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NEURA CÉZAR
BULLYING:
PRECONCEITO, ESTIGMAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO PARA A PAZ
CUIABÁ-MT
2010
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NEURA CÉZAR
BULLYING:
PRECONCEITO, ESTIGMAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO PARA A PAZ
Cuiabá-MT
2010
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AGRADECIMENTOS
A Deus,
pela vida, pela presença fiel em minha vida e a Maria Auxiliadora pela ajuda e orientação.
Às equipes diretivas, pedagógica, aos professores, funcionários das escolas pesquisadas da rede
pública municipal, estadual e particular que tão gentilmente me acolheram, me motivaram e me
ajudaram para tornar esta pesquisa realidade. Em especial, aos estudantes, famílias e professores,
colaboradores desta pesquisa, pela acolhida, pela dedicação, pela disponibilidade em contribuir com o
meu estudo e, principalmente, por permitir conhecer seu mundo. Com eles, pude descobrir o quanto se
tem a aprender e também percebi a urgência em construir uma educação sem violência, em que o
conteúdo principal seja o respeito à alteridade, à dignidade e à Paz. Muito obrigada!
À Ir. Maria de Lima Barros e professora Irene Cajal, pela amizade, apoio e revisão gramatical.
A todos aqueles,
amigos, companheiros de luta, que me incentivaram e incentivam com palavras e contribuíram para a
construção deste trabalho, deixo aqui o meu MUITO OBRIGADA!
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A PAZ
Roupa Nova
Composição: Michael Jackson
É preciso pensar um pouco nas pessoas que ainda vêm nas crianças
A gente tem que arrumar um jeito de achar pra eles um lugar melhor. Para os nossos filhos e para
os filhos de nossos filhos. Pense bem!
Deve haver um lugar dentro do seu coração onde a paz brilhe mais que uma lembrança
sem a luz que ela traz já nem se consegue mais encontrar o caminho da esperança.
Sinta, chega o tempo de enxugar o pranto dos homens se fazendo irmão e estendendo a mão.
Só o amor muda o que já se fez e a força da paz junta todos outra vez.
Venha, já é hora de acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz
Se você for capaz de soltar a sua voz pelo ar, como prece de criança
deve então começar outros vão te acompanhar e cantar com harmonia e esperança.
Deixe que esse canto lave o pranto do mundo pra trazer perdão e dividir o pão.
Só o amor muda o que já se fez e a força da paz junta todos outra vez.
Venha, já é hora de acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz.
Quanta dor e sofrimento em volta a gente ainda tem,
pra manter a fé e o sonho dos que ainda vêm.
A lição pro futuro vem da alma e do coração, pra buscar a paz, não olhar pra trás, com amor.
Se você começar outros vão te acompanhar e cantar com harmonia e esperança.
Deixe que esse canto lave o pranto do mundo pra trazer perdão e dividir o pão.
Só o amor muda o que já se fez e a força da paz junta todos outra vez.
Venha, já é hora de acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz
Só o amor muda o que já se fez e a força da paz junta todos outra vez. Venha, já é hora de
acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz.
Só o amor muda o que já se fez e a força da paz junta todos outra vez.
Venha, já é hora de acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz.
Venha, já é hora de acender a chama da vida e fazer a terra inteira feliz.
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RESUMO
O bullying caracteriza-se como uma violência cruel que se manifesta na interação entre
estudantes com a intenção de perseguir e intimidar, sem que existam razões que justifiquem
as ações violentas, denotando a existência de conflito com valores. Essa prática de violência
também se revela na relação professor e estudante, sendo evidenciada, sobretudo por meio de
agressões verbais, físicas e atitudinais. A pesquisa surgiu da interrogação acerca das
consequências dos comportamentos agressivos entre estudantes e entre estes e seus
professores, a partir da vivência de situações no ambiente escolar. Os recentes estudos e
pesquisas nacionais e internacionais apontam que o bullying está presente em diversas
instituições educativas, tendo maior incidência na escola. Diante disso, esta dissertação tem
como foco compreender a forma como o bullying se manifesta no cotidiano escolar e na
vivência dos estudantes, a partir do olhar dos próprios estudantes, do corpo técnico-
pedagógico e das famílias. O trabalho se desenvolve na modalidade de pesquisa qualitativa,
de base fenomenológica existencial, iluminado, sobretudo pelo pensar de Maurice Merleau-
Ponty e Paulo Freire, e seguiu o modelo de inserção etnográfica por permitir a imersão da
pesquisadora no ambiente histórico concreto do estudo. A pesquisa foi realizada em três
escolas, sendo duas públicas e uma particular, na cidade de Cuiabá/MT, em 2009, tendo como
participantes 35 estudantes, 17 educadores e seis famílias. Os procedimentos utilizados para a
apreensão e interpretação dos significados e significantes da pesquisa são: observação
participante, entrevista semiestruturada e história de vida. Nas observações, atentou-se às
interações na escola entre estudantes quanto entre estes e professores a partir das ações
adotadas por estes frente aos conflitos gerados pela prática do bullying. As entrevistas
individuais com estudantes, professores, gestores, funcionários e famílias exprimiram seu
imaginário sobre os conflitos agressivos que ocorrem no ambiente escolar, inclusive, o
bullying. Entre as percepções obtidas, a pesquisa indica que, apesar da equipe pedagógica
escolar ter objetivos comuns, ainda tem dificuldades de aquilatar ou avaliar a extensão das
consequências do fenômeno bullying no espaço escolar. Tanto gestores, coordenadores e
professores pareceram ter dificuldades de criar alternativas específicas para orquestrar as
situações de conflitos vivenciados pelos estudantes de forma positiva. Entre as várias
reflexões levantadas a partir do material, discute-se que, apesar de boas intenções e nobres
objetivos dos educadores, infelizmente constata-se que o não reconhecimento do bullying na
escola, em particular, pelos professores, como um problema que desconcerta e perturba o
ambiente para todos os envolvidos, como um comportamento cruel ao desenvolvimento
psíquico dos estudantes, aliado à transmissão tradicional de conhecimentos e à falta de espaço
para que os valores humanos tornem-se centrais na personalidade para a vivência solidária e
cooperativa, contribui para a incidência e o reforço do bullying na escola. O estudo aponta
para a necessidade urgente da inclusão da educação para a paz e dos princípios éticos como
um conteúdo a transversalizar o currículo. Estes poderão favorecer o reconhecimento, a
desnaturalização, a valorização e o enfrentamento das práticas do bullying no ambiente
escolar.
ABSTRACT
Key words: Bullying; School violence; Education for the peace; School.
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SUMÁRIO
PALAVRAS INICIAIS...........................................................................................................10
PALAVRAS INICIAIS
produzidos nas interações sociais se tornam significativos para os sujeitos, graças ao modo de
participação deles nas relações estabelecidas.
Estudos realizados tanto no contexto escolar como em outros locais já trouxeram
argumentos de que as políticas públicas educacionais ou sociais que deem respostas no
momento a essa questão apresentam caráter emergente. A violência se faz presente, na
maioria das vezes, em situações tidas como naturais. Pesquisas revelam que nas escolas são
comuns interações conflituosas e insultuosas contra estudantes sem motivo aparente, de
ambos os sexos, dado que os desrespeitos, quando não ofensa, causam até mesmo
perseguições a alguns estudantes por aparência, raça, etnia, entre outros aspectos.
Antes de ingressar no problema e objetivo desta pesquisa, é preciso conceituar o
fenômeno bullying. A esse respeito, eis o entendimento de Fante (2005):
Costantini (2004) e Fante (2005) afirmam que o fenômeno bullying começou a ser
pesquisado há cerca de dez anos na Europa. É um termo encontrado na literatura psicológica
anglo-saxônica, nos estudos sobre o problema da violência escolar e define-se como “ato de
violentar, constrangimento físico ou força moral, coação cometidos dentro de uma instituição,
com a intenção de causar dor, angústia e sofrimento físico ou psicológico a outra pessoa e/ou
bloquear seu desenvolvimento posterior,” (FANTE, 2005, p. 28 e 29). Bullying é uma palavra
inglesa, sem tradução no vocabulário brasileiro, usada para definir um fenômeno que vem
crescendo assustadoramente no mundo inteiro. Seu autor é caracterizado como bully, palavra
que se traduz como “brigão” e “valentão”.
Segundo os autores, essa forma de violência se manifesta pela intimidação repetida,
humilhação, agressão, gozação, imputação de apelidos, assédio, perseguição, indiferença,
isolamento, ofensa, exclusão, discriminação, sofrimento, aterrorização, dominação, empurrão,
quebra e roubo de pertences que ocorrem sem motivação evidente tornando possível a
intimidação daqueles que são vítimas.
Pode-se dizer que o bullying apresenta características próprias e muito bem definidas.
Geralmente não se deixa confundir com outras formas de violência, por ser executado a partir
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de intimidações repetitivas e violência física, verbal e psicológica contra uma vítima escolhida
por seu aspecto frágil, resultando, quando menos drásticas, em isolamento e marginalização
(COSTANTINI, 2004). Dentre as principais características do fenômeno, quiçá a mais grave,
o atributo de causar traumas ao psiquismo de suas vítimas e envolvidos. Pode ser reconhecido
em vários contextos: nas escolas, tanto públicas quanto particulares, nas famílias, nas forças
armadas, nos locais de trabalho (assédio moral), nos asilos de idosos, nas prisões, enfim, onde
existem relações interpessoais. A falta de reconhecimento quanto à sua gravidade revela a
deficiência das instituições educativas em tratar das situações conflitantes e agressivas em
seus ambientes de convivência.
Por sua vez, violência é caracterizada por alguns autores, entre eles Chauí (1999, p. 3)
como um “[...] ato de brutalidade, abuso físico ou psíquico contra alguém e caracteriza
relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e pelo
terror.” E esse constrangimento físico e ético no ambiente das instituições educativas, em
especial na escola, segundo Fante (2005), Guareschi (2008) e outros pesquisadores vem sendo
investigado atualmente em todas as partes do mundo, tendo seu início na Europa, a partir de
uma co-relação entre tentativas de suicídio e um fenômeno denominado bullying.
Lamentavelmente, as atitudes de violência física e as incivilidades ocorridas nas
escolas da rede de ensino público têm sido evidenciadas com grande alarde pela mídia com
frequência cada vez maior, destacando as brigas de adolescentes de diversas escolas marcadas
pela internet, por porte de armas, lesões corporais e morte, que podem ter sido geradas pelo
fenômeno bullying. Essas prementes questões são referendadas pelo corpo docente, pelos
funcionários e pelas famílias, que se dizem atônitos, sem saber como lidar com a indisciplina,
com a conduta agressiva, com o desrespeito e a agressão física dos estudantes das escolas
onde trabalham ou onde os filhos estudam. Há também certa indiferença por parte das
autoridades responsáveis pela Segurança Pública, frente a essas questões.
Nesse sentido, Fante (2005), afirma que essa agressividade não pode ser explicada
unicamente por razões intraescolares, na realidade, a violência é bem mais ampla e se
manifesta por meio da violência das desigualdades sociais em uma sociedade onde poucos
têm muito e a maioria sobrevive a duras penas e na banalização de suas consequências, na
desestruturação dos laços familiares, no descaso com o desenvolvimento sociomoral da
criança e no enfraquecimento da Lei na medida em que “tudo pode” e “não dá nada”. São
questões que extrapolam a escola, mas acabam por se manifestar dentro dela.
Esse tema também está presente nos estudos feitos por Pereira (2002), para quem o
fenômeno representa uma forma séria de comportamento antissocial que, pela sua duração,
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1
Utilizo esse termo com base nos escritos de Paulo Freire, livro “Pedagogia da Esperança: Um reencontro com
a Pedagogia do Oprimido.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 218 e 219.
"Suleá-los": Paulo Freire usou esse termo que na realidade não consta dos dicionários da língua portuguesa,
chamando a atenção dos leitores (as) para a conotação ideológica dos termos nortear, norteá-la, nortear-se,
orientação, orientar-se e outras derivações. Norte é Primeiro Mundo. Norte está em cima, na parte superior,
assim Norte deixa "escorrer” o conhecimento que nós do hemisfério Sul "engolimos sem conferir com o
contexto local" (cf. Márcio D'Olme Campos, "A Arte de Sulear-se”, p. 59-61, in Interação Museu-Comunidade
pela Educação Ambiental, Manual de Apoio ao Curso de Extensão Universitária, Teresa Scheiner [org.] Uni-
Rio/Tacnet Cultural, Rio de Janeiro, 1991).
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Por meio das entrevistas com os docentes e gestores, fiz um levantamento da situação
geral da história escolar dos estudantes, obtive algumas informações sobre sua história de vida
que me permitiram ir descobrindo quais seriam os sujeitos da pesquisa. Essa primeira parte da
entrevista, por se destinar a obter informações de identificação e de caracterização dos
estudantes, requeria uma postura mais diretiva com a equipe pedagógica da escola.
Em diversas vezes, tive oportunidade de observar a trama cotidiana da escola:
acolhidas formativas na quadra de esporte, apresentação de fanfarra, teatro e circo na escola,
hasteamento e descerramento da bandeira, festa da páscoa, festa das mães, reunião com as
famílias. Participei da culminância de projetos na escola, como Semana Indígena com
exposição de trabalhos artísticos e palestra sobre a cultura indígena; de oficinas de dança e
esportes do Projeto Educa Mais; das conversas de fim de expediente, nos intervalos do
almoço, enfim, de toda convivência possível que tive com a comunidade educativa. Nesses
momentos, pude observar e registrar as situações, comportamentos e sentimentos apreendidos
nas vivências, com a finalidade de conhecer a trama cotidiana da escola e os movimentos que
ali se desenham. Adicionaram também à pesquisa informações de pessoas dos bairros,
documentos oficiais da Escola, redações construídas pelos sujeitos que retratassem sua vida,
suas angústias, sobretudo seus sofrimentos. Esse material enumerado encontra-se refletido no
todo da dissertação.
Algumas visitas às famílias tiveram mais caráter de escuta, de ajuda, deixando de
apresentar aquele propósito rígido da pesquisa: apreender informações. Essas visitas
educaram o meu olhar, levaram-me a silenciar a mente e o coração. Muitas vezes me ocupava
apenas em ouvir as pessoas, a imergir na realidade delas. A presença frequente nas escolas
possibilitou criar laços de amizade, que permitiram aos entrevistados falar abertamente sobre
sua história de vida, seus problemas, angústias, seus sonhos, sobre a experiência de violência
vivida em casa ou fora do lar, sua experiência familiar, conjugal, sobre a violência do bairro e
até sobre os problemas, intrigas, conflitos que surgem entre os habitantes do mesmo, como do
ambiente escolar onde estudam seus filhos. Partilhavam seus anseios, sonhos, angústias,
medos e sofrimentos. Em muitas situações eu simplesmente ouvi sem dizer nada. Algumas
vezes emocionei-me junto aos educandos ou a suas famílias, outras vezes retornei a minha
casa totalmente tocada pela experiência vivida.
Merleaupontyanamente dizendo, o essencial nos humanos é a compreensão que se tem
do vivido do outro. Ou seja, o “Outro, compreendo-o, a partir de sua história, do seu meio, de
seus hábitos” (LÉVINAS, 1997, p. 31). Dessa forma, a sensação que permanece é quando se
está encerrando os trabalhos de apreensão de informações, é o momento mais propício para
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violência familiar, pelo álcool, drogas, morte; outros casos o nascimento dos filhos ocorreu a
partir de uma relação amorosa efêmera.
Em relação à violência, em especial, ao bullying, na totalidade das famílias visitadas,
seja o filho vítima ou agressor, o que encontrei foi dor e sofrimento. Ouvi depoimentos sobre
insultos, humilhações, incompreensões, ofensas, agressões físicas, verbais e psicológicas
sofridas pelos filhos no relacionamento com os colegas quanto com seus professores. Ouvi
também algumas situações gravíssimas, como caso do abuso sexual ocorrido dentro da
própria escola. A dignidade humana ferida pela dor é revelada pela revolta quanto pelas
lágrimas que brotam ao trazer presentes os fatos que deixaram marcas profundas. A violação
da dignidade também transparece no sentimento de impotência, de inutilidade, na
desmotivação, insatisfação, na desistência, também no distanciamento da escola frente ao
descaso, indiferença e negligência de seus representantes. Nesse sentido, Fante (2005, p. 21)
alerta: “É imprescindível combater os atos cruéis, intimidadores e repetitivos, prolongamente
sobre a mesma vítima, e cujo poder destrutivo é perigoso à comunidade escolar e à sociedade
como um todo, que culminam no comportamento bullying”.
O quadro de dor, sofrimento e carências diversas encontrado no decorrer dos trabalhos
de campo relacionados com a trajetória escolar dos estudantes, suas famílias como também a
trajetória de vida dos professores, deu novo impulso às dimensões da pesquisa. Compreendi
que não seria possível falar de violência na escola, nem da prática do bullying no ambiente
escolar, sem me referir à violência da própria escola, à violência que o próprio sistema impõe
à escola, à família e à sociedade. Nessa caminhada também percebemos a necessidade de
compreender a história de vida da família de alguns estudantes, seus problemas econômicos,
sociais e culturais vividos na trama do cotidiano.
Cientes do meu papel como pesquisadora ali na escola, chamavam-me de professora e
até de “psicóloga” pelos atendimentos e encaminhamentos feitos. O assunto, no entanto, a
respeito da violência na escola ou sobre o bullying, nunca surgiu espontaneamente em nossas
conversas. Não queriam falar de um assunto que traz a marca da dor. Alguns já haviam sido
chamados à escola diversas vezes, outros desconheciam os problemas nos quais os filhos
estavam envolvidos. Aqueles que os filhos foram violados pelo abuso sexual choravam.
Outros haviam desistido, não conseguiam mais conquistar o próprio filho. Perderam a
esperança e delegaram para a escola, para o Conselho Tutelar ou até mesmo para a polícia.
Minha presença constante na escola causou grandes expectativas aos professores,
funcionários, gestores e, particularmente às famílias. Muitas vezes, nas conversas informais e
também nas entrevistas, surgiram pedidos relacionados a curso de informática, oficinas de
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(1989) chama a atenção para o fato de que o processo de conhecimento da vida social sempre
implica um grau de subjetividade e que, portanto, tem um caráter aproximativo e não
definitivo. Há sempre um caráter de interpretação e uma dimensão de subjetividade em nosso
trabalho. A realidade é sempre filtrada por determinado ponto de vista do observador. Nesse
sentido, Passos2 também nos diz que “a realidade é de cada um e não se esgota aí.
Apreendemos uma pálida imagem de tudo que eles vivenciam, uma vez que não fomos
gerados nela”. Logo, o que percebemos é uma interpretação que poderá aproximar-se do real.
Na interpretação fenomenológica das informações, tentei fazer um diálogo com as
construções teóricas que, julguei, permitiriam levantar as inter-relações e compreender o
material obtido. Observando as questões éticas e o cuidado com a preservação da identidade
dos sujeitos, fui levada a alterar os nomes dos estudantes, omitir o de seus familiares, dos
professores e das escolas onde estudam. Quaisquer outras informações que os pudessem
expor foram também alteradas ou omitidas. Os nomes que apresento são fictícios para
garantir-lhes a privacidade. Para me referir às escolas, utilizarei a expressão escola A, B e C.
Desfiarei no próximo tópico a opção teórico-metodológica. Demonstrarei a
perspectiva empreendida, bem como a compreensão das informações obtidas com o uso da
observação, entrevistas, relatos e histórias de vida.
2
Palestra sobre os escritos de Clifford Geertz no grupo de pesquisa GPMSE/Universidade Federal de Mato Grosso no
dia 21 de abril de 2009, ministrada por Prof. Dr. Luiz Augusto Passos.
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enfática que fazer “etnografia é como tentar ler [...] um manuscrito estranho, desbotado, cheio
de elipses, incoerências e comentários tendenciosos, tecidos pelo ser humano não com os
sinais convencionais do som, mas como exemplos transitórios de comportamento modelado”.
Para o autor, a etnografia deve interpretar e buscar os significados atribuídos a esses
atos. Entender a lógica informal da vida real. Nesse caminho apontado por Geertz, a busca do
etnógrafo é a de construir, a partir das construções do outro, da complexidade das experiências
humanas, a compreensão perceptiva sobre a teia da vida. Identificar certas dinâmicas sociais e
seus significados não são suficientes para que possamos realizar em nós um processo de
escuta permanente e de compreensão sempre maior sobre a vida do povo. Essas dinâmicas
sociais e seus significados estão dentro de um "universo imaginativo" e linguístico, dentro dos
quais essas ações são determinadas e fazem sentido para os que dela participam.
A utilização do método etnográfico na pesquisa foi com o intento de compreender o
que leva uma criança, ou adolescente ou um grupo particular de educandos e educadores a
ferir um colega de escola e conseguir entender o significado das perspectivas imediatas que
eles têm do que fazem. O objeto da etnografia é esse conjunto de significantes em termos dos
quais os eventos, fatos, ações e contextos são produzidos, percebidos e interpretados, e sem os
quais não existem como categoria cultural (GEERTZ, 1989).
É compreensível que expressões particulares de manifestação cultural compõem a rede
de significados identificada por Geertz, o que certamente se encontre no contexto maior de
significação cultural as conexões que lhe tipifiquem o movimento, ou, como define Passos:
O esforço para descrever o tempo vivido dos participantes da pesquisa foi tarefa para a
qual a descrição densa da etnografia interpretativa de Geertz se apresentou como ferramenta
adequada. Tal descrição, enfatizada na Antropologia Geertziana, coaduna-se com a intenção
da fenomenologia em compreender o fenômeno tal como ele ocorre, e não apenas analisá-lo
ou explicá-lo com o filtro de prévios pressupostos imperativo se determinantes. O fenômeno é
algo que existe e persiste no tempo: é o ponto de encontro da inerência humana ao mundo e
ao outro. É o que a etnografia de Geertz pretende descrever, encontrar, circunscrever.
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3
Esse direito social foi conquistado no final dos anos 90 e início de 2000 por meio de organização dos
estudantes com o apoio da classe política.
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sua complexidade, sua observação requer o registro de todos os fatos de maneira minuciosa
por meio de técnicas que garantam fiabilidade e validade à investigação.
Segundo André (1995, p. 28), a “observação é chamada de participante porque parte
do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada,
afetando-a e sendo por ela afetado”. Ampliando essa reflexão, Bogdan e Biklen (1994)
definiram a observação participante como uma investigação que se caracteriza por um período
de interações sociais intensas entre o investigador e os sujeitos, no meio destes, durante o qual
as significações são apreendidas de forma sistemática.
Com essas palavras, os autores afirmam que é nesse contato com o diferente que o
etnógrafo passa a conhecer seu próprio universo simbólico. O contato possibilita ainda
reconhecer que existem outros territórios, e o etnógrafo passa a enxergar melhor os limites
históricos de seus próprios valores, já que a situação de entrevista nem sempre propicia esse
jogo de alternâncias. Esse procedimento demanda tempo, pois apenas quando os sujeitos da
pesquisa começam, finalmente, a se sentir em casa com a presença do pesquisador é que este
consegue construir a tessitura da vida social. Nesse contexto, os múltiplos atos do cotidiano
escolar revelam os valores sociais do grupo estudado. Tais informações fornecem subsídios
necessários para confrontar as falas dos diferentes sujeitos sobre a mesma realidade.
Na observação, estive atenta às especificidades das ações e seus significados para seus
atores e firmemente empenhada para contribuir na compreensão das formas como se
manifesta o fenômeno bullying no âmbito escolar, através das interações interpessoais visto
que a preocupação que permeia a pesquisa etnográfica, segundo Fonseca (1997, p.10), é “[...]
captar algo da experiência das pessoas”. Portanto, é necessário ir além das falas e apostar na
observação sistemática das práticas sociais, culturais e históricas.
Foram observados e anotados as ocorrências, comportamentos e vivências durante a
minha estada na escola, nos diversos espaços, entrada e saída da escola, corredores, pátio e
recreio, salas de aula, banheiros, quadra de esportes no momento da educação física,
bebedouros, relacionamentos entre eles e com os professores; eventos realizados no espaço
escolar, espaço familiar. A escolha desses espaços para serem observados, baseou-se nos
estudos e pesquisas realizadas por vários autores, entre eles Fante (2005), os quais os
consideram como os ambientes onde mais ocorre a prática do bullying entre estudantes.
Para as anotações das observações, utilizei um caderno de registros no qual ia tomando
nota dos comentários feitos pelos educadores e pelos estudantes no andar da aplicação das
entrevistas. Trazia também minhas impressões, circunscritas à reação dos adolescentes diante
dos quesitos. Transcrevi os diálogos que os educadores mantiveram durante a realização das
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atividades diárias em sala de aula, na sala dos professores, no pátio, os quais nos permitiram
desvendar possíveis êxitos e as dificuldades que estes sentiram durante o desenvolvimento de
suas práticas pedagógicas em sala.
Ao pesquisar a organização dos processos de interação entre os membros da
comunidade educativa, busquei perceber como eles interagem na escola e como formam o
ambiente uns para os outros. Estive atenta para entender, por exemplo, o que leva um grupo
de estudantes a provocar sistematicamente um determinado colega; o que faz com que a
interação entre educandos e educadores seja agressiva; que lógicas movem a prática do
bullying e que significados esses fatos têm para a vida cotidiana desses atores sociais.
Dessa forma, pesquisar fenomenologicamente é olhar de muito perto, no dizer de
Laplantine (2004, p. 105) parafraseando Merleau-Ponty, “Ver é ver o mundo”. Vemos, pela
experiência pessoal e participação nas vivências das pessoas. Esse conjunto de significações
da vida real consta de um material importante de reconstituição de momentos de conflitos,
acertos, desencontros, que permitirão, com certeza, novos recortes e investigações que
haverão de descortinar o entorno, rico de experiência e todo válido, no referente à escola
como cenário de nossa interpretação. Posteriormente, tratarei sobre o conteúdo das
observações.
funcionários que tinham relatos importantes sobre fatos de violência que presenciaram no
espaço escolar; e) as conselheiras escolar e mãe de estudantes, com o objetivo de apreender
sua visão sobre o cotidiano escolar; f) seis famílias, pais, mães, avós, parentes de estudantes
sobre sua história escolar, sobre a estruturação interna de suas famílias, bem como sobre seu
imaginário acerca do bullying e estratégias que utilizam para reduzi-lo ou combatê-lo. O
quadro geral dos entrevistados apresento abaixo:
uma sala improvisada para essa finalidade, nas aulas de educação física e pátio da escola e nas
próprias residências dos entrevistados. Algumas foram realizadas mais de uma vez com a
mesma pessoa sobre o mesmo tema com o intuito de preencher lacunas deixadas nas
entrevistas anteriores ou para acrescentar informações antes não requeridas que, com o tempo
pareceram-me importantes. Somaram também à pesquisa as conversas informais que tive com
vizinhos dos espaços escolares, com moradores de perto dos pontos de ônibus, dentro dos
coletivos com educadores que estavam indo ou retornando do trabalho nas escolas que, a um
primeiro momento pareciam despropositadas em termos de pesquisa, mas que trouxeram
contribuições importantes. Pedi licença aos familiares oralmente e de forma escrita para
efetuar a gravação das conversas, as quais foram transcritas simultaneamente para evitar perda
de significações importantes. No processo de edição, retirei os vícios de linguagem, as
repetições, sempre com o cuidado de não comprometer a fidedignidade dos discursos.
Na realização de entrevistas, pela complexidade do objeto pesquisado, possibilitei que
educandos, educadores e famílias falassem livremente sobre como se sentiam e percebiam o
ambiente escolar e sobre as razões que faziam com que um colega praticasse atos de bullying
contra outro colega. Para isso, fiz uso do gravador por entender que o mesmo amplia o poder
de registro e captação de elementos de comunicação de extrema importância, pausas de
reflexão, vacilações, silêncios, aprimorando a compreensão da narrativa.
No decorrer das conversas, desenvolveu-se um clima de empatia, confiança e respeito
entre a pesquisadora e os sujeitos. Foi comum ouvir queixas dos estudantes, famílias e
educadores de não terem um espaço como aquele para conversar, onde o não julgamento e a
compreensão eram regras básicas. Esse clima amistoso favoreceu o livre relato dos
envolvidos. Não poucos, mobilizados pela lembrança, até choraram pelas vivências dolorosas
sofridas ou presenciadas tanto no ambiente escolar quanto na família.
No tocante às entrevistas, segui a orientação de Bogdan e Biklen (1994) que
consideram a apreensão de informações como um processo de socialização entre entrevistados
e entrevistador, sem que essa prática seja simplesmente episódio onde o sujeito passa
unicamente as informações ao entrevistador: “[...] a entrevista é utilizada para recolher dados
descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver
intuitivamente uma ideia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo”
(p.134). Já para André (1995, p. 28), “as entrevistas têm a finalidade de aprofundar as
questões e esclarecer os problemas observados”. Assim, o uso da entrevista individual no
contexto da pesquisa contribuiu para a obtenção de detalhes como sentimentos, vivências,
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Assim Queiroz fundamenta sua colocação que a história de vida é, portanto, técnica
que capta o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social. Nesse aspecto, os
autores Bosi (1987) e Bourdieu & Passeron (1975) advertem que o pesquisador que trabalha
com histórias de vida corre o risco de considerar que tudo é pertinente e relevante para a
análise interpretativa, podendo perder-se numa infinidade de informações que a narrativa
biográfica possibilita.
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Queiroz (1987) diz que o pesquisador, deve conservar-se o mais silencioso possível,
ao lançar mão da técnica da história de vida, suas interferências devem ser mínimas. Quem
detém a condução da entrevista é o narrador, pois é ele quem decide o que é relevante narrar.
Nada do que relata é supérfluo, pois tudo se encadeia. No caso particular do fenômeno
bullying, esta técnica permitiu abarcar de forma ampla a realidade a ser estudada. Sendo
assim, considera-se a história de vida instrumento válido e privilegiado, pois favorece a
possibilidade de reconstrução da história social através de fontes não explícitas.
No próximo capítulo, prosseguirei com a discussão sobre a instituição escolar como
espaço sociocultural e também como espaço de violência, tendo o olhar sobre a violência na
escola, da escola e contra a escola.
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[...] a escola é uma instituição sócio-cultural que está organizada e pautada por
valores, concepções e expectativas. Está perpassada por relações sociais na
organização do trabalho e da produção. Em outros termos, os alunos, os professores,
a direção, os pais e a comunidade não são meros recursos e materiais. São sujeitos
históricos, culturais. A própria instituição escolar é um produto histórico cultural
que age e interage numa trama de complexos processos sócio-culturais. A escola é
uma organização socialmente construída e reconstruída, em uma dinâmica cultural.
A cultura do silêncio a que me refiro tem várias dimensões, inclusive uma reação
agressiva dos alunos. A pedagogia oficial os constrói como personagens passivo-
agressivos. Alguns alunos silenciosos fazem anotações e acompanham a voz do
professor diligentemente. Outros se sentam em silêncio e devaneiam, desligados das
condições intoleráveis da sala de aula. Outros se sentam com raiva, provocada pela
imposição, sobre eles, do tédio e da ortodoxia. [...] tornaram não participantes. Esse
retraimento do estudante pode ser simplesmente passivo ou pode ser um raivoso
silêncio reprimido (FREIRE & SHOR, 1986, p.149).
47
Patto (1993) sinaliza que esse tipo de violência não é fácil de ser constatada, pois é
invisível, muitas vezes silenciosa, verbal ou simbólica na expressão corporal/gestual do
professor. Geralmente ocorre no interior da sala de aula, nos espaços fechados da escola. O
autor salienta que
Por outro curso, algumas manifestações de atos de rebeldia e/ou violência, em sua
grande maioria, são formas encontradas por muitos educandos para expressar o sentimento de
insatisfação com as péssimas aulas e com as situações de violência explicita ou silenciada que
sofrem diariamente. Nesse sentido, Enguita (1989, p.166) diz que “uma das características
fundamentais da escola é sua dimensão onipresente de educação para a docilidade”. A
homogeneização dos sujeitos corresponde à homogeneização da instituição escolar,
compreendida como universal.
Na concepção de Freire & Shor (1986), a forma de relacionar com os estudantes nos
espaços educativos suscitam três segmentos de educandos: no primeiro grupo, pertencem
aqueles que aceitam passivamente as normas estabelecidas pela instituição; no segundo grupo,
estão os educandos que assumem uma postura neutra, ou seja, não reagem conforme as regras
da instituição, mas também não se rebelam, “ficam na deles”; no terceiro grupo, estão os
educandos que confrontam agressivamente com a equipe diretiva, sabotam as regras por meio
da agressão aberta, contrapondo a “cultura do silêncio”, conforme enfatizam os autores, “[...]
os alunos que sabotam a violência simbólica do currículo oficial estão defendendo sua
autonomia, frequentemente de modo autodestrutivo e confuso. Seu comportamento agressivo
interfere na transferência de conhecimento” (p. 150).
Compartilhando da ideia desses autores, Enguita (1989) garante que uma das
características essenciais que as escolas possuem em comum é a obsessão pela manutenção da
ordem. Segundo ele, a maioria dos professores acredita que manter a ordem e impor a
disciplina é condição imprescindível para uma instrução eficaz. No entanto, conforme
compreende o autor, as constantes relações de submissão à autoridade e à hierarquia
prejudicam no educando a imagem de si mesmo, sua autoestima e inibem seu protagonismo
educacional e pessoal, destruindo sua criatividade e autonomia.
Tais considerações sugerem que talvez o maior problema esteja no fato de o professor
se concentrar apenas em seu exercício de autoridade, crendo que, com isso, conseguirá
eliminar os conflitos. Contudo, as efervescências da sala de aula marcadas pela diferença, pela
instabilidade, pela precariedade apontam para a inutilidade de um controle totalitário, de uma
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dando-lhe outro significado que lhe é próprio. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença,
enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escalas de valores,
sentimentos, emoções, projetos, com lógicas de condutas e hábitos que lhe são próprios.
Como lembra Mclaren (1991), o que cada um deles é, ao chegar à escola, é fruto de
um conjunto de experiências sociais vivenciadas nos mais diferentes ambientes sociais.
Assim, para compreendê-los, temos que considerar a dimensão da experiência de vida de cada
um. Eles experimentam suas situações e relações produtivas como necessidades, interesses e
antagonismos e elaboram essa experiência em sua consciência e cultura, agindo conforme a
situação determinada. Assim, o cotidiano se torna espaço e tempo significativos de
aprendizagens.
No que tange à experiência vivida, posso afirmar que ela é a matéria prima a partir da
qual os educandos articulam sua própria cultura, aqui compreendida, enquanto conjunto de
crenças, valores, visão de mundo, rede de significados: expressões simbólicas da inserção dos
indivíduos em determinado nível da totalidade social, que terminam por definir a própria
natureza humana de acordo com a visão de Geertz (1989). Em outras palavras, os educandos
já chegam à escola com um acúmulo de experiências vivenciadas em múltiplos espaços,
através das quais podem elaborar uma cultura própria, uma forma de ver, sentir e atribuir
sentido e significado ao mundo, à realidade onde se encontram inseridos.
É necessário sublinhar que a escola é um espaço social plural e complexo onde
interagem fatores externos e internos. Entre os principais fatores externos, destacam-se as
relações raciais, as questões de gênero, os meios de comunicação e o espaço social no qual a
escola está inserida. Quanto aos fatores internos, pode-se considerar a idade e a série ou o
nível de escolaridade dos estudantes, as regras e a disciplina das escolas, assim como o
impacto do sistema de punições e as ameaças de professores em relação aos educandos, de
estudantes em relação aos professores e entre os próprios educandos.
Nesse contexto educativo de interações, os conflitos agressivos e ameaças dentro do
espaço escolar manifestam-se com frequência. Abrangem desde formas de sociabilidade
juvenil até condutas brutais. Briga-se por quase tudo: por bola, lanche, notas, tomada de
objetos pessoais, por atribuir apelidos pejorativos, por causa de namorados, calúnias e
difamações, entre outros inúmeros pretextos, como será abordado posteriormente.
51
Já para Arendt (1994, p. 41), “a violência é por natureza instrumental, como todos os
meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja”. Além do
mais, o perigo da violência, mesmo se ela se move conscientemente dentro de uma estrutura
extremista ou não extremista de objetivos de curto prazo, sempre será o de que os meios se
sobrepõem ao fim.
Essa compreensão é reforçada por Roberto DaMatta (1981, p.13) ao afirmar que “a
violência parece transformar-se em moeda corrente do mundo cotidiano”. O autor diz que no
Brasil “a violência é concebida como algo injusto, uma ação que configura uma ausência de
boa vontade, tranquilidade, estabilidade e confiança. Uma violência concreta voltada contra
um ser humano papável, tangível e real e não contra um grupo ou classe definidos por meio
de critérios políticos ou econômicos.” (op. cit., p.25). A crença num mundo passível de ser
entendido e resolvido pela palavra e pelo diálogo ainda apresenta-se timidamente. Para
DaMatta a “violência brasileira é um modo permanente de relacionar e de buscar a totalização
dentro de um sistema vivido e percebido como fragmentado, dividido e dotado de éticas
múltiplas” (p. 42).
Buey (2000, p.164) concorda com DaMatta ao dizer que “a violência é a ‘comadrona’
da história. Às vezes a história avança pelo seu lado mal. As guerras são parte desse lado
mal”. O autor quer chamar atenção para o reconhecimento do papel dos diversos tipos de
violência na história, seja ela individual, estatal ou social e de suas implicações para os
indivíduos e nações que são submetidos ao terrorismo individual, às guerras, à pena de morte,
à fome.
A violência, hoje, na humanidade é fruto do desmoronamento de valores éticos,
políticos e sociais. O capitalismo selvagem onde existe constrói o leito da violência e a
violência como explosão social cria o caos, estrutura a horda ou o bando (FACHINI, 2006).
Dessa forma, compreende-se por violência uma prática determinada de força tanto em
termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Ela se manifesta, por um lado,
numa relação hierárquica de desigualdade, diferenças com fins de dominação, de exploração e
de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre
superior e inferior; e por outro lado, como a ação que trata um ser humano não como sujeito,
mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio.
Nessa percepção, os estudos realizados por Hannah Arendt (1981) acerca da
violência, configuram-se como um excelente aporte teórico, com reflexões a partir da filosofia
política, para entender o fenômeno na sua complexidade e amplitude. Do mesmo modo, o
53
Por último, a autora faz referência à violência verbal, que se manifesta por meio das
incivilidades (pressão psicológica) caracterizadas como humilhações, palavras grosseiras,
desrespeito, desacato, indelicadeza, humilhações, intimidação ou prática de bullying, objeto
desta pesquisa. Abramovay ainda diz que as “incivilidades contra as pessoas podem tomar a
forma de intimidações físicas (empurrões, escarros) e verbais (injúrias, xingamentos e
ameaças)” (p. 74).
Porém, independente das consequências que as formas de violência possam provocar,
Chesnais (1981) defende que somente a violência física encontra amparo nos códigos penais e
nas perspectivas profissionais, tais como médicas e policiais. Assim, “a violência física é que
significaria de fato agressão contra as pessoas, já que ameaça o que elas têm de mais precioso:
a vida, a saúde, a liberdade” (apud ABRAMOVAY & RUA, 2002, p. 69).
Quanto à conceituação da violência na escola, Bernard Charlot (1997) afirma que há
dificuldade em delimitá-la porque ela desestrutura as nossas representações. Além disso, a
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fronteira aumenta devido ao fato de que o significado de violência não é consensual. Sua
caracterização varia em função do estabelecimento escolar, do status de quem fala (docentes,
diretores, educandos), da idade e, possivelmente, do sexo. Ante essa dificuldade de
delimitação, ele amplia o conceito de violência escolar, classificando-a em três níveis:
Portanto a violência na escola pode ser entendida como uma construção social, que se
dá em meio a interações entre sujeitos no espaço escolar. Caracteriza-se como um processo
social que compreende tanto relações externas como internas, e institucionais, em particular
no que tange às relações sociais entre sujeitos diversos. Na seqüência passarei a estudar a
violência contra a escola.
Por outro curso, outra chaga enfrentada pelas escolas públicas é a rotatividade do
corpo docente, a escassez de concursos, os contratos com baixos salários durante cada ano
letivo, formando um conjunto que vai aos poucos gerando a insatisfação com a profissão
(OSNIR, 2008; PASSOS, 2004), como será aprofundado posteriormente.
É evidente que estudantes com baixo rendimento escolar tendem a perder o interesse
pela escola. Essa perda de interesse, por sua vez, leva ao descuido com o patrimônio material
da instituição escolar e ao abandono do desejo de permanecer nela. Para os professores,
muitas vezes, a saída está em carreiras fora do magistério, quando pelo desencantamento
profissional, desistem de lutar contra o esgotamento (nervoso) gerado nas salas de aula pela
falta de condições materiais, psicológicas e humanas de trabalho.
No tópico a seguir, buscarei por meio do pensamento de alguns autores, explicar a
prática da violência oriunda da escola.
Sob sinos, patrulhas, proibições, postam-se vigiais nas portas e nos corredores: as
culturas dessas escolas estão em estado de sítio. Nessas escolas, os conselhos de
classe mal escondem a semântica inusitada dada ao termo: ‘classe’! Suas reuniões
com os pais apenas escondem, de forma polida, relações assimétricas e de
esfolamento vivo de alunos e pais. Administra-se nelas uma ditadura de classe, de
58
Diante dessa perplexidade instalada em nossas escolas, Patto (1993) diz que os altos
índices de evasão e repetência, que constituem o chamado “fracasso escolar”, não podem ser
explicados apenas com referência às condições de pobreza dos educandos ou por suas
carências afetivas e culturais. Esse fracasso é resultado de políticas públicas que, no decorrer
de nossa história, foram sendo improvisadas, ineficientes e perversas, com práticas
centralizadoras e concepções curriculares e pedagógicas conservadoras. Nestas também se
percebe uma crescente desvalorização profissional dos professores. Tais políticas geraram uma
escola incapaz de olhar para si mesma, dependente e obrigada a receber orientações quase
prontas, de fora para dentro, de cima para baixo, contribuindo para a docilização e apatia.
Nesse sentido, Abramovay & Rua (2002, p.69) asseguram que essas práticas
discriminatórias existentes quase que diariamente na escola revelam-se situações violentas do
tipo “magoar, ferir, agredir por falta de respeito”, não envolvem diretamente a força, mas
caracterizam-se por ações de força que instauram o medo, a marginalização, o desinteresse
pela escola e pela aprendizagem. Para crianças e jovens, sinalizam como atos de violência por
parte dos professores, favorecendo a repetência e, logo, a evasão escolar (OLIBONI 2008).
Por outro lado, a desvalorização e o despreparo do professor, o desinteresse pela formação
continuada, a insatisfação, a indiferença, a falta de estímulo dos estudantes são situações
potencializadoras de violências.
Insiste-se que a violência simbólica cumpre o papel de coagir para que haja no
indivíduo uma internalização dos meios de socialização. Tal ação sintoniza-se com o
pensamento de Durkheim (1978) para quem a educação, para ser efetivada, exige certa
medida de coerção para a transmissão de conteúdos próprios à formação de condutas.
Todo esse autoritarismo da instituição escolar foi sintetizado em um estudo realizado
por Adorno:
[...] a memória de uma violência incontida que somente pode resultar em respostas
violentas, em um aprendizado que a escola pretende justamente negar e conter. Mas
do que qualquer outro espaço institucional, a escola se apresenta a essas e crianças e
adolescentes como uma espécie de castigo modelar do comportamento. Um castigo
que deve ser sofrido com resignação. Não são poucas as queixas. O aprendizado
imposto que nada diz respeito ao mundo próximo e conhecido. A humilhação a que
são submetidos pelo não saber, pela ausência de tradição de frequência escolar na
família, pelas origens populares. As provas a que se sujeitam para confirmar
pertencimento no gênero humano e a recusa de um espetáculo de antissociabilidade.
A violência que subjaz as relações sociais e que exclui o diálogo e a compreensão.
Autoritárias essas relações não dissimulam as formas agressivas de preservação da
disciplina [...] esse universo, a baixa escolaridade e a evasão escolar, antes de serem
59
Feitas essas considerações, avalio que a instituição escolar não pode ser vista apenas
como reflexo da opressão, da violência, dos conflitos que acontecem na sociedade. Acredito
não ser nenhum equívoco afirmar que as escolas também produzem sua própria violência:
A escola deve buscar, através de uma avaliação constante, superar a dicotomia que
normalmente ocorre entre seu discurso e sua prática: quer formar aluno ativo, mas
concentra as iniciativas no professor; quer formar aluno responsável, mas não lhe dá
oportunidade de assumir responsabilidade; quer formar aluno autônomo, mas não dá
oportunidade de tomar decisões; quer que o professor desenvolva a autonomia dos
alunos, mas trata esse mesmo professor de forma heterônoma (VASCONCELLOS,
2005, p.61).
perceber por meio das entrevistas que alguns sujeitos não precisaram passar por situações
bullying três vezes ou mais para ter a sua vida afetada. Bastou uma vez para que os apelidos
desairosos, as discriminações que lhes foram imputadas deixassem marcas muito profunda.
Observa-se ainda que essas manifestações do bullying frequentemente ocorrem longe
das vistas de um adulto (CAVALCANTE, 2004), expressando aí a dificuldade em reconhecer
a sua existência. Os estudos de Pereira (2002) apontam que os locais em que mais ocorrem
essas provocações, tanto nas escolas de ensino público quanto particular são: pátio,
corredores, salas de aula, saída, banheiros, pois esses locais são de pouca fiscalização por
parte dos profissionais da escola.
Certamente o desconhecimento que o fenômeno se manifesta de forma diferente de
acordo com os contextos sociais, tempo, espaço, locais, público poderá levar as instituições
educativas a agirem de maneira perversa sobre os sujeitos, a exemplo das concebidas
“instituições totais” descritas por Goffman (2001). Isso ocorre a partir do momento que estas
desconsideram a condição social e emocional, os traços biológicos, a cultura apreendida em
sua realidade, inibindo a evolução desse sujeito de forma autônoma.
Embora tenham ocorrido grandes mudanças na sociedade em todas as esferas da vida
humana, ainda hoje muitas instituições educativas se enquadram numa visão goffmaniana,
podendo ser consideradas como instituições totais ou, mais precisamente, com grande
tendência às praticas tradicionais do passado. Por falta de conhecimento ou desinteresse
acerca das conseqüências das ações do bullying, dentro de muitas delas, as iniciativas de
debates acerca da temática, como veremos mais adiante, são muito tímidas. Tal indiferença
leva os educandos, vítimas de atos de bullying, em muitas situações, a crerem que são
merecedoras de diferentes tipos de violência caracterizadas como bullying. Por não
encontrarem apoio nesses momentos trágicos, que constrangidos tentam expressar o que
vivenciam no relacionamento com os colegas, optam pelo silêncio, ficando confinados à sua
própria dor e sofrimento.
Nesse sentido, Lopes Neto (2005) alerta que pior do que a falta de providências é a
falta de entendimento e atendimento adequado aos casos. Embora a responsabilização seja
obrigatória, melhor do que punir ou reprimir é caminhar em direção a uma compreensão mais
profunda do problema, agindo na prevenção para evitar que novas vítimas e culpados surjam.
Por outro lado, a falta de conhecimento sobre o tema pode levar a um atendimento
inadequado às vítimas que procuram ajuda.
Nessa compreensão, o papel da família e dos professores, bem como de toda a escola
deve ser auxiliar as crianças e adolescentes a conviverem com as diferenças por meio do
64
trabalho com valores essenciais à convivência humana, considerados apoio na redução dos
preconceitos. Não existe educação sem relacionamento com os outros. “[...] as relações se
constituem a “alma” dos grupos” (GUARESCHI, 2005, p.65). Para o autor, o que dá
fundamento a um grupo, seja ele familiar, escolar, religioso, esportivo, empresarial, entre
outros, “[...] é a existência, ou não, de relações entre as pessoas, os membros, os possíveis
componentes do grupo” (p. 64). Nesse sentido, ao ampliar a discussão sobre a questão da
relação e da individualidade, Guareschi, além disso, acena aspectos importantes:
Percebe-se, de tudo o que se tem dito, que o educando define a sua identidade
autônoma e participativa a partir da relação que constrói com os outros indivíduos no espaço
escolar e fora dele. Isto é, cada pessoa se completa e se efetiva no relacionamento construído
com os que estão em seu entorno, que fazem parte da sua convivência. É na relação entre o eu
e o outro que se constrói a identidade autônoma e livre. No dizer de Freire (2000, p.121), a
formação da “[...] autonomia, como amadurecimento do ser para si, é um processo, é vir a
ser”. Por isso a autonomia é experiência de interações construídas e de liberdade.
Ancorada em tais considerações, pode-se admitir que o ser humano é determinado pela
relação que estabelece com o meio: transforma e é transformado por meio da interação.
Assim, a relação entre a pessoa e as instituições educativas é concebida de forma dialética.
Entretanto, o ser relação não é apenas reflexo do meio. A capacidade de interagir com o meio,
também dá as condições não apenas de compreendê-lo criticamente, mas, também, a
possibilidade de libertar das suas amarras e transformá-lo. Com certeza esse poder é relativo.
Estamos todos sujeitos às intempéries dos fatos cotidianos, contudo creio que, no trabalho
realizado coletivamente, maiores são as possibilidades de redução das formas de violência.
A instituição escolar, pelo alto nível de interação cotidiana com o meio social, por
meio dos seus principais integrantes, estudantes, professores, funcionários e amigos, reflete
muito bem a problemática da violência, reproduzindo aspectos de ordem social. Sua principal
função é ensinar, desde a infância, padrões de comportamento, conceitos bons, verdadeiros e
adequados a respeito dos mais diversos aspectos da vida social, política, econômica, cultural e
religiosa. Porém, a escola, a partir da sua organização e inserção no meio social com a
comunidade local, pode desencadear ações de prevenção e combate à violência a partir dela
65
própria, por meio de projetos e programas específicos entre professores, famílias, educandos e
com aqueles que estão à sua volta.
Sou ciente que reduzir e prevenir a violência que vem se disseminando na escola
expressa pela prática do bullying é tarefa árdua, a curto, médio e longo prazo, visto que a
problemática é um fenômeno complexo, tendo inúmeras causas determinantes e diversas
formas de manifestação. No entanto, creio que ainda é possível e necessária a sua prevenção a
começar pela própria escola e desta para as outras instituições educativas. O desafio é
sensibilizar toda a comunidade educativa para a existência do problema e coletivamente criar
estratégias para reduzir as ocorrências do bullying no espaço escolar.
O termo bullying é de origem inglesa, adotado em muitos países, entre eles o Brasil,
para definir o desejo consciente e deliberado de maltratar ou ridicularizar outras pessoas e
colocá-las sob tensão. É um termo que conceitua os comportamentos agressivos e antissociais.
Tem origem na palavra bully, que é traduzido como valentão, tirano, atacante e, já como
verbo, significa ameaçar, amedrontar, tiranizar, oprimir, intimidar, maltratar.
Ações repetidas de violência contra os pares, enquadradas no fenômeno do bullying,
não são descoladas das trajetórias vivenciadas pelas crianças. Também não revelam
manifestações recentemente identificadas. Sendo assim, entendo o bullying como um
Em outros países, são utilizados outros termos para definir as características próprias
do fenômeno. Ressalto que esses termos são usados com significados e conotações diferentes,
conforme demonstra Fante (2005):
4
Sua raiz inglesa, mob, refere-se a um grupo grande e anônimo de pessoas que geralmente se dedica ao assédio.
Quando, porém, uma pessoa atormenta, hostiliza ou molesta uma outra, o termo utilizado para caracterizar esse
comportamento é mobbing. [...] mobbing é empregado para definir uma situação na qual um indivíduo, sozinho
ou em grupo, ridiculariza um outro.
66
Porém, Freire, Simão e Ferreira (2006) chamam atenção que a violência não está ligada
diretamente à condição social, visto que ela não é mais exclusividade de nenhuma classe
social, mas sim disseminada em todo o tecido social.
A fenomenologia da pobreza e do abandono evidentemente não é mais a mesma de
décadas atrás. Mudou, e o pior, mudou no sentido menos desejável: ampliaram-se os
horizontes da miséria material, moral, espiritual, a crise endêmica da família. Por outro lado a
própria família normal vê progressivamente diminuir os espaços de sua ação educativa por
uma sociedade sempre mais avassaladora, através da prepotência dos meios de comunicação
de massa (mass-media) e sempre menos mediadora de valores humanos.
Fante (2005) aponta também as interações sociais, socioeducacionais e as expressões
comportamentais agressivas manifestas nas relações interpessoais. Abramovay (2003) refere-
se ainda aos fatores raciais e de gênero, à perda de referencial entre os jovens, ao surgimento
de ‘galeras’, ‘gangues’, à perda de espaços de sociabilidade e, por consequência, a inversão de
valores, atitudes e vida social, que, no dizer da autora, contribuem para a banalização da vida.
Além disso, Levisky (1998) e Minayo (1999) chamam a atenção para a influência dos
Meios de Comunicação Social na propagação da violência, sobretudo na escola, inclusive
com relação às práticas do bullying. Eles evidenciam o papel da televisão, da Internet, da
telefonia móvel (celular), do consumismo exacerbado. Caracterizam-nos como condicionantes
para a violência, visto que são propagados a todo o momento, em diversos tipos de
programas, entre eles, filmes e novelas. Atualmente, até mesmo os desenhos animados,
destinados às crianças, fazem referência à violência, estimulando a subjugação e a dominação.
Nesse sentido, Gomide (2000) sustenta que a violência sinalizada com grande carga
diante das crianças e dos adolescentes, e a partir da vivência da mesma, gera o surgimento de
pensamentos e ações bizarras que podem levá-los ao autoextermínio, como também à
reprodução da mesma na interação em outros espaços sociais, tais como a escola, a família.
Igualmente a escola considerada como uma instituição de interação pessoal e social é
vista como uma causa de violência segundo Patto (1993) e Abramovay & Rua (2002). Na
percepção dos autores, esta muitas vezes dissemina a violência por suas regras, disciplina dos
projetos pedagógicos, pelo impacto do sistema de punições e pelo comportamento dos
professores em relação aos estudantes e à prática educacional em geral. Também a escola
muitas vezes desconsidera a experiência social, cultural e afetiva dos educandos, produzindo e
reproduzindo a violência verbal e psicológica, ao mesmo tempo em que intimida a construção
do saber necessário à convivência na escola quanto na sociedade.
69
Pode-se dizer que, pelos estudos apresentados acima, já foi possível vislumbrar uma
série de razões que possibilitam crianças e jovens a praticar a violência. É importante lembrar
que não se configuram como regras imutáveis, são apenas possíveis explicações encontradas
nesses estudos concretizados. Porém, uma coisa não é possível deixar de refletir, a violência é
prejudicial tanto para quem a sofre, como para quem a pratica ou mesmo para quem a
presencia. Esse mal-estar rompe com os princípios éticos da sociabilidade humana.
Considera-se ainda que os fatores desagregação familiar, pobreza, má distribuição de
renda, se analisados isoladamente, não conseguem explicar a violência, visto que não há
regras estabelecidas que ofereçam explicações eficientes sobre a violência na atualidade, uma
vez que ela está disseminada em todos os meios sociais. Parece correto dizer que é a
somatória desses determinantes, da crescente globalização, do consumismo pregado pela
mídia, a escolaridade precária da maioria, o desemprego e o subemprego, a banalização e
naturalização da violência nos filmes e novelas, entre muitos outros. Essas variáveis talvez
consigam explicar o crescimento da violência atual, sobretudo, com relação ao bullying.
Geralmente o autor do bullying é considerado como aquele que pela sua superioridade
física atua, particularmente, contra os colegas que não podem se defender, os mais fracos.
Pode ser de ambos os sexos. Possui um alto poder de persuasão frente a outras pessoas, é
tipicamente popular, aceitável em seu grupo de convivência, apresentando características de
5
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência
70
Os alvos típicos sofrem de forma repetida as agressões do autor que atua de maneira
intencional. Na maioria das vezes, eles são extremamente sensíveis, tímidos, inseguros,
ansiosos, passivos, possuem dificuldade de falar em público. Podem apresentar, ainda, baixa
autoestima, medo, isolamento social, aspectos depressivos, dificuldades no aprendizado,
71
baixo resultado escolar (FANTE, 2005; GUARESCHI, 2008; LOPES, 2005; LIMA, 2008).
Dessa forma, eles não conseguem reagir às provocações e sofrem repetidamente as
consequências dos comportamentos agressivos. Comumente são caracterizados pela falta de
confiança em si mesmos. Na compreensão de Pereira (2002, p.21), “as vítimas experienciam
com mais frequência pouca aceitação, rejeição ativa e são menos escolhidas como melhores
amigos e apresentam fracas competências sociais tais como cooperação, partilha e ser capaz
de ajudar os outros”.
Para Lopes (2005), o alvo de bullying geralmente é eleito por características físicas ou
psicológicas que o torna diferente dos outros: obesidade, uso de óculos, sardas, baixa estatura,
deficiência física, dificuldade de aprendizagem. Também um sotaque de outra região,
aspectos culturais, étnicos ou religiosos tornam-se ‘motivos’. A diferença tratada aqui seria
apenas um pretexto para que o agressor satisfaça uma necessidade que é suscitada nele por
diversos fatores: a de agredir.
O estigma que se pressupõe marcar os alvos de atos de bullying é possível caracterizá-
lo à luz do conceito moderno criado por Goffman (1988, p. 11) como: “Sinais corpóreos com
os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral
de quem os apresentava”. Além dessa conceituação evidenciada por Goffman na obra
“Estigma” (1988), neste trabalho, seguirei também as orientações do pensamento de Bauman,
à luz da obra “Modernidade e ambivalência” (1999).
Na contemporaneidade, Goffman aponta que o termo estigma é utilizado nas relações
sociais para salientar e interpretar algo mais do que um simples sinal corporal,
proporcionando à pessoa um traço de outro modo inócuo, torna-se uma mancha, um sinal de
aflição ou um motivo de vergonha. A vergonha surge quando o estigmatizado reconhece-se
como portador do atributo impuro. Ele passa, assim, a utilizar-se de estratégias em uma
tentativa de corrigir a situação que causa o estigma.
Dentre essas estratégias, Goffman (1988) pontua o isolamento, físico ou não, do
estigmatizado. Escondendo-se da sociedade ‘normal’, o portador do estigma deixa de estar
exposto à nitidez das diferenças que concorda possuir e, desse modo, passa de ser estranho e
desconfortante para um ser nulo, indiferente para a sociedade que o cerca e passivo diante da
posição que ocupa. Esses estigmas se caracterizam socialmente em afastar da sociedade os
indivíduos que possuem traços diferentes, tidos como anormais.
Bauman (1999, p. 77), com base nos estudos de Goffman, reforça que a “[...] pessoa
portadora desse traço é facilmente identificável como menos desejável, inferior, ruim e
perigosa”. O conceito indica, portanto, a inferioridade do caráter ou fraqueza moral da pessoa
72
que porta essa marca, designação atribuída pelos demais membros da sociedade, atuando
como elemento que pré-determina a conduta do sujeito.
Nesse contexto, “[...] a essência do estigma é enfatizar a diferença e uma diferença que
está, em princípio, além do conserto e que justifica uma permanente exclusão” (BAUMAN,
1999, p. 77). Essa exclusão, por sua vez, provoca uma fissura nos ideais do mundo moderno
com sua crença na onipotência da cultura e da educação, com suas constantes exortações ao
aprimoramento pessoal e o aforismo da responsabilidade individual pela construção de si
mesmo.
O processo de estigmatização atinge uma série de categorias sociais que sofrem a
marginalização e o preconceito oriundos do estigma. O estigmatizado provoca estranheza e
desconforto ao "normal", que o afasta e o desacredita como forma de lidar com o que lhe é
indesejável. A categoria e os atributos que ele na realidade prova possuir serão chamados de
sua identidade social “real” (GOFFMAN, 1988, p.12). Portanto, o estigmatizado é aquele que
ocupa o "lugar errado" e que, por isso, é visto como estranho e anormal. É aquele que não
atende às definições prévias de localização a que a dinâmica social estabelece sendo, deste
modo, colocado à margem, depreciado, desacreditado, recebe um tratamento estereotipado,
recebe um “estigma”.
Para Goffman (1988, p.14), isso normalmente acontece quando “[...] um indivíduo que
poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode
impor a atenção e afastar daqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção
para outros atributos seus”.
Pressuponho que se inseriram neste grupo as pessoas que possuem características
diferentes das estabelecidas como normais pela sociedade, especificamente neste estudo, o
bullying, visto que constantemente enfrentam situações de preconceito e discriminação em
decorrência de um atributo seu ligado à cor, raça, aparência, etnia, condição social, ao peso.
Os estigmas são produções sociais que se originam de atitudes carregadas de pré-
conceitos de pessoas de um grupo sobre o outro. Esse cenário torna-se propício à ampliação
das diferenças, reafirmando estereótipos que padronizam conceitos sobre um grupo,
intensificando comportamentos discriminatórios. As experiências cotidianas permitem
acessos fáceis aos estereótipos de determinados grupos, o que se dá por meio de expressões,
piadas, comentários etc. Isto faz com que as representações estereotipadas sejam transmitidas
e reproduzidas sem nenhuma espécie de reflexão por parte daqueles que as verbalizam.
Esses símbolos de estigma, mencionados por Goffman (1988) e Bauman (1999), são
os que dão origem aos estereótipos. De acordo com Bhabha (2007) e Cavalleiro (1998) os
73
estereótipos impedem que se vejam as pessoas em sua totalidade. Caracteriza-se como forma
rígida que reproduz imagens e comportamentos preconceituosos, ou seja, são responsáveis em
separar as pessoas em categoriais aceitáveis e não aceitáveis socialmente. Na visão dos
autores, os estereótipos são considerados os fios condutores para a propagação do
preconceito. Bhabha finaliza essa caracterização dizendo:
desvalorizados, desqualificados, uma vez que eles carregam a tristeza de viver entre os outros
sem deles receber qualquer manifestação.
Nesse sentido, quando se discute violência como fator de ameaça à vida e a prática do
bullying no ambiente escolar, não se pode omitir ou dispensar o debate de conceitos que
podem gerá-la. Esse, sem dúvida, é o caso dos conceitos de estigma e preconceito de que
estou tratando. A construção, a aceitação e a divulgação do preconceito e do estigma já são,
em si, processos violentos, que geram violência.
Portanto, crianças, jovens e adultos sinalizados pelo silêncio, portadores de estigma,
herdeiros, enfim, de uma construção histórica sobre a visão de desenquadramento, desafiam
os limites de uma educação e de uma escola que se pretende inclusiva. Esta, por sua vez,
precisa criar estratégias para discutir com os seus estudantes e educadores o problema da
violência quanto do bullying. Tal importância pode ser visualizada nos estudos feitos por
Fante (2005) que relata que algumas escolas da capital paulista vêm desenvolvendo dinâmicas
de grupos que favorecem a reflexão sobre os rótulos usados em sala de aula como “burro”,
“feio”, “ignorante”. As pesquisas da autora revelam que essa dinâmica vem provocando a
sensibilização de muitos estudantes e de professores, gerando pedidos de desculpas entre eles.
Atividades desse tipo são importantes para contribuir na melhoria da qualidade das interações
sociais nos espaços educativos.
A grande maioria dos educandos que são alvos/autores também sofre com o bullying.
Eles podem ser depressivos, inseguros e inoportunos, procurando humilhar os colegas para
encobrir suas limitações. Diferenciam-se dos alvos típicos por serem impopulares e pelo alto
índice de rejeição entre seus colegas (GUARESCHI, 2008, LIMA, 2008).
Outro fator preocupante nesse sentido é que os educandos que sofrem maus tratos
reproduzem-nos, faz novos alvos com suas atitudes, transformam indivíduos mais fracos em
“bodes expiatórios”, objetivando transferir os maus-tratos sofridos (FANTE, 2005).
A autora prossegue argumentando que essa tendência crescente entre os estudantes
vêm fazendo com que a prática do bullying se dissemine aceleradamente, cujos resultados
incidem no crescente número de vítimas visto atualmente.
75
Portanto, embora a prática do bullying nas instituições educativas, entre elas, a escola,
parecer ser pouco considerada, seus efeitos podem manifestar tragicamente e acarretar
prejuízos para o resto da vida a todos os envolvidos. Essas graves consequências podem ser
vivenciadas imediatamente pelos atores escolares, demonstrando sentimentos de insegurança
ou ações agressivas, refletidas no comportamento, sobretudo, do autor e do alvo. Por isso,
76
será muito proveitoso famílias e a comunidade escolar estarem atentos para as rápidas
mudanças que se manifestam no comportamento de seu filho ou estudante, para assim,
poderem identificar os envolvidos na prática do bullying. As consequências trágicas e
negativas promovidas por esse fenômeno podem se apresentar em diversos contextos e que,
possivelmente, podem provocar uma alteração na rotina familiar e escolar. Apesar da
morosidade e descaso presentes nas instituições que disponibilizam serviços públicos, essa
agressividade, na visão de Lopes (2005), pode vir a sobrecarregá-los com relação aos
tratamentos de saúde mental, justiça da infância e juventude, educação especial e outros
programas de atendimento social.
A exposição permanente às praticas do bullying no ambiente escolar pode acarretar
consequências sérias no desenvolvimento social futuro, pois se somam à agressão moral e
física sentimentos negativos como medo, insegurança, baixa autoestima, dificuldade de
concentração, baixo rendimento escolar, dificuldade de estabelecer laços de confiança,
sentimento de vergonha. Essas trágicas consequências podem ser sentidas futuramente nas
relações no ambiente de trabalho, na família, na vida social e educação dos filhos
(GUARESCHI, 2008; COSTANTINI, 2004; FANTE, 2005; ABRAPIA, 2004). Os estudantes
alvos, podem ainda apresentar queixas físicas e o desenvolvimento de sintomatologias e
doenças de fundo psicossomáticos, como enurese, taquicardia, sudorese, depressão,
ansiedade, dores de estômago, tensão nervosa, fobia, insônia e cefaleia (FANTE, 2005). “A
possibilidade de crescer com sentimentos negativos, especialmente com baixa autoestima,
poderá fazer com que essa pessoa se torne um adulto com dificuldades de relacionamento,
depressão e comportamento agressivo” (GUARESCHI, 2008, p. 64).
Em situações de bullying que chegaram à sua extremidade, a tentativa ou consumação
do suicídio pode ser o último pedido de socorro dos estudantes alvos como também a única
opção que lhes restou para cessar com a dolorosa submissão aos atos de violência dos seus
colegas. A título de exemplo, cito nesta parte, sequências de casos com desfechos trágicos que
ocorreram no interior de escolas em vários lugares do mundo. No Brasil, em janeiro de 2003,
em Taiúva/SP, interior de São Paulo, Edimar, um jovem humilde e tímido de 18 anos, após
sofrer bullying durante onze anos, adentrou a escola em que havia estudado, ferindo oito
pessoas, entre eles, seis educandos, uma professora e o zelador, com disparos de um revólver,
sendo que uma das vítimas ficou paraplégica. Em seguida, tirou a sua vida dentro da escola de
forma trágica. Edimar era importunado por causa da sua obesidade, com apelidos que o
constrangiam e incomodavam. Sofria com as hostilidades e o rechaço de seus colegas que o
77
para enfrentar e prevenir as formas de violência, como, também, promover uma cultura de paz
nas escolas.
Na sequência, serão abordadas as diferenças do envolvimento com a prática do
bullying para meninos e meninas.
A prática do bullying nem sempre é igual para meninos e meninas de acordo com os
estudos feitos por Olweus (1998), a partir da década de 80. Esses estudos existentes sobre
bullying, tanto no Brasil quanto em outros países, indicam que os meninos, com uma
frequência muito maior, estão mais envolvidos com o fenômeno, tanto como agressores
quanto como vítimas, por meio de agressões físicas e de forma direta, como socar, ameaçar,
perseguir, ofender. Já entre as meninas, embora com menor frequência, o bullying também
ocorre e se caracteriza, principalmente, pela prática de formas mais sutis e indiretas, como o
rumor e a manipulação das relações de amizade, exclusão ou difamação do grupo.
Na visão de Simmons (2004), a agressão com instrumentos físicos efetivamente é mais
comum entre meninos de forma direta.
[...] entre os meninos é mais fácil identificar um possível autor de bullying, pois suas
ações são mais expansivas e agressivas. Já no universo feminino o problema se
apresenta de forma velada. As manifestações entre elas podem ser fofoquinhas,
boatos, olhares, sussurros, exclusão. “As garotas raramente dizem por que fazem
isso. Quem sofre não sabe o motivo e se sente culpada” (SIMMONS, 2004, p. 33).
A agressão indireta é um comportamento dissimulado que faz parecer que não houve
intenção de magoar. Uma das maneiras de tornar isso possível é usar os outros como
veículos para fazer a pessoa visada sofrer, espalhando boatos. A agressão social tem
a intenção de danificar a autoestima ou o status social dentro de um grupo. Ela inclui
algumas agressões indiretas como exclusão social, apelidos maldosos, manipulações
e boatos para infligir sofrimento psicológico às vítimas (SIMMONS, 2004, p. 33).
80
A agressão indireta não apenas é difícil de ser admitida, pois isso seria romper com o
estereótipo de “boa menina” transmitida e reproduzida socialmente na mulher ao longo do
tempo, como também, e principalmente, é muito difícil de ser diagnosticada; isso porque é
justamente este conceito, juízo e estereótipo social - mitológico e religioso - imputado nas
mulheres que faz com que as meninas agridam de forma “delicada”, sem levantar suspeitas de
terceiros, o que difere dos meninos que agem agressivamente.
Rachel Simmons (2004) ainda diz que a agressão feminina se revela, principalmente,
pela manipulação do grupo social. Fofocas, intrigas, apelidos geram o isolamento de algumas
meninas em relação ao seu grupo. No período compreendido entre o 5º e 8º ano, as meninas
se caracterizam por atribuírem ao grupo social grande valor. É a época em que tem início o
estabelecimento dos próprios valores e as regras determinadas pelo próprio grupo ganham
importância e podem influenciar na construção da autoestima das mesmas.
A autora ainda descreve que um dos maiores sofrimentos para as meninas vítimas de
bullying é o medo da solidão, de ficarem segregadas ou afastadas do grupo de colegas.
Qualquer pessoa, menino ou menina, deseja ser aceito e construir relação. Os meninos
também sofrem com dor da exclusão do grupo de amigos.
Sem dúvidas, o que é mais angustiante para elas é que a agressão sofrida no espaço
escolar, na maioria das vezes, não é percebida (FANTE, 2005). Pelo contrário, é tratada com
indiferença ou é negada pelos adultos e elas não têm com quem compartilhar sua dor e
sofrimento. A escola não entende e muitas vezes nem a própria família. O pior de tudo é que
muitas vezes estão sendo vítimas de colegas que fazem parte do seu rol de amizades.
Diversos autores concordam que, na trama das relações no cotidiano escolar, a
liderança é um aspecto importante (SILVA, 2006; NETO, 2005). Pode-se observar que
grande maioria dos atos de bullying feminino quanto masculino se manifesta por
determinação de um líder, cujo poder reside em sua capacidade de manter o consenso social
do grupo por meio da persuasão, incitando-os a realizar os abusos constantes e dissimulados a
um colega mais fraco.
81
A escola possui um papel fundamental na socialização da pessoa, uma vez que entre
os muros da instituição escolar, o estudante é colocado em contato com diferentes culturas e
etnias e é nesse momento que os conflitos afloram. Na visão de Vinha e Tognetta (2008),
esses conflitos são essenciais e constitutivos do desenvolvimento social do indivíduo, sendo,
porém, necessário que as instituições escolares criem possibilidades pedagógicas para a
83
6
Os serviços de portaria nas escolas da rede pública municipal, estadual em todos os períodos são terceirizados.
A responsabilidade principal do ‘porteiro’ é controlar a entrada e saída de pessoas do recinto escolar.
84
cinco jovens aqui e não sabemos como. Quando vimos já estavam na porta da sala do 1º ano,
no terceiro piso, atrás de um aluno para bater [...] (Inspetora de pátio).
De acordo com as observações realizadas as escolas diferenciam quanto a sua estrutura
externa e interna. Além das variações de tamanho, elas divergem quanto a sua estrutura física
e público atendido, possuindo em comum alguns componentes, tais como, salas de aula,
multi-meios, bebedouros, corredores e varandas, espaços administrativos, banheiros para
educandos e educadores, pátio para recreação e quadra de esportes coberta. Este local, além
de ser destinado à educação física, geralmente é utilizado na realização de eventos escolares:
festas, reuniões com os pais e eventos culturais. É coberta com zinco e o chão é de piso
queimado (cinza).
No decorrer da pesquisa, foi observado que em duas escolas há biblioteca e sala de
informática, de tamanho pequeno e médio, climatizadas, iluminadas. No seu interior, havia
uma mesa e várias cadeiras disponíveis para os estudantes, preenchendo as condições
mínimas de funcionamento. Nesse espaço, há uma pessoa responsável, geralmente, algum
professor em desvio de função por motivos de saúde. Destas, nomeadamente a sala de
informática é muito valorizada pelos estudantes. Porém, na escola A ainda não há biblioteca,
laboratório de informática, refeitório, sala adequada para professores, secretaria e sala do
diretor.
Essas escolas possuem em média de onze a dezesseis salas de aula. Elas são ordenadas
por sequência de série para uma melhor organização e localização espacial nos pisos e
corredores. Em seu interior há quadro-negro, carteiras escolares, mesa de madeira, janelas de
ferro ou vitrôs amplos para clarear o ambiente, lixeiro, ventiladores. O acesso a esses locais é
feito por escadas de concretos com proteção de grades de ferro ou varandas. As escolas são
cobertas com telhas de eternit. Para se protegerem da chuva e do ardente sol que penetram
nesses ambientes, utilizam toldos de pano ou de ferro e/ou cortinas de tecido resistente.
As observações realizadas revelam que algumas salas tanto das escolas públicas
quanto particular estão sucateadas, levando em conta as carteiras/mesinhas, algumas em mal
estado de conservação, rabiscadas, faltavam os braços ou encosto, ficando exposto os ferros e
pregos. Nas escolas públicas os quadros-negro continham orifícios, rabiscos, escritas de
nomes dos estudantes com errorex; as salas eram compatíveis em relação ao número de
estudantes, exceto em poucas turmas. A iluminação, o funcionamento do sistema elétrico e a
limpeza do chão eram adequados, porém o sistema de ventilação deficiente frente ao extremo
calor cuiabano. As portas eram fechadas com cadeados no horário do recreio para maior
segurança.
85
De modo geral, pelas entrevistas sobre as salas de aula, posso afirmar que ao mesmo
tempo em que a maioria dos estudantes afirme se sentir bem nelas: A gente tem proteção e
segurança pela presença de uma pessoa que cuida de nós, diz ser um espaço que não lhe
agrada, que dá medo e insegurança: Eu já apanhei muito quando bate o sinal para trocar de
professora. Como elas demoram em vir, nesse tempo uns meninos vêm à minha sala e me dão
cascudos, chutes nas pernas, puxam as orelhas, dão murros no rosto (Pedro, 14 anos, 6º ano).
Posso aferir, com base nas entrevistas, que, além das situações de conflitos
mencionadas, há no espaço da sala de aula, com menor incidência, ocorrências de abuso ou
violência sexual, e em alguns casos até o abandono da escola: O meu filho foi abusado e
ferido sexualmente na sala de aula por um menino maior do que ele. Ele não conseguiu
reagir, ficou com medo. Seus colegas viram, caçoavam e chacoteava ele [...] (Mãe de
estudante). A maior queixa e desinteresse em permanecer na escola verificam-se em
consequencia da vergonha, do medo e constrangimento (LA TAILLE, 2002) gerados pelos
atos de bullying.
A respeito dos pátios internos, foi constatado pelas observações que o seu tamanho
varia entre grande, médio e pequeno. Nestes há a presença de vegetação (árvores), bancos,
abertura à luz solar, quadras de esportes cobertas. Com relação à limpeza, é adequada.
Quando foi indagado aos estudantes quais espaços que eles mais gostavam e se sentiam bem,
este local aparece como um dos preferidos depois do recreio: Eu gosto do pátio, da quadra,
do recreio, porque aí a gente joga bola, encontra com os colegas, faz amizades (Joel, 11 anos
5º ano). Porém, ao mesmo tempo em que os estudantes afirmam gostar deste espaço, as
situações bullying são um dos fatores que faz com que este espaço seja menos apreciado: Não
gosto quando tem brigas, e está tendo todo dia. Os grandes batem nos pequenos. Eu fico com
medo. Vem todo mundo correndo sem olhar para frente, tropeça na gente e fala que é a gente
que está provocando, depois bate. (Juliana, 12 anos, 6ª ano). Enquanto espaço onde os
estudantes se divertem, constroem relações e também onde ocorrem situações de violências
que apontam um espaço de “diversão” marcado pela falta de ética e respeito.
Nessas duas escolas, o estado de conservação do prédio estava adiantado em desgaste,
dado que as paredes e portas se encontravam riscadas, com palavras escritas que expressam
ideias, sentimentos; algumas soltando a tinta em consequência dos cartazes que são afixados;
havia também vidros quebrados, pisos danificados. Os pilares seguem o padrão do todo da
escola, de alvenaria, contendo em seu entorno marcas das mãos dos estudantes. O chão em
sua grande maioria é de contrapiso queimado de cor cinza, ou simplesmente, no concreto
grosso. Essas escolas passam por reformas anualmente e/ou conforme a necessidade e os
86
ano). Trata-se de ameaças e atitudes agressivas que causam medo, minha a empatia entre os
estudantes e por sua vez, rompem com o clima de harmonia e paz nas escolas. Os banheiros
são distribuídos ao longo dos corredores e varandas. A fiscalização neles é realizada pelos
inspetores de pátio e técnicos de limpeza, porém, essa fiscalização muitas vezes é deficiente.
Alguns estudantes e funcionários revelam com muito pesar, inclusive com receio, a
existência do assédio sexual no espaço dos banheiros: “Forçar” as meninas a beijarem,
passar a mão, é comum. Tem meninos que usam o banheiro perto da sala para forçar o ato
sexual (funcionária em entrevista). De forma mais trágica ocorre o abuso sexual dos pequenos
pelos maiores: Eu estava no banheiro e um menino maior me segurou dizendo que ia fazer
uma brincadeira e se eu ficasse quieto não ia acontecer nada comigo. Ele tampou a minha
boca e [...]. Ele me ameaçou, dizendo que se eu contasse da próxima vez ia ser pior (Vilmar,
5 anos, 1º ano). Cabe aqui refletir sobre o seu reverso. Para as vítimas, que sofrem o abuso,
fica um misto de sentimentos de medo, pavor, culpa, por achar que a agressão só aconteceu
por sua causa; medo, de outros descobrirem o que aconteceu; medo das ameaças do agressor
que a situação irá se repetir; vergonha, por ter rompido sua integridade humana de forma
violenta e, angústia, por não poder se abrir com ninguém sobre o acontecido. Ocorre uma
espécie de bloqueio na mente do estudante (FURNISS, 1993; LA TAILLE, 2002;
SALVAGNO, 2008).
No ambiente escolar, os bebedouros estão localizados nos espaços dos corredores e
varandas. Em geral, eles são fixos às paredes, bem à vista, para facilitar o uso pelos
educandos, bem como para um melhor controle dos agentes de pátio. Chama a atenção o fato
de que, tanto nas escolas públicas quanto na particular, alguns não estavam em perfeito estado
de conservação, sendo que algumas torneiras foram quebradas, outras não fecham mais e
permanecem constantemente pingando água. Em relação à prática do bullying, também este
espaço foi mencionado nas entrevistas. Há medo em permanecer próximo a eles: Quando bate
o sino do recreio é terrível! Os maiores dão empurrões, jogam água no rosto da gente,
molham o cabelo dizendo que é para abaixar a “crista”. (Richard, 9 anos, 3º ano). Vale
observar, também, que esses atos de violência que ocorrem nesse local costumam ir criando
na relação entre os estudantes certas animosidades que acabam em brigas futuras e, portanto,
precisam ser detectadas e amenizadas o quanto antes para desarmar violências
(ABRAMOVAY, 2006).
A merenda escolar na escola B é servida no refeitório, já na escola A, na própria sala
de aula, por não disponibilizar desse espaço próprio. Foi observado que apenas as escolas B e
C disponibilizam de cantina escolar, sendo esta terceirizada, apresentando boas condições de
88
uso. Na escola A, há uma senhora que no horário do recreio coloca à venda salgados assados
e sucos com preços bem irrisórios para que as crianças possam adquiri-los. Apesar do
momento do lanche ter sido mencionado pela maioria dos estudantes como um momento
prazeroso: gosto de comer bastante, a comida daqui é muito boa (Jaqueline, 15 anos, 1º ano
EMédio), alguns estudantes afirmam nas entrevistas que o tempo reservado para o lanche
também é ameaçador e não lhes agrada: Tem caras que querem se aparecer. Eu estava no
refeitório tomando o meu lanche e um menino me bateu. Mudei de lugar e ele jogou uma
pedra dentro do meu prato. Às vezes ali logo que começa a comer, tem uns meninos que
jogam comida um no outro esticando a colher. (Pedro, 13 anos, 6º ano).
É unânime o reconhecimento dos estudantes e professores, que os recreios das escolas,
como parte desse todo, são momentos muito apreciados pelos estudantes e, ao mesmo tempo,
temidos. Confirmaram-nos como espaços de manifestação da agressão entre pares,
intimidações, ameaças, brigas, indiferenças, isolamento, caracterizadas como prática do
bullying: Ave! No recreio há muita violência, acontece uma chutação! Brigam, batem,
empurram, tomam o lanche da gente. Por isso que eu prefiro ficar quietinha no meu canto.
Não mexer com ninguém [...] (Rita, 10 anos, 5º ano). Igualmente foram revelados nas falas o
isolamento e a indiferença que alguns sentem nesse momento: Há umas colegas na sala que
não me deixam brincar no recreio com as outras colegas delas. Sempre quando eu corro
atrás das meninas, elas me rejeitam, discriminam e me empurram. Não posso nem conversar
[...] Já fizeram isso várias vezes comigo (Lívia, 9 anos, 4ºano).
Esses depoimentos revelam que ocorre nas escolas um rompimento com a construção
da interação sadia e agradável entre os estudantes. Nesse aspecto, novamente, vale chamar a
atenção para o fato de que, embora na maioria dos depoimentos tenha sobressaído gostar do
recreio, apesar de a sua duração ser de apenas 15 ou 20 minutos, não se deve desconsiderar
que muitos depoimentos apontaram diversas provocações, exclusões, brigas, agressões e
ameaças nesse espaço. Nesse sentido, Cislaghi e Neto (2002) destacam que 70 a 80% dos
comportamentos agressivos da escola ocorrem no recreio, e que a modificação nas condições
de supervisão e organização dos recreios escolares, como forma de intervenção, pode
contribuir significativamente para a redução desses índices. O investimento em atividades
lúdicas nesses horários de grande fluxo nas escolas deve ter o objetivo de favorecer a reflexão
acerca de uma convivência sadia, ética com o outro (CARVALHO & BARROS, 2009), para
que, dessa maneira, se possa aprender a conviver e respeitar as diferenças e individualidades.
A aula de Educação Física é muito apreciada pelos estudantes. No entanto, nas
entrevistas os estudantes evidenciaram que, por mais que os jogos sejam interessantes,
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ultimamente eles não gostam muito desse espaço. Suas falas demonstram que as principais
razões estão relacionadas ao medo, insegurança: Todas as vezes que estamos na quadra, um
menino de minha sala me bate. Ele me acua na porta do vestuário, me esmurra nas costas, dá
chutes, “pesadas”. Não sei o motivo, nunca fiz nada a ele [...]. (Carlos, 11 anos, 6º ano).
No que se refere à entrada e saída dos estudantes, foi possível registrar pelas
observações e entrevistas que a entrada se dá de maneira serena e calma, parece até um ritual,
repetindo-se todos os dias os gestos, as brincadeiras, as risadas e falas dos estudantes.
Entretanto, na saída da escola, o oposto da entrada, pode-se perceber que há a presença da
prática do bullying entre os educandos. Por isso que a saída da escola é claramente definida
por eles como momento altamente ameaçador, tanto para meninos quanto para meninas: Eu
tenho muito medo de ser agredido, muito medo de apanhar quando saio da escola. Há brigas,
jogam pedra, chutam. Outro dia em uma briga, cataram um menino da 4ª série e esfregaram
a cara dele ali no muro, desses de tijolos, duro, sabe? Esfregaram e rasgaram a cara dele
todinha. Não tem ninguém para defender e ninguém cuida. (Silvio, 9 anos, 3º ano).
Cabe mais uma vez chamar a atenção para a insegurança e clima ameaçador
vivenciados pelos estudantes no cotidiano escolar como também no momento da saída,
fazendo com que os xingamentos, os empurrões, ameaças, agressões verbais e físicas
enfrentados por um número muito grande de estudantes, particularmente na escola pública,
sejam causas de desistência ou até mesmo abandono da escola (GUARESCHI, 2008;
TOGHETTA, 2005; FANTE, 2005; PEREIRA, 2002).
Com relação à clientela atendida, há uma semelhança entre os educandos das escolas
da rede pública de ensino (A e B). Essas duas escolas localizam-se na periferia em localidades
próximas uma da outra. Elas acolhem a grande maioria dos estudantes dos bairros e sub-
bairros, além de localidades circunvizinhas urbanas e rurais. São filhos de operários, pessoas
que trabalham no centro da cidade, distante quase 30 quilômetros da cidade. Em geral as
famílias possuem de três a seis filhos na faixa etária escolar. Recebem por mês de um a três
salários mínimos. Existem famílias que possuem condição ainda mais precária, em que às
vezes a mãe ou avó é a única fonte de renda, recebendo de um a dois salários mínimos. Há
outros ainda que a situação é caótica, comumente são pessoas que não têm emprego fixo,
vivendo de subempregos ou de bicos e/ou dependendo exclusivamente dos Programas Sociais
do Governo, como Bolsa Escola, Bolsa-Família, Peti e Agente Jovem. As profissões dessas
pessoas variam de professores que moram no bairro, domésticas, pedreiros, pintores, garis,
90
7
Fonte: Projeto Político Pedagógico do ano de 2008.
8
Usam o sistema seriado no Ensino Fundamental e médio noturno.
9
Na escola A havia muitos educandos com defasagem idade/ciclo, sendo 27 estudantes nessa situação no 1º
Ciclo e 33 no 2º Ciclo, segundo o seu Projeto Político Pedagógico/2008.
10
Língua Brasileira de Sinais.
91
quinze minutos em todos os turnos. Após esse horário, os educandos somente entrarão na
segunda aula. A escola A inicia aulas com o momento de acolhida, dito anteriormente, feita
por revezamento entre a equipe pedagógica. As escolas organizam os horários de aulas
geminadas, a fim de facilitar a hora-atividade dos professores.
As escolas A e B pertencem à Secretaria de Educação municipal e estadual do
município de Cuiabá. Seguem a mesma matriz curricular, divergindo na construção do
calendário escolar, próprio de cada realidade. A manutenção dessas escolas, no que se refere
aos recursos materiais, pedagógicos e humanos é de responsabilidade das Secretarias de
Educação da cidade. A equipe gestora a partir das orientações destas Secretarias realiza todos
os encaminhamentos necessários para o bom andamento da instituição escolar. Na rede de
ensino particular é formada uma equipe pedagógica que realiza todos os trâmites necessários
ao bom funcionamento da escola, zelando sempre pela qualidade de ensino.
O corpo docente é formado por professores efetivos e contratados, sendo atualmente
estes últimos o maior número nas escolas A e B. Isso se justifica por diversos fatores, um
deles, a falta de concursos públicos na área da educação. Grande maioria desses educadores
pertence tanto ao quadro de funcionários da rede pública, quanto particular, trabalhando até
três jornadas para garantir a sobrevivência da família. Possuem formação superior e um
grande número com especialização na área. Somente dois professores (Escolas A e B)
possuem o Ensino Médio - Magistério. Na escola C, o contrato de trabalho é feito por carteira
assinada.
As escolas consideram as atividades extraclasses como componentes fundamentais de
sua filosofia de educação. Por isso, desenvolvem projetos em que os educandos aprendem
noções de solidariedade, de participação e cidadania. Os projetos desenvolvidos pelas escolas
são: horta comunitária, Cultura Indígena, Fanfarra e banda de percussão, Educa Mais,
Formação continuada: Sala do Professor (estadual) e Roda de Conversa (municipal),
Prevenção de drogas e Rede Cidadã. Alguns destes estão inseridos num projeto maior, a Feira
de Ciência, realizada com a presença da comunidade e da família para partilhar o conhecimento
dos educandos, na tentativa de se buscar a integração da escola com a comunidade.
O espaço sócio-cultural onde as escolas estão situadas exerce grande influência sobre
as suas relações internas e externas e a percepção de bem-estar e segurança de toda a
92
comunidade educativa. Aspectos como a infraestrutura urbana, o perfil dos moradores e o tipo
de comércio são alguns dos fatores que podem ter grande inferência sobre o bairro e sobre a
própria escola e parecem estar relacionados com as formas de se vivenciar os diversos tipos
de violência na escola, inclusive, o bullying.
Quanto às escolas B e C, as duas centram-se em ruas movimentadas e se mesclam com
as atividades comerciais, universidade, praças, condomínios e casas residenciais. A escola A
situa-se em ruas secundárias, de pouco movimento, sendo maior o trânsito de pessoas de
bicicleta, motos e muito pouco de veículos, possibilitando a circulação dos estudantes em
geral. Nesta não há asfalto, saneamento básico, mas há terrenos baldios. Em todas elas não há
semáforos, passarelas, faixa de pedestres e nem guarda controlando o trânsito. A insegurança
das vias de trânsito obriga pais, mães ou parentes de estudantes a acompanhá-los nos
primeiros anos escolares. Quanto aos estudantes do 5º ano até o Ensino Médio dirigem-se
sozinhos, ou às vezes acompanhado às escolas.
Com relação ao bairro onde está localizada a escola, as entrevistas com os estudantes e
com suas famílias demonstram grande valoração do bairro: Tenho quinze anos que moro no
bairro, gosto daqui, meus filhos têm muitas amizades [...] (Sônia, avó de estudante).
Grande parte dos professores e demais membros do corpo técnico pedagógico da
escola avaliam positivamente o bairro onde se situam as escolas: Moro aqui desde pequena,
foi aqui que eu cresci, conheço e me dou bem com todo mundo, me formei, e hoje sou
professora aqui [...]. (professora em entrevista).
No entanto, alguns depoimentos revelam uma avaliação mais crítica com relação à
insegurança e violência que se manifesta no bairro: Hoje está aparecendo muita violência
aqui, que antes não acontecia. Tem muitos assaltos, envolvimento dos jovens com drogas,
com gangues; às vezes acontecem brigas, até morte, por aqui. (Professora em entrevista).
Vários depoimentos de estudantes e professores apontam que o bairro influência a
percepção dos estudantes sobre a escola. Apontam também a questão da insegurança
associada ao bairro, à vizinhança e ao entorno da escola: Aqui na escola não há segurança.
Nossa escola é muito perigosa. Quando você percebe tem gente do bairro querendo pegar
alguém. (Pedro, 15 anos, 6º ano).
As declarações dos estudantes patenteiam que o entorno das escolas, às vezes, é um
local de acerto de contas, oriundas de desencontros que ocorrem entre membros de gangues,
usuários de drogas: Mataram o pintor que fez a pintura da escola no ano passado. Os boatos
diziam que ele usava drogas e foi queima de arquivo. (Paula, mãe de estudante). Evidenciam
como local de rixas entre estudantes de diferentes instituições de ensino e entre estudantes que
93
são moradores de outros bairros: Vem gente de outras escolas provocarem brigas aqui, e
terminam sempre em brigas feias. Ontem mesmo um rapaz estava com uma arma para pegar
um menino da 5ª série [...] (Reginaldo, 14 anos, 6º ano).
Alguns funcionários reconhecem que, por vezes, esses confrontos entre estudantes
moradores de bairro ou de bairros distintos interferem diretamente nas atividades e no
rompimento da segurança dos demais estudantes, como revela o depoimento feito pela
inspetora de pátio sobre as invasões que ocorrem durante o período de aula:
De vez em quando somos surpreendidos com algum jovem aqui dentro da escola
atrás de estudantes para acertos de contas. É aquela coisa de rixa, de grupos, de
gangues, de desavenças por causa de namoradas. A gente não tem segurança e muito
menos os estudantes. Hoje na hora do recreio havia três rapazes no portão esperando
[nome de aluno] sair para pegá-lo. Ele percebeu, pulou o muro pelos fundos e fugiu
sem ser visto (Inspetoria de Pátio).
ano passado teve muito roubo, sumiram várias coisas sem arrombamento, simplesmente
sumiram, principalmente de noite e nas férias (Funcionária da escola).
Tal ideia reporta aos estudos de Bauman, (2007, p. 80), que se refere à camada inferior
identificada sinistramente como “gatuno”, “espreitadora”, “vagabunda”, e outros tipos de
invasores para descrever e entender a vida social e política brasileira. Da mesma forma como
se verifica na obra do autor, pode-se dizer que o imaginário negativo que se cria a respeito
dessas localidades faz com que as pessoas que residem nesses locais sejam vistas e
reconhecidas constituintes de uma classe perigosa, conforme aponta o depoimento: Essa
praça aqui defronte com o colégio é perigosa. Muitos alunos nossos foram assaltados já
chegando ao colégio por esses jovens que moram no bairro popular que fica no final da rua
da escola (Jaqueline, 15 anos, 1º ano).
O clima de perigo notado nos moradores do bairro e apontado pelas entrevistas
também é atribuído às pessoas que circulam em torno da escola: Quando a gente está na
quadra fazendo Educação Física vem aquele cheirão de maconha. Aqui em frente a escola
ficam uns rapazes fumando. Não respeitam ninguém mais [...] (Ivo, 14 anos, 6º ano).
A maioria dos professores reconhece que a vulnerabilidade dos componentes da
comunidade escolar à violência ocorre em razão das características do entorno da escola e por
sua vez afeta a rotina da escola, gerando insatisfação e desconforto. Além disso, apontam que
é um bairro muito violento e esta violência se manifesta muitas vezes aqui dentro da escola.
(professora em entrevista).
Há consenso entre professores, gestores e funcionários que a violência na escola é
aprendida na convivência com a própria comunidade. O imaginário deles aponta que se a
comunidade é violenta, isso tem grande influência nos comportamentos dos estudantes, uma
vez que trazem para dentro da escola a lei do mais forte, predominante nas ruas. Os estudos
de Zaluar (1989) ajudam a compreender isso. Para ela, a violência é um componente essencial
da cultura de rua e para garantir a própria sobrevivência e obter respeito na rua é fundamental
que uma pessoa demonstre ser capaz de cometer atos de violência e de resistir a ela. “As
brigas, discussões, pequenas vinganças hoje são muito mais graves e facilmente o valente se
transforma em criminoso” (Idem, p. 84). A violência é, sobretudo, a aparência de que se é
violento, é um signo de força e credibilidade:
para o outro, já pensa que está encarando, já se sentem agredidos, afrontados. Por
isso o lugar deles ficarem é na rua, a cultura aqui, é cultura de rua, e para defender
seu espaço eles assumem ser violentos, agressivos. Não querem dialogar. Aqui todo
mundo senta na porta da casa pra ver quem está passando, para mexer, para dar
palpite, para ver se o vizinho está agindo certo, se está agindo errado, para valer a
autoridade na violência [...] (Professora em entrevista).
O depoimento da professora revela que na rua vale o mais destemido, quem manda
mais. Revela ainda o impacto negativo da violência do entorno (grupos, gangues) sobre a vida
escolar de alguns estudantes: algumas vezes temos que pedir ajuda da polícia ou dos próprios
professores para levar alguns estudantes em casa, porque não podem sair, estão ameaçados.
Seguramo-lo aqui na sala dos professores, e quando está mais calmo levamo-lo em casa. A
gente já conhece o que acontece (Professora em entrevista).
Poderia, pois, concluir, nesse momento, que as características econômicas e sociais do
bairro e da comunidade, ao lado dos episódios concretos de violência, são fatores que
alimentam medo, comprometendo o clima escolar seguro e sadio (ABRAMOVAY, 2006).
Esse clima de ameaça e intimidação promove um sentimento de insegurança, o que
influencia enormemente o imaginário que os estudantes têm da escola. Além disso, a
violência do entorno pode também comprometer a frequência cotidiana do estudante:
Sinceramente eu tenho medo de estudar aqui, tenho medo de vir para a escola, atravessar a
praça, que fica cheia de maconheiros. Direto você escuta tiros aqui da escola, a sirene do
carro da polícia, parece que os tiros vão bater aqui nas paredes [...] (Joice, 13 anos, 7º ano).
A insegurança descrita pela estudante é corroborada pela fala de uma professora sobre
a probabilidade da circulação “livre” das drogas lícitas e ilícitas contribuírem para os assaltos
à mão armada, ameaças, brigas e até mortes de estudantes:
Outro dia eu falei para o presidente do Conselho: meio dia todo dia eu atravesso a
praça e todo santo dia tem pessoas usando drogas. Todo mundo sabe, a policia vê ou
então não quer ver, e não quer fazer nada. Se amanhã você for passar verá também.
Não há prevenção. Infelizmente, eu perdi um aluno, morreu aí na praça tragicamente.
Eu já perdi alunos aqui que eu amei que eu gostei, que eu chorei. Alunos assim que
já vinham refazendo o caminho, mudando de vida [...] (Professora em entrevista).
Sob essa ótica, segundo Abramovay e Castro (2006), o medo que permeia as relações
sociais hoje não está ligado somente à possibilidade de ser vítima, mas também à percepção
que se tem do mundo social, à capacidade de reação e à proteção de que se dispõe. Tem-se
medo de ser roubado, violentado, sequestrado quando se sabe que a polícia não protege,
gerando um sentimento de insegurança social que é mais geral (OLIVEIRA, 2002).
A escola, enquanto instituição imersa nesse ambiente, não está imune ao imaginário do
medo e da insegurança no que diz respeito tanto à vulnerabilidade imaginária – isto é, ligada a
uma sensação de insegurança e a ameaças a que a escola estaria sujeita – quanto à
vulnerabilidade real, consequência da violência que marca certas áreas urbanas, da
precariedade das instalações dos prédios escolares, a falta de pessoal e da deficiência dos
mecanismos de vigilância e controle das escolas (ABRAMOVAY, 2006).
Esse desequilíbrio social no mundo moderno, provocado pela ascensão da violência,
conforme aponta Bauman (2007), inibiu a administração do medo e o medo faz acreditar que
o outro é inimigo, bandido, aquele que ameaça, que deseja o mal. Os “outros” são aqueles
reconhecidos inadequados, desintegrados, proclamados descartáveis, “antissociais”,
socialmente desajustados, sendo uma classe inferior e ameaçadora na sociedade.
Como se percebe, o medo não marca apenas a vida dos estudantes, pois as entrevistas
com os adultos das escolas também revelam medo, insegurança e impotência sobre que fazer
em relação aos fatos de violência que se manifesta na porta da escola quanto dentro dela:
Retrato 1
A professora Sônia tem 51 anos, nasceu e se criou em Cuiabá. É branca, católica. Ela
teve uma trajetória escolar regular: foi aluna do seu pai no Ensino Fundamental em uma
98
escola particular. Sua mãe, dona de casa, concluiu o Ensino Médio. De 1974 a 1976, Sônia
cursou o Ensino Médio. Em 1976 ingressou na UFMT, cursando Geografia e formou-se em
1980. Em 2008, iniciou o Curso de Direito na faculdade Afirmativo, em Cuiabá.
Sônia é mãe de dois filhos, solteiros e estudantes. O filho tem 26 e cursa Ciências
Contábeis e a filha, com 22 anos, cursa Farmácia. Diz que se divorciou do esposo por causa
das agressões sofridas: Ele me bateu [...]. Os xingamentos, brigas e ameaças aconteceram
várias vezes. Ela viveu com ele 24 anos. Não se casou novamente.
No ano de 1982, iniciou sua carreira de magistério na rede de ensino estadual, mas
após quatro anos de magistério, por exigência do esposo, afastou-se. Retornou à sala de aula
em 2002, após o divórcio, substituindo docentes em várias escolas estaduais. Na escola atual,
está desde 2006. Leciona as disciplinas de Geografia e Sociologia para o Ensino Fundamental
nos períodos vespertino e noturno. Tem 10 anos de magistério como interina no Estado.
Conta que sua formação foi muito rígida, mas sem situações de violência: Em casa
não havia violência. Nunca vi meus pais discutindo ou brigando. Hoje sou professora, por
influência dele que dava aula com tanto prazer e paixão que encantava a todos.
Para Sônia: hoje lecionar não é uma tarefa fácil, é desgastante. Depara-se com muitas
situações de violência nas salas de aula: Essas cenas de violências, ameaças, acabam nos
deixando um pouco receosas. A gente estuda, se forma, sonha com outro tipo de educação
[...] mas está difícil! Outro dia um aluno até queria bater em mim. A violência aumenta a
cada dia, seja a violência verbal, a psicológica ou física, deixando-nos em sobressalto [...].
Revela ainda que algumas vezes por não saber como resolver essas situações
conflituosas, acaba tendo reações que estimulam a agressão por parte dos estudantes: Muitas
vezes tratei meus alunos com respostas pesadas. Rebati com as mesmas palavras, no mesmo
tom agressivo, coloquei apelidos. Com alguns alunos, tenho um relacionamento muito difícil.
Retrato 2
A professora Vera é paulista da capital. É branca. Mudou-se para Cuiabá com seus
pais na esperança de melhorar de vida. Para o sustento da família, sua mãe trabalhou como
doméstica em casa de famílias e seu pai, como pedreiro. Eles frequentaram a escola até a 2ª
série. Tem uma irmã. Ela é viúva e tem quatro filhos. Vera conta que já trabalhou de
empregada doméstica e professora.
99
Logo que chegou a Cuiabá, no ano de 1983, passou no concurso estadual. Possui 28
anos de exercício de magistério: Fiz o curso de magistério para agradar o meu pai, que
queria ter uma filha professora. Sua vida escolar foi regular. Em São Paulo, cursou o Ensino
Fundamental e Ensino Médio: Magistério. Em 1979, iniciou sua carreira como professora.
Em Cuiabá começou a atuar como professora no bairro São Gonçalo. Após, trabalhou
em vários bairros: Lixeira, Pascoal Ramos e, por último, Pedra 90. Nessa escola, já atuou
como coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental, várias vezes. De 2007 a 2008, esteve
em desvio de função por problemas de saúde. Em 2009, retornou como coordenadora escolar.
Na época da pesquisa, Vera reclamou da situação de indiferença que vivencia nesta
função: Na verdade, eu só faço alguma coisa na escola quando as coordenadoras não estão
na escola. Este é meu último ano, vou me aposentar. Chega! Quando estudava, fui muito
humilhada pelos meus colegas e também por alguns professores. Aqui sou humilhada,
discriminada e rejeitada pelos colegas de profissão.
No ano de 1990 passou a morar com seu esposo. Não tem filhos. O esposo concluiu o
Ensino Médio, é aposentado, tem 46 anos e trabalha como autônomo. Antes do
relacionamento com ela, ele teve quatro companheiras com as quais teve oito filhos.
Vera revela que seu relacionamento com o esposo é marcado por atitudes de violência.
Possui 21 anos de casada, porém lamenta-se: separei dele várias vezes, porque ele me bateu
várias vezes. Hoje ele ainda me agride com palavras: humilha, xinga, ameaça, grita.
Também diz que em sua família vivenciou situações de violência: Minha mãe batia
muito em nós. Afirma que seu esposo também traz traumas da violência na família: O pai e a
mãe batiam muito nele. Por isso que ele fugiu de casa ainda pequeno. Hoje ele é alcoólatra,
fuma, é revoltado. Já fez tratamento com psicólogo, mas não resolveu.
As observações que fiz na escola em que trabalha Vera apontaram que ela possui um
relacionamento muito difícil com os estudantes e com as pessoas de modo geral. Nas
resoluções dos conflitos comuns entre os mesmos, tratavam-nos com gritos, palavras
agressivas e desrespeitosas do tipo “você é preguiçoso, não quer saber de estudar, deixe seu
lugar para outro”, gerando visivelmente insatisfação e revolta nos estudantes.
Retrato 3
minha irmã, que hoje tem 37 anos. Fui adotado pelo tio materno que se sensibilizou diante do
meu sofrimento em consequência do abandono familiar antes de completar um ano. Minha
mãe formou outra família, teve dois filhos. Deixou a casa da família adotiva com 19 anos,
quando se mudou para Cuiabá para morar com seu pai legítimo.
Sua trajetória escolar foi regular, apesar das adversidades no percurso: cursou o
Ensino Fundamental e Ensino Médio de 1977 a 1989. De 87 a 89 foi membro da Patrulha
Mirim do regime militar. Após, veio para Cuiabá fazer graduação em Educação Física.
Tentou durante quatro anos o vestibular na UFMT e só foi aprovado em 1994, já exercendo o
Magistério, mas não o concluiu. Ingressou em vários cursos superiores (História, Geografia,
Letras, Biologia), mas não conseguiu concluir nenhum.
Iniciou sua carreira de magistério em 1990, substituindo o seu tio, irmão do seu pai,
lecionando Educação Física em uma escola particular. Nesse período cursou o Magistério. De
90 a 95, trabalhou em diversas escolas municipais, estaduais e particulares de Cuiabá,
lecionando Língua Portuguesa, Educação Física, Geografia, Ciências, Matemática, Biologia,
Química e Física. Lecionou também na zona rural. Toda essa trajetória de magistério foi
percorrida como professor contratado. Tem 20 anos de Cuiabá e 19 anos de magistério.
A partir de 2001, Gerson passou a ser professor efetivo na prefeitura de Cuiabá,
atuando da I à IV série. Possui 10 anos de concurso. É casado há quatro anos. Sua esposa é
formada em Pedagogia e trabalha em uma Cooperativa de técnicos de enfermagem. Teve três
filhos: um está com três anos e o menor está com um ano e quatro meses do casamento atual e
uma filha de um relacionamento anterior.
Ele trabalha nos períodos matutino e vespertino. Possui 40 horas em sala de aula. Na
Escola A onde realizei a pesquisa trabalha as 20 horas excedentes. É titular da turma do 6º
ano com 38 adolescentes. É o primeiro ano que está nesta Escola.
Quando se mudou para Cuiabá, não tinha residência fixa e morou em diversos locais:
na casa do seu pai, em república, nas casas de amigos e conhecidos, com seu tio. A moradia
dependia do emprego e da relação que construía com as pessoas que o hospedavam. Após o
casamento adquiriu sua casa própria na região da grande Coxipó.
Na época da pesquisa na escola, observei que o professor Gerson possui um
relacionamento dialogal e franco com os estudantes. Na observação no pátio, recreio, sala de
aula e sala de professores, percebi que ele é muito estimado pelos educandos: Assumi essa
profissão por paixão. Não consigo fazer outra coisa na vida, senão dar aula. Já tentei deixar
o magistério [...]. Eu nasci com ela.
101
Retrato 4
de sua família: fui muito humilhada por colegas por ser obesa. Sofri muito. Quando cursei o
Ensino Médio, meninos e meninas debochavam de mim, chacoteavam, chamava-me de gorda,
de feia, “feiona”. Diz ainda que a submissão ao bullying a levou a reproduzi-lo para se
defender dos ataques dos colegas: Eu passei a praticá-lo fazendo gozação, chacotas,
humilhações. Tentei suprir uma deficiência pelo fato de ser gorda, porque não podia ser o
protótipo que a sociedade impõe, atender um padrão de beleza.
Recorda que no seu espaço de trabalho não ficou ilesa de tratamento preconceituoso
pelo seu estado físico tanto por parte dos estudantes quanto por parte dos próprios colegas de
trabalho: Um dia um aluno me disse: Essa “gorda”, essa “baleia” e mais um monte coisa.
Era da 5ª série. Fiquei sem ação para responder [...]. Lembro que parei, fiquei inerte,
chateada. Esse foi um dos motivos que me motivou a emagrecer. Já emagreci 30 quilos.
Patrícia afirma que a vivência de atos de bullying, tais como apelidos, chacotas gerou-
lhe vergonha, medo, desinteresse, solidão e até mesmo a depressão:
Tomei medicamento para emagrecer e fiquei com depressão. Não sorria mais, não
brincava, passei duras perdas. Na escola pública onde trabalho o clima de
preconceito me levou também a emagrecer. A coordenadora chama-me de
“gordona”. Isso me ofende muito. Apelida alunos de gorduchinho, ‘dentuchinha’.
No ano que entrei fiquei revoltada. Todo mundo sorri e acha o máximo. Diz: isso
aqui é coisa de preto. Não aceita as pessoas como são. Depois eu me vi fazendo a
mesma coisa: apelidando os alunos e imitando-os, rotulando. Quando me chamam
de gorda, aceito por educação, porque não vou bater boca. Pelo fato de eu ser gorda,
tenho que viver bem comigo mesma. A minha vontade é olhar para a coordenadora e
encontrar qualquer defeito nela e começar fazer gozação também.
Retrato 5
Afirma que hoje seu pai não é mais alcoólatra. É aposentado muito bem, porém tem
sua saúde comprometida: sofre de enfisema pulmonar. Está com 88 anos. Os pais estudaram
apenas as primeiras séries iniciais. A mãe já é falecida.
Além de lecionar, Vanda faz trabalhos manuais: Gosto de pintar panos, camisetas,
trabalho com arte, mas não como profissão. Faço trabalho voluntário na Creche do bairro
Novo Paraíso II. Ensino um grupo de 20 mulheres pintarem. Recebo ajuda para a gasolina.
Retrato 6
Meu esposo me bateu. Deu-me um tapa no rosto e eu caí. Fiquei tão desorientada
que andei um dia e uma noite nas ruas sem saber para onde ir. Entrei em depressão
profunda. Procurei várias religiões: Seicho No Iê, Messiânica, Católica, mas não
encontrei resposta. Abandonei a religião e o emprego. Não conseguia trabalhar.
Fiquei com os dois filhos, com um casamento desfeito, sem casa. Fui socorrida pela
minha irmã. Sobrevivemos fazendo doces e salgados para vender. Meus filhos não
pararam de estudar, fizeram tratamento psicológico. Depois tudo “normalizou”.
Em tom de lamentação conta que também sua infância e juventude foram marcadas
pelo sofrimento em sua família: Meus pais eram muito agressivos. Apanhei muito. Batiam de
espancar mesmo. Uma vez fiquei toda cheia de hematomas, já estava casada. Eles me bateram
na frente dos meus filhos. Ficou uma mágoa muito grande deles por ter sofrido tanto.
***
De modo geral, pela descrição dos retratos, posso afirmar que os professores tiveram
suas trajetórias escolares de forma regular, apesar das diferenças existentes entre eles. Alguns
professores puderam contar com boas condições financeiras que garantissem a tranquilidade
na educação escolar. Já outros, além de enfrentar na infância os problemas relacionados com
insegurança financeira, enfrentaram também a violência familiar.
A maior parte dos professores revelou que a convivência no espaço familiar foi
marcada por conflitos e violência doméstica. Revelou ainda que os atos de violência familiar
se manifestaram por meio dos maus tratos, agressão, negligência, abandono e violência física
ou psicológica, gerando insegurança, medo, traumas profundos, carências e até reprodução da
violência (FANTE, 2005). Ficou dessa forma, demonstrado, que a violência doméstica é ainda
hoje comum às muitas crianças e adolescentes de todos os estratos sociais, como já
demonstraram diversas pesquisas sobre a temática. Tais fatos confirmam a invisibilidade ao
fenômeno da violência intrafamiliar que tem nas crianças, adolescentes, mulheres e idosos
suas principais vítimas (AZEVEDO & GUERRA, 2001). Nesse aspecto, o rompimento com a
disseminação desse fenômeno, mantido pela complacência da sociedade, requer dar
visibilidade ao “pacto de silêncio”, que dificulta o acesso ao que realmente acontece com
relação ao problema.
106
efetivarem. Nesses casos, frente à precariedade dos contratos temporários, são obrigadas a
enfrentar duas ou três jornadas de trabalho para garantir a sobrevivência familiar. Dessa
forma, é evidente que, nas atuais condições de insegurança, precariedade nas quais se exerce a
profissão docente, não existem condições satisfatórias para a realização de uma educação de
qualidade.
O clamor mais comum por parte de todos os professores é a ausência de condições de
trabalho na escola. Isso remete à falência das aspirações pessoais e a consequente desistência
da área de atuação profissional: pouco relacionamento com os colegas de profissão, em que a
falta de coleguismo e companheirismo possibilita o preconceito, a rejeição, a falta de apoio e
se instaura a frustração, a falta de autonomia e perda da autoridade dos professores, que no
campo do relacionamento predispõem à perseguição. Registram-se também dificuldades de
relacionamento com os familiares, precariedade nas condições materiais e profissionais de
trabalho. Esse contexto relacional, marcado pelo desencantamento, pelo esgotamento
“nervoso”, pelo individualismo, pelas decepções constantes, e até pela depressão, “é típico
de um sistema em grupo fechado, problemático, que não encontrou brechas para desenvolver
positivamente as relações entre seus membros” (COSTANTINI, 2004, p.73), o que
consequentemente contribui para a desistência do ato de educar.
É obvio que esse atual sistema fechado e problemático não oferece condições para o
desenvolvimento de relações significativas, para a construção de identidade fortalecida, da
participação efetiva. Não oferece condições para se construir um processo civilizatório que
contemple a valorização da vida. Portanto, na nossa sociedade, o sistema educacional atual
está longe de um ideal de cidadania, de segurança, de estabilidade, de direitos humanos e de
paz.
Esse desencantamento muitas vezes é justificado pela longa história de não atribuição
de valor ao papel do professor (OSNIR, 2008). Esse histórico processo de desvalorização do
professor em nosso país, impotência, respeitabilidade social contribuem para o aumento da
frustração com a profissão de educar. As falas dos professores supracitadas parecem coincidir
com o que consta na apresentação da obra “Educação: carinho e trabalho”, de Wanderley
Codo (1999, p. 237):
Já se viu que o professor faz muito mais do que as condições de trabalho permitem;
já se viu que comparece no tecido social compondo o futuro de milhares e milhares
de jovens que antes dele sequer poderiam sonhar. Mas existe um outro professor
habitando nossas lembranças: um homem, uma mulher, cansados, abatidos, sem
mais vontade de ensinar, um professor que desistiu.
108
uma relação de poder, principalmente pelo medo, insistindo-se no caráter de violência em sua
verbalização e ação.
Quando se reorienta a identificação dos atores nos atos de agressão física,
investigando quem bateu, apresenta-se um outro nível de informação. Muitos estudantes
asseguram já terem batido em algum colega da sala ou de outra sala de aula dentro da escola:
Eu [...] prefiro não comentar muito, mas já briguei. Cheguei a bater [...] foi só
pancadaria. Quebrei os caras lá. Foi uma briga besta, sem motivo, mas que virou
uma grande encrenca. Estávamos nervosos (Lívio, 15 anos, 7º ano).
[...] eu vou para cima mesmo se me provocar. Eu seguro o cara nas costas e jogo ele
no chão assim, e bato, não tenho dó [...]. Dou murros no rosto e na boca, soco até ele
sentir o peso de minha mão [...] (Beto, 11 anos, 4ª ano).
nível de agressão bem baixo. Assim, pode-se afirmar que, à medida que aumenta a faixa etária
dos estudantes, o número daqueles que se dizem agressores vai progressivamente diminuindo.
Alguns professores e funcionários apontam que as brigas ocorrem com mais
assiduidade entre os estudantes do Ensino Fundamental: Geralmente nas turmas dos
pequenos, nos 4º, 5º e 6º anos. Aqui na escola tem também uma turma do 3º ano que é
encrenqueira. Eles se pegam por qualquer briguinha, qualquer encostadinha do outro,
começam as queixas, as fofocas, não são coisas graves.
Muitos estudantes afirmam que há brigas entre estudantes de diferente faixa etária:
hoje mesmo dois alunos do 6º Ano esfregaram a cara de um aluno do 4º ano no muro, na
saída da aula, com socos. Afirmam igualmente que há inúmeras situações em que os maiores
em tamanho e força agridem os menores em diferentes ciclos de ensino: Na hora do recreio
perto da quadra de esportes, tem uns grandes que se acham os tais, além de empurrar,
chutar, espancam quando a gente quer jogar. Eles se sentem os donos do pedaço.
Os depoimentos dos sujeitos da pesquisa assinalam que, além da violência
disseminada individualmente entre os estudantes, também é comum a sua manifestação de
forma coletiva, por meio de pequenos grupos, que não necessariamente seriam gangues, mas
que se juntam especificamente para acertar contas com um colega que não faz parte desse
grupo: No ano passado surgiu uma confusão por causa de namorado aqui na sala. Uma
menina ficava só provocando, gozando da minha cara. Chamei umas colegas e demos um pau
nela na saída da aula. Na verdade, ela queria se aparecer que é a tal. Agora ela não mexe
mais comigo, mudou até de sala, sabe que eu não ando sozinha.
Os estudantes, por sua vez, vinculam as desavenças, as brigas às intrigas e fofocas dos
próprios colegas, como pode ser observado nesta fala:
Por outro lado, os estudantes reconhecem que quase sempre o que seria uma
desavença comum entre dois colegas transforma-se em um embate entre grupos. O
depoimento a seguir esclarece sobre isso:
Nossa escola é muito perigosa, tem muitas brigas de grupos. É tipo assim, provocam
aqui dentro da escola e termina na saída, na praça, porque na rua não tem ninguém
114
pra separar. Lá o circo pega fogo! Os caras dizem: - Vou te pegar na saída. Aí
chama os amigos dele e parte pra briga. Há muitas torcidas. Quem fica com medo,
espera aqui dentro da escola, chama a mãe. O pessoal daqui do bairro, ninguém
aceita perder. Aqui, o circo pega fogo. (Jaqueline, 15 anos, 1º ano EM).
Quando xingam a minha mãe eu viro o capeta [...] Um guri me chamou de: Eh seu
filho de uma puta, sua mãe é aquela magrela, aquela nariguda [...] aí eu perdi a
cabeça e fui para cima dele e deu um soco na cara dele [...] (Lívio, 9 anos, 3º ano).
Tem um menino na sala que fica me ameaçando. Eu já briguei com ele na escola
algumas vezes. Eu estava dentro da sala de aula, quieto, ele veio e passou a mão na
minha bunda [...] Eu falei: você passa mais uma vez que eu desço você no cassete
[...] ele passou de novo, eu fui e meti o murro nele (Vitor, 9 anos, 3º ano).
Até parecem que esses meninos vêm aqui só para brigar. Brigam toda hora. A escola
virou um lugar de encarar o outro. Houve uma briga agorinha e pegaram um menino
pequeno da 5º série, na hora do recreio; o guri foi todo arranhado, unhou ele
todinho, deixando marcas nos braços, no rosto, bem funda, deram pesadas. Esses
maiores aproveitam dos menores que não conseguem enfrentá-los. Porque que não
encaram um do seu tamanho? (Kátia, 12 anos, 6º ano).
Tem aluno aqui que cai em cima do outro batendo, dando socos e não quer saber se
o outro vai sofrer, vai se quebrar, ele sabe que ele quer se sentir o maludão, o
valentão da sala, o manda chuva. (Jairo, 14 anos, 6º ano).
Tais construtos são parte de uma “cultura de violência” que, quanto mais legitima mais
impõe padrões, como o de ser durão (ABRAMOVAY, 2006). Segundo Lopes Neto (2005), a
interiorização de comportamentos agressivos pode acontecer desde muito cedo entre os
estudantes. Para o autor, eles aprendem a se agredir na ausência dos adultos e a se defender
contra a agressão de outras pessoas. E aqueles que não incorporam e que não aprendem na
prática as estratégias de defesa e de agressividade nas relações de força e de dominação
existentes no grupo são fadados a não reagir, sendo assim condenados a serem eternas vítimas
de bullying, submissos à dominação de seus pares (CAVALCANTE, 2006; FANTE, 2008).
Essa hierarquia de dominação pode estar presente tanto nas agressões verbais como físicas.
Ainda que as agressões entre os pares sejam mais frequentes, os testemunhos de
algumas professoras apontam para a manifestação de atitudes de violência de estudantes
contra professores, além daquelas agressões verbais que já se tornaram quase comum:
ameaçar, xingar, desrespeitar etc.: Um aluno me derrubou em sala de aula, só porque eu pedi
116
a ele: você não deve sair da sala, vamos sentar. Ele me empurrou com as mãos e eu caí de
costas no chão [...]. Testemunham também outros tipos de agressões físicas: Ele [aluno]
cortou o meu braço com um estilete. Ele ia socar em uma criança da sala, entrei na frente
para separar, ele me cortou em dois lugares, no braço e perto do coração [...].
Os estudantes e suas famílias atribuem à escola grande sentido. As entrevistas sobre o
sentido da escola apontam que embora às vezes critiquem e queixem do esforço necessário,
das brigas, das indiferenças, da violência, sobretudo do bullying, afirmam gostar muito da
escola e querer permanecer nela. Unanimemente apontam que: gosto de estudar, aprender
coisas novas. Também gosto de encontrar com meus amigos, de jogar bola e do lanche que é
bom demais (Alice, 11 anos, 5º ano). A meu ver, esses estudantes, estão externalizando um
sentimento de convivência significativa e uma relação que dá prazer, que vivenciam na escola
na interação sadia e prazerosa com os colegas e educadores.
Eu não gosto do [nome] porque ele vive batendo em mim na frente de todo mundo.
Quando eu estou passando, ele põe o pé na frente para eu cair, chuta, ele está sempre
117
me humilhando. Também não me sinto bem com [nomes], porque eles me excluem,
me discriminam, riem de mim. Colocam apelidos em mim de pimentão, isso me
deixa magoado (Jair, 14 anos, 6º ano).
Eu não faço nada para ninguém na escola. Gosto de estudar aqui, não brigo com
ninguém. Ontem eu pisei na mochila de raiva, porque quando eu fico nervoso eu
fico com muita raiva e choro. Eu queria bater no [nome], porque ele me bateu na
sala de aula, me chutou, como chuta e bate todo dia. Quando terminou a aula, ele
continuou a me chutar, empurrar, bater. Pegou uma pedra enorme e ainda na varanda
da escola quis jogar em mim e jogou-a no chão, espatifando-a. Xingou a minha mãe
de horrorosa. Eu enfezei, enfezei mesmo, fiquei que nem o capeta. Eu sempre
carrego uma pedra na mochila, uma pedra grande para me defender desse menino.
Enfezei e soquei nele. Peguei a mochila e sai correndo. Eu queria matar o [nome].
Se ele fizer isso comigo de novo, eu vou enviar a faca no bucho dele, ele vai ver [...]
Eu enfio mesmo. Ele já passou muita raiva em mim. (Paulo, 9 anos, 3º ano).
Há muita violência entre os alunos. Quando outro aluno fala um pouco mais alto do
que o outro, se agridem. Gostam de passar vergonha no outro, põem apelidos; são
apelidos mesmo para inibir, para se sobressair e diminuir o outro. Usam os defeitos
do outro para inibir. A gente tenta um pouco frear isso, mas não temos uma noção de
como fazer e muitas vezes agimos até com um pouco de violência com eles. Eles
também não respeitam as autoridades, não respeitam ninguém. Não dialogam,
esquivam-se, não aceitam as orientações. Vejo que querem chamar atenção a
qualquer custo. Nós, professores, talvez, precisaríamos de cursos de formação para
trabalhar com os alunos de hoje. (Professora em entrevista).
Posso aferir, com base nesses depoimentos, que existem graves situações de bullying
no espaço escolar. São situações de violência que vão destruindo aos poucos as possibilidades
de construção de relações empáticas e éticas e podem perdurar a vida inteira (SALVAGNO,
2008). É necessário por isso considerar que, sob esse aspecto, a experiência desses sujeitos
requer caminhos que devem ir muito alem da acirradas discussões focadas em questões de
punição e segurança, desvinculado de um projeto de educação amplo e outras condições
mínimas de convivência no ambiente escolar.
É normal que em toda escola ocorram brigas, inimizades, desavenças. Faz parte da
natureza humana. Porém, o elevado índice de violência encontrado praticamente em todos os
espaços e momentos da escola, permite concluir que é necessário repensar as relações no
espaço educativo (GUARESCHI, 2008). Somente assim é possível construir e reconstruir esse
espaço, erradicando as relações definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e pelo terror
(CHAUÍ, 1999). É necessário ainda despertar nos estudantes, por meio de uma ação
comunicativa e solidária (BOUFLEUER apud HABERMAS, 2001; GADAMER, 2000),
disposição para serem motivados a mudar de atitudes e práticas por meio da participação em
debates sérios e criativos que reflitam sobre justiça, justeza e ética de seus comportamentos.
As observações dos estudantes apontam – é certo que isto não é novidade para
ninguém - também para as fragilidades existentes no relacionamento com professores. Alguns
119
individual ameaçada tanto por seus pares quando por seus superiores ou pela instituição. Isso
é notário também relacionado ao professor. A relação harmônica - isso não isenta os conflitos
- é almejada por todos, mas ainda os graves riscos das atitudes agressivas perpassam as
relações no espaço escolar, inibindo a construção de valores morais necessários à
consolidação de relações interpessoais mais éticas, justas e harmoniosas.
Diziam: lá vem aquele gordo, a “baleia assassina” da escola. Não sabe nem andar
[...]. Os colegas da minha sala ficavam sempre me apelidando de gordo, de baleia,
de bola. Eu ficava muito triste, meu sonho é emagrecer [...] Assim ninguém vai falar
mais de mim e nem me humilhar [...] (Pedro, 15 anos, 6º ano).
Têm alguns que falam: sua “voz é horrorosa e seu rosto também é horroroso”[...]
Fico muito chateado. Eu não sei se ele está falando de verdade [...] Já até pedi para
minha mãe fazer alguma coisa para mudar o meu rosto. Já até pensei em deixar a
escola por causa disso [...] (Lívio, 9 anos, 3º ano).
pessoas porque tem cor diferente e mora num lugar pobre [...] como é o caso do
grilo [...] Isso nos faz sentir as piores pessoas do mundo (Ronaldo, 13 anos, 6º ano).
Esses dias, não sei se foi no 7ºou no 9º ano, escutei um menino chamando o outro de
Stuart, que é um ratinho de um desenho animado, porque este menino tem as orelhas
abanadas. Eu perguntei para ele: porque que chama você assim? Ele me disse,
porque ele se parecia com o ratinho do desenho. Você não se incomoda? Ele me
respondeu: não já me acostumei com os apelidos [...] (Professora em entrevista).
referência negativa aos cabelos dos seus colegas é uma prática corriqueira, que mostra uma
forma comum na discriminação da pessoa negra:
Na sala eu falo pouco. Sou a mais velha da turma porque reprovei muito. Já briguei
com uns meninos porque eles mexem comigo, me apelidam de “tifu”, “cabelo de
Bombril”. Eu fico muito triste [...] Queria mudar o meu cabelo[...] gostaria que fosse
liso! (Renata, 14 anos, 3º ano).
Na sala já fui chamada muitas vezes de cabelo grenho, pichaim [...]. Tem outras
meninas que também tem cabelo igual ao meu, ruim [...] Eu observo que elas ficam
olhando as meninas que tem cabelo liso. Como eu, elas também se sentem feiosas,
são discriminadas e sofrem com isso. (Elisa, 14 anos, 3º ano).
Esse depoimento remete a Lopes Neto (2005), que sinaliza que algumas características
físicas, comportamentais ou emocionais, podem torná-lo mais vulnerável às ações dos autores
123
e dificultar a sua aceitação pelo grupo. A rejeição às diferenças é um fato descrito como de
grande importância na ocorrência de bullying, sendo uma característica peculiar desse tipo de
violência.
Os estudantes também declaram que muitos colegas, por causa das características
estéticas, são vítimas de discriminações e exclusão. Entretanto, quando esta diferença o
caracteriza como “estranho” (GOFFMAN, 1998) e não diferente, interferindo em sua
autoestima, em virtude dos padrões de beleza impostos pela mídia, torna-se uma difícil
questão de se lidar e, por vezes, o exclui do convívio social com os grupos.
Reconhecem que o sucesso escolar desses estudantes fica comprometido, uma vez que a
constante submissão a esses atos violentos mina a autoestima e a vontade de ficar na escola:
Na minha sala tenho duas alunas, que pela sua situação de extrema pobreza, sempre
vem para a escola com roupas sujas, rasgadas. Às vezes o cabelo, por descuido das
mães, tem piolho, está sujo e até cheira mal. Os colegas da sala não as aceitam no
grupo, por mais que eu falo sobre isso. Então elas ficam afastadas. Sinto
dificuldades de inseri-las nos grupos, elas têm bloqueios, uma barreira, que, acredito
eu, imposta pela vergonha por se sentir fora da realidade (Professora em entrevista).
A discriminação com relação à orientação sexual também foi apontada por alguns
estudantes e professores. Revelam que alguns colegas recorrem a xingamentos e apelidos
ofendendo e desrespeitando os companheiros em sua diversidade:
Na minha sala alguns querem ser melhores do que os outros não aceitam a diferença
e as escolhas das pessoas. Muitas alunas são chamadas de lésbicas porque
apresentam comportamentos mais masculinizados e isso gera a discriminação e
muitas vezes também as brigas. Lá tem meninas que são lésbicas assumidas. Fazem
piadinhas delas, desrespeitam, xingam de “sapatão”, debocham [...]. É isso que torna
o ambiente escolar difícil para conviver (Alice, 15 anos, 1º ano Ensino médio).
Eu acho que isso acontece, porque a pessoa é diferente, fala diferente. Eu, por
exemplo, na minha sala só me chamam de ela (de bicha) e isso ocorre só porque sou
muito comunicativo, falo devagar e tenho mais amigas do que amigos na escola. Por
causa disso já desisti três vezes da escola [...] (Marcelo, 16 anos, 6º ano).
[...] chamavam-me de ‘sem mão’ [...] ‘bicho feio’[...] Isso me feria profundamente.
Excluíam-me, me discriminavam por eu ter apenas uma mão e um braço [...] Ficava
rindo de mim, não me deixavam participar das apresentações culturais na escola. Eu
nasci sem o antebraço, uma deficiência física, não pedi para nascer assim [...] Na
escola algumas colegas me tomavam todas as minhas amizades, me deixavam
sozinha, sem amigos, só porque tenho um defeito físico, uso óculos forte. Na
terceira série também não tinha amigos. Se uma pessoa conversasse comigo num dia
já não ia conversar no outro dia, porque algumas colegas falavam: se você conversar
com [fulana], você não vai entrar no nosso grupo. Também na escola que estudava
antes dois colegas me bateram muito. Lá eu estava sempre triste, porque eu sentia
que ninguém gostava de mim. Um dia eu voltei para casa toda agatanhada [unhada]
por dois colegas. Encurralaram-me na parede da sala. A professora estava na sala,
ela viu e não fez nada. Quando eu fui me defender deles, ela me pegou pela orelha e
me deixou de castigo. Aí, minha mãe me mudou de escola. (Rosa, 11 anos, 5º ano)11.
11
Esse depoimento foi recolhido no teste do roteiro da entrevista. Em consequência do alto grau de violência sofrida
na escola, achei por bem inseri-lo no contexto do trabalho. A mãe dessa adolescente, no sexto mês de gravidez caiu no
quintal de sua casa, causando uma lesão grave na criança que estava em seu ventre.
126
Fragmentação na tentativa, sempre vã, de poder escolher para ser apenas partes de
si, por entender que este seria o caminho da aceitação de si pelo Outro; integração
como forma de aplacar a ânsia de poder ser o que realmente é e o que está
inexoravelmente inscrito em sua “arquitetura anímica”.
Educar alguém não é treinar-lhe para recitar tolices, a mentir, a praticar a tortura, é
efetivamente, ensinar-lhe alguma, mas isto não pode ser considerado como parte da
Educação. Educar alguém é introduzi-lo, iniciá-lo numa certa categoria de atividades
que se considerem como dotadas de valor (‘Worth While’), não no sentido de um
valor instrumental, de um valor enquanto não de alcançar uma outra coisa, tal como
o êxito social, mas de um valor intrínseco, de um valor que se liga ao próprio fato de
praticá-las e, ou ainda é favorecer nele o desenvolvimento de capacidades e de
atitudes que se considera como desejáveis por si mesmas, é conduzi-lo a um grau
superior de realização (FORQUIN, 1993, p. 165).
Eu tenho três meses de casa e a gente convive com violência na entrada, violência
no intervalo, violência na saída. Os estudantes não sabem mais brincar, estão muito
nervosos, irritados e eles transformam brincadeiras em brutalidade. De uma simples
brincadeira começam a chutar, a empurrar, ai termina em pontapés, murros, em
brigas. Eles não param sentados, estão desassossegados, transformam a sala em uma
desordem (Professora em entrevista).
Eu tive várias vezes vontade de “dá um murro” na cara daquele menino que se
achava o dono do pedaço, só que não tinha jeito [...] Ele era muito grande, né?
Maior do que eu. Hoje eu trouxe até uma faquinha. Se ele mexer comigo novamente
eu vou enfiar na barriga dele (Paulo, 9 anos, 5º ano).
Um colega de sala me bateu perto da escada, eu saí de lá e vim para o portão. Ele
veio até lá e começou a me chutar, a bater em mim, xingar-me de gordo, ‘boiola’,
tudo. Eu não agüentei [...] ele deu um soco em mim e eu fui para cima dele, grudei
no seu pescoço para enforcá-lo [...]. O guarda veio e separou. Eu ia enforcá-lo para
ele me deixar em paz e o guarda me levou para a diretoria (Pedro, 15 anos, 6º ano).
É possível intuir como a ferocidade das agressões incitadas entre os estudantes dentro
da pesquisa afeta o seu rendimento escolar, comprovando o fato de que o bullying é o
desencadeador principal dos eventos ocorridos. Sendo assim, corroboram-se as reflexões
científicas que destacam a agressividade como um meio da pessoa interiorizar sentimentos
que mais tarde irão trazer-lhes dissabores e frustrações (FANTE, 2005; GUARESCHI, 2008;
PEREIRA, 2002; NETO, 2005; SILVA, 2006).
Nesta pesquisa, alguns professores também registram aquilo que é patenteado nas
pesquisas nacionais e internacionais, de que não existe idade para ser agressor. O depoimento
que segue aponta para essa realidade desafiadora: Tenho um aluninho de três anos que agride
os colegas, chegou a ferir a boca de um deles com uma barra de ferro. Está sendo
acompanhado pelo Conselho Escolar. Esse tipo de prática também está preocupando por
atingir faixas etárias cada vez mais baixas, como crianças dos primeiros anos de escolarização
(LOPES NETO, 2005).
É evidente que o alto nível de agressividade desencadeada pelos atos de bullying pode
contribuir grandemente para uma má formação de identidade da criança e jovem. Cabe, nesta
parte, remeter ao pensamento de Guareschi (2008, p. 61), que sustenta: “[...] quando não há
intervenções e programas preventivos efetivos contra o bullying, o ambiente escolar, torna-se
totalmente contaminado e o sujeito a diversas conseqüências”. Esse impacto negativo não
ocorre apenas sobre os alvos/vítimas, mas sobre todas as crianças, sem exceção. Segundo o
autor, todas são afetadas negativamente, passando a experimentar sentimentos de ansiedade e
medo. Nesses casos, alguns educandos, que testemunham os casos de bullying, quando
percebem que o comportamento agressivo não traz nenhuma consequência a quem o pratica,
poderão achar por bem adotá-lo.
131
Não me sinto muito bem na escola, porque os colegas são muito brutos, bagunceiros,
provocam brigas e fazem gozações com a gente. Eu sou crente, não brigo com
ninguém, quando me provoca, eu fico calado [...]. Não vou à escola muitas vezes por
causa disso. Eu gostaria que não tivesse brigas na escola. (Mário, 12 anos, 6º ano).
Nessa linha, fica claro que não apenas os estudantes aparecem como os mais
frequentes praticantes e vítimas das violências, como foi anteriormente mencionado, mas
também como aqueles que mais sofrem as suas implicações em termos de comparecimento
escolar, independentemente de serem vítimas, praticantes ou testemunhas.
A exemplo do que já havia observado, no que diz respeito aos impactos mais
significativos das formas de violência, posso destacar até pela ordem: alterar o ambiente
escolar, tornando-o mais enfadonho; faltar às aulas e piorar a qualidade das aulas. Em
consequência desses, aparece a perda da motivação para comparecer às aulas.
Indagados se eles gostavam da escola, os estudantes revelam que na maioria das vezes
a perda da vontade de ir à escola está associada à discriminação e violência vivenciada no
ambiente escolar:
Tem uma coisa aqui na escola que eu odeio [...], e me entristece muito. Falto muito
às aulas por isso. Os colegas me apelidaram de “caolha”. Sou muito bonita, mas os
meus olhos são tortos. Fiquei com esse defeito porque meu berço ficava embaixo da
luz e viraram os meus olhos. Eu uso óculos para endireitá-los, mas não aqui na
escola, tenho vergonha [...]. Antes eu chegava a casa chorando, minha mãe tinha que
vir aqui na escola para tirar satisfação dos outros. Eu chorava, tinha dias que eu nem
vinha para a escola por causa disso. Cada vez que falava que eu era ‘caolha’ eu tinha
menos vontade de vir para a escola [...] (Kássia, 12 anos, 6º ano).
Uma coisa que eu não gosto são as brigas na escola, porque na briga você vai
machucar a pessoa e não vai levar a nada [...]. Então é melhor conversar. Por causa
dessas brigas, gozações, colocar apelidos, humilhar, que eu falto muitas aulas, e por
isso estou muito atrasado na escola (Lino, 15 anos, 6º ano).
educacional geradas pelas discriminações sofridas, por um ambiente hostil, antiético, que não
permite aos sujeitos um desenvolvimento pleno e saudável como ser humano.
Frente a esse achado, avaliei como importante abordar outro aspecto que foi percebido
no período das observações nas escolas, ou seja, o medo de ir à escola, relacionado ao receio
de atos de bullying. Nesta pesquisa, é possível afirmar, a partir dos depoimentos dos
estudantes, que esses sentimentos de medo interferem em sua aprendizagem na escola:
Os colegas não respeitam a gente. Eu tenho muito medo de ser agredida aqui na
escola. Já fui agredida umas duas vezes. Uns caras maludos já me bateram e
pegaram as minhas coisas. Eu tenho muito medo (Ronaldo, 12 anos, 6º ano).
Ontem mesmo eu inventei que estava doente para não vir à escola por causa das
agressões que sofro. Eu não tenho gosto de vir à escola. Quando chego aqui me dá
dor de cabeça, tenho mal-estar por causa desse tal de [aluno] porque todo dia ele me
bate lá na minha sala e também na hora da troca de aulas (Pedro, 14 anos, 6º ano).
Algumas vezes eu já inventei estar passando mal, sentindo dor de cabeça, dor de
estômago para não precisar vir para a escola. Aqui acontecem muitas brigas,
violência. Já reprovei na 4ª e na 5ª série. Reprovei também no ano passado. Eu vou
fazer o provão no final do ano e sair da escola (Gilberto, 15 anos, 6º ano).
De fato, os depoimentos dos atores da pesquisa confirmam que eles por diversas vezes
já se utilizaram dessa saída para se ausentar do espaço escolar, já simularam problemas de
saúde e outros já pensaram até em parar de estudar por temor de ir à escola. O medo da escola
favorece ‘inventar’ problemas de saúde para não ficarem expostos aos atos de bullying no
ambiente escolar. Isso, por sua vez, afeta de forma impresumível o rendimento escolar e a
frequência às aulas. Além disso, na maioria dos casos, seus intimidadores são da mesma sala
133
de aula, fazendo com que os alvos creiam que mereçam o bullying e, em alguns casos, até
abandonem os estudos, conforme relatado.
Outro fator preocupante patenteado nas declarações dos estudantes e suas famílias é o
abandono escolar por causa do bullying. No período da pesquisa, busquei entender o que os
levam a desistir de seu processo educacional, questionando-os se já haviam pensado em parar
de estudar por medo de ir à escola. Os depoimentos revelam que a transferência, a desistência
ou abandono escolar ocorre como última opção para cessar com os atos de bullying:
Já mudei o meu filho de escola três vezes. Na escola que ele está hoje, desistiu no
ano passado quando começou a estudar por causa desse problema da violência e
voltou este ano. Ele sofre desde pequeno essa discriminação. Já conversei com a
coordenadora, mas não valeu nada. Os colegas o chacoteiam. Sempre xingam-no de
gordo, de orelhudo, batem na cabeça dele, puxam as orelhas. Em todo lugar que ele
vai vive a mesma situação [...] (Mãe de estudante).
Na escola que eu estudei antes de vir pra cá, colegas da minha sala me batiam todos
os dias. Chamavam-me de “feio”, “burro”, “pobre”. Um dia cheguei a casa com o
umbigo mordido, que ainda tem a marca, você pode ver, está branco o lugar. Lá
quebravam a minha lancheira, as vasilhinhas que minha mãe colocava o lanche e
quase todo dia elas voltavam para casa sem tampas. Eu chorava para não ir para a
escola, me escondia, fugia. Quando o menino me mordeu, minha mãe acreditou e
me tirou de lá. (Richard, 9 anos 3º no).
Aqui nessa escola também sou agredido pelos colegas. Eles me batem muito, não
gostam de mim, pegam meus materiais. Só que agora eu também bato, vou para
cima. Se não mexer comigo, não agrido (Richard, 9 anos 3º ano).
Um dia minha filha tinha febre e assim, ela não queria ficar na escola. No outro dia
ela tinha dor de barriga, no outro dia ela tinha dor de cabeça, e nisso ficou assim
várias vezes eu indo buscar porque ela estava sentindo mal [...] E sempre falava que
na sala tinha brigas [...] Hoje ela fica na escola, mas chora na sala, está com
dificuldades na aprendizagem. Isso interferiu na vida dela [...] (Mãe em entrevista).
Desde o primeiro ano que estudo na escola sempre tive alguém que mexia com a
minha vida. Na escola sempre implica comigo e um menino já me bateu com um
pedaço de pau que quase me matou. Xinga-me de “capeta”, sem que eu tenha feito
nada. Quando peço ajuda para a professora, ela me fala: vai resolver, vai resolver,
isso é seu [...] O diretor não faz nada, eu falo: Ele está fazendo isso, isso e, ele fala:
134
eu vou resolver [...], mas ele não resolve nada. Eu estou andando com uma pedra na
mochila, qualquer hora eu vou arrebentar a cabeça dele [...] (Lívio, 9 anos, 3º ano).
É preciso ainda considerar que o medo de ir à escola, a fobia escolar registrados nos
depoimentos dos estudantes poderão desencadear também o bloqueio dos pensamentos e do
raciocínio, estresse e sentimentos de vulnerabilidade, comprometendo o desenvolvimento
acadêmico e social. Guareschi (2008, p. 64) adverte que “a troca de escola, embora seja uma
solução encontrada para minimizar os confrontos oriundos do bullying, isto pode ser apenas
uma postergação do problema”. O educando alvo poderá agir com receio de que práticas de
bullying novamente venham a ocorrer, não se entrosando adequadamente ou ainda tornando-
se novamente vulnerável a práticas violentas. Isso leva, na visão de Ubiratan D’ambrosio
(2008, p.93), “o indivíduo que imigrou para fugir da violência, para buscar novas
oportunidades a tornar-se uma árvore sem raíz. Se bate um vento forte, ela tomba. O que
acontece com ele? Como fica seu passado e sua tradição? Com certeza afetados”.
Não restam dúvidas de que tal questão não pode ser subestimada. Essa insatisfação
com a escola é expressa no sentimento de discriminação e apatia vivida nas relações
interpessoais escolares e reflete na forma de expressar o que esse espaço significa. É o olhar
para si próprio e para o espaço onde interagem e encontrar as marcas da exclusão, da rejeição
e da desvalorização nas interações. Lembrar do que acontece na escola é primeiramente
lembrar do ser indesejado. Nesse sentido, se a identidade é proibida de ser, se as bases que
alicerçam a identidade do eu foram feridas, então se torna muito difícil construir uma
identidade fortalecida.
Nessa preocupação, Costantini (2004) argumenta que o medo, a dúvida sobre como
agir e a falta de iniciativa da escola em buscar alternativas de enfrentamento para os
comportamentos agressivos e inadequados acabam omitindo de seu papel enquanto instituição
humanizadora. Ao invés disso, promove um clima de silêncio, que acoberta a prevalência
desses atos e dá uma falsa tranquilidade aos adultos, com a crença de que os atos de violência
não estejam ocorrendo em seus espaços educativos. Diante do quadro que se apresenta, o
autor constata que:
Tais considerações são reforçadas pelos estudos realizados por Beaudoin & Taylor
(2006), os quais apontam que muitas crianças e adolescentes alvos de bullying são acometidos
135
A violência afeta a nossa saúde emocional, física, psicológica. Às vezes de tanto ver
agressividade, você acaba fazendo também. Por isso que tantos professores estão
saindo da sala de aula, apresentando atestado médico. Nossa categoria está doente
mesmo, desanimada, cansada, estressada (Professora em entrevista).
Essa violência é muito presente aqui dentro da escola, essa pressão psicológica, que
não é física, não se “bate” nos alunos, mas há uma pressão psicológica muito
grande, já presenciei gritos, maus tratos [...] Os alunos vêm com medo para a escola,
ficam armados. É uma violência que é da própria escola para o aluno, aqui tem uma
violência recíproca, é tanto por parte do aluno como por parte da escola.
Infelizmente, isso vai só virando uma bola de neve, porque o aluno agride, às vezes,
136
o professor ele já vem estressado, está lá com os seus problemas pessoais, e ele não
sabe se controlar, e aí a escola agride (Professora em entrevista).
cidadania. Portanto “é necessário um resgate da significação dos valores, por parte da escola e
família, para que o a pessoa possa construir sua identidade e desenvolver-se de maneira
saudável” (SCAPIN, 1999, p.135).
Para isso, faz-se necessário programar ações para melhorar o clima escolar, pois este
funciona como antídoto contra o bullying na escola. De fato, o clima escolar é reflexo do que
a escola é, do que ela tem em “essência”, tanto em relação ao trabalho desenvolvido como no
que diz respeito à natureza das relações estabelecidas entre os seus atores:
[...] o clima escolar é o coração e a alma de uma escola. É aquela essência da escola
que faz a criança, o professor, o diretor, os membros do corpo técnico-pedagógico
amarem a escola e aguardarem ansiosamente o próximo dia de aula. O clima de uma
escola pode fomentar Resiliência ou pode se tornar um fator de risco nas vidas
daquelas pessoas que trabalham e aprendem em um lugar chamado escola (DUPPER
E MEYER-ADAMS, 2002, p. 356).
12
Na Rede Estadual: “Sala do professor”; Rede Municipal: “Roda de conversa”. Rede Particular: Reunião pedagógica. Em
geral, essa formação ocorre nas escolas na última 6ª feira de cada mês. Fonte: Projeto Político Pedagógico.
139
Venho usando várias formas para refletir sobre a violência: Trago revistas, utilizo
filmes bons que trabalha a questão dos valores como respeito, o viver bem com o
outro. Conto histórias com fundo educativo, discuto o assunto com os alunos em
sala, mas por mais que a gente faça, nem sempre a gente consegue, não é suficiente,
porque eles aprendem lá fora, na internet, no orkut, no msn com os colegas e vai na
onda dos outros. Mas não podemos desanimar. Fiz esse desafio a mim mesma: tenho
que descobrir algo para motivá-los e transformá-los (Professora em entrevista).
Eu adotei o [nome], e ele vai ser um desafio para mim. Se eu não conseguir ajudar
esse menino, eu não vou conseguir fazer mais nada em minha vida como professora.
Eu tenho certeza que o problema, observando assim na sala e pátio, que o problema
dele é bem mais profundo, como diz o ditado o buraco é mais embaixo. Eu percebi
que ele reproduz toda a violência que ele já sofreu que talvez ainda sofra aqui na
escola. Quando eu conheci a mãe dele, não sei se a violência é só da parte familiar,
só sei que a mãe dele é uma pessoa sem paciência, agressiva, ela veio conversar,
falando alto, agredindo. Esses dias eu perguntei a ele, porque ele era assim? Ele
disse: Você acha que eu gostaria de ser assim? Eu não gostaria de ser assim, não [...]
Eu disse a ele: Você pode escolher em ser ou não, porque a gente responde com
agressividade, a gente também é agredido. Só sei que ele tem problemas sérios, tem
vivido muita violência, mas não consegue desabafar (Professora e entrevista).
Com essas palavras, a professora revela uma preocupação com os educandos devido às
influências negativas que hoje recebem de outros contextos, visto que elas podem ir contra a
educação de princípios éticos, como o respeito, a cidadania, a justiça e a paz que na escola se
busca “implementar”. Para Guareschi (2008), é importante atentar que a criança que vivencia
situações que não condizem com um desenvolvimento sadio e seguro pode estar suscetível à
internalização de padrões que favoreçam o desrespeito, a agressividade. Por isso, considera-se
de fundamental importância que os educadores implementem práticas de fato que favoreçam a
participação, o compromisso com a formação de valores éticos. Essa participação permite
estabelecer elos de confiança e diálogos respeitosos. O caminho da transformação apontado
por Freire (1996) requer colocar na vocação de educar a amorosidade e a persistência, a
capacidade de ultrapassar as adversidades encontradas na prática educativa.
A maioria da comunidade educativa atribui às atividades sócio-educativas e lúdicas,
tais como as acolhidas, os espaços formativos, grande valor na reprodução de um ambiente
140
Nossa escola mudou muito com as acolhidas todos os dias com os alunos e
professores na quadra de esportes. Ali fazemos orações, lemos a Bíblia, encenações
bíblicas, apresentamos danças, poesias com temas relacionados à paz, respeito,
amizade, alegria, amor, fraternidade. Estamos criando meios que reduzam a
violência. Queremos uma escola onde todos se sintam bem (Gestor escolar).
Esse depoimento revela que a equipe pedagógica escolar descobre aos poucos que não
é suficiente apenas transmitir o conhecimento formal planejado para o ano letivo para que o
processo de ensino-aprendizagem de fato aconteça. É preciso ir além, criar alternativas de
envolvimento, participação, descobertas de novas habilidades, engajamento nos projetos
escolares (GUARESCHI, 2008). Para Costantini (2004, p.109), “o bem estar dos estudantes
na escola passa também por aquelas iniciativas extracurriculares de caráter lúdico que
promovam o bem-estar escolar. Algumas dessas atividades podem ser: festas tradicionais, o
jornalzinho da escola, os torneios, os projetos de educação solidária”. Portanto, os diversos
problemas de violência que existem na escola que envolvem os estudantes e interferem no
aprendizado, inclusive o caso do bullying, podem ser orquestrados com o empenho e
participação de todos da escola, em especial dos professores.
Os professores reconhecem que a importância das estratégias de prevenção ao bullying
no espaço escolar não reside apenas na contribuição efetiva nas atividades programadas com
toda a comunidade educativa. Reconhecem igualmente que sua eficácia deve-se, em parte, ao
fato de elas serem aplicadas cotidianamente, aproveitando todos os momentos propícios para
se inserir uma reflexão sobre ele. Sendo assim, a reflexão sobre a prática do bullying pode,
também, ser caracterizada como um exercício contínuo de formação, o que é confirmado na
declaração de uma professora:
Quando algum fato se manifesta em minha aula, chego a interromper o tema que
estou trabalhando para discutir a questão da violência com os alunos. Não perco a
oportunidade, porque vejo isso hoje como algo de grande importância para
buscarmos uma solução para os conflitos agressivos, os comportamentos violentos
que vêm prejudicando a vida de muitos estudantes (Professora em Entrevista).
O que eu percebo que quando você é agressiva, eles perdem a confiança, e não te
falam nada. Busco formar com eles uma parceria através da amizade. Quando tem
um motim, eles me avisam: Olha, fulano vai pegar tal fulano, pedem sigilo total,
segredo absoluto, que só os envolvidos no conflito ficam sabendo. Vou lá e chamo o
aluno e converso. Por meio das falas deles, acabo desmontando o foco antes que se
manifeste a violência. Assino com eles um termo de compromisso no qual eles
prometem não vingar-se do outro na saída da escola (Inspetora de pátio).
Nesses casos, realço que a escola, sobretudo os professores têm a árdua missão
também de educar os sentimentos, as emoções e resgatar a autoestima de seus estudantes.
“Atenção e afetividade, em dose certa, contribuem para um desenvolvimento psíquico
saudável” (GUARESCHI, 2008, p. 80). Promover o diálogo e se interessar pelos assuntos que
envolvem a criança, pela sua realidade, “incentiva também uma aproximação entre as partes,
de forma a colaborar para um bom relacionamento” (Idem, p.82), possibilitado por uma
metodologia interativa.
Estar com os estudantes nos espaços comuns da escola é uma medida simples e que
traz segurança ao estudante vítima de bullying. É importante observar que as escolas que
142
dispõem de pessoas adultas ou grupos organizados para monitorar o intervalo do recreio têm
menos problemas de violência nesse período. Nas escolas pesquisadas, os agentes de pátio e
técnicos de limpeza são responsáveis por cuidar dos estudantes durante o recreio. Durante as
observações e entrevistas, confirmou-se a importância e a eficácia dessa presença para evitar
atos violentos, como demonstra a fala seguinte:
Eu fico cuidando, porque a gente vê crianças xingar o outro, brigar, bater, empurrar
para os banheiros. Já vi até criança que foi abusada no banheiro na hora do recreio.
Já separei muitas brigas. Eles nos respeitam, porque sabem que queremos bem a eles
(Funcionária em entrevista ).
[...] para “forçar” as meninas a beijarem, passar a mão. Tem meninos e meninas
atrevidos que forçam o ato sexual. Essa coisa de entrar no banheiro tanto dos
meninos quanto das meninas para dar um “amasso” rápido, fazem direto. Todo dia
no horário do recreio e no final do expediente eu faço ronda; de vez em quando pego
alunos beijando atrás da porta e coisa desse tipo. A gente tem que cuidar. Essas
crianças de doze e treze anos são fogo! (Agente de pátio em entrevista).
13
Dom Bosco (1815-1888). A filosofia de educação de Dom Bosco “[...] enumera alguns critérios muito válidos para todos
os tempos como causas do sucesso educativo. O afeto era a regra das relações educativas”. Cf. CASTRO, Afonso de.
Carisma para educar e conquistar. São Paulo: Salesiana, 2002, p. 183. “O sistema preventivo na educação dos jovens” In:
João Modesti: Uma pedagogia perene. São Paulo: Salesiana, 1984.
143
melhor. Gente mais gente, gente mais feliz, gente mais realizada. Gente com mais condições
de participar da construção coletiva desta sociedade” (p. 35).
As entrevistas apontam que nas escolas públicas há a presença de instâncias
colaboradoras na implementação de atividades sócio-educativas, com vistas a prevenir a
ocorrência de situações de violências na escola, em particular, os casos do bullying. Nesses
projetos, busca-se despertar nos educandos noções de solidariedade, de participação e
cidadania. O depoimento que segue faz menção aos diversos projetos desenvolvidos na
escola:
Firmamos a parceria com a Rede Cidadã da SEDUC, que atua em parceria com
várias Secretarias do Estado: da Justiça, do Esporte, da Cidadania e da Policia
Militar. Realizam as atividades no turno contrário ao escolar. Eles vão à casa do
aluno, conversam com a família e fazem o encaminhamento da criança para alguma
atividade lúdica, como futebol, música, teatro, fanfarra. Quando necessário
encaminham para o atendimento com psicólogo e com assistente social
(Coordenadora em entrevista).
14
O Educa Mais é uma proposta de inclusão escolar (gerenciada pela MEC/SECAD) que está sendo trabalhada entre os pais
e escolas e tem como missão contribuir com a promoção educacional, cultural de crianças, adolescentes, jovens e adultos em
situação de exclusão social para o exercício da cidadania e o desenvolvimento de suas capacidades na construção de uma
sociedade mais justa e igualitária. Fonte: Projeto Político Pedagógico.
144
Os depoimentos dos coordenadores e gestores acenam que a relação dialogal não deve
ser cultivada apenas com os estudantes no espaço escolar, mas também com suas famílias,
incentivando a participação delas no contexto escolar:
As famílias dos nossos alunos são muito presentes. Denunciam o que acham que não
está certo aqui na escola. Já denunciaram as condutas agressivas de professores e
alunos. É um ponto positivo, as famílias estarem dentro da escola, acompanhar seus
filhos, cobrar, denunciar. É incômodo, dá trabalho, mas é necessário. A gente
cresceu muito aqui por causa desse envolvimento delas e estamos conseguindo
diminuir a violência com essa parceria (Professores em entrevistas).
mesmo deve ser encarado como mecanismo gerador de inúmeras formas de violência. Nesse
sentido, Guareschi (2008, p. 75) afirma: “É urgente uma ação que realmente possa evitar o
bullying e mais: propor uma educação de paz e não de violência” nas escolas.
Nesse sentido, é possível reduzir a proporção de estudantes envolvidos em atos
violentos e o sentimento de insegurança, produzindo uma mudança nas atitudes e nos valores
relativos à violência escolar. Essa mudança contribui significativamente no processo de
ensino-aprendizagem, além de ser um caminho que permite elos de confiança e diálogos
respeitosos, afastando as ações violentas entre estudantes. Ao se estabelecer uma boa
convivência, naturalmente amplia-se o vínculo de afetividade, que na interação é fundamental
para obter um melhor desempenho escolar, bem como para que os estudantes sintam gosto
pela escola. Nesse aspecto, Paulo Freire ao prefaciar o livro de Snyders, “Alunos Felizes”,
afirma que “a alegria na escola fortalece e estimula a alegria de viver” (FREIRE in
SNYDERS, 1993, p.9). Além do mais, um ambiente sadio, com certeza, pode contribuir no
desenvolvimento de uma personalidade sadia, autônoma, poderá ainda estimular a iniciativa,
o assumir responsabilidades e o criar espaços de convivência e respeito ao outro.
A audácia em abrir verdadeiras perspectivas à alegria e à construção de um ambiente
seguro, leva a crer, a partir do imaginário de Guareschi (2008, p.79), que cabe à escola
produzir, no seu interior e nos processos de ensino-aprendizagem, práticas que contribuam
para a “redução do comportamento agressivo entre estudantes”. Para o autor, “[...] esses
projetos têm por finalidade a conscientização do problema e a promoção de um ambiente
escolar seguro e sadio, através da sensibilização dos educadores, da família e da sociedade
para a existência do problema”. Dessa forma, não é preciso transferir as esperanças para
outros lugares, como o Estado, voluntários. É a “partir da própria escola, dos fragmentos
felizes que ela deixa transparecer, que se pode começar a pensar como superar a escola atual”
(SNYDERS, 2001, p.12).
Eu fico de “olho” nas crianças na hora do recreio, cuido das portas dos banheiros,
porque a gente vê crianças xingar, brigar, bater e na algazarra empurrar para os
banheiros. Nós fechamos também as salas na hora do recreio por medidas de
segurança e cuidado para evitar pequenos furtos e roubos, namoricos, gravidez
precoce e até abusos sexuais. Depois do recreio retorno às salas, abrindo-as
novamente. Somos em poucas (pessoas) para cuidar de todos os locais e deixar os
alunos sozinhos seria uma irresponsabilidade muito grande (Agente de pátio).
Como se pode perceber, o depoimento da agente de pátio revela mais uma constante
nos procedimentos de vigilância e controle. A maioria do corpo técnico-pedagógico
reconhece que existem conflitos, fragilidades nas relações entre os estudantes, porém, não se
dá conta ou questiona as ações emergentes emitidas. Não se conjectura ações que contribuam
na minimização das atitudes incomunicáveis, automatizadas e imediatistas do educador.
Castro e Abramovay (2002) desafiam os educadores a se envolverem com inteireza como
profissionais, como pessoas na vida dos estudantes. Esses autores defendem ainda que é
preciso fazer com que a presença nas escolas ofereça lugares protegidos, o que significa dizer
147
Grande parte dos estudantes manifestou prazer em estar no ambiente escolar. Eles
esperam dos educadores, em particular, dos professores, algo mais que um serviço eficiente,
em que as tarefas claramente definidas se integram num conjunto coordenado e tecnicamente
preparado. A razão de sua presença será sempre educativa, formativa, já que os adolescentes
buscam vias que lhes permitam encontrar-se, aceitar-se e aceitar e compreender os outros.
Essa condição exige do educador empenhar-se também nas mudanças amplas e compreender
as questões sociais e culturais que afetarão o seu cotidiano.
Apesar disso, as observações dos estudantes apontam para a existência de deficiências
na ação educativa pela presença nas escolas. Apontam também, por isso, para a deficiência
em proporcionar ao estudante orientações para o processo de socialização em que ele possa
dar mais importância a cada membro de sua comunidade e a todas as pessoas, respeitando-as
em seus direitos (ADORNO, 1995). A “incompetência” e o “descompromisso” na formação
de pessoas mais humanas inibem a vivência de uma ética pessoal que determina o outro com
valor em relação à si próprio e rompem com o desenvolvimento da liberdade de exprimir-se,
quando corresponder à sua vontade, à indignação salutar que induz à denúncia, ao combate às
injustiças. Ou seja, deixa-se de possibilitar uma verdadeira socialização que é a possibilidade
humana que se desenvolve na direção da pessoa equilibrada e do ser humano pleno.
Quando se pensa nas formas de agressões que hoje se manifestam no ambiente escolar,
tais como discriminação, apelidos pejorativos, humilhações, se pergunta: Quem é responsável
pelo bullying? É o governo? É o pai [...] ou é a mãe? É a escola? Afinal, de quem é a
responsabilidade de redução das práticas do bullying?
De ordinário, o reconhecimento de que há discriminação, falta de respeito,
preconceito, racismo, e de que esses se materializam em tipos de tratamentos e apelidos,
convive com a minimização da gravidade do fato.
As informações da pesquisa revelam que a maioria do corpo docente e discente tem
por tendência naturalizar a prática do bullying. Esses depoimentos tendem a diminuir a
148
As brigas ocorrem por bobeiras. Ontem, o [nome] estava sentado ao lado da janela,
escrevendo, aí o outro colega que senta aqui no meio da sala foi lá e começou a
“brincar” com ele de bater, de chutar as pernas e riscou o caderno dele. Ele tentou
bater no colega, o outro bateu a cabeça dele na parede. Então, eles brigaram por
causa de brincadeira. O menor começou a chorar e eu fui obrigada a chamar a
coordenadora para dar uns bons conselhos para eles (Professora em entrevista).
Os alunos brigam por motivos considerados banais e variados, como bola, revista,
lugar na sala de aula, pisar no pé do outro, pegar uma borracha do outro, rabiscar o
caderno, jogar papel ou botar o pé na carteira do outro, tomar o boné, passar a mão
no cabelo (Professora em entrevista).
Eu acho que a gente perde muito tempo para poder dominar uma turma numerosa.
Na troca de aula, são quase 10 minutos para conseguir colocar a sala no “jeito”. Eles
não param, não ficam quietos e toda hora a gente tem que parar com o conteúdo,
com a explicação para chamar a atenção. Eu estudei, eu me formei, fiz
especialização pra vir aqui passar conhecimento científico e vejo que hoje está cada
vez mais difícil conseguir isso (Professora em entrevista).
Para dizer a verdade, eu não consigo ver tudo o que está acontece dentro da sala,
porque a gente fica ali na frente. Quando um aluno vem me pedir para trocar de
lugar eu falo: ‘Outra vez está me pedindo para mudar você! Meu caro, eu não posso
ficar toda hora mudando você de lugar. Fica complicado pra mim, porque a gente
perde um tempão com isso [...]. Tem que parar com o conteúdo, e não consegue dar
a aula programada. Às vezes a gente nem sabe qual é a razão porque querem mudar
de lugar, não é verdade (Professora em entrevista).
educação é para Freire (1970), uma manifestação instrumental da ideologia da opressão, o que
chama de alienação da ignorância, ou seja, o educador será sempre o que sabe, e os educandos
os que não sabem e, a rigidez dessas posições nega a educação e o conhecimento como
processos de busca, de oposição e transformação social.
Diante do desencanto dos nossos estudantes e da agressividade crescente, se os
docentes priorizam apenas no espaço da sala de aula a transmissão de conteúdos, abrir-se-ão
possibilidades para que o estudante praticante de bullying encontre liberdade para infligir os
seus colegas, já que não visualiza nenhuma ação efetiva que possa trazer alguma reprimenda
aos seus atos. Contrário a esse comportamento, nota-se no estudante que é alvo. Este pode
sentir que seus sofrimentos e necessidades não foram considerados por parte da escola, uma
vez que não encontra apoio em seu professor e muito menos nos gestores para romper com as
situações de bullying. Assim, o ciclo de violências é alimentado quando se desconsidera que
“ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas”
(GADOTTI, 2002, p.7). É preciso dominar a arte de reencantar, de despertar nas pessoas a
capacidade de “engajar-se e mudar” (p.33), o que consequentemente contribui para a redução
do bullying entre os estudantes e, acima de tudo investe no resgate de princípios éticos, como
justiça, respeito, solidariedade na convivência escolar quanto fora dela.
Na pedagogia de Freire, reside, portanto, uma prática educativa com um profundo
respeito à autonomia do sujeito em constante processo de formação da consciência de si a
partir dos outros e com suas diversidades, neste sentido, fica claro o caráter ético da educação.
A ação dialógica e a conscientização importa para o pensamento freireano, assim como,
respectivamente, a práxis e a epistemologia, uma convergência para a participação do sujeito
da aprendizagem no processo de construção do conhecimento. O construtivismo de Freire
denota não só como todos podem aprender, como Piaget, mas que todos sabem alguma coisa
e que o sujeito é responsável pela construção do conhecimento e pela ressignificação do que
aprende (GADOTTI, 2000)
Grande parte dos estudantes expressou que muitas vezes a escola não se importa com
as agressões que acontecem entre eles:
Lá na sala de aula, todos os dias um colega me bate, ri da minha cara. Para acabar
com a gracinha dele, eu trouxe um canivete para fazer medo [...] mas se ele me
batesse de novo como ele faz todo dia, eu iria dar nele. A professora viu a arma,
pediu que eu entregasse para ela e me mandou conversar com o diretor. Com o
menino ela não fez nada. O diretor me repreendeu e disse que isso era só brincadeira
entre nós, me mandou voltar para a sala e no outro dia era para trazer a minha mãe.
Ele também não fez nada para o colega (Estudante em entrevista).
151
Quando as professoras mandam criança aqui para minha sala, eu falo: calma meu
anjinho, calma! Não adianta brigar, se bater. Não fica se importando com isso, pra
que dar atenção a essas besteiras. Se você não ligar pelo que ele te fala, ele vai
cansar e não vai mais te incomodar (Coordenadora em entrevista).
Ontem o [nome] da 5ª série veio reclamar que ficam zoando dele porque ele é obeso.
Disse a ele: E daí, quem tem a vê com isso? Não liga [...] não leva em conta meu
camarada. Vai isola, esquece, ignora ele [...] (Professora em entrevista).
Sinceramente, muitas vezes eu faço de conta que não vejo, não escuto [...]. Está
difícil ser professor hoje. Tem algumas turmas, que a gente passa o tempo inteiro
chamando a atenção, separando brigas. Porque, pense bem [...] se eu for tomar uma
atitude por cada coisa que acontece na sala, a gente não dá aula, não faz mais nada.
Nos dias que você esteve observando a sala, você deve ter percebido isso. Muitas
brigas acontecem por bobeiras, coisinhas [...] Sou consciente que não é o certo, mas
é a única forma que encontrei para conseguir dá aula. Infelizmente não vejo outra
saída para esta questão (Professora em entrevista).
Essa postura que parece hoje ser assumida por uma grande maioria de professores no
espaço escolar é também evidenciada pelo depoimento que segue: A maioria dos professores
152
não está nem aí para brigas, nem aí para encrencas, deixa passar, só faz alguma coisa
quando vê que a coisa está feia, entendeu. O professor finge que não vê, fica tranquilo, sem
tomar nenhuma posição (Aline, 14 anos, 1º ano).
O espaço pedagógico por excelência se mostra quase inexistente ao ser abordado sob a
ótica do fenômeno bullying. É de fundamental importância que os professores busquem ter
conhecimento junto aos estudantes sobre a realidade que circunda suas relações. Os
professores, em muitos casos, que possuem a árdua missão - não apenas eles, mas de grande
importância - da formação humana, social, cultural e ética do ser humano, se mostram
totalmente apáticos e indiferentes à realidade vivida por aqueles que fazem parte do mundo
bullying. Em muitos casos, “fazem de conta que não veem, não escutam”, e isso certamente
não minimiza o problema. Ao contrário, contribui para que ele se perpetue, criando um ciclo
vicioso entre queixas de estudantes e omissões dos professores: “a negação ou a indiferença
da direção e dos professores pode gerar desestímulo e a sensação de que não há preocupação
com a segurança dos alunos” (LOPES, 2005, p. 01). Dessa forma, assim como a escola pode
ser entendida como um espaço de promoção do conhecimento e aprendizagem, como uma via
para o mercado de trabalho e inserção na sociedade, também pode ser entendida como um
lugar de exclusão social, de dor e sofrimento causados por atos de violência e discriminação
(ABRAMOVAY et al, 2006). Diante disso, Costantini (2004, p.16) chama a atenção para a
responsabilidade que os adultos têm para com a educação, como
do bullying entre os estudantes. Como diz Francisco Imbernón (2000, p. 27): “O objetivo da
educação é ajudar a tornar as pessoas mais livres, menos dependentes do poder econômico,
político e social. A profissão de ensinar tem essa obrigação intrínseca”.
Os depoimentos dos estudantes externalizam que como alguns professores, algumas
coordenadoras também agridem e ofendem verbalmente, vitimando os estudantes na
“mediação” dos conflitos. Revelam ainda que se sentem incomodados com esse tipo de
tratamento que recebem e tecem críticas, já que sabem que este é um comportamento que não
se espera jamais de alguém que é responsável pela orientação e cuidado com eles:
A coordenadora faz a gente sentar na frente dela na sala dos professores e grita, fala
alto que o aluno não quer saber de nada, não quer estudar, chama de raça ruim, de
troço esquisito, de sem-vergonha, descomprometido, preguiçoso. Fala que se não
quiser estudar, deixe o lugar para outro. Toda a escola fica sabendo pela altura que
tudo isso é falado. É um “bafão” enorme [...] (Jânia, 12 anos, 7º ano).
Segundo Abramovay (2006, p. 356): “Nem a postura omissa e nem a repressão por
parte da escola, através do controle excessivo de lugares e comportamentos, contribuem para
o efetivo enfrentamento dos casos de violência e de outras situações que requerem algum tipo
de ação escolar”. Contudo, é nesses espaços que se fortalece o autoconceito e forma a própria
identidade fortalecida. Investir na prevenção, em qualquer aspecto que seja, é valido para
proteger quem sofre com o bullying, para alertar a sociedade sobre a temática ainda pouco
estudada e para coibir que ações violentas se disseminem (GUARESCHI, 2008).
É importante sublinhar que os conflitos existentes entre os estudantes são inevitáveis.
Eles fazem parte da natureza humana, da diferença própria de cada um (VINHA &
TOGNETTA, 2008). Como não é possível evitar o conflito, é necessário que a escola pense
em uma maneira construtiva e solidária para mediar essa questão tão séria. Espera-se que não
seja da maneira da violência, porque “quando a escola reprime, oprime, ignora ou joga para a
rua as manifestações violentas, também está gerando violência” (COSTA, 2009, p. 12). Então
se pensa na cultura de paz, nos princípios éticos, como respeito, solidariedade como uma
alternativa, na resolução não violenta de conflitos no ambiente escolar.
O depoimento que segue sobre a opção em transferir o estudante de uma escola à outra
para cessar com as situações bullying também aponta para a inexistência de políticas públicas
e educacionais que dêem respaldo às escolas no enfrentamento das formas de violência que se
manifestam no interior dela, entre elas o bullying. Acena, além disso, para a omissão da
responsabilidade junto ao estudante e à sua família, que na ausência de meios formais,
desenvolve estratégias emergentes, que nem sempre são benéficas para todos os envolvidos:
154
[...] A escola foi muito insensível com a dor de minha filha [...] Ela às vezes
decepciona muito [...]. Na hora que eu cheguei à escola para conversar com a
coordenadora, ela e a professora de minha filha falaram assim: ‘infelizmente sua
filha apanhou, e a gente não pode fazer nada’. Pôxa vida, ela estava lá apenas três
meses e ninguém merece isso! Somente oito crianças em uma sala e chegar toda
ferida e arranhada em casa. Que escola é essa? Qual a atitude da escola diante dessa
situação? Isso foi a gota da água. Minha filha não queria ir mais à escola. Ela estava
sentindo dor, sentia discriminada, era proibida de ter amizade, sentia fora do
contexto. Nós não podemos discriminar [...]. Tirei minha filha de lá e colocou em
outra escola, perto de casa e eu pude acompanhar mais de perto. Também eu estava
com medo de acontecer de novo isso com ela. Sabe [...] a gente acaba passando essa
ansiedade. Então [...] eu ficava, assim [...] preocupada (Mãe em entrevista).
Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o agente
do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele
inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser
percebido em sua manifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se
torna relevante através da palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que
fez, faz e pretende fazer (ARENDT, 1981, p. 191).
A escola não está ajudando muito, pelo contrário, está destruindo aquilo que tento
fazer em casa. Na escola, meu filho apanha todo dia, volta chorando, com seus
materiais rasgados e diz que os professores não escutam quando ele reclama da
violência. Falam para ele “você que tem que cuidar da sua vida, isso é problema
seu”. Acha que esses comportamentos são apenas brincadeiras (Mãe em entrevista).
famílias têm exemplos concretos na própria vida das influências negativas dessas práticas
agressivas. As palavras de Guareschi são esclarecedoras nesse sentido:
alguns familiares optam em trocar o filho de sala ou de professor e, em último caso, transferir
a criança envolvida como vítima ou agressor para outra instituição escolar.
Passos (1994, p. 197) em sua pesquisa de Mestrado15 constatou que a “participação”
não ocorre de fato, ou seja, “a participação nas escolas de Aguaçú apresenta-se com sua face
mais comum a da não-participação”. No entanto, transposta à realidade educacional
pesquisada, essa realidade é presente e, com isso, concordam muitos depoimentos das
famílias que vivenciam a violência dentro das escolas. O pensamento que povoa o imaginário
do autor é que quanto menor for essa participação, o envolvimento, maiores são os problemas
nas instituições de ensino no que se refere ao isolamento, à incapacidade para o diálogo, às
relações perpassadas pelas formas de poder, submissão e violência.
Os depoimentos apontam que existe uma diferença entre as famílias quanto à relação
que estabelecem com os membros do corpo técnico-pedagógico, em particular, com os
professores. Nesse conjunto, frente aos depoimentos é possível destacar dois grupos:
Primeiramente, há aquelas que procuram todos os meios para compreender as reclamações
emersas da parte da escola com relação aos comportamentos inadequados dos filhos,
procuram ainda perceber as mudanças repentinas dos comportamentos em casa, buscando
descobrir o que está gerando essas condutas agressivas. Estas geralmente divergem e
questionam as afirmações dos profissionais da escola, sobretudo dos professores, conferindo
as reações apresentadas pelos filhos dentro da escola e fora dela, tentando encontrar uma
justificativa para tal questão e buscando ajuda para mediar os conflitos. As ações dessas mães
revelam a importância e a precedência que conferem à boa convivência e qualidade do
desenvolvimento da aprendizagem de seus filhos. Nesse grupo, há aquelas que são submissas
ao parecer da escola, povoando o seu imaginário que o problema dos comportamentos
indisciplinados ou violentos esteja diretamente relacionado às atitudes do filho, o qual não
consegue se adaptar à nova realidade ou que apresenta mesmo dificuldades de aprendizagem e
interação.
O segundo grupo é composto por famílias que frente às queixas a respeito do
comportamento dos seus filhos são capazes de analisar criticamente os problemas enfrentados
por seus filhos na escola, mas optam pelo silêncio, pela omissão, temendo marcação na
relação com os colegas, com os professores se apresentarem alguma queixa. Nesse grupo,
ainda se destacam aquelas famílias que desconhecem o sofrimento que passam os filhos, são
apáticas e indiferentes.
15
PASSOS, Luiz Augusto. AGUAÇÚ – Cotejo entre dois processos educacionais: Casa e Escola. Estudo de um polo
escolar numa comunidade tradicional da Baixada Cuiabana. Dissertação de Mestrado. UFMT, Cuiabá, 1994.
160
Retrato 1
Rita tem 63 anos, natural de Diamantino. É negra, evangélica, viúva e teve uma única
filha que se suicidou ainda jovem dentro de sua própria casa. Revela que a perda da filha
tragicamente abalou muito nossa família. Segundo ela, a filha não tinha emprego fixo, era
161
alcoólatra. Não havia concluído o Ensino Fundamental. Para sobreviver fazia tapetes de
crochê para vender. O esposo de Rita era vendedor de roupas e foi assassinado quando jovem.
Sua filha teve vários companheiros, mas não chegou a se casar com nenhum. Desses
relacionamentos, ela teve quatro filhas que foram criadas por Rita. Hoje a mais velha está com
19 anos, é casada, tem um filho e ainda mora com a avó. Terminou o Ensino Médio, trabalha
de balconista. Duas netas interromperam o estudo na 5ª série e hoje cursam EJA à noite.
Rita expressa que o envolvimento da neta mais nova com um grupo de colegas de sala
de aula a levou a retirá-la da escola do bairro e enviá-la à casa de sua irmã, em Várzea
Grande. Conta que a neta vem apresentando condutas indisciplinadas e dificuldades de
aprendizagem na escola. A entrevista revelou que Rita faz muito esforço para que suas netas
continuem frequentando a escola: aconselha, encoraja, preocupa-se com a vida escolar delas.
Ela foi a primeira de cinco irmãos: três mulheres e dois homens. Com dois anos, foi
para Rosário Oeste, morar com sua tia, com quem viveu até seu casamento. Trabalhava na
roça. Em 1982, mudou-se para Cuiabá, firmando residência no bairro Pedra 90 onde está há
17 anos. Já trabalhou como empregada doméstica, faxineira, lavadora de roupas.
Recorda que é filha de pais analfabetos. Diz que eles nunca estudaram, trabalhavam na
roça. Assim como seus pais, ela teve poucas chances de estudar. Frequentou a escola até a 2º
série, não lê quase nada e assina mal o seu nome.
A renda mensal de Rita, na época da pesquisa, resumia-se, no dizer dela, ao benefício
da Assistência Social, Auxilio Doença. Revela que tem sérios problemas de saúde: coluna,
osteoporose, reumatismo. Não conseguiu ainda se aposentar. Recebe ajuda da Igreja onde
participa e uma cesta básica mensal do Colégio São Gonçalo, há quatro anos. Para auxiliar na
despesa, Rita vende em casa salgadinhos, geladinho e cosméticos Avon.
A casa onde Rita e seus netos moram é própria, feita de alvenaria. A pintura estava
soltando em consequência do desgaste provocado pelo tempo. A cobertura era de telha eternit,
chão de concreto grosso, assentado alguns cacos de cerâmica de cores brancas e amarelas,
porém já quase todo esburacado. Ao todo, eram três peças: a sala, cuja mobília era composta
por dois sofás desgastados, já em estado impróprio para uso devido aos inúmeros orifícios. No
quarto, uma cama de madeira. Sobre a cama havia um colchão de espuma, coberto por um
lençol; um guarda-roupa fechado bem usado e ao canto, umas caixas cobertas com panos, nas
quais eram colocadas roupas delas. Na cozinha, uma mesa de bar, de aço, três cadeiras, um
fogão a gás, um armário semifechado com alguns vasilhames e uma geladeira. Havia energia
elétrica, sanitário e água encanada. Revela: tudo que tenho foi ganho da Igreja e da
comunidade aqui do bairro.
162
Expressa que em sua casa, pela carência de recursos, há apenas uma cama. As duas
netas dormem em um colchão desgastado no chão, com exceção da neta casada que tem seu
quarto. Apesar das condições de precariedade em que sobrevive, pois falta até o necessário
para a sobrevivência, diz ter muita fé que as coisas vão melhorar.
Retrato 2
Julio nasceu e foi criado em Cuiabá, tem 44 anos, é evangélico. Frequentou a escola
até a 6ª série, sabe ler e escrever. Interrompeu o estudo pela necessidade de trabalhar para se
sustentar. A esposa frequentou a escola até a 4ª Série. Tem 37 anos.
Exerce a profissão de pedreiro. Já trabalhou em diversas cidades do interior do Mato
Grosso e em outros estados brasileiros. Nasceu em uma família de 12 irmãos. Das sete irmãs,
duas se formaram como professoras, três estudaram até a 8ª série, duas concluíram o Ensino
Médio. Dos homens, dois estudaram até 3ª série, dois até 5ª série e um até 4ª série. Quase
todos são pedreiros. Seus irmãos e irmãs são casados e têm filhos.
Revela que em 1988 passou a morar junto com sua esposa na casa dos seus pais, em
Cuiabá. Recorda que foi sofrida para eles a convivência na casa dos seus pais. Havia muitas
brigas, intrigas, sofrimentos. Deixou o lar familiar, quando sua mãe comprou-lhes uma casa.
Já tinha um filho nessa época.
Em 2006, com muito custo comprou sua casa própria. Esta é de alvenaria e possui:
sala, cozinha, sala de comércio e varandas. A mobília era composta por quatro camas, guarda-
roupa, mesa, sofás, cadeiras, geladeira, televisão, vídeo, DVDs. O banheiro é dentro de casa.
Possui energia elétrica, água encanada.
Seu Júlio está desempregado há muito tempo. A esposa trabalha fora, com carteira
assinada e recebe um salário mínimo. Para ajudar nas despesas familiares, ele comercializa
em sua própria casa refrigerantes, doces, balas, bolachas. O cuidado dos filhos e da casa
também fica sob sua responsabilidade. Diz que solicita ajuda dos filhos nas tarefas ordinárias
caseiras, como limpar a casa, lavar louça, a fim de educá-los para a vida.
Revela com muita dificuldade e sofrimento que sua família foi tragicamente afetada
pela morte cruel de seu filho de 15 anos há um ano por envolvimento com más companhias,
com drogas. Expõe que, além desse, teve mais três filhos: um está com 11 anos, outro com 9
anos e o menor, de quatro anos que frequenta a Educação Infantil. Revela que seus filhos
maiores apresentam defasagem escolar significativa devido aos vários problemas de
163
indisciplina e violência vivenciados no espaço escolar. Por causa disso, por solicitação da
escola os filhos passaram por várias sessões com a psicóloga e tratamento de saúde.
Nas várias vezes que conversei com seu Júlio na escola, percebi que ele é muito
tristonho, não tem alegria. As observações também revelam que seu relacionamento com o
filho mais novo é às vezes muito severo e exigente. Acompanha-o todos os dias à escola.
Participa das reuniões e comparece à escola sempre que é solicitado.
Retrato 3
Miriam tem 35 anos. Nasceu em Diamantino. É negra, católica, casada e tem um filho
de oito anos, que estuda o 4º Ano. Mudou-se para Cuiabá quando pequena. Viveu com sua
família até os 12 anos de idade. Após esse tempo, morou sozinha, com sua irmã ou em casa
de família, trabalhando como doméstica.
Declara que sua vida estudantil foi bastante irregular. Fez o Ensino Fundamental e
Médio em nove escolas estaduais, pois era conforme o local do emprego. Sua irmã mais velha
concluiu o Ensino Médio; duas só concluíram o Ensino Fundamental.
Diz que é muito agradecida à sua professora da 4ª série que a ajudou muito. Sua
família era muito pobre e morava com a avó. Relembra que sofreram privação de
alimentação, roupas, medicamentos, materiais escolares para o estudo e carinho. Diz que esta
professora gostava muito dela. Comprou-lhe cadernos, livros e roupas e que foi ela quem a
tirou das ruas.
Revela que é segunda de oito irmãos, sendo cada um de um pai. Sua mãe teve vários
companheiros. Nunca foi à escola, é analfabeta. Seu padrasto também não sabia ler e nem
escrever. Diz que conheceu seu pai quando tinha 15 anos. Também seu pai é analfabeto.
Afirma também que tem uma relação marcada por conflitos com sua mãe em
consequência dos maus tratos sofridos na infância. Testemunha que o ambiente de sua família
foi sempre hostil, marcado por muitas brigas por influência do alcoolismo.
Recorda que sua vida na escola foi muito dolorosa desde a primeira série. Foi
discriminada, humilhada pelos colegas. Diz também que seu filho já vivenciou situações de
violência e desrespeito onde estudou, sendo o motivo que a levou a transferi-lo de escola.
Hoje ela tem sua casa própria. Suas irmãs também têm suas casas, seus filhos e
esposos; são donas de casa e lavadoras de roupas para fora. Estão sempre se ajudando
mutuamente: Na hora da necessidade, uma ajuda à outra. A casa onde Mirim mora, assim
164
como as de todas as suas irmãs, possui o necessário, tanto estruturalmente, quanto em termos
de mobília. Desfrutam de banheiro interno, água encanada e energia elétrica.
Mirim é concursada como técnico de nutrição pela Prefeitura de Cuiabá desde 1999.
Possui oito anos de concurso. Já exerceu sua profissão em duas escolas municipais. Na escola
atual, está há dois anos. Diz que já trabalhou como babá, ajudante em padaria, zeladora,
doméstica, diarista, lavadora de roupas. O esposo trabalha em uma fábrica de sacos plásticos à
noite. O rendimento do trabalho dos dois dá para o sustento da família.
Assevera que é muito enérgica com seu filho. A relação dela com ele é de cuidado e
cobranças: Exijo ordem e respeito. Em sua casa há horário para tudo. Observei que nela
existem vários livros, gibis, DVD pedagógico. Acompanha seriamente a aprendizagem do
filho. Há uma combinação entre ela e o esposo: ela ensina português, artes e história e o
esposo, matemática, ciências. Quando os dois não entendem a atividade, recorrem à ajuda dos
sobrinhos que moram perto e se encontram mais adiantados nos estudos. Trabalha na mesma
escola e no período em que estuda o filho. Participa das reuniões na escola. Esta relação de
acompanhamento influencia positivamente a escolarização do seu filho. Miriam o ingressou
na escola aos quatro anos de idade, na Educação Infantil e alimenta esperanças de oferecer a
ele oportunidades de chegar a uma faculdade, conquistando o que ela não teve. Observei nas
diversas vezes que visitei sua casa, que ela e seu esposo fazem de tudo para garantir as
condições de permanência do filho na escola.
Miriam gosta de rir e de falar. Diz: vejo-me como agressiva, mandona, estressada,
impaciente. Eu era igual um “sargentão”. Buscava resolver as coisas no grito. Quando me
estressam ainda quero derrubar a casa, quero bater, quero quebrar tudo. Já bati inúmeras
vezes no meu filho. A primeira vez que bati nele ele era bebê. Arrependo-me muito. Diz que
não tem paciência para educar. Revela que possui temperamento forte e agressivo em casa e
também já se envolveu em confusões em vários espaços educativos onde atua.
Revela que ela e seu esposo fazem terapias com a psicóloga. Segundo ela, ele também
tem uma história marcada por maus tratos e pela agressividade em sua família. A mãe batia
muito nele. Por isso, ele saiu de sua casa quando adolescente e passou a viver com ela aos 16
anos, ela tinha 23 anos de idade. Vivem juntos há 11 onze anos.
Miriam e seu esposo possuem um envolvimento significativo com a Igreja onde
participam. Coordenam grupo de casais, são catequistas e participam de outros movimentos.
Atuam há mais de oito anos. Têm uma fé muito sólida.
165
Retrato 4
frequentou a escola até a 1ª série. Ela tem três irmãos: um, frequentou a escola até a 5ª série; o
outro, até a 7ª série e o terceiro concluiu o Ensino Médio, é Conselheiro Tutelar.
Revela que seu filho vem enfrentado situações de violência na escola desde o 1º ano
escolar. Diz que tem dia que ele não quer ir à escola por medo, pânico, porque quase todos os
dias ele apanha na escola, tem seus materiais roubados, quebrados, pisados.
Mara também declara com muita emoção e sofrimento que em sua relação conjugal
vivenciou situações de agressividade, de violência e ainda hoje sofre com ameaças,
xingamentos, humilhações. Nas três vezes que visitei Mara, percebi que ela é muito tristonha.
Além de triste, ela apresenta aspecto depressivo, dificilmente dá um sorriso. Quando o faz,
parece que evoca uma realidade de medo, solidão e desilusão.
Retrato 5
Ângela tem 34 anos, nasceu em Alto Paraguai/MT. É negra, evangélica. Veio para
Cuiabá com 14 anos, tentar uma vida melhor, fixando morada no bairro Pedra 90. Ela teve
três companheiros e desses relacionamentos teve seis filhos: uma menina, hoje com 19 anos,
casada e cinco meninos nas seguintes idades: 16, 14, 13, 11 e três anos. Ela mora com os
filhos.
Em Cuiabá, trabalhou em casa de família como doméstica, em lanchonete, restaurante.
Sua profissão é cozinheira. Em sua casa, a renda não é fixa. Está desempregada há três anos.
Diz que faz bicos para garantir a sobrevivência e comercializa em casa e no bairro bolo de
arroz, de mandioca, de coco, pão caseiro, chocolate, cremosinho. Revela que recebe o auxílio
Bolsa Família e também ajuda das pessoas dos bairros e amigos em roupas, calçados. Nas
entrevistas, ela declarou que a extrema carência está lhe deixando depressiva. Segundo ela,
esse ano não conseguiu comprar nem os materiais escolares para os filhos.
A casa onde habitam Ângela e seus filhos é própria, feita de madeira pintada de cor
preta. Diz que o que tem em seu interior foi ganho: uma cama, três colchões velhos, guarda-
roupa, um sofá encapado, televisão, aparelho de DVD, um ventilador de teto, um fogão, uma
prateleira para depositar as vasilhas. O chão é piso queimado. Possui quatro cômodos: sala,
cozinha, dois quartos e banheiro externo. Desfruta de água encanada e luz elétrica.
Ângela frequentou a escola até a 5ª série. Retornou em 2008, cursando o EJA da 6ª a
8ª série na escola do bairro. Está animada, pretendo chegar à faculdade. Ela tem mais três
irmãs. Diz que elas são analfabetas, casadas, donas de casa, esposos e filhos.
167
As visitas que fiz à casa de Ângela revelaram que ela tem uma boa relação com seus
filhos. Isso é facilitado pelo seu temperamento alegre e jovial.
Revela que um dos seus filhos enfrenta sérios problemas de agressividade e violência
na escola. Diz que já precisou trocá-lo de escola mais de três vezes, mas é sempre chacoteado,
perseguido pelos seus colegas e até mesmo, por alguns professores por ser obeso. Em todo
lugar que ele vai, vive a mesma situação de exclusão, de indiferença.
Retrato 6
Silvia tem 35 anos, natural de Cuiabá, é branca, casada, católica. Tem três filhas: a
primeira está com 11 anos, a segunda com 7 anos, e a última nasceu recentemente. Seu esposo
nasceu em São Paulo. Tem 38 anos.
Conta que quando se casou construiu uma casa no quintal da casa da sua sogra, mas
não deu certo. Nesse período, ela e o esposo trabalhavam como professores de matemática em
uma escola particular. Em 2000, seu esposo já formado em Engenheiro, foi contratado pela
Cemat, como Engenheiro Eletricista em Barra do Garças. Retornaram à Cuiabá em 2004.
A renda familiar garante o sustento da família. Ela leciona em uma escola particular
para as séries: 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Iniciou a carreira de magistério com 18
anos, perfazendo hoje 17 anos de magistério.
A casa onde mora Sílvia é própria e possui uma estrutura que oferece conforto e bem
estar: Tem duas salas, três quartos, cozinha, copa, varandas em torno da casa, dois banheiros,
água encanada, luz elétrica, linha telefônica, computador. Desfrutam de uma mobília
confortável e de um automóvel para o transporte da família. A casa é pintada de cor bege e
laranja, com jardim na frente. O piso é de cerâmica. Para ajudar nos serviços de limpeza da
casa conta com o auxílio de uma jovem três vezes por semana.
Ela é a mais velha de três irmãos. Duas irmãs: uma formada em Enfermagem e a outra
é funcionária da Polícia Civil. O irmão só concluiu o Ensino Médio. Seus pais moram em
Cuiabá, concluíram o Ensino Médio. Os pais do esposo de Sílvia nasceram na Itália e vieram
para o Brasil tentar uma vida melhor. Não estudaram. São analfabetos.
Entre as famílias desta pesquisa, esta entrevistada é a que tem uma melhor condição
econômica e o nível escolar mais elevado. Quando criança estudou regularmente da 1ª à 4ª
série em uma escola estadual. Mudou-se para Cáceres e concluiu o Ensino Fundamental no
168
Colégio das Irmãs Azuis. Retornando à Cuiabá, fez o Ensino Médio na Escola Técnica
Federal. Em 1995, ingressou no Curso de Biologia na UFMT, formando-se em 1998.
Sílvia é muito enérgica. As visitas que fiz à sua casa e à escola onde trabalha
revelaram que ela tem um relacionamento aberto, alegre com as filhas, porém exigente. Fez
opção de lecionar somente quinze horas/aulas na escola para se dedicar e acompanhar as
filhas. Na época da visita, estava de licença maternidade.
A própria profissão de Sílvia já motiva o cultivo da leitura e escrita. Na época da
pesquisa, vi que, além dos livros didáticos e apostilas utilizadas no colégio, há jornais,
revistas, dvds de filmes infantis pedagógicos. Havia também livros para leitura e pesquisas
escolares. Ela é filha de uma família de professores: sua avó paterna foi professora em
Cuiabá; sua tia, seu tio e seu padrinho/tio foram efetivos do Estado. Atuaram como
professores, diretores em várias escolas públicas estaduais (aposentados).
Declara que uma de suas filhas já sofreu e sofre ainda com a indiferença e
discriminação na escola. Diz que já precisou mudá-la de escola uma vez. O motivo, diz ela,
que a filha tem um defeito de nascença, o pé é torto, é obesa, tímida e manca. Afirma que
busca incentivar muito a filha a enfrentar de frente as situações de humilhação e violência na
escola: Ela não pode ser vítima a vida inteira da violência. Já está mais segura de si, partilha
seu sofrimento, busca ajuda. Tinha ânsia de vômitos, febre, diarreia, crise asmática.
Sílvia e seu esposo têm um grande envolvimento com a Igreja, ministram palestra para
noivos, coordenam um grupo de quase 40 jovens, são Catequistas do Sacramento do Crisma.
Atuam há mais de 10 anos. Possuem uma fé muito sólida. Havia na sala de entrada um
altarzinho com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e imagens de outros Santos. Revela:
tenho muita fé em Nossa Senhora. Ela é meu tudo: meu esteio, minha base, sabe. Depois de
Jesus é Ela.
***
É possível afirmar frente às declarações que os pais, em geral, passaram a viver juntos
(na casa dos pais de um dos cônjuges ou em casa de aluguel) ou casaram-se muito jovens,
com idade entre 14 e 25 anos. Nessas famílias, o número de filhos varia de um a seis filhos
com a idade entre dois meses a 19 anos. Já o nível de escolaridade dos pais é bastante
diversificado: a maioria possui o ensino Fundamental Incompleto. Nestes casos, há alguns que
frequentaram a escola nas séries elementares, mas conseguiram desenvolver a prática da
escrita e da leitura, são analfabetos ou semianalfabetos, ou seja, mal assinam o nome. No
169
conjunto das famílias entrevistadas, apenas uma mãe concluiu o Ensino Médio e outra cursou
o ensino superior. A idade dos pais varia de 26 a 63 anos de idade.
A descrição dos retratos das famílias aponta diferentes configurações familiares:
monoparental: mãe e filhos; família nuclear: pai, mãe e filhos; e família recomposta: avó e
netas. Aponta ainda que a maior parte delas vive uma união conjugal estável, consistente,
apesar dos desafios. Porém, algumas famílias vêm enfrentando problemas no relacionamento,
mas acreditam que as dificuldades são cíclicas, que tendem a se estabilizar.
Esse tipo de organização familiar nuclear patenteado no maior número dos retratos
supracitados deve ser compreendido dentro de um processo histórico, que implica dinâmicas e
mudanças de valores, ideias e regras transmitidas e moldadas em seu interior. Na sociedade
atual, apresenta-se como “lugar de troca, de construção de personalidade e, ao mesmo tempo,
lugar de conflitos e tensões” (WAISELFISZ, 1998, p. 70).
Nesta pesquisa, metade das famílias expressou a existência de violência no núcleo
familiar. Elas narram histórias trágicas envolvendo agressões físicas, verbais, psicológicas
sofridas quanto na relação com os filhos tanto no relacionamento conjugal, provenientes de
maus tratos da mãe, dos tios, tias, primos. Expressam que essas agressões estiveram muitas
vezes associadas ao alcoolismo, à pobreza, à desagregação dos casais, ausência de valores,
permissividade, demissão do papel educativo dos pais etc. O estresse instaurado, a depressão,
a baixa autoestima propiciam o desenvolvimento de atitudes agressivas que podem propagar
diversos tipos de violência, entre elas, o bullying.
É importante registrar frente aos testemunhos das famílias a reprodução da violência
familiar sofrida. Algumas mães e um pai afirmaram que foram muito agressivos com seus
filhos: Não conseguia dominar a raiva gerada pelas brigas em casa e também com minha
mãe. Essas declarações foram feitas com grande dificuldade, dor e emoção. Trata-se de causas
complexas e profundas que deterioram o ambiente familiar (AZEVEDO E GUERRA, 1989) e
deste poderá ter sérias ressonâncias em outros espaços sociais.
A monstruosidade dos casos de violência sexual também foi externalizada com
extrema dificuldade nas entrevistas por algumas famílias, estudantes e também funcionários.
Nesses casos, os depoimentos revelam situações de violência sexual que ocorreram no seio
familiar, no relacionamento com tios, primos, padrasto, vizinhos. Revelam também a
existência de vivências de situações inimagináveis de abuso sexual provenientes de colegas
nos banheiros das escolas e também na própria sala de aula. Nesses casos extremos,
permanecem para essas famílias, sobretudo para os estudantes os bloqueios, os traumas, os
pudores e, talvez por isso praticamente não consigam superar outras situações em sua vida.
170
preocupação com o controle, vigilância. Nesse último, trata-se de uma rigorosa pressão,
cumprimento de horário, sob ameaça de não brincar, retirar os desenhos, colocar de castigo.
Todas as famílias atribuem grande valor à participação na escola. No que diz respeito
ao esforço para que os filhos e netos permaneçam na escola e concluam seus estudos foi
expresso de forma unânime, apesar das dificuldades enfrentadas com o bullying e também das
condições de pobreza da família. Os depoimentos revelam que algumas famílias têm como
rotina de vida conferir se o filho está caminhando bem na escola, se ele se envolveu em algum
conflito, se as tarefas de casa estão sendo feitas, procuram manter certa continuidade neste
hábito, tentando evitar quaisquer tipos de problema na escola. Observa-se que a preocupação
com um futuro melhor para os filhos e netos é sempre destacada por todos (LAHIRE, 1997).
Veem neste investimento a superação da condição de pobreza vivenciada por eles próprios.
De modo geral, as famílias afirmam que delegam determinados encargos aos filhos,
como cuidar da casa, dos irmãos menores, dos animais domésticos com o intuito de
contribuir em sua socialização cultural e social. Foi demonstrada também que essa
preocupação gira em torno de poder prepará-los com as condições necessárias para enfrentar
as dificuldades da vida, que no dizer de uma mãe é muito dura.
É unânime também a fé em um ser superior por parte das famílias. Esta aparece nas
narrativas como fonte de esperança e força para o enfrentamento das situações difíceis e
conformação perante os fatos, que não podem ser modificados. As famílias ressaltam que a
espiritualidade, a fé e as crenças dão a força necessária para a pessoa cuidar de si própria, e
não se sentir solitária na luta pela vida digna. A espiritualidade dá significado e sustentação às
pessoas que se veem confrontando com a violência, as mudanças e as perdas que as
acompanham. Boff (2000) salienta que a dimensão espiritual é uma parte integrante da
pessoa, somada à dimensão humana refaz o ser autêntico da mesma, o que por sua vez produz
novas possibilidades para a pessoa e para a sociedade em geral.
A descontinuidade dos estudos por parte dos pais quanto dos filhos e netos é apontada
nos depoimentos da maioria das famílias. Apontam que esta é consequência dos problemas de
violência enfrentados na família, dos envolvimentos com más companhias e comportamentos
indisciplinados ou por envolvimento com namorados e gravidez precoce. Essa
descontinuidade sinaliza em muitos casos, o rompimento com a possibilidade de regressar à
escola.
A situação econômica e social também foi patenteada nos depoimentos das famílias. É
evidente que a maioria se enquadra na teoria da falta. Entretanto, há em todas elas um
tremendo esforço para garantir a sobrevivência, como já foi descrito. Com o crescimento do
173
Eu não aguento mais sofrer [...]. Sempre na minha sala me chama de “mole”, de
“tartaruga” porque eu não conseguia copiar rápido e ficava atrasado. Chamavam-me
de “horroroso” e a minha mãe de “magricela” “bruxa”, “nariguda”. Eu pedi ao meu
cunhado para fazer um estilete [...]. Com essa faquinha eu pretendia cortar o meu
pulso longe de casa, porque eu estou enjoado da minha vida, sabe [...] pensei várias
vezes: hoje eu me mato, atrás da escola. Quero matar essa dor que está aqui dentro
de mim. Um dia eu saí da escola e fui para o ponto de ônibus, quando ia cortar o
meu pulso eu me lembrei da minha mãe, da minha irmã que estava grávida, por isso
que eu não me matei ainda. Não aguento mais sofrer [choro profundo]. Cada vez que
mexe comigo eu fico mais bravo [...] eu choro, choro muito. Quando eu matar vai
acabar tudo isso. Porque eu vou matar todos que mexeram comigo [...] me
humilharam, me fizeram sofrer. Eu vou me lembrar de um por um, que mexeu
comigo, que me atentava desde quando eu comecei a estudar no ano passado, no ano
retrasado. Eu vou me lembrar de todo mundo, de um por um [...] Eu ainda não estou
pronto, mas o dia que eu estiver pronto, quando eu completar dezessete anos, eu
quero matar todos que mexeram comigo, eu vou matar [...] (Lívio, 9 anos, 3º ano).
durão, e podem provocar “desarranjos futuros” (GUARESCHI, 2008, p.54). Isso interfere
tragicamente no desenvolvimento emocional e comportamental, visto que pode modificar o
comportamento e o pensamento da pessoa, gerando pensamentos negativos e agressividade
que podem levá-los ao autoextermínio. Tal carga negativa gera pensamentos de vingança que
podem desencadear trágicas reações contra a escola e contra os colegas que feriram sua vida.
Por outro lado, esse estado de coisas pode levar até mesmo ao suicídio como última
opção de “válvula de escape” devido à pressão psicológica desencadeada pelos atos de
bullying, ou homicídio. Essa pressão no psiquismo da criança poderá gerar ainda confusão,
desenvolver transtornos mentais e pensamentos de vingança, uma vez que a criança não tem
maturidade suficiente para orquestrar os sentimentos negativos procedentes desses conflitos.
Esse alto nível de agressividade é sustentado por Guareschi (2008) e Fante (2005),
como aquele que provoca graves psicopatologias, torna suas vítimas reféns da ansiedade e de
emoções que interferem negativamente nos seus processos de aprendizagem e convívio social,
devido à excessiva mobilização de emoções de medo, de angústia e de raiva reprimida.
Muitas famílias se queixaram sobre o processo de estigmatização e vitimização
vivenciado no ambiente escolar que se prolonga em outros espaços de convivência. O
depoimento desta mãe revela grande preocupação sobre a necessidade de um efetivo trabalho
na escola para que as constantes discriminações sejam superadas:
Então ele entrou em alguns projetos aqui no bairro: Agente Jovem, Peti e Segundo
Tempo, mas sofreu tanta discriminação pelos mesmos colegas que estudam com ele,
que desistiu de participar. Sempre xingam ele de gordo, batem na cabeça dele. Em
todo lugar que ele vai ele vive a mesma situação e eu não tenho como acompanhá-lo
em todo lugar, porque a nossa situação é precária e eu tenho que trabalhar para
sustentar a nossa família (Mãe de estudante).
Não há como negar que os impactos negativos dos atos bullying na escola também
afetam tragicamente a vida cotidiana dos estudantes autores de bullying. A maioria dos
adultos reconhece que os impactos negativos afetam a sua personalidade, gerando graves
consequências para si e para sua família. Reconhece que a falta de limites e de valores
sólidos, a supervalorização da violência como forma de obtenção de poder, levaram-nos a
desenvolver condutas delituosas e antissociais:
Outro dia eu vi [nome do aluno] partiu para cima de um outro menino, o enforcou,
quase que o mata no meio da rua, jogou o menino no chão, pisou nele. Ele saiu todo
ferido. Esse aluno todos os dias apronta uma dentro da escola, sabe? Bate em todos
os colegas, passa rasteiras. Já pedimos ajuda ao Conselho Tutelar, já foi suspenso
diversas vezes, mas não mudou nada. No bairro onde mora, ele é agressivo [...] A
mãe trabalha fora. Ele fica na rua vagabundeando [...] (Professora em entrevista).
176
A situação do [aluno] não está bonita. Ele se envolveu com gangues aqui no bairro
onde mora. Hoje entraram cinco rapazes aqui na escola para bater nele. Ele percebeu
antes e fugiu pulando o muro da escola. Na semana passada bateram nele aí na rua.
Os colegas disseram que ele está sendo ameaçado de morte. Ele é um aluno
“problema” e já teve várias passagens no Conselho Tutelar por violência. Aqui na
escola, dentro da cantina da escola, a gente descuidou um pouco, ele derrubou um
aluno e chutou o nariz desse aluno que deslocou do lugar [...] (Agente de Pátio).
Perdi meu filho com 15 anos. Ele se envolveu em situações de violência na escola e
com drogas e quando eu percebi já era tarde. Dava sempre conselho, explicava sobre
o perigo em que ele estava se envolvendo com seus colegas. Este fato desestruturou
ainda mais a nossa família. Perdemos a alegria. Tenho ainda outros filhos. Estamos
cuidando o máximo [...] (Pai em entrevista).
A atrocidade desse ato de violência deixou para esse pai e para toda a sua família um
sentimento de impotência, medo, solidão e depressão. Castro & Abramovay (2002) ressaltam
que é um sentimento presente em muitas famílias hoje na sociedade, as quais perderam seus
filhos, parentes e amigos tragicamente no envolvimento com diversos tipos de drogas e com a
violência. A esse propósito, Guareschi (2008, p. 49) diz que “o comportamento violento é
resultado da interação entre o desenvolvimento pessoal do jovem e os contextos sociais nos
quais ele está inserido, como a família, a escola e a comunidade”. Daí a importância do
trabalho de parceria entre escola e família na prevenção da violência.
177
Tem alguns pais que são muito difíceis, já partem para a agressividade e ignorância,
não sabe escutar. Para estes os filhos são santos [...] Não acreditam no que a gente
fala. Alguns usam da agressividade em palavra, um tom maior de voz, falando que
dá até a perceber que nós que somos mentirosos [...] Somos nós as causadoras da
indisciplina e violência deles (Professora em entrevista).
Minha mãe não acredita em mim, acha que estou inventado coisas. Já disse que não
falo mais nada em minha casa. Briga comigo quando eu peço uma caneta, porque a
minha desapareceu [...]. Quando me batem na escola, sempre acha que eu estou
provocando [...] No dia que eu pisei na minha mochila, chorando de raiva, porque o
meu colega me bateu, disse a ela que foi ele quem jogou na poça de lama, e mesmo
assim, ela não foi à escola para saber o que aconteceu (Lívio, 9 anos, 3º ano ).
[...] Fico em cima, vigilante, pergunto, quero saber. Exijo da minha filha autonomia,
decisão, coragem. Nunca a tratei como coitadinha. Sempre a incitei a encarar o
problema de frente e assumir uma nova postura. Digo até hoje para ela: ‘Você não é
feia e nem obesa’ e não precisa ficar nessa condição de vítima sempre. É você quem
decide sua vida. Aprenda a falar. Procure ajuda. Converse com sua professora. Este
ano ela está melhor, mas no ano passado foi terrível. Sinto-a mais confiante em si e
nos outros [...] (Mãe e professora em entrevista).
Meu sofrimento na escola começou nos meus primeiros anos escolares. Eu apanhava
todo dia na escola [...] Não sei por que eles faziam isso comigo, me maltratavam,
eles me batiam, batiam e não sei por que ninguém via e ninguém me ajudava. Então
eu morria de medo deles. Isso foi no presinho. Eu não contava para a minha mãe,
eles me ameaçavam, me jogavam no chão, puxava o meu cabelo, me pisavam.
Lembro nitidamente como se fosse hoje. Então eu nem brincava. Se batia o sino e eu
fosse ao recreio, isso eu me lembro, se eles não estivessem na escola, eu brincava,
mas quando eles estavam eu não ia, e se eu fosse, eu ficava me escondendo atrás dos
pilares grandes das varandas. Eu comecei a estudar tinha sete anos. Com nove anos,
a coordenadora da escola disse que eu já deveria ter passado, eu ainda estava na
primeira série, não conseguia passar [...]. Depois na minha adolescência me tornei
agressiva, vivia irritada e se me provocasse, eu batia (Mãe em entrevista).
O testemunho dessa mesma mãe, alvo de bullying, grifa a associação entre a vivência
da prática do bullying e a vulnerabilidade e insegurança sentida hoje na trama cotidiana:
O fato é que hoje não consigo confiar em ninguém para estar próximo, não confio
nem em mim mesma. Não durmo direito, tenho lembranças muito doloridas. Casei-
me, mas tenho grandes disfunções na vida sexual, tenho pudores ao extremo, porque
fui abusada na infância e adolescência por parentes e colegas. No relacionamento
com as pessoas ainda sou agressiva, mandona, estressada, impaciente e violenta,
mesmo com o tratamento com a psicóloga há mais de três anos. Eu era pior, era
igual um “sargentão”. Buscava resolver as coisas no grito, quando me estressam
quero derrubar a casa, quero bater, quero quebrar tudo. Já bati inúmeras vezes no
meu filho, já o espanquei, já bati nele com uma borracha e o cortei [...]. Então assim
[...] É muito difícil [...] (Mãe em entrevista).
Minha filha tem dor de cabeça constante, ânsia de vômitos. Ela teve uma recaída muito
grande na aprendizagem, chora na sala, não consegue fazer a tarefa como fazia
antes. Já a levei ao médico. Eu não tenho condições de pagar um psicólogo para ela.
Busquei o atendimento com a psicóloga aqui do bairro, mas vai demorar muito.
Vamos fazendo aquilo que dá, diante das nossas condições (Mãe em entrevista).
180
Para compreender a dinâmica das relações sociais entre família e escola no espaço
educativo escolar, faz-se necessário observar como esses atores constroem seus vínculos,
sejam com os professores, com os funcionários ou com aqueles que representam a instituição
escolar. Porém, a qualidade das relações sociais estabelecidas entre essas duas instituições
educativas contribui para a existência de um melhor ou pior clima escolar.
Segundo Minayo (1999), a família é uma organização social complexa, um
microcosmo da sociedade, onde ao mesmo tempo se vivem as relações primárias e se
constroem processos identificatórios. É também um espaço em que se definem papéis sociais
de gênero, cultura de classe e se reproduzem as bases do poder. É ainda o lócus da política,
181
misturada no cotidiano das pessoas, nas discussões dos filhos com os pais, nas decisões sobre
o futuro, que ao mesmo tempo têm o mundo circundante como referência e o desejo e as
condições de possibilidade, como limitações. Por tudo isso, é o espaço do afeto e, também, do
conflito e das contradições.
A escola é um espaço de socialização, como mencionado anteriormente, tanto na
relação com os educandos, quanto com a família, como sublinham a fala de algumas mães:
Passava tardes trabalhando para a escola. Confeccionei um tapete de crochê de barbante
para fazer uma rifa para ajudar na festa junina (Mãe de aluna). Também outro depoimento
expressa essa co-participação: Ajudamos muito nas festas da escola, nos eventos culturais,
acompanhamos alguns passeios colaborando na assistência das crianças (Mãe de aluna).
Dessa forma, o ambiente escolar caracteriza-se como um local de encontros, de partilha de
saberes, consolidando trabalho coletivo, parcerias, amizades e relações afetivas.
A confiança na família também é ressaltada por alguns professores em seus
depoimentos, os quais consideram que as famílias mais presentes que acompanham os filhos
são suas parceiras na continuidade da formação escolar, conforme segue o depoimento:
Há alguns pais que sabem conversar com a gente, acompanham os filhos, vem saber
o que estar acontecendo. Em casa olha as atividades, sabem ajudar. Se a criança não
entende, no outro dia tenta se informar, mas sem agressividade e cobranças como às
vezes acontecem (Entrevista com professora).
Se em minha casa meus pais brigam, batem, vou achar que isso é normal. Se você
presencia e sofre violência em casa, a formação dentro desse ambiente foi essa.
Você vai ser diferente disso? Não vai! Ninguém cresce mal educado, e ninguém
cresce bem educado, tudo é convivência (Professora em entrevista).
A tônica dos discursos dos educadores passeia em torno da carência econômica, social
e cultural dos estudantes. Também da atribuição de culpa à família por falta de atenção,
convívio saudável, afeto às crianças e adolescentes, o que no seu imaginário compromete o
diálogo entre escola e a família. Nesses casos, os depoimentos dos educadores conferem
principalmente ao ambiente familiar as dificuldades de aprendizagem e interação social dos
estudantes. Com certeza, parece existir nas duas falas um resquício não extirpado de um
princípio de transferir culpas e ainda uma visão idealista de família (CASTILHO, 2008).
Outro aspecto que povoa o imaginário de muitos membros das escolas pesquisadas,
em particular dos professores e coordenadores, é a ligação dos comportamentos agressivos e
indisciplinados de muitos estudantes à suposta desestruturação familiar. Isso na maioria das
vezes configura-se como uma das causas da dificuldade de se estabelecer um maior diálogo
entre educadores e estudantes e entre escola e família.
16
O termo “desestruturação familiar” é apontado direta e indiretamente por muitos professores e gestores. Ele é
utilizado por eles a partir de uma visão idealista da família.
183
Tudo eu posso. Onde está o respeito? Não há valores? Há uma permissividade, uma
quebra de valores muito grande. É um conjunto de coisas que vai somando. Também
já vi que não adianta exigir muito, ser rigorosa, porque quando os estudantes
aprontam as deles e os pais são convidados a vir aqui conversar, reclamam,
esbravejam dizendo que a escola que é errada. Então, o que é isso passa a mão na
cabeça do filho retirando a autoridade da escola. É por isso que hoje não sabemos
mais que atitude tomar [...] (Professora em entrevista).
Eu já perdi as contas de quantas vezes peço para chamar alguns pais, escrevo na
agenda o recado para vir aqui conversar, mas eles não comparecem. Tem alguns pais
que não sabem escutar, ou melhor, não querem nem saber da realidade do filho.
Então, eu fico um pouco constrangida às vezes, de falar sobre o comportamento do
filho na escola para eles. Não dão bola mesmo [...] (Professora em entrevista).
Outra face dura patenteada nos depoimentos são as tensões existentes entre família e
escola. A maioria das mães queixa da “impaciência” de muitos professores com os filhos que
ainda não aprenderam corretamente. Porém nos seus depoimentos, há aqueles que
reconhecem que, dentro da sala de aula, há muitas conversas paralelas, brigas, indisciplina e
bagunça, dificultando o trabalho da professora. Diante de tal situação, alguns docentes agem
de forma agressiva com os estudantes: A professora passa a tarefa para os alunos copiarem.
Se não anda rápido, apaga o quadro. Trata os nossos filhos mal. Depois diz que eles são
preguiçosos, chama de desinteressados. E isso não é um tratamento que se espera da escola.
Os estudos de Patto (1993) ajudam a compreender as graves consequências apontadas
nesse depoimento. O autor diz que as palavras ríspidas, as relações agressivas, o mandar sair
da sala, o encaminhar à coordenação ou direção, são apontadas como um dos principais
problemas da escola. São comportamentos que minam a relação de empatia, de solidariedade
e de paz com os estudantes bem como entre a família e escola. Nesta pesquisa, também são
muitos os depoimentos críticos por parte dos pais, recebidos dos seus filhos sobre a postura
agressiva de alguns professores em sala de aula:
Os professores agem de uma forma muito agressiva ao responder aos alunos. Na sala
não se pode reclamar. Tem acontecido muita briga por causa de discussão entre eles.
Os professores ao invés de ensinar, preferem apontar os erros do aluno perante a
classe. Exigem que os alunos fiquem em silêncio a aula toda. Se você é acusado por
alguém, ou se alguém briga com você, se inventar de se defender, está na roça. Os
professores caem em cima com agressividade, dizendo que o aluno é mal-criado,
que não tem educação em casa, que é rebelde [...]. Ele é acusado de algo que não
fez e ainda tem de ouvir calado. Se responder vai parar na coordenadora. E lá a
situação fica pior [...] Gritos, acusações sem fins [...] (Mãe em entrevista).
A declaração dessa mãe traduz o isolamento, a solidão e confirma que “a escola não
dialoga. Seu discurso é um monólogo, surdo e míope. É por isso mesmo um monólogo
autoritário tantas vezes expresso e encarnado do professor que não admite apartes e
intervenções” (PASSOS, 1994, p. 203). Esse modelo encontra eco na impermeabilização, na
lentidão, na decodificação, na solidão, nas relações mecanicistas, nas formas de violência, que
levam a um sistema de emperramento e à submissão de normas excessivamente burocráticas,
culminando com inevitável queda de qualidade.
Os depoimentos abaixo apontam que os conflitos escolares envolvendo os filhos
podem gerar situações extremas entre essas duas instituições. Revelam ainda que existam
casos de chegar a romper a relação com os professores por um bom tempo:
185
[...] eu perdi a paciência com a escola [...] a coordenadora tinha muita má vontade
em ajudar minha filha que foi agredida pela professora. Disse que não tinha
autoridade para dar advertência para a professora. Procurei dialogar com o conselho
da escola diversas vezes, com o gestor, com a coordenadora e professora. Foram
várias reuniões. No final, tivemos uma reunião com as representantes lá da
Secretaria de Educação. Como não obtive apoio, denunciei o fato à Secretaria de
Educação Municipal. Não obtive apoio também, por fim, montei um processo contra
ela na Ouvidoria. Porém, até hoje, já faz mais de ano e nada se fez. Não houve
nenhuma atitude da escola em relação a isso [choro]. A professora não foi afastada
da escola nem naquele dia (Mãe em entrevista).
As famílias atribuem grande valor à escola. Elas conferem a essa instituição a grande
missão de transmitir conhecimento acumulado, porém, também como a principal instituição
promotora de valores humanos duradouros, depois da família, e não aceitam que atitudes de
indiferença, violência e desrespeito estejam presentes em seu interior, sobretudo nas atitudes
dos professores com seus filhos.
As famílias revelam também “desesperança” quanto a uma ação mais efetiva das
instâncias municipais, estaduais, e, sobretudo do Conselho Tutelar, mesmo nas situações de
caráter gravíssimo como o abuso sexual ocorrido no espaço da escola. Os depoimentos
apontam que, até mesmo nesses órgãos, a agressão foi tratada com indiferença, naturalização,
não sendo considerada em seu teor de gravidade, profundidade e importância:
Quando meu filho sofreu abuso sexual na própria sala de aula por parte dos colegas
maiores, como o diretor e toda a escola trataram a questão com indiferença, não
tomando nenhuma providência, busquei ajuda no Conselho Tutelar. Mas também o
Conselho Tutelar não fez nada, silenciou. Meu filho não quis mais ir à escola. Não
encontrando saída, retirei-o da escola onde estudava [...] (Mãe em entrevista).
Minha filha chorava para não ir à escola. Ela dizia que a professora tomava caderno,
e falava palavras duras que ofendiam, como: Você é “burro”, um “molenga”, não vai
aprender nunca [...]. Ela jogou a minha filha com força na cadeira. Suas mãos
ficaram nos braços dela. Eu vi minha filha sair da sala desesperada, chorando [...] eu
vi [choro]. Esse tipo de atitude não se espera de uma professora (Mãe de aluna).
Por isso eu perdi o ânimo para voltar à escola. Eu estudava a noite, desisti [...] Perdi
a motivação para estudar [choro]. Fazia o 1º ano do Ensino Médio/EJA. Minha filha
ia comigo para a escola, porque não tenho com quem deixá-la em casa. Meu marido
também estuda a noite na mesma série que eu. Ainda não sei nem pronunciar o
sentimento que passa em mim (Mãe em entrevista).
Esse ambiente que deveria inspirar inteligência, criação, liberdade e busca de ajuda,
cujo fulcro dos processos educacionais se esteiam no estabelecimento de vínculos de
confiança e transferência, acaba mais por reforçar contravalores e práticas
policialescas do que propor caminhos à humanidade feliz.
A criança quando chega à escola traz muitos sonhos, expectativas, alegrias e desejos
de grandes descobertas. Porém, com o passar dos dias, semanas, muitas delas apresentam um
aspecto apático, medroso, submisso a gritos, sinos e tarefas infindáveis e, na relação com os
colegas e com alguns professores, submissas a humilhações, agressões, apelidos desairosos,
os quais estimulam a violência e, acima de tudo, comprometem a sua aprendizagem. Essa
187
podem tornar-se para os estudantes um espaço de humilhações e, aos seus familiares, gerar
situações negativas e conflitivas.
Nesse sentido, Beaudoin e Taylor (2006, p. 53) chamam a atenção que:
[...] muitos adultos supõem que as crianças tenham total controle sobre seus
comportamentos problemáticos. Muitos pais e educadores se perguntam: “porque o
aluno simplesmente não pára de fazer isso?” essa é uma questão interessante,
levando-se em conta que a maioria dos adultos reconhece que não tem controle
sobre os próprios comportamentos problemáticos em nível pessoal. Quantas vezes,
por exemplo, você já prometeu a si mesmo comer menos açúcar, sal ou gordura?
Quantas vezes você decidiu ter mais paciência com alguém, e então não levou essa
decisão até o fim? Se os adultos, com todo o seu conhecimento, suas experiências e
seus recursos têm dificuldade em mudar um comportamento problemático de uma
hora para outra, como podemos esperar de uma criança? As crianças, assim como os
adultos, precisam de apoio, tempo, preparação e espaço para cometer erros em sua
jornada rumo à transformação.
As famílias unanimemente afirmam que mudança de escola foi a ação mais utilizada
para evitar que a criança perdesse o ano escolar e, além disso, para impedir um desfecho
trágico para o estudante. Igualmente por não encontrar outra saída e nem contarem com a
ajuda da escola. Em dois casos esse recurso foi utilizado de forma “exclusiva” o que resultou
em três transferências, e o adolescente que foi alvo de bullying está estudando hoje na quarta
escola. Pelo percurso dessas crianças e adolescentes, vê-se que quando o nível das agressões
físicas, verbais e/ou psicológicas ficou insuportável, seu rendimento escolar foi afetado e, em
especial, quando apresentaram dificuldades de adaptação escolar devido aos seus sofrimentos,
a ação adotada foi a mudança de escola por todas as famílias. Na maioria dos casos, buscou-se
primeiramente o diálogo, mas como os resultados não surgiram prontamente, o temor da
desistência da escola por causa das agressões quase que obriga que a transferência para outra
escola seja efetivada rapidamente, como confirma o relato dessa mãe:
Apesar do uso massivo dessa “estratégia”, não se pode inferir que esse processo e essa
decisão sejam sempre os mais adequados, pois várias pesquisas têm mostrado o inverso.
Também não é expressão de uma dificuldade para lidar com os conflitos ou que denotem
sempre a busca de uma solução mais rápida e sem conflitos. O processo, às vezes, é muito
sofrido, cheio de tensões e conflitos para a criança e sua família.
189
Esses casos graves acenam para a necessidade de rever as relações. Quando se repensa
apenas as relações no espaço da escola, como afirma Guareschi (2008), é possível reverter
esse quadro de desumanização. Não resolve mudar de escola. Isso poderá até piorar a
situação, passando a criança a ser vítima de bullying novamente, como foi notado nos
depoimentos. Por omissão, implicitamente, esses estigmas podem gerar angústia e
desesperança às famílias e, sobretudo, aos estudantes vítimas de bullying.
O fato é que na sua totalidade a escola trabalha sem levar em consideração a realidade
e o contexto cultural do estudante e de suas famílias. É indispensável que no processo
pedagógico a escola aborde as categorias gerais e abstratas, mas sem desconhecer as
especificidades culturais de seus componentes.
Famílias e estudantes, por isso, esperam da escola uma atitude mais comprometida que
contribua na superação das dificuldades, um ensino humanizante e civilizatório. Esperam
também que ela tenha persuasão positiva na vida das pessoas e na vida da comunidade do
entorno. A escola só atingirá tal meta mediante a trama de relações solidárias, éticas que for
capaz de estabelecer, e por meio do rol de conteúdos que ensina que no imaginário da
maioria, são sempre são bons.
Frente a isso, “a educação deverá se aproximar dos aspectos éticos, coletivos,
comunicativos, comportamentais e emocionais, todos eles necessários para que ela possa
contribuir na construção deste tão sonhado “outro mundo possível” (GADOTTI in
GUARESCHI, 2008, p. 9).
Tão pouco se possa pretender que a educação seja a redentora da humanidade sozinha.
Isso é impossível dadas as condições adversas atuais, mas com Barros Neta (2001, p.100) é
possível dizer:
A escola, como qualquer outro lugar frequentado por jovens e adultos, tem a
obrigação de ter como objetivo prioritário a promoção de um contexto que seja
satisfatório desse ponto de vista, aberto ao amadurecimento do grupo, ao
desenvolvimento de relações positivas entre os adolescentes, suficiente para
construir um sentido, um peso e um significado, em termos de amizade, ajuda e
solidariedade, reconhecíveis por todos os seus componentes. Ou seja, contextos em
que se promovam as habilidades cognitivas, emocionais e sociais, benéficas ao
desenvolvimento da pessoa. Contextos entendidos também como sistemas
organizados, na medida do adolescente, em que seja possível modificarem-se
lugares, tempos e espaços para melhorar e tornar mais agradável o convívio, para
estimular o confronto com as capacidades criativas dos estudantes, para promover as
iniciativas pessoais e de grupo e nos quais se possam pôr à prova as funções
relacionais voltadas ao estímulo do engajamento pessoal, à empatia, à colaboração e
à responsabilidade (COSTANTINI, 2004, p. 78 e 79).
ou verbal. Isso revela que o outro é visto como estranho, quando não, ameaçador, impedindo
a noção de partilha de ideais, de proteção e autopreservação da personalidade humana do
outro e de si próprio. Esta multiplicidade de situações e conteúdos educativos que vem
ocorrendo no ambiente escolar pode e deve ser potencializada. Em relação ao bullying, pode
se perceber que as atitudes agressivas não manifestam a partir de um motivo justo, adotado
por um ou mais estudantes contra outro(s), causando sofrimento às suas vítimas. Esse
fenômeno está se tornando cada vez mais frequente nas escolas, e talvez os próprios pais e
educadores não estejam percebendo a real gravidade do problema, e não entendem a maneira
mais apropriada de resolver essa situação no espaço escolar.
O farto material recolhido no chão da pesquisa possibilitou perceber que há um
envolvimento maior dos meninos nas redes das agressões do que das meninas, seja como
vítimas, seja como agressores, o que converge com outros estudos realizados em diferentes
países. O uso da força física pelo agressor aparece frequentemente na definição de situações
conflituosas. Mesmo assim, os atos desses estudantes não se constituem como
comportamentos delinquentes, estando mais próximos de um tipo de sociabilidade agressiva
potencializada por diversas circunstâncias da organização escolar e extraescolar.
De acordo com Costantini (2004), esse fenômeno, para suas vítimas, tem
consequências a curto e a longo prazos: ansiedade, ausência de autoestima, depressão e
transtorno comportamental, a ponto de abandonar a escola e, como as pesquisas revelam, nos
casos mais graves e para os indivíduos mais fracos, pode haver também maior probabilidade
de risco de suicídio, concernente ao dado fisiológico ligado à adolescência.
Nesse sentido, penso ser importante que toda a comunidade educativa das escolas
reflita mais amplamente a respeito dos significados e significantes da forma como a escola se
organiza e funciona atualmente para, assim, ter condições de apreender essas tensões, disputas
e violências que constantemente se manifestam dentro dela. Os membros do corpo técnico-
pedagógico, em especial, os professores, penso ser imperioso repensar o seu papel, a sua
função nos processos educativos, colocando-se não apenas como fiscais da discutível
qualidade de ensino, mas como transformadores de realidades e impulsionadores de novos
paradigmas da educação. Na visão de Ubiratan D’ambrósio (2008, p. 92), “uma chance de
construir um mundo sem violência está na mão dos professores - eles podem criar condições
para gerações e culturas diferentes dialogarem”.
Não resta dúvida que a escola, ao incluir em sua prática pedagógica a pessoa integral,
o que ela sente e o que pensa, estará de fato oferecendo espaço à transdisciplinaridade, e
assumindo seu papel fundamental na educação para a paz. Dessa forma, contribuirá para a
195
Dentro desse quadro, é visível que as expectativas dos estudantes para com a escola
vêm manifestando desencanto e desinteresse, resultados da situação social em que vivem bem
como da realidade de violência hoje presente nas escolas. Decorrentes dessa situação, foi
possível perceber nos estudantes muita angústia, desinteresse e até desencanto pela escola,
visto que não vislumbram, em alguns casos, possibilidades de cessação dos atos de bullying.
Essas percepções, associadas a outros fatores externos, conforme já foi descrito, podem gerar
profunda ansiedade, angústia, depressão e violência dentro do ambiente escolar. Vale ressaltar
que as crianças autores ou alvos de bullying constituem um grupo numeroso e carecem de
atenção por parte dos atores da comunidade educativa. Esta tem como missão primordial
trabalhar a falta de comunicação que continua interrompida entre eles. Ao ser este elo, “[...] a
escola devolve a dignidade” (D’AMBROSIO, 2008, p. 94).
As observações realizadas nas escolas e as entrevistas possibilitam afirmar que os altos
índices da presença de bullying no ambiente escolar revelam que os comportamentos abusivos
e intimidatórios nesses locais estão colaborando para que muitos estudantes tenham medo de
ir à escola, adoeçam e se evadam dela. Durante as observações, ouvi relatos de colegas que,
na condição de espectadores, presenciaram atos de bullying e confirmaram a desistência do
colega após esses incidentes danosos.
Constatei também, através das observações e entrevistas, que os componentes do
corpo técnico-pedagógico, parecem não se empenharem de fato, não assumirem para si a
árdua missão de ajudar os estudantes a trilhar alternativas para orquestrar os conflitos de
forma significativa, a construir o sentido da convivência pacífica. Nesse sentido, enquanto
não assumem a responsabilidade de exigir dos estudantes que sejam protagonistas da
solidariedade e da paz, que despertem neles valores necessários à boa convivência, será que
estamos assumindo de fato o papel que cabe a nós, como educadores da Paz? Será que a
prática do bullying não estará sendo promovida nas relações entre estudantes, nas interações
professor-estudante, e produzida e reproduzida pela própria organização escolar?
Acredito ser necessário refletir ativamente com toda a comunidade educativa sobre os
resultados das investigações que abrangem seu campo de ação e estabelecer com ela um
verdadeiro diálogo. Dar-lhes, também, a possibilidade de construir os seus próprios
instrumentos de compreensão, interrogação do real e intervenção, enquanto instrumento de
modificação desse real permeado pela violência, em particular, as práticas de bullying.
Importa, ainda, lembrar que é necessário os educadores sensibilizarem criticamente
frente à problemática da violência e do bullying, para que juntos possam ser capazes de
definir e assumir um novo profissionalismo com sentido e ousadia, corresponder a tantos
197
A resistência ativa, porém civil das populações à violência e à guerra. Isto é a concreta
defesa da objeção de consciência, da insubmissão frente ao Estado, da desobediência
civil, da greve pacifica das massas, da greve de fome, das concentrações e
manifestações pacificas como meios alternativos (BUEY, 2000, p. 167).
Para o maior educador da utopia, a luta pela paz pressupõe uma confrontação justa e
crítica dos conflitos existentes, os quais provocam a intolerância e a falta de solidariedade.
Crer acima de tudo que o mundo não prescinde da guerra para ser mundo, que o ser humano
não é o ser da guerra, mas do amor, da afetividade, da esperança e da utopia. Falta-lhe apenas
a abertura para aprender com a diversidade e buscar uma sociedade que consiga alcançar uma
ética fundada no respeito às diferenças. Porém, isso significa conviver com elas e não se
isolar nos guetos multiculturais que não enfrentam os desafios de uma radicalidade
democrática para a convivência plena de direitos e de deveres.
Na “Pedagogia da Autonomia”, Freire defende que ética e educação precisam andar
juntas e, sua ética se insere na tradição universalista, na medida em que a prática educativa
depende de princípios inalienáveis como justiça, democracia e solidariedade.
Paulo Freire, ao construir uma prática educativa em que o diálogo com o outro é
essencial, dissemina uma prática de participação social de formação do sujeito para uma
199
cidadania democrática. A educação para Freire é uma educação para a liberdade e para a
responsabilidade política e social.
O pensamento de Freire traz em seu bojo uma perspectiva emancipatória, que pode
resultar em um agir e um pensar com um potencial transformador, não só para dissolver os
problemas e mazelas sociais, bem como superar o atual modelo de educação, e repensar e
reagir os modelos sociais que não atendem às expectativas de libertação.
Na Declaração e Programa de ação sobre a Cultura de Paz (UNESCO), a Cultura da
Paz é definida como um “conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de
vida baseados no respeito à vida, ao fim da violência, à prática da nãoviolência por meio da
educação, diálogo e cooperação” (Unesco/1999). Funda-se no respeito aos direitos humanos,
à promoção de igualdade entre homens e mulheres e à liberdade de expressão, ao
compromisso de resolver pacificamente os conflitos, os esforços desenvolvidos para
responder às necessidades planetárias, a promoção do desenvolvimento dos povos.
No fortalecimento desse novo paradigma social, a cultura de Paz, não podem ficar fora
os quatro pilares estabelecidos por Jacques Delors (2004), em torno dos quais a educação
contemporânea deve se organizar para dar conta da árdua missão de educar para uma cultura
de paz e da nãoviolência: Aprender a ser, a conviver, a conhecer e a fazer.
Passos (2004) inspirando-se neste relatório de Delors amplia a reflexão, apresentando-
a sob matizes fenomenológicas merleaupontyanas (Merleau-Ponty). Faz uma analogia,
propositalmente, desejando mostrar uma circularidade mutuamente implicante presente nestes
conceitos. Chama a atenção e vale ressaltar que, Passos, por sua vez, apresenta a proposta de
articular, num projeto de Educação ambiental, dimensões antes separadas e ou absolutizadas,
o que inevitavelmente, conduziria a fragmentação da pessoa:
Nenhum deles pode terminar em si mesmo. E que, no dizer de Morin, estes âmbitos
dizem respeito a instâncias fundamentais do ser humano. Relaciono propositalmente
estas dimensões ontológicas, com os âmbitos em que se desdobra o filosofar:
epistemologia; axiologia; praxiologia. Relaciono o compreender fenomenológico -
apontado por Delors - com o conhecer analítico; o perceber humanizado com o
sentir estésico; viver juntos comungante com o cuidar corresponsável e amoroso; o
fazer humano, menos como reprodução, do que como criação (PASSOS, 2004, p. 42).
Como se observa, Passos reconhece que a educação implica em um esforço com vistas
a conferir aos seres humanos ou ajudá-los a adquirir as qualidades, competências, disposições,
necessárias para superar a “condição histórica e política de alienação e de bloqueio à
personalização e o seqüestro à cidadania esmerilhando processos solidários e coletivos”
(Ibidem) imposta pelo capitalismo.
200
Em seu texto, ele procurou mostrar que a meta a ser conquistada com urgência não
está dada de antemão, não é apenas algo a ser obtido ou fim do percurso, mas sim, a ser
construído no decorrer de todo o processo. Nesse sentido, a preocupação do filósofo é clarear
sobre a contribuição perene de cada um nesse processo de transformação social. Desse modo,
,conforme Passos, a meta pressupõe,
Possibilidades
produzir efeitos benéficos para os jovens também nas relações familiares e em outros
contextos relacionais como no grupo de amigos” (COSTANTINI, 2004, p. 84).
O grande desafio posto por essa proposta formativa é o “conhecimento de causa” para
que a nossa ação não seja punitiva, moralmente errônea e improvisada, pautando as
intervenções principalmente em atitudes comum que não favorecem mudanças de atitudes e
condutas. Devemos ter razões suficientes para garantir a paz e não responder tragicamente “a
violência com a violência” (BUEY, 2000, p. 167).
O compromisso da educação é com a desbarbarização, é transformar-se num processo
emancipatório, no qual ocorra uma luta sistemática pela autonomia, pela emancipação
(SEVERINO, 2006; ADORNO; 1995). E sua única ferramenta é o esclarecimento que se
constitui como passagem do inconsciente para o consciente, do não ciente para o ciente, do
pseudociente para o ciente. O esclarecimento ilumina e elimina.
Esta responsabilidade nos impele como educadores no contexto específico da escola a
lutar coletivamente por um ambiente educativo com condições adequadas para desenvolver de
forma significativa o ensino-aprendizagem. Necessita-se de uma escola que não se preocupe
somente com um rol de conteúdos a serem repassados, mas que tenha uma proposta
pedagógica flexível que possibilite a criação, re-criação, construção e desconstrução de
conhecimentos e habilidades; que seja adequada à realidade e aos tempos de cada estudante e
incentive os professores a ousar e a se superar.
A construção de contextos significativos implica romper com paradigmas
educacionais, os quais colocam o foco no processo de ensino e não no de aprendizagem.
Implica desafiar a linearidade e a fragmentação de propostas pedagógicas disciplinadoras,
engessadas por programas ditados de cima para baixo quanto pelos livros didáticos
castradores. Esta demanda ainda a reorganização de tempos e espaços escolares,
tradicionalmente cristalizados pelas matrizes curriculares. Não se trata apenas de renovar as
atividades pedagógicas tornando-as mais criativas, mas de repensar a própria prática
pedagógica (FREIRE, 1996).
Nesse sentido, educar seres humanos para a paz é promover a constituição de
contextos educativos que favoreçam uma convivência saudável. Se quisermos pessoas que
tenham um sentido para a vida, é preciso que a educação não se descuide de sua própria
função: permitir o conflito e, a partir dele, possibilitar que diferentes caminhos sejam
encontrados, diferentes soluções sejam propostas, diferentes sentimentos sejam expressos.
Um exemplo de ações que a escola pode realizar é o debate sobre os problemas
sociais, econômicos, políticos, culturais e morais que afligem a humanidade. Quando
202
proporcionamos momentos em sala de aula em que as crianças podem pensar sobre a falta das
virtudes ou as situações de violência, contrárias à paz, estamos oferecendo-lhes oportunidades
de evoluírem em seus juízos e quem sabe, em suas ações.
Se quisermos ter um sentido para a vida, o sentido da escola precisa ser também o de
quem dela participa: é preciso procurar, incessantemente, compreender a importância da
participação efetiva dos estudantes no planejamento das ações cotidianas da escola e na
avaliação das mesmas ações, também realizadas pelos estudantes e ainda na consolidação das
assembleias que podem, além de contribuir para o “sentido da vida”, fortalecer o “sentimento
de pertencimento” que faz mais do que ver o que nos diferencia, ver o que nos une.
Quando promovemos em ambientes escolares a possibilidade de pensar no que nos
une, nos problemas e nas formas que podem resolver, podemos contribuir para que o grupo se
fortaleça e que diminuam as necessidades de ser melhor ou pior que os outros.
O fracasso de muitos projetos educacionais está no fato de desvalorizar a participação
dos educandos, concebendo-o como receptor de conhecimento dado, imposto, favorecendo
relações de poder quanto de violência. Costumeiramente temos ouvido professores exaustos
por vivenciar situações de desentendimento, menosprezo, maltratos e atos bullying entre os
estudantes, quando as diferenças entre eles são acentuadas.
Sem dúvida, nesse caminho, a educação, considerada como um dos maiores
instrumentos de empoderamento (FREIRE, 1986), estará assumindo seu espaço de formação
integral do educando, aprofundando o seu processo de humanização. Para isso é indispensável
garantir o acesso a uma educação de qualidade, pluralista e emancipatória, entendida como
aquela que, muito mais que possibilitar a formação acadêmica, científica, cultural e humanista,
estimula a curiosidade, a criatividade e a busca por aperfeiçoamento para todas as pessoas.
Certamente o combate ou a prevenção do fenômeno bullying na escola quanto em
outras instituições sociais faz-se necessário que estas instituições sejam espaços significativos
de aprendizagens. Mais que modificar atividades é preciso mudar a maneira de compreender e
construir o processo ensino/aprendizagem, realizando uma revolução pedagógica, por meio
da presença e ação significativas dos sujeitos que constituem a instituição escolar.
Percebe-se, portanto, a importância de conceber a escola não é só como espaço físico,
uma estrutura. Mas percebê-la acima de tudo como um modo de ser, de ver, de conviver, de
relacionar-se. Ela se define pelas relações sociais que constrói em seu interior e exterior. Sua
sobrevivência como instituição do saber está em valorizar o que lhe é próprio numa sociedade
de redes e de movimentos como vivemos hoje. A escola pode contribuir de forma
significativa no despertar de pessoas éticas, solidárias e sedentas de mudança social. Ela está
203
intimamente ligada com a sociedade que a mantém, sendo, ao mesmo tempo, fator e produto
da sociedade. Como instituição social, ela depende da sociedade e, para mudar-se, depende
também da relação que mantém com outras escolas, com as famílias, realizando em rede com
elas, estabelecendo alianças com a sociedade, com a população.
Portanto, compreende-se que é dever da escola e da família oferecer meios de
desenvolver as relações sociais, valores humanos duradouros, satisfazendo as habilidades
cognitivas, oferecendo normas para boa convivência e, ao mesmo tempo, criando
oportunidades a seus estudantes/filhos para a sadia socialização secundária. Porém, não se
propõe a criação de um sistema educacional milagroso e deixar a responsabilidade nas mãos
apenas dos professores, pois a solução desse problema ou pelo menos a sua minimização
necessita do desenvolvimento de um sistema resultante de um conjunto de esforços
envolvendo famílias, estudantes, professores, funcionários, gestores e toda a comunidade do
entorno escolar.
Por fim, e sem querer significar fechamento, quero considerar, que de alguma maneira,
precisamos aprender que a paz e a solidariedade estão em nossas mãos: a sociedade
emancipada, democrática e igualitária depende de nós! Cabe a cada um de nós cuidar da vida,
em seu aspecto pessoal, social e planetário.
Quero finalizar, desejando que todos nós, educadores, pesquisadores, famílias e
comunidade trilhemos caminhos que possibilitem a disseminação de atitudes de paz e
solidariedade, e que tenhamos sucesso nessa árdua empreitada.
Vale lembrar para todos os educadores escolares e famílias o que escreveu Dom Bosco
sobre o respeito e a convivência:
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ANEXOS
216
ANEXO 1
ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
1. Você já viu na sua escola algum colega seu colocar apelidos, bater em alguém ou provocar
brigas? Conte-me como foi:
2. Você tem apelido? Como é seu apelido? Como você se sente quando é chamado assim?
3. Você já foi xingado, ameaçado ou batido na escola? Você tem medo de ser agredido? Por
quê?
4. Você já brigou na escola? Tem algum colega na escola que você não gosta? Por quê?
5. Como você se sente quando é maltratado por um colega? Você se sente triste, chateado?
6. O que você sente quando xinga ou bate em algum de seus colegas? Não se arrepende de
brigar ou bater em seus companheiros?
7. Aqui nessa escola acontecem muitas brigas? Já brigaram com você? Qual o motivo da
briga? E hoje, vocês são amigos ou ainda continuam brigando?
8. Você já contou para seus pais, para algum professor/a que brigou com os seus colegas? Já
contou para algum amigo que alguém brigou com você? Ou que você já brigou com
alguém?
9. Algum colega já quebrou algum material seu ou pegou sem o seu consentimento? O que
você fez?
10. Todos os alunos da escola são agredidos ou somente alguns? Quais colegas são mais
agredidos? Os gordinhos, os feios, os negros? Os que possuem algum tipo de deficiência
física ou na fala?
13. Você já inventou estar doente por medo de vir à escola, por quê?
14. Você já pensou em parar de estudar por medo de ir à escola? Por quê?
15. Quais são os espaços da escola que você mais gosta? Por quê?
217
16. O que você mais gosta de fazer na hora do recreio? O que você menos gosta?
17. Em que momentos mais acontecem as brigas? Na entrada? Na saída? No recreio? Dentro
da sala de aula? Nos banheiros? No pátio? Na quadra de esportes?
20. Tem algum professor ou professora que você não gosta? Por quê? (Conforme a resposta:
perguntar: Será que ela já bateu em mais alguém, puxou orelha, cabelo? Xingou? Jogou
apagador?
21. Qual foi a confusão mais séria que você já se envolveu? Me conta [...] machucou ou feriu
alguém?
4. Você acredita que a violência do aluno/a tem alguma relação com o contexto da família?
5. Você já foi ameaçado, humilhado ou xingado na escola? Como você reagiu e reage frente
às situações de violência?
7. Quais são as medidas tomadas pela escola para inibir e evitar a violência?
ANEXO 2
Solicitação de autorização para a pesquisa junto às Escolas