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ZILA,

TODA POESIA
VOLUME 11

SALINAS
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Zila Mamede

ZILA,
TODA POESIA
VOLUME 11

SALINAS

Natal 2023
Fundada em 1962, a Editora da UFRN continua
até hoje dedicada à sua principal missão:
produzir impacto social, cultural e científico
por meio de livros. Assim, busca contribuir,
permanentemente, para uma sociedade mais
digna, igualitária e inclusiva.

Coordenadoria de Processos Técnicos


Catalogação da Publicação na Fonte.UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Mamede, Zila.
Salinas [recurso eletrônico] / Zila Mamede. – Dados eletrônicos
(1 arquivo: 3.300 KB). – Natal, RN: EDUFRN, 2023. – (Zila, toda poesia; v. 2)

Modo de acesso: World Wide Web


<http://repositorio.ufrn.br>.
Título fornecido pelo criador do recurso
ISBN 978-65-5569-293-8

1. Poesia brasileira. 2. Literatura brasileira. I. Título.

CDD B869.1
RN/UF/BCZM 2022/28 CDU 821.134.3-1

Elaborado por: Vânia Juçara da Silva – CRB-15/805

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


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Telefone: 84 3342 2221
NOTA
EDITORIAL
Em 1978, sob a organização de Zila Mamede, foi publicado o Navegos,
obra que reunia sua produção poética até aquela data: Rosa de pedra (1953),
Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975) e Corpo a corpo
(1978). Tratava-se de um marco dedicado aos 25 anos de sua carreira lite-
rária. Em 2003, em comemoração aos 50 anos do Rosa de pedra, a Editora
da UFRN (EDUFRN) resgatou e publicou a poesia de Zila vista em Na-
vegos, acrescida de A herança (1984), título lançado no ano anterior à sua
morte. Esse volume nomeou-se tão somente Navegos, A herança.

Em 2023, a EDUFRN tem a satisfação de oferecer mais uma vez ao


público a totalidade da poesia publicada de Zila Mamede. Afora reedi-
ções esparsas de um ou outro título, agregamos agora o conjunto com-
pleto. Os volumes, nessa oportunidade, ganham nova materialidade sob
a coleção Zila, toda poesia. Com isso, buscamos nos referir não apenas
ao conjunto da sua poesia mas também simbolizar o mergulho literário
da artista, sendo ela, toda, de corpo e alma, palavra poética.

É importante anotar que tanto a edição de 1978 quanto a de 2003 fo-


ram cotejadas para a construção desta coleção. Ao fim de cada volume,
adicionamos o Tempo de Zila, uma linha cronológica com informações ex-
traídas da pesquisa de mestrado da bibliotecária Tércia Marques. Ademais,
compõem a publicação, ilustrações de capa que envolvem o trabalho da
artística plástica Angela Almeida e do designer Rafael Campos.

É a partir desse rico conteúdo que a EDUFRN propõe este registro,


que tem por finalidade última resgatar e exaltar uma das maiores referên-
cias da literatura potiguar. Desse modo, com imenso orgulho, anunciamos
Zila, de novo, hoje e sempre, toda poesia.
SUMÁRIO
Caminhos ..... 9
Partida ..... 11
Cais ..... 12
Poema de viagem ..... 13
Elegia ..... 14
Chuva ..... 17
Noturno do Recife ..... 18
Canto inútil ..... 19

Elegia das mãos ..... 20


Composição ..... 21
Canção do afogado ..... 22
Profecia ..... 23
Nos olhos de ninguém ..... 24
Poema ..... 25
Réquiem para minha irmã ..... 26
Santa Teresa ..... 27
Para Manuel Bandeira ..... 28
Poema ..... 29
Poema bíblico ..... 30
Poema da temporária quietude ..... 31
Ponte velha ..... 32

Lagoa do Bonfim ..... 33


Chamado ..... 35
Soneto da iniciação ..... 36
A (outra) face ..... 37
Retrato ..... 38
A cruz da menina ..... 39
As enchentes ..... 46
Caminhos

Imersos meus pés na fonte


para os sapatos calçar
os sapatos se quebraram
e os somente pés, intactos,
já não pensam caminhar.

Sapatos quase vermelhos


(abril fizera-os de branco).
Agora dois rostos negros
conduzem meus pés medrosos
pelas ruas sem lirismo
e becos que não têm mar.

Seis retângulos dispersos


prendem meus pés matinais.
As estrelas me libertam
e meus pés, nus, me acompanham
nos rios abandonados
onde flores se envenenam,
onde, estéreis, meus limites
vão chegando sem chegar.

9 Salinas
Que cores me aniquilando?
Que tintas serão meus pés
no final dessas andanças,
nas marcas que eu não deixar?

Tripulantes descompostos
da vida que não vivi,
navegam meus pés comigo
as luas desarvoradas
e os nortes sem girassol.

10 Zila Mamede
Partida

Quero abraçar, na fuga, o pensamento


da brisa, das areias, dos sargaços;
quero partir levando nos meus braços
a paisagem que bebo no momento.

Quero que os céus me levem; meu intento


é ganhar novas rotas; mas os traços
do virgem mar molhando-me de abraços
serão brancas tristezas, meu tormento.

Legando-te meus mares e rochedos,


serei tranquila. Rumarei sem medos
de arrancar dessas praias meu carinho.

Amando-as me verás nas puras vagas.


Eu te verei nos ventos de outras plagas:
juntos – o mar em nós será caminho.

11 Salinas
Cais

Três navios fugindo, três demônios


do mar fazendo suas montarias.
Ninguém dizendo adeus, todos chorando,
eu querendo remar, mas eu ficando

de bruços nesse cais que não desejo


pois, loucas, peço as três cavalgaduras
que pisaram no espelho cal, repolhos
e encheram seus pulmões de maresia.

Três demônios velejam satisfeitos,


três navios mergulham no horizonte;
e eu nem sequer me faço mastro ou leme,

nem galopar eu posso três navios


(à noite, quando as brumas me ferirem)
presa nas rédeas desses três demônios.

12 Zila Mamede
Poema de viagem

Na estrada cinzenta e desigual


o automóvel se abisma.

Onde, o sono da mulher


carregando uma criança nos olhos?
A fala da criança
ficou dependurada lá fora
no tempo
a vestiu as árvores magras,
as árvores nuas,
os cactos tristes dos caminhos.

De tudo,
durou apenas
na memória
a última estrela
do anteamanhecer.

13 Salinas
Elegia

Não retornei aos caminhos


que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.

Vivo hoje areias ardentes


sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.

Tudo perdi no retorno,


tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
– os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.

14 Zila Mamede
Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar),
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.

Nem descubro mais caminhos,


já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.

Pudessem meus olhos vagos


ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.

15 Salinas
Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
meus olhos se desmanchando
– roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento.
No navegante que fui
sinto a vida se calar.

Meus antigos horizontes,


navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
que só existo no mar.

16 Zila Mamede
Chuva

Nessas horas de exílio, o pensamento


vara as janelas grávidas de chuva
e se antecipa longe, e se projeta
uma gaivota ansiosa em pleno voo.

O dorso do horizonte é uma promessa


negando a intensidade dessas águas
tardias, rudes águas fatigadas.

De sombras se enche o tempo e uma revolta


se planta nos meus olhos. Cada gota
que fere meus sentidos escorrega
na lama que se ajunta nas calçadas.

Que chuva se esmagando nos meus dedos!


O pensamento, não querendo ouvi-la,
rompe grades e espaços, louco, livre.

17 Salinas
Noturno do Recife

Noturno do Recife me vestindo


o pensamento, leve como acácias
que o vento distribui pelas calçadas
e as leva passeando a água dos rios.

Que paz derrama a lua na roupagem


das pontes, na magreza dos mocambos,
na distância afogante dos subúrbios
insinuando morte e carnaval.

Recife. Luz fugindo, se apagando.


Recife. Céu tão claro, céu tão perto
(a alma noturna boia-me nos dedos).

Recife pendurado nos meus olhos,


eu beijo a tua noite nos meus sonhos
e planto o meu destino nos teus mares.

18 Zila Mamede
Canto inútil

Na penumbra do quarto me distingo


frase morta, que as grandes mãos do tempo destruíram
sem ecos,
sem remorsos,
sem furor.

Somente nesse nada se restringe


a condição recôndita do medo
que na memória dorme.
Se em mim fonte já não chora
retesam-se meus olhos.

Em palavra existi:
agora,
em sombras permaneço decomposta.

Frias letras indicam-me


sem nome,
explicam-me
sem vida,
sem lugar.

Fendeu-se-me o caminho.
Meu nome,
há muito não se faz chamar.

19 Salinas
Elegia das mãos

Mãos que se extraviaram


na inutilidade de gestos,
mãos que julguei nascidas de poesia.

Mas que fizeram dos meus sonhos?


De que coloração, meus pensamentos?

Caminhos divididos em limites


onde me perdi.

Mãos defuntas,
mãos que consumiram ressonâncias de lirismo
transformaram-se numa estrela morta,
suor e nada.

20 Zila Mamede
Composição

Componho, além,
teus olhos na planície
e os vejo feitos cor de esquecimento.
Que pressa em desmanchares meus janeiros
aos mangues atirando o calendário.

Detenho-me nos longes de uma face


plantada na memória:
a espera repousa na planície
como um cântaro lavado de esperanças.

A face ora dispersa,


recolhe meus cabelos
na torrente.

Nas minhas mãos dois girassóis tranquilos:


Neles, intatos, devolvo-me teus olhos.

21 Salinas
Canção do afogado

Nos olhos de cera


dois pingos de vida,
nas marcas de vida
a noite pisou.
A face tranquila
bordada de sombras
– são restos de estrelas
que o céu apagou.
Os dedos lilases
não pedem mais sol;
e os lábios desfeitos
perderam seus gestos,
calaram seus sonhos
que a morte levou.
Cabelos de musgos
lavados de espumas
caminha o afogado
que o mar conquistou.

22 Zila Mamede
Profecia

Na porta inventaremos um relógio


pintado de silêncio. A calmaria
entre as linhas do sono e o calendário
brotará noite em teus cabelos.

Nem madressilva ou luz precisaremos;


não tons de marés cheias, não troféus.
Pisaremos os véus e identidades,
morreremos dois nomes, dois sinais.

Depois, quanta unidade em nossos rostos:


um arbusto sangrento nos teus braços
trementes como um pássaro ferido.

Plantarás teu caminho em meus vestidos


quando, vencida a sombra das esperas,
deixares teus segredos na planície.

23 Salinas
Nos olhos de ninguém

a Patrícia Monte-Mor

O filho que não compus


vi nos olhos de ninguém:
cabelos da cor do vento
e os dedos longos de sol.
Vestia forma de chuva
nascida na madrugada
e os olhos meigos de lua
tinha o filho que pensei.
Meu filho não concebido
acrescenta-se aos sem nome,
que o filho não teve pai –
perdeu-se, verde, sem mãe.

24 Zila Mamede
Poema

Cores soluçantes derramam-se


num infinito mudo:
e sucedem-se nos ângulos das paredes
as lembranças de passadas auroras
em que antigas falenas
se fizeram cúmplices.

Que fazer dessa medonha solidão


de um quarto?

Inverno, agora, já se faz


– as falenas medram ternuras.
Mas na amplitude branca
desse leito
há o espanto da morte.
E ao apelo dos meus dedos em agonia
desce o caos da meia-superfície intata.

Quem responde a essas pupilas carregadas


de interrogações e vida,
se às mãos incorporo os dois círculos
vazios
da ventura morta?

– Pranto.

25 Salinas
Réquiem para minha irmã

Um montículo de areia.
Lá em baixo, uma vida que foi.

Que pensarão os olhos claros da menina,


agora?
Que cansaços infantis cuidando
e que vozes chamarão?

Esse é um campo semeado


de urzes
– são estrelas cadentes
que a memória não precisa ainda.

Da menina plantada em terra escura


vingará um girassol azul
que os meus dedos
(se alongando, se alongando)
colherão,
para enfeitar, além,
os meus caminhos de também morrer.

26 Zila Mamede
Santa Teresa

a Luíza e Augusto Ribeiro

O tom dos sinos


escorrendo nas ladeiras,
os ventos do Curvelo
e o cheiro morno do Silvestre.

Ponte dos arcos,


quantas brumas
meus sapatos te tocaram,
sós.

Santa Teresa:
as estrelas se mudaram para o chão.

27 Salinas
Para Manuel Bandeira

Penso-te
como quem sonha uma estrela
que inventou na madrugada
e no desejo de guardá-la
viva.

Penso-te
como o claro silêncio permanente
da neve,
como a branca surpresa
de uma flor nascente.

Meu pensamento ama-te.

28 Zila Mamede
Poema

Vã chuva caindo
que as sementes
se quedam inertes
na obscura terra.

Vã essa ternura
permanecida:
– o amor já não é
ressonâncias
e se afunda sem ecos:
o azul num pântano.

29 Salinas
Poema bíblico

No teu sangue me interpreto; marcam-me


cristal e tempo
e a nuvem que me abandona
te encerra.

Na origem,
tens herança primitiva
de fogo,
e mais te escolhes
quanto mais te negas.

Teu rasto secular me dissocia


das veredas de Sião
por onde um mistério escoa
ignorando o meu não ser.

À beira do Lago ausente,


nasci-me caniço.
Que fortes sãos os ventos de Sião:

vinhedos que fui


à escalada dos montes
me abati.

30 Zila Mamede
Poema da temporária quietude

O silêncio do sol
lavou-me o luto
da memória.

Ilha ou saltimbancos
meus dedos
são nenúfares
compondo
falas,
dançarinos,
vida.

Somente o nome
permanece
abstração e tempo
e como voo de suicida
desintegra-se.

A montanha vê-se:
flor, espaço, nuvem.

Enorme é o silêncio
– nasce um cacto.

31 Salinas
Ponte velha

Em campo
onde açucenas não floreiam
lavadeiras caminham
estreando o amanhecer.

Os volumes de roupas
nas cabeças ondulantes
como flores de algodão em hastes negras.

Mergulham-nas em águas de manhã


em que antigas mãos gretadas
subjugam impurezas.

A torrente simula superfície de plástico sabão


e o vento no varal inventa mastros
e nas roupas estendidas navega:
dana-se.

Num mulato lirismo


lavadeiras nuas
recolhendo velas
de pureza total.

32 Zila Mamede
Lagoa do Bonfim

À visão da lagoa quieta


uma paz de superfície desabrocha
que a lagoa repousa,
profunda.

As águas conservando
nas entranhas
um último segredo
de afogados,

prematuros desesperos
de afogados,
silenciosas tragédias
de afogados.

Tardias horas:
o repouso da lagoa se embrutece
e as maretas conversam,

e as andanças dos ventos da lagoa


decifram pensamentos e segredos
de afogados.

33 Salinas
Falanges de fantasmas suicidas
dispersam o súbito murmúrio da lagoa
que é o seu próprio mistério.

Novamente a tranquila,
novamente a transparente face da lagoa
se mostra:
e dos mortos aquáticos
o segredo permanece
puro.

34 Zila Mamede
Chamado

A terra de minha origem primitiva


me chama.
Circula-me nas veias o cansaço
de suas raízes.
A seus anos me devolvo
e a seus abismos me abandono.
O chamado da terra é um chamado
que não pode não ser ouvido:
é um afago da terra
tendo cheiro de campina amanhecida,
que modela o meu sangue
como um soprar de vento
na tarde
dos canaviais.

35 Salinas
Soneto da iniciação

Essa pobre memória que te estendo


vem lavada por águas milenárias
que a depuram de lodos e cansaços
para o descobrimento do teu nome.
Meu rosto é uma bandeira, é um lenço em branco,
é uma oferenda aos mastros de teu sono,
que o amor descido desdobrou meu pranto
em trigo e lenda para que, ao sabê-lo,
teu gesto de ceifeiro me interrogue,
aos grãos imprima seu maduro enlevo,
a lenda volte ao primitivo abrigo;
e desfralde nas brisas da campina
as sementeiras, ordenando às águas
que fecundem meus olhos nos trigais.

36 Zila Mamede
A (outra) face

Porque essa é a face (não a mais amada):


desnuda face, voz que te define
e te ama. Meus cabelos são campinas
de girassóis dormidos, são planuras
no poço da tristeza dos teus olhos.
O traço vertical tu és – a força –
no caminho das longas esperanças.
Do trigo madurando a flor recolho
nesse amor meu tornando-se horizonte;
que eu te buscara antigo na jornada
e na palavra, exato; e te ganhara
(nos montes, nas searas, nas manhãs,
nos ventos, nas colheitas, nas estrelas,
nas hastes que sustentam girassóis)
a recolher o canto das espigas.

37 Salinas
Retrato

Me lembrava da menina
escavacando o chão agreste,
me lembrava do menino
carregando melancias.

Em que terras desembocam


esses talos de crianças
mais finos que as maravalhas,
mais fortes que a ventania?

Dois pés descobriram casa,


multiplicaram-se em hastes
– são cabeleiras de trigo
dos moinhos de Van Gogh.

A sobra dos dois irmãos


repartiu-se entre os veleiros:
seu tronco desarvorado
virou estrelas no mar.

38 Zila Mamede
A cruz da menina

1. O fogo do céu lavando


paredes de serranias,
que a areia lavrada em sangue
brota dos poros da terra
queimada de tantos sóis
onde célula inocente
se desfez na ventania
implantou-se no grotão.

2. Oito luas contempladas


pelos olhos da menina
pouco depois eram morte
nos seus braços de cipó;
e a terra dos seus andares
e as aves do seu viver
deixou-as fixas no mato
que ela sempre capinou.

A cruz da menina existe


mas seu gemido, não sei.

39 Salinas
3. Aquela gruta escondida
lhe causava espantação;
mas a madrasta queria
trinta ovos de guinés
que a menina colheria
(ao toque de ave-marias)
nas bandas de lá da serra,
bem nas fundas do sertão.

4. O medo criava rugas


nas plantas dos pés infantes;
das mãos segurando um cesto
escorriam cachoeiras
de suor e assombração:
temia o som do chicote;
e na serra escurecendo,
a descambada do sol.

5. De vez em quando parava


observando o céu quieto
como a esperar que algum anjo
lhe trouxesse companhia
ou rogando ao sol distante
não deixasse anoitecer
– seu rancho já estava longe.
na serra, negror de breu.

40 Zila Mamede
Os cabelos da menina
viraram capim, no chão.

6. Pensava nas luas idas


quando Mamãe a embalava
de manhã e ao pôr do sol
e lhe contava as histórias
de bruxas, de pastorinhas.
(Numa rede toda branca,
tão branca como seus dedos,
um dia subiu ao céu).

7. Agora a luz dos seus anos


tão pequeninos se fora.
A nova mulher, na lida,
sugava-lhe os braços tenros
e a criança já madura
lavava roupas no poço
e o sono de sua infância
decorria sem amor.

Uns olhinhos de inocente


às aves do céu jogou.

41 Salinas
8. Da gruta se aproximava
na ponta dos pés andando
não sabendo que o terror
precedia outro maior,
que a morte se antecipara:
seus cabelos alongados
seriam cabo seguro
para a rude imolação.

A madrasta de tocaia
a morte leva na mão.

9. O grito afundou na serra,


o gemido entrou no chão,
o sangue duma inocente
lavou a gruta e o capim.
Um pescoço delicado
caiu nas brenhas da terra,
rolou na pedra vermelha
de sangue e calor do sol.

A cruz da menina ao longe,


um caminhante a rezar.

42 Zila Mamede
10. Camponês vinha da feira
de Patos a seu rincão,
tangendo seu jumentinho,
resmungando contra a vida:
parou à encosta da gruta
e vento lhe foi trazendo
no soluço cor de noite,
um chamado de aflição.

11. Desceu a escarpa da pedra


escura, fogo acendeu:
lá em baixo um rosto frio,
a boca murcha de risos,
os olhos de assombramento
(do corpo infante partido)
diziam seu desespero,
jaziam soltos no pó.

A cruz da menina cresce


à sombra de um juazeiro.

43 Salinas
12. O busto rolado estava
beliscado de urubus;
no boqueirão, nas veredas
os cabelos aparados
pelos beiços do machado
voavam de pedra em pedra,
desciam pelas areias
tentando se replantar.

13. O vestidinho em farrapos


deixava despido o ventre
muito leve muito branco.
Os dedos no pedregulho
fincados mais pareciam
mortas hastes de avelós.
Foi então que o Espinhara
inteiro pôs-se a chorar.

Notícia correndo serra,


o povo vindo espiar.

44 Zila Mamede
14. Na cruz que ali foi plantada
uma capela nasceu
para a fé dos viajantes
que acreditam nos milagres,
no murmúrio soluçante,
no choro nunca estancado
da menina que morrida
à tardinha vem gemer.

15. O serrote é conhecido


por longo sertão adentro.
Ninguém passa na cortada
sem pousar uma oração.
Na terra há círios queimados
e as fitas esvoaçantes
(lembrando os longos cabelos)
os traços da cruz enfeitam:

16. São os votos prometidos


à pureza da menina
que afasta o demo da estrada
abençoa os retirantes.
Bem dentro da serrania,
no sertão encarcerada,
a Cruz da Menina existe:
mas seu gemido, não sei.

45 Salinas
As enchentes

1. Cordões de chuvas caindo


escorrendo pela noite
me lembram da aparição
das chuvadas no interior
engordando a chuva as nuvens
na cumeeira das serras
as águas se despregando
das platibandas do céu.

2. Meninada bandoleira
no patamar da Matriz
– velho patamar de lajes
degraus de pedras de cor
pedra lisa de escrever
dos jogos de dama e de onça
dos ticas, das cabras-cegas
e dos cavalos de pau.

46 Zila Mamede
3. O escuro lombo da serra
que se chama de Santana
era sinal das enchentes
maduras para chegar.
Na frente vinha a zoada
das terras descaroçando
e na curva o braço d’água
já se fazia mostrar.

4. Torrente estoura rasgando


os beiços magros, do rio
esguichando água barrenta
água suja galharia
cavalos em desesperos
um papagaio a gritar
que na danação, o rio
arrancava o chão do chão.

5. Nesse caos renovador


enchente grande afogava
areal de muitas secas
de velhas desesperanças.
No mistério das deságuas
a plantação renascia
vazantes se enverdecendo
água doce de beber.

47 Salinas
6. Enchentes de trinta e sete
embocando ponte, açudes
gado roças caieiral.
Com seus olhos seus faróis
caminhões-sapos-moleques
mergulhavam rio escuro
pintando de girassóis
as águas da noite breu.

7. A trovoada tremendo
terra bruta arrepiada
varando clarão de raios
as campinas de pavor
pois raio dobra coqueiro
silencia lavrador.
Palhas bentas nas janelas
Salve-Rainhas de dor.

8. Pudera saltar no rio


pudera as águas tocar
no paul fincar meus olhos
no barro me esculturar
na corda de salvar vidas
pássaro me improvisar
que as grandes faces do rio
eu nunca pude beijar.

48 Zila Mamede
9. O rio, tive-o de longe
quando a chuva recolhia.
Sentava no patamar
toda noite, que de tarde
é que a chuva vem cair.
Meus lirismos de menina
minhas noites vaga-lumes
nos degraus os imprimi.

10. Agora as pedras polidas


polidas de tempo e pés
não abrigam mais plateia
nas horas do rio encher,
nos lajedos cor-de-rosa
lá se foi a minha infância
das tardes de chão lavado
gosto de neblina e flor.

11. Sertão riscado de chuvas


matapasto repontando
a terra justa renova
promessa de fruto são.
Meninos soltos nas bicas
nas bocas de jacarés
misturavam-se nos riachos
nas pedras tingindo os pés.

49 Salinas
12. As valetas soçobrando
nudez de mulher na chuva
recolhendo água nos potes
cachaça dando tostão
que a terra muda de estampa
que a gente muda de pão
e o sujo e a tristeza antiga
cheiram de novo a cristão.

13. As luas de bolandeiras


os banhos na correnteza
goteiras pingando redes
lamparinas lampiões
e medos de tanajuras
das picadas de mutucas
os ventos na madrugada
na manhã de levantar.

14. Enchentes de minha terra,


rios, chuvas do sertão,
plantei vazantes no açude
não vingou a plantação.
Há secas nos meus cabelos
mandacarus no meu chão.
Na vida, sou retirante.
Em que pastos morrerei?

50 Zila Mamede
O TEMPO
DE ZILA
1943

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1936 a 1946
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1928 a 1941
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Zila estuda na Escola


Zila estuda no Grupo Técnica de Comércio
Nasce Zila Mamede,
Escolar Capitão Mór “Imaculada Conceição”,
no povoado Nova
Galvão, da primeira no curso ginasial
Palmeira, município de
a sexta série do curso comercial básico.
Picuí, na Paraíba.
primário.
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1935 1942
Zila e sua família Zila e sua família
transferem-se para mudam-se para Natal-
Currais Novos, interior RN, uma vez que seu pai
do Rio Grande do Norte. havia sido contrato para
a construção da Base
Aérea de Parnamirim.

54 Zila Mamede
1954

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Zila exerce a função
de auxiliar de escritório no
Departamento de Reeducação
tangiam-nos serenos com as cantigas e Assistência Social.
aboiadeiras e um bastão de lírios
Julho
Os bois assim dormindo caminhavam Zila representa o Rio Grande
destinos não de bois mas de meninos do Norte no 1º Congresso de
libertos que vadiassem chão de feno; Biblioteconomia realizado na
cidade de Recife-PE.

e ausentes de limites e porteiras Setembro a novembro


arquitetassem sonhos (sem currais)
Zila integra a turma do curso
nessa paz outonal de bois dormindo. intensivo de Biblioteconomia,
1951
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voltado à assistência técnica


É um poema lírico, um tratamento às bibliotecas brasileiras,
Março a outubroabsolutamente lírico, mas, aqui,
promovido pelo Instituto
entra um elemento que
Zilase chama
atua como liberdade, que estáNacional
velado do nessa “paz
Livro.
contadora
outonal de bois dormindo”, no escritório
“arquitetassem sonhos (sem currais)”. Já é
da “Sérgio Severo”.
um poema em que eu penso em liberdade, que era uma coisa que não
me preocupava.

Eu gostaria... O entrevistado pode ter vontade?

ALVAMAR FURTADO – É exatamente neste ponto que nós quería-


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1947grama – e foi um dos1951


mos chegar. Porque acho que já estamos encerrando o nosso pro-
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a 1949 aprogramas
1953 altos da nossa série Memória Viva,
sobretudo pela bela Zila
liçãoatua
decomo 1954
sensibilidade, de poesia, da presença
Zila realiza o curso
simpática que Zila nos deu –no
contadora que,
a 1962
como encerramento do nosso pro-
Serviço
técnico de contabilidade, Social da Indústria.
grama,
na Escola escolhesse
Técnica de o poema que mais aprecia, mais Zila assume, ados
emociona convite
que
do governador Sylvio
já escreveu, e encerrasse o nosso programa declarando
Comércio “Imaculada esseo cargo
poema.
Conceição”.
Pedroza, de 1953
diretora da Biblioteca do
ZILA MAMEDE – Vou ler o poema dedicado ao meu
Zila publica avô, que faz
Instituto de Educação,
parte do livro O arado, e, se houver
Rosa detempo,
pedra. gostaria de
queler um apoema
sediava Escola
do meu próximo livro que será A morte da máquina. Normal de Natal eo
Atheneu Norte-rio-
grandense.o que foi o
“O ALTO (O AVÔ)” é um poema que descreve, exatamente,
meu avô materno, com quem convivi toda a minha infância e adoles-
cência. O ALTO é o nome do sítio (O AVÔ).
55 Salinas
1957
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Zila exerce a função
1958

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de redatora no jornal
Diário de Natal. Zila publica
Zila é designada Salinas.
correspondente do
jornal O Globo no
Congresso Mundial
da Juventude Católica
Operária, na Itália.
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1955 1957
a 1956 a 1961
Zila realiza o Zila atua como
curso superior de bibliotecária da
Biblioteconomia, Sociedade Cultural
promovido pela Brasil-Estados
Biblioteca Nacional Unidos
do Rio de Janeiro. de Natal.

56 Zila Mamede
1959 1961

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2 de maio 6 a 16 de abril
Zila é nomeada pelo Zila realiza estágio no
Reitor Onofre Lopes Washington International
como Bibliotecária Center.
Diretora do Serviço
Central de Bibliotecas 9 a 16 de julho
da UFRN. Zila é uma das convidadas
estrangeiras da 80ª Conferência
1959 Anual da Associação
a 1961 Americana de Bibliotecas,
realizada em Cleveland, EUA.
Zila assume
interinamente a Diretoria 17 a 30 de novembro
de Documentação Zila realiza estágio na
e Cultura, órgão da biblioteca da universidade
Prefeitura de Natal. americana de Syracuse.
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1959 1960
a 1980 Zila é indicada pelo
Zila exerce a função de governador Dinarte de
Bibliotecária Diretora Medeiros Mariz, para
do Serviço Central compor o Conselho
das Bibliotecas da Estadual de Cultura do
Universidade do Rio Rio Grande do Norte.
Grande do Norte (1959-
60); da Universidade
Federal do Rio Grande
do Norte (1960-74) e,
posteriormente, Diretora
da Biblioteca Central da
UFRN (1974-80).

1959
Zila publica
O arado.
57 Salinas
1970 1976

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Zila publica Luís da Zila é designada para


Câmara Cascudo: 50 compor o conselho
anos de vida intelectual, de redação da revista
1918-1968: bibliografia Tempo Universitário.
anotada, por meio da
Fundação José Augusto.
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1964 a 1965
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Zila cursa o mestrado


1975 1978
em Biblioteconomia na Zila publica Zila publica
Universidade de Brasília, Exercício da Corpo a corpo.
mas não recebe o título palavra.
de mestre, por não haver
concluído o curso.

58 Zila Mamede
1980
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28 de março
Zila aposenta-se,
transmitindo a direção
da Biblioteca Central
1984
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da UFRN para a
bibliotecária Sônia
Zila publica
Campos Ferreira, sua
A herança.
discípula e vice-diretora
desde 1967.
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1985
13 de dezembro
Zila falece. Após
proposta do Reitor
Genibaldo Barros, e por
meio da Resolução nº
120/85-CONSUNI, de
13 de dezembro de 1985,
foi aprovada a mudança
do nome da Biblioteca
Central para Biblioteca
Central “Zila Mamede”.

59 Salinas
Este livro foi produzido
pela equipe da EDUFRN
em maio de 2023.

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