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A Leseira Itinerante
Histórias de um psiquiatra pelas estradas, matas e
rios do sul do Pará
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Este livro é dedicado a todos aqueles que buscam
se livrar de suas amarras.
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Sumário
Prefácio……………………………………………………….…… 4
Apresentação ………………………………………………..…… 5
Capítulo 1 ……………………………………………………….… 8
Capítulo 2 ………………………………………………………... 16
Capítulo 3 …………………………………………………...…… 36
Capítulo 4 ………………………………………………………... 59
Capítulo 5 ………………………………………………………... 77
Capítulo 6 ………………………………………………….....… 100
Capítulo 7 ……………………………………….......……...….. 119
Capítulo 8 …………………………………………………....…. 130
Capítulo 9 …………………………………………………….… 145
Capítulo 10 …………………………………………………...… 162
Capítulo 11 ………………………………………………...…… 186
Capítulo 12 …………………………………………………...… 204
Capítulo 13 …………………………………………………..…. 221
Capítulo 14 …………………………………………………...… 234
Capítulo 15 ……………………………………………………... 250
Capítulo 16 …………………………………………………..…. 269
Capítulo 17 - O começo de um fim …………………………... 284
Anexo ………………………………………………..………….. 289
Referências ……………………………………...……………... 293
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Prefácio
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Apresentação
Geraldo, psiquiatra e poeta que atua no sul do Pará, é daquelas pessoas que
carregam em si a capacidade de mudança. E comigo não foi diferente. Ele
transformou a minha vida em uma noite de calor naquelas terras paraenses, quando
me perguntou, durante um jantar em um restaurante, se eu gostaria de escrever um
livro sobre a história dele.
Passei a ler, estudar, pesquisar tudo relativo à saúde mental e ao sul do Pará,
um pedaço de Amazônia bastante maltratado. Durante meses, planejei minha viagem,
escrevi um roteiro de trabalho, programei entrevistas. Estava preparada para tudo,
menos para o que aconteceu. Assim que iniciei meu trabalho de campo, descobri-me
grávida. No sul do Pará.
Foi uma surpresa, um baque, uma bela pedra preciosa no meio do caminho.
Eu havia pesquisado tanto, lido tanto, planejado tanto aquele trabalho de campo, que
o imprevisto -- e que imprevisto! -- me pegou de jeito.
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Com a notícia, tive que reorganizar tudo e, principalmente, tive que interromper
a viagem antes do programado. Comecei a sentir enjoos que impediram que seguisse
estrada. Retornei a São Paulo e, como pude, preenchi dentro de mim, e do livro, este
vazio -- a minha ausência em municípios onde já havia combinado hospedagem,
transporte e entrevistas.
Não podia me conformar com toda essa mudança. Por diversas vezes, brigava
com a sensação de que estava tudo fora do lugar, tudo fora do que eu tinha planejado.
Não queria aceitar. As pessoas me diziam que era assim mesmo, que o bom da vida é
o imprevisível. Mas, para mim, aquele imprevisível era demais. Tinha prejudicado o
meu livro, algo pelo qual eu tanto havia lutado. E, agora, tinha que preparar enxoval de
bebê e pesquisar berço para comprar. Realmente, não via como a maternidade
poderia me ajudar naquele momento. Não via como conciliar o livro e o bebê que
estava a caminho.
Hoje eu sei que, sem a Catarina, fonte da minha alma, que jorra estas
palavras, esta obra não teria sido a mesma. Se é assim, é graças a ela e à
maternidade, que me desvendou partes de mim antes escondidas em algum canto do
meu ser.
Mas outras pessoas também tiveram papel importante para a realização deste
livro. E eu gostaria de agradecê-las especialmente: ao Geraldo, que me abriu as
portas de um novo mundo; à Alice, companheira fotógrafa, que topou se aventurar
comigo; ao meu marido Lui, um amor muito melhor do que qualquer amor que eu já
sonhei; à minha mãe e ao meu irmão, Gilda e Daniel, seres que constituem o meu ser;
ao meu pai, Carlos Eduardo, em memória, que desde 2008 carrego comigo em minha
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estrada; aos meus sogros, Alberto e Lucila, a família que meu coração adotou; ao
Nonato, pelas palhaçadas e pela divertida hospitalidade em Tucuruí; ao Marajá, pelas
viagens de voadeira pelas águas do rio Tocantins; ao casal César e Mariana e seus
filhos Francisco e Ricardo, pela hospitalidade em Parauapebas; ao Octávio, por
acreditar nesta obra desde o princípío; e a todos os entrevistados desse livro, pela
confiança em compartilhar comigo as suas histórias.
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1.
Entra no igarapé,
Gersa
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Os pés descalços, sujos e rachados, tocavam, suaves, o piso frio de pedra.
Esculpidos com as marcas do viver, desenhavam no chão um grande círculo negro e
mestiço que contrastava com o assoalho branco. Eram muitos. Vinham de todas as
partes daquele pedaço desmatado de Amazônia, onde não se sabe quem é mais
castigado, se a mata, se os homens. Era mais uma manhã ensolarada de quarta-feira,
e lá estavam eles, em busca de ajuda. Na terra do sol escaldante, aquela gente
procurava luz. E tiveram a coragem de vislumbrar, com um frio na barriga, fruto do
desconhecido, a pequena casa com portão de ferro azul descerrado. Atravessaram o
batente e percorreram o curto corredor que separava a entrada do amplo salão. Ao
entrar naquele novo mundo, foram recebidos com palmas e uma canção entoada em
coro. Os abraços e sorrisos carinhosos logo dissipavam os temores dos que ali
chegavam. O salão acolhia. “Seja benvindo olerê, seja benvindo olará, paz e amor
para você, que veio participar”, era o refrão que embalava os novatos. Confortados,
pensaram que talvez houvesse uma saída para suas angústias. Uma saída que
refletia-se no olhar dos outros. Daqueles presentes, naquela manhã, no Centro de
Atenção Psicossocial (Caps) de Tucuruí.
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Aguardavam a chegada dele. Eram quase oito horas da manhã. O sol já
castigava o asfalto cintilante, mas não os alcançava: o salão, aberto nas laterais, era
coberto por telhas que o protegiam também das torrenciais tempestades amazônicas.
E tornava agradável o ambiente, alegre, iluminado e tomado pelo murmúrio das
conversas.
-- Doutor, eu vim comunicar que não aguento mais ver meu pai chegar bêbado
em casa e bater na minha mãe. Ontem foi o último dia que ele fez isso. Hoje eu vou
matar ele.
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dirigia-se ao cômodo. Providenciou faixas pretas de vendar olhos, boias do tipo
espaguete e um repertório de músicas: os acordes de Kitaro invadiram a sala. Era
uma tempestade tropical, cujos sons tornavam-se ainda mais tenebrosos no escuro da
faixa que vendou aqueles olhos angustiados. O homem recebeu das mãos do médico
as boias, e, com elas, a ordem:
-- Bate nesse desgraçado do teu pai! Esse covarde, bêbado, safado! Bate
nesse canalha!
-- Agora, nós vamos celebrar o perdão. Perguntaste ao teu pai se, quando
criança, ele não viu o pai dele bater na mãe dele? Perguntaste ao teu pai o que ele
quer dizer com a cachaça? Por que ele toma cachaça? Por que ele virou um
alcoólatra?
No dia seguinte, pai e filho estavam sentados, lado a lado, no salão aberto da
pequena casa de portão azul. Aguardavam, pacientes, a consulta com a psicóloga.
Depois de uma semana, em outra quarta-feira ensolarada, integravam a roda
conduzida, novamente, por Geraldo. Desta vez, o homem que queria matar o pai
estava de mãos dadas com ele e ansiava por encontrar, talvez na voz e no olhar do
outro, alento e esperança. Assim como o seu pai.
...
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Desde o princípio, foi assim. Geraldo era uma usina criadora. Inventava, na
ânsia de ajudar pessoas desprovidas de tudo, vivendo numa terra de misérias. Ele já
havia há muito compreendido que a cartilha ortodoxa da psiquiatria não se enquadrava
em solo amazônico. Por isso, realizou sua primeira sessão de terapia comunitária à
noite, embaixo de uma mangueira e ao redor de um panelão borbulhante de capim
santo. O ano era 1997.
-- Doutor, tem esse meu vizinho, que é senhor de idade e mora sozinho, num
barraco ao lado do meu. Uns moleques foram lá e tacaram fogo no barraco. Quando
acordei hoje de manhã, fui olhar o vizinho. Ele estava sentado no sofá, todo velho,
todo sujo. E o barraco dele no chão. Confesso que estou preocupada.
Geraldo ouviu com atenção e intuiu a gravidade do caso. Entrou com a mulher
em seu Fusca branco, comprado alguns meses antes para auxiliá-lo em seu trabalho,
e dirigiu-se à casa do homem. Durante o percurso, ligou para a Secretaria de Saúde
para solicitar que encaminhassem uma ambulância ao local. Quando chegou ao seu
destino, mais um destino de ruas de terra e casas de madeira, pediu licença para
montar no muro do quintal da senhora, que separava a casa dela da do homem. Lá de
cima, mirou o barraco vizinho: o velho, enfermo e maltrapilho, permanecia imóvel, sem
forças, sentado no que havia restado de um sofá.
Mais uma vez, a realidade impunha fantasia: só criando era possível dar conta
daquela dureza. O médico, sagaz, inventou rápido.
-- Severiiino!
Triste destino: Severino, após receber alta do hospital, foi internado na Casa
dos Idosos, onde passou seus últimos dias. Não viu sua casa novamente. Sua
derradeira conexão com o mundo foi o pequeno rádio de pilhas, seu companheiro de
tantos anos.
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-- Pelo menos a vida dele foi salva -- pondera o médico, na tentativa de
conformar-se.
Não adianta.
Quem um dia foi Deus, também foi pai. As histórias do psiquiatra são
intermináveis, e estão suspensas em um tempo e um espaço mágicos. Geraldo estava
de passagem por Belém, sua cidade natal, quando recebeu uma ligação telefônica do
capitão da Polícia Militar em Tucuruí. Soube pelo oficial que um paciente seu tinha
escalado a torre da Rádio Floresta, a mais famosa do município, e estava sentado em
uma de suas grades metálicas, em inconsolável espera. Aquele era o lugar mais alto
de Tucuruí. Prostrado, o homem tinha posto as pernas para fora e ameaçava se jogar.
Uma repórter de televisão andava dizendo que a causa de tudo tinha sido uma
briga com a namorada. O capitão, sem saber como proceder, resolveu ligar para o
psiquiatra.
-- Branco.
O homem que se encontrava nas alturas tinha sido criado em Tucuruí pelo pai,
originário do Piauí, e a mãe, paulista. Certo dia, o pai resolveu voltar para a terra natal
ao lado da amante. E a mãe resolveu retornar a São Paulo com seu outro filho.
Washington ficou aos cuidados da avó. Não tardou para que o menino,
abandonado, começasse a agredir a tutora e a quebrar tudo em seu novo lar. Afinal,
ele mesmo estava quebrado, por dentro. E queria quebrar-se também por fora. Passou
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a esticar-se no asfalto das ruas, na esperança de que algum carro o atropelasse.
Subia em postes e pendurava-se em cabos de alta tensão, esperando ser
eletrocutado. Ninguém o via. Quando finalmente chegou ao lugar mais alto de Tucuruí,
nada restava. Apenas o extremo: ou alguém o salvava, ou diria adeus a um mundo
que, desde o princípio, só o maltratou.
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2.
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O sol laranja desponta no horizonte, entre as baixas colinas verdes da vila de
Alcobaça, e tinge de rosa as águas fundas e escuras do rio Tocantins. Cardumes de
tucunarés nadam tranquilamente, acompanhando o movimento das canoas de
pescadores. Ao longe, gaivotas levantam voo com suas longas asas e seu grito curto e
agudo, à procura de alimento. A floresta densa, úmida e escura, exala sons
misteriosos e impõe respeito ao homem. Um canto de galo ecoa de um ponto remoto
do vilarejo: é o canto rotineiro que antecipa a chegada do trem. Minutos depois, os
moradores do lugar ouvem os apitos da máquina a vapor e o barulho áspero das
pesadas rodas a friccionar pela estrada de ferro. As rodas que anunciam a vinda de
mais um carregamento de castanhas e diamantes, extraídos do médio e baixo
Tocantins.
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O rio Tocantins. Crédito: Alice Arida
Nativa do bioma, a castanheira se impõe às outras árvores por ser uma das
mais altas e longevas da floresta. Ela chega a atingir 55 metros e, quando cultivada,
pode produzir por mais de cem anos. Seu tronco grosso, retilíneo, majestoso, tem de
um a dois metros de diâmetro. Suas folhas, de 20 a 35 centímetros de comprimento,
são abundantes apenas na copa, de onde miram com privilégio o restante da floresta.
O fruto de casca dura nasce de uma pequena flor verde-esbranquiçada e tem forma
de ouriço. Um ouriço de castanheira pode medir até 15 centímetros de diâmetro e
pesar dois quilos. Dentro dele, estão guardadas de 8 a 24 sementes – as famosas
castanhas-do-pará ou castanhas-da-amazônia.
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estavam as corredeiras de Itaboca. E a linha de ferro tinha por missão driblá-las. Os
operários iniciaram as obras em 1905 e, por quarenta anos, não pararam de trabalhar.
Em 1944, foi finalmente inaugurada a Estrada de Ferro do Tocantins (EFT). Três anos
depois, em 1947, a vila de Alcobaça emancipou-se da cidade de Baião e ganhou
status de município: agora, chamava-se Tucuruí.
Por inúmeras vezes, o trajeto de seis estações até Alcobaça foi percorrido pela
máquina a vapor. Em 1973, o governo do general Emílio Garrastazu Médici decidiu
desativar a ferrovia, já que o comércio de castanha havia decaído. As plantações
estavam sendo destruídas, e a terra, queimada, para dar lugar a enormes pastagens
de gado.
Mas o destino de Tucuruí não seria virar alimento para bois e vacas. Eram
outros os planos federais para o município que abrigava a última linha da estrada de
ferro.
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...
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A usina hidrelétrica de Tucuruí funciona com as comportas fechadas de junho a dezembro.
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Em sua maioria, os peões da obra eram, novamente, nordestinos que fugiam
da seca em busca do sonho da abundância amazônica. Pessoas que desejavam
mudar de vida, cansadas de uma existência de escassez. Mais uma vez, ao invés do
eldorado de opulência, encontraram um trabalho extenuante. E, além disso,
temporário: quando as obras da usina terminaram, viram-se sem ter para onde ir.
Tornaram-se forasteiros sem raiz e sem cultura, num lugar, para eles, sem sentido.
Para todas essas pessoas, não houve alternativa. A época do trem, das
castanhas e dos diamantes já pertencia a um passado distante. A história de Tucuruí
havia sido dividida em um antes e em um depois. Seu novo destino era gerar energia.
Não para a população local, que desconhecia e continuava a desconhecer a luz
elétrica. Mas para grandes multinacionais.
Ainda assim, quando usina e fábrica foram inauguradas, esta última usufruiu de
um subsídio que, ao longo de 20 anos, de 1984 a 2004, chegou a US$ 2 bilhões,
segundo contabilizou o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto. A fábrica da Albrás é
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responsável por 1,5% do consumo energético de todo o Brasil – ela, sozinha, consome
mais do que todo o estado do Pará. Graças a essa energia, a fábrica consegue suprir,
sozinha, 15% da necessidade japonesa de alumínio. Por ano, 450 mil toneladas do
metal são exportadas diretamente para o país asiático, no que representa o maior
processo de transferência industrial do século passado, de acordo com Lúcio Flávio.
Ocorrida pouco depois da crise do petróleo de 1973, essa transferência possibilitou ao
Japão fechar todas as suas fábricas de alumínio sem sofrer desabastecimento. E com
uma vantagem: o metal passou a entrar no país a um preço mais baixo do que os
próprios japoneses poderiam conseguir, se ainda contassem com fábricas em seu
território.
Além disso, por 25 anos não houve meio de atravessar o rio Tocantins. As duas
eclusas, que começaram a ser levantadas em 1979, seriam inauguradas apenas em
2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Elas não estavam previstas no
projeto original da Eletronorte para Tucuruí. Pela empresa, o rio seria barrado e ficaria
intransponível - condição que transgride o Código das Águas, uma lei federal de 1934.
Por pressão, a Eletronorte incluiu no projeto a realização das duas eclusas, que hoje
estão entre as maiores do mundo, com capacidade para 40 milhões de toneladas de
carga. A tarefa de construção foi transferida para outra companhia, a Portobrás,
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estatal que viria a ser extinta durante a onda de privatização, nos anos 1990. Como as
eclusas demoraram décadas para entrar em funcionamento, seu custo também
extrapolou em muito o orçamento inicial. E seu uso é restrito. Destinam-se a receber
algumas cargas comerciais, de multinacionais que atuam no ramo siderúrgico e de
mineração e que não fazem nada além de reproduzir o modelo colonial de exploração
da Amazônia. Não há vontade política nem econômica para o desenvolvimento interno
e local.
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Belém a Tucuruí, ele baixou o olhar e mirou pela primeira vez a composição artística
do lago. Sentiu uma pontada no coração. Tinha sido convidado para ficar uma semana
na cidade. Ao avistar a magnífica paisagem, soube de imediato que aquele era o seu
lugar.
...
Apesar da baixa estatura, Raimundo Geraldo Viana Sales logo se destacou nas
atividades esportivas do colégio. Era dos jogadores mais ágeis em modalidades como
vôlei e basquete. No colegial, chegou a ganhar uma plaqueta de prata como melhor
atleta do ano. O gosto por esportes veio por influência do avô materno, Wagner
Studart Viana, com quem tinha uma convivência quase diária. Wagner era ferrenho
admirador do Paysandu e ocupou vários cargos de diretoria no clube de futebol
paraense. Passou para os netos esta paixão. Até hoje, Geraldo torce com fervor pelo
seu time paraense do coração, embora seja também flamenguista. E nunca deixou de
correr. Houve um tempo em que acordava às quatro horas da madrugada para
percorrer dezoito quiômetros. Graças a essa rotina, exibe um corpo atlético que deixou
marcas duradouras, visíveis mesmo aos 63 anos. É um físico que começou a ser
moldado muitos anos antes, ainda em Belém, onde o garoto nasceu.
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Laércio era formado em Medicina, mas acabou por trilhar o caminho da Odontologia.
Virou um grande especialista em câncer de boca, disciplina a qual ministrava na
UFPA.
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Gersa nunca se preocupou com a forma nem com a técnica. Suas palavras
sempre brotaram férteis durante uma viagem de ônibus, em um banco de praça ou ao
som de uma canção familiar. Vêm em enxurradas, e em poucos minutos irrompe a
poesia. É um poema, mas é também um alívio para uma alma em uma incessante
busca de si mesma. Uma alma faminta, que consolidou-se quando o jovem Geraldo
optou pelo curso de Medicina na UFPA, assim que o colegial terminou.
À época, Geraldo não deu atenção aos boatos. Por diversas razões, ele se
afastava cada vez mais do movimento estudantil. A família e a poesia falavam mais
alto. E também a profissão, pois, a partir do quarto ano de graduação, Geraldo
afundou-se nos grossos livros de Medicina, incorporou a prática médica e ingressou
de vez no ambiente hospitalar. Passou a vestir-se de branco e a conviver diariamente
com a dor, o sofrimento e a morte.
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Assim que terminou a graduação, em 1978, decidiu especializar-se em Clínica
Médica e Gastroenterologia. Prestou Mestrado na Escola Paulista de Medicina, em
São Paulo, e passou os sete anos seguintes na capital paulista. Lá, conheceu a
paulistana Thaís Helena Nascimento Veiga, uma morena de pele bronzeada quatro
anos mais jovem que ele. Foram casados por 23 anos. Deste relacionamento,
nasceram dois filhos, Carolina, de 30 anos, e Rafael, de 24 anos.
Em uma tarde de 1985, foi conversar com Thaís, que estava grávida de cinco
meses de Carolina, a primeira filha do casal. Manifestou à mulher seu
descontentamento com o Doutorado e disse que cogitava largar tudo e voltar para
Belém. Thaís fixou o olhar no marido. Se fosse esta a sua vontade, então ela iria com
ele.
E assim foi. Geraldo retornou à terra onde nasceu, sem finalizar o Doutorado.
Em pouco tempo, arranjou um emprego no Hospital dos Servidores do Estado do
Pará, o Hospital Ophir Loyola, para trabalhar com uma proposta de reformular a
maneira de se exercer estudo e pesquisa. Foi nessa época que sua vida começou a
se transformar de forma definitiva.
No mesmo ano em que voltou para sua cidade natal, Geraldo recebeu a notícia
que seu irmão caçula, Carlos Eduardo, quinze anos mais novo que ele, apresentava
sintomas de sofrimento psíquico. Em 1985, Carlos Eduardo morava no Rio de Janeiro,
onde cursava Direito e Educação Física.
28
...
Anos mais tarde, depois de optar por seguir as veredas da psiquiatria, Geraldo
olha para trás e acredita que o sofrimento psíquico do irmão não foi a única causa de
suas escolhas, mas certamente as influenciou. Em todo caso, não se arrepende:
Faz uma curta pausa antes de prosseguir com o balanço de seu caminho
profissional e pessoal. E, com semblante pleno e sereno, como se pairasse em águas
calmas depois de forte tempestade, confessa:
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Foram vinte anos de estudos e trabalho como gastroenterologista clínico até
Geraldo encontrar o seu lugar na Medicina. Antes de optar pela psiquiatria, ele trilhou
um longo caminho que, aos poucos, o fez descobrir sua verdadeira vocação.
Geraldo Sales (ao centro) preside o I Congresso Brasileiro de Clínica Médica. Crédito: Acervo SBCM
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O médico também se envolveu na criação de um núcleo de estudo e pesquisa
em patologia da Amazônia e em um grupo de discussão em hepatologia, chamado
Clube do Fígado, em uma clínica médica de Belém. Seu reconhecimento cresceu, e
ele passou a fazer parte do time de colaboradores do Jornal Brasileiro de Medicina, ao
lado de médicos como o cardiologista Adib Jatene e o gastroenterologista Moacyr
Pádua Vilela.
Da primeira vez, teve que arranjar uma ambulância para um paciente que
precisava ser encaminhado à UTI, recurso possível só em Belém. O paciente estava
em estado grave e havia feito o trajeto de 400 quilômetros que separam a capital
paraense da cidade interiorana em um avião monomotor. A ambulância recebeu-o no
aeroporto de Belém e transportou-o ao Hospital dos Servidores. Geraldo foi chamado
para ver o doente. Reconheceu-o imediatamente: era um antigo colega de faculdade.
O médico emocionou-se. Queria ofertar cuidados, mas pouco podia fazer para salvar a
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sua vida. O paciente estava em estado terminal, e morreu algumas horas depois. Da
segunda vez, a ambulância trouxe do pequeno município um ex-prefeito que estava
com câncer. O tumor consumiu o ex-governante em poucos dias. De novo essa cidade
na minha vida, pensou Geraldo.
A terceira vez foi decisiva. Ela nasceu de uma trombada entre Geraldo e uma
colega que era médica pediatra, nas escadas do Hospital de Servidores. Pois o porte
atlético do médico impedia que ele usasse o elevador: Geraldo preferia sempre subir
os andares do hospital de escada. Em uma manhã, ao escalar correndo os degraus,
bateu de frente com Nazaré Peres Vieira. Os dois caíram no chão. Ergueram-se rindo
e cumprimentando-se. A médica aproveitou a ocasião para fazer um inusitado convite
ao colega de trabalho:
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A composição do lago de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
...
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À esquerda, vista da tranquila Vila Permanente e, à direita, o desordenado município de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
Ele ainda atendia como clínico geral e gastroenterologista. Travou contato com
muitos pacientes pobres e analfabetos. Quando os encontrava, olhava fundo em seus
olhos, como se tentasse desvendar algum segredo.
Talvez por conviver com o sofrimento psíquico do irmão caçula, talvez por ter
nascido com o gene da indignação, o fato é que Geraldo, certo dia, foi bater à porta
das autoridades da Secretaria de Saúde. Perguntou a elas qual era a política pública
no campo da saúde mental no município.
Olhou para o céu, como se das nuvens colhesse inspiração. Baixou o olhar
para o lago fundo de águas calmas e declarou, firme, a si mesmo:
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O rio Tocantins, seus barcos, suas matas e seus habitantes. Crédito: Fabiana Nanô
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3.
A Leseira Itinerante
Gersa
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Foram os livros de saúde mental seu próximo alvo. Geraldo os lia
compulsivamente. Um mundo de cores e texturas se abriu à sua frente, como uma
cortina densa e vermelha que se descerra sobre o palco, desvendando a peça teatral
da vida. Era aquilo que ele havia desejado tanto tempo. Era aquilo que almejava.
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Quando ouviu falar pela primeira vez dos Caps, durante o treinamento da
Sespa, Geraldo esticou a cabeça e mexeu-se inquieto na cadeira. Era como se um
sonho, estacionado nas profundezas do inconsciente, tivesse enfim vindo à tona, em
impetuosa torrente. Criar um Caps em Tucuruí passou a ser o eldorado de riqueza e
opulência do médico. Ele começou a trabalhar incessantemente para isso. Acreditava,
de alma e de coração, que era possível construir um novo paradigma da saúde mental
no município que o acolhia de forma tão generosa.
Para isso, ele jogou toda sua prática para os pés. Todas as suas teorias,
invenções, criações, foram rapidamente transferidas para baixo: elas caminhavam em
direção à comunidade. Era um presságio do que viria a acontecer, meses mais tarde,
em Tucuruí.
Tudo começou com a formação de uma equipe. Geraldo conseguiu reunir uma
psicóloga, uma enfermeira, uma assistente social e quatro técnicas de enfermagem.
Juntos, eles passaram a atender pacientes psiquiátricos em uma sala de um posto de
saúde no bairro da Cohab. O atendimento era individual e também em grupo. Havia
um ambulatório de crise, onde assistiam casos de depressão, neuroses, psicoses,
alcoolismo e dependência química. Quando a situação era mais grave, o paciente era
internado durante alguns dias na Enfermaria de Clínica Médica do Hospital Regional
de Tucuruí.
Vez por outra, ele e sua equipe também saíam às ruas de Tucuruí em
passeatas com grandes faixas convidativas, que convocavam todos a “construir uma
sociedade sem manicômios”. Um carro de som os acompanhava. Ao microfone, os
manifestantes propagavam os ideiais da reforma psiquiátrica brasileira e os
ambiciosos projetos que reservavam para Tucuruí. Logo notaram que, quando se
tratava de loucura, os muros eram muito mais altos do que supunham. Eram quase
intransponíveis. Na rua, todos os transeuntes desviavam o rosto. Os moradores, ao
tomar conhecimento do motivo das passeatas, retornavam a suas casas, acuados.
Alguns ganhavam coragem para enfrentar os manifestantes, questionando a ideia de
soltar os loucos, de extinguir as grades que os aprisionava.
Como resposta, Geraldo lançou mão do teatro. Pediu aos manifestantes para
dramatizarem. Em um, foi colocada uma camisa de força. Outro interpretou o carrasco
do hospício. E ambos representaram a versada cena, tão cotidiana e tão invisível, das
atrocidades cometidas dentro dos chamados hospitais psiquiátricos do país.
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Geraldo (de branco) percorre as ruas de Tucuruí ao lado de sua equipe, de pacientes e seus familiares.
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Jornal regional noticia os novos serviços de saúde mental disponíveis em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
Em Gorizia, ele foi barrado pelo poder local, conservador. Ele tentou realizar
seu sonho, então, em Parma, ainda no norte da Itália. Novamente, foi impedido.
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Foi em Trieste, na tríplice fronteira entre Itália, Eslovênia e Croácia, que o
psiquiatra finalmente encontraria o ambiente político favorável para fazer a sua
revolução. Nesta pequena cidade portuária, descobriu-se como homem e como
médico e ficou mundialmente reconhecido.
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Em 1978, as profundas transformações levaram enfim ao fechamento do
manicômio de Trieste. Era o primeiro hospital psiquiátrico no mundo a abrir seus
pavilhões e a não aceitar mais internações. No mesmo ano, o Parlamento italiano
aprovou a lei nacional de número 180, que leva o nome do psiquiatra. Desde então, a
Lei Basaglia pressiona a sociedade italiana pela extinção completa de manicômios e a
sua substituição progressiva por uma rede territorial de apoio e assistência ao cidadão
com transtorno mental.
Durante uma década, de 1978 a 1987, o MTSM lutou por novos paradigmas na
área da saúde mental. Organizou dezenas de eventos, no intuito de reunir cada vez
mais profissionais, pacientes e familiares. No início, as reivindicações eram difusas.
Iam de aumento salarial a melhorias na infraestrutura dos hospitais psiquiátricos.
Nesse ínterim, algumas denúncias das atrocidades cometidas dentro das instituições
psiquiátricas vieram à tona. O alvoroço causou muita resistência, por parte dos mais
variados setores.
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Ainda em 1987, na capital paulista, foi fundado o primeiro Centro de Atenção
Psicossocial do país, o Caps Professor Luiz da Rocha Cerqueira. Em Santos, no litoral
paulista, foi inaugurado o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial (Naps). Também
foram criadas cooperativas, associações e residências para egressos da Casa de
Saúde Anchieta, o principal hospital psiquiátrico da cidade litorânea, que começava a
ser desmantelado.
...
Basaglia não viveu para ver todas essas mudanças. Em 1980, dois anos
depois da aprovação da Lei 180 na Itália, o psiquiatra contraiu um tumor no cérebro
que o consumiu em poucos meses. Ele morreu em sua casa de Veneza, onde nasceu.
Tinha 56 anos.
43
…
E, com o fim delas, a cidade, pôde, enfim, conhecer uma nova realidade.
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Os olhos de Geraldo brilharam no momento em que tomaram conhecimento
das trajetórias de Basaglia e Tommasini. Os dois italianos eram uma fonte de
inspiração para o paraense, os mentores que passaram a guiar suas decisões, nesses
primeiros passos que dava no campo da saúde mental.
-- Quer dizer, eu queria fazer o que o Tommasini tinha feito com o Basaglia na
Itália: mudar a história da saúde mental.
O primeiro Caps do interior do Pará era como um filho para Geraldo. O médico
lutava desde 1996 pela sua construção. Passou três anos na rua, realizando
passeatas, discursos e batendo à porta de autoridades locais e estaduais para
apresentar seu projeto. Elas o recebiam e o escutavam com interesse duvidoso.
Colocavam um termo ao encontro com falsas promessas, que logo se dissipavam. Se
o intuito era desencorajá-lo, não surtiram efeito.
45
era visto acenando e sorrindo para fotos ao lado de outras figuras públicas, entre elas
o então prefeito de Tucuruí Claudio Furman. Várias pessoas os rodeavam. Em meio à
multidão, Almir Gabriel sentiu uma mão firme segurar seu braço.
O homem voltou o rosto, instigado pela energia e força daquela mão. Deparou-
se com um caboclo baixo e moreno, que o encarava com olhos determinados.
-- Diga.
Antes de iniciar a carreira pública, Almir Gabriel havia sido médico. Ao ouvir as
palavras de Geraldo, pedindo um novo paradigma na saúde mental no município,
lembrou-se de que, quando garoto, em Belém, empinava pipa ao lado do muro do
hospital psiquiátrico Juliano Moreira, hoje desativado. À época, uma conhecida do
governador havia sido internada lá. O homem sabia dos percalços atravessados pela
mulher, e também andava informado a respeito do movimento da reforma psiquiátrica
brasileira. Intuía a importância da construção de uma nova rede de saúde mental, da
qual o Caps é parte fundamental. Olhou para Cláudio Furman e pediu que fosse criado
um convênio entre Estado e Prefeitura para a criação do centro. Em seguida, dirigiu-se
novamente a Geraldo e garantiu que liberaria a verba necessária.
-- Três meses.
46
Geraldo (ao centro) e a primeira equipe de saúde mental que inaugurou o Caps de Tucuruí.
47
Jornal regional noticia a criação do Caps de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
48
Antes da inauguração do Caps de Tucuruí, a terapia comunitária já havia
entrado na vida de Geraldo. Em 1994, em Belém, ele encontrou-se pela primeira vez
com Adalberto Barreto, psiquiatra, antropólogo, filósofo e teólogo cearense. Adalberto
era o criador da técnica da terapia comunitária, a qual usava desde 1987 na Favela do
Pirambu, uma das maiores de Fortaleza.
Não demorou para que Geraldo iniciasse o curso da técnica. O ano era 1996, e
o paraense, como bom aluno, sentia-se bastante instigado. Ao longo das aulas, ele
soube que a terapia comunitária atua na promoção da saúde e na prevenção de
doenças. Ela faz parte da atenção primária à saúde, também conhecida no Brasil
como Atenção Básica. A Atenção Básica é a principal ponte entre o cidadão e o
serviço público de saúde; é a porta de entrada do usuário ao SUS (Sistema Único de
Saúde). Programas do Ministério da Saúde como os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (Nasf) e o Programa Saúde da Família (PSF) também fazem parte da Atenção
Básica.
49
Direitos Humanos de Pirambu, onde realizava atendimento jurídico para os moradores
da favela. Ele conhecia bem a realidade do lugar e os problemas de seus clientes.
Sabia da importância que teria lá a presença de seu irmão, médico.
Adalberto havia passado seis anos na Europa, onde realizou sua formação em
Antropologia e Filosofia, a especialização em Psiquiatria – ele era formado em
Medicina, curso concluído ainda no Ceará – e terminou a formação em Teologia.
Retornou ao Brasil em 1982, guiado pelo desejo primário de ajudar seu povo, de
integrar seu saber médico e teórico ao saber popular e às suas raízes do Sertão
Nordestino, pois era natural de Canindé. Em 1983, ele chega a Pirambu. Em 1987,
cria oficialmente a técnica da Terapia Comunitária Sistêmica Integrativa.
Geraldo conhece o trabalho de Adalberto Barreto, em viagem ao Ceará. Crédito: Arquivo pessoal
50
Estes e outros pontos esclarecidos, dava-se início à sessão. Alguns
participantes eram convidados a expor seus problemas. O grupo, então, elegia uma
das histórias. A pessoa cujo drama foi escolhido discorria sobre ele de forma
minuciosa. Em seguida, os participantes que passaram por situações semelhantes
eram convocados a relatar como as superaram. Por fim, o grupo fazia um balanço da
conversa.
Para muitos dos participantes, o simples fato de ouvir os problemas que seus
amigos e familiares atravessavam já os curava de seus problemas. A escuta é,
sempre foi, o melhor dos remédios. Ao ouvir o outro, sua dor diminui. E saber que
outros conseguiram solucionar dramas semelhantes também ajudava a visualizar uma
luz no fim do túnel. Para a comunidade, a terapia comunitária mostrava toda a sua
força, união e capacidade. A comunidade soube, a partir dessas rodas humanas, que
possuía muitos recursos próprios para lidar com vários tipos de situação.
-- O seu João vai ter que entrar na olaria do Caps! O seu João vai ter que
entrar na olaria do Caps! Desce como um vaso velho e quebrado, sobe como um vaso
novo! Desce como um vaso velho e quebrado, sobe como um vaso novo!
51
...
-- O que dizer de uma conversa com uma pessoa com conhecimento de causa
e interessada em mudanças substanciais numa temática secularmente discriminada?
Era tudo que eu precisava enquanto gestor. Uma pessoa interessada como o doutor
Geraldo Sales já me bastava. Mas logo percebi que ele não estava só. E daí para
frente vimos como é fácil fazer quando se conta com as pessoas que têm o saber e
desejam compartilhar suas experiências. O Caps era uma ideia moderna que não
tínhamos e que estava dando certo em outras cidades de referência maior.
Precisávamos passar por essa experiência nova e boa.
Célio fez tudo o que estava ao seu alcance enquanto gestor para a viabilização
do Caps de Tucuruí. Ultrapassou dificuldades financeiras e políticas e presenciou, com
grande alegria, todos os benefícios advindos desta batalha:
52
Sessão de terapia comunitária no salão aberto do Caps de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
...
53
-- Eu já andei nas mãos da morte muitas e muitas vezes. Por padrasto, por
marido, por tudo. Andou mais perto de eu morrer que de viver.
Soneide, como ela mesma se define, é uma fruta que não amadureceu:
arrancaram verde da árvore e botaram para murchar.
Aos quatro anos, foi abandonada pela mãe, que fugiu da zona rural de
Imperatriz, onde havia dado à luz a garota e a outros cinco filhos. Imperatriz é a
segunda cidade mais populosa do Maranhão, com 235 mil habitantes, e se situa perto
da divisa com o Pará. Soneide e os irmãos ficaram aos cuidados do pai, pedreiro e
carpinteiro. Não demorou para que ela fosse entregue pelo pai a um antigo
companheiro, a quem a garota chamava de “tio”. O homem levou-a embora para o
Pará, junto com a família dele. Foram viver na zona rural de Pacajá, município
paraense de 41 mil habitantes localizado na BR-230, a Transamazônica. A garota,
hoje mulher, não se recuperaria mais destes primeiros laços cortados. Foi o início de
um duro destino.
-- Eu nunca fui conformada com a vida, pelo que passei. De ser criada sem pai,
sem mãe. A gente nunca acostuma mais. A minha mãe, o amor é afastado, por conta
da convivência que não teve. Aí eu errei, eu fui para frente e voltei para trás. Eu gosto
da minha mãe, do meu pai, do meu pessoal tudo. Mas eu gosto de longe, porque não
convivi com eles. Eu gosto mais do povo da rua do que dos de casa.
A sentença vale tanto para seus pais quanto para o seu marido. Na zona rural
de Pacajá, Soneide travaria contato com homem que selaria para sempre sua vida.
Era irmão de seu padrasto, pai de quatro filhos e vinte e dois anos mais velho que ela.
O homem não escondia sua pretensão: desejava-a. A menina, então com 12 anos,
não pôde contar com a salvaguarda do padrasto, pois era justamente ele quem pedia
para que ela fosse morar com o tio. Soneide recusava à exaustão.
Certo dia, porém, foi despachada para cortar macaxeira para a refeição. A
plantação ficava afastada da casa, mas ela foi. Quando deu por si, notou que havia
sido seguida. Desesperou-se ao ficar frente a frente com o tio. Ainda olhou para os
lados, mas não havia volta. O homem a agarrou, arrancou sua roupa e a violentou lá
mesmo, em cima da areia bruta.
-- Eu era criança. Eu nunca nem tinha menstruado na minha vida. Aí, eles
fizeram um remédio para mim, para eu poder ficar boa, porque eu fiquei feia de jeito.
Estava traumatizada, não tava? Pois é, fiquei traumatizada.
54
A partir deste dia, a vida de Soneide seria marcada pelos abusos sexuais e
pelas agressões físicas do homem. Depois de violá-la, ele a botou dentro da casa
dele. Soneide já não tinha mais quem a acolhesse. A construção de madeira estava
plantada na roça, entre Pacajá e Novo Repartimento. Tiveram dez filhos juntos. O
primeiro veio assim que a garota menstruou, aos 14 anos. Nunca foram casados no
papel: ele ainda é casado com a ex-mulher, de quem nunca se divorciou. A antiga
companheira o largou, por causa de suas violações. Soneide ocupou seu lugar. Desde
então, vive atormentada.
Este é seu drama cotidiano. Todas as manhãs, o marido sai dizendo que vai
trabalhar. Quando o sol se põe, ele retorna à casa, as mãos vazias e cheirando a
álcool. Bêbado, xinga a mulher. Bate nela. De corda, de facão, com as próprias mãos.
Soneide suporta, quieta. Os filhos não podem acudir a mãe. Os que transpõem a
barreira do pai, levam também eles surras. Alguns, de tanto conviver com o sofrimento
no próprio lar, traumatizaram-se. Sua saúde mental tornou-se frágil, a exemplo dos
laços familiares.
-- Sabe por que não tenho medo de ele me matar? Porque ele vem me
matando. E, se ele me matar, morri. Tanto faz.
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De madrugada, Soneide chega a acordar três vezes, decidida a matar o
marido. Desce da rede e pisa no chão com cautela, para não acordar os filhos. Se não
há fresta de luz, acende uma lamparina. Se não há lamparina, põe fogo num tição
para iluminar o caminho e desviar das crianças. Facão em mãos, aproxima-se da rede
do marido. Neste ponto, ela hesita. Deus nunca deixou que ocorresse uma tragédia.
Agora, no Caps, ela busca uma nova vida. Não sabe se vai conseguir. Mas,
pelo menos, está mais aliviada. Porque teve, enfim, a coragem de compartilhar a sua
história.
56
Dez anos atrás, era este o enredo cotidiano de Soneide. Era sua vida, seu dia
a dia. Desde então, ela frequenta o Caps. Nunca mais deixou o lugar. Hoje, aos 48
anos, vive em uma casa em um bairro pobre de Tucuruí, mas paga suas contas.
Largou o marido. Ele ainda vive na roça, ao lado de um dos filhos do casal. Soneide
mora na cidade com três filhos, dois meninos e uma menina: Iracema, sua caçula de
13 anos.
Depois de muito conversar com suas amigas e com a equipe do Caps, ela
resolveu procurar amparo jurídico na Defensoria Pública e na “Maria do Pará”, o órgão
público de assitência às mulheres. Por meio de uma advogada, soube que o marido
poderia ficar até três anos na cadeia por causa de suas agressões. Mas Soneide não
quis. Alega que não quer que os filhos vejam o pai preso. Preferiu entrar em um
acordo com o homem: quer que ele lhe dê uma casa. É seu maior sonho.
-- Na minha casa, eu tenho minhas coisas, meu fogão, minha geladeira, minha
cama, meu sonzinho. Tenho assim, coisa de pobre. Não coisa de rico, mas de pobre
eu tenho. Eu tinha vontade de ter uma casa com tudo coisa nova. Mas como eu não
posso…
Ela aguarda. Enquanto isso, passa seus dias na companhia dos três filhos. Seu
maior orgulho é Iracema. Diz que é uma garota bonita, estudiosa, interessada. Pede a
Deus que a filha nunca mude. É Iracema quem mais a ajuda: ela anota palavras no
papel para que a mãe, devido ao juízo vexado, não se esqueça de sua história.
-- Tem hora que eu sei das coisas e tem hora que eu não sei. Tem hora que eu
não sei de nada. E tem hora que eu sei de tudo. Mas visto o que eu era, ó… O Caps
me ajudou muito, porque eu não me amava nadinha. Eu acho que, se eu não tivesse
vindo para cá, eu não era mais nem viva -- confessa Soneide.
-- Minha irmã, quando eu vim para Tucuruí, eu era doente, doente. Ainda me
sinto doente, mas nem tanto. Pelo que eu era, eu estou bem. Não estou boa, mas
estou bem.
57
Como muitos, Soneide vislumbrou uma pequena luz a partir do momento em
que integrou a roda do Caps. Como muitos, vinha de longe. Mas logo criou raízes
naquele lugar. Lá, depois de anos de trabalho árduo, encontrou a força interior para
mudar o seu destino. Tudo graças ao seu esforço, mas também à magia de uma casa
que vive para ajudar os outros.
58
4.
Um manejo de luz
Gersa
59
Como o perfume suave e adocicado de uma flor que inebria todo o ambiente,
aquela casa exalava uma poderosa energia. Antes de ser Caps, o pequeno imóvel era
um almoxarifado. Mas, se em tempos passados servia como depósito de materiais,
lugar onde os objetos permaneciam estagnados, agora sua natureza era fazer fluir
pessoas e sentimentos. E não eram só profissionais da área da saúde que
movimentavam o centro. Das rodas de terapia comunitária participava também dona
Isabel, uma das mais conhecidas espíritas de Tucuruí. Ela era cega, mas enxergava
mais do que todos os outros participantes e auxiliava a equipe do Caps energizando
as sessões. Ao seu lado, trabalhava dona Morena, uma das maiores umbandistas da
cidade. Dona Morena era contratada do Caps: fazia parte da equipe ministrando
massagens nos pacientes. A presença dessas duas líderes espirituais no Caps era
significativa de uma região onde a Medicina ocidental sempre encontrou dificuldades
para fincar suas bases. E elas ainda receberam um intenso aporte ao seu trabalho
com a vinda de Gatha, uma xamã cearense, neta de índia. Gatha era formada na
filosofia de Osho, adquirida quando morou na Índia. Assim que voltou ao Brasil, Gatha
foi trabalhar ao lado de Adalberto Barreto. Ficou em Pirambu por dez anos. Neste
período, por intermédio de Adalberto, ela aterrissou no Pará. Em Tucuruí, ensinou a
Geraldo e a uma equipe de saúde mental que chegava a trinta pessoas diversas
técnicas de cura, entre elas reiki e massoterapia. Houve uma intensa troca de energias
e ensinamentos. Gatha retornaria diversas vezes ao lugar que recebeu com carinho
seu conhecimento indiano e ancestral.
60
Geraldo recebe os ensinamentos de Gatha. Crédito: Arquivo pessoal
Ao longo dos anos, Geraldo e sua equipe passaram por todos os bairros da
cidade, conheceram todas as comunidades, fizeram rodas de terapia em creches e
61
brinquedotecas, em escolas públicas e privadas, em asilos de idosos, em um quartel
da Polícia Militar e até em uma terra indígena e em um vilarejo quilombola. Geraldo
caminhava, caminhava, caminhava. E nunca se cansava.
-- Acho que, um dia, eu sonhei que o ser humano não pode pensar só com a
cabeça. Ele tem que pensar também com os pés. Quem pensa com os pés caminha
em direção à comunidade, em direção à mudança, à transformação, à revolução.
A partir do dia em que Geraldo aliou a cabeça aos pés, ficou completo.
Geraldo (à direita, de calça jeans, encoberto por um detento) realiza uma sessão de terapia comunitária no cárcere
público de Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
62
Enquanto isso, Geraldo continuava a caminhar. Afundando os pés nas ruas de
terra batida, ele foi bater à porta de um assentamento do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra. À época, o MST estava prestes a completar duas décadas
de existência. Foram meses de negociação com o movimento para a realização de
uma sessão de terapia comunitária. Por fim, Geraldo conseguiu formar a roda humana
em um assentamento. Era noite e, sobre o chão de terra, foi feita uma grande fogueira.
Assim como o fogo, a chama ardente que morava dentro do psiquiatra e do poeta foi
acesa. Geraldo fixou o olhar nas flamas, em firme concentração. Em seguida,
setenciou que a terapia só acabaria quando a última labareda se apagasse.
-- Eu sou rico naquilo em que você é pobre, e sou pobre naquilo em que você é
rico. Esta frase sempre guiou a minha prática -- diz.
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Sessão de terapia comunitária realizada à noite, ao redor de uma fogueira, em um assentamento do MST no
Pará.
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Jornal regional noticia o programa Saúde Mental Perambulante, em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
...
65
-- Comunidade, vem cá! Vem mostrar a tua força e o teu caminhar!
Comunidade, vem cá! Vem mostrar a tua força e o teu caminhar! Já vou, já vou!
Atender o chamado com muito amor! Já vou, já vou! Atender o chamado com muito
amor!
Dançar era tão terapêutico quanto escutar as histórias dos outros nas rodas de
terapia comunitária, sentir amolecer os músculos tensos nas sessões de massoterapia
e nos diversos outros grupos terapêuticos da casa ministrados pela equipe
multidisciplinar, ou receber aquela onda boa de energia vinda das três líderes
espirituais -- dona Isabel, dona Morena e Gatha -- que transitavam pelo lugar a convite
de Geraldo. Até hoje, mesmo sem a presença de Gil, que saiu do Caps em 2010, a
dança é uma forte tradição no Caps. Todas as semanas, pela manhã, a equipe ou os
próprios pacientes organizam uma atividade em torno da música. Seja uma aula
coreografada, seja um desfile, seja uma roda de dança.
66
Caps de Tucuruí realiza quadrilha de festa junina em uma escola municipal. Crédito: Alice Arida
...
Ela vem chegando. A passos gingados, requebrando como ela só. Exibindo os
cabelos encaracolados e a pele morena e curtida, denunciado a meia-idade que bate à
porta. Vem chegando de óculos escuros, esboçando um sorriso maroto e balançando
os quadris largos, espremidos no vestido vermelho, apertado e decotado. É ela:
chegou a Moral. Carmem France Conceição Lima tem 46 anos, mas desliza para o
meio da roda como se tivesse vinte. Anima a todos com seus passos de dança, que
desempenha com destreza. E parece feliz.
Mas, se por fora ela contagia o ambiente com sua alegria, por dentro, ela sofre.
Há vinte anos, Carmen sofre. Sofre e tenta eliminar as angústias na dança, a válvula
de escape que a faz esquecer todas as suas dores. A insuperável morte da mãe, seis
anos atrás, e o resguardo quebrado quando nasceu Alexandre, seu filho mais velho,
hoje com 20 anos. Esses dois eventos a deixaram com sequelas para a vida inteira.
Quando Alexandre tinha dois anos, Carmem deu à luz Renata. É ela quem cuida da
mãe, como pode. Os três dividem com o avô, pai de Carmem, uma casa escura, de
67
janelas fechadas e parca iluminação, perto da praça central de Tucuruí. No imóvel, a
bagunça, a falta de limpeza, a desorganização, a louça suja, os móveis antigos e
quebrados, os objetos amontoados e as dezenas de garrafas pet reunidas a um canto
da cozinha mal cheirosa tornam o cenário tão desolador quanto o transtorno mental de
Carmen. Ambos se misturam: não se sabe onde um começa e outro termina.
Para ela, todos esses outros são “moral”. Não à toa ganhou como apelido o
mesmo vocativo pelo qual chama as pessoas, conhecidas ou não. Depois de
apresentar seu passo de dança, exibe o sorriso de poucos dentes e pergunta para
qualquer um na roda:
Com olhos esperançosos, aguarda a resposta afirmativa, para entoar uma das
poucas canções de seu repertório. É a sua favorita: uma versão, criada por ela
mesma, da canção Can’t take my eyes off of you. Abre a boca, puxa o ar e prepara os
pulmões para cantar, em alto e bom tom, o refrão tantas vezes versado:
-- I love you, baby! Ali, ali, ali! I love you, baby! Ali, ali, ali! I love you, babiii!
Ao seu lado, Alex Jansem Pinto aguarda a sua vez de se enfiar no meio da
roda. Se em Carmem os distúrbios são mentais, nele eles o são também físicos.
Embora tenha 28 anos, Alex vive como se fosse uma criança de oito, por causa do
retardo mental. Mas não só: ele tem todo o lado direito do corpo paralisado, e sua fala
é quase incompreensível.
69
Carmem, hoje, alegra o céu com suas danças e canções.
Ela não sofria apenas de transtorno mental. Tinha também Aids, condição que
a levou deste mundo em uma madrugada de junho de 2015.
Assim como mantenho Carmem, e seu gingado, e seu canto, dentro de meu
coração.
...
70
frente da casa de seu Aristeu, no bairro tucuruiense de São Sebastião, naquela noite
de 1997. Na ocasião, Geraldo levou seu conhecimento aos moradores, mas também
aprendeu sobre suas vidas e seu entorno. Deste último, fazia parte uma série de
casebres precários, escuros e pobres. Em um deles, funcionava a creche da Tia
Socorro. Geraldo pôde observar as crianças, que corriam e brincavam no quintal. Nos
fundos do terreno, vislumbrou um poço artesiano e, bem próximo dele, a fossa onde
os pequenos faziam suas necessidades. Não precisava ser médico para constatar: o
risco de contaminação por doenças era altíssimo naquelas condições. Naquele
momento, um só pensamento tomou conta de seu ser. Vou mudar isto, proferiu o
médico a si mesmo. Nasceu, aí, a iniciativa Tucuruí, Adote uma Creche.
71
...
-- Marco, para você ter sucesso profissional, você precisa dedicar um pouco da
tua vida ao outro -- disse Geraldo.
72
Em sua prática revolucionária, Geraldo recebia como recompensa muitos
abraços e agradecimentos. De pacientes, da equipe, de autoridades públicas. Mas
houve vezes em que ele teve de lidar com agressões. Foi o caso de uma noite em que
estava voltando para casa, em seu Fusca branco 1978, quando um automóvel que
vinha atrás do seu jogou luz alta, como pedindo para o médico estacionar. Era um
carro de uma companhia aérea transportando dois funcionários do aeroporto, que
correram esbaforidos em direção ao psiquiatra:
-- Doutor Geraldo, o senhor pode nos ajudar? Um passageiro deu uma gravata
em um piloto em pleno voo, e o avião, que estava indo para Belém, teve que fazer um
pouso de emergência em Tucuruí. Daria para o senhor ir conosco até o aeroporto
agora?
Geraldo teve tempo de ir atrás das providências a serem tomadas antes que o
avião pousasse na capital. Mas ficou desnorteado ao descobrir que o Samu (Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência) não transportava pacientes psiquiátricos. Assim
que o avião aterrissou, a família do engenheiro estava lá no aeroporto, aguardando-o.
Geraldo os encontrou e orientou-os a encaminhar o paciente ao Hospital de Clínicas
73
Gaspar Vianna, que possui leitos psiquiátricos. Os familiares concordaram. Antes de
deixar o local, contudo, perguntaram o que havia acontecido com o rosto do médico,
que estava roxo.
-- Ele me deu um soco, mas não tem problema. Isto faz parte do meu trabalho -
- disse. -- Não se preocupem, ele vai ficar bem.
Os dois sorriram seus sorrisos mais sinceros. Mal sabia o engenheiro que,
mesmo antes de agredir o psiquiatra de Tucuruí, este já o havia perdoado. Pelo soco,
e por todo o resto. O coração de Geraldo era pequeno para conter todo o amor por
seu trabalho.
74
três. Quando chegar no três, a gente parte para cima dele. Vocês seguram ele e eu
faço a injeção. Tudo bem?
-- Isso foi um grande erro meu. Não deveria ter feito isso. Quando chegou no
três, ele se levantou da rede, de repente, e todo mundo correu. Ficou eu e ele, eu na
cara dele. Ele era altamente agressivo. Comecei a correr, mas escorreguei na lama e
caí. Ele começou a me chutar, e meus óculos caíram.
Geraldo pôs a cabeça para fora e viu seu Fusca, que continuava estacionado
na frente da casa do paciente. Em mais um ato de fé, decidiu contar com a boa
vontade do garoto para retornar a seu carro. Pediu para o menino fazer “ok” com a
mão caso o homem continuasse letárgico em sua rede. O menino ficou o tempo todo
com o dedão para cima. Geraldo, então, pôde sair da casa da vizinha e correr em
direção ao automóvel.
-- Eu nunca vi um Fusca pegar tão rápido -- conta. -- Entrei no carro e fui direto
para a Secretaria de Saúde, direto para o gabinete do secretário, direto para o
75
pescoço dele. Estava enlouquecido. Se eu, que estou a trabalho, pedi socorro,
imagina um paciente morrendo.
76
5.
77
Ao mesmo tempo em que realizava profundas mudanças nos paradigmas da
saúde mental em Tucuruí, com a inauguração do Caps e a realização de terapias nas
comunidades, Geraldo envolvia-se ativamente no movimento nacional de luta
antimanicomial. Uma atividade complementava a outra. O psiquiatra participava das
reuniões do Núcleo de Luta Antimanicomial em Belém e era integrante do Fórum
Popular de Saúde Mental. Com essas articulações, conseguiu levar para Tucuruí o II
Encontro Paraense do Movimento de Luta Antimanicomial. Ocorrido entre os dias 24 e
27 de setembro de 1998, o evento foi intitulado de O Farol da Cidadania e abarcou a
saúde do branco, do negro e do índio. Geraldo sediou as palestras em diversos pontos
do município -- a exemplo do que ele já fazia em sua prática profissional. Levou todos
os participantes do encontro para o Caps e também para duas comunidades próximas
onde prestava atendimento: o vilarejo quilombola de Jutaí, a 80 quilômetros de
Tucuruí, e a aldeia indígena dos Asurini do Tocantins, a 25 quilômetros. Nesta última,
palestrou um grande amigo de Geraldo, o psiquiatra Marcos de Noronha, 58 anos, que
estava pela primeira vez na cidade nortista.
78
dificuldade de comunicação, pois precisaríamos de um intérprete, seria o maior
desafio de todos os eventos que já participei. Geralmente, estas sociedades
tradicionais deixam o local do encontro se o discurso do palestrante não for de seu
interesse. Simplesmente virariam as costas e voltariam às suas atividades. Quando
chegamos, atrasados, os homens da aldeia haviam partido para caçar. Foram
chegando no momento em que iniciei meu discurso. Médicos muitas vezes tem um
linguajar muito técnico e pouco comunicativo. Eu vinha de uma experiência iniciada
em Londrina, no Paraná, quando ainda estudava Medicina, onde montei a Rádio
Saúde e contava com o apoio da Escola de Comunicação. Cabia aos colegas de
comunicação me ajudarem a refinar meu discurso. Na aldeia, usei todos os recursos
que dispunha, de expressão e autenticidade. Falei de forma intimista e me regojizei
daquele rico momento, do interesse dos aldeões pelas informações que pude
transmitir e pelo meu interesse, de longa data, pelo conhecimento das sociedades,
como as deles, tradicionais.
79
O psiquiatra Marcos de Noronha, no centro da roda, palestra para índios Asurini, durante o II Encontro Paraense do
Movimento de Luta Antimanicomial. Crédito: Arquivo pessoal
...
80
comunidade. Mas lá, como em outros lugares, o culto católico acabou por adquirir tons
locais. Foi assim que a pequena igreja da praça central de Jutaí passou a ser palco de
um belíssimo ritual: a Ladainha da Santíssima Trindade.
Único meio de os fiéis manifestarem sua força e sua fé, em um povoado sem
padre fixo e sem missa semanal, o culto da Ladainha representa mais que um rito. É a
cultura viva de um povo esquecido. Todo ano, Jutaí para durante um dia para tomar
parte do ritual católico. Há uma longa procissão, que sai da igreja e atravessa toda a
vila, percorrendo a mata, as plantações, pontes e riachos para, enfim, retornar à
paróquia. Enquanto os homens carregam uma cruz com a Santíssima Trindade, as
mulheres entoam em coro rezas ancestrais, cantadas em latim.
Mulheres entoam o canto da Ladainha na pequena igreja de Jutaí. À esquerda, de óculos, o psiquiatra cearense
Adalberto Barreto. Crédito: Arquivo pessoal
Geraldo, ao presenciar o ritual, encantou-se com a tradição. Mas logo viu que
eram os mais velhos que a mantinham. Soube por eles que os mais jovens estavam
desinteressados, esquivavam-se do compromisso de passar para frente um culto
antigo e difícil de aprender.
81
O psiquiatra sensibilizou-se com a situação. Iniciou no vilarejo um trabalho não
só médico e social, mas também cultural. Queria ajudá-los. Ele sabia que resgatar o
canto da Ladainha era uma forma de manter acesa a chama de uma comunidade que,
aos poucos, se perdia em meio ao chamado “desenvolvimento econômico” da região.
Para pôr em prática seu plano, resolveu negociar com o pessoal da Rádio
Floresta, uma das mais ouvidas em Tucuruí, a realização de um sorteio: a cada quatro
jovens de Jutaí que aprendessem a Ladainha, era sorteada uma bicicleta.
82
O vilarejo de Jutaí, a 80 quilômetros de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
-- Para mim, já não resta mais nada. Mas eu gostaria, mesmo assim, com essa
idade, de deixar uma porta aberta para os meus filhos e para os meus vizinhos. Seria
muito melhor – afirma este senhor sorridente de 63 anos, corpo magro e cabelos
grisalhos.
-- Tem muita coisa boa para resgatar para dentro das comunidades.
Infelizmente, nós não temos pessoas que falem por nós lá fora. A gente não tem
conhecimento. Como a gente vai sair daqui? Direto pra onde? Falar com quem? Tá
morrendo a cultura, porque não tem ninguém para puxar para nós esse gancho aí,
para dizer, é essa a porta que você vai entrar.
83
toda a sua família assim, singrando a canoa pela manhã e arando a terra à tarde. Mas,
se por um lado ele entende como ninguém as águas e as matas, por outro seu
desconhecimento das normas do Direito e da Política tornam imensa a tarefa de
proteger a cultura de sua gente.
Enquanto eles aguardam pelo nada, já que não têm quem os ajude com o
processo pela regularização de suas terras, Jutaí transforma-se quase que por tabela.
De forma desordenada, vai seguindo o fluxo dos avanços trazidos pela modernidade.
A maioria das casas já são de alvenaria, algumas vias foram pavimentadas, há um
restaurante, ônibus diários para Tucuruí e Breu Branco -- município ao qual pertence --
e, embora os celulares não tenham sinal, foi instalada no vilarejo uma antena. Já não
há mais o trapiche, que antes recebia quem chegasse ao povoado de barco pelo rio
Tocantins. Ele foi destruído pela correnteza e pelas sucessivas tempestades e
enchentes. Com ele, foram-se também os sonhos dos mais velhos, saudosos de uma
época boa, como é o caso de Floriano Pereira de Souza, 48 anos:
84
-- As casas eram de palha, e o piso, de terra, mas a gente tinha fartura e uma
vida mais despreocupada. Você sustentava a família sem sair de casa e sem
emprego. Hoje, para levar sobrevivência do que comer para dentro de casa, tem que
ter um emprego ou fazer alguma coisa. Antigamente era diferente. E para nós resgatar
isso tá difícil.
-- Aquela época de botar uma malha bem aqui no porto e esperar dez ou vinte
minutos, puxar ela e já vir o peixe, acabou. E nós tinha isso aqui como abundância.
Para eles, tudo começou a mudar a partir da cheia histórica do rio Tocantins,
em 1980. Nesse tempo, circulava por Jutaí e região um padre, de nome Geraldo, que,
em vez de rezar missa, falava de política. Reunia todos na pequena igreja e, na hora
da homilia, nem mencionava o Evangelho: começava a entoar um longo discurso
sobre a usina. Alguns dos presentes, com um misto de surpresa e decepção,
levantavam-se e deixavam a igreja, em protesto. Outros, porém, o ouviam com
atenção. Davino era um deles.
O padre Geraldo pregava que este discurso era em parte verdadeiro. Ele
costumava dizer que os moradores de Jutaí aproveitariam, sim, um período de
abundância. Mas, dentro de alguns anos, teriam dificuldades. Davino comprova:
-- Hoje tá na cara o que ele falava. Mudou 90%. O peixe fugiu e, com a água
envenenada que vem lá da usina, a terra mudou totalmente. Eu, que estou no plantio
de cacau, venho lutando e não estou conseguindo uma produção que venha dar o que
gastei.
85
recentemente a notícia de que a empresa pretende dragar o rio Tocantins, no que
seria uma “terceira etapa” de construção.
-- Isso vai acabar com os 10% de peixe que restaram -- profetiza Davino.
A comunidade de Jutaí se réune no barracão. Geraldo, ao centro, abraça Davino. Atrás do médico, usando óculos e
uma blusa branca com detalhes vermelhos, está Margarete. Agachado à direita, de camiseta cinza, está seu Luiz
Alves, ex-morador de Jutaí que fez a ponte entre nós e a comunidade. Em pé (segundo à esquerda), está o vereador
Marajá, que nos guiou de voadeira, pelo rio Tocantins, de Tucuruí até Jutaí. Crédito: Fabiana Nanô
86
…
É com pesar que recebo a notícia, numa manhã cinzenta de abril de 2015, que
ele faleceu de um ataque cardíaco fulminante.
...
87
Entrada da Terra Indígena (TI) Trocará, onde moram os Asurini do Tocantins. Crédito: Fabiana Nanô
Foi numa tarde de sol quente, em Belém, que ele descobriu o que o movia a
ajudar os índios às custas do próprio bolso. Geraldo retornava para a capital depois de
uma jornada intensa e exaustiva, na qual havia participado dos cursos de terapia
comunitária e de massoterapia, ministrados por Adalberto Barreto, em uma localidade
perto da cidade paraense. Com o psiquiatra, estava dona Morena, aquela umbandista
de Tucuruí que era contratada do Caps. Ela realizava o curso de massoterapia para
potencializar a grande energia que possuía nas mãos. Os dois desceram do ônibus e
foram tomar um café na casa da avó materna do psiquiatra. Dona Iéié, como era
conhecida Maria Ribeiro Viana, morava em um apartamento em frente à rodoviária, e
88
os recebeu com carinho, como era de costume, mas com um olhar um tanto
desconfiado, como percebeu o neto.
Geraldo deixou estar. Semanas mais tarde, retornou à casa da avó. Perguntou
a ela o que havia acontecido naquela ocasião. A mãe do psiquiatra, filha de dona Iéié,
havia comentado que a avó achava que o neto estava andando com uma “gente
estranha”, uma referência clara à dona Morena, filha de índios. Geraldo percebeu que
o incômodo da avó estava relacionado a essas origens. Do fundo de sua alma, o
psiquiatra que habitava o corpo do neto emergiu:
Dona Iéié tomou um susto. Ficou calada. Demorou um tempo até que
começasse a falar. Ela, então, contou ao neto toda a sua história. Também tinha
origens indígenas: era descendente dos Tembé, habitantes ancestrais das terras do
nordeste do Pará. E sofreu muito preconceito por isso. Sobretudo, porque casou com
um homem de família escocesa. Wagner Studart Viana apaixonou-se pela garota
morena e tímida de São Miguel do Guamá, próximo a Belém, e a aceitou por inteiro.
Mas sua família, não. Talvez, por isso, ele não tenha passado o sobrenome Studart
adiante. A única filha que tiveram, Maria Guilhermina Viana Sales, é mãe de Geraldo e
hoje está com 87 anos.
Em seu tempo, Dona Iéié reprimiu seus instintos mais primários. Naquele dia,
porém, eles vieram à tona. A avó, embalada pela torrente de palavras, não conseguiu
contar tudo para o neto. Cheio de compromissos, o médico teve que se despedir e
voltar para Tucuruí. Três meses depois, Geraldo recebeu, com pesar, a notícia da
morte da avó. Ela tinha 87 anos e morreu como queria, deitada numa rede. Ao tomar
parte no velório, Geraldo recebeu uma carta das mãos de sua mãe:
Ele abriu rapidamente o envelope, ávido por ler aquelas letras. Pousou os
olhos no papel e acompanhou a primeira frase: “Continuando a nossa conversa…” Na
carta, conservada até hoje pelo médico, dona Iéié terminava de revelar sua narrativa
de vida. Mas o neto não se contentou. Queria continuar a prosa.
...
89
É também por isso que, em uma tarde ensolarada do ano de 1998, o psiquiatra
caboclo deslocou-se, às pressas, ao mercado municipal de Tucuruí. Queria comprar
uma rede e pregá-la no Hospital Regional de Tucuruí, a fim de receber na instituição o
pajé Nakawaé. Última autoridade espiritual dos Asurini do Tocantins, Nakawaé havia
sido picado por uma jararaca em plena aldeia, onde vivia isolado em uma oca. O pajé
nunca tinha deitado numa cama. Foi contra a vontade para o hospital, onde chegou já
com poucas chances de sobreviver. Geraldo o recebeu, condolente, e ouviu com
atenção o seu pedido, traduzido por sua filha:
90
Índia asurini e seu filho. Crédito: Alice Arida
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quilômetros ao norte. Os índios não foram informados do projeto, embora a rodovia
cortasse o seu território. À época, o governo militar, presidido pelo general Emílio
Garrastazu Médici, estava mais interessado em abrir frentes de atração para famílias
do sul e do nordeste do país, sem levar em conta os povos originários da floresta. A
presença da estrada, hoje BR-422, mudou radicalmente a vida dos índios. Se antes só
era possível alcançar o território deles pelo rio, agora a rodovia permitia o acesso por
carros, camionetes, caminhões, bicicletas, ou mesmo a pé. Até as crianças passaram
a fazer a caminhada de 25 quilômetros até a cidade de Tucuruí.
Em 1980, cinco anos depois do início das obras, o rio Tocantins subiu como
nunca antes. A cheia histórica é atribuída pelos Asurini à barragem. Por causa dela,
tiveram de se deslocar das margens do rio para dentro da floresta, uma região mais
alta, de terra firme. Passaram a viver à beira do igarapé Trocará, um afluente do rio
Tocantins.
92
pela construção da usina: em 1982, a Terra Indígena Trocará, com quase 22 mil
hectares, foi totalmente regularizada pelo governo.
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Casa de alvenaria na aldeia Trocará. Crédito: Alice Arida
Hoje, a aldeia, que, no total, conta com cerca de 600 habitantes, está dividida
em três. Os índios dizem que essa separação, ocorrida muitos anos atrás, tem como
objetivo fazer a segurança do território. Em parte, é verdade. A TI Trocará é um dos
poucos lugares de mata nativa em meio à devastação da floresta do entorno para a
abertura de fazendas de gado. Muitos moradores de Tucuruí invadem o território dos
índios em busca de animais para caçar. Para se proteger, os Asurini contam só
consigo mesmos. Por outro lado, houve muitas brigas entre as lideranças políticas da
aldeia. E a bebida e as igrejas neopentecostais, que aos poucos se instalaram no
lugar, acirraram essas disputas. Como consequência, os índios dividiram-se.
O rol de problemas não para por aí. Com os aparelhos de som, os jovens
promovem festas aos finais de semana, regadas a álcool, forró e brega. Os mais
velhos reclamam, aprofundando a finca que passou a existir entre as diferentes faixas
etárias. As televisões e os celulares ficam ligados o dia inteiro, transformando as
formas tradicionais de relacionamento entre os índios. As geladeiras criaram na aldeia
outras maneiras de distribuição de alimentos: muitos não precisam mais ir à procura
do que comer. Algumas famílias que trabalharam para o governo passaram a usufruir
de benefícios como aposentadoria, salário para deficientes e salário-maternidade.
Esse dinheiro provocou uma pequena concentração de renda, mudando toda a
estrutura social da aldeia. A nova escola do lugar, construída em 2010, vai da
Educação Infantil ao Ensino Médio e busca incluir os jovens e as crianças na cultura
94
asurini, com o ensino da língua nativa. Mas é uma instituição atrelada ao Estado e,
portanto, limitada. Deve seguir o cronograma oficial e o ensino da língua portuguesa
padrão. Está longe de suprir as carências culturais dos mais jovens. Estes se
interessam mais pelas atividades esportivas. Hoje, a TI Trocará conta com cerca de
125 atletas, que disputam competições locais e estaduais e também participam dos
Jogos dos Povos Indígenas, promovido pelo Ministério do Esporte. São estes jovens
os que mais se envolvem com álcool e com as festas aos finais de semana.
O mais velhos lutam para resolver estes problemas. Muitas vezes, sem
sucesso. Eles encontram dificuldades até para trabalhar com o mais primário, como as
ervas medicinais do lugar. Dizem ter medo de atrair o interesse dos pesquisadores das
universidades, que vão patentear remédios sem dar nenhum retorno aos índios. Por
isso, a saúde da aldeia, sobretudo das crianças, piora a cada dia.
95
psiquiátrico, mas também clínico, de acordo com a sua formação -- e chamar os
Asurini para o Caps e para as outras comunidades de Tucuruí. Fez um trabalho com
adultos e com crianças, as mais atingidas pelos surtos e epidemias e pela
desestrutura de suas famílias.
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Índio Asurini, na aldeia Trocará. Crédito: Alice Arida
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Paulista, no estado de São Paulo, profundamente grata à cearense: foi Gatha quem
recuperou o movimento de suas pernas.
A partir desse dia, Tânia não precisou mais do apoio. E seu envolvimento com
o Caps começou a crescer, a ponto de ela ser convidada, por Gatha, a escrever um
projeto para fazer um trabalho voluntário na instituição. Foi aceita. Por um ano, Tânia
coordenou um grupo, chamado Grupo dos Quatro Elementos, dentro da casa. No
começo, participavam apenas dois pacientes. Aos poucos, a sala foi enchendo.
Quando deu por si, Tânia viu, com grande satisfação, o recinto lotado. A partir do
sucesso de seu trabalho, foi contratada para atuar no Caps, ao lado da equipe de
saúde mental. Ela decidiu, então, fazer um curso à distância de Serviço Social, pois
sentia falta de uma profissional dessa área no lugar. Com diploma em mãos e usando
de toda a sua experiência adquirida em um curto, porém intenso, período de tempo,
montou vários grupos de terapias alternativas durante a sua permanência em Tucuruí,
que durou até 2008. Neste ano, Tânia mudou-se, por opção, para o município de
Pimenta Bueno, em Rondônia. Passou seis anos lá e mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde hoje realiza outro tratamento para combater a doença com a qual nasceu.
Ao relembrar sua passagem pelo Pará, Tânia ri, e confessa que sente falta do
calor das rodas de terapia comunitária e da vivacidade dos grupos terapêuticos da
casa. Eles restam em sua memória, guardados com carinho, como as melhores
lembranças de um tempo feliz:
98
-- Foi um período de muita criatividade e inspiração. A gente tinha uma
conexão muito forte, e o Geraldo era uma pessoa com muita disponibilidade, ele nos
apoiava bastante. Acreditou muito no potencial da equipe dele. Cada um era um braço
dele. Senão, não teria acontecido. E as pessoas também acreditavam naquilo. A gente
via o paciente melhorando, isso era muito prazeroso. A terapia comunitária abre muito
esse espaço da sabedoria popular, da confiança, da escuta e da fala. Isso enriquecia,
fazia com que as pessoas se curassem. Nós compartilhávamos uns com os outros,
pegávamos na mão, nos envolvíamos totalmente com a comunidade. Recursos a
gente não tinha, era tudo muito simples. Tínhamos os colchonetes e o salão. Muitas
vezes, no começo, eu tinha que levar o meu aparelho de som de casa. O que a gente
tinha era amor. Tudo era feito com muito amor, com muita entrega, com muita
determinação. É aquela coisa doce do homem, aquela humildade, aquela coisa de
coração, aquela coisa da terra. Foi um tempo único.
99
6.
100
Tucuruí vivia uma revolução no campo da saúde mental. O Caps reunia uma
equipe que chegava a trinta pessoas, as rodas de terapia comunitária aconteciam no
centro e em todos os bairros do município, além da comunidade de Jutaí e da TI
Trocará. Os grupos terapêuticos do Caps, que utilizavam com toda a sua força as
terapias alternativas, o trabalho potente de líderes religiosas e a valorização do saber
popular curavam. Como a hidrelétrica, o trabalho criado por Geraldo e sua equipe
transbordava movimento e inovação. O psiquiatra estava eufórico. Depois de tantos
anos de corredores hospitalares, finalmente colocara para fora, como todo vigor, o
revolucionário que havia dentro de si.
-- Te prepara, porque tu vais comigo, para falar sobre o teu trabalho -- avisou o
cearense, que também participaria do evento.
À esquerda: Geraldo realiza palestra na França com Adalberto Barreto (à direita) e dois integrantes do Projeto 4 Varas,
em Pirambu.
À direita: Geraldo e o psiquiatra francês Michel Boussat, que o recebeu em Paris. Crédito das fotos: Arquivo pessoal
102
compara serviços públicos de saúde mental na Inglaterra e no Brasil. Os dois
exemplos brasileiros citados por ela são o programa Saúde Mental Perambulante, de
Geraldo, no Pará, e o Projeto 4 Varas, de Adalberto, no Ceará. Ao comparar os dois
países, Fátima logo se deu conta de que, na Inglaterra, havia uma rede de apoio e de
subsídios do governo muito mais forte do que no Brasil. A liberdade para criar, porém,
era menos estimulada em terras inglesas. No Brasil, os dois psiquiatras realizavam
trabalhos com recursos e apoio mínimos, mas que davam resultados excepcionais em
pouco tempo -- e a ponto de curar centenas de pacientes com pouco uso de
medicamentos, para admiração da psicóloga.
Quinze anos depois de sua primeira ida a Tucuruí, Fátima relembra suas
conclusões depois da visita ao Pará:
-- Quando eu fui, em 2000, o Caps era mais ou menos novo, mas já estava
muito desenvolvido em termos de terapia comunitária. E não só terapia comunitária,
mas também todas as bases para você trabalhar com as comunidades, com líderes,
tinha uma benzedeira que ia lá no Caps, uma pessoa que fazia massagem, tinha
voluntários, e era muito aberto à população. Eu fiquei bem impressionada em ver
como eles tinham vários grupos diferenciados, que trabalhavam com corpo, com arte.
Uma coisa que me impressionou também era como eles já saíam para as ruas. Eles já
faziam terapia nos bairros, ou então iam com as pessoas para as praças. E, quando
eles iam para os bairros, era um trabalho que tinha um lado preventivo também.
Apareciam muitas pessoas que nem pensavam em se tratar, e iam aparecendo, e
nisso elas se vinculavam ao Caps. Então o Caps ia para as comunidades. E você
trabalhava com várias pessoas, não só as que precisavam de cuidados. E tinha
também o acolhimento, que era diário. Até hoje há dificuldade para que os Caps
tenham esse acolhimento diário, essas portas abertas. E lá já tinha nessa época. Eu
achei super interessante.
103
massoterapia, para grande surpresa de Fátima e de Charles. Eles ficaram encantados
com essa experiência.
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Reportagem sobre Tucuruí no jornal O Liberal, o maior do Pará. Crédito: Arquivo pessoal
105
Jornal de Tucuruí noticia a ida do pesquisador britânico Charles Watters ao município do interior do Pará. Crédito:
Arquivo pessoal
...
106
Pouco depois de retornar da Europa, Geraldo foi agraciado com um prêmio no
XVII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em dezembro de 1999, em
Fortaleza.
107
A Saúde Mental Perambulante, de Tucuruí, ganha prêmio no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em
Fortaleza.
108
…
-- Doutor Geraldo, quem fala é Pedro Martinelli. Soube do teu trabalho, que
ganhou um prêmio no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, e gostaria de acompanhá-lo
por alguns dias em Tucuruí. É para a realização de um livro.
Geraldo não sabia de quem se tratava. Naquele ano de 1999, Pedro Martinelli
já tinha duas décadas de fotojornalismo nas costas. Já havia trabalhado em A Gazeta
Esportiva, o Diário do Grande ABC, O Globo, Veja e chefiado o Estúdio Abril. Desde
1994, dedicava-se à documentação da vida do homem da Amazônia, com fotografias
que eram, além de uma profunda imersão nos personagens, verdadeiras poesias.
Por isso, não demorou para que Pedro Martinelli aterrissasse em terras
tucuruienses. Hospedou-se em um hotel junto com o jornalista Marcelo Macca,
encarregado de escrever o texto sobre a experiência de Tucuruí. Depois de desfazer
as malas, o fotógrafo realizou sua segunda ligação telefônica para o psiquiatra:
Geraldo foi ter com eles de carro. A empatia entre psiquiatra e fotógrafo foi
imediata. Pedro Martinelli passou uma intensa semana em Tucuruí, acompanhando o
médico dia e noite. O fotógrafo conheceu o Caps, participou de sessões de terapia
comunitária, foi convidado a entrar na casa de pacientes e até navegou pelo rio
Tocantins, para adentrar na comunidade de Jutaí. Toda essa rica vivência foi retratada
por ele e descrita por Marcelo Macca no livro Cuidados pela Vida - Crônicas e
Receitas de Saúde no Brasil, lançado em 2000.
109
Apesar das infindáveis andanças pelos mais afastados rincões do país e dos
mais de quarenta anos de fotojornalismo, Pedro Martinelli, hoje com 65 anos, relembra
com carinho de sua vivência em Tucuruí e, especialmente, do encontro com Geraldo:
-- Ele foi uma figura marcante na minha vida. Foi especial. O trabalho dele era
muito inusitado... E eu achei interessante a figura humana do indivíduo. A gente se
deu super bem, pelo jeitão dele, a gente andava para cima e para baixo. Eu ia para o
Caps, nunca tinha visto a metodologia, o tratamento, o louco, né, e eu fiquei envolvido
com as histórias que ele me contava dos loucos, de como ele chegou lá, como
encontrou as pessoas, o amarra e evacua, o hospital. Fiquei entusiasmado com essas
histórias, fiquei com ele para cima e para baixo, indo na casa de louco… E ele nunca
pegou uma figura tão disponível para andar junto, é diferente chegar um sujeito com
prazo e dar uma voltinha. A gente ia para o bar, convivi com ele uma semana, dia e
noite. Meu sistema de trabalhar é esse também, de ir conviver com as pessoas, os
personagens, só assim que dá para fazer uma fotografia interessante.
110
O fotógrafo diz que ficava maravilhado, por exemplo, ao ver os pacientes do
Caps apresentarem uma peça de teatro na praça central de Tucuruí. Segundo ele, a
peça chamava-se Não Varra o Lixo para Baixo do Tapete. Na época, as implicações
desta exposição ficaram claras para ele:
-- Ele mandava os caras darem as mãos. Você nunca imaginaria que aqueles
machões fossem dar a mão um para o outro. E ele, com jeito, mandava fazer uma
roda e falava: vamos dar as mãos. Depois, mandava os caras fecharem os olhos,
mandava eles se concentrarem, mandava respirarem fundo. Ele ia falando
pausadamente e aquilo ia entrando na cabeça das pessoas. Ele deixava os caras
hipnotizados. Quando eu olhava, eles estavam todos serenos, relaxados, até eu
entrava naquela, se bobeasse eu dormia. Era incrível o que ele fazia com o grupo. Ele
tinha uma capacidade espiritual muito grande.
111
Terapia no canteiro de obras da Eletronorte, em Tucuruí. Crédito: Arquivo pessoal
Aquilo que ele pedia aos seus semelhantes não era nada banal. E raramente
acontecia em uma terra de abusos cometidos, em sua maioria, pelos machos locais.
Geraldo, em suas andanças pelo interior do Pará, cansou de trombar com histórias
desse tipo.
112
Proteger a filha de sete anos de abusos sexuais é a principal preocupação de
Maria Josiane da Silva, 28 anos. Ela nos recebeu em sua casa, no bairro do Getat,
oeste de Tucuruí, após batermos palmas para que abrisse a porta.
Ela conta que fica aliviada de poder contar com o Josivaldo para cuidar da filha
pequena durante o dia, na ausência de Denivaldo. É um luxo que poucas mulheres do
interior do Pará, sobretudo da zona rural, têm.
113
Emília está na escola. E não quer saber de deixar a garota aos cuidados de outra
pessoa:
-- Meu medo maior é dela. Para cuidar bem, para dar banho direitinho, deixar
na escola, pegar… Como vai ser a educação dessa pessoa para ensinar para ela?
Quero dar a educação o máximo que eu puder para ela. Ensinar o que é certinho.
Falei com meu esposo, ele disse para ficar na venda mesmo. Ontem ela trouxe a
primeira tarefinha da escola para casa. Eu até chorei, lembrei de quando eu trazia e
minha mãe me ensinava. O Josi me ajuda muito em casa com ela. É uma pessoa que
sempre me deu confiança, de eu deixar ela em casa com ele, se for preciso ele dá
comidinha, coloca ela para dormir, nunca tive nenhum problema de desconfiar, de ter
medo de deixar. Umas pessoas já me perguntaram, eu falei, não, o Josi não é doente
mental, ele sabe o que é certo e o que é errado, eu converso com ele e ele entende as
coisas.
Assim como Maria Josiane, Josivaldo não deixa ninguém chegar perto da
menina. Certa feita, ela voltou da escolinha com um amigo. O tio logo proibiu a entrada
do menino na casa, em um gesto prontamente elogiado pela cunhada:
-- Não pode vacilar, esses meninos daqui são muito salientes. Aqui tudo
começa muito cedo. Muito precoce, a gente tem que estar de olho -- assegura Maria
Josiane, antes de adquirir um tom mais incisivo sobre o assunto: -- Eu falo muito
abertamente com o Josi sobre isso, eu não escondo e nem tenho dúvida, será se eu
falo. Eu falo, sim. Porque a gente não pode negar que a maioria dos abusos acontece
dentro da própria casa. A gente não pode esconder isso. E sempre ter aquele cuidado
de conversar mesmo. Não pode, porque a cada dia que passa tá ficando mais difícil.
Na maioria dos casos, os abusos acontecem dentro da própria casa, da própria
família. É tio abusando da sobrinha, é pai, tem casa que, Jesus, a própria mãe... É um
negócio de louco, fica fora dos nossos limites. Por isso, aqui em casa eu converso
abertamente, para cuidar. Não judiar, não malinar, porque acaba com a vida da
família.
114
Mas não por parte de Josivaldo. O tio brinca:
-- Tem tanta mulher por aí, eu vou pegar uma menininha pequena? Sou doido,
não.
Embora fosse um bom pai, o homem vivia com mulheres que ora cuidavam dos
enteados, ora os maltratavam. Assim foi crescendo Josivaldo. Calado, recolhido,
ensimesmado, sofrendo com seus fantasmas interiores. Quem o conhecia, professava,
secretamente, que não encontraria saída. O pai era uma dessas pessoas. Cansou de
bater na porta de médicos, de gastar com consultas e tratamentos. Na opinião dele, o
filho não ia conseguir. José Paulino dos Santos não viveu a tempo de ver. Ele morreu
115
em 1992, e deixou os três garotos, já na faixa dos vinte anos, morando sozinhos na
casa que é da família até hoje.
A casa onde moram Maria Josiane, Maria Emília, Denivaldo e Josivaldo. Crédito: Alice Arida
116
Desta vez, porém, algo de diferente acontecia. A participação do Caps na vida
de Josivaldo -- e, portanto, de toda a família -- ia aumentando, cada vez mais. Com a
ajuda do centro, ele encontrou conforto e alternativas em pessoas e em terapias e
também soube que poderia receber um benefício do governo por ser deficiente. Era
com esse dinheiro que Maria Josiane comprava -- e compra, até hoje -- roupas,
sapatos e itens de higiene para o cunhado.
-- Aqui, a gente tem que cuidar um do outro -- explica Maria Josiane. -- Não
adianta a gente querer tratar as pessoas mal, com ignorância, porque tudo aqui a
gente precisa um do outro. Às vezes eu estou mal, cansada, tenho arritmia, ou às
vezes eu esqueço o remédio, peço pra ele trazer, ele traz com água. E com ele não é
diferente. Deus me deu esse entendimento, que eu tenho de cuidar das pessoas que
convivem comigo no dia a dia. Não adianta eu querer tratar uma vizinha bem, uma
amiga bem, se eu não cuido de casa. O importante, em primeiro lugar, é a nossa
família, depois as outras pessoas. Muitas vezes eu deixava aqui em segundo lugar, e
essas pessoas em primeiro lugar, e ele falava, isso não é certo, primeiro lugar nós
aqui em casa, depois as outras pessoas. Ele começou a falar e eu botei em prática.
117
Josivaldo mostra seu quarto, durante nossa visita à sua casa em Tucuruí. Crédito: Alice Arida
Se o pai não viveu para ver, a tia materna dos três irmãos ocupou seu lugar.
Depois de 35 anos, dona Alzira arrumou as malas e partiu de São Paulo rumo a
Tucuruí, para ver os sobrinhos. Os olhos não acreditaram quando pousaram em um
sorridente e efusivo Josivaldo, que participava de uma apresentação no Caps.
Emocionados, os dois abraçaram-se. Ele havia conseguido. Em seus braços, a tia,
atônita. Foi uma vitória. Mais uma na vida deste herói brasileiro, fervoroso em sua luta
cotidiana e silenciosa por dias melhores.
118
7.
Vera
Meu corpo, minha alma e meu véu hoje pertencem aos ratos que
fedem a esperma do passado
Gersa
119
Ela não foi cozinheira, nem faxineira, nem lavadeira, nem operária e nem dona
de casa, mas sua história, mais do que todas as outras, se confunde com a de
Tucuruí. Mesmo hoje, aos 57 anos, Vera Félix de Moraes carrega a cidade dentro de
si. Oriunda de um pequeno vilarejo de Goiás, ela chegou ao município paraense na
década de 1970, e viveu seu auge junto com ele. Foram dez anos de frenesi, durante
a construção da usina -- de 1975 a 1985. Depois, ambos decaíram. Vera é um pedaço
do que a cidade hoje representa: mora em um puxadinho de uma casa em um bairro
pobre de Tucuruí, onde espreme seus pertences em um modesto cômodo
transformado em quarto e sala, cozinha e banheiro. Não há água encanada no lugar, e
a única janela permanece todo o tempo fechada, enquanto o pequeno ventilador
busca, sem sucesso, suprir a falta de ventilação. Há migalhas de pão e de milho
espalhadas por todos os cantos, para servir de comida aos ratos. Vera confessa: ela
teme ser comida por eles, se não lhes der alimento.
Os ratos são o motivo de ela só dormir de mangas. Durante o dia, Vera coloca
roupas estampadas e coloridas, combinando com as sapatilhas, cuidadosamente
calçadas nos pés pequenos e delicados. Os cabelos curtos estão sempre tingidos --
ora ela está loira, ora morena -- e as unhas, sempre pintadas. Não há brecha no rosto
sem maquiagem.
Se a vaidade permanece, todo o resto foi embora. Vera entra no Caps com o
olhar triste, perdido, como se a desesperança tivesse tomado todo o seu ser. Basta ela
abrir a boca, porém, que surge um resquício do sucesso dos anos 1970. Vera perdeu
tudo na vida, mas guardou a ginga manhosa no falar daquela época. Ela ainda se
expressa com a boca, as mãos e os olhos -- cada um a sua vez e todos em conjunto,
em uma harmonia muito bem-treinada. De tempos em tempos, estala a língua, fixa o
olhar no horizonte e suspira. Emite várias exclamações ao longo de seu discurso e,
entre uma frase e outra, faz pausas planejadas, na intenção de seduzir seu
interlocutor. São heranças do tempo em que Vera só usava salto alto, blusa decotada
e minissaia. E em que era das prostitutas mais procuradas de Tucuruí.
120
Tudo começou quarenta anos atrás, quando Vera pisou pela primeira vez no
município paraense. Vinha trazida por uma conhecida, que a pôs às pressas dentro de
um carro. A garota tinha vinte e poucos anos e já havia passado por algumas cidades
de Goiás e por Brasília, onde começou na profissão que levaria pelo resto da vida. Foi
parar em Tucuruí por causa do grande fluxo de homens que atravessavam o país à
procura de emprego na cidade, em ebulição durante a construção da usina. A
princípio, Vera não gostou do que viu:
-- Eu cheguei aqui... Eu nunca tinha visto uma cidade tão pobre na minha vida,
não vou negar, não. Aqui era uma cidadezinha bem... bem pequenininha, eu não
botava fé que aqui seria como é. A hora que eu entrei aqui eu me arrependi. A
comadre me viu, eu desci essa Lauro Sodré todinha. Nós não era comadre ainda,
sabe. Tava revoltada de ela ter me arrebocado para me trazer para cá, sabe.
Revoltadíssima. Arrebocado assim, porque ela me pegou na estrada e fez questão de
me trazer, sabe. Aqui é uma cidade que tudo era pobre, os telhados tudo sujo, as
casas de madeira suja. As casas aqui... ixi... eu nem sei se naquela rua do Escorre
Água tivesse alguma de alvenaria. Era tudo casa de tábua, menina.
A rua do Escorre Água era famosa em Tucuruí: aquele era um dos maiores
bordéis da época da construção da usina. Hoje, o terreno abriga uma igreja
evangélica. Mas Vera, em seu tempo, nunca chegou a trabalhar no Escorre Água. Foi
para casas pequenas, que, segundo ela, quando caía a noite, ficavam abarrotadas de
homens. Não tinha dia que ficasse sem trabalho:
-- Eu fui para a casa da Pisca, que era uma casinha humilde, simples, mas toda
semana vendia cem grados de cerveja. E nenhuma de nós inquilinas bebia cerveja.
Imagine você, cem grados de cerveja por semana. Várias doses, refrigerante, bebida e
coisa, sabe, uma casinha pequena. Imagina as grandes...
121
Vera e seus trejeitos. Crédito das fotos: Alice Arida
-- A malária é uma doença... Ela não é uma doença, ela é uma benção. Você
se sente seduzida por ela. A doença mais fascinante que existe na face da Terra acho
que é a malária. Você não quer sarar, você quer acompanhar ela, você implora de
joelho para que ela te leve. Parece que é um mundo encantado, fascinante,
fascinador, que chama, que espera, e você dorme e acorda sonhando. Eu já estava
nesse estado. A malária é uma doença que encanta você para te levar. Essas pessoas
que morrem por aí de malária, elas morrem cheias de felicidade. Tem morte de todos
os jeitos. Tem as que encantam. Você vai com muito gosto, prazer, na hora que ela...
na hora que ela resolver. Você tá sonhando, tá inebriada esperando por ela. Eu tava
desse jeito… Mas não me deixaram morrer.
Como uma fênix que renasce das cinzas, Vera conseguiu curar-se da
enfermidade. E, após voltar a andar que nem gente, voltou a fazer o que mais gostava:
trabalhar. Começou a frequentar uma boate maior, a Casa do Capixaba.
122
-- Só lá no Capixaba tinha quase mil mulher. Eu nunca morei lá, não. Eu ia lá.
Mas era tudo aquelas gaiolinhas, tudo pequenininho os quartos, sabe. Mas passa de
duas, três, para o mesmo quarto. Na hora que chegava colocava tudo no mesmo
quarto. Olha, você não calcula a quantidade de mulher que vinha do Brasil inteiro…
Aqui era uma cidade que eu vou lhe contar uma coisa viu, menina, isso aqui corria
dinheiro, olha... Vocês foram em Altamira?
-- Vai lá para vocês ver -- sugere Vera. -- Pelo que dizem… Só que naquele
tempo daqui eu acho que o dinheiro era mais forte, aqui era muito mais forte, e eu
acho que essa daqui teve dez vezes mais sucesso do que aquela. Mas lá tem muito
sucesso. Mas vocês não calculam o que foi aqui, gente, é só vivendo para vocês
acreditarem. Sério, sério, sério, sério. Os bolsos dos homens pesava de dinheiro. É...
Essas pessoas que você vê aí abaixo de não sei o quê, já teve dinheiro na porta deles
era de cardume, assim, de pegar com rodo. Não souberam fazer... Mas aqui corria
dinheiro que pesava no bolso. Aqui não é uma cidade linda nem sei por quê.
123
que, posteriormente, foram retirados do mercado --, atuavam como psicotrópicos,
alterando a atividade mental, o comportamento, a percepção da pessoa.
Além das drogas, Vera envolveu-se com homens agressivos, que se metiam
em brigas, iam presos e eram liberados, muitas vezes após ela pagar a fiança. Ela
também tinha sangue quente, entrava em brigas e terminava atrás das grades. Foram
tantos os descaminhos na vida que seu juízo começou a ficar vexado.
No ano de 1988, no início de sua decadência, Vera sentiu pairar sobre a sua
cabeça o inferno. Era um dia de domingo, ao meio-dia em ponto. Ela vai avisando:
aqueles que querem entender que demônio a atingiu empreenderão uma tarefa
impossível.
-- Ninguém além de mim é capaz de imaginar o que seja isso, e pelo que eu
passei. Eu me lembro como se fosse hoje...
Foi o início de sua sina, daquilo que passou a chamar de “mal espiritual”.
Desde então, Vera não toma mais café. Foi por causa do café que adoeceu, acredita.
E também por causa da macumba que fizeram para ela, e que tornou eterno seu
sofrimento:
-- Meu estado de mente é muito grave. Eu fiquei, olha... Eu sou uma mulher, eu
sou a sombra do que eu fui. Eu não sou mais nem a sombra -- diz, pesarosa,
enquanto as primeiras lágrimas descem pelas bochechas pintadas com blush. -- Não
tem um dia da minha vida para mim não chorar. Eu não sei... Eu nem sei como é que
eu to viva, gente. Eu nem sei como eu to viva, depois de passar por tudo que eu
passei. Eu não entendo...
-- Olha, você era menina, não era? Em 1988, você não era criança? Você já
conhece outros países, já aprendeu a se virar, a tomar banho, a ler, a estudar, quantos
anos da vida, né? Imagine meu problema ser desde esse tempo. Será que ainda tem
saída pra mim?
Diante da pergunta, fico sem palavras e sem gesto. Não sei o que pensar, nem
para onde olhar: agora sou eu quem está perdida. A meu lado, Alice tenta acalmar
Vera. Com seu jeito delicado, Alice diz que sim, que há saída e que para isso é preciso
seguir as orientações medicamentosas da equipe do Caps. Então, Vera, mais lúcida
que nunca, desaba:
124
-- Viver anestesiada de remédio é a solução até morrer?
Nos terreiros, pedia benção, seguia rituais, tomava infusões. Eram os pais de
santo que a acudiam para acalmá-la. Durante doze anos, assim foi, e ela, que ama a
Bíblia e tem orgulho de ser da legião de São Jorge, seu patrono, aprendeu a ler mão,
a tirar cartas e a decifrar os astros. Ia melhorando e piorando. Até que, na virada do
milênio, a cruz pesou de vez. No ápice do desespero, Vera resolveu fazer algo que
não deveria. Não revela o que foi: só diz que houve vingança, por parte de uma
macumbeira. Desse dia em diante, não pôde mais disfarçar. A falta de juízo ficou
escancarada:
125
-- Não entendo, todo dia eu choro. Cadê eu? Não sei.
Assim como Soneide, que escapou da morte muitas e muitas vezes, Vera não
sabe como está viva. Na verdade, da primeira vez em que livrou-se de morrer, ainda
habitava a barriga da mãe. Quem queria matá-la era o seu pai. O homem era dentista,
mas sua verdadeira vocação, segundo Vera, era matar gente. Matava por gosto. E
queria matar a filha, dentro da barriga da mãe. A mulher, gestante, já não dormia:
-- Se ela dormisse, meu pai me matava -- diz Vera. -- A minha mãe arrumou
quatro homens para matar meu pai. Meu pai percebeu, levaram meu pai, mas meu pai
levou todo mundo. Morreu todos os cinco. A minha mãe teve culpa de cinco mortes
por causa da minha vida. Eu tenho sangue de gente ruim, mas minha mãe era
decidida e disposta. Ela era decidida que ninguém ia me matar, e não me matou, não.
Até os sete anos, quando ainda era anjo, Vera viveu com os avós paternos no
pequeno vilarejo de Goiás. Lá, tudo pertencia ao seu avô, um homem muito rico. O
nome do lugar permanece em segredo. Se ela revelar, todo mundo vai saber quem ela
é da noite para o dia, garante. Apenas assegura que foi criada com tudo do bom e do
melhor, embora esta condição não tenha evitado que ela fugisse de casa para entrar
de vez nos cabarés. Durante toda a sua vida de prostituta, não passou necessidade.
Só quando o problema espiritual veio é que os apertos começaram.
Nos anos 1990, sem dinheiro, Vera passava fome. Vivia vagando pelas ruas de
Tucuruí, perdida no mundo. Até que não aguentou e decidiu aliviar as angústias nas
drogas. Descobriu que, se não tiravam o apetite, pelo menos amenizavam o tormento
de não ter o que comer. E todos os outros tormentos, internos e externos, que
infernizavam a sua vida. Por muitos anos, esta foi sua única saída:
-- A droga, ela me acalma. Ela me dá calma. Mas o que está ao meu redor me
passa ódio -- diz.
126
serem suas netas cobravam cinco reais pelo programa. Geravam um movimento que,
garante a ex-prostituta, nem se comparava ao dos anos de construção da usina:
-- Essa rua, a mesma rua que eu lhe falei, de tanto dinheiro que correu, ficou..
olha, todos os outros lugar tem movimento, menos lá... as pessoas que tem
movimento dali, vixe maria... é difícil vender... não vende nem meio grado de cerveja
por noite. Aquele movimento que tinha, de cem grados? Não existe. E você não
imagina o quanto de pessoas ricas, e ricas e ricas mesmo, que andava com nós nessa
rua que ninguém hoje mais passa quase.
Ainda assim, Vera conseguia faturar vinte reais cada vez que alugava seu
cômodo. Com o dinheiro em mãos, descia para a rua e ia direto comprar droga.
De tanto ficar dopada, não percebeu que, um dia, sua casa ia cair. Era uma
tarde em que o céu despencava em águas torrenciais. Vera, já sem reação, acordou
com os bombeiros entrando pela sua porta para resgatá-la. Perdeu o único bem que
lhe restava, a única referência de solidez, de estabilidade, que tinha. Mas sobreviveu.
Mais uma vez, livrou-se da morte.
Em sua vida, ela acha que se livrou até de virar animal de quatro patas, por
causa de macumba. De tanto ser salva, estancou. Hoje, atravessa os dias sem ânimo,
ausente, anestesiada. Chora sempre. Ao longo de nossa conversa, chora várias
vezes. Repete e repete que está feia, fracassada. Que, quando jovem, era bonita,
vaidosa e só usava salto, pois não gostava de sua altura. Agora, Vera só usa
sapatilhas. Não se importa mais de ser baixa:
-- Quando eu era jovem, eu tinha medo de ficar velha. E, agora que eu sou
velha, não quero mais ser jovem.
Neste ponto, ela para sua narração. Cansou-se. Depois de horas contando a
sua história, quase sem interrupção da nossa parte, ela finalmente decide que é tempo
de acabar. Como é de seu feitio, dispara:
-- Pois é, a entrevista foi das pior que tu já viu na vida, não foi?
-- Isso vai para o livro? Só umas partezinhas, né? Só vale duas ou três partes -
- afirma e faz sua pausa costumeira antes de seguir, olhando para cima, em tom
reflexivo: -- Será que eu to viva quando o livro for publicado?
127
Recolhemos o gravador e a máquina fotógrafica e levantamos das cadeiras e
do sofá de uma das salas de consultório do Caps. Continuamos a conversar com Vera
em direção à saída. Ela, então, nos convida para ir conhecer a sua casa. Vamos a pé,
em uma caminhada que dura cerca de 15 minutos. Durante o percurso, ela nos
pergunta se é verdade que as prostitutas de luxo de São Paulo chegam a ganhar mil
reais por noite. Eu sabia que, para algumas prostitutas, o valor estava muito acima
disso. Mas fiquei sem graça de dizer. Limitei-me a assentir com a cabeça, e comentei
que algumas faturavam até dois mil reais.
-- Mas deve ser uma vida bem difícil, né, Vera? -- questionei.
Assim que Vera abre a porta de seu cômodo, as duas cadelas e os seis filhotes
iniciam um movimento repetitivo de entrar e sair do aposento, como se buscassem
algo. A ex-prostituta, então, tira da bolsa uma sacola com restos do almoço do Caps --
a comida que sobrou do prato dela e de outros pacientes -- para alimentar os animais.
128
Em seguida, nos convida para conhecer o quintal. O lugar está sujo, há muito lixo
espalhado pelo chão e um tanque enorme, com água turva e parada. Passamos cerca
de uma hora com Vera em sua casa e nos despedimos pouco antes da chegada de
mais uma tempestade torrencial.
No dia seguinte, decidimos levar ao Caps algumas fotos tiradas por Alice
durante nossa estadia em Tucuruí. São fotos dos pacientes em diferentes atividades
realizadas no local. Demonstrando interesse, Vera pede para olhar as imagens. Após
manusear uma por uma, seu semblante, antes curioso, torna-se sombrio. Ao final, ela
dá seu veredicto:
129
8.
Cidade Vermelha
Um fala: “Falta aquecimento aqui!”. Outro diz: “Estou para pegar fogo! Que
coisa, a minha temperatura muda sem a minha permissão!”.
E as lágrimas rolam e rolam feito fonte amargorosa, parece não ter fim e o
começo eu desconheço.
Loucura, por que me pegaste? Você é pegajosa demais e tem um poder que
supera o meu. Se eu pudesse eu te afogaria no fundo do mar e tu morrerias, te
afogaria e eu riria de ti como quem se satisfaz com a emoção pura. Mas você
não me deixa, persiste e insiste em acompanhar a minha vida, você me deixa
quase sem vida, dá vontade de morrer. Você me destrói a alma, me aprisionou
130
e faz graça de mim feito um bêbado irreverente e soberbo. Luto para arrancá-la
de mim, mas é um combate vencido e eu sou o perdedor.
Relato de um paciente
131
Ela chamava-se Maria Rita e, por ser pioneira, levou atrás de si um batalhão.
Foi a primeira paciente de Geraldo a ser internada no Hospital Regional de Tucuruí.
Maria Rita deu entrada no pronto-socorro do HRT em uma tarde ensolarada de 1996.
A profissional de plantão que a atendeu levou-a para internação na Enfermaria de
Clínica Médica. Teve início, aí, uma longa saga: a saga da aceitação de pessoas com
transtorno mental dentro do hospital. Uma luta que dura até hoje.
Aquela tarde com Maria Rita foi tumultuada. Geraldo não estava, e a relação
entre paciente e funcionários não se deu de forma amigável. Na manhã seguinte, ao
chegar ao Regional para passar visita, o psiquiatra encontrou uma das profissionais
que havia atendido Maria Rita na porta do pronto-socorro, esperando-o. Assim que
avistou o médico, ela correu a seu encontro, nervosa:
-- Doutor Geraldo, venha ver o que a tua doida fez no meu carro.
Geraldo seguiu-a, apreensivo. Ele logo percebeu que não tinha pacientes:
eram “seus doidos” e “suas doidas”.
-- Veja isto, doutor Geraldo – disse a mulher, aflita, apontando para o retrovisor
do automóvel. O espelho estava quebrado e entortado.
132
-- Porque ela me tratou mal -- respondeu a mulher.
-- Então, Maria Rita, vai à delegacia de polícia, eu te levo até lá se você quiser,
e abre um boletim de ocorrência contra ela por assédio moral.
-- Tudo bem?
-- Doutor Geraldo, vai ver o que a tua doida fez lá na Enfermaria de Clínica
Médica, que acabou de ser pintada.
...
133
louco do hospital, senão tu vais ver o que acontece contigo”, era, em geral, o conteúdo
das mensagens. Houve um dia em que elas tomaram forma e viraram realidade. Foi
em uma tarde na qual o psiquiatra entrou em seu Fusca branco e saiu de casa rumo
ao hospital. No trajeto, havia uma ladeira. Ao começar a descê-la, Geraldo viu, à sua
frente, uma das rodas de seu carro. Ela havia se desparafusado. O Fusca, oscilante,
foi indo em direção à calçada. Enquanto isso, o psiquiatra, desesperado, previa a
tragédia. O carro, entretanto, e quase que por milagre, parou próximo à porta de uma
borracharia.
Geraldo nunca soube quem foi. Só soube que, daquele momento em diante -- e
embora sentisse verdadeiro prazer em realizar suas terapias em espaços abertos --,
teria de intensificar o seu trabalho dentro de uma instituição. Dentro do Hospital
Regional de Tucuruí. Reuniu uma equipe e, juntos, começaram a dar treinamentos e
capacitações para vários funcionários do Regional que agora conviviam com os
pacientes psiquiátricos internados.
Ele estava discorrendo sobre este assunto em uma reunião com outros
médicos do Regional, quando foi interrompido por um colega:
134
tranquilizado. Desconfiou. Perguntou à enfermeira responsável quem era o médico
que estava de plantão. Era o tal. E Geraldo foi ter com ele:
-- Quer dizer que em time que está ganhando a gente não mexe? – provocou.
-- Não, não precisa disso, Geraldo -- disse, apreensivo. -- Fica tranquilo que, a
partir de hoje, eu não faço mais isso.
Esta Ala Psicossocial do HRT era, assim como o Caps de Tucuruí -- criado dez
anos antes --, um filho não biológico para o médico e para o poeta.
135
Um dos quartos da Ala Psicossocial do HRT. Crédito: Alice Arida
...
136
-- Doutor Geraldo, o senhor se lembra daqueles bilhetes e telefonemas
anônimos? Era eu quem fazia isso. – confessou. -- Eu quero me redimir, doutor
Geraldo. E queria me redimir fazendo parte da sua equipe.
Mas eles continuaram a ser invisíveis. Como se todos os males pelos quais
sofressem se resumissem a seus transtornos mentais, e nada mais.
-- Doutor Geraldo, tem uma paciente tua aqui. Ela veio acompanhada da mãe.
Na manhã seguinte, Geraldo chegou bem cedo ao Regional. E ele viu, nas
duras e velhas cadeiras da sala de espera, a jovem deitada, enrolada em um cobertor
e com a cabeça encostada no colo da mãe. Logo percebeu que elas não estavam
bem, que havia algo de errado. Aproximou-se, com a preocupação estampada no
rosto, e perguntou a elas o que havia ocorrido. A moça descobriu-se e, para espanto
dos presentes, deixou entrever o sangue entre as pernas.
137
Ela tinha transtorno mental, mas não naquele momento. E abriu a boca para
anunciar o que, diante de toda aquela vermelhidão perturbada e inquieta, todos já
sabiam:
...
138
Carmen Lúcia abraça uma paciente internada na Ala Psicossocial do HRT. Crédito: Alice Arida
Desde a criação da Ala Psicossocial, e até hoje, Carmen Lúcia de Araújo Paes
é a única enfermeira do setor. Aos 45 anos, ela divide o espaço com uma equipe
composta por sete técnicos de enfermagem e um psiquiatra, Geraldo.
139
são encaminhados os pacientes de toda a região. Em 2013 e 2014, Tucuruí recebeu
pacientes de Breu Branco, Novo Repartimento, Abaetetuba, Goianésia do Pará,
Castanhal, Parauapebas, Jacundá, Pacajá, Baião, Tailândia, Cametá e Conceição do
Araguaia. Além do Hospital Regional de Tucuruí, só o Hospital das Clínicas Gaspar
Vianna, em Belém, possui leitos psiquiátricos. Estas duas instituições atendem todo o
estado do Pará.
140
tempo todo enclausuradas dentro do setor. Incomunicáveis com o resto do hospital.
Carmen explicou a situação da seguinte maneira:
-- A porta fica fechada. A gente não abre, pela resistência dos outros
profissionais em relação a essa Ala. Eles falam que têm medo que os pacientes saiam
e façam algum mal.
141
Ela chegou ao cargo de professora na Uepa graças a uma especialização em
Saúde Mental pela mesma instituição. É a única enfermeira de Tucuruí com este
certificado. E foi atrás dessa pós, porque queria entender melhor os pacientes com os
quais convivia desde que passou em um concurso público para uma vaga de
enfermeira em Tucuruí. Belenense de nascimento, ela vinha do município de Novo
Repartimento, a 90 quilômetros de Tucuruí. Assim que pisou na cidade da hidrelétrica,
em 1998, foi informada de que a vaga de enfermeira no Caps estava livre:
-- Uma psicóloga me falou que era muito difícil preencher aquela vaga,
ninguém queria ficar. Aí eu disse, tudo bem, eu vou. E comecei a gostar. A gente
construía junto, trabalhávamos muito a questão da discriminação, e eu comecei a me
envolver mesmo. Fui me aperfeiçoando, e ficava muito incomodada de não ter mais
para dar a eles. Eu via que eles precisavam de mais.
Em 2002, ela finalmente iniciou sua especialização, em Belém. Foi mais uma
barreira a ultrapassar. Carmen conta que não conseguiu liberação, por parte da
prefeitura, para realizar o curso na capital. Nem o hospital de Tucuruí, onde também
trabalhava além do Caps, lhe deu suporte. Ela tinha de trocar plantões e escalas de
horários para se deslocar até Belém, a fim de concluir o curso. Com o suor das
próprias mãos e o dinheiro do próprio bolso, conseguiu.
Depois da pós, seu trabalho deslanchou. Ela criou vários grupos terapêuticos
dentro do Caps. Ao lado de uma psicóloga, formou um grupo de terapia de família, no
qual buscava amparar a família do portador de transtorno mental. E elaborou também
um grupo de terapia bioenergética, no qual trabalhava, sobretudo, com a respiração.
Juntas, elas conseguiam, nesses grupos, cuidar de alguns pacientes sem o uso de
medicação. Eram casos de fobias, ansiedade, insônia, stress pós-traumático e
depressões leves, sem sintomas psicóticos. Carmen abre o sorriso e fala com grande
alegria sobre esta vitória sua:
142
familiares e suas histórias. Todo esse envolvimento só foi possível, segundo ela,
graças à interação de toda a equipe:
-- A gente tinha uma ligação muito boa com o Geraldo. Uma coisa muito
positiva na saúde mental, eu acho, é esse trabalho com uma equipe multiprofissional.
De escutar... olha, Geraldo, essa medicação não está boa, esse paciente está assim...
Foi muito bom esse nosso diálogo. Isso tem que existir em saúde mental, é
fundamental.
Ela conversou com cada paciente a respeito de sua saída. Não queria que eles
sentissem que ela os abandonava. Continuou a vê-los no hospital, onde ainda
trabalha. Mas a saída do Caps a abalou profundamente. Todas as noites, Carmen
chorava. Vivia nostálgica, angustiada. Fora acometida de enfermidade da mesma
ordem das que tratava. E, se agora convivia com uma dor no peito e uma tristeza sem
fim, por outro lado tinha mais tempo livre. Com o passar dos meses, foi cuidar de si.
Depois de tantos anos acolhendo e ouvindo o outro, ela finalmente foi buscar quem a
acolhesse e escutasse. Melhorou. Hoje, ao olhar para trás, pode dizer, com
segurança, que, apesar de tudo, não se arrepende. Sua trajetória é linda demais para
que a arranquem dela:
-- Foi uma história muito grande de amor. Eu adoro ser enfermeira e, para mim,
trabalhar com saúde mental é um preenchimento muito grande. Eu não consigo me
ver fora da saúde mental.
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-- Eu também tenho vontade de fazer um livro, sobre essa questão da escuta.
Porque eu já escutei tantas histórias... São quinze anos escutando história. É muita
coisa.
Ela, então, abre seu sorriso largo, cheio de amor, e nos convida a conhecer as salas e
corredores do setor por onde transita há uma década. E onde ouviu tantas histórias
quantas nuvens há no céu.
144
9.
145
Em seus primeiros passos em Tucuruí, Carmen escolheu caminhar em
passeatas ao lado de Geraldo e de outros profissionais da equipe de saúde mental.
Foi para a rua e, nestas andanças, acabou por adentrar em casas de famílias sofridas,
que, sem saber como cuidar de seus filhos portadores de transtornos mentais, os
confinaram. Na ausência de assistência médica e de manicômios na cidade, mães e
pais montaram estruturas equivalentes a estas instituições fechadas dentro de seus
próprios lares. Trancaram seus filhos em pequenos cômodos sujos, nos fundos dos
quintais. Acorrentaram seus pés e passaram as ralas refeições por frestas embaixo da
porta.
Sua atitude inicial foi voltar-se à família. Ela queria escutar as queixas e
explicações dos parentes. Estes diziam que não aguentavam mais, já tinham
enfrentado várias internações e não viam outra saída a não ser enclausurar o filho ou
irmão que ameaçava se matar e matar os outros. Carmen os ouvia com atenção e
compaixão e, em sua vez de falar, passava as informações sobre a reforma
psiquiátrica brasileira e sobre os serviços de saúde mental que agora se encontravam
disponíveis em Tucuruí.
146
-- A família é nossa aliada, ela tem que nos ajudar na recuperação do paciente.
E precisa ser tratada, pois também adoece.
...
-- Uma delas foi essa aqui. Graciete, como chamava a sua tocadinha?
-- Cadeinha. Minha mãe fez uma cadeia, passou corrente no meu pé, fiquei
dois meses acorrentada, dormindo numa cama de cimento, eu chamo de necotrério. É
necotrério, porque é feito de cimento.
Em seguida, nos mesmos passos curtos e rápidos, Graciete se desloca até seu
leito hospitalar e volta, trazendo nas mãos uma chave:
De repente, ela para. Por alguns segundos, Graciete sai de seu estado de
dispersão e permanece concentrada, com os olhos fixos no bloco de notas que seguro
entre as mãos. Rapidamente, ela muda de assunto:
Faço um sinal afirmativo com a cabeça e ofereço meu caderno a ela. Graciete,
então, desliza a caneta pelo papel, em letras de traços fortes e tremidos.
147
-- Tá tremendo, porque eu tô querendo fumar -- explica.
Graciete abraça Emílio, psicólogo do Regional e do Caps de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
148
encarcerada, não havia água para limpar seus excrementos, o que tornava o cheiro
insuportável e atraía ratos e baratas. No momento da refeição, o prato ralo que
aparecia por uma pequena fresta na porta não saciava sua fome e, junto ao mau
cheiro, a deixava enjoada; na hora de dormir, as muriçocas não a deixavam em paz:
picavam seu corpo inteiro, durante toda a noite. Graciete chorava, gritava de dor e de
raiva, mordia, agredia a si mesma e batia, batia, até amassar a porta de ferro que a
prendia. Foram três meses padecendo no inferno.
-- Fedia, fedia, fedia... Era terrível. Não era comparação com cadeia, era mais
do que uma cadeia. Eu passei quase um mês sem me banhar, fiquei podre. Tava
fedendo. Podre, podre, podre, podre.
Graciete sofreu, mas também fez sofrer. Ela mostra ter consciência disso ao
falar da mãe, idosa, viúva e idealizadora da cadeinha, única saída encontrada para
conter a filha em surto:
-- Minha mãe montou a cadeinha por amor. Foi por amor. Senão eu me matava
– afirma. -- E hoje, por amor, ela quebrou a cadeia, botou uma portinha, botou uma
janelinha. Eu tô morando lá, eu amo meu lugarzinho, é meu cantinho, só meu. Tem a
caminha de cimento, mas também tem um colchão agora, tem rede, posso me
balançar, posso ouvir hino, gosto de cantar hino, adoro cantar hino.
Desde que iniciou a batalha para se tratar, Graciete logo foi buscar ajuda na
igreja evangélica. E, em sua trajetória, a religião sempre caminhou lado a lado com o
Caps. Pois ela não sofre apenas de bipolaridade: também padece de uma vida inteira
de misérias. Nascida em Jatobal, no entorno do lago, mudou-se aos cinco anos para
Tucuruí, junto com a família. Não chegou a concluir o Ensino Fundamental. Começou
a trabalhar como empregada doméstica e, ainda adolescente, conheceu a vida da rua
e da noite. Aos 16 anos, teve uma filha. A menina seria seu único tesouro em meio a
uma rotina de drogas, roubos e prostituição. Ainda hoje, Graciete só abre o sorriso
quando fala da garota:
-- Minha filha é linda, linda, linda. É Joyce o nome dela, uma princesa. Tem
vinte e um anos e é casada com o rei. Joyce e Leandro. A gente chama ela de
princesa, e ele, de rei. Eles moram em Altamira. Têm carro, notebook, ele comprou um
tablet para ela, têm moto. Tá vendo eu aqui? Pensa em mim jovem. Pensa em mim
com a idade de vinte e um anos que ela tem. Eu tô velha. Mas minha filha é linda. Sem
exagero, ela é linda. É uma princesa.
149
Sem saber, Joyce deu à mãe a força interior para sair do círculo vicioso que a
amarrava. Mas os anos de roubos, drogas e prostituição deixaram sequelas. E, de
tanto viver atormentada por seu passado, hoje Graciete o nega:
-- Eu não gosto de mentira, não gosto que me chamem de prostituta, não gosto
que me chamem de ladrona, não gosto que me chamem de drogada. Essas três
palavras, não usa comigo. Se mexer com meu eu, eu viro violenta. Eu, eu, eu. Tudo
tem que ser nosso, não mexa com meu eu, não. Você não conhece eu.
-- Tá – concorda Graciete.
Graciete caminha pelos corredores da Ala Psicossocial do HRT com sua boneca. Acima, à direita, detalhe do
leito de Graciete. Crédito: Alice Arida
150
...
Das trevas de um modesto cômodo, nos fundos de uma casa escura, surge
Remyr Simões Mousinho, 52 anos. Portador de esquizofrenia, ele também foi forçado
ao enclausuramento em seu próprio lar. A família, que não via outro meio de conter
suas crises violentas, nas quais agredia a todos e proferia sentenças de morte,
montou um quarto lúgubre no quintal, separado da casa principal, e o confinou lá
dentro. A única comunicação com o mundo exterior era uma pequena fresta na porta,
por onde Remyr enfiava a boca aberta de feridas e gritava para o mundo suas
agonias.
Durante muito tempo, Remyr sofreu. Antes de ser isolado, gerou um histórico
de crises que assustaram seus pais e os sete irmãos, entre eles Verinha, de quem é
gêmeo. Durante os surtos, ele, que é alto e robusto, quebrava tudo dentro de casa e
dizia que mataria quem visse pela frente. Também se agredia. Chegou a pegar uma
gilete e a cortar os pulsos. Foi para o hospital com uma forte hemorragia. Quando
entrou no pronto-socorro, estava enrolado em um lençol todo ensanguentado e
carregava um balde com o próprio sangue. Foi salvo. Mas, pouco tempo depois,
aterrorizou novamente sua família ao reunir todos os colchões da casa no quintal e
tacar fogo neles. Quando os parentes foram acudir, Remyr, transtornado, os expulsou
de casa. Sem saber o que fazer, presos em uma época em que a internação nos
manicômios paraenses eram a regra e Geraldo ainda não havia chegado a Tucuruí, os
familiares decidiram recorrer à polícia. Remyr ficou dez dias preso em uma cela
151
especial, na delegacia do município. A única pessoa que tinha permissão para entrar
na cela era Verinha, que, miúda e magra, dava banho no irmão toda amedrontada,
rezando para que ele não surtasse naquele momento.
Por diversas vezes, Remyr foi internado. Ficou cinco meses no Juliano Moreira,
em Belém. De lá, guarda lembranças de choques elétricos e da impossibilidade de
voltar para casa. Embora recebesse alta, Remyr pegava a ambulância que faria o
trajeto até Tucuruí, pela estrada que ainda era de terra batida, mas não chegava a
retornar a seu lar. Assim que pisava em sua cidade natal, voltava a ter crises.
Enlouquecia no minuto em que encontrava seus familiares. Sem alternativa, voltava
para Belém, rumo ao Juliano Moreira, na mesma ambulância que o havia trazido do
manicômio.
-- Pô, eu botando quente aqui, desde seis da manhã até uma hora dessas, e
vocês vêm oferecer essa sopa? Eu não vou querer comida de restaurante, mas isso
nem porco não come, entendeu?
Ele tinha razão de reclamar. Era ele quem dava de comer aos porcos do lugar,
e também cuidava da horta. Mesmo sem ter como se banhar depois, pois faltavam no
sanatório todos os itens de higiene, como sabonetes e toalhas. Apesar das
dificuldades, Remyr suportou oito meses de internação. Por isso, da segunda vez que
foi mandado para lá, resistiu. Foram necessários dez homens para contê-lo e colocá-lo
dentro do carro. Remyr foi levado à força para o hospício, mas retornou dentro de uma
semana. O ano era 1997 e poucos sabiam, mas Tucuruí passava por uma ebulição no
campo da saúde mental, depois da chegada de um novo psiquiatra no município. Foi
Geraldo quem tirou Remyr do manicômio de Altamira.
A afinidade entre os dois foi imediata. Geraldo não era o primeiro psiquiatra de
Remyr, mas foi quem mais lhe estendeu as mãos e ajudou a caminhar com as
próprias pernas. Com a inauguração do Caps, aos poucos Remyr melhorou. Nunca
152
mais foi internado, a não ser por alguns dias na Ala Psicossocial do Regional, durante
crises que ficaram cada vez mais espaçadas e suaves. Agora, em vez de agredir a si e
a todos, Remyr fantasiava-se de Raul Seixas, seu maior ídolo, e subia no banco da
praça principal de Tucuruí para cantar as músicas do baiano.
153
Detalhes do mercado municipal de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
Hoje, não trabalha mais lá. Agora, Remyr só trafega por estúdios com água
gelada e ar-condicionado. Ele colabora com três programas da tradicional Rádio
Floresta, a mais ouvida em Tucuruí e em todo o entorno do lago, e no ar há mais de
trinta anos. Do meio-dia às duas horas da tarde, ele participa do Tucuruí Agora,
apresentado por João Marques, conhecido locutor da região. Das duas às quatro da
tarde, colabora com o Esporte Floresta. E, das seis da tarde às sete da noite, ajuda o
Bate Bola com as últimas notícias do mundo esportivo. Remyr é apaixonado por
esportes. Todos os dias, assiste ao Globo Esporte, na Globo, e ao Jogo Aberto, na
Band, para se informar e levar as novidades do assunto para a rádio. E, para
complementar seu trabalho, não abre mão do pequeno e velho telefone que fica ao
lado de sua cama:
154
Ele ajuda o programa levando os mais variados recados, como quem são os
aniversariantes da semana, quem passou no vestibular, quem irá se casar, quem está
comemorando bodas de ouro e de prata, quem teve filho.
155
Se ele trabalha por amor, não deixa de receber uma renda mensal. Seu
dinheiro vem da aposentadoria por invalidez, no valor de um salário mínimo, e de um
serviço na casa lotérica: ele cobra para comprar números da Mega-Sena para seus
conhecidos.
Não à toa, toda Tucuruí o conhece. E também sabe de sua doença. Alguns
cumprimentam a família por ter tido a sabedoria de integrar um membro, portador de
esquizofrenia, ao seio familiar e à sociedade. Outros, contudo, ainda fazem
provocações. Remyr, habituado, já sabe como revidar:
Remyr não via nada de bonito nele. E, desde esse dia, evita participar das
rodas de terapia comunitária. À medida que foi melhorando e adquirindo
independência, também foi se afastando do Caps. Hoje, quase não frequenta o lugar.
Vai só para pegar remédio. Diz que não gosta de ver os outros pacientes. Para ele, o
Caps concentra muita burrice. Sua inteligência é muita se comparada à dos outros
156
frequentadores. Não esconde sua aversão a Rômulo, paciente envolvido com drogas
que vive perambulando pelas ruas de Tucuruí, com um pedaço de pano cobrindo as
partes íntimas:
-- Ele sai até de saia na rua – queixa-se Remyr. -- Aí eu penso assim, olha eu,
com camisa do Remo novinha, agenda debaixo do braço, bem-perfumado, tênis,
cabelo igual ao do Fábio Jr. E aí aparece o Rômulo sujando a nossa categoria.
Mas nem sempre foi assim. A partir do momento em que começou a frequentar
o Caps, Remyr foi envolvido pela atmosfera do lugar, e também se envolveu
profundamente. Certa vez, viajou até Brasília, pelo Caps, para tomar parte em um
encontro nacional de saúde mental. Na ocasião, ficou hospedado no estádio Mané
Garrincha, ao lado de outros participantes. Ele recorda com entusiasmo da viagem:
Desde jovem, Remyr é apaixonado pelo cantor baiano. De certa forma, Raul
Seixas ajudou-o a sair de suas crises e a aceitar a sua condição. Remyr tinha por volta
de vinte anos quando começou a apresentar os primeiros surtos. Na década de 1980,
ele tomava caixas de remédios que eram consumidos como drogas. A família pensou
que ele era dependente químico, e o enviou para tratamento em Belém. Mas o
psiquiatra que o consultou na época informou os familiares que Remyr tinha, na
verdade, esquizofrenia. As drogas apenas “escondiam” a doença.
Foi um choque para todos. Neste momento, começou a batalha para que
Remyr tomasse os medicamentos controlados que o ajudariam a conviver com o
transtorno mental. No início, ele recusava. Negava a sua condição. A família era
obrigada a misturar os remédios em sucos e vitaminas. Foram dez anos até que ele
aceitasse tomar as pílulas.
Hoje, tudo mudou. É ele quem liga para a irmã gêmea, Verinha, perguntando,
em tom de brincadeira, onde está a sua esposa:
-- É o remédio – conta Verinha, rindo. -- Sem o remédio, ele mesmo diz que
viaja na maionese, que o cérebro dele está fora de órbita.
-- Nasci em 1963, quando o John Kennedy foi assassinado nos Estados Unidos
– informa, rapidamente.
Remyr, Verinha e detalhes da casa da família, onde Remyr mora. Crédito: Alice Arida
158
Se não está assistindo TV ou trabalhando na Rádio Floresta, está lendo jornal.
Todos os dias, recebe em casa o Jornal da Amazônia, que, segundo ele, tem as
mesmas notícias que O Liberal, o maior do Pará, mas é mais barato. Assim que
termina sua leitura, telefona para a irmã, que é professora particular e dá aulas de
reforço, para contar as notícias do dia. Paciente, Verinha o escuta. Às vezes, são
várias ligações em um só dia:
-- Tem dia que eu estou dando aula, ele me liga. Dá um minuto, ele liga de
novo. Passa o dia todinho assim – desabafa. -- Mas, do que nós já passamos, para
mim está ótimo. Eu agradeço a Deus vinte e quatro horas, porque se eu for contar o
que nós já sofremos... Eu não gosto nem de lembrar muito, sabe, porque são cenas
muito tristes.
Hoje, este passado amargo ficou guardado na memória. Desde que iniciou o
tratamento com Geraldo, Remyr melhorou muito. Como consequência, toda a sua
família também. E já é possível relembrar as situações em que os risos foram mais
marcantes que as dores. Como, por exemplo, a consulta que fizeram a dois com um
clínico geral de Tucuruí. Pois, há alguns anos, Remyr se viu obrigado a tratar de
diabetes. Verinha, por sua vez, sempre teve problema de enxaqueca e pressão alta.
Os dois resolveram, então, ir juntos a uma consulta com o clínico. Ao se sentar na
frente do médico, Remyr foi logo se apresentando. Disse que era irmão gêmeo de
Verinha, o que causou espanto no homem, já que a fisionomia dos dois é muito
diferente. Remyr brincou com a situação:
-- Inclusive, eu gostei, porque meu cunhado, que é esposo da Verinha, veio pra
cá e casou com a minha irmã, e eu gosto dele – diz Remyr.
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irmã que tem além de Verinha. Marília Mousinho, 57 anos, acabou por envolver-se
com a doença do irmão e com a de todos os outros pacientes do Caps. Por dez anos,
de 2005 a 2014, ela, que é assistente social, foi coordenadora do centro. Conhece
todos os pacientes, seus familiares e suas casas. Visita-os com frequência. Sabe de
suas necessidades.
De certa forma, Marília temia pelo futuro da bebê que Antônia abrigava em sua
barriga. Mas, depois de nove meses, como manda a natureza, nasceu Gabriela.
Sempre zelosa, Marília passou a levar pacotes de fraldas e latas de leite em pó para a
bebê, na casa de Antônia.
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À esquerda: Gabi na casa de Verinha. Crédito: Alice Arida
À direita: Antônia (à direita) posa para foto ao lado de Soneide, durante uma apresentação de festa junina no
Caps de Tucuruí. Crédito: Fabiana Nanô
Até completar cinco anos, Gabriela morou com Marilex, cunhada de Marília e
de Verinha. Depois, foi para a casa de Marília. Hoje, aos 12 anos, Gabriela é uma
garota plena por ter quatro mães, como ela mesma acredita: são elas Antônia, Marília,
Marilex e a Nossa Senhora. A menina também toca flauta e estuda para passar no
vestibular de Medicina. Diz que admira a profissão, pois os médicos salvam vidas. Seu
sonho é ser pediatra.
Por anos, Marília deteve a tutela de Gabriela. Em 2015, finalmente ela pôde
registrar a garota como sua filha adotiva, em uma decisão reconhecida pela Justiça.
Mas a história de Gabriela nunca foi arrancada dela. Ela sabe quem é sua mãe
biológica e, desde bebê, frequenta o Caps. Todos os pacientes a adoram. Dão a ela
presentes e abraços carinhosos. Com a mãe, nunca deixou de trocar carícias e afetos.
Antônia olha para a filha com ternura e agradece:
161
10.
162
É manhã, e o sol está começando a esquentar as ruas de uma cidade sem
árvores no meio da Amazônia. Desço do ônibus acompanhada de Alice. Percorremos
o nosso trajeto diário a passos lentos, apreciando a vista, os cheiros, as cores, as
pessoas. À nossa frente se descortina o mercado municipal, com seus odores de
frutas, ervas, café, tapioca, coco, peixes e galinhas. Estas últimas viram frango na
hora, de acordo com a escolha e a preferência dos clientes. Há sangue, muito sangue,
no chão das tendas que vendem a carne das aves. Urbanas que somos, olhamos para
o piso com um pouco de nojo -- estamos demasiado acostumadas a comprar aquele
frango asséptico e cheio de hormônios, cuidadosamente embalado em bandejas de
plástico e dispostos de maneira atraente nas prateleiras dos supermercados.
Seguimos pelas laterais do mercado, sem adentrá-lo. Estamos caminhando na rua, já
que a calçada está maltratada e é quase inexistente nesse trecho -- e em muitos
outros -- da cidade. Camionetes e moto-táxis passam velozes por nós, quase sem nos
ver. Assim que alcançamos a esquina, voltamos a cabeça para a esquerda, como para
ter certeza de que ela estaria lá. Sim, ela estava: a pequena casa branca e azul, com
portões abertos. E, sim, o Zé do Café também estava lá, fazendo a guarda da porta,
segurando sua xícara de plástico e tentando enrolar seu tabaco barato num pedaço de
papel.
163
Quando dei por mim, percebi que ansiava por encontrá-lo na porta do Caps. Estender
a mão para ele, brincar com ele. E rir com ele essa mesma risada debochada.
Ao contrário do que muitos pensam, José Caetano da Silva, 45 anos, não tem
problemas com bebida. Ele mal bebe. Gosta mesmo é de um bom café. Ou ruim, tanto
faz. E, apesar das dificuldades de fala, articula muito bem seus pensamentos e se faz
entender com poucos e intrincados balbucios. Em uma manhã, no Caps, ele se sentou
ao meu lado e começou a contar sua história de vida e como havia perdido a visão do
olho esquerdo. Nesse dia, Alice o havia presenteado com uma foto dele, tirada por ela.
Zé do Café pediu para que guardássemos a foto conosco. Ficamos com a imagem até
o final da tarde, quando nós o acompanhamos na volta para a sua casa. Ficamos
surpresas ao descobrir que Zé do Café tinha um lar, e tinha família. Ele tinha onde
dormir. Tinha quem o acolhesse.
-- Foto.
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Zé do Café e sua risada escrachada. Crédito: Alice Arida
Nossa primeira surpresa, ao acompanhar o dia a dia da casa, foi perceber que
as atividades, quando são realizadas, acabam cedo, em geral entre nove e dez horas
da manhã. Os pacientes, então, aguardam a chamada para o almoço, às onze horas.
Assim que terminam de comer, ficam sem ter o que fazer. Alguns voltam para casa ou
para a rua. Outros assistem televisão, geralmente ligada na Globo, no salão aberto.
Na parte da tarde, quase não há atividades -- que, em geral, se resumem a rodadas
de bingo e de dominó, partidas de futebol e oficinas de música e de desenho.
É um Caps muito diferente daquele fundado em 1998, com uma grande equipe
disposta a mudar os paradigmas da saúde mental em Tucuruí, com lideranças firmes e
apoio político do governo local. Dezessete anos depois, o Caps mudou e, com ele,
seus frequentadores, que parecem andar em círculos sem sair do lugar. Geraldo antes
vivia extasiado com suas sessões lotadas de terapia comunitária, às quartas-feiras.
Hoje, já não mais as conduz; passou o bastão para outras pessoas da equipe, que não
conseguem reunir mais de trinta participantes nas rodas.
Parte desta inércia aparece nos desenhos dos pacientes. Antônia, mãe de
Gabriela, rabisca sempre a mesma flor, e a colore sempre da mesma cor. Outro
paciente, Argemiro Siqueira Alves Filho, tem fixação por uma casa, pintada sempre de
azul.
165
Houve uma depressão no cotidiano do Caps, e os funcionários fazem o que
está ao seu alcance para driblar a falta de apoio das gestões municipal e estadual.
Maria Ruth Coimbra Ribeiro, belenense de 47 anos, terapeuta ocupacional em Tucuruí
desde a época em que a equipe de saúde mental trabalhava no posto de saúde da
Cohab, perdeu a conta de quantas vezes tirou dinheiro do bolso para suprir as
carências da casa. Ela já comprou bola para as partidas de futebol, brindes e outros
presentes para atividades como bingo ou dominó, canetas e lápis para as oficinas de
desenho e também para a sala da administração, além de itens pessoais para os
pacientes. Ruth, inclusive, cuida da alimentação e da medicação de alguns deles, e
nunca deixou de auxiliá-los em situações que não estavam inseridas em seu roteiro de
trabalho. Por exemplo, quando Antônia estava grávida de Gabriela, era Ruth quem a
acompanhava no exame pré-natal, já que a família da mulher, miserável e
desestruturada, não tinha como assumir este compromisso. No hospital, os
funcionários perguntavam a Ruth se ela era parente da gestante. “Apenas amiga”,
respondia. Não deixava de ser uma verdade. A terapeuta se envolveu tanto com as
histórias de vida dos pacientes do Caps que se relaciona com eles como pessoa, não
como servidora pública.
166
Sempre que pode, Ruth promove saídas com os pacientes, para os mais
variados espaços da cidade. Certa vez, organizou uma ida ao cinema de um shopping
de Tucuruí. Muitos pacientes, por serem de baixa renda, nunca haviam entrado no
local. Ruth conversou com a gerente do cinema, que se mostrou prontamente
receptiva. E foi uma festa:
-- Ela ficou encantada, nem pediu carteirinha. A gente bateu foto, dividiu pipoca
e refrigerante... Depois, fomos uma segunda vez, e eu sempre falando para eles que
eles podiam ir sozinhos se quisessem, era só mostrar a carteirinha.
-- Isto ainda é um problema para nós. Eles [os funcionários dos outros órgãos
da rede pública de saúde] mandam de volta para o Caps os pacientes daqui que vão
sozinhos [a esses outros órgãos] e que muitas vezes não são atendidos, porque
mostram a carteirinha do Caps. Às vezes, a gente tem que voltar com eles até onde
eles estavam para orientar o pessoal da rede básica, pois no Caps não temos
tratamento dentário ou clínico.
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A terapeuta ocupacional Ruth Coimba participa de uma atividade com música e dança no Caps de Tucuruí. Crédito:
Alice Arida
-- Falaram para mim que ele era grande, forte, estava alterado e fugindo. O
termo foi fugindo -- ressalta. -- Aí, eu fui ver o que era. Fui atrás dele com outra
paciente. Descobrimos que ele não estava fugindo. Ele era daquela comunidade, tinha
tirado a camisa e estava de shorts para se banhar. A estrada levava para o rio, e nós
fomos com ele. Ele, por ser grandão, fazia os gestos, e as pessoas, por não fazerem
parte dessa realidade, estranharam. Nós apenas acompanhamos, ele tomou banho e
ficamos conversando. Depois, outros pacientes se juntaram ao nosso grupinho.
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Como solução ao impasse, a kombi ganhou um grande adesivo colado em sua
traseira, com os dizeres provocativos “doido é tu”. Ruth diverte-se com a ideia:
-- Doido é tu que não participa, que não se integra, que não está perto. Porque
todos nós temos uma história para contar.
Ela mesma tem a dela: ainda em Belém, o pai abandonou a família quando ela
era pequena. A mãe, professora da rede federal, teve que se virar para criar os três
filhos. Hoje, o irmão de Ruth é médico e mora com a família em São Luís, no
Maranhão, enquanto a irmã trabalha como professora de História na rede municipal de
Tucuruí. A mãe não aguentou a saudade dos filhos e também se mudou para a cidade
interiorana. À sua maneira, Ruth soube lidar com esse problema familiar. E, à sua
maneira, anos mais tarde decidiu criar a sua própria família: adotou João Gabriel,
quando ele ainda era recém-nascido.
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Na época em que estava procurando um bebê para adotar, perguntaram para
Ruth se havia problema ser um menino moreno. A maioria das famílias queria uma
menina de pele clara.
Ruth não apenas aceitou João Gabriel,como desde sempre busca inseri-lo na
complexa teia de seu cotidiano ligado à saúde mental. O garoto, que, aos oito anos, já
está quase do tamanho da mãe, está acostumado a frequentar o Caps e fez amizade
com vários pacientes, sobretudo com Zé do Café. Ruth não esconde do filho nem a
realidade em que vive, nem a sua história. João Gabriel sabe que tem pais biológicos
e uma mãe que o cria. É ela quem lhe explica a situação das pessoas de seu entorno:
-- Quando eu cheguei aqui, o Riba não subia barrancos, era muito limitado. Há
uns dois anos, fomos dançar quadrilha num lugar alto. Tinha que subir uma escada
enorme, ele disse que não ia. Nós pegamos na mão dele e conseguimos fazer ele
170
subir. Hoje em dia, ele busca superar isso. Ele também não sabia jogar dominó, agora
já está jogando. E é uma festa, porque às vezes ele bate.
Ribamar, à esquerda, participa de uma rodada de bingo no Caps de Tucuruí. À direita, sua irmã Francisca posa para
foto no Caps. Crédito: Alice Arida
Ruth conhece bem a história de Ribamar. E conhece toda a sua família. Ele
tem duas irmãs. Uma delas, Francisca, de 46 anos, frequenta o Caps com ele, pois
também é oligofrênica -- isto é, tem um grau de retardo mental. Muitas vezes,
Francisca vai ao Caps acompanhada da filha de 14 anos, Raíssa. Ruth diz que é uma
família desestruturada. Quem busca atar esses nós quebrados é dona Raimunda, a
matriarca da casa. A terapeuta sugere que conversemos com a mulher, para adentrar
sua realidade. Foi assim que Dona Raimunda se tornou uma de nossas primeiras
entrevistadas.
É Francisca quem nos guia no caminho para a casa onde mora com a mãe, o
pai, o irmão, Ribamar, e a filha mais nova, Raíssa. A construção, bem-cuidada e feita
de alvenaria, fica no bairro de Jardim Paraíso, perto do Caps. Vamos a pé. Dona
Raimunda nos espera. Ela sabe que estamos indo entrevistá-la. Foi Francisca quem a
avisou.
Francisca é uma negra alta, bonita, corpulenta, de cabelo curto, voz fina e
risada aguda. É mãe de duas garotas, Raiana, 17 anos, e Raíssa, 14 anos. A mais
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velha engravidou e teve filho aos 14, de um homem trinta anos mais velho que ela. A
caçula, de vez em quando, frequenta o Caps junto da mãe, mas não apresenta
transtornos mentais. É esquentada e maliciosa. Tem pernas longas e uma cintura que
começa a delinear-se acima dos shorts apertados. Assim como a irmã, pegou gosto
pela rua desde cedo. Aos 10 anos, já sumia de casa para atravessar o rio e ir à praia
na margem direita do Tocantins, à procura de brigas, drogas e homens. Voltava depois
de uma semana, toda machucada. Ninguém sabia por onde havia andado. Quando
mudou de escola, já no primeiro dia de aula voltou com arranhões: havia brigado com
uma menina. Ela segue o exemplo da irmã mais velha, Raiana, que, apesar do filho
pequeno, recusou a vida de dona de casa. Brigou com o pai da criança, e só pensa
em voltar para a vida dos becos de Tucuruí.
Na casa delas, quem segura a bronca de dois filhos com retardo mental, duas
netas desajustadas e um marido alcoólatra é a matriarca, Raimunda Alves Bezerra, 70
anos. Assim que adentramos a casa, ela vem ao nosso encontro. É baixa, magra e
exibe uns olhos doces, serenos e tristes. A voz miúda e calma, versada num único
tom, explica esse olhar numa das primeiras frases que profere:
-- A minha barra é muito pesada. Porque sou eu que tenho mais uma
compreensão de entender eles. Quando a gente tem pessoas especiais na família da
gente… -- ela suspira, e continua: -- No início, o pai não queria aceitar os filhos como
eles são, e eu sempre fui quem segurei a barra toda a vida. Toda a vida segurei a
barra. Até hoje. Corro para tudo.
Depois desse desabafo, dona Raimunda conta que foi ela quem incluiu os
filhos em instituições públicas de assistência social, entre as quais o Caps. Ribamar foi
o primeiro a ir, em 1996, quando Geraldo ainda atendia no posto de saúde da Cohab.
Em 2001, foi a vez de Francisca começar a frequentar o Caps, já estabelecido no
bairro de Mangal, perto do cais e do mercado municipal. Para a mãe, foi um alívio.
-- Pela situação deles, se não tivesse o Caps seria muito difícil para mim.
Porque ficar com esse povo dentro de casa sem nenhuma atividade, não tem quem
aguente.
-- Sou igual jornalista. Quando tem um evento, eu vou lá e fico filmando. Pouco
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estou lá, mas sempre estou junto. O Caps, para mim, faz parte da minha vida, me
ajuda muito, porque meus filhos ficam lá, e o horário que eles ficam lá, eu estou
tranquila. Eu não fico todo dia lá, mas quando eu passo, falo com o pessoal, pergunto
se está tudo bem. Ligo. Porque eu sou para muita coisa. Eu que administro toda a
família.
-- Eles são perfeitos, mas eu digo assim, nas especialidades que eles têm.
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-- Na situação das pessoas deficientes ou especiais, poucas famílias levam a
sério. Para elas, essas pessoas não têm valor, não têm progresso, não têm futuro. E
não é assim. Eu lembro que o primeiro médico deles... Até hoje eu me lembro. É uma
coisa que até hoje me ajuda a superar o baixo astral quando eu penso de ter, né. Era
neurologista, e falou para mim um dia, dona Raimunda, não adianta eu passar
remédio para os seus filhos, porque a senhora vai comprar remédio caro, dar para
eles, mas eles nunca vão ser alguém na vida. E naquela hora me atingiu muito, lá
dentro do meu coração, mas eu não... Eu sou uma pessoa muito compreensiva, eu
fiquei quieta, não disse nada. Só escutei ele. E como um médico me falou daquela
maneira, eu não tinha como apreender ele. Ainda não tinha experiência de lutar, tinha
descoberto naqueles dias [a doença dos filhos]. Aí, voltei para casa. Quando foi um
dia, o diretor [da escola do ensino especial] me chamou e perguntou se tinha levado
meus filhos ao médico. Eu contei tudo. Ele me disse, olha, dona Raimunda, não se
preocupe, pois médico nenhum tem o direito de falar isso. De falar que meu filho não
vai ser ninguém, não vai ser uma pessoa melhor, não vai saber a base que ele sabe
hoje. Aí, ele me orientou direitinho, como lutar com meus filhos, como superar as
críticas, como superar preconceito. Quando alguém falar mal dos meus filhos, não me
deixar levar por eles. Responder na calma. E hoje meus filhos são além daquela
época.
Nos percalços de sua vida, dona Raimunda ora silenciava, ora respondia.
Como, por exemplo, quando uma vizinha perguntou se tinha filhos.
-- Estudam?
-- Estudam.
-- Onde?
-- Ah, já sei, são aqueles doidinhos que ficam ali na parada de ônibus,
esperando o ônibus chegar -- alfinetou a mulher.
-- Não, eles não são doidos. Eles têm dificuldade de aprender, mas doidos eles
não são.
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Em outras ocasiões, a matriarca nem precisou falar. Foi o caso de outra
vizinha, que não deixava o filho dela brincar com Francisca e Ribamar:
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eu concluí. Porque eu sou quase a memória desses meninos. Se eles adoecem,
precisa descobrir, sentir, que eles estão doentes. Porque eles não falam.
Apesar de tudo, dona Raimunda garante que não sofre pelos filhos. Ela se
preocupa por eles, mas sofrer, não. Sua cota de sofrimento está na morte acidental de
Gilberto, seu segundo filho, em 1985, quando ele tinha 20 anos, e nas duas netas,
filhas de Francisca. São elas um enigma que a matriarca não consegue resolver em
sua cabeça. Pois Vilani, sua filha mais velha, de 51 anos, lhe deu a neta Maeli, que
hoje tem 28 anos e mora em Altamira, onde estuda, trabalha e sabe fazer suas
amizades, segundo a avó.
-- Por que eu não sei criar essas duas, a Raiana e a Raíssa, se eu criei ela?
São muitas as perguntas sem resposta numa terra devastada pelo homem. No
meio do caos e da miséria, crescem seres resilientes. Dona Raimunda é um deles.
Sua capacidade diária de se reinventar sintetiza-se na sentença que leva dentro de si
como um talismã, e que profetiza como um presságio:
-- Não tem vitória sem luta. Tem que lutar para vencer.
-- O Caps é uma lição de vida, aprendi muito. Eu era um cara mais agitado,
mais nervoso, mais ignorante, e melhorei muito vindo para cá. Aprendi a ter mais
paciência, a compreender os outros, coisa que às vezes não dá tempo de a gente
parar para pensar. Aqui, como a gente vê muitas situações difíceis, a gente começa a
se autoanalisar e ver que realmente é complicado, temos que ser mais humanos.
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morava em São Paulo, atuava como fotógrafo. Mas decidiu ir morar em Tucuruí depois
de conseguir um emprego em uma firma atacadista de Uberlândia. Ficou por dez anos
na empresa, como vendedor na praça de Tucuruí e região. Em seguida, foi trabalhar
como gerente em uma rede de supermercados de Tucuruí. Foi quando ele sentiu
vontade de se estabilizar de outra forma. Prestou concurso para a prefeitura e, de um
total de 80 vagas para auxiliar administrativo, ficou em 41º lugar. Isso foi em 2006. E
seu Zé Luiz sentiu essa aprovação como uma grande vitória para ele. Seu primeiro
local de trabalho foi a Câmara dos Vereadores, para onde foi lotado em 2007. Em
2008, ano de eleições municipais, seu Zé Luiz resolveu participar da campanha de um
dos candidatos, um homem que acabou perdendo o pleito. O pessoal da Câmara não
aprovou o envolvimento dele com o candidato derrotado, que tinha uma rixa com o
prefeito eleito. Transferiram-no ao Caps, para trabalhar na administração do centro.
Foi um tipo de punição, mas teve o efeito contrário:
-- Foi a melhor coisa que eles fizeram na vida, porque eu adorei. Eu trabalho
aqui, porque gosto, senão já tinha pedido para ir para outro local.
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Abaixo: seu Zé Luiz conduz pacientes do Caps na kombi Doido é Tu para uma apresentação de festa junina
em uma escola municipal. Crédito: Alice Arida
Toda semana, ele faz algumas paradas no Regional. Para o hospital, vai
quando os pacientes estão em surto e precisam ser internados -- uma tarefa que exige
cautela. Em geral, ele sai do Caps com uma equipe -- um enfermeiro e uma técnica de
enfermagem -- em direção
à casa da pessoa. O grupo jamais faz uso da força. Buscam convencer na conversa –
um processo que pode durar horas, mas é bem-sucedido na maioria dos casos.
Quando a situação é mais grave, eles chamam o Corpo de Bombeiros. Estes
tampouco usam da força, mas seguem um protocolo. Antes de entrar na casa, por
exemplo, perguntam se o paciente está ou não com objetos cortantes. Só depois de
cumprir todo um roteiro estabelecido é que entram no imóvel para buscar a pessoa.
Mesmo assim, às vezes há falhas. Por causa delas, seu Zé Luiz já chegou a correr
risco de morte durante o transporte de um paciente:
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-- Da última vez que fomos com os bombeiros, havia dois casos na mesma
hora. O rapaz que fomos buscar havia sido internado no manicômio de Imperatriz, no
Maranhão. Como acabou o manicômio lá, a irmã trouxe para a mãe, e a mãe não
sabia nem como cuidar. Ele pegava era pedaço da perna dele e comia, arrancava os
cabelos e comia, e a mulher agoniada e com medo... A gente foi para lá. Chegamos lá,
conseguimos convencer, e os bombeiros, por segurança, amarraram ele e colocaram
na kombi. Aí a gente foi para a outra paciente. Ela tava toda suja, enlameada e tava
surtada, tinha quebrado o quarto todinho dela, derrubado geladeira, fogão, tava tudo
no chão... Os bombeiros conseguiram jogar uma água nela para tirar um pouco da
lama, colocaram ela na viatura e a gente foi. Quando chegamos ao Regional, eu
estava com o rapaz, e a viatura dos bombeiros, com a mulher. Quando abri a porta da
kombi, o cara tava soltinho. Se fosse perigoso demais, ele tinha me atacado. Eles
amarraram, mas ele se soltou dentro da kombi. Corri um risco.
-- Tem uns que, quando vou buscar em casa, eu fico vendo onde mora, a cama
onde vai dormir, o que vai jantar, ou será que vai jantar? Então, a gente começa a
analisar, a vida da gente é boa e às vezes a gente reclama, né? Tem gente que come
aqui ou lancha e vai para a rua, porque não tem onde dormir. Não tem casa. Eu
penso, poxa, a gente consegue pegar a pessoa, trazer, dar banho, botar uma roupa,
levar para o hospital, aí em quatro dias dá alta e vai para a rua de novo, não tem onde
ficar. Isso que é cruel. Me corta o coração. Como essa pessoa vai mudar?
179
Quando vai haver apresentação ou desfile por ocasião de uma data
comemorativa, eles já conhecem as barreiras a serem enfrentadas para solicitar as
roupas para o evento. Marília Mousinho, na época em que era coordenadora do Caps,
chegou a pagar a uma costureira pelos vestidos e camisetas que os pacientes usaram
em uma apresentação de quadrilha de festa junina. Ela recebeu o reembolso da
prefeitura depois de quase um ano.
Tendas no mercado municipal de Tucuruí, que fica perto do Caps e por onde transitam muitos pacientes da
casa de saúde. Crédito: Alice Arida
180
Eletronorte. Ela havia acabado de passar por um divórcio e foi buscar carinho e
conforto nos braços paternos. Terminou por encontrar, além desse afago, um trabalho
que a marcou para o resto da vida.
Em Tucuruí, ela foi apresentada a Geraldo por conta de sua área de atuação,
voltada a terapias alternativas. Nessa época, ainda não era graduada em Psicologia.
Tinha formação em Sociologia, mas trabalhava com algo bem distinto. Sua grande
marca, contudo, era que trabalhava por amor. E este traço Geraldo logo percebeu
nela.
Melanie passou a coordenar dois grupos que aconteciam pela manhã no Caps:
o grupo de musicoterapia e o de autoconhecimento. No início, havia muita resistência
dos pacientes para com ela. A psicóloga atribui este distanciamento ao fato de ela ser
“de fora”. Mesmo sendo forasteira, contudo, ela era determinada. E estava lá por
amor. Enfrentou a resistência com aceitação. Não dos outros em relação a ela, mas
dela em relação aos outros:
Deu certo. Se antes seus grupos reuniam no máximo cinco pessoas, em pouco
tempo Melanie abarcava trinta, quarenta participantes em suas atividades
terapêuticas. Caiu no gosto de todos os pacientes e seus familiares, graças a um
processo de aceitação que não foi fácil, como ela mesma conta:
181
do autocuidado, e foi tudo muito natural… Eu aprendi a amar aquelas pessoas, e fui
amada, então foi muito lindo.
Durante os anos em que permaneceu no Caps, Melanie viu seu trabalho ser
bastante valorizado por Geraldo. Porque ela era obstinada e, em certas ocasiões, foi o
braço direito do psiquiatra. Por isso, quando seu posto foi ameaçado, Geraldo brigou
por ela. Corria o ano de 2001, e uma nova gestão assumira a prefeitura de Tucuruí. O
Caps, que até então usufruía de apoio político, conheceu o descaso do governo local
empossado. E conheceu a falta de mantimentos, a falta de material, a falta de pessoal
-- o que, como consequência, levou ao declínio das atividades e dos grupos
terapêuticos. A equipe passou a tirar dinheiro do próprio bolso para comprar alimentos
para as refeições do dia, para comprar material, para dar o suporte que podiam aos
pacientes. Alguns funcionários não resistiram à politicagem e foram tirados de seus
cargos. Outros, como Melanie -- que era contratada, e não concursada --, optaram por
sair. Ela resolveu fazer as malas e mudou-se mais uma vez, desta feita para Foz do
Iguaçu, no Paraná, onde a filha mais velha e a mãe moravam. Os outros dois filhos a
acompanharam.
-- O que eu achava mais incrível era que 90% das pessoas da equipe se
importava com quem estava ali dentro, paciente ou familiar. Por isso eu digo, é um
trabalho que tem a ver com amor. Você pode ser um excelente profissional, mas, se
não tiver amor pela causa que você está defendendo, o resultado é outro. Eu penso
que tudo o que foi feito lá, é porque a maior parte da equipe tinha amor pela causa. E
eu acredito que o amor por uma causa, seja ela qual for, faz toda diferença.
182
Virando a esquina do mercado municipal, avista-se o Caps de Tucuruí. Crédito: Alice Arida
...
O Programa De Volta Para Casa foi criado em 2003 e, em 2015, abarcou 4.374
pessoas em 270 municípios, com um gasto de R$ 12,5 milhões entre janeiro e julho.
Nenhuma delas na região de Tucuruí, segundo me confirmou o Ministério da Saúde.
Outra iniciativa que não viu seus dias em Tucuruí foi o da cooperativa social
para geração de renda aos pacientes do Caps e seus familiares. Existe uma linha de
183
financiamento do Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério do Trabalho e
Emprego, para a criação de uma associação desse tipo. Mas ninguém em Tucuruí
batalhou o suficiente para que a cooperativa fosse uma realidade no município da
Saúde Mental Perambulante.
...
Esta barca funcionaria como uma aldeia, com várias ocas. Cada oca receberia
um tipo de terapia ou grupo terapêutico -- entre elas, a equoterapia, isto é, a terapia
com cavalos, um sonho que Geraldo quis levar também para o Caps de Tucuruí, sem
sucesso. Haveria uma farmácia viva na barca, ou aldeia -- plantas medicinais da
região utilizadas não só para a cura das pessoas, mas também para valorizar o saber
milenar e o sabor amazônico.
O médico conta que lutou, lutou, lutou, para ver este sonho virar realidade.
184
Bateu na porta de autoridades de todas as esferas -- municipal, estadual e federal --
com o projeto nas mãos. Foram anos de batalha.
Naquela tarde, é com amargura que Geraldo me anuncia que o Caps Fluvial,
talvez seu projeto mais audacioso -- e aquele que, segundo ele, mais respeitaria a
singularidade amazônica --, nunca saiu do papel.
185
11.
Geraldo Sales
186
-- Agora eu vou voar -- sentenciou Geraldo em voz alta.
187
À esquerda, Geraldo participa de uma reunião da PNH, em Brasília. À direita, o então ministro da Saúde, o
psiquiatra Humberto Costa (centro), discursa em Brasília sobre a PNH. Crédito das fotos: Arquivo pessoal
Jornal O Liberal, em sua edição de 20 de outubro de 2001, destaca atuação de Geraldo no PNHAH. Crédito: Arquivo
pessoal
188
A partir de 2003, com a mudança de governo, o programa virou política -- a
PNH, Política Nacional de Humanização, agora comandada por Humberto Costa,
então ministro da Saúde no primeiro governo Lula. Geraldo trabalharia ainda mais dois
anos como coordenador da região Norte da política que ficou conhecida como
Humaniza SUS. Em 2005, depois de muitas viagens, reuniões e dedicação, pediu para
sair:
-- Realmente, foi um desgaste muito grande. Teve uma hora que eu não
aguentei. E tinha uma coisa me esperando de volta no Pará, que era a saúde mental.
O psiquiatra havia passado cinco anos de sua vida afastado de seus filhos não
biológicos, como ele define o Caps de Tucuruí e a Ala Psicossocial do HRT. Voltou a
atender seus pacientes com a determinação de quem busca e encontra em seu
trabalho uma fonte inesgotável de coragem, sabedoria e vigor.
-- Não é, doutor, é que só deu para comprar duas passagens de ônibus com o
dinheiro da safra de arroz desse mês -- explicou o agricultor.
Como num lampejo, uma ideia passou pela mente do médico, que já estava
cansado de ver seus pacientes se deslocarem por conta própria, e muitas vezes sem
nenhum recurso, para conseguir uma consulta médica. Ele, então, resolveu anunciar
seus pensamentos em voz alta:
-- Pois o senhor não vai mais precisar vender arroz para pagar a passagem de
ônibus. A partir de hoje, eu vou aonde o senhor estiver.
189
As primeiras cidades para as quais se direcionou foram Goianésia do Pará e
Jacundá, a 90 e 160 quilômetros de Tucuruí, respectivamente. Um trajeto de uma hora
e meia de carro, feito todas as sextas-feiras e sábados pelo médico.
Desde que havia chegado a Tucuruí, Geraldo já realizava uma intensa troca
com esses municípios, que são próximos da cidade da hidrelétrica. Muitos moradores
e profissionais de saúde de Goianésia e de Jacundá iam a Tucuruí para vivenciar o dia
a dia do Caps. E Geraldo também deslocava-se pela estrada para prestar atendimento
nessas localidades. Os laços foram se estreitando e, em 2005, o psiquiatra foi peça
fundamental na criação e reformulação dos Caps desses municípios. Esta primeira
experiência abriu as portas para muitas outras que se seguiram. E Geraldo entendeu
que havia passado para outra etapa de seu trabalho: agora, ele realizava o que
chamava de “matriciamento comunitário” para criação de Caps e formação de equipes
de saúde mental em municípios do sul do Pará. O matriciamento comunitário -- termo
criado por ele -- era, em suma, apoio, orientação e atendimento por parte do médico
para os Caps e as equipes de saúde mental nessas cidades. Todas elas estão
situadas abaixo de Tucuruí: são Breu Branco, Jacundá, Goianésia do Pará,
Parauapebas, Canaã dos Carajás, Xinguara, Tucumã, Ourilândia do Norte, Rio Maria,
Redenção e Conceição do Araguaia.
Mas o termo “leseira” não foi escolhido por ele de forma aleatória. Ele foi
emprestado. Geraldo inspirou-se no escritor amazonense Márcio Souza, que cunhou
no imaginário amazônico a expressão “leseira baré”. Nas palavras deste autor
manauara, a palavra leseira ganha um significado bem diferente do que estamos
acostumados:
190
“É possível dizer que a população amazônica encontrou um estilo para resistir,
uma maneira de enfrentar a voracidade de tantos projetos e até mesmo para
sobreviver às elites regionais. Esse estilo, que é uma demonstração de superioridade
cultural, pode ser chamado de leseira.
Nos dicionários, ser leso quer dizer ser tolo, molenga e preguiçoso. Ainda não
há registro da nova acepção do termo, que é também um conceito filosófico-
existencial. Mas já há leseiras plenamente identificadas, como a leseira baré, que é a
leseira amazonense, mas especificamente de Manaus, daí o baré. Ou a leseira
marajoara, que é essencialmente paraense. No futuro muitas outras leseiras serão
identificadas, demonstrando a sofisticação de seu processo inventivo.
[...] a leseira é uma prática existencial poderosa e foi a única arma que se
mostrou eficaz para impedir que muitos projetos da ditadura militar fossem totalmente
implantados, que ainda vai livrar a região de tanta solidariedade não solicitada, pois há
uma exata medida de leseira em todos os escalões, em todas as classes sociais, em
todas as almas.” (Souza, 2009, p. 230-231)
191
Geraldo e eu, rumo ao sul do Pará. Crédito: Alice Arida
Descemos de carro o mapa do Brasil pela PA-150, que vai até Marabá, a
cidade mais importante da região. Passamos por Goianésia do Pará e Jacundá, onde
Geraldo não mais presta matriciamento comunitário. Há mais de sete anos ele não
frequenta o Caps de Jacundá. Por isso, durante nosso percurso, resolvemos parar no
município para conhecer -- ou reconhecer -- o Caps. Estamos Alice, Geraldo e eu. O
psiquiatra entra no centro apresentando-se e dizendo que, há muitos anos, realizou
matriciamento comunitário ali. Pergunta por algumas pessoas que atuaram com ele
naquela época, mas nenhum dos funcionários presentes sabe ao certo onde elas
estão.
192
nossa visita, não vi pacientes circulando pelo órgão. Era uma sexta-feira -- o que pode
explicar esta ausência, pois, na maioria dos Caps onde Geraldo prestou matriciamento
comunitário, as sextas-feiras eram dia de visita domiciliar ou reunião entre a equipe.
Retornamos para o carro e seguimos até Marabá por uma estrada considerada
regular pela Confederação Nacional do Transporte (CNT). Fazemos uma pequena
parada na cidade para almoçar e seguimos por outra estrada, a BR-155, até Xinguara,
500 quilômetros ao sul de Tucuruí. O trajeto de 250 quilômetros entre Marabá e
Xinguara, um trajeto que poderia ser feito em duas horas e meia, é feito, normalmente,
em cinco horas ou mais. Sob todos os aspectos, a BR-155 é considerada péssima
pela CNT. Há trechos de terra e trechos em que os buracos, enormes, tomam toda a
rodovia. Não há sinalização. E, se a intenção do viajante é conhecer a floresta
fechada, ficará frustrado. Estamos na região mais desmatada da Amazônia, o sudeste
do Pará. Um desmatamento que começou no século passado, durante o ciclo da
castanha e do diamante, e atingiu seu auge neste século, com a abertura de pastos
para fazendas de gado. Passamos por várias ao longo de nosso tortuoso percurso
pela BR-155 -- algumas, inclusive, bem conhecidas, pertencentes a políticos.
Paisagem do sul do Pará, a região mais desmatada da Amazônia, onde abundam enormes fazendas de gado. Crédito:
Alice Arida
193
desapropriação das terras da fazenda Macaxeira, conhecido castanhal nos anos 1950,
1960 e 1970. Até hoje, nenhum policial ou jagunço foi indiciado pela ação. E, até hoje,
os latifúndios -- antes grandes castanhais, hoje enormes fazendas de gado -- ocupam
a maior parte da região.
194
É de se imaginar que a maior parte dos moradores da cidade -- e da região --
não seja paraense. São fazendeiros do sul e do centro-oeste do país que povoam
essas clareiras. Gente de fora que foi para o sul do Pará atraída por uma imensidão de
terra a ocupar, nem sempre de forma legal, mas sempre a um custo muito mais baixo
do que conseguiriam em suas terras natais.
195
-- Pô, doutor, o senhor deixou a gente sem trabalho.
Mas Geraldo não estava para queixas, nem provocações. Seguiu em frente:
eram muitas as mudanças a serem implementadas. Do Caps de Xinguara, o psiquiatra
reformulou todo o funcionamento. Conseguiu reunir uma equipe multidisciplinar de
saúde mental interessada e ensinou a todos a técnica do acolhimento. O acolhimento
é uma atividade que acontece em roda e geralmente é a primeira do Caps. Nela, todos
os funcionários se reúnem com todos os pacientes em um grande círculo. Todos
batem palmas, dão boas-vindas, cantam as músicas da terapia em grupo. O
funcionário que está conduzindo o acolhimento diz algumas palavras -- de amor, de
amparo, de bem-estar. Depois de uma hora, a roda se desfaz e os pacientes são
encaminhados para consultas, oficinas ou grupos terapêuticos.
196
O Caps de Xinguara. Crédito: Alice Arida
...
197
Ela veio de longe, muito longe. Nasceu no sul do país, mas seu coração
acabou por pertencer ao norte -- ao sol do norte. Dona Cida é de Campo Mourão, no
Paraná, mas mora desde 1981 em Xinguara. E não pensa mais em empreender o
caminho inverso:
-- Fabiana, eu vou te falar uma coisa com sinceridade -- começa ela, expondo
um de seus traços marcantes, o de chamar as pessoas pelo nome. -- Gosto muito da
minha terra, é claro, não gosto nem que comente mal do meu estado do Paraná, mas
se fosse para eu ir embora de Xinguara... Eu amo Xinguara, gosto muito daqui, já
moro aqui há trinta e quatro anos, mas, se um dia fosse para eu ir embora de
Xinguara, eu acho que eu não voltaria para o sul. Só por causa do frio -- ela ri. -- Que
eu acho que eu não acostumo mais com o clima frio. Eu acho que eu iria era mais
para o norte brasileiro.
-- De Guaraí para Xinguara era só terra. Tinha dia de eles rodarem seis
quilômetros das seis da manhã até as seis da tarde. Era atoleiro em cima de atoleiro.
Então, eles levaram um período de treze dias para vir de Guaraí a Xinguara, um total
de trezentos e sessenta quilômetros. Aí, quando estavam se aproximando de
Xinguara, a minha mãe dizia que meu pai falava, olha Xinguara, estamos chegando
em Xinguara. Eram aquelas luzezinhas de vela, lamparina de óleo diesel. Aí, quando
minha mãe chegou na entrada aqui, que era o entroncamento do Xingu que se
chamava na época, existia só um posto de gasolina, que era o posto Comaxim. Eles
armaram rede, porque chegaram à noite.
Por seis meses, a mãe de dona Cida dormiu em uma barraca, dessas de
camping, enquanto o marido construía a casa de madeira onde passariam o resto de
suas vidas. No ano seguinte, os dois receberam a filha, então com 22 anos e já viúva -
- dona Cida perdeu o marido em 1981, em um acidente de moto. Foi para o sul do
198
Pará com o filho de 3 anos e o irmão, deficiente visual. Lá, passaram treze anos
tranquilos, até que ela apresentou sua primeira crise. E, então, os tempos difíceis
começaram.
199
botando fogo. Sabe, cheguei a botar fogo até em colchão. Então, me deu duas crises
bem pesadas. Agora, a última crise que me deu, ela foi mais passiva. Eu vinha no
Caps, ficava ansiosa, andando para lá e para cá, as meninas me acalmavam,
entravam em contato pelo celular com o doutor Geraldo, o doutor Geraldo mudava o
esquema da medicação. Aí eu achava que não resolvia, porque eu queria que fizesse
efeito o remédio na hora, sabe? Mas agora, graças a Deus, eu estou me sentindo
bem.
Foi nesta crise, a terceira e última de dona Cida, que ela passou a ter
acompanhamento com Geraldo no Caps de Xinguara. Na primeira, em 1994, ela foi se
tratar em Belém, pois tinha -- e tem, até hoje -- plano de saúde. Comprava os caros
medicamentos que tratam este tipo de doença com desconto, pelo plano. Agendava
consultas com psiquiatra particular. Mesmo assim, depois de alguns anos, optou pelo
Caps e pelo tratamento na rede pública de saúde de seu município. E não pensa mais
em largar. Afeiçoou-se:
200
Caps, dos funcionários, dos médicos que atendem aqui, então eu já sinto falta do
carinho que a gente tem aqui também. Eu já me apeguei nos funcionários, pode trocar
de funcionário ou não, mas eu me apeguei com amor mesmo, por causa do
acolhimento amoroso que a gente encontra nesse centro de saúde.
Quando dona Cida conheceu Geraldo, corria o ano de 2011 e ela estava
atravessando seu terceiro surto. Não teve mais crises desde então. Mas este
autocontrole não veio por mágica, nem milagre: é consequência de um grande
esforço, de seu envolvimento com as terapias e o dia a dia do Caps e também de uma
forte consciência em relação aos remédios que tem de tomar, como ela mesma
assegura.
-- Eu não vou mais na conversa dos outros, Fabiana. Para de tomar essa
medicação que você vai se viciar nela, ou você vai ficar dependente dela, ou Jesus te
cura. Eu não caio mais nessa conversa. Eu tenho que ficar ciente que eu não posso
ficar sem medicação. E eu tenho que obedecer o meu médico. Eu tenho que ficar
ciente disso. Deus cura, Jesus já curou pessoas com depressão, com transtorno
também. Mas eu já me conscientizei que eu tenho que tomar remédio para o resto da
minha vida.
Para qualquer pessoa, esta é uma condição difícil de aceitar. Quem aceita,
porém, consegue administrar melhor a doença. É o que percebi em minhas conversas
com pacientes do Caps no sul do Pará. E é o que me confirmou dona Cida:
201
consigo fazer minhas tarefas de casa. Eu já sei que falta sal na minha cozinha, eu já
sei que falta açúcar, eu já sei que falta café, eu já sei que falta meu sabonete. Então,
eu já sei. Já sei que sou eu que tenho que me virar para ir atrás da minha receita para
eu comprar. Primeiro, era tudo meu filho, a carga era toda em cima do meu filho,
entendeu? Pois é, já estou dando conta de cuidar da minha declaração de Imposto de
Renda, porque através do próprio transtorno eu deixei de declarar, o Leão me pegou.
Reapropriar-se das tarefas do cotidiano foi uma das maiores vitórias de dona
Cida, e ela dá a devida importância a isso. Por outro lado, à medida que a medicação
a ajudava a ficar boa, ela ia recordando os maus momentos pelos quais passou -- as
fortes crises e os episódios de preconceito, numerosos entre as pessoas portadoras
de transtorno mental.
Todo este entendimento melhorou até as relações familiares de dona Cida. Ela
conta que aprendeu a delimitar o seu espaço e o espaço do filho, da nora, dos dois
netos e do irmão, que há alguns anos começou a fazer tratamento de hemodiálise em
Redenção, situada 100 quilômetros ao sul de Xinguara. A família acostumou a se
deslocar com certa regularidade ao município, que é maior que Xinguara e oferece
mais tratamentos médicos e medicamentos.
202
Em Xinguara, a oferta nesta área é restrita, e a população sofre com esta
carência. Mas também se habituou: como em tudo no Pará, como em tudo no norte do
Brasil, as pessoas estão habituadas a permanecer invisíveis para o restante do país.
E, à sua forma, resistem.
Dona Cida, porém, não deixa passar em branco. É por isso que, quando
pergunto o que ela gostaria que melhorasse, sua resposta é imediata:
Olho para dona Cida e fico sem palavras. A pergunta, retórica, ressoa. E fica
ressoando. Até hoje está ressoando. Ninguém ainda a respondeu.
203
12.
A mulher nua
A nua na rua,
A louca na tua,
Tirando a roupa do outro, humano como eu.
Na rua da doida,
A louca na tua,
Invisível na rua.
Tetas frias e lambuzadas,
Concerto para fotografia,
Solo de clarinetas.
A louca és tu,
Acorrentada em mim,
Olhares proibidos na rua,
Revelando o corpo esquizofrênico,
Entregue ao pudor.
A doida sumiu,
No lixo, trocado por bônus,
Sorrisos irônicos,
Antes do entardecer.
Gersa
204
O maranhense Givaldo Ferreira foi, talvez, quem me deu o depoimento mais
contundente sobre o que é ser um esquizofrênico. Encontrei-o pela primeira vez no
Caps de Xinguara, em uma manhã de sol que começava a esquentar. Ele ouvia
interessado a minha conversa com Maria Aparecida Slompo Rodrigues, na entrada do
Caps, onde há uma grande varanda coberta e onde são realizadas as rodas de
acolhimento e de terapia comunitária. Quando terminei de entrevistá-la, ele quis contar
para mim a sua experiência como portador de transtorno mental. Suas palavras foram
tão precisas e preciosas que, ao reler a entrevista, meses depois, não encontrei meios
de editá-la. Decidi colocá-la aqui por inteiro.
Meu nome é Givaldo, tenho 35 anos (em 2013, quando a entrevista foi feita), passei
por uma vida cruel um tempo passado, já melhorei, então vou contar um pouco da
minha história. Eu era um cara normal, tive uma infância boa, brinquei muito, uma
juventude, vinte anos, dezoito anos, muito bom também, tive uma mulher, aí passei
205
um ano e dois meses com ela, nós teve um filho, aí toquei eu mais ela, aí eu cheguei a
separar dessa mulher minha, aí depois que eu separei dela, começou o transtorno
mental na minha cabeça, sabe. Comecei a ficar doente, se passava muita coisa sobre
mim, sabe, tipo coisas, eu ouvia muitas vozes. Às vezes, eu estava deitado e eu ouvia
aquelas vozes, falavam comigo alto mesmo, diziam que iam me proteger, que eu era
uma pessoa forte, que ia ter condição, que não era para eu me preocupar. E aquilo, eu
acordado, ficava ouvindo aquilo, ficava meditando, né. Ficava acordado, assim, mas
aquela voz alta, muito pesada, tipo uma pessoa falava para mim, mas eu olhava para
um lado, olhava para o outro e não via ninguém falando comigo, aí eu falava, com o
meu sentimento, falava com aquela mesma voz, eu falava ‘mas por que eu estou com
esse pensamento’, e aquela voz dizia para mim ‘não, não se preocupa não, estou
contigo, estou para te ajudar’. Mas ela não me falava o nome, não, falava que ia me
ajudar. Aquilo foi se alterando, foi se alterando na minha cabeça, aí eu comecei a ter
pânico das pessoas, comecei a ter medo das pessoas, só ia trabalhar num lugar. As
vozes atrapalham muito, sabe. Eu ia trabalhar... não tenho profissão ainda, não... eu
trabalho em serviços gerais. Aí eu ia trabalhar com as pessoas, eu tinha medo das
pessoas. Aí eu ficava com aquele medo, às vezes a pessoa falava alguma coisa de
mim eu achava que aquela pessoa ia me matar, me enforcar, eu via aquilo na minha
cabeça, sabe, aquela pessoa, tinha tipo uma visão, sabe, eu via aquela pessoa mais
aquele outro me pegava, diz que me algemava assim, me amarrava para trás, me
chicoteava, me batia, botava eu para carregar uma cruz nas costas, sempre ouvia
isso. Aí eu ficava com pânico, aí reagia contra essas pessoas, sabe, para mode a
imaginação reagia contra as pessoas. Aí eu tinha vários constrornos que eles falam,
eu ficava problemático, aí um tempo eu soube da minha cabeça que a minha família
tinha ganhado na Telesena, tinha ganhado... a cabeça falava para mim, a imaginação,
né. Que eles tinham ganhado na Telesena e estavam escondendo o dinheiro de mim.
Aí eu ficava com raiva da minha irmã, discutia com a minha irmã, aí eu ficava em casa
sozinho, que eu morava sozinho em uma casa. Aí aquela voz não deixava eu dormir à
noite, dizia que minha mãe ia voltar, você vê como são as coisas, dizia que minha mãe
ia voltar no corpo de outra pessoa para morar comigo. Para ser tipo uma esposa para
mim, sabe. Era para mim esperar ela. E eu ouvia essas coisas tudo acordado, não era
dormindo, não, era acordado. Aí eu comecei a ver essas loucuras, eu ficava andando
nos lugares, caçando trabalho com as borocas nas costas, ninguém me dava trabalho.
Eu saía correndo com medo das pessoas, dos lugares, das cidades por onde eu
passava. Eu saía com medo das pessoas, achando que as pessoas queriam me pegar
e me pregar numa cruz, que eu tinha muito essa ilusão, sabe. Das pessoas me
pregando numa cruz. Mas eu nunca tinha na realidade se aquilo era uma certeza,
206
aquilo que me atormentava muito, que me perturbava muito. Aí eu já estava
começando, depois que eu cheguei das outras cidades, comecei a chegar aqui em
casa, aqui em Xinguara, eu morava em casa sozinho, aí eu começava a guardar
facão, foice, vários tipos de ferramentas que diz que era para me proteger das
pessoas, que as pessoas iam me atacar e era para mim reagir contra as pessoas. Aí
uma vez eu queria matar um cara, eu que ficava com essas imaginações, né, aí eu
reagia contra as pessoas, sem motivo nenhum, né. Mas não cheguei a matar, não,
cheguei a ferir uma pessoa lá, por causa dessas imaginações minhas, dessa doença.
Outra vez eu tentei matar um cara, corri atrás do cara com uma foice, para matar o
cara com uma foice. Eu tava deitado em casa, ele chegou para chamar o sobrinho
dele que tava dentro de casa, aí eu dizia que aquele veio chamar o sobrinho dele para
me pegar, para me amarrar e sair me arrastando numa moto. Aquela cabeça, sempre
aquele movimento mental, pesava muito. Aí o cara chegou, chamou o sobrinho dele
dentro de casa, aí eu peguei uma foice e saí atrás desse cara, falei ‘eu vou te matar’, o
cara, era conhecido meu, falou ‘rapaz, que é isso’, eu falei ‘eu vou te matar’, o cara
falou ‘rapaz, tu não vai me matar não, você tava brincando’, aí eu falei ‘eu vou te matar
mesmo’, aí eu chamei a foice com toda força, aí ele desviou, a foice passou assim e
eu saí correndo atrás desse coitado, saiu doido, caiu e levantava, e eu correndo atrás
dele, mas não consegui reagir, não consegui matar ele, sabe. Mode essa doença
minha, aí depois eu fui para um hospital de custódia. Mas, sobre isso, passou muitas
coisas sobre mim, isso eu vivi agora que eu passei quatro anos no hospital de
custódia, quatro anos e cinco meses, tomando remédio, sem drogas, tomava bebida
alcoólica de vez em quando, e aquilo virava uma bagunça, e eu vou contar o seguinte,
esse tipo de doença é uma coisa muito engraçada, é tipo um espírito sabe. Tipo um
encosto. Tipo um encosto ruim que encosta na pessoa e a pessoa fica dominada. Não
tem controle mental nem no corpo também. A pessoa faz vários tipos de coisa. E eu
sofri muito mesmo, passei fome, minha família me abandonou, eu ficava doente noite
e dia, não dormia, passava a noite acordado, ia para cemitério no meio da noite,
aquela voz mandava eu levantar, sentia aquela voz dizendo ‘você tem que ir no
cemitério acender umas velas, que é para te proteger também’. Eu levantava à uma
hora da manhã, o cemitério longe de casa, arrumava umas velas e saía com isqueiro,
ia no cemitério, acendia vela lá, pulava o muro, ficava acendendo vela, me deitava em
cima das catatumbas das pessoas, a cabeça mandava eu deitar, aquelas vozes, né,
dizendo que aquilo ia me proteger, que aquilo era a coisa certa para mim, que eu tinha
que fazer aquilo, era acender vela para aquelas pessoas, e era muita coisa, vinha
mulher pelada na mente, diz que eu ia ficar em casa que mulher vinha transar comigo,
fazia assim, tipo, sentia aquelas ilusões, que me deixou na desgraça, mas graças a
207
deus se acabou, né. Sofri muito no hospital de custódia, quatro anos e cinco meses,
briga, confusão, lá é ruim demais, lá em Belém. É muito ruim, muito triste. É pessoas
abandonadas, doente mental que não melhora mais parece, toma remédio, os
remédios lá é tudo contrário, eles dão remédio, depois dão outros, não tem psiquiatra,
só tem psicólogo, e psicólogo não sabe passar remédio, aí vira bagunça, lá é um
sofrimento, dá muita briga, morte. O tempo que eu estive lá morreram cinco pessoas,
cinco caras que eu conhecia. Lá é gente misturada, é bandido, cara que rouba vai
para lá, cara doido, doente mental, gente que matou os pais. Agora eu ouvi a senhora
falando, esses problemas de se matar eu nunca tive também não, de querer me matar.
Mas eu tive imaginação de fazer mal para os outros, querer furar os outros, querer
matar os outros, é uma coisa muito triste. Nunca pude entender como aquilo se
tornava na minha cabeça.
Tipo, outra pessoa fora, justamente. Eu ficava quieto, deitado numa rede, e aquela voz
que chegava na minha cabeça, e meu cérebro, eu não sei se aquilo se tornava
imaginação, porque a gente pensa, né, mas eu não sei, porque aquilo era muito alto,
era muito pesado, sabe, aquele vozeirão, parece que tinha uma pessoa, mas eu
olhava para um lado, pro outro, aí chegava aquela voz, ‘não, não carece olhar pro lado
que eu to junto contigo, eu moro contigo, eu to dentro de ti, não carece você olhar pros
lados, para parede, não vai ter ninguém, eu to dentro de ti, eu sou você’. Aí eu falava,
‘mas o que você quer comigo?’. Aí aquela mente dizia, ‘você vai conseguir as suas
coisas, com mais tempo você... quando você me dominar, você vai conseguir as
coisas’. É tipo uma coisa que eu tinha que ter controle sobre aquilo, e eu não
conseguia ter. Dizia que eu ia ser prefeito da cidade aqui, aí eu chegava na prefeitura,
sentava na cadeira lá, ficava olhando para foto do Lula, aquelas coisas. A imaginação
muito louca... aí eu ficava com aquelas ilusões, aquela voz na cabeça... quase que
isso não acaba, mas Deus ajudou que acabou. Sofri muito, mas acabou.
208
Rapaz, essa voz, o controle dela era assim.. por tempo. Ela vinha, perturbava, e da
vez quando eu ficava... aquela imaginação que vinha refletia outra imaginação. Tinha
vez que eu conseguia debater ela assim, para ela maneirar mais, para não ficar
perturbando muito a minha cabeça, ela já aquietava mais, ela já maneirava mais, mas
se eu ficasse dando asa para ela, como diz o ditado, se eu ficasse com a cabeça
quieta, aquilo era muitas horas, à noite eu não dormia, tinha que ficar sempre falando
alguma coisa com ela, não sei como eu conseguia aquilo, eu ouvia e falava ao mesmo
tempo no pensamento. É cruel, o sofrimento é muito cruel.
Eu sentia frieza no corpo. Esmorecia o corpo, sentia aquela frieza, e com aquela
frieza, com aquela fraqueza do meu corpo, ela começava a se alterar mais, crescer
mais aquelas conversas, aquele bate-papo mental.
Não tinha medo dela. Isso começou em 2001 e terminou em 2008, então começou aos
poucos, eu passei mais de cinco anos com esse problema, junto com a família, depois
a família me abandonou, depois eu fui para uma clínica, outra clínica em Araguaína.
Mas eu menti, passei dois meses lá e disse que estava bom, aí me tiraram. Aí eu saí e
fiquei ruim. Muito em depressão, muito ruim. Quando eu saí dessa clínica eu fiquei
mais biruta ainda. Mas a voz tinha vez que eu dominava ela, tipo de coisa que nem eu
soube entender que diacho era aquilo. Eu era um rapaz normal, sempre trabalhei,
sempre gostei de ter minhas coisinhas, tive minha esposa, tudo. Quando eu larguei
essa esposa minha, parece que foi, assim, um azar, sabe. Quando eu larguei ela, com
cinco dias, dez dias, eu já tava começando a variar. Aí os outros diziam que era
macumba. Eu não sei se foi macumba que ela fez para mim, mas isso me atrapalhou
muito minha vida, e foi aumentando, aumentando, até chegou esse ponto que eu
cheguei quase a matar o cara. Aí fui preso, por tentativa de homicídio. Fui para Belém.
Já estava sendo alta periculosidade para a população. Um cara muito agressivo,
pensando maldade, querendo fazer as coisas ruins. Mas não era que eu queria, aquilo
me obrigava a fazer aquilo, sabe. Ficava pensando que as pessoas iam me fazer o
209
mal, que elas iam me amarrar numa cruz, principalmente essas besteiras. Sempre tive
isso, que as pessoas iam me pregar numa cruz, igualmente Jesus, depois iam botar
uns pedaços de pau e o fogo beirando a cruz onde eu tava amarrado, tocava fogo, me
queimava, me sapecava e eu amarrado na cruz, aquela coisa. Aí eu ficava muito
assombrado com aquilo. Aí mode aquilo eu ficava com medo das pessoas. Aí por eu
ter medo das pessoas, como eu não queria reação, fazer alguma coisa, eu saía fora,
saía da cidade. Ficava todo sem controle. Sofri demais da conta. Pro jeito que eu to
hoje, to igualmente eu era antes. Foi assim, primeiro bom, segundo ruim, terceiro eu
estou bom. O segundo ponto da minha vida foi muito ruim, o primeiro foi bom, foi
minha infância, trabalhei muito nos meus 18 e 19 anos.
Aqui mesmo, em Xinguara. Sou maranhense, mas me criei aqui. Sou de Barra do
Corda. Minha família nunca teve esse problema. Mas eu já tenho outro problema, sou
epiléptico também. Isso foi com mais ou menos oito anos de idade. Mas agora tem um
ano que não sofro de epilepsia mais.
Para falar a verdade, depois do sofrimento, quando eu fui para Belém. Sofri demais.
Quando eu cheguei lá a vice-diretora era uma psiquiatra, uma mulher muito ruim,
muito má. E lá é o seguinte, tratamento com psiquiatra é outro nome lá, sei que é um
hospital de custódia. Na frente, é um hospital na aparência, mas embaixo é grade,
castigos e funcionários... Quando eu fui para lá, eu sofri demais, eu fui meio
adoentado, aí era muita injeção, os caras me algemavam nas grades, me
espancavam, me judiavam, me faziam vários tipos de coisa. Passava fome, eu não
comia mais, comida muito ruim, um frango velho e cru muito desajeitado, ruim demais
da conta. E por aquele sofrimento, aqueles remédios que eles me davam não dava
certo comigo, ficava pior, me entortava todo, ficava tremendo, aí passava para outro
remédio, passava para outro, e aquele sofrimento, e aqueles funcionários me
agredindo, e aquele alvoroço de vida sofrida, aí com aquilo foi sumindo. Foi sumindo
da mente… Aí arrumaram remédio que deu certo para mim, esse que eu to tomando
210
agora deu certo para o meu corpo. Não fico mais pensativo... Agora eu fiquei normal.
Mas eu sofri demais.
Eu saí, porque.. foi muito cruel para mim sair. Nesses quatro anos e cinco meses eu
fiz duas perícias para avaliar se eu tava um cara normal. Na primeira, eu peguei
medida de segurança, porque me avaliaram e disseram que eu fiz por querer matar o
cara, porque eu era doente mental e não podia sair para a sociedade. Então, eu
peguei mais um ano de medida de segurança. Na outra vez, com tanto tempo já, Deus
abençoou que eu saí. Eu contei tudo certinho, falei da minha vida, ela fazia as
perguntas, eu respondia.
Aquela vice-diretora saiu, entrou outra. Essa nova doutora era uma pessoa que não
ligava pros internos, os internos sofriam muito. Não tinha pasta para escovar os
dentes, sabão para tomar banho, a cela muito fedida, colchão podre, colchão fedendo
demais, cela muito suja, cara peregrinando, roupa rasgada, fedendo. A coisa lá era
muito cruel, sabe. Se não tiver uma administração de uma pessoa boa, o interno sofre
demais. Sofre demais da conta.
Lá tinha choque?
211
Choque eles não davam, mas porrada eles davam. A covardia do funcionário. Tanto
ele espancava aquele mais fraco, como ele colocava aquele outro para brigar com
aquele outro. O emprego dele era para observar o que o interno precisa na hora do
perrengue, da briga para ele apartar. Eu tinha raiva por causa disso, eles não faziam o
que você pedia. Um favor eles não faziam. Então, era o seguinte, na hora de um
perrengue, de uma briga, eles eram os primeiros a te espancar. Eles faziam você
brigar com um cara. Você dizia ‘ó funcionário, lá naquele bloco que eu estou, tá
ocorrendo isso e isso, vai dar briga’. Aí o que ele dizia, ‘mas mete o pau nele, quebra
um pau da cama, arrebenta o cara, pega um cabo de vassoura, mete o pau nele,
quebra o cara’. Ele incentivava a pessoa a fazer as coisas. Aí quando você tava
naquilo, ele chegava e espancava. Quando você tava brigando, você chamava a
direção, você ia ser espancado por ele, ele te dava empurrão, dava tapa no pé da
cabeça, te algemava na grade, e deixava duas horas, três horas. Pelado, só de cueca,
muitas vezes era nu. Nuzinho. Deixava o cara três dias, dois dias, só de cueca, num
lugar lá que era um castigo. Os castigos, você vê, dava até dó. Uns quadradinhos, mal
o cara deita, estica o pé. Uns quadradinhos bem pequenininhos. A comida já vem uma
miséria, aí o quadradinho que eles dão lá que é o castigo, o cara passa dez, quinze
dias num castigo daquele. Você imagina só? Para você urinar você tem que gritar.
Chama, chama, chama, ele dá o quê? Uma garrafa. Para o cara mijar dentro da
garrafa. Você mija dentro daquela garrafa, e enche aquela garrafa, aí você vai pedir
outra, cadê outra? Você tem que mijar pro lado de fora, pro lado do corredor. E
quando eles veem isso, eles acham ruim. Aí eles vão dar tapa no cara, porque o cara
mijou do lado de fora, e por que não pediu para levarem ele ao banheiro, mas eles não
levam. Só é castigo, porrada, e tudo mais. O cara tem precisão, tá afim de dar uma
barrigada, fica horas e horas batendo na grade. Aí lá vem o infeliz, lá vem logo de
dois, três, ‘que que é?’, ‘quero ir no banheiro’, ‘demora um pouquinho aí, caralho’, ‘pô,
funcionário, estou apertado e tal’, aí manda o cara esperar e ele sai. Aí ele sai e deixa
o cara se cagando lá. Aí muitas vezes o cara arruma um saco, caga dentro do saco e
joga para lá. Aí não tá nem ligando se vai apanhar. Maior seboseira, maior judiação lá.
Muito castigo.
Quando você chega lá... igualmente vai várias pessoas, entrevista, ‘nossa, o pessoal
diz que aqui é ruim’, olha assim né, ‘tratamento psiquiátrico aqui é muito bom’, e vai lá
naquela cozinhona lá, ‘nossa, aqui é muito bom’, agora vai descer o castigo dos
presos lá, tava 205 presos lá. Duzentos e cinco internos, preso não. Imagina só,
duzentos e cindo internos para um lugarzinho daquele que é pequeno. É muito interno
demais, moça.
212
E ninguém ligava?
O pessoal... vamos supor, aqui está o corredor e aqui o bloco. Bloco 1 aqui, 2 aqui, 3,
4... Aí eles passavam reto só. Ali na frente estava a grade, fechada, os coitados dos
internos estavam lá. Não diziam nada, porque tinham medo. Ficavam olhando,
aparecia gente de paletó, era mulher bem arrumada, eles iam dizer o quê? Não falava
nada, ficava só olhando. Só abanava a mão, ia lá no fim do corredor e voltava. Pronto,
acabou. Para eles já estava bom, aí ia lá para a outra parte, onde fica a diretora. Lá
que é bom, o céu e as estrelas. Lá é outra vida, né? Ar condicionado, comidinha
reservada, diferente. Aí eles achavam que nós estávamos passando bem. Mas nós
não passava bem lá, passava muito mal. De quatro anos e cinco meses que eu passei
lá... cara lá dorme no chão, não tem colchão. No chão, bruto assim. Parente
abandonou, sabe, não tem roupa, a roupa toda rasgada, caindo, aquela coisa, chama
de moafento, né. Aí chama o cara de moafento, não toma banho, também não tem
banho, não tem pasta, não tem sabão, não tem nada. Aquela cela fica fedida demais,
rastro de chinelo, fica uma seboseira... a coisa lá é feia. Aí com esse castigo tão
imenso, esse castigo que Deus me deu tão grande, peço até perdão, Deus me deu um
castigo tão grande, que eu sofri tanto, que aí acabou. O problema acabou. Mas eu
estou tomando remédio, né?
O Caps já falaram lá. Já foi passado de lá. Então, você vai pro Fórum, você vai passar
um ano não sei do quê, tem na minha carteira, um ano comparecendo no Fórum, e
você tem que ir no Caps que é para você tomar remédio sempre, para ficar tomando
remédio sempre. Aí me informaram sobre o Caps, eu cheguei aqui, perguntei, eu nem
213
sabia que tinha isso aqui. Sou velha guarda aqui nessa cidade e nem sabia que tinha.
Aí descobri que era aqui o Caps, que arrumava esse remédio, mexia com esses
tratamentos, né, aí eu achei melhor. Porque eu pensei o seguinte, vai ser bom,
porque, se Deus me livre e guarde, eu chega a adoecer, já sei com quem eu procurar
ajuda, né. Aqui tem psiquiatra, tem psicóloga, tem outras pessoas, então já peço
ajuda, né. Se, Deus me livre, chegar a me atacar, eu já chego para eles, já bato a real,
já conto a história para eles, para ver se eles me ajudam, me internam, se o remédio
não estiver adiantando mais, eu já falo para eles, né. Eu já tenho uma ajuda. Já tenho
o apoio deles, está me servindo demais da conta. São pessoas boas, educadas. Eu
gosto de vir para cá, é bom demais aqui. Aí eu já tomo meu remédio, mas até agora,
esses tempos, eu não adoeci mais, não.
Não, eu estava vindo de terça e quinta-feira. Fazer uma ginástica, mas eu estava
trabalhando, né. Não teve jeito de eu vir mais.
Não, o cara parou com a obra. Nós tava fazendo a construção e parou. Agora estou
sem serviço, aí eu venho para cá.
Não, isso aí, eu não nego para você, isso aí tinha lá onde eu estava. Mas isso aí o
seguinte: eu não sei se isso é importante para a nossa vida, mas o negócio é que eu
não gosto disso. Nunca gostei. Isso aí tinha demais lá... Rapaz, me bota eu para
capinar, arrancar o mato, lavar louça. Mas esse negócio de ficar desenhando, fazer
não sei o quê... não cola comigo, não. Não dá certo comigo, não tenho paciência.
214
Você gosta de roça?
Eles estão com projeto de fazer horta... Tem mais a ver contigo?
Aí é mais melhor. Uma coisa dessa já encaixa comigo. Aí para ficar fazendo isso aí é
só coisa para menina mesmo, coisa para mulher, mulher gosta mais disso aí.
Desenhar eu não sei, e fazer crochê não tá no meu barco.
É. O doutor Geraldo e o doutor Renaldo [José Pimenta, então clínico geral do Caps de
Xinguara].
Rapaz, legal demais eles. Gente boa eles. Atende bem a gente, tem o maior carinho,
ele ouve bastante a pessoa. Quando você estiver precisando de alguma coisa, eles dá
ouvido mesmo. Ajuda a pessoa. Tem muita diferença de onde eu tava lá, para
conversar com o doutor lá... Nossa senhora.
Nossa... com médico, com a psicóloga. Para conversar com a psicóloga era muitas e
muitas semanas, muitos dias você mandando recado, mandando recado. Aí aquela
215
fuleragem do caralho. ‘ah, não pode hoje, só amanhã’. Aí chega amanhã e nunca vem
esse dia. Nunca chegava. Era ruim.
E o seu filho?
Meu filho está em Água Azul. Tá com um mês que eu vi ele. Doze anos. Tá bom no
estudo já, tá fazendo a 6ª série (no ano de 2013, quando ocorreu a entrevista).
Esperto ele. Eu fiz só a 3ª série, ele já está na 6ª ... tá bom demais. Eu sofri muito esse
tempo todo. Viver uma vida daquelas... Aquelas perturbações, perdia as coisas. Tá
doido, que vida triste. Eu não entendi ainda o que que leva o cara a criar uma doença
daquela na mente, eu não entendi ainda. Porque eu larguei a mulher de boa, tranquilo.
Não fiquei na cachaçada, não fiquei usando droga, e a coisa foi surgindo aos poucos.
Aos poucos, sabe. Foi aumentando, aumentando, foi passando os anos, foi crescendo,
foi mudando o jeito, uma vez tava de um jeito, outra vez tava de outro, o tempo passou
e eu fiquei um cara muito agressivo, muito esquisito.
Todo dia. Toda dia era perturbação. Em 2007, 2008, que ela tentou mais. Nossa
senhora, era perturbação demais. Eu ia ser morto se eu não tivesse ido para Belém.
Os caras iam me matar. O pessoal já estava com raiva de mim. Dizendo que eu
andava só bêbado, caçando conversa. Mas não era bêbado, não, moça. Era doente
que eu andava. Eles achavam que eu estava bêbado, bebendo cachaça, essas coisas.
Meus parentes me livraram de morte um bocado de vezes. Meu sobrinho não deixava,
‘não mata meu tio, não, meu tio não é isso, não é aquilo’ e tal. E eles, ‘ah, porque esse
216
tio de vocês tá doido, não sei o quê, tá enchendo o saco’. Eles querendo tirar minha
vida, mas meu sobrinho não deixava. Mas agora sarei, graças a Deus.
Para você ver como a coisa não parece normal, né. De um lado, ela dizia que estava
me protegendo, do outro lado, já tinha outro tipo de visão. Que era aquela visão de ver
as pessoas e imaginar que elas iam me atacar. Do outro lado, não, ficava ouvindo que
ela ia me proteger, que eu ia ser não sei quem, mas sendo que aquilo nunca
acontecia. Nunca aconteceu nada de bom comigo. Era uma coisa que dava para ver
que era uma doença, um problema mental. Não é uma coisa certa uma coisa dessas.
Isso é uma doença, é um treco muito sério no cérebro do cara que criou e aquela
coisa mexe com o cérebro do cara, o cara começa a pensar as coisas erradas. Vamos
supor, de um galo cantar, ele pensa que (o galo) está falando o nome dele. Se eu
estiver doente e o galo cantar, eu vou olhar pro galo e achar que ele está falando o
meu nome. Para você ver, é tudo imaginação. Que deixa o cara doente mesmo,
esquisito.
Não era, justamente. Era temporário. Chegou uma vez que aí era todo dia. Ela
perturbava, sabe. Aí minha família ficou com medo de mim, achando que eu ia matar
alguém de casa. Nós já é de família pobre mesmo, os coitados saiu fora de mim. Me
deixaram rodado.
(Fala de crack. Diz que tem um amigo viciado e que, se você ouve as conversas dele,
você se assombra. Diz esse amigo que viu o diabo três vezes. Givaldo diz que já
fumou maconha várias vezes, mas crack nunca. Fala da pedra, oxi. Diz que quem
fuma pedra fica doido também. Fica pirado, muito agressivo.)
217
Os seus amigos de antes das crises... Você conseguiu resgatar essas amizades
ou mudou um pouco?
Mudou muito. A vizinhança... ela pegou preconceito. Hoje eu vejo, pelo que eu vejo
hoje as pessoas têm preconceito comigo. Eles não chegam igualmente chegava, não.
Já olha de longe, ‘ih, rapaz, é o Givaldo’. Já fica todo desconfiado, tá entendendo?
Para mim não ir até eles, e eles não vir até mim. Eles já ficam se escondendo de mim,
as pessoas de hoje. Tá mais ruim. A família também... Um dia desses eu peguei a
minha irmã, (eu estava) vindo do serviço, sol quente, chapeuzão bem grandão, tava
vindo, cheguei em casa, a casa de tábua, né, de 1984, a nossa casa é antiga. Aí eu
cheguei, minha irmã, ela é professora, mora do lado, casinha de tijolo a dela, aí eu fui
chegando e ouvi aquele bafafá lá no fundo, eu parei, ‘deixa ver o que é isso aqui’, aí
eu fiquei calado. Pessoal surtando. A minha irmã falando para a minha outra irmã para
me internar de novo, sabe. Me colocar no mesmo canto onde eu tava. Rapaz... aí eu
não gostei, não. Ficaram com preconceito, com frescura comigo, dizendo que eu
estava agressivo, que eu to mexendo não sei com quem, agora eu não to vendo isso,
que tudo o que eles falam, o que a família fala, eles estão dizendo que é verdade.
Tudo o que um fala, o outro acredita. Se diz assim ‘o Givaldo acabou de cortar o
pescoço de um’, eles acreditam. Se o Givaldo, com o perdão da palavra, comeu
merda, eles acreditam. Se o Givaldo bateu no sobrinho, eles acreditam. Tudo assim,
contra eu. Eu vivo no meio deles, porque não tem para onde eu correr ainda. Mas eu
vivo de um jeito assim... humilhado. Você não pode falar nada, você tem que pisar
maneiro, você tem que ver o que vai falar, para onde você vai você tem que dizer. Eu
não falava nem para minha mãe, tenho que dizer para a minha irmã para onde é que
eu vou, se to tomando meu remédio, ‘é, porque a gente só quer você aqui bonzinho’ e
começa com aquelas piadas, né. ‘Nós só quer tu perante nós bom, não quer ver tu
doido’, aí começa. Aí eu fico calado, né. Tomando remédio, aí fica essa humilhação,
sabe. Muito ruim. E os amigos se afastaram. Aí aproveitaram o caso de antes, eu
estava maluco já demais, marcando na rua, negócio de confusão em boteco, fazendo
vários tipos de coisa. E já doente eu inventava de beber cachaça. Bebia uma pinga,
uma dose... se eu tomasse duas doses, o homem tava morto, era duas doses e eu
tava lascado. Ali eu tava para brigar, tava para discutir, mas não era bêbado, já era
biruta. Aí o pessoal viu aquilo, reviraram as costas para mim. Eu não vi, também eu
não ligava para ninguém, né. Não me importava com ninguém, gostava dela era só
218
mesmo. Aí agora, depois que eu cheguei, eu ouvi os caras falando isso já, dizendo
que eu mudei, que antigamente não falava comigo porque eu estava igual um doido,
daquelas conversas, então hoje eu estou vendo eles, mas eles estão com diferença,
chegando em mim mais devagar. Mas eles têm cisma comigo. Mas a pior coisa que
tem, eu não pensava em ter isso na minha vida, eu tive minha mãe, não conheci meu
pai, mas não imaginava que minha vida ia virar uma coisa feia dessa não. Eu tenho
que batalhar muito para mim ter amizade, ter aquela confiança, sabe. Porque minha
vida está uma tristeza.
A mais nova veio. Veio já umas quatro vezes. Elas ficam me falando que tá me
ajudando. Falaram pro doutor que eu tava tomando cerveja, é mentira. O pessoal fala
demais. Que o cara já tem um problema, né. Aí por causa desse problema todo mundo
aproveita. Aí você vai falar com eles... não tem ninguém ao teu lado. Você vai falar
uma coisa, não vê ninguém a teu favor. Não tem como. É realmente um preconceito,
porque eu não tenho mais a imaginação, eu não fico fora de hora, eu não fico bebendo
cachaça. Então, eles ficam com aquele preconceito, que ‘tu é doido’, fica com aquelas
brincadeiras, sabe, e eu não gosto muito dessas brincadeiras, porque isso dá agonia
demais no cara. Se o cara é uma coisa, então deixa o cara para lá, não fala. Não fala
que isso irrita muito os pensamentos. Às vezes, você tá quieto, o cara fica te tirando.
Essas coisas não pega bem. Já falei lá em casa, ‘ó, vocês parem com isso, porque se
ocorrer alguma coisa, eu não tenho nada para perder’. Falando palavrões comigo...
apelidando a pessoa, botando apelido. Mas até agora tá indo bem, tá dando para
aguentar.
219
Givaldo. Crédito: Alice Arida
220
13.
221
-- Alô, capitão? Aqui quem fala é o sargento. Estou com o soldado ao meu
lado, capitão. Já disse que o senhor está chegando, mas ele não quer tomar o
remédio.
222
e pacientes, sem esconder os sorrisos, tiravam fotos e faziam montagens mostrando o
“antes” e o “depois”. Essas tardes de beleza eram uma festa. E eram uma terapia,
como ressalta Wanderley:
-- Você mostrava para a pessoa que o mundo não tinha acabado, que a vida
continua, que aquilo era só um momento pelo qual ela estava passando.
Por tudo isso, ficou com o coração apertado quando foi chamado para sair do
Caps, no final de 2013. Wanderley trabalhou pouco mais de um ano no lugar, mas
deixou lá uma grande parte de si. E levou consigo os ensinamentos de uma vida:
É por isso que todas as entrevistas reunidas neste capítulo foram feitas à
distância. São conversas por e-mail, Whatsapp e Facebook. Não são frutos de um
encontro físico, mas têm o seu briho particular. As minhas vivências paraenses
continuam a partir do próximo capítulo.
...
223
concursado. E, além disso, o enfermeiro já tinha uma longa carreira no campo da
saúde mental -- nem sempre vivenciada de forma intensa e engajada, contudo.
Ele começara a trabalhar nessa área em 2008, quando foi lotado para o Caps
de Tucumã, uma cidade de 36 mil habitantes vizinha a Ourilândia, distante dela
apenas 11 quilômetros. Desde pequeno, Jander mora em Tucumã. Ele é goiano de
nascimento, e realizou a graduação em Enfermagem em Goiânia. Assim que terminou
o curso, retornou ao Pará e foi trabalhar no Caps de Tucumã, que existe desde 2004.
Oito meses depois de sua entrada, em agosto de 2008, Jander conheceu Geraldo.
224
Nesta visita, Jander surpreendeu-se com o que, para ele, sempre foi o traço
mais marcante do médico: a defesa da multidisciplinaridade no trabalho do Caps.
Geraldo era o psiquiatra, mas sabia que a casa só funcionaria bem se os outros
profissionais da equipe tivessem seu trabalho tão valorizado quanto o dele.
-- Foi muito marcante observar a forma como ele combate com veemência a
construção do trabalho centrado exclusivamente no saber médico. Ele é um profundo
incentivador da responsabilidade compartilhada e da valorização dos diversos
saberes.
...
-- Desde 2008, o “doido da latinha” tem nome Vitoriano, que é seu nome de
batismo. Ele continua catando latinha pela cidade, pois é a profissão que escolheu, e a
desempenha muito bem. Tem seu rendimento econômico, se sustenta e ajuda renda
familiar, que é extremamente pobre -- conta Marineide.
226
internação era indispensável. Não foi fácil mudar esta ideia. Mas foi possível. O
enfermeiro Jander relembra:
227
exatamente em Conceição. Seu palco principal está 250 quilômetros acima da cidade,
na região conhecida como Bico do Papagaio, na confluência entre os estados do Pará,
Maranhão e Tocantins. Mas os ecos do episódio chegaram ao município e se
enraizaram nele, como em toda a região. Os conceicionenses sabiam e sabem: sobre
o assunto, é melhor silenciar.
Havia porém outro silêncio, que era menos evidente, mas estava presente em
muitos lares do município. Era o silêncio dos “loucos” que, amiúde, tinham seus braços
amarrados à força, e seus corpos, jogados dentro das kombis com destino à “clínica
de repouso” de Araguaína. Toda semana, pelo menos duas pessoas em crise eram
encaminhadas para lá. Havia semanas em que iam quatro, seis pessoas.
Quando era assim, corria o ano de 2005. Neste ano, assumiu a Secretaria de
Saúde de Conceição do Araguaia uma pedagoga com especialização em Saúde
Pública. Domingas Alves de Sousa, 48 anos, havia presenciado em Conceição, um
ano antes, cenas que a deixaram estarrecida: pessoas tidas como loucas haviam sido
amarradas dentro de seus próprios lares, e eram mantidas em pequenos cômodos, em
condições deploráveis. Ao ver esses destroços humanos, a futura secretária de Saúde
sentiu aperto no peito. Sentiu também que algo urgente precisava ser feito. Mas,
quando finalmente assumiu a Secretaria, ela não sabia por onde começar.
228
Como é comum nesse campo, encontraram muitos obstáculos, devido ao
estigma e ao preconceito. No início, alguns legisladores municipais se opuseram ao
projeto do Caps, dizendo que não havia necessidade de um órgão deste tipo na
cidade e que a Secretaria de Saúde estava criando problemas onde não existia.
Funcionários do hospital municipal resistiam em recepcionar e atender pacientes em
crise. Integrantes de algumas equipes do Programa Saúde da Família não queriam se
envolver em ações de saúde mental. Mesmo o Ministério da Saúde demorou sete
meses para oficializar a portaria de criação do Caps de Conceição e a liberação dos
recursos. Entre outubro de 2006 e maio de 2007, quem bancou o Caps foi o município,
graças à sensibilização e ao envolvimento do então governo de Conceição.
229
houve mudanças na equipe. Geraldo foi substituído, assim como outros profissionais.
E o trabalho em saúde mental não teve continuidade.
-- Confesso que tenho grandes preocupações, porém não posso julgar a atual
equipe, pois não os conheço -- diz Domingas.
-- A atuação do doutor Geraldo sempre foi além da clínica. Sua luta pela área o
destaca como profissional de saúde mental. O seu gostar de saúde pública e a relação
que ele cria com os pacientes, vendo-os como seres únicos e respeitando-os em suas
singularidades, é seu diferencial.
A psicóloga Gorette, que foi coordenadora do Caps até a sua saída do centro,
em 2012 -- quando mudou-se para São Luís, no Maranhão --, compartilha da mesma
dor de Domingas em relação à mudança de gestão:
Por tudo isso, foi com muita dor no coração -- e também com uma pontada de
surpresa -- que Geraldo recebeu a notícia, em uma noite obscura, de que não
prestaria mais matriciamento comunitário no município. Desde esta mudança, ocorrida
em 2013, as cores que compõem o dia a dia do Caps de Conceição tornaram-se um
pouco mais escuras.
230
…
Ao contrário de seu colega paraense, para ela, envolver-se com saúde pública
foi uma experiência dolorosa, da qual ainda guarda muitas mágoas e rancores. Elaine
tinha de conviver não só com maus profissionais. Havia uma politicagem muito forte
dentro do órgão:
Elaine, apesar da sua boa vontade, não conseguiu trabalhar neste ambiente --
e nem Geraldo, que deixou de prestar matriciamento comunitário em Redenção
também em 2013.
A médica, depois que saiu do Caps, viu andarilhando pelas ruas de Redenção
aquele mesmo paciente que, depois de recuperado, cuidava da mãe cadeirante. O
homem estava quase nu e vagava, novamente, em surto, pelos becos e ruelas da
cidade.
232
Naquele ano de 2009, em Rio Maria não existia Caps e Maitê não fazia parte
de nenhuma equipe de saúde mental. Ela era psicóloga do Programa Saúde da
Família e atendia em cinco unidades de saúde do município -- uma em cada dia da
semana. Em todos esses locais, Maitê notava a presença de pacientes com
transtornos mentais e buscava atendê-los como podia -- em seu consultório, em grupo
ou particular -- e evitar ao máximo as internações. Depois que conheceu Geraldo,
percebeu a necessidade do psiquiatra no município. Passou a batalhar para sua
contratação, efetivada em 2010. Neste ano, os dois começaram a trabalhar juntos para
fazer um projeto de criação do Caps em Rio Maria. Maitê realizava os procedimentos
burocráticos, enquanto Geraldo a orientava e lhe dava incentivo moral.
Ela, porém, encontrava grandes dificuldades. As tarefas que assumia lhe eram
um fardo. Era ela quem ia encontrar o psiquiatra em Xinguara, uma vez por mês.
Gastava a gasolina do próprio carro para buscá-lo e levá-lo de volta. Quando o salário
do médico atrasava ou não vinha, era ela quem resolvia a pendência. Tudo
relacionado a Geraldo em Rio Maria, de acordo com ela, era ela quem se
responsabilizava:
Maitê sentiu-se desestimulada por todos esses obstáculos. Assim como Elaine,
sentiu que não conseguia se adequar ao serviço público de saúde. Em 2011, saiu do
SUS e passou a atender em consultório particular. De seus três anos de serviço
público, ela guarda apenas uma boa lembrança:
-- Trabalhar com o Geraldo foi uma experiência muito boa, pois era uma
pessoa correta no meio de tantas incorretas. Ele se preocupava com o paciente, não
era uma pessoa vendida e não estava ali somente por dinheiro, fazendo um trabalho
nas coxas. Ele defende o que vê que é correto, sem medo de se comprometer.
233
14.
Eu quero ser doida, pela vida, por mim e pelas pessoas que estão
perto de mim, mesmo que eu não as conheça. Porque a energia
delas me afeta, e a minha afeta elas. Quero dar o melhor de mim,
para que se lembrem de mim e se sintam melhor. Se elas não
estiverem perto de mim, que saibam que tem alguém longe e que
sente a falta delas.
Se quero o bem das pessoas perto de mim, tenho que ficar bem
para cuidar delas também.
234
-- O que a gente percebe é que, muitas vezes, as pessoas que estão à frente
dos Caps têm cargos políticos. E o Caps de Goianésia não caiu de paraquedas, não
veio para se desviar mais um dispositivo no município, não. Ele tem toda uma história
de luta. É como se fosse um filho gestado, e isso não tem para ninguém. Os outros,
não. De repente, politicamente, muda a coordenação do serviço, coloca alguém
político que não entende nada, aí não articula, não chama para ação, aí não vai para
frente. É uma mera figura representativa num cargo. E os recursos dificilmente
chegam aonde é para… ser. Esse que é o problema.
Socorro tem propriedade para falar do assunto, pois conhece a realidade dos
Caps no sul do Pará e também porque, com ela, foi diferente. Eterna apaixonada pela
área em que atua, a psicóloga fez questão de lutar pela saúde mental no município
que adotou como seu.
235
Nascida em Castanhal, a 70 quilômetros de Belém, Socorro casou-se com um
homem de Goianésia do Pará, a 400 quilômetros de sua cidade natal, e mudou-se de
mala e cuia para o interior do estado. Corria o ano de 1995. Depois de fincar suas
raízes em Goianésia, ela abriu um consultório particular e também começou a
trabalhar como psicóloga na rede municipal de Educação.
-- Tua cidade não tem prefeito, não? -- provocou o psiquiatra, ao vê-la entrar
pelo salão aberto do Caps de Tucuruí.
-- Eles só tomavam diazepam, lexotan, tudo no pan… Criando uma nova legião
de dependentes químicos -- conta.
A psicóloga descobriu que os 180 pacientes que eram atendidos no setor não
tinham, na verdade, acompanhamento médico. Resolveu pegar a ficha de cada um
deles com a enfermeira e juntar os dados com a sua demanda do consultório. Depois
deste procedimento, foi ter com a coordenadora municipal de Atenção Básica. A
mulher a auxiliou a escrever o projeto e a protocolá-lo na Câmara Municipal. Uma vez
aprovada no Legislativo, a papelada deveria passar pelo Conselho Municipal de Saúde
236
para, em seguida, ser aprovada pela Secretaria de Saúde. Foi neste momento que
Socorro conheceu as barreiras burocráticas -- e políticas -- para a aprovação de um
Centro de Atenção Psicossocial. Foram três tentativas frustradas de fazer passar o
projeto do Caps pelo Conselho. Os integrantes do órgão divergiam politicamente dos
da Secretaria. Além disso, eram muitos os políticos -- sobretudo legisladores -- que
não viam a necessidade de um Caps no município.
Assim nasceu o Caps de Goianésia. Ele foi inaugurado com uma grande festa
em setembro de 2005. Por três anos, foi a gestão municipal de Goianésia do Pará que
custeou as despesas do Caps, dos profissionais do órgão e de todas as atividades e
consultas que promoviam, pois a portaria do Ministério da Saúde foi expedida apenas
em 2008.
Socorro surgiu como a diretora do Caps. Ela saiu da Educação e foi para a
Saúde, a fim de coordenar as ações em saúde mental no município.
-- E, hoje em dia, quando eu vejo eles aí, eu fico muito feliz. Eu digo para eles
que eles são os protagonistas daqui. Eles que não podem deixar isso afundar. Eles
são os responsáveis por isso aqui. Porque não pode trabalhar ninguém aqui que
maltrate eles. Que não acolha eles. Eu digo isso para eles. E eles têm voz.
-- Secretário, nós não estamos aqui, porque a doutora Socorro mandou. Por
sinal, ela nem sabe que nós estamos aqui. Mas nós queremos que o senhor
237
providencie o nosso vídeo, que o bandido lá destruiu. É só isso que a gente está
pedindo.
A psicóloga relata com orgulho este episódio. Não é para menos: ele é fruto de
um trabalho intenso, amoroso e determinado. Socorro lutou e foi vitoriosa. Mas seu
triunfo não ofuscou sua humildade. E, sem nenhum esforço, ela faz transparecer esta
virtude:
-- Isso não é meu, não é da gestão, é deles. Eles têm que ter o cuidado, têm
que zelar por isso. E eles têm essa consciência. Estamos aqui de passagem, e é por
isso que eu sempre digo: que outras pessoas façam até melhor.
À esquerda, acima, Socorro posa para foto no Caps de Goianésia do Pará. À direita, oficina de desenho e pintura no
Caps. À direita, abaixo, os arquivários da casa e, à direita, a farmácia do centro de saúde. Crédito das fotos: Alice Arida
238
…
...
239
de Cinematerapia, Massoterapia, Relaxamento, Musicoterapia, Meditação, além de
oficinas de teatro, de poesia e de jogos.
240
Nos fundos do Caps, existe um quintal abandonado: entulhos ocupam os
cantos do pequeno espaço aberto, enquanto um capim desgovernado cresce por todo
lado. O lugar bem poderia ser usado para atividades terapêuticas. Mas, para o quintal,
assim como para tudo no Caps de Breu Branco, não há apoio da gestão municipal. Os
profissionais do lugar cansaram de mandar ofícios solicitando verba para o bom
funcionamento do centro. Estão aguardando uma resposta até agora.
241
que aquele encontro não fosse dar em nada. Mas, segundos depois, ela nos convidou
a entrar em uma das salas de consultório, para fazer a entrevista. Finalmente.
Há dias, eu procurava contato com ela. Rosália estava ciente, mas não
retornava minhas ligações. Naquela manhã, explicou-se:
Não era para menos. Rosália é uma paciente que virou servidora do Caps. E
eu queria descobrir como havia sido essa mudança. Para isso, inevitavelmente ela
teria que nos contar a narrativa de sua vida. E Rosália é uma mulher bastante
sensível. Mas não só. Eu soube mais tarde: ela também é uma vitoriosa.
Começou sua fala relembrando as duas gravidezes -- sem saber que eu estava
grávida. Na primeira, quando tinha 19 anos, disse que engordou 25 quilos. Era
magrinha, magrinha, mas, assim que pegou barriga, alcançou os 80 quilos. Não podia
passar meia hora sem comer. Chegou a desmaiar de fome. Assim se passaram os
nove meses. Em setembro de 1991, nasceu Ana Paula, e então Rosália conheceu as
angústias do resguardo. Teve crises e brigou com o marido. E acha que foi neste
momento de sua vida que tudo começou: os tormentos, a doença. Mas Rosália seguiu
em frente. Passou pelo pós-parto e, dois anos depois, viu seu ventre crescer
novamente.
-- Eu tava passando mal, e ele disse que era frescura minha -- conta.
Rosália penou muito nesta gravidez. E, apesar dos riscos e das dores, Renata
nasceu saudável e sem indícios de toxoplasmose. Rosália tinha 22 anos quando teve
sua segunda e última filha. As crises, porém, não pararam. Pelo contrário.
242
Intensificaram-se. Não tardaram a surgir os sintomas da doença que carregaria pelo
resto de sua vida, o transtorno bipolar. No princípio, porém, Rosália atribuía tudo o que
sentia ao marido:
Desde o primeiro período de resguardo até Ana Paula completar seis anos,
Rosália sofreu. Corria o ano de 1997 quando foi levada pelo marido ao posto de saúde
da Cohab, onde aconteciam sessões de terapia comunitária conduzidas por um novo
psiquiatra que havia chegado a Tucuruí, e onde uma equipe de saúde mental oferecia
assistência. A cearense foi uma das primeiras pacientes a ser atendida por este
pessoal. O Caps de Tucuruí ainda nem existia. Rosália acompanhou toda a evolução
do trabalho de Geraldo, e ficou feliz ao presenciar a inauguração da Casa Machado de
Assis:
-- Eu amo demais o doutor Geraldo. Para mim, é meu pai do Caps -- conta.
Justamente por ser pai, os dois tiveram inúmeras discussões. Rosália não
esconde o que a deixa descontente nas consultas com o médico, e diz abertamente
para nós o que já falou abertamente para ele:
243
-- Eu, como paciente, tenho esse depoimento. Que os médicos, eles não
ouvem os pacientes. Eles ouvem o acompanhante. Muito mais. Acho que 85% eles
ouvem o acompanhante. Ele não olha dentro do olho do paciente, igual o psicólogo
olha e escuta realmente, qual é a versão? Ele já vai passando o remédio. Eu queria
que ele tratasse nós dois, porque, se eu tava daquele jeito, era consequência das
grosserias dele (do marido). Mas, para o médico, é o paciente. Aí, já me aplicaram
uma injeção lá, e eu fui para o Regional dopada, fiquei dois dias e duas noites. E eu
acho assim, a partir do momento em que começa a tomar medicamento, pronto.
Enquanto puder adiar, levar no psicólogo, numa terapia, interagir, antes da medicação,
melhor. Depois que começa a tomar medicação, é difícil. Para você sair. A gente tem
que ter um pensamento muito positivo, tem que buscar uma força gigante, para
conseguir superar. Porque não é fácil.
244
uma palavra e sem querer sair outra. Aí, para não ficar envergonhada, eu evito
conversar. Esse é o período que eles, a família, pensam que eu estou bem e é quando
eu não estou. E eu nunca me tratei nesse período, porque eu não consigo pedir ajuda.
Tu acredita? Eu não consigo pedir ajuda. Eu tenho vergonha de pedir ajuda. Não sei
por quê.
Pergunto se ela sabe diferenciar essas fases do surto. Ela diz que não. Na sua
cabeça, é tudo muito confuso:
Quem conhece Rosália sabe do que ela fala. Ela sempre foi uma mulher
trabalhadora e estudiosa. A muito custo, interrompeu os estudos quando casou, aos
18 anos. Ela cursava a sétima série e gostava daquilo. Foi morar na roça com o
marido e passou a invejar os jovens que iam para a cidade estudar. Prometeu a si
mesma que voltaria aos livros assim que suas filhas estivessem mais velhas.
Enquanto isso, quando não estava em crise, Rosália cuidava da casa, fazia
faxina, comida, lavava roupa e cuidava das meninas. Só não podia se arrumar, por
ordens do marido. Os dois não se davam no dia a dia. Ele era um bom pai, mas não
servia para ela como companheiro. E chegou um momento em que Rosália sentiu uma
necessidade brutal de acabar com essa dependência. Resolveu tomar uma atitude.
Ela mesma aponta a saída:
-- Eu tinha que fazer o quê? Estudar, né. Eu tinha que lutar pelo meu futuro.
Depois que terminou o Ensino Médio, ela voltou a ficar em casa. Foram anos
de muita ansiedade e muitas atividades no Caps, onde Rosália buscava a força para
atingir os seus objetivos. Por três anos, ela almejou encontrar um emprego. Mas este
245
não chegou. Então, ela se deu conta de que, mais uma vez, precisaria batalhar por
aquilo que buscava. Resolveu bater na porta da prefeitura de Breu Branco, e saiu de lá
com um cargo de auxiliar administrativo na Secretaria de Educação. Era contratada,
mas, assim que saíram os editais de concurso público, prestou. Passou na sétima
colocação no concurso para auxiliar administrativo na prefeitura. Ela continuou
trabalhando na Secretaria de Educação, mas guardava um segredo para si:
-- Meu sonho sempre foi trabalhar no Caps. Para tentar ajudar a fazer aquilo
que fizeram comigo, que me ajudaram lá dentro, eu também fazer a minha parte aqui.
Mas ela não demonstrava a ninguém esta vontade. Por isso, surpreendeu-se
quando foi convidada a ocupar o cargo de auxiliar administrativo no Centro de Atenção
Psicossocial de Breu Branco. Uma enfermeira do lugar havia visitado o Caps de
Tucuruí e soube, pelos servidores de lá, que Rosália frequentava o centro do
município vizinho e estava envolvida em diversas atividades, sobretudo a dança -- ela
era o braço direito do professor Gil e bolava com ele todas as coreografias do Caps de
Tucuruí. A mulher decidiu chamar Rosália para uma conversa, para saber se ela
gostaria de ir para o Caps de Breu Branco:
246
Rosália, no Caps de Breu Branco. Crédito: Alice Arida
Este sonho não demoraria a ver a luz do dia se dependesse do amor que ela
tem dentro de si. Um amor que ela demonstrou com todo o seu brilho quando se
separou do marido. O homem conhecera outra mulher, com quem se casou e teve
dois filhos. Rosália não sentiu ódio, nem remorso. Cinco meses depois da separação,
relacionou-se com um rapaz dez anos mais novo, com quem ficou um ano e meio.
Este homem a ajudou a esquecer as más lembranças do casamento e mostrou-lhe o
que era o amor verdadeiro. Foi um relacionamento tão tranquilo que Rosália nem
sentiu quando terminaram. Passaram-se alguns meses e ela conheceu, enfim, seu
atual esposo, com quem está há sete anos, mas não é casada:
247
Nunca teve preconceito em relação à sua doença. Nem ele, nem os outros dois
homens com quem Rosália se relacionou.
Por 24 anos, até a sua morte por infarto fulminante, em 2008, quando tinha 60
anos, a mãe de Rosália nunca quis saber de homem nenhum. Dizia que aguardava a
volta do marido e, enquanto isso não acontecia, vivia casada com Deus. Rosália
respeitava a opinião da mãe, mas, quando entrou na adolescência, sentiu uma onda
de revolta se espalhar pelo seu corpo em mudança. Renegou o pai e enfiou as
lembranças e angústias paternas em um canto afastado de seu ser, como se
quisesse, ou pudesse, se livrar delas. O que se provou impossível: já na fase adulta,
ela voltou a remexer nessas memórias. E veio, de repente, uma vontade de fazer as
pazes. Reconciliar. Ela já sabia que o pai vivia em Mato Grosso. Pegou Renata, sua
filha caçula e com cinco anos à época, e rumou para a rodoviária de Tucuruí, com o
coração cheio de apertos. Tomou o ônibus e, nas horas seguintes, procurou aliviar a
ansiedade observando a paisagem. Dois mil quilômetros de estrada a esperavam. Um
percurso longo, do qual ela se lembra até hoje:
-- Gente, Cuiabá é longe. Eu nunca tinha saído só na minha vida, eu fui mais
essa menina. Eu fui com o dinheiro da passagem e um dinheiro para a gente comer no
caminho. Gente, eu reconheci a letra do meu pai. Ele me esperou, me esperou, o
ônibus atrasou, eu cheguei três horas da madrugada lá em Cuiabá, ele deixou um
bilhete com um táxi, e eu reconheci a letra do meu pai. Quanto tempo... dezesseis
anos depois.
248
Quatro anos depois desta viagem, o pai de Rosália faleceu. E nunca em sua
vida ela sentiu tanto quanto naquele momento que tinha cumprido a sua missão: havia
reencontrado, abraçado, beijado, conversado, desabafado e resolvido as pendências
com o homem. Antes disso, dele ela só guardava duas reminiscências:
-- Só uma vez que ele mandou um dinheiro, a minha mãe comprou um tecido e
fez um vestido para mim. Até hoje eu guardo esse vestido. Assim, a lembrança do que
o meu pai tinha me dado. Era isso que eu tinha. E uma vez só que eu falei no telefone
com ele, que eu lembro. Só uma vez.
-- Não é uma história fácil. Quando você me fala que você gosta de dançar, de
se expressar… É vida. Acho que você conseguiu -- confirmou Alice.
Rosália abre um sorriso. Parece que está mais aliviada de ter conversado com
a gente, de ter conseguido contar a sua história. E retribui:
249
15.
Apelo
Eu só quero de volta
Gersa
250
Eram três as experiênicas de vida que ela, quando jovem, recusava para si:
morar em cidade do interior, trabalhar no serviço público e ser dona de empresa.
Quem nos diz isso é Gleide Lacerda, 50 anos, moradora de Parauapebas, 430
quilômetros ao sul de Tucuruí, ex-diretora de Atenção Básica no município e dona de
um dos laboratórios de diagnósticos mais conhecidos da cidade. Ironia do destino, foi
justamente tudo aquilo que ela acreditava ser o oposto do que desejava que
preencheu sua vida, a ponto de ela garantir que não sai mais do “Peba”, como a
cidade foi carinhosamente apelidada por seus moradores, e que apaixonou-se
loucamente pelo SUS no tempo em que trabalhou na rede:
Seu trabalho como diretora da Atenção Básica aconteceu entre 2006 e 2009,
quando ela já havia trilhado boa parte de seu caminho profissional. Natural de
Itarantim, município de 20 mil habitantes no sertão baiano, Gleide, uma morena de
pele clara, viveu em Salvador por duas décadas de sua vida -- o tempo de formar-se
em Bioquímica e engatar um emprego que se prolongou por vinte anos em um hospital
particular da capital baiana. Foi dispensada depois de atingir o cargo mais alto da
empresa.
Não tinha dado nem um mês que Gleide estava desempregada quando
recebeu o convite de uma amiga ortodontista:
-- Bora, vamos lá conhecer, a cidade está crescendo muito, você podia montar
um laboratório lá, talvez -- insistiu a amiga.
251
Gleide foi. Pouco tempo depois de pisar pela primeira vez em Parauapebas,
município de 180 mil habitantes no interior do Pará, arranjou uma parceria e inaugurou
um laboratório particular de diagnósticos, serviço que logo ficou conhecido por sua
excelência. A ponto de um cliente, certo dia, fazer uma sugestão à baiana:
Mas o homem insistiu. E ela começou a pensar nas pessoas que compunham
aquelas imensas filas na porta do hospital, no serviço que precisavam e não tinham.
Resolveu ir ao lugar, para analisar a situação: a bagunça era tanta que os usuários
realizavam exame de sangue e o laboratório liberava resultado de exame de urina.
Perplexa, decidiu bater à porta da Secretaria de Saúde e oferecer uma consultoria
para o laboratório do hospital. Saiu de lá com um documento assinado pelo órgão,
dando carta branca para ela realizar um diagnóstico da situação em quinze dias. De
graça.
Por quinze dias, Gleide trabalhou das seis da manhã às nove da noite sem
receber um tostão. Montou um relatório que cobria o serviço laboratorial da cidade
inteira -- os médicos, os enfermeiros, os usuários, a demanda, os postos de saúde, os
desperdícios, a falta de controle. Quando apresentou seu trabalho às autoridades
públicas, elas ficaram perplexas. Dias depois, chamaram-na para reformular todo o
serviço, por um período de seis meses. E assim Gleide deu seus primeiros passos na
rede pública de saúde.
252
Gleide passou a trabalhar de domingo a domingo, entrando às seis e meia da
manhã e sem hora para sair. Ela quis conhecer cada programa governamental
contemplado pela Atenção Básica -- saúde da mulher, saúde da criança, saúde do
idoso e, no meio deles, saúde mental -- e cada posto de saúde, urbano e rural, de sua
alçada. Chegava ao local, conversava com os funcionários e com os usuários, na
ânsia não só de entender o seu trabalho, mas também de passar um recado aos
servidores:
Neste percurso, ela topou com funcionários públicos que ocupavam cargos por
favores políticos e outros que já estavam acostumados a não trabalhar ou, em suas
palavras, “não tinham produtividade”. Descobriu demandas onde não havia, usuários
que não existiam, visitas domiciliares que estavam registradas apenas no papel. Isto,
por um lado, a desestimulou. Por outro, ela encontrou muita gente disposta a realizar
um bom trabalho. Eram estas pessoas que incentivavam Gleide, que a animavam, que
a ajudavam a seguir em frente. E, entre essas pessoas, estava Geraldo.
-- Não, porque faltava o rodapé, porque tinha capim no quintal, porque faltava
talvez uma lâmpada... Detalhe eu não me lembro, mas faltavam coisas muito fáceis de
serem resolvidas -- conta Gleide. -- Isto, para mim, nunca tem limite. Você falar, a sala
tá limpa, mas a parede... não, a gente conserta. Vamos arrumar tijolo e cimento e a
253
gente conserta a parede, e vai funcionar. Não tem limite. Quando eu tinha, na verdade,
vários pacientes necessitados na rua que eu ainda não conhecia. E fui perguntar para
a pessoa responsável por que o Caps não estava funcionando. Quando eu entendi, eu
falava, não, mas isso não é problema. A gente consegue alguém para tirar o capim, a
gente consegue isso para pintar a parede... Qualquer problema que me via com oito
meses sem solução, eu dizia não… Eu tava num momento que, se a tinta faltava, eu
fazia uma vaquinha e conseguia. Se não tivesse dinheiro para comprar, eu pedia para
alguém doar e conseguia. Se tivesse uma telha quebrada, tinha que fazer licitação da
telha na prefeitura, eram seis meses para saber quem ia vender a telha, não interessa,
eu consigo uma telha doada, eu vou lá e coloco. Não tinha tempo para a gente não
fazer a coisa acontecer. Eu estava com gás, estava com amor, estava com
disponibilidade, estava com tudo. E nesse movimento ninguém ficava na minha frente
me impedindo, não.
-- Quando eu conheci Geraldo foi que eu fui perceber quanta coisa boa tinha
para se fazer. E quanto amor, quanta dedicação, quanto movimento tinha dentro dele.
Ele era louco igual a mim. Falei, pronto, bastava um desses na minha frente para a
gente fazer a coisa acontecer -- conta, rindo.
254
movimentação foi parar nos jornais no dia seguinte, e o Caps de Parauapebas passou
a receber muitos pacientes.
-- Algumas vezes, eu saía do eixo. Tava doente, tava em surto e não tinha
dinheiro para comprar remédio, às vezes eu ia lá e comprava com o meu cheque. Não
tinha médico para atender, eu botava no particular e pagava do meu bolso. Algumas
brigas você tem que ter. Mas você tem que ter critérios, e eu não tinha critérios. Era
um ser humano que estava precisando de ajuda, mas ia ter ajuda de qualquer forma,
nem que eu tivesse que fazer o que tivesse que fazer, mas eu realmente não tinha
limites.
Este exagero ficou patente na relação de Gleide com seu Zé, um morador de
rua de meia-idade barbudo e de unhas compridas. Toda noite, ao retornar do trabalho,
a diretora encontrava seu Zé sempre no mesmo lugar: sentado na sarjeta de uma
calçada, entre um lixão e uma casa modesta. Certa noite, resolveu oferecer-lhe um
prato de jantar. Os dois iniciaram uma relação que, a princípio, foi amistosa.
Conversavam bastante, e seu Zé começou a gostar da companhia de Gleide. Ela, no
entanto, ultrapassou a barreira da amizade. Sem interrogar o homem, uma noite
comunicou a ele que gostaria de alugar um cômodo, para que ele tivesse um teto onde
morar. Desse dia em diante, seu Zé mudou de atitude. Botou fogo no pequeno quarto
alugado e, no dia marcado por Gleide para que se apresentasse perante os órgãos
públicos a fim de tirar seus documentos, sumiu. Seu Zé desapareceu. Nunca mais foi
visto. Gleide tem remorso até hoje. Sente por não saber onde ele está:
-- Eu mexi tanto com a vida deste homem que ele não se encaixava... ele
sumia. Depois eu me sentia culpada. Cara, se seu Zé tivesse no lixão tava vivo até
hoje lá, levando a vidinha dele, fumando o cigarrinho dele. Eu tirei tanto ele do habitat
onde ele tava lá na vida dele, que ele... não sei o que aconteceu com ele. E ele deve
me culpar para o resto da vida dele. O que eu tinha que futricar com a vida dele, né?
Podia levar a comidinha dele lá de vez em quando, mas queria dar casa para ele.
Levei ele para minha casa, dei banho, cortei as unhas, lavei tudo, cortei a barba, na
minha casa. Não adiantou. Seu Zé não gostava de mim, mas eu queria ser a mãe de
seu Zé.
255
Não só dele. Gleide queria ser a mãe de todos. Queria abarcar todos os
miseráveis -- de corpo, não de alma -- em sua enorme ânsia de mudar o mundo.
Assim como um dia perdeu seu Zé, meses depois ela perdeu o poder de mudança em
suas mãos.
A notícia veio no final de 2009: seu contrato não seria renovado. A princípio,
Gleide não entendeu. Ela tinha uma boa relação com o pessoal da Secretaria de
Saúde e era conselheira do município. Estava à frente de todas as decisões
relacionadas à Saúde em Parauapebas. A Secretaria, no entanto, não a avisou sobre
o fim de sua contratação nem explicou o porquê desta decisão. Esta resolução a
tomou de pesar. Hoje, a ex-diretora acredita que o pano de fundo para sua saída
repentina da Atenção Básica sejam os inúmeros conflitos políticos que colecionou ao
longo de quatro anos no cargo. Ela não aceitava trabalhar ao lado de pessoas que não
queriam produzir ou que estavam lá para ocupar postos partidários. Ela os colocava
para apresentar resultados. E, neste gesto, criou muitos inimigos.
Com o tempo, Gleide aceitou seu afastamento. E não deixa de elogiar o SUS
no balanço que faz sobre sua passagem de quatro anos pela rede pública de saúde,
um sonho que nunca sonhou, mas que deixou marcas perenes em sua vida:
-- Foram as coisas mais belas que eu fiz. Eu sei que, mesmo que as coisas
não tenham se mantido como nós começamos, como nós sonhamos, muita coisa foi
mudada, muita coisa foi feita. Conseguimos fazer um trabalho com muito esforço, mas
com muito resultado.
E isto só foi possível graças aos amigos que Gleide encontrou em seu caminho
e que a ensinaram que o bem, embora menos visível, também existe:
-- O bem é muito silencioso. O mal, não. O mal tem um poder explosivo maior,
tem mais barulho, tem a mídia. Ainda é o que aparece com mais facilidade. Mas tem
muita gente fazendo o bem, trabalhando pelo próximo. Nesta minha passagem pela
Secretaria de Saúde, descobri pessoas que se movimentam, pessoas que auxiliam,
pessoas que dão o que têm e o que não têm para ajudar.
256
Jornal regional noticia inauguração do Caps de Parauapebas. Crédito: Arquivo pessoal
...
Os sonhos da baiana agora são outros. E, antes de nos revelar dois deles, ela
faz questão de ressaltar um dos maiores aprendizados que leva dos anos de trabalho
conjunto com Geraldo: a recusa em trabalhar em consultório particular fechado. Foi
um aprendizado que começou a ser moldado já nas primeiras vezes em que Gleide
telefonou para o psiquiatra, com uma demanda específica:
-- Quem quiser saúde mental vai para o Caps, é lá que eu atendo -- respondia,
impassível, o médico.
257
-- Gleide, todos têm as necessidades na mesma linha. Qualquer paciente que
você queira, rico ou pobre, que possa pagar ou não. É o SUS que arca com a saúde
mental e eu atendo no SUS, no Caps. Então você direcione todos para lá, que eles
farão o acolhimento -- redarguia Geraldo.
Depois de explicar todo este contexto e todo esse aprendizado, Gleide enfim
nos revela um de seus grandes sonhos:
-- O meu sonho é que um dia a gente possa no Brasil não precisar pagar
convênio, que todos nós possamos usar o serviço público da saúde. Não pelo
dinheiro, mas porque eu quero usar o serviço público, porque ele é bom e tem
qualidade. E que todos nós tenhamos o dever de fazer ele funcionar e o direito de
usar. Já pensou se todos nós fôssemos ao SUS? Que coisa magnífica, chegar em
Brasília, Salvador, aqui, você precisar de uma consulta e ter acesso a essa consulta.
Outro dia veio um homem aqui [no laboratório particular dela] com o filho com febre.
Eu falei que tinha laboratório no hospital de graça, mas ele disse que demorava sete
dias para sair o resultado. Hemograma sai em uma hora. Tem demanda? Tem, mas
sete dias? É um pouco demais para quem está com febre. A gente podia fazer uma
coisa melhor, né? Uma realidade menos dura.
Seu outro sonho, como era de se esperar, é voltar a trabalhar com saúde
mental.
258
Um dos motivos pelo qual Gleide se apaixonou por esta área, segundo ela, é
justamente o silêncio em que é mantida. E Gleide não gosta de silêncios. Quer falar --
e quer dizer o indizível, o perturbador, o lado obscuro que nos habita.
-- Você vê, o paciente que tem algum distúrbio, algum problema, primeiro que
já vive o preconceito, que é uma coisa terrível, e o que gera esse preconceito?
Geralmente é a ignorância. Ignorância do outro que vê o paciente como quem não tem
jeito, como excluído da sociedade, excluído da família... As pessoas não conhecem,
nunca ouviram falar disso, até o dia em que explode um problema na sua casa e você
não sabe como lidar. A gente tem que diminuir a ignorância para ajudar, porque não é
à toa que alguém da sua família tem problema mental. Poderia ser você. Então, a
família tem que chegar junto, a sociedade tem que chegar junto, a saúde pública tem
que chegar junto. O que você quer? Deixar lá dois meses internado, dopado, você vai
cuidar da sua vida, sua mãe vai cuidar da vida dela? Não é essa a política de saúde
mental. A família tem que ter responsabilidade sobre o paciente também. E todos nós
da sociedade.
Gleide não deixa estar. Quando percebo esta sua característica, relato nossa
dificuldade em conhecer o Caps de Parauapebas. Ela se move inquieta na cadeira.
Não tarda a garantir que vai nos ajudar.
Pego o celular e tento ligar para o lugar pela décima vez. Na verdade, já perdi
a conta de quantas vezes liguei e ninguém atendeu. Quando, finalmente, ouço a voz
de uma pessoa do outro lado da linha, é sempre a mesma enfermeira que fala. E ela
tem a resposta na ponta da língua:
259
estacionar o carro em frente a uma casa com muro alto e um portão entreaberto.
Entramos.
Não havia ninguém no lugar, a não ser a enfermeira. A mesma que sempre
atendia o telefone. De cara, achamos estranho, pois, nos outros Caps que visitamos
pelo sul do Pará, sempre havia atividades no período da manhã. Em Parauapebas, ao
contrário, o lugar estava vazio e as três salas da casa -- que funcionavam como
consultórios, com mesas e macas -- estavam de portas fechadas. A parte externa
parecia abandonada, com capim alto e algumas cadeiras de plástico dispostas de
forma aleatória no pátio. Na porta da cozinha, lia-se em uma pequena placa “Entrada
somente para funcionários” – algo também incomum em outros Caps abertos que
conhecemos e onde Geraldo prestou matriciamento comunitário. O recado fixado
naquela porta já indicava a segregação em que vive o órgão. Apesar dos esforços de
Gleide, de Geraldo e de outras pessoas da equipe de saúde mental que já não
trabalham mais lá, o Caps de Parauapebas não conseguiu romper com as amarras da
cidade. É muito mais psiquiátrico do que psicossocial. Tiramos algumas fotos, mas
fomos impedidas pela enfermeira:
Após a visita de dez minutos, entendemos por que algumas pessoas nos
alertaram que o Caps de Parauapebas funciona, na verdade, como um “mini
manicômio”. Dá-se um nome mais suave, mas não se quebra a lógica manicomial.
Esta sempre foi uma preocupação dos envolvidos com o movimento da reforma
260
psiquiátrica no Brasil. E, infelizmente, é uma realidade em muitos Caps espalhados
pelo país.
Parauapebas, por sua vez, é das cidades que mais crescem no Pará e no
Brasil. É uma cidade nova, com menos de trinta anos. Foi emancipada de Marabá em
1988 e, menos de dez anos depois, em 1996, já contava com 75 mil habitantes. Nos
vinte anos seguintes, a cidade ganhou mais 105 mil moradores, 64% dos quais com
menos de 29 anos. Quase todos estes jovens são migrantes. Vêm de diversos rincões
do Brasil, desde o Sul até o Nordeste. Há muita gente do Centro-Oeste. É raro
encontrar alguém que tenha nascido em Parauapebas e que possua fortes laços com
este eldorado perdido no meio da Amazônia. A maioria apronta as malas e segue
rumo à cidade em busca das inúmeras oportunidades de emprego oferecidas pela
Vale e pelas empresas que realizam trabalhos terceirizados para esta que é uma das
maiores mineradoras do planeta.
Meu primeiro contato com a mina de ferro de Carajás ocorre quando estou no
avião. Da janela, sobrevoando a Amazônia, a bandeira do Brasil me aparece em cores
vivas: a floresta densa e úmida, com seu verde-escuro entrecortado pelo azul-escuro
das águas dos igarapés, que refletem o azul-celeste do céu e o calor do sol, aquele sol
em chamas, escaldante. Meus olhos brilham diante da paisagem deslumbrante. Fico
261
inebriada com tanta beleza e chego a me esquecer, por um momento, de todas as
mazelas que pairam por aquelas terras. Não por muito tempo. De repente, deparo-me
com enormes crateras fundas na terra. Em meio àquela sublime imensidão verde e
azul, elas me fazem lembrar que o lema positivista da bandeira está inscrito em solo
amazônico. São crateras imponentes, que deixam escancarado: aqui está o progresso
do Brasil. Aquele progresso visto sob a ótica exclusiva do desenvolvimento
econômico. A floresta fica para trás, e a terra funda, roxa e vermelha, em carne viva,
não deixa espaço a suspeitas – estamos, sim, diante da maior mina de ferro do
mundo.
262
pelo controle da área e passou a deter um território imenso para explorar, situado
entre o sudeste do Pará, norte do Tocantins e sudoeste do Maranhão e englobando
parte dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia.
Por todos esses motivos, Parauapebas exibe o maior PIB per capita -- por
pessoa -- entre todas as cidades do Pará. Em 2012, o PIB per capita do município foi
de R$ 100,5 mil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Para
se ter uma ideia, em Belém, no mesmo ano, o PIB per capita foi de R$ 14,5 mil.
O trem que carrega minério de Carajás até o Maranhão. Crédito: Alice Arida
263
Com tamanha riqueza graças à extração de minério, poderíamos estar diante
de uma cidade arborizada, com bons índices de escolaridade, saúde e emprego, um
transporte público eficiente e ruas limpas e bem cuidadas. O que há é o oposto. No
“Peba”, não há transporte público. Empresas privadas preenchem a lacuna com vans
lotadas e insalubres, que cortam os bairros de casas humildes sacudindo a cada
buraco na rua -- que não são poucos. Ao invés de uma população saudável,
empregada e escolarizada, encontramos altos índices de trabalho informal e violência.
O Mapa da Violência 2015 diz que Parauapebas registra 37 homicídios a cada 100 mil
habitantes, e, entre os mais de 5 mil municípios brasileiros, ocupa a 153ª posição
quando o assunto são as taxas de homicídios na população total. Além de
assassinatos -- por brigas casuais, desavenças políticas ou econômicas --, o município
coleciona casos de abusos sexuais, agressões físicas dos mais variados tipos,
depressão, ansiedade, alcoolismo.
264
Elianne, em Carajás. Crédito: Alice Arida
-- O Caps chegou aqui em 2006, mas era um serviço que vinha sendo
solicitado há muito tempo. A Gleide foi fundamental, pois tinha o poder. Mas o pessoal
tinha muita confabulação teórica, e eu fiquei irritada. Porque é possível fazer saúde
mental em qualquer lugar. Eu tenho dúvidas se o Caps daqui surgiu de uma forma
saudável, porque tem muita briga de vaidade, eu não dou conta dessas coisas. Eu
participei de algumas reuniões, e eu lembro de uma que fui... a coisa estava
acontecendo, mas o pessoal só falava de dificuldades, achei muita picuinha. Depois a
coisa degringolou, virou um lixo. Talvez até por isso eu tenha me afastado, ficado nos
bastidores. Não me envolvi muito.
265
No meio de todo esse redemoinho, Elianne conheceu Geraldo. E o psiquiatra
foi uma das poucas pessoas que ganhou o respeito da psicóloga. Até hoje são
amigos. E, quando peço para Elianne dar o seu depoimento a respeito do médico, ela
menciona a Leseira Itinerante e dá o seu veredicto:
...
Ela mesma confessa que não aguentou. Saiu do Caps no mesmo ano que
seus dois companheiros de luta e de trabalho:
-- Pedi para sair, pois estava adoecendo mentalmente. Quando você trabalha
com o sofrimento humano, você precisa de apoio. Em saúde mental, este apoio se
chama supervisão. Senão, você acaba sofrendo junto. É inevitável, pois é uma
particularidade nossa como ser humano sofrer junto. A gente não tinha essa
supervisão em saúde mental. Ninguém tinha. A falta de apoio da chefia de forma geral
dificulta isso. Além de não compreender o que é saúde mental, não compreende que a
pessoa que trabalha com saúde mental também pode adoecer. Isso me tirou do Caps,
266
essa falta de apoio, de estrutura, de visão do que era necessário. É uma violência
institucional, uma violência que é imposta ao funcionário.
Uma das formas de alcançar isto, para ela, era construir estas pontes com
outras unidades de saúde. Mas Juliana não obteve muito sucesso nessa empreitada.
O lugar mais fechado ao diálogo foi o hospital municipal. Este sempre foi o
maior obstáculo encontrado em todos os outros municípios do sul do Pará nos quais
Geraldo prestou matriciamento comunitário. Inclusive em Tucuruí, onde o psiquiatra,
depois de muita luta, conseguiu formalizar uma Ala Psicossocial, com leitos
psiquiátricos para pacientes em crise -- algo previsto em lei, mas pouco presente na
realidade. A prática mostrou que o mais fácil sempre foi internar os pacientes. Difícil é
transformar a atitude das pessoas frente ao transtorno mental -- derrubar estes muros
simbólicos e quase intransponíveis. Juliana conta como era cada vez que tinha que
internar um paciente em Parauapebas:
267
encontro determinados enfermeiros... de tão marcado que ficou, parece que eles
dizem, lá vem a chata. E não mudou muita coisa.
268
16.
Reviver
Reviver,
Reviver,
Reviver,
Reviver,
Reviver,
Reviver,
É simplesmente ser!...
Gersa
269
Descemos de carro, por mais uma estrada esburacada e sem floresta ao redor,
os sessenta e cinco quilômetros que separam Parauapebas da “terra prometida” do
Pará: o município de Canaã dos Carajás. Lá, moram 32 mil habitantes que migraram
para a região atraídos por um sonho incrustado no nome da cidade. Pois Canaã dos
Carajás será, sim, uma terra de fartura. E por isso, assim como a sua vizinha
Parauapebas, não para de crescer.
Para que isto seja possível, a Vale quer desmatar cerca de 2.500 hectares de
floresta, dezenas de cavernas e duas lagoas. A “supressão vegetal”, termo eufemístico
utilizado pela companhia, deve atingir uma área com uma diversidade tão rica que
algumas espécies de plantas e animais só existem ali e ainda estão sendo
pesquisadas pelo homem. Já vão anos de negociações. Em 2013, o Ibama (Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) emitiu licença de
instalação do empreendimento, orçado em US$ 19,4 bilhões.
Por conta disso, o entusiasmo dos moradores de Canaã é grande. Eles estão
certos do desenvolvimento que o S11D trará a uma das regiões mais desmatadas da
Amazônia. Nem parecem se importar com a miséria e a exploração na qual vivem os
seus vizinhos, os habitantes de Parauapebas -- os mesmos que, um dia, sonharam
com uma suposta prosperidade trazida pelos empreendimentos da mineradora.
270
…
De qualquer forma, já tinha agendado para aquela tarde uma entrevista com
duas ex-funcionárias do Caps de Canaã. Depois do almoço, direcionamo-nos, Alice e
eu, ao local da conversa: a Secretaria de Trabalho, Educação e Saúde de Canaã dos
Carajás, onde trabalhava a psicóloga Tamara Andrade, 34 anos. Goiana de
nascimento, mineira de criação e coração, loira, alta e encorpada, ela nos recebeu
com alto astral e um sorriso no rosto. A seu lado, a enfermeira potiguar Luanna
Medeiros, 27 anos, também nos aguardava e cumprimentou-nos com o mesmo bom
humor. Logo percebemos que as duas eram muito amigas. Durante toda a conversa,
trocaram olhares e sorrisos. Mas não só. Eu soube depois que elas também
partilhavam de um mesmo amor: a saúde mental.
-- O Geraldo costumava falar que quem não tem medo de olhar para a saúde
mental é quem não tem medo de se olhar no espelho -- começa Tamara. -- Porque, se
você se identificou um dia, é que alguma coisa, sabe, uma sensibilidade a mais, uma
história, você tem. Porque senão não tinha parado para olhar.
Ela tinha razão. E falava entusiasmada. Fui percebendo, pelo ânimo delas, que
o Caps de Canaã era bem diferente do de Parauapebas.
Não havíamos ido. Foi a deixa para a psicóloga pegar o celular e avisar o
pessoal do Caps que estávamos a caminho. Em pouco tempo, chegamos a uma casa
colorida, cheia de espaços abertos, onde a arte e a criatividade dos usuários
271
floresciam em cada canto, em cada porta, em cada parede, em cada sala.
Conhecemos alguns dos pacientes atendidos pelo órgão e alguns dos profissionais da
equipe. Entre eles, o psicólogo e atual coordenador do Caps, Edson Pereira, 32 anos,
mineiro de Uberlândia. Luanna e Tamara transitavam com fluidez pelos cômodos da
casa, cumprimentando todos e parando para conversar -- e rir. Pois o riso, eu logo vi,
era a marca registrada delas.
272
Caps de Canaã dos Carajás. Crédito: Alice Arida
-- O Caps é fértil.
Mas nem sempre foi assim. Desde 2008, ano de sua criação, o Caps de Canaã
passou por muitas fases. Em uma delas, correu o risco de afundar. Luanna e Tamara
estavam lá para evitar uma queda brusca. Suportaram, sozinhas e quietas, o peso da
273
politicagem. Só saíram do Caps em janeiro de 2013, quando estavam seguras de que
o órgão funcionava bem, nas mãos de uma equipe comprometida:
-- A gente saiu na melhor fase do Caps. Porque nós passamos muitos anos só
nós duas -- assegura a enfermeira.
-- A gente tem que saber a hora de tirar o nosso time de campo e deixar as
pessoas virem com ideias novas, gás novo. Todo mundo falava, o Caps tem a sua
cara. Mas o Caps não tem que ter a minha cara, tem que ter a cara da saúde mental,
dos usuários. Aí eu falava, está na hora de eu sair mesmo. A contribuição que eu tinha
que dar eu já dei.
-- Quando eu fui comunicar que eu ia sair, muita gente falou, e aí, você
cansou? Não gosta mais de saúde mental? Não, eu não briguei. Amo, não deixei de
pensar nela. Mas achei que meu trabalho estava concluído naquele momento. Achei
que estava na hora de eu sair, eu não abandonei o navio. Luanna, sabe, a gente
passou por vários momentos no Caps, vários perrengues, várias dificuldades,
momentos que dava vontade... Sabe quando você se vê sozinha? Dentro da rede
mesmo, o Caps sempre é meio que marginalizado.
Por causa desta vivência dentro do centro, incluir o Caps na rede mais ampla
de saúde tornou-se uma das finalidades de Tamara em seu novo trabalho como
funcionária de Recursos Humanos na Secretaria de Trabalho, Educação e Saúde. Sua
atuação foi fundamental para que, em 2013, acontecesse em Canaã dos Carajás a
primeira passeata de usuários e funcionários do Caps no 18 de Maio, o Dia Nacional
274
da Luta Antimanicomial. Ela não participou do evento, mas, na manhã seguinte,
recebeu agradecimentos de vários pacientes.
Uma característica que a ajuda nesta tarefa é o fato de o Caps ter excelência
em atendimento no município. Não chegam críticas em relação ao órgão na
Secretaria. Só elogios. E a psicóloga atribui esta virtude à maneira como Geraldo
sempre orientou seu apoio matricial -- conduzindo sessões de terapia comunitária,
realizando capacitações e treinamentos em outras unidades de saúde, debatendo a
abordagem na crise, valorizando a família e a comunidade, acreditando no tratamento
multidisciplinar e, sobretudo, implementando o acolhimento.
275
Tamara, à esquerda, e Luanna, à direita. Crédito: Alice Arida
276
-- A consulta não tinha um tempo. Era o tempo que o paciente precisasse. A
gente já chegou a ficar horas com um paciente dentro da sala. Não importava, era o
tempo que precisasse. Às vezes ele falava assim, Tamara, vai com ele na outra sala,
conversa com ele, depois você volta para a gente continuar a consulta. Então ela ia,
depois voltava, a gente não tinha hora pra parar. Só tinha a hora de começar. Eu
nunca conheci ninguém que fizesse isso. E me ensine, que ensinou a gente a fazer
isso, igual ele ensinou. O tempo não é nosso, o tempo é deles [dos pacientes], a gente
está aqui para eles.
-- Ele sempre dizia que não é o CID [Código Internacional de Doenças] que a
gente tem que tratar, mas o que vem acontecendo com a pessoa. Porque é muito mais
fácil você dizer o que a pessoa tem e passar um remédio, do que tentar observar todo
dia uma coisa diferente.
Este foi um longo processo de aprendizado que ela atravessou desde que foi
indicada para a vaga de enfermeira no Caps, em 2010. Em seu primeiro dia no cargo,
Luanna, que desconhecia o trabalho da equipe de saúde mental, adentrou o local
usando jaleco branco e sapatos de salto alto. Hoje, ela brinca:
-- Ainda bem que era dia de reunião da equipe. Porque senão eu tinha passado
vergonha.
Na ocasião, ela foi abordada por outros servidores, que a aconselharam a usar
roupas coloridas e pessoais, pois a roupa branca remetia aos pacientes a realidade
dos manicômios. E também que, no Caps, a verticalidade não era valorizada: todos da
equipe faziam um esforço para que o tratamento fosse o mais horizontal possível.
Este aprendizado fica visível em sua fala. Quando pedi para Luanna me listar
os funcionários mais importantes do Caps, ela diz:
Com toda esta evolução, Luanna teve, finalmente, sua prova de fogo em uma
véspera de Ano Novo. Era 31 de dezembro e um paciente que estava com depressão
surtou. O homem era segurança de uma agência bancária e havia pego seu revólver e
277
apertado o gatilho algumas vezes. A polícia estava no local e acionou Luanna, já que
Tamara estava de férias.
A enfermeira acabara de descobrir que estava grávida, mas foi. Com Geraldo
ao telefone durante todo o tempo, conduziu a situação até o homem dar entrada no
hospital. Ela se arriscou e não se arrepende. Pelo contrário. Enche-a de alegria e
satisfação contar-nos que, hoje em dia, o homem faz academia junto com ela:
-- É que ele não acreditou no diagnóstico que a gente tinha dado. Ele achou
que era só uma tristeza, pronto, e vai passar. Todo mundo acha que é doido, porque
vai no Caps é louco, porque toma remédio do Caps é louco, porque vai no psicólogo é
louco, e não é. É só um momento da vida, é uma doença que está passando naquele
momento. Igual qualquer outra. Se você fizer o tratamento, você leva a vida normal.
Em 2012, Carlão foi trabalhar como diretor sindical. Ele passou a coordenar o
setor de Comunicações do Sindicato de Servidores Públicos de Parauapebas
(Sinseppar). Em sua gestão, o órgão passou de 180 para 1.230 filiados. São números
que comprovam que Carlão faz um bom trabalho -- por isso, no novo mandato, foi
278
eleito vice-presidente do órgão. Há nesses números, porém, outra característica de
sua personalidade que não se evidencia tanto: Carlão trabalha demais. Ele se
sobrecarrega de atividades. De propósito. Desde a hora em que acorda até a hora de
dormir, não para. Faz isto, ele explica, para dosar a sua condição de bipolar.
-- Eu falo que a minha bipolaridade veio com defeito, porque eu tenho mais
euforia do que depressão. Depressão, eu quase não sei o que é isso. Em geral tem
oscilação, só que a minha só fica na euforia... Eu reclamo, mas ninguém corrige ela --
brinca.
Foi em Parauapebas que Carlão teve seu primeiro surto. Corria o ano de 2006
e ele ainda estava casado com sua ex-mulher. Na ocasião, foi encaminhado para
Belém e ficou 15 dias internado no Hospital de Clínicas Gaspar Vianna. Ele não entra
em detalhes, mas deixa entender que não foi bem tratado neste período -- conta,
superficialmente, que foi amarrado e sedado. Depois da alta, retornou a Parauapebas
e passou a ter acompanhamento com uma psiquiatra que atendia no particular.
Segundo Carlão, a cada consulta a médica aumentava a dose de seu medicamento.
Isto o fazia se sentir seguro, pois acreditava que o remédio estava “tomando conta”
dele. Como consequência, ele se “soltava” mais. E, nisto, surtou de novo, dois anos
depois -- um surto que ele atribui ao excesso de medicação. Carlão foi, mais uma vez,
encaminhado para o Gaspar Vianna, onde permaneceu por 25 dias.
Pergunto como ele sente o processo do surto. Nas palavras dele, a pessoa
com transtorno bipolar vai do céu ao inferno em frações de segundo. Como, no caso
dele, ele sente mais euforia, explica:
279
Carlão atravessou todo esse processo para sair de seu segundo surto, em
2008. Quando finalmente teve alta do hospital, depois de quase um mês, ele retornou
ao sul do Pará decidido a procurar alternativas ao tratamento em consultório particular.
Nesse mesmo ano, Canaã dos Carajás inaugurava seu Caps. Carlão foi de encontro a
ele. E foi amor à primeira vista.
No Caps de Canaã dos Carajás, Carlão se consultou pela primeira vez com
Geraldo. Apesar de morar em Parauapebas, o belenense andava, naquele ano de
2008, trabalhando em Canaã como analista de sistemas. Todo dia, ele percorria os 65
quilômetros de estrada que separam os dois municípios para trabalhar na prefeitura e
280
frequentar o Caps. Por isso, quando conheceu Geraldo, ele ainda se consultava com
outro médico:
281
Quando assumiu a vice-presidência do Sinseppar, Carlão deixou de contribuir
com a ONG. Ficou difícil conciliar os dois trabalhos. Mas o xadrez continua entre as
principais atividades da Aliança Carajás. E não é por acaso. Logo no início da
conversa, descobrimos que Carlão é fascinado pelo jogo. Ele conta que possui um
tabuleiro de madeira de lei e que faz questão de ensinar xadrez aos outros, sobretudo
às crianças. Para ele, esta é uma ótima oportunidade para reunir as pessoas. Pois
Carlão se preocupa com o ritmo de nossa sociedade, em que tudo é instantâneo, não
há diálogo e as televisões e outras tecnologias ocupam o espaço das antigas
conversas. Este é um “problema de saúde mental”, como ele define, que tentou sanar
por conta própria, estimulando a prática de xadrez em diversos territórios de
Parauapebas e Canaã.
Por exemplo, a longo prazo, Carlão já aceitou que deve continuar a tomar
remédios controlados. E ele é bastante rigoroso quanto a isso. Não passa um dia sem
tomar suas medicações, e nem cogita parar:
Com todo esse protocolo de ritmo de vida e todo esse controle de remédios,
Carlão parou de ter crises. Hoje, consegue levar com tranquilidade sua família, seu
trabalho, seus amigos e o tempo para cuidar de si. Muitos conhecidos nem sabem que
é portador de transtorno mental. Outros não acreditam, como ele nos relata:
-- Muitas das vezes, quando as pessoas dizem, Carlos, mas tu não é doido, aí
eu digo, o problema não é que eu seja doido, eu sou, eu tenho transtorno mental. O
problema é que você não sabe o que verdadeiramente é uma pessoa com transtorno
mental. Você está acostumado a ver uma pessoa dopada, sedada, babando.
282
Eu mesma me admiro com Carlão, com sua história, com suas ideias, com sua
força de vontade. Decido perguntar se ele acha que melhorou desde a época em que
teve suas crises, alguns anos atrás. E, mais uma vez, sou pega de surpresa:
-- Eu acho que eu tenho piorado. É, nossa, mãe, depois que tirei minha
carteirinha de doidão, não tem coisa melhor, não. Me assumi, me aceitei. Eu tenho
orgulho de ser doido. Eu digo, nada melhor do que quando você sabe o que você tem
para você começar a se entender, a se cuidar e ter uma vida com qualidade. Quem
tem pressão alta, quem tem diabetes, a partir do momento em que se encontra, passa
a ter uma vida supostamente normal. Não é porque a pessoa tem diabetes que não
pode comer açúcar, não pode comer mais pesado. Mas, se vai comer mais pesado,
ela se aplica uma dose de insulina previamente, para compensar. Então, depois que
eu me descobri enquanto bipolar, eu pude ganhar qualidade de vida.
Carlão garante que não se permite ficar pior. Diz que todos os seus amigos e
familiares o conhecem e o alertam, a pedido dele mesmo, quando percebem alguma
curva fora de seu rtimo normal. Ele, então, se direciona imediatamente ao Caps.
Dessa forma, vai atravessando seus dias, do jeito que é e como quer ser. Doido
profissional.
283
17. O começo de um fim
I did it my way”
284
A distância entre os nossos olhos é a distância de uma mesa de madeira, com
toalha branca de renda. Entre nós, não há gravador, apenas um computador, onde
vou anotando o que ele me diz. Já vão três anos que nos conhecemos, e posso intuir
o que ele sente naquele momento -- uma angústia, uma vertigem, aquele aperto no
peito, a sensação de desorientação quando não sabemos muito bem como proceder.
E como será tudo no futuro. É por isso que, naquele instante, ele não me diz nada.
Permanece imóvel, calado, o olhar fixo em um ponto indeterminado da sala.
Finalmente, depois de alguns segundos demorados, ele diz:
O filme em questão é Mil vezes boa noite, em que a atriz francesa Juliette
Binoche interpreta uma bem-sucedida fotógrafa do ramo jornalístico. Ela retrata vários
conflitos políticos e econômicos mundiais, sobretudo na África e Ásia, mas entra em
crise quando busca conciliar profissão e família, pois tem marido e duas filhas.
Um trabalho que, agora, é olhado pelo retrovisor. Um tempo que já foi e cujo
percurso, intenso e apaixonado, resta apenas na memória:
-- Eu olho para trás e não sei como eu fiz tudo o que fiz. Foi uma loucura. Uma
euforia. Foi como um surto que durou muito tempo.
Se foi loucura, não foi por acaso. Geraldo sempre foi guiado por um sentimento
de revolta, de indignação, de raiva, diante de uma sociedade desigual. Desde a época
285
em que era apenas um estudante de Medicina, e ao longo de sua trajetória, acabou
criando o seu modo particular de entender a profissão que escolheu para si.
-- Eu sempre achei que fazer Medicina era atender o sofrimento do outro, esse
outro o mais carente possível. Porque o sofrimento me motiva. Me motiva até para
fazer poesia, imagina para cuidar do outro. Eu acho que cuidar do outro é um ato
poético. É uma coisa que nasce de dentro, vem da alma para fora. É o querer, o
gostar, a compaixão, a solidariedade, a mudança. É querer se mudar mudando o
outro. É olhar para a pessoa com os olhos dela, e ela te olhar de volta com os teus
olhos.
-- Lendo o livro, eu fiz um mergulho, e não foi fácil. Não é fácil mergulhar na
minha vida. A impressão que me dá é que eu, o tempo todo, também me coloco como
paciente, como sendo tratado. Me vestindo igual a eles, falando igual a eles, me
identificando com alguns sofrimentos. Eu acho que eu até esqueci de falar, de
escrever. Quantas vezes eu esqueci que eu era médico? Quase que sempre. Eu tinha
que me policiar, me lembrar que eu era médico. De tanto viver a miséria do outro, a
miséria do corpo, não da alma. De tanto me envolver, sem supervisão, sem nada, eu
acho que eu acabei virando um deles. Foi essa a conclusão que eu cheguei, que eu só
consegui fazer tudo isso, porque eu passei a ser um deles. Porque eu corri, na
verdade, atrás do meu tratamento. Da minha transformação. Do meu renascimento.
E o médico que reencarnou tantas e tantas vezes agora não sabe para onde ir.
Está perdido, angustiado, apesar de ter realizado tantos sonhos. De ter vivido tantas
vidas.
-- É uma coisa que está no sangue, é como uma droga, você fica dependente.
Há tempos o psiquiatra busca um colega para entrar em seu lugar. Ele chegou
a influenciar a trajetória de um médico, Wilson Zielak Jr., que decidiu se especializar
286
em Psiquiatria após conhecer Geraldo. Os dois se encontraram em Canaã dos
Carajás, mas Wilson decidiu se mudar para Maceió para dar continuidade a seu
trabalho.
-- Estou todo suado, acabei de sair de uma sessão de terapia comunitária que
durou duas horas no Caps.
-- Estou querendo voltar para casa. Eu não tenho mais pique. Não tenho mais
o gás de antigamente. Estou nesse conflito: quero parar e não quero parar. Estou
parando, mas não estou. Como largar isso? Falo, chega, não tem por que mais ficar
fazendo isso. E, quanto mais eu quero ir embora, mais as pessoas ficam me
procurando. É droga: olha, tem uma cocaína de última geração. Enquanto você
conviver com esse estado de miséria, de ausência do poder público… E eu preciso me
curar disso.
São esses alguns dos dilemas que têm atormentado a mente de um médico e
de um poeta que sempre trabalhou em pró dos outros. Por isso, nas últimas vezes em
que me encontrei com Geraldo, em São Paulo, senti essa angústia em seus olhos.
Uma angústia expressa em sua pergunta mais urgente:
-- Eu quero que outras pessoas me substituam. Mas quem são esses outros?
Não tem.
287
Não, não há.
E não haverá.
288
Anexo
Presidência da República
Casa Civil
289
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
290
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico
circunstanciado que caracterize os seus motivos.
291
Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão
ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante
legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao
Conselho Nacional de Saúde.
Jose Gregori
José Serra
Roberto Brant
292
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BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos - memórias. São Paulo: Editora Brasiliense,
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BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São
BRUM, Liniane Haag. Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia. Porto
CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. São Paulo: Lemos Editorial, 1993.
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Cuidados pela Vida: crônicas e receitas de saúde no Brasil. Editores Ana Augusta
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GONDIM, Maria de Fátima. A Comparative Study of the English and Brazilian Mental
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Arruda Câmara Cabral; Ariel Pheula do Couto e Silva; Daniella Vânessa Abrantes
MARTINELLI, Pedro. Amazônia: O Povo das Águas. São Paulo: Terra Virgem, 2000.
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PINTO, Lúcio Flávio. Hidrelétricas na Amazônia: predestinação, fatalidade ou
PINTO, Lúcio Flávio. Tucuruí: A barragem da ditadura. Belém: Edição do autor, 2010.
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