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Organização:

Gladstone Leonel Júnior

1ª Edição
Copyright @ André Bueno Corrêa Moura; Anna Carolina de Oliveira Azevedo; Bruno
Henrique Parreiras; Diogo Henrique Silva; Éric Andrade Rezende; Fabrício Alves
Farias; Geovano Moreira Chaves; Gladstone Leonel Júnior; Gustavo Bueno Corrêa
Moura; Gustavo Nolasco; Izabela Neves Xavier; Romero Marconi, 2021

É proibida a reprodução deste livro sem a prévia autorização do autor e da editora.

Não autorizada a distribuição em Portugal, Angola e Moçambique.

Grafia não obedece ao acordo ortográfico da língua portuguesa de 1998, que vigora
desde 2009, pois defendemos a liberdade plena de escrita e encaramos as diferenças
linguísticas e ortográficas como uma riqueza cultural de cada lugar que não pode ser
suprimida por interesses comerciais e ditoriais.

Edição e preparação Imagem de Capa


André Sequeira Elmo Alves

Revisão Projeto gráfico


Adriana Fidalgo William Rabello

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O Time do povo mineiro : um olhar para os próximos 100 anos / Gladstone Leonel
Júnior (org.). -- 1. ed. -- Petrópolis, RJ : Editora Corner, 2021.

ISBN: 978-65-994119-1-5

1. Cruzeiro Esporte Clube - História 2. Futebol - Brasil - História 3. Futebol -


Torcedores 4. Memórias 5. Torcedores 6. Torcedores de futebol - Brasil I. Leonel
Júnior, Gladstone.

21-62135 CDD-796.3340608151

Índices para catálogo sistemático:

1. Cruzeiro Esporte Clube : Torcedores : História


796.3340608151

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Revista Corner Ltda.


CNPJ 21.610.527/0001-08
Rua Marquês de Paraná, 78, Petrópolis, Rio de Janeiro
SUMÁRIO
AUTORES ................................................................... 09

APRESENTAÇÃO ....................................................... 15
Gladstone Leonel Júnior

PREFÁCIO .............................................................. 19
Luiz Antonio Simas

PARTE 01.
A história de um clube com os pés no barro preto:
as pedras no meio do caminho ........................23

1.1. Da imigração italiana à construção de uma nova


capital: as origens da Società Sportiva Palestra Italia ........... 25
Geovano Moreira Chaves

1.2. Os indesejáveis: os primeiros passos de um gigante...... 48


Romero Marconi

1.3. Nascidos Palestra, forjados Cruzeiro ...............................60


Romero Marconi

PARTE 02.
A torcida com a cara do povo mineiro ......... 67

2.1. Do Barro Preto ao Mineirão: a trajetória da


torcida mais popular de Minas Gerais .....................................69
Éric Andrade Rezende; Gladstone Leonel Júnior

2.2. As mulheres e o time do povo ..........................................102


Anna Carolina de Oliveira Azevedo
2.3. Cruzeirenses, por que Maria? ...........................................115
Gladstone Leonel Júnior

2.4. Che X Barrientos: a política latino-americana


dentro de campo .......................................................................118
Gladstone Leonel Júnior; Diogo Henrique Silva

2.5. A luta popular no novo Mineirão ......................................124


André Bueno Corrêa Moura; Gustavo Bueno Corrêa Moura

PARTE 03.
Jogadores marcantes: quando o manto azul se
torna a segunda pele .......................................135

3.1. Niginho: o artilheiro antifascista ......................................137


Éric Andrade Rezende

3.2. Tostão: a genialidade em tom crítico ................................141


Éric Andrade Rezende

3.3. Sorín: a raça azul .................................................................145


Éric Andrade Rezende

3.4 Um Cruzeiro de estrelas negras e imortais .......................155


Gustavo Nolasco

PARTE 04.
Causos e cultura nas minas:
enredos em azul e branco ...............................159

4.1 Geraldo II: o operário guarda-metas .................................161


Gustavo Nolasco

4.2. Uma palestrina resistente e inegociável ..........................164


Gustavo Nolasco
4.3. Bituca e Tostão: encantadores de multidões ...................167
Izabela Neves Xavier

4.4. Clara Nunes: do Cruzeiro à Portela, o amor em


azul e branco ..............................................................................180
Gladstone Leonel Júnior

4.5. O último gol do Cruzeiro no Bento Rodrigues,


em Mariana ................................................................................183
Gustavo Nolasco

4.6. Salomé, a maior torcedora do mundo...............................186


Gustavo Nolasco

PARTE 05.
Soy loco por ti America: La Bestia Negra .......191

5.1. O nascimento do Cruzeiro na Copa Libertadores ............193


Gustavo Nolasco

5.2. A Libertadores de 1976 no covil


da ditadura de Pinochet .............................................................196
Gustavo Nolasco

5.3. La Bestia Negra das Américas: um protagonismo


retomado na adversidade ..........................................................199
Bruno Henrique Parreiras

5.4. Ser cruzeirense: paixão que se coloca para além de


qualquer fronteira .....................................................................217
Fabrício Alves Farias
Autores
André Bueno Corrêa Moura

É advogado, cruzeirense, frequentador do Mineirão desde que


aprendeu a falar, e irmão do Gustavo. Não arreda o pé da luta
por um futebol – e um Cruzeiro – mais justo e de todos.

Anna Carolina de Oliveira Azevedo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)


e Mestra em Administração Pública pela Escola de Governo
Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro
(FJP/MG). É servidora pública, feminista e carrega, desde meni-
na, a paixão pelo futebol e pelo Cruzeiro.

Bruno Henrique Parreiras

Além de um assíduo frequentador da arquibancada, é historia-


dor, professor da rede pública e membro do Grupo de Estudos e
Pesquisa Memória FC.

Diogo Henrique Silva


Bacharel em Comunicação Social pelo Centro Universitário de
Belo Horizonte (Uni-BH) e graduado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, es-
tuda História na UFMG e ministra aulas de sociologia e filosofia
na rede particular de Contagem.

Éric Andrade Rezende

Geógrafo, mestre em Geografia pela Universidade Federal de


Minas Gerais (UFMG) e doutor em Ciências Naturais pela Uni-
versidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Torcedor de arquiban-
cada e pesquisador da cultura torcedora cruzeirense. Membro
da Resistência Azul Popular e da Democracia Celeste.

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Fabrício Alves Farias

Cientista social, professor e colunista do jornal Brasil de Fato,


onde escreve sobre futebol e sociedade e, claro, sobre o Cruzeiro
Esporte Clube.

Geovano Moreira Chaves

Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG); com pós-doutorado em História pela Universidade Fe-
deral da Grande Dorados (UFGD).

Gladstone Leonel Júnior

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Flu-


minense (UFF). Pós-Doutor e Doutor em Direito pela Universi-
dade de Brasília (UnB) com estágio doutoral na Universitat de
València (Espanha). Mestre em Direito pela UNESP. Especialista
em Sociologia Política pela UFPR. Bacharel em Direito pela UFV.
Colunista do jornal Brasil de Fato. Pesquisador e membro do
IPDMS e da RENAP. Advogado, pelejeiro, vice-campeão da Copa
Tonhão e integrante da China Azul.

Gustavo Bueno Corrêa Moura

É advogado, cruzeirense, frequentador do Mineirão desde que


aprendeu a falar, e irmão do André. Não arreda o pé da luta por
um futebol – e um Cruzeiro – mais justo e de todos.

Gustavo Nolasco

Cruzeirense interiorano de Mariana/MG. Escritor, roteirista e


jornalista. Membro da Academia Marianense de Letras e sócio
da NITRO Histórias Visuais. Cronista do jornal Estado de Minas,
do portal Superesportes e da rádio Cinco Estrelas. Integrante do
Coletivo 1921, no qual se dedica a produzir e dirigir filmes so-
bre a torcida do Cruzeiro, como os premiados “Azul Escuro” e
“Eterno - Um capítulo incontestável”. Coautor dos livros Nossa

12
sala de troféus, Projeto Harpia 20 anos, Jardins da Arara de Lear
e Os Chicos (vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Fotografia).
Fundou e foi editor do jornal A Sirene, veículo de comunicação
dos atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco.

Izabela Neves Xavier

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Ge-


rais (UFMG) e cantora e articuladora do bloco de carnaval Todo
Mundo Cabe No Mundo, que traz a bandeira da inclusão das
pessoas com deficiência. Apaixonada pelo Cruzeiro desde a in-
fância, enxerga o futebol como braço da história cultural brasi-
leira e também como ferramenta potente para transformações
sociais.

Romero Marconi

Graduado em Comunicação Visual, frequentador do Mineirão,


pesquisador da história do Cruzeiro, editor do site Páginas
Heroicas.

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Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar.

(“O Trem Azul”, Lô Borges e Ronaldo Bastos)


Apresentação
Um olhar para os próximos 100 anos

Este não é um livro qualquer, mas o fruto de pesquisas e aná-


lises empíricas na relação entre torcedores/as e a sua paixão:
o Cruzeiro. Não se trata de algo meramente contemplativo,
como são as paixões narradas em romances, mas um senti-
mento que ajudou a forjar a própria identidade de quem ama, o
torcedor, e, consequentemente, do povo mineiro. Essa relação
dialética entre o Cruzeiro e o povo mineiro é algo em processo
de constante modificação no que tange a sua forma de intera-
ção com o mundo.

“O time do povo mineiro” recupera uma dignidade e um res-


peito invisibilizado e, por vezes, esquecido, por aqueles que
exercem o poder nas instituições. O livro não se propõe a mera
exaltação dos títulos de uma instituição centenária, o que já
seria louvável. A ideia é falar da nossa gente que, literalmen-
te, com sangue e suor construiu, mais do que um clube, uma
identidade genuinamente mineira chamada Cruzeiro.

Ao longo da história, o/a cruzeirense já foi o imigrante italiano


que, expulso do interior pela dificuldade de se fixar na terra, em
razão da estrutura latifundiária do país e da crise do ouro, com
a consequente transferência da capital de Minas Gerais de Ouro
Preto, chega para construir a nova capital, Belo Horizonte. Uma
boa parte dos servidores públicos deixa a antiga capital para se
assentar na região Centro-Sul de BH, para onde foi deslocada a
sede administrativa do estado, em bairros mais nobres à época,
que ficaram conhecidos como Funcionários, região da Savassi
etc. Inclusive, nessa região, no bairro de Lourdes, está situada

17
a sede do maior rival na capital. Enquanto isso, a mão-de-obra
decorrente do interior, seja de imigrantes ou de negros empo-
brecidos, atuava na construção civil para colocar Belo Hori-
zonte de pé e foi se situando em áreas mais afastadas. Com o
passar dos anos, e a não absorção dessa parcela da população
pelos espaços sociais já estabelecidos na capital, viu-se a ne-
cessidade de criar um clube, que recebesse a comunidade ita-
liana, majoritária na capital àquela época, na região do Barro
Preto, área um pouco mais afastada do centro administrativo.

O cruzeirense também já foi o trabalhador braçal que em 1923,


sem qualquer ajuda do poder público, diferentemente dos ou-
tros clubes da capital, ajudou a erguer o próprio estádio, no
Barro Preto. O estádio no Barro Preto, que tempos mais tar-
de se chamaria Estádio Juscelino Kubitschek, sediava os jogos
com a maior média de público da capital mineira até a cons-
trução do Independência. Na década de 1940, a perseguição à
colônia italiana era tamanha que grupos tentaram incendiar o
estádio, mas foram repelidos, sobretudo, pela ação defensiva
do povo palestrino das redondezas.

Tem também o caipira, o matuto, ou o simples morador do in-


terior, que acompanhava o Cruzeiro no radinho de pilha e, so-
bretudo, após a fundação do Mineirão, passa a visitar a capital
para ver o seu time jogar naquele grandioso estádio. Ir a BH
passava a ser um animado programa de família.

Não se pode esquecer das mulheres cruzeirenses, milhões de


apaixonadas por todo o estado. Essas, chamadas por alguns, pe-
jorativamente, de Marias, para nós constituem sinônimo de luta,
de raça, de gana e de sonho sempre, como referenciado na música
de Milton Nascimento, mulheres que passam a se interessar por
futebol e lutam por reconhecimento e participação em um espor-
te que jamais deveria ter sido privilégio de homens. O crescimen-

18
to da torcida cruzeirense é proporcional ao interesse e participa-
ção das mulheres na própria esfera social e esse é um dos motivos
pelo qual a torcida se massificou enquanto China Azul.

Hoje, somos milhões que querem participar, cada vez mais, dos
rumos do próprio Cruzeiro, até porque ele não é mais aquela
pequena associação de imigrantes da capital em construção.
Hoje, ele é patrimônio material e imaterial do povo mineiro,
pois se manifesta desportivamente e, muito além disso, tem
forte papel cultural construtor de subjetividades no meio fa-
miliar e identidades populares que também devem influenciar
na própria transformação. O Cruzeiro do século XXI é negro,
é branco, é indígena, é católico, é do candomblé, é mulher, é
homem, é pobre, é rico, é gay, é hétero, é trans, é cantor e é ca-
melô, é da roça e da cidade, é de Belo Horizonte ou de Piumhi,
é de Minas Gerais, é do Brasil e é do mundo.

Os nossos grandes feitos não se explicam só pelo futebol, eles


fazem parte da vida do povo. Está nos clubes e nas esquinas de
Milton e Lô; na devoção de Dona Salomé, a maior torcedora do
mundo; na genialidade de Tostão; no samba em azul e branco
de Clara Nunes e do maestro Jadir Ambrósio; nos tijolos colo-
cados por cada palestrino na construção do Estádio do Barro
Preto; no tropeiro com cerveja para alimentar o corpo e a alma
da China Azul. No mar de montanhas, no meio das Alterosas, a
vida mineira ganha mais sentido sendo Cruzeiro. Ser campeão
é só uma consequência.

Todas essas formas vivas de manifestação do que é ser Cru-


zeiro têm o papel, e devem ter o protagonismo, de refundar o
Cruzeiro dos próximos cem anos.

02 de janeiro de 2021, o dia do centenário.


Gladstone Leonel Júnior

19
Prefácio
Ontem, Hoje e Amanhã

O que cada vez menos me interessa no futebol é aquilo que


acontece dentro de campo ou nos bastidores de um jogo cada
vez mais desencantado, encarado como um negócio, pensado
a partir dos interesses das transmissões televisivas e que en-
cara o torcedor como o cliente de um produto.

O que me comove é tentar entender como o futebol construiu


sociabilidades, afetou as histórias de homens e mulheres co-
muns, embalou sonhos, destruiu expectativas, fez com que a
epopeia e a tragédia andassem de mãos dadas pelos campos e
arquibancadas do mundo inteiro. E é disso que essa reunião de
histórias sobre o centenário Cruzeiro Esporte Clube trata.

A origem italiana do clube, o papel do futebol na reconstrução


de redes de proteção social dos imigrantes, os cruzamentos en-
tre a história do clube e a de Minas Gerais, as relações entre o
futebol e a urbanização de Belo Horizonte, a epopeia da cons-
trução do estádio no Barro Preto, as dificuldades que os italia-
nos enfrentaram na década de 1940 — Brasil e Itália estavam
em estado de guerra declarada —, as Marias encantadas pela
força do canto de Milton Nascimento, os torcedores anônimos e
famosos, os craques lembrados e os que não são mais tão lem-
brados assim, as histórias que merecem ser contadas em praça
pública e ao pé do fogão, as conquistas retumbantes e os dribles
nas adversidades: está tudo aqui.

Ao sair da leitura dos textos, ocorreu-me dizer que um clube de


futebol da dimensão do Cruzeiro é um fato social completo. Em

21
torno da paixão azul circulam modos de cantar, comer, beber,
vibrar, sofrer, chorar, fazer política, praticar a cidade, viver
em comunidade, interagir com o mundo na dimensão do en-
cantamento, feito o verso de “Sei lá, Mangueira”, uma parceria
entre Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho: a vida
não é só isso que se vê; é um pouco mais.

Ao falar do passado, relembrar histórias, construir memórias,


este livro aponta para o que o Cruzeiro pretende ser. Tradição,
no fim das contas, não é algo estático, parado no tempo, regis-
tro arqueológico daquilo que se cristalizou. Tradição implica
em conhecimento do passado como caminho para a compre-
ensão do presente e construção do futuro. A história do Cru-
zeiro deve ser encarada como de fato é: uma epopeia brasi-
leira bordada pela beleza e pelo tanto de vida que há, apesar
dos donos do poder, na paixão das mulheres e homens comuns
encarnada em sonho e gol.

Luiz Antonio Simas

22
PARTE 01.

A história de um
clube com os pés no
barro preto:
as pedras no meio do
caminho
1.1. Da imigração italiana à construção
de uma nova capital: as origens da
società sportiva palestra italia
Geovano Moreira Chaves

De Palestra a Cruzeiro: um fenômeno de explosão demográfica


partilhado por um sentimento comum

Attílio Turci nasceu em Belo Horizonte, no dia 05 de março de


1905. Seus pais eram imigrantes italianos em busca de uma
melhor condição de vida na recém-inaugurada capital de Mi-
nas Gerais. No início de sua adolescência na cidade, Attílio Tur-
ci trabalhou como pedreiro, tendo, inclusive, participado da
construção do prédio da antiga Santa Casa de Misericórdia, na
praça Hugo Werneck. Attílio Turci fez parte do time da Società
Sportiva Palestra Italia, escalado nos primeiros jogos do clube.
No dia 17 de abril de 1921, atuou como titular da equipe no es-
tádio do Prado Mineiro e contribuiu para a vitória de 3 a 0 so-
bre o que viria a ser futuramente seu maior rival a nível local.
A biografia de Attílio Turci, hoje homenageado como nome de
rua no bairro Caiçara, está disponível na seção ficha descritiva
do Arquivo Público Mineiro, conforme dispõe Filgueiras (2011).

A vida desse filho de imigrantes italianos oriundos da região


da Emília-Romanha é apenas um exemplo particular de uma
história que transcende décadas e completa seu primeiro cen-
tenário em 2021. O que impressiona nessa história é entender
como um grupo de imigrantes italianos que habitaram a capital
de Minas Gerais no início do século XX foram os responsáveis
diretos pela criação de uma instituição esportiva capaz de aglu-
tinar em torno de si milhões de pessoas um século depois.

27
Na intenção de compreender como foi possível a fundação da
Società Sportiva Palestra Italia, faz-se fundamental analisar
o contexto que tornou plausível sua construção, de modo a
abranger o cenário social e geográfico em que se deu a fun-
dação do clube. A construção e a formação da cidade de Belo
Horizonte, em conjunto com o processo de imigração italiana
direcionada a habitar e trabalhar na construção da então nova
capital, de feições republicanas, são elementos fundamentais
para que se possa ter melhor dimensão do processo que cul-
minou nas origens do Cruzeiro Esporte Clube.

Os imigrantes italianos que se deslocaram para trabalhar na


construção de uma nova capital para o Estado de Minas Gerais
contribuíram de forma efetiva também para fundar o que viria
a ser um dos maiores clubes de futebol da América do Sul e do
mundo, construindo, por meio do esporte, uma identidade so-
cial partilhada por milhões de pessoas.

Para tanto, faz-se necessário entender as genealogias que tor-


naram possível esse fenômeno. Salientamos o termo fenôme-
no principalmente quando vislumbramos a explosão demo-
gráfica de torcedores que se criou em cem anos. Necessita-se
remontar às origens para tentar descortinar os antecedentes
históricos ocorridos no que se pode denominar período Pré-
-Palestra, de modo que se possa compreender melhor seu sur-
gimento. Para tanto, o recorte temporal inicial é o século XIX e
o recorte geográfico é a então fragmentada Itália.

Da Itália para Minas Gerais:

A região geográfica que ficaria conhecida como Itália experimen-


tou, no século XIX, um processo de unificação que ficou conhecido
como Risorgimento. Após uma longa época dominado por Napo-
leão, pelo Império Austro-Húngaro e pela Igreja Católica, assim

28 O time do povo mineiro


como também marcado por muitas revoltas internas, sendo
que algumas delas tinham como intenção unificar a região
em torno de uma nação comum, o cenário social do territó-
rio italiano era desolador, conforme informa Cavalieri (2011).
Tal situação de vulnerabilidade social foi ainda mais agravada
pelo fato de que a região que ficou delimitada como Itália foi
marcada por uma economia predominantemente agrária até
a unificação, sendo que após este marco se começa um pro-
cesso de industrialização acelerado que causou, de acordo com
Cavalieri (2011), uma mecanização das propriedades agrícolas,
fazendo com que as pessoas que tinham seus trabalhos dire-
tamente ligados à terra, diante da situação que se apresenta-
va, ficassem ainda mais em situação de pobreza. Foi diante de
tal ocorrência de pauperização que, segundo Cavalieri (2011),
milhares de italianos perceberam na emigração uma possibi-
lidade de melhorar suas precárias condições de vida. O próprio
governo italiano da época, como comenta Cavalieri (2011), in-
centivou o envio de italianos para outras partes do mundo, na
intenção de diminuir, dessa forma, o contingente populacio-
nal do território, acreditando que, ao agir assim, se ameniza-
riam os problemas.

O Brasil foi um dos grandes destinos dos emigrantes italianos. O


processo de abolição da escravidão e as teorias raciais da época
influenciaram diretamente nesse processo. Cavalieri (2011) desta-
ca também que, além do fator racial, havia também a questão dos
vazios demográficos no território brasileiro que, na crença dos
governantes da época, poderiam ser preenchidos pelos imigran-
tes. Os italianos foram bastante solicitados por suas conhecidas
especializações técnicas e pela facilidade de adaptação quando
comparada a de outros imigrantes, como entende Cavalieri (2011).

Da fase imperial à republicana, a política de imigração teve


bastante relevância no Brasil, sendo que os modos de trabalho e

Geovano Moreira Chaves 29


de assentamento, assim como os lugares a que se destinaram e
em que se assentaram os imigrantes, caracterizam este proces-
so de imigração, conforme informa Rodrigues (2009). De modo
subvencionado pelo estado, a imigração em Minas Gerais se deu
em dois períodos principais: de 1867 a 1879 e após 1880, depois
da publicação de várias leis e regulamentos para tentar intro-
duzir mais imigrantes. Cavalieri (2011), por sua vez, considera
que, antes da abolição, os imigrantes que se dirigiam a Minas
Gerais eram oriundos de outros estados brasileiros. Somente
com o advento da República é que Minas Gerais firma contra-
tos que trazem o imigrante italiano diretamente para o estado.
Este fato, na opinião do autor, é o que explica o número de imi-
grantes italianos em Minas Gerais ser maior que a quantidade
de imigrantes de outras nacionalidades.

Rodrigues (2009) relata que foram criadas estruturas esta-


tais para organizar a imigração, como, por exemplo, o Servi-
ço de Imigração, Colonização e Hospedarias para Imigrantes,
conforme ocorreu em Juiz de Fora. De acordo com o estudo de
Rodrigues (2009), também existiram sociedades particulares
para atrair os imigrantes, formadas por empresários e cafei-
cultores da região da Zona da Mata mineira, como foi o caso da
Associação Promotora de Imigração.

A Zona da Mata mineira teve grande preponderância na eco-


nomia cafeeira do final do século XIX e início do XX. Principal-
mente a partir de Juiz de Fora, porta de entrada, houve várias
políticas de favorecimento à inserção de imigrantes em Minas
Gerais. Tal interesse nesse imigrante se deu pela crença de que
este possuía mão de obra qualificada, e de que sua inclusão no
trabalho da lavoura cafeeira possibilitaria melhor desenvolvi-
mento do setor. Tal compreensão, no entanto, não levava em
consideração o enorme contingente populacional da popula-
ção afro-brasileira que foi deixada à margem da inserção social

30 O time do povo mineiro


mediante a possibilidade de trabalho, em detrimento da visão
que se tinha do imigrante. Porém, nesse cenário, os imigran-
tes que foram atraídos por promessas de oportunidades que
poderiam lhes oferecer melhores condições de vida, em grande
medida, acabaram se inserindo em um cenário de mentalidade
escravagista, sendo forçosamente levados a trabalhar em con-
dições precárias e viverem sob lastimáveis condições de vida.

No entanto, Rodrigues (2009) ressalta que os imigrantes que


se deslocaram para Minas Gerais não necessariamente tive-
ram seus destinos como trabalhadores de lavouras cafeeiras.
Muitos deles foram alocados em trabalhos industriais e ur-
banos. Nesse contexto, a nova capital de Minas Gerais esta-
va sendo erguida, e havia uma necessidade enorme de mão de
obra para a construção civil.

Outro ponto que merece destaque é a imigração subvencio-


nada, uma vez que em 1894, de acordo com os argumentos
de Cavalieri (2011), o governo de Minas Gerais criou a Supe-
rintendência de Emigração na Europa, com sede em Gênova,
que cuidava da propaganda, do controle, do transporte e da
documentação dos imigrantes que tinham como destino Mi-
nas Gerais. Entre 1894 e 1897, houve a entrada de um grande
número de imigrantes italianos no estado. Utilizando como
fonte o livro da Hospedaria de Imigrantes de Juiz de Fora, Ca-
valieri (2011) informa que entraram em Minas Gerais 49.882
imigrantes, sendo 45.511 italianos. Cavalieri (2011) cita tam-
bém um relatório de Carlos Prates que informa ter chegado no
mesmo período em Minas Gerais cerca de 70.817 imigrantes,
sendo que 92% deste total eram italianos, ou seja, 65.153. Estes
italianos eram na grande maioria vênetos, toscanos ou meri-
dionais, que, além de serem deslocados para os núcleos colo-
niais criados pelo governo, também tiveram como destino a
nova capital em construção.

Geovano Moreira Chaves 31


Para compreendermos melhor o deslocamento dos imigran-
tes, neste caso específico italianos, para a nova capital de Mi-
nas Gerais, precisamos destacar algumas situações funda-
mentais. A primeira delas é o descontentamento político com
a centralização dos poderes de governo como foi feita na fase
imperial. A segunda são as novas ideias republicanas, que pre-
tendiam trazer ares de mudança e renovação ao cenário polí-
tico brasileiro.

Belo Horizonte como nova capital de Minas: um projeto republicano

Segundo Passos (2013), a Proclamação da República, em 1889, e


o ambiente de novas ideias que adviriam deste acontecimento
trouxeram consigo o debate sobre a necessidade de construção
de uma nova capital para Minas Gerais. Ouro Preto era a capi-
tal do estado desde 1720, o que desagradava o projeto republi-
cano que era, em grande medida, inspirado pelo positivismo.
Para os que apoiavam a mudança do centro administrativo,
conforme entende Passos (2013), uma nova e moderna capital
representaria valores urbanos e poderia favorecer as práticas
republicanas, uma vez que os favoráveis às mudanças enten-
diam como necessário o rompimento do modelo de sociedade
que estava ligado ao tradicionalismo, e uma vez que o advento
do republicanismo trazia consigo uma nova ideia de espaço;
neste sentido, uma nova capital para Minas Gerais consolida-
ria a imagem republicana que se pretendia e ainda daria sen-
tido material à ideia de ruptura com um modelo de tradição
que não mais era desejável. Segundo Passos (2013) apud Arru-
da (2000), “Belo Horizonte surgiria tendo como ideal ser uma
metrópole, não somente de Minas Gerais, mas da República. O
projeto da cidade teria sido pensado de forma a escrevê-la no
mundo moderno, apresentando-se assim, como espaço para
constituição de uma nova sociabilidade”.

32 O time do povo mineiro


Existiam disputas internas para a definição de local para a
nova capital. As áreas centrais do estado, marcadas por eco-
nomia mineradora já em decadência pretendiam manter a ca-
pital em Ouro Preto e rivalizavam com as regiões sul e da Zona
da Mata, de economia cafeeira próspera no contexto, que de-
fendiam a construção de uma nova capital. Conforme informa
Passos (2013), “no dia 24 de outubro de 1891, foi promulgada a
Lei nº1, adicional à Constituição Estadual de Minas Gerais, que
autorizava o estudo do meio ambiente para se definir o local a
ser escolhido para a Nova Capital”. Para esta construção, foi
organizada uma “Comissão de Estudos” formada por enge-
nheiros e médicos sanitaristas que, no entendimento da au-
tora, ficou responsável por analisar qual o melhor lugar para a
construção da nova capital para o Estado de Minas Gerais.

Estava prevista a construção de uma cidade para abrigar entre


150 mil e 200 mil habitantes, e fatores como localização, cli-
ma, salubridade, incidência de doenças e epidemias deveriam
ser levados em consideração. Belo Horizonte, Várzea do Marçal,
Paraúna, Barbacena e Juiz de Fora foram regiões cogitadas. In-
teresses políticos, topografia, água potável, jazidas, clima e a lo-
calização mais centralizada foram determinantes para a escolha
de Belo Horizonte, e, desse modo, conforme indica Passos (2013),
foi em 17 de dezembro de 1893 que Belo Horizonte foi designada
como o local para se erguer a nova capital de Minas Gerais, sendo
inaugurada em 12 de dezembro de 1897, com características que
procuravam imitar noções de urbanização importadas do es-
trangeiro, inspiradas no republicanismo e positivismo.

Os imigrantes italianos em Belo Horizonte

A chegada em números significativos de italianos a Belo Hori-


zonte se dá em conjunto com o início das obras para a constru-
ção da nova capital. Os próprios engenheiros, conforme indica

Geovano Moreira Chaves 33


Cavalieri (2011), solicitaram a vinda de mão de obra estrangeira
por acreditarem que era mais qualificada para este tipo de tra-
balho. A maior parcela destes imigrantes que chegaram a Belo
Horizonte era formada por italianos que, conforme Cavalieri
(2011), não somente vieram para trabalhar na construção civil,
mas também se estabeleceram nos núcleos coloniais e foram
importantes para a constituição de um mercado de hortaliças,
sendo também fundamentais no processo de industrialização
da cidade. Cavalieri (2011) cita os dados do Almanack da cida-
de de Minas de 1900, que traz a informação que, dos cinco mil
trabalhadores que foram contratados para construir Belo Ho-
rizonte, três mil eram italianos.

Como imigrantes que, em sua esmagadora maioria, vieram


para o Brasil fugindo das condições precárias de vida que ti-
nham nas regiões italianas onde anteriormente viviam, e ten-
do como condição na nova terra o trabalho duro, da constru-
ção civil, fábricas e lavoura, a massa de imigrantes italianos
não encontrou na nova capital em construção as condições
de vida com as quais provavelmente sonhou. Principalmente,
no quesito moradia, uma vez que, como trabalhadores em sua
maioria, pode-se dizer que o projeto urbanístico de Belo Hori-
zonte não lhes favoreceu, pois a cidade planejada foi dividida
para também separar socialmente seus moradores por renda
e prestígio social. Apesar de os italianos, em certa medida,
também suprirem a mão de obra de engenheiros, arquitetos
e mestres de obra, por motivos óbvios o contingente neces-
sário para uma obra do volume da construção de uma cidade
demonstra que a imensa e absoluta maioria eram de operá-
rios e trabalhadores braçais. É fato que um pequeno número
de italianos que vieram para o Brasil era formado por pessoas
de condições financeiras razoáveis e que contribuíram para o
desenvolvimento industrial brasileiro. No entanto, a pobre-
za, a miserabilidade e o analfabetismo pareciam a tônica da

34 O time do povo mineiro


maioria absoluta dos imigrantes italianos que vieram para
Belo Horizonte.

A segmentação social também foi uma característica marcan-


te da recém-inaugurada capital. De acordo com Passos (2013),
a planta da cidade, produzida pelo engenheiro Aarão Reis, di-
vidiu Belo Horizonte em zona urbana, zona suburbana e a zona
rural. A segunda ficava fora da avenida do Contorno, e as ca-
madas populares da cidade foram expulsas da região central
e urbana para essa área. Conforme o recenseamento de 1912,
Belo Horizonte contava com 12.033 habitantes na área urbana,
14.842 na suburbana e 11.947 na rural.

O primeiro núcleo colonial urbano criado para abrigar os imi-


grantes foi Barreiros, em 1897, conforme informa Cavalieri
(2011). Logo após Barreiros, foram criados os núcleos coloniais
de Vargem Grande, Carlos Prates, Américo Werneck, entre ou-
tros. O objetivo da criação desses núcleos era fixar o grande
número de operários que trabalharam na construção da capi-
tal. Cavalieri (2011) considera que a grande presença de italia-
nos em tais núcleos que se tornariam os bairros de subúrbio da
capital foi fundamental para a assimilação dos imigrantes na
cidade de Belo Horizonte.

No entanto, vale ressaltar que, de acordo com os dados dos Se-


cretários da Agricultura de 1900 a 1910, conforme apresentados
por Cavalieri (2011), os cinco núcleos coloniais urbanos juntos
totalizavam 953 habitantes, sendo que, de acordo com o Al-
manack da cidade de Minas de 1900, cerca de três mil italia-
nos trabalhavam na construção da capital. Onde então estariam
habitando esses italianos? Segundo Cavalieri (2011), em áreas
suburbanas ou em bairros mais centrais, mas não designados
para servidores públicos, que eram considerados os luxuosos.
Muitos desses italianos viviam em barracos improvisados

Geovano Moreira Chaves 35


junto às obras de construção da capital até a sua finalização,
assim como também nos bairros Santa Efigênia e Barro Pre-
to, o que, segundo Cavalieri (2011), demonstra que os italianos
estavam muito mais ligados às atividades urbanas do que às
agrícolas. Isto se justifica também pelo fato de muitos italia-
nos viverem na hospedaria para imigrantes construída pelo
governo nas margens do ribeirão Arrudas e da linha férrea,
que tinha capacidade para abrigar duzentas pessoas e que, de
acordo com o jornal “A Capital” de 10 de julho de 1897, confor-
me relata Cavalieri (2011), acomodava 1.543 pessoas.

Para os funcionários públicos que mudaram de Ouro Preto


para a nova capital, o governo do estado cedeu gratuitamente
lotes de terras, de modo a estimulá-los a habitar a zona urba-
na. O bairro do Funcionários foi onde se concentrou o funcio-
nalismo público, conforme informa Passos (2013).

No entanto, a pobreza foi um grande problema nos anos subse-


quentes à criação de Belo Horizonte. Isso porque, mesmo inau-
gurada, a capital estava longe de finalizada. A crise financeira
de Minas Gerais e do Brasil fez com que as obras fossem por
muitas vezes paralisadas e com que muitos trabalhadores não
recebessem salários, de acordo com Cavalieri (2011). Também
após o aviso do fim das obras os operários ficaram sem ter para
onde ir, e assim tem origem a criação de núcleos populosos nas
periferias, como o Barro Preto, Calafate e Lagoinha.

Quanto à habitação dos operários, Passos (2013) informa que


estes viviam em cafuas e barracões sem conforto, localizados
em grande medida junto ao Córrego do Leitão, no atual Barro
Preto, assim como no Alto da Estação, no atual Santa Tereza.
Em 1900, o prefeito Bernardo Monteiro concedeu provisoria-
mente lotes a operários moradores de cafuas que viviam na re-
gião da praça Raul Soares e no Barro Preto, realocando-os para

36 O time do povo mineiro


regiões então mais afastadas, como o Calafate. Tal medida,
conforme demonstra Passos (2013), não agradou aos operários
que, por meio do jornal “O Operário”, que circulou no contexto,
alertavam para o fato de que no Barro Preto estava se forman-
do uma “cidade de cafuas” e que a mudança provisória para a
região mais distante do Calafate não solucionaria o problema,
pois formariam novas aglomerações daqueles tipos.

A Vila Operária do Barro Preto foi criada oficialmente em 1902,


embora a ocupação da região tenha começado bem antes. A
região já não era mais suficiente para a ocupação do opera-
riado, e, assim sendo, Passos (2013) considera que, na intenção
de manter o operariado sempre afastado da área urbana, em
1917, o prefeito Cornélio Vaz de Melo concede nova região ao
operariado, denominada “pasto do mercado”. Em 1920, con-
cedeu alguns terrenos na região da Lagoinha para a formação
de uma nova vila operária.

A colônia italiana em Belo Horizonte (e no Brasil como um


todo) utilizou da criação de associações para se defender no
novo território. Conforme informa Bertonha (2010), havia
muito preconceito e restrições contra os italianos no Brasil,
pois muitos deles foram identificados como ameaça aos bra-
sileiros no que se referiam a disputas por postos de trabalho
na lavoura e na construção civil. Em muitos casos, Bertonha
(2010) informa que os italianos foram tidos como pobres,
analfabetos, de hábitos peculiares que carregavam vários es-
tereótipos, como o da falta de higiene, delinquentes, violentos,
subversivos e devassos, entre outros.

Essa situação justifica a organização de italianos em associa-


ções de modo a ganharem força e representatividade. A pri-
meira criada em Belo Horizonte foi a Società Operaia Italiana
di Beneficenza e Mutuo Soccorso. (Sociedade Operária Italiana

Geovano Moreira Chaves 37


de Beneficência e Mútuo Socorro.) Conforme nos relata Cava-
lieri (2011), consta no jornal “Bello Horizonte” de 23 de feve-
reiro de 1896 a proposta de uma sociedade beneficente ope-
rária que tinha como objetivo ajudar os pobres e enfermos.
Cavalieri (2011) destaca também que teve atuação na capital de
Minas Gerais o agrupamento conhecido como Liga Operária,
que surgiu em 1900 e era responsável pela publicação do jornal
“O Operário”, espaço de divulgação das reivindicações operá-
rias da capital. Dutra (1988) chama atenção para o fato de que
foram os italianos os responsáveis pela primeira greve ocor-
rida em Belo Horizonte, em 1912, organizada pelos operários
da construção civil. A greve foi exitosa e conquistou o direito à
jornada diária de oito horas, que também passou a ser adota-
da nas fábricas da capital por consequência dos resultados da
greve. Entre as várias associações italianas que surgiram na
capital mineira, uma fundada e centrada em torno do futebol
se perpetuou e se misturou com os rumos da cidade.

A Società Sportiva Palestra Italia

Embora já organizada em outras formas de associação desde


a primeira década do século XX, no que se refere à partici-
pação efetiva no futebol, a presença de italianos no futebol
de Belo Horizonte era bem pequena. Somente na década de
1910 é que a organização de clubes com base na colônia de
imigrantes italianos ganhou força, uma vez que a articulação
entre esporte e afirmação identitária fica mais evidente entre
a colônia italiana que habitava a capital mineira, conforme
indica Ribeiro (2009).

Essa afirmação identitária se explica também por dois mo-


tivos. O primeiro diz respeito ao advento da Primeira Guerra
Mundial, que enfatiza uma ideia de Nacionalismo que ganhou
força no mundo e reverbera diretamente no esporte, inclusive

38 O time do povo mineiro


no futebol de Belo Horizonte. Nesse contexto, segundo Ribeiro
(2009), as colônias de imigrantes sentem a necessidade de es-
treitar laços e evidenciar seus sentimentos patrióticos. Além
da questão nacionalista, em relação ao segundo motivo Ribei-
ro (2009) destaca a popularização do esporte a partir da déca-
da de 1910, uma vez que os imigrantes, sobretudo os italianos
como no caso de Belo Horizonte, eram de origem proletária.

A Società Sportiva Palestra Italia, fundada em 02 de janeiro de


1921, não foi a primeira agremiação esportiva voltada para a
colônia italiana na capital. Segundo Santana (2003), em 1907,
houve o primeiro projeto de um clube italiano, o Americano
Foot Ball Club, que disputou poucas partidas. Jovens italianos
interessados no futebol se dispersaram por outros clubes da
cidade, sendo que o Yale, que surgiu em 1910 no Barro Preto,
foi o que reuniu a maioria dos italianos interessados no espor-
te. Também há registro, conforme orienta Santana (2003), do
Scratch Italiano, que teve existência efêmera. Em 1918, tam-
bém surgiu o Palestra Brasil, que não vingou. Porém, em 1920,
a necessidade e vontade de um clube que representasse a colô-
nia italiana em Belo Horizonte começou a se materializar e a
se tornar realidade em termos de força esportiva e represen-
tatividade popular.

Para compreendermos melhor os antecedentes que tornaram


possível a fundação do Palestra Itália, é necessário elucidar os
clubes nascidos anteriormente e que tiveram influência im-
portante na consolidação palestrina. Ribeiro (2014) comenta
que o grupo que organizou o combinado de jogadores denomi-
nado Scratch Italiano em 1916 juntou-se a outros futebolistas
na intenção de fundarem um novo clube, e esta intenção aca-
bou por culminar no Palestra Itália. Santana (2003) entende
que a crise pela qual passou o Yale fez com que vários jogado-
res deixassem o clube, fato este fundamental para a formação

Geovano Moreira Chaves 39


do primeiro elenco do Palestra Itália. Nesse sentido, o efême-
ro Scratch Italiano de 1916 e o operário e popular Yale são de
grande importância para o entendimento das origens da So-
cietà Sportiva Palestra Italia.

O Scratch Italiano, montado em 1916, teve suas peculiaridades,


entre elas, o fato de ter sofrido muitas hostilidades direciona-
das aos italianos por conta da Primeira Guerra Mundial, que
ocorria no mesmo contexto, como destaca Moura (2019). Estas
hostilidades contra italianos na sua acepção eram muito fortes
desde o início da imigração para o Brasil, porém, com o cres-
cimento das atenções voltadas para o futebol, as hostilidades
passaram a ser mais notáveis devido à grande visibilidade que
o esporte demonstrava.

O Yale, clube de muitos integrantes de origem operária, tam-


bém teve problemas, uma vez que, na constituição de um se-
lecionado da capital mineira em 1919, jogador algum do Yale
foi chamado. Moura (2019) salienta que houve uma partida en-
tre o selecionado de Belo Horizonte contra o Yale na qual as
hostilidades direcionadas aos jogadores foram graves. Ribei-
ro (2009) também chama a atenção para essa partida que, em
sua opinião, foi marcada por insultos por parte dos jogadores
e torcedores do Yale, que se sentiram preteridos pelos tradi-
cionais clubes da cidade. Ribeiro (2009) considera que, a partir
de 1910, houve um processo de popularização do Yale marcado
pela presença cada vez maior de integrantes de origem ope-
rária. Tal fato para o autor fez com que o Yale se diferenciasse
bastante das outras agremiações existentes em Belo Horizon-
te. Este é também um dos motivos que evidenciam o fato de
nenhum jogador do Yale ter sido convocado para o selecionado
da capital.

Conforme se observa nos estudos dos autores, fica notório que

40 O time do povo mineiro


ter um clube de futebol voltado para a colônia italiana na dé-
cada de 1910 não foi tarefa das mais fáceis, e para que a possi-
bilidade de um clube que representasse a colônia se materia-
lizasse de modo a se perpetuar, era preciso demonstrar força.

O abandono do Yale em 1919 da Liga Mineira de Desportos Ter-


restres (LMDT) propiciou o cenário ideal para a criação de uma
equipe formada por jogadores e torcedores de origem italiana
que atendesse a demanda popular e pudesse reforçar a ima-
gem dos italianos na cidade, principalmente, por um clube que
pudesse ser forte em campo e nas arquibancadas, capaz de en-
frentar os adversários da capital com brio, demonstrando seu
valor como questão identitária e visando à aceitação da socie-
dade belo-horizontina que favoreceria também a imagem dos
italianos que prosperaram na capital.

A vontade de criar um clube para a colônia italiana esbarrava


também em um outro problema, que era a questão da língua,
uma vez que muitos italianos que vieram para a capital de Mi-
nas Gerais falavam os dialetos de suas regiões de origem, e não
uma língua comum italiana. O aprendizado do português faci-
litou a comunicação entre os italianos e seus descendentes. Ou-
tro ponto destacado por Santana (2003) reside no sucesso re-
presentado pelo Palestra de São Paulo, o que muito influenciou
a colônia italiana de Belo Horizonte a ter um clube próprio.

No entanto, tais fatos demonstram que montar um clube de fute-


bol tinha seus desafios e custos, e não era uma tarefa tão simples.
Ainda mais se tratando de um clube de imigrantes. Basta obser-
var o histórico de vários clubes da colônia que tentaram antes,
e não obtiveram sucesso. Os então interessados na formação de
um novo clube que contemplasse a colônia em Belo Horizonte,
de acordo com Santana (2003), pediram apoio ao cônsul ita-
liano Lourenço Nicolai e aos italianos de alto poder aquisitivo.

Geovano Moreira Chaves 41


E diante do incentivo percebido por todos que foram consul-
tados, Santana (2003) informa que, no dia 20 de dezembro de
1920, justamente no prédio onde ficava a Società Italiana di
Beneficenza, foi realizada uma reunião cujo objetivo era ve-
rificar a força da demanda que havia surgido. Num domingo
de verão nos trópicos, mais precisamente dia 02 de janeiro de
1921, foi fundada a Società Sportiva Palestra Italia.

Em depoimento dado a Euclides Couto (2003), Carlos Ribeiro


ressalta que:

“Naquela época do amadorismo era tudo muito difícil. Era


complicado comprar bolas, uniformes e conseguir um lugar
para treinar. Um fator fundamental dificultava ainda mais a
vida dos fundadores do Palestra. Eles eram em sua maioria
pobres; operários, carpinteiros, pedreiros e trabalhadores
do comércio. A solução encontrada foi pedir apoio financeiro
a alguns comerciantes ‘italianos’ da rua Caetés. Eles eram
paulistas e muito ligados à questão da identidade italiana.”

Os italianos pobres que habitavam a capital mineira, na sua


grande maioria operários e trabalhadores da construção civil,
desejavam um clube que os representasse e servisse para a sua
integração social. Os italianos mais abastados queriam um clube
para enfrentar e também ser exibido como força para as elites
de Belo Horizonte, na intenção de mostrar que a colônia, muito
popular na capital, e com apoio dos imigrantes que prospera-
ram, era também capaz de organizar um grande clube, de des-
taque nas competições e no número de apoiadores e torcedores.
Uma instituição forte, capaz de enfrentar os grandes adversários
da época, poderia, inclusive, ser utilizada para amenizar os pre-
conceitos direcionados à comunidade italiana na cidade, geran-
do mais aceitação pelo respeito ao clube de futebol da colônia
que poderia mostrar força e adquirir prestígio.

42 O time do povo mineiro


Nesse sentido, Santana (2003) salienta que a Società Sportiva
Palestra Italia foi criada por trabalhadores e recebeu a adesão
de comerciantes e industriais italianos que viviam na capi-
tal. Moura (2019) destaca que a Società Sportiva Palestra Ita-
lia foi aceita logo no mesmo ano de sua fundação no principal
campeonato que se disputava na cidade, pela LMDT, o que de-
monstrou a popularidade e o prestígio dos dirigentes italianos
organizados no meio social.

Sobre a fundação da Società Sportiva Palestra Italia em Belo


Horizonte, em 1921, Moura (2019) destaca que os ânimos do
pós-Primeira Guerra Mundial já estavam menos exaltados
e, embora existissem, as hostilidades contra os italianos da
capital mineira pareciam perder força. A imprensa local, de
acordo com a análise de Moura (2019), teve papel fundamen-
tal no reconhecimento da Società Sportiva Palestra Italia e na
associação da equipe com os italianos da capital. Na medida
em que o Palestra foi conquistando grandes vitórias no futebol
de Belo Horizonte, consolidando-se cada vez mais no cenário,
mais italianos começaram a torcer pelo time, criando assim
um sentimento de pertencimento ainda maior que, de acor-
do com Moura (2019), foi capaz de evidenciar e destacar o que
lhes era semelhante muito mais do que suas diferenças. Moura
(2019) destaca que, por meio do futebol, a imprensa local criou
animosidades e rivalidades entre clubes de imigrantes e clu-
bes que teriam mais identificação com a população nativa.

Assim como seus antecessores sofreram animosidades durante


a década de 1910 por questão étnica, o Palestra Itália também
sofreu na década de 1920. Insultos e violências destinados à So-
cietà Sportiva Palestra Italia perduraram até o início dos anos
1930. Moura (2019) destaca que até a imprensa esportiva não
conseguia compreender os motivos de torcedores de Belo Ho-
rizonte, que não os do Palestra Itália, torcerem contra o clube,

Geovano Moreira Chaves 43


ou não queria até acreditar que os insultos tinham origem em
questões étnicas, como relata o jornal “Minas Gerais” de 16 de
novembro de 1931, na página 11:

“De fato, não compreendemos e julgamos que a outros acon-


tecerá o mesmo e, razão por que, ferindo-se um embate como
o de ontem, entre um clube local e outro estranho, a maior
parte do nosso público esportivo, ao invés de levar ao bando
de casa o estímulo de seus aplausos, empresta-o ao de fora,
o que, em outros meios, não se dá. Aqui, constitui espetáculo
interessante e, por isso mesmo, digno de registro, a atitude
francamente hostil que a assistência assume, não sabemos
por que, contra o Palestra, quando ele se bate com equipes de
outras cidades. E são tão diretos e significativos os epítetos
atirados contra os palestrinos que surpreendem mesmo o
quadro visitante, que não espera por isso. Basear-se-ão eles
nas circunstâncias de ser o clube da avenida Paraopeba fun-
dado e custeado pela colônia italiana? Mas, neste caso, serão
desmentido formal à tradicional hospitalidade do nosso povo,
que não diferencia cores nem isola raças quando todos palmi-
lham a estrada do progresso e da grandeza do Brasil. Por outro
lado, o Palestra tem sido em Minas, sem a menor dúvida, um
dos pilares de sua organização esportiva, a que vem prestando
proficuamente relevantes serviços. Ora, assim entendendo,
não se percebe a fonte de onde se origina essa aversão notória
de boa parte do nosso povo para um clube que é exemplo de
labor e disciplina. Daí, a nossa perplexidade de ontem, no field
palestrino, ante a frieza com que os esportistas viam o Pa-
lestra consignar um gol, que significava muito para o futebol
belorizontino, e os extravasamentos de satisfações com que
aplaudiam um feito qualquer da luzida rapaziada do Tupi-
nambás. Sem dúvida, um match inter-municipal ou estadual
em que o Palestra toma parte oferece um campo interessante
para aplicação e estudo da psicologia das multidões.”

44 O time do povo mineiro


O Palestra Itália representava também a afirmação dos italia-
nos na capital. E o associativismo, que marcou outras ações da
colônia em períodos anteriores, também foi característica do
clube, que destinou rendas de seus amistosos para constru-
ção de sociedades beneficentes, como a Santa Casa de Mise-
ricórdia, conforme informa Moura (2019). A Società Sportiva
Palestra Italia, de acordo com Ribeiro (2009), envolveu-se em
várias ações da colônia em Belo Horizonte, como no caso do
Sexto Centenário de Dante Alighieri que, entre outras ativi-
dades do grupo de imigrantes, também organizou um torneio
de futebol, conforme indica o jornal “Minas Gerais” de 14 de
setembro de 1921, na sua página 5:

“Faz parte do magnifico programma organizado pela com-


missão promotora das festas um interessante torneio de
foot-ball, que attrahirá sem duvida ao Prado Mineiro uma
numerosa assistencia, dado o enthusiasmo que se nota nas
rodas desportivas dessa Capital pelo resultado das diversas
provas. Os jogos terão inicio ao meio dia em ponto, deven-
do correr bondes extraordinarios para o Prado. Por um ope-
rador cinematographico serão tirados “films” das phases
mais importantes do torneio. Os jogos serão realizados na
seguinte ordem: – 1º Guarany X Lusitano; Sete X A. M. C. D.;
3º Athletico X Palestra; 4º America X Yale; 5º Vencedor do 1º
contra vencedor do 2º; 6º Vencedor do 3º contra vencedor do
4º; 7º Vencedor do 5º contra vencedor do 6º. Ao club colloca-
do em 1º logar será offerecida uma bella taça e ao collocado
em 2º logar um artistico bronze. As senhoras e senhorinhas
terão entrada gratis no Prado.”

Ao que tudo indica, a Società Sportiva Palestra Italia conquis-


tava então o seu primeiro título de uma história que seria farta
de conquistas.

Geovano Moreira Chaves 45


As vitórias representavam para o Palestra Itália algo que ia
além do futebol. Como muitos imigrantes italianos eram alvo
de preconceito e hostilizações no cotidiano da capital de Minas
Gerais, vivendo o drama da não aceitação, identificar-se com
uma equipe vencedora poderia lhes trazer prestígio, aceitação
e superação dos estereótipos por meio do futebol. Além dis-
so, Moura (2019) considera que vencer, para o Palestra Itália,
significava uma compensação, no âmbito do esporte, de to-
das as humilhações, insultos e constrangimentos que muitos
imigrantes vindos da região geográfica conhecida como Itália
tiveram que tolerar para viver no Brasil.

Ribeiro (2014) destaca que o primeiro jogo do Palestra Itália re-


cebeu 1.500 torcedores, que era a capacidade máxima do estádio
do Prado Mineiro. Este público que superlotou o estádio logo na
primeira apresentação da Società Sportiva Palestra Italia diz
muito sobre a popularidade do clube em sua fundação.

Pode-se afirmar que, no caso do Palestra Itália de Belo Ho-


rizonte, a torcida, majoritariamente popular e operária, com
apoio dos italianos comerciantes e industriários que também
habitavam a capital de Minas Gerais, fez o clube, ou seja, a So-
cietà Sportiva Palestra Italia não é um clube que deu origem a
uma torcida, é uma torcida que deu origem a um clube.

Todo o complexo histórico que vai desde a imigração de italia-


nos para o Brasil no século XIX até a criação da Società Spor-
tiva Palestra Italia em 02 de janeiro de 1921, nos transmite o
quão é revelador o futebol como elemento social fundamen-
tal para se compreender a formação da sociedade belo-hori-
zontina e brasileira, uma vez que ao longo do século XX, por
meio do Cruzeiro Esporte Clube, foi criada uma comunidade de
milhões de seguidores que partilham sentimentos, símbolos,
identidades e pertencimentos comuns.

46 O time do povo mineiro


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Geovano Moreira Chaves 49


1.2. Os indesejáveis: os primeiros passos
de um gigante
Romero Marconi

Como um clube de uma determinada colônia resistiu e sobre-


viveu às perseguições, e se fez grande desde os seus primeiros
anos de existência? Não recebeu o mesmo tratamento que ou-
tros clubes por parte da imprensa de sua época. Além dos rivais
dentro de campo, enfrentou diversos fora dele. Para se entender
o motivo, é preciso voltar ao começo da década de 1920.

Uma torcida que criou um clube

O ano era 1920, havia algumas colônias de imigrantes na jo-


vem capital Belo Horizonte, dentre as quais, a colônia italiana,
boa parte dela formada por operários e comerciantes.

O futebol prosperava na capital e, após as partidas, vários jo-


gadores de origem italiana costumavam se reunir nos fundos
da loja Agostinho Ranieri para uma boa prosa.

Quando de São Paulo veio a notícia de que um clube da colônia


italiana paulista havia conquistado o título de campeão da ci-
dade, o fato gerou grande animação entres os italianos e seus
filhos estabelecidos na capital mineira. Os relatos funciona-
ram como a motivação que faltava para a criação de uma agre-
miação local, aquela que, em poucos anos, se tornaria um dos
maiores clubes da América Latina.

A iniciativa partiu dos próprios jogadores, em sua maioria ope-


rários da construção civil que jogavam futebol como um hobby.
Por essa época, o futebol no Brasil ainda era um esporte amador.

50 O time do povo mineiro


Dentre os pioneiros na criação do clube da colônia italiana lo-
cal estavam Nulo Savini, que viria a se tornar o primeiro go-
leiro do Palestra mineiro, os irmãos Júlio e João Lazarotti (o
Nani) e Henriquetto Pirani, todos jogadores que integraram os
primeiros times palestrinos.

Mas faltava gente influente. Daí a ideia de se levar a proposta


de criação de um clube de futebol a comerciantes, lojistas e in-
dustriais italianos e filhos de italianos que residiam na capi-
tal; foram procuradas famílias de renome, como Savassi, Noce
e Lodi, que de imediato abraçaram a causa e viram na funda-
ção de um clube uma forma de lazer e de unir a colônia italiana
local para a prática de esportes.

A ideia se espalhou e demais colonos se juntaram ao grupo. Mais


de cem pessoas se reuniram em uma espécie de primeira assem-
bleia, que contou, inclusive, com o recolhimento das assinaturas
dos participantes. O entusiasmo foi grande e, finalmente, em reu-
nião realizada a 2 de janeiro de 1921, foi lavrada e assinada a ata
de fundação da Societa Sportiva Palestra Itália (SANTANA, 2003).

No jogo inaugural do Palestra, realizado em 3 de abril de 1921,


o estádio atingiu a sua capacidade máxima. No abarrotado Hi-
pódromo do Prado, 1.500 torcedores assistiram ansiosos ao pri-
meiro jogo da história palestrina (RIBEIRO, 2014). Vitória por
2 a 0, sobre um combinado do Villa Nova, de Nova Lima e Pal-
meiras da Lagoinha. Os dois gols foram marcados por Nani, que
entrou para a história como o primeiro jogador do Palestra a
balançar as redes adversárias.

Tijolo sobre tijolo

O primeiro time do Palestra reuniu jogadores oriundos de di-


versos times da cidade, na maioria do Yale que, ao contrário do

Romero Marconi 51
que se lê por aí, não mantinha relação alguma com o Palestra.
Foram adversários nas disputas das edições do Campeonato
Mineiro de 1921, 1922, 1923, 1924 e 1925, além de oponentes em
outros torneios iniciais.

Embora no campeonato de estreia, em 1921, o time tenha fica-


do na penúltima posição, no ano seguinte, a equipe palestrina
mostraria a que veio. Àquela altura, o grande clube da cidade era
o América. Enquanto o Palestra havia sido fundado e disputara
seu primeiro campeonato em 1921, o América já participava da
sua sétima edição do Campeonato Mineiro, empilhando cinco
taças e caminhando rumo ao hexa.

Mas, no ano de 1922, em uma brilhante e surpreendente cam-


panha, a equipe da camisa verde se iguala em números de pon-
tos ao América e, pela primeira vez na história do campeonato,
a Liga é obrigada a realizar uma final para definir o campeão.

Naquele momento, o Palestra mandava um recado a todos: não


entraria no campeonato como coadjuvante. Contudo, o título
bateu na trave. O time vencia por 1 a 0, mas acabou sofrendo
um empate e, ao perder uma penalidade, sofreu a virada, dei-
xando o título escapar. Ainda não seria dessa vez que os cami-
sas verde se consagrariam campeões mineiros.

Foi no ano de 1923 que a torcida palestina construiu a sua casa,


o Estádio, localizado no Barro Preto, na região central de Belo
Horizonte, onde hoje é o clube esportivo do Cruzeiro, erguido
em um terreno cedido pela Prefeitura.

A construção e a mão de obra, tijolo sobre tijolo, foram obra


dos próprios palestrinos, e toda a parte financeira nasceu
de uma grande mobilização para a sua construção (ARALDO
ITALIANO, 1923).

52 O time do povo mineiro


O clube passou então a ser conhecido como o time do Barro
Preto, ganhou outro patamar e, junto do América, passou a ser
um dos dois únicos com estádio próprio, utilizado pela Liga
Mineira para a realização dos jogos do Campeonato da Cidade
(antigo nome do Campeonato Mineiro). A Liga deixava assim o
hipódromo do Prado, a casa do futebol da Capital, durante os
anos de 1915 a 1923, para a disputa da segunda divisão.

No jogo inaugural, no estádio do Barro Preto, com um empate,


3 a 3, contra o Flamengo, que havia pouco tempo fora campeão
carioca, o jovem Palestra, mais uma vez, mostrava sua força e
dava sinais de que muito em breve tomaria seu lugar entre as
principais agremiações do estado.

O clube dos imigrantes

Em poucos anos o clube já não mais se restringia a jogadores de


origem italiana, e o Palestra era uma espécie de time dos imi-
grantes — havia sírios, espanhóis, brasileiros negros, pardos e
brancos. Os outros clubes de colonos foram deixando de existir e
o Palestra passou a ser o único clube de imigrantes da capital, e,
também, o único a medir forças com o América e com o Atlético.

Um dos primeiros jogadores de origem não italiana a jogar no


Palestra foi Heitor, emprestado por dois jogos do Palestra Pau-
lista (atual Palmeiras). Também nos primeiros anos, o clube teve
Nereu, jogador de origem Síria, Pires e Bento, Carazzo, um espa-
nhol, e Gutierrez, um uruguaio. Esses jogadores foram tricam-
peões em 1928, 1929 e 1930, mostrando a força da miscigenação
que emanava do Barro Preto e que levaria o clube a dias de glória.

Pode-se afirmar que a identidade italiana predominou no iní-


cio, mas o acolhimento aos diferentes povos acabou sendo
uma das grandes características da instituição.

Romero Marconi 53
O Grande Palestra

Ao contrário do que se construiu na imprensa de Belo Hori-


zonte, o clube barropretano já era grande antes mesmo da
construção do estádio do Mineirão em 1965.

O que sempre lemos é que, antes da construção do Mineirão,


o clube estrelado era um mero coadjuvante no futebol minei-
ro. Algo facilmente refutável, pois são inúmeras as referências
nos jornais das décadas de 1920 e 1930 que indicam protago-
nismo palestrino em Minas Gerais.

Em 1924, o Palestra, ao lado do América e do Atlético, foi con-


decorado pela crônica esportiva carioca como sócio honorário
da Associação de Cronistas Desportivos da capital do país, que
era o Rio de Janeiro, a ACD (O BRASIL, 1924). E não pararia por
aí, pois, em várias reportagens e matérias da época, encon-
tram-se menções sobre a grandeza dos periquitos — como era
chamado o time palestrino, por conta de seu uniforme predo-
minantemente verde.

Ao lado do América, o Palestra era o único clube a ter está-


dio próprio, onde todos os jogos da Liga eram realizados. Isso
dava a ele uma imagem de clube estruturado; jovem, porém
organizado e promissor.

Nos primeiros anos da década de 1920, o Palestra foi o único a


ameaçar a hegemonia do América. Por duas vezes foi vice, em
1922, no seu segundo ano de existência, e em 1924. A referên-
cia à grandeza palestrina voltaria a ser destaque no jornal “O
Pharol”, de Juiz de Fora, que em 1924 registrou: “O Palestra
é um dos mais perfeitos teams da capital do estado, já tendo
conquistado vários torneios... (sic).” (O PHAROL, 1924).

54 O time do povo mineiro


E, assim, vários foram os adjetivos que o classificavam como
uma das três maiores forças da capital, mesmo com poucos
anos de existência. Outro jornal da época, o “Gazeta Espor-
tiva”, no ano de 1927, assim se refere ao Palestra: “Pelas bri-
lhantes victorias alcançadas, mercê do esforço e dedicação de
seus directores, estando por isso mesmo collocado a par dos
melhores clubes que Minas possue (sic).” (GAZETA ESPORTI-
VA, 1927)

E todas essas menções foram feitas antes da conquista do pri-


meiro título pela Liga Mineira de Desportos Terrestres, como
mostra o texto publicado em homenagem ao sétimo aniversá-
rio da instituição ítalo-brasileira, que classificava o Palestra
como “um dos maiores e mais bem organizados clubes da ca-
pital” (CORREIO MINEIRO, 1928).

Até quando o assunto foi a vitória do Atlético sobre um clube


de Portugal em um amistoso, no ano de 1929, “O Jornal” não
deixou de mencionar o time dos periquitos como um dos gran-
des: “... Esses elementos lhes deram a victoria, desmonstrando
mais uma vez que os teams dos três grandes clubes locaes, isto
é, Athletico, América e Palestra, attingiram o mesmo grão de
efficiencia que os teams cariocas e paulistas (sic).”

Não por acaso, na primeira edição do jornal “Folha Esportiva”,


de 1930, aparecem os escudos da Seleção Mineira, do América,
do Atlético e do Palestra. Com apenas nove anos de existência,
seu escudo tricolor já estava em meio aos da seleção do estado
e de instituições veteranas. Era a constatação de que o clube
dos imigrantes e refugiados era inevitável.

Um clube que não tinha a mesma força política dos seus dois
principais adversários, e tampouco a representatividade nas re-
dações de jornais, por ser pertencente a uma colônia estrangeira,

Romero Marconi 55
constituída em grande parte de analfabetos e trabalhadores da
construção civil.

Mas com o esforço realizado dentro de campo e com o apoio de


sua torcida conseguiu conquistar seu espaço (não tão grande
como deveria) em parte da imprensa, sendo reconhecido entre
os principais clubes da capital por alguns jornais.

A conquista do tricampeonato em 1930 ajudou a concretizar a


grandeza do Palestra Italia, que passou a realizar com mais
frequência amistosos pelo país e ser conhecido como “Pales-
tra Mineiro”. Apesar de a década de 1930 não ter rendido o es-
perado, mesmo com as conquistas da Taça Otacílio Negrão de
Lima, em 1936, e da Taça Securitas, em 1935, o campeonato da
cidade lhe escapou por várias vezes.

O Pioneirismo

Mesmo nos anos 1930, quando já se iniciava a tendência a


uma contemplação midiática desordenada e tendenciosa com
o clube de Lourdes, foi o clube do Barro Preto o pioneiro na
exportação de seus craques para a Europa. Quando os primos
Fantoni, Octavio (Nininho) e João (Ninão), foram jogar na La-
zio da Itália, abriram as portas para o futebol brasileiro à car-
reia futebolística no Velho Mundo e, assim, levaram o nome do
Brasil e o nosso jeito de jogar aos olhos dos europeus.

Niginho, outro Fantoni, que também havia jogado na Lazio e


voltado ao Palestra anos depois, em uma partida pela Seleção
Mineira, enquanto jogador do Palestra de Minas, chamou a
atenção dos diretores da Confederação Brasileira de Despor-
tos (antigo nome da CBF, a Confederação Brasileira de Fute-
bol). Foi então convocado para o seleto brasileiro, tornando-se
o primeiro jogador de um clube mineiro a jogar pela Seleção

56 O time do povo mineiro


Brasileira, no ano de 1936. Niginho foi o primeiro jogador de
um clube mineiro a fazer um gol pela seleção brasileira. O ten-
to foi o da vitória de 3 a 2 sobre o Peru, no Campeonato Sul-A-
mericano de 1936/1937, disputado na Argentina.

A Perseguição

Tudo começou no ano de 1926, após a cancelamento do cam-


peonato de 1925; os jornais da época diziam que o Palestra era
o mais preparado, pois já realizava treinamentos e planejava
alguns amistosos.

Com uma mudança no quadro diretório da Liga Mineira, na figura


do major Oscar Paschoal, iniciou-se a perseguição. O Palestra ha-
via realizado um amistoso em Caçapava, município de São Paulo,
e, quando o clube voltou, foi notificado porque teria descumprido
o calendário proposto pela Liga sem uma comunicação prévia.

O major suspendeu o clube da Liga por seis meses, tempo su-


ficiente para que não conseguisse disputar o campeonato, não
podendo assim ameaçar o América, time com o qual o Paschoal
tinha ligações. Mas o Palestra não abaixou a cabeça e, em vez de
cumprir a suspensão, se uniu a outros clubes da capital que já
não mais pertenciam ao quadro da Liga. Formou-se a Associa-
ção Mineira de Esportes Terrestres (AMET) (BARRETO, 2000).

O campeonato de 1926 organizado pela AMET foi conquistado


pelo Palestra com folga, tendo o time vencido todos os jogos,
além da conquista do torneio início. No ano seguinte, houve a
fusão das duas Ligas para a disputa do Campeonato Mineiro
(CORREIO MINEIRO, 1927).

A relação do Palestra com a Liga Mineira não foi das melhores des-
de então. Não por acaso, no ano de 1931, e na busca pelo tetra, os

Romero Marconi 57
periquitos chegaram à final contra o Atlético. Na segunda par-
tida, o clube de Lourdes descumpriu o combinado sobre a pre-
sença de um árbitro de fora. No jogo, foi escalado um árbitro
local e o Palestra, em protesto, saiu de campo, abandonando a
partida — aquela que seria a primeira final entre os dois clu-
bes na história. A Liga nem se prestou a ouvir o Palestra e deu
o título ao alvinegro (RIBEIRO, 2014).

Como se não bastasse, a Liga havia prometido a posse da taça


definitiva para os clubes que haviam conquistado o Tricampe-
onato consecutivo, sendo eles, apenas, o América e o Palestra.
Estranhamente, conforme conta o historiador Henrique Ri-
beiro, no blog “Almanaque do Cruzeiro”, a regra simplesmente
foi alterada, e todos os clubes que fossem bicampeões teriam
acesso à taça, contemplando também o Atlético (ESTADO DE
MINAS, 1931).

No ano de 1932, novamente o Palestra se desfilia da Liga Mi-


neira e, dessa vez, em companhia do Villa e do América, forma
outra Liga para disputa do campeonato. O Palestra ficou com o
vice e o Villa foi o campeão.

No ano seguinte, novamente uma fusão em meio ao profissio-


nalismo do futebol, porém, a perseguição ao Palestra conti-
nuou. Tanto que, em 1936, mais uma vez, o Palestra se desligou
da Liga Mineira, pois o clube entendeu que, com a anulação de
alguns jogos nos quais havia conseguido a vitória, novamente
sofria uma interferência extracampo por parte da Liga (O DI-
ÁRIO, 1936).

No tocante à imprensa esportiva, é fácil notar em alguns jor-


nais da época a exaltação ao rival, em momentos que deveria
se dar mais destaque à campanha palestrina. Como no ano de
1929, quando a construção do estádio do time de Lourdes foi

58 O time do povo mineiro


mais evidenciada nos jornais que as vitórias do Palestra na
campanha do bicampeonato, conquistado pelo clube do Barro
Preto com 100% de aproveitamento.

O tricampeonato de 1930 não teve a mesma repercussão que


o bicampeonato do Atlético em 1926 e 1927, quando criou-se
até lendas como o Trio Maldito1, formação esta que não chegou
nem próximo ao poderio goleador de João Fantoni, o Ninão, e
Italo Fratezzi, o Bengala. Somadas as três edições dos campe-
onatos de 1928,1929 e 1930, a dupla marcou incríveis 158 gols,
sendo sagrado, em 1928, o maior ataque da história do Campe-
onato Mineiro. Marca que perdura até hoje, 2021.

Nenhum desses acontecimentos tornou-se matéria de jornal,


nem uma nota de rodapé. Esse tipo de diferenciação no trata-
mento pela imprensa esportiva parece prosseguir até os dias
atuais.

Uma torcida constituída por comerciantes, industriais e ope-


rários imigrantes, que não tinha a mesma influência política e
midiática da dos outros dois clubes contemporâneos, funda-
dos por estudantes e membros da alta sociedade da época, o
que, de certa forma, se refletiu nas redações dos jornais.

Foram muitas as tentativas de parar um clube que mudou a


perspectiva dos primeiros anos do futebol da capital mineira,
que se encaminhava para ter apenas dois únicos rivais. No en-
tanto, surgiu um clube de imigrantes, de uma torcida exigente,
diretores aguerridos e que, mesmo com todas as perseguições
e dificuldades, conquistou cinco títulos durantes seus vinte
primeiros anos, além do pioneirismo na Seleção Brasileira e
na Europa, protagonizado pelos Fantoni.

1 - O Trio Maldito foi um trio de ataque formado pelos atacantes Mário de Cas-
tro, Jairo e Said, que atuaram no Atlético Mineiro entre os anos de 1927 e 1931.

Romero Marconi 59
Uma vontade latente, uma luta constante, um sentimento que
aquele seria o clube não só dos imigrantes e da cidade, mas o
clube de Minas, o clube do Fantoni, dos Falci, dos Lazarotti,
dos Souza, dos Pires, um clube de todos.

Quis o destino que, na ditadura Vargas, durante o Estado Novo


(1937-1945), fosse o começo do fim daquela identidade cati-
vante, nas cores verde, vermelha e branca. Mas não antes que
o fim se tornasse o começo de uma nova luz, aquela que brilha
no céu azul, na constelação que tem as cinco estrelas.

Referências Bibliográficas:

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Cruzeiro - Uma Trajetória de Glórias. Belo Horizonte: [s/n], 2000.

GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Es-


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ponível em: https://ape.es.gov.br/recenseamento-1920. Acesso
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LEVY, Maria Stella Ferreira. O papel da migração internacional


na evolução da população brasileira (1872 a 1972). Revista de
Saúde Pública. Vol. 8. São Paulo: junho de 1974. (p.49-90). Dis-
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60 O time do povo mineiro


zeiro resplandece. São Paulo: DBA Arte Gráficas, 2003.

Documentos em meio exclusivamente eletrônico:

RIBEIRO, Henrique. Blog. http://Almanaquedocruzeiro. Ac-


count Suspended. Acesso em: 05 jun. 2017

Periódicos:

ARALDO ITALIANO. “Societa Sportiva Palestra Italia”. Belo


Horizonte: 31 jul. 1923. (p.2)

CORREIO MINEIRO. Belo Horizonte. 01 jan. 1928.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte. 7 jan. 1931.

FOLHA ESPORTIVA. Belo Horizonte. 21 abr. 1930.

GAZETA ESPORTIVA. Belo Horizonte. 24 dez. 1927.

MINAS ESPORTE. Belo Horizonte. 22 nov. 1925

O BRASIL. Rio de Janeiro. 28 mar. 1924.

O DIÁRIO. Belo Horizonte. 27 out.1936.

O JORNAL. Rio de Janeiro. 03 set 1929

O PHAROL. Juiz de Fora. 22 jun. 1924.

Romero Marconi 61
1.3. Nascidos Palestra, forjados
Cruzeiro2
Romero Marconi

O ano era 1937 e o Governo Vargas começava a implementar o


Estado Novo no Brasil (1937-1945), um modelo de governo ins-
pirado no nazifascismo europeu, um regime ditatorial, tendo
como um de seus ideais, o Nacionalismo.

No ano seguinte, o Estado já começava o processo de nacio-


nalização, começando pelas escolas, passando pela imprensa
e até mesmo pela proibição de idiomas estrangeiros (MEMO-
RIAL DA DEMOCRACIA, s/d).

A comunidade italiana de Belo Horizonte começou a sentir a


perseguição do governo, e o clima ficou apreensivo. Temendo
represálias, uma frente interna no Palestra, liderada por Cyro
Poni e Romeu De Paoli, começou a idealizar um processo de na-
cionalização do clube, isso ainda no ano de 1939 (O DIÁRIO, 1939)

Entre os conselheiros natos e fundadores do clube, a ideia não


foi bem aceita, embora o Palestra já fosse, naquele momen-
to, um clube nacional, tivesse jogadores de todas as origens
e, até mesmo na arquibancada, sua torcida já não fosse com-
posta exclusivamente por italianos e descendentes. Por essa
época, o presidente do clube, Oswaldo Pinto Coelho, ainda que
supostamente não fosse descendente de italianos, era contra
a nacionalização do Palestra e o clube manteve sua identidade
(MOSCONE, 1937).

2 - Agradecimento especial a Fábio Militão, grande cruzeirense, um profundo


conhecedor da história palestrina.

62 O time do povo mineiro


Todavia, nos anos seguintes, acontecimentos relacionados
aos rumos da política externa que foram sendo traçados du-
rante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial aproximam o
Brasil dos Estados Unidos e países aliados, com reflexos dire-
tos na vida cotidiana da população. Eram anos difíceis, em que
o mundo mergulhava no conflito que até hoje é considerado
pelos historiadores como o mais sangrento da era contempo-
rânea. Por meio de uma série de decretos presidenciais, a dita-
dura do Estado Novo perseguiu imigrantes e seus descenden-
tes, tendo como alvo, principalmente, aqueles de ascendência
italiana, japonesa e alemã. Em 28 de janeiro de 1942, o Gover-
no Vargas rompeu, definitivamente, relações com os chama-
dos países do Eixo (Itália, Alemanha e Japão).

Surgiram uma série de ataques por todo país; em Belo Horizon-


te, por exemplos, prédios, como a Casa di Italia, em estilo art
déco, foram destruídos por manifestantes nacionalistas, alia-
dos à ideologia estadonovista. Vários estabelecimentos comer-
ciais, lojas, padarias e até bares, sofreram ataques. Nem esta-
belecimentos tradicionais, como a as padarias Savassi e Boschi,
comandadas por famílias de origem italiana, e a padaria Pérola,
de família alemã, escaparam (ESTADO DE MINAS, 2014).

No Palestra, dias depois do anuncio de rompimento do Bra-


sil com o Eixo, o clube do Barro Preto optou por tomar uma
decisão a fim de evitar que o clube fosse também alvo de ata-
ques ou, até mesmo, fechado definitivamente, a exemplo do
que aconteceu com o Esporte Clube Germânia — agremiação
Paulista de origem alemã que relutou a aceitar às normas na-
cionalistas que eram impostas (O DIÁRIO, 1942).

Em 31 de Janeiro, o então presidente Enne Cyro Poni realizou


seu antigo desejo com a anuência do conselho e alterou o nome
do Palestra Itália, que passou a se chamar Palestra Mineiro.

Romero Marconi 63
Conforme o jornal carioca “A Noite” em 1942:

“Além da extinção da jurisdição dos agentes consulares da


Alemanha e da Itália, o governo de Minas mandou que se
encerrassem as atividades da Casa d’Itália e da Casa Alemã,
tornando, ainda, obrigatória a notificação de residência dos
cidadãos japoneses em território de Minas Gerais. O secre-
tário da Agricultura rescindiu o contrato com o engenheiro
nipônico Masaki Ito. O clube de football Palestra Itália, tra-
dicional grêmio mineiro, campeão de 1940, por espontânea
resolução do seu corpo deliberativo, passou a chamar-se Pa-
lestra Mineiro (sic).”

A tensão era tamanha que um grupo denominado Patrióticos


tentou incendiar o estádio do Palestra. O ato só não foi conclu-
ído graças à intervenção de alguns policiais, principalmente o
tenente Houri, além da ação defensiva de palestrinos que mo-
ravam nas proximidades. (BARRETO, 2000).

Com a declaração oficial de guerra ao Eixo pelo Brasil, em 22 de


agosto de 1942, e edição do Decreto-Lei nº 4.638, de 31 de agosto
de 1942, a apreensão e o medo tomaram conta do clube mineiro,
diante da imposição radical do governo. Os clubes que levavam
o nome de Palestra, no Paraná e em São Paulo, temendo repre-
sálias, já haviam mudado o nome das agremiações; surgiam as-
sim o Comercial e o Palmeiras, respectivamente.

A tensão era tanta que Enne Cyro Poni antecipou-se à reunião


do conselho e anunciou, por conta própria à imprensa, que o
Palestra Mineiro passaria a se chamar Ypiranga. Todavia, o
conselho não referendou tal nome e convocou uma reunião
para discutir a mudança.

O nome aprovado foi Cruzeiro Esporte Clube. Poni se sentiu

64 O time do povo mineiro


desprestigiado e renunciou ao cargo de presidente. Então o
clube passou a ser presidido por uma junta composta por três
membros, até que uma nova eleição fosse organizada. Fizeram
parte da junta Wilson Saliba, Mario Tornelli e o inesquecível
dos gramados João Fantoni, o Ninão, um dos maiores ídolos da
história do clube até então. (ESTADO DE MINAS, 1942).

Referências Bibliográficas:

BARRETO, Plínio & BARRETO, Luiz Otávio Trópia. De Palestra a


Cruzeiro - Uma Trajetória de Glórias. Belo Horizonte: [s/n], 2000.

Periódicos:

O MOSCONE. SÃO PAULO. 15 de jun. 1937

O DIÁRIO. BELO HORIZONTE. 22 de ago. 1939

O DIÁRIO. BELO HORIZONTE. 30 de jan. 1942

A NOITE. RIO DE JANEIRO. 31 de jan. 1942

ESTADO DE MINAS. BELO HORIZONTE. 8 de out. 1942

Documentos em meio exclusivamente eletrônico:

CAMARA DOS DEPUTADOS. Legislação Informatizada - DECRE-


TO-LEI Nº 4.638, DE 31 DE AGOSTO DE 1942 - Publicação Original,
s/d. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/
decreto-lei-4638-31-agosto-1942-414552-publicacaooriginal-
-1-pe.html. Acesso em: 16 ago. 2020.

Romero Marconi 65
ESTADO DE MINAS. Padaria símbolo da Savassi resiste ao
tempo, 10/12/2011. Disponível em: https://www.em.com.br/
app/noticia/gerais/2011/12/10/interna_gerais,266632/pada-
ria-simbolo-da-savassi-resiste-ao-tempo.shtml. Acesso em:
16 ago. 2020.

ESTADO DE MINAS. Justiça revela histórias de imigrantes de-


mitidos em BH na Segunda Guerra Mundial, 26 de abril de 2014.

Disponível em:
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/04/26/inter-
na_gerais,522833/justica-revela-historias-de-imigrantes-de-
mitidos-em-bh-na-segunda-guerra-mundial.shtml. Acesso
em: 16 ago. 2020.

MEMORIAL DA DEMOCRACIA. Getúlio Anuncia o Estado Novo:


é a ditadura, s/d. Disponível em: http://memorialdademocra-
cia.com.br/card/getulio-anuncia-pelo-radio-agora-e-esta-
do-novo. Acesso em: 16 ago. 2020.

66 O time do povo mineiro


PARTE 02.
A TORCIDA COM
A CARA DO POVO
MINEIRO
2.1. Do Barro Preto ao Mineirão: a
trajetória da torcida mais popular de
Minas Gerais
Éric Andrade Rezende
Gladstone Leonel Júnior
Introdução

Uma das principais curiosidades do torcedor de futebol é en-


tender de onde vem e como cresceu a sua torcida. No caso do
Cruzeiro, isso não é diferente, mais do que isso, é instigante.
Visto que o clube não só se massificou nas classes mais popu-
lares da capital mineira, mas em todo o interior do estado de
Minas Gerais e, inclusive, em outras regiões do país.

Todo cruzeirense já deve ter ouvido de torcedores rivais que


antes da construção do Mineirão a torcida do clube era peque-
na e numericamente inferior até mesmo à do América. Essa
afirmação já foi reproduzida inclusive por ex-jogadores e por
dirigentes do próprio Cruzeiro. Associada a esse suposto nú-
mero reduzido de apoiadores na era pré-Mineirão, alguns ri-
vais tentaram durante anos vincular à torcida cruzeirense um
suposto caráter elitista. Tal discurso acabou sendo absorvido
por parte da mídia nacional, embora não possua embasamen-
to histórico alguma e a cada dia perca força.

No presente texto, serão apresentados dados que demonstram


que o caráter popular da torcida cruzeirense e a sua forte pe-
netração nas classes de menor poder aquisitivo não é um fe-
nômeno recente, mas sim algo presente desde a fundação do
clube. Além disso, será apresentado o processo de crescimento

71
da torcida ao longo das décadas e alguns dos seus principais
feitos em termos de presença nos estádios.

Anos 1920 e 1930: o enraizamento operário e o alçapão do Barro


Preto

Entre o fim do século XIX e o início do século XX, dezenas de mi-


lhares de imigrantes europeus chegaram a Minas Gerais, entre
os quais se destacava o contingente de italianos. O censo de 1920
registrou 42.943 habitantes de nacionalidade italiana em todo o
estado (LEVY, 1974), sendo 2.751 na capital (INE, 1937). O mesmo
recensamento apontava que Belo Horizonte possuía 55.563 ha-
bitantes. No início da década de 1920, os imigrantes já possuíam
descendentes nascidos em terras mineiras, e assim constituíam
uma numerosa colônia. Essa comunidade, que em Belo Horizon-
te era formada principalmente pelos trabalhadores incumbidos
de construir a nova capital, sonhava em ter uma equipe de fu-
tebol, a exemplo de seus compatriotas de São Paulo (Fernandes,
1996; SILVA, 2014). Nesse contexto, o Palestra Italia, fundado em
janeiro de 1921, já nasce com um número expressivo de apoiado-
res. De acordo com Souza Neto (2010, p. 51), a “imediata identi-
ficação, entre colônia e instituição esportiva, alça o Palestra, em
pouquíssimo tempo, à condição de um time de futebol popular e
importante, no cenário desportivo da cidade”.

Nas primeiras décadas do século XX, a colônia italiana no Brasil


possuía uma marcante inserção no movimento operário (BION-
DI, 2009; DUARTE, 2009). O Palestra, enquanto uma associação
formada predominantemente pelos setores populares (BARRE-
TO e BARRETO, 2000; SILVA, 2014), não ficou alheio a esse con-
texto. Um episódio que exemplifica essa inserção ocorreu em
1924, quando o clube foi convidado pela combativa Federação
Operária Mineira (FOM) para participar das comemorações do
dia do trabalhador, em Juiz de Fora. Conforme nota publicada no

72 O time do povo mineiro


jornal “O Pharol” (1924), o clube disputaria um amistoso contra
o Minas Geraes no dia 1º de Maio. Pouco mais de um mês depois,
a FOM organizaria uma greve geral que mobilizou mais de dez
mil trabalhadores reivindicando melhores salários na cidade
da Zona da Mata (O PHAROL, 1924b). Além disso, Ribeiro (2014)
relata que a inauguração do Estádio do Barro Preto, em setem-
bro de 1923, não contou com a presença de autoridades devido
a perseguições aos imigrantes italianos que incomodavam as
oligarquias com a organização de greves e sindicatos.

Em 1925, foi retirada do estatuto do clube a cláusula que impe-


dia a inscrição de atletas e associados que não fossem de origem
italiana3. Com isso, a numerosa colônia passou a ser reforçada
por apoiadores de todas as origens, dando início a uma nova fase
na trajetória da instituição (FERNANDES, 1996; SANTANA, 2003;
COUTO, 2003). Souza Neto (2010) afirma que com os bons resul-
tados do time, a partir de 1926 a torcida palestrina passou a ocu-
par um espaço relevante no cenário do futebol local, dividindo
o simbólico status de melhor e maior torcida com atleticanos e
americanos. Em outubro de 1929, o presidente palestrino, Anto-
nio Falci, afirmou ao jornal “Critica” (1929) que o clube já contava
com o expressivo número de 1.200 associados, sendo que cerca de
mil eram brasileiros.

A primeira tentativa de mensuração da popularidade dos clubes


mineiros de que se tem registro foi promovida pelo jornal “Es-
tado de Minas (1931). O “Concurso Viscardi” teve como objetivo
eleger o clube mais simpático de Belo Horizonte. Os votos foram
coletados em uma urna localizada em frente à sede do jornal. A
enquete recebeu novecentos votos e o resultado foi o seguinte:

3 - Segundo o conselheiro e historiador Anísio Ciscotto, pesquisas recentes


ainda não publicadas apontam que, ao contrário do que comumente é dito, o
primeiro estatuto do clube não proibia a participação de pessoas que não tives-
sem nacionalidade italiana (CISCOTTO, 2021).

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 73


Atlético – 44,7%; Palestra Italia – 38%; América – 10,4%; Villa
Nova – 2,8%; outros clubes – 4,1% (Figura 1). Embora não se
trate de uma pesquisa com rigor científico, a diferença enor-
me de votos praticamente elimina qualquer possibilidade de a
torcida do América ter sido mais numerosa que a do Palestra no
início da década de 1930. Chama atenção também o fato de Atlé-
tico e Palestra estarem separados por apenas 6,7 pontos per-
centuais, o que contraria o discurso de que nas décadas iniciais
do futebol mineiro haveria uma ampla supremacia alvinegra
em termos de popularidade. O Palestra vinha de um tricam-
peonato citadino e, mesmo sendo treze anos mais jovem, já se
aproximava do rival em relação ao número de simpatizantes.

Votos no Concurso Viscardi (em%) - 1931


50
44,7
40 38

30

20
10,4
10 2,8 4,1

00
Atlético Palestra América Vila Nova Outros
Clubes

Figura 1 – Enquete para eleição do clube mais simpático de Belo Horizonte,


feita pelo Resultados da terceira apuração, publicada em 26 mar. 1931.
Fonte: “Estado de Minas”

A polarização da preferência entre Atlético e Palestra refletia


o cenário esportivo da época, no qual as duas equipes já pro-
tagonizavam os duelos que chamavam mais atenção da im-

74 O time do povo mineiro


prensa e da população belo-horizontina, conforme relata Al-
ves (2013). Souza Neto (2010) complementa que “embora fosse
considerado um time de grande torcida na Capital, o América
não parecia se equiparar ao Palestra e ao Atlético quanto às
demonstrações extremadas de paixão”.

Os registros de público nos estádios durante as primeiras dé-


cadas do futebol brasileiro são quase inexistentes. Contudo, é
possível encontrar alguns relatos de grandes assistências nos
jogos com mando do Palestra. Inicialmente, o clube mandava
seus jogos no Prado Mineiro, assim como as demais equipes da
capital. O antigo hipódromo possuía acomodações para cerca de
1.500 espectadores (SOUSA NETO, 2017). O primeiro jogo da his-
tória do Palestra foi disputado nesse local e teve como adversá-
rio um combinado de Nova Lima que reunia jogadores do Villa
Nova e do Palmeiras. De acordo com registro do Diário de Minas
(1921), um público estimado de 1.500 pessoas lotou as depen-
dências do Prado, inclusive com destacada presença feminina.
Além de numerosa, a torcida já se mostrava participativa. O pri-
meiro gol de Nani foi comemorado “sob delirantes aplausos da
formidável torcida do Palestra”, conforme relato do “Diário de
Minas” (1921, p. 2).

Em 1923, foi inaugurado o Estádio do Barro Preto, que tinha ca-


pacidade para 5 mil pessoas. Os torcedores, que em sua maioria
eram operários, contribuíram nas obras que ergueram o alça-
pão palestrino. (COUTO, 2003; LANCE!, 2005; RIBEIRO, 2014;
OLIVEIRA, 2017). Um exemplo de lotação do estádio ocorreu
no amistoso diante do Vasco, em 1927, quando mais de seis
mil pessoas compareceram, conforme relato do diário carioca
“O Jornal” (1927). O mesmo veículo de imprensa destacou, em
agosto de 1928, que as dependências do estádio já se tornavam
pequenas para acolher a enorme multidão estimada em mais
de cinco mil espectadores em um duelo diante do América (O

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 75


JORNAL, 1928). Em setembro do mesmo ano, o jornal “Minas
Geraes” (1928) calculou em mais de dez mil pessoas a animada
torcida que acompanhou uma partida entre Palestra e Atlético
no mesmo local. O cenário se repetiu em um clássico disputado
em novembro de 1929, conforme descreveu o “Estado de Mi-
nas” em 1929, em sua página 5:

“[...] raramente se tem visto tão numerosa assistência como a


que affluiu ao campo do Palestra. Mais ou menos, 10.000 pes-
soas enchiam as varias dependencias do ground, apresentan-
do ambas um aspecto festivo.”

Poucos meses antes, o jornal “O Paiz”, em 1929, em sua página


2, já havia destacado o grandioso público e a vibração da torci-
da em um amistoso entre Palestra e Santos:

“Ainda não tivemos em Bello Horizonte uma partida de foo-


tball que levasse ao campo tantos milhares de pessoas (8.000
mais ou menos), que despertasse tamanho interesse e que im-
primisse em summa, por todos os títulos, nota mais alta à vida
do esporte entre nós. [...] a torcida dos palestrinos e anti-pa-
lestrinos; a vibração popular, que, dentro do campo e nas suas
imediações, parecia pôr o céo abaixo [...].”

Em um jogo no estádio atleticano, disputado em junho de 1930,


o “Minas Geraes” (1930) calculou que os visitantes palestrinos
correspondiam a um terço da assistência e ainda afirmou que
nenhum outro duelo da cidade conseguia levar mais gente ao
campo. Em março do mesmo ano, o “Estado de Minas” (1930)
relatou que cerca de mil palestrinos se deslocaram até Nova
Lima para um duelo diante do Villa Nova, contribuindo para a
quebra de recorde de público no estádio local. Ao longo dos anos
1930, continuaram frequentes as partidas em que o Estádio do
Barro Preto atingia lotação máxima, como aponta Alves (2013).

76 O time do povo mineiro


Anos 1940 e 1950: rompem-se definitivamente as barreiras da colônia
italiana e começa o domínio no interior mineiro

Após dez anos de jejum, o título do Campeonato da Cidade de


1940 foi comemorado pelos palestrinos com uma “passeata-
-monstro pelas principaes artérias da cidade, cantando, sol-
tando fogos e dando vivas enthusiasticos aos campeões”, con-
forme descrito pela “Folha de Minas” (1941, p. 8).

A partir do início da década de 1940, os relatos sugerem que o


público das partidas aparentemente passa a ser mais partici-
pativo e festivo. Em outubro de 1941, o Palestra venceu o Atlé-
tico em um estádio do Barro Preto superlotado. Na cobertura
da “Folha de Minas” (1941, p.8), chama atenção a descrição do
comportamento da torcida no jogo: “[...] Os torcedores pales-
trinos entoaram hinos de incentivo aos cracks da camisa tri-
color, fizeram espoucar foguetes e prorromperam no clássico
mais um.”

A temporada de 1943 marcou a estreia oficial do nome Cruzei-


ro, recém-adotado pelo clube em função da Segunda Guerra
Mundial. Às vésperas de um clássico decisivo contra o Atlético
pelo campeonato daquele ano, “O Jornal” (1943) afirmou que
em seus domínios o Cruzeiro era sempre um rival poderoso,
animado por uma entusiasmada torcida que tornava a cancha
ingrata para qualquer adversário. Novamente as acomodações
do Barro Preto foram consideradas pequenas para conter a
multidão esperada para aquele duelo. No ano seguinte, Neves
Júnior (1944, p.18) chamou atenção para a “multidão que lotou
inteiramente todas as dependências do ‘estadinho’ do Barro
Preto”, em um grande duelo diante do América.

A expansão da torcida para além da colônia italiana, iniciada


em 1925, foi fortalecida a partir da mudança de nome e do tri-

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 77


campeonato conquistado entre 1943 e 1945 (O LANCE!, 2005).
A necessidade de abrigar maiores públicos levou o clube a re-
modelar seu estádio, que passaria a ter uma capacidade de 15
mil espectadores e se tornaria por alguns anos o maior de Belo
Horizonte. Logo na reinauguração, em julho de 1945, a torcida
demonstrou sua força ao estabelecer o novo recorde de renda
do futebol mineiro (RIBEIRO, 2014).

Além de demandar um estádio com a maior capacidade da ci-


dade, a torcida cruzeirense também se fazia presente em gran-
de número nos jogos fora de casa, como nas decisões diante do
Siderúrgica, em Sabará, nos campeonatos de 1943 (RIBEIRO,
2014) e de 1945 (SANTANA, 2019). Entre meados da década de
1940 e meados da década de 1960 existiu o “Trem da vitória”,
uma iniciativa em que o clube alugava uma composição para
os torcedores acompanharem os jogos no interior do estado
(RIBEIRO, 2014).

Em uma época em que, de modo geral, a presença de mulhe-


res era pouco expressiva nos estádios, o Cruzeiro também já
se destacava pela participação feminina nas arquibancadas,
como descreveu a revista “Alterosa”: “É conhecido na cidade
o contingente feminino da torcida cruzeirense, que tem uma
capacidade extraordinária de fazer barulho e apupar o adver-
sário.” (SARMENTO, 1949, p 107).

Os primeiros dados oficiais de público começam a surgir ape-


nas a partir de 1946. O levantamento feito por Ribeiro (2014)
permite calcular uma média de público próxima de 4 mil pa-
gantes nos jogos do Cruzeiro disputados em seu estádio pelo
Campeonato da Cidade daquele ano. Em agosto, o clássico con-
tra o Atlético levou 13.436 torcedores ao Barro Preto, superan-
do os 9.711 que compareceram ao clássico do primeiro turno,
disputado no estádio atleticano.

78 O time do povo mineiro


Entre 1946 e 1958, o Cruzeiro viveu uma crise financeira e téc-
nica que só começou a ser superada com a inauguração de sua
sede social no Barro Preto, em fins de 1956. Nesse período, o
clube aceitava convites para amistosos pelo interior do estado
em troca de cachês. Foram 45 cidades visitadas em um total
de 89 amistosos. Com isso, a raposa tornou-se mais conhecida
fora da capital do que os seus rivais e conquistou a maior tor-
cida do interior mineiro (O LANCE!, 2005; RIBEIRO, 2014). Com
a inauguração da nova sede, o Cruzeiro passou também a ter o
maior quadro social de Minas Gerais (RIBEIRO, 2014).

Durante o longo jejum de títulos, a torcida cruzeirense não


deixou de se destacar pela presença nos estádios. Um levanta-
mento da “A Gazeta Esportiva” (1955) sobre o terceiro turno do
Campeonato Mineiro de 1954 (disputado no início de 1955 em
campos neutros) mostra o Cruzeiro como líder de renda. Ex-
cetuando os clássicos entre os três maiores clubes de Belo Ho-
rizonte, o Cruzeiro obteve uma média de renda de Cr$ 61.293,
enquanto a do Atlético atingiu Cr$ 54.604 e a do América, ape-
nas Cr$ 24.435. Todos os jogos foram disputados na capital,
a maioria deles no estádio Independência. Entre os clássicos,
Cruzeiro X Atlético teve, com folga, a maior arrecadação do
turno (Cr$ 302.386). Tais dados confirmam que, na década de
1950, a disputa pela maior torcida de Belo Horizonte permane-
cia entre Cruzeiro e Atlético.

Anos 1960 e 1970: a China Azul

O tricampeonato conquistado entre 1959 e 1961 iniciou uma


nova fase de crescimento da torcida ainda no período em que
o Independência era o principal estádio de Belo Horizonte. Na
mesma época, o Campeonato Mineiro passou a ter mais jogos
pelo interior, onde o Cruzeiro era a principal atração e sempre
lotava os estádios (O LANCE!, 2005). Além disso, a exposição do

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 79


clube em âmbito nacional também ganhou força com as pri-
meiras participações na Taça Brasil. Na edição de 1960, o duelo
diante do Fluminense atraiu 22 mil torcedores que lotaram o
Independência e estabeleceram o recorde de renda em Minas
Gerais (O JORNAL, 1960; BERWANGER, 2013; RIBEIRO, 2014).

A crescente migração de moradores do interior para a capital


contribuiu ativamente para a massificação da torcida. Em sua
maioria, eram pessoas simples, que se estabeleciam nas áre-
as periféricas de Belo Horizonte e nas cidades do entorno (SI-
MÕES, 2015). O exemplo mais emblemático desse processo foi
a torcedora símbolo, Salomé, que se mudou de Bom Despacho
para Belo Horizonte em 1958, e logo adotou o Cruzeiro como
time do coração (SANTANA, 2008).

Entre novembro de 1964 e julho de 1965, o arcebispo de Belo Ho-


rizonte, Dom Serafim Fernandes de Araújo, promoveu o con-
curso “Clube mais querido” com o objetivo de arrecadar fun-
dos para a Universidade Católica e para equipes amadoras. Cada
voto custava Cr$ 50 e o participante podia indicar seu clube fa-
vorito tanto em Minas Gerais quanto no Rio de Janeiro. O re-
sultado final apontou o Atlético em primeiro, com 363.869 vo-
tos, e o Cruzeiro em segundo, com 177.665, conforme publicado
pelo “O Jornal” (1965). O América nem sequer é citado pelo diá-
rio nos resultados finais, embora na última divulgação parcial
estivesse com uma votação quatro vezes inferior à do Cruzeiro
(PINHEIRO, 2007). Apesar de não possuir rigor científico, essa
enquete evidenciou novamente que a torcida americana não era
mais numerosa que a cruzeirense na era pré-Mineirão.

Cada vez mais o crescimento da torcida se refletia nas arqui-


bancadas. Na temporada de 1965, o Cruzeiro foi campeão de
renda em Minas Gerais, com Cr$ 18 milhões à frente do Atléti-
co (CARVALHO, 1966). O feito não pode ser atribuído somente à

80 O time do povo mineiro


utilização do Mineirão, já que o estádio foi inaugurado apenas
em 5 de setembro daquele ano, e servia igualmente a todos os
clubes da capital.

A Taça Brasil de 1966 foi a prova definitiva do poderio alcan-


çado pela torcida azul estrelada. Seguidos recordes de renda
foram batidos no Mineirão a cada fase que a raposa avançava.
Nos confrontos contra Grêmio e Fluminense foram supera-
dos os recordes vigentes da Taça Brasil (JORNAL DOS SPORTS,
1966a, 1966b), enquanto a final diante do Santos estabeleceu
o recorde nacional de arrecadação em competições de clubes
(DRUMOND e SILVA, 1966). O Cruzeiro encerrou o torneio com
uma ótima média de 42.938 pagantes por jogo4, a maior do
clube em campeonatos brasileiros. Tudo isso apenas um ano
após a inauguração do Mineirão.

Ainda na Taça Brasil de 1966, a torcida celeste se destacou por


ter protagonizado grandes deslocamentos, superando as se-
veras limitações na infraestrutura de transportes da época. No
duelo com o Grêmio, pelas quartas de final, cerca de oitocen-
tos cruzeirenses compareceram na longínqua Porto Alegre. Na
semifinal, diante do Fluminense, mais de 1.500 cruzeirenses
marcaram presença no Maracanã (JORNAL DO BRASIL, 1966a).
Já na finalíssima, a torcida realizou uma verdadeira invasão ao
Pacaembu. Quase dez mil pessoas se deslocaram de Belo Ho-
rizonte e de diversas cidades do interior de Minas Gerais para
acompanhar a conquista histórica diante do Santos de Pelé
(JORNAL DO BRASIL, 1966b, RICHARD, 1966). As grandes ca-
ravanas realizadas naquela campanha não deixam dúvida de
que a torcida cruzeirense já possuía um poder de mobilização
considerável na época.

4 - Média calculada a partir das fichas dos quatro jogos do Cruzeiro como
mandante na competição, todas disponíveis no site do Mineirão: http://esta-
diomineirao.com.br/o-mineirao/jogos-e-eventos/.

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 81


Na véspera das finais da Taça Brasil de 1966, o Cruzeiro con-
tava com o expressivo número de sete mil associados. Na oca-
sião, o então vice-presidente de futebol, Carmine Furletti, es-
timou que a crescente torcida cruzeirense correspondia a 35%
da população local e já era maioria entre as crianças, devido à
campanha de distribuição de brindes e visita de jogadores às
escolas (CARVALHO, 1966).

Em janeiro de 1968, o Jornal do Brasil (1968) destacou que no


clássico decisivo do estadual de 1967 os cruzeirenses já ocupa-
vam quase o mesmo espaço dos atleticanos no estádio. No ano
seguinte, o mesmo jornal afirmou que a torcida do Cruzeiro cres-
cia a cada jogo e vinha invadindo os lugares destinados habitu-
almente aos atleticanos no Mineirão (JORNAL DO BRASIL, 1969).

Nas quatro edições do Torneio Roberto Gomes Pedrosa (1967-


1970), como era denominado o campeonato nacional da época,
o Cruzeiro registrou a segunda maior média de público geral
(34.194), ficando atrás apenas do Flamengo (OLIVEIRA e AZE-
VEDO, 2020). Logo na primeira edição do torneio, a torcida
cruzeirense reafirmou sua força em nível nacional e obteve a
liderança da média de público, com 34.038 pagantes por jogo. O
feito foi repetido em 1969, com a ótima média de 38.024 (OLI-
VEIRA e AZEVEDO, 2017).

A primeira pesquisa de caráter científico sobre o tamanho das


torcidas mineiras ocorreu em 1971, seis anos após a inaugu-
ração do Mineirão. O Instituto Gallup entrevistou seiscentas
pessoas apenas em Belo Horizonte. Os resultados, com uma
margem de erro de 3 a 4 pontos percentuais, foram divulga-
dos pela revista “Placar” (1971). Cruzeiro e Atlético apareciam
tecnicamente empatados, com 42% e 43%, respectivamente
(Figura 2). Entre os menores de 18 anos, a raposa já aparecia
ligeiramente à frente, com 46%, enquanto o rival atingia 44%.

82 O time do povo mineiro


O América contava com apenas 5% da preferência, o que tor-
na extremamente improvável qualquer hipótese de o alviverde
ter tido uma torcida superior à do Cruzeiro na década ante-
rior. A pesquisa apontava ainda que a torcida celeste na capital
mineira era composta por 12% de membros da classe A, 50%
da classe B, 27% da classe C e 11% da classe D (PLACAR, 1972).
É importante ressaltar que a exclusão das demais cidades da
região metropolitana e do interior do estado impedia a repro-
dução de um quadro mais abrangente e realista sobre a com-
posição das torcidas naquele momento.

Clube mineiro preferido (em%) - 1971


50
43 42
40

30

20

9
10 5
1
00
Atlético Cruzeiro América Outros Nenhum
Clubes

Figura 2 – Pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em Belo Horizonte. Margem


de erro de 3 a 4 p.p.
Fonte: “Placar” (31 dez. 1971)

Entre 1960 e 1970, a população da capital mineira praticamente


dobra, de 693.328 para 1.255.415 (IBGE, 2010). Ao mesmo tem-
po, o Cruzeiro se firma como um clube de destaque nacional.
Nesse contexto, em 1973, o cronista atleticano, Roberto Drum-
mond, cria para a torcida cruzeirense a denominação de “Chi-
na Azul”, em uma referência ao seu acelerado crescimento que

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 83


se assemelhava ao do país mais populoso do mundo (SILVA,
2014; SIMÕES, 2015). O apelido se popularizou e é utilizado até
os dias atuais. Essa explosão demográfica continuou contando
com uma grande parcela da população vinda do interior, sem
lastros com as equipes da capital. O fortíssimo time cruzei-
rense, com astros como Dirceu Lopes, Piazza e Tostão, junta-
mente com o grandioso novo estádio, constituíam uma atra-
ção de destaque para a população da região metropolitana.

Na Copa Intercontinental de 1976, os 113.715 pagantes da parti-


da entre Cruzeiro e Bayern de Munique estabeleceram o maior
público da história do Mineirão em competições internacio-
nais. Segundo França e Santana (2010), houve invasão de mais
de vinte mil torcedores vindos em caravanas que acabaram
arrombando os portões após não encontrarem mais ingressos
à venda. Os mesmos autores afirmam ainda que esse foi, sem
dúvida, o maior público não-oficial da história do Gigante da
Pampulha. Além disso, o jogo quebrou o recorde brasileiro de
renda à época (JORNAL DO BRASIL, 1976).

Anos 1980: o time do povo que não abandona

A forte presença da torcida cruzeirense entre as classes de menor


poder aquisitivo de Minas Gerais sempre se refletiu na sua prefe-
rência pelos setores mais populares dos estádios. Em novembro
de 1981, a ADEMG, antiga administradora do Mineirão, realizou
o “Desafio das Torcidas” com a intenção de descobrir qual clube
levaria mais torcedores ao clássico válido pelo Campeonato Mi-
neiro. A iniciativa diferenciou os ingressos vendidos de cada clu-
be através de cores. Houve também um ingresso neutro para os
torcedores que não tinham preferência. O estádio recebeu 112.919
pagantes e 116.051 presentes em um dos maiores públicos de sua
história. Na apuração do desafio, a torcida cruzeirense venceu
por uma diferença de 2.245 ingressos (pagantes), mesmo com o

84 O time do povo mineiro


time vivendo um momento inferior ao do Atlético. Chamou aten-
ção a vantagem de 3.254 ingressos que a torcida azul estrelada
conseguiu na antiga geral, o setor mais popular. Já nas cadeiras,
a vantagem foi do rival. O valor do ingresso da geral era de Cr$
100,00, enquanto o de cadeira era Cr$ 800,00. Na arquibancada,
onde o ingresso custava Cr$ 300, prevaleceu o equilíbrio entre as
torcidas (LANCE!, 2005; RIBEIRO, 2014, 2015).

A segunda pesquisa sobre o tamanho das torcidas mineiras foi


feita em 1983, também pelo Instituto Gallup em parceria com
a “Placar”. Contudo, os critérios foram distintos dos aplicados
na pesquisa anterior, restrita à capital. As entrevistas, apenas
com maiores de 18 anos, aconteceram em todo o estado. Foram
ouvidas 796 pessoas. O questionamento utilizado dava margem
para que torcedores de clubes de outros estados apontassem a
sua equipe mineira favorita, mesmo que esta não fosse seu pri-
meiro time. Nos números gerais, o Atlético, que vinha de um
pentacampeonato estadual, ficou à frente por 46% a 39% (Fi-
gura 3). O Cruzeiro vivia uma das piores fases de sua história e
mesmo assim ficou ligeiramente à frente do rival nas classes D
e E. Na classe A, ocorria a maior vantagem alvinegra, com 52%
a 35%. Os resultados surpreenderam Reinaldo, ídolo do Atlético.
Ao tomar conhecimento da pesquisa, o atacante afirmou: “Só
agora começo a entender porque a geral do Mineirão vive mais
cheia nos jogos do Cruzeiro.” (PLACAR, 1983, p. 30). A torcida
americana nem sequer apareceu de forma discriminada nos re-
sultados por ser pouco representativa.

Uma das maiores médias de público do Cruzeiro na história


do Campeonato Brasileiro foi obtida em 1983, quando o clu-
be vivia uma profunda crise e foi eliminado na segunda fase
da competição. A média de 36.891 pagantes por jogo (RIBEIRO,
2014) é mais um dos fatos que evidenciam a fidelidade da tor-
cida mesmo nos momentos mais difíceis da história do clube.

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 85


Clube mineiro preferido (em%) - 1983
50 46

39
40

30

20
10
10
5

00
Atlético Cruzeiro Outros Nenhum
Clubes

Figura 3 - Pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em Minas Gerais com maio-
res de 18 anos. Números consideram apenas os entrevistados que se interessa-
vam por futebol. Margem de erro não informada.
Fonte: “Placar” (15 jul. 1983)

Na década de 1980, a China Azul também mostrou sua for-


ça como visitante. Em 1987, uma nova invasão ao Pacaembu
reviveu o feito da torcida na histórica final da Taça Brasil de
1966. O adversário era o mesmo Santos, pela última rodada da
primeira fase do Campeonato Brasileiro. O Cruzeiro precisa-
va da vitória para se classificar de forma direta às semifinais.
A torcida celeste compareceu em grande número e foi maio-
ria no estádio. Os santistas ainda contaram com o reforço de
são-paulinos nas arquibancadas, já que o tricolor precisava da
vitória do Santos para avançar na competição. Com o gol da
vitória nos acréscimos os visitantes puderam festejar a classi-
ficação (LANCE!, 2005; RIBEIRO, 2014). Além da capacidade de
deslocamento, a grande presença da torcida nos jogos fora de
casa já indicava também um crescente contingente de cruzei-
renses em outros estados.

86 O time do povo mineiro


Os anos 1980 ficariam marcados ainda pelo surgimento em
agosto de 1987 da Vanguarda Cru-munista, a primeira torcida
de ideologia comunista da América do Sul. Em abril de 1988, a
torcida contava com 418 filiados (PLACAR, 1988) e sua faixa era
presença constante no Mineirão. A Povão Unido Cruzeirense
(PUC), cujo nome remetia às origens populares do clube, foi ou-
tra torcida organizada marcante nos anos 1980 e início dos anos
1990. Embora as organizadas tradicionalmente se posicionem
na arquibancada, o Cruzeiro teve também grupos que frequen-
tavam a antiga geral, como a Cruzgeral, que tinha como inte-
grante a torcedora-símbolo, Salomé (SANTANA, 2008).

Anos 1990, 2000 e 2010: a maior e mais popular de Minas

A década de 1990 se caracterizou pela consolidação da torcida


cruzeirense como a maior de Minas Gerais. A primeira pesquisa
da década foi realizada pelo Ibope, com entrevistas restritas à
região metropolitana de Belo Horizonte e margem de erro de 3
pontos percentuais. O resultado divulgado pela “Placar” (1993)
voltou a apontar um empate técnico entre Cruzeiro, com 37,9%,
e Atlético, com 38,5% (Figura 4). Novamente a torcida celeste foi
maioria nas classes D e E (37,6% a 36%), enquanto o Atlético se
sobressaía nas classes A e B (38,2% a 32,9%). Na classe C houve
um empate, com 41% da preferência para cada clube.

Assim como nos anos 1980, os registros da ADEMG continu-


aram apontando que a geral recebia uma proporção maior de
público nos jogos do Cruzeiro em relação aos do Atlético. Da
mesma forma, os jogos da raposa apresentavam uma menor
proporção de carros no estacionamento. Outro indicativo do
poder aquisitivo mais baixo da torcida celeste eram as licitações
dos bares do Mineirão, onde o valor dos estabelecimentos que
ficavam do lado atleticano era quase o dobro do lado cruzeiren-
se devido ao maior consumo dos alvinegros (SIMÕES, 2015).

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 87


Pesquisa Ibope/Placar (em%) - 1931
50

40 38,5 37,9

30

20

9,3
10
5,1 5,4

00
Atlético Cruzeiro Flamengo Outros Nenhum
Clubes

Figura 4 - Maiores torcidas segundo pesquisa realizada pelo Ibope na região


metropolitana de Belo Horizonte. Margem de erro de 3 p.p.
Fonte: “Placar” (outubro de 1993)

Nas arquibancadas, a China Azul seguia batendo recordes de


público, como o da Supercopa da Libertadores de 1992. A mé-
dia de 73.127 pagantes por jogo é até hoje a maior já registrada
em uma competição sul-americana e dificilmente será batida
(LANCE!, 2005; RIBEIRO, 2014). Em 1997, os 132.834 presentes na
final do estadual, diante do Villa Nova, estabeleceram o maior
público da história do Mineirão. Relatos apontam que muitas
pessoas não conseguiram entrar no estádio (LANCE!, 2005;
Guimarãres, 2017).

Na década de 1990 foram várias as ocasiões em competições eli-


minatórias nas quais, após um duro revés na primeira partida
fora de casa, a torcida cruzeirense não abandonou o time e com-
pareceu em peso na partida de volta. Na Supercopa de 1991, 67.279
pagantes compareceram ao segundo jogo da final diante do River
Plate após a derrota por 2 a 0 na Argentina. Nas quartas de final
do Campeonato Brasileiro de 1996, o Cruzeiro foi derrotado por 3
a 0 na partida de ida diante da Portuguesa e mesmo assim o Mi-

88 O time do povo mineiro


neirão recebeu 61.796 pagantes no jogo de volta. A maior façanha
da China Azul ocorreu nas quartas de final da Copa Mercosul de
1999, quando a raposa foi goleada por 7 a 3 pelo Palmeiras em São
Paulo e 60.437 pagantes marcaram presença no segundo jogo5.

A pesquisa feita pelo Ibope e publicada pelo jornal Lance! em


1998 foi a primeira que confirmou a supremacia celeste no Es-
tado de Minas Gerais. Entre os entrevistados, 26% eram cruzei-
renses, enquanto o Atlético tinha 16% da preferência (Figura 5).

Pesquisa Lance!/Ibope (em%) - 1998

40 35

30 26
22
20 16

10

0,5
00
Cruzeiro Atlético América Outros Nenhum

Figura 5 - Maiores torcidas de Minas Gerais, segundo pesquisa realizada pelo


Ibope. Margem de erro não informada.
Fonte: “Lance!” (2005)

Em 2002, uma pesquisa Placar/Datafolha apontou a torcida do


Cruzeiro como a sexta maior do país, com 5,3% da preferência
entre a parcela da população que torcia para algum clube brasi-
leiro. No Sudeste, a nação azul já era a quarta maior, com 10,7%,
e, em Minas Gerais, a liderança era absoluta, com 43% da pre-

5 - Números extraídos do “Almanaque do Cruzeiro” (RIBEIRO, 2014).

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 89


ferência e 21 pontos percentuais de vantagem para o segundo
colocado (GUILHERME, 2002).

A partir de então, a supremacia cruzeirense em nível estadu-


al se consolidou, como indicaram as pesquisas subsequentes.
Um ano depois da vitoriosa temporada de 2003, o Ibope apon-
tava a torcida celeste com quase o dobro da alvinegra em Mi-
nas Gerais (Figura 6).

Pesquisa Lance!/Ibope (em%) - 2004

40
32,8
30 25,5 23,6

20 16,9

10

1,2
00
Cruzeiro Atlético América Outros Nenhum

Figura 6 - Maiores torcidas de Minas Gerais segundo pesquisa realizada em


agosto de 2004 pelo Ibope. Margem de erro não informada.
Fonte: “Lance!” (2005)

Em nível nacional, o Cruzeiro se firmou como a sexta maior


torcida, ao lado do Grêmio, e já há pesquisas que apontam um
empate numérico com o Vasco, quinto colocado. Nos levanta-
mentos do Datafolha, feitos em 2018 e 2019, cruzeirenses e vas-
caínos apareciam com 4%. Entre a população da região Sudeste,
o Cruzeiro se destaca como a quarta maior torcida, tecnica-
mente empatado com o Palmeiras e atrás apenas de Flamengo,
Corinthians e São Paulo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018, 2019).

90 O time do povo mineiro


Enquanto em âmbito estadual praticamente todas as pesqui-
sas apontam supremacia cruzeirense em Belo Horizonte, elas
indicam geralmente empate técnico entre Cruzeiro e Atlético.
Nas duas mais recentes, realizadas em 2016, os azuis ficaram
à frente, conforme publicou o “Superesportes” (2016). O Ins-
tituto Giga apontou o Cruzeiro com 36% e o Alético com 33%.
No Datafolha, o cenário apresentado foi de 40% a 38%. As duas
pesquisas mencionadas trouxeram ainda a distribuição das
torcidas por faixa de renda familiar, o que confirmou a predo-
minância cruzeirense nas camadas de menor poder aquisitivo.
O Cruzeiro liderava nas faixas inferiores a 5 salários mínimos,
enquanto o Atlético ficou à frente nas faixas mais elevadas,
conforme detalha a Figura 7.

Torcidas (em%) por renda familiar (em salários mínimos)


Pesquisa Datafolha - 2016
50 47
44
42
40 40 41
40 38 38
38 38

30

20
20
16
14
10 10
10
5
4
2 3 1 2 4 2 1
4
00

Cruzeiro Atlético América Outros Nenhum

Figura 7 – Pesquisa Datafolha realizada em Belo Horizonte com distribuição


das torcidas por faixas de renda familiar (em salários mínimos). Entrevistas
feitas em 25 de outubro de 2016.
Margem de erro: 3 p.p.
Fonte: “Superesportes” (2016)

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 91


Em 2015 e 2017, o “globoesporte.com” realizou dois levanta-
mentos abrangentes em conjunto com o Facebook. Embora não
sejam pesquisas com metodologia científica, a base de pessoas
abrangida é a maior em levantamentos de torcidas já feitos no
Brasil. Em 2015, o Brasil tinha 96 milhões de usuários do Face-
book, dos quais cinquenta milhões curtiam páginas oficiais de
clubes. O Cruzeiro liderava o número de curtidas em 561 muni-
cípios, ficando atrás apenas de Flamengo, Corinthians e Grêmio
nesse quesito. Na capital mineira, a liderança era celeste, com
43,4% (GLOBOESPORTE.COM, 2015). Em 2017, as páginas oficiais
dos clubes já ultrapassavam sessenta milhões de curtidas. O
Cruzeiro liderava em Minas Gerais, com 31,07%, quase 10%
acima do Atlético, como mostra a Figura 8. Em 23 microrre-
giões do estado, o Cruzeiro se destacava com mais de 40% das
curtidas (GLOBOESPORTE.COM, 2017a).

Curtidas no Facebook em Minas Gerais (em %) - 2017

40
31,1
30
21,5
20
11,0 9,1
10 5,1

00
Cruzeiro Atlético Flamengo Corinthians São Paulo

Figura 8 - Clubes com maior número de curtidas em suas páginas oficiais no


Facebook em Minas Gerais. Dados capturados em maio de 2017.
Fonte: “globoesporte.com” (2017)

92 O time do povo mineiro


Ao longo dos anos 2000, o Mineirão teve sua capacidade pro-
gressivamente reduzida pela colocação de cadeiras nas arqui-
bancadas, fechamento de parte da geral e adoção de outras
medidas de segurança. Após a reforma do estádio visando a
Copa do Mundo de 2014, a capacidade liberada caiu para cerca
de 62 mil espectadores.

A construção das novas arenas na primeira metade da déca-


da de 2010, acelerou fortemente o processo de elitização dos
estádios que já vinha ocorrendo de forma incipiente nos anos
anteriores. Como resposta a esse processo, surgiram em todo
país diversos movimentos de torcedores que tinham como
pauta principal a luta por um futebol democrático e popular
(SIMÕES, 2017). Um dos mais atuantes desses movimentos é
a Resistência Azul Popular (RAP), fundada em 2015, no auge
da elitização do Mineirão. Presente dentro e fora dos está-
dios, A RAP teve importante contribuição na luta da torcida
cruzeirense pela redução dos preços dos ingressos e criação
de categorias de sócio com valores populares. Através de seu
posicionamento antifascista e anticapitalista, a RAP, de certa
forma, resgata a atuação pioneira da Vanguarda Cru-munista,
bem como as origens do Palestra Italia e sua inserção no mo-
vimento operário da época.

No novo Mineirão, o recorde de público também pertence ao


Cruzeiro. A marca foi registrada na decisão da Copa do Brasil
de 2017, diante do Flamengo, quando 61.017 pessoas estiveram
presentes (GLOBOESPORTE.COM, 2017b). A festa grandiosa
da torcida ficou marcada pela presença de cerca de cinquenta
bandeiras de mastro de bambu.

Além dos recordes de público em grandes jogos, é importan-


te destacar a média de público histórica do clube, que reflete
a constância de presença mesmo em fases desfavoráveis. De

Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 93


acordo com levantamento de Oliveira e Azevedo (2020), o Cru-
zeiro possui a quinta maior média de público em competições
nacionais no período entre 1967 e 2019, praticamente empatado
com o Palmeiras, quarto colocado. A média geral de 21.360 pa-
gantes por jogo coloca a nação azul indiscutivelmente entre as
mais presentes nos estádios desde a década de 1960, inclusive à
frente de grandes torcidas, como as de São Paulo e Vasco. Con-
siderando todas as edições do Campeonato Brasileiro, em seus
diferentes formatos, o Cruzeiro teve a melhor média de públi-
co em sete temporadas: 1966, 1967, 1969, 1998, 2003, 2013, 2014
(RODRIGUES, 2020).

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Éric Andrade Rezende, Gladstone Leonel Júnior 103


2.2. As mulheres e o time do povo
Anna Carolina de Oliveira Azevedo

Como uma prática social, o futebol expressa características e


contradições da sociedade brasileira, o que inclui preconceitos
de classe, raça, gênero, dentre outros. Apesar das dificuldades
enfrentadas no ambiente “masculino” que cerca essa moda-
lidade esportiva, as mulheres sempre se fizeram presentes e,
por meio do futebol, exercem atividades profissionais, de lazer
e de sociabilidade.

Tornar visível a participação das mulheres no futebol e na


história dos times brasileiros é uma tarefa importante e atual.
No caso do Cruzeiro, o centenário constitui uma oportunida-
de especial para avivarmos nossa memória coletiva, lançando
luz a algumas mulheres de destaque na construção do Clube.

As mulheres na torcida

Começamos essa jornada pela figura do torcedor ou, no caso,


da torcedora, palavra que ganhou popularidade no futebol pe-
las crônicas esportivas do início do século XX, que destacavam
o ato das moças de, nervosas com as partidas, “torcerem” len-
ços e luvas nas arquibancadas brasileiras (NESTROVSKY, 2017).
Ainda que haja outras versões para o surgimento da palavra, é
certo que, desde o início do futebol no Brasil, as mulheres es-
tiveram presentes nos estádios.

Na capital mineira, isso também ocorreu. Restritas, num


primeiro momento, a papéis assistenciais ou mesmo orna-
mentais à prática esportiva masculina, as mulheres foram
rompendo os limites da dita “vida privada” e intensificando
a apropriação do espaço dos estádios de futebol (BOTELHO,

104 O time do povo mineiro


2019; CAMPOS, 2010), ainda que convivendo com estereótipos
e violências de gênero nesses espaços.

Segundo a pesquisa realizada por Campos (2010), a inauguração


do Mineirão, em 1965, propiciou a maior frequência de mulhe-
res nas arquibancadas, dadas as melhores condições estrutu-
rais quando comparadas ao então Estádio Independência. No
entanto, na década seguinte, os registros da Administração de
Estádio de Minas Gerais (ADEMG) analisados pela pesquisado-
ra mostram uma diminuição do público nos estádios, princi-
palmente do público feminino, atribuída ao crescimento de no-
vos perfis de torcidas organizadas e a um ambiente mais hostil
à presença das mulheres, em razão de práticas de assédio.

São escassos os dados e as pesquisas sobre o perfil da mulher


torcedora no país. No site oficial do Cruzeiro, incluindo o Por-
tal da Transparência criado pelo clube em 2020, não foram
encontradas estatísticas nesse sentido, a exemplo do núme-
ro de sócias torcedoras, consumo de produtos do time, den-
tre outros aspectos. No entanto, números de 2015 indicavam o
clube como o quarto colocado dentre os times brasileiros em
quantidade de sócias, as quais representavam 15% do total de
sócios torcedores (SUPER.FC, 2015).

Ilustrativa da força coletiva das mulheres torcedoras do Cruzeiro


é a partida contra o Villa Nova realizada em 22 de junho de 1997,
que ficou marcada pelo maior público presente da história do
Mineirão. Dos 132.834 torcedores que compareceram ao Gigante
da Pampulha, 57.977 eram mulheres e crianças, que participa-
ram de uma ação promocional feita pelo clube (AMARAL, 2017).

Na partida entre Cruzeiro e Atlético Mineiro no dia 13 de ju-


lho de 2008, vencida pelo Cruzeiro por 2 a 1, uma torcedora e
sua família protagonizaram um momento mágico na geral do

Anna Carolina de Oliveira Azevedo 105


Mineirão, captado pelas lentes do fotógrafo Elmo Alves. Ama-
mentando o filho Matheus, a cruzeirense Marcilena ilustrou a
beleza de uma mulher-torcedora-mãe, em uma foto que rodou
o mundo.

Não se pode falar da participação das mulheres na China Azul


sem falar da torcedora símbolo do Clube: Maria Salomé da
Silva, a Dona Salomé. Falecida em dezembro de 2019, ela re-
presenta, como ninguém, a figura da paixão pelo Cruzeiro, no
qual também trabalhou. Para homenagear a ilustre torcedora
e também para “representar a figura importante da mulher no
futebol, enaltecendo o empoderamento feminino” (CRUZEI-
RO ESPORTE CLUBE, 2020), o clube anunciou, recentemente, a
nova mascote, Raposona Salomé.

Ainda sobre figuras históricas da torcida cruzeirense, cabe


destacar Lea Campos que, driblando preconceitos e a marca-
ção cerrada da ditadura militar, tornou-se, em 1971, a primeira
árbitra reconhecida pela Federação Internacional de Futebol
(FIFA). Nascida em meados da década de 1940, na cidade de
Abaeté, Minas Gerais, Asaléa de Campos, “cruzeirense como a
mãe, era uma assídua frequentadora dos jogos da raposa mi-
neira, e fundou, junto com outras torcedoras, a TOCA: Torcida
Organizada do Cruzeiro Acadêmico” (MUSEU DO FUTEBOL,
2020).

As trabalhadoras do clube

Uma matéria produzida recentemente pelo pesquisador


Wallace Graciano, publicada no site “Ludopédio”, lançou luz
sobre o papel de “três mulheres que revolucionaram a história
do Cruzeiro”. Tratam-se das profissionais de relações públicas
Ignes Helena, Ângela Azevedo e Rita de Cássia que, em gera-
ções que se sucedem desde a década de 1960, fizeram do traba-

106 O time do povo mineiro


lho de comunicação do Clube um dos fatores de sucesso para a
constituição da China Azul.

Como destacado por Graciano (2020):

“Ao aproximar atletas de seus fãs com ações que iam desde a
distribuição de brindes em escolas até mesmo à presença de
ídolos em diversas ações sociais, elas fortaleceram a iden-
tidade e orgulho celeste. Isso fez com que os limites de Belo
Horizonte fossem rompidos. Assim, torcedores de regiões
de Minas Gerais que outrora eram carentes da proximidade
com o futebol local, aos poucos deixassem a influência dos
veículos de comunicação do Rio de Janeiro e São Paulo e bus-
cassem no Cruzeiro um clube para vibrar a cada domingo.”

Abaixo, apresenta-se uma síntese da trajetória dessas mulheres


no Cruzeiro, a partir dos relatos obtidos por Graciano (2020):

Ignes Helena (Primeira Relações-Públicas do Clube, em 1967)

Inicialmente convidada para ser relações-públicas do Atlético


Mineiro, a paulistana Ignes Helena surpreendeu ao declarar,
numa entrevista em programa da TV Alterosa, torcer para o
Cruzeiro. Foi assim que a profissional foi contratada para ser a
primeira relações-públicas do clube celeste, em 1967, trabalho
que revolucionou as ações de comunicação do Cruzeiro com
seus torcedores e com a imprensa.

Única mulher autorizada por João Saldanha a entrar na con-


centração da Seleção Brasileira antes da Copa de 1970, para
fazer chegar as correspondências dos torcedores cruzeirenses
aos ídolos, Ignes Helena é descrita da seguinte forma por Ân-
gela Azevedo:

Anna Carolina de Oliveira Azevedo 107


“Ignes Helena foi pioneira em tudo: uma mulher à frente de
um cargo no futebol, na época, reduto masculino, e que, com
seu trabalho, levou o Cruzeiro a ser amado não somente na
capital, como no interior de Minas, no Brasil e no mundo.
Foram inúmeras ações em Belo Horizonte e no interior de
Minas. Uma delas eram as visitas de jogadores nas escolas,
distribuindo material escolar com a marca Cruzeiro; o con-
tato dos jogadores com as crianças foi fundamental para o
crescimento da nossa torcida.”

As iniciativas de comunicação do clube capitaneadas por Ignes


Helena, que mesclavam ações sociais e aproximação dos ído-
los com a torcida, também são destacadas por jogadores que
participaram da conquista da Taça Brasil de 1966:

“O presidente Felício Brandi e a relações públicas do clube,


Inês [Ignes] Helena de Abreu, bolaram um coisa que eu nun-
ca tinha visto. Todas as terças, após o treino, os jogadores
do Cruzeiro iam em carros, às vezes em táxis, de dois em
dois, levando material escolar para as escolas de Belo Ho-
rizonte e nas periferias também. Todas as escolas. Nós ficá-
vamos a tarde inteira fazendo isso. Levávamos lápis, borra-
cha, caderno, régua, tabuada, uma pastinha com o escudo do
Cruzeiro e uma camisa do clube. Além disso tudo, dávamos
também cinco pacotes de macarrão. E hoje é isso, essa China
Azul que você vê hoje, o time do povo.” (Depoimento do ex-
-zagueiro Procópio Cardoso, citado por AMARAL, 2016).

“Nós dávamos réguas, lápis, cadernos. Acabava o treino, a re-


lações públicas do Cruzeiro entregava uma caixa para nós e
íamos em escolas no Horto, na Floresta, em Contagem, em Be-
tim, e distribuíamos para as crianças. Por isso que surgiu essa
série de torcedores que hoje é a maior torcida de Minas Gerais”
(Depoimento do ex-atacante Natal, citado por AMARAL, 2016).

108 O time do povo mineiro


Ângela Azevedo (Relações-Públicas no período de 1979 a 1992)

Filha do “Seu Azevedo”, zagueiro iniciou sua carreira no Cru-


zeiro quando ele ainda se chamava Palestra, em 1939, e per-
maneceu trabalhando no clube após pendurar as chuteiras,
Ângela Azevedo vivenciou o ambiente do Clube desde criança.

Em 1979, começou a trabalhar como relações-públicas do Cru-


zeiro, passando a focar o trabalho nas torcidas organizadas,
como forma de consolidar e expandir a marca do clube.

Nas palavras de Ângela, citada por Graciano (2020):

“Com o trabalho consolidado por Ignes, partimos para outros


projetos, como aproximar as torcidas organizadas, que na épo-
ca eram formadas por jovens, famílias e estudantes de medi-
cina, jornalismo, engenharia, entre outros. Pessoas que como
eu viram o Cruzeiro caminhar para sua grandeza. Foi então
que criamos a ASTOCA, Associação das Torcidas Organizadas
do Cruzeiro, que tinha como objetivo minimizar as brigas no
Mineirão. Recebíamos as torcidas adversárias, fazíamos con-
fraternizações e assim éramos recebidos em outros estados.”

“Sinto-me muito honrada por ter dado minha contribuição


com meu trabalho ao meu time de coração. Tenho muito
respeito por Ignes Helena, esta pioneira, não só como mu-
lher, mas como uma mola criadora deste departamento tão
respeitado no Cruzeiro e hoje também em outros times.
Não tínhamos a tecnologia a nosso favor. Tínhamos a gar-
ra de fazer acontecer com o que há de melhor nos humanos:
o amor. No meu lugar, entrou Rita de Cássia, que foi minha
estagiária e era de uma das mais atuantes torcidas organi-
zadas que tanto nos apoiaram. Com ela, o Cruzeiro seguiu
gigante. De nós três, ela permaneceu mais tempo dedicando

Anna Carolina de Oliveira Azevedo 109


sua vida ao clube. Uma pessoa gentil e que ama o Cruzeiro
acima de tudo.”

Rita de Cássia (Relações-Públicas no período de 1994 a 2019)

Assim como no caso de Ângela, a paixão de Rita de Cássia pelo


Cruzeiro tem origem familiar.

“Meu pai era um grande cruzeirense e sempre levava toda


família ao Mineirão. Ele morreu quando eu ainda era uma
criança. Morria de vontade de voltar aos estádios, mas não
tinha com quem ir. Meus irmãos não queriam me levar por
ser criança e ainda por cima, menina. [...] Em 1984, meu ir-
mão comprou uma cota do clube e me colocou como depen-
dente. A partir daí, comecei a frequentar a sede. Com isso,
fiquei conhecendo a Ângela [Azevedo] e alguns membros da
FAC (Força Atuante Celeste), uma torcida organizada com-
posta por famílias. Então, comecei a me enturmar e a par-
ticipar dos preparativos para as festas no Mineirão. Durante
anos, fui voluntária na organização das crianças que entra-
vam em campo com o time.”

Em 1991, Rita de Cássia começou a fazer um estágio no setor de


relações públicas, comandado por Ângela Azevedo, tendo par-
ticipado de ações para promoção da Supercopa daquele ano.
No ano seguinte, ambas deixaram de trabalhar no Clube e, em
1994, Rita de Cássia retornou, a pedido do então presidente,
para assumir as relações públicas do Cruzeiro e retomar o de-
senvolvimento dessa área.

Nessa terceira geração de mulheres à frente das relações pú-


blicas do clube, destacam-se as ações de expansão das visitas à
Toca da Raposa, realização de jogos comemorativos e ações du-
rante as partidas, organização de eventos sociais, aproximação

110 O time do povo mineiro


do clube com ex-atletas e dirigentes. Destaque, também, para
o trabalho de preservação da memória celeste, que, nas pala-
vras de Rita de Cássia, não foi dos mais fáceis:

“Em vários momentos tivemos resistência para obter, res-


taurar e guardar os materiais históricos do Cruzeiro. Algumas
pessoas não entendiam a importância de guardarmos docu-
mentos, álbuns, camisas, materiais antigos e muita coisa se
perdeu, infelizmente. Sempre diziam que eu era acumulado-
ra. No entanto, tudo que eu queria era ter o máximo de obje-
tos, documentos possíveis para criar o nosso memorial.”

Um dos maiores desafios que as mulheres enfrentam no fute-


bol refere-se à falta de oportunidades de trabalho, o que inclui
acesso a empregos e cargos, condições desiguais de remunera-
ção em comparação com os homens, falta de reconhecimento,
entre outros.

No Cruzeiro, dados divulgados em março de 2019 registra-


vam o total de 156 mulheres trabalhando “nos mais diferentes
setores do clube, ocupando inclusive posições na diretoria”
(CRUZEIRO ESPORTE CLUBE, 2019). Em 2017, o número de fun-
cionárias do Clube era 145 (CRUZEIRO ESPORTE CLUBE, 2017).
A divulgação desses dados faz parte de campanhas realizadas
por ocasião do 08 de março, Dia Internacional da Mulher, as
quais, nos últimos anos, têm incorporado discussões impor-
tantes, como o combate à violência, ao machismo e às desi-
gualdades de gênero, comprovado nas campanhas #TodaMu-
lherÉCabulosa, #QuebreOSilêncio e #VamosMudarosNúmeros.

Nota-se, assim, um crescimento do número de trabalhadoras


no período, o que, entretanto, está longe de refletir a equida-
de de gênero numa instituição do porte do Cruzeiro. O desafio,
nesse sentido, permanece grande e atual.

Anna Carolina de Oliveira Azevedo 111


As mulheres jogam bola

A primeira partida de futebol feminino datada no Brasil acon-


teceu entre as equipes paulistanas dos bairros Tremembé e
Cantareira, em 1921 (ALBUQUERQUE, 2017), mesmo ano de
fundação do nosso Palestra Italia. Com a publicação do Decre-
to-lei nº 3.199, em 14 de abril de 1941, as mulheres brasileiras
foram proibidas de jogar futebol por mais de quatro décadas,
sob a justificativa de que se tratava de esporte incompatível
“com as condições de sua natureza”.

Apenas em 1983 o futebol feminino foi regulamentado no país


e, desde então, trava uma luta por visibilidade e igualdade de
condições.

No plano internacional, o desenvolvimento da modalidade


também é recente. Em 1991, aconteceu a primeira Copa do Mun-
do de futebol feminino organizada pela FIFA, mais de sessenta
anos depois do início do torneio similar masculino. Ainda as-
sim, naquela ocasião, a FIFA se recusou a conceder o status de
Copa do Mundo às mulheres, o que só foi feito retroativamente,
dado o sucesso do torneio (MUSEU DO FUTEBOL, 2015).

No Cruzeiro, o time feminino foi constituído em 2019, num


contexto em que a paridade de gênero fora introduzida na re-
gulamentação do futebol mundial, a exemplo do artigo 236 do
Estatuto da FIFA e dos regramentos da Confederação Sul-Ame-
ricana de Futebol (CONMEBOL, 2017) que passaram a requisitar,

6- Los estatutos de las confederaciones deberán cumplir con los principios


de gobernanza y, en particular, deberán incluir como mínimo, determinadas
disposiciones relativas a las materias siguientes:
[…]
b) prohibición de toda forma de discriminación; […]
j) constitución de los órganos legislativos de acuerdo con los principios de re-
presentatividad democrática, teniendo presente la importancia de la igualdad
de género en el fútbol; […] (FIFA, 2019).

112 O time do povo mineiro


para a disputa da Copa Sul-Americana ou da Copa Libertadores
da América, que o clube tenha uma equipe principal feminina
ou associe-se a uma equipe que a tenha.

Já na sua primeira temporada, as “Cabulosas” conquistaram o tí-


tulo do Campeonato Mineiro e o acesso à elite do futebol nacional.

O ano de 2020 marca um momento de reconstrução do Cru-


zeiro, sobretudo financeiramente, diante da grave crise que se
abateu sobre a instituição após gestões temerárias de seu pa-
trimônio e sua história. Nesse contexto, foram interrompidas
as atividades das categorias de base feminina, o que demons-
tra que, embora seja uma vitória, o desenvolvimento da equi-
pe feminina do clube é um grande desafio. Na lição clássica de
Simone de Beauvoir (apud MENDES), em contextos de crise, os
direitos e as ações relativas às mulheres são sempre questio-
nados, o que nos exige constante vigilância.

Nessas breves linhas, buscou-se rememorar a participação de


diversas mulheres (e mulheres diversas) na história do Cru-
zeiro e, por meio dessas trajetórias, reconhecer a contribuição
de cada mulher torcedora ou trabalhadora do Clube. Visibilizar
a presença e o papel das mulheres reforça, também, a legiti-
midade e a urgência de políticas e ações voltadas a esse público
e a uma efetiva igualdade de gênero no Time do Povo.

Um salve às Marcilenas, Marias, Salomés, Ignes, Ângelas, Ri-


tas de Cássia, Bárbaras, Camilas, Eduardas e tantas mulheres
presentes nos gramados de Minas Gerais e nas nossas páginas
heroicas e imortais!

Anna Carolina de Oliveira Azevedo 113


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Feminino. 2015. Disponível em: https://artsandculture.goo-
gle.com/exhibit/celebre-as-mulheres-no-futebol-brasileiro/
AwKyL29yfLwzIQ. Acesso em: 28 jun. 2020.

NESTROVSKY, Sofia. Léxico Torcida. Nexo Jornal. 28 ago.


2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/lexi-
co/2017/08/28/Antes-de-existir-a-torcida-existiam-as-torce-
doras. Acesso em: 04 jul. 2020.

SUPER.FC. Inter e Grêmio são clubes com maior quantidade de


sócias. 22 jun. 2015. Disponível em: https://www.otempo.com.
br/superfc/inter-e-gremio-sao-clubes-com-maior-quantida-
de-de-socias-1.1058260. Acesso em: 04 jul. 2020.

Campanha #TODAMULHERÉCABULOSA, realizada em 2020. Dis-


ponível em: https://www.cruzeiro.com.br/noticia/show/17608/
campanha-cruzeirense-todamulherecabulosa-quer-mostrar-a-
-forca-e-a-determinacao-das-guerreiras. Acesso em: 04 jul. 2020.

Campanha #QuebreOSilêncio, realizada em 2018. Disponível


em: https://www.cruzeiro.com.br/noticia/show/13854/cruzei-
ro-lanaa-hotsite-voltado-para-reflexues-e-informaaues-pa-
ra-as-mulheres. Acesso em: 04 jul. 2020.

Campanha #VamosMudarOsNúmeros, realizada em 2017. Dis-


ponível em: https://www.cruzeiro.com.br/noticia/show/11171/
cruzeiro-cedere-espaao-na-camisa-para-expor-realidade-
-das-mulheres. Acesso em: 04 jul. 2020.

116 O time do povo mineiro


2.3. Cruzeirenses, por que Maria?7
Gladstone Leonel Júnior

— Vai aprender a torcer, seu Maria!

Exclama o torcedor adversário com um tom de deboche, ao se re-


ferir a um torcedor do Cruzeiro, mesmo que seja outro homem.

Esse tipo de escárnio tornou-se comum nos últimos anos


para fins de desqualificar os/as torcedores/as do Cruzeiro de
alguma forma.

Mas, de onde vem essa denominação genérica feminina usada


por alguém, nesse caso, como um xingamento?

Existem algumas formas de tentar compreender as razões da


utilização desse nome próprio. A primeira delas consiste na
própria grafia das pichações da Torcida Organizada do Cru-
zeiro Máfia Azul, que estão espalhadas, principalmente, pela
capital e pelo resto do Estado de Minas Gerais. Uma das formas
mais comuns de descaracterizar as pichações, por parte das
torcidas organizadas adversárias, é sobrepor a pichação so-
bre a letra “F” transformando-a em “R”, e o termo MÁFIA se
alteraria para MARIA. De fato, esse tipo de episódio é muito
corriqueiro nos centros urbanos, onde a cultura da pichação é
forte e a identidade futebolística também.

Embora seja perceptível que o nome “Maria” para se referir aos


cruzeirenses não parta simplesmente de uma ação de pichadores,

7-Cf. LEONEL JÚNIOR, Gladstone. Mais Marias, menos Arrascaeta. Brasil de Fato
MG. Belo Horizonte. Jan. 2019. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.
br/2019/01/18/mais-marias-menos-arrascaeta. Acesso em: 03 ago. 2020

Gladstone Leonel Júnior 117


mas algo mais intrincado que o próprio futebol na cultura popular
brasileira: a misoginia.

Essa palavra feia tem um significado muito mais perverso que


a sua estética, pois significa desprezo, aversão às mulheres.
Toda vez que o nome “Maria” é usado dessa forma, ele vem
com uma carga de preconceito e de frustração, próprios do
nosso tempo. Um termo usado por homens contra homens,
instrumentalizando as mulheres.

Nessa situação, o nome não surge necessariamente em um tom


homofóbico, mas, sem sombra de dúvidas, misógino, visto que
para o expositor, a mensagem passada é a de que o cruzeiren-
se a partir do momento que opta em torcer para o Cruzeiro,
o faz porque não entende de futebol. No senso comum desses
torcedores, por não entenderem de futebol são equiparados às
mulheres, as quais não entenderiam de futebol, que “é” um
“esporte de homem”, por isso seriam “Marias”. A denomina-
ção busca naturalizar algo construído na sociedade, o distan-
ciamento da mulher, não só do mundo do futebol, mas do es-
paço público.

Ao preconceito soma-se a frustração. Houve um vertigino-


so aumento de torcedores do Cruzeiro nas últimas décadas, e
consequentemente de torcedoras. Assim, com um maior nú-
mero de torcedores e torcedoras, os títulos também aumenta-
ram e o Cruzeiro, nos dias de hoje, detêm uma quantidade de
torcedores/as e de títulos relevantes muito superior ao do seu
maior rival. Não por acaso, os “xingamentos” às “Marias” se
intensificaram nos últimos anos.

Não restam dúvidas de que a torcida do Cruzeiro, como par-


te dessa mesma sociedade patriarcal e machista, age também
com um grau de misoginia considerável frente aos seus rivais.

118 O time do povo mineiro


Para construir uma cultura de tolerância, inclusão e respeito é
fundamental a pró-atividade da torcida e do clube. Urge am-
pliar os espaços de participação das mulheres no futebol, seja
na composição da diretoria do clube, no conselho, no apoio às
torcedoras e, principalmente, na formação das categorias de
base e profissionais de equipes femininas. Algumas ações de
visibilidade já foram tomadas por algumas diretorias do clube,
como a associação dos números das camisas dos jogadores aos
índices de violência contra as mulheres, no Dia Internacional
da Mulher em março de 2017, em um jogo da Copa do Brasil
contra o Murici, de Alagoas, mas isso ainda é muito pouco para
o potencial de um clube de massa.

Quis o destino, em razão dos seus adversários e não do pró-


prio clube, que o Cruzeiro tivesse a oportunidade de ser a van-
guarda para avançar nessa temática em respeito, sobretudo,
às suas torcedoras e a nova geração de torcedores/as.

O Cruzeiro não deverá ser só das Marias, deverá ser do Clube


da Esquina, dos Miltons e dos Borges, mas também das Hele-
nas, das Ana Claras, das Milenas, das Salomés, das Lucianas
e das Sophias. Haverá um dia que ainda nos orgulharemos de
entoar no Mineirão as canções feitas pelos nossos e pelas nos-
sas, que nos caracterizam como mineiros/as, cruzeirenses e
contribuem para essa identidade que construímos:

“Mas é preciso ter força


É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre (...)
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah! Hei! Ah! Hei!!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê”

Gladstone Leonel Júnior 119


2.4. Che x Barrientos: a política latino-
-americana dentro de campo
Gladstone Leonel Júnior

Diogo Henrique Silva

Não é novidade, para os torcedores mais atentos, as várias


imagens presentes nas bandeiras dos estádios, sobretudo le-
vantadas pelas torcidas organizadas. No Mineirão, duas em
especial chamam a atenção nos clássicos entre Cruzeiro X
Atlético. No lado azul do estádio, estava a imponente bandei-
ra, retratando a foto clássica de Alberto Korda, com o rosto do
revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara, enquanto
do lado preto e branco, em uma bandeira, a imagem do al-
goz responsável pela sua execução na Bolívia, o ditador René
Barrientos. Qual seria a identificação dessas torcidas com tais
personagens históricos?

A exposição dessa rivalidade, também expressada no recor-


te político, ganhou mais projeção com a divulgação dessas
bandeiras com as figuras históricas, no Museu do Futebol em
São Paulo. A mostra que ficou aberta à visitação entre 2018 e
2019, intitulada “Clássico é clássico e vice-versa”, assinada
pelo curador e comentarista Celso Unzelte, tinha a intenção de
mostrar que não se tratava só de futebol, havia uma comple-
xidade das relações sociais e políticas que perpassa também
esse esporte.

A bandeira que leva a figura de Che Guevara é do Comando


Guerreiro Eldorado - Máfia Azul, torcida organizada do Cru-
zeiro; já a bandeira com René Barrientos pertence a Galoucura
de Contagem, cidade de Minas Gerais, organizada do Atlético

120 O time do povo mineiro


Mineiro. Essas são figuras que extrapolam a vivência histórica
do povo de Minas Gerais, mas empresta à rivalidade futebolís-
tica novos contornos.

A relação de identificação tem origem no entusiasmo de três


cruzeirenses do bairro Eldorado de Contagem, cidade da região
metropolitana de Belo Horizonte. Na época jovens, em 1989,
os torcedores desejavam criar um coletivo para comparecer,
unidos, aos jogos. Incorporados ao movimento de pichação da
cidade, o grupo reuniu mais amigos e passou a ocupar parte
do concreto do Mineirão. A turma contava com a liderança de
Léo Souza, o Moita, e, de maneira rápida, estreitou laços com
a Máfia Azul. O vínculo exigiu a formulação de um nome de
batismo para designar a nova extensão da organizada. Afinal,
era necessária a criação de uma identidade que distinguisse
aquele conjunto de apaixonados pelo Cruzeiro. Sob influên-
cia da Torcida Jovem do Flamengo, que tinha constituído sua
imagem com inspiração em preceitos militares, vide o slogan
“Exército Rubro-Negro”, o uso da camuflagem em seus mate-
riais e a designação das divisões por bairros e zonas da cidade
em pelotões; os integrantes escolheram o nome de Comando
Guerreiro do Eldorado (CGE). O emprego do termo “coman-
do” remetia à conotação de organização bélica. A intenção era
transmitir uma ideia de imponência e soberania.

O desejo por reconhecimento por parte da CGE, sigla abrevia-


tiva e expressão utilizada pelos membros da entidade, apare-
cia à medida que o esquadrão azul e branco celebrava a con-
quista de títulos. O futebol desempenhado dentro de campo
alavancava o crescimento do número de cruzeirenses. O bi-
campeonato da Supercopa, em 1992, foi preponderante para o
aumento da torcida e a consequente mudança de comporta-
mento nas arquibancadas. As organizadas estavam mais pre-
ocupadas com os cânticos e com a representatividade dentro

Gladstone Leonel Júnior, Diogo Henrique Silva 121


do Mineirão. A questão da legitimação de cada torcida se dava
pela tomada dos espaços do estádio e pela capacidade de criar
maior catarse durante as partidas. Não por acaso, a Máfia Azul
consolidou seu status de principal agremiação apoiadora do
Cruzeiro. Nesse período, o Comando Guerreiro do Eldorado
teve uma profunda contribuição na construção dessa maior
intensidade da torcida e outro padrão na forma de torcer.

Em entrevista dada ao site “Ludopédio”, o cruzeirense Léo


Moita, um desses integrantes ativos da torcida desde o seu
início, contextualiza o momento do seu surgimento e explica
a razão da utilização da imagem de Che Guevara. No início dos
anos 1990, essa mudança de patamar da torcida do Cruzeiro,
de acordo com o entrevistado, foi causada por algo além do
virtuoso desempenho em campo na época.

“Naquela conjuntura a torcida do Cruzeiro ainda era mais


calada. Com a chegada da nossa galera, a visão do compor-
tamento no estádio é alterada. Implementamos uma condu-
ta mais povão, de ser uma ideia mais pra frente, de preocu-
pação com o canto, com a torcida, e também de dominação.
Nossas ações foram de vital importância para a consolidação
da CGE.” (SOUZA apud SILVA, 2019)

No entanto, quando o clube ganha maior projeção interna-


cional com os títulos da Supercopa Libertadores da América
em 1991 e 1992, em cima de River Plate e Racing, o Comando
Guerreiro Eldorado vê a necessidade de incorporar uma figura
emblemática latino-americana que representasse os anseios e
alguns valores da torcida. A figura da Morte e o personagem de
videogame Sonic chegaram a ser colocados como expressão da
facção, porém foram descartados por não explicitar a essência
da organização. Durante a jornada da primeira conquista in-
ternacional desde a Copa Libertadores de 1976, a Supercopa de

122 O time do povo mineiro


1991, a ramificação da Máfia Azul resolveu adotar como sím-
bolo característico a imagem de Che Guevara. Quando o es-
tandarte era agitado, o cruzeirense tinha certeza de que a CGE
estava presente. A escolha da figura contracultural foi reflexo
da ideologia dos participantes somada à identificação com o
legado rebelde deixado por Che; fator que evidencia conheci-
mento prévio dos componentes sobre a história do argentino.

“Veio a ideia de usar como símbolo um guerreiro latino. Lá


no Rio o pessoal usava o Mao-Tsé, Saddam Hussein, Aiatolá
Khomeini. Começamos a usar o Che, fizemos a bandeira e vi-
rou um sucesso na arquibancada.” (SOUZA apud SILVA, 2019)

Essa rebeldia de Che Guevara e a insurgência contra a opressão


dos dominantes encantavam parte da juventude cruzeirense,
que resignificava aquele símbolo de luta pela libertação da
América dentro dos estádios de futebol. O Comando Guerreiro
Eldorado ainda resiste às opiniões divergentes, mas mantém a
simbologia guevarista nos seus materiais e na bandeira, além
da realização de ações sociais.

“A turma desenvolveu a torcida já com a noção do significado.


Influenciou no empoderamento de cada membro ao explicitar
que ele não precisa ser um submisso, no sentido de aceitar or-
dens sem questionar. Isso é um ideal interno de torcida e nem
tanto no plano político.” (SOUZA apud SILVA, 2019)

Já o presidente da CGE em 2007, Washington, o “Xará”, ao ser


entrevistado pelo jornal “Hoje em Dia”, foi mais enfático ao as-
sociar o exemplo pedagógico de Che com a torcida cruzeirense.

“A decisão de colocar o Che Guevara como o símbolo da CGE


tem um misto de ideologia e identificação. Ele foi o grande
guerrilheiro. Não fizemos a escolha de forma aleatória, sem

Gladstone Leonel Júnior, Diogo Henrique Silva 123


saber de quem se tratava. Conhecemos a história do Che e
sabemos que há uma grande identificação dos brasileiros
com ele.” (XARÁ apud SIMÔES, 2007)

Depois da simbologia construída pela torcida do Cruzeiro com


Che Guevara, outras torcidas organizadas do Brasil passaram
a usar a figura do guerrilheiro, como a Torcida Jovem do Sport;
a Torcida Jovem do Flamengo; e a Independente do São Paulo.

A quantidade elevada de vendas de materiais da divisão da


Máfia Azul, ainda no final dos anos 1990, revelou o quanto o
torcedor apreciava a apropriação. A ideia periférica com o teor
contestador transmitia a ambição por domínio. A dimensão
dos efeitos da marca tomou outra proporção quando a torci-
da do maior rival, motivada pela disputa de supremacia, op-
tou por eleger o mandatário do assassinato do revolucionário
como referência alegórica da organizada. Assim, a massifica-
ção da figura de Che Guevara levada pela torcida organizada do
Cruzeiro por sua potência gerou uma reação da Galoucura de
Contagem em estampar o ditador boliviano René Barrientos.

O certo é que a utilização de René Barrientos pela torcida do Atlé-


tico-MG aparenta estar muito mais no campo da rivalidade do
que da identificação política com o ditador boliviano. Já a torci-
da cruzeirense, mesmo em tempos de governos com perfis mais
autoritários no Brasil, segue sendo amparada nos seus jogos pelo
olhar profundo e certeiro de Che Guevara na bandeira da CGE.

Referências Bibliográficas:

SILVA, Diogo Henrique. Na Berlinda da rivalidade. Ludopédio.


São Paulo. 26 jun. 2019. Disponível em: https://www.ludope-
dio.com.br/arquibancada/na-berlinda-da-rivalidade/. Acesso
em: 26 jun. 2019.

124 O time do povo mineiro


SIMÕES, Alexandre. Rivalidade histórica no Mineirão. Hoje em
Dia. Belo Horizonte. Caderno de Esportes. 28 abr. 2007, p. 16.

Gladstone Leonel Júnior, Diogo Henrique Silva 125


2.5. A luta popular no Novo Mineirão
André Bueno Corrêa Moura

Gustavo Bueno Corrêa Moura

“Acreditamos que o futebol pode também ser revolucionário,


é nítido o recorte de classes no meio futebolístico e podemos
fazer essa luta com os torcedores”, dizem os membros da Re-
sistência Azul Popular (RAP) em manifesto publicado em seu
blog (RESISTÊNCIA, 2018). A RAP é uma torcida do Cruzeiro
fundada no ano de 2015 com forte ideário progressista.

De acordo com entrevista concedida ao jornalista especialista


em futebol e lutas populares Irlan Simões, que então escrevia
seu livro “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras
nas arenas” (SIMÕES, 2017), a Resistência Azul Popular surgiu
como uma página no Facebook no fim de 2014, confluência de
diversas outras. O movimento tomou força com a aglomeração
de diversos apaixonados pelo Cruzeiro que, em comum, carre-
gavam bandeiras e pautas progressistas: o combate à homofo-
bia, ao racismo, ao machismo e à xenofobia, além da orienta-
ção anticapitalista.

Apesar de já engatinhar nas redes sociais em 2014, a Resis-


tência Azul Popular tem como marco fundador a vitória do
Cruzeiro sobre o Palmeiras por 2 a 1, em 9 de agosto de 2015.
Horas antes, o Mineirão fora palco da primeira manifestação
da torcida, em defesa dos antigos barraqueiros do Mineirão,
trabalhadores alijados de seu ganha-pão quando do fecha-
mento do Estádio para reformas focando a Copa do Mundo
de 2014. Impedidos de retornar depois do fim das reformas, a
luta dos barraqueiros parecia assumir ali um símbolo do que
seriam as dificuldades enfrentadas pelo torcedor mineiro com

126 O time do povo mineiro


o processo de elitização que perpassou o futebol brasileiro no
ciclo dos grandes eventos.

Composta por militantes progressistas, sejam independen-


tes ou mesmo organizados em partidos e movimentos sociais
com orientação de esquerda, a torcida tem como diretrizes a
organização e a movimentação em torno de pautas amplas
cuja espinha dorsal é a criação e fomento de uma relação cada
vez mais inclusiva e democrática do Cruzeiro com o seu povo.
Uma característica da RAP é o não alinhamento com qualquer
partido político ou movimento social determinado, justamen-
te por sua diversa e plural composição. Isso permite à torcida
um trânsito mais efetivo em torno das pautas que propõe e di-
álogos mais francos com os torcedores com os quais se rela-
ciona: a única mediação, para a RAP, é o Cruzeiro.

Os aspectos centrais da militância da Resistência Azul Popular


podem ser compreendidos em três eixos, todos eles em torno
do Cruzeiro. O primeiro, a luta por um Cruzeiro democrático
e popular, tem no horizonte que o clube, de origens populares
e operárias, abra espaço efetivo para todos, inclusive aqueles
até hoje marginalizados, que se encontram longe dos proces-
sos de deliberação do Maior de Minas. A democratização do
Cruzeiro, com a garantia de direitos políticos para os sócios-
-torcedores, é um dos corolários dessa luta.

O segundo eixo, a luta contra a elitização do Mineirão surgiu


como resposta à mencionada elitização que o futebol brasileiro
passou após a realização dos grandes eventos na década de 2010.
É a busca pela disponibilização de ingressos e planos de associa-
ção a preços acessíveis ao torcedor mais pobre (como, por exem-
plo, com a criação de um setor popular, como esporadicamente
praticado pelo clube) e contra a proibição de adereços, bandeiras
e sinalizadores que embelezam e dão o caráter popular à festa

André Bueno e Gustavo Bueno 127


que a maior torcida de Minas Gerais faz em sua casa. Faz parte
dessa luta também a insistência inarredável no acesso amplo ao
estádio nas condições mais básicas para o torcedor.

Por fim, o terceiro eixo, a luta contra as opressões, tem por


objetivo a construção de um Mineirão sempre acolhedor à
torcedora e ao torcedor do Cruzeiro, na manifestação plena e
diversa de sua cor, gênero e orientação sexual, buscando sem-
pre trabalhar contra o avanço do machismo e da homofobia e
quaisquer outras formas de opressão.

Importante avanço nessa luta foi o surgimento do Coletivo


Maria Tostão, formado exclusivamente por mulheres, cujo
objetivo é criar um espaço acolhedor para as mulheres e cui-
dar de pautas específicas relativas ao machismo e à misoginia.
Originalmente, o Coletivo Maria Tostão tinha também a ideia
de se aproximar dos coletivos femininos de outras torcidas or-
ganizadas e, com efeito, as minas da RAP têm sido extrema-
mente bem articuladas.

Vale lembrar ainda a participação da RAP contra a xenofobia:


uma das primeiras ações da torcida enquanto grupo já coeso
foi a organização, com o apoio de torcedores da Sociedade 5
Estrelas, da ida de mais de cinquenta imigrantes haitianos ao
Mineirão. Moradores da região metropolitana de Belo Hori-
zonte, eles ganharam ingressos para o jogo e tomaram café
da manhã na Toca da Raposa I antes de assistir à vitória do
Cruzeiro por 2 a 0 sobre o Fluminense na Toca III, em outubro
de 2015 (TRINDADE, 2015).

Na arquibancada, a RAP ainda não definiu seu lugar de prefe-


rência, embora marque presença em 100% dos jogos da equi-
pe feminina e em alguns das categorias de base. No Mineirão,
seus membros se reúnem em maior número no chamado setor

128 O time do povo mineiro


amarelo (os antigos portões 3 e 6), tanto no superior quanto no
inferior. Por ausência de definição, os maiores encontros nas
arquibancadas são combinados jogo a jogo, como se combi-
nam os atos da torcida. Apesar disso, a entrada das bandeiras
sempre ocorreu no amarelo inferior, onde ficam localizadas as
torcidas organizadas que se dispuseram a apoiar a RAP com a
entrada dos materiais — a exemplo de Comando Rasta e Pavi-
lhão Independente.

A relação com a Pavilhão se fortaleceu após o assassinato do


torcedor Eros Dátilo por funcionários da empresa terceiriza-
da de segurança do Mineirão, dentro do estádio, em outubro
de 2016. Vítima da truculência da segurança com as torcidas
organizadas, Eros era então diretor da Torcida Pavilhão Inde-
pendente (TPI) e foi morto por seguranças após tentar passar
de um setor a outro no estádio. Na ocasião, a versão oficial das
empresas responsáveis foi a de que o torcedor foi eletrocutado,
por acidente, em meio à briga com os seguranças (SILVA, 2016).

Solidária à dor da torcida que perdia um amigo e integrante, e


que reverberou por todas as torcidas do Cruzeiro, a RAP parti-
cipou então de protestos organizados pela TPI e diversas ou-
tras ações em memória de Eros. Em seguida, a Pavilhão iniciou
o projeto social Eros Dátilo, que até hoje é ativo nas comunida-
des carentes de Belo Horizonte e região.

No convívio com as organizadas, a RAP logo percebeu que a


atuação prática é a tônica das torcidas e é o que as difere de
outros movimentos sociais. Assim, a entrada de materiais
assume relevância especial nos estádios e na percepção do
torcedor, em geral, sobre os grupos que ali se constroem. Se
por um lado essa entrada representa um ponto nevrálgico na
construção das torcidas, ela também — e talvez por isso — é
uma dificuldade imposta pela Minas Arena: só são permitidos

André Bueno e Gustavo Bueno 129


adereços por parte de torcidas previamente registradas, com
CNPJ próprio, cadastradas junto à concessionária e liberadas
antes dos jogos. O argumento da administradora do estádio é
o controle e responsabilização dos membros das torcidas, mas
o que se vê é o poder público se esquivando de suas atribuições
(MOURA, 2019), tolhendo, em última análise, o direito do tor-
cedor à festa no Mineirão.

A relação com a Minas Arena parece seguir a prescrição da dita


modernização dos estádios, inclusive sob a égide do Estatuto
do Torcedor reformado em 2010 (com relatoria do então de-
putado Zezé Perrella). Com o pretexto de modernização, en-
quanto o próprio estatuto estabeleceu diversas diretrizes para
a organização de competições e espetáculos esportivos mais
idôneos, houve ao mesmo tempo a flexibilização de diversas
garantias, o que paradoxalmente fazia letra morta do texto da
lei para ignorar direitos básicos do torcedor. Exemplo disso foi
a retirada autoritária de faixa levada pelo Comando Rasta du-
rante partida na qual o Cruzeiro venceu a Patrocinense por 2 a
0, em março de 2018, que homenageava Marielle Franco, vere-
adora carioca assassinada em março de 2018. A concessionária
do Mineirão alegou que “as faixas posicionadas na arena são
previamente apresentadas e aprovadas, em conjunto com as
autoridades competentes, o que, infelizmente, não aconteceu
no caso”. (REDAÇÃO, 2018a).

Não há norma, seja na Constituição ou no Estatuto do Torce-


dor, que preveja a realização de censura prévia ao livre direito
de manifestação. Pelo contrário: a Constituição Federal con-
sagra em seu art. 5°, IV, a “livre manifestação do pensamen-
to”, enquanto o Estatuto do Torcedor somente traz em seu art.
13-A, IV, a vedação quanto ao porte de “cartazes, bandeiras,
símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive
de caráter racista ou xenófobo”, o que obviamente não era o

130 O time do povo mineiro


caso. O episódio também se agravou pelo fato de que o então
coordenador de segurança da concessionária do Mineirão foi
gravado por um membro da RAP dizendo com todas as pala-
vras que o Mineirão “não é lugar de manifestação política”
(REDAÇÃO, 2018b).

Na semana seguinte, membros da RAP e do Comando Rasta se


reuniram com funcionários da Minas Arena buscando solu-
cionar o conflito, de forma que a concessionária cedeu espaço
para integrantes, todas mulheres, das torcidas adentrarem ao
gramado na partida seguinte (Cruzeiro 2 x 1 Tupi) carregando a
faixa que ocasionou o entrevero da semana anterior, bem como
espaço no telão do estádio para vídeo em homenagem à ex-ve-
readora. Entretanto, até hoje persiste a postura de fiscalização e
aprovação prévia dos materiais que entram no estádio.

Vítima desses arbítrios, dentre outros, da concessionária do


Mineirão, o Comando Rasta é uma torcida criada em dois de
janeiro de 2012, aniversário da fundação do Cruzeiro, com ide-
ologia rasta; segue os ideais pacíficos e culturais do jamaica-
no Bob Marley. Com forte presença nas arquibancadas de onde
quer que o Cruzeiro esteja jogando, a torcida prega seu ideário
de “paz, amor e harmonia” sem nunca se abster das lutas so-
ciais e com a realização de inúmeros trabalhos comunitários.
É uma torcida firme em seu lugar no Mineirão, intransigente
no apoio incondicional ao Cruzeiro e, a partir daí, conscien-
te do papel social tão importante que o futebol tem na nossa
sociedade. É a síntese de um movimento orgânico que une a
socialização proporcionada pelo futebol à percepção de seus
significados. Com isso, sempre se manifesta acerca de pautas
tão diversas quanto importantes ao torcedor enquanto cida-
dão – estão atentos, por exemplo, às demandas dos trabalha-
dores, às opressões estruturais como o racismo e à gravidade
da mineração predatória que assola nossas Minas Gerais.

André Bueno e Gustavo Bueno 131


A RAP também já estabeleceu laços com as outras organiza-
das do Cruzeiro: já promoveu encontros na sede da Máfia Azul
com o objetivo de exibir e debater filmes que abordam o tema
da elitização dos estádios, como o documentário Adeus, Geral.
Alguns membros da RAP também costumam marcar presença
em festas da Maior de Minas.

Em seminário promovido em 2017, a torcida convidou um con-


selheiro do Internacional de Porto Alegre, também membro do
movimento O Povo do Clube, que obteve sucesso em democra-
tizar o clube gaúcho e garantir voto e possibilidade de candida-
tura aos seus sócios torcedores, para dividir suas experiências,
em evento que contou com integrantes das torcidas já citadas
neste texto, além de membros da Torcida Fanáti-Cruz, a TFC.
O seminário levou à fundação, por parte de alguns membros
da RAP, do grupo “Somos o Cruzeiro”, que tinha como único
objetivo a democratização do clube nos moldes ocorridos no
Internacional e demais clubes mais democraticamente aber-
tos no país.

A experiência adquirida no período de “Somos o Cruzeiro”


acrescentou para a posterior criação, em 2018, do grupo De-
mocracia Celeste, que abarcou membros de diferentes organi-
zadas do Cruzeiro na luta pela democratização do clube. Com o
Maior de Minas comemorando seu centenário, o debate sobre
a democratização continua em efervescência.

Experiência recente, paralela à Resistência Azul Popular, mas


digna de nota, é o surgimento, em 2019, do Marias de Minas,
coletivo LGBTQIA+ que soma à luta contra as opressões no fu-
tebol. Infelizmente nascido como resultado de ataques homo-
fóbicos sofridos por seu fundador no Mineirão, o Marias de
Minas tem movimentado a pauta nas redes sociais e institu-
cionalmente, junto à diretoria do Cruzeiro. A própria direto-

132 O time do povo mineiro


ria do clube fez convite ao coletivo para uma reunião acerca de
diversas pautas e elaboração de campanha (CRUZEIRO, 2020)
quando da celebração do Dia Internacional do Orgulho LGBT,
em 28 de junho de 2020.

Ainda buscando seu espaço no Mineirão – o grupo não possui


faixas, bandeiras ou local fixo na arquibancada – o Marias de
Minas representa mais um passo em direção a um futuro mais
inclusivo e diverso; os desafios são grandes e as ameaças ainda
frequentes, mas a própria diretoria do Cruzeiro e parte da tor-
cida parecem começar a se sensibilizar com a causa.

A Resistência Azul Popular mantém sua atuação junto às ou-


tras torcidas no enfrentamento dos diversos desafios aqui
abordados e no apoio a pautas e práticas que sejam populares,
democráticas e inclusivas. Não abandona o debate franco e a
discussão dos problemas reais enfrentados pelos torcedores.

Referências Bibliográficas:

CRUZEIRO. Dia do orgulho LGBTQI+ (vídeo). Cruzeiro Esporte


Clube, canal oficial no YouTube. Belo Horizonte, 28 jun. 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZmhKt-
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MOURA, André Bueno Corrêa. Responsabilidade das torci-


das organizadas: limites e possibilidades. 2018. Monografia
(conclusão de graduação em Direito), Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte.

REDAÇÃO. Torcedores do Cruzeiro levam faixa em homena-


gem a Marielle Franco ao Mineirão; protesto é interrompi-

André Bueno e Gustavo Bueno 133


do pela segurança. Superesportes. Belo Horizonte, 17 mar.
2018a. Disponível em: https://www.mg.superesportes.com.
br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2018/03/17/noticia_cruzei-
ro,463243/torcedores-do-cruzeiro-fazem-faixa-em-home-
nagem-a-marielle-franco.shtml. Acesso em: 05 ago. 2020.

REDAÇÃO. Vídeo divulgado por torcedores mostra que coordena-


dor de segurança contrariou nota da Minas Arena em caso de ho-
menagem a Marielle no Mineirão. Superesportes. Belo Horizon-
te, 19 mar. 2018b. Disponível em: https://www.mg.superesportes.
com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2018/03/19/noticia_cru-
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trariando-nota-da-minas-arena.shtml. Acesso em: 05 ago. 2020.

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Azul Popular, 05 mar. 2018. Disponível em: https://resistencia-
azulpopular.wordpress.com/sobre/. Acesso em: 05 ago. 2020

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no Mineirão, diz polícia. Estado de Minas. Belo Horizonte, 24
nov. 2016. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/
gerais/2016/11/24/interna_gerais,826568/torcedor-do-cru-
zeiro-morreu-eletrocutado-no-mineirao-diz-policia.shtml.
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cedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Mul-
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tianos-ao-mineirao-1.1142873. Acesso em: 05 ago. 2020.

134 O time do povo mineiro


PARTE 03.
jogadores marcantes:
quando o manto azul se
torna a segunda pele
Em sua história quase centenária, o Cruzeiro teve jogadores
que se destacaram não apenas nos gramados, mas também
em sua postura fora de campo. Atitudes contestatórias e posi-
cionamentos progressistas engrandeceram ainda mais a tra-
jetória vitoriosa de alguns dos maiores ídolos cruzeirenses e
fortaleceram sua identificação com as origens populares do
clube. Nesse aspecto, destacam-se três atletas que marcaram
época em gerações distintas: Niginho, Tostão e Sorín.

3.1. Niginho: o artilheiro antifascista


Éric Andrade Rezende

O primeiro dos ídolos celestes que merece grande exaltação


também pela sua postura extracampo é aquele que ficou mar-
cado por se negar a servir o exército fascista do ditador italia-
no Benito Mussolini. Trata-se de Leonízio Fantoni, o Niginho.
Terceiro maior artilheiro da história do Cruzeiro, é conside-
rado o jogador mais importante do clube na era pré-Mineirão.
Surgiu nas divisões de base do Palestra em 1926, mas só jo-
gou sua primeira partida no time principal em 27 de abril de
1930, em uma goleada de 6 a 0 sobre o Calafate (SANTANA,
2003). Firmou-se no primeiro quadro a partir de 1931, impres-
sionando pelas arrancadas fulminantes, pelo sangue e pelo
oportunismo (O JORNAL, 1949). Ao longo de suas quatro pas-
sagens no clube, participou de cinco títulos estaduais, quando
o torneio ainda era denominado Campeonato da Cidade (1930,
1940, 1943, 1944 e 1945). Ficou conhecido como o “Carrasco dos
Clássicos” por ser o principal artilheiro da história nos duelos
contra Atlético e América (RIBEIRO, 1999; MARQUEZI, 2009;
LIMA, 2016). Entre os torcedores veteranos do Palestra, era
conhecido como o “Pelé da década de 1940” (PLACAR, 1970).

139
Em 1932 foi contratado pela Lazio, seguindo o caminho de seu
irmão, Ninão, e de seu primo, Nininho, outros palestrinos da
família Fantoni que já haviam se transferido para o futebol ita-
liano. Na época, a equipe ficou conhecida como “Brasilazio” de-
vido à presença de vários jogadores brasileiros com ascendência
italiana (LIMA, 2016; HELAL FILHO, 2018). Cabe ressaltar que
os irmãos Fantoni, além de terem feito história nos gramados
brasileiros e italianos, foram os pioneiros na ideia de “abrasi-
leirar” o Palestra, ainda na década de 1920 (COUTO, 2003).

Por ter dupla cidadania, Niginho foi convocado em 1935 para


fazer parte das tropas fascistas em um conflito na Abissí-
nia, atual Etiópia. Sem temer o ditador Mussolini, Niginho
recusou a convocação e protagonizou uma fuga espetacular.
Juntamente com sua esposa, cruzou a fronteira com a Fran-
ça, passou por Lisboa e retornou ao Brasil (BARRETO, 1976;
SANTANA, 2003; LIMA, 2016).

Ao desembarcar no Rio de Janeiro, Niginho teve propostas do


Flamengo e do Fluminense. Contudo, optou por retornar ao
Barro Preto, declarando que “Os Fantoni são uma extensão do
Palestra” (RIBEIRO, 1999). De acordo com Santana (2003), as-
sinou contrato por salário incomparavelmente menor do que
lhe ofereciam os times cariocas e, também, o Peñarol. Em um
primeiro momento, Niginho negou ao jornal “A Noite” (1935a)
que seu retorno ao Brasil seria devido ao receio do sorteio mi-
litar. Segundo o jogador, seu contrato com o clube italiano te-
ria chegado ao fim e uma contraproposta feita por ele não te-
ria sido aceita. Apenas dois dias depois, Niginho detalhou ao
mesmo jornal sua fuga e a chegada ao Brasil em um transa-
tlântico inglês:

“Fugi da Itália. Se ficasse seria obrigado a atender a mobi-


lização das tropas para a Abissínia e a estas horas estaria

140 O time do povo mineiro


defendendo a terra de Mussolini contra os homens de Adis
Adeba. [...] Valeu-me porém o passaporte brasileiro. Com ele
consegui embarcar neste navio em La Corunã, para onde fui
sob pretexto de visitar parentes e eis me agora novamente
aqui no meu país.” (A NOITE, 1935b, p. 7)

De volta ao Palestra, foi o primeiro jogador de um clube minei-


ro a atuar e marcar um gol pela seleção brasileira em 1936. No
mesmo ano, o Carrasco dos Clássicos afirmou ao jornal “Diário
da Noite” ter recusado uma vultuosa proposta do América-MG,
que incluía salários, luvas e um emprego na prefeitura. Niginho
acrescentou que havia uma mágoa do América em relação Pa-
lestra por não conseguir vencer o rival fazia quatro anos, mes-
mo promovendo elevados investimentos na formação de seus
times. Segundo ele: “A tudo recusei porque não tenho o menor
motivo para abandonar o Palestra e minha recusa ainda mais
forte tornou o seu despeito.” (DIÁRIO DA NOITE,1936, p.6).

Niginho teve ainda breves passagens pelo Palestra Itália-SP e


pelo Vasco. Atuando pelo clube carioca, foi convocado para a
Copa de 1938 para ser o reserva de Leônidas da Silva. Com a con-
tusão do “Diamante Negro” nas quartas de final, Niginho jo-
garia a semifinal contra a Azzurra. Contudo, foi impedido, pois
os italianos alertaram a FIFA sobre uma irregularidade com os
documentos do atleta, que ainda estaria vinculado à Lazio e era
um “desertor” do exército italiano (RIBEIRO, 1999, MARQUEZI,
2009; LIMA, 2016; HELAL FILHO, 2018). O jogador teria atuado
no futebol brasileiro sem o consentimento do clube europeu. O
episódio estampou a capa do jornal O Globo, na edição de 1º de
junho de 1938, sob a manchete: “Protesta a Itália contra a pre-
sença de Niginho no scratch” (HELAL FILHO, 2018). Outra ver-
são atribui a ausência do atacante no jogo a um tumor no peito
do pé, o que o deixava sem condições para sequer andar (SAN-
TANA, 2003). Sem Niginho, o Brasil acabou derrotado pela Itália

Éric Andrade Rezende 141


por 2 a 1 e perdeu a chance de disputar a sua primeira final de
Copa do Mundo.

Em entrevista à revista “O Cruzeiro”, Niginho atribuiu o fato


de não poder ter entrado em campo na copa a um golpe dado
pelo vice-presidente da Federação Italiana e à incompetência
administrativa da Confederação Brasileira de Desportos (Fan-
toni, 1958). Em 1970, Niginho detalhou o caso à revista “Pla-
car”: “Mussolini não me deixou jogar contra a Itália na Copa
de 38. Como eu era filho de italianos, ele quis que eu servisse
ao exército. Não concordei. Disse-lhe que a minha pátria era o
Brasil, a minha camisa verde e amarela.” (PLACAR, 1970, p. 45)

Como técnico, Niginho ainda venceu mais três títulos esta-


duais pelo Cruzeiro em 1959, 1960 e 1961. Faleceu em 1975 por
conta de um mal súbito enquanto se dirigia à Toca da Raposa.

142 O time do povo mineiro


3.2. Tostão: a genialidade em tom crítico

Éric Andrade Rezende

Quase duas décadas após o fim da carreira de Niginho nos


gramados, despontou aquele que viria a ultrapassar o “Car-
rasco dos Clássicos” como o maior artilheiro da história do
clube. Eduardo Gonçalves de Andrade, conhecido mundial-
mente como Tostão, é outro ídolo celeste que ficou marcado
pela postura extracampo, manifestada na preocupação com
problemas sociais, na visão crítica sobre os acontecimentos
políticos do país e na discordância às práticas autoritárias que
se instalavam no futebol brasileiro (CARVALHO, 1977; COUTO,
2009). Na visão de Tostão, o futebol cumpria um importante
papel por ser a única maneira pela qual seria possível unir fra-
ternalmente os homens, conforme declaração dada à revista
“Placar” após sua aposentadoria (CARVALHO, 1977).

Nas palavras de João Saldanha, seu treinador na seleção du-


rante as eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970, Tostão
“como homem, como figura humana, também é um craque. É
um rapaz inteligente, sabe das coisas e procura ajudar. Tenho
dele a melhor impressão.” (SALDANHA, 1970, p. 12). Grande ad-
mirador de Tostão, Saldanha era também militante do Partido
Comunista Brasileiro e sofreu um controverso afastamento do
comando da seleção poucos meses antes da Copa.

Foi no futebol de salão, aos 13 anos, que Tostão iniciou sua tra-
jetória no Cruzeiro. Aos 15 anos, chegou ao futebol de campo,
mas por ser pouco aproveitado, transferiu-se para o time ju-
venil do América, no qual teve uma breve passagem. Retornou
definitivamente ao Barro Preto em 1963, quando com apenas
16 anos já treinava entre os profissionais (BARRETO e BAR-

Éric Andrade Rezende 143


RETO, 2000; Leite, 2010). Com a camisa azul estrelada, venceu
cinco campeonatos mineiros, além da memorável Taça Brasil
de 1966 sobre o Santos de Pelé.

Mesmo com sua discrição, Tostão nunca renunciou a afirmar


seu compromisso de luta contra o autoritarismo. O “Mineirinho
de Ouro”, como também era conhecido, concedeu uma histórica
entrevista ao “Pasquim” em maio de 1970, momento no qual a
ditadura militar buscava asfixiar qualquer voz opositora que se
levantasse. O semanário era um símbolo do jornalismo irreve-
rente e contestador ao regime. Sobre a liberdade de expressão,
Tostão afirmou, sem se mostrar intimidado, que:

“Ainda não podemos agora dizer o que queremos porque


estamos privados de muita coisa. Eu acho que isso é um di-
reito de todo homem, está escrito na Constituição, isso é lei.
Mas infelizmente [...] Quer dizer, na declaração dos direitos
do homem. Às vezes a gente tem que ficar sujeito a coisas
que vêm de cima, então a gente não pode dizer o que quer,
o que pretende. O certo seria que todo mundo tivesse suas
ideias, falasse as suas ideias e mostrasse o que pensa, o que
acha, e não a gente ficar numa coisa só e ficar sujeito a acei-
tar isso e não poder dizer mais nada, eu acho isso errado.”
(TOSTÃO, 1970, p. 17)

Na mesma entrevista, Tostão ainda fez duras críticas à políti-


ca belicista norte-americana na Guerra do Vietnã, um conflito
que viria a se encerrar apenas em 1975, deixando mais de um
milhão de mortos:

“Eu acho que é uma guerra realmente suja. Eu acho que nin-
guém é a favor da guerra do Vietnã. É uma guerra mais eco-
nômica. A América do Norte precisa sempre manter sua pro-
dução de aço em atividade, com isso eles estão lucrando. Eu

144 O time do povo mineiro


acho que é mais uma guerra econômica do que uma guerra
de ideias.” (TOSTÃO, 1970, p. 17)

Anos mais tarde, em seu livro “Tostão: Lembranças, opiniões,


reflexões sobre futebol”, o craque sintetizou seus posiciona-
mentos manifestados durante sua melhor fase como atleta:

“Dei várias entrevistas nesse período de 1966 a 1970, o auge


da ditadura, falando de coisas que tiveram muita repercus-
são: disse que gostava muito de D. Hélder Câmara, era a favor
da reforma agrária, contra a ditadura, e eleitor de Brizola na
época etc. Um dia recebi um telefonema, não sei de quem, di-
zendo que eu seria chamado para prestar esclarecimentos.
Até hoje não sei se era trote, e continuei a dar opiniões. Re-
centemente vi notícias na imprensa que o filme “Tostão, a
fera de ouro” tinha sido objeto de uma longa perícia da cen-
sura.” (TOSTÃO, 1997)

Na mesma obra, Tostão também demonstrou arrependimen-


to por não ter se ausentado em forma de protesto de um en-
contro dos recém-campeões mundiais de 1970 com o então
líder do regime autoritário em vigência: “Após a copa, os jo-
gadores iriam ser recebidos pelo presidente Médici em Bra-
sília. Era a ditadura que eu tanto detestava. Arrependo-me
de ter ido, pois era a oportunidade de mostrar minha indig-
nação.” (TOSTÃO, 1997). Em 2014, Tostão relembrou em sua
coluna na “Folha de S. Paulo” o próprio posicionamento con-
trário à ditadura durante a carreira de jogador, bem como a
paranoia coletiva existente na época devido ao temor de que
quem se manifestasse criticamente fosse denunciado e preso
(TOSTÃO, 2014).

Por fim, merece destaque a emblemática entrevista que ele


concedeu à matriz espanhola do “El País” no cinquentenário

Éric Andrade Rezende 145


da conquista da Copa do Mundo de 1970, quando recordou o
contexto político e social do Brasil na época:

“Em 1970, o Brasil era uma ditadura. Eu odiava a repressão e


a falta de liberdade. Muitas pessoas pensavam assim. E isso
coincidiu com uma geração de grandes jogadores de futebol,
grandes artistas e grandes músicos. Foi o esplendor cultural
do Brasil. É curioso como um regime opressivo provoca uma
resposta criativa nas pessoas. O Brasil nunca teve tantos
músicos extraordinários. E o mesmo aconteceu no futebol. A
Seleção não é algo que possa ser separado da comunidade.”
(TOSTÃO, 2020)

Na mesma entrevista, o ex-craque da seleção ainda fez uma


interessante associação entre a importância do passe como
valor coletivo no futebol e o sentido de comunidade:

“O passe é um símbolo do jogo coletivo e da vida em comum,


da solidariedade, do respeito mútuo. [...] O sentido comu-
nitário diminuiu na sociedade e no campo diminuiu o jogo
coletivo. O Brasil joga um futebol brilhante em lances in-
dividuais. Joga para fazer gols. Ninguém joga para o com-
panheiro, ninguém busca uma resposta, ninguém pensa na
organização [...] Esse é o fruto da ganância de alguns. Assim
o futebol se converte no jogo das individualidades, não no
jogo de equipe. Porque o país é um país desigual, onde alguns
perseguem ganhar a todo custo e outros perdem tudo. Como
podemos pedir aos futebolistas que não sejam individualis-
tas e pensem coletivamente?” (TOSTÃO, 2020)

146 O time do povo mineiro


3.3. Sorín: a raça azul
Éric Andrade Rezende

Ao contrário de Niginho e Tostão, um terceiro personagem da


história cruzeirense que se destaca pela postura extracampo não
teve passagem pelas categorias de base do clube. Trata-se do ar-
gentino Juan Pablo Sorín, um ídolo celeste com forte engajamento
em causas sociais. O lateral esquerdo despontou no Argentino Ju-
niors, clube fundado por socialistas (AGOSTINO, 2002) e sediado
do bairro de La Paternal, em Buenos Aires. O Semillero del Mundo
(sementeira do mundo), como é conhecido, é famoso mundial-
mente pela revelação de craques, como Maradona e Riquelme.
Após passagem vitoriosa pelo River Plate, Sorín foi adquirido pelo
Cruzeiro em 2000, como fruto da efêmera parceria entre o clube e
o fundo norte-americano Hicks, Muse, Tate & Furst (HMTF). Em
três passagens na raposa, conquistou uma Copa do Brasil, duas
copas Sul-Minas e um Campeonato Mineiro. Dentro de campo ti-
nha características ofensivas, o que o levou a ser chamado de late-
ral anárquico quando jogava na Espanha (SORÍN, 2017).

Sorín é considerado um dos jogadores argentinos com maior


participação política, além de possuir posicionamentos reco-
nhecidamente progressistas (Alabarces, 2002). Ao ser questio-
nado sobre seu posicionamento político em uma entrevista à
revista “Trip”, Sorín afirmou:

“Sempre gostei muito mais de, em vez de falar de política,


falar de social. Sempre fui muito mais ligado ao social e ao
humanitário [...] Sempre fui muito ligado a essa mensagem
de querer fazer o bem, de colocar a pessoa acima do siste-
ma, de cuidar do outro, de valorizar o outro pelo que é, da
diversidade.” (SORÍN, 2017)

Éric Andrade Rezende 147


Seu engajamento vem desde os tempos de River Plate, quando
apresentou por quatro anos um programa sobre política, cul-
tura e rock em uma rádio comunitária de Buenos Aires. Nessa
época, usava o tempo livre das viagens pela Libertadores para
apurar a situação em outros países. (PEREIRA e LIMA, 2017).
De acordo com o próprio Sorín, “a sacada era não falar de fu-
tebol: era um programa cultural, político e só tocava rock ar-
gentino. Era uma resistência também”. (SORÍN, 2017).

Nas redes sociais são frequentes as publicações de Sorín em


apoio a causas sociais ligadas principalmente à educação e aos
direitos humanos. Em dezembro de 2015, por exemplo, mani-
festou o seu apoio ao movimento dos estudantes das escolas
estaduais paulistas, o Ocupa Escola, contra as medidas da re-
organização propostas pelo governo (LOBO, 2015). Em maio
de 2019, apoiou os grandes protestos que ocorreram em todo
o Brasil contra cortes na educação feitos pelo governo fede-
ral (SORÍN, 2019). Além disso, em 2015, se mobilizou através da
imprensa para ajudar as vítimas do rompimento da barragem
de Fundão em Mariana-MG (PEREIRA e LIMA, 2017).

O ex-lateral também tem atuação em temas ligados à pre-


servação ambiental. Em 2019, foi nomeado pela National Ge-
ographic embaixador na América Latina para a campanha
“Planeta ou Plástico?”, que tem o objetivo de conscientizar o
mundo a respeito da poluição pelo uso excessivo de plástico
(RIZZO, 2019).

Poucos dias antes do segundo turno da eleição presidencial de


2018, Sorín participou do programa “Bem, Amigos!”, no ca-
nal SporTV. Em um momento que as pesquisas já apontavam
o favoritismo do candidato Jair Bolsonaro, Sorín aproveitou o
espaço para alfinetar de forma sutil a candidatura do ultradi-
reitista e ressaltou a importância de políticas sociais:

148 O time do povo mineiro


“Educação, cultura, não pode jogar para o lado. Eu acho que
o futuro não tem a ver com as armas. Não tem a ver com nada
que tenha a ver com a violência. Tem que ter um aspecto so-
cial muito importante, não só para o Brasil, mas para a Amé-
rica Latina inteira.” (SORÍN, 2018a)8

Ainda no contexto das eleições de 2018, merece destaque a pre-


sença de Sorín no ato “#EleNão”, realizado em Belo Horizonte
no dia 29 de setembro, quando sua esposa, a cantora Sol, se
apresentou com Aline Calixto (SORÍN, 2018b). Os atos de orien-
tação antifascista em repúdio ao então candidato à presidência
Jair Bolsonaro ocorreram em todo o Brasil e foram convocados
principalmente por mulheres. Dezenas de torcedores também
presentes ao ato registraram o comparecimento do ídolo cru-
zeirense em fotos publicadas nas redes sociais (RESISTÊNCIA
AZUL POPULAR, 2018). Em junho de 2020, em um contexto de
crescente rejeição ao governo Bolsonaro, Sorín aderiu à onda
de postagens com temática antifascista nas redes sociais ao
publicar uma figura com o tradicional símbolo antifascista
junto à inscrição “Jogador Antifascista” (SORÍN, 2020).

Sorín é também um grande apoiador do futebol feminino, in-


clusive da equipe cruzeirense, criada em 2019. Além das cons-
tantes postagens sobre o tema em suas redes sociais, frequenta
treinos e promove eventos para incentivar a modalidade (PÉ-
REZ, 2020).

A exemplo de Tostão, Sorín possui uma relação íntima com a


literatura. Em 2005, organizou a obra “Grandes Chicos”, para
a qual também escreveu um texto. Toda a arrecadação com a
venda do livro foi destinada para reformas em duas escolas e

8 - Link de um vídeo com o referido trecho do programa Bem, Amigos! do


dia 15 out. 2018: https://www.facebook.com/resistenciaazulpopular/vide-
os/2123977177866355/

Éric Andrade Rezende 149


um hospital em solo argentino. Além disso, possui contos pu-
blicados nas coletâneas “Pelota de papel” e “Pelota de papel
2”, compostas por textos escritos por futebolistas. Escreveu
também poesias e ficções às quais o grande público ainda não
tem acesso (SORÍN, 2017; MARINHO e CORNELSEN, 2019).

Para além do engajamento em causas sociais, destaca-se na


postura extracampo de Sorín sua relação com o Cruzeiro. Ju-
ampi afirmou à revista “Placar” que sua identificação com o
clube celeste foi maior até mesmo do que com o Argentino Ju-
niors, clube do qual se declara torcedor (SORÍN, 2009). Segundo
o próprio Sorín, essa identificação construída com o Cruzeiro
está relacionada à entrega pela camisa, à raça e ao sentimento
de pertencimento. (SORÍN, 2017).

Em 2002, Sorín protagonizou um episódio que talvez tenha


sido a única vez na história do futebol em que um jogador criou
uma canção de apoio ao time e esta foi adotada pela torcida.
O fato ocorreu em sua primeira despedida do clube, durante a
comemoração do título da Copa Sul-Minas de 2002. Inspirado
no tradicional tema dedicado à Albiceleste “Soy argentino, es
un sentimiento, no puedo parar...”, Sorín criou a letra “Sou, eu
sou Cruzeiro, meu sentimento não vai parar...” A música virou
hit no Mineirão e é cantada até os dias atuais.

Essa mesma final ficou também marcada pela enorme de-


monstração de raça do argentino. Ainda no primeiro tempo,
em uma dividida, Sorín sofreu um corte profundo no super-
cílio que quase o impediu de retornar ao jogo devido à grande
hemorragia. Depois de levar seis pontos no intervalo, o lateral
continuou em campo e fez o memorável gol do título. Após a
despedida, Sorín escreveu uma emocionada carta aberta à tor-
cida, revelando gratidão e amor ao clube (OLIVEIRA, 2009).

150 O time do povo mineiro


Sua conexão com a cultura torcedora foi reafirmada em de-
zembro de 2008, quando o ídolo se fez presente nas arquiban-
cadas do Mineirão e cantou com a torcida em um jogo contra
a Portuguesa pelo Campeonato Brasileiro (OLIVEIRA, 2009).
O gesto abriu caminho para que outros jogadores fizessem
o mesmo, como Wellington Paulista e Marcelo Moreno, que
também marcaram presença no tradicional caixote da Máfia
Azul. Em setembro de 2017, Sorín prometeu pintar sua barba
de azul caso o Cruzeiro conseguisse ganhar a Copa do Brasil.
Com a vitória sobre o Flamengo na grande final, a promessa foi
cumprida (GLOBOESPORTE.COM, 2017).

Os problemas físicos levaram Sorín a se aposentar dos campos


prematuramente em julho 2009, aos 33 anos. Sua despedida,
realizada no Mineirão, arrecadou noventa toneladas de ali-
mentos não perecíveis para instituições de caridade (MARI-
NHO e Cornelsen, 2019).

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156 O time do povo mineiro


3.4. Um Cruzeiro de estrelas negras e
imortais9
Gustavo Nolasco

Adelino (ala), Aldair Pinto (maestro da charanga do Cruzeiro),


Alisson “Irmão” (massagista), Andorinha (massagista), Anto-
ninho (ponta-direita, campeão de 1971), Augusto Recife, Balu,
Bené (zagueiro), Bento (primeiro jogador negro do Palestra,
tricampeão 1928/1929/1930) e Bituca (cantor e compositor).

Bituca (zagueiro), Borges, Caicedo, Careca (um dos maiores


camisas dez de nossa história), Cláudio Adão, Clébão, Cleisson,
Darci Menezes, De La Cruz, Dida e Didi “Folha Seca” (técnico).

Dinei, Dirceu Lopes (apelidado de “El Negrito” pela imprensa


argentina), Dirceu Pantera, Eduester Lopes (fisioterapeuta), Él-
ber, Elicarlos (chamado de “macaco”, em campo, pelo argenti-
no Maxi López), Ernani, Espinoza, Estevão (jogador de 10 anos
de idade, usado como moeda de troca na gestão Wagner Nonato
Pires Machado de Sá), Evaldo e Evandro (torcedor, neto de pales-
trino, que sofreu preconceito de torcedor italiano do Cruzeiro).

Fubá (torcedor-símbolo, vítima de ridicularização num pro-


grama de TV fechada por parte de um outro torcedor atletica-
no branco), Geraldão, Geraldino (lateral-esquerdo), Geraldo II
(goleiro e construtor das arquibancadas do estadinho do Barro
Preto), Gilberto, Gomes I (goleiro dos anos 1980), Gomes II (go-
leiro dos anos 2000), Guerrón, Hingredy (zagueira do femini-
no), Irineu e Ismael (meia-esquerda, craque da década de 1940).

9 - Agradeço aos amigos Evandro Oliveira (Cruzeiro.org), Luis Otávio Barreto,


Marco Astoni, Angel Drumond, Geovano Moreira e André Bueno por reviverem
comigo esse trecho fundamental da história de nosso Cruzeiro.

Gustavo Nolasco 157


Jackson, Jadir Ambrósio (palestrino, maestro e compositor do
hino do Cruzeiro), Jairzinho “Furacão”, Jéfferson (goleiro),
Jesum (ponta-esquerda), João Carlos, Joel (camaronês), Jorge
Mendonça, Jorge Wagner, Juca (Campeão da Cidade pelo Pales-
tra, em 1940) e Júlio Baptista.

Jussiê, Juvenal (ala-esquerda, tricampeão 1943/1944/1945),


Kelly, Kim (atacante do feminino), Leandro Buchecha, Luisão,
Macalé, Macedo, Maicon, Manoel e Marcos Paulo.

Mário Tilico, Mário Tito (zagueiro), Miriã (atacante do femi-


nino), Massinha (lateral-direito, tricampeão 1959/1960/1961),
Mundico (atacante do Palestra, vice-campeão da Cidade 1933),
Neco, Nerival (ponta-esquerda), Nocaute Jack (massagista),
Orlando Fumaça (zagueiro), Oséas e Paulão (zagueiro, cam-
peão brasileiro de 2013).

Paulão (zagueiro, campeão da Supercopa 1991), Paulo Florên-


cio (atacante), Paulo Isidoro I, Paulo Isidoro II, Pedro Pau-
lo, Ramires, Roberto Batata, Rodrigues, Sorriso (jardineiro),
Thiago Heleno e Tinga.

Tita (massagista), Toby, Valdo, Vanderci, Vanderlei, Vavá (za-


gueiro), Vítor, Viveros, William Andem (goleiro camaronês),
Wladimir (símbolo da Democracia Corintiana, e que honrou
nossa camisa) e Zé Carlos (eterno “Zelão”).

São só 99 dos milhares de personagens negros e negras das pá-


ginas heroicas e imortais do Cruzeiro e do Palestra Italia. Exal-
tá-los, falar deles, escrever sobre eles, nos calarmos para ouvi-
-los, escutarmos a história sob a perspectiva deles são algumas
das formas de lutarmos contra o racismo estrutural enraizado
em nós mesmos, em todos os clubes de futebol do Brasil e na
sociedade de privilégio branco na qual, infelizmente, vivemos.

158 O time do povo mineiro


Vidas negras importam. A história do Cruzeiro contada pelos
negros e negras deve importar.

Gustavo Nolasco 159


PARTE 04.
causos e cultura nas
minas: enredos em
azul e branco
4.1. Geraldo II: o operário guarda-metas
Gustavo Nolasco

Um time de Zés, Paulos, Felícios, Ninões, Nininhos e muitos


Geraldos, dos quais, Geraldo II foi a mais perfeita tradução da
liga entre trabalho, humildade e amor às próprias conquistas.

Geraldo Domingos, o segundo, não era italiano, mas nasceu


numa época onde os imigrantes (italianos e japoneses) foram
a mão de obra escolhida pelo governo e pela elite brasileira
para substituir os escravos no campo e na cidade.

Cresceu sem o direito de se dar o luxo de cursar medicina, pois,


naquela época, faculdade era só particular e ao alcance apenas
dos garotos, homens, brancos, filhos das abastadas famílias
de Belo Horizonte. Não tinha muito tempo para passear no
Parque Municipal. Geraldo II era pedreiro.

Fazia parte do povo, operários, artesãos, negros e italianos.


Pobre ou não, gente que precisava trabalhar muito e cedo para
sobreviver. De suas mãos, subiram casas, mercados, praças e a
arquibancada de um estádio de futebol.

Também segurou muito couro, pois Geraldo decidiu ser goleiro.


Foi um dos maiores. Um atleta colossal com aproximadamente
quatrocentas partidas com o manto sagrado. Ágil ao sair do gol
e destemido para lançar-se à bola nos pés dos oponentes.

Da marmita, Geraldo tirava forças para assentar tijolos e ener-


gia para saltar e impedir que clubes da elite vazassem as redes
do gol do seu amado Cruzeiro/Palestra.

163
Há quem diga que a maior glória de Geraldo II foram as im-
pensáveis 34 defesas num jogo contra o Siderúrgica, em 1944.
Mas ele tornou-se muito mais do que isso. Foi um ídolo de jor-
nada dupla quando, do velho presidente Mário Grosso, ganhou
o contrato “450 cruzeiros para jogar e 350 para ser pedreiro”.

Geraldo II fez parte do grupo de jogadores que construíram,


com as próprias mãos, as novas instalações do velho estadi-
nho do Barro Preto, em 1945.

Pouco tempo depois, quando a bola estava no ataque, longe de


sua meta, o arqueiro marejava os olhos. Olhando para as ar-
quibancadas, que ele mesmo construiu. Só despertava de seu
orgulho aos gritos e palmas dos torcedores. Era mais um gol
do Cruzeiro. Corria ao meio do campo e abraçava Bengala, o
então goleador e companheiro na feitura do estádio JK.

Geraldo II foi campeão, bi, tri, Palestra e Cruzeiro, mas che-


gou o dia em que os calos lhe tiraram a agilidade das mãos. As
pernas arquearam e o cansaço de uma vida de labuta lhe pesou
nos ombros. Restou-lhe a arquibancada, da qual conhecia cada
pedaço de madeira e cimento. Sabia quantas marteladas finca-
ram cada mísero prego.

De goleiro foi a torcedor. Morreu ainda pedreiro, aos 89 anos.

No Barro Preto, o tempo carcomeu a madeira, o gramado e le-


vou as traves. Mas para o bem de nossa memória, preservou o
suor de Geraldo II e daquele grupo de jogadores/operários. Se
os muros ainda não ganharam uma pintura de seu rosto e de
suas mãos, o terreno do velho estadinho do Cruzeiro/Palestra
e dos Geraldos está lá para toda criança cruzeirense lembrar
do ensinamento para a vida adulta: deve-se dar valor ao pró-
prio trabalho.

164 O time do povo mineiro


Ali não se comercializa roupa importada, sapatênis ou qual-
quer item de um shopping de grife. Não se transforma trave
em gôndola, bilheteria em caixa de hipermercado. No Barro
Preto, está um pedaço de terra sagrada para palestrinos, cru-
zeirenses e toda gente que não admite vender sua história.

Geraldo. Pedreiro. Goleiro. Cruzeiro.

Gustavo Nolasco 165


4.2. Uma palestrina resistente e
inegociável
Gustavo Nolasco

No dia 21 de maio de 2018, quando o Cruzeiro enfrentou o


Racing, a senhora Osetta se portou como fez nos seus então
93 anos. Deixou as cinco estrelas cravejadas em seu coração
pulsarem livres de amor pelo Cruzeiro/Palestra. Nada nesse
mundo é capaz de lhe impedir o aplauso, o choro emocionado
ou mesmo o orgulho pela história de títulos do seu amado clu-
be. A devoção dela pelo time do povo é inegociável.

A história de Osetta Pieri, nesses tempos de dirigentes covar-


des e vingativos, é testemunho da magnitude de uma época
onde era possível — contra a vontade dos poderosos — cons-
truir um gigante com as mãos simples de italianos, operários,
comerciantes e sonhadores. Gente como a família de Osetta,
que nasceu menina, na Itália de 1924, e pouco anos depois, ao
colocar os pés no bairro popular do Barro Preto, imediata-
mente entregou sua vida ao Cruzeiro/Palestra.

Quando jovem, emprestou suas mãos ao clube, tornando-se


jogadora de vôlei. Cresceu entre os estudos, o apoio ao pai na
fábrica de farinha Moinho Inglês e os jogos de domingo, quan-
do os gols e a genialidade do ídolo Niginho causavam a ira nos
adversários da elite da capital.

A torcedora apaixonada se transformou em moça. Viu o pai


Otávio montar seu humilde negócio e ter entre os clientes as
Massas Orion, de Dona Rosa, mãe de um personagem que iria
cruzar a vida de Osetta: Felício Brandi que, por sua vez, viria a
ser o maior dirigente da história do futebol mineiro.

166 O time do povo mineiro


Mas quis o destino que o amor de Osetta pelo Cruzeiro pas-
sasse por um teste de fogo. Eis que o seu marido, o jovem Nel-
son Campos, se tornaria dirigente do Atlético, clube do bairro
de Lourdes. Por sinal, até hoje, ele ainda é o mais importante
presidente e o único a dar àquela agremiação um campeonato
nacional em toda a sua história.

Naquela época, década de 1950, aquele Atlético era realmente


um rival à altura do Cruzeiro. Belo Horizonte ainda não se der-
ramava para além da avenida Contorno. Mesmo assim, Osetta
manteve firme seus olhos a brilhar pelas cinco estrelas, res-
peitando sempre a posição do marido, e ele, a dela.

Naquela casa reinava a consideração pelos diferentes, sem um


pingo de vingança, desdém ou pequenez. Se Twitter, camaro-
te, ingresso a preço abusivo, alto-falante e torcida organizada
existissem, Osetta e Nelson não os usariam para se impor.

Nas décadas seguintes, nos dias de Cruzeiro e Atlético, Nel-


son ia cuidar de seu clube. Osetta jamais o acompanhou. Ela
se juntava à amiga inseparável, Luzia Fenatti, e rumava para
o Mineirão. Sentava-se no lado azul das arquibancadas do es-
tádio criado para ser cruzeirense. Perdendo ou ganhando, ao
chegar em casa não se falava em futebol.

Se reconhecimento à história houvesse, hoje, a senhora pa-


lestrina deveria ter uma cadeira cativa dentro do clube ao
qual dedica quase cem anos de amor. Isso esteve perto de
acontecer, há alguns anos, quando Felício Brandi, o filho de
Dona Rosa das Massas Orion, quis empossar Osetta no Con-
selho Deliberativo do Cruzeiro por sua resistência e completa
devoção às cinco estrelas. Infelizmente, tal ato o maior pre-
sidente celeste não conseguiu concretizar. Seria a imortali-
dade de um amor inegociável.

Gustavo Nolasco 167


Por outro lado, a relação de Osetta e Nelson deveria constar
como capítulo primeiro do estatuto dos clubes. Talvez assim
voltaríamos a viver os tempos da real rivalidade. Ao tempo de
Osetta, Nelson, Felício e Rosa. Tempo onde existia uma equi-
dade de histórias, conquistas e torcidas que, lá atrás, justifica-
va chamar um Cruzeiro e Atlético de Lourdes de clássico.

168 O time do povo mineiro


4.3. Bituca e Tostão: encantadores de
multidões
Izabela Neves Xavier

“É com muita alegria que acabo de acompanhar mais um título


brasileiro do Cruzeiro! Sem dúvida, uma das mais bonitas campa-
nhas de todos os tempos.” (NASCIMENTO, 2013).

Essa frase poderia ter sido dita por um dos milhões de ilustres
torcedores, anônimos ou não, que orgulhosamente carregam
as cinco estrelas juntas ao peito. Ao longo de nossa centenária
história, quantas mulheres e homens já testemunharam das
arquibancadas as conquistas celestes nos gramados de Minas
Gerais? Quantos trabalhadores já vibraram agarrados ao radi-
nho de pilha e à TV, entoando, em uníssono, o grito de gol?

Um desses torcedores, em especial, merece, por sua biografia


irretocável, todas as homenagens, inclusive as nossas. Pedi-
mos licença ao ídolo para dividir um pouco de sua história que,
veremos, se cruza a de outro ícone da Nação Azul.

Embaixador Internacional do Cruzeiro e um dos maiores ar-


tistas de todos os tempos, aqui e no mundo, eis parte da tra-
jetória do eterno coração de estudante, que nos presenteia a
todos há mais de cinquenta anos com suas composições e sua
extraordinária voz: Milton Nascimento, o “Bituca”.

Antes de levar o nome do Cruzeiro aos quatro cantos do glo-


bo, como orgulhosamente o faz há décadas, o jovem Bituca, em
1963, carregado por enorme talento e já com relevante bagagem
das experiências musicais que vivenciou junto à família e aos

Izabela Neves Xavier 169


vários conjuntos de que participou, mudou-se de Três Pontas
para Belo Horizonte, instalando-se no borbulhante centro da
cidade. No Edifício Levy, apesar dos planos de prestar vestibu-
lar para economia, apresentava-se como crooner10 do conjunto
W’Boys, que contava, entre outros, com Wagner Tiso.

Qual não foi a sorte de que um de seus vizinhos, em um dia


como outro qualquer, descesse as escadas do prédio e ouvisse
alguma melodia entoada por aquela voz original (NASCIMEN-
TO, 2020). O adjacente morador era Lô Borges, que logo tra-
tou de conhecê-lo para, em seguida, apresentar Milton a toda
a família. Na ocasião, Marilton e Márcio Borges, além de ou-
tros irmãos, já perfilavam como expoentes talentos da música
mineira; se tornariam, para além de parceiros de criação de
Bituca, amigos de toda uma vida e pilares do que seria, em um
futuro próximo, o Clube da Esquina.

Nesse mesmo ano e não muito longe da ruidosa avenida Ama-


zonas, outro jovem de apelido curioso, e cuja fama fundou-se
nas quadras do populoso conjunto habitacional IAPI, pisava
nos gramados do estádio JK, no Barro Preto, para defender
pela primeira vez as cores do Cruzeiro no futebol de campo —
antes já havia jogado futsal pelo Cruzeiro —, ajudando o time
a conquistar a vitória naquela ocasião.

O franzino, porém habilidoso rapaz, à época com apenas 16


anos, filho do sr. Oswaldo e da sra. Oswaldina, é Tostão, cer-
tamente um dos maiores meio-campistas que já se viu, sendo
constantemente lembrado como um dos melhores jogadores de
futebol do século XX. Hoje, seu nome perfila nas páginas heroi-
cas e imortais do Maior de Minas e também da Seleção Brasilei-
ra tricampeã mundial.

10 - Vocalista de música popular que canta acompanhado de pequena orquestra


ou conjunto musical (CROONER, 2020)

170 O time do povo mineiro


Travessia

No recorte da década de 1960, as vidas de um e outro, Bituca e


Tostão, como que coincidentemente, se entrelaçam. Para além
do desponte que ambos vivenciaram no marcante ano de 1963,
outros acontecimentos, em paralelo, mudaram permanente-
mente a trajetória de cada um.

Nos dois anos que se seguiram, Bituca e seu conterrâneo e par-


ceiro musical inaugural, Wagner Tiso, formaram o Conjunto
Holliday, que se apresentava nos bailes dançantes que des-
pontavam na capital mineira, os quais, frequentemente, ocor-
riam nos lustrosos salões do Clube do Cruzeiro, localizado ao
lado do estádio da capital, também no Barro Preto. Milton não
deixava de destacar o episódio:

“Bom, aí eu vim pra Belo Horizonte. Aconteceu que, um irmão


do Wagner tocava num grupo aqui e nós, eu e o Wagner, viemos
tocar em bares aqui também. A gente vinha e voltava, tocava
muito no Cruzeiro, nosso time do coração.” (CANÇADO, 2010).

Enquanto o cruzeirense Milton encantava os ouvidos de toda


a gente, lançando as composições “Novena”, “Crença” e “Gira
Girou” (BOREM, 2014), Tostão era titular absoluto e enchia os
olhos da torcida, firmando-se nos gramados do estádio JK e, a
partir do ano seguinte, em um dos palcos mais emblemáticos
da história do futebol, o recém-inaugurado Mineirão.

Das Gerais para o Mundo

O ano de 1966 certamente teve algo de mágico que possibili-


tou, a Bituca e a Tostão, ultrapassarem as montanhas de Mi-
nas para alvorecer em outras cidades. A tímida mineirice do
jogador era constantemente testada pelos ávidos repórteres

Izabela Neves Xavier 171


que lhe queriam registrar; afinal, o prodígio já havia condu-
zido o esquadrão celeste à segunda conquista consecutiva do
Campeonato Mineiro11, tendo sido artilheiro nas duas ocasi-
ões. Tostão apresentava um futebol vistoso e envolvente, além
de apurada inteligência, virtude que transbordava as quatro
linhas e conquistava a todos.

Em março, o atleta foi merecidamente notado pelo técnico Vi-


cente Feola para a Seleção Brasileira para a disputa da Copa do
Mundo de 1966, na Inglaterra, tornando-se o primeiro jogador
de um clube de Minas Gerais a vestir a amarelinha no principal
torneio do planeta.

Enquanto isso, na companhia luxuosa dos Borges, de Wag-


ner Tiso e de Fernando Brant, Milton explorava o universo
das composições, alçando voos cada vez mais altos. O três-
-pontano12 conservava a particularidade de posicionar a voz
tal qual instrumento, variando as vocalizações, o que con-
feria unicidade a seu trabalho já tão harmonioso. Apesar de
discreto na frente das câmeras, espraiava-se pelos palcos
e frequências do rádio, também construindo boas amiza-
des musicais pelos palcos por onde passava — desde a Boate
Berimbau, reduto artístico do Edifício Archângelo Maletta
(BORGES e NASCIMENTO, 2012; apud BOREM, 2014) às casas
de São Paulo e Rio de Janeiro. Para além das casas de show,
Bituca passou a se apresentar nos festivais musicais televisi-
vos, eventos de grande apelo midiático e que paravam o país,
tal qual o futebol.

11 - No Gigante da Pampulha, o craque levantou, em 1965, o primeiro dos cinco


troféus que consagrariam o Cruzeiro como pentacampeão mineiro (1965-1969).
12 - Milton Nascimento nasceu em 1942, no Rio de Janeiro, mas mudou-se com
apenas 2 anos para Três Pontas, cidade do sul de Minas Gerais onde passou a
infância e juventude.

172 O time do povo mineiro


Não por acaso, um dos eventos que pararam o país foi a disputa
da Taça Brasil, entre Cruzeiro e Santos, em 1966. O time paulista
era o atual bicampeão mundial e pentacampeão do Brasil. Além
disso, apresentava uma das maiores equipes da história do fu-
tebol, conduzida por ninguém menos que Pelé, que dispensa
apresentações, além dos craques Coutinho e Zito. Já o Cruzeiro,
era o atual bicampeão mineiro e, mesmo contando com um time
robusto, com Tostão, Dirceu Lopes, Raul, Piazza, entre outros,
definitivamente não era o favorito naquelas circunstâncias.

O que ocorreu nos dois encontros entre os clubes está eter-


namente registrado nas páginas heroicas de nosso clube. Um
sonoro 6 a 2 na primeira partida, com os primeiros cinco gols
ainda no primeiro tempo, deixando boquiaberta a imprensa e
os adversários. Tostão marcou seu tento naquela noite, já Pelé
e sua equipe se viram completamente envolvidos pelo toque
de bola veloz e pela ofensividade cruzeirense, até hoje marca
registrada de nossas grandes equipes. Na segunda partida, em
terras paulistanas, nova vitória azul, dessa vez pelo placar de
3 a 2, confirmando o justo merecimento ao título que alçou o
Cruzeiro ao panteão dos gigantes do futebol e que reconheceu,
indubitavelmente, a genialidade de Tostão.

Havia aqui uma tripla ascensão: Tostão, Bituca e... Cruzeiro!


O Esquadrão Celeste, formado também por Piazza, Natal e
Dirceu Lopes, crias da base, colecionava boas apresentações,
que se converteram em títulos, e prendiam a atenção dos afi-
cionados por futebol para além das Minas Gerais. Na segunda
metade da década de 1960, não houve rival para o Cruzeiro
em Belo Horizonte, e, não por acaso, após a conquista de for-
ma invicta da Taça Brasil, os clubes de Rio de Janeiro e São
Paulo se articularam para que houvesse, enfim, um campeo-
nato nacional que contemplasse mais equipes. Por óbvio, era
inadmissível que um torneio deixasse de contemplar um dos

Izabela Neves Xavier 173


maiores times do Brasil e, quiçá, uma das maiores equipes de
todos os tempos.

Encantadores de multidões

Milton e Tostão já não eram garotos. A juventude deu lugar à


consagração, e a década de 1960 frutificou os trabalhos do ar-
tista da bola e do artista da música. Habilidosos, queridos, fru-
tos das Minas Gerais e... tímidos. Assim eram os encantadores
de multidões que nos emocionavam a cada dia. A voz de Milton
passeava pelas melodias no mesmo tom com que Tostão entre
seus marcadores: com graça, leveza, genialidade. O futebol era
palco e a música enchia as arenas. Apesar da temperatura sufo-
cante e do ar irrespirável dos anos da ditadura13, a cultura — na
qual se insere o esporte — gozava de seu esplendor criativo.

O pas de deux 14 entre Bituca e Tostão teve, finalmente, seu ápi-


ce. O atleta era presença indispensável nas convocações para
a Seleção Brasileira e, nas Eliminatórias para a Copa do Mun-
do de 1970, jogou um futebol esplendoroso, digno das gran-
des produções cinematográficas, marcando dez dos 23 gols da
equipe em apenas seis partidas (VIDIGAL, 2009). Milton exta-
siava as plateias e sua originalidade e sensibilidade se revela-
vam a todo instante: nos palcos dos festivais, nas rodas, nos
principais polos culturais do Brasil.

13 - Referência à previsão do tempo escrita e coordenada pelo jornalista Alber-


to Dines e que foi publicada na primeira página do “Jornal do Brasil” quando da
promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, para
denunciar a censura imposta pela nova ordem política militar autoritária que
atravessava o Brasil. Destaque-se, nesse ponto, que Tostão e Bituca sempre
se posicionaram abertamente contra o regime militar, apesar das prováveis
retaliações que viriam a sofrer nas esferas profissional e pessoal.
14 - A expressão francesa “pas-de-deux” pode ser traduzida como “passos
para dois” (aproximadamente mesma pronuncia); o que, no balé, define um
dueto em que os bailarinos executam os passos juntos. (PAS DE DEUX, 2020)

174 O time do povo mineiro


E, mais uma vez, a vida de um e outro se encontra, agora ofi-
cialmente. O futebol de Tostão, digno de cinema, se transfor-
mou em filme: “Tostão, o fera de ouro”, dirigido por Paulo La-
ender e Ricardo Gomes Leite. Para a produção, foi criada trilha
sonora afiadíssima, à altura do que ali era documentado. Quem
assina o trabalho é o cruzeirense Milton Nascimento, que con-
seguiu traduzir em quatro canções a paixão dos brasileiros por
futebol. São elas: “Tema de Tostão”, “O homem da sucursal”,
“O jogo” e “Aqui é o país do futebol” (NASCIMENTO, 1970).15

Bituca sempre foi apaixonado por futebol e, especialmente, pelo


Cruzeiro. O filme foi a oportunidade que teve o artista de re-
gistrar a devoção, firmando o momento absoluto, e por que não
sagrado, das tardes de domingo, como se vê na letra da canção:

Aqui é o país do futebol


(composição de Milton Nascimento e Fernando Brant)

Brasil está vazio na tarde de domingo, né?


Olha o sambão, aqui é o país do futebol
No fundo deste país
ao longo das avenidas
nos campos de terra e grama
Brasil só é futebol
nesses noventa minutos
de emoção e alegria
esqueço a casa e o trabalho
a vida fica lá fora
a fome fica lá fora
No fundo desse país

15 - “Tema de Tostão” e as demais músicas da trilha constam como faixa


bônus do álbum Milton (1970), já que não constavam no LP da época. Em Mil-
ton (1976), gravado nos Estados Unidos, a música “Tema de Tostão” ganhou
outra versão, sendo traduzida para o inglês como “One Coin”.

Izabela Neves Xavier 175


ao longo das avenidas
nos campos de terra e grama
Brasil só é futebol
nesses noventa minutos
de emoção e de alegria
esqueço a casa e o trabalho
a vida fica lá fora
a cara fica lá fora
a fome fica lá fora
a vida fica lá fora
a cama fica lá fora16

O encontro da música com a bola foi especial. Além de “Aqui é


o país do futebol”, que se tornaria, no ano seguinte, uma es-
pécie de hino extraoficial daquela seleção tricampeã mundial,
“Tema de Tostão” ou, em inglês, “One Coin”, foi a grande ho-
menagem de Milton ao futebol do craque.

A música se estrutura com predominância instrumental, o que


permite ao ouvinte um deleite imaginativo; e uma outra par-
te, letrada, em inglês, que brinca com o apelido herdado por
aquele menino franzino dos tempos de infância nas quadras
do IAPI.

One Coin (Tostão)


(Milton Nascimento)

Uma moeda
Dificilmente vale algo
Sozinho
Coberto nas sombras
Até

16 - Os versos “dinheiro fica lá fora”, “família fica lá fora” e “tudo fica lá


fora”, que estão na gravação do disco, não são cantados no filme.

176 O time do povo mineiro


Refletindo o sol brilhando
mais vindo
Seguindo e juntando-se
Um homem
Tentando encontrar algum significado
Sozinho
Desejando compartilhar algum sentimento
Até
Vindo a conhecer um verdadeiro amigo
mais vindo
Seguindo e juntando eles crescem
Reunindo mostramos
Reunindo sabemos
Reunindo nós crescemos
Reunindo

Trem Azul

A identificação cinquentenária entre Milton Nascimento e


Cruzeiro até hoje rende boas histórias e muitos encontros.
Em uma dessas oportunidades, Bituca, seu parceiro de dé-
cadas Lô Borges, os cantores Samuel Rosa e Marina Machado
e banda também formada por grandes cruzeirenses se reu-
niram em programa televisivo para prestar homenagem ao
clube celeste (ALTAS HORAS, 2010). Cantaram, juntos, “Aqui
é o país do futebol” e “Trem Azul”, esta de 1971, que figura
entre as mais emblemáticas do Clube da Esquina, movimento
que — reiteramos — revolucionou a cultura brasileira e in-
fluenciou centenas de músicos mundo afora, o que ocorre até
os dias de hoje.

Não por acaso, “Trem Azul” é o nome dado a grandes equipes do


Cruzeiro que se destacaram nos últimos cem anos, como aquela
que atropelou o Santos de Pelé em 1966, as que conquistaram

Izabela Neves Xavier 177


a América em 1976 e 1997, a que conquistou a tríplice coroa em
2003 ou, entre várias, a que foi contemplada por nosso embai-
xador internacional na crônica que encabeça esta produção.

De fato, ser cruzeirense sempre nos será motivo de orgulho e


de esperança. Que as trajetórias impecáveis de Bituca e Tostão
sejam sempre rememoradas para inspirar as novas gerações
nos cem anos que virão.

Referências Bibliográficas:

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In: Milton Nascimento por Bituca: e vice-versa. Capítulo 10 da
coleção Milton Nascimento: uma travessia de sucesso Dispo-
nível em: http://www.museuclubedaesquina.org.br/museu/
depoimentos/milton-nascimento. Acesso em: 09 jul 2012.
In: BOREM, Fausto; LOPES, Wilson. Novena (1964) de Mil-
ton Nascimento e Márcio Borges: primórdios da síntese do
Clube da Esquina. Per musi, Belo Horizonte, 2014. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1517-75992014000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em:
20 jul. 2020.

BOREM, Fausto; LOPES, Wilson. Novena (1964) de Milton Nas-


cimento e Márcio Borges: primórdios da síntese do Clube da
Esquina. Per musi, Belo Horizonte, n. 30, p. 24-39, Dec. 2014.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S1517-75992014000200005&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 20 jul. 2020.

CANÇADO, Wilson Lopes. Novena, Crença e Gira Girou de Mil-


ton Nascimento e Márcio Borges: análise de suas três pri-

178 O time do povo mineiro


meiras composições criadas em uma noite de 1964. Disser-
tação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010. Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/AAGS89PP6L/1/
w i lson _ lopes _ _ _disser ta _ ao_completa _ _ _ pdf.pdf.
Acesso em: 07 jul. 2020.

CANTON, Ciro Augusto Pereira. Nuvem no céu e raiz: roman-


tismo revolucionário e mineiridade em Milton Nascimento
e no Clube da Esquina (1970 - 1983) – Dissertação (mestrado)
– Universidade Federal de São João Del-Rei, Departamento de
Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas, 2010. Disponível em: ht-
tps://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/pghis/Disser-
tacao%20Ciro%20Canton.pdf. Acesso em: 07 ago. 2020.

CROONER. Dicionário online do Aulete, 07 ago. 2020. Dispo-


nível em: http://www.aulete.com.br/crooner>. Acesso em: 07
ago. 2020.

DINIZ, Guilherme. Esquadrão Imortal: Cruzeiro (1965-


1969), 2012. Disponível em: https://www.imortaisdofutebol.
com/2012/10/05/esquadrao-imortal-cruzeiro-1965-1969/.
Acesso em: 15 jul. 2020.

DINIZ, Sheyla Castro. “Nuvem cigana”: a trajetória do Clube


de Esquina no campo da MPB. Campinas, SP, 2012.

NASCIMENTO, Milton. Tostão, a Fera de Ouro. Rio de Janei-


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_______________. Crônica. Globo Esporte. 14/11/2013.


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Izabela Neves Xavier 179


-festeja-o-tri-cruzeiro-estou-fechado-contigo.html. Acesso
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_______________. Texto do Instagram. 19/07/2020.


Instagram: @miltonbitucanascimento. Disponível em: ht-
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TOSTÃO. Tostão: Fuimos revolucionarios. Entrevista conce-


dida a Diego Torres. El Pais, Madrid, 20 jun. 2020. Disponível
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PAS DE DEUX. In: Educalingo, 2020. Disponível em: https://


educalingo.com/pt/dic-en/pas-de-deux. Acesso em 10 ago.
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Programa Altas Horas. Banda do cruzeiro PART I - com Sa-


muel Rosa, Lo Borges, Milton Nascimento e cia. 2010. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=i-NvpW_haeQ.
Acesso em: 07 jul. 2020.

__________________________. Banda do
cruzeiro PART II - com Samuel Rosa, Lo Borges, Milton Nas-
cimento e cia. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=K56XVNtFhlU. Acesso em: 07 jul. 2020.

__________________________Banda do cru-
zeiro PART III - com Samuel Rosa, Lo Borges, Milton Nasci-
mento e cia. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=dMNN6Fq3heQ. Acesso em: 07 jul. 2020.

__________________________Banda do cru-
zeiro PART IV - com Samuel Rosa, Lo Borges, Milton Nasci-

180 O time do povo mineiro


mento e cia. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=XliChwKQvTQ. Acesso em: 07 jul. 2020.

Izabela Neves Xavier 181


4.4. Clara Nunes: do Cruzeiro à Portela,
o amor em azul e branco17
Gladstone Leonel Júnior

Alguns podem se perguntar, mas por que um artigo sobre o


Cruzeiro vem falar da história da cantora Clara Nunes? Exis-
tem muitas semelhanças na trajetória do clube mineiro e da
cantora que ligam o azul e branco do futebol com o azul e
branco do samba.

Uma mineira de Paraopeba, nascida em 1942, foi ainda ado-


lescente para Belo Horizonte trabalhar como tecelã em uma
fábrica de tecidos.

Clara já cantava nas quermesses do bairro operário Renascen-


ça, onde morava e trabalhava, na região nordeste da capital
mineira. Ali mesmo conheceu um grande músico mineiro da
época, muito estimado pela torcida cruzeirense, chamado Ja-
dir Ambrósio, um instrumentista e sambista negro, compo-
sitor do hino do Cruzeiro. Mesmo não sendo da elite, a boê-
mia aproximou Jadir de figuras importantes do estado, como
o presidente Juscelino Kubitschek. Clara, ao contrário de Jus-
celino, não era conhecida quando Jadir se depara com ela. Ele,
violonista na festa da igreja, a recebe para uma apresentação
musical pela primeira vez (WERNECK, 2017). Diante da potên-
cia de Clara como artista, Jadir a apresenta para radialistas da
Rádio Inconfidência, onde ela gravaria seus primeiros sambas,
inclusive compostos pelo próprio Jadir, como “Vida Cruel”.

17 - Cf. LEONEL JÚNIOR, Gladstone. Clara Nunes: de Cruzeiro à Portela, o amor


em azul e branco. Brasil de Fato MG. Belo Horizonte. Maio, 2019. Disponível
em: https://www.brasildefatomg.com.br/2019/05/02/clara-nunes-de-cruzei-
ro-a-portela-o-amor-em-azul-e-branco. Acesso em: 03 ago. 2020.

182 O time do povo mineiro


A tradição do samba em Minas se fazia presente em Belo Ho-
rizonte. Já em 1960, Clara Nunes ganha a fase mineira de um
concurso de cantores/as chamado “A Voz de Ouro ABC” e, no
ano seguinte, recebe o troféu Ari Barroso de melhor cantora de
rádio em Minas Gerais.

No entanto, o mais interessante de toda essa história futebo-


lesco-sambística é que, além do cruzeirense Jadir, Clara Nunes
começa a cantar profissionalmente no Cruzeiro Esporte Clube,
na sede do Barro Preto. A identidade cruzeirense de Clara era
forte o suficiente que, ao se mudar para o Rio, a cantora passa a
admirar a Portela por causa do seu azul e branco, sem nunca ter
visto um desfile da escola de samba até então. Em entrevista à
Rádio Bandeirantes, no ano de dezembro de 1981, Clara é precisa
ao afirmar o porquê adotou a Portela como sua escola de samba:

“Começou por causa da cor, azul e branco. A primeira coisa. Por-


que eu, em Belo Horizonte, sou cruzeirense, eu comecei a cantar
no Cruzeiro Esporte Clube. (...) aí começou aquela coisa de achar a
Portela, por causa do azul e branco.”

Em 2019, Clara Nunes foi homenageada como enredo do des-


file da Portela, por ter sido uma das maiores representantes e
entusiastas da escola de samba de Madureira. Mal sabem que
devem muito também a um clube de trabalhadores com cinco
estrelas no peito, da capital mineira, pela devoção da rainha do
samba à própria escola, que hoje também é sinônimo de Cla-
ra Nunes. Da mesma forma que a diretoria do Cruzeiro pouco
sabe e nada resgata de uma de suas mais ilustres torcedoras.

Não por acaso, quando Clara canta a plenos pulmões em home-


nagem à Portela, não é um absurdo dizer que também canta a
sua inspiração ao Cruzeiro, já que ecoa na voz da mineira guer-
reira, filha de Ogum com Iansã, de sangue e alma azul e branco.

Gladstone Leonel Júnior 183


Referências bibliográficas:

RADIO BANDEIRANTES. Entrevista Clara Nunes. São Paulo.


Dez. 1981. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=gPtZsvAIYu4. Acesso em: 16 ago. 2020.

WERNECK, Gustavo. De origem humilde, Clara Nunes con-


quistou legião de fãs. Estado de Minas. Belo Horizonte. 02 set.
2017. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/ge-
rais/2017/09/02/interna_gerais,897260/de-origem-humilde-
-clara-nunes-conquistou-legiao-de-fas.shtml. Acesso em: 16
ago. 2020.

WIKIPEDIA. Jadir Ambrósio. Disponível em: https://pt.wikipe-


dia.org/wiki/Jadir_Ambr%C3%B3sio. Acesso em: 16 ago. 2020

184 O time do povo mineiro


4.5. O último gol do Cruzeiro no Bento
Rodrigues, em Mariana18
Gustavo Nolasco

Era 31 de outubro de 2015. O Cruzeiro confirmava sua histó-


ria de gigante. Espantava a possibilidade de disputar a Série
B. Porém, ao início da partida pela 33a rodada, naquela tarde-
-noite, o estádio da Ressacada, em Florianópolis, era um mar.
E o dilúvio enviado dos céus parecia que não impediria mais
um vexame: Rômulo fazia 1 a 0 para o Avaí.

O jogo caminhava para o fim quando, para o desespero dos


cruzeirenses ali no Bar da Sandra, o recém-chegado Mano
Menezes chama, no banco, Leandro Damião, que há quatro
meses não marcava um gol. Todos deram uma talagada na
pinga e bufaram a queimação: se ele não faz um golzinho há
tanto tempo, não seria ali, debaixo de uma piscina olímpica,
que desencantaria...

Não demorou nem a primeira mordida na coxinha vinda da co-


zinha à mesa. Pimba! Depois de um cruzamento de William,
Damião desencantou: 1 a 1. Adeus, rebaixamento!

O apito final trouxe alívio. Longe do tempo ruim de Florianó-


polis, ali no distrito de Bento Rodrigues, paraíso encantado da
minha Mariana, o dia caia em uma noite de estrelas. O vento
soprava os galhos das árvores em frente à igreja de São Bento,
lembrando o bailado dos bandeirões na Toca da Raposa III.

18 - Dedico essa crônica aos dezenove mortos no primeiro dia do maior crime
socioambiental do país, seus familiares, aos cruzeirenses e atleticanos, a todos
os ex-moradores do Bento e aos não-covardes que lutam por justiça. #Pa-
raNãoEsquecer #NãoFoiAcidente.

Gustavo Nolasco 185


Pela TV, os jogadores se abraçavam no meio do gramado. Lá
fora, ao fundo, o correr manso e cristalino dos rios Ouro Fino
e Gregório terminava também num entrelaçar de braços, for-
mando a corrente do rio Gualaxo.

No distrito azul de Bento Rodrigues, ninguém ainda imagina-


va que aquele empate sem graça contra o Avaí entraria para
suas memórias. Mas, afinal, por que guardariam um resultado
irrisório em meio a tantas felicidades esplendorosas?

Enquanto os melhores (piores) momento daquele jogo ainda


ressoavam na TV, em meio às cigarras, Mara, Mauro, Mari-
nalda, Branquinho, Marquinhos e Antônio percorriam o rumo
de suas casas. Lembrando não do empate, mas sim, das festas
azuis dos anos anteriores.

Os dias de Cruzeiro contra o Atlético de Lourdes eram espe-


ciais no Bento. Sandra, que carregava o amor pelo azul em seu
coração, mas por baixo do avental permitia uma bandeira de
cada clube no estabelecimento, só prometia uma caixa de cer-
veja de “cortesia da casa” se o seu Cruzeiro vencesse.

Quando isso acontecia, Marquinhos e Antônio iniciavam o ba-


rulho ensurdecedor do foguetório, alegrando a molecada. O
pipocar de fogos e gritos de “Zêro” faziam os moradores do
Bento esquecer o fantasma de ter sobre suas cabeças as barra-
gens da mineração.

Antes de chegar em casa, Mara lembrou de quando veio a


conquista da Libertadores de 1997. A noite e as poucas ruas
do pequeno povoado foram pequenas para a carreata, caval-
gada e algazarra. Tudo ao som do hino das páginas heroicas
e imortais.

186 O time do povo mineiro


Alguém também lembrou da Tríplice Coroa, em 2003. A beleza
dos meios-fios da Praça do Bento sendo pintados, um a um, em
branco e azul. Alguns atleticanos, invocados, passaram um
bom tempo desviando seus caminhos para não cruzar aquele
reduto celeste.

Cinco dias depois daquele empate sofrido com o Avaí, Mônica


acordou no seu quarto todo decorado com cores e símbolos do
seu Cruzeiro Cabuloso. Arrumou-se. Colocou na bolsa o ce-
lular revestido cuidadosamente numa capinha com as cinco
estrelas estampadas e deixou Bento Rodrigues para trabalhar
em Mariana.

Pelo mesmo celular, às quatro horas da tarde daquele 05 de


novembro de 2015, Mônica recebeu a ligação mais devastadora
de sua vida: a barragem de Fundão, pertencente à Samarco/
Vale/BHP, havia rompido, destruindo por completo Bento Ro-
drigues e matando gente, bicho, rio, mata e história.

O crime da barragem de Fundão, em Mariana, transformava


aquele Avaí 1 X 1 Cruzeiro, disputado debaixo de um mar de
água, no último jogo assistido em Bento Rodrigues antes de
ser apenas memória debaixo de um mar de lama.

Gustavo Nolasco 187


4.6. Salomé, a maior torcedora do
mundo
Gustavo Nolasco

O destino reservou ao Cruzeiro uma dádiva. Não se sabe a mo-


tivação. Se sua trajetória de multicampeão, se a história de luta
e simpatia ou se mesmo a simples beleza de uma camisa ca-
paz de simbolizar o céu. Mas certo é que a maior torcedora de
futebol do planeta acabou por ser cruzeirense. Maria Salomé
da Silva. A nossa saudosa guerreira das arquibancadas, morta
por desgosto em 10 de dezembro de 2019, mas por quem eu me
nego a me referir como passado.

Salomé representa exatamente o DNA da torcida do Cruzei-


ro: diversa, vinda do interior de Bom Despacho, periférica do
bairro Riacho em Contagem, alegre, fiel, eterna e, principal-
mente, sem nenhuma necessidade de uma narrativa falsa para
se autoafirmar. Salomé é genuína. O cruzeirense, alegre ou
triste, é genuíno. Ambos construíram seu amor pelo clube em
cima de uma história de cumplicidade e verdades.

O Cruzeiro é o único grande clube brasileiro a ter a figura de


uma mulher como maior símbolo de sua torcida. Para o mun-
do do futebol, uma constatação lamentável, pois mostra como
estamos anos-luz de quebrar paradigmas. Mas para a Nação
Azul, certamente, um motivo de orgulho pela Salomé e por
termos um exemplo constante para lutar contra a nossa pró-
pria negação de voz e espaço às mulheres torcedoras, joga-
doras, técnicas e dirigentes. Portanto, nunca será excessivo
qualquer tributo rendido a ela, pois a instituição jamais con-
seguirá quitar toda a dívida de amor dedicado por essa mulher
ao Cruzeiro Esporte Clube, onde trabalhou por mais de três

188 O time do povo mineiro


décadas como faxineira, apenas pelo prazer de estar próxima
do seu grande amor.

Na sua humilde casa, na periferia de Contagem, ela manteve


um santuário azul. Nos quatro cômodos, adesivos, troféus,
miniatura de jogadores, esculturas de raposa, troféus e suas
inseparáveis raposinha de pelúcia e a boneca de vestido azul
e branco. Essa última, de cabelos loiros, um capricho da fabri-
cante para transformar o brinquedo numa representação da
própria Salomé.

Qual cruzeirense de arquibancada nunca pediu a ela uma foto?


Quantos não choraram ao escutar a história dessa mulher que
saiu da zona rural de Bom Despacho e, por gostar de um “lin-
do azul”, tornou-se o maior símbolo da paixão pelo Cruzeiro?
Fosse nas arquibancadas do Mineirão ou do Independência ou
nas caravanas “onde o Cruzeiro for” pelo mundo, óbvio! Lá es-
tava Salomé, a síntese da onipresença da torcida azul e branca.

Salomé é o sorriso, as unhas pintadas de azul e branco, da ra-


posa sempre colada ao peito, das estrelas brancas estampadas
no chapéu azul. É esse nosso desejo inexplicável de viver com
intensidade o Cruzeiro todos os dias, independentemente da
importância da peleja. Por isso tudo, deve entrar para os anais
da história desse clube centenário.

O ex-presidente Dalai Rocha materializou o primeiro reconhe-


cimento oficial ao dar o nome de “Dona Salomé” ao ginásio
da sede social do Barro Preto, exatamente onde ela trabalhava
todos os dias, limpando e distribuindo sorrisos.

Ao final de 2019, numa das manifestações da torcida, exigindo


a renúncia do câncer da gestão “Wagner Nonato Pires Macha-
do de Sá”, eu mesmo rendi minha homenagem a ela. Com tinta

Gustavo Nolasco 189


e cartolina, coloquei — em forma de protesto — simbolica-
mente seu nome na sede administrativa do Cruzeiro, na rua
dos Timbiras.

A Cruzeiro Official Store, onde Salomé comprava suas raposi-


nhas e passava tardes a brincar com os funcionários, no lan-
çamento da nova camisa da Adidas, no início de 2020, colocou
a manequim com um exemplar tendo o nome de Salomé às
costas, junto ao número 86, sua idade no ano de falecimento.

O movimento Nascido Palestra Forjado Cruzeiro (NPFC), fun-


damental no processo que culminou com a saída dos canalhas
e a entrada do Conselho Gestor, ao final de 2019, iniciou tam-
bém uma campanha para que fosse feita uma estátua da Sa-
lomé. Ela já está pintada no muro do clube, por iniciativa do
coletivo Somos Azuis.

Diversos grupos, como a Associação Grandes Cruzeirenses


(AGC), já renderam inúmeras homenagens a Salomé, assim
como são milhões de torcedores que carregam, com orgulho,
em seus aparelhos celulares uma foto tirada ao seu lado, seja
nos estádios, excursões para acompanhar o time ou encontros
nas ruas.

O próprio Cruzeiro, em meados de 2020, imortalizou a maior


torcedora de futebol no mundo, de uma maneira singela, dan-
do seu nome a uma mascote. Uma forma de gritarmos seu
nome todas as vezes em que o time entrar no gramado.

Por isso tudo, é preciso escrever: Salomé não foi. Ela é, presen-
te! Assim como as cinco estrelas estarão sempre no céu e no
nosso peito. Salomé não será lembrança na arquibancada. Ela
será nosso grito, sorriso, vontade de ser Cruzeiro. Seja onde e
quando o clube jogar.

190 O time do povo mineiro


PARTE 05.
SOY LOCO POR TI
AMERICA:
LA BESTIA NEGRA
5.1. O nascimento do Cruzeiro na Copa
Libertadores
Gustavo Nolasco

“Quando você nasceu, o Cruzeiro estava jogando?” Não con-


sigo me recordar em qual copo sujo eu estava a degustar uma
cerveja de milho quando outro cliente me lançou essa per-
gunta, intrigado com o meu incontrolável amor por esse clube
multicampeão.

Se não me emana à mente o local, tal fato ainda vive a povoá-


-la. Sempre invejo os cruzeirenses que, de fato, vieram ao mundo
num dia de jogo do Cabuloso. Afinal, quem não gostaria de nascer
ao rebento de um gol? Ou soltar o primeiro choro no instante do
apito final a certificar uma vitória maiúscula. Receber o primeiro
afago de mão de mãe enquanto milhares de outros torcedores se
abraçam para compartilhar mais um título azul estrelado.

A resposta ao questionamento na mesa de bar, eu tenho. Não


nasci com o Cruzeiro em campo. Vim ser cruzeirense às vés-
peras de disputarmos a final do Teresa Herrera contra o Real
Madrid, em 1976. Mas entre tantas certidões de nascimento
datilografadas em dia de jogo, numa delas, datada de 22 de fe-
vereiro de 1967, está o nome “Karina”.

Dias antes, o Cruzeiro havia embarcado para a Venezuela.


Nascia naquele voo a história da primeira participação do clu-
be na Copa Libertadores. Contra o Deportivo Galicia, no jogo
inaugural, a primeira vitória e o gol de Evaldo, aos 49 minutos
da prorrogação, decretando 1 a 0.

195
Dias depois, em Belo Horizonte, Hilma ajustou a roupa na bar-
riga de nove meses de gestação. Deixou sua casa e foi ao salão
para pintar as unhas. Foi lá que sentiu o estouro da bolsa e o
líquido a molhar seu vestido.

O marido estava exatamente na Venezuela, acompanhando


o seu Cruzeiro. Não foi nem possível avisá-lo da entrada às
pressas pelos corredores do hospital São Lucas. Lá, enfermei-
ros e médicos, entre uma vida salva e outra proporcionada, co-
mentavam sobre a segunda partida da Academia Celeste que se
avizinhava no torneio sul-americano. Dali a algumas horas,
entraria em campo contra o Deportivo Italia, em Caracas.

A madrugada do 22 de fevereiro já estava rompida quando a


filha de Hilma forçou a saída para vir ao mundo num dia de
Cruzeiro e Libertadores. Horas depois, lá na Venezuela, pelo
alto-falante do estádio Olímpico de La Universidad Central,
o locutor, gentilmente, anunciava o nascimento de Karina. À
beira do campo, o pai do bebê recebia, novamente, os cumpri-
mentos de jogadores e comissão técnica do escrete celeste.

No dia em que nascia em Belo Horizonte sua filha caçula, o


lendário Carmine Furletti, dirigente que formou a dupla mais
importante da história do Cruzeiro ao lado do genial Felício
Brandi, estava liderando a delegação do seu time na primeira
participação no torneio, no qual, anos depois, se tornaria La
Bestia Negra. Evaldo e Tostão — duas vezes — ainda lhe brin-
daram com os três gols da vitória.

Furletti chegou a Belo Horizonte apenas sete dias depois do


nascimento de sua filha, pois o Cruzeiro, de Caracas, ainda teve
de seguir para Lima, onde enfrentou e perdeu para o Universi-
tário. Ao descer no aeroporto da Pampulha, o dirigente celeste
trazia um embrulho de presente. Dentro, um par de sapatinhos

196 O time do povo mineiro


de algodão branco com pequenos olhos vermelhos bordados,
dando forma à cabeça de uma raposa.

Décadas depois, com o pai já muito doente, Karina resolveu


brincar. Foi até o armário e buscou um surrado passaporte.
Nele, se espalhavam carimbos de entrada em centenas de paí-
ses por onde Furletti passou com seu Cruzeiro querido.

A filha sentou-se ao lado do pai, fingindo não se lembrar da


história do dia de seu nascimento, e puxou conversa: “Uai, pai,
o que é esse carimbo aqui exatamente na época em que eu nas-
ci? O senhor estava na Venezuela? Nem me viu nascer?”

Carmine Furletti lançou um olhar carinhoso, mesmo bem de-


bilitado, manteve a doçura que sempre nutriu por sua caçu-
linha e pelo clube ao qual dedicou sua vida, e brincou: “Mas
também... Quem mandou você arrumar de nascer logo no dia
de jogo do Cruzeiro?”

Gustavo Nolasco 197


5.2. A Libertadores de 1976 no covil da
ditadura de Pinochet19
Gustavo Nolasco

As Cordilheiras dos Andes estavam especialmente repressoras


na noite gelada de 30 de julho de 1976, em Santiago do Chile. O
estádio Nacional, envergonhado de seu passado de sangue e
tortura, recebia a finalíssima da Copa Libertadores. Em ins-
tantes, Cruzeiro e River Plate adentrariam o gramado, envol-
tos pelos fantasmas e terrores daquela arena, que três anos
antes fora transformada num campo de concentração e exter-
mínio pelo ditador Augusto Pinochet.

Cerca de quarenta mil torcedores pulavam nas arquibanca-


das. Mesma quantidade de gente que, em 1973, passou por lá
como presos políticos. Dos quais, mais de quinhentos sequer
conseguiram sair com vida, torturados até a morte ou execu-
tados sumariamente.

Tambores, na sua ampla maioria, ecoavam a favor do River


Plate. Ditavam o ritmo da hinchada, comandada por Gorda
Matosas, torcedora símbolo do clube. Longe de Buenos Aires,
esqueciam-se momentaneamente dos horrores da ditadura
argentina comandada pelo monstro Jorge Videla.

Do outro lado, os chilenos se juntavam aos cruzeirenses apaixo-


nados que haviam cruzado a cordilheira por amor à Academia Ce-
leste. Otimistas, tanto por saberem que o Cruzeiro era superior ao
19 - Dedico esta crônica a todos os torcedores de Cruzeiro e River Plate tortu-
rados, mortos ou desaparecidos durante as três ditaduras que covardemente
estavam instauradas no Brasil, na Argentina e no Chile naquela noite de 30 de
julho de 1976. Ditadura nunca mais!

198 O time do povo mineiro


River, quanto pela (falsa) esperança de estarem vivendo os anos
finais da covarde ditadura brasileira pós-golpe de 1964.

Os flashes dos fotógrafos iluminavam a camisa celeste do nosso


escrete, perfilado no círculo central para a foto oficial. Os al-
to-falantes usados em 1973 para convocar mulheres e homens
que seriam interrogados e torturados pelas bestas de Pinochet,
naquela noite, apenas anunciavam a escalação dos times.

O River Plate, mesmo desfalcado do goleiro Fillol e dos craques


Perfumo e Passarella, tinha uma máquina, com Alonso, Luque
e Más, reforçada ainda pela típica arbitragem desfavorável aos
clubes brasileiros.

Ao redor do campo, as placas de publicidade anunciavam o


Gillette G2, as Casas Pernambucanas, a bicicleta Caloi, Smir-
noff, Shelton, os isqueiros Cricket e escondiam os militares.

O apito do juiz cortou o ar, sufocando vozes reais. Nelinho foi logo
atingido covardemente. Com as mãos no tornozelo e com o corpo
encolhido, sua imagem de dor no chão lembrava a forma como
jovens eram torturados no pau de arara, na ditadura brasileira.

Poucos minutos depois, pênalti. O mesmo Nelinho, ao contrário


das bombas e canhões, apenas deslocou o goleiro para abrir o
placar. Resultado mantido até o fim do primeiro tempo, graças a
verdadeiros milagres operados por Raul e sua camisa amarela.

Segunda etapa. Eduardo surgiu como um lobo pela direita e


acertou o ângulo do goleiro Landaburu. Cruzeiro 2 a 0. Pare-
cia ser o fim, mas eis que o River Plate descontou num pênalti.
O empate argentino saiu de uma falcatrua. Cobraram rápido
uma falta e, sem o apito do juiz, fizeram 2 a 2.

Gustavo Nolasco 199


Os comentaristas da TV Nacional do Chile denunciavam a ação
irregular. Se a transmissão fosse ao vivo, provavelmente, te-
riam sido censurados e presos pelo simples ato de questiona-
rem os homens de preto.

O final, todos sabemos. Últimos minutos; falta na entrada da


área; Nelinho se prepara e Joãozinho dá o troco da mesma mo-
eda: 3 a 220.

A bola morre na rede da trave localizada bem à frente da Sali-


da 8, local onde, até hoje, jogadores e o povo chileno rendem
homenagens e rememoram os mortos e torturados do estádio
Nacional, para que ninguém se esqueça da vergonhosa dita-
dura chilena.

20 - O gol da vitória do Cruzeiro, marcado por Joãozinho, também ficou imor-


talizado na narração do radialista Vilibaldo Alves, aqui reproduzido:
“Adivinhe! Adivinhe! Joãozinho, pelo amor de Deus! Joãozinho, Joãozinho,
Joãozinho! Faz com que Roberto Batata, lá no céu, abrace-o aqui na terra,
Joãozinho! Nesse momento, eu me lembro de Roberto Batata. Ele que tanto
lutou nessa Libertadores pelo Cruzeiro. Faz o gol que o Brasil está comemoran-
do. Vamos agora esperar, torcedor do Brasil, que o Cruzeiro vá e coloque a faixa
sobre o túmulo do jogador Roberto Batata Aparecido. Cruzeiro 3, River Plate 2.
O River quer brigar, mas o Cruzeiro ganha no futebol”.

200 O time do povo mineiro


5.3. La Bestia Negra das Américas: um
protagonismo retomado na adversidade
Bruno Henrique Parreiras

Ao longo de sua centenária história, o Cruzeiro demonstrou


força inúmeras vezes nas competições da América do Sul. O
início da nossa trajetória na Libertadores se deu em 1967, após
o título brasileiro do ano anterior, na tão lembrada final sobre
o Santos de Pelé e companhia. O estreante Cruzeiro já mostra-
va seu poderio chegando à fase semifinal da competição sul-
-americana daquele ano. Entre 1967 e 1977, foram quatro par-
ticipações, acumulando duas chegadas à fase semifinal (1967 e
1975), um vice-campeonato (1977) e o título de 1976.

O histórico citado acima elevou o nome e a grandeza do Cruzei-


ro Esporte Clube em todo o continente, alçando o clube a fama
e notoriedade que jamais serão apagadas. Não é difícil descre-
ver alguns feitos daquele período, como as vitórias de 1967 so-
bre o Nacional, então campeão uruguaio, ou a que tivemos em
cima do Peñarol, time que carregava os títulos da Libertadores
e do Mundial. Também poderia relatar a desforra sobre o Vas-
co num fantástico 3 a 2 no Mineirão, na Libertadores de 1975,
pouco após a perda do título brasileiro para a equipe carioca. Ou
então narrar os pormenores do título que nos foi tirado em La
Bombonera, em 1977, e, claro, a Libertadores que buscamos em
1976 com nossos fantásticos certames contra o Internacional, e
a final vencida sobre o River Plate na versão cruzeirense (bem
menos violenta, é verdade) da Batalha de Santiago21.

21 - Batalha de Santiago é como ficou conhecida a partida entre Chile e Itália


pela Copa do Mundo de 1962. Em um jogo extremamente disputado e violento,
a seleção chilena venceu por 2 a 0 e se classificou para as quartas de final da
competição. O jogo, assim como a final da Libertadores de 1976, ocorreu no
estádio Nacional do Chile.

Bruno Henrique Parreiras 201


O que construímos entre 1967 e 1977 nos elevou a um patamar de
importância no continente, mas esse protagonismo acabou um
pouco esquecido entre 1977 e 1988. Ao longo desses onze anos, não
estivemos na principal disputa continental da América do Sul,
que na verdade só voltaríamos a disputar anos depois, em 1994.

O surgimento da Supercopa dos Campeões da Libertadores

Se nos reencontramos com a Libertadores apenas em 1994, foi


em 1988 que voltamos às competições sul-americanas, mas por
meio de um novo torneio de que disputamos todas as edições: a
Supercopa dos Campeões da Libertadores. O campeonato reu-
nia o seleto — hoje nem tanto — grupo de campeões sul-ame-
ricanos e teve dez edições entre 1988 e 1997. O Cruzeiro com dois
títulos (1991 e 1992) e dois vices (1988 e 1996) é a equipe com
melhor aproveitamento no campeonato. Como recorda o jorna-
lista Douglas Ceconello no blog “Meia Encarnada”, a Superco-
pa “além dos dois canecos a mais na constelação de sete taças
internacionais do Cruzeiro, também teve como efeito colateral
fazer da esquadra estrelada um dos clubes brasileiros mais co-
nhecidos e respeitados do continente”.

O respeito ao Cruzeiro nos campos da América do Sul nos rendeu


a alcunha de “La Bestia Negra”. O jornalista Thiago Madureira,
em uma reportagem do portal “Superesportes” sobre o apelido
celeste, cita que o termo “ganhou o continente e atualmente é
amplamente utilizado em vários países”, enfatizando os “chi-
lenos, argentinos, colombianos, venezuelanos, uruguaios, pa-
raguaios...”. Possivelmente, os casos mais emblemáticos de uso
do termo são as vitórias contra os chilenos, sobretudo o Colo
Colo, e contra o River Plate. Além desses confrontos, o mesmo
portal também recorda embates ante os paraguaios, enfatizan-
do duas eliminatórias da Supercopa em que enfrentamos o time
do Olimpia:

202 O time do povo mineiro


“A imprensa paraguaia consagrou o termo por causa das
grandes exibições do Cruzeiro contra os clubes daquele país.
Em 1989, a Raposa enfrentou o Olímpia, pela Supercopa, com
a necessidade de reverter um resultado adverso de dois gols.
Sob forte chuva, o Cruzeiro venceu por 3 a 0 no Mineirão. Ri-
vais históricos, Cruzeiro e Olímpia voltaram a se enfrentar
em 1991, 1992, 1994 e 1995. Em 1994, quando se enfrentaram
de novo pela Supercopa, o time paraguaio novamente venceu
o primeiro jogo por 2 a 0. Mas o Cruzeiro emplacou 4 a 0 na
segunda partida, eliminando o Olimpia pela quarta vez con-
secutiva de uma competição internacional e selando a fama
celeste de time copeiro. Por isso, o termo ‘La Bestia Negra’
ganhou muita força.” (MADUREIRA, 2017)

A Supercopa, portanto, foi um torneio completamente iden-


tificado com o Cruzeiro e seu torcedor. Um daqueles casos em
que o clichê “feitos um para o outro” pode até ser usado e soar
um pouco menos piegas. Jogar contra aquele nicho de campe-
ões nos resgatou a autoestima que claudicava pelos anos 1980.
Obviamente não era simplesmente jogar entre os campeões,
mas se portar como mais um deles, foi uma questão de reafir-
mar nossa grandeza.

Possivelmente, seria mais fácil dedicar a continuidade deste


texto aos títulos de 1991 e 1992. Mas algumas derrotas carregam
um simbolismo imenso, podem ser o início de uma trilha de vi-
tórias e merecem ter sua história relatada. E esse foi o papel da
Supercopa de 1988: a retomada do orgulho de uma geração.

Primeiro duelo: El Rey de Copas

O ano de 1988 começava com a torcida cruzeirense mais con-


fiante do que em grande parte dos outros anos da década de
1980. Na temporada anterior, o time celeste conseguiu bons

Bruno Henrique Parreiras 203


resultados, chegando à semifinal do Campeonato Brasileiro
e comemorando o título mineiro sem precisar prová-lo judi-
cialmente22, algo que não ocorria havia dez anos.

A Supercopa teve início bem no princípio da temporada, e já


em fevereiro encontramos um adversário de peso, o Indepen-
diente, maior campeão da história da Libertadores da América.
O confronto trazia alguns componentes especiais pelo histó-
rico entre as equipes.

“Os mineiros vinham motivados pelo gosto de vingança, já


que, pela Libertadores de 1975, ambos os times tinham se
enfrentado, com os argentinos levando a melhor. No Minei-
rão o time celeste ganhou de 2 a 0, mas não suportou a arbi-
tragem tendenciosa e foi derrotado por 3 a 0 na Argentina,
sendo desclassificado. Agora era, sem dúvida, a chance de
vingança.” (VICINTIN, 2007).

O primeiro jogo aconteceu em Buenos Aires, no estádio Liber-


tadores de América, em Avellaneda, no dia 10 de fevereiro. A
confiança da torcida no início da temporada parecia também
se refletir em campo. O Cruzeiro iniciou bem a partida, fa-
zendo um primeiro tempo seguro e sendo efetivo no segundo
tempo, abrindo 2 a 0 com gols de Wilmar e Hamilton. A edição
do jornal “Estado de Minas” do dia posterior à partida cita um
time cruzeirense com “futebol arrojado e bem coordenado no
meio campo”. A partida terminou em 2 a 1, com Merlini des-
contando para os argentinos.

22 - Nas finais do Campeonato Mineiro de 1984, o Cruzeiro venceu o Atléti-


co Mineiro por 4 a 0 no primeiro jogo e perdeu a segunda partida por 1 a 0. O
Cruzeiro foi campeão pelo saldo de gols das finais, contudo a diretoria atleticana
tentou melar a festa azul e branca e entrou na justiça alegando que tinha a van-
tagem de dois resultados iguais, numa leitura incorreta do regulamento. Embora
reconhecidamente campeão, o título só foi confirmado judicialmente em 1990.

204 O time do povo mineiro


Duas semanas depois, chegava a vez de recebermos novamen-
te um confronto sul-americano no Mineirão, era o jogo da vol-
ta e tínhamos a vantagem pela vitória no primeiro confronto.
No jogo de Buenos Aires, a vitória foi consolidada na segunda
etapa, já na partida de Belo Horizonte foi um primeiro tempo
forte que determinou a vitória do Cruzeiro. Heriberto, com um
belo chute de fora da área, encontrou o alvo argentino aos 23
minutos do primeiro tempo e, mesmo com uma queda de ren-
dimento na segunda etapa, o jogo terminou 1 a 0.

Após mais de uma década, eliminávamos um gigante do conti-


nente, o resgate da alma copeira começava a ser retomada em
“Sudamerica”. Passaporte carimbado para as quartas de final.

Mais um argentino: hora de encarar o Bicho

A Supercopa foi um torneio que utilizou o primeiro semestre


da temporada 1988. Mas no caso específico do Cruzeiro, hou-
ve um espaço de quase dois meses e meio entre a eliminação
do Independiente e as quartas de final. Dessa forma, tivemos
que esperar até maio pelos próximos duelos. O adversário no-
vamente seria uma equipe argentina, o confronto agora era
contra o Argentinos Juniors. Graças ao título sul-americano
de 1985, o Bicho — alcunha dada ao Argentinos Juniors — foi a
penúltima equipe a ter adquirido o direito de jogar a Supercopa
de 1988.

Se não está entre os maiores vencedores da história do fute-


bol argentino e sul-americano, o Argentinos Juniors é mun-
dialmente conhecido por ter nas suas categorias de base uma
inesgotável fonte de craques, tendo como o principal desta-
que o surgimento de Maradona. Além do grande jogador da
história argentina, revelou nomes como Cambiasso, Redon-
do, Riquelme e nosso grande ídolo Juan Pablo Sorín. Contu-

Bruno Henrique Parreiras 205


do, é bom enfatizar, enfrentaríamos o Bicho dos anos 1980, a
grande década da história do clube. Após o título do Campeo-
nato Metropolitano de 1984, Libertadores e Campeonato Ar-
gentino de 1985, a Supercopa era a chance de mais uma glória
para os portenhos.

A primeira partida ocorreu no Mineirão em um jogo tenso, com


os argentinos marcando com muita força a equipe celeste, que
por sua vez não se intimidou e jogou para a frente, buscando
o resultado. Não foi apenas dentro de campo que a partida foi
marcante, “a torcida presente ao Mineirão foi outro destaque
do jogo, proporcionando uma arrecadação superior a seis mi-
lhões e novecentos mil cruzados” (ESTADO DE MINAS, 1988).

A equipe celeste insistiu para abrir o placar ainda no primeiro


tempo, mas desperdiçou algumas oportunidades, incluindo um
pênalti perdido por Heriberto. “Para o segundo tempo, o Cru-
zeiro voltou bem mais disposto em campo. Partindo sempre
para o ataque, continuava encontrando uma marcação muito
difícil. O meio campo do Argentinos Juniors se fechava e anula-
va as jogadas de Careca.”(ESTADO DE MINAS, 1988).

Finalmente, aos 32 minutos da segunda etapa, o Cruzeiro con-


seguiu o gol com Ramon, que entrara no lugar de Edson após
rompimento dos ligamentos do tendão de Aquiles. Em uma ta-
bela na entrada da área, ele recebeu de Hamilton e bateu o go-
leiro Goyen. Jogo terminado em 1 a 0, e vantagem conquistada
para a segunda partida na Argentina.

O jogo da volta foi novamente um encontro truncado entre


Cruzeiro e Argentinos. Mesmo com a vantagem determinada
pela vitória no Mineirão, encontramos um adversário que teve
muita força na partida realizada no estádio do Vélez Sarsfield.
Talvez por isso a equipe comandada por Carlos Alberto Silva

206 O time do povo mineiro


optou por fazer um primeiro tempo mais cauteloso, tomando
cuidado com o setor defensivo.

Após conseguir neutralizar as investidas argentinas no pri-


meiro tempo, a equipe cruzeirense se lançou mais ao ataque
na etapa complementar. Os primeiros lances do segundo tem-
po apontaram um Cruzeiro incisivo e com mais chances de
gol, porém, aos 23 minutos, sofremos uma baixa, a expulsão
de Edson. Após mais de vinte minutos de tensão, Careca so-
freu um pênalti no fim da partida. Heriberto bateu, Goyen de-
fendeu, mas, no rebote, novamente Heriberto teve a chance de
abrir o marcador e o fez.

Com duas vitórias, o Cruzeiro selou a classificação de maneira


incontestável. A equipe ficou marcada não somente pelas vitó-
rias, mas também pela entrega deixada nos jogos. “O Cruzeiro
foi um time formado por 11 guerreiros, disputando cada lance
com a garra que uma competição desse tipo exige.” (ESTADO
DE MINAS, 1988). O reconhecimento não veio apenas da torcida
cruzeirense, mas também da hinchada argentina, que aplau-
diu o time mineiro ao fim da partida que assegurou o próximo
confronto contra um antigo conhecido uruguaio.

A dois passos da grande final

Na fase semifinal, o adversário foi uma equipe que além de


ser extremamente tradicional no continente, fazia tempora-
da incrível em 1988: o Nacional do Uruguai. Nas quartas de fi-
nal, eliminaram o Flamengo com um placar agregado de 5 a
0. Poucos meses após o confronto entre Cruzeiro e Nacional, a
equipe uruguaia conquistaria o tricampeonato da Libertado-
res e do Mundial Interclubes. A semifinal seria, portanto, um
desafio extremamente complicado.

Bruno Henrique Parreiras 207


Já conhecíamos o Nacional de outros encontros, como o já ci-
tado pela Libertadores de 1967 e alguns amistosos nas décadas
de 1970 e 1980. Foi uma batalha que exigiu profundo controle
tático e emocional, mas evidentemente foi um dos pontos al-
tos da Supercopa de 1988 e de uma geração de cruzeirenses.

No dia 30 de maio, fomos até Montevidéu para começar a de-


cidir quem chegaria à grande final. A partida foi realizada sob
forte chuva e frio, no mítico estádio Centenário, palco da fi-
nal da primeira Copa do Mundo. Apesar das adversidades, o
Cruzeiro começou bem aquela partida, mas o Nacional soube
como neutralizar as investidas celestes.

“O Nacional jogava certo. Aproveitava o campo molhado


para tentar os lançamentos em profundidade. Isso levava
pânico à defesa do Cruzeiro, que não conseguia sair jogando.
Tentava sempre tocar a bola, mas encontrava uma marcação
firme do time uruguaio.” (ESTADO DE MINAS. Belo Horizon-
te, 31 mai. 1988, p. 20)

Dessa forma, os uruguaios conseguiram abrir 2 a 0 com dois


gols de Olivera, o primeiro aos 45 da etapa inicial e o segundo
aos 18 minutos do segundo tempo. O ímpeto do Nacional não
travou o Cruzeiro, que no minuto seguinte descontou em gol
de Careca, e pouco depois, aos 27 minutos da segunda etapa,
empatou com Ademir. A partida, porém, não estava decidida.
“(...) o Cruzeiro comemorou pouco. Dois minutos depois de
conseguir o empate, levou o terceiro gol. Vargas aproveitou um
córner da esquerda, e, na confusão dentro da área, chutou na
frente de Wellington.” (ESTADO DE MINAS, 1988)

Apesar de ter levado o gol que decretaria a vitória do Nacio-


nal, a equipe cruzeirense optou por segurar o resultado. Com a
derrota de 3 a 2, uma vitória simples, ou por 2 a 1, no segundo

208 O time do povo mineiro


jogo daria a classificação ao Cruzeiro pelo critério de gols na
casa do adversário.

No jogo da volta a atmosfera do Mineirão já era diferente antes


mesmo de o juiz soar o apito inicial. O Mineirão estava tomado
por 90.946 cruzeirenses sedentos por um grande jogo interna-
cional em casa, era a chance de o Cruzeiro voltar a protagonizar
uma final sul-americana após doze anos. Com a vantagem do
empate e sabendo das dificuldades que enfrentariam, o time do
Nacional veio com uma proposta bastante defensiva, travando
as jogadas cruzeirenses. Durante o primeiro tempo, o Cruzeiro
tinha posse de bola, mas não conseguia ser efetivamente pro-
dutivo. Foram poucas as chances criadas e a tensão crescia.

O time celeste resolveu se abrir um pouco mais para o segundo


tempo, o que acabou atraindo o time do Nacional para o campo
cruzeirense. Algo precisava ser modificado.

“Aos 20 minutos, Carlos Alberto Silva, o técnico do Cruzeiro,


surpreendeu tirando Ramon e colocando Heriberto na pon-
ta-esquerda. Vladimir passou para a zaga, Ademir assumiu
a cabeça de área, Éder foi para a frente e Genilson entrou na
lateral, o que deu ótimo resultado, pois o time do Nacional-
-URU ficou perdido em campo.” (VICINTIN, 2007)

A torcida continuava incentivando — como fizera durante todo


o jogo — e o time melhorou com as mudanças realizadas. Era
dessa maneira que o Cruzeiro passava a dominar a partida. Ape-
sar da catimba uruguaia, o gol cruzeirense parecia estar próxi-
mo, o ambiente era cada vez melhor no Gigante da Pampulha.

“Aos 30 minutos, aconteceu o gol da vitória. Balu fez boa


jogada na lateral, e tocou para Éder, que lançou Robson. O
ponta entrou pelo “bico da área”, deu um chapéu em Revelez

Bruno Henrique Parreiras 209


e, com a bola na frente, bateu por cima de Seré, fazendo um
golaço, o gol da classificação.” (ESTADO DE MINAS. Belo Ho-
rizonte, 4 jun. 1988, p. 24)

Com o gol celeste, o time do Nacional esqueceu de jogar fute-


bol, partiu para a briga e a equipe cruzeirense entrou na pi-
lha. Após uma confusão generalizada, o juiz argentino Ricardo
Calábria expulsou Balu e Hamilton do Cruzeiro, e Móran, do
Nacional. Pouco depois, foi a vez de Saldanha ser o segundo
expulso do time uruguaio.

Seguramos o resultado e a classificação para a grande final. O


Cruzeiro, passo a passo, voltava a mostrar suas cores para os
rivais continentais. Nas arquibancadas, mais de noventa mil
alucinados cruzeirenses vibrando, no campo um time que fa-
zia jus à constelação que carregava no peito. O campeão mun-
dial de 1988 não foi páreo para o Cruzeiro.

O cotejo pelo título: Cruzeiro x Racing

Chegava o momento da grande final. Após eliminarmos Inde-


pendiente, Argentinos Juniors e Nacional, enfrentaríamos o
vencedor do confronto entre Racing e River Plate. Quem levou a
melhor foi o Racing, e voltamos a Avellaneda como na primeira
fase, mas dessa vez para duelar contra “La Academia”.

A equipe celeste encontrou um ambiente típico dos estádios


argentinos, com muita festa e alento da torcida do Racing pre-
sente no Cilindro. Os adeptos do time argentino tinham uma
motivação especial para a vitória: um jejum de 21 anos sem tí-
tulos. Independentemente de toda a atmosfera contrária e das
dificuldades para uma viagem naquele período, a torcida cru-
zeirense marcou presença em Buenos Aires e “fez a sua festa
em Avellaneda. Ao todo, vieram cinco ônibus, com muitas ban-

210 O time do povo mineiro


deiras, faixas e uma grande bandeira do Brasil”. (ESTADO DE
MINAS, 1988)

Em campo um Cruzeiro aguerrido, mas que, além de enfren-


tar a equipe argentina, teve dificuldades com uma arbitragem
confusa, muito questionada pelos jogadores. Apesar da situa-
ção adversa, fomos nós quem abrimos o placar. Em jogada pela
esquerda, aos 36 minutos do primeiro tempo, Careca adentrou
a área adversária e bateu na saída do goleiro Fillol, com a bola
quase entrando, Robson completou e marcou o gol. O Racing
continuou pressionando e pouco depois, aos 43 minutos, con-
seguiu um pênalti a seu favor. Os jogadores cruzeirenses con-
testaram a marcação do juiz chileno Hernán Silva, mas Fer-
nández aproveitou e empatou a partida.

A equipe argentina conseguiu a virada no fim da partida. Wal-


ter Fernández, o autor do gol, fez jogada pela linha de fundo e
cruzou para Colombatti, que pegou de primeira sem chances
para Wellington. Vitória argentina e frustração da equipe ce-
leste, que poderia ter saído do Cilindro sem aquela derrota.

Talvez a revolta com a arbitragem chilena tenha afetado o


emocional do Cruzeiro em campo. Após a partida, alguns jo-
gadores e o técnico Carlos Alberto Silva deixaram claro o des-
contentamento. O comandante celeste enfatizou a qualidade
cruzeirense na partida, mas citou que a arbitragem foi pre-
ponderante para o resultado ocorrido. “O que interessa agora
é ganhar. Vamos ganhar para inverter a vantagem do Racing e
decidir em campo neutro. O time jogou bem e teve muita raça.
Só perdemos nos erros do juiz, que vocês viram.” (ESTADO DE
MINAS, 1988)

O jogo de volta ocorreu apenas cinco dias após a primeira par-


tida. As equipes se encontraram em um sábado, 18 de junho, no

Bruno Henrique Parreiras 211


Mineirão. Ao Cruzeiro caberia vencer esse segundo jogo para
forçar um terceiro encontro, dessa vez em campo neutro. Car-
los Alberto Silva falava durante a semana que o encontro seria
um jogo de paciência e que a torcida teria papel fundamental;
assim, os torcedores “acataram o pedido do treinador, pro-
curando incentivar seu time sem jamais cobrá-lo”. (BITTEN-
COURT, 1988)

Na partida, assistiu-se a um Cruzeiro dominante, controlan-


do as ações do certame, porém pouco efetivo. O time tentava
muito e várias foram as chances de abrir o marcador durante
o primeiro tempo; enquanto isso, a equipe do Racing só con-
seguiu fazer seu primeiro ataque aos 34 minutos. Apesar do
domínio celeste, a zaga do Racing se encontrava em um jogo
completamente inspirado e salvava a equipe argentina no
campo defensivo. Após muito se defenderem, os argentinos
abriram o placar aos 43 minutos. Em uma dividida na entrada
da grande área, a bola sobrou livre para Catalán, que ficou cara
a cara com Wellington e fez o gol com facilidade. Acabava o
primeiro tempo e o Cruzeiro agora precisava de uma virada em
45 minutos para levar a decisão ao terceiro jogo.

A segunda etapa da partida começou novamente com a equi-


pe celeste superior dentro de campo, ao menos no que tangia
às ações ofensivas. Entretanto, o Racing continuava um time
muito organizado no seu campo defensivo. Desse modo, o time
cruzeirense só conseguiu transpor a defesa argentina aos 34
minutos. O meia Anderson bateu o escanteio pelo lado direito
e, num raro momento de falha do goleiro Fillol — que salvou
o Racing várias vezes no jogo —, Robson aproveitou e marcou
o gol do 1 a 1. A partida foi jogada até os 47, e nos 13 minutos
finais o Cruzeiro tentou bastante, mas não conseguiu o gol da
vitória. O título foi para Avellaneda.

212 O time do povo mineiro


Fim de um torneio, início de uma nova era

Evidentemente, a derrota foi sentida por todos. Aquela vinha


sendo uma bela trajetória que poderia ter sido coroada com a
taça. O Cruzeiro, por exemplo, foi a equipe com melhor índice
técnico da competição e participou de todas as fases, algo que
não aconteceu com Nacional e Racing, que por sorteio não es-
tiveram nas oitavas e quartas de final, respectivamente.

Não se trata aqui de uma glamourização da derrota, tampou-


co de depreciação ao merecido título do Racing, mas de reto-
marmos e entendermos algo trazido ainda no princípio deste
texto. Falar em Supercopa dos Campeões da Libertadores é fa-
lar em Cruzeiro, e essa história começou a ser desenhada pela
geração que estava ali em 1988. Tanto a geração de jogadores,
que voltou a mostrar o peso das cinco estrelas nos gramados
sul-americanos, quanto a geração de torcedores. Estes últimos
divididos entre aqueles que não viam seu clube disputar um
título continental havia onze anos e outros, mais jovens, que
pela primeira vez tiveram oportunidade de lotar o Mineirão
em um jogo internacional.

Um desses exemplos é de Maurício da Paz, o Bolão, famoso


torcedor das arquibancadas celestes e ex-presidente da Máfia
Azul, a maior torcida organizada cruzeirense. Bolão é mais um
dos inúmeros casos daqueles torcedores que aguardavam um
jogo cruzeirense contra as grandes equipes da América do Sul,
coisa que até então ele só ouvira falar pelas histórias de Seu
Hermínio, barbeiro na sua cidade natal, Bonfim.

“Quando era criança eu ia lá cortar cabelo e a barbearia dele


só tinha pôster do Cruzeiro... De Tostão, de Piazza, das gran-
des conquistas do Cruzeiro. E ele me contava muito caso da
Libertadores de 1976, quando eu tinha 8 anos e não lembrava

Bruno Henrique Parreiras 213


muito bem, e acho que nem foi transmitido ao vivo na época.
A partir do Seu Hermínio me tornei cruzeirense. E fui culti-
vando aquilo... sempre no radinho e esperando ir ao Minei-
rão, tinha sonho de ir no Mineirão.” (PAZ, 2020)

Talvez para quem more em Belo Horizonte, ir ao Mineirão seja


algo muito simples, mas para aquele cruzeirense fanático que está
no interior do estado, a possibilidade de ir ao estádio realmente
parece um sonho distante. E se tem algo que não podemos nos es-
quecer é da força dessa torcida pelos 853 municípios mineiros.

Trago ao texto as vivências de Bolão como um exemplo de re-


presentação da nossa enorme torcida. Os relatos dados por ele,
além de nos ajudar a entender a trajetória do Cruzeiro nos anos
de 1980 e como a Supercopa muda esse curso, fazem parte de
uma homenagem a todo nosso pavilhão de torcedores, aqui
representados por ele. O maior patrimônio do Cruzeiro está na
arquibancada do Mineirão ou no radinho de pilha numa pacata
cidade do interior mineiro: é o seu torcedor.

Retomando a narrativa cruzeirense e sua saga nos 11 anos dis-


tantes das competições sul-americanas, Bolão lembra como era
difícil aquele período para a torcida cruzeirense e o papel exer-
cido pela Supercopa como ponto de virada na história celeste:

“O Cruzeiro naquela época, na década de 1980, passou uma


fase muito ruim, de times fracos e quem sobreviveu, foi tor-
cedor do Cruzeiro na década de 1980, eu costumo dizer que
são os brutos. A gente com muito custo ganhou um Campe-
onato Mineiro em 1984 e mesmo assim foi para o tapetão.
Então assim... O Cruzeiro estava naquela peleja, de montar
um time, os Masci23 estavam começando a botar a casa em

23 - Bolão se refere à família Masci, que teve três presidentes na história do Cruzei-
ro: Benito Masci (1984-1990), Salvador Masci (1990) e César Masci (1991-1994).

214 O time do povo mineiro


ordem. O Cruzeiro começou a formar alguns times a partir
da Supercopa, que veio resgatar o prestígio do Cruzeiro a ní-
vel sul-americano e mundial. Depois, passando esse perío-
do, com a Supercopa — o início na Supercopa de 1988 — a
gente indo para o campo de ônibus, aquela farra no ônibus,
cantando o hino do Cruzeiro, algumas músicas que a gente
tinha lançado na época...” (PAZ, 2020)

Creio que esse movimento em torno da Supercopa explique uma


relação de tamanho protagonismo cruzeirense na competição,
assim como de um engajamento tão bonito da torcida com as
partidas que aconteciam em Belo Horizonte. Sabemos que ver
o Mineirão lotado em jogos do Cruzeiro não foi exclusividade
da Supercopa — o recorde de público do estádio foi em um jogo
de Campeonato Mineiro24 —, mas há um carinho especial por
quem viveu aquelas noites de Supercopa na Pampulha.

Bolão relata, de maneira bastante saudosa, um pouco do que


retrato no parágrafo anterior:

“Mineirão, cara, na época da Supercopa, era casa cheia todo


jogo. Era 60 mil, 80 mil, 90 mil pessoas no Mineirão. Era
coisa comum nos jogos do Cruzeiro pela Supercopa. O Cru-
zeiro vinha de uma época que estava muito mal no cenário
nacional, tendo essa oportunidade de disputar um campe-
onato internacional que foi a Supercopa. E principalmente
porque era a Supercopa dos Campeões da Libertadores, só
os campeões da Libertadores participavam. Então foi um
campeonato extremamente importante, eu tenho um sau-
dosismo danado dessa época, eu acho que esse campeona-
to não devia ter deixado de existir. Tinha que estar aí até

24 - A vitória de 1 a 0 do Cruzeiro sobre o Villa Nova, em 22 de junho de


1997, marca o recorde de público do Mineirão, com 132.834 pessoas presen-
tes no estádio.

Bruno Henrique Parreiras 215


hoje.” (PAZ, 2020)

O carinho da torcida cruzeirense com a competição remon-


ta a vários acontecimentos. Um Mineirão pulsante, o belo
retrospecto construído, a retomada do orgulho ferido. Para
aqueles que se sentem honrados em rememorar a trajetória
gloriosa do nosso clube, trazer essa página da história cru-
zeirense é apenas mais um feito de tantos outros, mas que
merece lugar de destaque. Friso também que essa trajetória
de glórias merece ser mostrada como uma história popular,
desde a sua fundação até os dias atuais. Não foi diferente nos
anos 1980; mesmo na crise, o povo estava ali, caminhando
junto ao Cruzeiro. E a Supercopa de 1988 foi um dos poucos
afagos que a China Azul teve em meio àquela década. Foram
dias de festa, de Mineirão cheio e do prenúncio de que algo
grandioso estava perto.

“Eu acho que a Supercopa foi um divisor de águas na vida do


Cruzeiro. Ela levou o Cruzeiro para um patamar diferente.
Mostrou para o mundo a grandeza do Cruzeiro! E 1988 foi o
recomeço, foi importantíssimo para essa retomada do Cru-
zeiro no cenário sul-americano. As de 1991 e 1992 foram a
consagração.” (PAZ, 2020)

A torcida cruzeirense sabe o valor da palavra reconstrução. Em


uma história centenária passar por períodos de um novo ar-
ranjo, de se restaurar, parece inevitável. Para a geração mais
jovem — na qual me coloco —, viver isso no cotidiano cruzei-
rense é uma novidade. Porém, resgatando a história, perce-
bemos que após uma década de 1950 dolorosa vieram os anos
1960 e o time que encantou o Brasil. E foi depois da dificuldade
vivida na década de 1980 que o Cruzeiro voltou a ser copeiro na
América do Sul.

216 O time do povo mineiro


Sabendo que a campanha de 1988 foi o primeiro passo para nos
levar a seis títulos continentais na década seguinte, que ela nos
inspire em mais uma reconstrução. Se há algo que não falta em
nossa galeria são belas histórias. Sejam de títulos, de grandes
campanhas, da garra de seu povo e também, definitivamente,
de superação. Aproveitemos cada detalhe dessa trajetória, de
páginas centenárias, heroicas e, é claro, imortais.

Referências Bibliográficas:

BITTENCOURT, Bruno. A maldição do Mineirão. Revista Pla-


car, São Paulo, p.18-19, 24. Jun. 1988.

CECONELLO, Douglas. O clube exclusivo dos campeões: uma


competição chamada Supercopa. Globo Esporte, Porto Alegre:
2018. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/blogs/
meia-encarnada/post/2018/05/11/o-clube-exclusivo-dos-
-campeoes-uma-competicao-chamada-supercopa.ghtml.
Acesso em: 16 mar. 2020.

MADUREIRA, Thiago. Cruzeiro tenta resgatar brilho no Paraguai,


onde consagrou apelido de La Bestia Negra. Super Esportes, Belo
Horizonte: 2017. Disponível em: https://www.mg.superesportes.
com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2017/05/10/noticia_cru-
zeiro,400783/cruzeiro-busca-brilho-no-paraguai-onde-con-
sagrou-la-bestia-negra.shtml. Acesso em: 22 mar. 2020.

PAZ, Maurício O. P. da. Entrevista concedida ao autor. Belo Ho-


rizonte, 13 abr. 2020.

VICINTIN, Bruno B. Jogos Imortais: As 86 melhores partidas


do Cruzeiro Esporte Clube. Belo Horizonte: ABC Comunicação
e Prefácio Comunicação Ltda., 2007.

Bruno Henrique Parreiras 217


Jornais consultados:

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 12 fev. 1988, p. 28.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 26 fev. 1988, p. 28.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 06 mai. 1988, p. 22.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 19 mai. 1988, p.28.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 31 mai. 1988, p. 20.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 04 jun. 1988, p. 24.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 14 jun. 1988, p. 23.

ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 19 jun. 1988, p. 39.

218 O time do povo mineiro


5.4. Ser cruzeirense: paixão que se coloca
para além de qualquer fronteira
Fabrício Alves Farias

Um clube de futebol não vive sem a paixão e a lealdade de seu


torcedor. Nossas páginas heroicas e imortais escritas nos gra-
mados ganham contornos no cimento e no concreto das ar-
quibancadas, local onde a paixão celeste é forjada ainda na
infância e perpetuada na fase adulta. Nos últimos 55 anos de
nossa centenária história, o Mineirão foi o terreno fértil em
que se plantou a semente de uma história recheada de con-
quistas, regada à muita paixão. Porém, o significado simbólico
do que representa a paixão por um clube de futebol extrapola
lugares físicos, se transformando em algo material onde quer
que exista um cruzeirense, em qualquer parte do mundo.

Ser torcedor de um clube é vivenciar a dicotomia básica da vida


humana, a relação entre indivíduo e grupo social, no limite da
razão e a emoção. Em uma das melhores definições sobre a im-
portância e a frivolidade do futebol, o ex-treinador da seleção
italiana Arrigo Sacchi, asseverou: “O futebol é a coisa mais im-
portante dentre as menos importantes!” Falar sobre a paixão
pelo futebol em sentido geral é transitar pela dialética própria
da vida, entre o sofrimento e a alegria, entre a glória e o fracas-
so, entre a resignação e o inconformismo. Falar sobre a paixão
pelo Cruzeiro é falar de um sentimento que constrói a perso-
nalidade do indivíduo a partir de uma dimensão também re-
lacional: somos cruzeirenses porque não somos torcedores de
outras instituições. Então podemos pensar que a paixão pelo
Cruzeiro não existe apenas em si, em termos essenciais. Ela
existe porque mobiliza afetos, memórias e percepções em nos-
sa relação com outros indivíduos. Entre os nossos, afirmamos

Fabrício Alves Farias 219


nossa identidade em termos comunais; diante de torcedores
de outros clubes, nos afirmamos em torno da alteridade. Entre
essas duas dimensões do reconhecimento, estão experiências
pessoais que entrelaçam de modo irrefutável a história do Cru-
zeiro com a história individual de cada um de seus torcedores.

Então pensar sobre a história do Cruzeiro é pensar também


sobre as histórias individuais que, no fim, constituem o ver-
dadeiro sangue azul que corre nas veias da instituição. Muitos
de nós herdamos a paixão pelo Cruzeiro já no seio familiar, no
convívio com pais e irmãos. Com o personagem de nossa his-
tória não poderia ser diferente:

“Meu pai me levou no primeiro jogo eu tinha 5 anos em 1982


e nessa década se não me engano o Cruzeiro só havia ganha-
do dois campeonatos mineiros...”

Herbert Egydio é um torcedor cruzeirense que nasceu e viveu


até os 14 anos no Conjunto Cristina A, em Santa Luzia. Como
vários outros cruzeirenses, Herbert herdou do pai a paixão
pelo manto azul estrelado. Contrariando o senso comum de
que torcedor se preocupa apenas com vitórias, Herbert iniciou
sua paixão pelo clube em uma das piores décadas de nossa his-
tória. Após o clube ganhar os campos do Brasil e das Améri-
cas nas décadas de 1960 e 1970, os anos 1980 ficaram marcados
pela crise financeira, equipes modestas e escassez de títulos.
Esse é o contexto em que Hebert iniciou sua vida de torcedor e
de frequentador do Mineirão. O período de vacas magras não
era impedimento para que o então garoto Hebert vivenciasse
boas lembranças no estádio que surgiu para testemunhar as
glórias cruzeirenses nas duas décadas anteriores.

“Eu sempre fui na arquibancada bem no meio... meu pai que


gostava de ver o jogo ali no centro da arquibancada. Tudo que

220 O time do povo mineiro


eu aprendi sobre futebol, até o caminho ao Mineirão foi com
meu pai. Ele adorava me levar no Mineirão. A minha famí-
lia por parte do meu pai sempre gostou de futebol, são todos
atleticanos ...me lembro que nos anos 80 meu pai teve que
aguentar muita zoação por parte da família e amigos por que
o Cruzeiro não teve muitas conquistas ...mas com o tempo,
eu aprendi que o orgulho dele era me vestir todo de azul e
sair pro Mineirão...”

Carlos Roberto é um apaixonado torcedor do Cruzeiro que


transmitiu ao filho a sua paixão. Nunca mediu esforços para
disfrutar da companhia do filho nos jogos do clube no Mineirão:

“Lembro que meu pai fazia um sacrifício, quando tinha jogo


do Cruzeiro, quando o Cruzeiro jogava numa quarta ou quin-
ta-feira, e o jogo era tarde, era às 9h30 da noite, ele voltava
para casa só para me buscar para mim ir no Mineirão. E no
dia que ele não ia me buscar eu ficava puto demais. Ele fazia
esse sacrifício, ele voltava para casa e colocava a roupa em
mim e dizia: vamos embora, vamos embora para o Mineirão!
E minha mãe ficava puta porque ela não gostava né, eu era
pequeno e ele dizia: põe a roupa no menino aí que a gente vai
para lá! Era bom demais!”

A relação de amor entre torcida e clube é constituída por uma


rede de afetos que engloba as relações familiares, a frustra-
ção pelas derrotas e a alegria das vitórias. Em torno do man-
to azul e das cinco estrelas nos reunimos, compartilhamos
vivências, momentos, construímos nossa identidade indivi-
dual e coletiva. Para Arlei Damo, pesquisador que se dedica
a pensar o futebol por um viés antropológico, esse compar-
tilhamento de sentidos poder ser resumido na ideia de clu-
bismo. A grande força impulsionadora do futebol é o clubis-
mo. Os escudos, as cores, as bandeiras e flâmulas, quaisquer

Fabrício Alves Farias 221


referências ao clube de coração se constituem como totens
modernos. (DAMO, 2007)

Em torno de nossos totens, nossa história passa a ser também


a história do Cruzeiro, e tudo ganha mais sentido quando per-
cebemos que compartilhamos nossas paixões com outros indi-
víduos, em algo próximo ao que historiador Benedict Anderson
entende como comunidade imaginada. Uma comunidade ima-
ginada envolve o compartilhamento de sentido, de representa-
ções coletivas em torno de algum objeto ou símbolos.

Em um desses momentos de celebração do que é ser um tor-


cedor cruzeirense, surgiu o encontro que mais tarde geraria
este registro. Conheci Herbert nas arquibancadas do estádio
Monumental de Núñez, em Buenos Aires.

Naquele 23 de julho de 2019, uma noite gelada como tantas outras


do inverno portenho, o Cruzeiro mediria forças contra o River Pla-
te, um rival tradicional nos confrontos por competições sul-ame-
ricanas. Na ocasião estava em disputa uma vaga para as quartas
de final da Libertadores daquele ano. A nossa comunidade esta-
va formada, mesmo que espacialmente nem todos dividissem as
históricas arquibancadas do estádio portenho. Em torno do Cru-
zeiro, vários cruzeirenses viam pela TV, pelo rádio, pela internet,
em BH ou em qualquer lugar do mundo. Presenciar aquele jogo tão
distante do nosso querido Mineirão era uma oportunidade para
poucos. Dentre os que lá estavam, chamava atenção um grupo de
torcidas organizadas que encararam três dias para chegar a Bue-
nos Aires e, logo após a partida, teriam os mesmos três dias para
voltar às alterosas. O calor da disputa não evitou que também me
chamasse a atenção um rapaz que entre cantos de apoio ao Cru-
zeiro, conversava com seu amigo em um espanhol que, pela mi-
nha percepção, se não era proferido por um nativo, era dito por
uma pessoa que tinha bastante vivência na língua.

222 O time do povo mineiro


A euforia propiciada pela perda de um pênalti pelos adversários
nos minutos finais deu ao 0 a 0 um gosto de vitória que pude-
mos celebrar durante a cerca de uma hora em que estivemos na
arquibancada, esperando que os torcedores argentinos deixas-
sem as dependências de seu estádio. Nesse ínterim, entre o fim
da partida e o momento em que seríamos liberados pela polícia
de Buenos Aires para finalmente deixar o estádio, meu ami-
go Renan inicia uma conversa com Herbert e seu amigo Diego
Villagra. Villagra, argentino torcedor do Independiente, estava
acompanhando o amigo cruzeirense que vivia em Buenos Aires
havia quase trinta anos. Estava explicada a destreza com que
Herbert falava a língua dos hermanos. Eu que estava próximo
da divisa entre as torcidas, respondendo a uma ou outra pro-
vocação dos torcedores do River Plate, logo me aproximo e sou
apresentado aos dois. A conversa flui solta e uma frase de Her-
bert me chamou a atenção. Quando lhe perguntei se com tan-
to tempo vivendo na Argentina ele tinha se tornado torcedor
de alguma equipe de lá, a resposta veio rápida e sem titubear:
“Não, sou só cruzeirense, não consigo torcer para outro time. ”

Cada cruzeirense tem seu modo de ser cruzeirense, a paixão


pelo time se une à nossa história e, realmente, abrir espaço
para um outro time em nosso coração seria como trair nossos
sentimentos e tudo aquilo que nos constitui como indivíduos.
Por isso não há distância que faça desparecer os sentidos que
dão contorno à nossa existência. O objetivo do texto é, então,
a partir do relato de Herbert, que conheci nessa partida entre
River Plate x Cruzeiro, representar em uma dimensão bastan-
te particular esse universo tão amplo de possibilidades que
engloba o “ser cruzeirense”. Portanto, não tenho a pretensão
antropológica de tentar colocar Herbert como um represen-
tante do grupo como um todo, como já discorreu o antropólo-
go francês Dan Sperber ao pensar sobre o papel do antropólo-
go na pesquisa de campo. Mas, certamente, esse relato calcado

Fabrício Alves Farias 223


nos meandros da paixão busca homenagear, por meio dessa
história, os inúmeros cruzeirenses anônimos que, ao viven-
ciarem sua paixão no cotidiano, dão também sentido e forma
ao Cruzeiro Esporte Clube. Tanto é verdade que a história de
Herbert nos faz retornar a um outro confronto com o River
Plate que foi fundamental para a construção de nossa histó-
ria nas competições sul-americanas, a decisão da Supercopa
de 1991.

Supercopa de 1991: uma conquista internacional também em família

Quantos confrontos continentais podem ser realmente consi-


derados um clássico? O futebol europeu, com ligas milionárias
e clubes poderosos, talvez não reserve a nenhum confronto
transnacional um peso especial que seja maior que as rivali-
dades nacionais. Falar da trajetória do Cruzeiro nos gramados
sul-americanos é também falar de um adversário que cons-
tantemente cruza nosso caminho. E por esse motivo, lem-
branças de confrontos contra o River Plate, sem dúvida algu-
ma, têm um lugar especial na memória de muitas gerações de
cruzeirenses.

O empate por 0 a 0 pelas oitavas de final da taça Libertado-


res de 2019 foi o 16º encontro do Cruzeiro contra o tradicional
rival argentino em competições sul-americanas. Como todos
sabemos, é impossível pensar a relação de identidade entre
Cruzeiro e os cruzeirenses sem levarmos em consideração a
trajetória vitoriosa do clube longe dos domínios estadual e
nacional. Não é por outro motivo que a alcunha de La Bes-
tia Negra é constantemente citada em cânticos e faixas nas
arquibancadas, especialmente nas noites de meio de semana
em que o que está em disputa é a Taça Libertadores. Dentre
as conquistas que contribuíram para o surgimento do apelido
estão a Libertadores, a Supercopa e a Recopa. Curiosamente,

224 O time do povo mineiro


em cada um desses torneios tivemos que superar o River Plate
na final para levarmos a taça para a Toca da Raposa. Em uma
dessas noites memoráveis de jogos contra o River Plate, lá es-
tavam Herbert e seu pai nas arquibancadas.

Era a noite do dia 20 de novembro de 1991. O Cruzeiro buscava


a conquista de mais um torneio internacional, 15 anos após ter
ganhado a primeira Libertadores. A Supercopa dos Campeões
da Libertadores já havia batido na trave três anos antes, quan-
do perdemos o título da primeira edição da competição para
outro rival argentino, o Racing Club, de Avellaneda.

As circunstâncias não eram das mais favoráveis para um re-


encontro com o River Plate, o mesmo adversário que havía-
mos batido na final da Libertadores de 1976. A boa lembrança
do passado contrastava com o placar adverso de 2 a 0, sofrido
uma semana antes na capital argentina. Ainda assim, aquele
saudoso elenco que contava com Adílson Batista, Marco Antô-
nio Boiadeiro, Mário Tilico, Charles Fabian e o capitão Ademir
contava com todo apoio e confiança dos torcedores celestes.
Entre os quase 70 mil cruzeirenses que estiveram no Mineirão
naquela noite estavam Herbert e seu pai.

Carlos Roberto, que muitas vezes saía do trabalho no centro


de BH para passar em casa e buscar o filho para ir ao Mineirão,
naquele dia da decisão contra o River teve que mudar de planos
em função de compromissos profissionais na construção civil.

“Aí nesse jogo foi meio complicado porque a gente sabia que
ia dar muita gente, né? Aí ele falou comigo: eu não vou poder
voltar pra casa porque eu tô trabalhando. Você vai para lá e
eu vou te esperar no portão para gente entrar junto. A gente
vai comprar o ingresso e a gente entra junto!”

Fabrício Alves Farias 225


Hebert foi ao Mineirão naquela noite na companhia de um
amigo para encontrar seu pai e os dois assistirem juntos ao
jogo. Porém, dada a grande multidão e a ansiedade pela parti-
da, a coisa não correu como esperavam:

“Eu tava com meu vizinho, amigo mesmo, né, aí quando a


gente chegou lá meu pai não tava. Meu pai chegou mais tarde
e a gente se desencontrou. Aí o jogo já tava pra começar, eu
peguei e entrei. Tava aquele mundão de gente lá e não deu
para encontrar com ele, não. Ah, mas aquele negócio ali foi
bom demais. Aquele jogo ali para mim foi especial aquele foi
bacana, viu.”

Apesar da desvantagem no placar, a confiança dos torcedores


na vitória era bastante grande. E o time de Ênio Andrade cor-
respondeu plenamente às expectativas:

“Aquela final foi forte. Foi forte porque a gente já tava per-
dendo por 2 x 0 e o Mineirão tava lotado. Parecia que a gente
não ia conseguir, mas a coisa mudou no segundo tempo.”

Com uma atuação histórica, o Cruzeiro envolveu os argen-


tinos, dando um show de garra e determinação. O título veio
com uma vitória no tempo normal e de forma incontestável:
3 a 0. No momento em que o título já estava próximo, Herbert
sentiu a falta do pai ao seu lado:

“O jogo tava terminando e deu aquela angústia porque eu que-


ria que meu pai tivesse do meu lado lá. Aí eu comecei a chorar
e o meu amigo me abraçava ele começou a chorar também, a
gente era menino né? A gente tava com 13, 14 anos.”

Após a comemoração e a euforia pelo título, Herbert voltou


para casa com seu amigo, em um ônibus lotado de cruzeiren-

226 O time do povo mineiro


ses felizes. Ao chegar em casa, os dois tiveram a chance de
comemorar juntos aquele título inédito. Inclusive revivendo a
emoção dos gols pela televisão:

“Aí voltei para casa. Quando eu chego em casa e meu pai


tava esperando. Me disse: nossa menino você vai me matar
do coração! Aí me abraçou, sabe, a gente ficou abraçado um
pouco lá, a gente gostava de chegar em casa eu lembro que
a gente gostava de chegar em casa depois do jogo, a gente
ligava a televisão quando o Cruzeiro ganhava só para voltar
a ver os gols.”

Essa final teve um caráter especial para Herbert. Após uma


década de 1980 bastante sofrida, ele teve a oportunidade de
ver o Cruzeiro ser campeão de um torneio internacional. Esse
título também marcou por ser uma última conquista acompa-
nhada de casa. No início do ano seguinte, Herbert se mudaria
para a Argentina e passaria a acompanhar o Cruzeiro a distân-
cia. Em meio às transformações típicas da adolescência e com
problemas familiares, Herbert vivenciaria o status de torcedor
de um modo completamente diferente: estaria morando em
outro país numa época que ainda não existiam as facilidades
da internet.

Um cruzeirense do lado de lá da fronteira

No final de 1988, após a separação do marido, a mãe de Her-


bert, Elisabeth, se mudou para Argentina. A oportunidade de
se mudar para o país vizinho se deu porque ela havia traba-
lhado para um casal de argentinos em uma fábrica de roupas,
na cidade de São Paulo. A relação de amizade e confiança entre
os argentinos e Elisabeth, rendeu-lhe o convite para que ela
se mudasse para a Argentina. A proposta era para que ela cui-
dasse do sítio que o casal tinha na cidade argentina de Coronel

Fabrício Alves Farias 227


Brandsen, a cerca de duas horas de Buenos Aires. A mudança
da mãe para a Argentina fez com que Hebert passasse quase
três anos da sua vida sem ver a mãe.

Em janeiro de 1992, Herbert aproveitou as férias escolares para


visitar a mãe na Argentina e, na hora de regressar ao Brasil,
resolveu por lá permanecer. A vida na zona rural de Brand-
sen impunha sacrifícios para que Herbert pudesse frequentar
a escola. Por esse motivo, Elisabeth pediu liberação do empre-
go na fazenda, e os dois se mudaram para Quilmes, na região
metropolitana de Buenos Aires. A vida de Herbert em um novo
país tinha lá seus percalços. Como se não bastasse as trans-
formações próprias da adolescência, Herbert tinha dificulda-
des com a relação que sua mãe mantinha com o álcool e, apesar
de ter escolhido viver na Argentina, sentia muita falta do pai. O
retorno de Herbert ao Brasil, ainda que para uma rápida visita
de férias, só aconteceria quatro anos mais tarde.

“A minha infância aqui foi boa mas...na adolescência fui um


pouco depressivo, ficava muito calado, muito fechado, tive
muitos conflitos com minha mãe. Eu saí do Brasil com 14
anos e voltei só com 18. Eu lembro que meu pai brigou co-
migo, ele ficou muito chateado comigo. Ele me disse: Você
foi embora, você me abandonou! E aí a volta pra cá foi mais
difícil ainda né, porque eu sentia que deveria estar com meu
pai também.”

O ano em que Herbert chegou à Argentina terminaria com o Cru-


zeiro bicampeão da Supercopa. No entanto, Herbert, então com
14 anos, estava se adaptando a um novo país, voltando a viver
com a mãe e também sentindo saudades do pai e do Brasil. Eram
muitas transformações em tão pouco tempo para que o título
pudesse ser acompanhado mais de perto. Passado o período um
pouco mais complicado de sua adaptação inicial à nova vida, eis

228 O time do povo mineiro


que uma outra partida do Cruzeiro em Buenos Aires reavivaria
uma paixão talvez adormecida, mas nunca esquecida:

“O primeiro jogo que eu fui em um estádio aqui foi Cruzeiro


x Boca. Aquilo ali me fez voltar um pouco, porque eu estava
meio distanciado mesmo de torcer para o Cruzeiro.”

O reencontro com o Cruzeiro no estádio por uma competição


sul-americana não poderia ter sido melhor. No dia 16 de março
de 1994, com gols de Paulo Roberto e Roberto Gaúcho, o Cru-
zeiro venceu o Boca Juniors por 2 a 1 na mítica La Bombonera,
pela primeira fase da Libertadores daquele ano. O jogo reacen-
deu a fagulha da paixão em Herbert, coisa que não escondeu de
seu amigo torcedor do Boca:

“Eu tava emocionado! Uns dias antes do jogo eu conversava


com ele e ele me falava que como o estádio do Boca não exis-
tia. E é verdade não existe mesmo não!”

Nessa partida, Herbert acompanhou o jogo da torcida adver-


sária. Na sua concepção seria até melhor, pois a probabilidade
de acontecer algum confronto entre as torcidas era maior. Es-
tando do lado dos donos da casa, sua situação seria um pouco
mais tranquila, ainda que nem tanto:

“Eles olhavam para minha cara e sabiam que eu era brasilei-


ro. Então eu tinha colocado um chapéuzinho só para enganar
mesmo porque meu vizinho pediu para eu colocar o chapéu,
porque eles iam perceber na minha cara, eu tava meio emo-
cionado sabe...”

Nessa partida, Herbert teve que torcer calado, segurando


a emoção de ver o Cruzeiro vencer o Boca por estar no meio
da torcida dos xeneizes. Após esse jogo, Herbert passou a ser

Fabrício Alves Farias 229


presença garantida nos jogos do Cruzeiro na Argentina, mas
sempre ficando com nossos torcedores nos estádios. Durante
toda a década de 1990, a forma encontrada por Herbert para
acompanhar o Cruzeiro a distância foi por meio das corres-
pondências que o pai lhe enviava, muitas vezes comentando
detalhes dos jogos. O Cruzeiro era, no caso, um elo importante
na relação entre pai e filho, separados por quase três mil qui-
lômetros de distância. Com a chegada da vida adulta, Herbert
costumava vir ao Brasil a cada um ano e meio aproximada-
mente, sempre de férias, e nessas ocasiões não podia faltar
uma visita ao Mineirão para assistir a uma partida do Cruzei-
ro. Dentre esses retornos ao Mineirão, há lugar para uma frus-
tração: a Libertadores de 2009.

O retorno ao Mineirão em uma final Sul-americana: A Libertadores de


2009

A final da Taça Libertadores de 2009 marcou o retorno do


Cruzeiro às decisões internacionais desde a Copa Mercosul de
1998. A expectativa pelo tricampeonato da maior competição
do continente era enorme entre os torcedores. Já com acesso à
internet e à TV a cabo, Herbert acompanhou toda a campanha
da Argentina. Herbert, que não pode ir à La Plata acompanhar
o primeiro jogo da decisão contra o Estudiantes, ficou bastan-
te satisfeito com o empate em 0 a 0:

“Eu pensava aqui: se o Cruzeiro empatar eu vou ao Brasil!


Eu vou lá com meu pai! Com o final do jogo eu falei com meu
cunhado que era amigo de um dirigente do Cruzeiro e ele
arrumou para mim duas entradas: um pra mim e outra pro
meu pai.”

Como não poderia ser diferente, a procura por entradas para


aquela partida foi enorme. O Cruzeiro tinha iniciado um pro-

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grama de sócio-torcedor que dificultou ainda mais que os não
sócios conseguissem os ingressos. Vários cruzeirenses dormi-
ram nos postos de venda no Barro Preto, Savassi e Mineirão,
sem conseguirem o tão sonhado ingresso da final. Quem não
conhecia alguém que pudesse fornecer um ingresso e não esti-
vesse disposto a pagar os preços abusivos dos cambistas, teria
que se contentar em ver o jogo pela TV. Herbert teve mais sorte
e já projetava sua vinda ao Brasil para ver a partida, ao lado do
pai, que tanto influenciou a sua relação com o futebol. No dia
anterior ao jogo, Herbert embarcou em um avião lotado de tor-
cedores do Estudiantes, mas não deixou por menos:

“Para baixar um pouco a bola deles eu dizia: lá é difícil, pou-


cos times conseguiram ganhar do Cruzeiro lá. E aquele time
do Cruzeiro era bom, né? A prévia foi muito bacana. E eu tava
muito feliz porque eu tava com meu pai né, fazia muito tem-
po que eu não ia em um jogo assim com ele.”

A maioria dos jogos a que Herbert assistia quando estava em


Belo Horizonte de férias eram jogos do campeonato mineiro.
Nada que se comparasse, de fato, a uma final de Libertadores.
Entre aquela partida da Supercopa de 1991 e o jogo contra o Es-
tudiantes, quase duas décadas haviam se passado. Muita coisa
já tinha sido vivida por Herbert, tendo sempre o Cruzeiro um
lugar especial na sua relação com o pai e com a sua terra natal.
No entanto, a partida que poderia ser uma grande celebração
não correu como esperado:

“Quando o Boselli fez o gol na gente eu sentei e percebi que


aquilo ali tinha acabado. Meu pai até falou comigo, fica assim
não! Mas esse dia foi triste viu, foi minha pior derrota.”

Herbert viveu no Mineirão uma das grandes frustrações dos cru-


zeirenses nos últimos anos. O desejo de reviver uma conquista

Fabrício Alves Farias 231


internacional, agora ao lado de seu pai, nas arquibancadas do
Mineirão, teria que ficar para um outro momento. O retorno para
casa ainda não seria dos mais agradáveis:

“Quando eu chego no aeroporto a torcida toda do Estudian-


tes tava toda ali. E no voo de volta tava cheio de argentino. Eu
cheguei às 8 horas da manhã em Ezeiza e o time deles che-
garia às 10 da manhã.”

A derrota tinha um peso maior para Herbert pela expectativa


que ele havia criado:

“Foi difícil porque eu sou muito apegado ao meu pai e ao


Cruzeiro, eu acho que fui lá só para compartilhar com meu
pai e eu não esperava... eu tava muito ansioso para o Cruzei-
ro ganhar e aí… quando eu cheguei em casa, minha esposa
me abraçou... sabe quando acontece o que você não tava es-
perando? Eu custava a lidar com aquela derrota. Quando eu
caminhei para o quarto, veio aquela angústia eu comecei a
chorar, foi difícil para caramba.”

Ser torcedor é, no fim, estar aberto às alegrias e frustrações,


sem nunca colocar em xeque seu sentimento:

“Torcer de longe é pesado viu, ainda mais quando você gosta.


Eu não consigo torcer para time daqui, aqui eles me pergun-
tam se sou do River ou se sou do Boca, mas eu não consigo
torcer para outro time nem brincando, eu não consigo tor-
cer. Mas esse dia foi doloroso, quando eu cheguei aqui que eu
percebi que de fato a gente tinha perdido. Foi tão difícil que
até hoje eu não consegui rever o jogo. Até quando o Cruzei-
ro perde eu vejo para analisar, mas esse jogo eu nunca mais
consegui ver...”

232 O time do povo mineiro


O Cruzeiro para Herbert, assim como para todo cruzeirense,
é parte constitutiva de nossa identidade. Chorar ou sorrir faz
parte do modo como vivemos essa paixão, porque a própria
vida é permeada por alegrias e dissabores. Em toda trajetó-
ria de Herbert percebemos como o Cruzeiro é um elemento
que está presente na relação com seu pai, com seu modo de
vivenciar o futebol e também como afirmação de sua condição
de brasileiro, já que vive em outro país. Quantas outras his-
tórias de cruzeirenses se aproximam, de alguma maneira, da
história de Hebert? O hoje dono de uma padaria em Quilmes,
na grande Buenos Aires, é casado com uma argentina e pai de
uma menina de 12 anos e de um menino de 5. Herbert já fez
questão de apresentar aos dois o Mineirão e o Cruzeiro, nas
oportunidades em que a família vem a Belo Horizonte de fé-
rias. Que relação essas crianças estabelecerão com o Cruzeiro?
Teremos argentinos engrossando as fileiras de nossa torci-
da? Evidentemente, não temos uma capilaridade para termos
torcedores para além de nossos domínios estaduais, como as
equipes de São Paulo e Rio de Janeiro, por diversos fatores. Mas
em um mundo globalizado, no qual a garotada adota clubes
estrangeiros como primeiro time em função da internet e vi-
deogame, vale muito a pena perceber o quanto ser cruzeirense
não é escolha, é um modo de se estar no mundo.

Referências Bibliográficas:

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões


sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2008.

CONMEBOL. Todas as participações do Cruzeiro na Copa Con-


mebol Libertadores. Conmebol. 2019. Disponível em: https://

Fabrício Alves Farias 233


www.copalibertadores.com/pt-br/noticias/todas-as-parti-
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DAMO, Arlei. Do dom à profissão: a formação de futebolistas


no Brasil e na França. São Paulo, Hucitec, 2007.

ESTADO DE MINAS. Brasileiro recordistas em jogos contra


Argentinos, Cruzeiro volta ao passado no Monumental. Su-
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www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzei-
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SPERBER, Dan. O saber dos antropólogos. Lisboa: Edições 70,


1992.

234 O time do povo mineiro


o time do povo mineiro

“O time do povo mineiro” recupera uma dignidade


e um respeito invisibilizado e, por vezes, esqueci-
do, por aqueles que exercem o poder nas institui-
ções. O livro não se propõe a mera exaltação dos
títulos de uma instituição centenária, o que já seria
louvável. A ideia é falar da nossa gente que, literal-
mente, com sangue e suor construiu, mais do que
um clube, uma identidade genuinamente mineira
chamada Cruzeiro.

Os nossos grandes feitos não se explicam só pelo


futebol, eles fazem parte da vida do povo. Está nos
clubes e nas esquinas de Milton e Lô; na devoção
de Dona Salomé, a maior torcedora do mundo; na
genialidade de Tostão; no samba em azul e branco
de Clara Nunes e do maestro Jadir Ambrósio; nos
tijolos colocados por cada palestrino na construção
do estádio do Barro Preto; no tropeiro com cerveja
para alimentar o corpo e a alma da China Azul. No
mar de montanhas, no meio das Alterosas, a vida
mineira ganha mais sentido sendo Cruzeiro. Ser
campeão é só uma consequência.

@editorafootbooks

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