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Yuri em Seu Gabinete: Um Romance de Geração
Yuri em Seu Gabinete: Um Romance de Geração
Resumo
1. Introdução
Fazia algum tempo que eu não pensava nisto. Estranho, estou mentindo de
novo. Seis anos e ainda não a esqueci. Lembro da primeira vez que percebi
estar apaixonado. Provavelmente eu não tinha consciência disso na época.
Geralmente ninguém tem, eu acho (CLARET, 2017, p. 13).
O pai circunscreve sua vida, como ao anunciar que iria dar ao filho o nome de
Tyrone, mas recuou ao saber que o ator era gay. Como se dar esse nome
fosse fazer o filho ser gay. A seguir, há a volta dos tormentos do primeiro amor,
com a primeira troca de tapas entre Juliano e Macrina: uma cena politicamente
incorreta, uma cena de violência contra a mulher.
E agora, morto o pai, o filho tornou-se um usuário de maconha, algo que o pai
desejava matar. Morto o pai, o filho sai de sua Moral, de sua circunscrição.
Esse capítulo, que inicia-se sob o signo de Lolita de Nabokov, apresenta um
personagem análogo a essa figura: Heródoto, o professor que aprecia ninfetas
e desse personagem tragicômico emerge a ligação com a memória do primeiro
amor, novamente, as lembranças prazerosas de sexo e música com Macrina.
As brincadeiras em si parecem comunicar mais do que seus diálogos, muito
próximos de monólogos superpostos. E essa desconexão ocorre em diálogos
seja políticos e amorosos. E há, nesse capítulo, a reflexão hilária e bastante
sintomática sobre sua geração:
Dois Beatles estão mortos:: talvez sejam problemas de nosso tempo: o fim do
século, a crise da razão ou se fazerem tão poucos filmes em preto e branco.
Quais são os expoentes da nossa geração? Onde estão os beats destruídos
pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus? Onde? Onde? Onde? Svul
Avrum possuía tantos expoentes amigos, fazendo tanto, fazendo tudo. Meu
Deus, será o que o chip venceu?, não estou falando do Deep Blue, é bem pior;
nós já nascemos datados, somos anacrônicos antes de uma geração, é a
maldita falta de perspectiva temporal; a maldita crônica jornalista que acha que
qualquer tempo, mesmo meses, constitui uma Era; na verdade, o espírito de
nosso tempo: época em que se dá nome a furacões e tornados, ou
simplesmente nos dias do making of..! –e pensar que tudo por causa do relógio
com seu tique-taque fatiador. O que restou ao homem além de sua própria
carne? A instrumentalização do que era o Grande Jogo. Alguém consegue pular
sua própria sombra? Damos cambalhotas em vão! (CLARET, 2017, p. 125)
Ao mesmo tempo, o passado, afirma, não pode ser desfeito. Essa frase é bem
típica de um processo recorrente: a narrativa mesma desfaz ou fragmenta o
que ela mesma apresenta logo em seguida ou em algumas passagens mais
adiante. Ela fala do sagrado, de Santo Agostinho, bem como dos ímpios, mas
ela mesma, que recusa os ímpios, é impiedosa. Mas o que é o sampler, senão
esse desfazer para recriar? Esse romance vale-se da estética fragmentária do
sampler. Ele sampleia Beatles, a seguir faz uma colagem usando Santo
Agostinho, reclama da crise da razão para logo em seguida fazer o elogio do
prazer do corpo (hedonismo) como tudo o que restou e da desrazão em frases
nonsense. O passado não pode ser desfeito, mas é preciso selecionar, no
romance, alguns momentos desse passado que sejam significativos para uma
geração. O romance debate-se com esse dilema e daí intercala: 1) Lolita e a
depilação feminina; 2) “diálogos” políticos sobre o governo Lula; 3) plano de
ensino de História em escola; 4) “diálogos” amorosos; 5) Peça teatral
dialogando com Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã; 6) Memórias do
Onze de Setembro. Isso mostra como a narrativa concebe os seres humanos,
em especial seus personagens, como compósitos e bizarros. A narrativa tem
um estilo e uma concepção de mundo. O fim, por vezes, é o prólogo e Macrina
está sempre sendo aguardada em sua volta de Londres. Ele pinça aqui e ali
referências e conceitos de inúmeras épocas históricas passadas. Sua
concepção de mundo é ao mesmo tempo singular e simultânea: os
personagens escutam For no One, dos Beatles, assombrados por guerras
entre Roma e Cartago. Macrina, amor impossível, não obstante, sempre
retorna com uma entrada espetacular.
Sem dúvida, em certa altura, pode-se perguntar: o que Yuri pensa em seu
gabinete? O fato é que ninguém é “de gabinete” dentre os personagens
apresentados nessa narrativa. A narrativa apresenta sua própria luta por
alcançar uma concepção de mundo unitária. E nesse ínterim, Lula mistura-se
com Lolita, Santo Agostinho está a milímetros de debates ímpios sobre pelos
do púbis, a loucura coloca em cópula alucinada entre o general Aníbal e os
Beatles, Hitler, o Onze de Setembro e Louise Brooks. Divaga-se com a mesma
facilidade sobre filmes, fumar maconha e sobre o nascimento de Jesus; um
mesmo personagem repassa mentalmente pensamentos sobre a morte do pai,
o primeiro amor, haxixe, PM e teologia.
Quando Juliano desceu as escadas para abrir a porta do pequeno hall, ela
[Macrina] simplesmente jogou uma sacola de plástico no chão, espalhando
diversas cartas, fotos e os restos de algumas rosas há muito falecidas. Ao longo de
seis anos ele estabeleceu as bases de seu ritual: lia e relia cartas e cartões,
poemas e pequenos bilhetes de amor. Na ordem em que foram escritos e postados
ou aleatoriamente. Ele ria e chorava. Pedia perdão e se masturbava (CLARET,
2017, P. 138).
E, naquele dia, como que sugerindo uma nova Era, foram três os filmes: Rio Violento,
Dolls, Matadouro 5; também à noite, foram vistos pelas ruas de bhz três fantasmas, e
quando uma leoa fugida do Zoo, pariu no relógio de Sol próximo, foi o fim! E o cristo
retornou! Bem, é verdade que Yuri estava exagerando nas imagens de uma mente
triste (CLARET, 2017, p. 164).
O início (o amor romântico) retorna, mas esse amor atirou flores mortas,
embora esteja aceso sexualmente. Tanto que há um progressivo descolamento
das regras: na infância houve um estranhamento com a família do pai nas
viagens, nas pescarias. Descolamento da realidade, inclusive. Depois da morte
do pai, esse processo de colisão com as regras sociais acelera-se e espraia-se
para todos os personagens: o Tavares adepto do regime militar dá carteirada
na PM bandida, Heródoto é professor e apaixonado por ninfetas, Juliano, que
ainda há pouco estava usando maconha ao lado de Tavares que dirigia,
discorre didaticamente sobre planos de ensino onde misturam-se Hitler, Beatles
e o telefone de ficha, bem como aqui e ali emergem, em meio ao caos da
ausência de causa e efeito, instruções sobre como fumar haxixe com cheiro de
côco na Savassi ao lado de um PM. Juliano também tem sua própria moral,
mas não é a moral patriarcal ou social, é uma moral singular, individualista,
hedonista. Esse capítulo intitula-se, bem sintomaticamente, Belo Horizonte,
Ano Zero ou Delenda Est Cartago.
A Queda das Torres Gêmeas em 2001 surge como um momento que marca
uma geração. No entanto, esse evento é antes de mais nada um evento
espetacular, um evento de mídia, é mais do mesmo. Morreram 2000 pessoas
nessa Queda das Torres, mesma quantidade de pessoas que morreram na
invasão do Panamá pelos Estados Unidos em 1989.
O narrador demonstrou saber, enfim, que para Juliano exorcizar esse primeiro
amor, é preciso que Macrina não mais retorne de forma alguma. Ela de certa
forma encarna o mito do eterno retorno, mas sob uma forma não libertária,
opera na lógica do pesadelo. Não há como prosseguir com as flores mortas e
os rituais durante mais tempo.
Uma cena não prepara a outra organizada em causa e efeito: há desde o amor
em monólogos superpostos quanto uma narrativa que, rarefeita, é tecida com
imagens desses vários tempos históricos superpostas: há mais cambalhotas
em busca de sombras do que vasos comunicantes propriamente ditos. E, na
verdade, essas imagens de uma mente triste chegam todas ao mesmo tempo
em 1999. A mente triste busca avidamente um sentido, laboriosamente o
constrói, embora seja perseguido pela condenação emitida no livro de Milan
Kundera, a propósito de mito fundante dessa narrativa: a vida não tem sentido.
Como em Cartago, todos os amores são impiedosos e cantam ao mesmo
tempo em nossos ouvidos.
4.Conclusão
5.Bibliografia: