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Mira Schendel
do espiritual à corporeidade
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Geraldo Souza Dias
Mira Schendel
do espiritual à corporeidade
COSACNAIFY
LEI DE
INCENTIVO
A CULTURA
MINISTÉRIO
DA CULTURA GOVERNO FEDERAL
É com grande orgulho que a Oi, através de seu programa de patrocínios
culturais, oferece à memória nacional e aos pesquisadores das artes a obra
Mira Schendel — Do espiritual à corporeidade.
Certa vez, em entrevista, Mira Schendel afirmou: “Meus desenhos são
feitos para ser vistos e não falados. A obra de arte tem de falar por si”. Pode-
ríamos completar: a obra de arte que logra falar por si é aquela que mobiliza
críticos de alto nível. Neste livro, Geraldo Souza Dias recupera a trajetória de
Mira Schendel e nos sensibiliza para conhecermos melhor essa grande artista
brasileira do século xx.
Oi
Uma obra valiosa, Andreas Haus I9
Introdução 23
Mira e a transparência
O silêncio visual
Jung e a acausalidade
1 Ching
Mandalas
Uma curva febril
Sistema da filosofia de Hermann Schmitz
Corporeidade e multiplicidade caótica
Mira e a fenomenologia de Schmitz
Uma espiral de Arquimedes contra o céu
Datiloscritos
Objetos gráficos e transformáveis
Cadernos: correntes sucintas de pensamentos
Toquinhos ou pequenos retângulos
Paisagens
Sarrafos
Sobre o autor
Bibliografia
Índice onomástico
Uma obra valiosa
No ano 2000 o artista e historiador de arte Geraldo Souza Dias apresentou à Universitãt
der Kiinste Berlin uma extensa dissertação acerca da obra de Mira Schendel, que, publi-
cada como livro na língua alemã, é reconhecidamente uma contribuição inaugural
da apreciação internacional, ou melhor, da redescoberta desta artista brasileira. O livro
aqui apresentado originou-se dos fundamentos desse trabalho.
Mira Schendel foi uma artista pensadora, que se atreveu a aproximar-se tanto dos
segredos espirituais e religiosos de sua pátria de adoção, o Brasil, como dos movimentos
intelectuais e teológicos da filosofia europeia do pós-guerra. O livro de Geraldo Souza
Dias é um trabalho pioneiro pela exatidão da pesquisa sobre as relações que Mira Schendel
cultivou com importantes intelectuais e pensadores de ambos os lados do Atlântico. Para
a história intelectual alemã isso tem um significado muito especial. Pela primeira vez são
trazidas à luz as até então desconhecidas correspondências que ela manteve com filósofos
alemães como Max Bense e Hermann Schmitz, que enriqueceram a história ilustrada do
intercâmbio intelectual e artístico entre o Brasil e a Europa com um capítulo fascinante.
Esse intercâmbio foi tema vital da arte de Mira Schendel, que em 1949 chega como
imigrante a Porto Alegre, estabelecendo-se em São Paulo em 1953. Seus diários docu-
mentam tal relação, bem como seu diálogo filosófico com o círculo de imigrantes
radicados no Brasil e suas viagens em busca das lideranças intelectuais de destaque da
Europa do pós-guerra. Geraldo Souza Dias descreve essa procura da artista por reco-
nhecimento filosófico e por acolhimento com profundo entendimento.
Observando-se com atenção o modernismo brasileiro, ilumina-se notavelmente em
seu centro um conceito que talvez somente no Brasil desempenhe um papel de desta-
que: poéticas visuais. É conhecida a proximidade da arte concreta brasileira com a fisi-
calidade das letras, por meio da qual a imagem é transposta em construções estruturais
precisas, frequentemente numa poesia concreta totalmente autônoma. Mira Schendel
situa-se, de certo modo, tanto no centro como no limite dessas poéticas. Ela ama o
sinal gráfico desenhável; rechaça, porém, o construído, preservando assim tanto para
o espaço pictórico-imagístico como para o signo abstrato uma vida reiteradamente
pulsante e mutuamente penetrável e uma comunicação existencial (Karl Jaspers).
O autor consegue transmitir verdadeiramente a profunda responsabilidade assumida
por Mira Schendel em total consonância com sua própria época, na qual ela envida seus
esforços na busca intelectual pela beleza viva, infalível, de máxima presença espiritual
e de máxima transparência. Ao situá-la em meio a distantes paralelos europeus — arte
zero, arte povera, minimal art —, ela deverá forçosamente ser reconhecida como uma
personalidade autônoma e proeminente.
O livro de Geraldo Souza Dias pode ser considerado uma contribuição quase con-
genial ao profundo entendimento da artista.
Andreas Haus
Berlim, dezembro de 2007
19
Introdução
Theon Spanudis'
Este livro é uma tentativa de apresentar a obra e as ideias de Mira Schendel. Ainda que
seus trabalhos tenham sido expostos em galerias europeias desde a década de 1960, sua
vinculação sociocultural específica dá-se com a recepção dos mesmos pela historiogra-
fia recente da arte brasileira.
As suas exposições, inicialmente em Porto Alegre, em 1950, e depois em São Paulo,
a partir de 1954, sempre despertaram na crítica um interesse crescente. Sua arte
foi a princípio interpretada como uma derivação das correntes construtivas que se
desenvolviam no Brasil nos anos 1950 e, posteriormente, como produto da notável
ruptura dessas tendências; no início dos anos 1980, alinhava-se, por semelhanças
formais, com o minimalismo norte-americano. Todavia, nenhuma dessas pondera-
ções abrange exaustivamente o pleno significado da arte de Mira, tampouco explica
sua repercussão.
A abstração geométrica incorporada pelos artistas, muitos de origem europeia, seria
assimilada, segundo expressão da década de 1950, como um dos fatores que traziam o pro-
gresso. Em oposição a esse entendimento positivista, a obra de Mira desenvolve-se com
base em pressupostos espirituais. Suas pesquisas artísticas fundamentam-se em reflexões
filosóficas que ela deixa registradas em escritos fragmentados, espalhados em diários,
cadernos e cartas. Nessa sobreposição disciplinar reside muito da atualidade da obra.
O conhecimento do alemão possibilitou a Mira contato com intelectuais desse
idioma. Ela manteve intensa correspondência com os filósofos Jean Gebser e Her-
mann Schmitz, vindo a conhecê-los na segunda metade das décadas de 1960 e 1970,
respectivamente, quando passou a viajar para a Europa regularmente. Na fase em que
escrevia, datilografava e decalcava letras sobre papel, aproximou-se também do poeta
concreto Haroldo de Campos, que, no primeiro retorno da artista à Europa, em 1966,
apresentou-a ao esteta Max Bense e à semióloga Elisabeth Walther.
Mira também se tornou amiga do filósofo Vilém Flusser, que viveu no Brasil entre
1940 e 1972. Influências produtivas recíprocas evidenciam-se nos textos do filósofo em
que são discutidos conceitos com os quais a artista operava, e os trabalhos de Mira
> po)
Objeto gráfico, 1972
letraset entre duas placas de acrílico,
95 x 95 cm
col. particular, São Paulo
também proporcionaram elementos significativos às reflexões de Flusser sobre cultura
e linguagem.
À progressiva valorização da obra de Mira no Brasil carece, no entanto, da con-
sideração de seus embasamentos teóricos, indispensável para a correta classificação
da artista na história da arte mundial recente. Em seus últimos anos ela associou seu
trabalho ao conceito de corporeidade, de acordo com os postulados da fenomenologia
de Schmitz, o que fez com que parte da crítica e da história da arte brasileira contem-
porânea, essencialmente voltada para a recepção formalista da abstração, reagisse sin-
tomaticamente, conferindo-lhe atributos materialistas, ou matéricos. Em suas reflexões
filosóficas, contudo, Mira ocupa-se também de questões espirituais. A defasagem de
uma historiografia unilateral da modernidade desconsideraria esse fato, com a conse-
quente hipervalorização dos aspectos formais de sua arte.
O estudo da obra de Mira permite traçar um corte analítico na história da moderni-
dade brasileira e suas relações com a arte europeia, e retomar a discussão do vínculo entre
arte abstrata e espiritualidade. No debate artístico do pós-guerra europeu, os anseios
de artistas modernos por uma relação harmoniosa entre o homem e o cosmo foram
qualificados como irracionalismo, remetidos às experiências dos regimes totalitários der-
rotados, reprimindo-se sua discussão. Pesquisas recentes sobre a vanguarda do século xx
trouxeram novos parâmetros, como o questionamento da exclusão de temas considera-
dos tabus nos estudos da arte. Tal revisão, desde o início da década de 1970, vem transfor-
mando paulatinamente a historiografia da arte moderna.
A obra de Mira é apresentada com base nas teorias da arte abstrata que não tratam
apenas das questões formais, mas também daquelas relacionadas à significação. Nesse
sentido, pesquisou-se seu enraizamento na cultura europeia e suas relações com o
ambiente cultural brasileiro. As transformações nas formas de representação foram
vinculadas ao conceito de transparência, adotado por ela nos anos 1960, e ao de cor-
poreidade, introduzido posteriormente e que teria trazido a opacidade como antítese.
Para estabelecer uma correlação entre as visões de Mira sobre arte, teologia, filosofia e
cultura, são discutidos alguns conceitos da fenomenologia e da teoria da comunicação
e é analisada sua eventual transposição aos trabalhos da artista. Apresenta-se aqui uma
análise pormenorizada do contexto em que sua obra foi produzida, com base em pas-
sagens das cartas e dos seus diários ainda inéditos.
1. Da Suíça para o Brasil
Até a segunda metade do século x1x, os judeus da Boêmia — atual República Tcheca —
agrupavam-se em pequenas comunidades e falavam tanto tcheco como alemão. Para
não ser confundidos com os judeus da Europa Oriental, designavam-se centro-europeus
ou europeus ocidentais, quando não se identificavam com uma nacionalidade específica
— a tcheca, a alemá ou a austríaca.
Embora uma tolerância excepcional tenha caracterizado o contexto judaico boêmio
até então, por volta de 1850 a situação se deterioraria consideravelmente: o naciona-
lismo sairia fortalecido dos movimentos democrático-burgueses e o espírito progressis-
ta do Iluminismo não mais conseguiria vencer o antissemitismo.?
À fase europeia da vida de Mira foi marcada pela perseguição ao povo judeu. Seu
pai, Karl Leo Dub (Varnsdorf, 1891 — local e data desconhecidos), era de uma famí-
lia judia, proprietária de uma pequena tecelagem em Varnsdorf. A mãe, Ada Saveria
Bittner (Nápoles, 1896 — Brescia, 1979), também era de procedência judaica. Filha
de um alemão protestante, Max Friedrich Alex Biittner (Dresden, 1862 — Milão, data
desconhecida), e de mãe italiana, Amelia Muggia-Bittner (Milão, 1868 — Milão, 1929),
proveniente de família judia de Nápoles convertida à fé cristã. Em 1893, Max casou-se
em Florença com Amelia, estabelecendo-se em Milão em 1897. Em 1915, o casal e as
filhas, Ada Saveria, Elena e Lea, transferiam-se para Zurique.
O primeiro registro de Karl Dub em Zurique data de 3 de agosto de 1915, e o da
família Biittner, de 27 de novembro de 1915. Karl Dub é citado como comerciante de
tecidos e Max Biittner, como representante comercial. Quanto à religião, Karl Dub é
registrado como mosaico, enquanto os Biittner declaram-se reformados. Ada Saveria
é relacionada como evangélica e modista de profissão.
Wilma Iggers, Die Juden in Bôhmen und Máhren. Munique: Beck, 1986, p. 16.
Idem, Ibidem, p. 144,
Knut Schendel, Mira Schendel, inédito, sem data, p. 1.
Ao
Mo
=o Dados dos cartões do Departamento de Registro Populacional [Einwohnermeldeamt] de Zurique, Arquivo Municipal de
Zurique. Para Karl Dub n. 56936, de 3.8.1915, n. 41985, de 19.7.1917, e n. 37736, de 24.11.1917; para Max Frie-
drich Alex Búttner n. 92705, de 7.1.1918: para Amelia Muggia-Búttner n. 44411, de 19.1.1918, e para Ada Saveria
Irmgard Búttner n. 41192, de 13.3.1917. Não foi possível localizar os primeiros cartões de registro da famíla Buttner.
Myrrha Dagmar Dub
Willy Guggenheim, Wege zur Gegenwart: Die Schweizer Juden zwischen 1920 und 1945, in Willy Guggenheim (org),
Juden in der Schweiz: Glaube, Geschichte, Gegenwart, Zurique: Kúrz, 1982, p. 70.
Aaron Kamis, Antisemitismus in der Deutschen Schweiz 1918-1980, trabalho de licenciatura (inédito) apresentado à
Universidade de Zurique, 1980, p. 38.
Cartão de registro n. 47660 de Karl Dub, 4 dez. 1918, Arquivo Municipal de Zurique,
Com base nos cartões de registro, não fica claro se Ada Búttner Dub, entre a partida de seu marido e a sua própria,
teria também viajado a Berlim por breve tempo. Em função da viagem de seu marido, fora-lhe emitido um cartão
autônomo e, de acordo com este, ela teria regressado a Zurique proveniente de Berlim, em 283 de junho de 1920, para
visitar suas crianças (!) [Besuch der Kinder.
| Em virtude do bombardeio de Berlim em 1945, pouco sobrou do registro populacional da época.
10 K. Schendel, op. cit., p. 1.
Myrrha, Myrha, Mirha, Mirka, Mirra
Mira, como seu nome foi-se simplificando, cresceu no norte da Itália, e a primeira
língua que aprendeu foi o italiano. De acordo com Knut Schendel, ela teria mantido
boas relações com a família do pai, viajando com frequência à Boêmia nas férias esco-
lares.'' Tais visitas lhe teriam proporcionado familiaridade com a língua e a cultura
alemãs e noções básicas da vida judaica. Em Milão, Ada Biittner conheceu o conde
Tomaso Gnoli'? (Roma, 1874 — Roma, 1958), poeta e bibliotecário, com quem, em
1937, se casaria. Entre 1925 e 1938, ele foi diretor da Biblioteca Nazionale Braidense,
quando morou num apartamento no Palazzo di Brera. Este imponente edifício barro-
co, que, além da biblioteca, abriga a pinacoteca, a escola de belas-artes, o observatório
astronômico e, no pátio, um pequeno jardim botânico, teria marcado a infância e a
adolescência de Mira. A esse quadro juntam-se relatos sobre uma infância melancólica,
triste e solitária. Na época, ela teria vivido em vários internatos nos arredores de Milão
e recebido uma educação religiosa:
Parece-me — pensando agora — que desde criança eu era uma “pessoa” séria e preocupada.
Passei a infância e a adolescência com muita liberdade, mas na maior solidão. Antecipei as
fases da vida, para meu prejuízo e surpresa dos outros. Mas o que se há de fazer?
Personalidades do alto clero da Igreja Católica teriam marcado sua vida desde a
infância. Segundo Edith Flusser, Mira contava com frequência a seus amigos em
São Paulo que, quando criança, havia sentado no colo do Papa.” O que à primeira
vista soa como simples gracejo pode ser interpretado factualmente, de acordo com
o depoimento do advogado José Bueno de Aguiar, amigo íntimo de Mira, e com as
pesquisas efetuadas. Num bilhete sem data, com cabeçalho da Segreteria di Stato
di Sua Santitã e assinado informalmente, um certo Pinocchio desculpa-se por não
poder escrever diretamente uma carta de recomendação, o que poderia ser interpre-
tado como abuso de poder. Esse bilhete teria acompanhado uma carta confidencial
que Mira entregaria a um monsenhor em sua chegada a Porto Alegre, sendo assim
indiretamente recomendada.
Diversas circunstâncias na vida de Giovanni Battista Montini (Brescia, 1897 — Cas-
telgandolfo, 1978) fazem supor que ele, quando era estudante e ativista da Federazione
Universitaria Cattolica, poderia ter conhecido o conde Tomaso Gnoli em Roma, então
diretor das bibliotecas Angelica e Casanatense. Mais tarde, em uma de suas viagens a Bres-
cia, o monsenhor Montini teria passado por Milão e visitado o conde, no Palazzo Brera.
Idem, ibidem.
A
12 Tomaso Gnoli (Roma, 1874 — Roma, 1958) foi curador da Accademia Tiberina Toscana, diretor das bibliotecas Angelica
e Casanatense, em Roma; Braidense (Brera), em Milão; e Estense, em Modena. Como literato, escreveu poesias (Prime
rondini, Florença, 1898; Canti di sogno, Roma, 1926; ldilierotici, Milão, 1934; | dodici mesi, Roma, 1948; lo non posso
morrire, Gênova, 1953, muitas vezes sob o pseudônimo Baldi Bruno), críticas literárias (Satire e le Commedie scelte von
G. Giraud, Roma, 1904) e traduziu para o italiano, entre outros, Goethe, Mórike e Vossler.
13 Mira Hargesheimer, carta a caro Francisco. Porto Alegre, 20 nov. 1951
14 Edith Flusser, depoimento ao autor, Munique, 14 fev. 1997
Afeiçoando-se à pequena e graciosa Mira, ele a teria colocado em seu colo.'º Em 1954,
Montini foi nomeado arcebispo de Milão e eleito papa em 1963, sob o nome Paulo
v1.'º Outro indício desse relacionamento, e que também mostra a assimilação da mãe
de Mira ao catolicismo, é o fato de Ada Gnoli — ela passou a chamar-se assim a partir
de 1937 — haver-se transferido para Brescia após a morte do conde Gnoli, em 1958,
tendo ali vivido seus últimos anos, próxima à família Montini.
Pode-se afirmar com certeza que valores cristãos marcaram a educação da pequena
Mira. Nas inúmeras cartas à filha, Ada Gnoli deixa transparecer um sentimento cris-
tão severo, bíblico, que alia profunda devoção a um engajamento social de inspiração
católica. Uma única carta falaria de sua tentativa, já em idade avançada, de se aproxi-
mar do judaísmo:
E screvi em novembro
b ao rabino
bino dede Mil,Mitão — não sei seu nome — para aproximar-me um
pouco de Israel. Após um mês e meio respondeu-me seu suplente (um homem pouco gentil
e pouco espiritual), uma vez que seu superior adoecera."
As relações de Mira com o alto clero católico — úteis durante a guerra — foram mantidas
ainda por muito tempo também no Brasil. De acordo com uma carta dela a dom Luigi
Hudal, bispo de Ela, em Roma, Mira frequentou um curso de arte, na escola da via Fonta-
nesi, em Milão, de 1930 a 1936, quando ali também estudou o pintor Ennio Morlotti.'
Morlotti, como eu, passou pela via Fontanesi. Era mais maduro do que eu, talvez tenha-
lhe permanecido algo de tudo aquilo. Seja como for, não me consta que outros que por ali
passaram dediquem-se hoje à impropriamente denominada “arte pura”'º
30
Europa Central sob domínio nazista
Regio decreto-legge 17 novembre 1938 — XVII, n. 1738 — “Provvedimenti per la difesa della razza italiana”, apud Mi-
chele Sarfatti (org.), 1938: “Le leggi contro gli ebrei”. Edição especial de La Rassegna Mensile di Israel, Roma: Unione
delle Comunita Israelitiche Italiane, out. 1988, Capo Il, art. 8, b): “[...] é considerado de raça judia aquele que nasceu
de pais um da raça judia e outro de nacionalidade estrangeira”
A matrícula de Mira Dub na Universitá Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, não pôde ser comprovada por causa da
destruição de seus arquivos durante a Segunda Guerra Mundial.
Informazione diplomatica n. 14, de 16 fev. 1938. Renzo de Felice, Storia degli ebrei sotto il fascismo. 4º ed. Turim:
Einaudi, 1988.
Mira trouxe a certidão de batismo para o Brasil quando emigrou. Durante a ditadura de Getúlio Vargas (1937-45)
esse documento era indispensável para quem procurava asilo, Esse pré-requisito foi abolido após o fim da Segunda
Guerra Mundial
Sobre as experiências dramáticas vividas durante a guerra, Mira falaria apenas com
alguns amigos íntimos. Dois depoimentos ligeiramente diferentes poderiam comple-
mentar-se para reconstruir o percurso de sua fuga pela Europa Oriental. Na opinião
de José Bueno de Aguiar, o monsenhor Montini, que de 1937 a 1952 foi secretário do
Estado do Vaticano, teria exercido sua influência diplomática para conduzir Mira a
um refúgio seguro. O fato de ela ainda manter contato com Montini em 1950 para
pedir uma carta de recomendação? dá crédito a essa hipótese.
Segundo depoimento de Knut Schendel, após o início da guerra Ada Gnoli teria
providenciado para que Mira fosse viver com uma tia em Sófia. Seu trajeto até a Bul-
gária, entretanto, teria sido interrompido, pois tropas alemãs haviam invadido a Hun-
gria. Obrigada a permanecer em Viena, ela teria se unido a um grupo de refugiados
que se dirigiam à Croácia via Eslovênia. Nesse percurso, eles teriam cruzado os Alpes,
numa região em que estes são relativamente baixos.? Durante esse tempo, Mira teria
ficado constantemente na companhia de croatas católicos, embora a situação dos
judeus a afligisse, conforme podemos ler em seu diário:
Eu vi em 1941 uma menina de 6 ou 7 anos jogar no chão um coelhinho, num vai-e-vem fre-
nético, até matá-lo. Como fizeram com crianças judias. Sempre que a vida for considerada
o sumo bem vai haver este escândalo.”
No arquivo de Mira consta ainda uma folha de papel datilografada com uma canção
em ídiche. Ao lado da letra, ela anotou que a havia ouvido de um pequeno aleijado
judeu do gueto de Lodz. Ainda que ache o texto feio e sem forma poética, ela consi-
dera a melodia desesperadamente bela e capaz de evocar as lembranças dos pogroms e
a tristeza da ortodoxia judaica.
Este depoimento sincero, um dos raros momentos em que tornou públicas suas ideias
políticas, provocou polêmica na pacata Porto Alegre. Mira guardou em seus arquivos
a carta de um fazendeiro de São Borja, de 20 de janeiro de 1950, que, sensibilizado por
seus relatos, ofereceu trabalho aos imigrantes recém-chegados.
Uma carta de sua mãe, do final de 1949, menciona uma pequena casa com jardim
em Porto Alegre.º Noutra, do mesmo período, ela está feliz por Mira poder dedicar-se
à cerâmica. Parabenizando a filha, sugere a abertura de uma pequena escola:
[...] Ao menos todos os sacrifícios que fiz para que você tivesse podido estudar valeram à
pena e você tem um trabalho criativo e de grande satisfação. Diga-me que gênero de dese-
nhos faz e que tipo de cerâmica usa. E como será sua exposição. Que alegria!”
Embora a mãe mencione cerâmica, esta não seria uma atividade de maior significado
no desenvolvimento artístico de Mira. Ela também se interessa por escultura: registra
haver iniciado em 20 de janeiro de 1950 sua primeira escultura. Nesse mesmo ano,
teria frequentado a Escola de Belas-Artes de Porto Alegre e assistido a cursos de dese-
nho de modelo e de escultura. À artista plástica Barbara Schubert [futura Spanudis],
que chegou a Porto Alegre em 1938 com a família e também frequentou a Escola de
Belas-Artes, relata as impressões de seu primeiro encontro com Mira:
Certo dia apareceu uma europeia recém-chegada que não falava português. Ela chamava
muito a atenção. Todos caçoavam dela. Perguntei então quem era ela: era Mira. Era como
uma ave rara, bela, algo severa, mas de ótima aparência.
De uma carta sem data da mãe, deduz-se que Jossip, mecânico de profissão, de acordo
com seus papéis de imigração, conseguira trabalho como professor numa escola técni-
ca profissional. Trata-se provavelmente de escola do Senai,? pois, numa foto da época,
Mira veste um avental com a sigla Senai no bolso. Ali ela teria aprendido técnicas grá-
ficas para trabalhar como desenhista na Tipografia Mercantil, em Porto Alegre, e mais
tarde na Companhia Melhoramentos, em São Paulo.
o “Imigrantes de hoje e brasileiros de amanhã”, Correio do Povo, Porto Alegre, 9 jan. 1950.
Ada Saveria Gnoli, carta a caro Puccio, 1º nov. 1949,
(op) Idem, ibidem, 28 dez. 1949.
Barbara Schubert-Spanudis, depoimento ao autor, São Paulo, 3 abr. 1997.
oo
do) Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.
36
Uma questão de vida ou morte
Mira começou a pintar em 1950, em Porto Alegre.'º Ela relataria que, apesar das difi-
culdades financeiras, comprava tintas a óleo baratas e pintava apaixonadamente. A pin-
tura seria para ela una questão de vida ou morte." Em outubro daquele ano apresentou
seus trabalhos no auditório do Correio do Povo. Esta sala firmara-se como local de
exposições do Grupo de Bagé,'? composto de artistas figurativos que, na avaliação local,
representavam as tendências modernas da arte. De acordo com Carlos Scliar, membro
do grupo, não havia nenhuma galeria de arte em Porto Alegre, então com menos de
so0 mil habitantes, e o auditório do Correio do Povo era o único espaço para mostras
de arte moderna.'?
Dezesseis quadros a óleo em pequeno e médio formatos configuraram sua
primeira exposição: retratos, naturezas-mortas e cenas urbanas. Uma resenha no
Correio do Povo caracteriza os trabalhos como melancólicos e associa-os à estéti-
ca do cinema neorrealista.'' Mas bastaria observar os raros trabalhos remanescen-
tes deste período ou fotos deles para constatar que Mira não fora influenciada
por aquele movimento. As intenções moralizantes dos trabalhos partem de uma
profunda interioridade, ausente no neorrealismo. Moral não é o conteúdo, mas
a busca de uma linguagem visual que, apesar dos aspectos construtivos já marcan-
tes, se aproxima das reivindicações éticas do expressionismo. Os retratos e as vistas
urbanas (cruzamentos de ruas e pátios internos) captam, respectivamente, os tra-
ços principais do retratado e o velho, o pobre e o tosco de certas áreas da cidade.
Mas as naturezas-mortas apresentam elementos que as tornam mais importantes
que as obras dos outros gêneros, logo deixados de lado pela artista. Ainda que os
retratos e as cenas urbanas possam ser entendidos como registros do novo ambien-
te, nas naturezas-mortas ela encontra motivo e pretexto para pintar, independente-
mente de contexto histórico ou geográfico.
O caráter sombrio predominante e a fixação intencional de duas dimensões,* comen-
tados na resenha do jornal, revelariam o caminho para a abstração, em breve tomado
pela artista. Esses trabalhos atestam acima de tudo um estilo pessoal na formaliza-
ção dos aspectos compositivos, no tratamento pictórico, na elaboração das camadas
de tinta e na substituição da perspectiva pela bidimensionalidade. Em algumas
naturezas-mortas o olhar do observador é atraído não para os objetos representados
— xícaras, frutas —, mas para as complexas repartições onde foram colocados. Uma
malha divisória ortogonal, traçada paralelamente às bordas do quadro, cria setores
espaciais, nos quais estão dispostos objetos ou, eventualmente, a figura humana.
Em carta da época, Mira mencionou ter interrompido a pintura aos 17 anos e tê-la reiniciado havia dois anos
Entrevista de Jorge Guinle Filho com Mira Schendel in “Mira Schendel, pintora — o espaço vazio me comove profunda-
mente”, Interview, São Paulo, jul, 1981
Seria incorreto falar de influência desse grupo no trabalho de Mira, pois em suas cartas de Porto Alegre ela afirma ter
trabalhado isolada. Entretanto, o grupo contribuiu para a abertura da vida cultural naquela capital,
Carlos Scliar apud Aracy Amaral, Arte para quê? — A preocupação social na arte brasileira - 1980-1970. São Paulo:
Nobel, 1984, p. 183.
14 Aldo Obino, “Pintora italiana que surge”, Correio do Povo, Porto Alegre, 17 out. 1950
15 Idem, ibidem
Tais seções guardam pouca relação com o espaço real e prenunciam futuras telas
abstratas. “Seus trabalhos nas exposições impressionaram-me bastante. Eram fortes
e novos para mim, bem diversos daquilo que se costumava ver em Porto Alegre”,!º
relata Barbara Spanudis.
Notável nos quadros deste período é a influência de Giorgio Morandi, cujo tra-
balho Mira provavelmente teria visto na Itália. Como as de Morandi, suas nature-
zas-mortas são inconvencionalmente redutivas, e teriam por objetivo a pesquisa do
olhar como direcionamento discriminatório da atenção a tatear fisicamente o mundo
e transmiti-lo ao pincel. Também para Mira, a natureza-morta teria sido uma forma
de meditação sobre o visível, à qual ela retorna repetidamente ao longo de sua vida.
Em 1953, em São Paulo, uma gravura de Morandi no bar do Museu de Arte Moderna
chamaria a sua atenção, conforme descrito em carta a um amigo.”
Um relativo sucesso acompanhou a artista em início de carreira: o marchand hún-
garo Desiderius Kiszely a teria posto em contato com Anna Maria Fiocca, uma das pri-
meiras galeristas a promover a arte moderna em São Paulo.'* Em 1951 ela recebeu uma
medalha de ouro no Salão Universitário Baiano de Belas Artes, em Salvador.'? Essas rea-
ções positivas a teriam encorajado a inscrever seus trabalhos na 1º Bienal Internacional
de São Paulo, no mesmo ano, tendo sido aceita. À participação na Bienal certamente
significou um fortalecimento de seus propósitos artísticos. Numa carta dirigida a “A”,
Mira critica a primeira Bienal, que, com a intenção de mostrar aos brasileiros as diversas
correntes da arte contemporânea, premiara, por meio de seu júri internacional, exclu-
sivamente a tendência abstrata.? Com essa crítica, Mira unia-se às vozes conservadoras
da época, que combatiam a abstração e achavam que a Bienal deveria ter premiado um
artista figurativo. Na mesma carta, ela fala de suas novas leituras (Miguel de Unamuno,
Léon Bloy e Blaise Pascal) e afirma que pinta não aquilo que vê ou sente, mas o que está
vivo em seu interior: “Não sei se minha pintura é grande, só sei que é arte”.?!
Em carta a dom Luigi Hudal, provavelmente o mesmo religioso citado no artigo
sobre sua exposição no auditório do Correio do Povo como o responsável por seu con-
tato com a arte moderna, a artista comenta a participação na 1º Bienal de São Paulo,
e pergunta por Ennio Morlotti, cujo nome ela lera no catálogo da mostra, e pelos
demais colegas da escola da via Fontanesi.
[...] A única pessoa de quem sei algo é Morlotti. Lembra-se dele? Era já um rapaz, num
tempo em que eu era ainda uma adolescente. Morlotti também expôs na 1º Bienal de
São Paulo. Talvez ele possa ter tido notícias minhas, através do catálogo, mas duvido, pois
agora uso o sobrenome de meu marido (ao contrário das artistas mulheres no Brasil, que
preservam seus nomes de solteira). Gostaria de ter notícias diretamente dele, caso o senhor
possa enviar-me seu endereço completo. [...) Imagino que as moças, todas mais velhas que
eu, já devem ter-se casado e tido filhos. Dos rapazes, sei de alguns que permaneceram
ligados à escola ou estariam trabalhando de acordo com seus métodos e estilos. Eu “parei”
de pintar aos 17 anos para recomeçar há dois anos. Comecei desenhando taças e vasos.
Terminei agora dois esboços de uma composição, que gostaria que tivesse 500 x 700 cm.
Vinte figuras com dois sóis enormes. Dia 1 de agosto terminou minha segunda exposição
individual em Porto Alegre.
Ela encerra a carta com uma citação do filósofo Soren Kierkegaard, em espanhol: “Sz
Dios significa que nada es imposible, entonces la fe significa que se ha puesto fin al reino de
la necesidad y de todos los tu debes petrificados que la necesidad ha producido”.º
Apesar do reconhecimento público — sua pintura fora premiada na Primeira Exposi-
ção de Arte Moderna de Santa Maria, em 1952, e no Primeiro Festival de Arte e Música
de Bento Gonçalves, em 1953 —, suas cartas mostram uma artista isolada e incerta sobre
continuar seu trabalho.
São de relevância alguns poemas que Mira escreveu na Itália e trouxe para o Brasil.
Estes versos registram a tentativa de trabalhar pensamentos artisticamente e atestam
sua habilidade em lidar com os elementos formais da poesia, transposta mais tarde
para o campo das artes visuais.
À medida que a pintura adquiria maior significado, Mira abandonava a poesia.”
Nessa época, tornou-se amiga do médico Ely José Andreazza, cuja ascendência italia-
na teria favorecido o diálogo. Entre os interlocutores de então, ele é um dos poucos
identificados — os demais geralmente são citados apenas pelo prenome ou pela inicial.
Várias de suas cartas foram guardadas pela artista; dela para Andreazza existe no arquivo
apenas uma. Liberdade, paz, fraternidade são os temas discutidos: “[...] fraternidade
provém do concreto existencial, do vento que respiramos, daquilo que frutifica no
coração com o auxílio da razão. Esta fraternidade é vontade de Deus”.?
Os comentários de Andreazza sobre os trabalhos teriam sido estímulos para o for-
talecimento das ideias de Mira. Para ele, o futuro da pintura estaria “[...] na sensibi-
lidade, mais através da cor, antes que da forma, na libertação total do objetivismo
escravizante do modelo”. Hesitante, ele defende a abstração, não sem antes apresentar
uma questão inspirada em Ortega y Gasset: “Porém não estará ela [a pintura] então
fugindo ao seu destino de ser um meio e não uma finalidade — não estaria ela tentan-
do se esconder? Será pensamento arte, e com tal mensagem, para espíritos escolhidos,
para aqueles cuja sensibilidade aguçada conseguir captar sensações refinadas e sutil-
! O RAD)
mente racionais: .
Pad Mira Hargesheimer, carta a dom Luigi Huidal, Porto Alegre, sem data [provavelmente de 1951].
9
o) Idem, ibidem.
4 Dois de seus poemas
DOBRO haviam sido publicados em português numa revista franco-brasileira de Porto Alegre, mas ela
não ficou satisfeita com a tradução.
Mira Hargesheimer, carta a carissimo E., Porto Alegre, 5 dez. 1951.
DES)
9) o
q Ely José Andreazza, carta a cara Mira, Porto Alegre, sem data,
39
Uma passagem de outra carta pode auxiliar na reconstrução da complexa persona-
lidade da artista:
Se às vezes és adulta demais, inesperadamente ficas infantil. [...) Tua bondade para com o
indivíduo é uma espécie de negação desta virtude, não manténs por muito tempo um con-
ceito num estado, daí necessitares de pactos, de definições que formem, que alicercem tuas
certezas. |...) perdeste a confiança em todos, duvidas sempre, estás insegura. Tua luta exte-
rior pela conquista afetiva, pela compreensão, pela honestidade, pela verdade, pela bondade,
pelo humanitarismo nada mais é do que uma luta contigo mesma, apenas buscas em outros
uma afirmação para tua condição interior.
40
Sem título, 1953
óleo sobre tela, 27 x 35 em
col. particular, São Paulo
N.Hargesheimer
dic. E. membl
Em julho de 1953, Mira mudou-se para São Paulo. No início, morou no centro da
cidade, no apartamento do sociólogo alemão Rudolf Lenhard, que conhecera em Por-
to Alegre. Uma série de cartas a Arno (Vauco), escritas pela primeira vez em portugués,
relata em forma de crônicas suas primeiras impressões da vida paulistana. Elas cobrem
um período relativamente curto, porém crítico, no qual ela teria experimentado pro-
fundas transformações, e expressam o questionamento pessoal e filosófico que marca-
ria, de modo duradouro, seu fazer artístico.
Ão chegar, Mira visitou o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Museu de Arte
Moderna (MAM) e teve contato com os artistas Bruno Giorgi, Antonio Bandeira e
Fayga Ostrower, mostrando-se decidida a prosseguir com a pintura:
Hoje enfim fiz força e fui até o museu. [...) Passei depois no de arte moderna, onde estava
a exposição de um certo (não lembro o nome/Bandeira creio). Falei com ele e gostei dos
trabalhos [...] A mostra de Tiziana Bonazzola” me pareceu fraca. Me fiz sócia do museu
(25 crg por mês) com direito a cinema, descontos etc. [...] Saindo do museu comprei duas
telas (80 crg) e providenciei um cavalete, que me trarão amanhã. Sai 125. (Bastante barato,
não?) Iniciarei duas naturezas-mortas.?
Ela relata a visita ao ateliê de Paolo Rissone: “Mas pinta muito bem, artista mesmo.
Lá iniciei a me preocupar comigo”. No Mam, além das pinturas de Bandeira, agrada-
ram-lhe as gravuras de Fayga Ostrower:* “Ontem foi inaugurada a exposição de Fayga
Ostrower, lá no museu. São umas gravuras “abstratas” e alguns tecidos. À primeira vista
gostei, me entusiasmei até”.ºº
Mira procurou trabalho em editoras, apresentando referências e cartas de recomen-
dação de Porto Alegre. Ela fez contatos no círculo de gaúchos que viviam em São Paulo,
como o ator Sérgio Britto, e com os alemães que conhecera por intermédio de Rudolf
Lenhard. Cartazes para a Companhia Cinematográfica Vera Cruz* e ilustrações para con-
tos literários são mencionados em algumas cartas como alívio às dificuldades financeiras.
Conforme descrição sua, a visita à Biblioteca Municipal lhe proporcionou um
grande prazer. Ela se impressionou com o acervo e com a decoração do hall de entra-
da, onde o diretor Sérgio Milliet havia providenciado a instalação de reproduções de
obras de arte:
Tiziana Bonazzola (Milão, 1931) estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Antes de sua vinda ao Brasil, ela teria, ao lado de
Morlotti e Biroll, participado na Itália do movimento artístico contra o novecento.
Mira Hargesheimer, carta a Vauco, São Paulo, 23 jul. 1958.
Idem, ibidem.
Fayga Ostrower (Lodz, Polônia, 1920 — Rio de Janeiro, 2001) chegou ao Brasil em 1934.
ra Hargesheimer, carta a Vauco, São Paulo, sem data.
Lembremos que, por meio da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, o mesmo grupo empresarial responsável pela
fundação da Bienal de São Paulo tentou estabelecer em São Bernardo do Campo, município vizinho de São Paulo,
uma indústria cinematográfica brasileira nos moldes da de Hollywood. Esse projeto, vinculado à política cultural nacio-
nal-desenvolvimentista dos anos 1950, entraria em colapso na segunda metade dos anos 1960.
[...] Vi que existem os mais importantes livros de Husserl. Tive prazer [...). Livros de arte
também existem, mas não em quantidade e qualidade como seria desejável. No hall estavam
a mostra reproduções de diversos artistas contemporâneos, todas segundo uma nova técnica
que, dizem e parece, se iguala ao original. Mas é uma preciosidade.”
Ela menciona a visita a uma livraria italiana, onde comprara 1/ Personalismo [Le Per-
sonnalisme], de Emmanuel Mounier, e uma edição da revista La Biennale inteiramen-
te dedicada a Picasso, a música de Antonio Vivaldi, que ouvia no rádio, e sua estupe-
fação diante do grande número de italianos que viviam em São Paulo. Sobre a relação
da arte com a vida mundana da cidade, comenta: “[...] Nunca pensava que os pobres
pintores e escultores devessem ser rodeados de tanta elegância...”.º Diante disso, ela
reafirma a decisão de preservar suas próprias concepções sobre vida e arte: “[...] O que
vejo por aqui geralmente não é grande coisa. Muitas pretensões e esnobismo, quando
sabemos que arte é um serviço humilde e que a vida deveria ser vivida com imensa
humildade”. Apesar das experiências adversas, adapta-se pouco a pouco a São Paulo.
Numa carta do período, ela recorda sua chegada ao Brasil: “[...] hoje faz quatro anos
que desembarquei. Era um dia com muito sol como este, mas para mim triste, pois
não queria ter vindo. Agora é diferente, gosto de estar aqui”.
Também o relacionamento com sua mãe experimentaria transformações. Ada Gnoli
tornara-se para Mira o único elo com o passado. Ela lhe contava tudo, parecendo espe-
rar por sua aprovação. Discordaria, entretanto, da visão da mãe sobre diversos temas,
como, por exemplo, suas concepções dogmáticas de fé e culpa. Ao saber da separação
de Mira e Jossip, a mãe escreve:
[...] Que Deus a mantenha longe do adultério, minha menina, pois não há nada pior
para atrair sobre nós a maldição de Deus do que desobedecer às suas leis, por mais graves
e pesadas que possam ser. Portanto, fique bem atenta à sua alma, jamais ofenda o Senhor,
nem mesmo em pensamento.”
Mira considerou esta “[...] uma carta cheia de angústia; seja do ponto de vista “religioso”
seja do ponto de vista prático”,“ e refutaria a noção de Deus apresentada pela mãe:
[...] Que ideia de Deus, que coisa atroz esta fé. Mesmo a sua simplicidade é terrível, esta
relação com Deus é em si de fato terrível. Melhor morrer no desespero que se abandonar a ela.
Melhor lutar para interromper qualquer paz. [...) Deus e homem precisam de novidade.*
[...] Continuei com as naturezas-mortas. Não pude acabá-las tão cedo como esperava, já
que pensei fosse bem modificar algo. [...] Pinto com firme vontade de continuar a pintar;
de fato estou enfim convencida de dever-me dedicar a isso o mais que for possível.“
[...] Acerca de minhas pinturas ando mais ou menos desesperada. Nem queria apre-
sentar os trabalhos para a Bienal. Primeiro porque me julgo absolutamente desprepa-
rada e segundo porque somente uns 10% serão admitidos. Queria pintar anos sem que
ninguém, fora de ti, visse o que faço. Estudar o ofício ou deixar por completo. Porque
enfim melhor seria estudar e trabalhar por dinheiro que perder tempo com uma coisa
impossível. Talvez tu nem saibas que esforço é para mim tudo isso. Penso nestes dias,
a luta para pintar...”
[...] Nestes dias iniciarei outros trabalhos [...]. E talvez sejam abstratos (ou construti-
vos, ou concretos: à terminologia não vem muito ao caso).
A palavra abstrato é empregada agora com uma conotação positiva. Se era possível
detectar sua tendência à abstração desde os trabalhos de Porto Alegre, mostra-se agora
o desejo de compreender essa linguagem e incorporá-la a seu vocabulário de pintura:
“[...] Acho que no início da semana entrante iniciarei uma nova tela, talvez abstrata.
Penso muito em pintura e duvido muitíssimo de chegar a tornar-me boa”.*º
49
Rudolf Lenhard a colocara em contato com o centro cultural teuto-brasileiro
Pró-Arte Brasil, que teve papel importante nas mudanças ocorridas em sua arte.
Numa carta, Mira relata ter assistido ali a uma excelente palestra do historiador
de arte Georg Hoeltje”! sobre Aleijadinho e expressa a vontade de assistir a um
ciclo de conferências promovido por essa instituição no Museu de Arte Moderna.
Conforme apontamentos de Mira, para Hoeltje “os nomes mais decisivos da arte
contemporânea eram Picasso — a porta que se abriu —, Georges Braque e Paul
Klee”.2 Nessa época, Hoeltje visitou o ateliê de Mira, e ao criticar seus trabalhos
teria tocado num ponto sensível, deixando-a perturbada:
[...] falou bastante sem que eu pudesse compreender algo de certo. Não digo que não com-
preenda, somente me parece que um exame do “bedaço de pintura” não seja suficiente.
Naturalmente, como outras vezes, fiquei também desta bastante demoralisiert [desenco-
rajada). Propriamente ele não hostilizou, disse isso e aquilo, que achou interessante, que
combino este com aquele etc.
Na carta seguinte, ainda comentando a visita de Hoeltje, ela diz estar atravessando
uma grande crise:
[...] O estranho é que ainda não vi grande coisa, a visita ao museu foi rapidíssima e desa
tenta. As exposições até agora foram poucas, das quais somente duas de certa importância:
a de Bandeira e a de Fayga Ostrower. [...) Não posso compreender o que há comigo em
relação a isso — logo ao chegar iniciei os dois trabalhos que sabes. Estão acabados, queria
pintar e estou numa crise medonha. Provocada não sei se pelo que vi ou se por falta de cal-
ma. Claro é que as palavras de Hoeltje não me ajudaram muito, imútil dizer que ele não é
crítico de arte, mas Kunsthistoriker [historiador de arte). Nada adianta nesse momento.
Ela se mostra aberta às influências do novo meio, mas indecisa quanto a prosseguir
como autodidata ou procurar um professor:
[9] O Pró-Arte Brasil, fundado no Rio de Janeiro por Theodor Heuberger em 1930, tinha por objetivo a transmissão de
tradições culturais alemãs entre os imigrantes no Brasil. Suas atividades eram organizadas pela Galeria Heuberger,
no Rio de Janeiro, e pela Galeria Casa e Jardim, em São Paulo, Sua revista, Intercâmbio, divulgava em português,
alemão e eventualmente em inglês artigos sobre antropologia, história, música, arquitetura, artes plásticas e lite
ratura. Mira Hargesheimer desenhou algumas capas para essa revista. Ver Aracy Amaral, “Theodor Heuberger: a
presença alemã no meio artístico contemporâneo brasileiro”, O Estado de S. Paulo, 15 mar. 1981, reproduzido em
Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burger. São Paulo: Nobel, 1983, pp. 97-101.
[64] Georg Hoeltje (Duisburg, 1906 — Hanôver, 1996) estudou história da arte em Rostock, Hanôver, Munique e Halle, ten-
do neste último local obtido seu doutorado em 1929. Por sua oposição ao regime nazista, ele emigrou ao Brasil em
1939, onde viveu até 1954, quando regressou à Alemanha e tornou-se professor de história da arte e arquitetura na
Universidade de Hanôver.
Mira Hargesheimer, carta a Vaucuccio, São Paulo, 10 ago. 1958.
qa
[no]
(So) Idem, carta a Vauco, São Paulo, 8 ago. 1958.
so
[...] Penso, por exemplo, nesta minha pintura até agora genemmt [inibida], mas sempre
a quis assim. Ou talvez seja mesmo a falta de ofício, a improvisação. Me parece, embora
não sempre, que saberia aprender. Que não acharia mau ter alguém que me ensine — mas
outras vezes penso que, embora fatigoso, este autodidatismo me favorece mais. O que não
temo são as influências; se sucumbir a elas definitivamente significará que nunca teria sido
capaz de fazer algo meu. Mas tudo isso no momento não tem importância, já que me seria
impossível arranjar tempo e dinheiro para aprender com um dos “mestres” daqui. Antes de
mais nada falei das possíveis influências provenientes do ver o que outros fazem. É coisa
que sabia desde Porto Alegre.
Os dois quadros descritos a seguir podem ter estado entre os trabalhos que Mira mos- [p. 52]
trara a Hoeltje. Com certeza eles são alguns de seus últimos trabalhos figurativos. O
primeiro é uma natureza-morta com ferramentas caseiras, fortemente marcada por
uma divisão espacial ortogonal. À parte o claro-escuro, que concede massa a uma
vasilha à frente, e à tesoura na parede do fundo, onde se sugeriu certa profundidade,
os demais utensílios, um alicate e um peso, estão representados frontalmente e sem
volume. Tal procedimento foi aplicado a outras naturezas-mortas, onde os objetos
também foram tratados bidimensionalmente, resultando sua presença pictórica do
forte contraste de luminosidade contra o fundo dividido geometricamente.
À outra pintura mostra um peso semelhante numa composição quadrática, com [p.59]
variações em cor terra-escuro. O elemento principal, o peso, encontra-se algo desloca-
do para a esquerda, mas próximo ao centro geométrico do quadro. Grande parte da
tela foi ocupada por duas faixas superpostas em terra-de-siena e vermelho purpúreo,
que a cruzam horizontalmente de um lado a outro. Elas podem servir à representa-
ção de uma mesa, mas também ser elementos de pintura pura. O mesmo se aplica às
faixas em terra-de-sombra, nas bordas inferior e superior do quadro. Uma vez que o
peso foi pintado da mesma cor, ele é percebido pelo observador como um recorte na
superfície do quadro, que deixa entrever o fundo escuro através do plano da mesa.
Um círculo laranja-claro, imediatamente abaixo do peso, parece a sombra deste, apesar
de ser, curiosamente, a área mais luminosa da pintura. Quatro faixas verticais na parte
superior e inferior do quadro foram dispostas assimetricamente e pintadas em tons
mais claros. À artista consegue aqui obter uma harmonia na qual observamos uma
tensão sutil, produzida pelas inúmeras variações de uma única cor.
SI
Sem título, 1953
óleo sobre tela, 50 x 60,2 em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título, 1953
óleo sobre tela, 74,6 x 74,6 cm
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título, 1954
técnica mista sobre madeira,
51,1 x 66 em
col. Adolpho Leirner de Arte
Construtiva no Brasil,
aquisição do Museum
of Fine Arts, Houston,
com recursos do Caroline
Weiss Endowment Fund.
Críticos de seu trabalho
Em 1953, Mira passa a viver em seu próprio apartamento, e consegue um emprego de dese-
nhista gráfica na Editora Companhia Melhoramentos. No mesmo ano, viria a conhecer,
por intermédio dos irmãos Lenhard, seu segundo marido, o livreiro Knut Schendel.*
Em meados dos anos 1950, Mira conheceria o poeta Theon Spanudis, o físico Mário
Schenberg e o filósofo Vilém Flusser, e depois o poeta Haroldo de Campos. Estas per-
sonalidades, com quem ela permaneceu em contato durante os anos 1960, formavam,
por assim dizer, o núcleo intelectual de seu círculo de amigos, exercendo também, às
vezes, a função de críticos de seu trabalho. Em abril de 1954, é operada da tiroide e
forçada a permanecer em leito hospitalar por três meses. Nessa época, aprofundou seu
relacionamento com Knut Schendel.
Em outubro de 1954, Mira realizou uma exposição individual no Museu de Arte
Moderna de São Paulo. Essas pinturas não apresentam objetos, antes já fortemente
simplificados, o que poderia levar-nos a crer que estes haviam sido reduzidos a puras
formas geométricas. Mais precisamente, é o próprio espaço, com suas subdivisões, o
que essas formas geométricas representam. Esses quadriláteros irregulares, círculos ou
triângulos são formas soltas, dispostas assimetricamente, e deixam claro terem sido
desenhadas à mão livre.
Um quadro de 1954 pode ser tomado como exemplo dos trabalhos exibidos. Numa p. 54]
composição à primeira vista estática, veem-se cinco pequenas formas quadrangulares.
Duas delas foram pintadas, as outras três são recortes em relevo, colados ao suporte.
O fundo pastoso insinua uma velha e despojada fachada arquitetônica, com peque-
nas janelas e uma grande porta, que se abre para um espaço escuro. Dois quadrados
sobre uma linha branca, paralela à margem superior do quadro, sugerem desloca-
mento. Uma pequena variação no tamanho e suaves alterações de cor, do branco ao
amarelo, transmitem a ideia de uma mudança de posição do mesmo quadrado. Um
terceiro quadrado, à direita, apoia-se na borda inferior do quadro, e um último peque-
no à esquerda parece ser o eco do grande quadrado negro, aludindo a um movimento
mecânico. O resultado de espantosa ortogonalidade faz-nos pensar em Mondrian.
Com a participação na terceira Bienal Internacional de São Paulo, em 1955, e a
exposição no Museu de Arte Moderna, Mira entrava na cena artística de São Paulo. De
1954 a 1956 seu trabalho seria visivelmente influenciado pela arte geométrica concreta.
Alguns trabalhos desta fase foram denominados geladeiras e fachadas, por apresentar,
segundo o pesquisador Paulo Malta Campos, uma pronunciada frontalidade.* Eles são,
contudo, abstratos: quadriláteros que brincam na superfície pictórica, estabelecendo uma
conversação por meio de cores. Neles, a dicotomia figura/fundo foi abolida: áreas claras,
como janelas para um espaço situado ao fundo do quadro, são neutralizadas por enqua-
dramentos de mesmo valor ótico. Podemos afirmar com segurança que, nesses quadros,
a observação naturalista da realidade não foi o ponto de partida para a pintura, e sim os
campos cromáticos, que produzem uma complexa junção de elementos intercambiáveis.
Nos anos 1950, a arte concreta era muito valorizada entre os intelectuais no Brasil,
enquanto a corrente informal era vista como tentativa de introdução à arte dos paí-
ses imperialistas. Mira confrontou-se com as posições mais atualizadas de ambos os
direcionamentos, unindo seus fios numa síntese pessoal. No entanto, seus quadros
diferenciam-se da pintura informal, pois neles não há lugar para o gesto livre de jogar
matéria sobre um suporte. Em sua obra, a aplicação das camadas de tinta seria sempre
pensada e executada cuidadosamente.
[ata
Paulo Malta Campos, Percurso de Mira Schendel, trabalho de graduação interdisciplinar. São Paulo; Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1991.
s6
Mer k
d,
ntemporânea
OR -
£ 9d0 Paulo
Sem título, 1955
têmpera sobre madeira,
40 x 60 em
col. Ricard Akagawa, São Paulo
Sem título, sem data
têmpera sobre juta,
Sn ist em
col. Ricard Akagawa, São Paulo
[7 Áá Ucttlrv
A partir de 1956 Mira e Knut passaram a viver juntos. Em 1957 nasceu Ada Clara, a úni-
ca filha de Mira, que entre 1957 e 1962 se tornaria sua preocupação quase que exclusiva.
Nesse período aparentemente ela não participou de nenhuma exposição. Entre os pou-
cos registros de trabalhos artísticos dessa época estão alguns cartões de Natal desenha-
dos para uma loja de decoração do Rio de Janeiro. Em 1960 Mira casou-se com Knut,
passando a adotar o seu sobrenome, Schendel. A maior parte de seus trabalhos artísticos,
porém, continuou a assinar, como o fazia desde 1953, apenas com o prenome Mira.
Em 1962 Mira retoma suas atividades profissionais com a exposição Bordados, na Gale-
ria Selearte, em São Paulo. Com essa designação aludia a uma tradicional atividade femi-
nina, traduzindo-a para meios artísticos convencionais: o papel seria o tecido, e os traços
os fios do bordado. O suporte desses trabalhos é o papel japonês, que absorve a tinta
irregularmente, criando uma delimitação difusa de formas. A crítica sublinhou os aspectos
orientais desses trabalhos, e o pequeno formato levou a uma inevitável comparação com
Paul Klee. Contudo, se nos trabalhos de Klee a pequena dimensão opera monumental-
mente, para Mira ela seria a possibilidade de abrir, em várias tentativas, uma porta para o
espaço infinito, de difícil entendimento naquela época. Vários desses desenhos aceitariam
facilmente uma comparação com trabalhos neoplasticistas, pois o método subtrativo de
Mira apresenta semelhanças com os procedimentos e os resultados de Mondrian.
Em 1963, a exposição na Galeria São Luiz, também em São Paulo, marcou uma fase
transitória, na qual o emprego mais rigoroso da geometria poderia, à primeira vista,
ser interpretado como uma aproximação de Mira ao concretismo. Na verdade, esses
trabalhos em pequeno e médio formatos indicam um distanciamento da estética desse
grupo de artistas paulista. O crítico Mário Pedrosa atribui a Mira um entendimento
metafísico da cor, característico dos artistas do Rio de Janeiro, e não dos de São Paulo.
No prospecto da exposição, Pedrosa compara essas pinturas com as anteriores da artista.
Em relação à manutenção das formas geométricas, que dividem a superfície pictórica
regularmente, ele afirma que antes
[...] a forma deixava de ser forma, forma viva, plástica, para ser forma compositiva. Agora,
por sua vez, a cor, que então ainda se isolava, já não se distingue, e menos mesmo do que
tom, é matéria. Esta passa a exercer sua ação de presença não apenas por sua propriedade
mais evidente e quantificável, a extensão, mas pela qualidade sobretudo sensível da inten-
sidade. [...] O concretismo adensa-se, e ganha outra dimensão, a de uma expressividade
subjetiva, com real impacto emocional.
O crítico José Geraldo Vieira veria nos trabalhos a passagem de uma fase “trágica”, “melancólica”,
“kafkiana” para uma “arte mais civil”, “mais arquitetônica”, “em extensão e em profundidade,
que abrange desde os dilemas de Mondrian até os de Le Corbusier”. À comparação com a
arquitetura era um parâmetro aceitável para a avaliação da arte geométrico-abstrata.
[6] Mário Pedrosa, folder da exposição de Mira Schendel na Galeria São Luiz, São Paulo, 1963.
[6]Co José Geraldo Vieira, “Mira Schendel", Folha de S.Paulo, 31 mar. 1968.
63
Outro crítico, João Queiroga, reconhece a alta qualidade técnica do trabalho, mas
caracteriza-o como “rígido, triste e abafante, apesar de belo como técnica, matéria e
limpidez. Porém sem alma”.
Duas pinturas de formato quadrado poderiam exemplificar essa fase da artista.
[p. 72] À primeira apresenta duas diagonais que, ao se cruzarem, originam quatro triângulos —
[p. 73] o triângulo inferior pintado de preto, os demais de amarelo. Na segunda, duas linhas
paralelas às bordas do quadro se cruzam, dividindo-o em quatro seções quadradas.
Nessa exposição também se podiam ver trabalhos sobre papel, que se diferenciam
das telas por suas cores mais vivas e por suas texturas. Apesar do emprego direto de
elementos geométricos, eles revelam uma visão mais tátil e sensual. O efeito de grossas
linhas negras sobre o papel japonês extremamente fino, atravessando a pequena super-
fície dos desenhos, assemelha-se ao do chumbo que une os vitrais das igrejas medievais,
principalmente naqueles que apresentam pequenas áreas douradas. Esses desenhos
antecipam os propósitos da artista de trabalhar com o plano da pintura como se fosse
um diafragma transparente.
Para muitos artistas, o recurso às formas geométricas essenciais havia representado
um meio para a descrição simplificada da natureza, e a possibilidade de identificá-las
com as formas da vida. Em algumas pinturas e desenhos desse período, Mira emprega-
ria formas circulares. Mário Schenberg via no círculo uma relação com símbolos man-
dálicos, com os quais a artista viria a se ocupar numa série que produziria em meados
dos anos 1970, dividindo o círculo em quatro seções.
Para o filósofo Jean Gebser, um dos autores diletos de Mira, o círculo simboliza
o tempo pré-histórico ou a-histórico, enquanto a reta, ao contrário, coloca em cena
a duração histórica. Círculos fechados ou semiabertos indicariam ainda uma tem-
poralidade cíclica, não um tempo de duração, mas repetitivo como o tempo circu-
lar do relógio. Aspectos psíquicos do tempo constituem um problema fundamental
tanto para Gebser como para Mira. O ponto de partida de Gebser é a conexão entre
o tempo e a alma: a noção de alma teria surgido no momento em que a consciência
humana substituiu a estrutura mágica pela mítica. À estrutura mítica teria conduzido
à conscientização de um mundo interior, e o círculo seria o símbolo desse processo.
A pontualidade da estrutura mágica amplia-se para o anel que engloba uma superfície
e põe em evidência o caráter temporal do círculo.” Nos trabalhos de Mira, o círculo
muitas vezes transmuda-se em forma oval. Esta Urform [forma originária]contém várias
propriedades do círculo, podendo ainda simbolizar renascimento.
À substituição do círculo pela linha reta, que possui direção e sentido, poderia indi-
car uma mudança de interesse da artista por volta de 1964. Nesse ano, muitos intelec-
tuais tiveram forçosamente de se defrontar com a história, pois era o início de uma
ditadura militar que duraria duas décadas. Nos anos 1963-64, intensificou-se nas pintu-
ras de Mira a sensibilidade pelo espaço vazio. Seu interesse pela nova fenomenologia a
conduziria a interpretar o vazio com base na noção do amplo, em oposição ao nada do
64
existencialismo. À união entre intuição cósmica, com um pensar estimulado pela filoso-
fia contemporânea, e o domínio absoluto das técnicas contribuiu para a criação de pin-
turas de alta qualidade que também assinalam a sua despedida desse gênero artístico.
As formas geométricas tornam-se progressivamente irregulares e assimétricas em
relação às bordas do suporte e transmitem intensidade emocional, fugindo portanto
dos princípios gerais do concretismo. Ovais ou blocos livremente traçados, dispostos
sobre fundos terra ou dourados, não se deixam explicar por seriações ou por teo-
rias perceptivas do tipo figura/fundo, adotadas pelos artistas concretos de São Paulo,
mas sim pelo conceito de forma expressiva, para usarmos uma expressão em alta entre
os teóricos do Rio de Janeiro.
À colagem também teria papel importante na obra de Mira. Já em 1954 ela havia
colado elementos sobre a superfície dos quadros, tais como toquinhos de madeira ou
recortes de papelão. Em torno de 1963, pedacinhos de tecido, papel ou madeira retornavam
e poderiam indicar, à primeira vista, um desdobramento das tendências artísticas em
voga, com a retomada dessa prática cubista. No entanto, uma observação mais acurada
desses trabalhos mostra que a artista teria chegado à colagem por meio de etapas de
seu próprio desenvolvimento, e não partido dela. Provavelmente o uso da colagem foi
necessário para o isolamento da matéria, numa operação inversa àquela levada a cabo
por Braque, Picasso e Gris, e a motivara à busca de outros materiais extra-artísticos.
O acréscimo de serragem, areia, cacos de vidro etc. ao óleo ou à têmpera e a experi-
mentação com tintas e resinas industriais proporcionaram a Mira novas possibilidades
para a superfície de seus quadros, que passariam a salientar a materialidade das cama-
das de pintura. Muitos desses experimentos nunca foram expostos. Mira dava-os de
presente a amigos. A principal característica desses trabalhos é a espessura da massa
pictórica que recobre eventuais esboços compositivos. Alguns deles, por sua vez, dei-
xam em alguns pontos a textura do tecido visível através das camadas de tintas, e
podem por isso ser considerados antecipadores das preocupações da artista com a
questão da transparência.
O termo matéricos reforça a afinidade de Mira com a pintura italiana dos anos
1960. Vínculos com a cultura milanesa, anteriores à sua emigração para o Brasil, e o
contato com a vanguarda italiana, possibilitado pelas Bienais de São Paulo, marcaram
o desenvolvimento de suas pesquisas pictóricas. Trabalhos de Alberto Magnelli, Lucio
Fontana, Giuseppe Capogrossi, Renato Birolli e Alberto Burri foram expostos na
Bienal em 1955, 1957 e 1959. O modo de pintar de Mira assemelhava-se ao dos milane-
ses, então denominado astratto-concreto, mas se diferenciaria em seu desenvolvimento.
Enquanto os italianos tenderam ao lirismo, Mira uniu-se ao construtivismo brasileiro,
o que resultaria numa arte antidecorativa, afastada de qualquer concessão ao gosto.
Sua aspiração a uma pintura pura, entretanto, incluiria tanto o lidar com materiais
como com pensamentos, entendidos como fenômenos manifestos. Ao limitar-se aos
elementos constitutivos de forma e cor, a artista demonstraria a existência do mundo
em estado puro, segundo uma leveza presente no cerne da matéria.
Os trabalhos desta fase podem ser classificados em dois grupos. No primeiro,
apresenta-se como motivo principal a relação entre a linha e o plano. À cor é aplicada
6
homogeneamente no suporte e as linhas dividem-no em campos geométricos.
Tonalidades de cinza e marrom e dissonâncias, equilibradas por grossas linhas negras
transversais, evocam uma representação espacial que parece deixar à mostra apenas par-
te de um todo, fazendo-nos recordar mais uma vez Mondrian.
No segundo grupo de trabalhos não há linhas demarcatórias, mas somente áreas
de cor que criam uma tipologia mínima. Eles documentam a tábula rasa programática
do método de Mira e mostram o amadurecimento de suas pesquisas sobre gesto e
matéria. O topos dessas pinturas é o campo limitado com o cuidadoso tratamento da
superfície.
Segundo a amiga e artista Amélia Toledo, uma viagem a Minas Gerais teria inspi-
rado Mira quanto ao emprego de pigmentos de terra em suas pinturas de paisagem.”
Os exemplos dessas experiências são precursores do formato vertical, com o qual ela
trabalharia quase exclusivamente a partir de 1964. Nesses trabalhos, ela prosseguiria
suas pesquisas sobre o contraste entre a matéria e o vazio, ainda que prevalecesse um
[p. 93] interesse pela paisagem. As montanhas fortemente simplificadas estão no limite entre
figuração e abstração, remetendo-nos a pinturas paisagísticas japonesas. Ainda em
outras pinturas do período de formato horizontal, uma linha divisória pode ser enten-
dida, nesse contexto paisagístico, como um horizonte.
Mário Schenberg introduziu Mira na arte oriental. Das viagens à Índia e à China ele
trouxera para o Brasil fotografias, livros e pequenos objetos, que mostrava ou dava a seus
amigos, entre eles Mira. Para uma exposição da artista, em 1964, ele escreve no catálogo:
[...] à experiência do romântico, que vivera tão intensamente em sua juventude lombarda,
começou a se contrapor a cosmovisão do Extremo Oriente, que lhe fora revelada pelas repro-
duções de Chi Pai-Shi, o grande mestre da pintura chinesa contemporânea. Foi descobrindo
paulatinamente a natureza. Não a que se apreende na visão ingênua, mas a que surge
da paixão pelo absoluto, quando a transcendência se transforma em imanência.
Mário Schenberg reportava-se a uma exposição anterior de Mira, cujas telas ele conside-
rara austeras e difíceis por causa de seus elementos geométricos concretos, que não dei-
xavam transparecer sua procura pelo absoluto. Quanto aos novos quadros, [...] alguns
se assemelham aos espaços puros de artistas contemporâneos. Outros poderiam ser chamados
de nirvânicos, evocadores da misteriosa concepção mahayanista do vazio “sunyata”.
Em sua busca pela representação do vazio, Mira aproximou-se tanto da arte oriental
quanto do espaço pictórico da arte contemporânea. Com seu modo peculiar de lidar
com a linha, a cor e a estrutura, a artista rompeu os marcos do concretismo brasileiro.
Ela recortou telas criando orifícios e fendas, que geram espaço ao abrirem literalmente
[p. 82) o plano pictórico. Nesses trabalhos, o conceito tempo sobrepõe-se ao conceito espaço.
66
Embora seja possível aqui uma comparação com Lucio Fontana, deve-se salientar
que os trabalhos de Mira não partem dos mesmos pressupostos do procedimento do
pintor ítalo-argentino. Fontana havia sido profundamente tocado pela crise das lin-
guagens visuais do pós-guerra europeu, e seu objetivo era a ruptura física e metafísica
dos limites dimensionais do quadro. Perfurar a tela proporcionou-lhe a descoberta do
cosmo numa dimensão ilimitada:
Quando trabalho como pintor num de meus quadros furados, não tenho a intenção de fazer
uma pintura: quero abrir um espaço, criar uma nova dimensão da arte, entrar em relação
com o cosmo que se estende até o infinito, além da superfície limitada das pinturas.”
O rasgo possibilitou a Fontana descobrir o espaço oculto atrás da tela. Com a per-
cepção ambivalente deste nada infinito ele propôs uma relação de intimidade, que
pudesse combater a artificialidade do mundo moderno. Recortar um buraco na tela
significou para o pintor o mesmo que, para o poeta, atravessar o espelho. O experi-
mento foi acompanhado de esperança e otimismo, pois ele acreditava estar integrando
as dimensões de tempo e espaço. Os recortes de Mira, ao contrário, parecem elemen-
tos plásticos negativos, provocados pela falha na superfície, correspondente a uma
concavidade virtual. Eles possibilitam uma renovada meditação sobre o gesto, que
não traz uma quarta dimensão idealizada, mas a prova de que tal conquista seria mera
ilusão. As fendas não se abrem para um espaço em expansão, mas para o nada. Elas
apresentam o abismo de um vazio histórico e relativizam toda e qualquer possibili-
dade de proteção (espaço interno) diante do infinito (espaço externo). Na obra de
Mira, os furos não são numerosos, surgindo isolada porém enfaticamente. Uma solu-
ção bem audaciosa mostra-nos um quadro não localizado da antiga coleção de Mário
Schenberg, no qual a cruz de madeira do chassi foi deixada à mostra: Mira pintou de
branco apenas um pequeno retângulo de madeira compensada, colado sobre o canto
inferior esquerdo da estrutura do quadro, que de resto permaneceu intacta.
Do seu modo de trabalhar deduz-se que, para Mira, realismo, cubismo, abstração
e expressionismo não eram necessariamente contraditórios. Em 1964 ela pintou uma
série de naturezas-mortas sobre papel, exibidas somente após a sua morte. Em alguns
trabalhos, a composição e as tonalidades predominantes nessa série, azuis e terras, uni-
das às dissonâncias balanceadas em preto-e-branco, remetem-nos às naturezas-mortas
de Morandi. Em outros, um azul vibrante produz um efeito geral frio, capaz de con-
duzir o olhar do observador aos espaços situados além dos objetos representados. Se
para Morandi a repetição de poucas formas de objetos insignificantes, quando tomadas
isoladamente, tinha por finalidade anulá-las como individualidades, as preocupações
de Mira residiam no próprio ato de desenhar. Em seu percurso, a artista experimentou
renovadamente um discurso sobre a materialidade das coisas, o que a conduziu de
tempos em tempos à natureza-morta.
67
Sem título [Bordados], déc. 1960
ecoline sobre papel japonês, 13 x 15 cm
col. particular, São Paulo
Sem título [Bordados], déc. 1960
ecoline sobre papel japonês, 15 x 15 em
col. particular, São Paulo
Sem título, 1962
nanquim sobre papel japonês sobre
cartão, 19,5 x 15,9 em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título, 1962
nanquim sobre papel japonês sobre
cartão, 25,9 x 25,9 em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título, 1962
óleo sobre tela, 75 x 75 cm
col. Adolpho Leirner de Arte
Construtiva no Brasil,
aquisição do useum
of Fine Arts, Houston,
com recursos do Caroline
Weiss Endow ment Fund.
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Sem título, 1964
têmpera sobre aglomerado,
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col. Ricard Akagawa, São Paulo
Sem título, 1964
têmpera sobre aglomerado,
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col. Ricard Akagawa, São Paulo
Sem título, sem data
látex e areia sobre aglomerado,
79,8 x 99,8 em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título, déc. 1960
óleo sobre juta, 30 x 21 em
col. particular, São Paulo
Sem título, déc. 1960
técnica mista sobre madeira,
40 x 30 em
col. Jayme Vargas, São Paulo
Sem título, 1963
técnica mista sobre juta, 20 x 29,5 em
col. Jayme Vargas, São Paulo
Composição, 1963
óleo sobre tela, 30 x 22 em
col. particular, São Paulo
Sem título, déc. 1960
óleo sobre juta, 75 x 75 cm
col. particular, São Paulo
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Sem título, 1964
têmpera sobre aglomerado,
70x 40 em
col. Cacá Nóbrega, São Paulo
Sem título, 1964
nanquim e aguada sobre papel,
48 x 66 cm
col. particular, São Paulo
.
Mira reivindicou para seu fazer artístico um nível espiritual semelhante ao de Morandi,
conseguindo afastar-se dos efeitos da intromissão dos meios de comunicação de massa
na vida cotidiana, cada vez mais ameaçadores para a capacidade imaginativa. Em mea-
dos dos anos 1960 ela se movimentaria na era da pop art em direção contrária à dos
artistas norte-americanos, submetidos ao mundo dos objetos da sociedade de consu-
mo. Isso fica evidente na maneira pela qual reproduz rótulos de garrafas e embalagens
em suas naturezas-mortas: eles se destacam da composição e funcionam como indi-
cativos de seu uso corriqueiro. À recusa em reproduzir as marcas dos produtos seria
um indício do seu modo de operar com textos como elementos visuais autônomos da
composição. Um desenho de 1964, por exemplo, traz a palavra composta ÁGUA-RAZ [p. 94]
MINERAL. À separação silábica não convencional da palavra aguarrás — aglutinação dos
termos água de Arras (localidade na França) — é reveladora dos propósitos da artista de
unir poeticamente imagem, som e significado. Outro exemplo é uma natureza-morta,
sem data, mais ou menos cubista, na qual a palavra nôvo! faz referência ao tema prin- [p. 97]
cipal de sua pintura. À palavra Nôvo!, na embalagem de sabão em pó, se poderia atri-
buir interpretações diversas, ou até caberia, em última instância, não lhe dar sentido
algum, admitindo-se que a artista a tenha usado como mero recurso formal.
Nesses trabalhos figurativos vê-se não a reprodução da realidade, mas um tornar
visível, passível de ser estendido de modo abrangente a toda a obra de Mira. Nas natu-
rezas-mortas alla prima, ela conseguiu, em pinceladas rápidas, capturar a mágica do
momento sem perder o encanto das impressões fugidias. Toda e qualquer ilusão de
profundidade foi submetida a uma homogeneização que desloca o foco de profundi-
dade do objeto para a forma que o representa. Linhas negras ou azuis não são meros
contornos a definir algo, mas uma ordenação de massas sobre um fundo, espaços inter-
mediários entre as coisas. A partir da desigualdade entre o escuro saturado de nanquim
e o branco do papel, Mira criou com diferentes aguadas um movimento ondular e
vibratório de sombras que transforma o papel granular em relações de luz e espaço.
Alguns trabalhos abstratos da época também permitem leitura semelhante. Pincela-
das em gestos rápidos, executados com uma brocha larga sobre papéis previamente
umedecidos, caracterizam-se não mais como linhas, mas como massas, volumes irre-
gulares. Como essas formas mais ou menos geométricas repousam na borda do papel,
nossa atenção é dirigida a esse limite, onde elas tocam um espaço virtual, além do
campo definido pela folha. Seus contornos, em decorrência do gesto da artista, são
irregulares, emprestando-lhes certa vibração ótica. Em alguns desses trabalhos, Mira
experimentou a cor vermelha e a inclusão de palavras ou de grafismos. Como de cos-
tume em sua obra, também aqui o branco do papel tem função ativa. O modo como
essas formas negras o enfrentam parece produzir uma tensão, capaz de originar uma
explosão. Talvez por isso os desenhos mostrados em 1965 na Petite Galerie, no Rio de
Janeiro, foram denominados Bombas.
Além das naturezas-mortas e dos retratos do início de sua trajetória artística, Mira
pintou poucas telas figurativas, como a das duas flores brancas que se abrem ao final de [p. 116]
95
duas hastes longas e finas. Qual seria a altura dessas flores em uma paisagem tão simpli-
ficada? Paisagem esta tratada não liricamente, mas formalizada num espaço planificado
e atemporal, que não pretende representar um gramado, mas apresentar uma superfi-
cie monocromática. Nesse tom crepuscular, distante do vegetal, as flores crescem e se
abrem sobre um verde saturado, que não pode ser definido como prado, mas como
fundo pictórico irregular verde-cinza. As hastes traçadas com giz preto marcam um
tempo de crescimento que culmina com a floração, num vazio espacial adimensional.
Os temas da fecundação e da Hloração podem ter representado para a artista metáforas
da temporalidade cíclica, vitalidade ou eterno retorno — vida, morte e reencarnação.
Uma reciprocidade entre decifração objetal e monocromia concreta resume-se no fato
de que sem a presença das flores o verde não pode identificar-se como relva.
Seria incorreto afirmar que neste trabalho Mira empregou princípios da ilustração.
As flores mantêm seu valor imagístico e, apesar da área mínima ocupada, conseguem
em poucas pinceladas enérgicas quebrar a dominância do verde, sem nenhuma con-
cessão a uma plasticidade exagerada ou à representação narrativa. Uma abordagem
religiosa do problema da representação serviu de pretexto para essa pintura: uma fina
camada de velatura que mantém as flores presas à tela.”
Segundo Aureo Pereira de Araújo, que se chamava frei Chico e era prior do convento, este quadro esteve por alguns
anos na sala de leitura do convento dos dominicanos em São Paulo, pois Mira o tinha doado a ele. Ao abandonar a
Ordem Dominicana por motivos políticos em 1968, deixou o quadro com um parente, antes de exilar-se no exterior
Quando regressou ao Brasil, no final da década de 1970, Mira lhe teria dito que doara o quadro não a ele, mas à
comunidade do mosteiro, e manifestado desejo de reavê-lo. O quadro, então, voltou às mãos da artista. Áureo Pereira
de Araújo, carta ao autor, Guarujá, 16 nov. 1997
96
p. 97
Sem título [Nôvo], sem data
óleo sobre tela, 146 x 114 em
col. Ada Schendel, São Paulo
-
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Sem título [Sim], déc. 1960
ecoline e nanquim sobre papel,
48x 38 cm
col. particular, São Paulo
detalhe p. 10
(08)OD m título, 1965
oline e nanquim sobre papel,
48 x 66 cm
col. Banco BBM, São Paulo
Sem título, 1965
ecoline e nanquim sobre papel,
48 x 66 em
col. particular, São Paulo
detalhe p. 8
Sem título, déc. 1960
ecoline e nanquim sobre papel,
30 x 30 em
col. André Millan, São Paulo
detalhe p. 4
Sem título [Passe], déc. 1960
ecoli ne e nanquim sobre papel,
48 x 66 cm
col. Esther Faingold, São Paulo
deta lhe p. 20
iai |)
[...] princípio de tudo que devemos amar, como a inteligência, a bondade, a ciência etc.
Somente em referência constante a Deus podemos amar o mundo com um amor verdadeiro
e menos imperfeito.
Em outra carta, dirigida a “P”,2 ela reflete sobre seus sentimentos: “[...] a minha paixão
essencial é pelo espírito. A única paixão, uma paixão furiosa”. A amizade, que para ela
“[...] antecede o saber ou o destino e envolve apenas a esfera religiosa”, conduziria ao
problema da liberdade, numa interpretação semelhante à de Blaise Pascal: “Creio de
certo modo no livre-arbítrio (uma garantia para a moralidade) e concedo ao instinto
a sua parte (necessidade de agir sobre o instinto: o que não é paradoxal)”. E finaliza:
“No ano passado aproximei-me do catolicismo de Pascal”.º
Esquerda: Sem título, 1964-65, monotipia sobre papel japonês, 43 x 23 em, col. Ideo Bava, São Paulo 119
O pensamento de Pascal tem de ser entendido com o pano de fundo da teologia
medieval: somente a mensagem divina pode resolver o enigma da existência humana.
A ideia de que tudo provém do nada e estende-se até o infinito teria fascinado Mira e
poderia explicar suas tentativas de representar o vazio em sua obra. Em outra carta,
também a “P”, Mira afirma a importância da religião em seu modo de pensar:
[...] À religião está no centro de meus pensamentos. Experimento a religião como jamais
a experimentei. Penso em Deus com angústia e paixão indescritíveis. Na verdade, talvez
devêssemos falar de Deus “discretamente”. [...] Sabemos por experiência que nem sempre o
homem “religioso” vive e pensa verdadeiramente na religião; sabemos que a religião é algo
bem diversamente inexprimível ou exprimível; sabemos que o homem pode escapar ao seu
destino (religião) por meios “religiosos”: podemos intuir ou talvez até mesmo saber que Deus
espera algo bem diverso do homem, e que o homem, algo bem diverso de Deus; que a relação
de Deus com o homem é na realidade uma relação entre o finito e o infinito numa proximi-
dade infinita (e talvez, quem sabe, uma imanência bem real) e que relacionamento é uma
operação constante, um liberar-se de presença etc.
[...] Estamos sem Igreja, no sentido de “Eclésia”, comunidade. Mas eis que surge o rápido
consolo sob o signo de uma comunidade fechada que é este comunismo e este socialismo. Recor-
demos que começou a formar-se no miserável ambiente positivista. E a superstição perseverante,
da qual se acusa o materialismo, deixa entrever, contudo, a sombra de um tipo de escolástica.
Muitos, porém, obstinam-se em ver neste comunismo e neste socialismo, até agora incapazes de
qualquer operação de abertura, não apenas os instrumentos menos inadequados, mas pura e
simplesmente os únicos competentes para a formação de comunidades abertas. De mais a mais,
tanto este comunismo como este socialismo revelaram-se o mal dos males burgueses, com posições
econômicas e políticas simétricas aquelas às quais se opôem.
120
Que o essencial seja tal qual um fato paradoxal de experiência pertencente à esfera religiosa do
indivíduo e que não se coloque enquanto explicação, mas como paradoxo, como salto, como algo,
em suma, não explicável racionalmente, mas como improviso, superior à ordem lógica. [...] A ver-
dade religiosa é a incerteza objetiva mantida na apropriação mais íntima e apaixonada.
Com a leitura das cartas, convencemo-nos de que Mira advoga pela fé cristã, enquanto para
Arno, seu interlocutor, palavras como Eu sou o caminho, a verdade e a vida ou Ninguém
chega ao Pai a não ser por mim demonstrariam a arrogância do cristianismo. Ele tenderia
a ver nas religiões orientais uma realização mais acabada da divindade, o que a artista, à
época, teria refutado.” Noções de culpa e expiação seriam para ela inseparáveis da religião:
De mais a mais não é a pureza da infância que posso querer e — na mesma medida — um certo
determinismo ou pragmatismo psicológico. O que sustento, na verdade, é o conceito de culpa em
relação às posições religiosas, das quais ele se origina. É, portanto (mas não em desacordo com a
realidade psicológica), sempre em relação a certos conteúdos religiosos que meço a culpa. A reli-
gião estende-se à moralidade e a moralidade participa das últimas resoluções religiosas.
Mira teria reconhecido na obra de Kierkegaard sua própria ânsia por liberdade. Contra
a razão fácil e o comodismo otimista burguês, este filósofo apostara, dramática e parado-
xalmente, na totalidade do homem. Contudo, ele não encontraria a liberdade absoluta
nem na Igreja nem nas mediações intelectuais, mas na solidão e na renúncia romântica
à ação. Como indivíduo moderno, no entanto, Mira teria buscado a liberdade longe dos
paroxismos de Kierkegaard, e descoberto essa possibilidade não apenas em Karl Jaspers,
mas também em Emmanuel Mounier. Em carta não datada, Mira menciona a leitura de
Jaspers, em quem ela encontra a continuidade do pensamento de Kierkegaard. Jaspers
atribui à realidade pessoal uma espécie de transcendência íntima, que se estabelece por
meio de uma linguagem radical, uma transcendência inominável e inalcançável, o que
a artista assumiria como comunicação existencial, enquanto arte, em última instância.
Em outra carta, de 1952, o seguinte trecho de Der philosophische Glaube (A féfilosófica]
e apresentado como um avani-propos:
Disposição para a comunicação sem fronteiras não é consequência de um saber, mas sim
opção para um caminho humanista. O pensamento de comunicação não é utopia, masfé.
Coloca-se para cada um a questão se ele se esforça ou se crê, não num além, mas num presente
integral: na possibilidade de nós, seres humanos, convivermos, dialogarmos e nessa interlocução
nos encontrarmos, e só deste modo nos tornarmos nós mesmos. Hoje, por necessidade, entendemos
comunicação como uma exigência básica. O esclarecimento de comunicação por suas multiplas
origens na essência do incompreensível torna-se tema central do filosofar. A comunicação, contu-
do, em todas as possibilidades de torná-la mais realizável, é tarefa diária da vidafilosófica.”
Idem, carta a Arno, Porto Alegre, 29/30 jun. 1952. No arquivo da artista, encontram-se duas cópias desta carta com
textos quase idênticos. Numa delas, Mira acrescenta uma frase — pt la primeira vez — em português: ficam os meus
pedidos, todas as minhas perguntas
7
Arno, carta a M., Porto Alegre, 1º mar. 1953
8 Hargesheimer, carta a Vauco, São Paulo, 8 mai. 1958.
9 Idem, carta a A., Porto Alegre, 1952,
No campo do existencialismo, o personalismo cristão de Mounier assinala o desejo de
diálogo com os pensadores materialistas. Talvez por isso suas ideias tenham exercido uma
influência duradoura em países que buscaram na democracia cristá uma alternativa aos
regimes fascistas, tais como Portugal, Espanha, Itália, pontualmente na América Latina e
até mesmo na Polônia socialista, em virtude da sua forte tradição católica. O interesse de
Mira por Mounier atesta sua concordância com as formulações cristãs do filósofo sobre
liberdade, comunicação, sofrimento e engajamento. Além disso, ela teria encontrado em
seu ideário um denominador comum para o diálogo com intelectuais de esquerda do
cenário cultural de São Paulo dos anos 1950 e 1960, como, por exemplo, Mário Schenberg.
O personalismo de Mounier apresenta ainda vínculos facilmente identificáveis com o con-
ceito de individuação, formulado por Jung e rediscutido por Hermann Schmitz, com o
qual Mira se ocuparia posteriormente, a partir de meados dos anos 1970. Numa carta a
Arno, ela cita a seguinte passagem de Le Personnalisme [O personalismo], de Mounier:
Os espiritualistas modernos dividem o mundo e o homem em duas séries distintas, uma mate-
rial e outra espiritual: às vezes assumindo como puro fato a independência das duas séries
(paralelismo psicofisiológico), e deixando a matéria seguir seu próprio destino, para poderem
ter o direito de legislar categoricamente no reino do espírito, de modo que a ligação entre os
dois mundos permanece inexplicada; às vezes negando toda consistência do mundo material, a
fim de criarem uma aparência de espírito, cuja importância chega às raias do paradoxo. Este
esquema é desmantelado logo de saída pelo realismo personalista: A PESSOA ESTÁ IMERSA NA
NATUREZA. O homem é simultaneamente um corpo e um espírito. “Corpo” por inteiro e “espí-
rito” por inteiro.
Meus estados de ânimo e minhas ideias são condicionados pela geografia, pelo ponto em
que me encontro na superfície terrestre, por caracteres herdados e, indo ainda mais longe,
talvez pelo efeito poderosíssimo de raios cósmicos. À estas influências vêm juntar-se ainda
as determinações psicológicas e coletivas posteriores. Não há nada em mim que não esteja
mesclado de terra e sangue. Algumas pesquisas demonstraram como as grandes religiões
seguiram os mesmos itinerários das grandes epidemias. Não é de estranhar, pois também os
pastores possuem pernas que se adaptam aos desníveis do terreno.
Esta é a parte considerável de verdade contida na análise materialista, e que não é inédita.
A união indissolúvel da alma ao corpo é o eixo do pensamento cristão. Ele não contrapõe o “espí-
rito" ao “corpo”ou à “matéria”, em sua acepção moderna. O “espírito”, no significado complexo
que assume no espiritualismo moderno, indicando simultaneamente pensamento, alma e sopro
vital, funde-se em existência com o corpo. Quando esta totalidade se orienta em sentido oposto
às vocações sobrenaturais do homem, o cristianismo chama este movimento de carne, exprimin-
do assim, perfeitamente, o peso da alma e dos sentidos.
Quando se dirige a Deus, o corpo e a alma colaboram juntos no reino espiritual, no
sólido reino de Deus e não no reino etéreo do espírito. Se o pecado original amaldiçoou a
natureza humana, tudo o que era humano, no seu conjunto, foi tocado: desde os evangelhos,
a maldade e as perversões do espírito suscitaram muito mais anátemas do que aqueles da
“carne”, no sentido estrito do termo. O cristão que fala com desprezo do corpo e da matéria
Já-lo, portanto, contra sua tradição mais essencial.
[o [ne]
Segundo a teologia medieval, não podemos simplesmente elevar-nos às mais altas realidades
espirituais e a Deus a não ser que superemos a matéria por meio da violência que exercemos
sobre ela; com efeito, é ainda o desprezo grego pela matéria que subsiste, transmitindo-se
através dos séculos até nossos dias, sob falsas justificativas cristás. Repara como é interes-
sante isso tudo! [comentário de Mira] Mas hoje é necessário reabsorver este dualismo
nocivo, tanto em nossa vida prática como em nosso pensamento: o homem é um ser natural,
por meio de seu corpo ele participa da natureza, e seu corpo o acompanha, onde quer que
ele vá. É preciso daí extrair as consequências. A natureza — participação exterior pré-
humana, psicologicamente inconsciente e socialmente impessoal — não é o mal do homem.
A encarnação não é uma queda, mas por ser o local do impessoal e do objetivo ela oferece
continuamente pretexto para a alienação.
Um Deus que “deu de sua própria pessoa” para assumir e transfigurar a condição humana,
e que propõe a cada pessoa uma relação singular de intimidade, uma participação na sua
divindade; um Deus que não se afirma, como quis acreditar o ateísmo contemporâneo
(Bakunin, Feuerbach), na embriaguez do homem, mas, muito pelo contrário, outorgando-
lhe uma liberdade análoga à sua, e despertando nele o sentimento de generosidade pela
generosidade em si.'º
10 dem, carta a Vaucuccio, 10 ago. 1953. Mira cita Mounier da edição italiana // Personalismo (Milão: Garzanti, 1952); a
presente tradução baseia-se na edição francesa: Emmanuel Mounier, Oeuvres, tomo Ill: 1944-1950. Paris: Seuil, 1962,
pp. 441-42,
Emmanuel Mounier, Le Personnalisme, op. cit., p. 431,
dem, ibidem, p. 438,
mas aquela determinada por Deus e pelos homens. “O personalismo cristão atinge sua
meta: todos os seus valores se agrupam sob o apelo singular de uma pessoa suprema.”'?
No Brasil, as ideias de Mounier teriam encontrado ressonância na ampla gama de dis-
cussões dos anos 1950 e início dos 1960.
Apesar do predomínio do positivismo, Vilém Flusser descreve o método de produção de
conhecimento dos intelectuais brasileiros como uma justaposição mais ou menos aleatória
de retalhos teóricos, em que prevalece o racionalismo francês mas também desempenham
um papel importante escritos mais ou menos esotéricos.
[Isto se explicaria) porque a França é para nós um Portugal enobrecido e, portanto, incor-
pora um componente de nossa herança cultural, e a literatura esotérica é para nós uma
magia africana enobrecida, satisfazendo assim este segundo componente de nossa herança.
Isto explica, por exemplo, a transformação no Brasil do positivismo comtiano em religião
mágica. Recentemente o positivismo vem sendo substituído pelo marxismo e o elemen-
to mágico pela pesquisa dos mitos alemães e pelo zen-budismo."
Outra passagem comprova que, para Mira, pintar seria um meio de acesso ao terreno
filosófico:
[...] Pintei outra natureza-morta. Certo, pintar é difícil como um parto. Para acalmar-me
deveria ter glândulas que funcionassem melhor. Talvez me salvará a medicina psicosso-
mática?! Além disso, eu deveria ter uma alma diferente, ver menos, pensar menos. Mas,
mesmo que quisesse, não poderia esquecer o problema do ser (os sofrimentos, o saber, o livre-
arbítrio, a justiça, o absoluto, Deus etc.).'º
Entrevista de Jorge Guinle Filho com Mira Schendel em “Mira Schendel, pintora — o espaço vazio me comove profun-
damente”, Interview, São Paulo, jul, 1981
Mira Hargesheimer, carta a caro A., 28 mai. 1952
Idem, ibidem.
Júrgen Schultze, Alexe; Jawlensky. Colônia: DuMont, 1970, p. 45
A,
Dominicanos
Desde sua chegada a São Paulo, Mira teve contato com a comunidade dominicana.
José Petronilho de Santa Cruz, o frei Benevenuto, contou que ela lhe fora apresentada
por um amigo comum, Carlos Pinto Alves, e que trazia cartas de referência do cardeal
Montini, de Milão. Ele a considerava extremamente inteligente, mas “uma pessoa
muito difícil... era ríspida, não era de trato fácil ou afetuosa”.?! Frei Benevenuto, por
sua vez, apresentou-a ao industrial e fundador da Bienal de São Paulo Francisco Mata-
razzo Sobrinho, que na época a teria ajudado financeiramente.” Em 1972, Santa Cruz
deixou a Ordem dos Dominicanos e não teve mais contato com a artista.
Nos anos 1960, Áureo Pereira de Araújo, o frei Chico, foi prior dos padres domini-
canos de São Paulo. Ele rezava missa aos domingos na igreja de São Domingos, assis-
tida, segundo suas estimativas, por 2 a 3 mil pessoas. Seus sermões associavam os temas
da semana ao evangelho do dia. “Um dia Mira veio à minha missa. Ficou apaixonada
pelo meu sermão.” 2º Nessa ocasião originou-se a amizade. Para Araújo, é difícil dizer
se Mira admirava-o como político, místico ou revolucionário.
Mira tinha uma curiosidade imensa por temas religiosos. [...) Ela adorava a minha paixão
pelos místicos cristãos Santa Tereza d'Ávila, São João da Cruz e Mestre Eckhart. [...] Mira
era um ser místico, era muito religiosa, apesar de ter ideias pouco ortodoxas sobre Deus e
a Igreja.*
No fundo ela tinha uma preocupação com a mística. [...) Quando eu falei que Mira era
mística, quero dizer que ela era uma pessoa que estava enraizada no real, procurando uma
justificativa desse real. Para mim, o místico é aquele que sai da matéria para chegar além
José Petronilho de Santa Cruz, depoimento ao autor, São Paulo, 9 abr. 1997.
Mm
no Idem. Segundo Santa Cruz, Mira teria recebido uma quantia mensal, paga durante cerca de um ano pelo industrial
Francisco Matarazzo Sobrinho, que facilitara o início de sua vida em São Paulo. No arquivo da artista existe um
rascunho para o pedido de uma bolsa à Fundação Andrea e Virgínia Matarazzo. Frei Benevenuto de Santa Cruz e
Carlos Pinto Alves são citados como referências pessoais.
Aureo Pereira de Araújo, carta ao autor, Guarujá, 16 nov. 1997.
Idem.
Idem.
126
da matéria. Se ele não assume a matéria, ele não é místico, é alienado. Mira brigava com
a matéria. Ela nunca fez nenhuma concessão para fugir do real da matéria. [...] Ela não se
preocupava muito com a história, com o déja-vu, para ela interessava o novo. |...] Ela era
um vulcão interrogativo.
Frei Paulo de Tarso relata também sobre a cooperação de Mira com o movimento
pacifista católico. Em 1968, para um evento por ele organizado em Belo Horizonte,
a Semana da Fé e da Juventude, ela criou uma série de desenhos sobre o tema da fé,
inspirando-se na citação de São Paulo Fides ex auditu [A fé vem pelo ouvido]. Esses
desenhos, tidos hoje como desaparecidos, combinavam textos com a imagem de uma
orelha, que se transformava num ponto de interrogação.”
Já foi mencionado o interesse de Mira pela teologia desde os anos vividos na Europa.
Anotações complementares em seu diário e exemplos em sua obra permitem concluir
que suas ideias teológicas são de ordem predominantemente liberal. A teologia teria
sido para ela mais uma reflexão cristá sobre a fé e a possibilidade de vivenciá-la em seu
caráter imanente do que algo relacionado a conteúdos históricos. No momento em
que a politização do movimento religioso brasileiro veio à tona, com o surgimento da
Teologia da Libertação, ainda que Mira adotasse posturas liberais quanto às demais
questões teológicas, sua ruptura com os amigos dominicanos foi inevitável.
26 Paulo Celso de Moura Silva, depoimento ao autor, São Paulo, 12 abr. 1997
'
27 Idem
[8 q
Todo caminho conduz a um fim
Pois trata-se da salvação ou perdição do “eu” e do “tu”, Por isso o amor acontece através de
“Deus”, através do “ser”, através da vontade. [...) E quem não puder amar assim jamais
terá consciência de seu eu: não terá experimentado a distância. Não sabe o que realmente
significa “Ser só”, O significado de “dar”a vida. O significado da vigília na noite anterior
à crucificação.
[...] O Cristo ressurrecto mostra, ainda que de forma oculta, suas cicatrizes. Nos pés, nas
mãos, onde quer que seja. Se você observar bem, as cicatrizes são evidentes. Causal-acausal.
Assim é, dito à maneira cristá, o caminho para a libertação do tempo, do espaço e do eu.
O caminho da cruz. Morre-se nele. Todo caminho conduz a um fim.
Para ela, os temas religiosos deveriam ser tratados com cautela. Com relação a um
vínculo entre o medo e a resignação, ela recorre à filosofia de Kierkegaard:
O assunto é melindroso. [Não devemos falar a respeito disso.) Não falar em corda em casa
do enforcado. Além de tudo não é moderno. E eu que sou uma mulher “tão moderna”,
como posso voltar sempre a isto? Por que não falo do que é concreto? Cotidiano?
Nosso medo é o medo de morrer. Estamos possuídos pelo medo do medo. Nosso medo é o
medo de não ser mais. Vivemos e matamos por medo. Acumulamos por medo. Trabalhamos
para afugentar o medo. Todas as nossas ações são ditadas pelo medo. O medo envenena
nossa vida. Nossa breve vidinha. Por isso não temos tempo. Teríamos “tempo” se não tivés-
semos medo. Mas o medo empurra-nos para a frente. O medo de ser e o medo de não ser. O
que Kierkegaard chamou: o desespero do infinito e o desespero do finito. Mas Kierkegaard
soube o que era resignação. Ele próprio não se identificava com “il cavaliere della fede” [o
cavaleiro da fé]. Aquele, o da fé, parece-se com um bom burguês. Mas quem reconquista a
Terra não é 'cavaliere della fede”. A fé coloca-nos perante o mundo. E assim estava Kierke-
gaard — perante o mundo e perante deus.
Podemos não acreditar em nada. Do que realmente não podemos duvidar é de termos que
morrer. À morte como perda irreparável da autoidentidade. Pois todos nós achamos ainda
que “ser” é ser este “eu” e não ser é não ser mais este eu. Sendo a “vida eterna” algo de difícil
crença, o medo apoderou-se de nós. [...] Nem as várias igrejas falam hoje muito da morte.
Os temas são “sociais”. As igrejas, feitas de homens, vivem e morrem obviamente o mesmis-
simo medo do mundo afora. Há muitas cruzes por aí. Até ainda no pescoço de moças boni-
tas. Pois “cruz” deixou de “informar”. [...] Qualquer dificuldade pode ser chamada de cruz.
Qualquer doença. A cruz é no máximo algo que vem “carregado”. Nas igrejas, reina quase
silêncio quanto à cruz: o assunto virou antiquado e até de mau gosto. No máximo é uma
metáfora que indica o pobre diabo sofredor, a pobre vítima do mau patrão capitalista ou
comunista. Mas alguém poderia ter o gosto e o humor de falar no assunto proibido. Pensar
noutro cartaz escandaloso e com isto voltar ao escândalo da cruz. Fazê-lo voltar “a moda”
com o auxílio da teoria da informação. Basta para isto estudar um pouco como é que uma
mensagem deixa de informar. No mundo atual tudo vira redundante. Até as bombas atô-
micas são redundantes. Os discos voadores. Os partidos. Os carros. As guerras, as revoluções
e as contrarrevoluções. Cada mensagem é consumida rapidamente. Até a “nova Igreja” já
foi consumida. A “velha” informa mais. Para não falar de algumas filosofias já consumidas
ou da “morte de Deus”, que teve seu sucesso e seu rápido consumo uns anos atrás. Entrou
em circulação no fim da moda dos sapatos de ponta fina.
Em 1964, Mira criou, para a ordenação de um amigo dominicano, frei Gabriel, uma
monotipia, posteriormente trabalhada pelo decorador Ideo Bava.”' À proporção 2/1 lp. 118]
do original em papel japonês foi mantida por Bava na versão gráfica desses santinhos
reproduzidos em offset. Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo são Os dize-
res da participação.
30 Idem, ibidem
31 Ideo Bava, carta ao autor, São Paulo, 22 abr. 1998
129
HOMENAGEM
AO DEUS-PAI DO OCIDENTE
Em 1975, Mira elaborou dezesseis desenhos com tinta spray e letras autocolantes que
apresentam uma louvação a Deus: a série Homenagem ao Deus-pai do Ocidente, que está
entre os últimos trabalhos que associam textos a imagens, assunto que será abordado
no quarto capítulo deste livro.
Cada um dos desenhos no seu formato predileto, 46 x 23 cm, apresenta palavras
ou frases provenientes do Velho Testamento, complementadas por elementos gráficos
desenhados com o jato de spray. Não apenas as passagens bíblicas — quase todas do
Livro dos Salmos — como também as marcações gráficas que as acompanham aludem
a um Deus poderoso, masculino, às vezes até violento, o que pode suscitar associações
entre um traço retilíneo e oblíquo, presente em quase todos os desenhos, e o falo.
Segundo uma antiga tradição judaica, o Espírito Santo agia de modo a evocar
atributos femininos, como mãe e mulher. Essa imagem, porém, não prevaleceu nem
na tradição latina nem na grega, por razões linguísticas e principalmente por causa da
masculinização da cultura greco-romana. Os primeiros autores bíblicos descreveram
os atos do espírito com verbos do mundo da mulher: inspirar, ajudar, apoiar, cuidar,
gerar etc. Após Santo Agostinho, porém, a mulher não poderia servir como imagem
de Deus, somente o homem. Em sua filosofia, a sexualidade relaciona-se à matéria e
aos níveis inferiores da realidade, e o espírito é definitivamente apresentado com tra-
ços masculinos. No Ocidente, a teologia do Espírito Santo acentuou a masculinidade
a fim de criar uma justificativa para o poder de uma Igreja centrada na imagem de
Deus. Há nesses postulados uma questão relativa à representação de Deus cujas raízes
poderiam ser encontradas no mundo psíquico-mítico da Bíblia. Trata-se de uma res-
peitosa declaração de fé judaico-cristá ou de uma crítica à posição da mulher numa
sociedade preponderantemente masculina?
Para respondê-la, precisamos examinar as ideias teológicas da artista em seus escri-
tos fragmentários, pois esses desenhos não pretendem ser apenas um trabalho artístico
contemporâneo, mas também uma tentativa de aproximação entre a experiência da
arte e a experiência de Deus.
A representação teísta do deus sumamente bom e perfeito obscureceu nossos olhos. Esta nos-
sa projeção: o problema do mal. Dizer, como foi dito, que “Deus é amor” foi pernicioso.
O homem vira um monstro pecador. O deus da justiça é mais coerente do que o deus do amor.
Com ele é ao menos possível um negócio. Uma acomodação. |...) Desse modo também a ima-
ginação que se faz de Deus (e com ela a velha transcendência e o além) deveria ser superada.
Não no sentido de tornarmo-nos ateus (pois isto seria um absurdo), mas livres de Deus.
O “amor cristão” é juízo eminentemente “histórico”. Diz de “salvação” e “perdição”.
Nosso coração deveria, porém, ser “íntegro”, no sentido bíblico. Para podermos enxergar
“Deus”. Se pudermos enxergar Deus, então podemos quebrar a cabeça a esse respeito. Aden-
trar a relação eu-tu e lutar. Renunciar à alma, sim, mas pelo espírito.
ao
67. Mira Schendel, diário inédito.
Idem, ibidem.
34 Idem, ibidem.
Mira escreve muitas vezes a palavra deus (ou got?) com letras minúsculas, e justifica-se:
“Ateisticamente e ocidentalmente assumindo teísmo e antiteísmo”.º O colecionador
dessa série de desenhos acredita que Mira quis apresentar um Deus masculino de um
ponto de vista feminista.” Tal hipótese, contudo, é de difícil sustentação se considerar-
mos certos trechos de seu diário, nos quais o feminismo é criticado:
O que sobra é o mundo patriarcal. O mundo masculino que no Ocidente não aprendeu
a lição da cruz. Pois a cruz é força, e o resto, poder e impotência. O “eu” da cruz é o eu
eficiente que conhece suas medidas e suas fronteiras. Não casar para não perder seu eu. Pois,
sem [o] eu, [o homem] teria perdido a Deus. Não teria entrado em relação absoluta com
o absoluto. A mulher o teria prendido à Terra. Pois ela é carente de eu. E a mais bela e
pura feminilidade é desespero por carência de eu, o desespero do finito. Sem a mediação do
homem a mulher não encontra Deus. À transcendência. Diretamente ela não está perante
deus. O que é “verdade” naquela ontologia. A mulher é o nada perante o ser. Subordinada
ao ser. O celibato tinha suas razões profundas. Geralmente as mulheres nunca compreen-
deram este medonho problema. Sempre fizeram o papel de portadoras do mal, do não ser.
Usadas (isto não tem a mínima importância: possuídas pelo ser). No dia da transfiguração
não casarão mais. Serão como anjos do céu. Não porque não tenham corpo e não possam
amar — mas porque o amor será multidimensional, integral. [...] Não há guerras, massacres,
inquisição que dê conta da história. Die geschichtslose Geschichte der Frau wird zeigen
die andere Seite. [A história sem histórias da mulher mostrará o outro lado.) Isto pode-
ria encher de humor o mundo. Exigem o engajamento da mulher nos últimos massacres do
sistema patriarcal. Sua participação na produção. Mas a mulher menos inconsciente faz
o que deve não se engajando e não lutando para ganhar a vida. Não competindo. E nem
explorando sedenta do que pode ser explorado. Não deveríamos explorar tamanha miséria.
Mas ter consciência dela. Dizer “não” quando dizer “não” significa não engajamento. Não
ser “contra”, ser a favor de outras coisas. Não tomar como modelo a revolta dos negros e dos
escravos. Widerstehen durch Distanzierung, was hier besagt: ICHBEWUSST. [Resistir por
distanciamento, o que aqui significa: consciente do eu.)”
Idem, ibidem.
o
O Depoimento ao autor, São Paulo, 14 abr. 1997.
Mira Schendel, diário inédito.
Frederico Morais, “Droguinhas e um trenzinho: a metafísica de Mira Schendel”, O Globo, Rio de Janeiro, 5 mai. 1988.
BANHAR
ENTÃO sE
RECOMPENSA PARA o
[...] como sempre, a experiência comprova que tais pensamentos de certo modo “estão no ar”
ou seja, pensamentos bons e corretos não são exatamente pensados por nós, mas nos usam,
nos procuram e nos chamam até eles.
I41
A era não-perspectívica significa para Gebser o período no qual o espaço ainda dormia
para o homem, pois este ainda não havia despertado para ele. A falta de uma consciên-
cia espacial implica a ausência de uma consciência do “eu”. Este “eu”, que teria surgido
separando-se da alma, coloca-se defronte ao espaço, o que permite representá-lo.“?
A sensibilidade corpórea dos gregos é, portanto, a expressão de uma individuali-
zação, a partir da qual o homem lentamente toma consciência não somente de seu
corpo, mas deste corpo como suporte do “eu”. Segundo Gebser, este eu é responsável
por uma nova consciência espacial, cuja profundidade torna-se visível com a perspecti-
va. Em vez de apenas estar no mundo, o homem começa a possuí-lo conscientemente.
Ver ou pensar perspectivamente significa ver e pensar a partir de um ponto fixo, pois
a perspectiva fixa tanto o observador como o observado, concretizando a relação do
homem com o espaço: o homem posiciona-se espacialmente e pode ver apenas um
setor. Quanto mais profundo e distante é o alcance do olhar no espaço, tanto mais
estreita e limitada torna-se a pirâmide de visão. Este processo de setorização teria con-
duzido à compartimentação do conhecimento e à especialização de um modo geral.“
À passagem de um período a outro corresponde uma alteração na estrutura da cons-
ciência, uma evolução ou mutação, como Gebser prefere denominar, que não se pro-
cessa nem biológica nem historicamente, mas espiritualmente. O surgimento de tais
mutações não deve ser necessariamente entendido como um progresso, mas como
[...] a visualização estrutural das possibilidades das consciências preexistentes, para além e
através dos tempos e das culturas, as quais, ora empobrecendo, ora enriquecendo, vão deter-
minar os respectivos modos de apreensão da realidade pelo homem.
De acordo com a estrutura mental, o espírito foi primeiro unificado: dos espíritos fez-se o
Espírito; segundo: ele foi submetido à abstração, tornou-se conceito, posteriormente raciona-
lizado e perspectivado; terceiro: ele sofreu uma absolutização (ab-solutum = dissociado), foi
isolado; e quarto: como reação a este isolamento, passou a ser negado sistematicamente.
143
Para Gebser, tanto os esforços dos cubistas como os dos filósofos fenomenológicos dei-
xam entrever o mundo aperspectívico: a percepção do todo, do espiritual, do diaphai-
non, a transparência que deixa visível a origem, continente de todo o futuro, e liberta
do tempo o presente. O empreendimento de tal tarefa, sem abrir mão das estruturas
de consciência anteriores, significa a superação da racionalidade em favor da arraciona-
lidade, e assinala a passagem da mentalidade à diafanidade.
Para o homem que pensa perspectivamente, o tempo não possui característica qua-
litativa. É somente conceito e princípio divisor. Mas como, na realidade, o tempo
apresenta-se ainda sob outras formas essenciais, que apenas ele, e não o espaço, pos-
sui, devemos nos acostumar a reconhecer seus elementos não categóricos. Uma das
grandezas acategóricas do tempo é a intensidade, pesquisada por Bergson.” Gebser
também vê indícios de uma nova mutação de consciência, um estágio preparatório da
estrutura integral, na filosofia fenomenológica, uma vez que ela não parte das ciên-
cias eidéticas, nem pesquisa fatos eventuais, mas atua descritivamente: relações essen-
ciais formam seus objetos de estudo, que passo a passo, a partir de uma visão geral,
vão se tornando precisos. Também para Heidegger o tempo é concebido como algo
constantemente ontológico. Mediante o dimensionamento da verdade heideggeriana,
formula-se filosoficamente o hindurch [através], que, fisicamente, poderia caracterizar
a dimensão integral.”
50 Cf. Henri Bergson, Zeit und Freiheit: eine Abhandlung úber die unmittelbaren BewuBtseinstatsachen. Jena: Diederichs. 1920
51 Martin Heidegger, Sein und Zeit. 16º ed. Túbingen: Max Niemeyer, 1986, pp. 51, 303 e JJV,
333
144
Mira e a transparência
As teorias de Gebser admitem interpretações religiosas, o que pode tê-las tornado espe-
cialmente interessantes para Mira. Uma pessoa crédula como ela tenderia a equiparar a
diafanidade do mundo — supostamente alcançável, de acordo com o filósofo, na nova
estrutura de consciência em formação — às profundas verdades cristãs. A liberdade do
tempo e a libertação do “eu” poderiam trazer à vivência imediata a presença do além
no aquém, da morte na vida, do transcendente no imanente e do divino no humano.”
A obra de Gebser teria levado Mira a crer que na manifestação da diafanidade a represen-
tação da vinculação do tempo ao espaço poderia ser abolida e assumir a forma de uma
totalidade. Uma vez que a simultaneidade implica a eliminação da sequência temporal,
permitindo ao tempo expressar-se por si mesmo, a visualização da transparência se rees-
truturaria como libertação de tempo. Não se trata apenas de tornar visível a simultanei-
dade, mas, na terminologia de Gebser, da realização do Achronon (libertação do tempo).
De acordo com ele, o homem toma consciência das diversas formas de tempo ao perce-
ber que todas elas conduzem a uma origem única: nessa união, ele pode vivenciar a ausência
de tempo com que o sono profundo o presenteia todas as noites; pode experimentar a vin-
culação do tempo à natureza, o tempo complementar e cósmico, que une o pulsar de suas
veias e sua respiração aos ritmos do universo; e pode ainda servir-se do tempo mensurável.
[...] Esta diafania é abrangente, ela é uma transparência, uma visibilidade através do espaço
e do tempo, tanto da luz como da escuridão, tanto da matéria como da alma, tanto da vida
como da morte... pois a transparência do espiritual age no todo, e o todo é transparência.
O processo de criação de Mira tornou-se uma transparentização. Sua arte dava conti-
nuidade ao impulso de diafanidade formulado por Gebser. “A clareza meu leitmotiv. À
transparência. Os íntegros de coração que verão Deus... Mas o que sinto é a transparên-
cia. Sinto profundamente o que enxergo. Uma vocação inimediável(!)." *
Mira apropria-se da definição de transparência enquanto manifestação formal do espiri-
tual (epifania), associando-a a um método reflexivo que de certo modo completa a filosofia
paradoxal de Kierkegaard. “Não existe isto/ou aquilo. Mas também. Através”. E a libertação
do eu, resultante da concretização do tempo, seria associada à ideia cristã de misericórdia:
52 Gebser, Ursprung und Gegenwart, tomo |l, Die Manifestationen der aperspektivischen Welt, 2º edição. Munique: DTV, 1986,
pp. 557-58
58 Idem, ibidem,
p. 668
54 M. Schendel,
diário inédito
55 Idem, ibidem
Gebser escreve, e não nos deixar abater por ela é a nossa liberdade. Esta é, portanto, a nossa
liberdade, não rejeitar a misericórdia ofertada. Pois a experiência da misericórdia é exatamente
tão concreta quanto a experiência do sofrimento. Como o sofrimento, também nos corresponde
a misericórdia. E assim como o sofrimento é condicionado, tem prazo e limites, também a mise-
ricórdia talvez apresente condições, prazo e limites. Vivenciável, experimentável, imagindvel
como o sofrimento. Abrir-se a ela — ainda que apresente condições, prazos e limites — é a nossa
liberdade. Seja ela vivenciável, experimentável ou imaginável. De acordo com o grau de cons-
ciência de cada um. Misericórdia, talvez se pudesse exprimir diversamente, é a manifestação
do espiritual.
Amensão, para Gebser a libertação da dimensão, significaria para Mira o reino divino:
O reino de deus é, diria eu, amensão na terceira dimensão. Supradeterminação da mesma. Não
sua supressão. [...) Dizer que o dito espírito é um epifenômeno da dita matéria quase não sig-
nifica mais nada. Nem é tão consolador e alentador assim alimentar a imagem de um princípio
“espiritual” contido em nosso corpo, ou em luta com nossa matéria. Este não passa de dualismo.
Mas outra ilusão seria a da absoluta unidade. A reflexão e o pensamento a impedem.
Em total acordo com Gebser, fenômenos parapsicológicos seriam também, para Mira,
inseparáveis dos níveis mais concretos da consciência. Aceitá-los significaria que o
homem havia se tornado sensível ao problema do tempo. Eles indicariam a consciên-
cia de outras dimensões da suposta realidade:
Parapsicologia está ao nível do conexo vital — é profundamente natureza. Mas escapa às medi-
ções da estrutura tridimensional. É “estrutura” próxima às origens. À matriz. E não é racional
(ratio: parte). Trata-se do mundo pré-racional. Se esta obscuridade ficar por demais iluminada,
este mundo da magia será destruído. Teria que ser bolado em transparência, diria Gebser. Pois
a transparência deixa protegido em sua obscuridade o que só nela pode viver. Qualquer inter-
ferência da vontade (que é norma do dia) aniquila o observado. Este mundo não é do campo
anterior, onde têm vigência as categorias lógico-racionais. Mas este mundo (sendo o da magia)
tem o poder de aniquilar o mundo do dia. Na magia deficiente. Nas psicoses. Esse mundo é cego.
É prudente aproximar-se dele num estado de suficiente vigília. Para que o dito inconsciente
(coletivo) dê seus frutos é preciso homens que respeitem as raízes e sua necessária profundidade e
obscuridade. Porque “tirar a limpo” é destruir.
Devemos lembrar que nos anos 1950 e 1960 a parapsicologia gozava de respeitabili-
dade em certos círculos científicos. Não é portanto de admirar que Mira se apóie
nessa discussão para traçar um percurso que parte das categorias lógico-racionais do
pensamento em direção a um irracionalismo intuitivo.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem
Basileia transmitiu, em 8 jan.1954, programa organizado por Karl Jaspers, Adolf Portmann e Jean Gebser,
blemas da parapsicologia. Cf. Jean Gebser, op. cit., tomo Ill [Kommentarband)], pp. 137-38.
I46
O silêncio visual
Em 1969, Mira apresentou na 10: Bienal Internacional de São Paulo a instalação fp. 148)
Ondas paradas de probabilidade — Antigo Testamento, Livro dos Reis |, 19.9! Este tra-
balho consistia em muitíssimos fios de náilon pendentes do teto ao chão no amplo
espaço da sala de exposição. Estes fio foram cortados um pouco mais longos que o
pé direito da sala e atados a três telas metálicas de 200 x 200 cm cada uma. Poste-
riormente, essas telas foram fixadas ao teto numa distância aproximada de cinquenta
centímetros entre si, formando um triângulo irregular. Um trecho bíblico, escrito
numa placa de acrílico também pendente do teto, descreve o momento em que o
profeta Elias, após haver comido do pão e bebido da água que lhe trouxera um anjo
do Senhor e vagar durante quarenta dias e noites pelo deserto, adentra na caverna
do monte Horeb na esperança de encontrar-se com Deus. Ele presencia fortes ven-
tos, incêndios e terremotos, mas não sente a presença de Deus nesses fenômenos. “E
depois do fogo, o sussurrar de um sopro tênue. Então, ouvindo-o, Elias velou o rosto
com o manto, saiu e postou-se à entrada da caverna. Uma voz dirigiu-se a ele: Por
que estás aqui, Elias?”?8º
Segundo anotações em seu diário, Mira teria tentado com este trabalho apresentar
a “visibilidade” do invisível. Por meio de uma ação encenada num contexto espacial,
ela transformava a atmosfera da sala de exposições num momento bíblico. Sua insta-
lação — na época usava-se o termo ambiente — metamorfoseava o silêncio em espaço-
pensamento visível e divino. Um gesto poético, cuja força de irradiação silenciosa agia
sobre o observador por meio dos fios de náilon que sugeriam o caráter imaterial do
sopro tênue do texto bíblico.
[...] Fui convidada a participar de nossa décima Bienal. O regulamento mudou. Vinte e
cinco brasileiros foram convidados desta vez. Outros 25 serão admitidos por um júri. E aqui-
lo que em Veneza e adjacências já é coisa do passado é novidade por aqui. Holanda, França
e Suécia aparentemente se recusaram a participar. Também se recusaram alguns dos 25 bra-
sileiros convidados. Por motivos (num primeiro plano!) também válidos. Perspectivamente
estou de acordo com eles. Aperspectivamente, porém, tenho que aceitar o convite. Aperspec-
tivamente tem “valor quântico” também no “primeiro plano”. À transparência. O modelo
será montado no próprio local. No tocante ao dinheiro, custará menos de 10 francos suíços.
E também não me importo se o destruírem. Depende da possibilidade de ver-se nele algo ou lp. 148]
nada se perceber. De modo que se alguém deixar intactos esses finos fios de náilon, cortá-los
com raiva ou arrancá-los, no fundo (plano de fundo!), isso não teria a menor importância.
Divirto-me com isso. Sem exagerada seriedade, como o senhor dizia! Para vender-se, não
tem nada lá. Como brasileira, vivo numa sociedade ainda não produtiva. Como europeia,
não tenho muito a dizer sobre a colossal sociedade de consumo. Aqui nos falta o dinheiro
para comprar muitas coisas. Aí não se quer mais comprar e vender tudo. Portanto, também
nesse ponto temos um jogo. Um jogo no primeiro plano. E perspectivo, também.
E
[9/9] M. Schendel, carta a Konrad Gromholt, São Paulo, 25 set. 1969
DO Idem, carta a Jean Gebser, São Paulo, 26 jun. 1969
149
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A leitura da obra de Carl Gustav Jung reforçou o interesse de Mira pela arte e pela
filosofia orientais, perceptível desde o início dos anos 1960, instigando-a tanto em suas
atividades artísticas como em seu questionamento religioso.
Quem se interessa pela psicologia de Jung é geralmente uma pessoa intuitiva. Portanto Jung
não pode ser impingido. Não se trata da única psicologia. Só de uma preferência pessoal.
Quem não enxerga analogias deixa Jung de lado e com toda razão.”
Neste ponto, entretanto, caímos na tentação de, por falta de uma causa determinável, assu-
mir uma causa transcendental. Porém, somente uma grandeza determinável pode ser uma
“causa”, Uma causa “transcendental” é uma contradictio in adjecto, pois algo transcen-
dental por definição não poderia ser absolutamente determinado. Todo estado emocional
produz uma alteração na consciência.
ISI
da série / Ching, déc. 1970
ecoline sobre papel, 46 x 23 cm
col. particular, São Paulo
1 Ching
O 7 Ching, o antigo livro chinês das mutações, funciona como um oráculo cuja efi-
cácia relaciona-se ao paralelismo psicofísico de certos fenômenos. Com frequência
estabelecem-se conexões entre o questionamento de determinadas situações vivenciais
e o significado dos hexagramas, respostas codificadas obtidas por meio do jogo de
varetas ou, mais simplificado e relativamente popular, de moedas.
Os trabalhos de Mira mostram sua aproximação ao / Ching pelo lado prático. No
final da década de 1970 a artista traduziu a concordância entre hexagramas e situações
numa série de pinturas à têmpera sobre papel. Ela não se serviu, nessas pinturas, dos
trigramas tradicionais, dos oito agrupamentos de traços contínuos ou interrompidos,
tomados três a três, mas sim dos elementos da pintura abstrata de campo de cor. Mira
posicionou a folha retangular do papel na vertical e a dividiu horizontalmente em
duas áreas, experimentando diversas possibilidades de equilíbrio. A autonomia de cada
parte e sua concordância com a oposta corresponderiam à imagem do cosmo, cujos
elementos conformam-se uns com os outros e com o todo. A totalidade criada pela
relação dessas duas partes, ao se unirem em proporções harmônicas, refletiria biunivo-
camente o microcosmo e o macrocosmo. Assim, as variações nas proporções das áreas
e o emprego das cores ocre e azul guardariam uma associação com a paisagem em seu
elemento mais redutivo: o horizonte.
As abstrações de céu e terra pintadas por Mira mantêm os princípios contraditórios,
mas reciprocamente complementares, de atividade e passividade, do masculino e do
feminino, do yin e do yang. O espaço é representado não como um contínuo, onde
um objeto ocuparia a posição a ele designada, mas como uma coisa em si, como um
vazio imaterial de expansão infinita.
As pinturas / Ching foram a princípio consideradas minimalistas. Entretanto, sua
relação com o minimalismo é apenas aparente. Enquanto os minimalistas empregam
um repertório reduzido exclusivamente para afirmar o caráter físico do ato de ver,
a artista tenta tornar visíveis transformações vivenciais.
Em 1981, Mira apresentaria à Bienal de São Paulo uma seleção de doze trabalhos
dessa série, pintados sobre placas de madeira compensada. Esses quadros, que podem
ser apreendidos como um panorama em metamorfose, estabelecem uma unidade por
meio de deslocamentos da linha de horizonte. Luz e sombra, claro e escuro, dia e noite
mostram-se como polaridades da mesma essência: intervalos bivalentes, indiferentes à
cronologia aferível ou às representações espaciais convencionais.
Mandala, 1974
nanquim e ecoline sobre papel,
18x 18 cm
col. particular, São Paulo
Mandalas
Giuseppe Tucci (ed.), Il libro tibetano dei morti. Milão: Fratelli Bocca, 1949
Carl Gustav Jung, “Mandalas, Problematik des WerdeprozeBes der Persônlichkeit” in Gesammelte Werke, tomo IX,
semitomo |. 4º ed. Olten: Walter, 1980, p. 411.
Idem, “BewuBtsein, UnbewuBtes und Individuation” in op. cit., p. 298
M. Schendel, diário inédito
A
ciarmos seus aspectos psicológicos ou contemplativos. Elas nos emocionam, pois ali
ecoam esperança e fatalidade, sonho e expectativa, e também por ter sido concebidas
esteticamente. À série reúne oposições, baseadas na teoria chinesa do yin e do yang,
princípios metafísicos da oposição, de cuja cooperação se originam os movimentos do
mundo. Acerca do contato de Mira com certas visões de mundo orientais, ainda que
superficial, deve-se asssinalar o fato de que ela não se ateve à doutrina cristá, na qual as
oposições são ocultadas por ser inconciliáveis, assumindo-as com toda a nitidez para
formar a unidade da mandala.
O universo continua sendo — usando uma imagem — a dança de Shiva. Mas é que “Shiva” dan-
ça também nossa consciência e nossa responsabilidade. Nós, humanos, sabemos que somos
dançados também deste jeito. Nossa chance, também nossa moral. “Shiva” transcende qualquer
moral. Bondade ou Maldade. O divino não pode ser antropomorfizado.'*
Como as formas e as cores nas mandalas são determinadas pela tradição, nesses tra-
balhos Mira moveu-se num território relativamente limitado. Figuras simbólicas ou
arquetípicas, na linguagem de Jung, foram simplificadas em puras formas geométricas.
Alguns estudos a nanquim e canetas hidrográficas, sem data, indicam uma preparação
preliminar para os desenhos definitivos, a geometrização correspondente de símbolos
e a redução às cores vermelho, azul, amarelo e verde. De modo totalmente diverso de
outros trabalhos, a artista serviu-se aqui de cores puras, tons vivos. Para Jung, as cores
intensas, como o par azul/vermelho, exercem uma atração especial para o inconscien-
te.* O vermelho significaria sangue e afetividade, a reação psicológica responsável pela
união do espírito ao Corpo, e O azul, fenômenos espirituais, compensando-se assim a
acentuação do vermelho. À combinação do azul com o vermelho se seguiriam, nes-
sa ordem, o amarelo e o verde. Essas quatro cores simbolizariam quatro qualidades,
podendo ser interpretadas das mais diversas maneiras. Psicologicamente, a quaterni-
dade indicaria, por princípio, as funções diretivas do consciente, dentre as quais pelo
menos uma permanece inconsciente, não comparecendo, portanto, ao emprego cons-
ciente. À cor verde é minimamente utilizada pela senhora “x”, assim como por Mira.
Suas mandalas caracterizam-se principalmente pelo círculo e pela quaternidade
— ocasionalmente comparecem triângulos, resultantes de cruzamentos de diagonais.
Sobre um fundo branco, os círculos conduzem progressivamente a um interior que
exclui o mundo exterior. Ao deixar que o formato quadrado do papel participe da
composição, a artista faz referência à quadratura do círculo, que segundo Jung repre-
senta a união dos opostos, ou seja, a passagem de estados psíquicos caóticos a ordena-
dos. Nos exemplos aqui apresentados, o centro está cercado pelo azul-escuro de um
céu noturno. Este centro é o ponto mais interiorizado do desenho, e geralmente cor-
responde à área de maior claridade. Seu motivo básico seria pressentir o centro da
[p. 154] personalidade, com a qual tudo se relacionaria e através da qual tudo se ordenaria,
e também pode ser entendido como uma fonte de energia, como o Sol — para Jung
Idem, ibidem.
Carl Gustav Jung, “Mandalas, Problematik des WerdeprozeBes der Persônlichkeit”, op. cit., p. 251.
IS6
o Sol significa consciência e entendimento, sendo por isso pintado em cores quentes
como amarelo ou vermelho —, ou ainda ser interpretado como o Selbst.
A marchande Mônica Filgueiras de Almeida recorda-se de que em 1975, em São
Paulo, 21 mandalas de Mira foram expostas num grande círculo, formando uma grande
mandala nas paredes de sua galeria.'º Juntamente com as mandalas, a artista mostrou
a série Datiloscritos e diminutas paisagens em papel japonês, que serão discutidas pos-
teriormente. Com certa dose de humor, numa carta ela compara seu fazer artístico às
tarefas domésticas: “Trabalho, porém, quando tenho tempo, em três séries, sendo uma
em cores. Algo como cozinhar, limpar a casa e lavar roupa. Assim são as três séries”.7
ão) Mônica Filgueiras de Almeida, depoimento ao autor, São Paulo, 11 abr. 1997
/ 7 Mira Schendel, carta a Elisabeth Walther, São Paulo, 2 out. 1974
Mandala, 1974
nanquim e ecoline sobre papel,
18x 18 cm
col. particular, São Paulo
Mandala, 1974
nanquim e ecoline sobre papel,
18x 18cm
col. particular, São Paulo
h+
O diálogo com ela descreve uma curva febril — tanto em relação à sua intensidade como
a carga emocional, Esta oscilação descontrolada da curva corresponde ao caráter de Mira,
e de fato era sempre ela, e apenas ela, quem dirigia a trajetória do diálogo. [...] Se ela se
defrontasse com pessoas fracas, poderia destruí-las, e, na verdade, contra sua vontade e
verdadeira compaixão por elas. Se defrontasse com pessoas capazes e desejosas de resistência
(e dentre estas devo incluir a mim mesmo), acender-se-iam faíscas.
Mira considerou essa descrição muito agressiva, o que dificultou ainda mais a amizade,
já estremecida antes da partida do filósofo do Brasil. Flusser tentaria justificar-se, apre-
sentando sua ideia de diálogo enquanto processo intersubjetivo:
Se olho meu diálogo contigo, fixo o diálogo, e em certo sentido fixo você. Pois fixar é matar,
embalsamar, enclausurar, e é este fato que você ressente como agressividade. Corretamen-
te, porque fazer monumentos, como eu fiz de você, é agredir o retratado. Por outro lado,
fazer monumentos é o estilo de quem procura intersubjetividade, porque a relação “eu-tu”
é monumental, no sentido de ser relação transcendente. Veja bem: na tua relação comigo,
vista por mim aqui e agora, você está provisoriamente “morta”, até reagir a este meu fixar,
quando, por minha vez, eu estarei “morto” do teu ponto de vista. [...] Se quero ser imortal,
preciso imortalizar você, e se quero imortalizar você, devo agredir-te. Hlá restos éticos em
mim, que dificultam sobremaneira a aplicação de tal estilo. Nada adianta dizer que ao
escrever não sinto agressividade a teu respeito, nem a respeito da maioria dos meus inter-
locutores. Nada adianta, porque os outros a sentem e com razão, já que o próprio estilo
intersubjetivo é agressivo."
I6I
Todos os esforços no sentido de reaproximar-se de Mira não surtiriam efeito. Em 1976,
ela escreve a Theon Spanudis durante uma viagem à Europa: “Flusser, uma visita a ele,
nem entra em cogitação. Apesar das menores defesas de minha parte”. Para Flusser, o
diálogo era a essência da língua. Através dele duas pessoas com dúvidas, ou seja, cria-
tivas, se abririam na busca de soluções. Com relação a Mira, seu livro restringe-se aos
diálogos que tratam diretamente de sua arte. Para ele, ela teria trabalhado numa tarefa
cada vez mais difícil na arte contemporânea: a tentativa de apresentar plasticamente
construções de pensamentos e conceitos. As tendências mais importantes não apenas
acerca do trabalho de Mira, mas da discussão sobre arte, seriam determinadas por dois
pólos: transparência e significado. Nas teorias de Flusser, o conceito de transparência
formulado por Gebser sofre uma transformação: transparência é para ele “a capacida-
de do olhar humano de penetrar a superfície das coisas”.
Segundo ele, há dois métodos de tornar as coisas transparentes: o disciplinado,
como no discurso lógico-científico, e o brutal, que ele associa à mística, à fenomeno-
logia e à arte. Neste último, nosso olhar descobriria abismos recônditos por trás das
superfícies que nos revelariam um vazio sem objetos. O ser humano, ao situar-se em
meio a estruturas transparentes, não veria através delas o vazio, mas uma sequência
infinita de estruturas transparentes adicionais, que produziriam a desobjetivação do
mundo e a anulação do sujeito: “Não pode haver sujeito onde não há objeto”. Em
paralelo às teorias de Gebser sobre o desenvolvimento da consciência humana, Flus-
ser atribui o vorstellen [imaginar] ao período mítico-mágico e o begreifen [conceituar]
ao epistemológico-tecnológico (racional, na terminologia de Gebser). Além disso, ele
considera um aspecto fundamental do mundo dos pensamentos, que estes, na con-
temporaneidade, haviam-se tornado inimagináveis.
Elusser considerava os trabalhos de Mira extraordinários por mobilizar um novo
tipo de força imaginativa, que possibilitaria a visualização de pensamentos. Eles apon-
tariam para uma revolução na existência humana, na qual ocorreria uma inversão: o
pensamento conceitual, discursivo e linear, até então concebido pela imaginação em
sequências lineares, cederia lugar à imaginação de conceitos, em que as coisas seriam
abrangidas não mais por linhas, mas por superfícies. Por meio de novos entendimen-
tos de espaço e tempo, e do estudo da cibernética e da teoria da informação, Flusser
descobriria indícios de novas realidades que, em associação com as teorias da comuni-
cação de massa, norteariam seus últimos escritos.” Indiscutivelmente, ele influenciou
o processo de trabalho de Mira. Na mesma medida, porém, as ideias do filósofo sobre
arte e cultura também foram influenciadas pela obra da artista. Numa carta, ele com-
para seu método de escrever com um de seus trabalhos:
162
Traduzo sistematicamente. Escrevo tudo primeiro em alemão, que é a língua que mais
pulsa no meu centro. Traduzo depois para o português, que é a língua que mais articula a
realidade social na qual me tenho engajado. Depois traduzo para o inglês, que é a língua
que mais articula a nossa situação histórica, e que dispõe de maior riqueza de repertório e
formas. Finalmente traduzo para a língua na qual quero que o escrito seja publicado. [...]
O que procuro é isto: penetrar as estruturas das várias línguas até um núcleo muito geral
e despersonalizado, para poder, com tal núcleo pobre, articular a minha liberdade. [...]
Creio que em certo momento você trabalhava de maneira semelhante. Lembras-te dos fios
transparentes? Pois por trás das línguas existem tais fios.
163
vo seco sobre papel,
Para a comparação entre a fenomenologia de Schmitz e a de Husserl com relação ao conceito de Leib, ver Gernot
Bóhme, Einfúhrung in die Philosophie: Weltweisheit — Lebensform — Wissenschaft. 3º ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1998,
pp. 227-38.
Hermann Schmitz, System der Philosophie, tomo |: “Die Gegenwart?”. Bonn: Bouvier, 1964, p. 5
IÓS
[No âmbito do leibliches Spiiren] encontra-se agora aquilo que antes seria tratado apenas
como este corpo estranho, algo de certo modo concretamente provável, concretamente sensi-
vel, que também é um “aqui e agora”, que não é nem algo situado tão distante de nós, como
o corpo estudado pela ciência, nem algo tão enigmático e fantasmagórico, como a alma ou
o espírito.
Como este sentir corpóreo não tem pele ou superfície que o defina, Schmitz explica sua
espacialidade por meio da definição de lugar absoluto, em oposição à de lugar relativo,
a partir da orientação espacial. Leiblich “é aquilo cuja localização é absoluta”. Kórperlich
“é aquilo cuja localização é relativa”. “Anímico é aquilo que é ilocalizável.” *º
As formulações de Schmitz negam tanto o dualismo platônico, que dividiu o ser
humano em corpo e alma e marcou indiscutivelmente o desenvolvimento da filosofia
ocidental, como o entendimento positivista da ciência, que transformou o corpo num
objeto distanciado por teorias muito complicadas. No lugar do estranho corpo analisa-
do pela ciência surge o Leib, enquanto algo mais vivo e mais concreto para o entendi-
mento fenomenológico. A alma, por sua vez, seria para Schmitz uma imagem fictícia,
criada unicamente para justificar alhipótese de um mundo interior, no qual se introje-
tam sentimentos, pensamentos e sensações.
Na fenomenologia de Schmitz, o espaço é regulado pelo Leib. Ante o espaço corpóreo
[eiblicher Raum], de cuja derivação ter-se-ia originado o espaço da matemática e da física,
o filósofo situa o espaço dos sentimentos [Gefihlsraum). Em oposição à aceitação generali-
zada de sentimentos como estados íntimos da alma, e sua decorrente antiespacialidade, ele
os conceitua como atmosferas que se expandem no espaço, envolvendo o corpo [Leib] e
podendo, portanto, ser interpretados como estímulos corpóreos [/eibliche Regungen].
Às pesquisas de Schmitz sobre o medo e a dor, para ele os principais objetos da auto-
consciência, conduziram-no à formulação do conceito de presente desdobrado [entfal-
tete Gegenwart], termo tomado emprestado ao psiquiatra francês Eugêne Minkowski.
Ele entende o presente a partir da ação do tempo sobre o espaço, enquanto um fenó-
meno que apresenta várias possibilidades, sendo a temporal apenas uma dentre elas.
Em suas teorias, o presente completo [vollstándige Gegemwart] pode assumir as seguintes
categorias: espacial [Anwesenheit (presença)], modal [Zustánde (condicional)] e contí-
nua [Dauer (duração)], além da temporal.
166
No medo ou na dor, quando se sente um forte aperto, o espaço corpóreo [leibli-
cher Raum] manifesta-se como um estreitamento de localização absoluta; em
outras ocasiões, como fome, sede, cansaço, prazer etc., como um volume sensi-
velmente nebuloso.
Após caracterizar a espacialidade segundo a estática do Leib, Schmitz analisa coeren-
temente a sua dinâmica a partir do conceito de élan vital, criado por Bergson. Schmitz
define este impulso vital como a ação alternada entre o apertamento [Engung], ou seja,
a mudança do estado corpóreo [leibliches Befinden] em direção ao aperto absoluto, e
o alargamento [Weitung], a passagem em direção ao amplo absoluto.” A concretização
deste impulso é perceptível, por exemplo, na respiração, com a contração e a dilata-
ção do tórax. O apertamento mostra-se claramente no medo e na dor, enquanto o alar-
gamento em situações relacionadas com experiências de êxtase ou no adormecer.
De acordo com o tipo de estímulo [/eibliche Regung], o “aqui” absoluto do
corpo [Leib] pode-se distribuir por determinadas áreas, que Schmitz denomi-
na de ilhas do Leib [Leibesinseln]. Estas ilhas correspondem aproximadamente
à divisão esquemática do corpo humano feita pela ciência, sendo que a unidade
corpórea [Einheit des Leibes) seria mantida. Gernot Bôhme levanta o problema
lógico representado pela contradição de algo ser ao mesmo tempo parte e tota-
lidade.” Schmitz soluciona esse paradoxo introduzindo o conceito de múltiplo
caótico [chaotisches Mannigfaltige), inicialmente apoiando-se nas teorias formais
da matemática, como a da continuidade, e posteriormente vinculando-o ao con-
ceito de situação, enquanto um princípio ideal de individuação pessoal no caos
do mundo.
A relação entre caos e individuação, por meio da qual Schmitz entende o caótico
como um múltiplo de natureza especial, já havia sido tratada por Kant em sua
Crítica da razão pura. Para este, a faculdade de conhecer é múltipla como um caos
de sensações no espaço e no tempo, e sob este pressuposto ele investigou os tipos de
associações possíveis numa síntese, classificando-os por categorias. Para Schmitz,
a multiplicidade é estritamente fenomenológica e admite a seguinte classificação: mul-
tiplicidade individual, quando, num conjunto, a relação de identidade ou diversidade
de seus elementos estiver claramente determinada, e caótica, quando houvesse uma
indecisão quanto à sua identidade ou à sua diversidade.
Em sua relativização do conceito de múltiplo caótico, Schmitz questiona a rela-
ção entre caos e individuação estabelecida pela psicologia, principalmente por Jung.
Uma vez que Mira lidara anteriormente com o conceito junguiano de individuação,
caberia aqui diferenciá-lo do de Schmitz. Para Jung, a individuação ocorre quando se
forma, em lugar da pessoa, uma grandeza supra-individual. Baseando-se fortemen-
te na mística da Ásia Oriental, ele comprovaria este processo por meio de modelos
arquetípicos, como as mandalas. Já para Schmitz a individuação do múltiplo caó-
tico teria um caráter mais formal. Ele considera um exagero a tese de Jung de que
o indivíduo possa crescer além de si próprio. Em sua fenomenologia, um processo
E
92 Idem, System der Philosophie, tomo Il, op. cit., p. 75.
93 G. Bôhme, op. cit., 1998, p. 239.
167
de amadurecimento poderia ocorrer somente nos moldes daquilo que ele denomina
“desdobramento do presente”.
O mundo na manhã do primeiro dia da Criação [...] pode ser imaginado como o
múltiplo caótico absoluto. Caótico relativo, denomino eu o múltiplo no qual a decisão
quanto à identidade ou à diversidade existe apenas parcialmente e todas as relações caó-
ticas entre os elementos da multiplicidade começam a resolver-se, mas não de maneira
completa e definitiva. O muiltiplo que não é caótico, mas que está decidido quanto à
identidade e à diversidade, eu chamo de individual; a sua decisão quanto à identida-
de ou à diversidade, de individualidade; e o percurso da multiplicidade do caótico ao
individual (ou seja, a decisão sobre a identidade ou a diversidade dos elementos da
multiplicidade), de individuação.
168
[...] o corpo corpóreo [kôrperlicher Leib, ou seja, o componente físico do Leib] é na
realidade uma trama de ilhas difusas e não possui como o corpo puro [reiner Kôrper, ou
seja, O corpo físico tal como é visto pela ciência] um contorno e uma estrutura nítidos
e constantes, que permitissem uma comparação imediata com obras de arte formalizadas.
Um traço comum entre o que o corpo [Leib] “sente” e a fisicalidade da obra de arte perce-
bida corporalmente [kôrperlich] pela visão e pelo tato seria, pelo contrário, a experiência
bilateral da forma, proporcionada pelas sugestões ou alusões de movimento.
Epicrítica é em todos estes casos [excitação sexual, nojo, medo, dor, fome, sede etc., con-
siderados por Schmitz como /eibliche Regungen] a tendência localizante; protopática,
pelo contrário, a que torna difusos os contornos e as localizações. Protopática é a volúpia
suave, despertada pelo alisar, pelo acariciar da pele. Epicrítica é, ao contrário, a excitação
voluptuosa, sentida como uma picada ou um corte fino, quando, por exemplo, alguém sente,
como se costuma dizer, um arrepio que corre pelas costas.'?
98 Idem, ibidem, p. 37
99 Idem, ibidem, p. 143
100 Idem, ibidem, p. 34
169
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre
madeira, 90 x 180 x 7,5 em
col. particular, São Paulo
Mira e a fenomenologia de Schmitz
[...] Infelizmente tive que admitir (telefonei anos atrás para a Alemanha para dizer isto
para Schmitz) que não vejo como superar o dualismo. Concordou. Anos depois o admitiu
abertamente, creio, no último volume. Mas não dá mais para crer que seja “fisico-somático”
[...]. O dualismo seria corpóreo-corpo.
Seres humanos desencarnados: uma hipótese de se tomar a sério. Não porque desejo esta
sobrevivência — que sinceramente não desejo. Mas porque é uma hipótese. Deixando de
lado fantasias de alma e espírito: chegou — acho eu — a hora de falarmos disto. Fundamen-
tal acho, porém, isto — vou traduzindo aqui Schmitz:
Comte tentou transformar a religião num culto do Homem. Homens, porém, são impor-
tantes como meios de oferecimentos de algo que lhes acontece — algo que pode servir ou se
recusar a servir —, não que com isto eles tomem a si mesmos como importantes.
Noutra terminologia não ocidental: somos manifestações de Brahman. Somos seu “cavalo”,
por assim dizer. E o próprio fenômeno. Este “estar na fé” ou esta confiança não espera e portanto
não desespera. Em certo sentido concordo com Kierkegaard que o contrário do pecado não é a
virtude, mas a fé. Mas fépara mim não consiste em acreditar em algo.'*
Não posso deixar de concordar acerca do fato de ser o System uma leitura muito absorvente
e demorada. Que exige um tempo que raramente as pessoas encontram... Mas me aborrece
supor que ele possa ser lido só por alguns aposentados interessados. Ou por alguns louca-
mente apaixonados pela coisa.'*
Portanto o “Leib” (e que os raios o partam, pois “Leib” nas línguas neolatinas é intraduzível
e, portanto, altamente suspeito, com sabor nazista) é uma função do mundo e principalmente
uma função da república, portanto de outros “Leiber”. Somente na intersubjetividade se evi-
dencia aquilo que o Leib é. Mais ou menos assim: o espaço interno (“Leib”) é um programa
cibernético, cujo “hardware” é anatômico, e cujo “software” pode ser pesquisado informati-
camente. Seria, portanto, mais razoável ao invés de “Leib” falar em algo como “caixa-preta”,
porque, primeiro, tem menos sabor nazista, segundo, pode ser traduzido para o francês, inglês
etc.; e, terceiro, permite ser abrangido ciberneticamente. Da seguinte forma: quando você
escreve versos, a “Sua” caixa-preta recebe como input poesias lidas anteriormente etc., e o
output (seu poema) é a consequência desta censura, que “você” faz na caixa-preta. “Você”
ea censura da caixa-preta” tornam-se sinônimos, mas o mundo de cada um deles (input e
output) é distinto, e, por consequência, também o seu “Leib” é diferente. (O seu corpo é outra
coisa, pois os neurônios no cérebro etc. funcionam distintamente, mas, antes de tudo, é dife-
rente a sua informação
Apesar deste juízo, talvez apressado, de Flusser, Mira continuaria a leitura da obra de
Schmitz e chegaria, por causa dela, a resultados frutíferos em sua arte. Um motivo
central, retirado de sua fenomenologia e que lhe inspirou trabalhos, foi o do muúlti-
plo caótico. Schmitz recorda-se de haver conversado com ela sobre este seu tema favori-
to. Em seu diário, a artista registra, por meio de uma parábola atribuída a Buda, como
entendera os conceitos do múltiplo caótico absoluto e relativo:
193
Uma espiral de Arquimedes contra o céu
Em 1974, a Prefeitura Municipal de São Paulo convidou alguns artistas, entre eles
Mira, a apresentarem ideias para a inserção de obras de arte nos projetos de renovação
urbana. O modelo a ser seguido era a proposta de pinturas murais de Flávio Motta
para as colunas de sustentação do elevado Costa e Silva, o Minhocão.!'º
O projeto de Mira consistia numa espiral de alumínio de cerca de 5 metros de diá-
metro, que deveria ser colocada sobre um mastro de 16 metros de altura na praça Dom
Gastão Liberal Pinto. A perspectiva de apresentação foi desenhada pelo arquiteto, fotó-
grafo e amigo João Alves Xavier, e a artista fundamentou a conceituação desta escultura
pública não realizada com elementos da dinâmica corpórea [leibliche Dynamik].
Schmitz recorda-se de que Mira afirmara, em suas conversas, que a selva natural do
Brasil vinha sendo destruída, dando lugar a uma nova selva, sob a forma de cidades,
principalmente São Paulo. Esse crescimento preocupava-a muito, e ela acreditava que
sua fenomenologia poderia funcionar como um antídoto contra a exagerada tecniza-
ção do urbanismo brasileiro.!2
Uma grande espiral de Arquimedes, visível contra o céu, de muitos lados, forma singela
contrastando com a retangularidade rígida e excessiva, com o êxtase arquitetônico e a cor-
rida da máquina; espiral evoluindo para o céu (o amplo) e voltando para o ser (o estreito),
recriará, temática e conscientemente para alguns, mas vivencialmente para todos, o senso
da vida no meio das pedras e das máquinas.''*
De acordo com Mira, a espiral, forma primária que aparece e desaparece ciclicamente
nas culturas dos povos, poderia restabelecer o equilíbrio humano.
110 Arte na cidade, São Paulo: Cogep (Coordenadoria Geral de Planejamento do Município de São Paulo), 1975.
111 Mira Schendel, Projeto conceitual, agosto de 1974 (desenho de João Alves Xavier).
112 Hermann Schmitz, depoimento ao autor, Kiel, 1º jun. 1998
118 Mira Schendel, op. cit.
Esquerda: Sem título [Todos], 1964, óleo sobre tela, 162 x 130 cm, col. particular, São Paulo
Iv. Pintura escritural e seus desdobramentos
De acordo com a acepção grega, o tempo circula eterno e imanente no e com o recipiente
redondo do cosmo. Para Platão, o tempo tem por meta a eternidade, uma abstração da imobili-
dade do tempo. Aqui deparamos as oposições entre Noumenon e Phainomenon, entre aquilo
que se pensa enquanto ideia e aquilo que se percebe sensorialmente, como também as existentes
entre a unidade e a multiplicidade, entre o geral e o particular, que surgiram no decurso do
tempo como desvalorização, partindo da “imagem-como-realidade”, passando pela “imagem-
como-ideia” e“imagem-como-reprodução”, até chegar à “imagem-como-(a própria) realidade”,
ou seja, a imagem que representa exclusivamente a si mesma.
Para ele, o paradigma espacial grego assinalaria uma sensibilidade de ordem visual,
enquanto o paradigma temporal judaico, uma de ordem verbal:
A revelação dos profetas é a entrada do divino na história, de modo que a última revelação
[apocalipse] marca o encerramento da história, juntamente com o tempo. A palavra, o livro,
a promessa, enquanto realização do tempo, são a casa do judaísmo.
1 Wouter Kotte, Wort & Bild. Utrecht: Museum Hedendaagse Kunst, 1987, p. 18.
Idem, ibidem, p. 15.
O tempo cristão não é mais um processo circular, que poderia admitir a reencarnação,
mas um transcurso linear único, a trajetória de uma flecha lançada pelo arco de Deus.
E uma única vez o verbo torna-se carne à “Sua” imagem e semelhança.
Com a justaposição do tempo ao espaço no racionalismo, que mede e abstrai
ambos, processou-se o afastamento do ser humano de si mesmo. Ainda que não pos-
samos explicar o desenvolvimento da arte, da Renascença aos dias de hoje, exclusiva-
mente pela mudança do paradigma grecoespacial ao judaico-temporal, é certo que o
conteúdo teológico das ideias judaico-cristás influenciou definitivamente a moderna
consciência de tempo.
Essa consciência e a aceleração do tempo dominaram o século xx, expressando-se
inequivocamente nas novas formas de arte. Também a escrita automática, a aceita-
ção do subconsciente e a incorporação de imagens oníricas ajudaram a construir um
quadro artístico com o aparecimento de novos mitos coletivos. Os artistas modernos
que procuraram, a partir da relação da palavra com a imagem, novas formas para o
vínculo arcaico entre o homem e o mundo perceberam a impossibilidade de separar o
puramente visual do contexto verbal. Com a superação da biunivocidade de tempo e
espaço, pôde-se expressar artisticamente uma inquietação filosófica por meio da ritmi-
zação pictórico-musical. Mira identificou-se com esses esforços ao adotar como preo-
cupação principal de seu fazer artístico a relação palavra/imagem. Em delicados tons
sobre superfícies pálidas, ela começou a introduzir escritas em seus quadros. Linhas
finas, gestos caligráficos, palavras — palavras isoladas, fragmentos de frases ou passa-
gens completas de textos — tornaram-se elementos de sua arte. Com a escrita associada
à imagem, seus trabalhos passam a ser classificados junto aos de Cy Twombly, Mark
Tobey e Hans Hartung, entre outros, como exemplos de pintura-escritural.
Em telas ou placas de madeira, Mira serviu-se inicialmente do alfabeto de imprensa
para incorporar fragmentos escritos em sua pintura geométrica. Com isso, ela sobre-
pôs ao efeito de profundidade em certas áreas do quadro a bidimensionalidade do
texto. Posteriormente, ela empregaria a caligrafia, às vezes combinando-a com a escrita
de imprensa. À escrita trouxe um grande impulso, principalmente após a adoção de
papéis transparentes como suporte. Aqui são apresentadas as primeiras experiências
de Mira com textos sobre telas, as monotipias caligráficas em papel de arroz japonês e
os desenhos com letras de imprensa, quer por meio de letras-decalque (letraset), quer
efetuados com o auxílio da máquina de escrever. Também algumas capas de livros que
Mira projetou nos anos 1960, de difícil classificação entre suas atividades artísticas,
foram aqui incluídas por sua excelência gráfica.
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Um trabalho algo enigmático da artista é uma pintura de 1964, onde três linhas gros- [p. 182]
sas sobre um fundo branco formam uma espécie de umbral, uma abertura apoiada
na margem inferior da tela. As colunas de apoio desse portal inclinam-se ligeiramente,
formando um trapézio cuja viga horizontal corre paralelamente à borda superior do
quadro. Uma linha bem fina, quase vertical, com um pequeno triângulo na ponta, o
que lhe confere o atributo de uma seta, cruza o portal, perpendicularmente, e a frase
Now that 1 am back [Agora que estou de volta]. Este quadro apresenta elementos sim-
bólicos que podem ajudar na compreensão dos trabalhos de Mira com escritos.
Questionada numa entrevista sobre o significado dos símbolos e da frase no qua-
dro, e sua relação com trabalhos posteriores, ela respondeu vagamente que os símbolos
representavam uma roda, uma lança e um portal que se abria para um território, e que
a frase era da Ilíada. Elementos do texto homérico poderiam inusitadamente ter-se
tornado símbolos pessoais.
À referência à !líada explicita-se em outro trabalho do mesmo ano, que apresenta a
frase completa, em inglês:
Entrevista de Jorge Guinle Filho com Mira Schendel: “Mira Schendel, pintora — o espaço vazio me comove profunda-
mente”, Interview, São Paulo, jul. 1981.
183
Se a primeira forma de escrita [da direita para a esquerda] une de certo modo o céu à terra,
a segunda [da esquerda para a direita] dirige a relação vital de novo para o lado esquerdo,
inconsciente, que também contém o passado, procedendo-se assim, pela primeira vez e sob a
proteção do Deus vigilante, o movimento que, de acordo com o sentido de suas palavras, é um
movimento para a conscientização.
Homero escreve a história invisível do mundo, não a das datas, mas daquilo que per-
manece sem data.
Poesia enquanto história é relato sobre o ocorrido, sobre o tocado pelo ato criador, e consiste
em dar significado ao sem-sentido, ou seja, ao não direcionado, aquilo que, por ser “pleni-
tude eterna”, não possui em si direção alguma.
Na opinião do historiador inglês James Froude, citado por Mira num dos quadros, tanto
a Ilíada como a Odisseia seriam mitos transparentes de uma alta cosmogonia, nos quais
se entrelaçam modelos teóricos e fatos históricos, o natural e o sobrenatural, o lendário
e o filosófico. Para ele, os protagonistas da !líada, Heitor e Aquiles, seriam personagens
simetricamente opostos: Heitor demonstra suavidade e afetos humanos, enquanto Aquiles
é introvertido. À fé em Deus — ou nos deuses —, a característica principal de Heitor, estaria
totalmente ausente em Aquiles. Ambos são heróis, mas a bravura deles provém de fontes
diversas: a força de Heitor reside na fé, enquanto a de Aquiles na cólera.
À passagem escolhida por Mira narra a volta de Aquiles ao campo de batalha, ao saber
da morte de seu amigo Pátroclo. A dor de Aquiles transforma-se em cólera, o que lhe
dá ensejo para o retorno. Em seus estudos sobre as Ursituationen [situações primordiais),
que teriam provocado no homem as alterações nos níveis de consciência, Gebser cita jus-
tamente a crise colérica de Aquiles como o evento que anuncia o aparecimento do pen-
samento direcionado. O texto homérico e a reflexão sobre o direcionamento da escrita
devem ter sido fontes de inspiração para Mira nessas duas pinturas. Trabalhos posteriores
apresentariam textos, e ela continuaria seus experimentos sobre sentido e direção da escri-
ta. Na versão branca de O retorno de Aquiles, ela cruzou a frase disposta obliquamente,
[p. 182] Now that 1 am back, com uma lança, um forte indicador de direção. A redução do texto a
uma declaração sucinta admite uma interpretação subjetiva, enquanto afirmação pessoal,
reforçada pela presença simbólica de elementos reconhecíveis — a lança e o escudo.
Cy Twombly, que trabalhou exaustivamente com a relação escrita/imagem, tam-
bém pintou, em 1964, um tríptico denominado //ium. Iwombly vinha trabalhando
desde 1962 com temas inspirados na //íada, como, por exemplo, as telas Vengeance
ofAchilles [Vingança de Aquiles) e Achilles Mourning the Death ofPatroclus [Aquiles
pranteando a morte de Pátroclo).” Nessas pinturas, o ritmo de expansão gráfica das
Jean Gebser, Ursprung und Gegenwart, tomo |: Die Fundamente der aperspektivischen Wet. 2º ed, Munique: DTV, 1986,
ETA!
Idem, tomo Il: Die Manifestationen der aperspektivischen Welt. 2º ed. Munique: DTV, 1986, p. 434.
James Anthony Froude, “Homer” in Short Studies on Great Subjects, vol Il. Londres: Longsman's, Green & Co., 1867,
pp. 160-62.
Heiner Bastian, Cy Twombly — Catalogue raisonée of the paintings, vol. Il (1961-65). Munique: Schirmer/Mosel, 1992,
184
pinceladas transmite a fúria e o clamor de uma batalha, e a representação pictórica é
uma apoteose passional da vida e da morte. Entretanto, quando confrontados com a
simbologia parcimoniosa de Mira, como observou o crítico de arte Paulo Herkenhoff,
os quadros de Iwombly parecem excessivamente retóricos.” Enquanto Twombly ainda
se deixaria inspirar pela literatura clássica, Mira se voltaria à linguagem em si.
Como um contraponto à emoção exagerada dos épicos, Mira encontraria na músi-
ca eletroacústica de Karlheinz Stockhausen estímulos capazes de proporcionar-lhe
uma nova unidade entre palavra e imagem, como o Gesang der Jiúnglinge [Cântico dos
jovens), que une o canto a sons produzidos eletronicamente. Em determinados trechos
da composição, as vozes de um coro de jovens articulam palavras compreensíveis; em
outros, apenas valores sonoros puros. Entre os extremos, apresentam-se diversos graus
de compreensão verbal. Toda vez que sinais sonoros formam uma linguagem inteligí-
vel, ouve-se a frase Preist den Herrn [O Senhor seja louvado).
Mira interpretou a complexidade desta composição numa linguagem visual relativa-
mente simples: textos surgem, integrados a outros elementos visuais; palavras ganham
expressividade sensorial ao se tornarem elementos constitutivos da pintura. À frase
Preist den Herrn e as palavras kalter [frio], starrer [rígido] e Win-ter [inverno] são escri-
tas como também são cantadas, ou seja, com as sílabas separadas, e inscritas na super-
fície pictórica como sinais petrificados dos trechos compreensíveis do canto. O Cântico
dos jovens foi composto segundo o princípio, introduzido por Arnold Schoenberg, da
experiência absoluta e unitária do espaço musical, no qual não existe acima ou abai-
xo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás. A continuidade dada por Stockhausen a
tal concepção, ao combinar vozes juvenis com música eletroacústica e de percussão,
realiza-se de forma similar à distribuição dos papéis no teatro, levando-se em conta o
timbre das vozes e o texto, considerado acusticamente como corpo estranho. À negação
da oposição caos/ordem em favor da ideia de que há diversos tipos de ordem assume
o conceito de contínuo serial, ou seja, uma sequência de graus de ordenação, relaciona-
da com a visão religiosa do compositor. Nas palavras de Stockhausen:
O absoluto continua a ser-nos inatingível, pois tudo que “soa” está associado ao tempo.
Pode-se apenas deixar a variação no tempo tender a zero. [...] O cerne da “transcendência”
está preso ao tempo. À execução musical implica uma escolha simbólica formal da busca da
perfeição, uma alquimia sublime, um aproximar-se do espírito unificado, além de todas as
imagens e multiplicidades, ou seja, de Deus.
[...] A execução musical psicológica procurou a unidade e a harmonia, a redondeza cósmica,
não tanto (como a execução formal) na escolha, ordenação, limitação, ligação e contraposição
dos conteúdos, mas sim na meditação. Esta, por meio de uma sequência meditativa prescrita
com precisão, dirigiu o músico à experiência da perfeição e do divino.
pp.18-20
(0.0) Paulo Herkenhoff, Alcuni appunti sulla storia dei libri di artista o oggetti affini in Brasile in Lucila Sacca (org.), Brasil:
Segni d"arte libri e video 1950 1993. Milão: Biblioteca Nazionale Braidense, 1998, p. 32-4
“Karlheinz Stockhausen, ...wie die Zeit verging” in Heinz-Klaus Metzger (org.), Musik-Konzepte, vol. 19. Munique: Text
+ Kritik, 1981, p. 66
Sem título, déc. 1960
óleo sobre tela, 92 x 130 em
col. particular, São Paulo
O retorno de Aquiles |, 1964
óleo sobre tela, 92 x 130 em
col. particular, São Paulo
Sem título, 1964-065
óleo sob papel-arroz,
Monotipias
O Gesang der Jinglinge também inspirou Mira numa série de trabalhos nos quais ela
utilizou papel-arroz japonês. Indiscutivelmente ela considerou a natureza transcen-
dente da composição ao elaborar suas composições, assumindo como seu próprio
pressuposto a justificativa metafísica do procedimento aleatório de Stockhausen.
O profundo sentimento religioso do compositor da cantata-louvação divina repercute
nos trabalhos de Mira. A frase Preist den Herrn transforma-se num moto continuum,
registrado compulsivamente com tinta a óleo negra em inúmeras folhas de papel
de arroz, pelo processo da monotipia. Na composição de Stockhausen, movimento e
direcionamento dos sons formalizam-se espacialmente: a partitura prescreve grupos de
alto-falantes distribuídos em círculo ao redor dos ouvintes. Na interpretação de Mira,
a transparência do papel produz o efeito de um eco que se distancia à medida que as
folhas vão se sobrepondo.
No que concerne ao problema de unir diferenças quantitativas, Stockhausen, como
outros compositores da música serial, lança mão da sequência numérica de Fibonacci,
que, na música, corresponde às proporções da seção áurea das artes visuais. A possi-
bilidade de transformação do quantitativo em qualitativo, ele declara ser de natureza
mais ou menos mística. Isso também poderia explicar o formato das folhas de Mira.
De 1964 a 1967 ela utilizou em aproximadamente duas mil monotipias tiras de papel-
arroz cortadas no formato de dois quadrados justapostos (46 x 23 cm). O papel japo-
nês significou para ela uma importante mudança para um programa próprio e para um
novo conceito de arte, determinado por suas preocupações com a transparência. Perce-
be-se de imediato que nessa relação não se trata mais de pintura, mas sim da produção
de objetos inusitados, com diversos desdobramentos, nos quais o papel transparente
é o elemento inovador. Sobre esse suporte concretizam-se sequências de pensamentos
sob forma de linhas e escritas.
Mira falou sobre o emprego da monotipia como uma técnica encontrada casual-
mente para o manuseio do frágil papel:
Uma vez ganhei um papel japonês finíssimo aos montes [...]. Tempos depois, mais ou menos
um ano, comecei a mexer com aquele papel, mas não dava, porque ele rasgava, não aguen-
tava água [...]. Aí conheci uma moça que fazia monotipia e [usei] a técnica da monotipia,
mas não visando a monotipia, mas simplesmente por uma razão prática de não rasgar o
papel cada vez que eu o manuseasse, [para que) pudesse desenhar em cima dele. [...] Surgiu
a série de todos os desenhos que depois expus na Inglaterra, uma série para a Bienal, em
homenagem a Stockhausen. Esta foi uma fase dos desenhos ditos lineares.'º
Mira Schendel, depoimento gravado para o Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da Funda-
ção Armando Álvares Penteado, São Paulo, 19 ago. 1977.
189
reforçado pelas posições teóricas de Chardin. De acordo com o físico, Mira teria inter-
pretado o ser humano como um elo entre o mundo e o Deus transcendental. Nessa
visão cósmica, ela teria aproximado a obra de Stockhausen do vazio sunyata da arte
oriental influenciada pela filosofia zen. Energia e significado juntam-se no trabalho,
construindo ligações de duração orgânica que parecem surgir do vazio:
[...] Da duração espiritual surge espontaneamente o canto. [...] Vazio sunyata e significa-
ção verbal se combinam [...] uma intuição misteriosa de eternidade."
À partir destes trabalhos, Mira substituiria a escrita de imprensa pela cursiva. Com a
caligrafia pessoal e a verdade de uma imagem surgida pelo fluxo vivo do pensamento,
ela toca uma região nova, questionando o conteúdo expressivo da caligrafia e sua iden-
tificação com a verdade da mensagem. Assim, ela alcança uma caligrafia imagística,
na qual coincidem duas verdades: a da imagem e a da palavra. Por meio da monoti-
pia, a escrita entra no desenho especularmente, como reflexo da consciência artística
geradora. Os desenhos/monotipias de Mira combinam poesia com espacialidade. Não
se orientam, contudo, pela poesia concreta; antes, apresentam similaridades com a
caligrafia árabe e com a pintura abstrata gestual. O registro da palavra, com seu sig-
nificado inerente, se revelava um meio poderoso para atingir uma totalidade espaço-
temporal, ou seja, o congelamento do fluxo do tempo num contexto espacial. Ela se
ocupou com a escrita não só como um meio expressivo mais elevado, mas também
como notação ligeira daquilo que passaria despercebido enquanto resíduo cotidiano, e
que ela conseguia transmudar em poesia. Ainda que ela partilhasse da opinião de que
a poesia é a sensibilidade intrínseca da verdade, submetia-a a processos de crítica, para
libertar-se de sentimentalismos.
[p. 203] Um encontro entre poesia, cotidiano e acuidade de pensamento caracteriza a
série de monotipias dedicadas à amiga Amélia Toledo. Surgido do nada para ali
desaparecer, o movimento da escrita exprime-se como um pulsar de ondas, através
de símbolos conhecidos. Pela justaposição das folhas transparentes, a frase Amélia
sur mar [Amélia sobre o mar], ondulando sobre o papel japonês, consegue evocar,
mesmo no observador de hoje, sentimentos de tristeza e saudade, provocados pela
separação da amiga que partia em exílio.'? Nesses trabalhos visualizam-se os movi-
mento da fala e as diferentes alturas de vozes, do sussurro ao grito. Balbucios, risos,
[p. 202] choros, suspiros, murmúrios traduzem-se em borrões, rabiscos, manchas, garatujas.
Ah come mi diverto! [Ah, como me divirto!], diz-nos um desenho. Neste caso, não
se enfatiza o pensamento, mas a alegria da artista ao brincar com a linha, nas múl-
tiplas possibilidades expressivas da linguagem.
Ora são sentenças legíveis, ora apenas aglomerações de letras, vibrações de signos
gráficos, mares de registros sensíveis, convulsões de pensamentos-relâmpago, pleonas-
mos visuais, repetições, campos escritos em movimento, que não podem ser lidos
Mário Schenberg, Monotipias musicais de Mira Schendel, texto inédito, sem data.
A artista Amélia Toledo lecionou de 1962 a 1964 na Universidade de Brasilia. Com o golpe militar de 1964, ela e seu
marido, Eustáquio Toledo, foram forçados a deixar o país.
IZO
num sentido racional, mas sim — e quase exclusivamente — sensorial, ótico. Estes sinais
soltos da escrita, aparentemente relacionados com a pintura tachista, são como versos
de haicai, sem início ou fim, antes ou depois, mas plenos de significados. A escrita não
tem aqui caráter meramente formal ou função decorativa, mas é a expressão de um
pensar e de um sentir, protocolado pela caligrafia e pelo gesto da artista.
“À escrita alfabética teve na cabala uma interpretação transracional enquanto méto-
do de conhecimento concedido por Deus”,'º afirma o poeta e historiador de arte ale-
mão Dietrich Mahlow. Mira provavelmente estava informada de que a adaptação dos
sinais sonoros de nosso alfabeto podia servir tanto à comunicação de emoções e ideias
como à corporificação bíblica do ausente, do invisível. A poesia tinha surgido de prá-
ticas mágico-místicas da Antiguidade. Sons mágicos arcaicos e amuletos escriturais
continuaram a ser vitais na cabala medieval, marcando a obra da vanguarda russa no
início do século xx e estimulando a poesia contemporânea ocidental.
Mira trabalhou geralmente em preto-e-branco, raramente com cores, dividindo o
espaço delicadamente com sua caligrafia e um vocabulário proveniente das diversas
línguas em que era versada. Ao combinar letras, palavras com linhas ou signos abs-
tratos, os dizeres — sempre algo especial — transformavam-se em imagens, conferindo
unidade visual a formas justapostas, contraditórias até, por meio de movimentos enér-
gicos, que reproduzem o fluxo dos pensamentos. Nessas folhas transparentes alternam-
se diversão e significado, forma e formalismo, ironia e cinismo, numa totalidade forte
e atrevida.
Várias monotipias de Mira não contêm palavra alguma, somente elementos gráf-
cos. À artista denominou-as Estruturas lineares ou Arquiteturas, e podem ser analisadas
formalmente — como fizeram alguns críticos. Entretanto, a mínima intromissão de
uma palavra nessas estruturas provoca uma instabilidade formal e revela seu verdadeiro
caráter como construções fluidas de pensamento. Mesmo na ausência da palavra, seu
eco continuaria a reverberar.
Em 1965, os trabalhos de Mira da 8? Bienal Internacional de São Paulo desperta-
riam o interesse do jovem crítico inglês Guy Brett, que a incluiria no programa de
exposições da Signals Gallery de Londres.'* Mira o conheceu no Brasil, nesta Bie-
nal, graças à mediação do escultor Sergio Camargo. Naquele mesmo ano as mono-
tipias foram apresentadas na exposição coletiva Soundings Two, na Signals Gallery,
e comentadas por David Medalla no boletim informativo da galeria:
Numa área de trabalho deliberadamente “restrita”, Mira Schendel criou um mundo micro-
cósmico de grande poder simbólico. Seus desenhos sobre papel-arroz parecem a princípio
simples. Tal simplicidade, porém, resulta de uma técnica original estimulada pela exis-
tência de uma profunda visão. Numa pequena superfície retangular vertical absorvente
Dietrich Mahlow, Schrift und Bild. Amsterdã/Baden-Baden: Stedelijk Museum/Staatliche Kunsthalle, 1963, p. 9.
No início da década de 1960, o artista filipino David Medalla (1942-) começou, em Londres, justamente com Guy
Brett e o ator Paul Keeler, a organizar exposições experimentais que deram origem à galeria Signals. Medalla e Keeler
haviam conhecido em Paris o escultor Sergio Camargo (1930-1990) e convidaram-no a expor na galeria, em 1964.
Por meio dele, abriu-se a possibilidade para artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel de mostrar seus
trabalhos na Inglaterra
I91
ela inscreve sinais e símbolos de suaves vibrações de um agora seguro e penetrante. Aqui
e ali, entre seus desenhos, encontra-se a presença de palavras mal discerníveis, frases semi-
apagadas, letras removidas de seu contexto linguístico usual, letras e números dançando
no espaço em meio a formas geométricas simples, círculo, triângulo, quadrado e estruturas
aéreas deslocando-se para cima e para baixo, o tempo delineando o ritmo de suas danças...
Seus desenhos poderiam ser considerados como os primórdios de uma linguagem gráfica
fortemente carregada de um futuro poético.'º
No início de 1966, por ocasião de uma exposição de Mira no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, Haroldo de Campos escreveu um poema-introdução à obra da
artista. Nesse texto, ele alude ao ziguezaguear das letras nos trabalhos, comparando-o
ao movimento de uma abelha. Haroldo de Campos conhecera Mira por intermédio de
Mário Schenberg, no início da década de 1960. Admirador de suas pinturas geométricas,
se aproximou de Mira quando ela passou a utilizar letras e palavras nos trabalhos. Para
ele, sua obra apresenta “um sopro que vem da poesia concreta: [...] Mira usa elementos
textuais, alfabetos, letras, e cria verdadeiros quadros-poemas, mesmo que o que esteja
fazendo seja uma pintura de raiz construtiva”.
Em sua opinião, e em concordância com Mário Schenberg, Mira teria como meta
de seus trabalhos o vazio sunyata da estética budista oriental. Para a artista, que enca-
rava produtivamente a negatividade, este vazio, este zero, seria pleno de significados,
como na tradição hebraica da cabala, que, ao contrário da não-existência ocidental,
entende-o como o infinito, ejn sof:
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David Medalla, Signals Newsbulletin, Londres, n. 9, ago./set./out. 1965.
Haroldo de Campos, apud Sônia Salzstein (org.), No vazio do mundo. São Paulo: Marca D'Agua, 1996, p. 229
Idem, ibidem, p. 2383.
I92
A explicação desta obra dificil e sutil tem de ser feita do interior a partir de uma minuciosa
análise das razões de sua pesquisa. Mira Schendel entrega-se a ela com uma iluminada
coragem, uma ansiedade que pessoalmente verifiquei. Esta mulher feixe de nervos, duma
vibratilidade que aflige, vive em permanente diálogo com a sua criação: cada desenho seu,
ou cada série corresponde a uma preocupação que circula entre ela e a própria obra, e estas
finas folhas de papel japonês raramente marcadas de um risco, de uma frase que relampeja
no espaço macio onde a mão vagamente se imprimiu, são páginas dum diário íntimo que
ficam existindo por si próprias, com o seu valor Significativo”. A consciência das relações de
linha, forma e espaço, de que se acompanha esta pesquisa, e que a justifica, põe os desenhos
de Mira Schendel numa categoria moderna que poucos desenhadores ousam assumir"
Ela confiara alguns trabalhos à amiga Amélia Toledo, e antes do seu retorno para o
Brasil permaneceu mais algum tempo na casa dela, em Carcavelos, nos arredores de
Lisboa, para a abertura da exposição. O resultado, no entanto, não teria sido total-
mente satisfatório: “A exposição em Lisboa esteve muito bem montada. O catálo-
go, nada de especial, e os visitantes, perplexos”, resumia ela numa carta.'? Mas uma
extensa matéria sobre seus trabalhos, escrita por José-Augusto França com base nessa
exposição, seria publicada em 1968 na revista Opus International, de Paris.
Na Inglaterra, além de Guy Brett, Mira também teria feito outros contatos impor-
tantes e duradouros, incluindo o poeta e monge beneditino dom Sylvester Houédard
e o artista Li Yuan-chia. Na Alemanha ela conheceria o filósofo Max Bense e sua com-
panheira, a semióloga Elisabeth Walther. Na Signals Gallery, Mira apresentou uma
grande seleção de monotipias e droguinhas com a acertada tradução Druglets. Essa
seria sua maior exposição individual em vida.
Após a indiferença por trabalhos semelhantes, exibidos no mesmo ano no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, deve ter sido uma grande satisfação ver um públi-
co numeroso concentrar-se no segundo andar da galeria.
193
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Sem título, déc. 1960
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Droguinha, déc. 1960
papel japonês retorcido,
dimensões variáveis
col. particular, São Paulo
Droguinhas fenomenológicas e trenzinhos
Iniciei um trabalho novo, talvez mais importante para mim mesma que todos os anteriores.
“Esculturas” feitas do mesmo papel de arroz dos desenhos. Algo tecnicamente primário e bem
fácil. De um ponto de vista ocidental estas “esculturas” (esta palavra sem sentido!) poderiam
ser vistas sob a perspectiva da fenomenologia do ser-ter. Do ponto de vista oriental, bem,
elas se relacionam com o zen.
Com o mesmo papel que uso nos desenhos, comecei a fazer um tipo de “escultura” de papel.
A palavra “escultura” empregada aqui soa ridícula, mas que mais poderia ser? Este novo tra-
balho significa, no meu entender, um passo além dos desenhos. A maioria das pessoas, contudo,
os aceita ainda menos. Em todo caso, gostaria de enviá-los a Londres, se soubesse como. Prati-
camente não têm peso algum, mas são algo volumosos e ao mesmo tempo delicados — acho que
teriam que ser transportados em embalagens de papelão, mas quem o faria e como?
[...] Um eventual comprador teria que acondicioná-la numa caixa, de acordo com o
dinheiro gasto — para protegê-la da umidade, das moscas, do ar. Seria como “conservar”
a espuma de David Medalla. Sendo assim, aquele que a “possuísse” não a deixaria “ser”,
A eternidade da flor e a eternidade da basílica românica. A essência (como por ex. em
Husserl) e a “duração”.
Frederico Morais, “Droguinhas e um trenzinho: a metafísica de Mira Schendel, O Globo, Rio de Janeiro, 5 mai. 19883.
Mira Schendel, depoimento para o Depto. de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira — FAAP, 19 ago. 1977.
Idem, carta a Guy Brett, São Paulo, 24 nov. 1965
Idem, carta a Guy Brett, São Paulo, 12 abr. 1966
M, Schendel, diário inédito.
convite à participação — na época, palavra na ordem do dia da esquerda brasileira. É
exatamente neste ponto que a arte de Mira se diferencia da chamada vanguarda bra-
sileira dos anos 1960, cujos representantes máximos são Hélio Oiticica e Lygia Clark.
Enquanto para estes artistas a reação do público é inseparável da obra, Mira criou
seus objetos, da mesma forma que suas pinturas, desenhos e monotipias, num certo
isolamento, que não deve absolutamente ser entendido como alienação social. As dro-
guinhas, ao nos conduzir pela poesia da transitoriedade e do descartável, transmitem-
nos impressões contundentes da dissolução das coisas no fluxo do tempo e servem à
simbolização ativa das experiências vividas, solicitando do espectador uma atitude
muito mais contemplativa que participativa.
As droguinhas são essencialmente desenhos no espaço, linha transformada em maté-
ria, formas tridimensionais, sem no entanto ocupar espaço. Suas vibrações visuais sutis
provocam no espectador o desejo análogo de decifrar seu processo oscilatório, seus silen-
ciosos murmúrios. Conviver com elas exige a abertura de nossas reservas ocultas, para
que possamos fruir essas estruturas inéditas.
Uma variante deste objeto é o trenzinho, fio de náilon no qual são penduradas
folhas de papel japonês branco, como roupas em um varal. Essas folhas irradiam uma
energia primordial e liberam certa excitação metafísica, algo ainda sem peso ou subs-
tância, tempo em estado puro, espaço em estado puro. O título contribui para a visua-
lização de uma sequência de unidades impressionantemente simples, porém significa-
tivas, que formam um todo.
Em sua exposição na Signals Gallery, a maioria dos trabalhos não apresentava
textos, apenas elementos gráficos, como pontos ou linhas. Mas um artigo sobre a
exposição publicado na imprensa brasileira acentua a conexão entre o grupo Noi-
gandres de São Paulo e os poetas concretos ingleses, como Ian Hamilton Finlay,
Edwin Morgan e John Furnival. A arte de Mira é caracterizada como “[...] singu-
laríssima, feita de alusões e de ecos, o sentido recôndito prevalecendo sobre o ime-
diato, o mínimo de suporte visual intensificando a realidade essencial do vazio”.
O artigo menciona ainda o interesse do beneditino dom Sylvester Houédard e do
jesuíta irlandês Cyril Barrett pelos trabalhos. Uma pequena notícia na imprensa
britânica é mais comedida, meramente descritiva na maior parte e um tanto quanto
ácida no final:
[Os desenhos de Schendel] parecem estar vivos pela rapidez de sua execução, tendo sido
desenhados obviamente na velocidade dos costumeiros processos de pensamento. Há várias
séries, umas sugerindo plantas de edifícios, outras, agrupamentos de pontos como formigas
ou pessoas vistas do alto. Algumas são meras palavras rabiscadas com setas direcionais. |...]
Não parecem alcançar nenhum resultado enquanto trabalho mais sério. São o registro de
um fluxo de emoções que poderiam ter permanecido no âmbito privado.”
Vera Pacheco Jordão, “Desenhos de Mira Schendel em Londres“, O Globo, Rio de Janeiro, 12 out. 1966
Guy Burn, Arts Review, Londres, 15 out.1966
216
O boletim informativo da galeria dos meses de janeiro, fevereiro e março fora dedi-
cado ao venezuelano Alejandro Otero, incluindo duas notas sobre Mira. A edição de
outubro deveria ser inteiramente dedicada a ela, mas a galeria terminou suas ativida-
des antes do previsto. Por causa do encerramento prematuro da exposição, um artigo
de Guy Brett sobre os trabalhos de Mira não pôde ser publicado no Times. Contudo,
eles seriam discutidos minuciosamente com fotos ilustrativas em seu livro Kinetic Art:
The Language of Movement [Arte cinética: a linguagem do movimento], publicado em
1968. Guy Brett apresenta suas concepções de movimento enquanto efemeridade e
desenvolvimento espacial tomando como exemplo esses trabalhos.
Brett de arte cinética diferencia-se daquele definido pela presença externa de dispositi-
vos mecânicos ou elétricos e aproxima-se da natureza mais sutil, interna e orgânica da
arte povera. Ele se baseia nas experiências da antiarte para redefinir o movimento.
As “droguinhas” de Schendel não descrevem movimento algum, mas são contribuições vitais
à linguagem do movimento, pois sua fragilidade e sua energia indicam o espaço como algo
ativo, um campo de possibilidades.
Nessa ocasião Mira também conheceu o artista chinês Li Yuan-chia, então assistente
da galeria. Como o seu inglês era insuficiente, ele se ofereceu para ajudá-la como
intérprete e fazer-lhe companhia, pois falava um pouco de italiano. David Medalla fala
sobre o interesse de Mira pelo trabalho de Li Yuan-chia:
O crítico e curador Guy Brett (1942-) escreve sobre arte desde 1968. Entre 1964 e 1975 ele escreveu na seção de arte
do jornal The Times e entre 1981 e 1983 foi editor da revista City Limits. São de sua autoria Kinetic Art: The Language
of Movement, Londres/Nova York: Studio Vista/Reinholdt, 1968; Through Our Own Eyes: Popular Art and Modern
History, Filadélfia: New Society, 1986; Transcontinental: Nine Latin American Artists, Londres/Nova York: Verso, 1990;
Exploding Galaxies: The Art of David Medalla, Londres: Kala Press, 1995 Mona Hatoum, Londres: Phaidon, 1997.
Guy Brett, Kinetic Art: The Languageof Movement. Londres Nova York: Studio Vista/Reinholat, 1968, p. 8
Idem, ibidem, p. 20
Idem, ibidem, pp. 46-47.
[0 N
Mira e Li tornaram-se bons amigos, porque ela tinha uma admiração pela cultura zen,
taoísmo, 1 Ching. Eles se sentiram bem próximos quando ela estava em Londres. Mas Li
provinha, digamos assim, de uma concepção chinesa de mundo bem antiga. Não é nem
taoísmo nem confucionismo, é totalmente baseada numa linguagem fortemente mística e
simbólica. Naquela época, ele fazia trabalhos bem abstratos, que se resumiam a um ponto
ou dois. [...] Mira estava fazendo exatamente aquelas marcas negras no papel de arroz,
numa atitude próxima à de Li, com suas pinturas geralmente em preto-e-branco. Ocasio-
nalmente, ele usava vermelho ou ouro com elementos mínimos de fotografias incorporados
ds pinturas.º?
À espiritualidade e o interesse pela filosofia zen não foram os únicos pontos de conver-
gência entre Mira e Li Yuan-chia. Também a extrema simplificação e a economia de
elementos nos trabalhos coincidem no processo criativo dos dois artistas.
Ainda nesta primeira viagem à Europa, Haroldo de Campos recomendou-lhe visi-
tar Umberto Eco, em Milão, e Max Bense, em Stuttgart, para apresentar seu trabalho.
Uma carta de Knut Schendel reforça a sugestão de Campos:
Telefonei a Haroldo e ele disse que seu amigo Eco já esteve em sua casa e que você deve
visitá-lo sem falta em Milão, pois ele está muito interessado em ver suas coisas. No momen-
to ele já está retornando. Seu endereço é: via Pisaceni 12, Milão.
Desde o fim dos anos 1950, os poetas concretos brasileiros buscaram diálogo com poetas
e teóricos europeus, e encontraram-no em Umberto Eco e Max Bense. As ideias artís-
ticas de Mira foram influenciadas pela leitura desses autores, como, por exemplo, sua
apropriação do conceito de obra aberta. Referências a Eco, à struttura assente [estrutura
ausente] e à semiologia aparecem em seu diário” e num de seus poemas. Seu encontro
com ele não teria consequências significativas. Knut consola-a em outra carta:
Max Bense, ao contrário, interessou-se muito pelo trabalho de Mira. Em janeiro de 1967,
quarenta desenhos seus seriam expostos na Studiengalerie der Technischen Hochschule
[Galeria de Estudos da Escola Superior Técnica de Stuttgart], onde ele lecionava filoso-
fia e teoria do conhecimento. Também dedicou à artista um número da série de cader-
nos rot, publicados por ele e sua companheira, Elisabeth Walther. Para essa exposição e
para a edição dos cadernos rot a ela dedicada, introduzidas pelo poema de Haroldo de
Campos, Bense escreveu uma desintrodução (Ausleitung):
[...] depois que meu amigo Haroldo de Campos introduziu estes caligramas gráficos, eu
gostaria de desintroduzi-los. desta maneira eles ficam engastados em palavras; eles, de certo
modo, emergem delas, para nelas de novo reimergirem; desvio do escrito, dispersão do ano-
tado, sua redução gráfica suspende a estrutura linguística em favor da pictórica.
Uma letra comporta-se como um ponto, a cadeia das letras como uma linha, e várias
letras-linhas determinam superfícies, contornando-as ou abrindo-as de plano no espaço.
reduções, pois apenas poucas letras do alfabeto são utilizadas graficamente e assim mesmo
quase sempre restituídas a seu leve rastro. distribuições, pois o dispersar e abolir das figuras
de uma escrita possível persegue apenas propósitos estéticos. transformações, pois a letra aqui
não é um mero pretexto para a expressão ou supressão de um texto efetivo. palavras, que se
tornem perceptíveis, serão casuais eventos-de-palavras no percurso visual dos traços dos dedos
sobre o papel, leves mas veementes, elaborados por mão que reflete entre o enlace e o desenlace,
movendo-se para cá e para lá, guiada apenas pelo olho e pelo impulso do percebido. somente
o que é visível é ação e a ação produz somente a visibilidade. tudo é muito substancial, o
traçado das figuras e a escolha do papel, a intensidade do risco, a dilação nas curvaturas,
o elegante, o preguiçoso, o grácil, o concluso e o abrupto, o aforístico e o casuístico, o que
se faz de um cabelo e o que pode ser uma viga, aquilo que se passa, passa-se sobre a mais
extrema pele da substância do mundo, ali onde o mundo poderia começar a infiltrar-se na
consciência, na linguagem.”
Vários termos usados por Bense aparecem nos apontamentos de Mira. Não apenas
a designação de “experimentos” dada por ela a seus trabalhos, como também a atri-
buição destes não à realidade, mas à probabilidade, assumida mesmo como título de
uma de suas obras, indicam que ela estaria de acordo com as teorias do esteta alemão.
Numa carta ao poeta dom Sylvester Houédard, a artista faz referência ao humor de
» no
Bense: “Evidentemente acreditei, mas não pensei, como diria Max Bense”. 38
219
Elisabeth Walther assumiria o trabalho de organizar as exposições de Mira em Stuttgart.
Elas se tornaram amigas, e permaneceram em contato por longo tempo. A correspondência
entre eles, de 1966 a 1976, aborda diversos temas, da arte à educação das filhas, da manuten-
ção da casa às expectativas de vida, de Deus à solidão. A uma carta de Elisabeth Walther,
que relata a participação de Bense num programa de televisão sobre o tema “Futuro sem
religião?”, no qual ele assumira uma posição ateísta, Mira responde claramente:
O meu modo de pensar é diverso do dele — acho que já tinha dito isso em Stuttgart. Você
deve ter percebido o quanto me interessa este problema — antes mesmo de ter pensado em
viajar a Stuttgart, já tinha mandado traduzir para o português o Atheismus [Ateísmo] e
Ungehorsam der Ideen [Desobediência às ideias] para mostrá-lo a amigos daqui. E tam-
bém para poder ter com eles uma base de discussão.'
Max Bense era de fato ateísta. Isso a aftigia terrivelmente. Ela era muito ligada em questões
teológicas... a religião da libertação na América do Sul era para ela algo de especial. Ela
o censurava: “Max Bense pensa que é ateu, mas não é. Ele certamente acredita em Deus.
O que ele não aceita é o cristianismo”. Ela foi sempre crente, isto nós também sabíamos.
Deus era para Bense um tema por excelência antivisual e antirreflexivo. A despeito da
existência de um vasto repertório de símbolos e índices à sua disposição, Deus tornara-
se para a contemplação estética uma possível improbabilidade, que se reduz, por prin-
cípio, a uma imperceptibilidade. “O homem determinou Deus e o religioso parado-
xalmente. Em todo paradoxo, a imperceptibilidade torna-se de fato impossível.” “º
Num dos trabalhos que seriam expostos na Bienal de Veneza em 1968, Mira empre-
gara trechos do poema de Bense Die Zerstôrung des Durstes durch Wasser [Da elimina-
ção da sede pela água]. Escrupulosamente, ela pergunta à amiga: “Não terá sido isso
desrespeitoso para com ele?”.º Naquele ano, Mira viajou a Stuttgart para visitá-los.
Em 1973 voltou a vê-los.
“Por que letras?”, uma jornalista perguntou a Mira. “São o pré-texto ou pretexto do
pós-texto.”*
Nos anos 1960 e até meados dos 1970, Mira desenhou capas de livros para a editora [p. 179]
Herder, de São Paulo. À criação de layouts gráficos era, na época, atividade que requeria
paciência, precisão e habilidade manual. Os exemplos aqui reproduzidos comprovam
sua alta qualidade gráfica. A artista realizava esses trabalhos comissionados em casa,
paralelamente às pesquisas artísticas, muitas vezes lendo os livros no texto original
a fim de encontrar a imagem apropriada a ser utilizada na edição brasileira. Com
o emprego da técnica do paste-up ela desenvolveria um sentido de equilíbrio visual
e rigor na execução. Presumivelmente, Mira transportou esse procedimento para o
trabalho artístico, ao aplicar, quase que por brincadeira, restos das letras autocolantes
(letraset) sobre seus desenhos, abrindo com isso novas possibilidades. Com a simpli-
ficação da escrita por meio do emprego de letras autocolantes, confere-se uma forte
autonomia visual ao trabalho, cujo significado residia na introdução de um elemento
concreto num sistema de referência abstrato. Letras maiúsculas e minúsculas reduziam
a multiplicação de palavras, imagens e gestos a valores mínimos.
A completa redução da forma a círculos e retas, desenvolvida nos tipos sem serifa
da fonte Futura, a preferida da artista, permite considerar a relevância ótica das letras
enquanto elementos de um conjunto. Nos trabalhos de Mira, o significado original
dos sinais caligráficos — letras e números — transforma-se pela ação da letra autocolante,
assumindo um caráter novo, puramente plástico. O mínimo sinal é suficiente para alte-
rar a luminosidade fluida do papel e transformá-lo num espaço saturado, que apresenta
o peso das coisas sem recorrer à ilusão. O tratamento de hifens, parênteses ou interpon-
tuações transforma sinais até então insignificantes em seres híbridos, que juntamente
com o espaço e seus interstícios adquirem no papel significados intrigantes. Sobre estes
trabalhos, o ensaísta e crítico de arte Rodrigo Naves escreve:
Para Mira Schendel, bastava pontilhar a realidade de presenças esquivas, verdadeiros vestí-
gios de uma espécie nobre de experiência, capaz de reverter a continuidade do cotidiano em
momento de profunda densidade, ainda que eles se resumissem a uma vírgula. [...] Cada [p. 237]
trabalho surgia como um trabalho a menos, em lugar de um acréscimo. Mas essa economia
não tinha nada a ver com um abandono da possibilidade de se fazer arte. Ao contrário. No
entanto, não deixava de indicar que a própria experiência artística estava por um fio e que
a ansiedade era a pior forma de encarar o problema”.
DO
44 Norma Couri, “Sobre como não falar de arte”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jul. 1975.
45 Rodrigo Naves, "Uma antivirtuose por excelência”, Folha de S.Paulo, 25 jul. 1988.
to [o NS)
brasileiro foi destinada a Lygia Clark, enquanto a outra seria compartilhada por Mira,
Anna Letycia Quadros e Farnese de Andrade, cada qual apresentando cerca de doze
trabalhos. Os desenhos/monotipias de Mira, com letras autocolantes e manuscritas,
prensados entre grandes placas de acrílico e pendurados no teto junto à janela, torna-
ram-se objetos transparentes.
Ainda que Clark dominasse a mostra brasileira com 82 obras, o trabalho de Mira
também despertaria a atenção de críticos, artistas e galeristas europeus, como o mar-
chand norueguês Konrad Gromholt, o historiador de arte Dietrich Mahlow e a poe-
tisa visual italiana Mirella Bentivoglio. Após visitar a Bienal de Veneza em 1968, Mira
dirigiu-se, no final de junho, ao Mar do Norte e de lá foi ao Cabo Norte, na Noruega.
Presumivelmente influenciada pela leitura da obra de Gebser, ela teria decidido viven-
ciar o sol noturno do verão nórdico e a polaridade norte-sul. Um diário de viagem
em versos brancos testemunha o fascínio da artista pela paisagem e pela luz do verão
da Noruega.
De acordo com Gebser, a experiência da polaridade marca a superação da dualida-
de, a anulação do dizível pelo indizível, num processo em que se exprime a profunda
relação entre a estrutura arcaica e a mítica e em que o homem toma consciência de
sua alma.” Na polaridade, toda correspondência conduz à sua respectiva complemen-
taridade, pois todo fenômeno polar é também complementar. Dia e noite, luz e tre-
vas, céu e terra, conforme se apresentam nas latitudes acima do Círculo Polar Ártico,
tornaram-se para Mira realidade vivenciável.
Entre 1968 e 1969, as monotipias de Mira foram expostas em duas cidades
austríacas: Viena e Graz. Num artigo dedicado aos objetos do artista Erwin Thorn,
expostos na sala principal, o crítico Kristian Sotriffer refere-se às monotipias de Mira:
zarte, lockere, skripturale [suaves, soltas e escriturais], que podiam ser vistas no gabi-
nete de gravuras da Galerie nãchst Sankt Stephan, em Viena.
Sua exposição no convento dos minoritas, em Graz, resultou provavelmente dos
contatos que remontam à sua passagem por aquela cidade na Segunda Guerra Mun-
dial. Na crônica do convento consta que seus trabalhos, juntamente com os do artista
japonês Takeada Matsutami, expostos no antigo refeitório de verão do claustro, deram
abertura à temporada de inverno daquele ano. Na ocasião, o monsenhor Otto Mauer
discursou sobre a situação da arte, e Peter Otten, de Miinster, leu versos de Rilke e
de Hofmannsthal.º Desde o início dos anos 1960, a sala não era mais usada como
refeitório e os membros da diocese ali organizavam concertos, conferências e outras
atividades culturais, não apenas com o intuito de veicular trabalhos artísticos, mas
também de apresentar e discutir a relação destes com a fé que os teria originado. Do
desdobramento deste programa seria fundado, em meados de 1970, o Kulturzentrum
bei den Minoriten [Centro Cultural dos Minoritas], cujo foco continuaria a ser a con-
vivência da arte contemporânea com a Igreja.
A gente pode tranquilamente confiar nas correspondências: quando houver, há. Se for “a
hora” da Índia, “vem” a Índia. Sem afobação e sem fatalismo. Sem sucumbir ao “fazer
tudo” ocidental e sem sucumbir ao “destino” oriental. Mas agindo-não agindo.”
Em uma carta a esse crítico, comentando uma futura participação sua numa exposição
internacional em Nova Déli [Trienal da Índia organizada pela Lalit Kala Akademi,
que teve sua primeira edição em 1968], ela aborda a crescente afinidade entre a Índia e
o Ocidente, e menciona Gebser:
Li um livro de um famoso psiquiatra europeu sobre suas viagens pela Índia. Ele escreve com
conhecimento raro e profundo sobre a velha e a nova sabedoria indiana, mais um passo à
frente em direção ao melhor entendimento mútuo. [...] Mostrar meu trabalho em Nova
Deli deu-me uma satisfação especial, pois vejo aí a oportunidade de fazer publicamente
alguma coisa no sentido dessa aproximação que, sem desconsiderar as diferenças, conduz às
origens comuns.
Na segunda Trienal, em 1971, participaram 360 artistas. Mira recebeu uma medalha de ouro.
Muita coisa passa rapidamente na nossa vida — coisas importantes ou menos importantes
— alguma coisa, porém, nos marca e permanece para sempre significativa, assim como você
e sua arte para mim. [...] Grande arte é sentimento expresso ao máximo, e Mira Schendel
consegue isso com mínimos meios de expressão.
Para a artista, teria havido “um caso de grande compatibilidade psíquica”. Ela tam-
bém ficara feliz por ter encontrado alguém que compreendia seu trabalho. “Na vida
acontece de tudo, coisas importantes e menos importantes. Mas algo permanece. Diria
que aquilo que “permanece” é puro e de natureza espiritual. Estes são os verdadeiros
encontros na vida.” >
O marchand recebeu as placas de acrílico de Mira no final de 1969, e em maio
de 1970 mostrava duas delas na exposição 1000 Anos de Arte Nova, em Hovikod-
den. No início dos anos 1970, ele abria sua própria galeria. Ele afirma ter sido bem
difícil, quase impossível, que seus clientes entendessem a obra da artista. Mesmo
assim, ele conseguiu vender algumas monotipias a parentes e amigos, tendo ficado
com o restante. Em vão ele tentou, em colaboração com a Galerie Denise René,
apresentar seus trabalhos em Paris, e sua galeria foi a única a representar Mira
na Europa. Na relação franca e amigável com o galerista, Mira comunicava-lhe o
desenvolvimento de seu trabalho:
Tenho experimentado um novo tipo de trabalho com spray e outros materiais. Será dificil,
porém, enviar-lhe alguns exemplos — e talvez você nem goste deles.
56
52 Konrad Gromholt, depoimento ao autor, Oslo, 19 mai. 1998. A entrevista contou com a colaboração de Per Hovdenakk,
antigo diretor do Henie-Onstad Kunstsenter em Hovikodden, como intérprete
53 Idem, carta a Liebe Mira, Oslo, 12 nov. 1968
54 Mira Schendel, carta a Lieber Konrad, São Paulo, 16 out. 1968
55 Idem, carta a Lieber Konrad, São Paulo, 5 nov. 1968
56 Idem, carta a Konrad Gromholt, São Paulo, 14 jul. 1970
Em carta de 1971 ela o informou sobre a intenção de realizar múltiplos de seus cader-
nos. Como poderiam ser vendidos a preços módicos, pareceu-lhe ser este o melhor
caminho para divulgar sua obra. A isso responde Gromholt:
A ideia dos múltiplos é boa, mas suas obras são tão excepcionais que eu dificilmente con-
sideraria o preço. [...] Os trabalhos que me enviou são de tão alta qualidade que de certo
modo até assustam as pessoas. Não são apenas simples expressões de arte, mas encerram um
pensamento altamente filosófico e uma extrema ternura. Você assusta até mesmo a mim, e de
tal modo que chego a suspirar sempre que vejo suas obras, e — devo confessar — é só em ocasiões
muito especiais que sinto coisas de tal natureza.
Nos anos 1970, Mira voltou a visitar o marchand mais duas vezes. No último encontro,
ela teria se mostrado insatisfeita com seu desempenho. A partir de então, a relação
se tornaria mais delicada. Questionado se ela teria sido uma pessoa difícil, Gromholt
respondeu: “Na verdade, ela não era difícil. Ela era simplesmente Mira”. Grande par-
te da coleção de Gromholt, inclusive placas de acrílico de Mira, transferiu-se para o
Henie-Onstad Kunstsenter, em Hovikkoden.* Em sua casa, nos arredores de Oslo,
Gromholt conviveu com os trabalhos remanescentes de sua antiga coleção e muitos
relevos geométricos em madeira criados por ele mesmo. Sua sala de estar mergulhava
diariamente numa atmosfera rosa-azulada, provocada pela luz do sol filtrada por duas
placas de acrílico, fixas às janelas. “O sol chega através de Mira”, dizia ele.
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emo-.
p. 242
Exposição [Objetos gráficos],
34%o Bienal de Veneza, 1968
Q Ana
60 Dietrich Mahlow nasceu em Seehausen, em 1920. De 1956 a 1966 ele foi diretor do Kunsthalle de Baden-Baden e de
1967 a 1974 das coleções municipais e do Instituto de Arte Moderna de Nuremberg.
Mira Schendel, carta a Dietrich Mahlow, São Paulo, sem data [provavelmente de 1973].
Idem, ibidem.
Idem, carta a Elisabeth Walther, São Paulo, 26 nov. 1973
245
Em 1987 Mahlow organizou a exposição auf ein Wort! [Numa palavra] para o Guten-
berg-Museum, em Mainz, versão atualizada da Schrifi-und-Bild dos anos 1960, que
retomava o impulso da poesia concreta, introduzindo-o na multiplicidade da nova
poesia visual. Em carta a Mira, ele apresenta o objetivo dessa exposição: levar o tema
“escrita e imagem” a um público maior, segundo os marcos dos novos tempos tecnológi-
cos.” Dela foram expostos visuelle Konstruktionen [Construções visuais], três desenhos
de 1972, e transparente alphabetische Konstellation [Constelação alfabética transparente),
série de desenhos com letras isoladas sobre papel transparente, de 1971. Nesta mostra,
Mahlow e Mira encontraram-se pela última vez. A exposição por ele planejada para o
Guggenheim Museum de Nova York, The Image and Sound of Writing [A imagem e
o som da escrita], que deveria apresentar trabalhos de Mira, infelizmente não se reali-
zaria.º Do texto do catálogo aufein Wort!, Mahlow assinalou as seguintes passagens,*
que na sua opinião se referem indiretamente aos trabalhos de Mira:
Se você permitir que a vida destas palavras, imagens e letras penetre em você, perceberá logo
que elas são o seu próprio mundo, que você mesmo projetou. Ele é tão grande quanto você,
seu olho, sua boca, seu ouvido e sua cabeça. Contém inúmeras combinações de tipos sempre
novos de jogos que, de saída, rompem todas as regras. Poder-se-ia dizer que ele é o espaço da
linguagem, seu espaço visual, seu espaço imaginativo. Você pode imaginar o que quiser. E
se você o comparar, por exemplo, com o que se experimenta sob o efeito de drogas, verá que
aquilo seriam migalhas insignificantes. Aqui, porém, onde as palavras estão em casa, onde
você se sente à vontade com as palavras, onde você pensa em imagens linguísticas, reconhe-
cerá que as forças que movem seus olhos estão livres: elas ultrapassam todos os esquemas nos
quais você está acostumado a pensar, elas os saltam, elas se cruzam e se unem, elas destroem
e constroem. Imagens de letras, imagens de palavras, imagens com escrita.
[...) Então você vai querer parar, interromper o impulso para concentrar-se em algo
que talvez tenha a ver com você, que se relacione com você, que você queira vivenciar. Aí
crescerão árvores de letras, você enxergará além de corpos, paisagens, campos e voará.
[...] Então pode ser que você se revigore, veja e pense de uma nova maneira, e também
queira viver diferentemente. Se você abrir o mundo de sua imaginação, ele se tornará gran-
de e amplo, e, como num sonho, tudo se confundirá num caos assustador e produtivo de
muitas forças, das quais o seu eu se alimentará e as quais lhe darão apoio.”
Num texto inédito, Mahlow não tenta analisar o trabalho de Mira, mas sim, como ele
explica, reproduzir poeticamente seus “estímulos”:
Mergulhando num desenho de Mira Schendel, começo a soletrar — e a ver sempre as poucas
letras em ligação com a terra onde ela viveu — ainda que muitas vezes ela tenha se sentido
tão longe da vida: recomeço a pensar ininterruptamente — onde estou nesta grande curva-
tura da Terra?
246
Uma artista que situa nosso alfabeto no horizonte: da Terra? da Lua? do Sol?
Penso no alfabeto celeste do final do século xvr com suas letras ilegíveis para nossa mente,
mas vivenciáveis para nossa alma: você pode penetrá-las com a visão, deixar-se capturar
por elas, pode perder-se nelas, e pode pronunciá-las como quiser — o “a” de Mira Schendel
não existe lá fora, mas sim dentro de você mesmo. Por meio de lembranças e análises você
não entra na arte; somente se você as vivenciar, compreenderá o pensamento da artista.
O “x” dança na Terra — e espelha-se no céu que existe dentro de nós: um vazio, do qual se
originam todas as forças.
Ela trabalhou com papel transparente: a transparência torna-se transcendência. Através das
ligações de um sinal gráfico ou de uma letra com o espaço vazio, ultrapassamos as barreiras
da visão condicionada pela linguagem — e passamos a nos ver sob uma perspectiva diferente.
Se nos transportarmos, real e totalmente, para os desenhos da Mira Schendel, consegui-
remos sair dos compartimentos da linguagem que frequentemente nos aprisionam — Oh,
que momento! Vivenciar a arte significa entrar na quarta dimensão.
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Datiloscritos
(Sistema da filosofia) de Schmitz, com uma informação adicionada à mão sobre a data em que ela
teria emprestado o volume. Este é um de seus primeiros trabalhos a fazer referência a este autor.
Em outros, como na série Telefonemas,º de 1972, as letras perdem sua função de [p. 253]
registros de sinais sonoros e transformam-se em puros elementos plásticos. Elas com-
põem formas geométricas de luminosidade variada, dependendo do número de vezes
que as teclas da máquina imprimiram o mesmo ponto do papel. Com as letras, Mira
produz entrelaçamentos, teias, retomando um procedimento já indicado nos Bordados
de 1962, nas monotipias e principalmente nas droguinhas.
Mira Schendel morou a maior parte do tempo em Santo Amaro, bairro distante do centro de São Paulo. Ela mantinha
da
com seus amigos longos contatos telefônicos, pois nem sempre podiam visitá-la. Alguns falaram sobre o costume
artista de telefonar muitas vezes no meio da noite, para longos diálogos. Para alguns, isso viria a ser motivo de ruptura
ou afastamentos temporários. Nos Telefonemas, a forma de cada bloco refletiria como a artista via este ou aquele
interlocutor, melancólico ou alegre, simples ou complexo, anguloso ou arredondado
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p. 248
Datiloscritos, 1974
datilografia e letraset sobre papel,
50,8 x 36 em
col. particular, São Paulo
p. 250
Datiloscritos, 1974
datilografia e letraset sobre papel,
50,8 x 36 em
col. particular, São Paulo
p. 251
Datiloscritos, 1974
datilografia, letraset e caligrafia sobre
papel, 50,8 x 37 em
col. Ricard Akagawa, São Paulo
p. 253
Datiloscritos [Telefonemas], 1974
datilografia e letraset sobre papel,
50,8 x 36,4 em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
p.254
Datiloscritos, 1974
datilografia e letraset sobre papel,
50,8 x 36,4 em
col. particular, São Paulo
PI255
Datiloscritos, 1974
datilografia, letraset e caligrafia sobre
papel, 50,8 x 37 em
col. particular, São Paulo
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Sem título [Disco], 1972
letraset entre placas de acrílico,
O 18x 5,5 em
col. Ada Schendel, São Paulo
Objetos gráficos e transformáveis
[...] se o nosso tempo levanta uma problemática da transparência, o nosso tempo também
nos dá materiais, a tecnologia, onde podemos concretizar isso."
A produção dos objetos gráficos, como Mira denominou os desenhos juntamente com
seus invólucros em acrílico, expostos na 9: Bienal de São Paulo, em 1967, e na de
Veneza, em 1968, está associada ao desenvolvimento de suas pesquisas sobre a transpa-
rência. Como a artista relatou, ela teria descoberto no bairro onde morava uma fabri-
queta de anúncios luminosos. Ao examinar as sobras de tiras de acrílico, teria vindo a
ideia de juntar esse material ao papel de arroz. O acrílico, em comparação com o vidro,
permite um manuseio mais fácil:
Os objetos gráficos podem ser descritos da seguinte maneira: duas grandes placas de
acrílico comprimem várias folhas de papel de arroz transparentes gravadas por mono-
tipia com a caligrafia da artista e/ou com letras e números autocolantes (letraset). As
placas, de espessura de 0,5 ou 1 cm, são parafusadas nas bordas para reter os desenhos/
monotipias. À liberação da parede transforma-as em objetos que, pendentes do teto,
oscilam à menor corrente de ar.
Embora elementos visuais se sobreponham, não se pode falar aqui em tridimensionali-
dade, como na escultura tradicional, pois a terceira dimensão, sua espessura, é mínima.
A transparência coloca-se nestes trabalhos com premência ainda maior que nas
monotipias, já que a penetração do olhar do espectador através deles amplia o campo
visual. Diante destas placas, que não oferecem nenhum foco e nenhuma superfície de
repouso, o olhar se descondiciona e se desconstrói em relação à habitual hierarquia
perceptiva. Sinais alfabéticos, impressos, datilografados ou escritos à mão, parecem
pairar livremente no espaço.
Nos anos 1970, os objetos gráficos de Mira não trariam mais sua caligrafia, apenas
letras autocolantes, decalcadas sobre o papel de arroz ou prensadas diretamente entre
as placas de acrílico. Em alguns deles as letras são dispostas circularmente, às vezes
formando espirais.
70 Mira Schendel, depoimento gravado para o Depto. de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira- FAAP. São Paulo,
19 ago. 1977.
71 Idem.
257
Transformáveis são tirinhas estreitas de acrílico transparente que se dobram ou se esti-
ram graças aos parafusos que dão articulação às plaquetas, semelhantes às do metro de
marceneiro. Pendurados no teto por fios de náilon, elas giram, projetando na parede
sombras sempre mutantes.
No contexto da época, muitos acreditaram que os transformáveis fossem objetos
para mexer, fazer-junto, brincar-junto e... destruir. Segundo depoimento da artista,
esta teria sido uma leitura incorreta da obra:
Max Bense foi o único que compreendeu que aquilo era uma continuação tridimensional, não
funcionava como objeto, mas a luz e a sombra que davam na parede era o que contava, que era
a continuação de certos desenhos meus, feitos sempre naqueles papéis finíssimos, transparentes.”
72 Idem.
258
Transformável, início da déc. 1970
tiras de acrílico rebitadas,
dimensões variáveis
col. particular, São Paulo
Objeto gráfico, 1967-068
letraset sobre colagem de papel-arroz
entre duas placas de acrílico, 50 x 50 em
col. particular, São Paulo
Objeto gráfico, 1967-868
óleo sobre colagem de papel-arroz entre
duas placas de acrílico, 50 x 50 em
col. Paulo Kuczynski, São Paulo
p. 262
Exposição [Objetos gráficos],
The Drawing Center, Nova York, 1995
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(927 x0,5 cm
Tate Modern, Londres
Objeto gráfico, 1967-608
óleo sobre colagem de papel-arroz entre
duas placas de acrílico, 100 x 100 cm
“Daros-Latinamerica Collection,
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Sem título [Cadernos], 1971
papel e acrílico, 6 x 20 x 7 em
col. Alfredo Hertzog da Silva, São Paulo
Cadernos: correntes sucintas de pensamentos
[...] o metafísico paira sobre todo o conjunto de sua obra. À indagação perene, simples como
água, infinita em sua complexidade. [...) Profundamente intelectual é a especulação eterna do
homem — traduzida em termos visuais e tácteis — de espaço e de tempo, o ser diante do todo, no
contexto do cosmos. E aqui convém lembrar que a obra surge no contexto urbano esclerotizante
de São Paulo, onde o encontro, o diálogo, a reunião se tornam mais dificultados pelo ritmo da
cidade esmagadora, o que nesta personalidade criativa e sensível emerge em reação imperiosa,
porém consequente, em forma de meditações silenciosas.
73 Aracy Amaral, “Mira Schendel: os cadernos”, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 7 nov. 1971.
As possíveis respostas a esta pergunta se expressariam nas diversas combinações e per-
mutações de sinais gráficos. Nos cadernos, esses signos foram usados pela artista não
para proporcionar um mero manuseio, mas sim enquanto possibilidade de significa-
dos de origem e presença do pensamento humano.
Partindo da rotação do “p”, Mira descobriria outros jogos, como o do “n” com o “o”.
Para a frente, para trás, em diversas posições: um enorme “o”, artigo masculino, zero
e ao mesmo tempo forma circular ideal, resumo de todas as maçãs e laranjas de suas
naturezas-mortas, que devora um diminuto “n”; dois grandes “N”, que pressionam um
o” subitamente reduzido, um “no”. O formal transforma-se aqui em sintático e em
«<»
semântico.
Alguns cadernos oferecem ao espectador furos como pontos de vista que, graças a
perfurações concêntricas, desaparecem e ressurgem no ritmo do virar das páginas. Ali
onde um furinho aparece na primeira página como título do trabalho, propõe-se ao
leitor um enigma/jogo do mais fino humor, que se inicia com aquele pontinho quase
perdido. Na segunda página, dois furinhos; nas seguintes, estes se multiplicam em
muitos furinhos. Sentenças verbais transformam-se aqui em teoremas do silêncio.
O método aleatório de Mira na realização destes trabalhos, jogando dados — ou moedas
— antes da confecção de cada página,” vincula-se a seu entendimento do acaso, ou, melhor
dizendo, da profecia e da adivinhação, que em muitos casos teria guiado sua capacidade
imaginativa. Ao lhe perguntarem sobre uma suposta incoerência entre a lógica e o acaso,
ela respondeu: “Na arte, existem contradições, mas não incompatibilidades”.”
Idem, ibidem.
Mira Schendel, apud Norma Couri, “Sobre como não falar de arte”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22
LE jul. 1975.
p.277-79
Sem título [Cadernos], 1971
letraset sobre papéis encadernados,
20 x 20 em [fechado]
col. particular, São Paulo
Sem título, 1973
papel perfurado montado em acrílico,
Bi,2 X 9 ,/2/€M
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Sem título [Cadernos], 1971
papel perfurado e encadernado
20 x 20 cm [fechado]
col. Antón Apostolatos, Caraca
Sem título [Toquinho], 1972
acrílico e letraset, 46 x 20,5 x 3 em
col. Esther Faingold,
São Paulo
Toquinhos ou pequenos retângulos
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O tema da paisagem seria retomado por Mira por volta de 1978. Nas paisagens, inspi-
radas por suas viagens ao maciço do Itatiaia”? e às praias de Cabo Frio, ela se utiliza de
pouquíssimos elementos para transmitir a natureza. Faixas de cor superpostas, em tona-
lidades que vão do verde ao azul, sugerem o céu, o mar ou a floresta.
Partindo de esboços a lápis de cor, ela elaboraria uma série de desenhos pintados
a aquarela e nanquim no seu característico formato vertical. Ela acrescenta elementos
caligráficos rapidamente desenhados, perceptíveis como agrupamentos de letras “a” ou
como pequenas figuras humanas de mãos dadas em superfícies que sugerem monta- [p. 288]
nhas ou planícies.
Para o crítico de arte Jacob Klintowitz, esses trabalhos continuariam a discussão de
Mira sobre o alfabeto enquanto linguagem visual e suas possibilidades significativas:
As letras foram retiradas de seu contexto inicial, despojadas de uma convencional estru-
tura e significação e postas a serviço de uma nova estrutura. Certamente essa atitude
quebra a camisa-de-força da palavra manipulada e coloca novamente em discussão
o alfabeto, o signo e a ideografia."”
Paulo Malta Campos veria nessas paisagens, apresentando didática, irônica e literaria-
mente, o conflito entre o gesto e a matéria:
O espaço, convertido em matéria por analogia visual, torna-se paisagem, montanhas, pla-
nícies, [...] representado metafisicamente em suas outras séries [...] pela matéria da tinta
aplicada. E a ação da artista, o gesto caligráfico, transmuda-se em seres humanos brincan-
do, se movimentando. Parecem indicar o caminho para o entendimento da obra de Mira
Schendel. O espaço não é o da perspectiva [...], ésim o espaço infinito da matéria difusa do
papel, [...) energizado pela ação da artista...”
Por meio de uma ação decidida sobre um fundo difuso, Mira tenta novamente, nessas
pinturas de paisagem, evocar o vazio infinito.
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v. Vértice de uma curva progressiva
Em meados da década de 1980, as exposições de Mira alcançam pela primeira vez certo
sucesso comercial. Este período, no qual chegaria ao fim a ditadura militar no Brasil,
caracterizou-se por um clima cultural otimista que repercutiu na abertura de novas
galerias e no surgimento de novos artistas e críticos na paisagem cultural.
No início daquela década, Mira produziu pinturas à têmpera de pequeno e médio
formatos sobre tela ou chapas de madeira compensada. Nesses trabalhos, a tinta foi
aplicada em variações cromáticas sobre campos delimitados por verticais, horizontais,
diagonais ou arcos de circunferência que cruzam a superfície do quadro. Ora são tons da
mesma cor, ora tons entre duas cores próximas, como vermelho e terra-de-siena. À reto-
mada da pintura por Mira seria duramente criticada por Flusser, numa carta à artista:
[...] o fato [é que vocês no Brasil parecem viver num iceberg que vai se derretendo, e que
vai sendo arrastado em direção oposta da Europa por corrente da qual ninguém está se dan-
do conta. Como o iceberg é muito grande, vocês o estão tomando por terra firme. Não me
quer sair da memória [uma] peça de teatro, [a]presentada em Praga em 1939 sob o título
“Lide na kre” (Leute auf dem Eisberg) [Pessoas sobre o iceberg], cujo autor esqueci, mas que
trata da sociedade burguesa face a Hitler. [...) O que está se preparando em S. Paulo não
me parece pois ser revolução, mas reviravolta. Não Umbruch [transformação radical), mas
Zusammenbruch [colapso]. Ou pelo menos Einbruch, no sentido de “assalto” de cada um,
individualmente, contra todos. O que mais me impressionou foi que vocês estão isolados
um do outro, e não obstante vivem, todos, o mesmo processo de desintegração da sociedade.
Esto se reflete, por certo, em todos os domínios, inclusive no da dita “arte”, Tua honestidade
artesanal, aliada ao teu intelecto crítico e tua imaginação disciplinada, destoa da cena
que acabo de desenhar em traços tão violentos. Como se você estivesse vivendo em tempo e
espaço “diferentes”, em, no sentido etimológico do termo, “utopia”. Mas não posso deixar
de diagnosticar sintomas do “Zusammenbruch” também nas coisas tuas que vi na Galeria
[Paulo] Figueiredo.
e
1 Vilém Flusser, carta a querida Mira, Robion, 16 dez. 1981.
(
291
Os novos trabalhos foram tomados por Flusser como sintoma de defasagem da cultura
brasileira. Com este termo, ele se referia às desigualdades provocadas pelo processo
de modernização do país, muitas vezes superficial, reconhecível tanto no âmbito da
economia como no da cultura. Vivendo no exterior, Flusser não mais acreditava na
possibilidade da emergência no Brasil de uma arte original e independente.
Em 1980, uma série de desenhos a carvão e colagens sobre papel Fabriano, em for-
mato vertical (46 x 23 cm), com triângulos, pequenas setas e quadrados, pode ser con-
siderada a preparação para as pinturas à têmpera em grande formato que Mira faria a
seguir. Agrupadas ou isoladas, essas figuras geométricas provocam um campo de rela-
ções, como se a artista ensaiasse a definição de um sistema por meio de deslocamento
de planos sobre a superfície branca do papel. Nas colagens, os pequenos triângulos
brancos sobre fundo igualmente branco têm presença discreta, quase imperceptível a
distância ou sob luz difusa. Desenhados a carvão, eles são bem mais nítidos. O con-
torno dos triângulos negros foi deliberadamente borrado, de modo a conseguir um
efeito aveludado e acentuar a sugestão de movimento. Os triângulos parecem dançar
se observarmos os desenhos numa sequência.
O critério fenomenológico, determinante do processo de criação de Mira, entra aqui
em concorrência com o fisiológico. Às Bewegungssuggestionen [sugestões de movimento]
ocupam, de acordo com Schmitz, uma “posição-chave na percepção, pois estabelecem
uma ponte entre o estado corpóreo [leibliches Befinden] e aquilo que percebemos [através
dos sentidos)”.
Um olhar mais atento a esses desenhos mostrará que Mira os emoldurou peri-
metralmente com um finíssimo traço dourado, quase imperceptível. Esse elemento
— o emprego do ouro se tornaria marcante em seus últimos trabalhos — provoca a
sobrelevação da superfície branca, continente imediata do triângulo, do amplo espaço
igualmente branco do fundo. As opiniões dos críticos dividiram-se a respeito desses
desenhos: enquanto alguns os consideraram meros exercícios formalistas,? outros o
viram como “metáforas existencialistas”: “Há, portanto, um empurrão metafísico em
direção aos extremos nesta tentativa de primitivismo intelectual, cuja simplicidade
decepcionante faz compreender a nossa própria vertigem no espaço”.
Em 1983, Mira variaria esse tema — colagens com pedacinhos de papel japonês tin-
gidos, dobrados e rasgados manualmente. À irregularidade das bordas e o ziguezague
das formas acentuam o branco imaculado do fundo.
O repetido emprego de formas retilíneas, triângulos ou construções angulosas
permitiria uma comparação com alguns artistas do período clássico do modernismo
europeu, principalmente Kandinsky e sua teoria sobre a forma enquanto expressão
de um som interno. Kandinsky analisa o triângulo com os três ângulos agudos como
um tipo básico de superfície angular. Este triângulo é para ele a mais ativa superfície
básica, pois o ângulo agudo é o mais quente e o mais ativo.
Hermann Schmitz, System der Philosophie, tomo Il: “Der Leib”, Bonn: Bouvier, 1965, p. 48.
[ot] Jacob Klintowitz, “A repetição de velhas propostas, numa mostra desalentadora”, Jornal da Tarde, São Paulo,
16 jun.1981.
Sheila Leirner, “Mira Schendel: metáforas”, O Estado de S. Paulo, 3 jun. 1981,
Be
o Wassily Kandinsky, Punkt und Linie zur Flâche. 7º ed. Berna: Benteli, 19783, p. 75.
Para Schmitz, ângulos agudos apresentam um percurso de formalização estreitante
[engenden Gestaltverlauf] que corresponde à tendência corpórea epicrítica. À preferên-
cia de um artista por determinadas formas de tendência epicrítica ou protopática, o
filósofo denomina /eibliche Disposition [disposição corpórea]. Esta disposição é trans-
formada em forma pelo ato criador do artista, por meio das sugestões de movimentos,
as de seu próprio corpo e as dos percursos de formalizações na obra [Gestaltverlânfe).
A partir dos artistas tomados individualmente, as disposições corpóreas podem carac-
terizar povos inteiros ou épocas históricas e produzir os estilos artísticos.
O estado corpóreo, que através das sugestões de movimento é a fonte de inspiração essencial
para a criação artística, não consiste no estímulo corpóreo do momento, passível de altera-
ções fugidias incessantes, mas sim nas disposições corpóreas, que com seu caráter mais ou
menos estável e duradouro acabam por controlar inteiramente o corpo [Leib]. [...] Uma
disposição corpórea no sentido apresentado não domina necessariamente a vida de um ser
humano do primeiro ao último suspiro, mas favorece uma tendência que a longo prazo
prevalece e ao mesmo tempo determina o clima do estado corpóreo.
293
Sem título, 1980
carvão e relevo seco sobre papel,
45,5 x 23 em
col. particular, São Paulo
Em 1983, Mira produziria uma série de naturezas-mortas. Nestes trabalhos, ela associa
esse gênero clássico da pintura a um jogo matemático, determinado pela contagem
dos elementos de um conjunto.
Para o historiador de arte americano Meyer Schapiro, o significado da natureza-
morta reside na ligação entre o íntimo e o cósmico, o próximo e o incomensuravel-
mente distante. Na história da arte moderna, a natureza-morta foi o tema preferido
de muitos pintores. Por meio dela, o artista tornou-se consciente da complexidade do
vínculo entre a percepção e a artificialidade da representação e pôde concentrar-se na
concretude da pintura.
Nas últimas naturezas-mortas de Mira, uma simples linha sobre a folha de papel
transforma-se num meio de comunicação entre o íntimo e o infinito: ela pode ser tan-
to a borda de uma mesa bem próxima dos nossos olhos como o horizonte longínquo.
Às frutas sobre a mesa teriam sido para a artista exemplo objetivo do formal, reorganiza-
do contínua e diversamente. O conceito numérico foi retirado de sua relação corriqueira
entre a lógica e a teoria dos conjuntos e introduzido no campo da arte. As frutas, que
passam a existir não mais como natureza, mas enquanto puros objetos de contemplação,
estão ali pintadas mas também contadas. Elas se transformaram numa fonte metafísica
para a contagem de multiplicidades idênticas. Tal procedimento, inédito na história da
arte, com os chamados números naturais, evidencia-se no título atribuído à série pelo
crítico Alberto Tassinari, Mais ou menos frutas.
São esquemas de frutas, ou, como diz o título, são mais ou menos frutas. [...) O esquemático
neles se refere à indefinição do que significam e não à visualidade inerente, própria e fisionô-
mica que mobilizam. [...] Colocando os desenhos numa ordem: os de uma fruta, os de duas
frutas etc. a série surge como uma verdadeira escrita [...), imagem esquemática e enumera-
ção das coisas. [...] A ideia de mimero aí ainda não encontrou seus sinais distintivos e tem-se
mesmo a impressão, olhando a série, que Mira pintou o 1, pintou o 2 etc. Isto é, que pintou
não apenas duas frutas, mas o próprio número 2...º
Meyer Schapiro, “The Apples of Cézanne — An Essay on the Meaning ol Still-life” in Modern Art 19th & 20th Centuries:
Selected Papers. Nova York: George Braziler, 1982, pp. 1-38
Alberto Tassinari, “Mais ou menos frutas”, Folha de S. Paulo, Folhetim, 23 set 1984
297
Sem título [Mais ou menos frutas], 1983
têmpera sobre papel, 54 x 75 em
col. Sandra e William Ling, Porto Alegre
Sem título [Mais ou menos frutas], 1983
têmpera sobre papel, 54 x 75 em
col. particular, São Paulo
Sem título [Mais ou menos frutas], 1983
têmpera sobre papel, 54 x 75 em
col. particular, São Paulo
Sem título, 1977
têmpera e acrílica sobre aglomerado,
DOS em
Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Doação: Theon Spanudis
Têmpera e ouro
Com uma arte sempre renovada, Mira deixou-se envolver por esse contexto. Os últi-
mos trabalhos marcam o vértice de uma nova curva progressiva, que a morte viria a
interromper abruptamente.
De 1979 a 1986 Mira pintou cerca de cem pinturas à têmpera, que ostentam peque-
nas áreas de ouro de 24 quilates. Quase todos esses quadros foram vendidos ao serem
expostos pela primeira vez, fato incomum na trajetória da artista.
O uso de materiais preciosos na pintura, sob a forma de finas lâminas de metais
nobres, aparece na história da arte em estreita vinculação com as artes aplicadas,
tanto nas representações icônicas religiosas como na arte da passagem do século
XIX para o xx — por exemplo, com Gustav Klimt e Carl Strathmann. O tratamento
da superfície pictórica de Mira também foi considerado decorativo por alguns, e
por isso ela deparou com reações críticas negativas. Ela negou, contudo, uma asso-
ciação entre o emprego do ouro em seus trabalhos e a pintura icônica religiosa:
O ouro neste caso está fora de certa tradição da pintura (ou seja, nada tem a ver com o sim-
bolismo hierarquizado da Idade Média, época em que os artistas utilizavam o nobre metal
para reforçar o estatuto da nobreza, divina ou não). Gostaria que se apresentasse como a
mais clara e aguda individuação do caótico — é claro que estou me referindo ao processo de
individuar-se —, que ele sirva a propósitos de não-transparência.º
Mira Schendel, apud Antonio Gonçalves Filho, “A intrigante pintura de Mira Schendel”, Folha de S. Paulo, 27 dez
1988.
303
Mesmo para as cores, para a descrição correta daquilo que se percebe, seria impróprio dizer,
como geralmente se faz, que uma cor clareou, escureceu, empalideceu etc. O melhor seria
falar que uma nova cor ocupa o lugar da antiga. No entanto, existem também cores que são
“meias coisas”, Elas passam a possuir algo com caráter de substrato em relação ao brilho.'º
304
Sem título, sem data
êmpera, acrílica, ge
de ouro sobre aglomerado, 99,
x 59 cm
col. Luiz Buarque de Hollanda
Rio de Janeiro
Sem título, 1985
têmpera, acrílica, gesso e folha de ouro
sobre tela, 140 x 90 cm
col. particular, São Paulo
Sem título, 1987
têmpera, acrílica, gesso e folha de ouro
sobre aglomerado de madeira, 120 x 90 em
col. particular, São Paulo
Sem título, 1981
têmpera, acrílica e ouro sobre tela,
91 x 47 em
col. Ada Schendel, São Paulo
Em sintonia com as teorias de Schmitz, Mira tentou criar, por meio de reentrâncias e
saliências em formas geométricas já diferenciadas pela textura e pela incisão de suaves
linhas curvas ou angulosas sobre a superfície pictórica, um jogo de oposições entre o
difuso, que corresponde à tendência corpórea protopática, e o retilíneo e direcionado,
correspondente à tendência epicrítica. Para concentrar-se nesta problemática, ela eli-
minou o uso da cor, trabalhando exclusivamente em preto-e-branco. Sobre uma super-
fície negra pintada à têmpera, por exemplo, ela traça uma linha branca em arco com
um bastão oleoso, que se mostra ao observador, em sua materialização ótica, como a
concavidade negativa de um objeto convexo. Schmitz atribui à orientação côncava das
formas artísticas uma estabilidade maior que a convexa, com respeito ao comporta-
mento corpóreo [leibliches Verháltnis] do observador, pois a primeira parece fechar-se
em torno deste, enquanto a última irradia uma energia dilatante e expansiva.
À partir desses experimentos com formas retas e curvas em relação à corporeidade,
Mira desenvolveu sua última série completa: sarrafos. Trata-se de chapas de compensado
de madeira de 90 x 180 cm revestidas com tinta acrílica branca e sarrafos de madeira de
espessura de $ x $ cm, pintados à têmpera de preto, fixos aos pares com parafusos, de
modo a formar diversas estruturas angulares que se projetam para fora do plano pictórico.
Com isso, a artista abandonava a bidimensionalidade para lançar-se ao espaço.
O artista plástico José Resende recorda-se de uma formulação frequente em suas con-
versas com Mira, à época: a tendência ao caos. Na opinião do escultor, Mira teria enten-
dido o caos como um movimento, uma aproximação a determinado limite. Como não
podemos vivenciar o caótico, os trabalhos de Mira seriam a expressão desse limite.”
Se relacionarmos, contudo, as teorias de Schmitz sobre a forma artística, os sarrafos
teriam surgido de preocupações diversas. Eles incorporam direções corpóreas [/cibliche
Richtungen] que partem de um estado de contenção e dirigem-se ao amplo [Weite),
funcionando ainda como indicadores vetoriais que, num percurso contrário, transmi-
tem a contrapressão do aperto [Enge], da periferia ao observador.
Uma linha reta sozinha não oferece nada para a mobilização do corpo [leibliches Mitschwin-
gen), nem “estreitamento” (Engung] nem “ampliação” (Weitung]. Nela não se podem reco-
nhecer nem sequer direção, tensão, expansão, intensidade, ritmo, tendência protopática ou
epicrítica. Quando muito, uma direção corpórea [leibliche Richrung] poderia talvez ser trans-
mitida à linha reta, mas o percurso do aperto ao amplo, que é característico da direção corpórea
— sua função mediadora essencial — (...), não encontra na reta isolada nada semelhante. Isto
também vale para uma superfície de ângulos retos, um plano.
I | ' X
00)
uma solução plástica que a conduziu uma vez mais às fronteiras entre os gêneros artísticos.
Com os sarrafos, a artista retomava pontos de sua própria trajetória, ao concentrar,
num mesmo objeto, desenho, pintura e escultura, estabelecendo, a partir deles, uma
nova orientação para a análise de sua obra. Com a pintura, enquanto meio e suporte,
Mira transforma a linha em escultura. O percurso de formalização [Gestaltverliuf]
anguloso dessas ripas negras que se libertam do plano pictórico transmite-nos uma
ação enérgica, porém cuidadosamente planejada. A comparação entre os sarrafos e
o relâmpago em ziguezague, com o qual a artista anteriormente representara O ges-
to divino, é elucidativa, no sentido de mostrar como um tema religioso recorrente
pode ser tratado de modo totalmente inusitado. Entretanto, ao expô-los em 1987 no
Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, Mira preferiu associá-los à situação
política do momento. Numa entrevista à imprensa, ela declarou:
Este tipo de trabalho começou e terminou nesta exposição. Nasceu do momento de falta de
decisão, de desordem que o Brasil viveu em março deste ano, quando parecia que estávamos
morando numa Weimar tropical. O trabalho surgiu deste contexto. Concordo com Gilberto
Freyre quando ele diz que o trabalho de cultura surge de um contexto da convivência com os
problemas da vida. Naquele momento, como todos, eu também sentia necessidade de ter uma
direção, um rumo. E estas obras são uma reação ao marasmo daquele momento. Não vejo
possibilidade de seguir por este caminho. É como um conto curto. Não tem continuação."
Lendo Freyre entendi toda a profunda ligação do Brasil com o barroco. E compreendi por
que meu trabalho é considerado cerebral pelos brasileiros. E que minha emoção não é dio-
nistaca. E mais contida.
Naquele momento, Mira mostrava-se muito interessada pelas chamadas raízes da cul-
tura brasileira, ainda que as considerasse com um certo distanciamento. Mas, em opo-
sição à exuberância do barroco, uma característica ainda atual da cultura do Brasil, a
sensibilidade de sua arte seria predominantemente apolínea.
Mira Schendel, apud Cesar Giobbi, “Mira Schendel, em dose dupla", Jornal da Tarde, São Paulo, 5 ago. 1987
14 Idem, ibidem.
324
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre madeira,
96 x 180 x 47,5 em
col. João Paulo Schendel, São Paulo
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre
madeira, 99 x 180 x 8 cm
col. particular, Nova York
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre
madeira, 90 x 180 x 20 em
col. Ricard Akagawa, São Paulo
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre
madeira, 90 x 180 x 50 em
col. Nina Schendel, São Paulo
Sarrafo, 1987
têmpera acrílica e gesso sobre
madeira, 90 x 246 x 11 em
Museu de Arte Brasileira da
Fundação Armando Alvares
Penteado, São Paulo
Sem título, 1964-65
óleo sob papel-arroz,
47 x23 cm
col. Antón Apostolatos, Caracas
Adiantaria se me declarasse profundamente cristã?
De acordo com o marchand Paulo Figueiredo, Mira teria iniciado naquele ano uma
série de trabalhos com pó de tijolo sobre placas de madeira.” O único objeto exis-
tente dessa série mostra a retomada de temas e materiais usados pela artista nos anos
1960 e a tentativa de reinterpretá-los. Após seu falecimento ocorrem duas exposições
pontuais. Em 1990, em sua primeira retrospectiva, o Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo expôs cerca de duzentas obras de diversas fases da artista,
e em 1995 o Drawing Center em Nova York expôs uma seleção abrangente de monoti-
pias, objetos gráficos e desenhos da década de 1980. O texto do crítico Paulo Herkenhoff
para a exposição salienta o interesse da artista por questões metafísicas, uma interpreta-
ção rara entre os novos críticos de arte do Brasil. Após comentar filósofos kantianos e as
relações de Mira com os frades dominicanos de São Paulo, ele acrescenta:
O inexprimível é uma questão de linguagem e paradoxo. [...] Para Schendel, este também
se situaria na raiz de sua conceituação de Deus. A transcendência atinge o ponto de uma
teologia dilemática: como se pode mencionar o indizível?'
Na opinião da New York Review ofArt, o trabalho de Mira teria sido o melhor entre as diver-
sas exposições do programa “Art from Brazil in New York”:
A melhor artista brasileira em Nova York era na realidade de origem suíça: Mira Schendel, fale-
cida em 1968, uma artista de sensibilidade e refinamento. Seus desenhos, aparentemente suspen-
sos no ar no espaço da exposição, são feitos alternadamente a carvão, nanquim e tinta dourada.
Criados a partir de uma miríade de números e letras, talvez no agrado do gosto estruturalista da
década de 1970, formam, entretanto, padrões interessantes de rara delicadeza."
Rodrigo Naves, “Uma antivirtuose por excelência”, Folha de S.Paulo, 25 jul. 1988.
M. Schendel, diário inédito.
Paulo Figueiredo, “Morre, aos 69 anos, a pintora Mira Schendel”, Folha de S.Paulo, 25 jul. 1988 e apud Antônio Gon-
calves Filho, “Mira Schendel tem primeira retrospectiva”, Folha de S.Paulo, 26 dez 1988.
Paulo Herkenhoff, “Mira Schendel and the Shaping of the Inexpressible”, texto para a exposição no Drawing Center,
Nova York, 1995.
9 J. G. “Mira Schendel: The Drawing Center”, The New York Review of Art, Nova York, v. Il, n. 2, mar./abr. 1995.
vI. Mira
A origem de Mira certamente foi decisiva para que ela unisse heranças culturais tão
distintas e aparentemente inconciliáveis — a do judaísmo alemáo-boêmio, vinculado à
iconoclastia e à mística linguística, e a do catolicismo italiano, com sua cultura visual
exuberante — na construção de uma obra pessoal e peculiar, pautada pela autodeter-
minação e pela constante busca da liberdade, tendo em vista uma atualização da ideia
de Deus — o divino, não como um tema limitado à sinagoga ou à missa dos domingos,
mas como possibilidade de compreender e interpretar todas as relações humanas.
É possível afirmar que para ela a arte somente teria significado em conexão com esse
projeto, e toda a sua obra foi o minucioso registro desse empreendimento. Inúmeras
anotações de Mira indicam que ela não se interessou pelo discurso artístico autônomo,
ou seja, por uma arte que citasse a si mesma. Por isso ela tentou situar suas realizações
artísticas em paralelo às pesquisas científicas de seu tempo, que relacionavam teologia,
psicologia e ciências exatas, apropriando-se de diversas visões de mundo como estru-
turas interdisciplinares que lhe pudessem inspirar formas artísticas balizadas por seus
próprios princípios estéticos e pensamentos.
A diafanidade entra em seus trabalhos para conceder ao vazio do mundo limitado o
significado da amplidão do mundo aberto, e para fletir relações rígidas. A consideração
do elemento tempo desfaz a compartimentalização do espaço, permitindo-lhe fluir.
O espaço abstrato torna-se um contínuo espaço-tempo concreto, em que ela tentaria
representar o não-representável. Com isso ela se vinculou à tradição clássica da moder-
nidade, cujo lado esotérico havia sido reprimido no período do pós-guerra, principal-
mente em seus desígnios de unir ciência e mística.
Seu relacionamento com a religião foi sempre polar e ambivalente, mas de modo
algum dogmático, admitindo, portanto, diversas interpretações. À religião comparece
na obra não como uma figuração idealista ou simbolista, mas por meio de formas ge-
ométricas, abstratas e autônomas, cores, palavras e signos.
A arte e as ideias de Mira não correspondem propriamente aos requisitos de uma
visão cultural nacionalista, por mais mista, cosmopolita ou antropofágica que esta pos-
sa ser, mas podem sim ser vistas como o prenúncio de uma arte internacional, que não
observa fronteiras nacionais para transmitir mensagens universais. Símbolos e sinais
dessa arte, em seus múltiplos desdobramentos, conduzem à ideia de um sujeito que, à
frente de um plano de fundo informal, a multiplicidade caótica, vai tornando percep-
tível sua presença por meio de discretas alusões.
Mira conseguiu, com o mínimo de material, evocar o máximo de emoções. Sua obra
nos toca justamente por causa dessa economia de elementos. A tônica de seus trabalhos
pode ser considerada como a experiência de um “eu” no mundo enquanto metáfora
da condição humana, que a artista assumiu existencialmente, é verdade, mas sempre
mediada por um princípio divino.
Sobre o autor
Geraldo Souza Dias, artista plástico, nascido em São Paulo em 1954, estudou arquitetura na
Universidade de São Paulo (1975-79) e artes plásticas no Pratt Institute, em Nova York — Mas-
ter ofFine Arts (1982-84), e doutorou-se na Universitat der Kiinste Berlin (1995-2000).
Exibiu seus trabalhos artísticos em mostras individuais e coletivas a partir de 1980 no
Brasil - São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, Belo Horizonte, Florianópolis, Curitiba,
Goiânia, São Carlos, Piracicaba, Ribeirão Preto — e no exterior - Nova York, Boston, Filadélfia,
Londres, Roma, Berlim, Rostock, Frankfurt e Lisboa.
Lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis (1981-85), no Mary-
mount College, em Tarrytown-on-the-Hudson, Nova York (1986-1988), e na Universidade de
São Paulo, campus de São Carlos (1990-93).
É professor associado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e
professor visitante do Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing, em Lisboa, e da Univer-
sity of the Arts, na Filadélfia.
Publicações
Participações em publicações
Livros
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“Premiada a pintora Mira Hargesheimer”. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 jul. 1951.
343
Depoimentos de Mira Schendel (gravados em fita cassete)
Arquivos consultados
Arquivo Dom Sylvester Houédard, John Rylands University Library, University of Manchester.
Arquivo Jean Gebser, Schweizerisches Literaturarchiv, Berna (Suíça).
Arquivo Mário Schenberg, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Arquivo Mira Schendel, São Paulo.
Arquivo Theon Spanudis, Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Arquivo Vilém Flusser, Hochschule der Medien, Stuttgart.
Centro de Documentazione Ebraica Contemporanea, Milão.
Istituto Paulo vr, Brescia.
Stadtarchiv Zurique (Suíça).
344
Indice onomástico
345
Hartung, Hans 178 Morandi, Giorgio 38, 67, 95, 124-25
Heidegger, Martin 124, 144 Morgan, Edwin 216
Herkenhoff, Paulo 185, 333 Morlotti, Ennio 30, 38, 47
Heyer, Gustav-Richard 141 Mota, Flávio 175
Hoeltje, Georg Duisburg so-s1 Mounier, Emmanuel 48, 121-24
Hofmannsthal, Hugo von 230 Muggia-Biittner, Amelia 27
Homero 183-84
Houédard, dom Sylvester 193, 216, 219, 249 Naves, Rodrigo 229, 333
Hudal, dom Luigi 30, 38 Nietzsche, Friedrich 124
Husserl, Edmund 48, 165, 173, 215
Ortega y Gasset, José 39
Jaspers, Karl 19, 121, 146 Ostrower, Fayga 47, so
Jawlensky, Alexej [Alexey] von 125 Otero, Alejandro 217
Jung, Carl Gustav 122, 124, ISI, 155-57, 167-68, Otten, Peter 230
283
Papa João Paulo vI 29-30
Kandinsky, Wassily 292 Parmênides 143
Keeler, Paul 191 Pascal, Blaise 38, 119-20
Kierkegaard, Soren 39, 120-21, 128, 145, 171 Pedrosa, Mário 63
Kiszely, Desiderius 38 Picasso, Pablo 48, so, 65, 143
Klee, Paul so, 63 Pierre, padre 119
Klimt, Gustav 303 Portinari, Cândido 40
Klinger, Max 124 Portmann, Alfred 146
Klintowitz, Jacob 287, 292
Kotte, Wouter 177 Quadros, Anna Letycia 230
Queiroga, João 64
Lenhard, Rudolf
47, so, 55
Le Parc, Julio 239 Ray, Man 217
René, Denise 239
Magnelli, Alberto 65 Resende, José 222, 323
Mahlow, Dietrich 191, 230, 245-47 Rilke, Rainer Maria 230
Matarazzo Sobrinho, Francisco 126 Rissone, Paolo 47, 119
Matsutami, Takeada 230 Roth, Dieter 245, 275
Mauer, monsenhor Otto 230
Maurício, Jayme 229-30 Santa Cruz, José Petronilho de 126
Medalla, David 191-93, 215, 217-18 Santo Agostinho 131
Merleau-Ponty, Maurice 165 Sartre, Jean-Paul 165
Milliet, Sérgio 47 Schapiro, Meyer 297
Minkowski, Eugéne 166 Schenberg, Mário 55, 64, 66-67, 122, 189-90,
Mon, Franz 275 192
Mondrian, Piet 55, 63, 66 Schendel, Ada 63
Montini, cardeal 126 Schendel, Knut 27-29, 32, 38, 40, 55, 63, I19,
Montini, família 30 218-19
Montini, Giovanni Battista 29 Schmitz, Hermann 19, 23, 25, 122, 165-69, 171-
Montini, monsenhor 29-30, 32 75» 249, 292-93, 303-04, 323
Morais, Frederico 132, 215 Schoenberg, Arnold 185
346
Schubert, Barbara [Spanudis] 36, 38 Torres-Garcia, Joaquín 40
Schultze, Jtirgen 125 Twombly, Cy 178, 184-85
Scliar, Carlos 37
Segall, Lasar 40 Unamuno, Miguel de 38
Silva, Paulo Celso de Moura 126-27
Soto, Jesús Rafael 239 Vasarely, Victor 239
Sotriffer, Kristian 230 Vauco 38, 40, 47-50, I21, 123
Spanudis, Theon 23, 55, 162, 165, I71-72 Vivaldi, Antonio 48
Stockhausen, Karlheinz 183, 185, 189-90
Strathmann, Carl 303 Walther, Elisabeth 23, 157, 193, 219-20, 245, 287
Williams, Emmett 275
Tartaglia, Ferdinando 33, 38, 125 Wittgenstein, Ludwig 333
Tarso, frei Paulo de 126-27
Tassinari, Alberto 297 Xavier, João Alves 175
Thorn, Erwin 230
Tobey, Mark 178 Yuan-chia, Li 193, 217-18
Toledo, Amélia 66, 190, 192
Agradecimentos do autor:
Este livro baseia-se em minha dissertação de doutoramento apresentada à Fakultãt Bildende Kunst da
Universitãt der Kiinste Berlin em 7 de fevereiro de 2000, com o título Zwischen Metaphysik und Leiblichkeit:
Leben und Werk der Kinstlerin Mira Schendel (Zurique 1919 — São Paulo 1988).
O levantamento da vida e da obra de Mira Schendel contou com o apoio de uma bolsa NaFóôG
(Nachwuchsfôrderungsgesetz) da cidade de Berlim, que patrocinou especialmente as viagens necessárias para
determinar as relações de Mira Schendel com seus interlocutores europeus.
A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do Ministério da Educação do
Brasil, patrocinou as etapas preparatórias do trabalho teórico, e a Pro Helvetia (Fundação Cultural Suíça)
financiou as investigações sobre a origem da artista e suas relações com Jean Gebser.
A Beralda Altenfelder, minha esposa, pelo apoio constante, a Andreas Haus, pelas riquíssimas discussões
metodológicas, a Hermann Schmitz, pelos aportes filosóficos que trouxeram novos impulsos à pesquisa, à
família de Mira Schendel — Knut, Ada e Erika — pela preciosa colaboração, a André Millan, no empenho pela
publicação do livro, e aos entrevistados, por seus depoimentos.
José Bueno de Aguiar (in memoriam); Ely Bueno de Aguiar, São Paulo; Ion Albu-Stanescu (in memoriam);
Aracy Amaral, São Paulo; Mônica Filgueiras de Almeida, São Paulo; Áureo Pereira de Araújo, Guarujá;
Raquel Arnaud, São Paulo; Marisa Barda, São Paulo; Cyril Barrett (in memoriam), Oxford; Ideo Bava, São
Paulo; Ana Maria Belluzzo, São Paulo; Guy Brett, Londres; Giuseppe Canadini, Istituto Paolo VI, Brescia;
Haroldo de Campos (in memoriam); Paulo Malta Campos, São Paulo; Valter Cardin, Lisboa; Maristella
Carpi, Emeroteca Comunale, Parma; Lourdes Cedran, São Paulo; Mauro Claro, São Paulo; Goffredo Dotti,
Biblioteca Nazionale Braidense, Milão; Barbara W. File, Metropolitan Museum, Nova York; Edith Flusser,
Munique; Victor Flusser, Bischoffsheim (Estrasburgo); Ester Galvão, São Paulo; Huldrych Gastpar, Arquivo
Literário Suíço, Berna; Profa. Lisbeth Rebollo Gonçalves, Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo; Konrad Gromholt (in memoriam); Elisabeth Grossmann, Fundação para a Arte Concreta,
Zurique; Stella Halkyard, John Rylands University Library, Manchester; Bettina Hoeltje, Hamburgo; Per
Hovdenakk, Oslo; Utz Keil, Berlim; Nicholas Logsdail, Londres; Dietrich Mahlow, Seeheim; Anna Pia
Maissen, Arquivo Histórico da Cidade de Zurique; Sheila Mazzolenis, São Paulo; David Medalla, Londres;
Ernesto Milano, Biblioteca Estense, Modena; Giuseppe Molinari, Universitá Cattolica del Sacro Cuore,
Milão; Rodrigo Naves, São Paulo; Ann Philbin, Drawing Center, Nova York; Mário Pinto, São Paulo; José
Resende, São Paulo; Mathias Ristau, Siiderligum (Lúbeck); Theo Rôtgers, Sociedade Internacional Jean
Gebser, Darmstadt; José da Santa Cruz (in memoriam); Michele Sarfatti, Centro di Documentazione Ebraica
Contemporanea, Milão; Otto Schárli, Adligenswill (Lausanne); Barbara Schubert-Spanudis, São Paulo;
Elmar Schúbl, Graz; Paulo Celso de Moura Filho, São Paulo; Ana Conceição de Souza Dias, Florianópolis;
Franz Stampfli, Paróquia de São Pedro e São Paulo, Zurique; Amélia Toledo, São Paulo; João Batista Alves
Xavier, São Paulo; Elisabeth Walther, Stuttgart; Alexander Wenzel, Pro Helvetia — Fundação Cultural Suíça,
Genebra; Ada Winter, Congregação Israelita de Zurique.
A editora agradece:
24, 40; 52-53; 54, 62, 70-71, 72-73, 74, 79-81, 84, 140, 176, 181, 194-195, 204-207, 224-25, 227, 235, 236, 253, 257, 259;
266, 269, 319, 326, 331
Max Schendel:
42, 60-61, 69, 97, I00-0I, IIÓ, 198-202, 210-12, 286, 288-89, 313
Kleber Sancho:
I30, 133-39, 261, 266, 268
Marcelo Rogozinski:
I48
Eduardo Eckenfels:
I7O
175» 334
Mario Giacomelli:
242
Vicente de Mello:
306, 311, 320-21
Mark Morosse:
227
O Cosac Naify, 2009
O Geraldo Souza Dias, 2009
Ss,
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (crr)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
ISBN 978-85-7503-602-0
07-10663 CDD-709.2
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Rua General Jardim, 770 — 2º andar
01223 oro São Paulo sp
Tel. [ss 11] 3218 1444
www.cosacnaify.com.br
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Em Mira Schendel — do espiritual à corporeidade, de Geraldo Souza Dias, a obra da artista
é apresentada com base nas teorias da arte abstrata que não tratam apenas das questões
formais, mas também daquelas relacionadas à significação. Nesse sentido, pesquisou-se
seu enraizamento na cultura europeia e suas relações com o ambiente cultural brasileiro.
Às transformações nas formas de representação foram vinculadas aos conceitos de transpa-
rência, adotado pela artista nos anos 1960, e de corporeidade, introduzido posteriormente
e que teria trazido a opacidade como antítese. Com o propósito de estabelecer-se uma
correlação entre as visões de Mira Schendel sobre arte, teologia, filosofia e cultura, são —
——
eventual transposição nos trabalhos da artista. Apresenta-se aqui uma análise pormenori-
==
E
—
==
zada do contexto em que sua obra foi produzida, com base em passagens das cartas e dos ese me
==
=—
————
diários da artista ainda inéditos. Isto permitiu uma gama de associações elucidativas, quer cce em
==
eme
LEI DE
TRA
CULTURA
MINISTÉRIO UM
COSACNAIFY DA CULTURA GOVERNO FEDERAL
E!