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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Alice Vasconcelos Melo

O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles e A


Tumba, de Howard Phillips Lovecraft.

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO
2022
1

Alice Vasconcelos Melo

O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles e A


Tumba, de Howard Phillips Lovecraft.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob
orientação da Prof.ª Dr.ª Elizabeth da Penha
Cardoso.

SÃO PAULO
2022
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Sistemas de Bibliotecas da Pontif ícia Univ ersidade Católic a de São Paulo -Ficha
Catalográf ica com dados f ornecidos pelo autor

MELO, Alice Vasconcelos


O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de
Lygia Fagundes Telles e A Tumba, de Howard Phillips
Lovecraft. / Alice Vasconcelos Melo. - São Paulo:
[s.n.],2022.
129 p; cm.
Orientador: Elizabeth da Penha Cardoso.
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós
Graduados em Literatura e Crítica Literária.
1. Espaço da Morte. 2. Lygia Fagundes Telles.
3. Howard Phillips Lovecraft. 4. Topopatia.
I.Cardoso, Elizabeth da Penha. II. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de
Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica
Literária. III. Título.

CDD
3

Alice Vasconcelos Melo

O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles e A


Tumba, de Howard Phillips Lovecraft.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob
orientação da Prof.ª. Dr.ª Elizabeth da Penha
Cardoso.

Aprovada em: ______/_______/______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________
Dra. Elizabeth da Penha Cardoso-PUC-SP

______________________________________
Dr. Cristiano Camilo Lopes-Mackenzie

______________________________________
Dra. Annita Costa Malufe-PUC-SP
4

À Alice Soares C. Melo e Maria José C. Melo


In Memoriam
5

AGRADECIMENTOS

A Deus, criador de todo espaço celestial e terrestre; por ter me ajudado durante
todo o meu percurso, muito obrigada.

A minha querida e falecida madrinha, Alice Coelho Soares Melo, sinônimo de


inspiração, determinação, força e bondade; esteve sempre presente na minha vida,
me aconselhando, ajudando e vibrando pelas minhas vitórias, muito obrigada.

Aos meus pais, Arlete Melo e José Melo pelo apoio, ensinamentos e confiança,
muito obrigada.

As minhas irmãs Giselle e Andréa pela união, companheirismo, motivação


durante toda minha jornada, muito obrigada.

À minha orientadora prof.ª Drª. Elizabeth da Penha Cardoso pelos


ensinamentos, pelos conhecimentos compartilhados, pela tranquilidade e paciência,
pela força e sábios conselhos em momentos de indecisão, minha eterna gratidão.

Aos membros da banca, o professor Dr. Cristiano Camilo Lopes e a professora


Drª Annita Costa Malufe por terem aceitado o convite e, pelas valiosas contribuições
concedidas no processo de qualificação, muitíssimo obrigada.

À Vilma pela sua gentileza, empatia, conselhos e generosidade, muito


obrigada.

À Secretária do Programa, Ana Albertina, sempre solícita, gentil e amiga.

Aos colegas de turma, aos funcionários da Biblioteca e a todos que


contribuíram de forma direta e indireta para a realização deste trabalho.
6

“Os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis”.


Georges Clemenceau.
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RESUMO

MELO, Alice Vasconcelos. O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia
Fagundes Telles e A Tumba, de Howard Phillips Lovecraft. Dissertação de
Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2022,137p.

Esta pesquisa constitui um estudo topoanalítico sobre a relação sentimental do


personagem por meio do tópos da morte nos contos Venha Ver o Pôr do Sol (1970),
de Lygia Fagundes Telles (2009) e A Tumba (1922), de Howard Phillips Lovecraft
(2019). Dedica-se a analisar a relação sentimental dos protagonistas com o espaço
da morte constituído pelo cenário de cada narrativa. Parte-se do pressuposto de que
o sentimento de afeição ou aversão do personagem pelo espaço está condicionado a
sua experiência direta e íntima com o tópos, sendo o sentimento topofílico
determinado pela familiarização com o lugar, e o topofóbico desencadeado pelo
estranhamento do lugar. Para sustentar esta pesquisa, foram empregadas as
concepções de Borges Filho (2007), Brandão (2013), Lins (1976) e Dimas (1987)
sobre o espaço ficcional. No que concerne à topopatia, o sentimento topofílico e
topofóbico, foram empregadas as fundamentações de Borges Filho (2007) e Tuan
(1980 e 2005). Ainda sobre as concepções dos espaços sepulcrais, o apoio está nas
concepções de Foucault (2013) e Lauwers (2015). A análise dos contos está baseada
no percurso espacial realizado pelos protagonistas, a fim de verificar o espaço
percebido e experienciado a partir dos gradientes sensoriais e as coordenadas
espaciais. Constata-se que a relação sentimental de afeição ou aversão do
personagem pelo espaço da morte são resultantes da experiência direta com o tópos,
as quais estão condicionadas aos laços de familiaridade ou de estranhamento com o
lugar ocupado e percebido por cada personagem.
Palavras-chave: Espaço da Morte; Lygia Fagundes Telles; Howard Phillips Lovecraft;
Topopatia.
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ABSTRACT
MELO, Alice Vasconcelos. The space of death in Venha Ver o Pôr do Sol, by Lygia
Fagundes Telles and A Tumba, by Howard Phillips Lovecraft. Dissertação de
Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2022,137 p.

This research constitutes a topoanalytic study of the character's sentimental


relationship through the topos of death in the short stories Venha Ver o Pôr do Sol
(1970), by Lygia Fagundes Telles (2009), and A Tumba (1922), by Howard Phillips
Lovecraft (2019). It is dedicated to analyze the sentimental relationship of the
protagonists with the space of death represented by the setting of each narrative. It is
assumed that the character's feeling of affection or aversion for the space is
conditioned on his direct and intimate experience with the topos, the topophilic feeling
being determined by familiarity with the place, and the topophobic feeling triggered by
strangeness to the place. To support this research, the conceptions of Borges Filho
(2007), Brandão (2013), Lins (1976) and Dimas (1987) on the fictional space were
employed. Regarding topopathy, the topophilic and topophobic feelings, the
foundations of Borges Filho (2007) and Tuan (1980 and 2005) were used. Still about
the conceptions of sepulchral spaces, the support is in the conceptions of Foucault
(2013) and Lauwers (2015). The analysis of the short stories is based on the spatial
path taken by the protagonists, in order to verify the space perceived and experienced
from the sensory gradients and the spatial coordinates. It is found that the sentimental
relationship of affection or aversion of the character by the space of death are the result
of direct experience with the topos, which are conditioned to the ties of familiarity or
strangeness with the place occupied and perceived by each character.
Keywords: Space of Death; Lygia Fagundes Telles; Howard Phillips Lovecraft;
Topopathy.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 - O ESPAÇO FICCIONAL: Pressupostos Teóricos ........................... 15
1.1 Agora é a vez do Espaço Ficcional: topoanálise .................................................. 15
1.2 Espaço (Lugar, Cenário, Ambiente) ........................................................................ 23
1.3 Espacialização .............................................................................................................. 28
1.4 As Funcionalidades Espaciais ................................................................................. 32
1.5 O percurso espacial a partir das quatro etapas do enredo .............................. 37
1.6 Dispositivos Espaciais ............................................................................................... 38
1.6.1 As Coordenadas Espaciais ....................................................................................... 38
1.6.2 Gradientes Sensoriais: percepção e experiência espacial .................................. 40
1.6.3 Perspectiva de Englobamento .................................................................................. 43
1.6.4 As Prolepses ................................................................................................................ 44
CAPÍTULO 2 - ESPAÇO DA MORTE............................................................................... 45
2.1 Espaço da Morte: do surgimento, experiência e medo da morte ................... 46
2.2 Espaços do Medo: medo dos espaços .................................................................. 55
2.3 Sentimentos Topofílicos e Topofóbicos = Topopatia ........................................ 62
2.4 O Horror: a emoção do medo artístico ...................................................................... 67
CAPÍTULO 3 - TOPOANÁLISE: venha ver o pôr do sol ............................................... 75
3.1 Lygia Fagundes Telles-vida e obra ......................................................................... 75
3.2 O Conto Venha ver o Pôr do Sol: sinopse .............................................................. 80
3.3 Topoanálise: análise do percurso da personagem Raquel ................................... 82
CAPÍTULO 4 - TOPOANÁLISE: A tumba....................................................................... 98
4.1 H.P Lovecraft: Vida e Obra do Autor ......................................................................... 98
4.2 A TUMBA: sinopse ...................................................................................................... 104
4.3 A Tumba Topoanálise ............................................................................................... 107
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 121
REFERÊNCIAS................................................................................................................ 125
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INTRODUÇÃO

No mundo real cemitérios são construções físicas realizadas pelo homem para
abrigar os mortos; trata-se de lugares que evidenciam a finitude da vida, perpassada
por um ciclo com início, meio e fim. Este desfecho é algo factual e inaceitável pela
humanidade, e os cemitérios são representações reais desse fim. Diante deste espaço
da morte, várias reações afetivas se instalam, a depender da cultura local e da época
em questão. No entanto, o sentimento que prevalece é de respeito e saudade dos que
partiram, além de certo predomínio de temor e de asco, daí a topofobia. Algumas
pessoas evitam participar de sepultamentos ou visitar seus finados, pois o espaço
sepulcral evoca recordações negativas de perda, de irreversibilidade e de
encerramento total da matéria. É na urbe dos mortos onde tudo se acaba, toda a
beleza física natural ou artificial cultivada pela vaidade, toda a estrutura corpórea será
consumida pela terra através de um processo de decomposição acelerado por
bactérias. E talvez esse fato seja o que mais perturba o ser humano. A morte e toda
sua representação são horrendas, e, por isso, tão temidas, no entanto, a morte e o
espaço da morte se presentificam na vida da humanidade como um imperativo; ela há
de acontecer e o espaço sepulcral é a concretização do destino dos seres humanos.
Ao entrar em um cemitério e caminhar por esse espaço dos mortos, lembranças
e emoções são evocadas. Lembranças de um passado vívido ora cristalizado na
memória, repleto de alegria, compartilhadas com o ser que não está mais no espaço
físico, entre os vivos. A emoção da alegria, do contato físico, de enxergar o ser e ouvir
a sua voz é substituída pela emoção da tristeza, da sensação de vazio e impotência
diante da morte. O choro surge como resposta da emoção sentida e é
automaticamente captado pelo sensório auditivo aliado à percepção visual através das
imagens de sepulturas, flores, anjos, lápides registradas de imediato pelo contato
direto com o espaço. O contato direto e íntimo com a urbe dos mortos possibilita a
deflagração de sentimentos que flutuam entre a saudade, a tristeza, o respeito, a dor
da perda, a inaceitabilidade e irreversibilidade; o ser humano sente-se pequeno,
aterrado e impotente em não saber lidar e não aceitar o fenômeno da morte.
No mundo ficcional o cemitério, enquanto cenário de narrativas de mistério e
horror, irrompe emoções e assume duplo significado para os seres que o
experienciam (os personagens). Esse duplo flutua entre as passagens do dia para a
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noite, pois durante o dia a necrópole remete a um lugar de paz, de silêncio, de respeito
aos mortos, mas à noite esse mesmo espaço é transmutado em um lugar sombrio,
pavoroso, repleto de mistério intensificado pela escuridão da noite, um tópos que
deflagra a emoção primitiva do medo, o medo do desconhecido e o medo do lugar.
Os espaços da morte são cenários flutuantes que estão no limiar entre visível e
invisível, topofílicos e topofóbicos; são tópos devoradores, misteriosos, sombrios e
englobantes. As espacialidades dessas narrativas são construídas minuciosamente
através de adjetivações e sinestesias, formando verdadeiras representações
imaginárias; além disso, todos os elementos inseridos no cenário, desde os objetos
até o mobiliário servem para agudizar as sensações e percepções do personagem.
O cemitério tem sido um cenário muito explorado nas histórias de mistério e
horror. É o caso dos contos Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles e A
Tumba, de Howard Phillips Lovecraft. O primeiro faz parte da obra Antes do Baile
Verde publicada em 1970; e o segundo consta na obra A Tumba e outros contos; o
conto foi publicado em 1922 na revista The Vagrant. Estas narrativas breves compõem
o corpus desta dissertação e é a partir delas que iremos refletir sobre a topopatia
dentro do tema do espaço literário, tendo no horizonte a pergunta: como os espaços
sepulcrais predominantemente topofóbicos são percebidos por cada personagem e
qual a relação sentimental desencadeada a partir do contato com o tópos dos mortos?
Venha Ver o Pôr do Sol, classificado como uma narrativa de mistério, tem sido
muito analisado, principalmente no âmbito da construção espacial, no entanto, nossa
pesquisa tem um olhar diferenciado para o tema do espaço; é voltado para a
topopatia- a relação sentimental e experiencial do personagem com o espaço. Na
contramão do quantitativo de pesquisas do conto de Telles, o conto de horror “A
Tumba”, de Lovecraft não é tão pesquisado por acadêmicos do Brasil e do exterior,
no entanto, trata-se de uma narrativa espacial em que toda trama é voltada para o
cenário; a tumba dos Hydes focalizando a relação afetiva do personagem principal
com tópos da morte.
Esta pesquisa aproxima essas narrativas espaciais, em que o espaço
representado pelo cenário é antecipado no título; além disso, os cenários funcionam
como fio condutor de toda narrativa. O objetivo principal é analisar a relação
sentimental dos protagonistas com o espaço da morte constituído pelo cenário de
cada narrativa. Intenta-se, ainda, identificar quais são os gradientes sensoriais mais
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empregados na captação espacial; identificar o tipo de espacialização e a


funcionalidade de cada espaço e, para isso, faremos uma análise do percurso espacial
percorrido pelos personagens principais de cada conto, utilizando os dispositivos
espaciais topoanalíticos como os gradientes sensoriais, as coordenadas espaciais, as
prolepses espaciais, os espaços englobantes e englobados. Além disso,
empregaremos os conceitos de percepção e experiência de Tuan, os sentimentos
topofílicos e topofóbicos, deflagrados pela personagem através da experimentação
espacial, bem como os conceitos basilares de espaço e lugar, termos da geografia
humanista que serão empregados no decorrer deste texto referindo-se ao cenário.
Levanta-se como hipótese que o sentimento de afeição ou aversão do
personagem pelo espaço está condicionado a sua experiência direta e íntima com o
tópos, sendo que o sentimento topofílico é determinado pela familiarização com o
lugar, e o topofóbico é desencadeado pelo estranhamento do lugar.
A escolha do corpus se deve à similitude espacial, pois em ambas as narrativas
o cenário é a urbe dos mortos. Justifica-se a escolha dos escritores Telles e Lovecraft
pela aproximação da temática espacial; as diferentes formas de comportamento dos
protagonistas no contato direto com espaços sepulcrais representados pelos cenários
dos contos; como o cenário de cada narrativa é instaurado e percebido de forma
distinta pelos seus personagens. Além disso, trata-se de aproximar narrativas
espaciais que ainda não tinham sido correlacionadas no âmbito literário, pois há
muitas pesquisas comparativas entre os contos de Telles e Poe, no entanto, há uma
escassez de estudos comparados entre as narrativas curtas de Telles e Lovecraft.
Dessa forma, a relevância desta pesquisa reside na aproximação de dois contos
pertencentes a dois grandes escritores: Telles, pertencente à fase pós-moderna com
sua narrativa mais realista impregnada de mistério, e Lovecraft, com seu conto de
horror com características do romance gótico. Embora os escritores e suas narrativas
sejam de gêneros distintos, eles têm uma característica em comum que é o cenário
predominantemente topofóbico instaurado nas duas tramas, no entanto, percebido de
forma distinta por cada personagem. No conto de Telles, Venha Ver o Pôr do Sol, a
personagem Raquel vai ao encontro de seu ex- namorado Ricardo, sem saber que o
local escolhido para o último encontro do casal seria um cemitério abandonado
localizado no topo da ladeira; para chegar ao local a protagonista percorre lugares
disfóricos, ela sobe uma ladeira íngreme, passa por terrenos baldios, ruas sem
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calçamento até chegar em frente ao portão do cemitério, onde Ricardo já está a sua
espera; após reclamações sobre o lugar, Raquel é convencida a entrar no cemitério e
acompanha Ricardo até o subsolo da capela com o álibi de ver o mais esplendoroso
pôr do sol; no decorrer da narrativa o que fica mais evidenciado é a aversão e o medo
velado da protagonista em relação ao cemitério abandonado. Já na narrativa de
Lovecraft, temos o personagem Jervas que tem uma rotina de caminhar pelo bosque,
e em uma de suas andanças ele encontra um lugar escondido na encosta, a câmara
mortuária da extinta família Hydes, no entanto, o que chama atenção é a maneira
como Jervas reage à descoberta do local como se tivesse encontrado um lugar
maravilhoso e familiar; após encontrar o túmulo dos Hydes, passa a frequentá-lo de
forma intensa como se estivesse frequentando sua própria casa; o que é mais
evidenciado na trama é o sentimento de afeição do personagem em relação ao espaço
sepulcral.
A metodologia empregada será de caráter teórico, qualitativo-descritivo. A
pesquisa literária realizar-se-á por meio de análises explicativas e descritivas onde
procederemos com uma abordagem topoanalítica pelo viés da teoria do espaço,
adotamos como recurso de operacionalização o roteiro de análise espacial proposto
por Borges Filho. Como aporte teórico sobre a topoanálise e concepções sobre o
espaço empregamos as concepções dos seguintes teóricos: Borges Filho (2007),
Brandão (2013), Lins (1976) e Dimas (1987); acerca da topopatia, topofilia e topofobia
utilizamos as fundamentações de Borges Filho (2007) e Tuan (1980 e 2005); na
esteira do espaço sepulcral baseamo-nos em Foucault (2013) e Lauwers (2015).
No que diz respeito à fortuna crítica de Telles, escolhida como baluarte à nossa
reflexão sobre o espaço no conto de Telles, elegemos a dissertação de Bueno (2016)
intitulada Manifestações do Insólito nos contos de mistérios de Lygia Fagundes Telles,
Santos (2017) com a dissertação Limites e fronteiras: a configuração do espaço
ficcional no conto fantástico de Lygia Fagundes Telles, a dissertação de Santos (2017)
Um Passeio com Tânatos: a ficcionalização da morte em Lygia Fagundes Telles, os
artigos de Oliveira (2011) O Emergir do Insólito nas Espacialidades e nas Imagens de
Venha Ver o Pôr-do-Sol, o artigo de Grigório Matsuoka (2019) A Personagem e o
Espaço na ficção de Lygia Fagundes Telles e o ensaio de Pelinsser (2013),Uma
Arquetipologia da Morte em Venha Ver o Pôr do Sol, pois os seis trabalhos dialogam
sobre a construção espacial nos contos de Telles, os recursos estéticos utilizados
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em sua tessitura e sobre a temática da morte que é recorrente em seus contos. Além
disso, utilizamos as análises críticas de Lucas (1990) e Santiago (1998) que são dois
estudiosos das narrativas de Telles.
A fortuna crítica eleita para a análise do conto de Lovecraft é: a dissertação de
Anater (2021) Vislumbres do Abismo: o desenvolvimento do horror nos espaços
literários em H.P Lovecraft, a dissertação de Miguel (2006) A Morfologia do Horror: a
construção e percepção na obra lovecraftiana, a tese de Dutra (2015) O Horror
Sobrenatural de H.P Lovecraft: teoria e praxe estética do horror cósmico, o artigo de
Hatfield, Hobbs e Lynch (2014) Multilayered Specter, Multifaceted Presence: a critical
edition of H.P. Lovecraft’s “The Tomb”. Os quatro trabalhos dialogam sobre seus
personagens, a construção espacial de seus contos e suas estratégias narrativas.
Utilizamos as contribuições críticas de Houellebecq (2020) e Joshi (2016) sobre a vida,
temática e estilo de composição de Lovecraft.
O trabalho está dividido em quatro capítulos: no primeiro abordaremos os
pressupostos teóricos topoanalíticos que servirão de base para nossa análise
espacial. Este subdivide-se em seis subtópicos relacionados aos conceitos basilares
de espaço literário, à instauração espacial (espacialização), às funções espaciais, às
concepções de percurso espacial e os dispositivos espaciais empregados para a
operacionalização da análise dos contos. O segundo capítulo é divido em quatro
subtópicos e aborda o tema da pesquisa; o espaço da morte e a relação sentimental
do personagem pelo tópos da morte, os típicos espaços do medo, a topopatia - os
sentimentos topofilicos e topofóbicos do personagem e, por último, as concepções de
horror. O terceiro e o quarto capítulos estão divididos em três seções; em ambos nos
debruçamos na análise espacial, o percurso trilhado pelo personagem, destacando a
espacialidade mais evidente no cenário percebido pelos protagonistas de cada conto,
bem como seus gradientes sensoriais mais empregados na apreensão espacial; ainda
investigamos a espacialização instaurada em cada conto, a funcionalidade do espaço,
as prolepses espaciais contidas em cada narrativa e, por fim, o sentimento deflagrado
no percurso de cada personagem.
Ao final desta pesquisa objetiva-se contribuir com a fortuna crítica sobre o
estudo do espaço ficcional, a topoanálise e, principalmente, com a topopatia, a relação
sentimental/experiencial do personagem pelo espaço.
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CAPÍTULO 1 - O ESPAÇO FICCIONAL: Pressupostos Teóricos

O objetivo deste capítulo é discorrer sobre a topoanálise, bem como os


dispositivos espaciais empregados na análise espacial, dentre eles as coordenadas
geográficas, os gradientes sensoriais, o percurso espacial, a funcionalidade do
espaço, o tipo de espacialização e as prolepses espaciais. Este primeiro capítulo está
dividido em seis segmentos, nos quais serão abordados os seguintes aspectos: na
primeira seção 1.1 Agora é a vez do Espaço Ficcional: topoanálise - as concepções
teóricas acerca do espaço à luz dos teóricos Lins, Dimas, Brandão e Borges Filho,
bem como o surgimento do termo topoanálise a partir das concepções de Bachelard.
No segundo item 1.2 Espaço (Lugar, Cenário, Ambiente), as acepções sobre espaço,
distinguindo-o de lugar, cenário e ambiente sob a perspectiva dos teóricos Tuan
(1983), Certeau (1998) e Borges Filho (2007); na terceira seção 1.3 Espacialização -
a concepção de espacialização e suas três classificações - franca, reflexa e
dissimulada. No quarto item 1.4 - As Funcionalidades do Espaço. Na quinta seção 1.5
O Percurso Espacial: a partir das quatro etapas do enredo-as concepções teóricas
sobre o percurso espacial associado ao enredo. E no sexto item 1.6 Conectivos
Espaciais, os principais dispositivos espaciais importantes para operacionalização da
topoanálise. Esta seção se divide em quatro subseções, a saber: As Coordenadas
Espaciais, Os Gradientes Sensoriais, Perspectiva de Englobamento e As Prolepses
Espaciais.

1.1 Agora é a vez do Espaço Ficcional: topoanálise

Osman Lins (1976), em sua obra Lima Barreto e o Espaço Romanesco, dedica
o quarto capítulo, intitulado “Espaço Romanesco: conceitos e possibilidades”, apenas
à análise e formulação de concepções acerca do espaço ficcional literário, destacando
a importância do estudo espacial, bem como seu entrelaçamento ao elemento
temporal dentro do texto narrativo. Lins (1976) destaca a indissociabilidade dos
elementos espaço-tempo, exemplificando essa união, através das teorias relacionais,
absolutas, objetivas e subjetivas, em que elas estabelecem uma relação una entre o
espaço-tempo, associando o espaço a acontecimentos de forma real ou subjetiva e,
o tempo, a instantes de forma física ou no plano das ideias. Apesar de evidenciar a
16

inseparabilidade do espaço-tempo no plano ficcional narratológico, o mesmo autor faz


uma ressalva, afirmando que é possível estudar os dois elementos de forma separada,
relatando que “pode-se isolar artificialmente um dos seus aspectos e estudá-lo [...] É
viável aprofundar numa obra literária a compreensão do seu espaço ou do seu tempo”
(LINS,1976, p.63-64). Mediante as concepções de Lins, pretende-se estudar apenas
a categoria espaço.
Brandão (2013), em Teorias do Espaço Literária, destaca o caráter
transdisciplinar do espaço presente em inúmeras áreas do conhecimento; a
diversidade de papéis desempenhada pelo espaço na seara literária; o interesse nos
estudos espaciais por parte de acadêmicos, pesquisadores e críticos “vem se
intensificando desde as primeiras décadas do século XX” (BRANDÃO, 2013, p.48).
No que se refere ao conceito de espaço, ele afirma que “há, no escopo da teoria da
literatura, diferentes concepções de espaço, as quais nem sempre revelam, explícita
e contrastivamente, suas idiossincrasias” (BRANDÃO, 2013, p.48). E cita dois
conceitos de espaço definidos pelo Dicionário de Teoria da Narrativa de Reis e Lopes.
Vejamos trechos a seguir:

[...] os componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e


à movimentação das personagens. [...] o conceito de espaço pode ser
entendido em sentido translato, abarcando então tanto as atmosferas sociais
(espaço social) como até psicológicas (espaço psicológico) (REIS; LOPES
apud BRANDÃO, 2013, p.50).

O primeiro conceito associa o espaço segundo sua representação física e


funcionalidade dentro da narrativa. Já o segundo conceito relaciona o espaço de forma
mais abrangente destacando as tipologias espaciais. Segundo Brandão (2013), a
crítica literária na tentativa de definir a noção de espaço tende a “substituir a definição
do termo pela elaboração de tipologias a partir dele. [...] com uma série de expressões:
“espaço social”, “espaço psicológico”, “espaço mítico”, “espaço da linguagem”
(BRANDÃO, 2013, p.51, grifo do autor).De acordo com o citado autor, dentre essas
tipologias espaciais destacam-se o espaço da linguagem defendido pelas correntes
formalistas e estruturalistas em que alegam “a existência da “espacialidade” da própria
linguagem” (BRANDÃO, 2013, p.48, grifo do autor) e o espaço social abordado pelas
correntes sociológicas ou culturalistas, estas últimas “ocupam-se do espaço segundo
17

o viés da representação, ou seja, como o conteúdo social-reconhecível


extratextualmente - que se projeta no texto”1 (BRANDÃO, 2013, p.48).
O espaço que abordamos nesta pesquisa é dado como uma representação do
espaço físico, uma “categoria existente no universo extratextual. [...] Aqui se entende
espaço como “cenário”, ou seja, lugares de pertencimento ou trânsito dos sujeitos
ficcionais” (BRANDÃO, 2013, p.59, grifo do autor). O espaço representado pelos
cenários cemiteriais das narrativas é verossímil aos espaços sepulcrais do mundo
real.
Acerca desse estudo espacial é feito um recorte sobre a relação sentimental do
personagem com o espaço denominado topopatia2.Dessa forma, nossa intenção é
analisar a relação sentimental dos personagens principais com os espaços sepulcrais
das narrativas, bem como a percepção do espaço pela óptica dos protagonistas em
“Venha Ver o Pôr do Sol”, de Lygia Fagundes Telles e “A Tumba”, do Howard Phillips
Lovecraft. Os cenários dos dois contos apresentam similitude por ser a urbe da morte
um espaço predominantemente topofóbico, mas que desperta sentimentos distintos
nos protagonistas de cada trama.
Retomando a importância dos estudos de Osman Lins (1976), vale ressaltar
que ele formula pressupostos teóricos acerca do espaço e define os tipos de
“ambientação”. Suas concepções teóricas servirão como aporte teórico para o estudo
da teoria do espaço literário, denominada topoanálise. Suas teorizações e exegeses
serão retomadas por Antônio Dimas (1987) na sua obra Espaço e Romance, e, alguns
anos depois, a teoria é reformulada por Ozíris Borges Filho (2007) em sua obra
Espaço e Literatura: introdução à topoanálise, em que revisitará as concepções
acerca do espaço, fará algumas modificações na terminologia e no conceito de
ambientação proposto por Lins, visando a operacionalização da análise espacial. O
Borges Filho (2007) reconhece que o estudo e análise do espaço ficcional é
interdisciplinar, e está condicionado à apropriação de conceitos espaciais de outras
áreas, como a geografia, filosofia, história, teoria literária e semiótica e, por isso, ele

1Neste estudo não se pretende aprofundar as discussões acerca das tipologias espaciais e correntes
literárias, mas apenas vislumbrar como a categoria espaço literário é abrangente.
2 Sobre a topopatia, a relação sentimental; experiencial do personagem com o espaço, Borges Filho

(2007) é o principal escritor brasileiro no âmbito literário a abordar o assunto, objeto desta pesquisa. O
sentimento do personagem pelo espaço pode ser de topofilia (afeição/amor) ou topofobia
(aversão/medo), tal assunto será abordado no capítulo 2.
18

utiliza e relaciona as diversas concepções acerca do espaço à luz de teóricos como


Bacherlard, Certeau, Lins, Dimas, Tuan, entre outros.
A importância dos estudos de Borges Filho (2007) reside na sua contribuição
teórica sobre o espaço, bem como o seu modelo de análise espacial proposto, uma
espécie de modus operandi, como forma de operacionalizar as teorizações na análise
espacial. Ele discorre sobre a topopatia, que designa a relação sentimental do
personagem pelo lugar, classifica as funcionalidades do espaço na narrativa, expõe
os conceitos teóricos, insere termos técnicos na topoanálise tais como: as
coordenadas espaciais, os gradientes sensoriais utilizados na percepção espacial e
estabelece um roteiro de topoanálise, que será utilizado nas análises dos contos,
corpus desta pesquisa.
Baseado nas concepções de Borges Filho (2007), que assevera que o estudo
topoanalítico é interdisciplinar, empregaremos em nossa fundamentação teórica as
concepções da geografia humanista que aborda a relação sentimental com o espaço
- topofilia e topofobia, os conceitos basilares de espaço e lugar, a experiência direta e
indireta com o espaço e o sentimento como resultado da experiência espacial, cujo
principal representante é Tuan. Além disso, utilizaremos as concepções acerca da
topoanálise formuladas por Borges Filho. É importante destacar que os termos
espaço, lugar e tópos são verbetes emprestados da geografia humanista para a
topoanálise e serão empregados neste texto dissertativo referindo-se ao cenário
ocupado e percebido pelos personagens de cada narrativa, embora cada terminologia
tenha um significado diferente, como veremos no capítulo 2.
Para Bachelard (1978), topoanálise seria o “estudo psicológico sistemático dos
lugares físicos de nossa vida íntima” (BACHELARD,1978, p.202). O autor associa o
estudo do espaço às nossas lembranças passadas de experiências vividas nos
lugares físicos pelo viés psicanalítico.

No teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os


personagens em seu papel dominante. Às vezes, acreditamos conhecer-nos
no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos
espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer pas sar no tempo,
que no próprio passado, quando vai em busca do tempo perdido, quer
“suspender” o voo do tempo. [...] o espaço retém o tempo comprimido. O
espaço serve para isso. (BACHELARD,1978, p.202)

Segundo Bachelard (1978), a memória funciona como um teatro (cenário) em


que as lembranças dos acontecimentos, assim como o tempo ficaram retidos.
19

Localizar as lembranças espaço-temporais na memória é uma forma de concretizar o


espaço e reter o tempo. No entanto, o teórico enaltece o espaço memorístico em
relação ao temporal, destacando que o espaço se presentifica na memória e na
história, enquanto o tempo é efêmero; “o espaço é tudo, porque o tempo não mais
anima a memória [...] a memória não registra a duração concreta. É pelo espaço, é no
espaço que encontramos os belos fósseis[...] concretizados em longos estágios”
(BACHELARD,1978, p.203). As lembranças algures representadas pelas imagens
espaciais estão cristalizadas na memória, ao passo que as lembranças temporais são
mais difíceis de serem resgatadas; a memória tem mais facilidade de reviver os
lugares em que os fatos se desenrolaram, e dificuldade de recuperar as recordações
temporais. Segundo o autor, é no espaço que as ações acontecem, e não no tempo.
Dessa forma, evidencia-se a supremacia espacial em relação à temporal, em especial,
a sua concretude, enquanto lugar ocupado, visível e perceptível pela personagem.
Retomando a linha de pensamento sobre o termo topoanálise e seu significado,
o pensamento de Borges Filho (2007) diverge das concepções bachelardianas. Sobre
isso o autor relata o seguinte:

Apesar de aceitarmos a definição de Bachelard em relação à terminologia,


divergimos do pensador em relação à definição. Por topoanálise entendemos
mais que o “estudo psicológico”, pois, a topoanálise abarca todas as outras
abordagens do espaço. As inferências sociológicas, filosóficas, estruturais
etc., fazem parte de uma interpretação do espaço na obra literária. Ela
também não se restringe a análise da vida íntima, mas abrange toda vida
social e todas as relações do espaço com a personagem seja no âmbito
cultural ou natural (BORGES FILHO, 2007, p.33).

O escritor Borges Filho (2007) acede à terminologia empregada por Bachelard,


“topoanálise”, que designa o estudo do espaço, no entanto, discorda da definição
proposta pelo filósofo, que limita o termo a uma análise psicológica relacionada aos
lugares da vida íntima do ser humano, conceito já supracitado.
Na teoria da topoanálise proposta por Borges Filho (2007), o espaço é formado
por “continente, conteúdo e observador[...] partes integrantes de uma topoanálise,
pois é a junção desses três elementos que forma o que se entende por espaço”
(BORGES FILHO, 2007, p.17). O continente representa o próprio cenário da narrativa
(tópos), um dispositivo que agrega o conteúdo e o observador; o conteúdo refere-se
a todos os elementos inseridos no cenário desde personagens, objetos e todos os
elementos ínfimos e, por último, o observador representado pela figura do narrador.
20

Segundo o citado autor, todos os elementos desde o cenário, o mobiliário, os


personagens e narrador são componentes espaciais e assumem um grau de
importância na construção espacial. Vejamos um trecho a seguir.

Quando falamos de espaço, referimo-nos tanto aos objetos e suas relações


como ao recipiente, isto é, a localização desses mesmos objetos. Além disso,
nunca podemos esquecer o observador a partir do qual aquelas relações são
construídas na literatura. Assim, ao analisarmos um espaço qualquer, por
exemplo, casa, navio, escola, etc., não podemos nos esquecer dos objetos
que compõem e constituem esse espaço e de suas relações entre si e com
as personagens e/ ou narrador (BORGES FILHO, 2007, p.17).

No estudo espacial, se faz necessário analisar todos os elementos contidos no


cenário, pois mesmo os considerados insignificantes têm um significado velado
relacionado ao espaço, pois tal objeto pode representar um símbolo captado pelo
gradiente visual da personagem, ou um pequeno detalhe que funciona com uma
antecipação espacial.
Para o autor, o estudo espacial tem um caráter interdisciplinar, conforme
assevera: “É imprudente estudar o espaço sem incursionar pelas várias disciplinas
que o têm como elemento fulcral de seus estudos: geografia e arquitetura
principalmente” (BORGES FILHO, 2007, p.13). O escritor destaca as necessidades
de abordar as acepções espaciais na área da geografia e da arquitetura, como base
para o escrutínio do espaço ficcional. A apropriação de conhecimentos basilares
dessas áreas é relevante para a “interpretação do espaço na obra literária” (BORGES
FILHO, 2007, p.33). Além disso, o estudo do espaço “abrange [...] todas as relações
do espaço com a personagem seja no âmbito cultural ou natural” (BORGES FILHO,
2007, p.33). E é neste último quesito, a relação que se estabelece entre o personagem
e o espaço (cenário), que pretendemos nos aprofundar, saber qual é a relação
sentimental que se desencadeia a partir da experimentação direta do espaço. A
deflagração do sentimento do personagem pelo espaço pode ser positiva (topofilia)
ou negativa (topofobia) a partir do que é visto e vivenciado no lugar.
No que tange à relação sentimental/experiencial com o tópos, o geógrafo Tuan
(1980) é referência nesse assunto, em seu livro Topofilia: percepção, atitudes e
valores do meio ambiente. O autor aborda o conceito de topofilia e a percepção
sensorial responsável por irromper o sentimento positivo de afeto, de amor pelo lugar
e afirma que “os meios pelos quais os seres humanos respondem ao ambiente, [...]
podem variar, desde a apreciação visual e estética até o contato corporal”
21

(TUAN,1980, p.106). Ainda sobre a experimentação espacial, a vivência e percepção


do lugar, Tuan (1983), em Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência, aborda os
conceitos e distinções dos termos espaço e lugar, bem como os sentimentos e
sensações desencadeados pelo contato direto com o espaço, pela perspectiva da
experiência, destacando as formas de apropriação espacial, que pode ser de forma
direta e íntima ou indireta e conceitual, isto é, através da ocupação espacial ou das
concepções adquiridas sobre o lugar. Tais teorizações e concepções servem de
suporte teórico para nossa pesquisa, bem como para a nossa análise espacial.
Sobre a importância da categoria espaço ficcional, Santos (2017), em sua
dissertação Limites e fronteiras: a configuração do espaço ficcional no conto fantástico
de Lygia Fagundes Telles, assevera o seguinte:

[...] os estudos espaço-temporais na literatura tornam-se cruciais, não


somente como elementos que contribuem na edificação da obra como todo,
mas a uma melhor compreensão acerca da natureza do homem, o modo
como se relaciona com seus semelhantes e com o ambiente onde vive
(SANTOS, 2017, p.58).

Um dos fatores que corroboram a importância do estudo espacial literário reside


na relação que se estabelece entre o espaço ocupado figurativizado pelo cenário e a
percepção da personagem a partir do que ela vê, sente e pensa sobre o lugar que a
cerca.
No que concerne à importância concedida ao espaço, Dimas (1987) assevera
que “o espaço pode alcançar um estatuto tão importante quanto outros componentes
da narrativa, tais como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura etc” (DIMAS,
1987, p.05). O citado autor ainda destaca três hipóteses de como o espaço pode
aparecer no texto literário. Na primeira hipótese, o leitor deve estar atento, pois o
espaço assume uma importância secundária por estar “diluído”, segundo o autor,
misturado a outros componentes da trama. Na segunda hipótese, o espaço assume
um papel fulcral na narrativa e no desenvolver das ações, podendo ser “prioritário e
fundamental no desenvolvimento da ação quando não determinante” (DIMAS,1987,
p.06). E na terceira hipótese, a qual o autor considera de forma sarcástica a mais
interessante, o espaço não é tão evidenciado pelo escritor da obra. E, por isso, “cabe
ao leitor descobrir onde se passa uma ação narrativa, quais os ingredientes desse
espaço e qual sua eventual função no desenvolvimento do enredo” (DIMAS,1987,
p.06). Em algumas narrativas consideradas espaciais, em especial as de mistério e
22

horror, o espaço (cenário) é um elemento tão importante quanto o personagem;


conforme a segunda hipótese de Dimas, ele constitui um dispositivo determinante
presente ao longo de toda a trama, aliado aos seus componentes internos que fazem
parte da composição espacial captados pelo olhar das personagens, recursos
estéticos como as metáforas, comparações, sinestesias, o jogo de palavras, as
repetições intencionais que funcionam como antecipações de acontecimentos. Todos
esses recursos literários e linguísticos corroboram a feitura espacial.
No que se refere aos típicos espaços das narrativas românticas, Dimas (1987)
relata que a natureza era frequentemente utilizada pelos poetas e prosadores da fase
Romântica. A natureza era o cenário ideal para os temas amorosos e sinônimo de
refúgio para o herói ou heroína que vivenciava o amor ou desamor, alegria ou tristeza.
Segundo o autor, se era um amor pleno e correspondido, o cenário eram campos
verdejantes, floridos, ensolarados, um típico espaço paradisíaco. No entanto, se o (a)
protagonista sofria por um amor não correspondido ou proibido, o cenário mudava; o
campo ou floresta tornava-se sombrio, triste, apresentando uma natureza morta, mas
ainda a trama se desenrolava em um espaço campestre. Há uma espécie de sintonia
entre os sentimentos da personagem e o espaço. Neste último, de forma correlata, as
emoções da personagem evidenciam seus sentimentos através da caraterização dos
elementos contidos no espaço tais como: os objetos, as cores, as sensações através
da sinestesia, todos os elementos instaurados no cenário corroboram para agudizar e
revelar os sentimentos da personagem.
Dimas (1987) destaca que essa mudança de cenário das narrativas amorosas
(do campo para cidade) se modifica a partir do surgimento do realismo, na segunda
metade do século XIX em que o espaço das narrativas realistas é: a cidade, os
grandes centros urbanos barulhentos, lotados, com seus dilemas, e problemas reais
do mundo moderno. “O descrédito desse convencionalismo espacial, [...] só viria a
ocorrer já na segunda metade do século 19, com o advento do Realismo, cujo
espaço[...] é a cidade, encarada como centro difusor de perversão moral” (DIMAS,
1987, p. 39). A cidade do mundo ficcional, enquanto espaço aberto de acontecimentos
verossímeis aos do mundo real, reflete os problemas negativos de ordem
socioeconômica, pessoal e comportamental das personagens, agudizando as
mazelas e revelando o lado obscuro e pérfido do ser humano.
23

A urbe assume também um significado e simbologia determinado pela sua


divisão espacial, representado pela segmentação do eixo horizontal frente-centro-
atrás. Acerca disso, Tuan (1983) afirma que as cidades tradicionais e modernas são
demarcadas pelo seu espaço frontal (entrada), central (centro urbano) e posterior
(final), em que “O espaço frontal é basicamente visual, é nítido e muito maior do que
o posterior, que só podemos experienciar através de indicadores não visuais”
(TUAN,1983, p.44). O autor destaca, ainda, que o espaço frontal se abre revelando o
que é visível deflagrador das primeiras impressões espaciais captadas por um olhar
atento de seu ocupante; enquanto o espaço central designa interioridade e
direcionamento, o centro da cidade assume dupla simbologia, pois tudo acontece no
centro da cidade, desde atividades lícitas, dignas e saudáveis misturadas com ilícitas,
desonestas e profanas; o espaço posterior da cidade denota prospectividade (longe)
e conota o lado obscuro e desconhecido das profundezas, os extremos do espaço
urbano que se revela, na maioria das vezes, em um cenário menos atrativo aos
sentidos sensoriais.
De forma correlata, as teorizações de Tuan (1983) sobre a divisão de uma
cidade segundo seu eixo horizontal, bem como a significação dessa espacialidade,
nos permitem perceber que todo e qualquer espaço, seja aberto ou fechado, real ou
ficcional está condicionado a essa subdivisão. No conto Venha Ver o Pôr do Sol, o
cemitério, enquanto cenário da narrativa, assume esse eixo horizontal (frente-atrás),
em que a parte frontal captada pelo campo visual é claro, aberto, extenso e visível;
por outro lado, o espaço posterior, que não pode ser captado de imediato pela
personagem, é velado, escuro e ameaçador. O cenário do conto A Tumba também é
representado pelo eixo horizontal - frente demarcado pela parte externa, o portal da
tumba localizado no bosque. Vale destacar que as espacialidades mais evidenciadas
nas duas narrativas supracitadas são o eixo vertical e a interioridade, que
abordaremos na análise espacial.

1.2 Espaço (Lugar, Cenário, Ambiente)

Há vários termos que frequentemente relacionamos à ideia de espaço, seja


físico ou abstrato, real ou ficcional; dentre esses vocábulos temos: lugar, cenário e
ambiente. A princípio, para entendermos melhor a concepção de espaço e lugar,
24

empregaremos as concepções da geografia humanista sob a óptica do teórico Tuan


(1983) e as concepções filosóficas de Certeau (1998), pois, conforme afirmação de
Borges Filho (2007), o estudo do espaço literário (topoanálise) assume um caráter
interdisciplinar, visto que abrange desde conceitos basilares da geografia, arquitetura,
urbanismo, filosofia, história etc. Sobre a terminologia cenário e ambiente
empregaremos as concepções de Borges Filho(2007).
No que concerne à relação de proximidade, bem como as diferenças que se
estabelecem entre espaço e lugar, os verbetes “espaço e lugar são termos familiares
que indicam experiências comuns” (TUAN, 1983, p.03). Segundo o autor, ambos
propiciam experiências espaciais através do contato direto. Embora o autor assevere
o grau de similitude entre espaço e lugar no âmbito da experimentação espacial, há
algumas concepções que os diferenciam. O espaço pelo viés geográfico é entendido
como uma área física extensa, podendo ser aberta ou fechada. Em geral, sempre
associamos os espaços como áreas amplas e abertas. Por outro lado, lugar nos
remete à ideia de especificidade. Na vida hodierna utilizamos o termo lugar como
sinônimo de espaço, indicando precisão espacial, perguntas como - Em que lugar
você mora? Em qual lugar você está? Ou qual é o seu lugar favorito na casa?
Podemos perceber que tais perguntas remetem à localização espacial específica. Por
outro lado, o espaço denota extensão, uma área maior que abarca um lugar ou
diferentes lugares. Podemos tomar como exemplo o bairro no qual moramos
representando o espaço, e a casa representando o lugar; a relação espacial existente
entre eles é de englobante e englobado. Englobante representado pelo bairro e
englobado referindo-se a casa.
Além dessa relação espacial, não podemos esquecer a relação sentimental que
se desencadeia entre o bairro e a casa, e que beira o interstício de insegurança e
segurança. A sensação de insegurança em relação ao bairro por ser um espaço aberto
composto de casas, prédios, comércios interligados por ruas; sua dimensão
representa também perigos e incertezas. Por outro lado, a sensação de segurança
em relação ao espaço fechado da casa é algo mais evidente, o sentimento de amor
pelo lar, sensação de acolhimento. A casa é o lugar símbolo de refúgio dos perigos e
incertezas do espaço externo. Ela nos traz sensações de paz, conforto e segurança.
Sobre essa relação dicotômica do homem com o lugar e o espaço, envolvendo
a necessidade de sentir-se seguro e desejo de liberdade, o autor pontua que “o lugar
25

é segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro”


(TUAN,1983, p.03). Segundo o autor, o lugar remete à ideia de segurança por estar
associado à sua dimensão física, designa, assim, uma área restrita na qual o homem
tem mais controle. Por outro lado, o espaço denota amplitude, uma área na qual o
homem não tem controle e, por isso, remete à sensação de insegurança. No entanto,
Tuan (1983) expande sua concepção e relata que o espaço, estranho e inseguro pode
transformar-se em um lugar familiar e seguro, afirmando que: “O que começa como
espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e
o dotamos de valor” (TUAN,1983, p. 06). Segundo Tuan (1983), o espaço torna-se
lugar à medida que estreitamos os laços afetivos com ele, atribuímos-lhe um novo
significado e um novo sentimento, ou seja, há uma transformação de um tópos
estranho para um tópos familiar. O espaço familiarizado transforma-se em lugar, pois
evoca valores sentimentais. A transmutação de um espaço (não familiar) para um
lugar (familiar) está condicionada ao nosso conhecimento do espaço no aspecto
íntimo, experiencial; quando o ocupamos, atribuímos valores, conceitos, através da
percepção sensorial.
Na concepção de Tuan (1983), espaço e lugar são áreas com suas
particularidades, no entanto, o que ele chama atenção é a conversão de espaço em
lugar a partir do contato e da familiarização. No mundo ficcional literário os cenários
ocupados pelos personagens são atravessados por essas percepções espaciais em
que um espaço estranho (não familiar) é transmutado em um lugar(familiar) como no
conto A Tumba, de Lovecraft; o personagem Jervas, em seu primeiro contato com o
túmulo dos Hydes, o lugar escondido no meio do bosque, a princípio lhe causa
estranhamento por não estar familiarizado com aquele tópos; no decorrer da narrativa
após frequentar de forma intensa a tumba, conhecendo o seu entorno e interior,
percebe-se uma mudança de sentimento do personagem em relação ao espaço da
morte, antes estranho e não familiarizado e torna-se íntimo e familiarizado.
Retomando a linha de pensamento sobre os vocábulos espaço e lugar,
podemos constatar que o teórico Certeau (1998) diverge de Tuan, pontuando que
espaço e lugar estão interligados através da ação. “O espaço é um lugar praticado.
Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço
pelos pedestres” (CERTEAU,1998, p.202). Para Certeau (1998), espaço e lugar são
tomados como sinônimos, o lugar está contido no espaço. Tuan (1983), entretanto,
26

relaciona espaço e lugar de acordo com a sua dimensão física e forma sentimental,
evidenciando a conversão de espaço em lugar através do critério de familiarização.
No âmbito literário, o espaço é representado pelo cenário, lugar onde a história
acontece. Nas narrativas os lugares são verossímeis aos do mundo real; são lugares
que as personagens frequentam, habitam ou percebem. O cenário percebido pelas
personagens se vale também dessa experiência íntima espacial imiscuída com a
percepção sensorial a que Borges Filho (2007) denomina de gradientes sensoriais,
em especial a visão, a audição e o tato, que abordaremos posteriormente. O termo
cenário é constantemente empregado no âmbito teatral, televisivo, cinematográfico e
literário, e esta última instância é a que nos interessa. Segundo o dicionário Aurélio -
“Cenário: Lugar onde ocorre algum fato, ou onde ocorre a ação, ou parte da ação de
uma peça, romance ou filme” (FERREIRA, 2010, p.465).
Denota, portanto, o lugar em que a ação ou cena acontece. Os cenários das
narrativas são verossímeis aos do mundo real em que todos os detalhes são
minuciosamente arquitetados pelo narrador e percebidos pelos personagens que se
movimentam e experienciam o espaço da trama no qual podemos qualificá-los como
“cenários de papel”. Dessa forma, os típicos cenários de contos, romances, novelas,
como: ruas, praças, bairros, casas, prédios, hospitais, cemitérios, entre outros, são
correlatos a lugares reais, criando, assim, a verossimilhança. No cenário do conto
lygiano, o cemitério com todo seu mobiliário mortuário como anjos, lápides, sepulturas,
capela, todos esses elementos pictóricos captados principalmente pelos gradientes
visuais da personagem servem para criar a linguagem imagética; tais componentes
são verossímeis aos do mundo real.
Outro termo que utilizamos frequentemente, associado ao espaço, é o termo
ambiente, que remete ao teor do lugar no qual assumimos um ponto de vista que pode
ser positivo ou negativo, uma espécie de atmosfera. Sobre o termo ambiente, Borges
Filho (2007) destaca que a concepção de ambiente não é tão objetiva nas teorias
espaciais e relata que: “No sentido cotidiano, esta palavra significa um conjunto de
relações entre o mundo natural e o ser vivo, daí o uso da expressão meio ambiente”
(BORGES FILHO, 2007, p.49). Borges Filho (2007) define ambiente como a “soma do
cenário ou natureza mais a impregnação de um clima psicológico” (BORGES FILHO,
2007, p.50). Ele estabelece uma espécie de fórmula para o ambiente que tem relação
com o psicológico através da conduta da personagem. “Esquematicamente teríamos:
27

1º) cenário+ clima psicológico = ambiente; 2º) natureza + clima psicológico= ambiente”
(BORGES FILHO,2007, p.50). O teórico exemplifica sua concepção sobre a
construção do ambiente com o seguinte caso:

Tomemos como exemplo, a seguinte sequência de figuras: noite, chuva forte,


trovões, relâmpagos. [...]. Se a essas figuras o narrador justapõe uma
personagem que tramou um crime e que se encontra em vias de praticá-lo,
temos aí uma sinergia entre ação e natureza. Um reforça o sentido do outro.
Ou seja, à ação negativa, vil da personagem corresponde uma naturez a
tempestuosa, que evoca e favorece ações macabras. De acordo com o
imaginário humano esse clima meteorológico está impregnado de
negatividade, de augúrios. Assim, em vez de natureza, temos aí um
ambiente. (BORGES FILHO, 2007, p.50).

De acordo com o autor, a natureza tempestuosa assume um teor negativo


representando e evidenciando a ação violenta da personagem que está prestes a se
desenvolver no espaço, criando, assim, um ambiente tempestuoso e sombrio. Dessa
forma, o ambiente é o constructo da ação da personagem somado à natureza ou como
o cenário se apresenta. “O estado psíquico da personagem (cometer um crime)
encontra ressonância na natureza. A natureza reforça a ação” (BORGES FILHO,
2007, p.51). Segundo o escritor, há uma relação homóloga entre ação e natureza, em
que o primeiro é representado e evidenciado pelo segundo. Borges Filho (2007)
destaca que essa composição formada de “espaço e ação não é casual, ou seja,
percebe-se uma intencionalidade” (BORGES FILHO, 2007, p. 51). Para o autor, a
construção do ambiente acontece de forma intencional, uma espécie de estratégia em
que os elementos alusivos à natureza (clima meteorológico), bem como as
características do cenário, são inseridos de forma pensada para dar robustez à ação.
Em síntese, os termos espaço e cenário são dispositivos narratológicos muitas
vezes empregados como sinônimos em análises literárias. No mundo real e no
ficcional, o espaço denota amplidão, área extensa e aberta, ao passo que lugar remete
a um local, cuja extensão é menor, um local fechado e específico. Em geral lugares
são áreas físicas construídas em algum espaço pelo homem, são áreas reais e
concretas. Os lugares inseridos em narrativas ficcionais são representações
fidedignas de lugares reais. Já o termo ambiente remete ao teor do espaço resultado
da associação da conduta da personagem, agudizado pela natureza. Há uma sintonia
em que a ação negativa da personagem é evidenciada pela natureza.
28

1.3 Espacialização

Borges Filho (2007) reconhece a importância das teorizações de Osman Lins


(1976) sobre o espaço ficcional e, principalmente, no que concerne à classificação da
ambientação em franca, dissimulada e reflexa. No entanto, o autor diverge do termo
ambientação, bem como do conceito proposto pelo seu antecessor. Sobre a
terminologia ambientação, o teórico considera “não operacional [...], pois, se pode
confundi-la com o conceito de ambiente” (BORGES FILHO, 2007, p.61). Para o
escritor, além do conceito ambientação não ser operacional, ele pode ser confundido
com a concepção de ambiente, termo abordado no item anterior 1.2. Vejamos um
trecho a seguir sobre a concepção de Lins (1976) no que alude à ambientação, no
qual podemos confirmar essa ambiguidade: “Por ambientação entenderíamos o
conjunto de processos conhecidos ou possíveis destinados a provocar, na narrativa,
a noção de um determinado ambiente” (LINS,1976, p.77, grifo nosso). Podemos
constatar, que embora ele tenha sido o precursor nas teorizações sobre o espaço e
ambientação, sua grande contribuição reside na classificação de como o espaço é
arquitetado na narrativa denominada de (franca, dissimulada e reflexa).
Borges Filho (2007) faz uma releitura dessas concepções teóricas, acedendo à
classificação proposta por Lins (1976) e aperfeiçoando o termo e o conceito a fim de
que não haja confusão para fins de análise espacial, uma vez que o ambiente é o
resultado da ação da personagem, somado à natureza ou cenário. Devido a essa
imprecisão na concepção de Lins e Borges Filho (2007) propõe o termo
espacialização, que segundo ele é: “a maneira pela qual o espaço é instalado dentro
da narrativa [...] a maneira pela qual o narrador cria o espaço na obra” (BORGES
FILHO, 2007, p.61). Adotamos o termo espacialização proposto pelo teórico por
considerarmos mais preciso referindo-se à composição do espaço, por isso,
empregaremos o termo supracitado nesta seção e em nossa análise. A espacialização
é classificada de três formas, a saber: franca, reflexa e dissimulada. Vejamos as
características de cada uma.
Na espacialização Franca, a instalação espacial é feita pela voz de um
“narrador independente que não participa da ação” (DIMAS, 1987, p.20). Ele narra e
descreve todo o cenário da história de forma minuciosa e objetiva. A Franca “se
distingue pela introdução pura e simples do narrador. [...] para melhor caracterizá-la o
29

discurso avaliatório, evidente desde a abertura do capítulo. [...] é levemente mediada


pela presença de um ou mais personagens” (LINS, 1976, p.79-80). Vejamos um
exemplo da espacialização franca sob a óptica de Lins (1976) analisando um trecho
de Triste Fim de Policarpo Quaresma:

A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a


subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos fundos .
Em frente, por entre os bambus da cerca olhava uma planície a morrer nas
montanhas que se viam ao longe; um regato de águas paradas e sujas
cortava-a paralelamente à testada da casa; mais adiante, o trem passava
vincando a planície com a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com
casas, de um e de outro lado, saía da esquerda e ia ter à estação
atravessando o regato e serpeando pelo plaino. A habitação de Quares ma
tinha assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a ‘noruega’, e era
também risonha e graciosa nos seus muros caiados. [...] Quaresma despiu -
se lavou-se, enfiou a roupa de casa, veio para biblioteca, sentou-se a uma
cadeira de balanço descansando. / Estava num aposento vasto, com janelas
para uma rua lateral, e todo ele forrado de estantes de ferro. (LINS, 1976,
p.79-80, grifo do autor).

Podemos perceber o aspecto positivo e negativo do descritivismo empregado


pelo narrador sobre a casa de Quaresma. O ponto positivo sobre a minuciosa
descrição espacial é a riqueza de detalhes e a criação de imagens que são projetadas
no imaginário do leitor. Por outro lado, a descrição utilizada de forma excessiva, torna
a leitura cansativa. Segundo Dimas (1987), as ações das personagens ficam
suspensas momentaneamente, pois a narrativa é pausada dando espaço a uma
descrição massiva. A respeito disso, o escritor supracitado faz uma crítica negativa
sobre a espacialização franca, pois constitui um “exibicionismo técnico que muitas
vezes dá margem a gratuidade do recurso já que o momento não adere de forma
plena a ação em curso” (DIMAS,1987, p.20). De acordo com o autor, tal técnica,
quando utilizada de forma excessiva, revela uma ostentação do narrador. E, muitas
vezes, a gama de detalhes são desnecessários e resulta apenas em “blocos de
espaços construídos tais como: o pôr do sol, a casa, a escola, a aurora etc” (BORGES
FILHO, 2007, p.64). Dimas (1987) ressalta que a técnica de criar a moldura do espaço
através das descrições era utilizada de forma adequada pelos “romancistas do
Romantismo e Realismo, que não se poupam ao leitor, obedientes que são ao
princípio de organizar um retrato objetivo e globalizante do local da ação” (DIMAS,
1987, p.21).
A espacialização reflexa “é característica das narrativas em terceira pessoa”
(LINS,1976, p.82). Apresenta nuances da franca como o descritivismo “que
30

provisoriamente, suspende o relato da continuidade da ação para se deter nos dados


da moldura, do contexto presente onde ela se dá” (DIMAS, 1987, p.24). O grau de
semelhança que a reflexa assume em relação à franca é evidenciado pelo intenso
descritivismo que se estende por diversos parágrafos, pois, “tanto a [...] franca quanto
a [...] reflexa são reconhecíveis pelo seu caráter compacto ou contínuo formando
verdadeiros blocos e ocupando, por vezes, vários parágrafos” (LINS,1976, p. 83).
Paralelo a isso, Borges Filho (2007) relata que o elemento que distingue a
espacialização reflexa “em relação à espacialização franca é o efeito de subjetividade
dado à descrição” (BORGES FILHO, 2007, p.64). Nesse tipo de espacialização “os
espaços são percebidos através da personagem sem intrusão direta do narrador,
exceto se o narrador for também personagem” (BORGES FILHO, 2007, p.64). Sobre
isso, o autor relata o seguinte: “Nessa modalidade, a personagem pensa ou fala sobre
o espaço. Esse tipo de espacialização pode decorrer em narrativas de terceira ou de
primeira pessoa”. (BORGES FILHO, 2007, p.64).
Em geral, a reflexa apresenta a percepção espacial da personagem “que tende
a assumir uma atitude passiva” (LINS,1976, p.83). Vejamos um trecho da
espacialização reflexa do conto de Autran Dourado, As Imaginações Pecaminosas,
citado em Dimas (1987):

Podia ver o dr. Saturnino à vontade: os mínimos gestos, as mãos grandes e


peludas, o timbre da fala grave e distinta, os olhos parados nas nuvens, um
jeito sonhoso. Ele se distraía, brincava girando o anel de chuveiro no dedo,
olhava o céu azul estalando sem nuvens, o jardim que via pela janela, lá do
alto do estrado. Os olhos detrás das lentes brilhantes dos óculos, o aro de
metal. Pedro via os mínimos gestos, os mínimos traços, mesmo a ruga entre
as sobrancelhas quando voltava a prestar atenção no que lia, o escrivão, seu
Tomásio (DOURADO,1982 apud DIMAS,1987, p.22-23).

Observamos que a espacialização reflexa assume características semelhantes


às da espacialização franca, como o narrador em terceira pessoa e o descritivismo
empregados para criar a realidade visual das cenas e dos personagens, enfatizando
o lado subjetivo, o íntimo das personagens como característica que se distingue da
franca.
Na espacialização dissimulada o espaço é criado a partir das ações da
personagem; à medida que ela se movimenta e avança pelo espaço, conforme
afirmação de Lins (1976): os “atos da personagem, [...] vão fazendo surgir o que a
cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos” (LINS,1976, p.84).“Esse
31

recurso de construção da narrativa exige uma personagem ativa, cria-se harmonia


entre espaço e ação, interpenetram seres e coisas, há uma fusão de componentes
variados (narração + descrição)” (BORGES FILHO, 2007, p.65). Concluímos que a
ação da personagem ativa, associada ao seu gradiente visual, é responsável pela
instauração do espaço. Vejamos um exemplo de espacialização dissimulada do conto
O Clérigo Diabólico de H.P Lovecraft (2019):

Fui levado até o quarto no sótão por um homem circunspecto e de aparênc ia


inteligente. Vestido com sobriedade e usando uma barba de um tom cinzento
escuro, ele falou assim comigo: -Sim, ele vivia aqui, mas o aconselho a não
tocar em nada, a sua curiosidade o torna irresponsável. Nós nunca entramos
aqui a noite, e isso só por causa do testamento dele. [...]. Após um tempo o
homem deixou me sozinho no quarto do sótão. Ele estava bastante encardido
e empoeirado, e era mobiliado apenas com o básico, mas tinha uma
arrumação que demonstrava não ser o aposento de um morador de cortiço.
Havia prateleiras cheias de livros teológicos e clássicos, e uma prateleira de
livros contendo tratados sobre mágica-[...]. Os móveis eram bastante simples.
Havia uma porta, mas ela levava somente a um armário embutido. A única
saída era a abertura no chão a que se chegava através da escada íngreme e
tosca. As janelas seguiam o padrão das claraboias, e as vigas de carvalho
escuro indicavam uma antiguidade inacreditável. Obviamente, essa casa
pertencia ao Velho Mundo. Eu parecia saber onde estava, mas não consigo
lembrar o que isso significava para mim na época. (LOVECRAFT, 2019,
p.153).

Podemos perceber neste fragmento do conto de Lovecraft, o personagem


narrador descreve todos os elementos inseridos no cenário no qual é conduzido. Ele
descreve as características físicas do personagem que o conduz até o quarto e avança
para as descrições espaciais captadas pelo seu gradiente visual. O quarto localizado
no sótão composto por uma mobília simples e antiga com prateleira de livros e um
armário embutido, mas um detalhe captado pelo seu polo visual, transforma o quarto
em um lugar sombrio e carregado de mistério, que é abertura no chão pela qual se
podia entrar e sair. As descrições do lugar fechado e englobado, aliado ao seu
mobiliário simples e decrépito criam o cenário ominoso da trama. Há uma junção de
narração e descrição.
Assim, sintetizamos da seguinte maneira os tipos de espacialização: tanto a
franca quanto a reflexa têm em comum o descritivismo, deixando momentaneamente
suspensa a narração, no entanto, a franca tem um narrador observador que não
participa da ação, e, na reflexa, tem-se um personagem passivo. Já a ambientação
dissimulada valoriza muito mais as personagens em ação ao invés de descrições, e
os espaços são construídos de forma simultânea conforme os atos das personagens.
32

No item a seguir abordaremos as funcionalidades espaciais teorizadas por Borges


Filho.

1.4 As Funcionalidades Espaciais

Uma das grandes contribuições de Borges Filho (2007) reside nas teorizações
sobre as diversas funções que o espaço pode exercer na narrativa, elencando as sete
mais importantes, a saber: (1) caracterizar as personagens situando-as no contexto
socioeconômico e psicológico em que vivem,(2) influenciar as personagens e sofrer
suas ações, (3) propiciar a ação, (4) situar a personagem geograficamente, (5)
representar os sentimentos vividos pelas personagens (espaço homólogo),(6)
estabelecer contraste com as personagens (espaço heterólogo) e (7) antecipar a
narrativa (prolepse espacial).
A primeira função espacial é caracterizar as personagens situando-as no
contexto socioeconômico e psicológico em que vivem. Borges Filho (2007) pondera
que o espaço funciona como um dispositivo caracterizador do perfil social ou
psicológico da personagem, “mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais
serão as atitudes da personagem” (BORGES FILHO, 2007, p.35). O espaço funciona
como um elemento revelador do status social e o psicológico da personagem. Ele
destaca que “esses espaços são fixos da personagem, são espaços que elas moram
ou frequentam com grande assiduidade” (BORGES FILHO, 2007, p.35). Sobre essa
função do espaço, Santos (2017), em sua dissertação Limites e fronteiras: a
configuração do espaço ficcional no conto fantástico de Lygia Fagundes Telles, relata
que “o cenário pode revelar muitos aspectos sobre a personagem, assim como os
objetos, pois estes sugerem muito mais sobre a composição psicológica da
personagem, mesmo antes dela entrar em ação” (SANTOS, 2017, p.57). A feitura do
cenário, bem como sua composição espacial, os objetos, as cores, os elementos
perceptíveis no espaço predizem o lado social psicológico da personagem. De forma
especular, o espaço reflete o comportamento frio, as intenções, o lado subjetivo da
personagem.
Podemos exemplificar essa primeira função espacial com um fragmento do
conto Venha Ver o Pôr do Sol. O cenário da trama caracteriza o contexto
socioeconômico de Ricardo e seu lado psicológico - o cemitério abandonado e
33

afastado da cidade denota pobreza e miséria, revelando, também, o status social de


Ricardo que “justifica” a escolha do local, pois está mais pobre e não tem condições
financeiras de proporcionar um encontro em um lugar mais sofisticado à altura da atual
posição de Raquel. Além de o espaço ser mórbido, ele reflete também o caráter
sombrio, cruel e psicopata de Ricardo, caracterizando seu comportamento
psicológico, pois, de forma ardilosa, ele trama um plano de vingança contra sua ex-
namorada, em que todos os passos do seu plano foram planejados desde a escolha
do local, afastado e abandonado, a simbologia do cemitério que remete à morte, o
convite para ver o pôr do sol como álibi, assemelhando-se a algo romântico para um
casal de namorados, a persuasão de conduzi-la até a sepultura de sua prima, a troca
da fechadura. Tudo foi pensado de forma criteriosa; nada poderia dar errado no seu
plano monstruoso.
No que diz respeito à segunda função do espaço, Borges Filho (2007) destaca
que o espaço exerce influência sobre o modo de agir da personagem, podendo até
modificar seu comportamento. O citado escritor destaca que a personagem sob
influência espacial, inserida em múltiplos espaços, assumirá diferentes
comportamentos, como por exemplo: no quarto apresenta um determinado
comportamento, revelando seu caráter real e na sala pode apresentar outra conduta,
como exemplo, no conto A Tumba, de Lovecraft, o protagonista Jervas Dudley tem
seu comportamento modificado de forma misteriosa e sobrenatural influenciado pelo
espaço em que os Hydes estão enterrados; no decorrer da narrativa o próprio
personagem percebe tal mudança, pois antes tinha uma vida pacata, solitária, mas
após sua experiência no interior da tumba e o frequente contato com o túmulo dos
Hydes, revela um personagem com uma linguagem mais rebuscada e eloquente, seu
comportamento é de um homem experiente, comunicativo e boêmio, o que de certa
forma causa estranheza no personagem e tenta dissimular esse comportamento
quando está em casa na presença de seus pais.
Propiciar a ação é a terceira função espacial. Para Borges Filho (2007) o
espaço, enquanto local físico, desempenha uma função básica de “propiciar a ação
que será desenvolvida pela personagem” (BORGES FILHO, 2007, p.39). Para o
escritor, o espaço não influencia a ação da personagem, apenas torna favorável a
irrupção de certos atos, como por exemplo: em uma narrativa com espaço aberto e
amplo, tornará favorável alguma ação ou reação da personagem como correr ou fugir
34

de qualquer um que coloque sua vida em risco. Em um espaço fechado e restrito como
um quarto ou viela sem saída tal façanha não será possível. Sobre essa característica
funcional do espaço de ‘propiciar a ação’ Lins (1976) relata que “os casos em que o
espaço propicia, favorece a ação [...] algo já esperado, adensa-se na narrativa, à
espera de que certos fatores, dentre os quais o cenário, tornem afinal possível o que
se anuncia” (LINS,1976, p.101). Como exemplo da terceira função espacial, o cenário
do conto Venha Ver o Pôr do Sol é um cemitério abandonado, e por ser afastado e
abandonado torna-se um lugar oportuno para os planos de Ricardo, além do fato de
ser o espaço da morte, o que suscita hipóteses e expectativas levantadas no decorrer
da história, a morte esperada de Raquel.
A quarta função espacial consiste em situar a personagem geograficamente.
Esse tipo de espaço serve “apenas dizer onde está a personagem quando aconteceu
determinado fato” (BORGES FILHO, 2007, p. 40). O autor destaca que esse tipo de
espaço não agrega nada à personagem, serve apenas de cenário para demonstrar
onde a ação aconteceu. Ele é “meramente factual, pobre[...] não há nenhuma relação
de pressuposição entre personagem, espaço e ação. [...] O espaço é inteiramente
denotado” (BORGES FILHO, 2007, p.40). Como exemplo dessa função, no conto O
Chamado de Cthulhu, de Lovecraft, o narrador menciona diferentes nomes de cidades
tais como: Providence, Nova York, Nova Orleans, Boston e Newport. Essas cidades
são os cenários da trama e servem apenas para situar geograficamente onde os
acontecimentos misteriosos se deram, esses cenários não exercem nenhuma
influência no comportamento dos personagens. Toda narrativa gira em torno do
monstro Cthulhu, bem como o baixo relevo encontrado pelo narrador personagem e
que pertencia a seu tio-avô, um “professor emérito de línguas semíticas na
Universidade Brown, em Providence, Rhode Island” (HOUELLEBECQ, 2020, p.101).
O professor teve uma morte súbita, ele “caiu desacordado quando voltava de Newport
de navio” (HOUELLEBECQ, 2020, p.102). O objeto encontrado é um “bizarro baixo-
relevo de barro, [...] Os escritos que acompanhavam essa bizarrice, [..] O que parecia
ser o principal documento estava intitulado “CULTO A CTHULHU” (HOUELLEBECQ,
2020, p. 102-103). Dessa forma, as cidades servem apenas de localizações, situam
apenas onde os fatos relacionados aos objetos e ao ritual se desenrolaram.
A quinta função espacial serve para representar os sentimentos vividos pelas
personagens. Esses espaços são classificados como homólogos por Borges Filho
35

(2007), pois são correlatos aos sentimentos da personagem, geralmente


caracterizados pela natureza ou fenômenos naturais que se apresentam na narrativa,
conforme exemplifica o autor:

Por exemplo, teremos uma cena de alegria que se passa sob o sol fresco de
fim de tarde, brilhante, num céu com poucas nuvens e passarinho voando.
Parece que, como a personagem a natureza está alegre, portanto, há uma
relação de homologia entre personagem e espaço (BORGES FILHO, 2007,
p.40).

Dessa forma, a natureza surge como um elemento que revela semelhança


aos sentimentos da personagem e o seu estado de espírito, em geral “não são
espaços em que a personagem vive, mas são espaços transitórios, muitas vezes
casuais” (BORGES FILHO, 2007, p.40). Como exemplo, no conto A Ceia, de Telles,
inserido na obra Antes do Baile Verde; a narrativa se passa em um “restaurante com
mesinhas ao ar livre, espalhadas debaixo das árvores” (TELLES, 2009, p.121). Trata-se
de um encontro de despedida entre um casal de amantes, Alice e Eduardo. O mais
importante são os sentimentos de angústia, tristeza de Alice ao sentir-se traída por
Eduardo, ao saber que seu namorado está noivo de Olívia e marcou um encontro de
despedida à noite. A personagem compara a ceia no restaurante regada a pão e vinho,
com a cena bíblica da última ceia em que Jesus foi traído. Vejamos um trecho a seguir:
“Quem diria, hein? Nossa última ceia. Não falta nem pão, nem vinho. Depois, você me
beijará na face esquerda” (TELLES, 2009, p.128). Os componentes espaciais e
temporais instaurados no cenário dão o tom à cena, a noite, a escuridão, a mesa
escolhida com pouca iluminação, o pão, o vinho, a revelação, o sentimento de tristeza,
de vazio, de ser traída é homólogo ao cenário escuro e vazio.
A sexta funcionalidade do espaço é estabelecer contraste com a personagem.
Borges Filho (2007), classifica esse tipo de espaço como heterólogo, pois há uma
incompatibilidade entre sentimento da personagem e a instauração espacial denotado
pela natureza. Essa função pode ser evidenciada em A Tumba; o sentimento de
alegria do personagem Jervas ao ter sua primeira experiência no interior da tumba
destoa do espaço mórbido instaurado. Há uma incompatibilidade do sentimento de
alegria e êxtase do personagem, com a composição espacial representada pelos
elementos temporais fim da tarde que remete à finitude e corroboram a composição
triste do espaço externo e interno da tumba captado pela sensorialidade do
protagonista, o que pode ser observado no seguinte relata relato:
36

Foi na luz suave do fim da tarde que entrei pela primeira vez na câmara
mortuária da colina abandonada. [...] meu coração pulava de alegria que
mal consigo descrever. Quando fechei a porta e desci os degraus que
gotejavam de umidade sob a luz da minha única vela, [...] com a atmosfera
infecta e asfixiante do lugar, senti-me particularmente à vontade no ar
mofado e de ossuário" (LOVECRAFT, 2019, p.13, grifo nosso).

A escuridão do lugar em que somente a luz de uma única vela iluminava o


interior da tumba repleto de umidade e com o ar mofento e asfixiante captado pelo
seu sentido visual e olfativo do personagem contrasta com a felicidade do
personagem. Dessa forma, tem-se um espaço heterólogo.
Antecipar a narrativa é a sétima função do espaço e funciona como uma
antecipação de ação iminente através de objetos inseridos no espaço, desde
vestimentas com cores específicas, falas repetidas por personagens ou algum objeto
captado pelo olhar do narrador ou da personagem que servirá na realização de algum
ato. Todas essas estratégias narrativas configuram antecipações das ações, o que
Borges Filho (2007) classifica como prolepses espaciais, como exemplo, no conto
Meia Noite em Ponto em Xangai, no próprio título temos uma prolepse da morte
evidenciada pela marcação da hora - meia-noite, um horário soturno, pavoroso que
flutua no imaginário humano como a hora dos mortos, é também a hora da morte
misteriosa da cantora de soprano, chamada Madame. No começo da narrativa temos
alguns objetos na sala de banho, que pela simbologia das cores demarcam também
uma antecipação da narrativa como o “espelho de moldura de laca vermelha[...] o
toucador de laca vermelha” (TELLES, 2009, p.83) As cores são bastante exploradas
nos contos lygianos e estabelecem também um significado negativo. “O vermelho
simboliza o sangue; ele aparece ligado a fatos contraditórios como alegria e morte. O
sangue contido é alegria, mas sangue derramado é morte (BORGES FILHO, 2007,
p.90). A vestimenta preta do mordomo chinês Wang revela também o luto, além de
ser uma prolepse da morte. Ele “usava alparcatas pretas e uma túnica preta abotoada
até o pescoço. Pisava mansamente, como falava” (TELLES, 2009, p.84). Outro
símbolo que prediz o luto é o “céu negro sem estrelas” (TELLES, 2009, p.86).
As falas dos dois personagens predizem o destino da cantora de soprano,
Stevenson o empresário da Madame e Wang, o mordomo chinês. Ambos se
despedem com um “Boa Noite” que sugere, além de despedida, a conotação do sono
eterno. Ao final da narrativa nos é sugerida a morte da protagonista de forma
misteriosa, evidenciada por um jogo de olhares e gestos da personagem “a mulher foi
37

se encolhendo, agarrada aos braços da poltrona. Cravou o olhar esgazeado no


retângulo negro do céu. Encolheu-se mais ainda, cruzando os braços” (TELLES, 2009,
p.89).

1.5 O percurso espacial a partir das quatro etapas do enredo

O percurso espacial é o resultado do “encadeamento dos espaços que formam


a narrativa” (BORGES FILHO, 2007, p.42-43) e está intimamente interligado às quatro
etapas do enredo (apresentação, desenvolvimento, clímax e desfecho). Em cada
etapa do enredo têm-se acontecimentos que se desenrolam em um determinado
espaço da narrativa. Borges Filho (2007) pontua que a primeira etapa é denominada
“exposição ou apresentação”; o autor relata que nessa parte introdutória do enredo
nos é apresentado o espaço inicial ocupado pelas personagens, assim como os fatos
que dão início à narrativa. Nesse espaço inicial “deve-se perceber suas características
e estar atento no seu papel [...]. Contrastar esse espaço inicial[...] com o espaço final,
verificando os efeitos de sentido que essa relação provoca” (BORGES FILHO,2007,
p.43).
Para o autor, a segunda parte do enredo é a complicação ou desenvolvimento -
caracterizado pela ruptura da ação inicial através de outro acontecimento. Ele
assevera que cabe ao estudioso verificar em “que espaço ocorre essa quebra da
situação inicial” (BORGES FILHO, 2007, p.43). Para o escritor, a complicação pode
acontecer no espaço inicial ou no secundário. Dessa forma, não podemos afirmar que
o segundo espaço corresponde à segunda etapa do enredo (complicação/
desenvolvimento).
A terceira etapa do enredo corresponde ao momento de tensão da história, o
clímax. “É o ponto mais próximo do desfecho. [...] Nesse momento deve-se perguntar
de que maneira o narrador organizou aquele espaço e quais os sentidos que se pode
depreender dele” (BORGES FILHO, 2007, p.43).
A quarta parte do enredo é o desfecho, o encerramento da trama. O autor
pontua que se deve analisar em qual espaço o desfecho acontece. Se existe alguma
coincidência nos espaços, qual a intenção e o sentido do espaço final. Se “o espaço
inicial, por exemplo, é o mesmo do espaço final? Houve alguma metamorfose nesse
espaço entre o início e o fim da narrativa” (BORGES FILHO, 2007, p.43-44). De acordo
38

com o autor, o percurso espacial consiste na soma e sequenciamento dos espaços


presentes em cada etapa do enredo, podendo ser um único espaço do início ao fim
da narrativa, espaço restrito inserido em um espaço amplo ou espaços diferentes no
decorrer da narrativa.

1.6 Dispositivos Espaciais

Empregaremos o termo dispositivos espaciais para referenciar os elementos


ligados ao espaço, que serão utilizados na nossa topoanálise. No percurso espacial
de cada conto, abordaremos apenas quatro dispositivos espaciais, pois estão
relacionados à percepção espacial, tais como: as coordenadas espaciais, os
gradientes sensoriais, perspectiva de englobamento e as prolepses espaciais.

1.6.1 As Coordenadas Espaciais

Segundo Borges Filho (2007), as coordenadas espaciais estão relacionadas


aos eixos vertical e horizontal. O eixo vertical subdivide-se em “coordenadas alto x
médio x baixo” (BORGES FILHO, 2007, p.57). O autor pontua, ainda, que algumas
vezes, nas análises espaciais, os eixos verticais (alto, médio e baixo) são
representados pelas ideias de “céu x terra x subterrâneo” (BORGES FILHO, 2007,
p.57). Em seguida, destaca que o eixo vertical (verticalidade) é marcado pelas suas
extremidades (alto x baixo). Já o eixo horizontal, subdivide-se em: horizontal-frontal e
horizontal-lateral. Dessa forma temos quatro coordenadas: a frontalidade
representada por (diante-atrás) e a lateralidade representada por (direita-esquerda),
a prospectividade (perto-longe) e a centralidade do espaço que é demarcado pelo
(centro x periferia). Outra coordenada destacada pelo autor é a interioridade do
espaço caracterizada pelo (interior x exterior) do espaço. O autor relata que o aspecto
amplitude deve ser analisado, “o par vasto x restrito. Trata-se de verificar se a
espacialidade construída pelo narrador ou eu-lírico possui dimensões muito extensas
ou [..] se o espaço é reduzido” (BORGES FILHO, 2007, p.58).
O ser humano, de forma mecânica, tem a noção de espacialidade, se
movimenta no espaço, apreende o espaço ocupado através do seu sentido visual;
eixos como alto-baixo, frente-atrás, direita-esquerda, perto-longe são captados e
39

realizados de forma natural. Sobre essas coordenadas espaciais, Tuan (1983)


destaca a superioridade humana em relação aos outros mamíferos, devido à
capacidade de manter-se ereto, conforme o trecho a seguir:

Entre os mamíferos o corpo humano é ímpar porque se mantém com


facilidade na posição ereta. Na posição ereta o homem está pronto a agir. O
espaço se abre diante dele e imediatamente pode diferenciá-lo nos eixos
frente e atrás, direita-esquerda de acordo com a estrutura do seu corpo.
Vertical e horizontal, em cima-embaixo, frente e atrás e direita-esquerda são
as posições e coordenadas do corpo que são extrapoladas pelo espaço
(TUAN, 1983, p.40).

As coordenadas espaciais são adquiridas de forma natural através do contato


direto com o espaço, e essa noção de espacialidade está diretamente condicionada
aos cinco sentidos sensoriais, em especial o visual, o auditivo e o tátil. No que
concerne ao ato de movimentar-se pelo espaço, a habilidade motora destacada pelo
teórico é o que transforma o ser humano em único, através da locomoção no espaço,
permitindo-o experienciar o espaço de forma direta. Faz-se necessário destacar a
supremacia e importância do sentido visual, a fim de captar o espaço que se
apresenta, bem como ter noção de coordenadas espaciais, por exemplo, os eixos
frente-atrás, alto-baixo, perto-longe são apreendidos de imediato pelo campo visual.
No entanto, para uma pessoa que nasceu cega, por exemplo, essa captação espacial
será através da agudização de outros sentidos como o auditivo e o tátil, o som e o
toque serão determinantes na aquisição dos direcionamentos espaciais básicos. “Os
cegos desenvolvem uma aguda sensibilidade para os sons; são capazes de usá-los e
as suas ressonâncias para avaliar o caráter espacial do meio ambiente” (TUAN,1983,
p.17). Seus ouvidos atentos e treinados conseguem determinar a prospectividade do
som (perto-longe) através do tom de voz do emissor ou volume do som (alto-baixo) e
uma intuitiva localização espacial.
No que tange à simbologia e figurativização do eixo vertical- alto-baixo, do eixo
horizontal- frontal (frente-atrás), Borges Filho (2007) acrescenta que: “o que se
encontra acima e em nossa frente é visível, portanto, avaliável. Por outro lado, o que
está abaixo do solo ou atrás é invisível e, portanto, negativo” (BORGES FILHO, 2007,
p.59). O ser humano classifica de forma positiva ou negativa, de acordo com sua
visibilidade, esses eixos espaciais. Há um certo simbolismo no que se refere ao polo
alto e baixo; o alto sempre é associado ao superior, ao céu concebido como paraíso,
40

sagrado e sublime; por outro lado, o baixo conota o inferior, o inferno, o desconhecido
e temido.

1.6.2 Gradientes Sensoriais: percepção e experiência espacial

O ser humano conhece o mundo e percebe o espaço ocupado através dos seus
cinco sentidos sensoriais, denominado por Borges Filho (2007) de gradientes
sensoriais, termo empregado na topoanálise. Os gradientes correspondem a: “visão,
audição, olfato, tato e paladar. O ser humano se relaciona com o espaço circundante
através de seus sentidos” (BORGES FILHO, 2007, p.69). O conhecimento do espaço,
de forma direta, se vale do acionamento dos sentidos sensoriais de forma automática
e natural. De acordo com Tuan (1983) a captação espacial acontece principalmente
com o uso da visão, que permite ao sujeito ter uma concepção ampla do espaço que
o cerca, bem como o acionamento do sentido auditivo, tátil e sua habilidade motora.
No que concerne à importância do polo visual como órgão que capta as
imagens do espaço ocupado, Tuan (1983) relata que “a dependência visual do homem
para organizar o espaço não tem igual. Os outros sentidos ampliam e enriquecem o
espaço visual” (TUAN, 1983, p.18). Borges Filho (2007) concorda com Tuan,
afirmando que a visão é o sentido sensorial mais importante do ser humano; após o
nascimento, a visão é o primeiro sentido acionado para captação do mundo externo.
“É o sentido que capta o espaço em seu distanciamento máximo. Através dele
inúmeras informações o atingem, mais que pelos outros sentidos” (BORGES FILHO,
2007, p.72). O autor ressalta, ainda, duas características importantes e únicas da
visão humana, que são o discernimento das cores e a visão tridimensional que
possibilita ao ser humano perceber a distância, o tamanho e profundidade espacial
com nitidez. Segundo o escritor: “Uma das grandes características da visão é discernir
cores. [...]. Outra característica[...] é que possuímos uma visão estereoscópica. [...]
temos uma visão nítida e tridimensional dos corpos à nossa frente (BORGES FILHO,
2007, p.73). Daí o motivo de a visão ser o sentido mais importante para apreensão e
interação com espaço tanto no mundo real quanto no mundo ficcional “dificilmente
iremos encontrar no texto literário uma percepção espacial que não se utilize da visão”
(BORGES FILHO, 2007, p.73). No âmbito da análise espacial o teórico relata que se
41

deve analisar no espaço visual o “seu caráter de visibilidade/invisibilidade” (BORGES


FILHO, 2007, p.73).
Sobre o sentido tátil, responsável pela experiência direta com elementos
contidos no espaço, Tuan (1983) ressalta a importância do tátil associado ao visual
para apreensão do espaço. No âmbito espacial, a percepção visual e tátil ganha
destaque em relação aos outros sentidos considerados passivos como olfato, paladar
e audição. Sobre a consciência obtida em relação ao espaço, o teórico assevera o
seguinte:

Podem outros sentidos além da visão e do tato; proporcionar um mundo


espacialmente organizado? [...]. Quais são os órgãos sensoriais e
experienciais que permitem aos seres humanos ter sentimentos intensos pelo
espaço? –[...] visão e tato. (TUAN, 1983, p.13).

O autor pontua que a soma do gradiente visual com o tátil propicia a captação
do espaço de forma mais ampla permitindo ao ser humano ter sensações e
experiências mais intensas pelo espaço ocupado. De forma correlata às concepções
de Tuan (1983), Borges Filho (2007) afirma que o tato “é quase tão importante quanto
o desenvolvimento da visão tridimensional” (BORGES FILHO, 2007, p.93). Segundo
o escritor, o homem desenvolveu uma incrível habilidade para identificar formas,
tamanho e textura através da manipulação do objeto, através do tato “experienciamos
a resistência, a pressão dos seres e do espaço. Tal experiência é fundamental para a
percepção de que existe um mundo além de nossa imaginação” (BORGES FILHO,
2007, p.93). O escritor destaca que o personagem experiência os objetos contidos no
espaço através do tato e, “poderá receber um número enorme de informações sobre
o espaço e os objetos que o ocupam. Qualidades espaciais táteis como liso, crespo,
fino, grosso serão valoradas de diversas maneiras no texto literário” (BORGES FILHO,
2007, p.93).
Sobre o sentido auditivo, Tuan (1983) relata que, “tendo visão e possibilidade
de mover-se e de usar as mãos, os sons enriquecem muito o sentimento humano em
relação ao espaço” (TUAN, 1983, p.16). Segundo o autor, o sentido auditivo atua como
um dispositivo para captar o som emitido no espaço, bem como sua origem, volume
do som e distância. “O próprio som pode evocar impressões espaciais. Os estrondos
do trovão são volumosos; [...] O som aumenta nossa consciência” (TUAN, 1983, p.17,
18). Borges Filho (2007) relata que “a audição humana não é muito sensível. [...] os
olhos captam informações do espaço de maneira mais abundante e precisa que os
42

ouvidos” (BORGES FILHO, 2007, p.95). O pesquisador (2007) assevera que no âmbito
literário o narrador se vale de múltiplos “recursos auditivos [...] para criar efeitos de sentido.
A chuva no telhado, o som do trovão, o assovio do vento, o choro, [...] provocando atitudes
e sentimentos nas personagens em relação ao espaço” (BORGES FILHO, 2007, p.95). No
mundo ficcional, o som percebido pela personagem é verossímil ao mundo real e aliado ao
visual, o “som dramatiza a experiência espacial” (TUAN, 1983, p.18).
Em termos de topoanálise, Borges Filho (2007) afirma que: “A dicotomia
silêncio x barulho é a principal divisão que podemos estabelecer nesse gradiente
sensorial” (BORGES FILHO, 2007, p.96). Segundo a concepção do pesquisador, o
silêncio pode assumir teor positivo ou negativo, ou seja, “significando paz,
relaxamento [ou] solidão, abandono” (BORGES FILHO, 2007, p.96). É através da
análise do texto que tal significado poderá ser determinado, segundo o autor.
No que diz respeito ao sentido olfativo, classificado por Tuan (1983) como
passivo, também acionado para detectar os odores que surgem no espaço, “o odor
pode mais facilmente que os outros sentidos evocar lembranças, carregadas
emocionalmente” (BORGES FILHO, 2007, p.98). O sentido olfativo é muitas vezes
empregado pelo narrador com o objetivo de despertar lembranças passadas no
personagem, desencadeando o flashback, o tempo psicológico, para que o
personagem possa reviver as memórias que o cheiro presente no espaço captado
pelo seu gradiente olfativo lhe provoca. O autor destaca que o cheiro espacial pode
desencadear emoções positivas ou negativas; cabe ao topoanalista “depreender os
diversos sentidos ligados aos cheiros do espaço” (BORGES FILHO, 2007, p.99).
Borges Filho (2007) destaca que “apesar de os sentidos serem os mesmos, [...]
cada pessoa percebe a realidade diferentemente. Assim também ocorre na obra de
ficção” (BORGES FILHO, 2007, p.69). Cada personagem percebe o espaço de forma
singular e subjetiva. De acordo com o autor, deve-se analisar como a personagem se
relaciona com o espaço através de seus sentidos, identificar a relação distância/
proximidade a partir da sensorialidade da personagem e quais são os sentidos mais
empregados na captação espacial, conforme o trecho a seguir:

Por exemplo, se a personagem percebe o espaço através da audição, não se


deve simplesmente detectar que ela se encontra de certo modo afastada,
mas deve-se perguntar por que nesse espaço predomina o silêncio em vez
do barulho ou vice-versa. Ou então, por que em determinado cenário
predomina a cor azul e não a vermelha? Ou o contrário? (BORGES FILHO,
2007, p.70).
43

O autor instrui como deve ser feita a observação espacial; deve-se estar atento
ao significado por trás da sensorialidade, pois não se trata apenas de identificar um
espaço silencioso ou ruidoso, mas investigar o porquê do silêncio ou do barulho no
espaço. Investigar, ademais, a simbologia das cores captadas pelo gradiente visual,
pois todos os elementos, objetos contidos no espaço têm uma
intencionalidade/funcionalidade.
Além dos cinco gradientes sensoriais importantes para a percepção espacial,
se faz necessário destacar o sensório motor responsável pela experimentação direta
do espaço, pois, “o espaço é experienciado quando há lugar para se mover, mudando
de um lugar para outro” (TUAN,1983, p.13). No mundo ficcional narratológico, a
personagem pode explorar todos os gradientes sensoriais, pois no espaço ficcional
tudo se torna possível, o cheiro, o canto dos pássaros, o abraço ou o gosto amargo
do cigarro e o frio percebido pela personagem, no entanto, alguns sentidos são mais
explorados que outros.
Podemos constatar que tanto no mundo real quanto no ficcional, os gradientes
sensoriais mais utilizados e importantes para percepção espacial são: a visão, o tátil,
o auditivo e o olfativo. Estar no espaço, conhecê-lo fisicamente, movimentar-se pelo
espaço, sentir sua energia, percebê-lo através do visual, tátil e sensório motor, tudo
isso é permitido a partir do contato direto com o espaço, da experimentação espacial.

1.6.3 Perspectiva de Englobamento

Borges Filho (2007) destaca o espaço inserido no outro, o que ele denomina
de “espaço englobado/espaço englobante” (BORGES FILHO, 2007, p.132).
Semelhante às narrativas encaixada/encaixante, em que a narrativa macro
(encaixante) acomoda a micro (encaixada), nessa mesma linha de pensamento, o
espaço englobante (maior) acondiciona um espaço englobado (menor). O espaço
englobante é o espaço externo caracterizado pelos termos “ao redor (de), em volta
(de), em torno (de) [...] fora (de), exteriormente, externamente” (BORGES FILHO,
2007, p.132). Ao passo que o englobado é sempre no interior, “dentro (de), em, no
interior (de), interiormente, internamente, no centro (de), no meio (de), no coração
(de)” (BORGES FILHO, 2007, p.132). No conto Venha Ver o Pôr do Sol, o espaço
englobante é representado pelo cemitério, um espaço externo maior e que acomoda
44

dois espaços menores em seu interior, a capela e o subsolo-lugares englobados. Já


no conto A Tumba, o bosque é o espaço englobante - aberto e externo que abriga o
portal do túmulo, um lugar englobado e visível e o interior do túmulo-englobado e
invisível.

1.6.4 As Prolepses

Prolepse designa uma antecipação de algo; o narrador antecipa um


acontecimento futuro através das prolepses espaciais, que abrange desde a fala de
um personagem, um objeto captado pelo olhar do personagem ou pela voz do
narrador. A prolepse espacial é empregada por Borges Filho (2007) como uma função
espacial quando o próprio espaço constitui uma premonição, conceito abordado no
item (1.4).
O verbete prolepse no E-Dicionário de Termos Literários é descrito da seguinte
forma:

Termo de origem grega (prólèpsis – acto de tomar de antemão; opinião que


se forma antecipadamente, opinião preconcebida. [...]. Em narratologia, [...] A
prolepse consiste na alteração da ordem sequencial dos acontecimentos,
antecipando alguns que ainda não tenham ocorrido ou fazendo simplesment e
um sumário de uma situação que virá a ocorrer (TRILHO apud CEIA, 2009).

Nas narrativas de Telles, tal técnica é recorrente através do jogo de imagens e


cores, pelos objetos instaurados no cenário pelo narrador, pelas repetições
intencionais ou frases com duplo sentido que funcionam como prolepses espaciais,
antecipando ao leitor a morte iminente de algum personagem. Por outro lado, nos
contos de Lovecraft o uso da prolepse não é tão evidenciado como nos contos de
Telles. No conto Os Objetos de Telles, o personagem Miguel pega uma bola de vidro
e simula visualizar o futuro. Na sua visão ele relata que vê Lorena, sua esposa, vestida
de vermelho. A simbologia da roupa vermelha da personagem funciona como uma
prolepse, prediz o derramamento de sangue e como consequência a morte. Ainda
sobre a temática da morte, no próximo capítulo abordaremos sobre o espaço da morte,
os cemitérios no mundo real e ficcional, tais lugares são os cenários das narrativas de
Telles e Lovecraft do corpus desta pesquisa.
45

CAPÍTULO 2 - ESPAÇO DA MORTE

O objetivo deste segundo capítulo é discutir sobre o espaço da morte


considerado um espaço topofóbico, responsável pela irrupção da emoção do medo,
sentimento tão evidenciado no mundo real e no ficcional trazendo à baila excertos dos
cenários dos contos corpus desta pesquisa, assim como, evidenciando a relação
sentimental das personagens com o espaço ocupado. O capítulo está dividido em
quatro subitens. No item 2.1 O Espaço da Morte-faremos um breve histórico sobre o
surgimento dos cemitérios, bem como as práticas de inumação na Europa, Brasil e
São Paulo, o medo da morte e toda sua representação espacial; abordaremos a
percepção espacial do ser humano em relação ao espaço sepulcral, a concepção de
morte no mundo contemporâneo, fazendo um paralelo com o mundo ficcional, como
o espaço e a morte são retratados nos contos de Telles e Lovecraft e como a urbe da
morte é percebida pelas personagens de cada conto. No item 2.2 Espaços do Medo:
medo dos espaços, versaremos sobre os diversos espaços topofóbicos que
precipitam a emoção do medo, fazendo um panorama do espaço no período medievo,
atravessando o mundo contemporâneo e finalizando no mundo ficcional, este último
nosso principal interesse. No item 2.3 Sentimentos Topofílicos e Topofóbicos=
Topopatia, abordaremos a relação sentimental do personagem pelo lugar ocupado,
distinguindo os conceitos de topofilia e topofobia; exemplificando os típicos espaços
topofóbicos do mundo real que são verossímeis ao mundo ficcional. E por último, a
percepção espacial e a experiência espacial pautadas no sentimento e pensamento
sobre o espaço a luz das teorizações de Tuan, bem como a apropriação espacial. No
item 2.4 O Horror: a emoção do medo artístico, abordaremos o surgimento das
narrativas de horror, com um breve panorama histórico da Europa no período que a
obra marco do horror foi publicada, os principais escritores e obras alusivas ao horror,
as características, temas e os típicos espaços (cenários) das histórias em que o medo
psicológico ganha espaço; e, por último, falaremos sobre o horror, enquanto fenômeno
e gênero moderno no mundo contemporâneo.
46

2.1 Espaço da Morte: do surgimento, experiência e medo da morte

Necrópole, sepulcrário, campo-santo, fossário, cidade dos mortos são termos


sinônimos e metafóricos referindo-se ao verbete cemitério - local destinado ao
sepultamento dos mortos. A prática de enterrar os mortos é algo antigo, Segundo
Lombardo (2019), em seu texto Um Péssimo Cheiro do Altar: a vida antes dos
cemitérios, 3 a escritora pontua que as primeiras práticas de inumação de corpos
datam de trezentos mil anos, em que os mortos eram lançados em poços a fim de que
não fossem devorados por animais selvagens e ao mesmo tempo, para que não
atraíssem animais perigosos para perto das moradias. A escritora relata como era o
sepultamento dos mortos por diferentes povos e diferentes culturas como, por
exemplo, no Antigo Egito, em que somente os faraós, após a morte, tinham seus
corpos embalsamados, mumificados, inseridos em sarcófagos e abrigados nas
pirâmides; por outro lado, os falecidos de classe popular eram enterrados diretamente
em valas. Na Índia os corpos eram incinerados em grandes fogueiras. O costume de
enterrar os mortos na igreja, segundo a autora, surgiu em torno do século VII, e, de
certa forma, tal costume se estendeu até o século XIX, atravessou toda a Europa e
chegou ao Brasil também.
Lauwers (2015) em O Nascimento do Cemitério: lugares sagrados e a terra dos
mortos no Ocidente Medieval faz um panorama do surgimento dos cemitérios na
Europa Medieval nos séculos VII e XII, tanto nos campos quanto nas cidades. Os
cemitérios eram “lugares públicos, lugares de inumação, a partir de então obrigatórios
para todos, representava uma grande novidade em relação as tradições funerárias
que tinham caracterizado as sociedades antigas” (LAUWERS, 2015, p.19). O escritor
descreve o espaço físico e como era feito os procedimentos de remoção de ossos
para dar lugar a novos defuntos. Vejamos trecho a seguir:

Desde cedo qualificadas de “cemitérios”, essas zonas de sepultura coletiva


estritamente ligadas às aldeias e as cidades tinham a aparência de terrenos
mais ou menos vastos, nos quais se encontravam enterrados, de maneira
geralmente indiferenciada, os corpos dos defuntos. A terra dos cemitérios era
frequente revirada, trabalhada, e, de maneira regular, ossos eram extraídos
dela a fim de dar lugar a novos corpos destinados a se misturarem no seio do
espaço funerário (LAUWERS, 2015, p.19, grifo do autor).

3LOMBARDO, Lívia. Um Péssimo Cheiro do Altar: a vida antes dos cemitérios. Aventuras na História.
Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/um -certo-cheiro-do-alta r- a-
vida-antes-dos-cemiterios.phtml. Publicado em 29/09/2019. Acesso em: 11/07/2021.
47

Percebe-se que os cemitérios entre os séculos VII e XII eram terrenos extensos
presentes nas cidades e nas aldeias, mas o que chama atenção são as práticas de
sepultamento, pois não há registro de uso de caixões e sepulturas individuais, o que
sugere o sepultamento diretamente na terra. Além disso, havia um constante
manuseio da terra cemiterial para retirada de ossos de antigos defuntos e
sepultamento de novos cadáveres.
“Os cemitérios eram adjacentes, em geral a edifícios de culto, [...] consagrados
pelas autoridades eclesiásticas e, ao fim de um processo complexo[...] se tornaram,
assim como as igrejas, lugares sagrados” (LAUWERS, 2015, p. 21). Essa sacralização
e proximidade da igreja com o cemitério se estenderá até o final do século XVIII e
início do século XIX, conforme relata Foucault (2009). Os cemitérios ficavam nos
centros urbanos próximos às igrejas, pois “acreditava-se efetivamente na ressureição
dos corpos e na imortalidade da alma” (FOUCAULT, 2009, p.417),tornando o espaço
do cemitério, religioso e sagrado; alguns mortos eram enterrados dentro da igreja,
simbolizando um certo prestígio, no entanto, tal prática ocasionou a contaminação do
solo e o surgimento de diversas epidemias e doenças mortais e, devido a isso, os
cemitérios foram transferidos para as estradas ou locais afastados da cidade. Sobre
isso, Foucault (2009) faz um breve histórico:

Na cultura ocidental o cemitério praticamente sempre existiu. Mas sofreu mutações


importantes. Até o fim do século XVIII o cemitério estava situado no próprio centro
da cidade ao lado da igreja. [...] havia sepulturas dentro das igrejas. [...]. Esse
cemitério, que se localizava no espaço sagrado da igreja, adquiriu nas civilizações
modernas um aspecto totalmente diferente. [...] A partir do século XIX que se
começou a colocar os cemitérios no limite exterior das cidades. [...]. Nasceu uma
obsessão da morte como doença. São os mortos, supõe-se, que trazem as
doenças aos vivos, e é a presença e a proximidade dos mortos ao lado das casas,
ao lado da igreja, quase no meio da rua, é essa proximidade que propaga a própria
morte (FOUCAULT, 2009, p.417).

Constata-se, portanto, a mudança de pensamento, bem como de conduta, já


que os mortos não estavam mais atrelados ao sagrado para a sociedade burguesa do
século XIX, mas a algo perigoso e nefasto que disseminava doenças mortais através
da poluição do solo. E, por isso, os cemitérios foram afastados para as periferias.
Segundo o autor, “os cemitérios, então, constituem não mais o vento sagrado e imortal
da cidade, mas a “outra cidade”, onde cada família possui sua morada sombria”
(FOUCAULT, 2009, p.418, grifo do autor).
No século XIX, no Brasil, e mais especificamente na cidade de São Paulo,
conforme relata Lombardo (2019), as práticas de sepultamento seguiam o modelo
48

Europeu, e eram realizadas nas igrejas tanto na parte interna quanto na externa, mas
tal ato era concedido somente para altos membros do clero e pessoas da nobreza.
Embora a inumação em igrejas fosse algo pomposo, sinônimo de prestígio e
religiosidade, esse tipo de sepultamento não era higiênico e contribuía para o
surgimento de doenças e epidemias, conforme afirma a autora:

Até meados do século XIX no Brasil, o costume era de enterrar os mortos


dentro das igrejas. E esse era o enterro mais honrado reservado a nobres e
bispos- os pobres e escravos eram enterrados numa vala comum. Na maior
parte das vezes, nem caixão era usado. Os corpos eram sepultados na terra
suja e repleta de ossos de defuntos antigos. Não é difícil imaginar a
quantidade de doenças que a prática ocasionava (LOMBARDO, 2019).

Além de tal prática ocasionar a propagação de doenças através da poluição do


solo, havia também a distinção e discriminação com a classe pobre e escrava da
época que era simplesmente enterrada em covas sem nenhum rito religioso e sem
direito a caixão. Sobre o procedimento de inumação, Antônio Egydio Martins4 (2003)
narra um breve histórico de como eram realizados os sepultamentos na cidade de São
Paulo no século XIX; tal relato está no acervo histórico da Assembleia Legislativa do
Estado de São Paulo in “O Cemitério da Consolação e a Assembléia Legislativa
Provincial”. Martins (2003) descreve de forma cômica e estarrecedora, ao mesmo
tempo, como o sepultamento era realizado por africanos que entoavam uma cantoria,
e à medida que cobriam o corpo do defunto, socavam a terra com um pilão a fim de
que o terreno ficasse plano. Tal ação deixava os moradores horrorizados. Outro fato
é que havia apenas um caixão, emprestado pela igreja, que servia o defunto até a
hora do enterro, pois o corpo era enterrado diretamente na cova. E o caixão devolvido
para a igreja. Vejamos relatos de Martins (2003):

O serviço de enterramento de cadáveres nas igrejas ou nos cemitérios


contíguos às mesmas era feito, antigamente, por pretos africanos, que, à
proporção que iam pondo terra sobre o cadáver, socavam este com uma
grossa mão-de-pilão, contando o seguinte: Zóio que tanto vê. Zi boca que
tanto fala. Zi boca que tanto zi comeu e zi bebeu. Zi cropo que tanto trabaiô.
Zi perna que tanto andô. Zi pé que tanto zipisô. E assim iam eles cantando
esses e outros despropósitos até acabarem de cobrir com terra a sepultura,
sendo que, em consequência de quase todas as irmandades possuírem um
só caixão, o cadáver de qualquer dos seus irmãos era sepultado sem o

4 MARTINS, Antônio Egydio. O Cemitério da Consolação e a Assembléia Legislativa Provincial.


Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=277233.Publicado em 12/12/2003. Acesso em:
11/07/2021.
49

mesmo caixão, voltando este, depois de enterrado o cadáver, para a sacristia


da igreja, na qual ficava guardado até o dia em que novamente era pedido
para servir a algum irmão falecido de uma daquelas irmandades. Os
moradores das proximidades das mesmas igrejas e cemitérios, por causa de
tais cantigas e socamentos de cadáveres, ficavam bastante amedrontados
com isso (MARTINS, 2003).

Tais práticas evidenciam a falta de higiene e insalubridade da época, e descaso


das autoridades mediante um possível surto de epidemias pela poluição do solo e do
ar, através dos miasmas, decorrentes dos gases putrefatos dos corpos em
decomposição enterrados na parte externa e interna das igrejas.
Lombardo (2019) destaca que o costume de sepultamento de mortos na parte
interna e externa das igrejas na cidade de São Paulo só foi encerrado em 1850,
através de uma lei municipal que instituía a construção de um cemitério, a saber: “São
Paulo só acabou com esse hábito nada higiênico em 1850, quando a Câmara decidiu
que a cidade deveria construir um cemitério secular- o da Consolação” (LOMBARDO,
2019). Sobre isso, Nabozny e Liccardo (2017) pontuam que os cemitérios
representam “símbolos de limites (marcadores) entre o território dos vivos e as
‘dimensões espaciais dos mortos’ ” (NABOZNY; LICCARDO, 2017, p.21, grifo do
autor).
A urbe dos mortos se revela como a concretude da morte, o lugar pertencente
aos mortos em que os vivos podem experimentá-lo de forma superficial. Sobre isso,
Nabozny e Liccardo (2017) destacam que o tema da morte está relacionado ao espaço
e que de forma superficial os vivos podem se imiscuir no mundo dos mortos,
espionando e ocupando-o. Vejamos um trecho a seguir:

A temática da morte, aprioristicamente associada à forma espacial/cemiterial,


conduz a uma espécie de “espionagem da vida”, como se possível fosse
olharmos para a materialização ocupada pelo cadáver” (NABOZNY ;
LICCARDO, 2017, p.08, grifo do autor).

A espionagem da vida dos mortos segue os mesmos critérios da vida dos vivos ,
e acontece de duas formas: “de forma direta e íntima ou indireta e conceitual, mediada
pelo simbólico” (TUAN,1983, p.06-07), ou seja, a “espionagem” direta através do
contato com o espaço físico do cemitério permitirá uma experiência sensorial única,
cujas sensações vivenciadas no tópos da morte são mais difíceis de serem expressas
em palavras, deixando em segundo plano a experiência indireta e conceitual.
Conforme a concepção de Tuan (1983): “Uma pessoa pode conhecer um lugar tanto
50

de modo íntimo como conceitual. Pode articular ideias, mas tem dificuldade de
expressar o que conhece através dos sentidos do tato, paladar, olfato, audição”
(TUAN,1983, p.07). A experimentação direta do espaço sepulcral é mais ampla e
profícua, pois, abrange a sensorialidade (o sentido visual, auditivo e tátil) além da
habilidade motora, que permite a locomoção pelo espaço.
De certa forma, a experiência espacial direta dos vivos na cidade dos mortos
possibilita a deflagração de sensações, percepções e concepções como um resultado
da emoção (sentimento) deflagrado no lugar experienciado. E essa
emoção/sentimento desencadeada no tópos é registrada automaticamente pelo
pensamento, segundo a concepção de Tuan (1983) ao afirmar que “a experiência é
constituída de sentimento e pensamento” (TUAN, 1983, p.11). O autor destaca, ainda,
a relação existente entre sentimento como sendo associado à emoção, estado
subjetivo do ser humano que engloba (sensação, percepção e concepção) e o
pensamento, relacionado (a memória) que registra esse conjunto de emoções
experimentadas no espaço.
De acordo com Tuan (1983), o conhecimento indireto e conceitual do espaço
está muito impregnado na vida e na experiência humana; muitas pessoas conhecem
um lugar de forma conceitual e simbólica, sem nunca ter frequentado. Em termos
práticos, um jovem de doze anos pode nunca ter entrado em um cemitério, mas o
conhece de forma conceitual, sabe qual é a sua funcionalidade, muitas vezes conhece
sua estrutura física através de fotos ou vídeos. E toda essa experiência conceitual e
imagética é apreendida pelo cognitivo (pensamento). Dessa forma, a representação
imagética de um cemitério frequentemente surge no imaginário humano da seguinte
forma: de um espaço aberto repleto de sepulturas enfileiradas dispostas em paralelo
de forma horizontal feitas de cimento e mármore, anjos, cruz, lápides e capela. Essas
representações espaciais pictóricas demarcam o lugar símbolo da morte, o lócus onde
a morte se reifica.
A morte é um fenômeno e um mistério que se presentifica na vida humana
como um imperativo, uma certeza que ela há de acontecer. À medida que o tempo
passa nos aproximamos da velhice e da morte como uma consequência natural do
fim da vida. Há um fio tênue entre vida e morte, muitas vezes a vida é abreviada por
ironias do destino momento em que a morte se antecipa e o ser humano tem seu ciclo
natural de vida interrompido.
51

A morte surge de inúmeras formas para o ser humano; desde os primórdios até
os tempos atuais, a humanidade morre de morte natural, morte acidental, morte
trágica, morte auto infligida, morte encomendada, morte assistida e, ainda, não
podemos deixar de registrar, a morte em massa e epidêmica provocada por um vírus
silencioso e mortal (SARS-Cov-2) que tem se alastrado pelo mundo e vitimado milhões
de pessoas. Semelhante ao mundo real, a morte é representada no mundo ficcional
e, percebe-se que essa temática tem sido utilizada de forma massiva na prosa em
(narrativas longas e curtas) e em diferentes escolas literárias que abordam a morte
por um determinado aspecto. O tema da morte tem sido abordado por escritores
brasileiros e estrangeiros, desde o século XVIII com o surgimento do romance gótico
até os dias atuais, século XXI.
Nesse contexto, a morte se faz presente de diferentes formas, assume
diferentes significados, como por exemplo, na segunda fase do Romantismo
Brasileiro, conhecida como Ultrarromântica ou Mal do Século, em que os próprios
escritores pertencentes a essa escola literária morreram muito jovens, dentre eles,
Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Junqueira Freire. Tais escritores se
destacaram, pois retratavam de forma prosaica e poética o tema da morte de forma
mais intensa em relação aos outros escritores. Nessa escola literária, a morte assume
um caráter de alívio para os problemas de ordem sentimental e existencial. Há uma
inversão de valores nesse período literário; morrer é melhor do que viver. Há um
pessimismo diante da vida, viver tornou-se um fardo, um aborrecimento; em
contrapartida, o desejo da morte surge como solução para esse fardo. O homem
romântico percebe a morte como algo positivo, desejando-a para solucionar e findar
sua angústia e sofrimento.
Diferente das narrativas do Mal do Século e mais análogo ao mundo real, nos
romances realistas e contemporâneos, a morte assume um teor negativo, pois denota
o encerramento da vida, a personagem teme a morte. Por outro lado, em narrativas
alusivas ao mistério e ao horror, a morte se presentifica como um elemento fulcral,
atravessa a narrativa, do início ao fim; nesse tipo de história, o tema da morte é
recorrente e esperado pelo leitor, algumas vezes, no início ou no decorrer da trama
ou no desfecho da história em que a protagonista, de forma inesperada e misteriosa,
tem sua vida ceifada.
52

A simbologia da morte é personificada através do mistério, da tensão, do


macabro e do sobrenatural. No conto A Tumba, de Howard Phillips Lovecraft, a morte
se faz presente do começo ao fim da narrativa, de forma sobrenatural e real, mas algo
interessante no conto lovecraftiano é o sentimento topofílico em relação à morte e o
espaço da morte desencadeado pelo personagem principal, Jervas Dudley,
encarando a morte e o morrer como algo normal, ao invés de assustador, e
demonstrando sua curiosidade, desejo de morrer e pertencer ao spatium mortem dos
Hydes, pois acredita ter um elo de sangue com eles.

[...] a tumba abandonada dos Hydes, uma família antiga enaltecida cujo único
descendente direto foi colocado dentro do seu nicho muitas décadas antes
do meu nascimento [...] anos posteriores aumentou o fascínio que eu sentia
pela sepultura obscurecida pela mata[...] nunca vou esquecer à tarde que
encontrei ao acaso pela primeira vez, essa casa da morte meio escondida
(LOVECRAFT,2019, p.08-09, grifo nosso).

O protagonista se relaciona de forma amistosa com a morte e com seres que


não são mais físicos, mas que insistem estar no plano físico, verdadeiras
representações do mundo dos mortos, seres que recebem inúmeras classificações
como: espectro, fantasma, alma, espírito, assombração, visagem entre outros.
Vejamos um trecho da fala do personagem Jervas:

Já disse que vivi à parte do mundo visível. Mas não disse que vivi sozinho.
Nenhum ser humano pode fazer isso, pois, na falta da companhia dos vivos ,
ele busca [...]o apoio da companhia de coisas que não são ou não estão mais
vivas (LOVECRAFT, 2019, p.08).

Jervas Dudley demonstra naturalidade ao falar de contatos com o mundo dos


não vivos, denotando sua ausência de medo perante esses seres invisíveis que são
verdadeiros fenômenos do sobrenatural e simbologia da morte.
A morte surge como subtema de algumas narrativas de Lovecraft em que o
personagem morre de forma sobrenatural, outros morrem de forma misteriosa e
súbita. A morte aparece no conto Ar Frio em que o misterioso personagem dr. Munõz
“sofria uma combinação de doenças que exigia um tratamento minucioso que incluía
frio constante. Qualquer aumento acentuado da temperatura, [...] poderia afetá-lo de
maneira fatal” (LOVECRAFT, 2000, p.97). Então, ele evitava sair e se expor a altas
temperaturas. O resfriamento do quarto de pensão era mantido por um “sistema de
absorção do calor por resfriamento de amônia” (LOVECRAFT, 2000, p.97). Um dia a
53

bomba do aparelho que resfriava o quarto quebrou e isso ocasionou a morte do


médico que ainda tentou resfriar seu corpo se trancando no banheiro com sacos de
gelo. Enquanto seu amigo e vizinho do quarto abaixo tentava encontrar mecânicos
para consertar a bomba, já era tarde, pois o médico já estava morto. O horror dos
personagens ao se depararem com o odor do quarto, um cheiro de mofo misturado
com amônia aliado à cena que viram: “Uma espécie de trilha escura e pegajosa seguia
da porta aberta do banheiro até a porta da saleta, e dali até a escrivaninha, onde havia
se formado uma tenebrosa poça” (LOVECRAFT, 2000, p.101). É sugerida a morte
bizarra do médico com um processo de decomposição avançado evidenciado pela
poça de um líquido pegajoso, além de algo em cima do sofá captado pelos gradientes
visuais do personagem narrador, mas que ele evita descrever: “O que estava, ou havia
estado, em cima do sofá eu não posso e nem ouso dizer” (LOVECRAFT, 2000, p.102).
Além disso, havia manchas pegajosas no bilhete deixado pelo médico em que ele
dizia: “[...]. Está mais quente a cada minuto, e os tecidos não podem durar. [...]Tinha
que ser feito à minha maneira-preservação artificial-pois como podes perceber, eu
morri naquela época, há dezoito anos” (LOVECRAFT, 2000, p.102, grifo do autor). A
morte de dr. Munõz é evidenciada através do bilhete, afirmando que já estava morto,
mas que mantinha seus órgãos e corpo funcionado de forma artificial.
Em O Chamado de Cthulhu, alguns personagens têm a morte de forma
misteriosa e todos os que morrem guardam algum segredo relacionado ao manuscrito
de invocação da criatura inominável, todos os que o leem ficam loucos ou de alguma
forma, eles morrem, conforme as palavras do narrador personagem: [...] não creio que
minha vida será longa. Assim como meu tio se foi, como o pobre Johansen se foi,
assim também eu hei de ir. Sei demais, e o culto ainda vive (HOUELLEBECQ, 2020,
p.130).
A temática da morte e o espaço da morte são retratados de forma mais realista
na narrativa de Lygia Fagundes Telles. No conto “Venha Ver o Pôr do Sol” o próprio
cenário corrobora para a concretização da “morte” da protagonista. Raquel é
conduzida para seu próprio sepultamento. Chamamos atenção para a percepção do
espaço da morte pela personagem, sua relação com a urbe da morte é topofóbica; de
certa forma a personagem demonstra ter medo do espaço e do que ele simboliza. Nas
narrativas curtas de Telles, a morte surge no desfecho das tramas, como por exemplo,
no conto Meia Noite em Ponto em Xangai, a protagonista, cantora soprano
54

denominada como Madame, em um quarto de hotel após um banho assessorada pelo


camareiro, Wang, e uma breve conversa repleta de elogios com seu empresário
Stevenson. A personagem, preparando-se para dormir, ouve um barulho no seu
quarto e desconfia que seja Wang; nesse espaço próximo ao desfecho, temos uma
cena de clímax, associado a um jogo de olhares, da protagonista com a sua linguagem
corporal. Ao leitor nada é confirmado, mas sugerida a morte da personagem principal
de forma misteriosa. Também é sugerido nas entrelinhas que o assassino seja o
chinês Wang, que cometeu o homicídio como forma de retaliação, pois sofria
constantes humilhações, ofensas e maus tratos pela Madame. A vingança é um
sentimento que desencadeia a morte nas narrativas de Telles, como no conto “Venha
Ver o Pôr do Sol”, em que Ricardo é tomado por um desejo velado de vingança. A
vingança pela não aceitação do fim do namoro ou ser trocado por outro, e planeja a
morte de Raquel, de forma macabra e misteriosa; morrer em vida, morrer aos poucos
no espaço da morte.
Sobre a abordagem da morte nos contos lygianos, Santos (2017) em sua
dissertação “Um Passeio com Tânatos: a ficcionalização da morte em Lygia Fagundes
Telles” pontua que “a morte é indissociável da vida e que sua inevitabilidade assombra
e angustia o ser humano desde épocas remotas” (SANTOS, 2017, p.11). O autor da
pesquisa aponta que “a morte nos amedronta porque é enigmática, porque implica um
não ser” (SANTOS, 2017, p.11). Consideramos relevante o argumento do pesquisador
e acrescentamos, com a seguinte afirmação, que a morte assume esse poder
aterrorizador diante da vida, pois constitui, também, um não estar. Não estar mais
presente no mundo dos vivos, no espaço físico, em seu lugar de moradia ao lado de
seus familiares e amigos e, mesmo para os que acreditam na imortalidade da alma,
na existência de um outro espaço espiritual, ainda assim sente o temor de morte, da
separação brusca da matéria através da decomposição do corpo, além do apego ao
mundo material e dos laços afetivos. Todos esses elementos corroboram a não
aceitação da morte.
Sobre o tema da morte nas narrativas curtas de Telles, Santos (2017) constata
que “a morte é uma constante nos contos lygianos por mais de meio século”
(SANTOS, 2007, p132). O pesquisador relata que Telles aborda o tema da morte de
diferentes formas, através de diferentes personagens desde crianças, adultos e
animais evidenciando a finitude da vida. E de acordo com suas considerações finais,
55

o pesquisador pontua que a morte é representada de duas formas na contística de


Telles: “contos que ficcionalizam a morte do outro e contos que ficcionalizam a morte
de si próprio” (SANTOS, 2017, p.133). Ainda sobre o tema da morte nos contos
lygianos, Pelinsser (2013) em seu ensaio Uma Arquetipologia da Morte em Venha Ver
o Pôr do Sol, relata que toda estrutura do conto remete à morte, desde o título, os
diálogos e o espaço em que a história acontece. Vejamos a seguir um trecho do ensaio
de Pelinsser (2013):

Marcada para o topo de uma colina, num cemitério abandonado, a convers a


é recheada de uma simbologia, inscrita indelevelmente em palavras -cha ve,
que vão do título à última linha do conto, tecendo a atmosfera da morte
responsável pelo peso da crueldade que brota ao final da narrat iva
(PELINSSER, 2013, p.13).

Todos esses elementos corroboram as pré-conclusões elaboradas durante a


leitura do conto. O próprio espaço do encontro- o cemitério, a urbe da morte é um
lugar que evidencia o fim da matéria, o fim da vida, restando apenas a memória para
lembrar daqueles que partiram; é um tópos impregnado de energia negativa, tristeza,
classificado como topofóbico, o lugar de despedida e a concretude de fim da vida, um
verdadeiro espaço do medo. No próximo item abordaremos os típicos espaços do
medo relacionado ao sentimento de topofobia.

2.2 Espaços do Medo: medo dos espaços

O termo Espaços do Medo remete a lugares ermos, sombrios, perigosos e


bizarros que deflagram a emoção do medo. Segundo Tuan (2005), desde a infância
até a fase adulta, o ser humano é exposto a uma multiplicidade de experiências
espaciais e psicológicas traumáticas que desencadeiam o medo, e, dentre esses
medos destacamos: medo de ficar sozinho em casa, medo de caminhar em ruas
desertas e mal iluminadas, medo de cemitério, medo de altura, medo de lugares
fechados, medo de avião, medo de hospital etc. Todos esses medos estão interligados
ao espaço de alguma forma. Em geral somos condicionados a uma variedade de
medos que constituem fobias e outros classificados como uma espécie de medo
atávico passado de pai para filho através de instruções e ensinamentos, associando
coisa, pessoa e lugar a conceitos tais como: coisa boa ou ruim, pessoa boa ou má,
gentil ou hostil, e lugar seguro ou perigoso, benéfico ou maléfico.
56

Ainda sobre os espaços do medo, a Europa da Idade Média, abrangendo a Alta


Idade Média (século V - X d.C.) e Baixa Idade Média (século XI - XV), se configura em
um espaço presentificado pelo medo com constantes “disputas civis e religiosas,
guerras, epidemias e fome” (TUAN, 2005, p.118). Tuan (2005) nos descreve esse
cenário Europeu em que a “má saúde, comida ruim e maus hábitos alimentares[...]
pregavam uma peça na imaginação, possibilitando que pessoas tivessem
alucinações, pesadelos e visões” (TUAN, 2005, p.118). A Europa do século V até o
século XV é transmutada em um grande espaço topofóbico 5 em que a saúde era
precária, com péssimas condições de vida e moradia, pobreza, fome, seca,
prostituição, e mortes provocadas por doenças infecciosas que dizimavam milhares
de pessoas, como a peste negra no século XIV. Tais características servem para
ambientar e maximizar esse cenário que foi o mundo medieval aliado ao pensamento
de que o mal representado pelas doenças e calamidades era uma punição pelos
pecados do homem. A própria arquitetura das fachadas dos castelos e catedrais
agudizam esse espaço tenebroso composto por imagens horrendas de “gárgulas,
quimeras e outras bestas legendárias” (TUAN, 2005, p.120). A arquitetura, o
pensamento, o comportamento e os acontecimentos servem de composição espacial
tornando o espaço medievo em um espaço pavoroso presentificado pelo sentimento
de angústia e medo.
Na Baixa Idade Média, o medo era um sentimento constantemente revisitado
pela imagem espacial do inferno. Havia o medo atroz da possibilidade de a alma ser
lançada ao inferno como punição do pecado; o medo do mal, o medo de pecar, o
medo de sofrer as consequências do pecado estava arraigado na mentalidade da
sociedade daquela época. A imagem do inferno repleto de chamas e enxofre
atormentava o homem medievo e tal imagem cristalizou-se em sua mente, assim
como no imaginário humano. De certa forma, tal concepção se deve aos
ensinamentos da igreja católica em que tudo era explicado pelo Teocentrismo (Deus
como centro do universo), que todos os acontecimentos na vida do homem eram
justificados pelo querer divino, porque Deus quis assim e, caso o homem quisesse
modificar, teria como punição o envio de sua alma ao inferno.

55Topofóbico relativo a topofobia (FERREIRA, 2010, p.2056).


57

Tuan (2005) relata que o espaço infernal estava enraizado na mente do homem
medievo entrelaçado à ideia de o mal induzir o pecado e, este ter como decorrência a
não salvação da alma, mas sim sua condução por demônios ao inferno. “O
sobrenatural estava intimamente presente no indivíduo medieval. Anjos e demônios
ocupavam o mesmo espaço que o indivíduo e o acompanhavam em todas as suas
atividades” (TUAN, 2005, p.118). Segundo o autor, o homem desse período vive em
constante dilema entre espiritual e carnal, céu e inferno, policiando seu
comportamento e pensamentos, pois acreditava que seres divinos e demoníacos
presentificados no espaço observavam e testavam-no constantemente.
De acordo com Tuan (2005), o medo é simbolizado também através dos
fenômenos naturais; o amanhecer e o anoitecer revelam significados distintos. As
passagens do dia para a noite representavam essa flutuação entre bem e mal, de
topofilia6 para topofobia7. O dia, (a claridade do céu) simbolizava a imagem divina; por
outro lado, a noite representava as trevas e o mal. Assim como as estações do ano
desencadeavam sentimentos positivos e negativos, em que a primavera e o verão
simbolizavam o divino, o celestial, enquanto o inverno significava o nefasto e infernal.
“O inverno, era um tempo de privação mesmo para os que viviam em castelos,
pertencia a Satanás. As regiões de frio e mau tempo era certamente dele” (TUAN,
2005, p.123). O rigoroso inverno Europeu experienciado por seus habitantes
despertava sentimentos e pensamentos negativos sobre a estação. Tal afirmação
ratifica a concepção de Tuan (1983) que a experiência espacial resulta de sentimentos
e pensamentos. De certa forma o medo, o mal, o pecado e o inferno são termos
interligados e solidificados no espaço medievo.
Ainda de acordo com o mencionado autor (2005), muitos medos que
prevalecem na contemporaneidade têm relação direta com nossos antepassados e
com a história; o autor destaca, também, que tanto gerações passadas quanto as
presentes têm “a crença em anjos, demônios e espíritos” (TUAN, 2005, p.119).
Percebe-se que tal cultura é bem presente em países africanos e latino-americanos.
Para o autor, algumas pessoas, de forma menos intensa, acreditam ter visões
fantasmagóricas, escutar e conversar com espíritos, em que elas “ordenam as

6Topofilia - é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo aos laços afetivos dos
seres humanos com o meio ambiente material. TUAN, Yi Fu. Topofilia: um estudo da percepção,
atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL,1980. p.107.
7Topofobia-[De topo + -fobia] Medo mórbido de determinados lugares (FERREIRA, 2010, p.2056).
58

prioridades de suas vidas em conformidade com eles” (TUAN, 2005, p.119). De certo
modo, o ato de estabelecer contato com mortos, espíritos é uma prática bem
recorrente em ficções literárias alusivas ao horror sobrenatural, como podemos
constatar no conto A Tumba, o protagonista narrador, Jervas Dudley, infere que desde
criança tem contato com o mundo sobrenatural, mas prefere não entrar em detalhes
sobre isso, relatando-nos que sua experiência com o sobrenatural consiste em
“fenômenos isolados vistos e sentidos apenas por uns poucos psicologicamente
sensíveis e que se encontram fora de sua experiência comum”(LOVECRAFT, 2019
p.07).
Espectros, entidades, espíritos, vultos são termos sinônimos e são
personagens recorrentes das narrativas de mistério e horror. Além disso, esses
agentes estão sempre associados aos espaços. Eles se manifestam em diferentes
lugares, desde uma casa representando o lugar (em que viveu ou morreu) ou um
quarto, um sótão; na maioria das vezes sua aparição acontece em lugares fechados.
Faz-se necessário destacar que a associação desses seres ominosos e sobrenaturais
com o espaço, ou seja, a frequente ocupação dessas figuras fantasmagóricas em um
determinado lugar torna-o topofóbico. Eles ocupam o espaço como se pertencessem
a eles. Em narrativas ficcionais, assim como na vida moderna, sempre há histórias
pavorosas de lugares físicos, reais em que as percepções sensitivas mais aguçadas
visuais e sonoras podem captar imagens, sons ou ruídos emitidos por seres irreais.
Nesse sentido, as histórias ficcionais que versam sobre o espaço do medo
funcionam como mimesis, imitam a realidade. Esses espaços ermos e ficcionais são
verossímeis aos espaços reais, e topofóbicos são lugares criados pelo homem, que
assumem um teor negativo e, estão bem vívidos no cotidiano do ser humano; dentre
eles podemos citar: lugares mal iluminados, becos, praças desertas, bairros perigosos
comandados pelo tráfico, presídios, hospitais, manicômios, cemitérios, casas mal-
assombradas etc. No país e no mundo existem lugares ameaçadores e
amedrontadores que deflagram o medo.
O medo é, portanto, um sentimento negativo e subjetivo, que irrompe toda vez
que o ser humano se sente ameaçado, ou constata que sua vida está em perigo. “É
um sentimento complexo, no qual se distinguem claramente dois componentes: sinal
de alarme e ansiedade” (TUAN, 2005, p.10). Tal sentimento paralisa, desencoraja e
ao mesmo tempo coloca o indivíduo em estado de tensão e alerta. Em relação ao
59

sentimento espacial, o sentimento de afeto ou aversão, segurança ou medo


desencadeado pelo lugar no qual estamos inseridos, o bairro, por exemplo, ou o lugar
de moradia (a casa), pode ser topofílico ou topofóbico. Sobre isso, o geógrafo
humanista Tuan (1980) destaca que na década de 50, o Harlem, localizado em
Manhattan, na cidade de Nova York, era um bairro composto por latinos e afro-
americanos, extremamente perigoso e sujo marcado pela pobreza, violência, crimes,
tráfico de drogas, prostituição, no entanto, o que se destaca no bairro, além da
criminalidade é a sujeira e aspecto disfórico do Harlem. Sobre isso, Tuan (1980) relata
o seguinte:

Para um estranho o fato mais chocante sobre o gueto, como o Harlem na


década de cinquenta, é a sua feiura - a sujeira e o abandono. [...]. Existem
algumas incoerências curiosas: O Harlem é sujo e, no entanto, muitos
negócios procuram embelezar-se, arrumar-se. [...]. As pessoas estão mal
alimentadas e no entanto abundam os negócios de comida e bebida [...] e
dominam partes das cenas de rua. Na manhã de domingo os residentes do
Harlem aparecem bem arrumados para ir à Igreja e o acontecimento seria
uma cena tranquila se as ruas não estivessem manchadas de vômito e
sangue; testemunhas da fúria e frustação da noite do sábado (TUAN,1980,
p.253-254).

O Harlem evidencia ser um lugar do medo (topofóbico) para os moradores,


turistas e todos que por ali transitam. Segundo Tuan (1980), ele assume uma
composição híbrida, pois, mesmo sendo feio, violento e sujo, alguns lugares
topofílicos estão inseridos nele, e tentam minimizar seu aspecto ameaçador e inóspito
através de reformas dos prédios que servem de comércio a fim de melhorar seu
aspecto visual. O citado escritor destaca que os moradores do Harlem, mesmo
conscientes dos perigos do bairro, percebem a rua como um lar, um local prazeroso,
repleto de atração e passam o dia e a madrugada sentados nas calçadas do bairro,
principalmente nos dias de verão em que as casas e os quartos, por não possuírem
ventilação, tornam a permanência insuportável.

A rua é feia e perigosa, mas no verão tem maior atração para os residentes
do Harlem do que seus quartos abafados e confinados. Um homem de trinta
e cinco anos assim descreveu: [...] “ Não podemos entrar na casa porque
quase nos sufocaríamos. Portanto, nos sentamos nas sarjetas ou ficamos na
calçada ou nos degraus, ou em qualquer outro lugar, até de madrugada”
(CLAUDE BROWN apud TUAN, 1980, p.254, grifo do autor).

Embora as ruas e o bairro do Harlem se revelem em um perigo iminente, os


moradores demonstram um sentimento afetuoso pelas ruas, e desafeto por suas
60

casas; tal afirmação pode ser constatada com a fala do escritor Claude Brown, citado
em Tuan (1980): “Sempre me lembro do Harlem como um lar, mas nunca me recordo
dele como estando na casa. Para mim o lar eram as ruas. Suponho que muitas
pessoas sentiam o mesmo” (CLAUDE BROWN apud TUAN,1980, p.254). Segundo
Tuan (1980), os moradores do Harlem, bem como os adolescentes e as crianças têm
consciência do ambiente ameaçador no qual estão inseridos, rodeados de vândalos,
viciados, traficantes em meio à pobreza, em que muitos sentem o medo de ser mortos,
envolvidos em alguma encrenca ou até mesmo serem presos pela polícia. As
crianças, jovens e adultos vivenciam esse turbilhão de sentimentos pelas ruas do
Harlem; ora sentem medo, ora sentem a curiosidade e excitação diante dos
acontecimentos. O Harlem desencadeia um duplo sentimento para seus moradores,
ora topofílico através dos acontecimentos percebidos como entretenimento e
topofóbico pelo seu aspecto visual, físico e ameaçador.
Nesse contexto, há uma inversão de valores, pois a rua, enquanto espaço
inseguro, violento, desperta o sentimento topofílico de prazer, de afeto pelo espaço
aberto e pelo que o bairro do Harlem proporciona captado pelo visual e tátil, a diversão
da rua e o frescor da natureza. Por outro lado, a casa, representando um lugar seguro,
tranquilo desperta um sentimento topofóbico de aversão e desprazer em especial nos
dias de verão por proporcionar sensações térmicas desagradáveis.
Na seara literária, a topofobia, medo do lugar, suscitado na personagem em
relação ao espaço que ocupa é uma resposta ao estímulo externo percebido através
de seus sentidos sensoriais. Esse medo espacial ficcional é experienciado pela
personagem aliado às sensações de insegurança e estado de tensão, tais emoções
são construídas na narrativa através de recursos linguísticos e estéticos, como as
adjetivações, as metáforas, as prolepses, as sinestesias e a linguagem corporal
instauradas pela voz do narrador ou da própria personagem.
Em algumas narrativas, em especial as de mistério e horror, a categoria espaço
é antecipada no título da obra predizendo ao leitor o seu grau de importância dentro
da trama. Sobre isso, podemos elencar as seguinte obras: A Assombração da Casa
da Colina(1959) da escritora Shirley Jackson; A Casa Negra (2001) e O Cemitério
(1983) do escritor Stephen King; A Guerra dos Mundos (1898) e a A Ilha do Dr. Moreau
(1896) de H.G Wells; Horror em Amityville (1977) de Jay Anson; A Igreja
Vermelha(2002) de Scott Nicholson; A Casa Infernal (1971) de Richard Matheson;A
61

Tumba (1922),Os Sonhos na Casa da Bruxa (1927), O Horror em Red Hook (1927) e
Nas Montanhas da Loucura (1936)8 do escritor Howard Phillips Lovecraft. Podemos
constatar que no universo ficcional literário, romances, novelas e contos que
antecipam em seu título, o cenário da trama, são predominantemente narrativas
espaciais, pois o espaço constitui o centro de atenção de toda a narrativa. E que os
típicos cenários dessas narrativas de horror remetem a um espaço topofóbico
deflagrador do medo através de sua composição inóspita e pavorosa, além de suscitar
sentimentos nas personagens, onde toda a trama está relacionada ao espaço. Sobre
a importância e dimensão dos espaços na narrativa, Lins (1976) relata o seguinte:

[..]. Eles constituem uma ilustração das suas possibilidades; reforçam a


importância que pode ter na ficção esse elemento estrutural e indicam as
proporções que eventualmente alcança o fator espacial numa determinada
narrativa, chegando a ser em alguns casos o móvel, o fulcro, a fonte da ação
(LINS, 1976, p.67).

Podemos perceber que nas narrativas do gênero mistério e horror, o cenário é


a fonte da ação. Ele é construído minuciosamente com imagens sinestésicas,
adjetivações, repetições com teor de duplicidade e antecipação da ação. A
instauração espacial é revestida de simbolismo e muitas vezes o próprio cenário é
uma prolepse espacial e, todos os componentes inseridos no cenário possuem um
significado e funcionalidade que corroboram o desencadeamento da ação e
percepção da personagem. O narrador cria um verdadeiro frame ao descrever os
detalhes dos lugares percorridos pela personagem, cenários que estão interligados
ora visíveis e invisíveis, englobantes e englobados repletos de carga simbólica com
teor negativo; cenários misteriosos que guardam segredos, que despertam a
curiosidade dos personagens. O cenário dessas narrativas captado pela personagem
desperta sensações e sentimentos que na maioria das vezes são de insegurança,
asco, repulsa, hesitação e pavor, como no conto de Telles, Venha Ver o Pôr do Sol.
Raquel demonstra aversão e asco pelo cemitério, no entanto, no conto de Lovecraft
A Tumba - o personagem Jervas demonstra fascínio e curiosidade pelo túmulo da
renomada família Hydes; o personagem frequenta o espaço de forma natural, o

8Exemplo de narrativas de horror que antecipam o espaço (cenário) no título disponíveis nas seguintes
páginas:https://www.bibliotecadoterror.com.br/2014/08/resenha -igreja-vermelha-de-scott.html; lista de
obras de Lovecraft: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_obras_de_H._P._Lovecraft .
62

sentimento mais evidente é de afeição e amor pelo espaço, algo que beira a
representação da casa considerado um espaço seguro e familiar.
Assim, o espaço obscuro, mórbido e horripilante de uma sepultura geralmente
é classificado como um espaço do medo, o que nos remete às concepções de Tuan
(2005) em seu livro Paisagens do Medo; o teórico destaca que, toda vez que
pensamos sobre quais são as típicas paisagens do medo, de forma instantânea,
“inúmeras imagens acudirão à nossa mente: medo do escuro, [..] ansiedade de
lugares desconhecidos, [..] pavor dos mortos e do sobrenatural” (TUAN,2005, p.07).
A emoção do medo deflagrada no espaço está condicionada também a sua
representatividade simbólica. No próximo capítulo abordaremos a relação sentimental
do personagem pelo espaço.

2.3 Sentimentos Topofílicos e Topofóbicos = Topopatia

Os termos topofilia e topofobia designam a relação sentimental de amor ou


aversão pelo lugar. O termo (topo=tópos) origina-se do grego e significa “lugar”, assim
como, os sufixos (-filia= philia= amizade, amor) e (-fobia= phobia=medo/aversão) que
também são originados do grego. Dessa forma o verbete topofilia exprime a relação
sentimental positiva, harmoniosa e de amor pelo lugar. Ao passo que o termo
topofobia revela o oposto, a relação sentimental negativa de aversão e medo do lugar.
O espaço ocupado pela personagem assume, além de sua principal função
basilar de cenário, lugar em que a ação acontece. Ele também é um agente que
deflagra sentimentos da personagem, e essa relação sentimental com o cenário pode
ser positiva ou negativa. A esse sentimento irrompido na personagem em relação ao
lugar percebido e ocupado é denominado de Topopatia que “significa a relação
sentimental, experiencial, vivencial existente entre personagens e espaço” (BORGES
FILHO, 2007, p. 157). Borges Filho (2007) pontua que essa relação acontece de duas
formas: na primeira forma, a relação entre a personagem e o espaço é harmoniosa,
benéfica e positiva, representada pela topofilia, em que o espaço proporciona à
personagem uma sensação de bem-estar. Já na segunda, a relação que se instaura
entre personagem e espaço é topofóbica, pois o espaço caracteriza-se como um
elemento ameaçador, malevolente e negativo, “a personagem sente asco pelo
espaço” (BORGES FILHO, 2007, p. 157). Os dois conceitos são sintetizados da
63

seguinte forma pelo teórico, “quando o espaço se aproxima do fasto temos a topofilia,
[...] “quando se aproxima do nefasto, temos a topofobia” (BORGES FILHO, 2007,
p.158).
O sentimento topofílico (de afeição pelo lugar) ou topofóbico (de pavor pelo
lugar) está condicionado à avaliação que fazemos do lugar levando em consideração
suas características estéticas captadas visualmente, mas também está condicionado
à experiência espacial, pois, “a experiência é constituída de sentimento e
pensamento”. (TUAN, 1980, p.11). Tuan (1983) relata que o sentimento é uma
emoção que abrange sensação, percepção e concepção, e todas essas emoções
deflagradas no espaço são registradas pelo pensamento.
De acordo com Tuan (1983), embora sentimento e pensamento sejam
considerados elementos distintos, pois, estão em polos opostos, o sentimento remete
à subjetividade, (a emoção provocada pelo tópos e experienciada pelo ser humano) e
o pensamento evidencia o lado objetivo e racional da realidade espacial; ambos se
relacionam intimamente, “estão próximos às duas extremidades de um continum
experiencial e ambos são maneiras de conhecer” (TUAN, 1983.p.11, grifo do autor).
A relação sentimental de topofilia é manifestada na casa que moramos, por
exemplo. O sentimento de amor pelo espaço é suscitado a partir da sensação de
segurança, a percepção de um tópos familiar, sinônimo de tranquilidade e aconchego.
Para Tuan (1980) a topofilia inclui “todos os laços afetivos dos seres humanos com o
meio ambiente material” (TUAN, 1980, p.107). O escritor destaca que os laços de
afetividade com o lugar abrangem a apreciação visual e estética até o contato direto
com o espaço.

A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética: em seguida,


pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de
beleza, igualmente fugaz, mas muito mais intensa, que é subitament e
revelada. A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mais
permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que temos
para com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se
ganhar a vida. (TUAN,1980, p.107).

Captar a beleza do lugar, visualizar sua extensão, sentir-se bem e seguro no


ambiente, tais sensações e sentimentos são determinados pelo lugar, pois, “o lugar
ou meio ambiente é o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é
percebido como símbolo” (TUAN,1980, p.107). O teórico assevera que o lugar (tópos)
64

é o fator determinante para o desencadeamento do sentimento, da afeição humana ,


e não a topofilia.
Para Tuan (1980), o sentimento de prazer suscitado pela beleza do lugar
captado pelo sentido visual é algo passageiro. Paralelo a isso, o deleite evocado pelas
sensações hápticas em contato com os elementos da natureza pode ser mais
duradouro e intenso. No entanto, Tuan (1980) destaca que o ser humano tem mais
dificuldade de verbalizar seus sentimentos por lugares mais íntimos, lugares no qual
o ser humano está familiarizado como sua moradia ou local de trabalho. Outro fator
importante para a irrupção do sentimento de amor ou desamor pelo lugar está
condicionado ao grau de familiaridade que estabelecemos com ele.

A familiaridade engendra a afeição ou desprezo [...]. Uma pessoa no


transcurso do tempo investe parte de sua vida emocional em seu lar e além
do lar, em seu bairro, algumas pessoas, em especial as idosas relutam em
abandonar seu velho bairro por outro com casas novas (TUAN, 1980, p. 114).

Segundo o escritor, o sentimento de afeição, de amor pelo lar é mais profícuo


aliado às lembranças enraizadas e vividas em tal lugar que não permite uma simples
mudança, em substituir uma casa velha por uma nova, pois os laços familiares, a
consciência do passado, o significado do espaço é superior à sua estrutura ou
estética. Por outro lado, essa mesma casa decrépita, que no passado foi palco de
alegrias e felicidades, pertencente a uma geração anterior pode suscitar medos em
seus atuais moradores, pelo fato de o espaço estar relacionado a seus antigos
proprietários que ali faleceram e, esse mesmo espaço tornar-se palco de eventos
sobrenaturais, tornando-se um espaço tétrico. O espaço, com o passar do tempo e
dependendo dos acontecimentos que ali se sucederam, pode transformar-se em
topofóbico, deflagrando sentimentos negativos pelo espaço, associado à irrupção de
possíveis eventos sobrenaturais, tornando-se um ambiente tétrico e ominoso. Os
espaços topofóbicos não remetem somente à esfera do sobrenatural ou do imaginário
humano, mas segundo Tuan (2005) engloba todos os aspectos físicos e geográficos,
incluindo todo espaço ameaçador, desde ruas desertas e escuras, cemitérios, prisões,
hospitais, becos, casas abandonadas, regiões de frio intenso, ambientes inóspitos
devastados por fenômenos da natureza etc.
No mundo real e ficcional, um dos fatores que corroboram para irrupção de
sentimentos pelo tópos está relacionado ao contato direto e íntimo com o espaço. De
65

acordo com as acepções de Tuan (1983), a vivência no lugar possibilita e amplia a


percepção, a sensação e a concepção espacial, (o que é visto, sentido e classificado)
a partir da experiência no lugar. Além disso, não podemos esquecer que o lugar
associado a seu aspecto físico (estético) também contribui para irrupção de emoções,
bem como, concepções. No decorrer da vida, o ser humano atribui significado aos
lugares e coleciona uma gama de sentimentos pelos espaços experienciados. Essa
relação experiencial /sentimental resulta de percepções espaciais através do
acionamento dos sentidos sensoriais, das sensações que o lugar evoca podendo ser
de segurança e paz, ou insegurança e desassossego além das primeiras impressões
concebidas a partir do contato visual. Logo, se as experiências são prazerosas e
remetem à sensação de segurança, desenvolve-se um sentimento topofílico; quando
as experiências são ruins e nocivas, o lugar é percebido imediatamente como
ameaçador e é desencadeado um sentimento topofóbico; a exemplo disso, o bairro
da Bresser-Mooca situado na zona leste da capital paulista, aos finais de semana e
durante a noite, torna-se um espaço tétrico e topofóbico, com ruas desertas, cujos
únicos transeuntes são moradores de rua, catadores de latinhas, que vasculham as
lixeiras das casas e condomínios em busca de algo valioso. Além dos moradores de
rua como personagens desse espaço ermo, o cenário é composto por usuários de
drogas que se aglomeram na esquina, bêbados e mendigos. Todos esses elementos
espaciais corroboram para a irrupção do sentimento topofóbico em relação ao lugar
intimidador.
Ainda sobre topofobia, Tuan (2005), em Paisagens do Medo, relata a topofobia
sentida e vivenciada pelos esquimós relatando-nos sobre o medo do mundo ártico; tal
sentimento é resultante de sua experiência cotidiana nesse espaço glacial e
ameaçador. O escritor pontua que os esquimós são habitantes migratórios que
dependem da caça e da pesca para sobrevivência; vivem num ambiente inóspito no
qual precisam percorrer grandes distâncias para conseguir alimentar a sua família, em
face da escassez de alimentos, eles têm que lidar com as intempéries do clima
extremamente frio. “Pode se perceber que esses exitosos habitantes das terras árticas
frequentemente sentem-se pressionados, ansiosos e dominados pelo medo” (TUAN,
2005, p. 79). Os esquimós estão inseridos nesse espaço topofóbico, em que o medo
se torna um companheiro constante, sente-se medo de morrer, medo da fome e do
frio. De acordo com Tuan (2005), a vida sofrida no ártico, sob condições extremas de
66

temperatura e alimentação limitada, impõe certas decisões classificadas como


medidas de sobrevivência para os esquimós, mas que na verdade agudizam a
topofobia.
Esse sentimento negativo de topofobia, desencadeado pelo lugar, é uma
resposta à vivência direta e íntima no espaço percebido e ocupado, bem como, as
concepções formuladas decorrentes do conhecimento do tópos. Sobre isso, Tuan
(1983) afirma que “a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria
vivência” (TUAN,1983, p.10). Através da vivência espacial adquire-se conhecimento
de sua realidade de forma mais abrangente e profícua. O referido escritor afirma que
é possível conhecer o lugar em termos de extensão espacial, estabelecer um conceito
sobre o local no aspecto de segurança, compará-lo com outros em aspectos estéticos,
determinar o seu significado e constatar o sentimento aflorado no espaço, podendo
ser de filia ou fobia.
Na seara ficcional, entretanto, o sentimento de topofobia é desencadeado pela
protagonista, que sente repulsa pelo lugar do encontro, por percebê-lo como um lugar
tenebroso. Tal sentimento torna-se visível na fala de Raquel, que diz o seguinte: “E
que é isso aí? Um cemitério? [...] me faz vir de longe para esta buraqueira[...] E para
quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério (TELLES, 2009, p.136) [...] Não gosto de
cemitério, já disse” (TELLES, 2009, p.138, grifo nosso).
O cemitério, enquanto lugar destinado ao sepultamento dos mortos, é um lugar
predominantemente topofóbico, que desencadeia angústia, aliado à sua
espacialização dolorosa, com sepulturas, cruzes, anjos, flores, lápides, velas, silêncio
e choro; todos esses componentes potencializam a carga simbólica desse espaço
fúnebre, enraizado no imaginário humano como um ambiente de tristeza, de dor, de
não aceitação do fim da matéria e finitude da vida. As imagens do cemitério e de seus
componentes são apreendidas pelo sentido visual e configuradas no imaginário como
um espaço disfórico que remete a sentimentos negativos, sensações ruins. O
sentimento topofóbico evocado pelo cemitério está intimamente relacionado à
percepção espacial do personagem; seus sentidos sensoriais são aguçados aos
estímulos externos.
Dessa forma, no mundo ficcional narratológico, a relação que se instaura a
partir dos sentimentos da personagem em relação ao espaço ocupado, será
determinado a partir de suas emoções resultantes da experiência direta no espaço
67

(cenário). A personagem se vale de seus gradientes sensoriais para captação espacial


e para interagir com outras personagens. Ela caminha, explora e interage com o
espaço desenvolvendo sentimentos de apreço ou repulsa, amor ou ódio, coragem ou
medo. Através da experiência espacial, a personagem expressa seus sentimentos
com relação ao espaço a partir do que vê e sente.

2.4 O Horror: a emoção do medo artístico

O gênero do horror surge na Inglaterra no ano de 1764 com a publicação do


romance Castelo de Otranto9, do escritor inglês Horace Walpole. Sobre isso, Dixon
em seu livro A History of Horror (2010) acede que Castelo de Otranto é o primeiro
romance de horror considerado o marco do gênero e o modelo para outras narrativas
que surgem no decorrer do tempo.
O surgimento do gênero horror é algo que vem acompanhado de um panorama
histórico tumultuado em que o país passava por guerras travadas com a França na
disputa do domínio colonial em que a Inglaterra saiu vitoriosa. A publicação do
romance Castelo de Otranto irrompe nesse espaço tenso de conflitos, com atmosfera
sombria, numa Inglaterra que tem como panorama, castelos repletos de segredos
sórdidos, traições, planos vingativos e desejos obscuros, verossímil, a este locus
horribilis será o cenário da narrativa, marco do horror. Embora a obra seja considerada
oficialmente a primeira narrativa de horror, Lovecraft (2007), em O Horror Sobrenatural
em Literatura, destaca que a origem do horror tem raízes profundas; “a história de
horror é tão antiga como o pensamento e a fala humanos” (LOVECRAFT, 2007, p.19).
Ela surge na oralidade, em que o homem contava histórias assombrosas sobre
fenômenos os quais desconhecia.
Até mesmo os escritos sagrados remetem ao horror como as narrativas
apocalípticas que descrevem as visões do profeta João sobre o Apocalipse, o fim da
humanidade pecadora. João arrebatado em espírito até o céu e após a abertura dos
selos, as revelações lhes são feitas através de anjos com trombetas predizendo as
tribulações, sofrimentos e horrores que a humanidade pecadora e incrédula sofrerá

9O romance de 1764 combinado a descrição de um espaço físico decadente com segredos do passado
que assombram suas atormentadas personagens estabeleceu os parâmetros de um novo gênero que
no século XX passaria a ser identificado como a forma arcaica da literatura de horror. (FRANÇA,2008,
p.02) O Horror na Ficção Literária Reflexão sobre o “horrível” como Categoria Estética.
68

nos dias vindouros. A cada toque de trombeta, uma revelação e um acontecimento


terrível.

E o primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com
sangue, e foram lançados na terra; [...] E o segundo anjo tocou a trombeta; e
foi lançada no mar uma coisa como um grande monte ardendo em fogo, e
tornou-se em sangue a terça parte do mar. [...] E o terceiro anjo tocou sua
trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e caiu
sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas. E o quarto anjo
tocou a sua trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua e
a terça parte das estrelas (BÍBLIA SAGRADA, 2013, p.926; Ap. 8,7-12).

E O QUINTO anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na
terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo [...] e com a fumaça do poço
escureceu-se o sol e o ar. E da fumaça vieram gafanhotos sobre a terra [...]
E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão
morrer, e a morte fugirá deles.[...] E tocou o sexto anjo a sua trombeta [...] E
foram soltos os quatro anjos, que estavam preparados [...] a fim de matarem
a terça parte dos homens” (BÍBLIA SAGRADA, 2013, p.926-927; Ap.9,1-
7;15).

As visões do horror apocalíptico são representadas por descrições de


fenômenos sobrenaturais tais como: labaredas de fogo e sangue lançados na terra,
queda de estrelas, rios, fontes e mares convertidos em absinto, o escurecimento da
terra; sofrimento, dor e morte. As duas últimas revelações ainda são mais temidas e
inquietantes, pois anunciam o sofrimento físico da humanidade e, por último, o
extermínio da humanidade por anjos da morte dotados de poder e ordenados a
eliminar o resto dos pecadores. A narrativa do apocalipse nos insere no horror e
desencadeia a emoção do medo, uma espécie de medo psicológico e um temor que
tal acontecimento se faça real, tornando o medo e o horror também reais. No entanto,
pretendemos focar e continuar apenas no horror do mundo ficcional e suas origens.
Dixon (2010) relata que as origens das histórias de horror remetem a narrativas
clássicas e bem longínquas como as histórias épicas de Odisséia de Homero que têm
como pano de fundo o duelo entre mortais e criaturas monstruosas, bem como a
inserção de seres sobrenaturais, bruxas, ninfas e cita alguns exemplos como: A Divina
Comédia de Dante Alighieri, em que o personagem percorre três espaços, o inferno,
o purgatório e o paraíso e, A Trágica História de Dr. Fausto, em que o personagem
realiza um pacto demoníaco a fim de que sua obra seja grandiosa. Tais narrativas
supracitadas, segundo o autor, são consideradas a base do horror, pois versam sobre
temas tenebrosos, questões que atemorizam o ser humano com personagens
sobrenaturais e fenômenos inexplicáveis.
69

Dessa forma, cabe salientar que a narrativa de Walpole, marco do horror, serviu
de inspiração para escritores posteriores que arquitetavam suas tramas em cenários
ermos ou mal-assombrados como castelos, masmorras, cemitérios, florestas,
casarões assombrados e decrépitos com uma linguagem simples, cujos personagens
eram bruxas, vampiros, vilões, donzelas, criaturas demoníacas, espíritos malignos e
acontecimentos sobrenaturais. Dentre alguns escritores de romance gótico que se
destacaram e que tiveram como precursor Horace Walpole, Dixon (2010) cita a
escritora inglesa Ann Radcliffe com o romance Os Mistérios de Udolpho (1794), o
romancista inglês Matthew Gregory Lewis famoso pela obra O Monge (1795), o
dramaturgo e romancista irlandês Charles Maturin com o romance, Melmoth O
Andarilho (1820) e por último, a escritora inglesa Mary Shelley que eternizou seu
nome entre os cânones da literatura de horror com a obra Frankenstein (1818).

Ann Radcliffe, cuja incursão de maior sucesso no gênero foi, sem dúvida, Os
Mistérios de Udolpho (1794), também era popular entre o público. O Monge
(1795) de M.G Lewis foi um romance ainda mais horrível, e Melmoth O
Andarilho (1820) de Charles Maturin narra outro pacto imprudente com
Satanás. O mais famoso de todos esses trabalhos iniciais é Frank enstein de
Mary Shelley; ou, O Moderno Prometheus (1818) (DIXON, 2010, p.01-02,
tradução nossa10).

Os romances de horror gótico supracitados, assim como, Frankenstein seguem


a mesma linha de composição espacial de Castelo de Otranto, as narrativas
acontecem numa Europa com uma atmosfera lúgubre em que horror, medo e morte
são elementos entrelaçados no plano narratológico com personagens maquiavélicos,
ou criaturas das trevas, situados em espaços ermos e ominosos.
“Na metade para o final do ano de 1800 surgem diferentes autores como Nikolai
Gógol, Nathaniel Hawthorne e o mais notável, o atormentado Edgar Allan Poe” 11
(DIXON, 2010, p.02, tradução nossa). Dixon (2010) relata que dentre os escritores
que elegeram o horror ficcional como objeto de suas narrativas, o que mais ganhou
visibilidade foi Edgar Allan Poe, escritor estadunidense da Literatura de Horror

10Ann Radcliffe, whose most successful foray into the genre was undoubtedly The Mysteries of Udolpho
(1794), was also popular with audiences. M.G. Lewis’s The Monk (1795) was an even more horrific
novel, and Charles Maturin’s Melmoth the Wanderer (1820) chronicles another ill-advised pact with
Satan. Most famous of all these early works is Mary Shelley’s Frank enstein; or, The Modern Prometheus
(1818). DIXON, Wheller Winston. A History of Horror, 2010, p.01-02.
11 In the mid-to late 1800s such disparate authors as Nikolai Gogol, Nathaniel Hawthorne and, most
notably, the tormented Edgar Allan Poe. DIXON, Wheller Winston. A History of Horror, 2010, p.02.
70

Americana, que surge com seu conto Assassinatos na Rua Morgue em 1841. Poe
ganhou notoriedade tanto no seu país quanto na Europa, pois, com seu brilhantismo
e maestria conseguia versar sobre o horror em todos os campos literários,
atravessando a poesia, o conto, ensaio, peças teatrais, e crítica literária. Escreveu um
ensaio denominado Filosofia da Composição em que explica o seu modus operandi
na escrita do poema “O Corvo”, os meandros para que a obra atinja o efeito desejado
no processo de criação. Ele relata que seu processo de composição não é obtido de
forma acidental ou de forma intuitiva, mas sim de forma pensada “com a precisão e a
rígida consequência de um problema matemático” (POE, 2011, p.20). Seu propósito
é atingir a unidade efeito, a emoção, a tensão, o grau de excitação provocado no leitor.
Segundo Poe (2011), a condição básica para a deflagração do efeito pretendido está
diretamente relacionada à brevidade e à intensidade da narrativa, “o grau de duração
é absolutamente necessário para a produção de algum efeito” (POE, 2011, p.21).

Tendo em vista estas considerações, bem como o grau de excitação que eu


desejava não estava acima do gosto popular e nem abaixo do gosto da crítica,
eu concluí imediatamente qual seria o tamanho apropriado para o meu poema
-uma extensão de cerca de cem versos. Ele tem, de fato, cento e oito vers os
(POE, 2011, p.21).

O escritor se refere ao seu poema O Corvo, o mais conhecido de sua obra


poética, traduzido por Machado de Assis e Fernando Pessoa e com vasta fortuna
crítica. Poe (2011) destaca que embora seu poema pareça longo, ele constitui uma
“sucessão de poemas breves- isto é, de breves efeitos poéticos” (POE, 2011, p.20).
Poe descortina o seu processo de tessitura do texto e relata que acontece de forma
intencional, pensando na emoção que pretende transpor ao texto aliado a “uma
combinação de eventos ou de tom, que melhor [...] ajudem na construção da emoção”
(POE, 2011, p.18). De acordo com o poeta, todos esses elementos corroboram para
atingir a unidade de efeito pretendida, desde a escolha da emoção, o tom de tristeza,
o sequenciamento das ações, o jogo de palavras, a originalidade, os efeitos estéticos
como o refrão responsável pela repetição e a rima pela sonoridade, atrelada à
intensidade e à brevidade das frases e do poema e que, conforme Poe, a extensão
adequada seria de cem versos. Em suas narrativas curtas, nos contos, ele aplica a
mesma técnica supracitada.
Poe fez do conto de horror sua marca registrada, tornando-se reconhecido e
servindo de referência para outros escritores que se lançaram em narrativas de horror,
71

posteriormente, dentre esses inúmeros escritores que o sucederam, Carroll (2010)


cita alguns escritores e as obras que os imortalizaram como: “Robert Louis Stevenson
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e O Senhor Hyde (1887), Oscar Wilde O Retrato de
Dorian Gray (1890), Bram Stoker Drácula (1897) e Henry James A Outra Volta no
Parafuso12 (1898)” (CARROLL, 2004, p.06, tradução nossa).
Carroll (2004) afirma que o horror assumiu teor mais realista e psicológico após
a Primeira Guerra Mundial. O escritor relata que, enquanto isso, nos Estados Unidos
quem ganhava visibilidade, prestígio com seu horror cósmico era Howard Phillips
Lovecraft, um extraordinário escritor estadunidense que, escrevia para a revista Weird
Tales. Carroll destaca que Lovecraft ganhou notoriedade graças as suas
correspondências, um expressivo número de cartas que mantinha com escritores
iniciantes, dentre eles: Clark Ashton Smith, Carl Jacobi, August Derleth e Robert
Bloch. Semelhante a Poe, Lovecraft também escreve um livro de não ficção, The
Supernatural Horror in Literature (O Horror Sobrenatural em Literatura), explicando
sua teoria sobre o medo enquanto emoção deflagrada pelo horror.
Ainda de acordo com Carroll (2004), embora o horror traga em seu bojo
acontecimentos inomináveis e fenômenos sobrenaturais, ele se constitui um
fenômeno explicável, que atravessou séculos e se solidificou como gênero literário.
O escritor classifica o horror como um fenômeno, pois atravessou a história, a
literatura e a arte, transmutado do papel para as telas de cinema e que em pleno
século XXI se mantém vívido na sociedade contemporânea, no imaginário dos leitores
que são atraídos por suas narrativas tétricas com personagens maquiavélicos,
espaços ominosos, tramas tensas com desfechos que beiram o enigmático, o
sobrenatural e o assustador.
Além disso, o mencionado autor afirma que o horror, enquanto gênero deve ser
compreendido como horror artístico. Carroll (2004) distingue os dois tipos de horror, o
artístico e o natural. O horror artístico desperta o lado psicológico dos personagens e
do leitor, enquanto o horror do mundo real, denominado de horror natural é
desencadeado por acontecimentos aterrorizantes provocados por ações humanas
designando estar aterrorizado, estar escandalizado ou surpreso. Tal tipo de horror não

12Robert Louis Stevenson- “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (1886), Wilkie Collins - “The
Woman in White” (1860), Oscar Wilde- “The Picture of Dorian Gray” (1890), Bram Stoker- “Dracula”
(1897) e Henry James “The Turn of the Screw”(1898). CARROLL, Noel. The Philosophy of Horror or
Paradoxes of the Heart. New York: Routledge, 2004.
72

configura objeto desta pesquisa, mas sim o horror do mundo ficcional, enquanto,
deflagração da emoção principal, o medo.
Sobre isso, Lovecraft (2007) e Carroll (2004) concordam que o horror tem como
objetivo principal a irrupção da emoção do medo estético. O medo, para Lovecraft,
constitui uma das emoções mais antigas da humanidade, em especial o medo do
desconhecido. Em que o desconhecido se manifesta como um elemento surpresa, um
imprevisível, a deflagração de um fenômeno sobrenatural do qual o homem não tem
controle e não pode explicar pelas leis naturais. A emoção, para Carroll (2004), reside
no próprio estado horror, e sobre isso ele relata que “as obras de horror são
concebidas para provocar um certo tipo de afeto. Vou presumir que esse é um estado
emocional, cuja emoção chamo de horror artístico 13” (CARROLL, 2004, p.15, tradução
nossa). O autor destaca ainda que o próprio nome do gênero deriva da emoção que
ele provoca, e, “essa emoção constitui a marca da identidade do horror14” (CARROLL,
2004, p.14, tradução nossa).
Sobre essas emoções deflagradas pelo gênero, se faz necessário abrir uma
pequena discussão sobre a diferença entre horror e terror pois há muitos equívocos
no emprego de tais termos cuja escrita é aparentemente semelhante. Segundo Silva
(2011), em seu artigo Sob o Signo de Plutão: digressão sob os limites do horror e
terror assinala a principal diferença entre horror e terror.

A distinção básica entre o horror e o terror consiste no primeiro ser da ordem


do psicológico e o segundo da ordem física” [...] O terror, baseado na visão
de cenas chocantes, não estava relacionado a sensação de medo, mas com
uma espécie de indignação moral (SILVA, 2011, p. 12).

O horror é o medo presentificado no pensamento humano, ele afeta o


psicológico numa espécie de transe momentâneo no qual a pessoa que o
experimentou revive a cena de horror como um flashback de forma automatizada; a
emoção do medo se concretiza no espaço da memória, enquanto o terror é algo
explícito expresso por cenas chocantes, brutais e estarrecedoras que deflagram o
pavor extremo.
Como exemplo de horror e medo, nosso foco principal deste capítulo, podemos
constatar essa emoção do medo psicológico, experimentada por Raquel, protagonista

13works of horror are designed to elicit a certain kind of affect. I shall presume that this is an emotional
state, which emotion I call art-horror. (CARROLL, 2004, p.15).
14this emotion constitutes the identifying mark of horror (CARROLL, 2004, p.14).
73

do conto, Venha Ver o Pôr do Sol, que na última cena descobre que caiu numa
armadilha planejada pelo seu ex-namorado Ricardo, ao constatar que não havia
nenhum parente de Ricardo ali enterrado, que a suposta prima, Maria Emília era uma
farsa aliada à constatação de que a tranca da portinhola que dava acesso à
catacumba havia sido trocada por Ricardo. Nesse momento o medo toma conta de
Raquel, pois sabe que sua vida está ameaçada, que não tem chances de ser
resgatada daquele espaço ermo, afastado e desconhecido, pois não há nenhum sinal
de vida humana, ninguém poderá escutar seus gritos de socorro e de horror.
A Literatura Brasileira, entretanto, não tem uma tradição crítica, teórica e
historiográfica nesse gênero, se comparada ao expressivo número de escritores
europeus e americanos que surgiram no século XVIII, XIX e XX que se debruçaram
em narrativas tétricas e elegeram o medo artístico como a emoção fundamental de
seus escritos. No entanto, França (2011) defende a existência de uma literatura
alusiva ao horror no Brasil denominada de “literatura do medo”; no início de seu
ensaio, Prefácio a Teoria do “medo artístico” na Literatura Brasileira, o pesquisador
assevera que a literatura do medo, configurada nos séculos XIX e XX é muito bem
representada por renomados escritores brasileiros como: Alvares de Azevedo, Aluísio
de Azevedo, Bernardo Guimarães, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos,
Humberto de Campos, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Monteiro Lobato
entre outros, que publicaram narrativas que irrompem o medo estético, e no entanto,
a “crítica tradicional, por uma série de razões, jamais a descreveu pela perspectiva do
medo”. (FRANÇA, 2011, p.01, grifo nosso). No que tange ao ofuscamento dessas
narrativas pela crítica, bem como a produção de narrativas inspiradas na literatura
romântica gótica-horror arcaico, Silva (2011) declara que “muitos autores brasileiros
se exercitaram em uma ou outra linha da narrativa gótica, porém sempre vigorou uma
forte tendência realista em nossa literatura” (SILVA, 2011, p.14).
De certa forma, os escritores brasileiros buscaram inspiração em narrativas
anglo-americanas, como Álvares de Azevedo, que, inspirado nos romances
byronianos, tornou-se um exponencial na segunda fase romântica brasileira, e sua
obra Noite na Taverna tem sido escrutinada por estudiosos e pela crítica e classificada
como um exemplo de romance gótico. A própria Lygia Fagundes Telles sofreu grande
influência de Poe. Muitos dos seus contos classificados como de mistério têm
elementos alusivos ao horror contemporâneo com teor mais realista cujas ações das
74

personagens guiadas por um sentimento de vingança conduzem suas vítimas a


lugares fechados preenchidos por uma atmosfera macabra com desfechos
angustiantes; como, por exemplo, no conto: Venha Ver o Pôr do Sol, que será
abordado de forma mais profícua no capítulo seguinte.
75

CAPÍTULO 3 - TOPOANÁLISE: venha ver o pôr do sol

O objetivo deste terceiro capítulo é realizar a topoanálise do conto Venha Ver


o Pôr do Sol. Este capítulo está dividido em três seções: a seção 3.1 Lygia Fagundes
Telles: vida e obra- abordaremos a biografia da escritora destacando suas obras, seu
estilo de composição, sua linguagem e principais temas extraídos de suas narrativas
curtas. No item 3.2 O Conto Venha Ver o Pôr do Sol: sinopse-faremos um resumo do
conto destacando os quatro espaços que formam o percurso espacial trilhado pela
protagonista e objeto de nossa topoanálise. No item 3.3 Topoanálise: análise do
percurso da personagem Raquel-neste item analisaremos o percurso espacial de
Raquel e, para isso, utilizaremos os dispositivos espaciais para operacionalização,
tais como as coordenadas geográficas, os gradientes sensoriais, bem como as
funções que o espaço assume e as prolepses espaciais.

3.1 Lygia Fagundes Telles-vida e obra

A escritora paulistana Lygia de Azevedo Fagundes Telles nasceu em 19 de


abril de 1923 e faleceu em 03 de abril de 2022. Desde a juventude Lygia já
demonstrava aptidão e genialidade para arte de escrever, de compor narrativas longas
e curtas, aperfeiçoando-se na última. Na adolescência, escreveu seu primeiro livro,
Porão e Sobrado. Mas, foi na fase adulta que a escritora aprimorou sua habilidade e
evidenciou sua vocação literária, e em 1954 publicou seu primeiro romance, Ciranda
de Pedra, considerado o marco inicial de sua carreira como escritora e dentro da
historiografia literária, mas para a crítica literária somente com a publicação do
romance - Verão no Aquário (1963), é que ela alcança notoriedade e maturidade
literária; além disso, a publicação do livro lhe rendeu o prêmio Jabuti. Em 1970, a
escritora publicou Antes do Baile Verde, um livro que traz dezoito contos, contos que
abordam diversos temas como: a crise no casamento e o fim do amor, a loucura, a
arrogância, a morte, vingança, o casamento por interesse, o adultério, as relações
humanas conturbadas e o lado pérfido do ser humano.
Dimas (2009) no posfácio de Antes do Baile Verde, intitulado Garras de Veludo,
destaca algumas curiosidades sobre o surgimento da obra relatando que após a
aclamação da escritora pelo seu conto-Antes do Baile Verde, vencedor do Grande
76

Prêmio Internacional Feminino para Contos Estrangeiros de Cannes, a escritora


ganhou mais visibilidade, assim como, seus contos e, em 1970 a Editora Bloch
publicou o livro, cujo título é o mesmo nome do conto premiado, conforme o trecho a
seguir:

“Antes do Baile Verde” era apenas um conto, no começo. Mas, em 1969,


quando a autoestima brasileira andava ainda derrubada pelo AI-5, Lygia
roubou a cena, porque, o júri do Grande Prêmio Internacional Feminino para
Contos Estrangeiros de Cannes, na França escolheu-o para o primeiro lugar.
Depois disso, a Editora Bloch[...] aproveitou o nome, organizou um livro e
publicou-o em 1970. [...] Antes do Baile Verde conheceu composições
diferentes desde então. Começou com dezesseis contos, depois passou para
vinte, hoje apresenta-se com dezoito, em versão definitiva, segundo desejo
da autora (DIMAS, 2009 apud TELLES,2009, p.182, grifo do autor).

O autor destaca o contexto histórico no qual Telles está inserida; o ano de 1969
é marcado pela ditadura militar brasileira e pelo auge e aclamação da escritora. Outra
característica interessante destacada pelo professor Dimas, é que a autora sempre
revisa, altera ou adiciona algum detalhe de suas narrativas; o próprio livro, Antes do
Baile Verde, passou por três edições, e, atualmente, conta com dezoito contos. O
décimo quinto, intitulado Venha Ver o Pôr do Sol é objeto de estudo desta pesquisa.
No âmbito de narrativas longas, Dimas destaca que Ciranda de Pedra (1954) é
o “romance que, no entendimento de Antônio Candido, [...] estabeleceu a maturidade
da escritora. (DIMAS, 2009 apud TELLES, 2009, p.183). O crítico destaca que
“Ciranda de Pedra e Antes do Baile Verde cumprem a mesma função ao consolidarem
a carreira da romancista e da contista” (DIMAS, 2009 apud TELLES, 2009, p.183).
De acordo com a biografia da escritora, na Academia Brasileira de Letras suas
obras receberam diversas premiações, dentre elas: o romance- As Meninas (1973)
recebeu o Prêmio Jabuti, Seminário dos Ratos (1977) foi premiado pelo PEN Clube
do Brasil; A Disciplina do Amor (1980) recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte. O romance As Horas Nuas (1989) recebeu o
Prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano. Lygia recebeu, ainda, o prêmio Camões
em 2005 e foi indicada em 2016 ao Prêmio Nobel de Literatura. Suas três obras mais
renomadas (Magnum Opus) são: Ciranda de Pedra (1955), Antes do Baile Verde
(1970) e As Meninas (1973). Suas obras foram adaptadas para a televisão, o teatro
e o cinema. Além do reconhecimento e premiações, a escritora (também) recebeu o
título de Doutora Honoris Causa, em 2001, pela Universidade de Brasília-UnB. E foi
agraciada com a titulação de Membro da Academia Paulista de Letras, eleita em 29
77

de abril de 1982e três anos mais tarde é eleita como membro da Academia Brasileira
de Letras, ocupando a décima sexta cadeira, em 24 de outubro de 1985.
No que tange às temáticas abordadas em suas obras, a que mais se sobrepõe,
segundo o crítico Fábio Lucas (1990) é “o jogo alternativo entre amor e morte”
(LUCAS,1990, p.67). Amor e morte, dois termos antagônicos, dois extremos, mas que
se relacionam no âmbito sentimental, em que o excesso ou falta do primeiro pode
desencadear o segundo. O crime passional desencadeado por amores doentios,
relacionamentos abusivos, traições, a não aceitação do fim do casamento ou namoro
são alguns subtemas que podemos extrair da narrativa, objeto desta análise. A ficção
é verossímil à realidade; nas tramas de Telles, as personagens vivenciam amores
conturbados, desgastados, traições que enveredam para a morte. A morte, além de
ser um tema recorrente nas narrativas fantásticas e misteriosas da contista, é
encarada pelo antagonista como forma de punição, de retaliação e não aceitação do
fim do relacionamento.
A linguagem empregada em seus contos, em especial no livro Antes do Baile
Verde, é simples e impregnada de simbolismo através dos objetos, cores e
expressões que funcionam na narrativa como prolepses, a saber: o mobiliário e os
objetos que ocupam os espaços, captados pelo olhar das personagens revelam
sempre algo premonitório, uma ação negativa prestes a se desenvolver no espaço,
relacionada à morte, assim como, as cores relacionadas às vestimentas das
personagens, assim como suas falas dúbias; considerados componentes espaciais,
revelam sempre algo velado e negativo aliado à própria conduta de suas personagens,
em especial os vilões da trama, cujo caráter é sempre sugerido ou revelado no
desfecho intrigante.
Sobre esse tipo de desfecho, que rompe com as expectativas do leitor de ter
um final surpreendente, o que se tem de fato é um final em aberto, Piglia (2004) relata
que “a estrutura moderna do conto que vem de Tchekhov abandona o final
surpreendente e a estrutura fechada, trabalha a tensão entre duas histórias sem
nunca resolvê-las” (PIGLIA, 2004, p.91). A primeira história do conto, Venha Ver o Pôr
do Sol, revelada ao leitor, põe em cena um casal de ex-namorados que tem seu último
encontro em um lugar atípico e disfórico, um cemitério, como forma de despedida e
para “matar a saudade” (grifo nosso). A segunda história que se desencadeia, que
está encaixada na primeira, revela um plano de vingança, em que Ricardo simula a
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todo instante ter sentimentos pela protagonista, no entanto, o antagonista da trama se


revela um vilão com planos sórdidos para Raquel.
Segundo o crítico Lucas (1990), Telles aborda a “psicologia feminina do ponto
de vista feminino” (LUCAS,1990, p.63), principalmente no que concerne a alguns
temas tradicionais considerados tabus para a época, tais como “temas amorosos,
desejos sexuais” (LUCAS,1990, p.63). As mulheres, nos contos lygianos são
dominadoras, determinadas e destemidas. Sobre a caracterização das personagens
do sexo masculino, Lucas (1990) relata o seguinte:

As personagens masculinas não apresentam contornos como as


personagens femininas. Antes aparecem como signos designativos de
função social ou de papel; como símbolos de poder, de riqueza ou de status.
Não dispõem da vibração e das nuances das personagens femininas
(LUCAS,1990, p.65).

De acordo com o escritor supracitado, a construção das personagens-


masculinas como detentores de poder, de status tem relação direta com a vida da
escritora, pois, ela experienciou, em sua fase adulta, um período de preconceito,
tradicionalismo e machismo. A mulher era educada para exercer atividades
domésticas, para cuidar dos filhos e servir ao marido; era minoria nas universidades
e, principalmente, exercer profissões, de advogada e escritora, classificadas como
tipicamente masculinas. Ainda sobre sua profissão, Telles “costuma dizer que adotou
duas profissões de homem: advogada e escritora” (LUCAS,1990, p.61). Ele ainda
relata que a escritora sofreu preconceito durante o curso de direito, em uma sala de
aula com predominância de estudantes do sexo masculino, e, muitas vezes, ter sido
constrangida e afrontada com perguntas machistas, por ser mulher e minoria. Lygia,
enquanto, mulher, escritora e advogada, dá vez e voz às mulheres através de suas
personagens, revelando mulheres de personalidade forte, determinadas,
independentes, racionais, mas que revelam uma certa fraqueza no âmbito amoroso.
Sobre a intriga construída na trama, elemento fulcral para a escritora, o crítico
Silviano Santiago (1998) em “A Bolha e a Folha, Estrutura e Inventário”, relata que “a
intriga ficcional tem de ser engenhosamente derrapante na troca com o leitor. [..] Se a
intriga ficcional se entregar ao leitor exclusivamente como verdade ou exclusivamente
como mentira, ela morre”. (SANTIAGO, 1998, p.282-283). A construção da intriga é o
dispositivo mais importante segundo o crítico, pois ela é responsável por irromper no
leitor a tensão classificada como momento ápice da narrativa. “Todos os contos de
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LFT são realizados sob o impacto de forte tensão” (LUCAS,1990, p.66). A brevidade
e a tensão são dois elementos cultivados nos contos lygianos.
No que tange à temática dos contos lygianos, Bueno (2016) pontua que as
produções de Telles flutuam entre “contos cuja temática de mistério traz o efeito da
fantasia, do sobrenatural e do maravilhoso” (BUENO, 2016, p.24), evidenciando,
assim, a maestria da escritora ao construir suas narrativas com pano de fundo, o
mistério, e deflagrar diferentes efeitos. Pode-se observar nos textos de Telles que “há
também uma preferência por situações que causam desconforto às personagens ,
como o medo, o ciúme, a ansiedade etc. Tais vivências contribuem para a existência
de um sobrenatural negativo”, (BUENO, 2016, p.31) pertencente à vertente do
fantástico estranho. A pesquisadora assevera que grande parte dos textos lygianos
que tem como vertente o insólito, traz uma sequência de ações “impregnadas de
mistério que conduzem a um desvelamento inquietante e perturbador das
personagens” (BUENO, 2016, p.04).
A citada autora ressalta que dentre os recursos utilizados pela escritora que
corroboram a agudização do mistério em suas narrativas, destacam-se: “figuras
retóricas, especialmente da ambiguidade, uma linguagem impregnada de opacidade,
de reticências, de figuras dubitativas, de frases premonitórias e [...]recursos
linguísticos que dão sustentação ao mistério” (BUENO, 2016, p.05). Ainda sobre a
classificação de contos de mistério de Telles, a pesquisadora Grigório Matsuoka
(2019), em seu artigo “A Personagem e o Espaço na ficção de Lygia Fagundes Telles”,
classifica as narrativas, Venha Ver o Pôr do Sol, A Caçada e O Encontro como contos
de mistério e assevera, a partir de suas análises, que “os contos de mistério de Lygia
Fagundes Telles têm esse poder: conduzem o leitor em meio a cenários enigmáticos,
por estreitas vias entre real e irreal, a ponto de o familiar transformar-se
inadvertidamente em estranho” (GRIGÓRIO MATSUOKA, 2019, p.01).
Sobre a construção espacial dos contos lygianos, Oliveira (2011) enfatiza que
a escritora explora muito o uso de substantivos e adjetivos na construção do espaço,
além das figuras de linguagem, em especial a sinestesia; o sentido visual é
evidenciado em relação aos demais sentidos, o que Borges Filho (2007) classifica
como gradiente sensorial, recurso estético, utilizado pela personagem para captação
do espaço, objetos, pessoas e de tudo que lhe cerca. A personagem percebe o espaço
ocupado e todos os elementos que o compõem, através do gradiente sensorial da
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visão. A respeito disso, Oliveira (2011) relata que “na prosa narrativa de Lygia
Fagundes Telles torna-se soberana a visão, essa fronteira móvel e aberta entre o
mundo externo e o sujeito”(OLIVEIRA, 2011, p.02).No conto objeto de nossa
pesquisa, Venha Ver o Pôr do Sol, a pesquisadora assevera que no próprio título do
conto, evidencia-se a supremacia da visão declarando o seguinte: “Ao lermos o título
do conto a ser analisado ‘Venha Ver o Pôr do Sol’ acentuamos a força da visão, pois,
se trata de um convite a exercitá-la e por meio dela vislumbrá-la formas e cores”
(OLIVEIRA, 2011, p.02-03).
Segundo Lucas (1990), Telles aperfeiçoou-se no gênero conto com narrativas
envolventes, tensas, com desfechos que induz o leitor a cogitar algo, pois, “tinha
intrínseca vocação para a história curta, que exige ação e virtuosismo técnico [...]
capaz de criar caracteres, [...] explorar tensões dramáticas em cenas objetivas e
diálogos curtos” (LUCAS,1990, p.63).
Segundo a Academia Brasileira de Letras e traçando um comparativo entre
suas narrativas longas e curtas, a escritora tem quatro romances publicados; dentre
eles : Ciranda de Pedra (1954),Verão no Aquário (1964), As Meninas (1973),As Horas
Nuas (1989). No entanto, a quantidade expressiva de contos publicados pela escritora
supera a de romances, a saber: Porão e Sobrado (1938),Praia Viva (1944),O Cacto
Vermelho (1949) Histórias do Desencontro (1958), Histórias Escolhidas (1964), O
Jardim Selvagem (1965), Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos
Ratos(1977),Filhos Pródigos (1978) A Estrutura da Bolha de Sabão(1991), A
Disciplina do Amor (1980), Mistérios(1981), Venha Ver o Pôr do Sol e Outros
Contos(1987), A Noite Escura e Mais Eu (1995),Oito Contos de Amor (1996), Invenção
e Memória (2000),Durante Aquele Estranho Chá: Perdidos e Achados
(2002),Conspiração de Nuvens (2007),Passaporte para a China: Crônicas de Viagem
(2011),O Segredo e Outras Histórias de Descoberta (2012), Um Coração
Ardente(2012).

3.2 O Conto Venha ver o Pôr do Sol: sinopse

A história inicia com a voz do narrador em terceira pessoa, apresentando a


personagem Raquel em ação no espaço inicial, subindo a ladeira e indo ao encontro
do seu ex-namorado, Ricardo, que a esperava encostado a uma árvore em frente ao
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cemitério abandonado. A narrativa é composta de quatro espaços que formam o


percurso trilhado por Raquel; dentre eles temos: a ladeira, o cemitério, a capelinha, e
o subsolo da capela. A história desenrola-se através de um convite que Ricardo faz a
sua ex-namorada, Raquel. À primeira vista, tal convite assume um teor romântico e
sem malícia, parece apenas um simples pedido de um ex-namorado apaixonado que
não conseguiu esquecer a ex.
Sobre o espaço escolhido por Ricardo para o encontro, é um lugar atípico e
bizarro, um cemitério abandonado, cuja enganosa intenção é ver o pôr do sol, artifício
utilizado por Ricardo para conduzir Raquel até o espaço subterrâneo do cemitério. Ao
encontrar-se com Ricardo, Raquel demonstra indignação com o local e o motivo do
convite, no entanto, Ricardo consegue convencê-la usando a desculpa de que está
na miséria, vivendo em uma pensão e, por isso, não teve condições financeiras de
proporcionar um encontro em um local sofisticado; além disso, ele enfatiza que o
cemitério é um lugar discreto e seguro, e, dessa forma, ninguém poderá vê-los juntos.
E, com esse argumento, Ricardo consegue persuadi-la a adentrar no cemitério.
À medida que conversam, eles caminham em direção ao jazigo da família de
Ricardo para ver o suposto pôr do sol. Em um determinado momento Raquel queixa-
se de cansaço, do frio e o deseja ir embora. Mais uma vez Ricardo utiliza como álibi,
para dissuadi-la da ideia de ir embora, a desculpa de que toda sua família está
enterrada naquele cemitério, em especial, sua prima com quem teve um namoro na
adolescência, Maria Emília, e que morrera aos 15 anos. O personagem destaca que
sua prima tinha os olhos semelhantes aos de Raquel. Tal comentário desperta a
curiosidade da personagem que muda de opinião, e resolve permanecer no espaço
sepulcral e constatar tal semelhança física. Ela o acompanha até a capelinha ;
chegando lá, ambos descem até as catacumbas para ver a foto da falecida prima.
Ricardo vai à frente guiando o caminho e encorajando Raquel. O espaço semiobscuro
do subsolo provoca um certo receio, imiscuído com medo velado em Raquel; ora ela
demonstra vontade de ir embora, ora curiosidade, fazendo perguntas a Ricardo.
Ricardo avança até um gavetão e acende um fósforo para ver a foto da prima
no medalhão e começa um discurso carinhoso sobre a suposta foto de Maria Emília.
Nesse momento, ele chama Raquel para que também veja; Raquel se aproxima de
Ricardo, que acende outro palito de fósforo e entrega para ela iluminar o pequeno
espaço e ajudar na visualização da foto. Raquel lê a inscrição e constata que a foto
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do medalhão não pertence à prima de Ricardo, pois, “morreu há mais de cem anos”
(TELLES, 2009, p.142). A descoberta da mentira do personagem é marcada por
extrema tensão e expectativa, por parte do leitor; o plano ardiloso de Ricardo já está
quase concluído, há um jogo de cena, Ricardo já está atrás do portão que separa a
capela do subsolo. O personagem bate o portão para chamar atenção de Raquel, e,
quando ela sobe a escada, ele gira a chave e retira do portão. Mesmo desesperada,
Raquel considera o ato como uma brincadeira de mau gosto e exige que ele abra o
portão. No entanto, ela olha o contraste da fechadura nova com o portão enferrujado
e percebe que não se trata de uma brincadeira, mas uma cilada. Ricardo declara que
“uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta. [...] Você terá o pôr do sol mais belo
do mundo” (TELLES, 2009, p.143). O antagonista guarda a chave no bolso, se
despede de Raquel com um “boa noite, meu anjo” (TELLES, 2009, p.143) e refaz seu
caminho de volta no silêncio do cemitério abandonado, e os sons captados por
Ricardo são os pedregulhos sob seus sapatos e os múltiplos gritos de Raquel
“semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois os uivos foram ficando
mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra” (TELLES, 2009,
p.144). Ricardo chega ao portão de saída do cemitério e, nesse momento, ele lança
“ao poente um olhar mortiço” (TELLES, 2009, p.144). O personagem já não escuta
mais nenhum grito e tem certeza que daquela distância ninguém escutará. Ele acende
um cigarro e desce a ladeira.

3.3 Topoanálise: análise do percurso da personagem Raquel

Para Tuan (1983), o sentimento pelo espaço está condicionado à experiência


espacial, pois, segundo sua concepção, a experiência é composta de sentimento e
pensamento. O sentimento do personagem pelo espaço é resultante da experiência
espacial; ele é um agente subjetivo que abrange um trio de emoções deflagradas no
contato direto com o tópos tais como: sensação, percepção e concepção; sua relação
de afetividade com o tópos da morte perpassa aspectos estéticos e simbólicos, mas
acima de tudo, o sentimento de afeição ou aversão é determinado pelo lugar e pelos
laços afetivos que o tópos (cemitério) irrompe no personagem. Com base nessa
premissa, analisaremos qual é a relação sentimental que se estabelece entre o
personagem e o espaço ocupado e percebido. Se a relação sentimental é topofílica
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ou topofóbica. Para a topoanálise, faremos uma avaliação sobre o percurso da


personagem Raquel, os quatros espaços percorridos por ela, dentre eles: a subida
da ladeira, a entrada no cemitério, a entrada na capelinha e a descida até o
subsolo da capelinha. Utilizaremos os eixos espaciais: o eixo horizontal (frente -
atrás) o eixo vertical (alto-baixo), a prospectividade (perto-longe) e a amplitude do
espaço (amplo x restrito), investigaremos quais os gradientes sensoriais mais
explorados pela protagonista. Ainda neste capítulo analisaremos as prolepses
espaciais e as funções que o espaço assume na narrativa.

A subida da ladeira

O conto inicia com a personagem-protagonista em ação no espaço da ladeira


(espaço inicial) subindo a tortuosa ladeira ao encontro de seu ex-namorado, Ricardo,
que está em um espaço logo acima, no topo da ladeira, próximo à entrada do
cemitério. A ladeira consiste em um espaço vertical, dividido em parte baixa e alta; o
começo da ladeira representa o (espaço baixo) e o topo (espaço alto). A ladeira é um
espaço aberto, íngreme e árduo, pois demanda muito esforço físico, resistência e
fôlego para chegar até o seu topo. A subida da ladeira funciona como um símbolo
representativo do sofrimento, angústia e finitude da protagonista; sua subida de forma
lenta, solitária e sofrida antecipa ao leitor, como uma prolepse espacial seu destino
traçado por Ricardo. A voz do narrador-observador prediz que verossímil a esse
caminho trilhado pela protagonista será a sua morte: angustiante, tortuosa e lenta.
Raquel marcha de forma lenta para seu próprio sepultamento em vida, em direção à
urbe da morte, um cemitério abandonado e afastado da cidade, um local propício e
que corrobora com o plano cruel e torpe de Ricardo.

Ela subiu sem pressa, a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as


casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas
em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali
por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga
infantil era a única nota viva na quietude da tarde (TELLES, 2009, p.135,
grifo nosso).

Os termos: tortuosa ladeira, casas [...] rareando, casas espalhadas, terrenos


baldios, rua sem calçamento/mato rasteiro, nota viva, quietude da tarde corroboram
na feitura desse espaço afastado e assustador que designa a ausência, um não estar
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dos vivos e mortos. Esses termos espaciais e temporais captados pelo olhar do
narrador antecede o lugar do encontro, o cemitério.
A voz do narrador antecipa ao leitor o silenciamento de Raquel através do
paradoxo nota viva versus quietude da tarde. O silêncio da tarde simboliza o silêncio
da morte, que se presentifica como um imperativo e se agudiza cada vez mais no
espaço, contrastando com a débil cantiga infantil, única nota viva, nesse tópos que
ensaia a chegada da morte.
Raquel capta o espaço da ladeira de forma direta, experienciando-o, e percebe
o espaço que a cerca através do seu gradiente visual, auditivo e de seu sensório-
motor, movimentando-se pelo espaço. A voz do narrador descreve como o espaço é
instalado, utilizando o descritivismo de forma objetiva, característica da espacialização
franca, dessa forma, possibilitando, através da riqueza de detalhes, a composição
espacial percebida pela personagem e pelo leitor e agudiza esse cenário sombrio,
ameaçador e solitário que se forma com “casas espalhadas sem simetria e ilhadas em
terrenos baldios. [..] rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro”
(TELLES, 2009, p.135).
O simbolismo da melodia infantil das crianças, essa sonoridade espacial
captada pela personagem através de seu gradiente sensorial auditivo, embala e
minimiza a solidão de Raquel, mas ao mesmo tempo conota uma marcha fúnebre em
que Raquel está inserida. Ela mesma está conduzindo e sendo conduzida até seu
próprio túmulo, em vida.
O espaço sepulcral localizado no alto da ladeira é ilusoriamente percebido
como um espaço positivo remetendo ao sagrado e divino por estar verticalmente e
prospectivamente perto do céu. No entanto, essa pseudo percepção é anulada, pois
o cemitério, mesmo estando no eixo alto, assume um aspecto negativo, um lugar
ameaçador que esconde/ guarda espaços invisíveis como a capela e o subsolo. Se
faz necessário destacar que o personagem Ricardo, no cume da ladeira, evidencia
sua “superioridade de ordem divina” em relação a Raquel, se autoinserindo no papel
sacrossanto, do próprio criador e que tem em mãos a vida de Raquel; viver ou morrer
será determinado por ele.
O espaço físico topofóbico se opõe ao eixo em que Raquel se encontra. O
cemitério estando no eixo alto, acima da personagem, evidencia a sua superioridade,
bem como, seu poder de domínio e opressão em relação à personagem, estar no eixo
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baixo demonstra sua inferioridade, fraqueza e posição de oprimida. O espaço no topo


da ladeira simboliza, também, a figura de Ricardo, como um algoz e opressor.

A entrada no cemitério: a criação de um espaço topofílico dentro de um


topofóbico

O encontro com Ricardo na porta do cemitério, aliado à sua concordância de


entrada na urbe dos mortos, revela a aceitação do convite para sua própria morte,
lenta e em vida. Adentrar o tópos dos mortos revela também a cilada na qual Raquel
se envolveu e que parece não ter volta. Ricardo consegue seduzir sua vítima em um
jogo pseudoamoroso, imiscuído com um pseudo romance e uma pseudo saudade,
que serão revelados ao leitor no final da narrativa, indicando o que está por trás dos
planos de Ricardo. O jogo da vitimização, da carência, da saudade dos momentos que
viveram juntos são artifícios utilizados pelo antagonista com o propósito de convencer
a protagonista de que o encontro e o cenário são factuais, que seu sentimento é
verdadeiro. O cemitério é a concretude da morte, é um espaço negativo e ominoso
que evidencia o fim e a finitude da vida, cujo simbolismo que a morte é um fato e esse
tópos nefasto representa o destino de todos, por isso, irrompe sensações de repulsa,
pavor e não aceitação da morte.
A chegada ao cemitério e constatação do local disfórico e tétrico para um
encontro não agradam à protagonista; Raquel é tomada por raiva e indignação ao
perceber o cemitério decrépito, abandonado, revelando sua pobreza e feiúra,
classificando-o como cemitério miserável que destoa de seu atual status social, o que
pode ser observado no trecho a seguir:

- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar


destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais
ele chegaria aqui em cima [...]. Me implora um último encontro, me atorment a
dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só
mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério
(TELLES,2009, p.135, grifo nosso).

- E o que é isso aí? Um cemitério? [...]


-Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa? [...]
-Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
-Ver o pôr do sol? Ah, meu Deus.... Fabuloso, fabuloso! (TELLES, 2009,
p.136)
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Os substantivos lama e buraqueira delineiam o aspecto visual topofóbico do


lugar escolhido, assim como, os advérbios espaciais lá longe e aqui demarcam o
espaço percorrido e o atual no qual a personagem se encontra.
Raquel apreende o espaço horizontal do cemitério demarcado pelo eixo frontal-
frente a partir de seu gradiente visual, até onde seus olhos conseguem alcançar o
espaço físico. Através do polo visual e se movimentando pelo tópos da morte, ela
capta de imediato o espaço que a cerca, seus componentes símbolos pertencentes a
urbe sepulcral, tais como as sepulturas, as lápides e imagens, bem como, sua
extensão espacial, sua amplitude e prospectividade. Raquel percebe o espaço do
cemitério de forma realista, não há romantização, ela percebe o aspecto deplorável
do cemitério evidenciando seu descaso e seu estado de extrema pobreza,
qualificando o nível social do lugar. Sua relação com o espaço é topofóbica, pois ela
revela que não gosta de cemitérios misturados ao medo do espaço. Assim como
Raquel, a maioria das pessoas sentem aversão pelo espaço sepulcral por entenderem
que é um espaço mórbido, com uma simbologia negativa, que irrompe sentimentos e
lembranças ruins.

-É imenso hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que


deprimente-exclamou ela atirando o cigarro na direção de um anjinho de
cabeça decepada. [..]. Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais
cemitério pobre (TELLES, 2009, p.138, grifo nosso).

Embora Raquel não goste do espaço topofóbico perceptível, a protagonista é


convencida a prosseguir ao lado de Ricardo, com o discurso de que está familiarizado
com o espaço, pois todos os seus familiares estão enterrados ali, o que, de certa
forma, passa tranquilidade e confiança a Raquel.

Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí (TELLES,2009,


p.136, grifo nosso).

-Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente , é de lá que se vê o


pôr do sol. Sabe Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com
minha prima (TELLES, 2009, p.139,140, grifo nosso).

Ricardo cria um espaço topofílico (afetivo) ilusório dentro do espaço


topofóbico (aversão). O antagonista constrói um cenário familiarizado, seguro e
tranquilo dentro do cenário estranho, ermo e ameaçador. De forma abismal, essa
construção de um espaço ilusório para Raquel será também de forma irônica seu
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abismo. O espaço abstrato ilusoriamente familiar desencadeia o sentimento da


afetividade de Ricardo em relação ao lugar em que seus parentes estão enterrados e
tal sentimento é refletido em Raquel. A partir dessa pseudo construção de um tópos
positivo, familiarizado percebido e experienciado de forma direta por Raquel, tem-se
a explosão de emoções positivas que abarcam a sensação de segurança, a
percepção de um lugar vazio completamente abandonado pelos vivos e, por isso,
remete à concepção de um lugar tranquilo, mas que lhe desperta curiosidade. A
protagonista, a princípio, tem curiosidade em constatar a semelhança contida nos
olhos da suposta “prima Maria Emília” e, para isso, a personagem precisa acompanhar
Ricardo até a jazigo de sua família. A segunda curiosidade é despertada pelo lugar
secreto e profundo, situado no subsolo da capela, que abordaremos posteriormente.
Vejamos um fragmento do conto em que Ricardo evidencia a semelhança dos olhos
de Maria Emília com os de Raquel.

Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer
flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e
minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas,
fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas
-Sua prima também?
-Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriament e
bonita, mas tinha uns olhos.... Eram assim verdes como os seus, parecidos
com os seus. Extraordinário Raquel, extraordinário como vocês duas ....
Penso agora que toda beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio
oblíquos, como os seus (TELLES, 2009, p.140).

Constata-se que a semelhança física contida nos olhos é o recurso chave, o


álibi utilizado por Ricardo e fio condutor do percurso de Raquel pelo espaço aberto,
ermo e visível até os dois últimos espaços fechados e invisíveis (a capela e o subsolo).
O espaço do cemitério que, a princípio causava estranheza, torna-se um lugar
familiarizado “superficialmente” através dos laços sentimentais suscitados em Raquel;
conforme a teoria de Tuan (1983) “o que começa com espaço indiferenciado
transforma-se em lugar à medida que o conhecemos e o dotamos de valor”
(TUAN,1983, p.06).
Ricardo convence Raquel a continuar o percurso, a fim de que ele possa seguir
com seu plano. O próximo passo é seguir em frente até a capelinha, adentrá-la e
descer até o subsolo, local onde estão as catacumbas dos “familiares” de Ricardo e,
em particular, o jazigo com a foto no medalhão da prima falecida que servirá de isca
para Raquel. Ambos seguem de forma retilínea, adentrando cada vez mais o
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cemitério; à medida que caminha, a protagonista se aprofunda no tópos da morte e se


aproxima do seu fim, já não tem mais como voltar. A personagem segue em frente em
linha reta de forma prospectiva, adentrando no spatium mortem e se afastando cada
vez mais da vida, representado pela distância percorrida em relação ao portão de
entrada, que seria sua única chance de fugir do destino que a espera. À medida que
Raquel avança, diminui sua possibilidade de sobreviver, de frustrar o plano sombrio
de vingança de Ricardo. A cada passo, abrevia sua vida e se aproxima da morte,
deixando seus planos amorosos e ambiciosos, sua vida, seu passado, pois, seu futuro
já está traçado por Ricardo e está logo à frente, alguns passos a mais, abaixo.

A entrada na capelinha: um espaço que se estreita

O espaço da capelinha é um espaço misterioso por guardar um outro espaço


ominoso que se aprofunda de forma vertical no subsolo do cemitério. Ao adentrar na
capela, um lugar fechado e estreito que revela o abandono total da vida e dos vivos ,
evidenciado pelo descuido percebido pelos gradientes visuais de Raquel com paredes
escuras, com goteiras, o altar coberto por uma toalha amarelada pela ação do tempo
e crucifixo envolto por teia de aranha, todos esses elementos constroem uma imagem
assustadora da decadência do lugar e evidenciam que ninguém frequentava mais
aquele espaço; só havia o abandono, a ausência total dos vivos e dos mortos. Há um
jogo de imagens entre vida e morte- avida existente e insistente é representada pela
natureza selvagem com os cipós e trepadeiras que brotam das sepulturas, se alastram
e sobem pelas paredes da morada dos mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto e baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita
porta rangeu quando ele abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de
paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do
cubículo um altar meio desmantelado coberto por uma toalha que adquirira a
cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo
de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de
teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém
colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, um
a portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra descendo em
caracol para a catacumba (TELLES, 2009, p.140).

Os termos trepadeira selvagem/furioso abraço/ estreita porta/paredes


enegrecidas/estrias de antigas goteiras corroboram na feitura do espaço grotesco que
se forma agudizando o medo da protagonista inserida nas entranhas de um tópos
89

obscuro e ameaçador. Somado aos objetos instaurados pela voz do narrador: altar
[...] desmantelado, tosco crucifixo, aranha, teias rompidas, porta de ferro, escada de
pedra, catacumba; todos esses elementos agrupam-se na construção desse pequeno
espaço sufocante, tétrico que conduz Raquel a um outro tópos vertical- baixo através
da escada de pedra em caracol metaforizando o efeito espiral/redemoinho em que a
personagem será engolida e seus gritos abafados, pois está em um lugar fundo-no
mesmo nível dos mortos, nas entranhas da morte.
Nesse terceiro espaço da capelinha temos a voz do narrador, com uma
espacialização franca descrevendo de forma minuciosa o espaço que se revela aos
olhos de Raquel; a partir desse detalhamento e riqueza de substantivos e adjetivos
em que o narrador cria um verdadeiro retrato desse pequeno cenário da capela,
conforme as concepções de Dimas (1987) a ação é momentaneamente pausada e
substituída por uma sequência de descrições espaciais captadas pelos gradientes
visuais de Raquel. Os objetos que compõem a capelinha estão carregados de
simbolismo; a cruz simboliza o sofrimento e a morte, o triângulo tecido pela aranha
revela também a teia tecida por Ricardo. A teia em formato de triângulo remete às
pirâmides que na cultura egípcia era o local onde os faraós eram enterrados; era o
verdadeiro espaço da morte. O espaço escuro com paredes enegrecidas e estrias
conforme o trecho acima, dá robustez ao lugar trevoso percebido e ocupado pela
protagonista e prediz o caráter sombrio de Ricardo.
Raquel entra na capelinha “evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da
capelinha” (TELLES, 2009, p.140). Ela capta de imediato o abandono, a poeira, a
ferrugem, a dimensão física espacial e o espaço que se estreita e se aprofunda
escondido atrás de “uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra
descendo em caracol para a catacumba” (TELLES, 2009, p.140).Ela se movimenta
pelo pequeno espaço, experenciando-o e demonstrando curiosidade pela parte
subterrânea da capelinha, sem prestar atenção nas frases emitidas por Ricardo, que
são verdadeiras antecipações ao afirmar que “o que mais amo neste cemitério é
precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total e absoluta” (TELLES, 2009, p.141). Raquel,
após observar através do portão o pequeno espaço inferior, ominoso e escondido
dentro da capelinha, sente curiosidade em saber o que há lá embaixo. Vejamos um
90

trecho, a seguir, da voz do narrador descrevendo o espaço apreendido pelos


gradientes visuais de Raquel, seguido da voz da personagem:

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da


portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao
longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

-E lá embaixo?

-Pois lá estão as gavetas. E nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó -
murmurou ele (TELLES, 2009, p.141, grifo nosso).

A imagem geométrica que se forma de um retângulo cinzento a partir da união


das quatro paredes e o espaço retangular no chão, remetem à imagem de um caixão,
evidenciando a morte iminente na parte mais profunda do espaço da morte.

A descida até o subsolo da capelinha: um espaço genuinamente topofóbico


mascarado de topofílico.

O subsolo da capela é um espaço invisível, comparado ao espaço aberto e


visível de entrada do cemitério, captado facilmente pelos gradientes visuais da
protagonista. Além disso, essa parte inferior do cemitério se estreita e torna-se pouco
acessível à visão devido a sua parca luminosidade, “um espaço que se mostra pouco
acessível à visão é um espaço que aparece geralmente sob o signo do medo, da
desconfiança” (BORGES FILHO, 2007, p.73).
O subsolo da capelinha, escolhido por Ricardo para finalizar seu plano de
vingança, desperta curiosidade na protagonista, pois é o espaço onde os “familiares
de Ricardo estão enterrados” em especial sua prima Maria Emília, por isso, os laços
sentimentais de Ricardo, bem como seu sentimento topofílico pelo espaço desperta
em Raquel uma sensação de segurança, o espaço ermo, semiobscuro e topofóbico
no subsolo do cemitério é um espaço familiarizado por Ricardo; ele conhece o espaço
físico, dessa forma não há o que temer. Raquel sente-se segura no local porque tem
a companhia de Ricardo, mesmo que sua relação com o espaço seja topofóbica.
Vejamos um trecho a seguir em que Ricardo desce a escada em direção às sepulturas
e chama Raquel:
Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro
da parede, segurando firme na alça de bronze como se fosse puxá-la.
-A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
91

-Todas essas gavetas estão cheias?


-Cheias?... Só as que tem um retrato e inscrição, está vendo? Nesta está o
retrato de minha mãe, aqui ficou minha mãe-prosseguiu ele tocando com os
dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
-Vamos Ricardo, vamos.
-Você está com medo.
-Claro que não estou com frio. Suba e vamos embora, estou com frio.
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e
acendeu um fósforo (TELLES, 2009, p.141).

Nesse momento, Ricardo está prestes a completar seu plano: ele acende um
fósforo, criando um clima de tensão e mistério para Raquel que apenas vê a cena.
Depois de iluminar o medalhão com a foto, Ricardo cria um clima de sentimentalismo
e, ao mesmo tempo, curiosidade na protagonista, dizendo o seguinte:

-A priminha Maria Emília. Lembro me até do dia em que tirou esse retrato,
duas semanas antes de morrer.... Prendeu os cabelos com uma fita azul e
veio se exibir, estou bonita? Estou bonita|?
-Não é que fosse bonita, mas os olhos.... Venha ver, Raquel, é
impressionante como tinha os olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
Não estou enxergando!
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
-Pegue dá para ver muito bem...[...]. -Repare nos olhos (TELLES, 2009,
p.142).

Ricardo tem todos os detalhes do seu plano final milimetricamente calculados,


tal qual uma equação matemática, seu discurso romantizado e carinhoso para atrair
atenção de Raquel associado a suas ações rápidas de mudança espacial sem que a
personagem perceba. Enquanto Raquel tenta ver na foto, a semelhança dos olhos de
Maria Emília com os seus, o clima sombrio de mistério se intensifica com a parca
luminosidade, apenas a luz de um palito de fósforo consegue lhe mostrar a verdade.
Nesta cena, o clímax é criado a partir da leitura da inscrição na sepultura, com
revelação que o defunto do jazigo tem mais de um século de morto, somando-se a
isso o fato de que Ricardo sai de forma sorrateira do subsolo, sobe a escada da
capelinha, bate o portão de forma intencional para que Raquel capte através do seu
gradiente auditivo, pois, o espaço semiobscuro dificulta a apreensão visual de ações
espaciais. O antagonista se posiciona atrás da portinhola, apenas aguardando a
reação de Raquel, que é a de correr e tentar abrir o portão. Nesse momento, ele gira
a chave e arranca-a da fechadura e se afasta do portão. Vejamos um fragmento do
conto:
92

Leu em voz alta, lentamente. -Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil
e oitocentos e falecida...
-Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua
namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti....
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça
estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava
por detrás da portinhola fechada. [...]- Isso nunca foi o jazigo de sua família
seu mentiroso! Brincadeira mais cretina. - exclamou ela, subindo rapidament e
a escada. Não tem graça nenhuma, ouviu? -Ele esperou que ela chegasse
quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave,
arrancou-a da fechadura e saltou para trás. Ricardo abre isto imediatamente,
detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso (TELLES, 2009, p.142, grifo
nosso).

A princípio, Raquel acha que as ações de Ricardo fazem parte de uma


brincadeira de mau gosto, no entanto, ela constata que Ricardo não está blefando,
quando percebe, através do seu gradiente visual, a fechadura nova que contrasta com
o portão enferrujado. Ricardo possui a chave do local que se tornou um inferno para
Raquel, a chave de sua vida. A chave é o objeto símbolo de libertação de Raquel.
Sobre o simbolismo da chave, Chevalier e Gheerbrant (1990) afirmam o seguinte: “O
simbolismo da chave está, evidentemente, relacionado ao seu duplo papel de abertura
e fechamento. [...] A chave é, aqui, o símbolo do mistério a penetrar o enigma a
resolver da ação dificultosa” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p.233).

-Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. -Seu idiota! (TELLES ,
2009, p.142).
_Ouça meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos ,
abra.... (TELLES, 2009, p.143).
-Cretino, me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu examinando a
fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma
crosta de ferrugem (TELLES, 2009, p.143).

Raquel não desconfiava que o perigo que a cercava não era o espaço, mas o
próprio Ricardo que utiliza o cemitério abandonado (topofóbico) como um tópos
favorável para concretização de seu plano, no entanto, após a ação final de trancá-la
na parte subterrânea da capela, ela percebe que caiu em uma cilada. Segundo
Bremond (2011) a cilada é uma forma de agressão velada, “fazer cilada é agir de
modo que o agredido, em lugar de se proteger como poderia fazê-lo, coopera a sua
revelia com o agressor (não fazendo o que devia ou fazendo o que não devia) ”
(BREMOND, 2011, p.129). Como um jogo de palavras, em que a personagem “não
fez o que devia” pela perspectiva do leitor, que talvez sair correndo ou simplesmente
ir embora depois de saber que o encontro frustrado seria apenas para ver o pôr do sol
de um ponto específico do cemitério, mas simplesmente faz “o que não devia”, cede
93

ao pedido de Ricardo de permanecer no espaço sombrio, persuadida e guiada pela


curiosidade em conhecer a suposta “prima falecida” que tinha uma semelhança física
peculiar, contida na semelhança da cor dos olhos. A personagem se aprofunda cada
vez mais no cemitério e nos laços eternos da morte e, mal sabia que ao aceitar o
convite de Ricardo seria aceitar o convite para a morte, para sua inumação em vida e
teria a companhia do silêncio dos mortos e do sublime pôr do sol que simboliza a
passagem do dia para a noite; o que era luz virou trevas, tal qual o destino da
protagonista.
A descida de Raquel até o subsolo da capela simboliza o aprofundamento na
intimidade da morte. Descer até a parte subterrânea da terra simboliza de forma
metafórica sua descida ao abismo da morte, lugar do qual não tem volta. O cenário
topofílico arquitetado por Ricardo dentro do topofóbico é desconstruído, assim como
sua máscara de namorado apaixonado e que sente saudade do tempo de namoro é
removida. Embora não seja objeto desta pesquisa analisar o percurso de Ricardo se
faz necessário destacar que a relação sentimental do personagem com o espaço é
topofílica, evidenciado pela voz da personagem relatando a Raquel o seguinte: “[...] já
disse o que mais amo neste cemitério é este abandono, esta solidão” (TELLES, 2009,
p.141). Ricardo demonstra conhecer todo o espaço do cemitério, evidenciado pela
sua fala e experiência no local.
Constata-se que os quatro espaços que formam o percurso de Raquel estão
interligados; a ladeira e o cemitério são espaços abertos, externos, o cemitério é um
espaço englobante que abriga dois espaços fechados, internos, invisíveis e
englobados que são: a capelinha e o subsolo da capela. O subsolo é um pequeno
espaço inserido e encaixado na capelinha, uma continuação que se afunila e se
aprofunda de forma inclinada evidenciado pelo eixo vertical (alto-baixo) de cima em
direção abaixo, o oposto da ladeira, cenário onde a trama se inicia, em que temos um
espaço inclinado demarcado pelo eixo-baixo em direção ao alto.
O ambiente mórbido e frio característico da narrativa é obtido através das
seguintes figuras presentes no cenário: cemitério deserto, natureza morta, tempo frio,
pôr do sol, somado ao estado psíquico de Ricardo, um homem extremamente frio e
calculista, conforme o esquema proposto por Borges Filho (2007) já abordado no item
1.2, em que relata que: “define-se ambiente como a soma de cenário ou natureza
mais a impregnação de um clima psicológico” (BORGES FILHO, 2007, p.50, grifo
94

nosso). A natureza mórbida e o vento frio perceptível no espaço são agudizados pela
intenção negativa e comportamento frio de Ricardo em vias de encerrar a vida de
Raquel.
O cenário do cemitério denotando a concretude da morte funciona como uma
prolepse espacial, ou seja, uma antecipação de uma ação que conduz para a finitude
da vida. A composição interna do espaço sepulcral é instaurada pela voz do narrador
observador, intercalada com a voz e a percepção das personagens; há uma
intercalação entre espacialização franca e espacialização dissimulada através das
descrições da necrópole em ruínas captadas pelo olhar de Raquel com as descrições
do cemitério com muro arruinado, ora pela voz do narrador, ora pela voz da
personagem. A escolha do local do encontro antecipa ao leitor que existe uma
intenção velada, um plano vingativo que se sucede. O espaço em si representa uma
ameaça à vida de Raquel; como uma espécie de metáfora espacial, sua vida será
interrompida naquele espaço.
O gradiente auditivo de Raquel capta o som emitido no espaço, o grito do
pássaro (considerado uma ave agourenta, cujo canto emite um aviso de morte). O
grito do pássaro de forma premonitória antecipa que algo ruim está prestes a
acontecer. Algumas aves são classificadas como agourentas, em especial, a coruja e
o corvo, pois anunciam a morte de alguém. Vejamos dois excertos da percepção
auditiva da personagem agudizando sua premonição em relação ao espaço ominoso.

– Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu (TELLES ,


2009, p.140).
-Esfriou não? Vamos embora? (TELLES, 2009, p.140).

Logo após o grito da ave, Raquel sente frio, captado pelo gradiente sensorial
tátil. O frio que a personagem sente funciona também como uma prolepse espacial,
pois simboliza o frio da morte.
Durante o percurso feito por Raquel, do cemitério até o subsolo da capela,
Ricardo utiliza um termo que funciona como uma frase premonitória: Meu Anjo. O
tratamento que o personagem concede a sua ex-namorada, chamando-a de meu anjo
em quatro momentos da narrativa pode soar como uma comparação carinhosa, mas
assume um teor negativo carregado de malícia.
A fala de Ricardo não causa estranheza para Raquel, pois ela acredita que
Ricardo ainda sente amor por ela. O pronome (meu) dá ideia de posse, revelando sua
95

obsessão pela personagem; já que Raquel não pode ser sua namorada ou amante,
ela será seu eterno anjo através da morte.
A frase verbalizada pelo antagonista também é uma prolepse espacial, uma
antecipação da ação. Sua primeira fala acontece no espaço inicial, em frente ao
cemitério, quando Ricardo anuncia o destino da sua ex-namorada: “Cemitério
abandonado, meu anjo. Vivos e mortos desertaram todos” (TELLES, 2009, p.136,
grifo nosso). A personagem será abandonada tal qual o espaço.
O antagonista utiliza o termo pela segunda vez de dentro do cemitério para
justificar que está sem dinheiro e, devido a isso, escolheu o local do encontro, um
passeio simples, gratuito e honesto, “Estou sem dinheiro meu anjo, vê se entende [...]
Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente[...] Até romântico” (TELLES,
2009, p.137, grifo nosso). A justificativa financeira para escolha do local soa como um
imperativo; Ricardo está mais pobre, conforme sua fala: “mas fiquei mais pobre ainda.
[...]. Moro agora em pensão horrenda” (TELLES, 2009, p.136). Em seguida, enfatiza
que a escolha do lugar está relacionada também a sua discrição: “- Mas me lembrei
deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem
lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja completamente” (TELLES,
2009, p.137, grifo nosso). Ricardo emprega o termo “meu anjo” que pode conotar um
ex-namorado cuidadoso, gentil e, ainda apaixonado, que deseja apenas um último
encontro às escondidas, mas preza pelo anonimato e pelo novo relacionamento de
Raquel, por isso, escolhera como lugar para o encontro, um cemitério desabitado,
silencioso e afastado da cidade.
O terceiro momento de uso da prolepse-meu anjo acontece na entrada da
capelinha momento em que já estão ocupando um espaço estreito, obscuro. “Já
chegamos meu anjo. Aqui estão meus mortos” (TELLES, 2009, p.141, grifo nosso). A
frase meu anjo, associada à referência espacial “aqui estão meus mortos” designa o
anúncio de que breve Raquel fará parte daquele espaço, se unirá aos “mortos de
Ricardo”.
Ricardo usa o termo pela quarta vez no final da trama ao despedir-se de
Raquel, que se encontra trancada no subsolo da capelinha; após ter concluído seu
plano macabro, ele diz um “Boa Noite, Meu Anjo” confirmando seu anúncio da morte
de Raquel. Com seu ato, Ricardo também “remove sua máscara” e revela seu caráter
maquiavélico e doentio. A protagonista será silenciada em vida, tornando-se um anjo.
96

Outra prolepse espacial em que Ricardo prediz suas intenções para Raquel,
adiantando que o seu destino será o abandono naquele lugar afastado, sem nenhum
contato com os humanos, de forma irônica e ilusoriamente romântica ele diz: “[...] o
que mais amo nesse cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes
com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta” (TELLES,
2009, p.141).
No que concerne às funcionalidades do espaço sepulcral foram identificadas
quatro funções. A primeira função é caracterizar as personagens situando-as no
contexto socioeconômico e psicológico em que vivem. Essa funcionalidade representa
a caracterização do status social de Ricardo, bem como seu psicológico. O passeio
simples em um cemitério pobre denota a condição financeira de Ricardo, desprovido
de bens materiais e sem nenhuma ambição financeira, o oposto de Raquel. A escolha
do espaço sepulcral aliado ao fato de ser abandonado prediz o lado obscuro,
persuasivo e psicopata de Ricardo. O cemitério vazio e abandonado revela o vazio do
coração de Ricardo ora preenchido pelo ódio e desejo velado de vingança que sente
pela substituição e abandono da namorada. A segunda funcionalidade é que o lugar
é propício para os planos do antagonista, o cemitério, enquanto local afastado da
cidade e completamente abandonado, sem nenhuma intervenção dos vivos, é
favorável ao plano doentio e torpe de Ricardo.
A terceira funcionalidade espacial é representar os sentimentos vividos pelo
antagonista. O cemitério, enquanto cenário da narrativa, desprezado, vazio e nefasto
é análogo ao sentimento de desprezo e solidão vivido por Ricardo, ao sentir-se trocado
e abandonado por Raquel. A natureza selvagem e voraz do cenário de forma
especular reflete o lado selvagem, cruel e incontrolável de Ricardo. Essa composição
espacial ferina e indomável que espelha o antagonista é representada pelo “mato
rasteiro [que] dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos
canteiros, subira pelas sepulturas. [...] a erva daninha brotando insólita de dentro da
fenda” (TELLES, 2009, p.138-139).
E, por último, a quarta função espacial é antecipar a narrativa. O espaço
assume o papel de prolepse espacial. O cemitério denotando a concretude da morte
revela-se em um espaço premonitório evidenciando a morte.
97

No próximo capítulo faremos a análise espacial do percurso do personagem


Jervas Dudley, a fim de verificar qual o sentimento deflagrado no contato direto com
a câmara mortuária dos Hydes, cenário do conto A Tumba, de Lovecraft.
98

CAPÍTULO 4 - TOPOANÁLISE: A tumba

O objetivo deste quarto capítulo é realizar a topoanálise do conto A Tumba, de


Howard Phillips Lovecraft. Este capítulo está dividido em três seções: a seção 4.1 -
Howard Phillips Lovecraft: vida e obra-discutiremos sobre a biografia do escritor
destacando suas obras, seu estilo de composição, sua linguagem e principais temas
extraídos de suas narrativas curtas. No item 4.2 - A Tumba: sinopse-faremos um
resumo do conto destacando o cenário principal da narrativa (o interior da câmara
mortuária dos Hydes) e os quatro espaços que formam o percurso espacial trilhado
pela protagonista e objeto de nossa topoanálise. No item 4.3 - Topoanálise: análise
do percurso de Jervas Dudley-neste item faremos a análise do percurso espacial do
protagonista Jervas Dudley e, para operacionalização topoanalítica utilizaremos os
elementos espaciais literários tais como: as coordenadas geográficas e os gradientes
sensoriais mais aguçados pelo personagem para a apreensão espacial. Falaremos
ainda sobre as funcionalidades espaciais.

4.1 H.P Lovecraft: Vida e Obra do Autor

O escritor estadunidense, Howard Phillips Lovecraft nascido na cidade de


Providence, Estado de Rhode Island, Estados Unidos, em 20 de agosto de 1890 e
falecido em 15 de março de 1937, durante sua vida, não gozou de fama e nem
prestígio pelas suas narrativas; seu reconhecimento só ocorreu após sua morte.
Lovecraft escreveu contos, novelas, ensaios, cartas, poesias e críticas literárias
destacando-se mais no gênero conto. Vale destacar que Lovecraft se comunicava por
cartas15 com seus amigos e influentes e, tudo que se sabe sobre as narrativas, as
temáticas, o estilo de composição desse autor se deve as suas inúmeras epístolas
trocadas com seus amigos de correspondência e escritores do gênero horror. O estilo
narrativo de Lovecraft é marcado por uma linguagem rebuscada de um “fino
acabamento dos enunciados narrativos de um Henry James [...] o barroco de uma
linguagem cujo elemento mais forte é o adjetivo” (MIGUEL, 2006, p.13). “Lovecraft

15“Acorrespondência é, de fato, impressionante: cerca de cem mil cartas, algumas de trinta ou quarent a
páginas. Quanto aos poemas, até hoje não existe um levantamento completo” (HOUELLEBECQ, 2020,
p.31).
99

criou um estilo próprio tanto do ponto de vista de conteúdo quanto de forma, o qual é
associado ao seu nome, e este estilo influenciou diversas obras” (DUTRA, 2015, p.93).
Os contos de Lovecraft podem ser classificados em horror tradicional e horror
moderno. No que tange ao horror tradicional, seus personagens vivenciam
acontecimentos de ordem sobrenatural como em A Tumba e, além disso, eles
transitam em espaços ermos, mal iluminados, mofentos e fantasmagóricos. No que
diz respeito a seus contos classificados como horror moderno, Lovecraft torna-se o
precursor nas narrativas de horror ficcional ou horror moderno, em que os típicos
personagens do horror gótico como vampiros, bruxas, espectros, demônios são
substituídos por criaturas grotescas, abomináveis e poderosas; faz alusão a rituais
secretos semelhante ao Sabá das bruxas, descobertas de lugares ou objetos que
desencadeiam estranhos acontecimentos, além do medo diante do diabólico, do
monstruoso e do desconhecido, emoções deflagradas pelos personagens de suas
narrativas.
Seus contos são “repletos de criaturas bizarras, ancestrais e assustadoras,
compostas por descrições e abordagens científicas [...] por uma filosofia materialista
que trata a humanidade como um inconveniente irrelevante” (ANATER, 2021, p.09).
O Chamado de Cthtulhu, considerado sua Magnum Opus é um exemplo de horror de
ficção científica; seus personagens monstruosos e suas temáticas servirão de
inspiração para diversos escritores e artistas no âmbito cinematográfico. Vejamos um
trecho da descrição do monstro inominável do conto O Chamado de Cthulhu.

Parecia tratar-se de uma espécie de monstro, ou símbolo representando um


monstro, de tal forma que apenas uma imaginação doentia seria capaz de
conceber. Se eu disser que mina imaginação, [...] produziu simultaneament e
imagens de polvo, dragão e caricatura humana, não estarei sendo infiel ao
espírito da coisa. Uma cabeça mole, com tentáculos, encimava um corpo
grotesco e escamoso com asas rudimentares; mas era o contorno geral do
conjunto que tornava a criatura, mais chocante e assustadora
(HOUELLEBECQ, 2020, p.103).

O monstro Cthulhu é uma espécie de polvo gigante que habita a “grande cidade
de pedra de R’lyeh, com seus monólitos e sepulcros” (HOUELLEBECQ, 2020, p.117).
O monstro é dotado de habilidades e poderes; está adormecido em uma cidade nas
profundezas do oceano e aguarda por um ritual de reavivamento que consiste em
culto secreto realizado concomitante o alinhamento das estrelas. Ele envia
mensagens telepáticas para os humanos. Sobre isso Joshi relata que: “Lovecraft pode
100

ter tido, de fato, uma crença exagerada no poder do pensamento para afetar o
comportamento humano16” (JOSHI,2016, posição 328 de 360 kindle, tradução nossa)
As criaturas de Lovecraft se comunicam com os seres humanos através da
telepatia e dos sonhos, como por exemplo, no conto Dagon, o homem-peixe é o
personagem monstruoso, que se comunica e atormenta o protagonista durante o sono
e, o conduz a um estado de medo e horror desejando o suicídio como solução para
seu sofrimento. “Sabiam de tudo o que estava ocorrendo no universo, mas Seu modo
de comunicação era a transmissão de pensamento. Agora mesmo eles estavam
falando em Suas sepulturas” (HOUELLEBECQ, 2020, p.116).
No que diz respeito a seus personagens “humanos”, eles são pesquisadores,
professores de universidades, médicos, arquitetos, arqueólogos, antropólogos,
escultores, artistas e poetas; personagens ligados à pesquisa, à ciência e às artes
evidenciando o contexto histórico no qual o escritor está inserido, o século XX nos
Estados Unidos, marcado por um boom na ciência e tecnologia principalmente. Vale
destacar que, no conto O Chamado de Cthulhu, a classe de artistas e poetas é
classificada como sensível, suscetível a se comunicar e receber mensagens
telepáticas dos monstros. “Foi dos artistas e poetas que as respostas pertinentes
vieram, e sei que o pânico teria se instalado se eles tivessem conseguido comparar
suas anotações” (HOUELLEBECQ, 2020, p.106).
O estado de horror em que seus personagens são tomados ao entrar em
contato com esses monstros inomináveis ou descobrirem segredos é a característica
mais evidenciada em sua narrativa, algo que avança para a loucura e o desejo de
morrer. Eles “não ficam empolgados ao estabelecerem contato com os seres
extraterrestres, mas assustados ou enlouquecidos” (DUTRA, 2015, p.94). A morte
surge de forma misteriosa ou através do suicídio. “A morte de seus heróis não tem
nenhum sentido. Ela não traz nenhum alívio. [...] Implacavelmente, HPL destrói seus
personagens sem sugerir nada além do desmembramento de uma marionete”
(HOUELLEBECQ, 2020, p.25). “O protagonista lovecraftiano não é heróico e não
salva o mundo no final, pelo contrário, é um personagem impotente perante as forças
maiores que ele” (DUTRA, 2015, p.94).

16Lovecraft may, indeed, have had an exaggerated belief in the power of thought to affect human
behaviour (JOSHI, 2016, position 328-360 kindle).
101

Há um aspecto negativo dos contos lovecraftianos é que eles não seguem o


padrão estabelecido pelo seu precursor Poe, que é a brevidade. As narrativas “curtas”
de Lovecraft são muito longas, contos que ultrapassam quinze páginas, narrativas
densas, repletas de adjetivações espaciais em que a “ação é quase inexistente. O
autor prefere explorar os efeitos psicológicos que os eventos provocam em seus
protagonistas” (DUTRA, 2015, p.94).
Dutra (2015), destaca que: “a maior contribuição de Lovecraft ao horror foi ter
atualizado o gênero à era contemporânea. [...] Lovecraft, [...] transformou o horror
tradicional de origem sobrenatural em um horror de origem científica” (DUTRA, 2015,
p. 94). De certo modo, Lovecraft instaura sua “Marca Própria”, 17 resultante das
influências nas quais o autor estava exposto, proveniente de sua genialidade, bem
como, a exploração de assuntos que ainda não tinham sido abordados dentro do
gênero horror como o medo do desconhecido, a comunicação telepática através do
onírico, além da inserção de personagens monstruosos e oniscientes que habitam a
mesma esfera terrestre que a humanidade. Outros elementos que corroboram para
construção da marca própria estão relacionados ao período que o autor viveu e que a
obra foi escrita, representado pelo século XX, período que os Estados Unidos
vivenciavam diversos avanços tecnológicos dentre eles, os meios de comunicação e
de transporte, o que é refletido em suas narrativas de forma sutil.
Joshi (2016) relata que Lovecraft aborda temas relacionados à possessão
física, segundo o escritor: “Possessão física é um tema que encontramos nos
primeiros contos de Lovecraft: ‘A Tumba’, ‘Polaris’ e ‘Para além da Barreira do Sono’18”
(JOSHI, 2016, posição 323 kindle, tradução nossa). Outros temas abordados nos
contos de Lovecraft estão relacionados à psicologia como: a loucura, o onírico, o
suicídio. E um tema inovador e contemporâneo inserido no gênero horror relacionado
à parapsicologia: a telepatia. Além disso, o autor envolve subtemas que surgem como
pano de fundo como o ocultismo. O ocultismo está presente nos contos: O Chamado
de Cthulhu, O Festival e Horror em Red Hook. Tal ritual é semelhante ao culto das
bruxas e segue datas sazonais do ciclo agrário. O ocultismo também aparece de forma

17A marca Própria de um autor, “não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a
escolher um assunto modificar uma técnica, nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição,
com as influências específicas que agiram sobre ele com o gosto de sua época” (NITRINI, 1997, p.141).

18Physic possession is a theme we find in the earliest of Lovecraft’s tales: “The Tomb”, “Polaris”,
“Beyond the Wall of Sleep” (JOSHI, 2016, position 323 from 360, kindle).
102

mais sutil no conto A Tumba em que rituais eram realizados na mansão dos Hydes
através de “ritos estranhos e festas pagãs de anos passados” (LOVECRAFT, 2019,
p.10).
A Tumba é um dos primeiros contos de horror tradicional escrito em 1917 e
publicado em 1922 na revista Vagrant; com uma linguagem rebuscada à moda Allan
Poe. Na narrativa há um duplo que consiste em uma espécie de autobiografia ou
projeção de sua infância presente no personagem Jervas Dudley, ao relatar que
durante a infância passava maior parte do tempo lendo livros antigos remete a uma
projeção da vida do próprio Lovecraft na sua fase juvenil, que teve seu primeiro
contato com a biblioteca de seu avô repleta de clássicos literários como: Ilíada,
Odisseia, contos de horror e livros ligados à ciência e astronomia; tal fato corrobora
a projeção de sua vida e de seu amor pela leitura em seus personagens com “a
utilização de personagens e situações sistematicamente autobiográficas, como se a
cada narrativa , heróis, vilões fossem duplos” (MIGUEL, 2006, p.13).
Sobre a projeção da vida do escritor em seus personagens Hatfield, Hobbs e
Lynch (2019) no artigo “Multilayered Specter, Multifaceted Presence: A Critical Edition
of H.P. Lovecraft’s“ TheTomb”, asseveram a presentificação de Lovecraft dentro do
conto A Tumba: tal constatação é evidenciada pelas características comportamentais,
educação e solidão do escritor na sua fase juvenil que se assemelha à do protagonista
Jervas Dudley. Vejamos um trecho a seguir:

O próprio Lovecraft teve uma educação semelhante à do seu protagonista.


[...] Lovecraft teve uma infância solitária, cercado de livros da sua bibliotec a
familiar. Esta solidão reflete-se em Jervas que, embora não estando
fisicamente doente, permanece distante da sociedade, envolto em volumes
da biblioteca familiar quando não assombrava o túmulo. À medida que Jervas
Hyde começa a materializar-se, o leitor é presenteado com uma entidade
simbólica representando a presença arcaica autorrealizada do autor
(HATFIELD; HOBBS; LYNCH, 2019, p.99, tradução nossa19).

Lovecraft teve a infância e adolescência reclusa e solitária devido a problemas


de saúde, sem irmãos e amigos; sua companhia eram os livros da biblioteca de seu
avô. Seu amor pela leitura e livros é algo que sempre aparece nas suas narrativas,

19 Lovecraft himself had an upbringing similar to that of his protagonist. […] Lovecraft led a solitary
childhood, housed largely within books from his family library. This solitude is reflected in Jervas who,
although not physically ill, remains distant from society, enveloped within volumes from the family library
when not haunting the tomb. As Jervas Hyde begins to materialize, the reader is presented with a
symbolicentityrepresentingtheauthor’sself-realizedarchaicpresence (HATFIELD; HOBBS; LYNCH,
2019, p.99).
103

em A Tumba, por exemplo, o personagem passa horas no bosque lendo, o que de


certa forma evidencia essa característica de Lovecraft em seu personagem Jervas.
Hatfield, Hobbs e Lynch (2019) traçam um panorama do contexto histórico no
qual o escritor estadunidense Lovecraft está inserido que é o século XX, um período
marcado por mudanças de ordem social, políticas e principalmente tecnológicas.
Lovecraft experiencia avanços no meio de transporte como a invenção da ferrovia e,
avanços nos meios de comunicação como a invenção do telefone. “O telefone, cujo
nome significa literalmente "som à distância", parecia ainda mais fantasmagórico.
Falar com alguém que não se podia ver fisicamente, [...] alguém de outro
continente”20(HATFIELD; HOBBS; LYNCH, 2019, p. 96, tradução nossa).Os escritores
supracitados destacam que o telefone surge como algo espectral, um dispositivo que
deixava seus consumidores abismados na tentativa de entender como seria possível
ouvir a voz de alguém que não está no local, e que tal invenção assombrante ecoa
nas narrativas de horror de Lovecraft figurativizado pelo sobrenatural, a voz ou o
sussurro de alguém que não se pode ver, “o desconhecido era um tema comum aos
escritores góticos, cujos textos apresentavam [...] um objeto misterioso ou um sistema
de magia que só podia ser empunhado por um único”21(HATFIELD; HOBBS; LYNCH,
2019, p.96, tradução nossa).
Retomando o conto A Tumba, corpus desta pesquisa, a narrativa apresenta
características metaficcionais como o diálogo com o leitor evidenciado pelo narrador
em 1ª pessoa. A autorrefencialidade literária é outra característica metaficcional
empregada por Lovecraft em que a ficção se reporta para própria ficção - o
personagem relata ter encontrado no sótão de sua casa “a tradução carcomida de
Vidas de Plutarco” (LOVECRAFT, 2019, p.11). Segue um trecho da narrativa:

Lendo a vida de Perseu fiquei muito impressionado com aquela passagem


que falava da pedra grande, embaixo da qual o herói menino encontraria os
indícios apontando o seu destino no momento que fosse velho o suficient e
para levantar o seu peso enorme. A lenda teve o efeito de dispersar minha
impaciência mais aguda de entrar na câmara mortuária (LOVECRAFT, 2019,
p.11).

20 The telephone, whose name means literally “sound over distance,” seemed even more ghostly. To
talk with someone, you could not physically see, especially someone on another continent, (HATFIELD;
HOBBS; LYNCH, 2019, p.96).

21 the unknown was a common topic for Gothic writers, whose text soften featured a mysterious object
or a system of magic that could be wielded by only a single” (HATFIELD; HOBBS; LYNCH, 2019, p.96).
104

A narrativa da vida de Perseu funciona como um espelho da vida de Jervas ,


ainda em sua fase juvenil, fascinado e obcecado em abrir a porta da tumba que é uma
grande pedra semelhante à mencionada na vida de Perseu. Além da duplicação
especular, a narrativa dentro da narrativa, o personagem espelhando o outro
personagem, temos também a duplicação da leitura, o leitor (real) lendo o leitor
(personagem) que lê o livro Vidas de Plutarco, o que de certa forma cria esse efeito
abismal. “A circunstância de nos encontrarmos lendo uma pessoa que também está
lendo é perturbadora: [...] parece que nosso queixo repousa no ombro para lermos o
que alguém está lendo” (BERNARDO, 2010, p.31). Constata-se que, livros, leitor e
leitura são artifícios metaliterários empregados por Lovecraft. Outra evidência
metaficcional é que o personagem tem consciência de que faz parte de uma ficção,
rompendo com a ilusão da realidade narrativa do leitor ao afirmar o seguinte: “[...]vou
deixar um julgamento final para meus leitores quando tiverem tomado conhecimento
de tudo” (LOVECRAFT, 2019, p.10, grifo nosso).
No que concerne à temática do conto A Tumba. Lovecraft aborda temas ligados
à psicanálise como a monomania e a loucura, faz alusão ao ocultismo evidenciado
através de rituais e festas pagãs realizadas na mansão dos Hydes, o contato com o
sobrenatural com o mundo dos mortos e a consciência do espaço real associado a
acontecimentos sobrenaturais, além das transformações do personagem diante do
elemento sobrenatural.

4.2 A TUMBA: sinopse

Entramos na narrativa pela voz do narrador-personagem, Jervas Dudley está


prestes a revelar o motivo de seu confinamento em um manicômio. A narrativa é
contada pelo protagonista Jervas. Aos 21 anos ele narra em forma de flashback,
revivendo mentalmente os motivos, suas ações e obsessão pela tumba da extinta
família Hydes, desde sua fase infantil com dez anos de idade até sua fase adulta. Ele
revela, também, que sempre foi uma criança muito solitária, e sugere ter tido
experiências sobrenaturais durante suas leituras e andanças pelo bosque; afirma,
ainda, que viu e ouviu muitas coisas no bosque as quais prefere não mencionar e
sugere seu contato com espectros, com seres que não estão mais no plano físico
afirmando que: “Já disse que vivi à parte do mundo visível, mas não disse que vivi
105

sozinho. [...] pois, na falta da companhia dos vivos, ele[...] busca o apoio[...] coisas
que não são ou não estão mais vivas” (LOVECRAFT, 2019, p.08).
A narrativa é constituída de quatro cenários interligados, e dentre eles estão: a
casa de Jervas, o bosque, a tumba (o espaço externo e interno) e a mansão fantasma
dos Hydes; os dois últimos espaços são os mais importantes, pois provocam intensa
curiosidade mesclada com obsessão no protagonista.
Jervas relata que desde quando tinha dez anos de idade passava a maior parte
do tempo lendo livros antigos e costumava caminhar pelos bosques que havia perto
da casa de seus pais. Em uma de suas andanças, ele encontra o portal da tumba dos
Hydes, um lugar que lhe causa estranhamento, curiosidade e fascínio. A partir dessa
descoberta, a narrativa gira em torno dessa câmara mortuária dos Hydes, encontrada
de forma repentina, localizada no bosque. Os Hydes eram uma família nobre e muito
conhecida na cidade, e “foram vitimados pelas chamas que começaram com a queda
de um raio” (LOVECRAFT, 2019, p.08). Todos os membros morreram e estão
enterrados em caixões no interior da tumba com exceção, um membro da família, que
teve seu corpo completamente queimado e as suas cinzas foram colocadas em uma
urna e levada para a parte interna do túmulo.
Após esse primeiro contato direto com a tumba, Jervas fica cada vez mais
curioso e obcecado em adentrar a câmara mortuária; ele examina a fenda da porta e
tenta entrar pelo estreito espaço forçando seu corpo magro de garoto, mas sem
sucesso. Ele relata que passa as tardes sentado diante da porta da tumba, buscando
uma forma de entrar e conhecer a estrutura interna e o que havia lá embaixo. Buscava
saber as histórias da família Hydes e, após descobrir seus laços de parentesco
longínquos com os Hydes, seu desejo de conhecer o interior do túmulo se intensifica,
como uma sensação de pertencimento à família.
Já na fase adulta, Jervas relata que uma noite após adormecer em frente ao
portal, ele teve uma revelação sobrenatural de onde estaria a chave que abre a porta
da tumba e, ao mesmo tempo revela ter escutado vozes e que uma luz havia sido
apagada assim que ele despertara; além disso, o personagem constata que após essa
experiência seu vocabulário e seu comportamento foram modificados. Após conhecer
o interior do túmulo, ele frequenta cada vez mais o lugar; sua mudança
comportamental foi percebida pelos seus pais que logo trataram de vigiar seus passos
106

e sabiam de sua frequente visita à tumba dos Hydes e as noites que dormia lá; passara
agora a ter mais cautela para despistar um possível espião.
Em uma de suas visitas noturnas a tumba, Jervas presenciou um
acontecimento sobrenatural que foi o surgimento da mansão fantasma no espaço da
tumba dos Hydes, a mansão estava toda iluminada e convidativa; havia uma festa
com vários convidados fantasmagóricos que bebiam, conversavam e sorriam dentre
eles, Jervas era o mais animado e depravado, mas a festa é interrompida com um
estrondo de um raio que rachou o telhado e as chamas tomaram conta da casa, todos
os convidados fugiram, mas Jervas Dudley permaneceu sentado com um medo das
chamas, e experiencia um segundo horror sobrenatural, ele se vê queimando vivo e
tem as cinzas espalhadas “pelos quatro ventos talvez eu nunca fosse sepultado na
tumba dos Hydes! Meu caixão não estava preparado para mim? ” (LOVECRAFT,
2019, p.18, grifo do autor).
O narrador declara que quando o fantasma da casa queimando, desapareceu,
ele se viu gritando e lutando nos braços de dois homens; um deles era o espião que
costumava segui-lo até a tumba, e enquanto ele se debatia seu pai presenciava toda
aquela cena demonstrando tristeza. O personagem pedia para ser colocado dentro da
tumba. “No dia seguinte me trouxeram para este quarto com as janelas gradeadas,
mas fui mantido informado de algumas coisas por intermédio de um criado idoso e
simplório” (LOVECRAFT, 2019, p.19). Seu pai o visita constantemente e contesta toda
a experiência de Jervas no interior da tumba, afirmando que em nenhum momento ele
teria entrado na câmara dos Hydes, cuja porta está acorrentada. Seu pai declara,
ainda, que todos do vilarejo sabiam de suas visitas até a tumba e, muitas vezes, foi
“observado dormindo no caramanchão do lado de fora da fachada sinistra com os
olhos semiabertos, fixos sobre a fenda que leva ao seu interior” (LOVECRAFT, 2019,
p.19).
Sobre seu vocabulário rebuscado, tal mudança é justificada pelos livros que
costumava ler, pois passou “uma vida inteira folheando toda sorte de livros em meio
aos volumes antigos da biblioteca da família” (LOVECRAFT, 2019, p.19). O
personagem não tem como provar a sua experiência na tumba, pois a chave que
carregava no pescoço havia sido perdida naquela noite durante a confusão, no
entanto, Hiram, o seu criado, vai até a tumba, rompe o cadeado deixando a porta
entreaberta; ao descer com uma lanterna até a parte profunda escura da tumba, ele
107

encontra um caixão velho e vazio com a placa que trazia o nome Jervas. Vejamos um
trecho a seguir:

Leal ao passado, seguiu tendo fé em mim e fez aquilo que me obriga a tornar
público pelo menos parte da minha história. Uma semana atrás, ele arrombou
a tranca que acorrenta a porta da tumba, deixando -a perpetuamente entre
aberta, e desceu como a lanterna para as profundezas sombrias. Sobre uma
lousa [...] ele encontrou um cachão velho e vazio cuja placa manchada traz
uma única palavra: Jervas. Naquele caixão e naquela câmara mortuária eles
me prometeram que serei enterrado (LOVECRAFT, 2019, p.19).

Ao final da narrativa, não podemos precisar se o personagem, de fato, teve


uma experiência sobrenatural no espaço mortuário dos Hydes ou se tudo não passou
de uma sandice ou devaneio. Se o seu criado Hiram, realmente, encontrou um caixão
vazio e a placa com o nome Jervas, ou se a placa com o nome do personagem foi
inserida pelo criado apenas para atender ao seu desejo de pertence e ser enterrado
no mesmo local dos Hydes, e para confirmar a sua história perante os seus pais.
Dessa forma, a narrativa deixa uma incógnita se Jervas realmente teve uma
modificação sobrenatural, se foi possuído por um membro dos Hydes, ou se tudo não
passou de uma obsessão pelos Hydes e pelo túmulo da extinta família evidenciado
pelo seu desejo incontrolável de ser enterrado na mesma tumba daquela nobre família
e que, na placa, estivesse escrito Jervas Hydes (J.H).

4.3 A Tumba Topoanálise

Para a topoanálise do conto A Tumba, veremos o percurso do personagem


Jervas Dudley, em que focaremos os quatros espaços percorridos pelo protagonista,
dentre eles: a casa de Jervas, o bosque, a tumba (o espaço externo e interno) e a
mansão dos Hydes. Utilizaremos os eixos espaciais: o eixo horizontal (frente) o eixo
vertical (baixo), a interioridade (externo-interno) e a amplitude do espaço (amplo x
restrito). Analisaremos quais os gradientes sensoriais mais explorados pelo
protagonista e as funcionalidades que o espaço exerce na narrativa.

A Casa de Jervas (topofílico)

Entramos na narrativa pela casa do personagem, mencionada no início do


conto como um lugar próximo ao bosque e como um lugar para onde Jervas sempre
108

retorna após passar as tardes no bosque sentado em frente à tumba. Embora a casa
dos pais de Jervas não seja tão mencionada no conto pelo personagem, fazendo
menção apenas como o lugar de moradia, a casa é um lugar topofílico, representa o
lugar de aconchego, paz e segurança para o personagem que mesmo passando muito
tempo longe de casa, sempre volta para a casa. Vejamos um fragmento inicial.
“Próximo da minha casa há um vale arborizado peculiar em cujos recantos na
penumbra passei a maior parte do tempo, lendo, pensando, sonhando” (LOVECRAFT,
2019, p.08). A rotina de Jervas desde a infância sempre foi sair de casa e caminhar
pelo bosque sempre retornando ao seu lar ao final da tarde, mas essa rotina será
modificada ao longo da narrativa. O personagem encontrará um lugar escondido no
bosque que lhe despertará a curiosidade e um sentimento semelhante ao da casa, um
sentimento de afeição e de refúgio. “A casa é um símbolo feminino com sentido de
refúgio, de mãe, de proteção de seio maternal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990,
p.197).

O Bosque-tópos pseudo topofílico

Jervas desde a infância passeia pelo bosque situado próximo de sua casa, o
personagem está familiarizado com esse vale arborizado, com “os seus barrancos
cobertos de musgo [...]seus carvalhos grotescamente nodosos” (LOVECRAFT, 2019,
p.08). O bosque é um lugar aberto, amplo e englobante; é um tópos misterioso,
silencioso e dissimulado que esconde um lugar ominoso e topofóbico- o túmulo da
extinta família Hydes. O bosque é espaço dissimulado que flutua entre topofílico e
topofóbico. Topofílico por ser um tópos que desperta afeição do personagem e
topofóbico por esconder um lugar genuinamente horrendus, um tópos da morte, ele
abriga uma “tumba solitária na mata cerrada escura da encosta” (LOVECRAFT, 2019,
p.08).
O bosque é um espaço marcado pela horizontalidade, Jervas se movimenta
por esse tópos de forma retilínea e prospectiva, adentrando cada vez mais nesse
espaço arborizado, ele capta esse cenário através de sua habilidade motora e do seu
gradiente visual que revelam a intensidade do espaço verde evidenciando pelas
árvores, os musgos e os carvalhos que compõem esse cenário natural singularizado
por uma natureza silvestre. O bosque é o lugar no qual Jervas passou maior parte de
109

sua infância e de seu tempo, ele conhece o bosque de forma direta e íntima, portanto,
o bosque é um lugar familiar, assim como, todos os elementos inseridos nesse
cenário, com exceção a tumba que por estar meio escondida na encosta, a princípio
revela-se em um tópos estranho (o portal do túmulo dos Hydes), mas que se tornará
familiar para o personagem através do contato direto com esse tópos tétrico.
A espacialização dissimulada é construída pelo narrador personagem que
descreve o espaço à medida que narra os fatos, avançando para as ações espaciais.
Jervas descreve o bosque como um vale repleto de árvores com uma vegetação
rasteira e selvagem, um lugar no qual ficava nos cantos sombreados. Conforme trecho
a seguir:

[...] vale arborizado peculiar em cujos recantos na penumbra passei a maior


parte do tempo lendo, pensando e sonhando. Sobre seus barrancos
cobertos de musgo, meus primeiros passos da infância foram dados e, em
torno de seus carvalhos grotescamente nodosos minhas primeiras
fantasias de meninice foram criadas (LOVECRAFT, 2019, p.08).

Essa mescla de imagens harmoniosas representada pelas figuras vale


arborizado, passos da infância, fantasias de meninice, somada às imagens
desarmoniosas como recantos na penumbra, barrancos cobertos de musgos,
carvalhos grotescamente nodosos, criam imagens dessa espacialidade selvagem e
ominosa que evidenciam o topofóbico mesclado no topofílico.
O que é mais evidenciado no espaço do bosque é a descoberta de um lugar
englobado, visível e invisível, o portal da tumba dos Hydes, que ele encontrou por
acaso. O personagem relata que encontrou o portal em uma tarde, no “auge do verão”.
Vejamos um trecho a seguir:

Nunca vou me esquecer a tarde em que encontrei ao acaso pela primeira vez
a casa da morte meio escondida. Era o auge do verão, quando a alquimia
da natureza transforma a paisagem silvestre numa massa de verde intenso
e, quase homogêneo, quando os sentidos são quase inebriados com as
ondas repentinas de orvalho das folhagens e os cheiros sutilmente
indefiníveis da terra e da vegetação (LOVECRAFT, 2019, p.09, grifo nosso).

A estação verão remete ao calor da vida e destoa do espaço encontrado- a


casa da morte, um lugar frio e sem vida. O elemento temporal, associado ao elemento
espacial, ambos criam imagens antitéticas- o calor da vida versus o frio da morte, ou
mais especificamente vida e morte. O espaço é apreendido pelos gradientes visuais
e olfativos de Jervas, o verde que toma conta de todo o cenário misturado ao cheiro
110

de orvalho das folhagens e o cheiro de terra deixa o personagem maravilhado com o


lugar recém-encontrado.

O portal da Tumba - tópos de aversão (topofóbico) transmutado em afeição


(topofílico)

Depois de encontrar o túmulo dos Hydes, a parte externa e visível que é o portal
da tumba, Jervas fica fascinado como se tivesse encontrado um tesouro perdido ou
abandonado. Ele relata suas primeiras impressões sobre o portal da tumba dos
Hydes:

Quando encontrei repentinamente a entrada da câmara mortuária [...]. Os


blocos escuros de granito, a porta tão curiosamente entreaberta e os entalhes
fúnebres sobre a abóbada[...] não despertavam em mim associações de um
caráter lúgubre ou terrível. De túmulos e tumbas eu sabia e imaginava
muito, mas por conta de minha índole singular fora mantido distante de
qualquer contato pessoal com adros e cemitérios (LOVECRAFT, 2019, p.09,
grifo nosso).

Constata-se que Jervas tem familiarização com espaços sepulcrais, o que


explica seu sentimento de afeição pelo lugar, sua curiosidade e a total inexistência de
sentimento de medo e aversão, afirmando o seguinte: “A estranha casa de pedra em
meio à mata no declive era para mim apenas uma fonte de curiosidade e especulação”
(LOVECRAFT, 2019, p.09). O narrador personagem descreve o aspecto físico da
tumba captado pelo seu gradiente visual da seguinte forma:

A câmara mortuária a que me refiro é feita de granito clássico, gasto e


descolorado pelas garoas e umidade de gerações. Escavada contra a
encosta, a estrutura é visível apenas na entrada. A porta, uma laje de pedra
pesada e intimidadora é presa por dobradiças enferrujadas e encontra-s e
trancada entreaberta de um jeito estranhamente sinistro, com correntes e
cadeados pesados de ferro, seguindo um padrão horripilante de meio século
atrás (LOVECRAFT, 2019, p.08).

Os termos, granito gasto e descolorado, laje de pedra pesada e intimidadora,


dobradiças enferrujadas, estranhamente sinistro, cadeados pesados, padrão
horripilante, blocos escuros, entalhes fúnebres, estranha casa de pedra, as
adjetivações corroboram na feitura desse espaço grotesco e ameaçador que se forma.
O narrador-personagem descreve a parte externa da tumba, apenas até onde o seu
gradiente visual consegue alcançar, a estrutura da câmara mortuária revestida de
granito descolorido pela ação do tempo, associado à umidade do espaço, a porta de
111

pedra trancada por cadeados e correntes de ferro, entreaberta com uma fenda, mas
que não possibilita sua entrada. O personagem percebe o lugar ominoso que lhe cerca
com seu aspecto horrífico, abandonado e envelhecido pela ação do tempo de forma
real. Vejamos um trecho em que o personagem tenta ver o que existe no interior da
câmara mortuária:

Uma vez enfiei uma vela para dentro da entrada quase fechada, mas não
consegui ver nada a não ser um lance de degraus de pedra esmaecida
que levavam para baixo. O cheiro do lugar repugnou-me, mas, apesar
disso, enfeitiçou-me (LOVECRAFT, 2019, p.10, grifo nosso).

Os polos visuais e olfativos são evidenciados na tentativa de conhecer o interior


da tumba. Através de seu gradiente visual, Jervas consegue apenas enxergar a
escada de pedra com o uso de uma vela, no entanto, o odor repugnante de mofo
captado pelo seu gradiente olfativo é mais forte. O odor de mofo misturado com a
umidade que sobe das profundezas da tumba até a fenda da porta deflagra duas
sensações em Jervas repugnância e feitiço. O odor do mofo é transmutado em um
perfume que enfeitiça Jervas. O espaço da morte percebido pelo personagem com
toda sua composição lúgubre não lhe desperta nenhum sentimento de pavor em
relação a sua representatividade e simbolismo por ser o espaço dos mortos, mas lhe
causa curiosidade e fascínio.
Jervas visita a tumba, frequentemente, guiado pelo desejo de conhecer o
interior da câmara mortuária; suas visitas tornam-se cada vez mais intensas chegando
a passar as tardes em frente ao portal. O personagem relata que quando encontrara
a tumba, estava com dez anos e demonstrava não ter medo do sepulcrário. Para o
personagem, a relação vida e morte não tem distinção e tal concepção é explicada
pelo seu contato sugerido com os vivos e os mortos, suas ideias “originais sobre a
vida e morte fizeram com que associassem corpo morto com o corpo vivo respirando”
(LOVECRAFT, 2019, p.10). A posição horizontal em que a personagem se coloca,
deitado em frente à porta da tumba, assemelha-se à posição de um cadáver. Segundo
Tuan (1983) o ato de dormir conota o próprio estado de estar morto evidenciado pela
horizontalidade. Tal ato resvala no desejo de Jervas de pertencer àquela nobre e
falecida família, ocupar o seu lugar de direito e dormir o sono eternum no caixão que
ele acredita ser seu. Frequenta o portal da tumba como um chamado dos mortos e
passa tardes deitado em frente à tumba. “Esse caramanchão era meu templo, a porta
112

trancada, meu santuário e aqui eu ficava deitado sobre o chão musgoso pensando
coisas esquisitas e sonhando sonhos estranhos” (LOVECRAFT, 2019, p.12).
O lugar é transmutado em um lugar de tranquilidade para o personagem, sua
relação com o portal da tumba é de afeição (topofilia); associando- o com um templo,
um local sagrado que evoca paz.
Jervas relata que uma revelação lhe foi feita em uma noite que adormeceu em
frente à tumba; relata ter ouvido uma conversação, vozes com uma retórica precisa
de cinquenta anos atrás. A princípio o que parecia sonho ele comprova que foi real.
Vejamos um trecho:

A noite da primeira revelação foi uma noite mormacenta. Eu devo ter dormido
de cansaço, pois foi com um sentimento claro de despertar que ouvi as vozes .
Desses tons de voz e sotaques hesito em comentar e da sua essência não
vou falar, mas posso dizer que eles apresentavam algumas diferenç as
incomuns de vocabulário, pronúncia e modo de elocução. [...]. Naquele
instante, na verdade, minha atenção fora distraída dessa questão por outro
fenômeno, um fenômeno tão fugaz que mal pude jurar sobre sua realidade .
Eu mal pude acreditar quando acordei e uma luz foi apagada com pressa
dentro da sepultura abaixo. Não acredito que estava aterrorizado, ou tomado
pelo pânico (LOVECRAFT, 2019, p.12-13).

Ele destaca que ficara aterrorizado e em pânico com a constatação do


acontecimento sobrenatural, mas acima de tudo percebeu que a partir daquela noite
ele foi “completa e permanentemente mudado” (LOVECRAFT, 2019, p.13). Jervas
Dudley sofre uma transformação sobrenatural evidenciada pelo seu novo
comportamento boêmio e comunicativo denotando uma experiência de vida e como
se pertencesse a outra geração passada. Após essa experiência, Jervas volta para
casa e encontra no sótão a chave que abriria a porta da tumba. E finalmente
conheceria o que havia lá embaixo.

O Interior da tumba (profundezas) - espaço topofóbico transmutado em


topofílico

De posse da chave, ele vai até o portal da tumba, abre a porta e desce até as
profundezas do túmulo. Sua primeira experiência e emoção deflagrada por adentrar
na tumba é revelado pelo personagem narrador. Vejamos a seguir as primeiras
impressões espaciais do personagem captadas pelos seus gradientes sensoriais:
113

Foi na luz suave do fim da tarde que entrei pela primeira vez na câmara
mortuária da colina abandonada. Um feitiço tomara conta de mim, e meu
coração pulava de alegria que mal consigo descrever. Quando fechei a port a
e desci os degraus que gotejavam de umidade sob a luz da minha única vela,
eu parecia conhecer o caminho, e apesar da vela ter crepitado com a
atmosfera infecta e asfixiante do lugar, senti-me particularmente a vont ade
no ar mofado de ossuário. Olhando a minha volta observei muitos caixões
com lousa de mármore, ou os restos de caixões (LOVECRAFT, 2019, p. 13).

A tumba é captada pelos gradientes visuais, olfativo e táteis do protagonista; o


interior da câmara mortuária dos Hydes é descrito como um lugar predominantemente
topófobico, mas pela percepção do protagonista torna-se topofílico. O sentimento de
alegria de Jervas ao conhecer o interior do túmulo se assemelha ao sentimento de
entrar em um lugar querido e familiarizado. Jervas Dudley demonstra extremo prazer
e afeto pelo spatium mortem após descer as escadas que conduziam às profundezas
da câmara, embora o personagem tenha consciência e capte através de seus
gradientes visuais e olfativos, o aspecto tenebroso do lugar representado pelo mofo,
umidade, escuridão e atmosfera infecta, tais aspectos negativos do lugar não lhe
despertam nenhuma repulsa, conforme sua fala: “senti-me particularmente à vontade
no ar mofado e de ossuário” (LOVECRAFT, 2019, p.13).
Ainda sobre as impressões espaciais do protagonista, podemos perceber que os
termos luz suaves e fim da tarde ilusoriamente criam um tópos tranquilo, no entanto, os
dois termos são elementos temporais que remetem à finitude do dia, metaforizando o lugar-
o túmulo dos Hydes que evidencia o fim da vida; esses elementos temporais compõem o
cenário e agudizam o entorno do portal e o espaço interno da câmara.
O espaço interno e subterrâneo da tumba é marcado pela interioridade e a
verticalidade. No subsolo ele se depara com vários caixões e, entre eles, um vazio,
preservado pelo tempo lhe chama atenção por ter uma placa com um nome que lhe
provoca um sorriso de alegria. Não é mencionado pelo narrador qual seria o nome lido
no caixão que lhe causou euforia, mas sugerimos que seja Jervas Hyde, um dos
membros da família que morreu queimado pelo fogo e não pôde ser enterrado, e teve
suas cinzas depositadas em uma urna. Vejamos um trecho da reação de Jervas ao
encontrar o caixão:

Num nicho proeminente havia um caixão razoavelmente bem preservado e


desocupado, ornamentado com um único nome que me provocou um
sorriso e um arrepio. Então um impulso bizarro me fez subir sobre a
lousa larga, apagar a vela e me deitar dentro do espaço vazio
(LOVECRAFT, 2019, p. 13).
114

Jervas Dudley, como se estivesse tomado pelo espírito de Jervas Hyde, apaga
a vela e se deita no caixão; para o personagem tal ato assemelha-se ao ato de apagar
as luzes e deitar-se na cama, não há distinção, não há o que temer o sentimento é
topofílico, o caixão é transmutado em lugar especial reservado que ele tem certeza de
que é só seu.
O “túmulo é o lugar de metamorfose do corpo em espírito[...], mas é também
o abismo onde o ser é devorado pelas trevas passageiras e fatais”
(CHEVALIER,1990, p.915, grifo nosso). A simbologia do túmulo evidencia o fim da
matéria em um processo de transformação horrenda através da decomposição
acelerada por bactérias em que o cadáver é transmutado em esqueleto, após toda
massa corpórea ser consumida, restará apenas uma estrutura esquelética pavorosa
que iguala a todos. O túmulo é o lugar destinado aos mortos, constitui um tópos
nefasto e sem retorno, no entanto, Jervas sente-se enfeitiçado em relação ao lugar,
o sentimento de excitação mesclado com alegria de Jervas em adentrar a câmara
mortuária dos Hydes, como se estivesse entrando em sua própria casa, contrasta
com a composição insólita representada pela escuridão da tumba, além da umidade
misturada com o odor do mofo, o ossuário e os caixões dispostos em cima de uma
mesa de mármore; todos esses elementos internos disfóricos instaurados no cenário
predominantemente topofóbico agudizam o espaço perturbador da tumba, mas essa
espacialidade ominosa não irrompe nenhum sentimento de medo ou aversão em
Jervas em relação ao tópos da morte. O mobiliário da tumba captado pelos gradientes
sensoriais do personagem não lhe causa estranheza.
Jervas revela o avanço no tempo, sua experiência com o espaço dos mortos
em um período de onze anos, desde quando era garoto com dez anos de idade,
quando encontrou a tumba escondida no bosque e já fase na adulta, com vinte um
ano, continua sua rotina, dormindo na tumba e voltando para casa ao amanhecer.
Vejamos um trecho a seguir:

Na luz cinzenta do amanhecer sai trôpego da câmara mortuária e tranquei a


corrente da porta atrás de mim. Eu não era mais jovem, apesar de somente
21 invernos terem gelado o esqueleto de meu corpo. Os aldeões
madrugadores que observavam meu avanço de volta para casa me olhavam
com estranheza e enchiam-se de espanto com os sinais de folia vulgar que
viam que alguém cuja vida era conhecida por ser sóbria e solitária. Só aparec i
diante dos meus pais após um longo e reparador sono (LOVECRAFT, 2019,
p.13-14).
115

Os termos luz cinzenta, amanhecer, trôpego, câmara mortuária, corrente da


porta, 21 invernos, gelado o esqueleto de meu corpo, aldeões madrugadores,
estranheza, espanto, folia vulgar, sóbria, solitária e longo sono, tais verbetes são
verdadeiros “grotescos linguísticos” (KAYSER,1986, p.130). São figuras imagéticas
que se unem na caracterização do cenário mórbido, do mobiliário horrendo, bem
como, evidenciam o comportamento bizarro de Jervas que deflagra o estranhamento
e o espanto dos aldeões que presenciavam sua saída da tumba. Depois de ter sido
visto por alguns moradores, Jervas não tem mais receio de ser visto entrando ou
saindo da câmara dos Hydes. Ele afirma o seguinte:

Daí em diante passei a visitar a tumba obsessivamente, vendo, ouvindo e


fazendo coisas que não devo nunca me lembrar. Minha fala, sempre
suscetível a influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à
mudança e o arcaísmo de dicção repentinamente adquirido foi logo
observado. Mais tarde uma coragem e irresponsabilidade estranhas
apareceram em meu comportamento, até eu passar a possuir
inconscientemente a postura de um homem do mundo apesar de uma vida
inteira de isolamento (LOVECRAFT, 2019, p.13-14).

Essa transformação sofrida pelo protagonista é percebida pelas pessoas de


seu entorno e pelo próprio Jervas, que tinha uma vida mais reclusa e aparentemente
normal. Com uma vida boêmia, comunicativo e com um “cinismo pagão de um homem
de Rochester” (LOVECRAFT, 2019, p.14). Ele relata ter declamado no café “uma
canção efusiva de festança com tom de voz [...] afetado pela bebida” (LOVECRAFT,
2019, p.14). Outra mudança de comportamento percebido pelo personagem é o
“medo que sentia do fogo e das tempestades com raios e trovões. [...] sentira um terror
indescritível deles e me retirava para os recantos mais profundos da casa sempre que
o céu ameaçava um espetáculo elétrico” (LOVECRAFT, 2019, p.15-16). O
personagem revela que faz, vê, fala e ouve coisas das quais não se lembra, tudo sob
influência do lugar ocupado. A linguagem com aspecto mais erudito e arcaico,
associado a uma conduta leviana, são dois elementos mais perceptíveis na mudança
do personagem.
Jervas frequenta a tumba cada vez mais, passando as noites no local e
retornando para casa pela manhã, mas sempre cauteloso para que seus pais não
descobrissem sobre suas visitas nada convencionais ao túmulo dos Hydes. Vejamos
um trecho do temor do personagem.
116

Uma manhã, quando saía da tumba úmida e prendia a corrente do portal [...]
observei na mata contígua o rosto temível de um vigia. Certamente o fim
estava próximo, pois meu caramanchão fora descoberto e o objetivo das
minhas incursões noturnas, revelado. [...]. Será que minhas visitas além da
porta acorrentada estariam prestes a ser proclamadas ao mundo? O homem
não me abordou, então voltei às pressas num esforço de ouvir o que ele
poderia relatar para meu pai aflito.[...] Que milagre então havia tapeado o
vigia? Eu estava convencido que uma intervenção sobrenatural me protegia.
Encorajado por esse incidente [...] passei a ir abertamente à câmara
mortuária, confiante que ninguém testemunharia a minha entrada
(LOVECRAFT, 2019, p.16).

Os termos tumba úmida, corrente do portal, mata, rosto terrível, fim, incursões
noturnas, milagre, intervenção sobrenatural, aflito e câmara mortuária - essas figuras
corroboram na construção do espaço sinistro e topofóbico percebido como topofílico.
O personagem teme que seu pai descubra seu novo hábito, pois um vigia ordenado
por seu pai lhe segue e sabe de toda sua rotina. Jervas acredita que seu pai não
desconfia de nada, e que conseguiu enganar o seu seguidor. Ele acredita que como
não houve interrogatório em sua casa, uma força sobrenatural o protege para que
nada seja descoberto. E baseado nessa concepção, ele frequenta de forma mais
intensa o lugar. As concepções de Jervas flutuam a todo instante entre certo e errado,
natural e sobrenatural. Ele tem consciência que seu comportamento é errado, no
entanto, o personagem se comporta como se estivesse certo e como se pertencesse
a extinta família Hydes, seu contato e suas experiências sobrenaturais são encaradas
como naturais, sem nenhum medo do desconhecido e do fantasmagórico conforme
ele destaca: “Por uma semana vivi todas as alegrias daquela sociabilidade sepulcral
que não devo descrever. Foi então que aconteceu a coisa” (LOVECRAFT, 2019, p.17,
grifo do autor). A coisa a que o personagem se refere é o surgimento da mansão
fantasma dos Hydes sobre a tumba, uma visão fantasmagórica percebida por Jervas
que se sentiu atraído pelo lugar festivo com desfecho assustador para o personagem,
que relata que após esse acontecimento, ele foi confinado em um “asilo para loucos”
(LOVECRAFT, 2019, p.07).

A Extinta Mansão - um tópos sobrenatural flutuante: topofílico-topofóbico

Há uma metamorfose, o túmulo dos Hydes percebido como um tópos familiar é


transformado em um tópos estranho e sobrenatural. Na mesma localização da tumba,
surge a mansão fantasma dos Hydes, toda iluminada com convidados, bebidas
117

música em todo o seu esplendor do passado. Jervas reconhece que o lugar é


tenebroso, por ser sobrenatural. Ele afirma com arrependimento:

Eu não deveria ter me aventurado na rua naquela noite pois os sinais de


trovoadas estavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do
pântano mal cheiroso nos fundos vale. O chamado dos mortos também era
diferente. Em vez da tumba na encosta, era o demônio que governava a
adega queimada no cimo da colina e me chamava com dedos invisíveis. [...]
A mansão, desparecida por um século, uma vez mais erguia-se com sua
altura imponente para minha visão extasiada e cada janela cintilava com o
esplendor de muitas velas (LOVECRAFT, 2019, p.17).

Jervas capta a mansão fantasma através de seu gradiente visual e olfativo,


além do entorno do lugar que intensificam o lugar tenebroso e sobrenatural como as
trovoadas, a fosforescência infernal e o pântano mal cheiroso, tumba na encosta. O
personagem, como se estivesse possuído por Jervas Hyde, pressente algo ruim, um
acontecimento na mansão e ao mesmo tempo uma sensação de já ter visto aquela
mesma imagem da casa em chamas no passado. O mesmo incêndio do passado na
mansão provocado por um raio, além da atmosfera diabólica relatando que o chamado
dos mortos era diferente, o lugar familiar e afetivo tornou-se desconhecido e pavoroso,
pois era a figura do demônio quem o atraía para juntar-se aos outros convidados,
espectros de antigos falecidos. Todos esses elementos sobrenaturais corroboram
para a construção do horror diante da irrupção do elemento sobrenatural, e da
deflagração do grotesco. Essa mescla de comportamento de Jervas, essa dupla
identidade e flutuação entre o mundo real e sobrenatural constitui o grotesco. O
“grotesco, se transforma no bizarro, burlesco, e o indivíduo esquisito, original, embora
ainda grotesco externamente, nada tem mais de demoníaco, porém apenas uma
interioridade rica, vulnerável” (KAYSER, 1986, p.97).
O personagem se sente atraído a participar da festa na mansão fantasma. Ele
revela que: “Dentro da mansão havia música, risadas e uma taça de vinho em cada
mão. Reconheci vários rostos, mas eu os teria reconhecido melhor se estivessem
ressecados ou carcomidos morte e decomposição” (LOVECRAFT, 2019, p.17). Jervas
declara que era o mais brincalhão da festa, enquanto, divertia os convidados com
gracejos e proferia blasfêmias, um acontecimento põe um fim na festa.

De repente, o estrondo de raio ressoou acima da algazarra da folia, rachando


o telhado e estabelecendo um silêncio temeroso [...]. Labaredas de chamas
e rajadas incandescentes de calor engolfaram a casa e os foliões .
Aterrorizados com o assalto de uma calamidade que parecia transcender os
limites da natureza sem controle, todos fugiram gritando noite afora .
118

Permaneci sozinho, preso ao meu assento por um medo rastejante que nunc a
sentira antes. E então um segundo terror tomou conta da minha alma.
Queimado vivo até virar cinzas, com meu corpo espalhado pelos quatro
ventos (LOVECRAFT, 2019, p.17).

No interior da mansão fantasma dos Hydes, Jervas tem momentos de alegria e


de pavor. Sua percepção está sempre flutuando entre real e irreal, topofilia e topofobia.
Dois acontecimentos sobrenaturais irrompem no espaço fantasmagórico: a queda do
raio no telhado e o medo de Jervas de raios e do fogo que tomava conta da casa,
nesse momento é sugerido uma sutil transformação de Jervas Dudley em Jervas
Hyde; tal mudança é justificada pelo seu medo de raios e trovões, que faz alusão à
forma como a casa foi dizimada no passado e, um membro dos Hydes que teve seu
corpo completamente consumido pelo fogo da casa em chamas e suas cinzas foram
depositadas em uma urna - “a urna triste cheia de cinzas veio de uma terra distante,
para qual a família havia acorrido quando a mansão queimou” (LOVECRAFT, 2019,
p.08-09). O protagonista comporta-se como se tivesse vivido tal experiência. A mesma
cena acontece, o personagem transformado em Jervas Hyde teme o mesmo destino.
Vejamos um trecho a seguir de seu temor:

E então um segundo terror tomou conta da minha alma. Queimado vivo até
virar cinzas, com meu corpo espalhado pelos quatro ventos, talvez eu nunc a
fosse sepultado na tumba dos Hydes! Meu caixão não estava preparado para
mim? Eu não tinha o direito de descansar por toda a eternidade em meio aos
descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Sim! Eu reivindicaria minha herança de
morte, mesmo que minha alma tivesse que procurar ao longo dos tempos por
outra morada corpórea para representa-la na lousa desocupada do nicho da
câmara mortuária (LOVECRAFT, 2019, p.17-18, grifo do autor).

Nesse excerto podemos constatar Jervas Hyde confirmando a possessão, em


que sua alma buscaria outro corpo ao longo dos tempos a fim de que tivesse um
enterro digno em seu caixão, assim como os outros descendentes de Geoffrey Hyde
tiveram. Ele relata que após o fantasma da casa ter desparecido, ele estava “gritando
e lutando enlouquecido nos braços de dois homens, um dos quais era o
espião"(LOVECRAFT, 2019, p.18). Seu pai, com o semblante de tristeza,
presenciando toda aquela cena chocante, enquanto Jervas esperneava e “gritava
pedindo para ser colocado dentro da tumba”(LOVECRAFT, 2019, p.18). Após
constatar esse comportamento anormal Jervas é enviado para um manicômio,
conforme ele relata:
119

No dia seguinte me trouxeram para este quarto com as janelas gradeadas ,


mas fui mantido informado de algumas coisas por intermédio de um criado
idoso e simplório [...] e que, assim como eu, adorava o cemitério da igreja. O
que tive coragem de contar sobre as minhas experiências dentro da câmara
mortuária só me trouxe sorrisos de pena. Meu pai me visita frequentement e,
declara que em nenhum momento passei pelo portal acorrentado, e jura que
o cadeado enferrujado não fora tocado há cinquenta anos quando ele o
examinou (LOVECRAFT, 2019, p.18-19).

Toda sua versão de experiência na tumba dos Hydes é contestada por seu pai
que afirma que ele nunca havia entrado na câmara dos Hydes, pois o cadeado
continua intocável e que sabia de seus passeios, assim como todos do vilarejo. Sobre
a modificação da linguagem, as coisas estranhas que aprendeu, tudo é justificado por
seu pai como resultado “de uma vida inteira folheando toda sorte de livros antigos da
biblioteca da família” (LOVECRAFT, 2019, p.19). Todos os argumentos e provas de
Jervas são descartados pelo seu pai, no entanto, Jervas pede para seu fiel criado
Hiram ir até a tumba.

Não fosse meu velho criado Hiram, eu já teria a esta altura ficado bastante
convencido da minha loucura. Mas Hiram, leal ao passado, seguiu tendo fé
em mim. [...]. Uma semana atrás ele arrombou a tranca que acorrenta a port a
da tumba, deixando-a perpetuamente entreaberta, e desceu com uma
lanterna para as profundezas sombrias. Sobre uma lousa num nicho ele
encontrou um caixão velho e vazio cuja placa manchada traz um a única
palavra: Jervas. Naquele caixão e naquela câmara mortuária eles me
prometeram que serei enterrado (LOVECRAFT, 2019, p.19, grifo do autor).

Hiram, semelhante a Jervas, compartilha do mesmo sentimento topofílico por


cemitérios; ele “adorava o cemitério da igreja” (LOVECRAFT, 2019, p.19). Após a
constatação de que havia de fato um caixão com uma placa escrito Jervas, o
protagonista parece mais tranquilo, pois sua história foi aparentemente confirmada e
seu desejo de ser enterrado naquele caixão será realizado. Ao final da narrativa não
é confirmado se Jervas saiu do manicômio, lugar fechado que lhe desperta um
sentimento de aversão, uma “moradia maldita de tristeza e monotonia” (LOVECRAFT,
2019, p.17).
O ambiente mórbido e fantasmagórico da narrativa é obtido através das
seguintes figuras presentes no cenário: câmara mortuária, porta de pedra
intimidadora, caixões, atmosfera infecta e asfixiante, ar mofado, umidade, fantasma
da casa, somado ao estado psicológico do protagonista, Jervas Dudley, fanático por
cemitérios, uma espécie de monomania revelada pelo próprio personagem que se
comporta de forma natural ao falar de seu contato com seres fantasmagóricos desde
120

a infância, seu contato com o mundo sobrenatural é evidenciado pela sua


metamorfose e visão da mansão fantasma dos Hydes. No que diz respeito às
funcionalidades espaciais foram evidenciadas duas funções; a primeira função é
influenciar as personagens e também sofrer suas ações, Jervas Dudley, ao longo da
narrativa, sofreu influência do túmulo dos Hydes; tal mudança foi percebida de
imediato pelo personagem evidenciado pelo seu vocabulário mais rebuscado, “com
arcaísmo de dicção repentinamente adquirido [...] uma coragem e irresponsabilidade
estranhas apareceram em [seu] comportamento (LOVECRAFT, 2019, p. 14). Jervas
tornou-se um homem farrista e libertino. A segunda função espacial é estabelecer
contraste com a personagem, a instauração espacial é incompatível com o sentimento
do personagem revelado no protagonista Jervas que sente um estado de alegria ao
entrar pela primeira vez na câmara mortuária dos Hydes, afirmando o seguinte: “[...]
meu coração pulava de alegria que mal consigo descrever. Quando fechei a porta e
desci os degraus[...], com a atmosfera infecta e asfixiante do lugar, senti-me
particularmente à vontade no ar mofado e de ossuário" (LOVECRAFT, 2019, p.13,
grifo nosso). Constata-se um sentimento positivo, de êxtase em meio ao espaço
tenebroso percebido pela sensorialidade do protagonista.
Ao final da análise foram evidenciadas as mudanças e as diferentes
percepções do personagem em relação ao espaço inicial (a casa de Jervas) e o
espaço final (a mansão fantasma dos Hydes). A casa em que o personagem morava
com seus pais é um lugar predominantemente topofílico, um lugar para o qual Jervas
sempre retornava após suas caminhadas pelo bosque e visitas à tumba; por outro
lado, a mansão fantasma dos Hydes transmutada sobre a tumba, a princípio lhe
desperta um sentimento de topofilia, mas no decorrer da narrativa, com as
deflagrações de outros acontecimentos sobrenaturais na mansão fantasma, o
sentimento de alegria é transformado em medo e horror. A mansão fantasma em
chamas simboliza também o inferno pegando fogo. Existe outro lugar, o qual surge ao
final da narrativa que é o manicômio onde o personagem se encontra, lugar que lhe
desperta aversão e angústia. Vale destacar que o quarto do manicômio, no qual
Jervas se encontra trancado, embora seja percebido como topofóbico pelo
protagonista não faz parte dessa análise.
121

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa é constituída de quatro capítulos; no primeiro abordamos


as concepções teóricas sobre a topoanálise e, elencamos os principais estudiosos do
espaço e suas concepções, dando destaque para a concepção de espaço sob a óptica
de Borges Filho (2007). Tal pesquisador assevera que o estudo do espaço literário é
interdisciplinar e formado por três elementos: continente, conteúdo e observador.
Dentro do estudo topoanalítico, elegemos o subtema da topopatia por estar mais
alinhado com as narrativas escolhidas como objeto dessa pesquisa.
No segundo capítulo, abordamos as concepções teóricas mais específicas
acerca da urbe dos mortos, os surgimentos dos cemitérios explicitado por Foucault
(2013) e Lauwers (2015), bem como as práticas de inumação na Europa, Brasil, e,
especialmente, na cidade de São Paulo. Também perscrutamos os espaços do medo,
o conceito de topopatia de Borges Filho (2007), ampliando o argumento com as
fundamentações acerca da topofilia e topofobia de Tuan (1980 e 2005), a fim de apoiar
nossas análises dos contos.
No terceiro e no quarto capítulo analisamos o percurso inicial de cada
protagonista, empregando as noções teóricas topoanalíticas acerca de captação
espacial, espacialização, os gradientes sensoriais mais empregados na apreensão do
espaço, as coordenadas espaciais, as prolepses e funções espaciais aliadas às
acepções e hipóteses delineadas no segundo capítulo.
Tal trajetória teve como objetivo analisar a relação sentimental dos
protagonistas com o espaço da morte, constituído pelo cenário sepulcral de cada
narrativa. O cemitério abandonado figura na narrativa de Telles e o túmulo dos Hydes
no conto de Lovecraft. São lugares que, assumem similitude, evidenciados pelo
significado do cenário, pelo ambiente mórbido e pela sensorialidade dos
protagonistas. Esses cenários fúnebres representam o lugar em que os personagens
transitam, percebem e ocupam, e, o mais importante, eles deflagram sentimentos
distintos em cada protagonista.
O conto Venha Ver o Pôr do Sol nos apresenta a protagonista Raquel que sente
aversão por estar em um cemitério ermo e ominoso; o sentimento deflagrado no
espaço sepulcral é predominantemente topofóbico; uma espécie de temor velado
agudizado pelo seu aspecto horrendo captado pelos seus gradientes visuais,
122

auditivos, táteis e sua habilidade motora. Ao passo que, no conto A Tumba, o


personagem Jervas Dudley percebe a câmara mortuária dos Hydes de forma
topofílica, mesmo que seus gradientes sensoriais evidenciem a interioridade grotesca
do lugar demarcado pela escuridão, com ar asfixiante mesclado pela umidade e o
mofo, cujo, mobiliário instaurado, desde as portas, as correntes e os caixões
corroboram para a feitura desse espaço horrendo, no entanto, seu comportamento em
relação à tumba é de curiosidade e desejo de estar naquele espaço sombrio; seu
sentimento de amor e familiarização pelo lugar é algo marcante na narrativa.
Os cenários das duas narrativas são semelhantes em funcionalidade, em
instauração topofóbica e espacialidade; esta última é demarcada pela interioridade,
verticalidade (polo baixo) e constituem espaços englobados ao final do percurso de
cada protagonista. No entanto, no que tange à percepção e relação sentimental de
cada personagem em relação ao espaço da morte, tem-se a irrupção do sentimento
de aversão de Raquel e afeição de Jervas; cada personagem percebe, sente e
classifica o espaço de uma determinada maneira, pois a experiência espacial é
subjetiva, singular para cada um.
O contato com o cemitério decrépito e abandonado desencadeia sentimentos
negativos, de pavor e angústia em Raquel, aliado aos pensamentos classificatórios
após sua experiência direta com o lugar, um espaço ermo, denotando a finitude da
vida e reificando a concretude da morte, algo que provoca certo receio e não aceitação
dos vivos diante à urbe da morte. Por outro lado, Jervas Dudley experiencia o espaço
da morte de forma diferente; a tumba dos Hydes, um tópos que lhe desperta um
sentimento de afetividade pelo lugar, embora seja escuro, estreito predominantemente
topofóbico e ominoso. O personagem desencadeia um sentimento positivo pelo
espaço subterrâneo em que os Hydes estão enterrados, um sentimento de topofilia,
de pertencimento ao lugar. De maneira alguma ele demonstra medo ou aversão ao
espaço da morte, seu discurso demonstra familiarização e intimidade com o espaço.
Percebe-se que tanto no local que Raquel adentra, quanto na capelinha que
ela desceu para ver a suposta prima de Ricardo e o túmulo dos Hydes que Jervas
Dudley visita, há pontos convergentes e divergentes. O primeiro elemento coincidente
é o lugar, o cenário em que as tramas se desenvolvem, cuja, funcionalidade é abrigar
os mortos, e cuja simbologia remete a um tópos sombrio, ermo e ominoso. Em termos
de espacialidade, a interioridade e a verticalidade baixas, demarcadas pela
123

profundidade do lugar, são duas características marcantes nos dois contos; Raquel e
Jervas descem até as profundezas dos mortos. Outro aspecto semelhante, mas com
significado diferente, é o simbolismo da chave; nas duas narrativas a chave surge
como elemento símbolo do destino de cada personagem. Raquel precisa da chave
para sair das profundezas da morte onde se encontra trancada pelo seu algoz; de
forma contrária, Jervas encontrou e tem a chave para entrar e sair, o personagem
detém o objeto que lhe proporciona liberdade e controle, ele determina se quer estar
dentro ou fora da tumba.
A divergência nas duas narrativas está relacionada à reação de cada
personagem, bem como o sentimento deflagrado por cada um na experimentação do
lugar desconhecido, profundo e horripilante. O sentimento de medo velado, de
aversão ao lugar percebido, na personagem Rachel, diferencia-se do sentimento de
curiosidade de pertencimento do personagem Jervas Dudley.
O sentimento deflagrado pelo lugar, bem como a sua classificação em topofílico
ou topofóbico está relacionado a dois fatores: aspecto físico do lugar e a experiência
direta com o lugar. O primeiro fator designa como o lugar em seu aspecto físico é
percebido pela personagem, utilizando seus gradientes visuais; já o segundo fator é o
conhecimento direto do espaço através da experimentação direta que é algo subjetivo
e único para cada um. O mesmo espaço pode deflagrar experiências e sentimentos
positivos ou negativos, portanto, o significado, o sentimento e a concepção que a
personagem atribui ao lugar estão condicionados às experiências vivenciadas no
lugar. O sentimento do personagem pelo espaço é resultante da experiência espacial
e, consequentemente, a familiarização; ele é um agente subjetivo que abrange um trio
de emoções deflagradas no contato direto com o tópos tais como: sensação,
percepção e concepção, sua relação de afetividade com o tópos da morte perpassa
aspectos estéticos e simbólicos, mas acima de tudo, o sentimento de afeição ou
aversão é determinado pelo lugar e pelos laços afetivos que o tópos (cemitério)
irrompe no personagem. E, por último, o sentimento dos personagens desencadeado
pelo tópos é subjetivo e único.
A relação afetiva com o espaço abrange o campo real e ficcional, o ser humano
está sempre ocupando espaços abertos ou fechados, no entanto, o que é mais
evidenciado é o sentimento que cultiva pelo espaço ao longo do tempo, através do
contato direto que lhe proporciona a experiência espacial, bem como a familiarização
124

e intimidade com o lugar, como por exemplo, a casa em que mora, geralmente
classificada como topofílica, um lugar de sossego e aconchego, ou o bairro em que
mora que pode flutuar entre o topofílico e topofóbico alterando nas passagens do dia
pra noite, condicionado aos fatores segurança e insegurança.
Constatou-se, também, que o sentimento de medo irrompido em Raquel
abrange também o aspecto horrendo do lugar percebido pela protagonista, mas,
acima de tudo, os fatores que determinam a irrupção de sentimentos topofílicos ou
topofóbicos são evidenciados pela experimentação direta e íntima no espaço, com a
vivência no lugar, criando, assim, laços de afetividade e emoções únicas para o ser
que ocupa e percebe o espaço. Tais fatores evidenciam a hipótese dessa pesquisa; a
familiarização com o tópos, aliada à experiência, são determinantes para a irrupção
do sentimento; “a familiaridade engendra a afeição ou desprezo” (TUAN, 1980, p.114).
A partir das análises, pôde-se constatar que a interioridade do túmulo dos
Hydes não provocava nenhum sentimento de medo no personagem, pois ele estava
familiarizado com o lugar, ele frequentava a tumba desde a idade de dez anos.
Semelhante a Jervas, o antagonista do conto Venha Ver o Pôr do Sol demonstra
afetividade com o espaço sepulcral abandonado, desprovido de beleza, mas que
evoca sentimentos positivos por estar relacionado aos seus antepassados, ao passo
que Raquel nunca havia tido nenhum contato com o cemitério abandonado; a
personagem frequenta o cemitério pela primeira vez e não está familiarizada com o
lugar ominoso. Foi sua primeira experiência e, no decorrer da narrativa, a personagem
declara que não gosta de cemitérios.
Ao final desta pesquisa, visamos demonstrar uma nova forma de análise
espacial, inserida dentro do tema espaço literário, a topopatia que se volta para a
afetividade e percepção do personagem pelo lugar ocupado, o cenário da narrativa. A
topopatia é uma temática recente, mas que tem ganhado visibilidade dentro dos
estudos topoanalíticos. Além disso, espera-se que a presente pesquisa contribua com
a fortuna crítica acerca do estudo do espaço literário e possa abrir caminho para novas
interpretações sobre os contos do corpus.
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