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São Gonçalo
2018
Pedro D’Andrea Costa
São Gonçalo
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/D
D178 D’Andrea Costa, Pedro.
TESE Terra, água e território em conflito : uma análise transescalar
da geopolítica da água desde a proposta de construção da barragem
do rio Guapiaçu, RJ / Pedro D’Andrea Costa. – 2018.
254f. : il.
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação,
desde que citada a fonte.
__________________________________ ____________________________
Assinatura Data
Pedro D’Andrea Costa
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Raposo Alentejano (Orientador)
Faculdade de Formação de Professores – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Renato Emerson Nascimento dos Santos
Faculdade de Formação de Professores – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Jardim de Moraes Wanderley
Faculdade de Formação de Professores – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves
Universidade Federal Fluminense
São Gonçalo
2018
AGRADECIMENTOS
Este é, para mim, o momento mais importante desta dissertação. Espaço destinado ao
reconhecimento a todos os homens e a todas as mulheres que passaram pelo meu caminho
durante esta trajetória de aprendizado e de luta, e que só terá fim quando este corpo for
absorvido pela terra ao completar meu ciclo metabólico. É o momento em que a cabeça se
curva e os joelhos tocam o chão.
Agradeço a todos os homens e mulheres, agricultores e agricultoras, do Vale do
Guapiaçu. Estes e estas são muito mais do que isto, por mais que não haja muitas coisas tão
belas quanto tocar a terra com as mãos e os pés descalços, “y moreno, ademas”, para produzir
a comida presente na mesa de tantas famílias. Estes e estas são, também, agrônomos/as,
engenheiros/as das mais diversas categorias, economistas, administradores/as, geógrafos/as,
biólogos/as, contadores/as de histórias, entre muitas outras profissões das quais jamais
precisarão de uma universidade ou um diploma para exerceram tal atividade. Elas já são
exercidas através dos saberes-e-fazeres desenvolvidos através da tão perseguida práxis
acadêmica. Do fundo do meu coração, meu sincero agradecimento, reconhecimento e
admiração a Dionísio, Dona Rosa, Levir, Neide, Natália, Arlindo Lovias, Alzeir, Veneci,
Silas, Rayene, Lena, Cassenga, “M” e Fidelix. Sou grato por poder entrar na casa de cada um
de vocês, comer um pouco de suas comidas, de beber do seu café e compartilhar inúmeras
conversas, histórias, risadas e cachaças. O mundo que queremos construir já existe em
diversos cantos deste país e são concebidos através de experiências tocadas por pessoas como
vocês.
A Paulo Roberto Raposo Alentejano – ou Paulinho Chinelo – a quem tive o prazer de
ser orientando. Minha total admiração pela forma com que o geo-grafar é concebido e
produzido, pela total dedicação e doação que é dada à construção de outros mundos, pelos
trabalhos de campos, pelos ensinamentos sobre o rural do Rio de Janeiro e por todas as
indicações de leituras e conselhos sobre o geo-grafar e a militância. Há de nascer alguém que
conheça mais. Seguiremos juntos!
Ao Carlos Walter Porto-Gonçalves, Renato Emerson Nascimento dos Santos e Luiz
Jardim de Moraes Wanderley pelas importantíssimas contribuições apresentadas na
qualificação, onde este material ainda se encontrava “verde”. Da mesma forma, agradeço a
presença na banca de defesa. É uma enorme responsabilidade, desafio e engrandecimento
poder escutar as críticas de pessoas que buscam colaborar para construção de uma ciência
libertária.
Aos companheiros e companheiras da turma de 2016 do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. Não foi tarefa fácil dar continuidade a esta caminhada durante o período mais crítico
que esta universidade passou em sua importante história de vida. Adriani, Diogo, Rodrigo,
Tiago, Graciano, Jéssica, Valéria, Duclerc, Renato, Bruno, Beatriz, Oswaldo, Beatriz, Thiago,
Andressa, Milena, Debora, Jefferson, Renata e Karina. Homens e mulheres, trabalhadores e
trabalhadores. Tenho orgulho de ter compartilhado este período com vocês, jamais hesitamos
em acompanhar os/as técnicos/as e professores/as nas inúmeras greves e paralisações. Esta é
uma das formas de re-construir uma outra Pós-Graduação.
Aos diversos companheiros e companheiras que passaram pelo Grupo de Trabalho em
Assuntos Agrários da Associação de Geógrafos Brasileiros – Seção Local Rio de Janeiro e
Niterói. Homens e mulheres de luta. Agradeço a Aline, Luiza, Dani, Daiane, Alexandre e
Marola, além do próprio Paulinho. Em especial ao Edu, grande camarada que a AGB me fez
conhecer: juntos tentamos ser homens atentos as nossas contradições. E ao outro grande
camarada Luiz Jardim – o Lula, este sim roubou meu coração. Todos e todas muito me
ensinaram e juntos pude ser um geógrafo desde o meu 5º período da faculdade. Parte do que
sou hoje leva um pedaço de cada um/uma.
O geo-grafar pelas grandes vertentes do Recôncavo da Guanabara que me trouxe
outros tantos companheiros e companheiras. Aos amigos e amigas do “El agua desde abajo”:
Hugo, Barbara, Alexander e Bernardo. Responsáveis por grande parte das letras, linhas e
ideias presentes nesta pesquisa. Aos companheiros e companheiros do Lemto, Carlos Walter –
grande mestre, Danilo, Julia, Leandro, Marcela e Marlon – o qual tive imenso prazer de
compartilhar nossas caminhadas pelo Rio Trombetas, em Oriximiná, PA, por tantos anos
durante nossa graduação em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Jamais me
esquecerei destes momentos, me tornei outra pessoa depois de ter adentrado a Floresta
Amazônica. A Ana Motta. Aos compas do Movimento dos Atingidos por Barragens,
Alexania, Leonardo, Gabriela e Diene, compartilhamos e continuaremos a compartilhar bons
momentos de vida e luta.
Ao Fabio, Vitor, Bernardo, Alan e Tauã, irmãos de outros pais e mães.
As minhas avós Vera e Fanni que sustentaram suas famílias. Sem elas nós não
seríamos. Mulheres das mais importantes em minha vida. A primeira com inigualável
capacidade de resiliência e com um coração do tamanho do mundo: “eu te... amo”, jamais
esquecerei. A segunda foi responsável por me fazer entender minha ligação com a terra e a
mata. Agricultora, italiana e imigrante fugida da guerra. Não acreditaria no que você foi capaz
de construir depois de ter atravessado o Atlântico de navio se não tivesse compartilhado estas
conquistas.
Ao meu irmão amado Artur, meu maior parceiro e quem mais me ensina. Não sei se
conhecerei alguém com tamanha capacidade de se doar pelo outro. Sou mais do que feliz ao
seu lado, és quem mais admiro. Estaremos juntos até o fim, meu companheiro.
Ao meu pai, Francisco. Jamais me esquecerei do momento em que entramos em seu
primeiro apartamento e você me disse com os olhos cheios de orgulho e lágrimas no auge dos
seus 50 anos: “Este é o meu primeiro apartamento”. Terá tudo o que merece, na hora que tiver
de ser. Mestre desta e de outras vidas. Contigo aprendi a chorar. O som do seu saxofone
acalenta todos os ouvidos que tem o prazer de escutá-lo. Sempre foi assim e cada vez mais
será.
A minha mãe Anamaria, minha mestra, sem a qual não seria nada. “Todo homem
precisa de uma mãe”, não é isso? A maior mulher de todas as mulheres que conheci. Merece
um mundo inteiro.
E a Lu. Um bem de uma vida inteira. Sou o homem que sou por ela ser a mulher que é.
Aos ajudantes do caminho, vocês sabem quem são.
Ogunhê, meu Pai,
Odoya, minha Mãe,
Laroyê, meu Rei
Nosotros nos quedamos sin salidas. La única forma de hacernos fuertes era salir, era caminar.
No teníamos ningún pie. Éramos minusválidos en ese sentido. Teníamos la voz y la mirada,
pero teníamos que llevar esa voz y esa mirada a donde fuera escuchada y a donde tuviera
dirección esa mirada. Entonces tuvimos que pedir prestados los pies de otros. A la hora que
tuvimos que pedir prestados los pies de esos otros, tuvimos que construirlos porque no
existían. Entonces empezamos a hablarle al otro y empezamos a darle un rostro, el que otros
le negaron, el que es un número, el que es un porcentaje de una encuesta, si es que le toca la
suerte de que lo encuesten, y empezamos a llamarlo y a intentar darle rostro y a pedirle que
fuera los pies de nosotros. Encontramos unos pies muy disparejos. Es decir, el cuerpo que ya
éramos, la mirada, los oídos, los labios que éramos, eran muy pequeños para unos pies muy
grandes. Finalmente, cuando empezamos la marcha, empieza una especie de muñeco
grotesco. A primera vista, un gigante. Con una vista detenida, un muñeco deforme y grande,
con unos grandes pies y un cuerpo muy pequeño, el tronco y la cabeza. Ese muñeco grotesco
empieza a andar a traspiés y empieza a tratar de convencer a los pies que no son suyos, que es,
de una u otra forma, lo que ha tratado de hacer la Caravana a cada momento que se detiene:
decir que no somos nosotros los que hacemos posible eso, sino el pie que nos está llevando,
que es la gente que nos está recibiendo. Es en ese momento que se encuentra con el problema
de que los pies dicen que quien manda es la cabeza, porque así está la historia hecha y que no
ocurre que los pies manden a la cabeza. Y la cabeza, necia con que los que tienen que mandar
son los pies. Llega el momento en que los pies y la cabeza dicen lo que todos están pensando
y nadie se atreve a decir: Que en el recorrido se dan cuenta de que el mundo está de cabeza,
que tiene el que no necesita y el que necesita no tiene nada. Finalmente, ese día, mañana 11,
llegan al lugar donde se puede voltear esto para un lado y para otro, y a la hora en que el
mundo se voltea de nuevo, los pies descubren que en realidad eran la cabeza, y la cabeza
descubre que nunca dejó de ser un pie descalzo; moreno, además.
D’ANDREA COSTA, Pedro. Terra, água e território em conflito: uma análise transescalar da
geopolítica da água desde a proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu, RJ. 2018.
254f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de Professores,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018.
Palavras-chave: Barragem do rio Guapiaçu. Redes comunitárias de água. Conflito pela água.
Bens comuns. Crise hídrica.
RESUMEN
D’ANDREA COSTA, Pedro. Tierra, agua y territorio en conflicto: una análisis transescalar
de la geopolítica del agua desde la propuesta de construcción de la represa del río Guapiaçu,
RJ. 2018. 254f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Formação de
Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018.
Palabras-clave: Represa del río Guapiaçu. Redes comunitarias de agua. Conflicto por el agua.
Bienes comunes. Crisis hídrica.
LISTA DE FIGURAS
Tabela 2 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “L” e “N” – Janeiro de 2018 ..... 116
Tabela 3 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “Q” e “N²”– Janeiro de 2018 .... 120
Tabela 4 – Calendário Agrícola – Agroecossistema “A” e “V” – Janeiro de 2018 .... 124
Tabela 5 – Volume de água consumido pelas principais culturas do Agronegócio –
2015 ........................................................................................................... 154
Tabela 6 – Fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) no Brasil – 2010 a 2016
- US$ Bilhões ............................................................................................. 185
Tabela 7 – A concentração de terras, energia e água – Grandes Projetos de
Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro ......................................... 193
Tabela 8 – Índices de perdas físicas nos municípios da Região Metropolitana do
Rio de Janeiro – 2013 ................................................................................ 213
Tabela 9 – Uso da água por setor – Registros com e sem CNARH – Região
Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (2006-2017) .......................... 216
Tabela 10 – Captação indireta da indústria extrativa e da transformação registrada
por setor – Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (Registros
com e sem CNARH: 2006-2017) .............................................................. 219
Tabela 11 – Uso da água por setor – Região Metropolitana do Rio de Janeiro
(Registros com e sem CNARH: 2006-2017) ............................................. 220
Tabela 12 – Uso da água por setor – Cachoeiras de Macacu (Registros com e sem
CNARH: 2006-2017) ................................................................................. 222
Tabela 13 – Uso da água – AMBEV – Cachoeiras de Macacu, RJ - (2011-2017) ....... 223
LISTA DE MAPAS
RH Região Hidrográfica
RM Região Metropolitana
INTRODUÇÃO .......................................................................................... 19
1 A GEORAFIA E O CALENDÁRIO DA ÁGUA E DA TERRA NO
VALE DO GUAPIAÇU ............................................................................. 45
1.1 Entre piez y cabezas: chaves teórico-metodológicas (1) ………………. 45
INTRODUÇÃO
O mestre Orlando Fals Borda partilha conosco um ensinamento que teve a partir da
cultura do Caribe colombiano, mais precisamente da cultura ribeirinha do rio Grande de La
Magdalena que leva suas águas até o oceano Atlântico, onde se encontram los hombres-
hicotea1. Nesta região, Fals Borda aprendeu o sentido da cultura anfíbia onde lhe ensinaram
as múltiplas formas de saberes-e-fazeres que traduzem uma bonita e complexa combinação de
artes. MONCAYO (2009) compartilha a ideia que Orlando Fals Borda pôde aprender com
estes homens e mulheres:
El hombre-hicotea que sabe ser aguantador para enfrentar los reveses de la vida y
pode superarlos, que en la adversidad se encierra para volver luego a la existência
com la misma energia de antes, es tambíen el hombre sintipensante que combina la
razón y el amor, el cuerpo y el corazón, para deshacerse de todas las (mal)
formaciones que descuartizan esa armonía y poder decir la verdad (p. 10).
Estes homens e mulheres sentipensantes que atuam com a razão e o amor, o corpo e o
coração, não se encontram somente na região na qual Fals Borda esteve e pôde escutar este
conceito da boca de um pescador. O Sub Comandante Insurgente Marcos (2008), por
exemplo, afirma que são sete os sentidos zapatistas: olhar, degustar, tocar, ver, ouvir, pensar e
sentir. Os hombres-hicotea e os e as zapatistas entendem que o sentipensar também se insere
nesta complexa combinação de sentidos que envolvem a percepção entre o meio interno e
externo, trazendo uma grande variedade de sensações que acabam por materializar suas
formas de sentir-pensar-saber-fazer a natureza.
Depois de seis anos de atuação política, militante e de pesquisa no Vale do Guapiaçu –
região na qual está inserido o debate desta dissertação – pude perceber que os homens e
mulheres que re-existem contra a construção da barragem-reservatório do rio Guapiaçu, em
Cachoeiras de Macacu, RJ, também se caracterizam como pessoas que sentipensam São
homens e mulheres que possuem uma complexa e enorme inteligência, cuja prática e
intervenção nas terras e águas do vale são calcadas por um profundo respeito e compreensão
das dinâmicas da natureza. É a partir da construção de laços de afeto e de amizade, e da
1
Orlando Fals Borda dá uma breve explicação sobre os hombres-hicotea e o sentipensar em:
<https://www.youtube.com/watch?v=LbJWqetRuMo>. Acesso em: 19 jun. 2018.
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caminhada política que afirmo que está é, portanto, uma dissertação elaborada por alguém que
teve a oportunidade de estar com mulheres e homens que sentipensam.
Porém, a aprendizagem do sentipensar é, na verdade, o resultado de uma trajetória
não tão longa de um jovem geógrafo que durante seu contínuo processo de formação esteve
mergulhado entre os espaços tradicionais de formação e construção do saber – a universidade
– e os territórios e lugares do saber. Destaco, portanto, dois momentos que caminharam lado a
lado durante meu percurso geo-gráfico.
O primeiro deles ocorre a partir do momento em que ingresso na graduação em
geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2009. É neste curso marcado por
sua importante influência da Geografia Crítica que início, a partir de 2012, minha participação
no grupo de ensino, pesquisa e extensão denominado Geografia da Produção Alimentar
(GPA). Através da participação no GPA, estive imerso por quatro anos em pesquisas-
participantes desenvolvidas, principalmente, em dois territórios Quilombolas localizados nas
margens do Alto Rio Trombetas, no município de Oriximiná, Pará (PA). O território Mãe
Domingas é composto por cinco comunidades quilombolas: Mãe Cué, Sagrado Coração,
Tapagem, Paraná do Abuí e Abuí. Mais acima do rio, está o território de Cachoeira Porteira.
Esta região se insere na Calha Norte, onde existe um grande mosaico composto de territórios
indígenas, quilombolas e ribeirinhos, unidades de conservação, com a confluência de três rios:
Trombetas, Cachorro e o Mapuera. A realização destas pesquisas foi possível graças à
existência da Unidade Avançada José Veríssimo, campus da UFF no município, o que
possibilitou a aprovação de projetos de extensão que buscavam acompanhar os conflitos
territoriais e ambientais ocasionados tanto pela empresa Mineração Rio do Norte como pela
criação de unidades de conservação, que impactavam a vida dos povos da região.
Estes projetos e oficinas buscavam abordar discussões e ações que permeavam a troca
de saberes sobre o fortalecimento da produção existente de alimentos com bases
agroecológicas, a importância da elaboração autônoma de mapas a partir da metodologia da
cartografia social, e a valorização das tecnologias sociais e da cultura oral. Não há dúvida, que
mais aprendi do que ensinei a partir das relações de afeto e confiança que foram construídas
com os homens e mulheres (professores/as e mestres/as) da floresta. Estas experiências foram
fundamentais para perceber a existência de muitos mundos que resistem à expansão do mundo
moderno-colonial. Pude ver (e viver) que as relações capitalistas não dominam todas as
formas de sociabilidade e de interação e produção do espaço. Ainda há muitos territórios onde
o valor de uso sobrepõe-se ao valor de troca, e o sentido dos bens comum rege as interações
sociedade-natureza. Isso quer dizer, portanto, que há muitos mundos dentro do mundo
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totalizante capitalista. É a partir destas experiências que o lema zapatista passa a guiar minha
orientação epistemológica: “El mundo que queremos es uno donde quepan muchos mundos.
La patria que construimos es una donde quepan todos los pueblos y sus lenguas, que todos
los pasos la caminen, que todos la rían, que la amanezcan todos”.
Concomitante a minha trajetória na extensão, passei a integrar, também em 2012, o
Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários (GT Agrária) da Associação de Geógrafos
Brasileiros (AGB), das seções locais Rio de Janeiro e Niterói. Ao chegar ao grupo, quando
estava no meu 5º período da graduação em geografia, me deparo com um coletivo de
professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras que vinham desenvolvendo um
comprometido trabalho de atuação junto aos movimentos sociais do campo fluminense.
Diferentemente dos grupos de pesquisa, o GT Agrária têm suas atuações definidas a partir da
demanda de movimentos sociais, dos mais diversos segmentos da sociedade, e também desde
suas proposições internas, baseando-se na autogestão e no trabalho coletivo. Não há
personificação e centralização do segmento do trabalho. É um espaço de atuação conjunta em
que estudantes de graduação, professores/as, mestres/as e doutores/as de distintas áreas do
conhecimento têm a possibilidade de trocar suas experiências através da atuação na sociedade,
sem deixar de incorporar seu caráter investigativo e reflexivo.
No momento em que ingresso no grupo, eram desenvolvidos trabalhos de pesquisa e
militância em conjunto com os movimentos sociais centrados nos impactos gerados no espaço
agrário fluminense em decorrência da espacialização dos Grandes Projetos de
Desenvolvimento no estado. Pude, então, acompanhar a violência proporcionada aos/as
camponeses/as, pescadores/as e quilombolas em decorrência do Plano Estratégico de
Desenvolvimento 2007-2010 elaborado pelo então governador Sérgio Cabral, que com um
discurso de interiorização do desenvolvimento através das chamadas “vocações regionais”
espolia e expropria populações de territórios que historicamente produzem alimentos (e as
condições materiais de vida) para a população fluminense. Desde então, estas populações
passaram a sofrer intensos e violentos processos de expropriação de seus territórios, como no
Complexo Industrial e Portuário do Açu (CIPA), em São João da Barra, a TKCSA (hoje,
CSA), em Santa Cruz, a Usina Hidrelétrica de Anta e Simplício, em Além Paraíba e o
Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí.
Nestas muitas caminhadas e trabalhos de campo acompanhei, entrevistei, conversei e
convivi com estes homens e mulheres que sentipensam e por isso, muitas foram, e ainda são,
as angústias, dores e choros compartilhados. Territórios e pessoas deserdadas por esta lógica
de desenvolvimento do capital que avança através do encadeamento de rupturas metabólicas
22
2
Tal percepção foi desenvolvida por Eduardo Barcelos e compartilhada com o GT Agrária-AGB.
23
Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou
como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade,
mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua
abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e
passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de
atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental,
como uma abertura essencial (2002, p. 24).
[...] sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre
em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus
sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente
porque aquilo de que faz experiência dele se apodera (p. 25).
fragmentada, muito em função da falta de informação. A pouca organização que havia era
capitaneada pelo Sindicato Patronal, por sitiantes e por uma organização chamada Sociedade
Civil Organizada de Macacu (SCOM). A chegada do MAB na região é o elemento mais
importante no que tange à resistência ao projeto que vigora até os dias atuais.
A partir deste instante, o GT Agrária passa a realizar uma ampla pesquisa bibliográfica
para identificar os elementos e informações oficiais relativos à implantação da barragem do
rio Guapiaçu. Era de suma importância que fosse elaborada uma análise crítica do processo de
modo que os agricultores e agricultoras do Vale do Guapiaçu compreendessem o que estava
ocorrendo, além de fornecer subsídios para as estratégias argumentativas e de ação do MAB.
Neste contexto, são produzidas pesquisas de cunho crítico a partir de levantamentos
bibliográficos e de inúmeros trabalhos de campo realizados no Vale do Guapiaçu. Processo,
portanto, notadamente marcado pela participação dos homens e mulheres do Vale e do MAB,
onde todo material escrito e mapas produzidos eram apresentados à comunidade para
validação, sobretudo dos mapas.
Os impactos socioambientais potencialmente ocasionados pelo projeto de construção
da barragem-reservatório do rio Guapiaçu apresentam dados alarmantes. São 11 comunidades
inseridas no Vale do Guapiaçu, notadamente marcada pela presença da agricultura familiar, a
saber: Quizanga, Anil, Ilha Vecchi, Vecchi, Serra Queimada, Coco Duro, Areal, Matumbo,
Boa Sorte, Sebastiana e Maria Moura, conforme explana o Mapa 1. Um dos mais graves
elementos identificados a partir dos levantamentos bibliográficos é o recorrente discurso do
“vazio demográfico” historicamente reproduzido pelo Estado brasileiro para legitimar a
implantação dos seus projetos territoriais. De acordo com o Relatório de Impacto Ambiental
(RIMA) do Comperj, elaborado pela empresa Concremat, é sinalizada a possibilidade de
construção da barragem devido ao seu importante volume de água, por ser uma bacia
hidrográfica que apresenta altos índices de preservação e por não possuir ocupação (AGB,
2014). Dentre este e outros motivos, passa a ser estratégica, então, a elaboração de relatórios
independentes que pudessem contrapor os argumentos produzidos pelos estudos
encomendados pela Petrobras e pelo governo do estado. A partir do RIMA produzido pela
empresa Ambiental Engenharia e Consultoria em 2013 e aprovado pelo Instituto Estadual do
Ambiente (INEA), a AGB produziu, em 2014, o contra-estudo de impacto ambiental (AGB,
2014) e o MAB produziu, em 2015, o Dossiê dos Atingidos pela Barragem do Guapiaçu
(MAB, 2015).
26
hídricos” no ERJ. No dia 29 de março de 2017, estivemos presentes na 73ª Reunião Ordinária
do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro (CERHI-RJ) realizado na sede
do INEA, na cidade do Rio de Janeiro. Ali foi possível perceber a existência de uma estratégia
consolidada pelo capital de ocupação dos espaços ditos “participativos e descentralizados” de
gestão dos “recursos hídricos”. Sendo o CEHRI a instância máxima da gestão relativa ao tema
no ERJ, ficou evidente que a maioria das cadeiras titulares são ocupadas pelos diversos
setores do capital, sendo estes responsáveis por conduzir a gestão das políticas dos “recursos
hídricos” em todo o estado. Esta estrutura era reproduzida, portanto, no Conselho Nacional de
Recursos Hídricos (CNRHI), que está hierarquicamente acima do CERHI, e nos Comitês de
Bacias Hidrográficas, instância hierárquica de poder abaixo do CERHI. Portanto, neste
trabalho, é de fundamental importância à identificação das estratégias de controle pelo capital
do uso da água, visando espacializar o seu resultado concreto no estado.
Concomitante a este processo, em um trabalho de campo realizado pela pesquisadora
Barbara Pelacani e pelo pesquisador Bernardo Xavier Santiago, no Vale do Guapiaçu, é
identificada a existência de redes de água cuja forma de gestão ocorre a partir de princípios
coletivos, comunitários, e autônomos, que concebem a água como um bem comum sem valor
econômico. Estas redes comunitárias de água datam de 2001 e abastecem os assentamentos de
Serra Queimada e Ilha Vecchi, onde cerca de 100 famílias estão integradas ao sistema e
participam de formas distintas desta gestão. Os agricultores e agricultoras do Guapiaçu
relatam aos pesquisadores que a Autarquia Municipal de Água e Esgoto (AMAE) do
município de Cachoeiras de Macacu tentou se apropriar destas redes comunitárias, uma vez
que o Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras de Macacu (2013) previa a
expansão do controle dos processos de captação, tratamento e distribuição da água no meio
urbano e rural do município. Aproveitando a condição de vulnerabilidade destas famílias. Um
técnico da AMAE utiliza o argumento falacioso de que a partir da transferência do controle
comunitário das redes para a AMAE esta poderia emitir a outorga pelo uso da água o que,
consequentemente, poderia impedir a construção da barragem do rio Guapiaçu.
Essas famílias nos convocam (Barbara Pelacani, Bernardo Xavier Santiago, Carlos
Walter Porto-Gonçalves e Julia Miranda, ambos integrantes do LEMTO 3 e eu), a realizar uma
primeira conversa com duas lideranças locais que objetivaram: i) esclarecer a inexistente
relação entre a possível emissão de outorga pelo controle da água pela AMAE enquanto
estratégia de resistência contra a barragem; ii) entender como eram construídas as formas de
3
Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal Fluminense.
31
gestão comunitária destas redes para, posteriormente, desenvolver um debate sobre o poder
que estas famílias tinham a partir da existência destes sistemas comunitários. Desta primeira
reunião é encaminhada a necessidade de se realizar uma reunião ampliada com a Associação
de Produtores da Ilha Vecchi e Adjacências (APROVECCHI), cujo objetivo era ampliar esta
conversa e construir um debate político e de poder sobre estas redes comunitárias.
A reunião convocada pela APROVECCHI é realizada no dia 12 de maio de 2017,
contando com a presença de representantes das famílias que participam da gestão coletiva e
autônoma das redes comunitárias de água. Em um primeiro momento, foi realizada uma
rodada de apresentação e coube a nós, pesquisadores/ras, apresentar de que forma poderíamos
contribuir com as demandas que seriam posteriormente colocadas. Em seguida. Foi realizado
um debate em torno da memória destas redes, as formas constituídas de gestão e os desafios
técnicos e políticos que envolvem a continuidade desta gestão autônoma e coletiva. A partir
deste momento, ficou identificada a necessidade e a pertinência do desenvolvimento da
pesquisa que será aqui apresentada.
metropolitana do ERJ. Do mesmo modo, realizo uma descrição histórica da conjuntura que foi
responsável pela criação destas redes comunitárias de água, identificando o modelo de
controle popular, pautados pela lógica dos bens comuns, pela autonomia e gestão coletiva, e
os desafios e conflitos que perpassam a consolidação dessa apropriação camponesa, assim
como ameaçam este poder popular.
O segundo debate fundamental, apresentado no segundo capítulo, baseia-se na
desconstrução do discurso promovido pelo capital de que passamos por um contexto de crise
hídrica, sendo a água um recurso finito. Nesse sentido, aponto dados referentes ao consumo
da água por setor no Brasil, as múltiplas formas de cercamentos das águas e as estratégias e
coalisões que são criadas, pelas diversas frações do capital, para ocupar e centralizar os
espaços de gestão “dos recursos hídricos”, fortemente pautadas por agentes financeiros
globais, assimiladas e reproduzidas através de uma política de Estado. Busco apontar a
relação da espacialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ com uma
conjuntura global, e como estes são mecanismos territoriais de apropriação de terra, água e
energia, que se constituem como vetores de expropriação e espoliação de territórios e da
natureza. Associo esta conjuntura global-nacional-regional à proposta de construção da
barragem do rio Guapiaçu, buscando desconstruir as justificativas adotadas para legitimar tal
projeto. Por fim, trago elementos que pretendem contribuir para a construção de uma
estratégia popular territorial e em escala pela defesa dos bens comuns.
No presente trabalho, utilizo a categoria de Escala como ferramenta teórico-
metodológica para realizar uma aproximação entre a teoria e o material empírico, uma vez
que entendo que os fenômenos se apresentam de forma multiescalar, o que fundamenta toda a
lógica de defesa da minha argumentação. Nesse sentido, parto do entendimento de que a
Escala deve ser pensada sobre a tríade poder-tempo-ação utilizando os debates produzidos por
BOURDIEU (1989), CASTRO (1995, 1999), HAESBAERT (2002), KOSIK (1963),
LACOSTE (1985), SANTOS, M. (1994, 2002), SANTOS, R. (2011) e VAINER (2002) para
fundamentar tal ideia. Retornarei a esta discussão ainda nesta introdução. Do mesmo modo,
apresento o debate sobre o conceito do Metabolismo a partir dos autores FOSTER (2005),
HOURTART (2011), MÉSZARÓS (2011), MOREIRA (2006, 2008), PORTO-
GONÇALVES (2016), TOLEDO (2008) e TOLEDO E MOLINA (2008) que é divido em
dois momentos: i) no primeiro capítulo, busco definir o Metabolismo Social para pensar as
análises sobre as relações camponesas materializadas a partir das ligações estabelecidas com a
água e a terra; ii) no segundo capítulo, busco definir o Metabolismo do capital enquanto
organicidade que se reproduz através do processo de expansão e acumulação do capitalismo
33
diferenciada. Por fim, apresento os três distintos projetos territoriais para a construção da
barragem do rio Guapiaçu: i) o Estatal-Privado; ii) o da elite patronal local; e iii) o do MAB.
Neste item, exponho os dados relativos ao uso da água por setor na região metropolitana do
ERJ para problematizar e desmistificar a falácia da crise hídrica construída pelo Estado em
conluio com o capital. Finalmente, faço uma breve reflexão sobre a necessidade de se re-
pensar outras formas estratégicas de construção da defesa das águas e dos bens comuns.
É a partir das concepções apresentadas ao longo desta introdução, que se justifica a
utilização da metodologia de pesquisa-ação fundamentada por THIOLLENT (2002). Segundo
o autor, com a orientação metodológica da pesquisa-ação os pesquisadores estariam em
condição mais propícia de produzir informações e conhecimentos de uso mais efetivo, uma
vez que, na construção do conhecimento, o saber empírico das populações tradicionais é
mesclado ao saber teórico produzido e debatido na academia. É nesse sentido que FALS
BORDA (1978) propõe a revalorização da ciência popular, pois o contato com os territórios é
uma potencia para fazer aflorar conhecimentos e articular uma voz respeitável que foi
oprimida diante da ciência tradicional, que em sua aparente simplicidade pode oferecer uma
das respostas vivenciais que mais necessitamos para uma crítica à realidade na qual estamos
inseridos.
Sendo assim, esta pesquisa compreende que o saber popular não está codificado para
utilização da ciência dominante, mas que ele tem sua própria racionalidade e estrutura de
causalidade. Configura-se como uma ciência emergente e subversiva de cultura reprimida e
silenciosa, que permitiu ao homem criar, trabalhar e interpretar com os recursos diretos que a
natureza oferece. Cabe ressaltar que a pesquisa-ação é uma metodologia de pesquisa
participante engajada, em oposição à pesquisa tradicional, que é considerada como
“independente”, “não reativa” e objetiva. Esta metodologia coletiva e colaborativa favorece as
discussões e a produção de conhecimentos específicos sobre a realidade vivida, a partir da
descaracterização das estruturas hierárquicas e das divisões em especialidades, que
fragmentam o cotidiano (MOLINA, 2004). Enquanto prática desnaturalizadora, privilegia a
participação na transformação da realidade. Para tal, faz-se necessário a inserção do
pesquisador no meio pesquisado, a convivência direta com a população trabalhada e a
participação efetiva desta no processo, visando um trabalho com os homens e as mulheres do
território.
O projeto de pesquisa tem claramente o objetivo de fazer a universidade extrapolar
seus muros e dialogar com as comunidades fazendo com que o conhecimento produzido no
âmbito acadêmico, circule e dialogue com um universo mais amplo. Trata-se de fazer com
35
que o saber teórico e técnico ganhe uma realização prática e uma eficácia social, rompendo a
dicotomia entre o conhecimento abstrato e a realidade concreta. O fundamental é que esse
saber possa cooperar com as comunidades no processo de empoderamento para poder
contribuir, reforçar e potencializar o protagonismo destes homens e mulheres nas lutas pelos
seus direitos e pela manutenção de suas condições materiais, energéticas e simbólicas de re-
produção da vida.
Além disso, a presente investigação tem claramente como uma de suas linhas
constitutivas a pesquisa como princípio científico e como princípio educativo. O processo
concomitante de produção do conhecimento e a construção do habitus da pesquisa é que
estruturaram o desenvolvimento da mesma. A minha formação enquanto pesquisador e a
produção do conhecimento sobre o território é parte essencial na realização da pesquisa, bem
como o resultado desse processo busca contribuir para o processo de resistência local.
Por outro lado, identifico que há uma tênue linha que separa a imposição dos objetivos
da pesquisa do cotidiano do lugar, e do respeito por essa temporalidade. Defendo a
necessidade ímpar do respeito ao tempo do lugar, dos homens e das mulheres, em que o
cronograma da pesquisa deve respeitar o tempo do roçado, da colheita, da comercialização do
alimento no CEASA e na feira, do reparo dos problemas técnicos constantemente presentes
nas redes comunitárias de água, do momento do descanso, da reza, etc.. É preciso criar uma
constante capacidade de mudança do planejamento da pesquisa para que esta seja adaptada às
condições e demandas do lugar. Isso fica claro, por exemplo, na fala de “Q”, quando este faz
uma análise sobre a intensidade de pesquisas e pesquisadores/as que passam a frequentar o
território a partir surgimento do conflito:
É o que eu falo pras pessoas sempre: não é que a gente tenha nada contra vocês
virem aqui fazer o trabalho de vocês. Mas a gente percebe que tá sendo usado como
cobaia, como espelho, pra poder as pessoas fazer o trabalho deles. Por um lado é
bom, por isso eu cobro sempre, tem que deixar alguma coisa pra gente, algum
legado pra nós, pra gente poder fazer uma troca de favor. Aí ele fica assim, baixou
gente de ônibus, sempre cai na casa [do “L”], ele fica doido. Aquela turma que Lena
trouxe, do negócio do INCRA 4, não veio pra ele também? Fez ele mexer na terra,
catucar planta, ele deve ter te falado isso (“Q”, entrevista realizada em 11/01/2018).
4
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
36
5
O Quattrocento refere-se ao período do Renascimento, nos começos do século XV, ocorrido principalmente em
Florença na Itália, que possui como uma de suas características a centralidade da perspectiva geométrica na
representação da realidade.
37
(1985), que em geral é apontado como um autor que realiza uma tentativa falha de
desvinculação entre uma corrente e outra, são fundamentais uma vez que sua tentativa de
aprofundar o debate acaba por trazer importantes contribuições para a concepção geográfica
do conceito, fundamental para o suporte nas guerras de mapas que em geral são travadas em
conflitos territoriais.
Assim, defenderei a concepção geográfica da escala a partir da ideia de que o conceito
traz consigo uma tríade estrutural para seu entendimento que não pode ser desconsiderada
quando discutida: precisamos pensá-lo a partir do tempo, do poder e da ação. E o caráter
essencial que fundamenta tal tríade é o próprio corpo. Isto significa que só há uma
simultaneidade escalar e dos fenômenos porque há uma materialidade capaz de expressar
estes processos e de se expressar nestes processos. E é justamente neste bojo simbólico e
político “de expressar estes processos” e de “se expressar nestes processos” que a
compreensão do conceito a partir desta tríade se torna fundamental.
Concordamos com SANTOS (2011) quando afirma que as “sete ordens de grandezas”
propostas por LACOSTE (1985) estão pautadas sobre uma matriz que ao nivelar as escalas
constrói uma ideia hierárquica entre elas, reproduzindo uma escalaridade hegemônica,
notadamente assimilada pelo Estado e pelo capital. Ou seja, a soma e o encaixe dos recortes
territoriais preconizam uma relação de subordinação e hierarquia nas relações entre escalas, o
que vem a prestar subsídios à ideia de ordens e centralidades em cada escala.
Há um caráter simbólico na construção da perspectiva hierárquica. BOURDIEU
(1989) assinala que
É também o poder simbólico algo invisível e que é exercido com cumplicidade pelos
sujeitos dominados, portanto precisamos descobri-los nos meandros do pensamento espacial,
onde ele é ignorado e desconhecido, porém assimilado. A nivelação e a consequente
38
hierarquização escalar reproduzem uma lógica que torna o poder hegemônico inalcançável e
tira do “campo de jogo” a capacidade da ação de alcançar e trabalhar em outras escalas.
LACOSTE (1985) e CASTRO (1995) concordam, mas de maneiras diferentes, que as
mudanças de escala não envolvem apenas questões quantitativas, matemáticas, mas,
sobretudo, mudanças qualitativas. O primeiro afirma que,
[...] entre todas essas cartas de escala tão desigual, não há somente diferenças
quantitativas, de acordo com o tamanho do espaço representado, mas também
diferenças qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numa
determinada escala; em outras escalas não é representável ou seu significado é
modificado (LACOSTE, 1985, p. 72-73).
A questão que serve de orientação para o mapeamento dos fenômenos, sem que ocorra
a reprodução da concepção cartográfica da escala é: de que formas são representados os
distintos impactos em distintas escalas, de maneira que seja possível a apresentação da
simultaneidade e a multiescalaridade dos fenômenos? Na tentativa de responder a esta
pergunta, se faz necessário realizar outra: os fenômenos se espacializam igualmente em suas
diferentes escalas? É nesse sentido que o debate realizado por Lacoste revela sua
potencialidade, pois traz a ideia da espacialidade diferencial devido à compressão do espaço
pelo tempo. Tal situação gera uma espécie de sonambulismo espacial, pois não é possível ter a
dimensão de se estar inserido em espacialidades distintas que representam múltiplas escalas.
Diferentemente destes sonâmbulos, o capital tem uma extrema capacidade de articular ações
centradas no espaço em suas diferentes escalas. Conforme já afirmado neste texto, o maior
erro do autor foi criar um modelo representacional que prende os fenômenos a recortes
matemáticos previamente estabelecidos, tornando incapaz que o processo de representação
dos fenômenos ocorra a partir da sua percepção e entendimento. Isto fica evidente quando
LACOSTE afirma que,
Face ao exposto e diferente das ordens de grandeza e dos níveis de análise propostos
por Yves Lacoste, neste trabalho não faço uso de um conjunto de escalas pré-definidas que
tendem a adaptar a realidade ao modelo. Desse modo, faz-se necessário, em primeiro lugar,
identificar a essência dos fenômenos para a identificação das suas espacialidades diferenciais,
e a partir disto, pensar representações capazes de disputar a construção de realidades.
O controle do tempo é um importante elemento a ser disputado, uma vez que a ideia
de um tempo hegemônico que controla os demais tempos é facilmente contrariada quando são
identificadas multitemporalidades em distintas ou em mesmas escalas. Ao adotar a concepção
de escala a partir de uma tríade tempo-poder-ação pode-se pensar a estratégia e entender as
conquistas a partir das temporalidades e suas confrontações e disputas de poder. Identificar as
multitemporalidades em cada escala de atuação permite pensar estrategicamente quais
conquistas materiais e imateriais os movimentos e lutas populares podem alcançar no tempo e
no espaço. Interessante pensar a possibilidade que há dentro de uma mesma escala de atuação
possibilidades de ganho materiais e imateriais em diferentes tempos. Isto pode ocorrer
justamente pela presença de multitemporalidades que se colocam em disputas por estares
diretamente ligadas a distintas identidades e modos de vida.
SANTOS, R (2011) traz dimensões fundamentais que aliam a importância da escala na
construção da ação, indo além de WERLEN (1992, 2000 apud Santos, 2011) quando este diz
que o estudo do espaço deve ser o estudo da ação. Ele afirma,
VAINER (2002) compartilha uma ideia relacional da escala ao defender que elas não
são algo dado sendo, na verdade, objetos de confronto, assim como é também o confronto
entre a definição da prioridade das escalas onde os embates se darão. Ele afirma que “escolher
uma escala é também, quase sempre, escolher um determinado sujeito, tanto quanto um
determinado modo e campo de confrontação (p. 25)”. Adicionamos a esta ideia do modo e do
campo de confrontação a importância do tempo, ou seja, de qual temporalidade acessar a
partir das estratégias de ação formuladas, de modo que possamos pensar a dinâmica espaço-
temporal dos processos e suas simultaneidades escalares e posteriormente pensar a ação no
espaço. O autor traz questões importantes para pensar a espacialização hegemônica e suas
estratégias de articulação escalar:
Esta perspectiva analítica sobre a escala requer, primeiro, uma leitura ampla e aberta
sobre poder, sobre as relações de poder e as práticas de poder, conduzindo uma
indissociabilidade entre poder, práticas (ações) e escala (que emerge vigorosamente
como relação). As noções (de níveis) tradicionalmente associadas à ideia de escala
[...] são então transformadas em marcos referenciais que alicerçam complexos jogos
44
Conflitos pelo território são conflitos pelo controle das multitemporalidades que
perpassam esta escala. Para o capital, controlar os recursos contidos no território, e o saber
daqueles e daquelas que ali vivem, permite a aceleração do tempo, logo da superexploração
da terra, da água, da energia, da matéria, do homem e da mulher, e da vida. Assim, é
fundamental a desaceleração do tempo!
45
isso, devemos aprender com estes e estas, já que seus pés nunca deixaram de ser uma cabeça
pensante e suas cabeças nunca deixaram de ser um pé caminhante e descalço.
do meio natural para o meio social. Há, portanto um processo ecológico da sociedade e social
da natureza.
Porém, precisamos estar atentos ao fato de que há um caráter espaço-temporal
embutido no conceito, logo tal proposta deve situar os fenômenos sociais e naturais em uma
análise multiescalar para poder dimensionar as diferentes formas e intensidades de
apropriação da matéria e da energia. Estas múltiplas formas de apropriação da natureza se
encontram historicamente em disputa, na medida em que o projeto civilizatório moderno-
colonial avança. As relações que nossa espécie estabelece com a natureza são sempre
biometabólicas (energia endossomática) e sociometabólicas (energia exossomática). Na escala
do corpo, extraímos quantidades suficientes de matéria e energia para sobrevivermos
enquanto organismos e excretamos estas variedades materiais e energéticas depois de
assimiladas. Na escala societária, esse processo de extração e excreção é realizado a partir de
um conjunto de relações/nexos de diferentes tipos, através da articulação dos indivíduos, para
garantirem sua subsistência e reprodução através dos processos de apropriação, circulação,
transformação, consumo e excreção. No sistema capitalista, há uma forte predominância das
energias exossomáticas sobre as endossomáticas, o que ocasiona uma forte pressão sobre a
natureza, logo os radicais exo/endo servem como indicador da intensidade metabólica das
diferentes formas de apropriação. Segundo TOLEDO (2008), no metabolismo destrutivo
industrial a soma da energia exossomática apropriada da natureza corresponde a uma
quantidade que chega a ser de 30 a 40 vezes maior do que a energia endossomática. Por
exemplo, segundo os dados da Agência Nacional de Águas (ANA, 2013), no ano de 2010,
72% do consumo de água no Brasil foram destinados ao agronegócio; o setor industrial foi
responsável por 9%; 11% foram destinados à dessedentação animal; e apenas 8% de toda
água no país foi disponibilizada para o consumo humano, sendo 7% no espaço urbano e 1%
no rural 6.
O ato de apropriação se constitui como a forma primária de trocas entre sociedade e
natureza. Através deste processo, a humanidade se alimenta dos materiais, serviços e energias
para poder se reproduzir. Segundo TOLEDO E MOLINA (2008), este processo ocorre nas
chamadas unidades de apropriação, que a partir de um enfoque escalar pode estar presente
desde o indivíduo, passando por uma pequena propriedade camponesa até uma complexa
6
O volume de água captado pela agricultura familiar, indígena e quilombola não é contabilizado neste cálculo. O
parágrafo 1º do Art. 12 da Lei nº 9.433/1997 (Lei das Águas), isenta a necessidade de concessão de outorga do
uso da água para satisfação da necessidade de pequenos núcleos populacionais distribuídos no meio rural quando
estes apresentam volumes de captação e lançamento insignificante. No ERJ a Lei nº 4.247/2004, define como
uso insignificante derivações e lançamentos com vazões de até 0,4 l/s.
49
hegemônico travar, nos territórios e lugares, uma disputa pelo saber. Melhor dito, uma disputa
pela hegemonia do saber. RAFFESTIN (1993) ao discorrer sobre o trabalho nos mostra que,
A lógica do rio, que junto com o espaço aquático constitui a localidad no Pacífico
colombiano, tem sido então o fator espacial orientador para a formação de conselhos
comunitários ao longo das bacias fluviais. Estes conselhos comunitários atuam como
principal autoridade territorial nestas áreas rurais do Pacífico colombiano que,
guiados pelos Planos de Manejo desenvolvidos pelas mesmas comunidades com a
assistência de instituições governamentais e ONGs, decidem entre outros sobre o
uso e o aproveitamento dos recursos naturais em seu território. Estes são, pelo
menos na teoria, mudanças radicais de formas de apropriação territorial, pois as
empresas com interesse no aproveitamento dos ricos recursos naturais da região –
como o ouro, a madeira e o potencial agropecuário – estão agora obrigados a
negociar diretamente com as comunidades rurais, e o Estado já não pode
simplesmente expedir concessões a estas empresas passando por cima das
comunidades, como ocorria antes da Lei 70 de 1993 (OSLENDER, 2002, p. 8,
tradução nossa).
Neste sentido, HAESBAERT (2007) afirma que “todo território é, ao mesmo tempo e
obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois as relações de
poder têm no espaço um componente indissociável tanto na realização de ‘funções’ quanto na
produção de significados (p. 23)”.
Quando “L” 7 fala sobre a possibilidade de ser expropriado de seu território, de sua
terra, devido à existência do projeto de construção da barragem-reservatório do Rio Guapiaçu
ele traz dimensões simbólicas quando define a relação que é constituída no vale:
Vamos ser remanejado pra outra terra ou não, entendeu, como que fica nossa
situação? Eu acho que quem tem esses projetos de água, tem que ter muita
consciência com esse povo que tá aqui dentro, um povo que trabalha, produz. Manda
pra cidade, que é o objetivo da gente, numa plantação pra comer, porque nós não
vive só de comer, tem que cuidar da terra, tem que fazer suas moradias, tem que
comprar remédio, tem que fazer de tudo, então é daqui que sai nosso sustento.
Sabemos fazer. Nossa profissão é essa, a minha é essa, não tive outra profissão
nunca. Fica difícil, se eu sair daqui, sabe lá o que vai acontecer de nós. Os filhos da
gente tá estudando um pouquinho e tal, mas acontece o seguinte: se depender de
viver na roça eles sabem viver; se depender de ir pra cidade e não se der bem lá, eles
sabem viver na roça. E se eles tiram o chão da pessoa aqui, como que fica? A
situação vai ficar muito crítica. É nosso chão, nosso berço (“L” em entrevista a
Pedro D’Andrea em 09/01/2018).
7
Agricultor assentado na Ilha Vecchi.
54
Já vai adubando. Melhor que você ficar passando trator direto. Antigamente quase
ninguém usava arado, e todo mundo produzia. É igual você tem uma ferida no corpo
aí quando você tá quase sarando você vai e machuca de novo. Aí agora vai sarar, tá
sarando aí você vai e machuca de novo. Vai levar um bom tempo, né. A mesma
coisa eu acho a terra. Você não pode ficar cortando a terra direto, direto, direto. A
terra é viva e sente dor. Claro que sente (“A” em entrevista a Pedro D’Andrea em
11/01/2018).
8
Agricultor assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
9
Serão aprofundadas mais a frente, neste capítulo.
55
1.2 Os muitos Vales de Javés: seus/suas narradores/as e suas histórias de grande valor
“É isso mesmo, gente. Vão construir a barragem e Javé tá no caminho das águas, logo
isso tudo aqui vira represa”. É dessa forma que Zaqueu anuncia, em uma reunião comunitária,
aos moradores do Vale de Javé que a proposta de construção de uma barragem seria
implantada sobre as cabeças e corpos daquela gente. Depois de um grande “rebuliço” causado
pela fala de Zaqueu, o mesmo passa a palavra para ‘seu’ Vado, que também esteve presente
na reunião, e detalha a cena:
neste momento, que pude perceber o paralelo entre os Narradores de Javé com os narradores
do Vale do Guapiaçu. Naquela sala, enquanto víamos a história de um povo que lutava e
resistia frente à proposta de construção de uma barragem, cuja principal estratégia era a
elaboração de uma história contada pelos próprios personagens, do outro lado da tela parecia
haver uma espécie de espelho, onde homens e mulheres pareciam se assistir. Eram atores,
personagens e diretores de sua própria história, enquanto assistiam personagens de uma
história contada.
Nesta mesma cena citada acima, onde Zaqueu e Vado contam ao povo, em reunião
comunitária, que a barragem se aproxima é explícita a existência de um paralelo entre os/as
narradores/as de Javé e os/as do Guapiaçu. Não apenas pela temática do filme que aborda um
processo que se encontra em curso no Vale do Guapiaçu, mas pela necessidade de colaborar e
evidenciar os saberes locais e desta forma contribuir com valorização das experiências
existentes no território. Em um corte de cenas, o personagem Zaqueu, conta a terceiros em
uma mesa de bar como lhe surgiu à ideia da estratégia adotada pelos moradores de Javé:
Mas, quando tudo parecia perdido, uma ideia me socorreu e começou alumiar essa
cabeça que é minha”, e continua, “Os homens disseram que só não inunda, se for
patrimônio. Então já sei o que nós temos que fazer. Vamos nós mesmo hoje escrever
a grande história do Vale de Javé. Vamos colocar no papel os enredos, gente,
desencavar da cabeça, os acontecimentos de valor, botar na escrita, fazer uma
juntada de tudo que é importante para provar para as autoridade porque Javé tem que
ter tombamento. Só que tem uma coisa, eles falaram lá que só tem validade esse
trabalho se for assim, científico (NARRADORES DE JAVÉ, 2003).
Como não sou nem de Javé, nem do Guapiaçu, não sou agricultor e nem atingido por
barragem, não tenho a pretensão de assumir o papel de ser aquele que irá construir a história
do Vale do Guapiaçu. A ideia aqui, portanto, é fazer deste capítulo um diálogo entre os
sujeitos do lugar, através das entrevistas realizadas nos trabalhos de campo, e a academia. Só
os homens e mulheres às margens dos rios Caboclo e Guapiaçu que podem contar suas
próprias histórias. Histórias estas que vão além da ocupação espaço-temporal do vale e
explicitam toda a complexidade dos saberes que são desenvolvidos a partir dos fazeres,
passados de geração em geração através da oralidade. É na fala dos antigos e antigas que estão
às histórias de grande valor. Narrativas que demonstram a complexidade da episteme
camponesa, calcadas sobre paradigmas e racionalidades tão complexos – ou mais - como
aquelas presentes na academia. Narrativas que mostram como a genialidade camponesa não
incorpora a dicotomia sociedade-natureza, nela não estão presentes à fragmentação da ciência
positivista que divide o conhecimento em temas, não há o rigoroso caráter especialista onde o
57
rigor científico das disciplinas, disciplina o conhecimento ao criar fronteiras para reprimir os
lugares de saber (SANTOS 2010).
Nestes territórios do saber, são poucos os ignorantes especializados. Os/as sujeitos/as
assumem uma multiplicidade de funções – ou carreiras, segundo a lógica positivista – onde
são administradores/as, engenheiros/as civil, elétrico e hidráulico, arquitetos/as,
agricultores/as, cozinheiros/as. Não é exagero afirmar, que os agricultores e agricultoras do
Guapiaçu, por exemplo, controlam, em grande parte do ano, o preço de diversas variedades de
alimento do ERJ. Afinal, esta variação do preço de mercado está diretamente associada à
produtividade de determinados alimentos no território.
SANTOS (1987) nos partilha a ideia de que o modelo de racionalidade científica
positivista atravessa uma profunda crise. Segundo ele, esta crise não é só profunda como
também irreversível. Portanto, defende a ideia que passamos por um momento de transição e
que por conta disso é necessário “voltar às coisas simples”. É também nos saberes populares,
dos homens e mulheres do campo e da cidade, que se encontram as alternativas que buscamos
para superação do paradigma científico positivista e deste modelo hegemônico de
cientificidade e sociedade.
Portanto, assim como Antonio Biá – o homem escolhido pelos Narradores de Javé
para escrever o livro das grandes histórias de valor do vale – trataremos de florear um pouco
este texto dissertativo. Florear e não inventar, assim como defende o personagem: “Olhe, uma
coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito. O acontecido tem que ser melhorado no
escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido”. Antonio Biá já é por existência
um contador de histórias, portanto alcançar sua capacidade de melhorar o acontecido no
escrito não é tarefa fácil, sobretudo por ser este um texto dissertativo e acadêmico cuja
estrutura textual traz algumas limitações. Creio ser necessário repensarmos os métodos de
exposição de dissertações e teses de doutorado. Afinal, quem são as pessoas que tem acesso à
linguagem produzida nestes espaços? Ora, para quem produzimos tantas páginas e
discussões? Trazer as falas dos agricultores e agricultoras, suas histórias de grande valor, seus
saberes e fazeres assume aqui estratégia central como forma de reconhecimento e valorização
dos saberes populares, assim como contribui para a construção e proliferação de outras
metodologias de exposição. Isto não é novo, mas deve ser mais valorizado e estar mais
presente dentro da academia. Trazer o saber popular para o centro do debate é apostar em
outro modelo de cientificidade.
Porém, antes de mergulhamos no Guapiaçu e seus afluentes, daremos um breve salto
até o Assentamento Mandularim, localizado no semiárido cearense para compartilharmos uma
58
história narrada por Ivania Cavalcante e Inácio do Nascimento. Mas qual a relação de um
assentamento de Reforma Agrária do município de Pentecoste com o que estamos abordando
aqui? Total relação! Relação com Javé e com o Guapiaçu e muitos outros territórios que
apresentam experiências de extrema potência e relevância. Primeiro, porque passam por um
processo de disputa pelo controle da água. Segundo, porque estão inseridos em um mesmo
contexto de famílias sem terras, que são assentadas da Reforma Agrária e tem nas suas
relações com a terra e com a água sua sobrevivência a partir da re-produção das condições de
vida. Terceiro, porque através de suas histórias de grande valor são apresentadas
racionalidades que rompem com as estruturas e concepções clássicas de disputas pelo poder e
controle da água, a partir de propostas concretas de gestão autônoma e comunitária da água.
Foi no Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), realizado em março de 2018 em
Brasília, que tive o prazer de conhecer Ivania Cavalcante e Inácio do Nascimento em uma
seção de cinema comunitário promovida pelo projeto Kombosa Me CarREGA 10. A partir de
filmes que registravam várias experiências agroecológicas pelo Brasil, entrei em contato com
a experiência do Movimento Ciclovida, que será aqui apresentada, assim como pude
conversar com ambos. Enquanto conversava, não pude deixar de pensar nas histórias
semelhantes contadas pelo “A”, agricultor, assentado da Reforma Agrária de Mercado
(RAM), com as dos filhos e filhas de agricultor e agricultora, que vivem e re-existem contra a
barragem-reservatório do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, no Rio de Janeiro, a 2.680 km
de distância. Após a experiência do Movimento Ciclovida ser apresentada, será relatada a
criação de um sistema criado pelo pai do “A”, cujo objetivo também era fazer com que
houvesse a potencialização de um olho d’água presente em suas terras.
Mergulhemos então nos saberes que se fazem desde os lugares, de seus cotidianos e de
suas lutas (PORTO-GONÇALVES, 2008).
10
Para mais informações sobre o projeto Kombosa Me CarREGA, acessar: <https://www.youtube.com/watch?v
=ULsliVAdeMM>.
59
questão da água, frente aos quatro anos de seca que enfrentamos (Inácio do
Nascimento, Movimento Ciclovida).
Os impactos são positivos, já que não estamos criando nenhuma novidade da que já
existia nesse bioma, que eram os olhos d’água. Estamos apenas recuperando esses
olhos d’água que já existiam na época que existia a vegetação bem composta com
árvores grossas, de profundas raízes que quebravam esse solo duro, essa piçarra,
esse barro de louças e essas rochas. E aí, estamos dando uma ajudinha para a água
penetrar e essas raízes novamente voltarão a engrossar, as terras começarão a se
abrir, as águas penetrarem e é assim que a gente vai tá criando esses olhos d’água
(Inácio do Mascimento, CICLOVIDA, 2015).
Eu me lembro que fomos morar em Papucaia, quando era moleque, tinha uma
nascente de água, aonde a gente ia morar, uma água fraquinha, Pedro. Aí falaram
com meu pai: ‘a água lá é bem pouquinha, o senhor tem que economizar’. Uma água
igual aquela que tá caindo da torneira, filetezinho mesmo. ‘Vai ter que cavar lá e
fazer um reservatório pro senhor poder ter água’. Aí meu pai: ‘não, seu Guilherme
[dono da terra] isso aí eu dou um jeito (“A” em entrevista em 11/01/2018).
13
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
64
Este sistema elaborado pelo pai de “seu” “A” possui semelhanças com o elaborado
pelo Inácio do Nascimento, apresentado anteriormente. O método que dá sustentação a toda
base do sistema é o da observação. É através da experiência e da convivência com a mata, a
terra e os ciclos da água que o saber e o fazer são desenvolvidos. Devemos associar ao
método a importância da transferência do conhecimento que ocorre através da oralidade onde
as trocas de saberes são passadas através das cuidadosas narrativas (de grande valor). Desta
mesma maneira, “A” me ensina como funciona o ciclo da água, que se caracteriza como
sustentação da lógica adotada por seu pai para construção do sistema:
A: (...) Ali em cima tem uma árvore, Pedro, ela pinga água direto. Ela tá bem no
meio do caminho. Huhn! Várias pessoas pensava... o Tiãozinho: “cê viu, a árvore
pingando água direto”. Ó, você tá debaixo da árvore, tá pingando água em você?
Pedro: Não.
A: Em mim tá. Por quê que no período de seca a árvore joga água em cima de você?
Pedro: Porque ela guardou?
A: Isso que é a lógica, meu pai não sabia ler, isso há 40 anos, 40? Eu tô com 53... 46
pra 47 anos atrás eu já sabia disso porque meu pai ensinou. Meu pai não sabia
ler não, ele aprendeu a fazer o nome dele que nós entremo na escola ensinemo a ele
fazer o nome dele; fazer conta ele sabia (...) Aí a gente tá embaixo de um pé de
árvore, seca danada, o pé de arvore pingando água aqui rapaz. Simples (...) Mas não
tá chovendo, como tá pingando água da árvore? Umas pinga mais, outras pinga
menos, mas todas elas pinga. Por isso que meu pai fez isso aí. Porque toda
árvore, você veja bem, ela puxa água, lá do peão, ela puxa água do lençol
freático embaixo, joga pras folhas, você tá entendendo? Pras folhas jogar pra
terra pra alimentar a raiz que tá em volta que não consegue pegar terra
embaixo. É o círculo da água. Por isso que meu pai plantou árvore aqui, e fez essa
vala aqui. Que é pra ela poder se desenvolver rápido, ela não ter tanta carência de
buscar água em lençol freático embaixo pra sobreviver. A água que ficaria
armazenada aqui nessa vala aqui, alimentava elas por um bom tempo. A própria
umidade daqui ia alimentando ela por um bom tempo. Então é menos tempo que ela
vai ter de coisa. Essa era a lógica do meu pai; se é certa, se é errada, essa era a lógica
dele.
Banana d’água ele plantou. “Você veja bem, meu filho, os passarinho vem comer a
banana; ele vai ajudar nós, planta banana aqui, que vai madurar banana aqui;
naquela não quero que ninguém corte um cacho”. Mas tinha muita banana. “Eles
vão vir comer banana aqui, mas eles comeram outra fruta lá na mata, com a
semente, e vão cagar aqui, e vai plantar mais”. Sabe? Meu pai, Pedro, ele ficava
assim... Ele ensinava muita coisa pra nós.
São relações que se constituem a partir de uma longa convivência e que são
compartilhadas de geração em geração, como podemos observar nos dois sistemas
desenvolvidos – pela família do “A” e “V” e pelo Inácio e Ivana. Lembremos que os
Artiquíferos foram elaborados a partir de um cuidadoso e atencioso método de observação do
caminho das águas que eram criados a partir das águas das chuvas que não penetravam no
solo. De outra maneira, mas a partir da mesma forma de pensar-saber-fazer, são plantadas,
pelo pai do “A”, espécies de árvores nativas da Mata Atlântica que irão criar as condições
metabólicas ideais para o aumento da recarga hídrica de uma nascente. São formas de relação
e apropriação que tendem a reproduzir o sistema natural, onde a convivência humana re-
produz dinâmicas hidrocomunitárias.
72
14
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e importante mestre da água.
15
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e outro importante mestre da água
73
Por ainda não haver a presença de 142 famílias assentadas pelo Banco da Terra na
comunidade de Serra Queimada – fato que ocorre entre 2001 e 2002 – o então proprietário da
fazenda, José Duarte Tostes, ainda residia no local. Foi necessário negociar com o
latifundiário a passagem da tubulação por sua propriedade, já que o local de captação se
encontrava no Rio Caboclo – afluente do Rio Guapiaçu – que passava pelas terras do
fazendeiro. “D” conta que por parte do fazendeiro foi requisitado que fosse construído, e
inserido no projeto elaborado por eles e pela PMCM, a construção de uma rede de água
específica para o abastecimento de sua pocilga (chamada na região de chiqueirão):
Em 1999, eu e “M” fomos lá pra fazenda, em frente ao colégio a gente topou com o
fazendeiro José Tostes. ‘Seu José, tamo precisando de água pra Ilha Vecchi, o que o
senhor pode fazer pra água passar?’. ‘Faça uma rede beirando a minha’ [...]
Resultado: faz uma rede beirando a fazenda dele, com prioridade de deixar uma
saída no Chiqueirão, pros porcos e leitões se refrigerar com o ar, com aquele
ventilador ligado (“D”, em reunião da APROVECCHI no dia 12/05/2017).
de seu poder local para inserir uma rede privada no projeto elaborado pelos agricultores cujo
financiamento é público. Não obstante, são os próprios agricultores que constroem a rede cuja
água é destinada, como conta “D”, para a refrigeração dos suínos, assim como sua lavagem.
Detalhe: inúmeras famílias apontam que os rejeitos destes animais eram diretamente jogados
no Rio Caboclo poluindo estas águas e deixando um forte odor de fezes e urina animal. Águas
estas distribuídas pelo sistema de captação. O latifúndio usa de seu poder para, através do
dinheiro público e trabalho braçal remunerado também por verba pública, condicionar a
passagem da tubulação para captação de água de um rio – assumindo, portanto, sua
propriedade sobre estas águas – para que seus porcos sejam refrescados e lavados e não
satisfeito, despeja suas fezes e urinas nestas águas.
16
Agricultor assentado na Ilha Vecchi.
17
No segundo capítulo, mostrarei como este fragmento territorial do latifúndio assume papel central para
articular a proposta das pequenas barragens, alternativa defendida pelo Sindicato Patronal de Cachoeiras de
Macacu.
76
Não obstante, a quarta cláusula do contrato garante a José Duarte Tostes o controle das
águas da Rede Chiqueirão por tempo indeterminado, já que prevê aos contratantes a
responsabilidade de “responderem por si, seus herdeiros ou sucessores pelo todo
convencionado”.
É neste quadro de ausência de qualquer infraestrutura oferecida pelo Estado, de
correlação de forças e disputa de acesso e controle da água que nasce a necessidade de se
garantir a autonomia destas famílias para a captação das águas. Inicialmente, o projeto foi
pensado para o abastecimento das 10 famílias que residiam no assentamento Ilha Vecchi I,
porém, durante sua construção mais sete famílias são assentadas no que eles e elas passam a
chamar de Ilha Vecchi II 18. Prontamente estas famílias são incorporadas à Rede. Ou seja, o
sistema tinha o objetivo de suprir uma demanda por água de 17 famílias assentadas.
Passados não mais que um ano de funcionamento da Rede já se iniciam problemas
técnicos oriundos da péssima qualidade do material comprado e utilizado pela PMCM.
Segundo “L” (mais um dos importantes mestres da água do território), “era igual bambu,
lascava assim na frente da gente, e água não tinha pressão não, água morta, lascava, igual
bambu, Troço muito ruim mesmo” e continua, “na época daquela rede de cano ruim, a gente
tinha que conhecer palmo a palmo. Porque você consertava aqui, amarrava de borracha no
outro dia lá na frente” (Figura 4).
E veio isso aí que o “J.A” falou que não valia nada. Mas na época ninguém sabia,
tava novo. Passou um ano começou a lascar [...] Nem isso. Pra você ter ideia, aquela
agua ali era um lugar baixo, abastecia quase nada, sem pressão. Isso aqui a terra tava
comendo ele, como comesse madeira. Valia nada. Rachava na frente da gente assim
[reproduz “L” enquanto nos mostrava um fragmento guardado do material
utilizado na época], você apertava aqui, daqui a pouco andava, olhava pra trás o
cano vazando (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo Santiago e Pedro D’ Andrea,
no dia 13/05/2017).
18
“L”, agricultor assentado em 2000 na Ilha Vecchi II nos conta o porquê desta porção de terra ter demorado 25
anos – entre Ilha Vecchi I e II – para ser destinado aos/as agricultores/as: “É que essa aqui na verdade é tudo
uma ilha só, só que na Igreja aqui, tinha uma divisa de fazendeiro. Então essa parte de cima foi panhada, o lugar
que a gente plantava o chuchu, o pessoal tomaram conta, posse daquilo ali, e sobrou essa daqui com outro
fazendeiro. Essa foi durante um tempo pra poder cair nas mãos do povo (“L”, em entrevista a Pedro D’ Andrea
em 07/01/2018).”
77
Não sendo suficiente, “L” aponta, ainda, que a localidade escolhida para alocação da
primeira caixa d’água foi mal pensada,
O que fez foi que a gente sentiu que aquilo ali a nascente quase não abastecia. Ali é
nascente, não é do rio. Quase não abastecia. Quando dava o tempo do frio ficava um
perrengue terrível de água pra abastecer a caixa, além dela não ter força, ser baixa,
soltava (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea,
no dia 13/05/2017).
Mesmo assim, ainda dava para suprir o abastecimento das poucas famílias inseridas no
sistema. Quadro que começa a ser alterado e se aprofunda ao longo do tempo a partir do
momento em que 142 famílias são assentadas em Serra Queimada, no ano de 2001.
“Q” 19 conta que as 142 famílias foram assentadas sem qualquer infraestrutura capaz de
dar o suporte necessário para quem acabou de acessar a terra. CADORIN (2017), afirma que o
valor total que deveria ser pago em 15 parcelas anuais por cada uma das cinco associações era
de R$675.300,00, sendo R$75.300,00 destinados aos assentados para o financiamento de suas
moradias, assim como o pagamento das escrituras, implementos agrícolas e os serviços de
agrimensor. Dividido entre as 28 famílias de cada associação (sendo que uma das cinco possui
30 famílias), cada uma receberia R$2.689,29, valor irrisório para que cada uma delas possa
iniciar sua vida na terra. Porém, segundo relatos cada família receberam, em média, apenas
R$1.500,00 o que é comprovado por “Q”:
19
Agricultor assentado em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
78
No papel tinha assim um valor pra estrutura, só pra casa, um valor de R$1.600,00
pra cada família fazer sua casa pra poder morar [...]. Não sei o que faz com
R$1.600,00. Energia não tinha, só tinha pro fazendeiro, a rede ia direto pra fazenda
[...]. Só que não era espalhado, e nós não podia usar essa rede pra tirar energia. Se
todo mundo pegasse luz da rede que era exclusiva fazenda, ele que pagou, era dele
(“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
[...] ficamos quatro anos sem energia elétrica aqui. Sem água seis meses porque nós
pedimos um galho à Ilha Vecchi. A rede tava muito precária já, eles pediram ajuda a
nós de R$100,00, cada família, e nós vamo botar pra vocês (“Q” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
De modo sintético e definitivo, “Q” resume como ele entende a forma como foram
tratados e assentados em Serra Queimada,
Os assentados têm menos privilégio que os porcos; os porcos têm mais privilégio
que os assentados. Foi mais ou menos dessa maneira que nós fomo tratado aqui no
assentamento. Nós não poderia usar a água que dava acesso à pocilga, era exclusiva
para eles (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
SANTIAGO (2017) destaca o caráter comunitário das relações que são construídas
entre os homens, mulheres, jovens e crianças no Vale do Guapiaçu. Relações que
independente das origens de cada um/uma e do momento em que chegam ao Vale, partilham
das mesmas angústias, sofrimentos, lutas, mas também das mesmas conquistas e construções
coletivas que passam diretamente pelo compartilhamento dos saberes, fazeres e de elementos
concretos como o alimento, a tobata, os diversos mutirões para manutenção das estradas e
construções de pontes, assim como a água. Não se trata de deixar que o romantismo se
sobreponha às lentes que olham e aos ouvidos que escutam, pois ao mesmo tempo disputas
estão colocadas na escala do território. Mas mesmo assim, estas disputas são
momentaneamente suspensas quando eles e elas percebem a fragilidade de seus companheiros
e companheiras camponeses/sas.
20
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
79
Porque, na gestão do “J.A”, no mandato dele, tivemos que atender o Banco da Terra.
Como que se faz um projeto dum Banco da Terra sem estrada, sem infraestrutura
nenhuma, sem água pra uma comunidade, que seria nós aqui na ilha também
incluído aqui, né, em 1975, eu, Elzio, “M”, Anilton Knupp, “L”, nós fundadores da
Ilha Vecchi. O INCRA bota a pessoa assim, sem planejamento de água, sem
infraestrutura nenhuma, sem água, sem nada. Então essa água tem que atender o
Banco da Terra, a água era pra comunidade da Ilha Vecchi. Então cedeu a água o
Banco da Terra (“D”, em reunião da APROVECCHI no dia 12/05/2017).
Quais a razões, portanto, que levam às famílias da Ilha Vecchi assentadas em 1975 e
em 2000 – nas condições descritas acima – a compreenderam a situação das famílias recém-
assentadas em Serra Queimada, em 2001, e passarem a incorpora-las às Redes Comunitárias
de Água, que já apresentavam sinais concretos de incapacidade de suprir as demandas
necessárias naquele momento?
21
A Rede do Casarão já estava estabelecida quando os assentados chegaram ao local.
80
22
Como também dizem Inácio e Ivana, ao criarem os Artiquíferos.
81
“R”: O que acontece, a gente tem uma quantidade, e tem outras famílias que também
já estão dependendo, e aí fica complicado da gente poder aumentar a distribuição.
“L”: É tão triste ter que falar pro cara. É chato.
“R”: A gente passa apertado, chega pra eles pra pedir, mas como que a gente vai
distribuir pra mais uma casa, já tem tantas, já tá faltando.
“J.A”: E a água é um negócio, a água é difícil de negar (Reunião na
APROVECCHI, em 12/05/2017).
Por mais que o sistema passe por uma crise de abastecimento com graves problemas
em sua tubulação, por mais que ainda haja famílias sem abastecimento hídrico e por isso
demandam urgência na incorporação à Rede, por mais chato e triste que seja negar à família
que pede, “a água é difícil de negar” e, portanto, não se nega a ninguém. Consubstancia-se
assim o primeiro princípio do Protocolo Implícito da água do Guapiaçu.
A insígnia tão carregada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – “Água não é
mercadoria” - não poderia ser mais bem explicada por aquelas e aqueles que carregam o
movimento desde baixo. SANTIAGO (2017) é muito feliz ao explicitar a concreticidade deste
lema, que neste trabalho consideramos como o segundo princípio do protocolo implícito da
água no Guapiaçu. Se a água não é mercadoria, assim como não pertence a ninguém, não se
pode cobrar por seu uso. Porém, “como financiar um sistema que gera naturalmente gastos
com manutenção e ampliação da estrutura física?” (p. 151), pergunta o citado autor. É a partir
da lógica do bolo25 utilizada por seu “L” que podemos ter a resposta:
23
Entre nós – Barbara Pelacani, Bernardo Xavier e eu - e os homens e mulheres do lugar.
24
Agricultor assentado pelo INCRA na Ilha Vecchi e importante mestre da água.
25
Que mais à frente, neste trabalho, irá aparecer novamente, porém com outra perspectiva.
82
A associação é sem fins lucrativos, entendeu? Não pode, entendeu? Fazer cobrança
de nada.
[...]
O cara não tá pagando nada, ele tá contribuindo pra ele, ele tá cumprindo a parte
dele, não é isso? Somos nós três aqui, nós vamos comprar um bolo pra nós comer,
cê me dá 10, cê me dá 10 e eu dou 10. Você me pagou 10 reais pra mim comprar um
bolo? Não! Você deu a sua parte do bolo, não é isso? (Seu “L”, em entrevista a
Bernardo Santiago, Pedro D’Andrea e Bárbara Pelacani, em 13/05/2017).
Na lógica do mercado, há quem preste o serviço e há quem pague pelo serviço. Logo
se houver o pagamento por parte de qualquer um dos/das que compõe o sistema, além de se
desrespeitar o estatuto da própria associação acabaria por se criar uma relação mercadológica
da água. Portanto, a construção – material e política – destas Redes Comunitárias de Água vai
da contribuição de todas as partes para a construção do todo. Cada um deve contribuir
financeiramente para tornar possível o reparo e a ampliação do sistema e é só a partir desta
lógica que este sistema poderá se consolidar e chegar a cada vez mais casas e famílias.
Contribuição não é pagamento, como sintetiza SANTIAGO (2017), é o segundo princípio do
Protocolo implícito da água no Guapiaçu.
Outro importante princípio que rege o uso comunitário da água no Vale do Guapiaçu
diz respeito ao uso da água. Segundo os próprios usuários, a água distribuída pelas Redes só
poder ser destinada para o consumo humano. Não é permitida, segundo os acordos
constituídos, a utilização destas águas para irrigação das lavouras e para o consumo animal.
Este pricípio traz consigo a lógica de que deve haver um uso consciente por parte de todos e
todas que estão inseridos nas Redes Comunitárias e isto deve ser respeitado a partir dos
acordos coletivos e encaminhados nas reuniões da APROVECCHI. Tal lógica explicita o
caráter antagônico de duas raciolidades que se apropriam de formas distintas sobre a água. O
Art. 19 da Lei Nº 9433/1997 vigora que:
O Estado entende a água enquanto um bem ao qual deve ser dado um valor monetário
e para legitimar tal hipótese utiliza-se do discurso da escassez, já que entende que só desta
maneira haverá um uso consciente por parte dos/as cidadãos/cidadãs. Esta é a mesma lógica
83
defendida pelo capital financeiro global. Em um discurso que está disponível na internet26,
Peter Brubeck, diretor presidente do Grupo Nestlê – que segundo o próprio é a maior
corporação mundial do ramo alimentício do mundo, com um faturamento de U$$90
bilhões/ano, defende que,
26
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v0OsWMNpyBw>. Acesso: 23 abr. 2018.
84
sujeito social de definir o modo e o grau em que as formas de valor das relações sociais
constituídas irão conduzir suas bases epistêmicas de produção da vida. Quando estes homens
e mulheres definem estes princípios, resultantes dos saberes-e-fazeres do/no território, estão a
construir uma experiência concreta de rebeldia e insurgência frente à lógica estatal-privada
que regem os acordos jurídicos sobre a gestão da água. Porém, se não houver um esforço
constante e sistemático de contínua formação multilateral – entre as próprias autoridades
coletivas, MAB e demais parceiros – corre-se um sério risco de termos mais uma rica
experiência em que o valor de uso se sobrepõe ao valor de troca literalmente afogada pela
grande barragem.
Experiências concretas de insurgência vêm sendo apresentadas no Brasil onde os
povos indígenas e comunidades tradicionais têm assumido protagonismo ao apresentar
elementos concretos de enfrentamento à ordem moderna-colonial. Durante o processo de
resistência do povo Munduruku, no Pará, ao Complexo Hidrelétrico do Tapajós foi elaborado
o Protocolo de Consulta Munduruku baseado na Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho. Este Protocolo de Consulta apresenta os sistemas de significados
culturais e traduzem a sensibilidade jurídica Munduruku (OLIVEIRA, 2018), em que o
Estado é obrigado a se adequar às formas de organização e deliberação do povo Munduruku
para iniciar o diálogo sobre qualquer projeto que esteja inserido sobre seus domínios
territoriais. OLIVEIRA (2018) afirma que o Protocolo de Consulta “insere os grupos étnicos
no processo de aplicação das normas internacionais de direitos humanos, ao mesmo tempo em
que retira do Estado o monopólio de interpretação do direito (p. 47)”. Trata-se, portanto, de
uma complexa inflexão das relações de poder historicamente constituídas entre o Estado e os
povos indígenas. O Protocolo de Consulta Munduruku obriga o Estado a realizar uma
consulta prévia com os “sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar histórias, que
sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles senhores que sabem os lugares sagrados
(MUNDURUKU, 2014)”, além dos Caciques, guerreiros e guerreiras – já que são os Caciques
das diferentes aldeias que se articulam para planejar as ações e cabem aos guerreiros e
guerreiras os acompanharem e protegerem seus territórios -, além dos professores e
professoras, agentes comunitários de saúde, as mulheres, e estudantes universitários. Afirma
ainda que devem ser consultadas as organizações que compõe o território Munduruku, mas
que nunca deverão ser consultadas separadamente, assim como os vereadores Munduruku
isoladamente não respondem pelo povo. A consulta prévia deve, ainda, respeitar o tempo da
roça, o tempo de extração da castanha, o tempo da farinha, o tempo das festas e do Dia do
Índio. Afirma também que o Estado “têm que viver com a gente, comer o que a gente come.
85
Eles têm que ouvir nossa conversa”, portanto, não podem “chegar à pista de pouso, passar um
dia e voltar. Eles têm que passar com paciência com a gente”. O Protocolo de Consulta
Munduruku obriga o Estado a respeitar seus modos de vida, sua temporalidade, sua cultura e
organização se quiser abrir qualquer diálogo. O Protocolo de Consulta impediu a realização
de uma consulta prévia enviesada e arbitrária, rompendo com a hegemonia regulatória do
Estado. Este Protocolo foi entregue à Secretaria de Governo da Presidência da República e
atualmente encontra-se parado (OLIVEIRA, 2018).
A importância do relato da experiência da Consulta Mundukuru tem pertinência uma
vez que na reunião convocada pela APROVECCHI foi levantada a possibilidade da
elaboração de uma espécie de estatuto popular da água. Nesse documento estariam elencados
todos os princípios que regem as redes comunitárias de água, o número de famílias
abastecidas, o mapeamento da rede, assim como a memória destas redes comunitárias. Tal
proposta surgiu no contexto de tentativa de apropriação da Autarquia Municipal de Água e
Esgoto de Cachoeiras de Macacu (AMAE) – conforme apontarei a seguir – sendo
prontamente negada pelas autoridades campesinas. Estas experiências de elaboração de
Protocolos de Consulta são estratégias que surgiram em um contexto reativo à proposta de
construção de grandes empreendimentos hidrelétricos, mas hoje se traduz em um importante
documento de enfrentamento a qualquer processo que possa ameaçar estes territórios. Elas
nos apresentam um horizonte de possibilidades de estratégia de resistência inexistente até o
momento, e nos convida a pensar possibilidades de organização que não precisam esperar o
conflito chegar aos territórios para serem elaboradas. A experiência Munduruku nos aponta
que devemos pensar em formas de organização e de estratégia que não devem estar restritas a
movimentos reativos e de defesa, nos convidando a inflexionar a correlação de forças desigual
que está historicamente sedimentada.
1.3.3 As múltiplas escalas da disputa pela água: o local, o regional e o global no território
nem sobre a apropriação de empresas privadas – como o Grupo Águas do Brasil e a AEGEA
(Prólagos S/A). Logo, a incumbência por estes serviços é dada à AMAE.
A AMAE foi criada através de Lei 1.601 de 15 de dezembro de 2005 e hoje, segundo
dados apresentados em seu site oficial 27, é responsável pelo abastecimento de 11.577 famílias,
1.091 estabelecimentos comerciais, duas indústrias e 117 órgãos públicos. Segundo os dados
presentes no Plano Municipal de Saneamento Básico de Cachoeiras de Macacu (2013), a
AMAE atendia 73,7% da população do município através de seu serviço de abastecimento de
água (SAA). Um dos objetivos do plano diz respeito à reforma, ampliação e modernização do
SAA, cujas metas propostas de curto prazo tinham o objetivo de aumentar a oferta de água,
alcançando o atendimento de 82,6% da população, até 2017.
Dois pontos são importantes e serão tratados aqui com prioridade: o primeiro, diz
respeito à estratégia do plano municipal que, entre 2013 e 2017, visava à expansão do seu
SAA na zona rural ao integrar 495 famílias. Entre 2018 e 2022, o objetivo é incorporar ao
SAA mais 218 famílias e entre 2023 e 2032 alcançar mais 495 famílias, totalizando 1.208
famílias; o segundo, diz respeito ao não cumprimento, pela AMAE, dos requisitos presentes
no Art. 11 da Lei federal nº 9.433/1997 28. O presente artigo cria o regime de outorga de
direitos de uso dos recursos hídricos, cujo objetivo é assegurar o controle quantitativo e
qualitativo dos usos da água. O Art. 12 da mesma lei declara que:
Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de
recursos hídricos:
I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água
para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo
produtivo;
II - extração de água de aquífero subterrâneo para consumo final ou insumo de
processo produtivo;
III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos,
tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final;
IV - aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V - outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente
em um corpo de água (Lei Nº 9.433/1997, grifos nossos).
27
Disponível em: <http://www.amaecm.com.br/quem-somos>. Acesso: 22 abr. 2018.
28
“Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de
março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989.” Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=370>. Acesso: 23 abr. 2018.
87
É neste contexto – de expansão dos serviços na área rural, sem cumprir os requisitos
presentes na Lei Nº 9.433/1997 – que a AMAE chega ao Vale do Guapiaçu. No início de
2017, é deflagrada uma clara tentativa de apropriação da autarquia municipal das Redes
Comunitárias de Água, cujo controle é exercido de forma comunitária e autônoma. Esta
estratégia ocorre a partir de dois elementos fundamentais:
1) Desde janeiro de 2017, conforme aponta SANTIAGO (2017), a autarquia é secretariada
pelo empresário e dono de terras na região, Fabio Lemgruger, que na sua diretoria executiva
atribui um cargo a Erenildo dos Santos, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Cachoeira de Macacu (STR-CM) e importante líder sindical na região. Ora, há uma clara
estratégia de expansão do poder sobre o controle da água no município quando uma autarquia
distribui cargos para sujeitos cujas relações de poder já estão constituídas em áreas cuja
própria instituição não tinha inserção. Não é a toa que a estratégia de articulação de entrada no
território não é via consulta à APROVECCHI, e sim ocorre de forma direta com importantes
lideranças locais.
2) O discurso utilizado para convencimento das lideranças locais é pautado a partir do
aproveitamento da situação de vulnerabilidade, insegurança e medo por qual passam os/as
agricultores/as do Vale do Guapiaçu, já que foi dito – segundo os relatos apresentados – que a
partir do momento em que a AMAE adquirir a outorga de água para captação, tratamento e
distribuição das águas no Vale, esta se tornaria um importante instrumento de luta na
resistência contra a construção da barragem. Não há qualquer relação prevista em lei que
88
garanta que as outorgas de água, enquanto instrumentos jurídicos possam ser capazes de frear
um processo desse tipo. Pelo contrário, o Art. 15 da lei nº9. 433/97 prevê que a outorga de
direito de uso dos “recursos” hídricos poder ser suspensa caso haja ocorrência de casos como
“necessidade premente de água para atender situações de calamidade” e “necessidade de se
atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes
alternativas”. Ambos os casos podem ser utilizados pelo Estado para justificar a construção da
barragem-reservatório do Guapiaçu.
Se levarmos em consideração os dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) a partir do Censo 2010 29, em Cachoeiras de Macacu existiam
16.019 famílias, 14.013 residentes na zona urbana e 2.006 na zona rural. O plano municipal
ao apontar a incorporação de 1.208 famílias (mais de 50% da população rural atual) em seu
SAA, entre 2013 e 2032, explana a ausência histórica do Estado na garantia destes serviços
básicos, abrindo ao mesmo tempo uma possibilidade contínua de expansão e apropriação do
controle sobre possíveis formas de gestão comunitária e popular da água no município.
Agudiza-se, portanto, a partir de 2013, um cenário de conflitos pelo controle da água
nos territórios, como ocorre no Vale do Guapiaçu, cujas formas de apropriação da água se dão
de forma autônoma e coletiva, estabelecendo um complexo cenário multiescalar pela disputa
da água de dimensões local, regional e global. Ao mesmo tempo em que os agricultores e
agricultoras do Vale do Guapiaçu devem criar estratégias de resistência frente ao projeto de
construção da barragem-reservatório do Guapiaçu – a partir de uma estratégia de controle de
água regional-global, devem resistir ao processo de expansão do controle da água pela AMAE
– que traz uma disputa local, mas que também está articulada a uma estratégia do capital
financeiro global de mercantilização da água. Este duplo cenário de disputas cria uma
estratégia de mobilização do/no território quando os sujeitos negam a entrada da autarquia
municipal, o que coloca novos desafios para a continuidade da construção autônoma e
comunitária da água pautada pelos princípios no item anterior.
29
Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/cachoeiras-de. macacu/pesquisa/23/24161?detalhes=true>
. Acesso: 23 abr. 2018.
89
30
Segundo os relatos, a Rede Chiqueirão criada enquanto contrapartida para a passagem das águas pelas terras
do antigo dono da fazenda José Tostes segue sem ser apropriada pelos camponeses e isto se deve não pela
existência do contrato, mas sim porque herdeiros do fazendeiro ainda possuem propriedade sobre um lote de
10ha e fazem visitas semanais à Serra Queimada. Um dos assentados em Serra Queimada é responsável por
cuidar das estruturas do Chiqueirão e por fazer a limpeza do lote, utilizado hoje para lazer.
31
Metodologia inspirada a partir de GEILFUS (2002).
90
Tem uns quatro ou cinco mês que eles tiveram aqui [a AMAE] (...) Era 20 reais por
mês, eu falei que era 20 pra começar. Depois teve alguém que orientou a gente:
“olha, se cair na mão de órgão público, depois que passar um tempo vocês vão
perder o direito dela, eles podem vender ela pra outra firma”, fazer um escarcéu com
nós. Aí que eu dei essa ideia, vamo salvar essa pele aí (...) eu dei essa ideia de 100
reais de cada um (“L” em entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e
Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).
32
Para GUTIÉRREZ AGUILAR (2011) a ideia de emancipação social “pressupõe uma relação anterior de
submissão, binária ou múltipla, que é rompida por decisão – e capacidade – da parte anteriormente subordinada.
Em geral, a emancipação tem sido tratada, sobretudo, em seus aspectos políticos, que dizer, a partir de
determinadas relações de poder instituídas, das quais, desde a modernidade se pensam em relação com o Estado
e o capital. Por minha parte, também relaciono a noção de emancipação a outra constelação de ideias: a
autonomia, material e política, e a capacidade social e prática de estabelecer fins para si mesmo (p. 28)”.
92
Isso aí a vida foi ensinando, porque você vê, nós começamos cá embaixo. No tempo
que fizeram essa caixa d’água, que foi “D” que buscou esse projetinho lá, fizeram cá
embaixo. A água começou a ficar ruim; “bom, vamos levar pra cima, lá pro lado do
Dirlei (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea em
13/05/2017).
Quer dizer, deu uma boa melhorada. Só que hoje já tem um filho de Tamir que
casou, tem o Borel que panhou água. Tem o Serra Queimada, que tem 12 ou mais
que usam. Aqui dentro da Ilha já casou o filho de Cinésio, de “M”, de Élzio, do “D”,
da Lúcia. Filho e filha, então aumentou. A gente vai vendo “não tá dando certo.
A gente sentiu que aquilo ali a nascente quase não abastecia. Ali é uma nascente,
não é o rio. Quando dava o tempo do frio ficava um perrengue danado de água para
33
NAVARRO (2013) aponta que estas formas de sociabilidade regidas em torno da construção comunitária
apresentam características marcantes, onde há o reconhecimento de um conjunto de necessidades que são
compartilhadas e assim buscam a construção de caminhos coletivos para sua resolução, mesmo quando as saídas
individuais podem ser uma opção. Este sentido do comum, portanto, atravessa as dinâmicas sociais centradas no
individualismo e na fragmentação e encontram no saber-fazer-pensar coletiva a superação dos desafios.
93
abastecer a caixa, além dela não ter força por ser baixa (Entrevista a Barbara
Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).
de autoria. Acontece que existem pessoas que se colocam como responsáveis por conseguir
articular com os poderes locais as condições necessárias para a construção do sistema. Não
fosse suficiente, partes destes sujeitos são justamente os responsáveis pelo manejo da Rede.
Estas autoridades da água são fundamentais para a re-existência do sistema, mas é preciso se
atentar que a ausência de um trabalho coletivo é também consequência de uma possível
centralização do trabalho por parte destas autoridades. Defendo aqui que não há um caráter
autoritário do controle das Redes Comunitárias de Água e isto fica expresso em uma das falas
do atual presidente da APROVECCHI e um dos responsáveis por articular a construção do
sistema:
Hoje então é o seguinte: animais bebe água, têm seis ou sete piscinas, no verão o
pessoal tem que tomar banho, é um lazer. O ser humano tem que ter um lazer, né?
Hoje no momento não podia ter piscina. Como que chega na casa de alguém: “rapaz
esvazia essa piscina, corta essa água”. É difícil. Nós somos uma comunidade de
cinquenta e poucos usuários de água, olha quantos tem aqui. Dói também, né. Olha
quantos tem aqui interessados pela água (em Reunião da APROVECCHI em
12/05/2017).
34
A maioria destes termos é apontada pelos homens e mulheres que participaram da reunião da APROVECCHI
em 12/05/2017.
95
restrito aos homens (e neste caso são apenas homens, de fato) que realizam os reparos e por
isso detém um conhecimento mais aprofundado sobre a Rede. É a partir deste sentido coletivo
– já presente na gestão do sistema – que se fortalece e se inflexiona a disputa pelo poder sobre
a água. Esta disputa se dá no território, mas a partir de agentes externos a ele que a partir da
tentativa de controle da terra – como o projeto da barragem-reservatório – visa o controle da
água. Não se obtém o controle da água se não há um controle da terra, portanto do território.
As táticas e estratégias de controle do território são múltiplas e podem se apresentar de forma
direta ou indireta. Por exemplo, pode ocorrer a partir da articulação com uma das – ou
algumas das – lideranças camponesas locais35. Ou seja, a descentralização e a
despersonificação destas autoridades deve ser levada a cabo para se constituir uma autoridade
comunitária que controla e faz a gestão de forma realmente coletiva e autônoma do sistema.
Para isso é fundamental que ocorra processos formativos internos, onde a metodologia
camponês-camponês pode ser interessante para potencializar ambos os lados.
Como salientamos no início deste tópico, praticamente todos os problemas e desafios
levantados na reunião da APROVECCHI foram posteriormente acompanhados por propostas
concretas para a resolução dos mesmos. É fundamental – e isto foi demandado por todos e
todas – que haja uma interação entre a sabedoria camponesa e o saber acadêmico com vistas à
potencialização das propostas de forma que haja a consolidação de uma reforma capaz de
suprir a demanda para as gerações futuras. Seguimos com as propostas:
• Mudança do local de captação. A avaliação técnica feita pelos mestres da água é de
que o atual ponto de captação – 97 metros de altitude em relação ao nível do mar - não possui
uma altura e uma declividade capaz de proporcionar a pressão suficiente para a água se
deslocar com a potência necessária até o final da Rede. Em uma caminhada realizada na mata,
com dois dos mestres, ambos identificaram um novo ponto de captação (Figura 6), que
segundo eles terá altura - 127 metros de altitude em relação ao nível do mar – e inclinação
suficiente.
35
Como veremos no tópico a seguir esta é uma das estratégias que a Autarquia Municipal de Água e Esgoto
tentou adotar para se apropriar das Redes Comunitárias de Água do território.
96
Então, botando isso lá, fazendo essa caixa d’água lá em cima, levar esses cano de
100 todo pra cima pra sair da caixa até onde eles der. Deve ter uns 15 ou mais, com
mais algum que tem lá, dá quase 20 de 75. Quer dizer, ela vai andar bastante de lá de
cima, ela já tando alta com bastante peso de água, aí sim ela vai cair na borracha de
60. Só que essa borracha que você tá perguntando, essa aqui, na minha ideia é nós
97
levar a nova pra cima, porque você consertar uma água perto de casa é mais fácil do
que consertar dentro da mata, que lá sozinho eu não vou, quem for é doido que lá
tem onça! Então botar o novo lá em cima e pegar essa que tá conservada na sombra,
outras enterrada, e passar pra baixo. Aí ela vai passar da fazenda muita coisa. Vir
jogando ela pra baixo na borracha de 60 até no bambu já vai melhorar bem, já
pensou? Com esse dinheiro que vai arrecadar, ou não, dá pra chegar aqui na
borracha de 60; de 40 pra 60 vai render muito. O peso dela lá de trás de uns 200
metros ou sei lá, até mais, de cano grosso, de 100 e 75, acho que é assunto pra
encerrar a preocupação (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e
Pedro D’ Andrea em 13/05/2017).
[...] a linha d´água não pode passar dentro do terreiro desse pessoal da ilha. Então
aqui na Ilha, a gente tem uma ideia de que da Iolanda até aqui embaixo, até na
Mônica, passar lá do lado da estrada, cada um tirar sua água de lá, que aí ela sai
dentro do terreno (Entrevista a Barbara Pelacani, Bernardo SANTIAGO e Pedro D’
Andrea em 13/05/2017).
Busquei apresentar até aqui a conjuntura que levou estes homens e mulheres a
construir uma rede comunitária e autônoma da água, assim como os desafios internos-
externos que fazem parte de qualquer processo que aposte na autogestão enquanto estrutura
organizacional de controle de água. Desafios internos que são constantemente atravessados
por tentativas de apropriação, como no caso da AMAE, ou de destruição desta forma de
organização, como é o caso do projeto de construção da barragem-reservatório do Guapiaçu.
Igualmente importantes são os princípios que regem os saberes e fazeres da agricultura
reproduzida pelas mesmas pessoas que constroem cotidianamente a gestão da água. Estas
redes tornam possível a garantia da sobrevivência destas famílias que por sua vez garantem a
sobrevivência de uma parcela significativa da população que reside na região metropolitana
do ERJ ao produzirem os alimentos consumidos por ela. Como a agricultura e a gestão da
água no Guapiaçu são intrínsecas ao cotidiano destes homens e mulheres é fundamental que
se realize uma análise destas duas formas de construção do território. É fundamental que os
debates que tem como objetivo analisar as relações de poder e disputa sobre a água tragam,
também, o debate indissociável sobre a terra. Como esta região é umas das mais importantes
do ERJ no tocante a produção de alguns dos principais alimentos que chegam à mesa da
população que reside na região metropolitana, irei a partir de agora, realizar um debate sobre a
98
episteme camponesa de utilização da terra, porém focado em descrever e debater como esta se
materializa através dos sentidos e saberes.
[...] o importante é que nós tamos na nossa terra, a gente tá produzindo e saímos da
meia. A gente trabalha pra nós e pra nossa família, não dividir com alguém. Bem ou
mal nós tamos aqui, na nossa casa, tamo tocando a vida, e de 2002 pra cá nós tamos
nessa luta (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)
“Q” estava se referindo ao processo de luta pela terra que ele e “N²” empenharam até
conquistar o seu pedaço de chão. Ele conta que antes de serem assentados em Serra
Queimada, pelo Banco da Terra, viviam na terra do seu pai, no Marubaí 36, e “trabalhava a
36
Região do município de Cachoeiras de Macacu.
99
meia, era meeiro”, como ele mesmo narra. Para que tivessem acesso a sua própria terra,
ambos tiveram que participar de alguns acampamentos na região. O primeiro deles foi
marcado pela violência em que foram expulsos do acampamento. Situado no km 11, em
Guapimirim, uma fazenda foi ocupada pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cachoeira
de Macacu (STR-CM) cuja intenção era tomar a terra improdutiva e dividir entre os sem terra.
Eram cerca de 50 famílias participando da ocupação alojada em um galpão ocupado pelo
grupo. “Q” conta que o fazendeiro acionou o exército e que este foi o responsável por
remover as famílias da terra. Já a segunda ocupação, também organizada pelo STR-CM, foi
realizada no km 18 e a estratégia era que o processo de desapropriação da fazenda ocorresse
via intermediação do Banco da Terra, mas como a terra na época atravessava problemas
jurídicos não foi daquela vez que as famílias puderam conquistar um pedaço de chão.
“A” e “V”, assim como “N²” e “Q”, vinham de uma trajetória de vida na terra, mas
sem possuí-las. Ele conta:
Eu morava, rapaz, lá na beira da pista, sabe, trabalhava um dia pra um, um dia pra
um, sabe, trabalho assim, sabe, que você não tem carteira, não tinha nada, não tinha
garantido porque chovia, às vezes não podia trabalhar. Vai trabalhar com chuva,
chega lá o cara não quer. Então você acaba perdendo o dia, não é verdade? Então,
tudo que a gente sempre mais queria era ter um pedacinho de terra pra poder
sobreviver e sustentar a família, né (“ A”, em entrevista a Pedro D’ Andrea em
09/01/2018).
37
Agricultora assentada em Serra Queimada pelo Banco da Terra.
38
Para aprofundamento da discussão sobre as fraudes e os impactos da Reforma Agrária de Mercado pelos quais
passam as 142 famílias assentadas em Serra Queimada, ver CADORIN (2017).
100
A gente não sabia, até porque a gente até uma vez ajuntemo um grupo, umas
pessoas, a gente queria vir aqui pra conhecer aí informaram pra nós que não podia
que o homem fazendeiro não permitia ninguém vir aqui pra ver, que se viesse aqui ia
botar pra correr. Aí na verdade eles ficaram ainda um ano fazendo negociação e a
gente sem poder vir aqui, pelo menos sem saber o que tava comprando (“ A”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 09/01/2018).
Segundo CADORIN (2017), 51% dos assentados em Serra Queimada não puderam escolher a
terra em que foram assentados e 61% não participaram do processo de negociação. O maior
escândalo relativo ao processo de negociação destas terras intermediado através da lógica da
RAM está relacionado ao tamanho dos lotes. Segundo consta em documento produzido pelas
cinco associações - que abrangem as 142 famílias assentadas – entregue à Defensoria Pública
de Cachoeiras de Macacu 39 foi garantido aos assentados que as terras financiadas por eles
estavam aptas e em boas condições para a produção agrícola. No contrato assinado pelas
cinco associações, cada família seria contemplada com um lote de 9,7ha, em média, mas ao
chegarem se depararam com uma área de preservação ambiental que ocupava 53% de todo o
assentamento, restando apenas 47% do total da área disponível para a agricultura. Ou seja, os
agricultores e agricultoras se comprometeram a pagar perante assinatura do contrato de
compra e venda por uma área que não representa o que está indicado no próprio contrato. Se
no contrato estava previsto que as famílias receberiam em média 9,7ha hoje elas estão
assentadas em lotes que variam entre 2,5ha e 3,5ha.
As cinco associações e os/as associados/as estão com seus nomes inseridos na dívida
ativa da união e passam por um processo de tentativa de anulação do contrato por entenderem
39
Disponível em CADORIN (2017).
101
que foram lesados. Tanto “Q”, quanto “A”, ao tocarem no assunto se colocam de forma
enérgica deixando clara a indignação por terem sido escancaradamente enganados.
O valor que tá pra gente pagar é de nove hectares. Só que o assentamento tem 53%
de mata. Então você jogando em cima da nossa terra, mesmo assim não dá as nove,
porque a gente tem três, jogar o dobro dá seis. Então não sei da onde eles arrumaram
essas nove pra colocar no documento. Porque não tem essa terra aqui (...). Não tem
jeito de ter essa terra. Se nós têm 50% assentado e 50% de mata, teria que ser 4,5 pra
dar nove. Não pode dar nove (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
Por esse motivo a gente vive enrolado ate hoje, sabe, por essa questão, de não ter a
quantidade de terra que gente esperava ter; não é que a gente esperava, é que
prometeram pra gente e a gente não tem. Além disso, tem terreno aqui que, sabe, se
o cara ele sozinho sobreviver em cima dele, rapaz, só com ajuda divina (“A”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 09/01/2018).
40
O levantamento realizado pela Rede Terra de Pesquisa Popular realizou 1.677 entrevistas em 13 estados
brasileiros abrangendo um universo de 60 mil famílias. A pesquisa abrange os programas Cédula da Terra,
Banco da Terra, Crédito Fundiário e Nossa Primeira Terra entre 1997 e 2005. O estudo foi realizado por diversos
movimentos e organizações que compõe a Via Campesina Brasil, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC),
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Pastoral da
Juventude Rural (PJR) e a Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), além da Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos.
41
Disponível em: <http://www.incra.gov.br/tabela-modulo-fiscal>. Acesso em: 27 abr. 2018.
102
Que é aquele negócio, Pedro, você vai num aniversário, cê tá com fome, você quer
um pedacinho do bolo, não é verdade? Foi o caso nosso. Ao menos um pedacinho
você quer, você não quer ir pra casa sem nada (“ A”, em entrevista a Pedro D’
Andrea em 09/01/2018).
Veremos a seguir, nos demais itens, que por mais que estas famílias – “Q” e “N²” e
“A” e “V”, da Serra Queimada; e “L” e “N” 42, da Ilha Vecchi II – possuam um lote inferior ao
módulo rural do município e dos parâmetros nacionais estipulados pelo INCRA suas terras
apresentam índices altíssimos de produtividade alimentar – em média 50 toneladas/ano. Isto
ocorre a partir de saberes-e-fazeres desenvolvidos a partir de elementos como a observação e
a experimentação adquiridos com o tempo, e a partir do saber ancestral passado pelas
gerações que os/as antecederam. Fatores como o tempo, o clima, a água e a lua regem os
princípios da relação que estes/as desenvolvem com a terra e, portanto, conduzem estas
diversas formas de plantar-comer-habitar-curar. Ademais estão inseridas sobre os mesmos
processos hidrocomunitários debatidos anteriormente.
Assim, apresentaremos a seguir novos elementos que caracterizam o
sociometabolismo camponês presente no território do Vale do Guapiaçu.
42
Agricultora assentada na Ilha Vecchi.
43
O livro reúne uma série de discursos proferidos no Colóquio Aubry, entre os dias 13 e 17/12/2007, realizado
em San Cristóbal de las Casas, Chiapas, México. Disponível em:
<http://enlacezapatista.ezln.org.mx/category/2007/>. Acesso em: 28 abr. 2018.
103
conhecessem muito poderia ser agregado as suas formas de conceber o mundo e suas
estratégias de luta, o que mais importa aqui – nesse momento - é a relação dos setes sentidos
zapatistas com a agricultura desenvolvida no Vale do Guapiaçu.
A partir das entrevistas semi-estruturadas realizadas nos trabalhos de campo é possível
perceber a importância dos cinco sentidos – a escuta, o tato, a visão, o olfato e o paladar – na
construção do conhecimento dos/das camponeses. Além deles, podemos incorporar o que
os/as zapatistas também consideram como sentido: o sentir e o pensar. Esta complexa relação
do escutar-tocar-observar-cheirar-provar-sentir-pensar se constituí, portanto, como a base do
senso agroambiental teórico-prático que estrutura as diversas formas de plantar-comer-curar
que são materializadas a partir do manejo da terra e da água.
Estas diferentes formas de sentir-pensar (ESCOBAR, 2016) a agricultura envolvem
epistemologias, saberes e referências de mundo próprias. Há uma vivência correlata às
diferentes experiências espaço-temporais da humanidade onde este sentir-pensar esta
relacionado a estas diferentes cosmologias e visões de mundo. O território é construído
através de um longo e constante processo de aprendizado, através dos pés e das mãos. Escutar
o vento, a mata, os bichos, a água. Tocar a terra, a água, o alimento, as diferentes texturas
presentes no espaço. Observar a lua, as estrelas, o sol, a chuva, as nuvens, os bichos, as matas.
Degustar os alimentos, as plantas medicinais. Cheirar a terra, a chuva, o fogo, a fruta, a mata.
E o sentir-pensar como simbiose deste constante e histórico processo de experimentação e
aprendizado. Todos estes sentidos são ao mesmo tempo unidade e diversidade que estruturam
um conjunto de elementos que só podem ser compreendidos a partir de sua totalidade.
Isso, assim que meu pai ensinava. Ele dizia: “se você quiser plantar só milho
catete...”. Porque o milho catete é mais pra canjiquinha. E o astequi ele dá mais
fubá, 60% dele é fubá. Então ele é mais pra fubá do que pra canjiquinha. Ai meu pai
fazia cruzamento de um com o outro pra ter a durabilidade, que esse milho astequi
você não pode guardar muito tempo que ele dá caruncho. Já o cateto ele não dá. Ele
é um milho firme, não dá, você pode deixar dois, três anos que ele não dá nada disso
não. Aí meu pai fazia o seguinte: “vamo fazer o cruzamento desse milho com esse
pra pode eles ficar bom”. Aí meu pai plantava o cateto e o astequi (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
“A” se refere ao seu pai quatro vezes para explicar a ciência relativa ao cruzamento de
diferentes espécies de milho. E essa referência repetitiva não se traduz – como nossa
arrogância moderna-colonial possa pensar – por uma falta de domínio da linguagem. As
palavras são muito bem pensadas antes de serem utilizadas, sobretudo por aqueles/as que têm
na oralidade sua forma de expressar sua visão (sentirpensar) do mundo e sua forma de estar
no mundo, pois “as sociedades orais não são necessariamente analfabetas, porque sua
oralidade não é carência de escritura, mas sim não-necessidade de escritura (MALDONADO,
1992 apud TOLEDO e BASSOLS, 2008). “Fazia”, “plantava” e “ensinava” são as palavras
associadas conjuntamente ao seu pai e que expressam um tempo verbal do passado, mas que
traduzem um método relativo ao presente de passar o conhecimento: ensinar fazendo. Este
espaço-tempo passado que se apresenta no espaço-tempo presente através da prática também
tem o intuito de alcançar e projetar um espaço-tempo futuro. Afinal, o que seu pai ensinou é
ensinado ao seu filho:
E aí guardo pra mim plantar, todo ano eu planto. Já arrumei pra tanta gente esse
ano. Esse ano já arrumei mais de 50 quilos de milho. Distribuindo semente,
porque todo mundo quer. Outro dia tava até vendo, tava até comentando com meu
filho, falei: “filho, tudo, do jeito que começa, acaba”. A gente começa do nada, e
quando morre também não é nada mais, não é verdade? Vira nada. Falei: “olha só, o
que começou a alimentação foi esse milho indígena”. E se eles não investir nessa
semente; não vou dizer eu ou você, mas essas gerações novas que tá vindo, que vai
vir ainda, vai passar fome, porque a terra não vai dar esse milho transgênico, vai
não. Você vai ter que botar, sabe iogurte pra poder ela se alimentar pra poder dar.
Antigamente o pessoal botava esse milho indígena, ele dava sem nada. Plantava lá e
dava, e eu planto até hoje, e dá. E por que esse outro não dá? Se você não botar
adubo, não dá? Já é uma ligação que eles fazem no próprio desenvolvimento da
semente que se você não usar aquele adubo, o milho não vai dar. Que é pra vender o
adubo. O cara vai lucrar duas vezes, vendendo a semente e vendendo o adubo. O que
eu tô fazendo? Plantei ali, tô fazendo cruzamento de um milho com o outro. Falei:
“Filho botar esse milho pra fazer cruzamento com o outro”. “Pai, como que faz
cruzamento de um filho com o outro?”Falei: “Filho, meu pai, meu avô, eles
fazia assim”. Quando eles queria fazer cruzamento, eles plantava uma carreira de
um e uma carreira de outro, uma carreira de um e uma carreira de outro. Quando
105
faltava o pedão, o que eles queria eles deixava o pedão (“A” em entrevista a Pedro
D’ Andrea em 11/01/2018).
diversidade genética e linguística. “L” sem conhecer estes autores expressa o mesmo (aliás, os
autores expressam o mesmo que “L”, é o inverso!):
[...] as pessoas de antigamente têm uma ideia que o que eles falar hoje se ficasse
gravado não ficava tão armazenado. O dia que plantou tal coisa, o dia que plantou
tal, pra saber o que funcionou, porque funcionou. E aí vem passando pra gente, a
gente vai levando aquilo: será que isso é verdade? (“L” em entrevista a Pedro D’
Andrea em 09/01/2018).
Estes saberes são colocados em prática através dos experimentos – o tato – realizados
nas interações construídas com a terra, a água e a mata. São os pés e as mãos em contato com
a terra que dão a materialidade a estes processos (Figura 7). Como “L” mesmo diz, “pra virar
ciência pra cair num livro, tem que ser tirado a limpo na prática, porque teoria é quase igual
mentira”. Nesse sentido, a observação se caracteriza como a ferramenta metodológica que
avalia os processos sóciometabólicos que são colocados em (com a) prática. Estas
experimentações e suas constantes avaliações não assumem, necessariamente, uma estrutura
rígida onde são identificados o início, o meio e o fim dos processos. Esta trajetória é constante
e intrínseca, e o método da tentativa e erro é central. O que dá certo segue e o que dá errado é
reavaliado.
1.4.1.2 “Se você deixa uma terra com fome e com sede, quem vai ficar com fome e sede é
você”
Porque, não é verdade, Pedro, às vezes vem pessoas aqui que diz: “eu gosto da
roça”. Sabe? Você gostar da roca é uma coisa, e sobreviver da roça, sabe, você tem
que ser artista. Porque eu digo que tem que ser artista? Aqui nossa área aqui é
restrita, é pequena. Se nos tem nove hectares, essa área seria mil maravilhas. Porque
você tem que tá sempre repondo, um adubo, tem que botar uma coisa pra poder...
Desde o momento que você tem que botar adubo, você já deixa de comer pra
poder...Se você deixa uma terra com fome e com sede, quem vai ficar com fome
e com sede é você (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
A todo o momento a natureza é tratada para “A” como um ser comum ao homem
(Figura 8). A dificuldade em conseguir criar as condições de reprodução da sua vida, que está
diretamente relacionada ao modo como as famílias foram assentadas na região, não fazem que
com ele construa um manejo da terra predatório. É preciso alimentar a terra para que ela possa
alimentar sua família.
É por isso que eu faço sempre rotação de cultura que é pra poder manter o solo mais
fresco, tá entendendo, mais fresco, e procuro sempre ao máximo reservar o máximo
que puder a margem de rio, e não mexo em nada na margem de rio porque eu sei
que: “ah, ali eu podia plantar um pé de banana”. Não, mas pode deixar um pé da
árvore lá sim, porque a árvore vai segurar muito mais que a banana; vai me trazer
muito mais retorno do que fosse um pé de banana. Plantei sim, manga, sabe, lá, pra
poder ela lá, servir, então tá lá pros bicho comer, até pra ajudar a mata auxiliar do
rio, tem que ter, pra poder, sempre. Porque se a gente não cuidar da nossa água,
vamo ficar com sede. Quem é que não quer ter uma água de qualidade, não é? (“A”
em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
A lógica da reciprocidade está alinhada com toda a diversidade de seres vivos que
compõem o ambiente. A rotação de cultura visa evitar a exaustão do solo de uma terra de
apenas 3,5ha que produz durantes 365 dias do ano. A família poderia expandir sua área de
produção para as margens do Rio Caboclo para tentar aumentar a produtividade, mas se isto
fosse feito o risco de erosão e assoreamento do rio seria alto e isso faria com que a qualidade
da água que o abastece, diminuísse. Ainda que sua propriedade esteja às margens do rio o que
lhe garantiria constante acesso as suas águas, isto poderia colocar em risco o abastecimento
das demais famílias que estão inseridas na Rede Comunitária. Lembremos ainda, que foi seu
pai que lhe ensinou o sistema que contribuiu com o aumento da recarga hídrica de uma
nascente presente em suas terras, um dos elementos importantes deste sistema era o plantio de
banana d’ água destinado aos passarinhos, pois desta forma estes poderiam contribuir com o
reflorestamento da área quando viessem comer a fruta: “Não quero que ninguém corte um
casco, eles vão ajudar a gente”, era o que seu pai dizia. O ensinamento ficou marcado e “A”
continua a plantar frutífera para os pássaros comerem.
Da mesma forma ele conta que parou de utilizar compostos químicos ao perceber o
prejuízo que era causado a terra:
Um composto que eu uso mais, eu não gosto de usar adubo químico não. Se eu usar
adubo químico de qualquer forma eu tô matando a terra. Trabalhando, muita gente
usa... no começo eu comecei até a usar. Mas fazendo a cova pra plantar a laranjeira,
cheia de minhoca. Quando eu joguei um pouco de adubo, desse químico, matei as
minhoca todinha. Aí fiquei olhando: “a partir de hoje não uso mais”. Ai eu parei de
usar o produto químico porque ele mata todas as coisas que tem na terra ele mata
tudinho (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
A lógica que permeia a forma como “A” entende e concebe seu manejo deixa explícito
que ele é parte integrante da terra e sua consciência se encaixa a esta dinâmica. Sua
individualidade é transcendida e sua existência ocorre a partir da existência dos demais seres
vivos. Este movimento é o que une estes homens e mulheres à natureza, onde corpo, terra,
água e mata fazem parte de uma mesma co-evolução. Constituem-se enquanto seres vivos que
dependem um do outro para garantirem sua existência se entrelaçando em um caminhar
contínuo (INGOLD apud ESCOBAR, 2015).
109
Quem manda é ela e “isso vem de longe, meu filho”, afirma “L”. São necessários
muitos anos para entender a influência de cada fase da Lua no cultivo de cada alimento. O
respeito à Lua é o respeito ao tempo da Terra. Por mais que as relações camponesas com a
terra acompanhem suas trajetórias de vida, tem-se a consciência de que não se pode afirmar
com exatidão a garantia do sucesso ao ser plantado determinada cultura. São inúmeras as
variáveis que perpassam pelo tempo de crescimento das culturas postas na terra. Estes sujeitos
da experiência precisam entender as dinâmicas climáticas locais para evitarem possíveis
perdas, sendo o respeito construído a partir desta relação.
Pra gente ter uma ideia de tal mês eu plantei e não prestou, não produziu, não é que
a gente não plantou sabendo que o mês era ruim ou bom, mas tem ano que chove,
mais outro menos, tem algum contratempo que às vezes não produz do jeito que a
gente pensa. Porque geralmente você planta uma roça de aipim, planta mil pés de
aipim. Mil pés de aipim, numa faixa de cinco pés pra uma caixa, dá o quê? 200
caixas de aipim. Só que tem lavoura que você conta que tem que arrancar dez pés
pra uma caixa, aí vai dar só 100, e às vezes a mesma terra que tu colheu no ano
anterior ou vai colher pra frente, pode dar. Naquele ano ela vezes engana; é uma
coisa que não dá pra afirmar com 100% de certeza, porque engana. Geralmente eu
vejo pessoa: “arranquei três pés de aipim na minha roça deu uma caixa”, mas é
quase difícil dele poder falar assim, vou arrancar um pelo outro a cinco e vai dar o
que eu quero, vai dar não. Às vezes vai depender de dez pés pra uma caixa. Depende
do ano (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 08/01/2018).
Ah, crescente, pra dizer a verdade, não gosto de plantar muita coisa não. Eu sempre
gosto, abóbora; planta que vai dar dentro do chão, batata doce, inhame, essas coisa
sim, a melhor fase de lua pra plantar é minguante. Porque o pé da planta não vai
puxar muito, mas a raiz dele vai, entendeu? Ou seja, o aipim também; aipim você
pode plantar nova pra crescente, ajuda bem. Agora, quando é uma época de verão
igual essa que nós tamos agora, esse aipim aqui eu plantei na minguante, na fase da
minguante. Porque ele já tem tudo pra crescer demais, que é chuva toda hora, não é
isso? Se ele crescer demais não vai dar nada (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea
em 08/01/2018).
110
Já o milho, o inhame e o jiló são plantados na crescente, “é porque, você vai precisar
do fluxo dele lá fora da terra, uma espiga de milho, se o pé tá crescendo bonito vai dar uma
espiga bonita. O que mais, qualquer fruto que for dar fora da terra”. Mas não é uma regra que
todo tubérculo – cuja raiz se desenvolve na terra - deve ser plantado na Lua minguante e que
as leguminosas – cuja planta se desenvolve a partir da superfície – devem ser plantadas na
Lua crescente. O feijão, por exemplo:
O feijão vai dar fora do chão, mas o feijão na minguante tem uma vantagem que ele
não dá broca. Vou te dar um exemplo: vai ali naquele bambuzal ali em cima na lua
nova, tira um bambu, guarda onde você quiser um pedacinho qualquer de bambu.
Não vai trinta dias ele já tá todo furado de broca. Se bobear no mesmo dia tem broca
arrodeando ele. Aí tu vai tira um outro no mesmo dia do mês, mas na lua minguante;
daqui tal dia vai ser minguante, tu tira na minguante. Tu vai guardar aquele bambu
toda vida, nunca vai dar broca (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
08/01/2018).
Madeira. Eu conheço um pessoal mais antigo, que tirava madeira na mata pra fazer
barco, casa, essas coisas, então sabia: na lua minguante vai lá tira madeira. Se não
puder trazer deixa tirada lá; não tira na lua nova ou nova pra crescente, coisa assim,
que pouco tempo a casa tá caindo, que broca vai comer tudo. Minguante. Se quiser
ela boa, que ela vai durar. Menos baraúna e uma outra madeira aí que dizem que ela
amarga, broca não come, pode tirar qualquer época (“L” em entrevista a Pedro D’
Andrea em 08/01/2018).
e na interação com o espaço, onde cada família re-cria suas próprias formas de lidar com estas
imposições que se iniciam em meados de década de 1960. Trata-se, portanto, de uma geração
que tem acompanhado as radicais modificações e impactos que esta agricultura moderna-
colonial tem gerado à natureza e à saúde dos corpos daqueles e daquelas que a re-produzem. É
partir desta vivência – e da utilização constante dos sete sentidos – que são provocadas
reflexões que questionam esta concepção.
As maiores dificuldades para a construção da emancipação frente a este modelo
predatório estão diretamente relacionadas ao caráter conservador das reformas agrárias
promovidas na região. Como promover a transição e retornar integralmente as suas formas
tradicionais de produção de alimentos com lotes 4,6 vezes menor do que o módulo fiscal do
município? A primeira responsabilidade é do Estado, já que há inúmeros latifúndios
improdutivos na região que não cumprem a função social da terra, portanto devem ser
desapropriados para fins de Reforma Agrária. Com mais terras, estes/estas agricultores/as
terão condições materiais concretas para re-construir esta emancipação. Conhecimentos e
disposição não faltam, o problema é a falta de terra.
Mesmo assim estes/as agricultores/as re-existem às múltiplas formas de tentativa de
invisibilização e afogamento por parte do capital e do Estado, e são responsáveis por
fornecerem a maior quantidade de alimentos por mês ao Pavilhão 21 – o Mercado Livre do
Produtor – da Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ). São cerca
de 50.000 pessoas 44 circulando por dia neste pavilhão o que faz com que estes alimentos
produzidos no Vale do Guapiaçu circulem por toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Segundo os dados da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio de Janeiro
(EMATER-RJ, 2013) saem cerca de 55 toneladas de frutas, legumes e folhosas diariamente
para o CEASA-RJ, o que é equivalente à aproximadamente 20.000 toneladas de alimento por
ano. Além de 1.300.000 litros de leite por ano, uma significativa produção do gado de corte,
piscicultura e ranicultura, tem gerado uma receita de cerca de R$21.679.700,00/ano para o
município de Cachoeiras de Macacu 45.
44
Informações disponíveis em: <http://www.ceasa.rj.gov.br/ceasa_portal/view/unidade_grandeRio.asp>. Acesso
em: 30 abr. 2018.
45
Consideramos estes dados subdimensionados, pois a EMATER-RJ baseia seus cálculos a partir da emissão dos
talonários fiscais. Estes talonários só são emitidos por aquelas famílias que possuem a Declaração de Aptidão ao
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP), que por sua vez só possibilita que tenham
acesso famílias que comprovem a propriedade e/ou utilização do imóvel (escritura, contrato, título de posse, etc).
Há uma diversidade do perfil da agricultura familiar na região, que a partir de um quadro com grande presença
de famílias sem terra exercem atividades laborais enquanto parceiros, meeiros e arrendatários, portanto não
emitem talonário fiscal o que faz com que suas produções não sejam contabilizadas nos cálculos da EMATER-
RJ.
112
Outro fator essencial é que há uma diversidade da constituição dos NSGA e que isso
acarreta diferentes formas de funcionamento do agroecossistema. Tal variação permite
identificar se há um caráter mais econômico do que ecológico de um determinado NSGA a
partir da relação valor de uso e valor de troca. Para PETERSEN (et al, 2017),
“Muita coisa a gente tira daqui mesmo. Compra ou pega do vizinho, sempre tem aqui na
área; não dá pra armazenar esse tipo de coisa. A gente consome enquanto tá colhendo porque
não dá pra guardar aipim, não dá pra guardar milho, não dá pra guardar batata doce, tomate, então
tudo a gente consome. É, essas coisas assim. Porque, tirando disso aí, a gente compra tudo, arroz,
feijão, óleo. Feijão nem precisava de tá comprando, mas como a gente ocupa a terra com outras
coisas, não sobra espaço pra plantar o feijão (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
08/01/2018).”
“L: Inhame é oito mês. Inhame também pode plantar agora em junho, por aí. Mas deixa eu ver...
inhame pode ser plantado até de fevereiro que já começa a ficar bom pra plantar. Pega um
pouquinho de chuva, ele sai bem, depois ele vai sofrer um pouquinho mas vai.
P: Essa é a melhor época? Fevereiro?
L: É. Fevereiro, março. Tem gente que adora plantar no mês de agosto, que é perto das chuvas.
Mas isso, cada um tem o seu... Feijão de corda, inclusive nós vamos plantar ali também agora. É
bem provável da chuva não deixar ele prestar, porque sai pé bonito, sai tudo isso, só que a
flor não vinga. Te mostrei ali na horta agora, difícil vingar a flor. Mas o feijão também é bom
plantar agora na época do tempo frio, que é a partir de março pra frente. Feijão pode plantar de
março até, deixa ver... até junho, julho pode plantar. Não pode chegar época de chuva se não
acabou com ele (“L” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 08/01/2018)”.
“Aqui vareia, vareia mais. Geralmente a rotação de cultura é mais isso aí mesmo. Aqui, certa
parte, do meio pra baixo do meu terreno, vareia muito. Pra lá pra cima já é isso aí, milho e aipim.
Por quê? Porque o milho dá um reforço, a palha do milho ajuda muito na terra. Você vai lá
tirar o aipim, se você repetir o aipim não vai prestar. Planta uma de milho, aí colhe o milho.
Quando o milho colheu, com três, cinco dias depois, se puder que a palha tá verde, vem com o
trator e tritura ela na terra, aí ela vai fermentar dentro da terra. Que é o que eles falam que
a fermentação da palha verde dentro do chão mata muito a acidez. Então é o que a gente faz.
E tem outra coisa, a palha podre ali dentro a terra não vai ser tão solada mais pra poder plantar o
aipim. Então ela agradece muito a roça de aipim depois de uma de milho. Se puder plantar
duas de milho é melhor ainda. Então, aquela lá agora eu vou plantar o milho, dando milho ou não
porque tá dando a época meia chuvosa. Assim que sair o milho, depois, digamos que eu vou, nós
tamo em janeiro, fevereiro, eu vou plantar esse aipim ali mais ou menos final de fevereiro. Não é
tão ruim porque março ainda chove bem, mas vai se escapar da chuva (“L” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 08/01/2018)”.
118
Legenda: Localização no mapa: Milho/Limão Legenda: Localização no mapa: visão Sul-Norte – Milho/Feijão de Corda/Aipim/Área de
Fonte: O autor, 2019. Pousio.
Fonte: O autor, 2019.
120
“Jiló eu plantava mesmo pra comércio, pra CEASA, mas de uns tempos pra cá eu desisti
porque requer muito uso de agrotóxico e eu tô evitando de mexer com muito agrotóxico
(“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
“O milho eu tiro uma parte pra galinha. Além desse milho pra CEASA, tô plantando o catete
também. Pra galinha eu planto o catete, só pra galinha, desde agosto (“Q” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).”
“Q: Eu iniciei a plantação com quiabo e inhame. No início foi só isso. Em seguida ficou
muito ruim de produzir inhame, eu fui mudando. Fui plantando aipim, jiló, berinjela,
pimentão, feijão de corda, limão. Aí um tempo depois eu fiz uma experiência com lavoura
de cará. Batata doce andei plantando também umas lavourinhas, pouco.
P: Parou por quê?
Q: Parei porque nossa região dá muita broca, muita umidade aqui, não sei se é porque tá
próximo a serra, muita broca (“Q” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).”
122
“Veja bem, o mês que não tem “r” é o mês que a terra não tá girando muito, a terra tá mais
acomodada, você tá entendendo? Então a tendência é a planta ir se enraizando, não é verdade? Passou
desse período aí começa a mudar, a terra esquenta muito, um dia tá quente demais... Você pode ver
que esse período dos mês que não tem “r”, a temperatura é quase a mesma. Então, tem a ver com
a terra. E quando pega o período de muita chuva, esquenta muito, muita evaporação, a planta
não gosta porque vai mexer muito com ela. Então a gente vê por isso aí (“A” em entrevista a
Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
“Eu já plantei aipim em maio e tirei em dezembro, sete meses. Tá entendendo? Por quê? Porque
plantei ele no frio, ele fica ali, quando chega agosto começa a esquentar, desenvolve rápido. Se
você vai dar o aipim em novembro, dezembro, você vai virar escravo dentro da roça, de tanto
mato que sai e não dá produção boa, o carrego é pouco. Vamo supor, você planta no mês de dezembro,
você vai tirar em março ou abril do outro ano; você não tira em dezembro. Não tira. Às vezes o aipim
dá um dinheirinho final de ano, aí todo mundo planta (“ A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em
11/01/2018).”
“Colher no final do ano, mas ele não colhe no final do ano. Porque você planta o aipim em dezembro,
aí você vai pegar janeiro, fevereiro, março, três meses só quente. O aipim vai tá mais ou menos assim.
Aí você pega abril, maio, junho, julho, agosto, você vai pegar cinco meses que a terra tá fria, a planta
não se desenvolve. Tá entendendo? Aí até a terra esquentar já tá lá pra meados de outubro que a
terra começa esquentar, que é tubérculo que precisa de coisa. Então, não tem desenvolvimento, a
terra tá fria. Aí só pra meados de outubro a terra começa a esquentar, que ela vai começar a se
desenvolver novamente. Aí não vai tirar em dezembro, só vai tirar em março, abril do ano seguinte.
Mas aí as pessoas não levam isso em conta. Por isso que eu só planto em mês que não tem “r”. Isso
aí desde quando eu era criança, meu avo falava: “ó meu filho, tudo que dá debaixo da terra, se
planta em mês que não tem ‘r’, e planta na lua minguante”. Por que planta na minguante? Porque
quando ele começa a enraizar é lua nova, e a lua nova é muita força, é a lua mais forte que tem.
A que mexe com a cabeça do ser humano é a cheia, mas a lua mais forte é a nova (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
“Eu falo a verdade, eu vendo o que sobra, tá entendendo? Eu vendo o que eu não consigo comer tudo.
Porque primeiro eu vou comer. Aí eu vejo que não consigo comer tudo, aí eu vendo. Porque eu não
vou comer o dinheiro; não adianta eu vender tudo e ficar com o dinheiro. Eu vou comer o quê?
Vou comer o dinheiro? Não vou. (“A” em entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018)”.
126
Mas coitado, difícil é pra eles lá. Porque eu fico assim pensando, vamo supor, você
tá dentro lá: aqui a gente a luta só pra ter, você planta um troco você tem o que
comer. Lá você luta por duas coisas: você luta pelo emprego e pra você ter o que
comer. Se você tiver desempregado não tem o que comer, ninguém vai te dar uma
banana porque não tem pra te dar, não te dá o coco, porque não tem pra dar. Então
aqui tá mil maravilhas melhor do que lá, que é só plantar que você tem. Que na
verdade o mercado é uma bolsa de valor. Um dia tá em alta, um dia tá em baixa.
Quando tá na época da safra o preço cai, e na entressafra aí que o preço melhora.
Quer dizer, que a maioria das pessoas não gosta quando o preço tá baixo, e pra mim
não faz tanta diferença, sabe por que, Pedro? Por que eu sei que tô alimentando
muita gente. Quando a mercadoria tá barata eu sei que é muita gente que vai comer.
Agora, quando o tomate tá oito reais o quilo, é todo mundo que compra? (“A” em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/01/2018).
46
Como diria Carlos Walter Porto-Gonçalves.
47
“ Llega el momento en que los pies y la cabeza dicen lo que todos están pensando y nadie se atreve a decir:
Que en el recorrido se dan cuenta de que el mundo está de cabeza, que tiene el que no necesita y el que necesita
no tiene nada.” – Subcomandante Insurgente Marcos em entrevista a Julio Scherer. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=5C4no09zGtE>.
127
Pelas palavras do economista e operador da “bolsa de valores” “A”, fica explícito que
quanto mais barato o valor do alimento, mais gente terá acesso a ele. Portanto, se o alimento
fosse de graça como é para sua família, e para “N” e “L”, mais gente teria acesso à comida.
Para eles/elas isso não faz diferença, pois a agri-cultura é o trabalho com a vida.
Assim como as relações hidrocomunitárias construídas coletivamente deixam evidente
a lógica dos bens comuns, as relações desenvolvidas com a terra também deixam perceptível
que para eles e elas o alimento também o é. Se a lógica é a reversa, ou seja, planta-se para
ganhar dinheiro, como no final do ano que há uma valorização do preço do aipim, você acaba
“virando escravo da roça”. Se a lógica do plantio segue a lógica do capital você não vira
escravo da roça, você vira escravo do dinheiro. “A” sabe disso, apenas escolheu outras
palavras para dizê-lo.
Quantos autores e autoras seriam necessários, quantas palavras e páginas de livros
deveriam ser escritas para deixar exposta e irrefutável a lógica do comum intrínseca a estas
epistemologias? As palavras escolhidas para descrever a relação clima-agricultura expressam
quem rege as condições de reprodução da vida. Segundo “L”, os meses de fevereiro e março
são fundamentais para o plantio do feijão de corda, porque se plantados mais tarde “a chuva
não vai deixar” ele se desenvolver. Se passarem os meses a “chuva vai acabar” com o
feijão. Nesta forma de conceber a relação espaço-tempo, quem manda é a natureza e suas
múltiplas formas de manifestação, o homem obedece.
Seguindo esta lógica, os setes sentidos aguçados do “Q” o permitem entender o porquê
da diferença entre o aipim plantado no verão ter uma formação diferente no inverno. Quanto
maior o número de galhos na parte superior do aipim, maior é a probabilidade dele “deitar”
com os fortes ventos do Vale do Guapiaçu. “Ela se protege”, portanto se essa é a lógica
construída pela própria rama do aipim, que assim seja. Então são estes os melhores meses
para se planta-lo. A natureza - feminina - manda, o homem obedece.
E o que é mais cômodo para o “A”? O que for mais cômodo para a terra. A lógica de
plantar nos meses que não tem ‘r’ demonstra a excelente didática construída por seu avô para
criar uma regra que perdura até hoje – e seguirá perdurando entre a família de “A” – e que na
verdade traz consigo uma complexa e genial capacidade de observação-escuta-tato-olfato-
sentir-pensar-provar. O climatólogo “A” explica, a partir da lógica do plantio no mês que não
tem “r”, o ciclo da água, a variação pluviométrica, a variação dos índices de incidência da luz
solar, portanto do calor. Quanto mais chuva e calor, mais evaporação e quanto mais variação
térmica, mais a planta “se mexe”. Se ela não gosta de se mexer, que não se plante nessa
época. Mas o não mexer muito a terra, não tem relação apenas com uma época do ano:
128
Tem uma tobatinha velha. Na verdade, Pedro, ela fica mais parada do que trabalha.
Sabe por quê? É o que eu falei pra você hoje, o adubo químico mata as minhoca
todinha da terra, e a tobata também. Sai matando tudo porque ela é pior de que o
trator, a tobata. Então dificilmente, às vezes o filho fala: “papai, a gente passa a
tobata nisso aí em vez de ficar aí capinando”. Eu falo: “se passar a tobata aqui, isso
aqui tá cheio de minhoca, eu vou matar todas as minhoca. Deixa assim mesmo, eu
vou fazer na enxada. É devagar mas eu faço”. Dificilmente eu uso a tobata. Terra,
dificilmente, eu não gosto de cortar a terra. Tem gente que já corta logo. Eu corto
planto. Ó, eu plantei o milho, tirei o milho e plantei feijão de corda. Tirei o feijão,
não passei o trator, pra mim não cortar a terra. Eu fui em cima da linha do feijão e
plantei o quiabo. Até o quiabo nascer o feijão também já tá se acabando, vai
secando, as folhas vão se acabando na terra mesmo ali (“A” em entrevista a Pedro
D’ Andrea em 11/01/2018).
A diferença de gerações posta no diálogo entre pai e filho traz consigo diferentes
formas de pensar que traduzem diferentes temporalidades e que tendem a implicar em
distintas formas de conceber e praticar a agricultura. Ainda que seu filho esteja em formação,
são gerações marcadas por uma convivência com a terra em que se atravessam em um mesmo
espaço-tempo, diferentes concepções espaço-temporais. De certa forma, em outra escala,
podemos fazer uma relação com o conflito que se passa no Guapiaçu. Da mesma maneira que
“A”, o pai, nega a aceleração do processo de trabalho – portanto do tempo - que o filho
defende, a partir do uso da tobata, e o faz mostrando outra forma de sentir-pensar a
agricultura, a proposta de construção da barragem-reservatório traduz uma concepção de
produção do espaço – imbricada com uma produção/compressão do tempo, portanto do
espaço-tempo – antagônica às formas de produção do espaço e do tempo características do
território. Cercar as águas do Rio Guapiaçu para leva-lo ao Complexo Petroquímico do
Estado do Rio de Janeiro – sustentado por uma falácia de abastecimento humano da Região
Leste Metropolitana – significa inserir a dinâmica hídrica na lógica da circulação global do
capital financeiro. É importante reforçar que o território do Guapiaçu produz uma lógica
espaço-temporal antagônica a do capital. O território que senti-pensa-observa-toca-cheira-
prova-escuta apresenta outras formas de relação com a água e a terra. Da mesma forma que
“A” mostra a seu filho outra forma de sentir-pensar a agricultura, o território nos apresenta
outra forma de sentir-pensar a relação sociedade-natureza. Os fenômenos são multiescalares,
assim como as batalhas são multifacetadas em uma mesma arena, o território.
O Agroecossistema do “Q” e da “N²” apresenta o dobro da variedade de culturas de
roça se comparado aos outros dois agroecossistemas familiares. É preciso ressaltar que os
mapas representam um período específico do ano, portanto qualquer análise feita sobre eles
deve se atentar a este fato. Do total de variedades de alimentos trabalhados, 73% se
caracterizam por terem um curto ciclo entre a produtividade e a colheita. Este número é 23%
129
maior se comparado aos outros dois agroecossistemas (ambos apresentam uma proporção de
50%). Isto pode ser explicado pelo fato de que no último ano a família tem destinado grande
parte de sua produção para a feira da qual participam em Duque de Caxias. Além de
necessitarem de uma produção constante, capaz de fornecer alimento por praticamente todo o
ano é importante que em sua barraca haja uma diversidade de alimentos. Os outros dois
agroecossistemas concentram sua venda para o CEASA-RJ, para a cooperativa, e em alguns
casos para o Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE). É possível perceber tal
particularidade a partir da distribuição de plantio e colheita presente no calendário agrícola.
aparecem nos calendários agrícolas, o número chega a 56 espécies diferentes em uma média
de 3ha. Esta variedade pode ser ainda maior, pois é provável que não tenham sido listadas
todas as diferentes culturas presentes nos quintais florestais, além das plantas medicinais.
Além da existência de uma riquíssima biodiversidade alimentar, o que impressiona é
quantidade anual de alimentos produzidos em lotes que apresentam um tamanho mais de
quatro vezes abaixo do módulo fiscal do município. São cerca de 160 toneladas de alimento
produzidos por ano – média de 52,3 toneladas/agroecossistema e 17,4 toneladas/ha, além de
1600 unidades de coco, considerando a produção dos três NSGA.
Os dados produzidos pela EMATER-RJ, em 2017, através do Acompanhamento
Sistemático da Produção Agrícola (ASPA) do Estado do Rio de Janeiro, permitem que
façamos uma comparação entre os índices de produtividade do ERJ e o agroecossistemas aqui
analisados a partir das principais culturas produzidas. Segundo a ASPA a média da
produtividade do Aipim no ERJ é de 12,22 ton/ha. A média somada da produção de Aipim
dos três agroecossistemas é de 14,56 ton/ha. Já a média de produtividade do Jiló no ERJ é de
21,07 ton/ha. Quando analisamos a produtividade do agroecossistema “L” e “N” estes
apresentam uma produtividade de 10,8 toneladas em apenas ¼ de hectare, ou seja, o que
indica uma produção de 43,2 ton/ha. Já a produtividade do Quiabo no ERJ é equivalente a
11,27 ton/ha. Quando analisamos a produção do Quiabo no agroecossistema “A” e “V” este
apresenta uma produtividade de 15,6 toneladas em apenas 1/3 de hectare, o que aponta para
uma produtividade de 46,8 ton/ha.
Quando analisados estes dados é apresentado um quadro de extrema produtividade de
alimentos no Vale do Guapiaçu, onde os índices são consideravelmente maiores em relação à
produtividade apresentada no ERJ. Isto está diretamente relacionado a um fator indissociável,
já que a qualidade destas terras está correlacionada ao manejo historicamente praticado por
estes homens e mulheres. Afogar estas terras, este rio e as condições materiais de vida destas
pessoas irá implicar diretamente na soberania alimentar de toda a RMRJ. Estamos falando de
uma das áreas que apresentam as maiores produtividades de alimentos presentes
cotidianamente na mesa das famílias cariocas.
131
Como fora apontado no primeiro capítulo, o debate sobre metabolismo está divido em
duas partes nesta dissertação. Em um primeiro momento, foi priorizada uma análise acerca do
metabolismo social que rege as condições de produção e fluxo de matéria e energia do
território camponês. Portanto, tratamos de trazer o debate teórico acerca destes processos
para, posteriormente, apontarmos como estes se materializam a partir dos saberes-e-fazeres
que produzem o espaço e o território no Vale do Guapiaçu. Estes ciclos metabólicos se
apresentam desde as relações hidrocomunitárias expressas a partir da gestão autônoma e
comunitária das redes de água camponesas até a agricultura que é produzida no território. O
que dá continuidade a estas dinâmicas sóciometabólicas é uma complexa episteme camponesa
que se desenvolve a partir de um acúmulo desigual de tempos, em que os saberes são
historicamente transferidos sobre uma ampla capacidade de utilização dos setes sentidos –
escutar, observar, tocar, cheirar, provar, sentir e pensar. O tempo da lua, da terra, do sol, das
águas e do vento é assimilado e passa há reger o tempo-espaço dos homens e mulheres do
Vale do Guapiaçu.
Nesse sentido, a diferenciação das dinâmicas metabólicas camponesas e do capital são
importantes, sobretudo, para explicitar que o discurso da escassez reflete uma tentativa de
invisibilizar uma crise estrutural da produção capitalista do espaço para assim re-produzir sua
expansão. Os conceitos de Metabolismo e Acumulação por Espoliação, combinados, buscam
explanar o modus operandi e as estratégias de apropriação da água construídas pelo capital.
As condições de re-produção da vida que foram abordadas no primeiro capítulo se encontram
em disputa por pelo menos seis anos, já que sobre o território está projetada a construção de
uma barragem-reservatório. As grandes barragens se expressam enquanto uma das formas de
re-produção da representação do espaço do capital, que ao se expandir-e-acumular provoca
fraturas metabólicas sobre os espaços de representação dos territórios – neste caso,
camponês. Ao mesmo tempo, ocorrem conflitantes formas de apropriação, transformação,
circulação, consumo e excreção. Na medida em que os camponeses constituem e reproduzem
seu sociometabolismo, seu território é fronteira de expansão e acumulação do metabolismo do
capital. Estas duas antagônicas formas de produção social do espaço são concomitantes e se
expressam de forma continuada.
132
Esta dinâmica totalitária que se expande com vistas a se tornar um sistema global
assume um caráter dialético já que quanto mais se expande por todo o globo, mais próxima
está dos seus limites expansionistas por alcançar barreiras as suas potencialidades produtivas-
destrutivas do sistema. Isto ocorre justamente por este incontrolável sistema totalizador não
possuir autossuficiência em suas “unidades particulares de produção” (p. 105) – ou unidades
de apropriação, segundo TOLEDO (2008) - tendo sempre que buscar alternativas interno-
externas para expansão de sua acumulação de capital.
Outra contribuição importante de Mészarós, e que será constantemente abordada na
discussão aqui proposta, é o importante papel do Estado nesta dinâmica de expansão do
capital, tornando-se, sob a ótica metabólica, uma unidade de apropriação multiescalar que
organiza seu território a partir da lógica totalitária do capital, adequando-se ao
desenvolvimento desigual e combinado. Segundo o autor
[...] é tanto mais revelador que o Estado moderno tenha emergido com a mesma
inexorabilidade que caracteriza a triunfante difusão das estruturas econômicas do
capital, complementando-as na forma da estrutura totalizadora de comando político
do capital. Este implacável desdobramento das estruturas estreitamente entrelaçadas
do capital em todas as esferas é essencial para o estabelecimento da viabilidade
limitada desse modo de controle sociometabólico tão singular ao longo de toda a sua
vida histórica.
A formação do Estado moderno é uma exigência absoluta para assegurar e proteger
permanentemente a produtividade do sistema” (MÉSZARÓS, 2011, p. 106).
Ele defende a ideia de que a estrutura do Estado moderno é a única capaz de dar
unidade as três contradições inerentes ao sistema capitalista: o distanciamento entre produção
e controle; o problemático distanciamento entre produção e consumo, de modo que um
excesso de consumo manipulado e desperdiçador concentram-se em poucos e determinados
lugares; e a contradição entre produção e circulação, de maneira que:
Nacionais nesta ordem totalitária, tornando-se, assim, uma forma e um tipo histórico
específico de controle e comando de um sistema sociometabólico. Logo, o Estado moderno
torna-se o complemento necessário para este sistema antagonicamente estruturado, já que
“reforça a dualidade entre produção e controle e também a divisão hierárquico/estrutural do
trabalho, de que ele próprio é uma clara manifestação (p. 122)”. Todavia, o Estado não pode
ser considerado enquanto estrutura em si do capital, já que este é um sistema específico, onde
uma estrutura de comando deve se adequar a todas as escalas. Ou seja, ele é parte integrante
desta base material sociometabólica do capital, contribuindo não apenas para sua formação e
consolidação, mas, sobretudo para sua expansão. O que significa que o Estado moderno não
pode existir sem ter o capital enquanto ordem sociometabólica e que este funciona enquanto
“estrutura totalizadora de comando político da ordem produtiva e reprodutiva estabelecida
(MÉSZARÓS, 2011, p. 125)”.
Como mostramos anteriormente, o autor aponta um caráter de incontrolabilidade
inerente à dinâmica de expansão da acumulação do capital. Em situações de crise estrutural,
os constituintes destrutivos deste sistema se expandem vorazmente por meio deste caráter, de
maneira a apontar para sua própria autodestruição, ou seja, das suas formas específicas de
reprodução, mas também para a própria humanidade de maneira que,
Estas ideias dialogam com o que FOSTER (2005) aponta estar presente nas obras de
Marx no século XIX. Enquanto analisava a expansão do comércio de longa distância de
alimentos e fibras destinadas à indústria têxtil, Marx já apontava em 1852 que havia uma
tendência natural do capitalismo de tornar o solo uma commoditie comerciável. Aliado a este
processo e ao desenvolvimento da agricultura e da indústria de larga escala, havia um modo
de exploração intensiva do solo que levaria a uma falha das relações metabólicas entre o
homem e a natureza. A construção de uma ideia de falha metabólica tinha o intuito de
“apontar a alienação material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista das condições
naturais que formaram a base de sua existência” (FOSTER, 2005, p. 229). Isto se daria por
dois aspectos, necessariamente: na medida em que houvesse manufaturas de alimentos e
manufaturas para o abastecimento da indústria têxtil não haveria mais donos da terra; a
agricultura de larga escala capitalista havia exaurido o solo de tal forma que havia deixado de
136
Ao mesmo tempo, e noutro plano, o progresso das forças da produção agrícola não
erradicou a fome e a desnutrição. Mais uma vez, isto estaria em contradição como
imperativo da expansão “racional” do capital. Não se deve permitir que motivações
“sentimentais” relativas à saúde – e até à simples sobrevivência – dos seres humanos
perturbem ou interrompam os “processos de tomada realista de decisão” orientados
para os mercados. O ritmo e a recalcitrância espontâneos da natureza já não são
desculpas convincentes para justificar as condições de vida de milhões e milhões de
pessoas que sucumbiram à miséria nas últimas décadas e continuam a perecer ainda
hoje pela mesma causa (MÉSZARÓS, 2011, p. 255).
espécies e o meio ambiente. Pois, como insiste Marx, “a alienação da terra é o sine qua non
do sistema capitalista” (Marx apud FOSTER, 2005, p. 243).
Esta dinâmica metabólica do capital só sobrevive a partir de um continuado processo
de acumulação e expansão e para isso necessita re-criar constantemente estas condições. No
desenvolver da geografia-histórica do capitalismo são atualizadas estas dinâmicas de
expansão e criam-se novas fronteiras de acumulação, assim como mecanismos que viabilizam
tal processo. Nesse sentido, David Harvey foi capaz de atualizar as ideias anteriormente
apresentadas por Marx e Rosa Luxemburgo ao apresentar o debate da acumulação por
espoliação. O controle que o capital tem exercido sobre a água está diretamente ligado às
estratégias espoliativas que utilizam o Estado e suas formas de organização para promover sua
expansão e acumulação sobre a água, provocando constantes fraturas metabólicas sobre os
territórios que a controlam. Estas formas de cercamento e espoliação da água são distintas e
utilizam mecanismos técnicos, jurídicos, políticos e midiáticos para fundamentarem este
processo.
capazes de aportarem um consumo que se realize a médio e longo prazo, ou seja, espaço-
temporalmente. Para este ajuste é necessário que existam instituições financeiras e/ou estatais
capazes de mediar os investimentos e criar crédito através de uma quantidade de “capital
fictício” que projeta o deslocamento temporal, onde este caráter assume um papel
significativo nos processos de estabilização e desestabilização do capitalismo: se os
investimentos são produtivos,
Do contrário
Nesse sentido, certa porção do capital deve ser fixada em alguma forma física por
determinado período temporal, onde os gastos sociais também são territorializados através do
compromisso estatal. Mas é fundamental que se crie mecanismos de circulação informacional
e de capital construindo uma relação direta entre o que SANTOS (1994) chama de fixos e
fluxos, criando um sistema de objetos e ações, onde a produção do espaço é destinada a
fixação e circulação do capital. Desta forma
Ao mesmo tempo em que aumenta a importância dos capitais fixos (estradas, portos,
silos, terra arada etc.) e dos capitais constantes (maquinado, veículos, sementes
especializadas, adubos, fungicidas etc.), aumenta também a necessidade de
movimento, crescendo o número e a importância dos fluxos, também o do dinheiro,
e dando um relevo especial à vida de relações. Valores de uso são mais
frequentemente trans-formados em valores de troca, ampliando a econominização da
vida social, mudando a escala de valores culturais, favorecendo o processo de
alienação de lugares e de homens.” (1994, p. 62);
Isso descreve a confluência do poder estatal e das finanças que rejeita a tendência
analítica de ver o Estado e o capital como claramente separáveis um do outro. Isso
não significa que o Estado e o capital tenham constituído no passado ou agora uma
identidade, mas que existem estruturas de governança (como o poder sobre a
confecção da moeda real no passado e os bancos centrais e ministérios do tesouro)
nas quais a gestão do Estado para a criação do capital e dos fluxos monetários torna-
se parte integrante, e não separável, da circulação de capital (2011, p. 47).
e dentro dos Estados, pois irão permitir empresas nacionais e multinacionais atuarem em
território nacional e internacional, respectivamente. No caso brasileiro, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) exemplifica tal situação. Ao articular-se com
o capital privado e estatal, possibilitando a atuação de empresas como a PETROBRAS, a
Andrade Gutierrez e a Odebrecht em outros Estados.
Há que se considerar, segundo Harvey (2011), duas ideias importantes sobre o nexo
Estado-finanças. Em primeiro lugar, ele extrai juros e impostos em troca de seus serviços,
além de extrair rendas de monopólio devido a sua posição de poder em relação à circulação de
capital. Para que possa atrair dinheiro ocioso é preciso oferecer segurança e eficiência
transnacional ou uma taxa de retorno satisfatória. Em segundo, “baseia-se na discrepância
entre o custo de seus serviços e da taxa de juros oferecida aos que poupam a taxa de juros ou
cobrança sobre os usuários para sustentar sua própria lucratividade” (p.50).
Estes mecanismos de ajuste espacial encontram no desenvolvimento geográfico
desigual o mecanismo de resolução em curto prazo das crises de sobreacumulação. Os
excedentes sobreacumulados em um determinado sistema territorial são compensados pela
falta de oferta existente em outro território. Desta forma para que possam receber estes
excedentes sobreacumulados estes sistemas territoriais receptores devem se inserir e expandir
seus sistemas de créditos, inserindo-se assim, nos sistemas de objetos e ações dinamizando os
fixos e fluxos, tornando-os assim extremamente vulneráveis ao sistema de crédito
especulativo e fictício, sendo posteriormente estes os meios pelo qual são impostos as rodadas
de desvalorizações.
No decorrer da construção desta geografia-histórica do capitalismo, HARVEY (2004)
aponta uma virada estrutural na terceira fase de dominação global burguesa ao indicar que:
[...] tanto o padrão de turbulência nas relações entre poder estatal, supra-estatal e
financeiro como a dinâmica mais geral da acumulação de capital (através da
produção e desvalorizações seletivas) foram um dos mais claros e complexos
elementos na narrativa do desenvolvimento geográfico desigual e da política
imperialista do período iniciado em 1973. (p. 103-104);
Este processo se inicia na década de 1970, a partir de uma dupla estratégia do então
governo estadunidense. A partir de uma aproximação do presidente Nixon com os governos
do Golfo Pérsico foi possível articular uma alta dos preços do petróleo, já que os EUA não
eram tão dependentes do petróleo árabe, diferentemente das outras potências mundiais,
sobretudo as europeias. A prerrogativa era a autorização dada aos bancos estadunidenses,
através da desregulamentação financeira, de movimentar os fluxos de capitais que se
141
É nesse sentido, que David Harvey aponta para uma revisão geral do papel permanente
e de práticas predatórias que apontam para uma continuidade deste perfil ‘primitivo’ ou
‘originário’, nos mostrando que estas são, na verdade, um continuum e intrínsecas ao
capitalismo, assim como afirmava Luxemburgo, não sendo externas a ele. É nesse sentido da
143
do balanço hídrico que é capaz de atingir regiões cuja escala é mais abrangente do que a
contiguidade do próprio empreendimento.
Em relação às dinâmicas de espoliação da água, há um caráter estratégico que
possibilita a intensificação destes processos que é ligado ao fato de a exploração hídrica poder
ocorrer de forma “invisível”. Quando são expropriados terras e territórios para a implantação
de grandes mineradoras, siderurgias, desertos verdes, complexos industriais, ou para o
latifúndio agroexportador, os impactos gerados são passíveis de serem observados em escalas
que vão além daquela onde ocorrem estes processos. Porém, as águas espoliadas utilizadas
durante os processos de produção de todos estes setores só são percebidas diretamente por
aqueles/las que se encontram nos lugares de extração e transformação, já que são as pessoas
que têm suas dinâmicas sóciometabólicas fraturadas. Para além deste recorte espacial, a
dimensão da superexploração hídrica só é percebida quando provocadas conjunturas de stress
hídrico.
Face ao exposto, fica evidente que há uma vantagem estratégica na espoliação da água.
Nossa tarefa nesse trabalho é apontar a ligação desses processos, que geram fenômenos
multiescalares, com o que acontece atualmente no Vale do Guapiaçu, a partir da proposta de
construção de uma barragem-reservatório.
Assim, a seguir será explicitada a simultaneidade desses fenômenos a partir de
processos que não estão ligados do ponto de vista espacial ao que acontece no estado do Rio
de Janeiro, mas que apresentam a mesma tendência provocada tanto pela vetorização de uma
estratégia articulada em escala global para controlar a água, como pelas crises do capital em
meados dos anos 2000 que recria uma dinâmica de expansão do capital sobre as bases dos
fluxos metabólicos de matéria e energia.
hidrológico terrestre ocasionado por estes grandes cercamentos de terra e água são
assustadores, já que são capazes de drenar metade das zonas úmidas do planeta com uma
capacidade de retenção de 6.500 km³ de água 48 (NILSSON et all, 2005 apud MARQUES
FILHO, 2016). O que é equivalente a 15% do fluxo hidrológico dos rios (BONNEUIL, 2013
apud MARQUES FILHO, 2016).
MARQUES FILHO (2016) afirma, a partir de um estudo da World Wide Fund Nature,
(WWF) “River at risk” realizado em 2004, que cerca de 60% dos 227 maiores rios do mundo
tiverem seus fluxos alterados a partir de fragmentações provocadas pela construção de
grandes barragens e barragens gigantes (mais de 150 metros de altura). Além disso, estima-se
que cerca de 400 mil km² de florestas49 tenham sido alagados para a construção de grandes
represas50. O Brasil possui 516 grandes barragens em seu território, sendo o décimo país no
mundo com maior número, além de possuir 16 barragens gigantes, número que o coloca na
quarta posição estando atrás dos EUA, Rússia e Canadá. Estima que no século XX entre 40 e
80 milhões de pessoas foram desapropriadas de seus territórios para a construção destes
empreendimentos (HEINBERG, 2009 apud MARQUES FILHO, 2016).
Os dados disponibilizados pela International Rivers51 apontam que em toda a Floresta
Amazônica existem 100 usinas hidrelétricas (UHE) em operação; 44 em construção; 140
planejadas; e 134 inventariadas. Estas 418 UHE estão localizadas em nove países (Brasil,
Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia Equador, Peru e Bolívia), sendo
258 delas apenas no Brasil. Estes números apresentam um grave quadro de conflitos
emergentes já que das 418 UHE apenas 144 estão em operação e em fase de construção. As
outras 274 UHE estão planejadas e inventariadas.
Das 144 UHE em operação e em construção na Amazônia sul-americana, 59 delas
possuem uma área de inundação de 21.762 km², o que é equivalente a 2.176.200 de hectares
de terras cercadas para que estas águas cercadas sejam cerceadas a partir da utilização
estratégica daqueles que controlam suas vazões. Das 134 UHE planejadas, 83 delas possuem
uma área de inundação igual a 16.123 km², equivalentes a 1.612.300 hectares de terras. Das
134 UHE inventariadas, 24 delas possuem uma área de inundação equivalente a 1.762 km², o
48
Para que seja possível ter a noção real do que este montante representa, basta considerarmos que 1 km³ de
água é igual a 1.000.000.000.000 litros de água.
49
Equivalente a 40.000.000 de hectares.
50
“Environmental impacts of dams”, International Rivers (apud MARQUES FILHO, 2016).
51
International Rivers, Fundación Proteger, e ECOA. Dams in Amazônia. Disponível em: <http://www.dams-
info.org/>. Acesso em: 18 maio 2018.
146
que corresponde a 176.200 hectares de terra potencialmente alagáveis. Ou seja, dos 418 casos
de UHE em operação, construção, planejadas e inventariadas, 166 52 (apenas 39,7%) deles
correspondem a um total de terras alagadas e com potencial de inundação de 39.647 km²,
igual a 3.964.700 hectares. É fundamental salientar que estes dados são subdimensionados,
logo esforços devem ser realizados para que seja possível mensurar a dimensão real das terras
que estão sendo espoliadas e cercadas através da construção de grandes barragens na América
do Sul, não se restringindo apenas à Amazônia. Estes dados nos permitem apontar que em um
curto/médio prazo estarão em disputa (no mínimo) 1.788.500 hectares de terras
potencialmente alagáveis, se considerarmos os projetos planejados e inventariados. Estas
grandes barragens geram a espoliação de milhões de hectares de terras e uma quantidade de
litros de água cercada cuja dimensão em números é de difícil nomenclatura. O caso brasileiro
apresenta o quadro mais dramático da região. Dos 39.647 km² de terras alagadas e
potencialmente alagadas na Amazônia, 31.595 km² se encontram no Brasil (79,6%), sendo
13.222 km² das UHE em operação53, 1.989 km² das UHE em construção 54, 13.824 km² das
UHE planejadas55 e 2560 km² das UHE inventariadas56. Somados os dados referentes às UHE
em operação e em construção, chegam-se-se a um total de 1.521.100 hectares de terras
alagadas e 1.382.400 de hectares de terras com sérios riscos de cercamento e alagamento já
que são referentes à UHE planejadas. É importante frisar, mais uma vez, que estes dados são
subdimensionados e que é de fundamental importância avançar na construção de bancos de
dados que permitam mensurar a gravidade e o contingente de terras alagadas e cercadas pelo
capital.
Outro fator de fundamental importância e que deve ser salientado, é que todos estes
dados de hectares alagados e/ou potencialmente alagáveis dizem respeito apenas às áreas
sobrepostas pelo espelho d’água das áreas de alagamento. Ou seja, não levam em
consideração outros hectares de terras e corpos hídricos diretamente atingidos pela construção
de grandes barragens. As doze grandes barragens previstas para implantação no Rio Tapajós
52
A partir do banco de dados da International Rivers foi possível identificar a mensuração da área de inundação
de 166 das 418 UHE que estão em operação, em construção, planejadas e inventarias. As outras 252 UHE não
apresentaram dados ou a área de inundação identificada era igual a zero. Como há inúmeros casos de UHE com
alto potencial de geração de energia onde a área de inundação é igual à zero ou não apresentam dados, estes
casos não foram considerados para o somatório das áreas de inundação.
53
Foram contabilizadas 33 das 74 UHE em operação.
54
Foram contabilizadas 14 das 31 UHE em construção.
55
Foram contabilizadas 75 das 91 UHE planejadas.
56
Foram contabilizadas 29 das 62 UHE inventariadas.
147
[...] uma barragem a montante poderia vender água de uma barragem a jusante para
compensar uma situação de baixo de água. E controle de fluxos de uma bacia
hidrográfica seria reduzir o fluxo de alta e baixa do rio entre a estação chuvosa e
menos estação chuvosa (p. 35).
Desse modo, a água não pode ser tratada de modo isolado, como a racionalidade
instrumental predominantemente em nossa comunidade científica vem tratando,
como se fosse um problema de especialistas. A água tem que ser pensada enquanto
território, isto é, enquanto inscrição da sociedade na natureza, com todas as suas
contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e
mulheres por meio das relações sociais e de poder.
O ciclo da água não é externo à sociedade, ele a contém, com todas as suas
contradições. Assim, a crise ambiental, vista a partir da água, também revela o
caráter de crise da sociedade, assim como das suas formas de conhecimento (p. 419).
Esta dimensão nos leva a uma necessidade de uma concepção e um debate amplo e
aberto sobre poder. Se 70% dos nossos corpos é constituído por água nossa espécie é,
portanto, dono dela. Mas não a partir de uma lógica privativa e mercantil, já que todos ao
mesmo tempo em que a possuem, são água. Mas sim a partir de uma lógica comum. A água é,
então, comum a todos nós. Entendo que para pensarmos as estratégias referentes à defesa da
água é necessário re-pensarmos as epistemologias que tem pautado nossas estratégias de ação.
Quando o capital cria os aparatos jurídicos e normativos para intensificar seu controle
sobre a água – e o Estado é central neste processo - significa dizer que há uma intensificação
do controle sobre nossos corpos. Esta dimensão do controle sobre os corpos talvez seja uma
das mais violentas formas de hegemonia, já que este controle ocorre de forma silenciosa e
invisível para grande parcela da sociedade que não está inserida diretamente nestas disputas.
Para que isto ocorra é necessária à criação de um consenso que reproduza esta invisibilidade e
que torne a questão da água algo externo a todos os corpos (e mentes).
Svampa (2013) afirma que na década de 2000, a América Latina passou do Consenso
de Washington para o Consenso das Commodities. Há um caráter econômico, político e
ideológico que fundamenta e legitima o caráter neoextrativista defendido e posto em prática
pelos países ditos “progressistas”. Ao serem criticados, rapidamente são apontados os
benefícios gerados para sociedade civil a partir do acúmulo de capital produzido pelos setores
149
2.2.1.1 Agronegócio
57
Formada em 2008 a partir da corrida do capital à compra global de terras alavancada pela crescente “demanda
mundial por alimentos”, a Radar tem sua origem a partir da sociedade entre a Cosan e o fundo Teachers
Insurance Annuity Association (TIAA) e se define enquanto gestora de propriedades agrícolas. Através de uma
avançada estrutura de geoprocessamento e agrometeorologia a Radar compra ou arrenda propriedades rurais em
todo o mundo e adequa a partir das demandas financeiras globais. Atualmente a empresa possui um portfólio de
670 propriedades nos estados de São Paulo, Goiás, Piauí, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas
Gerais, Tocantins e Bahia, cujo total extrapola 280 mil hectares de terra sobre seu controle, avaliado em R$5,7
bilhões. A partir de análises do “potencial” de terras via satélite às propriedades adquiridas são adequadas ao
mercado e arrendadas às líderes globais na produção de soja, milho, cana-de-açucar e demais commodities
agrícolas. Em seu site a empresa aponta o potencial brasileiro como importante destino da aquisição global de
terras, já que “possui recursos naturais valiosos para enfrentar os desafios de forma eficiente e segura”, aliado a
isto “figura como um dos poucos países do mundo com grande porção de terras livres para o plantio, com
aproximadamente 200 milhões de hectares disponíveis”. Disponível em: <http://cosan.com.br/pt-
br/negocios/energia/radar>. Último acesso em: 24/05/2018.
154
Com o intuito de explanar o volume de água controlado por este setor, analisamos os
dados disponibilizados pela ABAG relativos à produção do setor no ano de 2015 e calculamos
o volume de água utilizado nos produtos especificados a partir da pegada hídrica de cada um
deles.
A tabela 5 apresenta os dados relativos ao volume de água consumido pelas principais
empresas produtoras e associadas da ABAG, apenas no ano de 2015. É fundamental que
façamos a crítica e aprofundemos os dados frequentemente utilizados apresentados pela
Agência Nacional de Águas que apontam que este setor é responsável pelo consumo de 70%
de toda a água no país. Números abstratos não possibilitam uma ideia real do volume de água
utilizado por este e outros setores, por isso desagregar estes dados é uma importante tarefa
política, cumprindo excelente papel didático para o diálogo com a sociedade e para as
estratégias que constroem os discursos que envolvem a disputa pela água.
Os dados da produção foram coletados no site da ABAG e dizem respeito ao ano de
2015 58. Os dados relativos à pegada hídrica de cada produto foram extraídos da Water Foot
Print 59.
58
Disponível em: <http://www.abag.com.br/mapa_producao>. Acesso em: 24 maio 2018.
59
Disponível em: <http://waterfootprint.org/en/resources/interactive-tools/product-gallery/>. Acesso em: 24
maio 2018.
60
A partir do banco de dados da Produção Agrícola Municipal – 2015, do IBGE, foi possível realizar uma
comparação entre estes dados e os fornecidos pela ABAG. A saber: Algodão Herbáceo = 4,0 milhões de
toneladas; Arroz (em casca) = 12,3 milhões de toneladas; Cana-de-açúcar = 750,2 milhões de toneladas; Milho =
85,2 milhões de toneladas; Soja = 97,4 milhões de toneladas. Disponível em:
<https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1612#resultado>. Acesso em: 05 jul. 2018.
155
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados da ABAG e da Water Foot Print.
O volume total de água espoliado pelo agronegócio no ano de 2015 relativo apenas à
produção dos produtos especificados é da ordem de 1,7 quatrilhão de litros. Portanto, para que
este setor continue a espoliar a água da natureza e da população, é necessária a construção de
uma estratégia de poder capaz de articular diferentes frações do capital nacional e financeiro,
além de estabelecer uma estratégia de poder em escala capaz de polarizar sua atuação em
diferentes arenas.
61
Disponível em: <https://abir.org.br/associados/nossos-associados/>. Acesso em: 24 maio 2018.
157
2.2.1.3 Energia
62
Disponível em: <http://www.cervbrasil.org.br/arquivos/anuario2016/161130_CervBrasil- Anuario2016_WEB.
pdf>. Acesso em: 24 maio 2018.
158
aquele que apresenta a maior fragmentação, dentro dos aqui analisados. Isto não significa,
necessariamente, que haja disputa entre as frações do capital que disputam o controle das
condições energéticas de produção. É, além disso, junto com o agronegócio o setor que tem
empregado o aprofundamento do cercamento de terras e água desde meados do século XX e
que tendem a se intensificar no século XXI, sobretudo a partir da crise energética de 2007.
Identificamos três grandes grupos compostos por uma grande diversidade de
associações que compõe o setor elétrico do país. O Fórum de Meio Ambiente do Setor
Elétrico (FMASE) é responsável por agregar grande parte das entidades do setor no país e
conta com um total de 19 associações, nele são discutidas as questões ambientais referentes
aos empreendimentos de geração de energia. Há, todavia, o Fórum de Associações do Setor
Elétrico Brasileiro que abrange todos os seguimentos do setor (geração, transmissão,
distribuição, comercialização e consumidores) cujo objetivo é criar maior interlocução com o
Governo Federal na defesa dos interesses de seus associados. Destacamos três associações
que são partes integrantes de ambos os fóruns: Associação Brasileira dos Investidores em
Autoprodução de Energia (ABIAPE), Associação Brasileira das Empresas Geradoras de
Energia Elétrica (ABRAGE) e a Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa
(ABRAGEL).
Desde 2009, a ABIAPE deixou de restringir sua atuação à produção de energia elétrica
e hoje atua na produção energética em geral. Dentre todas as associações, é a que congrega
especificamente o capital multinacional reunindo dez grandes “autoprodutores” de energia
que atuam no setor de alumínio, agronegócio, cimento, mineração, papel e celulose, siderurgia
e energia, são elas: Ternium, ArcelorMittal, Samarco (Vale e BHP Billiton), Norte Energia,
CSN, InterCement, Alcoa, Monsanto, Votorantim, Gerdau e Vale. Juntas possuem um
faturamento anual da ordem de R$230 bilhões. Possuem uma capacidade de geração de
energia de 23.098 MW de potência instalada, das quais 8.889 MW (38,4%) são destinados
exclusivamente para consumo próprio. Esta potência esta espalhada no território nacional em
37 hidrelétricas, 18 termelétricas e oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Seu foco de
atuação é trabalhar “no acompanhamento, elaboração e modificação do arcabouço legal e
regulatório” 63 relacionados aos interesses de seus associados.
Criada em 1998, a ABRAGE reúne grandes empresas geradoras de energia elétrica de
origem predominantemente hidráulica. Dentre todas as associações integrantes do FMASE é a
que se caracteriza pela maior presença de empresas controladas majoritariamente pelo Estado.
63
Disponível em: <http://www.abiape.com.br/>. Acesso: 24 maio 2018.
159
Fazem parte da associação: Eletrobras (Amazonas GT, Furnas, Eletrosul e Eletronorte), Itaipu
Binacional, Enel, Light, Norte Energia, Copel, Hidrelétrica Teles Pires, Engie, Emae, CTG
Brasil, Santo Antônio Energia, Chesf, Cesp, Cemig e AES Tietê. É a associação que possui o
parque gerador com maior potência energética hidrelétrica instalada com um total de 70.359
MW de energia hidráulica e 3.403 MW de energia térmica, cujo total alcança 73.762 MW.
A ABRAGEL, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, representa os
maiores agentes do setor de geração de energia elétrica, dentre as Centrais Geradoras
Hidrelétricas (CGHs), PCHs e Usinas Hidrelétricas (UHEs) até 50 MW. Possui um quadro de
68 empresas do setor associadas que controlam 1.089 usinas no país com capacidade de
geração de 5,7 GW. Dentre as associações mencionadas do setor energético é a que apresenta
maior capilaridade e presença direta no Conselho Nacional de Recursos Hídricos e nos
Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos.
Este setor reúne três entidades de classe que congregam as maiores multinacionais do
ramo mineral, metálico e siderúrgico. São elas: Associação Brasileira de Metalurgia,
Materiais e Mineração (ABM), o Instituto do Aço e o Instituto Brasileiro de Mineração
(IBRAM). Trata-se de multinacionais que controlam grande parte das empresas do ramo no
país e que se capilarizam entre as três entidades de classe desenvolvendo ampla capacidade de
alcance, influência e presença em diversos setores do Estado.
O IBRAM é composto por mais de 130 entidades associadas, reunindo mineradoras,
entidades de classe patronais, escritórios de advocacia, empresas de engenharia mineral,
ambiental e de geologia, fabricantes de equipamentos, centros de tecnologia, bancos de
desenvolvimento, entre outros setores que estão direta ou indiretamente relacionados à
indústria mineral. Destacam-se a CSN, Gerdau, Mineração Rio do Norte (cuja maior acionista
é a Vale), Samarco (Vale e BHP Billiton), Anglo American, Copelmi Mineração Ltda, Embu,
Alcoa, AngloGold Ashanti, ArcelorMittal, Astec do Brasil, CBMM, Vallourec e Votorantim.
O Instituto do Aço possui em seu quadro de associados à Aperam, ArcelorMittal,
CSN, Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), Gerdau, Sinobras, Ternium, Usiminas,
Vallourec e Villares Metals. Estas empresas possuem um parque produtor de aço composto
por 30 usinas, com capacidade instalada de produção de 50,4 milhões de t/ano de aço bruto e
160
que hoje opera uma produção de 30 milhões de toneladas. Possuem um saldo comercial que
gira em torno de US$3,9 bilhões com exportações destinadas a mais de 100 países.
Já a ABM possui como mantenedoras a Aperam, ArcelorMittal, CBMM, CSN, CSP,
Gerdau, RHI Magnesita, Samarco, SunCoke Energy, Ternium, Usiminas, Vale, Vallourec e
Villares Metals.
Empresas como a Gerdau, CSN, Vallourec, ArcelorMittal e Vale estão presentes nas
três entidades. Já a Usiminas, Ternium, Aperam e Samarco integram duas das três entidades.
Das associações dos diferentes setores apresentados até aqui, o ramo mínero-metal-
siderúrgico é aquele que apresenta maior concentração de capital. Vale destacar que algumas
das empresas citadas estão articuladas em outras associações que representam os demais
setores energéticos. Portanto, junto ao Agronegócio são aqueles que representam os blocos de
maior importância e influência sobre as diretrizes econômicas e a agenda de desenvolvimento
do Estado, quando não participação diretamente da sua construção. Caracterizam-se por
apresentar alta concentração de terras e superexploração hídrica e são os setores que mais se
articulam com o capital financeiro mundial.
O IBRAM, por exemplo, participa junto com a Confederação Nacional da Indústria da
elaboração da PEC 31/2007 que propõe a reforma tributária, assim como da PEC 287/2016
que defende a reforma da previdência. Atua junto ao Ministério de Minas e Energia para a
criação de estratégias que favoreçam o setor, como o Marco Legal da Terceirização (Lei
13.429/2017) e o Marco Legal do Licenciamento Ambiental (PL 3729/2004). Segundo o
“Relatório Anual de Atividades 2016-2017” a pauta dos bens minerais exportados pelo país
em 2016 atingiu o volume de 394 milhões de toneladas, das quais 244,2 milhões (62% do
total) toneladas apenas de minério de ferro. Segundo o FBDS, são utilizados 6.000 litros de
água para cada tonelada de minério de ferro produzida. Logo, apenas para a produção de
minério de ferro o setor mineral utilizou 1,5 trilhões de litros de água em apenas um ano. Vale
destacar que toda esta produção foi destinada ao mercado externo.
A porção de terras controlada pelo setor siderúrgico chegou a 28,2 mil hectares em
2015, segundos dados do Instituto Aço Brasil. Porém estes dados não incluem os hectares
destinados à produção de carvão vegetal plantadas pelo Forest Stewardship Council (FFC).
Em 2015, 86% do carvão vegetal produzido foram oriundos de “florestas plantadas próprias”,
10% de terceiros e 4% a partir de “resíduos florestais devidamente legalizados”. Entre 2014 e
2015 foram cultivados 842,4 mil hectares de terras para produção de carvão vegetal. Este
contingente de terras destinado à produção de carvão vegetal representam apenas 7% de toda
matriz energética consumida pela indústria siderúrgica. O total de água doce circulada no
161
processo de produção deste setor em 2015 é da ordem de 5.412.000.000 m³, o que equivale a
5,4 trilhões de água 64. A partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Aço Brasil, o
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) 65 estimou que a tonelada dos produtos
semiacabados (placas, blocos e tarugos) exportados custa em média US$345 FOB 66, os planos
(bobinas, chapas, folhas e inoxidáveis) custam US$540 FOB e os longos (barras, vergalhões,
fio-máquinas, perfis e trilhos) custam em média US$1.066 FOB. Segundo o PACS, a pauta de
exportações brasileiras é concentrada nos produtos semiacabados. Portanto, para que se possa
alcançar o saldo comercial das indústrias do setor, apontado no início do tópico, é necessário
uma intensa exploração e controle de terras, água e energia.
64
Todos os dados apresentados foram coletados na parte referente à (in)sustentabilidade do site do Instituto Aço
Brasil. Disponível em: <http://www.acobrasil.org.br/sustentabilidade/>. Acesso em: 24 maio 2018.
65
Disponível em: <http://violacoesnasiderurgia.pacs.org.br/cadeia-produtiva-internacional-impactos-
socioambientais-locais-a-agua-e-bem-comum/>. Acesso em: 24 maio 2018.
66
Valor do produto sem o frete.
162
67
Disponível em: <https://br.boell.org/pt-br/2018/04/16/quem-sao-os-proprietarios-do-saneamento-no-brasil>.
Acesso em: 24 maio 2018.
163
A empresa Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB) tem 54% de suas
ações controladas pela Carioca Christiani-Nielsen Engenharia. O grupo japonês Itochu possui
12% das ações, a Queiroz Galvão Saneamento S/A também possui 12% e o New Water
Participações Ltda possui17%. A Águas do Brasil opera o serviço de 16 municípios, possui 14
contratos e abastece uma população de 4,7 milhões de pessoas.
A Gs Inima Brasil Ltda tem 97,8% das suas ações controladas pela GS E&C, grupo
sul-coreano, por meio da GS Inima Environment S/A líder no setor de engenharia e
construção, o quinto conglomerado do país em receita e líder mundial em dessalinização. A
Tecnicas y Gestion MedioAmbiental S.A.U possui 2,2% das ações. A GS está em oito
municípios, possui oito contratos e abastece 2,7 milhões de pessoas.
68
Segundo o IBGE o Brasil possui uma população estimada para 2017 de 207.660.929 habitantes.
165
2.3 A gestão (nada) participativa das águas, descentralizando (o poder do Estado) para
centralizar (o poder do Capital): as estratégias em escala para o controle das arenas
cadeiras titulares e seis suplentes); Pescadores e Usuários de Água para o Lazer e Turismo
(titular e dois suplentes). Além destes, os representantes de Organizações Civis de Recursos
Hídricos contam com as seguintes indicações: Comitês, Consórcios e Associações
Intermunicipais das Bacias Hidrográficas (com duas cadeiras titulares e quatro suplentes),
Organizações Técnicas de Ensino e Pesquisa (com duas cadeiras titulares e dois suplentes) e
Organizações Não Governamentais (com duas cadeiras titulares e quatro suplentes).
A atual gestão do CNRH é presidida por Edson Duarte (Partido Verde), atual Ministro
do MMA, a Secretaria Executiva é ocupada por Jair Vieira Tannus Junior e as demais
cadeiras destinadas aos representantes de Ministérios e Secretarias do Governo Federal são
compostas por pessoas indicadas pelos órgãos. O que interessa aqui é identificar os demais
atores que ocupam as outras vagas para explanarmos a correlação de forças posta nos espaços
de gestão dos recursos hídricos em escala nacional, e demonstrar que a lógica da
descentralização da gestão da água pelo Estado leva à concentração da gestão ao capital.
Os estados da federação que ocupam as 10 cadeiras titulares destinadas aos
representantes dos CERHI são: Minas Gerais, Paraná, Pará, Santa Catarina, Paraíba, Rio de
Janeiro (ocupada por Eliane Pinto Barbosa, da Subsecretaria de Articulação Institucional da
Secretaria Estadual do Ambiente), Mato Grosso do Sul, Maranhão, Alagoas e Mato Grosso.
As representações respectivas aos Usuários dos Recursos Hídricos estão conciliadas de
maneira estratégica, de forma que os mesmos setores ocupem o maior número de cadeiras
possível a partir de diferentes representações, mas que em bloco defendem o interesse
articulado entre oligarquias regionais/locais e o capital financeiro global. As vagas destinadas
aos Irrigantes são formadas da seguinte maneira: CNA e Instituto Rio Grandense do Arroz
(IRGA), como titulares, e a Federação da Agricultura do Estado do Mato Grosso do Sul
(FAMASUL), a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Goiás (FAEG), Associação
dos Usuários do Perímetro de Irrigação do Arroio Duro (AUD) e a Associação dos Usuários
das Águas da Região do Monte Carmelo (AUA), como suplentes. Ocupam as cadeiras
titulares relacionadas aos Prestadores de Serviço Público de Abastecimento de Água e
Esgotamento Sanitário: Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento
69
(AESBE) e a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento
69
A AESBE caracteriza-se enquanto entidade civil sem fins lucrativos e é representante das Companhias
Estaduais de Abastecimento. Suas associadas atuam em 4.030 municípios do país, responsável pelo
abastecimento de água de 74,2% da população urbana nacional e 66,6% do esgotamento sanitário brasileiro. A
associação tem por princípio a defesa dos interesses de seus associados e manter relações com associação
congêneres nacionais e internacionais. Destacam-se entre seu grupo de associados à BRK Ambiental e a
CEDAE, o que denota a participação de empresas públicas e do setor privado internacional. Disponível em:
<http://www.aesbe.org.br/>. Acesso: 24 maio 2018.
169
(ASSEMAE) 70, as suplências são ocupadas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado
de São Paulo (SABESP) 71, Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) 72,
Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto
(ABCON) e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Jaboticabal (SAAEJ) 73. A titularidade
referente às Concessionárias e Autorizadas de Geração Hidrelétrica é ocupada pela
Associação Brasileira de Empresas Geradoras de Energia Elétrica (ABRAGE) e da Energisa
Soluções S.A74 e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) 75, a Companhia
Energética de Minas Gerais (CEMIG) 76, Santa Fé Energética S.A77 e a Tracbel Energia S.A 78
ocupam as suplências. O Setor Hidroviário tem a Confederação Nacional do Transporte
(CNT) e a Delima Comércio e Navegação 79 como titulares e suplentes. Para o setor das
Indústrias a titularidade é composta pelo Instituto Aço Brasil, a Federação das Indústrias do
70
A ASSEMAE reúne quase 2.000 associados no Brasil, diz possuir credibilidade nacional e internacional e atua
nas áreas relativas ao abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e drenagem
urbana. A associação reúne as autarquias municipais autônomas não inseridas nas redes estaduais de captação,
tratamento e distribuição e água, assim como dos serviços de esgotamento sanitário. O que não implica a
ausência do setor privado na participação destes serviços municipais. O site não informa quem são os associados,
portanto não foi possível identificar e entender de forma mais aprofundada o perfil e os setores que compõe a
associação. Participam do Conselho das Cidades, Conselho Nacional de Saúde, CNRH, conselhos estaduais de
saneamento e comitês de bacias hidrográficas. Disponível em: <http://www.assemae.org.br/>. Acesso: 24 maio
2018.
71
Integrante da AESBE a SABESP através do Governador Geraldo Alckmin (PSDB) firmou por meio da Lei
Estadual nº 659/17 o projeto de lei de Reorganização Societária da Sabesp, que segundo consta, em comunicado
publicado, como um “passo necessário e importante no processo de uma possível capitalização da SABESP”.
Para dar prosseguimento a este processo a SABESP contratou o Itaú BBA para coordenar a venda de 49% de
participação na empresa controladora. Disponível em: <http://www.aesbe.org.br/wp-
content/uploads/2017/09/RE_Saneamento_13_19.pdf>. Acesso em: 24 maio 2018.
72
Integrante da ASSEMAE.
73
Idem.
74
Pertencente ao grupo Geração Energisa, associada da ABRAGEL.
75
Associada da ABRAGE e da ABRAGEL.
76
Idem.
77
Integrante do grupo Brasil PCH, associada da ABRAGEL.
78
Integrante do grupo Engie, associada da ABRAGE.
79
Integrante do Grupo REICON, conglomerado de empresas privadas multinacionais envolvidas com o mercado
do petróleo. É transportador oficial do Consórcio Construtor da UHE de Belo Monte. As empresas que compõe o
grupo são a Amazon Cards, Amazon Dry Port, Delima, Enavi/Revane, Fontur, Marajó Park Resort e a Sion. Seus
principais clientes no Brasil são: Jari Celulose (Grupo ORSA), PETROBRAS, Texaco, PetroAmazon, Paragás,
Liquigás e CADAM (Grupo Vale). O grupo, através da empresa Sion, detém exclusividade no transporte de
cargas da Jari Celulose (Grupo ORSA) e da CADAM (Grupo Vale). Disponível em:
<http://www.gruporeicon.com.br/>. Acesso em: 24 maio 2018.
170
80
Integrante da CNI.
81
Associada do Instituto Aço Brasil.
82
Integrante da CNI.
83
Idem.
84 “A DowDuPont é uma empresa com vendas líquidas pro forma de US $ 80 bilhões e posições de liderança
em três divisões globais: Agricultura, Ciência dos Materiais e Produtos Especiais. A empresa, que combina os
portfólios, recursos e capacidades complementares da Dow e da DuPont, pretende se separar em três empresas
independentes de capital aberto até junho de 2019, sujeitas à aprovação da diretoria. Cada empresa terá seu
próprio foco claro, vantagens de escala e uma capacidade aprimorada de fornecer soluções e opções superiores
aos clientes. Através das três divisões focadas, a DowDuPont deverá entregar US $ 3,3 bilhões em sinergias de
custos e US $ 1 bilhão em sinergias de crescimento, consistentes com seu compromisso fundamental de
aumentar o valor total do acionista”. Disponível em: <http://www.dow-dupont.com/investors/default.aspx>.
Acesso em: 24 maio 2018. A Du Pont do Brasil S.A é associada da ABAG.
85
Compõe a Associação das Empresas Mineradoras das Águas Termais de Goiás (AMAT).
86
Associação de direito privado sem fins lucrativos composta por municípios e empresas. Atua com
independência técnica e financeira a partir da arrecadação e aplicação dos recursos cujo poder de decisão cabe ao
seu Conselho de Consorciados. Congregam 42 municípios e 29 empresas, dentre elas a Ambev, ArcelorMittal,
BRK Ambiental, Petrobras, Sabesp, Unilever, International Paper, Coca-Cola Brasil etc. Disponível em:
<http://agua.org.br/>. Acesso em: 24 maio 2018.
87
Composto pelos Prefeitos e Secretarias do Meio Ambiente dos municípios de Araruama, Armação de Búzios,
Arraial do Cabo, Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Maricá, Rio Bonito, São
Pedro da Aldeia, Saquarema e Silva Jardim. Além da AGM Empreendimentos Hoteleiros, Oriente Construção
Civil, CCR Via Lagos, Águas do Brasil (Concessionária Águas de Juturnaíba), AEGEA (Concessionária
Prolagos), Contrutora Mil/Villa Rio, Dois Arcos Transporte e Tratamento de Resíduos Sólidos Ltda e Tosana
Agropecuária S.A. Disponível em: <http://www.lagossaojoao.org.br/n-composicao.htm>. Acesso: 24 maio 2018.
171
Organizações de Interesse dos Recursos Hídricos que, como preconiza o Decreto Estadual
38.2660/2005, deve explicitar em seu estatuto “a finalidade específica de defesa dos recursos
hídricos e estar com o cadastro vigente no CERHI” (p. 64), medida esta que dificulta a
particação das mesmas apesar de serem diretamente interessadas e constiturem outras formas
de gestão da água.
A estrutra da composição e da correlação de forças posta no CERHI segue a tendência
do CNRH, em que o capital a partir de sua eficaz e complexa capacidade de capilarização
compõe parcela importante do principal órgão gestor do “recursos hídricos” do estado
fluminense. Vejamos.
A organização do CERHI é composta por 32 membros titulares e respectivas
suplências, das quais nove destinadas ao Poder Público, nove ao Setor dos Usuários, nove
destinadas a sociedade civil e cinco ocupadas por representantes dos CBH’s.
A atual gestão do CERHI (2017-2020) é presidida por Maria Aparecida Pimental
Vargas (representante da ABRAGEL) cujo vice-presidente é Friedrichw Wilhelm Herms
(professo adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e membro da Assembléia Geral
da Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul -
AGEVAP). As vagas destinadas ao Poder Público são distribuídas entre um representante do
Governo Federal, ocupada pelo MMA e a Embrapa Solos assume a suplência. Das vagas
destinadas ao Governo Estadual, duas titularidades e suplências são ocupadas pela Secretaria
de Estado do Ambiente, da qual uma destas titularidades é ocupada po Eliane Pinto Barbosa
(representante do CERHI no CNRH). Uma cadeira – titular e suplente – ocupada pelo
Instituto Estadual do Ambiente (INEA), uma titularidade a cargo do Departamento de
Recursos Minerais do Estado do Rio e Janeiro (DRM-RJ), cuja suplência é ocupada pela
Procuradoria Geral do Estado (PGE). A última vaga – completanto as cinco destinadas ao
estado – é ocupada pela Fundação Instituto de Pesca do ERJ (FIPERJ), cuja suplência se
encontra desocupada. Completam as vagas distribuídas entre o poder público as destinadas às
prefeituras municipais, em que são titulares Volta Redonda, São João da Barra e Silva Jardim
e suplentes Sapucaia, Itaocara e Cachoeiras de Macacu.
A composição dos Usuários é dividida por categorias sendo assim composta: Serviços
de Água e Esgoto, onde a CEDAE e o Grupo Águas do Brasil (SAAB) 88 são titulares e
Prolagos S.A 89 e Águas do Paraíba90 suplentes. As cadeiras destinadas a Indústria, Petróleo e
88
Associada da ABCON.
89
Empresa do grupo AEGEA Saneamento e Participações S/A, também associada da ABCON.
174
Gás é assumida pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) 91 e pela Eletrobras
Eletronuclear 92 (as suplências se encontram vagas). As vagas destinadas a Geração de Energia
Elétrica são ocupadas pela Light Energia 93 e pela ABRAGEL (as suplências se encontram
vagas). Para o Comércio e Turismo/Lazer a Fecomércio é titular e o Sindicato dos Produtores
Rurais de Cachoeira de Macacu94 é suplente. Para a Agricultura Pecuária e Pesca os titulares
são a Federação de Agricultura, Pecuária e Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FAERJ) e a
Associação Fluminense de Plantadores de Cana (ASFLUCAN), onde o SindiPesca-RJ e a
Associação de Proprietários Rurais da Margem Esquerda do Paraíba do Sul (APROMEPS)
são suplentes.
O setor que representa a sociedade civil é divida em dois segmentos. O primeiro deles
tem suas vagas destinadas as Associações da Sociedade Civil com vínculo em Recursos
Hídricos. São titulares a Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente
do Estado do RJ (APEDEMA), Associação de Preservação Ambiental Lagunas Maricá
(APALMA), Ecocidade Cidade, Associação Homens e Mulheres do Mar da Baía de
Guanabara (AHOMAR) 95 e a Associação dos Criadores de Abelhas Nativas e Exóticas do
Médio Paraíba, Sul, Centro Sul e Baixada Fluminense (ACAMPAR-RJ). São suplentes a
Associação de Defesa e Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência dos Municípios de
Miguel Pereira, Paty do Alferes e Adjacências (ADEFIMPA-RJ), o Núcleo de Educação
Ambiental da Bacia de Campos (NEA-BC), o Instituto Baía de Guanabara (IBG), o Instituto
Ambiental Conservacionista 5° Elemento, e a Conservação Internacional do Brasil. O
segundo segmento é representado pelas Instituições de Ensino Superior cujas cadeiras
titulares são ocupadas pela COPPE/UFRJ Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e
Pesquisa em Engenharia, UERJ, Associação Brasileira de Águas Subterranêas e pela
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES).
90
Empresa do grupo SAAB.
91
Associada da Confederação Nacional da Indústria.
92
Subsidiaria da Eletrobras, associada da ABRAGE.
93
Associada da ABRAGEL.
94
Sindicato patronal que defende a alternativa da construção de três pequenas barragens em contraposição a
barragem do Rio Guapiaçu.
95
A AHOMAR possui um histórico de extrema relevância na defesa dos bens comuns através da luta em defesa
dos pescadores e pescadoras, da pesca artesanal, das águas e dos peixes frente ao avanço da instalação de
grandes projetos de desenvolvimento localizados ao redor da Baía de Guanabara. Quatro de seus integrantes
foram assassinados em decorrência das lutas encampadas pela associação em 2012 e seu dirigente Alexandre
Anderson sofreu seis tentativas de assassinato em três anos sendo, consequentemente, incluído ao programa
federal de proteção a defensores de direitos humanos junto com sua companheira.
175
Por fim, ocupam as vagas titulares destinadas aos Comitês de Bacia Hidrográfica, o
CBH Médio Paraíba do Sul, CBH Macaé e das Ostras, CBH Piabanha, CBH Guandu e o CBH
Baia de Guanabara. São suplentes o CBH Paraíba do Sul e Itabapoana, CBH Lago São João,
CBH Rio Dois Rios, CBH Baía de Ilha Grande.
A correlação de forças no CERHI-RJ é ainda mais desigual e a tendência é que sejam
assim nos demais estados devido à estrutura hierárquica (e de poder) que facilita o acesso ao
capital enquanto dificulta o acesso dos movimentos populares. Considerando o histórico do
papel da SEA e do INEA em relação aos processos de licenciamento que facilitaram a
territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento no ERJ, as cadeiras titulares
ocupadas pelas prefeituras de Volta Redonda, São João da Barra e Silva Jardim - onde se
encontram a CSN, o Porto do Açu e a Águas do Brasil, respectivamente – e o papel
desempenhado pela COPPE/UFRJ e pelo representante da UERJ, conclui-se que 16 vagas são
controladas pela articulação posta entre Estado e capital, o que representa 50% das cadeiras
titulares do CERHI.
Como apontado anteriormente neste trabalho, HARVEY (2004) sinaliza que foram
aprimorados os mecanismos de acumulação do capital que desempenham um papel bem mais
forte do antes. Para os fins desta investigação, interessa sua afirmação referente aos
mecanismos de fraude, predação e roubo característicos dos sistemas de crédito e financeiros,
s que quando analisados a partir de um referencial histórico e espacial desde baixo, nos
permite afirmar que a fraude, a predação e o roubo acompanham a moderna e colonial
formação sócioespacial brasileira. O continuum destas práticas está presente na recente
dinâmica de territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento, mas não se limita a
este período, já que são dinâmicas intrínsecas à expansão da acumulação do capital.
A atual presidente do CERHI, Maria Aparecida Borges Pimentel Vargas, representante
da ABRAGEL, foi denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) 96 cujo processo está
em andamento na 1ª Vara Federal de Resende, através da operação Águas Turvas deflagrada
pela Polícia Federal. Ela é acusada por crimes de corrupção passiva e associação criminosa,
junto a Flávio Antônio Simões e José Augusto Pinelli que também respondem pelos dois
crimes citados, além de acusações de corrupção ativa e fraude à licitação. De acordo com a
denúncia Flávio – na época diretor interino e coordenador técnico da AGEVAP - e José
ajustavam os critérios e parâmetros de julgamentos dos processos licitatórios para que a
96
Processo nº 0500245-33.2015.4.02.5190
176
empresa Vallenge fosse vencedora das licitações referentes à elaboração de planos municipais
de saneamento.
Ela é acusada de receber R$45.600,00 oriundos de José Augusto Pinelli –
administrador da empresa Vallenge Consultoria, Projetos e Obras Ltda – entre 2011 e 2012
cujo motivo seria a prestação de benefícios para a referida empresa em licitações e contratos
mantidos perante AGEVAP, Agência de Águas então contratada pela Ceivap, pagos com
verbas repassadas pela ANA. Maria Aparecida é membro do Comitê de Integração da Bacia
Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (CEIVAP), desde 1997, e à época ocupava o cargo de
secretária executiva do órgão. Além disso, foi membro do conselho de administração da
AGEVAP, foi presidente do CBH dos Afluentes Mineiros dos Rios Pomba e Muriaé, Diretora
Secretária Executiva do CBH Rio Dois Rios, além da presença em Câmaras Técnicas
Consultivas e grupos de trabalho sempre relacionados à gestão de recursos hídricos no ERJ.
O que mais interessa aqui não são as vantagens indevidas ou valores repassados a
terceiros por empresas privadas, cuja insistência na explanação destes tipos de caso ajuda a
corroborar a lógica da culpabilização do indivíduo desviando, assim, uma característica
estrutural do sistema capitalista. A denúncia do MPF identifica, a partir da quebra dos sigilos
telefônicos e da apreensão de computadores de Maria Aparecida, a grande proximidade que
possui com membros do alto escalão do INEA, a saber:
E segue:
A denúncia aponta, ainda, a íntima relação entre Eliane Pinto Barbosa e Flávio
Simões, também acusado pelo MPF:
Estive presente junto com o pesquisador Bernardo Xavier Santiado na 73ª Reunião
Ordinária do CERHI, realizada no INEA, em 9 de março de 2017. Eliane Pinto Barbosa
assumia o cargo de Secretária Executiva do CERHI-RJ referente ao mandato 2014-2016.
Nesta Reunião Ordinária, Maria Aparecida é eleita por maioria dos votos como presidenta do
CERHI do mandato 2017-2020. Nesta época, a operação Águas Turvas já estava em
andamento – o processo tem data de 02/04/2015 - e a denúncia é feita à 1ª Vara da Justiça
Federal de Resende pelo Procurador da República Paulo Sérgio Ferreira Filho em 19 de Julho
de 2017. Porém, isto não parece afetar a continuidade da presença de Maria Aparecida
enquanto presidente do CERHI-RJ e nem que Eliane Pinto Barbosa continue a exercer o cargo
de Secratária Executiva do CERHI-RJ 97. Ademais, fato que vale ser destacado, é justamente
Eliane Pinto Barbosa quem ocupa a representação do CERHI-RJ na cadeira titular destinadas
aos CERHI’s no CNRH. Por isso, afirmo, mais uma vez, que estas “turvas” relações devem
continuar a ser mapeadas para que sejam explanadas as relações de poder e articulações entre
capital e Estado no que tange à gestão das águas no Brasil.
Ter Maria Aparecida Vargas enquanto representante da ABRAGEL na presidência do
CERHI-RJ aumentam as possibilidades da barragem-reservatório do rio Guapiaçu obter as
licenças prévia, de instalação e operação.
97
Através do acesso a Ata da 79ª Reunião Ordinária do CERHI-RJ, realizada em sete de janeiro de dois mil e
dezoito, verifiquei que ambas continuam a exercer os cargos mencionados. Disponível em:
<http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/@inter_digat_geagua/documents/document/zwew/mtu0/~edisp/inea
0154577.pdf>. Acesso em: 28 maio 2018.
178
Durante o 8º Fórum Mundial da Água (FMA), foi organizado pelo Fórum de Meio
Ambiente do Setor Elétrico (FMASE), pela ABRAGEL e pela Associação Brasileira de PCHs
e CGHs (ABRAPCH) um espaço de discussões (Side Event) nomeado “Reservatórios, uma
questão de segurança hídrica”. Maria Aparecida Vargas, enquanto representante da
ABRAGEL e do FMASE foi coordenadora geral do evento. Após a realização do FMA e
destes espaços de discussão, estas entidades e os demais participantes lançam a Carta
Seworld 98. Trata-se de um documento – de apenas seis páginas - que defende abertamente a
construção de grandes reservatórios enquanto solução para a chamada crise hídrica.
Sobre a lógica do consenso da escassez hídrica a carta, em sua primeira página, traz
argumentos superficiais que culpabilizam o meio ambiente pela conjuntura da escassez
hídrica pela qual passa o Brasil:
A carta aponta ainda que para a retomada da construção de barragens com elevada
capacidade de reservação (como se estas soluções tecnocratas tivessem sido desconsideradas)
é preciso a construção de “política pragmáticas”, “gestão eficaz”, “arcabouço jurídico forte”,
“sistemas de engenharia confiáveis” e “usos múltiplos”. Todos estes elementos devem ser
assegurados, segundo o documento, no Plano Nacional de Segurança Hídrica. São argumentos
que revelam as estratégias políticas (e do poder) que explanam a racionalidade tecnocrata que,
à serviço do capital, irá centralizar suas ações para intensificar a promoção dos grandes
cercamentos de terra e água. São elementos, ainda, que compõe e denotam a propragação do
Consenso da Escassez Hídrica sempre acompanhado de resoluções técnicas a partir de
98
Disponível em: <http://www.worldwaterforum8.org/en/file/3238/download?token=Ni4nHrhl>. Acesso em: 28
maio 2018.
179
A conexão dos Estados nacionais aos mercados globais gera uma consequente
desconexão de sujeitos que historicamente desenvolvem relações simbólicas, culturais,
ancestrais em seus territórios. Desta conexão decorre que a exploração dos recursos naturais,
independente de sua propriedade, deve seguir as tendências produtivas voltadas ao aumento
da competitividade do mercado, ocasionando a externalização dos impactos ambientais e
sociais. Ou seja, cria-se aquilo que PORTO-GONÇALVES (2006) chama de geografia dos
proveitos e dos rejeitos, do conforto e do drama, dos riscos e dos benefícios da energia, em
que ocorre uma diferenciação entre os lugares de exploração, os lugares de transformação da
matéria-prima e os lugares de consumo. Assim, há uma divisão centro-periferia entre os
países que respondem pela extração e transformação e os que consomem os produtos
originados destes processos, gerando uma distribuição desigual dos rejeitos e proveitos.
Nessa agenda política, o neoextrativismo se torna “um dos motores fundamentais do
crescimento econômico e como contribuição crucial de luta contra a pobreza a nível nacional”
(GUDYNAS, 2012, p. 314). O que significa dizer que as políticas de compensação social e de
transferência de renda são criadas a partir de uma parte dos excedentes gerados por estes
setores, ampliando o acesso de populações a determinadas políticas públicas.
É neste sentido que SVAMPA (2013) aponta a criação de um consenso das
commodities, oriundo justamente de uma ordem econômica, política e ideológica sustentada
por esta dinâmica criada pelo boom das commodities. Econômico porque gera um processo de
reprimarização da economia que é acompanhado por um intenso processo de espoliação de
terras, “recursos” e territórios, produzindo novas formas de dependência e dominação.
Político e ideológico, pois se utiliza da elevação do preço das commodities e a crescente
demanda global por produtos primários para produzir um discurso que afirma a América
Latina enquanto uma região privilegiada devido à grande e variada extensão de recursos
naturais. E é em nome destas “vantagens comparativas” que se justifica a inserção
subalternizada latino-americana nos mercados internacionais.
Além destes elementos, MILANEZ e SANTOS (2013) trazem dados que demonstram
o processo brasileiro de reprimarização da economia, como: a participação das empresas
estatais e semi-estatais enquanto atores estratégicos no processo de inserção do país no
mercado global; o aumento da participação não industrial na exportação de 16% para 40% no
período de 1996 a 2011; o relevante desempenho do setor mineral nas exportações brasileiras
em 2009 (com 20% do total) com mais de 60% de todo o saldo da balança comercial; o saldo
positivo da balança comercial brasileira devido aos produtos não manufaturados; e o
181
crescimento do PIB do setor mineral no período de 2000 e 2001 enquanto ocorreu queda na
indústria de transformação e manutenção dos mesmos índices no setor secundário.
Estes fatores são importantes, pois traduzem, em certa medida, a relação entre países
chamados de 1⁰ e 3⁰ mundo. PETRAS (1980) é cirúrgico e aponta o modelo operacional que
ocorre no que ele chama de período pós-independência. Ele assinala a possibilidade de três
estratégias de aliança de classes com vista à acumulação. Interessa-nos aqui, para dialogar
com David Harvey, o que ele define como neocolonialismo dependente. Neste caso há uma
articulação do Estado com firmas e regimes imperiais intensificando a extração do excedente.
A burguesia nacional é o meio utilizado para agravar a espoliação pelo capital externo,
retirando uma parcela do excedente para si. Do ponto de vista das medidas políticas, há
coerção e desmobilização da população, incentivos fiscais e acesso irrestrito a fontes de
matérias-primas. A maneira como se concebe a articulação diferencia a fonte de lucro da
burguesia nacional: se há um controle total do capital externo sobre a economia, a burguesia
nacional obtém receitas provenientes de impostos; quando há uma parceria na propriedade e
nas prerrogativas de administração – onde o capital estrangeiro mesmo assim obtém o
controle da economia – a burguesia nacional recebe parte mínima dos lucros e continua a
receber via pagamento de impostos. Significa dizer que na hierarquia da acumulação de
capital internacional, sob o aspecto espacial da divisão territorial do trabalho, países ditos de
3⁰ mundo mesmo assumindo a lógica do nexo Estado-finança sobre suas políticas econômicas
de acumulação estarão submetidos “aos de cima e de fora”.
Para PETRAS (1980), este processo de acumulação de capital que vem “de cima e de
fora” cria a possibilidade do crescimento de classes internas que ampliam seu poder não
necessariamente pelo crescimento de um mercado interno, mas sim por sua capacidade de se
articular com um mercado global e de inseri-lo como espaço para o contínuo processo de
expansão da acumulação. No caso brasileiro, a agenda neoextrativa possibilitou, de fato, um
aumento considerável do poder de compra de setores da sociedade que anteriormente não
estavam inseridas na lógica de ascensão social via capacidade de consumo. Como já
apresentado anteriormente, Svampa aponta muito oportunamente que isto possibilita uma
legitimidade da estratégia de desenvolvimento adotada pelos governos Lula e Dilma, do
Partido dos Trabalhadores. A questão é que na medida em que frações da burguesia nacional
ganham cada vez mais legitimidade em uma escala global, passam a serem instrumentos
centrais para articulação do capital financeiro global, acirrando a correlação de forças internas
onde setores conservadores ganham cada vez mais ascensão já que possibilitam maior
182
O período entre 2006 e 2008 é de fundamental importância para que se possa entender
o atual estágio do capitalismo e suas formas de espoliação e acumulação, já que nestes três
183
Estes novos atores envolvidos na aquisição maciça de terras acabam por provocar uma
alteração no perfil dos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) nos países do sul global. Esta
alteração sistêmica na dinâmica de aquisição de terras em larga escala, que tem seu início na
segunda metade da década de 2000, provoca uma forte diminuição nos IED’s em manufatura,
realocando-os para o setor primário (SASSEN, 2016).
FERREIRA (2016) mostra que a crise financeira global de 2008, acentuou uma intensa
corrida mundial pelo controle dos “recursos naturais” e energéticos em todo o mundo
apresentando três elementos fundamentais que corroboram sua defesa: a elevação do preço
dos recursos naturais e primários no mercado internacional; os investimentos externos diretos
(IED) e a lucratividade das empresas nestes setores; e a luta pelo controle dos processos de
produção de energia e fluxos energéticos, com o intuíto de transferir o controle destes
processos aos mercados financeiros e às grandes coporações multinacionais.
O autor demonstra que, a partir de 2010, a América Latina passa a ser um importante
destino para os IED’s, que se concentram a partir da crise de 2008 nos setores de extração de
minérios, petróleo e energia, gerando o boom das commodities, o que acirra a disputa pelos
fluxos energéticos. As empresas mineradoras, por exemplo, no ano de 2014, direcionavam
23% do investimento global para a América Latina (PADILLA e BOSSI, 2015), sendo o
Brasil o mais importante exportador de minério do continente, tendo exportado 410 milhões
de toneladas em 2011, enquanto todos os demais países mineradores (Argentina, Bolívia,
Colombia, Chile, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) juntos produziram 147
milhões de toneladas99.
A energia é uma categoria complexa e dialética, sobretudo quando é analisada sob a
ótica das leis da termodinâmica, onde a energia é a capacidade de geração de trabalho. A
dialética está contida em um duplo sentido do termo que nos traz distintas bases epistêmicas,
uma relacionada à ideia de energia enquanto recurso energético que gera a força motriz do
trabalho produtivo, sobretudo industrial. A outra está relacionada a um entendimento
ecológico, onde qualquer ser vivo depende de fontes de energia para a reprodução de sua
própria espécie (FERREIRA, 2016). Em última instância, em um sentido ou outro todas as
formas/fontes de energia são geradoras de trabalho. Ou seja, a expansão da acumulação do
capital gera um aumento da produção de energia para o capital, o que leva, consequentemente,
a um desequilíbrio na produção de energia para os seres humanos. Tal processo tende a criar
uma ampla gama de conflitos territoriais onde são materializados fenômenos multiescalares
99
Gudynas, Eduardo (2013). O Maior extrativista do continente: Brasil. Disponível em:
<https://www.alainet.org/pt/active/64049>. Acesso em: 25 maio 2018.
185
nos territórios. Desde a primeira metade da década de 2000, o Brasil figura entres os países
que mais recebem IED no mundo. Segundo a série histórica disponibilizada pelo World
Investiment Report, em 2011, o país teve seu ápice de IED’s quando registrou um total de
US$96,2 bilhões, sendo o quinto país a receber o maior montante de IED no mundo.
Conforme está demonstrado na tabela 6, é possível perceber que apesar de haver um
decréscimo no montante de IED no Brasil, entre 2011 e 2013, o mesmo segue em uma
posição importante se levarmos em consideração o ranking de países que mais receberam IED
no mundo.
Ranking Global 5 5 5 7 4 8 7
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados da UNCTAD (2010, 2011, 2012, 2013, 2014,2015,
2016).
Os Estados Unidos da América se destacam como o país que mais aportou em IED na
América Latina e no Caribe, com um montante total que vai de US$354 bilhões, em 2009,
para US$403 bilhões, em 2014. O Brasil é o país que mais atrais IED na região desde 2003.
SILVA FILHO (2015) publicou dados oriundos da FDI Markets que mostram o
montante de IED greenfield100 aplicados no Brasil relativo ao período entre 2003 e 2014.
Segundo o autor, o montante de IED greenfield aplicado no país neste período foi da ordem
de US$356 bilhões. Deste total, o setor de Mineração e Siderurgia foi o que mais recebeu
aporte, sendo responsável por receber um investimento de US$76 bilhões, o que corresponde
100
Segundo o autor, “o chamado IED greenfield consiste no montante de investimento recebido pelo país cuja
destinação é exclusivamente para a criação ou expansão de capacidade produtiva das companhias estrangeiras no
território nacional. Esta rubrica não inclui, portanto, fluxos de capital destinados ao investimento em ativos
diversos (portfólio), fusões e aquisições ou incremento de caixa das empresas. Embora o fluxo de IDE total seja
a variável mais relevante, do ponto de vista das contas externas, a principal vantagem em analisar o volume de
investimento greenfield é a possibilidade de alcançar uma visão mais realista dos efeitos do IDE sobre a
economia nacional, uma vez que são os investimentos em estoque de capital que produzem impactos
significativos sobre as variáveis reais como emprego e produção”. (SILVA FILHO, 2015, pág. 8).
186
a uma participação em relação ao total de 21,4%. Já o setor de Carvão, Petróleo e Gás foi o
quinto que mais recebeu investimentos, chegando a US$27 bilhões, com uma participação em
relação ao total de 7,6%. Se acrescentamos a estes dois setores os investimentos relativos às
Energias Renováveis – o sétimo maior aporte, com um total de US$19,5 bilhões e
participação em relação ao total de 5,5%, temos um aporte total de US$122,5 bilhões apenas
nos setores de extração mineral e energia, o que equivale a 34,5% de todo o IED greenfield
investido no país. Se somarmos ainda os investimentos realizados em Alimentos e Tabaco –
com um investimento total de US$26,4% e participação de 7,4% no total, chegamos a um IED
greenfield total de US$148,9 bilhões, o que equivale a 41,9% de todo o IED greenfield sendo
aportados no setor primário. Estes dados confirmam a importância do setor primário na
economia brasileira, conforme apresentado anteriormente neste trabalho.
Em relação a regionalização destes investimentos, apenas São Paulo (US$110
bilhões), Rio de Janeiro (US$50,9 bilhões) e Minas Gerais (US$37,7 bilhões) receberam
55,9% de todo o IED greenfield aportado no país entre 2003 e 2014. O estado do Rio de
Janeiro (ERJ) chama atenção, pois dos US$50,9 bilhões aportados, US$20,7 bilhões são
destinados ao setor da Mineração e Siderurgia e US$4,3 bilhões destinados ao setor do
Carvão, Petróleo e Gás Natural, o que equivale a 49% de todo o aporte estrangeiro recebido
(Gráfico 1). O ERJ recebe um aporte financeiro no setor mineral e siderúrgico maior do que o
estado de Minas Gerais e é o segundo estado da federação que mais recebe investimentos
estrangeiros no setor energético – Carvão, Petróleo e Gás – estando atrás apenas do estado de
Pernambuco (responsável por receber mais de 50% do investimento no setor em todo o país).
Gráfico 1 – Investimento Estrangeiro Direto greenfield por Setor – Estado do Rio de Janeiro
Mineração e Siderurgia
O papel do ERJ enquanto destino dos IED’s fica explícito a partir do dados
apresentados acima. Mais do que isso, o estado assume uma centralidade no período
apresentado não só pela capacidade de atração do capital financeiro internacional, mas
sobretudo pelo alinhamento e articulação da política de desenvolvimento neoextrativista com
o governo federal, chegando a receber mais investimento em extração de minérios e
siderurgia do que os estado de Minas Gerais e do Pará, dois dos estados que apresentam as
maiores contribuições no setor mineral do país.
Os baixos índices de IED’s no setor de petróleo, gás natural e carvão são explicados
pelo forte controle do Estado no setor, onde a Petrobras controlava até o golpe parlamentar-
midiático-empresarial-financeiro a extraçao e produção de petróleo e derivados oriundos do
Pré-Sal, localizado na Bacia de Santos.
Em um primeiro momento, os dados referentes à mineração e siderugia podem parecer
incompatíveis com a realidade fluminense, já que se trata de um aporte extremamente
elevado, para um estado que não apresenta uma cadeia mineral constituída. Porém, há que se
considerar que os dados estão agregados entre os setores mineral e siderúgico e, como
apresentado anteriormente, IBRAM, ABM e o Instituto Aço Brasil são constituídos por um
mesmo núcleo empresarial restrito e extremamente articulado com o capital financeiro global.
Isso possibilita não só a atração do aporte financeiro, mas o remanejamento dos investimentos
em suas múltiplas cadeias produtivas espacialmente localizadas no sudeste brasileiro
(sobretudo a siderurgia) e no norte do país, cuja mineração possui forte controle territorial no
estado do Pará. A indústria siderúrgica produz 84% de sua produção nacional nos estados de
Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Do total produzido, 30% é oriundo das 5
usinas da ArcellorMittal, 21% das 14 usinas da Gerdau e 49% nas demais usinas do país101. O
Rio de Janeiro possui cinco siderúrgicas no estado, das quais duas delas são uma das maiores
da América Latina. No estado, a ArcelorMittal Sul Fluminense se encontra em Barra Mansa e
Resende, a Gerdau Aços Longos está instalada em Santa Cruz, além da CSN, em Volta
Redonda e da Ternium Brasil, em Santa Cruz. Este setor puxa, consequentemente, os
investimento alocados na indústria automobilística e de autopeças, assim como o setor de
máquina e equipamentos, já que também é responsável por abastecê-los. Estes arranjos, como
veremos no próximo tópico, são construídos a partir da intervenção estatal que irá garantir o
investimento logístico com vistas a aumentar as vantagens comparativas do estado
fluminense.
101
Disponível em: <http://violacoesnasiderurgia.pacs.org.br/cadeia-produtiva-internacional-impactos-
socioambientais-locais-a-agua-e-bem-comum/>. Acesso: 24 maio 2018.
188
territoriais – mapa 5. Esta nova base logística e produtiva demanda a criação de um novo
meio técnico-científico-informacional, além de uma nova densidade jurídico-normativa que
regule o território a partir da flexibilização e/ou da supressão de instrumentos jurídicos
(ALENTEJANO et all 2015).
Explodem a partir deste cenário novos conflitos no espaço agrário fluminense que
apesar de trazerem novos atores, apresentam as velhas práticas em relação ao padrão de
correlação de forças com as comunidades locais (MEDEIROS, 2015). O Poder Judiciário e a
Polícia Militar do ERJ, a Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), o Instituto Estadual do
Ambiente (INEA) e a Companhia de Deenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro
(CODIN) 102 têm assumido papeis centrais durante os processos de licenciamento, despejo,
prisões e judicialização dos conflitos, o que torna o Rio de Janeiro o estado dentre todas as
outras unidades da federação com maior registro de prisões no campo no ano de 2013 e o
segundo estado em todo o Brasil com o maior número de famílias envolvidas em conflitos
pela terra. Despejos, expulsões, assassinatos e impactos socioambientais e territoriais traçam a
marca da violência que atinge diretamente toda a diversidade de sujeitos que resistem frente
ao avanço do capital sobre seus territórios (GONÇALVES e CUIN,2013) .
102
A Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro – CODIN - é uma sociedade de
economia mista estadual e é vinculada à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Energia,
Indústria e Serviços – SEDEIS. Segundo consta em seu site ela é “a porta de entrada dos investidores nacionais e
internacionais. Atua como instrumento para o aumento da competitividade da economia, gerando
desenvolvimento econômico e social para os municípios do Estado do Rio de Janeiro. A CODIN oferece
soluções integradas, tanto para os empreendedores como para os municípios”. Seu caráter estratégico para os
processos de territorialização dos grandes projetos de desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro ficam
explícitos, pois é a CODIN que elabora estudos e projetos para a ocupação industrial a partir das tendências
econômicas globais; explana ao capital nacional e internacional as “potencialidades”, oportunidades programas e
diretrizes do governo estadual; fornece “banco de áreas livres existentes nos municípios”; disponibiliza as áreas
destinadas aos Distritos Industriais; apresenta as informações relativas aos indicadores socioeconômicos e
demográficos dos municípios; apoia os processos de licenciamento ambiental; promove a articulação com as
concessionárias de serviços públicos (água, esgoto, energia, gás e telefonia); promove a interface com as
diferentes esferas do poder público (municipal, estadual e federal) com o intuito de viabilizar as infraestruturas
necessárias; orienta o capital para a obtenção dos incentivos tributários e financeiros a partir da interlocução e do
apoio junto às agências de fomento estadual e federal. Todas as informações mencionadas foram extraídas do
site oficial da CODIN e estão disponíveis em: <http://www.codin.rj.gov.br/Paginas/Codin/Atividades.aspx>.
Acesso em: 15 fev. 2018.
190
103
Disponível em: <https://agb-belohorizonte.webnode.com.br/news/saliniza%C3%A7%C3%A3o-das-aguas-e-
do-solo-no-a%C3%A7u%3A-crime-ambiental-e-expuls%C3%A3o-da-terra/>. Acesso em: 30 maio 2018.
192
Refinaria
Duque de 2 milhões m³/dia
Duque de 10 1.300 1.722.583 l/h
Caxias (Gás Natural)
Caxias
Ternium
490MW /
Brasil (ex Rio de Janeiro 5 900 2.000.000 l/h
4.292.400 MWh
TKCSA)
Volta 255 MW /
CSN 14 376 7.000.000 l/h
Redonda 2.223.800 MWh
Legenda: ¹ São consideradas as águas referente ao Mineroduto Minas-Rio e a utilizada no Porto do Açu
n.d - Não Disponível.
Fonte: O autor, 2019. Adaptado a partir de POMBO (2011), CH2MHILL (2012), (MME, 2017), SCHOR (2006),
PACS (2008, 2009) ERM (2005).
da Anglo American 104. Recentemente a Prumo Logística S/A fechou um contrato com a
empresa Andrade Gutierrez para construção de uma usina térmica GNA Açu, que tem com
objetivo garantir auto-suficiência energética do Porto 105. Sua capacidade será de
aproximadamente 1300MW, consumo energético equivalente a uma cidade de
aproximadamente 4,2 milhões de pessoas.
Passados onze anos desde o início das construções do CIPA e cinco anos desde que a
EIG Global Energy Partners assumiu o controle do Distrito Industrial de São João da Barra
(DISJB), apenas 566,44 hectares foram utilizados pelos empreendimentos já negociados para
ocupar a área. Isto representa apenas 7,87% do total da área despropriada, sob o caráter de
utilidade pública, destinado a construção do DISJB. Somadas as áreas já consolidadas, mais
os recentes acordos divulgados pela Prumo Logística Global, o percentual de ocupação da
área chega a 10% do total da área desapropriada, como consta em na Contestação Possessória
(Processo nº 721-89.2017.8.19.0053) ajuizada pela Associação dos Proprietários de Imóves e
Moradores do Açu, Campo da Praia, Pipeiras, Barcelos e Cajueiro (ASPRIM). Há, portanto,
um forte caráter especulativo associado às terras espoliadas dos agricultores e agricultoras do
5º Distrito de São João da Barra que hoje se encontram sobre propriedade de um fundo de
investimento estadounidense.
O total de hectares ocupados por todos os empreendimentos apresentados na tabela 7
é de 14.276 hectares. Levando em consideração a média dos módulos fiscais destes
municípios, igual a 10,2ha, seria possível assentar 1.399 famílias. Se pensarmos a partir dos
agroecossistemas familiares mapeados e apresentados no primeiro capítulo, a média da
produtividade/ha é de 17,4 toneladas de alimento/ano. Poderiam ser produzidos 177,48
toneladas de alimento/ano por família para o abastecimento do mercado interno, se estas
terras fossem destinadas a Reforma Agrária. O consumo total energético – sem considerar a
Reduc – de quatro empreendimentos é da ordem de 17.904.200 MWh. Segundo o MME
(2017), o consumo residencial de energia elétrica do estado do Rio de Janeiro foi de
13.706.000 MWh. O consumo energético de apenas quatro empreendimentos supera o
equivalente de energia consumida por toda a população do estado do Rio de Janeiro. Por fim,
104
Em reportagem publicada pela Agência Pública são reportados casos relativos a falta de água disponível para
as comunidades locais em detrimento da exploração de minério de ferro pela Anglo American S.A. Disponível
em: <https://apublica.org/2018/01/a-sombra-da-tragedia-de-mariana/>. Acesso em: 17 fev. 2018.
105
Disponível em: <http://www.robertomoraes.com.br/2017/10/porto-do-acu-reforca-se-cada-vez-mais.html>.
Acesso em: 17 fev. 2018.
195
o volume de água consumida por quatro dos cinco empreendimentos é de 49,2 milhões de l/h
(ou 1,1 bilhões de l/dia), equivalente a uma população de 4,7 milhões de pessoas106.
Os dados comprovam uma altíssima concentração não só da produção, mas do
controle de terras, energia e água, logo dos passivos e fraturas sóciometabólicas que se
instalam nos territórios que se encontram em disputa por suas condições básicas de
reprodução da vida que, como vimos no primeiro capítulo, constroem suas relações com a
terra, água, mata, alimento a partir de outras epistemes onde sentidos, saberes e elementos são
comuns.
2.5 Quatro projetos territoriais e um Rio: as múltiplas escalas (do poder) e suas
articulações
106
De acordo como Censo 2010, o município do Rio de Janeiro possuía uma população de 6,3 milhões de
habitantes.
196
estratégico já que esta agenda depende de seu controle para expandir e acumular capital e
poder.
Deste ponto em diante, nossa análise será aprofundada a partir destes aspectos,
relacionando-os com as questões apresentadas no primeiro capítulo, uma vez que o projeto de
construção da barragem do rio Guapiaçu está diretamente relacionado a esta conjuntura
global. Todas aquelas experiências apresentadas e analisadas encontram-se em uma área de
fronteira já que o território está inserido na estratégia de expansão do capital no ERJ. São
ameaçados os sentidos de lugar construídos por aqueles homens e mulheres, diretamente
relacionados às formas de gestão comunitária da água e as diversas formas de sentirpensar a
agricultura, que juntos estruturam seus espaços de representação. O projeto da grande
barragem do rio Guapiaçu representa um modus operandi de representação do espaço do
capital que vê nele a possibilidade de controlar a vazão da bacia hidrográfica, direcionando
esta água para o atendimento das suas necessidades.
Há um choque direto entre diferentes formas de produção do espaço intimamente
relacionadas a temporalidades que representam cada uma destas formas. O tempo da terra, da
lua, do sol e das águas passa a ser atravessado pelo tempo do capital de maneira vertical. A
vida cotidiana e as relações afetivas são radicalmente transformadas a partir das múltiplas
formas de tentativa de controle do território, e nesta escala da sociabilidade são combinados
os fenômenos que materializam as múltiplas tentativas de controle da natureza pelo capital.
Identifico, portanto, a existência de quatro projetos territoriais para um único
território. O primeiro deles, já amplamente apresentado no primeiro capítulo, é produzido a
partir das relações hidrocomunitárias constituídas pelos homens e mulheres do Vale do
Guapiaçu pautada pela dimensão dos bens comuns, pela sobreposição do valor de uso pelo
valor de troca, e pela gestão comunitária e autônoma da água. Os outros três projetos para o
território são criados e pensados externamente aos seus limites espaciais. O primeiro deles é
pensado, proposto e articulado pelo Estado em conluio com o capital, mas que sofre
importante re-articulações estratégicas devido à complexa mudança de conjuntura dos últimos
quatro anos. O segundo já é uma resposta ao projeto da grande barragem, mas não
necessariamente se contrapõe a ela. É pautado pelo Sindicato Patronal e por ONG’s da região
que propõe a construção de três pequenas barragens e são responsáveis por criar uma disputa
interna no território. O terceiro é projetado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), sendo o único desses três que é assimilado pelos homens e mulheres do Vale do
Guapiaçu, mesmo quando não incorpora as redes comunitárias como estratégia política, nem
como instrumento de empoderamento e correlação do poder.
197
O Vale do Guapiaçu tem na sua história recente uma ameaça constante no que tange à
construção de uma barragem-reservatório. O que dá materialidade a esta ameaça está
relacionada à conjuntura política, financeira e/ou econômica por qual passa o ERJ e o país em
determinados momentos histórico-geográficos.
A primeira vez que surge a possibilidade de construção de uma barragem na bacia
hidrográfica do rio Guapiaçu é na década de 1980. Naquele momento, o projeto havia sido
elaborado pela Companhia Estadual de Água e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) cujo
objetivo era abastecer os municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí. Com uma localização
espacial distinta da atual, o projeto era previsto para o alto rio Guapiaçu e ameaçava inundar
cerca de 50 fazendas e 200 hectares de terra, na qual trabalhavam agricultores e agricultoras
familiares. O projeto já havia captado um empréstimo de US$90 milhões do Banco Mundial,
mas a partir de uma importante mobilização local associada ao escândalo Marajoara – onde
foram identificado irregularidades na licitação de um sistema de captação na Baixada
Fluminense – o projeto acabou sendo engavetado só voltando a aparecer décadas à frente.
Em 2003, é produzido o Plano Diretor dos Recursos Hídricos da Baia de Guanabara
(PDRH-BG), elaborado pela ECOLOGUS-AGRAR, cujo financiamento é oriundo do Banco
Mundial, e o estudo encomendado pelo governo do estado. São apresentados programas cujos
objetivos buscam apresentar soluções para a “melhoria da quantidade de água” através de três
ações: i) diminuição dos índices de perdas físicas de água dos sistemas de tratamento e
distribuição que chegam a 40%, como veremos adiante; ii) aprofundamento de estudos
relativos ao conhecimento hidrológico da região com vistas a aproveitar racionalmente o uso
das águas subterrâneas; e iii) implantação de barragens reservatórios e transposição de vazões
para o aumento da disponibilidade hídrica. São apresentados 24 potenciais eixos barráveis,
198
dentre eles o Eixo Guapiaçu, mas que acaba sendo preterido em detrimento de alternativas.
“Q”, conta a sua visão sobre estes processos de (des)engavetamentos das propostas de
construção da barragem-reservatório do rio Guapiaçu:
Ah, quando começou? Quando nós chegamos aqui já tinha um olho no Areal, lá em
cima, isso é antigo. Pouco tempo aqui saiu umas conversas lá no colégio do Areal.
Que ia ser lá, no cruzamento da Maria Moura, mãe da Neuza, ia ser ali. Fizeram
visita nas casas e tudo aqui. Depois deu em nada, jogaram lá pra baixo, vamo botar
2003, 2004.
Ia ser no ali entroncamento da Maria Moura, aqueles morro ali, a mãe da Neuza, era
ali que eles tavam prevendo a barragem. Só que não deu em nada também não. Aí
veio empurrando, aí foi parar lá embaixo. Descobriu que aqui tem tipo uma fraqueza
por causa do Vecchi, aquela briga deles lá, o assentamento nosso aqui (“Q”, em
entrevista a Pedro D’ Andrea em 11/09/2018).
“Q” faz menção à proposta apresentada pelo PDRH-BG e aponta uma interessante
análise quando afirma que a realocação espacial da barragem estava diretamente relacionada
ao imbróglio judicial por qual passavam, e ainda passam, os/as assentados/as de Serra
Queimada e o Vecchi. Percebe-se que a geração que é assentada em 2000, seja na Ilha
Vecchi-II ou na Serra Queimada, assim como os assentados, na década de 1970, do Vecchi e
Ilha Vecchi-I, possuem uma trajetória de constante ameaça e insegurança pela possibilidade
de implantação do reservatório.
Três anos depois da elaboração do PDRH-BG, a proposta de construção da barragem-
reservatório é novamente apresentada, desta vez no âmbito da implantação do Comperj, em
2007. No Relatório de Impacto Ambiental do Comperj, a região do Vale do Guapiaçu é
mencionada no conjunto de possibilidades mapeadas para fornecimento de água para o
próprio empreendimento. O relatório indica a necessidade de realizar estudos para que fossem
averiguadas as melhores opções, a partir de critérios técnico-econômicos e ambientais. São
mapeadas as seguintes opções: águas do rio Guandu, onde poderiam ser captadas diretamente
do curso do rio ou através do reuso de águas da estação de tratamento, localizada em
Seropédica; reservatório de Ribeirão das Lajes; rio Paraíba do Sul; reservatório de Juturnaíba;
e o reservatório do rio Guapiaçu que assim é descrito:
região estratégica para o governo do ERJ demonstra uma destas formas, mas o fato mais
relevante, e que apresenta importante gravidade, está relacionado ao argumento de que na área
inexiste ocupação humana, provocando uma estratégia de invisibilização dos homens e
mulheres do Vale do Guapiaçu na tentativa de legitimar a alternativa. Este argumento será
novamente utilizado em outros momentos, e traduz uma estratégica histórica do Estado
brasileiro na utilização do discurso do “vazio demográfico” para legitimar grandes
empreendimentos.
A proposta, então, passa a ser inserida no conjunto de condicionantes ambientais do
licenciamento do Comperj e associada ao contexto de déficit hídrico da região leste
metropolitana do ERJ, gerando uma dupla estratégia de ratificação do empreendimento. O
projeto inicial do Comperj previa a criação de 212 mil empregos, o município de Itaboraí –
onde está localizado o empreendimento – possuía em 2010 uma população de 218.008
pessoas 107. O empreendimento geraria, ainda, uma alta atratividade de setores industriais
ligados à cadeia do petróleo, o que aumentaria ainda mais a demanda pelo uso da água. Todo
este cenário é aliado a uma conjuntura de um déficit de abastecimento hídrico já existente na
região, mas mesmo assim isto não afetou a escolha da localização espacial do
empreendimento. Portanto, o projeto do reservatório passa a ser justificada pela necessidade
de se atender uma demanda já existente e que seria agravada com a reconfiguração espacial da
região. Com esta conjuntura, dois estudos são publicados entre 2010 e 2013 com vistas à
resolução do quadro de déficit hídrico da região, que passam a dar o suporte técnico-político
para validar o projeto da barragem.
O primeiro deles foi Plano Estratégico de Recursos Hídricos dos rios Guapi-Macacu e
Caceribu-Macacu (Projeto Macacu), realizado em 2010, foi coordenado pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e financiado pela Petrobras Ambiental. Trata-se de um
planejamento estratégico que aborta a gestão dos recursos hídricos das bacias referentes aos
municípios do leste metropolitano, impactadas pelo contexto de implantação do Comperj, que
apresentavam a necessidade de ampliação do sistema de abastecimento hídrico agravada pela
implantação do empreendimento. O estudo propõe a necessidade de ampliação de
infraestruturas hidráulicas para o aumento da disponibilidade hídrica para os municípios
impactados pelo Comperj, mas dá especial atenção à necessidade de ampliação da demanda
do Sistema Imunana/Laranjal, responsável por abastecer os municípios de Niterói, São
Gonçalo, Itaboraí e da Ilha de Paquetá.
107
Dados do IBGE Cidades. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/itaborai/panorama>. Acesso
em: 22 jun. 2018.
200
O Projeto Macacu, a partir das análises realizadas sobre o balanço hídrico da região
hidrográfica dos rios Macacu e Caceribu, projeta um déficit hídrico para o Sistema
Imunana/Laranjal considerando o cenário de instalação do Comperj. A implantação do
empreendimento ocasionaria o aumento do déficit hídrico na região que passaria de 2,57 m³/s,
considerando o cenário para 2010, para 4,65 m³/s até o ano de 2020, aumentaria em 80% a
demanda hídrica para a região (AGB, 2014).
Quando apresentadas as propostas de alternativas para o aumento da disponibilidade
hídrica, o projeto resgata as contidas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Comperj –
apresentadas anteriormente. De início são descartadas as opções de captação direta das águas
do rio Guandu e da implantação da barragem do Ribeirão das Lajes e do rio Paraíba do Sul,
sob a justificativa de elevados custos de operação. Também é descartada a possibilidade de
transposição das águas do Lago de Juturnaíba, já que tal operação poderia provocar o
esvaziamento do volume útil do reservatório, o que ocasionaria a piora dos parâmetros de
qualidade da água. Quando apresentada a possibilidade de reuso das águas de retrolavagem da
ETA Guandu, é exposta uma informação de extrema importância no tocante à relação entre
Comperj e barragem do rio Guapiaçu:
A que considera o reuso das águas de retrolavagem dos filtros da ETA Guandu está
sendo tratada entro o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Petrobrás, para suprir
apenas a demanda do processo industrial do Comperj (UFF, 2010, p. 46, grifos
nossos).
O Projeto Macacu afirma que as águas de reuso provenientes da ETA Guandu serão
utilizadas apenas para o processo industrial do Comperj. Fica evidente que o empreendimento
precisará de outras fontes para captar a água necessária para abastecer as atividades não
industriais do Comperj.
Restaria, então, apenas a alternativa a barragem do Guapiaçu. A UFF (2010) resgata as
opções dos eixos apresentados pela ECOLOGUS-AGRAR, em 2003, quando elaborado o
108
PDRH-BG que aponta o reservatório do rio Guapi-Açu (Eixo EA-19) , Soarinho (EA-05),
Caceribu (EA-20) e Tanguá (EA-20) como alternativas para o déficit hídrico. Além destes
eixos, o Projeto Macacu sugere uma alternativa a ser estudada também localizada no rio
Guapiaçu, denominada Guapiaçu Jusante (localização do atual projeto da barragem-
reservatório).
108
Localização espacial da barragem a qual se refere “Q”, quando a ameaça de construção do reservatório
reaparece pela primeira vez, depois de 1980, em 2003.
201
A vazão de 4,65 m³/s é o que de fato tem-se como demanda até 2020 e, tendo em
vista a vazão de projeto calculada para os cinco barramentos, percebe-se que
nenhum dos eixos planejados correspondem a uma solução definitiva para o
problema do déficit (2014, p. 23, grifo original).
É a partir desta visão pragmática e técnica que são apontadas fontes alternativas
consideradas prioritárias e complementares. A barragem do rio Guapiaçu é apresentada como
a única alternativa prioritária, enquanto o Reservatório de Juturnaíba, de Lajes e o Rio Grande
são considerados como alternativas complementares. A justificativa técnica apresentada pela
COPPETEC para legitimar a barragem do rio Guapiaçu e identificá-la como alternativa
prioritária é a mesma utilizada no Projeto Macacu:
inevitável, já que o discurso sustentado pela Secretaria é que somente uma grande
barragem no rio Guapiaçu será capaz de suprir o déficit hídrico regional, já existente
e a demanda futura (p. 209).
Sobre a condição de ocupação destes domicílios, os dados apontam que 55% das
residências da área de intervenção são cedidos aos seus moradores e nestes casos se
destacam os de familiares que moram em casas construídas por parentes ou em
terrenos de parentes. Também se encontram os empregados de propriedades, como
os caseiros (p. 52)
Ou seja, dos 322 domicílios 177 deles são ocupados por pessoas que não possuem a
propriedade da terra, portanto não estariam aptos a receber as indenizações em caso de
207
[...] constata-se que este grupo apresenta situação de extrema vulnerabilidade frente
ao impacto, na medida em que não possuem documentação da posse de suas
residências, principalmente no caso dos caseiros e trabalhadores que moram nas
propriedades. Frente ao impacto da alteração no uso do solo pela desapropriação,
não possuem garantias que serão contemplados pelos proprietários e/ou patrões no
processo de negociação e/ou realocação (p. 72).
[...] o custo social da obra, apesar de superar o custo total de implantação ainda
continua a mercê da agenda de desenvolvimento estadual, que tem priorizado os
grandes projetos em detrimento das condições de vida e trabalho da população (p.
48).
A gente já veio trabalhando nos últimos quatro anos com um período de seca muito
intensa. Então tomamos várias medidas, até com os recursos disponibilizados pelo
governo federal, e agora estamos vendo outras formas de estar aumentando a nossa
reservação, de tirar do papel a represa de Guapiaçu, que vai beneficiar Itaboraí, São
Gonçalo e Niterói” 109.
Passados nove meses, no dia 22/10/2015, o então secretário do ambiente André Corrêa
e o governador Pezão afirmam em reportagem publicada pelo Globo 110 que o projeto do
Governo do Estado estava em fase avançada, e que tanto o EIA quanto o projeto executivo
ficariam prontos até o mês de novembro. A fala do secretário do ambiente deixa claro que não
são os parâmetros técnicos que prevalecem durante a análise de viabilidade do
empreendimento, já que o mesmo se adianta ao processo de licenciamento, antes de sua
finalização, garantindo sua realização. André Corrêa constrói uma estratégia de discurso cujo
objetivo é culpabilizar os agricultores e agricultoras do Guapiaçu, colocando-os contra a
população do leste fluminense:
A decisão do governo é fazer as duas coisas. Uma coisa não exclui a outra. A grande
dificuldade nesse projeto da barragem de Guapiaçu é de natureza fundiária. A gente
não vai sair atropelando, as pessoas têm identidade com a terra. Óbvio que são 80
pessoas de um lado e 3 milhões do outro. Essa barragem é importante para 3 milhões
de pessoas (G1, 22/10/2015).
109
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/editoria/cidadania-e-inclusao/2015/01/pezao-descarta-a-realizacao-
de-obras-emergenciais-no-rj>. Acesso em: 29 maio 2018.
110
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/governo-do-rj-discute-construcao-de-
barragem-para-abastecer-niteroi.html>. Acesso em: 29 maio 2018.
210
Não é verdade, é mentira essa história de que a barragem é pro Comperj. Não é
verdade, é mentira. Eu quero dizer isso com muita clareza. A água do Comperj vem
do reuso da CEDAE, da lavagem de filtros da CEDAE. 111.
Parece que não havia muita clareza dentro do próprio governo do estado sobre o
destino que será dado às águas de uma eventual barragem. No mesmo dia em que André
Corrêa afirma que o EIA estava sendo concluído junto ao projeto executivo, o governador
Pezão afirma, ao lado de seu secretário, o seguinte:
Queremos muito que saia (a barragem). Temos recursos alocados para isso. A gente
tem que fazer essa barragem para dar segurança hídrica pro Comperj, pra Niterói,
pra São Gonçalo e para toda aquela região (G1, 22/10/2015)
111
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PnCGJeeJQ6M>. Acesso em: 29 maio 2018.
112
Entre governadores, presidentes da Alerj e secretários, se encontram presos: Sérgio Cabral, Jorge Picciani,
Paulo Melo. O atual governador Luiz Pezão foi citado em delações premiadas e teve seu mandato cassado pelo
Tribunal Regional Eleitoral, mas recorre no cargo.
211
As perdas físicas de água através das redes de distribuição caracterizam-se como mais
um dos entraves relativos à gestão dos recursos hídricos no Brasil. Estas perdas podem
ocorrer através de vários motivos que vão desde vazamentos, erros de medição, lavagem de
filtros e decantadores das estações de tratamento até o consumo clandestino. O fato é que a
presença elevada destes índices apresenta uma maior necessidade de planejamento,
manutenção e investimentos no setor. O Brasil apresenta um retrocesso no tocante a estas
perdas já que em 2012 estes índices chegavam a 36,9% de água própria para o consumo
humano desperdiçado, número que é elevado para 38,1% em 2016 (INSTITUTO TRATA
BRASIL, 2018).
O gráfico 2 traz uma análise comparativa a nível internacional relativo aos índices de
perdas físicas, e nos apresenta uma importante conjuntura regional e nacional. Entre os onze
países que apresentam perdas superiores a 30%, oito se encontram nesta região (Uruguai,
Colômbia, Costa Rica, Argentina, Honduras, Brasil, Peru e Equador). Países como México,
China e Estados Unidos, que possuem uma elevada densidade demográfica, apresentam
índices de perdas de 24,1%, 20,5% e 12,8%, respectivamente. A média destes índices quando
analisados os “países desenvolvidos” é de 15%, estando o Brasil 23 pontos percentuais acima
(INSTITUTO TRATA BRASIL, 2018). Tais dados denotam que se houveram maiores
investimentos públicos podem-se alcançar índices de perda física considerada satisfatória, o
que aumentaria a distribuição de águas diminuindo, consequentemente, o problema do stress
hídrico presente em algumas regiões do país.
212
Quando analisadas as cem maiores cidades da América Latina, os índices de perda são
alarmantes e chega a 42,18%, o que significa que quase metade da distribuição é
desperdiçada. Os índices de perdas físicas das cem maiores cidades do Brasil também chegam
a 42% do total de água distribuída. Cabe ressaltar que o ERJ é responsável pelo terceiro
melhor índice entre todas as unidades da federação, com suas perdas chegando a 31% do total
de água distribuída.
O PERHI do Estado do Rio de Janeiro aponta dados alarmantes referentes às perdas
físicas das águas nas Estações de Tratamento de Água. A Região Hidrográfica (RH) da Baía
de Ilha Grande perde 31% de suas águas potáveis, a RH do Guandu 40%, a RH do Médio
Paraíba do Sul 41%, a RH Piabanha 31%, a RH da Baía de Guanabara 34%, a RH Lagos São
João 38%, a RH Rio Dois Rios 36%, a RH Macaé e das Ostras 20%, e a RH Baixo Paraíba do
Sul e Itabapoana 38%. O gráfico 3 aponta as perdas físicas de água referentes aos sistemas
integrados.
213
O segundo elemento que deve ser problematizado é ainda mais grave e se esconde
sobre a falácia da suposta eficiência da gestão dos recursos hídricos no estado. Como dito
anteriormente, estive com o pesquisador Bernardo Santiago na 73ª Reunião Ordinária do
CERHI e chamou-nos atenção o alarmante dado proferido por uma das representantes do
INEA ao afirmar que a instituição possui apenas 20% do universo total de usuários
outorgados no Cadastro Nacional de Usuários de Recursos Hídricos (CNARH). Instituído
pela ANA a partir da Resolução Nº 317, de 26 de agosto de 2003, o CNARH torna-se registro
obrigatório para todos os usuários113 de recursos hídricos (superficiais e subterrâneos) que
captam água, lançam efluentes ou realizam demais interferências diretas em corpos hídricos
(rio ou curso d’água, reservatório, açude, barragem, poço, nascente etc.). Os dados contidos
no cadastro são auto-declaratórios e contém informações sobre vazão utilizada, local de
captação, denominação e localização do curso d’água, empreendimento do usuário, sua
atividade ou a intervenção que pretende realizar, como derivação, captação e lançamento de
efluentes.
A partir da informação obtida e confirmada no Relatório do Programa Nacional de
Consolidação do Pacto Nacional pela Gestão das Águas (Progestão) – 2016 decidimos entrar
em contato com o INEA e solicitar através da Lei de Acesso à Informação os dados referentes
ao cadastro dos usuários de águas superficiais e subterrâneas na totalidade do Estado do Rio
de Janeiro (outorgados, sujeitos à outorga e de uso insignificante), discriminados por Bacia
Hidrográfica/Microbracias/Municípios, incluindo informações sobre a vazão utilizada, local
113
Seja pessoa física e jurídica de direito privado ou pública.
215
Tabela 9 – Uso da água por setor – Registros com e sem CNARH – Região Metropolitana do
Estado do Rio de Janeiro (2006-2017)
Todos os estudos referentes aos volumes de água utilizados por setor do ERJ
consideram apenas os números com registro CNARH, o que nos dá a entender que estes são
os números reais, quando na verdade são referentes a apenas 31% do universo total de
registros mapeados pelo INEA. Enquanto isso, volumes importantes continuam a ser captados
sem ser contabilizados por estas análises. Como a planilha disponibilizada pelo INEA possui
um universo de mais de 20 mil registros, a análise aqui produzida é elaborada a partir do
recorte da região metropolitana do ERJ, já que esta é a região cujo projeto da barragem-
reservatório do Rio Guapiaçu está inserido.
Ao realizarmos o recorte para a região metropolitana do estado, o número cai para
1.850 registros, dos quais 938 possuem CNARH e 912 não possuem. Ou seja, quando
analisados os dados referentes a esta região, o total de registros consistidos é equivalente
217
114
Excluído o setor “outros”.
218
respeito apenas à água utilizada “diretamente” no processo de produção. Logo, todos os dados
são subdimensionados. Esta lógica normativa de uso “direto” e “indireto” permite que o
volume real de água capitada pelos grandes projetos de desenvolvimento não seja
dimensionado em sua totalidade.
Com o intuito de desmembrar estes dados para chegar, portanto, ao uso real da
indústria extrativa e de transformação (que são separados em setores distintos por conta da
particularidade nos usos da água bruta) foram sendo filtradas as informações na tabela e a
partir disto constatamos outra questão importante. Foram identificadas atividades industriais
espalhadas por todos os setores acima. Em um primeiro momento, o autodeclarante se destaca
enquanto qualquer componente que não seja Indústria ou Mineração, mas ao descrever as
atividades o sistema reúne as informações e os identifica enquanto Indústria ou Mineração. As
colunas que caracterizam os empreendimentos são divididas por “Seção”, “Tipologia”,
“Grupo” e “Divisão”, no caso da Mineração. Já para o setor da Indústria são dividas por
“Seção”, “Divisão”, “Grupo” e “Tipologia”. Ambos os dados são agregados através do
Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), informado pelo autodeclarante. É
justamente nestas colunas que aparecem as contradições. Isto pode significar duas hipóteses:
fraude ou erro durante o processo de preenchimento dos dados pelo declarante. Utilizando os
mesmos dados de vazão da tabela anterior, na tabela 10, identificamos o uso indireto de água
da indústria e da mineração, nos demais setores.
219
REGISTRO VAZÃO
SETOR
IND. IND. IND.
TOTAL TOTAL IND. TRANS.
EXTRATIVA TRANS. EXTRATIVA
Abastecimento
30 5 22 83.919.381,38 4.986.575,16 67.462,22
Público
Aquicultura 25 0 3 5.430.615,02 0 12.420
Tabela 11 – Uso da água por setor – Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Registros com e
sem CNARH: 2006-2017)
PARTICIPAÇÃO NO
VAZÃO ANUAL
USO POR SETOR REGISTROS TOTAL DA VAZÃO
(m³)
CONSUMIDA
Abastecimento
3 78.865.344 9,35%
Público
Aquicultura 22 5.418.195 0,64%
Criação Animal 4 5.664,80 0%
Esgotamento
0 0 0%
Sanitário
Indústria 1.368 457.385.236,73 54,24%
Irrigação 13 260.592,88 0,04%
Mineração 348 128.177.860,05 15,21%
Outro 89 173.044.614,51 20,52%
Termoelétrica 0 0 0%
TOTAL 1850 843.157.507,99 100%
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.
“Outros” tem seus registros alterados de 796 para 89, uma vazão que apresentava um total de
416,3 milhões de m³ cai para 173 milhões de m³, o que provoca uma significativa alteração na
participação no total da vazão consumida que vai de 49,38% para 20,52%.
Portanto, o setor industrial é o responsável pelo maior consumo de água na região
metropolitana (54,24%), seguido pelo setor “Outros” (20,52%) e pelo setor mineral (15,21%).
Quando aglomerados os dados do setor industrial e mineral, estes alcançam um índice de
69,45% do total da vazão consumida na região, o que é equivalente a 585,5 milhões de m³ de
água por ano. Para não seguir a metodologia utilizada pelas pesquisas do ramo, que acabam
por utilizar unidades de medida que dificultam a percepção geral sobre o real volume de água
captado, considero que devem sempre ser apresentados os valores em litros. Logo, o consumo
de água destes dois setores, na região metropolitana do ERJ, é igual a 585,5 bilhões de l/ano.
Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), o consumo médio per
capita do ERJ é de 248,31 l/hab/dia, portanto este montante é equivalente ao consumo anual
de uma população de 6,5 milhões de habitantes. A população estimada do ERJ para o ano de
2017, segundo o IBGE, é de 16,7 milhões de pessoas. Logo, a vazão total de água consumida
pelo setor industrial e mineral, considerando apenas a região metropolitana do ERJ, é
equivalente a 39,3% de toda a população do estado. Utilizando a mesma projeção do IBGE
para 2017, os municípios de Niterói, Itaboraí e São Gonçalo possuem uma população de 1,7
milhões de pessoas. . O volume total de água consumido pela indústria e pela mineração é 3,8
vezes maior do que a população destes três municípios juntos.
A proposta de construção da barragem do rio Guapiaçu defende que a água reservada
será destinada para os municípios citados anteriormente, já que o Sistema Imunana-Laranjal –
responsável pelo abastecimento desta região – tem operado no limite. Porém, não há qualquer
estudo que faça um levantamento relativo ao uso da água por setor no próprio município de
Cachoeiras de Macacu e o impacto deste cenário sobre a vazão da bacia hidrográfica Guapi-
Macacu. Neste sentido, foram analisados os dados referentes ao município de Cachoeiras de
Macacu e o resultado aponta para um controle sobre o uso da água ainda maior quando
aglutinados os dados do setor industrial e mineral. A tabela 12 apresenta estes dados.
222
Tabela 12 – Uso da água por setor – Cachoeiras de Macacu (Registros com e sem CNARH:
2006-2017)
PARTICIPAÇÃO NO TOTAL
VAZÃO ANUAL
USO POR SETOR DA VAZÃO CONSUMIDA DO
(M³)
MUNICÍPIO
Abastecimento Público 0 0,00%
Aquicultura 2.050.190,40 6,49%
Criação Animal 2.190 0,01%
Indústria 19.898.356,76 62,97%
Irrigação 192.656 0,60%
Mineração 9.249.936,52 29,27%
Outro 202.949,40 0,66%
Total Geral 31.596.279,08 100,00%
Fonte: O autor, 2019. Adaptado dos dados solicitados ao INEA via Lei Nº 12.527/2011.
identificar o registro referente à AMBEV, que possui uma de suas plantas industriais em
Cachoeiras de Macacu. Foram identificados nove registros divididos em três grupos e
declarados em três datas diferentes. A tabela 13 apresenta o mapeamento destes dados.
Os dados declarados em 2011 são referentes ao período em que esta planta industrial
era de propriedade da Brasil Kirin. Em meados de 2016, a Ambev adquiriu a planta industrial
de produção e envase de bebidas alcoólicas e não alcoólicas da Brasil Kirin. Os outros
registros são referentes a períodos posteriores a esta operação. Como os registros de 2016 e
2017 apresentam mesma latitude e longitude será considerada apenas os dados referentes ao
ano de 2017. Portanto, apenas a Ambev capta da Bacia Hidrográfica do Rio Guapiaçu 400,5
milhões de litros de água por ano. Estes dados causam estranheza, já que os três registros
apresentam exatamente os mesmos índices de vazão consumida em um período de seis anos.
Isto significaria, portanto, que não houve qualquer alteração da produtividade da AMBEV
224
neste período, e nem mesmo quando a planta industrial era de propriedade da Brasil Kirin.
Esta situação apontada em relação à AMBEV explana um quadro de extrema
importância. Em entrevista realizada a um técnico da Subsecretaria de Segurança Hídrica e
Governança das Águas do INEA, o mesmo disse que só há fiscalização para averiguação dos
dados presentes no CNARH quando há alguma denúncia. Além de não haver qualquer tipo de
fiscalização, quando um empreendimento estiver com sua outorga vencida e quiser renová-la,
desde que os dados relativos à vazão anual consumida sejam publicados anualmente, este
processo ocorre automaticamente. Ou seja, se durante o pedido de renovação de outorga o
sistema não acusar a ausência das declarações anuais do empreendimento, o mesmo não sofre
fiscalização e tem sua renovação outorgada de forma automática.
O mesmo técnico nos informou que o sistema de fiscalização, cadastramento e
controle dos dados referentes à vazão anual consumida por setor do ERJ é o mais eficiente do
Brasil. A partir de uma análise crítica deste quadro é possível, então, dimensionar a crítica
conjuntura relativa à “eficiente gestão dos recursos hídricos” do país.
É importante frisar novamente que se a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e o
Instituto Estadual do Ambiente não possuem um sistema capaz de aferir a real vazão
consumida por setor, portanto dimensionar o impacto destas atividades sobre o ciclo
hidrológico no ERJ, o governo do estado não pode afirmar que passamos por um quadro de
crise hídrica. Menos ainda apontar a barragem do rio Guapiaçu como solução para um quadro
especulativo, cujo impacto social, econômico e ambiental é extremamente elevado.
O deslocamento da justificativa da barragem do rio Guapiaçu enquanto condicionante
ambiental do Comperj não é realizado apenas sobre um discurso político. São desenvolvidas
novas estratégias políticas e de poder que visam legitimar este empreendimento e é isto que
será analisado no próximo item.
Vale destacar a semelhança existente entre esta estrutura territorial de gestão e poder, a
partir das deliberações criadas, com as justificativas e diretrizes criadas pelo Plano Estratégico
do Rio de Janeiro 2007-2010. Há uma evidente estratégia do Estado em incorporar o capital
(chamado de “empresariado”) na participação da gestão e definição de áreas estratégicas para
o desenvolvimento, reforçando, inclusive, a necessidade de serem aglutinados investimentos
de grande porte a médio e longo prazo. Da mesma forma, é destacada a “observância das
peculiaridades regionais e locais” que no Plano Estratégico do Rio de Janeiro 2007-2010 é
denominada “vocação regional”. Através deste discurso, passam a serem regionalizados os
investimentos prioritários para a criação das vantagens comparativas – o ajuste espacial
(HARVEY, 2011) – para a expansão da acumulação do capital.
Para garantir a integração de Cachoeiras de Macacu a esta unidade territorial de gestão
e poder, o município é inserido à Região Metropolitana através da Lei Complementar nº 158,
de 26 de dezembro de 2013. O texto é redigido pelo então presidente da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), Paulo Melo (PMBD). A justificativa utilizada para
legitimar a ação foi relacionada à implantação do Comperj, o que necessitaria o
desenvolvimento de ações integradas para a região facilitando, assim, o planejamento e a
execução dos serviços públicos. Ao ser integrado a RMRJ, o município de Cachoeiras de
Macacu passa a ter a necessidade de adequar seu plano diretor ao plano de desenvolvimento
urbano integrado da região metropolitana.
O Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana
do Rio de Janeiro (PDUI/RMRJ) vem sendo desenvolvido desde 2015, e o objetivo era que o
documento fosse apresentado a ALERJ em 2017, para ser aprovado na forma de Projeto de
Lei, porém seu lançamento ocorreu no dia 21 de junho de 2018. O plano foi desenvolvido
227
pelo consórcio formado pelas empresas Quanta Consultoria e Jaime Lerner Arquitetos, sob a
coordenação da Câmara Metropolitana e cujo financiamento foi aferido pelo Banco Mundial.
Esta estratégia é confirmada na publicação “Caderno Metropolitano 4 – Modelar a
Metrópole: Construindo um modelo para a metrópole”. Há uma parte do documento em que é
questionada a participação de alguns municípios na RMRJ, mas a participação de Cachoeiras
de Macacu é justificada devida sua importância no tocante ao abastecimento hídrico da porção
leste da RM:
Por outro lado, apareceram dúvidas quanto à participação dos municípios mais a
leste, como Rio Bonito e Tanguá, cujo relacionamento principal se dá com vizinhos
externos à atual RMRJ, muito embora existam vinculações com a porção leste da
RMRJ (Grande Niterói). Houve inclusive algum questionamento sobre a
participação de Cachoeiras de Macacu nesse desenho; porém, com a demonstração
da necessidade absoluta do reservatório de Guapiaçu, faz sentido manter esse
município no conjunto metropolitano, até porque essa intervenção vai provocar
novos modelos de uso e ocupação do solo, com relevância para a segurança
alimentar da região, acompanhando nesse tema outros municípios vizinhos
(CONSÓRCIO QUANTA/LERNER, 2017, p. 79).
115
Disponível em: <https://www.segurancahidricarj.com.br/gt>. Acesso em: 28 jun. 2018.
232
que até esta data haviam sido instaladas as estações no rio Anil e no rio Tatu. É apontada a
necessidade de articulações com os proprietários da terra onde seria instalada a estação do rio
Soarinho. No documento, é disponibilizado o nome e o número de duas pessoas,
provavelmente donos das terras mapeadas para instalação. O mesmo ocorria com a estação do
rio Guapimirim e a área mapeada era de propriedade do grupo SENDAS, cujo documento
apresenta o número do celular do escritório e o nome de quem deveria ser contatado. Em
relação à estação do rio Caboclo, é colocado que foi iniciada a infraestrutura da estação, mas
que o processo havia sido interrompido, pois não havia ainda a autorização do proprietário.
Isso quer dizer que o processo foi iniciado sem a devida autorização.
Na reunião seguinte, realizada no dia 22 de novembro de 2016, são atualizados os
estágios do processo de instalação. Consta que, nesta data, a estação do rio Guapimirim já
havia sido realizada. O mesmo ocorria com a estação do rio Soarinho, que neste intervalo
pôde ser instalada. Quando atualizada a situação da estação do rio Caboclo, é relatado que a
instalação parcial havia sido retirada, devido a ameaças de vandalismo dos proprietários
locais. No documento é relatada uma reunião realizada com as principais lideranças locais,
cujo objetivo era convencê-los a sobre a importância do processo, e que estas conversassem
com os agricultores e agricultoras para que fosse liberada a instalação das estações. É relatada
uma tentativa de contato com as lideranças locais para averiguação da situação referente à
autorização da instalação das estações, porém não foi obtido sucesso.
Não há qualquer relato nas reuniões seguintes do GT a respeito da instalação do
equipamento no rio Caboclo. Porém, com informações obtidas em campo, SANTIAGO
(2017) relata que quando esteve em uma reunião do SLBG-BH, no dia 23 de março de 2017,
foi informado que um membro do SPR-CM não estava presente, pois se encontrava na região
da Serra Queimada para instalar a estação. Como havia um consenso entre os agricultores e
agricultoras de não autorizar a instalação do equipamento, a notícia de que o equipamento
havia sido instalado foi recebida com surpresa, quando lá estive em maio de 2017. Após uma
averiguação em busca do local de instalação da estação foi constatado que a mesma havia sido
alocada de fato no rio Caboclo, na propriedade do herdeiro do José Tostes, ex-dono da
fazenda Serra Queimada. Está é justamente a área denominada “Chiqueirão”, que no primeiro
capítulo é relatada a exclusividade da água da Rede Chiqueirão para os porcos. Anteriormente
expliquei que no processo de compra da fazenda, via Banco da Terra, o latifundiário havia
ficado com uma área de 10 hectares na região de Serra Queimada. É justamente nesta ilha
territorial, no meio do assentamento, que o membro do SPR-CM articula com o herdeiro do
latifundiário a instalação da estação que ameaça a comunidade de Serra Queimada. Fica
233
explícito como este bloco que reúne diferentes atores utiliza seus poderes locais, associado
com articulações em outras escalas, para fundamentar seu projeto de poder e se legitimar nos
espaços institucionais de gestão da água.
SANTIAGO (2017) relata que esteve presente em conjunto com a pesquisadora
Barbara Pelacani, na reunião da plenária do SLBH-BG e que neste espaço ficou explícita a
estratégia que tange à articulação entre pequenas e grandes barragens. Apesar da barragem do
rio Guapiaçu não estar no ponto de pauta, foi realizado um questionamento de um participante
sobre o projeto que é prontamente respondido pelo representante da concessionária Águas de
Niterói e coordenador do SLBH-BG:
Hoje nós temos uma situação de aperto na estiagem, que a gente opera no limite,
fora isso a gente tem em tempo de chuva, por exemplo, boa parte do ano até uma
situação confortável, só que com essa situação que a tendência é segundo os estudos
da até câmara metropolitana de 80% do Estado morará na região metropolitana nos
próximos 20 anos, a previsão é essa, vai ter demanda, vai ter demanda reprimida, vai
ter necessidade, entendeu? Então não é que eu defenda a barragem, eu defendo a
barragem ou as duas alternativas necessárias, porque quanto mais água melhor, mas
o questionamento de Cachoeiras de Macacu é esse, assim como dos produtores, se
você já fizer a barragem de agora, de imediato, você depois perde as possibilidades
de fazer as pequenas barragens acima, pequenas é só um nome porque elas têm
menor impacto financeiro e menor impacto social porque elas têm capacidade de
armazenamento maior ou igual à barragem do Guapiaçu. Então, já o contrario não,
se a gente fizer as pequenas barragens primeiro, aí a gente vai ter condições de
construir, se necessário, a barragem maior abaixo (apud SANTIAGO, 2017, p. 69).
território, que organizados no MAB apresentam outra proposta para a resolução do déficit
hídrico regional.
2.5.3 Águas para a vida e não para a Morte: o território do Movimento dos Atingidos por
Barragens
dependa da área impactada, mesmo que este não possua o título legal de propriedade, vínculo
legal de emprego ou de formalização de ocupação e/ou atividade é atingido pelo
empreendimento (MAB, 2011).
Este debate provoca uma significativa alteração da concepção local de atingido, que
passa a perceber a existência de processos comuns que interligam a ampla gama de pessoas
que compõe a área em disputa e potencialmente alegada e afetada. A partir desta modificação,
é dado início a um amplo processo de debate em que o movimento compartilha sua história e
amplia o debate para outras escalas, cujo intuito é apontar as semelhanças entre o processo
que ocorre no Guapiaçu com outras localidades que passam/passaram por experiências
semelhantes.
A primeira estratégia, portanto, passa a ser a construção de uma mobilização popular
capaz de demonstrar força e unidade interna para realizar o confronto político necessário com
as instâncias do poder público e do capital responsáveis pela proposição do projeto. São
construídas, concomitante a este processo, alianças de poder e política que articulam outras
escalas e que trazem novos aliados à resistência. São realizadas alianças, dentro das
possibilidades e limites, com a Prefeitura Municipal de Cachoeiras de Macacu, com o
Ministério Público Federal, com a AGB, com mandatos parlamentares da ALERJ e com
mandatos de deputados federais, o que permite uma capacidade multiescalar de denúncia e
publicitação do conflito. Atos públicos na ALERJ, no INEA, na sede do BNDES, da
Petrobras e carreatas na RJ-116 fazem parte das estratégias de enfrentamento e mobilização.
A partir da elaboração do documento “Impactos Sociais da barragem do Guapiaçu”
(2015) constitui-se um dossiê produzido pelo próprio movimento a partir da participação
popular, cujo objetivo é criar um estudo que apresente uma versão dos/as atingidos/as sobre o
conflito pela barragem. De início, o documento aponta as diretrizes que regem o dossiê, ao
mesmo tempo em que são apresentadas as bandeiras de luta do movimento, reivindicando
que:
A maior contradição que tange o projeto territorial do MAB para o Vale do Guapiaçu
diz respeito justamente as Redes Comunitárias de Água existentes há 18 anos. Como
amplamente apresentado no primeiro capítulo, às redes comunitárias se traduzem enquanto
dimensão material e simbólica da episteme camponesa que tem no trato da água e da terra a
concretização destas formas de sentir-pensar-e-fazer. Mais do que isso, esta experiência se
constitui enquanto um projeto camponês do (e para o) território, cujas condições que levaram
a apropriação popular das águas estão diretamente relacionadas à ausência do Estado em
promover as condições materiais de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A
insígnia do movimento construída no 8º Encontro Nacional, “Água e Energia, com soberania,
distribuição da riqueza e controle popular”, é expressa concretamente pelos agricultores e
agricultoras a partir das formas de gestão comunitárias construídas ao longo destes anos, antes
da chegada do MAB ao território. Os/as camponeses/as obtém soberania e controle no tocante
ao abastecimento da água e distribuem esta riqueza sob o viés da água enquanto bem comum,
portanto não dotada de valor econômico. Como apresentado no primeiro capítulo, estas redes
apresentam constantes problemas técnicos que estão mais relacionados a uma incapacidade de
promover um aporte financeiro capaz de reestruturar o sistema, do que uma incapacidade
técnica dos/das comunitários/as de responderem a estas adversidades. Isto é expresso, por
exemplo, no mapeamento já elaborado pela base das necessidades estruturais que devem ser
sanadas para que sejam efetuados os melhoramentos do abastecimento comunitário da água.
Considero que quando o MAB defende que a água e a energia devam estar sobre o
controle popular, este esteja mais ligado ao controle do Estado via fiscalização e participação
popular nos/dos espaços institucionais relativos a estes temas. A gestão autônoma e
comunitária se apresenta, portanto, enquanto outro modelo de organização e controle e que de
alguma maneira se contrapõe ao projeto institucional do movimento. Nesse sentido se
expressa uma dificuldade do MAB não só em compreender este modelo de gestão, mas a
partir disto reconhecer e potencializar esta organização de base já existente, o que levaria há
239
que ocorre no território para buscar a construção de redes populares de controle e defesa das
águas. O segundo está na capacidade do movimento conseguir responder à altura a partir das
recentes re-articulações que tem sido postas para legitimar a barragem do rio Guapiaçu. A
tática do ERJ em deslocar o debate da barragem para o PDUI/RMRJ amplia a escala de
aliados do Estado, que antes estava restrita ao leste metropolitano, o que faz com que a
correlação de poder seja colocada de maneira desigual. Como vimos, o ConLeste tem sido o
espaço para articular os municípios que o compõe cujo intuito é garantir um posicionamento
em bloco da região para pleitear e conquistar seus objetivos no tocante à resolução dos
déficits hídricos locais.
241
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parto de um princípio antagônico ao que é defendido pelo capital e pelo Estado. Estes
se empenham em afirmar que a água é um “recurso finito” e dotado de valor e que através do
discurso da escassez fundamentam um aparato técnico-político-e-ideológico para criar as
condições normativas e institucionais que permitem a expansão do controle do capital via
acumulação por espoliação. Defendo a necessidade da construção do consenso da
abundância, que tem por princípio des(truir)construir a falácia empregada pelo capital e pelo
Estado da “crise hídrica”. Defender o princípio da abundância não significa negar a
materialidade que a realidade nos apresenta em alguns espaços: que de fato falta água para
homens, mulheres e crianças. Mas sim buscar a compreensão, a partir das múltiplas escalas
dos fenômenos, das condições estruturais que ocasionam estas tensões hídricas mais ligadas a
uma desordem ecológica global (PORTO-GONÇALVES, 2006), do que a inexistência de
água suficiente.
Por exemplo, devemos agradecer – e não nos desesperar - ao fato de termos ¾ do
planeta Terra coberto por água e que destas 97% sejam salgadas, pois é justamente esta
complexa estrutura ambiental que permite que 80% da água que retorna a superfície terrestre
sejam oriunda da evaporação dos mares e oceanos (GLEYCK, 1993, apud PORTO-
GONÇALVES, 2006). Se tivéssemos mais água doce disponível do que temos de água
salgada, talvez não tivéssemos conseguido desenvolver as condições metabólicas necessárias
para abitar este planeta.
O aparato técnico-político-e-ideológico tem na Conferência de Dublin o seu momento
decisivo onde é deflagrada uma estratégia articulada pelo capital em pautar tanto a concepção
jurídica e normativa sobre a água, quanto às formas de gestão que devem ser empregadas nos
Estados-nação. Cinco anos depois, no governo de Fernando Henrique Cardoso, é aprovada a
Lei das Águas (nº 9.433/99) que ecoa os princípios acordados em Dublin. Este é o momento
em que são dispostas as condições concretas e jurídicas que são irradiadas a partir da
reprodução dos espaços institucionais de gestão. Ao reproduzir a estrutura organizativa do
Estado no tocante à gestão da água, as arenas de correlação de poder são confinadas a estes
espaços e o resultado deste “jogo” está posto antes das regras serem definidas. Este processo
potencializa a expansão do capital sobre o controle das águas, a partir da organização em
blocos de poder dos setores empresariais e financeiros que possuem uma eficiente estratégia
de ação em escala. O controle exercido nestes espaços é resultado das relações políticas e de
242
poder que são articuladas desde o local a todas as escalas da federação. Como demonstrado, o
resultado concreto é o controle destas arenas pelo capital.
Menos de dez anos depois da Lei das Águas serem sancionada há um segundo fator
que incide diretamente sobre a intensificação da espoliação sobre os corpos hídricos, a terra e
a energia. As crises alimentar em 2006, energética em 2007 e financeira em 2008 provocam a
atualização da estratégia de expansão do capital que incide diretamente no aumento do
controle sobre os fluxos energéticos e materiais, portanto metabólicos. E é esta estrutura
jurídica e uma política de Estado que propicia estes movimentos do capital sobre as águas.
Com a re-afirmação da divisão internacional e territorial do trabalho o Brasil se consolida no
mercado global como fornecedor mundial de commodities. Uma política neoextrativa
necessita de grandes extensões de terras, ampla capacidade de produção energética e de
condições materiais para exercer a superexploração hídrica. O resultado? Quando analisados
os dados de uma parcela da produção do Agronegócio, da produção do setor mineral apenas
em relação ao minério de ferro, da produção do setor siderúrgico e da indústria cervejeira o
consumo de água é o equivalente a 30,3 bilhões de pessoas, o mesmo que 3,7 vezes a
população mundial e 146 vezes a população brasileira. Qual discurso técnico é capaz de
sustentar a ideia de que a espoliação deste volume de água não impacta diretamente o ciclo
hidrológico? Estas águas não retornam à superfície terrestre com a qualidade necessária para o
consumo de nenhum ser vivo deste planeta. Portanto, podemos afirmar que o problema em
relação às águas está na falta dela? Ou está diretamente relacionado ao seu uso? A questão da
falta de água não é ambiental, é uma questão de relações de poder.
É neste sentido que se explica um dos fatores que compõe a geopolítica global da
água. A retomada de uma agenda global de cercamentos de água e terras através da
construção de grandes e mega barragens está diretamente relacionada à necessidade do capital
em controlar os fluxos de vazão dos rios, já que desta forma pode comercializar e controlar a
distribuição do uso da água e da energia. Não é a toa que as 58.266 grandes represas no
planeta controlam 6.500 km³ de água, o equivalente a 15% do fluxo hidrológico dos rios.
Em um contexto de expansão da lógica de espacialização dos grandes projetos de
desenvolvimento que ocorre no Brasil e no Rio de Janeiro é necessário, portanto, reproduzir a
dinâmica de controle sobre a água que irão permitir as condições materiais para a reprodução
do necrometabolismo do capital. O projeto de implantação da barragem do rio Guapiaçu se
insere, então, nesta conjuntura. Quando a presidente do CERHI-RJ representa uma entidade
de classe (ABRAGEL) que no 8º Fórum Mundial da Água publica uma carta aberta ao
público apontando que a resolução das “crises hídricas” está na construção de grandes
243
expansão sobre o controle dos nossos corpos (70% dele é composto por água, assim como
82% do nosso sangue). E se não é o capital que o exerce, é o Estado. Ter no Estado o
controle sobre a água é permitir que sejam materializadas uma política estrutural que retira a
água de nós e transfere para o capital. A correlação de poder que ocorre no interior do Estado
não deixa de ser importante, mas não têm se mostrado suficiente para garantir a resistência
necessária para a defesa das condições materiais de reprodução da vida. Menos ainda quando
falamos sobre a lógica dos bens comuns. Defender experiências que pautam o comum é das
tarefas mais complexas, pois nem o capital e nem o Estado irão permitir que o controle dos
fluxos materiais e energéticas não sejam controladas por seus aparatos. Não estou afirmando,
porém, que todas as formas de controle popular devam ocorrer a partir de experiências como
as Redes Comunitárias do Vale do Guapiaçu, mas que o controle da água pelo Estado não
garante, necessariamente, o acesso, assim como não nos dá a garantir de que este controle irá
permanecer sobre suas estruturas. O caso recente do Programa de Parcerias de Investimento
que têm privatizado as companhias estaduais de esgotamento sanitário e abastecimento de
água são um exemplo concreto destes processos.
É fundamental que sejam desempenhados desmedidos esforços para que possamos
identificar as múltiplas experiências de controle popular sobre a água. Este é um primeiro
passo. Posteriormente é preciso entender quais são as formas de controle e gestão e,
sobretudo, quais são os principais desafios interno-externo colocados nos territórios e
intrínsecos ao desenvolvimento destas relações hidrocomunitárias. É importante que se tenha
extremo cuidado e atenção para que estas experiências não sejam apropriadas por qualquer
ator. O protagonismo está no saber e fazer destes homens e mulheres, pois são estas pessoas
que possuem o controle e o poder capaz de frear estes processos de expansão e acumulação.
Estes dois aspectos são partes de um primeiro passo. Estas experiências, quando
isoladas podem não ter o poder necessário para se contrapor a eventuais tentativas de
apropriação. Nesse sentido é de suma importância que sejam desenvolvidas estratégias em
escala capaz de promover intercâmbios territoriais que possibilitem a articulação entre estes
homens e mulheres e estas experiências. Estes movimentos podem sedimentar uma
articulação de poder em bloco e desde baixo para a partir disso constituírem uma estratégia
em escalar paralela de defesa dos bens comuns.
SANTOS, R. (2011) traz a dimensão que orienta esta estratégia. O autor vai além de
VAINER (2002) quanto este afirma que o poder está na capacidade de articular escalas. Não.
Assim como SANTOS, R. (idem) entendo que,
246
[...] articular escalas, se articular em escalas, reconstruir escalas não pode, portanto,
ser um exercício estratégico do fazer da política que se restrinja a assumir como
legítimas as escalas existentes e já dadas: elas são resultado e instrumento de
territorializações dos grupos dominantes, territorializações que precisam ser
desconstruídas também pelo jogo escalar, Mais do que articular (as e nas) escalas,
torna-se crucial construir escalas, construir territorialidades – desterritorializar e
reterritorializar poder (2011, p. 130).
A partir desta concepção defendo que não podemos disputar os espaços institucionais
de gestão da água, pois assim estaríamos legitimando estes espaços e nos rendendo (como
afirma o subcomandante Marcos). As regras do jogo nestes espaços já estão constituídas. As
escalas que devemos criar estão materializadas nas diversas experiências camponesas,
indígenas, quilombolas, ribeirinhas etc. O Protocolo Munduruku, por exemplo, apresenta uma
experiência de extrema potencialidade, pois a partir do momento em que é criado um
instrumento normativo territorial indígena o Estado se vê obrigado a parar e re-ver suas
estratégias de territorialização das UHE do rio Tapajós. Se pudermos identificar as diversas
experiências de controle popular sobre a água e como estas se organizam é possível realizar
um debate sobre a necessidade da construção de um estatuto/protocolo que represente os
saberes-e-fazeres, seus princípios, seus poderes e suas sensibilidades jurídicas.
Os territórios que apresentam experiências autônomas, comunitárias, rebeldes – como
as Redes Comunitárias de Água do Guapiaçu - e que pautam sua relação com a natureza a
partir dos bens comuns, enquanto existirem continuará a provocar derrotas ao capital. Mas
para o tamanho da potência que têm, não podem simplesmente existir. Precisam estar
articuladas nas escalas de baixo, trocar experiências e enfrentar coletivamente estes
fenômenos. Suas resistências provocam paulatinas derrotas cotidianas ao capital pelo simples
fato de existirem. Enquanto todas elas não tiverem sido exterminadas, nós ganhamos. E o
sistema mundo moderno-colonial, na tentativa de criação de um Mundo Mundial (BLASER e
ESCOBAR, 2014), nos fez crer que estas experiências já haviam sido exterminadas, mas estes
outros (e muitos) mundos re-existem.
247
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