Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
Em nossa trajetória com a flauta doce estamos sempre nos deparando com questões
relacionadas à interpretação do repertório dos séculos XVI, XVII e XVIII. Aspectos como ornamentação,
articulação, sonoridade, fraseado, transposição, tipos de instrumentos, dentre outros,
constantemente precisam ser consultados nas chamadas “fontes históricas”, ou seja, tratados,
manuais, métodos, ensaios e compêndios originais que trazem informações valiosas para a
compreensão da música daquele período.
Muitos destes livros, tão atraentes quanto instigantes, estão disponíveis para acesso em
bibliotecas virtuais e sites como IMSLP. Também encontramos uma quantidade significativa de
informações, artigos e textos acadêmicos pesquisando nos principais sites de busca da internet
(google, wikipedia) e em repositórios com acesso vinculado a bibliotecas de escolas e universidades,
como o Portal Capes. Porém, diante desta enorme quantidade de material, não são raras as vezes em
que nos sentimos um pouco perdidos na busca de informações específicas, sobretudo quando não
temos muito traquejo com pesquisa ou quando não temos uma indicação prévia das fontes mais
apropriadas. Afinal, encontrar e escolher os livros, saber decifrá-los, conhecer seus autores, ou ainda
encontrar textos recentes, preferencialmente em português, que abordam assuntos específicos de
nossa prática instrumental, são mesmo tarefas desafiadoras.
Com a intenção de oferecer diretrizes para facilitar o processo de pesquisa e estudo, elaborei
esta Bibliografia Básica, com uma seleção de fontes primárias e secundárias que atendem às
necessidades principais dos estudantes e intérpretes de flauta doce.
Inicialmente, procuro estabelecer Categorias de fontes primárias, a fim de que o estudante
possa detectar quais delas são mais adequadas à natureza da pesquisa. Sigo com os Conselhos sobre
pesquisa, onde apresento algumas dicas e princípios referentes ao processo de pesquisa que eu
desenvolvi ao longo de minha trajetória como intérprete, pesquisadora e professora, e que eu espero
serem úteis aos estudantes de flauta doce; por fim, seguindo um roteiro-guia para ajudar a direcionar
a investigação, indico uma Bibliografia Básica contendo uma relação de fontes primárias e secundárias
que atendem às necessidades básicas do dulcista.
Dulcista?
Dulcista é um termo que vem sendo utilizado no Brasil para designar a pessoa que toca flauta
doce. As primeiras menções ao termo surgiram ainda na primeira década dos anos 2000, a partir do
material institucional do Projeto Sopro Novo, vinculado à Yamaha Musical do Brasil (atualmente a
gestão do projeto é realizada pela Fundação Sopro Novo Yamaha).
O termo dulcista não consta em dicionários brasileiros nem tem base histórica. Sua origem
vem do nome do instrumento em língua espanhola- flauta dulce2. É uma escolha com certo apelo
poético: a palavra dulce talvez soe mais bela e sugestiva do que doce e sua derivada docista.
1
Este texto foi elaborado em consequência da palestra que apresentei no 3° Encontro de Performance em Flauta
Doce de Uberlândia-ENFLADU, realizado em março de 2021
2
Lembrando que na Espanha ela também é chamada de flauta de pico, significando flauta de bico.
Embora o uso de dulcista não seja consensual, vale lembrar que o emprego de flautista doce,
outro termo comumente utilizado para indicar quem toca flauta doce, também não é unânime entre
os intérpretes e nem está nos dicionários brasileiros. Ambos são tentativas de estabelecer uma
alternativa ao termo genérico flautista, que serve para quem toca qualquer tipo de flauta: transversal,
doce, flauta de pan, flauta celta, etc. Isso acontece porque em diversas circunstâncias há a necessidade
do intérprete de flauta doce se diferenciar daquele que toca flauta transversal, já que o termo flautista
tende a ser associado com quem toca este último instrumento.
Nem sempre foi assim. O autor português Luís Henrique nos lembra que o termo flauta, do
século XVI até o início do XVIII, refere-se essencialmente à flauta doce, sendo só ocasionalmente
utilizado para designar ambos os tipos (flauta doce e transversal)3. Então, se vivêssemos naquele
período, diríamos que somos flautistas e as pessoas entenderiam, sem maiores explicações, que
tocamos flauta doce. Entretanto, o mesmo autor pondera que flauta “diz hoje mais respeito à flauta
transversa do que à de bisel [flauta doce]”. A razão é clara: a flauta doce se ausentou do cenário da
música profissional entre meados do século XVIII e o início do século XX. A flauta transversal
permaneceu na história e ganhou o protagonismo do termo flauta.
É preciso deixar claro que a proposta de uma terminologia específica não significa abrir mão
da terminologia tradicional. Muito menos de querer estabelecer uma “rixa” entre quem toca flauta
doce e quem toca flauta transversal. Acontece que nunca na história houve tantos intérpretes
exclusivos de flauta doce. Até o período Barroco, normalmente quem tocava flauta doce tocava
também oboé e outros instrumentos de sopro. Atualmente, com a quantidade enorme de repertório
de que dispomos, especializar-se em flauta doce é uma realidade para muitos de nós. Quem é
profissional da flauta doce quer ser reconhecido pelo instrumento que toca, sem necessidade de
maiores explicações.
Mas se nem flautista doce nem dulcista são termos formais de nosso vocabulário, posso utilizar
um ou outro para indicar especificamente quem toca flauta doce? Eu, particularmente, não vejo
nenhum problema nisso. Se você se sente representado(a) pelo termo dulcista, use-o sem ressalvas.
Assim as novas palavras são agregadas ao nosso vocabulário.
Para finalizar essa seção, quero dividir aqui uma historinha. Em 2015, quando percebi que o
termo dulcista estava sendo utilizado para se referir a quem tocava flauta doce, escrevi à Academia
Brasileira de Letras a seguinte mensagem:
- Gostaria de saber se o termo correto para quem toca flauta doce é "flautista", "flautista doce"
ou "dulcista". Obrigada!
Resposta da ABL:
- Você deve observar a forma usual no meio musical. Dicionários registram flautista ou
flauteiro (substantivo) como aquele que toca flauta (sem distinções para o tipo de flauta). De
nada, disponha.
Bem, o tempo vai dizer se o uso do termo dulcista vai se popularizar no meio musical. Neste
documento, faço uso dele com consciência, na intenção de indicar que a bibliografia aqui proposta é
destinada essencialmente ao intérprete de flauta doce.
3
HENRIQUE, Luís. Instrumentos musicais. 3 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999. A citação feita adiante está
na p.256.
1. CATEGORIAS DE FONTES PRIMÁRIAS
Antes de mais nada, é preciso compreender que as fontes históricas têm origens e objetivos
diversos. A grande maioria dos livros surgiu a partir de necessidades locais, sem grandes pretensões
de servir como fonte para pesquisadores futuros. As informações presentes nestes livros pressupõem
um conhecimento prévio do leitor em relação à música praticada no período e no local, bem como à
sua ornamentação e caráter. Seria como se hoje escrevêssemos sobre gêneros musicais que ouvimos
diariamente nos meios de comunicação – já que todos os conhecemos, não é necessário descrevê-los
com detalhes ao leitor contemporâneo, apenas registrar informações que não são “memorizáveis”
num primeiro momento, como a harmonia, a levada do ritmo do acompanhamento, etc. Assim,
pesquisar uma determinada fonte significa estudar seu conteúdo e também compreender o contexto
em que a obra foi criada, quais os objetivos do autor e o seu público alvo.
Um bom jeito de iniciar é identificar a categoria do texto que se pretende estudar. Alguns livros
são manuais breves e práticos, com informações mais ou menos detalhadas sobre a flauta doce e muito
repertório; outros abordam exercícios específicos de ornamentação; há aqueles que reúnem diversos
conteúdos de música, apresentando informações pontuais sobre a flauta doce; outros ainda são
verdadeiros tratados, por abordarem com riqueza de detalhes todos os aspectos que envolvem a
prática instrumental.
Essas categorias poderiam ser assim definidas:
1.2. Compêndios
São aqueles livros que se prestam a reunir uma diversidade grande de assuntos da área de
música, contendo uma seção destinada aos instrumentos onde apresentam alguma informação
relevante sobre a flauta doce. Normalmente são escritos por compositores, teóricos, mestres, enfim,
figuras tidas como autoridades musicais. São os compêndios, epitome, e livros como Musica getutscht,
Harmonia Universelle, etc. Estes livros funcionam como material de consulta sobre tipos e família de
flautas, sobre aspectos técnicos básicos e assuntos de teoria musical.
1.3. Tratados
Segundo o Dicionário Aurélio, tratado é um “estudo ou obra desenvolvida a respeito de uma
ciência, arte, etc.”. No Dicio4, aparece como “obra que demonstra didática e detalhadamente um ou
muitos assuntos”. Portanto, o tratado seria uma obra mais aprofundada que as categorias anteriores.
Há fontes nomeadas como tratados desde pelo menos o século XVI, mas consideramos aqui
um tipo de publicação que aparece de maneira mais consolidada no século XVIII. São grandes ensaios
sobre tudo o que envolve a prática do instrumentista, abrangendo informações que estão presentes
4
https://www.dicio.com.br/tratado/
nas outras categorias, como técnica instrumental, ornamentação, explicações sobre teoria musical, só
que abordadas com foco na prática do instrumentista. Este tipo de publicação se destaca por
apresentar recomendações que são quase como conselhos de mestre para discípulo, como por
exemplo: o que esperar de um flautista, como ter êxito em seu desempenho, etc. Estão nesta categoria
os Tratados, Ensaios (Versuch/Essay) e Princípios (Principes).
1.4. Métodos/Estudos
As publicações intituladas como “métodos” surgem em meados do século XVIII, quando a
flauta doce começou a sair de cena na prática profissional de música. Os métodos se estabeleceram
com o advento do Conservatório de Paris (1795) e de suas publicações, que são até hoje referências
para o estudo de instrumentos e de canto. Os primeiros métodos, descendentes diretos dos tratados,
ainda traziam muitas informações genéricas sobre os instrumentos. Os que se sucederam tiveram
como foco exercícios técnicos organizados (quase sempre) em uma ordem progressiva, eventualmente
com a inserção de estudos mais longos e expressivos. Podemos ainda incluir nesta categoria as
compilações de estudos, que frequentemente são peças solistas com caráter virtuosístico. O objetivo
destes livros é o aprimoramento da técnica convencional, mas também aprendemos muito sobre estilo
e sobre a pedagogia do período em que foram escritos. Em geral, tomamos emprestadas as
publicações do século XVIII desta categoria destinadas ao traverso, como aquela dos Exercícios Diários
de Frederico, o Grande.
2.8. Não deixe seu desejo falar mais alto que as evidências
Conto aqui uma historinha: quando ingressei como docente na UFRJ, soube que uma flauta
doce baixo, aparentemente original do século XVIII, integrava o acervo do Museu Delgado de Carvalho,
vinculado à Escola de Música da universidade. A flauta era alvo de duas histórias curiosas: 1) Seria uma
flauta doce original do construtor alemão Johann Christoph Denner (1655-1707); 2) Teria pertencido
a D. Pedro I, já que este tocava clarineta e fagote e chegou a compor algumas obras. As histórias tinham
algum fundamento pois, de fato, a flauta é muito parecida com os instrumentos Denner (há várias
flautas doces baixo deste construtor em museus europeus) e a Biblioteca da Escola de Música da UFRJ
abriga parte do acervo do antigo Imperial Conservatório de Música, a instituição que deu origem à EM.
Assim, elaborei meu projeto de tese com foco neste instrumento, pretendendo encontrar evidências
que comprovassem as hipóteses acima descritas, além de uma possível prática com flauta doce no
Brasil ainda no século XIX.
Pouco depois de ingressar no Doutorado, uma funcionária da Biblioteca da EM encontrou uma
anotação manuscrita em um dos catálogos do museu de instrumentos, indicando que a flauta doce
baixo havia sido doada por Leopoldo Miguez em 1896, quando o compositor exercia o cargo de diretor
da escola. Lá se foi a hipótese de que a flauta pertencia a D. Pedro I. Após uma análise caprichada do
instrumento, constatei que não havia nenhuma marca de construtor, e que portanto seria imprudente
afirmar que se tratava de uma original Denner. A partir desses fatos foi possível levantar outras
informações e formular novas hipóteses, mas o tema da minha tese teve que ser totalmente
reformulado. A flauta doce de Leopoldo Miguez virou um capítulo da tese, que trata da história do
instrumento no Brasil.
Eu desejava muito confirmar a existência de uma flauta doce Denner no Brasil, e seria o
máximo comprovar que D. Pedro I a usava em saraus familiares, quem sabe tocando música
renascentista e barroca? Mas as evidências eram outras, e contra elas não havia argumentos que se
sustentassem. Ainda que eu tivesse consciência de que as histórias sobre a flauta doce da EM eram
apenas histórias, aprendi que é necessário tomar cuidado para não deixar o desejo de provar uma
hipótese falar mais alto que as evidências de que ela não se fundamenta. E pode ser ainda pior: às
vezes queremos tanto comprovar um fato que deturpamos as fontes em favor da nossa argumentação.
Em se tratando de pesquisa em fontes históricas, afirmar algo com veemência pode ser
perigoso. Sempre é melhor usar termos como “as evidências apontam para...” ou “os fatos levantados
nos permitem supor...”. Para quem está começando seu caminho na pesquisa, eu diria para ter cautela,
não alimentar grandes expectativas de que será possível comprovar algo surpreendente em sua
pesquisa, mas diria também para não desanimar. Grandes achados musicológicos partiram de
suposições intuitivas, ou mesmo improváveis, dos pesquisadores responsáveis.
E, falando em improbabilidade:
Dependendo da resposta, considere se vale a pena insistir nas instruções do tratado ou se não
é o caso de abandoná-las. Por mais correta e dedicada que tenha sido a pesquisa, se na prática as
informações retiradas de uma fonte histórica resultarem em uma interpretação sem graça, esquisita,
difícil de realizar, opte por fazer o que lhe convença mais, tecnicamente e musicalmente.
Refletir sobre a prática é parte importante do ofício do intérprete. No caso da prática da
música antiga, ter propósitos e argumentos claros para guiar as escolhas da interpretação, baseados
em pesquisa nas fontes históricas, faz toda a diferença. Mas não se esqueça que somos músicos do
século XXI fazendo música do passado. Vivemos em um mundo totalmente diferente, somos pessoas
com outros objetivos e demandas, assim como nosso público.
No final das contas, o que importa é acreditar no que se faz, adotar escolhas interpretativas
que façam sentido para você. Então, toque antes, durante e depois da sua pesquisa, e deixe que seus
ouvidos e sua sensibilidade, aliados ao seu conhecimento, lhe digam como a música deve ser
interpretada.