Você está na página 1de 742

Reich

Entre vampiros e deuses


Aretha V. Guedes
Copyright © 2017 Aretha Vieira Guedes

Todos os direitos reservados.

Título: Reich — Entre Vampiros e Deuses

Autora: Aretha V. Guedes


Sumário

Capítulo 1 — O clube Reich


Capítulo 2 — Cativa
Capítulo 3 — Respostas
Capítulo 4 — Ladra
Capítulo 5 - LockPicking
Capítulo 6 - Mulher maravilha
Capítulo 7 — Revelações
Capítulo 8 — Ladra
Capítulo 9 — Resistência
Capítulo 10 — Erros
Capítulo 11 — Diário de Luna (Parte I)
Capítulo 12 — Branco, Preto e Vermelho
Capítulo 13 — Sedenta
Capítulo 14 — Normal
Capítulo 15 — Sai
Capítulo 16 — Docas
Capítulo 17 — Diário de Luna (Parte II)
Capítulo 18 — Hacker
Capítulo 19 — Depoimento
Capítulo 20 — Dentista
Capítulo 21 — Lar, doce lar
Capítulo 22 — Ponto fraco
Capítulo 23 — Discurso
Capítulo 24 — Dama-da-noite
Capítulo 25 — Carcereira
Capítulo 26 — Heitor
Capítulo 27 — Lealdade
Capítulo 28 — Mulher da cela
Capítulo 29 — Dor e fúria
Capítulo 30 — Liebling
Capítulo 31 — Presas
Capítulo 32 — Deusa
Capítulo 33 — Sem controle?
Capítulo 34 — Cativa... De novo
Capítulo 35 — Diário de Luna (Parte III)
Capítulo 36 — La Muerte
Capítulo 37 — ich liebe dich
Capítulo 38 — Diário de Luna (Parte IV)
Capítulo 39 — Alice
Capítulo 40 — Interrogatório
Capítulo 41 — Orakel
Capítulo 42 — Túneis
Capítulo 43 — Bichinho de estimação
Capítulo 44 — Reunião?
Capítulo 45 — O exército do Reich
Capítulo 45 — Time
Capítulo 46 — Sangue nas docas
Capítulo 47 — Mapa
Capítulo 48 — Até a última gota
Capítulo 49 — Abençoada
Capítulo 50 — Arma Divina
Capítulo 51 — Hipótese
Capítulo 52 — A Esperança
Capítulo 53 — Reencontro
Capítulo 54 — Por toda eternidade
Epílogo
Outras obras da autora
Parte I – Relativo
Agradecimentos
Sobre a autora
Capítulo 1 — O clube Reich

— Você tem certeza? — Takao, meu colega de trabalho, me perguntou

pela milésima vez.

— Sim, e você também — Respondi, impaciente.

Seus olhos negros, que já eram pequenos devido a sua descendência

asiática, se estreitaram ainda mais.

— Eu já te disse que tem alguma coisa estranha acontecendo naquele

clube! Os boatos dizem...

— Fala baixo, caramba! — Dei um esporro nele. — Você deve ser o

homem mais medroso que existe nesta cidade.

Takao nunca foi medroso. Era até injusto dizer isso e eu não poderia
pedir por um parceiro melhor. O problema é que naquele momento alguém

poderia nos ouvir. Eu tinha uma audição apurada, fazia parte do meu charme

especial, mas não sabia se existiam outros como eu no entorno. Era isso que

pretendíamos descobrir naquela noite.

— Eu sempre te apoio, mas esta sua busca está se tornando uma

obsessão! — Ele segurou meu braço e sua boca formou uma linha fina. — A

mulher que você procura não existe mais, Izzy, ela morreu há quase trinta anos.

Desvencilhei-me de seu aperto.

— Então fique aqui. Eu irei sozinha!

Saí do carro e bati a porta com raiva. Eu sabia que Luna não havia

morrido. A última vez em que a vi, eu tinha seis anos. Nunca a esqueci de

verdade, apenas fiz o que ela me ensinou: menti. Eu não tinha mais seis anos e

fingir que aquela mulher nunca existiu não era uma possibilidade. Eu sabia que a

conhecia e que ela era importante... Mas talvez Takao tivesse razão e tudo isso
fosse apenas uma louca obsessão.

A cidade em que nasci e vivi toda a minha vida não era grande o

suficiente para ser considerada uma metrópole, mas possuía uma área “ruim”. E

ali, aquele lugar, era uma das mais pesadas ruas da cidade. Tudo por causa do

clube que se agigantava à minha frente, o Reich, com sua entrada chamativa em

vermelho e preto, um convite aos prazeres da carne e ao perigo.

Andei a passos firmes até a entrada com meus saltos clicando no chão. O

segurança, com expressão de poucos amigos e uma careca que brilhava em

bordô por causa do letreiro luminoso do clube, me perguntou a senha. A entrada

era exclusiva; apenas sócios e seletos convidados poderiam passar pela

montanha de músculos em forma de gente.

— Sangue do meu sangue. — A firmeza em minha voz não me traiu.

Eu era detetive particular há quase oito anos e descobrir segredos fazia

parte do meu trabalho. Já vira muita coisa estranha e, mesmo assim, este código
me dava arrepios, como uma memória latente de um passado perdido.

O homem me encarou dos pés à cabeça, meio em dúvida se permitiria ou

não a minha entrada. Ele nunca tinha me visto antes, mas eu sabia a senha

requerida. Por fim, com expressão de que me caçaria no inferno se eu fizesse

algo errado, ele abriu passagem. Agradeci com meu melhor sorriso inocente.

Afinal, eu era uma doce garota que jamais poderia causar algum problema, até

onde ele sabia.

Entrar no Reich foi diferente de tudo que esperava. Eu imaginava

mulheres penduradas em gaiolas, garçonetes seminuas, palcos para dançarinas

sensuais, homens de terno e seguranças mal-encarados com cicatrizes de lutas e

armas a mostra no coldre de couro velho. Talvez até um ringue de luta sem

regras ou código de honra. No entanto, o que encontrei foi uma boate normal,

escura e com paredes em vermelho rubi, um bar com garrafas multicoloridas e o

palco vazio.
As pessoas, entretanto, se destacavam: alguns se vestiam totalmente de

preto e outros, só de branco. O jogo de luz evidenciava esta diferença nas

roupas, já que apenas uma parte ficava fosforescente sob a luz negra. Ainda bem

que meu vestido curto era escuro, possibilitando que eu me misturasse melhor

sem parecer uma luminária ambulante.

A pista de dança estava lotada de corpos balançando, homens e mulheres,

todos jovens. O mais velho parecia ter no máximo trinta anos. Vi um cara todo

de branco jogar o pescoço para trás enquanto uma loira beijava seu pescoço. Ele

abriu a boca em êxtase e eu quase podia ouvir o suspiro que escapava de seus

lábios. O casal se balançava lentamente ao som da música como se estivessem

em transe. Os dedos da garota estavam cravados no cabelo dele enquanto era

envolvida pelos braços do rapaz. Como ele podia sentir tamanho prazer em um

simples beijo?

Conversas no andar superior chamaram minha atenção, e eu esqueci do


casal na pista de dança. Olhei ao redor, procurando o alvo que provavelmente

não se encontrava entre os jovens. O problema era que eu não sabia como era a

fisionomia dele, apenas tinha um nome: Heinz. Um imigrante alemão cuja

influência atingia vários ramos do comércio e até da política, porém não havia

um único registro de sua aparência ou localização. Algo inédito em um mundo

dominado por redes sociais.

Depois de três anos procurando, a única ligação que descobri foi este

clube: Reich. Em alemão, significava império ou imperador, isso mostrava que

ele deveria se sentir o rei do maldito lugar. Após anos fazendo meu trabalho,

descobri que em noventa por cento dos casos os estereótipos estavam corretos.

Então procurei por um homem velho de terno que estivesse cercado por

seguranças.

Peguei uma bebida e me encostei em um canto escuro do bar, longe do

balconista, que equilibrava com destreza diversas garrafas de vodca e, pela


aparência, licor de groselha. Acima da pista de dança havia uma área VIP. Eu

precisava entrar lá, porém não poderia tentar assim a minha sorte. Preferi

respirar fundo e deixar meus sentidos livres. Em poucos segundos, a batida da

música se tornou mais alta, e eu tentava abafar o som para me concentrar nas

vozes do andar superior.

Demorou um pouco para eu sintonizar no que queria ouvir. Aquela era

uma prática que Luna me ensinara quando eu tinha cinco anos de idade, ela sabia

que eu era especial. Foi uma pena ela desaparecer antes que me explicasse o que

“ser especial” significava. Droga, não conseguia compreender bem a conversa da

área VIP — falavam sobre docas e carregamento —, mas uma palavra me

chamou a atenção: Heinz. Ele estava aqui! Estiquei-me em meu salto alto,

procurando um contato visual, mas infelizmente só podia ver suas cabeças.

Todos jovens e bonitos, nenhum parecendo meu alvo, ou o que eu pensava que

ele fosse.
Enquanto escaneava as pessoas na área VIP, um par de olhos se

destacava entre os demais. O homem me observava com tamanha intensidade

que me concentrei apenas nele e minha audição voltou ao normal. Nunca o vira

antes, seu semblante era sério, impassível, e só desviou o olhar quando sinalizou

algo em minha direção para o segurança. Merda! Teriam descoberto que eu era

penetra aqui? Hora de bater em retirada.

Andei com o máximo de graça que a pressa e a quantidade de corpos

dançantes em meu caminho me permitiram e alcancei a porta de saída.

— Senhorita, você está sendo solicitada. — Um homem loiro e ainda

mais corpulento do que o segurança da portaria me barrou.

— Sério? Que legal, moço! O problema é que minha mãe já me ligou e

ela está me esperando, sabe como é, né? Mães são tão chatas! Ela vai mandar a

polícia atrás de mim se não voltar logo...

Minha atuação foi quase digna de um Oscar, pena o cara não ter
acreditado. Tentei passar, mas a parede de músculos me impediu. Atrás de mim

havia outro brutamontes.

— Por favor, me acompanhe.

Apesar de educado, seu tom de voz não deixou margem para dúvida: era

uma ordem. Segui o brutamontes até uma sala oculta atrás do bar, um tipo de

escritório hermeticamente fechado, com prateleiras de livros em uma parede, um

sofá marrom de couro e uma estante com diversas pastas. Nenhuma janela,

nenhuma rota de fuga além da porta que se fechou com um clique atrás de mim.

Pouco promissor. O homem parado com as mãos atrás das costas ao lado de uma

grande mesa retangular de mogno era alto, e sua presença preenchia o ambiente.

Era o mesmo cara que vi no bar e provavelmente o mesmo cara que mandou o

segurança me pegar! Por que não escutei o Takao? Decidi continuar a bancar a

idiota:

— Oi, gato, tem alguma coisa errada? Porque eu já estava indo para casa
quando me mandaram para cá...

Seu sorriso de deboche me disse que ele também não acreditou no meu

ato. Eu também não acreditaria.

— Como você chegou aqui?

Apontei para a porta.

— Eu acabei de falar, seus seguranças me trouxeram.

Ele se aproximou e perguntou com sua voz grave:

— Eu perguntei como você entrou no clube.

Como poderia saber que eu não pertencia ao lugar? Não era possível que

conhecesse todos os frequentadores pessoalmente. Dei de ombros e mantive uma

postura relaxada:

— Ah, você sabe, um amigo me convidou.

— E qual o nome desse amigo? — Ele permanecia descrente da minha


história.

— Heinz. — Em meio ao desespero, disse o nome que me atormentava

há anos.

Seus olhos se arregalaram com evidente surpresa, já que ele não esperava

que eu fosse amiga de seu chefe. Claro que nunca tive o desprazer de conhecer

Heinz, contudo minha esperança era desaparecer daqui antes que o alemão

chegasse.

— Você conhece o Heinz?

Levantei meu queixo e mudei para uma postura mais ereta, determinada.

Com o salto, eu era somente um pouco mais baixa que o homem. Logo, seus

olhos alcançavam a altura de sua boca bem desenhada que combinava muito

bem com o nariz reto, o queixo quadrado e os olhos amendoados. Foco, Izzy!

Nada de pensar em como o cara perigoso era gostoso e possuía as costas largas

embaixo do terno preto.


— Sim, ele me deu o código. Eu deveria vir amanhã, mas estava ansiosa.

Se você me deixar ir, posso vir depois como combinado.

Seus olhos se estreitaram para mim e todos os meus sinais de alerta

começaram a apitar. Cada vez mais, eu sentia que estava em uma armadilha.

— Não tão rápido, mocinha.

Mocinha? Por favor! Eu completei trinta anos mês passado!

— Você sabe que é melhor não contrariar o Heinz?

Respondi em tom desafiante, que foi logo contraposto por sua voz

ameaçadora se aproximando mais a cada palavra dita:

— Eu sei? Quer saber o que eu sei? Sei que você não conhece o Heinz,

que nunca esteve aqui antes e que não conhece as regras do clube. — Ele

analisou meu vestido curto. — Se conhecesse, não teria vindo de preto. E sabe o

que eu não sei?


— O quê? — Perguntei com ousadia.

— Quem é você, como conseguiu nosso código e... — Ele me encarou

por um segundo. — Eu pretendo descobrir.

O homem se inclinou em minha direção, seus lábios — que eu admirava

momentos atrás — estavam bem próximos dos meus. Eu deveria resistir, mas

não quis. Não era apenas por sua beleza ou o apreço pelo perigo. Algo nele me

atraía. Meu coração estava tão acelerado que eu não precisava me concentrar

para ouvir suas batidas. Senti meu fôlego ser roubado quando ele encostou sua

boca na minha com mais delicadeza do que pensei ser possível para um homem

como ele.

No início, seus lábios macios me beijavam como se estivessem me

venerando, mas isso não permaneceu por muito tempo. Ele colou seu corpo ao

meu, aprofundando o beijo, sua mão esquerda em meu pescoço, apoiando minha

cabeça inclinada. Senti que as minhas terminações nervosas tinham sido ligadas
ao entrar em contato com sua pele. Porém, inesperadamente ele interrompeu

nosso pequeno interlúdio, sua testa franzida e uma expressão culpada formava

uma ruga entre suas sobrancelhas negras.

— Me desculpe.

— Pelo quê? — Um beijo como aquele não precisava de um pedido de

desculpas.

A mão direita, aquela que estava atrás de suas costas, se levantou e, em

um movimento rápido, ele espetou uma seringa em meu pescoço. Como pude ser

tão estúpida? O canalha me beijou para me deixar vulnerável!

— Por quê? — Foi tudo que ainda pude articular. Ele segurou minha

cintura quando minhas pernas falharam, e o mundo escureceu ao meu redor.

— Porque tem outra coisa que eu não sei. — O homem aproximou seu

rosto da minha orelha e sussurrou. — Eu não sei o que você é.


Bem, naquilo estávamos quites: eu também não fazia ideia do que eu era.
Capítulo 2 — Cativa

O travesseiro embaixo da minha cabeça estava mais duro do que o

normal, e minhas mãos se encontravam em uma posição estranha. Tentei

esfregar os olhos para espantar o sono que deixava o meu corpo pesado e

dormente, quando percebi que não conseguia mover o pulso direito. Também

havia acordado desorientada. Meus olhos logo se arregalaram, tentando captar as

nuances do quarto no breu que me cercava. Onde estava? Minha memória

percorreu os últimos acontecimentos: o clube Reich, o belo homem de olhos

profundos, nosso encontro no escritório, os braços fortes, aquele beijo. Ah, sua

boca sensual na minha e o...

Filho da mãe! Odiava agulhas, principalmente quando eram espetadas em


meu pescoço. Será que eu ainda estava no Reich? Quanto tempo fiquei

desacordada? Teria Takao me procurado? Nunca fui capturada antes, por isso me

sentia frustrada e incompetente. Permiti sentir aquele momento de pânico por

acordar presa em um lugar escuro, antes de tentar me acalmar. Ok, eles me

pegaram de surpresa uma vez, mas não permitiria que o fizessem de novo.

Respirei fundo, para me acalmar, e tentei raciocinar. Será que aqui era algum

tipo de cela? Pelo menos não me deixaram em um chão frio, havia um colchão

macio embaixo de mim.

Estiquei meu braço livre, tentando alcançar qualquer coisa que pudesse

indicar onde eu estava, mas o colchão era grande, de casal. Meus dedos

deslizaram pelo lençol macio até tocar em algo frio. Um corpo? Mesmo sem

saber quem era, agarrei o braço e sacudi, tentando acordá-lo. Nada. Finquei as

unhas na pele, mas não adiantou. Onde eu me meti? Quem era essa gente que

dopava pessoas e as prendia em um quarto escuro?


Levei minha mão para o meu outro lado, me esticando ao máximo que

conseguia. Tateei o vazio e terminei esbarrando em uma mesa de cabeceira e em

um abajur. Isso! Encontrei um interruptor na base, e uma luz suave iluminou o

lugar. E que lugar! Não era uma cela, como eu imaginara, estava em um lindo

quarto moderno em tons terrosos com dourado, cortinas grossas e uma cama

gigantesca. Olhei com cautela para o corpo ao meu lado e quase gritei de susto.

A pessoa adormecida era o cara do clube! Por que ele estava deitado comigo, e

só de short? Eu queria tanto bater nele por ter me drogado, mas não podia

arriscar acordá-lo.

Calma, Isadora, continue raciocinando.

O único objeto perto de mim era o suntuoso abajur com base de

madrepérola. Observei seus delicados enfeites em arabesco de metal dourado.

Não serviria muito como arma, além de ser minha única fonte de iluminação. A

menos que... Arranquei com facilidade uma de suas pequenas hastes metálicas.
Às vezes ser bizarra tinha suas vantagens. Minha força acima do normal era uma

delas. Com a arma improvisada em mãos, deixei minha audição fluir livre. Nada

de passos, conversas ou qualquer outro ruído por perto, além dos batimentos do

meu coração.

Esperei um pouco. Eu escutava os batimentos apenas do meu coração,

mas não os dele. O desespero tomou conta de mim. Se o homem estava morto,

então quem me colocou aqui? Sem paciência para sutilezas, usei toda minha

força para arrancar a algema da cabeceira. Tive que me esforçar em dobro, já que

era madeira maciça, e o barulho foi imenso quando ela se rompeu. Corri para o

lado da porta, com a haste em mãos, e aguardei alguns segundos, sem ouvir

nenhum passo. Quem deixaria prisioneiros sem vigia? Talvez pensassem que a

algema e a porta trancada me impediriam de fugir.

Antes de escapar, entretanto, voltei minha atenção para a cama e seu

ocupante. Aproximei-me para observá-lo e sentei na beira da cama ao lado do


homem que pensei ser meu algoz. Ele parecia tão tranquilo em seu sono de

morte. Lembrei-me de seus olhos tristes quando me pediu desculpas antes de

utilizar a agulha. Por que ele fez aquilo? Por que estava morto agora? Será que

tentava me proteger? Senti uma dor desconhecida em meu próprio peito quando

encostei meu ouvido no coração dele e não escutei som algum. Não sabia seu

nome, mas prometi descobrir quem fizera aquilo com ele.

Na outra mesinha de cabeceira, um copo com água pela metade

balançava perigosamente na beirada. Parte de seu conteúdo formava uma

pequena poça na madeira. Desconfiada, peguei o copo e cheirei, mas não tinha

nenhum odor estranho. Aquelas pessoas não pareciam o tipo que usavam meios

escusos, como batizar a água, para drogar alguém. Esfreguei o local no meu

pescoço; agulhas eram bem mais eficientes. Mesmo assim, não arrisquei beber

um gole, por mais que desejasse aliviar o gosto ruim na boca. Existem venenos

inodoros e, se ele bebeu a água e morreu em seguida, o assassino deveria ter


acesso àquela casa, onde quer que a gente estivesse.

Para cumprir minha promessa de descobrir quem havia feito aquilo tudo,

entretanto, precisava sair dali. Vasculhei o quarto em busca de algo útil. Havia

apenas uma porta e estava bem trancada. Afastei a cortina e vi que o tecido

sofisticado na frente escondia uma outra cortina blackout por trás. Pelo janelão,

vi que estava aproximadamente três andares acima do solo. Podia ver um jardim

extenso e bem cultivado, terminando em portões de muro alto. Droga, aquilo

daria trabalho enorme para pular!

O sol se pôs enquanto eu observava o laranja dar lugar ao cinza. Eu

sempre era mais forte durante a noite e poderia usar a escuridão para me

esconder nas sombras e fugir. Comecei a arrombar a porta, com minha haste

improvisada, quando um leve ruído à esquerda chamou minha atenção. Virei-me

para olhar o que era e me deparei com a cama vazia.

— Mas o quê...?
Uma mão cobriu minha boca e um braço me puxou para trás,

pressionando minhas costas contra um peito firme e quente.

— Vejo que subestimei você, Isadora.

Aquela voz sensual sussurrou em meu ouvido. Como era possível? Foi a

vez do meu coração parar, mas de susto. A mão do homem desceu para o meu

pescoço, liberando minha boca.

— Você estava morto! Se não tinha batimentos, como pode estar falando

agora?

— A questão que eu quero saber é: você lamentou ou ficou feliz com

minha morte? — Ele disse com sarcasmo.

Tentei me liberar do seu aperto, porém ele era mais forte do que eu, algo

que nunca tinha enfrentado antes. Nenhuma pessoa fora capaz de me manter

prisioneira, eu sempre fui a mais forte!


— No momento, estou lamentando não ter arrancado sua cabeça para

garantir o serviço. — Falei com sinceridade.

Por que não fiz exatamente isso? Ah, sim! Porque eu jamais adivinharia

que ele decidiria brincar de Morto-Vivo.

Sua risada fez cócegas contra minha garganta exposta.

— Ah, Izzy, que risco eu corri com você acordada aqui. — Ele me virou

de frente e me pressionou contra a porta. — Mas você não deveria estar

acordada tão cedo, a dose que eu te dei era para durar por mais três horas.

Ele levantou uma sobrancelha questionadora. Eu não tinha o que

responder, só sabia que minha tolerância ao álcool era grande. Esse homem já

sabia que eu não era normal, mas como eu não queria que descobrisse todas as

minhas peculiaridades, desviei sua atenção:

— Como você sabe o meu nome?


Ele me colocou sobre o ombro e me jogou de volta na cama. Que idiota!

Esmurrei suas costas no processo, mas ele continuou rindo.

— Eu descobri algumas coisas sobre você ontem à noite. Sei que se

chama Isadora, tem trinta anos e seus pais são Alice e Fernando. É detetive

particular há oito anos e mestre em Sistemas da Informação e Biotecnologia.

Uma garota prodígio que terminou a universidade mais cedo.

Dei de ombros, uma pesquisa rápida na internet resultaria nestes dados.

Ele continuou a falar:

— Sei também que você é uma hacker chamada Izzy, treinou diversas

modalidades de lutas e outros esportes, incluindo tiro ao alvo, desde criança. O

que seus pais pretendiam com isto, hein? Criar uma guerrilheira?

— Não te interessa! — Disse em defesa deles. Meus pais sempre

procuraram fazer o melhor por mim, apesar de nada satisfazer minha

hiperatividade. Eu desejava sempre estar em movimento, e eles me davam tudo o


que eu queria. Bem, quase tudo, nunca me disseram quem era Luna e por que ela

tinha sumido.

— Ok. — Ele continuou. — Sei também que aos seis anos foi

matriculada pela primeira vez em uma escola particular para crianças especiais, e

que, quando se concentra, pode ouvir além da capacidade comum de um ser

humano.

— Você já prestou atenção no absurdo que acabou de falar? —

Desdenhei para esconder o pavor que tentava dominar todos os meus sentidos.

Ele descobriu algo que nem mesmo Takao, meu sócio na agência de detetives,

sabia.

O homem aproximou seu rosto de mim, me encarando com seus olhos

brilhantes.

— Não negue, Izzy. Eu vi você fazer isto no clube, e você percebeu

quando eu me levantei agora, uma pessoa normal não teria notado.


— Quer falar sobre normal? Que tal começar a me explicar como pode

estar respirando agora?! — Bati em seu peito, na tentativa de colocar algum

espaço entre nós.

Ele segurou meus pulsos acima da minha cabeça, e eu me senti

enjaulada, presa entre seus braços. Qualquer empatia que senti antes tinha

desvanecido com a certeza pungente de que esse homem sabia demais. Se

conhecia meus pontos fortes, também saberia minhas fraquezas. Não que eu

tivesse muitas...

— Não estamos falando de mim agora. Continuando, você destruiu meu

abajur de ferro, era uma relíquia, sabia? Quase tão velho quanto este país. E, pela

aparência da minha cama, arrancou a algema reforçada da cabeceira. Sua força

está acima do humano mais forte que existe no planeta, caso contrário, eu não

teria que fazer esforço algum para manter seus braços presos.

— E daí? Você por acaso é algum super-herói?


Ele sorriu com desdém.

— Só tem uma coisa que eu não descobri, Isadora.

— E o que seria? O meu tipo sanguíneo? — Perguntei com sarcasmo.

— E você sabe qual é o seu tipo? — Balancei minha cabeça negando,

nunca fiz exame de sangue. — O que eu não descobri é quem você é de verdade.

— Você é louco! Acabou de dizer toda a minha vida, e não sabe quem

sou?

— Não, porque a pequena Isadora parece existir apenas após os seis anos

de idade. Antes disso, há apenas um registro de nascimento muito vago. — Ele

soltou meus pulsos e começou a acariciar meus braços, passando para meus

ombros e subindo para meu rosto. — Diga, quem é a fascinante Izzy?

Eu também não sabia, e esse era o grande problema. Tinha apenas flashes

de memórias perdidas. Ainda tentava entender aquela noite surreal enquanto


fingia não perceber como suas mãos eram quentes contra os meus pulsos, ou

como eu poderia alcançar o peito musculoso se me inclinasse um pouco mais

para frente. Aquele homem que sabia tanto sobre mim também era capaz de

mexer com um lado primitivo meu. Como se uma parte de mim reconhecesse

algo nele. E eu ainda não sabia o seu nome! Contudo, seus olhos, que não

abandonavam o meu rosto, denunciavam que a linha de pensamentos dele não

era muito diferente da minha.

De repente, aquele estranho e fascinante homem abaixou a cabeça e me

beijou com paixão. Tentei resistir, mas era inútil. Meu corpo o queria desde que

o vi pela primeira vez na boate, mesmo que minha mente não concordasse.
Capítulo 3 — Respostas

Seu beijo era intoxicante, uma conexão inexplicável unia meu corpo ao

dele. Passei meus braços por seus ombros nus. Era tão inusitado, como se minha

alma tivesse achado o pedaço que faltava. Eu tentei não me afetar, mas tê-lo em

cima de mim, com seu corpo contra o meu, era algo impossível de ignorar. Suas

mãos foram na direção das alças do meu vestido, mas eu as segurei, e ele se

afastou o suficiente para que eu me sentasse.

— Não sei o seu nome.

E esse era o menor dos problemas em que eu estava metida.

— Me chame de Henrique. — Sussurrou em meu ouvido.

Henrique... Um nome forte para um homem de presença.

— Você sabe tanto sobre mim. — A noção de que aquilo era errado em
muitos níveis pesou em minha consciência. — E eu não sei nada sobre você.

— É melhor assim, Izzy. Você conhece meu rosto, isto já é saber demais,

eu não quero colocar sua segurança em risco. — Henrique falou com seriedade,

mantendo, em seguida, a boca em uma linha fina e a testa franzida em

preocupação.

Vários sinais de alerta voltaram a piscar em minha mente. Henrique

parecia ter as mesmas peculiaridades que eu, e seu nível de conhecimento era

muito maior que o meu. Precisava recordar que ele trabalhava no Reich e era

capanga do Heinz. Inimigo. Eles eram meus inimigos, e eu estava em

desvantagem, algo estranho para mim, que sempre fui mais forte do que uma

pessoa normal e nunca adoecia. Afastei meu corpo do seu, não estava com a

mínima vontade de testar quão indestrutível eu era.

— Por quê? — Ansiosa, o questionei.

— Eu não deveria me importar. — Henrique colocou uma mecha do meu


cabelo atrás da orelha e acariciou a minha bochecha. — Se eu tivesse seguido o

protocolo, você estaria acorrentada no calabouço, mas não pude. Precisava te

manter por perto.

Honestamente? Eu ainda estava processando a parte em que ele tinha um

calabouço. Tentei me afastar mais, desvencilhar de seu abraço. Não importava a

atração que existia entre nós, não quando ele afirmava que possuía um calabouço

e que eu deveria estar nele! O desespero real começou a me dominar.

— Um dia eu vou sair daqui?

Em vez de responder, ele levantou e apertou um ponto específico na

parede, fazendo com que um painel se abrisse. De lá, Henrique retirou água e

frutas. Era uma geladeira embutida na parede. Quando a porta deslizou de volta

para o lugar, não ficava perceptível sua localização.

— Você deve estar com sede e fome. — Ele falou como se uma conversa

sobre calabouços não tivesse acontecido um minuto atrás.


Levantei-me com raiva. Sede e fome? Eu estava, mas não eram minha

prioridade.

— Dane-se a água. — Bati na jarra que ele segurava, espatifando-a

contra o chão. — Quero segurança e exijo minha liberdade de volta!

Se eu estava com raiva, o que ele tinha em seu olhar era muito pior. Em

um segundo, fui prensada contra a parede, e Henrique me segurou pelo pescoço.

Seu corpo forte agora me prendia de uma forma diferente, sem um vestígio de

sensualidade. Meus pés não chegavam a tocar o chão. Seu rosto se transformou

em ira.

— Não me teste, Isadora. Por muito menos... — Ele respirou fundo e me

desceu, voltei a apoiar meu próprio peso. — Eu não quero te machucar, mas

você nunca estará totalmente segura comigo. Se é segurança que você procura,

jamais deveria ter entrado no clube Reich.

Coloquei minha mão em seu peito, para mantê-lo afastado, e as batidas


aceleradas de coração de Henrique chamaram minha atenção. Lembrei-me de

uma memória perdida da minha infância:

“Feche os olhos, Izzy, concentre-se! Está ouvindo?”

Uma mulher pressionou minha mão contra o seu peito, e eu sorri para

ela:

“Sim, seu coração está batendo, tia Luna”

“Isto, minha flor, batendo igual ao seu.” — Ela retribuiu meu sorriso, e

eu fiquei encantada com seus lábios de rubi.

“Mas não batia antes.”

Seu sorriso desapareceu.

“É, eu sei, a tia estava apenas cochilando.”


Tia... Luna era minha tia! E Henrique era igual a ela. Depois de tantos

anos, ele se tornou minha primeira pista concreta. Eu não era louca, Luna era

real. Oh, Deus, o que aconteceu comigo quando criança? O que meus pais

tentavam desesperadamente esconder? Respirei fundo e recobrei minha

coragem.

— Preciso de respostas, e você vai me dar.

— Você é a investigadora aqui, Isadora, não tem nenhuma teoria? —

Henrique falou com sarcasmo. — Eu acho que sei o que você é, mas faz muito

tempo que encontrei uma do seu tipo. Você não sabe o que eu sou? Realmente?

Reafirmei minha postura ereta, não seria intimidada por aquele rapaz. Ele

tentava me confundir com perguntas retóricas. Assim, descobriria quanto

exatamente eu sei.

— Eu sou uma mulher que acredita em fatos, não em lendas absurdas. E

eu, com certeza, não sou um “tipo exótico”.


Ele se aproximou, seu nariz encostou na pele sensível do meu pescoço,

logo por trás da orelha. O calor quente que escapava de sua boca me deixava

arrepiada. Sua voz saiu em um sussurro:

— Você apostaria sua vida nisso?

— Sim.

Eu precisava crer que sim, tinha certeza. De outro modo, a dúvida me

corroeria por dentro. Outra opção jamais poderia ser cientificamente possível.

Henrique deu de ombros.

— Ótimo!

Sua boca se abriu, e, paralisada de surpresa, encarei o brilho perolado

conhecido. Mal tive tempo de lembrar onde já tinha visto aquilo pessoalmente

antes que ele afundasse seus dentes em meu pescoço. A picada de dor foi

passageira, e um sentimento de letargia misturado com prazer me invadiu. Senti

que todo o meu sistema nervoso se conectara ao ponto específico da minha


garganta, o local onde sua boca estava, seus dentes sugando meu sangue, minha

essência vital. Droga! Eu o empurrei com força, e ele me soltou. O líquido

vermelho escapava de sua boca, os caninos estendidos tocavam o lábio inferior, e

os olhos profundos agora brilhavam em um âmbar semelhante aos de um gato.

Quando eu era criança e tinha terrores noturnos, os psicólogos

classificaram minha imaginação como “ativa demais”. Eu tive que ir para uma

escola de crianças especiais, pois era antissocial e tinha uma inteligência acima

da média, porém com dificuldades de concentração. Meus pais me incentivaram

a praticar esportes para ajudar a treinar minhas habilidades sociais. O problema

era que eu ficava rapidamente boa em tudo que praticasse, e, quando deixava de

ser novidade, perdia o interesse. Como não conseguiam definir o que eu era, os

psicólogos me classificaram como hiperativa e dentro do espectro autista.

Quando cresci, comecei a ter a malícia de esconder minhas habilidades.

Antes disso, eles conseguiram me convencer de uma coisa: vampiros não


existiam fora da televisão e dos livros. Talvez eu devesse pedir ao psicólogo o

meu dinheiro de volta.

Coloquei minha mão no pescoço, o sangue não estava mais escorrendo,

eu nunca sangrei por muito tempo. Exceto pelos terrores noturnos, minha saúde

sempre foi perfeita.

— Você me mordeu! — Acusei Henrique do óbvio. Não foi uma das

minhas melhores frases, porém foi tudo que consegui pensar.

— Me desculpe por isto, é rude se alimentar sem pedir licença. — Ele

respondeu sarcástico com o irritante mover de ombros. — Mas eu precisava ter

certeza.

Interrompi minha sequência de xingamento mental.

— Certeza de quê?

Ele ignorou minha pergunta e continuou a falar:


— O sangue humano é o nosso alimento, o de outro vampiro não. Os

vampiros só bebem um do outro quando estão fazendo sexo, para compartilhar a

força vital, ou durante uma briga, na intenção de drenar e enfraquecer o inimigo.

— E o que isto tem a ver comigo?

Tentei manter uma postura ereta, entretanto uma tontura se apoderou de

mim e nublou a minha mente. Henrique me apoiou pela cintura e sussurrou em

meu ouvido:

— O sangue de um vampiro tem uma assinatura de seu poder. — Ele

passou a mão em meus cabelos. — O seu, Izzy, é especial. Você é capaz de me

alimentar, porém também posso sentir a vibração do seu poder. É algo único.

Quem é o seu criador?

As palavras saíram atropeladas de minha boca por causa da vertigem:

— Sou humana, tenho pais, e não um criador.


Ele abriu a boca para me mostrar novamente os grossos e alongados

caninos. Meus olhos não conseguiam desgrudar daquela visão. Caninos de

verdade! Se eu tivesse força, ficaria assustada com o fato de que pretendia me

morder novamente. Entretanto, Henrique afundou as presas no próprio punho, e

o cheiro metálico invadiu minhas narinas.

— Você não é humana. — Ele pressionou seu punho contra minha boca,

obrigando-me a beber. — Você é mestiça.

Tentei empurrar seu braço e lutar contra o líquido que escorria pela

minha garganta sem a minha autorização. No entanto, quanto mais bebia, menos

lutava. O sangue era espesso e morno, como um vinho quente de sabor único.

Era delicioso. Segurei seu braço com força, não para afastá-lo, ao contrário, eu

tentava aproximar mais dos meus lábios.

De repente, não precisava mais me concentrar para ouvir passos se

movimentando abaixo de nós. O mundo parecia mais colorido, minhas pernas se


agitavam querendo correr, e a fragrância que emanava da pele de Henrique era

tentadora. Sentia como se tivesse vivido como cega por toda a minha vida e, pela

primeira vez, pudesse realmente enxergar. O mundo tinha cores, formas e

fragrâncias, pulsando em vida e sensações. Era tanta informação, que fiquei

desorientada, meu cérebro lutava para compreender tudo.

— Respira, Izzy! Se concentre em mim. Quando um mestiço bebe

sangue de vampiro, tem seus sentidos aguçados por um tempo.

Ele tirou o punho da minha boca e me beijou novamente, e eu pude sentir

o gosto do sangue, e o sabor dele se tornou ainda mais intoxicante. Cada poro da

minha pele estava sensível e consciente da presença de Henrique. O roçar de

seus dedos contra o tecido fino do vestido era como música em meus ouvidos. E

o...

Um estrondo abalou a estrutura do prédio e reverberou em meus ouvidos,

causando um zunido irritante que se juntou ao barulho de passos correram em


nossa direção. Henrique tapou minha boca com a mão quando uma voz grossa

masculina falou por trás da porta:

— Senhor, houve uma explosão na ala leste. Quais as ordens?

Explosão? Fazia sentido, o estrondo foi muito alto mesmo para ouvidos

não tão sensíveis.

— Mande uma equipe averiguar imediatamente, Petrus.

— Compreendido. Permissão para sair, Senhor Heinz.

Meus olhos se arregalaram de pavor. Heinz? A pressão que Henrique

fazia contra mim aumentou, mantendo-me imobilizada enquanto eu começava a

me debater para escapar de seu alcance. Puta merda, Heinz?

— Concedida.

Ele não tirou a mão da minha boca, seus olhos pareciam me fuzilar.

Quando falou, entretanto, sua voz mal passava de um sussurro audível contra
minha orelha.

— Fique quieta! Eu preciso resolver isto, não saia daqui, nenhum lugar é

seguro para mestiços. Há uma razão para sua espécie ser rara, vocês são

proibidos. Eu sou sua melhor chance de sobrevivência, entendeu?

Balancei a cabeça concordando. Aceitaria qualquer coisa para que ficasse

livre. O que ele, de fato, permitiu: liberou a mão da minha boca e abriu outra

porta oculta na parede, de onde tirou roupas e se vestiu.

— Você é um mentiroso!

Henrique — ou melhor, Heinz — segurou meus ombros e falou, olhando

em meus olhos com muita intensidade, seus profundos olhos castanhos

penetrando em minha alma. Respirei fundo e pensei em acreditar nele. Quase.

— Me desculpe, você precisa ficar aqui para o seu bem. Quando eu

voltar, vou explicar tudo.


Arregalei os olhos, na tentativa de parecer assustada. Os lábios trementes

e o coração acelerado ajudaram na atuação. Heinz não pensou duas vezes antes

de sair e trancar a porta. Fiquei quieta, sem me atrever a mover ou mesmo

respirar de modo diferente, apenas ouvia os passos apressados correndo para o

outro lado da mansão.

Não conseguia ouvir nenhum batimento cardíaco ou respiração próxima

a mim. Se havia alguém no meu andar, sua presença estava abafada pelo caos

que se instalara na parte inferior. Porém eu não ficaria aqui nem mais um

segundo. Recuperei a haste de ferro do chão e mais uma lasca grande da

cabeceira destruída da cama. Eram armas ridículas perto de uma casa repleta de

vampiros, mas se estacas de madeira eram eficientes nos filmes, talvez

funcionassem na vida real.

Afastei mais uma vez a cortina grossa, um brilho laranja emanava do

conto esquerdo da casa e uma fumaça escura começava a se espalhar pelo


jardim. Como esperado, não enxerguei ninguém no meu lado do jardim. Mais

tarde, eu agradeceria aos céus por aquela explosão, ela salvaria minha vida.

Forcei a janela, e ela deslizou para o lado. Ainda bem que Henrique me deixou

em seu quarto, e não no calabouço, eu duvidava que encontraria alguma coisa

aberta por lá.

Passei minhas pernas pela moldura e, praticamente pendurada no

parapeito, senti vertigem. O cheiro da fumaça era intenso e a grama embaixo

parecia bastante nítida com minha visão aprimorada. Se eu caísse, seria uma

queda de três andares que poderia ser mortal. Contudo, me sentia invencível com

meus novos sentidos.

Respirei fundo, criando coragem. Era melhor morrer tentando escapar do

que ser escrava de um vampiro. A cada respiração, eu me jogava de um

parapeito a outro da janela inferior, indo cada vez mais para baixo e segurando

com força o mármore escorregadio da janela. Droga, onde estavam os castelos


de pedra dos lordes vampiros? Seria mais fácil de descer escalando em um

desses.

Meus dedos estavam doloridos quando finalmente alcancei o chão. A

grama fresca abafava e escondia as minhas pegadas. Corri, meio agachada, meio

velocista, até o muro externo. Agora sim, um muro de pedra para escalar! Uma

segunda explosão, no que eu supunha ser a ala leste, lançou fumaça e fogo

contra o céu, ocultando mais a minha fuga. As sombras me protegeram, e eu

ganhei as ruas, correndo em velocidade sobre-humana.

Como pude ser tão idiota? O homem misterioso que chamou minha

atenção no clube Reich era o vampiro Heinz, o nome que me assombrava desde

a infância. Aquele que estava envolvido no desaparecimento da tia Luna. Olhei

para trás, a fumaça subia a partir do telhado de sua casa, formando uma nuvem

espessa no céu.

Em que porra eu havia me metido? Que diabo de mundo era esse onde as
pessoas achavam que era aceitável beijar alguém e depois sequestrar? Ou se

fingir de morto só para fazer um teatrinho de vampiros? Voltei a fugir, minhas

pernas me levaram para longe daquela casa maldita em uma velocidade maior do

que eu deveria ser capaz de correr. O horizonte se agigantava em frente a mim,

eu estava muito exposta. Saí da trilha principal, temendo que me encontrassem e

levassem de volta para o Heinz, e me escondi na mata.

Minha mente era um turbilhão de pensamentos incoerentes. No meio da

mata, meus sentidos foram assaltados por estímulos vindos de diversos lados: o

pio da coruja, o cantar dos grilos, o farfalhar das folhas e até mesmo as cobras

deslizando em busca de sua presa. Eu via e ouvia tudo. E o cheiro? Parecia que a

floresta estava se decompondo ao meu redor enquanto eu tentava me concentrar

no meu objetivo, nas luzes do centro da cidade que brilhavam longe. Eu

precisava chegar lá e procurar ajuda.

Ouvi passos rápidos ao meu lado e levei um susto tão grande, que
tropecei em um tronco de árvore, caindo de bunda no chão sujo de lama e folhas

mortas. Um pequeno roedor me encarou e balançou o nariz rosado como se

pedisse desculpas. Eu estava louca! Definitivamente pirada, se achava que

roedores pediam desculpas e pessoas poderiam ser sanguessugas. Levantei-me e

limpei as mãos sujas na roupa. Eu deveria procurar meu antigo psicólogo, havia

quantos anos que eu não o visitava? Mais de uma década! Talvez fosse melhor

um padre... Passei as mãos nos cabelos e me arrependi assim que senti os

resquícios de terra grudarem nos meus fios.

Eu precisava ir para casa e me acalmar, tinha que haver uma explicação

lógica para aquela noite. Uma que não precisasse envolver camisa-de-força. Saí

da mata, já distante da trilha que levava à mansão — ou ao menos era o que eu

esperava — e corri na lateral da rodovia perto da entrada de Monte Carlo. Um

vento carregando um odor que era uma mistura de diversos aromas da cidade

balançou os meus curtos cabelos e arrepiou meu pescoço, fazendo-me lembrar


do alemão ardiloso.

A injeção! Era tão óbvio, como não pensei nisso antes? Quando estava no

Reich, Heinz injetou alguma droga alucinógena em mim, o que me fez acreditar

em insanidades. Mas, e Luna? Teria ela me mantido drogada também? E a minha

infância? Tudo de diferente que sempre fui capaz de fazer? Não, não, não... Nada

do que aconteceu poderia ser real. Porque se vampiros existiam em Monte Carlo

e eu, de alguma forma, fazia parte disso, tudo que eu acreditava sobre mim e a

minha vida não passava de uma grande mentira.


Capítulo 4 — Ladra

Um fato sobre mim: eu odiava o verão. Sempre odiei e sempre odiaria.

Perdoem-me os adoradores do sol, mas eu preferia o frescor da noite. Este calor

escaldante só poderia ser algum castigo divino! Eu morava em um país tropical,

não no deserto do Saara, mas o suor escorria pelo meu pescoço, deixando-o tão

grudento, que sentia meus cabelos se aderiram à minha pele. Por que o meu

quarto parecia uma fornalha? Estava tão quente, que eu não tinha forças para

abrir os olhos. Afundei mais no travesseiro, algo me incomodava demais naquela

manhã, e eu não sabia o quê... Não até me lembrar da noite passada.

Abri os olhos e me sentei na cama de supetão, olhando para tudo ao meu

redor. A varanda estava aberta com as cortinas amarelas balançando com o vento

quente que vinha da rua, a mesa de cabeceira continuava com o abajur em forma

de ninja que ganhei da minha prima Cecília no natal passado. Uma garrafa
plástica de água vazia estava jogada no chão de porcelanato marfim, que estava

coberto de pegadas com terra seca. Meu Deus! Os meus lençóis estavam

cobertos de terra e fuligem. Os meus papéis e recortes de jornais que cobriam a

mesinha do notebook estavam todos revirados. O guarda-roupa e a porta do

banheiro estavam escancaradas, com roupas caídas no chão e penduradas na

minha cadeira de madeira. Eu fiz aquela bagunça, ou um furacão passou por

aqui?

Eu me joguei para trás, de volta para o travesseiro macio que, até ontem,

era branco. O que aconteceu na noite passada não poderia ser real, podia? Claro

que não, vampiros não existiam! Coloquei a mão em meu peito e senti a

pulsação firme. A luz do sol entrava pela varanda e tocava o início da minha

cama. Estiquei-me no colchão até que meus dedos sujos estivessem banhados

pela luz solar, não senti nada além do costumeiro calor. Tinha certeza que era

cem por cento Homo sapiens. Se eu fosse metade qualquer coisa, seria parte
humana e o resto de pura paranoia. Precisava analisar calmamente os fatos.

Andando de um lado para o outro do quarto, discuti comigo mesma.

Vampiros não existem.

Ótimo argumento, concordava plenamente.

O coração dele começou a bater depois que o sol se pôs.

Hum... devi haver alguma explicação científica para isto. Talvez a Cecília

me ajudasse, ela era a cientista da família. Já sei! Ele poderia ter aquela doença

que a pessoa parece morta, como uma paralisia. Qual era o nome mesmo?

Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro, tentando me lembrar.

Ah, catalepsia! Isso, ele tinha catalepsia.

E o fato de nós dois sermos mais fortes e mais rápidos do que as outras

pessoas?

Droga, será que a desculpa do espinafre só funcionaria para marinheiros?


Olhei para a minha cortina blackout, aquela coisa horrorosa com frente branca e

verso cinza, que deveria impedir toda a entrada do sol, mas estava aberta,

escondida pela cortina de voil amarelo com arabescos. A verdade era que o sol

sobre minha pele estava começando a arder e eu queria correr até ela e fechá-la,

mas era teimosa demais para admitir que o sol naquela manhã incomodava mais

do que nos outros dias...

Vampiros não existem!

Relembrei meu único argumento consistente, aquele que me mantinha

presa à sanidade. Suspirei pesadamente e fui arrastando os pés até o banheiro,

mas parei para recolher as blusas e calças do chão. Lembrava vagamente de

procurar uma camisola e, ao não encontrar, terminei adormecendo com o vestido

que usei no Reich. Vestido este que ainda tinha o perfume de Heinz impregnado

nele. Era uma fragrância sutil, uma mistura de um perfume caro que eu não

conhecia e o aroma da pele dele. Seria imperceptível para um olfato comum,


principalmente embaixo de todo aquele odor de fumaça, mas não para o meu.

Joguei a porcaria no lixo e entrei na água fria, sem nem me olhar no espelho,

tinha medo do que meu reflexo revelaria.

Um banho gelado era tudo que eu precisava para colocar meus

pensamentos nos eixos. Eu me sentia imunda e confusa, a visita ao Reich não foi

como planejei. Era loucura pensar em vampiros, contudo, por mais que meu lado

racional quisesse, as memórias de ontem eram vívidas demais para negar. A água

lavava o meu corpo, banhando cada parte que fora tocada por Henrique. Seu

toque, seu beijo, sua voz sedutora, seu sangue aquecendo minhas veias e

energizando meu corpo, tudo isso era uma experiência única.

Minha boca salivava ao lembrar o gosto metálico. A sensação que tive ao

beber aquele líquido carmim, espesso e morno foi a de saciedade depois de uma

vida inteira de sede. Eu gostaria de dizer que não desejava mais, porém seria

uma mentira. Saí do chuveiro antes que eu imaginasse outras mãos me limpando
em vez das minhas.

Eu queria me distrair, resolver o caso pendente e esquecer qualquer coisa

que envolvesse sangue, mas precisava também ligar para Takao, ele devia estar

preocupado com meu sumiço. Só esperava que não tivesse contado nada para a

minha prima, já que são namorados. Eles começaram a namorar na faculdade e

não se separaram desde então.

Enrolada na toalha e com os cabelos pingando pelo piso todo,

transformando pontos de terra em lama, procurei meu celular. Esperava que ele

estivesse onde o escondi, dentro do bolso secreto da minha bota. Não sabia se

ficava irritada ou feliz por Henrique não ter se dado ao trabalho de me revistar.

Eu não deveria passar de um inseto para ele. Mas que droga! O solado estava

quase todo desgastado. A bota não serviria mais, ainda bem que eu tinha outro

par.

Coloquei o aparelho para carregar e só então vi as inúmeras mensagens


de Takao: “Como estão as coisas aí dentro?”, “Porra, Izzy! Atende essa droga de

celular”, “Isadora, isso não se faz! Não pode ficar sem dar notícias, eu vou entrar

no Reich se você não der sinal de vida em cinco minutos”. E a última: “Estou

entrando.”

Merda! Merda! Merda! Vesti às pressas uma das roupas que tinha

recolhido do chão e socado no guarda-roupa, um conjunto qualquer de blusa e

calça jeans. Escondi uma Glock G25, calibre trezentos e oitenta na bota, e uma

faca retrátil em outra. Não me importei que ainda tivesse lama endurecida na

sola, desci as escadas do meu prédio correndo, era mais rápido do que esperar

pelo elevador. No subsolo, deparei-me com mais uma surpresa: meu carro não

estava lá. Ué, como cheguei aqui ontem? Aliás, por que tinha tanta terra e sujeira

em mim?

Tentando entender, lembrei-me que Takao ficou no meu carro em frente

ao Reich. Então... fechei os olhos, sentindo por um segundo a memória do vento


batendo no meu rosto, dos meus pés tão rápidos, que mal tocavam no chão, das

ruas passando em velocidade por mim. Achei que estivesse em um veículo,

porém me enganara. Eu era o veículo, eu corria na velocidade do vento. Vim a

pé da casa de Henrique até aqui. Henrique não... Heinz. Precisava lembrar que

ele era o inimigo, não um cara legal. Mais tarde eu iria em busca do meu carro e

tentaria refazer o caminho até a mansão. Naquela hora, Takao era minha

prioridade.

Não sabia quanto tempo aquele poder extra ficaria em meu sistema e com

certeza não poderia correr como louca pela cidade em plena luz do dia. Ainda

bem que eu tinha outro veículo, a minha Kawasaki. Peguei a chave, escondida

em um compartimento secreto dela, e soltei o gancho que prendia o capacete

preto. Subi na moto e dei a partida, sentindo o ronco do motor embaixo de mim.

A sensação de liberdade me preenchia ao pilotar em alta velocidade pelas

ruas de Monte Carlo, como se eu fosse impulsionada pelo vento. Foi o mesmo
que senti ontem à noite, mas estava alterada a ponto de não notar que o que me

levava eram pés, e não pneus. Ziguezagueava entre os carros, desafiando a sorte.

Passava tão rápido por eles, que em minha mente um lampejo de uma memória

antiga se formou:

“— Isadora, corra! Venha para o meu colo, segure firme, tá? — Tia

Luna me pediu, e eu envolvi seu pescoço com meus braços, apertando-a o mais

forte que meus bracinhos conseguiam. Luna escondeu meu rosto em seu ombro e

começou a correr. Ela era rápida, eu sentia o vento contra a minha fantasia da

Minnie. Eu não deveria espiar, sempre ficava tonta quando olhava a gente

passar pelas pessoas como um borrão, porém um barulho me fez levantar o

rosto. Por cima do ombro dela, olhei. Havia pessoas com olhos que brilhavam

como gato na escuridão da noite! Tão rápidas quanto nós e chegando cada vez

mais perto..."
— Olha por onde anda, maluca! — O grito e uma buzina me puxaram de

volta para a realidade, e eu parei a moto minutos antes de avançar o sinal

vermelho em um cruzamento perigoso. A luz do sol ainda brilhava, as pessoas

andavam pela rua, e eu não usava uma fantasia de criança. Não muito tempo

atrás, eu ligaria para o terapeuta e informaria a ocorrência de mais um surto.

Agora tinha certeza que era uma memória. A menos, é claro, que tudo fosse um

surto e eu tivesse enlouquecido de vez. Não podia ser! Uma lágrima escorreu

pelo meu rosto, embaçando um pouco o visor do capacete. Meu coração se

apertou com a lembrança do medo que senti naquela noite. Olhos brilhantes que

queriam me ferir, e eu tinha apenas a tia Luna para me defender.

“Recomponha-se, Izzy! Não é hora para surtar”, pensei. O celular

vibrando no meu bolso chamou minha atenção, e eu parei a moto no

acostamento. O alívio me inundou quando vi nome de Takao brilhar na tela.


— Onde você está? — Perguntei, ansiosa.

— E aí, Isinha? — Ele me respondeu com voz grogue, muito atípico

dele. — Estou em casa e você?

— Indo para aí!

Desliguei o telefone, era uma pessoa mais de ação do que de conversa.

Dei a partida de novo e fui até o apartamento que Takao dividia com Cecília.

Subi as escadas correndo, com as chaves deles na mão. Eu tinha a chave da casa

deles, e eles tinham a da minha, tudo por precaução e também porque éramos um

triângulo não-amoroso, como Ceci gostava de chamar. Abri a porta com cautela,

o apartamento parecia estranhamente escuro. Cortinas fechadas e um silêncio

sepulcral dominava o ambiente.

— Takao? — Entrei na sala, observando que, apesar da escuridão, o

ambiente estava do jeito de sempre: o quadro magnético de fotos, o Xbox One

na mesa, a televisão de tela plana, os DVDs com os filmes favoritos e o sofá


branco com uma manta colorida por cima, escondendo a mancha de vinho tinto

que nunca saiu. — Cecília? — Chamei.

— Isinha! — Um pálido Takao envolto em um enorme cobertor florido

se jogou em mim. Segurei seu rosto e analisei a tez branca evidenciada pelas

olheiras arroxeadas embaixo dos olhos puxados e os restos de fuligem perto da

orelha. A pupila estava levemente dilatada e o seu cabelo preto e liso estava

coberto de suor. Não só parecia estar drogado, como também eu reconhecia o

cheiro que emanava da sua pele. Era o mesmo do meu vestido.

— O que aconteceu com você? Qual a última coisa que lembra? — Mil

possibilidades passavam por minha cabeça. Arrastei Takao até perto da janela e

abri a cortina, permitindo que a luz iluminasse seu rosto. Nenhuma reclamação

além de um franzir de testa e resmungos sem sentido. Sem combustão

espontânea também. Fechei a cortina com pressa. Se ele tivesse virado cinzas,

Cecília me mataria! Eu o levei até a pia do banheiro para lavar o seu rosto com
um pano úmido.

— Você entrou no Reich sozinho?

Ele respondeu minha pergunta com um balançar afirmativo da cabeça.

— Uma mulher me beijou! Shiu! Não conta pra Ceci, senão ela acaba

tudo comigo! — Takao colocou o indicador contra os lábios, fazendo sinal de

silêncio. — E eu amo... Amo ela... Parece moela, né? — Ele riu da própria piada

e depois ficou sério. — Eu não queria beijar outra mulher, mas ela veio, me

abraçou, beijou meu pescoço... e eu não sei o que aconteceu direito.

Alguém beijou o pescoço dele dentro do Reich? Lembrei-me do casal na

pista de dança e como agora ficava óbvio que não era beijo algum que rolava

entre eles. Nada bom.

— Como não sabe?

— Só lembro de um sonho louco que tive. Imaginei que estava em uma


masmorra, preso à parede por grossas algemas de ferro. Tentei me soltar e não

consegui. Até que a parede explodiu, e eu acordei aqui...

Masmorra e explosão? Droga! Somado ao odor, duvidava que tivesse

sido um sonho. Quando Heinz disse que decidiu não me colocar na masmorra,

esqueceu de mencionar que o motivo era provavelmente porque ela já estava

ocupada com o meu melhor amigo. Esmurrei a parede, ouvindo um pequeno crec

no azulejo. Joguei o pano na pia e fechei a torneira antes que destruísse o

banheiro dos dois com raiva.

— Você viu o que ou quem causou a explosão? — Será que foi a tia

Luna? Estaria ela viva? Prendi-me a este fio de esperança, talvez ela tivesse ido

lá me ajudar e esbarrou no Takao ao invés de mim.

— Era um sonho, Izzy... não era? — Takao parecia preocupado. — Eu

não vi nada, juro.

— Quem te trouxe até aqui? O que a Cecília achou disso tudo? — Sacudi
meu parceiro pelos ombros.

— Não sei! Eu não a vi ainda, ela tinha saído para o trabalho! Qual o seu

problema, Izzy?

Empurrei meu amigo até o chuveiro e ordenei que tomasse um banho

decente enquanto ligava para Ceci. O telefone tocou apenas uma vez antes que

ela atendesse com uma voz desesperada e chorosa:

— Isadora, é você? Onde você está? Me diga que o Takao está com você,

por favor!

— Calma, Ceci! Sou eu, sim. Estou na sua casa com ele, estamos bem.

Qual o motivo de tanto alvoroço?

Quase fiquei surda quando Cecília gritou perto do telefone:

— Tia, é a Izzy no telefone! Eles tão bem!

Pude ouvir através da linha o “Graças a Deus!” de minha mãe.


— Ceci, você tá na casa da minha mãe? Por quê?

— Vocês tão desaparecidos há mais de vinte e quatro horas! Quase

ficamos loucos sem notícia alguma.

Como assim? Eu... Deus! Cheguei ao Reich durante a madrugada e

acordei na mansão com o pôr do sol, depois estava na minha cama na manhã

seguinte. Não tinha parado para somar as horas passadas. Mais do que nunca, eu

precisava de respostas que apenas o Heinz poderia fornecer.

— Estamos indo para aí. — Disse para minha prima e desliguei o

telefone.

Takao apareceu com os cabelos úmidos e vestindo apenas com uma calça

preta. Seus olhos pareciam menos nublados depois do banho, mas ainda percebia

uma certa letargia nos movimentos para vestir a camisa polo azul. Sempre me

senti mal por esconder da pessoa que trabalhava comigo diariamente meu lado

estranho, meu segredo colocou a sua vida em perigo. Não mais! Ele merecia
saber a verdade. Encarei meu sócio e proferi as palavras que poderiam acabar

uma amizade de anos. — E se eu te disser que aquilo não foi um beijo, nada

disso foi um sonho e que preciso voltar ao clube Reich?

Ele respondeu, incrédulo:

— Eu diria que você é louca.

— E se eu te disser que louca é a parte menos bizarra sobre mim?

Não sabia qual seria o mais difícil, mostrar o meu verdadeiro eu ou

assumir que havia um outro eu a ser mostrado.


Capítulo 5 - LockPicking

— Você vai me explicar o que aconteceu ou não? — Takao tomava o

segundo copo de café expresso, que comprei para ele na cafeteria da esquina.

Um pouco de comida e cafeína melhoraram positivamente a aparência dele.

Ainda não tinha contado tudo, apenas resumira o que havia acontecido no dia

anterior, enquanto íamos em seu carro até a casa dos meus pais. Explicar sobre

vampiros exigiria calma e parcimônia da minha parte, não queria assustá-lo com

exibições de força e velocidade.

Dobrei a esquina, avistando a casa dos meus pais ao longe. Éramos ricos

o suficiente para eu ou minha mãe nunca precisarmos trabalhar, desde que eu

aprendesse a investir em ações, como meu pai sempre fazia. Eu aprendi, e minha

condição financeira me permitia viver bem com o lucro. Contudo, gostava de

trabalhar como detetive e me sentia bem ao ajudar as pessoas, não queria ficar
parada e apreciar as rosas. Dinheiro eu já tinha, o que procurava era a ação.

O portão de ferro com o emblema da família Martins abriu assim que o

carro de Takao se aproximou. O porteiro nos cumprimentou de longe com um

sorriso estampado no rosto. Seria felicidade por nos ver vivos e inteiros?

A casa grande de pilares brancos surgiu à nossa frente. Takao parou o

carro ao lado da imensa estátua de bronze, um anjo de quase três metros de

altura, cujos olhos pareciam me encarar. Ele segurava um vaso em seu ombro, do

qual saía água e caía aos seus pés, agitando o pequeno lago com peixes

decorativos. Detestava aquela coisa, mas minha mãe amava, ela achava que nos

deixava com aparência de nobreza hollywoodiana. O jardim florido que

adornava o lago e enfeitava a entrada estava belo e com cores vivas como

sempre, desafiando o calor escaldante.

Olhei para o céu, o sol me incomodava um pouco menos, talvez meu

corpo estivesse metabolizando o sangue que bebi do vampiro. Estaria eu


eliminando-o pelo suor? Não duvidaria de mais nada. Mal descemos do carro,

ouvimos o grito de Cecília, que correu e pulou nos braços do seu amor. Encheu

Takao de beijos por todo o rosto durante uns dez segundos, até lembrar que ele

estava desaparecido e sem dar notícias por mais de vinte e quatro horas. Soltou o

namorado e começou a esmurrar o peito dele como se fosse um pequeno

demônio de olhos azuis.

— Como você faz isso comigo? Some desse jeito? Quer me

enlouquecer? — Ela se virou para mim. — E você, Isadora? Sua mãe desmaiou

quando soube que estava bem!

O quê? Não era à toa que ela não tinha vindo me receber. Minha mãe

sempre foi preocupada e atenciosa comigo, mas nunca de desmaiar por qualquer

bobagem. Passei pelos meus amigos e entrei correndo em casa. Subi as escadas

como um torpedo e usei o resto da minha velocidade sobre-humana para chegar

ao seu quarto, no fim do longo corredor. Já ia abrir a porta, quando ouvi


sussurros lá dentro.

— E se eles a encontraram? Ela não pode saber! — Minha mãe falou

em voz chorosa. — Não importa o que digam, Fernando, é nossa filha.

Papai respondeu em tom decisivo:

— Eu sei, meu amor. Estou com tanto receio quanto você. Reze bastante

para que ela nunca descubra, porque se Isadora souber, nunca descansará até

saber toda a verdade.

O coração que batia acelerado não tinha nada a ver com o sangue extra

ingerido, era raiva, frustração e receio. Tinha medo de descobrir que a minha

vida inteira não passava de uma mentira. Mesmo assim, abri a porta para encarar

os dois. Eles poderiam pensar que me protegiam ao ocultar informação, mas

estavam enganados, enfrentar o desconhecido era muito mais perigoso.

— Que verdade eu não posso saber? — Exigi saber.


Os dois me encararam com espanto. Minha mãe estava deitada no meio

da cama de dossel, apoiada em vários travesseiros felpudos. Seus cabelos loiros

brilhantes como sempre estavam contra o cetim branco. Papai, em sua

costumeira roupa, permanecia sentado ao lado dela. Desviei o foco para as

paredes brancas e a decoração antiquada, com móveis que faziam com que eu

me sentisse em quarto de uma princesa quando criança. Meus pais estavam perto

dos sessenta, e a cada ano que passava, eles adquiriam uma aparência mais

aristocrática. Nunca soube a quem queriam impressionar ou mostrar a aparência

de poderosos e intocáveis em uma cidade que não era tão grande. Meu pai se

levantou.

— Filha, você não entende, mas há certas coisas que devem permanecer

quietas.

— Eu não entendo porque ninguém me explica, pai! — Berrei a plenos

pulmões. — Onde está tia Luna?


Meu pai sempre foi um típico empresário pacato, daqueles de camisa de

botão com mangas compridas, óculos de grau e barba acinzentada. Sempre me

diziam que ele era uma fera nos negócios, comandava sua empresa com pulso

firme, mas nunca presenciara este lado dele até aquele momento. De pai gentil

para o homem autoritário.

— Isadora Martins, eu já disse que essa tia Luna é invenção de sua

cabeça. Ela nunca existiu!

Passei a mão em meus cabelos curtos, frustrada ao ouvir a mesma frase

de novo e de novo. A diferença era que daquela vez eu tinha certeza que não

passava de uma mentira.

— Vampiros também são coisas da minha cabeça, pai?

Eu podia ouvir o coração da minha mãe acelerar no segundo que a

palavra “vampiro” saiu da minha boca. Por fora, no entanto, os dois

permaneceram impassíveis. Encarei minha mãe, porém ela abaixou o rosto,


alisando o lençol da cama ao invés de olhar para mim.

— Você me decepciona, filha. Achei que os anos de terapia já tinham

curado essa sua alucinação infantil.

Escutar o meu pai falar aquilo foi como uma facada em meu peito. Sofri

por tanto tempo achando que era louca, por eles dizerem que meus sonhos eram

todos alucinação de uma mente fértil. Tomei psicotrópicos potentes que nunca

resolviam o problema por muito tempo, pois meu corpo parecia metabolizá-los

rapidamente, e todos os pesadelos com presas e olhos brilhantes voltavam. Eu

fingi por tantos anos que as terapias e os comprimidos resolveram o problema,

que eu mesma passei a acreditar na minha mentira. Até a noite passada.

— Então é assim? Ótimo, eu descubro sozinha.

Não dei atenção ao grito de minha mãe, pedindo para eu esperar. Não

ouviria mais as mentiras dos dois, eles esconderam coisas de mim durante toda

minha vida e pretendiam continuar a fazê-lo. Danem-se! Desci as escadas


novamente, pulando os degraus de mármore, e encontrei Ceci abraçada a Takao

no sofá. Irritada e decidida a tomar uma atitude, falei para meu parceiro:

— Preciso de uma carona, estou voltando ao Reich para pegar o meu

carro.

— Que bicho te mordeu, Izzy? — Cecília perguntou.

— Você não faz ideia do bicho que me mordeu, prima. Vamos ou não?

Os dois se entreolharam e deram de ombros antes de se levantarem para

me seguirem. Entramos no carro, pedi para que Takao dirigisse rápido e ele

acelerou na curva, saindo em alta velocidade da casa dos meus pais. O Reich

ficava do outro lado da cidade, em uma área sem movimento, praticamente

morta, o que era bem apropriada para um clube de vampiros. Como era

esperado, não havia ninguém na rua durante o dia, apenas bares fechados e casas

antigas. Meu carro estava parado uma esquina antes do clube, intacto.

Droga! Quase intacto, tinha um grande arranhão na pintura com a frase:


fuja enquanto pode. Teria uma antiga vítima escrito aquilo, ou seria um vampiro

samaritano? Não importava, a pintura do carro era a menor das minhas

preocupações. Um Ford Fusion preto não era exatamente discreto para uma

detetive, porém era meu veículo de escolha. Quando precisava me infiltrar

durante os casos, não queria me preocupar com as chaves do carro, e ele

destravava a porta com a senha na maçaneta. Digitei meu código, e a porta se

abriu, a chave estava no lugar de sempre, em um compartimento secreto abaixo

do banco passageiro, ao lado da arma reserva. Saí do carro e falei para os meus

amigos:

— Podem ir, eu encontro vocês no escritório depois do almoço.

Precisamos conversar.

Takao estreitou os olhos para mim, porém nada disse, apenas deu a

partida e saiu sob os protestos de Cecília. Conseguir me livrar deles foi mais

fácil do que pensara. Peguei minha bolsa com kit emergencial do carro, passando
por cima do ombro, enquanto esperava o carro deles dobrar a esquina. Olhei para

todos os lados, ninguém na rua, hora de colocar meu plano em prática. Andei

disfarçadamente e me escondi em um beco na lateral do Reich. Nenhum som era

ouvido, e o clube parecia tão morto quanto seu dono. Eu precisava ser rápida,

pois, assim como Heinz, o Reich estaria cheio de vida quando anoitecesse.

A porta dos fundos era prateada e estava bem lacrada com três cadeados

pesados, o que não era empecilho para mim. Eu tinha ferramentas especiais para

arrombar todos os tipos de cadeados, pequenos ferros e ganchos que não

deixariam vestígios da minha passagem. Encaixei o gancho na fechadura e fiz

pressão com a haste de ferro, girei até que os pinos alinhassem a ponto de eu

ouvir o clique de abertura. Repeti o processo com os outros cadeados e abri a

porta.

A porta era o primeiro empecilho, porém tinha certeza que não seria o

único. Um clube daquele provavelmente tinha algum alarme silencioso. Como


esperado, um aparelho branco com vários números piscava uma luz vermelha na

parede oposta. Ainda bem que era um modelo que eu conhecia, assim apenas

retirei uma pequena chave de fenda do meu kit, abri o painel repleto de fios com

o canivete e cortei o famoso fio azul. A luz vermelha apagou, e eu respirei,

aliviada. O Reich era meu.


Capítulo 6 - Mulher maravilha

Pisquei meus olhos algumas vezes até que eles se acostumassem com a

penumbra do clube. Uma pequena fonte de luminosidade era tudo que eu

precisava para enxergar no escuro. No meu caso atual, era a fresta de luz que

passava por baixo da porta. Relaxei os meus sentidos e apurei minha audição.

Ouvia alguns pássaros cantando em uma árvore próxima, um carro passando na

rua e, dentro do Reich, tinha apenas a minha respiração e o barulho do freezer na

cozinha.

Saquei minha Glock escondida na bota e caminhei pelo lugar. Era tão

estranho a quietude, parecia que um vampiro pularia de um canto escuro e me

levaria para o breu infinito. Subi até a área VIP e vi sofás de veludo vermelho e

mesas de mogno. Antiquado, se comparado com a decoração mais moderna no

resto do Clube. Ali havia também uma versão menor do bar principal, todo de
vidro e garrafas multicoloridas. Na parede de fundo, se destacava o que parecia

ser uma adega climatizada. Uma vibração baixa emanava da adega. Curiosa,

resolvi descobrir quais tipos de vinho os vampiros bebiam, assim fui até ela e

peguei uma garrafa. Era verde, sem rótulo ou lacre. Apesar de cheia, estava

óbvio que a rolha fora removida pelo menos uma vez e apenas encaixada

posteriormente no lugar. As outras garrafas eram exatamente iguais. Agitei a

bebida devagar de um lado para o outro, podia ver pelo vidro que o líquido era

muito mais espesso que um vinho comum. Se é que aquilo tinha qualquer gota

de vinho.

Retirei a rolha e inalei o doce aroma que invadiu a sala. Sangue. Minha

garganta ficou seca, clamando por um gole daquilo que ela mais desejava. Será

que frio e engarrafado teria o mesmo apelo do morno que tomei diretamente da

veia de Heinz? Se eu sucumbisse e bebesse, me tornaria menos humana? Eu

queria levar o gargalo à boca e virar todo o líquido, senti-lo escorrer por minha
garganta e me encher de energia, me sentir viva novamente, como nunca estive

antes. Um gole, apenas um... ninguém sentiria falta dele.

— Você invadiu o bar para beber? — A voz incrédula de Takao me tirou

do transe. Porra! Quase derrubei a garrafa com o susto que levei. Estava tão

distraída, que não ouvi sua aproximação, algo raro de acontecer. Raro e muito

perigoso, ainda bem que era apenas Takao.

— O que você está fazendo aqui? — Recoloquei a rolha na garrafa e a

escondi na bolsa. Ignorei o olhar torto dele para o meu pequeno roubo. — Não

me diga que deixou Cecília sozinha nessa rua esquisita.

— Claro que não, demos a volta no quarteirão e, quando vimos o que

estava aprontando, ela me deixou aqui e foi para casa no carro. Izzy, quer me

explicar o que diabos está acontecendo?

Eu não queria colocar meu amigo em risco, se alguém aparecesse aqui,

ele seria o alvo mais fácil. Mas também não poderia perder a oportunidade de ter
livre acesso ao Reich.

— Quero, mas não aqui. Vamos até o escritório procurar qualquer coisa

que possa ser relevante sobre o Heinz e dar o fora o mais rápido possível.

Ele me encarou por alguns segundos antes de aceitar, eu sabia que não

importava o quanto a situação parecesse comprometedora, Takao sempre me

apoiaria. Tentei a porta do escritório onde tive o primeiro encontro com Heinz,

mas também estava fechada. O que, mais uma vez, não foi empecilho.

Arrombamos a porta com meu kit de ferramentas e vasculhamos o lugar. Pastas e

mais pastas de documentos. Não podíamos analisar um por um naquele

momento, então eu e Takao tiramos foto das páginas com nossos celulares.

Uma pasta chamou minha atenção: ex-parceiros. Seria tia Luna uma ex-

parceira também? Antes que eu pudesse abrir a pasta, um barulho baixo chamou

minha atenção: “central, confirmado arrombamento, entrando no recinto.”

Puta merda, como eles descobriram? Eu desliguei o alar... Oh, droga! Por
trás da porta do escritório havia um segundo alarme que eu não vi, e a luz

vermelha piscava intermitente. Sussurrei para Takao, que não ouvira a equipe de

segurança entrar no Reich:

— Temos companhia, me siga.

Hesitei por um segundo, pensando se deixaria ou não a pasta de ex-

parceiros. Ah, foda-se. Heinz saberia que houve uma invasão, outro pequeno

furto não faria muita diferença. Escondi a pasta em minha bolsa, e saímos do

escritório agachados, indo por trás do bar até a cozinha. Eu precisava de um

plano, só podíamos sair por onde entramos. Não daria tempo para eu arrombar a

porta da frente e fugir por ela com Takao. Impossível!

Passos rápidos vinham em direção ao escritório. Tinha certeza que eram

humanos, de outro modo, teriam vindo diretamente para nós, independentemente

de onde estivéssemos. Afinal, o coração de Takao batia acelerado, parecia um

tambor em meus ouvidos. Se eu estivesse sozinha, conseguiria ser silenciosa o


suficiente para fugir sem ser notada, mas eu jamais deixaria Takao para trás. Se

eu ainda tivesse o poder da noite passada, conseguiria correr e carregar Takao

como a tia Luna fez comigo quando era criança...

Coloquei a mão na garrafa dentro da minha bolsa, era a única chance que

nós tínhamos. Estava na hora de descobrir se aquilo foi uma lembrança de

infância com Luna ou apenas mais um dos meus “delírios”, como o terapeuta

costumava chamar.

— Takao, preste atenção e faça exatamente o que eu disser. Eu vou tirar a

gente dessa, mas você precisa confiar em mim e tentar não gritar ou fazer

barulho, entendeu?

Ele parecia chocado demais para responder, então aceitei o seu silêncio

como um sim. Tirei a rolha da garrafa e bebi um terço do seu conteúdo em um

único gole. O gosto parecia velho, vencido, porém o poder... ah, esse eu sentia

em cada célula do meu corpo. Os sons dos homens vasculhando os documentos


que deixamos espalhados tornou-se mais nítido. Eram três, podia ouvir

claramente seus batimentos. Peguei Takao no colo, como se ele fosse uma

criança pequena e não um adulto mais pesado do que eu. Ele não teve nem

tempo de reclamar ou perguntar se eu tinha perdido meu juízo, apenas respirei

fundo e corri na velocidade vampírica. Em dois segundos, estávamos dentro do

meu carro. Takao me olhava abismado, como se eu fosse algum tipo de monstro,

o que não estava muito longe da verdade.

— Você é a Mulher Maravilha? — Ele tentou esconder o nervosismo

com uma piada.

— Acalme-se. — Dei partida no carro e fui em direção à casa dele. —

Ou terá um infarto.

— Por quê? Além de se teletransportar, você consegue ouvir meu

coração também? Vai me dizer que controla o tempo e lê mentes?

Revirei os olhos e dobrei a esquina. O sol me incomodava ainda mais,


por isso coloquei os óculos escuros que estava no suporte e acelerei. Preferia

estar correndo a pé do que dirigindo, seria mais rápido não ter que parar nos

semáforos ou respeitar leis de trânsito. Pena que assustaria os pacatos moradores

de Monte Carlo.

— Eu não sou a Mulher Maravilha e nem qualquer tipo de heroína que

você possa pensar. Ainda sou eu, Izzy, sua melhor amiga. Era isso que eu queria

te contar pela manhã, só preciso que se acalme e não surte, ok?

— Ceci sabe disso? — Ele perguntou, ainda nervoso, se afastando o

máximo de mim que conseguia dentro do espaço limitado do carro. — Desse seu

outro lado?

— Não, mas vai saber hoje, junto com você.

Passamos o resto do caminho calados, perdidos em pensamentos. Apesar

do medo e nervosismo que emanavam de sua pele, Takao não fugiu. Talvez ele

me aceitasse, ou talvez achasse que eu era uma aberração e tivesse medo de


mim. Naquele dia, eu poderia ter perdido duas pessoas muito importantes em

minha vida.

Quando chegamos ao prédio de Takao, deixei o carro no acostamento e

subimos no elevador ainda em silêncio. Cecília estava lá dentro, nervosa,

andando de um lado para o outro. Seus longos cabelos estavam uma bagunça,

com todos os cachos desfeitos. Ela nunca abandonara a mania de puxar os fios

como se fossem molas quando estava agitada.

— Finalmente! — Ela se surpreendeu com nossas expressões taciturnas.

— O que aconteceu?

— Você também é uma mutante? — Takao questionou a namorada.

— Eu sou o quê? — Ela perguntou sem entender nada.

— Sentem-se, preciso conversar com vocês. — Os dois se acomodaram

no sofá e me olharam com expectativa. — Ceci, lembra quando eu era pequena e

tinha pesadelos com vampiros?


Os olhos de Takao se arregalaram, eu podia ouvir o momento que sua

respiração ficou presa no peito. Cecília não percebeu nada, apenas respondeu:

— Claro, você sempre gritava chamando por uma tia Luna que nunca

existiu.

— Eu acho que não eram pesadelos, eram memórias, e tenho certeza que

a tia Luna é tão real quanto nós... — Utilizei a velocidade extra para ir até a

cozinha pegar um copo de água para amenizar o calor e voltar. — E eu posso

provar que não é um delírio meu.

Pela expressão dos dois ao me observarem beber de um copo que não

estava em minhas mãos um segundo antes, Cecília e Takao pensavam que quem

estava alucinando eram eles.


Capítulo 7 — Revelações

Eu não sabia que reação esperar dos meus melhores amigos em relação à

verdade sobre mim. Afinal, quantas pessoas podem dizer: “ei, sou parte

vampira, mas não precisa ter medo, não mordo”? Não imaginei que eles fossem

correr para longe, mas com certeza não esperava a animação.

— Era por isso que eu perdia todas as vezes que a gente brincava de

esconde-esconde? — Ri da cara emburrada de Cecília. De todas as questões

cruciais que envolviam meu lado meio vampírico, foi na nossa brincadeira de

criança que ela se apegou.

Tinha mais de meia hora que estávamos nesse momento de perguntas e

respostas sobre o que eu podia ou não fazer. Takao me questionou até o motivo

de usarmos escutas eletrônicas, se eu podia ouvir tudo com meu ouvido


“biônico”. Tive que explicar umas três vezes que não era uma máquina e,

tampouco, tinha a capacidade de gravar áudio das coisas que ouvia com minha

audição acima da média.

— Sim. — Respondi minha prima sobre pique-esconde. — Eu ganhava

sempre porque seguia seus batimentos cardíacos.

— Filha da mãe!

— Você pode voar? Se teletransportar? Controlar mentes? — Takao

perguntou.

— Claro que não, já disse que não sou mutante.

— Tecnicamente, você é, a origem do vampirismo só pode ser de alguma

mutação genética! — Ceci exclamou, empolgada. Eu praticamente podia ver as

engrenagens rodando em sua cabeça. Formada em biomedicina, ela trabalhava

em um laboratório de análise clínica da cidade. — Você me dá uma amostra de

seu sangue? — Cecília implorou.


— Você não vai mostrar meu sangue para os seus colegas de trabalho!

— Não vou, prometo. Poxa, colocar as mãos em um sangue de vampiro é

mais legal do que achar um verme raro com um metro de comprimento.

Eca!

— Obrigada, eu acho. — Sentei na mesinha em frente aos dois. — Vocês

precisam me prometer que não vão contar para ninguém, eu não sei direito quem

eu sou e nem com quem estou lidando.

— Então vamos descobrir. — Takao se levantou e pegou a bolsa que eu

jogara em cima da mesa. — Temos as fotos dos documentos e a pasta que você

pegou. Agora que sabemos da verdade sobre os vampiros, podemos descobrir na

internet o que faz parte do mito e o que é real. — Ele retirou a garrafa da bolsa.

— Você ficou mais forte quando bebeu isso, qualquer sangue te deixa assim?

Dei de ombros, não fazia ideia se o sangue engarrafado era humano ou

vampírico. Takao entregou a garrafa verde para Ceci, que a recebeu como se
estivesse segurando um pote de ouro líquido, e estendeu o outro braço para mim.

— Descubra.

— Eu não vou beber de você! Além disso, não tenho presas! — Estiquei

os lábios, mostrando os dentes alinhados.

Ele pegou meu canivete da sorte de dentro da bolsa e cortou a palma da

própria mão. Mal percebi sua careta de dor, minha concentração estava no

líquido vermelho que brotava de sua pele. Uma gota pingou no chão.

Desperdício.

Passei o meu dedo em sua mão e o levei à boca. O líquido adocicado,

com um leve sabor metálico, era gostoso, mas nem tanto. Puxei sua mão até

minha boca e bebi o remanescente de sangue. Não tinha o mesmo apelo do de

Heinz, porém ainda era exótico. Por fora, Takao permanecia calmo, com sua

pose serena, porém ele não me enganava, seu coração acelerado fugiria do peito

em breve. Se a situação fosse inversa, eu também sentiria um pouco de medo. E,


assim como Takao, tentaria controlá-lo em benefício do meu amigo. No fundo,

ele sabia que eu jamais o machucaria. Separei meus lábios de sua pele. Logo

Takao já não sangrava tanto, sua coagulação natural começava a entrar em ação.

Corri até o banheiro e voltei com o kit de primeiros socorros para fazer um

curativo. O processo inteiro não durou mais de dois minutos.

— E aí? — Ceci e Takao perguntaram em uníssono.

— Para mim, beber sangue humano é como tomar cerveja sem álcool. O

gosto é bem parecido, ainda é bom, mas não tem a mesma graça.

Ou seja, eu não tinha força própria de vampira, não era qualquer sangue

que me dava poder. Para me fortalecer, precisaria ingerir o sangue de outro

vampiro. Os pensamentos sobre Heinz vieram à minha mente... Ele teria

sobrevivido ao ataque em sua mansão? Seria dele este sangue engarrafado?

— Você quer dizer que tenho sangue de vampiro em minhas mãos? —

Cecília deduziu certo, já que consegui o poder ao tomar aquele líquido. Se fosse
possível, ela seguraria a garrafa com ainda mais reverência. — Perfeito, posso

comparar o de vocês dois, isso é tão legal!

O lado cientista dela, adormecido desde que saiu da universidade,

aflorara novamente. Ela estava tão animada com aquela meia garrafa de sangue,

que parecia ter a cura para o câncer em suas mãos. Aliás, seria o sangue de

vampiro capaz de curar o câncer? A cada segundo que passava, eu tinha mais

perguntas do que respostas.

— Eu sou mais forte que os humanos, porém preciso de sangue de

vampiro para ficar... — Pensei em uma palavra que se adequasse, e apenas uma

me parecia certa. — Turbinada.

Eu me sentia turbinada e inquieta, com uma energia acumulada que

precisava ser gasta. Meus músculos pediam para eu me movimentar, mas fiquei

parada, apenas observando minha prima colocar um pouco do líquido em um

pequeno depósito e me devolver o resto.


— E seus pais? Você não vai mesmo perguntar nada a eles? — Takao

chamou minha atenção. Eu já tinha contado sobre a conversa que ouvi entre os

dois mais cedo.

— Sei que perguntar minha origem a eles seria o caminho mais fácil,

porém eu não acreditaria em nada do que dissessem. Eles sabiam o que eu era e

mesmo assim me obrigaram a passar por terapias, tomar remédios e... Porra, a

minha vida inteira, pensei que era louca!

— Desculpa por nunca ter acreditado em você antes. — Ceci sentou-se

ao meu lado e me abraçou.

Takao fez o mesmo, envolvendo nós duas com os braços

— E me desculpe por nunca ter levado a sério o lance da tal tia Luna,

mas agora levarei. Vou baixar as fotos que tiramos dos documentos e começar a

análise deles agora.

— Obrigada, gente! Eu não sei o que faria sem o apoio de vocês. —


Encarei os dois com afeto. Na escola e na faculdade, sempre fui a estranha para

todos, menos para eles. Aqueles dois tinham a capacidade de fazer com que eu

me sentisse amada. — Vocês são a parte humana em mim. Eu não sei o que

acontecerá a partir de hoje, mas sei que precisarei dos dois para me lembrarem

de quem eu sou de verdade.

Cecília colocou uma mecha errante do meu cabelo preto atrás de minha

orelha.

— Você sempre será a nossa Izzy, não importa se for uma mistura de

vampiro com lobisomem e chupa-cabra.

Tentei não rir, porém era impossível. Apenas Cecília para dizer a coisa

mais absurda possível e me fazer rir. O celular dela apitou com o som do

despertador.

— Droga, preciso ir trabalhar! — Ceci se levantou para sair.

— Ei... — Apontei para o frasco que ela carregava. — Não vai querer o
meu sangue também?

Fui até a cozinha e peguei outro pote transparente com tampa. Quando

voltei, cortei minha mão com o canivete e deixei o sangue escorrer dentro do

vidro. Tive que me cortar três vezes, pois a pele voltava a cicatrizar com uma

rapidez incrível. Não sabia que a cura era um dos poderes que eu pegara

emprestado dos vampiros. Cecília guardou o pote com minha amostra de sangue.

— Fascinante! Totalmente contra as normas de biossegurança, mas

incrível.

Depois que Ceci saiu, Takao segurou minha mão e analisou de perto,

percebendo que minha pele parecia intacta.

— Você sabe o que isso significa, não sabe? — Ele não tentou disfarçar a

preocupação em sua voz.

Takao chegou a mesma conclusão que eu: se um dia eu precisasse matar

um vampiro, não seria tarefa fácil.


Capítulo 8 — Ladra

Voltei para casa ao anoitecer. Depois que Cecília saiu para o trabalho, eu

e Takao passamos a tarde pesquisando os nomes presentes nas fotos dos arquivos

que conseguimos no clube. Eram tantas pessoas e empresas! Seriam todos eles

vampiros, ou será que não sabiam que trabalhavam com chupadores de sangue?

Acelerei meu carro enquanto pensava: quem era eu para falar em chupadores de

sangue? Droga, como minha vida mudou com uma simples visita a um clube!

Talvez eu fosse mais feliz sem saber que era metade Nosferatu; às vezes, a

ignorância era uma benção.

O pior era aquela sensação de aprisionamento. Quando bebi o sangue de

Heinz pela primeira vez, corri por quilômetros para chegar no meu apartamento.

Estava tão cansada e dolorida, que adormeci toda suja de poeira e terra de onde

havia passado. Agora, entretanto, minha energia estava acumulada. Carregar


Takao para fora do Reich não foi esforço algum. Talvez eu devesse treinar e

fazer o triplo de exercícios para me relaxar.

Acionei o número da minha academia pela discagem rápida. Todas as

noites dos últimos três anos, eu malhava na Academia de Artes Especiais. Ela

ficava na esquina da minha casa, e lá encontrei o dono, Isaac, que, por acaso, foi

um dos poucos treinadores que conseguiram manter minha atenção por tanto

tempo.

Eu sempre fui excelente nos esportes: ágil, veloz e de reflexos rápidos.

Quem seria páreo para uma meia vampira? O problema era que, assim que

dominava um esporte, eu perdia o interesse nele. Já tinha até desistido de

encontrar algo que me instigasse, até achar o AAE, como costumava chamar a

academia. Isaac era um mestre, um sensei, em artes marciais, e sempre me

surpreendia com técnicas e desafios diferentes todos os dias. Eu nunca sabia o

que esperar quando ia lá. Com o tempo, Isaac se tornou um informante e amigo,
ele conhecia os podres da cidade tão bem quanto entendia sobre lutas.

— Luís, o Isaac já chegou? — Perguntei assim que reconheci a voz que

me cumprimentou do outro lado da linha, através do som do carro.

— Você sabe que não, e hoje ele não vem. — Ouvi a risada safada do

jovem personal trainer. — Eu não sirvo?

Isaac nunca ia trabalhar cedo, eu dizia que ele era preguiçoso, ele falava

que tinha outros compromissos. Era segurança de alguns ricaços durante o dia e

dava aula de caratê em duas ou três escolas. Luís sempre estava por lá, porém ele

era jovem demais para o meu gosto. Não nego que considerei suas provocações

algumas vezes, seu corpo musculoso era atraente e compensava o rosto comum.

Mas, além disso, o que eu faria com um garoto de vinte anos?

— Ah, você sabe que não conseguiria lidar comigo, Luís. — Falei antes

que meus pensamentos tomassem rumos impróprios. Com minha força extra,

provavelmente quebraria algo importante nele. — Avisa que não vou hoje, mas
estarei lá no horário de sempre, ok?

— Você parte meu coração! Primeiro me dispensa, e depois diz que não

te verei de novo?

Eu podia imaginá-lo colocando a mão em cima do peito para acrescentar

mais drama à sua fala, por isso sorri e desliguei o telefone, antes que ele

continuasse me chamando para sair. Estacionei o carro na vaga e percebi que

havia deixado a moto na casa dos meus pais. Eu precisava parar de perder meus

veículos. Considerei correr para recuperá-la, porém desisti, não queria ver meus

pais ainda.

Subi para meu apartamento pensando nas cantadas fracas de Luís. Ele era

um bom garoto, mas não passava de um garoto para mim. Eu preferia caras mais

velhos, com jeito de homem, como o... Desviei meus pensamentos e apertei a

pasta que roubei do Reich contra o meu peito. Não podia pensar em Heinz como

um homem ou como o sedutor Henrique, ele era o inimigo, ponto final. Também
não queria ficar imaginando quantos anos ele tinha.

Meu apartamento estava silencioso, intocado e abafado. Eu precisava de

outro banho depois do dia que tive. Coloquei a pasta em cima da escrivaninha do

meu quarto e joguei meu casaco e todo o resto em cima dela. Pensei em minha

lista de prioridades: limpar o meu quarto, banho, jantar, desvendar Heinz e

dormir. Nesta ordem.

Minutos depois de arrumar tudo, eu estava embaixo do chuveiro, a água

gelada lavando o suor acumulado no dia. Eu não tinha certeza se o verão estava

mais quente ou era o sangue de vampiro me deixando mais susceptível, só sei

que sentia como se o buraco da camada de ozônio estivesse em cima da minha

cabeça, lançando raios solares letais diretamente em mim. Ok, talvez eu

estivesse sendo um pouco dramática.

Com os cabelos ainda úmidos, coloquei o meu roupão e encarei meu

reflexo no espelho. Parecia normal, como eu sempre fui. O rosto oval, delicado,
os olhos verdes como os de Cecília e da minha mãe, os curtos e lisos cabelos

negros. Aproximei meu rosto do espelho, não sabia se era efeito da luz, mas a

minha pele branca parecia mais iluminada, sem as pequenas e raras sardas que

ponteavam as minhas bochechas perto do nariz. O verde dos meus olhos também

estava mais brilhante. Parecia que eu tinha ido a um spa e feito o melhor

tratamento de beleza do mundo. Pensei que encontraria desespero e olheiras em

minhas feições, contudo apenas enxergava uma versão mais bonita de mim. Ser

bizarra precisava ter alguma vantagem.

Voltei para o meu quarto e já me sentia revigorada, não apenas pelo

banho, mas também pelo ar noturno. A brisa que entrava pela varanda parecia

acariciar minha pele e aliviar ainda mais o calor que sentira outrora. Fechei os

olhos, saboreando o frescor, até me lembrar que a varanda estava trancada

quando saí de casa.

— Sentiu saudades, Isadora? — Um corpo quente se juntou ao meu,


abraçando-me por trás. Heinz passou o nariz em meu pescoço, apreciando o

aroma da minha pele. — Eu aposto que sentiu. Deveria ter ficado mais no

Reich, é falta de educação não esperar o anfitrião para uma festa. — Em um

segundo, eu estava imprensada contra a parede. De novo. — Você foi até o meu

clube com seu amiguinho humano para roubar de mim? Que feio.

Negar seria tolice, ele sabia até que Takao esteve lá também. O corpo de

Heinz se colou ao meu, e eu estava sem roupas, apenas com o roupão cobrindo

minha nudez. Eu podia sentir onde cada músculo de seu corpo muito bem

proporcionado encostava no meu corpo. Os curtos cabelos castanhos

provocavam a minha pele toda vez que ele se inclinava sobre mim. Heinz

segurou meus braços contra a parede, e eu fiquei enjaulada, tentando me soltar,

mas seu aperto era de ferro.

— Não pode culpar uma garota por tentar, não é? — Disse e o encarei de

frente, concentrada naqueles olhos de um marrom profundo, que parecia


chocolate derretido. Olhos que repentinamente brilharam amarelos como um

gato. Meu corpo se arrepiou quando suas presas surgiram, e eu não tinha certeza

se era de medo ou pela lembrança do que senti ao tê-las se afundando em meu

pescoço. Era ao mesmo tempo erótico e assustador. Pensamentos sobre sua boca

sensual me provando invadiram minha mente, e o cheiro da minha excitação

tornou-se perceptível até para mim. Droga de corpo traidor que não sabe se

controlar! Um sorriso de deboche surgiu por trás dos caninos alongados de

Heinz.

— Sabe o que é uma pena? — Ele me farejou. — Ninguém rouba de

mim e sai impune...

Então Heinz me atacou.

Seus dentes afundaram na curvatura do meu pescoço, a pitada de dor

roubou meu fôlego e logo sumiu, substituída por um calor líquido que percorria

minhas veias. Minha boca se abriu em um ofego, e ele soltou minhas mãos para
me segurar pela cintura e cabelos. Heinz mantinha minha cabeça inclinada

enquanto sugava o meu sangue. Eu me apoiei em seus ombros, porém, em vez

de afastá-lo, arranhei seus braços. Minhas unhas afundaram em sua pele como

suas presas penetravam na minha. Minha cabeça estava leve pelo prazer que sua

mordida provocava e pela perda de sangue. O roupão se abriu, revelando meus

seios. Ele soltou o pescoço para beijar meus lábios, suas grandes e ásperas mãos

subiram da cintura para agarrarem o seio. Um, depois o outro. Ofegante, afastei

sua boca da minha.

— Isso é o que você chama de punição?

— Você bagunçou meu escritório e roubou uma garrafa de sangue. — Ele

deu de ombros, com seus olhos voltando ao marrom normal. — Achei justo tirar

sangue seu em troca, além disso, estaria punindo a mim se não te beijasse.

Ainda bem que ele não percebeu a pasta desaparecida! Não duvidava que

quem roubasse Heinz não sairia impune. Olhei para o casaco em cima da mesa,
que escondia de maneira displicente o meu verdadeiro furto. Merda! Ele seguiu

meu olhar e sorriu, indo em direção à escrivaninha. Respirei fundo, pensando

nas possibilidades. Se eu conseguia me curar rápido, Heinz deveria fazê-lo ainda

mais rápido. Nos filmes, os vampiros morriam com estacas de madeira no

coração, mas eu não podia arriscar testar a teoria sem ter certeza que funcionaria.

Arrancar a cabeça deveria resolver, eu duvidava que ele conseguisse se curar

disto...

— Posso sentir o cheiro de sua ansiedade, Isadora. — Heinz abriu minha

bolsa e de lá retirou a garrafa quase vazia de sangue. — Gulosa, hein? Deixe-me

tirar isso de você, é um perigo em mãos inexperientes. — Ele bebeu o resto do

conteúdo e largou a garrafa, agora vazia, de volta na escrivaninha. Sua atenção

se voltou para o canivete e a Glock G25, minhas armas favoritas. — Talvez não

tão inexperientes, assim.

Ele não podia continuar com sua exploração, ou encontraria a pasta. Eu


precisava distraí-lo urgentemente! Lutar estava fora de cogitação, não depois de

ele ter bebido o restante do sangue que roubei. Desgraçado. Apostaria minha

vida que ele fez de propósito para que eu não pudesse me fortalecer novamente.

Só me restava uma opção, soltar o nó que mantinha meu roupão preso.

— Eu sou experiente em muito mais do que simples armas.

Os olhos de Heinz se reacenderam como chamas amarelas. Toda sua

atenção estava voltada para mim, meu corpo tremeu com as promessas ocultas

em seu olhar predatório. Uma grande parte de mim se sentia mal por utilizar

aquela tática de distração, outra parte, um pequeno e pervertido lado meu que

clamava por um certo vampiro, estava animado com a ideia de descobrir o que o

Heinz era capaz de fazer entre quatro paredes.


Capítulo 9 — Resistência

Não saberia mensurar todas as vantagens que haviam em ser um

vampiro, mas tinha certeza que existia uma grande: resistência física. Os poucos

namorados que tive nunca conseguiam acompanhar meu ritmo, eu sempre

precisava policiar a minha força, e eles se cansavam e precisavam dormir ou

relaxar para recuperar o fôlego. Heinz não apresentava esse problema, ele não

tinha fôlego a ser recuperado, respirava mais por hábito do que necessidade.

O homem era uma máquina.

E eu também.

Quando ele me fez gozar a primeira vez, mordi seu ombro com tanta

força que a pele se rompeu, me permitindo beber seu sangue e sentir o poder

puro fluir para mim. Éramos uma mistura de pernas, braços, sangue e suor. Meus
sentidos se encontravam sobrepujados pelo prazer que eu experimentava. Eu

estava ciente do toque de veludo de sua pele, do calor e do cheiro que dela

emanava, do seu corpo firme contra o meu. Do seu toque em minha pele quente,

sua língua áspera contra meu seio sensível e de suas presas encontrando as

minhas veias. E de sua força... Ah, sua força! A única que conseguia ser maior

do que a minha.

Empurrei Heinz contra o colchão, prendendo seu quadril entre minhas

pernas. Uma olhada rápida no relógio, que repousava meio de lado na mesinha

próximo à minha cama, me disse que já passava das três horas da manhã. O

cansaço começava a se abater sobre mim — precisava de outra dose do seu

sangue —, e eu só tinha me aproveitado dele, sem realmente tirar “proveito” da

situação. Tirei suas mãos da minha cintura e as levei até a cabeceira da cama.

— Segure. — Ordenei. Ele fez o que pedi, agarrou as barras de ferro que

enfeitavam minha cama. — Eu sei que nenhuma amarra te manteria preso, por
isto você terá que usar sua própria força de vontade. Vai ficar quietinho e não vai

soltar até eu mandar, ok?

— Sim, senhora. — Heinz respondeu.

Ótimo. Fui até a mesa e peguei o meu canivete da sorte. Quando cortei

meu braço no dia anterior, me curei depressa, então tinha curiosidade para saber

quão rápido um vampiro puro se curaria. Voltei a sentar em seu quadril, uma

perna de cada lado, e senti sua dureza penetrar em mim. Respirei fundo,

movendo-me para cima e para baixo. Eu tinha outros propósitos além do prazer,

mas nada me impedia de curtir um pouco durante o processo.

Seu quadril se movimentou para cima, indo de encontro ao meu,

intensificando a sensação. Passei a lateral da faca em seu corpo, deixando que o

metal frio arrepiasse sua pele quente. O que era um tanto surpreendente, eu não

esperava reações tão humanas em Heinz. Sua boca se abriu em um gemido baixo

quando coloquei a ponta ativa da faca contra seu peito e desci até a cintura. Na
pele pálida se formou uma linha sangrenta efêmera. Droga! Ela desapareceu em

segundos, deixando apenas um rastro de sangue para trás, que eu logo lambi.

— É preciso mais do que um canivete para me assustar, Izzy. — Seus

olhos se abriram, mirando em mim, e em seguida ele respirou fundo, detectando

algo na brisa que entrava pela janela. — Confie em mim, deixa eu te mostrar o

que é ser vampiro.

Aumentei o ritmo do meu quadril e agarrei seus cabelos curtos, esticando

seu pescoço para trás.

— Eu não sou vampira. — Usei o canivete para romper a pele na

garganta de Heinz e bebi seu sangue. Quando eu usava minha boca, o corte não

curava, continuava a fluir. Outro mistério a ser desvendado. A fome era como

um monstro devorador de mil dentes, quanto mais eu tomava do sangue dele,

mais eu queria. Mordi com mais força o seu pescoço, o prazer me enlouquecia.

Sangue e luxúria me penetravam uma outra vez. Eu me sentia capaz de drenar


todos os seus fluidos.

Num segundo, eu estava por cima dele, no momento seguinte, me

encontrava no telhado do meu prédio, nua sob o luar encoberto parcialmente por

nuvens, a cerca de dez andares acima. Heinz estava sentado no deque de madeira

ao lado da piscina comigo em seu colo, sua mão cobrindo a minha boca. Merda!

Ele era muito rápido, mais até do que os meus sentidos aguçados conseguiam

detectar. Nada bom.

— Não grite, apenas ouça. Sei que prometi ficar parado, mas você estava

ingerindo muito sangue e rápido demais. — Sua respiração roçou o meu

pescoço. — Feche os olhos, consegue sentir esse cheiro? Percebe que a

temperatura caiu um pouco? Vamos, Isadora, sinta! Sinta a mudança no ar.

Fiz o que ele pediu, elevei meu rosto e apoiei minha cabeça em seu

ombro. Deixei os sentidos fluírem e senti o que ele queria: o aroma da chuva um

pouco antes que os primeiros pingos atingissem meu rosto. As gotas geladas
caíram em meu corpo, cada toque despertava uma sensação diferente em minha

pele hipersensível. Era como se milhares de minúsculas mãos me tocassem ao

mesmo tempo.

Heinz beijou minha garganta, suas presas arranhando de leve, sem

perfurar minha pele. A mão que estava em minha boca desceu para os meus

seios, apertando-os. Sua outra mão foi parar no meio das minhas pernas,

excitando meu ponto mais sensível.

— Há muito mais em ser vampiro do que apenas morte e sangue,

Isadora.

Uma pequena parte racional de mim se lembrava que ele era Heinz, O

Heinz. Outra parte racionalizou: “mantenha seus amigos perto e os inimigos

mais perto ainda”. Se eu queria descobrir o que aconteceu com tia Luna,

precisaria entrar no mundo dele. Eu me virei de frente para ele, ajoelhando-me

no deque.
— Então me mostre.

Suas presas brilharam, expostas por um sorriso que beirava o limite entre

perverso e pervertido. Heinz me puxou para perto e me penetrou novamente. Ele

segurou meus cabelos enquanto nos beijávamos com voracidade, como se aquela

fosse a nossa primeira vez, e não a... Bem, eu perdi a conta de quantas vezes

foram. Em outro movimento rápido, Heinz me colocou contra o balcão do

pequeno bar na cobertura do meu prédio, penetrando-me por trás e batendo em

minha bunda. Eu segurava a tampa de mármore com tanta força, que provoquei

uma rachadura na pedra. Meu grito se perdeu na noite quando ele sustentou

minhas pernas no ar e me penetrou repetidas vezes com uma velocidade

humanamente impossível. A pedra de mármore se quebrou, e meu corpo ainda

tremia com o orgasmo que ele me proporcionara.

— Nós ainda não acabamos, Isadora. — Heinz sussurrou em meu

ouvido.
Eu sentia como se tivesse vendido minha alma ao diabo. Não que eu

estivesse me importando muito com isso, pelo menos não naquele momento...

★ ☽ ☯ ☾ ★

O colchão confortável e a maciez do lençol imploravam para que eu

ficasse mais na cama; eu me encontrava sonolenta quando o dia estava perto de

amanhecer. Heinz sorriu e beijou meus lábios, explicando que eu não estava

acostumada à influência do sol no sangue vampírico. A quantidade que ingeri no

dia anterior me faria apagar como a um vampiro novo, antes mesmo que os

primeiros raios laranjas surgissem no céu.

Adormeci em seus braços e, horas depois, acordei revigorada e sozinha,


em meio aos lençóis com seu cheiro. A cortina blackout estava fechada,

mantendo-me protegida na penumbra. Qualquer ser humano passaria dias sem

andar se tivesse feito um terço do sexo que fiz ontem. Sorte minha não ser um

ser humano qualquer. Levantei da cama e me espreguicei. Estava a caminho do

banheiro quando um objeto perigosamente perto da pasta roubada, oculta apenas

pelo casaco, chamou minha atenção. A garrafa de vidro que trouxera do Reich,

cheia de sangue fresco. Embaixo dela, encontrei um bilhete com uma letra

desenhada que daria inveja à minha professora de caligrafia:

“Isadora,

Isto é um presente pelo voto de confiança que me deu. O sangue de um

vampiro como eu é mais poderoso do que você pensa. Guarde para emergências,

há muitos inimigos aí fora, e eu não sou um deles.

Com carinho,
Heinz.”

Joguei-me de volta na cama, ainda sonolenta por causa do amanhecer.

Que havia muitos inimigos, eu não tinha dúvidas, quanto ao resto, apenas o

tempo diria.
Capítulo 10 — Erros

“Isadora, o que você fez, filha?”, minha mãe perguntou com assombro.

Ela passou a mão nos cabelos loiros, jogando-os para trás, o sol refletia no

diamante de seu anel e incomodava meus olhos. Baixei a cabeça, e ela suspirou,

achando que eu estava envergonhada. Mamãe se agachou e segurou meu

queixo, obrigando-me a encarar seus olhos avermelhados. Por que ela chorou

no caminho de casa até a escola?

“Não fiz nada, mãe... Becca não deixava Camila em paz, aí eu tentei

ajudar, só isso.”

Balancei a cabeça, negando que tinha feito algo errado. Rebecca era

malvada sem motivos, apenas porque se sentia grande e poderosa.


“Só isso?”, o assombro de minha mãe se tornou ainda maior, “filha,

você quebrou as costelas dela.”

Acordei com um sobressalto, com o corpo suado por causa do sonho, ou

melhor, da lembrança da minha infância. Eu tinha dez anos quando quebrei duas

costelas de Becca, uma valentona da escola. Ela me importunara várias vezes,

dizendo que eu era esquisita. Aguentei calada por mais de ano, até que ela

desistiu de mim e passou a fazer bullying com uma garota tímida da terceira

série. Não suportei ouvir os mesmos insultos dirigidos a uma menina de

aparência tão indefesa e a empurrei. Eu não tinha intenção de fraturar as costelas

de Rebecca quando usei um pouco mais de força do que o normal.

Meus pais me mudaram de escola, e passei a me esforçar mais para fingir

ser uma garota como outra qualquer. Era muito mais desgastante tentar se

encaixar do que ser um pária. A única pessoa que me fazia ficar à vontade era
Cecília, minha prima não era uma garota de meias verdades e geralmente dizia o

que pensava. E Takao foi o nosso par perfeito. Dela no amor, e meu nos

negócios.

Esfreguei os olhos, como se pudesse dissipar a lembrança antiga dos

amigos de escola que me esforcei tanto para ter, e que agora se tornaram

irrelevantes em minha vida, e me espreguicei, cansada mais mentalmente do que

fisicamente. Calcei o chinelo rosa e me arrastei até a cozinha, com o estômago

roncando de tanta fome, que se eu fosse uma das crianças Baudelaire, seria a

pequena que saía mordendo tudo. Eu, com certeza, estava em uma desventura

em série. Abri a geladeira, em busca de alimento, e o ar gelado atingiu meu

corpo quente. A memória das mãos de Heinz passeando pela minha pele me

encheu de desejo. Não chamaria a noite passada de desventura.

Falando no diabo... a garrafa que Heinz deixara parecia me chamar.

Como o canto de uma sereia, ela pedia para eu me aproximar e tomar apenas um
gole. Só um gole não faria mal, não é? Droga, aquilo era o que todos os bêbados

diziam! Será que tinha um grupo como os Alcóolicos Anônimos para os

bebedores de sangue? Algo como Sanguessugas Anônimos? Eu estava

precisando de um. Guardei a maldita no fundo da geladeira e fechei a porta do

refrigerador com um baque, não ficaria viciada nessa porcaria. Não mais do que

já estava.

Depois de um bom banho e do café da manhã, ovos mexidos com torrada

e nenhum molho vermelho especial, decidi analisar o material roubado. Sentei à

escrivaninha e joguei o casaco em cima da cama. A pasta estava lá, sobre a mesa,

reluzente em seu lacre pardo. Ela parecia zombar de mim, lembrando-me que

mal passou de uma desculpa fraca para a noite que tive com Heinz. Encostei a

testa no plástico, a quem eu pretendia enganar?

Com o mesmo fervor que queria Heinz, eu sentia vontade de rechaçá-lo.

Talvez aquele fosse o real significado de ser uma mestiça, estar dividida entre
dois mundos. Eu era como um ímã, um lado se sentia atraído para o Heinz, o

outro repelia tudo que seu mundo representava. Nunca me senti muito à vontade

no mundo humano, porém era tudo o que eu conhecia. Não queria conhecer um

mundo dominado por monstros sanguessugas, entretanto teria que fazê-lo se

quisesse descobrir sobre o meu passado e encontrar a minha tia perdida.

Rompi o lacre vermelho e abri a pasta. Estava cheia de papéis

classificados por datas, e alguns tinham muito mais que cem anos, todos

preenchidos por nomes e endereços de parceiros do Reich. Se aquelas datas eram

um indicativo, considerando a aparência que Heinz atualmente, ele deveria ter

quase cento e cinquenta anos. Minha nossa! Eu sempre gostei de homens mais

velhos, porém tudo tinha um limite, não é? Se bem que a resistência que ele

havia demonstrado no dia anterior não se comparava nem com a dos garotos de

vinte anos. Desviei meus pensamentos, antes que perdesse o foco, e passei as

folhas amareladas, sem me interessar muito pelos antigos parceiros dele.


Procurava algo específico: Luna. Parei quando cheguei aos últimos trinta anos.

Se ela era minha tia, eles deveriam ter se conhecido havia pouco tempo.

Verifiquei linha por linhas, nome por nome, mas o de Luna não surgiu nas

últimas duas décadas. Seria aquela mais uma busca infrutífera?

Um calafrio subiu pela minha pele ao observar que diversos nomes

tinham uma segunda data e uma cruz desenhada ao lado. Morte. Aquilo me

cheirava à morte. Heinz me dissera que ninguém roubava dele e ficava impune,

será que o mesmo valia para ex-parceiros? Havia algum momento em que a

fome se tornava grande demais e ele passava a jantar os sócios em vez de comer

com eles? Minha frustração aumentava a cada página lida.

Passava da hora do almoço quando alcancei os anos próximos ao do meu

nascimento. Que bobagem! Eu deveria ter começado por ali! Folheei as páginas

sem nem pensar em parar para comer. Estava prestes a desistir, quando um nome

no ano anterior ao meu aniversário me chamou atenção. Não podia acreditar no


que via! Vesti a primeira roupa que encontrei, agarrei a pasta e corri para o carro.

Alguém me devia explicações.

Eu mal sentia o calor do sol escaldante no início de tarde. Passei pelos

sinais vermelhos sem nem ao menos olhar para os lados e dirigi focada em uma

única coisa: confrontar os moradores da mansão que surgia no horizonte. Entrei

em casa com a fúria de quem foi enganada a vida inteira.

Minha mãe estava na poltrona favorita da sua biblioteca particular.

Parecia tão delicada, com as pernas dobradas embaixo do corpo e imersa em um

livro... Uma senhora de quase sessenta anos em um vestido leve de verão,

cabelos presos no alto da cabeça e óculos de leitura. O janelão atrás dela trazia a

luz natural do dia e o frescor do jardim para o cômodo. Era uma cena bucólica

demais para alguém que já frequentou uma boate vampírica com regularidade

suficiente para ter o seu nome na lista.

— Pode me explicar isso? — Joguei a pasta na mesinha de vidro ao lado


dela, fazendo a xícara de café meio vazia balançar com o peso.

Os olhos de minha mãe se arregalaram, e sua boca abriu em choque. Ela

largou o livro no chão e passou os dedos trementes em cima da própria

assinatura.

— Onde conseguiu isso, Isadora? — Sua voz saiu mais firme do que eu

esperava. Mamãe se levantou e tirou os óculos antes de fechar a pasta. Ri com

escárnio de sua pergunta.

— Onde a senhora acha, mãe?

Sua testa estava franzida, não sabia se por chateação ou preocupação. A

delicada dama da sociedade apontou o dedo em riste para mim:

— Eu não posso acreditar que você entrou no Reich e ainda teve a

audácia de roubar algo de lá! Não tem noção do perigo, menina?

— Não! Não tenho noção alguma, não sei de nada! — Gritei de volta. —
A senhora escolheu me deixar no escuro, esqueceu? Eu passei anos achando que

era uma aberração, que via e ouvia coisas! Fiz terapia para esquecer os sonhos

que tinha, nunca me encaixei com as outras crianças! Você me deixou pensar que

era louca! Por quê?

Os olhos de minha mãe se encheram de lágrimas. Ela fez menção de me

tocar, mas desistiu e abaixou os braços, a tristeza estampada em seu semblante.

— Para te proteger! O maior erro da minha vida foi entrar no Reich, tudo

que fiz desde então foi para te manter segura! — Mamãe andou até um grande

retrato de nossa família e removeu a moldura da parede, revelando um cofre

atrás. Ela pegou uma pequena chave dourada, que usava no pescoço, e abriu a

fechadura.

Nossa! Ela nunca tirava aquele colar do pescoço, sempre achei que era

um berloque sobre o amor dela com meu pai, já que fazia par com outro pingente

que também adornava o seu pescoço: um coração de rubi com uma fechadura
dourada. Pelo visto, me enganei. O colar era apenas uma forma de minha mãe

manter a chave sempre com ela.

Não sabia o que tinha escondido naquele cofre, mas tinha certeza de que

era algo muito importante. O objeto que ela retirou de lá não era o que eu

esperava, entretanto: se tratava de um envelope amarelado e um pequeno

caderno marrom amarrado com um barbante.

— O que é isso? — Senti o cheiro de mofo e poeira mesmo à distância.

Aquele cofre não era aberto havia anos.

— Isso era para ser seu quando completasse dezoito anos. — Ela segurou

meus ombros quando tirei o pequeno objeto de suas mãos. Mamãe acariciou meu

rosto e colocou uma mecha atrás da minha orelha. — No início, você era a

maneira que eu encontrei de me redimir dos meus erros, Izzy. Lembre-se, não

importa o que leia nesses papéis, você é a minha filha, entendeu?

Balancei a cabeça concordando e aceitei o seu abraço. O coração


acelerado dela batia contra meus ouvidos, e um leve fungar mostrava que ela

queria chorar, mas se segurava. Mamãe se afastou, indo em direção à porta.

Enquanto isso, abri o envelope pardo e de lá tirei uma carta envelhecida:

“Minha amada sobrinha Isadora,

Você é o meu bem mais precioso, por isso não posso mais arriscar sua

vida. Por mais que eu queria tê-la ao meu lado, Monte Carlo não é um lugar

seguro. Ficarás aos cuidados de Alice e Fernando, eles te manterão segura até o

meu retorno. Deixo o meu diário para que saibas quem eu sou e quem você é. Se

eu não te procurar até o seu aniversário de dezoito anos, não tentes me

encontrar. É perigoso demais. Viva sua vida, domine seus poderes e se esconda

no mundo humano. Jamais se aproxime do Reich, se descobrirem quem você é,

nem mesmo eles poderão te proteger. Até um dia.

Com amor,
Tia Luna.”

Uma lágrima caiu na página e borrou a tinta. Tia Luna existiu e não me

abandonou, ela estava me protegendo. “Nem mesmo eles poderão te proteger”.

Talvez ela fizesse parte do Reich antes de sumir. Heinz não parecia ser o

inimigo, mas havia algum por aí, um que nem mesmo o poderoso chefe

vampírico seria páreo.

Tia Luna deveria me procurar quando eu fizesse dezoito; eu já tinha

trinta. Doze anos de atraso, isso não era nada bom.

— Você ia me mostrar isso algum dia? — Virei para a minha mãe, que

segurava a maçaneta e encarava a porta fechada.

— Não. — Antes de sair, ela respondeu, sem olhar para mim. — Eu

esconderia para sempre, se pudesse. Às vezes, a ignorância é uma benção,

Isadora.
Com um peso nos ombros, afundei na poltrona antes ocupada por minha

mãe. Ignorância não era uma benção no meu caso. No de ninguém, para ser

sincera. Uma vida de mentiras doía mais do que a mais bela das verdades. Minha

mão deslizou pelo couro desgastado do diário de Luna. Por mais ansiosa que

estivesse para descobrir tudo de uma vez por todas, estaria preparada para saber

o que houve para que eu nascesse assim? Era o que estava prestes a descobrir...
Capítulo 11 — Diário de Luna (Parte I)

Um calafrio subiu pela minha coluna quando percebi que o diário da tia

Luna começava no dia seguinte ao meu nascimento. Isso não poderia ser um

bom presságio.

Monte Carlo, 24 de julho de 1986.

Eu nunca fui uma mulher de escrever diários, nunca quis deixar os meus

pensamentos secretos ao alcance de qualquer pessoa, livres. Porém, depois da

noite que tive ontem, mudei de ideia. O que aconteceu foi tão surreal, que eu

precisava deixar registrado, para os dias em que eu não acreditasse mais no que

aconteceu.
Ontem o tempo estava frio, quem em sã consciência sairia de casa para

trair o marido em uma noite chuvosa de quarta-feira? Segui a mulher rica, que

usava um longo casaco preto para esconder a pouca roupa que, eu já sabia,

usava por baixo.

Lembrei-me do seu perfil no arquivo que deixei no escritório: Alice

Martins, loira, olhos azuis, um metro e sessenta e cinco de altura, vinte e oito

anos, casada e sem filhos. Seu marido contratou os meus serviços de detetive

particular para descobrir se Alice estava ou não o traindo. O que eu descobri?

Ela se envolveu em algo muito pior do que um simples amante: uma seita de

ocultismo suspeita do desaparecimento de pelo menos quatro outras mulheres.

O que poderia ser assustador para alguns me deixava eufórica. Eu adoro

meu trabalho! Tenho quarenta e três anos e passei metade deste tempo sendo

detetive particular. Não é uma profissão comum para uma mulher e, exatamente

por isso, os suspeitos nunca desconfiam de mim. Afinal, nem mesmo o mais
paranoico dos homens acharia que uma garota indefesa poderia incriminá-lo.

Tolos! Eu sempre fui o lobo em pele de cordeiro.

Meu alvo em questão, a senhora Alice, dobrou a esquina. Dois minutos

depois, eu fiz o mesmo. As luzes intermitentes do clube iluminavam a calçada,

piscando em vermelho e branco o nome Reich. Aquele lugar se tornou

conhecido por sua exclusividade: as pessoas são pré-selecionadas para estarem

ali. Comandado pelo lendário Heinz, um homem poderoso e sem escrúpulos,

ninguém ousa entrar no Reich sem autorização.

Quase ninguém.

Tudo na vida é uma questão de padrões, seja em um esquema de desvio

de dinheiro, em uma traição, ou na forma de admissão de um clube secreto

comandado por possíveis mafiosos. Eu esperava que estivesse com sorte

naquela noite.

O primeiro padrão que descobri foi a roupa de vagabunda:


extremamente curta e decotada. Eu estava vestindo algo que parecia pintado em

meu corpo, de tão colado que era. Escondia minha nudez parcial embaixo do

sobretudo e, em um bolso oculto, meu revólver favorito.

Droga! Os saltos clicavam no asfalto, e eu precisava de uma

aproximação discreta. Aquela era minha porta de entrada para desvendar o

mistério de Alice. Talvez ela estivesse se prostituindo, ou apenas se divertindo

com o lado perigoso da vida, o que nunca acaba bem.

Tive confirmação visual de que Alice estava entrando no clube. Ótimo,

minha vez! Eu não sou tão novinha como a garota, mas me cuido bem para uma

mulher da minha idade. Esperava que fosse o suficiente. O porteiro, um homem

alto, calvo e corpulento, me barrou na entrada e perguntou:

— Código?

— Noite eterna. — Respondi sem pestanejar. Eu tinha ouvido o código

daquela noite pela escuta que coloquei no telefone de Alice.


O porteiro careca me olhou desconfiado, porém liberou a passagem, e eu

entrei. O interior do clube era todo escuro, com paredes em vermelho bordô, e

estava repleto de pessoas que se vestiam ou totalmente de preto, ou só de

branco.

Que estranho!

Eu precisava de provas da traição de Alice, e não conseguiria muita

coisa parada ali. Tinha um gravador escondido na minha bolsa de mão e uma

pequena câmera fotográfica descartável. Teria que servir. Misturei-me à

multidão que dançava muito colada, o que só dificultava o meu trabalho. Além

disso, como tiraria uma foto decente com tão pouca iluminação?

Avistei Alice. Ela estava sentada no colo de um garoto lindo e loiro com

traços europeus. Aquele rapaz tinha idade suficiente para estar ali? E ele ainda

parecia ter um lugar de destaque — sua mesa acima das demais, em uma área

VIP —, apesar de parecer tão novo.


Aproximei-me mais, tentando não levantar suspeitas. Dancei solta ao

som techno que tocava no ambiente, segurei a câmera na mão direita e balancei

ao ritmo da música, com os braços levantados no ar. As fotos não teriam muita

nitidez, mas era o máximo que eu conseguiria naquela situação.

Tentei virar a câmera para o lado da esposa do meu cliente, quando vi

algo que me tirou do ritmo. As íris azuis do garoto adquiriram um tom

luminescente, como as de um felino. Ele então abriu sua boca, mostrando duas

presas grandes no lugar dos caninos, e depois as afundou na garganta de Alice,

que suspirou em êxtase. Que diabos era aquilo? Algum tipo de clube de fetiche?

Continuei a tirar fotos da cena inusitada, quando um estrondo balançou

as fundações do clube, gritos e urros se misturaram aos barulhos de luta em

uma ensurdecedora cacofonia. Onde eu me meti? Deveria ter investigado mais!

O garoto que imitava o Drácula desapareceu, e Alice era a única na mesa

elevada. Corri para lá, meu cliente era um idiota apaixonado e não ficaria
satisfeito se a mulher dele morresse. Logo a alcancei e a agarrei pelo braço.

— Vamos embora agora!

Ela me olhava aérea, como se estivesse drogada.

— Quem é você?

— Eu estou aqui a mando do seu marido e vou te levar de volta.

Seus olhos se arregalaram, e um pouco do torpor desapareceu.

— Fernando?

— Sim, vamos! — Eu a apressei.

Corremos meio agachadas entre as mesas, tentando nos tornar um alvo

menor. A frente do clube estava tomada por uma massa de corpos tentando fugir.

— Você sabe onde é a saída dos fundos? — Perguntei, e ela apontou a

direção:

— Por trás do bar.


Levantei minha cabeça para analisar o ambiente, o bar estava do outro

lado do salão. Aquela noite ficava pior a cada segundo! Vários corpos caídos

lotavam o chão, a maioria usava roupas brancas. Os de preto lutavam para sair

com as próprias mãos — pelo menos não havia um tiroteio. Ser ferida à bala

não estava nos meus planos.

Quando nos aproximamos das garrafas coloridas do bar, senti Alice me

puxar e caí no chão. Ela estava sendo erguida pela cintura por um cara enorme

com o rosto todo ensanguentado.

— Então esta é a nova vadia da área?

Sua voz era tão asquerosa quanto a aparência. O que ele pretendia fazer

com ela? Eu não tinha minha arma, mas o meu fiel canivete sempre ficava preso

por uma bainha de couro presa em minha perna, então o peguei e atingi a mão

do homem em um golpe certeiro. Ele soltou Alice e me deu um sorriso diabólico,

dentes compridos se projetavam para fora de seus lábios.


— A gatinha tem garras? Eu também tenho.

Não consegui reagir à sua ameaça. Seu ataque foi tão rápido, que, em

um piscar de olhos, senti uma dor indescritível em minha garganta. Parecia que

minha força vital estava sendo drenada para fora de mim, meu cérebro parecia

ter parado de funcionar.

Reaja, reaja!

Reaja!!!!

Um golpe nos levou ao chão, ele era um peso enorme me esmagando.

Não podia me mexer, não podia respirar... Senti a morte traiçoeira se

aproximando. O homem me encarou com raiva, meu sangue pingava de suas

presas.

Presas... Este era o nome correto. Não eram caninos ou dentes normais.

Ele foi para meu pescoço novamente, e Alice tentou afastá-lo, puxando-o
pelas costas. Eu gostaria de avisar que não adiantaria, ela era fraca demais

contra ele, mas, de repente, o semblante do meu agressor foi substituído por um

olhar surpreso, e em seguida ele se transformou em pó. O cara virou pó na

minha frente! Um outro homem, de cabelos negros e olhos amarelos e com uma

faca enorme, do tamanho de uma pequena espada, nas mãos, segurou Alice pelo

braço e exclamou:

— O que você está fazendo aqui ainda? — Ele apontou para a porta

atrás do bar. — Saia!

— Eu vou sair, meu senhor! — Alice abaixou a cabeça e, assim que o

homem partiu para a luta, ela se voltou para mim com o rosto manchado de

lágrimas. — Me desculpe, eu não sabia que seria assim, não queria que

ninguém se envolvesse nisso.

Meus olhos viraram em suas órbitas. Eu estava ficando inconsciente, os

sons pareciam distantes... A morte me convidava a fechar os olhos e entrar no


esquecimento.

— Abra a boca, moça, eu prometo que você vai ficar bem! Eu não quero

que você morra por minha causa… — A voz da Morte me convidava a cair no

esquecimento. — Vamos, se demorar muito, não vai funcionar e tudo se

transformará em pó!

Ela forçou minha boca a se abrir, eu permanecia inerte, fraca demais

para reagir ou fazer qualquer coisa. Senti algo macio sendo pressionado contra

meus lábios, seguido por um líquido morno e salgado escorrendo pela minha

garganta.

— Beba... Você precisa beber tudo.

Uma dor diferente me invadiu, parecia que meu coração estava sendo

esmagado, obrigado a parar. Eu senti como se me esfaqueassem e

eletrocutassem ao mesmo tempo. Era uma agonia excruciante, que me levou ao

desespero total. No entanto, a dor foi fugaz: assim como veio, sumiu. Os sons
recomeçaram a fazer sentido, senti meus músculos fortalecidos em meio a dor.

Abri meus olhos e descobri que o objeto macio pressionado contra minha boca

era o braço decepado de uma mulher. Que nojo!

Empurrei Alice, e ela escorregou para longe. Olhei com espanto para

minhas mãos e me perguntei quanta força usei para conseguir aquilo. Cuspi o

resto de sangue que ainda estava em minha boca. Tudo era confuso, as luzes, os

sons e, principalmente, o meu corpo: eu vibrava com energia contida. Tentei

entender o que estava acontecendo comigo, levantei e comecei a andar em

busca de ajuda, uma explicação, qualquer coisa que provasse que isso era

apenas o pior e mais real pesadelo da minha vida. Só queria sair daquele lugar.

Nem pensei em Alice.

Mal dei um passo, e, em segundos, estava do lado de fora do clube. Não

entendi como cheguei ali tão rápido. O barulho e o caos do Reich enchiam a

noite de ruídos tão altos, que latejavam em minha cabeça. “Alice que se foda”,
pensei, “vou embora”. Eu precisava ir para casa e esquecer esta loucura.

Minhas pernas decidiram por mim que era hora de correr. Estava indo

tão rápido, que, mesmo em meu salto alto, a cidade se tornava um borrão. Será

que consumi alguma droga alucinógena no clube? Poderia estar disseminada no

ar, não sabia ao certo. Nada disso poderia ser real. Cheguei à casa que eu

dividia com Isabela, minha irmã mais nova, e ela me olhou, assombrada.

Isa se aproximou e examinou meu pescoço, me perguntando se o sangue

era meu. Em seguida, ainda assustada, passou a mão em meu rosto, analisando

a dimensão dos danos.

Sua mão em meu rosto. O pulso tão perto do meu nariz. O cheiro era

delicioso. Tentador. O bater acelerado de seu coração. Eu podia ouvir o ritmo

compassado do sangue pulsando em suas veias. Estava me sentindo tão vazia

por dentro... Seca. A dor voltou a me invadir, e uma sede consumiu minhas

entranhas.
Minha irmã berrava, me perguntando de quem era o sangue que

parcialmente me cobria.

Sangue... Sangue... Seu pulso perto dos meus lábios... Minha visão se

tornou vermelha, e a sede dominou. Senti a pulsação deliciosa em minha boca

quando minhas presas afundaram na pele macia. Um néctar escarlate preenchia

meu ser.

Delicioso.

Ouvi mais alguém berrando, mandando que eu largasse minha irmã.

Outra pulsação. Ótimo! Mais sangue para mim. Larguei aquela que já estava

fraca demais e peguei o novato. Vi a pele negra, tão bela, que eu tanto amei.

Mordi seu pescoço com a maior fome que já senti em minha vida, pensando que

seu sangue estaria dentro de mim para sempre. O dele tinha um gosto um pouco

diferente, mais forte, porém tão delicioso quanto o anterior. Eu me senti inteira.

Completa. Soltei sua garganta com as forças renovadas e com o sangue


escorrendo pela minha face.

Tum... Tum...

Uma terceira batida de coração, porém baixa e rápida, diferente das

outras. Um som abafado... De onde vinha? Eu queria mais.

Tum... Tum... Tum...

A batida acelerou, como um carro velho dando seu último suspiro antes

de parar de vez. “Não morra, passarinho”, sussurrei, “Vou te encontrar e te

saborear”. Virei-me para a mulher caída no chão, quase morta. O som vinha

dela? Eu podia beber todo o seu sangue e acabar com seu tormento.

Tum... Tum... Tum...

Alguma coisa estava errada, não era da mulher esse som. O dela era

muito mais fraco... Olhei para sua barriga inchada. Oh, era dali que vinha o

barulho!
Uma mão lânguida segurou meu braço.

“Salve-a, Luna...”, ela pediu, e um fio escarlate escapou de seus lábios

trêmulos. “Por favor.”

Luna? Quem era Luna? Salvar quem? Olhei para aquele rosto sem

nome, e um lampejo de memória surgiu em minha mente. A sede de sangue

diminuiu, e eu consegui pensar com clareza.

Tum... Tum... Tum...

Merda! O que eu fiz? A cena grotesca diante de mim causou arrepios.

Meu marido estava quase morto, minha irmã, grávida de oito meses, morrendo,

e minha sobrinha... Não! Rasguei meu pulso com as presas e dei para Isabela

beber, tentando imitar o que fizeram comigo no clube.

“Vamos, beba!”, gritei, desesperada, chorando lágrimas vermelhas, que

nublavam minha visão. Ela estava fraca demais até para ingerir, porém fiz com

que boa parte do sangue descesse por sua garganta.


“Não, Luna”, Isa disse e afastou meu braço de sua boca. “É tarde para

mim, proteja minha filha”.

Sua voz era um sussurro tão baixo, que apenas minha nova audição

poderia escutar. Eu precisava fazer algo! Corri até a cozinha e peguei uma faca

grande de cortar carne.

“Me perdoe, irmã!”, pedi, beijei a testa suada e abri sua barriga logo

abaixo do umbigo, Isabela emitiu um último grito antes de seu coração parar de

vez. Líquido amniótico jorrou da bolsa rompida, misturando-se ao sangue da

garota que eu vi crescer.

A recém-nascida chorou forte. Seu corpinho era quente e tinha o cheiro

da inocência. Saboroso. Senti minhas presas alongarem e picarem meu lábio

inferior. A garotinha chorosa era tão linda e indefesa! Seu coração batendo

rápido se tornou tentador demais, e eu não soube por quanto tempo

conseguiria... resistir.
Capítulo 12 — Branco, Preto e Vermelho

Choque. Horror. Tristeza. Ódio. Luto.

Eu não conseguia definir o que estava sentindo e também não enxergava

mais nada em minha frente. Não com as lágrimas que insistiam em cair. Minhas

mãos tremiam quando fechei o diário de Luna. Encolhida na grande poltrona da

biblioteca, chorei como nunca havia feito antes. Meus pais, as pessoas que eu

mais amava, não eram meus pais biológicos. No fundo, eu desconfiava daquilo,

mas nunca quis acreditar de verdade. Não nasci do ventre de Alice, Fernando

Martins não era o meu pai. Minha nossa! Eu não era uma Martins de verdade,

não tinha mais identidade!

As lembranças que tinha de Luna pareciam todas corrompidas. Ela não

era a tia amorosa que cuidou de mim. Não, ela era uma vampira sanguinária que
matou minha mãe e roubou minha infância. Eu não deveria ter crescido achando

que era louca, uma estranha entre meus colegas de escola. Não entendia

exatamente como, porém sabia que ela tinha feito isso comigo, me transformado

nessa aberração meio vampírica.

Minha vida era uma grande mentira banhada a sangue e dor.

Eu queria chorar até os meus olhos incharem, até minhas lágrimas

secarem e não restar nada de mim, mas nem isso a droga da maldição vampírica

me deixava fazer, eu continuava com a beleza intacta por fora, mesmo que

estivesse destruída por dentro.

Da minha bota, retirei o meu canivete favorito. Ele era preto e tinha um

desenho vermelho intricado de arabescos. Eu nunca saía de casa sem ele, sempre

esteve comigo, não me recordo desde quando. Seria este o mesmo canivete?

Teria ele ficado para trás, abandonado, assim como eu? Eu segui os passos de

Luna, tinha a mesma profissão. Agora entendia por que minha mãe ficou tão
revoltada quando disse que eu seria detetive. Meu inconsciente lembrava mais de

Luna do que eu imaginava.

Apertei a trava do canivete, e a lâmina reluzente saltou. Cortei a palma

da minha mão para observar o filete de sangue que surgiu. As gotas rubras

pingavam, manchando a imaculada poltrona de minha mãe. Cinco minutos se

passaram, até que o corte se fechou sem deixar nenhum rastro de sua existência.

Fechei e abri a mão, constatando que o sangue de Heinz estava perdendo o

efeito.

O diário de Luna, agora fechado, parecia zombar de mim, desafiando-me

a ler mais. Descobri mais sobre minha tia em poucas páginas de seu diário, do

que em toda a minha vida de investigação. Mesmo minha busca na deep web, a

internet obscura por trás da internet comum, não surtira resultados, o que era

algo praticamente impossível de acontecer. Sempre havia um registro a ser

encontrado em algum lugar, nem que seja um registro de nascimento, um


imóvel, a escola em que estudou... Qualquer coisa! Alguém ocultou tia Luna do

mundo, eu só precisava descobrir quem e por quê.

O anoitecer se aproximava quando finalmente fui procurar minha mãe,

mas não a encontrei em nenhum lugar. Ela saiu para não precisar me enfrentar.

Covarde. Se não podia confrontá-la naquela hora, só havia outra pessoa que

poderia me dar respostas. Subi até o meu antigo quarto e encarei as roupas que

deixei em casa para emergências. As palavras de tia Luna rondavam em minha

mente:

“Vários corpos caídos lotavam o chão, a maioria usava roupas brancas.

Os de preto lutavam para sair com as próprias mãos — pelo menos não havia

um tiroteio.”

Quando me confrontou em seu escritório na primeira vez em que entrei

no Reich, Heinz disse que eu não sabia as regras do clube, ou jamais teria ido

com aquela roupa. Lembrei da loira beijando o pescoço do homem naquela


mesma noite. Beijando não, mordendo, se alimentando. Então compreendi um

dos mistérios mais simples de Reich. Os de branco estavam mortos na noite do

ataque porque eram humanos, e os de preto não precisavam de armas porque eles

eram as armas.

Tomei um banho rápido e escolhi a roupa para a noite: um vestido branco

sem alça, curto e justo. Salto alto, batom vermelho e o canivete da sorte

escondido entre os seios. Peguei uma bolsa vermelha de couro da minha mãe,

grande o suficiente para esconder a pasta com documentos que roubei do Reich.

Se eu tivesse sorte, ainda poderia devolver sem ser notada.

Naquela noite, eu seria o lobo na pele de cordeiro, ou melhor, a vampira

na pele de humana.

★ ☽ ☯ ☾ ★
Escondida na penumbra do carro, atrás do volante, observei a

movimentação do Reich, contando mentalmente quantos eram vampiros. Até o

momento, dez homens e oito mulheres, além dos que já estavam lá dentro antes

de eu chegar. Uma mulher escultural de cabelos vermelhos e roupa mais curta

que a minha se aproximou da entrada. Fechei os olhos e deixei minha audição

fluir: “casa da noite”, ela disse ao porteiro. Nossa! Alguém tinha que avisar ao

Heinz que aquelas senhas eram ridículas. “Vou drenar todo o seu sangue e

destruir sua vida” seria bem mais apropriado.

Respirei fundo, ganhando coragem para entrar no Reich agora que eu

sabia o que o prédio de alvenaria escondia. A vibração do celular quebrou minha

concentração, e eu fiquei em dúvida se atenderia ou não. Contudo, o fiz. O nome

que brilhava na tela raramente me ligava, a menos que tivesse alguma

informação importante.

— O que você pensa que está fazendo, Isadora? — A voz grave de Isaac,
o meu instrutor da academia, parecia gritar em meu ouvido.

Todos os meus sinais de alerta dispararam. Como Isaac sabia que eu

estava prestes a entrar no Reich sozinha e sem avisar a ninguém?

— O que você pensa que estou fazendo?

— Você está negligenciando o seu treinamento e a sua saúde. — Ele

brigou comigo. — Eu não quero que volte a ser aquela Isa de três anos atrás.

Suspirei. A Isadora de três anos atrás era uma mulher imatura e irritada,

com raiva do mundo. Uma Isa que quase matou um cara durante uma estúpida

briga em um bar. Isaac me parou antes de dar o golpe final. Desde então, eu

tenho ido todos os dias treinar com ele para descarregar minha energia

acumulada.

— Estou ocupada hoje, deveria ter ligado para desmarcar, me desculpe.

— Respondi com sinceridade. Eu não queria voltar a ser uma pessoa sem

controle.
— Você já fez isso ontem. — Ele suspirou, pude ouvir sua respiração

através da linha. — Takao está com você?

Eu ignorei todas as ligações do meu parceiro, apenas mandei uma

mensagem avisando que precisava de um tempo. Não podia envolver ainda mais

Cecília e Takao naquela confusão. Era muito arriscado para eles.

— Hoje não.

— Você sabe que pode contar comigo, não sabe? Não importa o

problema, Isa, venha a mim, que eu te ajudo a resolver.

A voz de Isaac era solene. Eu tinha certeza que ele, Takao, Ceci e até o

nosso amigo policial, Tom, tentariam me ajudar de todas as formas,

independentemente do perigo, mas aquele era o exato motivo para eu estar aqui

sozinha. Não poderia deixar mais humanos se aproximarem do Reich.

— Eu sei, obrigada.
Isaac desligou depois do “cuide-se”, sua despedida habitual. Respirei

fundo e, com passos firmes, saí do carro e me aproximei do segurança. Ainda

bem que era um diferente do homem que havia barrado minha fuga na outra

noite. Repeti a senha que ouvi a ruiva falar e entrei. Tive uma sensação de mau

agouro e uma vontade incontrolável de fugir quando imaginei os corpos caídos

no chão como a tia Luna descrevera.

Era tão estranho que eu tivesse seguido os mesmos passos da minha tia...

Eu era muito nova quando ela foi embora, e sobraram apenas flashes de memória

que sempre tentei suprimir.

O Reich parecia o mesmo da descrição de trinta anos atrás, pensei

enquanto caminhava até o bar da forma mais casual possível. Ficar parada no

meio de um clube vampírico, parecendo um farol por causa da luz negra

brilhando fluorescente contra a roupa branca, era mais atenção do que eu

gostaria de chamar.
— Qual a sua melhor bebida? — Flertei com o barman, que, assim como

na outra noite, se mostrava habilidoso ao fazer malabarismos com as garrafas.

Agora que eu sabia de seus reflexos vampíricos, o truque não parecia tão incrível

quanto antes. Claro que não verbalizei isso, apenas pisquei meus cílios como

uma boa garota e elogiei suas grandes e fortes mãos. Sempre conseguia

informações boas paquerando garçons e atendentes.

— Você é a melhor bebida, princesa. — Ele piscou um olho para mim e

preparou um drinque com líquidos multicoloridos. Com um conta-gotas, pingou

uma única gota vermelha. — Mas pode beber esta, por conta da casa.

— Obrigada.

Desconfiada, encarei o copo. Era bonito e chamativo, o cheiro parecia

delicioso. Entretanto, seria seguro beber aquilo? O homem começou a rir ao

notar minha hesitação.

— É a sua primeira vez aqui, não é? Pode beber, só vai te dar um barato
legal.

Que reconfortante! Um vampiro mandando um humano beber algo e

dizendo que é seguro. Só um trouxa cairia naquela! Ele riu ainda mais.

— Nos dê algum crédito. Você entrou aqui em busca de emoção, né? —

Ele se inclinou em minha direção. — Qualquer um de nós poderia tirar sangue

de vocês contra a sua vontade. Temos força o suficiente para fazer isso sem que

você perceba o que aconteceu, mas não é o nosso costume. Não porque você

deixou de tomar uma bebida em nosso bar, mas porque alguns de nós se

lembram de como era ser um humano, então não concordamos em matar por

prazer.

O que significava que eles matavam por necessidade. Anotado.

— Só alguns de vocês? — Levantei uma sobrancelha em

questionamento, e ele deu de ombros.

— Todos que estão aqui.


Hum... Heinz me falou sobre outros inimigos, não sei se eu gostaria de

encontrá-los.

Hesitante, tomei um gole. Era bem mais doce do que eu esperava, com

um gosto de frutas tropicais. No final, eu podia discernir um leve toque metálico

do sangue.

— Você me deu uma bebida doce de menininha! — Mordi os meus

lábios e com sutileza toquei em sua mão que repousava em cima do balcão.

— Cuidado. — Ele olhou para minha mão que encostava na sua. — As

doces são as mais traiçoeiras, atacam quando a gente menos espera.

Tive a sensação que não estávamos mais falando de bebidas. Continuei

meu questionamento, já que ele parecia no humor para responder.

— Por que só uma gota vermelha?

— É o que vocês conseguem aguentar, não queremos que fiquem


bêbados no primeiro copo. — Ele apontou para o pote de gorjetas. — Seria ruim

para os negócios.

Entendi a dica, coloquei uma nota de vinte lá e continuei bebendo o meu

drinque. Ainda estava relativamente cedo, e não havia muito movimento. A

maioria dos vampiros estava na pista de dança com pares humanos ou

conversando em grupos. Nenhum sinal de Heinz. Voltei minha atenção para o

barman.

— Eu sou Izzy. — Estendi minha mão para ele. — E você?

— Guto, é um prazer conhecer tão bela dama. — Ele aceitou minha mão

e beijou o dorso com reverência. Um gesto tão antiquado, que me fez questionar

em que ano Guto nasceu.

— Você trabalha aqui há muito tempo?

— Você faz muitas perguntas para uma novata, geralmente elas ficam

maravilhadas ou amedrontadas com o que encontram. — Ele cruzou os braços e


me observou como um gavião.

Droga! Precisava disfarçar mais. Tomei o resto bebida e pedi um refil.

— Sou curiosa. É um mundo novo, tantas possibilidades. Eu tenho medo,

mas aqui sei que estou segura. — O que era uma mentira: pelo relato de tia

Luna, muitos humanos foram massacrados na noite que nasci. — Só queria

entender mais, onde não posso ir. Qualquer coisa que faça eu me sentir segura

fora daqui.

Terminei minha fala com uma voz chorosa, até consegui uma lágrima

errante que deslizou pela minha bochecha. O olhar de Guto suavizou, ele parecia

compadecido. Sorte minha que eu era uma boa mentirosa. Qualquer ansiedade

ou mudança na frequência cardíaca seria perceptível para ele.

— Não vá à noite na região das docas e você estará segura.

— Você é um cara legal. — Coloquei a mão em meu peito em um gesto

teatral. Retirei duas notas de cinquenta da minha bolsa e deixei em cima do


balcão. — Muito obrigada.

Terminei o drinque e me levantei para sair. Uou! O mundo girou um

pouco quando fiquei em pé. Eu não tinha comido nada desde o café da manhã, e

beber de barriga vazia nunca era uma boa ideia. Não era à toa que dois copos

deixaram a sensação que eu tinha bebido vinte. Agradeci mais uma vez ao Guto,

e ele riu, perguntando quem era a menininha agora.

Circulei pelo clube, procurando algum sinal de Heinz, mas nada

encontrei. Logo naquela noite ele decidiu não aparecer! Fazer mais perguntas só

chamaria atenção desnecessária, mas pelo menos eu tinha uma pista sobre os

outros vampiros da cidade. As docas se tornariam o próximo lugar de buscas por

informações.

Olhei para trás e vi que Guto continuava me seguindo com o olhar. Pelo

visto, minha curiosidade despertou o seu interesse. Eu precisava despistá-lo. De

repente, alguém segurou minha cintura. Olhei para ver quem era e me deparei
com um vampiro loiro de olhos claros.

— O que uma beleza como você está fazendo sozinha aqui? — Sua voz

era meio musical, com um sotaque forte que eu não conseguia identificar. A

aparência jovem sem rugas contrastava com a experiência marcada em seus

olhos. Lembrei mais uma vez do diário de Luna: Alice, a mulher que Luna

estava vigiando na noite em que nasci, minha mãe adotiva, estava sentada no

colo de um homem antes do caos se instalar no Reich. Decidi usar essa

informação a meu favor:

— Procurando alguém que me faça companhia. — Respondi com doçura

e deixei que ele me conduzisse com destreza pela pista de dança.

Eu não sabia se era a bebida ou se era porque nunca tinha dançado com

um vampiro antes, mas sentia como se estivesse flutuando em outro mundo. As

luzes brilhavam ao meu redor, e o gelo seco dava um ar de mistério enquanto a

música mudava para uma mais lenta e sensual. Seu corpo se juntou ao meu, e eu
encostei a cabeça na curvatura do seu pescoço. Nem mesmo a bolsa pendurada

no meu ombro incomodava naquele momento; dançar parecia algo natural.

Logo minha atenção se focou no fluxo sanguíneo dele passando sob a

pele. O homem falava, falava e falava, mas eu não prestava atenção. Não sabia

nem o seu nome. A fome me dominava, meu estômago doía tanto! Parecia que

nunca tinha sido alimentado.

Um casal ao nosso lado dançava colado um no outro, até que a mulher

jogou o pescoço para o lado, e eu pude ver as presas brancas do homem

brilharem na luz antes de afundarem no pescoço dela. Se eu respirasse bem

fundo, poderia sentir o gosto do sangue da garota vertendo para dentro dele.

As gotas que ingeri no drinque só fizeram aumentar minha sede. Uma

amostra de um banquete para uma pessoa faminta. Eu precisava de mais, muito

mais. Poderia drenar todos os vampiros do Reich. Por um segundo, invejei as

presas deles, também queria romper a pele com facilidade.


Minhas mãos deslizaram entre nossos corpos, o meu e o do vampiro

loiro, apreciando o tecido macio do terno dele. Ofeguei quando o homem

arranhou meu pescoço com suas presas. Nada de sangue, apenas uma

provocação. Um convite ao que aconteceria se continuássemos aquela dança.

Meus dedos encontraram o seu destino: meu decote. Ele podia achar que eu o

estava seduzindo, mas eu só pretendia alcançar meu canivete.

Haveria sangue no final daquela dança, porém não seria o meu. Matar a

sede era tudo que importava. Eu lidaria com as consequências depois.


Capítulo 13 — Sedenta

Uma mão forte pousou no ombro do meu acompanhante. Surpreso, ele se

virou para enfrentar o recém-chegado que ousou interromper a dança. Aproveitei

a distração para esconder o canivete na palma da mão.

— Sinto muito pela intromissão, Dimitri, mas, se você me permite, eu

gostaria de uma dança com a jovem. — O intruso falou em um tom que deixava

bem claro que aquilo não era um pedido e também que ele não sentia muito pela

intromissão.

— Claro, meu senhor.

O homem se curvou e saiu. Encarei a veia pulsante se afastar de mim.

Não! Heinz se aproximou e me abraçou... Abraçou, não: ele me colocou contra o

próprio peito e me prendeu junto ao seu corpo com seus braços. Tentei soltar,
mas seu abraço era forte demais. Como teve coragem de ficar entre mim e meu

alimento? Não tinha problema, poderia me alimentar dele! Eu o morderia até

romper a sua pele e...

— Relaxa, Izzy. — Heinz tentou me apaziguar. — Respira, finge que está

dançando...

— Me solta! — Virei meu rosto na direção de seu tórax, o morderia ali

mesmo. Entretanto, Heinz segurou um punhado de meus cabelos e puxou minha

cabeça para cima, afastando minha boca de sua pele.

Ele me encarou com uma sobrancelha levantada, e eu vi o branco

perolado de seus caninos se estenderem até perfurarem o lábio inferior. O líquido

carmim brotou de sua boca, e o aroma delicioso me atingiu. A fome que sentia

triplicou, porém Heinz não parecia se importar quando começou a mover nossos

corpos ao ritmo da música e me beijou. Não me preocupei quando furei minha

língua com a ponta de sua presa, antes que ela se retraísse. Estava muito ocupada
sugando o seu lábio. Literalmente.

Os sons da boate se tornaram mais claros. O aroma de sangue, suor e

sexo, se tornou mais nítido. E ainda não era o suficiente, eu queria mais, muito

mais. Seu lábio não mais vertia sangue, a pele tinha se curado e as poucas gotas

continuavam incapazes de aplacar minha sede. Eu parei de fingir que estava

dançando e, com o canivete ainda em mãos, puxei seus ombros para mais perto.

Heinz parou assim que sentiu o frio do metal contra a pele.

— Você está pior do que eu pensava! — Ele segurou minha mão e saiu

me puxando pelo Reich até o escritório. Deixei que fizesse isso, poderia drená-lo

mais facilmente sem todas essas pessoas para me atrapalhar. Heinz trancou a

porta e me colocou contra a parede, de costas para ele. Sua mão em meu pescoço

me mantinha presa. — Entregue a arma, Isadora.

— Não antes de fazer você sangrar. — Com meu salto agulha de quinze

centímetros, dei um chute para trás, atingindo sua perna. O aperto em meu
pescoço afrouxou, e eu utilizei o canivete para cortar o braço que me prendia.

Empurrei Heinz, que caiu no chão, assim como minha bolsa vermelha.

Montei em seu colo antes que ele pudesse se levantar. Com o meu canivete em

sua jugular, perfurei sua pele. Isso! Um fluxo contínuo de sangue escorrendo

livremente era o que eu queria. Retirei a lâmina do seu pescoço e mordi a veia

perfurada, e o líquido quente começou a jorrar em minha boca. Finalmente!

Pensei que ele iria me parar quando suas mãos seguraram meus cabelos,

mas não foi o que aconteceu. Seus dedos provocavam minha pele e alcançaram o

zíper nas costas. Como não tinha alças, o tecido deslizou para baixo, caindo no

peito de Heinz, que não perdeu tempo. Meu sutiã foi puxado para baixo e suas

mãos começaram a me incitar, beliscando, apertando... Enlouquecendo.

Desci mais o meu corpo, até que nossos quadris estivessem alinhados.

Não larguei seu pescoço mesmo quando comecei a ondular contra sua dureza,

para frente e para trás, sentindo a aspereza do seu jeans contra o fino tecido da
minha calcinha. A cada gole que eu tomava, meus sentidos ficavam mais

aguçados. Eu podia apreciar com detalhes o cheiro de sua pele e de sua

excitação. Ouvia o ar que escapava aos ofegos de seus lábios e me movia ao

ritmo das batidas de seu coração.

— Você pretende me secar? — Sua voz saiu meio rouca, talvez porque

eu ainda estava em sua garganta, sugando o máximo de sangue que eu

conseguia. Heinz fez um impulso com os ombros para lateral e para cima,

invertendo nossa posição. Quase rasguei sua garganta no processo. Ele prendeu

meu corpo com suas pernas e segurou minhas mãos acima da minha cabeça.

Observei com tristeza sua garganta cicatrizar e fechar.

— Não! — Joguei meu tronco para cima, tentando alcançar a veia de

novo. Ele estava fraco, e eu quase conseguia escapar de seu aperto firme. Quase.

Teria conseguido, se não fosse a vez dele se alimentar. Seus dentes afundaram

em minha pele, mas não na minha garganta. Heinz mordeu o meu seio, e eu senti
aquela droga maravilhosa que ele carregava nas presas invadindo minhas

artérias, substituindo a sede de sangue por prazer. Ele liberou meus pulsos, e foi

a minha vez de abrir um zíper, só que da sua calça.

— Izzy. — Heinz levantou a cabeça e me encarou. — Consegue pensar

de novo? Lembra quem você é?

Eu até conseguia pensar com mais clareza, contudo não queria. Não

gostaria de pensar sobre os horrores que li por alguns momentos. Dependendo da

conversa que teríamos, aquela poderia ser a última vez que eu beijaria Heinz.

Segurei seus cabelos e o empurrei para baixo, em direção ao meio das minhas

pernas:

— Faça eu me esquecer.

Ele segurou as laterais da minha calcinha e a puxou para baixo:

— Será um prazer.
★ ☽ ☯ ☾ ★

Sentada no sofá do escritório de Heinz, eu encarava sua bunda apetitosa

coberta pelo jeans. Ele me ofereceu uma dose de absinto, porém recusei.

Segundo ele, era uma das poucas bebidas que conseguiam afetar os vampiros. A

versão original da “fada verde”, como era conhecida, tinha quase noventa por

cento de álcool e um tipo de alucinógeno. Não era à toa que fora proibida em

vários países. Mesmo assim, só conseguia deixá-los levemente alcoolizados. O

que seria suficiente para derrubar um vampiro?

Encarei o sangue seco que marcava uma trilha do pescoço ao seu peito

exposto sem camisa, com o abdômen definido à mostra. Exibido. Parecia tão

natural estar com Heinz. Ao lado dele, eu não precisava fingir ou segurar meu

lado selvagem. Era libertador não precisar ser ninguém aquém de mim. No
entanto, o sangue seco que eu estava olhando me mostrava como cheguei perto

de ir longe demais. Estava fora de mim, insana como Luna se descreveu no

diário. Eu tinha feito um estrago no pescoço de Heinz. Por que ele permitiu?

— O que está passando em sua cabeça? — Heinz me perguntou. Ele

colocou o copo meio vazio em cima da mesa e se aproximou, sentando-se no

sofá ao meu lado.

— O que foi aquilo? Eu ia esfaquear aquele homem no meio do Reich e

eu quase bebi todo seu sangue. Por que você não cicatrizava quando eu estava

com a boca no seu pescoço? Eu não conseguia pensar e... — Dei de ombros. —

Na verdade, eu não consigo nem pensar agora. Dá para colocar uma camisa?

Heinz riu e se levantou para resgatar a camisa destroçada no chão. Hum...

Eu não conseguia lembrar quando a tinha destruído. Ele umedeceu um pedaço

do linho no balde de gelo com a garrafa de absinto e usou para limpar o pescoço.

— Nossa saliva tem um anticoagulante poderoso que não deixa o


processo de cicatrização se iniciar. Você comeu hoje? Comida humana ou

sangue? — Ele perguntou enquanto pegava outra camisa em um armário

embutido por trás da mesa. Esse cara tinha fixação por móveis embutidos.

— Eu comi no café da manhã e depois tomei uma bebida doce no bar. —

Como era o nome do barman? Lembrei! — Será que Guto tentou me drogar?

— Guto? Não, ele provavelmente achou que você era humana e deu

gotas de absinto e sangue vampírico com o coquetel. Em uma pessoa normal,

essa mistura multiplicaria o prazer de ser mordida. Com você, potencializou sua

fome.

Pensei no diário da tia Luna, na loucura da fatídica noite que tirou a vida

da minha mãe biológica. Heinz era a chave de tudo! Uma lágrima escorreu pela

minha face, e eu não tentei disfarçá-la, e ele também não tentou secá-la ou fingir

que não a viu. Chorar não era um sinal de fraqueza, era apenas o meu corpo

mostrando a tristeza que sentia.


Heinz pegou outro item do chão: o meu canivete. Ele analisou de perto os

intrincados desenhos.

— Era uma vez uma jovem mulher rica cansada da vida. Ela queria

emoção, adrenalina, e terminou encontrando o que procurava em clube de

vampiros. — Heinz bebeu o resto do absinto em um gole só. — Essa história se

repetiu com muitos homens e mulheres ao longo dos anos, tantos, que é

impossível precisar a quantidade exata. Sempre aconteceu e sempre vai

acontecer. Teve uma noite, entretanto, que uma dessas mulheres acabou

encontrando mais do que procurava. Ela estava no lugar errado, na hora errada, e

tinha sido seguida. Uma detetive entrou despreparada em um mundo que não

conhecia, e isso custou a ambas mais do que esperavam.

Eu mal respirava quando reconheci a história. Heinz sabia quem eu era o

tempo todo? Não sei o que tinha o deixado tão falante, mas com certeza eu não o

interromperia com perguntas. Afundei no sofá, ouvindo uma outra versão do


terror que eu já conhecia.

— Manter o controle sobre um grupo de vampiros não é fácil, Isadora.

Eu tenho inimigos, muitos. Aquela noite não foi um ataque aleatório, eles

buscavam algo, e Luna foi pega no fogo cruzado quando entrou de penetra no

Reich. Eu não sabia quem ela era e muito menos que tinha sido transformada,

nem que você existia. — Heinz devolveu a arma que tinha em mãos. — Não foi

a primeira vez que esse canivete se cravou em minha pele. Você era muito nova

para se lembrar de mim, mas eu tentei ajudar quando ainda era uma menina. Sua

tia não acreditou em minhas boas intenções e fugiu. Depois não as vi mais, achei

que estavam mortas. Não sabia nem que o nome dela era Luna. E depois não

voltei a pensar nela até te ver no Reich. Você parece com Luna, um rosto

delicado que esconde uma mulher forte. Porém, com olhos verdes em vez de

pretos.

— Então você sempre soube quem eu era? — Perguntei, tentando


relembrar todas as conversas que tive com ele.

— Eu desconfiava.

Foi tudo o que ele disse em resposta. Escondi o canivete entre o sutiã e

resgatei a minha bolsa, que tinha ido parar do outro lado da sala. Dela, retirei a

pasta roubada. Minha tia deveria ter uma razão para não confiar em Heinz,

talvez os “eles” da carta não se referisse aos do Reich, afinal. Eu precisava

terminar de ler o diário primeiro.

— Adeus. — Disse e coloquei os documentos em cima da mesa de

madeira maciça. Quando abri a porta para ir embora, Heinz se aproximou em sua

velocidade vampírica. Ele estava o mais perto de mim que conseguia ficar sem

me tocar.

— Estava me perguntando quando você devolveria essa lista, pensei que

checaria cada pessoa nela para tentar provar que eu sou um monstro. — Seus

olhos faiscavam para mim. — Os humanos que frequentam o Reich vem por
vontade própria. Eu não os obrigo a nada e não tive culpa do que aconteceu,

lembre-se disso.

Dito isso, Heinz sumiu pelo clube como um vulto, fazendo com que eu

me sentisse sozinha mais uma vez, ainda que quem dissera adeus tenha sido eu.
Capítulo 14 — Normal

No dia seguinte, despertei com a música estridente que coloquei como

toque para Takao. Era de uma banda japonesa só de meninas, e eu não conseguia

entender uma palavra do que era cantado, porém adorava o ritmo. Alcancei o

celular na mesinha de cabeceira sem abrir os olhos e atendi a chamada. Mal o

cumprimentei, e já ouvi piada:

— Você consegue levantar da cama, ou já virou vampira por completo?

— Vai se lascar, Takao! — Gritei e ouvi sua risada com eco, como se ele

estivesse... — Você tá na minha porta, né?

— Levanta logo, Rainha das Trevas! Tenho novidades urgentes.

Era só o que me faltava, virar a Rainha das Trevas. Fui abrir a porta,

reclamando por ter sido acordada tão cedo, e encontrei Takao com um sorriso
imenso no rosto e uma pasta em mãos. Como alguém ficava animado em uma

manhã de verão? Deveria ser proibido.

Minha cabeça latejava sem parar, e a garganta estava seca. Eu estava com

a versão vampírica de ressaca. Assim que fechei a porta, me encaminhei para a

cozinha. Não queria perder o controle como fiz ontem. Agora que tinha bebido

sangue, precisaria ingerir uma quantidade mínima com frequência. Não

arriscaria ter sede, não quando convivia com tantos humanos por perto.

Liguei a cafeteira e resgatei a garrafa de Heinz do fundo da geladeira.

Enchi metade da caneca com o líquido espesso. Esperava que fosse o suficiente

para me impedir de entrar no modo devoradora de homens. Não estava com

desejo algum de implorar um refil.

— Quais as novidades? — Perguntei enquanto tomava um gole. Delícia!

Claro que seria melhor se fosse diretamente do pescoço de Heinz... Droga!

Homem teimoso que não queria sair da minha mente.


— Hum... — Takao apontou para o meu rosto. — Você está com um

bigode, só que não é de leite.

Limpei com a língua meu lábio superior, e meu amigo fez uma cara de

nojo. Revirei os olhos, afinal todos teriam que se acostumar com minha nova

dieta.

Peguei algumas torradas com geleia de maracujá, a cafeteria apitou, e o

cheirinho delicioso de café invadiu o apartamento. Completei a caneca com o

líquido quente e provei. Hummm... Melhor que um macchiato. Ofereci outra

xícara para Takao, mas ele resmungou que nunca mais beberia café na vida.

— Deixa de bobagem e me diz logo a novidade. Como está a Ceci?

— Está bem, fascinada em como o sangue dos vampiros são semelhantes

ao dos humanos sob um microscópio óptico comum. Ela viajou para pedir

autorização ao antigo orientador para usar o eletrônico na universidade. Não é

tão fácil de conseguir, não sem ter um motivo plausível.


Analisar sangue vampírico era um ótimo motivo, porém Cecília não

podia explicar aquilo para os professores e técnicos. Droga, provavelmente as

horas de viagem seriam em vão. Se falasse a verdade, era mais provável que a

internassem, ou algo do tipo. Além do mais, a lista de associados do Reich era

imensa. Não tinha ideia de quantos humanos em Monte Carlo e nos arredores

eram aliados dos vampiros.

— Essa era a grande novidade? — Perguntei antes de dar uma mordida

em minha torrada.

— Não. — Takao jogou em cima da mesa a pasta aberta com a foto da

filha desaparecida de um dos nossos clientes. — O informante do Isaac entrou

em contato, temos uma pista.

Lembrei da primeira vez que me deparei com aquele caso. Parecia bem

simples no início, uma garota tola de vinte e dois anos desaparecida. Ela fugiu de

casa cerca de um mês antes, quando decidiu seguir uma nova banda que se
apresentava pela cidade. Parecia mais um caso de alguém que queria curtir a

vida com os amigos e aproveitar um pouco da fama por associação.

Sua mãe, no entanto, estava desesperada. Observei a foto da garota

Geórgia. Suas feições eram bem comuns: cabelos castanhos abaixo do ombro e

encaracolados, olhos da mesma cor e um rosto redondo com algumas espinhas.

Eu já tinha visto mulheres deslumbrantes com aquelas características, mas

Geórgia não era alguém que pudesse chamar atenção por conta própria. Aceitei o

caso esperando encontrar a menina em um dos shows pela cidade. Tinha certeza

que seria grana fácil. Que engano! Procurei em todas as raves, boates, bares e

casas de show da redondeza. Ninguém viu ou ouviu falar da garota havia um

bom tempo.

Aquele era o motivo de Isaac ter me ligado na noite anterior! Por

trabalhar em várias academias e ensinar artes marciais, ele tinha contato com

diversos seguranças de clubes noturnos e eventos da cidade. Ele era a minha


conexão com gente que soltava o verbo em troca de dinheiro.

Terminei de comer e levei o prato até a pia para lavá-lo enquanto

perguntava:

— O que Isaac disse?

— Nada, você sabe que ele só fala para você e pessoalmente. — Takao

encolheu os ombros e abriu o mapa da cidade com os últimos pontos onde a

garota tinha sido vista.

Nas últimas duas semanas, ela não mais seguia os padrões de

apresentação das bandas de rock, suas aparições diminuíram, até que

desapareceram por completo. Só então os pais nos contrataram. Se não tivessem

demorado tanto, ela já teria sido encontrada.

Terminado o café, me arrumei e segui Takao até o nosso escritório, no

centro da cidade. Eu não podia viver em função do Reich e dos vampiros. Tinha

um trabalho, e pessoas dependiam de mim.


Estava editando as gravações para provar a traição de um marido para

sua esposa, quando minha mãe apareceu no escritório.

— Sente-se, dona Alice. — Eu a chamei pelo nome e indiquei a cadeira

em frente a mim. Não deixei de pensar naquela mulher como mãe depois do que

descobri. Mesmo que não compartilhássemos o mesmo DNA, ela me criou desde

pequena. Entretanto, não facilitaria; ainda estava chateada.

— Eu sou sua mãe, Isadora. Cuidei de você quando teve pesadelos, te

eduquei, te alimentei e te dei carinho. — Ela bateu no próprio ventre. — Eu te

amo como se você tivesse saído daqui!

— Mas não saí, né? Você leu o diário, sabe como eu nasci. Sabe que

minha mãe morreu por sua causa!

Ela me olhou com serenidade, seu nervosismo denunciado apenas por

uma lágrima furtiva que escapava por sua bochecha. Encarei os quadros

abstratos contra a parede branca por trás dela. Não podia perder a mente.
— A sua mãe morreu porque se deparou com uma vampira durante a

cólera de sangue, e a sua tia se transformou em vampira porque eu escolhi salvá-

la na hora do desespero em vez de assistir uma mulher inocente morrer. — Ela

olhou pela janela para o céu azul sem nuvens do lado de fora e voltou a me

encarar. — Eu não queria que você trabalhasse como detetive, você reclamou,

brigou e saiu de casa para seguir sua profissão. Todas as vezes que sai para

investigar um caso, está se arriscando pelo seu trabalho. A sua tia também, ela

assumiu os riscos e sofreu com as consequências.

Como ela podia ficar tão calma diante de todo o horror escrito naquele

diário?

— Você está me dizendo que não tem culpa de nada? — Bati na mesa

com força, incapaz de segurar minha raiva, e uma rachadura surgiu na madeira.

— Sim, eu assumo os riscos do meu trabalho. Sim, minha tia fazia o mesmo. A

falta de intenção não exime sua culpa! E quanto aos incontáveis psicólogos que
me taxavam com os mais variados rótulos? Disseram que eu era Aspenger,

esquizofrênica, hiperativa, sociopata! Me entupiram de remédios que de nada

adiantaram. E para quê? Para que ninguém descobrisse que você era piranha de

vampiro!

Alice ficou em pé de supetão, e achei que tentaria me bater, mas sua mão

se levantou em minha direção e apenas um dedo permaneceu apontado para

mim:

— Me respeite! Errei sim, procurei uma fuga para a rotina do casamento.

Eu era uma esposa troféu de útero vazio, sabe o que é isso? Seu marido esperar

um herdeiro que você não podia dar? Achei que no Reich encontraria a cura da

minha infertilidade, mas esse era um problema que o sangue de vampiro não

poderia resolver. Terminei viciando naquela droga de bebida! — Suas lágrimas

caíam livremente, maculando o vestido rosa. — Eu amava o Fernando, mas não

conseguia ficar longe do Reich. Depois daquela noite, procurei uma clínica de
reabilitação. Sofri por meses antes de me recuperar. Eu não te queria neste meio,

minha filha. Quando Luna surgiu em minha porta e pediu que cuidasse de você,

tentei te devolver a chance de ter uma vida normal, uma vida humana.

— Eu nunca fui normal, mãe. — Falei o nome “mãe” como trégua. Não

concordava com seus métodos, porém consegui entender sua motivação. Guto, o

barman do Reich, me deu uma bebida grátis porque era minha “primeira vez” no

clube. Filho da mãe! Ele só queria garantir que eu provasse de sua mistura

especial viciante.

— Espero que um dia me perdoe. — Mamãe deu a volta na mesa e beijou

minha cabeça, mas não retribui seu gesto. — Se cuide, filha. Você pode ser

metade vampira, mas ainda é parte humana.

Depois que ela saiu, tentei me concentrar no trabalho, porém não

consegui. Desliguei o computador sem terminar a edição do vídeo do marido

traidor. Era envolta por tanta traição em todos os aspectos da minha vida, que
comecei a desacreditar na instituição do casamento. Takao tentou me animar,

invadindo meu escritório com bolo e sorvete. Até que foi divertido passar o resto

da tarde sentada no sofá branco comendo porcaria e falando bobagem.

Antes de anoitecer, fui para a Academia do Isaac com minha roupa de

ginástica. A Academia era em um prédio de três andares: o inferior, com os mais

modernos aparelhos de musculação e aeróbica, o segundo, com tatames e armas

para treinamento, e o terceiro, restrito para funcionários. Isaac dava aulas para

turmas, mas as minhas sempre eram particulares. Eu pagava uma taxa a mais

para ter certeza que não arriscaria machucar um aluno inexperiente.

O andar de baixo estava lotado com as mesmas pessoas de sempre.

Cumprimentei os poucos que se deram ao trabalho de olhar em minha direção e

subi direto para o segundo andar. Quando cheguei lá, Luís se alongava nos

tatames, fazendo questão de evidenciar cada músculo bem trabalhado. Ele me

recebeu com um sorriso no rosto e andou até mim com os braços estendidos:
— Pensei que tinha me abandonado! — Disse, e eu o abracei. Apesar de

paquerador, Luís era bem inofensivo. — Achei que tinha sido sequestrada no

“Reixe”. Isaac ficou doido quando Takao comentou que vocês iam lá.

Ri de como ele pronunciou o nome Reich errado, mas estranhei a sua

informação. Takao falou com Isaac sobre o Reich?

— Se pronuncia “raife”. Quando foi isso?

— “Raife”? Quem manda usar nome inglês? Aí a pessoa vai para a boate

e erra o nome... Se bem que eu nunca consegui entrar lá. O Isaac me coloca tanto

medo sobre o lugar, que eu...

— Ei, ei, ei! — Estalei os dedos na frente dele. — Foco! Primeiro, o

nome é alemão, como o dono. Segundo, me explique isso direito.

Ele deu de ombros e disse:

— Ah, uns dias atrás você disse que não vinha para cá porque precisava
ir a um clube. Logo em seguida, eu ouvi Isaac ligar para Takao e perguntar para

onde iam. Ele ficou meio louco quando soube, mas já era hora de a academia

fechar, e eu fui para casa.

Antes que pudesse questioná-lo mais, ouvi o barulho de algo rápido e

pequeno se movendo em minha direção. Empurrei Luís para direita e me joguei

para a esquerda. Uma brilhante arma prateada cravou no chão exatamente onde

eu estava antes. Levantei com um impulso dos meus pés e fiquei frente a frente

com meu agressor. Ele tinha outra arma idêntica na mão direita. Sem desviar de

seu olhar, me abaixei e peguei o que parecia uma pequena faca de três pontas do

chão.

— Está pronta? — Ele sorriu e apontou para mim o metal afiado.

Separei os pés, ficando em base, imitando sua posição.

— Nasci pronta.

E então o ataquei.
Capítulo 15 — Sai

As armas se chocaram quando avancei, metal contra metal. Ele

aprisionou minha adaga na dele, e eu a larguei para desferir um soco de direita.

A cabeça do homem virou de leve para o lado, atordoando-o. Ainda bem que

controlei minha força, ou ele estaria a caminho do hospital...

— Belo golpe. Pegue as adagas. — Isaac comandou, sacando uma espada

longa do bainha que levava na cintura.

Peguei as duas armas caídas no chão e segurei uma em cada mão. Já

tinha lutado com elas antes, mas foi um bom tempo antes. Não eram adagas

comuns. Sua origem era oriental, havia uma lâmina central e duas projeções

menores e simétricas nas laterais. Semelhante a um pequeno tridente, as adagas

sai eram usadas em par e tinham a extremidade bem fina e feita em aço. Aquela,
entretanto, parecia diferente, modificada, um pouco mais achatada e larga, com a

borda cortante. O cabo de sua empunhadura era todo trabalhado em um padrão

vermelho e prateado, e a lâmina tinha delicados semicírculos. Nunca tinha visto

uma arma tão bonita!

Luís levantou do chão e alisou a bunda.

— Vocês são dois malucos. Como vou fazer agachamento com meu

traseiro doendo desse jeito?

Ele saiu mancando, e eu ri de suas reclamações. Ora, só dei um

empurrãozinho! Era melhor aquilo do que ser espetado pelo sai. De repente,

Isaac me atingiu com o punho da espada: minha distração me rendeu um

impacto nas costas. Desequilibrei para frente, mas, em vez de cair com a cara no

chão, fiz um rolamento pelo tatame e me levantei com as armas em punho.

— Nunca dê as costas para uma pessoa armada. Por mais que você confie

nela, ainda é uma ameaça em potencial. — Isaac me deu uma bronca e continuou
o treino. — O sai é uma adaga que tem duas funções principais: desarmar o

oponente, prendendo a lâmina inimiga no tsuba, essas projeções laterais, como

fiz com você um segundo atrás. — Ele sorriu, vitorioso. Isaac adorava vencer

qualquer luta que travasse. — E também serve para ser arremessada, desde que a

distância seja de no máximo quinze metros...

— Entendido. — Olhei para as belas adagas em minhas mãos. — O que

devo fazer agora?

Isaac apontou a espada para mim e me provocou:

— Me desarme, se puder.

Com prazer. Eu o circulei, analisando meu oponente com tranquilidade.

Isaac não brincava durante os treinos, eu sabia que aquela espada estava afiada,

do mesmo modo que os sai em minhas mãos. No início, quando eu pensava que

ele era como os outros, que apenas simulavam combates, me machuquei durante

uma das lutas. Lembrei do corte profundo em meu braço, que estava curado
menos de vinte e quatro horas depois. Eu deveria ter percebido que não era

normal...

Isaac se mantinha em base: pernas afastadas e joelhos ligeiramente

flexionados. Aquela era sua regra número um, manter uma posição firme e

confortável para não ser derrubado no primeiro ataque. Usar a supervelocidade

seria a forma mais fácil de conseguir meu objetivo, porém não teria como

explicá-la depois. Odiava ter que me policiar o tempo todo, nunca me permitir

atingir o potencial máximo. Eu não fazia ideia da minha real capacidade e

sempre ansiei ter a liberdade para descobrir.

Avancei em uma velocidade controlada e arremessei o sai da minha mão

esquerda, mas Isaac desviou com a espada, jogando a adaga no chão. Aproveitei

para avançar mais rápido e aprisionei a sua lâmina como ele demonstrou, usando

um movimento de torção. Sua espada e o meu sai fizeram um barulho quando

atingiram o tatame. Merda! Perdi a minha arma também, mas venci o desafio.
— Consegui! — Gritei triunfante.

Os olhos ônix de Isaac se concentraram em mim. Ele segurou o meu

pescoço e me trouxe para mais perto. Com a mão esquerda, sacou a uma arma

oculta em suas costas. Senti o metal frio contra a minha garganta e uma pitada de

dor, um arranhão em meu pescoço. Ofeguei por um momento, considerando

atacar. Porém, relaxei em seguida, estava em um ambiente controlado, não em

um bar de vampiros.

— O sai deve ser usado em trio, não em par. Sempre tenha um

escondido, para o caso de desarmarem o que leva em mãos. — Isaac meu soltou

e entregou o terceiro sai, um pouco menor e mais fino que os outros dois.

— Sabe que isso não vale, né? Você roubou. — Andei até a minha bolsa,

largada no canto do tatame, e peguei uma toalha para limpar o meu pescoço.

Apenas algumas gotas de sangue. Achei que tinha me arranhado mais por causa

da dor que senti. Oh, Deus! Será que eu me curei instantaneamente na frente de
Isaac? Tomei sangue apenas no café da manhã, esperava que o poder de cura já

tivesse diminuído. Isaac não esboçou nenhuma reação... Será que ele...? Não,

estava ficando paranoica! Ele não me cortaria de propósito, foi apenas um

arranhão.

Isaac tirou o colete de proteção que usava e a camisa, revelando um tipo

diferente de coldre preso ao seu peitoral... E que peitoral! O esporte e a luta eram

sua profissão, sua vida. Com quase dois metros de altura, zero por cento de

gordura e puro músculo revestido em pele negra sem falhas, Isaac chamava

atenção por onde passava.

— Se você tivesse vindo nos dois últimos treinos, saberia que eram três

em vez de duas. — Ele passou a mão na cabeça raspada antes de soltar o coldre e

me entregar também. — Você ficará com isto e com os sai, eu quero que treine

sua empunhadura em casa e os traga todos os dias. Não sei quando, mas em

algum momento do mês eu farei um ataque surpresa, entendeu? Esteja


preparada.

Fazer ataques surpresa era uma das táticas de Isaac para manter seus

alunos sempre em alerta. Ele nunca tinha me dado armas antes, entretanto.

Aquele era um dos motivos de eu ter permanecido em sua academia por tanto

tempo: Isaac tinha o dom de se reinventar.

— Ok, pode apostar esse seu cavanhaque que eu estarei preparada. —

Provoquei e o atingi no ponto fraco. Eu sempre brincava dizendo que ele era

velho porque estava careca e nunca admitia que o cavanhaque emoldurava bem o

seu rosto. Não sabia sua idade exata, porém apostaria em uns quarenta anos.

Testei o coldre por cima do top de ginástica, e Isaac me ajudou a ajustar

para o meu tamanho.

— Takao me disse que você tem informações sobre Geórgia. —

Comentei.

Ele voltou a vestir a camisa e me observou com desconfiança.


— Eu tenho, mas só se você me prometer ir lá amanhã durante o dia e

com o Takao. — Respondeu, e eu revirei os olhos com impaciência enquanto ele

pegava um pedaço de pano que usou para polir a espada antes descartada no

chão. — Não faça essa cara. Eu sei que você pode se cuidar sozinha, mas não

adianta ir agora. Meus informantes disseram que ela estaria lá pela manhã.

— Ok, eu prometo. — Falei com convicção suficiente para ele acreditar.

— Ela está nas docas, píer treze.

— Docas? — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia. Ferrou!

Logo nas docas? Guto tinha avisado que um dos “lugares ruins” da cidade que

deveriam ser evitados era exatamente as docas. Peguei minha bolsa e corri para a

porta de saída.

Isaac gritou:

— Isadora, lembre-se de sua promessa!


Eu não me dei ao trabalho de responder. Se a garota chegasse nas docas

antes do amanhecer, correria grande perigo. Eu sabia que Geórgia não era uma

santa, mas não desejava sua morte. Segundo as informações que coletamos, a

garota se escondeu pela cidade usando codinomes, assumindo identidades falsas.

Ela era uma imitadora, uma golpista que lucrava se passando por boa moça e

fazendo amizades para vender seus produtos. Eu ainda não tinha certeza quais

produtos seriam esses ou qual a qualidade deles, mas Takao encontrou diversos

clientes insatisfeitos com a produção da garota.

Ao que parecia, Geórgia abandonou a banda que seguia por um esquema

melhor, até que tudo deu errado. O problema era que eu não fazia ideia de qual

foi o problema, e as docas eram a única pista de seu paradeiro atual. Isaac

poderia me perdoar depois, mas não ir lá naquela noite era uma promessa que eu

não pretendia cumprir. Eu me sentia inquieta, com um pressentimento ruim.

No carro, vesti uma camiseta larga para esconder os sai. Calcei minhas
botas e ocultei o canivete nelas, verifiquei a Glock e a coloquei no outro coldre,

na lateral do meu peito. Chequei tudo: arma, sai, canivete, força e velocidade

vampírica. Era um exército de uma mulher só, e eu torcia para que fosse

suficiente.

Avancei pelas ruas em alta velocidade. Por sorte, o horário de pico já

tinha passado, e a cidade estava pouco movimentada. Em quinze minutos,

cheguei às docas. O cheiro de óleo, maresia e peixes em decomposição era

insuportável. Parecia se impregnar em cada poro meu. Como os vampiros —

com seu olfato tão apurado — conseguiam viver ali? Talvez fosse uma vantagem

para eles, o odor deveria ajudar a mantê-los ocultos de vampiros rivais.

Deixei meu carro afastado e fui me esgueirando pelas sombras até o píer,

procurando por pistas, qualquer coisa que revelasse atividade humana recente —

mais especificadamente, da garota inconsequente. Contra a minha vontade,

respirei fundo, procurando no ar qualquer outro aroma. Isaac se enganava se


achava que era melhor vir de manhã, eu era muito mais forte sem o sol me

incomodando. Entretanto, não detectei nada. Deveria ter ido em casa para uma

dose extra de sangue, ajudaria a encontrar Geórgia.

Deixei meus outros sentidos livres, permitindo-me ouvir além do que um

humano normal seria capaz. Um lamento baixo chamou a minha atenção, parecia

um choro enfraquecido. Imediatamente, segui o som. Desviei da sujeira que

cobria o chão, restos de plástico, papéis e comida, além de sobras de

carregamento de milho e arroz. Os enormes guindastes amarelos balançavam

levemente com um sinistro rangido metálico. O que Geórgia estaria fazendo por

ali?

O vento frio arrepiou minha pele, e eu tentei não ouvir o barulho de

pequenas patinhas correndo por perto. Ratos, nojento. O choro vinha de um

grande contêiner laranja do outro lado das docas, longe da área de aportamento

das embarcações. Encostei meu ouvido na porta de metal. “Tem alguém aí?”,
gritei.

A resposta foi um leve suspiro de alívio seguido por um entrecortado

pedido de socorro. Geórgia ou outra pessoa, alguém estava preso naquela caixa,

e eu não era mulher de negar ajuda. O cadeado enferrujado não foi um

empecilho, usei a ponta do sai para quebrá-lo com facilidade. As correntes

caíram no chão com um baque, e eu rezei mentalmente para que apenas eu

tivesse ouvido.

Iluminei com a lanterna do celular o interior escuro daquela caixa

metálica. Por um segundo, achei que não havia ninguém lá, até que vi um corpo

caído no fundo. Geórgia. Sua roupa rosa estava maculada de sangue e

excremento. Prendi um suspiro de puro choque, nunca tinha visto nada igual.

Marcas roxas de mordida cobriam seus braços e pernas, sangue seco

contrastavam com o branco de sua pele. A garota virou seu rosto, e percebi que

não havia mais nada de comum nele. Estava inchado, com um olho roxo e os
lábios cortados.

— Me ajude... — Ela disse enquanto um acesso de tosse a fazia cuspir

sangue e manchar o chão com o líquido vermelho. Eu estava estática, não

esperava encontrar nada tão atroz. Tirei a jaqueta e enrolei o dorso da menina,

que tremia de frio.

— Calma, sua mãe me mandou para te salvar. — Enquanto ligava para a

emergência, Geórgia sorriu com a menção da mãe. O sorriso desapareceu

quando voltou a tossir, e, dessa vez, a tosse não cessava.

Eu não sabia o que fazer, além de manter a cabeça da garota de lado. Não

havia treinamento de primeiros socorros que pudessem ter me preparado para

aquela situação. O queixo de Geórgia agora batia tanto, que chegava a ecoar

dentro do contêiner. Ela poderia entrar em hipotermia a qualquer momento.

— O socorro está vindo, aguente firme, Geórgia. — Usei a jaqueta para

tentar, desesperadamente, conter o fluxo de sangue que saía de sua boca.


— Não adianta... — A derrota era evidente nos olhos da jovem. Ela

sofreu muito, e a esperança tinha sido esmagada em seu ser. — Se eu sobreviver,

eles vão tentar me matar de novo.

— Eu te protegerei. — A promessa não era vã, era exatamente o que eu

pretendia fazer. Quem tivesse feito aquilo, humano ou vampiro, pagaria. Seja

pela justiça, ou por minhas mãos.

O “não” da menina foi seguido por outro acesso de tosse. Eu podia ouvir

o som estridente das sirenes ao longe, eles estavam tão perto! Ela tinha que

sobreviver. Cortei meu pulso com o sai e pressionei contra seus lábios frios. Não

sabia se adiantaria, mas era a única coisa que podia tentar. Geórgia se engasgou

com o sangue, e seu grito de dor encheu a noite. Com esforço, a jovem colocou a

mão no peito. Ela apertava a roupa, como se aquilo fosse, de algum modo,

aliviar a dor. Não!

— Desculpa. — As palavras balbuciadas mal eram audíveis, mesmo para


a minha audição aguçada. — Diga... Diga que não era minha intenção... Ele...

Ele...

— Vamos, continue falando, não me deixe. Quem é ele? — Berrei,

tentando mantê-la acordada.

— Heinz. — Geórgia disse com muito esforço antes de perder os

sentidos.

Heinz.

Um único nome.

Um nome capaz de estraçalhar o pouco de esperança que eu tinha.


Capítulo 16 — Docas

— Acorda. — Sacudi a garota inconsciente. — Não morre, caramba!

Eu fui paga para encontrar Geórgia e devolvê-la à mãe. Com vida! Não

daquele jeito, não em minhas mãos. Tentei massagem cardíaca, podia ouvir seu

coração batendo cada vez mais devagar. Merda, merda, merda! As lágrimas

vertiam do meu rosto. Eu não podia acreditar que estava de paquera com o Heinz

enquanto ele mantinha essa menina em cativeiro, trancada em um galpão fétido

como um objeto descartável. Meu ódio era tão grande, que mal podia raciocinar.

Eu queria arrancar cabeças com minhas próprias mãos e rasgar gargantas com os

dentes. O odor de sangue coagulado naquele ambiente fechado só piorava a

situação.

Queria levá-la para longe dali, porém tinha medo de movê-la. E se algum
osso estivesse quebrado? As sirenes estavam mais perto. Cinco, seis minutos e

chegariam. Ouvi grunhidos do lado de fora. Não eram os paramédicos, não

ainda. Nós não estávamos sozinhas. Ótimo.

Tirei minha camiseta e a coloquei embaixo da cabeça de Geórgia. Fiquei

com o top, o coldre nas costas e as armas à mostra. Com a Glock em uma mão e

o sai na outra, abri a porta do galpão para me deparar com uma cena inusitada:

uma luta entre vampiros. Eles eram rápidos, praticamente vultos para olhos

humanos. Sorte minha que eu nunca fui humana. Quatro ou cinco vampiros, não

tinha certeza, lutando contra somente um, vestido todo de preto, usando um

capuz. Eu não reconhecia nenhum deles e tampouco tinha certeza que o

encapuzado, só porque estava em desvantagem, era meu amigo. Não que fizesse

muita diferença para mim. Eu queria vingança. Pela menina que perdia a vida no

galpão imundo e por todas as outras que já passaram ou passariam por aquela

situação. Levantei a Glock e mirei no meio da massa de vultos, descarreguei


metade do pente, sem me importar em quem eu acertaria.

O tiro ecoou pela noite, e eu pude ouvir um grunhido de dor. A briga

cessou, e o silêncio praticamente nos cercou. Eu me concentrei na respiração

pesada deles. Cinco pares de olhos iridescentes se viraram para mim, eles

pareciam surpresos com a garota humana vestida de preto com a arma apontada

para eles. Não sabia a reação do homem de máscara, apenas via o brilho de seu

olhar. Os outros cinco vampiros — magros, com jeans baixos que mostravam a

cueca e correntes, como se fossem uma caricatura de integrantes de gangue —

sorriram de uma forma sinistra, mostrando as presas. Eles achavam que eu seria

a próxima refeição. Tolos.

Guardei a Glock no coldre e saquei o segundo sai. O homem encapuzado

aproveitou a distração e cortou a cabeça do vampiro à esquerda em um

movimento fluido de sua espada curta. Antes que o cara virasse pó, ele já estava

atingindo o coração do segundo homem.


— Ah, droga! Assim você acaba com minha diversão. — Gritei para o

desconhecido e ataquei os dois remanescentes. O da direita avançou,

determinado a alcançar minha garganta, mas eu o acertei com um chute rápido,

atingindo a parte de baixo de sua coxa e fazendo-o desequilibrar e cair de costas

no chão. Ele não esperava minha velocidade. O segundo, vendo do que eu era

capaz, tentou atingir minha cabeça com um chute giratório. Protegi meu rosto

com o sai e cortei sua perna. Sangue espirrou em cima de nós dois.

Sangue.

Sangue fresco de vampiro.

O aroma metálico invadiu minhas narinas, sobrepujando o odor do

contêiner e do porto. Passei a língua em meus lábios, saboreando aquele néctar

delicioso. O vampiro me olhou, chocado, enquanto eu lambia as gotas vermelhas

que deslizavam pela lâmina da adaga.

— O que você é?
Na noite anterior, no Reich, eu fiquei um pouco fora de controle, mas

nada se comparava ao que eu sentia naquele momento. Alimentada pelo sangue,

raiva e adrenalina da luta, eu me sentia poderosa. Invencível. O movimento

seguinte foi tão veloz quanto o de um vampiro completo.

— A sua morte. — Cortei a garganta do homem e bebi mais de seu

sangue. Eu não permiti que ele se afastasse: apunhalei seu coração, perfurando-o

com o sai de baixo para cima, por trás da última costela. Minha boca ainda

estava em seu pescoço quando ele se desintegrou em pó. O encapuzado cortou a

cabeça do que eu tinha derrubado antes. Não! Eu queria mais!

A sirene da ambulância se tornou quase ensurdecedora, revelando que

estariam aqui em menos de dois minutos. Os olhos amarelos do cara misterioso

se fixaram em mim, e ele guardou uma espada de empunhadura negra com

desenhos dourados. Suas mãos se levantaram, mostrando que ele não era uma

ameaça. Eu segurava os sai com força mesmo assim. Ameaça ou não, ainda era
um vampiro forte que poderia estar apenas eliminando a concorrência para se

alimentar de todas as garotinhas indefesas da cidade. Eu não permitiria isso,

nunca mais.

Sirenes mais altas, um minuto para a ambulância chegar. Ele apontou

para as minhas mãos, e eu segui com o olhar o seu dedo. Sangue. Eu estava

coberta por sangue de vampiro. Trinta segundos para o socorro chegar. Merda!

Como eu explicaria isso? Levantei a cabeça, mas o homem tinha desaparecido

na escuridão da noite.

As luzes vermelha e azul do resgate iluminaram os galpões vizinhos, e eu

me escondi atrás de um outro contêiner. Mal respirava enquanto observava os

paramédicos levarem Geórgia em segurança até o hospital. Ouvi o choque deles

ao verem o estado da garota. Uma enfermeira disse que apenas um monstro seria

capaz de fazer uma coisa daquelas. Ela jamais saberia o quanto estava certa em

sua afirmação e que a única lembrança que alguém teria desses monstros era o
pó que ela pisava naquele momento.

Voltei para o carro com as armas em mãos, caso algum vampiro errante

me encontrasse. Ao me aproximar, vi uma sombra encostada na porta. Levantei a

Glock e mirei na cabeça da pessoa.

— Mãos para o alto, ou juro por Deus que vou te encher de bala!

— Sou eu, Izzy. — Takao levantou as mãos e ficou parado, esperando

que eu baixasse a arma.

Guardei a Glock e peguei a chave do meu carro, que estava escondida

entre os seios. Abri a mala para pegar uma toalha da bolsa de ginástica, pois o

sangue do vampiro ainda vibrava nas minhas veias, e a visão dele em minhas

mãos estava mexendo com o pouco autocontrole que tinha. Limpei o sangue

quase seco dos meus braços e rosto e me virei para Takao:

— O que você está fazendo aqui?


— Isaac ligou, perguntando se você tinha me avisado sobre procurar

Geórgia nas docas pela manhã. Ele disse que você estava com uma expressão

estranha quando saiu da Academia. — Takao cruzou os braços. — Não é preciso

ser nenhum gênio para descobrir que tinha vindo sozinha.

Não me irritei com a proteção dos dois, era normal vigiar a retaguarda do

outro. Abri a porta do meu carro e disse:

— Não estava sozinha...

— Eu vi, quem era o encapuzado? — Ele tirou da minha cintura um dos

meus sai e o analisou. — Virou ninja agora?

— Já percebeu que você tem uma fixação por comparações? Sou apenas

eu, Isadora. — Peguei a adaga de sua mão e joguei no banco do passageiro. —

Não sei quem era ele, mas sei quem não era.

Tinha certeza que não se tratava do Heinz. O tipo físico era diferente,

assim como a cor no brilho dos olhos. Mais um mistério que cercava minha vida.
— Pode ser um dos guardas do Heinz. Não o reconheceu pelo cheiro ou

algum poder mutante vampírico que tenha? — Takao perguntou. Apesar do leve

ar de riso em sua boca, eu sabia que a pergunta era séria.

— Não sei, o odor do galpão e dos peixes em decomposição é muito

forte, e depois veio o sangue, sempre perco um pouco da concentração. Olha,

você pode ir ao hospital ver como Geórgia está? — Apontei para minhas roupas

imundas. — Não posso ir assim.

Takao balançou a cabeça concordando e foi em direção à sua moto.

— Claro, vou ligar para a mãe dela também.

— Ei! — Chamei quando percebi algo. — Viu toda a luta, e não pensou

em ajudar?

— E você acha que sou doido? — Ele riu, colocando o capacete antes de

dar a partida e sumir em alta velocidade.


Takao estava certo em não se meter em uma luta minha contra vampiros,

ele seria o elo fraco. Não seria seguro para ele tentar proteger a minha

retaguarda.
Capítulo 17 — Diário de Luna (Parte II)

Segurei o volante com força, olhando os nós dos meus dedos ainda

avermelhados de sangue. Poderia ir até o Reich, porém o odor de sangue e suor

em minha pele chamariam atenção indesejada. Nunca havia sido uma pessoa

imprudente, mas estava agindo por impulso demais nos últimos dias. Precisava

esfriar a cabeça e pensar, porém não poderia ignorar o que descobri hoje.

Dirigi sem rumo pela cidade, tentando lembrar o caminho de volta à

mansão de Heinz. Quantas outras garotas eram tratadas como gado em Monte

Carlo? Sequei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Ainda não tinha

admitido, porém cheguei a cogitar abraçar o meu lado vampírico. Encontrar no

Reich ou na mansão um lugar onde pudesse ser eu. Conviver com pessoas que

não achariam estranha. Me encaixar. Mas eu não poderia me unir a quem tratava

os humanos como lixo.


Voltei para o apartamento e tomei um banho, esfregando minha pele com

uma esponja tantas vezes, que fiquei toda vermelha. Só assim para substituir o

odor da noite agitada pelo cheiro de amêndoas. Saí de chuveiro ainda com um

peso no peito, porém um pouco melhor. Renovada. O resto do cansaço físico foi

resolvido por uma vitamina de banana com... Hum, melhor fingir que o líquido

vermelho espesso era calda de morango.

Ao telefone, Takao me informou que Geórgia estava desidratada e

anêmica. Fariam mais exames para analisar o real quadro de saúde dela, porém o

prognóstico era promissor. Respirei, aliviada. Ela tinha que sobreviver!

Precisava descobrir o que ligava aquela garota a Heinz e ao homem encapuzado.

Peguei o diário da tia Luna, esperando encontrar, no passado, uma pista

para os problemas daquela noite.

Monte Carlo, 25 de julho de 1986.


Eu sou um monstro.

Um monstro vil e sedento por sangue.

Uma assassina.

Matei duas das pessoas que mais amava no mundo. Minha adorada e

inocente irmã, Isabela. A delicada. A menina. A bela moça de finas feições. Seus

olhos eram de um tom verde, escuro como uma esmeralda bruta, que

contrastava com a pele alva e cabelos castanhos, quase loiros. Ela era como

uma filha, mais de duas décadas mais nova, praticamente ajudei a criá-la. Aos

dezenove anos, ela foi expulsa de casa por ter engravidado do namorado da

faculdade antes de casar. Nossos pais não aceitaram, queriam que Isabela

entregasse o bebê para adoção, mas ela se recusou. Isa sonhava em ser mãe e

amava o pai da criança. Eu os ajudei, acolhi minha irmã em minha casa,

comprei o enxoval de sua filha e disse que a ajudaria até que se formasse na
faculdade de enfermagem, para que pudesse trabalhar e cuidar de sua família.

O namorado dela ajudava como podia, mas ele era estudante, e a condição

financeira da sua família era pior que a nossa.

O meu marido, Heitor, um homem maravilhoso e companheiro, aceitou

minha irmã em casa, mesmo sabendo que estávamos em na fase de curtir a vida

no nosso casamento. Nossa filha fazia universidade fora, e era a primeira vez

em muitos anos que tínhamos a casa só para nós. Ele aceitou porque, assim

como eu, gostava da Isa. Ela cresceu praticamente junto com nossa pequena

Mariana.

Tudo estava perfeito até eu entrar como um monstro em nosso lar. Matei

minha doce e jovem irmã e arranquei sua filha diretamente do útero. E não foi

só ela, suguei a vida do meu marido e quase matei a minha sobrinha. Eu tentei

desfazer o que tinha feito. Abri o meu pulso e alimentei os dois, mas nenhum

deles respondeu. Chorei sobre seus corpos como nunca chorara antes.
Minha sobrinha, a única sobrevivente, me observava calada. Seus

pequenos olhos acusatórios estavam grudados em mim, como se ela soubesse o

que eu tinha feito. Ela estava deitada no sofá, na mesma posição que eu a tinha

colocado quando tentei transformar minhas vítimas em vampiros. Isadora, esse

era o nome escolhido por seus pais, levou a mãozinha à boca e sugou os dedos

sujos de sangue e placenta.

“Não, Isa! A tia Luna vai te dar um banho, eu prometo que vou cuidar de

você, tá?”, disse para a recém-nascida, mesmo que ela não entendesse o que eu

estava falando. Eu a coloquei no colo, apoiada em meu ombro. A pequena

começou a movimentar a cabeça para os lados com a boca aberta, procurando

uma fonte de comida em mim. Mais lágrimas verteram dos meus olhos quando

pensei que aqui não havia o calor e o carinho do seio de uma mãe ou um leite

nutritivo. Tinha apenas a pele de uma assassina e o sangue de suas vítimas.

Acariciei sua pequena cabeça e implorei que ela me perdoasse.


Repeti minhas desculpas como um mantra enquanto subia para o

primeiro andar e deixava a sala com seus móveis destruídos, cadeiras

quebradas, sofá manchado e piso cobertos pelo que sobrou da minha família.

No banheiro, depois de lavar as mãos e braços, fechei o ralo da pia e a enchi de

água para lavar a placenta em Isadora. Pesei as opções, poderia deixar a

pequena Isa para ser encontrada e criada por Mariana ou por meus pais. Talvez

até pelo pai dela. Depois que ela estivesse segura, eu me mataria. Cortaria meus

pulsos, arrancaria minha cabeça, caminharia até o sol... Faria o que fosse

preciso para acabar com o monstro que me tornei.

Deixei a menina no berço, que já estava pronto há semanas para sua

chegada, e fui preparar uma mamadeira de leite. Ainda bem que Isabela havia

preparado tudo para a filha. Tínhamos roupas, mamadeira e fraldas de pano.

Abri a geladeira e aqueci um pouco do leite que lá encontrei, não era o ideal,

mas teria que servir. Eu a alimentaria e cuidaria dela antes de chamar a polícia.
Com a mamadeira preparada, voltei para o quarto. Meu Deus! Se um

vampiro pudesse morrer de susto, eu teria morrido. A pequena Isa, a que nasceu

menos de uma hora atrás, estava destruindo um ursinho de pelúcia. Com fome,

em vez de chorar, como os outros bebês, Isadora procurava comida. Seus

bracinhos alcançaram um ursinho, e ela o mordeu, tentando extrair leite.

Mesmo sem dentes, sua força fora suficiente para rasgar a costura.

Tirei o urso estraçalhado de seu alcance e o substitui pela mamadeira.

Faminta, Isa sugou o leite com avidez. O que eu fiz? Aquilo não era normal! Ao

alimentar minha irmã grávida à beira da morte com sangue de vampiro, não

apenas matei Isabela, como também exterminei a humanidade de Isadora.

Condenei uma inocente criança a uma vida infernal. Chamar a polícia não era

mais uma opção, ela seria uma aberração no mundo humano. Recém-nascidos

não eram fortes como aquela bebê. Talvez fosse melhor se nós duas

morrêssemos também.
Isa largou a mamadeira, cujo bico de silicone estava amassado, e sorriu

para mim antes de arrotar. Eu não teria coragem de tirar outra vida, precisava

de um plano B. Limpei a mim e a Isadora e troquei nossa roupa por uma mais

aquecida. Em seguida, peguei a mala que já estava pronta para ser levada à

maternidade, acrescentei leite, mamadeiras e fraldas de pano extras, além de

alguns outros itens. Teria que ser o suficiente.

Com as malas penduradas em um ombro e Isa no outro, me despedi da

minha irmã. Seu corpo mutilado jazia inerte no chão frio, assim como o de meu

amado marido. Seu semblante estático partia meu coração, e eu percebi que

nunca mais o ajudaria a fazer o cavanhaque antes que saísse para trabalhar.

Heitor costumava dizer que só ficava perfeito se eu desse o toque final. Só que

naquele dia estava meio torto, um centímetro quase imperceptível a mais para o

lado direito do que o esquerdo. Nunca mais ficaria certo novamente.

Deixei Isa dormindo tranquilamente no beco da casa vizinha, protegida


por nossas malas, e voltei para acionar o gás de cozinha. Fechei as portas e

janelas para que o gás se acumulasse e deixei a fogão aceso. Não demorou

muito para que as chamas iluminassem a noite enquanto eu fugia para longe, à

procura de um abrigo. Um local onde eu pudesse reconstruir meu lar.


Capítulo 18 — Hacker

Abri os olhos, atordoada, e gritei de susto, sentido o fogo queimar a

minha pele e destruir os vestígios de uma família feliz. Um pesadelo. Meus

sonhos foram preenchidos por casas em chamas, bebês demoníacos e morte.

Ontem à noite, estava tão absorta na história contada por tia Luna, que não

percebi a aproximação do amanhecer e, nos primeiros raios da aurora, adormeci

com o diário no colo.

Olhei com asco para o pequeno caderno gasto em minhas mãos. A

sensação que tinha era de que cada linha nele fora escrita com sangue. Escondi o

diário embaixo do travesseiro e olhei para cima, encarando o nada. Seria minha

vida tão rachada quanto a pintura gasta do teto? Segundo Luna, eu era uma

aberração desde o momento em que nasci, mas não era para ser assim. Uma

família inteira destruída em uma fatídica noite. Eu deveria ter familiares, tio, tia,
prima, avós... Prendi minha respiração quando algo me veio à mente: eu deveria

ter ou tinha?

Saltei da cama e corri para o meu notebook, mal controlando a ansiedade

para esperar o sistema iniciar. Já estava roendo as unhas quando loguei no site

que me permitia buscar jornais antigos. Procurei por incêndios na data marcada

do diário. Trinta anos de diferença não facilitavam minha busca, não havia

internet aqui no final dos anos oitenta. Fiz todas as buscas possíveis, na

esperança de que algum jornal tivesse digitalizado uma notícia sobre o ocorrido,

porém eles apenas faziam isto com reportagens de grande impacto.

Já tinha perdido a esperança, até que achei uma edição especial sobre

Chernobyl, o acidente nuclear que ocorrera em abril daquele ano. Era uma nota

pequena, espremida e esquecida no final da página, que trazia um levantamento

sobre os mortos na explosão do reator nuclear da Ucrânia. A notícia dizia:


Arquivado! Incêndio na rua Dom Bosco foi acidental, diz a polícia.

Em nota oficial, o delegado Humberto Fontes confirmou que, segundo o

relatório do Corpo de Bombeiros, o incêndio que ocorreu na rua Dom Bosco

durante a madrugada da última quarta-feira, dia 23 de julho, foi acidental. A

polícia lamenta o ocorrido e todo o transtorno causado pela investigação. O

jornal Unestro gostaria de prestar os pêsames à família Neves.

Era pequena, mas tinha muitas informações ocultas. Encarei a pequena

palavra de cinco letras. Meu sobrenome deveria ser Neves, Isadora Neves. A

casa onde nasci ficava na rua Dom Bosco, e eu precisava descobrir o motivo do

delegado Humberto Fontes encobrir um incêndio criminal. Começarei por ele.

Pesquisei na internet, na deep web, e não encontrei nada além da nota sobre o

arquivamento do incêndio. Minha pele se arrepiou com uma sensação peculiar

de mau agouro. Suspeito.


Invadi o sistema da polícia. Ainda bem que minhas habilidades não se

restringiam apenas a luta, meu cérebro era minha melhor arma. Uma das

primeiras coisas que fiz no curso de Sistemas da Informação, na universidade,

foi procurar saber como hackear sistemas protegidos. Os professores não faziam

ideia de que eu matava aulas para buscar, junto aos estudantes mais experientes

— ou escutar escondida suas conversas com minha audição melhorada —, meios

ilegais de invadir outras redes.

Acessei o banco de dados confidencial e puxei a ficha do delegado.

Descobri que Humberto Pereira Fontes se aposentou aos quarenta e três anos,

um mês depois de declarar o incêndio na rua Dom Bosco como acidental. O

motivo de sua aposentadoria precoce não estava na ficha. A cada momento, a

história ficava mais estranha.

Corri até a cama e resgatei o diário, folheando com pressa. Li as páginas

com avidez, procurando o que Luna fizera com o pobre homem, mas não
encontrei nada. Os dias que se passaram do meu nascimento até a aposentadoria

do delegado apenas contavam como ela nos escondera em uma casa abandonada

no meio do campo e chorara pela morte do marido e da irmã. Após chegarmos

na casa, quando o dia estava amanhecendo, Luna não esperava que o sol a

fizesse entrar em sono profundo. Sorte que desmaiara na cama ao meu lado e em

um lugar protegido dos raios mortais.

Quando ela acordou de noite, eu estava com a fralda muito suja e dormia

tranquilamente com o dedo da minha tia na boca. Pelos meus lábios e língua

manchados de carmim, ela deduziu que eu chorara até encontrar algo que

pudesse aplacar minha fome: o sangue de Luna extraído do próprio dedo dela.

Segundo o diário, três dias se passaram, e nós ainda estávamos naquela

casa abandonada. Tia Luna me deixava dormindo e saía para se alimentar dos

vizinhos. Até que ela se aventurou para mais longe e encontrou a casa de campo.

Luna mentiu para os caseiros, um casal idoso que mantinha os cavalos


alimentados e as plantas adubadas, disse que estava fugindo do marido abusador

e que sofria de uma doença que a fazia dormir durante o dia. O bondoso casal

acreditou e ajudou a cuidar de mim durante o dia, o que funcionou bem durante

os primeiros meses, já que o sol me fazia dormir quase tanto Luna.

Com o passar do tempo, eles passaram a achar que eu era uma bebê

esperta e dorminhoca. Quando comecei a engatinhar, entretanto, minha força e

velocidade acima da média ficaram impossíveis de ignorar.

Dezembro se aproximava, e os donos da casa chegariam. Com o casal

desconfiando que havia algo errado conosco, precisávamos partir e, infelizmente

para eles, tia Luna não poderia deixar testemunhas. Mais vítimas fatais e,

daquela vez, ela não podia culpar a loucura de sangue. Sua consciência pesou, e

ela chorou enquanto tirava o sangue de inocentes de novo.

Enojada, larguei o diário. Teria eu coragem de fazer o impensável para

proteger a mim ou a alguém que amava? Eu lia cada palavra dita por Luna, cada
sentimento derramado em prosa, e não sabia se seria capaz de fazer o que ela

fez. De matar como matou. E isto era algo que eu não pretendia descobrir. Luna

não queria ser uma assassina, as circunstâncias a tornaram assim. Ainda assim,

eu não sabia se havia uma desculpa para matar outras pessoas, Luna não era

nada do que pensei.

Levantei os olhos e encarei o computador, a ficha incompleta do

delegado Humberto brilhava na tela enquanto eu refletia. O natal se aproximava

no diário de Luna, e ela saía apenas para se alimentar ou observar de longe a

casa dos pais dela. Seus depoimentos eram emocionantes quando a filha estava

na cidade. Luna amava a garota, e doía muito que a jovem não soubesse o que

tinha acontecido de verdade.

Meus dedos voltaram para o teclado do notebook, e eu procurei o nome

da filha de Luna, Mariana. Encontrei quatro Mariana Neves na cidade, mas

apenas uma tinha idade compatível. Uma dentista de cinquenta anos. Hum...
Será que híbridas de vampira com humana precisavam aplicar flúor? Liguei para

o telefone de seu consultório e marquei uma consulta para o final da tarde.

A hora do almoço se aproximava, eu já tinha pulado o café da manhã,

não poderia ficar outra refeição sem me alimentar. Não arriscaria! Pedi uma

salada com frango grelhado no restaurante da esquina, e, enquanto esperava a

entrega, fiz minha terceira ligação do dia.

— Acabei de falar com o sargento Antônio. — Takao não se deu ao

trabalho de me cumprimentar ao telefone quando atendeu. — Ele precisará de

um depoimento seu.

Tom, ou melhor, sargento Antônio, era um policial amigo nosso. Eu o

conheci durante um caso de sequestro, alguns anos antes, quando o auxiliei a

prender os acusados. Viramos amigos desde então. Ele me ajudava sempre que

podia, seja indicando clientes ou vazando informações que eu não deveria saber.

— Obrigada por cuidar de tudo do caso, eu não sei o que faria sem você.
— Agradeci a Takao.

— Um de nós dois tem que trabalhar, né? Os pais de Geórgia estão

preocupados com o estado da filha, mas agradecidos por ela ter sido encontrada

ainda com vida. O pai dela quer justiça, Izzy. Ele exige saber quem fez isso.

O interfone do meu apartamento tocou, a comida chegou mais rápido do

que esperava. Levantei-me para atender enquanto continuava falando com

Takao:

— Avise que nosso contrato foi encerrado, fomos pagos para localizar e

resgatar a filha deles. Nossa parte do acordo foi cumprida. Não importa o valor

que ele ofereça, não aceite um novo contrato para encontrar os culpados. Até

porque parte deles já viraram pó ontem, e a outra parte eu pretendo que vire em

breve. Visitarei Antônio e darei o depoimento, ok?

— Sim, senhora chefona! — Meu sócio respondeu com deboche antes de

desligar. Abri a porta para me deparar com um entregador, mas não de comida.
O homem deixou uma caixa pequena, do tamanho de uma joia. Assinei o papel

de entrega e olhei com desconfiança para o pacote misterioso.

Encostei minha orelha no presente. Se fosse uma bomba, faria barulho de

tic-tac de um relógio, não é? Pelo menos nos filmes era assim. Ah, dane-se.

Rasguei a embalagem decorada com um grande laço prateado e encontrei um

retângulo grosso de veludo preto. Dentro dele reluzia um belo colar.

Aquilo poderia ser chamado de colar?

O cordão era de prata trançado, longo o suficiente para que seu pingente

ficasse entre os meus seios. E que pingente! Também de prata, oval, com

desenhos de arabescos no mesmo padrão do meu canivete da sorte, tinha uma

tampa presa ao cordão. Parecia a miniatura luxuosa de um porta-perfume.

Desenrosquei sua tampa e derramei um pouco do líquido na palma da minha

mão: sangue, vermelho, espesso e fresco. Lambi minha palma e voltei a fechar o

pingente. Qual era o propósito daquele presente? Embaixo do sofisticado colar,


na caixa, uma nota simples:

Isadora,

Mandei fazer este colar para que você sempre tivesse um pouco do meu

sangue contigo. Gostaria de te entregar este presente pessoalmente, afastar seus

cabelos e beijar sua garganta antes de colocá-lo em seu pescoço, mas não

posso. Você não voltou noite passada e, em meus muitos anos de vida, aprendi a

não manter a esperança por muito tempo. Espero que nunca precise usar o

líquido deste colar, que nunca necessite de força ou velocidade extra. Desejo

que tenha uma vida boa, porém desejo ainda mais que venha me ver.

Com carinho,

Heinz.
Capítulo 19 — Depoimento

Encarei aqueles olhos de um verde intenso, como uma esmeralda bruta, e

não tive certeza de quem era aquele ser tão estranho que me observava de volta.

Uma pele branca sem falhas, sem cicatrizes ou marcas de traquinagens. Não que

nunca tenha se machucado, a continuidade de sua pele já fora rompida por

diversas vezes, mas ela sempre voltava a se regenerar com uma velocidade

anormal. O rosto delicado, digno de uma boneca de porcelana, era emoldurado

por cabelos negros e curtos que mal tocavam o pescoço. A beleza da mulher

refletida no espelho era exótica, surreal. E demorava a acreditar que era minha.

A mulher de beleza quase inumana era eu.

A joia de Heinz adornava o meu pescoço, seu brilho prata contrastando

com as roupas pretas. Ele afirmou em sua carta que aprendera, em seus muitos

anos de vida, a não manter a esperança por muito tempo. Eu, em meus trinta
anos de vida, aprendi a não confiar cegamente em ninguém. Principalmente em

um homem que tem séculos de experiência em conquistar as mulheres.

Desviei o olhar do meu reflexo, guardei meus sai na bolsa de couro e o

extra no coldre de costas. Desci até a garagem do meu prédio resmungando

comigo mesma. Se Heinz me quisesse morta, ele teria me matado naquela

primeira noite, ou na seguinte, ou na outra. Ele também nunca teria me dado seu

sangue, seria mais fácil me manter em desvantagem. Por que ajudaria a uma

estranha? Eu queria confiar nele, contar com sua proteção contra os perigos e

com o calor gostoso de seu corpo. Alguma coisa dentro de mim, entretanto,

emitia sinais de alerta. Ainda faltava uma peça importante no grande quebra-

cabeça que era Heinz. Estava me esforçando ao máximo para não fazer

acusações até que Geórgia despertasse.

Quando a porta do elevador abriu, vi algo que me fez praticamente

saltitar até a minha vaga na garagem. Minha moto estava de volta! A coitada
ficara largada na casa dos meus pais desde a manhã seguinte à minha primeira

visita ao Reich. Subi na bela Kawasaki verde e fiz seus duzentos e dez cavalos

de motor rugirem.

Contente, mandei uma mensagem para minha mãe, agradecendo por ela

ter pedido para um dos seus seguranças a devolver para mim. Aproveitei

também para reler a mensagem que Takao enviara, contando a versão que ele

deu à polícia sobre os acontecimentos. Andei pelas ruas cinzentas de Monte

Carlo em alta velocidade até alcançar a delegacia.

A atendente já me conhecia, então chamou rapidamente o sargento

Antônio pelo rádio. Não demorou muito para que meu velho amigo aparecesse

na entrada. Tom, um homem de porte médio, franziu a testa quando me viu,

evidenciando as rugas de meia-idade. Ele ajustou a calça, puxando-a um pouco

mais para cima de sua barriga levemente saliente.

— Por que tá diferente, menina? — Seus olhos se estreitaram, e ele me


perscrutou de perto. — Não sei o que é, mas tem algum brilho diferente em

você.

Droga! O sargento era perspicaz demais. Percebeu o mesmo que eu

quando me olhei no espelho. Sorri com a melhor expressão de inocência que

tinha e o abracei:

— Galanteador como sempre, hein? Obrigada por perceber, foi um só

tratamento de beleza que faz maravilhas para a pele. Você que está arrasando

com esses óculos novos! — Apontei para sua armação quadrada de acetato

preto.

— E já viu velho arrasar? Só se for com a coluna! — Antônio sorriu e

empurrou a armação com indicador contra sua testa. — Ora, pois me diga que

tratamento é esse, minha mulher gasta horrores com cremes, e não fica com a

pele brilhando assim.

— É um creme importado da Alemanha. — Mais conhecido como


sangue de vampiro. — Você não vai encontrá-lo por aqui.

— Que pena! Depois me arruma um desses, tá? Vamos, vou fingir que

revistei essa bolsa enorme, e você continua fingindo que não está armada dentro

de uma delegacia. — Tom piscou um olho para mim.

Caminhamos até a sala de interrogatórios enquanto eu contava como

segui a pista anônima sobre o paradeiro de Geórgia e a encontrei nas docas.

Expliquei que, assim que a achei, chamei a ambulância, porém, enquanto fazia

os primeiros socorros, ouvi um barulho do lado de fora e fui investigar. Alguém

me nocauteou, e eu acordei horas depois com a cara na sujeira das docas.

Tom torcia a boca e me lançava um olhar cético, o bigode grisalho mexia

para os lados de um jeito engraçado. Permaneci com uma expressão estoica.

— Alguém te nocauteou?

— Sim.
— E você não viu quem foi e também não reagiu?

— Exato. — Coloquei minhas duas mãos em cima da mesa fria de metal

e o encarei nos olhos sem desviar, focada na tranquilidade de contar uma mentira

como se fosse verdade. — Escutei barulho de passos do lado de fora, saquei

minha Glock e abri a porta do galpão, mas não havia ninguém. Quando saí para

olhar ao redor, alguém acertou minha cabeça por trás, e eu desmaiei. Despertei

cerca de cinco horas depois dentro de um outro contêiner.

Ele franziu a testa novamente e anotou as informações que eu dava.

— Qual o número do contêiner?

— Não tinha número ou qualquer outro tipo de identificação. —

Continuei a mentir. — Liguei para Takao, precisava de reforço, e ele me

informou que estava no hospital com Geórgia.

— Como Takao soube de Geórgia? — O sargento Antônio Melo

continuava desconfiado.
— Do mesmo jeito que eu soube, pelo informante. Deveríamos ter ido

juntos às docas, mas eu me precipitei e fui sozinha.

— Por que Takao não foi atacado?

Ele levantou uma sobrancelha, e eu ergui rapidamente os ombros.

— Talvez a chegada da ambulância tenha espantado o agressor.

Tom desligou o equipamento de gravação e fechou sua caderneta. Ele me

encarou por alguns segundos, perdido em pensamentos. Tom não era apenas

perspicaz, ele também era um homem muito intuitivo. Se desconfiasse de algo,

não desistiria até achar a verdade.

— Eu sei que você está me escondendo alguma coisa, Isadora. Desde que

te vi a primeira vez, admirei sua força e inteligência, sua vontade de ajudar as

pessoas e não se desesperar diante do perigo. Você me lembra alguém... — Ele

balançou a cabeça para os lados, como se espantasse memórias antigas. — Só

tenha cuidado, tá? Às vezes, eu acho que você é destemida demais.


Como ele reagiria se soubesse de toda a verdade? Tentaria me matar?

Teria medo? Acharia que eu era uma aberração, como tia Luna afirmou no

diário? Ou me aceitaria apesar das diferenças?

— Eu tomarei, meu amigo. Não se preocupe. — Bati os dedos contra a

mesa ritmicamente e o analisei. Tom por tantas vezes me ajudou em casos

passados, talvez pudesse fazer algo por mim no atual. Respirei fundo antes de

perguntar. — Quando você entrou para a polícia?

Suas rugas voltaram a aparecer quando franziu a testa de novo.

— No início dos anos noventa, por quê?

Droga! Depois da aposentadoria do delegado que investigou o incêndio

provocado por tia Luna!

— Nada, apenas gostaria de informações sobre um delegado que se

aposentou nos anos oitenta, Humberto Fontes.


Se eu fosse uma pessoa comum, não teria notado nada diferente em

Antônio, já que seu semblante parecia pacífico como sempre. Sorte que comum

não fazia parte do meu vocabulário. Assim que eu falei o nome Humberto

Fontes, o coração de Tom acelerou de tal modo que parecia um tambor em meus

ouvidos.

— Você reconhece o nome, não é?

— Sim, ele era uma lenda aqui. Um ótimo policial que enlouqueceu e

teve sua aposentadoria forçada depois que começou a falar sobre homens com

olhos brilhantes e presas. — O sargento deu de ombros, mostrando um ar de

despreocupação que não condizia com seu ritmo cardíaco. — Nós vemos muitas

atrocidades por aqui, Izzy. Nem todos têm estômago para o trabalho policial.

Olhos brilhantes e presas? O pobre delegado deve ter enlouquecido

depois de se deparar com vampiros. Olhei para Tom, sabia que ele escondia algo,

precisava descobrir “o quê” e “por que”, porém achei melhor não insistir no
assunto, poderia levantar suspeitas. Despedi-me do sargento e voltei para a

garupa da minha moto. Era a primeira vez em que eu mentia para Tom, e sabia

que ele mentira para mim também. Me senti mal por aquilo, afinal o sargento era

um bom policial e um aliado. Ao menos, eu esperava que fosse...

Parei em uma praça no centro da cidade e me sentei em um dos bancos

de madeira. Liguei para Takao e pedi que ele investigasse o prontuário médico

de Humberto Fontes. Depois apoiei minha cabeça no encosto e joguei meu

pescoço para trás, permitindo que o sol beijasse minha pele sensível. Os pássaros

cantavam, as crianças corriam ao meu redor e alguns jovens tocavam violão

embaixo de uma árvore frondosa, mas eu não conseguia prestar atenção em

nada, não com o meu rosto ardendo como brasa. Até mesmo o colar parecia mais

pesado em meu pescoço.

Não queria passar a minha vida desconfiando de todo mundo, terminaria

me isolando ainda mais. Será que se eu ficasse aqui tempo suficiente, entraria
em combustão espontânea como nos filmes? Levantei-me de supetão, pensando

que sentir pena não resolveria os meus problemas. Além disso, outras pessoas

dependiam de mim.

Voltei para o local onde havia estacionado e dei a partida na moto. Eu

tinha uma consulta imperdível, não era todo dia que uma meia-vampira ia à

dentista.
Capítulo 20 — Dentista

Minhas mãos tremiam, não conseguia descer da moto. Meu traseiro

parecia colado ao assento. Olhei para o alto do prédio de trinta andares e suas

imponentes janelas de vidro. Lá dentro, em algum lugar, uma parente biológica

minha estava trabalhando. Uma humana inocente, que nada sabia sobre

vampiros, não conhecia as atrocidades que aconteceram naquela fatídica noite e

não tinha ideia do que sua mãe fora capaz de fazer. A filha de tia Luna. Prima de

minha mãe. Sangue do meu sangue.

O consultório da dentista Mariana Neves ficava no quinto andar do

edifício empresarial. Uma atendente loira e sorridente abriu a porta e gentilmente

pediu que eu aguardasse um pouco pela minha vez. Enquanto preenchia a ficha,

me olhava meio de esguelha da sua mesa de mármore, perguntando os meus

dados. Logo se levantou e me deixou sozinha na pequena sala de espera.


Na televisão de tela plana, por trás da mesa da secretária, passava algum

filme bobo de amor à primeira vista. Sem perceber, levei a mão ao colar que

levava no pescoço. Lembrei-me da primeira vez que vi Heinz, de como senti

uma conexão quando seus olhos encontraram o meu. Teria eu sentido aquilo por

encarar um vampiro pela primeira vez depois de muitos anos? Talvez alguma

parte inconsciente de mim tenha recordado dele, afinal ele mesmo confirmou

que não era a primeira vez que nos víamos. Ou seria algo mais?

Desviei minha atenção do filme para as pequenas esculturas de pedra-

sabão que enfeitavam as prateleiras logo abaixo da televisão. Animais de cores

que variavam entre o verde, o marrom e o bege. Também havia árvores

esculpidas em diminutas pedras e cristais. Era tão lindo, delicado e sofisticado,

em perfeita harmonia com o restante da decoração com estofados branco e

madeira escura.

Um homem careca e acima do peso trotou para fora do consultório


arrastando uma garotinha meio chorosa. Aparentemente, ele não percebeu a

minha presença enquanto saía reclamando e dizendo que a menina não ganharia

o sorvete prometido. Ri de sua tática, não fazia muito sentido oferecer doce em

troca do bom comportamento da criança no dentista.

— Senhorita, é a sua vez. — A atendente chamou minha atenção.

Entrei na sala cuja decoração seguia o mesmo estilo da recepção, mas

com uma diferença: sentada à grande mesa de vidro, uma mulher de cabelos

longos e cacheados escrevia em um papel. Ela estava cabisbaixa, e eu não podia

ver os detalhes de suas feições, por isto me concentrei em sua pele, que tinha um

belo tom de âmbar.

— Aguarde só um segundo, estou apenas terminando de preencher uma

ficha. — Ela pediu em sua voz marcada pelo sotaque local. — Sente-se, por

favor.

— Sem problemas. — Respondi, porém permaneci em pé. Não prestei


atenção na cadeira na minha frente. Fixei minha concentração nas fotos que

estavam em uma bancada por trás da dentista.

Duas mulheres se abraçavam em uma das imagens, uma era a versão

mais nova da senhora em frente a mim e a outra era a mulher de cabelos

castanhos e rosto delicado que povoa meus sonhos. Tia Luna, exatamente como

eu me lembrava.

Em outra fotografia, a versão mais jovem da dentista, sentada em uma

espreguiçadeira à beira de uma piscina, beijava a barriga saliente de uma moça

de biquíni. A garota grávida sorria despreocupada, uma mão repousava na

barriga redonda e a outra mantinha o chapéu na cabeça. Os longos cabelos

negros voavam com o vento, cobrindo parte de sua face. Não dava para

distinguir a cor dos olhos naquela foto velha, mas eu tinha certeza que seriam

iguais aos meus. Aquela mulher só poderia ser minha mãe.

Segurei a minha respiração, era a primeira vez que via o seu rosto. O
momento de emoção foi substituído por assombro na terceira foto. Uma jovem

tia Luna vestida de noiva, sorrindo ao lado de um belo rapaz de terno. Puta

merda! A juventude de suas feições não escondia quem ele era. Como não

percebi antes?

— Quem é você? — A mulher me perguntou com espanto. Seus olhos

estavam esbugalhados, e a boca, meio aberta. Ela me olhava como se eu fosse

um fantasma. Eu meio que era...

— Isadora Martins. — Estendi minha mão por cima da mesa. — Prazer,

vim para minha primeira consulta com um dentista.

— Isadora.... Isadora... Isadora... — Ela murmurava o meu nome como

um mantra. Seu coração bombeava tão rápido, que eu praticamente podia ouvir o

sangue circulando em suas artérias. Boquiaberta, balançava a cabeça para os

lados em completa descrença. — Me desculpe, é que você se parece... E o seu

nome! Eu não entendo, é muita coincidência e... — Mariana coçou os olhos


fechados com a palma da mão, como se tentasse dissipar uma visão, e pegou a

foto das garotas de biquíni. — Veja, essa era minha tia, ela faleceu uma semana

depois de tirarmos esta foto. — Ela pegou a dos seus pais no dia do casamento.

— Você se parece mais com minha mãe do que eu e... — Ela pegou a minha

ficha e começou a chorar quando leu algo nela. — Meu Deus! O ano do seu

nascimento é o mesmo, e os seus olhos... Você tem os olhos de sua mãe.

Dei um passo para trás quando a dentista se levantou e andou até mim.

Ela parecia transtornada, eu também estaria se estivesse vendo a filha da minha

prima, morta no mesmo incêndio que matou quase toda sua família. Não foi uma

boa ideia vir aqui.

— Me desculpe, eu vejo a semelhança e entendo como deve ter sido

difícil para você perder sua tia, mas... — Não conseguia completar a minha

mentira. Fui até ali para conhecer minha prima e entendia a dor de perder uma

tia querida. Não fui a única a ter a família usurpada naquela noite. Encarei os
olhos negros chorosos. Minha vida era uma mentira dantesca, algumas verdades

precisavam ser ditas. — Descobri recentemente que fui abandonada na porta da

casa dos meus pais quando era bebê. Eu não tenho muitas pistas, mas cheguei até

você.

Ok, talvez eu pudesse dizer uma mentira. Contudo, pressentia que minha

prima não suportaria toda a verdade sobre os vampiros. Mariana largou a ficha, e

daquela vez não me afastei quando ela se aproximou e me abraçou. Fiquei

imóvel enquanto a senhora passava a mão com delicadeza em meu rosto.

— Te desejei como se você fosse minha própria filha. Eu deveria ser sua

madrinha, sabia? Venha, sente-se. — Mariana me puxou até a cadeira para o

paciente e se sentou ao meu lado, na de acompanhante. — Como é possível? A

polícia disse que todos morreram, os meus pais e a sua mãe, mas se você está

viva... Meu Deus! O incêndio não foi acidental. — Ela se levantou e começou a

andar de um lado para o outro, seus olhos estavam arregalados em cólera. —


Alguém matou meus pais! O que você sabe? Me diga.

— Calma, vim aqui em um golpe de sorte, não sei se sou a sua prima

mesmo. — Continuei a inventar mentiras. — Sou detetive particular e procurei

recém-nascidos dados como desaparecidos ou mortos na época em que nasci.

Sua prima foi a única que surgiu aqui na cidade. Mas eu vi os relatórios sobre o

incêndio, é meio impossível que eu seja aquele bebê.

Ela murmurou olhando para o chão, perdida em pensamentos.

— Mamãe era detetive particular também, são coincidências de mais. É

impossível que não seja você.

— Conte-me tudo sobre aquela noite. — Pedi.

Ela voltou a sentar na cadeira e narrou sua versão dos fatos:

— Eu estava na faculdade quando a polícia entrou em contato sobre o

acidente. Fiquei devastada, transtornada. Peguei o primeiro ônibus e voltei para


cá, mas foram oito horas de viagem, só consegui chegar depois do meio-dia.

Meus avós ainda não tinham informações sobre o ocorrido. Isso aconteceu trinta

anos atrás, não tínhamos acesso a informações como temos hoje, nem a

liberdade era a mesma. A polícia não nos contou os detalhes até a tarde seguinte.

— Vocês ficaram mais de vinte e quatro horas sem saber o que tinha

acontecido? — Eu a interrompi. Aquilo era estranho, independentemente do ano

em que aconteceu.

— Sim, o delegado disse que era melhor a gente não ver os corpos.

Estavam queimados e irreconhecíveis. Meus avós concordaram, mas eu quis ver

mesmo assim. Quando abriram o saco e me mostraram sua mãe carbonizada... —

Ela baixou a cabeça e secou a lágrima que escorreu por sua bochecha. — Era

pior do que eu esperava, tenho pesadelos até hoje com aquela imagem. Vomitei

tudo que tinha comido e até mais. Passei tão mal, que me tiraram do necrotério.

O velório, é claro, foi de caixão fechado. Depois de uma semana, as mortes


foram confirmadas como acidentais. O gás estourou na cozinha e alguma faísca

provocou o fogo.

Aquilo significava que ela nunca vira o corpo de Luna, quem ou o que

fora enterrado no lugar da minha tia? No diário não havia nada sobre corpos e

caixões. Alguém mais encobriu os rastros dela. Encarei a bela e chorosa mulher

de meia-idade em frente a mim. Eu tinha quase certeza de quem foi.

— O que você sabe sobre o delegado Humberto Fontes?

— Além de que ele mentiu para mim? Nada. Você vai comigo até a

polícia, e reabriremos o caso!

— Por favor, não. — Segurei seu braço antes que ela tentasse alguma

coisa. — Deixe-me primeiro investigar sem a interferência da polícia e não conte

sobre mim a ninguém, ok?

Olhos duvidosos me observavam com cautela.


— Ok, te darei um mês antes de ir à polícia.

— Obrigada. — Respondi e a abracei, sentindo o perfume adocicado de

seus cabelos. Ela sussurrou em meu ouvido:

— Você é feliz? Cuidaram bem de você?

— Cuidaram, fizeram o melhor que podiam por mim.

— E a felicidade?

Com tantas loucuras acontecendo, felicidade estava no final da minha

lista de preocupações.

— Ainda estou trabalhando nesta parte.

— Ei. — Ela chamou quando eu estava prestes a ir embora. — Não vai

fazer a consulta?

— Hoje não! — Praticamente fugi de lá antes que ela argumentasse. Eu

não queria descobrir que tinha presas escondidas em algum lugar da minha boca
ou qualquer coisa do tipo. Minha pele se arrepiou toda, eu não queria ser mais

bizarra do que já era.

Assim que subi na moto, o telefone tocou: era Luís, confirmando se eu

iria treinar hoje na Academia.

— Não. — Respondi. — Diga a Isaac que hoje quem o aguarda sou eu.

Estarei esperando por ele na casa.

— Que casa?

— Ele sabe qual.

Desliguei o telefone e acelerei a moto. Pelo menos um dos mistérios

seriam desvendados.
Capítulo 21 — Lar, doce lar

A Dom Bosco era a clássica rua de cidade do interior: casas de jardins

floridos e muro baixo, crianças andando de bicicleta ou patins, idosos

conversando na calçada.

A tranquilidade bucólica daquele lugar foi quebrada por dois elementos:

o ronco da minha moto e a visão dos escombros do que fora o lar da tia Luna. A

casa de primeiro andar parecia uma mancha podre na bela rua de cores vivas.

Sua fachada era chamuscada, as janelas tinham parte da madeira quebrada, o

jardim era coberto por gramíneas que cresceram altas e selvagens e invadiram

também a entrada principal. Abri a grade enferrujada sem problemas, não havia

cadeado.

— Se eu fosse você, não entraria aí. — Uma voz vinda por trás me
assustou. Virei-me para encontrar uma garotinha loira de vestido florido e

tranças. Ela segurava uma boneca de pano na mão e apontou para a casa. — A

vovó diz que é mal-assombrada.

— Não se preocupe, sou caçadora de monstros. — Pisquei um olho para

ela.

— Então, tá! Que Deus te abençoe. — A menina deu de ombros e correu

até a casa do outro lado da rua. Mesmo depois de ela entrar, eu podia vê-la me

observando através da janela de vidro, meio escondida pela cortina. Sinistra! Eu

estava com mais medo da garotinha do que da casa “mal-assombrada”.

Tentei a porta da frente, mas estava fechada. Dei a volta, procurando um

ponto de entrada, e encontrei um grande buraco na parede. Plantas trepadeiras

invadiam a lateral do que parecia ser a cozinha, onde o gás havia estourado logo

depois da tia Luna abri-lo.

O chão estava imundo, coberto de folhas secas e poeira, e o piso,


quebrado em alguns pontos onde mais plantas cresciam sem controle. Parecia

que a natureza pretendia engolir a casa. As portas dos armários estavam caídas

na pia, e eu podia ver latas enferrujadas de mantimentos. Prendi o fôlego quando

cheguei na sala. Foi ali onde tudo havia acontecido. Meus olhos marejaram

quando observei o lugar: a escada de madeira, destruída demais para permitir o

acesso ao segundo piso, as cadeiras caídas, o sofá puído de traças onde fui

deixada enquanto Tia Luna tentava reviver minha mãe. Um candelabro quebrado

espalhava cacos de vidro no local.

Ajoelhei-me ao lado de uma grande mancha negra no piso. Estava muito

escuro, e mesmo minha visão melhorada tinha dificuldade de diferenciar os

objetos. Acendi a lanterna do celular. Lágrimas insistiam em surgir quando

toquei com reverência na mancha que marcava o local onde ficara o corpo da

minha mãe. Será que existia vida após a morte? Estaria minha mãe no céu? Se

vampiros existiam, tudo era possível.


Um barulho baixo chamou minha atenção, peguei o sai discretamente da

minha bolsa. Não estava mais sozinha na casa. Fiquei em pé e me virei para

recepcionar o recém-chegado.

— Eu diria para você se sentir à vontade, mas a casa é sua, não é? —

Caminhei até ele e encostei a ponta do sai em seu cavanhaque. — Tia Luna tinha

razão, ficou mesmo um centímetro para a direita, Isaac... Ou deveria te chamar

de Heitor?

— Como você soube? — Isaac perguntou com assombro.

Dei de ombros e apontei minha adaga para o seu coração.

— Não interessa, quero saber é o motivo do corpo da minha mãe ser a

única mancha no chão.

Isaac suspirou, porém não se afastou do alcance da minha arma ou fez

qualquer menção de se proteger ao contar sua versão dos fatos.


— Eu estava lá atrás, cochilando no escritório, quando escutei um

barulho estranho vindo da sala. Achei que era um ladrão, mas era Luna sugando

a vida de sua mãe. Não entendi o que estava acontecendo, só compreendi quando

ela me atacou e eu senti suas presas afundarem em meu pescoço. Achei que

estava morto, queimando no inferno. O calor, o cheiro de carne queimada, a

dor... Tinha certeza que estava no inferno, porém era a casa em chamas. Tentei

chamar sua mãe, mas ela estava além de qualquer ajuda.

— Então você matou tia Luna para se vingar?

— O quê? Não, claro que não! — Ele se afastou de mim e encostou em

uma viga da casa. — Sei o que é a loucura de sangue, senti na pele. A minha

sorte é que estava fraco demais por causa das queimaduras para fazer o estrago

que Luna fez.

Baixei o sai, mas o mantive em mãos.

— Você nunca matou ninguém?


— Matei, naquela mesma noite. Um morador de rua no parque a duas

ruas daqui. Eu o sequei até que não sobrasse mais uma gota de sangue nele. —

Isaac apoiou a cabeça na parede e suspirou alto, sua voz embargada de emoção.

— É libertador poder finalmente admitir isso em voz alta depois de trinta anos.

Jamais esquecerei da face dele, de como ele sabia que morreria. Assim que a

sede passou e pude raciocinar, me arrependi do que tinha feito, como me

arrependo até hoje.

Um tiro soou dentro da casa. Isaac se contraiu e levou a mão ao ombro,

sangue fluía do buraco em sua camisa.

— Aceitarei isso como uma confissão. — Outro tiro ecoou, daquela vez

na perna dele. — Afaste-se dele, Isadora.

— Tom? — Isaac e eu perguntamos ao mesmo tempo.

O sargento Antônio, sempre tão pacífico, parecia endiabrado com a arma

apontada para nós. Como Isaac conhecia Tom? Era informante da polícia
também? As mãos do sargento tremiam enquanto falava:

— Você deveria ter mais de setenta anos, Heitor. Como não envelheceu?

Como ainda está de pé depois de dois tiros? Alguém me explica que porra está

acontecendo! — Ele brandiu a arma, que teria disparado em minha direção, se

uma pessoa não surgisse em velocidade inumana, segurasse no cano do revólver

e o empurrasse para cima, absorvendo o impacto do tiro.

— Sentiu saudades, Izzy? — Heinz balançou a mão, e eu pude ver o

buraco da bala fechar em poucos segundos. — Eu posso garantir que ninguém

fica entediado ao seu lado, hein? — Com facilidade, ele tirou a arma do aperto

firme de Tom e deu uma coronhada na cabeça do sargento, que logo desmaiou.

— Posso saber por que tenho um policial, um vampiro não registrado e uma

meia-vampira discutindo em uma casa que foi incendiada anos atrás?

— Posso saber como você me encontrou? — Cruzei os meus braços.

— Eu perguntei primeiro e exijo respostas. Fale agora, novato. — Heinz


não parecia mais sedutor ou brincalhão. Era um lado frio dele que eu não

conhecia.

Isaac se colocou na minha frente e levantou o queixo, mostrando toda sua

força e imponência:

— Olha aqui, rapaz, você não está em posição de exigir resp... — Ele não

conseguiu terminar de falar. Heinz avançou tão rápido, que mal o vi se

aproximar.

Em milésimos de segundos, Heinz tinha Isaac pelo pescoço, elevando-o

do chão.

— Eu não sou rapaz há muito tempo. Antes mesmo deste país ser nação,

eu já não era rapaz. Quer saber? Vamos todos fazer um passeio até que eu

entenda essa bagunça inteira. — O alemão retirou do bolso do casaco marrom

uma seringa e injetou na garganta do marido de Luna. Quando este perdeu os

sentidos, Heinz o colocou por cima do ombro e carregou para fora da casa. —
Você pode carregar o humano? Esse cara aqui é meio grande.

Eu estava incrédula com tudo o que acontecera, e as duas pessoas que

poderiam me explicar foram nocauteadas pelo Heinz. Estava tão perto de

descobrir tudo! Encarei Heinz com raiva:

— O quê? Não tem uma seringa escondida aí para mim também?

— Claro que não, schatzi. — Heinz pronunciou a palavra como “xatzí” e

piscou um olho para mim. — Você é minha convidada especial.

Queria perguntar o que aquela palavra significava, mas eu tinha coisas

mais importantes a fazer. Peguei o meu amigo policial do chão e o coloquei

sobre o ombro também. Segui o alemão, pois queria descobrir tanto quanto ele a

verdade dos fatos.


Capítulo 22 — Ponto fraco

— Não vai colocar uma venda em mim? — Perguntei com sarcasmo

enquanto observava os dois homens desmaiados no banco de trás. Heinz dirigia

com tranquilidade seu grande Jaguar SUV F-Pace, ou pelo menos foi isso o que

ele dissera quando perguntei que carro era aquele. Passei a mão no banco,

sentindo o macio do couro. — Não tinha uma Ferrari?

Ele me presenteou com um meio sorriso.

— Ferrari chama muita atenção indesejada e não é prática na hora de

transportar corpos. — Heinz desviou o olhar para mim por um momento. — Eu

já te disse, schatzi. Você é convidada em minha casa.

Como se um Jaguar SUV não chamasse atenção...

— O que é essa palavra, “xátzi”? É algum código para “chata” em


alemão?

Sua gargalhada preencheu o carro. Fiquei impressionada em como suas

feições suavizaram com o humor, deixando-o mais jovem. Heinz disse que era

mais velho que o Brasil, como esse homem poderia ter mais de quinhentos anos?

“Porque ele é um vampiro, Izzy, fique longe dele”, lembrei a mim mesma.

“Assim como parte de você”, um outro lado do meu inconsciente alfinetou.

Odiava quando nem eu concordava comigo.

— Você está me encarando... — Sua atenção se voltou para o pendente

na minha garganta. — É um belo colar esse que tem no pescoço, a pessoa que te

deu deve ter um bom gosto.

— Foi um schatzi que me deu, provavelmente tem um rastreador nele.

Ele parou o carro no encostamento, onde não havia nada além de uma

estrada de terra e mato ao nosso redor, e se virou para mim. Seus olhos

faiscaram, o marrom sendo preenchido pelo amarelo.


— Duas noites atrás, me afastei de você e vi em seu rosto uma expressão

de quem nunca mais voltaria no Reich. Aquela foi uma visão que me angustiou.

Fiquei com medo por você, pensei que nunca mais te veria ou que, se precisasse

de mim, eu não poderia fazer nada. Na mesma hora, rabisquei os desenhos do

seu canivete e mandei fazer o colar.

— Eu sei me cuidar, vivi muito bem por trinta anos sem o seu sangue e...

Heinz me interrompeu:

— Sei disso. Não te mandei o colar porque achei que era indefesa, enviei

por causa de mim, para que tivesse um pouco de paz, e adivinhe só! Quando

acordei hoje, fiquei sabendo dos rumores sobre La Muerte. — Ele fez sinal de

aspas com as mãos. — Uma ninja assassina de vampiros que atacou um grupo de

beberrões nas docas... Todos estão assustados, achando que você é uma lenda.

Eu sabia que era você, só podia ser. Nenhum humano teria a capacidade de matar

um grupo de vampiros. O que decidi fazer? Segui o meu sangue e encontrei um


policial apontando uma arma para você, depois de ter atirando em um vampiro

renegado. Ele eu sei que é imune à bala, você, já não tenho tanta certeza e...

— Uou! Desacelera aí, alemão. Você me perdeu no La Muerte! O que são

beberrões, como você me rastreou e por que acha que Isaac é um renegado?

Heinz suspirou e voltou a ligar o motor do carro, dirigindo devagar

enquanto me explicava o que sabia.

— Existem três tipos de vampiros aqui em Monte Carlo, quatro, se

contarmos você. Temos os que se alimentam de humanos voluntários no Reich,

esses são meus subordinados. Garanto proteção e alimentação para eles. Há os

como o grandão aí — ele apontou para Isaac —, que não possuem filiação e

vivem solitários ou em pequenos grupos. Geralmente não sobrevivem por muito

tempo, a eternidade passa a ser um tempo longo demais quando se é um pária. E

temos os beberrões, vampiros sedentos por sangue e violência. São perigosos e

estão sempre em busca de uma nova vítima.


— Como você me seguiu? Tem mesmo um rastreador no colar?

Daquela vez, Heinz não desviou o olhar quando entrou em uma estrada

sinuosa e pouco iluminada. Eu enxergava apenas a estrada lamacenta iluminada

pelos faróis.

— Não, exatamente. Posso rastrear o meu sangue quando está em uma

determinada concentração...

— Deixe-me adivinhar, por acaso é a exata concentração que tem no

colar? — A raiva estava evidente em minha fala. No final das contas, o colar era

um rastreador.

— Óbvio, e não apenas do colar, mas a quantidade que você ingere

também. Foi assim que encontrei seu apartamento com tanta facilidade. É por

isto também que há garrafas com meu sangue no Reich, os aliados precisam

beber com frequência para que eu possa encontrá-los quando estiverem em

perigo e também controlar, caso algum pense em se tornar desgarrado. Não sou
um perseguidor, mas mantenho controle sobre a cidade.

— Se você sabe onde os perigosos estão, por que não os mata logo?

— Porque nunca é tão fácil, Isadora. — Heinz parou o Jaguar e me

encarou de novo antes de acionar grandes portões de ferro à nossa frente. Eles se

abriram com um leve rangido. — O incrível disso tudo é que em nenhum

momento você tentou negar ser La Muerte. — Eu apenas dei de ombros, de que

adiantava negar? Heinz continuou. — Assim que atravessarmos esses portões,

você não é La Muerte, nem meia-vampira e jamais pensaria em matar um

vampiro, entendeu? Me prometa que será apenas minha convidada humana, por

favor.

— E se eu recusar?

— É apenas uma festa, Izzy. Uma oportunidade para você ver um pouco

das nossas tradições. Se você não quiser participar, te deixo em casa, mas eles

ficarão comigo, e irei interrogá-los sozinho. — Heinz não precisava especificar


quem eram “eles”, já que estavam no banco detrás do carro, e o tom sério em sua

voz não deixava dúvidas de que faria exatamente o prometido.

— Você está me chantageando?

Ele apenas ergueu os ombros. Como eu não seria tola de colocar a minha

vida e as dos dois homens inconscientes atrás de nós em risco por um capricho,

respondi:

— Prometo não atacar ninguém na sua festinha.

— Obrigado. — Heinz suspirou em alívio e entrou na mansão.

Ela era tão grande quanto eu me lembrava. Nada de paredes ou janelões

de vidro. Os vampiros não podiam se dar ao luxo de permitir a entrada da luz do

sol. No dia em que fugi dali, todas as pesadas cortinas estavam fechadas, mas

não naquela noite. As luzes transbordavam pelas janelas, a música e as risadas

chegavam até os meus ouvidos, e vi vários carros — dos mais populares aos

mais luxuosos — estacionados na frente da mansão.


Heinz deu a volta até os fundos. Assim que estacionou o carro, um

vampiro loiro corpulento abriu a porta.

— Senhor?

— Petrus, leve esses dois para o calabouço e deixo-os seguros até o fim

do festival. Não devem ser questionados sem a minha presença, compreendido?

Segurei a manga da jaqueta de Heinz, não queria nenhum dos meus

amigos em calabouços. O alemão pareceu compreender o meu pedido silencioso.

Ele revirou os olhos e disse para o capataz:

— Coloque o humano em um dos quartos, mas deixe trancado.

O vampiro seguiu as ordens sem questionar ou demostrar qualquer

reprovação pela mudança na conduta padrão. Também não questionei, sabia que

Heinz não colocaria um vampiro desconhecido em um lugar que não tivesse

segurança extra.
— Que festival? Pensei que fosse uma festa simples ou algo assim. —

Murmurei com raiva. Queria despertar os dois homens inconscientes, não

celebrar.

— É o fim do verão, fim dos dias mais longos. Os vampiros fazem festa

quando o sol dá uma trégua, é como se fosse o nosso Ano Novo. Alguns

vampiros são mais antigos do que as religiões modernas, temos nossas próprias

celebrações. Achei que gostaria de conhecer mais a nossa cultura, afinal, você é

uma das nossas também.

Apontei para as minhas roupas.

— Eu tampouco estou preparada para uma festa.

— Não se preocupe com isto. — Heinz dirigiu até a ala oeste e parou o

carro ao lado de uma pequena porta lateral. Descemos por uma escada oculta na

penumbra, e o segui por corredores estreitos, ali o barulho da festa era ainda

mais alto. Subimos por uma outra escada circular com apoios de ferro, afastada
do salão principal. Finalmente, chegamos em um corredor largo e decorado com

cores terrosas e candelabros pendendo do teto.

Contei a quantidade de passos, quarenta entre cada porta. Quatro portas,

quatro quartos, cento e sessenta passos da escada ao que eu presumia ser o

quarto de Heinz. Ok, mesmo de olhos fechados conseguiria reproduzir o

caminho, caso precisasse fugir.

— Você está quieta. Relembrando nosso primeiro encontro? — Ele abriu

a porta, e eu entrei no local onde fui mantida presa contra minha vontade.

Parecia que um século tinha se passado, mas foram poucos dias. A barra da cama

ainda estava quebrada, mas o abajur fora substituído. Heinz me abraçou por trás,

e suas mãos pousaram na minha cintura. — Tudo o que eu mais desejava

naquela noite era te debruçar nesta cama e beijar cada centímetro do seu corpo.

Te devorar e fazer você gritar de prazer a noite toda.

— Promessas... Promessas... Promessas... — Eu o provoquei, e ele beijou


o topo da minha cabeça:

— Não temos tempo agora, precisamos descer antes das nove horas. —

Heinz abriu um dos armários embutidos e de lá retirou um vestido preto simples

de seda, sem nenhum tipo de ornamento, e o depositou em cima da cama. Depois

abriu outra porta oculta. — Se quiser tomar um banho, fique à vontade, tem uma

escova de dente nova também no banheiro.

— Aqui tudo é oculto? — Olhei com desconfiança para o interior do

banheiro luxuoso. — Vampiro tem cárie? — Lembrei da consulta na clínica da

minha prima. — Eu posso ter cárie?

— Sim, tudo é oculto, era o de mais moderno em arquitetura na época em

que foi reformada. Também ajuda a confundir possíveis atacantes ou

prisioneiros. — Heinz beijou minha boca com delicadeza. — Não temos cárie ou

qualquer outra doença, mas escovar os dentes é uma questão de higiene. Você,

eu não sei. As suas habilidades e a sua capacidade são um mistério.


Maravilha! Ninguém sabia quais eram os meus limites. O que poderia ser

bom ou ruim. Talvez eu tivesse o poder de diversos vampiros ou talvez este

mesmo poder poderia falhar e custar a minha vida.

— Ok... — Comecei a tirar a roupa calmamente. Descasei cada botão,

um por um. Heinz sentou-se na cama e ficou observando. Tirei as botas, a blusa

foi parar no chão, assim como as calças. Virei de costas e levantei os meus

cabelos para que ele desabotoasse o colar.

Heinz se aproximou e passou as mãos em minhas costas, deslizando-as

até a base da minha coluna. Ele se inclinou e mordeu o meu ombro, mas sem

romper a minha pele. Seus dedos hábeis provocaram meus seios, meu ventre...

Aquele ponto específico entre as minhas pernas.

— Por mais que eu queira, não posso. Eu disse que o colar era uma

forma de te manter mais segura, e não apenas por causa da carga de sangue de

emergência. Os vampiros têm o costume de atacar a garganta primeiro, e a prata


é o nosso ponto fraco. Nem eu posso tocar em seu pescoço sem a sua permissão.

— Obrigada. — Disse com sinceridade e encostei minha nuca em seu

peito, ofegando por causa de suas provocações. Ele não precisava ter feito aquilo

e muito menos ter me dito qual era o ponto fraco dos vampiros.

— Vamos. — Heinz parou o que fazia em mim e se afastou alguns

passos. — Temos quarenta minutos, ou perderemos o espetáculo.


Capítulo 23 — Discurso

Faltavam quinze minutos para as nove horas quando descemos até o local

da festa. Nós dois usávamos sobretudos de veludo na cor vinho, que iam até

quase o chão, e estávamos sem nenhum outro acessório além do vestido de seda

curto e de alças finas para mim e uma bata de manga três quartos para ele. Eu

não usava brinco, colar, sapato, maquiagem, prendedor de cabelo e nem roupas

íntimas. Minha imaginação estava a mil, milhares de cenários passavam em

minha cabeça enquanto pensava no tipo de festa que proibia o uso de calcinha e

cueca.

Heinz me levou pela escadaria principal, toda esculpida em mármore e

madeira. Duzentos passos do quarto ao topo das escadas, mais oitenta degraus

largos. Uns setenta passos até um terço do caminho que dava na porta da frente,

ladeada por antiquadas estátuas de mármore. Quantos passos seriam até o


calabouço? O salão principal ficava à direita, perdi a conta quando várias

pessoas pararam para me cumprimentar.

— Por que estão todos falando comigo? — Sussurrei. — Eu sou só sua

“acompanhante humana” hoje... — Enfatizei meu status, já que ele deixou bem

claro que eu deveria deixar o meu lado mestiço oculto.

— Porque é a primeira vez em mais de um século que eu trago uma

acompanhante para este festival.

O quê?

— Isso significa que seu último encontro foi cem anos atrás? — Fiz

piada para esconder o meu choque.

Ele retirou duas taças de cristal com um líquido vermelho espesso da

bandeja do garçom que passava por nós.

— Espere um pouco antes de beber. — Heinz me entregou uma das


taças. — Eu já tive muitos encontros, schatzi, mais do que sou capaz de lembrar.

No entanto, nenhum que tenha sido convidado para o festival.

— Mas...

— Eu disse que era a primeira vez em mais de um século porque naquela

época não existia Epiphyllum oxypetallum no Brasil. — Antes que eu pudesse

perguntar o que significava aquilo, chegamos a um pequeno palco no canto sul

do salão. — Está na hora do meu discurso.

Heinz subiu ao palco e não precisou dizer ou fazer nada para que os

convidados se calassem e virassem de frente para ele. Quase cem pessoas em

silêncio, tudo o que eu podia ouvir eram os seus batimentos cardíacos ritmados.

Homens e mulheres, a maioria com a aparência jovem, usando sobretudos dos

mais variados tecidos: camurça, couro, cetim, veludo e seda. Sempre de cores

quentes, escuras. Nenhum outro acessório ou maquiagem, além de suas belezas

etéreas, sobrenaturais, e uma taça igual à que eu tinha em mãos. Podia identificar
facilmente os poucos humanos presentes, cerca de uma dúzia. A excitação e

ansiedade por estar em uma cerimônia exclusiva exalavam de seus poros.

— Caros amigos e convidados, esta noite celebraremos mais uma

passagem, mais um ano que se finda com o verão. — Heinz levantou a taça e

falou com eloquência sem precisar de um microfone. Mesmo que ele

sussurrasse, a maioria dos convidados ainda seria capaz de ouvir. — Os

vampiros são tão antigos quanto os humanos, somos um passo a mais na

evolução, mas isso não quer dizer que somos superiores. Os humanos são nossos

irmãos, e devemos tratá-los com respeito, não como alimento. Sei que alguns de

vocês não gostam de viver nas sombras, ocultos pela noite. Porém, devemos

lembrar do Olimpo. O orgulho foi a queda deles. Nós somos como as flores

dama-da-noite, florescemos belos e grandiosos sob a luz do luar, porém

murchamos ao contato dos primeiros raios solares.

Olimpo? Como em “o Olimpo”? O Olimpo de Zeus, Hera e Athenas? Os


deuses gregos existiram de verdade e eles eram vampiros? Nossa! Eu tinha

muitas perguntas a fazer ao Heinz. Contudo, ele continuou a falar:

— Quando eu saí da Alemanha para o Brasil, procurava um novo lar. Um

país onde eu pudesse prosperar e viver. Aqui encontrei muito mais, achei uma

família. Construí um lugar que fosse um refúgio para vampiros e humanos, onde

eles pudessem conviver em segurança. Um santuário. Batizei de Reich porque

significa ao mesmo tempo reinado e imperador em meu país. Reich não é apenas

um lugar, eu sou o Reich e estou no comando. Não somos invencíveis, como

muitos gostam de acreditar, mas podemos ser imortais.

Aquela era uma definição bem diferente para “que seja infinito enquanto

dure”. Pelo menos eu estava certa quando entrei a primeira vez no clube, Heinz

realmente se achava o dono de tudo. Quando as taças se levantaram em

cumprimento, percebi que talvez ele realmente fosse. Voltei minha atenção para

o discurso.
— E, por isto, quem beber da taça com o meu sangue estará reafirmando

nossos laços de lealdade por mais um ano. Se comprometendo a não ferir

humanos e manter o segredo do vampirismo. Em troca, eu garanto proteção.

Todos sabem que quem ferir um dos meus será caçado e exterminado, sem

piedade. Os que não quiserem, saiam agora e poderão partir sem nenhuma

punição.

Quatro homens e três mulheres curvaram levemente a cabeça em respeito

e entregaram suas taças aos garçons na saída. Sete vampiros que não estavam

dispostos a se comprometer com as regras simples de Heinz partiram sem olhar

para trás. Eu teria que ficar de olhos neles. Em seguida, Heinz bebeu um gole do

próprio sangue, e os outros vampiros fizeram o mesmo. Senti o olhar do alemão

em mim. Aquele sangue era mais sobre simbolismo do que poder. Se eu bebesse,

faria parte do Reich oficialmente. Estaria prometendo lealdade ao Heinz.

Levei a taça aos lábios e ingeri a bebida em um único gole. Proteção a


mais sempre era bom, e eu estava mais do que disposta a seguir as duas regras

impostas. Assustei-me com o barulho de cem taças de cristal quebrando no chão.

Esse povo era doido? Estávamos descalços! Bom, eu não seria a única do contra,

então joguei a minha também.

Um grande relógio antiquado de madeira bateu nove badaladas, e as

portas de fundo que davam para o quintal se abriram. Heinz apontou para o lado

externo.

— Hoje, a noite será nossa. Dispam-se dos seus pudores e receios.

Apesar de respeitarmos o meio em que vivemos, a liberdade é uma das

vantagens em ser um vampiro. Não somos obrigados a nos prender pelos

padrões normativos da sociedade. Aproveitem o espetáculo da natureza da

melhor forma que puderem.

Alguns vampiros começaram a desabotoar o sobretudo que vestiam e

jogaram no chão, cobrindo os cacos de cristal e ficando apenas com as batas


simples e vestidos curtos semelhantes aos que eu e Heinz usávamos. Eles

pisaram sobre os casacos e se dirigiram para o quintal. Eu permaneci parada

onde estava, ao pé do palco. Heinz desceu e se juntou a mim.

— Essa parte pode chocar você. — Ele sussurrou em meu ouvido.

Respondi com sarcasmo:

— Mais do que ver cem vampiros te jurando lealdade, sete desistindo e

descobrir que os deuses gregos eram sanguessugas com mania de grandeza?

— Provavelmente. Venha.

Eu o acompanhei até o exuberante quintal coberto por diversas árvores

frondosas, trepadeiras, labirintos vivos de plantas e uma imensa seleção de

plantas que eu não conhecia. Grandes flores coloridas em rosa, amarelo, laranja

e branco.

— Todas essas plantas são rainhas-da-noite. Cactáceas que florescem


melhor sob a luz da lua. Aquela, no entanto — ele apontou para um grande botão

em pêndulo pendurado em uma treliça de ferro —, é especial, a dama-da-noite

verdadeira.

— A Epiphy... Alguma coisa? Qual foi o nome que você usou?

— Epiphyllum oxypetalum. Exato, observe. — O botão abriu

ligeiramente, revelando pétalas brancas ainda fechadas. — Elas florescem uma

vez ao ano, geralmente às nove horas da noite, se abrem ao máximo por volta da

meia-noite e, quando amanhece, murcham, voltando a florescer apenas no ano

seguinte. Raramente dão frutos, mas quando dão, dizem que quem os come terá

sorte o ano inteiro.

Algumas nuvens esparsas que cobriam o céu se afastaram, permitindo

que a luz da lua cheia brilhasse com plenitude sobre o quintal. Incontáveis

botões começaram a se abrir, enchendo o topo das árvores e as treliças de ferro

de branco. Parecia mágica.


— Elas são trepadeiras, precisam de um suporte para crescer, mas,

quando crescem, são majestosas.

Eu me aproximei de uma e toquei com delicadeza em sua pétala sedosa.

Nunca tinha visto um botão de rosa tão grande. Aberto, teria mais de vinte

centímetros de diâmetro. Segui seu comprido talo até encontrar o caule verde e

achatado que se apoiava em outra árvore. Ai! Furei meu dedo em um pequeno

espinho. Heinz segurou minha mão e sugou a gotícula de sangue que brotou.

— Cuidado, é uma cactácea. Apesar de raros nesta espécie, ela ainda

pode ter espinhos.

— Mais uma semelhança com os vampiros? — Perguntei.

— Não, no nosso caso, é raro ter vampiros sem presa...

Como eu. Eu era a vampira sem presa. Um aroma forte e adocicado me

atingiu. Tinha o cheiro da noite e de promessas ocultas. Delicioso. Fechei os

olhos e inspirei fundo em apreciação. Calor e excitação subiram pelo meu corpo
e pescoço, e eu senti vontade de tirar o sobretudo e dançar nua sob a luz do luar,

junto com as flores. Abri os olhos e descobri que era exatamente aquilo que

alguns vampiros faziam. O que estava acontecendo? Heinz riu do meu choque.

— Esqueceu de me contar algum detalhe? — O questionei.

— O forte perfume exalado pela dama-da-noite é afrodisíaco para os

vampiros. — Ele segurou com delicadeza minha garganta e sussurrou em minha

orelha. — Não há julgamentos aqui, Izzy. Você pode dançar ao luar, se entregar

aos prazeres da carne ou sentar e apreciar o show. O que quer fazer?


Capítulo 24 — Dama-da-noite

O perfume da rosa branca se misturava ao cheiro de sangue, suor e

excitação, dando ao ar da noite um aroma exótico e inebriante. Heinz e eu

estávamos com nossos sobretudos devidamente fechados, sentados em largos

sofás de veludo vermelho, que mais se assemelhavam a camas, em uma parte

mais baixa do quintal, assistindo ao espetáculo que se desenrolava na nossa

frente. Parecia que a cada desabrochar da dama-da-noite, ficava mais difícil de

resistir.

Uma música melodiosa, hipnotizante, tocava no sistema de som. Poucos

vampiros estavam como nós, apenas observando. A maioria não usava mais a

bata ou o vestido, comemoravam o fim do verão em total liberdade e nudez.

Uma loira de cabelos longos e cacheados dançava feliz entre dois homens. Seu

corpo esguio se movia de forma sedutora. Ela levantou o curto vestido com as
mãos e jogou a cabeça para trás, apoiando-se no ombro do homem mais alto, de

cabelos compridos. Ele acariciou os seios da loira por cima do vestido.

O outro homem, um careca musculoso de porte médio, ajoelhou-se em

frente à mulher, suas mãos alisando a perna dela, subindo pela parte interna da

coxa. A cabeça dele desapareceu por baixo do vestido. Os metros de distância

que nos separavam não me impediram de ouvir os ofegos de prazer emitidos. A

mulher retirou o próprio vestido pela cabeça e o arremessou para longe.

O cara ajoelhado a sugava sem pudor, pegando as pernas dela e

colocando uma em cada ombro. Vi as presas do moreno alto brilharem antes de

afundarem no pescoço da garota. Ela puxou o cabelo do outro rapaz até ele se

levantar e o mordeu na garganta. O homem não se importou com a mordida...

Ele segurou as pernas abertas dela e a penetrou com um impulso vigoroso.

Heinz beijou o meu pescoço.

— Seu cheiro está me enlouquecendo, Isadora. — Ele se posicionou


atrás de mim, e eu nem tinha percebido que estava ofegante e ajoelhada no sofá,

inclinada em direção ao trio. O calor era insuportável! Abri o meu sobretudo e o

joguei para longe. Senti as mãos de Heinz deslizarem pelo meu vestido até o

meio das minhas pernas. Fechei os olhos quando ele tocou no meu ponto que

latejava. Ouvi o seu gemido baixo ao notar o quanto estava molhada. — Você

gosta de assistir...

Não é que eu gostasse, era apenas impossível não ser afetada pelo que

acontecia ao meu redor. Heinz continuou com seus dedos mágicos enquanto eu

não conseguia desviar o olhar do espetáculo. Duas mulheres deitadas na grama

se beijavam com fulgor, uma puxava o cabelo da outra, seus dedos perdidos nas

profundezas de suas carnes. Elas se morderam em sincronia. Seus seios subindo

e descendo, ofegantes de prazer. Nossa, parecia que iriam se devorar!

Literalmente.

Tentei respirar fundo, acalmar meus nervos, porém a cada minuto que
passava, mais a dama-da-noite desabrochava e mais do seu perfume inebriante

era lançado no ar. Sentei no colo de Heinz, sentindo sua dureza escondida apenas

por um fino tecido.

— Cadê o seu sobretudo?

Ele segurou um punhado do meu cabelo e puxou minha cabeça para trás.

— Você acha que eu perderia tempo?

Meu gemido se perdeu na noite quando ele afundou as presas no meu

pescoço. Prazer puro permeava por minhas artérias com aquela droga

maravilhosa que apenas a mordida dos vampiros fornecia. Eu queria que ele

afundasse mais do que as presas em mim e também gostaria de sugar todo o

sangue de suas veias. Arranhei suas coxas e comecei a rebolar contra o seu

quadril. Qualquer coisa que desviasse minha atenção e nublasse minha mente.

Eu era uma humana...


Uma simples humana naquela noite...

Não podia enlouquecer e secar Heinz inteiro na frente de cem

testemunhas.

Foco... Foco... Foco... Uau! O que era aquilo?

Um rapaz estava deitado em cima de uma mesa, com uma mulher

montada em cima dele. Não conseguia ver suas feições, pois havia outro homem

a penetrando também, por trás. E este também era penetrado por um terceiro

cara. Aquele era um grande sanduíche!

Ah, foda-se. Se ninguém ligava para aquilo... Subi a bata de Heinz e

segurei sua dureza, montando nela, sentindo-a preencher cada centímetro meu.

Me movimentei para cima e para baixo, cavalgando ao contrário, de costas para

ele, ainda observando a orgia que se desenrolava naquele quintal. Todos sabiam

o que eu estava fazendo, mas, apesar do meu vestido ser um parco escudo de

modéstia, ainda não conseguia me despir por completo.


Heinz soltou o meu pescoço, puxou minha cabeça para trás e me beijou.

Ele tinha mordido a própria língua e, assim, pude beber seu sangue sem que

ninguém percebesse. Mudei de posição, ficando de frente para ele e pouco me

importando com as dezenas de vampiros se esbaldando na grama fresca, e o

beijei, dominada pela luxúria e pela sede de sangue. Suguei sua língua como se

minha vida dependesse daquilo. Heinz me deitou no sofá e ficou por cima de

mim, segurando com força os meus braços contra o veludo.

— Depois eu vou precisar da minha língua para falar!

Tentei me desvencilhar dele. Queria chegar até o seu pescoço, dilacerar

sua garganta, beber o seu sangue enquanto o cavalgava e gemíamos de prazer.

Em vez disso, o senti me invadir de novo em uma única estocada. Ele achava

que se me deixasse cansada, eu não o atacaria. Que tolo! Quanto mais tempo eu

passava sem sangue, mais desesperada ficava e mais fome eu tinha. Porém, eu

não me cansava. Heinz me dava pequenas doses de sangue em uma taça, o


mesmo que daria a uma consorte humana. A cada gemido, a cada prazer, a cada

clímax, meu corpo pedia mais. Eu era uma escrava da luxúria, uma amante do

desejo. Seduzida e permeada pelo ar da noite e pela beleza daquele lugar.

O relógio bateu as doze badaladas. Meia-noite.

— Venha. — Heinz me pegou no colo e correu em velocidade vampírica.

Alcançamos uma parte mais alta do quintal. Ele parou na beira de uma macieira

e deu um impulso com as pernas, subindo com um salto até um galho alto, uns

seis metros acima do chão. Eu não sabia que ele podia fazer isso. Sentada em

seu colo, com minhas costas contra o peito dele, Heinz cortou o próprio pulso e

pressionou contra a minha boca. — Aqui estamos seguros, abra os olhos e veja.

Segurei seu pulso com força, mantendo-o no lugar, e fiz o que ele pediu:

abri os olhos, enxergando uma maravilha da natureza. Mais de mil damas-da-

noite atingiam o clímax de sua floração. Imensas flores brancas exóticas abertas

no auge de seu esplendor. Sob olhos de vampiro, elas adquiriam um brilho etéreo
sob o luar. Na copa da árvore, estávamos em uma redoma de verde frondoso,

cercados e protegidos pelas damas-da-noite. Morcegos, abelhas e vespas saíram

de suas tocas, polinizando as flores. Seus zumbidos se somaram à música

melodiosa e aos gemidos das pessoas atingindo o ápice do prazer. Era uma festa

para os meus sentidos.

— Quer entrar? — Heinz perguntou dando beijos salpicados em meu

ombro.

Soltei seu braço e me aninhei junto ao seu corpo. Meu vestido se

encontrava em frangalhos em algum lugar do sofá de veludo. Estar nua durante a

madrugada e em cima de uma árvore me deixou com frio. Apontei para a orgia

que acontecia cerca de dez metros de distância. Uma mulher com uma tatuagem

de cobra que cobria todo o seu ventre se movia para frente e para trás com as

estocadas de um jovem rapaz negro com dreadlocks. Seis pessoas se ajoelharam

ao redor dela, três de cada lado. Observei fascinada enquanto eles se


posicionaram ao longo do corpo da mulher e morderam simultaneamente na

garganta, seio e barriga. Sua boca se abriu de prazer e as presas alongaram.

— Ela... Ela... — Tentei montar um pensamento uniforme em palavras,

mas estava distraída demais com a cena para ser coerente.

Heinz riu baixinho, suas mãos beliscando os meus seios e me fazendo

gemer.

— Uma mordida de vampiro libera endorfina na corrente sanguínea.

Imagine como seria seis ao mesmo tempo? — Ele me virou, e ficamos um de

frente para o outro — Você prefere se juntar a eles?

— Não... — Por mais que eu estivesse tentada, já era difícil confiar meu

corpo a um vampiro. Não conseguiria me entregar daquela forma a vários. —

Você quer?

— O que eu quero já está aqui comigo.


Ele voltou a me beijar, e ficamos escondidos entre damas-da-noite até o

dia estar prestes a raiar.

E, assim como as flores que murcharam com o aproximar dos primeiros

raios solares, o festival acabou e se iniciou o inverno.


Capítulo 25 — Carcereira

Tinha um cachorro ao meu lado, deveria ser um rottweiler enorme e

raivoso, pelo jeito que rosnava. Ouvi o rosnado de novo e... Ué! Abri os olhos

para descobrir que não havia cachorro nenhum, era apenas o meu estômago

faminto. Tive uma sensação de déjà-vu, mesmo quarto na escuridão total, mesma

cama e o mesmo corpo inerte ao meu lado. Daquela vez, no entanto, eu não era

prisioneira. Levantei-me e contei os passos: um, dois, três, quatro, cinco, seis.

Encontrei o interruptor na parede. O quarto se iluminou com uma luz suave.

Heinz dormia um sono profundo, imóvel. Sentei-me ao seu lado e penteei

seus cabelos para trás com os dedos. Tão pacífico e belo quanto mortal. Encostei

a orelha em seu peito. Nada, nenhum batimento. Eles ficavam como mortos

durante o dia, frios e inertes. Heinz confiou em mim o suficiente para me

mostrar sua casa e o local onde mantinha os prisioneiros. O suficiente para se


permitir adormecer e ficar vulnerável ao meu lado, mesmo sabendo que eu

estava armada.

Andei até a minha bolsa e peguei meu sai. Seria tão fácil matar ele e

todos os vampiros naquela casa... Encostei a ponta no seu peito nu, e a pele

queimou, ficando com uma marca vermelha. Prata. Desencostei a arma do peito

de Heinz. Isaac me dera um sai de prata! Adagas não eram feitas de prata, elas

eram de aço resistente. A menos que você mande fazer para matar vampiros,

especificamente. Não era à toa que Isaac foi o único capaz de manter minha

atenção no treino: ele não era apenas um humano forte, era um vampiro que

moderava sua força para me treinar.

Minha barriga roncou de novo. Fui ao banheiro com pressa, vesti minha

roupa e desci as escadas com a bolsa a tiracolo. Antes de sair, no entanto, dei um

beijo nos lábios adormecidos de Heinz. Se ele confiou em mim, era justo baixar

um pouco a guarda e confiar nele também. Seria uma mudança positiva do meu
lema: “todos são culpados até que se prove o contrário”.

A mansão inteira estava mergulhada em penumbra, então refiz os meus

passos e desci a escada lateral. Andei pela ala oeste, observando a decoração

antiga e requintada, misturada com o moderno. A quantidade de portas era

infindável, inúmeros quartos capazes de alojar dezenas de vampiros. O festival

de ontem acabou perto do amanhecer, e todos os participantes se acomodaram

ali, na casa.

Ok, quinhentos passos da escadaria até a cozinha, indo na direção leste.

A cozinha era um pouco maior do que a sala do meu apartamento, toda equipada

com os mais modernos — e cromados — eletrodomésticos. Fiquei bem

decepcionada, a da mansão em que cresci era maior. Pensando bem, não era de

se surpreender; de todos os cômodos, aquele deveria ser o que eles menos

utilizavam.

Abri a geladeira, rezando para encontrar algo comestível que não tivesse
hemácias. Ok, talvez eu não achasse tão ruim se tivesse um pouco de sangue

também, apesar de ter ingerido muito mais do que minha cota diária na noite

passada. E que noite! Pena que o festival só acontecia uma vez por ano. Eles

bem que poderiam comemorar a cada mudança de estação...

Encontrei um bolo com cobertura, que eu esperava que fosse de frutas

vermelhas, e trouxe até perto do meu nariz — sim, eram frutas vermelhas.

Queijo, pão, ovos e laranja. Parti um pedaço do bolo e comi com a mão enquanto

vasculhava o lugar. Não era todo dia que tinha acesso livre à dispensa de um

vampiro. Pena que não avistei nada extraordinário, como cabeças decepadas ou

corações pulsantes. Hum... Por outro lado, ainda bem que não encontrei nada

daquilo.

Encontrei uma bandeja de inox em cima de um armário e a preparei com

um café da manhã completo para dois. Não era a única faminta da casa. Andei

mais ainda para o leste e não precisei me aproximar muito para ouvir as batidas
na porta e os gritos desesperados. Respirei fundo, tentando apaziguar meu

coração acelerado. Faltavam cem passos para alcançar o meu destino, e as

batidas ficavam cada vez mais fortes.

— Abram essa porta!! Vocês sabem que estão mantendo um policial em

cárcere privado? — O sargento esbravejava.

— Tom! — Gritei para ele. — Sou eu, Izzy. Eu tenho seu café da manhã

e vou abrir a porta. Você promete que não tentará fugir? Nós precisamos

conversar.

Fechei os olhos enquanto esperava por sua resposta. Heinz me explicou

que a lei vampírica número um era esconder o segredo do mundo humano. Esta

lei deveria ser cumprida não importava as consequências. Por isso que os

humanos precisavam de uma senha para entrar no Reich, apenas os confiáveis

tinham acesso.

— Você está envolvida nisto, Isadora? Foi você quem me colocou aqui?
— Sua voz soou magoada.

A resposta para aquele tipo de pergunta não era tão simples. Era culpa

minha que ele estava ali, mas mantê-lo preso não tinha sido minha decisão.

— Eu preciso que você se encoste na parede oposta, ok?

— E como você saberá se eu me afastei ou não? — Ele perguntou,

desconfiado.

— Por favor, apenas faça.

Esperei que ele obedecesse, demorou uns trinta segundos antes de eu

ouvir seus pés se afastarem. As batidas do coração aceleraram, sua respiração

ficou mais pesada. Merda, ele estava se preparando para correr. Coloquei a

bandeja em um aparador de vidro do corredor e soltei os trincos externos da

porta, já preparada para o impacto. Como esperado, seu corpo se chocou contra o

meu. O sargento tentou me imobilizar, mas a única dificuldade que eu tinha era a

de não imprimir força de mais e quebrar os seus ossos. Não demorou muito para
eu tê-lo preso em um mata-leão.

— Tom, você é meu amigo, me dê um voto de confiança. — Observei o

quarto, estava todo revirado, e a maioria das portas ocultas, abertas. Não podia

imaginar o nervosismo dele ao acordar trancado em um lugar desconhecido.

Logo o soltei, e Antônio se virou para mim com raiva. Nunca tinha visto tanto

ódio no olhar como o que eu vi em seu semblante.

— Eu não sou seu amigo! Não sei que tipo de brincadeira macabra é essa

que vocês fazem aqui! Quem eu sou para vocês? Qual o propósito de tamanha

crueldade? O que ganham com isso?

— Olha, sei que foi errado te prender assim, mas veja, você não está em

uma cela, é um quarto. Não é crueldade, é que...

— Eu não estou falando disso! — Seu grito reverberou no quarto. —

Não se faça de idiota, sua falsária! Quando te conheci, achei que estava vendo

um anjo, um milagre. Achei que Deus tinha ouvido as minhas preces e me dado
a oportunidade de saber como seria a minha filhinha se ela tivesse sobrevivido.

— Sua voz falhou, lágrimas sem controle deslizavam pelo rosto. Tom olhou para

o teto e tentou se recompor, mas sua voz ainda era chorosa. — Eu investiguei

você, a filha de um casal rico. Parto normal em casa, foi para a escola aos cinco

anos. Desejei muito que fosse, mas não poderia ser minha filha.

Oh. Meu. Deus. Eu não estava respirando. Tom era... ele era... Meu

Deus! Minha visão embaçou, agora eu sabia como Tom conhecia Isaac. Não era

de agora, era de muitos anos atrás. Em outra vida.

— Eu...

Antônio não me deixou terminar de falar:

— Te ver sempre foi um bálsamo e uma maldição ao mesmo tempo. A

dor pela perda que tive e a alegria de estar com uma jovem tão destemida como a

minha filha poderia ter sido. Desconfiei que havia algo errado quando você me

perguntou pelo Humberto Fontes. Entrei para polícia por causa dele, sempre
estranhei o modo como o caso do incêndio foi tratado, ainda mais depois que

descobri o motivo de sua aposentadoria. Foram vocês que o enlouqueceram?

Querem me enlouquecer também? Eu sinto como se estivesse perdendo a

cabeça!

Ele não era o único, também estava a um passo de surtar. Eu deveria

fazer o oposto da famosa frase do Darth Vader? Não tinha percebido que estava

chorando até que tentei falar e não consegui. Com tantas coisas acontecendo ao

mesmo tempo, não pensei em como seria conhecê-lo e o que falaria quando

finalmente o encontrasse. E agora não sabia o que dizer. Ao beber daquela taça

na noite passada, fiz uma promessa ao Heinz, não revelaria o segredo dos

vampiros. Como poderia manter a promessa diante daquele homem

desesperado? Engoli em seco antes de falar:

— Seria mais fácil dizer que você enlouqueceu. Droga, seria mais

simples achar que eu tinha perdido minha cabeça. O problema é que a vida
nunca é fácil e a verdade jamais será simples...

— A verdade só é complicada para mentirosos, Isadora.

— Não no meu caso… — Murmurei.

O meu amigo — nossa, não sabia se ainda podia chamá-lo por aquele

título — me encarou por alguns segundos, seus olhos de policial analisando. O

silêncio pareceu durar uma eternidade e foi quebrado pelo ronco de sua barriga.

Implorei:

— Eu trouxe o café da manhã, vamos conversar, e você me diz a sua

versão dos fatos, por favor.

Antônio assentiu com a cabeça, e eu fui buscar a bandeja esquecida no

aparador. Os ovos já estavam frios, mas, pela expressão triste que Tom fazia a

cada vez que olhava para mim, aquela era a menor de suas preocupações.

Tranquei a porta por dentro e puxei uma cadeira para sentar enquanto o sargento

se acomodava em cima da cama para comer.


— Tudo começou durante a primeira semana na universidade, eu era um

calouro tímido. Estava muito feliz por ter passado para direito, queria ser

advogado e trazer justiça para o mundo. Porém, não me encaixava naquele lugar.

Por mais que fosse uma faculdade pública, todos os meus colegas eram filhos de

homens ricos e influentes. Menos eu... Vinha de uma família rica em amor, mas

pobre em dinheiro. Vivia de favor na casa de uma prima distante.

Tom parou e bebeu um gole do suco de laranja. Ele colocou um garfo

cheio de bolo na boca e mastigou em silêncio por um momento, antes de

continuar a falar:

— Pretendia desistir, sabia que não aguentaria me sentir humilhado

durante quatro anos. Já estava decidido, quando fui devolver meus livros

emprestados na biblioteca, e uma moça esbarrou em mim. Ela era tão linda

quanto uma boneca! Seu sorriso parecia iluminar o ambiente, e seus olhos... —

Tom se perdeu em sua memória, relembrando de um passado antigo. Eu mal


podia respirar quando ele finalmente se concentrou em mim. — Ela pediu

desculpas e insistiu em pagar um café. Não aceitei, é claro. Era um absurdo uma

dama pagar qualquer coisa quando saía com um homem naquela época. Mas o

vento bagunçou seus cabelos, e ela os colocou atrás da orelha. Seu nome era

Isabela, sua voz doce e seu ar maroto me conquistaram. Terminei aceitando sua

oferta, faria qualquer coisa por aquela menina.

— Vocês namoraram?

— Sim, por quase um ano. Então ela engravidou. Foi o dia mais feliz das

nossas vidas, nós teríamos um bebê. O fruto do nosso amor. Daí a realidade nos

deu um tapa na cara: éramos estudantes sem dinheiro, os pais dela foram contra,

e os meus não podiam fazer muito para ajudar. Tudo parecia perdido até um anjo

surgir: Luna, irmã de Isabela, que a acolheu em casa e nos apoiou. Ela e o

marido Heitor nos ajudariam a ter nossa própria casa. Isa seria enfermeira, e eu,

advogado. Teríamos uma menininha chamada Isadora, e Mariana, a sobrinha e


melhor amiga de Isabela, seria a madrinha. Tínhamos um plano, a vida era

perfeita de novo. Até certa noite...

Lágrimas percorriam a face enrugada de Antônio, e ele largou o garfo na

bandeja. Eu também chorava. Bastou uma visita ao Reich para destruir todo o

futuro maravilhoso que eles planejaram. Uma sequência improvável de

fatalidades, e o sonho da família feliz se desfez...

— Eu só fiquei sabendo na tarde seguinte, quando Mariana lembrou de

me ligar depois de ver o corpo de Isabela. Eu... Eu... — Seus lábios tremeram, e

a voz saiu embargada de emoção. — Eu não pude me despedir dela. Não era da

família, não tive autorização, e o velório foi de caixão fechado.

Lembrei-me do que Mariana falou, ela vomitou ao ver o corpo

carbonizado da minha mãe.

— Talvez fosse melhor assim, a sua lembrança é de quando ela estava

viva e feliz.
Antônio balançou a cabeça concordando.

— Pode ser. O delegado da cidade disse que foi um acidente, o botijão de

gás explodiu e incendiou a casa. Acreditei nele, por que desconfiaria? Até que,

por um acaso, eu descobri que ele se aposentou logo depois. Surtou. Foi

internado por causa de delírios sobre fogo, presas e olhos brilhantes. Disse que

estava sendo perseguido.

“Abandonei a faculdade e entrei para a polícia, já não tinha condições de

estudar, não tinha propósito, e em todos os lugares em que ia, lembrava dela.

Após dez anos de busca, nunca descobri nada, então tentei seguir a vida e casei

com outra mulher. Estava tudo bem, até tinha me acostumado com você, em

como seus olhos e seu jeito doce, porém decidido, lembravam Isabela.”

— Eu tenho jeito doce? Não sabia! — Fiz uma piada para aliviar o clima,

e ele sorriu de leve.

— Quando você quer, tem sim. — Seu semblante se fechou. — Mas aí


você me perguntou sobre o Humberto Fontes, era muito coincidência! Eu te

segui, e para onde você foi? Para o prédio onde fica o consultório de Mariana e

depois para a casa. Pensei que minha cabeça ia explodir. Quando vi Heitor te

seguir, meu mundo desmoronou. Tudo que eu pensava ser verdade era mentira.

Heitor, cunhado de Isabela, ressurgido das cinzas e com a mesma aparência de

trinta anos atrás. Estava tão desnorteado, que não conseguia me mover, fiquei

encarando meu próprio reflexo no retrovisor do carro. Eu era um jovem na época

do incêndio, e agora estou um velho cheio de rugas... E ele parecia ainda melhor

do que antes! Quando finalmente entrei na casa, o ouvi falar sobre matar e secar

um morador de rua. Me diga, Isadora, do que ele estava falando? Como

sobreviveu? Como não envelheceu? Como levou dois tiros e permaneceu em pé?

Como aquele outro homem veio do nada e me nocauteou? E o mais importante,

quem é você?

Tantas perguntas, e só havia uma única explicação. Antônio não era


como Mariana, não aceitaria uma desculpa qualquer tão fácil e também já sabia

demais. Por mais peculiar que fosse a verdade, eu precisaria contar tudo. E foi o

que fiz. Podia perceber que cada palavra saída de minha boca era uma facada em

seu peito. Dor, revolta, desespero, choque, angústia, medo. Era incrível como eu

conseguia identificar esses sentimentos, pareciam emanar dele. Não apenas pelas

expressões, mas também pelas mudanças em seu cheiro e frequência cardíaca.

— Então é isto. — Terminei o meu relato. — Eu sou sua filha.

Levantei-me e dei um passo à frente, na tentativa de me aproximar do

meu pai biológico. Porém, fui rechaçada. Ele agarrou a faquinha de passar

manteiga no pão e andou para trás até encostar na parede. Tom, cheio de cólera,

apontou a faca para mim e disse:

— Não se aproxime, você não é minha filha! A minha Isadora morreu

junto com a mãe, você não passa de um monstro que usurpou a pele do meu

bebê.
Suas palavras doeram mais do que se ele tivesse enfiado a arma

improvisada em mim. Eu sabia que aquela poderia ser a reação natural quando

soubesse a verdade, mas, mesmo assim, não estava preparada. Juntei todas as

forças que tinha para não desmoronar, peguei a bandeja de cima da cama e a

coloquei na mesa de cabeceira. A comida estava praticamente intocada, e ele

poderia sentir fome depois. Apontei para a porta do banheiro escancarada.

— Vejo que já achou o banheiro. Em algum lugar, tem uma geladeira

também. — Procurei a porta oculta em uma posição próxima ao do quarto de

Heinz. Não demorei muito a encontrá-la. Ainda bem que estava abastecida. —

Tem comida e água. Não posso te libertar, prometi ao Heinz que protegeria o

segredo dos vampiros. Eu... Eles... Alguns não são maus. Volto ao anoitecer. Não

se preocupe, resolveremos a sua situação da melhor forma possível.

Minha voz saiu plana e não traiu meu nervosismo. Pensei em me

defender, dizer que não era um monstro, mas eu era. Tia Luna estava certa ao me
esconder do mundo humano, eu sempre seria uma aberração para eles. Tranquei

a porta atrás de mim e corri para o quintal cuja grama estava coberta com roupas

pretas abandonada e os restos das damas-da-noite, murchas após o amanhecer.

Enviei a localização para Takao e pedi que viesse me buscar. Sentei-me perto de

uns arranjos de cactáceas floridas. Esperei, junto às flores coloridas resistentes

ao sol, que um dos humanos que ainda me amavam viesse me buscar.


Capítulo 26 — Heitor

Cumprimentei os guardas diurnos da mansão de Heinz, e eles abriram o

portão para que eu saísse. Humanos fracos, porém com armas grandes, fuzis

capazes de perfurar carros blindados. Fiquei aliviada quando Takao me levou

para longe, não estava com vontade de testar se eu era ou não imune a balas.

Permaneci calada e perdida em pensamentos durante toda a viagem até o

apartamento dele. Takao respeitou o meu silêncio. Cecília, por outro lado, vendo

minha expressão triste, foi logo me abraçando e perguntando:

— O que aconteceu?

Nos braços da minha prima de criação, que não tinha o meu sangue, mas

que eu amava como se tivesse, chorei.

— Eu sou uma aberração! — Gritei o que estava engasgado desde que li


as primeiras páginas do diário de Luna.

Ceci alisou minhas costas e me levou até o sofá, onde sentou e me

obrigou a deitar no sofá, com a cabeça em seu colo.

— A gente sabe disso, mas você é nossa aberração. — Eu chorei ainda

mais, e ela alisou os meus cabelos. — Humana ou não, você é a mulher mais

fantástica que já conheci. Não dê ouvidos a esse tipo de bobagem, Izzy. O pior

preconceito é aquele que a pessoa tem de si mesmo.

— Você não entende, o meu pai me disse que...

— O tio Fernando disse isso? — Cecília levantou tão rápido, que minha

cabeça bateu no estofado. Ela nem percebeu. — Ah, vou lá agora mesmo falar

umas verdades. Onde já se viu falar isso para a própria filha?

Segurei o seu braço antes que ela pegasse a chave do carro e fosse tomar

satisfação com o tio:


— Não foi ele, Ceci, foi o meu pai biológico.

Aquilo fez com que ela e Takao, que estava sentado na mesinha de

centro, paralisassem. Eu me sentei e pedi que ela fizesse o mesmo. Pedimos

pizza para o almoço, e contei tudo o que aconteceu. Entre lágrimas e gritos de

“não acredito” — na maioria vindos de Cecília —, terminei o meu relato. Nem

eu acreditava o quanto minha vida havia mudado nos últimos dias.

— Uau! Com todo respeito à tia Luna, ela fodeu todo mundo, hein? O

sargento é teu pai? Já vi que o gênio forte é de família. — Takao me abraçou. —

Até entendo o Tom, não deve ser fácil ouvir tudo isso e não se afetar. Se eu, que

já sabia a verdade sobre você e não amava sua mãe, estou devastado, imagina

ele?

Ceci acariciou minha perna.

— Ele vai entender, só está assustado, é muita informação para processar.

Todas as crenças dele precisarão ser quebradas e refeitas. Qualquer um sentiria


honra ao ter você como filha. — Sorri, e ela bateu palmas, feliz por ter me

animado. — Então, vamos focar no lado bom, como o Heinz. Eu queria um

vampiro gostoso e atencioso assim! — Takao a olhou atravessado e fez um som

de pigarro com a boca, e Ceci soltou um beijo no ar para ele. — Se eu não

tivesse você, né? Quem precisa de um sanguessuga gostosão quando tem o japa

mais lindo da cidade?

Apenas minha prima conseguiria me fazer sorrir em um dia como aquele.

Takao riu da fraca tentativa de Cecília de consertar o que falou, se levantou e

ofereceu café para gente:

— Sei que o meu sangue não é o de um “vampiro gostosão”, mas você

quer que eu corte o dedo e tempere o seu, Izzy?

Fiquei na dúvida se estava oferecendo de verdade ou era apenas

sarcasmo. Na dúvida, optei pela ironia:

— Há, há, muito engraçado! Além do mais, não preciso. — Toquei no


colar. — Tenho minha reserva.

Assim que seu namorado virou as costas, Cecília perguntou para mim:

— E aí, de que tamanho estamos falando? É grande? Eu imagino

grande...

— Cecília! — Takao gritou quase da cozinha. — Eu ainda posso ouvir.

— Estou perguntando sobre o tamanho da presa, amor! — Ceci gritou de

volta. Afundei no sofá e relaxei. Aquilo era tudo que eu precisava naquele

momento...

★ ☽ ☯ ☾ ★

— Izzy, Izzy... Acorda... — A voz doce da minha prima me tirou de um

sono profundo. Eu resmunguei em resposta, e ela me sacudiu mais uma vez. —


Eu sei que você deve estar exausta depois de ontem, graças a Deus pelo sangue

de vampiro, ou você nem conseguiria levantar, mas acorda, que já anoiteceu!

Aquilo me fez despertar. Levantei tão rápido, que bati minha cabeça na

de Cecília. Ai! Alisei minha testa e perguntei:

— Me diz, por que eu te contei sobre o festival? — Ela iria fazer piada

sobre ele para sempre.

— Porque ninguém vê ou faz aquilo tudo e não conta para pelo menos

uma amiga. — Ceci jogou o celular no meu colo. — Já parou de tocar, e o

número está oculto, mas aposto que é o seu schatzi. Você ao menos pesquisou o

termo para descobrir o que era?

— Não tive tempo.

Olhei para o aparelho, número não identificado. Só podia ser Heinz. Eu

precisava voltar e estava atrasada. O telefone vibrou com uma mensagem de

texto nova: “estamos esperando você para começarmos o interrogatório de


Isaac, schatzi. Traga o seu amigo humano. Heinz.”

— E não está curiosa? — Respondi com um “hum?”, e Ceci revirou os

olhos. — Schatzi significa tesouro, Izzy. Seria algo como amorzinho. É um

apelido carinhoso em alemão, muito fofo!

Eu poderia definir Heinz com diversos adjetivos, mas fofo não seria um

deles. Segurei o colar de prata cheio de sangue. Schatzi. Bem, ele era tão fofo

quanto eu acreditava que um vampiro poderia ser.

Chamei Takao para ir comigo, e Cecília insistiu em ir junto. Ela disse que

também sabia o segredo e queria ver a mansão do Drácula. Desisti de

argumentar, ela tinha razão. Heinz não ficou muito feliz ao descobrir que tantas

pessoas sabiam a verdade, mas terminou aceitando. Entrei no calabouço seguida

por Cecília e Takao e vi que meu pai e Isaac estavam lá também, porém em celas

separadas. Isaac, preso pela garganta por uma gargantilha de prata, tentou sorrir

ao nos ver. Tom permaneceu cabisbaixo.


— Boa noite, schatzi. — Heinz, vestido em um terno preto, segurou

minha mão e beijou o dorso. Ele se voltou para Ceci e beijou sua mão também.

— Prazer em conhecer tão bela senhorita, pode me chamar de Heinz.

Ah, pelo amor de Deus! Ele tirou essa apresentação de qual filme B?

— Ah, então você é o famoso Heinz? Já ouvi falar muito de você.

— Espero que apenas coisas boas. — O alemão respondeu com voz

sedutora, e Ceci retrucou:

— Não exatamente.

— E eu sou Takao. — Ele se intrometeu na conversa dos dois. — Mas

você já sabe disso, não é? Foi aqui que fiquei preso naquela noite. Você me

manteve naquela cela. — Ele apontou para a que meu pai estava.

— É o que acontece com humanos xeretando o Reich sem autorização.

Estou mais interessado em descobrir quem te ajudou a fugir.


— Nisso — a voz de Isaac soou estranha por causa da prata machucando

a garganta —, eu posso ajudar...

Todas as atenções se voltaram para ele, que, com dificuldade, contou sua

história. Boa parte eu já sabia por causa do diário de Luna. Minha tia achou que

o sangue dela não fora suficiente para transformá-lo em vampiro, porém a

transformação não é sempre rápida como a de Luna, depende da condição de

saúde da pessoa. Heinz explicou que na presença de alguma doença grave, como

o câncer, o vampirismo demorava um pouco a acontecer. Isaac pareceu muito

surpreso, se ele tinha alguma condição extrema de saúde, não sabia.

Naquela noite, Isaac, ou melhor, Heitor, só despertou quando a casa

estava em chamas, fugiu e se escondeu em uma gruta no meio da floresta que

cercava a cidade. Na noite seguinte, Heitor procurou pela esposa, e não a

encontrou. Decidiu ir ao necrotério e se deparou apenas o corpo da cunhada.

Seguiu o delegado e o ouviu comentar com outro policial: com os donos da casa
desaparecidos, eles se tornaram os principais suspeitos. Heitor sabia que

precisava remediar aquela situação, afinal e se ele fosse preso e matasse todos na

delegacia? Voltar ao mundo humano não era uma opção, e tampouco confiaria

nos vampiros que fizeram aquilo com Luna.

Heitor decidiu sacrificar uma pessoa em prol do bem da maioria.

Enlouqueceu Humberto Fontes com “aparições demoníacas de olhos amarelos”

que só cessaram depois que todas as evidências sobre o incêndio foram

destruídas e este foi declarado como acidental. Foi preciso só uma noite para

convencer o pobre delegado a enterrar pedras em vez de corpos nos caixões de

Luna e Heitor. Com o delegado fora do caminho e o caso resolvido, Heitor viveu

nas sombras, procurando pela esposa e garantindo a segurança da filha deles,

Mariana. Os anos começaram a passar, e ele não tinha rastro de Luna. Como não

a encontrou, resolveu procurar emprego, não podia mais dar aulas de educação

física, então trabalhou como segurança noturno em boates. Depois, juntou


dinheiro suficiente para comprar uma casa e montar a Academia.

— Mantive distância dos outros vampiros, principalmente do Reich.

Odeio aquele lugar. Se Luna nunca tivesse pisado lá, eu estaria hoje ao seu lado,

brincando com meus netinhos. — Isaac cuspiu seu ódio em Heinz.

O alemão não se abalou:

— Se não fosse pelo Reich, você já estaria morto por causa do câncer

que nem sabia que tinha ou seria escravo dos vampiros beberrões.

— Nunca encontrou Luna? — Ignorei a briguinha entre os dois.

— Eu estava tomando cerveja em um bar perto da Academia quando vi

uma mulher parecida com ela. Fiquei tão abismado ao encontrá-la depois de

tantos anos, que não me movi, nem mesmo quando Luna entrou em uma briga

com uns idiotas. Rápida, forte e sabia lutar. Durante trinta anos, me perguntei

como seria ficar cara a cara com ela, se teria raiva pelo que fez. E quando a vi

ali, respirando e lutando, sabia que já a havia perdoado. Em três décadas, tive
poucas alegrias, e todas elas foram misturadas com tristezas. Observei minha

filha se formar, e não pude lhe dar os parabéns. Vi seu casamento, porém, não a

levei até o altar. Ouvi o choro dos meus netos, no entanto nunca pude acalentá-

los.

— Ai, gente, solta esse troço da garganta dele! Não vê que o coitado já

sofreu demais? — Cecília reclamou e foi prontamente ignorada.

Exalei o ar, abalada pelo relato do meu tio. Tom o encarava com os olhos

avermelhados e cheios de lágrimas. As roupas do sargento estavam amarrotadas,

porém não tinha sinal de sangue ou sujeira. Não parecia ter sido machucado.

Isaac, por outro lado, tinha sangue manchando sua camisa. Não sabia se Heinz

havia batido nele ou se era do tiro que Tom havia desferido na noite anterior.

— Não se preocupe, Ceci, já não sinto mais a dor. — Isaac tentou

tranquilizá-la. — Como eu dizia, na hora que a vi no bar, meu corpo inteiro

pareceu despertar da dormência e monotonia que tinham me dominado nas


últimas décadas. Tive certeza que ainda a amava, mesmo que ela estivesse quase

tão descontrolada quanto na última vez que a vi. Luna não parava de brigar, e eu

temi que cometesse um assassinato na frente de tantas testemunhas. Decidi

intervir, e o que descobri? Não era Luna, se tratava de uma jovem muito parecida

com minha esposa, mas com os olhos de Isabela. Não acreditei quando descobri

que seu nome era Isadora. Passei horas pensando em como aquilo seria possível,

e aí lembrei da quantidade de sangue que vi em sua mãe morta naquela noite, da

blusa levantada, do corpo mutilado. Com a casa em chamas, não pensei muito

sobre aquilo. Quando entendi quem você era, jurei te proteger da melhor forma

que podia. E não havia forma melhor do que te treinar para que aprendesse a se

defender sozinha.

— Em algum momento você pensou em me contar a verdade? —

Perguntei.

— Quase surtei quando Takao comentou que você iria ao Reich, então os
segui e descobri que foram trazidos para esta casa. Trouxe meu plano de

emergência e ataquei. Achei que ambos estariam aqui, mas encontrei apenas

Takao muito drogado. Eu o deixei em casa e só tive sossego quando soube que

você estava bem, Izzy. Eu te daria os sai de prata, os fiz sob encomenda para te

presentear, e contaria a verdade, sim. Você começar a frequentar o Reich só

antecipou minha decisão.

— Como sabia os detalhes da minha casa se nunca entrou aqui antes? —

Heinz estava irado, eu podia sentir a raiva emanar dele como uma onda.

— Tenho meus contatos.

— Conversaremos sobre eles depois. — O alemão sacou uma faca curta

da cintura e apontou para nós. — Vocês estão aqui porque sabem demais ou

fazem parte do segredo. Eu sei das diferenças que cada um tem, porém acredito

que nossas semelhanças são capazes de nos unir. Creio que encontrar Luna é

prioridade número um. Juntos podemos fazer isso e ainda ajudar a população
humana de Monte Carlo, mas, para isto — ele cortou a própria mão e ofereceu

—, vocês devem jurar lealdade a mim.


Capítulo 27 — Lealdade

— Vocês devem jurar lealdade a mim! — Heinz repetiu com irritação. O

corte em sua palma já tinha curado, e ninguém se movera ainda. Ele cravou a

adaga na parede entre as celas e encarou cada um de nós. — Vocês estão

mexendo com forças além da compreensão humana. Eu conheci Luna vinte e

cinco anos atrás. Ela tinha poucos anos como vampira, mas antes disso, nunca

foi uma humana tola. Tentei ajudar, porém ela preferiu fugir, e olhem no que

deu! Desaparecida por décadas. Quem pegou Luna é mais forte do que vocês

podem lidar. Separados serão alvo fácil. Não posso proteger ninguém nem deixar

vocês saírem daqui sem o juramento. Ao beberem o meu sangue, prometerão

manter o segredo dos vampiros e não machucar humanos.

Cecília estreitou os olhos.


— Isso é bem aceitável, mas quanto eu precisaria beber para me tornar

uma vampira? E se eu beber, você será capaz de nos rastrear, não é? Como

funciona isso? Qual a origem dos vampiros? De onde vem o seu poder? Você

tem mais poder do que os outros? Quanto poder Izzy tem? O que ela pode fazer

que você não pode? Você vira pó se entrar em contato com o sol? Por que dorme

o dia todo? Quando eu e Takao poderemos participar do festival do fim do

verão?

Meu Deus, ela entrou no modo cientista curiosa! Era pior do que uma

criança de sete anos na fase do “por quê?”. Heinz não precisava respirar para

sobreviver, mas ouvi quando inspirou fundo.

— Não tem segredos com você, hein? — Ele me encarou.

Antes que pudesse dizer que eles já sabiam a maior parte antes de eu

jurar segredo, Ceci atacou novamente:

— Ah, ela não falou tudo! Eu ainda não sei o tamanho do seu... da sua...
presa.

O sorriso nada inocente dela o fez sorrir e relaxar um pouco.

— Certo. Vocês precisarão tomar sangue uma vez por semana para que

eu consiga rastrear. A quantidade que vão ingerir não é suficiente para

transformá-los, porém irá curar algumas doenças que possam ter. — Ele

interrompeu Ceci antes que ela o bombardeasse com mais um milhão de

perguntas. — Doenças mais graves como o câncer e a AIDS só são curadas com

o vampirismo em si. Eu também não sei os limites do poder de Isadora, mas o

meu não é algo que eu divulgue para o público.

Takao e Cecília se entreolharam, eles sabiam que eu tinha jurado lealdade

na noite anterior, não duvidava que o fizessem também.

— E o que você quer da gente? Devemos retribuir sangue com sangue?

— Takao perguntou.

— O silêncio e a discrição são as nossas moedas de troca, mas, se você


quiser doar, não rejeitaremos.

Tom, que estava em silêncio até então, levantou a cabeça, apontou para

Isaac e finalmente se pronunciou:

— Você disse que era triste ver sua filha crescer e não poder participar.

Pelo menos, sabia que ela estava viva e bem. Imagine como foi para mim! Eu

pensei que minha filha tivesse virado cinzas, queimada antes mesmo de ter a

chance de tomar o primeiro sopro de vida. Eu perdi os meus dois grandes amores

em um único golpe. Depois descobri que minha filha estava viva, mas não

exatamente. Estava mudada para sempre, um monstro em pele de menina.

Em um piscar de olhos, Heinz o segurava pelo pescoço. Nossa! Nem o vi

abrir a porta da cela!

— Nunca mais repita isso! Isadora está mais viva do que você, o único

monstro que vejo aqui é o seu preconceito. Poucas pessoas têm uma segunda

chance. Você não viu sua filha se formar na faculdade, mas pode abraçá-la agora
e estar ao lado dela como um bom pai faria.

— Avisa a ele que dar uma de supervamp, que se move na velocidade da

luz e pega as pessoas pelo pescoço, não vai ajudar a provar que os vampiros são

caras legais... — Ceci murmurou, e Heinz ouviu e soltou Tom. Seus braços

tremiam enquanto tentava retomar o controle de si.

— Pode me matar, nunca vou jurar lealdade a um sanguessuga como

você. — Antônio não se rebaixou diante do vampiro.

— Então você nunca sairá daqui. — As palavras de Heinz soaram mais

como uma sentença. Achei melhor não intervir. Sem proteção e sabendo da

verdade, Tom provavelmente colocaria a própria vida em risco ao tentar caçar

vampiros.

— Eu sou um policial, você não pode me manter aqui para sempre.

Heinz saiu, trancou a cela e o encarou através da grade por longos

segundos antes de dizer:


— Não se preocupe, sargento. Não somos amadores.

— Eu também não prometerei lealdade. — Isaac falou com esforço. —

Não passei trinta anos escondido para participar do seu clubinho de vampiros.

Heinz acenou com a cabeça, sem se dar ao trabalho de responder, e pediu

que nós três — eu, Cecília e Takao — o seguíssemos. Enquanto meus dois

amigos tomavam um cálice de sangue, ele explicou que lealdade era algo a ser

pedido, e não obrigado. Deveria ser voluntário, ou não teria sentido. Falou

também que, em respeito a mim, permitiria que Tom andasse pela propriedade

durante a noite. Talvez aquilo fizesse com que o meu pai se acostumasse com a

ideia dos vampiros. O mesmo não poderia ser oferecido a Isaac. Antônio não era

um perigo, um humano jamais conseguiria fugir dali. Insisti em retirar a coleira

de prata de Isaac, mas Heinz foi incisivo: a prata era necessária para enfraquecê-

lo.

Com a questão da lealdade temporariamente resolvida, só havia mais um


problema em aberto: Geórgia, a garota que salvei nas docas e ainda permanecia

desacordada. Fomos com Heinz até o hospital. Enquanto Takao distraía o guarda

na porta, entramos em velocidade vampírica. Assustei-me quando vi a aparência

da menina: sua pele era uma profusão de marcas roxas e esverdeadas. As

máquinas ligadas a ela bipavam ritmadas, mostrando a estabilidade de seu

quadro. Heinz se aproximou, mordeu o próprio pulso. Forçou a boca dela aberta

e deixou que o líquido carmim escorresse por sua garganta. Os aparelhos que

mediam a pulsação e oxigenação de repente enlouqueceram, e os hematomas na

pele começaram a clarear, mudando para um tom mais amarelado. Eu quase

podia ver o sangue vampírico agindo em tempo real.

Os olhos de Geórgia se abriram. Ela piscou várias vezes, como se

tentasse focar na gente. A garota pareceu assustada quando nos viu e tentou

verbalizar algo, apesar do aparente choque, quando ouvi passos nos corredores.

Merda! As máquinas acionaram a enfermaria. Como esperado, as enfermeiras


entraram correndo, e nós nos escondemos no banheiro. Entre interjeições de

surpresa dos funcionários do hospital ao se depararem com uma Geórgia

praticamente curada, ouvi o lamento desorientado dela:

— A mulher... A mulher da cela... Estava aqui... Comigo...

Mulher da cela?

Oh, Deus!

Será quê...?
Capítulo 28 — Mulher da cela

Meia hora se passara, e nada dos enfermeiros saírem do quarto. Não

paravam de fazer perguntas, e as respostas de Geórgia eram cada vez mais

desconexas, variavam entre dinheiro, sangue, mulher da cela e anjo salvador. Eu

estava impaciente, enquanto Heinz permanecia com a tranquilidade de quem

tinha séculos de experiência. Quando o quarto esvaziou, nós saímos do nosso

esconderijo no banheiro. Geórgia permanecia ligada ao monitor cardíaco, porém

retiraram o cateter de oxigênio das suas narinas. Heinz deu outra dose de sangue,

e seus olhos pareceram um pouco mais focados do que quando acordou.

— Geórgia, você lembra quem eu sou? — Ele se posicionou em frente à

maca hospitalar, enquanto permaneci próximo ao banheiro, fora do campo de

visão dela.
Os olhos da garota se estreitaram e analisaram o imponente homem

parado no meio do quarto de paredes verdes.

— Heinz... me perdoe, eu não deveria ter roubado de você.

“Você fez isso com ela?”, murmurei com raiva e em tom baixo, para que

apenas ele ouvisse. Heinz fingiu que não escutou.

— Tem razão, não deveria. Você deu as costas para mim, roubou as

garrafas de sangue e fugiu. E tudo isso por quê? Por dinheiro. Sei o que fez,

misturou o meu sangue com drogas e revendeu em festas. Lucrou com o que eu

te dava livremente. — A voz dele tinha um tom plano, ameaçador. Aquele era

um Heinz frio, muito diferente do que me chamava de schatzi.

Lembrei da minha investigação antes de encontrá-la nas docas. Geórgia

era apontada como vendedora de produtos falsificados. O que aquela garota

tinha na cabeça? Traficar drogas já era ruim o suficiente, misturar com sangue de

vampiro, então... A ganância do ser humano não tinha limites.


— Paguei pelo meu erro. Quando o seu sangue acabou, tentei negociar

com os vampiros das docas por mais. Achei que seriam como no Reich, mas não

foi. Eles me mantiveram em uma cela e eles... eles... — Ela começou a chorar, e

eu me compadeci. Não importava o que tinha feito. Ladra ou não, o abuso nunca

era justificável.

— Sugiro que você e seus pais saiam da cidade. Não posso dar proteção

a uma pessoa que roubou de mim, e aqui você ainda é alvo fácil.

— Você não vai me punir? — Geórgia perguntou com esperança.

— Não, o destino que você teve foi pior do que qualquer punição que eu

poderia dar. — Cada palavra de Heinz parecia uma sentença. Ele não me

enganava, a não proteção era a sua punição. O vampiro continuou a falar. —

Quero que você me diga o que lembra do local em que ficou presa.

Ela fechou os olhos, e seu corpo tremeu com as lembranças.

— Não lembro muito. Variavam de lugar, às vezes eu ficava em um


galpão nas docas, servindo de lanche para os vampiros que estavam de guarda.

Também me mantinham em um quarto para... Você pode imaginar para quê.

Outras vezes, me deixavam em uma cela subterrânea. Quer dizer, eu acho que

era subterrânea, tinha um cheiro forte de terra, mofo e umidade.

Meu Deus! Não podia ficar parada e ouvir aquilo. Quantas garotas

estariam passando pela mesma situação naquele exato momento? Alguém

precisava dar um jeito naqueles vampiros das docas.

— Você falou sobre uma mulher da cela. Quem mais estava lá? — Dei

vários passos para frente e entrei em seu campo de visão.

Ela me encarou com assombro. Seus olhos se estreitaram, mas Geórgia

apenas balançou a cabeça para os lados, como se dispersasse os pensamentos.

— Sim, na cela sempre havia outras garotas. Mudavam com frequência,

ficávamos todas amontoadas em um lugar pequeno e sem circulação. Era um

inferno. Apenas uma delas permanecia separada, mas eu não acho que era
humana.

Meu coração deu um salto.

— Por que não?

— Nenhuma humana seria capaz de suportar o que aquela mulher sofria.

Ela permanecia a maior parte do tempo amarrada à parede com algemas de

metal, e eles a açoitavam diariamente, a cortavam com facas e exigiam que ela

falasse “onde tinha escondido o que roubou”.

O que roubou? Talvez não fosse tia Luna. Que eu saiba, ela nunca

roubou nada de ninguém. Ao menos não havia menção a isso em seu diário.

Eu me aproximei mais e sentei na beirada da cama de Geórgia.

— Se eu trouxesse uma foto, você a reconheceria?

— De onde te conheço? — Geórgia me perguntou em vez de responder.

— Lembro de você, do seu rosto envolto em sombras. Você estava lá também?


— Eu... — O meu telefone tocou com uma mensagem de texto: Takao

avisando que os pais dela chegaram ao hospital e que tinha um policial parado

no corredor.

Merda! Por onde escaparíamos? Mostrei a mensagem para Heinz, que

apenas deu de ombros, sem se importar. Ele apontou para Geórgia e avisou:

— Vá embora da cidade.

Senti um puxão em minha cintura e, em segundos, eu estava pendurada

no parapeito da janela do lado de fora. O vento frio fez meus cabelos voarem e o

sobretudo balançar. Se meu sai caísse lá embaixo, eu mataria Heinz. Antes que

pudesse xingá-lo, ele colocou o indicador na boca, pedindo silêncio. Exibido!

Conseguia ficar pendurado só com um braço e sem esforço nenhum. Também

não estava fazendo muita força, para ser sincera, era mais o susto de saber que se

soltasse, cairia quatro andares. Os pais de Geórgia entraram no quarto, e, pela

conversa que ouvi, percebi que eles não sabiam sobre a atividade ilegal da filha.
Não ouvimos nada de relevante.

— Vamos. — A voz de Heinz era um sussurro que se perdeu no vento.

Ir para onde? Estávamos a mais de quinze metros do chão! Tive um

sobressalto quando ele se soltou, caindo em pleno ar livre até alcançar o

parapeito do próximo andar. Heinz fez isso mais duas vezes e chegou na calçada.

Ele estava louco se achava que eu faria aquilo. Minhas mãos começavam a suar.

Engoli em seco, tentando não entrar em pânico. Nunca tive medo de altura, mas

também nunca fiquei pendurada mais de dez metros acima do solo sem nenhuma

proteção.

Ouvi a risada de Heinz. “Sua bunda fica linda deste ângulo”, ele falou

baixo e cumprimentou uma velhinha que saía do hospital. Desgraçado. Estava

fazendo piada de mim.

Ok! Respirei fundo e soltei minha mão. Gostaria de dizer que foi

libertadora a sensação de cair no nada, porém eu estava com medo demais para
aproveitar qualquer coisa. Agarrei o parapeito do andar inferior. Eu não morri?

Não morri! Uhul! É isso aí! Soltei de novo, desta vez com mais confiança. Fui

descendo um a um. Ia pousar na calçada, quando Heinz me pegou no colo, me

fazendo bufar.

— Se era para me salvar como a uma donzela indefesa, que tivesse feito

logo, né? Seria até romântico eu caindo do prédio, e você me pegando no colo.

Heinz me colocou em pé no chão, e eu senti meus pés firmes na calçada

de pedra.

— Isso aí só funciona nos filmes. Na vida real, a velocidade da queda

somada ao seu peso fariam com que seu corpo se quebrasse com o impacto dos

meus braços. Poderia te trazer pendurada em minhas costas, schatzi, mas é

melhor que você aprenda a se virar sozinha. — Ele explicou e beijou a minha

boca.

Correspondi o seu beijo. Era difícil resistir ao Heinz, não porque era um
vampiro gostoso, mas por causa de pequenas atitudes como aquela. Ele não

tentava me subjugar com o seu poder e fazia questão de me lembrar que era tão

poderosa quanto ele.

Além disso, agora que eu tinha certeza de sua inocência em relação à

Geórgia, passei a admirá-lo. Era um homem que poderia usar o poder para

conquistar o mundo humano e usurpar a liberdade, no entanto o usava para

controlar os vampiros e proteger os inocentes. Ele também nunca hesitou em

mostrar suas fraquezas ou minhas vantagens.

— Obrigada, liebling. — Pronunciei como “líbiling”, era um termo

alemão que significa o preferido, querido. Ceci fez questão de pesquisar no

Google para que eu decorasse e dissesse a Heinz. Ela falou que ele iria adorar.

Pela sua expressão de surpresa, Ceci acertou na suposição.

— Onde aprendeu isso?

— Tenho meus contatos.


A minha brincadeira, entretanto, não tinha tanto ânimo quanto poderia.

Algo permaneceu em meus pensamentos: eu era uma garota com poderes na

cidade, mas havia tantas outras indefesas...

— Vamos, quero voltar para o apartamento.

Avisei a Takao por mensagem que já havíamos saído do quarto e fui para

casa. Heinz aceitou o meu convite de entrar, mas não tentou me beijar. Ele sabia

que minha mente se encontrava bem longe.

Seria a mulher da cela a minha tia? Teria Geórgia me reconhecido porque

a salvei no galpão, ou porque era parecida com Luna? Eu precisava encontrar

aquela prisão, independentemente de quem fosse a tal mulher.

— Não pode ir lá sozinha, e eu não posso ir com você, quebraria o

acordo. — Heinz se encostou na porta e ficou me encarando de braços cruzados.

Acordo? Ele sabia sobre o sequestro de mulheres e nunca falou nada?


— Por que tem acordos com eles? Como permite esse tipo de coisa?

Essas mulheres são descartáveis para você?

Os olhos dele se acenderam como chamas amarelas.

— Acha que aquela noite no Reich foi o primeiro ataque, ou que sua

família foi a única vítima? Não foi, Isadora! Pessoas que foram amigos meus por

séculos morreram em emboscadas. Você achou que havia muitos vampiros no

festival? Aquele é só um terço dos que sobraram! Nós não transformamos

vampiros novos indiscriminadamente, mas eles sim. Na noite que sua tia estava

no Reich, lançaram quarenta vampiros novos em sede de sangue para cima de

nós. Luna e Alice tiveram sorte de saírem com vida. Fiz um acordo porque era a

única saída.

— Então algumas vidas precisam ser sacrificadas pelo bem da maioria?

— Meus olhos se encheram de lágrimas pelas mulheres presas em calabouços e

sem esperança de salvação.


— O mundo em que vivo é tão injusto e cruel quanto o dos humanos,

Isadora, nenhuma decisão é fácil. Eu gostaria de salvar todos, mas não posso. —

Permaneci em silêncio, e ele percebeu o quanto estava chateada e beijou a minha

testa. — Preciso ir ao Reich.

Depois que ele foi embora, desabotoei o colar de prata do meu pescoço e

larguei minha bolsa em cima da mesa de vidro. Abri a varanda, permitindo que o

ar da noite entrasse, e me joguei no sofá branco, sentindo o macio do couro

embaixo de mim. Estava cansada demais para me dar ao trabalho de ligar a

televisão. Nada poderia distrair minha mente. Se tia Luna era a tal mulher, o que

ela teria escondido e há quanto tempo era torturada?

Tirei o casaco e o arremessei no chão, ouvi um barulho metálico baixo:

minhas chaves. Merda! Deixei a Kawasaki na Dom Bosco, ia terminar perdendo

minha moto. Só esperava que a menina assustadora não tivesse furado os pneus

dela. Procurei a chave no bolso e fui correndo. Esse negócio de velocidade


vampírica era divertido. Se pudesse fazer isso à luz do dia sem ser notada,

aposentaria qualquer meio de transporte.

Cinco quadras depois, escutei um grito de socorro. Aquilo era algo que

eu não poderia ignorar, nem naquela e nem em qualquer outra noite. Aproximei-

me com cautela e vi dois ladrões tentando roubar uma mulher. Droga! Não

estava com minhas armas, tinha só o meu canivete na bota e a chave da moto. E

agora? Dei de ombros, aqueles eram humanos fracos, não seriam páreo para

mim.

— Dois contra um? Isso não é muito justo. — Entrei no beco escuro,

assustando-os. Meus passos eram cautelosos à medida que chegava mais perto

da mulher.

O homem forte e de regata apontou uma faca para mim e disse:

— Se você quiser, boneca, pode entrar na brincadeira também.

— Fico lisonjeada. Qual tal uma troca? Eu por ela. — Avancei, agarrei o
pulso dele e o torci. O som metálico da faca caindo no chão ecoou pelo beco.

Gritei para a garota: — Corre!

Ela me obedeceu, e eu acertei um soco de punho fechado no meio do

rosto dele. Sorri diabolicamente ao som de crack que os seus ossos fizeram.

Naquele momento, não era movida pela sede de sangue, ali era apenas o ódio por

todo e qualquer abusador. Meu chute foi certeiro no abdômen, e o homem se

dobrou de dor.

Virei-me para o segundo atacante, que estava atônito com a cena que

acabara de presenciar, e avancei para atacar, quando um impacto me fez parar.

Fiquei atordoada pelo barulho alto do estampido, meus ouvidos só captavam um

zumbido alto e a risada maligna. Era por isso que minhas armas tinham

silenciadores, a audição vampírica era sensível demais ao barulho de tiros.

Coloquei a mão na barriga, e ela voltou cheia de sangue.

Outro impacto, no peito daquela vez.


Nossa! Que dor insuportável, parecia que me perfuravam com fogo

líquido! Com a visão embaçada, pude ver o sorriso de escárnio do homem. Um

jovem de boa aparência, vinte anos, no máximo, se ajoelhou ao meu lado e

puxou a gola da minha blusa para baixo com a arma. Ele encostou o cano quente

contra a minha pele, logo acima do meu coração. Sua voz era grossa e asquerosa,

ou talvez fosse apenas a minha mente delirante.

— É isso o que acontece com justiceiras, deveria ter fingido que não

escutou nada e fugido. É o que as pessoas fazem, sabe? Passam direto como se

nada estivesse acontecendo.

Não... Nem todo mundo fechava os olhos, e eu, com certeza, não era

qualquer pessoa. Agarrei a sua mão e finquei minhas unhas em sua pele. Ele

gritou de novo, e a arma disparou.

Uma vez.

Duas vezes.
Direto em meu coração.

Talvez eu não fosse imune a balas, afinal...


Capítulo 29 — Dor e fúria

Eu flutuava. Minha mente perdida entre a dor e o nada. Gritos. Gritos ao

meu redor...

“Porra, mano! Tá louco? Você a matou!”

Frio... Eu sentia frio... Frio e calor. Meu peito em chamas. Frio, calor e

dor. Muita dor.

“Ela mereceu, essa vadia quebrou o teu nariz! A gente precisa se livrar

dela.”

Chutes em minhas costelas. Mais dor. Não conseguia me mover, respirar

era difícil.

“A vadia era bonita.”

Puxaram meus cabelos com força. A cabeça pesava, alguém a puxou para
trás. Uma língua áspera e úmida lambeu a lateral do meu rosto. Sua boca dura

contra a minha inerte. “Força, Izzy! Se mexe, força, força!”, pensei, reuni

energia e o mordi com a pouca força que tinha, o suficiente para cortar a língua

que tentava me invadir. Sangue jorrou para minha boca. Fraco, diluído...

Humano. E ainda assim, sangue.

Abri os meus olhos para encarar o choque no rosto do meu agressor.

Consegui me mover, minhas unhas afundaram em sua glote, e eu arranquei

metade de sua garganta fora. Caí de volta contra o concreto, e o corpo dele caiu

em cima do meu. Merda! Gastei a onda de força que o sangue me proporcionou.

“Que porra é essa, mano?”

O corpo foi retirado de cima de mim. O grito de horror do segundo

ladrão ecoou pelas ruas vazias. Levei a mão ao meu pescoço, procurando o colar,

mas nada encontrei. Droga! Ele estava em cima da mesa, lá no apartamento!

— Vai pagar pelo que fez, aberração! — O cara esbravejou. Mais tiros.
Um. Dois. Três. Engasguei em meu próprio sangue, o corpo levado para além do

limite da cura. O homem mirou entre meus olhos. — Quero ver se recuperar de

um tiro na cabeça.

Vi a bala sair do cano e ouvi o estampido do tiro, mas não senti a dor. Fui

envolta em escuridão. Um rugido de ódio. Um corpo jogado contra a parede.

Grito de dor. Tiros. Algo se partindo. Silêncio. Agora eu morreria?

— Schatzi... Minha schatzi. O que fizeram com você? — A angústia em

sua voz era tão grande! Parecia que era ele quem estava morrendo. — Vamos,

beba!

Eu mal sentia quando ele pressionou seu pulso contra os meus lábios ou

quando colocou minha cabeça em seu colo. Nem mesmo o chão duro fazia

diferença. Queria dizer que não adiantaria, eram tiros de mais para serem

regenerados. Meu corpo não me pertencia.

Heinz me levantou e correu. Sentia o vento contra os meus cabelos. Tudo


o que eu queria era abrir os olhos e ver sua face uma última vez. Dizer que ele

era o meu liebling, tanto quanto eu era sua schatzi. Não consegui.

— Afastem! Abram espaço! — Heinz gritou e me colocou deitada em

uma superfície dura. — Tragam o prisioneiro aqui, agora! Preciso de garrafas

com sangue também! — Minha blusa foi rasgada, deixando-me apenas de sutiã e

calça. — Rápido! Se as balas não saírem, ela não vai curar direito. Tirem cada

uma do corpo dela e depois joguem sangue por cima.

Oh, Deus! Se tivesse forças, sairia correndo ou gritaria ensandecida. A

dor de levar um tiro não se comparava ao que senti no momento em que eles

rasgaram cada perfuração para encontrar as balas alojadas em meu corpo.

Tortura pura. Era o mesmo que fazer cinco cirurgias ao mesmo tempo e sem

anestesia.

Passos apressados se aproximaram.

— Estão vendo isso? — Heinz esbravejou. — Eu tinha um plano! Vocês


seriam o apoio dela.! Se não fossem tão teimosos, isso nunca teria acontecido!

Está satisfeito, Antônio? Era assim que você preferia ver sua filha? Sangrando e

morrendo porque levou tiros de dois bandidos? É humano o suficiente para

você?

— Não... — Tom respondeu com tristeza. — Não era isso o que eu

queria.

— Então alimente-a! O sangue da família é o mais poderoso de todos! —

Heinz retirou o próprio braço da minha boca, e eu senti outro pulso encostar em

meus lábios. O gosto era diferente, humano, sem poder aparente. Porém, a dor

diminuiu, meu corpo relaxou, e eu finalmente me senti em paz.

★ ☽ ☯ ☾ ★
O barulho de um tiro me acordou. Tentei me mover, mas não conseguia

levantar. Meu corpo pesava o que parecia uma tonelada, e era impossível

respirar. Será que estava paralisada para sempre? Abri os olhos lentamente,

acostumando-me com a claridade. Um pesadelo. Eu estava a salvo no quarto de

Heinz.

Olhei para meu corpo com medo, esperando me deparar com o caos. Em

vez disso, encontrei um vampiro alemão enroscado em mim como uma cobra.

Não era à toa que eu não conseguia me mexer! Passei a mão em seus cabelos,

sentindo a suavidade deles. Heinz me salvou. Tentei elevar sua cabeça, mas senti

uma picada no outro braço. Havia um cateter hospitalar levando sangue

diretamente para a minha veia. Arranquei a agulha do meu braço e suguei o resto

do líquido vermelho diretamente da bolsa.

Desvencilhei-me de Heinz. Precisava urgentemente do banheiro. Por

mais romântico que fosse acordar com ele abraçado a mim, senti que minha
bexiga ia estourar. Depois de aliviada, afastei a cortina da janela e vi que o

anoitecer se aproximava. Resolvi esperar por Heinz acordar, queria agradecer a

ele por ter salvado a minha vida.

Apesar do meu corpo estar recuperado, ainda me sentia tensa com a

memória latente. Encarei a banheira, grande o suficiente para quatro pessoas.

Parecia muito convidativa. Deixei-a enchendo de água e procurei algo na

geladeira do quarto. Que fome! Peguei duas garrafas, uma de vinho e outra de

sangue, uma taça de cristal, queijo, torrada e um doce. Talvez fosse suficiente

para aplacar minha fome. Misturei as duas bebidas na taça e retirei a camisola

preta de seda, que nunca tinha visto antes. Olhei meu reflexo no espelho, que ia

de ponta a ponta da parede do banheiro, e notei manchas roxas que cobriam todo

o meu torso. Peito, ombro e barriga. Tomei um gole da bebida, e elas clarearam

um pouco. Tomei a taça inteira, e elas não mudaram novamente. Bebi uma só de

sangue e clareou um pouco mais.


Nossa! Pelo cateter que encontrei em minha veia, estava tomando sangue

desde ontem, e ainda não tinha me curado totalmente. Quase morri, foi muito

perto. Um calafrio percorreu minha coluna.

Entrei na água morna da hidromassagem, mas não consegui relaxar. A

cada vez que fechava os olhos, via uma arma disparando contra mim. Flutuei na

água e fechei os olhos, tentando em vão não pensar em becos escuros e na dor de

ser baleada. Tudo o que eu precisava era esvaziar a mente e não pensar em nada.

— Schatzi! — Heinz me envolveu com seus braços e me puxou para fora

do banho. — Você está bem? Por que levantou? — Ele analisou cada detalhe da

minha pele. Seu abraço apertado era quente e convidativo. — Precisa de alguma

coisa?

— Respirar... — Murmurei, e o vampiro aliviou o abraço.

— Desculpe, você não tem ideia de como estou feliz em te ver acordada.

Heinz beijou minha boca com delicadeza. Sua mão explorando, tocando
cada marca lilás quase desvanecida. Enrolei meus braços ao redor do seu

pescoço e o puxei para mais perto, sem me importar se molhava sua roupa.

Achei que morreria, e estar nos braços dele parecia mais especial depois disso,

como se o toque e o aroma de sua pele fossem mais intensos. Queria beijá-lo e

agradecer por tudo que tinha feito.

Não era apenas eu que o olhava diferente, Heinz também tinha uma

expressão desconhecida no rosto até então, como se não pudesse acreditar que eu

estava viva e respirando. Ri quando o puxei com tanta vontade, que ele caiu na

água comigo. Nenhum dos dois ligou para a água que escorreu pelo chão, o que

importava era seu corpo junto ao meu.

— Está bem mesmo? — Ele acariciou uma das manchas. — Você me

assustou.

Fechei os olhos e encostei minha testa na sua. Ficamos em silêncio,

abraçados um ao outro com água e espuma ao nosso redor. Eu não precisava


dizer que também fiquei assustada. Foi doloroso e cruel. Beijei seus lábios,

descendo pela mandíbula, garganta e ombro. Não queria pensar em morte ou dor.

Precisava me sentir viva.

— Me faça esquecer.

Não precisei dizer nada mais. Heinz se levantou comigo no colo e deitou

na cama. Senti o colchão macio contra as minhas costas e dedos me tocando e

deslizando pelo meu corpo com facilidade por causa dos resquícios de espuma

em minha pele. Suspirei quando Heinz encontrou o ponto entre minhas pernas. O

beijo doce mudou, tornou-se mais exigente. A língua explorava minha boca no

mesmo ritmo que seus dedos provocavam a excitação.

Sua boca traçou em mim o mesmo caminho que segui nele: desceu pela

minha mandíbula, mordiscou minha orelha e beijou o meu pescoço sem romper

a pele. Arranhei suas costas, querendo mais ação e menos doçura. Seus dedos me

penetraram, e eu gemi, mas aquele ritmo lento estava me torturando, então


agarrei Heinz e fiz um rolamento, ficando por cima dele. Arranquei suas roupas

com pressa e montei em seu colo, sentindo-o preencher cada parte de mim.

Heinz apertou os meus seios, e eu joguei a cabeça para trás em êxtase.

Encarei a artéria pulsante em sua garganta, minha boca salivou. Um

banquete. Aquele homem era um banquete todo meu. Cavalguei para cima e para

baixo, perto do limite do prazer. Eu estava com tanta sede! Talvez apenas um

gole para acelerar minha cura. Abocanhei a garganta, minhas presas perfurando

sua pele, presenteando-me com o doce néctar que corria em suas veias.

Espera um pouco... Heinz e eu paramos de nos mover e nos encaramos

com surpresa: presas?


Capítulo 30 — Liebling

HEINZ

Em pé, na calçada do hospital, encarei Izzy pendurada no parapeito da

janela do quarto de Geórgia. Quinze metros acima do chão. O vento balançou

seus cabelos e trouxe até mim o odor do medo que emanava de seus poros. Cada

sentimento tinha um cheiro característico que apenas os vampiros podiam

identificar. O do medo, por exemplo, era rançoso e bolorento, como um queijo

mofado. De tantas situações que podiam assustar Isadora, a altura foi o que a

realmente assustou. Ela não parava de me surpreender. Quando a deixei lá em

cima, jamais esperei essa reação.

Isadora não poderia ficar pendurada ali por muito tempo, alguém poderia
olhar para cima e vê-la. Ela se balançou um pouco, testando o próprio peso.

Talvez, se eu a provocasse, ela superaria o medo. Um desafio para a mulher

quase destemida. Analisando seu corpo escultural, sorri. Sabia como provocá-la:

“sua bunda fica linda deste ângulo”, murmurei e cumprimentei uma velhinha

que me encarou como se fosse um lunático que falava sozinho. Ouvi uma

risadinha de felicidade perdida na brisa e descobri que Isadora estava pulando os

andares para me encontrar.

O brilho de alegria em seu olhar quando a peguei no colo antes que

aterrissasse no chão me deixou fascinado. Era aquilo que eu mais admirava

naquela mulher: mesmo com o medo ameaçando dominá-la, Isadora enfrentava

os desafios. Conheci muitos vampiros poderosos que não tinham um terço da sua

coragem.

Como era de se esperar, Izzy revirou os olhos e falou com deboche:

— Se era para me salvar como a uma donzela indefesa, que tivesse feito
logo, né? Seria até romântico eu caindo do prédio, e você me pegando no colo.

Eu a coloquei no chão, tentando não rir. A língua de Isadora era mais

afiada que seus dentes.

— Isso aí só funciona nos filmes. Na vida real, a velocidade da queda

somada ao seu peso fariam com que seu corpo se quebrasse com o impacto dos

meus braços. Poderia te trazer pendurada em minhas costas, schatzi, mas é

melhor que você aprenda a se virar sozinha. — Disse e beijei sua boca.

Aquilo era verdade, eu entrava em sono profundo durante o dia, e não

haveria ninguém para defendê-la além dela própria. Mestiços não eram bem-

vindos entre os vampiros. Desde o Olimpo, eram considerados perigosos e

poderosos demais. Mas eu não conseguia parar de pensar em Isadora desde a

primeira noite em que a vi. O jeito, a postura e a força. Tudo nela deixava meu

corpo clamando por mais. Mais do seu olhar, do toque e da atenção, do seu modo

de se entregar, mesmo quando desconfiada. Tive certeza que ela era minha
schatzi quando vi Antônio apontar uma arma em sua direção naquela casa em

ruínas. O medo que aquilo causou me fez perceber que estava muito além de

apenas fascinado.

— Obrigada, liebling.

Fiquei surpreso ao ouvir minha língua natal — ou o mais próximo dela,

já que quando nasci, se falava um dialeto há muito esquecido — em sua voz

delicada. Pelo sorriso maroto e olhos verdes brilhantes, ela sabia o significado da

palavra. Favorito.

— Onde aprendeu isso?

— Tenho meus contatos. Vamos, quero voltar para o apartamento. —

Izzy falou enquanto mandava uma mensagem de texto. Tinha sorte de não ser

um homem carente, o romance em Isadora era inversamente proporcional à sua

coragem. Subi até o seu apartamento, mesmo sabendo que não deveria.

Precisava verificar como as coisas estavam no Reich, contudo me preocupava


com ela.

Podia sentir sua inquietação tanto quanto senti o medo. Se a mulher da

cela fosse Luna e se o item que roubado era o que eu pensava, o problema seria

muito pior do que um simples resgate. Achava que a schatzi não aguentaria toda

a verdade, sua vida mudou muito nos últimos dias. Precisava ter certeza que a

lenda era real antes de envolvê-la. Na época em que a grande guerra entre os

vampiros e humanos aconteceu, a informação não era sempre precisa. E muito

da verdade se perdeu nas lendas e no misticismo. Nem mesmo eu conhecia cada

detalhe. Se Luna roubou o objeto mais sagrado dos vampiros e se Isadora

estivesse envolvida nisto de algum modo, os tempos de paz em breve acabariam.

Não agora, no entanto, eu precisava preparar Izzy primeiro.

— Não pode ir lá sozinha, e eu não posso ir com você, quebraria o

acordo. — Disse, me encostei na porta e a encarei.

A raiva dominou o seu semblante.


— Por que tem acordos com eles? — Ela berrou. — Como permite esse

tipo de coisa? Essas mulheres são descartáveis para você?

Descartáveis? A vida não era descartável para mim. Isadora não entendia,

ela não sabia sobre o meu passado e tampouco era a única sobrevivente de um

massacre. Por milênios, tentei evitar mortes desnecessárias, porém não

importava o que eu fizesse ou quanto poder adquirisse, aqueles que amava

continuavam a morrer.

— Acha que aquela noite no Reich foi o primeiro ataque, ou que sua

família foi a única vítima? Não foi, Isadora! Pessoas que foram amigos meus por

séculos morreram em emboscadas. Você achou que havia muitos vampiros no

festival? Aquele é só um terço dos que sobraram! Nós não transformamos

vampiros novos indiscriminadamente, mas eles sim. Na noite que sua tia estava

no Reich, lançaram quarenta vampiros novos em sede de sangue para cima de

nós. Luna e Alice tiveram sorte de saírem com vida. Fiz um acordo porque era a
única saída.

— Então algumas vidas precisam ser sacrificadas pelo bem da maioria?

— Seus olhos se encheram de lágrimas, e eu retrocedi.

Desde que nasceu, Izzy presenciou os horrores do mundo. Às vezes,

esquecia como sua juventude ainda não tinha destruído a necessidade que sentia

de salvar o mundo e fazer justiça. Atrocidades ocorriam o tempo todo, e a

maioria não era pelas mãos dos vampiros. E quando eram, geralmente

terminavam tão brutais quanto no caso de Geórgia. Muitas vezes, até mais.

— O mundo em que vivo é tão injusto e cruel quanto o dos humanos,

Isadora, nenhuma decisão é fácil. Eu gostaria de salvar todos, mas não posso.

Preciso ir ao Reich.

Beijei seu rosto com pesar e parti. A cada quilômetro que me afastava,

aumentava o desejo de retornar. Demorei dezessete minutos de carro para chegar

ao clube. Cumprimentei os novos integrantes — adeptos desde o festival de


passagem — e os antigos parceiros. A música agitada combinava com meu

humor, aumentando a ansiedade que sentia. Guto, o barman, abriu a porta do

escritório e ofereceu uma bebida. Aceitei uma dose tripla de sangue com um

terço de conhaque e me joguei na cadeira, afundando no couro macio.

Cada movimento meu era em modo automático, a mente ainda pensando

na schatzi e no objeto roubado. Não podia ser. Ele não existia mais, fora

destruído trinta anos antes.

Encarei os papéis em frente a mim, relatórios e mais relatórios dos

patrulheiros sobre os vampiros que mantínhamos sob vigilância. Separados em

grupos, alguns eram mais perigosos que outros. Não conseguia pensar em outro

motivo para qualquer um desses grupos estar buscando um objeto, tinha que ser

o Orakel. Apoiei minha cabeça no encosto da cadeira, o Orakel e uma mestiça

adulta. Porra! Pelo bem da humanidade, um dos dois precisaria ser destruído

antes que se encontrassem!


Fechei os olhos e me concentrei no poder de localização. Sangue

chamando por sangue. Minha mente se expandiu e aqueles que beberam do meu

sangue se tornaram pontos pulsantes medidos por distância. Reich se acendeu

como luzes de natal, a casa estava lotada hoje. Procurei mais longe, passando

pelas ruas de Monte Carlo, em direção ao prédio de Izzy, e encontrei um lá. Ela

estava segura naquela noite.

Pretendia introjetar o poder, quando notei um segundo ponto próximo ao

apartamento. Estranho! Aquela era uma área muito residencial, os vampiros não

iriam para ali, a menos que fosse algum dos nossos humanos. Não poderia ser a

schatzi, ela estava no prédio.

A paranoia estava a ponto de me enlouquecer. Saí daquele escritório

abafado e fui em busca de ar, do frescor da noite para me acalmar. A sensação

ruim não me abandonava, entretanto. Isadora, Orakel, o babaca do Tom,

Geórgia. Variáveis de mais, e todas fora do controle.


— Senhor, vai aonde? — Petrus, meu segundo no comando, gritou da

porta. Eu não percebi que me afastei mais de trezentos metros do clube.

Foda-se, minha mente não descansaria até eu vê-la de novo.

— Petrus, ordene aos vigilantes que procurem informações sobre um

objeto roubado e uma vampira mantida sob tortura nas docas. — As

sobrancelhas loiras do vampiro italiano levantaram em surpresa, porém ele

respondeu com um simples aceno de cabeça. — Volto já! — Berrei e corri na

velocidade máxima.

Em quatro minutos, estava no prédio de Isadora. Escalei a parede externa

e analisei seu quarto através da janela. Vazio. A varanda da sala estava aberta, as

cortinas brancas balançavam com o vento. Um objeto prateado brilhava em cima

da mesa. O colar. Porra! Percorri as ruas tão rápido, que mais um pouco, estaria

voando. Os curtos segundos que levaram para me aproximar pareciam cruciais.

O leve perfume de Isadora misturado ao pungente odor de sangue fresco. Tiros.


Um. Dois. Três.

Não!

— Quero ver se recuperar de um tiro na cabeça. — Um homem apontou

a arma para uma Izzy inconsciente e jogada no chão. Fúria preencheu meu ser.

Não a minha schatzi! Arremessei meu corpo na direção do disparo e por pouco

fui mais rápido que a bala. O tiro atingiu no tórax, e eu não me importei. Rugi ao

ver a quantidade de sangue cobrindo o chão.

Agarrei o homem pelo pescoço e o joguei contra a parede. Seu grito de

dor foi o meu prazer. Com a mão trêmula, ele disparou em minha direção e,

novamente, nada senti. O ódio me dominava. Segurei seu ombro, fincando

minha unha na pele, e sangue brotou. Puxei seus cabelos com a outra mão, e a

cabeça se separou do corpo como uma rolha em uma garrafa de champanhe.

Respirei fundo para aplacar minha ira. Não poderia ajudar Izzy se ainda

estivesse dominado pela sede de vingança. Ao lado dela, o corpo do segundo


atacante jazia sem vida e com a garganta destroçada. A força de Isadora era

impressionante e assustadora. Ajoelhei-me, e só então percebi a extensão de seus

danos. Não, por favor, não! Demorei séculos para te encontrar, não me deixe

sozinho pelo resto da eternidade.

— Schatzi... Minha schatzi. O que fizeram com você? — Abri meu pulso

com as presas. — Vamos, beba!

Sem reação. Apoiei sua cabeça em meu colo e tentei estancar o fluxo

contínuo de sangue que escapava pelos buracos de bala em seu peito. Aquilo não

estava adiantando. Eu me amaldiçoava por ter pensado que ela ou o Orakel

precisariam ser destruídos. Isadora era muito nova e tinha uma vida inteira pela

frente, ela precisava sobreviver.

Eu a peguei em meus braços e corri até a mansão. O corpo inerte e a falta

de resposta eram um tormento. Se ela fosse humana, seria tarde demais. Um caso

perdido. Porém, Izzy não era, nunca fora. Avancei pelos portões em disparada e
só parei na sala.

— Afastem! Abram espaço! — Gritei. Os vampiros retiraram o vaso de

cima da mesa, e eu a coloquei lá com cuidado. — Tragam o prisioneiro aqui,

agora! Preciso de garrafas com sangue também! — Rasguei sua blusa, precisava

de uma visão nítida das feridas. Dois tiros no abdômen, dois no peito e três no

coração. Aquilo era demais até para ela. Passei a mão em suas costas, não havia

orifício de saída. Elas ainda estavam alojadas. — Rápido! Se as balas não

saírem, não vai curar direito. Tirem cada uma do corpo dela e depois joguem

sangue por cima.

Mantive meu pulso pressionado contra sua boca enquanto Raissa,

Theodoro e Armando se posicionavam para me obedecer. Ainda bem que

Isadora estava desacordada, ou aquilo doeria muito. Lissandra e Martins

trouxeram os prisioneiros.

Os vampiros que estavam na mansão nos cercaram, assistindo à comoção


com expectativa. Esperava que creditassem o fato de Isadora não ter morrido no

primeiro tiro à quantidade de sangue que ingeriu como minha consorte, não pela

sua natureza mestiça. Nenhum deles, entretanto, ficou tão chocado com o horror

que viu quanto o sargento. Minha intenção não era apenas dar um choque de

realidade e mostrar que assim como havia vampiros ruins, também havia

humanos maus.

Encarei o pai de Isadora. Dizia a lenda que, para um mestiço, o sangue

do parente humano era poderoso. Estava disposto a tentar tudo que estivesse ao

meu alcance.

— Estão vendo isso? — Esbravejei. — Eu tinha um plano! Vocês seriam

o apoio dela.! Se não fossem tão teimosos, isso nunca teria acontecido! Está

satisfeito, Antônio? Era assim que você preferia ver sua filha? Sangrando e

morrendo porque levou tiros de dois bandidos? É humano o suficiente para

você?
— Não... Não era isso o que eu queria... — ele respondeu.

— Então, alimente-a! O sangue da família é o mais poderoso de todos!

Não sabia se ele aceitaria meu comando, talvez preferisse que a filha

morresse. Se este fosse o caso, eu abriria as artérias do velho à força e

alimentaria Isadora. Contudo, o sargento Antônio estendeu o pulso sem

pestanejar e alimentou a filha. Isaac encarou a sobrinha com pesar. Não tive

tempo de me compadecer por nenhum dos dois, a schatzi era quem precisava de

atenção.

Os tiros no coração entraram e saíram, menos três balas para tirar.

Operamos Izzy ali em cima da mesa. Cursei medicina mais de um século atrás,

talvez eu devesse voltar para a faculdade e me atualizar.

Duas horas depois, Isadora estava limpa e com as feridas cobertas por

bandagens. Elas não se fecharam, mas a hemorragia foi controlada. Bom sinal.

Colocamos um cateter em seu braço para injetar meu sangue diretamente em sua
veia. Ainda bem que sempre deixei um estoque de sangue na adega e que o de

vampiro é uma bebida não perecível. Sempre detestei ficar sentado por horas,

enchendo essas garrafas com um cateter, mas era um mal necessário. O único

meio de localização que não poderia ser forjado. Salvou a vida de muitos, não

apenas de Isadora.

Depois que ela estava estável, avisei o ocorrido para Takao e Cecília,

precisava de alguém que cuidasse dela durante o dia. Eles vieram prontamente.

Tom pediu desculpas, disse que jamais desejou ver a filha daquele jeito. Isaac

perguntou qual era o meu plano e, depois que expliquei, jurou lealdade. O pai

dela fez o mesmo.

Dias e noites se passaram. As feridas se curavam em uma velocidade

lenta, e ela não acordava. Petrus estava impaciente, achando que eu

negligenciava minhas obrigações no Reich por uma humana qualquer. Raissa me

deu uma fruta especial para comer. Para dar sorte, ela disse.
Sorte... Eu precisava de muita, ou perderia minha schatzi para sempre.

★ ☽ ☯ ☾ ★

Nos últimos dias, dormi agarrado ao corpo adormecido de Isadora. Não

conseguia ficar longe. Naquela noite, no entanto, acordei sobressaltado. Não

havia ninguém na cama além de mim. Tinha medo que um dos meus pesadelos

se tornassem realidade e ela se desfizesse em pó entre os meus dedos. Um

barulho de água chamou a atenção, corri até o banheiro e a encontrei flutuando

com os olhos fechados. Será que acordou e desmaiou?

— Schatzi! — Envolvi meus braços ao seu redor e elevei sua cabeça. —

Você está bem? Por que levantou? — Olhei para o seu peito nu, vendo que as

manchas roxas clarearam um pouco. Logo a abracei com força. — Precisa de

alguma coisa?
— Respirar...

Opa! Aliviei meu abraço, mas não a soltei.

— Desculpe, você não tem ideia de como estou feliz em te ver acordada.

Eu a beijei com carinho, minha intenção era apenas tocá-la e ter certeza

que estava bem. Viva. Porém, ela me puxou para perto e pediu que a fizesse

esquecer, e eu obedeci, pois faria de tudo para substituir a dor e o medo por

prazer e alegria.

Izzy me cavalgava com força, seu corpo ondulando em cima de mim.

Subindo e descendo. A cabeça jogada para trás em êxtase. A boca aberta em um

gemido mudo. Eu estava quase lá, e ela também. Isadora se inclinou e mordeu a

minha garganta, suas presas perfurando minha pele e jogando uma descarga

extra de prazer em minhas veias. Congelei ao mesmo tempo que ela.

Presas?
Como assim, presas?
Capítulo 31 — Presas

Eu tenho presas.

Eu tenho presas.

Eu tenho presas!

Andei de um lado ao outro no quarto de Heinz, surtando por causa do

tamanho dos meus caninos. Tentei falar, mas, pela milésima vez, mordi o meu

lábio inferior. Eu era como as mocinhas dos livros de romance, mordendo o

próprio lábio o tempo todo. A diferença era que, no meu caso, as presas

cravavam em minha boca, e sangue brotava e imediatamente cicatrizava.

— Calma, schatzi! Tente se controlar.

Dezenas de séculos vividos, e Heinz ainda não sabia que ele não deveria

mandar uma mulher se acalmar quando estava nervosa? Eu tinha presas! Não
queria ser vampira por completo, gostava da minha humanidade. Não queria ser

controlada pela sede de sangue mais do que já era!

— Como aconteceu? — Sentei na cama em vez de discutir com ele.

Heinz se posicionou ao meu lado e colocou o braço em meu ombro, e eu

encostei a cabeça em seu peito. Ele respirou fundo e me explicou que era raro os

mestiços desenvolverem presas de verdade. A maioria deles era assassinado

ainda na infância. Após a proibição da criação de mestiços, o método correto

para transformá-los em vampiros se perdeu ao longo dos anos. Ele acreditava

que tinha ocorrido comigo por causa da extensão dos meus danos e pela

quantidade de sangue que colocaram em mim de forma ininterrupta. Não tinha

certeza, no entanto.

— Por quanto tempo fiquei desacordada?

Não poderia ser tanto sangue assim! Custava a acreditar que escapei da

morte para me tornar uma morta-viva.


— Dez dias.

— Dez dias? — Perguntei com assombro. Quando acordei, parecia que

poucas horas se passaram. Espera... — Eu levantei antes do sol se pôr!

Heinz me encarava, confuso.

— Nenhum vampiro levanta com o sol no céu. — Ele ficou em pé e abriu

a porta oculta do guarda-roupa, e me surpreendi ao perceber que estava repleto

com coisas. Heinz apontou para o colar que descansava pendurado em um

pequeno gancho para joias. — Cecília trouxe algumas roupas suas, ela queria

que você ficasse mais à vontade. Venha, tente usar o seu colar.

Aproximei-me com cautela e encarei a prata venenosa para vampiros.

Encostei um dedo esperando me queimar, sentir um ardor ou algo do tipo. Nada.

Peguei o pendente e coloquei ao redor do pescoço. Nenhum incômodo, um colar

como outro qualquer. Que alívio! Não queria perder o colar ou os sai. Virei-me

sorrindo para Heinz, mas a minha alegria morreu com a expressão de dor em sua
face. Ele fechou os olhos, como se o fato de a prata não ser venenosa para mim

fosse uma sentença.

— Ei, conde Drac, tá vestido? — A voz de Cecília soou do outro lado da

porta. — Não quero entrar e te pegar trocando de roupa... De novo. — Ela não

esperou pela resposta antes de abrir a porta. Quando me viu, gritou de alegria e

pulou em cima de mim. — Sua maluca! Se me der um susto desse outra vez, te

mato.

Ri de sua ameaça sem sentido. A porta se encheu de pessoas, vampiros

que eu não conhecia, Takao, além de... Ué, Isaac e Tom? Os que não conhecia,

assim que perceberam a falta de um perigo iminente, sorriram amistosos,

saudaram Heinz com a cabeça e partiram. O restante entrou no quarto. O que

aconteceu enquanto eu dormia?

— Já te perdi uma vez, não quero te perder de novo. — O sargento disse

e segurou minhas mãos entre as suas. — Sei que nada do que aconteceu foi culpa
sua, sei também que você já tem um pai de criação. Mas se puder me perdoar e

me aceitar como seu pai também, tentarei compensar os anos perdidos.

Balancei a cabeça concordando, e Tom — ou melhor, meu pai — me

abraçou. Eu o admirava como o meu amigo sargento, teria que me acostumar

com seu novo título. Era uma parte da minha infância perdida que voltava para

mim.

Isaac piscou um olho e sorriu com carinho. Teria que conversar com ele

sobre tia Luna e Geórgia.

— Já que estão todos aqui, acompanhem-me. Precisamos ter uma

conversa. — Heinz interrompeu nosso pequeno interlúdio de forma incisiva, e

nós o seguimos até uma sala de reuniões no final do corredor cujas paredes

cinzas eram acolchoadas por causa do isolamento acústico. No meio dela, um

enorme e antiquado lustre de cristal balançava pendurado acima de uma mesa

semicircular. Sentamo-nos ao redor do vampiro mestre. Ele encarou cada um


presente. — Vocês juraram lealdade a mim, e eu estenderei este juramento para

Isadora. Prometem que protegerão a ela e aos seus interesses como prometeram

a mim?

— Sim. — Todos responderam em uníssono.

Fiquei meio abismada com o ato solene que parecia meio desnecessário.

As pessoas ao redor da mesa eram meu círculo íntimo de amizade, praticamente

completo, com exceção de meus pais adotivos. Todas as outras pessoas não

passavam de conhecidos.

— Ótimo. O que direi agora será mantido como segredo, ninguém jamais

deve saber o que Isadora é de verdade. Para todos os outros, ela será uma

vampira comum.

Takao revirou os olhos.

— E como ela será uma vampira sem presas?


Abri minha boca e me concentrei para que os caninos alongassem. Meus

amigos quase pularam em suas cadeiras, e Ceci gritou um sonoro: “puta merda!

Seu olho está brilhando como um semáforo”. Eu nem percebi que havia algo

diferente com minha íris também. Voltei ao normal, estava interessada no que o

Heinz tinha para falar.

— Mestiços são proibidos há eras, pois eles possuem a força e

velocidade dos vampiros, mas sem suas fraquezas, como o sol e a prata,

podendo, assim, atacar quando estamos vulneráveis. Sua tia Luna descobriu isso

da pior forma, eu a encontrei fugindo de vampiros que queriam exterminar vocês

duas. Talvez não lembre disso, Isadora, você era muito pequena. Muitos de nós

são seres milenares e supersticiosos, acreditam em antigas lendas. Os ciganos

Bálcãs chamam de damphir os mestiços como a Izzy. Séculos atrás, quase todos

os vilarejos tinham um damphir para proteger os moradores. Eles eram

caçadores natos de vampiros antes de serem aniquilados e proibidos. O que


muitos não sabem, no entanto, é que existe um tipo evoluído e muito mais

poderoso de mestiço...

Tom o interrompeu:

— E é isso que ela é?

O silêncio momentâneo na sala era quebrado apenas pelas respirações

compassadas e os batimentos cardíacos que pareciam tambores contra os meus

ouvidos aprimorados.

— Sim — Heinz continuou —, uma damphir que se transformou em

vampira. Uma arma letal e temida. O último do seu tipo era cultuado como um

deus. Se souberem quem ela é, os vampiros beberrões e até mesmo os meus

aliados do Reich se unirão para destruí-la.

Nossa! Não me sentia tão poderosa assim! S se eu era aquilo tudo, por

que deveria me preocupar com qualquer inimigo?


— Que venham. — Dei de ombros. — Estarei pronta e aguardando por

eles.

Heinz não conseguia espantar a preocupação de seu olhar.

— Prefiro não matar os meus amigos e protegidos do Reich, e não é

apenas isto. Nós não seríamos páreos contra um ataque em massa, seria como...

— O final daquele desenho com insetos, lembra? Os gafanhotos eram

mais fortes, porém foram derrotados pelas formigas unidas. — Takao o

interrompeu, e tentamos não rir de sua comparação.

— Exato, foi mais ou menos isso que levou à queda o último evoluído.

— Heinz andou até uma estante de livros que cobria toda a parede oeste e pegou

uma enorme enciclopédia com capa de couro. Ele folheou o livro e o colocou em

cima da mesa. — Sei disso porque estava lá quando aconteceu. Eu ajudei a

derrotar o último mestiço transformado em vampiro.

— Quem é esse tal damphir evoluído, afinal? — Isaac perguntou,


encarando a página aberta na foto de uma pintura clássica com um homem

barbado envolto em túnicas antigas.

— Eu o conheci como Júpiter, mas vocês também podem chamá-lo de

Zeus. — Heinz falou sem nenhum traço de humor, mas eu esperava que aquilo

fosse uma piada. Zeus, o senhor do Olimpo? Não podia ser...


Capítulo 32 — Deusa

— A Izzy será uma deusa? O Reich vai virar o Olimpo? Todos nós

seremos deuses? Ela vai soltar raios pelas mãos? Eu posso ser a Athena? Adoro

ela desde o desenho Cav... — Ceci se empolgou tanto, que quase não parava de

falar.

Heinz a observou com espanto, provavelmente por causa da sua

capacidade de fazer mil perguntas em um único fôlego. Ele levantou a mão para

interrompê-la e disse:

— Ela é muito poderosa, porém estamos aqui para impedir que o poder a

domine. Deixe-me explicar. Vocês lembram como era a origem do universo

segundo a mitologia greco-romana?

Tentei lembrar das aulas de história e afirmei que sim. Os titãs Urano e
Gaia se casaram, eles representavam o céu e a terra. Juntos, tiveram vários

filhos, dentre eles, Cronos, capaz de controlar o tempo. Urano era um poderoso

titã que mantinha os filhos presos dentro da terra. Gaia, revoltada ao ter os filhos

presos dentro dela, os ajudou a se revoltarem contra o pai. Cronos derrotou o pai

e tomou o seu reinado. Ele, entretanto, passou a devorar os seus filhos, pois o

Oráculo profetizou que um de seus herdeiros tiraria o seu trono, assim como ele

fez com o pai.

Reia, irmã e esposa de Cronos, cansada de ver seus filhos sendo

devorados, enganou o poderoso titã e deixou o filho mais novo, Zeus, para ser

criado na ilha de Creta. Quando cresceu, a profecia se cumpriu. Zeus destronou o

pai e o fez vomitar os filhos. Aquele foi o fim do reinado dos titãs e, aliado aos

irmãos, Zeus se tornou o deus supremo e comandante do Olimpo, a morada dos

deuses. A mitologia romana era bem parecida, mas as personalidade e nomes

eram diferentes. Cronos se chamava Saturno e Zeus, Júpiter. Heinz falou em voz
imponente:

— A versão que está nos livros é diferente do que realmente aconteceu.

Cronos era considerado o titã do tempo porque ele não envelhecia. Era o

primeiro imortal. Os vampiros mais antigos que temos conhecimento, se

existiram outros ou como eles se transformaram, tudo isso sempre será um

mistério. O que importa, no entanto, é que Zeus era filho de um poderoso

vampiro.

— Os vampiros podem ter filhos? — Tom interrompeu com certa

angústia em sua voz. — Mesmo transformada, a Izzy ainda é minha filha, né?

Heinz balançou a cabeça concordando:

— Sim, ela é sua filha, tornou-se mestiça porque a mãe dela bebeu o

sangue de Luna durante o parto. Os vampiros não podem gerar vida, mas

consideram os transformados por eles como filhos. De certa forma, pelas leis dos

vampiros, Luna também é mãe de Isadora.


Heinz se calou, esperando que eu digerisse mais esse pedaço de

informação. Tinha três mães, uma vampira que estava desaparecida, uma

biológica que morreu e uma adotiva que mentiu durante toda minha vida.

Maravilha. Não sabia se deveria rir ou chorar. Voltei a prestar atenção à história

que o alemão contava.

— Reia, esposa de Cronos, desejava muito ter filhos pequenos. Eles

tentaram transformar bebês em vampiros, mas eles não envelheciam. Passavam a

eternidade como recém-nascidos, e não era isto que Reia queria. Foi uma época

de terror para as mulheres e crianças. Estupros e transformações, até que

descobriram a forma correta de produzir um bebê vampiro que se desenvolvesse

até a fase adulta, como Isadora fez. Era preciso uma grávida ser mordida, estar

quase morrendo e ser alimentada com sangue de vampiro no momento do parto

para gerar um damphir. Então eles passaram a sequestrar grávidas, matá-las e

roubar os recém-nascidos para serem criados por eles.


Meu Deus, que horror! Como era diferente da “idade de ouro” mostrada

na história. Imaginei o sofrimento daquelas famílias. O medo e dor que sentiram.

Todo damphir nascido era produto do sacrifício de sua mãe. Não sei se tinha

estômago para ouvir o resto da história, mas Heinz continuou, e eu fiz um

esforço:

— Eles começaram a ser cultuados como deuses e houve um período de

relativa paz. O problema é que aquela era uma época de misticismo, não existia

ciência. Desde o fogo até as doenças, tudo se atribuía a magias ou maldições.

Um Oráculo profetizou que um dos “filhos” de Cronos tomaria o seu lugar. Foi

quando ele passou a devorar as crianças damphir. Ele as prendeu em uma cela

subterrânea abaixo do trono e para enfraquecê-las, Cronos bebia do seu sangue.

Reia não ficou satisfeita com isso, amava seus filhos. Por isto, escondeu Zeus.

Ele cresceu, ficou forte e se vingou do pai.

— Então ele era um damphir normal? — Takao questionou.


— Era antes de quase morrer durante sua primeira luta contra Cronos.

Diz a lenda que Reia o salvou mais uma vez, alimentando-o com o próprio

sangue. Ele se transformou, aliou-se com vampiros que não gostavam de Cronos

e voltou mais poderoso do que antes. Derrotou o pai e salvou os irmãos. O

poder, no entanto, era demais para Zeus e o enlouqueceu. Em vez de libertar os

vilarejos e proteger as pessoas, ele se intitulou um deus. Governou com punhos

de ferro ao lado dos irmãos. Cultos e sacrifícios eram realizados em seu nome. A

história se espalhou e a cada vez que era contada, se misturava mais com as

crenças que já existiam. Mitos foram adicionados, e a realidade dos fatos se

perdeu. Veja bem, esta é a versão grega. Várias religiões têm sua própria versão

dos fatos, porém com algumas variações. Não sabemos ao certo onde aconteceu

de verdade ou em que ano foi, apenas que foi muito antes de Cristo e em algum

lugar da Europa, perto da Grécia.

Minha cabeça ia explodir. Sério. Vampiros e mestiços lutando pelo poder,


e os humanos morrendo no fogo cruzado para depois cultuá-los como deuses.

Não era à toa que na mitologia dizia-se que Zeus concedia a imortalidade para

algumas pessoas. Ele os transformava em vampiros. Encarei Heinz, imaginando

sua beleza máscula gravada por artistas gregos em uma estátua de pedra. Errei

feio no cálculo de sua idade.

— Onde você entra nessa história? — Perguntei.

— Eu morava no Nordeste da Península itálica, perto do rio Reno.

Tínhamos nossas próprias crença, vivíamos da agricultura e da guerra. Os nossos

vizinhos romanos nos consideravam bárbaros. Porém, na maior parte do tempo,

convivíamos em relativa paz com eles. Era o meio do século IV depois de Cristo,

e os Hunos começaram a invadir nossas terras, vindos do Oriente. Aldeias

saqueadas, vidas perdidas... — O olhar de Heinz tornou-se distante antes de

respirar fundo e continuar. — O povo germânico foi obrigado a invadir Roma. O

cristianismo já existia, e o chefe do nosso clã decidiu que teríamos mais chances
de sobreviver se nos convertêssemos. As antigas religiões foram consideradas

pagãs e, com a nossa ajuda, em 476, o antigo império romano acabou.

— Meu Deus, como você é velho! — Ceci deu voz aos meus

pensamentos. — Quase que o seu primeiro natal foi, de fato, no nascimento de

Cristo.

Tive de rir, mas era um exagero. Ele nasceu séculos depois de Jesus. No

entanto, um fato era certo:

— Você não é alemão de verdade.

— Não exatamente, schatzi. Eu sou mais velho do que a Alemanha

moderna e vivi por muitos séculos lá.

Isaac permanecia boquiaberto — o que deixava seu cavanhaque mais

torto — e parecia fascinado com a aula de história.

— E como se transformou em vampiro?


— Quando perceberam que a época conhecida como Idade de Ouro

chegava ao fim e que os seus cultos pagãos foram considerados heresia, os

vampiros saíram de sua toca. Eles estavam acostumados a serem apenas

adorados e nos subestimaram. Foram muitas batalhas, mais perdas do que as

provocadas pelos Hunos. Um dos maiores guerreiros era o vampiro conhecido

como Ares, o que chamavam de deus da guerra. Sozinho, ele dizimou diversos

clãs. Em um deles, o chefe da tribo ajoelhou-se perante Ares e implorou que o

filho mais novo não morresse. O vampiro riu com desprezo e disse que

concederia seu desejo, como o último pedido de um homem morto. Ordenou que

trouxessem o filho do chefe, um jovem guerreiro, e o ajoelhou ao lado do pai. O

jovem tentou lutar e espernear, preferia tirar a própria vida do que dar aquela

vitória a Ares, mas não conseguiu. Foi mordido, transformado em vampiro e

obrigado se alimentar do próprio pai durante a sede de sangue.

Meu coração se partiu um pouco ao ouvir a dor em sua voz. Pensei que a
minha história fosse ruim, mas era apenas uma gota em um oceano de sangue e

dor.

— Você matou o seu pai?

— Matei. — A sala ficou em silêncio por longos segundos. — Depois

reuni os guerreiros restantes e fiz um exército de vampiros. Juntos, tive minha

vingança, e ainda ajudamos a destruir a maioria dos deuses vampiros restantes.

Os clãs vampirescos fizeram um acordo, o mundo cristão não tinha espaço para

deuses, então decidimos que ficaríamos ocultos e não participaríamos mais das

lutas humanas. Nos limitaríamos a mitos, histórias para assustar criancinhas. Os

damphir foram proibidos, não era certo uma só pessoa ter tanto poder. Mesmo

que nenhum outro mestiço tenha conseguido o nível de poder de Zeus, não

podíamos arriscar. Não me orgulho da batalha que participei, todas as pessoas

que conhecia e amava estavam mortos. Entrei em uma depressão profunda e me

isolei no Norte da atual Alemanha. Hibernei por anos e anos, até que despertei
em um mundo diferente, mudado. Vivi lá por um longo tempo antes de decidir

me aventurar aqui no Brasil.

Eu me levantei. Toda aquela história de poder, dor, sangue e mortes

estava me deixando inquieta. Precisava sair e respirar ar puro. Abraçar meu

liebling por tudo que ele sofreu e ainda permanecer são. Se eu estava estressada

com os últimos dias de descoberta, como seria conviver com aquilo durante uma

eternidade?

—Sabe, eu entendo a necessidade materna de Reia, mas por que eles não

pararam de fazer crianças? — Tom perguntou. — Se o Oráculo disse para

Cronos que um dos filhos o tiraria do poder, por que não parou de fazer novos

mestiços?

— Porque ele se alimentava dos filhos para ficar mais forte. Cronos

precisava do sangue de mestiços para se manter no comando, permanecer mais

forte do que seus contemporâneos. Esse foi mais um dos motivos da proibição
dos damphir. Além de serem instáveis, não apenas pelos poderes que eles teriam

ou o perigo que seriam para os vampiros: também poderiam ser um meio para

que um outro chefe vampírico tivesse poder acima dos outros. Houve um tempo

em que o sangue damphir valia ouro.

Suas palavras penetraram o meu ser. Ouvi no momento que Ceci prendeu

a respiração, entendendo o mesmo que eu. Era por isto que ele preferia me

manter em segredo? Antes que pudesse pensar mais, minha mão estava ao redor

do pescoço de Heinz. Eu o arranquei da cadeira e o arremessei no ar. Suas costas

se chocaram contra a estante, derrubando vários livros.

— Era isso que você queria de mim o tempo todo? Um meio para ser

invencível? — Agarrei a gola da camisa e o joguei contra mesa. Ela se quebrou e

cedeu sob o peso dele. — Me usar para ficar mais forte sem que ninguém saiba

que quebrou o acordo?

— Schatzi, eu...
Schatzi o caralho! Dei um murro em seu nariz, sangue escorreu pelo seu

rosto. Gritos. Eu desejava sangue. O dele, o de qualquer pessoa. Todos aqueles

batimentos cardíacos e artérias pulsantes pareciam uma sinfonia, pedindo para

eu atacar. Pessoas imploravam para eu parar. Encarei os outros com ódio, o

brilho verde dos meus olhos iluminando suas faces assustadas. Um vampiro e

três humanos. Pareciam presas fáceis, no entanto, uma parte de mim lembrava

que eram amigos. Parei de socar o vampiro caído, não tinha graça nenhuma, ele

não tentou revidar nenhuma vez. Abri a porta e corri para fora da casa. Ganhei as

ruas com velocidade, procurando uma briga que fosse páreo para a sede de

sangue que sentia.


Capítulo 33 — Sem controle?

— E ele me disse que eu era a schatzi dele, acredita? — Agarrei os

cabelos de um vampiro que fedia a peixe e cigarros, como todo o resto daquele

lugar fétido, e o puxei até o beco entre dois galpões, arrastando o corpo pelo

chão de pedra. — E depois teve a coragem de me comparar a um deus grego! Vê

se pode uma coisa dessa? — Puxei o homem por mais alguns metros. — Ai, isso

doeu! — Reclamei quando ele cravou as unhas em meu pulso, em uma fraca

tentativa de se libertar. O homem grunhia e se debatia. Passei o meu corpo por

um vão estreito, ali parecia escuro o suficiente para eu interrogá-lo sem que

ninguém visse. Precisava encontrar onde mantinham mulheres presas nas docas.

O vampiro se agarrou, tentando mais uma vez se libertar.

— Eu vou te destroçar, sua vadia! — Ele me mostrou as presas, olhos

brilhando em dourado. Dourado! Da mesma cor de um certo vampiro traidor.


Presas não me assustavam, eu tinha um belo par também. Segurei seus cabelos

com mais força, minha intenção era mostrá-lo que eu era vampira completa,

porém terminei separando a cabeça do pescoço. O corpo dele virou cinza diante

dos meus olhos. Droga!

Depois que fugi daquela mansão horrorosa, corri pela estrada de terra

direito para as docas. Pretendia encontrar alguma pista que me levasse ao lugar

subterrâneo citado por Geórgia. Deparei-me com aquele sanguessuga de olhos

amarelos e o subjuguei sem muita luta. Ele era tão patético, que não teve graça.

Ouvi risadas distantes e respirei fundo, sentindo o aroma carregado pelo vento.

Quatro vampiros, três homens e uma mulher. Ótimo.

Saí da área de galpões e percorri os contêineres, próximos ao porto. O

mar estava agitado, e a quebra das ondas contra as pedras abafava qualquer

barulho que eu pudesse fazer. Pensei em simplesmente atacar, testar quão

poderosa realmente era. Contudo, no último segundo, lembrei de um importante


detalhe: o meu maior poder sempre foi a minha inteligência. A mente pode

prevalecer sobre os punhos. Joguei-me nas ondas salgadas e gritei por socorro.

Fingi que estava me afogando.

O primeiro vampiro pulou na água. Seus caninos brilharam sob a luz do

luar, apostaria que esperava encontrar uma jovem indefesa. Assim que me

agarrou pelo pescoço, a prata do colar queimou sua mão. Ele mal teve tempo de

fazer uma expressão de surpresa, eu já estava em sua garganta, bebendo sangue.

Seu corpo se desfez em pó quando atravessei a caixa torácica com meu punho.

Com rapidez, me escondi entre as pedras e esperei que mais alguém caísse na

isca.

— Victor, cadê você? Quer comer a mulher sozinha, cara? — Gritaram e,

pelo tom de deboche, havia mais de um sentido no verbo “comer”. Gemi baixo,

como se sentisse alguma dor. Não demorou muito para que o segundo

acreditasse em minha encenação. — Porra! É para compartilhar!


Mergulhei quando mais um corpo se jogou na água e arranquei sua

garganta como fiz com o humano que atirou em mim dias antes. O corpo dele

desvaneceu nas ondas sem que soubesse o que o atingiu. Ok, sobraram dois

contra um, parecia uma luta justa. Voltei para as pedras e tomei um impulso,

saltei para fora do mar e aterrissei em pé na calçada. Minhas roupas molhadas

colaram ao meu corpo, o cabelo pingou, mas eu pouco me importava. Analisei

os dois vampiros, que pareciam cautelosos.

— Quem é você? — A mulher alta de calça jeans e uma blusa pequena

de couro me encarou com desconfiança.

— Eu sou La Muerte. — Lembrei-me do título que atribuíram a mim

quando fiz o primeiro ataque às docas. — Preciso de informações sobre uma cela

subterrânea. Soube que vocês gostam de manter seus lanchinhos noturnos presos

e maltratados.

O homem magro e de cabelos curtos riu da minha ousadia. Em um


piscar de olhos, ele estava a poucos centímetros de mim.

— Você acha que eu sou de contar fofocas, garota? Acha que tenho medo

de lendas falsas?

— Vai lá, Alfonso! — A ruiva incentivou. — Mostra pra ela quem é que

manda.

Como era de se esperar, o cara atacou. Desviei para a esquerda quando

ele tentou acertar um gancho de direita. Alfonso, no entanto, reagiu rápido. Um

soco de esquerda na lateral do meu rosto, seguido por um de direita. Maravilha,

temos um pugilista. Cortei meu lábio mais uma vez em minha presa, limpei o

sangue com o dorso da minha mão e sorri. O brilho do meu olhar iluminou a sua

face em um suave tom de verde.

— Minha vez.

Fechei o punho e acertei o gancho de direita na ponta do seu queixo, de

baixo para cima. Sua cabeça pendeu para trás, e ele caiu atordoado. Montei em
cima e segurei sua camisa. Soco. Soco. Soco. A mulher se agarrou em minhas

costas, suas presas fincando no meu ombro. Bati a cabeça de Alfonso contra o

concreto, ela fez um barulho de crac, como um ovo sendo aberto em uma

frigideira, e eu me voltei para a nova atacante: a agarrei pela camisa e a

arremessei longe, jogando-a contra a parede. Senti minha pele formigar com o

poder da cura.

— O que é você? — A vampira murmurou enquanto levantava.

— Eu já disse, sou La Muerte... A sua morte. — Respondi e me

aproximei devagar. — Vou perguntar mais uma vez, onde fica essa cela?

Ela levantou as mãos em um sinal de rendição, porém seus olhos eram de

serpentes.

— Eu falo se você me contar o que tem no seu sangue. Desde que me

transformei, nunca me senti tão viva.

— Você não está em posição de fazer exigências. Além do mais, não


negocio com sequestradores. Eles — apontei para o vampiro desmaiado no chão

—, até entendo. Mas você? Uma mulher concordar com o que fazem com

aquelas meninas é inadmissível.

A vampira ergueu rapidamente os ombros.

— Uma garota tem que comer.

Ah, ela tirou as palavras da minha boca. Avancei e mordi o seu pescoço.

Quanto mais ela se debatia, mais do seu sangue eu ingeria. Até que um zunido

passou rente à minha cabeça, e a mulher parou por completo, ficando com o

corpo mole. Afastei-me o suficiente para ver um pequeno dardo perfurando o

seu ombro. Que diabos era aquilo? Senti uma dor pungente em minhas costas,

seguida de outra e mais uma. Larguei a mulher, que caiu desacordada no chão.

Minha visão nublou, e eu me senti fraca.

Tentei tirar o que picava minhas costas e alcancei dardos semelhantes ao

do ombro da vampira. Eram de prata, um tinha umas penas vermelhas na ponta,


e o outro, azuis. Mais um tiro me atingiu, na barriga daquela vez. Eu precisava

correr, fugir de quem me fazia de alvo. Ande! Um pé na frente do outro. Olha

só! Eu levantava o pé, e o chão subia, eu abaixava, e ele descia. Ou era eu que

estava muito louca? Outro disparo.

— Pare, vai matá-la! — Uma voz masculina distante disse, e outra

respondeu:

— Não se preocupe, ela aguenta.

Uma agulha penetrou o meu pescoço. Ué, eles estavam mais perto do que

pensei. Minha visão escureceu, eu precisava parar de desmaiar em becos

escuros. Não era bom para a saúde.


Capítulo 34 — Cativa... De novo

Ouvi uma voz com sotaque estrangeiro acentuado ao meu redor. Senti

uma superfície macia embaixo da minha cabeça. Percebi a corrente envolta do

meu corpo, tão apertada que era impossível me movimentar. Eu não conseguia

nem respirar direito. Ah, não, espera! Não precisava mais respirar, a menos que

quisesse, é claro. Permaneci imóvel, escutando e analisando.

— Não, Cecília! Ela está bem, e não vai acordar tão cedo. — O traidor

ficou em silêncio por um momento antes de continuar. — Isso mesmo, não

queremos que Isadora corra nenhum perigo, e nem você. Não sabemos se estará

estável depois que acordar. — Ouvi passos se aproximarem de mim. Um dedo

tocando minha face. Eu queria arrancar esse dedo fora! — Ela está segura,

dormindo tranquilamente em lençóis de seda. Tchau, até amanhã.


Os passos se afastaram, e uma cadeira foi arrastada até perto de mim. Eu

estava atônita. O que significava aquela ligação? Eu estava amarrada, e não em

uma cama macia.

— Você vai fingir que não acordou até quando? — O vampiro disse com

deboche.

Abri os olhos para me deparar com um Heinz sentado confortavelmente

ao meu lado. Suas pernas esticadas e apoiadas nas correntes que me mantinham

presas, correntes estas que cobriam a totalidade do meu corpo, mantendo apenas

a minha cabeça livre. E o que mais me irritava era o meio sorriso sarcástico. Eu

era cativa de Heinz de novo, mas, daquela vez, estava no calabouço ao invés de

sua cama.

— Não sabia que aço era o novo lençol de seda... — Usei o sarcasmo

para esconder a dor que senti ao perceber como fui tola. Como pude cair em sua

atuação? Ele pagaria por sua mentira com o próprio sangue.


Heinz deu de ombros e se endireitou na cadeira.

— Você tem amigos muito fiéis, Isadora. Foi difícil me livrar de todos

sem levantar suspeitas.

— E você tem uma péssima mania de perfurar o pescoço das pessoas

com agulhas.

Ele alisou minha garganta. Tentei me afastar do seu toque, mas eu não

tinha para onde ir.

— Desculpe-me pelo incômodo, não era minha intenção que doesse. Não

sabíamos o que poderia te parar, então testamos sangue de morto e

tranquilizantes. Se um não parasse seu lado vampiro, o outro poderia fazer efeito

no pouco de humana que ainda lhe resta.

— Não doeu. — Respondi. — Machucou muito mais saber que me

deixei ser enganada.


— Sabe o que dói em mim? — Ele me questionou sem nenhum traço do

Heinz amoroso que conheci nos últimos dias.

— Não, mas se me soltar, eu posso fazer com que você descubra. — Eu o

ameacei, tentando me libertar dos quilos de aço que me prendiam.

Fui completamente ignorada.

— Quando eu era humano, sofri, lutei e matei. Vi mais horrores do que

uma pessoa deveria ver. Depois virei um vampiro, e tive mais poder do que

jamais desejei. Entenda, eu achava que os vampiros eram demônios e os cacei

por meses, para depois me tornar um. Aquele que matou o próprio pai. Voltei

para o meu lar e me escondi. Entrei nos confins da terra e dormi por longos

séculos. Acordei em um mundo moderno, vivi durante anos na Alemanha, porém

ali não era mais o meu lar, e tampouco tive vontade de ver outra guerra. Parti

para conhecer um continente novo. Ganhar novos ares. Encontrei uma cidade

nova e tranquila, como a Germânia em que nasci. Fiz amigos, construí um clube.
Não vou mentir, tive mulheres, muitas mulheres... Mas você já se sentiu sozinho

em meio a uma multidão?

Fiquei calada e esperei que ele chegasse a um ponto. Como não falei

nada, Heinz continuou:

— Eu já. Durante muito tempo eu me senti só, mesmo quando tinha

dezenas de pessoas ao meu redor. Uma noite, no entanto, vi uma mulher de olhos

verdes astutos e uma coragem que beirava a imprudência. Seu sangue era

especial, e isso me deu medo. Achei que era algum castigo, me apaixonar por

uma igual ao que eu ajudei a exterminar, vê-la ser perseguida como um dia eu

persegui Zeus e os outros damphir. Tentei protegê-la, e ela me odiou por isto. —

Pela primeira vez, seus olhos se suavizaram e vi sombras de lágrimas neles. —

Não preciso do seu sangue para ter mais poder. Os vampiros são como vinhos:

quanto mais velhos, melhores. E eu sou um dos mais antigos ainda vivos no

mundo. Não ache que preciso do seu poder, mas tenha certeza que necessito do
seu amor. Eu te quero ao meu lado porque você é minha schatzi, minha amada

liebling.

Hein? Fiquei atordoada com a mudança no rumo da conversa. A gente

não partiria para uma batalha sangrenta entre dois ex-amantes sobrenaturais onde

apenas um sobreviveria? Para que então eu estava afrouxando as correntes de

aço o suficiente para que elas deslizassem pelo meu corpo?

— Eu abro meu coração, e você não diz nada? — Heinz perguntou com

um traço de sorriso no rosto.

Para ser bem sincera, eu ainda estava decidindo se deveria ou não abrir o

coração dele. Literalmente. Com uma lâmina de prata, de preferência. Aquela

ideia, no entanto, me angustiou mais do que gostaria de admitir. Compreendi o

que ele falou sobre se sentir sozinho no meio de uma multidão. Eu tinha minha

família adotiva, meus amigos, meus namoradinhos, e, mesmo assim, ainda era

solitária. No aconchego do meu quarto, era só eu e mais ninguém. Sem uma


pessoa especial com quem compartilhar as conquistas, medos, felicidade e

anseios. Por trinta anos vivi assim, e era uma existência solitária. A eternidade

parecia um tempo muito longo para se viver sozinho. Quais eram as

probabilidades de ele estar me manipulando?

— Por que toda essa encenação? — Apontei com a cabeça para as

correntes. — Por que me amarrar e prender em uma jaula?

— Porque, meu amor, você tem uma péssima mania de fugir antes que eu

me explique e acaba se metendo em encrenca. — Ele tirou um conjunto de

chaves do bolso de trás da calça jeans e começou a soltar os cadeados que

mantinham as correntes atadas. Elas caíram no chão com um tilintar de metal

contra o piso. Heinz abriu a porta da cela. — Venha, preciso te mostrar uma

coisa.

Cruzei os meus braços.

— Ué, vai me soltar? Eu não sou um “perigo” para a sua comunidade?


— Fiz aspas no ar com os dedos.

— Você é, mas eu assumo os riscos.

Heinz andou em direção à saída, e eu o segui, curiosa para saber o que

ele pretendia mostrar. Não me surpreendi ao ver que caminhava na direção do

próprio quarto. Ao entrar em seu aposento, reconheci minha mala repousando na

cama e um pequeno depósito plástico em cima dela.

— O que é isso?

— Suas roupas que estavam no meu armário, Cecília arrumou enquanto

fomos te buscar. Pedi para que ela deixasse pronta, caso você quisesse partir.

Entendo que para eu ter o seu amor, primeiro preciso conquistar sua confiança.

— Ele pegou o pequeno depósito. — Lembra quando te disse que a dama-da-

noite nem sempre dava fruto, mas quando dava, ele trazia boa sorte para quem o

comia? — Balancei a cabeça concordando, e ele continuou. — Tivemos dois

frutos este ano. Eu comi um quando você estava desacordada, precisava de toda
boa sorte que pudesse ter. O outro, eu guardei para te dar. Não separei outra

garrafa de sangue porque você não precisa mais dele para ser forte. Tempo é algo

que temos de sobra, schatzi. Eu espero você. Recuperamos sua moto, as chaves

estão na bolsa.

No fundo, algo me dizia que se ele quisesse apenas me usar, teria me

mantido presa e indefesa em uma cela desde a primeira noite. Enquanto

procurava minha tia, passei tanto tempo visualizando Heinz como o vilão que

havia tirado Luna de mim, que a minha mente sempre esperava o pior. Heinz

sempre provou seu bom caráter e que se importa comigo. Era injusto que eu não

desse um voto de confiança.

— Eu sei que se ficarmos separados, ainda seremos fortes. — Respirei

fundo, tomando uma decisão. — Porém, se permanecermos unidos, nos

tornaremos invencíveis. Eu vou para casa organizar minhas coisas, não posso

simplesmente abandonar meu apartamento. E, a partir de amanhã, vamos


trabalhar juntos para encontrar a cela subterrânea nas docas, ok?

Beijei o seu rosto e me despedi dele. Não era um adeus, era um até logo.
Capítulo 35 — Diário de Luna (Parte III)

No silêncio do meu apartamento, no dia seguinte, eu me sentia uma

alienígena. Todos os meus objetos estavam ali, mas pareciam estranhos. A cor, o

cheiro, a textura, tudo era diferente. Não... Os objetos eram os mesmos. Eu que

havia mudado.

Folheei o diário de Luna, sentindo o aroma de mofo que fazia parte de

suas páginas amarelas. Depois que saí da casa de Heinz, não consegui dormir.

Demorei tanto, que, quando finalmente adormeci, só acordei no meio da tarde.

Imagens de Heinz pedindo uma chance atordoavam meu sono. Eu me sentia

dividida entre o que o meu coração desejava e o que minha mente achava certo:

proteger os humanos de Monte Carlo, nem que precisasse ir contra Heinz e

matar alguns vampiros.


Voltei minha atenção para os papéis amarelados em minhas mãos. Estava

sentada em uma poltrona reclinável na varanda, aproveitando a brisa fresca no

final de tarde. Com o fim do verão, o calor amenizara, e eu já não sentia tanto o

efeito dos raios solares em minha pele. Observei o céu, que parecia mais uma

pintura da natureza em branco, azul, laranja e rosa. Ficar ali e ser capaz de ver o

pôr do sol era o que me mantinha perto dos humanos, pensei enquanto suspirava.

Entretanto, eu era uma vampira acordada durante o dia. Mesmo entre os seres

bizarros, eu conseguia ser a mais estranha.

Passei as páginas do diário, lendo com avidez sobre os primeiros anos da

minha vida. Não foi fácil para Luna me criar. Ela me mantinha trancada na casa

durante o dia, porém, quanto mais os anos passavam, mais ousada eu ficava. A

situação se tornava crítica, e ela não sabia a quem recorrer.

Monte Carlo, 01 de janeiro de 1990


Passava dez minutos da meia-noite, e os fogos de artifício pipocavam no

céu. Isadora pediu que a jogasse para o alto de novo. Ela queria alcançar as

luzes brilhantes. Com minha força de vampira, a arremessei longe, mais alto

que o telhado da casa. Ela caía sorrindo, o vestido branco flutuando ao seu

redor. Como eu amava aquela garotinha!

Isa aterrissou em meu colo e abraçou meu pescoço.

“Não chora, tia Luna”, ela pediu e secou uma lágrima furtiva que

escapava pelo meu rosto. “Eu não pulo mais, prometo”.

Afaguei os seus cabelos e respondi: “Não se preocupe, princesa. A tia

está chorando porque é boba. Venha, vamos entrar. Precisamos comer para

comemorar o ano novo. Eu trouxe chocolate para a nossa ceia”.

Ela entrou comemorando e correndo para sentar no sofá. Olhei para o

céu estrelado uma última vez. Tudo o que desejo é um ano-novo com uma mesa
cheia de comida. Ceia farta. Meus amigos e familiares. Heitor, Mariana,

Isabela, Tom, Isadora, papai e mamãe. A casa iluminada pelos enfeites

natalinos, e todos ao redor da mesa, brindando o ano que chegaria.

Chutei o cascalho no chão. Em vez disso, eu tenho um casebre

abandonado que não era meu, uma árvore de natal velha que encontrei no lixo e

chocolates furtados da mercearia da esquina. De detetive particular à batedora

de carteiras. Eu roubo para sobreviver. Não tenho como procurar um emprego

honesto durante a noite, onde deixaria minha sobrinha? Ela já passa boa parte

do dia trancada e sozinha em casa enquanto eu durmo.

Entrei e a encontrei sentada, obediente, no sofá puído. Seus pezinhos

balançavam sem alcançar o chão. Ela não se importava se não tinha sapatos ou

se a árvore cinza era retorcida e com apenas cinco bolas vermelhas já quase

desbotadas. Isadora não conhecia outra vida, sempre esteve na miséria. E esta

não era a pior parte...


“Você primeiro ou eu?” perguntei e me ajoelhei em frente a ela.

Isa esticou o braço para mim e respondeu: “Você, eu quero o chocolate

primeiro”.

Segurei o seu delicado braço. Sair todas as noites para caçar era

impossível, levantaria muitas suspeitas. Há um ano eu me alimento de Isadora

com frequência, e ela bebe de mim também. O sangue dela me mantém mais em

alerta do que os de humanos. Ela nunca chorou ou fez drama por causa disso,

dizia que fazia cócegas. Ainda assim, a cada vez que eu perfurava sua fina pele,

uma parte de mim morria. Eu odeio essa vida.

A garotinha de olhos verdes se deliciava com o doce roubado. Sua

pequena boca toda suja de chocolate. As perninhas ainda balançando, sem se

importar com uma vampira drenando seu sangue. Retraí minhas presas, e ela

sorriu, fazendo-me beijar sua testa.

“Eu prometo, Isadora. Este ano eu vou mudar nossa vida, e no próximo
réveillon, você terá uma mesa farta de comida”.

★ ☽ ☯ ☾ ★

A varanda estava coberta em sombras, o sol já tinha se posto, e eu

continuava a encarar aquele diário repleto de memórias que não eram minhas,

mas que faziam parte de mim. Ali, eu tinha quatro anos, aquele foi o último fim

de ano juntas. Tia Luna cumpriu sua promessa: no ano seguinte, tive uma mesa

farta na casa dos meus pais adotivos, os Martins. Qual teria sido o ano-novo da

minha tia?

Meu celular tocou, o rosto de Tom apareceu sorrindo na tela. Sequei

meus olhos marejados e atendi a ligação:

— Oi, Tom. — Tentei esconder a dor da minha voz.


Ele acionou logo o seu lado policial:

— Por que sua voz está diferente, o que aconteceu? É por causa daquele

Heinz? Olha, ele parece até ter boa intenção, mas como dizia minha mãe: de boa

intenção, o inferno está cheio.

Tive que rir. Era bom me sentir à vontade de novo com o Tom. Achei que

perderia a sua amizade.

— Não é ele... É tudo. — Não quis contar sobre o diário de Luna. Saber

os detalhes de como minha mãe morreu só o machucaria. — Por que me ligou?

Ouvi um barulho de algo sendo colocado contra o telefone e em seguida

o seu sussurro:

— Recebemos um chamado perto das docas, na esquina da Avenida

Fonseca com a Rua José Luís. Alguns trabalhadores do porto ouviram gritos,

mas quando a patrulha foi averiguar, não encontraram nada.


— E você me diz isso nessa calma? — Dei um pulo e corri para o quarto,

precisava me armar.

Tom disse em sua defesa:

— Achei que você chegaria em um segundo com aquela sua velocidade

louca. E você...

Mandei uma mensagem de texto para o grupo, para avisar do ocorrido,

coloquei o celular na cama e comecei a me organizar. Abri o guarda-roupa

procurando a caixa grande de presente que Cecília havia me dado. Ela mandara

uma mensagem mais cedo avisando que havia comprado um presente para mim

enquanto eu estava desacordada. Segundo ela, era o uniforme perfeito para

quando eu me tornasse uma caçadora de verdade. Eu tinha até medo de abrir

aquele embrulho.

— Ouviu, Isadora? — O sargento gritou ao telefone. Eita, larguei o

aparelho na cama e esqueci dele!


— Hum?

— Eu disse para ter cuidado. Há um certo limite de quantas vezes eu

consigo ouvir que algo grave aconteceu a você. — Havia um tom de reprimenda

em sua voz.

— Ok! Tomarei cuidado, pai!

A linha ficou muda, e eu também. Podia ouvir sua respiração, no entanto.

Pela primeira vez eu o chamei de pai e pareceu natural. Como se fosse a coisa

certa a se fazer.

— Está bem. — Ele voltou a falar. — Aguardarei notícias suas... Filha.

Sorri involuntariamente para o celular. Era legal ter um pai envolvido nas

atividades que eu gostava de fazer. O Fernando, o meu adotivo, sempre foi mais

provedor do que acolhedor. Era diferente. Um pequeno e irritante lado de mim

lembrou que havia mais alguém muito interessado em transformar o meu bem-

estar em algo muito melhor do que apenas “bem”. Ignorei esse lado e fui para o
que me interessava: a caixa retangular branca mais comprida do que o meu

braço.

Desembrulhei a fita vermelha que a mantinha fechada e tirei a tampa.

Deixei a caixa na cama e peguei o primeiro item, um corpete de couro trançado

preto, seguido por calças e botas de couro. De qual sex shop ela tirou tanto

couro? Estava faltando só chicotes para eu parecer uma dominatrix!

Talvez eu pudesse amenizar o visual. Procurei uma blusa de linho

vermelho bordô para vestir por baixo do corpete. Suas mangas compridas

ajudariam a proteger meus braços e esconder os sai. Levava dois ocultos nos

antebraços e um amarrado no coldre das costas. Encontrei também uma saia

curta, também vermelha, e a vesti por cima da calça. Seu tecido fluido não

restringiria meus movimentos. Embaixo dela, escondi a Glock e o canivete da

sorte. Com o colar de prata brilhando em meu pescoço e os cabelos penteados

para trás, eu estava pronta para ser La Muerte.


Na noite anterior, quando me acompanhou até em casa, Heinz disse que

quando me derrubou nas docas com Isaac, trouxeram também a vampira ruiva

com quem eu estava lutando. Ela, no entanto, ainda não tinha despertado desde

que recebeu o dardo com sangue de morto, que Heinz comprava de forma ilegal

no necrotério da cidade. Este sangue era ótimo para derrubar vampiros: uma

seringa era capaz de fazer um deles dormir por vinte e quatro horas. No meu

caso, eles me deram três doses de sangue de morto e mais duas de

tranquilizantes. E eu fiquei desacordada só por uma hora. Era compreensível o

motivo de eles proibirem os mestiços.

Heinz também me explicou como seria o esquema que montou para

localizarmos a tal cela subterrânea: ele comandaria os patrulheiros do Reich e

manteria o olho em atividades suspeitas de vampiros. Tom voltaria de “suas

férias” — ou melhor, o álibi que Heinz conseguiu para ele por ter ficado

desaparecido durante o meu coma — para a delegacia de polícia, onde nos


notificaria sobre atividades estranhas. Takao seria o nosso olho de águia, Heinz o

presenteou com um rifle sniper de longo alcance adaptado para dardos

carregados com sangue de morto. Ele ficaria em segurança do alto de um prédio

próximo às docas, observando a movimentação com lunetas de longo alcance.

Isaac, como um vampiro de filiação desconhecida, ficaria junto a mim, lutando

ao meu lado. Cecília não ficou feliz por não ter um papel na luta, então ela

decidiu ser a estilista. Aquele era o motivo de eu estar indo em direção às docas

vestida como uma heroína de filme de ação. Era meio brega, mas fazia com que

eu me sentisse poderosa e sexy. A quem eu pretendia enganar? Estava adorando

aquilo!

Corri até as docas e encontrei Isaac me esperando no local indicado. Ele

vestia a mesma roupa do ninja que usou quando me ajudou durante o resgate de

Geórgia, porém sem a máscara.

— E aí? — Meu tio e antigo professor me cumprimentou com um sorriso


de quem estava louco para entrar em ação. — Está pronta para colocar em

prática os últimos anos de treino?

— Faz tempo que eu luto fora da Academia, sensei. Cuidado para não

ficar para trás. — Pisquei um olho para ele, e Isaac riu.

— Cuidado você, novata. Sempre segurei minha força para que você não

percebesse nada.

Ia retrucar, quando passos chamaram nossa atenção.

— Ei! Quem são vocês? — Um homem latino com forte sotaque

mexicano, acompanhado de mais seis vampiros, gritou. — Não sabem que esta

área é dos Lança-Chamas? Caiam foram daqui!

Ótimo! Aquele era um dos nossos alvos. Os Lança-Chamas eram uma

das maiores facções que se escondiam nas docas. Precisávamos criar o caos e

desestabilizar as facções. Uma guerra interna entre eles ajudaria nossa causa.

Enquanto brigassem entre si, nós destruiríamos todos.


— Pronta? — Isaac sacou a espada curta de seu coldre.

Deixei que meus olhos se acendessem com o brilho verde e mostrei

minhas presas. Sorri enquanto pegava os meus sai e respondi:

— Nasci pronta.
Capítulo 36 — La Muerte

O sai parecia uma extensão do meu braço. Cortava e fatiava quem

ousasse se aproximar muito. Isaac e eu éramos parceiros de uma dança macabra.

Saltando no ar, rolando no chão, desferindo golpes. Imbatíveis. Não estava

utilizando minha força máxima, mataria muito rápido e acabaria com toda a

diversão.

Faltava apenas um vampiro, o que falou primeiro com a gente. Ele nos

encarava com horror.

— Alfonso disse que La Muerte era real, mas ele não falou nada sobre

um ajudante ninja.

Alfonso? O vampiro que nocauteei ontem! Ele deve ter se curado e

fugido antes que Heinz chegasse, e nem tentou ajudar a amiga. Covarde e
fofoqueiro. Odiava pessoas assim...

— Não se preocupe, você também não terá tempo para falar. — Avancei,

mas um dardo passou voando por cima da minha cabeça e o acertou no meio da

testa. O vampiro caiu como uma pedra, desacordado.

— Vocês viram que tiro certeiro? Headshot, bitch! Sabia que todos os

anos de videogame me ajudariam em alguma coisa. Tô adorando isso aqui! —

A voz de Takao soou através do comunicador que Isaac levava na cintura.

Comecei a rir, não era a única louca que estava se divertindo. — Tem mais

vampiros indo na direção de vocês, vindos do leste, acho que eles ouviram a

briga.

Leste? Onde ficava o Leste mesmo? Minha mente só pensava em luta.

Ah, sim, lembrei! Na direção do mar. Apontei para o vampiro desacordado.

— Esconda o corpo dele, precisaremos interrogá-lo amanhã.

Não era um pedido, era uma ordem. Isaac obedeceu e carregou o vampiro
mexicano para longe enquanto eu me escondia nas sombras do topo de um

contêiner. Respirei fundo, detectando sete aromas diferentes no ar. Abri o

pingente com o sangue de Heinz e bebi um pouco para recuperar as energias e

dar boa sorte. Saquei a minha Glock G25 escondida embaixo da minha saia. Três

alvos, três tiros certeiros entre os olhos deles. As balas não eram de prata, mas

dariam um trabalho dos infernos para curar. Pulei entre os vampiros restantes,

três mulheres e... Olha só, o linguarudo Alfonso.

— Sentiu minha falta? — Apontei a arma para ele. — Soube que virou

meu fã.

Ele levantou a cabeça, tentando aparentar superioridade.

— Balas não podem me matar.

— Tem razão, mas doem pra caramba. — Disparei o resto do pente em

sua coxa.

Os vampiros mostraram suas presas. Olhos brilhantes me encaram com


ódio: alguns azuis, outros amarelos e outro em verde, como os meus. Larguei a

Glock e peguei os sai. Arremessei um na mulher que correu para cima de mim

primeiro. Ela gritou e se debateu, tentando retirar a prata cravada em seu peito. A

adaga brilhou no vazio e caiu no chão quando a vampira se desfez em cinzas.

As mulheres restantes, duas gêmeas negras de cabelos encaracolados,

ficaram cautelosas, me circulando, analisando, procurando um ponto fraco.

Alfonso se levantou, já recuperado dos tiros. Três contra uma, e eu ainda estava

em vantagem, mas eles não sabiam disso.

— Ouvi dizer que vocês escondem garotas em uma cela escura. Quem

me falar onde é, sai com vida.

— Os Lança-Chamas não fazem coleção. — A garota da direita disse, e a

irmã complementou:

— Nós gostamos demais de matar para se preocupar em levar lanchinhos

para casa.
Adorável. Estão juntas há tanto tempo, que até terminam as frases uma

da outra. Alfonso olhou delas para mim e gritou antes de correr:

— Não sou eu quem você procura!

Ali era onde ele se enganava. Eu pretendia exterminar todos os vampiros

assassinos das docas. Segurei o outro sai pela ponta e o arremessei com força

extra. A arma atravessou o coração dele em alta velocidade e bateu na parede do

lado oposto. O corpo do covarde se desfez no ar enquanto ele ainda corria.

— Bom arremesso, Muerte. — A da esquerda disse com sarcasmo. —

Nos poupou o trabalho de matar um imprestável.

— No entanto, querida, isso te custou sua última arma. — A outra falou.

Minha vontade era dizer “não sou sua querida”, porém não tive tempo.

Elas me atacaram em sincronia com chutes giratórios e ganchos de direita. O

chute em meu rosto foi tão certeiro e inesperado, que eu caí de costas no chão.

Elas tentaram me atingir novamente, mas eu rolei e puxei a perna de uma, que
caiu em cima de mim. Não me preocupei com a força do seu impacto, segurei

sua cabeça em um mata-leão e a arranquei fora. Fiquei coberta de pó quando ela

se desfez. Em um pulo, me levantei e agarrei a outra gêmea pelo pescoço,

elevando-a do chão.

— Eu não preciso de arma. — Apertei mais a sua garganta. — Eu sou a

arma.

— Sua vadia! Como pode? Você matou minha irmã! — Ela berrava e

fincava as unhas em minha mão, tentando se libertar.

— E quantas irmãs, mães e filhas você já matou? Quantos pais e rapazes?

Responda! Quantos?

Ela gritou:

— Não sei e não me importo!

Puxei-a para perto e sussurrei em seu ouvido:


— Eu também não.

Quebrei seu pescoço e deixei que o vento carregasse as cinzas de uma

mulher sem coração. Só esperava que nunca me tornasse igual a ela...

— Menina... — Isaac coletou meus sai do chão — Você é assustadora.

Sorte minha que estou do teu lado. Ainda bem que não precisávamos de outro

vampiro para interrogar, não é? — Ele matou com o sai os três vampiros que se

curavam do tiro na cabeça.

— Eu queria que esses binóculos filmassem! Ceci vai adorar saber os

detalhes! —Takao falou novamente pelo comunicador.

— Vocês dois estavam fazendo o quê? Escondidos e só assistindo? —

Perguntei, e meu tio deu de ombros antes de responder:

— Não é todo dia que a gente vê uma deusa em ação. Vamos, levarei o

prisioneiro para a casa de Heinz, e você precisa trocar de roupa.


Trocar de roupa...? Ah, merda! Verifiquei o relógio. Onze horas. Eu

deveria estar no Reich até meia-noite para ser apresentada como vampira.

Muitos frequentadores da mansão ficaram sabendo sobre a humana que

acompanhou Heinz no festival de Ano Novo para depois ser quase morta por

assaltantes. Eles sabiam que eu passei dez dias em coma antes de despertar como

transformada. Ou seja, precisava manter a aparência de vampira comum.

Voltei correndo para casa, tirei o colar e tomei um banho, não seria nada

comum aparecer coberta de cinzas de vampiro ou usando prata ao redor do

pescoço. Naquela noite, eu mudaria meu status e iria toda de preto, com um

vestido curto de renda que parava no meio das minhas coxas, mangas três

quartos e gola canoa de corte baixo que deixava meu pescoço e colo à mostra.

Sapatos scarpin rubis de salto alto e uma maquiagem leve nos olhos com um

batom vermelho marcante completariam o visual.

Passei a mão nos meus cabelos soltos, nervosa com essa apresentação.
Eu me sentia mais confortável matando do que festejando com vampiros. Se

bem que a última festa deles foi bem interessante... Mas Heinz me avisara que

aquela noite não seria daquele jeito.

Fui de carro até o Reich, não arriscaria destruir meu sapato vermelho

favorito correndo pelas ruas. Petrus, o vampiro de longos cabelos loiros, olhos

verdes e que mais parecia um Viking — e eu não duvidava que fosse um —

esperava por mim na porta. A música parou quando entrei, e todos me

observaram. Heinz, do alto da área V.I.P, se levantou e sorriu.

Petrus indicou as escadas, mandando que eu subisse, e assim o fiz. Heinz

aguardava com uma taça de cristal em mãos.

— Você, Isadora Martins, aceita viver sob as leis vampíricas do Reich?

— Ele disse com voz solene. — Promete proteger com a própria vida os

humanos e os vampiros aqui presentes, assim como manter o nosso segredo?

— Sim. — Respondi e aceitei a taça que ele ofereceu.


Aplausos ecoaram pelas paredes do clube. O chefe levantou a mão,

pedindo silêncio, e todos se calaram:

— Seja bem-vinda ao Reich, Isadora.

O brilho no olhar dele não deixava dúvidas, Heinz transbordava

felicidade com minha presença ali. A música recomeçou, e ele me levou até a

pista de dança. Um toque sensual de violão saiu dos alto falantes, seguido pela

voz melodiosa de Rita Lee.

“Venha me beijar, meu doce vampiro,

Na luz do luar,

Venha sugar o calor de dentro do meu sangue vermelho”

Joguei minha cabeça para trás e ri. Heinz envolveu minha cintura com
seu braço e puxou para perto. Encarei a profundeza marrom de seus olhos, seu

maxilar quadrado e a pequena covinha que se formava em seu queixo. Eu tinha

muitos poderes, resistir ao Heinz não era um deles.

“Tão vivo, tão eterno, veneno,

Que mata sua sede, que me bebe quente, como um licor,

Brindando a morte e fazendo amor,

Meu doce vampiro”

— Escolha musical interessante... — Coloquei meus braços ao redor do

seu pescoço, e ele passou o nariz na minha garganta, sentindo meu perfume.

— Você acha que ela se inspirou em quem para fazer essa música?

Parei de dançar. Era sério aquilo? Ele teve um caso com a Rita Lee? Eu
não dançaria sob a música da ex dele. Ora, sabia que um vampiro da idade de

Heinz teve incontáveis namoradas, mas não compartilhava da opinião de que

“recordar é viver” quando se tratava de relacionamentos. Fechei a cara com

raiva. Se olhares matassem, ele estaria fuzilado e agonizante no chão. Heinz,

porém, riu tanto, que alguns pararam de dançar para ver o que estava

acontecendo.

— Queria uma câmera para te fotografar agora! Calma, é brincadeira. —

Ele me puxou para perto de novo e cochichou em meu ouvido. — Mas adorei

saber que você ficou com ciúmes.

— Não gosto de dividir.

— Eu também não. O que você viu no festival foram vampiros se

entregando ao prazer da carne, mas nenhum deles eram casais verdadeiros. Não

os que estavam com mais de um. Vampiros são possessivos e territorialistas, nós

não dividimos aqueles que realmente amamos. — Ele piscou um olho para mim.
Franzi a testa.

— Você está sugerindo que eu te amo porque acho monogamia um

conceito interessante?

Sua boca se levantou em um meio sorriso, e ele me beijou. Seus lábios

contra os meus, sua língua invadindo a minha boca. Heinz interrompeu o nosso

pequeno interlúdio e disse em alto e bom som, para que todos pudessem ouvir:

— Não, estou afirmando que não quero te dividir com ninguém porque

eu amo você.
Capítulo 37 — ich liebe dich

O tempo parou quando a verdade em suas palavras permeou o meu ser.

Não ouvia a música, nem escutava os cochichos ao meu redor ou prestava

atenção nas luzes que piscavam intermitentes na boate. Toda a minha atenção

estava voltada para o Heinz.

— O que foi que você disse? — Perguntei mesmo sabendo a resposta. Eu

precisava dizer algo, e foi só aquilo que saiu.

Sua mão, que estava em minha cintura, me segurou com mais força.

— Eu sei que você ouviu, schatzi. Porra, todo o Reich ouviu.

Merda, a quem eu estava enganando? Aquele era o Heinz, que me apoiou

e encantou desde o momento em que o vi. Não podia mais negar o que o meu

coração guardava. Ah, foda-se, pensei e o beijei. Minha boca colidiu com a sua
com voracidade. Joguei meus braços ao redor do seu pescoço e o puxei para

mais perto. Senti seu corpo contra o meu, o calor dos braços, as batidas do

coração, o perfume. A presença de Heinz inebriava os meus sentidos, e eu queria

apenas retribuir sua declaração.

Desde que o conheci, me senti misteriosamente conectada a ele. Algo

místico. Transcendental. Como se uma parte desconhecida de mim soubesse que

poderia confiar nele, parte esta que entrava em conflito com meu lado

desconfiado. Todos são culpados até que se prove o contrário. Era nisso que

costumava acreditar.

— Tenho uma surpresa, feche os olhos. — Heinz sussurrou, e eu obedeci.

Ele me pegou no colo, e eu senti uma leve mudança no ar. Estava

correndo, eu sabia. Por mais curiosa que eu estivesse para saber para onde ele

me levaria, mantive os olhos fechados. Uns cinco minutos depois, Heinz me

colocou sentada em uma superfície fria e pediu que esperasse.


Esperei com ansiedade. Sem abrir os olhos, toquei no banco que sentava.

Superfície metálica fria que, pela aspereza, tinha a tinta levemente desgastada.

Uma onda se quebrou ao longe, o cheiro de maresia atingiu minhas narinas.

Estávamos próximo ao mar, mas não tão perto quanto as docas. Uma brisa me

atingiu do outro lado, carregada com uma mistura de aromas: pipoca, açúcar

queimado e fritura. O silêncio foi quebrado por um leve rangido de metal, e de

repente o local onde eu estava balançou levemente. Eu estava em um...? Dei um

pulo quando ouvi um movimento por perto. Segurei-me nas bordas do banco

metálico.

— Abra os olhos. — Heinz sussurrou de novo em meu ouvido. Primeiro

encarei a profundeza de seus olhos marrons, depois, por trás dele, vi o brilho de

milhares de luzes em dezenas de brinquedos. Eu estava na roda-gigante de um

parque de diversões.

Heinz me presenteou com um buquê de rosas vermelhas, uma cesta


imensa com todos os tipos de chocolate e um urso de pelúcia marrom.

— O que é tudo isso?

Heinz ergueu os ombros e respondeu:

— Quis fazer algo diferente, ser romântico para variar.

— Aí você tentou me dar uma fábrica de chocolates e um parque de

diversões? — Sorri.

— Cecília disse que você gostava de chocolate, mas não especificou o

sabor, e quanto ao parque, eu queria privacidade. O Reich tinha muitos ouvidos.

Desculpa, foi uma ideia idiota...

Larguei a cesta no banco da cabine e sentei em seu colo.

— Eu adorei, obrigada.

Nós dois nos beijamos sob a luz do luar enquanto a roda girava.

Desabotoei sua camisa, beijando seu peito a cada botão que soltava. Mordisquei
o ombro e barriga. Ele retirou meu vestido por cima da minha cabeça. Minha

pele se arrepiou mais com o toque de suas mãos do que com o vento frio. Não

demorou muito para que estivesse nua e sob o domínio de suas ágeis mãos. A

cabine da roda-gigante rangia e balançava. Eu não me importava, não me

importaria nem se fosse dia. Não quando sua língua provocava o meu mamilo ou

quando seus dedos cravavam em minha pele.

Joguei minha cabeça para trás e gritei em êxtase, a mão de Heinz cada

vez ia com mais pressa e mais força. Quanto mais o prazer se construía, mais a

sede aumentava. Minhas presas se alongaram, e eu mordi sua garganta. Seu

sangue fluindo para mim. Heinz gritou de prazer, e atingi o clímax. Meu corpo

convulsionou de prazer.

Ele se levantou e me colocou ajoelhada no banco, e eu me segurei na

barra enquanto Heinz me penetrava de novo por trás. Eu e a cabine

balançávamos com suas investidas. Prendendo meu cabelo, ele puxou minha
cabeça para trás e mordeu o pescoço. Urrei de novo e de novo. A adrenalina da

possível queda de vários metros — que agora pareciam insignificantes para os

meus sentidos aguçados — ampliando o meu prazer. Apertei a grade com força

quando atingi o clímax, sendo logo seguida por Heinz.

Descansei a cabeça em seu peito. A cabine ainda balançava com sutileza.

Fazer sexo com um vampiro era sempre uma experiência única, mas transar

sendo um vampiro não tinha comparações. Tudo era mais sensível, intenso e

vivo.

Suspirei e observei a lua cercada por estrelas. Na mitologia, Zeus

transformou a cabra Almateia, de quem bebeu o leite quando criança, na

constelação de capricórnio. Assim, ela seria lembrada para sempre. Quantas

histórias e lendas criadas por puro misticismo.

Heinz alisou meus cabelos, e eu o acariciei seu queixo quadrado.

— Você daria um deus lindo. — Levantei a cabeça e o encarei. — Como


se fala “eu te amo” em alemão?

— Ich liebe dich.

— Eu sempre achei que era estranha e esquisita. Anormal. Como se eu

soubesse de algum segredo cósmico, e eles não. Ouvi uma vez o psicólogo da

escola dizer para a minha professora que eu era inteligente demais para o meu

próprio bem. Mamãe afirmava que eu era especial. Sempre que eu tinha

pesadelos, a memória da minha tia perturbava minha mente.

— Schatzi... — ele tentou falar, porém eu o impedi:

— Deixa eu terminar. Os treinos com Isaac e o trabalho como detetive se

tornaram o meu refúgio. Eu me concentrava nos problemas alheios em vez dos

meus. Cansada de ser alvo de piada, construí um “muro” ao meu redor. — Fiz

aspas no ar com os dedos. — Tinha meus encontros casuais, mas nenhum

significante. Mantive meu coração isolado até sua chegada. Você me mostrou um

novo mundo, Heinz. Descobri quem sou e o que sou capaz de fazer. Posso ajudar
pessoas e fazer a diferença. Você... — Respirei fundo antes de continuar a falar.

— Você não atravessou o muro que construí, o destruiu. Derrubou minhas

barreiras e conquistou meu coração. Ich liebe dich, liebling.

Heinz voltou a me beijar, daquela vez com uma doçura incrível. Seu

coração estava acelerado, como nunca ficara antes, e o meu também. Eu me

sentia livre por finalmente admitir o que tentava esconder.

— Ich liebe dich, schatzi. — Ele encostou sua testa na minha. — Você

não precisa de um muro, Izzy. Eu não sou a única pessoa que te ama e que

arriscaria a vida por você. Cecília, Takao, Tom, Isaac, Luna... Todos eles te

amam muito também.

Suspirei e apontei para parque.

— Para um vampiro poderosão, você sabe ser muito romântico quando

quer. De onde tirou essa ideia toda?

— Vi em um filme. — Ele deu de ombros, e eu ri. Heinz assistindo um


filme açucarado? Não conseguia imaginar!

— Não pensei que você soubesse da existência da televisão, imagina

assistir um filme. — Comecei a rir.

— Engraçadinha! — Ele apertou minha cintura. — Fique sabendo que

era um filme legal. Os personagens invadem um parque fechado, acendem todas

as luzes, fazem um piquenique romântico, e ele a pede em casamento.

Tossi com a palavra casamento e engoli em seco antes de falar:

— Ah, é? E o que acontece depois? Eles têm uma penca de filhos e vão

morar numa casa com jardim? — Desdenhei. Não queria que ele descobrisse

como a palavra casamento me deixava desconcertada.

— Claro que não! Eles estavam na melhor noite de suas vidas, até

transaram no chão do trem fantasma. É claro que isso terminou sendo um ritual

que ressuscitou um maníaco homicida que os perseguiu durante todo o resto do

filme.
— Espera, você tirou sua ideia romântica de um filme de terror? — Ri

tanto, que cheguei a lacrimejar. Só Heinz para fazer isso.

— Em minha defesa, a gente transou na roda-gigante, e não no trem

fantasma... — Ele ficou emburrado, tentando não rir também.

Peguei uma barra de chocolate branco com pedacinhos de biscoito e dei

uma mordida. Hum... Delícia!

— Eu te amo, meu favorito. — Repeti em português a tradução do que

tinha dito em alemão.

— Isso foi para mim ou para o chocolate? — Perguntou, erguendo uma

sobrancelha, e eu subi em seu colo para responder:

— Posso ser sincera? Estou na dúvida, é uma disputa bem acirrada.

Larguei a barra e aproveitei sua boca. Passei a mão em seu peito nu, e o

seu rosto se iluminou com o brilho verde dos meus olhos. Minhas presas se
alongaram. Apesar de todas as guloseimas vendidas no parque ou disponíveis na

cesta de chocolates aos meus pés, Heinz ainda era a melhor comida do local.

E eu tinha toda a intenção de me esbaldar.


Capítulo 38 — Diário de Luna (Parte IV)

Adormeci nos braços de Heinz. Quando acordei, ele estava em seu sono

profundo. Alisei os cabelos do alemão, era tão estranho vê-lo imóvel. Repousei

minha mão sobre seu peito. Nada. Nenhum batimento. Durante a noite, ele era

um homem forte e caloroso, com o coração batendo como o meu, mas quando o

sol nascia... Vulnerável. Estático. Quase morto. Eu era a única que não ficava

daquele jeito, estava sempre em alerta.

Aconcheguei-me junto a Heinz e fechei os olhos. Não por cansaço. Eu

nunca ficava cansada. Apenas para estar ao lado dele.

“Isa... Isa... Vamos! Corra!” tia Luna disse, e eu corri. Eu era uma boa

menina, fazia o que ela pedia.


Uma mulher de longos cabelos cacheados me pegou pela roupa:

“Não tão rápido, mocinha.”

Eu não vi mais nada... Gritos sobre sangue e escuridão. Não entendi

nada, minha cabeça tinha um dodói, e tudo ficou escuro. Abri os olhos. Estava

com fome e com medo. Ali era escuro, frio, e eu queria minha caminha. Balancei

a barra que me prendia. Não era bicho para ficar em uma jaula!

Tia Luna dormia seu soninho do dia no chão ao meu lado. Ela dizia que

não podia andar no sol como eu. Bebi dela para encher minha barriguinha,

como fazia todas as manhãs, e arranquei a porta da grade. Eu peguei o seu pé e

a arrastei para fora.

O lugar fedia demais, e a mulher de ontem me assustava. Andei por

lugares escuros. Era molhado e tinha ratos correndo, mas eu continuei. Queria

sair dali. Podia ouvir o barulho do mar. Segui o som. Queria ir para casa.

Parecia que estava em um cano gigante com outra grade. Coloquei minha mão
no ferro e empurrei de novo. Bem forte! A grade caiu longe e fez barulho

quando atingiu a água. Pulei de alegria e deitei junto de tia Luna. Assim que o

sol for dormir, ela vai acordar, e a gente poderá sair daqui...

Abri os olhos. Estava suada e angustiada. Heinz continuava a dormir

pacificamente ao meu lado. Sacudi o seu corpo, na tentativa de acordá-lo, e

nada. Merda! Fazia tempo que não sonhava com minha infância, e nunca tinha

sido com tantos detalhes. Procurei a garrafa de sangue na geladeira e bebi

diretamente do gargalo. Tentei lembrar da mulher assustadora. Longos cabelos

cacheados da cor de ouro envelhecido emolduravam um rosto de delicadas

feições. Sua pele alva brilhava sob a luz da lua, e os lábios eram vermelhos

como rubis. Eu só não sabia se era do batom ou por estarem sujos de sangue.

Coloquei meu vestido e uma jaqueta de Heinz e corri para o meu

apartamento. Eu precisava ler o resto do diário de Luna.


Monte Carlo, 20 de março de 1990

Levei Isadora para passear. Ela gostava de ver os barcos, então

andamos na beira do mar em direção às docas. Brincávamos de pega-pega na

praia, quando ela tropeçou em um tronco e caiu, o que era muito raro. Isa não

caía. Mais raro ainda era ouvir um grito seu, principalmente de medo. Corri e vi

que não era um tronco de árvore que ela havia tropeçado, mas sim em uma

pessoa. Coloquei-a no colo e escondi seu rosto em meu ombro, em uma tentativa

de acalmá-la.

“Você está invadindo nosso território”, a voz sinistra de um homem soou

atrás de mim. Eu me virei para encontrar um vampiro com forte sotaque

mexicano e olhos amarelos que disse não aceitar vampiros do Reich e

completou: “deixe o lanche e vá embora.”


Merda! Não acreditei que aquele maldito clube colocaria a mim e a Izzy

em perigo. De novo. Gritei que não tinha filiação alguma com o Reich.

Uma mulher de longos cabelos cacheados e penetrantes olhos de mel me

encarou. Ela estava cercada por quatro outros vampiros.

“Como não? Todos os vampiros daqui respondem a mim ou ao Heinz. Se

você não é das minhas, precisa ser dele”, ela disse.

Não gostei do rumo daquela conversa. Havia algo sinistro em seu porte

de rainha, com luvas brancas e vestido vermelho esvoaçante. O brilho maníaco

em seus olhos não era suavizado pela delicadeza do rosto. Isadora tremia junto

a mim. Eu precisava tirá-la dali.

— Não quero confusão, vamos só fingir que nunca estive aqui e nunca vi

nada.

Dei um passo para trás, porém me vi cercada por oito vampiros.

Coloquei minha garotinha no chão, ela poderia fugir enquanto eu os distraía.


Berrei em desespero para que Isa corresse e bati no primeiro vampiro que se

aproximou.

Não adiantou, ela não conseguiu ser veloz, a mulher a pegou pela roupa

com facilidade e disse: “não tão rápido, mocinha”.

Gritei quando ela bateu na cabeça de Isadora com força o suficiente

para que a pequena desmaiasse. Chutaram minhas costas, caí de cara na areia.

Seguraram meus braços, pernas e cabeça e me obrigaram a ajoelhar perante

sua líder.

“Nós geralmente não perdoamos transgressores, mas já que você nos

trouxe um lanche” ela disse e apontou para Isadora desacordada na areia “eu

posso repensar. Jure lealdade a mim e faça parte das docas.”

“Lanche? Ela não é lanche! Só tem quatro anos”, eu respondi o

desespero tomando conta de mim. Aquilo não podia estar acontecendo.

Eles riram. Gargalharam até.


“Melhor ainda” o rapaz mexicano falou e pegou Isa no colo “a

inocência pura deixa o sabor mais doce no sangue. Pena que teremos que

mantê-la viva por meses... O corpo é tão pequeno, que precisaremos drená-la

aos poucos todos os dias até ter o suficiente para saciar todo mundo.”

Nunca! A raiva me deu força extra, como uma descarga de adrenalina.

Chutei, lutei, matei um, mas não consegui nos salvar. Fui dominada e levada por

uma passagem intricada de esgotos que passavam por debaixo das docas e

chegavam até o mar. Colocaram-me em uma cela ao lado de Isa. Era escuro,

subterrâneo, e o odor persistente de lixo podia ser sentido. Não era um cheiro

de fossa, mas de peixe estragado. Como se os dejetos dos barcos pesqueiros

passassem por ali de alguma forma. Talvez fosse o antigo sistema de vazão da

água do porto para o mar. A iluminação era parca e tinha um cheiro pungente

de umidade.

Além de cinco celas, sofás estavam espalhados ao redor de uma grande


cadeira vermelha e dourada, que mais se assemelhava a um trono. Por trás do

trono, um círculo grande de metal, com aproximadamente um metro de

comprimento, era a única decoração do lugar. Não consegui entender o que

estava entalhado naquele curioso objeto. Não era português, inglês, italiano,

francês ou espanhol, nem os símbolos gravados eram compreensíveis.

Tentei escapar, mas a prata na grade queimou minha mão. Entendi por

que a mulher de cabelos cacheados usava luvas. Tudo ali era recoberto por

prata. Trouxeram uma maca e tiraram uma garota pálida e magra de uma das

celas. Ela não impôs resistência quando a colocaram deitada na superfície

metálica. Os vampiros que estavam na praia se amontoaram ao redor da pobre

garota e a morderam até o ponto em que ouvi seu coração quase parar de bater.

Depois a jogaram de volta na cela, como um trapo velho. Meu Deus! Olhei para

minha sobrinha tão indefesa. Aquilo era um pesadelo.

“O que vocês querem comigo? Eu não sou ninguém” tentei argumentar.


A mulher de cabelos cacheados se sentou majestosa em seu trono, o

vestido carmim espalhando-se ao seu redor como um manto. Os outros

vampiros, que mais pareciam seus servos, sentaram aos seus pés.

“Este é o problema, não é?” ela falou com eloquência. “Somos um

bando de ninguéns. Temos o poder herdado dos deuses, e agimos como a escória

do mundo. Limitados a vivermos escondidos em esgotos e nos alimentarmos de

sobras. Isso porque ele pensa que os humanos merecem alguma consideração!

Mas está enganado, e eu vou provar.” A mulher apontou para estranho círculo

atrás dela. “No dia que a arma for minha, eu irei dominar.”

Nada daquilo fazia sentido! Eu não sabia quem era “ele” ou o que

significava o objeto da parede. A insanidade em suas palavras só diminuía a

minha esperança de fuga.

“Eu não sei quem você é ou do que está falando. Por favor, deixem-me ir.

Esta criança é a última pessoa da família que me resta. Por favor.” Implorei,
mas percebi que foi um erro. Seu rosto ficou duro como pedra quando disse que

não sabia quem ela era.

“Se esta menina é a última família humana que lhe resta, você vai ficar

trancada aí com ela até que a sede de sangue a domine e você a estraçalhe

como a um inseto” ela disse, se levantou do trono e andou até perto de mim “É

isso o que todos os humanos são, não passam de insetos. Você acha que não vi a

piedade em seu olhar enquanto a gente bebia? Eu vou destruir sua humanidade

e quando eu terminar, você será pior do que eu.”

“Quem é você?”

Ela tinha se afastado, mas voltou com ódio no olhar quando ouviu minha

pergunta.

“Eu sou o pesadelo das criancinhas. Sou o monstro no armário, a lenda

viva dos contos de terror. Não sinto amor ou compaixão. Sou aquela que devem

temer. Sou o início do fim. A escuridão personificada. Você está à minha mercê,
e ninguém jamais poderá te salvar. Torne-se escuridão como eu, ou pereça na

dor e no sofrimento. Eu sou Scar, como uma cicatriz em sua alma.”

Todos saíram do subterrâneo, deixando apenas os prisioneiros no

escuro. Peguei Isadora no colo e a abracei. Alisei seus cabelos e a ninei como a

um bebê. Eu me mataria antes de fazer algum mal a ela.

Coloquei Izzy na pequena cama de madeira e me deitei no chão. O

nascer do sol se aproximava, não tinha como escapar agora. Eles ainda não

perceberam que Isadora era uma criança diferente. Precisava continuar daquele

jeito.

Adormeci e acordei em meio à água. Levantei em um pulo e encontrei

Isadora brincando com conchas e fazendo castelinhos de areia. Eu a peguei em

meus abraços e a apertei, sentindo seu cheirinho de criança.


Perguntei a ela o que houve, e ela cruzou os braços e fez um bico de

emburrada antes de me explicar: “não gostei de acordar presa, e tava com

fome, e ali fedia, e eu tive medo daquelas pessoas de ontem. Aí eu tirei a gente

de lá...”

Franzi minha testa e perguntei como ela havia nos tirado de lá.

“Ué, abri a grade e puxei você pra fora. Fiquei no cano bem grandão,

tomei banho de mar, catei conchinhas” disse e mostrou as que tinha em mãos

“até o sol sumir”

Eu me assustei ao ouvir como ela descrevera com tranquilidade o fato de

ter arrancado barras de prata chumbadas no chão de um ninho de vampiros e

escapado com a mesma facilidade de quem vai brincar em um parquinho.

Segurei Isadora no colo e corri para longe.

Já distante das docas, um vampiro de cabelos negros e olhos marrons

nos interceptou e ordenou que eu largasse a criança. Gritei que jamais largaria,
e ele respondeu:

“Vocês, beberrões, estão passando dos limites” e correu em minha

direção, retirando Isadora dos meus braços contra a minha vontade. “Pegar

crianças indefensas é baixo até para vocês. “

Isadora o olhou com raiva, gritou que ele a soltasse e mordeu seu braço

com tanta voracidade, que seu vestidinho ficou todo sujo de sangue. Ele a

largou e a encarou com pavor. Como se ela fosse algum tipo de assombração.

Quando ele tentou agarrar Isadora de novo, tirei o meu canivete favorito da

minha bota e corri em sua direção. Abri ainda mais o seu braço com minha

lâmina, mas ele estava tão concentrado na menina, que mal percebeu.

Aproveitei para pegar Isa no colo e voltei a correr.

Um arrepio percorreu minha coluna. Não sabia quem era aquele homem,

mas ele pareceu bem assustado com Isadora. Lembrei daquela mulher de luvas e

vestido rubro. Se ela queria me usar, uma vampira comum, para sua causa
nefasta, o que ela faria se soubesse o que a Isa é capaz de fazer? Senti medo por

Isadora. Ela não estava mais segura comigo.

Por mais que doesse eu me separar dela, era óbvio que minha sobrinha

jamais teria uma infância normal ao meu lado. Mas quem poderia cuidar dela?

Pensei em Alice, ela me devia um favor grande. Foi por causa dela que entrei

naquela bagunça, e ela seria a única a entender as peculiaridades de Isadora.

Talvez eu pudesse procurar o tal de Heinz. Por mais que eu odiasse o Reich, a

mulher nas docas pareceu odiá-lo ainda mais. Precisava, no entanto, descobrir

o que aquele objeto circular atrás do trono significava. Tinha certeza que era

algo importante.

Tudo o que eu queria era transformar o mundo em um lugar seguro para

minha pequena Isadora, mesmo que morresse tentando...


Capítulo 39 — Alice

Com os olhos repletos de lágrimas cheguei ao último relato no diário de

Luna. Não poderia ser só aquilo! Virei as páginas, procurando algo a mais,

porém o resto se encontrava em branco. Espera! Uma folha fora arrancada, mas

escreveram com tanta força, que deixaram a página seguinte marcada. Peguei

um lápis na minha escrivaninha e risquei levemente o papel, fazendo com que as

palavras surgissem:

13 de junho de 1990

Eu roubei e escondi o artefato, mas não consegui matar Shuerma ainda.

Deixarei o mapa com Isadora, ambos estarão seguros na casa de Alice. Não sei
quanto tempo levará para derrotar os vampiros das docas, por isto este diário

deverá ficar com ela. Assim, Isadora saberá sua origem e os perigos que corre.

Se eu nunca voltar, espero que ela...

Nada mais era legível! Andei de um lado para o outro, sentindo o medo

se apoderando do meu coração. Tia Luna não parecia ser o tipo de pessoa que me

abandonaria por vinte e cinco anos sem ter um bom motivo. Ou talvez o motivo

fosse muito ruim. Eu precisava raciocinar um pouco, ou terminaria surtando.

Minha cabeça já parecia que ia explodir.

Peguei as chaves da minha moto e pilotei em alta velocidade pela cidade,

tentando colocar os pensamentos em ordem. As docas tinham uma líder sinistra

chamada Scar cujo esconderijo secreto ficava no antigo sistema de esgotos que

escoavam no mar. Essa era a melhor pista que eu tinha até aquele momento.

Minha tia roubou um artefato, o que era isso? Talvez o círculo prateado
atrás do trono? E ela não conseguiu matar uma tal de Shuerma? Não fazia ideia

de quem poderia ser essa. E de que mapa minha tia falou? Eu não tinha mapa

algum. Havia, no entanto, duas pessoas que reconheci do relato de minha tia e

pretendia confrontá-las assim que o sol se escondesse no oeste.

Parei a moto nos jardins da casa de meus pais adotivos. Alice estava ao

lado da piscina, lendo em uma espreguiçadeira de madeira com grandes

almofadas brancas. Beijei seu rosto e sentei ao lado dela.

— Mãe, a senhora esqueceu de me entregar alguma coisa? — Tirei as

botas, larguei no chão e me espreguicei sob o sol de fim de tarde. Pelo menos

não estava tão quente, um vento frio refrescava minha pele.

— Ora, lembrou que tem mãe? — Ela fechou o livro e falou em tom de

reprimenda. — Se eu não ligasse para o Heinz, nem saberia que você virou...

Você sabe o quê! Aliás, o que está fazendo no sol? Não deveria estar fazendo

seja lá o que os vampiros fazem enquanto dormem?


Ela parecia saber mais sobre os vampiros do que pensei. Nunca imaginei

que ela pudesse ter ligado para o Heinz! Não passou pela minha cabeça que

minha mãe tivesse intimidade suficiente para... Ai, meu Deus!

— A senhora estava transando com o Heinz? — Eu estava quase

vomitando o sangue que tinha bebido. Vampiros vomitavam? Estava prestes a

descobrir. Já era difícil aceitar a idade de Heinz, mas imaginar ele com minha

mãe era demais.

Ela retirou os óculos de grau e me encarou.

— Você está?

— Mãe! — Nunca mais chegarei perto dele e...

— Não. — Alice começou a rir. — Se você quer mesmo saber, eu tive

um caso com Petrus. Não comente isso com seu pai, por favor. Fernando

perdoou minha traição, mas ela sempre será uma mancha em nosso casamento.
Ao mesmo tempo em que respirei aliviada, fiquei triste pelo meu pai

adotivo, me criar deve ter sido difícil para ele. Eu provavelmente era uma

lembrança viva da traição de sua esposa. “Foco no que é prioridade, Isadora”,

pensei. Peguei o diário da minha bolsa e mostrei para mamãe.

— Onde está o mapa, mãe? O que Tia Luna deixou além do diário e da

carta?

— Ela deixou você.

— Além de mim. — Revirei os olhos.

Mamãe colocou o livro na mesa de apoio entre nós duas e se sentou mais

ereta, apoiando os pés no chão.

— Nada, filha. Apenas uns vestidinhos velhos que não existem mais.

Vocês não tinham muita coisa...

Lembrei da situação relatada no diário de Luna, sobre a época difícil.


Observei a mulher em frente a mim. Ela errou quando mais jovem, quase pagou

com a própria vida por seu erro e ainda ficou com o fardo de criar uma garota

mestiça que não era sua filha. Minha infância não foi fácil, mas teria sido muito

pior se não fosse por Alice e Fernando.

— Obrigada por tudo. Por ter me criado, pelo carinho e pelo amor.

Depois de ter lido o diário da tia Luna, entendi por que a senhora quis me

proteger da verdade.

Alice se levantou e sentou ao meu lado, colocando o braço no meu

ombro e me puxando para perto.

— Todas as noites eu rezava pedindo a Deus um filho, e ele me deu você.

Uma menininha guerreira que lutou tanto e se tornou essa mulher incrível. —

Lágrimas brilharam em seus olhos. — Eu soube que você descobriu a verdade

sobre seu pai biológico. Quando vi Tom na sua festa de aniversário do ano

passado, quase enfartei. Por um momento, achei que um de vocês tivessem


descoberto, mas foi só uma feliz coincidência. O jeito que vocês interagiam, no

entanto, parecia que suas almas tinham se reconhecido.

— Você sabia que o sargento era meu pai? Por que nunca me disse? —

Perguntei com um misto de surpresa e raiva.

— Claro que sabia! Foi fácil descobrir quem eram seus familiares depois

que Luna te deixou aqui. Você mesma disse que entendia por que não te

entreguei o diário de sua tia antes, é o mesmo motivo. Não havia como contar

meias verdades, ou você sabia de tudo, ou ficava para sempre no escuro. Seu pai,

Fernando, ficou muito preocupado. Achou que seria substituído. Quando Luna

veio a primeira vez conversar comigo, ele não gostou. Detestou, na verdade.

Então ela levou a gente até o casebre onde vocês viviam. Você estava no chão

frio, brincando com uma boneca velha. Ali não era um lugar adequado para uma

criança, mas você não parecia se importar. Fernando é um cara fechado, porém

ele sempre desejou ter um filho também. E você o conquistou na hora que sentou
no colo dele para mostrar a bonequinha que tinha em mãos.

Eu não lembrava de nada daquilo, mas nem precisava: eu nunca

substituiria um pai pelo outro. O que mudava era que eu passei a ter dois pais,

um adotivo e outro biológico.

Entendia o motivo de minha mãe não me contar sobre Tom. Eu não

sossegaria até descobrir tudo e provavelmente teria ido atrás de todos os

vampiros da cidade em busca de Luna. Poderia ter morrido ou até mesmo

matado Heinz.

— Me diga o que a senhora sabe, por favor. — Mostrei a ela a mensagem

escondida na página diário que rabisquei — Quem é Shuerma e que artefato

minha tia roubou?

— Não faço ideia. Eu só sei que os vampiros entram em estado de

hibernação durante o dia. Todos os sistemas param: cardíaco, respiratório,

nervoso... É como um estado avançado de catalepsia. Vocês são rápidos e fortes,


o mais próximo de deuses imortais que podemos ter. O seu sangue pode curar

algumas doenças se ingeridos por humanos em baixas doses, mas se beber

demais, corre o risco de se transformar também. Ser vampiro não significa que

você é bom ou mal, isso é uma questão de caráter.

Mamãe respirou fundo e colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha

antes de continuar:

— Sei de uma vampira corajosa que irritou as pessoas erradas. Seu ponto

fraco era uma linda garotinha de quase cinco anos de idade. Não que a menina

fosse fraca, pelo contrário. Ela era tão forte, que poderia se tornar um alvo. A

criança precisou ser escondida no mundo humano. Taxada por psicólogos,

professores e colegas de esquizofrênica, Aspenger, hiperativa... Maluca. Tudo

para esconder o inexplicável.

— Eu sofri por muitos anos... — Falei não como acusação, apenas

constatando um fato.
— Sofri também, porém você seria perseguida por vampiros e humanos.

— Ela segurou meu rosto entre as mãos e beijou minha testa. — O que eu mais

tenho certeza, no entanto, é que mesmo que você não tenha saído do meu ventre,

sempre será minha filha, e eu te amo. Tudo que eu fiz foi na intenção de te

proteger.

Assenti e a abracei com força. Ela era a mãe que eu conhecia, aquela que

cuidou de mim por mais de duas décadas.

— Eu te amo, mamãe. Desculpa por todo trabalho que dei.

Alice alisou meus cabelos, e eu senti suas lágrimas molharem meu

ombro.

— Sei que você vai procurar sua tia. Tenha cuidado, por favor. E não tem

por que se desculpar, apenas se mantenha segura. — Ela se abaixou e pegou

minhas botas. — Calce seu sapato, e vamos comer alguma coisa. Você está

muito pálida!
Rindo, fiz o que minha mãe pediu. Ela se abaixou e alcançou algo

pequeno embaixo da minha espreguiçadeira.

— Ah, olha o que caiu no chão, guarde isso direito. Você sabe que eu

nunca gostei que andasse armada em casa.

Ela colocou o meu canivete favorito em minha mão. Andar armada...Que

exagerada! A lâmina era tão pequena, que se tratava mais de um amuleto da

sorte do que uma arma. Passei o dedo em seus desenhos em baixo-relevo, os

mesmo do colar que Heinz mandara fazer para mim. Prendi o canivete no clipe

oculto da minha bota, de onde nunca saía quando eu usava aquele calçado, e

mandei uma mensagem para Takao, pedindo que ele providenciasse um mapa da

cidade.

Fui para a cozinha, a comida da minha mãe não era algo a ser recusado, e

eu estava faminta. O cheiro de bolo atingiu minhas narinas. Desenrosquei o colar

que Heinz me deu e provei um gole do sangue. Hum... Bolo com café especial
seria muito bom.

— Mãe, faz um expresso pra mim! — Pressentia que a noite seria bem

longa — Faz um duplo, mas não enche a xícara toda, tem um ingrediente que

preciso acrescentar...
Capítulo 40 — Interrogatório

— Este é o sistema de esgotos. — Takao apontou para o mapa. — Há

alguns do sistema antigo de encanamento que estão desativados e outros novos,

mas os arquivos da prefeitura não foram muito específicos sobre isso. — Ele

mostrou vários pontos de intersecção. — Os vampiros poderiam se esconder em

qualquer um.

Frustrada, joguei-me na cadeira do meu escritório. Aquilo era uma droga,

achei que com as pistas no diário de Luna, eu encontraria o túnel certo com

facilidade.

Olhei para o teto, tentando lembrar dos detalhes.

— Espera, nem todos do mapa desaguam no mar! Isso deve diminuir as

opções, né? — Voltei a analisar o mapa com empolgação.


Takao e eu anotávamos as passagens que batiam com as descrições do

diário e diminuímos os pontos de intersecção para dez. Era um começo.

— Quer ir lá agora? — Meu parceiro perguntou.

Olhei para a janela e vi que o sol estava quase se escondendo no

horizonte. Eu poderia ir lá sozinha, ou poderia ser esperta e esperar meus

reforços despertarem.

— Vá para casa, pegue seu sniper e todo o seu suprimento de sangue de

morto. Eu vou na casa de Heinz primeiro.

Takao me abraçou antes de partir.

— Tome cuidado, não faça nada sem mim.

Fui de moto até a casa de Heinz e entrei na mansão com o mapa da

cidade em mãos. Se eu quisesse encontrar Luna, precisaria estar preparada, ou

terminaria desaparecida como ela. Subi até o quarto do liebling e beijei seus
lábios frios. Enquanto esperava que ele acordasse, tomei um banho e vesti a

roupa de La Muerte, que levava na bolsa. Deixei um bilhete no travesseiro ao

lado, avisando onde estava, e fui visitar nosso prisioneiro.

No calabouço, o vampiro mexicano do Lança-Chamas dormia amarrado

com correntes de prata. Havia muito mais delas do que as que foram usadas em

Isaac. Além da coleira, pulsos, pernas e tronco também estavam presos. Era tanta

prata, que deveria ser uma angústia imensa. Ótimo. Puxei uma cadeira de ferro e

sentei junto a ele, polindo o meu sai com um pano de forma ameaçadora. Se é

que estar preso em um calabouço com La Muerte não fosse aterrorizador o

suficiente. Eu entendia por que Zeus se intitulou um deus: o poder era inebriante.

Respirei fundo quando o sol se pôs. Podia sentir minhas forças

aumentarem com o cair da noite. O vampiro mexicano inspirou fundo também,

seu tronco tentou se elevar, mas foi impedido pelas grossas correntes. Seus

olhos, carregados de ódio, focaram em mim.


— Quem é você?

Sorri com escárnio e apontei o sai para ele.

— Eu faço as perguntas. Vinte e cinco anos atrás, uma vampira e uma

criança encontraram um corpo na praia, perto das docas. Vampiros liderados por

uma mulher chamada Scar as cercaram e as levaram até um esconderijo

subterrâneo dentro do antigo sistema de esgoto. Elas escaparam misteriosamente

no dia seguinte. Estou certa até agora?

— Eu não sei do que você está falando. — Ele foi categórico.

Levantei e encostei minha adaga em seu pescoço, vendo o sangue fluir

onde a ponta penetrou de leve.

— Eu pensei que você fosse o vampiro mexicano presente naquela noite.

Se não era — afundei mais a lâmina, e ele mostrou suas presas em uma careta de

dor —, sua presença aqui é descartável.


— Espera! Eu lembro agora! — A porta do calabouço foi aberta,

interrompendo-o, e seus olhos se arregalaram ao ver quem entrou. — Você? Isso

quebra todos os acordos! Exijo que me soltem!

Heinz, vestido todo de preto, me entregou uma taça de sangue e levantou

uma sobrancelha diante das exigências do prisioneiro.

— Eu não quebrei acordo nenhum. Veja bem, estou tão à mercê desta

mulher quanto você. Sou um mero prisioneiro de seus encantos. Ela manda, e eu

obedeço, não é, schatzi?

O homem riu apesar da prata envolta de sua garganta.

— Pensei que nunca veria o dia em que o poderoso e antigo Heinz se

apaixonaria como um adolescente. Partiria o pobre coração da minha senhora

saber disso.

— Sorte que a sua senhora — Heinz enfatizou as palavras — deixou de

existir trinta anos atrás. Além do mais, ela não tinha um coração a ser partido.
O homem sorriu com malícia. Alguma coisa parecia fora de tom naquela

conversa. A senhora do mexicano só poderia ser a tal Scar, mas eu a vi com vida

quando tinha cinco anos. Sentia cheiro de mentira no ar...

— Qual o nome da senhora? — Questionei com raiva. Sem ciúmes

algum, obviamente. Era apenas ódio puro de quem quer estraçalhar o pescoço de

uma vampira de cabelos cacheados que ousou tocar na minha tia e no Heinz e...

Ok, respirei fundo. Foco! Eu precisava de foco. Bebi todo o sangue e larguei a

taça na cadeira.

— Shuerma. — Ambos responderam ao mesmo tempo, pronunciando o

nome como “Suerma”.

— E quem é Scar? — Perguntei.

O alemão franziu a testa, como se não reconhecesse o nome, já o outro

arregalou os olhos. Segurei os cabelos do mexicano e encostei o sai logo abaixo

do seu olho.
— Ou você fala tudo que sabe agora, ou isso vai ser muito doloroso...

Não o soltei mesmo quando ele começou a falar:

— Minha senhora, Shuerma, acreditava que a profecia dos deuses

aconteceria trinta anos atrás. Nós planejamos um ataque surpresa ao Reich para

roubarmos o artefato. Ela sabia que teria que fugir para mantê-lo seguro, por isso

pegou um barco e escapou pelas docas. Os vampiros do Reich explodiram a

pequena embarcação e a mataram. Nós nos rendemos e fizemos um acordo de

paz.

Ainda sem soltar o homem, olhei para Heinz.

— Por acaso esta Shuerma tem mania de grandeza, rosto delicado, olhos

castanhos e longos cabelos cacheados? E esse tal artefato é um grande círculo de

prata?

Ele balançou a cabeça concordando, e eu rasguei metade do rosto do

homem com a adaga.


— Mentiroso! Eu tinha quatro anos quando vi a mulher e o artefato com

meus próprios olhos. Dizem que a justiça é cega. — Deixei o sai quase encostar

em seu globo ocular. — Quer testar essa teoria?

O mexicano berrou em agonia:

— Shuerma não morreu na explosão! A vampira de cabelos cacheados

que Heinz viu se desfazer em cinzas foi uma das trigêmeas. Ontem você

conheceu as irmãs dela nas docas, ainda estão vivas?

— Não, as três estão juntas no inferno agora. — Não acrescentei a parte

que ele se juntaria a elas em breve. — Termine de falar.

— Minha senhora adotou o nome de Scar e se escondeu nas docas. Por

anos, ela tenta desvendar o segredo do artefato. Quando a arma for dela, nem

mesmo Heinz poderá impedi-la de assumir o seu papel de direito como deusa. E

a primeira que ela vai matar será você, vadia.

Heinz o segurou pelo pescoço, elevando-o da cama metálica, sem se


importar que a prata queimaria sua mão. O ódio emanava do alemão como

ondas. Era quase palpável.

— Diga onde ela está!

— Você pode me matar, eu não trairei minha senhora mais do que já fiz.

A raiva em Heinz era tamanha, que eu achei que ele poderia de fato

matar nossa única testemunha. Segurei seu pulso no mesmo momento em que

Isaac entrou no calabouço.

— Perdi alguma coisa?

— Sim. — Tirei Heinz de perto do cara. — Tenho certeza que este

homem está envolvido no desaparecimento de tia Luna, além de ser o único

desta casa a saber a localização do túnel onde ela foi vista pela última vez. Mas

ele não quer cooperar e nos dizer onde é...

O rosto de Isaac se transformou, os olhos brilharam em amarelo, e as


presas se alongaram ao saber que aquele vampiro tinha sido um carrasco de sua

esposa. Ele retirou o próprio casaco e sacou a espada da cintura.

— Deixem comigo, ele vai falar.

Assenti, puxei Heinz para fora do calabouço e o levei até o quarto. Sentei

no aparador de madeira enquanto ele observava os jardins pela janela, a raiva

ainda como um escudo ao redor dele.

— Que tal eu adivinhar? — Disse com sarcasmo — Teve uma parte

importante que você não me contou durante sua aula de história?

— Me desculpe, schatzi. Achei que estava livre, que nunca mais

precisaria me preocupar.

A sinceridade e a dor em suas palavras estavam me deixando nervosa.

Será que aquela mulher era tão poderosa assim? Quão pior nossa situação

poderia ficar?
— O que essa Shuerma fez de tão mau?

Ele fechou a cortina blackout e sentou-se ao meu lado.

— O problema não é ela, e sim o artefato. Achei que ele tivesse

explodido junto com o barco. — Heinz segurou minha mão. — O Orakel tem o

poder de destruir a todos nós.

Ah, merda!
Capítulo 41 — Orakel

— Orrákel? — Repeti o nome como Heinz falou, e ele balançou a cabeça

concordando. Franzi a testa, tentando traduzir a palavra para o português — O

que é isso?

Ele foi até a cadeira chaise longue e sentou antes de explicar:

— Os vampiros são seres imortais, e a eternidade pode ser um tempo

muito longo para se estar vivo, principalmente quando todas as pessoas que

conhece terminam morrendo. Quanto mais velho, mais poderoso e mais cansado

da vida. Com o passar dos anos, a maioria procura a doce libertação da morte...

— Isso aconteceu com você? — Perguntei com o coração apertado.

Ele me deu um pequeno sorriso de canto de boca.

— Não, eu me cansei da vida logo no início. Depois que Ares me


transformou em vampiro e eu tive que matar meu próprio pai, entrei em uma

depressão profunda. Você sabe o que acontece com humanos depressivos,

Isadora?

— Sim. — Sentei em seu colo. — Eles sentem uma grande tristeza,

perdem a vontade de sair de casa, de fazer qualquer coisa, não querem se

alimentar direito. Nada passa a fazer sentido.

— Agora imagine isso com um vampiro. Nós não precisamos respirar,

comer e nem se mover. Podemos ficar parados por séculos, praticamente nos

tornamos pedra. Foi o que aconteceu comigo. Me escondi no subsolo de uma

abadia na Germânia e fiquei lá por mais de mil anos. Até que uma mulher verteu

sangue em minha boca e me despertou. Ela era uma vampira libanesa que passou

séculos estudando a nossa origem. Shuerma acreditava que o mundo era melhor

na época em que os vampiros dominavam. Todos eram cercados pela arte e

cultura, foi a época de ouro da filosofia. Apesar dos sacrifícios humanos...


Bem, aquele último detalhe era importante. Ele continuou:

— Eu não sabia, mas depois que as civilizações antigas foram destruídas,

deu-se início à Idade das Trevas. Repressões, perseguições... A Santa Inquisição.

Peste Negra. Guerras por política, por poder e até por religião. Ela tinha um bom

argumento, e eu aceitei.

Realmente, a história mostrava que a Idade Média fora um terror. Na

história humana, todas as Eras tinham sua cota de carnificina.

Heinz passou os braços ao meu redor, e eu acariciei sua mão.

— Não entendo por que ela se deu ao trabalho de te procurar.

— Porque eu sou o último vampiro vivo transformado por um deus, o

único descendente direto que restou. Lembra o oráculo? O mesmo que avisou a

Chronos que ele seria derrotado por um filho? — Balancei a cabeça

concordando, e ele continuou. — Ela encontrou a última profecia, uma que ficou

oculta pelo tempo, gravada em um artefato de prata feita pelas mãos de Hefesto.
Hefesto? Lembrava desse nome... Era o deus responsável pela fabricação

das armas divinas. Filho de Zeus e marido de Afrodite, a deusa do amor. Nossa!

Pensar que todos esses grandes nomes existiram de verdade me deixava tonta.

— Esse era o Orakel? — Tentei entender a importância da tal profecia.

— Era sobre você?

Heinz se levantou e continuou sua história enquanto abria um cofre

oculto na parede.

— Não era sobre mim, exatamente, mas sim sobre uma arma divina que

tiraria os vampiros da escuridão eterna. A profecia nos trouxe até o sudeste do

Brasil, era aqui onde a suposta arma seria encontrada. Muito antes das grandes

guerras mundiais, eu e Shuerma saímos da Europa e fomos parceiros durante

muitas décadas.

Hum... Não gostei de como soou esse “parceiros”...

— Você a amava? — Tentei imaginar Heinz chamando aquela mulher


horrível, Scar, de schatzi.

Ele tirou uma pequena caixa do cofre e voltou a sentar perto de mim.

— Por um tempo, pensei que poderia amar. — Heinz beijou os meus

lábios. — Não fique com ciúmes, você é a única schatzi. Minha escolhida,

minha liebling. Shuerma tinha uma mania de grandeza. Ela não era apenas

fascinada pelos deuses, queria ser um. Nos separamos quando percebi que as

nossas ideologias eram diferentes demais. Eu era um pacifista, ou o mais perto

de um pacifista que um vampiro pode ser, e ela, uma sanguinária. Shuerma se

isolou nas docas junto com os vampiros que compartilhavam de sua filosofia.

Disputamos território diversas vezes, e eu pensei que ela tivesse morrido na

noite do ataque ao Reich.

Heinz abriu a pequena caixa recoberta de veludo vermelho, de lá tirou

um pedaço de papel e me mostrou. Era uma fotografia antiga de um artefato que,

de fato, se parecia com um círculo de prata repleta por símbolos que eu não
conhecia.

— Esse é o Orakel, está escrito em grego antigo. — Ele apontou para os

símbolos que cercavam o grande círculo. — No meio, temos a profecia, e ao

redor são três conjuntos de números.

— O que dizia a profecia, afinal?

Ele virou a foto, e no verso se encontrava a tradução em português:

Em um novo monte.

De um novo mundo.

Nascida do sangue e da dor da mais bela

Se erguerá uma filha da guerra.

Com ela surgirá uma esperança.

A arma divina buscada enfim será encontrada


E o poder dos deuses ressurgirá

Condenando os bebedores ao fim de sua escuridão eterna.

Aquelas palavras me arrepiaram, e eu tive uma sensação de mau agouro.

Li três vezes seguidas para que penetrassem em minha mente. Heinz virou a foto

novamente e apontou para os símbolos ao redor.

— Desconfiávamos que os conjuntos de números fossem coordenadas,

longitude e latitude. Quando descobrimos que os dois primeiros batiam com a

localização de uma cidade brasileira chamada Monte Carlo, viemos para cá.

Minha nossa! Eles pensavam que Monte Carlo seria o novo Monte

Olimpo? Pior que fazia sentido, se considerar as duas primeiras estrofes da

profecia. A Europa não sabia da existência do continente americano na época em

que ela foi criada, o Brasil seria mesmo um novo mundo. As outras duas

estrofes, no entanto, eram as que me davam medo...


— Quem é a filha da guerra?

Heinz engoliu em seco e ficou calado, me observando por um momento.

Quanto mais em silêncio ele ficava, mais eu repassava em minha mente cada

estrofe da profecia. Não parecia muito promissor.

— Quando um vampiro transforma outro, ele passa a fazer parte da

linhagem, como uma família. Shuerma sabia disso, por isso que estava tão

determinada a me achar. Por ter sido transformado por Ares, eu não sou apenas o

último descendente dos deuses, sou o filho do deus da guerra. Assim como todos

aqueles transformados a partir de mim.

Talvez eu fosse a primeira vampira do mundo a ter uma enxaqueca. Se eu

não tivesse uma, bateria a cabeça na parede até doer.

— Quantas pessoas se encaixam no perfil? Todos os vampiros de Monte

Carlo foram transformados por você? — Entrei no modo Cecília de perguntas ao

lembrar de como minha tia e meu pai descreveram minha mãe. Nascida do
sangue e da dor da mais bela. Merda! — O que acham que essa tal filha da

guerra fará?

— Os vampiros de Monte Carlo descendem de mim ou de Shuerma. A

maioria dos que estão nas docas não são considerados “filhos da guerra”, ao

contrário de todos do Reich. — Ele voltou a olhar a fotografia antes de me

encarar. — Acreditávamos que o Orakel era a porta e que a filha da guerra seria

a chave. Com a posse da arma divina, os vampiros poderiam se intitular deuses

de novo e voltariam a serem cultuados.

— Você acha que qualquer descendente de Ares pode ser a filha da

guerra citada na profecia? — Eu era como Pandora, sempre mantendo um pouco

de esperança de que a profecia nunca se realizasse.

Heinz largou a caixa no chão e me beijou. Seus lábios pareciam venerar

os meus.

— Durante décadas achei que sim, até que em uma noite eu vi uma
vampira correndo com uma garota no colo. Ela fedia a peixe como os beberrões

das docas, eu as interceptei com a intenção de salvar a criança. Levei um susto

quando descobri que a menina não precisava ser salva. A pequena atrevida

atacou e me mordeu quando a agarrei. Não acreditei quando vi uma mestiça

viva. Na noite seguinte, eu a segui. A menina tinha bebido sangue suficiente para

que eu pudesse rastreá-la. Já não acreditava mais que a profecia deveria ser

cumprida. Era perto do amanhecer quando a encontrei dormindo em uma cama

velha de um casebre. Puxei minha adaga para matá-la, mas não consegui. Não

poderia tirar a vida de uma criança. Fui embora, porém não parava de pensar

nelas. Voltei para ajudar, mas não encontrei ninguém. As duas sumiram, e o meu

sangue já tinha saído do sistema da menina, ela não era mais rastreável.

Até ele me encher de seu sangue desde a noite que entrei pela primeira

vez no Reich. Porra! Tentei lembrar como tia Luna fora transformada. Minha

mãe adotiva, Alice, a obrigou a beber o sangue de um braço decepado de um


vampiro. Não tinha como descobrirmos se era das docas ou do Reich.

— Por que você não me contou sobre o Orakel? — Eu me levantei e

comecei a andar de um lado para o outro do quarto.

O poder era inebriante, mas em excesso poderia ser aterrador. Se Scar era

tão ruim quanto tia Luna descrevera, ela não pretendia restaurar a antiga glória

da arte e cultura. Seu objetivo era muito mais nefasto. E eu não queria ser a

responsável por uma nova Era de escravidão humana.

Heinz pousou as mãos em meus ombros e beijou minha nuca, me

abraçando por trás, e eu apoiei minha cabeça em seu peito. Seu abraço foi

reconfortante, mas as palavras, não:

— O barco explodiu em milhares de pedaços, schatzi. Me desculpe, achei

que o artefato havia sido destruído e não precisaria se preocupar. Vamos

recuperar sua tia e destruir o Orakel, é a única opção.


Capítulo 42 — Túneis

Minhas botas afundaram na areia fofa, as nuvens escuras cobriam o céu e

escondiam as estrelas. O vento frio da praia bagunçou os meus cabelos e trouxe

o odor pungente da maresia e de peixe dos barcos pesqueiros. Prendi os meus

cabelos curtos com um elástico e encarei Isaac, que andava taciturno ao meu

lado. Ele estava calado desde que saíra do calabouço. Eu não sabia o que fizera

com o vampiro mexicano para descobrir a localização do esconderijo de Scar,

mas tinha certeza que mal sobrara o pó do prisioneiro.

— Eu sempre te chamei de Isaac. — Quebrei o silêncio. — Prefere

Heitor?

— Não, Heitor morreu trinta anos atrás. — Ele respondeu sem olhar para

mim, encarando a praia vazia à nossa frente.


Depois que Heinz contou sobre a profecia, fizemos uma reunião com a

minha “equipe tática”. Ficou decidido que Tom emitiria um alerta para retirar os

trabalhadores do cais e pescadores da região das docas. Não queríamos

testemunhas humanas. Takao continuaria em seu posto no alto do prédio e nos

avisaria de qualquer movimentação suspeita. Isaac iria comigo fazer o

reconhecimento por terra, e Heinz seria a cavalaria.

Eles apostavam que uma abordagem sutil à noite seria melhor do que

uma invasão direta durante o dia. Não sabíamos onde exatamente todos se

escondiam e que armadilha poderiam ter feito. Talvez até tivessem aliados

humanos para vigiar à luz do sol. De qualquer forma, atacar a líder,

desestabilizar os beberrões e recuperar o Orakel era nossa prioridade.

Apertei o comunicador bluetooth em meu ouvido. Com nossa audição

apurada, o volume era tão baixo que seria inaudível para uma pessoa normal

mesmo que o comunicador estivesse dentro do ouvido dela.


— Takao — sussurrei —, como estão as coisas aí?

Ele respondeu imediatamente:

— Tranquilo, a polícia já fez o trabalho dela. Esvaziou tudo.

— Ei, você sabia que Afrodite, a deusa casada com Hefesto, tinha um

caso com Ares? — Uma voz feminina soou pelo ponto em minha orelha. Eu não

acreditava no que estava ouvindo!

— Cecília, por que você não está em casa? — Ralhei. Já era perigoso

envolver Takao, mesmo que ele tivesse conhecimento tático e fosse um detetive

experiente.

Ouvi um barulho, como se ela tivesse tirado o celular das mãos do

namorado.

— Olhe aqui, só porque você é a toda poderosa, não pode ficar

mandando em todo mundo, não!


Isaac segurou uma risada, e eu revirei os olhos.

— Estou preocupada com sua segurança, teimosa.

— E eu trouxe até meu faqueiro de prata, cabeça-dura. — Ceci entrou em

modo revoltada: — Não vou ficar em casa e perder toda a diversão. Não é todo

dia que sua prima vira uma vampira fodona e descobre que seu nascimento foi

profetizado mais de mil anos antes. Você é louca se acha que eu ficaria de fora

dessa. Saiba que estou aqui com meu livro sobre mitologia, tentando te ajudar.

Por exemplo, Hefesto não gostava de Ares. Não acha estranho que logo ele tenha

feito o Orakel que fala sobre uma filha da guerra? Pode ser uma armadilha! Se

bem que se foi uma ordem direta de Zeus, ele não seria louco de ir contra...

Sabia também que Pandora, a primeira mulher humana, foi criada por Hefesto?

Diz a lenda que ela abriu uma caixa e de lá saíram todos os males do mundo,

restando só a esperança. E na profecia fala de esperança, né? Aí eu pensei que...

Eu a interrompi antes que ela começasse a divagar demais.


— Ok, ok, ok, entendi! Você está toda equipada com colheres de prata e

livros sobre mitologia. Continue a procurar pistas sobre a profecia e não distraia

Takao. Estamos perto da entrada e ficaremos em silêncio de rádio, certo?

Ela resmungou, mas terminou concordando, e nós desligamos. Fechei os

olhos, expandindo mais a minha audição. Nada. Eu não ouvia nada além do

vento e do barulho das ondas se quebrando no mar. Andamos mais uns cem

metros e alcançamos o trecho da praia parecido com o do meu sonho. Um

grande cano de concreto, com quase dois metros de circunferência, que

desembocava perto do mar. Estava levemente úmido, não parecia ser usado

como esgoto, mas provavelmente ficava cheio quando a maré subia.

A iluminação era pouca, mas aquilo não se tornava um empecilho. Não

com a visão que nós tínhamos. Isaac foi na frente, seguindo a trajetória que o

mexicano falou sob tortura. Era uma intricada rede de esgotos. Contei os passos

mentalmente, como fiz na casa de Heinz, assim conseguiria voltar pelo caminho
certo. Direita, esquerda, direita de novo, seguindo em frente. O silêncio naquele

lugar me angustiava. Talvez fosse resquícios do medo que senti quando me

trancaram aqui tantos anos atrás, talvez fosse a sensação de não estarmos

sozinhos.

— Merda! — Isaac xingou e apontou para a parede. — Aquele filho da

puta nos enganou. Aqui deveria ser uma passagem.

Bati na parede e ouvi o eco do outro lado. Ela era oca, não tinha nada

maciço por trás. Talvez aquele fosse o caminho, mas fora fechado depois da

minha fuga quando criança.

— Vamos criar uma passagem, então. — Chutei o concreto. Uma, duas,

três vezes. Pedaços da parede ruíram, deixando um espaço grande o suficiente

para que pudéssemos passar. Ao chegar do outro lado, vi celas enferrujadas,

grades antigas e uma cadeira vermelha puída. Parecia uma versão decadente do

local relatado no diário de Luna. — Não tem ninguém aqui há muito tempo. —
Passei o dedo na cadeira, e ele voltou coberto de poeira. — Concorda?

Uma batida e o barulho de algo caindo me fizeram dar um salto, mas o

que fez meu coração perder uma batida foi a voz austera que respondeu no lugar

de Isaac:

— Concordo, mudamos nossa localização mais de duas décadas atrás.

Aqui não era seguro.

Virei-me com pressa e me deparei com a mulher dos meus pesadelos.

Scar vestia uma exuberante túnica vermelha com detalhes dourados, de um

ombro só. Seus cabelos cacheados estavam presos por uma tiara dourada, e o

braço, adornado por um bracelete de ouro. As mãos cobertas por longas luvas de

veludo e seus traços libaneses conferiam a ela uma beleza exótica. A diaba era

linda. Não gostei...

Ao lado dela, um grupo de vampiros apontavam suas armas para mim.

Eu pouco me importava com eles, o problema era Isaac desacordado no chão.


Scar segurava uma longa lança de prata contra o tórax dele. Mesmo que minhas

mãos estivessem coçando para alcançar o sai e matar todo mundo, eu não

arriscaria a vida do meu tio. Por isto, as levantei em sinal de rendição.

— Eu vim em paz.

A risada dela reverberou pelo aposento, como se eu tivesse dito o maior

dos absurdos. É, nem eu acreditava em mim...

— Veio em paz? Duvido muito. — Ela afundou o bastão de prata no

peito inerte de Isaac. Um passo em falso, e ele se transformaria em cinzas. —

Você me lembra alguém, e seus olhos... — Ela se abaixou e pegou Isaac pelo

pescoço. Seu rosto se iluminou quando olhou novamente para mim e pareceu

lembrar de onde tinha me visto antes. — Ora, que interessante! Quer dizer que a

temida La Muerte não passa de uma garotinha que cresceu? Acompanhe-me,

você é minha convidada. Temos uma reunião de família a fazer.

Estava claro que aquilo não era um pedido e, mesmo que fosse, eu
pretendia seguir de qualquer jeito. Estava mais do que interessada em reunir

minha família de novo.


Capítulo 43 — Bichinho de estimação

LUNA

Algumas pessoas costumavam exagerar ao dizer que sofreriam por uma

eternidade. No meu caso, aquilo provavelmente seria verdade. Era justo. Matei

minha irmã, meu marido, incendiei minha casa, abandonei minha filha e

condenei minha sobrinha à mesma maldição que corria em minhas veias. Era

uma assassina e deveria sofrer como tal.

Tentei me redimir um pouco ao cuidar de Isadora, mas também falhei. Se

viver na pobreza e isolada não fosse ruim o suficiente, para que ela não passasse

fome, dava o meu próprio sangue. Literalmente. E a tentativa de deixá-la segura

resultou em minha captura. Não sei quantos anos se passaram, não sei se ela
estava viva ou se a falta de sangue em sua alimentação a fez enfraquecer e

morrer. O que me mantinha consciente era a esperança de um dia escapar para

ver Isadora e Mariana de novo, pelo menos uma vez.

Anos atrás, eu deixei minha princesinha corajosa na casa de Alice. Antes

de partir, fiz com que a pequena Isa me prometesse nunca usar suas habilidades

na frente das pessoas. Ela deveria fingir sempre ser apenas uma garotinha. Mas

ela era muito pequena, não sabia se manteria a promessa e nem se ao menos

lembraria dela. Minha intenção era exterminar os vampiros que conheci nas

docas e voltar para buscá-la. Não podia seguir em frente sabendo que pessoas

eram mantidas reféns nos esgotos da cidade. Apesar dos anos de experiência

como detetive, eu era um bebê em termos de vampiro.

Dias se passaram depois que fiquei sem minha sobrinha. Foi quando

percebi que só era forte antes porque bebia do sangue dela. Como fui arrogante!

Sem Isadora, eu não era páreo para os vampiros das docas.


Consegui, no entanto, um feito. Tinha memória fotográfica, então

desenhei em um papel os símbolos que vi no artefato prateada, invadi a

biblioteca pública durante a madrugada e pesquisei em dezenas de livros

mofados até encontrar um antigo dicionário grego. A tradução que fiz era tosca e

amadora, porém foi o suficiente para me fazer entrar em pânico. Eu não sabia o

que exatamente a Grécia tinha em comum com os vampiros, mas coisa boa não

poderia ser. O que mais me deixou em alerta foram os seis últimos números

naquele círculo. Eles só poderiam significar uma coisa...

Não havia outra solução. Em um movimento audacioso, roubei o artefato

enquanto Scar e seus comparsas saíam para sequestrar mais pessoas inocentes, o

escondi e entalhei o mapa. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Aquela noite

foi a última vez que vi minha Isa...

Invadi o seu quarto na mansão Martins, ela dormia pacificamente em


uma linda cama cor-de-rosa. Suspirei aliviada. Cercada de bonecas e ursos de

pelúcia, com um armário cheio de lindos vestidos e um quarto digno de uma

princesa, estava melhor naquela casa do que comigo. Beijei sua bochecha

gordinha e coloquei o meu presente ao lado do seu travesseiro. “Durma bem,

minha princesa. A tia Luna te ama”, sussurrei. Eu ia contar para Isadora. Até

peguei o meu diário na cabeceira de sua nova mãe, mas terminei desistindo e

rasgando a página. Era melhor que ninguém nunca encontrasse o artefato.

Um barulho chamou minha atenção e me tirou dos devaneios. Costumava

me perder no passado. Apesar de todo pesadelo que vivi naquela época, era

menos doloroso do que o presente.

Prata pura queimava meus pulsos, abdômen, tornozelos e pescoço. Não

tinha como me mover, eu ficava permanentemente acorrentada à parede. Depois

do roubo do oráculo, os vampiros das docas ficaram furiosos. Tentei fugir,


contudo eles seguiram meu rastro. Sem o sangue de Izzy, eu estava cada vez

mais fraca e fui capturada.

Scar me torturou na tentativa de descobrir a localização do artefato que

eu roubara. Não importava o que ela fizesse, eu nunca falava nada. A tirana

também não fazia ideia que Isa tinha qualquer poder de vampiro. A última vez

que emiti uma palavra foi para convencê-la que Isadora estava morta.

Depois, ela passou a me torturar por puro deleite. Enquanto não

arrancava uma palavra de mim, Scar nunca calava a boca. Ela era uma

megalomaníaca obcecada pelos deuses e não cansava de contar e recontar

histórias sobre a glória antiga. Sobre como os vampiros eram cultuados como

deuses e decidiam quem teria o direito de viver ou morrer. Como eles viviam na

riqueza, com artistas falando e pintando sobre suas conquistas. Sua obsessão

ultrapassava os limites da sanidade.

— Te convidaria a sentar, mas você parece tão enojada. Peço desculpas


por minhas acomodações, sei que não são boas o suficiente. Faço o melhor que

posso, vivendo como párea, isolada por causa das estúpidas leis do Heinz. — A

voz de Scar encheu o esconderijo. Aquele era um de muitos. Ela tinha vários

pontos nos esgotos e até casas nos arredores onde mantinha seus reféns em celas.

Também mudava com frequência, para enganar os vigias do dono do Reich.

Heinz era o amor e o ódio dela. Como humano, lutou por seus ideais, e

como vampiro, manteve a crença de que os humanos deveriam ser livres. Havia

momentos que ela falava em colocar uma bomba no Reich e explodir todos ali

presentes, em outros, ela dizia que reconquistaria sua confiança. Afinal, segundo

a genealogia vampírica, como filho de Ares, ele seria também neto de Zeus. Scar

não se conformava que Heinz não utilizasse todo o seu poder. Ela o conhecia tão

bem, que conseguiu manipulá-lo. Orquestrou o ataque ao Reich para roubar o

artefato, fingiu a própria morte e a destruição do mesmo. Tudo para que ela

desvendasse a profecia e se tornasse forte o suficiente para subjugá-lo.


Foi exatamente esse ataque ao Reich que me transformou em vampira e

me possibilitou roubar o artefato anos mais tarde, atrasando seus planos

malignos durante décadas. O destino poderia ser uma merda de vez em quando...

— E mesmo assim, você se veste como uma deusa, senta em um trono,

tem prisioneiros e seguidores. — Uma voz feminina desconhecida retrucou com

ferocidade. Aquilo era novo! Ninguém jamais tinha coragem de responder

aquela mulher daquele jeito. Minha curiosidade estava a mil. Eu não conseguia

enxergar nada. Geralmente Scar me mantinha presa atrás de seu trono e

escondida por uma cortina.

A megera voltou a falar depois de um segundo de pausa:

— Verdade, mas você esqueceu de uma coisa. Eu não tenho apenas

prisioneiros, tenho também meu bichinho de estimação. — Ouvi seus dedos

estalarem, e as cortinas foram abertas. Scar estava sentada em seu trono como a

deusa que ela achava que era. Como odiava aquela mulher, principalmente
quando me chamava de bichinho de estimação.

Tentei enxergar com quem ela conversava e arregalei meus olhos com

incredulidade. Seria possível? Em pé diante do trono e com as mãos

acorrentadas em frente ao seu corpo, uma versão nova e de olhos verdes de mim

me encarava com um olhar fixo. Não... Ela não era uma versão mais nova de

mim, era a versão mais velha da minha princesinha. Tentei me mexer, mas as

correntes não permitiram. Os lábios dela se partiram em um grunhido, seus olhos

brilharam como faróis verdes e os caninos se alongaram em presas. Oh, não! Ela

se transformou em uma vampira. O que significava que... Merda! A ínfima

felicidade que senti ao saber que Isadora estava viva foi substituída por pavor.

Como aquilo aconteceu e o que ela estava fazendo ali?

— Liberte-a. — Isadora exigiu.

O sorriso de deboche de Scar ecoou pelas paredes.

— Você não está em posição de exigir nada. — Ela alisou a cabeça de


alguém. Havia algum pobre coitado desmaiado aos pés daquela lunática. O clima

na cela mudou, podia sentir o ódio pungente emanado pelo corpo da minha

sobrinha. Scar cravou as unhas no ombro do cara desmaiado. — Se você me

matar, eles morrem.

Não falei nada quando um vampiro encostou uma espada em meu

pescoço. Pela ameaça, supus que a pessoa no colo de Scar era importante para

Isadora.

Shuerma, como era seu nome de batismo, se achava uma deusa, mas era

um demônio, e eu queria exterminá-la. Por causa da falta de sangue, minha visão

não era tão boa quanto antes. E, mesmo assim, eu pude ver Isa inspirar com

força. Ela parecia um touro enjaulado pronto para atacar, e eu... Eu não deveria

ser uma visão muito bonita. Desde que fui capturada, raramente me davam

sangue, e quando davam, era uma quantidade mínima. O suficiente para que eu

não entrasse em um estado de hibernação.


Encarei minha sobrinha com tranquilidade, tentei mostrar para ela que

encararia a morte sem objeção. Eu não me importava, não merecia ser salva.

Scar permaneceu impassível, acariciando a cabeça do homem, enquanto Isa

tentou relaxar.

— Muito bem, La Muerte, vejo que você é mais esperta do que o meu

bichinho.

Scar se levantou, andou até a parede onde eu estava acorrentada e

colocou seu bastão de prata contra o meu peito. Já estava acostumada com aquilo

e apenas fiz uma careta de dor. Não satisfeita, a vampira desferiu um golpe em

meu rosto. Suas unhas rasgaram minha pele a ponto de extrair sangue. Ela

lambeu as gotas escarlates dos dedos e voltou a encarar Isadora.

— Está vendo? Ela não emite som algum! Eu tenho que praticamente

matá-la para conseguir um gritinho. Sabia que não tem graça torturar uma pessoa

sem ouvir um gemido de dor?


Fechei minhas mãos em punho com tanta força, que as unhas penetraram

na pele. A nova dor ajudou a me controlar. Um dia, eu gostaria de ver essa vadia

gritar. Morrer seria fácil demais.

— Por quê? — Isa perguntou.

— Olha, Luna, ela está perguntando o motivo! Que fofa, né? — A voz

condescendente de Scar ao falar com Isa me deu nos nervos. — A sua... Luna é o

que sua? Mãe, tia, avó? Não interessa. Primeiro, ela escapou daqui com você,

ainda não sei como. A danadinha nunca me disse como fez aquilo. Depois, ela

teve audácia de roubar meu bem mais precioso e esconder, acredita? E ainda

mentiu para mim! Disse que você estava morta. — Scar estalou os lábios e me

bateu de novo. — Que coisa feia!

O jeito que ela falava com minha sobrinha me irritava, mas o modo como

Isadora respondeu...

— Ela não mentiu, achou que eu estava morta. Eu não passava de um


estorvo, e ela tentou me matar como fez com minha mãe. Você me fez um favor

ao mantê-la aqui presa. Eu vim propor uma parceria. Entregue-me esta mulher

para que eu tenha minha vingança, e a farei dizer a localização do artefato.

Suas palavras machucaram mais do que toda a tortura que passei nas

últimas décadas. Meu coração sangrou ao ouvir de sua boca a dura verdade. Eu

amava Isadora, minha pequena nunca fora um estorvo. Ela sempre foi o que me

manteve lúcida naqueles primeiros anos, mas a mulher parada diante de mim me

odiava, e com razão. Eu tirara sua chance de ter uma vida normal e ser feliz.

Scar, no entanto, não pareceu convencida das palavras de Isa. Ela a

analisou, provavelmente decidindo se mentia ou não, e andou até o homem

desmaiado, que agora era mantido preso por Claudio, o mal-encarado, segundo

no comando das docas.

— Eu tenho uma proposta melhor. Você faz ela falar, ou eu o mato aqui e

agora. — Ela colocou o bastão de prata contra o peito do homem. Então ele era
um vampiro! Seria o namorado de Isa?

Isadora fechou os olhos e sussurrou “Heitor”. Não entendia o que ela

queria dizer, até que Claudio virou o homem desacordado e eu finalmente pude

ver o seu rosto. Não sabia que minha garganta ainda funcionava, jamais imaginei

que ainda tivesse voz. Contudo, descobri que tinha. Gritei de choque. A confusão

de emoções que senti ao ver o meu marido foi tamanha, que eu precisei externar

a minha voz. Vivo! Heitor estava vivo. Ou quase. Pela sua aparência, era um

vampiro.

— Eu não te matei... — Foram as minhas primeiras palavras depois de

anos.

— Ora, ora, ora! O que temos aqui? — Scar me encarava com satisfação.

Porra! Minha reação chamou atenção indevida. Ela pegou Heitor pelo pescoço e

se aproximou. — Já que você recuperou sua voz, que tal dizer onde está o

artefato ou estes dois irão morrer?


Abri a boca para responder, quando Isadora agiu rápido como um borrão

de movimento. A algema com correntes que a mantinha presa estava de repente

envolta do pescoço de Claudio.

— Nos liberte, ou ele morre.

O tom ameaçador de Isadora me encheu de orgulho. Entretanto, Scar não

pareceu se abalar:

— Ah, eu até libertaria, mas ouvimos uma história de que a La Muerte

tem um amigo atirador. E olha só, descobrimos que é verdade.

De longe, senti o cheiro irresistível de sangue fresco. Cada vez que

entrava alguém novo aqui, eu queria arrancar as correntes de prata da parede e

drenar todo mundo. Um homem asiático que seria considerado bonito, se não

fosse a quantidade de hematomas em seu rosto, foi arrastado até os pés de Scar.

Os batimentos de Isadora aceleraram, e ela parecia que entraria em combustão

espontânea com a raiva que ficou. Vi em seu olhar que cometeria uma loucura.
As correntes em suas mãos tremeram, Isa se segurava para não decepar a cabeça

do refém.

— O canivete! — Gritei para evitar o confronto. Não poderia arriscar a

vida de Isa ou de Heitor. — Entalhei o mapa no meu canivete favorito e dei para

minha sobrinha!

Os olhos de Isadora se arregalaram, e ela encarou as botas. Scar segurou

os cabelos do jovem asiático com força e o puxou de lado, expondo seu pescoço.

Suas presas surgiram, e ela ficou a poucos centímetros da carótida do rapaz.

— Revistem-na! E se ela fizer qualquer movimento, me esbaldarei em

comida japonesa, entendeu?

Isadora soltou Claudio e decidiu cooperar. Ela se abaixou, pegou o

canivete escondido na bota e o jogou na direção de Scar, que soltou o rapaz para

pegar o mapa. Sorri ao entender o movimento da garota. Com a distração, Isa

utilizou a corrente de novo para matar Claudio. Com seu captor transformado em
cinzas, Heitor caiu no chão com um baque. Ela matou mais outro, porém nunca

conseguiu se aproximar de Scar. Dois tiros atingiram suas costas, e Isadora caiu

para frente, seus olhos nublaram e, antes que desmaiasse, viu Shuerma

estraçalhar o pescoço do jovem japonês.

“Não!” foi tudo que minha sobrinha falou antes de desmaiar. Scar, com

os lábios rubis de sangue, sorriu ao ver todos os inimigos caídos no chão. Ela

analisou as gravações no canivete e franziu o cenho, tentando entender. Um

estrondo na superfície abalou as estruturas, enchendo o subsolo de poeira.

Parecia que uma guerra começara do lado de fora.

— Vamos dar um passeio, Luna. Você vai decifrar este mapa para mim.

— Ela mandou dois vampiros me tirarem da parede e apontou para o restante. —

E vocês, limpem esta bagunça e convoquem todos os nossos aliados. Hoje será o

nosso dia de glória.

Contra a minha vontade, mais uma vez deixei a família para trás. Meus
pés ficaram manchados com o sangue do jovem oriental, e Scar me levou para o

lugar que eu não enxergava havia anos: a superfície.


Capítulo 44 — Reunião?

“Temos uma reunião de família a fazer.”

Shuerma disse. Com o coração acelerado, a obedeci. Não por medo, mas

por sua ameaça, que me soou mais como uma promessa. Se ela pretendia fazer

uma reunião de família, era porque alguém mais da minha família estava ali. Isso

só poderia significar uma coisa: tia Luna estava viva!

Scar liderou o caminho, ainda carregando Isaac desacordado pelo

pescoço. Tinha certeza que o nocautearam com sangue de morto. Em mim,

colocaram algemas de prata com uma corrente longa em meus pulsos. Fiz uma

careta, fingindo sentir dor. Era melhor que eles pensassem que estavam em

vantagem. Andei cercada por dez vampiros, todos com armas apontadas para

mim, provavelmente carregadas de mais sangue ruim.


Em um determinado ponto da rede de esgotos, fui obrigada a usar um

capuz para esconder o meu rosto. O que não faria diferença, já que eu sempre

contava os passos. Mil e doze. Mil e treze. Direita. Mil e quatorze. Mil e quinze.

Esquerda. Barulho de metal rangendo. Uma porta. A venda foi retirada, e me vi

presa em um filme de terror. Jaulas com homens e mulheres encarcerados ao

redor de um trono grande de pedra. Atrás do trono, grossas cortinas vermelhas

decoravam o lugar. O odor de peixe, mofo e medo me deixava com náusea.

Como eles conseguiam viver daquele jeito? Era úmido, escuro e fedorento. E os

humanos... Meu Deus! Scar deveria mantê-los vivos com doses pequenas de

sangue de vampiro.

— Te convidaria a sentar, mas você parece tão enojada. — Ela sentou

com classe no trono e jogou Isaac aos seus pés, mantendo a cabeça dele presa

entre suas mãos. — Peço desculpas por minhas acomodações, sei que não são

boas o suficiente. Faço o melhor que posso, vivendo como párea, isolada por
causa das estúpidas leis do Heinz.

— E mesmo assim, você se veste como uma deusa, senta em um trono,

tem prisioneiros e seguidores. — O sarcasmo pingava em minha voz.

O canto de sua boca se levantou em um esboço de sorriso, e ela bateu a

unha contra o apoio do trono.

— Verdade, mas você esqueceu de uma coisa... Eu não tenho apenas

prisioneiros, tenho também meu bichinho de estimação. — Ela estalou os dedos,

e as cortinas foram abertas. Tia Luna! Ou o que restou dela: sua pele estava seca

e rachada, parecia quase uma múmia. Amarrada contra a parede, onde a prata

tocava em seu corpo, cresceram escoriações escuras como escaras. Ela não foi

alimentada apropriadamente nas últimas décadas.

— Liberte-a. — Exigi.

Scar sorriu com deboche.


— Você não está em posição de exigir nada. — Ela alisou a cabeça de

Isaac, deixando-me irada. Ódio era um sentimento que parecia transbordar de

mim. Teria prazer em degolar cada um dos vampiros daquele lugar. A corrente

de prata que fingia prender minha mão apenas facilitaria o meu trabalho, eu

poderia usá-la como garrote. Scar cravou as unhas no ombro de Isaac, e um

outro vampiro colocou uma espada contra o pescoço da minha tia. A diaba foi

categórica. — Se você me matar, eles morrem.

O que se seguiu foi uma sequência de eventos que culminaram em um

trágico fim. Um dos meus muitos psicólogos uma vez me disse que não existia o

“agir por impulso”. Afinal, o que nos separava dos animais era a nossa

capacidade de raciocinar. No entanto, naquele momento, eu era mais animal do

que pessoa. Sentia que meu poder estava prestes a explodir, e quando trouxeram

Takao todo ferido, não pude ficar parada. Tive de agir. Ainda incrédula por ter o

mapa em minhas mãos aquele tempo todo, joguei o canivete para Scar. Matei o
vampiro que mantinha Isaac sob custódia e avancei para salvar meu amigo.

Não tive tempo, entretanto, atingiram minhas costas duas vezes. “Não!”,

gritei quando vi que as presas de Scar rasgaram o pescoço de Takao. Meu melhor

amigo me encarou com serenidade enquanto sua garganta era destroçada. Fiquei

levemente aliviada quando a escuridão me dominou. Eu preferia morrer a ver a

vida de Takao se esvaindo.

★ ☽ ☯ ☾ ★

Meu corpo estava sendo arrastado no chão. Abri os olhos e vi um

vampiro segurando minha perna, arrastando meu corpo até uma cela. Soltei o pé

de seu aperto e o chutei no rosto, ele gritou quando as costas atingiram a grade

de prata. Eu me levantei em um impulso e arranquei sua cabeça com as mãos.


— Você foi atingida por dois dardos, como está acordada? — Um

segundo vampiro me encarou com os olhos esbugalhados.

Separei as mãos até as correntes de prata se quebrarem. Seus olhos se

acenderam, e eu alcancei o terceiro sai preso ao coldre nas minhas costas. Ainda

bem que eles eram orgulhosos o suficiente para não me revistarem, acharam que

eu não deveria ser capaz de me livrar da prata. Afinal, eu deveria ser apenas uma

vampira novata.

— Você cultuou a deusa errada. — Arremessei o sai diretamente em seu

coração, e o vampiro se desfez em cinzas.

O terceiro vampiro tentou correr, porém fui mais rápida e o agarrei pela

nuca. Arrastei seu rosto contra a prata na porta da jaula onde pretendiam me

prender.

— Onde estão Scar e Luna? — Minha voz parecia mais um rosnado de

raiva do que palavras.


Ele se debateu, seus cabelos compridos chiavam contra a prata. Tentava

desesperadamente se soltar, até que desistiu e esbravejou:

— Foram atrás do oráculo que aquela vadia roubou! A minha senhora vai

destruir todos vocês!

— A sua senhora não sobreviverá a esta noite. — Eu o empurrei, e seu

corpo se desfez em cinzas ao atravessar a grade.

Corri até o corpo inerte de Takao e ajoelhei-me ao lado dele. Oh, não!

Tentei estancar a hemorragia em seu pescoço, mas não consegui. Abracei Takao,

minhas lágrimas molhando seu peito ferido. Encostei o rosto em seu peito para

dar o meu último abraço. Espera! Concentrei-me nos seus batimentos cardíacos.

Eram ínfimos, quase inaudíveis até para mim. Vivo, mas não por muito tempo.

Abri sua boca, rasguei o meu pulso e deixei que sangue fluísse para dentro de

sua garganta.

— Vamos, vamos, vamos! Acorda, porra! — Fiz massagem cardíaca e


mantive meu pulso em sua boca. Seria uma mestiça transformada capaz de criar

um vampiro? Não sabia, mas torcia que sim.

Estrondos soavam acima da minha cabeça. Escombros e poeira caíam,

deixando uma fina camada de terra em nós. Elevei o tronco de Takao e o abracei,

minhas lágrimas molharam o seu rosto pálido como a morte. Eu continuamente

cortava o meu pulso para alimentá-lo, em uma fraca tentativa de lhe trazer de

volta à vida. Não... Não o meu amigo, o meu companheiro de todas as horas,

aquele que sempre me apoiou. Eu nunca deveria tê-lo envolvido nisso.

— Takao! Takao! — Gritaram com desespero do corredor. Cecília? Oh,

Deus! Havia esquecido que ela estava no telhado com ele.

Berrei de volta:

— Aqui!

Ceci apareceu na entrada, e eu berrei de novo, só que de pavor. Não, não,

não! Seu vestido lilás estava com a frente toda suja de sangue, e seus cabelos
claros estavam bagunçados. Ela encarou a mim, a Takao e avançou em uma

velocidade que seria impossível horas atrás. Puta merda, quem transformou Ceci

em vampira? Minha prima me pegou pelo pescoço e me imprensou contra a

parede. Meus pés não tocavam no chão.

— Você deixou que eles o matassem, ele morreu por sua causa! — Ceci

me acusou. Seu rosto transformado pelo ódio e desespero.

— Me solte, Cecília. — Tentei acalmá-la. Se ela estivesse na loucura de

sangue como Luna relatou no diário, não conseguiria raciocinar direito. — Eu

não quero te machucar.

Seus olhos se acenderam com um brilho azul turquesa sobrenatural, e os

lábios abriram em uma careta, mostrando as presas alongadas.

— Eu quero.
Capítulo 45 — O exército do Reich

HEINZ

Eu não gostava do plano de Isadora. Pensando bem, detestava-o. Mesmo

com todo poder que ela tinha, ainda era uma só pessoa contra todos os vampiros

das docas. Isaac era praticamente um bebê em anos vampíricos, se sobressaía

apenas porque era habilidoso com armas e lutas. De outro modo, não passaria de

pura distração.

— Senhor Heinz — Petrus chamou minha atenção —, todos os aliados

estão reunidos no salão principal.

Pedi para que eles aguardassem. Juntar os aliados do Reich que moravam

em Monte Carlo e nas cidades circunvizinhas tinha sido rápido, e ao mesmo


tempo havia demorado mais do que eu gostaria. Cada segundo era importante.

Guardei minhas espadas longas com punhos de aço no coldre preto que levava

na cintura.

Abri a porta do escritório. Longe do isolamento acústico que mantinha

em minha sala, pude ouvir as conversas que rolavam no clube. Eles imaginavam

que Isadora fosse especial para mim, mas não sabiam a importância que ela tinha

para a nossa comunidade. Ficaram chocados ao descobrirem que La Muerte era

real e que era uma vampira novata. O assombro geral, no entanto, veio quando

informei que Shuerma estava viva e atendia pelo nome de Scar.

— Nós podemos acabar com os beberrões esta noite. — Subi ao palco

sem precisar chamar a atenção, pois todos se calaram. — Iremos nos vingar das

perdas que tivemos trinta anos atrás e livrar os humanos do mal que perambula

por nossa cidade. Não toleraremos mais a covardia. Nós somos o Reich e juntos

seremos invencíveis! Interroguem alguns, mas matem todos, não faremos


prisioneiros.

Eles começaram a dar murros para cima, no ar, e gritar: “Reich, Reich,

Reich!” Nós tínhamos um plano de emergência para situações como esta,

arquitetado por Petrus e eu. No porão do clube, pegamos o suprimento de

lâminas de prata com cabos de aço e bombas. Explodir era um ótimo jeito de

matar um vampiro, não há como regenerar se você for separado em pedacinhos.

Mais minutos preciosos foram perdidos na divisão das tarefas e equipes. Fechei

os olhos e me concentrei no rastreamento do sangue de meus aliados. Quatro nas

docas, divididos em duplas e separados por um quilômetro. Cecília e Takao, Izzy

e Isaac. O plano parecia estar indo bem enquanto eu me encaminhava para as

docas com o exército do Reich.

Minha equipe entrou no túnel indicado pelo vampiro traidor. Segui o

rastro de Izzy, seu cheiro impregnado nas paredes, e alcancei a sala onde os

prisioneiros — e Luna — deveriam estar, mas não encontrei ninguém. Em vez


disso, detectei vários aromas, dentre eles um que não sentia há trinta anos:

Shuerma. Porra! Ela esteve aqui e acompanhada por mais de cinco vampiros.

Nada bom.

Segui o rastro do aroma e do sangue de Isadora, mas a quantidade de

curvas nos túneis confundiu meus sentidos. Aquilo era um labirinto, e o tempo

era precioso demais para se perder com charadas. Voltei correndo para a entrada

e encontrei Petrus lutando contra três vampiros. Saquei minha espada curta e

atravessei o peito de um deles, meu amigo matou o segundo, e cortei a cabeça do

terceiro.

— Pegue as bombas, vamos abrir um buraco no chão para recuperar

Isadora.

Petrus assentiu e foi cumprir a minha ordem. Fechei os olhos, rastreando

o sangue. Merda! Era quase impossível uma leitura consistente com a quantidade

de aliados ao meu redor. Com o Reich inteiro nas docas, éramos uma grande
massa de pessoas.

Petrus voltou com a artilharia pesada.

— Onde devo explodir, senhor?

Isadora precisava de mim, não vivi por séculos para encontrá-la e depois

deixá-la nas mãos de Scar. Fechei os olhos e foquei minha atenção em mim, no

meu sangue, depois expandi meus sentidos, atentando-me no fundo da terra. Foi

lá que encontrei um grupo pequeno de aliados, tinha que ser eles.

— Ali. — Apontei para o ponto uns cem metros à frente — Derrube esse

lugar, não me importo. Apenas ache Isadora.

Segurei a cabeça de um vampiro que tentou me atacar e a separei do

corpo, que se desfez em cinzas. Aquela noite não haveria misericórdia, não

apenas por Izzy, mas também pelo meu povo e pela cidade de Monte Carlo.

Seria tudo ou nada.


Capítulo 45 — Time

Cecília. A doce e engraçada. A minha bela prima, a primeira criança que

conheci. Minha melhor amiga e companheira, com quem brinquei, briguei, sorri

e chorei. Ela era como uma irmã. O Yin do meu Yang. Agora era uma vampira

sedenta por sangue e briga.

Como diabos aquilo aconteceu?

Ainda me segurando pelo pescoço, Ceci tentou me morder. Matar um

vampiro era fácil, imobilizar uma sem machucá-la era muito mais difícil. Segurei

seus cabelos e puxei para trás, mantendo as presas afastadas da minha pele. O

que tia Luna fez para sair da loucura de sangue? Merda... Não conseguia me

lembrar. Vamos para a força bruta, então. Dei uma cabeçada na testa dela, forte

o suficiente para Ceci me soltar.


Ela avançou, suas mãos vindo em minha direção como se fossem garras,

e eu me abaixei no chão sujo. Dei uma rasteira em suas pernas, a derrubei no

chão e, antes que se levantasse, passei meus braços embaixo dos seus e os puxei

para trás, imobilizando-os. Ela podia ter a força sobrenatural de um vampiro,

mas não conhecia nenhuma técnica de luta. A menos que eu considerasse

arranhar, puxar cabelo e morder como luta... Eu a arrastei até Takao, que

permanecia imóvel em uma poça de sangue.

— Ouça os batimentos! — Gritei para ela. — Takao ainda pode ser

salvo!

Ela parou de espernear e lutar. O silêncio preencheu a cela. Eu a soltei e

me aproximei dele, mordi novamente o meu pulso e o alimentei. Ceci rosnou

para mim, então peguei meu segundo sai e apontei para ela.

— Controle-se, prima. Lembre-se de quem você é.

Ela engoliu em seco, ponderando o que fazer. Não abaixaria minha arma
até que seus olhos estivessem com o tom de azul normal e as presas retraíssem.

Um barulho de engasgo foi o único alerta que tivemos antes que Takao se

levantasse em um pulo. Dentes alongados, olhos brilhando. Ele estava vivo!

Minha felicidade foi substituída por preocupação quando vi seu olhar

desfocado e os lábios levantados em uma careta. Do seu peito, um rosnado rouco

retumbava. Porcaria. Mais um recém-criado ensandecido. Logo agora que eu

estava acalmando Ceci.

Eu me interpus entre os dois, na dúvida se eles se abraçariam ou

tentariam degolar a cabeça um do outro. Um estrondo nos assustou, e parte do

teto caiu. Alguém tentava derrubar as docas, e eu não tinha tempo para lidar com

dois vampiros novos! Agarrei ambos pelo pescoço e os obriguei a se ajoelharem.

— Eu sei como é, já passei por isso. Vocês querem sangue, dor e

violência. — Apertei seus pescoços, e eles pararam de rosnar. Aleluia! — A

gente se ama, lembram? Sempre fomos nós três juntos, na faculdade, no


trabalho, nos finais de semana...

Alguns segundos se passaram antes de os dois relaxarem, e a onda de

raiva emitida por seus corpos pareceu diminuir. Os olhos apagaram, mas as

presas não retraíram. Ceci olhou para Takao, e uma lágrima desceu pelo seu

rosto. O japonês a observava com a testa franzida, deveria estar, como eu, se

perguntando como ela fora transformada em vampira. Eu os soltei e os ajudei a

se levantar.

— Nós somos um time, e se vocês querem matar alguém, tem um monte

de vampiros assassinos lá na superfície.

— Vamos estraçalhar a garganta deles. — Takao disse.

O sorriso de Ceci era sinistro.

— E beber o seu sangue.

Os dois se agarraram em um beijo apaixonante. Revirei os olhos e


comecei a soltar os prisioneiros humanos que estavam petrificados de medo,

instruindo-os a fugir o mais rápido possível. Não sabia o que estava acontecendo

lá fora, mas se o teto continuasse a cair daquele jeito, eles poderiam ser

esmagados. Os humanos, no entanto, estavam com tanto medo de mim, que não

ousavam chegar perto. Resolvi deixá-los em paz e catei minhas armas no chão,

talvez ficar escondido ali não fosse tão má ideia.

Outro barulho de estouro, e a estrutura balançou novamente. Um grande

buraco se abriu no teto, permitindo que eu visse o céu estrelado acima da nossas

cabeças. Olhos brilhantes de vampiros me encararam.

— Sentiu minha falta, schatzi? — Heinz estendeu a mão. — Quer se

juntar à festa?

Joguei Isaac — que permanecia desacordado — em meu ombro, dei um

impulso com as pernas e pulei os dois andares do subsolo até a superfície.

Cecília e Takao me seguiram. Heinz levantou a sobrancelha com surpresa


quando viu os dois.

— Ora, bem-vindos ao clube. — Ele me deu um beijo rápido nos lábios e

acariciou a lateral da minha bochecha. — Estava preocupado com você. Podia

sentir seu sangue, mas o labirinto de túneis me confundiu, e não consegui te

achar.

Olhei para os arredores, vampiros lutando entre si e bombas sendo

arremessadas. Galpões em chamas, as labaredas enchendo a noite de fumaça e

fuligem. Os vampiros do Reich lutavam com lâminas de prata, mas a bainha era

de aço, poderiam ser manipuladas tranquilamente. Os meu sai eram as únicas

armas feita apenas com o metal letal. Facas de prata e balas estavam sendo

atiradas para todos os lados. Parecia uma zona de batalha.

— Então resolveu explodir tudo para me encontrar?

Ele deu de ombros e piscou um olho. Uma vampira magra e alta tirou

Isaac dos meus ombros. Ela passou a mão em seu cabelo preto e tirou uma
pequena adaga escondida atrás da orelha. Com a arma entre os dedos, fez uma

perfuração certeira na carótida do meu tio. Heinz me segurou quando avancei em

cima da garota, gritando:

— O que essa louca está fazendo?

— Não se preocupe, schatzi. Ele está em boas mãos, Raiele o fará

despertar do coma induzido pelo sangue de morto.

Nem precisava perguntar como eles sabiam qual era o problema de Isaac,

apenas aquele sangue podre era capaz de nocautear um vampiro. Ainda assim,

achava difícil confiar na garota.

— Essa menina parece ter quatorze anos!

Raiele sorriu e perfurou Isaac mais uma vez.

— Só na aparência, sou mais velha do que sua avó.

— Vocês vão ficar de papo, ou vamos lutar? — Ceci reclamou. Ela


sempre quis ser ativa em toda essa história de vampiros, agora que era uma,

estava louca para detonar.

Deixamos Isaac aos cuidados de Raiele. Heinz liderou o caminho e já foi

atacando um grupo de caras que cercava uma vampira de longos cabelos

castanhos. Nós nos espalhamos para lutar contra os vampiros das docas. Na

massa de corpos se confrontando, eu não tinha certeza de quem era amigo ou

inimigo. Uma vampira negra de cabelos curtos na altura das orelhas e lábios

carnudos se aproximou de mim. Apontei o sai para ela, mas a garota levantou os

braços em sinal de rendição:

— Ei, você é La Muerte?

— Sou. — Baixei minha arma. — Quem é você?

— Aninha. Vem, a Andrea precisa de nossa ajuda! — Ela me indicou um

caminho entre dois galpões.

Não sabia de quem ela estava falando, mas a segui. Ia avisar para os
meus amigos, porém eles estavam ocupados demais lutando. Dobrei a esquina

do galpão e vi uma mulher loira caída no chão. Corri para ela e ajoelhei ao seu

lado. O rosto delicado estava coberto de sangue. Bati de leve em sua face,

tentando despertá-la. Ela me encarou com olhos nublados e perguntou:

— Você é La Muerte?

Acenei concordando. Eu podia abrir meu pulso e obrigá-la a beber.

Talvez aquilo a fizesse recuperar suas forças.

— Ótimo, isso é por Alfonso. — Ela sorriu e mostrou uma adaga de prata

antes de cravar em meu peito, errando meu coração por milímetros. Empurrei-a,

me levantei e puxei a adaga com ódio. As duas mulheres me cercaram. Que tola

eu fui! Aninha me enganou, sua estatura baixa e ar de pureza fariam qualquer um

acreditar que era uma menina inocente. Poderia apostar que servia de isca para

atrair humanos. Do mesmo jeito que serviu de isca para mim.

Peguei meus sai do coldre na minha cintura e os rodei em minhas mãos.


Deixei que minhas presas alongassem e o verde dos meus olhos praticamente

iluminassem as duas beberronas.

— Vocês acham que me assustam? — Ambas expuseram as presas, e eu

joguei a faca de prata aos pés delas. Desconfiada, Andrea pegou a arma. Pela sua

expressão, não entendia porque eu as estava armando. Não tinha medo delas. —

Venham me pegar, garotas.

Que a guerra começasse.


Capítulo 46 — Sangue nas docas

Deixei que as duas me cercassem e pensassem que tinham alguma

chance contra mim. Já estavam mortas, só não sabiam disso ainda.

— Eu, Ana Luiza e Elidiane vamos acabar com você — Andrea

ameaçou.

Eli... Quem? Senti um baque em minhas costas, uma faca rasgando a

minha pele. Coloquei a mão para trás e agarrei um punhado de cabelos, puxei e

arremessei a vampira contra o galpão em frente a mim. Vi apenas uma massa de

pernas e braços batendo com um estrondo contra o metal. A garota se levantou

rosnando e mostrando os dentes. Seus belos traços com olhos amendoados e

levemente puxados, que mais pareciam uma mistura de colombiana com

japonesa, estavam transfigurados pela careta de raiva e presas expostas. Apontei


o sai para elas.

— Quem vai ser a primeira?

A novata sorriu com deboche e cuspiu sangue no chão. Ah, será que ela

quebrou um dente na queda? Que pena! Elidiane tomou a liderança do trio

malvado e lambeu a faca dela suja com meu sangue. Seus olhos se acenderam

imediatamente.

— O que tem em seu sangue? O que... — Raiva substituída por

curiosidade. — O que você é?

Eu me aproximei em velocidade sobre-humana e atravessei o meu sai em

seu peito, poucos milímetros de distância do coração.

— Eu sou o seu pior pesadelo.

Retirei minha adaga e a acertei novamente. Uma vez e outra. Errando de

propósito o órgão que importava. As outras vampiras me atacaram


simultaneamente. Andrea me cortou abaixou da costela, Ana tentou acertar

minha jugular. Dei um salto mortal para trás, aproveitando para chutar Elidiane

enquanto fazia isso. A brincadeira com elas estava indo mais longe do que eu

esperava.

Segurei o segundo sai entre os dedos. Agachei no chão imundo,

iluminado apenas pela fraca luz do poste. Com o braço levantado, saltei na loira

e cravei minha adaga em sua testa, bem no meio da franja que ela ostentava com

tanto orgulho, e Andrea se desfez em cinzas. Aterrissei no chão em pé, o que

restava da mulher cobria minha pele.

Ana me encarava com ódio. Elidiane finalmente conseguiu se livrar do

sai em seu peito, toda sua frente estava coberta de sangue, a pele necrosada ao

redor da ferida feita pela adaga de prata. Joguei minha arma no chão e corri para

as duas com as mãos estendidas em garras. O impacto contra elas foi tão grande,

que meus braços atravessaram seus corpos e eu fiquei com o coração de cada
uma entre os dedos. Literalmente.

O vento frio da noite carregou suas cinzas para longe. Três vampiras

assassinas a menos. Peguei meus sai, voltei pela passagem entre os dois galpões

e encontrei o caos. Heinz brandia uma espada longa de prata e cabo negro de

aço. Ele decepava cabeças com uma desenvoltura estonteante. Parecia uma

dança mortal. Mesmo com a camisa social preta, eu podia ver seus músculos

contraindo e relaxando. Naquele momento, observei o habilidoso guerreiro

germânico por trás do elegante vampiro. Surpreendi-me com Cecília e Takao,

eles eram uma dupla formidável. Takao imobilizava, Ceci estraçalhava. Sinistro.

Um vampiro acertou meu queixo, fazendo com que me inclinasse de

lado. Merda! Não era momento para distrações. Sem me virar, dei um chute para

trás, acertando sua perna. Ele se desequilibrou, mas não caiu. Gancho de direita,

gancho de esquerda. Socos em seu estômago. Ele cuspiu sangue no chão.

Sangue? Inalei profundamente, e o aroma delicioso penetrou minhas narinas. As


presas se alongaram. Talvez eu estivesse com fome... Saltei sobre ele, ataquei

sua garganta e bebi o seu líquido vital até que restasse apenas poeira.

Uma adaga foi cravada em minhas costas. Sem me preocupar em me

livrar dela, ou ver quem era o meu assaltante, eu o puxei pela cabeça como fiz

com Elidiane. Contudo, em vez de arremessá-lo contra a parede, o joguei no

chão e mordi sua garganta. Senti-me cheia de poder, energizada mais uma vez.

Precisei drenar dois vampiros para ter a mesma sensação de beber algumas gotas

do sangue de Heinz. O alemão era realmente poderoso.

Juntei-me à festa. Chutei. Bati. Arranquei corações. Separei cabeças.

Matei. Isaac, já recuperado, também entrou na briga. A garota magra que o

despertou, Raiele, Petrus, Guto e vários outros vampiros do Reich lutavam ao

nosso lado. Os vampiros das docas eram mais numerosos, pareciam um

verdadeiro exército. Nós tínhamos o poder, no entanto.

Estaria exausta se fosse humana. Alguns começaram a bater em retirada


quando perceberam que lutar contra um time que tinha La Muerte e o filho de

Ares era uma guerra perdida. Outros não eram tão espertos. Eu estava cercada

por quatro homens, quando Heinz gritou do outro lado das docas:

— Schatzi!

Virei bem a tempo de ver que ele corria em minha direção com outras

duas vampiras aliadas. Revirei os olhos para o desespero que Heinz aparentou e

sorri para os homens em frente a mim. Sem paciência para brincar com minhas

presas, segurei os dois sai pelo cabo e corri em velocidade vampírica. Cortei os

pescoços deles no momento que o liebling me alcançou, as cinzas o cobriram, e

ele se engasgou.

— Acho que eu engoli um pouco. — Heinz tossiu e limpou o rosto com a

manga da camisa. — Desse jeito, você não facilita para mim! Como serei o

cavalheiro da armadura brilhante se você nunca precisa ser salva?

As duas mulheres que o acompanhavam seguraram o riso. Uma delas,


uma garota magra de longos cabelos castanhos e lábios cor-de-rosa selados em

uma linha fina de preocupação, estendeu a mão para mim:

— Eu sou Maya. É de se pensar que um homem da idade dele não teria

problema com o ego, hein?

— Homens sempre tem problemas com ego. — A outra, de estatura

mediana e cabelos curtos platinados, tinha os olhos negros carregados de

sabedoria e portava uma pequena espada. Ela piscou um olho para mim — Eu

sou Rosa.

Notei que ela levava uma cruz envolta do pescoço. Era a primeira vez

que eu via uma vampira com um artigo religioso. A mulher notou o meu olhar e

passou a mão no pequeno pingente.

— Não somos demônios, como muitos gostam de acreditar, apenas a

evolução da espécie humana. — Ela falou em um tom sério.

— Desculpa, eu estava encarando a sua cruz,. É que com toda essa


conversa sobre deuses, nunca questionei minha religião.

Maya sorriu, mostrando as presas brancas:

— “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”. — Ela citou o

antigo provérbio espanhol: eu não acredito em bruxas, mas que elas existem,

existem. — Desde que me transformei em vampira, não duvido de nada. Nem do

céu e nem do inferno. Qualquer coisa é possível.

Balancei a cabeça concordando. Não me considerava uma deusa, mas

também não me sentia como um demônio, apesar da sede de sangue. E quanto

aos monstros que viviam nas docas, a perversidade não era exclusiva dos

vampiros. Há humanos tão ruins quanto. Falando nisto, os beberrões estavam

quase eliminados, e eu ainda não vira Shuerma.

— E Scar? — Perguntei para Heinz com um certo temor. — Ela levou a

tia Luna.

— Já sabemos, torturamos metade dos vampiros das docas para arrancar


alguma informação. Eles não ajudaram muito. Seu pai está tentando rastreá-las

com a ajuda da polícia.

Como assim? Depois da experiência que tive com Takao e Ceci, descobri

que envolver humanos era arriscado demais.

— Ligue para ele agora, mande-o voltar! Deve haver um jeito de contatar

Scar e recuperar Luna!

— Luna? Onde está a minha mulher? — Isaac apareceu assim que ouviu

o nome da esposa.

Berrei em frustação:

— Não sei! Scar a obrigou a entregar o mapa, estava desenhado no meu

canivete e... — Oh. Meu. Deus! Como pude esquecer? Olhei para Heinz. —

Junte nossa equipe, eu sei como encontrar o artefato.


Capítulo 47 — Mapa

Beijei Heinz nos lábios. De novo, mais uma vez. Não poderia ter

escolhido um liebling melhor. Tirei o colar do meu pescoço e encarei o pingente

de prata. Deslizei o polegar sobre as inscrições em baixo-relevo, copiadas a

partir do meu canivete favorito. O canivete da minha tia.

— Não entendo o que significa. — Apontei para os círculos, pontas e

curvas. Heinz olhou com o cenho franzido, tentando compreender.

— Rosa, chama a Isabel. — Pediu, e ela obedeceu prontamente.

Maya e Isaac também tentaram desvendar. A garota apontou para os

círculos concêntricos.

— Isso são curvas de nível, não?

Tentei me lembrar das aulas de geografia, era alguma coisa relacionado a


montes e montanhas. A vampira de cabelos platinados voltou, seguida por uma

jovem de belos olhos cor de mel emoldurados por longos cílios castanhos, da

mesma cor de seus cabelos. Ela me cumprimentou com a cabeça, seus grossos

lábios vermelhos de sangue fresco.

— Deixe-me ver. — Ela estendeu a mão, e eu mostrei o colar. A garota

levantou uma sobrancelha quando percebeu que era feito de prata, e eu estava

segurando sem problemas, mas não disse nada

— Você sabe o que está fazendo? — Não consegui afastar o ceticismo de

minha voz.

A garota não se deu ao trabalho de olhar para mim.

— Eu era geógrafa antes de ser vampira. Veja, essas curvas de nível

representam um monte. Esses têm significados diferentes. — Ela apontou para

dois símbolos que pareciam a letra H, só que com uma curva para dentro de cada

lado. O que estava ao lado dos círculos concêntricos tinha um ponto no meio, e o
outro, ao lado, possuía um traço mais comprido. — Um significa um

desfiladeiro, e o outro é o oceano atlântico. Esse traço longo e grosso antes do

desfiladeiro é uma autoestrada. O “x” deve ser o local, mas não entendo esses

símbolos que parecem letras desenhas... Tpía? Ttévte? O que é isso?

Heinz pediu para olhar o colar.

— Deixe-me ver. Você tem razão, Isabel, estão em grego. Significam três

e cinco.

— Deixa eu ver se entendi, a gente precisa descobrir um caminho pela

autoestrada que leve a um desfiladeiro entre um monte e a praia? O “x” marca o

local a três metros de distância? O que seria o cinco? — Perguntei.

Isaac olhou para o céu antes de me encarar com os olhos tristes.

— O “x” não é o local, é uma cruz de lado. Eu sei onde ela escondeu.

Existe uma igrejinha em frente ao mar na praia do Mirante. Ela é pequena, mas

fica no alto de uma planície, entre o Monte Pino e o desfiladeiro Magnólia. Tão
tranquila, que a sensação é estar mais perto de Deus. Nós nos casamos lá, foi lá

também que batizamos nossa filha... e foi lá, por trás da igrejinha, que Mariana

enterrou nossos caixões cheios de pedra. O corpo da sua mãe está lá também,

Isadora.

Heinz colocou a mão na base da minha coluna, me dando apoio.

Precisávamos resgatar Luna antes que ela revelasse onde estava o artefato. Gritei

por Cecília e Takao, eles mataram o vampiro com quem estavam lutando e se

uniram a nós. Expliquei rapidamente sobre o mapa enquanto Heinz instruía as

vampiras do Reich a matar os beberrões remanescentes. Petrus, o vampiro de

aparência nórdica, ficou no comando, e nós partimos em nossa busca.

Heinz, Ceci, Takao, Isaac e eu corremos em nossa velocidade máxima,

muito mais rápido do que uma Ferrari. Passamos pela autoestrada e pelo

desfiladeiro, subimos a planície até alcançar a pequena e singela igreja. O vento

balançava as árvores vagarosamente, e o sino se movia com preguiça, dando um


leve badalar. Olhei para a lua, refletida no mar, iluminando a área. Essa

iluminação competia com a sombra lançada pelo monte rochoso imponente. Lá

embaixo, no desfiladeiro, uma queda de mais de trinta metros nos aguardava.

— Você tá bem? — Ceci me perguntou, e eu balancei a cabeça

concordando. Ela me abraçou de leve e pareceu meio envergonhada. —

Desculpa por mais cedo... Lembra? Quando eu te joguei na parede e tentei

arrancar teu pescoço? Não estava pensando direito.

Ri quando ela piscou um olho para mim e levantei os ombros.

— Só se você me perdoar por te dar uma surra.

Ceci selou os lábios e entortou a boca em óbvia preocupação.

— A gente tá indo buscar a sua tia Luna. Você pode encontrar toda sua

família biológica até a quinta geração, mas nunca pode me abandonar, tá? Eu

sempre serei sua prima. E se você esquecer disso, vou te sequestrar e te prender

no meu porão.
— Você mora em apartamento, não tem porão. — Respondi e a puxei

para perto em um meio abraço.

— Eu arrumo um.

— Shiu. — Isaac pediu silêncio. — Estamos quase lá.

Ficamos em silêncio e seguimos pela lateral da igreja. Uns cinco metros

por trás dela, havia um cemitério. Podia ouvir o barulho de pá batendo contra o

chão. Chegamos tarde demais! Aproximamo-nos com cautela. Shuerma

mantinha uma faca contra o pescoço da minha tia, que estava ajoelhada ao lado

de uma cova violada.

Duas outras vampiras cavavam a terra em busca do artefato. Uma mais

baixa, de cabelos ondulados e curtos, dona de um ar de menina inocente, como

Ana, a vampira que eu havia matado mais cedo. A outra, mais alta e parecida

comigo, tinha os cabelos curtos cortados logo abaixo da orelha. Se eu

encontrasse as duas na rua, jamais adivinharia que eram assassinas cruéis.


— Aproximem-se e vejam o nascer de uma nova Era. — Shuerma falou

em bom som. — Ruth e Yka estão quase lá, mais um metro, e chegaremos aos

três que faltam para alcançar o oráculo.

As batidas do coração de Isaac aceleraram quando seus olhos

encontraram os de Luna. Segurei seu braço quando os olhos se acenderam em

uma luz amarela e as presas alongaram. Minha tia estava sob a mira de Scar,

qualquer movimento errado, e ela seria transformada em cinzas.

— Pare com essa loucura, Shuerma. — Heinz deu um passo à frente e

exigiu. — Nenhuma profecia te transformará em deusa.

O brilho vitorioso no olhar dela se apagou um pouco. Seu sorriso

murchou, e as mãos tremeram de raiva, tirando um filete de sangue da garganta

de Luna.

— Eu já sou uma deusa, e quanto antes perceber isso, melhor será. Não

vou ficar esperando por você para sempre. — Ela disse com superioridade.
Ceci sussurrou: “cadela”, sabendo que todos ouviriam, o que aumentou a

raiva emanada pelo corpo da vadia. Eu ia dar uma resposta, mas o barulho da pá

batendo contra metal chamou nossa atenção. As vampiras, usando luvas, tiraram

o Orakel da cova. O círculo de prata era maior do que eu pensara. Elas subiram

na grama e seguraram o artefato de cada lado, como se estivessem em uma

exposição.

As vampiras olharam para a chefe, que acenou com a cabeça. Em um

movimento sincronizado, as duas jogaram o oráculo nas mãos da minha tia. Seu

grito de dor ao ser obrigada a segurar a prata se espalhou pela noite. Nós

avançamos para atacar, porém a mais baixa retirou uma seringa do bolso e

arremessou em Heinz. Ele caiu ajoelhado no chão enquanto a mais alta pulou em

cima dele e abocanhou seu pescoço.

— Parem, ou Yka o matará. — A outra, que só poderia ser Ruth,

ameaçou. — Nós conhecemos os pontos fracos do poderoso Heinz.


Yka retirou a boca do pescoço dele e lambeu os lábios manchados de

sangue.

— Seria um desperdício, esse sangue é delicioso.

— O que vocês querem? — Perguntei com ódio. Segurava o sai com

tanta raiva, que cortei a palma da minha mão.

Scar sorriu, sabendo que tinha a vantagem. Merda! Heinz era resistente

ao sangue de morto, mas não tanto quanto eu. Uma dose não o nocauteava, mas

o enfraquecia a ponto de deixá-lo quase indefeso.

— Eu quero que a famosa La Muerte segure o oráculo, apenas isto. Eu

não sou tão má quanto você pensa. — Ela alisou os cabelos de Luna, que gemia

baixinho, dizendo “não” e “vá embora”.

Guardei o sai no coldre de minha cintura e andei até as duas. Fiquei

frente a frente com a diaba em pessoa. Poucos centímetros nos separavam, eu

poderia esticar o braço e quebrar o seu pescoço. No entanto, as duas aliadas dela
matariam Heinz antes que alguém pudesse salvá-lo.

— Não faça isso, schatzi. Salve sua tia, ela não tem coragem de me

matar. — A voz de Heinz era fraca, quase inaudível. Ele estava se sacrificando

para me libertar e impedir que a profecia se cumprisse.

— Schatzi? — Scar falou, transtornada. — Ele te chamou de schatzi?

Heinz não tem schatzi ou liebe! Ele é um homem sem coração!

— Ele tem um coração, apenas nunca pertenceu a você. — Decidi acabar

logo com aquela angústia. Não ficaria a minha vida inteira com medo de uma

profecia escrita muito antes de eu nascer, tampouco deixaria que Heinz se

sacrificasse por causa daquilo, então arranquei o Orakel da mão de Luna.

A luz da lua iluminou a prata, e eu inclinei um pouco o artefato,

esperando que algo acontecesse. Nada. Absolutamente nada. Bem, aquilo era

anticlimático, mas poderia usar como vantagem. Gritei, fingindo sentir alguma

coisa. Não era boa atriz, mas serviu para que as beberronas se distraíssem e
baixassem as armas.

Virei para Ceci e joguei o artefato para ela proteger. Encarei Scar e, com

muito prazer, dei um murro em seu rosto, forte o suficiente para quebrar o nariz

e fazer jorrar sangue. Ela soltou Luna, e Isaac avançou para pegar a mulher no

colo e afastá-la de sua captora.

Uma bala zuniu distante, acertando Ruth na testa, entre os olhos. Tom se

aproximou correndo e atirou também na vampira que mantinha Heinz cativo. As

duas caíram para frente, ainda vivas, mas não por muito tempo. Takao pegou a

pá e separou a cabeça de Yka do seu corpo. Heinz agarrou Ruth pelo pescoço e

drenou todo o seu sangue para se recuperar. Peguei o sai e apontei para Scar.

— Acabou.

— Eu acho que não. — Ela sorriu e indicou com a cabeça algo atrás de

mim. Como se eu fosse cair naquela! Era o maior blefe de todos os tempos e...

Um clarão iluminou a noite. Gritos. Uma voz estranha em uma língua


desconhecida. Virei devagar e não pude acreditar no que via.

Oh. Meu. Deus.

A filha da guerra nasceu, e não era eu.


Capítulo 48 — Até a última gota

CECÍLIA

— Sabia que o incesto era algo comum entre os deuses? — Perguntei

para Takao, que respondeu com um “uh-hum” enquanto observava a

movimentação nas docas com um binóculo. Folheei as páginas do livro sobre

mitologia grega. — Provavelmente porque a maioria não era parente biológico,

apenas ligados pelo sangue vampírico.

— Acho que sim, você tem razão.

Takao tirou os olhos do binóculo para me encarar. Eu estava sentada no

chão do topo do prédio, cercada por todos os meus talheres de prata. Prendi as

colheres de sobremesa ao redor do meu pulso e enchi meu corpete preto de


garfos. Não costumava usar esse tipo de roupa no meu dia a dia, mas era a mais

apertada que eu tinha. Servia perfeitamente para segurar a prataria no lugar. As

facas, eu levava presas ao coque do meu cabelo e nos bolsos. Meu namorado

tentou segurar o riso.

— Desculpa, mas você tá parecendo um faqueiro ambulante. — Ele ficou

sério de novo — A Izzy também tem razão, sabe? Você não deveria ter vindo.

Dei de ombros. Não poderia mais ficar em casa e não fazer nada. Minhas

pesquisas no laboratório eram inconclusivas. Nos dias em que eu passei

ajudando Heinz a cuidar de Izzy, durante o coma dela após o ferimento à bala,

ele me mostrou a parte acadêmica de sua biblioteca. Eu não era a primeira

cientista a tentar estudar o sangue de vampiro. Pelos artigos que li, o vampirismo

era uma variação da espécie humana. Como um vírus passado pela saliva no

momento da mordida, mas que só era ativado com a ingestão de um litro de

sangue vampírico, em média, quantidade que variava de acordo com o tamanho


da pessoa a ser transformada e o poder do vampiro doador.

Heinz falou com alguns contatos na universidade e conseguiu a liberação

para eu usar o microscópio eletrônico. Até o momento, identifiquei uma única

diferença entre o código genético de Izzy, de Heinz e o de humanos: os

telômeros. O DNA se organiza em cromossomos, e as extremidades desses

cromossomos são os telômeros. A cada divisão celular, um pedacinho ínfimo

dessa ponta é perdido, e com o passar dos anos, a pessoa envelhece. Por isto que

a famosa Dolly, a primeira ovelha clonada, morreu de velhice quando ainda era

jovem. O seu DNA era velho.

No caso dos vampiros, os telômeros deixavam de serem perdidos a cada

divisão. Eles congelavam no tempo, na idade que tinham quando foram

transformados. O que explicava o fato de Heinz ser mais velho que a poeira, mas

aparentar ter um pouco mais de trinta anos. Já a Izzy tem o DNA compatível

com uma pessoa de vinte e um anos. Ela provavelmente deixou de envelhecer


logo após a puberdade. Suspirei. Saber o motivo de eles não envelheceram ou o

processo de transformação não ajudava nada. Eu continuava sendo uma inútil! E

pior, me sentia na Antiguidade, quando não havia ciência para explicar a

natureza, e o inexplicável era creditado ao misticismo.

— Você está muito quieta, amor. — Takao soltou o rifle e se agachou em

frente a mim.

Sempre fui alucinada por aquele homem. Muitas mulheres falavam como

italianos, americanos e franceses eram sexy. Eu era uma delas, até me deparar

com o asiático mais lindo, corajoso e carinhoso que existia no mundo. Takao

roubou meu coração com a mesma habilidade que lutava no caratê. Rápido e

sem chance para o oponente.

Beijei seus lábios com carinho e tirei um papel amassado do bolso com a

profecia escrita. Passei o dedo sobre as palavras copiadas.


Em um novo monte.

De um novo mundo

Nascida do sangue e da dor da mais bela

Se erguerá uma filha da guerra

Com ela surgirá uma esperança

A arma divina buscada enfim será encontrada

E o poder dos deuses ressurgirá

Condenando os bebedores ao fim de sua escuridão eterna.

— Estou preocupada com a Isadora e com o destino de todos nós. Sinto

um calafrio quando leio isso. — Tentei explicar o medo irracional e a sensação

de mau presságio que sentia. — É como se o nosso fim estivesse próximo.

Ele tentou me abraçar como pôde, apesar da prataria em minhas roupas, e


enxugou com a ponta do polegar uma lágrima furtiva que escapou em minha

bochecha.

— Vamos fazer o seguinte, amanhã a gente vai no cartório e se casa, ok?

O quê? A mudança abrupta de assunto foi tão inesperada, que me deixou

perdida. Casar? Morávamos juntos há tanto tempo, que me considerava casada

com ele! Takao percebeu minha confusão e sorriu.

— Eu quero pedir isso há um tempo, mas não sabia como. Desde que

Isadora quase morreu por causa de dois assaltantes, fiquei pensando nisso. Eu vi

como Heinz ficou e me coloquei no lugar dele. Imaginei como seria se fosse

contigo. E isso me fez questionar o porquê de não estarmos casados ainda. Todas

as desculpas que inventamos sobre não termos estabilidade financeira,

esperarmos terminar de ajeitar o apartamento, termos mais maturidade. Pensei,

pensei e pensei. Daí notei que elas eram isso, apenas desculpas. Nós sabemos

que pertencemos um ao outro, quero que o mundo saiba também. Cecília, quer
casar comigo?

Minha boca abriu e fechou, contudo nenhum som saiu. Era raro alguém

me deixar sem palavras. De todos os lugares para Takao fazer aquilo, ele

escolheu propor no alto do telhado sujo de um prédio abandonado e com o leve

aroma de peixe carregado pelo vento frio das docas. A lua iluminou seu rosto de

traços másculos e olhos puxados. Um pequeno sorriso de expectativa repuxava o

canto de sua boca. Percebi que não importava o lugar ou como, o importante era

estar com ele.

— Aceito. — Meus lábios colidiram com os seus, ele passou a mão na

minha nuca e me puxou para perto. Passei os braços em seus ombros e o abracei

apertado, o que resultou nos garfos presos a minha roupa espetando-o. “Ai”, ele

reclamou, e eu acariciei sua pele por cima da camisa. — Desculpa.

Takao me deu um beijo rápido nos lábios e se levantou. Quando ele se

virou, um homem vestido de preto o acertou com um murro no rosto. Meu amor
caiu desacordado, sua cabeça bateu no chão com um baque. Não!

— Ora, ora. O que temos aqui? Eu estava procurando um atirador, mas

encontrei um lanchinho também. — O homem se agachou do mesmo modo que

Takao fizera momentos antes. — Sabe, docinho, minha chefe pediu apenas o

sniper, o que significa que ela não sabe sobre você. Quer dizer que a gente pode

brincar. — Ele puxou meu queixo para perto.

Eu peguei a faca de cortar carne que descansava ao meu lado e rasguei

sua mão. O homem chiou e bateu em meu rosto quando sentiu a prata queimar.

— Deixa a gente em paz! — Berrei.

Ele olhou para cada talher de prata que revestia o meu corpo e sorriu

como um predador. Nunca tive medo das presas de vampiros até aquele

momento.

— Adoro um desafio. — O homem gritou quando agarrou a prata ao

redor do meu pescoço e a jogou longe.


Ele segurou minha mandíbula e puxou para o lado, expondo o meu

pescoço. O homem era grande e, mesmo assim, conseguiu desviar da prataria em

mim. Merda! Suas presas afundaram em minha garganta, começando a drenar a

minha vida. Eu não poderia permitir aquilo. Ele levaria Takao para a chefe, e eu

seria abusada no telhado de um prédio qualquer. De jeito nenhum. Minha mente

estava apagando... Suas mãos imundas me apalpavam por debaixo da minha

roupas. O monstro não tirava as presas da minha pele, era sangue demais.

Daquele jeito, eu ficaria mais seca que uva passa.

Em um último esforço, peguei a faca de prata em meu bolso e a segurei

entre os dedos. Eu não era forte ou veloz. Não tinha destreza com armas. Não

sabia lutar. Mas, mesmo assim, não era indefesa. Tudo que precisava alcançar

dele era a parte interna do seu braço, e foi o que eu fiz: cortei pele e tecidos

acima da dobra do cotovelo. Ele me largou e se levantou em um pulo:

— Vadia! — Gritou e pensou em me atacar, mas parou chocado ao ver o


sangue escapar pelo corte que não se fechava rapidamente por causa da prata. Eu

acertei sua artéria braquial, aquela usada para medir a pressão sanguínea, que, se

rompida, faz uma grande quantidade de sangue se perder a cada pulsação.

O homem se desfez em cinzas diante dos meus olhos. Takao estava logo

atrás dele com uma pequena espada de prata na mão.

— Você tá bem? — Ele largou a arma e me abraçou. Gemi quando

afastou os cabelos que grudaram no meu pescoço. Ele não precisou falar nada,

pelo seu suspiro, sabia que estava feio. Eu sentei, a tontura me dominando. O

mundo começava a escurecer ao meu redor. Takao rasgou um pedaço da própria

blusa e pressionou a ferida — Temos que chamar Heinz, não está estancando.

Você precisa de mais sangue de vampiro, ele disse que podia curar humanos,

lembra?

Sim, eu lembrava. Recordava também que dependia da gravidade, mas

não disse nada. Mal reconheci minha voz quando tentei falar:
— Eu tenho... no carro... na minha bolsa. O resto das amostras do sangue

de Izzy e de Heinz.

Ele balançou a cabeça concordando, guardou nossas coisas e me pegou

no colo. Eu não conseguia andar. O mundo girava ao meu redor. O pedaço da

camisa estava ensopado de sangue. Takao informou Heinz sobre o ataque e

avisou da nossa retirada. Eles combinaram a estratégia para alcançar Isadora,

mas eu não conseguia ouvir direito. Mesmo em seu colo, sua voz era distante,

como se eu estivesse em um túnel escuro e abafado.

— Vamos, amor, beba! — Takao colocou os tubos de ensaio contra os

meus lábios. Já estávamos no carro? Ingeri o sangue com avidez enquanto ele

alisava meus cabelos — Isso, beba. Heinz está vindo e tudo vai ficar bem.

Meu pescoço formigou quando a hemorragia começou a parar. Suspirei

de alívio.

— Eu não contaria com isto. — A ameaça velada foi seguida por uma
faca contra o pescoço do meu noivo. Ele levantou as mãos em rendição, e o

vampiro piscou um olho para mim. — Vocês fizeram uma bagunça lá em cima,

hein? Ainda bem que seu sangue delicioso é tão fácil de ser rastreado.

Ele se afastou com Takao, e duas vampiras me arrancaram do banco de

trás do carro. A lua refletiu nos cabelos ondulados da que me segurava pela

roupa, evidenciando o brilho negro em seus fios. A outra, uma morena de olhos

escuros, apertou a minha ferida com o polegar, fazendo com que o sangue

voltasse a escorrer. Mordi meus lábios para não gritar de dor.

— Olha só, Cristina. — A morena lambeu o líquido carmim em meu

pescoço. — Temos um banquete.

Takao gritou e segurou o braço do seu captor. Torceu o punho do

vampiro até que soltasse a arma. Os dois começaram a lutar. Por mais que Takao

fosse faixa preta de caratê, ele não era páreo para a força sobrenatural do seu

oponente. Logo foi imobilizado, e a garota esmurrou seu rosto. Tentei ajudá-lo,
mas Cristina me mordeu na garganta, roubando a pouca força que eu tinha

recuperado. O estrondo de uma bomba soou distante, lá no meio das docas. Eles

se assustaram e rosnaram.

— Jana — a vampira que me mantinha presa falou —, leve-o para Scar,

eu me livro dessa aqui.

Scar? Ah, merda! Comecei a me desesperar. Isadora caiu em uma

armadilha, era a única explicação. Os dois vampiros obedeceram a ordem, deram

um murro certeiro na têmpora de Takao, e ele apagou. Arrastaram o meu amor

para longe, onde eu não poderia alcançá-lo. Usei o resto de minhas forças para

perguntar:

— Quem... Quem é o traidor?

Cristina sorriu, mostrando suas longas presas.

— O único traidor que eu conheço é aquele estúpido Heinz. O idiota

virou as costas para a nossa deusa, Scar. Vocês que são tolos, acham mesmo que
não teríamos um plano caso algum de nós fosse capturado?

Oh, Deus! Izzy e Isaac seguiram um caminho de cartas marcadas

indicado pelo vampiro mexicano. Cristina me jogou no banco do carro e subiu

em mim para morder de novo. Outra lágrima escorreu pela minha face. Aquela

noite toda foi um erro, nós iríamos morrer.

Minha mão pendeu na lateral do banco. Meus dedos tocaram em um

objeto de metal. As armas de Takao? Ele devia ter jogado no chão do carro

quando foi me dar sangue. Vasculhei com minhas mãos e encontrei um dardo

com sangue de morto. Espetei no braço dela, e Cristina desmaiou ainda com as

presas fincadas em minha garganta. Droga! Eu não conseguia me mexer direito

com seu peso. Encontrei uma faca, a prata atravessou o pescoço dela como se

fosse feito de manteiga. Tossi, quando a vampira se desfez em poeira.

Tonta, me levantei e olhei para a fumaça que se elevava nas docas. Meus

amigos estavam em apuros, eu precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa. A


nova ferida em meu pescoço sangrava continuamente. Encontrei o último tubo

de ensaio com o nome de Izzy e bebi. O sangue que tinha era o suficiente para

evitar que eu morresse, mas não me deixaria mais forte. Eu precisava mais do

que coragem para vencer aquela guerra. Passei para o banco da frente e segurei o

volante com força até que os nós dos meus dedos ficaram brancos. Estava

prestes a tomar uma decisão que não teria volta. Abri o cofre do carro e

encontrei as chaves extras que precisava. Dei partida e o motor rugiu. Izzy tinha

uma garrafa extra do sangue de Heinz em seu apartamento, eu a encontraria e

beberia até a última gota, se fosse preciso.

Que Deus e todos os outros deuses do Olimpo nos ajudassem.


Capítulo 49 — Abençoada

O lado bom de ser vampira era a impossibilidade de morrer de ataque

cardíaco. Se eu fosse humana, estaria dura e estatelada no chão. A luta cessou, a

noite clareou. Todos ficaram extasiados ao verem a luz branca que emanava do

Orakel. Cecília parecia uma estátua segurando o artefato. Olhos fixos, nenhum

músculo do seu corpo se movia. Eu me aproximei e ouvi uma voz gutural que

não parecia em nada com a dela:

— Em um novo monte, de um novo mundo.

Olhei para cima, para o Monte Pino que se agigantava ao nosso lado. Oh,

merda.

— Nascida do sangue e da dor da mais bela, se erguerá uma filha da

guerra.
Encarei o meu sangue no Orakel, o único ponto do artefato que não

brilhava. Cortei a minha mão com o sai quando estava com raiva de Scar, logo

antes de segurar o artefato. Oh, merda ao quadrado.

— Com ela, surgirá uma esperança. A arma divina buscada enfim será

encontrada, e o poder dos deuses ressurgirá.

Ok, isso não é tão ruim. Aproximei-me mais. Os dedos de Ceci estavam

enegrecidos onde tocavam a prata. Droga, precisava tirar isso dela! Não tinha

certeza se ela era a filha da guerra, mas sabia que aquilo estava a machucando.

Coloquei minhas mãos sobre as dela e finalmente seus olhos entraram em foco,

mirando diretamente nos meus:

— Condenando os bebedores ao fim de sua escuridão eterna.

O brilho emitido pelo artefato me envolveu, e eu caí em um vórtice de

luz intensa. Oh, merda ao cubo. Fodeu. Fechei os olhos com força, encadeada

por toda aquela luminosidade. Até que não ouvi mais nada.
Com cautela, ousei abrir os olhos, mas tudo tinha sumido. O cemitério, a

praia, o Monte Pino. Scar, Heinz e meus amigos. No lugar deles havia uma linda

mulher, alta e de cabelos pretos, entre lisos e ondulados. Vestida com uma túnica

branca simples e com os pés descalços, ela parecia iluminada por uma luz

natural. Etérea. Aliás, a campina verde em que eu me encontrava parecia coberta

por uma luz fosca, como se o sol tivesse esmaecido um pouco naquele lugar. A

mulher de olhos castanhos sorriu com candura e uma sensação de paz se apossou

de mim.

— Seja bem-vinda, Isadora. — Sua voz musical era bela e reconfortante,

mas não parecia sair dela. Seus lábios se moviam dessincronizados com a voz,

como se eu estivesse em um filme de dublagem ruim.

Olhei ao redor. Tudo era limpo e em cores suaves. Eu, em minhas roupas

pretas e coberta de sujeira da luta, me destacava naquele cenário bucólico.

— Onde estou e quem é você?


— Estamos nos campos elísios, o céu dos deuses. Você deve me

conhecer como Daphne, a ninfa por quem o deus Apolo se apaixonou...

E o rejeitou, se bem me lembro do mito. Fiquei calada, no entanto. Será

que eu morri? A mulher continuou a falar:

— Foi o oráculo de Delfos, abençoado por Apolo, que profetizou sua

vinda. Eu vim te receber porque entendo o que é não desejar algo com tanta

vontade, que você prefere sacrificar seu eu verdadeiro a ter o que não quer.

Como sabia o que eu queria ou não?

— Você fala de forma enigmática. Eu estou morta?

A garota deu um meio sorriso e apontou para dois portões grandes e

dourados, que não estavam ali antes.

— Eles estão mais aptos a te responder. — Ela segurou minhas mãos

entre as suas, e eu senti um formigamento subir pelo meu braço. Toda a sujeira
em meu corpo sumiu. — As ninfas da terra te abençoam. A natureza jamais te

castigará, não sentirás frio ou calor. O sol não mais incomodará sua pele, a terra

te dará forças, o gelo não te congelará e o fogo não te queimará. Siga teu

caminho em paz.

Talvez Scar tivesse me acertado forte na cabeça, e eu estivesse delirando.

Só podia. Andei receosa pelo caminho indicado pela ninfa. Virei meu corpo para

trás, e, no lugar dela, havia uma grande árvore de ramos verdes. Um loureiro.

“Respira fundo, Izzy, não surta ainda”, tentei me convencer. Assim que

atravessei os portões, avistei um grande trono dourado. Um homem de corpo

robusto, vestido em uma túnica branca que mal cobria seu peitoral definido, me

observava em um porte austero. Seus olhos azuis me fitavam sem desviar o foco.

Ao lado dele e por trás do trono, homens e mulheres de belezas extraordinárias

permaneciam em pé e calados. Como figurantes naquele sonho louco.

— Aproxime-se, dádiva de Ísis.


Franzi o cenho. Eu sabia que meu nome, Isadora, significava presente de

Ísis. Entretanto, nunca achei que fosse relevante para a profecia.

— Pensei que Ísis fosse uma deusa egípcia. — Atrevi-me a dizer.

Ele me deu um meio sorriso. Sua voz de barítono soava dessincronizada,

como a de Daphne:

— E é, mas nós, deuses, estamos além do tempo e da humanidade.

Mudamos de forma, de mito e de nome, de acordo com a cultura. Nos adaptamos

ao que os humanos acreditam. Independentemente do nome que chame ou da

doutrina que siga. Seja bem ou mal, anjos ou demônios, deuses ou monstros, Yin

e Yang, céu e inferno, tártaro e campos elísios. Não importa a crença, o divino é

único. — Ele ergueu brevemente os ombros, em um gesto estranhamente

mundano. — A diversidade até torna nossa imortalidade mais interessante.

Minha cabeça ia explodir. Tanta guerra, preconceito e morte por causa de

religião. Tantas pessoas tentando impor suas crenças sobre os outros, quando
deveriam se concentrar na mensagem de união, compaixão e sabedoria por trás

da doutrina. Alguma coisa, no entanto, parecia errada. E toda aquela história que

Heinz contou sobre a origem dos vampiros e os sacrifícios?

— Por que você se parece com Zeus, então? — Balancei a cabeça. — Eu

não entendo... Os vampiros, a origem...

— Apresento-me como Zeus porque era essa a forma que você esperava

encontrar. — Ele se levantou e caminhou até mim. — Não sou seu inimigo,

nenhum de nós é. A nossa origem e a do Universo é muito complexa para

alguém tão jovem como você entender. Nem mesmo os grandes sábios são

capazes de lidar com a verdade. Eu compreendo que você tenha muitas dúvidas.

A maioria dos humanos não utiliza a capacidade máxima do seu corpo. Os

vampiros surgiram quando resolvemos presentear os humanos com habilidades

divinas. Na Grécia, o poder foi demais para eles, que tentaram tomar o nosso

lugar. Você conhece alguém assim, não é? Que se intitula um deus, mesmo que
não seja.

Sim, Scar era uma falsa profeta. Se dizia poderosa, mas não passava de

uma vampira comum. Aquilo significava que durante a invasão germânica,

Heinz lutou contra falsos deuses. Vampiros e mestiços poderosos, fortes, mas

não deuses. Ou seja, ele não foi transformado pelo verdadeiro Ares, apenas por

um vampiro que fingia ser o deus da guerra. Um pouco de esperança surgiu em

meu peito:

— Vocês vivem aqui neste lugar mítico, entre o tudo e o nada.

Observando a humanidade, mas sem fazer parte dela. Adorados e intocáveis,

enquanto guerras são travadas em seus nomes. Se Heinz não matou Ares,

nenhum de nós é a filha da guerra.

— Você está certa ao dizer que vivemos aqui isolados. Nós somos alma,

e não substância, a Terra não é nosso lugar. — Ele falava com serenidade. — É

por isto que, de tempos em tempos, abençoamos seres humanos especiais.


Alguém nascido com a força e a habilidade para suportar a nossa dádiva.

Alguém capaz de fazer o bem pela humanidade.

— Não deu muito certo com o mestiço que se intitulou um deus, né? —

Debochei. Logo em seguida, fiquei séria, lembrando com quem estava falando.

Engoli em seco, mas felizmente ele não demonstrou ter se afetado por minhas

palavras.

— Não, mas acertarmos com os outros. — Ele colocou a mão em meu

ombro. Minha pele formigou como se estivesse em contato com eletricidade

estática. Não doía, era apenas estranho. Zeus continuou a falar. — A guerra

sempre produz filhos. Órfãos que sofrem pela perda de seus pais e procuram

justiça quando crescem. Você é uma filha da guerra, nascida da dor e do horror.

Nós te trouxemos aqui para que se tornasse a nossa arma divina contra um dos

males do mundo.

Quando Cecília segurou o artefato, achei que ela era o alvo da profecia.
Porém, quando eu tentei ajudar e vim parar aqui, percebi que não era ela. Um

deus de longos cabelos loiros e olhos vermelhos saiu da multidão, que

permanecia calada, e caminhou a lentos passos até mim. Pensei em me afastar,

mas não quis aparentar medo. Eles eram divindades. Não me fariam mal,

fariam? O homem estendeu o braço em minha direção, e eu gritei:

— Espere aí! E o livre arbítrio? Eu não tenho poder de escolha?

— Tem. Desculpe-me, conhecemos seu coração tão bem, que

esquecemos de perguntar. Isadora, você aceita as três bênçãos divinas? — O

deus líder perguntou em voz solene.

Ora, esse livre arbítrio parecia muito arbitrário! Não tinha muita escolha,

não cheguei até ali para dizer: “passo, procurem outra garota”. Eles sabiam tão

bem quanto eu que aceitaria o meu destino. Afinal, ele fora traçado séculos atrás.

— Aceito.

O deus loiro colocou a mão em meu pescoço. Senti como se milhares de


minúsculas facas estivessem perfurando minha pele. Minhas pernas fraquejaram,

e eu me ajoelhei, mas o homem não tirou a mão de mim.

— Sou Apolo, o deus do sol. Olhe para mim. — Ele ordenou, e eu

obedeci, apesar da dor. Seus olhos vermelhos pareciam enxergar minha alma. —

Eu abençoo o seu sangue com o dom do sol.

Ele tirou a mão da minha garganta e voltou para a posição que estava

antes. Ai, merda. Pensei em avisar que eu já andava sob a luz do sol, não

precisava sentir aquela dor insuportável para isto. Talvez eles não fossem tão

oniscientes assim. Três bênçãos? A primeira já foi um desperdício.

Uma mulher de longos cabelos escondidos por um elmo dourado e

segurando uma lança estendeu a mão para mim. Eu aceitei e fiquei em pé. Ela

tinha um rosto austero, de beleza rústica. A mulher misteriosa alisou meus

cabelos e pousou a mão em minha têmpora.

— Sou Atena, deusa da sabedoria, da justiça e da estratégia. Te concedo


o dom do discernimento. Você compreenderá os mais profundos segredos das

almas.

A mão que antes alisava, agora se cravou em minha cabeça. Eu nunca

tive um aneurisma cerebral, mas a sensação deveria ser bem parecida com

aquela. Senti como se meu cérebro estivesse sendo comprimido e expandido ao

mesmo tempo. Meus olhos viraram dentro da órbita, e uma espuma se formou

em minha boca. Convulsão. Meu corpo estava convulsionando.

Ela finalmente me soltou, e eu caí de quatro no chão, mal podendo

suportar o meu peso. Limpei um filete de sangue e a espuma que escaparam pelo

canto da minha boca.

Um homem de manto escuro e uma expressão taciturna no rosto se

aproximou. Das dobras do manto, ele tirou uma pequena faca prateada. Do

tamanho da palma da minha mão, ela era toda desenhada com símbolos

desconhecidos, caveiras e arabescos. Não parecia promissor.


— Eu vou sobreviver à benção final?

— Claro. — Zeus me ajudou a levantar. — Não nos seria útil se estivesse

morta.

Ótimo, até as divindades conheciam o conceito de sarcasmo.

— Eu sou Hades, deus do reino dos mortos. — Ele estendeu a adaga para

mim. — Te abençoo com a lâmina Zoe, capaz de sugar a imortalidade de seus

inimigos.

Uau! Guardei o presente com cautela, não era algo que eu quisesse me

espetar sem querer. Ninguém mais da multidão de seres etéreos se moveu, e

mesmo os que me abençoaram, voltaram a se posicionar como estátuas atrás do

trono. Encarei Zeus e perguntei:

— Você não vai me presentear também? O anfitrião sempre oferece

alguma coisa.
Ele levantou uma sobrancelha, e eu fechei minha boca. Era melhor não

irritar um deus supremo mais velho que o próprio Universo.

— Eu te abençoei no momento em que você nasceu, te presenteei com

um instinto de sobrevivência formidável. — Zeus disse com sua estranha voz

distorcida

É... A eficácia de seu dom era discutível, eu sempre me envolvia em

situações perigosas. Apesar disso, sobrevivi a cada uma delas, além dos anos

como uma criança mestiça escondida em um mundo humano.

— Obrigada por tudo. Por confiar em mim... — Olhei para o chão,

incerta se deveria ou não perguntar algo. Quando levantei os olhos, a serenidade

dele me deu a coragem que eu precisava para verbalizar o meu desejo mais

secreto. — A minha mãe. Ela está aqui, eu tenho como vê-la?

— Me acompanhe.

Com o coração apertado, o segui de volta aos campos elísios. Ao longe,


uma mulher surgiu. Sentada em uma grande pedra, ela olhava para as flores de

forma despreocupada. Uma luz suave iluminava seus cabelos negros, e ela

sorriu, apreciando uma brisa fresca que balançou seu fino vestido. Tentei

caminhar em sua direção, mas Zeus colocou a mão em meu ombro.

— Se ela souber quem você é, vai quebrar a paz em que sua mãe se

encontra.

Balancei a cabeça afirmando que havia compreendido seu recado e me

aproximei devagar. Sentei no tronco da árvore ao lado dela. Isabela me deu um

sorriso enorme ao ouvir minha presença.

— Está vendo essas borboletas? — Ela apontou para as pequenas asas

amarelas que abriam e fechavam em cima das flores vermelhas. — Ontem eram

apenas casulos, e, antes disso, eram lagartas que devoravam tudo.

— São muito bonitas.

— Sim. Às vezes, a beleza pode surgir da destruição. É fantástico como a


natureza consegue se reinventar.

Concordei, porém permaneci calada. Ansiava por estar nos braços dela

ao menos uma vez. Minha mãe — que teve sua vida ceifada antes dos vinte anos

— parecia mais jovem que eu.

— E se não tiver nada para ser reerguido depois de destruído?

A borboleta voou até nós e pousou na mão de minha mãe, suas pequenas

asas como veludo fechadas em repouso. Isabela olhou para mim pela primeira

vez, e sua testa se franziu, como se ela tentasse lembrar de onde conhecia. Eu me

perdi nos seus olhos verdes, um reflexo dos meus e fiquei encantada com a

serenidade deles. Ela segurou minha mão e a acariciou com delicadeza.

— Enquanto houver esperança, nada estará perdido.

Logo em seguida, ela desapareceu, e eu me vi sozinha entre as flores,

sentindo a presença de Zeus atrás de mim.


— Obrigada por me permitir vê-la pelo menos uma vez. — Sequei as

lágrimas quem caíam, insistentes. — Sei que os vampiros gregos que Heinz

conheceu eram farsantes, mas vocês me trouxeram aqui. O que eu sou? Uma

falsária?

— Você é Isadora, uma mulher formidável com poderes incríveis. A

esperança dos bons...

Lembrei-me da profecia: “Condenando os bebedores ao fim de sua

escuridão eterna”.

— E o fim dos perversos?

Ele balançou a cabeça concordando.

— Sim. Lembre-se, há mais de um modo de acabar com a escuridão. —

Ele voltou a andar, e eu o segui até um rio de águas tranquilas. — Sua estadia

aqui já se estendeu demais. Mergulhe no rio Lethe e volte para casa.


Ia pular quando me lembrei que rio era aquele. Quem entrasse naquela

água, esqueceria de tudo. Ele percebeu minha hesitação e sorriu. Zeus segurou

minha mão, e eu senti um calor se espalhar pela minha pele. Quando ele afastou

os dedos, pude ver que surgiu uma tatuagem realista de uma borboleta,

exatamente igual à que pousou na mão da minha mãe.

— Você não pode lembrar de todos os detalhes que viu aqui, Isadora, mas

vai lembrar da essência deles.

Protegi a tatuagem com minha outra mão, não queria esquecer o encontro

com Isabela.

— Eu não sei o que devo fazer quando voltar. Qual o meu papel?

Espalhar a palavra divina? — Escondi o meu temor com uma piada.

— Apenas seja você mesma. Você é uma mulher de ação. A esperança. O

fim da escuridão. Você é nossa arma para equilibrar a balança contra o mal e, por

mais abençoada que seja, a imortalidade de qualquer vampiro ou mestiço é


relativa. Cuide-se.

Concordei, sabendo que aquela era a única saída. Não havia muita

barganha a ser feita. Olhei mais uma vez para a divindade e saltei na água, sem

saber o que me esperava do outro lado.


Capítulo 50 — Arma Divina

Meus olhos estavam fechados com força, lábios selados, e eu não ousava

respirar. Não que eu precisasse. A luz que me cercava finalmente esmaeceu, e

me encontrei encarando Cecília. Ela estremeceu, e seus olhos giraram na própria

órbita. Ceci largou o Orakel e caiu no chão, batendo a cabeça em uma lápide

grande. Gritos ao meu redor... Gritos e risadas.

Scar gargalhava como se fosse manhã de natal e ela tivesse ganhado o

pônei desejado. Takao pegou minha prima no colo e abriu o pulso para alimentá-

la. Heinz me abraçou, a preocupação era evidente em seus belos olhos.

— Schatzi? — Ele passou a mão em meus cabelos, colocando uma

mecha solta atrás da minha orelha. — Você está bem? O que houve?

Abri a boca para responder e voltei a fechar. Balancei a cabeça em


negação e empurrei seu peito devagar, precisava de um pouco de espaço. Heinz

estranhou, mas minha cabeça estava confusa, parecia que alguém colocara meu

cérebro em um liquidificador e triturara na potência máxima. As pessoas

falavam ao meu redor, contudo não eram suas vozes que eu ouvia. Escutava

sussurros incompreensíveis trazidos pelo vento.

Voltei a fechar os olhos. A brisa que vinha do mar tocava a minha pele,

mas não era fria. “Confie em seus instintos”, a voz no vento dizia. Cerrei meus

punhos, forçando-me a lembrar. Entretanto, tudo que vinha em minha mente era

a luz. Um lugar feito de luz e paz. Entre os meus dedos havia um objeto de

metal. O fim da escuridão eterna.

Dedos compridos pousaram em meus ombros.

— Isso, Isadora. Sinta o poder, abrace-o. — Scar parecia o demônio da

tentação em meu ombro. — Abandone sua humanidade, seja nossa líder. Nós

duas juntas podemos tirar os vampiros dessa maldita escuridão eterna. Seremos
deusas entre os homens.

Encarei cada um dos meus amigos e tentei focar a bagunça que se

encontrava meus pensamentos. Eu senti o desespero que de seus corpos

emanava. Angústia. Tristeza. Esperança? Sim... Heinz tinha esperança em mim,

que eu fizesse a escolha certa. “Enquanto houver esperança, nada estará

perdido”. Minha tia, apoiada em Isaac e bebendo do sangue dele, procurava se

reerguer. Dor e medo a dominavam.

— Seja uma deusa, torne-se uma arma divina. — Scar continuava a me

tentar.

“Você é nossa arma para equilibrar a balança contra o mal”, a brisa

voltou a sussurrar. Minha visão clareou, e enxerguei mais do que já vira em toda

minha vida. Ao redor de cada vampiro, e até do meu pai humano, havia um fino

halo dourado, como uma aura, uma luz interior. Virei-me para enfrentar Scar. Ao

redor dela, o halo não era dourado, tinha um tom arroxeado com uma fumaça
cinza ao redor, podre.

Dom do discernimento. Onde ouvi isso?

Não sabia de onde tinha surgido o metal em minhas mãos, mas tinha

certeza que ele era importante de algum modo. Segurei a lâmina entre os dedos,

ela pareceu se encaixar com perfeição, como se tivesse sido feita especialmente

para mim.

— Eu sou uma arma divina. — Atravessei a lâmina em seu peito,

alcançando seu coração. Estava tão próxima, que quase a abraçava quando

sussurrei em seu ouvido. — Mas você nunca foi e jamais será uma divindade.

Scar gritou, a face contorcida em dor. Ela se ajoelhou na grama do

cemitério, suas unhas arranharam meus braços nus. De onde a lâmina penetrava

em seu peito saía uma luz branca. Esperei que ela se transformasse em cinzas,

porém a mulher continuava a berrar e nada mais acontecia. Como assim? A

diaba não podia mais ser morta? Teria se transformado em deusa? Retirei a
lâmina do seu peito, e a ferida curou de imediato. A risada maligna de Scar

reverberou por todo monte Pino. Ah... Merda.

— Isso é simplesmente perfeito! — Empolgada, ela batia palmas. —

Parabéns! Você conseguiu me tornar mais imortal do que antes. Sou invencível

agora.

— É o que vamos testar. — Heinz sacou uma espada curta do coldre.

Meus aliados nos cercaram: Isaac, Tom, Takao e Luna, ainda não

recuperada dos anos de tortura, porém com uma sede de vingança que

compensava a falta de forças. Ceci permanecia desacordada em uma lápide fria,

e meu coração se apertou por ela. Troquei a lâmina pequena por meus sai,

precisava me livrar de Scar o mais rápido possível e ajudar minha prima.

A insana correu para nos atacar, porém seus passos eram lentos, mas tão

lentos, que baixei minha adaga, sem entender sua estratégia. Scar também não

parecia compreender o que acontecia. Ela se aproximou e bateu em meu rosto.


Seu murro tão fraco que mal fazia cócegas.

Scar encarou o próprio punho e perguntou com desespero:

— O que você fez comigo!?

— Eu tenho uma ideia. — Tom sacou sua arma e atirou na perna dela. A

bala atravessou sua pele e da perfuração, sangue começou a minar em um fluxo

contínuo. Os lábios de Scar tremiam, e ela tentava estancar a ferida que não se

curava. “Não, não, não”, repetia sem parar. Meu pai guardou o revólver no

coldre e pegou um par de algemas que estavam em seu bolso. — Shuerma, você

está presa pelo sequestro e tortura de Geórgia Silva.

Oh. Meu. Deus.

Não era possível!

Era?

Ainda sangrando no chão, ela se indignou:


— Quem você pensa que é para me prender? Eu sou uma vampira

poderosa!

Guardei meu sai e me agachei ao seu lado. Scar tentou se afastar, mas

não conseguiu. Estava fraca e pálida pela perda de sangue. Patética.

— Eu te guiei para o fim da escuridão eterna, Shuerma. — Coloquei o

dedo na ferida da bala, e ela deu um silvo de dor. — Você é humana, livre para

andar sob a luz do sol.

Tia Luna desceu até a posição que eu estava, passou o dedo no líquido

precioso que escorria pela perna dela e o lambeu em seguida, saboreando a

queda de sua captora e torturadora.

— Você se tornou aquilo que mais despreza. — Cada palavra pontuava a

satisfação da vitória em Luna. — Não é uma deusa e muito menos vampira, é

humana. Mortal. Como você os chamava? Gado, não era? — Ela deu de ombros.

— Apropriado, você sempre foi uma vaca.


Scar começou a hiperventilar, olhando para todos os lados, e agarrou

Luna pelas roupas esfarrapadas:

— Mate-me. Eu te torturei por vinte e cinco anos, matei centenas de

humanos, conspirei contra Heinz, ataquei o Reich anos atrás e...

— Considerarei isso como confissão. — Tom a algemou e a obrigou a se

levantar.

— Não! Mate-me, mate-me! — Ela implorou. — Eu não posso viver

assim. Como... Como essa lesma fraca e vulnerável!

Heinz permaneceu parado em sua frente, com a aura irradiando desprezo.

— Ninguém aqui vai te matar, morrer seria fácil demais... Mas não se

preocupe, o que são cinquenta, sessenta anos perto dos seiscentos que já viveu?

— Tic-tac. — Takao disse com sarcasmo.

— Espero que apodreça lentamente. — Isaac se segurava para não atacar.


Scar o olhou com ódio, contudo não disse nada. Mancando, foi arrastada por

Tom até o carro. E eu, sorrindo, dei um tchauzinho. Ela torturou minha tia por

mais de vinte anos, esperava que vivesse pelo menos o dobro se odiando. Para

uma pessoa como Scar, ser uma humana era pior do que a morte.

Luna se virou em minha direção e me abraçou. O calor do seu corpo era

reconfortante como me lembrava, e um soluço escapou de mim quando tentei

segurar o choro.

— Nunca esqueci da senhora. — Eu disse. Ela secou minha lágrima, e eu

acariciei seu rosto. — Desculpa a demora, tia.

— Como você cresceu, minha princesa! Melhor e maior do que jamais

imaginei. Tudo que fiz foi por você, pelo seu bem. — Ela estendeu a mão para

Isaac, e ele prontamente a abraçou. — Você me salvou e ainda me trouxe esse

presente maravilhoso. Tudo que esperei durante anos foi a morte, jamais

imaginei que teria minha família de volta. Obrigada.


Por um momento, em um abraço triplo com meus tios, me senti em casa.

Levantei a vista e vi Heinz com um imenso sorriso no rosto. Deixei Luna com

Isaac e me joguei no meu alemão. Ele beijou cada centímetro da minha face.

— Nunca mais me dê um susto desse, schatzi! Eu achei que te perderia...

— O que houve? — Franzi a testa, ainda sem lembrar tudo que tinha

acontecido.

— Você segurou no Orakel e foi envolvida por uma luz branca. Segundos

depois, a luz apagou, e você começou a agir estranho, me afastou e atacou

Shuerma com uma faca que nunca vi antes, não lembra?

Daquilo eu lembrava, mas tinha a sensação que estava esquecendo de

algo importante. Peguei a pequena adaga de onde escondera em meu coldre.

Feita em um metal que eu não conhecia, ela era preta e tinha vários símbolos e

desenhos de caveiras. A lâmina era muito pequena, fina e possuía duas meias-

luas no lugar da empunhadura. Quando a encaixava em meus dedos, pareciam


anéis, sendo que a lâmina saía entre o indicador e o anelar. Incomum. Uma arma

única e com um poder incrível: reverter o vampirismo.

Capaz de sugar a imortalidade.

— Foi só isso que aconteceu? — Perguntei com ceticismo. — Tenho a

sensação que algo está faltando... De onde essa arma veio? Eu acho que ela se

chama lâmina Zoe, mas como eu sei disso?

— Zoe significa vida em grego, talvez seja esse o significado. — Ele

analisou a lâmina sem tocar nela. — Nunca vi algo parecido, nem mesmo

imaginei que fosse possível. Muitos vampiros foram transformados contra a

vontade, talvez fosse bom oferecer uma saída para eles.

— Você é um deles? — Heinz fora transformado por um falso deus

durante a invasão germânica em Roma. Perguntei com uma angústia crescente

em meu peito: — Quer voltar a ser um humano?

— Eu...
— Izzy! — Takao gritou. — Ceci não tá acordando!
Capítulo 51 — Hipótese

Cecília se debatia em cima da lápide, a cabeça batendo com violência

contra o mármore. O corpo convulsionava sem parar. Os olhos rolavam na

órbita, e uma espuma avermelhada escapava pelo canto de sua boca. Apertei a

mão enegrecida, queimada pela prata do Orakel.

— Coloquem-na no chão! — Gritei. — Ela está se machucando assim.

Deixe sua cabeça de lado.

Imobilizar um humano em convulsão era difícil e não recomendado. Um

vampiro, no entanto, era quase impossível. A força dos espasmos musculares era

impressionante, seu corpo saltava da grama fresca. Será que eu deveria fazer a

manobra padrão? Em um humano não se deve segurar a língua, pois há o risco

de levar uma mordida... Foda-se, ela não era humana, e eu regenerava fácil,
então furei meu pulso com o sai e pressionei contra os seus lábios.

Ai! Suas presas cravaram minha pele. Merda! Merda! Merda! A mordida

descontrolada quebrou o meu pulso, senti os ossos serem triturados. Heinz

tentou me ajudar, mas eu levantei a outra mão, avisando para ele parar. O pulso

quebrado facilitaria para que mais sangue vertido fosse jogado em sua garganta.

Só esperava que eu não perdesse a minha mão inteira no processo. A tremedeira

dela diminuiu, e Ceci agarrou meu pulso com ambas as mãos, fazendo-me notar

que a pele de sua palma começou a regenerar. Seus olhos se abriram e focaram

em mim. Ela sugou até que suas presas se retraíram e as íris voltaram a um azul

normal, sem o brilho sobrenatural.

— Você está bem? — Takao a ajudou a levantar e abraçou a namorada

com óbvio alívio.

— Sim, eu... Eu... — Ela soltou o ar com força e se levantou, andando de

um lado para o outro. — Nossa! O que tem nesse teu sangue, Izzy? Dá um
barato legal, parece que eu tomei o melhor estimulante do mundo. Posso colocar

um canudo no teu pescoço e sugar tudinho?

— Ela tá bem. — Heinz e eu falamos em uníssono.

Ceci arregalou os olhos quando viu o estrago que fez em mim. Dispensei

suas desculpas e sentei na lápide. Heinz segurou meu pulso com delicadeza e

jogou o próprio sangue por cima, acelerando o processo de cura. Descansei a

minha cabeça em seu ombro, essa noite parecia não ter mais fim.

Entretanto, um sorriso despontou em meus lábios, e respirei aliviada pela

primeira vez em semanas. Resgatei minha tia, os vampiros das docas foram

dizimados, os humanos se libertaram, o artefato estava inutilizado, a profecia foi

revelada, todos os meus amigos estavam salvos, e Scar sofreria e se odiaria por

décadas antes de morrer como humana. A vida era perfeita. Bem, quase. Heinz

ainda não falou nada sobre querer ou não a cura para o vampirismo. Ele estava

parado, acariciando em silêncio algo que não estava ali antes.


No dorso da minha mão havia uma pequena borboleta amarela tatuada. O

desenho era tão realista, que esperei ver as asas se moverem e saírem voando.

Olhei para a tatuagem com reverência, como se ela fosse uma parte importante

de mim. Sentia paz, esperança, amor e os mais belos sentimentos ao tocar nas

asas amarelas.

— Gente! — Luna apontou para o leste com assombro. Segui a direção

do seu dedo e encarei o evento natural que poderia ser o fim da maioria dos seres

sobrenaturais naquele cemitério: o nascer do sol. Droga. Não teríamos tempo de

correr para a mansão.

Isaac gritou:

— A igreja.

Sem pensar duas vezes, ultrapassamos os poucos metros que nos

separavam da igrejinha. Arrombei as portas no momento em que o céu clareou e

os primeiros raios solares surgiram no horizonte. Tia Luna, Heinz, Takao e Isaac
apagaram imediatamente. Ceci e eu os jogamos em cima de nossos ombros e os

escondemos embaixo dos bancos. Fechei as grandes portas de madeira e encarei

minha prima, esperando que ela desmaiasse como os outros. Nada.

— Por que você está acordada? — Não consegui afastar o assombro em

minha voz.

Ela olhou ao redor e deitou em um dos bancos de madeira:

— Espera, estou sentindo um abafado, um calor... Acho que vou

desmaiar agora.

Cruzei meus braços e tentei não rir enquanto Cecília fechava os olhos e

cruzava as mãos em cima do peito, imitando a posição clássica dos vampiros em

caixões de filmes de terror. Não adiantou.

— Acho que o calor e abafado é porque estamos em uma igreja com

todas as portas e janelas fechadas... — Ponderei, apesar de não sentir o calor que

ela mencionara ou o vento frio da madrugada alguns momentos antes. “As ninfas
da terra te abençoam. A natureza jamais te castigará, não sentirás frio ou calor.

A terra te fortalecerá”, uma voz delicada surgiu em minha mente. Como a

lembrança de um sonho distante. Estranho.

Pelos vitrais coloridos das janelas com a representação da via crucis, vi o

sol começando a brilhar lá fora. Ceci permanecia consciente. Apenas os mestiços

tinham essa capacidade, e ela não era uma. A menos que segurar o artefato do

Oráculo no momento da profecia a tenha alterado de alguma forma. Segurei o

grito quando um raio de dor disparou por todo o meu braço, partindo do ponto

onde os meus ossos e ligamentos se regeneravam em meu pulso para o ombro.

Girei o punho em movimentos circulares, meu braço voltou ao normal, como se

nada tivesse acontecido.

— Obrigada por salvar a minha vida. — Ceci segurou minha mão e

acariciou meu pulso já curado. Eu a puxei para um abraço.

— Eu não conseguiria viver sem você, sua maluca. — Beijei seu rosto e
penteei os seus cabelos, que estavam emaranhados e sujos de terra e grama, com

as pontas dos os dedos. — O que acha que aconteceu?

Ela escondeu o lábio inferior atrás do superior, em um bico que sempre

fazia quando estava pensando:

— Talvez eu seja uma vampira Pokémon igual a você e tenha evoluído.

Vampira Pokémon? Ri tanto, que chorei e precisei sentar em um dos

bancos da igreja, ou cairia no chão.

— É sério, caramba! — Enxuguei as lágrimas que escaparam pelo canto

do meu olho. — A gente precisa sair daqui antes que os párocos cheguem e

chamem as autoridades. Além da invasão, profanamos um túmulo para resgatar

o Oráculo. Precisamos desaparecer sem deixar rastros.

Ceci balançou a cabeça concordando e se sentou, olhando, levemente

entediada, ao redor.
— Certo, vamos fechar a sepultura de Luna. Se descobrirem que há um

corpo faltando, isso levantaria perguntas que nem mesmo o seu pai seria capaz

de responder.

Concordei. Abri a porta com cautela, permitindo que o mínimo de sol

entrasse. Ceci colocou um braço fora, depois o outro, testando se queimaria ou

não embaixo do sol direto. Não queimou, sua pele continuou branca como

sempre. Ela saiu da igreja saltitando, rodando e cantando que estava livre.

Revirei os olhos, parecia que estava séculos sem ver o sol, quando fora

transformada na noite anterior.

Tirei a bota dos pés e pegamos as pás que as aliadas de Scar usaram para

cavar a cova de Luna. Jogamos terra de volta ao buraco enquanto Cecília me

contava sobre os horrores que vivera na noite anterior. Choque não chegava nem

perto do que senti. Por um momento, me arrependi de não ter matado Scar, por

causa dela, quase perdi os dois. Cecília e Takao foram corajosos e fantásticos.
Olhei para a minha prima, seus cabelos loiros ao vento naquela manhã de

sol. Ela se transformou por conta própria, bebeu sangue de vampiro sem saber se

sobreviveria para ver o dia seguinte, enquanto outra pessoa poderia ter fugido

para se salvar. O meu coração se encheu de orgulho por ela.

Voltei a trabalhar com a pá, antes que Ceci reclamasse que estava

fazendo todo o serviço sozinha. Ela estava louca para dormir, exausta pela longa

noite. Eu, entretanto, me encontrava bem, com as mãos sujas de terra e os pés

descalços. Eu me sentia energizada.

Com o serviço terminado, após poucos minutos, encarei o túmulo

vizinho. O nome da minha mãe em letras garrafais ao lado de sua foto partiu um

pouco o meu coração. Nunca tinha visitado seu túmulo antes, desde que comecei

a ler o diário de Luna, jamais perguntei onde seu corpo descansava. Limpei a

terra que permanecia em minha mão e que cobria a misteriosa tatuagem de

borboleta. Olhos verdes e um sorriso sereno vieram em minha mente, os mesmos


da moça de cabelos negros naquela foto. Fechei os olhos, sentido um aroma

delicioso de flores recém-colhidas, e, quando voltei a abrir, Cecília segurava um

buquê de rosas silvestres que ela correu para colher na base do Monte Pino. Sorri

agradecida e as depositei em cima da lápide com reverência.

— Ela está em um lugar melhor. — Minha prima tentou me confortar.

Estranhamente, funcionou, como se eu soubesse que aquela frase genérica dita

aos enlutados fosse um fato verdadeiro. Ceci me abraçou. — Sei que é difícil,

mas infelizmente, para os humanos, a morte é a única certeza da vida. A verdade

é que ser vampiro não é feito apenas de vantagens. Desde que você falou sobre o

vampirismo, ficava imaginando o dia em que eu, Takao, tia Alice, tio Fernando e

todos da nossa família morrêssemos. Você permaneceria jovem e assistiria cada

um de nossos entes queridos morrer. E agora eu terei que assistir isso também...

De fato, seria um fardo pesado e árduo.

— Mas estaremos juntas para sempre. — Complementei.


— Exato, você não vai se livrar de mim tão fácil. — Ela piscou um olho.

— Vamos, é hora de acordar os mortos.

Girei a cabeça, encarando as covas ao nosso redor.

— Teremos zumbis agora?

— Não, sua maluca! Eu tenho uma hipótese e quero testar.

— Que hipótese!? — Perguntei com a curiosidade a mil. Ceci correu em

máxima velocidade de volta à Igreja, e eu berrei. — Espera, volta aqui!

Ela não voltou ou diminuiu, mas o vento carregou sua risada até mim.

Droga! Corri também, querendo saber o que Cecília tinha descoberto.


Capítulo 52 — A Esperança

Encostei contra o tronco da árvore e me estiquei, espreguiçando-me. O

bocejo involuntário escapou por entre os lábios, o cansaço me atingiu em cheio.

Queria dormir, porém não fui. Dobrei os meus braços atrás da cabeça e sorri ao

observar Heinz sem roupa alguma deitado na grama do jardim, de olhos

fechados e contemplando o calor do sol. Permaneci no galho do alto de uma

árvore frondosa, protegida entre as folhas. A hipótese de Cecília estava correta,

havia mais de uma maneira de acabar com a escuridão. Meu sangue, de alguma

forma, foi alterado no momento que segurei o Orakel. Segundo Ceci, eu era

Vampirachu e tinha evoluído ao último estágio.

Enquanto vampiros normais eram capazes de captar o odor de cada

emoção, eu podia distinguir a aura das pessoas quando me concentrava nelas.

Via halos dourados, roxos, cinzas, vermelhos, envolvendo o corpo de cada um.
Cada emoção tinha uma cor flutuante. Também não mais sentia o frio ou o calor,

o clima era sempre ameno e agradável. Intocável pela natureza. Abençoada pelos

deuses. Ganhei a lâmina Zoe — não faço ideia de como ela veio parar em minha

mão — e, com ela, conseguia reverter o vampirismo. O último, mas não menos

surpreendente, poder foi a capacidade de transmitir a minha imunidade ao sol

para outros vampiros.

Qualquer vampiro que beber de mim poderá andar em plena luz do dia

enquanto meu sangue estiver em seu sistema. O sol não seria mais um problema.

Cecília e eu despertamos os nossos amigos na igreja desse modo: abrimos a boca

de cada um deles e derramamos meu sangue por sua garganta. Eles acordaram na

hora. Fugimos de lá levando as pás e o artefato, que foi guardado no cofre de

Heinz. Não queria vê-lo nunca mais!

Tia Luna foi para casa do marido, os dois tinham muito o que conversar e

se atualizar. Ceci foi para seu apartamento com Takao, ela estava doida para
testar a resistência vampírica. Duvidava que a cama deles estivesse inteira antes

do entardecer.

Eu fui para a mansão com Heinz, fizemos piquenique nos jardins,

transamos nos jardins, dormimos nos jardins. Enfim, não saímos dos jardins.

Felicidade irradiava dele, após séculos sem ver o sol. O corpo musculoso dele

era ainda mais lindo sob a luz direta do sol, quase podia imaginar como era ele

quando mais novo, como o antigo soldado bárbaro lutando no campo de batalha.

Saltei da árvore e pousei ao seu lado, fazendo sombra em seu rosto. Ele abriu os

olhos castanhos para me encarar.

— Ah, schatzi. — Em um movimento rápido de Heinz, eu estava com as

costas na grama, e ele por cima de mim. — Obrigado por este presente, nunca

pensei que voltaria a ver a luz do dia. Já te amava antes, agora não sei nem

mensurar o que sinto.

Encostei a mão em seu rosto, alisando a linda face.


— Obrigada por me mostrar quem eu sou e me ajudar a conquistar o meu

potencial.

Heinz me beijou com voracidade. Lábios se chocaram, dentes se

bateram, e suas mãos hábeis passearam por todo o meu corpo. Os olhos do

alemão se acenderam com a luz dourada, e as presas alongaram.

— Eu vou te mostrar, schatzi — Heinz sussurrou em meu ouvido —, que

o paraíso pode ser aqui na Terra.

E me mordeu.

★ ☽ ☯ ☾ ★

Clube Reich, uma semana depois


Aquela era uma noite especial no Reich, de celebração e tristeza.

Comemorávamos a vitória, mas também lembrávamos dos mortos em batalha.

Além disso tudo, seria especial também por outro motivo: revelaríamos um dos

meus novos poderes.

Sentei no banco do bar e cumprimentei a nova barwoman. Infelizmente,

Guto não estava mais entre nós, então sua esposa ocupou o lugar dele.

— Raylane, eu quero o especial, por favor. — Solicitei à garota baixinha,

de olhos expressivos e cabelos azul royal. Ela me deu um sorriso amistoso e

começou a misturar as bebidas com sangue.

Guto morrera lutando na batalha que eu havia começado naquela noite.

Não havia uma guerra sem baixas de ambos os lados, óbvio, mas saber disso não

diminuía minha sensação de culpa. A vida, entretanto, precisava continuar.

Provei um gole da taça oferecida e agradeci.

— Delicioso, como sempre. Como estão as coisas por aqui?


— Não é fácil viver com uma pessoa por décadas e, de repente, não estar

mais com ela. — Raylane deu de ombros. — A gente termina se acostumando

com a morte, mas, mesmo assim, não dói menos.

— Dói ainda mais. — Uma mulher que eu ainda não conhecia falou. Ela

encarava o copo vazio e remexia o gelo com o canudo. De estatura média e

cabelos com algumas mechas loiras, a garota parecia triste. Seus olhos escuros

me encararam com lágrimas não derramadas. — Nós agimos como se fôssemos

imortais, mas não somos. Nossa vida não é como a dos humanos, limitada pela

quantidade de anos, porém isso não quer dizer que ela seja infinita. — Ela

estendeu a mão para mim. — Sou a Giulia Giu.

Aceitei o cumprimento, seu aperto era quente e firme.

— Você perdeu alguém também?

Ela balançou a cabeça em negação.

— Não, mas perderei daqui a pouco por sua causa.


Senti uma onda de raiva em minha direção e logo imaginei de quem ela

estava falando. O poder que eu mostraria naquela noite era o da lâmina Zoe.

Heinz pediu por um voluntário que quisesse abdicar de seus dons como vampiro

e voltar a ser um humano. Uma mulher se voluntariou. A jovem Efigênia

demonstrou a clareza de um sábio diante de sua decisão. Eu conversei com ela

na noite anterior, precisava ter certeza que compreendia o que aconteceria para

reverter o processo, e não dei qualquer garantia de sucesso.

— Ninguém obrigou a Efigênia a aceitar, Gigi. — Raylane me defendeu

e ao mesmo tempo confirmou minhas suspeitas.

Outra mulher, mais loira e parecida com a Giulia, também de estatura

média e olhos castanhos, se aproximou. Ela colocou as mãos nos ombros da

garota.

— Desculpa, senhorita Isadora. Não foi a intenção da Gigi te chatear,

ninguém chatearia La Muerte de propósito. — Ela tentou rir, como se aquilo


fosse uma piada, mas eu podia sentir o seu nervosismo. — Ainda mais se a La

Muerte for a schatzi do Heinz. Eu sou a Deborah. Eu, Giulia e Efigênia

crescemos juntas e fomos atacadas por vampiros das docas quando voltávamos

de uma festa. Heinz nos salvou da morte e agora não nos conformamos que a

Geni vai nos deixar. Os pais e o irmão dela ainda estão vivos, somos vampiras

apenas há cinco anos, e ela quer voltar para casa.

Balancei a cabeça, compreendendo a situação.

— Entendo que estejam tristes, mas ela não vai morrer hoje. — Amenizei

a situação — Vocês não a perderão tão cedo.

— E faz diferença? Seja hoje, amanhã, em um ano ou dez ou vinte ou

cinquenta. A partir do momento que ela virar humana, cada segundo será um

passo mais perto da morte. — Giulia largou o copo e foi embora. A sua irmã,

Deborah, a seguiu sem proferir outra palavra.

Raylane recolheu o copo e começou a limpá-lo em silêncio.


— Quantos daqui me odeiam? — Perguntei.

— Não muitos, a maioria tem mais medo do que raiva. — Ela apontou

para a porta, e eu vi Ceci entrar com Takao, tia Luna e Isaac. — Se você der um

jeito nela, conquistará todos.

— Nela quem? — Questionei, surpresa, olhando para a pequena mulher

cujos cabelos brilhavam como halos dourados sob a luz intermitente. — Ceci?

Ora! Cecília era um doce de pessoa, não faria mal algum. Por que os

vampiros estavam implicando com ela? Não fazia o menor sentido.

— Com todo respeito, sei que ela é sua prima, mas está enlouquecendo

todo mundo! Pedindo amostras de sangue, pele, cabelo, datas de nascimento e

transformação. Enchendo cada um de perguntas sem fim.

Hum... Concordei, sabendo que isso seria bem típico de Cecília. Prometi

que conversaria com minha prima, ela tinha uma eternidade para pesquisar sobre

os vampiros, não precisava enlouquecer todos de uma vez só.


Levantei do banco com a bebida em mãos e fui cumprimentar minha

amada família. No caminho, acenei para as vampiras que conheci durante a

guerra, feliz ao ver que todas sobreviveram. Podia ver em seus semblantes a

esperança de um futuro melhor, sem ameaças. Pelo menos tinha algumas aliadas,

aquelas não pareciam sentir medo da La Muerte.

A maioria dos vampiros não sabiam do que meu sangue era capaz. Além

de Heinz e da minha família, apenas Petrus conhecia a verdade. Como o efeito

do meu sangue era passageiro, tínhamos medo que novos ataques acontecessem,

tendo a mim como alvo. Eu não queria passar a vida inteira com medo da própria

sombra, esperando o próximo ataque. Vampiros andando na luz do sol eram

duplamente perigosos para os humanos, e ainda havia o risco de exposição. Por

isso, eles pensavam que a profecia se tratava apenas da lâmina e nada mais.

Ceci e Takao levavam sua vida normalmente, trabalhando durante o dia.

Entreguei uma garrafa do meu sangue misturado ao de Heinz para cada um. Fiz
o mesmo com tia Luna e Isaac, que voltaram a morar juntos, e meu pai arrumou

documentos falsos para ela.

Meus pais, tanto os adotivos, quanto o biológico, não quiseram saber do

vampirismo, preferiam morrer como humanos. Eu ainda não estava preparada

para isso e torcia para que este dia demorasse a chegar. Mariana, filha de Luna,

ainda não sabia a verdade, seus pais estavam criando coragem para contar cada

detalhe. Não seria fácil descobrir que não era órfã e que os pais se

transformaram em vampiros.

Scar aguardava o julgamento em cárcere privado, mas com o depoimento

de Geórgia e dos outros humanos prisioneiros das docas, ela não escaparia da

penitenciária.

Heinz, em um terno escuro que mal escondia o tamanho dos seus

músculos e uma camisa no mesmo tom, surgiu no alto da sala VIP. Eu me

encostei na parede e o observei. Lembrei-me da primeira vez que o vi naquela


mesma sacada, dois meses atrás. Quanta coisa mudou! Eu achava que era uma

humana esquisita e que ele era algum chefão da máfia. Pensava que tia Luna era

uma alucinação infantil, como os psicólogos tentaram me fazer crer, e que não

havia nada de extraordinário em meu parto. Como estava enganada.

As luzes do clube esmaeceram, e um holofote branco acendeu no centro

do palco vermelho. Efigênia estava em pé, totalmente parada e vestida em um

robe negro que contrastava com sua pele alva. Os cabelos escuros, presos em

uma trança, caíam na lateral de seu ombro. Heinz surgiu ao meu lado e me deu

um leve aperto na mão.

— Está na hora, schatzi.

Acenei para ele e fui em direção a ela. Com a cabeça erguida, passei por

entre os integrantes do Reich para alcançar o palco. Subi os degraus. Um, dois,

três, quatro. Segurei as mãos frias e trementes da jovem mulher.

— Você tem certeza que quer isso? — Peguei a lâmina Zoe entre os
dedos e mostrei. — Vou atravessar essa lâmina em seu coração. Só fiz isso antes

uma vez, você será a segunda. Não posso garantir nada. Tem certeza mesmo?

— Sim, eu tenho. — Ela disse com convicção, apesar do receio em seu

olhar. — Sei do risco e não me importo. Se eu morrer, quero morrer tentando.

Odeio ser vampira, mas sou covarde demais para me matar. — Efigênia disse e

logo começou a chorar. — Fui tirada da minha família contra a minha vontade,

quero voltar para ela enquanto ainda posso.

Sua dor me compadeceu, e eu a abracei sem me importar com os

espectadores. Suas lágrimas molharam o meu ombro enquanto seu corpo tremia

de medo e tristeza, Segurei a lâmina entre os dedos e, ainda abraçada a ela,

atravessei seu coração. Uma luz dourada emanou de seu peito. De boca aberta,

Efigênia caiu de joelhos no chão. Puxei meu braço de volta, e o corte se fechou.

O Reich inteiro estava em completo silêncio, esperando para ver o que

aconteceria. A garota apoiou as duas mãos no piso e tossiu, cuspindo um pouco


de sangue. Dei apoio ao seu braço magro e a ajudei a se levantar. Ela pegou um

canivete do bolso e cortou a palma da mão. O sangue fluiu em um filete contínuo

e não se curou. Tentou também mostrar as presas e nada aconteceu.

— Eu sou humana. — Efigênia gritou em meio às lágrimas. — Eu sou

humana!!!

Aplausos e choros surgiram da plateia. A ex-vampira desceu do palco e

abraçou Giulia e Deborah. Muitas perguntas começaram a ser feitas ao mesmo

tempo, e eu levantei a mão para calar a todos.

— Muitos aqui já me conhecem, mas vou me apresentar oficialmente. Eu

sou Isadora Martins. Tenho outras denominações, sou La Muerte, protetora dos

inocentes. Este meu lado só é conhecido por aqueles que fazem mal aos

humanos. Também sou a Filha da Guerra, minha vinda foi profetizada há mais

de mil anos, e sou capaz de trazer o fim da escuridão aos vampiros que, assim

como a Efigênia, desejarem ser novamente humanos. Sou também a futura dona
do Reich, uma vez que aceitei o pedido de casamento do líder de vocês, Heinz.

— Pisquei um olho para o alemão, lembrando do seu pedido nos jardins, sob o

sol do meio-dia e entre as flores. — Eu sou Izzy, e comigo trago a esperança de

um futuro melhor.

Uma nova onda de aplausos se seguiu, e Heinz subiu ao palco para me

tomar entre os braços.

— Eu te amo, schatzi.

— Eu te amo, liebling. — Beijei sua boca macia, e a música voltou a

tocar.

De cima do palco, tive uma visão panorâmica do Reich. Agucei meus

sentidos e me permiti ver as auras dos membros: uma variação de dourado, verde

e vermelho, felicidade, esperança e paixão. Era aquilo que eu sentia também.

Encarei o marrom profundo dos olhos de Heinz e fiquei na ponta dos pés para

beijar sua testa.


Era impressionante como uma sequência de acasos me trouxe até aquele

ponto. O ponto onde eu deveria estar. Nós, seres vivos, humanos ou vampiros,

tínhamos o livre-arbítrio. Contudo, o Cosmos sempre descobria um jeito de

colocar o destino em nosso caminho. E eu sentia que meu lugar era ali, no Reich,

ao lado de Heinz e cercada de vampiros que juraram não machucar humanos.

Sentia também que meu propósito era muito maior.

Acariciei a tatuagem de borboleta — um lembrete da minha mãe e das

atrocidades que os vampiros eram capazes de fazer contra o mundo humano. De

mãos dadas com o Heinz, encarei os meus aliados do Reich. Eu era abençoada

pelos deuses não apenas pelos poderes que tinha, mas também pelos amigos que

conquistei. Unidos, éramos mais fortes. O Reich se tornou parte de mim, e juntos

poderíamos fazer a diferença para proteger a raça humana dos perigos da noite.
Capítulo 53 — Reencontro

LUNA

A minha pequena Isadora não era mais uma criança, ela cresceu e se

tornou fantástica. Não parecia a garotinha que se assustou quando percebeu pela

primeira vez que o meu coração não batia durante o dia.

Naquela época, eu tinha um rádio velho que encontrei perdido na rua, e

Izzy costumava ouvir música enquanto brincava com a boneca. Uma vez, ela

ouviu o rádio falar sobre o coração e colocou a mãozinha em cima do meu.

Quando acordei, Isadora chorava no canto do quarto, achando que eu estava

morta. Lembrei-me daquela noite:


“Feche os olhos, Izzy, concentre-se! Está ouvindo?”, pressionei minha

mão contra o seu peito.

Ela sorriu para mim.

“Sim, seu coração está batendo, tia Luna”

“Isto, minha flor, batendo igual ao seu”, retribuí seu sorriso.

“Mas não batia antes”, ela retrucou.

Meu sorriso desapareceu.

“É, eu sei, a tia estava apenas cochilando”.

Durante os anos em que passei encarcerada nos esgotos das docas,

sempre rezei para que Isadora estivesse feliz, saudável e livre. Tinha tanto medo

que a profecia fosse sobre ela, e todas as evidências apontavam para o sim. As

coordenadas para Monte Carlo, a data do seu nascimento marcada no Orakel.


Filha da mais bela, nascida da dor e da guerra. Era Isadora, eu sabia. E a cada

delírio de Scar sobre o que aconteceria quando a arma divina estivesse em suas

mãos, meu coração se enchia de pavor. Isadora era uma criança de alma pura, e

eu esperava que os anos não tivessem transformado minha princesinha.

Quando a vi forte e corajosa, lutando por justiça e pelos humanos, tive

certeza que os horrores em sua vida não haviam manchado sua alma. Ela era um

pouco mais violenta do que eu esperava, mas não se ganha uma guerra apenas

com pacifistas.

E ainda ganhei o melhor dos presentes, o meu marido Heitor.

Depois que a profecia foi realizada, o sol surgiu, e apagamos ainda no

cemitério. Eu nadava no nada escuro em que consistia o sono dos vampiros,

quando despertei. No entanto, mantive os olhos fechados, esperando passar mais

um dia de escuridão e dor, acreditando ainda estar presa em meu tormento diário

de tantos anos. Em vez disso, senti um sabor doce e forte em minha boca, um
sabor que não sentia há vinte e cinco anos. Abri os olhos e me deparei com

Isadora e seus grandes olhos verdes fixos em mim. Por trás dela, estranhei o que

parecia ser a abóbada de uma igreja. Olhei ao meu redor, vendo que eu estava

deitada no chão, entre bancos de madeira.

— Passamos o dia inteiro na igreja? — Eu me sentei e gritei ao ver o sol

brilhar através dos vitrais da janela. Perguntei com assombro. — É dia ainda?

Como?

Izzy levantou apressada e correu para o japonês, que ainda estava

desacordado no chão, ao lado de Heitor. Heinz permanecia parado perto de um

dos vitrais, deixando que a luz do sol tocasse a sua pele. A garota de cabelos

claros que segurou o Orakel estendeu a mão para me ajudar a levantar.

— Acho que é o sangue dela, tia. A nossa Izzy é cada vez mais poderosa.

Tia? A nossa Izzy? Franzi a testa, tentando lembrar quem era ela.

— Eu te conheço?
— Sou Cecília. — Ela segurou minha mão e apertou. — Prima da Izzy,

mas não prima como sua filha, Mariana. Sabia que ela é dentista? Eu não a

conheci, mas a Izzy, sim. Ela disse que é bonita. Eu acredito, porque você é

bonita, e Isaac é... Nossa! Não preciso dizer como Isaac é para você, né? Já foi

casada com ele. Ah, mas ele não é Isaac para você, é Heitor. Bem, eu sou

sobrinha de Alice, não tenho o sangue de Izzy. Não tinha antes. Porque agora eu

tenho o sangue dela em mim, literalmente. Então eu posso dizer que a gente é

parente de sangue. Isso é tão confuso, né?

— Ah... — Tentei processar tudo que ela falou, mas meu cérebro ainda

estava confuso pelos anos de privação e tortura. Achei melhor concordar. —Ah-

ham.

Pelo canto do olho, percebi quando Heitor se sentou. Ele esfregou o

pescoço, e eu me vi presa em sua figura. Heitor estava melhor do que minha

memória, como se o vampirismo tivesse concedido uma perfeição extra à sua


pele exuberante, removendo as poucas falhas que surgiram com a idade. Ainda

era o homem que amava, mas com um toque sobrenatural.

— Temos que ir, em breve a sacristia estará cheia. — Heinz me tirou dos

meus pensamentos. — Assim como as ruas. Vamos para a mansão, temos que

conversar sobre a noite passada e...

— Estamos cansados, eu praticamente morri e vi Cecília quase morrer.

Vou para a casa. — O japonês foi taxativo.

— Concordo, quero testar a resistência da nossa cama. — A garota loira

piscou um olho para o japonês. Era evidente que os dois tinham um

relacionamento.

Sem ter para onde ir, eu pretendia seguir o alemão, quando uma mão

grande pousou em meu ombro.

— Se você não se importa, Luna — Heitor me encarou com aqueles

quentes olhos pretos —, eu gostaria que fôssemos para minha casa.


— Sim, eu vou. — Disse com uma convicção que não sentia. Esperava

que os anos tenham permitido que meu marido me perdoasse por tudo que fiz.

Izzy me abraçou apertado e prometeu que nos encontraríamos após o

anoitecer. Cada casal correu para o seu destino, e eu segui Heitor para o meu.

O apartamento dele era no centro da cidade, no andar de cima da

Academia onde dava aula como Isaac, a nova identidade que assumiu. Era perto

de onde Isadora morava. No primeiro momento, fiquei surpresa ao perceber que

ele tentou ajudar minha sobrinha, mesmo que não tivesse obrigação nenhuma.

Depois, percebi que não deveria estar surpresa, Heitor sempre foi um grande

homem.

Assim que entramos no apartamento de um quarto só, pedi toalhas. Eu

não tomava um banho decente havia trinta anos, e ainda tinha sido jogada na

terra por Scar, lá no cemitério. Fiquei com pena de deixar pegadas de lama por

todo o piso, mas os pés de Heitor estavam igualmente sujos. Não havia muito o
que pudéssemos fazer sobre isto, além de limpar depois. Ele me entregou o que

pedi, junto com uma camisa e um calção de pijama. Agradeci antes de me

trancar no banheiro da suíte.

Era tão estranho trocar palavras com alguém depois de tantos anos se

recusando a falar. Principalmente com ele, um homem que julguei ter matado

décadas atrás. Heitor estava vivo, de certa forma, mas seu amor por mim parecia

ter morrido. Exceto por alguns relances, meu marido, se é que ainda podia

chamá-lo assim, se mostrou distante. Talvez ele estivesse com outra pessoa,

tivesse seguido em frente. Eu esperava que fosse feliz.

Sentei no vaso de porcelana branca e comecei a chorar. Nossa! Coisa

mais trivial para uma vampira fazer: chorar em um banheiro como uma

adolescente tola! Minhas lágrimas, no entanto, eram por um misto de

sentimentos. Dor pelos anos em que fui torturada, felicidade por saber que minha

filha, Heitor e Isadora estavam vivos, alívio por estar livre. Por tanto tempo
desejei a morte! Agora não sabia o que fazer com a vida que tinha. Choramingar

no vaso sanitário não ajudaria. Fui para debaixo do chuveiro, ansiosa para lavar

os meus cabelos e... Ah... Heitor era careca, não havia xampu ali. O jeito foi

lavar toda a sujeira de trinta anos com sabonete. Quando terminei e tentei me

pentear, nem mesmo com a genética superior dos vampiros consegui domar a

juba que ficou. Parecia que eu tinha colocado o dedo na tomada. Pelo menos,

estavam limpos. A roupa de Heitor ficou enorme em mim, mas tive que jogar

fora a minha. Lavar não seria suficiente para aqueles trapos velhos.

Abri a porta na intenção de pedir uma caneta para prender meu cabelo,

quando me deparei com Heitor apenas com uma toalha ao redor da cintura.

Sempre um entusiasta do esporte, seus músculos definidos brilhavam com

algumas gotas de água sobre a pele negra. Minha garganta ficou totalmente seca.

Eu não fazia sexo havia três décadas. Desviei o olhar para não pensar naquilo.

— Você tem uma sacola de lixo? Joguei o vestido velho que usava no
chão, estava imprestável.

Ele ficou de frente para mim, me estudando, sem mover ou falar. Quando

eu ficava nervosa, mexia na minha aliança, ficava circulando-a ao redor do meu

dedo. Nem isso eu não tinha mais, tiraram tudo de mim. Deveria me controlar

melhor. Eu tinha mais de setenta anos, não deveria sentir mais nervosismo.

Idade, o estado do meu cabelo ou ele estar provavelmente nu por baixo daquela

toalha eram coisas irrelevantes perto do fato de que Heitor estava vivo, apesar de

eu tê-lo matado, de certa forma.

— Desculpa por... — Não consegui terminar a frase.

Heitor levantou uma sobrancelha.

— Por?

— Destruir nossa família. — As lágrimas ameaçavam surgir de novo, e

eu sentei na cama macia de lençóis brancos. Eu fui forte por tantos anos, como

humana e como vampira, e agora só queria sucumbir ao alívio de saber que era
um pouco menos assassina do que havia pensado. — Tudo aconteceu tão rápido,

e quando vi, tinha matado duas das pessoas que mais amava no mundo.

Ele se moveu em velocidade vampírica. Aquele homem alto e forte que

continuei a amar, mesmo após sua suposta morte, ajoelhou-se aos meus pés e

secou as lágrimas com as pontas dos dedos.

— Por muito tempo me perguntei como você teve coragem de fazer

aquilo comigo e com a sua irmã. Nunca disse isso para ninguém, mas a última

coisa que me lembro antes de desmaiar e acordar como vampiro era de você

preste a morder uma recém-nascida. Uma bebê que arrancou do ventre de sua

irmã. Entendia a sede de sangue, porém acreditava que você era um monstro. Eu

não disse para Isadora, mas nos primeiros anos te cacei e tentei proteger

Mariana, achando que você poderia machucá-la também. Caçar algo odiado é

fácil, mas perseguir uma pessoa que ama, na intenção de matar, é uma verdadeira

tortura mental. Eu tinha esperança que você tivesse voltado a si, no entanto, a
cada ano que você nunca tentava contatar Mariana, eu ficava mais angustiado.

Sabia que teria procurado sua filha para saber se ela estava bem...

— Eu não podia arriscar por causa da Isadora, e depois fui mantida em

cativeiro. — Respondi somente. Eram minhas únicas justificativas.

— Sei disso, demorou, mas entendi. Quando vi Isadora pela primeira

vez, senti uma alegria indescritível. Se aquela garota estava viva, você não era

um monstro, a manteve viva e saudável para que atingisse a idade adulta. A

alegria que senti logo se transformou em preocupação. Izzy não sabia de sua

origem e não fazia ideia de quem você era, ou eu achava que não sabia. Por isso

a ensinei a lutar e treinei sua força, queria que ela aprendesse a se defender. Não

pude ajudar Isabela, mas tentei compensar com sua filha.

Se fosse possível, eu o amaria ainda mais. Toquei em seu rosto, sentindo

a textura macia da pele. Um gesto que era corriqueiro no passado, e agora

parecia tão precioso.


— Será que um dia você vai me perdoar?

Ele se levantou e sentou ao meu lado, e a cama afundou sob o seu peso.

— Por mais que uma pequena parte de mim duvidasse, já tinha te

perdoado. Quando te vi subjugada por aquela mulher, tudo que eu queria era te

proteger e estar ao seu lado.

— Nunca deixei de te amar, sofri todos esses anos por sua perda. —

Respondi e envolvi meus braços ao redor de seu corpo, trazendo-o mais para

perto e sentindo o calor de sua pele.

— Eu também, amor.

Ficamos o resto da manhã deitados e abraçados naquela cama,

conversando sobre os trinta anos perdidos. Não importava que ele estivesse só de

toalha, e eu, com sua camisa folgada demais para o meu corpo. Teríamos todos

os séculos para fazer sexo, aquele momento era inestimável.


Semanas se passaram antes que a gente pudesse ver Mariana. Nossa filha

não quis acreditar em Isadora, então tivemos que fazer um tratamento de choque.

Pensei que nossa filha teria um ataque cardíaco quando nos viu. E quase tive um

também, minha menina estava crescida e já era mãe. Eu era avó!

Não foi fácil convencer Mariana que não éramos perigosos para conhecer

minhas netinhas, mas quando ela nos permitiu... Segurar aquelas duas

preciosidades no colo foi uma sensação de paz e alegria indescritível. Nós

prometemos cuidar de todas as gerações, dos netos, bisnetos, tataranetos... A

família Neves teria dois protetores para o resto da eternidade.


Capítulo 54 — Por toda eternidade

Do quarto que ocupei nos últimos dias, no primeiro andar da mansão de

Heinz, tive uma visão privilegiada do quintal. Estava todo florido e iluminado,

com um gazebo de madeira esculpido à mão. Vários convidados andavam em

roupas formais, bebericando e conversando.

— Venha, quero ajeitar o seu cabelo. — Tia Luna, em um belo vestido

bordô e com a força recuperada após uma alimentação apropriada, me chamou e

secou as lágrimas que insistiam em rolar por seu rosto. Ela olhou de mim para

Mariana e abraçou as duas. — Pelo menos uma das minhas meninas eu verei

subir ao altar.

Nós a abraçamos, éramos uma família de novo. Não foi fácil contar a

verdade a Mariana, primeiro eu fui sozinha e disse a história toda, e ela pareceu
bem compreensiva, até ofereceu um café. Esperei dentro do consultório

odontológico enquanto minha prima foi pegar a bebida na recepção. Mariana

demorou alguns minutos a mais do que o necessário. Achei que estava

processando toda a informação recebida, no entanto, em vez de voltar com o

café, chegou com dois seguranças do prédio que me arrastaram para fora. Ela

pensou que eu era algum tipo de louca psicopata. Quem poderia culpá-la, não é?

Já que sutileza não adiantou, Luna e Isaac tentaram uma abordagem mais

direta. Mariana desmaiou ao ver os pais vivos e com a aparência mais jovem do

que a dela. Todos tivemos que conversar com Mariana, até Heinz e Tom, para

que entendesse o que acontecera. Meses se passaram antes que minha prima

perdesse o medo e aceitasse que os pais conhecessem suas filhas. O encontro

deles com as netas foi mágico. As crianças não sabiam que eram os avós

(pensavam que se tratavam de tios distantes) e muito menos desconfiavam que

eram vampiros. Quando crescessem, descobririam a verdade também.


— Eu quero abraço também! — Ceci pulou em cima da gente. Tia Luna

a “adotou” como sobrinha. Não que tivesse muita escolha, ninguém resistia à

Cecília. Ela casou na igreja com Takao meses atrás. Ninguém desconfiava que

eram vampiros. Enquanto pudessem, continuariam agindo como seres humanos

comuns, depois teriam que fingir um acidente ou algo do tipo e fazer uma nova

identidade.

Eu também teria que fazer isso no futuro...

Minha mãe adotiva, Alice, observava a cena com um sorriso estampado

no rosto. Eu a puxei para o abraço coletivo. Foi meio estranho nas primeiras

semanas após a profecia. Alice se culpava por Luna ter se tornado vampira, Luna

se culpava por ter matado minha mãe e me transformado na bizarrice que sou, e

eu me culpava pelo trabalho que dei às duas enquanto crescia. Depois que

superamos a fase constrangedora de culpa mútua, elas perceberam que tinham

uma coisa em comum: eu. Quando se juntavam para falar como eu era
maravilhosa e todas as coisas fantásticas que fazia, eu até saía de perto. Não

aguentava mais ouvir as mesmas histórias, cada uma mais enfeitada que a outra.

“Mamães corujas”, isso que Luna e Alice eram.

Meus dois pais estavam lá embaixo, ao lado de Heinz. Eles o ameaçaram

com promessas de sofrimento e dor, caso o alemão me fizesse sofrer, o que era

até bonitinho, afinal o que dois velhos poderiam fazer contra o dono do Reich?

Eles confiavam desconfiando de Heinz. Pelo menos eles concordaram em

alguma coisa. Não aguentava mais os meus dois pais disputando por minha

atenção, quando, na verdade, ambos eram importantes para minha vida.

Enquanto alguns me queriam por perto, os vampiros de Monte Carlo, os

que não eram meus amigos, me temiam. O que era ótimo, já que se tornou cada

vez mais raro alguém tentar desviar da linha. O Reich passou a monitorar as

cidades circunvizinhas, e todos os meses expandíamos para mais longe,

eliminando beberrões por todo o país. La Muerte estava se tornando sensação


nacional, o bicho-papão dos vampiros, uma história que os mais velhos

contavam aos recém-transformados para assustá-los. Eu adorava demais aquilo!

— Schatzi, vai demorar muito? — Heinz perguntou através da porta. —

Todos os convidados chegaram.

— Relaxa aí, alemão — Ceci o provocou —, vocês ficarão juntos para

sempre. Literalmente. Uns minutos a mais, uns minutos a menos não farão

diferença.

— Farão sim, há uma eternidade que espero por ela.

Sua declaração foi seguida por um “ownnn” coletivo, não só das

mulheres que estavam dentro do quarto: por causa da audição vampírica, todos

na casa escutaram. Ele era tão romântico, que eu tinha dificuldade de retribuir à

altura. Como não conseguia me igualar nas palavras românticas, compensava

nos orgasmos. Achava uma troca justa.

Sentei na cadeira para ser maquiada. Com duas vampiras e duas humanas
me ajudando, fiquei arrumada em uma velocidade excepcional. Luna, Alice,

Ceci e Mariana me olhavam como se eu fosse alguma princesa.

Lá fora, a música começou a tocar, e Heinz pisou no tapete vermelho

sozinho. Ele andou entre os convidados, que permaneciam em pé, cumprimentou

alguns e sorriu para todos, até parar embaixo do gazebo, onde um juiz — que

sabia a verdade sobre vampiros porque foi frequentador do Reich quando mais

novo — aguardava. Suspirei ao observar aquele homem através da janela,

lembrando o tempo em que o odiei. Achava que era o inimigo, que tinha

sequestrado minha tia.

Heinz... Um nome que passou de temido a amado. Ele enfrentou tanto

para chegar na posição de poder que estava e era um líder nato, não apenas por

sua força física, mas também pela força de seu coração, sempre preocupado com

a segurança e o bem-estar de seu povo.

Uma mão pousou em meu ombro, e eu me virei para encarar um choroso


Tom. As mulheres saíram do quarto, deixando-me sozinha com ele:

— Obrigado.

Franzi a testa, sem compreender por que ele estava agradecendo.

— De nada.... Pelo quê?

— Por existir, por estar viva, por ser essa mulher incrível, por ser minha

filha... — Meu pai acariciou meu rosto. — Eu tenho tanto orgulho de você, de

sua força. Você é fantástica, Isadora. Em nome dos humanos de Monte Carlo e

de todo o Brasil, obrigado por existir. Também pela honra de te levar ao altar. Eu

te amo, filha.

Eu o abracei com carinho. Ele, sim, era um homem fantástico. Se a sede

de justiça for algo genético, eu herdei dele, e o calor de seu corpo me enchia de

paz. Ele beijou minha mão, em cima da tatuagem de borboleta, e eu tentei

controlar as lágrimas que ameaçavam cair.


— Eu que agradeço por me aceitar apesar de toda bizarrice.

Meu pai adotivo, Fernando, surgiu na porta. Seu semblante era quase

orgulhoso, ainda que estivesse inconformado que eu tivesse me transformado em

vampira por completo. Eu sabia que ele me amava, apenas era meio difícil, após

a traição de minha mãe, aceitar qualquer coisa ligada ao mundo vampiresco.

Soltei Tom e o abracei. Os dois tinham discutido muito sobre quem me levaria

ao altar e terminaram chegando ao acordo que deveria ser o sargento, já que ele

perdera todos os outros eventos importantes da minha vida. Naquele momento,

entretanto, parecia um acordo meio injusto.

— Vocês dois me dariam a honra de me levar ao altar, por favor? —

Implorei. Eles se entreolharam e terminaram concordando. Estenderam o braço

para mim, e eu aceitei.

Ladeada pelos meus pais, desci as escadas com confiança, sem contar os

passos. Aquele seria o meu novo lar, não precisava mais memorizar as rotas de
fuga. Caminhei pelo tapete vermelho sob o olhar atento de dezenas de vampiros

e de alguns humanos. Não desviei a atenção para nenhum deles, meu foco estava

no alemão à minha frente.

Heinz segurou minha mão, e a cerimônia foi iniciada. As frases ditas pelo

juiz eram parecidas com as de um casamento comum, exceto pela parte do “na

saúde e na doença”, que fora suprimida. Os votos, no entanto, foram escolhidos

por nós. Heinz — tão lindo em seu fraque — me deu um beijo rápido antes de

dizer:

— Às vezes, me pego olhando para você e penso que o abençoado sou

eu. Talvez os deuses soubessem o que o meu coração desejava, mesmo que eu

não fizesse ideia. Nunca pensei em dividir minha eternidade com ninguém.

Depois de muita morte, dor e sofrimento que vi e vivi, achei que fosse melhor

não me apegar a outra pessoa. Porém, você não me deu outra opção. Eu me vi

fascinado por esta mulher incrível que me conquistou no primeiro olhar


assassino. Ich liebe dich, schatzi.

Ceci deu uma risadinha e sussurrou para Takao: “esse que é o verdadeiro

olhar quarenta e três”, o que me fez rir enquanto secava minhas lágrimas de

emoção. Só Heinz para dizer um discurso maravilhoso e me fazer esquecer tudo

que tinha planejado para aquele momento. Olhei para ele e percebi que palavras

não eram tão importantes, sempre fui uma pessoa de ação.

— Ensaiei tantas vezes o que te dizer hoje, queria falar algo especial e

profundo, mas não consegui sintetizar em poucas palavras tudo o que sinto por

você. Foi quando percebi que não importa se tenho ou não a frase perfeita neste

momento, pois terei a eternidade para demonstrar o quanto eu te amo. Ich liebe

dich, liebling.

— Pelo poder a mim concedido — o juiz sentenciou —, eu vos declaro

marido e mulher.

Trocamos as alianças e nos beijamos, seríamos schatzi e liebling por toda


a eternidade.

Nós brindamos e comemoramos com nossos amigos e familiares. Ceci

reclamou que a gente estava com o quintal cheio de vampiros, mas que a festa

era parecida com a dos humanos, só que servindo sangue e vinho em vez de

refrigerante. Eu a animei, lembrando que depois que retornássemos da lua de

mel na Alemanha, já organizaríamos o Festival de comemoração do fim do

verão. Ela olhou para os brotos de dama-da-noite espalhados no quintal e sorriu,

satisfeita.

Heinz me abraçou por trás e beijou o meu pescoço:

— Quero conhecer o mundo ao seu lado, schatzi.

Virei-me e passei os braços ao redor do seu pescoço.

— Achei que você diria que eu sou o seu mundo. — Pisquei um olho

para provocá-lo.
— Mundo é pouco. — Minha pele se arrepiou quando ele raspou a presa

na lateral da minha garganta. — Você é meu universo.

Revirei os meus olhos para o seu excesso de romantismo e o puxei pela

gravata até o andar superior. Deixamos a festa rolando e fomos para o nosso

quarto. Tinha a eternidade para me preocupar com o mundo. Naquele momento,

eu só queria alcançar as estrelas ao lado do meu amor.


Epílogo

Três anos depois

La Muerte virou uma lenda contada entre as tribos vampíricas do mundo

inteiro. Talvez porque a gente tenha, de fato, viajado por todos os continentes,

conhecendo vampiros e deixando o planeta mais seguro para aqueles que não

podiam se defender.

O Reich sempre seria o nosso lar, mas Heinz não se sentia mais tão preso

ao clube. Com a realização da profecia e os vampiros das docas exterminados,

Monte Carlo se tornou um lugar seguro para se viver. Até porque eu não fui

abençoada pelos deuses para ficar presa a apenas um lugar, precisava ajudar a

humanidade, mesmo que ela nunca soubesse.


Após três anos naquela empreitada, resolvemos tirar uma semana de

folga e viajamos pela segunda vez para a Alemanha. Ao contrário da lua mel,

quando ficamos em cidades mais turísticas, dessa vez fomos para um lugar mais

especial.

— Aqui seria o mais perto de onde eu nasci. — Heinz me disse assim

que começamos a andar pelas ruas da pitoresca cidade de Bramsche. — As

antigas fronteiras não existem mais, não sei exatamente onde minha tribo viveu.

Porém, diziam que o tataravô do antigo chefe da minha tribo estava vivo na

Batalha da Floresta de Teutoburgo.

— Teutoburgo? Nunca ouvi falar, aconteceu aqui em Bramsche? —

Perguntei, curiosa, olhando para ruas de pedras vermelhas e cinzas.

Eu me sentia como a Dorothy, pisando em uma estrada de tijolos

coloridos. As casas, a maioria em arquitetura alemã — que, considerando que

estávamos na Alemanha, era a arquitetura normal deles — tinham uma beleza


interiorana fantástica. Poucos carros eram visíveis, a maioria das pessoas andava

de bicicleta ou a pé. Eu não conseguia imaginar uma batalha naquela

cidadezinha com lojas de vitrines perfeitamente limpas e lanchonetes com mesas

convidativas na calçada.

— Não exatamente, foi na floresta. As tribos germânicas colocaram o

exército romano para correr, eles ficaram na fronteira depois do rio Reno, e nós

ficamos com este lado. Está vendo ali? — Ele apontou para uma igreja com

telhado marrom e várias torres. A torre mais alta, no entanto, tinha as telhas

negras. Uma plaquinha rústica dizia “Kirche St. Martin”. — Eu fiquei ali por

séculos, escondido no subsolo até... Você sabe...

— Scar te dar sangue, e vocês dois fundarem o Reich. Só para depois

perceber que ela era uma louca que se achava uma deusa e desprezava a

humanidade?

Ele levantou os ombros e respondeu:


— Resumindo, sim.

Encarei o nome Martin na placa da igreja. Era meio estranho que a igreja

onde Heinz hibernou por séculos tivesse o nome do santo quase igual ao meu

sobrenome. Seria o destino ou apenas um acaso? Lembrei-me do Orakel.

Duvidava que existissem muitos acasos na minha vida e na de Heinz.

Voltamos para a pousada, ela seguia o mesmo padrão das outras casas:

janelas grandes com canteiros de madeira escura. Heinz entrou no chuveiro

enquanto eu acendia a lareira. O fogo crepitava em chamas laranjas. Aproximei

minha mão das labaredas, eu não sentia o calor da chama e tampouco o frio dos

graus negativos que fazia lá fora. Não estava reclamando, não sentia falta de ter

o cabelo grudando no pescoço por causa do suor, mas era estranho como a

temperatura sempre estava amena. Esperava que o quarto estivesse mais

aquecido para quando Heinz saísse do chuveiro. Ele não era susceptível ao frio

como um humano, mas não era imune como eu.


— Vem ou não, schatzi? — Ele chamou. Tirei minhas roupas e as

coloquei dobradas na cadeira revestida de veludo azul. Quando abri a porta do

banheiro, eu pude ver o vapor quente pairando no ar. Heinz, em toda sua gloriosa

nudez, estava embaixo do jato de água. Fiquei parada, observando sua beleza

exuberante. Ele se esfregava devagar, montando um pequeno show só para mim.

— Vai ficar só olhando?

— Depende. — Retruquei.

— De quê?

— Ah, se você vai ou não ajudar a me limpar. É que eu esqueci como se

faz isso.

A expressão maliciosa dele devia se igualar à minha, e logo nós nos

perdemos no corpo um do outro em cada lugar daquele quarto de hotel. Horas

depois, estávamos em um pequeno e aconchegante bar, bebendo cerveja, apesar

do suposto frio.
— Eu acho que esse é o nosso primeiro encontro. — Disse enquanto

limpava um bigode de espuma em seu rosto.

Heinz revirou os olhos.

— Schatzi, estamos juntos há três anos, tivemos centenas encontros.

— Só se você contar como encontro enfiar uma agulha em meu pescoço,

invadir o meu apartamento à noite ou bombardear as docas até abrir um buraco

no chão e me encontrar. — Pisquei um olho para ele, falando sem me preocupar

com alguém por perto. O bom de estarmos fora do Brasil é que podíamos

conversar livremente em português, e ninguém iria nos entender.

Ele parecia ultrajado, como se a ideia de não ter um encontro decente

comigo fosse absurda.

— E a nossa lua de mel? Paris? Egito? Califórnia? Rio de Janeiro no ano

passado?
Comecei a enumerar com os dedos:

— Não saímos do quarto, vampiro exibicionista na torre Eiffel, suposto

ser sobrenatural no Cairo, vampiro homicida na praia e estuprador na Lapa.

Admita, essa é a primeira viagem que fazemos sem a intenção de matar

ninguém.

— Se quiser, a gente poderia ir à Zurique procurar algum vampiro

transgressor. — Ele piscou um olho para mim.

— Hummm... Tentador, mas não. — Beijei seus lábios e devolvi a frase

que ele dissera tantos anos atrás, no primeiro festival de fim de verão. — O que

eu quero já está aqui comigo.


Outras obras da autora

Limbo

Oito minutos e vinte segundos.

Este era o tempo de vida que restava na Terra após a explosão do sol.

Quando a onda de destruição da supernova alcançar o planeta, não haverá mais

nada.

E depois disto? Esta era a grande incógnita. Seria o mais cético entre nós

capaz de descobrir o que aconteceria após o fim?


Parte I – Relativo

“Estou cansado de esperar

Pelo fim de todos os dias

Os profetas estão pregando

Que os deuses estão precisando de louvor”

(End of all days – Thirty Seconds to Mars)

O mundo sempre me pareceu tão vasto, repleto com uma infinidade de

possibilidades a meu alcance. O meu futuro era como uma tela em branco,

pronto para que eu traçasse todas as linhas que dariam cor à minha vida.

Mudei os canais da televisão, apesar de todos alertarem a mesma notícia.

Não muito diferente do que acontecia todos os dias, quando os jornais passavam

a mesma notícia de novo e de novo e nada era realmente novo, tudo parecia uma

reinvenção do que já foi inventado em tempos passados. Talvez esse fosse o


motivo dos mais velhos dizerem que minha geração estava perdida. Os ideais e

inovações eram tão rapidamente assimilados que se perdiam no limbo

tecnológico e ficavam obsoletos.

Esta, entretanto, era a parte que eu mais admirava na humanidade: a sua

imensa relatividade. O que era uma verdade absoluta hoje, poderia ser refutada

amanhã. Não existia certo ou errado, santo ou pecador, tudo dependia do ponto

de vista de cada um. O ser humano era como o Yan e o Yang, um equilíbrio

constante entre o bem e o mal. Eu apertava com tanta força o controle remoto em

uma mão e o celular na outra, que me assustei quando este vibrou com uma

mensagem:

“Espero que você consiga ler isto, tentamos ligar, mas a chamada não

completou. Estamos presos no trânsito, talvez a gente não consiga chegar. Saiba

que amamos demais você e sua irmã, são a nossa razão de viver. Não importa o

que aconteça, jamais esqueça disso. Fique com ela, não a deixe sozinha. Nunca
pensei que isso fosse possível, tudo que sempre desejamos foi ver vocês

crescerem e vencerem na vida e agora... Nosso único desejo é que a gente se

encontre de novo, no modo que for. Amamos vocês, mamãe e papai.”

Parei em um canal com a tela negra e a imagem de um relógio com o

contador congelado em oito minutos e vinte segundos. Nada mais era relativo, a

única certeza eram aqueles números. Larguei o controle e o celular no chão, de

nada adiantavam. Ora, se nem mesmo a mais moderna tecnologia da NASA era

capaz de parar a catástrofe mundial que se seguiria, imagina um celular

arranhado e o controle da velha tv? Nenhum deles seria capaz de trazer meus

pais para casa. Sequei as lágrimas que rolavam por minha face, eu jamais os

veria de novo.

O fim se agigantava no horizonte, as questões que vivi como ser humana

pareciam tão triviais.

Encarei as minhas mãos ainda úmidas pelas lágrimas e pensei em como a


cor da pele era importante para algumas pessoas. Como se a falta ou o excesso

de pigmento definisse o caráter. Tolos! Por mais que eu admirasse a inconstância

da natureza humana, nem tudo no mundo era relativo. Havia algo que não foi

previsto pelos cientistas e que tornaria etnia, situação econômica, padrão de

beleza, gênero, orientação sexual ou política, irrelevantes.

Um evento que mostrava a verdade sobre o mundo: não passávamos de

poeira cósmica para o universo.

Minha irmã chorou, implorando por atenção. Nossa! Eu estava mesmo

aqui divagando quando deveria permanecer junto da única pessoa que amava em

todo o quarteirão? Levantei-me do sofá que um dia foi marrom e segui em

direção ao quarto pintado de rosa e branco que em breve estaria coberto de

cinzas. Na verdade, acreditava que em poucos minutos, a casa inteira não

existiria mais.

Não era loucura minha e tampouco pensava em explodir a minha família.


Lá fora um estrondo balançou de novo as paredes que mantinham um teto sob

nossa cabeça. Corri e agarrei a pequena Amanda no colo. Seus bracinhos

agarraram meu pescoço, assustada, ela chorava contra o meu peito. Acariciei

seus cabelos e cantei para acalmá-la.

Ela, no entanto, podia ouvir como o meu coração batia acelerado contra a

lateral do seu rosto. Pela janela, vi que o céu continuava em uma cor estranha,

um laranja que não se assemelhava com o alvorecer.

Amanda não era a única a derramar lágrimas.

Oito minutos e vinte segundos.

Este foi o tempo que nos foi dado para que pudéssemos nos despedir de

nossos amigos e familiares, de nossa vida. “O sol explodiu”, eles disseram. Os

cientistas se enganaram, ele não se tornará uma anã branca daqui a bilhões de

anos. O sol se desfez em milhões de pedaços.

O tempo era curto demais, meus pais ficaram presos no trânsito, não
conseguiram chegar. Liguei para alguns amigos, mas a maioria não atendeu.

Estavam desesperados em seus próprios mundos. Antes da internet cair, cheguei

a ver a hashtag do momento: #OFim.

Verifiquei meu relógio: agora faltavam apenas três minutos de vida até a

supernova nos alcançar. Depois disto? Fechei os olhos e tentei apreciar os

últimos cento e oitenta segundos que me restavam.

Depois disto não haveria mais nada.


Obstinada

Diana "The Red Rose" Clark sempre quis ser uma lutadora como o pai.

Porém, os troféus de boxe que ostenta em suas prateleiras não são suficientes.

Ela quer mais. Muito mais. Deseja estar ao lado de grandes competidores nas

lutas mistas e, para isto, precisará ir além dos socos e cruzados de esquerda.

Victor Bersanni é um ex-medalhista olímpico que teve seu nome e

carreira jogados na lama após ser pego no antidoping pelo uso de esteroides.

Como especialista em judô e jiu-jitsu, ele está fadado a treinar lutadores, não

mais em ser um. Tentar a sorte nos Estados Unidos se torna a única opção que

lhe resta.

Se quiserem alcançar o sucesso em suas carreiras, precisarão aprender a


confiar um no outro.

Vencer é apenas o começo.


Prólogo

Era uma noite fria de inverno em Nova Iorque. A fina nevasca nos pegara

de surpresa, por isso mamãe me comprou um casaco novo. Preto, de linhas

rosas. Lindo. O couro macio estava úmido por fora, e meu dedo deslizava

preguiçosamente pelo tecido enquanto esperava nossa vez na fila.

Eu amava a neve. Peguei um punhado para fazer uma bola e jogar no

meu irmão, mas o gelo derreteu por completo quando entramos naquele lugar

imenso. Perguntei o porquê para mamãe, e ela apontou para um objeto no canto

da parede, o aquecedor. Meus dedos voltaram a fazer círculos no casaco

enquanto encarava com raiva o aparelho grande.


Estava pensando em qual mágica seria capaz de fazer a água mudar de

forma tão rápida e mal percebi que finalmente havíamos entrado na arena. Não

era como o pequeno ringue em Phoenix, onde meu pai costumava treinar. Eram

muitas pessoas ao meu redor! Sons, aromas e barulhos diferentes dos diversos

cenários criados em minha mente. Esqueci-me do frio, da água ou da neve,

mesmo que no dia seguinte ela poderia estar derretida antes que eu tivesse a

chance de brincar. Não me importava mais.

O casaco preto com linhas rosas se encontrava dobrado no braço do meu

assento havia uns vinte minutos. Primeira fila. Lugar de honra. Fiquei em pé,

para ter mais um relance da multidão, antes das luzes esmaecerem e os holofotes

se voltarem para o ringue. A arena estava quente e abafada, como se a existência

daquele ambiente desafiasse o próprio clima. Não apenas por causa do velho

aquecedor, mas também pelas pessoas e pela vida que emanava delas.

Lembrei-me das palavras de minha mãe: “A arena não é lugar de criança,


filha! Ainda mais de uma menina! Você vai ficar assustada com toda a gritaria,

com os homens fortes com cara de mau.”

Eu não fiquei assustada.

Ok, talvez um pouco. O homem que nos deixou entrar e que mostrou o

local em que ficaríamos era muito alto e forte. Os braços estavam cheios de

tatuagens despontando por baixo da camisa escura, que mal conseguia esconder

os músculos. Mas então ele sorriu e bagunçou minha trança em um cumprimento

estranho de adulto. Não entendo por que a maioria faz um cafuné na cabeça das

crianças como se fôssemos algum tipo de bicho de estimação. Mas o careca

estava feliz por finalmente conhecer os pequenos Clark, por isso sorri de volta

para ele.

E aquele sorriso não morreu dentro de mim. Ficava cada vez maior, a

cada passo dado entre as fileiras de cadeiras gastas e desconfortáveis. Quando

tomamos o nosso lugar, olhei para a frente, para o local mais importante daquela
imensidão. Meus pés não alcançavam o chão, e eu os balançava com ansiedade.

Os sapatos brancos de boneca captavam a luz colorida dos holofotes, e eu podia

ouvir as pessoas gritando e batendo palmas.

Não me deixaram com medo, como mamãe achou que fariam, eu queria

gritar e bater palmas com elas. O cheiro não era dos melhores, nisso eu

concordava. Vovó me colocou no colo, e assim pude enxergar melhor. Ela era a

maior fã do meu pai, mais do que eu e a mamãe juntas! Ouvia isso dela sempre,

mas não quando minha mãe estava por perto. Jamais perdia uma luta. Mesmo

quando estava hospitalizada, acompanhava tudinho pela televisão.

Eu nunca tinha ido a uma luta do meu pai. Era muito nova, e ele precisou

cobrar milhares de favores para permitirem que seus filhos — eu e meu irmão,

Derek — pisassem na arena. Convencer mamãe a nos deixar ir foi ainda mais

complicado.

Não tinha certeza de quando tudo começaria, então eu esperava. Mesmo


que estivesse muito agitada para dormir, a minha hora de sono já havia vindo e

passado. E eu começava a compreender porque as pálpebras de Derek fechavam

e abriam preguiçosamente. Encostado na nossa mãe, ele parecia mais inclinado a

cochilar do que qualquer outra coisa. Espiei novamente o ringue iluminado, à

procura do meu pai, porém não o encontrei em lugar algum.

As cordas vermelhas estavam esticadas, o chão branco, manchado, e o

juiz, aguardando a entrada dos competidores. O narrador, um homem alto e

magro, com cabelos grisalhos e roupas pretas, subiu ao ringue com um grande

microfone na mão. Sua voz era profunda e ecoava por todo o estádio:

— Vocês estão prontos para a luta do ano? — Ele pausou para ouvir o

urro empolgado da multidão. — De um lado, teremos o atual campeão, Josh

“The Decalion” Dreston, e disputando o cinturão de ouro, o desafiante invicto

deste campeonato, Daniel Clark, o Machine Gun!

A multidão se levantou e começou a gritar. Alguns tinham cartazes


coloridos com o apelido do meu pai. Eram fãs enlouquecidos por estarem perto

do ídolo. Estava impressionada, papai tinha torcida! Meu coração pulava ao

ritmo dos gritos, as vozes pareciam me preencher e dar forças. Papai se tornou o

Machine Gun por causa da metralhadora de socos que usava para nocautear os

oponentes. Ele era o pugilista do momento, o boxe estava no coração dos

americanos, e Daniel Clark era a nova sensação mundial.

Os holofotes se dirigiram para as cortinas grossas de veludo à minha

direita, e papai surgiu em meio à comoção. Ele caminhou com passos decididos,

o rosto parcialmente coberto pelo capuz do roupão de seda preta, com seu nome

gravado nas costas. Eu costumava usá-lo, junto das luvas de boxe, brincando de

lutadora pela casa. Ali, entretanto, não era o meu papaizinho, era alguém maior e

mais forte vestindo sua pele. Era feito de aço e determinação. Sem desviar o foco

e de olho no ringue, caminhou com sua equipe técnica.

— Machine Gun! Machine Gun! Machine Gun!


As pessoas berravam, e eu era uma delas, mãozinhas fechadas em punho,

sacudindo no ar como uma metralhadora de socos. Como se eu fosse meu pai.

Ele subiu ao ringue e observou a entrada do adversário, um loiro de olhos

escuros e mal-encarado. Meu coração acelerou, e pude ouvir mamãe inspirar

fundo e sentir vovó segurar minha mão com força. Meu pai era grande, mas

aquele homem parecia maior. Bestial. E era o atual campeão.

Encolhi-me, sentia o tremor se espalhar pelo meu corpo, enchendo

minhas veias de um medo quase irracional. Não queria ver o meu herói beijar a

lona. Não quando eu estava ali pela primeira vez. Uma testemunha aflita pelo

desenrolar da noite.

— Calma, Diana — vovó sussurrou em meu ouvido. — Acredite em seu

pai, olhe para ele…

Obedeci. O foco do meu pai tinha sido desviado. Não era no oponente ou

no ringue, mas em nós, sua família, sua “fortaleza”, como costumava chamar.
Um pequeno sorriso despontou por baixo do capuz quando ele tirou o roupão e o

jogou em minha direção. Corri para pegar e o vesti imediatamente antes de

voltar para o colo da minha avó. Eu me sentia protegida, como se usasse um

manto sagrado.

Não demorou muito para a luta ser iniciada. Socos rápidos, sem parar.

Ele movimentava os pés, cercando o inimigo. A respiração ficou presa em meus

pulmões quando um soco certeiro abriu o supercílio do meu pai. Sangue

escorreu pelo seu rosto, sujando a luva vermelha do oponente. O Machine Gun

não parou, nem mesmo hesitou antes de retribuir com um cruzado acima da linha

de cintura. Vibrei quando ambos se afastaram. Eles se cercavam, se analisavam,

absorvendo a dor para voltar a atacar.

Foi quando vovó sussurrou “fígado” para a mamãe, com certa satisfação

na voz. Não tinha certeza de onde ficava isso, mas pela careta do loiro, devia

doer. Papai acertou no mesmo lugar durante o segundo round.


As luvas dos lutadores estavam mais vermelhas do que o costumeiro.

Havia sangue no chão, no rosto e no canto da boca dos dois lutadores. O barulho

de um nariz quebrando sob a luva do meu pai foi abafado pelo urro da plateia.

Mamãe e Derek se abraçaram, olhos fechados, e uma prece escapou dos seus

lábios. Vovó me apertou, passando seus braços ao redor da minha cintura. Meu

foco estava apenas nos dois oponentes, no movimento dos seus corpos e nos

golpes aplicados.

Era o terceiro assalto, e o grande Decalion mostrava sinais de cansaço,

porém a metralhadora de socos do meu pai não parava de agir. Um. Dois. Três.

O oponente estava mais lento, e eu vi o momento em que ele baixou a guarda.

Foi algo passageiro, apenas por um segundo, mas o suficiente para meu pai

desferir um gancho de direita na ponta do queixo de seu adversário, levando-o ao

nocaute.

O juiz se aproximou do oponente caído e começou a contagem até dez.


Quando estava no cinco, soltei-me de minha avó e corri em direção à borda do

ringue.

“Seis”

O homem tentava se mexer, apesar do rosto ferido.

“Sete”

Levantei os olhos para encarar meu pai, seu olhar era cauteloso e

expectante. Mesmo com a vitória quase certa, ele não baixaria a guarda até o fim

da contagem.

“Oito”

Decalion gemeu ao tentar se erguer.

“Nove”

Sorri, aquele era o seu fim.

“Dez”
O sino soou alto, anunciando o tão esperado fim. Papai me puxou para

dentro do ringue e me colocou sobre o seu ombro esquerdo. As câmeras de

televisão se voltaram para nós, a equipe técnica aguardava ansiosamente a

declaração do juiz. Decalion, o ex-campeão, se levantou devagar, mas era tarde

demais. Havia um novo dono do cinturão. Meu pai sorria, os músculos suados e

castigados pela luta não diminuíram sua felicidade. O juiz levantou o braço

direito de papai. Era oficial, Daniel “Machine Gun” Clark tornou-se o novo

campeão mundial de boxe.

E ali, vendo a multidão se agitar e com o gosto da vitória irradiando por

todo o meu corpo, ele sabia que eu, Diana Clark, um dia também subiria em um

ringue.
Série Jack Rock

Aos 14 anos, Elle tinha uma vida perfeita, com pais amorosos, lar feliz e

seu vizinho e melhor amigo, Chris, por perto. Porém, em uma noite fria, seu

amigo vai embora em busca de seu grande sonho: se tornar uma estrela do rock.

Quatro anos depois, quando uma tragédia os reúne, Chris, agora

guitarrista da famosa banda Jack Rock, vai ao resgate de sua amiga de infância,

que está crescida e não quer mais ser protegida.

Conseguirá a amizade de infância resistir à vida adulta, ou a busca de

Elle pela independência a levará para outros caminhos?


Para sempre... Garçonete?

A Coleção Para sempre é composta por três romances independentes

entre si e escrito por três autoras, podem ser lidos na ordem que as leitoras

desejarem!

Quando Evelyn é reprovada na primeira tentativa de ingressar na

universidade, decide que é o momento de arrumar um emprego. Trabalhar como

garçonete parecia uma boa ideia, até ela descobrir que sua função principal seria

não somente servir drinques e canapés, mas também acender as “chamas de

amor”, um punhado de velas boiando em um chafariz, sempre prontas para

apagar.
Não era exatamente uma boa perspectiva de futuro para a criativa e

romântica jovem... O que ela não imaginava é que Lorenzo Santini, o garoto de

ouro e crush dos tempos da escola, cruzaria seu caminho justamente no primeiro

dia de trabalho. Mas Lorenzo jamais notaria uma sonhadora garçonete... Ou

notaria?

Venha conhecer essa história de amor leve, divertida e emocionante!

“Para Sempre... Garçonete?” faz parte da "Coleção Para Sempre", selo

editorial Botando Banca (Livros Prontos Editora).


SEM REGRAS (Coleção CEO)

Versão estendida do conto erótico No rules - não há regras no prazer.

Rica, linda e poderosa.

Cinthia Grimaldi, a CEO de uma das maiores agências de modelo, tem

tudo em suas mãos, inclusive os homens. Para ela, eles não passam de um

entretenimento descartável. Até surgir uma proposta que abalará sua vida,

fazendo-a perder o controle.

Dimitri Duskin é um ator em ascensão. Classificado como garoto


problema pelas revistas de fofoca, precisa mostrar o melhor comportamento no

Festival de Cinema de Cannes. Assim, ele concorda em participar do esquema

entre seu empresário e a poderosa CEO. O que bad boy favorito do país não

imagina é que sua acompanhante de excelente reputação pode ser tão selvagem

quanto ele.

Quando o prazer e os negócios estão em jogo, não há regras. Vencer é o

único objetivo.

Disponíveis na Amazon e/ou em físico!


Agradecimentos

Escrever Reich foi uma delícia suprema. Eu, como leitora, sempre

apreciei mais os romances fantasiosos. Como autora, nunca tinha me arriscado

em um até surgir no Wattpad um concurso do perfil oficial de Romance BR sobre

amor à primeira vista. Eles pediam um conto curto, então pensei em criar um

entre um vampiro e uma mestiça. À detetive particular, dei o nome de Isadora,

em homenagem a uma amiga minha que sempre conversava comigo sobre livros

e carinhosamente fez as capas e a primeira logo da Jack Rock. Nunca soube o

nome verdadeiro dela, para mim, sempre será lembrada como Izzy Cullen.

Reich e seu romance pouco convencional foi um dos vencedores do

concurso e passou-se um ano – e muitas solicitações por parte dos leitores –

para eu transformá-lo em um livro completo. Sua aceitação no Wattpad foi


quase imediata e eu me vi realizada ao dar asas à minha imaginação. Uma

liberdade sem freios com a mistura deliciosa de fantasia, história, biologia e

mitologia.

Além da liderança no ranking de Fantasia tanto do Wattpad, quanto da

Amazon, Reich me trouxe uma das maiores maravilhas que o escritor pode ter:

um grupo divino de leitoras. Chorei e ri muito com as minhas Schatzi pelo

Whatsapp, elas se sentiam tanto dentro da história que terminaram fazendo

parte de verdade dela: Raiele Melo, Ana Luiza Marriel, Andrea Barione,

Elidiane, Maya Almeida, Rosa da Cruz, Isabel Cristina, Ruth Helena, Yka Nick,

Cristina de Souza, Janah Silva, Dafini Dresch, Raylane Fragoso, Giulia Giu,

Efigênia, Deborah. Reich tem um pedacinho de cada uma de vocês. Muito

obrigada!

Outra pessoa que fez parte de Reich, estrelando como a perversa Scar,

foi a Carol Miranda, a beta mais engraçada do mundo. E, claro, à Editora


3DEA por não só acreditar na história, como também prepará-la com tanto

esmero. Vocês têm meu eterno agradecimento!

Agradeço também aos parceiros, amigos e blogueiros que sempre estão

ao meu lado nesta jornada: Kalina Nascimento, Manu Sousa, Camila Alkimim,

todo o pessoal do Viciados em Literatura Nacional, do Lunáticas por Romance,

do Book Maníacos, a Sabrina N. Miranda do Stalker Literária, a Lene Gracce

da Lion, as leitoras e blogueiras de João Pessoa, Fenanda Avellar, Aline

Santana, Gisleide Dercoli, Ketherine Gomes, Lunna Lima, Mayra Provin,

Viviane Afonso, e tantos outros que ajudaram a espalhar Reich pelo Brasil.

Deixo um agradecimento especial à minha família, sem eles eu nada

seria. Meu marido, filho, mãe, padrasto, sogros, irmãs e sobrinhos. Vocês

sempre serão minha rocha e caminho. Sem o apoio de vocês, não conseguiria

fazer nada.

Por último, e não menos importante, o meu agradecimento fica a você,


leitor. Obrigada por embarcar nesta história e lembre-se: confiar na pessoa

errada pode ser... Mortal.

Seja bem-vindo ao Reich.

Ich liebe dich, Schatzi!

Aretha V. Guedes.
Sobre a autora

Aretha V. Guedes é dentista, bióloga, casada e mãe de um garoto de nove

anos. Sempre amou livros, séries, filmes, músicas e jogos. Recebeu no Wattpad o

prêmio internacional Wattys 2016 e 2017, além de ser destaque em Romance na

plataforma, conquistando mais de 62 mil seguidores. Na plataforma Luvbook,

foi uma das vencedoras do 1º Concurso Luvbook/Ler Editorial, com o conto

New Adult A Soma dos meus erros. A série Jack Rock conquistou milhões de

leituras online, sendo best-seller de sua categoria.

Romance e erótico não são suas únicas linhas de escrita, também escreve

contos e livros de fantasia e drama. O romance sobrenatural Reich – entre

vampiros e deuses ficou no primeiro lugar do ranking de Fantasia por mais de

três meses do Wattpad e também foi o mais vendido de Fantasia da Amazon.

Você também pode gostar