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MARCOS ALVITO

"Não quer que o chutem também, vagabundo jogador de futebol?" É com essas
palavras, seguidas de um pontapé, que o leal conde de Kent agride um
mordomo que ousara desrespeitar o rei. É uma cena da tragédia Rei Lear,
escrita há 400 anos por Shakespeare. Naquele tempo, o futebol era
considerado um jogo da ralé, e ser chamado de jogador era um xingamento.
Não era para menos, porque consistia em um enfrentamento generalizado
entre duas aldeias, muitas vezes com vítimas fatais. A turma tentava carregar
uma esfera de couro - geralmente a bexiga de um animal - até a aldeia
adversária. Lá chegando, a comemoração era quebrar tudo. Não havia
nenhuma regra, e a balbúrdia era tanta que reis e autoridades tentaram proibir
o jogo durante séculos.

Em Islington, ao norte de Londres, fica o estádio do Arsenal. O clube foi


fundado por operários de uma fábrica de munições e até hoje o bairro onde fica
o Emirates Stadium é relativamente pobre. Para chegar ao estádio, seguindo
as placas colocadas desde a estação de metrô, passa-se por um restaurante
boliviano, lojas por alugar, um pub que ostenta várias bandeiras do clube e um
escritório onde imigrantes africanos podem enviar dinheiro para seus parentes.
Contrastando com a vizinhança, o Arsenal é um dos clubes mais ricos do
mundo e o canhão, símbolo que remete às suas origens, agora jaz numa
parede revestida de mármore.

O Emirates Stadium, um colosso de concreto que mais parece um aeroporto ou


um shopping center, custou 400 milhões de libras (1,6 bilhão de reais). Embora
comporte mais de 60 mil torcedores, comprar ingresso para um jogo do Arsenal
é missão quase impossível. Ingresso garantido, só para os que têm um cartão
permanente (o season ticket) que dá direito a assistir a todos os jogos. Custa a
bagatela de 990 libras (cerca de 4 mil reais), mas a lista de espera pode
demorar até quinze anos. Para ficar na lista, é preciso pagar 45 libras (180
reais). Descendo um degrau na hierarquia pecuniária dos torcedores (ou
consumidores?), há os sócios-torcedores. Pagando cerca de 30 libras (120
reais) por ano, eles podem comprar ingressos para todos os jogos - mas só
depois de descontados os reservados aos que têm o cartão permanente.
Nesse caso, os ingressos custam 40 libras (160 reais), no mínimo. E existe,
finalmente, a categoria dos reles mortais, que poderão comprar ingressos só se
sobrar algum. Os quatro grandes times (Arsenal, Chelsea, Liverpool e
Manchester United) praticamente não vendem ingressos assim, pois os donos
do cartão permanente e os sócios-torcedores fazem valer seus privilégios. Para
os outros times, ainda é possível comprar um ingresso ou outro para jogos
menos importantes.

Depois de dias de tentativas, consegui finalmente comprar um ingresso para o


jogo do Fulham contra o Bolton Wanderers, talvez por acontecer numa quarta-
feira à noite: pontapé inicial às 19h45. E sem dúvida porque a partida equivalia
a um Náutico x América-RN. Paguei a módica quantia de 32 libras (128 reais)
para sentar em um buraco na primeira fila, um ótimo lugar para ver a marca
das chuteiras dos jogadores. Com o mar de chuva e o frio - o verão inglês
ainda não foi informado do aquecimento global -, eu teria direito a ficar
encharcado e batendo queixo por noventa minutos. Depois de uns quinze
minutos, fui para um assento na parte coberta, bem sequinho. Pena que era
em frente a uma das colunas de sustentação da arquibancada.

Os clubes da primeira divisão não teriam necessidade, aparentemente, de


cobrar tão caro pelos ingressos. Somente com direitos de transmissão das
próximas três temporadas, os vinte clubes da divisão de futebol mais rica do
planeta ganharão 2,7 bilhões de libras (cerca de 11 bilhões de reais). A isso se
soma a venda de inúmeros produtos. Se não se consegue comprar ingresso
para um jogo do Arsenal, é possível freqüentar uma das duas gigantescas lojas
do clube. Na ausência de dribles, passes milimétricos e cabeçadas certeiras,
há quem se contente com uma caneca vermelha, bolas de golfe com o símbolo
do canhão, meias, chaveiros, almofadas, pijamas, canetas, balas, cadernos,
chocolates, relógios e até camisas do Arsenal com o nome do torcedor
gravado, a quase 200 reais cada uma.

Além das quinquilharias, o fiel torcedor poderá gastar o seu dinheiro com o
Arsenal de diversas maneiras: fazendo a assinatura da tevê a cabo para ver os
jogos, pagando para receber mensagens no seu celular com as últimas notícias
do clube, comprando um passe eletrônico para ver os gols pela internet,
adquirindo o DVD da última temporada ou as dezenas de enciclopédias,
biografias e autobiografias que são publicadas todos os anos. Caso não seja
suficiente, pode-se apostar em dezenas de lojas diferentes, e pela internet
também. Apostar em tudo: se o Arsenal será campeão, se vai ser rebaixado, se
irá se classificar para as copas européias, quanto vai ser o placar do jogo,
quem vai marcar o primeiro gol, em que minuto da partida... Sem falar no pão-
nosso-de-cada-dia: as páginas esportivas dos jornais, as revistas
especializadas e, é claro, a cervejada no pub com os amigos, vendo e
comentando os jogos da rodada.

Como o jogo da ralé virou uma máquina de fazer dinheiro? O processo se


confunde com a transformação de um jogo rural violento e selvagem num
esporte praticado nas escolas mais aristocráticas da Inglaterra. Os professores
tinham enorme dificuldade em conter pupilos originários de uma camada social
superior. Os filhos da aristocracia desrespeitavam e, às vezes, agrediam seus
mestres. Eram o terror da região em torno das escolas: estupravam
camponesas, destruíam pubs, batiam nos aldeões. Entre eles mesmos havia
violência. Os calouros eram tratados pelos veteranos como servos, inclusive no
abuso sexual. Os diretores tiveram a idéia de canalizar a energia destruidora
para uma atividade física.
Foi assim que, usando o pátio do colégio como campo, aos poucos o futebol
virou um esporte, embora de início as regras fossem transmitidas oralmente e
variassem de escola para escola. Como jogar era privilégio dos veteranos,
durante muito tempo os calouros serviram apenas para marcar a linha lateral. A
idéia funcionou e, com o tempo, os diretores conseguiram diminuir as arruaças
nas escolas. Eram apoiados pela Igreja, que professava a doutrina do "Corpo
são em mente sã". Cansar os meninos era uma maneira de evitar os pecados.
Os alunos cresciam e iam para as melhores universidades, aonde chegavam
com vontade de bater bola. Havia um problema: os alunos vinham de escolas
diferentes e não existia uma regra comum. Algumas escolas permitiam
carregar a bola com as mãos e chutar livremente a canela dos adversários. Era
a regra da escola do Rugby Football, de onde derivou o rúgbi. Antes das
partidas, os times tinham que combinar com quais regras jogariam. Até que
uma reunião interclubes na Freemasons' Tavern, em 1863, adotou a regra que
proibia o uso das mãos (exceto para o goleiro) e os pontapés (a não ser na
bola).

As federações e campeonatos foram criados com impressionante rapidez. O


motivo: a ralé, que inventara o jogo e o havia praticado durante séculos, apesar
das proibições, aderiu logo ao novo esporte. Ele passou a ser jogado, nas
cidades, pelos operários que fizeram a revolução industrial, ganhando salários
miseráveis e morando em cortiços insalubres. Quando eles se organizaram em
sindicatos e conseguiram arrancar dos patrões a meia jornada de trabalho aos
sábados, aproveitaram o tempo livre para jogar futebol. Por isso, até hoje, o
horário tradicional do futebol na Inglaterra - cada vez mais desrespeitado pela
televisão - é sábado, às três da tarde, a hora em que o pessoal largava o
macacão e calçava as chuteiras.

Jogado ou assistido, o novo esporte logo se tornou o principal divertimento dos


moradores das cidades (junto com o álcool). Inclusive as mulheres jogavam,
até 1902, quando a Football Association proibiu os clubes de manterem
equipes femininas. Todo mundo lucrava: o industrial via seus operários criarem
mais um vínculo com a fábrica, o dono do pub vendia mais cerveja, os jornais
vendiam como nunca; surgiram empresas de material esportivo, prometendo a
bola mais redonda e a chuteira mais possante. Depois dos times de fábrica,
vieram times de paróquias, times dos freqüentadores de pubs, times de
profissionais liberais e aristocratas. À medida que a Inglaterra expandia seu
império, o futebol ganhava novos adeptos nas colônias, até se tornar o esporte
mais popular do planeta.

Enquanto se alastrava pelo mundo, na pátria-mãe do esporte, contudo, o


público diminuiu ano a ano, entre 1950 e 1986. A única exceção foi em 1966,
quando a Inglaterra ganhou, em casa, sua única Copa do Mundo (graças a
uma bola que não entrou). Entre 1985 e 1986, o público inglês do futebol
alcançou o número mais baixo da história: 16,5 milhões de espectadores,
contra 41 milhões em 1949. Embora a partir de 1986 tenha havido uma
recuperação, a grande virada ocorreu com a criação da primeira divisão, a
Premiership, em 1992.
A nova primeira divisão do futebol foi financiada por um espetacular contrato de
exclusividade, firmado com a BSkyB, tevê a cabo do bilionário australiano
Rupert Murdoch, que queria usar o futebol como ponta-de-lança para a
implantação da televisão por assinatura na Inglaterra. Os ingressos
aumentaram enormemente de preço: cerca de 300% nos sete anos iniciais da
primeira divisão. A majoração não visou somente a melhorar os balanços
financeiros dos clubes. Um dos seus objetivos era substituir os torcedores de
origem operária por consumidores de classe média, excluindo os indesejados
por meio de preços proibitivos. Era a transformação do futebol num ramo
privilegiado da lucrativa indústria do entretenimento.

Em nome da segurança, desencadeou-se um processo de higienização dos


estádios de futebol, agora transformados em shopping centers ou, nas palavras
dos sociólogos Tim Crabbe e Adam Brown, "'palácios do prazer' onde o
espetáculo é 'produzido' para uma variedade de 'consumidores'". Os estádios
de futebol, antes considerados territórios sagrados dos clubes e de seus
torcedores, muitas vezes são vendidos para construtoras, erigindo-se "arenas
multiuso" em lugares distantes do bairro onde tudo começara, privando a vida
comunitária de um dos seus centros mais importantes. Os novos estádios,
exatamente como no modelo americano, tomam o nome das empresas que os
financiaram ou, como se costuma dizer, dos patrocinadores do clube: Reebok
Stadium (Bolton Wanderers), Ricoh Arena (Coventry City), Emirates Stadium
(Arsenal), Kingston Communications Stadium (Hull City), Walkers Stadium
(Leicester City) etc. Os campeonatos, devido à inevitável veiculação de notícias
na mídia, agora também vendem seus nomes: a primeira divisão é Barclays
Premier League e a segunda é chamada (com todos os cacoetes do marketing)
de Coca-Cola Championship.

Dinheiro não tem alma e tampouco nacionalidade. Nove dos vinte clubes da
primeira divisão têm proprietários estrangeiros. Inglês ou não, quase nenhum
deles é verdadeiramente ligado ao futebol. São pessoas como um ex-
cabeleireiro que fez fortuna como dono de cassinos (Birmingham City), um
empresário islandês (West Ham), os herdeiros de um barão da indústria do aço
(Blackburn Rovers), o dono da cadeia de restaurantes Planet Hollywood
(Everton), um ex-primeiro-ministro da Tailândia investigado por corrupção
(Manchester City), um milionário da indústria da carne e um peso pesado do
mercado financeiro (Liverpool), um mal-afamado bilionário russo da indústria do
petróleo (Chelsea) e o dono do Cleveland Browns, um time de futebol
americano (Aston Villa).

Quem está prestes a ingressar nesse seleto, mas pouco respeitável clube, é o
oligarca da indústria dos metais Alisher Usmanov, amigo de Vladimir Putin e
conhecido como "O homem duro da Rússia". Um título e tanto, em se
considerando o estilo de negócio que hoje lá impera. Ele está prestes a
comprar o Arsenal, o último dos quatro grandes ainda em mãos inglesas. O
curioso é que os bilionários nem se importam em tomar prejuízo. Numa única
temporada (2005-2006), o todo-poderoso Roman Abramovich, dono do
Chelsea, perdeu 80 milhões de libras (320 milhões de reais).
Como também é da tradição inglesa, criaram-se associações de torcedores de
resistência à mercantilização absoluta do futebol. A "tomada" do Manchester
United pelo milionário americano Malcolm Glazer é um exemplo. Os torcedores
invadiram as lojas dos patrocinadores cantando e atrapalhando os negócios.
Iniciaram boicotes contra essas mesmas empresas e até contra o clube,
ameaçando não renovar seus season tickets. Acontece que o "Man U", como é
conhecido o time, tem dezenas de milhões de torcedores na China, no Japão,
na Coréia. Ou seja, não é mais um clube, é uma multinacional do
entretenimento esportivo. Vencidos, mas não derrotados, os torcedores
ingleses do Manchester viraram as costas para o clube e prometeram nunca
mais voltar - e nem assistir aos seus jogos pela televisão. Em 2005, criaram um
novo clube, o FC United of Manchester, e começaram tudo de novo, a partir da
décima divisão. "Os Rebeldes", como se intitulam, foram campeões logo no
primeiro ano e no segundo ano subiram novamente, agora para a oitava
divisão. Inspiraram-se no exemplo dos torcedores que criaram o AFC
Wimbledon, em 2002, insatisfeitos com aquilo que um torcedor chamou de "o
roubo do nosso clube": a transferência do estádio para uma localidade distante
a mais de 100 quilômetros.

Os exemplos pululam. Inconformados com a venda do estádio do clube para


uma companhia imobiliária, torcedores do Brentford formaram um partido, que
lançou catorze candidatos (um deles foi eleito) em um pleito regional. A
resposta mais original, e literalmente na mesma moeda, veio do grupo que
criou o site MyFootballClub. A idéia é tão simples quanto genial. Por 35 libras
(140 reais), menos do que um ingresso para um jogo da primeira divisão, você
se torna dono e técnico de um time de futebol. Promoção "Paga um, leva dois":
torna-se dono porque o clube será dirigido a partir do voto unitário dos milhares
de proprietários; e técnico porque terá direito a escolher a escalação da equipe,
sem ter de ficar eternamente reclamando do time com quatro volantes de
contenção. "Parece brincadeira, mas não é. Cerca de 20 mil pessoas aderiram
e, com as 700 mil libras arrecadadas, em novembro passado o site anunciou
que havia fechado um acordo para comprar pelo menos 51% das ações do
Ebbsfleet United, um time da quinta divisão."

Há também aqueles que continuam a torcer pelo seu clube e a freqüentar os


estádios; estes têm nos fanzines uma forma de expressar seu
descontentamento. Tais fanzines são publicações dos torcedores que
começaram a ser divulgadas na segunda metade dos anos 80, inspiradas em
fanzines musicais que existiam desde meados da década de 70, ligados,
sobretudo, aos punks. Eram, em parte, uma reação à histeria da imprensa e
das autoridades em relação ao hooliganismo, e àqueles que tendiam a ver em
todo torcedor um criminoso em potencial.

Os fanzines foram importantes para agrupar os torcedores em defesa dos seus


interesses, pois levaram à criação de associações. Serviram para lutar contra o
aumento do preço de ingressos, contra a venda do estádio do clube e também
como plataforma para enfrentar problemas mais amplos, como o plano
governamental (da época de Margaret Thatcher) de implantar um cartão
obrigatório para identificar o torcedor que quisesse freqüentar o estádio. Entre
1988 e 1990, o número de fanzines saltou de vinte para mais de 200, graças à
facilidade de edição proporcionada pelos computadores. Com o
desenvolvimento da internet, os fóruns de torcedores hoje são os sites e listas
de discussão, mas alguns fanzines ainda persistem.

Somente no jogo entre Birmingham e West Ham, pude comprar dois deles: The
Zulu e Made in Brum. O primeiro é o mais radical e engraçado. A relação de
amor e ódio mantida com o clube é bem resumida na capa, onde se lê:
"Birmingham City Football Club: destruindo esperanças e sonhos desde 1875".
The Zulu custa metade do valor de um programa oficial feito pelo clube, e é
muito diferente. Os valores da publicação são explicitados em cinco princípios,
ilustrados por um camisa nove urinando em cima da camisa nove do adversário
daquela tarde, o West Ham:
Como um apaixonado e leal torcedor dos Blues, tenho direito a:
1. Tomar uma cerveja ou duas antes do jogo e chegar ao estádio quando eu
quiser.
2. Torcer da forma mais radical, gozando e gesticulando para os adversários,
intimidando-os o máximo possível.
3. Usar a língua inglesa do jeito que eu quiser.
4. Recusar-me a aceitar as instruções idiotas dos funcionários do estádio.
5. Reagir à vitória, ou à derrota, da porra do jeito que eu quiser, e sair do
estádio da forma que corresponda ao resultado.
Nós somos famosos por verbalizar nossa torcida e nossa paixão, por mais que
isso ofenda aqueles que desejam uma primeira divisão pacífica, quieta e
silenciosa como uma biblioteca.
E ainda acrescentam, em letras colossais:
NÃO DEIXEM OS PUNHETEIROS QUE ROUBARAM O NOSSO JOGO
ROUBAREM TAMBÉM A NOSSA PAIXÃO.

Os fanzines, hoje em dia, muito mais do que divertirem, proporcionam um


espaço para manifestações contra a hipercomercialização do futebol. Os
aficcionados desesperados torcem por um time que jamais ganhou uma
competição nacional, mas continuam fiéis a um clube de mais de 130 anos.
Fiéis, mas por quanto tempo? Um deles confessa em Made in Brum: "Eu
sempre vou amar o Birmingham City Football Club e esse amor nunca vai
morrer, eu sei disso. Mas o que acontece em certos períodos da história do
nosso clube faz você pensar se realmente vale a pena o tempo, o esforço e a
montanha de dinheiro que você gasta para vê-los chutar a bola mais uma vez."

Essa paixão, expressa de uma forma mais organizada e politizada do que no


Brasil, faz da Inglaterra o verdadeiro país do futebol. Não somente por ter sido
onde ele nasceu e se transformou em esporte, mas porque as raízes históricas
fazem com que a cultura do futebol seja mais profunda, e esteja fortemente
ligada à construção de identidades locais, regionais, de classe e até religiosas.
É possível, todavia, que a excessiva comercialização esteja colocando em risco
a continuidade da tradição. Uma pesquisa realizada pela própria primeira
divisão, no ano passado, revelou que a idade média do público dos seus jogos
é de 43 anos. Hoje, menos de um em cada dez tem menos de 24 anos. Os
torcedores jovens assistem aos jogos nos pubs ou vêem os melhores
momentos pela internet.
O envelhecimento dos torcedores foi, de certa forma, uma política consciente
dos novos donos do futebol. Os freqüentadores mais velhos têm maior poder
de consumo e causam menos problemas do que os bandos de jovens que
formavam os hooligans. Estes não deixaram de existir, apenas passaram a
freqüentar os jogos das divisões inferiores, nas quais a vigilância é menor e
ainda é possível arranjar uma briga. E cujos ingressos têm preços menos
proibitivos. Tive uma prova disso quando fui assistir a Nottingham Forest
versus Leeds na terra de Robin Hood.

Parecia apenas um jogo da terceira divisão entre duas ex-potências, mas foi
muito mais. A surpresa começou no caminho para Nottingham. Quando o trem
parou em Derby, vi uma grande confusão na plataforma, envolvendo dezenas
de policiais e uma pequena multidão. Assim que a porta do vagão se abriu,
entrou um grupo de uns vinte torcedores do Leeds. Quando percebi, eles me
rodeavam. Todos levavam uma lata (grande) de cerveja na mão e cantavam,
alegremente: "Nós vamos ganhar o campeonato". Os que estavam sentados
perto de mim correspondiam ao protótipo do hooligan: cabeças raspadas,
tatuagens, pescoços largos, poucos dentes da frente. E eu estava de camisa
vermelha da seleção inglesa, a cor da camisa do adversário deles, o Forest.
Como dizem que a melhor defesa é o ataque, saí puxando conversa. Disse
logo que eu era brasileiro, torcedor do Flamengo, e puxei da carteira uma
figurinha do Zico para comprovar. Foi o que bastou para ser adotado pela
turma.
Nossa recepção na estação de Nottingham foi tensa. Havia policiais por todo
lado, dois deles filmando a nossa chegada. Ao sairmos à rua, ninguém do
grupo sabia o caminho direito e a toda a hora falavam ao celular com alguém,
tentando descobrir a melhor rota. Para eles, a questão era chegar sãos e
salvos a um pub neutro, onde pudessem beber mais cerveja antes do apito
inicial. Fizemos uma rota em ziguezague, por ruas menos movimentadas, com
o pessoal olhando para os dois lados e para trás também, aparentemente com
medo de uma emboscada. Fiz amizade com os mais velhos da turma, uns
cinco trintões que não trajavam nada que pudesse identificá-los como
torcedores do Leeds. É uma das precauções básicas dos hooligans. O grupo
destacou-se do restante e eu colei neles. Fomos guiados pelo celular até a
área do Notts County, um clube local que é rival do Forest. Um dos meus
novos amigos, um baixinho atarracado e forte, explicou o problema quando
passávamos por alguns torcedores do Forest. "Enquanto forem um grupo
pequeno nós podemos lidar com eles, o problema é se encontrarmos um grupo
maior, uns trinta." Naquele momento, contando comigo, um vegetariano
pacifista, éramos seis...

O amigo baixinho disse que o futebol hoje é all about money, money. Não há
mais jogadores fiéis ao clube. "Só nós, torcedores, somos fiéis." Depois de
alguns litros de cerveja, bebidos em poucos minutos, partimos para o estádio,
meia hora antes de o jogo começar. Novamente fizemos um caminho sinuoso,
passando por policiais montados a cavalo, outros segurando cães. Os policiais
estavam com cassetetes, o que não é comum na Inglaterra. Tudo indicava que
aquele jogo não seria dos mais tranqüilos. E não foi. Depois de o Leeds
derrotar o time da casa por 2 a 1, na saída do estádio, jovens torcedores do
time vitorioso tentaram invadir a estação de trem.
Os ingressos a 50 libras (200 reais) e os esquemas de fidelidade da primeira
divisão impossibilitam a presença desse tipo de torcedor. Há quem ache tudo
isso muito natural, apenas mais um exemplo do império das leis de mercado.
Mas as conseqüên-cias danosas estão visíveis por toda a parte. Clubes
tradicionais endividam-se irremediavelmente, tentando, em vão, contratar
jogadores que lhes permitam competir com as equipes turbinadas pelo farto
(embora de origem duvidosa) dinheiro de generosos oligarcas. Alguns fecham
as portas, outros vendem seus estádios e muitos definham dia a dia. O apoio
dos torcedores, o coração de qualquer clube, começa a faltar. Antes eles eram
ligados ao clube local ou do bairro, já os novos adeptos querem torcer por um
time vencedor, que compra craques no mercado mundial e aparece na
televisão. É cada vez mais fácil ver crianças com as cores do Liverpool, do
Arsenal e, principalmente, do Manchester United. A montanha de recursos
proveniente da televisão fica totalmente concentrada na primeira divisão, que,
aliás, foi criada para isto mesmo: para não ter que dividir a grana com as outras
divisões, ou seja, com os clubes mais pobres. Na verdade, o abismo entre os
clubes acentua-se no interior da própria primeira divisão. Nos últimos quinze
anos, apenas quatro clubes conseguiram ser campeões. O futebol começa a
ficar sem graça.

Os novos donos do futebol inglês parecem ter adotado o modelo americano: o


esporte como show business. Nos Estados Unidos o esporte profissional
movimenta duas vezes mais dinheiro do que a indústria automobilística, e sete
vezes mais do que Hollywood. Dentro dos novos estádios-shopping, muitas
vezes o grito ou o canto dos torcedores é abafado pela música dos alto-
falantes, no melhor estilo NBA. Os locutores procuram orquestrar e controlar as
emoções dos torcedores. Estes são obrigados a torcer sentados,
permanentemente vigiados pelos circuitos internos de televisão e por uma
multidão de zelosos funcionários. Durante um jogo do Birmingham City contra o
West Ham, um desses funcionários proibiu-me de tirar fotos com minha
humilde e despretensiosa câmera fotográfica. A explicação: o espetáculo é
propriedade do clube. E dele agora fazem parte os mascotes infantilóides,
como bichos de pelúcia gigantes: leõezinhos, elefantinhos, cachorrinhos. À
venda na loja do clube, é claro.

Num ponto crucial, contudo, o modelo original é superior. Embora visando


unicamente ao lucro, os empresários do esporte americano sabem que o valor
da sua mercadoria depende de algo chamado competição. O esporte é um
negócio com certas especificidades. O historiador holandês Johan Huizinga
lembrava, em seu Homo Ludens, que o feitiço despertado pelo jogo depende
em grande parte da tensão proveniente da incerteza e do acaso. Exatamente
para preservar o valor comercial do seu produto, os dirigentes do futebol
americano buscaram garantir esse elemento essencial, tomando medidas
concretas para evitar um desequilíbrio de poder financeiro entre as franquias.
Diminuindo a incerteza, desaparece a magia do jogo. Por isso, desde o
momento em que ligaram seu destino à televisão, eles estabeleceram que os
recursos fossem igualmente divididos entre as equipes. Na década de 90,
ainda com a mesma preocupação, fixaram um teto salarial, resolvendo, de uma
só tacada, dois problemas: a escalada astronômica da remuneração e o
possível desequilíbrio entre as equipes.

No caso do futebol de bola redonda, a entrada selvagem do capital tem


desfigurado o jogo. Surgiu uma elite mundial de clubes globalizados e
plenamente transformados em empresas, como o Milan, o Manchester United,
o Real Madrid. A concentração de recursos permite monopolizar os melhores
jogadores, provenientes dos quatro cantos do planeta. Campeonatos nacionais,
antes equilibrados, agora têm um ou dois favoritos. Muitos clubes nem mais
competem com esperança de conseguirem o título - cada vez mais improvável
-, mas apenas com a pretensão de se classificarem para uma das várias
competições européias, bastante lucrativas. Não é mais tudo pela vitória.
Agora, é tudo pelo equilíbrio contábil.

Por falar em finanças, as minhas estavam abaladas pelas despesas com a


compra de ingressos. Passei a apelar para os jogos da segunda divisão, mas o
preço das entradas - por volta de 30 libras (120 reais) - continua-va a destroçar
meu orçamento. Foi assim que acabei indo ver o clássico Leamington versus
Sutton Coldfield, jogo da British Gas Business Football League Midlands
Division. Traduzindo: a oitava divisão. Dentre os 4 mil clubes de futebol da
Inglaterra, talvez não haja um grito
de guerra mais original do que o do Leamington: "Vamos lá... Freios!" Freios? É
porque o Leamington tem sua trajetória ligada à história da indústria
automobilística na região de Warwickshire, no centro da Inglaterra. Embora
tenha sido fundado em 1891, antes de o futebol chegar ao Brasil, o Leamington
só se tornou um clube de maior expressão em 1946, ao ser encampado pela
Lockheed, a maior empregadora da cidade e fabricante de sistemas
hidráulicos... de freios. O declínio da indústria automobilística levou o clube a
vender seu estádio e a fechar as portas em 1988. Um fanático grupo de
torcedores, entretanto, manteve acesa a chama do clube e, em 2000, refundou
o Leamington. O clube subiu várias divisões em poucos anos e já voltou ao
lugar onde estava antes de ser extinto: a oitava divisão.

Nela, a realidade é completamente diferente da bilionária primeira divisão.


Seus jogadores, semiprofissionais, trabalham na construção civil, são
faxineiros, funcionários de escritório etc. Alguns são estudantes universitários.
Eles treinam à noite, por duas horas, nas terças e quintas-feiras. Recebem
apenas uma ajuda de custo, girando em torno de 100 libras (400 reais) por
semana. Marcus
Jackson, o atlético e ofensivo lateral direito dos "Brakes" - apelido do
Leamington; freios, em inglês -, resumiu assim seus objetivos: "Aproveitar meu
futebol e me divertir no fim de semana". Aos 28 anos, ele não tem grandes
esperanças, mas se sente feliz em poder jogar, depois de ter fraturado o fêmur,
o que levou os médicos a decretarem o fim da sua carreira. Ele acha que os
Brakes têm uma chance de vencer o campeonato deste ano. Pedreiro
autônomo, ele tem que parar de trabalhar mais cedo quando os Brakes jogam
no meio da semana.

Marcus Jackson e seus companheiros são treinados por Jason Cadden, 38


anos, um ex-ponta-esquerda que teve sua carreira interrompida por causa de
uma contusão no joelho. Ele começou a dirigir clubes comunitários e há sete
anos é técnico dos Brakes. Não é seu único emprego: ele também trabalha
como técnico em várias escolas para complementar sua renda. Diz que ganha
o suficiente para "pagar as contas". Os jogadores são descobertos por ele ou
por olheiros do clube, torcedores que enviam dicas. Acha que o futebol
profissional de hoje está um pouco fora da realidade, com salários
estratosféricos e a circulação de um volume absurdo de dinheiro.

O presidente do clube, David Hucker, é um compenetrado senhor de 58 anos


que trabalha como consultor da prefeitura. Voluntário, não recebe um centavo
do clube. Além de buscar o contato com os torcedores do Leamington, Hucker
divulga o clube no rádio e nos jornais. Ele mesmo escreve uma coluna
comentando os jogos do time, publicada em mais de um jornal local e no site
do clube. Parece estar dando certo, pois, naquela tarde de sábado em que o
Leamington enfrentou o Sutton Coldfield, o novo estádio abrigou um público
recorde para aquela divisão: 648 pagantes! Hucker estava contentíssimo.

A bilheteria, com o ingresso a 6 libras (24 reais, bem barato para a Inglaterra),
representa apenas 10% dos recursos do clube. Além do patrocinador - uma
empresa de materiais de construção, que gera 25% da renda -, a principal fonte
de arrecadação é o bar. Há outras fontes menores, como os anúncios em torno
do campo ou no programa do jogo. Sim, um clube da oitava divisão faz um
programa para cada jogo, amistoso ou oficial. Com orgulho, Hucker revela que
o clube não deve uma libra a ninguém: "Somos donos do estádio, construímos
tudo pouco a pouco, temos feito lucro ano após ano. É a única maneira".

A administração impecável e o profissionalismo são o que mais impressionam


um brasileiro acostumado ao caos administrativo do futebol pentacampeão do
mundo. Cheguei a Leamington de trem e tive apenas que atravessar a rua para
pegar a van gratuita, contratada pelo clube para levar os torcedores até o
estádio. Depois de dez minutos de viagem, chegamos ao campo, construído no
meio do nada. Paguei meu ingresso e fui dar uma olhadinha no estádio. Bem,
estádio é uma maneira de falar. Por enquanto, o que há é um gramado muito
bem cuidado e cerca de 300 lugares sentados. Há uma pequena casinha de
madeira onde são vendidas camisas, chaveiros e os tradicionais cachecóis do
clube. Mas nada de bolas de golfe. Nem sinal de mascotes ou lojas de apostas.
Do lado de fora, fica um quadro com as escalações dos dois times escritas com
uma caneta Pilot.

Começa a partida: o Leamington no seu tradicional uniforme, camisa amarela,


calções pretos e meias pretas, versus o Sutton Coldfield, todo de azul. Os
Brakes começam no ataque: Ben Mackey, um rechonchudo atacante, abre o
placar com um forte chute após um minuto de jogo. Aos dezenove minutos, os
visitantes têm um pênalti a seu favor, mas Richard "Mozza" Morris, o bravo
goleiro dos Brakes, salva a tarde. Os azuis pressionam bastante durante todo o
jogo, mas o Leamington faz aquilo que se espera de um time com o apelido de
"freios" e segura o resultado até os 41 minutos do segundo tempo. Depois de
uma bela jogada de Richard Adams, James Husband dispara um petardo com
a canhota e sela o resultado de 2 a 0 para os Brakes. Ninguém segura os
freios... A maior parte do público assiste ao jogo de pé, ao lado do campo, de
onde dá para ouvir os jogadores reclamando do juiz, o técnico passando
instruções e até as provocações entre os jogadores. Muito simpático. Aqui, o
futebol parece ainda ter alma.

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