pará, norte do Tocantins e sudoeste do Maranhão e englobando
parte dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia.

Hoje, são extraídos do solo -- em regime contínuo -- não apenas ferro e


manganês de alta qualidade, mas também cobre, níquel, ouro, bauxita e cassiterita. O
principal destino dos minérios é a China. Para chegar ao outro lado do globo terrestre,
os minerais atravessam 892 quilômetros do território nacional em 330 vagões de um
trem que desemboca no Terminal de Ponta da Madeira, em São Luís, no Maranhão. E,
de lá, vai para o mundo.

A produção anual de Carajás é de pouco mais de 100 milhões de toneladas de


ferro -- o equivalente a um terço da produção brasileira. Quando foi descoberta a mina,
na década de 1960, os militares acreditavam que sua vida útil girava em torno de 500
anos. No entanto, ao ritmo de 100 milhões de toneladas por ano, as reservas devem
acabar antes do final do século.

Por todos esses motivos, Parauapebas exibe o maior PIB per capita -- por
pessoa -- entre todas as cidades do Pará. Em 2012, o PIB per capita do município foi
de R$ 100,5 mil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Para
se ter uma ideia, em Belém, no mesmo ano, o PIB per capita foi de R$ 14,5 mil.

O trem que carrega minério de Carajás até o Maranhão. Crédito: Alice Arida

263
Com tamanha riqueza graças à extração de minério, poderíamos estar diante
de uma cidade arborizada, com bons índices de escolaridade, saúde e emprego, um
transporte público eficiente e ruas limpas e bem cuidadas. O que há é o oposto. No
“Peba”, não há transporte público. Empresas privadas preenchem a lacuna com vans
lotadas e insalubres, que cortam os bairros de casas humildes sacudindo a cada
buraco na rua -- que não são poucos. Ao invés de uma população saudável,
empregada e escolarizada, encontramos altos índices de trabalho informal e violência.
O Mapa da Violência 2015 diz que Parauapebas registra 37 homicídios a cada 100 mil
habitantes, e, entre os mais de 5 mil municípios brasileiros, ocupa a 153ª posição
quando o assunto são as taxas de homicídios na população total. Além de
assassinatos -- por brigas casuais, desavenças políticas ou econômicas --, o município
coleciona casos de abusos sexuais, agressões físicas dos mais variados tipos,
depressão, ansiedade, alcoolismo.

Uma violência que é fruto, em grande parte, da exploração econômica e da


migração compulsória. Parauapebas é uma terra formada por gente de fora, sem laços
afetivos com o lugar, sem perspectivas e vivendo na miséria -- já que o capital gerado
pela exploração do solo amazônico fica nas mãos do governo e das multinacionais.

A psicóloga Elianne Rodrigues, que trabalhou um tempo com Geraldo,


encontrou muitos casos graves de transtorno de ansiedade assim que chegou em
Parauapebas, em 2002:

-- Eram situações em que a pessoa não conseguia nem sair de casa,


principalmente mulheres -- conta.

Elianne vinha de outra realidade -- ela nasceu em Caicó, no interior do Rio


Grande do Norte -- e carregava consigo dez anos de luta antimanicomial, batalhados
quando ainda morava em Natal, onde realizou sua formação e onde até então tinha
atuado. Quando ela chegou para trabalhar na rede pública de saúde de Parauapebas,
pelo Programa Saúde da Família, logo percebeu em que solo pisava:

-- Aqui é o Brasil nu e cru.

264
Elianne, em Carajás. Crédito: Alice Arida

No hospital municipal, perguntaram a ela se não poderia receitar


medicamentos, pois não havia psiquiatra. A psicóloga negou. Só foi trabalhar no lugar
depois de estar segura de que não precisaria proceder desta forma. Naquele ano de
2002, a lei da reforma psiquiátrica brasileira já havia sido promulgada, prevendo a
implementação de Caps e de leitos psiquiátricos em hospitais gerais por todo o Brasil.
Elianne constatou que, naquele mesmo ano, não havia nenhum serviço de saúde
mental em Parauapebas. Resolveu colher a demanda local e realizar uma relação dos
pacientes que usariam o serviço. Acompanhou, durante quatro anos, toda a
movimentação para a formação de um Caps no município. Conheceu Gleide e toda a
equipe de saúde mental. Mas nunca tomou a dianteira. Algo a impedia. Hoje, ela sabe:

-- O Caps chegou aqui em 2006, mas era um serviço que vinha sendo
solicitado há muito tempo. A Gleide foi fundamental, pois tinha o poder. Mas o pessoal
tinha muita confabulação teórica, e eu fiquei irritada. Porque é possível fazer saúde
mental em qualquer lugar. Eu tenho dúvidas se o Caps daqui surgiu de uma forma
saudável, porque tem muita briga de vaidade, eu não dou conta dessas coisas. Eu
participei de algumas reuniões, e eu lembro de uma que fui... a coisa estava
acontecendo, mas o pessoal só falava de dificuldades, achei muita picuinha. Depois a
coisa degringolou, virou um lixo. Talvez até por isso eu tenha me afastado, ficado nos
bastidores. Não me envolvi muito.

265
No meio de todo esse redemoinho, Elianne conheceu Geraldo. E o psiquiatra
foi uma das poucas pessoas que ganhou o respeito da psicóloga. Até hoje são
amigos. E, quando peço para Elianne dar o seu depoimento a respeito do médico, ela
menciona a Leseira Itinerante e dá o seu veredicto:

-- Esse negócio de o Geraldo trabalhar em vários lugares dá para ele uma


riqueza fantástica e uma capacidade de se reinventar impressionante. Eu acho que,
em algumas situações, ele não foi tão valorizado como deveria. Parauapebas foi um
desses lugares.

...

Nem Geraldo, nem Gleide. Os dois deixaram a rede pública de saúde de


Parauapebas em 2009 e, desde então, o Caps do município nunca mais foi o mesmo.
Muito do que havia sido criado e desenvolvido não teve continuidade.

Esta também é a opinião da assistente social Juliana Araújo, 33 anos, que


trabalhou no Caps entre 2006 e 2009 e envolveu-se profundamente com o serviço de
saúde mental no município. Ela lamenta todo o trabalho perdido, mas justifica estas
perdas:

-- A história acontece com protagonismo, principalmente no serviço público. Eu


acredito no SUS, a proposta é excelente, para saúde mental é melhor ainda. Mas, se
não tiver esse protagonismo, a coisa não anda. O serviço só acontece se a pessoa
tiver esse perfil e, depois da Gleide, a pessoa que entrou não tinha sensibilidade com
saúde mental. Depois, com a saída do Geraldo, deu uma desandada.

Ela mesma confessa que não aguentou. Saiu do Caps no mesmo ano que
seus dois companheiros de luta e de trabalho:

-- Pedi para sair, pois estava adoecendo mentalmente. Quando você trabalha
com o sofrimento humano, você precisa de apoio. Em saúde mental, este apoio se
chama supervisão. Senão, você acaba sofrendo junto. É inevitável, pois é uma
particularidade nossa como ser humano sofrer junto. A gente não tinha essa
supervisão em saúde mental. Ninguém tinha. A falta de apoio da chefia de forma geral
dificulta isso. Além de não compreender o que é saúde mental, não compreende que a
pessoa que trabalha com saúde mental também pode adoecer. Isso me tirou do Caps,

266
essa falta de apoio, de estrutura, de visão do que era necessário. É uma violência
institucional, uma violência que é imposta ao funcionário.

Juliana, que é mineira de Valadares, mas foi morar na região de Parauapebas


quando tinha dois anos de idade, não pode mais nem ouvir falar em Caps. Entristece-a
saber que os usuários do serviço não usufruem mais dele. A assistente social se aflige
até com a perspectiva de entrar novamente no lugar e relembrar todo aquele
sofrimento. Não o dos pacientes, mas o sofrimento pelo qual ela mesma passou --
durante dias, durante meses, durante anos.

Um sofrimento que ficou cristalizado em sua incessante batalha por construir


um diálogo entre o Caps e as outras instituições da rede pública de saúde do
município, como parte de um projeto pessoal mais amplo e que estava ligado, em sua
essência, à sensibilidade que ela tinha em relação ao transtorno mental:

-- As representações sobre o transtorno mental ainda são muito


estigmatizadas. As pessoas acham que a pessoa com transtorno mental é um ser
totalmente diferente. E eu ficava matutando em como descontruir essa ideia.

Uma das formas de alcançar isto, para ela, era construir estas pontes com
outras unidades de saúde. Mas Juliana não obteve muito sucesso nessa empreitada.

O lugar mais fechado ao diálogo foi o hospital municipal. Este sempre foi o
maior obstáculo encontrado em todos os outros municípios do sul do Pará nos quais
Geraldo prestou matriciamento comunitário. Inclusive em Tucuruí, onde o psiquiatra,
depois de muita luta, conseguiu formalizar uma Ala Psicossocial, com leitos
psiquiátricos para pacientes em crise -- algo previsto em lei, mas pouco presente na
realidade. A prática mostrou que o mais fácil sempre foi internar os pacientes. Difícil é
transformar a atitude das pessoas frente ao transtorno mental -- derrubar estes muros
simbólicos e quase intransponíveis. Juliana conta como era cada vez que tinha que
internar um paciente em Parauapebas:

-- O hospital nunca deu suporte. Sempre tivemos dificuldade de fazer


internação lá, embora a lei diga que o hospital precisa ter leitos psiquiátricos. Mas era
uma novela toda vez que precisava internar alguém. Ia gente do Caps ficar lá. Às
vezes, entrava noite, esperava o paciente se acalmar, o medicamento fazer efeito. É
uma militância mesmo. Eu cheguei a ouvir de funcionários, tira esse doido daqui,
sendo que é função do hospital recebê-los. A gente era ameaçado também, se você
trouxer, a gente não vai atender, você vai ter que se virar, não tem leito, não vem para
cá, não, senão você vai ver o que vai acontecer. Até hoje quando eu vou ao hospital,

267
encontro determinados enfermeiros... de tão marcado que ficou, parece que eles
dizem, lá vem a chata. E não mudou muita coisa.

No dia em que entrevistamos Juliana, ela estava trabalhando como assistente


social na Defensoria da Mulher de Parauapebas. Informou-nos que o índice de
violência contra a mulher no município era altíssimo. A realidade destes casos a fez
pensar em quantas pacientes do Caps ela havia encontrado que haviam sido vítimas
de abusos.

Na conta dela, eram muitas.

Juliana, na Defensoria da Mulher de Parauapebas. Crédito: Alice Arida

268
16.

Reviver

Reviver,

É se amar, para poder amar

Reviver,

É afastar os traumas e as culpas

Reviver,

É se preocupar também consigo mesmo

Reviver,

É brilhar nos olhos e nas cor dos lábios

Reviver,

É gritar bem alto: viva o amor!

Reviver,

É simplesmente ser!...

Gersa

269
Descemos de carro, por mais uma estrada esburacada e sem floresta ao redor,
os sessenta e cinco quilômetros que separam Parauapebas da “terra prometida” do
Pará: o município de Canaã dos Carajás. Lá, moram 32 mil habitantes que migraram
para a região atraídos por um sonho incrustado no nome da cidade. Pois Canaã dos
Carajás será, sim, uma terra de fartura. E por isso, assim como a sua vizinha
Parauapebas, não para de crescer.

É em Canaã dos Carajás que se situa o projeto de maior envergadura da Vale -


- o projeto S11D, localizado um pouco abaixo da atual mina de ferro de Carajás.
Nesse eldorado, a mineradora pretende perfurar o solo amazônico até abrir uma nova
mina de ferro, maior do que a existente. Esta nova mina deve atingir em três anos a
produção de ferro que a mina atual levou trinta anos para alcançar. A meta é que a
exportação anual passe de 100 milhões de toneladas para 230 milhões de toneladas
de ferro.

Para que isto seja possível, a Vale quer desmatar cerca de 2.500 hectares de
floresta, dezenas de cavernas e duas lagoas. A “supressão vegetal”, termo eufemístico
utilizado pela companhia, deve atingir uma área com uma diversidade tão rica que
algumas espécies de plantas e animais só existem ali e ainda estão sendo
pesquisadas pelo homem. Já vão anos de negociações. Em 2013, o Ibama (Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) emitiu licença de
instalação do empreendimento, orçado em US$ 19,4 bilhões.

Por conta disso, o entusiasmo dos moradores de Canaã é grande. Eles estão
certos do desenvolvimento que o S11D trará a uma das regiões mais desmatadas da
Amazônia. Nem parecem se importar com a miséria e a exploração na qual vivem os
seus vizinhos, os habitantes de Parauapebas -- os mesmos que, um dia, sonharam
com uma suposta prosperidade trazida pelos empreendimentos da mineradora.

270

Chegamos em Canaã na hora do almoço. Paramos para comer, claro, em uma


churrascaria. Eu não sabia bem por que tínhamos decidido ir para lá. O Geraldo já não
realizava mais matriciamento comunitário no município -- ele optou por não prestar o
concurso público local e deixou de atender na cidade em setembro de 2012. Além
disso, a visita, no dia anterior, ao Caps de Parauapebas, havia me deixado um tanto
desanimada. E se o de Canaã for igual?, pensava.

De qualquer forma, já tinha agendado para aquela tarde uma entrevista com
duas ex-funcionárias do Caps de Canaã. Depois do almoço, direcionamo-nos, Alice e
eu, ao local da conversa: a Secretaria de Trabalho, Educação e Saúde de Canaã dos
Carajás, onde trabalhava a psicóloga Tamara Andrade, 34 anos. Goiana de
nascimento, mineira de criação e coração, loira, alta e encorpada, ela nos recebeu
com alto astral e um sorriso no rosto. A seu lado, a enfermeira potiguar Luanna
Medeiros, 27 anos, também nos aguardava e cumprimentou-nos com o mesmo bom
humor. Logo percebemos que as duas eram muito amigas. Durante toda a conversa,
trocaram olhares e sorrisos. Mas não só. Eu soube depois que elas também
partilhavam de um mesmo amor: a saúde mental.

-- O Geraldo costumava falar que quem não tem medo de olhar para a saúde
mental é quem não tem medo de se olhar no espelho -- começa Tamara. -- Porque, se
você se identificou um dia, é que alguma coisa, sabe, uma sensibilidade a mais, uma
história, você tem. Porque senão não tinha parado para olhar.

Ela tinha razão. E falava entusiasmada. Fui percebendo, pelo ânimo delas, que
o Caps de Canaã era bem diferente do de Parauapebas.

-- O Caps daqui é ótimo -- confirmou Luanna, para minha surpresa.

Duas cidades tão próximas geograficamente, com histórias e destinos políticos


e econômicos tão parecidos, tinham serviços de saúde mental que não poderiam ser
mais distintos um do outro.

-- Vocês já foram até lá? -- perguntou Tamara.

Não havíamos ido. Foi a deixa para a psicóloga pegar o celular e avisar o
pessoal do Caps que estávamos a caminho. Em pouco tempo, chegamos a uma casa
colorida, cheia de espaços abertos, onde a arte e a criatividade dos usuários

271
floresciam em cada canto, em cada porta, em cada parede, em cada sala.
Conhecemos alguns dos pacientes atendidos pelo órgão e alguns dos profissionais da
equipe. Entre eles, o psicólogo e atual coordenador do Caps, Edson Pereira, 32 anos,
mineiro de Uberlândia. Luanna e Tamara transitavam com fluidez pelos cômodos da
casa, cumprimentando todos e parando para conversar -- e rir. Pois o riso, eu logo vi,
era a marca registrada delas.

272
Caps de Canaã dos Carajás. Crédito: Alice Arida

Dois anos depois de começar a trabalhar no Caps de Canaã, Tamara


engravidou. O mesmo aconteceu com Luanna. As duas brincam:

-- O Caps é fértil.

Mas nem sempre foi assim. Desde 2008, ano de sua criação, o Caps de Canaã
passou por muitas fases. Em uma delas, correu o risco de afundar. Luanna e Tamara
estavam lá para evitar uma queda brusca. Suportaram, sozinhas e quietas, o peso da

273
politicagem. Só saíram do Caps em janeiro de 2013, quando estavam seguras de que
o órgão funcionava bem, nas mãos de uma equipe comprometida:

-- A gente saiu na melhor fase do Caps. Porque nós passamos muitos anos só
nós duas -- assegura a enfermeira.

Tanto Luanna quanto Tamara encontraram, no município, profissionais


qualificados e, sobretudo, envolvidos com saúde mental, para substituí-las no Caps.
No lugar de Tamara -- que começou a trabalhar no Caps em 2008, alguns meses
depois de sua fundação -- entrou Edson e, no de Luanna, outra enfermeira preencheu
uma vaga que, na maioria dos municípios brasileiros, é sempre recusada. Felizmente,
isto não aconteceu em Canaã. E é por este motivo que Tamara pode, com o
semblante tranquilo, fazer a seguinte constatação:

-- A gente tem que saber a hora de tirar o nosso time de campo e deixar as
pessoas virem com ideias novas, gás novo. Todo mundo falava, o Caps tem a sua
cara. Mas o Caps não tem que ter a minha cara, tem que ter a cara da saúde mental,
dos usuários. Aí eu falava, está na hora de eu sair mesmo. A contribuição que eu tinha
que dar eu já dei.

Quando ouço esta declaração da psicóloga, estranho. Não é comum escutar


este tipo de manifestação da parte de servidores de saúde mental. Em geral, os que
atuam no sul do Pará não têm quem os substitua ou, se encaixam na vaga,
permanecem nela. Tamara, ao contrário, encontrou outro psicólogo com perfil de
Caps. E ela não sente que abandonou a saúde mental quando pediu para sair:

-- Quando eu fui comunicar que eu ia sair, muita gente falou, e aí, você
cansou? Não gosta mais de saúde mental? Não, eu não briguei. Amo, não deixei de
pensar nela. Mas achei que meu trabalho estava concluído naquele momento. Achei
que estava na hora de eu sair, eu não abandonei o navio. Luanna, sabe, a gente
passou por vários momentos no Caps, vários perrengues, várias dificuldades,
momentos que dava vontade... Sabe quando você se vê sozinha? Dentro da rede
mesmo, o Caps sempre é meio que marginalizado.

Por causa desta vivência dentro do centro, incluir o Caps na rede mais ampla
de saúde tornou-se uma das finalidades de Tamara em seu novo trabalho como
funcionária de Recursos Humanos na Secretaria de Trabalho, Educação e Saúde. Sua
atuação foi fundamental para que, em 2013, acontecesse em Canaã dos Carajás a
primeira passeata de usuários e funcionários do Caps no 18 de Maio, o Dia Nacional

274
da Luta Antimanicomial. Ela não participou do evento, mas, na manhã seguinte,
recebeu agradecimentos de vários pacientes.

-- Tudo o que eu vou fazer, eu envolvo o Caps -- garante a psicóloga. --


Antigamente, ele era um pouco esquecido, sabe. Tinha alguma reunião, alguma
capacitação, ficava o Caps um pouco à margem. E hoje, com Luanna lá na Policlínica
e eu aqui, a gente acaba fazendo com que ele fique mais integrado dentro da Saúde.

Uma característica que a ajuda nesta tarefa é o fato de o Caps ter excelência
em atendimento no município. Não chegam críticas em relação ao órgão na
Secretaria. Só elogios. E a psicóloga atribui esta virtude à maneira como Geraldo
sempre orientou seu apoio matricial -- conduzindo sessões de terapia comunitária,
realizando capacitações e treinamentos em outras unidades de saúde, debatendo a
abordagem na crise, valorizando a família e a comunidade, acreditando no tratamento
multidisciplinar e, sobretudo, implementando o acolhimento.

-- Eu acho que [o acolhimento] deveria acontecer em todos os lugares onde se


atende o público. Todo mundo quer ser acolhido -- acredita Tamara.

No Caps de Canaã, ela e Luanna aprenderam a acolher o público de forma


bem particular: na roda de boas-vindas, sempre havia pandeiros, triângulos e xique-
xiques. A música inebriava o ambiente, tranquilizava os espíritos e despertava abraços
e sorrisos. Houve quem chegasse pela primeira vez ao lugar e não soubesse
identificar paciente e funcionário.

-- Eu amava quando isso acontecia -- confessa Tamara. -- Caps saudável é


Caps em que você não diferencia quem é usuário e quem é funcionário.

275
Tamara, à esquerda, e Luanna, à direita. Crédito: Alice Arida

Quando Geraldo estava em Canaã, era sempre ele quem conduzia o


acolhimento. Em seguida, passava consultas, juntamente com Luanna e Tamara.
Como o psiquiatra ia só uma vez por mês a Canaã e, portanto, não acompanhava o
dia a dia do Caps, fazia questão de, em suas consultas, estar ao lado das duas
funcionárias que conviviam diariamente com os pacientes. Esta particularidade do
médico as surpreendeu. Elas não estavam habituadas a entrar no consultório com os
médicos. Para Tamara, este gesto demonstrava não só a segurança de Geraldo em
sua prática cotidiana, mas também uma boa dose de humildade:

-- Essa humildade é muito importante, e é isso que o Geraldo tinha. Que a


gente vê em poucos médicos, em poucos psiquiatras. Porque é uma humildade muito
grande o profissional abrir a porta do consultório e dizer, vem atender junto comigo. O
profissional tem que estar muito seguro da conduta dele pra deixar o outro
acompanhar. E a gente não vê isso em todos.

A partir do momento em que atenderam junto com Geraldo, as duas


perceberam que as consultas com ele não tinham hora para acabar. Durante os dois
dias em que permanecia no município, o psiquiatra pouco dormia e trabalhava o
quanto conseguisse. Esta característica dele também marcou a enfermeira Luanna:

276
-- A consulta não tinha um tempo. Era o tempo que o paciente precisasse. A
gente já chegou a ficar horas com um paciente dentro da sala. Não importava, era o
tempo que precisasse. Às vezes ele falava assim, Tamara, vai com ele na outra sala,
conversa com ele, depois você volta para a gente continuar a consulta. Então ela ia,
depois voltava, a gente não tinha hora pra parar. Só tinha a hora de começar. Eu
nunca conheci ninguém que fizesse isso. E me ensine, que ensinou a gente a fazer
isso, igual ele ensinou. O tempo não é nosso, o tempo é deles [dos pacientes], a gente
está aqui para eles.

Outro aprendizado que a enfermeira leva da época em que Geraldo prestava


matriciamento comunitário no município era a forma de olhar para o paciente como um
todo:

-- Ele sempre dizia que não é o CID [Código Internacional de Doenças] que a
gente tem que tratar, mas o que vem acontecendo com a pessoa. Porque é muito mais
fácil você dizer o que a pessoa tem e passar um remédio, do que tentar observar todo
dia uma coisa diferente.

Este foi um longo processo de aprendizado que ela atravessou desde que foi
indicada para a vaga de enfermeira no Caps, em 2010. Em seu primeiro dia no cargo,
Luanna, que desconhecia o trabalho da equipe de saúde mental, adentrou o local
usando jaleco branco e sapatos de salto alto. Hoje, ela brinca:

-- Ainda bem que era dia de reunião da equipe. Porque senão eu tinha passado
vergonha.

Na ocasião, ela foi abordada por outros servidores, que a aconselharam a usar
roupas coloridas e pessoais, pois a roupa branca remetia aos pacientes a realidade
dos manicômios. E também que, no Caps, a verticalidade não era valorizada: todos da
equipe faziam um esforço para que o tratamento fosse o mais horizontal possível.

Este aprendizado fica visível em sua fala. Quando pedi para Luanna me listar
os funcionários mais importantes do Caps, ela diz:

-- Todo mundo era importante. Desde o segurança patrimonial. Inclusive, o


nosso daqui é um dos funcionários mais importantes. Os pacientes são apaixonados
por ele, e ele faz tudo menos ser segurança. Caps é isso.

Com toda esta evolução, Luanna teve, finalmente, sua prova de fogo em uma
véspera de Ano Novo. Era 31 de dezembro e um paciente que estava com depressão
surtou. O homem era segurança de uma agência bancária e havia pego seu revólver e
277
apertado o gatilho algumas vezes. A polícia estava no local e acionou Luanna, já que
Tamara estava de férias.

A enfermeira acabara de descobrir que estava grávida, mas foi. Com Geraldo
ao telefone durante todo o tempo, conduziu a situação até o homem dar entrada no
hospital. Ela se arriscou e não se arrepende. Pelo contrário. Enche-a de alegria e
satisfação contar-nos que, hoje em dia, o homem faz academia junto com ela:

-- É que ele não acreditou no diagnóstico que a gente tinha dado. Ele achou
que era só uma tristeza, pronto, e vai passar. Todo mundo acha que é doido, porque
vai no Caps é louco, porque toma remédio do Caps é louco, porque vai no psicólogo é
louco, e não é. É só um momento da vida, é uma doença que está passando naquele
momento. Igual qualquer outra. Se você fizer o tratamento, você leva a vida normal.

Ouvir tal sentença, naquela situação, soou natural -- Alice e eu ficamos


indiferentes frente à fala da enfermeira. No dia seguinte, porém, um portador de
transtorno mental repetiu, na nossa frente, as mesmas palavras. Desta vez, eu me vi
surpresa por escutar que, apesar da doença, ele trabalhava e tinha diploma de
Mestrado. As barreiras -- internas, sempre internas -- da saúde mental são muito mais
altas do que supomos.

Carlos Alves, 41 anos, é belenense de nascimento, mas foi fazer Mestrado em


Ciências da Computação em Campina Grande, no interior da Paraíba. Lá, conheceu
sua ex-mulher, com quem mudou-se para Belém e, posteriormente, para
Parauapebas. Nessa cidade do sul do Pará, tiveram um filho. Alguns anos depois,
desentenderam-se. Carlão, como é conhecido, resolveu se divorciar. E aproveitou a
oportunidade para também mudar de emprego:

-- Essa história de garoto de programa, vai passando o tempo e já viu, não dá


certo, não -- brinca ele, dando o tom da conversa.

Em 2012, Carlão foi trabalhar como diretor sindical. Ele passou a coordenar o
setor de Comunicações do Sindicato de Servidores Públicos de Parauapebas
(Sinseppar). Em sua gestão, o órgão passou de 180 para 1.230 filiados. São números
que comprovam que Carlão faz um bom trabalho -- por isso, no novo mandato, foi

278
eleito vice-presidente do órgão. Há nesses números, porém, outra característica de
sua personalidade que não se evidencia tanto: Carlão trabalha demais. Ele se
sobrecarrega de atividades. De propósito. Desde a hora em que acorda até a hora de
dormir, não para. Faz isto, ele explica, para dosar a sua condição de bipolar.

-- Eu falo que a minha bipolaridade veio com defeito, porque eu tenho mais
euforia do que depressão. Depressão, eu quase não sei o que é isso. Em geral tem
oscilação, só que a minha só fica na euforia... Eu reclamo, mas ninguém corrige ela --
brinca.

Foi em Parauapebas que Carlão teve seu primeiro surto. Corria o ano de 2006
e ele ainda estava casado com sua ex-mulher. Na ocasião, foi encaminhado para
Belém e ficou 15 dias internado no Hospital de Clínicas Gaspar Vianna. Ele não entra
em detalhes, mas deixa entender que não foi bem tratado neste período -- conta,
superficialmente, que foi amarrado e sedado. Depois da alta, retornou a Parauapebas
e passou a ter acompanhamento com uma psiquiatra que atendia no particular.
Segundo Carlão, a cada consulta a médica aumentava a dose de seu medicamento.
Isto o fazia se sentir seguro, pois acreditava que o remédio estava “tomando conta”
dele. Como consequência, ele se “soltava” mais. E, nisto, surtou de novo, dois anos
depois -- um surto que ele atribui ao excesso de medicação. Carlão foi, mais uma vez,
encaminhado para o Gaspar Vianna, onde permaneceu por 25 dias.

Pergunto como ele sente o processo do surto. Nas palavras dele, a pessoa
com transtorno bipolar vai do céu ao inferno em frações de segundo. Como, no caso
dele, ele sente mais euforia, explica:

-- O pique eufórico se dá por acelerar demais o raciocínio, pensar muito à


frente, e aí você pisa em falso e acaba escorregando. Imagina um ginásio cheio de
água, uma pedra de sabão que você pula, iuhuu! obaa! ieee!, e, de repente, buf! É
isso.

Em seguida, indago quanto tempo dura o surto:

-- O surto normalmente é mais breve, questão de um ou dois dias. Ou três,


dependendo das internações que são feitas. Mas daí, para tu retomar as rédeas da tua
vida, para voltar à credibilidade de que você é você, do que você está sendo apto, aí é
que demora. O processo de reconstrução do pós-surto, do tratamento do surto, é que
é complicado. Não tem como dizer, eu estive surtado dois dias, três dias, até porque
tudo se torna muito embaçado. É como se fosse o pôr-do-sol. Quando é que começa?
Quando ele acaba?

279
Carlão atravessou todo esse processo para sair de seu segundo surto, em
2008. Quando finalmente teve alta do hospital, depois de quase um mês, ele retornou
ao sul do Pará decidido a procurar alternativas ao tratamento em consultório particular.
Nesse mesmo ano, Canaã dos Carajás inaugurava seu Caps. Carlão foi de encontro a
ele. E foi amor à primeira vista.

-- Eu sou capista profissional -- assume. -- Para mim, um dos melhores


espaços, a nível de saúde mental, indiscutivelmente, é o Caps. Pode, em certos
momentos, não estar funcionando corretamente. Mas a nível de filosofia, de
funcionamento, de rede, para mim não tem opção melhor.

Carlão. Crédito: Alice Arida

No Caps de Canaã dos Carajás, Carlão se consultou pela primeira vez com
Geraldo. Apesar de morar em Parauapebas, o belenense andava, naquele ano de
2008, trabalhando em Canaã como analista de sistemas. Todo dia, ele percorria os 65
quilômetros de estrada que separam os dois municípios para trabalhar na prefeitura e

280
frequentar o Caps. Por isso, quando conheceu Geraldo, ele ainda se consultava com
outro médico:

-- Tava com dois psiquiatras, isso é que é bipolar profissional, um psiquiatra


para cada polo -- diz, arrancando risos, nossos e dele.

Aos poucos, Carlão foi se adaptando ao trabalho de Geraldo. E conhecendo o


dia a dia do Caps e o trabalho da equipe de saúde mental. O acompanhamento
multidisciplinar -- no qual o tratamento é realizado não só pelo psiquiatra, mas por
psicólogos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, terapeutas
ocupacionais e até massagistas, fisioterapeutas ou acupunturistas -- fez com que
Carlão aos poucos adquirisse outras percepções de seu transtorno. Não só aceitou
que precisava de medicamentos controlados, mas notou que realizar muitas atividades
durante o dia o ajudava a administrar sua doença.

-- Dentro do Caps, acabaram percebendo essas situações. Que, no meu caso,


não era questão de aumentar a dose, mas sim sobrecarregar de atividades. Aí, eu
estabilizo. Mas é uma percepção que só se dá quando você tem mais do que um
psiquiatra, você tem psicólogo, terapeuta ocupacional, tem uma assistente social, uma
série de pessoas que vão observando e o atendimento não fica só dentro do viés
psiquiátrico. O grande quê do Geraldo é justamente isso, essa percepção de que não
é só um comprimido que vai alterar a vida das pessoas, mas sim toda essa outra rede
de apoio. Ele não se impunha tanto quanto... o médico, o salvador da pátria, o tudo,
era mais um. Que é o que dava brilho em todos.

Depois desta descoberta, Carlão instituiu todo um protocolo de ritmo para a


sua vida. Ele passou a balancear o seu tempo individual com o tempo com a família --
formada por sua segunda mulher, a filha dela e a filha desta, neta de Carlão --, o
emprego no Sindicato e o trabalho na ONG Aliança Carajás de Cultura, Esporte e
Tecnologia, da qual foi um dos fundadores. Presente em Parauapebas e em Canaã, a
Aliança Carajás promove atividades como sessões de cinema, apresentações de
teatro e jogos de xadrez, basquete e handebol. Participam destes eventos esportivos e
culturais um público misto, formado por adultos, crianças, idosos e até prostitutas.

-- Deve dar um trabalhão -- comento, quando Carlão me conta um pouco sobre


seu envolvimento com a ONG.

-- É a questão da hiperatividade que o bipolar tem. É como eu digo, aprender a


canalizar. Graças a Deus, depois de cinco aninhos eu saí da presidência -- ele
responde.

281
Quando assumiu a vice-presidência do Sinseppar, Carlão deixou de contribuir
com a ONG. Ficou difícil conciliar os dois trabalhos. Mas o xadrez continua entre as
principais atividades da Aliança Carajás. E não é por acaso. Logo no início da
conversa, descobrimos que Carlão é fascinado pelo jogo. Ele conta que possui um
tabuleiro de madeira de lei e que faz questão de ensinar xadrez aos outros, sobretudo
às crianças. Para ele, esta é uma ótima oportunidade para reunir as pessoas. Pois
Carlão se preocupa com o ritmo de nossa sociedade, em que tudo é instantâneo, não
há diálogo e as televisões e outras tecnologias ocupam o espaço das antigas
conversas. Este é um “problema de saúde mental”, como ele define, que tentou sanar
por conta própria, estimulando a prática de xadrez em diversos territórios de
Parauapebas e Canaã.

Mas o xadrez, ao longo da conversa eu percebi, não é apenas uma paixão. O


xadrez, em Carlão, é parte integrante de seu ser. É a resposta a suas indagações
mais profundas. Este foi o grande aprendizado que o jogo lhe proporcionou.

-- Eu passei a ver a vida como um tabuleiro de xadrez. Com questões de curto,


médio e longo prazos. Coisas que são boas no momento, no futuro não são tão legais.
No xadrez, você vai vendo que tudo depende, e começa a respeitar, no momento, as
situações. Ele acaba tendo um papel muito metafórico nessa construção.

Por exemplo, a longo prazo, Carlão já aceitou que deve continuar a tomar
remédios controlados. E ele é bastante rigoroso quanto a isso. Não passa um dia sem
tomar suas medicações, e nem cogita parar:

-- Só paro quando o médico disser para eu parar. Eu tenho comigo assim: eu


sou analista de sistemas, eu não sou psiquiatra. Se eu discordo do psiquiatra, eu
procuro outro psiquiatra para trocar ideia. Se ele falar a mesma coisa, eu posso
procurar outro, mas, enquanto não tiver alguém que compartilhe comigo a minha ideia,
eu mantenho, mesmo a contragosto.

Com todo esse protocolo de ritmo de vida e todo esse controle de remédios,
Carlão parou de ter crises. Hoje, consegue levar com tranquilidade sua família, seu
trabalho, seus amigos e o tempo para cuidar de si. Muitos conhecidos nem sabem que
é portador de transtorno mental. Outros não acreditam, como ele nos relata:

-- Muitas das vezes, quando as pessoas dizem, Carlos, mas tu não é doido, aí
eu digo, o problema não é que eu seja doido, eu sou, eu tenho transtorno mental. O
problema é que você não sabe o que verdadeiramente é uma pessoa com transtorno
mental. Você está acostumado a ver uma pessoa dopada, sedada, babando.

282
Eu mesma me admiro com Carlão, com sua história, com suas ideias, com sua
força de vontade. Decido perguntar se ele acha que melhorou desde a época em que
teve suas crises, alguns anos atrás. E, mais uma vez, sou pega de surpresa:

-- Eu acho que eu tenho piorado. É, nossa, mãe, depois que tirei minha
carteirinha de doidão, não tem coisa melhor, não. Me assumi, me aceitei. Eu tenho
orgulho de ser doido. Eu digo, nada melhor do que quando você sabe o que você tem
para você começar a se entender, a se cuidar e ter uma vida com qualidade. Quem
tem pressão alta, quem tem diabetes, a partir do momento em que se encontra, passa
a ter uma vida supostamente normal. Não é porque a pessoa tem diabetes que não
pode comer açúcar, não pode comer mais pesado. Mas, se vai comer mais pesado,
ela se aplica uma dose de insulina previamente, para compensar. Então, depois que
eu me descobri enquanto bipolar, eu pude ganhar qualidade de vida.

Carlão garante que não se permite ficar pior. Diz que todos os seus amigos e
familiares o conhecem e o alertam, a pedido dele mesmo, quando percebem alguma
curva fora de seu rtimo normal. Ele, então, se direciona imediatamente ao Caps.
Dessa forma, vai atravessando seus dias, do jeito que é e como quer ser. Doido
profissional.

283
17. O começo de um fim

“I traveled each and every highway

And more, much more than this

I did it my way”

(Eu viajei por cada e todas as rodovias

E mais, muito mais que isso

Eu fiz do meu jeito)

Versos da canção My way

284
A distância entre os nossos olhos é a distância de uma mesa de madeira, com
toalha branca de renda. Entre nós, não há gravador, apenas um computador, onde
vou anotando o que ele me diz. Já vão três anos que nos conhecemos, e posso intuir
o que ele sente naquele momento -- uma angústia, uma vertigem, aquele aperto no
peito, a sensação de desorientação quando não sabemos muito bem como proceder.
E como será tudo no futuro. É por isso que, naquele instante, ele não me diz nada.
Permanece imóvel, calado, o olhar fixo em um ponto indeterminado da sala.
Finalmente, depois de alguns segundos demorados, ele diz:

-- Eu fiquei mais tranquilo no filme, ontem, quando a filha da fotógrafa se virou


na escola, numa apresentação dela, e disse, essas pessoas que minha mãe fotografa,
elas precisam muito mais da minha mãe do que eu. Isso me deu um certo alívio.

O filme em questão é Mil vezes boa noite, em que a atriz francesa Juliette
Binoche interpreta uma bem-sucedida fotógrafa do ramo jornalístico. Ela retrata vários
conflitos políticos e econômicos mundiais, sobretudo na África e Ásia, mas entra em
crise quando busca conciliar profissão e família, pois tem marido e duas filhas.

Geraldo, é claro, identificou-se muito com a personagem. Em vinte anos


atuando como psiquiatra, e clínico, e caboclo, e poeta, no sul do Pará, realizando as
maiores loucuras que um médico pode realizar, ele assume que, em certos momentos,
priorizou o trabalho.

Um trabalho que, agora, é olhado pelo retrovisor. Um tempo que já foi e cujo
percurso, intenso e apaixonado, resta apenas na memória:

-- Eu olho para trás e não sei como eu fiz tudo o que fiz. Foi uma loucura. Uma
euforia. Foi como um surto que durou muito tempo.

Se foi loucura, não foi por acaso. Geraldo sempre foi guiado por um sentimento
de revolta, de indignação, de raiva, diante de uma sociedade desigual. Desde a época

285
em que era apenas um estudante de Medicina, e ao longo de sua trajetória, acabou
criando o seu modo particular de entender a profissão que escolheu para si.

-- Eu sempre achei que fazer Medicina era atender o sofrimento do outro, esse
outro o mais carente possível. Porque o sofrimento me motiva. Me motiva até para
fazer poesia, imagina para cuidar do outro. Eu acho que cuidar do outro é um ato
poético. É uma coisa que nasce de dentro, vem da alma para fora. É o querer, o
gostar, a compaixão, a solidariedade, a mudança. É querer se mudar mudando o
outro. É olhar para a pessoa com os olhos dela, e ela te olhar de volta com os teus
olhos.

Nessa troca de olhares, Geraldo foi afundando em si mesmo e descobrindo,


aos poucos, as profundezas mais recônditas seu ser. É esta a confissão que ele me
faz, pelo telefone, em uma bonita tarde de julho, depois de ler todos os capítulos deste
livro. Leu-os de cabeça baixa, emocionado. Eu também me curvo frente ao
computador, e escuto:

-- Lendo o livro, eu fiz um mergulho, e não foi fácil. Não é fácil mergulhar na
minha vida. A impressão que me dá é que eu, o tempo todo, também me coloco como
paciente, como sendo tratado. Me vestindo igual a eles, falando igual a eles, me
identificando com alguns sofrimentos. Eu acho que eu até esqueci de falar, de
escrever. Quantas vezes eu esqueci que eu era médico? Quase que sempre. Eu tinha
que me policiar, me lembrar que eu era médico. De tanto viver a miséria do outro, a
miséria do corpo, não da alma. De tanto me envolver, sem supervisão, sem nada, eu
acho que eu acabei virando um deles. Foi essa a conclusão que eu cheguei, que eu só
consegui fazer tudo isso, porque eu passei a ser um deles. Porque eu corri, na
verdade, atrás do meu tratamento. Da minha transformação. Do meu renascimento.

E o médico que reencarnou tantas e tantas vezes agora não sabe para onde ir.
Está perdido, angustiado, apesar de ter realizado tantos sonhos. De ter vivido tantas
vidas.

Uma parte desta angústia nasce da falta de um profissional para substitui-lo.


Pois, para realizar este trabalho, não basta só ser qualificado. Tem que ter amor. Ou,
nas palavras dele:

-- É uma coisa que está no sangue, é como uma droga, você fica dependente.

Há tempos o psiquiatra busca um colega para entrar em seu lugar. Ele chegou
a influenciar a trajetória de um médico, Wilson Zielak Jr., que decidiu se especializar

286
em Psiquiatria após conhecer Geraldo. Os dois se encontraram em Canaã dos
Carajás, mas Wilson decidiu se mudar para Maceió para dar continuidade a seu
trabalho.

Em Tucuruí, o Caps também recebeu, nos últimos tempos, profissionais


comprometidos, que mudaram a atmosfera do lugar. Em 2015, chegou para trabalhar
no centro a médica Lilian Reis, que é clínica geral, mas está se envolvendo
profundamente com Saúde Mental. Além disso, Marília Mousinho saiu da coordenação
e, em seu lugar, entrou a psicóloga maranhense Elayne Silva, 29 anos. Elayne é o
“Geraldo de saia”, como o próprio clínico e psiquiatra diz. Ela está realizando, à sua
maneira, uma revolução no Caps. Revitalizando um centro que, nos últimos anos,
esteve carente de atividades e de uma equipe engajada. Graças ao novo fôlego da
psicóloga, Geraldo voltou a realizar sessões lotadas de terapia comunitária no Caps e
nos bairros. Às vezes, ele me liga, eufórico:

-- Estou todo suado, acabei de sair de uma sessão de terapia comunitária que
durou duas horas no Caps.

E começa a me relatar como foi a conversa na roda humana. Todo este


entusiasmo, no entanto, o faz refletir sobre o seu futuro profissional. Pois Geraldo, em
algum momento, deve deixar de prestar matriciamento comunitário em outros
municípios do sul do Pará. Ele assume que quer ficar apenas em Tucuruí. Mas não
sabe como fazer isto.

-- Estou querendo voltar para casa. Eu não tenho mais pique. Não tenho mais
o gás de antigamente. Estou nesse conflito: quero parar e não quero parar. Estou
parando, mas não estou. Como largar isso? Falo, chega, não tem por que mais ficar
fazendo isso. E, quanto mais eu quero ir embora, mais as pessoas ficam me
procurando. É droga: olha, tem uma cocaína de última geração. Enquanto você
conviver com esse estado de miséria, de ausência do poder público… E eu preciso me
curar disso.

São esses alguns dos dilemas que têm atormentado a mente de um médico e
de um poeta que sempre trabalhou em pró dos outros. Por isso, nas últimas vezes em
que me encontrei com Geraldo, em São Paulo, senti essa angústia em seus olhos.
Uma angústia expressa em sua pergunta mais urgente:

-- Eu quero que outras pessoas me substituam. Mas quem são esses outros?
Não tem.

287
Não, não há.

E não haverá.

Sua história de luta, de amor e de transformação, é única. Ela, sim, servirá de


inspiração para o andar de outras pessoas. Cada uma delas fará a caminhada a seu
modo. E todas, para dar o primeiro passo, vão precisar de um só ímpeto: o de afundar
no chão os pés descalços, sujos e rachados, e seguir em direção à comunidade.

288
Anexo

Presidência da República

Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001

Dispõe sobre a proteção e os direitos das


pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde
mental.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta


e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de


que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à
raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade,
família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu
transtorno, ou qualquer outra.

Art. 2o Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e


seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos
enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas


necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar


sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e
na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

289
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a


necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu


tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde


mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos
mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada
em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades
que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando


os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do


paciente em seu meio.

§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer


assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços
médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em


instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos
mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no
parágrafo único do art. 2o.

Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize


situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de
ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e
reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária
competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada
a continuidade do tratamento, quando necessário.

290
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico
circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a


pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Art. 7o A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente,


deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse
regime de tratamento.

Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação


escrita do paciente ou por determinação do médico assistente.

Art. 8o A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico


devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se
localize o estabelecimento.

§ 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas


horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do
estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser
adotado quando da respectiva alta.

§ 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do


familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável
pelo tratamento.

Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação


vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do
estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e
funcionários.

Art. 10. Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento


serão comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares,
ou ao representante legal do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável,
no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência.

291
Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão
ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante
legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao
Conselho Nacional de Saúde.

Art. 12. O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará


comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei.

Art. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 6 de abril de 2001; 180o da Independência e 113o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Jose Gregori

José Serra

Roberto Brant

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 9.4.2001

292
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