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SÃO PAULO
2022
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SÃO PAULO
2022
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Sistemas de Bibliotecas da Pontif ícia Univ ersidade Católic a de São Paulo -Ficha
Catalográf ica com dados f ornecidos pelo autor
CDD
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Dra. Elizabeth da Penha Cardoso-PUC-SP
______________________________________
Dr. Cristiano Camilo Lopes-Mackenzie
______________________________________
Dra. Annita Costa Malufe-PUC-SP
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, criador de todo espaço celestial e terrestre; por ter me ajudado durante
todo o meu percurso, muito obrigada.
Aos meus pais, Arlete Melo e José Melo pelo apoio, ensinamentos e confiança,
muito obrigada.
RESUMO
MELO, Alice Vasconcelos. O espaço da morte em Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia
Fagundes Telles e A Tumba, de Howard Phillips Lovecraft. Dissertação de
Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2022,137p.
ABSTRACT
MELO, Alice Vasconcelos. The space of death in Venha Ver o Pôr do Sol, by Lygia
Fagundes Telles and A Tumba, by Howard Phillips Lovecraft. Dissertação de
Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2022,137 p.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 - O ESPAÇO FICCIONAL: Pressupostos Teóricos ........................... 15
1.1 Agora é a vez do Espaço Ficcional: topoanálise .................................................. 15
1.2 Espaço (Lugar, Cenário, Ambiente) ........................................................................ 23
1.3 Espacialização .............................................................................................................. 28
1.4 As Funcionalidades Espaciais ................................................................................. 32
1.5 O percurso espacial a partir das quatro etapas do enredo .............................. 37
1.6 Dispositivos Espaciais ............................................................................................... 38
1.6.1 As Coordenadas Espaciais ....................................................................................... 38
1.6.2 Gradientes Sensoriais: percepção e experiência espacial .................................. 40
1.6.3 Perspectiva de Englobamento .................................................................................. 43
1.6.4 As Prolepses ................................................................................................................ 44
CAPÍTULO 2 - ESPAÇO DA MORTE............................................................................... 45
2.1 Espaço da Morte: do surgimento, experiência e medo da morte ................... 46
2.2 Espaços do Medo: medo dos espaços .................................................................. 55
2.3 Sentimentos Topofílicos e Topofóbicos = Topopatia ........................................ 62
2.4 O Horror: a emoção do medo artístico ...................................................................... 67
CAPÍTULO 3 - TOPOANÁLISE: venha ver o pôr do sol ............................................... 75
3.1 Lygia Fagundes Telles-vida e obra ......................................................................... 75
3.2 O Conto Venha ver o Pôr do Sol: sinopse .............................................................. 80
3.3 Topoanálise: análise do percurso da personagem Raquel ................................... 82
CAPÍTULO 4 - TOPOANÁLISE: A tumba....................................................................... 98
4.1 H.P Lovecraft: Vida e Obra do Autor ......................................................................... 98
4.2 A TUMBA: sinopse ...................................................................................................... 104
4.3 A Tumba Topoanálise ............................................................................................... 107
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 121
REFERÊNCIAS................................................................................................................ 125
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INTRODUÇÃO
No mundo real cemitérios são construções físicas realizadas pelo homem para
abrigar os mortos; trata-se de lugares que evidenciam a finitude da vida, perpassada
por um ciclo com início, meio e fim. Este desfecho é algo factual e inaceitável pela
humanidade, e os cemitérios são representações reais desse fim. Diante deste espaço
da morte, várias reações afetivas se instalam, a depender da cultura local e da época
em questão. No entanto, o sentimento que prevalece é de respeito e saudade dos que
partiram, além de certo predomínio de temor e de asco, daí a topofobia. Algumas
pessoas evitam participar de sepultamentos ou visitar seus finados, pois o espaço
sepulcral evoca recordações negativas de perda, de irreversibilidade e de
encerramento total da matéria. É na urbe dos mortos onde tudo se acaba, toda a
beleza física natural ou artificial cultivada pela vaidade, toda a estrutura corpórea será
consumida pela terra através de um processo de decomposição acelerado por
bactérias. E talvez esse fato seja o que mais perturba o ser humano. A morte e toda
sua representação são horrendas, e, por isso, tão temidas, no entanto, a morte e o
espaço da morte se presentificam na vida da humanidade como um imperativo; ela há
de acontecer e o espaço sepulcral é a concretização do destino dos seres humanos.
Ao entrar em um cemitério e caminhar por esse espaço dos mortos, lembranças
e emoções são evocadas. Lembranças de um passado vívido ora cristalizado na
memória, repleto de alegria, compartilhadas com o ser que não está mais no espaço
físico, entre os vivos. A emoção da alegria, do contato físico, de enxergar o ser e ouvir
a sua voz é substituída pela emoção da tristeza, da sensação de vazio e impotência
diante da morte. O choro surge como resposta da emoção sentida e é
automaticamente captado pelo sensório auditivo aliado à percepção visual através das
imagens de sepulturas, flores, anjos, lápides registradas de imediato pelo contato
direto com o espaço. O contato direto e íntimo com a urbe dos mortos possibilita a
deflagração de sentimentos que flutuam entre a saudade, a tristeza, o respeito, a dor
da perda, a inaceitabilidade e irreversibilidade; o ser humano sente-se pequeno,
aterrado e impotente em não saber lidar e não aceitar o fenômeno da morte.
No mundo ficcional o cemitério, enquanto cenário de narrativas de mistério e
horror, irrompe emoções e assume duplo significado para os seres que o
experienciam (os personagens). Esse duplo flutua entre as passagens do dia para a
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noite, pois durante o dia a necrópole remete a um lugar de paz, de silêncio, de respeito
aos mortos, mas à noite esse mesmo espaço é transmutado em um lugar sombrio,
pavoroso, repleto de mistério intensificado pela escuridão da noite, um tópos que
deflagra a emoção primitiva do medo, o medo do desconhecido e o medo do lugar.
Os espaços da morte são cenários flutuantes que estão no limiar entre visível e
invisível, topofílicos e topofóbicos; são tópos devoradores, misteriosos, sombrios e
englobantes. As espacialidades dessas narrativas são construídas minuciosamente
através de adjetivações e sinestesias, formando verdadeiras representações
imaginárias; além disso, todos os elementos inseridos no cenário, desde os objetos
até o mobiliário servem para agudizar as sensações e percepções do personagem.
O cemitério tem sido um cenário muito explorado nas histórias de mistério e
horror. É o caso dos contos Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles e A
Tumba, de Howard Phillips Lovecraft. O primeiro faz parte da obra Antes do Baile
Verde publicada em 1970; e o segundo consta na obra A Tumba e outros contos; o
conto foi publicado em 1922 na revista The Vagrant. Estas narrativas breves compõem
o corpus desta dissertação e é a partir delas que iremos refletir sobre a topopatia
dentro do tema do espaço literário, tendo no horizonte a pergunta: como os espaços
sepulcrais predominantemente topofóbicos são percebidos por cada personagem e
qual a relação sentimental desencadeada a partir do contato com o tópos dos mortos?
Venha Ver o Pôr do Sol, classificado como uma narrativa de mistério, tem sido
muito analisado, principalmente no âmbito da construção espacial, no entanto, nossa
pesquisa tem um olhar diferenciado para o tema do espaço; é voltado para a
topopatia- a relação sentimental e experiencial do personagem com o espaço. Na
contramão do quantitativo de pesquisas do conto de Telles, o conto de horror “A
Tumba”, de Lovecraft não é tão pesquisado por acadêmicos do Brasil e do exterior,
no entanto, trata-se de uma narrativa espacial em que toda trama é voltada para o
cenário; a tumba dos Hydes focalizando a relação afetiva do personagem principal
com tópos da morte.
Esta pesquisa aproxima essas narrativas espaciais, em que o espaço
representado pelo cenário é antecipado no título; além disso, os cenários funcionam
como fio condutor de toda narrativa. O objetivo principal é analisar a relação
sentimental dos protagonistas com o espaço da morte constituído pelo cenário de
cada narrativa. Intenta-se, ainda, identificar quais são os gradientes sensoriais mais
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calçamento até chegar em frente ao portão do cemitério, onde Ricardo já está a sua
espera; após reclamações sobre o lugar, Raquel é convencida a entrar no cemitério e
acompanha Ricardo até o subsolo da capela com o álibi de ver o mais esplendoroso
pôr do sol; no decorrer da narrativa o que fica mais evidenciado é a aversão e o medo
velado da protagonista em relação ao cemitério abandonado. Já na narrativa de
Lovecraft, temos o personagem Jervas que tem uma rotina de caminhar pelo bosque,
e em uma de suas andanças ele encontra um lugar escondido na encosta, a câmara
mortuária da extinta família Hydes, no entanto, o que chama atenção é a maneira
como Jervas reage à descoberta do local como se tivesse encontrado um lugar
maravilhoso e familiar; após encontrar o túmulo dos Hydes, passa a frequentá-lo de
forma intensa como se estivesse frequentando sua própria casa; o que é mais
evidenciado na trama é o sentimento de afeição do personagem em relação ao espaço
sepulcral.
A metodologia empregada será de caráter teórico, qualitativo-descritivo. A
pesquisa literária realizar-se-á por meio de análises explicativas e descritivas onde
procederemos com uma abordagem topoanalítica pelo viés da teoria do espaço,
adotamos como recurso de operacionalização o roteiro de análise espacial proposto
por Borges Filho. Como aporte teórico sobre a topoanálise e concepções sobre o
espaço empregamos as concepções dos seguintes teóricos: Borges Filho (2007),
Brandão (2013), Lins (1976) e Dimas (1987); acerca da topopatia, topofilia e topofobia
utilizamos as fundamentações de Borges Filho (2007) e Tuan (1980 e 2005); na
esteira do espaço sepulcral baseamo-nos em Foucault (2013) e Lauwers (2015).
No que diz respeito à fortuna crítica de Telles, escolhida como baluarte à nossa
reflexão sobre o espaço no conto de Telles, elegemos a dissertação de Bueno (2016)
intitulada Manifestações do Insólito nos contos de mistérios de Lygia Fagundes Telles,
Santos (2017) com a dissertação Limites e fronteiras: a configuração do espaço
ficcional no conto fantástico de Lygia Fagundes Telles, a dissertação de Santos (2017)
Um Passeio com Tânatos: a ficcionalização da morte em Lygia Fagundes Telles, os
artigos de Oliveira (2011) O Emergir do Insólito nas Espacialidades e nas Imagens de
Venha Ver o Pôr-do-Sol, o artigo de Grigório Matsuoka (2019) A Personagem e o
Espaço na ficção de Lygia Fagundes Telles e o ensaio de Pelinsser (2013),Uma
Arquetipologia da Morte em Venha Ver o Pôr do Sol, pois os seis trabalhos dialogam
sobre a construção espacial nos contos de Telles, os recursos estéticos utilizados
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em sua tessitura e sobre a temática da morte que é recorrente em seus contos. Além
disso, utilizamos as análises críticas de Lucas (1990) e Santiago (1998) que são dois
estudiosos das narrativas de Telles.
A fortuna crítica eleita para a análise do conto de Lovecraft é: a dissertação de
Anater (2021) Vislumbres do Abismo: o desenvolvimento do horror nos espaços
literários em H.P Lovecraft, a dissertação de Miguel (2006) A Morfologia do Horror: a
construção e percepção na obra lovecraftiana, a tese de Dutra (2015) O Horror
Sobrenatural de H.P Lovecraft: teoria e praxe estética do horror cósmico, o artigo de
Hatfield, Hobbs e Lynch (2014) Multilayered Specter, Multifaceted Presence: a critical
edition of H.P. Lovecraft’s “The Tomb”. Os quatro trabalhos dialogam sobre seus
personagens, a construção espacial de seus contos e suas estratégias narrativas.
Utilizamos as contribuições críticas de Houellebecq (2020) e Joshi (2016) sobre a vida,
temática e estilo de composição de Lovecraft.
O trabalho está dividido em quatro capítulos: no primeiro abordaremos os
pressupostos teóricos topoanalíticos que servirão de base para nossa análise
espacial. Este subdivide-se em seis subtópicos relacionados aos conceitos basilares
de espaço literário, à instauração espacial (espacialização), às funções espaciais, às
concepções de percurso espacial e os dispositivos espaciais empregados para a
operacionalização da análise dos contos. O segundo capítulo é divido em quatro
subtópicos e aborda o tema da pesquisa; o espaço da morte e a relação sentimental
do personagem pelo tópos da morte, os típicos espaços do medo, a topopatia - os
sentimentos topofilicos e topofóbicos do personagem e, por último, as concepções de
horror. O terceiro e o quarto capítulos estão divididos em três seções; em ambos nos
debruçamos na análise espacial, o percurso trilhado pelo personagem, destacando a
espacialidade mais evidente no cenário percebido pelos protagonistas de cada conto,
bem como seus gradientes sensoriais mais empregados na apreensão espacial; ainda
investigamos a espacialização instaurada em cada conto, a funcionalidade do espaço,
as prolepses espaciais contidas em cada narrativa e, por fim, o sentimento deflagrado
no percurso de cada personagem.
Ao final desta pesquisa objetiva-se contribuir com a fortuna crítica sobre o
estudo do espaço ficcional, a topoanálise e, principalmente, com a topopatia, a relação
sentimental/experiencial do personagem pelo espaço.
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Osman Lins (1976), em sua obra Lima Barreto e o Espaço Romanesco, dedica
o quarto capítulo, intitulado “Espaço Romanesco: conceitos e possibilidades”, apenas
à análise e formulação de concepções acerca do espaço ficcional literário, destacando
a importância do estudo espacial, bem como seu entrelaçamento ao elemento
temporal dentro do texto narrativo. Lins (1976) destaca a indissociabilidade dos
elementos espaço-tempo, exemplificando essa união, através das teorias relacionais,
absolutas, objetivas e subjetivas, em que elas estabelecem uma relação una entre o
espaço-tempo, associando o espaço a acontecimentos de forma real ou subjetiva e,
o tempo, a instantes de forma física ou no plano das ideias. Apesar de evidenciar a
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1Neste estudo não se pretende aprofundar as discussões acerca das tipologias espaciais e correntes
literárias, mas apenas vislumbrar como a categoria espaço literário é abrangente.
2 Sobre a topopatia, a relação sentimental; experiencial do personagem com o espaço, Borges Filho
(2007) é o principal escritor brasileiro no âmbito literário a abordar o assunto, objeto desta pesquisa. O
sentimento do personagem pelo espaço pode ser de topofilia (afeição/amor) ou topofobia
(aversão/medo), tal assunto será abordado no capítulo 2.
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relaciona espaço e lugar de acordo com a sua dimensão física e forma sentimental,
evidenciando a conversão de espaço em lugar através do critério de familiarização.
No âmbito literário, o espaço é representado pelo cenário, lugar onde a história
acontece. Nas narrativas os lugares são verossímeis aos do mundo real; são lugares
que as personagens frequentam, habitam ou percebem. O cenário percebido pelas
personagens se vale também dessa experiência íntima espacial imiscuída com a
percepção sensorial a que Borges Filho (2007) denomina de gradientes sensoriais,
em especial a visão, a audição e o tato, que abordaremos posteriormente. O termo
cenário é constantemente empregado no âmbito teatral, televisivo, cinematográfico e
literário, e esta última instância é a que nos interessa. Segundo o dicionário Aurélio -
“Cenário: Lugar onde ocorre algum fato, ou onde ocorre a ação, ou parte da ação de
uma peça, romance ou filme” (FERREIRA, 2010, p.465).
Denota, portanto, o lugar em que a ação ou cena acontece. Os cenários das
narrativas são verossímeis aos do mundo real em que todos os detalhes são
minuciosamente arquitetados pelo narrador e percebidos pelos personagens que se
movimentam e experienciam o espaço da trama no qual podemos qualificá-los como
“cenários de papel”. Dessa forma, os típicos cenários de contos, romances, novelas,
como: ruas, praças, bairros, casas, prédios, hospitais, cemitérios, entre outros, são
correlatos a lugares reais, criando, assim, a verossimilhança. No cenário do conto
lygiano, o cemitério com todo seu mobiliário mortuário como anjos, lápides, sepulturas,
capela, todos esses elementos pictóricos captados principalmente pelos gradientes
visuais da personagem servem para criar a linguagem imagética; tais componentes
são verossímeis aos do mundo real.
Outro termo que utilizamos frequentemente, associado ao espaço, é o termo
ambiente, que remete ao teor do lugar no qual assumimos um ponto de vista que pode
ser positivo ou negativo, uma espécie de atmosfera. Sobre o termo ambiente, Borges
Filho (2007) destaca que a concepção de ambiente não é tão objetiva nas teorias
espaciais e relata que: “No sentido cotidiano, esta palavra significa um conjunto de
relações entre o mundo natural e o ser vivo, daí o uso da expressão meio ambiente”
(BORGES FILHO, 2007, p.49). Borges Filho (2007) define ambiente como a “soma do
cenário ou natureza mais a impregnação de um clima psicológico” (BORGES FILHO,
2007, p.50). Ele estabelece uma espécie de fórmula para o ambiente que tem relação
com o psicológico através da conduta da personagem. “Esquematicamente teríamos:
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1º) cenário+ clima psicológico = ambiente; 2º) natureza + clima psicológico= ambiente”
(BORGES FILHO,2007, p.50). O teórico exemplifica sua concepção sobre a
construção do ambiente com o seguinte caso:
1.3 Espacialização
Uma das grandes contribuições de Borges Filho (2007) reside nas teorizações
sobre as diversas funções que o espaço pode exercer na narrativa, elencando as sete
mais importantes, a saber: (1) caracterizar as personagens situando-as no contexto
socioeconômico e psicológico em que vivem,(2) influenciar as personagens e sofrer
suas ações, (3) propiciar a ação, (4) situar a personagem geograficamente, (5)
representar os sentimentos vividos pelas personagens (espaço homólogo),(6)
estabelecer contraste com as personagens (espaço heterólogo) e (7) antecipar a
narrativa (prolepse espacial).
A primeira função espacial é caracterizar as personagens situando-as no
contexto socioeconômico e psicológico em que vivem. Borges Filho (2007) pondera
que o espaço funciona como um dispositivo caracterizador do perfil social ou
psicológico da personagem, “mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais
serão as atitudes da personagem” (BORGES FILHO, 2007, p.35). O espaço funciona
como um elemento revelador do status social e o psicológico da personagem. Ele
destaca que “esses espaços são fixos da personagem, são espaços que elas moram
ou frequentam com grande assiduidade” (BORGES FILHO, 2007, p.35). Sobre essa
função do espaço, Santos (2017), em sua dissertação Limites e fronteiras: a
configuração do espaço ficcional no conto fantástico de Lygia Fagundes Telles, relata
que “o cenário pode revelar muitos aspectos sobre a personagem, assim como os
objetos, pois estes sugerem muito mais sobre a composição psicológica da
personagem, mesmo antes dela entrar em ação” (SANTOS, 2017, p.57). A feitura do
cenário, bem como sua composição espacial, os objetos, as cores, os elementos
perceptíveis no espaço predizem o lado social psicológico da personagem. De forma
especular, o espaço reflete o comportamento frio, as intenções, o lado subjetivo da
personagem.
Podemos exemplificar essa primeira função espacial com um fragmento do
conto Venha Ver o Pôr do Sol. O cenário da trama caracteriza o contexto
socioeconômico de Ricardo e seu lado psicológico - o cemitério abandonado e
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de qualquer um que coloque sua vida em risco. Em um espaço fechado e restrito como
um quarto ou viela sem saída tal façanha não será possível. Sobre essa característica
funcional do espaço de ‘propiciar a ação’ Lins (1976) relata que “os casos em que o
espaço propicia, favorece a ação [...] algo já esperado, adensa-se na narrativa, à
espera de que certos fatores, dentre os quais o cenário, tornem afinal possível o que
se anuncia” (LINS,1976, p.101). Como exemplo da terceira função espacial, o cenário
do conto Venha Ver o Pôr do Sol é um cemitério abandonado, e por ser afastado e
abandonado torna-se um lugar oportuno para os planos de Ricardo, além do fato de
ser o espaço da morte, o que suscita hipóteses e expectativas levantadas no decorrer
da história, a morte esperada de Raquel.
A quarta função espacial consiste em situar a personagem geograficamente.
Esse tipo de espaço serve “apenas dizer onde está a personagem quando aconteceu
determinado fato” (BORGES FILHO, 2007, p. 40). O autor destaca que esse tipo de
espaço não agrega nada à personagem, serve apenas de cenário para demonstrar
onde a ação aconteceu. Ele é “meramente factual, pobre[...] não há nenhuma relação
de pressuposição entre personagem, espaço e ação. [...] O espaço é inteiramente
denotado” (BORGES FILHO, 2007, p.40). Como exemplo dessa função, no conto O
Chamado de Cthulhu, de Lovecraft, o narrador menciona diferentes nomes de cidades
tais como: Providence, Nova York, Nova Orleans, Boston e Newport. Essas cidades
são os cenários da trama e servem apenas para situar geograficamente onde os
acontecimentos misteriosos se deram, esses cenários não exercem nenhuma
influência no comportamento dos personagens. Toda narrativa gira em torno do
monstro Cthulhu, bem como o baixo relevo encontrado pelo narrador personagem e
que pertencia a seu tio-avô, um “professor emérito de línguas semíticas na
Universidade Brown, em Providence, Rhode Island” (HOUELLEBECQ, 2020, p.101).
O professor teve uma morte súbita, ele “caiu desacordado quando voltava de Newport
de navio” (HOUELLEBECQ, 2020, p.102). O objeto encontrado é um “bizarro baixo-
relevo de barro, [...] Os escritos que acompanhavam essa bizarrice, [..] O que parecia
ser o principal documento estava intitulado “CULTO A CTHULHU” (HOUELLEBECQ,
2020, p. 102-103). Dessa forma, as cidades servem apenas de localizações, situam
apenas onde os fatos relacionados aos objetos e ao ritual se desenrolaram.
A quinta função espacial serve para representar os sentimentos vividos pelas
personagens. Esses espaços são classificados como homólogos por Borges Filho
35
Por exemplo, teremos uma cena de alegria que se passa sob o sol fresco de
fim de tarde, brilhante, num céu com poucas nuvens e passarinho voando.
Parece que, como a personagem a natureza está alegre, portanto, há uma
relação de homologia entre personagem e espaço (BORGES FILHO, 2007,
p.40).
Foi na luz suave do fim da tarde que entrei pela primeira vez na câmara
mortuária da colina abandonada. [...] meu coração pulava de alegria que
mal consigo descrever. Quando fechei a porta e desci os degraus que
gotejavam de umidade sob a luz da minha única vela, [...] com a atmosfera
infecta e asfixiante do lugar, senti-me particularmente à vontade no ar
mofado e de ossuário" (LOVECRAFT, 2019, p.13, grifo nosso).
sagrado e sublime; por outro lado, o baixo conota o inferior, o inferno, o desconhecido
e temido.
O ser humano conhece o mundo e percebe o espaço ocupado através dos seus
cinco sentidos sensoriais, denominado por Borges Filho (2007) de gradientes
sensoriais, termo empregado na topoanálise. Os gradientes correspondem a: “visão,
audição, olfato, tato e paladar. O ser humano se relaciona com o espaço circundante
através de seus sentidos” (BORGES FILHO, 2007, p.69). O conhecimento do espaço,
de forma direta, se vale do acionamento dos sentidos sensoriais de forma automática
e natural. De acordo com Tuan (1983) a captação espacial acontece principalmente
com o uso da visão, que permite ao sujeito ter uma concepção ampla do espaço que
o cerca, bem como o acionamento do sentido auditivo, tátil e sua habilidade motora.
No que concerne à importância do polo visual como órgão que capta as
imagens do espaço ocupado, Tuan (1983) relata que “a dependência visual do homem
para organizar o espaço não tem igual. Os outros sentidos ampliam e enriquecem o
espaço visual” (TUAN, 1983, p.18). Borges Filho (2007) concorda com Tuan,
afirmando que a visão é o sentido sensorial mais importante do ser humano; após o
nascimento, a visão é o primeiro sentido acionado para captação do mundo externo.
“É o sentido que capta o espaço em seu distanciamento máximo. Através dele
inúmeras informações o atingem, mais que pelos outros sentidos” (BORGES FILHO,
2007, p.72). O autor ressalta, ainda, duas características importantes e únicas da
visão humana, que são o discernimento das cores e a visão tridimensional que
possibilita ao ser humano perceber a distância, o tamanho e profundidade espacial
com nitidez. Segundo o escritor: “Uma das grandes características da visão é discernir
cores. [...]. Outra característica[...] é que possuímos uma visão estereoscópica. [...]
temos uma visão nítida e tridimensional dos corpos à nossa frente (BORGES FILHO,
2007, p.73). Daí o motivo de a visão ser o sentido mais importante para apreensão e
interação com espaço tanto no mundo real quanto no mundo ficcional “dificilmente
iremos encontrar no texto literário uma percepção espacial que não se utilize da visão”
(BORGES FILHO, 2007, p.73). No âmbito da análise espacial o teórico relata que se
41
O autor pontua que a soma do gradiente visual com o tátil propicia a captação
do espaço de forma mais ampla permitindo ao ser humano ter sensações e
experiências mais intensas pelo espaço ocupado. De forma correlata às concepções
de Tuan (1983), Borges Filho (2007) afirma que o tato “é quase tão importante quanto
o desenvolvimento da visão tridimensional” (BORGES FILHO, 2007, p.93). Segundo
o escritor, o homem desenvolveu uma incrível habilidade para identificar formas,
tamanho e textura através da manipulação do objeto, através do tato “experienciamos
a resistência, a pressão dos seres e do espaço. Tal experiência é fundamental para a
percepção de que existe um mundo além de nossa imaginação” (BORGES FILHO,
2007, p.93). O escritor destaca que o personagem experiência os objetos contidos no
espaço através do tato e, “poderá receber um número enorme de informações sobre
o espaço e os objetos que o ocupam. Qualidades espaciais táteis como liso, crespo,
fino, grosso serão valoradas de diversas maneiras no texto literário” (BORGES FILHO,
2007, p.93).
Sobre o sentido auditivo, Tuan (1983) relata que, “tendo visão e possibilidade
de mover-se e de usar as mãos, os sons enriquecem muito o sentimento humano em
relação ao espaço” (TUAN, 1983, p.16). Segundo o autor, o sentido auditivo atua como
um dispositivo para captar o som emitido no espaço, bem como sua origem, volume
do som e distância. “O próprio som pode evocar impressões espaciais. Os estrondos
do trovão são volumosos; [...] O som aumenta nossa consciência” (TUAN, 1983, p.17,
18). Borges Filho (2007) relata que “a audição humana não é muito sensível. [...] os
olhos captam informações do espaço de maneira mais abundante e precisa que os
42
ouvidos” (BORGES FILHO, 2007, p.95). O pesquisador (2007) assevera que no âmbito
literário o narrador se vale de múltiplos “recursos auditivos [...] para criar efeitos de sentido.
A chuva no telhado, o som do trovão, o assovio do vento, o choro, [...] provocando atitudes
e sentimentos nas personagens em relação ao espaço” (BORGES FILHO, 2007, p.95). No
mundo ficcional, o som percebido pela personagem é verossímil ao mundo real e aliado ao
visual, o “som dramatiza a experiência espacial” (TUAN, 1983, p.18).
Em termos de topoanálise, Borges Filho (2007) afirma que: “A dicotomia
silêncio x barulho é a principal divisão que podemos estabelecer nesse gradiente
sensorial” (BORGES FILHO, 2007, p.96). Segundo a concepção do pesquisador, o
silêncio pode assumir teor positivo ou negativo, ou seja, “significando paz,
relaxamento [ou] solidão, abandono” (BORGES FILHO, 2007, p.96). É através da
análise do texto que tal significado poderá ser determinado, segundo o autor.
No que diz respeito ao sentido olfativo, classificado por Tuan (1983) como
passivo, também acionado para detectar os odores que surgem no espaço, “o odor
pode mais facilmente que os outros sentidos evocar lembranças, carregadas
emocionalmente” (BORGES FILHO, 2007, p.98). O sentido olfativo é muitas vezes
empregado pelo narrador com o objetivo de despertar lembranças passadas no
personagem, desencadeando o flashback, o tempo psicológico, para que o
personagem possa reviver as memórias que o cheiro presente no espaço captado
pelo seu gradiente olfativo lhe provoca. O autor destaca que o cheiro espacial pode
desencadear emoções positivas ou negativas; cabe ao topoanalista “depreender os
diversos sentidos ligados aos cheiros do espaço” (BORGES FILHO, 2007, p.99).
Borges Filho (2007) destaca que “apesar de os sentidos serem os mesmos, [...]
cada pessoa percebe a realidade diferentemente. Assim também ocorre na obra de
ficção” (BORGES FILHO, 2007, p.69). Cada personagem percebe o espaço de forma
singular e subjetiva. De acordo com o autor, deve-se analisar como a personagem se
relaciona com o espaço através de seus sentidos, identificar a relação distância/
proximidade a partir da sensorialidade da personagem e quais são os sentidos mais
empregados na captação espacial, conforme o trecho a seguir:
O autor instrui como deve ser feita a observação espacial; deve-se estar atento
ao significado por trás da sensorialidade, pois não se trata apenas de identificar um
espaço silencioso ou ruidoso, mas investigar o porquê do silêncio ou do barulho no
espaço. Investigar, ademais, a simbologia das cores captadas pelo gradiente visual,
pois todos os elementos, objetos contidos no espaço têm uma
intencionalidade/funcionalidade.
Além dos cinco gradientes sensoriais importantes para a percepção espacial,
se faz necessário destacar o sensório motor responsável pela experimentação direta
do espaço, pois, “o espaço é experienciado quando há lugar para se mover, mudando
de um lugar para outro” (TUAN,1983, p.13). No mundo ficcional narratológico, a
personagem pode explorar todos os gradientes sensoriais, pois no espaço ficcional
tudo se torna possível, o cheiro, o canto dos pássaros, o abraço ou o gosto amargo
do cigarro e o frio percebido pela personagem, no entanto, alguns sentidos são mais
explorados que outros.
Podemos constatar que tanto no mundo real quanto no ficcional, os gradientes
sensoriais mais utilizados e importantes para percepção espacial são: a visão, o tátil,
o auditivo e o olfativo. Estar no espaço, conhecê-lo fisicamente, movimentar-se pelo
espaço, sentir sua energia, percebê-lo através do visual, tátil e sensório motor, tudo
isso é permitido a partir do contato direto com o espaço, da experimentação espacial.
Borges Filho (2007) destaca o espaço inserido no outro, o que ele denomina
de “espaço englobado/espaço englobante” (BORGES FILHO, 2007, p.132).
Semelhante às narrativas encaixada/encaixante, em que a narrativa macro
(encaixante) acomoda a micro (encaixada), nessa mesma linha de pensamento, o
espaço englobante (maior) acondiciona um espaço englobado (menor). O espaço
englobante é o espaço externo caracterizado pelos termos “ao redor (de), em volta
(de), em torno (de) [...] fora (de), exteriormente, externamente” (BORGES FILHO,
2007, p.132). Ao passo que o englobado é sempre no interior, “dentro (de), em, no
interior (de), interiormente, internamente, no centro (de), no meio (de), no coração
(de)” (BORGES FILHO, 2007, p.132). No conto Venha Ver o Pôr do Sol, o espaço
englobante é representado pelo cemitério, um espaço externo maior e que acomoda
44
1.6.4 As Prolepses
3LOMBARDO, Lívia. Um Péssimo Cheiro do Altar: a vida antes dos cemitérios. Aventuras na História.
Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/um -certo-cheiro-do-alta r- a-
vida-antes-dos-cemiterios.phtml. Publicado em 29/09/2019. Acesso em: 11/07/2021.
47
Percebe-se que os cemitérios entre os séculos VII e XII eram terrenos extensos
presentes nas cidades e nas aldeias, mas o que chama atenção são as práticas de
sepultamento, pois não há registro de uso de caixões e sepulturas individuais, o que
sugere o sepultamento diretamente na terra. Além disso, havia um constante
manuseio da terra cemiterial para retirada de ossos de antigos defuntos e
sepultamento de novos cadáveres.
“Os cemitérios eram adjacentes, em geral a edifícios de culto, [...] consagrados
pelas autoridades eclesiásticas e, ao fim de um processo complexo[...] se tornaram,
assim como as igrejas, lugares sagrados” (LAUWERS, 2015, p. 21). Essa sacralização
e proximidade da igreja com o cemitério se estenderá até o final do século XVIII e
início do século XIX, conforme relata Foucault (2009). Os cemitérios ficavam nos
centros urbanos próximos às igrejas, pois “acreditava-se efetivamente na ressureição
dos corpos e na imortalidade da alma” (FOUCAULT, 2009, p.417),tornando o espaço
do cemitério, religioso e sagrado; alguns mortos eram enterrados dentro da igreja,
simbolizando um certo prestígio, no entanto, tal prática ocasionou a contaminação do
solo e o surgimento de diversas epidemias e doenças mortais e, devido a isso, os
cemitérios foram transferidos para as estradas ou locais afastados da cidade. Sobre
isso, Foucault (2009) faz um breve histórico:
Europeu, e eram realizadas nas igrejas tanto na parte interna quanto na externa, mas
tal ato era concedido somente para altos membros do clero e pessoas da nobreza.
Embora a inumação em igrejas fosse algo pomposo, sinônimo de prestígio e
religiosidade, esse tipo de sepultamento não era higiênico e contribuía para o
surgimento de doenças e epidemias, conforme afirma a autora:
A espionagem da vida dos mortos segue os mesmos critérios da vida dos vivos ,
e acontece de duas formas: “de forma direta e íntima ou indireta e conceitual, mediada
pelo simbólico” (TUAN,1983, p.06-07), ou seja, a “espionagem” direta através do
contato com o espaço físico do cemitério permitirá uma experiência sensorial única,
cujas sensações vivenciadas no tópos da morte são mais difíceis de serem expressas
em palavras, deixando em segundo plano a experiência indireta e conceitual.
Conforme a concepção de Tuan (1983): “Uma pessoa pode conhecer um lugar tanto
50
de modo íntimo como conceitual. Pode articular ideias, mas tem dificuldade de
expressar o que conhece através dos sentidos do tato, paladar, olfato, audição”
(TUAN,1983, p.07). A experimentação direta do espaço sepulcral é mais ampla e
profícua, pois, abrange a sensorialidade (o sentido visual, auditivo e tátil) além da
habilidade motora, que permite a locomoção pelo espaço.
De certa forma, a experiência espacial direta dos vivos na cidade dos mortos
possibilita a deflagração de sensações, percepções e concepções como um resultado
da emoção (sentimento) deflagrado no lugar experienciado. E essa
emoção/sentimento desencadeada no tópos é registrada automaticamente pelo
pensamento, segundo a concepção de Tuan (1983) ao afirmar que “a experiência é
constituída de sentimento e pensamento” (TUAN, 1983, p.11). O autor destaca, ainda,
a relação existente entre sentimento como sendo associado à emoção, estado
subjetivo do ser humano que engloba (sensação, percepção e concepção) e o
pensamento, relacionado (a memória) que registra esse conjunto de emoções
experimentadas no espaço.
De acordo com Tuan (1983), o conhecimento indireto e conceitual do espaço
está muito impregnado na vida e na experiência humana; muitas pessoas conhecem
um lugar de forma conceitual e simbólica, sem nunca ter frequentado. Em termos
práticos, um jovem de doze anos pode nunca ter entrado em um cemitério, mas o
conhece de forma conceitual, sabe qual é a sua funcionalidade, muitas vezes conhece
sua estrutura física através de fotos ou vídeos. E toda essa experiência conceitual e
imagética é apreendida pelo cognitivo (pensamento). Dessa forma, a representação
imagética de um cemitério frequentemente surge no imaginário humano da seguinte
forma: de um espaço aberto repleto de sepulturas enfileiradas dispostas em paralelo
de forma horizontal feitas de cimento e mármore, anjos, cruz, lápides e capela. Essas
representações espaciais pictóricas demarcam o lugar símbolo da morte, o lócus onde
a morte se reifica.
A morte é um fenômeno e um mistério que se presentifica na vida humana
como um imperativo, uma certeza que ela há de acontecer. À medida que o tempo
passa nos aproximamos da velhice e da morte como uma consequência natural do
fim da vida. Há um fio tênue entre vida e morte, muitas vezes a vida é abreviada por
ironias do destino momento em que a morte se antecipa e o ser humano tem seu ciclo
natural de vida interrompido.
51
A morte surge de inúmeras formas para o ser humano; desde os primórdios até
os tempos atuais, a humanidade morre de morte natural, morte acidental, morte
trágica, morte auto infligida, morte encomendada, morte assistida e, ainda, não
podemos deixar de registrar, a morte em massa e epidêmica provocada por um vírus
silencioso e mortal (SARS-Cov-2) que tem se alastrado pelo mundo e vitimado milhões
de pessoas. Semelhante ao mundo real, a morte é representada no mundo ficcional
e, percebe-se que essa temática tem sido utilizada de forma massiva na prosa em
(narrativas longas e curtas) e em diferentes escolas literárias que abordam a morte
por um determinado aspecto. O tema da morte tem sido abordado por escritores
brasileiros e estrangeiros, desde o século XVIII com o surgimento do romance gótico
até os dias atuais, século XXI.
Nesse contexto, a morte se faz presente de diferentes formas, assume
diferentes significados, como por exemplo, na segunda fase do Romantismo
Brasileiro, conhecida como Ultrarromântica ou Mal do Século, em que os próprios
escritores pertencentes a essa escola literária morreram muito jovens, dentre eles,
Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Junqueira Freire. Tais escritores se
destacaram, pois retratavam de forma prosaica e poética o tema da morte de forma
mais intensa em relação aos outros escritores. Nessa escola literária, a morte assume
um caráter de alívio para os problemas de ordem sentimental e existencial. Há uma
inversão de valores nesse período literário; morrer é melhor do que viver. Há um
pessimismo diante da vida, viver tornou-se um fardo, um aborrecimento; em
contrapartida, o desejo da morte surge como solução para esse fardo. O homem
romântico percebe a morte como algo positivo, desejando-a para solucionar e findar
sua angústia e sofrimento.
Diferente das narrativas do Mal do Século e mais análogo ao mundo real, nos
romances realistas e contemporâneos, a morte assume um teor negativo, pois denota
o encerramento da vida, a personagem teme a morte. Por outro lado, em narrativas
alusivas ao mistério e ao horror, a morte se presentifica como um elemento fulcral,
atravessa a narrativa, do início ao fim; nesse tipo de história, o tema da morte é
recorrente e esperado pelo leitor, algumas vezes, no início ou no decorrer da trama
ou no desfecho da história em que a protagonista, de forma inesperada e misteriosa,
tem sua vida ceifada.
52
[...] a tumba abandonada dos Hydes, uma família antiga enaltecida cujo único
descendente direto foi colocado dentro do seu nicho muitas décadas antes
do meu nascimento [...] anos posteriores aumentou o fascínio que eu sentia
pela sepultura obscurecida pela mata[...] nunca vou esquecer à tarde que
encontrei ao acaso pela primeira vez, essa casa da morte meio escondida
(LOVECRAFT,2019, p.08-09, grifo nosso).
Já disse que vivi à parte do mundo visível. Mas não disse que vivi sozinho.
Nenhum ser humano pode fazer isso, pois, na falta da companhia dos vivos ,
ele busca [...]o apoio da companhia de coisas que não são ou não estão mais
vivas (LOVECRAFT, 2019, p.08).
Tuan (2005) relata que o espaço infernal estava enraizado na mente do homem
medievo entrelaçado à ideia de o mal induzir o pecado e, este ter como decorrência a
não salvação da alma, mas sim sua condução por demônios ao inferno. “O
sobrenatural estava intimamente presente no indivíduo medieval. Anjos e demônios
ocupavam o mesmo espaço que o indivíduo e o acompanhavam em todas as suas
atividades” (TUAN, 2005, p.118). Segundo o autor, o homem desse período vive em
constante dilema entre espiritual e carnal, céu e inferno, policiando seu
comportamento e pensamentos, pois acreditava que seres divinos e demoníacos
presentificados no espaço observavam e testavam-no constantemente.
De acordo com Tuan (2005), o medo é simbolizado também através dos
fenômenos naturais; o amanhecer e o anoitecer revelam significados distintos. As
passagens do dia para a noite representavam essa flutuação entre bem e mal, de
topofilia6 para topofobia7. O dia, (a claridade do céu) simbolizava a imagem divina; por
outro lado, a noite representava as trevas e o mal. Assim como as estações do ano
desencadeavam sentimentos positivos e negativos, em que a primavera e o verão
simbolizavam o divino, o celestial, enquanto o inverno significava o nefasto e infernal.
“O inverno, era um tempo de privação mesmo para os que viviam em castelos,
pertencia a Satanás. As regiões de frio e mau tempo era certamente dele” (TUAN,
2005, p.123). O rigoroso inverno Europeu experienciado por seus habitantes
despertava sentimentos e pensamentos negativos sobre a estação. Tal afirmação
ratifica a concepção de Tuan (1983) que a experiência espacial resulta de sentimentos
e pensamentos. De certa forma o medo, o mal, o pecado e o inferno são termos
interligados e solidificados no espaço medievo.
Ainda de acordo com o mencionado autor (2005), muitos medos que
prevalecem na contemporaneidade têm relação direta com nossos antepassados e
com a história; o autor destaca, também, que tanto gerações passadas quanto as
presentes têm “a crença em anjos, demônios e espíritos” (TUAN, 2005, p.119).
Percebe-se que tal cultura é bem presente em países africanos e latino-americanos.
Para o autor, algumas pessoas, de forma menos intensa, acreditam ter visões
fantasmagóricas, escutar e conversar com espíritos, em que elas “ordenam as
6Topofilia - é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido amplo aos laços afetivos dos
seres humanos com o meio ambiente material. TUAN, Yi Fu. Topofilia: um estudo da percepção,
atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL,1980. p.107.
7Topofobia-[De topo + -fobia] Medo mórbido de determinados lugares (FERREIRA, 2010, p.2056).
58
prioridades de suas vidas em conformidade com eles” (TUAN, 2005, p.119). De certo
modo, o ato de estabelecer contato com mortos, espíritos é uma prática bem
recorrente em ficções literárias alusivas ao horror sobrenatural, como podemos
constatar no conto A Tumba, o protagonista narrador, Jervas Dudley, infere que desde
criança tem contato com o mundo sobrenatural, mas prefere não entrar em detalhes
sobre isso, relatando-nos que sua experiência com o sobrenatural consiste em
“fenômenos isolados vistos e sentidos apenas por uns poucos psicologicamente
sensíveis e que se encontram fora de sua experiência comum”(LOVECRAFT, 2019
p.07).
Espectros, entidades, espíritos, vultos são termos sinônimos e são
personagens recorrentes das narrativas de mistério e horror. Além disso, esses
agentes estão sempre associados aos espaços. Eles se manifestam em diferentes
lugares, desde uma casa representando o lugar (em que viveu ou morreu) ou um
quarto, um sótão; na maioria das vezes sua aparição acontece em lugares fechados.
Faz-se necessário destacar que a associação desses seres ominosos e sobrenaturais
com o espaço, ou seja, a frequente ocupação dessas figuras fantasmagóricas em um
determinado lugar torna-o topofóbico. Eles ocupam o espaço como se pertencessem
a eles. Em narrativas ficcionais, assim como na vida moderna, sempre há histórias
pavorosas de lugares físicos, reais em que as percepções sensitivas mais aguçadas
visuais e sonoras podem captar imagens, sons ou ruídos emitidos por seres irreais.
Nesse sentido, as histórias ficcionais que versam sobre o espaço do medo
funcionam como mimesis, imitam a realidade. Esses espaços ermos e ficcionais são
verossímeis aos espaços reais, e topofóbicos são lugares criados pelo homem, que
assumem um teor negativo e, estão bem vívidos no cotidiano do ser humano; dentre
eles podemos citar: lugares mal iluminados, becos, praças desertas, bairros perigosos
comandados pelo tráfico, presídios, hospitais, manicômios, cemitérios, casas mal-
assombradas etc. No país e no mundo existem lugares ameaçadores e
amedrontadores que deflagram o medo.
O medo é, portanto, um sentimento negativo e subjetivo, que irrompe toda vez
que o ser humano se sente ameaçado, ou constata que sua vida está em perigo. “É
um sentimento complexo, no qual se distinguem claramente dois componentes: sinal
de alarme e ansiedade” (TUAN, 2005, p.10). Tal sentimento paralisa, desencoraja e
ao mesmo tempo coloca o indivíduo em estado de tensão e alerta. Em relação ao
59
A rua é feia e perigosa, mas no verão tem maior atração para os residentes
do Harlem do que seus quartos abafados e confinados. Um homem de trinta
e cinco anos assim descreveu: [...] “ Não podemos entrar na casa porque
quase nos sufocaríamos. Portanto, nos sentamos nas sarjetas ou ficamos na
calçada ou nos degraus, ou em qualquer outro lugar, até de madrugada”
(CLAUDE BROWN apud TUAN, 1980, p.254, grifo do autor).
casas; tal afirmação pode ser constatada com a fala do escritor Claude Brown, citado
em Tuan (1980): “Sempre me lembro do Harlem como um lar, mas nunca me recordo
dele como estando na casa. Para mim o lar eram as ruas. Suponho que muitas
pessoas sentiam o mesmo” (CLAUDE BROWN apud TUAN,1980, p.254). Segundo
Tuan (1980), os moradores do Harlem, bem como os adolescentes e as crianças têm
consciência do ambiente ameaçador no qual estão inseridos, rodeados de vândalos,
viciados, traficantes em meio à pobreza, em que muitos sentem o medo de ser mortos,
envolvidos em alguma encrenca ou até mesmo serem presos pela polícia. As
crianças, jovens e adultos vivenciam esse turbilhão de sentimentos pelas ruas do
Harlem; ora sentem medo, ora sentem a curiosidade e excitação diante dos
acontecimentos. O Harlem desencadeia um duplo sentimento para seus moradores,
ora topofílico através dos acontecimentos percebidos como entretenimento e
topofóbico pelo seu aspecto visual, físico e ameaçador.
Nesse contexto, há uma inversão de valores, pois a rua, enquanto espaço
inseguro, violento, desperta o sentimento topofílico de prazer, de afeto pelo espaço
aberto e pelo que o bairro do Harlem proporciona captado pelo visual e tátil, a diversão
da rua e o frescor da natureza. Por outro lado, a casa, representando um lugar seguro,
tranquilo desperta um sentimento topofóbico de aversão e desprazer em especial nos
dias de verão por proporcionar sensações térmicas desagradáveis.
Na seara literária, a topofobia, medo do lugar, suscitado na personagem em
relação ao espaço que ocupa é uma resposta ao estímulo externo percebido através
de seus sentidos sensoriais. Esse medo espacial ficcional é experienciado pela
personagem aliado às sensações de insegurança e estado de tensão, tais emoções
são construídas na narrativa através de recursos linguísticos e estéticos, como as
adjetivações, as metáforas, as prolepses, as sinestesias e a linguagem corporal
instauradas pela voz do narrador ou da própria personagem.
Em algumas narrativas, em especial as de mistério e horror, a categoria espaço
é antecipada no título da obra predizendo ao leitor o seu grau de importância dentro
da trama. Sobre isso, podemos elencar as seguinte obras: A Assombração da Casa
da Colina(1959) da escritora Shirley Jackson; A Casa Negra (2001) e O Cemitério
(1983) do escritor Stephen King; A Guerra dos Mundos (1898) e a A Ilha do Dr. Moreau
(1896) de H.G Wells; Horror em Amityville (1977) de Jay Anson; A Igreja
Vermelha(2002) de Scott Nicholson; A Casa Infernal (1971) de Richard Matheson;A
61
Tumba (1922),Os Sonhos na Casa da Bruxa (1927), O Horror em Red Hook (1927) e
Nas Montanhas da Loucura (1936)8 do escritor Howard Phillips Lovecraft. Podemos
constatar que no universo ficcional literário, romances, novelas e contos que
antecipam em seu título, o cenário da trama, são predominantemente narrativas
espaciais, pois o espaço constitui o centro de atenção de toda a narrativa. E que os
típicos cenários dessas narrativas de horror remetem a um espaço topofóbico
deflagrador do medo através de sua composição inóspita e pavorosa, além de suscitar
sentimentos nas personagens, onde toda a trama está relacionada ao espaço. Sobre
a importância e dimensão dos espaços na narrativa, Lins (1976) relata o seguinte:
8Exemplo de narrativas de horror que antecipam o espaço (cenário) no título disponíveis nas seguintes
páginas:https://www.bibliotecadoterror.com.br/2014/08/resenha -igreja-vermelha-de-scott.html; lista de
obras de Lovecraft: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_obras_de_H._P._Lovecraft .
62
sentimento mais evidente é de afeição e amor pelo espaço, algo que beira a
representação da casa considerado um espaço seguro e familiar.
Assim, o espaço obscuro, mórbido e horripilante de uma sepultura geralmente
é classificado como um espaço do medo, o que nos remete às concepções de Tuan
(2005) em seu livro Paisagens do Medo; o teórico destaca que, toda vez que
pensamos sobre quais são as típicas paisagens do medo, de forma instantânea,
“inúmeras imagens acudirão à nossa mente: medo do escuro, [..] ansiedade de
lugares desconhecidos, [..] pavor dos mortos e do sobrenatural” (TUAN,2005, p.07).
A emoção do medo deflagrada no espaço está condicionada também a sua
representatividade simbólica. No próximo capítulo abordaremos a relação sentimental
do personagem pelo espaço.
seguinte forma pelo teórico, “quando o espaço se aproxima do fasto temos a topofilia,
[...] “quando se aproxima do nefasto, temos a topofobia” (BORGES FILHO, 2007,
p.158).
O sentimento topofílico (de afeição pelo lugar) ou topofóbico (de pavor pelo
lugar) está condicionado à avaliação que fazemos do lugar levando em consideração
suas características estéticas captadas visualmente, mas também está condicionado
à experiência espacial, pois, “a experiência é constituída de sentimento e
pensamento”. (TUAN, 1980, p.11). Tuan (1983) relata que o sentimento é uma
emoção que abrange sensação, percepção e concepção, e todas essas emoções
deflagradas no espaço são registradas pelo pensamento.
De acordo com Tuan (1983), embora sentimento e pensamento sejam
considerados elementos distintos, pois, estão em polos opostos, o sentimento remete
à subjetividade, (a emoção provocada pelo tópos e experienciada pelo ser humano) e
o pensamento evidencia o lado objetivo e racional da realidade espacial; ambos se
relacionam intimamente, “estão próximos às duas extremidades de um continum
experiencial e ambos são maneiras de conhecer” (TUAN, 1983.p.11, grifo do autor).
A relação sentimental de topofilia é manifestada na casa que moramos, por
exemplo. O sentimento de amor pelo espaço é suscitado a partir da sensação de
segurança, a percepção de um tópos familiar, sinônimo de tranquilidade e aconchego.
Para Tuan (1980) a topofilia inclui “todos os laços afetivos dos seres humanos com o
meio ambiente material” (TUAN, 1980, p.107). O escritor destaca que os laços de
afetividade com o lugar abrangem a apreciação visual e estética até o contato direto
com o espaço.
9O romance de 1764 combinado a descrição de um espaço físico decadente com segredos do passado
que assombram suas atormentadas personagens estabeleceu os parâmetros de um novo gênero que
no século XX passaria a ser identificado como a forma arcaica da literatura de horror. (FRANÇA,2008,
p.02) O Horror na Ficção Literária Reflexão sobre o “horrível” como Categoria Estética.
68
E o primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva e fogo misturado com
sangue, e foram lançados na terra; [...] E o segundo anjo tocou a trombeta; e
foi lançada no mar uma coisa como um grande monte ardendo em fogo, e
tornou-se em sangue a terça parte do mar. [...] E o terceiro anjo tocou sua
trombeta, e caiu do céu uma grande estrela ardendo como uma tocha, e caiu
sobre a terça parte dos rios e sobre as fontes das águas. E o quarto anjo
tocou a sua trombeta, e foi ferida a terça parte do sol, e a terça parte da lua e
a terça parte das estrelas (BÍBLIA SAGRADA, 2013, p.926; Ap. 8,7-12).
E O QUINTO anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na
terra; e foi-lhe dada a chave do poço do abismo [...] e com a fumaça do poço
escureceu-se o sol e o ar. E da fumaça vieram gafanhotos sobre a terra [...]
E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão
morrer, e a morte fugirá deles.[...] E tocou o sexto anjo a sua trombeta [...] E
foram soltos os quatro anjos, que estavam preparados [...] a fim de matarem
a terça parte dos homens” (BÍBLIA SAGRADA, 2013, p.926-927; Ap.9,1-
7;15).
Dessa forma, cabe salientar que a narrativa de Walpole, marco do horror, serviu
de inspiração para escritores posteriores que arquitetavam suas tramas em cenários
ermos ou mal-assombrados como castelos, masmorras, cemitérios, florestas,
casarões assombrados e decrépitos com uma linguagem simples, cujos personagens
eram bruxas, vampiros, vilões, donzelas, criaturas demoníacas, espíritos malignos e
acontecimentos sobrenaturais. Dentre alguns escritores de romance gótico que se
destacaram e que tiveram como precursor Horace Walpole, Dixon (2010) cita a
escritora inglesa Ann Radcliffe com o romance Os Mistérios de Udolpho (1794), o
romancista inglês Matthew Gregory Lewis famoso pela obra O Monge (1795), o
dramaturgo e romancista irlandês Charles Maturin com o romance, Melmoth O
Andarilho (1820) e por último, a escritora inglesa Mary Shelley que eternizou seu
nome entre os cânones da literatura de horror com a obra Frankenstein (1818).
Ann Radcliffe, cuja incursão de maior sucesso no gênero foi, sem dúvida, Os
Mistérios de Udolpho (1794), também era popular entre o público. O Monge
(1795) de M.G Lewis foi um romance ainda mais horrível, e Melmoth O
Andarilho (1820) de Charles Maturin narra outro pacto imprudente com
Satanás. O mais famoso de todos esses trabalhos iniciais é Frank enstein de
Mary Shelley; ou, O Moderno Prometheus (1818) (DIXON, 2010, p.01-02,
tradução nossa10).
10Ann Radcliffe, whose most successful foray into the genre was undoubtedly The Mysteries of Udolpho
(1794), was also popular with audiences. M.G. Lewis’s The Monk (1795) was an even more horrific
novel, and Charles Maturin’s Melmoth the Wanderer (1820) chronicles another ill-advised pact with
Satan. Most famous of all these early works is Mary Shelley’s Frank enstein; or, The Modern Prometheus
(1818). DIXON, Wheller Winston. A History of Horror, 2010, p.01-02.
11 In the mid-to late 1800s such disparate authors as Nikolai Gogol, Nathaniel Hawthorne and, most
notably, the tormented Edgar Allan Poe. DIXON, Wheller Winston. A History of Horror, 2010, p.02.
70
Americana, que surge com seu conto Assassinatos na Rua Morgue em 1841. Poe
ganhou notoriedade tanto no seu país quanto na Europa, pois, com seu brilhantismo
e maestria conseguia versar sobre o horror em todos os campos literários,
atravessando a poesia, o conto, ensaio, peças teatrais, e crítica literária. Escreveu um
ensaio denominado Filosofia da Composição em que explica o seu modus operandi
na escrita do poema “O Corvo”, os meandros para que a obra atinja o efeito desejado
no processo de criação. Ele relata que seu processo de composição não é obtido de
forma acidental ou de forma intuitiva, mas sim de forma pensada “com a precisão e a
rígida consequência de um problema matemático” (POE, 2011, p.20). Seu propósito
é atingir a unidade efeito, a emoção, a tensão, o grau de excitação provocado no leitor.
Segundo Poe (2011), a condição básica para a deflagração do efeito pretendido está
diretamente relacionada à brevidade e à intensidade da narrativa, “o grau de duração
é absolutamente necessário para a produção de algum efeito” (POE, 2011, p.21).
12Robert Louis Stevenson- “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (1886), Wilkie Collins - “The
Woman in White” (1860), Oscar Wilde- “The Picture of Dorian Gray” (1890), Bram Stoker- “Dracula”
(1897) e Henry James “The Turn of the Screw”(1898). CARROLL, Noel. The Philosophy of Horror or
Paradoxes of the Heart. New York: Routledge, 2004.
72
configura objeto desta pesquisa, mas sim o horror do mundo ficcional, enquanto,
deflagração da emoção principal, o medo.
Sobre isso, Lovecraft (2007) e Carroll (2004) concordam que o horror tem como
objetivo principal a irrupção da emoção do medo estético. O medo, para Lovecraft,
constitui uma das emoções mais antigas da humanidade, em especial o medo do
desconhecido. Em que o desconhecido se manifesta como um elemento surpresa, um
imprevisível, a deflagração de um fenômeno sobrenatural do qual o homem não tem
controle e não pode explicar pelas leis naturais. A emoção, para Carroll (2004), reside
no próprio estado horror, e sobre isso ele relata que “as obras de horror são
concebidas para provocar um certo tipo de afeto. Vou presumir que esse é um estado
emocional, cuja emoção chamo de horror artístico 13” (CARROLL, 2004, p.15, tradução
nossa). O autor destaca ainda que o próprio nome do gênero deriva da emoção que
ele provoca, e, “essa emoção constitui a marca da identidade do horror14” (CARROLL,
2004, p.14, tradução nossa).
Sobre essas emoções deflagradas pelo gênero, se faz necessário abrir uma
pequena discussão sobre a diferença entre horror e terror pois há muitos equívocos
no emprego de tais termos cuja escrita é aparentemente semelhante. Segundo Silva
(2011), em seu artigo Sob o Signo de Plutão: digressão sob os limites do horror e
terror assinala a principal diferença entre horror e terror.
13works of horror are designed to elicit a certain kind of affect. I shall presume that this is an emotional
state, which emotion I call art-horror. (CARROLL, 2004, p.15).
14this emotion constitutes the identifying mark of horror (CARROLL, 2004, p.14).
73
do conto, Venha Ver o Pôr do Sol, que na última cena descobre que caiu numa
armadilha planejada pelo seu ex-namorado Ricardo, ao constatar que não havia
nenhum parente de Ricardo ali enterrado, que a suposta prima, Maria Emília era uma
farsa aliada à constatação de que a tranca da portinhola que dava acesso à
catacumba havia sido trocada por Ricardo. Nesse momento o medo toma conta de
Raquel, pois sabe que sua vida está ameaçada, que não tem chances de ser
resgatada daquele espaço ermo, afastado e desconhecido, pois não há nenhum sinal
de vida humana, ninguém poderá escutar seus gritos de socorro e de horror.
A Literatura Brasileira, entretanto, não tem uma tradição crítica, teórica e
historiográfica nesse gênero, se comparada ao expressivo número de escritores
europeus e americanos que surgiram no século XVIII, XIX e XX que se debruçaram
em narrativas tétricas e elegeram o medo artístico como a emoção fundamental de
seus escritos. No entanto, França (2011) defende a existência de uma literatura
alusiva ao horror no Brasil denominada de “literatura do medo”; no início de seu
ensaio, Prefácio a Teoria do “medo artístico” na Literatura Brasileira, o pesquisador
assevera que a literatura do medo, configurada nos séculos XIX e XX é muito bem
representada por renomados escritores brasileiros como: Alvares de Azevedo, Aluísio
de Azevedo, Bernardo Guimarães, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos,
Humberto de Campos, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Monteiro Lobato
entre outros, que publicaram narrativas que irrompem o medo estético, e no entanto,
a “crítica tradicional, por uma série de razões, jamais a descreveu pela perspectiva do
medo”. (FRANÇA, 2011, p.01, grifo nosso). No que tange ao ofuscamento dessas
narrativas pela crítica, bem como a produção de narrativas inspiradas na literatura
romântica gótica-horror arcaico, Silva (2011) declara que “muitos autores brasileiros
se exercitaram em uma ou outra linha da narrativa gótica, porém sempre vigorou uma
forte tendência realista em nossa literatura” (SILVA, 2011, p.14).
De certa forma, os escritores brasileiros buscaram inspiração em narrativas
anglo-americanas, como Álvares de Azevedo, que, inspirado nos romances
byronianos, tornou-se um exponencial na segunda fase romântica brasileira, e sua
obra Noite na Taverna tem sido escrutinada por estudiosos e pela crítica e classificada
como um exemplo de romance gótico. A própria Lygia Fagundes Telles sofreu grande
influência de Poe. Muitos dos seus contos classificados como de mistério têm
elementos alusivos ao horror contemporâneo com teor mais realista cujas ações das
74
O autor destaca o contexto histórico no qual Telles está inserida; o ano de 1969
é marcado pela ditadura militar brasileira e pelo auge e aclamação da escritora. Outra
característica interessante destacada pelo professor Dimas, é que a autora sempre
revisa, altera ou adiciona algum detalhe de suas narrativas; o próprio livro, Antes do
Baile Verde, passou por três edições, e, atualmente, conta com dezoito contos. O
décimo quinto, intitulado Venha Ver o Pôr do Sol é objeto de estudo desta pesquisa.
No âmbito de narrativas longas, Dimas destaca que Ciranda de Pedra (1954) é
o “romance que, no entendimento de Antônio Candido, [...] estabeleceu a maturidade
da escritora. (DIMAS, 2009 apud TELLES, 2009, p.183). O crítico destaca que
“Ciranda de Pedra e Antes do Baile Verde cumprem a mesma função ao consolidarem
a carreira da romancista e da contista” (DIMAS, 2009 apud TELLES, 2009, p.183).
De acordo com a biografia da escritora, na Academia Brasileira de Letras suas
obras receberam diversas premiações, dentre elas: o romance- As Meninas (1973)
recebeu o Prêmio Jabuti, Seminário dos Ratos (1977) foi premiado pelo PEN Clube
do Brasil; A Disciplina do Amor (1980) recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte. O romance As Horas Nuas (1989) recebeu o
Prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano. Lygia recebeu, ainda, o prêmio Camões
em 2005 e foi indicada em 2016 ao Prêmio Nobel de Literatura. Suas três obras mais
renomadas (Magnum Opus) são: Ciranda de Pedra (1955), Antes do Baile Verde
(1970) e As Meninas (1973). Suas obras foram adaptadas para a televisão, o teatro
e o cinema. Além do reconhecimento e premiações, a escritora (também) recebeu o
título de Doutora Honoris Causa, em 2001, pela Universidade de Brasília-UnB. E foi
agraciada com a titulação de Membro da Academia Paulista de Letras, eleita em 29
77
de abril de 1982e três anos mais tarde é eleita como membro da Academia Brasileira
de Letras, ocupando a décima sexta cadeira, em 24 de outubro de 1985.
No que tange às temáticas abordadas em suas obras, a que mais se sobrepõe,
segundo o crítico Fábio Lucas (1990) é “o jogo alternativo entre amor e morte”
(LUCAS,1990, p.67). Amor e morte, dois termos antagônicos, dois extremos, mas que
se relacionam no âmbito sentimental, em que o excesso ou falta do primeiro pode
desencadear o segundo. O crime passional desencadeado por amores doentios,
relacionamentos abusivos, traições, a não aceitação do fim do casamento ou namoro
são alguns subtemas que podemos extrair da narrativa, objeto desta análise. A ficção
é verossímil à realidade; nas tramas de Telles, as personagens vivenciam amores
conturbados, desgastados, traições que enveredam para a morte. A morte, além de
ser um tema recorrente nas narrativas fantásticas e misteriosas da contista, é
encarada pelo antagonista como forma de punição, de retaliação e não aceitação do
fim do relacionamento.
A linguagem empregada em seus contos, em especial no livro Antes do Baile
Verde, é simples e impregnada de simbolismo através dos objetos, cores e
expressões que funcionam na narrativa como prolepses, a saber: o mobiliário e os
objetos que ocupam os espaços, captados pelo olhar das personagens revelam
sempre algo premonitório, uma ação negativa prestes a se desenvolver no espaço,
relacionada à morte, assim como, as cores relacionadas às vestimentas das
personagens, assim como suas falas dúbias; considerados componentes espaciais,
revelam sempre algo velado e negativo aliado à própria conduta de suas personagens,
em especial os vilões da trama, cujo caráter é sempre sugerido ou revelado no
desfecho intrigante.
Sobre esse tipo de desfecho, que rompe com as expectativas do leitor de ter
um final surpreendente, o que se tem de fato é um final em aberto, Piglia (2004) relata
que “a estrutura moderna do conto que vem de Tchekhov abandona o final
surpreendente e a estrutura fechada, trabalha a tensão entre duas histórias sem
nunca resolvê-las” (PIGLIA, 2004, p.91). A primeira história do conto, Venha Ver o Pôr
do Sol, revelada ao leitor, põe em cena um casal de ex-namorados que tem seu último
encontro em um lugar atípico e disfórico, um cemitério, como forma de despedida e
para “matar a saudade” (grifo nosso). A segunda história que se desencadeia, que
está encaixada na primeira, revela um plano de vingança, em que Ricardo simula a
78
LFT são realizados sob o impacto de forte tensão” (LUCAS,1990, p.66). A brevidade
e a tensão são dois elementos cultivados nos contos lygianos.
No que tange à temática dos contos lygianos, Bueno (2016) pontua que as
produções de Telles flutuam entre “contos cuja temática de mistério traz o efeito da
fantasia, do sobrenatural e do maravilhoso” (BUENO, 2016, p.24), evidenciando,
assim, a maestria da escritora ao construir suas narrativas com pano de fundo, o
mistério, e deflagrar diferentes efeitos. Pode-se observar nos textos de Telles que “há
também uma preferência por situações que causam desconforto às personagens ,
como o medo, o ciúme, a ansiedade etc. Tais vivências contribuem para a existência
de um sobrenatural negativo”, (BUENO, 2016, p.31) pertencente à vertente do
fantástico estranho. A pesquisadora assevera que grande parte dos textos lygianos
que tem como vertente o insólito, traz uma sequência de ações “impregnadas de
mistério que conduzem a um desvelamento inquietante e perturbador das
personagens” (BUENO, 2016, p.04).
A citada autora ressalta que dentre os recursos utilizados pela escritora que
corroboram a agudização do mistério em suas narrativas, destacam-se: “figuras
retóricas, especialmente da ambiguidade, uma linguagem impregnada de opacidade,
de reticências, de figuras dubitativas, de frases premonitórias e [...]recursos
linguísticos que dão sustentação ao mistério” (BUENO, 2016, p.05). Ainda sobre a
classificação de contos de mistério de Telles, a pesquisadora Grigório Matsuoka
(2019), em seu artigo “A Personagem e o Espaço na ficção de Lygia Fagundes Telles”,
classifica as narrativas, Venha Ver o Pôr do Sol, A Caçada e O Encontro como contos
de mistério e assevera, a partir de suas análises, que “os contos de mistério de Lygia
Fagundes Telles têm esse poder: conduzem o leitor em meio a cenários enigmáticos,
por estreitas vias entre real e irreal, a ponto de o familiar transformar-se
inadvertidamente em estranho” (GRIGÓRIO MATSUOKA, 2019, p.01).
Sobre a construção espacial dos contos lygianos, Oliveira (2011) enfatiza que
a escritora explora muito o uso de substantivos e adjetivos na construção do espaço,
além das figuras de linguagem, em especial a sinestesia; o sentido visual é
evidenciado em relação aos demais sentidos, o que Borges Filho (2007) classifica
como gradiente sensorial, recurso estético, utilizado pela personagem para captação
do espaço, objetos, pessoas e de tudo que lhe cerca. A personagem percebe o espaço
ocupado e todos os elementos que o compõem, através do gradiente sensorial da
80
visão. A respeito disso, Oliveira (2011) relata que “na prosa narrativa de Lygia
Fagundes Telles torna-se soberana a visão, essa fronteira móvel e aberta entre o
mundo externo e o sujeito”(OLIVEIRA, 2011, p.02).No conto objeto de nossa
pesquisa, Venha Ver o Pôr do Sol, a pesquisadora assevera que no próprio título do
conto, evidencia-se a supremacia da visão declarando o seguinte: “Ao lermos o título
do conto a ser analisado ‘Venha Ver o Pôr do Sol’ acentuamos a força da visão, pois,
se trata de um convite a exercitá-la e por meio dela vislumbrá-la formas e cores”
(OLIVEIRA, 2011, p.02-03).
Segundo Lucas (1990), Telles aperfeiçoou-se no gênero conto com narrativas
envolventes, tensas, com desfechos que induz o leitor a cogitar algo, pois, “tinha
intrínseca vocação para a história curta, que exige ação e virtuosismo técnico [...]
capaz de criar caracteres, [...] explorar tensões dramáticas em cenas objetivas e
diálogos curtos” (LUCAS,1990, p.63).
Segundo a Academia Brasileira de Letras e traçando um comparativo entre
suas narrativas longas e curtas, a escritora tem quatro romances publicados; dentre
eles : Ciranda de Pedra (1954),Verão no Aquário (1964), As Meninas (1973),As Horas
Nuas (1989). No entanto, a quantidade expressiva de contos publicados pela escritora
supera a de romances, a saber: Porão e Sobrado (1938),Praia Viva (1944),O Cacto
Vermelho (1949) Histórias do Desencontro (1958), Histórias Escolhidas (1964), O
Jardim Selvagem (1965), Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos
Ratos(1977),Filhos Pródigos (1978) A Estrutura da Bolha de Sabão(1991), A
Disciplina do Amor (1980), Mistérios(1981), Venha Ver o Pôr do Sol e Outros
Contos(1987), A Noite Escura e Mais Eu (1995),Oito Contos de Amor (1996), Invenção
e Memória (2000),Durante Aquele Estranho Chá: Perdidos e Achados
(2002),Conspiração de Nuvens (2007),Passaporte para a China: Crônicas de Viagem
(2011),O Segredo e Outras Histórias de Descoberta (2012), Um Coração
Ardente(2012).
do medalhão não pertence à prima de Ricardo, pois, “morreu há mais de cem anos”
(TELLES, 2009, p.142). A descoberta da mentira do personagem é marcada por
extrema tensão e expectativa, por parte do leitor; o plano ardiloso de Ricardo já está
quase concluído, há um jogo de cena, Ricardo já está atrás do portão que separa a
capela do subsolo. O personagem bate o portão para chamar atenção de Raquel, e,
quando ela sobe a escada, ele gira a chave e retira do portão. Mesmo desesperada,
Raquel considera o ato como uma brincadeira de mau gosto e exige que ele abra o
portão. No entanto, ela olha o contraste da fechadura nova com o portão enferrujado
e percebe que não se trata de uma brincadeira, mas uma cilada. Ricardo declara que
“uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta. [...] Você terá o pôr do sol mais belo
do mundo” (TELLES, 2009, p.143). O antagonista guarda a chave no bolso, se
despede de Raquel com um “boa noite, meu anjo” (TELLES, 2009, p.143) e refaz seu
caminho de volta no silêncio do cemitério abandonado, e os sons captados por
Ricardo são os pedregulhos sob seus sapatos e os múltiplos gritos de Raquel
“semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois os uivos foram ficando
mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra” (TELLES, 2009,
p.144). Ricardo chega ao portão de saída do cemitério e, nesse momento, ele lança
“ao poente um olhar mortiço” (TELLES, 2009, p.144). O personagem já não escuta
mais nenhum grito e tem certeza que daquela distância ninguém escutará. Ele acende
um cigarro e desce a ladeira.
A subida da ladeira
dos vivos e mortos. Esses termos espaciais e temporais captados pelo olhar do
narrador antecede o lugar do encontro, o cemitério.
A voz do narrador antecipa ao leitor o silenciamento de Raquel através do
paradoxo nota viva versus quietude da tarde. O silêncio da tarde simboliza o silêncio
da morte, que se presentifica como um imperativo e se agudiza cada vez mais no
espaço, contrastando com a débil cantiga infantil, única nota viva, nesse tópos que
ensaia a chegada da morte.
Raquel capta o espaço da ladeira de forma direta, experienciando-o, e percebe
o espaço que a cerca através do seu gradiente visual, auditivo e de seu sensório-
motor, movimentando-se pelo espaço. A voz do narrador descreve como o espaço é
instalado, utilizando o descritivismo de forma objetiva, característica da espacialização
franca, dessa forma, possibilitando, através da riqueza de detalhes, a composição
espacial percebida pela personagem e pelo leitor e agudiza esse cenário sombrio,
ameaçador e solitário que se forma com “casas espalhadas sem simetria e ilhadas em
terrenos baldios. [..] rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro”
(TELLES, 2009, p.135).
O simbolismo da melodia infantil das crianças, essa sonoridade espacial
captada pela personagem através de seu gradiente sensorial auditivo, embala e
minimiza a solidão de Raquel, mas ao mesmo tempo conota uma marcha fúnebre em
que Raquel está inserida. Ela mesma está conduzindo e sendo conduzida até seu
próprio túmulo, em vida.
O espaço sepulcral localizado no alto da ladeira é ilusoriamente percebido
como um espaço positivo remetendo ao sagrado e divino por estar verticalmente e
prospectivamente perto do céu. No entanto, essa pseudo percepção é anulada, pois
o cemitério, mesmo estando no eixo alto, assume um aspecto negativo, um lugar
ameaçador que esconde/ guarda espaços invisíveis como a capela e o subsolo. Se
faz necessário destacar que o personagem Ricardo, no cume da ladeira, evidencia
sua “superioridade de ordem divina” em relação a Raquel, se autoinserindo no papel
sacrossanto, do próprio criador e que tem em mãos a vida de Raquel; viver ou morrer
será determinado por ele.
O espaço físico topofóbico se opõe ao eixo em que Raquel se encontra. O
cemitério estando no eixo alto, acima da personagem, evidencia a sua superioridade,
bem como, seu poder de domínio e opressão em relação à personagem, estar no eixo
85
Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer
flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e
minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas,
fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas
-Sua prima também?
-Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriament e
bonita, mas tinha uns olhos.... Eram assim verdes como os seus, parecidos
com os seus. Extraordinário Raquel, extraordinário como vocês duas ....
Penso agora que toda beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio
oblíquos, como os seus (TELLES, 2009, p.140).
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto e baixo por uma trepadeira
selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita
porta rangeu quando ele abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de
paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do
cubículo um altar meio desmantelado coberto por uma toalha que adquirira a
cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo
de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de
teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém
colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, um
a portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra descendo em
caracol para a catacumba (TELLES, 2009, p.140).
obscuro e ameaçador. Somado aos objetos instaurados pela voz do narrador: altar
[...] desmantelado, tosco crucifixo, aranha, teias rompidas, porta de ferro, escada de
pedra, catacumba; todos esses elementos agrupam-se na construção desse pequeno
espaço sufocante, tétrico que conduz Raquel a um outro tópos vertical- baixo através
da escada de pedra em caracol metaforizando o efeito espiral/redemoinho em que a
personagem será engolida e seus gritos abafados, pois está em um lugar fundo-no
mesmo nível dos mortos, nas entranhas da morte.
Nesse terceiro espaço da capelinha temos a voz do narrador, com uma
espacialização franca descrevendo de forma minuciosa o espaço que se revela aos
olhos de Raquel; a partir desse detalhamento e riqueza de substantivos e adjetivos
em que o narrador cria um verdadeiro retrato desse pequeno cenário da capela,
conforme as concepções de Dimas (1987) a ação é momentaneamente pausada e
substituída por uma sequência de descrições espaciais captadas pelos gradientes
visuais de Raquel. Os objetos que compõem a capelinha estão carregados de
simbolismo; a cruz simboliza o sofrimento e a morte, o triângulo tecido pela aranha
revela também a teia tecida por Ricardo. A teia em formato de triângulo remete às
pirâmides que na cultura egípcia era o local onde os faraós eram enterrados; era o
verdadeiro espaço da morte. O espaço escuro com paredes enegrecidas e estrias
conforme o trecho acima, dá robustez ao lugar trevoso percebido e ocupado pela
protagonista e prediz o caráter sombrio de Ricardo.
Raquel entra na capelinha “evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da
capelinha” (TELLES, 2009, p.140). Ela capta de imediato o abandono, a poeira, a
ferrugem, a dimensão física espacial e o espaço que se estreita e se aprofunda
escondido atrás de “uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra
descendo em caracol para a catacumba” (TELLES, 2009, p.140).Ela se movimenta
pelo pequeno espaço, experenciando-o e demonstrando curiosidade pela parte
subterrânea da capelinha, sem prestar atenção nas frases emitidas por Ricardo, que
são verdadeiras antecipações ao afirmar que “o que mais amo neste cemitério é
precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram
cortadas e aqui a morte se isolou total e absoluta” (TELLES, 2009, p.141). Raquel,
após observar através do portão o pequeno espaço inferior, ominoso e escondido
dentro da capelinha, sente curiosidade em saber o que há lá embaixo. Vejamos um
90
-E lá embaixo?
-Pois lá estão as gavetas. E nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó -
murmurou ele (TELLES, 2009, p.141, grifo nosso).
Nesse momento, Ricardo está prestes a completar seu plano: ele acende um
fósforo, criando um clima de tensão e mistério para Raquel que apenas vê a cena.
Depois de iluminar o medalhão com a foto, Ricardo cria um clima de sentimentalismo
e, ao mesmo tempo, curiosidade na protagonista, dizendo o seguinte:
-A priminha Maria Emília. Lembro me até do dia em que tirou esse retrato,
duas semanas antes de morrer.... Prendeu os cabelos com uma fita azul e
veio se exibir, estou bonita? Estou bonita|?
-Não é que fosse bonita, mas os olhos.... Venha ver, Raquel, é
impressionante como tinha os olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
Não estou enxergando!
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
-Pegue dá para ver muito bem...[...]. -Repare nos olhos (TELLES, 2009,
p.142).
Leu em voz alta, lentamente. -Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil
e oitocentos e falecida...
-Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua
namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti....
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça
estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava
por detrás da portinhola fechada. [...]- Isso nunca foi o jazigo de sua família
seu mentiroso! Brincadeira mais cretina. - exclamou ela, subindo rapidament e
a escada. Não tem graça nenhuma, ouviu? -Ele esperou que ela chegasse
quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave,
arrancou-a da fechadura e saltou para trás. Ricardo abre isto imediatamente,
detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso (TELLES, 2009, p.142, grifo
nosso).
-Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. -Seu idiota! (TELLES ,
2009, p.142).
_Ouça meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos ,
abra.... (TELLES, 2009, p.143).
-Cretino, me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu examinando a
fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma
crosta de ferrugem (TELLES, 2009, p.143).
Raquel não desconfiava que o perigo que a cercava não era o espaço, mas o
próprio Ricardo que utiliza o cemitério abandonado (topofóbico) como um tópos
favorável para concretização de seu plano, no entanto, após a ação final de trancá-la
na parte subterrânea da capela, ela percebe que caiu em uma cilada. Segundo
Bremond (2011) a cilada é uma forma de agressão velada, “fazer cilada é agir de
modo que o agredido, em lugar de se proteger como poderia fazê-lo, coopera a sua
revelia com o agressor (não fazendo o que devia ou fazendo o que não devia) ”
(BREMOND, 2011, p.129). Como um jogo de palavras, em que a personagem “não
fez o que devia” pela perspectiva do leitor, que talvez sair correndo ou simplesmente
ir embora depois de saber que o encontro frustrado seria apenas para ver o pôr do sol
de um ponto específico do cemitério, mas simplesmente faz “o que não devia”, cede
93
nosso). A natureza mórbida e o vento frio perceptível no espaço são agudizados pela
intenção negativa e comportamento frio de Ricardo em vias de encerrar a vida de
Raquel.
O cenário do cemitério denotando a concretude da morte funciona como uma
prolepse espacial, ou seja, uma antecipação de uma ação que conduz para a finitude
da vida. A composição interna do espaço sepulcral é instaurada pela voz do narrador
observador, intercalada com a voz e a percepção das personagens; há uma
intercalação entre espacialização franca e espacialização dissimulada através das
descrições da necrópole em ruínas captadas pelo olhar de Raquel com as descrições
do cemitério com muro arruinado, ora pela voz do narrador, ora pela voz da
personagem. A escolha do local do encontro antecipa ao leitor que existe uma
intenção velada, um plano vingativo que se sucede. O espaço em si representa uma
ameaça à vida de Raquel; como uma espécie de metáfora espacial, sua vida será
interrompida naquele espaço.
O gradiente auditivo de Raquel capta o som emitido no espaço, o grito do
pássaro (considerado uma ave agourenta, cujo canto emite um aviso de morte). O
grito do pássaro de forma premonitória antecipa que algo ruim está prestes a
acontecer. Algumas aves são classificadas como agourentas, em especial, a coruja e
o corvo, pois anunciam a morte de alguém. Vejamos dois excertos da percepção
auditiva da personagem agudizando sua premonição em relação ao espaço ominoso.
Logo após o grito da ave, Raquel sente frio, captado pelo gradiente sensorial
tátil. O frio que a personagem sente funciona também como uma prolepse espacial,
pois simboliza o frio da morte.
Durante o percurso feito por Raquel, do cemitério até o subsolo da capela,
Ricardo utiliza um termo que funciona como uma frase premonitória: Meu Anjo. O
tratamento que o personagem concede a sua ex-namorada, chamando-a de meu anjo
em quatro momentos da narrativa pode soar como uma comparação carinhosa, mas
assume um teor negativo carregado de malícia.
A fala de Ricardo não causa estranheza para Raquel, pois ela acredita que
Ricardo ainda sente amor por ela. O pronome (meu) dá ideia de posse, revelando sua
95
obsessão pela personagem; já que Raquel não pode ser sua namorada ou amante,
ela será seu eterno anjo através da morte.
A frase verbalizada pelo antagonista também é uma prolepse espacial, uma
antecipação da ação. Sua primeira fala acontece no espaço inicial, em frente ao
cemitério, quando Ricardo anuncia o destino da sua ex-namorada: “Cemitério
abandonado, meu anjo. Vivos e mortos desertaram todos” (TELLES, 2009, p.136,
grifo nosso). A personagem será abandonada tal qual o espaço.
O antagonista utiliza o termo pela segunda vez de dentro do cemitério para
justificar que está sem dinheiro e, devido a isso, escolheu o local do encontro, um
passeio simples, gratuito e honesto, “Estou sem dinheiro meu anjo, vê se entende [...]
Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente[...] Até romântico” (TELLES,
2009, p.137, grifo nosso). A justificativa financeira para escolha do local soa como um
imperativo; Ricardo está mais pobre, conforme sua fala: “mas fiquei mais pobre ainda.
[...]. Moro agora em pensão horrenda” (TELLES, 2009, p.136). Em seguida, enfatiza
que a escolha do lugar está relacionada também a sua discrição: “- Mas me lembrei
deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem
lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja completamente” (TELLES,
2009, p.137, grifo nosso). Ricardo emprega o termo “meu anjo” que pode conotar um
ex-namorado cuidadoso, gentil e, ainda apaixonado, que deseja apenas um último
encontro às escondidas, mas preza pelo anonimato e pelo novo relacionamento de
Raquel, por isso, escolhera como lugar para o encontro, um cemitério desabitado,
silencioso e afastado da cidade.
O terceiro momento de uso da prolepse-meu anjo acontece na entrada da
capelinha momento em que já estão ocupando um espaço estreito, obscuro. “Já
chegamos meu anjo. Aqui estão meus mortos” (TELLES, 2009, p.141, grifo nosso). A
frase meu anjo, associada à referência espacial “aqui estão meus mortos” designa o
anúncio de que breve Raquel fará parte daquele espaço, se unirá aos “mortos de
Ricardo”.
Ricardo usa o termo pela quarta vez no final da trama ao despedir-se de
Raquel, que se encontra trancada no subsolo da capelinha; após ter concluído seu
plano macabro, ele diz um “Boa Noite, Meu Anjo” confirmando seu anúncio da morte
de Raquel. Com seu ato, Ricardo também “remove sua máscara” e revela seu caráter
maquiavélico e doentio. A protagonista será silenciada em vida, tornando-se um anjo.
96
Outra prolepse espacial em que Ricardo prediz suas intenções para Raquel,
adiantando que o seu destino será o abandono naquele lugar afastado, sem nenhum
contato com os humanos, de forma irônica e ilusoriamente romântica ele diz: “[...] o
que mais amo nesse cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes
com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta” (TELLES,
2009, p.141).
No que concerne às funcionalidades do espaço sepulcral foram identificadas
quatro funções. A primeira função é caracterizar as personagens situando-as no
contexto socioeconômico e psicológico em que vivem. Essa funcionalidade representa
a caracterização do status social de Ricardo, bem como seu psicológico. O passeio
simples em um cemitério pobre denota a condição financeira de Ricardo, desprovido
de bens materiais e sem nenhuma ambição financeira, o oposto de Raquel. A escolha
do espaço sepulcral aliado ao fato de ser abandonado prediz o lado obscuro,
persuasivo e psicopata de Ricardo. O cemitério vazio e abandonado revela o vazio do
coração de Ricardo ora preenchido pelo ódio e desejo velado de vingança que sente
pela substituição e abandono da namorada. A segunda funcionalidade é que o lugar
é propício para os planos do antagonista, o cemitério, enquanto local afastado da
cidade e completamente abandonado, sem nenhuma intervenção dos vivos, é
favorável ao plano doentio e torpe de Ricardo.
A terceira funcionalidade espacial é representar os sentimentos vividos pelo
antagonista. O cemitério, enquanto cenário da narrativa, desprezado, vazio e nefasto
é análogo ao sentimento de desprezo e solidão vivido por Ricardo, ao sentir-se trocado
e abandonado por Raquel. A natureza selvagem e voraz do cenário de forma
especular reflete o lado selvagem, cruel e incontrolável de Ricardo. Essa composição
espacial ferina e indomável que espelha o antagonista é representada pelo “mato
rasteiro [que] dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos
canteiros, subira pelas sepulturas. [...] a erva daninha brotando insólita de dentro da
fenda” (TELLES, 2009, p.138-139).
E, por último, a quarta função espacial é antecipar a narrativa. O espaço
assume o papel de prolepse espacial. O cemitério denotando a concretude da morte
revela-se em um espaço premonitório evidenciando a morte.
97
15“Acorrespondência é, de fato, impressionante: cerca de cem mil cartas, algumas de trinta ou quarent a
páginas. Quanto aos poemas, até hoje não existe um levantamento completo” (HOUELLEBECQ, 2020,
p.31).
99
criou um estilo próprio tanto do ponto de vista de conteúdo quanto de forma, o qual é
associado ao seu nome, e este estilo influenciou diversas obras” (DUTRA, 2015, p.93).
Os contos de Lovecraft podem ser classificados em horror tradicional e horror
moderno. No que tange ao horror tradicional, seus personagens vivenciam
acontecimentos de ordem sobrenatural como em A Tumba e, além disso, eles
transitam em espaços ermos, mal iluminados, mofentos e fantasmagóricos. No que
diz respeito a seus contos classificados como horror moderno, Lovecraft torna-se o
precursor nas narrativas de horror ficcional ou horror moderno, em que os típicos
personagens do horror gótico como vampiros, bruxas, espectros, demônios são
substituídos por criaturas grotescas, abomináveis e poderosas; faz alusão a rituais
secretos semelhante ao Sabá das bruxas, descobertas de lugares ou objetos que
desencadeiam estranhos acontecimentos, além do medo diante do diabólico, do
monstruoso e do desconhecido, emoções deflagradas pelos personagens de suas
narrativas.
Seus contos são “repletos de criaturas bizarras, ancestrais e assustadoras,
compostas por descrições e abordagens científicas [...] por uma filosofia materialista
que trata a humanidade como um inconveniente irrelevante” (ANATER, 2021, p.09).
O Chamado de Cthtulhu, considerado sua Magnum Opus é um exemplo de horror de
ficção científica; seus personagens monstruosos e suas temáticas servirão de
inspiração para diversos escritores e artistas no âmbito cinematográfico. Vejamos um
trecho da descrição do monstro inominável do conto O Chamado de Cthulhu.
O monstro Cthulhu é uma espécie de polvo gigante que habita a “grande cidade
de pedra de R’lyeh, com seus monólitos e sepulcros” (HOUELLEBECQ, 2020, p.117).
O monstro é dotado de habilidades e poderes; está adormecido em uma cidade nas
profundezas do oceano e aguarda por um ritual de reavivamento que consiste em
culto secreto realizado concomitante o alinhamento das estrelas. Ele envia
mensagens telepáticas para os humanos. Sobre isso Joshi relata que: “Lovecraft pode
100
ter tido, de fato, uma crença exagerada no poder do pensamento para afetar o
comportamento humano16” (JOSHI,2016, posição 328 de 360 kindle, tradução nossa)
As criaturas de Lovecraft se comunicam com os seres humanos através da
telepatia e dos sonhos, como por exemplo, no conto Dagon, o homem-peixe é o
personagem monstruoso, que se comunica e atormenta o protagonista durante o sono
e, o conduz a um estado de medo e horror desejando o suicídio como solução para
seu sofrimento. “Sabiam de tudo o que estava ocorrendo no universo, mas Seu modo
de comunicação era a transmissão de pensamento. Agora mesmo eles estavam
falando em Suas sepulturas” (HOUELLEBECQ, 2020, p.116).
No que diz respeito a seus personagens “humanos”, eles são pesquisadores,
professores de universidades, médicos, arquitetos, arqueólogos, antropólogos,
escultores, artistas e poetas; personagens ligados à pesquisa, à ciência e às artes
evidenciando o contexto histórico no qual o escritor está inserido, o século XX nos
Estados Unidos, marcado por um boom na ciência e tecnologia principalmente. Vale
destacar que, no conto O Chamado de Cthulhu, a classe de artistas e poetas é
classificada como sensível, suscetível a se comunicar e receber mensagens
telepáticas dos monstros. “Foi dos artistas e poetas que as respostas pertinentes
vieram, e sei que o pânico teria se instalado se eles tivessem conseguido comparar
suas anotações” (HOUELLEBECQ, 2020, p.106).
O estado de horror em que seus personagens são tomados ao entrar em
contato com esses monstros inomináveis ou descobrirem segredos é a característica
mais evidenciada em sua narrativa, algo que avança para a loucura e o desejo de
morrer. Eles “não ficam empolgados ao estabelecerem contato com os seres
extraterrestres, mas assustados ou enlouquecidos” (DUTRA, 2015, p.94). A morte
surge de forma misteriosa ou através do suicídio. “A morte de seus heróis não tem
nenhum sentido. Ela não traz nenhum alívio. [...] Implacavelmente, HPL destrói seus
personagens sem sugerir nada além do desmembramento de uma marionete”
(HOUELLEBECQ, 2020, p.25). “O protagonista lovecraftiano não é heróico e não
salva o mundo no final, pelo contrário, é um personagem impotente perante as forças
maiores que ele” (DUTRA, 2015, p.94).
16Lovecraft may, indeed, have had an exaggerated belief in the power of thought to affect human
behaviour (JOSHI, 2016, position 328-360 kindle).
101
17A marca Própria de um autor, “não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a
escolher um assunto modificar uma técnica, nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição,
com as influências específicas que agiram sobre ele com o gosto de sua época” (NITRINI, 1997, p.141).
18Physic possession is a theme we find in the earliest of Lovecraft’s tales: “The Tomb”, “Polaris”,
“Beyond the Wall of Sleep” (JOSHI, 2016, position 323 from 360, kindle).
102
mais sutil no conto A Tumba em que rituais eram realizados na mansão dos Hydes
através de “ritos estranhos e festas pagãs de anos passados” (LOVECRAFT, 2019,
p.10).
A Tumba é um dos primeiros contos de horror tradicional escrito em 1917 e
publicado em 1922 na revista Vagrant; com uma linguagem rebuscada à moda Allan
Poe. Na narrativa há um duplo que consiste em uma espécie de autobiografia ou
projeção de sua infância presente no personagem Jervas Dudley, ao relatar que
durante a infância passava maior parte do tempo lendo livros antigos remete a uma
projeção da vida do próprio Lovecraft na sua fase juvenil, que teve seu primeiro
contato com a biblioteca de seu avô repleta de clássicos literários como: Ilíada,
Odisseia, contos de horror e livros ligados à ciência e astronomia; tal fato corrobora
a projeção de sua vida e de seu amor pela leitura em seus personagens com “a
utilização de personagens e situações sistematicamente autobiográficas, como se a
cada narrativa , heróis, vilões fossem duplos” (MIGUEL, 2006, p.13).
Sobre a projeção da vida do escritor em seus personagens Hatfield, Hobbs e
Lynch (2019) no artigo “Multilayered Specter, Multifaceted Presence: A Critical Edition
of H.P. Lovecraft’s“ TheTomb”, asseveram a presentificação de Lovecraft dentro do
conto A Tumba: tal constatação é evidenciada pelas características comportamentais,
educação e solidão do escritor na sua fase juvenil que se assemelha à do protagonista
Jervas Dudley. Vejamos um trecho a seguir:
19 Lovecraft himself had an upbringing similar to that of his protagonist. […] Lovecraft led a solitary
childhood, housed largely within books from his family library. This solitude is reflected in Jervas who,
although not physically ill, remains distant from society, enveloped within volumes from the family library
when not haunting the tomb. As Jervas Hyde begins to materialize, the reader is presented with a
symbolicentityrepresentingtheauthor’sself-realizedarchaicpresence (HATFIELD; HOBBS; LYNCH,
2019, p.99).
103
20 The telephone, whose name means literally “sound over distance,” seemed even more ghostly. To
talk with someone, you could not physically see, especially someone on another continent, (HATFIELD;
HOBBS; LYNCH, 2019, p.96).
21 the unknown was a common topic for Gothic writers, whose text soften featured a mysterious object
or a system of magic that could be wielded by only a single” (HATFIELD; HOBBS; LYNCH, 2019, p.96).
104
sozinho. [...] pois, na falta da companhia dos vivos, ele[...] busca o apoio[...] coisas
que não são ou não estão mais vivas” (LOVECRAFT, 2019, p.08).
A narrativa é constituída de quatro cenários interligados, e dentre eles estão: a
casa de Jervas, o bosque, a tumba (o espaço externo e interno) e a mansão fantasma
dos Hydes; os dois últimos espaços são os mais importantes, pois provocam intensa
curiosidade mesclada com obsessão no protagonista.
Jervas relata que desde quando tinha dez anos de idade passava a maior parte
do tempo lendo livros antigos e costumava caminhar pelos bosques que havia perto
da casa de seus pais. Em uma de suas andanças, ele encontra o portal da tumba dos
Hydes, um lugar que lhe causa estranhamento, curiosidade e fascínio. A partir dessa
descoberta, a narrativa gira em torno dessa câmara mortuária dos Hydes, encontrada
de forma repentina, localizada no bosque. Os Hydes eram uma família nobre e muito
conhecida na cidade, e “foram vitimados pelas chamas que começaram com a queda
de um raio” (LOVECRAFT, 2019, p.08). Todos os membros morreram e estão
enterrados em caixões no interior da tumba com exceção, um membro da família, que
teve seu corpo completamente queimado e as suas cinzas foram colocadas em uma
urna e levada para a parte interna do túmulo.
Após esse primeiro contato direto com a tumba, Jervas fica cada vez mais
curioso e obcecado em adentrar a câmara mortuária; ele examina a fenda da porta e
tenta entrar pelo estreito espaço forçando seu corpo magro de garoto, mas sem
sucesso. Ele relata que passa as tardes sentado diante da porta da tumba, buscando
uma forma de entrar e conhecer a estrutura interna e o que havia lá embaixo. Buscava
saber as histórias da família Hydes e, após descobrir seus laços de parentesco
longínquos com os Hydes, seu desejo de conhecer o interior do túmulo se intensifica,
como uma sensação de pertencimento à família.
Já na fase adulta, Jervas relata que uma noite após adormecer em frente ao
portal, ele teve uma revelação sobrenatural de onde estaria a chave que abre a porta
da tumba e, ao mesmo tempo revela ter escutado vozes e que uma luz havia sido
apagada assim que ele despertara; além disso, o personagem constata que após essa
experiência seu vocabulário e seu comportamento foram modificados. Após conhecer
o interior do túmulo, ele frequenta cada vez mais o lugar; sua mudança
comportamental foi percebida pelos seus pais que logo trataram de vigiar seus passos
106
e sabiam de sua frequente visita à tumba dos Hydes e as noites que dormia lá; passara
agora a ter mais cautela para despistar um possível espião.
Em uma de suas visitas noturnas a tumba, Jervas presenciou um
acontecimento sobrenatural que foi o surgimento da mansão fantasma no espaço da
tumba dos Hydes, a mansão estava toda iluminada e convidativa; havia uma festa
com vários convidados fantasmagóricos que bebiam, conversavam e sorriam dentre
eles, Jervas era o mais animado e depravado, mas a festa é interrompida com um
estrondo de um raio que rachou o telhado e as chamas tomaram conta da casa, todos
os convidados fugiram, mas Jervas Dudley permaneceu sentado com um medo das
chamas, e experiencia um segundo horror sobrenatural, ele se vê queimando vivo e
tem as cinzas espalhadas “pelos quatro ventos talvez eu nunca fosse sepultado na
tumba dos Hydes! Meu caixão não estava preparado para mim? ” (LOVECRAFT,
2019, p.18, grifo do autor).
O narrador declara que quando o fantasma da casa queimando, desapareceu,
ele se viu gritando e lutando nos braços de dois homens; um deles era o espião que
costumava segui-lo até a tumba, e enquanto ele se debatia seu pai presenciava toda
aquela cena demonstrando tristeza. O personagem pedia para ser colocado dentro da
tumba. “No dia seguinte me trouxeram para este quarto com as janelas gradeadas,
mas fui mantido informado de algumas coisas por intermédio de um criado idoso e
simplório” (LOVECRAFT, 2019, p.19). Seu pai o visita constantemente e contesta toda
a experiência de Jervas no interior da tumba, afirmando que em nenhum momento ele
teria entrado na câmara dos Hydes, cuja porta está acorrentada. Seu pai declara,
ainda, que todos do vilarejo sabiam de suas visitas até a tumba e, muitas vezes, foi
“observado dormindo no caramanchão do lado de fora da fachada sinistra com os
olhos semiabertos, fixos sobre a fenda que leva ao seu interior” (LOVECRAFT, 2019,
p.19).
Sobre seu vocabulário rebuscado, tal mudança é justificada pelos livros que
costumava ler, pois passou “uma vida inteira folheando toda sorte de livros em meio
aos volumes antigos da biblioteca da família” (LOVECRAFT, 2019, p.19). O
personagem não tem como provar a sua experiência na tumba, pois a chave que
carregava no pescoço havia sido perdida naquela noite durante a confusão, no
entanto, Hiram, o seu criado, vai até a tumba, rompe o cadeado deixando a porta
entreaberta; ao descer com uma lanterna até a parte profunda escura da tumba, ele
107
encontra um caixão velho e vazio com a placa que trazia o nome Jervas. Vejamos um
trecho a seguir:
Leal ao passado, seguiu tendo fé em mim e fez aquilo que me obriga a tornar
público pelo menos parte da minha história. Uma semana atrás, ele arrombou
a tranca que acorrenta a porta da tumba, deixando -a perpetuamente entre
aberta, e desceu como a lanterna para as profundezas sombrias. Sobre uma
lousa [...] ele encontrou um cachão velho e vazio cuja placa manchada traz
uma única palavra: Jervas. Naquele caixão e naquela câmara mortuária eles
me prometeram que serei enterrado (LOVECRAFT, 2019, p.19).
retorna após passar as tardes no bosque sentado em frente à tumba. Embora a casa
dos pais de Jervas não seja tão mencionada no conto pelo personagem, fazendo
menção apenas como o lugar de moradia, a casa é um lugar topofílico, representa o
lugar de aconchego, paz e segurança para o personagem que mesmo passando muito
tempo longe de casa, sempre volta para a casa. Vejamos um fragmento inicial.
“Próximo da minha casa há um vale arborizado peculiar em cujos recantos na
penumbra passei a maior parte do tempo, lendo, pensando, sonhando” (LOVECRAFT,
2019, p.08). A rotina de Jervas desde a infância sempre foi sair de casa e caminhar
pelo bosque sempre retornando ao seu lar ao final da tarde, mas essa rotina será
modificada ao longo da narrativa. O personagem encontrará um lugar escondido no
bosque que lhe despertará a curiosidade e um sentimento semelhante ao da casa, um
sentimento de afeição e de refúgio. “A casa é um símbolo feminino com sentido de
refúgio, de mãe, de proteção de seio maternal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990,
p.197).
Jervas desde a infância passeia pelo bosque situado próximo de sua casa, o
personagem está familiarizado com esse vale arborizado, com “os seus barrancos
cobertos de musgo [...]seus carvalhos grotescamente nodosos” (LOVECRAFT, 2019,
p.08). O bosque é um lugar aberto, amplo e englobante; é um tópos misterioso,
silencioso e dissimulado que esconde um lugar ominoso e topofóbico- o túmulo da
extinta família Hydes. O bosque é espaço dissimulado que flutua entre topofílico e
topofóbico. Topofílico por ser um tópos que desperta afeição do personagem e
topofóbico por esconder um lugar genuinamente horrendus, um tópos da morte, ele
abriga uma “tumba solitária na mata cerrada escura da encosta” (LOVECRAFT, 2019,
p.08).
O bosque é um espaço marcado pela horizontalidade, Jervas se movimenta
por esse tópos de forma retilínea e prospectiva, adentrando cada vez mais nesse
espaço arborizado, ele capta esse cenário através de sua habilidade motora e do seu
gradiente visual que revelam a intensidade do espaço verde evidenciando pelas
árvores, os musgos e os carvalhos que compõem esse cenário natural singularizado
por uma natureza silvestre. O bosque é o lugar no qual Jervas passou maior parte de
109
sua infância e de seu tempo, ele conhece o bosque de forma direta e íntima, portanto,
o bosque é um lugar familiar, assim como, todos os elementos inseridos nesse
cenário, com exceção a tumba que por estar meio escondida na encosta, a princípio
revela-se em um tópos estranho (o portal do túmulo dos Hydes), mas que se tornará
familiar para o personagem através do contato direto com esse tópos tétrico.
A espacialização dissimulada é construída pelo narrador personagem que
descreve o espaço à medida que narra os fatos, avançando para as ações espaciais.
Jervas descreve o bosque como um vale repleto de árvores com uma vegetação
rasteira e selvagem, um lugar no qual ficava nos cantos sombreados. Conforme trecho
a seguir:
Nunca vou me esquecer a tarde em que encontrei ao acaso pela primeira vez
a casa da morte meio escondida. Era o auge do verão, quando a alquimia
da natureza transforma a paisagem silvestre numa massa de verde intenso
e, quase homogêneo, quando os sentidos são quase inebriados com as
ondas repentinas de orvalho das folhagens e os cheiros sutilmente
indefiníveis da terra e da vegetação (LOVECRAFT, 2019, p.09, grifo nosso).
Depois de encontrar o túmulo dos Hydes, a parte externa e visível que é o portal
da tumba, Jervas fica fascinado como se tivesse encontrado um tesouro perdido ou
abandonado. Ele relata suas primeiras impressões sobre o portal da tumba dos
Hydes:
pedra trancada por cadeados e correntes de ferro, entreaberta com uma fenda, mas
que não possibilita sua entrada. O personagem percebe o lugar ominoso que lhe cerca
com seu aspecto horrífico, abandonado e envelhecido pela ação do tempo de forma
real. Vejamos um trecho em que o personagem tenta ver o que existe no interior da
câmara mortuária:
Uma vez enfiei uma vela para dentro da entrada quase fechada, mas não
consegui ver nada a não ser um lance de degraus de pedra esmaecida
que levavam para baixo. O cheiro do lugar repugnou-me, mas, apesar
disso, enfeitiçou-me (LOVECRAFT, 2019, p.10, grifo nosso).
trancada, meu santuário e aqui eu ficava deitado sobre o chão musgoso pensando
coisas esquisitas e sonhando sonhos estranhos” (LOVECRAFT, 2019, p.12).
O lugar é transmutado em um lugar de tranquilidade para o personagem, sua
relação com o portal da tumba é de afeição (topofilia); associando- o com um templo,
um local sagrado que evoca paz.
Jervas relata que uma revelação lhe foi feita em uma noite que adormeceu em
frente à tumba; relata ter ouvido uma conversação, vozes com uma retórica precisa
de cinquenta anos atrás. A princípio o que parecia sonho ele comprova que foi real.
Vejamos um trecho:
A noite da primeira revelação foi uma noite mormacenta. Eu devo ter dormido
de cansaço, pois foi com um sentimento claro de despertar que ouvi as vozes .
Desses tons de voz e sotaques hesito em comentar e da sua essência não
vou falar, mas posso dizer que eles apresentavam algumas diferenç as
incomuns de vocabulário, pronúncia e modo de elocução. [...]. Naquele
instante, na verdade, minha atenção fora distraída dessa questão por outro
fenômeno, um fenômeno tão fugaz que mal pude jurar sobre sua realidade .
Eu mal pude acreditar quando acordei e uma luz foi apagada com pressa
dentro da sepultura abaixo. Não acredito que estava aterrorizado, ou tomado
pelo pânico (LOVECRAFT, 2019, p.12-13).
De posse da chave, ele vai até o portal da tumba, abre a porta e desce até as
profundezas do túmulo. Sua primeira experiência e emoção deflagrada por adentrar
na tumba é revelado pelo personagem narrador. Vejamos a seguir as primeiras
impressões espaciais do personagem captadas pelos seus gradientes sensoriais:
113
Foi na luz suave do fim da tarde que entrei pela primeira vez na câmara
mortuária da colina abandonada. Um feitiço tomara conta de mim, e meu
coração pulava de alegria que mal consigo descrever. Quando fechei a port a
e desci os degraus que gotejavam de umidade sob a luz da minha única vela,
eu parecia conhecer o caminho, e apesar da vela ter crepitado com a
atmosfera infecta e asfixiante do lugar, senti-me particularmente a vont ade
no ar mofado de ossuário. Olhando a minha volta observei muitos caixões
com lousa de mármore, ou os restos de caixões (LOVECRAFT, 2019, p. 13).
Jervas Dudley, como se estivesse tomado pelo espírito de Jervas Hyde, apaga
a vela e se deita no caixão; para o personagem tal ato assemelha-se ao ato de apagar
as luzes e deitar-se na cama, não há distinção, não há o que temer o sentimento é
topofílico, o caixão é transmutado em lugar especial reservado que ele tem certeza de
que é só seu.
O “túmulo é o lugar de metamorfose do corpo em espírito[...], mas é também
o abismo onde o ser é devorado pelas trevas passageiras e fatais”
(CHEVALIER,1990, p.915, grifo nosso). A simbologia do túmulo evidencia o fim da
matéria em um processo de transformação horrenda através da decomposição
acelerada por bactérias em que o cadáver é transmutado em esqueleto, após toda
massa corpórea ser consumida, restará apenas uma estrutura esquelética pavorosa
que iguala a todos. O túmulo é o lugar destinado aos mortos, constitui um tópos
nefasto e sem retorno, no entanto, Jervas sente-se enfeitiçado em relação ao lugar,
o sentimento de excitação mesclado com alegria de Jervas em adentrar a câmara
mortuária dos Hydes, como se estivesse entrando em sua própria casa, contrasta
com a composição insólita representada pela escuridão da tumba, além da umidade
misturada com o odor do mofo, o ossuário e os caixões dispostos em cima de uma
mesa de mármore; todos esses elementos internos disfóricos instaurados no cenário
predominantemente topofóbico agudizam o espaço perturbador da tumba, mas essa
espacialidade ominosa não irrompe nenhum sentimento de medo ou aversão em
Jervas em relação ao tópos da morte. O mobiliário da tumba captado pelos gradientes
sensoriais do personagem não lhe causa estranheza.
Jervas revela o avanço no tempo, sua experiência com o espaço dos mortos
em um período de onze anos, desde quando era garoto com dez anos de idade,
quando encontrou a tumba escondida no bosque e já fase na adulta, com vinte um
ano, continua sua rotina, dormindo na tumba e voltando para casa ao amanhecer.
Vejamos um trecho a seguir:
Uma manhã, quando saía da tumba úmida e prendia a corrente do portal [...]
observei na mata contígua o rosto temível de um vigia. Certamente o fim
estava próximo, pois meu caramanchão fora descoberto e o objetivo das
minhas incursões noturnas, revelado. [...]. Será que minhas visitas além da
porta acorrentada estariam prestes a ser proclamadas ao mundo? O homem
não me abordou, então voltei às pressas num esforço de ouvir o que ele
poderia relatar para meu pai aflito.[...] Que milagre então havia tapeado o
vigia? Eu estava convencido que uma intervenção sobrenatural me protegia.
Encorajado por esse incidente [...] passei a ir abertamente à câmara
mortuária, confiante que ninguém testemunharia a minha entrada
(LOVECRAFT, 2019, p.16).
Os termos tumba úmida, corrente do portal, mata, rosto terrível, fim, incursões
noturnas, milagre, intervenção sobrenatural, aflito e câmara mortuária - essas figuras
corroboram na construção do espaço sinistro e topofóbico percebido como topofílico.
O personagem teme que seu pai descubra seu novo hábito, pois um vigia ordenado
por seu pai lhe segue e sabe de toda sua rotina. Jervas acredita que seu pai não
desconfia de nada, e que conseguiu enganar o seu seguidor. Ele acredita que como
não houve interrogatório em sua casa, uma força sobrenatural o protege para que
nada seja descoberto. E baseado nessa concepção, ele frequenta de forma mais
intensa o lugar. As concepções de Jervas flutuam a todo instante entre certo e errado,
natural e sobrenatural. Ele tem consciência que seu comportamento é errado, no
entanto, o personagem se comporta como se estivesse certo e como se pertencesse
a extinta família Hydes, seu contato e suas experiências sobrenaturais são encaradas
como naturais, sem nenhum medo do desconhecido e do fantasmagórico conforme
ele destaca: “Por uma semana vivi todas as alegrias daquela sociabilidade sepulcral
que não devo descrever. Foi então que aconteceu a coisa” (LOVECRAFT, 2019, p.17,
grifo do autor). A coisa a que o personagem se refere é o surgimento da mansão
fantasma dos Hydes sobre a tumba, uma visão fantasmagórica percebida por Jervas
que se sentiu atraído pelo lugar festivo com desfecho assustador para o personagem,
que relata que após esse acontecimento, ele foi confinado em um “asilo para loucos”
(LOVECRAFT, 2019, p.07).
Permaneci sozinho, preso ao meu assento por um medo rastejante que nunc a
sentira antes. E então um segundo terror tomou conta da minha alma.
Queimado vivo até virar cinzas, com meu corpo espalhado pelos quatro
ventos (LOVECRAFT, 2019, p.17).
E então um segundo terror tomou conta da minha alma. Queimado vivo até
virar cinzas, com meu corpo espalhado pelos quatro ventos, talvez eu nunc a
fosse sepultado na tumba dos Hydes! Meu caixão não estava preparado para
mim? Eu não tinha o direito de descansar por toda a eternidade em meio aos
descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Sim! Eu reivindicaria minha herança de
morte, mesmo que minha alma tivesse que procurar ao longo dos tempos por
outra morada corpórea para representa-la na lousa desocupada do nicho da
câmara mortuária (LOVECRAFT, 2019, p.17-18, grifo do autor).
Toda sua versão de experiência na tumba dos Hydes é contestada por seu pai
que afirma que ele nunca havia entrado na câmara dos Hydes, pois o cadeado
continua intocável e que sabia de seus passeios, assim como todos do vilarejo. Sobre
a modificação da linguagem, as coisas estranhas que aprendeu, tudo é justificado por
seu pai como resultado “de uma vida inteira folheando toda sorte de livros antigos da
biblioteca da família” (LOVECRAFT, 2019, p.19). Todos os argumentos e provas de
Jervas são descartados pelo seu pai, no entanto, Jervas pede para seu fiel criado
Hiram ir até a tumba.
Não fosse meu velho criado Hiram, eu já teria a esta altura ficado bastante
convencido da minha loucura. Mas Hiram, leal ao passado, seguiu tendo fé
em mim. [...]. Uma semana atrás ele arrombou a tranca que acorrenta a port a
da tumba, deixando-a perpetuamente entreaberta, e desceu com uma
lanterna para as profundezas sombrias. Sobre uma lousa num nicho ele
encontrou um caixão velho e vazio cuja placa manchada traz um a única
palavra: Jervas. Naquele caixão e naquela câmara mortuária eles me
prometeram que serei enterrado (LOVECRAFT, 2019, p.19, grifo do autor).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
profundidade do lugar, são duas características marcantes nos dois contos; Raquel e
Jervas descem até as profundezas dos mortos. Outro aspecto semelhante, mas com
significado diferente, é o simbolismo da chave; nas duas narrativas a chave surge
como elemento símbolo do destino de cada personagem. Raquel precisa da chave
para sair das profundezas da morte onde se encontra trancada pelo seu algoz; de
forma contrária, Jervas encontrou e tem a chave para entrar e sair, o personagem
detém o objeto que lhe proporciona liberdade e controle, ele determina se quer estar
dentro ou fora da tumba.
A divergência nas duas narrativas está relacionada à reação de cada
personagem, bem como o sentimento deflagrado por cada um na experimentação do
lugar desconhecido, profundo e horripilante. O sentimento de medo velado, de
aversão ao lugar percebido, na personagem Rachel, diferencia-se do sentimento de
curiosidade de pertencimento do personagem Jervas Dudley.
O sentimento deflagrado pelo lugar, bem como a sua classificação em topofílico
ou topofóbico está relacionado a dois fatores: aspecto físico do lugar e a experiência
direta com o lugar. O primeiro fator designa como o lugar em seu aspecto físico é
percebido pela personagem, utilizando seus gradientes visuais; já o segundo fator é o
conhecimento direto do espaço através da experimentação direta que é algo subjetivo
e único para cada um. O mesmo espaço pode deflagrar experiências e sentimentos
positivos ou negativos, portanto, o significado, o sentimento e a concepção que a
personagem atribui ao lugar estão condicionados às experiências vivenciadas no
lugar. O sentimento do personagem pelo espaço é resultante da experiência espacial
e, consequentemente, a familiarização; ele é um agente subjetivo que abrange um trio
de emoções deflagradas no contato direto com o tópos tais como: sensação,
percepção e concepção, sua relação de afetividade com o tópos da morte perpassa
aspectos estéticos e simbólicos, mas acima de tudo, o sentimento de afeição ou
aversão é determinado pelo lugar e pelos laços afetivos que o tópos (cemitério)
irrompe no personagem. E, por último, o sentimento dos personagens desencadeado
pelo tópos é subjetivo e único.
A relação afetiva com o espaço abrange o campo real e ficcional, o ser humano
está sempre ocupando espaços abertos ou fechados, no entanto, o que é mais
evidenciado é o sentimento que cultiva pelo espaço ao longo do tempo, através do
contato direto que lhe proporciona a experiência espacial, bem como a familiarização
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e intimidade com o lugar, como por exemplo, a casa em que mora, geralmente
classificada como topofílica, um lugar de sossego e aconchego, ou o bairro em que
mora que pode flutuar entre o topofílico e topofóbico alterando nas passagens do dia
pra noite, condicionado aos fatores segurança e insegurança.
Constatou-se, também, que o sentimento de medo irrompido em Raquel
abrange também o aspecto horrendo do lugar percebido pela protagonista, mas,
acima de tudo, os fatores que determinam a irrupção de sentimentos topofílicos ou
topofóbicos são evidenciados pela experimentação direta e íntima no espaço, com a
vivência no lugar, criando, assim, laços de afetividade e emoções únicas para o ser
que ocupa e percebe o espaço. Tais fatores evidenciam a hipótese dessa pesquisa; a
familiarização com o tópos, aliada à experiência, são determinantes para a irrupção
do sentimento; “a familiaridade engendra a afeição ou desprezo” (TUAN, 1980, p.114).
A partir das análises, pôde-se constatar que a interioridade do túmulo dos
Hydes não provocava nenhum sentimento de medo no personagem, pois ele estava
familiarizado com o lugar, ele frequentava a tumba desde a idade de dez anos.
Semelhante a Jervas, o antagonista do conto Venha Ver o Pôr do Sol demonstra
afetividade com o espaço sepulcral abandonado, desprovido de beleza, mas que
evoca sentimentos positivos por estar relacionado aos seus antepassados, ao passo
que Raquel nunca havia tido nenhum contato com o cemitério abandonado; a
personagem frequenta o cemitério pela primeira vez e não está familiarizada com o
lugar ominoso. Foi sua primeira experiência e, no decorrer da narrativa, a personagem
declara que não gosta de cemitérios.
Ao final desta pesquisa, visamos demonstrar uma nova forma de análise
espacial, inserida dentro do tema espaço literário, a topopatia que se volta para a
afetividade e percepção do personagem pelo lugar ocupado, o cenário da narrativa. A
topopatia é uma temática recente, mas que tem ganhado visibilidade dentro dos
estudos topoanalíticos. Além disso, espera-se que a presente pesquisa contribua com
a fortuna crítica acerca do estudo do espaço literário e possa abrir caminho para novas
interpretações sobre os contos do corpus.
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