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"Não quer que o chutem também, vagabundo jogador de futebol?" É com essas
palavras, seguidas de um pontapé, que o leal conde de Kent agride um
mordomo que ousara desrespeitar o rei. É uma cena da tragédia Rei Lear,
escrita há 400 anos por Shakespeare. Naquele tempo, o futebol era
considerado um jogo da ralé, e ser chamado de jogador era um xingamento.
Não era para menos, porque consistia em um enfrentamento generalizado
entre duas aldeias, muitas vezes com vítimas fatais. A turma tentava carregar
uma esfera de couro - geralmente a bexiga de um animal - até a aldeia
adversária. Lá chegando, a comemoração era quebrar tudo. Não havia
nenhuma regra, e a balbúrdia era tanta que reis e autoridades tentaram proibir
o jogo durante séculos.
Além das quinquilharias, o fiel torcedor poderá gastar o seu dinheiro com o
Arsenal de diversas maneiras: fazendo a assinatura da tevê a cabo para ver os
jogos, pagando para receber mensagens no seu celular com as últimas notícias
do clube, comprando um passe eletrônico para ver os gols pela internet,
adquirindo o DVD da última temporada ou as dezenas de enciclopédias,
biografias e autobiografias que são publicadas todos os anos. Caso não seja
suficiente, pode-se apostar em dezenas de lojas diferentes, e pela internet
também. Apostar em tudo: se o Arsenal será campeão, se vai ser rebaixado, se
irá se classificar para as copas européias, quanto vai ser o placar do jogo,
quem vai marcar o primeiro gol, em que minuto da partida... Sem falar no pão-
nosso-de-cada-dia: as páginas esportivas dos jornais, as revistas
especializadas e, é claro, a cervejada no pub com os amigos, vendo e
comentando os jogos da rodada.
Dinheiro não tem alma e tampouco nacionalidade. Nove dos vinte clubes da
primeira divisão têm proprietários estrangeiros. Inglês ou não, quase nenhum
deles é verdadeiramente ligado ao futebol. São pessoas como um ex-
cabeleireiro que fez fortuna como dono de cassinos (Birmingham City), um
empresário islandês (West Ham), os herdeiros de um barão da indústria do aço
(Blackburn Rovers), o dono da cadeia de restaurantes Planet Hollywood
(Everton), um ex-primeiro-ministro da Tailândia investigado por corrupção
(Manchester City), um milionário da indústria da carne e um peso pesado do
mercado financeiro (Liverpool), um mal-afamado bilionário russo da indústria do
petróleo (Chelsea) e o dono do Cleveland Browns, um time de futebol
americano (Aston Villa).
Quem está prestes a ingressar nesse seleto, mas pouco respeitável clube, é o
oligarca da indústria dos metais Alisher Usmanov, amigo de Vladimir Putin e
conhecido como "O homem duro da Rússia". Um título e tanto, em se
considerando o estilo de negócio que hoje lá impera. Ele está prestes a
comprar o Arsenal, o último dos quatro grandes ainda em mãos inglesas. O
curioso é que os bilionários nem se importam em tomar prejuízo. Numa única
temporada (2005-2006), o todo-poderoso Roman Abramovich, dono do
Chelsea, perdeu 80 milhões de libras (320 milhões de reais).
Como também é da tradição inglesa, criaram-se associações de torcedores de
resistência à mercantilização absoluta do futebol. A "tomada" do Manchester
United pelo milionário americano Malcolm Glazer é um exemplo. Os torcedores
invadiram as lojas dos patrocinadores cantando e atrapalhando os negócios.
Iniciaram boicotes contra essas mesmas empresas e até contra o clube,
ameaçando não renovar seus season tickets. Acontece que o "Man U", como é
conhecido o time, tem dezenas de milhões de torcedores na China, no Japão,
na Coréia. Ou seja, não é mais um clube, é uma multinacional do
entretenimento esportivo. Vencidos, mas não derrotados, os torcedores
ingleses do Manchester viraram as costas para o clube e prometeram nunca
mais voltar - e nem assistir aos seus jogos pela televisão. Em 2005, criaram um
novo clube, o FC United of Manchester, e começaram tudo de novo, a partir da
décima divisão. "Os Rebeldes", como se intitulam, foram campeões logo no
primeiro ano e no segundo ano subiram novamente, agora para a oitava
divisão. Inspiraram-se no exemplo dos torcedores que criaram o AFC
Wimbledon, em 2002, insatisfeitos com aquilo que um torcedor chamou de "o
roubo do nosso clube": a transferência do estádio para uma localidade distante
a mais de 100 quilômetros.
Somente no jogo entre Birmingham e West Ham, pude comprar dois deles: The
Zulu e Made in Brum. O primeiro é o mais radical e engraçado. A relação de
amor e ódio mantida com o clube é bem resumida na capa, onde se lê:
"Birmingham City Football Club: destruindo esperanças e sonhos desde 1875".
The Zulu custa metade do valor de um programa oficial feito pelo clube, e é
muito diferente. Os valores da publicação são explicitados em cinco princípios,
ilustrados por um camisa nove urinando em cima da camisa nove do adversário
daquela tarde, o West Ham:
Como um apaixonado e leal torcedor dos Blues, tenho direito a:
1. Tomar uma cerveja ou duas antes do jogo e chegar ao estádio quando eu
quiser.
2. Torcer da forma mais radical, gozando e gesticulando para os adversários,
intimidando-os o máximo possível.
3. Usar a língua inglesa do jeito que eu quiser.
4. Recusar-me a aceitar as instruções idiotas dos funcionários do estádio.
5. Reagir à vitória, ou à derrota, da porra do jeito que eu quiser, e sair do
estádio da forma que corresponda ao resultado.
Nós somos famosos por verbalizar nossa torcida e nossa paixão, por mais que
isso ofenda aqueles que desejam uma primeira divisão pacífica, quieta e
silenciosa como uma biblioteca.
E ainda acrescentam, em letras colossais:
NÃO DEIXEM OS PUNHETEIROS QUE ROUBARAM O NOSSO JOGO
ROUBAREM TAMBÉM A NOSSA PAIXÃO.
Parecia apenas um jogo da terceira divisão entre duas ex-potências, mas foi
muito mais. A surpresa começou no caminho para Nottingham. Quando o trem
parou em Derby, vi uma grande confusão na plataforma, envolvendo dezenas
de policiais e uma pequena multidão. Assim que a porta do vagão se abriu,
entrou um grupo de uns vinte torcedores do Leeds. Quando percebi, eles me
rodeavam. Todos levavam uma lata (grande) de cerveja na mão e cantavam,
alegremente: "Nós vamos ganhar o campeonato". Os que estavam sentados
perto de mim correspondiam ao protótipo do hooligan: cabeças raspadas,
tatuagens, pescoços largos, poucos dentes da frente. E eu estava de camisa
vermelha da seleção inglesa, a cor da camisa do adversário deles, o Forest.
Como dizem que a melhor defesa é o ataque, saí puxando conversa. Disse
logo que eu era brasileiro, torcedor do Flamengo, e puxei da carteira uma
figurinha do Zico para comprovar. Foi o que bastou para ser adotado pela
turma.
Nossa recepção na estação de Nottingham foi tensa. Havia policiais por todo
lado, dois deles filmando a nossa chegada. Ao sairmos à rua, ninguém do
grupo sabia o caminho direito e a toda a hora falavam ao celular com alguém,
tentando descobrir a melhor rota. Para eles, a questão era chegar sãos e
salvos a um pub neutro, onde pudessem beber mais cerveja antes do apito
inicial. Fizemos uma rota em ziguezague, por ruas menos movimentadas, com
o pessoal olhando para os dois lados e para trás também, aparentemente com
medo de uma emboscada. Fiz amizade com os mais velhos da turma, uns
cinco trintões que não trajavam nada que pudesse identificá-los como
torcedores do Leeds. É uma das precauções básicas dos hooligans. O grupo
destacou-se do restante e eu colei neles. Fomos guiados pelo celular até a
área do Notts County, um clube local que é rival do Forest. Um dos meus
novos amigos, um baixinho atarracado e forte, explicou o problema quando
passávamos por alguns torcedores do Forest. "Enquanto forem um grupo
pequeno nós podemos lidar com eles, o problema é se encontrarmos um grupo
maior, uns trinta." Naquele momento, contando comigo, um vegetariano
pacifista, éramos seis...
O amigo baixinho disse que o futebol hoje é all about money, money. Não há
mais jogadores fiéis ao clube. "Só nós, torcedores, somos fiéis." Depois de
alguns litros de cerveja, bebidos em poucos minutos, partimos para o estádio,
meia hora antes de o jogo começar. Novamente fizemos um caminho sinuoso,
passando por policiais montados a cavalo, outros segurando cães. Os policiais
estavam com cassetetes, o que não é comum na Inglaterra. Tudo indicava que
aquele jogo não seria dos mais tranqüilos. E não foi. Depois de o Leeds
derrotar o time da casa por 2 a 1, na saída do estádio, jovens torcedores do
time vitorioso tentaram invadir a estação de trem.
Os ingressos a 50 libras (200 reais) e os esquemas de fidelidade da primeira
divisão impossibilitam a presença desse tipo de torcedor. Há quem ache tudo
isso muito natural, apenas mais um exemplo do império das leis de mercado.
Mas as conseqüên-cias danosas estão visíveis por toda a parte. Clubes
tradicionais endividam-se irremediavelmente, tentando, em vão, contratar
jogadores que lhes permitam competir com as equipes turbinadas pelo farto
(embora de origem duvidosa) dinheiro de generosos oligarcas. Alguns fecham
as portas, outros vendem seus estádios e muitos definham dia a dia. O apoio
dos torcedores, o coração de qualquer clube, começa a faltar. Antes eles eram
ligados ao clube local ou do bairro, já os novos adeptos querem torcer por um
time vencedor, que compra craques no mercado mundial e aparece na
televisão. É cada vez mais fácil ver crianças com as cores do Liverpool, do
Arsenal e, principalmente, do Manchester United. A montanha de recursos
proveniente da televisão fica totalmente concentrada na primeira divisão, que,
aliás, foi criada para isto mesmo: para não ter que dividir a grana com as outras
divisões, ou seja, com os clubes mais pobres. Na verdade, o abismo entre os
clubes acentua-se no interior da própria primeira divisão. Nos últimos quinze
anos, apenas quatro clubes conseguiram ser campeões. O futebol começa a
ficar sem graça.
A bilheteria, com o ingresso a 6 libras (24 reais, bem barato para a Inglaterra),
representa apenas 10% dos recursos do clube. Além do patrocinador - uma
empresa de materiais de construção, que gera 25% da renda -, a principal fonte
de arrecadação é o bar. Há outras fontes menores, como os anúncios em torno
do campo ou no programa do jogo. Sim, um clube da oitava divisão faz um
programa para cada jogo, amistoso ou oficial. Com orgulho, Hucker revela que
o clube não deve uma libra a ninguém: "Somos donos do estádio, construímos
tudo pouco a pouco, temos feito lucro ano após ano. É a única maneira".