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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Formação de Professores

Pedro D’Andrea Costa

Terra, água e território em conflito: uma análise transescalar da geopolítica


da água desde a proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu, RJ

São Gonçalo
2018
Pedro D’Andrea Costa

Terra, água e território em conflito: uma análise transescalar da geopolítica da água


desde a proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu, RJ

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Raposo Alentejano

São Gonçalo
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/D
D178 D’Andrea Costa, Pedro.
TESE Terra, água e território em conflito : uma análise transescalar
da geopolítica da água desde a proposta de construção da barragem
do rio Guapiaçu, RJ / Pedro D’Andrea Costa. – 2018.
254f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Raposo Alentejano.


Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores.

1. Barragens e açudes – Construção – Teses.


2. Desenvolvimento de recursos hídricos – Teses. 3. Conflito
de interesses – Teses. I. Alentejano, Paulo Roberto Raposo.
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de
Formação de Professores. III. Título.

CRB/7 – 6150 CDU 627.82

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação,
desde que citada a fonte.

__________________________________ ____________________________

Assinatura Data
Pedro D’Andrea Costa

Terra, água e território em conflito: uma análise transescalar da geopolítica da água


desde a proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu, RJ

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.

Aprovada em 31 de julho de 2018.

Banca Examinadora:

_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Raposo Alentejano (Orientador)
Faculdade de Formação de Professores – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Renato Emerson Nascimento dos Santos
Faculdade de Formação de Professores – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Jardim de Moraes Wanderley
Faculdade de Formação de Professores – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves
Universidade Federal Fluminense

São Gonçalo
2018
AGRADECIMENTOS

Este é, para mim, o momento mais importante desta dissertação. Espaço destinado ao
reconhecimento a todos os homens e a todas as mulheres que passaram pelo meu caminho
durante esta trajetória de aprendizado e de luta, e que só terá fim quando este corpo for
absorvido pela terra ao completar meu ciclo metabólico. É o momento em que a cabeça se
curva e os joelhos tocam o chão.
Agradeço a todos os homens e mulheres, agricultores e agricultoras, do Vale do
Guapiaçu. Estes e estas são muito mais do que isto, por mais que não haja muitas coisas tão
belas quanto tocar a terra com as mãos e os pés descalços, “y moreno, ademas”, para produzir
a comida presente na mesa de tantas famílias. Estes e estas são, também, agrônomos/as,
engenheiros/as das mais diversas categorias, economistas, administradores/as, geógrafos/as,
biólogos/as, contadores/as de histórias, entre muitas outras profissões das quais jamais
precisarão de uma universidade ou um diploma para exerceram tal atividade. Elas já são
exercidas através dos saberes-e-fazeres desenvolvidos através da tão perseguida práxis
acadêmica. Do fundo do meu coração, meu sincero agradecimento, reconhecimento e
admiração a Dionísio, Dona Rosa, Levir, Neide, Natália, Arlindo Lovias, Alzeir, Veneci,
Silas, Rayene, Lena, Cassenga, “M” e Fidelix. Sou grato por poder entrar na casa de cada um
de vocês, comer um pouco de suas comidas, de beber do seu café e compartilhar inúmeras
conversas, histórias, risadas e cachaças. O mundo que queremos construir já existe em
diversos cantos deste país e são concebidos através de experiências tocadas por pessoas como
vocês.
A Paulo Roberto Raposo Alentejano – ou Paulinho Chinelo – a quem tive o prazer de
ser orientando. Minha total admiração pela forma com que o geo-grafar é concebido e
produzido, pela total dedicação e doação que é dada à construção de outros mundos, pelos
trabalhos de campos, pelos ensinamentos sobre o rural do Rio de Janeiro e por todas as
indicações de leituras e conselhos sobre o geo-grafar e a militância. Há de nascer alguém que
conheça mais. Seguiremos juntos!
Ao Carlos Walter Porto-Gonçalves, Renato Emerson Nascimento dos Santos e Luiz
Jardim de Moraes Wanderley pelas importantíssimas contribuições apresentadas na
qualificação, onde este material ainda se encontrava “verde”. Da mesma forma, agradeço a
presença na banca de defesa. É uma enorme responsabilidade, desafio e engrandecimento
poder escutar as críticas de pessoas que buscam colaborar para construção de uma ciência
libertária.
Aos companheiros e companheiras da turma de 2016 do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. Não foi tarefa fácil dar continuidade a esta caminhada durante o período mais crítico
que esta universidade passou em sua importante história de vida. Adriani, Diogo, Rodrigo,
Tiago, Graciano, Jéssica, Valéria, Duclerc, Renato, Bruno, Beatriz, Oswaldo, Beatriz, Thiago,
Andressa, Milena, Debora, Jefferson, Renata e Karina. Homens e mulheres, trabalhadores e
trabalhadores. Tenho orgulho de ter compartilhado este período com vocês, jamais hesitamos
em acompanhar os/as técnicos/as e professores/as nas inúmeras greves e paralisações. Esta é
uma das formas de re-construir uma outra Pós-Graduação.
Aos diversos companheiros e companheiras que passaram pelo Grupo de Trabalho em
Assuntos Agrários da Associação de Geógrafos Brasileiros – Seção Local Rio de Janeiro e
Niterói. Homens e mulheres de luta. Agradeço a Aline, Luiza, Dani, Daiane, Alexandre e
Marola, além do próprio Paulinho. Em especial ao Edu, grande camarada que a AGB me fez
conhecer: juntos tentamos ser homens atentos as nossas contradições. E ao outro grande
camarada Luiz Jardim – o Lula, este sim roubou meu coração. Todos e todas muito me
ensinaram e juntos pude ser um geógrafo desde o meu 5º período da faculdade. Parte do que
sou hoje leva um pedaço de cada um/uma.
O geo-grafar pelas grandes vertentes do Recôncavo da Guanabara que me trouxe
outros tantos companheiros e companheiras. Aos amigos e amigas do “El agua desde abajo”:
Hugo, Barbara, Alexander e Bernardo. Responsáveis por grande parte das letras, linhas e
ideias presentes nesta pesquisa. Aos companheiros e companheiros do Lemto, Carlos Walter –
grande mestre, Danilo, Julia, Leandro, Marcela e Marlon – o qual tive imenso prazer de
compartilhar nossas caminhadas pelo Rio Trombetas, em Oriximiná, PA, por tantos anos
durante nossa graduação em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Jamais me
esquecerei destes momentos, me tornei outra pessoa depois de ter adentrado a Floresta
Amazônica. A Ana Motta. Aos compas do Movimento dos Atingidos por Barragens,
Alexania, Leonardo, Gabriela e Diene, compartilhamos e continuaremos a compartilhar bons
momentos de vida e luta.
Ao Fabio, Vitor, Bernardo, Alan e Tauã, irmãos de outros pais e mães.
As minhas avós Vera e Fanni que sustentaram suas famílias. Sem elas nós não
seríamos. Mulheres das mais importantes em minha vida. A primeira com inigualável
capacidade de resiliência e com um coração do tamanho do mundo: “eu te... amo”, jamais
esquecerei. A segunda foi responsável por me fazer entender minha ligação com a terra e a
mata. Agricultora, italiana e imigrante fugida da guerra. Não acreditaria no que você foi capaz
de construir depois de ter atravessado o Atlântico de navio se não tivesse compartilhado estas
conquistas.
Ao meu irmão amado Artur, meu maior parceiro e quem mais me ensina. Não sei se
conhecerei alguém com tamanha capacidade de se doar pelo outro. Sou mais do que feliz ao
seu lado, és quem mais admiro. Estaremos juntos até o fim, meu companheiro.
Ao meu pai, Francisco. Jamais me esquecerei do momento em que entramos em seu
primeiro apartamento e você me disse com os olhos cheios de orgulho e lágrimas no auge dos
seus 50 anos: “Este é o meu primeiro apartamento”. Terá tudo o que merece, na hora que tiver
de ser. Mestre desta e de outras vidas. Contigo aprendi a chorar. O som do seu saxofone
acalenta todos os ouvidos que tem o prazer de escutá-lo. Sempre foi assim e cada vez mais
será.
A minha mãe Anamaria, minha mestra, sem a qual não seria nada. “Todo homem
precisa de uma mãe”, não é isso? A maior mulher de todas as mulheres que conheci. Merece
um mundo inteiro.
E a Lu. Um bem de uma vida inteira. Sou o homem que sou por ela ser a mulher que é.
Aos ajudantes do caminho, vocês sabem quem são.
Ogunhê, meu Pai,
Odoya, minha Mãe,
Laroyê, meu Rei

Nosotros nos quedamos sin salidas. La única forma de hacernos fuertes era salir, era caminar.
No teníamos ningún pie. Éramos minusválidos en ese sentido. Teníamos la voz y la mirada,
pero teníamos que llevar esa voz y esa mirada a donde fuera escuchada y a donde tuviera
dirección esa mirada. Entonces tuvimos que pedir prestados los pies de otros. A la hora que
tuvimos que pedir prestados los pies de esos otros, tuvimos que construirlos porque no
existían. Entonces empezamos a hablarle al otro y empezamos a darle un rostro, el que otros
le negaron, el que es un número, el que es un porcentaje de una encuesta, si es que le toca la
suerte de que lo encuesten, y empezamos a llamarlo y a intentar darle rostro y a pedirle que
fuera los pies de nosotros. Encontramos unos pies muy disparejos. Es decir, el cuerpo que ya
éramos, la mirada, los oídos, los labios que éramos, eran muy pequeños para unos pies muy
grandes. Finalmente, cuando empezamos la marcha, empieza una especie de muñeco
grotesco. A primera vista, un gigante. Con una vista detenida, un muñeco deforme y grande,
con unos grandes pies y un cuerpo muy pequeño, el tronco y la cabeza. Ese muñeco grotesco
empieza a andar a traspiés y empieza a tratar de convencer a los pies que no son suyos, que es,
de una u otra forma, lo que ha tratado de hacer la Caravana a cada momento que se detiene:
decir que no somos nosotros los que hacemos posible eso, sino el pie que nos está llevando,
que es la gente que nos está recibiendo. Es en ese momento que se encuentra con el problema
de que los pies dicen que quien manda es la cabeza, porque así está la historia hecha y que no
ocurre que los pies manden a la cabeza. Y la cabeza, necia con que los que tienen que mandar
son los pies. Llega el momento en que los pies y la cabeza dicen lo que todos están pensando
y nadie se atreve a decir: Que en el recorrido se dan cuenta de que el mundo está de cabeza,
que tiene el que no necesita y el que necesita no tiene nada. Finalmente, ese día, mañana 11,
llegan al lugar donde se puede voltear esto para un lado y para otro, y a la hora en que el
mundo se voltea de nuevo, los pies descubren que en realidad eran la cabeza, y la cabeza
descubre que nunca dejó de ser un pie descalzo; moreno, además.

Subcomandante Insurgente Marcos, EZLN


Entrevista a Julio Scherer, Março de 2001
RESUMO

D’ANDREA COSTA, Pedro. Terra, água e território em conflito: uma análise transescalar da
geopolítica da água desde a proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu, RJ. 2018.
254f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de Professores,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018.

A presente dissertação se insere no âmbito do conflito pela água, terra e o território


que atravessam o Vale do rio Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, RJ. Historicamente
marcada por distintas inflexões na luta pela terra e pela água a região do Vale do Guapiaçu,
atualmente, está inserida no conflito pela proposta de construção de uma barragem-
reservatório oriunda de uma condicionante ambiental do Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro, localizado no município de Itaboraí. Notadamente marcada pela presença histórica da
agricultura familiar esta região apresenta um dos maiores índices de produtividade de
alimentos quando analisadas culturas que estão presentes cotidianamente na mesa da
população da região metropolitana do Rio de Janeiro. Além disso, estas famílias desenvolvem
nos últimos dezoito anos uma experiência comunitária onde controlam seus sistemas de
abastecimento hídrico através de três Redes Comunitárias de Água pautadas pela por uma
concepção política desde a autonomia e os bens comuns. Esta experiência materializa os
saberes e fazeres destes homens e mulheres que são expressos a partir de uma episteme
camponesa que se mostra antagônica a racionalidade moderna-colonial empregada pelo
Estado e pelo capital. A justificativa que vem sendo elaborada pelo Estado para legitimar a
construção da barragem do rio Guapiaçu se insere no debate da crise hídrica por qual
atravessa a região leste metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Portanto, o objetivo desta
dissertação é realizar, primeiramente, uma análise da dinâmica sóciometabólica camponesa,
atravessada pelas Redes Comunitárias de Água e pelas distintas formar de sentipensar a
agricultura, fundamentadas pela lógica da autonomia, dos bens comuns e do poder.
Posteriormente, é desenvolvida uma análise da dinâmica metabólica destrutiva do capital,
cujo intuito é desconstruir o discurso da escassez, através de uma investigação crítica dos
dados relativos ao consumo de água por setor no estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido,
busca-se apontar que a proposta de construção da barragem-reservatório do rio Guapaiçu está
inserida em uma estratégia global de expansão do capital sobre os fluxos materiais e
energéticos, como água, terra e energia.

Palavras-chave: Barragem do rio Guapiaçu. Redes comunitárias de água. Conflito pela água.
Bens comuns. Crise hídrica.
RESUMEN

D’ANDREA COSTA, Pedro. Tierra, agua y territorio en conflicto: una análisis transescalar
de la geopolítica del agua desde la propuesta de construcción de la represa del río Guapiaçu,
RJ. 2018. 254f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de
Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018.

La presente disertación se inserta en el marco del conflicto por el agua, tierra y el


territorio que atraviesan el Valle del río Guapiaçu, en Cachoeiras de Macacu, RJ.
Históricamente marcada por distintas inflexiones en la lucha por la tierra y por el agua, la
región del Valle del Guapiaçu, actualmente, está inserta en el conflicto por la propuesta de
construcción de una represa oriunda de un condicionante ambiental del Complejo
Petroquímico de Río de Janeiro, en el municipio de Itaboraí. La región está marcada por la
presencia histórica de la agricultura campesina y que presenta uno de los mayores índices de
productividad de alimentos cuando analizadas culturas que están presentes cotidianamente en
la mesa de la población de la región metropolitana de Río de Janeiro. Además, estas familias
desarrollan en los últimos dieciocho años una experiencia de base donde controlan sus
sistemas de abastecimiento hídrico a través de tres Redes Comunitarias de Agua pautadas por
la lógica de la autonomía y de los bienes comunes. Esta experiencia materializa los saberes y
hacer de estos hombres y mujeres que se expresan a partir de una episteme campesina que se
muestra antagónica a la racionalidad moderno-colonial empleada por el Estado y el Capital.
La justificación que viene siendo elaborada por el Estado para legitimar la construcción de la
represa del río Guapiaçu se inserta en el debate de la crisis hídrica por la que atraviesa la
región este metropolitana del estado de Río de Janeiro. Por lo tanto, el objetivo de esta
disertación es realizar, primero, un análisis de la dinámica sóciometabólica campesina,
atravesada por las Redes Comunitarias de Agua y por las distintas formar de sentir la
agricultura, fundamentadas por la lógica de la autonomía, de los bienes comunes y del poder.
Posteriormente, se desarrolla un análisis de la dinámica metabólica destructiva del capital,
cuyo propósito es desconstruir el discurso de la escasez, a través de una investigación crítica
de los datos relativos al consumo de agua por sector en el estado de Río de Janeiro. En este
sentido, se busca apuntar que la propuesta de construcción de la represa-reservorio del río
Guapaiçu está inserta en una estrategia global de expansión del capital sobre los flujos
materiales y energéticos, como agua, tierra y energía.

Palabras-clave: Represa del río Guapiaçu. Redes comunitarias de agua. Conflicto por el agua.
Bienes comunes. Crisis hídrica.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Artquíferos: Rebrotando os olhos d’água ............................................... 62

Figura 2 – O renascer de uma nascente ................................................................... 66


Figura 3 – Antiga captação da sede da fazenda, atualmente pertence à Rede
Casarão ................................................................................................... 74
Figura 4 – Material utilizado pela Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu 77

Figura 5 – Caminhada pelas Redes Comunitárias de Água ..................................... 90

Figura 6 – Área mapeada para construção do novo ponto de captação ................... 96

Figura 7 – O tato, a cada passada uma semente de Jiló ........................................... 106

Figura 8 – A terra, o aipim e o homem no Vale Guapiaçu ...................................... 107

Figura 9 – Inhame e Milho (1) ................................................................................. 115

Figura 10 – Inhame e Milho (2) ................................................................................. 115

Figura 11 – Milho o Limão ........................................................................................ 119

Figura 12 – Milho, Feijão de Corda e Aipim ............................................................. 119

Figura 13 – Jiló e Coco ............................................................................................... 123

Figura 14 – Consórcio Aipim e Abóbora ................................................................... 123

Figura 15 – Da Unidade de Apropriação à Região Metropolitana ............................ 129


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Síntese das Captações de Água de Cachoeiras de Macacu ........................ 87

Tabela 2 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “L” e “N” – Janeiro de 2018 ..... 116

Tabela 3 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “Q” e “N²”– Janeiro de 2018 .... 120

Tabela 4 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “A” e “V” – Janeiro de 2018 .... 124
Tabela 5 – Volume de água consumido pelas principais culturas do Agronegócio –
2015 ........................................................................................................... 154
Tabela 6 – Fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) no Brasil – 2010 a 2016
- US$ Bilhões ............................................................................................. 185
Tabela 7 – A concentração de terras, energia e água – Grandes Projetos de
Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro ......................................... 193
Tabela 8 – Índices de perdas físicas nos municípios da Região Metropolitana do
Rio de Janeiro – 2013 ................................................................................ 213
Tabela 9 – Uso da água por setor – Registros com e sem CNARH – Região
Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (2006-2017) .......................... 216
Tabela 10 – Captação indireta da indústria extrativa e da transformação registrada
por setor – Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (Registros
com e sem CNARH: 2006-2017) .............................................................. 219
Tabela 11 – Uso da água por setor – Região Metropolitana do Rio de Janeiro
(Registros com e sem CNARH: 2006-2017) ............................................. 220
Tabela 12 – Uso da água por setor – Cachoeiras de Macacu (Registros com e sem
CNARH: 2006-2017) ................................................................................. 222
Tabela 13 – Uso da água – AMBEV – Cachoeiras de Macacu, RJ - (2011-2017) ....... 223
LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Projeto Barragem do rio Guapiaçu – Áreas de Influência ......................... 26

Mapa 2 – Agroecossistema “L” e “N” ....................................................................... 114

Mapa 3 – Agroecossitema “Q” e “N” ........................................................................ 118

Mapa 4 – Agroecossistema “A” e “V” ....................................................................... 122

Mapa 5 – Grandes projetos de desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro .......... 190


LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Investimento Estrangeiro Direto greenfield por Setor – Estado do Rio


de Janeiro ................................................................................................ 186
Gráfico 2 – Índices de perdas físicas internacional – 2016 ........................................ 212
Gráfico 3 – Índices de perdas físicas de água dos Sistemas Integrados. Estado do
Rio de Janeiro. 2014. (%) ....................................................................... 213
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABAG Associação Brasileira do Agronegócio


ABCON Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos
de Água e Esgoto
ABIAPE Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia
ABIR Associação Brasileira de Indústrias de Refrigerantes e Bebidas não
Alcoólicas
ABM Associação Brasileira de Metalurgia, Materiais e Mineração

ABRAGE Associação Brasileira de Empresas Geradoras de Energia Elétrica

ABRAGEL Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa

AGB Associação de Geógrafos Brasileiros

ALERJ Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

AMAE Autarquia Municipal de Águas e Esgotos

ANA Agência Nacional das Águas

APROVECCHI Associação dos Produtores do Vecchi e Adjacências

BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento

CBH Comitê de Bacias Hidrográficas

CEASA-RJ Centrais de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro

CEDAE Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro

CEIVAP Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul

CERHI Conselho Estadual de Recursos Hídricos

CERVBRASIL Associação Brasileira da Indústria da Cerveja

CNA Confederação Nacional da Agricultura

CNAE Cadastro Nacional de Atividades Econômicas

CNARH Cadastro Nacional de Usuários de Recursos Hídricos

CNRH Conselho Nacional de Recursos Hídricos

CODIN Companhia de Desenvolvimento Industrial do Rio de Janeiro


COMPERJ Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro

CONLESTE Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Leste Metropolitano

COPPETEC Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e Estudos Tecnológicos

CIPA Complexo Industrial e Portuário do Açu

CSN Companhia Siderúrgica Nacional

CSP Companhia Siderúrgica do Pecém

DISJB Distrito Industrial de São João da Barra

EIA Estudo de Impacto Ambiental

EMATER-RIO Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro

ERJ Estado do Rio de Janeiro

EZLN Exército Zapatista de Libertação Nacional

FAMA Fórum Alternativo Mundial da Água

FBDS Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável

FMA Fórum Mundial da Água

FMASE Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico

FUNDRHI Fundo Estadual de Recursos Hídricos

GPA Geografia da Produção Alimentar

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBRAM Instituto Brasileiro de Mineração

IED Investimento Estrangeiro Direto

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INEA Instituto Estadual do Ambiente

MAB Movimento de Atingidos por Barragens

MMA Ministério do Meio Ambiente

MME Ministério de Minas e Energia

NSGA Núcleo Social de Gestão do Agroecossitema

PACS Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul

PAP Programa de Ações Prioritárias


PAIS Produção Agroecológica Integrada Sustentável

PDRH-BG Plano Diretor dos Recursos Hídricos da Baía de Guanabara


PDUI-RMRJ Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro
PERHI Política Estadual de Recursos Hídricos

PMCM Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu

PNAE Programa Nacional da Alimentação Escolar

PNRH Política Nacional de Recursos Hídricos

RAM Reforma Agrária de Mercado

RH Região Hidrográfica

RIMA Relatório de Impacto Ambiental

RM Região Metropolitana

RMRJ Região Metropolitana do Rio de Janeiro

SAA Serviço de Abastecimento de Água

SCOM Sociedade Civil Organizada de Macacu

SEA Secretaria Estadual do Ambiente

SLBG Subcomitê Leste da Baia de Guanabara

SMMA-CM Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Cachoeiras de Macacu

SNGRH Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos

SNIS Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento

SPR-CM Sindicato dos Produtores Rurais de Cachoeiras de Macacu

STR-CM Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cachoeiras de Macacu

UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UHE Usinas Hidrelétricas

UFF Universidade Federal Fluminense


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 19
1 A GEORAFIA E O CALENDÁRIO DA ÁGUA E DA TERRA NO
VALE DO GUAPIAÇU ............................................................................. 45
1.1 Entre piez y cabezas: chaves teórico-metodológicas (1) ………………. 45

1.1.1 O circuito sociometabólico camponês ……………………………………. 46

1.1.2 O Território é caminho das águas ................................................................ 49


1.2 Os muitos Vales de Javés: seus/suas narradores/as e suas histórias de
grande valor ................................................................................................ 55
1.2.1 O salto – horizontal - a Pentecoste, CE, em busca dos Artquíferos: o
Movimento Ciclovida e o projeto Rebrotando os Olhos D’Água ................ 58
1.2.2 A volta do salto: rebrotando uma nascente em Papucaia, Cachoeiras de
Macacu, RJ ................................................................................................... 63
1.3 A Geografia e o calendário das águas: as Redes Hidrocomunitárias
entre a autonomia, o comum e o poder .................................................... 68
1.3.1 Se apropriando da água: as redes comunitárias de água .............................. 72

1.3.2 Os princípios camponeses da água no Guapiaçu: um Protocolo implícito .. 79


1.3.3 As múltiplas escalas da disputa pela água: o local, o regional e o global no
território ........................................................................................................ 85
1.3.4 A re-afirmação das Redes Comunitárias de Água: a consolidação do poder
camponês e os desafios (interno-externo) da construção da autonomia ...... 89
1.4 A Geografia e o calendário da terra: a arte de sobreviver da
agricultura! ................................................................................................. 98
1.4.1 As diversas formas de sentirpensar a agricultura ......................................... 102

1.4.1.1 Escutando a memória ................................................................................... 103


1.4.1.2 “Se você deixa uma terra com fome e com sede, quem vai ficar com fome
e sede é você” ............................................................................................... 107
1.4.1.3 A lua manda ................................................................................................. 109

1.4.2 Os agroecossistemas familiares .................................................................... 110


2 A GEOGRAFIA E O CALENDÁRIO DO CAPITAL: AS
MULTIESCALARIDADES DA GEOPOLÍTICA DA ÁGUA .............. 131
2.1 Entre piez y cabezas: chaves teórico-metodológicas (II) ……………… 132

2.1.1 O necrometabolismo do capital …………………………………………… 132

2.1.2 Acumulação por espoliação ………………………………………………. 137

2.2 O controle do Capital sobre os fluxos energéticos e metabólicos ........... 144

2.2.1 O cercamento das águas em suas múltiplas formas ..................................... 152

2.2.1.1 Agronegócio ................................................................................................. 152

2.2.1.2 Bebidas alcoólicas e não alcoólicas ............................................................. 155

2.2.1.3 Energia ......................................................................................................... 157

2.2.1.4 Mineração, Metalurgia e Siderurgia ............................................................. 159

2.2.1.5 Saneamento básico ....................................................................................... 161

2.2.1.6 Notas sobre a superexploração hídrica no Brasil ......................................... 163


2.3 A gestão (nada) participativa das águas, descentralizando (o poder do
Estado) para centralizar (o poder do Capital): as estratégias em
escala para o controle das arenas .............................................................. 165
2.3.1 O Conselho Nacional de Recursos Hídricos ................................................ 167

2.3.2 O Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro .................... 172


2.4 A Espacialização dos grandes projetos de desenvolvimento no estado
do Rio de Janeiro ........................................................................................ 179
2.4.1 Do controle do território ao controle dos “recursos”: a corrida global pela
financeirização e internacionalização da água, da terra e da energia ........... 182
2.4.2 A articulação Estado-Capital no Rio de Janeiro: inserseção fluminense na
atual dinâmica da expansão da acumulação do capital ................................ 188
2.4.3 A intensificação reversa das condições metabólicas no estado – a
espacialidade diferencial das múltiplas falhas metabólicas ......................... 191
2.5 Quatro projetos territoriais e um Rio: as múltiplas escalas (do poder)
e suas articulações ...................................................................................... 195
2.5.1 O projeto estatal-privado – a grande barragem ............................................ 197

2.5.1.1 A falácia da crise hídrica .............................................................................. 208


2.5.1.2 As perdas físicas de água no abastecimento ................................................. 211

2.5.1.3 Os donos da água na região Metropolitana .................................................. 214


2.5.1.4 A Câmara Metropolitana de Integração Governamental: a estratégia
escalar da articulação Estado-Capital ........................................................... 224
2.5.2 O projeto patronal e suas articulações em escala – As grandes e pequenas
barragens ...................................................................................................... 230
2.5.3 Águas para a vida e não para a Morte: o território do Movimento dos
Atingidos por Barragens ............................................................................... 234
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 241

REFERÊNCIAS ......................................................................................... 247


19

INTRODUÇÃO

Por uma ciência que “sentipensa”

O mestre Orlando Fals Borda partilha conosco um ensinamento que teve a partir da
cultura do Caribe colombiano, mais precisamente da cultura ribeirinha do rio Grande de La
Magdalena que leva suas águas até o oceano Atlântico, onde se encontram los hombres-
hicotea1. Nesta região, Fals Borda aprendeu o sentido da cultura anfíbia onde lhe ensinaram
as múltiplas formas de saberes-e-fazeres que traduzem uma bonita e complexa combinação de
artes. MONCAYO (2009) compartilha a ideia que Orlando Fals Borda pôde aprender com
estes homens e mulheres:

El hombre-hicotea que sabe ser aguantador para enfrentar los reveses de la vida y
pode superarlos, que en la adversidad se encierra para volver luego a la existência
com la misma energia de antes, es tambíen el hombre sintipensante que combina la
razón y el amor, el cuerpo y el corazón, para deshacerse de todas las (mal)
formaciones que descuartizan esa armonía y poder decir la verdad (p. 10).

Estes homens e mulheres sentipensantes que atuam com a razão e o amor, o corpo e o
coração, não se encontram somente na região na qual Fals Borda esteve e pôde escutar este
conceito da boca de um pescador. O Sub Comandante Insurgente Marcos (2008), por
exemplo, afirma que são sete os sentidos zapatistas: olhar, degustar, tocar, ver, ouvir, pensar e
sentir. Os hombres-hicotea e os e as zapatistas entendem que o sentipensar também se insere
nesta complexa combinação de sentidos que envolvem a percepção entre o meio interno e
externo, trazendo uma grande variedade de sensações que acabam por materializar suas
formas de sentir-pensar-saber-fazer a natureza.
Depois de seis anos de atuação política, militante e de pesquisa no Vale do Guapiaçu –
região na qual está inserido o debate desta dissertação – pude perceber que os homens e
mulheres que re-existem contra a construção da barragem-reservatório do rio Guapiaçu, em
Cachoeiras de Macacu, RJ, também se caracterizam como pessoas que sentipensam São
homens e mulheres que possuem uma complexa e enorme inteligência, cuja prática e
intervenção nas terras e águas do vale são calcadas por um profundo respeito e compreensão
das dinâmicas da natureza. É a partir da construção de laços de afeto e de amizade, e da

1
Orlando Fals Borda dá uma breve explicação sobre os hombres-hicotea e o sentipensar em:
<https://www.youtube.com/watch?v=LbJWqetRuMo>. Acesso em: 19 jun. 2018.
20

caminhada política que afirmo que está é, portanto, uma dissertação elaborada por alguém que
teve a oportunidade de estar com mulheres e homens que sentipensam.
Porém, a aprendizagem do sentipensar é, na verdade, o resultado de uma trajetória
não tão longa de um jovem geógrafo que durante seu contínuo processo de formação esteve
mergulhado entre os espaços tradicionais de formação e construção do saber – a universidade
– e os territórios e lugares do saber. Destaco, portanto, dois momentos que caminharam lado a
lado durante meu percurso geo-gráfico.
O primeiro deles ocorre a partir do momento em que ingresso na graduação em
geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2009. É neste curso marcado por
sua importante influência da Geografia Crítica que início, a partir de 2012, minha participação
no grupo de ensino, pesquisa e extensão denominado Geografia da Produção Alimentar
(GPA). Através da participação no GPA, estive imerso por quatro anos em pesquisas-
participantes desenvolvidas, principalmente, em dois territórios Quilombolas localizados nas
margens do Alto Rio Trombetas, no município de Oriximiná, Pará (PA). O território Mãe
Domingas é composto por cinco comunidades quilombolas: Mãe Cué, Sagrado Coração,
Tapagem, Paraná do Abuí e Abuí. Mais acima do rio, está o território de Cachoeira Porteira.
Esta região se insere na Calha Norte, onde existe um grande mosaico composto de territórios
indígenas, quilombolas e ribeirinhos, unidades de conservação, com a confluência de três rios:
Trombetas, Cachorro e o Mapuera. A realização destas pesquisas foi possível graças à
existência da Unidade Avançada José Veríssimo, campus da UFF no município, o que
possibilitou a aprovação de projetos de extensão que buscavam acompanhar os conflitos
territoriais e ambientais ocasionados tanto pela empresa Mineração Rio do Norte como pela
criação de unidades de conservação, que impactavam a vida dos povos da região.
Estes projetos e oficinas buscavam abordar discussões e ações que permeavam a troca
de saberes sobre o fortalecimento da produção existente de alimentos com bases
agroecológicas, a importância da elaboração autônoma de mapas a partir da metodologia da
cartografia social, e a valorização das tecnologias sociais e da cultura oral. Não há dúvida, que
mais aprendi do que ensinei a partir das relações de afeto e confiança que foram construídas
com os homens e mulheres (professores/as e mestres/as) da floresta. Estas experiências foram
fundamentais para perceber a existência de muitos mundos que resistem à expansão do mundo
moderno-colonial. Pude ver (e viver) que as relações capitalistas não dominam todas as
formas de sociabilidade e de interação e produção do espaço. Ainda há muitos territórios onde
o valor de uso sobrepõe-se ao valor de troca, e o sentido dos bens comum rege as interações
sociedade-natureza. Isso quer dizer, portanto, que há muitos mundos dentro do mundo
21

totalizante capitalista. É a partir destas experiências que o lema zapatista passa a guiar minha
orientação epistemológica: “El mundo que queremos es uno donde quepan muchos mundos.
La patria que construimos es una donde quepan todos los pueblos y sus lenguas, que todos
los pasos la caminen, que todos la rían, que la amanezcan todos”.
Concomitante a minha trajetória na extensão, passei a integrar, também em 2012, o
Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários (GT Agrária) da Associação de Geógrafos
Brasileiros (AGB), das seções locais Rio de Janeiro e Niterói. Ao chegar ao grupo, quando
estava no meu 5º período da graduação em geografia, me deparo com um coletivo de
professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras que vinham desenvolvendo um
comprometido trabalho de atuação junto aos movimentos sociais do campo fluminense.
Diferentemente dos grupos de pesquisa, o GT Agrária têm suas atuações definidas a partir da
demanda de movimentos sociais, dos mais diversos segmentos da sociedade, e também desde
suas proposições internas, baseando-se na autogestão e no trabalho coletivo. Não há
personificação e centralização do segmento do trabalho. É um espaço de atuação conjunta em
que estudantes de graduação, professores/as, mestres/as e doutores/as de distintas áreas do
conhecimento têm a possibilidade de trocar suas experiências através da atuação na sociedade,
sem deixar de incorporar seu caráter investigativo e reflexivo.
No momento em que ingresso no grupo, eram desenvolvidos trabalhos de pesquisa e
militância em conjunto com os movimentos sociais centrados nos impactos gerados no espaço
agrário fluminense em decorrência da espacialização dos Grandes Projetos de
Desenvolvimento no estado. Pude, então, acompanhar a violência proporcionada aos/as
camponeses/as, pescadores/as e quilombolas em decorrência do Plano Estratégico de
Desenvolvimento 2007-2010 elaborado pelo então governador Sérgio Cabral, que com um
discurso de interiorização do desenvolvimento através das chamadas “vocações regionais”
espolia e expropria populações de territórios que historicamente produzem alimentos (e as
condições materiais de vida) para a população fluminense. Desde então, estas populações
passaram a sofrer intensos e violentos processos de expropriação de seus territórios, como no
Complexo Industrial e Portuário do Açu (CIPA), em São João da Barra, a TKCSA (hoje,
CSA), em Santa Cruz, a Usina Hidrelétrica de Anta e Simplício, em Além Paraíba e o
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí.
Nestas muitas caminhadas e trabalhos de campo acompanhei, entrevistei, conversei e
convivi com estes homens e mulheres que sentipensam e por isso, muitas foram, e ainda são,
as angústias, dores e choros compartilhados. Territórios e pessoas deserdadas por esta lógica
de desenvolvimento do capital que avança através do encadeamento de rupturas metabólicas
22

sobre as condições histórico-geográficas de produção da vida destes sujeitos, o metabolismo


social. Como as condições materiais e energéticas de produção da vida dessas populações
estão intimamente ligadas com as relações constituídas com a água, a terra, o mar e a mata, a
destruição de qualquer um destes elementos afeta diretamente suas vidas. Quando o CIPA
saliniza as terras e águas do 5º Distrito de São João da Barra, em decorrência de uma das fases
de construção do complexo industrial, estes homens e mulheres que dela sobrevivem também
são salinizados/as já que não possuem mais o controle de produção de suas vidas 2. E na
medida em que combinam a razão com o coração, a saúde mental e física destas pessoas é
violentamente afetada.
Quando passo a fazer parte do GT Agrária da AGB tenho a possibilidade de geo-
grafar, de ser um geógrafo e atuar enquanto tal antes que obtivesse qualquer diploma que me
desse a licença legal para realizar tal tarefa. A AGB cumpre um importantíssimo papel na
formação de jovens postulantes à geógrafo/a. Ao me colocar enquanto representante da AGB
perante os homens e mulheres que resistem, estes/estas não me veem enquanto aluno por mais
que este fato seja explicado: minha presença ali assume um papel institucional embebido de
responsabilidades políticas e científicas cuja tarefa é cooperar com as estratégias locais que
envolvem diretamente a vida das pessoas que re-existem.
Nesta relação multilateral, em que afetamos e somos afetados, o sentido da experiência
assume valiosa significância. A dimensão de ser alguém que sentipensa passa diretamente
pelo papel da experiência na trajetória do sujeito, já que o/a pesquisador/a que se permite ser
atravessado pelas múltiplas epistemes que estruturam o pensamento camponês – como é o
caso desta pesquisa – passa a se reconhecer no outro/a enquanto sujeito igualmente capaz de
construir as condições subjetivas e materiais necessárias para a construção e manutenção de
seus modos de vida. Segundo BONDÍA (2002), “a experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca (p. 21)” e passamos por momentos em que nunca se passaram tantas
coisas, sendo ao mesmo tempo a experiência cada vez mais rara. Ele destaca quatro pontos
fundamentais que evidenciam tal processo: o excesso de informação; o excesso de opinião; a
compressão do espaço-tempo tornando nossas vidas cada vez mais corridas nos deixando cada
vez mais sem tempo; e o excesso de trabalho. Para revalorizar a importância da experiência
no processo educativo, de aprendizagem ou de pesquisa o autor apresenta dois aspectos
importantes. Em primeiro lugar, estabelece o significado do sujeito da experiência:

2
Tal percepção foi desenvolvida por Eduardo Barcelos e compartilhada com o GT Agrária-AGB.
23

Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou
como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade,
mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua
abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e
passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental,
como uma abertura essencial (2002, p. 24).

Em segundo lugar, apresenta a etimologia da palavra experiência:

A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é


em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se
prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz
indo-europeia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia, e
secundariamente a ideia de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que
marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além;
peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas línguas, há uma
bela palavra que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito
da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço
indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade,
sua ocasião (2002, p. 25).

BONDÍA complementa a reflexão do sujeito da experiência com ideias defendidas por


HEIDEGGER (1987 apud BONDÍA, 2002), onde este deve ser um,

[...] sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre
em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus
sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente
porque aquilo de que faz experiência dele se apodera (p. 25).

Ao abrirmos a possibilidade do erro, do cair, da insegurança, nos colocamos em uma


posição horizontal aos homens e mulheres envolvidos/as na pesquisa, – considerados objetos
pela ciência positivista – em que a troca de saberes media esta relação. Esta inserção
horizontal reconhece o saber e o poder presente em todos os corpos, logo qualquer debate que
envolva temas diretamente relacionados aos saberes e fazeres existentes no território deve
respeitar as autoridades locais que o constroem e o reproduzem. Isto perpassa, também, pelo
respeito ao tempo do lugar. Esta dimensão do saber da experiência que resulta e constrói o
sujeito da experiência atravessa tanto o/a pesquisador/a que se submete e aceita tal processo,
quanto os homens e mulheres que constroem a vida e a luta presente nos territórios e lugares.
São saberes e sujeitos que tem a prática como condutor central do procedimento
metodológico, em que são postas à prova as teorias e epistemologias carregadas e passadas de
geração em geração. Portanto na medida em que o/a pesquisador/a se embebe desta realidade
passa a produzir uma ciência sentipensante.
24

Geo-grafando nas grandes vertentes do Vale do Guapiaçu: a delimitação do problema de


pesquisa

É no âmbito da atuação política e militante da AGB que chego ao Vale do Guapiaçu,


muito antes de qualquer perspectiva em desenvolver uma pesquisa de mestrado. O primeiro
trabalho de campo realizado pelo GT Agrária na região data de 13 de agosto de 2012, cujo
objetivo era realizar um diagnóstico situacional da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu, à
época inserida no conjunto de condicionantes ambientais do Comperj. Naquele momento,
além de conversarmos com representantes da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e
Pesca de Itaboraí, visitamos o Centro Comunitário de Sambaetiba, localizado em uma das
entradas do Comperj, onde realizamos um diálogo com a coordenadora do espaço. Foi-nos
relatado que a ONG Viva Rio havia realizado cursos de artesanato e viveirismo, em 2008, o
que indicava a existência de uma estratégia em andamento de cooptação e desmobilização da
população na região. Também havia sido prometido pela Petrobras que a mão-de-obra local
seria contratada para as obras do Comperj, porém a empresa nunca realizou estas
contratações. Fora relatado ainda que somente alguns proprietários de terra haviam sido
indenizados, o que já apontava para a repetição do padrão dos processos de expropriação no
estado do Rio de Janeiro (ERJ) no tocante à expansão dos grandes projetos de
desenvolvimento.
A primeira conversa realizada no Vale do Guapiaçu foi feita na casa do João Gomes,
presidente da Associação de Moradores do Vecchi – uma das 11 comunidades atingidas pelo
projeto de construção da barragem. De forma semelhante a outras situações de conflito
territorial e ambiental no estado, as informações que circulavam na região sobre a barragem-
reservatório do rio Guapiaçu eram apenas boatos, sem que em nenhum momento a Petrobras
ou o governo do estado, através da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, realizassem a
consulta prévia, livre e informada conforme aponta a diretriz da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho da qual o Brasil é signatário, assim como a devida
realização de audiências públicas conforme prevê a legislação ambiental brasileira. Outra
questão de relevância levantada – e que, todavia reflete uma extrema vulnerabilidade por
parte dos atingidos/as – dizia respeito ao grande número de posseiros que residem no local há
aproximadamente 45 anos, correndo o risco de não receberem qualquer tipo de indenização.
É neste mesmo período que alguns militantes do Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) são deslocados para o ERJ para acompanhar e organizar a luta dos
atingidos/as pela barragem. Até aquele momento, a resistência se encontrava de forma
25

fragmentada, muito em função da falta de informação. A pouca organização que havia era
capitaneada pelo Sindicato Patronal, por sitiantes e por uma organização chamada Sociedade
Civil Organizada de Macacu (SCOM). A chegada do MAB na região é o elemento mais
importante no que tange à resistência ao projeto que vigora até os dias atuais.
A partir deste instante, o GT Agrária passa a realizar uma ampla pesquisa bibliográfica
para identificar os elementos e informações oficiais relativos à implantação da barragem do
rio Guapiaçu. Era de suma importância que fosse elaborada uma análise crítica do processo de
modo que os agricultores e agricultoras do Vale do Guapiaçu compreendessem o que estava
ocorrendo, além de fornecer subsídios para as estratégias argumentativas e de ação do MAB.
Neste contexto, são produzidas pesquisas de cunho crítico a partir de levantamentos
bibliográficos e de inúmeros trabalhos de campo realizados no Vale do Guapiaçu. Processo,
portanto, notadamente marcado pela participação dos homens e mulheres do Vale e do MAB,
onde todo material escrito e mapas produzidos eram apresentados à comunidade para
validação, sobretudo dos mapas.
Os impactos socioambientais potencialmente ocasionados pelo projeto de construção
da barragem-reservatório do rio Guapiaçu apresentam dados alarmantes. São 11 comunidades
inseridas no Vale do Guapiaçu, notadamente marcada pela presença da agricultura familiar, a
saber: Quizanga, Anil, Ilha Vecchi, Vecchi, Serra Queimada, Coco Duro, Areal, Matumbo,
Boa Sorte, Sebastiana e Maria Moura, conforme explana o Mapa 1. Um dos mais graves
elementos identificados a partir dos levantamentos bibliográficos é o recorrente discurso do
“vazio demográfico” historicamente reproduzido pelo Estado brasileiro para legitimar a
implantação dos seus projetos territoriais. De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental
(RIMA) do Comperj, elaborado pela empresa Concremat, é sinalizada a possibilidade de
construção da barragem devido ao seu importante volume de água, por ser uma bacia
hidrográfica que apresenta altos índices de preservação e por não possuir ocupação (AGB,
2014). Dentre este e outros motivos, passa a ser estratégica, então, a elaboração de relatórios
independentes que pudessem contrapor os argumentos produzidos pelos estudos
encomendados pela Petrobras e pelo governo do estado. A partir do RIMA produzido pela
empresa Ambiental Engenharia e Consultoria em 2013 e aprovado pelo Instituto Estadual do
Ambiente (INEA), a AGB produziu, em 2014, o contra-estudo de impacto ambiental (AGB,
2014) e o MAB produziu, em 2015, o Dossiê dos Atingidos pela Barragem do Guapiaçu
(MAB, 2015).
26

Mapa 1 – Projeto Barragem do rio Guapiaçu – Áreas de Influência

Fonte: AGB, 2014.


27

Estes estudos independentes aliados às estratégias políticas adotadas pelo MAB,


sobretudo a partir da articulação com o Ministério Público Federal e mandatos parlamentares,
provocaram a anulação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) /RIMA da barragem do Rio
Guapiaçu deixando condicionada a produção de outro EIA/RIMA para que fossem
devidamente sanadas as inconsistências técnicas apresentadas no primeiro relatório. O
segundo EIA/RIMA só viria a ser aprovado e publicado pelo INEA no final de 2015.
No início de 2016, já em um contexto de falência financeira do ERJ provocado,
sobretudo, pelo projeto de (des)governo do PMDB, sob o comando do ex-governador Sérgio
Cabral (hoje preso e condenado pela Operação Lava Jato) e atualmente pelo governador Luiz
Fernando Pezão, há um deslocamento da justificativa adotada para legitimar a barragem do
rio Guapiaçu. Se anteriormente ela era tratada enquanto condicionante ambiental do Comperj,
devido ao consequente adensamento populacional que viria a ser ocasionada pelo
empreendimento, esta passa a ser apontada enquanto solução para a suposta crise hídrica por
qual passa o ERJ. A falência do estado e a crise provocada na Petrobras, sobretudo pela
Operação Lava Jato, fazem com que as obras do Comperj sejam paralisadas e diante desta
conjuntura o governo perde força política para legitimar a barragem, tanto do ponto de vista
financeiro como político. Esta conjuntura possibilita que o MAB e a resistência local ganhem
tempo para ampliar suas estratégias de ação e mobilização.
É justamente neste período que ingresso no Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro na Faculdade de Formação de Professores (PPG-
GEO/UERJ-FFP) com o intuito de produzir uma pesquisa-ação participante que pudesse
seguir a lógica de produzir elementos que pudessem subsidiar a resistência dos homens e
mulheres do Vale do Guapiaçu. Porém, antes de apresentarmos os objetivos da pesquisa é
fundamental tratarmos dos desafios que foram vivenciados durante os (des)caminhos dessa
pesquisa. Considero de suma importância que estes elementos sejam compartilhados e
tornados públicos, sobretudo pelas discussões já colocadas no item anterior.
O primeiro grande desafio está diretamente relacionado ao fato de ingressar em um
programa de pós-graduação em um dos períodos mais críticos – se não o mais crítico – da
história da UERJ. O projeto de Estado vinha paulatinamente sucateando a universidade e a
partir da crise financeira e política desencadeada em 2016 torna o cenário extremamente
grave. Foram vivenciadas duas grandes greves durante os dois anos de mestrado, além de
seguidas paralisações que se somadas dizem respeito à praticamente metade de todo o ciclo.
As aulas da turma de 2016 de PPG-GEO/UERJ-FFP só foram iniciadas em agosto de 2016,
por decisão unânime de todos os companheiros e companheiras de turma que decidiram
28

acompanhar a greve dos técnicos-administrativos, docentes e alunos/as de graduação. Após o


retorno das atividades, foi deliberada uma nova paralisação por conta dos salários e bolsas
atrasados no final de 2016, o que desencadearia mais uma greve no primeiro semestre de
2017. Depois de um semestre letivo de apenas três meses uma nova paralisação foi pautada,
já que as promessas do governador Luiz Fernando Pezão de pagamentos relativos aos atrasos
de salários e bolsas – que chegaram há três meses, além de férias e 13º não pagos –
corriqueiramente não eram cumpridas. Esta conjuntura torna as condições de estudo e
pesquisa, além das condições de saúde, de cada trabalhador/a e estudante extremamente
vulnerável. Os semestres letivos dificilmente conseguiam recuperar a carga horária integral,
além do fato das condições financeiras afetarem diretamente o quadro anterior. A situação
relativa ao pagamento de salários, bolsas e aulas só foi regularizada a partir de meados do
segundo semestre de 2017. Foram necessárias inúmeras ações do movimento grevista e de
uma ampla rede de afeto e solidariedade entre todos e todas para que cada pessoa pudesse
seguir firme e inteira para dar prosseguimento as suas responsabilidades, já que foram
extremamente impactadas as condições materiais e subjetivas de reprodução da vida cotidiana
de todos e todas.
O segundo fator que trouxe inúmeros desafios para o prosseguimento desta pesquisa
diz respeito a dois elementos substanciais: i) a partir da conjuntura de greve e paralisações da
UERJ foi possível desenvolver uma intensa vivência no território do Vale do Guapiaçu
através do acompanhamento sistemático de inúmeras ações e atividades do MAB, além das
ações pensadas a partir da AGB. Isto possibilitou, portanto, um aprofundamento ainda maior
das relações afetivas e de confiança desenvolvidas com os agricultores e agricultoras do
Guapiaçu, sendo este um caráter metodológico fundamental para possibilitar o
prosseguimento desta pesquisa-ação; ii) é de extrema complexidade o desenvolvimento de
uma pesquisa-ação-militante que visa acompanhar e atuar concomitantemente com os
processos de resistência frente a um conflito que se encontra em curso. Foram constantemente
alterados os temas desta pesquisa. Quando ingressei com no PPG-GEO/UERJ-FFP a pesquisa
tinha o seguinte título: “Aipim não boia: da produção do alimento ao afogamento.
Diagnóstico agroambiental participativo de comunidades diretamente afetadas pela barragem
do rio Guapiaçu”. O objetivo era realizar um mapeamento participativo a partir da
caracterização dos agroecossistemas familiares cujo material final contribuísse para a
identificação da produtividade da agricultura familiar do Vale do Guapiaçu. O intento era
inserir as famílias no debate sobre a importância deste tipo de produção para alimentação da
população da região metropolitana, e que em uma eventual emissão de licença prévia, de
29

instalação e de operação do projeto, esta produtividade fosse levada em consideração nos


processos de indenização. Desse modo, busquei estabelecer uma pesquisa apoiada no método
da cartografia social, cujo intuito era elaborar um atlas das comunidades de Serra Queimada,
Ilha Vecchi e Vecchi, de forma que fosse construído um material, tendo como base o saber
local que pudesse se contrapor à linguagem e à estratégia cartográfica presente no EIA/RIMA
da barragem. Como a conjuntura de um conflito em curso pode ser constantemente alterada
mudam, consequentemente, as necessidades que são identificadas pela resistência sendo
necessário, portanto, estabelecer um limite entre a pesquisa e essas demandas. Nem sempre as
pesquisas-militantes são capazes de produzir subsídios diretos que interfiram de modo
imediato no conflito.
A partir desses desafios, passo a centrar a pesquisa no debate sobre a geografia dos
conflitos pela água no ERJ. Como sinalizado anteriormente, a partir de 2015 começa a ser
substituída a justificativa de construção da barragem do rio Guapiaçu, que antes era para
suprir as necessidades do Comperj, passando a ser legitimada enquanto resolução para a
suposta crise hídrica por qual passa o ERJ, mais especificamente a região leste metropolitana
– Itaboraí, São Gonçalo e Niterói. Na verdade, esta estratégia insere-se em um âmbito
multiescalar, fazendo parte de um movimento articulado pelo capital financeiro global para
criar as condições de expansão, acumulação e controle da água. Ou seja, esta conjuntura de
conflito pela água do estado torna premente a necessidade de identificação da ligação dos
processos nacional e global, a partir de uma análise multiescalar. Em todo o debate pautado
pelo ERJ, não são mencionados os impactos relativos à indústria do estado no tocante ao uso
da água e que passam a ser potencializados a partir dos processos de espacialização dos
grandes projetos de desenvolvimento no espaço agrário fluminense, desde 2007, notadamente
articulado a um projeto de desenvolvimento neoextrativista (GUDYNAS, 2012) capitaneado
pelo governo federal comandado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e que mantinha
importantes articulações políticas e de poder com o então governador do ERJ, Sérgio Cabral,
do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
Um primeiro esforço neste sentido foi desenvolvido pela GT Agrária da AGB em que
é problematizado o discurso da crise hídrica que não pauta o debate sobre os usos desiguais da
água distribuídos por setor no ERJ (2015). Na referida análise, é realizado um esforço no
tocante à produção de dados e de identificação de múltiplos fenômenos estruturais que afetam
diretamente a disponibilidade de água para a população fluminense. A partir de uma demanda
colocada pelo MAB, inicio em conjunto com o pesquisador Bernardo Xavier Santiago, o
desenvolvimento de uma pesquisa mais aprofundada em relação à gestão dos “recursos
30

hídricos” no ERJ. No dia 29 de março de 2017, estivemos presentes na 73ª Reunião Ordinária
do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro (CERHI-RJ) realizado na sede
do INEA, na cidade do Rio de Janeiro. Ali foi possível perceber a existência de uma estratégia
consolidada pelo capital de ocupação dos espaços ditos “participativos e descentralizados” de
gestão dos “recursos hídricos”. Sendo o CEHRI a instância máxima da gestão relativa ao tema
no ERJ, ficou evidente que a maioria das cadeiras titulares são ocupadas pelos diversos
setores do capital, sendo estes responsáveis por conduzir a gestão das políticas dos “recursos
hídricos” em todo o estado. Esta estrutura era reproduzida, portanto, no Conselho Nacional de
Recursos Hídricos (CNRHI), que está hierarquicamente acima do CERHI, e nos Comitês de
Bacias Hidrográficas, instância hierárquica de poder abaixo do CERHI. Portanto, neste
trabalho, é de fundamental importância à identificação das estratégias de controle pelo capital
do uso da água, visando espacializar o seu resultado concreto no estado.
Concomitante a este processo, em um trabalho de campo realizado pela pesquisadora
Barbara Pelacani e pelo pesquisador Bernardo Xavier Santiago, no Vale do Guapiaçu, é
identificada a existência de redes de água cuja forma de gestão ocorre a partir de princípios
coletivos, comunitários, e autônomos, que concebem a água como um bem comum sem valor
econômico. Estas redes comunitárias de água datam de 2001 e abastecem os assentamentos de
Serra Queimada e Ilha Vecchi, onde cerca de 100 famílias estão integradas ao sistema e
participam de formas distintas desta gestão. Os agricultores e agricultoras do Guapiaçu
relatam aos pesquisadores que a Autarquia Municipal de Água e Esgoto (AMAE) do
município de Cachoeiras de Macacu tentou se apropriar destas redes comunitárias, uma vez
que o Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras de Macacu (2013) previa a
expansão do controle dos processos de captação, tratamento e distribuição da água no meio
urbano e rural do município. Aproveitando a condição de vulnerabilidade destas famílias. Um
técnico da AMAE utiliza o argumento falacioso de que a partir da transferência do controle
comunitário das redes para a AMAE esta poderia emitir a outorga pelo uso da água o que,
consequentemente, poderia impedir a construção da barragem do rio Guapiaçu.
Essas famílias nos convocam (Barbara Pelacani, Bernardo Xavier Santiago, Carlos
Walter Porto-Gonçalves e Julia Miranda, ambos integrantes do LEMTO 3 e eu), a realizar uma
primeira conversa com duas lideranças locais que objetivaram: i) esclarecer a inexistente
relação entre a possível emissão de outorga pelo controle da água pela AMAE enquanto
estratégia de resistência contra a barragem; ii) entender como eram construídas as formas de

3
Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal Fluminense.
31

gestão comunitária destas redes para, posteriormente, desenvolver um debate sobre o poder
que estas famílias tinham a partir da existência destes sistemas comunitários. Desta primeira
reunião é encaminhada a necessidade de se realizar uma reunião ampliada com a Associação
de Produtores da Ilha Vecchi e Adjacências (APROVECCHI), cujo objetivo era ampliar esta
conversa e construir um debate político e de poder sobre estas redes comunitárias.
A reunião convocada pela APROVECCHI é realizada no dia 12 de maio de 2017,
contando com a presença de representantes das famílias que participam da gestão coletiva e
autônoma das redes comunitárias de água. Em um primeiro momento, foi realizada uma
rodada de apresentação e coube a nós, pesquisadores/ras, apresentar de que forma poderíamos
contribuir com as demandas que seriam posteriormente colocadas. Em seguida. Foi realizado
um debate em torno da memória destas redes, as formas constituídas de gestão e os desafios
técnicos e políticos que envolvem a continuidade desta gestão autônoma e coletiva. A partir
deste momento, ficou identificada a necessidade e a pertinência do desenvolvimento da
pesquisa que será aqui apresentada.

Os métodos de exposição e de investiga-ação

Esta pesquisa defende a hipótese de que as redes comunitárias de água da Serra


Queimada e de Ilha Vecchi constituem-se como formas de controle e de apropriação
camponesa da água, sustentadas por bases epistemológicas antagônicas à racionalidade do
Estado e do Capital. Estas formas de gestão pautadas sobre a lógica dos bens comuns e da
autonomia apresentam, na realidade, uma das múltiplas formas de interação entre sociedade-
natureza presentes no Vale do Guapiaçu e que são materializadas a partir de uma ampla gama
de saberes-e-fazeres que traduzem seus fluxos metabólicos de troca material e energética. A
partir do entendimento de que são formas reais e concretas de controle popular sobre a água,
acabam por se constituir em um enorme potencial de resistência popular frente às estratégias
de expansão do capital sobre este bem.
A defesa da minha hipótese pode ser consubstanciada a partir de duas discussões
fundamentais para a compreensão do contexto em que os conflitos pela água no ERJ ocorrem.
A primeira discussão – apresentada no primeiro capítulo - parte do entendimento de
que todo conflito pela água é, necessariamente um conflito pela terra. Desse modo, no
presente trabalho identifico e apresento a epistemologia camponesa do Vale do Guapiaçu que
se materializa através dos saberes e fazeres que atravessam as diversas formas de sentipensar
a agricultura, um importante elemento estratégico para o debate com a população da região
32

metropolitana do ERJ. Do mesmo modo, realizo uma descrição histórica da conjuntura que foi
responsável pela criação destas redes comunitárias de água, identificando o modelo de
controle popular, pautados pela lógica dos bens comuns, pela autonomia e gestão coletiva, e
os desafios e conflitos que perpassam a consolidação dessa apropriação camponesa, assim
como ameaçam este poder popular.
O segundo debate fundamental, apresentado no segundo capítulo, baseia-se na
desconstrução do discurso promovido pelo capital de que passamos por um contexto de crise
hídrica, sendo a água um recurso finito. Nesse sentido, aponto dados referentes ao consumo
da água por setor no Brasil, as múltiplas formas de cercamentos das águas e as estratégias e
coalisões que são criadas, pelas diversas frações do capital, para ocupar e centralizar os
espaços de gestão “dos recursos hídricos”, fortemente pautadas por agentes financeiros
globais, assimiladas e reproduzidas através de uma política de Estado. Busco apontar a
relação da espacialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ com uma
conjuntura global, e como estes são mecanismos territoriais de apropriação de terra, água e
energia, que se constituem como vetores de expropriação e espoliação de territórios e da
natureza. Associo esta conjuntura global-nacional-regional à proposta de construção da
barragem do rio Guapiaçu, buscando desconstruir as justificativas adotadas para legitimar tal
projeto. Por fim, trago elementos que pretendem contribuir para a construção de uma
estratégia popular territorial e em escala pela defesa dos bens comuns.
No presente trabalho, utilizo a categoria de Escala como ferramenta teórico-
metodológica para realizar uma aproximação entre a teoria e o material empírico, uma vez
que entendo que os fenômenos se apresentam de forma multiescalar, o que fundamenta toda a
lógica de defesa da minha argumentação. Nesse sentido, parto do entendimento de que a
Escala deve ser pensada sobre a tríade poder-tempo-ação utilizando os debates produzidos por
BOURDIEU (1989), CASTRO (1995, 1999), HAESBAERT (2002), KOSIK (1963),
LACOSTE (1985), SANTOS, M. (1994, 2002), SANTOS, R. (2011) e VAINER (2002) para
fundamentar tal ideia. Retornarei a esta discussão ainda nesta introdução. Do mesmo modo,
apresento o debate sobre o conceito do Metabolismo a partir dos autores FOSTER (2005),
HOURTART (2011), MÉSZARÓS (2011), MOREIRA (2006, 2008), PORTO-
GONÇALVES (2016), TOLEDO (2008) e TOLEDO E MOLINA (2008) que é divido em
dois momentos: i) no primeiro capítulo, busco definir o Metabolismo Social para pensar as
análises sobre as relações camponesas materializadas a partir das ligações estabelecidas com a
água e a terra; ii) no segundo capítulo, busco definir o Metabolismo do capital enquanto
organicidade que se reproduz através do processo de expansão e acumulação do capitalismo
33

provocando, necessariamente, fraturas metabólicas sobre os territórios e as pessoas que os


constroem.
Assim, no primeiro capítulo, discuto o conceito de Metabolismo Social conforme
descrito acima, e apresento o debate sobre Território e Lugar de modo a aproximar os dois
conceitos, utilizando PORTO-GONÇALVES (2006), HAESBAERT (2002, 2004, 2007),
RAFFESTIN (1993), OSLENDER (2002), LEFEBVRE (1991), SACK (1986) e SANTOS
(2000). Para tanto, faço, neste capítulo, um paralelo entre a película “Os Narradores de Javé”
e os homens e mulheres do Vale do Guapiaçu já que as falas das pessoas do lugar ocupam o
centro do debate, uma vez que são os/as únicos/únicas capazes de contar suas próprias
histórias. É sob esta perspectiva que apresento duas experiências concretas de projetos
populares calcados a partir da episteme camponesa e de suas tecnologias sociais, avessas à
lógica de reprodução e expansão do capital. Em seguida, abordo a experiência relativa às
redes comunitárias de água presentes no Vale do Guapiaçu a partir do debate sobre bens
comuns, autonomia e poder. Portanto, serão apresentadas as diversas expressões da
temporalidade do território, notadamente atrelada aos conhecimentos e práticas que se
materializam na relação com a terra, com a água e com o alimento, onde cada um destes
elementos é regido pelo respeito ao tempo da natureza. Estas relações aparecem no vínculo
entre o ciclo da lua e os diferentes tempos de plantio e colheita de determinados alimentos;
entre a variação do clima e o seu efeito sobre a temperatura da terra; e a incidência de chuvas
e ventos para a construção do tempo do trabalho.
No segundo capítulo, retorno à discussão teórica sobre o Metabolismo, caracterizando
a organicidade de trocas e fluxos de energia e matéria do capital a partir do debate do conceito
de acumulação por espoliação de HARVEY (2004, 2011), utilizando, ainda, LOUREIRO
(2015). A partir da discussão sobre o atual estágio e conjuntura do controle do capital sobre a
água, aponto as múltiplas formas de cercamento das águas, identificando as frações do capital
que são responsáveis pela superexploração hídrica no ERJ. A partir disto, aponto como este
controle é operacionalizado através de estratégias que reproduzem as diretrizes dos agentes
financeiros globais no que tange à gestão dos “recursos hídricos”, a partir da ocupação dos
espaços ditos “participativos e descentralizados” onde há uma evidente tendência de
centralização e controle destes espaços por estes setores. Em seguida, me aproximo da escala
de análise regional em que a espacialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ
tem uma relação direta com a corrida global por terras, água e energia, levando à
concentração e à superexploração da natureza através da propagação de falhas metabólicas
nas condições cotidianas de produção da vida, se apresentando espacialmente de forma
34

diferenciada. Por fim, apresento os três distintos projetos territoriais para a construção da
barragem do rio Guapiaçu: i) o Estatal-Privado; ii) o da elite patronal local; e iii) o do MAB.
Neste item, exponho os dados relativos ao uso da água por setor na região metropolitana do
ERJ para problematizar e desmistificar a falácia da crise hídrica construída pelo Estado em
conluio com o capital. Finalmente, faço uma breve reflexão sobre a necessidade de se re-
pensar outras formas estratégicas de construção da defesa das águas e dos bens comuns.
É a partir das concepções apresentadas ao longo desta introdução, que se justifica a
utilização da metodologia de pesquisa-ação fundamentada por THIOLLENT (2002). Segundo
o autor, com a orientação metodológica da pesquisa-ação os pesquisadores estariam em
condição mais propícia de produzir informações e conhecimentos de uso mais efetivo, uma
vez que, na construção do conhecimento, o saber empírico das populações tradicionais é
mesclado ao saber teórico produzido e debatido na academia. É nesse sentido que FALS
BORDA (1978) propõe a revalorização da ciência popular, pois o contato com os territórios é
uma potencia para fazer aflorar conhecimentos e articular uma voz respeitável que foi
oprimida diante da ciência tradicional, que em sua aparente simplicidade pode oferecer uma
das respostas vivenciais que mais necessitamos para uma crítica à realidade na qual estamos
inseridos.
Sendo assim, esta pesquisa compreende que o saber popular não está codificado para
utilização da ciência dominante, mas que ele tem sua própria racionalidade e estrutura de
causalidade. Configura-se como uma ciência emergente e subversiva de cultura reprimida e
silenciosa, que permitiu ao homem criar, trabalhar e interpretar com os recursos diretos que a
natureza oferece. Cabe ressaltar que a pesquisa-ação é uma metodologia de pesquisa
participante engajada, em oposição à pesquisa tradicional, que é considerada como
“independente”, “não reativa” e objetiva. Esta metodologia coletiva e colaborativa favorece as
discussões e a produção de conhecimentos específicos sobre a realidade vivida, a partir da
descaracterização das estruturas hierárquicas e das divisões em especialidades, que
fragmentam o cotidiano (MOLINA, 2004). Enquanto prática desnaturalizadora, privilegia a
participação na transformação da realidade. Para tal, faz-se necessário a inserção do
pesquisador no meio pesquisado, a convivência direta com a população trabalhada e a
participação efetiva desta no processo, visando um trabalho com os homens e as mulheres do
território.
O projeto de pesquisa tem claramente o objetivo de fazer a universidade extrapolar
seus muros e dialogar com as comunidades fazendo com que o conhecimento produzido no
âmbito acadêmico, circule e dialogue com um universo mais amplo. Trata-se de fazer com
35

que o saber teórico e técnico ganhe uma realização prática e uma eficácia social, rompendo a
dicotomia entre o conhecimento abstrato e a realidade concreta. O fundamental é que esse
saber possa cooperar com as comunidades no processo de empoderamento para poder
contribuir, reforçar e potencializar o protagonismo destes homens e mulheres nas lutas pelos
seus direitos e pela manutenção de suas condições materiais, energéticas e simbólicas de re-
produção da vida.
Além disso, a presente investigação tem claramente como uma de suas linhas
constitutivas a pesquisa como princípio científico e como princípio educativo. O processo
concomitante de produção do conhecimento e a construção do habitus da pesquisa é que
estruturaram o desenvolvimento da mesma. A minha formação enquanto pesquisador e a
produção do conhecimento sobre o território é parte essencial na realização da pesquisa, bem
como o resultado desse processo busca contribuir para o processo de resistência local.
Por outro lado, identifico que há uma tênue linha que separa a imposição dos objetivos
da pesquisa do cotidiano do lugar, e do respeito por essa temporalidade. Defendo a
necessidade ímpar do respeito ao tempo do lugar, dos homens e das mulheres, em que o
cronograma da pesquisa deve respeitar o tempo do roçado, da colheita, da comercialização do
alimento no CEASA e na feira, do reparo dos problemas técnicos constantemente presentes
nas redes comunitárias de água, do momento do descanso, da reza, etc.. É preciso criar uma
constante capacidade de mudança do planejamento da pesquisa para que esta seja adaptada às
condições e demandas do lugar. Isso fica claro, por exemplo, na fala de “Q”, quando este faz
uma análise sobre a intensidade de pesquisas e pesquisadores/as que passam a frequentar o
território a partir surgimento do conflito:

É o que eu falo pras pessoas sempre: não é que a gente tenha nada contra vocês
virem aqui fazer o trabalho de vocês. Mas a gente percebe que tá sendo usado como
cobaia, como espelho, pra poder as pessoas fazer o trabalho deles. Por um lado é
bom, por isso eu cobro sempre, tem que deixar alguma coisa pra gente, algum
legado pra nós, pra gente poder fazer uma troca de favor. Aí ele fica assim, baixou
gente de ônibus, sempre cai na casa [do “L”], ele fica doido. Aquela turma que Lena
trouxe, do negócio do INCRA 4, não veio pra ele também? Fez ele mexer na terra,
catucar planta, ele deve ter te falado isso (“Q”, entrevista realizada em 11/01/2018).

As escalas desde baixo

Neste trabalho, o conceito de escala adotado assumirá um papel central. Todo o


escopo da pesquisa terá uma abordagem escalar, tanto em relação à metodologia de

4
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
36

investigação, quanto em relação à metodologia da exposição. Entendo o conceito como algo


além de um recurso analítico e o vejo enquanto capacidade de articular raciocínios, estratégias
e ações centradas no espaço (SANTOS 2011). De modo dialético, ao mesmo tempo em que a
escala é um recurso cujo princípio cartográfico é a capacidade de representação do real ela é
aquilo que constrói realidades a partir de determinados interesses e racionalidades. Ela não só
representa, mas cria realidades dotadas de intencionalidades. Nesse sentido, defendo que é o
conceito de escala aquele capaz de criar as maiores e melhores possibilidades para aliar o
raciocínio teórico com a ação (científica, militante, revolucionária e/ou rebelde), o que
significa que há uma potencialidade do conceito capaz de realizar trânsitos e diálogos com
outras áreas das ciências humanas.
Importantes debates têm sido realizados em torno do conceito, cuja intenção visa
estabelecer uma visão crítica da concepção cartográfica e matemática da escala que a partir do
Sistema de Informação Geográfica produz um discurso de representação do mundo, orientado
pela metafísica da modernidade (CASTRO, 1999). Trata-se de uma forma de ver o mundo
que visa à representação do espaço a partir de um conjunto de técnicas que se apoiam na
racionalidade moderna ocidental, na medida em que se reproduz esta lógica leva-se a cabo a
propagação de “sistemas de imputação de significado” (CASTRO, 1999, p. 189). É durante o
Quattrocento 5 que se estabelece uma relação entre as formas de saber e a percepção visual,
logo são estabelecidas técnicas que possibilitam a expressão da visão sobre o objeto que é
analisado. Desta forma, o sujeito que vê é priorizado em detrimento ao objeto que é visto e,
desta forma, “o tamanho aparente de um objeto é inversamente proporcional a sua distância
em relação ao olho” (CASTRO, 1999, p. 190).
Estas formas de representação e imputação de significados influenciam as bases
epistemológicas da ciência geográfica que durante séculos reproduz uma lógica matemática
moderna-colonial. A utilização da escala cartográfica é uma das consequências desse
processo, pois a partir da consolidação desta forma de ser e pensar, nossa percepção de mundo
apresenta-se diretamente determinada por esta representação da realidade. Faz-se necessário,
portanto, retomar os debates que buscam a superação da dimensão cartográfica da escala e
que apontam para a necessidade da construção de um sentido geográfico da escala.
Face ao exposto, realizarei uma análise crítica da concepção cartográfica do conceito,
com o intuito de reforçar sua desconstrução. Para tanto, as contribuições de LACOSTE

5
O Quattrocento refere-se ao período do Renascimento, nos começos do século XV, ocorrido principalmente em
Florença na Itália, que possui como uma de suas características a centralidade da perspectiva geométrica na
representação da realidade.
37

(1985), que em geral é apontado como um autor que realiza uma tentativa falha de
desvinculação entre uma corrente e outra, são fundamentais uma vez que sua tentativa de
aprofundar o debate acaba por trazer importantes contribuições para a concepção geográfica
do conceito, fundamental para o suporte nas guerras de mapas que em geral são travadas em
conflitos territoriais.
Assim, defenderei a concepção geográfica da escala a partir da ideia de que o conceito
traz consigo uma tríade estrutural para seu entendimento que não pode ser desconsiderada
quando discutida: precisamos pensá-lo a partir do tempo, do poder e da ação. E o caráter
essencial que fundamenta tal tríade é o próprio corpo. Isto significa que só há uma
simultaneidade escalar e dos fenômenos porque há uma materialidade capaz de expressar
estes processos e de se expressar nestes processos. E é justamente neste bojo simbólico e
político “de expressar estes processos” e de “se expressar nestes processos” que a
compreensão do conceito a partir desta tríade se torna fundamental.

Entre níveis e grandezas, uma espacialidade negligenciada: mapear é poder!

Concordamos com SANTOS (2011) quando afirma que as “sete ordens de grandezas”
propostas por LACOSTE (1985) estão pautadas sobre uma matriz que ao nivelar as escalas
constrói uma ideia hierárquica entre elas, reproduzindo uma escalaridade hegemônica,
notadamente assimilada pelo Estado e pelo capital. Ou seja, a soma e o encaixe dos recortes
territoriais preconizam uma relação de subordinação e hierarquia nas relações entre escalas, o
que vem a prestar subsídios à ideia de ordens e centralidades em cada escala.
Há um caráter simbólico na construção da perspectiva hierárquica. BOURDIEU
(1989) assinala que

O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer


uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo
social) supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências (...) Os símbolos são os instrumentos
por excelência da integração social: enquanto os instrumentos de conhecimento e
comunicação (...) eles tornam possíveis os consensos acerco do sentido do mundo
social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a
integração lógica é a condição da integração moral (p. 10).

É também o poder simbólico algo invisível e que é exercido com cumplicidade pelos
sujeitos dominados, portanto precisamos descobri-los nos meandros do pensamento espacial,
onde ele é ignorado e desconhecido, porém assimilado. A nivelação e a consequente
38

hierarquização escalar reproduzem uma lógica que torna o poder hegemônico inalcançável e
tira do “campo de jogo” a capacidade da ação de alcançar e trabalhar em outras escalas.
LACOSTE (1985) e CASTRO (1995) concordam, mas de maneiras diferentes, que as
mudanças de escala não envolvem apenas questões quantitativas, matemáticas, mas,
sobretudo, mudanças qualitativas. O primeiro afirma que,

[...] entre todas essas cartas de escala tão desigual, não há somente diferenças
quantitativas, de acordo com o tamanho do espaço representado, mas também
diferenças qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numa
determinada escala; em outras escalas não é representável ou seu significado é
modificado (LACOSTE, 1985, p. 72-73).

O problema de Yves Lacoste, em nossa concepção, é que ao justificar seu argumento


da diferenciação das mudanças quantitativas e qualitativas, o autor acaba por apontar que os
fenômenos só podem ser representados em uma determinada escala. Este é um problema
central e que traduz uma visão multifacetada e hierárquica da escala, pois se torna incapaz de
perceber que, na realidade, os fenômenos são multiescalares. O problema da representação é o
centro da questão, por isso precisamos desconstruir uma ideia enraizada que aprisiona a
realidade a recortes previamente definidos e considerados elementares para a demonstração de
determinados fenômenos. Recorrer à escala cartográfica enquanto paradigma único significa
pensar em como encaixar aquilo que se pensa e que se quer evidenciar sobre a realidade em
um modelo teórico construído, e não ao contrário. É neste sentido que o autor peca quando
propõe uma análise escalar a partir das “sete ordens de grandeza”, calcada em um modelo
matematizado e hierárquico.
Por outro lado, CASTRO (1995) aponta que,

A complexidade da operação de recorte do real torna inadequado recorrer à escala


cartográfica como paradigma único. As diversas possibilidades da realidade obrigam
a considerar a pertinência dos seus diferentes níveis, não impondo arbitrariamente a
cartografia como nível hierárquico por algum postulado inicial. Mudança de escala
não é questão de recorte métrico, mas implica transformações qualitativas não
hierárquicas que precisam ser explicitadas (p. 23).

Qualquer tentativa de representação escalar que assuma e reproduza uma lógica


matemática e hierárquica irá reproduzir aquilo o que KOSIK (1963) chama de mundo da
pseudoconcreticidade. Segundo o autor,

O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu


elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo
tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo
39

inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica


algo que não é ele mesmo e vive apenas o seu contrário. A essência não se dá
imediatamente; é mediada ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente
daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no
fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem
passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da
essência é precisamente a atividade do fenômeno (p. 15).

O autor aponta que a reprodução do mundo da pseudoconcreticidade se apoia em uma


práxis fetichizada e fragmentária dos indivíduos, que se organizam a partir da divisão das
sociedades em classes, da divisão do trabalho e na hierarquia que estas divisões produzem.
Isto faz com que esta práxis utilitária e imediata, como sinaliza o autor, oriente a compreensão
do mundo e o modo como às relações acontecem, de forma que a verdadeira apreensão da
realidade seja dificultada. Portanto, é fundamental compreender o fenômeno para que sua
essência seja atingida. Na análise do fenômeno, há uma indagação e uma descrição do modo
simultâneo em que determinados elementos se apresentam e se escondem nele. Se seguirmos
a racionalidade do mundo da pseudoconcreticidade, “o aspecto fenomênico da coisa, em que a
coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o
fenômeno e a essência desaparece (...). A realidade é a unidade do fenômeno e da essência
(pág. 16)”. Há, portanto, disputas pela construção de realidades que irão se apoiar em
correntes científicas que visam reproduzir ou destruir o mundo da pseudoconcreticidade.
Para que se possa avançar neste sentido, faz-se necessário entender o caráter dialético
da escala. Para tanto, a compreensão da multiescalaridade dos fenômenos e sua árdua tarefa
de realizar a representação destes processos ou “coisas”, precisam ser re-pensadas para que
não seja reproduzida a lógica pseudoconcreta. Nesta direção, SANTOS (2011) nos traz outro
importante debate, ao defender que,

A escala, enquanto elemento eurístico nos permite distinguir níveis de análise do


real, mas, no real tais níveis não são níveis, mas sim, simultaneidades – dos
elementos, dos objetos e as ações que constroem o espaço geográfico. O que
justifica as narrativas escalares é, na verdade, a constatação de que as
simultaneidades (referência temporal) têm impactos, efeitos, em distintos âmbitos,
recortes espaciais. Entretanto, muitas coisas têm impactos (distintos) em diversas
(distintas) construções escalares (p. 93).

O argumento defendido pelo autor está baseado em três considerações importantes: i)


os elementos espaciais são “multiescalares”; ii) no “plano” do real, coexistem os elementos
que são separados nas narrativas escalares; e iii) no mesmo local coexistem atores, fatos e
ações cujos desdobramentos operam em diversas escalas (espaciais e temporais).
40

A questão que serve de orientação para o mapeamento dos fenômenos, sem que ocorra
a reprodução da concepção cartográfica da escala é: de que formas são representados os
distintos impactos em distintas escalas, de maneira que seja possível a apresentação da
simultaneidade e a multiescalaridade dos fenômenos? Na tentativa de responder a esta
pergunta, se faz necessário realizar outra: os fenômenos se espacializam igualmente em suas
diferentes escalas? É nesse sentido que o debate realizado por Lacoste revela sua
potencialidade, pois traz a ideia da espacialidade diferencial devido à compressão do espaço
pelo tempo. Tal situação gera uma espécie de sonambulismo espacial, pois não é possível ter a
dimensão de se estar inserido em espacialidades distintas que representam múltiplas escalas.
Diferentemente destes sonâmbulos, o capital tem uma extrema capacidade de articular ações
centradas no espaço em suas diferentes escalas. Conforme já afirmado neste texto, o maior
erro do autor foi criar um modelo representacional que prende os fenômenos a recortes
matemáticos previamente estabelecidos, tornando incapaz que o processo de representação
dos fenômenos ocorra a partir da sua percepção e entendimento. Isto fica evidente quando
LACOSTE afirma que,

O problema das escalas é, portanto, primordial para o raciocínio geográfico.


Contrariamente a certos geógrafos que declaram que ‘se pode estudar um mesmo
fenômeno em escalas diferentes’, é preciso estar consciente de que são fenômenos
diferentes porque eles são apreendidos em diferentes níveis de análise espacial
(1985, p. 76).

A partir da explanação de KOSIK (1963) sobre os fenômenos e a


pseudoconcreticidade, pode-se afirmar que fenômeno e essência juntos trazem a compreensão
da realidade. Ora, se os fenômenos são representações de uma mesma essência, estes são, na
verdade, um mesmo fenômeno que se espacializa diferencialmente. Segundo HAESBAERT
(2002), o próprio Yves Lacoste reconhece, alguns anos depois, em um trabalho em que ele
analisa as estratégias de bombardeios norte-americanos na guerra do Vietnã, que apenas uma
análise multiescalar permite discernir diferentes aspectos do real que uma vez articuladas
trazem a dimensão de sua complexidade.
A espacialidade diferencial pensada enquanto recurso metodológico permite
representar, através de distintas escalas, fenômenos que se espacializam diferencialmente.
Multiescalaridades trazem consigo uma multiespaçotemporalidade, e só é possível a
identificação desses processos através de um entrecruzamento, ou uma articulação, de
diferentes mapas produzidos em diferentes escalas, que analisados em conjunto permitem
identificar a simultaneidade e a multiescalaridade dos fenômenos.
41

Face ao exposto e diferente das ordens de grandeza e dos níveis de análise propostos
por Yves Lacoste, neste trabalho não faço uso de um conjunto de escalas pré-definidas que
tendem a adaptar a realidade ao modelo. Desse modo, faz-se necessário, em primeiro lugar,
identificar a essência dos fenômenos para a identificação das suas espacialidades diferenciais,
e a partir disto, pensar representações capazes de disputar a construção de realidades.

Espaço, tempo e poder: por uma rebeldia do espaço-tempo

A ideia da multiescalaridade traz consigo uma indissociabilidade entre tempo e


espaço. Se há uma espacialidade diferencial, há uma temporalidade diferencial. E é a escala
que permite que haja uma dinâmica concomitante entre espaço e tempo, pois segundo
SANTOS, R. (2011), a dinâmica é entendida “não somente enquanto algo mutável e não
estático, mas, sobretudo porque ela é definidora de (e definida por) dinâmicas – os
ordenamentos, os fenômenos, nada mais são do que a dinâmica da sociedade e/ou da natureza
(p. 121)”.
SANTOS, M. (1994) aponta que a aceleração contemporânea, fruto da modernidade, é
fundamentada pela ideia de um tempo “despótico” e um “instrumento de medida
hegemônico” que tende há comandar outros tempos. Esta temporalidade hegemônica, na
medida em que se espacializa, tende a entrar em confronto com temporalidades não
hegemônicas, já que esta é um vetor dos agentes hegemônicos. O meio técnico-científico-
informacional e suas verticalidades se tencionam ao chocarem com horizontalidades (fixos e
fluxos) opondo racionalidades distintas. O lugar é a arena, e o conflito se dá como mediação
destas relações, onde o território torna-se a “superposição de sistemas de engenharia
diferentemente datados, e usados, hoje, segundo tempos diversos (p. 21)”. Este choque ocorre
na medida em que há uma tentativa de harmonização espaço-temporal através do processo de
expansão da acumulação de capital.
SANTOS, M. (2002) nos remete aos “tempos longos” e “tempos curtos” de Fernand
Braudel, onde – de forma sintética - o primeiro é marcado por mudanças estruturais, enquanto
o segundo se caracteriza por ocasionar mudanças conjunturais, pois evidencia a importante
influência que o historiador exerceu, a partir destas ideias, nos diversos campos do
pensamento científico, do natural ao social. Aliás, HAESBAERT (2002) também sinaliza a
importância do autor e destas duas dimensões temporais chamando-a de ‘a temporalidade
diferencial’ de Braudel (p. 108), ao entender que este é um importante elemento para dar
42

continuidade à espacialidade diferencial de Yves Lacoste. Retornando a SANTOS, M (2002),


ele procura ultrapassar a ideia de tempos longos e curtos ao defender que,

[...] em nossos dias, a proposta de Braudel de um tempo longo e de um tempo curto


perderá eficácia – em geografia e nas outras disciplinas territoriais – se a essa
oposição não superpusermos outra ideia que sugerimos que seja igualmente expressa
em dois termos opostos: a noção de um tempo rápido ao qual se antepõe um tempo
lento. Aqui, estamos falando de quantidades relativas. De um lado, o que nós
chamamos tempo lento somente o é em relação ao tempo rápido, e vice-versa, tais
denominações não sendo absolutas. E essa contabilidade do tempo vivido pelos
homens, empresas, instituições será diferente de lugar para lugar. Não há, pois,
tempos absolutos. E, na verdade, os ‘tempos intermediários’ temperam o rigor das
expressões tempo rápido e tempo lento. Mas a vantagem da nossa proposta é a sua
objetividade. É certo que o tempo a considerar não o é das máquinas ou
instrumentos em si, mas o das ações que animam os objetos técnicos. Mesmo assim,
são estes que oferecem as possibilidades e dão os limites (p. 267).

O controle do tempo é um importante elemento a ser disputado, uma vez que a ideia
de um tempo hegemônico que controla os demais tempos é facilmente contrariada quando são
identificadas multitemporalidades em distintas ou em mesmas escalas. Ao adotar a concepção
de escala a partir de uma tríade tempo-poder-ação pode-se pensar a estratégia e entender as
conquistas a partir das temporalidades e suas confrontações e disputas de poder. Identificar as
multitemporalidades em cada escala de atuação permite pensar estrategicamente quais
conquistas materiais e imateriais os movimentos e lutas populares podem alcançar no tempo e
no espaço. Interessante pensar a possibilidade que há dentro de uma mesma escala de atuação
possibilidades de ganho materiais e imateriais em diferentes tempos. Isto pode ocorrer
justamente pela presença de multitemporalidades que se colocam em disputas por estares
diretamente ligadas a distintas identidades e modos de vida.
SANTOS, R (2011) traz dimensões fundamentais que aliam a importância da escala na
construção da ação, indo além de WERLEN (1992, 2000 apud Santos, 2011) quando este diz
que o estudo do espaço deve ser o estudo da ação. Ele afirma,

Aqui, nos limitamos a apontar, concordando com a importância da ação na teoria


espacial, que a recíproca é verdadeira: o espaço é também fundamental na
construção de uma teoria da ação. Afinal, a leitura dos ordenamentos espaciais,
enquanto cadeias de eventos interdependentes, cadeias de determinações espaço-
temporais, se torna crucial para compreender não somente os conjuntos de
comandos que presidem a ação, mas também, seus conjuntos de desdobramentos no
fluxo do devir. A escala enquanto dimensão espaço-temporal da sociedade que
expressa, influencia e consubstancia tais cadeias de ordenamento e
interdependências, se constitui, portanto, não somente num instrumento heurístico-
analítico, mas numa instância do próprio fluxo de práticas sociais rotinizadas.
Somente assim podemos assumir que um mesmo indivíduo ocupe e desempenhe
‘múltiplas posições de sujeito’, se envolvendo em diversas redes de relações, sendo
que uma interfere na dinâmica da outra não somente pelas operações de ‘reencaixe’
43

(mediação e influência das relações sociais) e pelas situações de fricção espaço-


temporal interescalar, mas também pelos imbricamentos, influências e ‘desvios’ no
comportamento que são construídos na indestrutível unidade do próprio indivíduo
(SANTOS, M., 2011: p. 122).

VAINER (2002) compartilha uma ideia relacional da escala ao defender que elas não
são algo dado sendo, na verdade, objetos de confronto, assim como é também o confronto
entre a definição da prioridade das escalas onde os embates se darão. Ele afirma que “escolher
uma escala é também, quase sempre, escolher um determinado sujeito, tanto quanto um
determinado modo e campo de confrontação (p. 25)”. Adicionamos a esta ideia do modo e do
campo de confrontação a importância do tempo, ou seja, de qual temporalidade acessar a
partir das estratégias de ação formuladas, de modo que possamos pensar a dinâmica espaço-
temporal dos processos e suas simultaneidades escalares e posteriormente pensar a ação no
espaço. O autor traz questões importantes para pensar a espacialização hegemônica e suas
estratégias de articulação escalar:

De que forma as coalizões dominantes locais se articulam horizontal e


verticalmente? Como grupos de interesses e segmentos de classe, que posição
ocupam e como interagem com o bloco hegemônico nacionalmente? Como e com
que redes globais a cidade está conectada? [...] Que peso têm os vários grupos? Qual
o papel de segmentos da classe média tradicional? E as velhas oligarquias?
(VAINER, 2002: p. 28).

Pensar a ação na escala do território permite a possibilidade de se disputar o controle


do tempo, entendendo que há uma indissociabilidade entre tempo e multiescalaridades, ou
seja, que em uma mesma escala existem multitemporalidades. Ao mesmo tempo, é preciso
estar atento ao fato de que diferentes escalas possuem temporalidades hegemônicas e por isso
as estratégicas de ação devem estar preparadas para acessar estas diferentes temporalidades. A
questão é que a partir do controle do território temos acesso ao controle do tempo
hegemônico. Significa dizer que, na medida em que há existência – material ou simbólica - de
um confronto entre distintas espaço-temporalidades, há uma disputa pelo poder, pelo espaço,
pelo tempo. A disputa pelo controle do tempo é uma disputa pelo lugar e pelo território, e na
medida em que se tem este poder há a possibilidade de jogar entre tempos rápidos e tempos
curtos, a partir das ações pensadas na escala e em escala. Segundo SANTOS, R (2011),

Esta perspectiva analítica sobre a escala requer, primeiro, uma leitura ampla e aberta
sobre poder, sobre as relações de poder e as práticas de poder, conduzindo uma
indissociabilidade entre poder, práticas (ações) e escala (que emerge vigorosamente
como relação). As noções (de níveis) tradicionalmente associadas à ideia de escala
[...] são então transformadas em marcos referenciais que alicerçam complexos jogos
44

e processos que fundam novas escalas, ao mesmo tempo em que resinificam,


refuncionalizam, anulam ou ignoram estas ‘antigas’(p. 124).

Conflitos pelo território são conflitos pelo controle das multitemporalidades que
perpassam esta escala. Para o capital, controlar os recursos contidos no território, e o saber
daqueles e daquelas que ali vivem, permite a aceleração do tempo, logo da superexploração
da terra, da água, da energia, da matéria, do homem e da mulher, e da vida. Assim, é
fundamental a desaceleração do tempo!
45

1 A GEORAFIA E O CALENDÁRIO DA ÁGUA E DA TERRA NO VALE DO


GUAPIAÇU

Neste capítulo realizo a discussão sobre os saberes-e-fazer re-produzidos no território


que compõe o processo metabólico camponês. Em um primeiro momento construo a
discussão teórica dos conceitos de Metabolismo e Território que irão conduzir a análise dos
processos apresentados. Após esta discussão apresento duas experiências concretas de
alternativas populares embasadas por tecnologias sociais diretamente relacionadas à episteme
camponesa, calcadas sobre uma profunda observação da dinâmica da natureza para parti-la
disto reproduzir alternativas concretas de recuperação dos corpos hídricos. O objetivo é
problematizar a ideia de que apenas a ciência é capaz de apresentar soluções concretas para a
resolução de questões relativas à falta de água. Em seguida entro na discussão central deste
capítulo, onde abordo o histórico e a conjuntura que leva os agricultores e agricultoras do
Vale do Guapiaçu a criarem suas redes comunitárias de água. Esta análise busca entender a
forma de gestão e os princípios que regem estas relações hidrocomunitárias, estando elas
carregadas pelo sentido dos bens comuns, da autonomia e do poder. Por fim, busco apresentar
as diversas formas de sentir-pensar-e-fazer a agricultura no Vale, responsável por alimentar
grande parte da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

1.1 Entre piez y cabezas: chaves teórico-metodológicas (1)

Quando o subcomandante insurgente Marcos explica o processo de construção da


caravana zapatista que levou milhares de indígenas para o Distrito Federal mexicano, é feita
uma relação entre a cabeça (o pensar) e os pés (o fazer). Ainda que Marcos esteja apontando o
fato do protagonismo zapatista ser construído pelas e pelos indígenas e que não há, portanto,
um “núcleo duro” externo ao território que conduz as estratégias e concepções políticas e de
luta, este traz uma importante e bela reflexão acerca de indivisível separação entre o saber e o
fazer, ou a teoria e a prática, que são construídas pelos homens e mulheres indígenas. Vejo
que o mesmo ocorre no Vale do Guapiaçu e a partir disto construo e apresento uma discussão
teórica, cuja dimensão deve sempre orientar a ação. Nestes territórios tradicionais está
presente uma das ânsias mais importantes do pensamento científico libertário: a práxis. Por
46

isso, devemos aprender com estes e estas, já que seus pés nunca deixaram de ser uma cabeça
pensante e suas cabeças nunca deixaram de ser um pé caminhante e descalço.

1.1.1 O circuito sociometabólico camponês

A intencionalidade na utilização do conceito de Metabolismo visa diferenciar duas


racionalidades que apresentam diferentes formas de apropriação da natureza, e que são
mediadas a partir do conflito que se materializa no projeto de construção da barragem do Rio
Guapiaçu. Estamos falando de uma racionalidade moderna-colonial que se expressa através
de um contínuo processo de expansão da acumulação do capital e que tende a controlar e
mercantilizar a vida através dos seus projetos de morte, onde cada avanço ocorre a partir do
empreendimento de fraturas metabólicas. Esta racionalidade encontra no território do Vale do
Guapiaçu uma razão antagônica e alternativa calcada em processos de reprodução comunitária
da vida, com uma enorme complexidade e diversidade que carregam consigo uma enorme
potencialidade e possibilidade concreta de promover as rupturas necessárias com os processos
de mercantilização da vida. Trata-se de uma episteme camponesa que constrói seu
metabolismo com a compatibilização do tempo das águas, da terra, da lua e que materializam
através da produção do espaço relações que são pautadas a partir do comum. Nesse território
camponês criam-se formas sócio-metabólicas de longa duração que de geração em geração re-
criam as condições materiais e simbólicas de re-existência dessa população moradora
(PORTO-GONÇALVES, 2016). É necessário realizar tal diferenciação entre estas
racionalidades uma vez que nos encontramos no bojo de um conflito em curso – e em uma
escala global, no aprofundamento da crise civilizatória, e necessitamos nos contrapor aos
discursos e às práticas hegemônicas produzidas por aqueles que detêm o controle dos meios
de produção, que ao separara natureza da sociedade a transforma em matéria prima, sendo
esta dicotomia fundamental para a produção dessa lógica espacial.
Face ao exposto, dividiremos a análise em dois momentos. Neste capítulo, iremos
concentrar o debate em torno do metabolismo camponês característicos do Vale do Guapiaçu,
demonstrando que no saber-fazer comunitário e cotidiano esta racionalidade dicotômica não
se encontra presente. No capítulo dois, iremos retornar com este debate teórico apresentando a
lógica das rupturas metabólicas capitalistas e corporativas enquanto forma continuada de
expansão da acumulação e de destruição da vida. Porém, é fundamental que estejamos atentos
47

ao fato de que estes processos são concomitantes, multiescalares e se encontram em constante


disputa.
Assim, o primeiro exercício a ser feito é romper com uma racionalidade científica e
moderno-ocidental. MOREIRA (2006) nos mostra que a essência do pensamento positivista
tende a reduzir fenômenos a um conteúdo físico e encadeá-los através de uma interação ao
redor deste reducionismo por meio da ramificação do pensamento científico – logo, do senso
comum – fragmentando os diferentes campos teóricos e metodológicos. Está no bojo deste
processo paradigmático a reinterpretação do conceito de natureza, reduzindo-o a dimensões
inorgânicas e matemáticas (MOREIRA, 2008). Este paradigma hegemônico (e
hegemonizante) postula que nossa espécie se encontra em um vazio ecológico, onde a
satisfação das nossas necessidades – impulsionadas pelo sistema capitalista – nos leva a
acreditar que o padrão preconizado de utilização, manipulação, transformação e excreção dos
elementos da natureza não geram nem impactos nem transformações sobre ela. Esta ordem
paradigmática considera estes impactos ecológicos, territoriais e sociais enquanto um fator
externo aos cálculos do mercado e por isso não é considerado no processo de acumulação do
capital (HOURTART, 2011). Nossas relações sóciometabólicos estão inseridas em uma
complexidade tamanha que não podem ser reduzidas a uma análise físico-biológica, tampouco
social-econômica (TOLEDO e MOLINA, 2008).
TOLEDO (2008) nos oferece uma concepção metabólica para além daquelas correntes
clássicas, provenientes de uma matriz físico, química e matemática, que nos possibilita uma
análise integrada, uma vez que para as sociedades o metabolismo está diretamente
relacionado/mediado pelo desenvolvimento material-simbólico de suas necessidades.
Significa dizer, segundo a concepção adotada, que o processo geral de metabolismo gera uma
situação de determinação recíproca entre sociedade e natureza, já que a forma característica
de nossa espécie se apropriar da natureza, ou seja, a forma que nos organizamos enquanto
sociedade irá determinar a forma que iremos transformar a natureza, condicionando
necessariamente a forma como a sociedade se configura. Ao realizarmos tais atividades há um
processo de socialização de frações ou partes da natureza, ao mesmo tempo em que há uma
naturalização da sociedade na medida em que produzimos e reproduzimos nossos vínculos
com a natureza. Estes processos metabólicos baseiam-se em duas dimensões, material e
simbólica, onde um conjunto de ações articulado entre sociedade e o meio natural é traduzido
a partir das crenças, conhecimentos, percepções, estéticas, imaginação e/ou intuição. Trata-se
do processo de transformação de determinados fluxos e quantidades de matéria e de energia
48

do meio natural para o meio social. Há, portanto um processo ecológico da sociedade e social
da natureza.
Porém, precisamos estar atentos ao fato de que há um caráter espaço-temporal
embutido no conceito, logo tal proposta deve situar os fenômenos sociais e naturais em uma
análise multiescalar para poder dimensionar as diferentes formas e intensidades de
apropriação da matéria e da energia. Estas múltiplas formas de apropriação da natureza se
encontram historicamente em disputa, na medida em que o projeto civilizatório moderno-
colonial avança. As relações que nossa espécie estabelece com a natureza são sempre
biometabólicas (energia endossomática) e sociometabólicas (energia exossomática). Na escala
do corpo, extraímos quantidades suficientes de matéria e energia para sobrevivermos
enquanto organismos e excretamos estas variedades materiais e energéticas depois de
assimiladas. Na escala societária, esse processo de extração e excreção é realizado a partir de
um conjunto de relações/nexos de diferentes tipos, através da articulação dos indivíduos, para
garantirem sua subsistência e reprodução através dos processos de apropriação, circulação,
transformação, consumo e excreção. No sistema capitalista, há uma forte predominância das
energias exossomáticas sobre as endossomáticas, o que ocasiona uma forte pressão sobre a
natureza, logo os radicais exo/endo servem como indicador da intensidade metabólica das
diferentes formas de apropriação. Segundo TOLEDO (2008), no metabolismo destrutivo
industrial a soma da energia exossomática apropriada da natureza corresponde a uma
quantidade que chega a ser de 30 a 40 vezes maior do que a energia endossomática. Por
exemplo, segundo os dados da Agência Nacional de Águas (ANA, 2013), no ano de 2010,
72% do consumo de água no Brasil foram destinados ao agronegócio; o setor industrial foi
responsável por 9%; 11% foram destinados à dessedentação animal; e apenas 8% de toda
água no país foi disponibilizada para o consumo humano, sendo 7% no espaço urbano e 1%
no rural 6.
O ato de apropriação se constitui como a forma primária de trocas entre sociedade e
natureza. Através deste processo, a humanidade se alimenta dos materiais, serviços e energias
para poder se reproduzir. Segundo TOLEDO E MOLINA (2008), este processo ocorre nas
chamadas unidades de apropriação, que a partir de um enfoque escalar pode estar presente
desde o indivíduo, passando por uma pequena propriedade camponesa até uma complexa

6
O volume de água captado pela agricultura familiar, indígena e quilombola não é contabilizado neste cálculo. O
parágrafo 1º do Art. 12 da Lei nº 9.433/1997 (Lei das Águas), isenta a necessidade de concessão de outorga do
uso da água para satisfação da necessidade de pequenos núcleos populacionais distribuídos no meio rural quando
estes apresentam volumes de captação e lançamento insignificante. No ERJ a Lei nº 4.247/2004, define como
uso insignificante derivações e lançamentos com vazões de até 0,4 l/s.
49

planta industrial estatal ou privada. A transformação diz respeito às trocas materiais e


energéticas realizadas sobre os produtos extraídos da natureza que não são mais consumidos
em sua forma original. No desenvolver da geografia-histórica do capitalismo, há um processo
gradual de substituição de um regime cada vez menos intensivo em trabalho e mais intensivo
de emprego de energias e matérias (agronegócio, mineração, hidrelétricas etc.). O processo de
circulação ocorre a partir do momento em que as unidades de apropriação deixam de
consumir a totalidade do que nela é produzido, assim como não produzem mais toda a
variedade de elementos necessários à reprodução da vida. Com o desenvolvimento científico e
tecnológico, estes elementos extraídos da natureza tem a capacidade de circular por múltiplas
escalas ampliando de maneira jamais vista os raios de circulação. Cada vez mais estes
intercâmbios são mediados pelo capital, pela propriedade privada e pelos mercados. O
processo metabólico através do consumo envolve diferentes sociedades, ocorre em diferentes
unidades de apropriação e é determinado a partir das diferentes necessidades que se
estabeleceram e se estabelecem ao longo do espaço e do tempo. A excreção diz respeito ao
momento em que, depois de serem assimilados, os materiais são liberados no meio ambiente.

1.1.2 O Território é caminho das águas

O controle do território coloca-se como fundamental para garantir o suprimento da


demanda sempre em ascensão por recursos naturais, apesar dos avanços assinalados
dos novos materiais. A cientista social mexicana Ana Esther Ceceña assinala que,
‘se a tecnologia representa um dos pilares fundamentais na definição da competição
internacional e para a construção da hegemonia, outro pilar de similar envergadura,
ainda que de natureza muito distinta, é o território’ (Ceceña, 2001: 07). Assinalemos
que a natureza com suas qualidades – a vida e os quatro elementos, terra, ar, água e
fogo – é o que se oferece à apropriação da espécie humana, o que se da por meio da
cultura e da política (Porto-Gonçalves, 2006, p. 287).

Para PORTO-GONÇALVES (2006), nos encontramos no período histórico


característico de uma nova divisão territorial do trabalho, onde o desenvolvimento da
tecnologia e de suas relações sociais e de poder, estabelece o controle sobre os “recursos
naturais” – sendo a natureza submetida ao capital como natureza-recurso-energia – definindo
a dimensão estratégica de cada um deles. Na medida em que há um aumento do
desenvolvimento tecnológico há, consequentemente, um aprofundamento das relações de
poder, logo das desigualdades, criando novas relações espaciais de dominação/exploração.
Esta nova divisão ecológico-territorial do trabalho assume uma perspectiva estratégica do
50

controle hegemônico da natureza que se materializa de forma multiescalar, dando também


uma nova diferenciação entre os países centrais e periféricos que não se limitam mais a
pilhagem e a superexploração da natureza, mas são criadas novas funções invisíveis atribuídas
à natureza criando “uma tensão permanente entre tecnologia e território, tensão essa que
institui o padrão de poder mundial (Anibal Quijano) nas suas múltiplas relações de escalas
imbricadas enquanto divisão territorial do trabalho (p. 292)”. Por isso, o autor defende a tese
de a problemática ambiental tem no território a sua centralidade, já que a partir do seu
controle permite definir o que, a quantidade, a qualidade, para onde, para quem e o valor do
“recurso natural” que será apropriado, transformado, consumido, circulado e excretado. Este
desenvolvimento tecnológico – ou como define o autor, “desenvolvimento das relações
sociais e de poder por meio da tecnologia (p. 292)” – gera um movimento paradoxal, já que na
medida em que se expande, tende a criar uma maior dependência em relação a estes recursos,
o que leva, portanto, há um eterno movimento de expansão de um padrão de poder mundial.
Padrão este que tende, portanto, a intensificar os conflitos territoriais que se tornam o campo
de disputa sobre o controle dos recursos naturais. Só se controla o recurso, se o território
estiver controlado. E estes embates de racionalidades distintas – que se traduzem do lugar ao
território, do território ao lugar - trazem consigo uma correlação de forças com dimensões
espaço-temporais distintas.
As escalas-temporais nos trazem uma indissociabilidade espacial/geográfica e
temporal/histórica (HAESBAERT, 2002) que nos permite contrapor distintas temporalidades.
Essas temporalidades se tornam elementos fundamentais na constituição não só da dimensão
temporal intrínseca ao processo metabólico e de evolução dos organismos vivos, mas também
das próprias condições materiais e energéticas que constituem estes territórios frente a esta
racionalidade moderno-colonial (HAESBAERT, 2004). Ora, se controlar o território é
controlar o tempo, as correlações de forças intrínsecas aos conflitos territoriais trazem consigo
uma disputa temporal e por temporalidades, já que aportam escalaridades e espacialidades do
viver e do agir especificas de suas origens – sejam elas horizontais ou verticais. O controle do
tempo permite o controle do espaço, e vice-versa, já que estes processos tendem à
sobreposição de distintas territorialidades. HAESBAERT (2004) aponta que “justamente por
ser relacional, o território é também movimento, fluidez, interconexão – em síntese e num
sentido mais amplo, temporalidade (p. 82)”.
A centralidade do território, que defende Porto-Gonçalves, na atual fase de expansão
da acumulação do capital tem em sua razão, também, o fato de a tecnologia e o seu discurso
51

hegemônico travar, nos territórios e lugares, uma disputa pelo saber. Melhor dito, uma disputa
pela hegemonia do saber. RAFFESTIN (1993) ao discorrer sobre o trabalho nos mostra que,

Nota-se, que para Foucault e Deleuze, ‘todo ponto de exercício do poder é ao


mesmo tempo um lugar de formação do saber’. Essa ligação entre saber e poder é
atestada por muitos autores. A energia pode ser transformada em informação,
portanto em saber; a informação pode permitir a liberação de energia, portanto de
força. O poder também é, nessas condições, um lugar de transmutação [...]. É ainda
aceitável a ideia de que o poder vem de baixo, se ele está no trabalho. Também é
verdade que a relação de poder é intencional e não subjetiva, uma vez que a
transformação pelo trabalho não se concebe sem uma intencionalidade e que a não-
subjetividade é evidente, pois o trabalho está encerrado numa organização que
ultrapassa e ao mesmo tempo dá significado ao sujeito. Enfim, é admissível falar de
resistência onde existe poder: resistência da matéria ou resistência do corpo social à
transformação (p. 56).

Controlar o território também é controlar o trabalho. É separar e se apropriar da


energia e da informação, e na medida em que o capital separa estas duas dimensões priva o
indivíduo de sua capacidade mais primitiva de transformação. Se o trabalho, segundo Marx é
o que regula os processos metabólicos responsáveis pelas trocas energéticas e materiais vitais
para a transformação da espécie, ao controlar o trabalho e o território, controla-se os
processos metabólicos em suas multiescalaridades. O que é também, controlar a intensidade
de apropriação, transformação, circulação, consumo e excreção da natureza.
Trata-se, também, de uma disputa por diferentes construções e representações do
espaço – que se traduzem a partir destas distintas territorialidades – e, “que comunica suas
intenções e a realidade material por intermédio de um sistema sêmico (RAFFESTIN, 1993, p.
147)”.
Percebe-se, a partir de PORTO-GONÇALVES (2006), a importância da natureza
nestas novas formas de expansão global do processo de acumulação. Tal processo cria a
geografia dos proveitos e dos rejeitos, do conforto e do drama, dos riscos e dos benefícios da
energia, em que há uma diferenciação entre os lugares de exploração, dos lugares de
transformação da matéria-prima e dos lugares de consumo. Onde os lugares de consumo se
localizam espacialmente nos países centrais, sendo aportados pelos lugares de extração e
transformação, localizados nos países periféricos. Assim, gera-se uma exploração “dos
lugares e dos do lugar” criando uma distribuição desigual dos rejeitos e proveitos (PORTO-
GONÇALVES, 2006).
OSLENDER (2002) traz uma perspectiva diferenciada ao conceito de lugar que é
atrelado ao debate sobre poder, assim como ao conceito de território, baseando-se nas
discussões de LEFEBVRE (1976) que entende a produção do espaço como um processo
52

político e ideológico. Segundo o autor, para entendermos o processo de construção da


identidade coletiva de um grupo determinado é fundamental que busquemos identificar os
lugares específicos em que a ação social do movimento se desenvolve e onde estas
identidades estão espacialmente construídas. Recuperando a ideia de espacialidade de
resistência, proposta por LEFEBVRE (1991), o autor defende a ideia de que espaço e lugar
são elementos constitutivos em uma conjuntura de conflitos e resistências e que estes aspectos
são importantes para que possamos teorizar a produção do espaço. Logo, para que possamos
espacializar estas resistências precisamos nos basear em três dimensões indissociáveis
propostas por Lefebvre: i) práticas espaciais; ii) representações do espaço; e iii) espaços de
representação. A produção social do espaço passa por uma disputa que torna indissociável
estes três aspectos apresentados, portanto há uma relação dialética, segundo OSLENDER
(2002), entre o percebido (práticas espaciais), o concebido (representações do espaço) e o
vivido (espaços de representação).
Após construir as bases teóricas que darão sustentação ao discurso adotado,
OSLENDER utiliza as noções de localidad, ubicación e sentido de lugar de AGNEW (1987)
para dar a dimensão espacial da construção das identidades coletivas que se formam a partir
de suas interações no/com o espaço. A localidad traz um aspecto para além de uma referência
espacial onde ocorrem as interações sociedade-natureza, trazendo também como estes
aspectos estão cotidianamente utilizados pelos atores sociais em suas interações e
comunicações, assim como formam estas coletividades enquanto sistemas sociais. A
ubicación se caracteriza enquanto o espaço geográfico que agrega a localidad e traz consigo
os processos econômicos, políticos e normativos operados em outras escalas dando ênfase aos
processos macroeconômicos. Já o sentido de lugar traz o elemento comumente utilizado para
a definição do conceito de lugar ao afirmar que:

Trata de expressar a orientação subjetiva que se deriva do viver em um lugar


particular, no qual indivíduos e comunidades desenvolvem profundos sentimentos
de apego através de suas experiências e memórias. O conceito de sentido de lugar
tem sido central na geografia humana e em propostas fenomenológicas que tem
ressaltado ‘a natureza dialógica da relação das pessoas com o lugar’ (Buttimer 1976,
p. 284) e as formas poéticas que as pessoas constroem o espaço, lugar e o tempo
(Bachelard, 1958). O sentido de lugar expressa então o sentido de pertencimento a
lugares particulares e insere uma forte orientação subjetiva ao conceito de lugar em
si (OSLENDER, 2002, p. 5, tradução nossa).

Ao abordar os conflitos que envolvem as comunidades negras do Pacífico colombiano,


o autor realiza uma análise didática e capaz de articular o debate entre o lugar e o território:
53

A lógica do rio, que junto com o espaço aquático constitui a localidad no Pacífico
colombiano, tem sido então o fator espacial orientador para a formação de conselhos
comunitários ao longo das bacias fluviais. Estes conselhos comunitários atuam como
principal autoridade territorial nestas áreas rurais do Pacífico colombiano que,
guiados pelos Planos de Manejo desenvolvidos pelas mesmas comunidades com a
assistência de instituições governamentais e ONGs, decidem entre outros sobre o
uso e o aproveitamento dos recursos naturais em seu território. Estes são, pelo
menos na teoria, mudanças radicais de formas de apropriação territorial, pois as
empresas com interesse no aproveitamento dos ricos recursos naturais da região –
como o ouro, a madeira e o potencial agropecuário – estão agora obrigados a
negociar diretamente com as comunidades rurais, e o Estado já não pode
simplesmente expedir concessões a estas empresas passando por cima das
comunidades, como ocorria antes da Lei 70 de 1993 (OSLENDER, 2002, p. 8,
tradução nossa).

Do mesmo modo, a noção de SACK (1986) sobre territorialidade permite uma


aproximação entre os de Território e Lugar, quando o autor afirma que:

A territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para criar


e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto
geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado
(p. 219).

Neste sentido, HAESBAERT (2007) afirma que “todo território é, ao mesmo tempo e
obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois as relações de
poder têm no espaço um componente indissociável tanto na realização de ‘funções’ quanto na
produção de significados (p. 23)”.
Quando “L” 7 fala sobre a possibilidade de ser expropriado de seu território, de sua
terra, devido à existência do projeto de construção da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu
ele traz dimensões simbólicas quando define a relação que é constituída no vale:

Vamos ser remanejado pra outra terra ou não, entendeu, como que fica nossa
situação? Eu acho que quem tem esses projetos de água, tem que ter muita
consciência com esse povo que tá aqui dentro, um povo que trabalha, produz. Manda
pra cidade, que é o objetivo da gente, numa plantação pra comer, porque nós não
vive só de comer, tem que cuidar da terra, tem que fazer suas moradias, tem que
comprar remédio, tem que fazer de tudo, então é daqui que sai nosso sustento.
Sabemos fazer. Nossa profissão é essa, a minha é essa, não tive outra profissão
nunca. Fica difícil, se eu sair daqui, sabe lá o que vai acontecer de nós. Os filhos da
gente tá estudando um pouquinho e tal, mas acontece o seguinte: se depender de
viver na roça eles sabem viver; se depender de ir pra cidade e não se der bem lá, eles
sabem viver na roça. E se eles tiram o chão da pessoa aqui, como que fica? A
situação vai ficar muito crítica. É nosso chão, nosso berço (“L” em entrevista a
Pedro D’Andrea em 09/01/2018).

7
Agricultor assentado na Ilha Vecchi.
54

As definições “chão” e “berço” utilizadas por “L” trazem a dimensão simbólica e


afetiva que traduzem o sentido de lugar circunscritos no território. HAESBAERT (2007) se
utiliza a discussão de SANTOS et al (2000) ao indicar que eles propõem uma separação entre
o território enquanto recurso, do território enquanto abrigo, a partir das ideias de Jean
Gottman (1975). O território como recurso é uma perspectiva dos “atores hegemônicos”,
enquanto “os atores hegemonizados” têm o território como um abrigo, buscando
constantemente se adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que recriam as
estratégias que garantam sua sobrevivência nos lugares. A ideia do território enquanto abrigo
vai além de um sentido de proteção e segurança, assumindo traços de afeto e simbolismo
claramente expressa na dimensão do “berço” apresentada por “L”. Dimensão semelhante, mas
a partir de outra associação, aparece quando “A” 8 explica a importância de não se utilizar o
trator e o arado no manejo da terra:

Já vai adubando. Melhor que você ficar passando trator direto. Antigamente quase
ninguém usava arado, e todo mundo produzia. É igual você tem uma ferida no corpo
aí quando você tá quase sarando você vai e machuca de novo. Aí agora vai sarar, tá
sarando aí você vai e machuca de novo. Vai levar um bom tempo, né. A mesma
coisa eu acho a terra. Você não pode ficar cortando a terra direto, direto, direto. A
terra é viva e sente dor. Claro que sente (“A” em entrevista a Pedro D’Andrea em
11/01/2018).

Este sentimento de pertencimento e correspondência aparece em todo o momento nas


falas de “A” quando são descritos os saberes e fazeres que fundamentam a episteme
camponesa9. Estes nexos fazem parte dos elementos que integram tanto o sentido de lugar
como a territorialidade camponesa presentes no Vale do Guapiaçu.
Os conceitos de território e lugar não são sinônimos, mas podem ser utilizados de
forma articulada. Em uma mesma porção do espaço podem conter os elementos teóricos que
fundamentam a construção de ambos os conceitos, o que os separa, na verdade, são as
escolhas das chaves que serão utilizadas pelo/a pesquisador/a para analisar os fenômenos
desejados. Em casos em que são analisados conflitos socioambientais e territoriais é seguro
que no plano do real estão presentes dimensões simbólicas, afetivas e de sociabilidade, ao
mesmo tempo em que está presente a correlação de forças e disputas pelo poder que marcam
estes processos. As chaves teóricas não podem, a partir do pretexto da descrição da realidade,
estar sobrepostas a estes fenômenos.

8
Agricultor assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
9
Serão aprofundadas mais a frente, neste capítulo.
55

Assim, no que diz respeito a nossa pesquisa, a concepção de território incapaz de


trazer elementos usualmente associados ao conceito de lugar, não são capazes de extrair a
complexa gama de nexos, fenômenos e epistemes que são constituídas no Vale do Guapiaçu.
Ao mesmo tempo, uma abordagem do conceito de lugar estritamente atrelada às dinâmicas
afetivas e simbólicas não será capaz de aludir às questões que envolvem a disputa pelo poder.

1.2 Os muitos Vales de Javés: seus/suas narradores/as e suas histórias de grande valor

“É isso mesmo, gente. Vão construir a barragem e Javé tá no caminho das águas, logo
isso tudo aqui vira represa”. É dessa forma que Zaqueu anuncia, em uma reunião comunitária,
aos moradores do Vale de Javé que a proposta de construção de uma barragem seria
implantada sobre as cabeças e corpos daquela gente. Depois de um grande “rebuliço” causado
pela fala de Zaqueu, o mesmo passa a palavra para ‘seu’ Vado, que também esteve presente
na reunião, e detalha a cena:

Os engenheiros abriram os mapas na nossa frente e explicaram tudinho nos ‘por


menor’, tudo com número, as foto, um tantão delas. E explicando pra gente os
ganhos e os progressos que a usina vai trazer. Vão ter que sacrificar uns tantos para
beneficiar a maioria, a maioria eu não sei quem são, mas nós é que somos os tanto
dos sacrifícios (NARRADORES DE JAVÉ, 2003).

Qualquer semelhança do tema abordado pela película com os fatos relacionados à


proposta de construção da barragem do Rio Guapiaçu não são meras coincidências. Desde os
engenheiros, seus mapas, fotos e números, passando pelo modus operandi do tratamento do
Estado dado aos atingidos, já que assim como no Guapiaçu, os moradores de Javé não foram
previamente consultados e por não terem o registro do documento que prova a titularidade da
terra, a grande maioria não seria indenizada e quando fosse, o seria com rendimentos abaixo
do valor de mercado.
A primeira vez que assisti a este filme foi justamente no Vale do Guapiaçu, no
Casarão Comunitário da comunidade de Serra Queimada, durante um processo de formação
política de militantes do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). Lá estavam
agricultores e agricultoras de diferentes idades. Desde bebês recém-nascidos, passando pela
juventude, até os mais antigos e antigas do lugar. Durante todo o filme era claro e notório a
identificação das pessoas do lugar com as histórias contadas pelos Narradores de Javé. Foi
56

neste momento, que pude perceber o paralelo entre os Narradores de Javé com os narradores
do Vale do Guapiaçu. Naquela sala, enquanto víamos a história de um povo que lutava e
resistia frente à proposta de construção de uma barragem, cuja principal estratégia era a
elaboração de uma história contada pelos próprios personagens, do outro lado da tela parecia
haver uma espécie de espelho, onde homens e mulheres pareciam se assistir. Eram atores,
personagens e diretores de sua própria história, enquanto assistiam personagens de uma
história contada.
Nesta mesma cena citada acima, onde Zaqueu e Vado contam ao povo, em reunião
comunitária, que a barragem se aproxima é explícita a existência de um paralelo entre os/as
narradores/as de Javé e os/as do Guapiaçu. Não apenas pela temática do filme que aborda um
processo que se encontra em curso no Vale do Guapiaçu, mas pela necessidade de colaborar e
evidenciar os saberes locais e desta forma contribuir com valorização das experiências
existentes no território. Em um corte de cenas, o personagem Zaqueu, conta a terceiros em
uma mesa de bar como lhe surgiu à ideia da estratégia adotada pelos moradores de Javé:

Mas, quando tudo parecia perdido, uma ideia me socorreu e começou alumiar essa
cabeça que é minha”, e continua, “Os homens disseram que só não inunda, se for
patrimônio. Então já sei o que nós temos que fazer. Vamos nós mesmo hoje escrever
a grande história do Vale de Javé. Vamos colocar no papel os enredos, gente,
desencavar da cabeça, os acontecimentos de valor, botar na escrita, fazer uma
juntada de tudo que é importante para provar para as autoridade porque Javé tem que
ter tombamento. Só que tem uma coisa, eles falaram lá que só tem validade esse
trabalho se for assim, científico (NARRADORES DE JAVÉ, 2003).

Como não sou nem de Javé, nem do Guapiaçu, não sou agricultor e nem atingido por
barragem, não tenho a pretensão de assumir o papel de ser aquele que irá construir a história
do Vale do Guapiaçu. A ideia aqui, portanto, é fazer deste capítulo um diálogo entre os
sujeitos do lugar, através das entrevistas realizadas nos trabalhos de campo, e a academia. Só
os homens e mulheres às margens dos rios Caboclo e Guapiaçu que podem contar suas
próprias histórias. Histórias estas que vão além da ocupação espaço-temporal do vale e
explicitam toda a complexidade dos saberes que são desenvolvidos a partir dos fazeres,
passados de geração em geração através da oralidade. É na fala dos antigos e antigas que estão
às histórias de grande valor. Narrativas que demonstram a complexidade da episteme
camponesa, calcadas sobre paradigmas e racionalidades tão complexos – ou mais - como
aquelas presentes na academia. Narrativas que mostram como a genialidade camponesa não
incorpora a dicotomia sociedade-natureza, nela não estão presentes à fragmentação da ciência
positivista que divide o conhecimento em temas, não há o rigoroso caráter especialista onde o
57

rigor científico das disciplinas, disciplina o conhecimento ao criar fronteiras para reprimir os
lugares de saber (SANTOS 2010).
Nestes territórios do saber, são poucos os ignorantes especializados. Os/as sujeitos/as
assumem uma multiplicidade de funções – ou carreiras, segundo a lógica positivista – onde
são administradores/as, engenheiros/as civil, elétrico e hidráulico, arquitetos/as,
agricultores/as, cozinheiros/as. Não é exagero afirmar, que os agricultores e agricultoras do
Guapiaçu, por exemplo, controlam, em grande parte do ano, o preço de diversas variedades de
alimento do ERJ. Afinal, esta variação do preço de mercado está diretamente associada à
produtividade de determinados alimentos no território.
SANTOS (1987) nos partilha a ideia de que o modelo de racionalidade científica
positivista atravessa uma profunda crise. Segundo ele, esta crise não é só profunda como
também irreversível. Portanto, defende a ideia que passamos por um momento de transição e
que por conta disso é necessário “voltar às coisas simples”. É também nos saberes populares,
dos homens e mulheres do campo e da cidade, que se encontram as alternativas que buscamos
para superação do paradigma científico positivista e deste modelo hegemônico de
cientificidade e sociedade.
Portanto, assim como Antonio Biá – o homem escolhido pelos Narradores de Javé
para escrever o livro das grandes histórias de valor do vale – trataremos de florear um pouco
este texto dissertativo. Florear e não inventar, assim como defende o personagem: “Olhe, uma
coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito. O acontecido tem que ser melhorado no
escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido”. Antonio Biá já é por existência
um contador de histórias, portanto alcançar sua capacidade de melhorar o acontecido no
escrito não é tarefa fácil, sobretudo por ser este um texto dissertativo e acadêmico cuja
estrutura textual traz algumas limitações. Creio ser necessário repensarmos os métodos de
exposição de dissertações e teses de doutorado. Afinal, quem são as pessoas que tem acesso à
linguagem produzida nestes espaços? Ora, para quem produzimos tantas páginas e
discussões? Trazer as falas dos agricultores e agricultoras, suas histórias de grande valor, seus
saberes e fazeres assume aqui estratégia central como forma de reconhecimento e valorização
dos saberes populares, assim como contribui para a construção e proliferação de outras
metodologias de exposição. Isto não é novo, mas deve ser mais valorizado e estar mais
presente dentro da academia. Trazer o saber popular para o centro do debate é apostar em
outro modelo de cientificidade.
Porém, antes de mergulhamos no Guapiaçu e seus afluentes, daremos um breve salto
até o Assentamento Mandularim, localizado no semiárido cearense para compartilharmos uma
58

história narrada por Ivania Cavalcante e Inácio do Nascimento. Mas qual a relação de um
assentamento de Reforma Agrária do município de Pentecoste com o que estamos abordando
aqui? Total relação! Relação com Javé e com o Guapiaçu e muitos outros territórios que
apresentam experiências de extrema potência e relevância. Primeiro, porque passam por um
processo de disputa pelo controle da água. Segundo, porque estão inseridos em um mesmo
contexto de famílias sem terras, que são assentadas da Reforma Agrária e tem nas suas
relações com a terra e com a água sua sobrevivência a partir da re-produção das condições de
vida. Terceiro, porque através de suas histórias de grande valor são apresentadas
racionalidades que rompem com as estruturas e concepções clássicas de disputas pelo poder e
controle da água, a partir de propostas concretas de gestão autônoma e comunitária da água.
Foi no Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), realizado em março de 2018 em
Brasília, que tive o prazer de conhecer Ivania Cavalcante e Inácio do Nascimento em uma
seção de cinema comunitário promovida pelo projeto Kombosa Me CarREGA 10. A partir de
filmes que registravam várias experiências agroecológicas pelo Brasil, entrei em contato com
a experiência do Movimento Ciclovida, que será aqui apresentada, assim como pude
conversar com ambos. Enquanto conversava, não pude deixar de pensar nas histórias
semelhantes contadas pelo “A”, agricultor, assentado da Reforma Agrária de Mercado
(RAM), com as dos filhos e filhas de agricultor e agricultora, que vivem e re-existem contra a
barragem-reservatório do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, no Rio de Janeiro, a 2.680 km
de distância. Após a experiência do Movimento Ciclovida ser apresentada, será relatada a
criação de um sistema criado pelo pai do “A”, cujo objetivo também era fazer com que
houvesse a potencialização de um olho d’água presente em suas terras.
Mergulhemos então nos saberes que se fazem desde os lugares, de seus cotidianos e de
suas lutas (PORTO-GONÇALVES, 2008).

1.2.1 O salto – horizontal - a Pentecoste, CE, em busca dos Artquíferos: O Movimento


Ciclovida e o projeto Rebrotando os Olhos D’Água

Antes não tínhamos terra, conseguimos na luta. Não tínhamos sementes,


conseguimos as sementes. E agora parecia que tudo ia bem, nosso projeto esbarra na

10
Para mais informações sobre o projeto Kombosa Me CarREGA, acessar: <https://www.youtube.com/watch?v
=ULsliVAdeMM>.
59

questão da água, frente aos quatro anos de seca que enfrentamos (Inácio do
Nascimento, Movimento Ciclovida).

O Movimento Ciclovida 11 nasce no Assentamento Rural Mandularim, em Barra do


Leme, no município de Pentecoste, estado do Ceará. Os agricultores Inácio do Nascimento e
Ivana Cavalcante, assentados da Reforma Agrária, ao perceberem o processo de
desaparecimento das sementes crioulas frente ao avanço e aprofundamento do agronegócio,
empreenderam uma viagem de bicicleta, de aproximadamente 10.000 km, a partir do Ceará
até a Argentina, passando pelo Uruguai e o Paraguai, “abordando, discutindo, coletando e
trocando, essas sementes pelo caminho (Inácio do Nascimento, CICLOVIDA, 2010)” com o
intuito de recuperar as sementes crioulas. Em sua volta, ambos compartilham as sementes
com seus companheiros e companheiras assentados com o intuito de aumentar a proliferação
das sementes, resgatando o manejo e a relação com a terra conforme faziam seus
antepassados. Passam por um longo período de abundância e experimentações até a chegada
e permanência da seca no semiárido cearense, como conta Ivana:

A gente já se viu acreditando na nossa autonomia alimentar e comendo quase que


tudo da agrofloresta. Fruto daquelas sementes, das sementes crioulas que a gente
saiu pela Argentina, pelo Paraguai e o Uruguai trocando, né? Conversando com os
agricultores, com as comunidades indígenas, com os movimentos ecologistas e
resgatando estas sementes. E aí, depois que a gente passa um bom período nutrindo
muita esperança e experimentando mesmo, de uma realidade de abundância, que a
gente é pego, como de surpresa, porque a gente até esquece um pouco desse tempo
de seca que pode acontecer. E começa esse ciclo de seca (Ivania Cavalcante,
CICLOVIDA, 2010).

A partir do cenário desolador de seca no Sertão Nordestino, como acima sinaliza


Ivania, e a partir das relações coletivas dos aprendizados acumulados das relações de
convivência e resistência comunitária com o bioma Caatinga, é que um grupo de agricultores
organizados no Movimento Ciclovida, criou um sistema de cisternas que prevê a resolução
dos problemas de falta d’água causados pelas secas e pelas cercas do latifúndio, responsáveis
pelos modernos cercamentos das águas. Esta rede de cisternas, chamado de Artquíferos 12,
está baseada em três princípios básicos: i) tecnologia simples; ii) baixo custo; e iii) eficácia.
O agricultor Inácio aponta que o principal elemento para sobreviver à ausência da água
é a criatividade, já que a grande maioria das políticas públicas são paliativas, como os carros
11
As informações sobre o Ciclovida foram extraídas do documentário produzido sobre movimento. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=oqaBg-glBUQ&t=3016s>.
12
As informações e falas reproduzidas nesta seção são provenientes dos filmes disponíveis na internet sobre o
projeto, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IOcnOhv_E5w>. Assim como, das conversas
trocadas durante a realização do FAMA, em Brasília.
60

pipa e os açudes. A partir da ineficácia destas políticas e da ausência de propostas concretas é


que Inácio pensou na criação destes Artquíferos. Segundo Ivana, foi a partir do método da
observação do caminho das águas que Inácio percebeu que poderia haver uma forma de
trabalhar em conjunto com a dinâmica do escoamento superficial destas águas, sob o
paradigma da lógica da convivência com a seca. Segundo ele, toda água que “bate” em suas
terras vai embora porque o solo não é profundo e não retém água, sendo chamado de barro de
louça, com devido aos altos índices de impermeabilidade, sobretudo quando ele se encontra
encharcado. E há um motivo importante que deve ser salientado:

Quando as matas estavam bem mais compostas, quando tínhamos uma


biodiversidade, tínhamos uma água que ficava retida no subsolo, já que penetravam
através das raízes, os grandes tocos, as árvores ocas, né?! Então nós tínhamos a água
que ficava retida no subsolo, que penetravam através das raízes, quebrando o barro
de louça, quebrando as pedras, as rochas. Aí penetravam as águas nas partes mais
altas e nas partes mais baixas ficavam aquelas vertentes que a gente chamava de
olho d’ água, ficavam aqueles poços que tanto fazia chover como não, eles
abasteciam as comunidades que viviam ali no seu entorno [...]. Antes, nestas terras,
existiam cada árvore, mas hoje só existem cadáveres (Inácio do Nascimento,
CICLOVIDA, 2015).

O latifúndio monocultor que avança sobre o bioma da Caatinga o desmata para


realizar o plantio do algodão, do milho, do feijão e para a criação de gado. O resultado
presente na paisagem, após a saída destas monoculturas, é o deserto. O que resta da
vegetação, hoje, é uma vegetação de vida curta e sem a força suficiente para penetrar o solo e
abrir o espaço para a penetração da água, conforme nos conta Inácio.
A partir do profundo conhecimento adquirido com seus antepassados, da convivência
com o bioma e cansados de esperar por políticas públicas do Estado, é que o Movimento
Ciclovida desenvolve o projeto Rebrotando Olhos D’ água. Trata-se de uma técnica de
retenção de água no subsolo, onde são cavadas cisternas no barro com 3 metros de
profundidade e 3 metros de “fundura”. Estas cisternas são preenchidas com material poroso,
onde na sua base são alocadas rochas maiores e com tamanhos irregulares, cujo objetivo é
deixar lacunas. Na medida em que a altura vai aumentando o tamanho das rochas vai
diminuindo até que se chegue a 1 metro da superfície. Neste metro final, são depositadas
areias que estavam assoreando os açudes e rios.

É uma substituição do solo, já que o nosso solo é impermeável. Temos um solo


muito raso, com um cristalino muito próximo da superfície da terra e não acumula
água, mantendo seco o nosso solo. Escavando assim, a gente vai reter... pedir a água
para ficar mais um pouquinho com a gente (Inácio do Mascimento, CICLOVIDA,
2015).
61

Estas cisternas são cavadas em pontos planos de convergências de águas e são


interligadas por valetas superficiais, onde a água e a umidade de uma cisterna se comunicam
com a outra. No centro das cisternas onde há areia depositada, são plantadas frutíferas e nas
partes intermediárias dos solos duros são plantadas espécies nativas. O objetivo é que as
raízes penetrem o solo em busca da umidade, fazendo um entrelaçamento de raízes e a
consequente comunicação das águas potencializando o lençol freático e fazendo re-brotar os
olhos d’água. Na parte mais baixa do complexo de Artquíferos, é cavado um reservatório para
que seja depositada a água excedente, esta água é que será destinada ao uso comum da
comunidade.

Os impactos são positivos, já que não estamos criando nenhuma novidade da que já
existia nesse bioma, que eram os olhos d’água. Estamos apenas recuperando esses
olhos d’água que já existiam na época que existia a vegetação bem composta com
árvores grossas, de profundas raízes que quebravam esse solo duro, essa piçarra,
esse barro de louças e essas rochas. E aí, estamos dando uma ajudinha para a água
penetrar e essas raízes novamente voltarão a engrossar, as terras começarão a se
abrir, as águas penetrarem e é assim que a gente vai tá criando esses olhos d’água
(Inácio do Mascimento, CICLOVIDA, 2015).

Pilares como a experimentação, a criatividade, o saber e o fazer, o comum e a


autonomia denotam a racionalidade que permeia as bases das relações comuns que são criadas
e potencializadas a partir de experiências que apontam para estes inúmeros processos de re-
apropriação camponesa de suas condições básicas de re-produção da vida. Da vida sem a
terra, à conquista da mesma através da luta. Com a terra, mas sem a semente, constroem um
intercâmbio de trocas de saberes e sementes entre diversos territórios em busca da fertilidade
das sementes crioulas. Depois de 10.000km de intercâmbio com sementes, experimentam um
cenário, como descrito pela Ivania, de nutrição de esperança através da abundância, até que
chegam ao desolador período das secas. Rompem e invertem as relações de poder ao
perceberem que é a partir de suas grandes histórias, experiências e saberes de valor – como
em Javé e como veremos a seguir – que estão às resoluções de crises impostas pelo capital e
suas constantes rupturas metabólicas intrínsecas ao seu processo de expansão e acumulação.
62

Figura 1 – Artquíferos: Rebrotando os olhos d’água

Fonte: Movimento Ciclovida e autor da pesquisa. Elaboração gráfica: Artur D’Andrea.


63

1.2.2 A volta do salto: rebrotando uma nascente em Papucaia, Cachoeiras de Macacu, RJ

Separados por quase 3.000 km de distância, Pentecoste e Cachoeiras de Macacu


apresentam experiências semelhantes no tocante às alternativas populares e autônomas que
são construídas através da busca pela consolidação da soberania hídrica e alimentar. No caso
do Guapiaçu, foi possível perceber duas situações, uma delas será descrita a seguir e diz
respeito a uma experiência familiar que através da criação de um sistema de recarga de
nascentes conseguiu recuperar o abastecimento hídrico de suas terras. A segunda experiência
diz respeito à criação das Redes Comunitárias de Água, objeto central deste primeiro capítulo
e que será apresentada em seguida.
Conversávamos, eu e “A”, em seu lote e de sua companheira “V” 13, ambos assentados
pelo Banco da Terra, em Serra Queimada, uma das 11 comunidades atingidas pela proposta
de construção da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu. Estávamos em seu quintal, repleto
de frutíferas e árvores nativas da Mata Atlântica, sentados em uma mesa de madeira
improvisada na sombra de um abacateiro. Apoiado no galho desta frutífera havia uma gaiola
com um Trinca Ferro, responsável pela trilha sonora durante praticamente toda a conversa.
Após quase 1h30m de prosa, questionava “A” sobre os projetos defendidos pelo
Sindicato Patronal da região, cuja proposta alternativa ao projeto da grande barragem é a
construção de três pequenas barragens, onde uma delas está localizada exatamente sobre o seu
lote, às margens do Rio Caboclo, afluente do Rio Guapiaçu. O projeto prevê o afogamento
total deste rio, que é prontamente questionado pelo próprio “A”, que defende: “Também não
resolve o problema, porque para fazer as pequenas barragens, você vai fazer em cima da
nascente. Como que vai fazer em cima da nascente, ela vai sair pra outro lugar? Não vai
não!”.
É neste momento que ele passa a narrar a experiência de um sistema de recuperação de
uma nascente elaborado por seu pai, em um terreno adquirido pelo próprio em Papucaia,
bairro do distrito de Japuíba, uma região próxima dali:

Eu me lembro que fomos morar em Papucaia, quando era moleque, tinha uma
nascente de água, aonde a gente ia morar, uma água fraquinha, Pedro. Aí falaram
com meu pai: ‘a água lá é bem pouquinha, o senhor tem que economizar’. Uma água
igual aquela que tá caindo da torneira, filetezinho mesmo. ‘Vai ter que cavar lá e
fazer um reservatório pro senhor poder ter água’. Aí meu pai: ‘não, seu Guilherme
[dono da terra] isso aí eu dou um jeito (“A” em entrevista em 11/01/2018).

13
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
64

Este sistema elaborado pelo pai de “seu” “A” possui semelhanças com o elaborado
pelo Inácio do Nascimento, apresentado anteriormente. O método que dá sustentação a toda
base do sistema é o da observação. É através da experiência e da convivência com a mata, a
terra e os ciclos da água que o saber e o fazer são desenvolvidos. Devemos associar ao
método a importância da transferência do conhecimento que ocorre através da oralidade onde
as trocas de saberes são passadas através das cuidadosas narrativas (de grande valor). Desta
mesma maneira, “A” me ensina como funciona o ciclo da água, que se caracteriza como
sustentação da lógica adotada por seu pai para construção do sistema:

A: (...) Ali em cima tem uma árvore, Pedro, ela pinga água direto. Ela tá bem no
meio do caminho. Huhn! Várias pessoas pensava... o Tiãozinho: “cê viu, a árvore
pingando água direto”. Ó, você tá debaixo da árvore, tá pingando água em você?
Pedro: Não.
A: Em mim tá. Por quê que no período de seca a árvore joga água em cima de você?
Pedro: Porque ela guardou?
A: Isso que é a lógica, meu pai não sabia ler, isso há 40 anos, 40? Eu tô com 53... 46
pra 47 anos atrás eu já sabia disso porque meu pai ensinou. Meu pai não sabia
ler não, ele aprendeu a fazer o nome dele que nós entremo na escola ensinemo a ele
fazer o nome dele; fazer conta ele sabia (...) Aí a gente tá embaixo de um pé de
árvore, seca danada, o pé de arvore pingando água aqui rapaz. Simples (...) Mas não
tá chovendo, como tá pingando água da árvore? Umas pinga mais, outras pinga
menos, mas todas elas pinga. Por isso que meu pai fez isso aí. Porque toda
árvore, você veja bem, ela puxa água, lá do peão, ela puxa água do lençol
freático embaixo, joga pras folhas, você tá entendendo? Pras folhas jogar pra
terra pra alimentar a raiz que tá em volta que não consegue pegar terra
embaixo. É o círculo da água. Por isso que meu pai plantou árvore aqui, e fez essa
vala aqui. Que é pra ela poder se desenvolver rápido, ela não ter tanta carência de
buscar água em lençol freático embaixo pra sobreviver. A água que ficaria
armazenada aqui nessa vala aqui, alimentava elas por um bom tempo. A própria
umidade daqui ia alimentando ela por um bom tempo. Então é menos tempo que ela
vai ter de coisa. Essa era a lógica do meu pai; se é certa, se é errada, essa era a lógica
dele.

É a partir do conhecimento sobre a mata que o pai de XXX consegue identificar as


espécies de árvores nativas do bioma Mata Atlântica. Acima da nascente seu pai reproduz um
bosque em uma área de cerca de 5000m² e introduz nesta área espécies que possuem alto
potencial para captar água do lençol freático. São introduzidas espécies como: Cambotá,
Carrapeteira, Embaúba, Moluro, Tarumã, Lava-Prato, Angico, Canela. Acima deste bosque,
“A”, seus irmãos e seu pai cavaram durante duas semanas uma vala de cerca de 80 metros de
extensão ao redor do bosque. A vala tinha 1 metro de largura e 1 metro de profundidade e era
revestida por barro. A ideia de construção da vala é para que as águas das chuvas não
escorram superficialmente, e ao entrarem na vala passem a infiltrar no solo. O bosque de
árvores nativas que se encontra abaixo da vala passa a puxar a umidade decorrente da água
que infiltrada no solo. Com o desenvolvimento da mata – que se encontra acima da nascente –
65

há uma consequente potencialização do lençol freático que irá abastece posteriormente a


nascente.
O conhecimento para a construção desse sistema foi possibilitado pela convivência
com o bioma e com as espécies, tanto é que além destas espécies nativas foram plantadas
banana d’água no meio da mata, mas não para o consumo de sua família. “A” conta:

Banana d’água ele plantou. “Você veja bem, meu filho, os passarinho vem comer a
banana; ele vai ajudar nós, planta banana aqui, que vai madurar banana aqui;
naquela não quero que ninguém corte um cacho”. Mas tinha muita banana. “Eles
vão vir comer banana aqui, mas eles comeram outra fruta lá na mata, com a
semente, e vão cagar aqui, e vai plantar mais”. Sabe? Meu pai, Pedro, ele ficava
assim... Ele ensinava muita coisa pra nós.

Abaixo do bosque plantado pela família do entrevistado se encontrava a nascente. Da


nascente para baixo, foi construída uma tubulação de bambu, já que naquela época não era
fácil encontrar borracha, como narra “A”. Em cada ponta de bambu era feito um furo que
servia para que uma peça fosse encaixada na outra. Esta tubulação que possuía cerca de 20
metros de comprimento foi levada até um buraco que cavado no chão formava uma espécie de
açude. O objetivo era bombear a água para dentro deste buraco, revestido com barro
vermelho. Nele foi ateado fogo para que ele ficasse cozido, se tornando impermeável, assim
como é feito com a moringa. Com o barro cozido não havia qualquer possibilidade da água
infiltrar, o que garantia o armazenamento para o uso doméstico.
Depois de oito anos morando nesta terra, o bosque cresceu consideravelmente e o
sistema de recuperação da nascente triplicou o volume de água se comparado ao volume que
havia quando sua família chegou ao local.
66

Figura 2 – O renascer de uma nascente

Fonte: “A”e autor da pesquisa. Elaboração gráfica: Artur D’Andrea.


67

De um lado há o discurso técnico hegemônico e prepotente, que não só desconsidera o


saber popular e suas tecnologias sociais, mas que entende que para a resolução de – supostas –
crises hídricas há de se promover a construção de grandes barragens. Projetos que entendem
que para que sejam solucionados problemas relativos à falta de água é necessário o
afogamento e consequente assassinato de rios, sistemas hídricos e modos de vida, assim como
toda a fauna e flora presentes nestes ambientes. Do outro lado, temos uma racionalidade que
aposta na convivência com o bioma e na reprodução de sua lógica natural. Uma racionalidade
humilde, com extrema complexidade em sua simplicidade, e que admite a possibilidade de
não estar correta, como afirma “A”, e que como apontou Inácio do Nascimento, observa que
na verdade não há nada de novo em suas criações, e sim uma repetição do que a natureza nos
oferece. Uma razão que enxerga a cooperação com a fauna e a flora local, que pensa que a
banana d’água deve ser plantada não para o consumo humano, mas para alimentação dos
pássaros, que por sua vez irão adubar o solo com sementes, contribuindo, assim, com o
reflorestamento e recarga hídrica.
Estas duas experiências refletem uma provável infinidade de muitas outras
experiências semelhantes no Brasil que re-existem aos processos de expansão do capital e que
se apresentam – de forma silenciosa e quase invisível aos olhos do campo político da esquerda
e da direita – como experiências concretas de resolução de entraves que afetam
cotidianamente a vida de homens e mulheres. São soluções apresentadas por homens e
mulheres que não necessariamente sabem ler e escrever com um lápis e um papel, mas são
capazes de geo-grafar alternativas de extrema relevância, potência e rebeldia. São estes
espaços de representação que traduzem inúmeros sentidos de lugar que precisam ser
urgentemente valorizados, potencializados, mapeados e articulados. A nós cabe a tarefa de dar
subsídios institucionais – e, quando necessário, técnico - para promover intercâmbios
territoriais para que estas experiências sejam compartilhadas.
A experiência que será apresentada e analisada a seguir está inserida no âmbito das
propostas populares que se constituem em alternativas concretas de reprodução e concepção
da gestão comunitária da água, em que as diretrizes básicas estão baseadas na lógica dos bens
comuns e da autonomia. Estes preceitos são apoiados em uma episteme camponesa que no seu
saber-fazer cotidiano reproduzem uma relação de equivalência entre sociedade-natureza.
68

1.3 A Geografia e o calendário das águas: as Redes Hidrocomunitárias entre a


autonomia, o comum e o poder

O processo de ocupação espaço-temporal dos rios Guapiaçu, Macacu e Caceribu


assume traços milenares. Há cerca de 8.000 anos, o Recôncavo da Guanabara era ocupado por
povos do tronco linguístico Tupi. Em meados dos anos 1500, os invasores portugueses se
depararam com uma complexa rede de aldeias, entre 30 e 40 aproximadamente, das etnias
Tamoias e Tupinambás (NEGREIROS, ARAÚJO E COREIXAS, 2002 apud CARNEIRO et
al 2012).
Com uma paisagem extremamente distinta da atual, carregada de florestas e
manguezais, a abundante malha hidrográfica da região foi – e ainda é – de fundamental
importância para a manutenção da vida local. Os processos de ocupação, deslocamento,
agricultura, pesca e comercialização se davam intensamente por estas redes hidrográficas e ao
longo do tempo foram sendo resinificadas na medida em que ocorrera uma mudança no perfil
da ocupação na baixada da Guanabara (CABRAL, 2007).
Uma interessante maneira de analisarmos a produção do espaço é através do estudo
dos nomes dados a determinados lugares – a toponímia, o que não significa que subordinamos
a teoria do espaço à linguística. Na medida em que o espaço social é um produto social, onde
cada lado remete ao outro, cada sociedade produz um espaço que é seu e que é oriundo dos
seus saberes e práticas espaciais. Logo, estão diretamente ligadas aos conhecimentos, signos,
códigos e simbolismos que criam espaços de representação (LEFEBVRE, 2000). A palavra
Guapiaçu, que dá nome ao rio em questão, nos remete a existência de uma ocupação espacial
indígena do tronco linguístico Tupi-Guarani. De acordo com BUENO (1982) a palavra
Guapiaçu significa “A grande cabeceira”, o que nos mostra uma íntima relação destes povos
com o complexo hidrológico da região, como aponta CABRAL (2007). Já a palavra Caceribu
remete a palavra caçira-bu, que significa a vespa escura, o marimbondo negro (BRAGANÇA
JUNIOR, 2992).
Segundo BRAGANÇA JUNIOR (1992), a construção da língua Tupi estava
diretamente relacionada ao meio ambiente no qual seus territórios circundavam, sendo a sua
denominação feita de acordo com peculiaridades específicas de cada porção do espaço,
trazendo referência a elementos do cotidiano, instituindo uma relação direta com os aspectos
hidrográficos, botânicos, alimentares etc. O nexo que baseava a formação da linguagem Tupi
representava através da palavra os seus espaços de representação e os seus sentidos de lugar.
69

E são também as palavras as responsáveis por nos apontar a territorialização de povos


negros de origem africana na região do Vale do Guapiaçu. Segundo ELTIS e RICHARDSON
(2010), desembarcaram no Rio de Janeiro, entre os séculos XVI e XIX, 2.281.000 mulheres e
homens escravizados provenientes do Oeste Central e Sudeste Africano, sendo a imensa
maioria oriunda do tronco linguístico Bantu. São estas as origens presentes nos nomes
Matumbo e Quizanga, duas dentre as 11 comunidades atingidas pelo projeto de construção da
barragem do Rio Guapiaçu. Segundo LOPES (2012) é possível que Quizanga esteja ligada a
palavra nzannga do dialeto Quicongo. Por sua vez, Matumbo tem suas origens no dialeto
Quimbundo e significa (1) terreno preparado para plantio de tubérculos; (2) elevação de terras
entre sulcos; (3) Mandioca.
Ao combinarmos estas palavras – Guapiaçu, Quizanga e Matumbo - temos um
riquíssimo material que nos convida a pensar a respeito da história dos homens e mulheres
que passaram pelo Vale do Guapiaçu. São distintos momentos no tempo e no espaço, que
ocultam e revelam os movimentos e os saberes espaciais aglutinados em milhares de anos e
transmitidos através da tradição oral, presentes no manejo da paisagem. Estes povos
encontraram nas palavras uma das formas de traduzir um modo de vida, um espaço vivido que
representavam saberes espaciais. O ato de dar um nome próprio à determinada porção do
espaço é primeira forma de apropriação, logo, de territorialização.
As Redes Comunitárias de Água que hoje existem no Vale do Guapiaçu são resultados
de um acúmulo desigual de tempos que retratam um continuum milenar de relações
intimamente constituídas através das condições naturais presentes no espaço. Se
anteriormente as grandes cabeceiras eram utilizadas como meio de circulação, troca e
alimento, hoje estas águas têm sua importância resinificada. Estas redes não são apenas
estruturas físicas que distribuem as águas do Rio Caboclo até as famílias nela inseridas. A
partir delas são construídas condições materiais de re-produção da vida. Não se trata apenas
de uma forma de se relacionar com a água, estas redes tornam-se uma extensão material
destes corpos humanos e na medida em que estes corpos hídricos fluem pelos canais de
distribuição geridos comunitariamente criam as condições de fluidez da vida.
Este modelo auto-organizativo é ao mesmo tempo um sistema de distribuição-e-troca
de matéria, energia, informação, afeto e poder. Nesse sentido, ao se constituírem enquanto
redes comunitárias de água traduzem um processo de territorialização que dão sentido ao
território, na medida em que há um controle material e uma apropriação concreto-simbólica.
São redes sóciometabólicas concebidas enquanto uma unidade que se autogoverna, onde são
estabelecidos os próprios limites das operações materiais/simbólicas moldadas em seu interior
70

a partir de dinâmicas reguladas no tempo (no território e no lugar) em função das


transformações externas e internas (aos corpos, lugares e territórios). RAFFESTEIN (1998)
afirma que “são as redes que asseguram o controle do espaço e o controle no espaço (p. 157)”,
portanto, enquanto os homens e mulheres do Vale do Guapiaçu criam e fortalecem estas redes
ao longo de tempo e do espaço permitem, concomitantemente, assegurar o controle sobre os
processos metabólicos fundamentais para produzirem suas vidas.
Um sistema territorial é ao mesmo tempo produto e meio de produção, composto por
um sistema de objetivos e ações. Assim, toda prática espacial induzida por este sistema é
traduzida a partir da produção territorial, produção esta que faz intervir em tessitura, nó e rede
(RAFFESTEIN, 1993). As redes possuem uma capacidade concomitante de assumir um efeito
ora territorializador, ora desterritorializador, onde os fluxos que por elas circulam podem ter
um efeito de sustentação – “interno” e construtor de territórios -, ou de desestruturação –
“externos” e desarticulador de territórios. Porém, é preciso estar atento que as redes são
sempre dotadas de intencionalidades e é a partir das formas ou meios constituídos e/ou
mobilizados por determinados sujeitos que podemos percebê-las (HAESBAERT, 2004).
Portanto, “vistas enquanto componentes dos territórios, as redes podem assim estar a serviço
tanto de processos sociais que estruturam quanto de processos sociais que desestruturam
territórios (HAESBAERT, 2004, p. 298)”. Desse modo, as próprias redes podem ser
elementos de/em disputa.
Entender este modelo auto-organizativo enquanto uma rede sócio-metabólica significa
situar que os processos comunitários nela constituídos tecem e reproduzem a vida em um
contexto histórico, geográfico e ecológico imbricado. Compreendemos, assim como GÓMEZ
(2017), que os regimes comunais se encontram no interior dos ciclos de geração da vida (para
além da própria vida humana), sendo, portanto processos socioecológicos, e que a partir desta
convivência materializada nestes saberes e fazeres alternativos contrapõe-se a racionalidade
moderno-colonial, que concebe a humanidade enquanto algo externo a natureza.
Estas formas comunitárias de gestão dos processos sociometabólicos trazem consigo
uma intrínseca relação com a (e a partir da) água. Nestes territórios a água articula os
múltiplos ciclos e dimensões da vida em que são tecidas as condições básicas para reprodução
da mesma. Configuram-se enquanto um elemento vital e que aglutina os regimes
socionaturais constituídos ao longo do tempo e do espaço e a partir dela são geradas múltiplas
formas de gestão autônoma e comunitária dos bens comuns. GÓMEZ (2017) denomina estas
dinâmicas enquanto processos hidrocomunitários, que segundo ele,
71

[...] são um conjunto polimórfico de modos e meios utilizados para a satisfação de


um conglomerado de necessidades simbólicas e materiais compartilhadas entorno da
água através de caminhos, respostas e soluções comuns [...] através dos quais se
produz e reproduz a água, o território e a vida em tensão constante com os processos
de modernização e industrialização capitalista. Estes processos comunitários que se
tecem com a água, na água e pela água se articulam a partir da auto-organização da
vida comum. Isto quer dizer que os processos hidrocomunitários fazem parte de uma
constelação de saberes, fazeres e memórias próprias das dinâmicas de autoprodução
e reprodução comunitária da vida (p. 9, tradução nossa).

Nestes processos hidrocomunitários estão imbricados as relações sociometabólicas, a


dimensão política e a dimensão simbólica. O político, com base nesta concepção, é
reproduzido a partir da organicidade presente no cotidiano do território onde este propósito é
construído frente às necessidades e problemas que são trabalhados e solucionados de forma
comunitária. Muitas vezes não há uma clara concepção política-ideológica onde o comunal
propõe um modelo correto a ser seguido, mas sim a direção é dada a partir das necessidades
concretas que são colocadas.
No Guapiaçu, o constante processo de construção coletiva das redes se vê ameaçado
frente a tentativas de apropriação externa, decorrendo em uma inflexão das concepções locais
de poder e das próprias relações/disputas pelo poder, sendo assim construído um horizonte
político e ideológico. Para GÓMEZ (2017), o simbólico/imaginário são os elementos
estruturantes destes processos, onde,

[...] estão inseridos em tramas de significação, de mediação simbólica, que


constroem o “real”. Não existem, portanto, dois mundos, um real e outro simbólico-
imaginário, mas apenas um, onde as formas simbólicas estruturam o âmbito do real
e os mundos de vida que são os que habitamos (p. 10, tradução nossa).

São relações que se constituem a partir de uma longa convivência e que são
compartilhadas de geração em geração, como podemos observar nos dois sistemas
desenvolvidos – pela família do “A” e “V” e pelo Inácio e Ivana. Lembremos que os
Artiquíferos foram elaborados a partir de um cuidadoso e atencioso método de observação do
caminho das águas que eram criados a partir das águas das chuvas que não penetravam no
solo. De outra maneira, mas a partir da mesma forma de pensar-saber-fazer, são plantadas,
pelo pai do “A”, espécies de árvores nativas da Mata Atlântica que irão criar as condições
metabólicas ideais para o aumento da recarga hídrica de uma nascente. São formas de relação
e apropriação que tendem a reproduzir o sistema natural, onde a convivência humana re-
produz dinâmicas hidrocomunitárias.
72

1.3.1 Apropriando-se da água: as redes comunitárias de água

Cansados e com sede, agricultores e agricultoras assentadas pelo INCRA em 1975 na


Ilha Vecchi, por meio da Associação de Produtores da Ilha Vecchi e Adjacências
(APROVECCHI) decidem não mais esperar pelo Estado e suas políticas públicas para
continuar a re-criar suas condições de vida. Falta de estradas, saneamento básico, acesso à
saúde e educação para os filhos e filhas do lugar são alguns dos elementos que aliado a uma
inexistente estrutura de captação, filtragem e distribuição de água dão o mote para este
processo de apropriação camponesa da água no Vale do Guapiaçu.
Em 1999, o grupo –24 anos depois de assentados – de diretores da então gestão da
APROVECCHI cria uma estratégia de articulação, a partir de seus poderes constituídos no
espaço e no tempo, com a Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu (PMCM) para a
criação de um projeto que fosse capaz de construir um sistema de captação, filtragem e
distribuição das águas. É, portanto, através do projeto “Água Boa – Sistema Ilha Vecchi” que
são destinados cerca de R$29.000,00 para a implantação da obra. Segundo “D” 14, “nós
entramos com o trabalho, a contrapartida do serviço, mas recebendo também, não teve
ninguém trabalhando de graça”. Ou seja, por mais que oficialmente a elaboração do projeto
tenha sido desenvolvida pela PMCM, os agricultores do Vale participaram ativamente da
construção das Redes Comunitárias de Água. “D” conta, ainda, que “o ‘M’ 15 subiu a pé
aquele brejão medindo a água, que dá seis quilômetros”. É através dos pés, mãos e cabeças
destes agricultores que há o nascimento da Rede.
Dois fatos presentes no documento do projeto citado chamam atenção. O primeiro
deles é relativo ao número total de famílias que seriam atendidas pela proposta, que segundo
consta seria de 100 famílias, atual universo de famílias atendidas juntando as três redes de
água – Casarão, Chiqueirão e Ilha Vecchi/Serra Queimada. Eram, na verdade, 17 famílias
assentadas na Ilha Vecchi I e II na época da construção das redes. Se aliarmos isto aos fatos
relatados – e que serão expostos adiante – em relação à péssima qualidade do material
adquirido para ser utilizado na obra, há indícios consideráveis de superfaturamento do
empreendimento. O segundo diz respeito ao quadro descrito da péssima situação das famílias

14
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e importante mestre da água.
15
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e outro importante mestre da água
73

em relação ao acesso a qualquer estrutura de saneamento básico e captação de água para o


consumo humano, a saber:

A observação local da situação de consumo de água a que a comunidade da


área de assentamento de Ilha Vecchi está submetida, apresenta um quadro de
extrema gravidade. Atualmente os colonos assentados pelo INCRA, na localidade,
fazem uso das águas do rio Guapiaçu para seu consumo e asseio pessoal. Neste
ponto, porém, o referido rio não apresenta condições adequadas de utilização
provocando nos consumidores diversos sintomas de doenças vinculadas à
presença de bactérias e matérias orgânicas na água aproveitada.
Entretanto, este uso se torna imprescindível devido às inadequadas e pequenas
quantidades de água servida pelo sistema de abastecimento existente no momento,
que utiliza uma nascente de péssima qualidade inclusive não podendo ser protegida
quanto à sua utilização por animais, e também apresentando sinais visuais de
ferruginosidade.
Os poços semi-artesianos que foram tentados no local, também não produziam
soluções para os problemas, pois seu uso mostrou a péssima qualidade de seu
produto final. Torna-se fundamental, então, prever a utilização de um novo sistema,
a fim de prover a comunidade local de água necessária ao seu suprimento.
Uma análise apurada, efetuada nas fontes disponíveis a este aproveitamento, levou à
definição do manancial existente no local denominado Serra Queimada, que apesar
de guardar uma considerável distância dos domicílios a serem atendidos, certamente
irá determinar a solução definitiva das graves dificuldades pelas quais estão
passando, no momento, as 100 famílias que se encontram ali assentadas (PMCM,
1996, grifo nosso).

Por ainda não haver a presença de 142 famílias assentadas pelo Banco da Terra na
comunidade de Serra Queimada – fato que ocorre entre 2001 e 2002 – o então proprietário da
fazenda, José Duarte Tostes, ainda residia no local. Foi necessário negociar com o
latifundiário a passagem da tubulação por sua propriedade, já que o local de captação se
encontrava no Rio Caboclo – afluente do Rio Guapiaçu – que passava pelas terras do
fazendeiro. “D” conta que por parte do fazendeiro foi requisitado que fosse construído, e
inserido no projeto elaborado por eles e pela PMCM, a construção de uma rede de água
específica para o abastecimento de sua pocilga (chamada na região de chiqueirão):

Em 1999, eu e “M” fomos lá pra fazenda, em frente ao colégio a gente topou com o
fazendeiro José Tostes. ‘Seu José, tamo precisando de água pra Ilha Vecchi, o que o
senhor pode fazer pra água passar?’. ‘Faça uma rede beirando a minha’ [...]
Resultado: faz uma rede beirando a fazenda dele, com prioridade de deixar uma
saída no Chiqueirão, pros porcos e leitões se refrigerar com o ar, com aquele
ventilador ligado (“D”, em reunião da APROVECCHI no dia 12/05/2017).

Sinalizo, desde já, dois pontos importantes: i) O então latifundiário já dispunha, na


época, de uma rede própria, cujo ponto de captação (Figura 3) está localizado em um riacho
que desagua no Rio Caboclo. Mais tarde esta rede será apropriada pelas famílias assentadas
através da compra da fazenda pelo Banco da Terra; ii) Fica explícito que o fazendeiro utiliza
74

de seu poder local para inserir uma rede privada no projeto elaborado pelos agricultores cujo
financiamento é público. Não obstante, são os próprios agricultores que constroem a rede cuja
água é destinada, como conta “D”, para a refrigeração dos suínos, assim como sua lavagem.
Detalhe: inúmeras famílias apontam que os rejeitos destes animais eram diretamente jogados
no Rio Caboclo poluindo estas águas e deixando um forte odor de fezes e urina animal. Águas
estas distribuídas pelo sistema de captação. O latifúndio usa de seu poder para, através do
dinheiro público e trabalho braçal remunerado também por verba pública, condicionar a
passagem da tubulação para captação de água de um rio – assumindo, portanto, sua
propriedade sobre estas águas – para que seus porcos sejam refrescados e lavados e não
satisfeito, despeja suas fezes e urinas nestas águas.

Figura 3 – Antiga captação da sede da fazenda, atualmente pertence à Rede Casarão

Fonte: O autor, 2019.

Obtive acesso ao Instrumento de Contrato Particular, assinado em outubro de 2001


entre o latifundiário José Duarte Tostes e as cinco associações de Serra Queimada, a saber:
Conquista da União, Portal da Prosperidade, Vitória da União, Esperança e Vale da Fartura.
Fica explícita a correlação desigual de forças existente entre o grande latifúndio e os homens e
mulheres que haviam acabado de conquistar suas terras para dar início à construção de suas
vidas em Serra Queimada. Desse modo, fica explícito que desde o início a água foi um objeto
de disputa entre as fazendas da região e os pequenos agricultores – desde os assentados pelo
INCRA até os assentados pela Reforma Agrária de Mercado (RAM). Aliás, a ausência do
75

Estado – na figura do INCRA – na prestação da garantia de condições estruturais básicas aos


assentados tende a reforçar, ao longo do tempo, o poder local do latifúndio sobre os
camponeses. A fala do “M”16 descreve a estrutura fundiária da região: “Cachoeira de Macacu
tá dentro dum buraco, tudo cercado de fazendeiro em volta, não tem como crescer. Só se eles
abrir mão da estrada”.
José Duarte Tostes se aproveita de seu poder local para condicionar a construção da
rede à obrigação de uma destinação de água para sua pocilga - isto se expressa de tal forma
que alguns chegam a dizer: “este homem foi um pai para nós, não podemos incriminar antigos
falecidos. Cedeu a água lá, a terra passar” (“D”, em reunião da APROVECCHI em
12/05/2017). A ideia da autorização da passagem da tubulação para os/as agricultores/as é
acompanhada da lógica que o latifundiário detém a propriedade das águas, e para tanto é
necessária sua permissão para a utilização de um bem comum. Além disso, impõe aos recém-
chegados a Serra Queimada a obrigação da assinatura deste Instrumento de Contrato
Particular que versa de forma ilegal sobre um projeto de captação de água pública,
condicionado a uma multa de R$10.000,00 para aquele/a que descumprir o firmado. Ou seja,
o Banco do Brasil, através do Crédito Fundiário, compra as terras de José Duarte Tostes em
um valor de R$3.000.000,00, mesmo assim o fazendeiro permanece com um lote de 10ha
(maior do que qualquer assentado em Serra Queimada, cuja média dos lotes variam entre
2,5ha e 3,5ha), que não satisfeito, controla o acesso e condiciona o uso da água e da energia
para os assentados na região. O Crédito Fundiário e a RAM permitem, portanto, a manutenção
de uma ilha territorial do latifúndio no assentamento17. Vejamos a íntegra do contrato:

1º - das águas existentes – O SEGUNDO CONTRATANTE poderá dispor da


mesma em toda sua plenitude, inclusive podendo ampliar o atual sistema de
captação existente no local para atender as suas necessidades no Projeto de
suinocultura que desenvolve e continuará desenvolvendo em área remanescente de
sua propriedade na mesma localidade.
2º - dos tanques de decantação – os tanques de decantação do esgoto produzido
pela suinocultura construídos de acordo com as normas da FEEMA terá seu
resíduo final despejado no rio que serve atualmente à criação após a decantação
filtrada na terra.
3º - da energia elétrica – imediatamente após a assinatura do presente instrumento os
contratantes deverão juntos ou separadamente comparecerem ao Escritório da
Cooperativa de Eletrificação Rural de Cachoeiras e Itaboraí – CERCI, em Papucaia,
neste município para a regularização da nova situação, ficando estabelecido que os
PRIMEIROS CONTRATANTES reconhecem exclusiva propriedade do
transformador de 45KWA, como sendo pertencente ao SEGUNDO

16
Agricultor assentado na Ilha Vecchi.
17
No segundo capítulo, mostrarei como este fragmento territorial do latifúndio assume papel central para
articular a proposta das pequenas barragens, alternativa defendida pelo Sindicato Patronal de Cachoeiras de
Macacu.
76

CONTRATANTE e que a utilização do mesmo em regime comum é apenas


temporária devendo os PRIMEIROS CONTRATANTES se responsabilizarem pela
instalação de novos transformadores em caso de aumento de carga, podendo desde
já o SEGUNDO CONTRATANTE transferir o dito transformador para as
proximidades de sua suinocultura (grifo nosso).

Não obstante, a quarta cláusula do contrato garante a José Duarte Tostes o controle das
águas da Rede Chiqueirão por tempo indeterminado, já que prevê aos contratantes a
responsabilidade de “responderem por si, seus herdeiros ou sucessores pelo todo
convencionado”.
É neste quadro de ausência de qualquer infraestrutura oferecida pelo Estado, de
correlação de forças e disputa de acesso e controle da água que nasce a necessidade de se
garantir a autonomia destas famílias para a captação das águas. Inicialmente, o projeto foi
pensado para o abastecimento das 10 famílias que residiam no assentamento Ilha Vecchi I,
porém, durante sua construção mais sete famílias são assentadas no que eles e elas passam a
chamar de Ilha Vecchi II 18. Prontamente estas famílias são incorporadas à Rede. Ou seja, o
sistema tinha o objetivo de suprir uma demanda por água de 17 famílias assentadas.
Passados não mais que um ano de funcionamento da Rede já se iniciam problemas
técnicos oriundos da péssima qualidade do material comprado e utilizado pela PMCM.
Segundo “L” (mais um dos importantes mestres da água do território), “era igual bambu,
lascava assim na frente da gente, e água não tinha pressão não, água morta, lascava, igual
bambu, Troço muito ruim mesmo” e continua, “na época daquela rede de cano ruim, a gente
tinha que conhecer palmo a palmo. Porque você consertava aqui, amarrava de borracha no
outro dia lá na frente” (Figura 4).

E veio isso aí que o “J.A” falou que não valia nada. Mas na época ninguém sabia,
tava novo. Passou um ano começou a lascar [...] Nem isso. Pra você ter ideia, aquela
agua ali era um lugar baixo, abastecia quase nada, sem pressão. Isso aqui a terra tava
comendo ele, como comesse madeira. Valia nada. Rachava na frente da gente assim
[reproduz “L” enquanto nos mostrava um fragmento guardado do material
utilizado na época], você apertava aqui, daqui a pouco andava, olhava pra trás o
cano vazando (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo Santiago e Pedro D’ Andrea,
no dia 13/05/2017).

18
“L”, agricultor assentado em 2000 na Ilha Vecchi II nos conta o porquê desta porção de terra ter demorado 25
anos – entre Ilha Vecchi I e II – para ser destinado aos/as agricultores/as: “É que essa aqui na verdade é tudo
uma ilha só, só que na Igreja aqui, tinha uma divisa de fazendeiro. Então essa parte de cima foi panhada, o lugar
que a gente plantava o chuchu, o pessoal tomaram conta, posse daquilo ali, e sobrou essa daqui com outro
fazendeiro. Essa foi durante um tempo pra poder cair nas mãos do povo (“L”, em entrevista a Pedro D’ Andrea
em 07/01/2018).”
77

Figura 4 – Material utilizado pela Prefeitura Municipal de Cachoeiras de


Macacu

Fonte: Bárbara Pelacani.

Não sendo suficiente, “L” aponta, ainda, que a localidade escolhida para alocação da
primeira caixa d’água foi mal pensada,

O que fez foi que a gente sentiu que aquilo ali a nascente quase não abastecia. Ali é
nascente, não é do rio. Quase não abastecia. Quando dava o tempo do frio ficava um
perrengue terrível de água pra abastecer a caixa, além dela não ter força, ser baixa,
soltava (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea,
no dia 13/05/2017).

Mesmo assim, ainda dava para suprir o abastecimento das poucas famílias inseridas no
sistema. Quadro que começa a ser alterado e se aprofunda ao longo do tempo a partir do
momento em que 142 famílias são assentadas em Serra Queimada, no ano de 2001.
“Q” 19 conta que as 142 famílias foram assentadas sem qualquer infraestrutura capaz de
dar o suporte necessário para quem acabou de acessar a terra. CADORIN (2017), afirma que o
valor total que deveria ser pago em 15 parcelas anuais por cada uma das cinco associações era
de R$675.300,00, sendo R$75.300,00 destinados aos assentados para o financiamento de suas
moradias, assim como o pagamento das escrituras, implementos agrícolas e os serviços de
agrimensor. Dividido entre as 28 famílias de cada associação (sendo que uma das cinco possui
30 famílias), cada uma receberia R$2.689,29, valor irrisório para que cada uma delas possa
iniciar sua vida na terra. Porém, segundo relatos cada família receberam, em média, apenas
R$1.500,00 o que é comprovado por “Q”:

19
Agricultor assentado em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
78

No papel tinha assim um valor pra estrutura, só pra casa, um valor de R$1.600,00
pra cada família fazer sua casa pra poder morar [...]. Não sei o que faz com
R$1.600,00. Energia não tinha, só tinha pro fazendeiro, a rede ia direto pra fazenda
[...]. Só que não era espalhado, e nós não podia usar essa rede pra tirar energia. Se
todo mundo pegasse luz da rede que era exclusiva fazenda, ele que pagou, era dele
(“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

Estes pagamentos só foram transferidos às famílias mediante a apresentação de nota


fiscal relativa à compra dos materiais destinados para a construção das benfeitorias. Além
disso, a PMCM requisitou parte deste montante para abrir as estradas (CADORIN, 2017). Em
20
conversa com de “N²” ela afirma que a estrada só foi construída a partir das lutas
encampadas pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais.
“Q” continua a descrever as péssimas condições em que foram assentados,

[...] ficamos quatro anos sem energia elétrica aqui. Sem água seis meses porque nós
pedimos um galho à Ilha Vecchi. A rede tava muito precária já, eles pediram ajuda a
nós de R$100,00, cada família, e nós vamo botar pra vocês (“Q” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

De modo sintético e definitivo, “Q” resume como ele entende a forma como foram
tratados e assentados em Serra Queimada,

Os assentados têm menos privilégio que os porcos; os porcos têm mais privilégio
que os assentados. Foi mais ou menos dessa maneira que nós fomo tratado aqui no
assentamento. Nós não poderia usar a água que dava acesso à pocilga, era exclusiva
para eles (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

SANTIAGO (2017) destaca o caráter comunitário das relações que são construídas
entre os homens, mulheres, jovens e crianças no Vale do Guapiaçu. Relações que
independente das origens de cada um/uma e do momento em que chegam ao Vale, partilham
das mesmas angústias, sofrimentos, lutas, mas também das mesmas conquistas e construções
coletivas que passam diretamente pelo compartilhamento dos saberes, fazeres e de elementos
concretos como o alimento, a tobata, os diversos mutirões para manutenção das estradas e
construções de pontes, assim como a água. Não se trata de deixar que o romantismo se
sobreponha às lentes que olham e aos ouvidos que escutam, pois ao mesmo tempo disputas
estão colocadas na escala do território. Mas mesmo assim, estas disputas são
momentaneamente suspensas quando eles e elas percebem a fragilidade de seus companheiros
e companheiras camponeses/sas.

20
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
79

A chegada dos assentados a Serra Queimada ocorre no mesmo momento em que as


estruturas da Rede Ilha Vecchi começam a se deteriorar, devido a já explicitada qualidade dos
materiais utilizados. Mesmo assim as famílias já incorporadas à Rede permitem aos recém-
chegados a possibilidade destas águas desembocarem em suas residências. “D” demonstra
como o caráter solidário motivou a inserção na Rede de seus comuns:

Porque, na gestão do “J.A”, no mandato dele, tivemos que atender o Banco da Terra.
Como que se faz um projeto dum Banco da Terra sem estrada, sem infraestrutura
nenhuma, sem água pra uma comunidade, que seria nós aqui na ilha também
incluído aqui, né, em 1975, eu, Elzio, “M”, Anilton Knupp, “L”, nós fundadores da
Ilha Vecchi. O INCRA bota a pessoa assim, sem planejamento de água, sem
infraestrutura nenhuma, sem água, sem nada. Então essa água tem que atender o
Banco da Terra, a água era pra comunidade da Ilha Vecchi. Então cedeu a água o
Banco da Terra (“D”, em reunião da APROVECCHI no dia 12/05/2017).

Com o assentamento destas 142 famílias há um duplo processo de apropriação


camponesa da água. Como sinalizamos anteriormente, a própria fazenda de Serra Queimada,
antes de ser adquirida para fins de RAM, já obtinha uma rede própria para o abastecimento de
sua sede e da vila onde residiam alguns trabalhadores e trabalhadoras. Durante o sorteio dos
lotes algumas destas famílias passaram a residir nesta área, portanto, automaticamente passam
a utilizar a água da Rede Casarão, que abastece atualmente 15 famílias. Esta Rede, por ter um
processo de apropriação distinto 21 possui características de gestão distinta da Rede Ilha
Vecchi/Serra Queimada. Mesmo assim seu controle e manejo são de responsabilidade dos/das
agricultores/as. As demais famílias são sistematicamente incorporadas à Rede Ilha Vecchi,
entre seis meses e um ano após a chegada em Serra Queimada – agora chamada de Ilha
Vecchi/Serra Queimada.

1.3.2 Os princípios camponeses da água no Guapiaçu: um Protocolo implícito

Quais a razões, portanto, que levam às famílias da Ilha Vecchi assentadas em 1975 e
em 2000 – nas condições descritas acima – a compreenderam a situação das famílias recém-
assentadas em Serra Queimada, em 2001, e passarem a incorpora-las às Redes Comunitárias
de Água, que já apresentavam sinais concretos de incapacidade de suprir as demandas
necessárias naquele momento?

21
A Rede do Casarão já estava estabelecida quando os assentados chegaram ao local.
80

THOMPSON (1987) traz o fator da experiência comum compartilhada entre homens e


mulheres como condição fundamental para a construção da consciência de classe, que se
fundamenta a partir da articulação destes sujeitos na perspectiva da formação de uma
identidade coletiva. A ausência do Estado no território faz com que estes homens e mulheres
busquem alternativas próprias para a elaboração de meios que satisfaçam suas necessidades.
Quando aquele/a que é assentado/a sem as condições básicas para produzir sua vida –
e falamos neste caso de elementos como água e energia – vai até o/a outro/a e demonstra a sua
condição de vida, aquele/a que o/a recebe o faz e o acolhe porque se identifica e se sente
afetado/a pela experiência compartilhada. E se afeta justamente por já ter sido afetado por
estas condições. É neste duplo processo – de afetar e ser afetado – que se consolidam os
afetos e os laços de solidariedade que se conectam e materializam através das Redes
Comunitárias de Água.
Isto se torna possível devido a uma complexa espiteme camponesa que constitui as
formas materiais e simbólicas de interação entre os/as camponesas e a terra, a água, a mata, o
alimento e os animais. Ou seja, as Redes Comunitárias de Água se configuram enquanto
materialização de uma das múltiplas formas de produção do espaço e do território por parte
destes/as agricultores e agricultoras.
Lembremos que o pai do mestre “A” diz para seus filhos que as bananeiras que serão
plantadas no mato – no contexto de criação de um sistema que visa o aumento da capacidade
de produção de água de uma nascente – não podem ser consumidas por seus familiares, já que
estão ali para que os pássaros e bichos as comam e que assim possam “cagar”, como ele
mesmo diz, naquela redondeza as sementes de outras espécies arbóreas consumidas em outras
localidades e, portanto, poderão colaborar com o reflorestamento da área e consequentemente
com o aumento da capacidade de recarga daquela nascente. Esta forma de pensar, portanto de
saber e de fazer, e que afirma não fazer nada além do que repetir a dinâmica da natureza 22,
também se expressa e se materializa na incorporação de seus comuns à Rede por parte dos
assentados da Ilha Vecchi. As Redes nada mais são do que a extensão dos corpos hídricos do
Rio Caboclo que fazem suas águas chegar aonde à natureza não pôde estar presente. O mesmo
homem que planta para o pássaro comer é aquele que acaba por ser agraciado por outros
homens e mulheres ao receber a água de um Rio que não chega até ele. Estas relações – que
vão do simples ao complexo – são pautadas a partir de princípios implícitos, mas que são

22
Como também dizem Inácio e Ivana, ao criarem os Artiquíferos.
81

claramente notados nas entrevistas e conversas compartilhadas23. É ao conjunto destes


princípios que utilizo a denominação de Protocolo implícito da água de Guapiaçu.
O primeiro deles nota-se no início da reunião convocada pela APROVECCHI para
discutir os desafios das Redes Comunitárias de Água. Trata-se de um consenso que é
estabelecido a partir da sociabilidade construída no lugar, em que as relações cotidianas
constroem os laços afetivos. É também um consenso presente em diversos territórios e que
constantemente é apresentado enquanto princípio que rege as relações hidrocomunitárias
locais, aparecendo como contraponto à lógica mercantil. As falas que antecedem a dita por
24
“J.A” trazem o caráter conflitivo existente no próprio território já que não são todas as
famílias que estão inseridas na rede, mas mesmo assim o princípio que rege as relações
hidrocomunitárias se sobrepõe a esta conjuntura. Vejamos:

“R”: O que acontece, a gente tem uma quantidade, e tem outras famílias que também
já estão dependendo, e aí fica complicado da gente poder aumentar a distribuição.
“L”: É tão triste ter que falar pro cara. É chato.
“R”: A gente passa apertado, chega pra eles pra pedir, mas como que a gente vai
distribuir pra mais uma casa, já tem tantas, já tá faltando.
“J.A”: E a água é um negócio, a água é difícil de negar (Reunião na
APROVECCHI, em 12/05/2017).

Por mais que o sistema passe por uma crise de abastecimento com graves problemas
em sua tubulação, por mais que ainda haja famílias sem abastecimento hídrico e por isso
demandam urgência na incorporação à Rede, por mais chato e triste que seja negar à família
que pede, “a água é difícil de negar” e, portanto, não se nega a ninguém. Consubstancia-se
assim o primeiro princípio do Protocolo Implícito da água do Guapiaçu.
A insígnia tão carregada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – “Água não é
mercadoria” - não poderia ser mais bem explicada por aquelas e aqueles que carregam o
movimento desde baixo. SANTIAGO (2017) é muito feliz ao explicitar a concreticidade deste
lema, que neste trabalho consideramos como o segundo princípio do protocolo implícito da
água no Guapiaçu. Se a água não é mercadoria, assim como não pertence a ninguém, não se
pode cobrar por seu uso. Porém, “como financiar um sistema que gera naturalmente gastos
com manutenção e ampliação da estrutura física?” (p. 151), pergunta o citado autor. É a partir
da lógica do bolo25 utilizada por seu “L” que podemos ter a resposta:

23
Entre nós – Barbara Pelacani, Bernardo Xavier e eu - e os homens e mulheres do lugar.
24
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e importante mestre da água.
25
Que mais à frente, neste trabalho, irá aparecer novamente, porém com outra perspectiva.
82

A associação é sem fins lucrativos, entendeu? Não pode, entendeu? Fazer cobrança
de nada.
[...]
O cara não tá pagando nada, ele tá contribuindo pra ele, ele tá cumprindo a parte
dele, não é isso? Somos nós três aqui, nós vamos comprar um bolo pra nós comer,
cê me dá 10, cê me dá 10 e eu dou 10. Você me pagou 10 reais pra mim comprar um
bolo? Não! Você deu a sua parte do bolo, não é isso? (Seu “L”, em entrevista a
Bernardo Santiago, Pedro D’Andrea e Bárbara Pelacani, em 13/05/2017).

Na lógica do mercado, há quem preste o serviço e há quem pague pelo serviço. Logo
se houver o pagamento por parte de qualquer um dos/das que compõe o sistema, além de se
desrespeitar o estatuto da própria associação acabaria por se criar uma relação mercadológica
da água. Portanto, a construção – material e política – destas Redes Comunitárias de Água vai
da contribuição de todas as partes para a construção do todo. Cada um deve contribuir
financeiramente para tornar possível o reparo e a ampliação do sistema e é só a partir desta
lógica que este sistema poderá se consolidar e chegar a cada vez mais casas e famílias.
Contribuição não é pagamento, como sintetiza SANTIAGO (2017), é o segundo princípio do
Protocolo implícito da água no Guapiaçu.
Outro importante princípio que rege o uso comunitário da água no Vale do Guapiaçu
diz respeito ao uso da água. Segundo os próprios usuários, a água distribuída pelas Redes só
poder ser destinada para o consumo humano. Não é permitida, segundo os acordos
constituídos, a utilização destas águas para irrigação das lavouras e para o consumo animal.
Este pricípio traz consigo a lógica de que deve haver um uso consciente por parte de todos e
todas que estão inseridos nas Redes Comunitárias e isto deve ser respeitado a partir dos
acordos coletivos e encaminhados nas reuniões da APROVECCHI. Tal lógica explicita o
caráter antagônico de duas raciolidades que se apropriam de formas distintas sobre a água. O
Art. 19 da Lei Nº 9433/1997 vigora que:

Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:


I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de
seu real valor;
II - incentivar a racionalização do uso da água;
III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções
contemplados nos planos de recursos hídricos (Art. 19 da Lei Nº 9.433/1997, grifo
nosso).

O Estado entende a água enquanto um bem ao qual deve ser dado um valor monetário
e para legitimar tal hipótese utiliza-se do discurso da escassez, já que entende que só desta
maneira haverá um uso consciente por parte dos/as cidadãos/cidadãs. Esta é a mesma lógica
83

defendida pelo capital financeiro global. Em um discurso que está disponível na internet26,
Peter Brubeck, diretor presidente do Grupo Nestlê – que segundo o próprio é a maior
corporação mundial do ramo alimentício do mundo, com um faturamento de U$$90
bilhões/ano, defende que,

A água, é claro, é a matéria-prima mais importante que temos hoje no mundo


[...]. Há duas opiniões diferentes, nesta questão. Uma delas, que eu acho extrema é
representada pelas ONG’s que martelam a declarar a água um direito público.
Significa que, como ser humano, você deveria ter direito à água. Esta é uma
solução extrema. E a outra visão é a de que a água é um alimento como outro
qualquer. E, como qualquer outro alimento, deveria ter um valor de mercado.
Pessoalmente, acredito que é melhor precificar um alimento para que todos sejamos
conscientes do seu preço [...]. Ainda sou da opinião de que a maior
responsabilidade de qualquer diretor é manter e assegurar um futuro rentável
e de sucesso da sua empresa. Porque, somente se pudermos assegurar nossa
existência continuada de longo prazo estaremos em posição de participar
ativamente da solução dos problemas do mundo (grifos nosso).

O discurso proferido por Peter Brubeck explicita o antagonismo presente entre as


concepções do capital e camponesa presente no Guapiaçu sobre a relação que deve se
estabelecer entre sociedade-água. O diretor da Nestlê entende que a água é, ao mesmo tempo,
matéria-prima e alimento e utiliza um mecanismo de adaptação a esta concepção para
legitimar seus argumentos. Ao destacar a importância da água enquanto matéria-prima mais
importante do mundo, a importância geopolítica deste recurso é explicitada, pois indica a sua
importância para qualquer processo produtivo do grande capital e afirma, ao final do trecho
citado, a necessidade da defesa do interesse de sua companhia para que a mesma seja capaz de
atuar diretamente dos processos decisórios relativos a temas estratégicos que possibilitem a
acumulação de capital de sua corporação. Entretanto, na medida em que tenta justificar a
mercantilização da água, afirma que ela é como um alimento qualquer. Ora, a água é ao
mesmo tempo a matéria-prima mais importante do mundo e um alimento qualquer e, por isso,
deveria ser precificada para que tenhamos a noção do valor que tem.
Os três princípios identificados expressam uma complexa e potente dimensão do
caráter político, de poder e solidário que rege as relações hidrocomunitárias existentes no
Guapiaçu. Esta experiência nos convida a pensar sobre a existência de formas de organização
comunitárias e autônomas que conseguem resistir não só aos processos de expansão e
acumulação do capital, mas, sobretudo, como aponta LINSALATA (2011), que o modo como
o sujeito social vive sua vida no capitalismo não está apenas submisso à capacidade do
próprio capital de conformar a vida deste sujeito, e sim da possibilidade concreta do próprio

26
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v0OsWMNpyBw>. Acesso: 23 abr. 2018.
84

sujeito social de definir o modo e o grau em que as formas de valor das relações sociais
constituídas irão conduzir suas bases epistêmicas de produção da vida. Quando estes homens
e mulheres definem estes princípios, resultantes dos saberes-e-fazeres do/no território, estão a
construir uma experiência concreta de rebeldia e insurgência frente à lógica estatal-privada
que regem os acordos jurídicos sobre a gestão da água. Porém, se não houver um esforço
constante e sistemático de contínua formação multilateral – entre as próprias autoridades
coletivas, MAB e demais parceiros – corre-se um sério risco de termos mais uma rica
experiência em que o valor de uso se sobrepõe ao valor de troca literalmente afogada pela
grande barragem.
Experiências concretas de insurgência vêm sendo apresentadas no Brasil onde os
povos indígenas e comunidades tradicionais têm assumido protagonismo ao apresentar
elementos concretos de enfrentamento à ordem moderna-colonial. Durante o processo de
resistência do povo Munduruku, no Pará, ao Complexo Hidrelétrico do Tapajós foi elaborado
o Protocolo de Consulta Munduruku baseado na Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho. Este Protocolo de Consulta apresenta os sistemas de significados
culturais e traduzem a sensibilidade jurídica Munduruku (OLIVEIRA, 2018), em que o
Estado é obrigado a se adequar às formas de organização e deliberação do povo Munduruku
para iniciar o diálogo sobre qualquer projeto que esteja inserido sobre seus domínios
territoriais. OLIVEIRA (2018) afirma que o Protocolo de Consulta “insere os grupos étnicos
no processo de aplicação das normas internacionais de direitos humanos, ao mesmo tempo em
que retira do Estado o monopólio de interpretação do direito (p. 47)”. Trata-se, portanto, de
uma complexa inflexão das relações de poder historicamente constituídas entre o Estado e os
povos indígenas. O Protocolo de Consulta Munduruku obriga o Estado a realizar uma
consulta prévia com os “sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar histórias, que
sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles senhores que sabem os lugares sagrados
(MUNDURUKU, 2014)”, além dos Caciques, guerreiros e guerreiras – já que são os Caciques
das diferentes aldeias que se articulam para planejar as ações e cabem aos guerreiros e
guerreiras os acompanharem e protegerem seus territórios -, além dos professores e
professoras, agentes comunitários de saúde, as mulheres, e estudantes universitários. Afirma
ainda que devem ser consultadas as organizações que compõe o território Munduruku, mas
que nunca deverão ser consultadas separadamente, assim como os vereadores Munduruku
isoladamente não respondem pelo povo. A consulta prévia deve, ainda, respeitar o tempo da
roça, o tempo de extração da castanha, o tempo da farinha, o tempo das festas e do Dia do
Índio. Afirma também que o Estado “têm que viver com a gente, comer o que a gente come.
85

Eles têm que ouvir nossa conversa”, portanto, não podem “chegar à pista de pouso, passar um
dia e voltar. Eles têm que passar com paciência com a gente”. O Protocolo de Consulta
Munduruku obriga o Estado a respeitar seus modos de vida, sua temporalidade, sua cultura e
organização se quiser abrir qualquer diálogo. O Protocolo de Consulta impediu a realização
de uma consulta prévia enviesada e arbitrária, rompendo com a hegemonia regulatória do
Estado. Este Protocolo foi entregue à Secretaria de Governo da Presidência da República e
atualmente encontra-se parado (OLIVEIRA, 2018).
A importância do relato da experiência da Consulta Mundukuru tem pertinência uma
vez que na reunião convocada pela APROVECCHI foi levantada a possibilidade da
elaboração de uma espécie de estatuto popular da água. Nesse documento estariam elencados
todos os princípios que regem as redes comunitárias de água, o número de famílias
abastecidas, o mapeamento da rede, assim como a memória destas redes comunitárias. Tal
proposta surgiu no contexto de tentativa de apropriação da Autarquia Municipal de Água e
Esgoto de Cachoeiras de Macacu (AMAE) – conforme apontarei a seguir – sendo
prontamente negada pelas autoridades campesinas. Estas experiências de elaboração de
Protocolos de Consulta são estratégias que surgiram em um contexto reativo à proposta de
construção de grandes empreendimentos hidrelétricos, mas hoje se traduz em um importante
documento de enfrentamento a qualquer processo que possa ameaçar estes territórios. Elas
nos apresentam um horizonte de possibilidades de estratégia de resistência inexistente até o
momento, e nos convida a pensar possibilidades de organização que não precisam esperar o
conflito chegar aos territórios para serem elaboradas. A experiência Munduruku nos aponta
que devemos pensar em formas de organização e de estratégia que não devem estar restritas a
movimentos reativos e de defesa, nos convidando a inflexionar a correlação de forças desigual
que está historicamente sedimentada.

1.3.3 As múltiplas escalas da disputa pela água: o local, o regional e o global no território

O município de Cachoeiras de Macacu integra o montante dos 16 municípios do


estado do Rio de Janeiro cuja responsabilidade dos serviços de captação, distribuição e
manutenção das redes de água potável e esgotamento sanitário não estão sobre
responsabilidade da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) e
86

nem sobre a apropriação de empresas privadas – como o Grupo Águas do Brasil e a AEGEA
(Prólagos S/A). Logo, a incumbência por estes serviços é dada à AMAE.
A AMAE foi criada através de Lei 1.601 de 15 de dezembro de 2005 e hoje, segundo
dados apresentados em seu site oficial 27, é responsável pelo abastecimento de 11.577 famílias,
1.091 estabelecimentos comerciais, duas indústrias e 117 órgãos públicos. Segundo os dados
presentes no Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras de Macacu (2013), a
AMAE atendia 73,7% da população do município através de seu serviço de abastecimento de
água (SAA). Um dos objetivos do plano diz respeito à reforma, ampliação e modernização do
SAA, cujas metas propostas de curto prazo tinham o objetivo de aumentar a oferta de água,
alcançando o atendimento de 82,6% da população, até 2017.
Dois pontos são importantes e serão tratados aqui com prioridade: o primeiro, diz
respeito à estratégia do plano municipal que, entre 2013 e 2017, visava à expansão do seu
SAA na zona rural ao integrar 495 famílias. Entre 2018 e 2022, o objetivo é incorporar ao
SAA mais 218 famílias e entre 2023 e 2032 alcançar mais 495 famílias, totalizando 1.208
famílias; o segundo, diz respeito ao não cumprimento, pela AMAE, dos requisitos presentes
no Art. 11 da Lei federal nº 9.433/1997 28. O presente artigo cria o regime de outorga de
direitos de uso dos recursos hídricos, cujo objetivo é assegurar o controle quantitativo e
qualitativo dos usos da água. O Art. 12 da mesma lei declara que:

Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de
recursos hídricos:
I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água
para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo
produtivo;
II - extração de água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de
processo produtivo;
III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos,
tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final;
IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente
em um corpo de água (Lei Nº 9.433/1997, grifos nossos).

A tabela 1 comprova a ausência das outorgas nos pontos de captação da AMAE.

27
Disponível em: <http://www.amaecm.com.br/quem-somos>. Acesso: 22 abr. 2018.
28
“Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de
março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989.” Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=370>. Acesso: 23 abr. 2018.
87

Tabela 1 – Síntese das Captações de Água de Cachoeiras de Macacu

Fonte: Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras e Macacu, 2013.

É neste contexto – de expansão dos serviços na área rural, sem cumprir os requisitos
presentes na Lei Nº 9.433/1997 – que a AMAE chega ao Vale do Guapiaçu. No início de
2017, é deflagrada uma clara tentativa de apropriação da autarquia municipal das Redes
Comunitárias de Água, cujo controle é exercido de forma comunitária e autônoma. Esta
estratégia ocorre a partir de dois elementos fundamentais:
1) Desde janeiro de 2017, conforme aponta SANTIAGO (2017), a autarquia é secretariada
pelo empresário e dono de terras na região, Fabio Lemgruger, que na sua diretoria executiva
atribui um cargo a Erenildo dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Cachoeira de Macacu (STR-CM) e importante líder sindical na região. Ora, há uma clara
estratégia de expansão do poder sobre o controle da água no município quando uma autarquia
distribui cargos para sujeitos cujas relações de poder já estão constituídas em áreas cuja
própria instituição não tinha inserção. Não é a toa que a estratégia de articulação de entrada no
território não é via consulta à APROVECCHI, e sim ocorre de forma direta com importantes
lideranças locais.
2) O discurso utilizado para convencimento das lideranças locais é pautado a partir do
aproveitamento da situação de vulnerabilidade, insegurança e medo por qual passam os/as
agricultores/as do Vale do Guapiaçu, já que foi dito – segundo os relatos apresentados – que a
partir do momento em que a AMAE adquirir a outorga de água para captação, tratamento e
distribuição das águas no Vale, esta se tornaria um importante instrumento de luta na
resistência contra a construção da barragem. Não há qualquer relação prevista em lei que
88

garanta que as outorgas de água, enquanto instrumentos jurídicos possam ser capazes de frear
um processo desse tipo. Pelo contrário, o Art. 15 da lei nº9. 433/97 prevê que a outorga de
direito de uso dos “recursos” hídricos poder ser suspensa caso haja ocorrência de casos como
“necessidade premente de água para atender situações de calamidade” e “necessidade de se
atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes
alternativas”. Ambos os casos podem ser utilizados pelo Estado para justificar a construção da
barragem-reservatório do Guapiaçu.
Se levarmos em consideração os dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) a partir do Censo 2010 29, em Cachoeiras de Macacu existiam
16.019 famílias, 14.013 residentes na zona urbana e 2.006 na zona rural. O plano municipal
ao apontar a incorporação de 1.208 famílias (mais de 50% da população rural atual) em seu
SAA, entre 2013 e 2032, explana a ausência histórica do Estado na garantia destes serviços
básicos, abrindo ao mesmo tempo uma possibilidade contínua de expansão e apropriação do
controle sobre possíveis formas de gestão comunitária e popular da água no município.
Agudiza-se, portanto, a partir de 2013, um cenário de conflitos pelo controle da água
nos territórios, como ocorre no Vale do Guapiaçu, cujas formas de apropriação da água se dão
de forma autônoma e coletiva, estabelecendo um complexo cenário multiescalar pela disputa
da água de dimensões local, regional e global. Ao mesmo tempo em que os agricultores e
agricultoras do Vale do Guapiaçu devem criar estratégias de resistência frente ao projeto de
construção da barragem-reservatório do Guapiaçu – a partir de uma estratégia de controle de
água regional-global, devem resistir ao processo de expansão do controle da água pela AMAE
– que traz uma disputa local, mas que também está articulada a uma estratégia do capital
financeiro global de mercantilização da água. Este duplo cenário de disputas cria uma
estratégia de mobilização do/no território quando os sujeitos negam a entrada da autarquia
municipal, o que coloca novos desafios para a continuidade da construção autônoma e
comunitária da água pautada pelos princípios no item anterior.

29
Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/cachoeiras-de. macacu/pesquisa/23/24161?detalhes=true>
. Acesso: 23 abr. 2018.
89

1.3.4 A re-afirmação das Redes Comunitárias de Água: a consolidação do poder camponês e


os desafios (interno-externo) da construção da autonomia

Atualmente os agricultores e agricultoras das comunidades de Serra Queimada e Ilha


Vecchi são abastecidos pelas duas redes de água 30 já mencionadas: Casarão (oriunda do
processo de apropriação camponesa a partir do assentamento Serra Queimada) e a Ilha
Vecchi/Serra Queimada. Passados os quase vinte anos de existência destas estruturas de
abastecimento, o universo de famílias atendidas saltou de 17 famílias, em 2000, para cerca de
100 famílias em 2018. Segundo os dados apresentados na reunião organizada pela
APROVECCHI – em 12 de maio de 2017 – a Rede Ilha Vecchi/Serra Queimada é responsável
pelo abastecimento hídrico de 57 famílias (sendo 17 famílias na Ilha Vecchi e 40 em Serra
Queimada) cadastradas oficialmente nos documentos da associação. Devem ainda ser
acrescidos a estes números 15 famílias que residem na antiga vila dos trabalhadores e
trabalhadoras da fazenda Tostes e que são abastecidas pela Rede Casarão.
Em uma caminhada pelas redes de água 31 (Figura 5) realizada em janeiro de 2018 na
companhia de dois mestres da água foi apresentado outro número de famílias abastecidas pela
Rede Ilha Vecchi/Serra Queimada.
Segundo “L”, o número total de famílias atendidas é de 65 pessoas, já que com o
passar do tempo às famílias foram crescendo e novas casas foram sendo construídas nos lotes
das primeiras famílias assentadas. A conta do “L” que é corroborada pelo “D”, é de 25
pessoas abastecidas na Ilha Vecchi e 40 na Serra Queimada. Somada as outras 15 famílias
inseridas na Rede Casarão este número chega a 80 famílias. Há, porém, um número de
famílias não cadastradas que, segundo as informações levantadas na reunião da
APROVECCHI, realizada em maio de 2017, retira água diretamente das Redes sem participar
da gestão comunitária, o que aumenta o universo para 100 famílias. Para que tenhamos ideia
da importância do que estas Redes se tornaram, este universo de 100 famílias atendidas
corresponde a 8,27% do total de famílias que a AMAE deseja incorporar ao seu SAA até
2032.

30
Segundo os relatos, a Rede Chiqueirão criada enquanto contrapartida para a passagem das águas pelas terras
do antigo dono da fazenda José Tostes segue sem ser apropriada pelos camponeses e isto se deve não pela
existência do contrato, mas sim porque herdeiros do fazendeiro ainda possuem propriedade sobre um lote de
10ha e fazem visitas semanais à Serra Queimada. Um dos assentados em Serra Queimada é responsável por
cuidar das estruturas do Chiqueirão e por fazer a limpeza do lote, utilizado hoje para lazer.
31
Metodologia inspirada a partir de GEILFUS (2002).
90

Figura 5 – Caminhada pelas Redes Comunitárias de Água

Fonte: O autor, 2019.

A partir do momento em que a AMAE vai ao território do Guapiaçu e tenta articular


com lideranças locais a autorização para a apropriação da água pelo município ela acaba por
reconhecer o poder que os homens e mulheres do Vale têm sobre o seu território e, portanto,
sobre aqueles elementos que os/as próprios/as consideram como elementar para a reprodução
de suas vidas. Sem querer, a AMAE provoca um processo de reorganização comunitária do
controle e gestão da água que acaba fortalecendo a dimensão do poder que eles e elas têm
sobre o seu território. Uma reunião é convocada pela APROVECCHI para discutir se o
controle comunitário sobre a captação e a distribuição deveria ser transferido para a autarquia
municipal. Depois de um grande debate é aprovado em ata que o controle e a gestão das
Redes continuariam sobre as mãos, pés e cabeças dos agricultores e agricultoras. “L” conta
um pouco de como foi este processo,
91

Tem uns quatro ou cinco mês que eles tiveram aqui [a AMAE] (...) Era 20 reais por
mês, eu falei que era 20 pra começar. Depois teve alguém que orientou a gente:
“olha, se cair na mão de órgão público, depois que passar um tempo vocês vão
perder o direito dela, eles podem vender ela pra outra firma”, fazer um escarcéu com
nós. Aí que eu dei essa ideia, vamo salvar essa pele aí (...) eu dei essa ideia de 100
reais de cada um (“L” em entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e
Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).

A ideia da contribuição dos R$100,00 está pautada no princípio da contribuição não é


pagamento. Cada família integrada à Rede deveria contribuir com este valor para que fosse
constituído um caixa da APROVECCHI. A partir do momento em que todas as famílias
efetuassem a contribuição, seriam comprados novos materiais para viabilizar as reformas
necessárias para a ampliação e melhoramento do sistema. Ao confrontarem e negarem a
entrada da AMAE no território há uma emancipação social 32 destes homens e destas mulheres
ao permanecerem com o controle autônomo sobre as condições materiais e políticas de
produção de suas vidas.
GUTIÉRREZ AGUILAR (2011) considera o processo de emancipação social desde a
autonomia, um modo carregado de conteúdos concretos e sempre aberto, já que não há um
conjunto de objetivos explícitos e sistemáticos que devem ser almejados. Esta busca pela
emancipação através da autonomia traduz-se, na prática, como uma trajetória em que os
desafios estão intrínsecos a esta forma de construir o poder a partir da confrontação da ordem
política e econômica estabelecida. Ou seja, é preciso entender o processo de construção da
autonomia enquanto um caminho constante que irá desafiar a capacidade e a criatividade do
coletivo para enfrentar as diferentes formas de tentativa de desarticulação concreta e
simbólica do movimento.
Podemos dizer que o mesmo ocorre por todo o processo de expansão e constituição
das Redes Comunitárias de Água enquanto forma de apropriação e uso comum da água no
território. No Guapiaçu, ela está diretamente relacionada ao desenvolvimento dos saberes-e-
fazeres constituídos por estes homens e mulheres. Estes processos são constituídos a partir de
formas comunitárias de sociabilidade, através das quais se re-criam diferentes maneiras de re-
produção da vida ao mesmo tempo em que se constroem horizontes de sentidos
compartilhados (GÓMEZ, 2017).

32
Para GUTIÉRREZ AGUILAR (2011) a ideia de emancipação social “pressupõe uma relação anterior de
submissão, binária ou múltipla, que é rompida por decisão – e capacidade – da parte anteriormente subordinada.
Em geral, a emancipação tem sido tratada, sobretudo, em seus aspectos políticos, que dizer, a partir de
determinadas relações de poder instituídas, das quais, desde a modernidade se pensam em relação com o Estado
e o capital. Por minha parte, também relaciono a noção de emancipação a outra constelação de ideias: a
autonomia, material e política, e a capacidade social e prática de estabelecer fins para si mesmo (p. 28)”.
92

A construção da autonomia não se dá de forma linear, nela estão imbricados inúmeros


desafios – internos e externos - que se apresentam durante toda a consolidação destas Redes
Comunitárias. A verdade é que o maior desafio parece não estar presente no momento e nas
condições que ensejaram os/as camponeses/as a buscar a construção de suas próprias formas
de controle e manejo da água, mas sim a partir dele. Ou seja, o domínio que eles e elas
construíram sobre e com estas Redes é intrínseca à experimentação construída durante estes
últimos 20 anos 33. Os saberes-e-fazeres hoje consolidados são resultados dos erros e acertos
cometidos pela comunidade e estão marcados no espaço. Por exemplo, desde sua criação já
foram construídas duas caixas d’águas diferentes e que foram desativadas a partir do aumento
da demanda proporcionado pela inclusão de novas famílias ao sistema. Hoje, a captação é
realizada através de um pequeno barramento construído metros acima do local onde se
encontra a última caixa d’água construída, em 2008. Na fala de “L” fica claro que a percepção
e a observação são métodos fundamentais para identificar os limites e as potencialidades
presentes no sistema. No trecho seguinte, ele compartilha o que levou ao abandono da
primeira caixa para a construção da segunda:

Isso aí a vida foi ensinando, porque você vê, nós começamos cá embaixo. No tempo
que fizeram essa caixa d’água, que foi “D” que buscou esse projetinho lá, fizeram cá
embaixo. A água começou a ficar ruim; “bom, vamos levar pra cima, lá pro lado do
Dirlei (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea em
13/05/2017).

O tempo é um elemento fundamental que ensina a partir da experiência destes sujeitos


que nestas tentativas de erro e acerto vão adaptando a rede e o acesso à água, na medida em
que os desafios aparecem. E o erro não é um elemento que os faz parar ou desistir, pelo
contrário, é o elemento que propaga a energia necessária para a resolução e busca pelo acerto,
afinal a necessidade e a sede estão sempre à ronda. Após a construção da segunda caixa,
novos problemas aparecem e mais uma alternativa é encontrada:

Quer dizer, deu uma boa melhorada. Só que hoje já tem um filho de Tamir que
casou, tem o Borel que panhou água. Tem o Serra Queimada, que tem 12 ou mais
que usam. Aqui dentro da Ilha já casou o filho de Cinésio, de “M”, de Élzio, do “D”,
da Lúcia. Filho e filha, então aumentou. A gente vai vendo “não tá dando certo.
A gente sentiu que aquilo ali a nascente quase não abastecia. Ali é uma nascente,
não é o rio. Quando dava o tempo do frio ficava um perrengue danado de água para

33
NAVARRO (2013) aponta que estas formas de sociabilidade regidas em torno da construção comunitária
apresentam características marcantes, onde há o reconhecimento de um conjunto de necessidades que são
compartilhadas e assim buscam a construção de caminhos coletivos para sua resolução, mesmo quando as saídas
individuais podem ser uma opção. Este sentido do comum, portanto, atravessa as dinâmicas sociais centradas no
individualismo e na fragmentação e encontram no saber-fazer-pensar coletiva a superação dos desafios.
93

abastecer a caixa, além dela não ter força por ser baixa (Entrevista a Barbara
Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).

Durante os trabalhos de campo realizados foram relatadas inúmeras questões relativas


aos atuais desafios, mas em seguida propostas para suas resoluções eram apresentadas.
Abaixo estão indicados alguns destes problemas relatados:
• A tubulação da Rede Ilha Vecchi e Serra Queimada sofre constantes acidentes. O
sistema, quando não acompanha o Rio Caboclo e suas margens, é distribuído através dos lotes
daqueles/las que foram assentados posteriormente pela RAM, em Serra Queimada. Na época
da implantação da Rede, o fazendeiro José Luis Tostes ainda detinha o controle das terras cuja
atividade principal era a criação de gado. Com a mudança do perfil de ocupação da terra, hoje
destinado à produção de alimentos, os acidentes provocados são ocasionados pelo manejo da
terra – seja pelo arado e a utilização do trator, pelo gradeamento, através da tobata, até a
enxada. Isto ocorre porque a profundidade cavada para a passagem dos canos varia de 10 cm a
30 cm, portanto a demanda por reparo a partir da mudança do perfil de uso da terra tem
aumentado significativamente;
• Material utilizado no projeto original de qualidade duvidosa. Como descrito
anteriormente, o material utilizado em 1999 para a construção da Rede Ilha Vecchi era de
péssima qualidade, segundo os/as próprios/as agricultores/as. Os relatos contam que em
menos de um ano as tubulações já apresentavam danos, comumente relacionado à corrosão do
material pela própria água;
• Aumento da demanda de abastecimento local. Pensado incialmente para o
abastecimento de 10 famílias – assentadas pela Reforma Agrária em 1975, na Ilha Vecchi I -
tão logo a Rede começou a ser construída, em 1999, houve uma necessidade de se ampliar o
abastecimento para mais sete famílias que foram assentadas, no ano 2000, pela Reforma
Agrária no assentamento Ilha Vecchi II. A chegada em 2002 de 142 famílias assentadas pelo
Banco da Terra, em Serra Queimada, aumentou a pressão pela a incorporação de novas
famílias à Rede. Este demanda segue crescendo na medida em que as famílias assentadas dão
origem a outros núcleos familiares que por não terem acesso a terra se vê obrigada e dividir o
lote de seu pai e mãe para começar a construir suas vidas;
• A concentração e a personificação da gestão técnica comunitária do sistema. Este
elemento é apontado inúmeras vezes e assume certa centralidade entre os problemas que
devem ser suplantados para melhoria da Rede. A gestão do sistema acaba sendo personificada
nos pés, mãos e cabeças de apenas três ou quatro pessoas. As autoridades da água denotam
como apontado por SANTIAGO (2017), não um caráter de posse ou de propriedade, mas sim
94

de autoria. Acontece que existem pessoas que se colocam como responsáveis por conseguir
articular com os poderes locais as condições necessárias para a construção do sistema. Não
fosse suficiente, partes destes sujeitos são justamente os responsáveis pelo manejo da Rede.
Estas autoridades da água são fundamentais para a re-existência do sistema, mas é preciso se
atentar que a ausência de um trabalho coletivo é também consequência de uma possível
centralização do trabalho por parte destas autoridades. Defendo aqui que não há um caráter
autoritário do controle das Redes Comunitárias de Água e isto fica expresso em uma das falas
do atual presidente da APROVECCHI e um dos responsáveis por articular a construção do
sistema:

Hoje então é o seguinte: animais bebe água, têm seis ou sete piscinas, no verão o
pessoal tem que tomar banho, é um lazer. O ser humano tem que ter um lazer, né?
Hoje no momento não podia ter piscina. Como que chega na casa de alguém: “rapaz
esvazia essa piscina, corta essa água”. É difícil. Nós somos uma comunidade de
cinquenta e poucos usuários de água, olha quantos tem aqui. Dói também, né. Olha
quantos tem aqui interessados pela água (em Reunião da APROVECCHI em
12/05/2017).

A centralização do trabalho em determinados sujeitos pode ocorrer a partir de um


triplo aspecto: 1) Não são todos e todas que carregam consigo o saber e o fazer relativo às
engenharias hidráulicas populares, assim como há aqueles/las que não tem o interesse em
desenvolver esta função; 2) Ao mesmo tempo não ocorreu em momento algum um processo
de formação de outros sujeitos, por parte destas autoridades, com o intuito de coletivizar e
trocar estas experiências e saberes de modo que houvesse o subsídio necessário para a
coletivização das demandas técnicas do sistema; e 3) As autoridades estão justamente
localizadas no final do sistema de abastecimento da Rede, ou seja, são sempre os primeiros a
ficar sem água quando há um defeito técnico, portanto, existe uma lógica espacial na
construção dos sujeitos responsáveis pelo manejo do sistema. A partir de uma necessidade
que é colocada com mais frequência para estas famílias desenvolve-se – por necessidade – o
conhecimento não só das engenharias técnicas, mas do mapeamento mental da própria Rede.
A ideia das autoridades, segundo o que defendo aqui, deve ser mantida e debatida
levando em consideração os termos apontados34, porém é importante que o sentido da
autoridade deva estar mais consolidado internamente para ser explanado do território para
fora. Ou seja, as autoridades campesinas da água são todo o coletivo de pessoas – homens,
mulheres e crianças – que controlam suas redes de abastecimento de água. Não pode estar

34
A maioria destes termos é apontada pelos homens e mulheres que participaram da reunião da APROVECCHI
em 12/05/2017.
95

restrito aos homens (e neste caso são apenas homens, de fato) que realizam os reparos e por
isso detém um conhecimento mais aprofundado sobre a Rede. É a partir deste sentido coletivo
– já presente na gestão do sistema – que se fortalece e se inflexiona a disputa pelo poder sobre
a água. Esta disputa se dá no território, mas a partir de agentes externos a ele que a partir da
tentativa de controle da terra – como o projeto da barragem-reservatório – visa o controle da
água. Não se obtém o controle da água se não há um controle da terra, portanto do território.
As táticas e estratégias de controle do território são múltiplas e podem se apresentar de forma
direta ou indireta. Por exemplo, pode ocorrer a partir da articulação com uma das – ou
algumas das – lideranças camponesas locais35. Ou seja, a descentralização e a
despersonificação destas autoridades deve ser levada a cabo para se constituir uma autoridade
comunitária que controla e faz a gestão de forma realmente coletiva e autônoma do sistema.
Para isso é fundamental que ocorra processos formativos internos, onde a metodologia
camponês-camponês pode ser interessante para potencializar ambos os lados.
Como salientamos no início deste tópico, praticamente todos os problemas e desafios
levantados na reunião da APROVECCHI foram posteriormente acompanhados por propostas
concretas para a resolução dos mesmos. É fundamental – e isto foi demandado por todos e
todas – que haja uma interação entre a sabedoria camponesa e o saber acadêmico com vistas à
potencialização das propostas de forma que haja a consolidação de uma reforma capaz de
suprir a demanda para as gerações futuras. Seguimos com as propostas:
• Mudança do local de captação. A avaliação técnica feita pelos mestres da água é de
que o atual ponto de captação – 97 metros de altitude em relação ao nível do mar - não possui
uma altura e uma declividade capaz de proporcionar a pressão suficiente para a água se
deslocar com a potência necessária até o final da Rede. Em uma caminhada realizada na mata,
com dois dos mestres, ambos identificaram um novo ponto de captação (Figura 6), que
segundo eles terá altura - 127 metros de altitude em relação ao nível do mar – e inclinação
suficiente.

35
Como veremos no tópico a seguir esta é uma das estratégias que a Autarquia Municipal de Água e Esgoto
tentou adotar para se apropriar das Redes Comunitárias de Água do território.
96

Figura 6 – Área mapeada para construção do novo ponto de captação

Fonte: O autor, 2019.

• Alteração do tamanho da tubulação e do caminho que o sistema deve percorrer. O


conhecimento espacial das Redes Comunitárias e sua distribuição ficam evidentes nos
diálogos construídos com os mestres da água. Como apontado por “L” acima, este
conhecimento se deve ao fato da necessidade colocada frente aos problemas técnicos que se
apresentam. Quanto mais problemas aparecem, mais se aprofunda o conhecimento espacial da
Rede. Este mapeamento mental permite que estes mestres identifiquem todo o caminho
percorrido por cada tipo de tubulação – com mais de 5.000 metros de extensão. Como
descreve “L”, “a saída de lá é 100 mais ou menos uns 60 metros, depois cai pra 75, mais uns
60 metros, aí cai nessa borracha ali de 60. Aí vem, chega aqui no Chiqueirão, aqui embaixo na
fazenda, já cai no cano de 40”. Isto permite que os próprios não só identifiquem os principais
pontos de stress da Rede, mas que também tenham a capacidade de propor uma nova
espacialização da tubulação, como novamente nos aponta um dos principais mestres da água
de hoje:

Então, botando isso lá, fazendo essa caixa d’água lá em cima, levar esses cano de
100 todo pra cima pra sair da caixa até onde eles der. Deve ter uns 15 ou mais, com
mais algum que tem lá, dá quase 20 de 75. Quer dizer, ela vai andar bastante de lá de
cima, ela já tando alta com bastante peso de água, aí sim ela vai cair na borracha de
60. Só que essa borracha que você tá perguntando, essa aqui, na minha ideia é nós
97

levar a nova pra cima, porque você consertar uma água perto de casa é mais fácil do
que consertar dentro da mata, que lá sozinho eu não vou, quem for é doido que lá
tem onça! Então botar o novo lá em cima e pegar essa que tá conservada na sombra,
outras enterrada, e passar pra baixo. Aí ela vai passar da fazenda muita coisa. Vir
jogando ela pra baixo na borracha de 60 até no bambu já vai melhorar bem, já
pensou? Com esse dinheiro que vai arrecadar, ou não, dá pra chegar aqui na
borracha de 60; de 40 pra 60 vai render muito. O peso dela lá de trás de uns 200
metros ou sei lá, até mais, de cano grosso, de 100 e 75, acho que é assunto pra
encerrar a preocupação (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e
Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).

Dada a reorganização da tubulação – que leva em consideração o tamanho e a posição


de cada tubo – é necessário re-pensar o caminho que ela irá percorrer. Um dos fatos
abordados pelos/as usuários/as da Rede, e já apontado aqui, é que esta tubulação atualmente
passar por dentro das lavouras, o que potencializa o risco de acidentes. Para isso os/as
usuários/as residentes na Ilha Vecchi também tem uma proposta de reorganização do caminho
percorrido pela Rede. “L” propõe que

[...] a linha d´água não pode passar dentro do terreiro desse pessoal da ilha. Então
aqui na Ilha, a gente tem uma ideia de que da Iolanda até aqui embaixo, até na
Mônica, passar lá do lado da estrada, cada um tirar sua água de lá, que aí ela sai
dentro do terreno (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’
Andrea em 13/05/2017).

Busquei apresentar até aqui a conjuntura que levou estes homens e mulheres a
construir uma rede comunitária e autônoma da água, assim como os desafios internos-
externos que fazem parte de qualquer processo que aposte na autogestão enquanto estrutura
organizacional de controle de água. Desafios internos que são constantemente atravessados
por tentativas de apropriação, como no caso da AMAE, ou de destruição desta forma de
organização, como é o caso do projeto de construção da barragem-reservatório do Guapiaçu.
Igualmente importantes são os princípios que regem os saberes e fazeres da agricultura
reproduzida pelas mesmas pessoas que constroem cotidianamente a gestão da água. Estas
redes tornam possível a garantia da sobrevivência destas famílias que por sua vez garantem a
sobrevivência de uma parcela significativa da população que reside na região metropolitana
do ERJ ao produzirem os alimentos consumidos por ela. Como a agricultura e a gestão da
água no Guapiaçu são intrínsecas ao cotidiano destes homens e mulheres é fundamental que
se realize uma análise destas duas formas de construção do território. É fundamental que os
debates que tem como objetivo analisar as relações de poder e disputa sobre a água tragam,
também, o debate indissociável sobre a terra. Como esta região é umas das mais importantes
do ERJ no tocante a produção de alguns dos principais alimentos que chegam à mesa da
população que reside na região metropolitana, irei a partir de agora, realizar um debate sobre a
98

episteme camponesa de utilização da terra, porém focado em descrever e debater como esta se
materializa através dos sentidos e saberes.

1.4 A Geografia e o calendário da terra: a arte de sobreviver da agricultura!

Trajetórias de vida, trajetórias de luta pela/na terra!

A região do Vale do Guapiaçu é notadamente marcada pela forte presença da


agricultura familiar. São várias as estradas vicinais onde o caminhar se dá entre as produções,
entre o próprio Rio Guapiaçu ou até mesmo o Rio Caboclo. O certo é que tomar referência
espacial pela paisagem é um risco, pois a cada visita ao local ela traz a materialização da
passagem do tempo. Da mesma forma que nossos corpos carregam as rugas do tempo, a terra
no Guapiaçu traz a presença dos tempos curtos e longos. Talvez o mais bonito seja o fato de
que estas paisagens acabam por representar, do mais simples ao mais complexo, o processo de
produção da vida capitaneado pelos homens e pelas mulheres que vivem ali desde diferentes
períodos. Homens e mulheres que chegaram ao território vindo de distintas trajetórias, de
distintos lugares, mas o comum entre quase todas eles e elas é a luta pela terra. São gerações e
gerações de pessoas que só puderam construir a sua vida através de constantes e descontínuos
processos de ocupação-expropriação-reocupação. Tratarei de contar aqui, antes de entrar no
que é central neste item, um pouco da trajetória de alguns destes homens e mulheres de fé e de
luta responsáveis por alimentar uma das maiores cidades do país, ainda que aqueles/las que
comem não saibam que eles e elas existam. Pior, correm o risco de ali não mais estar e,
portanto, de ali não mais produzir e alimentar esta cidade.

[...] o importante é que nós tamos na nossa terra, a gente tá produzindo e saímos da
meia. A gente trabalha pra nós e pra nossa família, não dividir com alguém. Bem ou
mal nós tamos aqui, na nossa casa, tamo tocando a vida, e de 2002 pra cá nós tamos
nessa luta (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)

“Q” estava se referindo ao processo de luta pela terra que ele e “N²” empenharam até
conquistar o seu pedaço de chão. Ele conta que antes de serem assentados em Serra
Queimada, pelo Banco da Terra, viviam na terra do seu pai, no Marubaí 36, e “trabalhava a

36
Região do município de Cachoeiras de Macacu.
99

meia, era meeiro”, como ele mesmo narra. Para que tivessem acesso a sua própria terra,
ambos tiveram que participar de alguns acampamentos na região. O primeiro deles foi
marcado pela violência em que foram expulsos do acampamento. Situado no km 11, em
Guapimirim, uma fazenda foi ocupada pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cachoeira
de Macacu (STR-CM) cuja intenção era tomar a terra improdutiva e dividir entre os sem terra.
Eram cerca de 50 famílias participando da ocupação alojada em um galpão ocupado pelo
grupo. “Q” conta que o fazendeiro acionou o exército e que este foi o responsável por
remover as famílias da terra. Já a segunda ocupação, também organizada pelo STR-CM, foi
realizada no km 18 e a estratégia era que o processo de desapropriação da fazenda ocorresse
via intermediação do Banco da Terra, mas como a terra na época atravessava problemas
jurídicos não foi daquela vez que as famílias puderam conquistar um pedaço de chão.
“A” e “V”, assim como “N²” e “Q”, vinham de uma trajetória de vida na terra, mas
sem possuí-las. Ele conta:

Eu morava, rapaz, lá na beira da pista, sabe, trabalhava um dia pra um, um dia pra
um, sabe, trabalho assim, sabe, que você não tem carteira, não tinha nada, não tinha
garantido porque chovia, às vezes não podia trabalhar. Vai trabalhar com chuva,
chega lá o cara não quer. Então você acaba perdendo o dia, não é verdade? Então,
tudo que a gente sempre mais queria era ter um pedacinho de terra pra poder
sobreviver e sustentar a família, né (“ A”, em entrevista a Pedro D’ Andrea em
09/01/2018).

Moravam no “terreninho” da mãe da “V”, “em uma barraquinha lá na minha sogra”,


conta “A”. A trajetória de vida sem a terra leva o casal de companheiros ao mesmo caminho,
já que as condições de vida eram difíceis. Ambos também participaram do acampamento no
37
km 18, assim como “Q” e “N²” . Como os quatro já eram sindicalizados no STR-CM, ao
aparecer à possibilidade de aquisição da terra via Banco da Terra tiveram apenas que fazer o
cadastro no INCRA. Foram inúmeras reuniões que duraram cerca de um ano para que fossem
decididos quantos hectares e qual parcela cada família receberia. Este processo de compra da
Fazenda de Serra Queimada foi consolidado sobre uma série de irregularidades38.
Não foi permitida a participação do STR-CM durante todo o processo de negociação
realizado entre o Banco do Brasil e o fazendeiro José Tostes, além disso, não foi permitido
que em nenhum momento os agricultores e agricultoras pudessem sequer visitar o futuro local
em que seriam assentados:

37
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
38
Para aprofundamento da discussão sobre as fraudes e os impactos da Reforma Agrária de Mercado pelos quais
passam as 142 famílias assentadas em Serra Queimada, ver CADORIN (2017).
100

A gente não sabia, até porque a gente até uma vez ajuntemo um grupo, umas
pessoas, a gente queria vir aqui pra conhecer aí informaram pra nós que não podia
que o homem fazendeiro não permitia ninguém vir aqui pra ver, que se viesse aqui ia
botar pra correr. Aí na verdade eles ficaram ainda um ano fazendo negociação e a
gente sem poder vir aqui, pelo menos sem saber o que tava comprando (“ A”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 09/01/2018).

“A” conta que somente após a conclusão da negociação é que os assentados


contemplados por meio de um sorteio puderam visitar a área destinada ao assentamento. Isso
gerou uma série de conflitos entres os próprios assentados. A fazenda Serra Queimada possuía
uma área extensa – cerca de 1400 hectares, portanto o perfil da qualidade do solo era
distribuído de forma desigual. Alguns lotes possuíam uma área com melhor aptidão para o
uso agrícola, enquanto outros se encontravam dispostos sobre áreas montanhosas, com perfil
acidentado e bastante irregular, além de possuir áreas cujo perfil do solo é cascalhento.

Sabe, aí a gente ficamo um tempão. Fizeram negociação, fizeram sorteio; quando


fizeram sorteio dos terrenos, que a gente viemos aqui: “ah bom, agora fez sorteio,
agora vocês podem ir lá pra ver como que é e saber onde que é o seu”. Aí chegou
aqui ainda quase que o pau quebra ainda, porque, sabe, o cara achava que o terreno
aquele era dele, aquele não era dele, o outro era dele, porque ninguém queria o que
era ruim (“A”, em entrevista a Pedro D’ Andrea em 09/01/2018).

Segundo CADORIN (2017), 51% dos assentados em Serra Queimada não puderam escolher a
terra em que foram assentados e 61% não participaram do processo de negociação. O maior
escândalo relativo ao processo de negociação destas terras intermediado através da lógica da
RAM está relacionado ao tamanho dos lotes. Segundo consta em documento produzido pelas
cinco associações - que abrangem as 142 famílias assentadas – entregue à Defensoria Pública
de Cachoeiras de Macacu 39 foi garantido aos assentados que as terras financiadas por eles
estavam aptas e em boas condições para a produção agrícola. No contrato assinado pelas
cinco associações, cada família seria contemplada com um lote de 9,7ha, em média, mas ao
chegarem se depararam com uma área de preservação ambiental que ocupava 53% de todo o
assentamento, restando apenas 47% do total da área disponível para a agricultura. Ou seja, os
agricultores e agricultoras se comprometeram a pagar perante assinatura do contrato de
compra e venda por uma área que não representa o que está indicado no próprio contrato. Se
no contrato estava previsto que as famílias receberiam em média 9,7ha hoje elas estão
assentadas em lotes que variam entre 2,5ha e 3,5ha.
As cinco associações e os/as associados/as estão com seus nomes inseridos na dívida
ativa da união e passam por um processo de tentativa de anulação do contrato por entenderem

39
Disponível em CADORIN (2017).
101

que foram lesados. Tanto “Q”, quanto “A”, ao tocarem no assunto se colocam de forma
enérgica deixando clara a indignação por terem sido escancaradamente enganados.

O valor que tá pra gente pagar é de nove hectares. Só que o assentamento tem 53%
de mata. Então você jogando em cima da nossa terra, mesmo assim não dá as nove,
porque a gente tem três, jogar o dobro dá seis. Então não sei da onde eles arrumaram
essas nove pra colocar no documento. Porque não tem essa terra aqui (...). Não tem
jeito de ter essa terra. Se nós têm 50% assentado e 50% de mata, teria que ser 4,5 pra
dar nove. Não pode dar nove (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
Por esse motivo a gente vive enrolado ate hoje, sabe, por essa questão, de não ter a
quantidade de terra que gente esperava ter; não é que a gente esperava, é que
prometeram pra gente e a gente não tem. Além disso, tem terreno aqui que, sabe, se
o cara ele sozinho sobreviver em cima dele, rapaz, só com ajuda divina (“A”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 09/01/2018).

O quadro apresentado reflete uma conjuntura recorrente no Brasil em relação aos


assentados sobre a lógica da RAM. Segundo a Rede Terra de Pesquisa Popular (2005) 40, 35%
das famílias não escolheram a terra que compraram 41% não participaram das negociações da
compra da terra, 16% citam casos de corrupção durante este processo, 48% declararam que a
terra era improdutiva ou ociosa, e 54% não tiveram acesso ao contrato de compra e venda.
Segundo o INCRA, a dimensão do módulo fiscal varia de acordo com o município
onde está localizada a propriedade e o valor do módulo fiscal no Brasil varia entre 5 a 110
hectares. O módulo fiscal do município de Cachoeiras de Macacu, segundo os índices básicos
do INCRA de 2013, é de 14 ha41. Quando analisamos o tamanho dos lotes dos assentados –
pela contra-reforma agrária (ALENTEJANO e PORTO-GONÇALVES, 2011) - da Serra
Queimada, assim como da Ilha Vecchi I e II, fica explícito o caráter conservador de como
estas reformas foram feitas. Os lotes variam entre 2,5ha e 3,5ha, estando 4.6 vezes menor do
que o módulo fiscal municipal e, pior, se encontram abaixo do valor mínimo instituído pelo
INCRA.
Se antes o “L” nos apresentava a lógica do bolo para descrever um dos princípios
comunitários que regem as redes comunitárias de água, dessa vez a lógica do bolo reaparece
explanada pelo “A”, mas para explicar outro contexto:

40
O levantamento realizado pela Rede Terra de Pesquisa Popular realizou 1.677 entrevistas em 13 estados
brasileiros abrangendo um universo de 60 mil famílias. A pesquisa abrange os programas Cédula da Terra,
Banco da Terra, Crédito Fundiário e Nossa Primeira Terra entre 1997 e 2005. O estudo foi realizado por diversos
movimentos e organizações que compõe a Via Campesina Brasil, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC),
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Pastoral da
Juventude Rural (PJR) e a Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), além da Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos.
41
Disponível em: <http://www.incra.gov.br/tabela-modulo-fiscal>. Acesso em: 27 abr. 2018.
102

Que é aquele negócio, Pedro, você vai num aniversário, cê tá com fome, você quer
um pedacinho do bolo, não é verdade? Foi o caso nosso. Ao menos um pedacinho
você quer, você não quer ir pra casa sem nada (“ A”, em entrevista a Pedro D’
Andrea em 09/01/2018).

Veremos a seguir, nos demais itens, que por mais que estas famílias – “Q” e “N²” e
“A” e “V”, da Serra Queimada; e “L” e “N” 42, da Ilha Vecchi II – possuam um lote inferior ao
módulo rural do município e dos parâmetros nacionais estipulados pelo INCRA suas terras
apresentam índices altíssimos de produtividade alimentar – em média 50 toneladas/ano. Isto
ocorre a partir de saberes-e-fazeres desenvolvidos a partir de elementos como a observação e
a experimentação adquiridos com o tempo, e a partir do saber ancestral passado pelas
gerações que os/as antecederam. Fatores como o tempo, o clima, a água e a lua regem os
princípios da relação que estes/as desenvolvem com a terra e, portanto, conduzem estas
diversas formas de plantar-comer-habitar-curar. Ademais estão inseridas sobre os mesmos
processos hidrocomunitários debatidos anteriormente.
Assim, apresentaremos a seguir novos elementos que caracterizam o
sociometabolismo camponês presente no território do Vale do Guapiaçu.

1.4.1 As diversas formas de sentirpensar a agricultura

O subcomandante Insurgente Marcos do Exército Zapatista de Libertação Nacional


(EZLN) em seu livro “Nem o centro e nem a periferia: sobre cores, calendários e
geografias43” coloca que os antigos/as zapatistas diziam que eram sete os primeiros deuses e
deusas que ao nascerem deram origem ao mundo. A partir destes sete deuses e deusas foram
criadas “sete cores: o branco, o amarelo, o vermelho, o verde, o azul, o café e o preto; sete
pontos cardeais: o acima, o abaixo, o adiante e o atrás, o um lado e o outro lado e o centro; e
que sete também são os sentidos: olhar, degustar, tocar, ver, ouvir, pensar e sentir (p. 32)”.
É possível que a maioria dos homens e mulheres do Vale do Guapiaçu nunca tenham
ouvido falar no subcomandante Marcos, nos/nas zapatistas e em suas lutas, muito menos de
seus sete deuses, sete cores e sete sentidos. Ainda que seja importante o fato de que se os

42
Agricultora assentada na Ilha Vecchi.
43
O livro reúne uma série de discursos proferidos no Colóquio Aubry, entre os dias 13 e 17/12/2007, realizado
em San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México. Disponível em:
<http://enlacezapatista.ezln.org.mx/category/2007/>. Acesso em: 28 abr. 2018.
103

conhecessem muito poderia ser agregado as suas formas de conceber o mundo e suas
estratégias de luta, o que mais importa aqui – nesse momento - é a relação dos setes sentidos
zapatistas com a agricultura desenvolvida no Vale do Guapiaçu.
A partir das entrevistas semi-estruturadas realizadas nos trabalhos de campo é possível
perceber a importância dos cinco sentidos – a escuta, o tato, a visão, o olfato e o paladar – na
construção do conhecimento dos/das camponeses. Além deles, podemos incorporar o que
os/as zapatistas também consideram como sentido: o sentir e o pensar. Esta complexa relação
do escutar-tocar-observar-cheirar-provar-sentir-pensar se constituí, portanto, como a base do
senso agroambiental teórico-prático que estrutura as diversas formas de plantar-comer-curar
que são materializadas a partir do manejo da terra e da água.
Estas diferentes formas de sentir-pensar (ESCOBAR, 2016) a agricultura envolvem
epistemologias, saberes e referências de mundo próprias. Há uma vivência correlata às
diferentes experiências espaço-temporais da humanidade onde este sentir-pensar esta
relacionado a estas diferentes cosmologias e visões de mundo. O território é construído
através de um longo e constante processo de aprendizado, através dos pés e das mãos. Escutar
o vento, a mata, os bichos, a água. Tocar a terra, a água, o alimento, as diferentes texturas
presentes no espaço. Observar a lua, as estrelas, o sol, a chuva, as nuvens, os bichos, as matas.
Degustar os alimentos, as plantas medicinais. Cheirar a terra, a chuva, o fogo, a fruta, a mata.
E o sentir-pensar como simbiose deste constante e histórico processo de experimentação e
aprendizado. Todos estes sentidos são ao mesmo tempo unidade e diversidade que estruturam
um conjunto de elementos que só podem ser compreendidos a partir de sua totalidade.

1.4.1.1 Escutando a memória

Estes saberes são adquiridos através da transferência de conhecimento que é partilhada


pelos antigos e antiga. A todo o momento são revelados através das narrativas – as historias
de grande valor! - os ensinamentos dos avôs/avós e pais/mães que foram sendo
compartilhados em suas trajetórias de vida. A memória traduz-se como um dos elementos
mais importantes da ciência tradicional que é transmitida no espaço e no tempo (TOLEDO e
BASSOLS, 2008), através de uma oralidade imbuída de elementos simbólicos. Este escutar a
memória assume um caráter central, já que traz outros corpos e vivências de um espaço-tempo
104

passado para um espaço-tempo presente. Não é apenas o conhecimento que é compartilhado


neste processo, mas há uma clara revisita aos parentes - imbuídas de afeto e admiração:

Isso, assim que meu pai ensinava. Ele dizia: “se você quiser plantar só milho
catete...”. Porque o milho catete é mais pra canjiquinha. E o astequi ele dá mais
fubá, 60% dele é fubá. Então ele é mais pra fubá do que pra canjiquinha. Ai meu pai
fazia cruzamento de um com o outro pra ter a durabilidade, que esse milho astequi
você não pode guardar muito tempo que ele dá caruncho. Já o cateto ele não dá. Ele
é um milho firme, não dá, você pode deixar dois, três anos que ele não dá nada disso
não. Aí meu pai fazia o seguinte: “vamo fazer o cruzamento desse milho com esse
pra pode eles ficar bom”. Aí meu pai plantava o cateto e o astequi (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

“A” se refere ao seu pai quatro vezes para explicar a ciência relativa ao cruzamento de
diferentes espécies de milho. E essa referência repetitiva não se traduz – como nossa
arrogância moderna-colonial possa pensar – por uma falta de domínio da linguagem. As
palavras são muito bem pensadas antes de serem utilizadas, sobretudo por aqueles/as que têm
na oralidade sua forma de expressar sua visão (sentirpensar) do mundo e sua forma de estar
no mundo, pois “as sociedades orais não são necessariamente analfabetas, porque sua
oralidade não é carência de escritura, mas sim não-necessidade de escritura (MALDONADO,
1992 apud TOLEDO e BASSOLS, 2008). “Fazia”, “plantava” e “ensinava” são as palavras
associadas conjuntamente ao seu pai e que expressam um tempo verbal do passado, mas que
traduzem um método relativo ao presente de passar o conhecimento: ensinar fazendo. Este
espaço-tempo passado que se apresenta no espaço-tempo presente através da prática também
tem o intuito de alcançar e projetar um espaço-tempo futuro. Afinal, o que seu pai ensinou é
ensinado ao seu filho:

E aí guardo pra mim plantar, todo ano eu planto. Já arrumei pra tanta gente esse
ano. Esse ano já arrumei mais de 50 quilos de milho. Distribuindo semente,
porque todo mundo quer. Outro dia tava até vendo, tava até comentando com meu
filho, falei: “filho, tudo, do jeito que começa, acaba”. A gente começa do nada, e
quando morre também não é nada mais, não é verdade? Vira nada. Falei: “olha só, o
que começou a alimentação foi esse milho indígena”. E se eles não investir nessa
semente; não vou dizer eu ou você, mas essas gerações novas que tá vindo, que vai
vir ainda, vai passar fome, porque a terra não vai dar esse milho transgênico, vai
não. Você vai ter que botar, sabe iogurte pra poder ela se alimentar pra poder dar.
Antigamente o pessoal botava esse milho indígena, ele dava sem nada. Plantava lá e
dava, e eu planto até hoje, e dá. E por que esse outro não dá? Se você não botar
adubo, não dá? Já é uma ligação que eles fazem no próprio desenvolvimento da
semente que se você não usar aquele adubo, o milho não vai dar. Que é pra vender o
adubo. O cara vai lucrar duas vezes, vendendo a semente e vendendo o adubo. O que
eu tô fazendo? Plantei ali, tô fazendo cruzamento de um milho com o outro. Falei:
“Filho botar esse milho pra fazer cruzamento com o outro”. “Pai, como que faz
cruzamento de um filho com o outro?”Falei: “Filho, meu pai, meu avô, eles
fazia assim”. Quando eles queria fazer cruzamento, eles plantava uma carreira de
um e uma carreira de outro, uma carreira de um e uma carreira de outro. Quando
105

faltava o pedão, o que eles queria eles deixava o pedão (“A” em entrevista a Pedro
D’ Andrea em 11/01/2018).

Segundo TOLEDO E BASSOLS (2015) o conhecimento tradicional contido em uma


pessoa traz a síntese de pelo menos três dimensões temporais: i) Uma experiência histórica
acumulada e transmitida através de gerações; ii) A experiência socialmente compartilhada por
pessoas de uma mesma geração; e iii) A experiência pessoal e particular da própria pessoa e
da sua família através das práticas e experimentações desenvolvidas. “A” segue a cronologia
ao ensinar a seu filho, os saberes e fazeres compartilhados por seu avô e pai. Um saber
compartilhado que se torna comum. Esta lógica de uma ciência comum se materializa a partir
da comunhão que é resultada dela própria. O conhecimento não é do “A”, assim como não era
de seu pai e avô, portanto as sementes de milhos cruzadas também não são suas. São
distribuídas para quem desejar. Os bens comuns são frutos dos saberes-e-fazeres comuns que
nos territórios, em geral, tem na oralidade e na memória a metodologia mais importante de
transmissão do saber. “Tudo, do jeito que começa, acaba”, portanto como nada viemos e nada
nos tornaremos então não há sentido em guardar tantas sementes.
ESCOBAR (2016) afirma que a ancestralidade e a memória viva atuam como
ferramentas que orientam uma visão de futuro, uma espécie de “futuralidade” esperada e que
através da luta se espera construir as condições que irão permitir a sobrevivência do seu
mundo e de suas características próprias. O próprio “A” e sua família são o resultado concreto
da construção desta “futuralidade” e se torna ainda mais complexo que o pai vai até o Período
Neolítico para ensinar ao seu filho que a alimentação começou com o milho indígena. O que
denota a consciência que o domínio que ele tem desta ciência é concomitante ao
desenvolvimento histórico-espacial da espécie e é justamente por isso que alerta ao seu filho
sobre a importância das sementes. A reprodução destas sementes são, ao mesmo tempo,
formas de se reproduzir este saber, portanto estão contidas nestas sementes mais do que a
capacidade de reprodução da vida, há nelas o alimento, a energia o conhecimento e a
autonomia (PORTO-GONÇALVES, 2016). E “A” sabe disso, tanto que deixa claro sua
importância frente às sementes transgênicas.
Segundo MAZOYER e ROUDART (2010) alimentos como o milho, tomate, abacate,
abóbora e o feijão são manejados por nossa espécie a mais de 9.000 anos. Já o pimentão, a
batata doce, o abacaxi, o mamão e a mandioca a cerca de 6.000 anos. Este continuum
histórico expressa o que TOLEDO E BASSOLS (2008) chamam de “código de memória”, em
que a memória circunscrita à identidade torna-se memória coletiva quando generalizada que,
por sua vez, é apoiada por uma dupla estrutura, biológica e cultural que apresenta uma
106

diversidade genética e linguística. “L” sem conhecer estes autores expressa o mesmo (aliás, os
autores expressam o mesmo que “L”, é o inverso!):

[...] as pessoas de antigamente têm uma ideia que o que eles falar hoje se ficasse
gravado não ficava tão armazenado. O dia que plantou tal coisa, o dia que plantou
tal, pra saber o que funcionou, porque funcionou. E aí vem passando pra gente, a
gente vai levando aquilo: será que isso é verdade? (“L” em entrevista a Pedro D’
Andrea em 09/01/2018).

Estes saberes são colocados em prática através dos experimentos – o tato – realizados
nas interações construídas com a terra, a água e a mata. São os pés e as mãos em contato com
a terra que dão a materialidade a estes processos (Figura 7). Como “L” mesmo diz, “pra virar
ciência pra cair num livro, tem que ser tirado a limpo na prática, porque teoria é quase igual
mentira”. Nesse sentido, a observação se caracteriza como a ferramenta metodológica que
avalia os processos sóciometabólicos que são colocados em (com a) prática. Estas
experimentações e suas constantes avaliações não assumem, necessariamente, uma estrutura
rígida onde são identificados o início, o meio e o fim dos processos. Esta trajetória é constante
e intrínseca, e o método da tentativa e erro é central. O que dá certo segue e o que dá errado é
reavaliado.

Figura 7 – O tato, a cada passada uma semente de Jiló

Fonte: O autor, 2019.


107

1.4.1.2 “Se você deixa uma terra com fome e com sede, quem vai ficar com fome e sede é
você”

Porque, não é verdade, Pedro, às vezes vem pessoas aqui que diz: “eu gosto da
roça”. Sabe? Você gostar da roca é uma coisa, e sobreviver da roça, sabe, você tem
que ser artista. Porque eu digo que tem que ser artista? Aqui nossa área aqui é
restrita, é pequena. Se nos tem nove hectares, essa área seria mil maravilhas. Porque
você tem que tá sempre repondo, um adubo, tem que botar uma coisa pra poder...
Desde o momento que você tem que botar adubo, você já deixa de comer pra
poder...Se você deixa uma terra com fome e com sede, quem vai ficar com fome
e com sede é você (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

A todo o momento a natureza é tratada para “A” como um ser comum ao homem
(Figura 8). A dificuldade em conseguir criar as condições de reprodução da sua vida, que está
diretamente relacionada ao modo como as famílias foram assentadas na região, não fazem que
com ele construa um manejo da terra predatório. É preciso alimentar a terra para que ela possa
alimentar sua família.

É por isso que eu faço sempre rotação de cultura que é pra poder manter o solo mais
fresco, tá entendendo, mais fresco, e procuro sempre ao máximo reservar o máximo
que puder a margem de rio, e não mexo em nada na margem de rio porque eu sei
que: “ah, ali eu podia plantar um pé de banana”. Não, mas pode deixar um pé da
árvore lá sim, porque a árvore vai segurar muito mais que a banana; vai me trazer
muito mais retorno do que fosse um pé de banana. Plantei sim, manga, sabe, lá, pra
poder ela lá, servir, então tá lá pros bicho comer, até pra ajudar a mata auxiliar do
rio, tem que ter, pra poder, sempre. Porque se a gente não cuidar da nossa água,
vamo ficar com sede. Quem é que não quer ter uma água de qualidade, não é? (“A”
em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

Figura 8 – A terra, o aipim e o homem no Vale Guapiaçu

Fonte: O autor, 2019.


108

A lógica da reciprocidade está alinhada com toda a diversidade de seres vivos que
compõem o ambiente. A rotação de cultura visa evitar a exaustão do solo de uma terra de
apenas 3,5ha que produz durantes 365 dias do ano. A família poderia expandir sua área de
produção para as margens do Rio Caboclo para tentar aumentar a produtividade, mas se isto
fosse feito o risco de erosão e assoreamento do rio seria alto e isso faria com que a qualidade
da água que o abastece, diminuísse. Ainda que sua propriedade esteja às margens do rio o que
lhe garantiria constante acesso as suas águas, isto poderia colocar em risco o abastecimento
das demais famílias que estão inseridas na Rede Comunitária. Lembremos ainda, que foi seu
pai que lhe ensinou o sistema que contribuiu com o aumento da recarga hídrica de uma
nascente presente em suas terras, um dos elementos importantes deste sistema era o plantio de
banana d’ água destinado aos passarinhos, pois desta forma estes poderiam contribuir com o
reflorestamento da área quando viessem comer a fruta: “Não quero que ninguém corte um
casco, eles vão ajudar a gente”, era o que seu pai dizia. O ensinamento ficou marcado e “A”
continua a plantar frutífera para os pássaros comerem.
Da mesma forma ele conta que parou de utilizar compostos químicos ao perceber o
prejuízo que era causado a terra:

Um composto que eu uso mais, eu não gosto de usar adubo químico não. Se eu usar
adubo químico de qualquer forma eu tô matando a terra. Trabalhando, muita gente
usa... no começo eu comecei até a usar. Mas fazendo a cova pra plantar a laranjeira,
cheia de minhoca. Quando eu joguei um pouco de adubo, desse químico, matei as
minhoca todinha. Aí fiquei olhando: “a partir de hoje não uso mais”. Ai eu parei de
usar o produto químico porque ele mata todas as coisas que tem na terra ele mata
tudinho (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

A lógica que permeia a forma como “A” entende e concebe seu manejo deixa explícito
que ele é parte integrante da terra e sua consciência se encaixa a esta dinâmica. Sua
individualidade é transcendida e sua existência ocorre a partir da existência dos demais seres
vivos. Este movimento é o que une estes homens e mulheres à natureza, onde corpo, terra,
água e mata fazem parte de uma mesma co-evolução. Constituem-se enquanto seres vivos que
dependem um do outro para garantirem sua existência se entrelaçando em um caminhar
contínuo (INGOLD apud ESCOBAR, 2015).
109

1.4.1.3 A lua manda

Quem manda é ela e “isso vem de longe, meu filho”, afirma “L”. São necessários
muitos anos para entender a influência de cada fase da Lua no cultivo de cada alimento. O
respeito à Lua é o respeito ao tempo da Terra. Por mais que as relações camponesas com a
terra acompanhem suas trajetórias de vida, tem-se a consciência de que não se pode afirmar
com exatidão a garantia do sucesso ao ser plantado determinada cultura. São inúmeras as
variáveis que perpassam pelo tempo de crescimento das culturas postas na terra. Estes sujeitos
da experiência precisam entender as dinâmicas climáticas locais para evitarem possíveis
perdas, sendo o respeito construído a partir desta relação.

Pra gente ter uma ideia de tal mês eu plantei e não prestou, não produziu, não é que
a gente não plantou sabendo que o mês era ruim ou bom, mas tem ano que chove,
mais outro menos, tem algum contratempo que às vezes não produz do jeito que a
gente pensa. Porque geralmente você planta uma roça de aipim, planta mil pés de
aipim. Mil pés de aipim, numa faixa de cinco pés pra uma caixa, dá o quê? 200
caixas de aipim. Só que tem lavoura que você conta que tem que arrancar dez pés
pra uma caixa, aí vai dar só 100, e às vezes a mesma terra que tu colheu no ano
anterior ou vai colher pra frente, pode dar. Naquele ano ela vezes engana; é uma
coisa que não dá pra afirmar com 100% de certeza, porque engana. Geralmente eu
vejo pessoa: “arranquei três pés de aipim na minha roça deu uma caixa”, mas é
quase difícil dele poder falar assim, vou arrancar um pelo outro a cinco e vai dar o
que eu quero, vai dar não. Às vezes vai depender de dez pés pra uma caixa. Depende
do ano (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 08/01/2018).

A necessidade de evitar prejuízos é fundamental, sobretudo para quem vive em um


lote de 2,5ha como “L” e “Dona” “N”. Por isso os sentidos tem que estar sempre aguçados
para potencializar a interpretação do complexo processo de reprodução da vida na natureza. O
tempo se torna um fator essencial, pois permite o acúmulo natural destes saberes. É através de
um longo processo de experimentação e observação do que se planta, quando se planta e em
que condições que se planta que “L”, por exemplo, consegue identificar o que plantar em cada
fase da Lua.

Ah, crescente, pra dizer a verdade, não gosto de plantar muita coisa não. Eu sempre
gosto, abóbora; planta que vai dar dentro do chão, batata doce, inhame, essas coisa
sim, a melhor fase de lua pra plantar é minguante. Porque o pé da planta não vai
puxar muito, mas a raiz dele vai, entendeu? Ou seja, o aipim também; aipim você
pode plantar nova pra crescente, ajuda bem. Agora, quando é uma época de verão
igual essa que nós tamos agora, esse aipim aqui eu plantei na minguante, na fase da
minguante. Porque ele já tem tudo pra crescer demais, que é chuva toda hora, não é
isso? Se ele crescer demais não vai dar nada (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea
em 08/01/2018).
110

Já o milho, o inhame e o jiló são plantados na crescente, “é porque, você vai precisar
do fluxo dele lá fora da terra, uma espiga de milho, se o pé tá crescendo bonito vai dar uma
espiga bonita. O que mais, qualquer fruto que for dar fora da terra”. Mas não é uma regra que
todo tubérculo – cuja raiz se desenvolve na terra - deve ser plantado na Lua minguante e que
as leguminosas – cuja planta se desenvolve a partir da superfície – devem ser plantadas na
Lua crescente. O feijão, por exemplo:

O feijão vai dar fora do chão, mas o feijão na minguante tem uma vantagem que ele
não dá broca. Vou te dar um exemplo: vai ali naquele bambuzal ali em cima na lua
nova, tira um bambu, guarda onde você quiser um pedacinho qualquer de bambu.
Não vai trinta dias ele já tá todo furado de broca. Se bobear no mesmo dia tem broca
arrodeando ele. Aí tu vai tira um outro no mesmo dia do mês, mas na lua minguante;
daqui tal dia vai ser minguante, tu tira na minguante. Tu vai guardar aquele bambu
toda vida, nunca vai dar broca (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
08/01/2018).

As fases da Lua, portanto, também influenciam na maior ou menor possibilidade de


proliferação de pragas. E isto não se restringe aos alimentos:

Madeira. Eu conheço um pessoal mais antigo, que tirava madeira na mata pra fazer
barco, casa, essas coisas, então sabia: na lua minguante vai lá tira madeira. Se não
puder trazer deixa tirada lá; não tira na lua nova ou nova pra crescente, coisa assim,
que pouco tempo a casa tá caindo, que broca vai comer tudo. Minguante. Se quiser
ela boa, que ela vai durar. Menos baraúna e uma outra madeira aí que dizem que ela
amarga, broca não come, pode tirar qualquer época (“L” em entrevista a Pedro D’
Andrea em 08/01/2018).

1.4.2 Os agroecossistemas familiares

Os itens anteriores foram dedicados à descrição de alguns dos princípios teóricos e


práticos que conduzem as bases científicas da agricultura produzida no Vale do Guapiaçu. É
importante ressaltar que não podemos considerar que estes princípios são conduzidos e
reproduzidos pela totalidade das quase 1000 famílias que compõe o Vale e que estão em
resistência frente à constante e histórica proposta de construção da barragem-reservatório do
Rio Guapiaçu. Por conta desta diversidade, diferentes concepções atravessam estas múltiplas
formas de tocar-observar-comer-cheirar-escutar-sentir-pensar a terra e a água. Assim como,
elas estão atravessadas por um contexto histórico de implantação vertical dos pacotes
tecnológicos da agricultura moderna. Estes saberes tradicionais re-existem no passar do tempo
111

e na interação com o espaço, onde cada família re-cria suas próprias formas de lidar com estas
imposições que se iniciam em meados de década de 1960. Trata-se, portanto, de uma geração
que tem acompanhado as radicais modificações e impactos que esta agricultura moderna-
colonial tem gerado à natureza e à saúde dos corpos daqueles e daquelas que a re-produzem. É
partir desta vivência – e da utilização constante dos sete sentidos – que são provocadas
reflexões que questionam esta concepção.
As maiores dificuldades para a construção da emancipação frente a este modelo
predatório estão diretamente relacionadas ao caráter conservador das reformas agrárias
promovidas na região. Como promover a transição e retornar integralmente as suas formas
tradicionais de produção de alimentos com lotes 4,6 vezes menor do que o módulo fiscal do
município? A primeira responsabilidade é do Estado, já que há inúmeros latifúndios
improdutivos na região que não cumprem a função social da terra, portanto devem ser
desapropriados para fins de Reforma Agrária. Com mais terras, estes/estas agricultores/as
terão condições materiais concretas para re-construir esta emancipação. Conhecimentos e
disposição não faltam, o problema é a falta de terra.
Mesmo assim estes/as agricultores/as re-existem às múltiplas formas de tentativa de
invisibilização e afogamento por parte do capital e do Estado, e são responsáveis por
fornecerem a maior quantidade de alimentos por mês ao Pavilhão 21 – o Mercado Livre do
Produtor – da Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ). São cerca
de 50.000 pessoas 44 circulando por dia neste pavilhão o que faz com que estes alimentos
produzidos no Vale do Guapiaçu circulem por toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Segundo os dados da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro
(EMATER-RJ, 2013) saem cerca de 55 toneladas de frutas, legumes e folhosas diariamente
para o CEASA-RJ, o que é equivalente à aproximadamente 20.000 toneladas de alimento por
ano. Além de 1.300.000 litros de leite por ano, uma significativa produção do gado de corte,
piscicultura e ranicultura, tem gerado uma receita de cerca de R$21.679.700,00/ano para o
município de Cachoeiras de Macacu 45.

44
Informações disponíveis em: <http://www.ceasa.rj.gov.br/ceasa_portal/view/unidade_grandeRio.asp>. Acesso
em: 30 abr. 2018.
45
Consideramos estes dados subdimensionados, pois a EMATER-RJ baseia seus cálculos a partir da emissão dos
talonários fiscais. Estes talonários só são emitidos por aquelas famílias que possuem a Declaração de Aptidão ao
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP), que por sua vez só possibilita que tenham
acesso famílias que comprovem a propriedade e/ou utilização do imóvel (escritura, contrato, título de posse, etc).
Há uma diversidade do perfil da agricultura familiar na região, que a partir de um quadro com grande presença
de famílias sem terra exercem atividades laborais enquanto parceiros, meeiros e arrendatários, portanto não
emitem talonário fiscal o que faz com que suas produções não sejam contabilizadas nos cálculos da EMATER-
RJ.
112

Como tentativa de evidenciar estas diversas formas de sentir-pensar-fazer a agricultura


do Vale do Guapiaçu, mergulharei nos agroecossistemas familiares de três famílias: “A” e
“V” e “Q” e “N²”, da Serra Queimada, e “L” e “N”, da Ilha Vecchi II.
Os agroecossistemas são a ancoragem espacial dos fluxos de matéria e energia
intercambiados a partir dos ecossistemas cultivados e socialmente geridos. É a expressão
material da relação sociedade-natureza (PETERSEN et al, 2017). Nestas unidades de
apropriação se desenvolvem parte dos processos sóciometabólicos onde se encontram as
cinco etapas características do metabolismo humano, intermediados pela apropriação,
transformação, consumo, circulação e excreção. Estas etapas não podem ser analisadas a
partir de um enfoque linear, pois o agroecossistema possui uma dinâmica sistêmica onde um
conjunto de elementos materiais e energéticos funcionam enquanto uma estrutura organizada
e com certo grau de autonomia, já que este sistema é uma unidade espaço-temporal dinâmica
que constrói um intercâmbio relacional entre dimensões internas e externas (PETERSEN et
al, 2017).
A partir da utilização da escala enquanto um dos instrumentos de análise de um
agroecossistema pode-se perceber o caráter simultâneo do processo metabólico. Diferentes
elementos materiais e energéticos podem se encontrar em diferentes estágios de apropriação,
transformação, consumo, circulação e excreção dentro de uma mesma unidade de
apropriação. O tempo é um fator fundamental, pois diferentes matérias possuem diferentes
estágios de transformação e como em uma mesma unidade de apropriação há uma
multiplicidade de trocas materiais e energéticas, o agroecossistema torna-se uma espécie de
unidade-diversidade vital, onde há continuadamente uma multiplicidade de processos de
produção da vida.
Segundo PETERSEN (et al, 2017), o “agroecossistema é definido como uma unidade
social de apropriação e conversão de bens ecológicos em bens econômicos” e “sua
delimitação física é demarcada pelo espaço ambiental apropriado [as unidades de apropriação]
por um Núcleo Social de Gestão do Agroecossistema (NSGA) (p. 32)”. Ou seja, a concepção
agroecossistêmica visa identificar os fluxos energéticos e materiais através de um enfoque
econômico-ecológico utilizando a categoria do metabolismo social enquanto enfoque
analítico. Considero que a dinâmica sóciometabólica não se restringe a processos econômico-
ecológicos, pois envolvem uma multiplicidade de trocas materiais e energéticas que, em
primeira e mais importante análise, produz a vida. Porém, a categoria agroecossistema é de
grande valia, pois permite uma análise integrada destes processos não se restringindo apenas
ao caráter econômico nem ecológico.
113

Outro fator essencial é que há uma diversidade da constituição dos NSGA e que isso
acarreta diferentes formas de funcionamento do agroecossistema. Tal variação permite
identificar se há um caráter mais econômico do que ecológico de um determinado NSGA a
partir da relação valor de uso e valor de troca. Para PETERSEN (et al, 2017),

O processo de trabalho coordena a produção econômica à reprodução ecológica,


assegurando um relativo grau de autonomia do agroecossistema em relação aos
mercados de fatores de produção. Essa autonomia relativa é também assegurada pelo
fato de que uma parcela ponderável da produção econômica do agroecossistema
circular internamente como renda não monetária, correspondendo à produção do
autoconsumo. Trata-se de uma parcela da renda que cumpre a função essencial na
reprodução da força de trabalho sem a necessidade de ser convertida nos mercados.
Portanto, por meio da coordenação das diferentes tarefas envolvidas no processo de
trabalho, o NSGA internaliza a maior parte das operações necessárias à reprodução
econômico-ecológica do agroecossistema (p. 42).

Os NSGA aqui analisados controlam as entradas e saídas dos fluxos de matéria e


energia dos seus processos produtivos e por isso constituem-se enquanto um estilo de gestão
que promove “uma reprodução relativamente autônoma e historicamente garantida” (PLOEG,
1993 apud PETERSEN et al, 2017).
Será apresentado um conjunto de materiais que visam caracterizar os agroecossistemas
familiares do Vale do Guapiaçu. Cada síntese destes NSGA é composta por um mapa do
agroecossistema, um calendário agrícola, fotografias que buscam dar uma leitura de paisagem
e falas transcritas a partir das entrevistas semi-estruturadas. O primeiro a ser apresentado será
o um agroecossistema, fruto de um assentamento realizado pelo INCRA em 2001 na Ilha
Vecchi I. O segundo é um agroecossistema de um assentamento do Banco da Terra em 2001
na Serra Queimada. Por fim, o terceiro também assentado pelo Banco da Terra em 2001, na
Serra Queimada. Posteriormente será realizada uma análise integrada e comparativa entres os
três NSGA, a partir de questões consideradas relevantes.
114

Mapa 2 – Agroecossistema “L” e “N”

Legenda: Trabalho de campo. Designer Gráfico: Artur D’ Andrea.


Fonte: O autor e “L”, 2019.
115

Figura 9 – Inhame e Milho (1) Figura 10 – Inhame e Milho (2)

Legenda: Localização do mapa: Inham/Milho.


Fonte: O autor, 2019.

Legenda: Localização no mapa: Inham/Milho.


Fonte: O autor, 2019.
116

Tabela 2 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “L” e “N” – Janeiro de 2018

Legenda: Localização no mapa: Inhame/Milho.


Fonte: O autor, 2019.
117

“Muita coisa a gente tira daqui mesmo. Compra ou pega do vizinho, sempre tem aqui na
área; não dá pra armazenar esse tipo de coisa. A gente consome enquanto tá colhendo porque
não dá pra guardar aipim, não dá pra guardar milho, não dá pra guardar batata doce, tomate, então
tudo a gente consome. É, essas coisas assim. Porque, tirando disso aí, a gente compra tudo, arroz,
feijão, óleo. Feijão nem precisava de tá comprando, mas como a gente ocupa a terra com outras
coisas, não sobra espaço pra plantar o feijão (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
08/01/2018).”
“L: Inhame é oito mês. Inhame também pode plantar agora em junho, por aí. Mas deixa eu ver...
inhame pode ser plantado até de fevereiro que já começa a ficar bom pra plantar. Pega um
pouquinho de chuva, ele sai bem, depois ele vai sofrer um pouquinho mas vai.
P: Essa é a melhor época? Fevereiro?
L: É. Fevereiro, março. Tem gente que adora plantar no mês de agosto, que é perto das chuvas.
Mas isso, cada um tem o seu... Feijão de corda, inclusive nós vamos plantar ali também agora. É
bem provável da chuva não deixar ele prestar, porque sai pé bonito, sai tudo isso, só que a
flor não vinga. Te mostrei ali na horta agora, difícil vingar a flor. Mas o feijão também é bom
plantar agora na época do tempo frio, que é a partir de março pra frente. Feijão pode plantar de
março até, deixa ver... até junho, julho pode plantar. Não pode chegar época de chuva se não
acabou com ele (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 08/01/2018)”.
“Aqui vareia, vareia mais. Geralmente a rotação de cultura é mais isso aí mesmo. Aqui, certa
parte, do meio pra baixo do meu terreno, vareia muito. Pra lá pra cima já é isso aí, milho e aipim.
Por quê? Porque o milho dá um reforço, a palha do milho ajuda muito na terra. Você vai lá
tirar o aipim, se você repetir o aipim não vai prestar. Planta uma de milho, aí colhe o milho.
Quando o milho colheu, com três, cinco dias depois, se puder que a palha tá verde, vem com o
trator e tritura ela na terra, aí ela vai fermentar dentro da terra. Que é o que eles falam que
a fermentação da palha verde dentro do chão mata muito a acidez. Então é o que a gente faz.
E tem outra coisa, a palha podre ali dentro a terra não vai ser tão solada mais pra poder plantar o
aipim. Então ela agradece muito a roça de aipim depois de uma de milho. Se puder plantar
duas de milho é melhor ainda. Então, aquela lá agora eu vou plantar o milho, dando milho ou não
porque tá dando a época meia chuvosa. Assim que sair o milho, depois, digamos que eu vou, nós
tamo em janeiro, fevereiro, eu vou plantar esse aipim ali mais ou menos final de fevereiro. Não é
tão ruim porque março ainda chove bem, mas vai se escapar da chuva (“L” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 08/01/2018)”.
118

Mapa 3 – Agroecossitema “Q” e “N”

Legenda: Trabalho de campo. Designer Gráfico: Artur D’ Andrea.


Fonte: O autor e “Q”, 2019.
119

Figura 11 – Milho e Limão Figura 12 – Milho, Feijão de Corda e Aipim

Legenda: Localização no mapa: Milho/Limão Legenda: Localização no mapa: visão Sul-Norte – Milho/Feijão de Corda/Aipim/Área de
Fonte: O autor, 2019. Pousio.
Fonte: O autor, 2019.
120

Tabela 3 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “Q” e “N²”– Janeiro de 2018

Legenda: Trabalho de campo.


Fonte: O autor e “Q”, 2019.
121

“Q: Aipim a gente planta de maio a outubro.


P: Por que de maio a outubro?
Q: Produção melhor. O aipim plantado no verão tem uma formação diferente do inverno,
ela dá uma madeira só no verão, no inverno dá galho. A mesma rama dá diferença na
formação, por causa do verão.
P: Por causa do calor, chuva?
Q: Calor, chuva. Ela só dá a madeira, aí lá na ponta ela abre os galhinhos, não abre madeira
embaixo. Em maio, até setembro, os galho baixinhos, e aqui venta muito, então é mais
interessante plantar nesse intervalo de maio até setembro no máximo. Outubro eu chutei aí, o
bom é setembro, é por causa de não virar muito com o vento, ela se protege (“Q” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.

“Jiló eu plantava mesmo pra comércio, pra CEASA, mas de uns tempos pra cá eu desisti
porque requer muito uso de agrotóxico e eu tô evitando de mexer com muito agrotóxico
(“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.

“O milho eu tiro uma parte pra galinha. Além desse milho pra CEASA, tô plantando o catete
também. Pra galinha eu planto o catete, só pra galinha, desde agosto (“Q” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).”

“Q: Eu iniciei a plantação com quiabo e inhame. No início foi só isso. Em seguida ficou
muito ruim de produzir inhame, eu fui mudando. Fui plantando aipim, jiló, berinjela,
pimentão, feijão de corda, limão. Aí um tempo depois eu fiz uma experiência com lavoura
de cará. Batata doce andei plantando também umas lavourinhas, pouco.
P: Parou por quê?
Q: Parei porque nossa região dá muita broca, muita umidade aqui, não sei se é porque tá
próximo a serra, muita broca (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).”
122

Mapa 4 – Agroecossistema “A” e “V”

Legenda: Trabalho de campo. Designer gráfico: Artur D’Andrea.


Fonte: O autor e “A”, 2019.
123

Figura 13 – Jiló e Coco Figura 14 – Consórcio Aipim e Abóbora

Legenda: Localização no mapa: visão Norte-Sul – Jiló/Coco


Fonte: O autor, 2019.

Legenda: Localização no mapa: Consórcio Aipim/Abóbora.


Fonte: O autor, 2019.
124

Tabela 4 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “A”e “V”– Janeiro de 2018

Legenda: Trabalho de campo.


Fonte: O autor e “A”, 2019.
125

“Veja bem, o mês que não tem “r” é o mês que a terra não tá girando muito, a terra tá mais
acomodada, você tá entendendo? Então a tendência é a planta ir se enraizando, não é verdade? Passou
desse período aí começa a mudar, a terra esquenta muito, um dia tá quente demais... Você pode ver
que esse período dos mês que não tem “r”, a temperatura é quase a mesma. Então, tem a ver com
a terra. E quando pega o período de muita chuva, esquenta muito, muita evaporação, a planta
não gosta porque vai mexer muito com ela. Então a gente vê por isso aí (“A” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.

“Eu já plantei aipim em maio e tirei em dezembro, sete meses. Tá entendendo? Por quê? Porque
plantei ele no frio, ele fica ali, quando chega agosto começa a esquentar, desenvolve rápido. Se
você vai dar o aipim em novembro, dezembro, você vai virar escravo dentro da roça, de tanto
mato que sai e não dá produção boa, o carrego é pouco. Vamo supor, você planta no mês de dezembro,
você vai tirar em março ou abril do outro ano; você não tira em dezembro. Não tira. Às vezes o aipim
dá um dinheirinho final de ano, aí todo mundo planta (“ A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
11/01/2018).”

“Colher no final do ano, mas ele não colhe no final do ano. Porque você planta o aipim em dezembro,
aí você vai pegar janeiro, fevereiro, março, três meses só quente. O aipim vai tá mais ou menos assim.
Aí você pega abril, maio, junho, julho, agosto, você vai pegar cinco meses que a terra tá fria, a planta
não se desenvolve. Tá entendendo? Aí até a terra esquentar já tá lá pra meados de outubro que a
terra começa esquentar, que é tubérculo que precisa de coisa. Então, não tem desenvolvimento, a
terra tá fria. Aí só pra meados de outubro a terra começa a esquentar, que ela vai começar a se
desenvolver novamente. Aí não vai tirar em dezembro, só vai tirar em março, abril do ano seguinte.
Mas aí as pessoas não levam isso em conta. Por isso que eu só planto em mês que não tem “r”. Isso
aí desde quando eu era criança, meu avo falava: “ó meu filho, tudo que dá debaixo da terra, se
planta em mês que não tem ‘r’, e planta na lua minguante”. Por que planta na minguante? Porque
quando ele começa a enraizar é lua nova, e a lua nova é muita força, é a lua mais forte que tem.
A que mexe com a cabeça do ser humano é a cheia, mas a lua mais forte é a nova (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
“Eu falo a verdade, eu vendo o que sobra, tá entendendo? Eu vendo o que eu não consigo comer tudo.
Porque primeiro eu vou comer. Aí eu vejo que não consigo comer tudo, aí eu vendo. Porque eu não
vou comer o dinheiro; não adianta eu vender tudo e ficar com o dinheiro. Eu vou comer o quê?
Vou comer o dinheiro? Não vou. (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
126

Há uma relação inversamente proporcional entre o tamanho da terra e a diversidade de


cores. Cada cor reflete um sabor, que por sua vez reflete um saber 46 e cada cor-sabor-saber
traz consigo a complexa relação dos sete sentidos que sustentam estas epistemologias. A
sequência destes mapas foi posta de maneira proposital para que isto ficasse evidente. O
próprio “L” coloca que se torna impossível comer do seu próprio feijão porque “não sobra
espaço para ele”. Além disso, “N” e “L” reservam uma parcela de sua roça que é
constantemente destinada para sua filha e seu companheiro poder trabalhar na terra. Esta
também é uma lógica inversamente proporcional: aqueles/las que possuem as menores
parcelas de terra, não se importam em dividi-las com aqueles/las que necessitam. Aqueles que
mais têm terra não só não as dividem, como criminalizam, violentam e matam aqueles/las que
tentam dividi-la 47.
A contra-reforma agrária impede que as pessoas responsáveis por alimentar as cidades
possam comer da sua própria comida. Estes elementos trazem consigo o caráter solidário que
rege a vida de “L” e “Dona” “N”. Deixar de plantar, portanto de comer, para que outros
tenham o que comer. Talvez o primeiro argumento que venha em nossa cabeça – um tanto
quanto colonial e moderna – é que o fato dele não plantar não tenha uma relação com a
solidariedade e o sentido do comum, mas sim porque ele precisar plantar para vender o que
produz, para aí sim poder comer. É claro que há uma necessidade de plantar e vender, mas
aqueles e aquelas que da terra vivem sabem que o maior valor está no uso e não na troca. “A”
deixa isso evidente ao dizer que não adianta ele vender tudo o que planta para ficar com o
dinheiro, porque o dinheiro não se come, “não é verdade”? Vejamos o raciocínio do “A”:

Mas coitado, difícil é pra eles lá. Porque eu fico assim pensando, vamo supor, você
tá dentro lá: aqui a gente a luta só pra ter, você planta um troco você tem o que
comer. Lá você luta por duas coisas: você luta pelo emprego e pra você ter o que
comer. Se você tiver desempregado não tem o que comer, ninguém vai te dar uma
banana porque não tem pra te dar, não te dá o coco, porque não tem pra dar. Então
aqui tá mil maravilhas melhor do que lá, que é só plantar que você tem. Que na
verdade o mercado é uma bolsa de valor. Um dia tá em alta, um dia tá em baixa.
Quando tá na época da safra o preço cai, e na entressafra aí que o preço melhora.
Quer dizer, que a maioria das pessoas não gosta quando o preço tá baixo, e pra mim
não faz tanta diferença, sabe por que, Pedro? Por que eu sei que tô alimentando
muita gente. Quando a mercadoria tá barata eu sei que é muita gente que vai comer.
Agora, quando o tomate tá oito reais o quilo, é todo mundo que compra? (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).

46
Como diria Carlos Walter Porto-Gonçalves.
47
“ Llega el momento en que los pies y la cabeza dicen lo que todos están pensando y nadie se atreve a decir:
Que en el recorrido se dan cuenta de que el mundo está de cabeza, que tiene el que no necesita y el que necesita
no tiene nada.” – Subcomandante Insurgente Marcos em entrevista a Julio Scherer. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5C4no09zGtE>.
127

Pelas palavras do economista e operador da “bolsa de valores” “A”, fica explícito que
quanto mais barato o valor do alimento, mais gente terá acesso a ele. Portanto, se o alimento
fosse de graça como é para sua família, e para “N” e “L”, mais gente teria acesso à comida.
Para eles/elas isso não faz diferença, pois a agri-cultura é o trabalho com a vida.
Assim como as relações hidrocomunitárias construídas coletivamente deixam evidente
a lógica dos bens comuns, as relações desenvolvidas com a terra também deixam perceptível
que para eles e elas o alimento também o é. Se a lógica é a reversa, ou seja, planta-se para
ganhar dinheiro, como no final do ano que há uma valorização do preço do aipim, você acaba
“virando escravo da roça”. Se a lógica do plantio segue a lógica do capital você não vira
escravo da roça, você vira escravo do dinheiro. “A” sabe disso, apenas escolheu outras
palavras para dizê-lo.
Quantos autores e autoras seriam necessários, quantas palavras e páginas de livros
deveriam ser escritas para deixar exposta e irrefutável a lógica do comum intrínseca a estas
epistemologias? As palavras escolhidas para descrever a relação clima-agricultura expressam
quem rege as condições de reprodução da vida. Segundo “L”, os meses de fevereiro e março
são fundamentais para o plantio do feijão de corda, porque se plantados mais tarde “a chuva
não vai deixar” ele se desenvolver. Se passarem os meses a “chuva vai acabar” com o
feijão. Nesta forma de conceber a relação espaço-tempo, quem manda é a natureza e suas
múltiplas formas de manifestação, o homem obedece.
Seguindo esta lógica, os setes sentidos aguçados do “Q” o permitem entender o porquê
da diferença entre o aipim plantado no verão ter uma formação diferente no inverno. Quanto
maior o número de galhos na parte superior do aipim, maior é a probabilidade dele “deitar”
com os fortes ventos do Vale do Guapiaçu. “Ela se protege”, portanto se essa é a lógica
construída pela própria rama do aipim, que assim seja. Então são estes os melhores meses
para se planta-lo. A natureza - feminina - manda, o homem obedece.
E o que é mais cômodo para o “A”? O que for mais cômodo para a terra. A lógica de
plantar nos meses que não tem ‘r’ demonstra a excelente didática construída por seu avô para
criar uma regra que perdura até hoje – e seguirá perdurando entre a família de “A” – e que na
verdade traz consigo uma complexa e genial capacidade de observação-escuta-tato-olfato-
sentir-pensar-provar. O climatólogo “A” explica, a partir da lógica do plantio no mês que não
tem “r”, o ciclo da água, a variação pluviométrica, a variação dos índices de incidência da luz
solar, portanto do calor. Quanto mais chuva e calor, mais evaporação e quanto mais variação
térmica, mais a planta “se mexe”. Se ela não gosta de se mexer, que não se plante nessa
época. Mas o não mexer muito a terra, não tem relação apenas com uma época do ano:
128

Tem uma tobatinha velha. Na verdade, Pedro, ela fica mais parada do que trabalha.
Sabe por quê? É o que eu falei pra você hoje, o adubo químico mata as minhoca
todinha da terra, e a tobata também. Sai matando tudo porque ela é pior de que o
trator, a tobata. Então dificilmente, às vezes o filho fala: “papai, a gente passa a
tobata nisso aí em vez de ficar aí capinando”. Eu falo: “se passar a tobata aqui, isso
aqui tá cheio de minhoca, eu vou matar todas as minhoca. Deixa assim mesmo, eu
vou fazer na enxada. É devagar mas eu faço”. Dificilmente eu uso a tobata. Terra,
dificilmente, eu não gosto de cortar a terra. Tem gente que já corta logo. Eu corto
planto. Ó, eu plantei o milho, tirei o milho e plantei feijão de corda. Tirei o feijão,
não passei o trator, pra mim não cortar a terra. Eu fui em cima da linha do feijão e
plantei o quiabo. Até o quiabo nascer o feijão também já tá se acabando, vai
secando, as folhas vão se acabando na terra mesmo ali (“A” em entrevista a Pedro
D’ Andrea em 11/01/2018).

A diferença de gerações posta no diálogo entre pai e filho traz consigo diferentes
formas de pensar que traduzem diferentes temporalidades e que tendem a implicar em
distintas formas de conceber e praticar a agricultura. Ainda que seu filho esteja em formação,
são gerações marcadas por uma convivência com a terra em que se atravessam em um mesmo
espaço-tempo, diferentes concepções espaço-temporais. De certa forma, em outra escala,
podemos fazer uma relação com o conflito que se passa no Guapiaçu. Da mesma maneira que
“A”, o pai, nega a aceleração do processo de trabalho – portanto do tempo - que o filho
defende, a partir do uso da tobata, e o faz mostrando outra forma de sentir-pensar a
agricultura, a proposta de construção da barragem-reservatório traduz uma concepção de
produção do espaço – imbricada com uma produção/compressão do tempo, portanto do
espaço-tempo – antagônica às formas de produção do espaço e do tempo características do
território. Cercar as águas do Rio Guapiaçu para leva-lo ao Complexo Petroquímico do
Estado do Rio de Janeiro – sustentado por uma falácia de abastecimento humano da Região
Leste Metropolitana – significa inserir a dinâmica hídrica na lógica da circulação global do
capital financeiro. É importante reforçar que o território do Guapiaçu produz uma lógica
espaço-temporal antagônica a do capital. O território que senti-pensa-observa-toca-cheira-
prova-escuta apresenta outras formas de relação com a água e a terra. Da mesma forma que
“A” mostra a seu filho outra forma de sentir-pensar a agricultura, o território nos apresenta
outra forma de sentir-pensar a relação sociedade-natureza. Os fenômenos são multiescalares,
assim como as batalhas são multifacetadas em uma mesma arena, o território.
O Agroecossistema do “Q” e da “N²” apresenta o dobro da variedade de culturas de
roça se comparado aos outros dois agroecossistemas familiares. É preciso ressaltar que os
mapas representam um período específico do ano, portanto qualquer análise feita sobre eles
deve se atentar a este fato. Do total de variedades de alimentos trabalhados, 73% se
caracterizam por terem um curto ciclo entre a produtividade e a colheita. Este número é 23%
129

maior se comparado aos outros dois agroecossistemas (ambos apresentam uma proporção de
50%). Isto pode ser explicado pelo fato de que no último ano a família tem destinado grande
parte de sua produção para a feira da qual participam em Duque de Caxias. Além de
necessitarem de uma produção constante, capaz de fornecer alimento por praticamente todo o
ano é importante que em sua barraca haja uma diversidade de alimentos. Os outros dois
agroecossistemas concentram sua venda para o CEASA-RJ, para a cooperativa, e em alguns
casos para o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE). É possível perceber tal
particularidade a partir da distribuição de plantio e colheita presente no calendário agrícola.

Figura 15 – Da Unidade de Apropriação à Região Metropolitana

Fonte: O autor, 2019.

Na Figura 15 é possível ilustrar a multiesclaridade envolvida nas cinco etapas do


processo metabólico: apropriação, transformação, circulação, consumo e excreção. Os
alimentos produzidos na unidade de apropriação – que articuladas constituem o território –
são o resultado dos fluxos e transformações de energia e matéria e atingem a escala
metropolitana a partir de sua circulação. Neste caso, o produtor que vende é o mesmo que
produz. Maracujá, quiabo, aipim, limão, maxixe, milho e feijão de corda compõem a barraca
da família.
Os três agroecossistemas juntos apresentam uma diversidade de 45 espécies de
alimentos. Se somarmos a essa conta, as culturas que não estão presentes nos mapas, mas que
130

aparecem nos calendários agrícolas, o número chega a 56 espécies diferentes em uma média
de 3ha. Esta variedade pode ser ainda maior, pois é provável que não tenham sido listadas
todas as diferentes culturas presentes nos quintais florestais, além das plantas medicinais.
Além da existência de uma riquíssima biodiversidade alimentar, o que impressiona é
quantidade anual de alimentos produzidos em lotes que apresentam um tamanho mais de
quatro vezes abaixo do módulo fiscal do município. São cerca de 160 toneladas de alimento
produzidos por ano – média de 52,3 toneladas/agroecossistema e 17,4 toneladas/ha, além de
1600 unidades de coco, considerando a produção dos três NSGA.
Os dados produzidos pela EMATER-RJ, em 2017, através do Acompanhamento
Sistemático da Produção Agrícola (ASPA) do Estado do Rio de Janeiro, permitem que
façamos uma comparação entre os índices de produtividade do ERJ e o agroecossistemas aqui
analisados a partir das principais culturas produzidas. Segundo a ASPA a média da
produtividade do Aipim no ERJ é de 12,22 ton/ha. A média somada da produção de Aipim
dos três agroecossistemas é de 14,56 ton/ha. Já a média de produtividade do Jiló no ERJ é de
21,07 ton/ha. Quando analisamos a produtividade do agroecossistema “L” e “N” estes
apresentam uma produtividade de 10,8 toneladas em apenas ¼ de hectare, ou seja, o que
indica uma produção de 43,2 ton/ha. Já a produtividade do Quiabo no ERJ é equivalente a
11,27 ton/ha. Quando analisamos a produção do Quiabo no agroecossistema “A” e “V” este
apresenta uma produtividade de 15,6 toneladas em apenas 1/3 de hectare, o que aponta para
uma produtividade de 46,8 ton/ha.
Quando analisados estes dados é apresentado um quadro de extrema produtividade de
alimentos no Vale do Guapiaçu, onde os índices são consideravelmente maiores em relação à
produtividade apresentada no ERJ. Isto está diretamente relacionado a um fator indissociável,
já que a qualidade destas terras está correlacionada ao manejo historicamente praticado por
estes homens e mulheres. Afogar estas terras, este rio e as condições materiais de vida destas
pessoas irá implicar diretamente na soberania alimentar de toda a RMRJ. Estamos falando de
uma das áreas que apresentam as maiores produtividades de alimentos presentes
cotidianamente na mesa das famílias cariocas.
131

2 A GEOGRAFIA E O CALENDÁRIO DO CAPITAL: AS MULTIESCALARIDADES


DA GEOPOLÍTICA DA ÁGUA

Como fora apontado no primeiro capítulo, o debate sobre metabolismo está divido em
duas partes nesta dissertação. Em um primeiro momento, foi priorizada uma análise acerca do
metabolismo social que rege as condições de produção e fluxo de matéria e energia do
território camponês. Portanto, tratamos de trazer o debate teórico acerca destes processos
para, posteriormente, apontarmos como estes se materializam a partir dos saberes-e-fazeres
que produzem o espaço e o território no Vale do Guapiaçu. Estes ciclos metabólicos se
apresentam desde as relações hidrocomunitárias expressas a partir da gestão autônoma e
comunitária das redes de água camponesas até a agricultura que é produzida no território. O
que dá continuidade a estas dinâmicas sóciometabólicas é uma complexa episteme camponesa
que se desenvolve a partir de um acúmulo desigual de tempos, em que os saberes são
historicamente transferidos sobre uma ampla capacidade de utilização dos setes sentidos –
escutar, observar, tocar, cheirar, provar, sentir e pensar. O tempo da lua, da terra, do sol, das
águas e do vento é assimilado e passa há reger o tempo-espaço dos homens e mulheres do
Vale do Guapiaçu.
Nesse sentido, a diferenciação das dinâmicas metabólicas camponesas e do capital são
importantes, sobretudo, para explicitar que o discurso da escassez reflete uma tentativa de
invisibilizar uma crise estrutural da produção capitalista do espaço para assim re-produzir sua
expansão. Os conceitos de Metabolismo e Acumulação por Espoliação, combinados, buscam
explanar o modus operandi e as estratégias de apropriação da água construídas pelo capital.
As condições de re-produção da vida que foram abordadas no primeiro capítulo se encontram
em disputa por pelo menos seis anos, já que sobre o território está projetada a construção de
uma barragem-reservatório. As grandes barragens se expressam enquanto uma das formas de
re-produção da representação do espaço do capital, que ao se expandir-e-acumular provoca
fraturas metabólicas sobre os espaços de representação dos territórios – neste caso,
camponês. Ao mesmo tempo, ocorrem conflitantes formas de apropriação, transformação,
circulação, consumo e excreção. Na medida em que os camponeses constituem e reproduzem
seu sociometabolismo, seu território é fronteira de expansão e acumulação do metabolismo do
capital. Estas duas antagônicas formas de produção social do espaço são concomitantes e se
expressam de forma continuada.
132

A análise destes fenômenos neste segundo capítulo é conduzida a partir da dimensão


teórico-metodológica do conceito de Escala anteriormente apresentada, cujo intuito é
identificar os elementos que associam o projeto de construção da barragem do rio Guapiaçu a
atual dinâmica global de acumulação do capital. Ao mesmo tempo busco identificar a
estratégia política (e de poder) de controle dos espaços institucionais de gestão das águas, para
assim pensar a necessidade da construção de outras formas de ação e resistência.

2.1 Entre piez y cabezas: chaves teórico-metodológicas (II)

2.1.1 O necrometabolismo do capital

Segundo FOSTER (2005), Marx utilizava o conceito de metabolismo relacionando à


interação metabólica entre sociedade e natureza através da categoria trabalho, para descrever
as necessidade e relações produtoras de alienação no capitalismo, assim como para descrever
a liberdade humana. Desta maneira, “o conceito de metabolismo assumia assim tanto um
significado ecológico específico quanto um significado social mais amplo (p. 223)”. A partir
das noções de ação regulatória e trocas materiais, Marx aponta que há uma imposição das
condições naturais que condiciona uma forma de como a humanidade se relaciona com a
natureza, mas ao mesmo tempo também é a humanidade capaz de influenciar estes processos.
O conceito de metabolismo é central em Marx, pois é a partir desta ótica que ele explica o
processo de alienação da relação sociedade-natureza,

Não é a unidade da humanidade viva e ativa com as condições naturais, inorgânicas,


da sua troca metabólica com a natureza, e daí sua apropriação da natureza, que
requer explicação, ou é o resultado de um processo histórico, mas a separação entre
estas condições inorgânicas da existência humana e esta existência ativa, uma
separação que é integralmente postulada apenas na relação trabalho assalariado com
o capital (MARX apud FOSTER, 2005, p. 223).

Ou seja, a utilização do conceito de metabolismo em Marx tinha por objetivo analisar


o desenvolvimento do trabalho humano dentro de uma contemporaneidade específica.
MÉSZARÓS (2011) nos traz considerações importantes sobre a dinâmica
sociometabólica do sistema capitalista. É verdade que em sua análise, o autor não se preocupa
133

em se debruçar sobre pressupostos ecológico-políticos, centrando seu debate sobre um viés


estritamente econômico, político e social. Portanto, sua análise torna-se insuficiente para
trabalhar a dinâmica do metabolismo social, já que não se preocupa em identificar e
espacializar a existência de múltiplas formas de produção de energia e matéria. Ao mesmo
tempo, consideramos que as discussões apresentadas no primeiro capítulo não trazem
elementos intrínsecos aos processos metabólicos atuais – considerando toda a sua diversidade
ao redor do planeta – onde estão contidas as relações de poder e correlação de forças
conflitantes em um sistema capitalista, que segundo Mészarós tende a se sobrepor sobre as
diferentes concepções materiais e simbólicas inerentes a qualquer processo metabólico. Por
isso, traremos alguns debates que consideramos fundamentais realizados pelo filósofo
húngaro.
Para que possamos compreender os limites e restrições da dinâmica de expansão e
acumulação do capital, precisamos comparar o atual estágio sociometabólico com estágios
anteriores. Isto por si só, já é um elemento importante, pois identifica o sistema capitalista
enquanto um momento da história, ao contrário de pensar a história a partir de seu
surgimento. Com isso, percebe-se que “o modo de operação do sistema do capital é a exceção
e não a regra, no que diz respeito ao intercâmbio produtivo dos seres humanos com a natureza
e entre si.” (MÉSZARÓS, 2011, p. 96). Esta exceção, porém, é aquela que apresenta o caráter
mais dinâmico de todos os outros modos de controle sociometabólicos juntos. E há algumas
razões para isso, que segundo o autor identificam-se no fato desta dinâmica não ser uma
entidade material, o que significa, em última análise, que este é um sistema incontrolável de
trocas sociometabólicas. Seu caráter totalizador é o que o torna o mais violento sistema
metabólico da geografia-histórica de nossa evolução, já que tende a controlar tudo e todos
para provar sua viabilidade produtiva, consolidando-se enquanto uma estrutura de comando
singular. Sua determinação é a expansão que é movida pelo processo de acumulação. Nesta
estrutura de controle, as oportunidades da vida dos seres humanos tem relação direta com sua
estrutura organizacional hierarquizada, onde a ocupação do indivíduo nesta ordenação é o que
orienta tais oportunidades. Segundo o autor

Esta imposição da divisão social hierárquica do trabalho como a força cimentadora


mais problemática – em última análise, realmente explosiva – da sociedade é uma
necessidade inevitável. Ela vem da condição insuperável, sob o domínio do capital,
de que a sociedade deva se estruturar de maneira antagônica e específica, já que as
funções de produção e de controle do processo de trabalho devem estar radicalmente
separadas uma da outra e atribuídas a diferentes classes de indivíduos (MÉSZARÓS,
2011: p. 99).
134

Esta dinâmica totalitária que se expande com vistas a se tornar um sistema global
assume um caráter dialético já que quanto mais se expande por todo o globo, mais próxima
está dos seus limites expansionistas por alcançar barreiras as suas potencialidades produtivas-
destrutivas do sistema. Isto ocorre justamente por este incontrolável sistema totalizador não
possuir autossuficiência em suas “unidades particulares de produção” (p. 105) – ou unidades
de apropriação, segundo TOLEDO (2008) - tendo sempre que buscar alternativas interno-
externas para expansão de sua acumulação de capital.
Outra contribuição importante de Mészarós, e que será constantemente abordada na
discussão aqui proposta, é o importante papel do Estado nesta dinâmica de expansão do
capital, tornando-se, sob a ótica metabólica, uma unidade de apropriação multiescalar que
organiza seu território a partir da lógica totalitária do capital, adequando-se ao
desenvolvimento desigual e combinado. Segundo o autor

[...] é tanto mais revelador que o Estado moderno tenha emergido com a mesma
inexorabilidade que caracteriza a triunfante difusão das estruturas econômicas do
capital, complementando-as na forma da estrutura totalizadora de comando político
do capital. Este implacável desdobramento das estruturas estreitamente entrelaçadas
do capital em todas as esferas é essencial para o estabelecimento da viabilidade
limitada desse modo de controle sociometabólico tão singular ao longo de toda a sua
vida histórica.
A formação do Estado moderno é uma exigência absoluta para assegurar e proteger
permanentemente a produtividade do sistema” (MÉSZARÓS, 2011, p. 106).

Ele defende a ideia de que a estrutura do Estado moderno é a única capaz de dar
unidade as três contradições inerentes ao sistema capitalista: o distanciamento entre produção
e controle; o problemático distanciamento entre produção e consumo, de modo que um
excesso de consumo manipulado e desperdiçador concentram-se em poucos e determinados
lugares; e a contradição entre produção e circulação, de maneira que:

[...] os novos microcosmos do sistema do capital combinam-se em alguma espécie


de conjunto administrável, de maneira que o capital social total seja capaz de
penetrar – porque tem de penetrar – no domínio da circulação global (ou, para ser
mais preciso, de modo que seja capaz de criar a circulação como empreendimento
global de suas próprias unidades internamente fragmentadas), na tentativa de superar
a contradição entre produção e circulação. Dessa forma, a necessidade de dominação
e subordinação prevalece, não apenas no interior de microcosmos particulares – por
meio da atuação de cada uma das “personificações do capital” – mas também fora de
seus limites, transcendendo não somente todas as barreiras regionais, mas também
todas as fronteiras nacionais” (MÉSZARÓS, 2011, p. 105).

Dessa forma, a globalização caracteriza-se como a materialização de um sistema


global de dominação e subordinação, estabelecendo uma hierarquia entre os Estados
135

Nacionais nesta ordem totalitária, tornando-se, assim, uma forma e um tipo histórico
específico de controle e comando de um sistema sociometabólico. Logo, o Estado moderno
torna-se o complemento necessário para este sistema antagonicamente estruturado, já que
“reforça a dualidade entre produção e controle e também a divisão hierárquico/estrutural do
trabalho, de que ele próprio é uma clara manifestação (p. 122)”. Todavia, o Estado não pode
ser considerado enquanto estrutura em si do capital, já que este é um sistema específico, onde
uma estrutura de comando deve se adequar a todas as escalas. Ou seja, ele é parte integrante
desta base material sociometabólica do capital, contribuindo não apenas para sua formação e
consolidação, mas, sobretudo para sua expansão. O que significa que o Estado moderno não
pode existir sem ter o capital enquanto ordem sociometabólica e que este funciona enquanto
“estrutura totalizadora de comando político da ordem produtiva e reprodutiva estabelecida
(MÉSZARÓS, 2011, p. 125)”.
Como mostramos anteriormente, o autor aponta um caráter de incontrolabilidade
inerente à dinâmica de expansão da acumulação do capital. Em situações de crise estrutural,
os constituintes destrutivos deste sistema se expandem vorazmente por meio deste caráter, de
maneira a apontar para sua própria autodestruição, ou seja, das suas formas específicas de
reprodução, mas também para a própria humanidade de maneira que,

[...] a tentativa de ir além de suas possibilidades é a marca da relação do capital


também com as condições elementares de reprodução sociometabólica, no
intercâmbio absolutamente inevitável da humanidade com a natureza (MÉSZARÓS,
2011, p. 250).

Estas ideias dialogam com o que FOSTER (2005) aponta estar presente nas obras de
Marx no século XIX. Enquanto analisava a expansão do comércio de longa distância de
alimentos e fibras destinadas à indústria têxtil, Marx já apontava em 1852 que havia uma
tendência natural do capitalismo de tornar o solo uma commoditie comerciável. Aliado a este
processo e ao desenvolvimento da agricultura e da indústria de larga escala, havia um modo
de exploração intensiva do solo que levaria a uma falha das relações metabólicas entre o
homem e a natureza. A construção de uma ideia de falha metabólica tinha o intuito de
“apontar a alienação material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições
naturais que formaram a base de sua existência” (FOSTER, 2005, p. 229). Isto se daria por
dois aspectos, necessariamente: na medida em que houvesse manufaturas de alimentos e
manufaturas para o abastecimento da indústria têxtil não haveria mais donos da terra; a
agricultura de larga escala capitalista havia exaurido o solo de tal forma que havia deixado de
136

se tornar autossustentável, de forma que o desenvolvimento científico e tecnológico da época


já não era capaz de restaurar as condições nutritivas do solo. Este segundo aspecto se
observava, segundo Marx, pelo próprio fato da Inglaterra ter que importar guano do Peru para
adubar os campos produtivos ingleses que já se encontravam totalmente exauridos.
MÉSZARÓS (2011), da mesma forma, aponta que,

Todos os que continuam a postular que a ‘ciência e tecnologia’ resolverão as graves


deficiências já inegáveis e as tendências destrutivas da ordem estabelecida de
reprodução, ‘como sempre aconteceu no passado’, estão se iludindo. Ignoram a
escala proibitiva dos problemas que se acumulam e teriam de ser resolvidos dentro
das restrições dos recursos de produção disponíveis e ampliáveis de modo realista
(em oposição às fictícias projeções de recursos tirados do céu que se multiplicam
infinitamente, para tornar real a viabilidade permanente do ‘crescer além dos
limites’)” (p. 255).

O conhecimento científico, segundo o autor, não pode combater a degradação


ambiental do ambiente natural, pois interferiria na contraditória dinâmica de expansão do
capital. Ora, a ciência e a tecnologia devem ser utilizadas para garantir o desenvolvimento
produtivo de maneira que intensifique sua expansão e acumulação. Como aponta o autor,

Ao mesmo tempo, e noutro plano, o progresso das forças da produção agrícola não
erradicou a fome e a desnutrição. Mais uma vez, isto estaria em contradição como
imperativo da expansão “racional” do capital. Não se deve permitir que motivações
“sentimentais” relativas à saúde – e até à simples sobrevivência – dos seres humanos
perturbem ou interrompam os “processos de tomada realista de decisão” orientados
para os mercados. O ritmo e a recalcitrância espontâneos da natureza já não são
desculpas convincentes para justificar as condições de vida de milhões e milhões de
pessoas que sucumbiram à miséria nas últimas décadas e continuam a perecer ainda
hoje pela mesma causa (MÉSZARÓS, 2011, p. 255).

Dissolver as formas em que o trabalhador e a trabalhadora encontram para reproduzir


sua existência e dar continuidade as suas relações metabólicas é um processo vital da
expansão e da construção da legitimidade do capital. Neste sentido, dissolver as condições
básicas de relação da humanidade com a terra e o solo é fundamental para a garantia da
expansão do sistema, assim como dissolver qualquer relação em que o trabalhador e a
trabalhadora apareçam enquanto proprietário (FOSTER, 2005). O processo de acumulação
primitiva dá início a uma lenta e gradual construção das condições fundamentais que nos
levam na direção de diferentes falhas metabólicas. Aliás, neste processo, inúmeras falhas
metabólicas já ocorreram, ou seja, a própria expansão da acumulação de capital leva a
sujeição de diferentes povos do planeta a diferentes falhas metabólicas, pois dilaceram suas
relações materiais, energéticas e simbólicas que constituem diferentes vínculos entre nossas
137

espécies e o meio ambiente. Pois, como insiste Marx, “a alienação da terra é o sine qua non
do sistema capitalista” (Marx apud FOSTER, 2005, p. 243).
Esta dinâmica metabólica do capital só sobrevive a partir de um continuado processo
de acumulação e expansão e para isso necessita re-criar constantemente estas condições. No
desenvolver da geografia-histórica do capitalismo são atualizadas estas dinâmicas de
expansão e criam-se novas fronteiras de acumulação, assim como mecanismos que viabilizam
tal processo. Nesse sentido, David Harvey foi capaz de atualizar as ideias anteriormente
apresentadas por Marx e Rosa Luxemburgo ao apresentar o debate da acumulação por
espoliação. O controle que o capital tem exercido sobre a água está diretamente ligado às
estratégias espoliativas que utilizam o Estado e suas formas de organização para promover sua
expansão e acumulação sobre a água, provocando constantes fraturas metabólicas sobre os
territórios que a controlam. Estas formas de cercamento e espoliação da água são distintas e
utilizam mecanismos técnicos, jurídicos, políticos e midiáticos para fundamentarem este
processo.

2.1.2 Acumulação por espoliação

Em sua construção analítica, HARVEY (2004) estabelece uma periodização histórico-


geográfica do capitalismo e aponta uma tendência continuada deste sistema que se caracteriza
por suas habilidades autodestrutivas e criativas. Significa dizer que há um processo espaço-
temporal de expansão do capital que necessita criar condições externas capazes de absorver a
sua própria expansão em sistemas territoriais antes inalcançados. Este mecanismo de
destruição criativa é um processo intrínseco que o autor identifica como resultado de crises de
sobreacumulação de força de trabalho e excedente de capital em determinados sistemas
territoriais. Para que haja uma resposta às crises de sobreacumulação, o autor aponta que são
os mecanismos de ajustes espaço-temporal as respostas cabíveis que ao mesmo tempo são
capazes de resolver crises estruturais e expandir seu domínio pelo sistema-mundo. Estes
processos de ajuste espaço-temporal podem ocorrer de diferentes maneiras, sendo: (a)
dimensão temporal através dos investimentos de capital de médio e longo prazo, tais como
infraestrutura física e social; (b) dimensão espacial através da abertura de novos mercados,
capacidades produtivas e possibilidades de recurso e trabalho em outros territórios; ou (c) uma
combinação entre (a) e (b), que pode ocorrer através do investimento em infraestruturas
138

capazes de aportarem um consumo que se realize a médio e longo prazo, ou seja, espaço-
temporalmente. Para este ajuste é necessário que existam instituições financeiras e/ou estatais
capazes de mediar os investimentos e criar crédito através de uma quantidade de “capital
fictício” que projeta o deslocamento temporal, onde este caráter assume um papel
significativo nos processos de estabilização e desestabilização do capitalismo: se os
investimentos são produtivos,

[...] isto é, facilitam no futuro formas mais eficientes de acumulação de capital, os


valores fictícios se amortizam (seja diretamente através da dívida ou indiretamente
sob a forma de maiores receitas de impostos que permitam pagar a dívida pública)
(HARVEY, 2004, p. 97).

Do contrário

[...] a sobreacumulação de valor no ambiente construído ou na educação pode se


manifestar nas desvalorizações destes ativos (habitações, escritórios, parques
industriais, aeroportos, etc.) ou em dificuldades para o pagamento da dívida estatal
originada na infra-estrutura física ou social (crise fiscal do estado) (HARVEY,
2004, p. 97).

Nesse sentido, certa porção do capital deve ser fixada em alguma forma física por
determinado período temporal, onde os gastos sociais também são territorializados através do
compromisso estatal. Mas é fundamental que se crie mecanismos de circulação informacional
e de capital construindo uma relação direta entre o que SANTOS (1994) chama de fixos e
fluxos, criando um sistema de objetos e ações, onde a produção do espaço é destinada a
fixação e circulação do capital. Desta forma

Ao mesmo tempo em que aumenta a importância dos capitais fixos (estradas, portos,
silos, terra arada etc.) e dos capitais constantes (maquinado, veículos, sementes
especializadas, adubos, fungicidas etc.), aumenta também a necessidade de
movimento, crescendo o número e a importância dos fluxos, também o do dinheiro,
e dando um relevo especial à vida de relações. Valores de uso são mais
frequentemente trans-formados em valores de troca, ampliando a econominização da
vida social, mudando a escala de valores culturais, favorecendo o processo de
alienação de lugares e de homens.” (1994, p. 62);

A legitimação de uma rede geográfica global baseada nas estruturas centro-periferia


que permitem a expansão do processo de acumulação de capital cria, consequentemente, uma
competividade global e multiescalar por investimentos de capital. Esta competição
internacional, inter-regional e interurbana torna-se responsável por garantir as condições
ótimas para o fornecimento da força de trabalho em quantidade e qualidade de acordo com os
139

interesses da necessidade de expansão da acumulação. O aparelho de Estado segue, portanto,


a agenda coorporativa ao invés da agenda do trabalho (HARVEY, 2010). Significa dizer que
o poder está centralizado nas estruturas de produção sendo a política, portanto, um produto
derivado desta centralidade que irá disputar o Estado para garantir a estabilidade deste
projeto.
Controlar as estruturas de produção significa pensar na sua reprodução e regulação,
sendo o desenvolvimento técnico fundamental para garantir a expansão da acumulação. Isto
porque este desenvolvimento é capaz de produzir tecnologias que economizem trabalho,
organizando a instabilidade do trabalhador e seu controle sobre ele, uma vez que podem
mandá-lo para fora do trabalho e de volta ao exército industrial de reserva. Assim é possível
controlar um exército flutuante de trabalhadores desempregados em uma escala global,
criando condições ótimas para sua expansão. Esta escassez de trabalho é sempre localizada,
tornando a mobilidade geográfica do capital central na regulação da dinâmica dos mercados
locais (HARVEY, 2011).
Para que a expansão da acumulação do capital se perpetue no tempo e no espaço, é
fundamental que sejam criadas redes geográficas que garantam estes fluxos, sobretudo
financeiros. Isto significa que deve haver uma articulação/conexão entre Estados, ditos,
desenvolvidos e subdesenvolvidos, para a criação de uma rede financeira global que minimize
as potenciais obstruções da livre circulação de capital. Estas redes permitem conectar zonas
com excedentes de capital com zonas de escassez de capital, superando obstáculos ao
processo de expansão da acumulação. HARVEY (2011) chama isto de ajuste espacial. Para
que isto aconteça é preciso que dois fatores estejam fundamentados. O primeiro deles é o nexo
Estado-finanças,

Isso descreve a confluência do poder estatal e das finanças que rejeita a tendência
analítica de ver o Estado e o capital como claramente separáveis um do outro. Isso
não significa que o Estado e o capital tenham constituído no passado ou agora uma
identidade, mas que existem estruturas de governança (como o poder sobre a
confecção da moeda real no passado e os bancos centrais e ministérios do tesouro)
nas quais a gestão do Estado para a criação do capital e dos fluxos monetários torna-
se parte integrante, e não separável, da circulação de capital (2011, p. 47).

O segundo fator é a necessária criação de instituições financeiras internacionais de


capital que atuarão em conjunto dos departamentos de Tesouro – ou Ministério da Fazenda –
para articular ações conjuntas que visem à construção de uma arquitetura financeira global
ampliando para outra escala o nexo Estado-finanças. Ou seja, há uma questão de escalas nesse
processo, uma vez que estas instituições financeiras internacionais se articulam entre Estados
140

e dentro dos Estados, pois irão permitir empresas nacionais e multinacionais atuarem em
território nacional e internacional, respectivamente. No caso brasileiro, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) exemplifica tal situação. Ao articular-se com
o capital privado e estatal, possibilitando a atuação de empresas como a PETROBRAS, a
Andrade Gutierrez e a Odebrecht em outros Estados.
Há que se considerar, segundo Harvey (2011), duas ideias importantes sobre o nexo
Estado-finanças. Em primeiro lugar, ele extrai juros e impostos em troca de seus serviços,
além de extrair rendas de monopólio devido a sua posição de poder em relação à circulação de
capital. Para que possa atrair dinheiro ocioso é preciso oferecer segurança e eficiência
transnacional ou uma taxa de retorno satisfatória. Em segundo, “baseia-se na discrepância
entre o custo de seus serviços e da taxa de juros oferecida aos que poupam a taxa de juros ou
cobrança sobre os usuários para sustentar sua própria lucratividade” (p.50).
Estes mecanismos de ajuste espacial encontram no desenvolvimento geográfico
desigual o mecanismo de resolução em curto prazo das crises de sobreacumulação. Os
excedentes sobreacumulados em um determinado sistema territorial são compensados pela
falta de oferta existente em outro território. Desta forma para que possam receber estes
excedentes sobreacumulados estes sistemas territoriais receptores devem se inserir e expandir
seus sistemas de créditos, inserindo-se assim, nos sistemas de objetos e ações dinamizando os
fixos e fluxos, tornando-os assim extremamente vulneráveis ao sistema de crédito
especulativo e fictício, sendo posteriormente estes os meios pelo qual são impostos as rodadas
de desvalorizações.
No decorrer da construção desta geografia-histórica do capitalismo, HARVEY (2004)
aponta uma virada estrutural na terceira fase de dominação global burguesa ao indicar que:

[...] tanto o padrão de turbulência nas relações entre poder estatal, supra-estatal e
financeiro como a dinâmica mais geral da acumulação de capital (através da
produção e desvalorizações seletivas) foram um dos mais claros e complexos
elementos na narrativa do desenvolvimento geográfico desigual e da política
imperialista do período iniciado em 1973. (p. 103-104);

Este processo se inicia na década de 1970, a partir de uma dupla estratégia do então
governo estadunidense. A partir de uma aproximação do presidente Nixon com os governos
do Golfo Pérsico foi possível articular uma alta dos preços do petróleo, já que os EUA não
eram tão dependentes do petróleo árabe, diferentemente das outras potências mundiais,
sobretudo as europeias. A prerrogativa era a autorização dada aos bancos estadunidenses,
através da desregulamentação financeira, de movimentar os fluxos de capitais que se
141

acumulavam no Golfo. Estas rodadas de desvalorização, como chama o autor, associadas há


um regime monetário e financeiro foi constantemente utilizado enquanto estratégias político-
econômicas capazes de impulsionar a expansão do processo de acumulação do capital. Isto só
se tornou possível devido a uma associação estratégica fundamental entre Wall Street, a
Reserva Federal estadunidense e o Fundo Monetário Internacional (FMI), onde o último
assegura ao capital proveniente dos EUA a inexistência da perda, ao mesmo tempo em que a
fuga de capitais provenientes de crises espacialmente localizadas acaba por reforçar o poder
de Wall Street e a hegemonia de seu país sede.
Estes fluxos de crédito são importantes para investimentos produtivos e para
redistribuições de capital, e desempenham importante papel para equilibrar as necessidades de
consumo com as atividades de produção de mercados desagregados a partir da existência de
excedentes e déficits. Nesse sentido, o capital financeiro regula a dinâmica de acumulação de
capital a partir do desenvolvimento geográfico desigual. Ao mesmo tempo o capital financeiro
possui grande caráter improdutivo que opera a partir da especulação em mercados futuros,
valores monetários, dívidas, etc. Logo os mercados abertos de capital se tornam meios para
atividades especulativas os tornando dependentes de mercados especulativos centrais, como:
EUA, Tóquio, Londres e Frankfurt.
Esta nova fase do domínio global burguês é de fundamental importância para
chegarmos ao conceito de acumulação por espoliação, que segundo David Harvey assume um
caráter central nesta etapa histórico-geográfica do capitalismo onde a privatização torna-se um
de seus principais pilares. É preciso, antes, revisitar debates clássicos, pois estes apontam para
continuidades importantes do processo de acumulação do capital e foram de extrema
importância para compreendermos as especificidades deste processo na contemporaneidade.
Rosa Luxemburgo defendia a hipótese de que o processo de expansão da acumulação
de capital estava diretamente relacionada à destruição de espaços e formas não-capitalistas de
reprodução. Significa que para poder expandir seus processos de acumulação de capital – sob
a forma do imperialismo – era necessário incorporar estas sociedades e economias pré-
capitalistas, que em um movimento de ascensão acabaria por gerar a necessidade de recorrer a
novos espaços não-capitalistas para dar continuidade à acumulação de capital. Nesse sentido,
e por uma finitude do globo terrestre, este movimento dialético poderia gerar o seu fim, já que
em determinado momento tal processo de expansão não seria possível devido à completa
assimilação do capital sobre o globo terrestre. É sob esta perspectiva, que os ajustes espaço-
temporais são fundamentais neste movimento de expansão-inserção de sistemas territoriais ao
sistema financeiro e de créditos. O que o autor avança é em mostrar que não há,
142

necessariamente, necessidade de a acumulação de capital estar condicionada a algo externo a


ela. Retornaremos a esse debate mais a frente.
Marx e Rosa apontam elementos que nos mostram que há um continuum do processo
de acumulação quando apontam o papel central do Estado “com seu monopólio da violência e
suas definições de legalidade” (HARVEY, 2004, p. 109) ao respaldarem e promoverem estes
processos. Indicam ainda outros elementos tais como os processos de expropriação e
destruição de formas camponesas de economia, e de propriedades pré-capitalistas e não-
capitalistas (KRATKË, 2015). Segundo LOUREIRO (2015), Rosa vai além de Marx ao
denunciar a violência marcada nos processos de colonização relacionando-as ao capital
europeu e ao sugerir que o processo de acumulação não se restringe a um caráter primitivo,
mas que ocorre na contemporaneidade, assumindo um caráter de acumulação primitiva
permanente,

[...] já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue


inclusive em nossos dias. [...] O capital não conhece outra solução que não a da
violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não
apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades
primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta de vida ou morte
levada até o total esgotamento ou aniquilação (LUXEMBURGO apud LOUREIRO,
2015, p. 93).

A análise que Marx realiza sobre a acumulação primitiva – apesar de concebê-lo


enquanto um caráter original do capitalismo - também revela uma ampla gama de processos
que permanecem fortemente marcados nos padrões de acumulação do capital contemporâneo,
tais como:

[...] a expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem


terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas;
muitos recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com
frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista de
acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso do Estados Unidos,
mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas.
Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substitui a
agricultura familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio
sexual)” (HARVEY, 2004, p 121).

É nesse sentido, que David Harvey aponta para uma revisão geral do papel permanente
e de práticas predatórias que apontam para uma continuidade deste perfil ‘primitivo’ ou
‘originário’, nos mostrando que estas são, na verdade, um continuum e intrínsecas ao
capitalismo, assim como afirmava Luxemburgo, não sendo externas a ele. É nesse sentido da
143

identificação da continuidade destas práticas predatórias que o autor propõe o conceito de


acumulação por espoliação.
Alguns mecanismos de acumulação primitiva elencados por Marx foram aprimorados
para desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado, sendo o sistema de
crédito e o capital financeiro “grandes trampolins de predação, fraude e roubo (HARVEY,
2004, p. 122)”. Somado a isto, criam-se novos mecanismos de acumulação por espoliação
com forte participação estatal: acordo relativo aos aspectos de Direito de Propriedade
Intelectual (acordo TRIPS) da Organização Mundial do Comércio (OMC); patenteamento e
licenciamento do material genético; biopirataria em benefício de poucas grandes empresas
farmacêuticas; degradação ambiental global; mercantilização de formas culturais, históricas e
da criatividade intelectual; corporativização e privatização de bens até agora públicos –
universidades; privatização da água (nova onda de expropriação e “cercamento de bens
comuns”); regressão dos estatutos regulatórios (perda de direitos).
Como será abordada neste capítulo, a criação das políticas responsáveis pela gestão
dos “recursos hídricos” no Brasil e no mundo é pautada, a partir da década de 1990, sob a
ingerência de organismos financeiros internacionais. São criadas a partir deste período as
bases das estratégias ideológicas, financeira, política e de poder que, a partir do discurso da
escassez (PORTO-GONÇALVES, 2006), justifica a necessidade de se dotar de valor
econômico a água enquanto medida capaz de racionalizar o seu uso. A partir do momento em
que a água passa a ser concebida como um bem escasso e com valor econômico são criadas as
estruturas normativas e jurídicas que dão respaldo institucional e legal para a expansão da
acumulação do capital sobre a água, a partir da espoliação. O fato de se dotar de valor um
bem que em muitos territórios é manejado a partir da lógica dos bens comuns é o primeiro ato
que possibilita as múltiplas formas de cercamento das águas e terras. Como já defendido antes
neste trabalho, toda disputa por água traduz uma disputa pela terra, porém há um caráter no
processo de acumulação do capital sobre a água que aponta para uma especificidade.
As fraturas metabólicas provocadas pelos setores neoextrativos intensivos na
superexploração da água, possuem a complexa capacidade de atingir áreas que se encontram
espacialmente fora de seus domínios territoriais. Os impactos provocados pelo agronegócio,
pela mineração, pela siderurgia, por exemplo, influenciam diretamente o ciclo hidrológico.
Como sabemos o ciclo hidrológico não é restrito a um recorte espacial específico, portanto
quando são alterados os regimes de recarga, de evapotranspiração, de alteração dos índices
pluviométricos, de fracionamento de corpos hídricos a partir da construção de grandes
barragens, a partir do necrometabolismo específico de cada setor, há um impacto multiescalar
144

do balanço hídrico que é capaz de atingir regiões cuja escala é mais abrangente do que a
contiguidade do próprio empreendimento.
Em relação às dinâmicas de espoliação da água, há um caráter estratégico que
possibilita a intensificação destes processos que é ligado ao fato de a exploração hídrica poder
ocorrer de forma “invisível”. Quando são expropriados terras e territórios para a implantação
de grandes mineradoras, siderurgias, desertos verdes, complexos industriais, ou para o
latifúndio agroexportador, os impactos gerados são passíveis de serem observados em escalas
que vão além daquela onde ocorrem estes processos. Porém, as águas espoliadas utilizadas
durante os processos de produção de todos estes setores só são percebidas diretamente por
aqueles/las que se encontram nos lugares de extração e transformação, já que são as pessoas
que têm suas dinâmicas sóciometabólicas fraturadas. Para além deste recorte espacial, a
dimensão da superexploração hídrica só é percebida quando provocadas conjunturas de stress
hídrico.
Face ao exposto, fica evidente que há uma vantagem estratégica na espoliação da água.
Nossa tarefa nesse trabalho é apontar a ligação desses processos, que geram fenômenos
multiescalares, com o que acontece atualmente no Vale do Guapiaçu, a partir da proposta de
construção de uma barragem-reservatório.
Assim, a seguir será explicitada a simultaneidade desses fenômenos a partir de
processos que não estão ligados do ponto de vista espacial ao que acontece no estado do Rio
de Janeiro, mas que apresentam a mesma tendência provocada tanto pela vetorização de uma
estratégia articulada em escala global para controlar a água, como pelas crises do capital em
meados dos anos 2000 que recria uma dinâmica de expansão do capital sobre as bases dos
fluxos metabólicos de matéria e energia.

2.2 O controle do Capital sobre os fluxos energéticos e metabólicos

Segundo a Comissão Internacional sobre Grandes Represas, são consideradas grandes


represas as barragens que alcançam mais de 15 metros de altura. De 1950 até os dias atuais,
foi investido dois trilhões de dólares para a construção destes empreendimentos, o que
caracteriza 95% de todo o investimento no setor (MARQUES FILHO, 2016). Estima-se que
tenham sido construídas 1,2 grandes represas no mundo por dia desde 1930, o que aponta para
a existência de um montante de 58.266 grandes represas no planeta. O impacto ao ciclo
145

hidrológico terrestre ocasionado por estes grandes cercamentos de terra e água são
assustadores, já que são capazes de drenar metade das zonas úmidas do planeta com uma
capacidade de retenção de 6.500 km³ de água 48 (NILSSON et all, 2005 apud MARQUES
FILHO, 2016). O que é equivalente a 15% do fluxo hidrológico dos rios (BONNEUIL, 2013
apud MARQUES FILHO, 2016).
MARQUES FILHO (2016) afirma, a partir de um estudo da World Wide Fund Nature,
(WWF) “River at risk” realizado em 2004, que cerca de 60% dos 227 maiores rios do mundo
tiverem seus fluxos alterados a partir de fragmentações provocadas pela construção de
grandes barragens e barragens gigantes (mais de 150 metros de altura). Além disso, estima-se
que cerca de 400 mil km² de florestas49 tenham sido alagados para a construção de grandes
represas50. O Brasil possui 516 grandes barragens em seu território, sendo o décimo país no
mundo com maior número, além de possuir 16 barragens gigantes, número que o coloca na
quarta posição estando atrás dos EUA, Rússia e Canadá. Estima que no século XX entre 40 e
80 milhões de pessoas foram desapropriadas de seus territórios para a construção destes
empreendimentos (HEINBERG, 2009 apud MARQUES FILHO, 2016).
Os dados disponibilizados pela International Rivers51 apontam que em toda a Floresta
Amazônica existem 100 usinas hidrelétricas (UHE) em operação; 44 em construção; 140
planejadas; e 134 inventariadas. Estas 418 UHE estão localizadas em nove países (Brasil,
Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia Equador, Peru e Bolívia), sendo
258 delas apenas no Brasil. Estes números apresentam um grave quadro de conflitos
emergentes já que das 418 UHE apenas 144 estão em operação e em fase de construção. As
outras 274 UHE estão planejadas e inventariadas.
Das 144 UHE em operação e em construção na Amazônia sul-americana, 59 delas
possuem uma área de inundação de 21.762 km², o que é equivalente a 2.176.200 de hectares
de terras cercadas para que estas águas cercadas sejam cerceadas a partir da utilização
estratégica daqueles que controlam suas vazões. Das 134 UHE planejadas, 83 delas possuem
uma área de inundação igual a 16.123 km², equivalentes a 1.612.300 hectares de terras. Das
134 UHE inventariadas, 24 delas possuem uma área de inundação equivalente a 1.762 km², o

48
Para que seja possível ter a noção real do que este montante representa, basta considerarmos que 1 km³ de
água é igual a 1.000.000.000.000 litros de água.
49
Equivalente a 40.000.000 de hectares.
50
“Environmental impacts of dams”, International Rivers (apud MARQUES FILHO, 2016).
51
International Rivers, Fundación Proteger, e ECOA. Dams in Amazônia. Disponível em: <http://www.dams-
info.org/>. Acesso em: 18 maio 2018.
146

que corresponde a 176.200 hectares de terra potencialmente alagáveis. Ou seja, dos 418 casos
de UHE em operação, construção, planejadas e inventariadas, 166 52 (apenas 39,7%) deles
correspondem a um total de terras alagadas e com potencial de inundação de 39.647 km²,
igual a 3.964.700 hectares. É fundamental salientar que estes dados são subdimensionados,
logo esforços devem ser realizados para que seja possível mensurar a dimensão real das terras
que estão sendo espoliadas e cercadas através da construção de grandes barragens na América
do Sul, não se restringindo apenas à Amazônia. Estes dados nos permitem apontar que em um
curto/médio prazo estarão em disputa (no mínimo) 1.788.500 hectares de terras
potencialmente alagáveis, se considerarmos os projetos planejados e inventariados. Estas
grandes barragens geram a espoliação de milhões de hectares de terras e uma quantidade de
litros de água cercada cuja dimensão em números é de difícil nomenclatura. O caso brasileiro
apresenta o quadro mais dramático da região. Dos 39.647 km² de terras alagadas e
potencialmente alagadas na Amazônia, 31.595 km² se encontram no Brasil (79,6%), sendo
13.222 km² das UHE em operação53, 1.989 km² das UHE em construção 54, 13.824 km² das
UHE planejadas55 e 2560 km² das UHE inventariadas56. Somados os dados referentes às UHE
em operação e em construção, chegam-se-se a um total de 1.521.100 hectares de terras
alagadas e 1.382.400 de hectares de terras com sérios riscos de cercamento e alagamento já
que são referentes à UHE planejadas. É importante frisar, mais uma vez, que estes dados são
subdimensionados e que é de fundamental importância avançar na construção de bancos de
dados que permitam mensurar a gravidade e o contingente de terras alagadas e cercadas pelo
capital.
Outro fator de fundamental importância e que deve ser salientado, é que todos estes
dados de hectares alagados e/ou potencialmente alagáveis dizem respeito apenas às áreas
sobrepostas pelo espelho d’água das áreas de alagamento. Ou seja, não levam em
consideração outros hectares de terras e corpos hídricos diretamente atingidos pela construção
de grandes barragens. As doze grandes barragens previstas para implantação no Rio Tapajós

52
A partir do banco de dados da International Rivers foi possível identificar a mensuração da área de inundação
de 166 das 418 UHE que estão em operação, em construção, planejadas e inventarias. As outras 252 UHE não
apresentaram dados ou a área de inundação identificada era igual a zero. Como há inúmeros casos de UHE com
alto potencial de geração de energia onde a área de inundação é igual à zero ou não apresentam dados, estes
casos não foram considerados para o somatório das áreas de inundação.
53
Foram contabilizadas 33 das 74 UHE em operação.
54
Foram contabilizadas 14 das 31 UHE em construção.
55
Foram contabilizadas 75 das 91 UHE planejadas.
56
Foram contabilizadas 29 das 62 UHE inventariadas.
147

serão responsáveis para um desmatamento de 950.000 hectares (FEARNSIDE, 2013 apud


MARQUES FILHO, 2016). Já a usina de Belo Monte, no rio Xingu, impactou uma área de
195.299 km² através de uma barragem de 5 km de largura (HERRERA, 2013 apud
MARQUES FILHO, 2016).
LITTLE (2013) revela que a estratégia do capital em construir inúmeras barragens em
uma mesma bacia hidrográfica visa o controle do fluxo dos corpos hídricos da nascente até a
foz. A partir deste controle as grandes empresas do setor energético assumem o poder de
operar o fluxo das águas a partir de suas demandas sendo capaz de gerar energia para uma
escala global, ou seja:

[...] uma barragem a montante poderia vender água de uma barragem a jusante para
compensar uma situação de baixo de água. E controle de fluxos de uma bacia
hidrográfica seria reduzir o fluxo de alta e baixa do rio entre a estação chuvosa e
menos estação chuvosa (p. 35).

Tal arrogância em se autoproclamar capaz de controlar a vazão de rios cujo


movimento da água percola a centenas de milhões de anos, denota a “crise da racionalidade
instrumental hegemônica na ciência da sociedade moderno-colonial” (PORTO-
GONÇALVES, 2006, p. 417). Quanto mais e maiores são as áreas alagadas, maior a
probabilidade de destruição das capacidades naturais de recarga hídrica. Aliás, maior a
capacidade de autodestruição das dinâmicas de reprodução metabólicas do sistema capitalista
e da humanidade. O que se coloca em jogo não é a capacidade de destruição do planeta terra,
como em geral nos fazem crer, mas sim das condições básicas de reprodução da própria
espécie humana. É neste sentido, por exemplo, que apontamos anteriormente o caráter
dialético posto por Mészarós da dinâmica totalitária do sistema capitalista, já que quanto mais
expande sua capacidade produtiva-destrutiva, mais próximo se encontra dos seus limites
expansionistas. Estamos em um estágio do desenvolvimento histórico-geográfico do
capitalismo em que enfrentamos problemas modernos para os quais já não existem soluções
modernas suficientes para resolvê-los (SANTOS, 2007).
Todo desenvolvimento tecnológico está diretamente relacionado ao desenvolvimento
das relações sociais e de poder, que crise após crise redefine quais são os recursos estratégicos
a serem controlados (PORTO-GONÇALVES, 2006) por esta dinâmica metabólica
autodestrutiva. A falácia do desenvolvimento tecnológico enquanto instrumentalização da
resolução das crises ambientais traduz-se enquanto estratégia de poder que legitima a
apropriação por vias espoliativas do capital sobre a natureza.
148

Porto-Gonçalves (2006) desenvolve importante estratégia discursiva (e política) ao nos


atentar que o corpo humano, na verdade, é elemento constituinte do ciclo da água já que é
composto por mais de 70% de água. Os processos hidrocomunitários desenvolvidos a partir
da gestão comunitária das águas no Guapiaçu, cujas bases epistêmicas se apoiam sobre a
lógica do comum, apontam para uma visão que dialoga com a defendida pelo autor. Mas o
discurso comumente explanado que cristaliza o ciclo da água e não nos insere neste processo,
está imbuído de uma estratégia de poder que, a partir de um discurso tecnocrata, nos controla
ao controlar a água. É por isso que o autor defende que a água deva ser tratada enquanto
território:

Desse modo, a água não pode ser tratada de modo isolado, como a racionalidade
instrumental predominantemente em nossa comunidade científica vem tratando,
como se fosse um problema de especialistas. A água tem que ser pensada enquanto
território, isto é, enquanto inscrição da sociedade na natureza, com todas as suas
contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e
mulheres por meio das relações sociais e de poder.
O ciclo da água não é externo à sociedade, ele a contém, com todas as suas
contradições. Assim, a crise ambiental, vista a partir da água, também revela o
caráter de crise da sociedade, assim como das suas formas de conhecimento (p. 419).

Esta dimensão nos leva a uma necessidade de uma concepção e um debate amplo e
aberto sobre poder. Se 70% dos nossos corpos é constituído por água nossa espécie é,
portanto, dono dela. Mas não a partir de uma lógica privativa e mercantil, já que todos ao
mesmo tempo em que a possuem, são água. Mas sim a partir de uma lógica comum. A água é,
então, comum a todos nós. Entendo que para pensarmos as estratégias referentes à defesa da
água é necessário re-pensarmos as epistemologias que tem pautado nossas estratégias de ação.
Quando o capital cria os aparatos jurídicos e normativos para intensificar seu controle
sobre a água – e o Estado é central neste processo - significa dizer que há uma intensificação
do controle sobre nossos corpos. Esta dimensão do controle sobre os corpos talvez seja uma
das mais violentas formas de hegemonia, já que este controle ocorre de forma silenciosa e
invisível para grande parcela da sociedade que não está inserida diretamente nestas disputas.
Para que isto ocorra é necessária à criação de um consenso que reproduza esta invisibilidade e
que torne a questão da água algo externo a todos os corpos (e mentes).
Svampa (2013) afirma que na década de 2000, a América Latina passou do Consenso
de Washington para o Consenso das Commodities. Há um caráter econômico, político e
ideológico que fundamenta e legitima o caráter neoextrativista defendido e posto em prática
pelos países ditos “progressistas”. Ao serem criticados, rapidamente são apontados os
benefícios gerados para sociedade civil a partir do acúmulo de capital produzido pelos setores
149

primários. Este Consenso das Commodities aprofunda a dinâmica de espoliação de terras,


“recursos naturais” e territórios e re-cria novas formas de dominação e dependência, criando o
que autora chama de áreas de sacrifício. São estas as áreas onde estão presentes outras lógicas
de relação com a natureza sustentada por outras epistemes e que são desconsideradas e
destruídas em nome do progresso e da eficiência técnica que, teoricamente, sustenta um
desenvolvimento para todos e todas.
Trago o debate realizado por Svampa já que identifico mais uma tentativa de
construção de consensos, desta vez o da escassez hídrica. Estas estratégias buscam a
construção de um senso comum para legitimar a expansão do capital. Tal proposta apresenta
alguns fatores semelhantes aos apontados por Svampa, mas outros que diferenciam e que por
isso devem ser olhados com maior atenção e especificidade.
O primeiro fator é relativo ao aspecto temporal. O consenso da escassez hídrica
começa a ser construído no início da década de 1990, mais precisamente em Dublin, na
Irlanda, em 31 de Janeiro de 1992, portanto antes do boom das commodities e de seu
Consenso na América Latina. Naquele momento, foi realizada a Conferência Internacional
sobre Água e Meio Ambiente que ao final do encontro produz dois documentos: o Relatório
da Conferência e a Declaração de Dublin. A Declaração de Dublin já nos traz elementos que
sustentam a ideia deste consenso. A primeira frase do documento é fortemente carregada por
um terrorismo hídrico (o segundo fator): “A escassez e o mau uso da água doce representam
uma séria e crescente ameaça ao desenvolvimento sustentável [para que e para quem?] e à
proteção do meio ambiente [ou do capital?]”. Quem quer que seja o/a leitor/a é capaz de roer
suas unhas e já neste momento vai conferir se sua torneira pinga.
O terrorismo hídrico é utilizado em amplas campanhas publicitárias que culpabilizam
o indivíduo, por exemplo, colocando o problema da falta de água nas torneiras que pingam,
no tempo do banho e da escovação dos dentes. A participação da Globo Comunicações e
Participações S/A enquanto associada da Associação Brasileira do Agronegócio mostra como
a estratégia publicitária sustenta um projeto de poder de classe, que invisibiliza a
superexploração hídrica do setor e o impacto gerado aos territórios, pessoas e natureza. Além
disso, culpabiliza o indivíduo e o responsabiliza pela necessidade de economia no uso da
água. Basta lembrarmos o terrorismo hídrico produzido pela grande mídia em São Paulo e no
Rio de Janeiro, no ano de 2015, abordado pela Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB,
2015).
A introdução do documento segue e já antecipa os requisitos quantitativos e
qualitativos que legitimam a ideia antes mesmo dela ser defendida,
150

Quinhentos participantes, incluindo especialistas designados pelos Governos, de


uma centena de países e representantes de oitenta organismos internacionais,
intergovernamentais e não-governamentais participaram da Conferência
Internacional sobre Água e Meio Ambiente (ICWE) [...] Os peritos diagnosticaram
como crítica a situação futura dos recursos hídricos no mundo (...). Os problemas
destacados não são de natureza especulativa e provavelmente nem afetam o nosso
planeta apenas em um futuro distante. Eles estão aqui e tem impacto sobre a
humanidade agora. A sobrevivência futura de muitos milhões de pessoas exige uma
ação imediata e eficaz.
Os participantes da Conferência exigem abordagens fundamentais novas para a
avaliação, desenvolvimento e gestão de recursos de água doce, o que só pode ser
provocado por meio de comprometimento político e de envolvimento dos mais altos
níveis de governo até as comunidades menores. O compromisso terá de serem
apoiados por imediatos e substanciais investimentos, campanhas de conscientização
pública, mudanças legislativas e institucionais, desenvolvimento tecnológico e
programa de capacitação. Subjacente a todos estes itens deve haver um maior
reconhecimento da interdependência de todos os povos e de seu lugar no mundo
natural.

Os requisitos quantitativos e qualitativos se apoiam nos “quinhentos participantes”


sendo eles especialistas designados por Governos, organismos internacionais,
intergovernamentais e não-governamentais. Aqui se apresentam o terceiro e o quarto fator. O
terceiro, diferente do Consenso das Commodities, é relativo ao papel do discurso tecnocrata
(que esconde o caráter político e das relações de poder) que sustenta, através de inúmeros
estudos, a existência da escassez hídrica enquanto problemática ambiental. É também apoiado
sobre a luz da tecnocracia moderno-colonial, chamada por PORTO-GONÇALVES (2006) de
discurso da escassez. O discurso é uma estratégia técnica, de poder e ideológica que visa um
convencimento. Um discurso que não convence é ignorado. No decorrer destes anos, o
discurso da escassez é o instrumento técnico, de poder e ideológico que visa legitimar o
consenso da escassez hídrica, uma espécie de gran finale desta empreitada política e de poder.
O quarto fator que sustenta a ideia é tão poderoso quanto um dos fatores que
legitimam o Consenso das Commodities. Se Svampa aponta que este é fruto de uma
construção econômica, política e ideológica defendida e disseminada por governos latino-
americanos, o Consenso da Escassez Hídrica é defendido e disseminado pelas principais
hegemonias do sistema-mundo moderno-colonial, aliados ao Banco Mundial, ao Fundo
Monetário Internacional, diversos fundos de investimento, ao capital financeiro e muitos
outros organismos internacionais, intergovernamentais e ONGs. Vale dar destaque ao papel
das universidades e centro de pesquisa associadas ao capital e suas frações, que não só
incorporam, mas corroboram o discurso da escassez e colaboram na construção do consenso.
Esta diversidade de atores apresenta a complexidade que está por de trás do projeto de poder
que visa ao controle da água, vista como recurso natural pelo capital. Esta complexa rede de
poder dissemina as diretrizes que sustentam o consenso através do discurso tecnocrata,
151

trabalhando incessantemente na estratégia em escala para garantir sua disseminação na


hierarquia que estrutura o sistema-mundo moderno-colonial.
As entidades de classe que serão apresentadas no próximo item são um dos exemplos
que corroboram a estratégia, já que possuem suas próprias instituições que geram seus
próprios dados e programas de sustentabilidade, que ocupam e controlam os espaços de
gestão da água ditos participativos.
As estratégias apontadas na Declaração de Dublin são explícitas ao afirmar a
necessidade de investimentos, campanhas públicas, mudanças legislativas e institucionais,
desenvolvimento tecnológico e programas de capacitação. São quatro os princípios
orientadores que sustentam a Declaração de Dublin e que deveriam ser utilizados por diversos
países no mundo, inclusive o Brasil: 1) A água doce é um recurso finito e vulnerável,
essencial para sustentar a vida, o desenvolvimento e o meio ambiente; 2) Desenvolvimento e
gestão da água deverão ser baseados numa abordagem participativa, envolvendo usuários,
planejadores e agentes políticos em todos os níveis; 3) As mulheres desempenham um papel
central no fornecimento, gestão e proteção da água; e 4) A água tem um valor econômico em
todos os usos e deve ser reconhecida como um bem econômico.
O consenso da escassez hídrica que se delineia em Dublin é fundamental para
influenciar diretamente na construção das regulamentações jurídicas que instrumentalizam a
gestão dos recursos hídricos. Ele está presente, por exemplo, no Art. 1º da Lei das Águas do
Brasil (Lei Nº 9.433/1997) elaborada cinco anos depois da Conferência de Dublin. O inciso II
afirma que “a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”, o IV que “a
gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”, o V aponta
que é a “bacia hidrográfica é a unidade territorial para implantação da Política Nacional de
Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” e
o VI defende que a gestão da água deve ser descentralizada. Todos estes elementos estão
presentes na Declaração de Dublin.
A construção do consenso sobre a escassez hídrica f tem sido de fundamental
importância para aprofundar a espoliação do capital sobre a água e concentrá-la a partir de seu
controle mediante múltiplas formas. Tratarei de apontar agora quais formas são estas e o
potencial impacto gerado a partir do grande volume de água controlado pelos setores
intensivos em exploração da água. Para cada setor há uma entidade de classe consolidada que
tem por objetivo reunir, articular e defender o interesse dos diversos atores que o constituem.
São blocos de poder cujo aparato constrói um projeto territorial definido onde são aglutinadas
instituições de pesquisa, bancos, empresas de telecomunicações, escritórios de advocacia,
152

empreiteiras e diversas frações da burguesia que articuladas garantem sua acumulação e


expansão.

2.2.1 O cercamento das águas em suas múltiplas formas

Antes de iniciar o debate sobre a intensificação da presença do capital financeiro no


Brasil, como ele se distribui no Rio de Janeiro e como isto é fundamental para intensificação
do processo de cercamento das águas e terras, é importante apontar quais são as frações da
burguesia nacional, e como estas se articulam politicamente criando as condições para os
ajustes espaciais que absorvem e expandem as redes geográficas da expansão do capital,
inserindo o país na dinâmica de acumulação global. Identificar o “centro da periferia” e como
este se articula não só com o “centro do centro” (PETRAS, 1980), mas, sobretudo como criam
suas redes e estratégias de capilarização do poder é de suma importância para re-criar as
estratégias de resistência em defesa dos bens comuns.
Apontaremos, portanto, os setores mais intensivos na superexploração da água e da
terra e, quando possível, trazendo dados que demonstram a magnitude destes fenômenos.
Porém, é preciso deixar claro que não é o objetivo aprofundar este debate. O principal é
identificar estes atores e apontar suas responsabilidades para posteriormente, explanar como
estes constroem suas estratégias de poder em escala de ocupação das arenas e dos setores do
Estado responsáveis por criar as diretrizes da gestão dos recursos hídricos no Brasil. Os
cercamentos de terra e água não são um processo novo e recente no desenvolvimento
histórico e geográfico do capitalismo, como apontou Rosa Luxemburgo, mas as estratégias de
articulação interna-externa postas no (e pelo) Estado se adaptam as condições históricas e
geográficas atualizando as múltiplas formas de expansão, acumulação e espoliação do capital.

2.2.1.1 Agronegócio

Formada em março de 1993, a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG)


congrega inúmeros representantes dos setores produtivos que dão sustentação ao agronegócio
brasileiro. Sua criação tem por objetivo reunir e unificar toda a representação patronal do
153

setor, além de congregar diferentes frações do capital em defesa de um mesmo projeto de


classe.
Segundo Lamosa e Loureiro (2014), a ABAG caracteriza-se enquanto uma nova forma
de organização da classe dominante difundida a partir da década de 1990, cujo Estado passava
por um profundo processo de reorganização e liberalização da economia, notadamente
marcado pela transferência de responsabilidades das políticas públicas e sociais para o setor
privado. O que a caracteriza enquanto nova forma de organização é sua capacidade de
articular, organizar e representar diferentes frações do capital como o agrário, industrial,
comercial e financeiro, atuando assim enquanto partido político nos termos de Gramsci. Além
disso, possui ampla capacidade de formação e difusão de seus interesses. Os autores trazem o
debate produzido por Gramsci sobre a importância e diferença dos intelectuais orgânicos e os
intelectuais tradicionais para materialização do projeto de poder de determinada classe. Nesse
sentido, há um duplo aspecto desta estratégia político-pedagógica de formação da ABAG:
organizações que cumprem o papel de formação dos intelectuais orgânicos de classe e
organizações que exercem a tarefa de formação de intelectuais tradicionais ao projeto de
poder. Enquanto os intelectuais orgânicos são formados para ocupar cargos de direção das
empresas associadas, os intelectuais tradicionais – sobretudo professores e jornalistas –
cumprem o papel de disseminar e afirmar a autoimagem do agronegócio em espaços
apropriados para tal tarefa.
São associadas à ABAG mais de 80 empresas e instituições nacionais e internacionais
de uma ampla gama de setores. Destacam-se, entre elas, Monsanto do Brasil Ltda, Syngenta
Proteção de Cultivos Ltda, Cargil Agrícola S/A, Embrapa, CHS do Brasil Grãos e
Fertilizantes Ltda, Globo Comunicação e Participações S/A, Du Pont, Bayer S/A, Basf S/A,
Banco Santander S/A, Banco Itaú BBA S/A, Banco do Brasil S/A, Caixa Econômica Federal.
Michelin América do Sul e Radar Propriedades Agrícolas S/A 57.

57
Formada em 2008 a partir da corrida do capital à compra global de terras alavancada pela crescente “demanda
mundial por alimentos”, a Radar tem sua origem a partir da sociedade entre a Cosan e o fundo Teachers
Insurance Annuity Association (TIAA) e se define enquanto gestora de propriedades agrícolas. Através de uma
avançada estrutura de geoprocessamento e agrometeorologia a Radar compra ou arrenda propriedades rurais em
todo o mundo e adequa a partir das demandas financeiras globais. Atualmente a empresa possui um portfólio de
670 propriedades nos estados de São Paulo, Goiás, Piauí, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas
Gerais, Tocantins e Bahia, cujo total extrapola 280 mil hectares de terra sobre seu controle, avaliado em R$5,7
bilhões. A partir de análises do “potencial” de terras via satélite às propriedades adquiridas são adequadas ao
mercado e arrendadas às líderes globais na produção de soja, milho, cana-de-açucar e demais commodities
agrícolas. Em seu site a empresa aponta o potencial brasileiro como importante destino da aquisição global de
terras, já que “possui recursos naturais valiosos para enfrentar os desafios de forma eficiente e segura”, aliado a
isto “figura como um dos poucos países do mundo com grande porção de terras livres para o plantio, com
aproximadamente 200 milhões de hectares disponíveis”. Disponível em: <http://cosan.com.br/pt-
br/negocios/energia/radar>. Último acesso em: 24/05/2018.
154

Com o intuito de explanar o volume de água controlado por este setor, analisamos os
dados disponibilizados pela ABAG relativos à produção do setor no ano de 2015 e calculamos
o volume de água utilizado nos produtos especificados a partir da pegada hídrica de cada um
deles.
A tabela 5 apresenta os dados relativos ao volume de água consumido pelas principais
empresas produtoras e associadas da ABAG, apenas no ano de 2015. É fundamental que
façamos a crítica e aprofundemos os dados frequentemente utilizados apresentados pela
Agência Nacional de Águas que apontam que este setor é responsável pelo consumo de 70%
de toda a água no país. Números abstratos não possibilitam uma ideia real do volume de água
utilizado por este e outros setores, por isso desagregar estes dados é uma importante tarefa
política, cumprindo excelente papel didático para o diálogo com a sociedade e para as
estratégias que constroem os discursos que envolvem a disputa pela água.
Os dados da produção foram coletados no site da ABAG e dizem respeito ao ano de
2015 58. Os dados relativos à pegada hídrica de cada produto foram extraídos da Water Foot
Print 59.

Tabela 5 - Volume de água consumido pelas principais culturas do Agronegócio - 2015

Pegada Hídrica Consumo da água por


Produto Produção 60
(L/Kg) produto (L)

Cana-de-açúcar 754.948.455 ton 1.800 1.358.907.219.000.000

Milho 85.707.796 ton 1.222 104.734.926.712.000

Soja 97.043.705 ton 11.397 1.106.007.105.885

58
Disponível em: <http://www.abag.com.br/mapa_producao>. Acesso em: 24 maio 2018.
59
Disponível em: <http://waterfootprint.org/en/resources/interactive-tools/product-gallery/>. Acesso em: 24
maio 2018.
60
A partir do banco de dados da Produção Agrícola Municipal – 2015, do IBGE, foi possível realizar uma
comparação entre estes dados e os fornecidos pela ABAG. A saber: Algodão Herbáceo = 4,0 milhões de
toneladas; Arroz (em casca) = 12,3 milhões de toneladas; Cana-de-açúcar = 750,2 milhões de toneladas; Milho =
85,2 milhões de toneladas; Soja = 97,4 milhões de toneladas. Disponível em:
<https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1612#resultado>. Acesso em: 05 jul. 2018.
155

Algodão Herbáceo 4.123.336 ton 9.980 41.150.893.280.000

Arroz 12.312.315 ton 2.500 30.780.787.500

Bovinos 7.613.163.153 kg 15.000 114.197.447.295.000

Frangos 12.990.348.875 kg 4.325 56.183.414.584.375

Suínos 12.990.348.875 kg 5.988 77.942.093.250.000

Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados da ABAG e da Water Foot Print.

O volume total de água espoliado pelo agronegócio no ano de 2015 relativo apenas à
produção dos produtos especificados é da ordem de 1,7 quatrilhão de litros. Portanto, para que
este setor continue a espoliar a água da natureza e da população, é necessária a construção de
uma estratégia de poder capaz de articular diferentes frações do capital nacional e financeiro,
além de estabelecer uma estratégia de poder em escala capaz de polarizar sua atuação em
diferentes arenas.

2.2.1.2 Bebidas alcoólicas e não alcoólicas

Fundada em 1950 sob a razão social Associação dos Industriais de Bebidas e


Refrigerantes, posteriormente amplia sua atuação englobando todo o setor de produção de
bebidas não alcoólicas, dando origem a Associação Brasileira de Indústrias de Refrigerantes e
Bebidas não Alcoólicas (ABIR).
O objetivo da ABIR é garantir os interesses e a “prosperidade do setor”, assim como
se articular e participar “como membro ativo de associações congêneres de setores
econômicos correlacionados para produzir dados estatísticos, técnicos, econômicos,
156

educacionais” 61 referentes à produção do setor. Destacam-se entre seu universo de 53


empresas (de capital nacional, misto e internacional) a Ambev, Coca Cola Brasil, Nestlê,
Heineken, Minalba, Pepsi, Danone, General Mills, Indaiá, Grupo Petrópolis e a Red Bull.
Segundo dados da própria ABIR, entre 2010 e 2016 suas associadas produziram 23, 5 bilhões
de litros de bebidas não alcoólicas. Porém, não foi possível identificar o volume de água
necessário para a produção final destas bebidas. É preciso avançar neste sentido para que se
possa mensurar o impacto deste setor no consumo total de água.
A Associação Brasileira da Indústria de Cerveja (CervBrasil) foi criada em maio de
2012 e reúne as quatro maiores fabricante de cerveja do país, são elas: Ambev, Heineken,
Brasil Kirin e Grupo Petrópolis. Juntas elas correspondem por 96% da produção de cerveja do
país. De acordo com o estudo “Recursos Hídricos e a Economia Verde – Setor Privado”, que
faz parte da “Coleção de Estudos sobre Diretrizes para uma Economia Verde no Brasil”,
produzido pela Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), a indústria
de alimentos e bebidas é a que responde pelo maior consumo de água da indústria da
transformação.
Identificamos uma importante discrepância relativa ao consumo de água necessário
para a produção de um litro de cerveja. Os dados referentes ao consumo de água na produção
de cervejas, presentes no estudo da FBDS, é da ordem de 20.000 litros de água para cada
quilolitro de cerveja (1 quilolitro é igual a 1.000 litros). Ou seja, para cada 20.000 litros de
água são produzidos 1.000 litros de cerveja (ou 20 litros de água para 1 litro de cerveja).
Segundo a Water Foot Print a pegada hídrica média global da cevada é de 1.420
litros/kg. Quando considerada a quantidade de cevada maltada para produzir cerveja, a pegada
hídrica da cerveja é de 298 litros de água por litro de cerveja. Isto significa que um copo de
cerveja (250 ml) custa 74 litros. Estes dados excluem a pegada hídrica de outros ingredientes
(menores) usados no processo de produção de cerveja. Esta discrepância pode ocorrer devido
ao fato de estes dados serem construídos a partir de uma média global da relação entre o
volume de água utilizado para a produção do litro de cerveja. Além disso, são restritas às
cervejas que utilizam cevada maltada em sua produção. Sabemos que grande parte das marcas
que integram o portfólio da Ambev e da Brasil Kirin utiliza “cereais não maltados” em sua
produção.

61
Disponível em: <https://abir.org.br/associados/nossos-associados/>. Acesso em: 24 maio 2018.
157

A maitor discrepância está presente nos dados disponibilizados pela CervBrasil.


Segundo o Anuário - 2016 62, apenas a Ambev e o Grupo Petrópolis apresentam a relação
entre o volume de água utilizado para a produção de um litro de cerveja. A Ambev afirma que
para a produção de um litro de bebida envasada são utilizados 3,2 litros de água. Já o Grupo
Petrópolis utiliza 3,19 litros de água para um litro de cerveja produzido.
O que chama atenção em relação à discrepância dos dados fornecidos pela FBDS e
pela CervBrasil é o fato da Ambev ter apoiado financeira e institucionalmente o estudo
produzido pela FBDS. Por conta disso, não é possível apontar de forma segura o volume total
de água utilizado pelas associadas da CervBrasil na produção de cerveja. Como não há
fiscalização por parte do Estado, estes dados são produzidos a partir de estudos elaborados
pelas próprias empresas. É possível que esta discrepância esteja diretamente ligada ao fato
destes estudos considerarem apenas as águas utilizadas “diretamente” no processo produtivo
sem considerar as águas “indiretas”, consideradas como o volume de água utilizado para
lavagem de máquinas, pátio, abastecimento humano interno, etc.
A título de mensuração do volume total de água utilizado por uma das empresas deste
seguimento, iremos realizar uma demosntração a partir dos dados apresentados pela própria
Ambev. Importante ressaltar que é provável que o dado final esteja subdimensionado. A
Ambev afirma que a água é materia prima de 90% de todo seu processo de produção. Do total
das águas utilizadas 45,31% é captada diretamente de rios, lagos, áreas úmidas e/ou oceanos,
44,31% de águas subterrâneas, e 10,68% da água são provenientes dos sistemas de captação,
tratamento e distribuição operados por concessionárias de abastecimento. O setor cervejeiro
do país é responsável pela terceira maior produção de cerveja do mundo, tendo produzido
13,8 bilhões de litros em 2015 (Anuário CervBrasil 2015). Com uma simples conta utilizando
a referência da Ambev (3,2 litros de água para cada litros de cerveja), o setor foi responsável
pelo consumo de 44,16 bilhões de litros de água apenas em 2015.

2.2.1.3 Energia

Um dos setores mais estratégicos do mundo, a produção de energia caracteriza-se


como a matriz metabólica de desenvolvimento das forças produtivas do capital. Este setor é

62
Disponível em: <http://www.cervbrasil.org.br/arquivos/anuario2016/161130_CervBrasil- Anuario2016_WEB.
pdf>. Acesso em: 24 maio 2018.
158

aquele que apresenta a maior fragmentação, dentro dos aqui analisados. Isto não significa,
necessariamente, que haja disputa entre as frações do capital que disputam o controle das
condições energéticas de produção. É, além disso, junto com o agronegócio o setor que tem
empregado o aprofundamento do cercamento de terras e água desde meados do século XX e
que tendem a se intensificar no século XXI, sobretudo a partir da crise energética de 2007.
Identificamos três grandes grupos compostos por uma grande diversidade de
associações que compõe o setor elétrico do país. O Fórum de Meio Ambiente do Setor
Elétrico (FMASE) é responsável por agregar grande parte das entidades do setor no país e
conta com um total de 19 associações, nele são discutidas as questões ambientais referentes
aos empreendimentos de geração de energia. Há, todavia, o Fórum de Associações do Setor
Elétrico Brasileiro que abrange todos os seguimentos do setor (geração, transmissão,
distribuição, comercialização e consumidores) cujo objetivo é criar maior interlocução com o
Governo Federal na defesa dos interesses de seus associados. Destacamos três associações
que são partes integrantes de ambos os fóruns: Associação Brasileira dos Investidores em
Autoprodução de Energia (ABIAPE), Associação Brasileira das Empresas Geradoras de
Energia Elétrica (ABRAGE) e a Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa
(ABRAGEL).
Desde 2009, a ABIAPE deixou de restringir sua atuação à produção de energia elétrica
e hoje atua na produção energética em geral. Dentre todas as associações, é a que congrega
especificamente o capital multinacional reunindo dez grandes “autoprodutores” de energia
que atuam no setor de alumínio, agronegócio, cimento, mineração, papel e celulose, siderurgia
e energia, são elas: Ternium, ArcelorMittal, Samarco (Vale e BHP Billiton), Norte Energia,
CSN, InterCement, Alcoa, Monsanto, Votorantim, Gerdau e Vale. Juntas possuem um
faturamento anual da ordem de R$230 bilhões. Possuem uma capacidade de geração de
energia de 23.098 MW de potência instalada, das quais 8.889 MW (38,4%) são destinados
exclusivamente para consumo próprio. Esta potência esta espalhada no território nacional em
37 hidrelétricas, 18 termelétricas e oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Seu foco de
atuação é trabalhar “no acompanhamento, elaboração e modificação do arcabouço legal e
regulatório” 63 relacionados aos interesses de seus associados.
Criada em 1998, a ABRAGE reúne grandes empresas geradoras de energia elétrica de
origem predominantemente hidráulica. Dentre todas as associações integrantes do FMASE é a
que se caracteriza pela maior presença de empresas controladas majoritariamente pelo Estado.

63
Disponível em: <http://www.abiape.com.br/>. Acesso: 24 maio 2018.
159

Fazem parte da associação: Eletrobras (Amazonas GT, Furnas, Eletrosul e Eletronorte), Itaipu
Binacional, Enel, Light, Norte Energia, Copel, Hidrelétrica Teles Pires, Engie, Emae, CTG
Brasil, Santo Antônio Energia, Chesf, Cesp, Cemig e AES Tietê. É a associação que possui o
parque gerador com maior potência energética hidrelétrica instalada com um total de 70.359
MW de energia hidráulica e 3.403 MW de energia térmica, cujo total alcança 73.762 MW.
A ABRAGEL, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, representa os
maiores agentes do setor de geração de energia elétrica, dentre as Centrais Geradoras
Hidrelétricas (CGHs), PCHs e Usinas Hidrelétricas (UHEs) até 50 MW. Possui um quadro de
68 empresas do setor associadas que controlam 1.089 usinas no país com capacidade de
geração de 5,7 GW. Dentre as associações mencionadas do setor energético é a que apresenta
maior capilaridade e presença direta no Conselho Nacional de Recursos Hídricos e nos
Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.

2.2.1.4 Mineração, Metalurgia e Siderurgia

Este setor reúne três entidades de classe que congregam as maiores multinacionais do
ramo mineral, metálico e siderúrgico. São elas: Associação Brasileira de Metalurgia,
Materiais e Mineração (ABM), o Instituto do Aço e o Instituto Brasileiro de Mineração
(IBRAM). Trata-se de multinacionais que controlam grande parte das empresas do ramo no
país e que se capilarizam entre as três entidades de classe desenvolvendo ampla capacidade de
alcance, influência e presença em diversos setores do Estado.
O IBRAM é composto por mais de 130 entidades associadas, reunindo mineradoras,
entidades de classe patronais, escritórios de advocacia, empresas de engenharia mineral,
ambiental e de geologia, fabricantes de equipamentos, centros de tecnologia, bancos de
desenvolvimento, entre outros setores que estão direta ou indiretamente relacionados à
indústria mineral. Destacam-se a CSN, Gerdau, Mineração Rio do Norte (cuja maior acionista
é a Vale), Samarco (Vale e BHP Billiton), Anglo American, Copelmi Mineração Ltda, Embu,
Alcoa, AngloGold Ashanti, ArcelorMittal, Astec do Brasil, CBMM, Vallourec e Votorantim.
O Instituto do Aço possui em seu quadro de associados à Aperam, ArcelorMittal,
CSN, Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), Gerdau, Sinobras, Ternium, Usiminas,
Vallourec e Villares Metals. Estas empresas possuem um parque produtor de aço composto
por 30 usinas, com capacidade instalada de produção de 50,4 milhões de t/ano de aço bruto e
160

que hoje opera uma produção de 30 milhões de toneladas. Possuem um saldo comercial que
gira em torno de US$3,9 bilhões com exportações destinadas a mais de 100 países.
Já a ABM possui como mantenedoras a Aperam, ArcelorMittal, CBMM, CSN, CSP,
Gerdau, RHI Magnesita, Samarco, SunCoke Energy, Ternium, Usiminas, Vale, Vallourec e
Villares Metals.
Empresas como a Gerdau, CSN, Vallourec, ArcelorMittal e Vale estão presentes nas
três entidades. Já a Usiminas, Ternium, Aperam e Samarco integram duas das três entidades.
Das associações dos diferentes setores apresentados até aqui, o ramo mínero-metal-
siderúrgico é aquele que apresenta maior concentração de capital. Vale destacar que algumas
das empresas citadas estão articuladas em outras associações que representam os demais
setores energéticos. Portanto, junto ao Agronegócio são aqueles que representam os blocos de
maior importância e influência sobre as diretrizes econômicas e a agenda de desenvolvimento
do Estado, quando não participação diretamente da sua construção. Caracterizam-se por
apresentar alta concentração de terras e superexploração hídrica e são os setores que mais se
articulam com o capital financeiro mundial.
O IBRAM, por exemplo, participa junto com a Confederação Nacional da Indústria da
elaboração da PEC 31/2007 que propõe a reforma tributária, assim como da PEC 287/2016
que defende a reforma da previdência. Atua junto ao Ministério de Minas e Energia para a
criação de estratégias que favoreçam o setor, como o Marco Legal da Terceirização (Lei
13.429/2017) e o Marco Legal do Licenciamento Ambiental (PL 3729/2004). Segundo o
“Relatório Anual de Atividades 2016-2017” a pauta dos bens minerais exportados pelo país
em 2016 atingiu o volume de 394 milhões de toneladas, das quais 244,2 milhões (62% do
total) toneladas apenas de minério de ferro. Segundo o FBDS, são utilizados 6.000 litros de
água para cada tonelada de minério de ferro produzida. Logo, apenas para a produção de
minério de ferro o setor mineral utilizou 1,5 trilhões de litros de água em apenas um ano. Vale
destacar que toda esta produção foi destinada ao mercado externo.
A porção de terras controlada pelo setor siderúrgico chegou a 28,2 mil hectares em
2015, segundos dados do Instituto Aço Brasil. Porém estes dados não incluem os hectares
destinados à produção de carvão vegetal plantadas pelo Forest Stewardship Council (FFC).
Em 2015, 86% do carvão vegetal produzido foram oriundos de “florestas plantadas próprias”,
10% de terceiros e 4% a partir de “resíduos florestais devidamente legalizados”. Entre 2014 e
2015 foram cultivados 842,4 mil hectares de terras para produção de carvão vegetal. Este
contingente de terras destinado à produção de carvão vegetal representam apenas 7% de toda
matriz energética consumida pela indústria siderúrgica. O total de água doce circulada no
161

processo de produção deste setor em 2015 é da ordem de 5.412.000.000 m³, o que equivale a
5,4 trilhões de água 64. A partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Aço Brasil, o
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) 65 estimou que a tonelada dos produtos
semiacabados (placas, blocos e tarugos) exportados custa em média US$345 FOB 66, os planos
(bobinas, chapas, folhas e inoxidáveis) custam US$540 FOB e os longos (barras, vergalhões,
fio-máquinas, perfis e trilhos) custam em média US$1.066 FOB. Segundo o PACS, a pauta de
exportações brasileiras é concentrada nos produtos semiacabados. Portanto, para que se possa
alcançar o saldo comercial das indústrias do setor, apontado no início do tópico, é necessário
uma intensa exploração e controle de terras, água e energia.

2.2.1.5 Saneamento básico

Este setor passa por um perverso processo de privatizações a partir do programa de


concessões em saneamento do Governo Federal através do Programa de Parcerias de
Investimento (PPI), capitaneados pelo BNDES, que obteve a adesão de 18 dos 26 estados da
federação e o Distrito Federal. No primeiro semestre de 2017, foi publicado o aviso de
licitação de seis companhias estaduais, sendo: Companhia Pernambucana de Saneamento
(Compesa), Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), Companhia de Saneamento
Ambiental do Maranhão (Caema), Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa),
Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso) e a Companhia de Saneamento de Alagoas
(Casal). Os estados de Rondônia, Rio de Janeiro e Pará encontram-se em estágio avançado do
processo de privatização de suas companhias estaduais de abastecimentos de água e
esgotamento sanitário.
Quem se favorece com estes processos de privatizações são as empresas associadas à
Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto,
criada em 1996 (um ano antes da publicação da Lei das Águas no Brasil). A ABCON
congrega empresas privadas, nacionais ou estrangeiras, que operam ou tem o interesse em

64
Todos os dados apresentados foram coletados na parte referente à (in)sustentabilidade do site do Instituto Aço
Brasil. Disponível em: <http://www.acobrasil.org.br/sustentabilidade/>. Acesso em: 24 maio 2018.
65
Disponível em: <http://violacoesnasiderurgia.pacs.org.br/cadeia-produtiva-internacional-impactos-
socioambientais-locais-a-agua-e-bem-comum/>. Acesso em: 24 maio 2018.
66
Valor do produto sem o frete.
162

operar serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil; holdings


privadas nacionais ou estrangeiras que possuem participação societária em empresas do setor;
construtoras, fabricantes de máquinas, equipamentos e matérias, empresas de consultoria
econômica, jurídica e de engenharia; fundos de investimento que já operam ou tem interesse
em operar no setor de água e esgoto no Brasil; instituições financeiras públicas e privadas; e
instituições de pesquisa, universidades e centros de estudos.
Destacam-se entre suas associadas à BRK Ambiental, OAS, Grupo Águas do Brasil,
Perenge, Iguá, Uniáguas, Gs Inima Brasil, Enops, Suez, AEGEA, Serrana e a Veolia.
O recente estudo publicado pelo Instituto Mais Democracia, “Quem são os
67
proprietários do saneamento no Brasil?” , aponta o altíssimo índice de concentração de
mercado onde as cinco maiores empresas controlam 85,3% do total de contratos e estão
presentes em 87,8% dos 245 municípios abastecidos por empresas privadas. O estudo afirma,
ainda, que os fundos de investimento e instituições financeiras estão presentes em 58% das
empresas. Já o capital estrangeiro está presente em 27% das empresas.
A BRK Ambiental tem 70% de suas ações controladas pelo Brookfield Asset
Management Inc, fundo de investimento canadense que gerencia ativos de US$ 43 bilhões e
atua nos setores imobiliários, na concessão de estradas, de energia e logística. Destes 70%, o
Fundo de investimento japonês Sumitomo possui 14%. Os outros 30% do total são geridos
pelo fundo de investimento FI-FGTS. Ela está presente em 109 municípios (44,5% do total),
possui 69 dos 198 contratos e abastece uma população de 19,5 milhões de pessoas.
A AEGEA Saneamento e Participações S/A são controladas pelas famílias Toledo e
Vettorazzo (71,05% das ações), donas da Equipav S/A Pavimentação, Engenharia e
Comércio, através da Grua Investimentos (59,44%) e do Fip Saneamento (11,61%). O Fundo
Soberano de Cingapura (GIC) possui 18,67% das ações da AEGEA e o Banco Mundial por
meio do IFC e do Global Infrastructure Fund (GIF) possui 10,28% das ações. A AEGEA está
em 46 municípios (18,8%), possui 42 contratos e abastece uma população de 4,5 milhões de
pessoas.
A Iguá Saneamento S/A é controlada pela FIP Iguá – Fundo de Propósito Específico,
gerido pela IG4 Capital, cujo dono é Paulo Mattos presidente do Conselho de Administração
da Iguá. A IG4 Capital controla 45,5% das ações, a Galpar (do grupo Galvão Participações)
28,6%, o Banco Votorantim possui 9,2% e o BNDESPar controla 15,8%. A Iguá está em 36
municípios (14,7%) possui 36 contratos e abastece 8,4 milhões de pessoas.

67
Disponível em: <https://br.boell.org/pt-br/2018/04/16/quem-sao-os-proprietarios-do-saneamento-no-brasil>.
Acesso em: 24 maio 2018.
163

A empresa Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB) tem 54% de suas
ações controladas pela Carioca Christiani-Nielsen Engenharia. O grupo japonês Itochu possui
12% das ações, a Queiroz Galvão Saneamento S/A também possui 12% e o New Water
Participações Ltda possui17%. A Águas do Brasil opera o serviço de 16 municípios, possui 14
contratos e abastece uma população de 4,7 milhões de pessoas.
A Gs Inima Brasil Ltda tem 97,8% das suas ações controladas pela GS E&C, grupo
sul-coreano, por meio da GS Inima Environment S/A líder no setor de engenharia e
construção, o quinto conglomerado do país em receita e líder mundial em dessalinização. A
Tecnicas y Gestion MedioAmbiental S.A.U possui 2,2% das ações. A GS está em oito
municípios, possui oito contratos e abastece 2,7 milhões de pessoas.

2.2.1.6 Notas sobre a superexploração hídrica no Brasil

É urgente a necessidade de se avançar no mapeamento dos donos da água no Brasil.


Ao mesmo tempo, também é urgente re-criar novas estratégias de enfrentamento onde escala,
tempo e espaço devem ser os delineadores das táticas a serem re-elaboradas, já que não há
como competir nas escalas do nexo Estado-finança. A velocidade destas múltiplas formas de
espoliação legitimadas por instrumentos jurídicos avança sobre uma esquerda (considerando
aqui partidos políticos e os maiores movimentos sociais) que tem se mostrado incapaz de re-
criar suas bases metodológicas, epistêmicas e políticas de enfrentamento a este processo.
Aprofundaremos este debate ao longo do capítulo, sobretudo quando chegarmos às estratégias
do capital em ocupar os espaços de gestão e as consequências materiais que são geradas, por
exemplo, no estado do Rio de Janeiro.
Os setores energéticos e minero-metal-siderúrgico possuem sob seu controle um
potencial de geração de energia de 102.560 MW. Parte significativa desta produção é
controlada pelo capital financeiro mundial e utilizada para fabricação de commodities
destinadas para o mercado externo.
Apenas sobre o controle do setor siderúrgico há uma disposição de 870,6 mil hectares.
Este número reflete apenas os hectares relativos às plantas industriais e as áreas destinadas à
plantação de madeiras destinadas à produção de carvão vegetal, que como dito reflete apenas
7% da geração de energia do setor. Se somarmos os hectares que compõe toda a cadeia
produtiva o número é ainda maior.
164

O setor das concessionárias privadas de abastecimento de água e esgotamento


sanitário é responsável pelo controle do fluxo hídrico que abastece 46,6 milhões de habitantes,
equivalente a um quarto da população brasileira. Apenas as cinco maiores empresas do setor
são responsáveis pelo abastecimento de 40 milhões de pessoas.
Os números são impressionantes quando consideramos o volume de água utilizado
pelo agronegócio (considerando apenas os produtos especificados), pela indústria da
mineração (considerando apenas o minério de ferro), pela indústria siderúrgica e pela
indústria cervejeira (utilizando a base de cálculos da Ambev). Juntos estes setores foram
responsáveis pelo consumo de 1.706.944.160.000.000 litros de água (ou 1,706 quatrilhões de
litros de água) em apenas 365 dias (já que todos os dados são referentes a um período de um
ano). Considerando os dados produzidos pelo Sistema Nacional de Informações sobre
Saneamento (SNIS, atualizado em 31/01/2018) o consumo médio per capita de água no Brasil
é 154,14 l/hab/dia (equivalente a 56.261,1 l/hab/ano). Logo, o montante utilizado por estes
setores no período de 365 dias é equivalente ao consumo de água de uma população de 30,3
bilhões de pessoas. Estes setores, em um período de um ano, utilizam um montante de
água capaz de abastecer o equivalente a 3,7 vezes a população mundial ou 146 vezes a
população brasileira 68.
Este é um dado concreto que aponta a contradição presente no discurso que defende a
ideia de que a água é um bem escasso. A realidade é que a água é um bem escasso se utilizada
nestas proporções, pois gera uma grave tensão na capacidade de recarga hídrica da natureza.
Para garantir a continuidade dos processos de expansão e acumulação do capital, faz-se
necessário que sejam legitimadas estas ideias e que haja uma transferência de
responsabilidade para os indivíduos. Por isso a importância da necessidade de se gerar um
consenso da escassez hídrica. Este aparato técnico-político-ideológico que invisibiliza a
importância estratégica da água na dinâmica metabólica do capital. Para viabilizar estes
cercamentos é criada uma estratégia em escala deliberada por estas entidades de classe e por
uma política de Estado.
Nesse sentido buscarei, no próximo item, identificar que estratégias são estas e como
elas são desenvolvidas nos espações normativos e institucionais de gestão dos “recursos
hídricos” que permitem que o capital não só controle, mas paute a política de águas no Brasil.

68
Segundo o IBGE o Brasil possui uma população estimada para 2017 de 207.660.929 habitantes.
165

2.3 A gestão (nada) participativa das águas, descentralizando (o poder do Estado) para
centralizar (o poder do Capital): as estratégias em escala para o controle das arenas

Inicialmente, na elaboração do meu projeto de dissertação tinha como objetivo realizar


um resgate histórico da construção da ordem normativa subsidiou o desenvolvimento da
Polítca Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) no Brasil. O intuito era identificar os
(des)caminhos presentes neste processo fortemente marcados por um gerência de organismos
multilaterais – como o Banco Mundial – cujo papel central é construir “de cima para baixo” a
universalização de sistemas de gestão dos “recursos hídricos”. A exportação de modelos
considerados de sucesso em diferentes lugares do globo consiste em uma tática de
homogeinização de normas jurídicas que facilitam a inserção do capital sobre a gestão da
água, garantindo, sobre o viés da legalidade e da eficiência dos modelos de gestão, a
apropriação dos diversos setores apontados acima. A partir de uma pesquisa bibliográfica, foi
possível verificar a existência de pesquisas que já realizaram desmedidos esforços nesse
sentido a partir de autores/as como: ABERS e JORGE (2005), CUNHA et all (2010),
GOMES (2013), PETRELLA (2002, 2004), SANTIAGO (2017) e SHIVA (2003). Portanto, a
partir disso, opto por objetivar a análise sobre as estratégias organizadas pelo capital para
ocupar e centralizar os espaços/arenas de gestão da água no país.
No item anterior, apresentamos como os setores se organizam em entidades de classe
construindo blocos de poder minuciosamente organizados de forma que seus interesses são
abertamente defendidos. Multinacionais que compõe estes setores se articulam com fundos de
investimentos, empresas de engenharia, escritórios de advocacia, instituições públicas e
privadas de pesquisa, bancos nacionais e estrangeiros, grandes empresas do ramo das
telecomunicações, entre outras. Foi possível verificar, então, que estas entidades construíram
uma complexa capacidade de capilaridade ocupando e centralizando os espaços de gestão, ora
ocupados por estas entidades de classe, ora ocupadas por empresas associadas a elas.
SCATIMBURGO (2013) aponta que a elaboração da PNRH sacramentou as
estratégias recomendadas pelo Banco Mundial. O discurso amplamente proferido é o da
necessidade de descentralização da gestão da água, retirando a centralidade do Estado que
passa a ser dividida entre os estados da federação (através dos Comitês de Bacia
Hidrográficas e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos instância máxima da hierarquia),
a União (a partir do Conselho Estadual dos Recursos Hídricos), os setores usuários e a
sociedade civil.
166

Quando a gestão dos “recursos hídricos” passa pela estrutura organizacional e


normativa do Estado há a reprodução de uma geometria constitucional e institucional que visa
ao estabelecimento de uma ordem hegemônica que concentra o poder nos espaços políticos.
Esta concentração do poder e das relações de poder nos espaços institucionais materializa a
dimnesão do projeto racional moderno-colonial (SANTOS, 2011). Quando a gestão da água
reproduz a organização do pacto federativo brasileiro ela legitima as hierarquias escalares
construídas por esta normatividade. Esta estratégia embasada por uma perspectiva em escala
leva à concentração da disputa nestes espaços institucionais que acabam por legitimar a
hierarquização destas escalas. SANTOS (2011) traz importante contribuição à respeito da
estratégia de poder pautada a partir da escala e que se reproduz na gestão das águas no Brasil:

As escalas emergem, portanto, como (i) campo de tensões estruturados/estruturantes


de correlações de forças entre atores em disputa; (ii) arenas de jogos e exercício do
poder, na medida que elas definem/são definidas por estas tensões; (iii) ‘níveis’ de
regulação desta conflitualidade, através de um conjunto de esferas institucionais que,
tendo na contemporaneidade o estado (territorial)-nação como centro, detém o
manejo das ‘regras do jogo’; (iv) instrumento da dominação, pois, as escalas
privilegiadas enquanto arenas de jogos e exercício de poder – e, por conseguinte,
‘cristalizadas’ na forma de esferas institucionais – são definidas pelos atores
hegemônicos e dominantes (p. 132).

Para que possamos pensar a dinâmica e as estratégias de ação é de suma importância


identificar as estratégias em escala que são construídas pelo capital no que tange ao controle
da água. Do contrário podemos acabar por reproduzir (intencionalmente ou não) a estrutura
organizativa construída pelos atores hegemônicos e dominantes. Como não dispomos das
mesmas artimanhas para enfrentar estas correlações de poder em espaços pautados por esta
normatividade, entramos em uma arena de jogo onde as regras que regem a organicidade
destes processos favorecem aqueles que queremos enfrentar. Repetir e utilizar o aparelho de
Estado enquanto única forma de disputa pelo controle da água é, por fim, legitimar as
estruturas organizacionais pautada pelo atores dominantes globais e internos.
Quando pensamos a partir dos dados apresentados no item anterior em relação ao
volume de água utilizado pelos setores que produzem as múltiplas formas de cercamento das
águas, já temos um importante indício de que estes processos são legitimados a partir da
legalidade construída pelo Estado. Quando analisadas as estratégias de ocupação pelo capital
dos espaços institucionais de regulação percebe-se que o descentralidade da gestão da água
leva à centralização do controle da gestão da água para o capital.
167

2.3.1 O Conselho Nacional de Recursos Hídricos

O Artigo 32 da Lei Nº 9.433/1997 cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de


Recursos Hídricos (SNGRH) que tem por finalidade coordenar a gestão integrada das águas,
administrar os conflitos relacionados aos recursos hídricos, implantar a Política Nacional de
Recursos Hídricos, planejar, regular e controlar o uso, assim como a preservação e a
recuperação dos recursos hídricos e promover a cobrança advinda de seus usos. São partes
integrantes do SNGRH (Art. 33) o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), a
Agência Nacional das Águas (ANA), os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos dos
Estados e Distrito Federal (CERHI), os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBH), órgãos
federais, estaduais e municipais relacionados aos recursos hídricos e as Agências de Água.
A composição do CNRH é assim constituída: 20 cadeiras destinadas aos órgãos que
representam o Governo Federal, 10 cadeiras destinadas aos Conselhos Estaduais de Recursos
Hídricos, 12 cadeiras destinadas aos Usuários de Recursos Hídricos e seis cadeiras destinadas
às Organizações Civis de Recursos Hídricos.
Cabe ao Ministro titular do Ministério do Meio Ambiente (MMA) à presidência do
CNRH, sua Secretaria Executiva é de responsabilidade do secretário titular do órgão
responsável pela gestão dos Recursos Hídricos, que integra a estrutura do MMA. As demais
cadeiras destinadas aos ministérios são divididas da seguinte maneira: Fazenda (uma cadeira);
Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (uma cadeira), Relações Exteriores (uma cadeira);
Transportes, Portos e Aviação Civil (uma cadeira); Educação (uma cadeira); Justiça e
Segurança Pública (uma cadeira); Saúde (uma cadeira); Cultura (uma cadeira); Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (uma cadeira); Cidades
(titular e suplente); Turismo (titular e suplente); Integração Nacional (duas cadeiras); Defesa
(duas cadeiras); Indústria, Comércio Exterior e Serviços (duas cadeiras); Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (três cadeiras); Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações
(duas cadeiras); Meio Ambiente (três cadeiras); Minas e Energia (três cadeiras); Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (titular e suplente).
São indicados ainda representantes dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos
(com onze cadeiras titulares e onze suplentes) e os representantes dos usuários dos Recursos
Hídricos, sendo: Irrigante (com duas cadeiras titulares e quatro suplentes); Prestadores de
Serviço Público de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (idem); Concessionárias
e Autorizadas de Geração Hidrelétrica (idem); Setor Hidroviário (idem); Indústria (com três
168

cadeiras titulares e seis suplentes); Pescadores e Usuários de Água para o Lazer e Turismo
(titular e dois suplentes). Além destes, os representantes de Organizações Civis de Recursos
Hídricos contam com as seguintes indicações: Comitês, Consórcios e Associações
Intermunicipais das Bacias Hidrográficas (com duas cadeiras titulares e quatro suplentes),
Organizações Técnicas de Ensino e Pesquisa (com duas cadeiras titulares e dois suplentes) e
Organizações Não Governamentais (com duas cadeiras titulares e quatro suplentes).
A atual gestão do CNRH é presidida por Edson Duarte (Partido Verde), atual Ministro
do MMA, a Secretaria Executiva é ocupada por Jair Vieira Tannus Junior e as demais
cadeiras destinadas aos representantes de Ministérios e Secretarias do Governo Federal são
compostas por pessoas indicadas pelos órgãos. O que interessa aqui é identificar os demais
atores que ocupam as outras vagas para explanarmos a correlação de forças posta nos espaços
de gestão dos recursos hídricos em escala nacional, e demonstrar que a lógica da
descentralização da gestão da água pelo Estado leva à concentração da gestão ao capital.
Os estados da federação que ocupam as 10 cadeiras titulares destinadas aos
representantes dos CERHI são: Minas Gerais, Paraná, Pará, Santa Catarina, Paraíba, Rio de
Janeiro (ocupada por Eliane Pinto Barbosa, da Subsecretaria de Articulação Institucional da
Secretaria Estadual do Ambiente), Mato Grosso do Sul, Maranhão, Alagoas e Mato Grosso.
As representações respectivas aos Usuários dos Recursos Hídricos estão conciliadas de
maneira estratégica, de forma que os mesmos setores ocupem o maior número de cadeiras
possível a partir de diferentes representações, mas que em bloco defendem o interesse
articulado entre oligarquias regionais/locais e o capital financeiro global. As vagas destinadas
aos Irrigantes são formadas da seguinte maneira: CNA e Instituto Rio Grandense do Arroz
(IRGA), como titulares, e a Federação da Agricultura do Estado do Mato Grosso do Sul
(FAMASUL), a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Goiás (FAEG), Associação
dos Usuários do Perímetro de Irrigação do Arroio Duro (AUD) e a Associação dos Usuários
das Águas da Região do Monte Carmelo (AUA), como suplentes. Ocupam as cadeiras
titulares relacionadas aos Prestadores de Serviço Público de Abastecimento de Água e
Esgotamento Sanitário: Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento
69
(AESBE) e a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento

69
A AESBE caracteriza-se enquanto entidade civil sem fins lucrativos e é representante das Companhias
Estaduais de Abastecimento. Suas associadas atuam em 4.030 municípios do país, responsável pelo
abastecimento de água de 74,2% da população urbana nacional e 66,6% do esgotamento sanitário brasileiro. A
associação tem por princípio a defesa dos interesses de seus associados e manter relações com associação
congêneres nacionais e internacionais. Destacam-se entre seu grupo de associados à BRK Ambiental e a
CEDAE, o que denota a participação de empresas públicas e do setor privado internacional. Disponível em:
<http://www.aesbe.org.br/>. Acesso: 24 maio 2018.
169

(ASSEMAE) 70, as suplências são ocupadas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado
de São Paulo (SABESP) 71, Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) 72,
Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto
(ABCON) e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Jaboticabal (SAAEJ) 73. A titularidade
referente às Concessionárias e Autorizadas de Geração Hidrelétrica é ocupada pela
Associação Brasileira de Empresas Geradoras de Energia Elétrica (ABRAGE) e da Energisa
Soluções S.A74 e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) 75, a Companhia
Energética de Minas Gerais (CEMIG) 76, Santa Fé Energética S.A77 e a Tracbel Energia S.A 78
ocupam as suplências. O Setor Hidroviário tem a Confederação Nacional do Transporte
(CNT) e a Delima Comércio e Navegação 79 como titulares e suplentes. Para o setor das
Indústrias a titularidade é composta pelo Instituto Aço Brasil, a Federação das Indústrias do

70
A ASSEMAE reúne quase 2.000 associados no Brasil, diz possuir credibilidade nacional e internacional e atua
nas áreas relativas ao abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e drenagem
urbana. A associação reúne as autarquias municipais autônomas não inseridas nas redes estaduais de captação,
tratamento e distribuição e água, assim como dos serviços de esgotamento sanitário. O que não implica a
ausência do setor privado na participação destes serviços municipais. O site não informa quem são os associados,
portanto não foi possível identificar e entender de forma mais aprofundada o perfil e os setores que compõe a
associação. Participam do Conselho das Cidades, Conselho Nacional de Saúde, CNRH, conselhos estaduais de
saneamento e comitês de bacias hidrográficas. Disponível em: <http://www.assemae.org.br/>. Acesso: 24 maio
2018.
71
Integrante da AESBE a SABESP através do Governador Geraldo Alckmin (PSDB) firmou por meio da Lei
Estadual nº 659/17 o projeto de lei de Reorganização Societária da Sabesp, que segundo consta, em comunicado
publicado, como um “passo necessário e importante no processo de uma possível capitalização da SABESP”.
Para dar prosseguimento a este processo a SABESP contratou o Itaú BBA para coordenar a venda de 49% de
participação na empresa controladora. Disponível em: <http://www.aesbe.org.br/wp-
content/uploads/2017/09/RE_Saneamento_13_19.pdf>. Acesso em: 24 maio 2018.
72
Integrante da ASSEMAE.
73
Idem.
74
Pertencente ao grupo Geração Energisa, associada da ABRAGEL.
75
Associada da ABRAGE e da ABRAGEL.
76
Idem.
77
Integrante do grupo Brasil PCH, associada da ABRAGEL.
78
Integrante do grupo Engie, associada da ABRAGE.
79
Integrante do Grupo REICON, conglomerado de empresas privadas multinacionais envolvidas com o mercado
do petróleo. É transportador oficial do Consórcio Construtor da UHE de Belo Monte. As empresas que compõe o
grupo são a Amazon Cards, Amazon Dry Port, Delima, Enavi/Revane, Fontur, Marajó Park Resort e a Sion. Seus
principais clientes no Brasil são: Jari Celulose (Grupo ORSA), PETROBRAS, Texaco, PetroAmazon, Paragás,
Liquigás e CADAM (Grupo Vale). O grupo, através da empresa Sion, detém exclusividade no transporte de
cargas da Jari Celulose (Grupo ORSA) e da CADAM (Grupo Vale). Disponível em:
<http://www.gruporeicon.com.br/>. Acesso em: 24 maio 2018.
170

Estado de Minas Gerais (FIEMG) 80 e a Confederação Nacional da Indústria (CNI). A


suplência é composta pelo Instituto Brasileiro da Mineração (IBRAM), Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN) 81, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) 82,
Associação Brasileira do Agronegócio da Região de Ribeirão Preto (ABAG/RP), Federação
das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB) 83 e DOW Brasil S.A84. Por fim, a cadeira titular
destinada aos Pescadores e Usuários de Água para o Lazer e Turismo é ocupada pela
Companhia Thermas do Rio Quente e as duas suplências ocupadas pela Rio Quente
Mineração85 e pela Associação Mãe dos Extrativistas da RESEX de Canavieiras (AMEX).
As representações das Organizações Civis de Recursos Hídricos são dividas em três
categorias. A primeira delas congrega os Comitês, Consórcios e Associações
Intermunicipais das Bacias Hidrográficas e tem o Comitê Gravathay e o Consórcio
Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí 86 como titulares e o CBH
do Pardo, CBH dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, o Consórcio Intermunicipal da Bacia
Hidrográfica do Rio Paraopeba e o Consórcio Intermunicipal para Gestão Ambiental das da
Região dos Lagos, Rio São João e Zona Costeira (CILSJ) 87, como suplentes. As cadeiras

80
Integrante da CNI.
81
Associada do Instituto Aço Brasil.
82
Integrante da CNI.
83
Idem.

84 “A DowDuPont é uma empresa com vendas líquidas pro forma de US $ 80 bilhões e posições de liderança
em três divisões globais: Agricultura, Ciência dos Materiais e Produtos Especiais. A empresa, que combina os
portfólios, recursos e capacidades complementares da Dow e da DuPont, pretende se separar em três empresas
independentes de capital aberto até junho de 2019, sujeitas à aprovação da diretoria. Cada empresa terá seu
próprio foco claro, vantagens de escala e uma capacidade aprimorada de fornecer soluções e opções superiores
aos clientes. Através das três divisões focadas, a DowDuPont deverá entregar US $ 3,3 bilhões em sinergias de
custos e US $ 1 bilhão em sinergias de crescimento, consistentes com seu compromisso fundamental de
aumentar o valor total do acionista”. Disponível em: <http://www.dow-dupont.com/investors/default.aspx>.
Acesso em: 24 maio 2018. A Du Pont do Brasil S.A é associada da ABAG.
85
Compõe a Associação das Empresas Mineradoras das Águas Termais de Goiás (AMAT).
86
Associação de direito privado sem fins lucrativos composta por municípios e empresas. Atua com
independência técnica e financeira a partir da arrecadação e aplicação dos recursos cujo poder de decisão cabe ao
seu Conselho de Consorciados. Congregam 42 municípios e 29 empresas, dentre elas a Ambev, ArcelorMittal,
BRK Ambiental, Petrobras, Sabesp, Unilever, International Paper, Coca-Cola Brasil etc. Disponível em:
<http://agua.org.br/>. Acesso em: 24 maio 2018.
87
Composto pelos Prefeitos e Secretarias do Meio Ambiente dos municípios de Araruama, Armação de Búzios,
Arraial do Cabo, Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Maricá, Rio Bonito, São
Pedro da Aldeia, Saquarema e Silva Jardim. Além da AGM Empreendimentos Hoteleiros, Oriente Construção
Civil, CCR Via Lagos, Águas do Brasil (Concessionária Águas de Juturnaíba), AEGEA (Concessionária
Prolagos), Contrutora Mil/Villa Rio, Dois Arcos Transporte e Tratamento de Resíduos Sólidos Ltda e Tosana
Agropecuária S.A. Disponível em: <http://www.lagossaojoao.org.br/n-composicao.htm>. Acesso: 24 maio 2018.
171

titulares destinadas as Organizações Técnicas de Ensino e Pesquisa são preenchidas pela


Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) e pela UNESP e as suplências ocupadas
pela Associação Brasileira de engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) e pelo Centro de
Hidráulica e Hidrologia Professor Parigot de Souza (CEHPAR). Por fim, a titularidade
referente às Organizações Não Governamentais é ocupada pelo Fórum Nacional da
Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (FONASC. CBH) e pelo Clube de Mães
Santa Luzia. A Associação Sócio Cultural e Ambiental Fé e Vida, Associação Camponesa
(ACA), CTB e o Movimento Ecológico São Francisco de Assis (MESFA) ocupam as
suplências.
A atual composição do CNRH demonstra a existência de um amplo controle do grande
capital concentrando o poder de deliberação sobre os assuntos relativos à gestão da água
cabíveis de serem deliberados no órgão. A complexa capilaridade construída a partir das
entidades de classe que representam os diversos setores intensivos no uso da água permite
uma distribuição desigual e combinada nos diversos espaços do CNRH. São onze cadeiras
titulares (não consideramos a titularidade da CNT no Setor Hidroviário) quando considerados
os Usuários de Recursos Hídricos. Ao considerarmos os representantes do Ministério das
Relações Exteriores, Transportes, Portos e Aviação Civil, Indústria, Comércio Exterior e
Serviços, Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Minas e Energia – ministérios considerados
estratégicos e com alto grau de interlocução com o capital – são mais 10 cadeiras titulares.
São 21 cadeiras titulares mapeadas sobre o controle dos setores intensivos em terra, água e
energia que alcançam quase 50% do total de cadeiras do CNRH.
Uma análise mais aprofundada sobre quem são os representantes titulares dos
CERHIs, assim como dos representantes das Organizações Civis de Recursos Hídricos pode
ter como resultado a constatação do aumento do controle destes setores sobre o CNRH. Como
o mapeamento elaborado explana uma complexa e eficiente capacidade de articulação política
do capital, há uma hipótese de que a titularidade referente aos CERHIs e parte das
Organizações Civis de Recursos Hídricos esteja em consonância com este projeto de poder,
deixando a correlação de forças extremamente desigual.
172

2.3.2 O Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro

A Lei 3.239/1999 institui a Política Estadual de Recursos Hídricos e cria o Sistema


Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos, composto pelo CERHI, pelo Fundo
Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI), CBH’s, as Agência de Água e organismos
representantes dos poderes públicos – federal, estadual e municipal – relacionados à gestão
dos recursos hídricos.
Os incisos I, IV e V do art. 45 que apresenta as competências de CERHI chama
anteção pelo caráter estratégico e centralizador do órgão sobre a gestão dos recursos hídricos.
Vale ressaltar que a política estadual incorpora os princípios básicos e gerais da política
nacional (ambos influenciados pela Conferência de Dublin), integrando-a as suas
particularidades e especifidades regionais: considera a água como bem escasso e dotado de
valor; institui a bacia hidrográfica enquanto unidade básica de gerenciamento dos recursos
hídricos; reforça o discurso da descentralização do Estado na gestão dos “recursos hídricos”;
entre outros.
O inciso I do referido artigo aponta que é competência do CERHI “promover a
articulação do planejamento estadual de recursos hídricos, com os congêneres nacional,
regional e dos setores usuários”. Exclui, portanto, da articulação do planejamento a sociedade
civil. O principal instrumento de planejamento estadual dos recursos hídricos é o Plano
Estadual de Recursos Hídricos (PERHI), que “constitui-se num diploma diretor, visando
fundamentar e orientar a formulação e a implementação da Política Estadual de Rescursos
Hídricos, e o gerenciamento dos mesmos” (art. 6º). O parágrafo primeiro do art. 7º afirma que
o PERHI é organizado a partir de planejamentos elaborados para (e não pelas) bacias
hidrográficas. O parágrafo único do art. 8º afirma que o PERHI contemplará propostas dos
CBH’s, estudos realizados por instituições de pesquisa e sociedade civil organizada e
iniciativa privada “que possam contribuir para sua elaboração”. Ou seja, s fica a cargo das
intituições que elaboram o PERHI considerar ou não as propostas das CBH’s a partir de
critérios não definidos pela Política Estadual de Recursos Hídricos. Para que seja possível,
portanto, influenciar o PERHI, os movimentos sociais e a sociedade civil precisariam se
organizar para ocupar as diferentes escalas (que pela lógica do Estado nivela e hierarquiza
uma sobre a outra) da gestão da água, desde os Sub-Comitês de BH, passando pelos CBH até
o CERHI. Todavia, conforme aponta SANTIAGO (2017), a participação de associações,
movimentos sociais e organizações populares enquanto sociedade civil é restritra a
173

Organizações de Interesse dos Recursos Hídricos que, como preconiza o Decreto Estadual
38.2660/2005, deve explicitar em seu estatuto “a finalidade específica de defesa dos recursos
hídricos e estar com o cadastro vigente no CERHI” (p. 64), medida esta que dificulta a
particação das mesmas apesar de serem diretamente interessadas e constiturem outras formas
de gestão da água.
A estrutra da composição e da correlação de forças posta no CERHI segue a tendência
do CNRH, em que o capital a partir de sua eficaz e complexa capacidade de capilarização
compõe parcela importante do principal órgão gestor do “recursos hídricos” do estado
fluminense. Vejamos.
A organização do CERHI é composta por 32 membros titulares e respectivas
suplências, das quais nove destinadas ao Poder Público, nove ao Setor dos Usuários, nove
destinadas a sociedade civil e cinco ocupadas por representantes dos CBH’s.
A atual gestão do CERHI (2017-2020) é presidida por Maria Aparecida Pimental
Vargas (representante da ABRAGEL) cujo vice-presidente é Friedrichw Wilhelm Herms
(professo adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e membro da Assembléia Geral
da Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul -
AGEVAP). As vagas destinadas ao Poder Público são distribuídas entre um representante do
Governo Federal, ocupada pelo MMA e a Embrapa Solos assume a suplência. Das vagas
destinadas ao Governo Estadual, duas titularidades e suplências são ocupadas pela Secretaria
de Estado do Ambiente, da qual uma destas titularidades é ocupada po Eliane Pinto Barbosa
(representante do CERHI no CNRH). Uma cadeira – titular e suplente – ocupada pelo
Instituto Estadual do Ambiente (INEA), uma titularidade a cargo do Departamento de
Recursos Minerais do Estado do Rio e Janeiro (DRM-RJ), cuja suplência é ocupada pela
Procuradoria Geral do Estado (PGE). A última vaga – completanto as cinco destinadas ao
estado – é ocupada pela Fundação Instituto de Pesca do ERJ (FIPERJ), cuja suplência se
encontra desocupada. Completam as vagas distribuídas entre o poder público as destinadas às
prefeituras municipais, em que são titulares Volta Redonda, São João da Barra e Silva Jardim
e suplentes Sapucaia, Itaocara e Cachoeiras de Macacu.
A composição dos Usuários é dividida por categorias sendo assim composta: Serviços
de Água e Esgoto, onde a CEDAE e o Grupo Águas do Brasil (SAAB) 88 são titulares e
Prolagos S.A 89 e Águas do Paraíba90 suplentes. As cadeiras destinadas a Indústria, Petróleo e

88
Associada da ABCON.
89
Empresa do grupo AEGEA Saneamento e Participações S/A, também associada da ABCON.
174

Gás é assumida pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) 91 e pela Eletrobras
Eletronuclear 92 (as suplências se encontram vagas). As vagas destinadas a Geração de Energia
Elétrica são ocupadas pela Light Energia 93 e pela ABRAGEL (as suplências se encontram
vagas). Para o Comércio e Turismo/Lazer a Fecomércio é titular e o Sindicato dos Produtores
Rurais de Cachoeira de Macacu94 é suplente. Para a Agricultura Pecuária e Pesca os titulares
são a Federação de Agricultura, Pecuária e Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FAERJ) e a
Associação Fluminense de Plantadores de Cana (ASFLUCAN), onde o SindiPesca-RJ e a
Associação de Proprietários Rurais da Margem Esquerda do Paraíba do Sul (APROMEPS)
são suplentes.
O setor que representa a sociedade civil é divida em dois segmentos. O primeiro deles
tem suas vagas destinadas as Associações da Sociedade Civil com vínculo em Recursos
Hídricos. São titulares a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente
do Estado do RJ (APEDEMA), Associação de Preservação Ambiental Lagunas Maricá
(APALMA), Ecocidade Cidade, Associação Homens e Mulheres do Mar da Baía de
Guanabara (AHOMAR) 95 e a Associação dos Criadores de Abelhas Nativas e Exóticas do
Médio Paraíba, Sul, Centro Sul e Baixada Fluminense (ACAMPAR-RJ). São suplentes a
Associação de Defesa e Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência dos Municípios de
Miguel Pereira, Paty do Alferes e Adjacências (ADEFIMPA-RJ), o Núcleo de Educação
Ambiental da Bacia de Campos (NEA-BC), o Instituto Baía de Guanabara (IBG), o Instituto
Ambiental Conservacionista 5° Elemento, e a Conservação Internacional do Brasil. O
segundo segmento é representado pelas Instituições de Ensino Superior cujas cadeiras
titulares são ocupadas pela COPPE/UFRJ Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e
Pesquisa em Engenharia, UERJ, Associação Brasileira de Águas Subterranêas e pela
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES).
90
Empresa do grupo SAAB.
91
Associada da Confederação Nacional da Indústria.
92
Subsidiaria da Eletrobras, associada da ABRAGE.
93
Associada da ABRAGEL.
94
Sindicato patronal que defende a alternativa da construção de três pequenas barragens em contraposição a
barragem do Rio Guapiaçu.
95
A AHOMAR possui um histórico de extrema relevância na defesa dos bens comuns através da luta em defesa
dos pescadores e pescadoras, da pesca artesanal, das águas e dos peixes frente ao avanço da instalação de
grandes projetos de desenvolvimento localizados ao redor da Baía de Guanabara. Quatro de seus integrantes
foram assassinados em decorrência das lutas encampadas pela associação em 2012 e seu dirigente Alexandre
Anderson sofreu seis tentativas de assassinato em três anos sendo, consequentemente, incluído ao programa
federal de proteção a defensores de direitos humanos junto com sua companheira.
175

Por fim, ocupam as vagas titulares destinadas aos Comitês de Bacia Hidrográfica, o
CBH Médio Paraíba do Sul, CBH Macaé e das Ostras, CBH Piabanha, CBH Guandu e o CBH
Baia de Guanabara. São suplentes o CBH Paraíba do Sul e Itabapoana, CBH Lago São João,
CBH Rio Dois Rios, CBH Baía de Ilha Grande.
A correlação de forças no CERHI-RJ é ainda mais desigual e a tendência é que sejam
assim nos demais estados devido à estrutura hierárquica (e de poder) que facilita o acesso ao
capital enquanto dificulta o acesso dos movimentos populares. Considerando o histórico do
papel da SEA e do INEA em relação aos processos de licenciamento que facilitaram a
territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ, as cadeiras titulares
ocupadas pelas prefeituras de Volta Redonda, São João da Barra e Silva Jardim - onde se
encontram a CSN, o Porto do Açu e a Águas do Brasil, respectivamente – e o papel
desempenhado pela COPPE/UFRJ e pelo representante da UERJ, conclui-se que 16 vagas são
controladas pela articulação posta entre Estado e capital, o que representa 50% das cadeiras
titulares do CERHI.
Como apontado anteriormente neste trabalho, HARVEY (2004) sinaliza que foram
aprimorados os mecanismos de acumulação do capital que desempenham um papel bem mais
forte do antes. Para os fins desta investigação, interessa sua afirmação referente aos
mecanismos de fraude, predação e roubo característicos dos sistemas de crédito e financeiros,
s que quando analisados a partir de um referencial histórico e espacial desde baixo, nos
permite afirmar que a fraude, a predação e o roubo acompanham a moderna e colonial
formação sócioespacial brasileira. O continuum destas práticas está presente na recente
dinâmica de territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento, mas não se limita a
este período, já que são dinâmicas intrínsecas à expansão da acumulação do capital.
A atual presidente do CERHI, Maria Aparecida Borges Pimentel Vargas, representante
da ABRAGEL, foi denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) 96 cujo processo está
em andamento na 1ª Vara Federal de Resende, através da operação Águas Turvas deflagrada
pela Polícia Federal. Ela é acusada por crimes de corrupção passiva e associação criminosa,
junto a Flávio Antônio Simões e José Augusto Pinelli que também respondem pelos dois
crimes citados, além de acusações de corrupção ativa e fraude à licitação. De acordo com a
denúncia Flávio – na época diretor interino e coordenador técnico da AGEVAP - e José
ajustavam os critérios e parâmetros de julgamentos dos processos licitatórios para que a

96
Processo nº 0500245-33.2015.4.02.5190
176

empresa Vallenge fosse vencedora das licitações referentes à elaboração de planos municipais
de saneamento.
Ela é acusada de receber R$45.600,00 oriundos de José Augusto Pinelli –
administrador da empresa Vallenge Consultoria, Projetos e Obras Ltda – entre 2011 e 2012
cujo motivo seria a prestação de benefícios para a referida empresa em licitações e contratos
mantidos perante AGEVAP, Agência de Águas então contratada pela Ceivap, pagos com
verbas repassadas pela ANA. Maria Aparecida é membro do Comitê de Integração da Bacia
Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP), desde 1997, e à época ocupava o cargo de
secretária executiva do órgão. Além disso, foi membro do conselho de administração da
AGEVAP, foi presidente do CBH dos Afluentes Mineiros dos Rios Pomba e Muriaé, Diretora
Secretária Executiva do CBH Rio Dois Rios, além da presença em Câmaras Técnicas
Consultivas e grupos de trabalho sempre relacionados à gestão de recursos hídricos no ERJ.
O que mais interessa aqui não são as vantagens indevidas ou valores repassados a
terceiros por empresas privadas, cuja insistência na explanação destes tipos de caso ajuda a
corroborar a lógica da culpabilização do indivíduo desviando, assim, uma característica
estrutural do sistema capitalista. A denúncia do MPF identifica, a partir da quebra dos sigilos
telefônicos e da apreensão de computadores de Maria Aparecida, a grande proximidade que
possui com membros do alto escalão do INEA, a saber:

As mensagens extraídas do aparelho de telefone celular de MARIA


APARECIDADE BORGES PIMENTEL revelam que ela possui uma relação
muito próxima com servidores do Instituto Estadual do Ambiente (INEA) e com o
próprio órgão. Tal relação ficou bastante evidente em uma conversa com ANGELO
OLIVEIRA, coordenador ambiental da empresa DESENVIX ENERGIAS
RENOVÁVEIS S.A., em 27/10/2015, quando MARIA APARECIDA cita, em
resumo, que se reuniu com a procuradora do INEA e falou detalhes do processo
administrativo da DESENVIX que tramita naquele órgão. Disse que a procuradora
‘não iria retirar o parecer dela’, o que, no mínimo, causa estranheza, como se tivesse
tido alguma pressão ou pedido de retirada do parecer. Além disso, disse que havia
ficado combinado de ‘escrever um parecer junto com o pessoal da Eliane’, sendo
que Eliane é ELIANE PINTO BARBOSA, que ocupou o cargo de diretora da
Diretoria de Gestão das Águas e do Território e passou a ocupar o cargo de diretoria
da Diretoria de Segurança Hídrica e Qualidade Ambiental, ambos cargos do INEA
(grifos originais, Fls 40).

E segue:

A ingerência de MARIA APARECIDA sobre o INEA e, em especial, sobre a


diretora do DIGAT do órgão ambiental, ELIANE PINTO BARBOSA, é tão grande
que as provas coletadas apontam que, além de MARIA APARECIDA retirar
processos administrativos do INEA e levá-los para sua casa, ela também redigia
pareceres sobre os processos que, posteriormente, eram encaminhados à diretoria
para assinatura. Tal situação restou claramente evidenciada em um e-mail, datado de
177

15/11/2015, no qual MARIA APARECIDA encaminha o documento ‘parecer


Digat ao processo PCH Santa Rosa II. docx’ à ELIANE BARBOSA e informa, no
corpo do e-mail, o seguinte: ‘Veja o que fiz e se acha que está bom. Esperando
contribuições suas, claro’. O documento anexado é um parecer técnico, em tese,
interno do INEA, sobre a revisão da vazão referência em trecho de vazão reduzida
da PCH Santa Rosa II – E – 07/100.009/2009. Restou claro que o ‘parecer do INEA’
foi redigido por MARIA APARECIDA e encaminhado à ELIANE BARBOSA para
que esta assinasse como se de sua autoria fosse (grifos originais, Fls 43).

A denúncia aponta, ainda, a íntima relação entre Eliane Pinto Barbosa e Flávio
Simões, também acusado pelo MPF:

E tal relação próxima com o INEA, principalmente com a ‘DIGAT’,


comandada por ELIANE PINTO BARBOSA, se correlaciona com a também
íntima relação que MARIA APARECIDA demonstra ter com FLAVIO
SIMÕES, evidenciada pela nomeação deste para ocupar cardo comissionado na
DIGAT/INEA logo após a sua saída da AGEVAP, deflagrada após diversas
irregularidades constatadas pela ANA (grifos originais, Fls 44).

Estive presente junto com o pesquisador Bernardo Xavier Santiado na 73ª Reunião
Ordinária do CERHI, realizada no INEA, em 9 de março de 2017. Eliane Pinto Barbosa
assumia o cargo de Secretária Executiva do CERHI-RJ referente ao mandato 2014-2016.
Nesta Reunião Ordinária, Maria Aparecida é eleita por maioria dos votos como presidenta do
CERHI do mandato 2017-2020. Nesta época, a operação Águas Turvas já estava em
andamento – o processo tem data de 02/04/2015 - e a denúncia é feita à 1ª Vara da Justiça
Federal de Resende pelo Procurador da República Paulo Sérgio Ferreira Filho em 19 de Julho
de 2017. Porém, isto não parece afetar a continuidade da presença de Maria Aparecida
enquanto presidente do CERHI-RJ e nem que Eliane Pinto Barbosa continue a exercer o cargo
de Secratária Executiva do CERHI-RJ 97. Ademais, fato que vale ser destacado, é justamente
Eliane Pinto Barbosa quem ocupa a representação do CERHI-RJ na cadeira titular destinadas
aos CERHI’s no CNRH. Por isso, afirmo, mais uma vez, que estas “turvas” relações devem
continuar a ser mapeadas para que sejam explanadas as relações de poder e articulações entre
capital e Estado no que tange à gestão das águas no Brasil.
Ter Maria Aparecida Vargas enquanto representante da ABRAGEL na presidência do
CERHI-RJ aumentam as possibilidades da barragem-reservatório do rio Guapiaçu obter as
licenças prévia, de instalação e operação.

97
Através do acesso a Ata da 79ª Reunião Ordinária do CERHI-RJ, realizada em sete de janeiro de dois mil e
dezoito, verifiquei que ambas continuam a exercer os cargos mencionados. Disponível em:
<http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/@inter_digat_geagua/documents/document/zwew/mtu0/~edisp/inea
0154577.pdf>. Acesso em: 28 maio 2018.
178

Durante o 8º Fórum Mundial da Água (FMA), foi organizado pelo Fórum de Meio
Ambiente do Setor Elétrico (FMASE), pela ABRAGEL e pela Associação Brasileira de PCHs
e CGHs (ABRAPCH) um espaço de discussões (Side Event) nomeado “Reservatórios, uma
questão de segurança hídrica”. Maria Aparecida Vargas, enquanto representante da
ABRAGEL e do FMASE foi coordenadora geral do evento. Após a realização do FMA e
destes espaços de discussão, estas entidades e os demais participantes lançam a Carta
Seworld 98. Trata-se de um documento – de apenas seis páginas - que defende abertamente a
construção de grandes reservatórios enquanto solução para a chamada crise hídrica.
Sobre a lógica do consenso da escassez hídrica a carta, em sua primeira página, traz
argumentos superficiais que culpabilizam o meio ambiente pela conjuntura da escassez
hídrica pela qual passa o Brasil:

Em boa parte do país, o período de chuvas, chamada de período úmido, dura em


torno de seis meses, começando em novembro e terminando em abril, por
consequência, os demais sete meses de pouca chuva formam o período seco. Além
dessa variação anual das chuvas, com meses úmidos e secos, há uma outra variável
que consiste num bloco de anos consecutivos com chuvas acima da média, seguido
por um outro bloco com chuvas abaixo da média. No Brasil esses ciclos têm, em
média, oito anos.
Dessa forma, existem situações em que a disponibilidade hídrica natural, verificadas
nas vazões disponíveis, não é suficiente para suprir as demandas, havendo então a
necessidade de aumentar essa disponibilidade pelo aproveitamento do potencial de
regularização de vazão nos cursos d’água, através da construção de reservatórios de
acumulação.
Se as precipitações fossem permanentes ao longo do ano, em volumes significativos,
não se justificaria construir represas e toda a demanda de água poderia ser atendida
por captações nas calhas dos rios e em espelhos de água naturais. A contrução dos
reservatórios se faz necessária para acumular água nos períodos de maior
pluviosidade e para trasnferir esse estoque ao longo do tempo, suprindo a demanda
em períodos de menor chuva, garantindo a segurança hídrica regional (p. 1-2).

A carta aponta ainda que para a retomada da construção de barragens com elevada
capacidade de reservação (como se estas soluções tecnocratas tivessem sido desconsideradas)
é preciso a construção de “política pragmáticas”, “gestão eficaz”, “arcabouço jurídico forte”,
“sistemas de engenharia confiáveis” e “usos múltiplos”. Todos estes elementos devem ser
assegurados, segundo o documento, no Plano Nacional de Segurança Hídrica. São argumentos
que revelam as estratégias políticas (e do poder) que explanam a racionalidade tecnocrata que,
à serviço do capital, irá centralizar suas ações para intensificar a promoção dos grandes
cercamentos de terra e água. São elementos, ainda, que compõe e denotam a propragação do
Consenso da Escassez Hídrica sempre acompanhado de resoluções técnicas a partir de

98
Disponível em: <http://www.worldwaterforum8.org/en/file/3238/download?token=Ni4nHrhl>. Acesso em: 28
maio 2018.
179

engenharias avançadas e confiáveis. Trazem ainda elementos que compõe e reforçam o


terrorismo hídrico ao afirmar que “o planeta está na iminência de chegar a um ponto crítico
com relação ao uso dos recursos hídricos (p. 4)”.
O documento conclui que a retomada da política de reservação da água “é possível e
urgente” e que pode garantir “a segurança no eventos climáticos, a navegação, o turismo, a
produção de energia, a água para indústria de produção de alimentos e, principalmente, o
abastecimento humano e dessedentação de animais (pág. 5)”. O curioso é que o principal
aparece por último.
Ter a ABRAGEL ocupando o cargo da presidência do CERHI-RJ é mais um fator que
deve ser levado em consideração para análises que se debruçam sobre a complexa conjuntura
de estratégias que tem sido re-elaboradas para defender a construção da barragem-reservatório
do Rio Guapiaçu.

2.4 A espacialização dos grandes projetos de desenvolvimento no estado do Rio de


Janeiro

A compreensão dos processos de acumulação do capital em determinados sistemas


territoriais, deve levar em consideração o papel do Estado na garantia dos mesmos.
GUDYNAS (2012) aponta importantes elementos que nos mostram que apesar dos
“governos progressistas” em diversos países da América do Sul terem alcançado ampla
projeção, suas bases econômicas sustentaram a continuidade de práticas extrativas,
sustentando a agenda de desenvolvimento na região através de uma nova forma de condução
da política extrativa.
Neste modelo emergente denominado neoextrativismo, o papel dos Estados é muito
mais ativo, chegando em alguns casos a renegociação de contratos, elevação de royalties e
tributação, o que potencializa o poder das empresas estatais e semi-estatais. Entretanto, há
uma manutenção da inserção subalterna na economia global, fortemente marcada pelo
discurso do aumento da competitividade e das vantagens comparativas. E é justamente devido
a esta inserção no mercado global que se multiplicam os conflitos socioambientais em todo o
continente. Na medida em que há uma inserção no sistema-mundo via fortalecimento dos
setores primários, esta conexão multiescalar passa por um intenso e violento processo de
desreterritorizalização.
180

A conexão dos Estados nacionais aos mercados globais gera uma consequente
desconexão de sujeitos que historicamente desenvolvem relações simbólicas, culturais,
ancestrais em seus territórios. Desta conexão decorre que a exploração dos recursos naturais,
independente de sua propriedade, deve seguir as tendências produtivas voltadas ao aumento
da competitividade do mercado, ocasionando a externalização dos impactos ambientais e
sociais. Ou seja, cria-se aquilo que PORTO-GONÇALVES (2006) chama de geografia dos
proveitos e dos rejeitos, do conforto e do drama, dos riscos e dos benefícios da energia, em
que ocorre uma diferenciação entre os lugares de exploração, os lugares de transformação da
matéria-prima e os lugares de consumo. Assim, há uma divisão centro-periferia entre os
países que respondem pela extração e transformação e os que consomem os produtos
originados destes processos, gerando uma distribuição desigual dos rejeitos e proveitos.
Nessa agenda política, o neoextrativismo se torna “um dos motores fundamentais do
crescimento econômico e como contribuição crucial de luta contra a pobreza a nível nacional”
(GUDYNAS, 2012, p. 314). O que significa dizer que as políticas de compensação social e de
transferência de renda são criadas a partir de uma parte dos excedentes gerados por estes
setores, ampliando o acesso de populações a determinadas políticas públicas.
É neste sentido que SVAMPA (2013) aponta a criação de um consenso das
commodities, oriundo justamente de uma ordem econômica, política e ideológica sustentada
por esta dinâmica criada pelo boom das commodities. Econômico porque gera um processo de
reprimarização da economia que é acompanhado por um intenso processo de espoliação de
terras, “recursos” e territórios, produzindo novas formas de dependência e dominação.
Político e ideológico, pois se utiliza da elevação do preço das commodities e a crescente
demanda global por produtos primários para produzir um discurso que afirma a América
Latina enquanto uma região privilegiada devido à grande e variada extensão de recursos
naturais. E é em nome destas “vantagens comparativas” que se justifica a inserção
subalternizada latino-americana nos mercados internacionais.
Além destes elementos, MILANEZ e SANTOS (2013) trazem dados que demonstram
o processo brasileiro de reprimarização da economia, como: a participação das empresas
estatais e semi-estatais enquanto atores estratégicos no processo de inserção do país no
mercado global; o aumento da participação não industrial na exportação de 16% para 40% no
período de 1996 a 2011; o relevante desempenho do setor mineral nas exportações brasileiras
em 2009 (com 20% do total) com mais de 60% de todo o saldo da balança comercial; o saldo
positivo da balança comercial brasileira devido aos produtos não manufaturados; e o
181

crescimento do PIB do setor mineral no período de 2000 e 2001 enquanto ocorreu queda na
indústria de transformação e manutenção dos mesmos índices no setor secundário.
Estes fatores são importantes, pois traduzem, em certa medida, a relação entre países
chamados de 1⁰ e 3⁰ mundo. PETRAS (1980) é cirúrgico e aponta o modelo operacional que
ocorre no que ele chama de período pós-independência. Ele assinala a possibilidade de três
estratégias de aliança de classes com vista à acumulação. Interessa-nos aqui, para dialogar
com David Harvey, o que ele define como neocolonialismo dependente. Neste caso há uma
articulação do Estado com firmas e regimes imperiais intensificando a extração do excedente.
A burguesia nacional é o meio utilizado para agravar a espoliação pelo capital externo,
retirando uma parcela do excedente para si. Do ponto de vista das medidas políticas, há
coerção e desmobilização da população, incentivos fiscais e acesso irrestrito a fontes de
matérias-primas. A maneira como se concebe a articulação diferencia a fonte de lucro da
burguesia nacional: se há um controle total do capital externo sobre a economia, a burguesia
nacional obtém receitas provenientes de impostos; quando há uma parceria na propriedade e
nas prerrogativas de administração – onde o capital estrangeiro mesmo assim obtém o
controle da economia – a burguesia nacional recebe parte mínima dos lucros e continua a
receber via pagamento de impostos. Significa dizer que na hierarquia da acumulação de
capital internacional, sob o aspecto espacial da divisão territorial do trabalho, países ditos de
3⁰ mundo mesmo assumindo a lógica do nexo Estado-finança sobre suas políticas econômicas
de acumulação estarão submetidos “aos de cima e de fora”.
Para PETRAS (1980), este processo de acumulação de capital que vem “de cima e de
fora” cria a possibilidade do crescimento de classes internas que ampliam seu poder não
necessariamente pelo crescimento de um mercado interno, mas sim por sua capacidade de se
articular com um mercado global e de inseri-lo como espaço para o contínuo processo de
expansão da acumulação. No caso brasileiro, a agenda neoextrativa possibilitou, de fato, um
aumento considerável do poder de compra de setores da sociedade que anteriormente não
estavam inseridas na lógica de ascensão social via capacidade de consumo. Como já
apresentado anteriormente, Svampa aponta muito oportunamente que isto possibilita uma
legitimidade da estratégia de desenvolvimento adotada pelos governos Lula e Dilma, do
Partido dos Trabalhadores. A questão é que na medida em que frações da burguesia nacional
ganham cada vez mais legitimidade em uma escala global, passam a serem instrumentos
centrais para articulação do capital financeiro global, acirrando a correlação de forças internas
onde setores conservadores ganham cada vez mais ascensão já que possibilitam maior
182

acumulação do capital se comparado aos “governos progressistas”. A América Latina é um


importante exemplo.
A ideia de criação de redes geográficas aparece como necessidade do processo de
expansão da acumulação, logo a interferência direta dos Estados hegêmonicos no sul global
do sistema-mundo é em si parte disto. Este processo só ocorre se houver em primeiro lugar:
aliança do centro do centro, com o centro da “periferia”. Neste caso é fundamental que
frações da polícia e das forças armadas da “periferia” desempenhem o papel de garantia da
ordem, e que representantes destes Estados hegemônicos participem da elaboração do
orçamento, da economia, do planejamento urbano e estratégico, criando as condições
estruturais para a acumulação; atuem na criação de laços com níveis intermediários de
burocracia e institutos de pesquisa; e criem novos centros de poder estatal, alianças militares
regionais para garantia da ordem, e autoridades econômicas capazes de fiscalizar e
supervisionar as políticas deste segmento (PETRAS, 1980).
Há um continuum no processo de produção do espaço para que a expansão da
acumulação do capital ocorra. Isto porque ele cria as condições materiais e subjetivas e
produz o espaço na media que possibilita a expansão da acumulação. Logo, produz
acumulação na medida em que produz o espaço segundo esta lógica. HARVEY (2011)
enfatiza este processo quando salienta a necessidade do investimento continuum da
infraestrutura onde “o capital tem de criar um cenário adequado para suas próprias
necessidades – uma segunda natureza construída a sua própria imagem” (pág. 76). Um espaço
que seja produzido a partir da necessidade logística destinada à circulação: estradas, ferrovias,
minerodutos, linhas de transmissão, portos, indústrias, água, energia, comunicação e trabalho.
E como se produz o espaço a partir da lógica do capital, investe-se em modernização e
manutenção das infraestruturas a fim de gerar uma acumulação de capital adicional. Criam-se
sentidos e materialidades “que alteram os instrumentos de produção, as relações de produção
e com eles as relações da sociedade” (pág. 78).

2.4.1 Do controle do território ao controle dos “recursos”: a corrida global pela


financeirização e internacionalização da água, da terra e da energia

O período entre 2006 e 2008 é de fundamental importância para que se possa entender
o atual estágio do capitalismo e suas formas de espoliação e acumulação, já que nestes três
183

anos ocorreram três crises de forte impacto ao sistema-mundo: a alimentar, a energética e a


financeira. A partir deste momento, como já levantado aqui anteriormente, o capital
intensisfica sua expansão pelos fluxos energéticos, alimentares e hídricos – todos diretamente
relacionados à necessidade de se controlar terra e território.
A partir de 2006, há uma atualização do processo histórico e espacial do
desenvolvimento do capitalismo, marcado por processos desiguais e combinados de
cercamentos de terra. Sassen (2016) assinala que ao analisarmos este processo pode-se
perceber diferenças de fases específicas do movimento de aquisição de terras pelo capital. A
partir de 2006, há uma mudança abrupta que representa uma transformação sistêmica desta
tendência espaço-temporal de aquisição de terras por estrangeiros. A autora elenca dois
fatores que podem indicar tal direção: i) maior demanda pelo controle da produção de
biocombutíveis, alimento e energia; e ii) a crise alimentar ao provocar a elevação do preço
dos alimentos inflaciona o preço das terras, convertendo-a à lógica financeira devido a um
processo de valorização puxado por um duplo viés: sua materialidade em si e possibilidade de
acesso/controle de uma grande variedade de mercadorias e “recursos naturais”. Apenas entre
2006 e 2011, mais de 200 milhões de hectares de terras foram adquiridos por governos e pelo
capital estrangeiro em todo o mundo. SAUER e BORRAS (2016) mostram que no estudo
“Rising global interest in farmland: Can it yeld sstainable and equitable benefits?” elaborado
belo Banco Mundial em 2010, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares entre
outubro de 2008 e agosto de 2009, sendo que a média anual anterior a este período era de
quatro milhões de hectares. Os autores apontam, ainda, que 75% deste montante envolveram
transações na África, no Brasil e na Argentina.
Outro aspecto apontado como distinto do processo histórico e espacial do cercamento
de terras no capitalismo – e que para nossa análise é central - é que nesta corrida global, há
uma série de novos atores que passam a investir diretamente na aquisição de terras e “recursos
naturais”:

Wilkinson, Reydon e Di Sabbato (2012) – no estudo sobre investimentos no Brasil


para os casos da FAO da América Latina - , identicaram oitro grupos de investidores
em terras e recursos. Segundo classificação desses autores, a aproriação de terras
vem sendo feita por a) capitais do próprio setor do agronegócio; b) capitais de
setores sinérgicos e convergentes no agronegócio; c) capitais não tradicionais no
agronegócio como empresas de petroquímica, automobilística, logística e
construção; d) capital imobiliário em resposta à valorização de terras; e) Estados
ricos em capital, mas pobres em recursos naturais; f) fundos de investimento
(ganhos com preço das commodities e da terra); g) investimentos em servições
ambientais e, h) empresas de mineração e prospecção de petróleo (WILKINSON,
REYDON e Di SABBATO, 2012, p. 427-428) (SAUER e BORRAS, 2016, p. 19).
184

Estes novos atores envolvidos na aquisição maciça de terras acabam por provocar uma
alteração no perfil dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) nos países do sul global. Esta
alteração sistêmica na dinâmica de aquisição de terras em larga escala, que tem seu início na
segunda metade da década de 2000, provoca uma forte diminuição nos IED’s em manufatura,
realocando-os para o setor primário (SASSEN, 2016).
FERREIRA (2016) mostra que a crise financeira global de 2008, acentuou uma intensa
corrida mundial pelo controle dos “recursos naturais” e energéticos em todo o mundo
apresentando três elementos fundamentais que corroboram sua defesa: a elevação do preço
dos recursos naturais e primários no mercado internacional; os investimentos externos diretos
(IED) e a lucratividade das empresas nestes setores; e a luta pelo controle dos processos de
produção de energia e fluxos energéticos, com o intuíto de transferir o controle destes
processos aos mercados financeiros e às grandes coporações multinacionais.
O autor demonstra que, a partir de 2010, a América Latina passa a ser um importante
destino para os IED’s, que se concentram a partir da crise de 2008 nos setores de extração de
minérios, petróleo e energia, gerando o boom das commodities, o que acirra a disputa pelos
fluxos energéticos. As empresas mineradoras, por exemplo, no ano de 2014, direcionavam
23% do investimento global para a América Latina (PADILLA e BOSSI, 2015), sendo o
Brasil o mais importante exportador de minério do continente, tendo exportado 410 milhões
de toneladas em 2011, enquanto todos os demais países mineradores (Argentina, Bolívia,
Colombia, Chile, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) juntos produziram 147
milhões de toneladas99.
A energia é uma categoria complexa e dialética, sobretudo quando é analisada sob a
ótica das leis da termodinâmica, onde a energia é a capacidade de geração de trabalho. A
dialética está contida em um duplo sentido do termo que nos traz distintas bases epistêmicas,
uma relacionada à ideia de energia enquanto recurso energético que gera a força motriz do
trabalho produtivo, sobretudo industrial. A outra está relacionada a um entendimento
ecológico, onde qualquer ser vivo depende de fontes de energia para a reprodução de sua
própria espécie (FERREIRA, 2016). Em última instância, em um sentido ou outro todas as
formas/fontes de energia são geradoras de trabalho. Ou seja, a expansão da acumulação do
capital gera um aumento da produção de energia para o capital, o que leva, consequentemente,
a um desequilíbrio na produção de energia para os seres humanos. Tal processo tende a criar
uma ampla gama de conflitos territoriais onde são materializados fenômenos multiescalares

99
Gudynas, Eduardo (2013). O Maior extrativista do continente: Brasil. Disponível em:
<https://www.alainet.org/pt/active/64049>. Acesso em: 25 maio 2018.
185

nos territórios. Desde a primeira metade da década de 2000, o Brasil figura entres os países
que mais recebem IED no mundo. Segundo a série histórica disponibilizada pelo World
Investiment Report, em 2011, o país teve seu ápice de IED’s quando registrou um total de
US$96,2 bilhões, sendo o quinto país a receber o maior montante de IED no mundo.
Conforme está demonstrado na tabela 6, é possível perceber que apesar de haver um
decréscimo no montante de IED no Brasil, entre 2011 e 2013, o mesmo segue em uma
posição importante se levarmos em consideração o ranking de países que mais receberam IED
no mundo.

Tabela 6 - Fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) no Brasil – 2010 a 2016


- US$ Bilhões

Ano 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

IED no Brasil 83,7 96,2 65 64 73 64 59

Ranking Global 5 5 5 7 4 8 7

Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados da UNCTAD (2010, 2011, 2012, 2013, 2014,2015,
2016).

Os Estados Unidos da América se destacam como o país que mais aportou em IED na
América Latina e no Caribe, com um montante total que vai de US$354 bilhões, em 2009,
para US$403 bilhões, em 2014. O Brasil é o país que mais atrais IED na região desde 2003.
SILVA FILHO (2015) publicou dados oriundos da FDI Markets que mostram o
montante de IED greenfield100 aplicados no Brasil relativo ao período entre 2003 e 2014.
Segundo o autor, o montante de IED greenfield aplicado no país neste período foi da ordem
de US$356 bilhões. Deste total, o setor de Mineração e Siderurgia foi o que mais recebeu
aporte, sendo responsável por receber um investimento de US$76 bilhões, o que corresponde
100
Segundo o autor, “o chamado IED greenfield consiste no montante de investimento recebido pelo país cuja
destinação é exclusivamente para a criação ou expansão de capacidade produtiva das companhias estrangeiras no
território nacional. Esta rubrica não inclui, portanto, fluxos de capital destinados ao investimento em ativos
diversos (portfólio), fusões e aquisições ou incremento de caixa das empresas. Embora o fluxo de IDE total seja
a variável mais relevante, do ponto de vista das contas externas, a principal vantagem em analisar o volume de
investimento greenfield é a possibilidade de alcançar uma visão mais realista dos efeitos do IDE sobre a
economia nacional, uma vez que são os investimentos em estoque de capital que produzem impactos
significativos sobre as variáveis reais como emprego e produção”. (SILVA FILHO, 2015, pág. 8).
186

a uma participação em relação ao total de 21,4%. Já o setor de Carvão, Petróleo e Gás foi o
quinto que mais recebeu investimentos, chegando a US$27 bilhões, com uma participação em
relação ao total de 7,6%. Se acrescentamos a estes dois setores os investimentos relativos às
Energias Renováveis – o sétimo maior aporte, com um total de US$19,5 bilhões e
participação em relação ao total de 5,5%, temos um aporte total de US$122,5 bilhões apenas
nos setores de extração mineral e energia, o que equivale a 34,5% de todo o IED greenfield
investido no país. Se somarmos ainda os investimentos realizados em Alimentos e Tabaco –
com um investimento total de US$26,4% e participação de 7,4% no total, chegamos a um IED
greenfield total de US$148,9 bilhões, o que equivale a 41,9% de todo o IED greenfield sendo
aportados no setor primário. Estes dados confirmam a importância do setor primário na
economia brasileira, conforme apresentado anteriormente neste trabalho.
Em relação a regionalização destes investimentos, apenas São Paulo (US$110
bilhões), Rio de Janeiro (US$50,9 bilhões) e Minas Gerais (US$37,7 bilhões) receberam
55,9% de todo o IED greenfield aportado no país entre 2003 e 2014. O estado do Rio de
Janeiro (ERJ) chama atenção, pois dos US$50,9 bilhões aportados, US$20,7 bilhões são
destinados ao setor da Mineração e Siderurgia e US$4,3 bilhões destinados ao setor do
Carvão, Petróleo e Gás Natural, o que equivale a 49% de todo o aporte estrangeiro recebido
(Gráfico 1). O ERJ recebe um aporte financeiro no setor mineral e siderúrgico maior do que o
estado de Minas Gerais e é o segundo estado da federação que mais recebe investimentos
estrangeiros no setor energético – Carvão, Petróleo e Gás – estando atrás apenas do estado de
Pernambuco (responsável por receber mais de 50% do investimento no setor em todo o país).

Gráfico 1 – Investimento Estrangeiro Direto greenfield por Setor – Estado do Rio de Janeiro

Mineração e Siderurgia

0% Carvão, Petróleo e Gás Natural


4% 12%
Ind. Automobilística e Autopeças
1%
1% Comunicações
3% 41% Serviços Financeiros
7% Alimentos e Tabaco
Energias Renováveis
9% Química
Máquinas e equipamentos
14% 8% Celulose, Papel e Embalagens
Outros setores

Fonte: O autor, 2019. Adaptado a partir de SILVA FILHO, 2015.


187

O papel do ERJ enquanto destino dos IED’s fica explícito a partir do dados
apresentados acima. Mais do que isso, o estado assume uma centralidade no período
apresentado não só pela capacidade de atração do capital financeiro internacional, mas
sobretudo pelo alinhamento e articulação da política de desenvolvimento neoextrativista com
o governo federal, chegando a receber mais investimento em extração de minérios e
siderurgia do que os estado de Minas Gerais e do Pará, dois dos estados que apresentam as
maiores contribuições no setor mineral do país.
Os baixos índices de IED’s no setor de petróleo, gás natural e carvão são explicados
pelo forte controle do Estado no setor, onde a Petrobras controlava até o golpe parlamentar-
midiático-empresarial-financeiro a extraçao e produção de petróleo e derivados oriundos do
Pré-Sal, localizado na Bacia de Santos.
Em um primeiro momento, os dados referentes à mineração e siderugia podem parecer
incompatíveis com a realidade fluminense, já que se trata de um aporte extremamente
elevado, para um estado que não apresenta uma cadeia mineral constituída. Porém, há que se
considerar que os dados estão agregados entre os setores mineral e siderúgico e, como
apresentado anteriormente, IBRAM, ABM e o Instituto Aço Brasil são constituídos por um
mesmo núcleo empresarial restrito e extremamente articulado com o capital financeiro global.
Isso possibilita não só a atração do aporte financeiro, mas o remanejamento dos investimentos
em suas múltiplas cadeias produtivas espacialmente localizadas no sudeste brasileiro
(sobretudo a siderurgia) e no norte do país, cuja mineração possui forte controle territorial no
estado do Pará. A indústria siderúrgica produz 84% de sua produção nacional nos estados de
Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Do total produzido, 30% é oriundo das 5
usinas da ArcellorMittal, 21% das 14 usinas da Gerdau e 49% nas demais usinas do país101. O
Rio de Janeiro possui cinco siderúrgicas no estado, das quais duas delas são uma das maiores
da América Latina. No estado, a ArcelorMittal Sul Fluminense se encontra em Barra Mansa e
Resende, a Gerdau Aços Longos está instalada em Santa Cruz, além da CSN, em Volta
Redonda e da Ternium Brasil, em Santa Cruz. Este setor puxa, consequentemente, os
investimento alocados na indústria automobilística e de autopeças, assim como o setor de
máquina e equipamentos, já que também é responsável por abastecê-los. Estes arranjos, como
veremos no próximo tópico, são construídos a partir da intervenção estatal que irá garantir o
investimento logístico com vistas a aumentar as vantagens comparativas do estado
fluminense.

101
Disponível em: <http://violacoesnasiderurgia.pacs.org.br/cadeia-produtiva-internacional-impactos-
socioambientais-locais-a-agua-e-bem-comum/>. Acesso: 24 maio 2018.
188

2.4.2 A articulação Estado-Capital no Rio de Janeiro: inserseção fluminense na atual


dinânimca da expansão da acumulação do capital

A partir da segunda metade da década de 2000, o governo do ERJ (sob o comando de


Sérgio Cabral) deu início a um processo de reestruturação da matriz tecnológica, produtiva e
econômica que reordenava o espaço agrário fluminense. O Plano Estratégico do Estado do
Rio de Janeiro 2007-2010 (SEDEIS, 2007) apontava oito grandes objetivos, dos quais três
pré-anunciavam uma intensa agenda de conflitos: a expansão e melhoria da infraestrutura e
logística de transportes; o crescimento econômico diversificado e geograficamente
equilibrado; e a recuperação dos grandes passivos ambientais do Estado. As propostas
apresentadas para a implementação dos três pontos citados estão calcadas em um processo de
reordenamento territorial complexo e violento que aponta para a necessidade de uma
reconfiguração econômica espacial, que tem por objetivo interiorizar o desenvolvimento a
partir de uma desconcentração industrial capaz de constituir novos polos de dinamismo
econômico, além de ampliar a expansão territorial do agronegócio no estado (AGB, 2011).
São previstos, de acordo com o Plano 2012-2031, o investimento na ordem de R$210
bilhões no ERJ, sendo R$83 bilhões no exploração e produção do petróleo, R$41 bilhões em
logística, R$20,1 bilhões em siderurgia, R$14,8 bilhões em energia, R$14,6 bilhões em
petroquímica. Destacam-se, os Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro
(Comperj), com um custo estimado em R$14,6 bilhões, o Super Porto do Açu, R$8,3 bilhões,
a Usina Angra 3, com custo de R$4 bilhões, e o Arco Metropolitano com R$1,2 bilhões
(SEDEIS, 2012). Como mostra o perfil dos investimentos e os setores priorizados, trata-se de
um ajuste espacial (HARVEY, 2011) que visa articular o ERJ, através de um conjunto de
atividades produtivas e da construção de uma infra-estrutura logística, à lógica neoxtrativista
adotada no Brasil e na América Latina.
É através do discurso de fortalecimento das chamadas “vocações regionais” que o
governo estadual apresentou os pilares da regionalização dos investimentos no estado, cujo
objetivo é claramente atrair os investimentos do capital financeiro nacional e internacional
para as áreas consideradas obsoletas, dinamizando-as. O resultado é um processo de
reordenamento territorial apoiado em grandes projetos de desenvolvimento, definidos como a
expressão territorial do modelo neoextrativista, onde territórios corporativos de grandes
magnitudes com uma expressão multiescalar, que concentram, centralizam e denotam uma
intensividade espaço-temporal de investimentos, ocasionam grandes rupturas e fragmentações
189

territoriais – mapa 5. Esta nova base logística e produtiva demanda a criação de um novo
meio técnico-científico-informacional, além de uma nova densidade jurídico-normativa que
regule o território a partir da flexibilização e/ou da supressão de instrumentos jurídicos
(ALENTEJANO et all 2015).
Explodem a partir deste cenário novos conflitos no espaço agrário fluminense que
apesar de trazerem novos atores, apresentam as velhas práticas em relação ao padrão de
correlação de forças com as comunidades locais (MEDEIROS, 2015). O Poder Judiciário e a
Polícia Militar do ERJ, a Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), o Instituto Estadual do
Ambiente (INEA) e a Companhia de Deenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro
(CODIN) 102 têm assumido papeis centrais durante os processos de licenciamento, despejo,
prisões e judicialização dos conflitos, o que torna o Rio de Janeiro o estado dentre todas as
outras unidades da federação com maior registro de prisões no campo no ano de 2013 e o
segundo estado em todo o Brasil com o maior número de famílias envolvidas em conflitos
pela terra. Despejos, expulsões, assassinatos e impactos socioambientais e territoriais traçam a
marca da violência que atinge diretamente toda a diversidade de sujeitos que resistem frente
ao avanço do capital sobre seus territórios (GONÇALVES e CUIN,2013) .

102
A Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro – CODIN - é uma sociedade de
economia mista estadual e é vinculada à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Energia,
Indústria e Serviços – SEDEIS. Segundo consta em seu site ela é “a porta de entrada dos investidores nacionais e
internacionais. Atua como instrumento para o aumento da competitividade da economia, gerando
desenvolvimento econômico e social para os municípios do Estado do Rio de Janeiro. A CODIN oferece
soluções integradas, tanto para os empreendedores como para os municípios”. Seu caráter estratégico para os
processos de territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro ficam
explícitos, pois é a CODIN que elabora estudos e projetos para a ocupação industrial a partir das tendências
econômicas globais; explana ao capital nacional e internacional as “potencialidades”, oportunidades programas e
diretrizes do governo estadual; fornece “banco de áreas livres existentes nos municípios”; disponibiliza as áreas
destinadas aos Distritos Industriais; apresenta as informações relativas aos indicadores socioeconômicos e
demográficos dos municípios; apoia os processos de licenciamento ambiental; promove a articulação com as
concessionárias de serviços públicos (água, esgoto, energia, gás e telefonia); promove a interface com as
diferentes esferas do poder público (municipal, estadual e federal) com o intuito de viabilizar as infraestruturas
necessárias; orienta o capital para a obtenção dos incentivos tributários e financeiros a partir da interlocução e do
apoio junto às agências de fomento estadual e federal. Todas as informações mencionadas foram extraídas do
site oficial da CODIN e estão disponíveis em: <http://www.codin.rj.gov.br/Paginas/Codin/Atividades.aspx>.
Acesso em: 15 fev. 2018.
190

Mapa 5 - Grandes projetos de desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro

Fonte: AGB, 2016.


191

2.4.3 A intensificação reversa das condições metabólicas no estado – a espacialidade


diferencial das múltiplas falhas metabólicas

Na medida em que se consolida o processo de restruturação da matriz tecnológica e


produtiva do ERJ via grandes projetos de desenvolvimento, o metabolismo destrutivo
intensifica a espoliação das condições materiais de vida em múltiplas escalas. Os primeiros a
enfrentarem estes processos são as populações tradicionais e camponesas que são
expropriadas de seus territórios. Quando não há uma expropriação destes territórios, são
espoliadas as condições materiais e energéticas fundamentais para a reprodução de suas vidas.
O caso da salinização das terras de São João da Barra, por exemplo, exemplifica este
processo, já que camponeses e camponesas que permaneceram no 5º Distrito foram impedidos
de continuar a produzir devido a altíssima concentração de sal presente em suas terras,
provocado pelo depósito do material costeiro dragado para a construção da Unidade de
Construção Naval no complexo lagunar da região. Tal processo contaminou o lençol freático
da região, uma vez que a Prefeitura Municipal de São João da Barra fornecia água para a
população cuja salinidade apresentava índices 5 a 7 vezes superior à do rio Paraíba do Sul. Já
a água encontrada nas áreas de pasto, em Água Preta, apresentavam uma salinidade 820 vezes
maior que a água doce103.
É possivel, porém, identificar uma espacialidade diferencial dos impactos. Na medida
em que estes processos são intensificados no espaço agrário fluminense, fraturas metabólicas
vão sendo provocadas em áreas que historicamente foram responsáveis pelo abastecimento
alimentar do estado. São impactados pelo Comperj e grandes empreendimentos industriais em
torno da Baía de Guanabara, os pescadores e pescadoras artesanais – cujo número passa de
5.000, da mesma forma que são alterados os fluxos do pescado a partir da intensificação do
número de embarcações que passa a circular na região. O mesmo acontece na Baia de
Sepetiba, onde o Estado financia a reetruturação das características sociais e ambientais da
região a partir da instalação de grandes projetos de desenvolvimento.
O Arco Metropolitano, por exemplo, interliga a produção de petróleo e gás do
Comperj ao Porto de Itaguaí, em Sepetiba. Portanto, mais pescadores, pescadoras e pescados
são prejudicados. A consequência é a possível diminuição da oferta de peixes na região.
Quando analisados os índices de produção da agricultura familiar do estado, o cenário

103
Disponível em: <https://agb-belohorizonte.webnode.com.br/news/saliniza%C3%A7%C3%A3o-das-aguas-e-
do-solo-no-a%C3%A7u%3A-crime-ambiental-e-expuls%C3%A3o-da-terra/>. Acesso em: 30 maio 2018.
192

apresenta um caminho para a desagriculturalização frente ao processo de expasão territorial


do capital (AGB, 2011). Serão milhares de toneladas de alimentos que deixariam de ser
produzidos caso a barragem do Guapiaçu venha a ser construída, por exemplo. Engana-se
quem pensa que estes impactos concentram-se espacialmente no espaço agrário.
Uma espacialidade diferencial nos permite lembrar da geografia dos proveitos e
rejeitos, cuja nossa posição na divisão internacional e territorial do trabalho, nos coloca
enquanto responsáveis pela produção e abastecimento do mercado mundial de commodities.
Logo, sobre esta perspectiva, estamos localizados espacialmente nos lugares de extração e
transformação. Estes impactos aqui são espacialmente diferenciados, mas afeta a todos e
todas. Ter um estado incapaz de produzir seu próprio alimento significa que ele terá de vir de
mais longe e quanto mais distante se encontra o produtor do consumidor, maior é o custo de
produção, logo o custo final do produto. O mais recente dos fatos, talvez, seja a intensificação
da concentração da água nos processos de reprodução e expansão da acumulação do capital.
No caso do ERJ, a concentração de grandes projetos de desenvolvimento acentua os conflitos
pelo uso da água, já que estes se caracterizam pela superexploração da terra, água e energia.
Na medida em que foram sendo territorializados os grandes projetos, foram sendo espoliadas
as condições sóciometabólicas da população fluminense. A realidade é que continuam a ser. A
espacialidade diferencial dos impactos não permite que populações espacialmente distantes
das fraturas metabólicas provocadas pelo capital tenham a concepção de que estes estão
afetando suas vidas.
Se não houvesse água disponível como o Estado afirma, seja nacional ou
regionalmente, o capital não estaria se territorializando aqui. As vantagens comparativas
analisadas pelo capital em seus processos de expansão levam em consideração inúmeras
variáveis como “disponibilidade” de terra, água e energia em abudância, associadas a um
Estado que facilitará juridica e violentamente sua expansão.
Portanto há um processo de intensificação reversa no ERJ. Quanto mais terra, água e
energia é disponibilizada para o capital, menos os setores populares tem acesso aos mesmos.
Com o intuíto de exemplificar a tabela 7 traz alguns dados que nos ajudam a perceber e
realizar uma comparação entre o metabolismo social e o necrometabolismo do capital.
193

Tabela 7 – A concentração de terras, energia e água – Grandes Projetos de Desenvolvimento


do Estado do Rio de Janeiro
Módulo
Fiscal do Potencial/Consumo Consumo de
Projeto Município Área (ha)
Município Energético Água
(ha)

São João da 1300MW / 38.500.000


Porto do Açu 12 7.200
Barra 11.388.000 MWh l/h¹

Refinaria
Duque de 2 milhões m³/dia
Duque de 10 1.300 1.722.583 l/h
Caxias (Gás Natural)
Caxias

Ternium
490MW /
Brasil (ex Rio de Janeiro 5 900 2.000.000 l/h
4.292.400 MWh
TKCSA)

Comperj Itaboraí 10 4.500 n.d n.d

Volta 255 MW /
CSN 14 376 7.000.000 l/h
Redonda 2.223.800 MWh

Legenda: ¹ São consideradas as águas referente ao Mineroduto Minas-Rio e a utilizada no Porto do Açu
n.d - Não Disponível.
Fonte: O autor, 2019. Adaptado a partir de POMBO (2011), CH2MHILL (2012), (MME, 2017), SCHOR (2006),
PACS (2008, 2009) ERM (2005).

A área destinada para a desapropriação das famílias e territorialização do Porto do Açu


representa quase 50% de toda a área referente ao 5º Distrito do município de São João da
Barra e quase 1/3 de todo o município (AGB, 2011). A dinâmica metabólica do
empreendimento apresenta índices de consumo de água e de energia de grande magnitude. A
demanda hídrica projetada inicialmente girava na ordem de 10 m³/s, o equivalente a uma
população de 2.816.000 habitantes, ou então o equivalente a 85 vezes o consumo de água do
próprio município no qual o empreendimento está instalado (AGB, 2015). A demanda hídrica
necessária para transportar o minério de ferro através do mineroduto de 525km provenientes
das minas da Anglo American S.A, na Serra do Espinhaço – MG, é de 2.500 m³/h (AGB,
2011). Ou seja, o consumo total de água do Porto do Açu é o equivalente a uma cidade de 3,7
milhões de pessoas. É preciso salientar que nestes cálculos não estão inseridos o consumo de
água relativo ao utilizado na extração do minério de ferro extraído nas minas de propriedade
194

da Anglo American 104. Recentemente a Prumo Logística S/A fechou um contrato com a
empresa Andrade Gutierrez para construção de uma usina térmica GNA Açu, que tem com
objetivo garantir auto-suficiência energética do Porto 105. Sua capacidade será de
aproximadamente 1300MW, consumo energético equivalente a uma cidade de
aproximadamente 4,2 milhões de pessoas.
Passados onze anos desde o início das construções do CIPA e cinco anos desde que a
EIG Global Energy Partners assumiu o controle do Distrito Industrial de São João da Barra
(DISJB), apenas 566,44 hectares foram utilizados pelos empreendimentos já negociados para
ocupar a área. Isto representa apenas 7,87% do total da área despropriada, sob o caráter de
utilidade pública, destinado a construção do DISJB. Somadas as áreas já consolidadas, mais
os recentes acordos divulgados pela Prumo Logística Global, o percentual de ocupação da
área chega a 10% do total da área desapropriada, como consta em na Contestação Possessória
(Processo nº 721-89.2017.8.19.0053) ajuizada pela Associação dos Proprietários de Imóves e
Moradores do Açu, Campo da Praia, Pipeiras, Barcelos e Cajueiro (ASPRIM). Há, portanto,
um forte caráter especulativo associado às terras espoliadas dos agricultores e agricultoras do
5º Distrito de São João da Barra que hoje se encontram sobre propriedade de um fundo de
investimento estadounidense.
O total de hectares ocupados por todos os empreendimentos apresentados na tabela 7
é de 14.276 hectares. Levando em consideração a média dos módulos fiscais destes
municípios, igual a 10,2ha, seria possível assentar 1.399 famílias. Se pensarmos a partir dos
agroecossistemas familiares mapeados e apresentados no primeiro capítulo, a média da
produtividade/ha é de 17,4 toneladas de alimento/ano. Poderiam ser produzidos 177,48
toneladas de alimento/ano por família para o abastecimento do mercado interno, se estas
terras fossem destinadas a Reforma Agrária. O consumo total energético – sem considerar a
Reduc – de quatro empreendimentos é da ordem de 17.904.200 MWh. Segundo o MME
(2017), o consumo residencial de energia elétrica do estado do Rio de Janeiro foi de
13.706.000 MWh. O consumo energético de apenas quatro empreendimentos supera o
equivalente de energia consumida por toda a população do estado do Rio de Janeiro. Por fim,

104
Em reportagem publicada pela Agência Pública são reportados casos relativos a falta de água disponível para
as comunidades locais em detrimento da exploração de minério de ferro pela Anglo American S.A. Disponível
em: <https://apublica.org/2018/01/a-sombra-da-tragedia-de-mariana/>. Acesso em: 17 fev. 2018.
105
Disponível em: <http://www.robertomoraes.com.br/2017/10/porto-do-acu-reforca-se-cada-vez-mais.html>.
Acesso em: 17 fev. 2018.
195

o volume de água consumida por quatro dos cinco empreendimentos é de 49,2 milhões de l/h
(ou 1,1 bilhões de l/dia), equivalente a uma população de 4,7 milhões de pessoas106.
Os dados comprovam uma altíssima concentração não só da produção, mas do
controle de terras, energia e água, logo dos passivos e fraturas sóciometabólicas que se
instalam nos territórios que se encontram em disputa por suas condições básicas de
reprodução da vida que, como vimos no primeiro capítulo, constroem suas relações com a
terra, água, mata, alimento a partir de outras epistemes onde sentidos, saberes e elementos são
comuns.

2.5 Quatro projetos territoriais e um Rio: as múltiplas escalas (do poder) e suas
articulações

As análises realizadas até aqui tiveram o objetivo de identificar os processos de


construção das estratégias desencadeadas em múltiplas escalas pelo Estado e pelo capital para
se apropriarem da água. Esta trajetória ocorre a partir de um duplo aspecto: i) no começo dos
anos de 1990, é iniciada uma articulação do capital que passa a construir as diretrizes “de
cima para baixo” de uma política de gestão “dos recursos hídricos”. Estas diretrizes criam as
condições normativas que passam a influenciar diretamente nas formas de gestão da água em
diferentes Estados em todo o globo. A PNRH no Brasil, por exemplo, é criada em 1997, e
assume as diretrizes apontadas na Conferência de Dublin de 1992, que também influenciam
diretamente a PERH do ERJ, criada em 1999. Este primeiro aspecto é de suma importância,
pois cria as condições jurídicas que legalizam a intensificação da exploração da água em todo
o país; ii) a partir de meados da década de 2000, sob forte influência da crise alimentar de
2006, da crise energética em 2007, e da crise financeira em 2008, há uma restruturação da
estratégia de expansão do capital que aponta para uma intensificação do processo de
acumulação a partir da corrida global por terras, controle dos processos de produção da
energia e pela consequente superexploração hídrica, fortemente influenciada pelo boom das
commodities. A partir de um modelo neoextrativista de desenvolvimento, característico pela
sua intensiva exploração e espoliação da natureza, a água torna-se mais ainda um elemento

106
De acordo como Censo 2010, o município do Rio de Janeiro possuía uma população de 6,3 milhões de
habitantes.
196

estratégico já que esta agenda depende de seu controle para expandir e acumular capital e
poder.
Deste ponto em diante, nossa análise será aprofundada a partir destes aspectos,
relacionando-os com as questões apresentadas no primeiro capítulo, uma vez que o projeto de
construção da barragem do rio Guapiaçu está diretamente relacionado a esta conjuntura
global. Todas aquelas experiências apresentadas e analisadas encontram-se em uma área de
fronteira já que o território está inserido na estratégia de expansão do capital no ERJ. São
ameaçados os sentidos de lugar construídos por aqueles homens e mulheres, diretamente
relacionados às formas de gestão comunitária da água e as diversas formas de sentirpensar a
agricultura, que juntos estruturam seus espaços de representação. O projeto da grande
barragem do rio Guapiaçu representa um modus operandi de representação do espaço do
capital que vê nele a possibilidade de controlar a vazão da bacia hidrográfica, direcionando
esta água para o atendimento das suas necessidades.
Há um choque direto entre diferentes formas de produção do espaço intimamente
relacionadas a temporalidades que representam cada uma destas formas. O tempo da terra, da
lua, do sol e das águas passa a ser atravessado pelo tempo do capital de maneira vertical. A
vida cotidiana e as relações afetivas são radicalmente transformadas a partir das múltiplas
formas de tentativa de controle do território, e nesta escala da sociabilidade são combinados
os fenômenos que materializam as múltiplas tentativas de controle da natureza pelo capital.
Identifico, portanto, a existência de quatro projetos territoriais para um único
território. O primeiro deles, já amplamente apresentado no primeiro capítulo, é produzido a
partir das relações hidrocomunitárias constituídas pelos homens e mulheres do Vale do
Guapiaçu pautada pela dimensão dos bens comuns, pela sobreposição do valor de uso pelo
valor de troca, e pela gestão comunitária e autônoma da água. Os outros três projetos para o
território são criados e pensados externamente aos seus limites espaciais. O primeiro deles é
pensado, proposto e articulado pelo Estado em conluio com o capital, mas que sofre
importante re-articulações estratégicas devido à complexa mudança de conjuntura dos últimos
quatro anos. O segundo já é uma resposta ao projeto da grande barragem, mas não
necessariamente se contrapõe a ela. É pautado pelo Sindicato Patronal e por ONG’s da região
que propõe a construção de três pequenas barragens e são responsáveis por criar uma disputa
interna no território. O terceiro é projetado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), sendo o único desses três que é assimilado pelos homens e mulheres do Vale do
Guapiaçu, mesmo quando não incorpora as redes comunitárias como estratégia política, nem
como instrumento de empoderamento e correlação do poder.
197

A partir do anúncio da localização e implantação do Comperj e da barragem, inserida


no conjunto das condicionantes ambientais do empreendimento, é criada uma arena de disputa
e conflito no próprio território, mas diretamente relacionada a outras arenas de correlação de
poder. A legitimidade e eficiência que cada um destes projetos passa a depender, portanto, do
acesso e disputa das distintas arenas que são criadas, em que se materializam as múltiplas
escalas de correlação do poder.

2.5.1 O projeto estatal-privado – a grande barragem

O Vale do Guapiaçu tem na sua história recente uma ameaça constante no que tange à
construção de uma barragem-reservatório. O que dá materialidade a esta ameaça está
relacionada à conjuntura política, financeira e/ou econômica por qual passa o ERJ e o país em
determinados momentos histórico-geográficos.
A primeira vez que surge a possibilidade de construção de uma barragem na bacia
hidrográfica do rio Guapiaçu é na década de 1980. Naquele momento, o projeto havia sido
elaborado pela Companhia Estadual de Água e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) cujo
objetivo era abastecer os municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. Com uma localização
espacial distinta da atual, o projeto era previsto para o alto rio Guapiaçu e ameaçava inundar
cerca de 50 fazendas e 200 hectares de terra, na qual trabalhavam agricultores e agricultoras
familiares. O projeto já havia captado um empréstimo de US$90 milhões do Banco Mundial,
mas a partir de uma importante mobilização local associada ao escândalo Marajoara – onde
foram identificado irregularidades na licitação de um sistema de captação na Baixada
Fluminense – o projeto acabou sendo engavetado só voltando a aparecer décadas à frente.
Em 2003, é produzido o Plano Diretor dos Recursos Hídricos da Baia de Guanabara
(PDRH-BG), elaborado pela ECOLOGUS-AGRAR, cujo financiamento é oriundo do Banco
Mundial, e o estudo encomendado pelo governo do estado. São apresentados programas cujos
objetivos buscam apresentar soluções para a “melhoria da quantidade de água” através de três
ações: i) diminuição dos índices de perdas físicas de água dos sistemas de tratamento e
distribuição que chegam a 40%, como veremos adiante; ii) aprofundamento de estudos
relativos ao conhecimento hidrológico da região com vistas a aproveitar racionalmente o uso
das águas subterrâneas; e iii) implantação de barragens reservatórios e transposição de vazões
para o aumento da disponibilidade hídrica. São apresentados 24 potenciais eixos barráveis,
198

dentre eles o Eixo Guapiaçu, mas que acaba sendo preterido em detrimento de alternativas.
“Q”, conta a sua visão sobre estes processos de (des)engavetamentos das propostas de
construção da barragem-reservatório do rio Guapiaçu:

Ah, quando começou? Quando nós chegamos aqui já tinha um olho no Areal, lá em
cima, isso é antigo. Pouco tempo aqui saiu umas conversas lá no colégio do Areal.
Que ia ser lá, no cruzamento da Maria Moura, mãe da Neuza, ia ser ali. Fizeram
visita nas casas e tudo aqui. Depois deu em nada, jogaram lá pra baixo, vamo botar
2003, 2004.
Ia ser no ali entroncamento da Maria Moura, aqueles morro ali, a mãe da Neuza, era
ali que eles tavam prevendo a barragem. Só que não deu em nada também não. Aí
veio empurrando, aí foi parar lá embaixo. Descobriu que aqui tem tipo uma fraqueza
por causa do Vecchi, aquela briga deles lá, o assentamento nosso aqui (“Q”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/09/2018).

“Q” faz menção à proposta apresentada pelo PDRH-BG e aponta uma interessante
análise quando afirma que a realocação espacial da barragem estava diretamente relacionada
ao imbróglio judicial por qual passavam, e ainda passam, os/as assentados/as de Serra
Queimada e o Vecchi. Percebe-se que a geração que é assentada em 2000, seja na Ilha
Vecchi-II ou na Serra Queimada, assim como os assentados, na década de 1970, do Vecchi e
Ilha Vecchi-I, possuem uma trajetória de constante ameaça e insegurança pela possibilidade
de implantação do reservatório.
Três anos depois da elaboração do PDRH-BG, a proposta de construção da barragem-
reservatório é novamente apresentada, desta vez no âmbito da implantação do Comperj, em
2007. No Relatório de Impacto Ambiental do Comperj, a região do Vale do Guapiaçu é
mencionada no conjunto de possibilidades mapeadas para fornecimento de água para o
próprio empreendimento. O relatório indica a necessidade de realizar estudos para que fossem
averiguadas as melhores opções, a partir de critérios técnico-econômicos e ambientais. São
mapeadas as seguintes opções: águas do rio Guandu, onde poderiam ser captadas diretamente
do curso do rio ou através do reuso de águas da estação de tratamento, localizada em
Seropédica; reservatório de Ribeirão das Lajes; rio Paraíba do Sul; reservatório de Juturnaíba;
e o reservatório do rio Guapiaçu que assim é descrito:

Uma eventual construção de uma barragem-reservatório no vale do rio Guapiaçu é


uma alternativa com grande volume de água, e, portanto, estratégica para o governo
estadual, pois essa bacia hidrográfica é a única que ainda tem área preservada, sem
ocupação (CONCREMAT, 2007, p. 41).

Da forma como são apresentadas as alternativas no documento, há uma clara indução


de apontar a barragem do rio Guapiaçu como principal alternativa. Ser apontado como uma
199

região estratégica para o governo do ERJ demonstra uma destas formas, mas o fato mais
relevante, e que apresenta importante gravidade, está relacionado ao argumento de que na área
inexiste ocupação humana, provocando uma estratégia de invisibilização dos homens e
mulheres do Vale do Guapiaçu na tentativa de legitimar a alternativa. Este argumento será
novamente utilizado em outros momentos, e traduz uma estratégica histórica do Estado
brasileiro na utilização do discurso do “vazio demográfico” para legitimar grandes
empreendimentos.
A proposta, então, passa a ser inserida no conjunto de condicionantes ambientais do
licenciamento do Comperj e associada ao contexto de déficit hídrico da região leste
metropolitana do ERJ, gerando uma dupla estratégia de ratificação do empreendimento. O
projeto inicial do Comperj previa a criação de 212 mil empregos, o município de Itaboraí –
onde está localizado o empreendimento – possuía em 2010 uma população de 218.008
pessoas 107. O empreendimento geraria, ainda, uma alta atratividade de setores industriais
ligados à cadeia do petróleo, o que aumentaria ainda mais a demanda pelo uso da água. Todo
este cenário é aliado a uma conjuntura de um déficit de abastecimento hídrico já existente na
região, mas mesmo assim isto não afetou a escolha da localização espacial do
empreendimento. Portanto, o projeto do reservatório passa a ser justificada pela necessidade
de se atender uma demanda já existente e que seria agravada com a reconfiguração espacial da
região. Com esta conjuntura, dois estudos são publicados entre 2010 e 2013 com vistas à
resolução do quadro de déficit hídrico da região, que passam a dar o suporte técnico-político
para validar o projeto da barragem.
O primeiro deles foi Plano Estratégico de Recursos Hídricos dos rios Guapi-Macacu e
Caceribu-Macacu (Projeto Macacu), realizado em 2010, foi coordenado pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e financiado pela Petrobras Ambiental. Trata-se de um
planejamento estratégico que aborta a gestão dos recursos hídricos das bacias referentes aos
municípios do leste metropolitano, impactadas pelo contexto de implantação do Comperj, que
apresentavam a necessidade de ampliação do sistema de abastecimento hídrico agravada pela
implantação do empreendimento. O estudo propõe a necessidade de ampliação de
infraestruturas hidráulicas para o aumento da disponibilidade hídrica para os municípios
impactados pelo Comperj, mas dá especial atenção à necessidade de ampliação da demanda
do Sistema Imunana/Laranjal, responsável por abastecer os municípios de Niterói, São
Gonçalo, Itaboraí e da Ilha de Paquetá.

107
Dados do IBGE Cidades. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/itaborai/panorama>. Acesso
em: 22 jun. 2018.
200

O Projeto Macacu, a partir das análises realizadas sobre o balanço hídrico da região
hidrográfica dos rios Macacu e Caceribu, projeta um déficit hídrico para o Sistema
Imunana/Laranjal considerando o cenário de instalação do Comperj. A implantação do
empreendimento ocasionaria o aumento do déficit hídrico na região que passaria de 2,57 m³/s,
considerando o cenário para 2010, para 4,65 m³/s até o ano de 2020, aumentaria em 80% a
demanda hídrica para a região (AGB, 2014).
Quando apresentadas as propostas de alternativas para o aumento da disponibilidade
hídrica, o projeto resgata as contidas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Comperj –
apresentadas anteriormente. De início são descartadas as opções de captação direta das águas
do rio Guandu e da implantação da barragem do Ribeirão das Lajes e do rio Paraíba do Sul,
sob a justificativa de elevados custos de operação. Também é descartada a possibilidade de
transposição das águas do Lago de Juturnaíba, já que tal operação poderia provocar o
esvaziamento do volume útil do reservatório, o que ocasionaria a piora dos parâmetros de
qualidade da água. Quando apresentada a possibilidade de reuso das águas de retrolavagem da
ETA Guandu, é exposta uma informação de extrema importância no tocante à relação entre
Comperj e barragem do rio Guapiaçu:

A que considera o reuso das águas de retrolavagem dos filtros da ETA Guandu está
sendo tratada entro o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Petrobrás, para suprir
apenas a demanda do processo industrial do Comperj (UFF, 2010, p. 46, grifos
nossos).

O Projeto Macacu afirma que as águas de reuso provenientes da ETA Guandu serão
utilizadas apenas para o processo industrial do Comperj. Fica evidente que o empreendimento
precisará de outras fontes para captar a água necessária para abastecer as atividades não
industriais do Comperj.
Restaria, então, apenas a alternativa a barragem do Guapiaçu. A UFF (2010) resgata as
opções dos eixos apresentados pela ECOLOGUS-AGRAR, em 2003, quando elaborado o
108
PDRH-BG que aponta o reservatório do rio Guapi-Açu (Eixo EA-19) , Soarinho (EA-05),
Caceribu (EA-20) e Tanguá (EA-20) como alternativas para o déficit hídrico. Além destes
eixos, o Projeto Macacu sugere uma alternativa a ser estudada também localizada no rio
Guapiaçu, denominada Guapiaçu Jusante (localização do atual projeto da barragem-
reservatório).

108
Localização espacial da barragem a qual se refere “Q”, quando a ameaça de construção do reservatório
reaparece pela primeira vez, depois de 1980, em 2003.
201

Quando apresentado os dados relativos às características das alternativas de


barramento, o eixo Guapiaçu Jusante apresenta uma área total de alagamento 5.286 hectares,
enquanto que as demais alternativas juntas possuem uma área total de 4.574 hectares. Para a
cota máxima sugerida no eixo Guapiaçu Jusante é dimensionado um impacto direto em 1.000
construções, enquanto que no eixo Caceribu serão 59, no Soarinho 106 e no Tanguá 306
(AGB, 2014).
Um importante aspecto destacado pela AGB (2014) consiste no fato de que nenhuma
das alternativas apresentadas pelo Projeto Macacu é capaz de suprir a demanda hídrica
projetada para 2020:

A vazão de 4,65 m³/s é o que de fato tem-se como demanda até 2020 e, tendo em
vista a vazão de projeto calculada para os cinco barramentos, percebe-se que
nenhum dos eixos planejados correspondem a uma solução definitiva para o
problema do déficit (2014, p. 23, grifo original).

Ou seja, a construção da barragem no âmbito da ampliação da oferta hídrica do


Sistema Imunana/Laranjal apresentaria uma viabilidade apenas até 2020. O Projeto Macacu,
portanto, se insere no cenário de construção do Comperj e assume um caráter estratégico cujo
objetivo é viabilizar a implantação do empreendimento, assim como de outras atividades
industriais, e de uma agenda de desenvolvimento pautada pelo governo do ERJ (AGB, 2014).
Destaca-se, ainda, o fato do estudo ter sido financiado pela Petrobras Ambiental e realizado
por uma universidade pública que assume, claramente, o papel de legitimador técnico-político
do empreendimento.
O mesmo ocorre em relação à elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos
(PERHI), em 2013. O estudo é realizado pela Fundação Coordenação de Projetos, Pesquisas e
Estudos Tecnológicos (COPPETEC) por meio do Laboratório de Hidrologia e Estudos de
Meio Ambiente. A COPPETEC é uma instituição de direito privado, sem fins lucrativos,
destinada a apoiar a realização de projetos de desenvolvimento tecnológico, de pesquisa,
ensino e extensão da COPPE e de demais unidades da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Como apresentado anteriormente, a COPPE ocupa uma cadeira titular no CERHI
destinada às Instituições de Ensino Superior. A presença da COPPE neste espaço controlado
possibilita a articulação entre instituições de pesquisa e o capital para a realização de estudos
estratégicos. Estes estudos são utilizados como argumentação técnica para a viabilização da
agenda do setor privado.
202

O PERHI caracteriza-se como instrumento central do Sistema Estadual de


Gerenciamento de Recursos Hídricos e segundo a Lei nº 3.239/99 constitui-se no diploma
diretor que fundamenta e orienta a implantação da Política Estadual de Recursos Hídricos. O
objetivo do PERHI é garantir a disponibilidade de água em volume e qualidade considerando
os diversos usos, com o intuito de minimizar os conflitos pelo uso da água. A questão é que
ao assumir o papel de instrumento diretor que fundamenta e orienta a gestão do uso da água
no ERJ, acaba por ser um importante dispositivo causador de conflitos já que parte de uma
visão tecnicista e pragmática quando analisada a problemática dos conflitos pelo uso da água
no estado. A barragem do rio Guapiaçu, por exemplo, é apontada como alternativa prioritária
para a resolução do déficit hídrico da região leste metropolitana.
O que interessa para esta análise está presente no Relatório Técnico de Fontes
Alternativas para o Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro para a região metropolitana
do Rio de Janeiro (RMRJ). Este relatório tem o objetivo de avaliar as fontes alternativas de
água para o suprimento das demandas hídricas, considerando o cenário e crescimento
populacional da RMRJ no contexto dos grandes investimentos econômicos na região. Quando
considerado este cenário para a Região Hidrográfica da Baía de Guanabara é apontado um
crescimento populacional de 2,5 milhões de habitantes até 2030.
Sem realizar um debate crítico e problematizar os volumes de água consumidos por
setor, o principal entrave relativo ao uso da água na RMRJ está diretamente ligado aos índices
de perdas físicas de água dos sistemas de distribuição da Região Hidrográfica da Baía de
Guanabara (RHBG). Os dados apresentam uma perda de 35% do total da água tratada
distribuída, enquanto o índice de perda do Sistema Imunana/Laranjal gira em torno de 25%.
O PERHI aponta que a demanda calculada para os municípios abastecidos pelo
Sistema Imunana/Laranjal é da ordem de 7.700 l/s, porém o sistema possui capacidade de
produzir uma vazão total de 5.500 l/s, sendo necessária a ampliação de 2.200 l/s para atender
a demanda atual. A demanda projetada para 2030 é de 12.500 l/s, o que significa a
necessidade do aumento de 7.000 l/s para suprir a projeção para o período mencionado. Esta
dimensão é projetada a partir dos estudos populacionais realizados pelo PERHI que prevê um
contingente populacional de mais de três milhões de pessoas, sobretudo a partir da
implantação do Comperj e de outras indústrias de porte atraídas pela agenda de
desenvolvimento regional. A forma como este quadro é apresentado ocorre de maneira
meramente descritiva, sem que haja qualquer problematização da atração da atividade
industrial para uma região que já possui um quadro de déficit hídrico.
203

É a partir desta visão pragmática e técnica que são apontadas fontes alternativas
consideradas prioritárias e complementares. A barragem do rio Guapiaçu é apresentada como
a única alternativa prioritária, enquanto o Reservatório de Juturnaíba, de Lajes e o Rio Grande
são considerados como alternativas complementares. A justificativa técnica apresentada pela
COPPETEC para legitimar a barragem do rio Guapiaçu e identificá-la como alternativa
prioritária é a mesma utilizada no Projeto Macacu:

Esta alternativa prevê o reforço do abastecimento do sistema Imunana-laranjal


utilizando como manancial uma futura barragem-reservatório a ser construída no
vale do rio Guapi-Açu. Dentre as bacias que contribuem para o Sistema Imunana-
Laranjal, a bacia hidrográfica do rio Guapi-Açu é única que ainda tem uma área
preservada, sem ocupação e com uma geometria favorável à implantação de uma
barragem de regularização da vazão natural. Foi exatamente essa característica que
permitiu considerar a construção de uma estrutura hidráulica, que ajude a aumentar a
disponibilidade hídrica desta região que se encontra em notório estresse hídrico.
(COPPETEC, 2013, p.126).

Mais uma vez os homens e mulheres do território do Vale do Guapiaçu são


invisibilizados pelos estudos que apontam o projeto da barragem enquanto alternativa para o
déficit hídrico regional. Assim como o Projeto Macacu, o PERHI afirma que o Comperj irá
utilizar a água da barragem:

Com a utilização do reuso de parte dos efluentes da ETE Alegria, a água


disponibilizada pela barragem de Guapi-Açu será utilizada para o atendimento da
demanda humana do COMPERJ e reforço do sistema Imunana-Laranjal
(COPPETEC, 2013, p. 127).

A alternativa prioritária reforçaria o abastecimento do sistema Imunana-Laranjal


utilizando como manancial uma barragem-reservatório a ser construída no vale do Guapiaçu
com espelho d´água de 1.580 hectares e um volume acumulado de 94,8 km3. A proposta prevê
uma estação de elevatória junto à barragem e uma adutora de 40 km de extensão até a ETA
Laranjal. A construção do reservatório acrescentaria uma vazão de 6,3m3/s no Sistema
Imunana-Laranjal. Ao concluir, o relatório aponta que a barragem-reservatório do rio
Guapiaçu é a melhor opção para atender a demanda hídrica da região leste metropolitana,
devido a sua proximidade com os centros consumidores e a sua capacidade do fornecimento
de água. Vale ressaltar que os dados apresentados no Projeto Macacu e no PERHI apresentam
um tamanho distinto do reservatório (5.286 ha e 1.580 ha, respectivamente), assim como uma
vazão distinta (3,21 m³/s e 6,3 m³/s, respectivamente).
204

Em um espaço de dez anos, três estudos de viabilidade hídrica são elaborados e em


todos eles a barragem-reservatório do rio Guapiaçu está presente. O Projeto Macacu e o
PERHI são produzidos no âmbito do contexto de implantação do Comperj e este cenário cria
um conjunto de propostas técnicas que fundamentam a argumentação do governo do ERJ.
Vão sendo criadas, desta forma, as condições política e técnicas para fundamentar as
estratégias de implantação da barragem, mesmo que até 2014 não tenha sido aprovado e
publicado o EIA/RIMA da barragem.
É em um contexto com ausência de aprovação dos estudos de viabilidade do
empreendimento, que o governo do ERJ publica dois decretos entre setembro e novembro de
2013. O primeiro deles, decreto nº 44.403 de 23 de setembro de 2013, declara a área do Vale
do Guapiaçu como de interesse social determinado a desapropriação de duas áreas, sendo uma
para instalação da barragem e outra para o reassentamento dos agricultores e agricultoras
atingidos/as. O segundo, decreto nº 44.457 de novembro de 2013, ratifica o anterior e
apresenta outras deliberações, dentre as quais é definido o valor destinado às desapropriações
de terras do Vale do Guapiaçu. O valor definido é de R$0,50 o metro quadrado
(R$5.000,00/ha) (ALENTEJANO et all, 2015). Como apresentado no primeiro capítulo,
através dos mapas dos agroecossistemas familiares, a média do lote dos assentados é de três
hectares o que daria cerca de R$15.000,00 por família. Este instrumento jurídico e normativo
que declara área de interesse público sobre determinados territórios é marca dos processos de
territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ e se repete no caso do
projeto da barragem do rio Guapiaçu. O fato mais relevante, é que os dois decretos são
publicados sem que os estudos de viabilidade tenham sido apresentados e aprovados, o que
deixa claro que o projeto é tratado como fato consumado.
No início do ano de 2014, o EIA/RIMA da barragem do rio Guapiaçu é apresentado à
Secretaria de Meio Ambiente Estado do Rio de Janeiro (SEA). Ao receber o estudo, ela
encaminha para o INEA para que haja análise e averiguação do material. Conforme sinalizado
por ALENTEJANO et al. (2015):

Neste caso a SEA é a proponente (interessada) do projeto de construção da


barragem, e ao mesmo tempo é, ela mesma a responsável pela avaliação dos estudos
de impacto ambiental (EIA-RIMA), já que o INEA é a autarquia técnica da SEA
responsável pelo licenciamento ambiental de empreendimentos no estado do Rio de
Janeiro.
Ora, há aqui um evidente conflito de competência, pois não pode um mesmo órgão
avaliar os impactos de uma obra proposta por ele mesmo. Isso destrói qualquer
possibilidade de um processo isento e transparente, mediado pelo controle da
população e funciona apenas para validar e impor a própria lógica estatal de
desenvolvimento sob o argumento da inexorabilidade, do constrangimento
205

inevitável, já que o discurso sustentado pela Secretaria é que somente uma grande
barragem no rio Guapiaçu será capaz de suprir o déficit hídrico regional, já existente
e a demanda futura (p. 209).

Além do fator relativo ao conflito de competência, durante o processo de


licenciamento ambiental da barragem há uma manobra normativa que concebe um duplo
aspecto para o reservatório. O projeto é ao mesmo tempo considerado uma condicionante
ambiental do Comperj e um empreendimento de importante impacto, o que o torna passível de
licenciamento específico. Ela é concebida, portanto, de forma antagônica e apresenta uma
clara sobreposição de interesses. Em um primeiro momento aparece como solução de um
empreendimento como o Comperj, mas torna-se um vetor de conflitos socioambientais
(Alentejano et al., 2015) e por isso precisa ser licenciada.
Um dos agravantes presentes no RIMA da barragem é a apresentação do projeto como
fato consumado, já que não são expostos os estudos alternativos ao reservatório e quando
mencionados, os argumentos técnicos não são apresentados:

Foram estudadas duas alternativas de eixos barráveis visando um planejamento


estratégico para o atendimento à demanda hídrica, conforme mencionado
anteriormente. No estudo de regularização dos dois reservatórios, a segunda
alternativa de eixo barrável que seria a montante, não atenderia ao déficit hídrico da
região e por isso não foi considerada viável tecnicamente (AMBIENTAL, 2014, p.
16).

Há outro fator importante que expressa o motivo pelo qual a necessidade de


construção da barragem vem sendo apontada nestes últimos 15 anos. Ao apresentar a
finalidade dos usos da água provenientes do reservatório, o RIMA expressa que o objetivo é
assegurar “o abastecimento da população, bem como garantir aos demais usuários existentes
na bacia, um desenvolvimento sustentável, para os diversos usos dos recursos hídricos”
(AMBIENTAL, 2014, p. 6). Diferente dos demais estudos que apontavam que a água seria
utilizada para o abastecimento humano e para as atividades do Comperj não inseridas no
processo de produção, o RIMA admite o uso da água para todos os setores que estão
instalados ou irão se instalar na região, sobretudo a partir da implantação do Comperj. Há um
deslocamento e uma contradição apontada entre o RIMA e o discurso que era adotado pelo
governo do ERJ, que desde o início afirmava que a água seria destinada exclusivamente para
o uso humano (AGB, 2014).
Quando analisados o Projeto Macacu, o PERHI e o RIMA da barragem há uma
inconsistência dos dados relativos às três projeções de demanda hídrica para a região para a
qual o reservatório solucionaria o déficit, assim como são apresentados três dimensões
206

diferentes para o tamanho do reservatório. O Projeto Macacu apresenta um déficit de 4,65


m³/s até 2020, o PERHI aponta um déficit de 7 m³/s para 2030 e o RIMA aponta um déficit de
5 m³/s para 2035 (AGB, 2014). A projeção temporal de aumento da demanda realizada por
cada um dos estudos diverge completamente, o que além de não projetar com segurança a real
demanda passa a não garantir que o reservatório atenda a estas demandas projetadas, já que se
analisados a partir do cenário apresentado pelo Projeto Macacu e pelo PERHI, o déficit de 5
m³/s seria superado antes mesmo da construção da própria barragem.
O segundo fator, relativo ao tamanho do reservatório, incide diretamente sobre a vazão
projetada. São apresentados diferentes níveis de cota máxima, da dimensão do reservatório, da
vazão regularizada e do tempo de saturação da capacidade de atendimento da barragem para o
cenário de déficit. No RIMA, a cota máxima é de 18,5 metros, enquanto que no Projeto
Macacu a cota é de 23,75. A dimensão do reservatório no RIMA é de 2.098 hectares,
enquanto que no Projeto Macacu é de 4.068 hectares. Já a vazão regularizada apresentada no
PERHI é de 6,5 m³/s, no RIMA de 5 m³/s e no Projeto Macacu é de 3,21 m³/s. O tempo de
saturação é de 2035 para o RIMA, 2020 para o Projeto Macacu e 2030 para o PERHI (AGB,
2014).
A falta de exatidão na garantia de que a alternativa projetada para solucionar o
abastecimento de água do leste metropolitano torna-se ainda mais grave na perspectiva do
perfil de ocupação existente no Guapiaçu. O primeiro capítulo desta dissertação procurou se
debruçar sobre as dinâmicas de uso da terra e da água que são criadas e reproduzidas no
território, e como estas acabam por gerar uma ampla gama de alimentos e garantia de
abastecimento hídrico para a região metropolitana. No RIMA da barragem, são considerados
atingidos pela barragem do rio Guapiaçu apenas 998 moradores, distribuídos em 322
domicílios (AMBIENTAL, 2014, p. 52). Não fosse grave a questão pelo elevado
subdimensionamento do total de atingidos, o fato se torna ainda pior quando descrita a
condição de ocupação do Vale:

Sobre a condição de ocupação destes domicílios, os dados apontam que 55% das
residências da área de intervenção são cedidos aos seus moradores e nestes casos se
destacam os de familiares que moram em casas construídas por parentes ou em
terrenos de parentes. Também se encontram os empregados de propriedades, como
os caseiros (p. 52)

Ou seja, dos 322 domicílios 177 deles são ocupados por pessoas que não possuem a
propriedade da terra, portanto não estariam aptos a receber as indenizações em caso de
207

implantação da barragem. O estudo reconhece, porém, a grave situação de vulnerabilidade e


afirma que,

[...] constata-se que este grupo apresenta situação de extrema vulnerabilidade frente
ao impacto, na medida em que não possuem documentação da posse de suas
residências, principalmente no caso dos caseiros e trabalhadores que moram nas
propriedades. Frente ao impacto da alteração no uso do solo pela desapropriação,
não possuem garantias que serão contemplados pelos proprietários e/ou patrões no
processo de negociação e/ou realocação (p. 72).

O RIMA reconhece, ainda, que o reservatório criará um grave quadro de insegurança


alimentar no município e na região metropolitana, assim como provocará a alta do preço dos
alimentos:

Em decorrência da produção agropecuária da ADA ser destinada em grande parte


para o CEASA/RJ e em menor parte para o próprio município de Cachoeiras de
Macacu, o encerramento das atividades agropecuárias na ADA pode afetar tanto a
CEASA quanto o comércio de alimentos no município, causando desabastecimento
e aumento nos preços dos produtos para o consumidor (p. 72).

O custo total apresentado de implantação da barragem do rio Guapiaçu no Projeto


Macacu é da ordem de R$148,4 milhões. Mesmo considerando um universo subdimensionado
do total de pessoas atingidas pela barragem do rio Guapiaçu, o valor relativo aos custos de
desapropriação das terras e benfeitorias é de R$74,4 milhões. O custo dos serviços e obras
civis relativos à obra do empreendimento, aqueles destinados a estrutura do reservatório, é de
R$73,9 milhões. Ou seja, o custo relativo às desapropriações de terras e benfeitorias é
superior ao custo da obra necessária para construção do reservatório. Como aponta a AGB
(2014),

[...] o custo social da obra, apesar de superar o custo total de implantação ainda
continua a mercê da agenda de desenvolvimento estadual, que tem priorizado os
grandes projetos em detrimento das condições de vida e trabalho da população (p.
48).

Já no Decreto 44.457 de 01 de novembro de 2013, o valor apresentado relativo às


desapropriações é de R$13,8 milhões, o que contrasta consideravelmente com o apontado
pelo RIMA. Este é mais um dos dados que não são apresentados de forma coerente.
As contradições apontadas quando analisados os três projetos; as irregularidades no
tocante ao conflito de interesse entre a SEA e o INEA no processo de licenciamento da
barragem; a não garantia de que a barragem irá solucionar o déficit de abastecimento a médio
208

e longo prazo; o subdimensionamento do total de atingodos/as; os decretos emitidos pelo


então governador do ERJ Sérgio Cabral antes que fossem apreciados o EIA/RIMA do
empreendimento; e a contradição sobre a concepção do reservatório que ora é condicionante,
ora é um empreendimento específico passível de licenciamento, são alguns dos elementos que
mostram que esta barragem é, na realidade, uma estratégia do ERJ em viabilizar uma agenda
de desenvolvimento que tem sido pautada desde 2007. Desde quando o projeto é
“desengavetado” ele é tratado como um fato consumado e as justificativas para sua
implantação vão sendo gradativamente alteradas a partir da mudança de conjuntura.
Com a crise da Petrobras, que levou à paralisação temporária das obras em diversos
momentos, há um redimensionamento do tamanho e importância do Comperj o que acaba
provocando uma mudança de toda a conjuntura projetada para a região. A crise financeira,
política e moral por qual passa o governo do ERJ retira de suas capacidades a possibilidade de
pautar a construção de qualquer empreendimento de grande porte econômico e de alto custo
social e ambiental. Porém, para prosseguir com as estratégias de construção da barragem vão
sendo alteradas os argumentos que buscam legitimar o empreendimento e cada vez mais ele
se distancia do Comperj e é atrelada à crise hídrica.
Buscarei então, apontar as contradições presentes no discurso de crise hídrica
proferido pelo governo do ERJ, pela SEA, pelo INEA, pelo CERHI e pelos diversos setores
do capital. Apontar a existência de uma crise hídrica significa defender a inexistência de água
suficiente para o abastecimento da população. Para isso, é preciso que haja um sistema
eficiente de gestão da água capaz de apontar onde e como está distribuído o uso por setor.
Debates técnicos que se colocam descolados da disputa política e pelo poder, na realidade,
fundamentam o discurso de crise e por isso servem aos setores que mais consomem a água. É
preciso desconstruir o debate pragmático sobre a água e buscar apontar que a crise hídrica não
existe por conta de uma suposta falta de água, mas sim por conta dos cercamentos que tem se
intensificado nas últimas décadas, e que levam ao controle sobre a água definindo quem usa,
quando usa, como usa e onde usa.

2.5.1.1 A falácia da Crise Hídrica

No dia 28/01/2015, após se reunir com a então Presidenta Dilma Rousseff, o


Governador Luiz Fernando Pezão começou a dar indícios que um novo discurso seria pautado
209

para legitimar a construção da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu. Em um contexto de


“crise hídrica”, que se arrastava pelo sudeste do país desde 2014, Pezão afirmou que a
articulação com o Governo Federal era de fundamental importância, pois este poderia ajudar
em obras que poderiam ser feitas “no futuro”, tomando “medidas imediatas para que a gente
não sofra o que outros estados estão sofrendo”, afirmou o governador. No primeiro mês de
2015 o estado fluminense dava o recado: caso a seca passasse do mês de maio daquele ano
“medidas drásticas teriam que ser tomadas”:

A gente já veio trabalhando nos últimos quatro anos com um período de seca muito
intensa. Então tomamos várias medidas, até com os recursos disponibilizados pelo
governo federal, e agora estamos vendo outras formas de estar aumentando a nossa
reservação, de tirar do papel a represa de Guapiaçu, que vai beneficiar Itaboraí, São
Gonçalo e Niterói” 109.

Passados nove meses, no dia 22/10/2015, o então secretário do ambiente André Corrêa
e o governador Pezão afirmam em reportagem publicada pelo Globo 110 que o projeto do
Governo do Estado estava em fase avançada, e que tanto o EIA quanto o projeto executivo
ficariam prontos até o mês de novembro. A fala do secretário do ambiente deixa claro que não
são os parâmetros técnicos que prevalecem durante a análise de viabilidade do
empreendimento, já que o mesmo se adianta ao processo de licenciamento, antes de sua
finalização, garantindo sua realização. André Corrêa constrói uma estratégia de discurso cujo
objetivo é culpabilizar os agricultores e agricultoras do Guapiaçu, colocando-os contra a
população do leste fluminense:

A decisão do governo é fazer as duas coisas. Uma coisa não exclui a outra. A grande
dificuldade nesse projeto da barragem de Guapiaçu é de natureza fundiária. A gente
não vai sair atropelando, as pessoas têm identidade com a terra. Óbvio que são 80
pessoas de um lado e 3 milhões do outro. Essa barragem é importante para 3 milhões
de pessoas (G1, 22/10/2015).

Oitenta pessoas é o número que o secretário do ambiente utiliza para deslegitimar a


resistência e a importância dos homens e mulheres que lá vivem. Naquela altura, estava em
elaboração o segundo EIA sobre a construção da barragem do Rio Guapiaçu. André Corrêa
afirmou que estava acompanhando o processo de produção do segundo estudo, porém os
documentos apontam um universo de impactados de 350 famílias, demonstrando um profundo

109
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/editoria/cidadania-e-inclusao/2015/01/pezao-descarta-a-realizacao-
de-obras-emergenciais-no-rj>. Acesso em: 29 maio 2018.
110
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/governo-do-rj-discute-construcao-de-
barragem-para-abastecer-niteroi.html>. Acesso em: 29 maio 2018.
210

desconhecimento do processo ou uma consciente estratégia de legitimação do


empreendimento. Ademais, já havia sido realizada uma audiência pública, mobilizada pela
ampla capacidade política e de resistência dos homens e mulheres organizados no MAB,
através da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da ALERJ, em
29/04/2014. Esta articulação ocorre justamente pela ausência de informações oficiais por
parte do Estado. Além da audiência realizada, no dia 06/03/2015, o secretário André Corrêa é
cobrado para estar presente em reunião convocada pelo MAB na comunidade de Serra
Queimada, no Guapiaçu. Nesta reunião, comparecem tanto o secretário como o subsecretário
de Estado de Projetos e Intervenções Especiais, Antônio da Hora. Portanto, André Corrêa
sabia muito bem que não eram apenas 80 famílias atingidas, mas assim o fizeram para
culpabilizar os agricultores e agricultoras pela falta de água no leste metropolitano. Vale
ressaltar, que, nesta reunião, André Corrêa afirma categoricamente que a barragem do
Guapiaçu não servirá ao Comperj:

Não é verdade, é mentira essa história de que a barragem é pro Comperj. Não é
verdade, é mentira. Eu quero dizer isso com muita clareza. A água do Comperj vem
do reuso da CEDAE, da lavagem de filtros da CEDAE. 111.

Parece que não havia muita clareza dentro do próprio governo do estado sobre o
destino que será dado às águas de uma eventual barragem. No mesmo dia em que André
Corrêa afirma que o EIA estava sendo concluído junto ao projeto executivo, o governador
Pezão afirma, ao lado de seu secretário, o seguinte:

Queremos muito que saia (a barragem). Temos recursos alocados para isso. A gente
tem que fazer essa barragem para dar segurança hídrica pro Comperj, pra Niterói,
pra São Gonçalo e para toda aquela região (G1, 22/10/2015)

O deslocamento do projeto da barragem do Comperj ocorre justamente no momento


em que se inicia a crise da Petrobras e as obras do empreendimento são paradas, capitaneadas
pelos impactos da Operação Lava Jato 112. Este distanciamento estrategicamente provocado
pelo governo do ERJ que passa a colocar a barragem como resolução da crise hídrica, esconde
elementos substanciais que envolvem a má gestão técnica e política dos “recursos hídricos”

111
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PnCGJeeJQ6M>. Acesso em: 29 maio 2018.
112
Entre governadores, presidentes da Alerj e secretários, se encontram presos: Sérgio Cabral, Jorge Picciani,
Paulo Melo. O atual governador Luiz Pezão foi citado em delações premiadas e teve seu mandato cassado pelo
Tribunal Regional Eleitoral, mas recorre no cargo.
211

no estado. Identifico dois elementos centrais que apontam a necessidade de se problematizar o


consenso da escassez hídrica promulgado pelo Estado.

2.5.1.2 As perdas físicas de água no abastecimento

As perdas físicas de água através das redes de distribuição caracterizam-se como mais
um dos entraves relativos à gestão dos recursos hídricos no Brasil. Estas perdas podem
ocorrer através de vários motivos que vão desde vazamentos, erros de medição, lavagem de
filtros e decantadores das estações de tratamento até o consumo clandestino. O fato é que a
presença elevada destes índices apresenta uma maior necessidade de planejamento,
manutenção e investimentos no setor. O Brasil apresenta um retrocesso no tocante a estas
perdas já que em 2012 estes índices chegavam a 36,9% de água própria para o consumo
humano desperdiçado, número que é elevado para 38,1% em 2016 (INSTITUTO TRATA
BRASIL, 2018).
O gráfico 2 traz uma análise comparativa a nível internacional relativo aos índices de
perdas físicas, e nos apresenta uma importante conjuntura regional e nacional. Entre os onze
países que apresentam perdas superiores a 30%, oito se encontram nesta região (Uruguai,
Colômbia, Costa Rica, Argentina, Honduras, Brasil, Peru e Equador). Países como México,
China e Estados Unidos, que possuem uma elevada densidade demográfica, apresentam
índices de perdas de 24,1%, 20,5% e 12,8%, respectivamente. A média destes índices quando
analisados os “países desenvolvidos” é de 15%, estando o Brasil 23 pontos percentuais acima
(INSTITUTO TRATA BRASIL, 2018). Tais dados denotam que se houveram maiores
investimentos públicos podem-se alcançar índices de perda física considerada satisfatória, o
que aumentaria a distribuição de águas diminuindo, consequentemente, o problema do stress
hídrico presente em algumas regiões do país.
212

Gráfico 2 – Índices de perdas físicas internacional - 2016

Fonte: Instituto Trata Brasil, 2018.

Quando analisadas as cem maiores cidades da América Latina, os índices de perda são
alarmantes e chega a 42,18%, o que significa que quase metade da distribuição é
desperdiçada. Os índices de perdas físicas das cem maiores cidades do Brasil também chegam
a 42% do total de água distribuída. Cabe ressaltar que o ERJ é responsável pelo terceiro
melhor índice entre todas as unidades da federação, com suas perdas chegando a 31% do total
de água distribuída.
O PERHI do Estado do Rio de Janeiro aponta dados alarmantes referentes às perdas
físicas das águas nas Estações de Tratamento de Água. A Região Hidrográfica (RH) da Baía
de Ilha Grande perde 31% de suas águas potáveis, a RH do Guandu 40%, a RH do Médio
Paraíba do Sul 41%, a RH Piabanha 31%, a RH da Baía de Guanabara 34%, a RH Lagos São
João 38%, a RH Rio Dois Rios 36%, a RH Macaé e das Ostras 20%, e a RH Baixo Paraíba do
Sul e Itabapoana 38%. O gráfico 3 aponta as perdas físicas de água referentes aos sistemas
integrados.
213

Gráfico 3 – Índices de perdas físicas de água dos Sistemas Integrados.


Estado do Rio de Janeiro. 2014 (%)

Fonte: COPPETEC, 2014.

Quando analisados os índices de perdas dos municípios que compõe a região


metropolitana do ERJ os municípios localizados na Baixada Fluminense, como Japeri e
Mesquita, apresentam perdas de mais de 50% (AGB, 2015), conforma aponta a tabela 8.

Tabela 8 – Índices de perdas físicas


nos municípios da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro
– 2013 – (%)

Fonte: AGB (2015), a partir de dados do SNIS.


214

As simulações apresentadas no PERHI afirmam que se realizados investimentos nos


sistemas de distribuição, os índices de perdas poderiam cair para 12% em algumas regiões
hidrográficas, cuja média poderia alcançar 7% em todas as bacias hidrográficas (COPPETEC,
2013). A partir das recomendações da COPPETEC para a instalação do programa de redução
de perdas físicas de água nos sistemas integrados, seria possível gerar uma economia de 5.000
l/s na demanda de água, o que é equivalente à mesma vazão apontada para a barragem do
Guapiaçu (AGB, 2015).

2.5.1.3 Os donos da água na região Metropolitana

O segundo elemento que deve ser problematizado é ainda mais grave e se esconde
sobre a falácia da suposta eficiência da gestão dos recursos hídricos no estado. Como dito
anteriormente, estive com o pesquisador Bernardo Santiago na 73ª Reunião Ordinária do
CERHI e chamou-nos atenção o alarmante dado proferido por uma das representantes do
INEA ao afirmar que a instituição possui apenas 20% do universo total de usuários
outorgados no Cadastro Nacional de Usuários de Recursos Hídricos (CNARH). Instituído
pela ANA a partir da Resolução Nº 317, de 26 de agosto de 2003, o CNARH torna-se registro
obrigatório para todos os usuários113 de recursos hídricos (superficiais e subterrâneos) que
captam água, lançam efluentes ou realizam demais interferências diretas em corpos hídricos
(rio ou curso d’água, reservatório, açude, barragem, poço, nascente etc.). Os dados contidos
no cadastro são auto-declaratórios e contém informações sobre vazão utilizada, local de
captação, denominação e localização do curso d’água, empreendimento do usuário, sua
atividade ou a intervenção que pretende realizar, como derivação, captação e lançamento de
efluentes.
A partir da informação obtida e confirmada no Relatório do Programa Nacional de
Consolidação do Pacto Nacional pela Gestão das Águas (Progestão) – 2016 decidimos entrar
em contato com o INEA e solicitar através da Lei de Acesso à Informação os dados referentes
ao cadastro dos usuários de águas superficiais e subterrâneas na totalidade do Estado do Rio
de Janeiro (outorgados, sujeitos à outorga e de uso insignificante), discriminados por Bacia
Hidrográfica/Microbracias/Municípios, incluindo informações sobre a vazão utilizada, local

113
Seja pessoa física e jurídica de direito privado ou pública.
215

de captação, denominação e localização do curso d'água, empreendimento do usuário, sua


atividade, intervenção que realiza ou pretende realizar, como derivação, captação e
lançamento de efluentes. O objetivo era construir, de forma independente, o mapeamento dos
donos da água no estado do Rio de Janeiro, cujo intuíto final era levantar informações que
pudessem auxiliar a luta dos homens e mulheres do Guapiaçu contra a barragem.
Foram enviadas duas planilhas com os dados brutos referentes às captações e
lançamentos por município, incluindo as declarações de usos de recursos hídricos que vão se
regularizar (sem número CNARH), e estão em regularização ou regularizadas (com número
CNARH). A análise aqui realizada está focada apenas na planilha referente aos dados brutos
das captações. Não foram considerados, portanto, a planilha referente aos dados brutos dos
lançamentos.
O primeiro fator relevante é que o universo de registros contidos na planilha de
captação é de 21.536, dos quais apenas 6.813 possuem CNARH (todos os dados foram
cadastrados entre 2006 e 2017). Isto significa que o INEA possui 31% dos registros checados
e cadastrados no Sistema Nacional de Informação sobre Recursos Hídricos. Os outros 69%
não tiveram seus registros concluídos e/ou checados pelo instituto. Vale ressaltar que este
número diz respeito apenas ao universo de registros declarados. Estes dados indicam uma
importante ineficácia do órgão ambiental, já que está em discussão o total da vazão da água
retirada para diversos fins, no estado. Ou seja, pelo fato de o INEA desconhecer cerca de 70%
da vazão retirada pela diversidade de setores que compõem o universo de usuários, o órgão
não pode afirmar se estado do Rio de Janeiro possui ou não água suficiente para o
abastecimento de todos os setores e, principalmente, para a população.
216

Tabela 9 – Uso da água por setor – Registros com e sem CNARH – Região Metropolitana do
Estado do Rio de Janeiro (2006-2017)

Registros com Registros sem Registros com e sem


CNARH CNARH CNARH
Uso por
Setor
Vazão Total de Vazão
Total de Vazão Total de %
Anual Registr Anual
Registros Anual (m³) Registros Total
(m³) os (m³)
Abastecim
4.800.474,0 79.118.9 83.919.38
ento 20 10 30 9,95
2 07,36 1,38
Público
Aquicultur 3.179. 2.251.53 5.430.615,
3 22 25 0,64
a 084,64 0,37 02
Criação 5.990. 26.168,3 6.016.910,
6 9 15 0,71
Animal 742,28 5 63
Esgotam
164.45 165.802,4
ento 1 1.344 5 6 0,02
8 0
Sanitário
225.142.89 67.963. 293.106.0
Indústria 451 318 769 34,76
9,20 141,90 41,19
1.233.2 1.323.510
Irrigação 6 90.257,10 24 30 0,16
53,72 ,83
146.965.51 21.924. 36.621.08
Mineração 32 142 174 4,34
1,52 572,80 4,33
Termoelétri 214.177,6
5 214.177,68 0 0,00 5 0,03
ca 8
400.211.81 16.148. 416.359.9
Outros 414 382 796 49,38
5,50 169,04 84,54
654.327.30 188.83 843.157.5 100,0
TOTAL 938 912 1.850
5,99 0.202 07,99 0
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.

Todos os estudos referentes aos volumes de água utilizados por setor do ERJ
consideram apenas os números com registro CNARH, o que nos dá a entender que estes são
os números reais, quando na verdade são referentes a apenas 31% do universo total de
registros mapeados pelo INEA. Enquanto isso, volumes importantes continuam a ser captados
sem ser contabilizados por estas análises. Como a planilha disponibilizada pelo INEA possui
um universo de mais de 20 mil registros, a análise aqui produzida é elaborada a partir do
recorte da região metropolitana do ERJ, já que esta é a região cujo projeto da barragem-
reservatório do Rio Guapiaçu está inserido.
Ao realizarmos o recorte para a região metropolitana do estado, o número cai para
1.850 registros, dos quais 938 possuem CNARH e 912 não possuem. Ou seja, quando
analisados os dados referentes a esta região, o total de registros consistidos é equivalente
217

a 50,7% do universo cadastrado, número consideravelmente superior se considerado o


quadro referente a todo o estado. Considerando, então, os registros analisados, com e sem
número CNARH, o primeiro resultado alcançado está refletido na tabela nº 9. É importante
mostramos este processo já que foram identificadas questões de extrema importância no que
tange à lógica da gestão dos recursos hídricos no ERJ e, consequentemente, às pesquisas
sobre os usos por setor.
A partir da separação dos registros com e sem CNARH, o universo consistido da
vazão total captada é de 77,6% com, contra 22,4% sem registro. Isto pode levar a crer que o
dado é satisfatório, sobretudo se comparado ao universo mapeado quando considerados os
registros consistidos (e não a vazão total captada), cujo índice é de 50,7% (938 registros com
CNARH). O problema é que há um considerável número de registros não consistidos (912), o
que significa que não há qualquer segurança sobre os dados apresentados.
Por outro lado, o INEA afirma que não há qualquer programa de fiscalização sobre
os dados autodeclarados e estas verificações só são realizadas quando há alguma denúncia, o
que deixa a conjuntura ainda mais grave. Quando observados os dados do setor mineral,
apenas 18,4% dos registros possuem CNARH; apenas 20% quando considerada a Irrigação;
16,7% quando considerado o Esgotamento Sanitário; apenas 12 %, quando considerada a
Aquicultura; e apenas 40% quando considerada a criação animal. Apenas os setores relativos
à termoelétrica, indústria e abastecimento público possuem mais da metade dos registros com
CNARH, cujos índices são 100%, 58,6% e 66,7%, respectivamente. No tocante ao setor
industrial, por mais que o índice alcance quase 60%, há 318 registros sem CNARH número
elevado para um setor de extrema relevância no tocante ao uso da água (é o setor que
apresenta a maior vazão 114, com aproximadamente 35% do total).
O que mais chama atenção, neste resultado, é o elevado número relativo à categoria
‘Outros’, chegando a praticamente 50% de toda a vazão anual retirada na região
metropolitana e sendo consideravelmente maior do que o uso da água do setor industrial, por
exemplo. A partir disto, foi identificada uma primeira questão importante: são consideradas
no uso da água do setor Industrial e da Mineração apenas as águas utilizadas “diretamente” no
processo de produção dos seus bens materiais. Ou seja, toda a água captada e utilizada para
lavagem de pátios, máquinas, caminhões, limpeza, abastecimento dos/as trabalhadores/as, etc,
destes setores são classificados como uso “indireto” e por isso identificados como “Outros”
usos. O que significa que todos os dados no Brasil referente ao uso da água por setor dizem

114
Excluído o setor “outros”.
218

respeito apenas à água utilizada “diretamente” no processo de produção. Logo, todos os dados
são subdimensionados. Esta lógica normativa de uso “direto” e “indireto” permite que o
volume real de água capitada pelos grandes projetos de desenvolvimento não seja
dimensionado em sua totalidade.
Com o intuito de desmembrar estes dados para chegar, portanto, ao uso real da
indústria extrativa e de transformação (que são separados em setores distintos por conta da
particularidade nos usos da água bruta) foram sendo filtradas as informações na tabela e a
partir disto constatamos outra questão importante. Foram identificadas atividades industriais
espalhadas por todos os setores acima. Em um primeiro momento, o autodeclarante se destaca
enquanto qualquer componente que não seja Indústria ou Mineração, mas ao descrever as
atividades o sistema reúne as informações e os identifica enquanto Indústria ou Mineração. As
colunas que caracterizam os empreendimentos são divididas por “Seção”, “Tipologia”,
“Grupo” e “Divisão”, no caso da Mineração. Já para o setor da Indústria são dividas por
“Seção”, “Divisão”, “Grupo” e “Tipologia”. Ambos os dados são agregados através do
Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), informado pelo autodeclarante. É
justamente nestas colunas que aparecem as contradições. Isto pode significar duas hipóteses:
fraude ou erro durante o processo de preenchimento dos dados pelo declarante. Utilizando os
mesmos dados de vazão da tabela anterior, na tabela 10, identificamos o uso indireto de água
da indústria e da mineração, nos demais setores.
219

Tabela 10 – Captação indireta da indústria extrativa e da transformação registrada por setor –


Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (Registros com e sem
CNARH: 2006-2017)

REGISTRO VAZÃO
SETOR
IND. IND. IND.
TOTAL TOTAL IND. TRANS.
EXTRATIVA TRANS. EXTRATIVA
Abastecimento
30 5 22 83.919.381,38 4.986.575,16 67.462,22
Público
Aquicultura 25 0 3 5.430.615,02 0 12.420

Criação Animal 15 4 7 6.016.910,63 5.989.866,28 21.379,55


Esgotamento
6 3 3 165.802,40 11.136 154.666,40
Sanitário
Irrigação 30 4 13 1.323.510,83 568.072 494.845,95

Termoelétrica 5 2 3 214.177,68 208.050 6.127,68

Outros 796 152 555 416.359.984,54 77.320.143,53 165.995.226,50


TOTAL 907 774 513.430.382,48 255.835.971,28
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.

A partir do desmembramento dos dados é possível identificar o uso indireto da água da


indústria de transformação (“Indústria”) e da indústria extrativa (“Mineração”) nos demais
setores. A participação no total de registros no setor “Abastecimento Público” é equivalente a
90%, na “Aquicultura” a 12%, na “Criação Animal” a 73,3%, no “Esgotamento Sanitário” a
66,6%, na “Irrigação” a 56,6%, na “Termoelétrica” a 100% e no “Outros” a 97%.
“Indiretamente” estes dois setores compõe 774 dos 907 registros. A participação destes dois
setores no total da vazão do setor “Abastecimento Público” é equivalente a 6,02%, na
“Aquicultura” a 0,22%, na “Criação Animal” a 99,9%, no “Esgotamento Sanitário” a 100%,
na “Irrigação” a 80,3%, na “Termoelétrica” a 100% e no “Outros” a 58,4%. A partir do
momento que estes dados são desmembrados, torna-se possível chegar à dimensão real do
volume de água utilizado pelo setor industrial e mineral. A tabela 11 traz, portanto, a análise
final relativa ao uso da água por setor do ERJ, em que foram retirados, de cada setor, os dados
de vazão e registro que eram relativos à indústria e mineração.
220

Tabela 11 – Uso da água por setor – Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Registros com e
sem CNARH: 2006-2017)

PARTICIPAÇÃO NO
VAZÃO ANUAL
USO POR SETOR REGISTROS TOTAL DA VAZÃO
(m³)
CONSUMIDA
Abastecimento
3 78.865.344 9,35%
Público
Aquicultura 22 5.418.195 0,64%
Criação Animal 4 5.664,80 0%
Esgotamento
0 0 0%
Sanitário
Indústria 1.368 457.385.236,73 54,24%
Irrigação 13 260.592,88 0,04%
Mineração 348 128.177.860,05 15,21%
Outro 89 173.044.614,51 20,52%
Termoelétrica 0 0 0%
TOTAL 1850 843.157.507,99 100%
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.

Com exceção dos setores “Abastecimento Público” e “Aquicultura”, os dados são


consideravelmente alterados a partir da análise integrada, quando comparados ao método
padrão que classifica o uso a partir das categorias “direto” e “indireto”. Os setores “criação
animal”, “esgotamento sanitário” e “termoelétrica” passam a não apresentar nenhuma
contribuição sobre o total da vazão consumida na região metropolitana do ERJ. Destacam-se,
portanto, as alterações ocorridas entre os setores “indústria”, “mineração” e “outros”.
O total de registros do setor industrial praticamente dobra, passando de 769 para
1.368. A vazão consumida do setor acompanha a tendência e apresenta um importante salto
de 293,1 milhões de m³ para 457,3 milhões de m³ e sua participação no total da vazão
consumida na região vai de 34,76% para 54,24%. O setor mineral também apresenta índices
elevados de alteração. Seus registros saltam de 174 para 348, mas o mais alarmante está
relacionado à variação presente na vazão total consumida e na sua participação do total onde
são observadas as maiores taxas de alteração dos dados analisados. A vazão do setor
mineração passa de 36,6 milhões de m³ para 128,1 milhões de m³, apresentando um
crescimento de 350%. A participação no total da vazão consumida passa de 4,34% para
15,21%. Apresentando a maior taxa de queda quando comparado os dois cenários, o setor
221

“Outros” tem seus registros alterados de 796 para 89, uma vazão que apresentava um total de
416,3 milhões de m³ cai para 173 milhões de m³, o que provoca uma significativa alteração na
participação no total da vazão consumida que vai de 49,38% para 20,52%.
Portanto, o setor industrial é o responsável pelo maior consumo de água na região
metropolitana (54,24%), seguido pelo setor “Outros” (20,52%) e pelo setor mineral (15,21%).
Quando aglomerados os dados do setor industrial e mineral, estes alcançam um índice de
69,45% do total da vazão consumida na região, o que é equivalente a 585,5 milhões de m³ de
água por ano. Para não seguir a metodologia utilizada pelas pesquisas do ramo, que acabam
por utilizar unidades de medida que dificultam a percepção geral sobre o real volume de água
captado, considero que devem sempre ser apresentados os valores em litros. Logo, o consumo
de água destes dois setores, na região metropolitana do ERJ, é igual a 585,5 bilhões de l/ano.
Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), o consumo médio per
capita do ERJ é de 248,31 l/hab/dia, portanto este montante é equivalente ao consumo anual
de uma população de 6,5 milhões de habitantes. A população estimada do ERJ para o ano de
2017, segundo o IBGE, é de 16,7 milhões de pessoas. Logo, a vazão total de água consumida
pelo setor industrial e mineral, considerando apenas a região metropolitana do ERJ, é
equivalente a 39,3% de toda a população do estado. Utilizando a mesma projeção do IBGE
para 2017, os municípios de Niterói, Itaboraí e São Gonçalo possuem uma população de 1,7
milhões de pessoas. . O volume total de água consumido pela indústria e pela mineração é 3,8
vezes maior do que a população destes três municípios juntos.
A proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu defende que a água reservada
será destinada para os municípios citados anteriormente, já que o Sistema Imunana-Laranjal –
responsável pelo abastecimento desta região – tem operado no limite. Porém, não há qualquer
estudo que faça um levantamento relativo ao uso da água por setor no próprio município de
Cachoeiras de Macacu e o impacto deste cenário sobre a vazão da bacia hidrográfica Guapi-
Macacu. Neste sentido, foram analisados os dados referentes ao município de Cachoeiras de
Macacu e o resultado aponta para um controle sobre o uso da água ainda maior quando
aglutinados os dados do setor industrial e mineral. A tabela 12 apresenta estes dados.
222

Tabela 12 – Uso da água por setor – Cachoeiras de Macacu (Registros com e sem CNARH:
2006-2017)

PARTICIPAÇÃO NO TOTAL
VAZÃO ANUAL
USO POR SETOR DA VAZÃO CONSUMIDA DO
(M³)
MUNICÍPIO
Abastecimento Público 0 0,00%
Aquicultura 2.050.190,40 6,49%
Criação Animal 2.190 0,01%
Indústria 19.898.356,76 62,97%
Irrigação 192.656 0,60%
Mineração 9.249.936,52 29,27%
Outro 202.949,40 0,66%
Total Geral 31.596.279,08 100,00%
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.

É importante ressaltar que o sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário


do município é de responsabilidade da AMAE, e esta não possui registro e nem outorga,
como apontado no primeiro capítulo, por isso o setor “Abastecimento Público” não indica
volume nenhum. Chama atenção a participação do setor mineral, indicando importante
presença no município sendo, apenas ele, responsável pelo consumo de 29,27% do total da
água captada. Quando aglutinados os dados do setor industrial e mineral a vazão consumida
equivale a 92,24% do total retirado dos corpos hídricos do município.
Portanto, o consumo de água destes dois setores é de 29,1 bilhões de l/ano, o suficiente
para abastecer 321.607 pessoas, o equivalente a população de seis municípios de Cachoeiras
de Macacu ou mais de um município de Itaboraí. Este montante inclui as águas de toda a
Bacia Hidrográfica Guapi-Macacu, responsável por abastecer o Sistema Imunana-Laranjal.
Estas águas não são em sua totalidade captadas diretamente dos rios Guapiaçu, Macacu e
Caceribu, mas são águas cujo potencial de recarga fica comprometido já que não completam o
ciclo hidrológico. Do contrário, poderiam aumentar a capacidade de recarga da bacia, o que
geraria maior captação do Sistema Imunana-Laranjal diminuindo, portanto, o stress hídrico do
leste metropolitano. Quando são realizados debates relativos ao assoreamento dos corpos
hídricos do município, estes ficam restringidos aos fatores relacionados ao desmatamento das
nascentes e matas ciliares e não são mencionados os volumes de água retirados por estes
setores.
Através do cruzamento das datas de declaração, do código de declaração, do código de
interferência, da latitude e da longitude presente na planilha fornecida pelo INEA foi possível
223

identificar o registro referente à AMBEV, que possui uma de suas plantas industriais em
Cachoeiras de Macacu. Foram identificados nove registros divididos em três grupos e
declarados em três datas diferentes. A tabela 13 apresenta o mapeamento destes dados.

Tabela 13 – Uso da água – AMBEV – Cachoeiras de Macacu, RJ - (2011-2017)


Data Cód. Nome Vazão
Cód. Latitud Longitud Vazão Anual
Declaraçã Interferênci Interferênci Anual (L)
Dec. e (S) e (W)
o a a (M³)
Rio
14/09/201 13751
257520 Mariquita/nº 22,4361 42,7555 693.792
1 08:09 0
1
14/09/201 13751 Rio do Gato 400.507.20
257521 22,4341 42,7608 788.400
1 08:09 0 / nº 2 0
Rio Manoel
14/09/201 13751 2.522.88
257522 Alexandre / 22,4353 42,7552
1 08:09 0 0
nº 3
Rio
30/11/201 28781
573549 Mariquita/nº 22,4361 42,7555 693.792
6 16:05 8
03
Rio
30/11/201 28781 400.507.20
573548 Guapiaçu/nº 22,4341 42,7608 788.400
6 16:05 8 0
02
Rio Manoel
30/11/201 28781 2.522.88
573547 Alexandre/n 22,4352 42,7552
6 16:05 8 0
º 01
31/01/201 29423
589533 Ponto 3 22,4361 42,7555 693.792
7 17:29 3
31/01/201 29423 400.507.20
589517 Ponto 2 22,4341 42,7608 788.400
7 17:29 3 0
31/01/201 29423 2.522.88
589233 Ponto 1 22,4352 42,7552
7 17:29 3 0
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.

Os dados declarados em 2011 são referentes ao período em que esta planta industrial
era de propriedade da Brasil Kirin. Em meados de 2016, a Ambev adquiriu a planta industrial
de produção e envase de bebidas alcoólicas e não alcoólicas da Brasil Kirin. Os outros
registros são referentes a períodos posteriores a esta operação. Como os registros de 2016 e
2017 apresentam mesma latitude e longitude será considerada apenas os dados referentes ao
ano de 2017. Portanto, apenas a Ambev capta da Bacia Hidrográfica do Rio Guapiaçu 400,5
milhões de litros de água por ano. Estes dados causam estranheza, já que os três registros
apresentam exatamente os mesmos índices de vazão consumida em um período de seis anos.
Isto significaria, portanto, que não houve qualquer alteração da produtividade da AMBEV
224

neste período, e nem mesmo quando a planta industrial era de propriedade da Brasil Kirin.
Esta situação apontada em relação à AMBEV explana um quadro de extrema
importância. Em entrevista realizada a um técnico da Subsecretaria de Segurança Hídrica e
Governança das Águas do INEA, o mesmo disse que só há fiscalização para averiguação dos
dados presentes no CNARH quando há alguma denúncia. Além de não haver qualquer tipo de
fiscalização, quando um empreendimento estiver com sua outorga vencida e quiser renová-la,
desde que os dados relativos à vazão anual consumida sejam publicados anualmente, este
processo ocorre automaticamente. Ou seja, se durante o pedido de renovação de outorga o
sistema não acusar a ausência das declarações anuais do empreendimento, o mesmo não sofre
fiscalização e tem sua renovação outorgada de forma automática.
O mesmo técnico nos informou que o sistema de fiscalização, cadastramento e
controle dos dados referentes à vazão anual consumida por setor do ERJ é o mais eficiente do
Brasil. A partir de uma análise crítica deste quadro é possível, então, dimensionar a crítica
conjuntura relativa à “eficiente gestão dos recursos hídricos” do país.
É importante frisar novamente que se a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o
Instituto Estadual do Ambiente não possuem um sistema capaz de aferir a real vazão
consumida por setor, portanto dimensionar o impacto destas atividades sobre o ciclo
hidrológico no ERJ, o governo do estado não pode afirmar que passamos por um quadro de
crise hídrica. Menos ainda apontar a barragem do rio Guapiaçu como solução para um quadro
especulativo, cujo impacto social, econômico e ambiental é extremamente elevado.
O deslocamento da justificativa da barragem do rio Guapiaçu enquanto condicionante
ambiental do Comperj não é realizado apenas sobre um discurso político. São desenvolvidas
novas estratégias políticas e de poder que visam legitimar este empreendimento e é isto que
será analisado no próximo item.

2.5.1.4 A Câmara Metropolitana de Integração Governamental: a estratégia escalar da


articulação Estado-Capital

A Câmara Metropolitana de Integração Governamental é criada a partir do Decreto


Estadual nº 44.905, de 11 de agosto de 2014. Dentre as justificativas adotadas para a criação
da Câmara Metropolitana destaco: i) o próprio governo do estado cria a necessidade do seu
poder executivo assumir a “liderança” no estabelecimento e definição de políticas públicas
225

para o “desenvolvimento sustentável da região”; ii) cria um modelo institucional de gestão


regional “participativa, eficiente e moderna” capaz de garantir a participação das forças
políticas, do empresariado e da sociedade; iii) institui, portanto, enquanto instância
institucional e espacial de planejamento, organização e gestão regional; iv) os planos,
programas e projetos do Estado e dos municípios integrantes da RMRJ “deverão ter suas
metas e objetivos compatibilizados”; v) busca integrar “diversos setores e níveis de governo
na formulação de políticas”, assim como buscar investimentos e captação de recursos junto a
entidades nacionais e internacionais; e vi) enquanto unidade espacial de planejamento e
gestão busca aglutinar os investimentos de grande porte em implantação e previsão para a
RMRJ.
A criação da Câmara Metropolitana é respaldada pelo Estatuto da Metrópole votado
em 2014 no Congresso Nacional, e sancionado em 2015 através da Lei nº 13.089, de 12 de
janeiro de 2015. Esta lei obriga os estados a elaborarem um plano de desenvolvimento urbano
integrado e caso este não seja realizado pode o governador do estado ser acusado por crime de
responsabilidade. O Art. 6º desta lei afirma que a governança interfederativa das regiões
metropolitanas e das aglomerações urbanas deve respeitar: “I - a prevalência do interesse
comum sobre o local” e a “IV - observância das peculiaridades regionais e locais”. No
parágrafo 2º do art. 10º, é afirmada que a elaboração do plano de desenvolvimento urbano
integrado não exime o município integrante da região metropolitana de suas responsabilidades
no tocante a elaboração do seu plano diretor. Porém, no parágrafo 3º do mesmo artigo está
estipulado que o município deve compatibilizar seu plano diretor com o plano de
desenvolvimento urbano integrado.
Observa-se a partir desta manobra política que é criada uma unidade territorial de
gestão que se sobrepõe aos municípios que integram as regiões metropolitanas suprimindo,
consequentemente, a autonomia destes municípios. Por mais que haja uma tentativa de
negação a esta estratégia, há indícios que apontam para este processo. O fato de haver uma
prevalência de um suposto interesse comum sobre o local é um dos indícios, assim como a
necessidade do município adequar seu plano diretor ao plano de desenvolvimento urbano
integrado. A lei não exime a responsabilidade dos municípios de elaborarem seus planos
diretores, mas obriga que estes sejam adequados à unidade territorial criada. A própria
menção à necessidade de integração de “de diversos setores e níveis de governo” reproduz a
organização federativa do Estado em que há uma estrutura escalar hierarquizada, obrigando as
instâncias localizadas abaixo destas hierarquias a se adequarem a este modelo. Isto se
expressa no Art. 1º do Decreto Estadual nº 44.905/2014:
226

§ 1º - Constituem-se como atribuições da Câmara Metropolitana de Integração


Governamental do Rio de Janeiro:
a) criar um ambiente de cooperação e apoio entre os diversos neveis de governo
presentes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que possibilite a concertação
permanente das ações na Região;
b) propor um novo arcabouço legal e institucional para a Região Metropolitana,
consagrando um modelo de governança para a Região;
c) pactuar sobre os projetos e ações de interesse comum e de caráter metropolitano a
serem implementados, definindo e os objetivos a serem alcançados;
d) estabelecer prioridades, metas e prazos referente aos projetos e as ações
pactuadas;
e) acompanhar e supervisionar a implementação os projetos e ações definidos para a
Região Metropolitana;
f) buscar fontes e alternativas de financiamento para os projetos e ações de caráter
metropolitano;
g) estabelecer condições à implementação de parcerias público-privadas de interesse
supramunicipal e alcance metropolitano.

Vale destacar a semelhança existente entre esta estrutura territorial de gestão e poder, a
partir das deliberações criadas, com as justificativas e diretrizes criadas pelo Plano Estratégico
do Rio de Janeiro 2007-2010. Há uma evidente estratégia do Estado em incorporar o capital
(chamado de “empresariado”) na participação da gestão e definição de áreas estratégicas para
o desenvolvimento, reforçando, inclusive, a necessidade de serem aglutinados investimentos
de grande porte a médio e longo prazo. Da mesma forma, é destacada a “observância das
peculiaridades regionais e locais” que no Plano Estratégico do Rio de Janeiro 2007-2010 é
denominada “vocação regional”. Através deste discurso, passam a serem regionalizados os
investimentos prioritários para a criação das vantagens comparativas – o ajuste espacial
(HARVEY, 2011) – para a expansão da acumulação do capital.
Para garantir a integração de Cachoeiras de Macacu a esta unidade territorial de gestão
e poder, o município é inserido à Região Metropolitana através da Lei Complementar nº 158,
de 26 de dezembro de 2013. O texto é redigido pelo então presidente da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), Paulo Melo (PMBD). A justificativa utilizada para
legitimar a ação foi relacionada à implantação do Comperj, o que necessitaria o
desenvolvimento de ações integradas para a região facilitando, assim, o planejamento e a
execução dos serviços públicos. Ao ser integrado a RMRJ, o município de Cachoeiras de
Macacu passa a ter a necessidade de adequar seu plano diretor ao plano de desenvolvimento
urbano integrado da região metropolitana.
O Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana
do Rio de Janeiro (PDUI/RMRJ) vem sendo desenvolvido desde 2015, e o objetivo era que o
documento fosse apresentado a ALERJ em 2017, para ser aprovado na forma de Projeto de
Lei, porém seu lançamento ocorreu no dia 21 de junho de 2018. O plano foi desenvolvido
227

pelo consórcio formado pelas empresas Quanta Consultoria e Jaime Lerner Arquitetos, sob a
coordenação da Câmara Metropolitana e cujo financiamento foi aferido pelo Banco Mundial.
Esta estratégia é confirmada na publicação “Caderno Metropolitano 4 – Modelar a
Metrópole: Construindo um modelo para a metrópole”. Há uma parte do documento em que é
questionada a participação de alguns municípios na RMRJ, mas a participação de Cachoeiras
de Macacu é justificada devida sua importância no tocante ao abastecimento hídrico da porção
leste da RM:

Por outro lado, apareceram dúvidas quanto à participação dos municípios mais a
leste, como Rio Bonito e Tanguá, cujo relacionamento principal se dá com vizinhos
externos à atual RMRJ, muito embora existam vinculações com a porção leste da
RMRJ (Grande Niterói). Houve inclusive algum questionamento sobre a
participação de Cachoeiras de Macacu nesse desenho; porém, com a demonstração
da necessidade absoluta do reservatório de Guapiaçu, faz sentido manter esse
município no conjunto metropolitano, até porque essa intervenção vai provocar
novos modelos de uso e ocupação do solo, com relevância para a segurança
alimentar da região, acompanhando nesse tema outros municípios vizinhos
(CONSÓRCIO QUANTA/LERNER, 2017, p. 79).

Neste momento de desenvolvimento do plano, são apresentadas as propostas


preliminares, mas com o prosseguimento dos estudos e a apresentação de novos materiais, a
barragem do rio Guapiaçu passa a aparecer como fato consumado. No documento
denominado “Produto 15: Consolidação dos PAPs” é apresentada a Consolidação dos
Programas de Ações Prioritárias (PAPs), relativa à Etapa 3 – Cenários, Programas de Ações
Prioritárias e Instrumentos, considerada como a penúltima etapa da construção do
PDUI/RMRJ. Nesta etapa, a barragem do Guapiaçu já é apresentada como alternativa
concreta para a resolução da crise hídrica e é, inclusive, mencionada a necessidade de garantir
medidas compensatórias às famílias atingidas:

Promover a elaboração e a implantação de plano de desenvolvimento regional na


região da barragem no Rio Guapiaçu, incluindo a criação do Circuito das Águas
(aproveitando rios, córregos e cachoeiras e área de entorno da represa), estimulando
atividades econômicas (turismo e lazer rural, pousadas e SPAs, agricultura
agroecológica, outras), garantindo medidas compensatórias para as famílias e
produtores que sofrerem impacto com a implantação do reservatório, implantando
infraestrutura e equipamentos sociais e levando o desenvolvimento socioeconômico
da região, de maneira sustentável, preservando o meio ambiente. Consiste na
elaboração de programa, plano e projetos (CONSÓRCIO QUANTA/LERNER,
2018, p. 43).

Na atual conjuntura, a política de construção de barragens assume caráter central


quando analisadas as alternativas para garantir a disponibilidade hídrica a médio e longo
prazo. É prevista a implantação de uma barragem no rio Major Archer para promover o
228

abastecimento humano de Duque de Caxias. É reconhecida, ainda, que a barragem do Rio


Guapiaçu não possui vazão suficiente para garantir o abastecimento da região leste
metropolitana até 2040. Portanto, é apontada a necessidade de promover um estudo para a
adequação da barragem de Juturnaíba:

Promover estudo para utilização da barragem de Juturnaíba, considerando que o


aumento da disponibilidade hídrica a ser obtido pelo Reservatório de Guapiaçu não é
suficiente para atender a demanda do Sistema Imunana/Laranjal até o final do
horizonte de planejamento do PDUI (CONSÓRCIO QUANTA/LERNER, 2018,
p.45).

No documento final, que apresenta a versão preliminar do PDUI/RMRJ, a bacia


hidrográfica do rio Guapiaçu é apresentada como a única que possui uma área preservada e
com geometria favorável para a implantação da barragem, dentre as bacias que contribuem
com o Sistema Imunana/Laranjal. Seu custo é avaliado em R$300 milhões e as fontes de
financiamento são o Governo Federal, Estadual, a governança metropolitana, fontes
internacionais (não especificadas) e o BNDES. A partir da criação desta unidade territorial de
gestão e planejamento, fica limitada a capacidade do governo municipal de Cachoeiras de
Macacu em frear este processo, já que o município é obrigado a adequar seu plano diretor.
Durante o processo de elaboração do PDUI/RMRJ, houve outra articulação política
que parece ter desempenhado importante papel na articulação em defesa da construção da
barragem do Guapiaçu. Trata-se do Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Leste
Fluminense (ConLeste), criado a partir do anúncio da localização do Comperj feito pela
Petrobras. Inicialmente composto por onze municípios o ConLeste agrega atualmente quinze
municípios: Araruama, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Guapimirim, Itaboraí,
Magé, Maricá, Niterói, Nova Friburgo, Rio Bonito, São Gonçalo, Saquarema, Silva Jardim,
Tanguá e Teresópolis. Deste total, dez municípios estão inseridos na RMRJ.
Atualmente o ConLeste é presidido pelo prefeito de Niterói, Rodrigo Neves (PDT), e a
vice-presidência são ocupados pelo prefeito de Itaboraí, Sadionel Oliveira Gomes Souza
(PMB). Ambos os municípios são abastecidos pelo Sistema Imunana/Laranjal e estão
inseridos no montante de municípios que passam por déficit hídrico. Em maio de 2017, o
ConLeste acionou a Petrobras na justiça devido à paralisação das obras no Comperj, já que na
visão desta articulação política este empreendimento é de suma importância para o
desenvolvimento regional.
Nas reuniões construídas pelo ConLeste, foram feitos debates sobre a necessidade de
construção da barragem do rio Guapiaçu e os técnicos presentes nestes espaços para
229

apresentar as alternativas à conjuntura hídrica eram diretores da Águas de Niterói, subsidiária


do Grupo Águas do Brasil. Este grupo já se pronunciou afirmando que a solução para o
abastecimento hídrico da região leste metropolitana é a construção da barragem do rio
Guapiaçu. Este espaço se torna estratégico a partir da criação da Câmara Metropolitana, pois
permite que seus prefeitos se reúnam para debater agendas comuns e pautar soluções
articuladas quando analisados assuntos de caráter estratégico. O posicionamento em bloco
deste grupo, a partir de uma atuação em escala distinta da região metropolitana, legitima a
lógica da “prevalência do interesse comum sobre o local” o que acaba por subsidiar a Câmara
Metropolitana e o PDUI/RMRJ.
Se há quatro anos, a justificativa que procurava legitimar a barragem do Guapiaçu
estava intimamente ligada ao Comperj, hoje não há qualquer relação entre estes dois
empreendimentos. Com o recuo das dimensões do Comperj e a crise da Petrobras, foi
necessário um re-articulação do Estado e do capital para buscar fundamentos que pudessem
fundamentar a construção do reservatório hídrico no Guapiaçu. Esta mudança na conjuntura
foi possível devido à construção de uma estratégia que buscou absorver outros agentes
políticos sendo capaz de agregar mais força política, já que o governo do ERJ deixou de
possuir a legitimidade política e financeira necessária para bancar o empreendimento. Foram
empregadas estratégias, a partir de coalizões entre grupos e segmentos de classe que ocupam
diferentes posições e níveis de interação com blocos hegemônicos. Estas estratégias buscaram
ampliar a escala – vertical e horizontalmente – para aumentar seu poder e legitimidade através
de posicionamentos em blocos, onde diferentes agentes possuíam mais ou menos influência
local-regional-nacional-global.
No próprio território do Vale do Guapiaçu, há um bloco representado pelo Sindicato
Patronal da região e por ONGs ambientalistas que foram capazes de criar arenas de conflito
internas. Este bloco defende a construção de pequenas barragens e quando está em público
apresenta este projeto territorial enquanto alternativa à grande barragem-reservatório, mas nos
espaços políticos de gestão dos “recursos hídricos” está mais interessado em defender seus
projetos, e isso inclui articular a grande com as pequenas barragens, para a partir disso
promover maiores articulações com o intuito de obter maior legitimidade e poder local.
230

2.5.2 O projeto patronal e suas articulações em escala – As grandes e pequenas barragens

A proposta de construção de três pequenas barragens enquanto alternativa à grande


barragem proposta pela SEA é articulada e projetada pela articulação do Sindicato dos
Produtores Rurais de Cachoeiras de Macacu (SRP-CM), da Secretaria Municipal de Meio
Ambiente de Cachoeiras de Macacu (SMMA-CM) e pela ONG Projeto Gaya Viva. Esta
coalizão surge a partir das informações são fornecidas pelo governo do ERJ no tocante ao
projeto de construção da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu.
A aliança constituída por estes atores é claramente a construção de um bloco de poder
que tem suas reverberações nas escalas de ação e influência destes três grupos. A ONG
Projeto Gaya Viva é oriunda da Sociedade Civil Organizada de Macacu (SCOM), que antes
da chegada do MAB no Vale do Guapiaçu, era o grupo que buscava assumir o protagonismo
na luta contra a grande barragem. Devido a grande importância da produção agrícola oriunda
da agricultura familiar em Cachoeiras de Macacu, em que o Vale do Guapiaçu apresenta os
maiores índices de produtividade, seria um erro estratégico a Prefeitura de Cachoeiras de
Macacu se colocar, pelo menos publicamente, a favor da construção das barragens já que tal
ação poderia comprometer a continuidade e a garantia do poder de grupos que se lançam pela
disputa do governo local. O patronato rural é um ator histórico no município, e suas
interferências e influências estão diretamente ligadas ao poder que estes têm a partir do
latifúndio. TELÓ (2015) aponta a íntima relação que o latifúndio local provia com a Ditadura
Empresarial-Militar de 1964, onde foram vários os casos em que foram acionados o exército
para conter as ocupações dos sem terra na região. Estes processos deram origem ao
Assentamento São José da Boa Morte, do Vecchi e da Ilha Vecchi, sendo estes dois últimos
localizados na área atingida pelo projeto da barragem. Trata-se então de uma coligação de
poderes que busca reforçar seus poderes históricos a partir da criação de um projeto territorial,
resinificado sob o viés da sustentabilidade ambiental como contraponto à barragem da SEA.
A união destes três grupos, então, passa a buscar legitimidade nos espaços
institucionais de gestão da água e utilizam do discurso tecnocrático para fundamentar seus
poderes e propostas. Estes ocupam, atualmente, cadeiras no Sub-Comitê Leste da Bacia
Hidrográfica da Baía de Guanabara, no Comitê de Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara e
no CERHI-RJ. A partir desta estratégia, o grupo passa a ocupar também o GT Guapiaçu,
criado pelo CERHI-RJ para avaliar alternativas a respeito do fornecimento de água para o
leste metropolitano. Vale ressaltar que todo este movimento de ocupação dos espaços
231

institucionais é deliberado a partir desta coalisão, cujo intuito, em um primeiro momento,


estava relacionado à busca de informações sobre o projeto da grande barragem.
A proposta elaborada pelo SPR-CM, SMMA-CM e ONG Projeto Gaya Viva apresenta
então a alternativa da construção de três pequenas barragens que buscam suprir os 90 milhões
de m³ relativos à grande barragem proposta pela SEA. A primeira delas é prevista para ser
alocada no Rio Anil, localizada na comunidade de mesmo nome, e cuja área também é
atingida pela grande barragem, sua capacidade de armazenamento chegaria a 30 milhões de
m³ e atingiria cerca de 50 pessoas; a segunda é prevista para o Rio Caboclo, localizada na
comunidade de Serra Queimada, e estaria sobreposta justamente sobre as Redes Comunitárias
de Água, região que também é atingida pela grande barragem. Sua capacidade de
armazenamento chegaria a 50 milhões de m³ e atingiria cinco propriedades e 15 pessoas; e a
última estaria localizada no Rio Soarinho, a única mencionada no PDRH-BG, cuja capacidade
de armazenamento chegaria a 30 milhões de m³ e atingiria apenas um proprietário.
A proposta das três barragens alternativas apresentadas por esta coalisão se utiliza do
discurso de que este é um projeto apresentado por pessoas diretamente atingidas – via SPR-
CM – pela grande barragem e por isso ganha legitimidade política nos espaços institucionais
de gestão dos “recursos hídricos”. A proposta acaba criando uma disputa interna no território,
já que apresenta um universo de impactados extremamente menor ao da grande barragem,
aliado ao fato de uma considerável redução de comunidades atingidas, passando de onze pela
grande barragem, para duas. Vale ressaltar que a pequena barragem localizada no rio Soarinho
não está inserida no Vale do Guapiaçu.
É então articulada dentro do GT Guapiaçu a compra de cinco estações pluvio-
fluviométricas, cujo objetivo estava ligado à ampliação do monitoramento hidrológico das
bacias dos rios Guapiaçu, Macacu e Guapimirim. É solicitado ao CBH-BG o recurso
destinado para a compra destas estações, e através da Resolução nº 30 do CBH-BG são
repassados R$367.000,00 via recurso do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI).
Neste ínterim, são condicionadas mais duas alternativas de pequenas barragens, sendo: uma
no Rio Guapimirim e outra no Rio Tatu (SANTIAGO, 2017).
A partir do momento em que este bloco recebe o recurso passa a ser necessário
estabelecer articulações estratégicas nas áreas onde serão instaladas as estações pluvio-
fluviométricas. Em reunião do GT Guapiaçu115 que ocorreu no dia 13/07/2016 são
apresentados os estágios do processo de instalação de cada uma das estações. O relato aponta

115
Disponível em: <https://www.segurancahidricarj.com.br/gt>. Acesso em: 28 jun. 2018.
232

que até esta data haviam sido instaladas as estações no rio Anil e no rio Tatu. É apontada a
necessidade de articulações com os proprietários da terra onde seria instalada a estação do rio
Soarinho. No documento, é disponibilizado o nome e o número de duas pessoas,
provavelmente donos das terras mapeadas para instalação. O mesmo ocorria com a estação do
rio Guapimirim e a área mapeada era de propriedade do grupo SENDAS, cujo documento
apresenta o número do celular do escritório e o nome de quem deveria ser contatado. Em
relação à estação do rio Caboclo, é colocado que foi iniciada a infraestrutura da estação, mas
que o processo havia sido interrompido, pois não havia ainda a autorização do proprietário.
Isso quer dizer que o processo foi iniciado sem a devida autorização.
Na reunião seguinte, realizada no dia 22 de novembro de 2016, são atualizados os
estágios do processo de instalação. Consta que, nesta data, a estação do rio Guapimirim já
havia sido realizada. O mesmo ocorria com a estação do rio Soarinho, que neste intervalo
pôde ser instalada. Quando atualizada a situação da estação do rio Caboclo, é relatado que a
instalação parcial havia sido retirada, devido a ameaças de vandalismo dos proprietários
locais. No documento é relatada uma reunião realizada com as principais lideranças locais,
cujo objetivo era convencê-los a sobre a importância do processo, e que estas conversassem
com os agricultores e agricultoras para que fosse liberada a instalação das estações. É relatada
uma tentativa de contato com as lideranças locais para averiguação da situação referente à
autorização da instalação das estações, porém não foi obtido sucesso.
Não há qualquer relato nas reuniões seguintes do GT a respeito da instalação do
equipamento no rio Caboclo. Porém, com informações obtidas em campo, SANTIAGO
(2017) relata que quando esteve em uma reunião do SLBG-BH, no dia 23 de março de 2017,
foi informado que um membro do SPR-CM não estava presente, pois se encontrava na região
da Serra Queimada para instalar a estação. Como havia um consenso entre os agricultores e
agricultoras de não autorizar a instalação do equipamento, a notícia de que o equipamento
havia sido instalado foi recebida com surpresa, quando lá estive em maio de 2017. Após uma
averiguação em busca do local de instalação da estação foi constatado que a mesma havia sido
alocada de fato no rio Caboclo, na propriedade do herdeiro do José Tostes, ex-dono da
fazenda Serra Queimada. Está é justamente a área denominada “Chiqueirão”, que no primeiro
capítulo é relatada a exclusividade da água da Rede Chiqueirão para os porcos. Anteriormente
expliquei que no processo de compra da fazenda, via Banco da Terra, o latifundiário havia
ficado com uma área de 10 hectares na região de Serra Queimada. É justamente nesta ilha
territorial, no meio do assentamento, que o membro do SPR-CM articula com o herdeiro do
latifundiário a instalação da estação que ameaça a comunidade de Serra Queimada. Fica
233

explícito como este bloco que reúne diferentes atores utiliza seus poderes locais, associado
com articulações em outras escalas, para fundamentar seu projeto de poder e se legitimar nos
espaços institucionais de gestão da água.
SANTIAGO (2017) relata que esteve presente em conjunto com a pesquisadora
Barbara Pelacani, na reunião da plenária do SLBH-BG e que neste espaço ficou explícita a
estratégia que tange à articulação entre pequenas e grandes barragens. Apesar da barragem do
rio Guapiaçu não estar no ponto de pauta, foi realizado um questionamento de um participante
sobre o projeto que é prontamente respondido pelo representante da concessionária Águas de
Niterói e coordenador do SLBH-BG:

Hoje nós temos uma situação de aperto na estiagem, que a gente opera no limite,
fora isso a gente tem em tempo de chuva, por exemplo, boa parte do ano até uma
situação confortável, só que com essa situação que a tendência é segundo os estudos
da até câmara metropolitana de 80% do Estado morará na região metropolitana nos
próximos 20 anos, a previsão é essa, vai ter demanda, vai ter demanda reprimida, vai
ter necessidade, entendeu? Então não é que eu defenda a barragem, eu defendo a
barragem ou as duas alternativas necessárias, porque quanto mais água melhor, mas
o questionamento de Cachoeiras de Macacu é esse, assim como dos produtores, se
você já fizer a barragem de agora, de imediato, você depois perde as possibilidades
de fazer as pequenas barragens acima, pequenas é só um nome porque elas têm
menor impacto financeiro e menor impacto social porque elas têm capacidade de
armazenamento maior ou igual à barragem do Guapiaçu. Então, já o contrario não,
se a gente fizer as pequenas barragens primeiro, aí a gente vai ter condições de
construir, se necessário, a barragem maior abaixo (apud SANTIAGO, 2017, p. 69).

A resposta, não à toa dada pelo representante da Águas de Niterói, subsidiária do


Grupo Águas do Brasil, explana a estratégia que envolve a política de construção de
barragens. Uma das acionárias do grupo Águas do Brasil é a construtora Carioca Engenharia e
a visão apresentada pelo representante do grupo indica a lógica “quanto mais obra melhor”,
camuflada pelo discurso da disponibilidade hídrica. No início deste capítulo, apontamos o
quadro de intensificação da concentração dos serviços de abastecimento de água e
esgotamento sanitário que tem ocorrido a partir dos processos de privatização destes serviços.
Como apresentado, o grupo Saneamento Ambiental Águas do Brasil S.A é a quarta empresa
com o maior número de contratos de prestação de serviços no Brasil. O interesse do grupo na
construção de barragens fica explícito, assim como apontado no ítem anterior que explana a
influência do grupo no ConLeste, já que estes tipos de emprendimentos possibilitam o
controle de vazão. Além disso, a subsidiária do grupo Águas do Brasil opera a distribuição da
água tratada pelo Sistema Imunana/Laranjal.
Esta articulação de poderes conservadores locais com poderes que operam em
múltiplas escalas é mais um entrave colocado na luta dos agricultores e agricultores do
234

território, que organizados no MAB apresentam outra proposta para a resolução do déficit
hídrico regional.

2.5.3 Águas para a vida e não para a Morte: o território do Movimento dos Atingidos por
Barragens

A chegada do MAB ao Guapiaçu, em 2012, provoca uma importante transformação na


maneira como vinham sendo desenvolvida as estratégias de resistência no território. Antes da
chegada do movimento, havia uma conjuntura de boatos e ausências de informações sobre o
projeto da barragem, e o que havia de resistência era capitaneado pela articulação do SPR-CM
com a SCOM (atual ONG Projeto Gaya Viva). No item anterior, foi destacado o papel destes
dois atores e como foram desenvolvidas suas estratégias de luta no decorrer destes seis anos.
Pode-se imaginar, a partir da conjuntura colocada, o provável quadro de vulnerabilidade por
qual poderiam estar passando os agricultores e agricultoras do Vale do Guapiaçu.
A primeira grande contribuição do movimento é provocar uma inflexão no território
sobre a disputa pelo conceito de atingido/a defendido pelo Estado em relação à concepção
adotada pelo MAB. O Estado considera atingido, o que fica evidente a partir do RIMA,
apenas as pessoas que se encontram sobrepostas ao espelho d’água do reservatório e aquelas
que se encontram no raio de 1 km do lago. É sobre esta ótica que são identificados apenas 998
pessoas e 322 domicílios atingidos pelo projeto. Para o MAB, a dimensão de ser atingido
passa pelo complexo processo de mudança social ocasionado pelo deslocamento compulsório,
entendendo que a identificação dos/as atingidos/as não se limitam aos impactados pela
construção dos reservatórios, mas sim por qualquer obra e intervenção associada ao
empreendimento em si. A identificação dos tipos de impactos gerados deve passar pelo a)
deslocamento compulsório, b) perda de terras e outros bens, c) perda ou restrição de acesso a
qualquer dimensão que materialize o modo de vida local, d) perda ou redução dos meios de
sustento, e) quando há ruptura de circuitos econômicos. Nesse sentido, são também atingidas
as pessoas localizadas à jusante do reservatório, que em geral só tem os impactos percebidos
após o enchimento dos reservatórios, já que são estruturalmente alteradas as condições de
reprodução da vida, as redes de sociabilidade, as dimensões culturais e identitária dos grupos
que compõe este universo. Ademais, as perdas de natureza afetiva, simbólica e cultural não
são passíveis de quantificação ou indenização financeira; e qualquer sujeito que viva e
235

dependa da área impactada, mesmo que este não possua o título legal de propriedade, vínculo
legal de emprego ou de formalização de ocupação e/ou atividade é atingido pelo
empreendimento (MAB, 2011).
Este debate provoca uma significativa alteração da concepção local de atingido, que
passa a perceber a existência de processos comuns que interligam a ampla gama de pessoas
que compõe a área em disputa e potencialmente alegada e afetada. A partir desta modificação,
é dado início a um amplo processo de debate em que o movimento compartilha sua história e
amplia o debate para outras escalas, cujo intuito é apontar as semelhanças entre o processo
que ocorre no Guapiaçu com outras localidades que passam/passaram por experiências
semelhantes.
A primeira estratégia, portanto, passa a ser a construção de uma mobilização popular
capaz de demonstrar força e unidade interna para realizar o confronto político necessário com
as instâncias do poder público e do capital responsáveis pela proposição do projeto. São
construídas, concomitante a este processo, alianças de poder e política que articulam outras
escalas e que trazem novos aliados à resistência. São realizadas alianças, dentro das
possibilidades e limites, com a Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu, com o
Ministério Público Federal, com a AGB, com mandatos parlamentares da ALERJ e com
mandatos de deputados federais, o que permite uma capacidade multiescalar de denúncia e
publicitação do conflito. Atos públicos na ALERJ, no INEA, na sede do BNDES, da
Petrobras e carreatas na RJ-116 fazem parte das estratégias de enfrentamento e mobilização.
A partir da elaboração do documento “Impactos Sociais da barragem do Guapiaçu”
(2015) constitui-se um dossiê produzido pelo próprio movimento a partir da participação
popular, cujo objetivo é criar um estudo que apresente uma versão dos/as atingidos/as sobre o
conflito pela barragem. De início, o documento aponta as diretrizes que regem o dossiê, ao
mesmo tempo em que são apresentadas as bandeiras de luta do movimento, reivindicando
que:

- seja iniciada a análise de alternativas à barragem do Guapiaçu, priorizando


tecnologias que primam pela recomposição florestal e a preservação ambiental como
um todo, condição essa capaz de aumentar a capacidade de armazenamento de água
no solo;
- seja cancelado o licenciamento da barragem do Guapiaçu;
- seja realizada uma auditoria social externa no vale do Guapiaçu para que se
comprovem as graves omissões produzidas no âmbito do EIA e Rima do projeto;
- seja criada uma política estadual de direitos para as populações atingidas por
barragens do estado do Rio de Janeiro, marco legal este capaz de produzir um
ambiente de maior segurança e prosperidade para as pessoas que vivem em condição
de ameaça (MAB, 2015, p. 5).
236

O dossiê identifica um padrão de violação de direitos humanos no Vale do Guapiaçu


que é comumente praticado em territórios em conflitos por barragens, como aponta o relatório
da Comissão Especial Atingidos por Barragens, organizado pelo Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana (CDDPH, 2011). O MAB denuncia, portanto, a existência de
cinco violações de direitos no território: i) falta de informação, através da omissão ou recusa
no fornecimento de informação, falta de assessoria jurídica, uso de linguagem inacessível,
fornecimento de informações falsas e/ou contraditórias e a precariedade e insuficiência dos
estudos técnicos; ii) definição restritiva e limitada do conceito de atingido; iii) omissão das
especificidades socioeconômicas e culturais das populações atingidas; iv) omissão diante das
necessidade particulares de grupos vulneráveis, como idosos e portadores de necessidade
especiais; e v) lacuna e/ou má explicação da legislação (p. 22-23).
Entre as múltiplas formas de impactos materiais já ocasionados e potencialmente
ocasionados pelo projeto da barragem, são identificados: i) inundação de terras de cultivo; ii)
inundação de parte de propriedades; iii) instalação de Área de Preservação Permanente, o que
abrangeria mais 1.190 hectares de terras inviabilizadas; iv) isolamento de famílias ou
ocasionamento de maiores dificuldade de acesso; v) inundações e/ou enchentes frequentes vi)
encharcamento do solo em função da elevação do lençol freático; vii) destruição de mercados
consumidores e fornecedores; fechamento de escolas e postos de saúde; viii) encerramento de
postos de trabalho na agricultura; e ix) falta de investimentos públicos na região influenciado
pela possiblidade de construção do reservatório (MAB, 2015, p. 11-12).
Em contraposição às 322 residências e 998 pessoas atingidas apontadas pelo RIMA da
barragem, o MAB identifica um universo de 765 famílias cujo universo de pessoas
atingidas salta para 3.000 pessoas. Do total de famílias mapeadas, 309 foram identificadas
como sem terra, o que aponta a extrema vulnerabilidade quando considerada a lógica de
indenização e reassentamento adotadas pelo Estado brasileiro.
As táticas de construção da luta cotidiana no território e das estratégias de
enfrentamento a partir do território se mostram eficazes quando o RIMA da barragem
elaborado em 2014 é cancelado em maio do mesmo ano, apenas cinco meses depois de sua
publicação. Isto permite que o movimento e a resistência ganhem tempo, e a partir disto é
construído o segundo momento da luta contra a barragem, que tem delineado as ações até os
dias atuais.
Com a paralização do processo de licenciamento – que dura até janeiro de 2016,
quando é publicado o segundo RIMA – a pauta de ação do MAB passa do esforço coletivo em
237

construir as denúncias para pautar a necessidade de construção de alternativas, através do


processo de ambientalização da luta (ACSELRAD, 2010).
Em 2016, o movimento opta pela estratégia de implantação de 35 unidades do projeto
Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), distribuídos entre 35 famílias. O
PAIS é um projeto de metodologia fechada que aposta na produção de hortaliças, frutíferas a
partir do consórcio com a criação de pequenos animais, sem a utilização de agrotóxicos.
Trata-se de uma estratégia de iniciar o debate dos impactos ocasionados a saúde do/a
trabalhador/a e ao meio ambiente através do uso de agrotóxicos. A instalação das unidades é
acompanhada da prerrogativa da necessidade de serem ministradas oficinas que atravessam os
temas da transição agroecológica, beneficiamento e comercialização de alimentos, produção e
utilização de caldas naturais, entre outros temas. Este processo é responsável por constituir
uma importante aliança com a Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) que se
fez presente em alguns destes momentos.
Há que se destacar uma importante contradição que permeia a origem do
financiamento do PAIS no Brasil e no Rio de Janeiro. Foi através de uma manifestação
realizada no dia 1 de outubro de 2015 na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, que o então
presidente do banco, Luciano Coutinho, recebeu lideranças do movimento que representavam
cerca de 400 famílias atingidas de todo o Brasil que se encontravam na porta da sede do
banco. Na reunião ali realizada, o presidente se comprometeu a liberar R$50 milhões, dos
quais R$40 milhões viriam do Fundo Amazônia e os outros R$10 milhões do Fundo Social do
BNDES, para o investimento no projeto PAIS em áreas ameaçadas e/ou atingidas por
barragens em todo o país. O BNDES é o maior financiador de grandes projetos de
desenvolvimento em todo país, portanto financia os maiores conflitos territoriais e
socioambientais provocados por estes empreendimentos. De alguma maneira, este tipo de
negociação reforça a tentativa do banco em apresentar uma mascarada e falaciosa vertente
“sustentável” a partir de investimentos em projetos deste porte. Da mesma maneira, corrobora
a lógica das compensações ambientais em que empreendimentos de extremo impacto
socioambiental investem em projetos (vide a Petrobras Ambiental) que supostamente
apresentam ganhos para a sociedade e o meio ambiente.
Esta iniciativa faz parte de uma estratégia que busca apresentar uma ação prática capaz
de compatibilizar o discurso de alternativas defendido pelo movimento, com a tentativa de
construção de uma transição agroecológica no território.
Atualmente a bandeira defendida pelo MAB em contraposição à barragem do rio
Guapiaçu defendo os seguintes pontos:
238

- ações de recuperação de mata ciliar e nascentes do vale do rio Guapiaçu, dentro do


programa Produtores de Água, com a instalação de viveiros para produção de mudas
nativas;
- construção de pequenos açudes e curvas de nível;
- construção e/ou reforma de sistema de esgotamento sanitário em pelo menos 1.000
residências no vale do Guapiaçu;
- subsídio para a produção agrícola sustentável, com investimento em infraestrutura
e assistência técnica para pelo menos 500 famílias;
- instalação de agroindústrias para o melhor aproveitamento dos produtos e
subprodutos da atividade agropecuária local; (MAB, 2015, p. 31).

A maior contradição que tange o projeto territorial do MAB para o Vale do Guapiaçu
diz respeito justamente as Redes Comunitárias de Água existentes há 18 anos. Como
amplamente apresentado no primeiro capítulo, às redes comunitárias se traduzem enquanto
dimensão material e simbólica da episteme camponesa que tem no trato da água e da terra a
concretização destas formas de sentir-pensar-e-fazer. Mais do que isso, esta experiência se
constitui enquanto um projeto camponês do (e para o) território, cujas condições que levaram
a apropriação popular das águas estão diretamente relacionadas à ausência do Estado em
promover as condições materiais de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A
insígnia do movimento construída no 8º Encontro Nacional, “Água e Energia, com soberania,
distribuição da riqueza e controle popular”, é expressa concretamente pelos agricultores e
agricultoras a partir das formas de gestão comunitárias construídas ao longo destes anos, antes
da chegada do MAB ao território. Os/as camponeses/as obtém soberania e controle no tocante
ao abastecimento da água e distribuem esta riqueza sob o viés da água enquanto bem comum,
portanto não dotada de valor econômico. Como apresentado no primeiro capítulo, estas redes
apresentam constantes problemas técnicos que estão mais relacionados a uma incapacidade de
promover um aporte financeiro capaz de reestruturar o sistema, do que uma incapacidade
técnica dos/das comunitários/as de responderem a estas adversidades. Isto é expresso, por
exemplo, no mapeamento já elaborado pela base das necessidades estruturais que devem ser
sanadas para que sejam efetuados os melhoramentos do abastecimento comunitário da água.
Considero que quando o MAB defende que a água e a energia devam estar sobre o
controle popular, este esteja mais ligado ao controle do Estado via fiscalização e participação
popular nos/dos espaços institucionais relativos a estes temas. A gestão autônoma e
comunitária se apresenta, portanto, enquanto outro modelo de organização e controle e que de
alguma maneira se contrapõe ao projeto institucional do movimento. Nesse sentido se
expressa uma dificuldade do MAB não só em compreender este modelo de gestão, mas a
partir disto reconhecer e potencializar esta organização de base já existente, o que levaria há
239

uma necessária autocrítica no tocante a compreensão interna do movimento frente às disputas


pela gestão e controle da água.
Quando o movimento decide não participar de um debate e de uma experiência
concreta que se re-produz no território do Vale do Guapiaçu, este perde uma importante
brecha estratégica no que diz respeito a apresentação de alternativas populares de gestão da
água. A experiência das redes comunitárias de água não pode ser considerada enquanto
alternativa a resolução do déficit hídrico que tange o leste metropolitano, sobretudo porque
esta não se propõe a isto, já que está mais vinculada a uma estratégia de defesa popular dos
bens comuns frente à expansão do capital sobre a água. E aí é colocada a principal questão: o
MAB, então, possui de fato um projeto alternativo para a gestão das águas ou apenas visa
controlar os espaços institucionais de gestão para, a partir disto, tentar promover o controle
popular, a soberania e a distribuição das riquezas?
Este segundo capítulo procurou destrinchar as estratégias criadas e reproduzidas pelo
Estado e associadas ao capital para permitir que este dê seguimento aos seus processos de
expansão, cujo controle da água é central em qualquer atividade industrial. Enquanto
estivermos focados em apenas resistir aos conflitos pela água e terra que são ocasionados nos
territórios, nos caberá, apenas, estes espaços institucionais do Estado Democrático de Direito
já controlados pelo capital. Nesse sentido, as redes comunitárias de água e as múltiplas formas
de controle popular sobre água que re-existem no Vale do Guapiaçu e certamente em muitos
outros territórios se apresentam enquanto alternativa concreta de defesa dos bens comuns e de
alternativas populares de gestão das águas. Estes territórios estão apresentando experiências
pautadas sobre epistemes, muitas vezes, distantes das matrizes epistemológicas que delineiam
as formas de pensar e fazer de alguns movimentos sociais. São apresentadas outras formas de
se conceber o mundo, outras formas de relação com a natureza e que, portanto, se traduzem
em outras formas de organização política. Quando estas experiências não são percebidas,
reconhecidas e potencializadas, acabamos por reproduzir a mesma invisibilidade que o Estado
produz sobre estes territórios. O MAB precisa se mostrar capaz de apresentar outras formas de
controle e gestão das águas que não podem passar apenas pela recuperação de matas ciliares e
nascentes e há uma experiência em seu território de atuação que já aponta importantes e
potenciais caminhos.
Há, portanto, dois importantes desafios interno-externos colocados ao movimento. O
primeiro deles passa por mergulhar concretamente sobre estas experiências populares de
gestão e controle que existem no Vale do Guapiaçu, potencializado sua capacidade e
eficiência, e buscar identificar e se articular com outras experiências que se assemelham ao
240

que ocorre no território para buscar a construção de redes populares de controle e defesa das
águas. O segundo está na capacidade do movimento conseguir responder à altura a partir das
recentes re-articulações que tem sido postas para legitimar a barragem do rio Guapiaçu. A
tática do ERJ em deslocar o debate da barragem para o PDUI/RMRJ amplia a escala de
aliados do Estado, que antes estava restrita ao leste metropolitano, o que faz com que a
correlação de poder seja colocada de maneira desigual. Como vimos, o ConLeste tem sido o
espaço para articular os municípios que o compõe cujo intuito é garantir um posicionamento
em bloco da região para pleitear e conquistar seus objetivos no tocante à resolução dos
déficits hídricos locais.
241

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parto de um princípio antagônico ao que é defendido pelo capital e pelo Estado. Estes
se empenham em afirmar que a água é um “recurso finito” e dotado de valor e que através do
discurso da escassez fundamentam um aparato técnico-político-e-ideológico para criar as
condições normativas e institucionais que permitem a expansão do controle do capital via
acumulação por espoliação. Defendo a necessidade da construção do consenso da
abundância, que tem por princípio des(truir)construir a falácia empregada pelo capital e pelo
Estado da “crise hídrica”. Defender o princípio da abundância não significa negar a
materialidade que a realidade nos apresenta em alguns espaços: que de fato falta água para
homens, mulheres e crianças. Mas sim buscar a compreensão, a partir das múltiplas escalas
dos fenômenos, das condições estruturais que ocasionam estas tensões hídricas mais ligadas a
uma desordem ecológica global (PORTO-GONÇALVES, 2006), do que a inexistência de
água suficiente.
Por exemplo, devemos agradecer – e não nos desesperar - ao fato de termos ¾ do
planeta Terra coberto por água e que destas 97% sejam salgadas, pois é justamente esta
complexa estrutura ambiental que permite que 80% da água que retorna a superfície terrestre
sejam oriunda da evaporação dos mares e oceanos (GLEYCK, 1993, apud PORTO-
GONÇALVES, 2006). Se tivéssemos mais água doce disponível do que temos de água
salgada, talvez não tivéssemos conseguido desenvolver as condições metabólicas necessárias
para abitar este planeta.
O aparato técnico-político-e-ideológico tem na Conferência de Dublin o seu momento
decisivo onde é deflagrada uma estratégia articulada pelo capital em pautar tanto a concepção
jurídica e normativa sobre a água, quanto às formas de gestão que devem ser empregadas nos
Estados-nação. Cinco anos depois, no governo de Fernando Henrique Cardoso, é aprovada a
Lei das Águas (nº 9.433/99) que ecoa os princípios acordados em Dublin. Este é o momento
em que são dispostas as condições concretas e jurídicas que são irradiadas a partir da
reprodução dos espaços institucionais de gestão. Ao reproduzir a estrutura organizativa do
Estado no tocante à gestão da água, as arenas de correlação de poder são confinadas a estes
espaços e o resultado deste “jogo” está posto antes das regras serem definidas. Este processo
potencializa a expansão do capital sobre o controle das águas, a partir da organização em
blocos de poder dos setores empresariais e financeiros que possuem uma eficiente estratégia
de ação em escala. O controle exercido nestes espaços é resultado das relações políticas e de
242

poder que são articuladas desde o local a todas as escalas da federação. Como demonstrado, o
resultado concreto é o controle destas arenas pelo capital.
Menos de dez anos depois da Lei das Águas serem sancionada há um segundo fator
que incide diretamente sobre a intensificação da espoliação sobre os corpos hídricos, a terra e
a energia. As crises alimentar em 2006, energética em 2007 e financeira em 2008 provocam a
atualização da estratégia de expansão do capital que incide diretamente no aumento do
controle sobre os fluxos energéticos e materiais, portanto metabólicos. E é esta estrutura
jurídica e uma política de Estado que propicia estes movimentos do capital sobre as águas.
Com a re-afirmação da divisão internacional e territorial do trabalho o Brasil se consolida no
mercado global como fornecedor mundial de commodities. Uma política neoextrativa
necessita de grandes extensões de terras, ampla capacidade de produção energética e de
condições materiais para exercer a superexploração hídrica. O resultado? Quando analisados
os dados de uma parcela da produção do Agronegócio, da produção do setor mineral apenas
em relação ao minério de ferro, da produção do setor siderúrgico e da indústria cervejeira o
consumo de água é o equivalente a 30,3 bilhões de pessoas, o mesmo que 3,7 vezes a
população mundial e 146 vezes a população brasileira. Qual discurso técnico é capaz de
sustentar a ideia de que a espoliação deste volume de água não impacta diretamente o ciclo
hidrológico? Estas águas não retornam à superfície terrestre com a qualidade necessária para o
consumo de nenhum ser vivo deste planeta. Portanto, podemos afirmar que o problema em
relação às águas está na falta dela? Ou está diretamente relacionado ao seu uso? A questão da
falta de água não é ambiental, é uma questão de relações de poder.
É neste sentido que se explica um dos fatores que compõe a geopolítica global da
água. A retomada de uma agenda global de cercamentos de água e terras através da
construção de grandes e mega barragens está diretamente relacionada à necessidade do capital
em controlar os fluxos de vazão dos rios, já que desta forma pode comercializar e controlar a
distribuição do uso da água e da energia. Não é a toa que as 58.266 grandes represas no
planeta controlam 6.500 km³ de água, o equivalente a 15% do fluxo hidrológico dos rios.
Em um contexto de expansão da lógica de espacialização dos grandes projetos de
desenvolvimento que ocorre no Brasil e no Rio de Janeiro é necessário, portanto, reproduzir a
dinâmica de controle sobre a água que irão permitir as condições materiais para a reprodução
do necrometabolismo do capital. O projeto de implantação da barragem do rio Guapiaçu se
insere, então, nesta conjuntura. Quando a presidente do CERHI-RJ representa uma entidade
de classe (ABRAGEL) que no 8º Fórum Mundial da Água publica uma carta aberta ao
público apontando que a resolução das “crises hídricas” está na construção de grandes
243

reservatórios, percebe-se que as mesmas estratégias se repetem no ERJ. Sobretudo quando o


empreendimento é legitimado sobre o viés da resolução de déficits hídricos regionais, mesmo
que ele não garanta o abastecimento em médio prazo. O mesmo ocorre quando são apontados
os índices de consumo de água na RMRJ, justamente uma área de intensos conflitos pelo uso
da água. Apenas o setor industrial e mineral é responsável pelo consumo de água equivalente
a 40% da população de todo o ERJ. Quando analisados os dados referentes a Cachoeiras de
Macacu, os índices dos mesmos setores saltam para 92%. Justamente sobre a bacia que
produz a água para a região que hoje não é capaz de garantir água para toda sua população.
O projeto de construção da barragem-reservatório do rio Guapiaçu se incide sobre uma
região historicamente marcada por conflitos sobre a terra e que se atualiza para a luta pela
água desde a primeira proposta de construção do reservatório, da década de 1980. São
gerações que tem o desenvolvimento de suas histórias de vida atravessadas por uma luta pela
garantia do controle das condições básicas que desenvolvem seus processos sóciometabólicos.
Esta geografia-histórica dos conflitos no Vale do Guapiaçu nos traz a dimensão de um
acúmulo desigual de espaço-tempos que paulatinamente re-cria trajetórias de vidas e de lutas
de homens e mulheres. Toda vez que são ameaçados os processos metabólicos destas pessoas,
são re-criadas estratégias de ação e resistência que visam manter a existência destas
dinâmicas. Assim foi quando estas famílias não possuíam terras para plantar e viver. Da
mesma maneira, resistiram à primeira proposta de construção da barragem no rio Guapiaçu,
rechaçada após a organização popular. Este projeto reaparece através de outra conjuntura,
desta vez mais complexa, já que envolve um fenômeno diretamente relacionado a uma
conjuntura global de expansão do capital sobre as terras e águas. Mesmo assim, mais uma
vez, são re-criadas as estratégias de resistência e que fazem com o projeto do Estado e do
capital tenham que se re-articular para tentaram, constantemente, a legitimidade da proposta.
Na medida em que conflitos territoriais são paulatinamente apresentados sobre um mesmo
território, há um acúmulo de vida e de experiências marcadas justamente sobre estes
processos, permitindo, portanto, uma importante e complexa capacidade de re-existência.
Estes processos marcam, por exemplo, a geografia-histórica do desenvolvimento das
Redes Comunitárias de Água de Serra Queimada e Ilha Vecchi. É a partir da ausência da
presença do Estado em uma área notadamente marcada pela luta pela terra, que um grupo de
agricultores e agricultoras passa a buscar autonomamente as condições materiais para garantir
o controle sobre os fluxos hídricos fundamentais para o metabolismo hidrocomunitário. No
território esta dinâmica metabólica hidrocomunitária está intimamente relacionada às
múltiplas formas de sentipensar a agricultura. São estes mesmos homens e mulheres os
244

responsáveis por realizar o maior abastecimento do CEASA-RJ e, por conseguinte, alimentar


grande parcela da população da RMRJ. As disputas que atravessam o território, portanto,
envolvem diretamente, mas espacialmente diferentes, as condições sóciometabólicas de uma
ampla parcela da população, já que o cercamento das águas e terras promovido pelo projeto
da barragem tende a afogar os agroecossistemas que historicamente são responsáveis por
abastecer o mercado interno de alimentos.
A autonomia, o comum e o poder exercido pelos/as agricultores/as está diretamente
relacionado ao modo como o Estado tradicionalmente está presente (e ausente) no território.
Quando as famílias sem terra ocupavam latifúndios improdutivos nas décadas de 1960 e 1970
o exército era enviado para efetuar violentamente a desocupação. Quando estas famílias são
assentadas o Estado não oferece absolutamente nenhuma condição material que possibilite
que estas pessoas possam iniciar sua vida na terra. Não são construídas estradas, não há luz,
esgotamento sanitário e abastecimento de água. O assentamento de Serra Queimada, oriundo
da Reforma Agrária de Mercado, está atravessado por graves violações de direitos destas
famílias, já que são assentadas sem poder conhecer a região que irão viver e sem terem acesso
ao contrato de compra e venda da terra. Para elas é dito que as terras teriam 9 hectares e a
dívida que é assumida por cada uma destas famílias é, então, referente a este montante.
Porém, cada família recebe, em média, cerca de 3 hectares de terra. Mesmo assim, são
construídas paulatinamente as condições materiais de vida. É este acúmulo desigual de
espaço-tempos embebido por uma correlação de forças que faz com que sejam impostas
constantes derrotas ao Estado no tocante às tentativas de apropriação da água. Quanto maior o
número de conflitos vividos por estas pessoas, quanto maior os números de vitórias postos por
estas famílias, maior são as experiências exitosas encadeadas por elas, portanto maior a
disposição e o costume da luta. Está relação geo-histórica está diretamente relacionada ao fato
da deliberação da APROVECCHI em negar a AMAE o controle das Redes Comunitárias de
Água de Serra Queimada e Ilha Vecchi, assim como a construção de uma resistência de seis
anos frente ao projeto de construção da barragem-reservatório.
Por mais complexa que seja a conjuntura no ERJ no tocante aos conflitos pela terra e
água é preciso entender que o processo de expansão e apropriação do capital sobre a água é
recente. Sobretudo se compararmos ao mesmo processo que ocorre sobre a terra. Ele ocorre
de forma ordenada a partir de 1990, ou seja, cerca de 40 anos. O que isto pode representar?
Ainda existem inúmeras formas de controle popular sobre a água. Estas formas podem ou não
ser pautadas sobre a lógica dos bens comuns, mas isso não é o primeiro fator a ser levado em
consideração. Quando o capital se expande sobre a água há um intrínseco processo de
245

expansão sobre o controle dos nossos corpos (70% dele é composto por água, assim como
82% do nosso sangue). E se não é o capital que o exerce, é o Estado. Ter no Estado o
controle sobre a água é permitir que sejam materializadas uma política estrutural que retira a
água de nós e transfere para o capital. A correlação de poder que ocorre no interior do Estado
não deixa de ser importante, mas não têm se mostrado suficiente para garantir a resistência
necessária para a defesa das condições materiais de reprodução da vida. Menos ainda quando
falamos sobre a lógica dos bens comuns. Defender experiências que pautam o comum é das
tarefas mais complexas, pois nem o capital e nem o Estado irão permitir que o controle dos
fluxos materiais e energéticas não sejam controladas por seus aparatos. Não estou afirmando,
porém, que todas as formas de controle popular devam ocorrer a partir de experiências como
as Redes Comunitárias do Vale do Guapiaçu, mas que o controle da água pelo Estado não
garante, necessariamente, o acesso, assim como não nos dá a garantir de que este controle irá
permanecer sobre suas estruturas. O caso recente do Programa de Parcerias de Investimento
que têm privatizado as companhias estaduais de esgotamento sanitário e abastecimento de
água são um exemplo concreto destes processos.
É fundamental que sejam desempenhados desmedidos esforços para que possamos
identificar as múltiplas experiências de controle popular sobre a água. Este é um primeiro
passo. Posteriormente é preciso entender quais são as formas de controle e gestão e,
sobretudo, quais são os principais desafios interno-externo colocados nos territórios e
intrínsecos ao desenvolvimento destas relações hidrocomunitárias. É importante que se tenha
extremo cuidado e atenção para que estas experiências não sejam apropriadas por qualquer
ator. O protagonismo está no saber e fazer destes homens e mulheres, pois são estas pessoas
que possuem o controle e o poder capaz de frear estes processos de expansão e acumulação.
Estes dois aspectos são partes de um primeiro passo. Estas experiências, quando
isoladas podem não ter o poder necessário para se contrapor a eventuais tentativas de
apropriação. Nesse sentido é de suma importância que sejam desenvolvidas estratégias em
escala capaz de promover intercâmbios territoriais que possibilitem a articulação entre estes
homens e mulheres e estas experiências. Estes movimentos podem sedimentar uma
articulação de poder em bloco e desde baixo para a partir disso constituírem uma estratégia
em escalar paralela de defesa dos bens comuns.
SANTOS, R. (2011) traz a dimensão que orienta esta estratégia. O autor vai além de
VAINER (2002) quanto este afirma que o poder está na capacidade de articular escalas. Não.
Assim como SANTOS, R. (idem) entendo que,
246

[...] articular escalas, se articular em escalas, reconstruir escalas não pode, portanto,
ser um exercício estratégico do fazer da política que se restrinja a assumir como
legítimas as escalas existentes e já dadas: elas são resultado e instrumento de
territorializações dos grupos dominantes, territorializações que precisam ser
desconstruídas também pelo jogo escalar, Mais do que articular (as e nas) escalas,
torna-se crucial construir escalas, construir territorialidades – desterritorializar e
reterritorializar poder (2011, p. 130).

A partir desta concepção defendo que não podemos disputar os espaços institucionais
de gestão da água, pois assim estaríamos legitimando estes espaços e nos rendendo (como
afirma o subcomandante Marcos). As regras do jogo nestes espaços já estão constituídas. As
escalas que devemos criar estão materializadas nas diversas experiências camponesas,
indígenas, quilombolas, ribeirinhas etc. O Protocolo Munduruku, por exemplo, apresenta uma
experiência de extrema potencialidade, pois a partir do momento em que é criado um
instrumento normativo territorial indígena o Estado se vê obrigado a parar e re-ver suas
estratégias de territorialização das UHE do rio Tapajós. Se pudermos identificar as diversas
experiências de controle popular sobre a água e como estas se organizam é possível realizar
um debate sobre a necessidade da construção de um estatuto/protocolo que represente os
saberes-e-fazeres, seus princípios, seus poderes e suas sensibilidades jurídicas.
Os territórios que apresentam experiências autônomas, comunitárias, rebeldes – como
as Redes Comunitárias de Água do Guapiaçu - e que pautam sua relação com a natureza a
partir dos bens comuns, enquanto existirem continuará a provocar derrotas ao capital. Mas
para o tamanho da potência que têm, não podem simplesmente existir. Precisam estar
articuladas nas escalas de baixo, trocar experiências e enfrentar coletivamente estes
fenômenos. Suas resistências provocam paulatinas derrotas cotidianas ao capital pelo simples
fato de existirem. Enquanto todas elas não tiverem sido exterminadas, nós ganhamos. E o
sistema mundo moderno-colonial, na tentativa de criação de um Mundo Mundial (BLASER e
ESCOBAR, 2014), nos fez crer que estas experiências já haviam sido exterminadas, mas estes
outros (e muitos) mundos re-existem.
247

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