Você está na página 1de 225

MARIA LUÍSA PERES COUTO SOARES

O QUE É O CONHECIMENTO?

QUESTÕES DE EPISTEMOLOGIA

LISBOA
2

2004
3
4

INDICE

INTRODUÇÃO

1. A noção clássica de episteme


1.1. Aporias da definição de Ciência
1.1.1. Teeteto e a definição de Episteme
1.2. A "epistemologia naturalista" de Aristóteles.
1.2.1 II Analíticos: os princípios da demonstração

2. Justificação: Fundacionalismo versus Coerentismo


2.1. Os argumentos: um falso dilema
2.2. Proposições protocolares: sua discussão no Círculo de Viena
2.3. Wittgenstein: proposições elementares
2.4. Notas sobre verificação e justificação

3. Percepção: Aparência e Realidade


3.2. Aisthesis
3.3. Problemas da representação
3.2.1. Duas Imagens do Mundo: Senso Comum e Ciência
3.2.2. Percepção - Convicção de existência.
3.3. Falácia dos sense data
3.4. Intencionalidade da percepção
5

4. Consciência de si, auto-consciência.


4.1. Brentano: percepção interna e evidência
4.2. Percepçãp adequada/percepção inadequada: o ponto de vista
husserliano
4.3. Wittgenstein e o argumento da Linguagem Privada: objecção a
Brentano?
4.4. A estrutura da consciência e a intersubjectividade da percepção interna

5. Objectividade/Objectualidades
5.1. O "real" e o "objectivo" em Frege
I.2. Epistemologia sem sujeito
I.3. Objectividade e Falibilismo
I.4. O Pensamento: lugar das formas

6. Crença, Justificação, Verdade


6.1. Gramática da crença
6.1.1. A semântica dos enunciados de crença
6.2. Crença e Racionalidade
6.3. Justificação e Verdade

Apêndice: Teorias da Verdade

Bibliografia
6

INTRODUÇÃO

"Erkenntnistheorie ist die Philosophie der Psychologie"


Tractatus 4.1121

A Epistemologia constitui um campo da Filosofia dificilmente delimitável


devido às inúmeras fronteiras ténues e apenas esboçadas com muitas outras áreas,
elas próprias vastas e de carácter eminentemente interdisciplinar - como a
Filosofia do Conhecimento, a Filosofia das Ciências, a História das Ciências, a
Metodologia das Ciências, e actualmente também com a Fenomenologia, a
Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica, a Filosofia da Mente, a Filosofia da
Psicologia. Elaborar um curso de Epistemologia exige, por isso, optar por um
ponto de partida e traçar um itinerário preciso, o que significa necessariamente
estabelecer contornos bem nítidos e renunciar a outras vias possíveis, que se
apresentam no vasto horizonte epistemológico e filosófico. Estas outras vias
possíveis não podem deixar de surgir, no entanto, na paisagem do itinerário
traçado e entrecruzam-se constantemente com o fio condutor pelo qual se optou.
Inevitavelmente, ao formular e tratar um problema encontram-se outros problemas
e questões com afinidades incontestáveis, e não é fácil deslindar o nó da questão
7

inicial e suas implicações múltiplas e transversais. Mas, uma vez traçado o


itinerário, é inevitável a delimitação e, consequentemente, deixar de lado muitas
outras questões que se apresentam como questões igualmente possíveis.
Centrar-nos-emos no problema filosófico do conhecimento, visando uma
elucidação das questões nucleares sobre a sua natureza e condições de
possibilidade. O objectivo principal será o de justificar o conhecimento, dar conta
dos fundamentos que o alicerçam e mostrar a viabilidade do acesso cognitivo ao
mundo real. Conhecer pressupõe, com efeito uma relação intencional que informa
toda a experiência e lhe dá um carácter de abertura e de revelação.
Toda a reflexão epistemológica que pretenda um esclarecimento sobre
problemas relacionados com o estatuto das várias ciências, as suas metodologias,
os âmbitos e limites dos vários saberes, a sua objectividade, universalidade e
validade, requer uma investigação prévia sobre o próprio conhecimento: um
conhecimento do conhecimento e uma defesa do seu próprio estatuto e da sua
fiabilidade. Esta tarefa consiste numa crítica, que deverá assumir uma certa atitude
transcendental, orientada para a reconstrução – e não descontrução – do processo
cognitivo desde os seus fundamentos.
Não basta, no entanto, para delimitar o campo do programa epistemológico,
considerar a questão enunciada. O problema do conhecimento pode ser
considerado um dos temas centrais da Filosofia. Qual a perspectiva peculiar,
própria da investigação epistemológica? Centremos a atenção na noção de
episteme, da qual deriva o termo Epistemologia. Tradicionalmente episteme tem
sido traduzida por 'conhecimento'. No entanto, rapidamente se comprova como as
discussões filosóficas em torno da episteme - reportando-nos à tradição clássica da
filosofia platónica e aristotélica - se revelam peculiares e não coincidentes com a
tradução do termo grego simplesmente por 'conhecimento'. Na tradição platónica,
a discussão sistemática em torno de episteme no Teeteto, uma vez estabelecido que
esta não é percepção nem simplesmente opinião verdadeira, põe o problema de
saber o que é necessário acrescentar à opinião verdadeira para que esta constitua
8

episteme. E esta é a questão mais comum a partir da qual partem muitas das
actuais exposições básicas da Epistemologia: poderia definir-se, neste sentido
como o estudo da justificação da crença ou opinião. "Quais as crenças que são
justificadas ou fundamentadas e quais não o são?", "Qual a diferença entre
conhecer verdadeiramente, e ter uma mera crença ou opinião verdadeira?" "Qual a
relação entre crer e conhecer?", "Porque é que pensamos ou cremos que p ?"
seriam perguntas centrais da epistemologia.
A definição proposta - o estudo da justificação ou fundamentação da crença
- parece, no entanto demasiado restritiva, pois qualquer outro estado cognitivo que
não o da crença verdadeira justificada, ficaria fora das suas fronteiras: a dúvida,
conjectura, probabilidade, interrogação constituem estados cognitivos de
indubitável interesse para a epistemologia. Não há dúvida que o problema da
justificação ou fundamentação da mera crença verdadeira é fulcral na
epistemologia, mas não é o único. O conhecimento é tradicionalmente, desde
Platão, caracterizado como crença justificada, mas é o próprio processo cognitivo
que carece, ele próprio, de uma justificação, que pressupõe a elucidação da
questão originária sobre o que é conhecer.

Deverá notar-se que, pela própria natureza da questão central que se


propõe tratar, é imprescindível o retorno ao exame de algumas tradições que
marcam a história do pensamento. De algum modo é certo que a história da
epistemologia é coextensiva à história da própria filosofia. A busca de um
progressivo crescimento e da compreensão do próprio conhecimento constitui um
objectivo constante de qualquer filósofo, o que requer uma capacidade de
distinguir as crenças verdadeiras das falsas. Isso exige a formulação de um critério
para averiguar dos fundamentos que, de facto, constituem uma justificação dessas
crenças. A busca da verdade assenta na busca da justificação. E esta preocupação
está presente na reflexão epistemológica desde o pensamento clássico até aos
9

nossos dias. Embora o problema da justificação da crença não constitua o tema


exclusivo da antiga epistemologia, está de algum modo presente em todos os
autores clássicos que examinam o problema do conhecimento.
A tradição filosófica - designadamente Platão e Aristóteles – constitui um
referencial presente no desenvolvimento de alguns dos tópicos. Isto não significa
que se adopte uma perspectiva historicista, ou se pretenda apresentar uma história
da epistemologia. Pelo contrário, adoptar-se-á um ponto de vista anti-historicista.
A referência a autores e textos do passado é sempre motivada pela consciência da
actualidade e mesmo perenidade de problemas e questões que desde a Antiguidade
até aos nossos dias não podem deixar de comparecer no horizonte filosófico. O
que se procura é pensar com esses autores encontrando sintonias e afinidades com
as suas questões, procurando compreender até que ponto um pensador de tempos
passados pervive ainda nas interrogações constantes da filosofia. A reflexão sobre
o pensamento dos seus predecessores constitui sempre para o filósofo um
poderoso meio para encontrar luminosas alternativas para os problemas dos quais
se ocupa, e o seu próprio horizonte só ganhará em amplitude e profundidade com
essa reflexão. A atitude a adoptar será precisamente a de abrir um amplo diálogo,
no qual comparece o passado como presente, e o presente se assume como
reiteração de um discurso já encetado há muito, mas sempre vivo e em acção. Se
lidamos assim com as tradições, é porque o que nos interessa são "histórias que
nos impulsionem a ir para além das histórias", empregando palavras de MacIntyre.
Esta atitude em relação às diferentes tradições filosóficas pressupõe a
rejeição de uma concepção discontínua do discurso racional, baseada sobretudo na
noção de paradigma de Kuhn: reconhece-se uma certa incomensurabilidade entre
diversos sistemas conceptuais, cosmovisões, pontos de vista, mas essa
incomensurabilidade não significa intraducibilidade. Traducibilidade e
compatibilidade não são o mesmo que comensurabilidade.
Por outro lado, a adopção de um ponto de vista não significa de modo
algum um ponto de vista absoluto e englobante; trata-se de abrir um caminho a
10

seguir, de estabelecer um percurso mantendo sempre no horizonte outros pontos


de vista possíveis, outras perspectivas que não se excluem necessariamente, mas
que perpassam transversalmente num entrosamento inevitável.

A interferência das discussões epistemológicas com alguns dos contributos


do exame a partir de outras áreas com afinidades nítidas com a Epistemologia - a
Fenomenologia, a Filosofia da Psicologia, a Filosofia Analítica e a Filosofia da
Mente - como é o caso, por exemplo, da análise das noções de percepção, crença,
juízo e proposição, verdade, certeza e evidência, etc. - será inevitável. Considera-
se que essas interferências, ou melhor o tratamento destas noções numa
perspectiva transversal, constituirá um enriquecimento na elucidação filosófica
dessas mesmas noções. Por isso mesmo, a referência a alguns autores que não
podem ser considerados propriamente como epistemólogos - como por exemplo
Brentano, Frege, Husserl, Wittgenstein, entre outros - ocorrerá com alguma
frequência, com o intuito de ampliar a elucidação de questões intimamente
relacionadas com a problemática do conhecimento e que não se podem restringir a
uma delimitação rígida do campo da Epistemologia. O estudo da percepção e do
juízo, da verdade e da evidência será objecto de uma reflexão aprofundada que
ultrapassa as fronteiras de uma definição e demarcação demasiado estrita da
Epistemologia.

É inevitável dizer uma palavra sobre a atitude céptica. Quando se trata do


conhecimento é inevitável que nos rondem dúvidas, diferentes tipos de dúvidas:
podemos confiar no que nos apresentam os nossos sentidos? Os dados da
percepção serão fiáveis? O que nos aparece, o que se nos apresenta será
verdadeiramente uma realidade independente do nosso modo de percepcionar, de
11

conhecer? Não será tudo um sonho? Uma ilusão? E, no limite, não estaremos a ser
constantemente enganados por um «génio maligno»?
Perante as variadas atitudes de cepticismo, é possível adoptar diferentes
posições:
a) enredar-se em tentativas de argumentos contra os argumentos
cépticos, uma discussão directa na qual se admite, até certo ponto, as próprias
dúvidas que se tentam ultrapassar;
b) contornar esses argumentos, evitando um confronto directo e
colocar-se à partida numa atitude realista, de um realismo duro no qual se toma
como inquestionável a aceitação de uma realidade objectiva, independente do
nosso próprio ponto de vista; mesmo reconhecendo o grande abismo entre os
fundamentos das nossas crenças sobre o mundo e os conteúdos dessas mesmas
crenças, a falibilidade do que se nos apresenta, em contraste com a consistência
ontológica do real, tenta-se o salto sobre o abismo sem o anular. Exemplos desta
atitude são por exemplo as “teoria heróicas” (empregando uma expressão de
Thomas Nagel) como a teoria das Formas de Platão, a defesa cartesiana da
fiabilidade do conhecimento humano em geral assente numa prova a priori da
existência de um Deus à prova de toda a confiança. E em tempos mais recentes,
com nítidas tonalidades platónicas, as propostas de um mundo objectivo, real,
constituído por entidades ontologicamente consistentes, não submetidas à
precaridade do nosso conhecimento sensível, como é o caso do «terceiro mundo»
de Frege, um mundo de objectualidades independente do nosso modo de as
apreender;
c) desconstuir a dúvida céptica apontando-lhe a sua falta de
fundamento – quem duvida, sabe já alguma coisa, e tendo em conta o senso
comum, fará sentido a formulação de dúvidas radicais que ponham em causa
qualquer forma de conhecimento, ou de possibilidade de acesso ao mundo externo
e a uma realidade objectiva? Ao céptico caberá a tarefa de fundamentar a sua
dúvida, caso contrário ela será rejeitada como sem sentido nem fundamento. Neste
12

caso, há uma rejeição do abismo entre realidade e aparência, e uma afirmação


explícita de nos encontrarmos já do outro lado. Esta seria a atitude de Moore e,
apesar de algumas divergências, da de Wittgenstein ("O cepticismo não é
irrefutável mas obviamente falho de sentido por pretender pôr em dúvida o que
não pode ser perguntado. E isto porque só pode haver dúvida onde pode haver uma
pergunta, e uma pergunta só onde pode haver uma resposta, e esta só onde algo
pode ser dito" (Tractatus 6.51);
d) adoptar uma outra concepção do real, não como algo totalmente
alheio ao nosso ponto de vista, transcendente ao próprio modo de percepcionar e
conhecer, mas um real que abarca também todos os nossos processos
cognoscitivos, o próprio sujeito e suas condições de acesso ao mundo. Isto
significa situar-se a montante do dilema aparência-realidade, subjectividade-
objectividade, mundo-tal-como-se-nos-apresenta e mundo-em-si, ou em termos
mais radicais entre ser e conhecer. Um mundo em si, independente do nosso modo
de conhecer, alheio às condições de cognoscibilidade seria de facto impensável,
não por transcender em absoluto o que se nos apresenta, mas porque esse mundo
não nos incluiria e, como tal, seria uma realidade incompleta, truncada. O que se
pretende afirmar é a conaturalidade entre realidade e conhecimento, numa posição
que se poderia denominar de realismo transcendental.

Não se pode evitar que uma certa dose de cepticismo ronde sempre todo o
empreendimento, pelo menos como uma via de reconhecimento da nossa própria
situação; a dúvida, a incerteza e a falibilidade não constituirão, no entanto,
impedimentos para persistir na busca de conhecimento, pois o nosso impulso para
o real torna impossível que nos satisfaça uma perspectiva meramente subjectiva e
minada à partida pela distância e inacessibilidade do objecto a conhecer.
13

O primeiro tópico será o da noção clássica de episteme na filosofia grega -


Platão e Aristóteles -, não com o intuito historiográfico de procurar as origens
remotas das questões epistemológicas fundamentais, mas porque a temática
desenvolvida nos textos platónicos e aristotélicos seleccionados abre um panorama
e proporciona um horizonte de problemas e questões que se prolongam no decurso
do pensamento sobre o conhecimento e se encontram ainda hoje no cerne de
muitas discussões epistemológicas. A questão do fundamento do conhecimento
pode ser entendida de distintos modos - num sentido mais ontológico e num
sentido genético. Neste caso, a leitura e a reflexão sobre os textos de Platão e
Aristóteles, proporcionam uma via na qual as duas orientações na busca do
fundamento estarão presentes: procurar-se-á elucidar o fundamento no sentido da
razão de ser, do que em última análise significa e constitui o conhecer, e
simultaneamente indagar dos princípios, das origens, dos alicerces nos quais
assenta o edifício do nosso conhecimento.
Estarão, portanto em causa dois problemas centrais: o do fundamento e o da
justificação do conhecimento. Dois problemas que se entrecruzam e darão lugar ao
exame de um dos temas actualmente mais debatidos em epistemologia, o do
fundacionalismo versus coerentismo. Sendo uma questão recorrente, ela estará
presente, sob a forma de várias interrogações: haverá crenças básicas, princípios
primeiros, evidências genuínas, intuições imediatas? Poderá considerar-se o
edifício do conhecimento solidamente assente numa base irrevisível, não sujeita a
verificação nem carente de ulterior justificação? Ou não há qualquer fundamento
último, e a imagem do nosso conhecimento corresponderá mais a algo que se vai
construindo e desconstrindo, em constante evolução, revendo-se continuamente,
reajustando-se a novas aquisições?
14

Formulando bem a questão, notar-se-á que estas duas "imagens" não são
necessariamente antagónicas, nem constituem dois modelos epistemológicos em
disjunção irreconciliável, mas é possível integrar ambas numa perspectiva
panorámica que abarque tanto o problema da verdade como o do sentido, o
problema da correspondência ou adequação do nosso conhecimento com a
realidade, como o da coerência interna das nossas crenças, opiniões e juízos.
É precisamente o problema do fundamento, no sentido de origem do
conhecimento, que fará a passagem ao tema seguinte, o da análise da percepção.
Não se pretende apresentar exaustivamente as teorias da percepção, mas rever o
problema da representação, o seu "espectro" e repercussões na temática
epistemológica. No cerne de todo este tópico, estará a questão da evidência
perceptiva, da fiabilidade do nosso percepcionar, da viabilidade de aceder, pelos
vários processos perceptivos, ao mundo real tal como é. Correlativa da experiência
do mundo, a experiência de si, a auto-consciência apresenta-se como uma forma
de consciência reflexiva, não tética, imediata e evidente. A sua força e imediatez
leva a pensar no cogito como um fundamento inquestionável de todo o
conhecimento e experiência. Mas pode também traçar uma fronteira intransponível
entre eu e mundo, e constituir assim um obstáculo para a constituição da
objectividade do conhecimento. Com uma breve revisão dos problemas centrais
em torno da consciência de si, procurar-se-á reconstituir a dimensão dual de toda a
consciência, que remete simultanea e indissoluvelmente, quer para o mundo
externo, objectivo, quer para o próprio eu e o conhecimento em primeira pessoa.
Este último, tendo em conta as duas perspectivas da consciência - intencional e
reflexiva, autónoma e heterónoma - não se instituirá como um óbice à
possibilidade de acesso ao mundo, à objectividade.
Se essa viabilidade for estabelecida, fará então sentido perguntar-nos pela
objectividade do conhecimento, em geral, ou seja pela possibilidade de deter
intencionalmente algo que não é constitutivamente o próprio sujeito cognoscente,
algo que não lhe pertence, que o transcende, mas de que se pode apoderar de uma
15

forma activa - construindo e reconstruindo essa mesma objectividade - embora não


totalmente constitutiva. Procurar-se-á desmontar o dilema
subjectividade/objectividade, em torno do qual se formulam habitualmente, na
esteira de toda a herança cartesiana, os problemas epistemológicos: mostrando os
impasses de uma perspectiva centrada no sujeito e suas consequências últimas - o
psicologismo, o relativismo subjectivista e em última análise o cepticismo - e
simultaneamente as dificuldades de um objectivismo extremo, que põe em causa
qualquer explicação epistémica do processo cognitivo. A epistemologia
popperiana adopta uma posição crítica perante as «filosofias da crença», centrando
a sua atenção mais nos «objectos das crenças» do que no exame dos actos de
crença.
Voltando à definição tradicional de ciência, centrar-nos-emos sobre a
crença: em que consiste? Em que se distingue crença de saber, ou conhecimento
fundado? A crença requer justificação? O conjunto dinâmico e evolutivo das
nossas crenças orientam-se para a verdade, ou para uma auto-correcção (selecção
natural?) regulada por algum princípio, algum critério? Qual a relação da crença
com a justificação e com a verdade?
O tratamento exaustivo do problema da verdade excederia o âmbito estrito
da Epistemologia, e exigiria um exame aprofundado das actuais teorias da verdade
e uma apreciação do alcance ou limitações dessas mesmas teorias.
É incontornável, no entanto, a sua abordagem em qualquer reflexão
filosófica sobre o conhecimento: não há dúvida que a questão da verdade está no
horizonte de toda a problemática epistemológica e ignorar ou postergar o
problema, remetendo-o pura e simplesmente para outros campos da Filosofia,
significaria decepar a reflexão sobre o conhecimento de uma dimensão
constitutivamente presente em qualquer processo cognitivo. Toda a investigação
científica tem um alvo, uma meta, pelo menos uma ideia reguladora que a orienta
no sentido de alcançar a verdade. Mesmo numa concepção evolucionária ou
discontinuista dos processos de constituição das ciências, ou numa perspectiva
16

falibilista do conhecimento, está pressuposta uma certa pretensão de verdade, de


sentido, um ideal de consenso ou uma referência a uma comunidade de
investigação que de algum modo regula a aceitação ou rejeição das crenças,
hipóteses e teorias.
Apresenta-se em Apêndice uma exposição breve e esquemática das teorias
da verdade, como complemento informativo para uma possível ampliação futura
deste tema recorrente noutros âmbitos ou noutras áreas da Filosofia. O intuito
deste texto suplementar não é senão o de abrir caminho para um exame mais a
fundo deste problema, assinalando possíveis prolongamentos da reflexão filosófica
sobre o conhecimento.



Antes de terminar esta introdução, parece-nos que será útil fazer umas
breves observações sobre a situação actual da Epistemologia. Não se pretenderá de
modo algum fazer a sua história, mas apontar apenas os principais factores que
fizeram convergir os interesses e as atenções sobre alguns tópicos mais recorrentes
na literatura epistemológica contemporânea.

Embora actualmente possa ser já um truísmo falar da crise do modelo da


racionalidade dominante até aos fins do século XIX, não há dúvida que é preciso
ter em conta, para compreender algumas das atitudes epistémicas actuais, a crítica
generalizada, embora com diferentes matizes, que foi surgindo em variados
autores, no campo da filosofia, ao naturalismo, ao cientificismo, ao positivismo e
neo-positivismo. Alguns desses pensadores marcaram fortemente, de uma forma
ou de outra, o horizonte filosófico da passagem do século XIX para o século XX.
Pense-se por exemplo em pensadores tão diferentes como Husserl, Whitehead,
Weber, Wittgenstein, entre outros. No que se refere especificamente à
17

Epistemologia, as ideias recorrentes apontam para a consciência dos limites da


racionalidade científica segundo o modelo dominante até aos fins do século XIX.

As notas características deste "paradigma" em crise, referidas aqui de um


modo genérico, são bem conhecidas:
a) Uma visão da natureza de inspiração cartesiana e galilaica, reduzida a
extensão e movimento, natureza passiva, à disposição do homem, seu
espectador para ser observada, conhecida, dominada. O mundo surge
como imagem, imagem geometricamente centrada, perspectivada em
relação ao seu espectador, o homem somo subjectum. Weber dedica
páginas inesquecíveis à caracterização desta racionalidade dominante e
calculadora no seu Wissenschaft als Beruf.
b) Uma confiança epistemológica apoiada na regularidade objectiva das
leis da natureza, na sua tradução em linguagem matemática, no carácter
"conservador" da própria natureza traduzido claramente nas leis físicas -
conservação da massa, conservação do movimento, conservação da
energia.
c) A estreita relação entre ciência e poder - "a senda que conduz o homem
ao poder e a que o conduz à ciência estão muito próximas, sendo quase
a mesma" (Bacon, Novum Organon), que, no entanto afirma também
que "só podemos vencer a natureza obedecendo-lhe". Mais próximo de
nós, no citado texto de Weber afirma-se: "Tudo pode ser dominado com
o cálculo e a precisão".
d) Uma certa atracção racional pelos dualismos e bifurcações que condiciona um modo de
pensar disjuntivo, em pares de termos irreconciliáveis: natureza/cultura, natural/artificial,
vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo…
Whitehead no The Concept of Nature critica e rejeita este modo dualista e disjuntivo de
pensar que se traduz no que ele designa por "teorias da bifurcação da natureza". Na
Epistemologia Contemporânea são frequentes estes pares de conceitos dilemáticos,
18

como por exemplo fundacionalismo/coerentismo, externalismo/internalismo, a


perspectiva da 1ª pessoa/ e a da 3ª pessoa, etc.
e) Primazia do visual sobre o oral, da qual se encontra um exemplo
emblemático em Leonardo da Vinci e a dignificação da vista sobre
qualquer outro dos sentidos porque só ela capta com exactidão os
objectos. Na querela sobre a hierarquia entre pintura e poesia, Leonardo
afirma sempre a superioridade da primeira, porque só a pintura é
ciência. Primazia do quantitativo sobre o qualitativo: Galileu e a radical
separação entre as realidades objectivas, susceptíveis de serem
conhecidas com exactidão como o número, a figura, a grandeza, o
movimento, e o que só pode ser apreendido subjectivamente - sons,
cores, sabores, etc. A distinção entre qualidades primárias e secundárias
atravessa como uma constante toda a filosofia do conhecimento
moderna e prevalece, de certo modo em muitas das actuais teorias da
percepção.
f) As leis científicas,enquanto categorias de inteligibilidade privilegiam a
descrição exacta de como funcionam as coisas, distanciando-se do
sentido comum que se interroga naturalmente sobre o agente e o porquê
das coisas. Baseado na formulação de leis, o conhecimento científico
pressupõe a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, da repetição do
passado no futuro. O determinismo mecanicista confere a esta visão do
mundo a confiança de um conhecimento certo e previsor que, mais do
que compreender em profundidade a natureza das coisas, permite a
possibilidade de as dominar e tranformar.

Poderíamos continuar a caracterização do "paradigma dominante" na


racionalidade científica dos fins do século XIX, princípios do XX, mas este
apontamento esquemático é suficiente para estabelecer o contraste com o que,
19

continuando com a terminologia de Kuhn, poderíamos chamar "paradigma


emergente".
Vários factores contribuiram para esta "transformação" do modelo da
racionalidade. Alguns factores internos às próprias ciências exactas: a crise dos
fundamentos das matemáticas, o teorema de Gödel, a nova imagem da natureza
procedente dos progressos da Física, o princípio do indeterminismo, e o golpe
dado no par, até então inquestionável, de observador/observado, não são decerto
alheios às novas atitudes epistémicas que se foram assumindo; outros factores
originados pelo desenvolvimento das ciências sociais e humanas, que à partida
adoptaram o mesmo naturalismo positivista das ciências em geral, mas que
depressa questionaram esta mesma imposição de metodologias e modos de pensar,
por não satisfazerem a peculiaridade dos seus estatutos; as discussões em torno do
binómio explicação/compreensão1; entre os epistemólogos propriamente ditos, não
se pode deixar de referir alguns dos que deram um forte golpe no modelo
dominante de racionalidade científica: Kuhn, Polanyi, Feyerabend.
A obra de Kuhn de 1962, The Structure of Scientific Revolutions dá origem
a uma "revolução" na epistemologia tradicional, com o acento na discontinuidade
da história da razão científica, e sobretudo a integração no processo do
desenvolvimento científico de factores não estritamente racionais e da ordem
cognitiva, mas também sociais, políticos, circunstanciais, que constituem o
contexto dentro do qual se pode compreender um determinado discurso científico.
O pensamento de Kuhn não dá resposta a muitas das questões propriamente
epistemológicas, como por exemplo: o que faz mover o "processo" da ciência num
sentido de progresso cognitivo, se são apenas factores extrínsecos os que
provocam mudanças de "paradigmas" e de teorias? O que leva a ciência a
desenvolver-se no sentido da criação de técnicas de solução de problemas sempre
mais poderosos, e por que razão parece este desenvolvimento ser irreversível? O
1
Cfr por exemplo Wright, G. H. von - Explanation and Understanding; Anscombe, E. -
Intention .Para uma perspectiva panorâmica sobre o problema explicação/compreensão, cfr Apel,
K. O. - Die Erklaren-Verstehen Kontroverse im transzendental pragmatischer Sicht.
20

que justifica a capacidade de a ciência se impôr transculturalmente unindo culturas


diversas? Por que é que haverá uma resistência a uma reconstrução do mundo
totalmente arbitrária por parte dos indivíduos ou dos grupos que a constituem, por
que não há-de ser essa reconstrução infinitamente "plástica"?2
A discontinuidade da "história da razão", tem como corolário a questão da
incomensurabilidade e intradutibilidade dos discursos, que constitui actualmente
quase um slogan que contagiou não só as ciências humanas e sociais, como a ética
e a estética, e passou a constituir um verdadeiro impasse cultivado e explorado até
à saciedade em muitos dos escritos actuais sobre epistemologia.
Noutro registo totalmente diferente, Polanyi, no seu Personal Knowledge
(1958) advoga uma concepção de conhecimento que rejeita o carácter impessoal,
objectivo, universalmente estabelecido. Considera o acto de conhecimento como
uma forma de compreensão activa, actividade que requer uma certa habilidade,
capacidade participativa do sujeito cognoscente em todos oo processos cognitivos.
Propõe-se substituir o ideal impessoal de um conhecimento científico totalmente
desprendido do sujeito, por uma alternativa que centra a sua atenção no
envolvimento pessoal daquele que conhece em todos os processos de
compreensão: a ciência, neste enquadramento, é reconduzida ao mundo da cultura
integral, e ao empenho pessoal para encontrar o sentido de toda a experiência
humana. E desafia a concepção dominante da ciência, assente na disjunção de
subjectividade e objectividade, e guiada pelos ideais de objectividade,
simplicidade, economia, considerados factores indispensáveis para a excelência de
qualquer teoria. Estes ideais, segundo Polanyi, deixam na sombra o papel
fundamental das capacidades intelectuais humanas e a dinâmica vital da sua
participação em todo o acto de conhecer. Na sua concepção de conhecimento, há
um retorno ao sujeito na sua força vital e impulso para a compreensão do mundo e
da experiência. O modelo de racionalidade objectiva e impessoal é posto em
causa, em nome do que Polanyi considera um modelo de conhecimento e
2
Cfr Gil, F. - Provas, pp. 58-62.
21

compreensão que envolve a pessoa no seu todo. O risco que corre a crítica à
"objectividade", é a excessiva "subjectivização" da ciência nos seus processos de
descoberta, justificação e prova.
Com os seus títulos provocatórios - Contra o Método, Adeus à Razão -
Feyerabend é o enfant terrible da epistemologia, objectando vivamente contra
tentativas vâs de construir uma teoria do conhecimento ou uma teoria da ciência.
Não há uma estrutura comum aos factos, operações e resultados que constituem as
ciências, não há modelos gerais que expliquem a dinâmica das ciências, não há
uma lógica da descoberta e da justificação; os procedimentos são tão variáveis, tão
contingentemente afectados pelas circunstâncias históricas, sociais, políticas, que o
anarquismo epistemológico impõe-se como único princípio não inibidor do
progresso. O célebre slogan "qualquer coisa serve" (anything goes) destrói toda a
pretensão das velhas ideias de objectividade da Ciência, da Razão, da
universalidade dos saberes. E dissuade qualquer intuito de formular uma teoria da
ciência, de reconstruir uma nova epistemologia.

Considerando em conjunto todos estes factores da evolução dos


conhecimentos científicos, da concepção da própria ciência, da compreensão e
reflexão filosófica sobre os problemas da génese processos e formas de
conhecimento, a Epistemologia tem assumido programas e itinerários muito
diferentes, que poderemos esquematizar em três grandes vias de orientação:

1. Uma Epistemologia interna às próprias ciências, feita pelos homens das


ciências - exactas, experimentais, sociais, etc. Cada um destes campos de
investigação levanta os seus próprios problemas de objectivos, métodos, estatuto
do respectivo saber, que estimulam os próprios investigadores a desenvolver uma
reflexão filosófica sobre as suas próprias questões. Depois da aversão à filosofia
própria do neo-positivismo lógico e da sua expulsão do domínio propriamente
22

científico, a filosofia regressa ao centro das atenções reformulando questões dentro


da própria prática científica. É a própria ciência que retorna a um discurso que não
só não elimina as questões filosóficas, como as integra numa reflexão sobre si
mesma. Cientistas como Einstein, Bohr, Heisenberg, Schrödinger, Prigogine,
Varela, para citar apenas alguns nomes actuais, exemplificam bem este estilo
"filosófico", cultivado no próprio campo da sua actividade científica.
Um outro exemplo de convivio entre a Epistemologia e as ciências é a
concepção de "epistemologia naturalizada", tal como a entende Quine. Neste caso,
dá-se uma absorção dos problemas epistemológicos pelas ciências empíricas,
nomeadamente pela psicologia científica.
Escreve Quine: "O naturalismo não rejeita a epistemologia, mas assimila-a
à psicologia empírica. A própria ciência diz-nos que a nossa informação sobre o
mundo está limitada à estimulação das nossas periferias, e portanto a questão
epistemológica é, por seu lado uma questão interna à ciência: a questão de saber
como é que nós, animais humanos conseguimos alcançar a ciência a partir de uma
informação tão limitada. O nosso epistemólogo científico dedica-se a esta
investigação e proclama uma explicação que tem muito que ver com a
aprendizagem da linguagem e a neurologia da percepção… A evolução e a
selecção natural figurarão sem dúvida nesta explicação, e o epistemólogo sentir-
se-á livre de aplicar a física se assim o achar." O objectivo da epistemologia não é
senão o da justificação dos fundamentos da ciência empírica e para tal, porque não
há-de o epistemólogo recorrer à psicologia? É a esta que cabe a tarefa de estudar a
relação causal entre o que chamamos o nosso «conhecimento» dos objectos do
mundo e estes mesmos objectos. E esta relação é, ela própria, uma relação
«natural» que deve ser estudada por uma ciência natural. Não há nenhum objecto a
investigar separado da teoria do conhecimento em relação às disciplinas
científicas: “A epistemologia, ou algo que se lhe assemelhe, encontra o seu
verdadeiro estatuto como capítulo da psicologia e portanto da ciência natural.
23

Estuda um fenómeno natural, a saber, o sujeito humano físico3. O objecto da


Epistemologia é o estudo de como o sujeito humano conhece, sendo o
conhecimento um processo natural e causal. Pode pensar-se num retorno às teorias
naturalistas do conhecimento tão correntes nos fins do século XIX, mas com um
carácter importante, no caso de Quine: a sua reformulação assenta numa
psicologia behaviourista e não, como outrora numa psicologia mentalista e
associacionista.
Trata-se, de uma epistemologia estritamente científica – um capítulo
componente da psicologia como uma das ciências naturais - e a sua atitude em
relação à legitimidade das questões epistemológicas tradicionais é claramente
ambivalente. Apesar do explícito repúdio de Quine de qualquer tentativa de
rejeitar a epistemologia, parece claro que esta concepção pressupõe uma
significativa restrição em relação aos problemas epistemológicos tradicionais:
qualquer problema epistemológico não estritamente interno à ciência dificilmente
poderá ser tomado a sério neste contexto4.

2. Uma Epistemologia externa, feita pela filosofia, mas tendo como tema e
objectivo os problemas das ciências mesmas e das suas práticas: os problemas da
objectividade do conhecimento científico, da percepção, a concepção de lei, de
causalidade, a explicação e a compreensão científicas, o problema do
determinismo/acaso, ordem/caos, as relações corpo/mente, etc. são problemas
filosóficos cujo conteúdo advém principalmente das diversas ciências. E no campo
das ciências sociais e humanas, os problemas da racionalidade prática, do estatuto
epistémico de saberes como a História, a Sociologia, a Antropologia, os modelos
de compreensão, do sentido da acção humana e social. Considerar do ponto de
vista filosófico os problemas que estão em causa no próprio desenvolvimento da
investigação científica e que de certo modo lhe podem dar uma ou outra direcção
3
Quine, “Epistemology Naturalized”, pp. 82-83.
4
Sobre e "epistemologia naturalizada", cfr o texto de Quine em Ontological Relativity and other
essays e Haack S. - Evidence and Inquiry, pp. 118-138.
24

segundo as interpretações adoptadas, abrirá as fronteiras da Epistemologia e terá


certamente inúmeras interferências com a Filosofia das Ciências, a Filosofia da
Natureza, a Filosofia da Mente, e também com a Filosofia Prática, a
Hermenêutica, etc. Neste âmbito, pode dizer-se que as abordagens se multiplicam
e diversificam nas atitudes e problemas que os filósofos, no decurso da história do
pensamento adoptaram e formularam ao enfrentar-se com as práticas científicas 5:
desde Platão e a invenção da ciência, à inteligibilidade da natureza nas concepções
filosóficas dos racionalistas (Descartes, Leibniz) e dos enciclopedistas, até aos
diversos naturalismos (Aristóteles, Mach, Quine), passando pelas críticas e limites
da ciência (desde o empirismo britânico, até Kant, Heidegger e o próprio
Wittgenstein), seria possível traçar os percursos das filosofias das ciências. O
plural indica bem a dificuldade de fazer propriamente uma história da filosofia da
ciência. Parece ser mais prudencial e adequado explorar a rede de relações entre os
filósofos e as ciências.

3. Uma Epistemologia estritamente filosófica ou uma teoria filosófica do


conhecimento científico, sua estrutura, sua justificação, seus processos. Optar-se-á
por esta via: questionar a própria natureza do conhecimento, seu fundamento,
estrutura, dinâmica e alcance. Entende-se a Epistemologia como um discurso
sobre o conhecimento, no sentido etimológico do termo.
É assim que ela é entendida e tratada na grande maioria da literatura
epistemológica, sobretudo no meio anglo-saxónico. As concepções do
conhecimento que se foram forjando, são, em grande parte determinadas pela
questão considerada central para elaborar epistemologia: e a questão é a de saber
quais as condições para que se dê realmente conhecimento. A resposta clássica –
conhecimento é crença verdadeira justificaca – tem sido objecto de amplas
5
Uma colectânea de ensaios ilustrativa das variadas maneiras como as filosofias, as escolas de
pensamento, conceberam e questionaram os problemas das ciências, é a obra Les philosophes et
la science, sob a direcção de P. Wagner, Paris, Gallimard, 2002.
25

discussões, sobretudo a partir do célebre artigo de Gettier “Is Justified True Belief
Knowledge?”, que desafia esta definição tradicional, apresentando contra-
exemplos que envolvem casos de crença verdadeira justificada e que no entanto
não são propriamente conhecimento. O «problema de Gettier» originou uma
explosão de tentativas de respostas da parte de epistemólogos que, guiados pela
estratégia de Gettier propõem alternativas à definição em causa, acrescentando ou
modificando as condições para que se dê efectivamente conhecimento. O tópico da
justificação é sempre recorrente em todas as abordagens da epistemologia, bem
como as análises da estrutura do conhecimento, que seguem fundamentalmente as
duas grandes vias – fundacionalista e coerentista.
A análise do conhecimento feita a partir destes parâmetros – quais as condições
de conhecimento, qual a estrutura do processo de justificação – não esgota de
modo algum o problema filosófico da cognição. Trata-se de um processo que
envolve múltiplos factores e que deverá ser investigado na sua dinâmica própria,
apreendido no seu in fieri, e não apenas analisado assepticamente enquanto um
sistema de enunciados que traduzem proposições verdadeiras, já constituído em si
mesmo, como o resultado objectivado das várias dinâmicas cognitivas. A
elucidação filosófica de conceitos fundamentais para compreender o que é o
conhecimento – como a percepção, a intuição, o raciocínio, a compreensão, e
também a dúvida, a incerteza, a expectativa, a procura – é um complemento
essencial da análise estrutural do processo cognitivo. Neste sentido se compreende
que Wittgenstein tenha afirmado que a teoria do conhecimento é a filosofia da
psicologia.
26

1. A noção clássica de Episteme

A primeira parte constituirá um breve exame da noção clássica de episteme


em Platão e Aristóteles. Não se trata de expôr toda a teoria do conhecimento dos
dois pensadores, nem de esgotar toda a problemática epistemológica que se pode
detectar no pensamento clássico. Optou-se por uma breve exposição do modo
como Platão e Aristóteles perspectivaram já o problema da necessidade de um
modelo da justificação do conhecimento científico, tendo em conta que será este
um dos problemas a tratar nesta obra. Tratar-se-á, portanto de mostrar como se
apresenta a arquitectónica do conhecimento no Teeteto e nos II Analíticos.
Platão definiu pela primeira vez a ciência como crença verdadeira
justificada, dando lugar a um longo debate sobre o problema da justificação. O que
é que se deve acrescentar à crença verdadeira para que seja justificada? O debate
parte desta noção platónica de conhecimento científico - a terceira definição
apresentada no Teeteto.
27

Aristóteles ao apresentar a ciência (episteme) como aquele estado cognitivo


que é produzido pela demonstração encaminha o problema para os primeiros
princípios indemonstráveis, discutindo os já conhecidos argumentos de infinito
regresso ou de círculo vicioso: ou há uma apreensão imediata - da ordem do nous,
e não da episteme - desses princípios ou a demonstração corre o risco de cair num
infinito regresso ou num círculo vicioso. A noção dos primeiros princípios da
ciência em Aristóteles aponta para uma forma de conhecimento que aparentemente
entra em conflito com a formulação de um conhecimento fundado na experiência,
na observação, nos dados empíricos, que é recorrente em várias obras de
Aristóteles.
O exame das teorias clássicas antecipa e preludia grande parte dos debates
actuais em torno do fundacionalismo, coerentismo que encontram múltiplas
formas de expressão: nomeadamente o caso paradigmático da discussão sobre as
proposições protocolares entre os representantes do Círculo de Viena, seus adeptos
e seus críticos centra-se principalmente no problema do fundamento ou
justificação última de todo o edifício do conhecimento científico.

Embora o que se designa hoje por Epistemologia seja uma disciplina


relativamente recente, a noção de episteme, termo do qual deriva Epistemologia,
tem as suas raízes no pensamento antigo, nomeadamente na filosofia platónica e
aristotélica. O estilo de pensamento que caracteriza o modo de tratar os problemas
do conhecimento na tradição clássica da filosofia grega é radicalmente diferente
do estilo e modo de abordar estes mesmo problemas em toda a filosofia post-
cartesiana. Em todo o caso, o exame dos problemas do conhecimento e a
caracterização da episteme em Platão e Aristóteles suscita um diálogo frutífero
com o pensamento epistemológico contemporâneo; esse exame constituirá um
meio de reformular alguns dos dilemas mais debatidos na epistemologia
contemporânea, confrontando-os com teorias do conhecimento que, por se
encontrarem a montante desses mesmos dilemas, poderão levar a uma revisão dos
28

alicerces sobre os quais se tem construído todo o edifício da moderna teoria do


conhecimento.
Assinalemos um primeiro contraste: numa obra recente de introdução à
Epistemologia Contemporânea de J. Dancy, pode ler-se nas primeiras páginas: "A
epistemologia é o estudo do conhecimento e a justificação da crença. As perguntas
centrais para as quais os epistemólogos tentam dar resposta incluem: «Quais as
crenças que são justificadas e quais não o são?», «O que podemos conhecer, se é
que podemos conhecer alguma coisa?», «Qual é a diferneça entre conhecer e ter
uma verdadeira crença?», «Qual é a relação entre ver e conhecer?»" 6. São estes os
problemas que dominam e condicionam a reflexão epistemológica - o problema da
justificação do conhecimento, da sua possibilidade, da sua estrutura, da sua relação
com a experiência. Com muita frequência, abordar o problema do conhecimento
implica uma análise prévia dos argumentos cépticos, para tentar passar a uma
indagação sobre a justificação das crenças. Só uma crença justificada pode
constituir propriamente conhecimento científico. Na teoria aristotélica do conheci-
mento, o problema da justificação não constituirá o tema central na abordagem das
questões epistemológicas. Aristóteles não procura defender a possibilidade do
conhecimento, não certamente por ignorar os argumentos cépticos, mas porque
adopta a estratégia de partir da experiência humana e sua relação com o mundo
como um dado, e procurar compreender como se organiza, como se constitui, nos
diferentes campos da actividade mental, e como se inter-relacionam os vários
estados cognitivos do sujeito, integrados no contexto da vida e actividade
humanas.

1.1. Aporias da definição de ciência

6
Dancy, J. -Epistemologia contemporânea, p. 13.
29

Nos primeiros diálogos platónicos, Sócrates apresenta várias perspectivas


sobre o conhecimento, que constituem o que se poderia designar pela teoria
epistemológica da juventude de Platão. Não há nestas primeiras teses sobre o
conhecimento qualquer forma de debate céptico que tem estimulado a reflexão
epistemológica.. À pergunta: "Qual é o primeiro, o céptico ou o epistemólogo?", a
resposta seria:" Nem um nem outro. O primeiro é Platão". A epistemologia
pergunta o que é o conhecimento e como se adquire conhecimento. O cepticismo,
tentando desconstruir a reflexão epistemológica, formula difíceis questões sobre a
possibilidade de alcançar algum conhecimento, tal como este é definido pelo
epistemólogo. E, embora se possam encontrar elementos de um proto-cepticismo
em Xenófanes, Parménides, Demócrito e nalguns dos sofistas, Platão não se
propõe enfrentá-los nas suas primeiras obras. Pelo contrário, os diálogos da
juventude parecem transmitir um programa proto-céptico, através de
argumentações de Sócrates que se propõem refutar personagens que directa ou
indirectamente apresentam pretensões fortes em relação ao conhecimento. No
entanto, estas disputas socráticas não podem considerar-se propriamente como
uma atitude céptica: o que Sócrates se propõe é denunciar falsos ídolos, com o
intuito de reconduzir a busca de definições verdadeiras. Quando nas suas
interpolações desmascara as falsas pretensões de conhecimento dos seus
interlocutores, não o faz atacando a verdade, a certeza ou a fonte de conhecimento;
a sua atitude é mais a de desafiar a segurança daqueles que presumem conhecer,
exigindo-lhes uma definição válida para todas as circunstâncias7.
No Menon, diálogo de transição, Platão apresenta o célebre "paradoxo
heurístico": como procurar algo que não se conhece de todo? Se porventura se
encontrasse o que se procura, como saber se efectivamente é o que se procura,
uma vez que não se sabe o que se procura? (Cfr 80d) Assim exprime Menon a sua
perplexidade, que é traduzida por Sócrates no dilema de toda a investigação: não
se pode investigar o que se sabe, uma vez que já se sabe, nem tão-pouco o que não
7
Cfr Woodruff, P. - "Plato's early theory of knowledge" in Everson, S. Epistemology, pp. 60-84.
30

se sabe, porque não se sabe o que se pretende investigar (cfr 80e). A solução
platónica proposta por Sócrates, é a afirmação que todo o ensino e investigação
não é senão reminiscência de algo previamente conhecido (81d5, 86bc) 8. O
conhecimento não é mera "opinião verdadeira", mas opinião verdadeira plus
razões que fundamentam essa opinião: o conhecimento difere da opinião
verdadeira na sua relação com um aitias logismos.

1.1.1. Teeteto e a definição de episteme

A discussão das três definições de episteme propostas por Teeteto é ocasião


para o exame de diversas teses epistemológicas que prevalecem como tópicos
fulcrais na epistemologia contemporânea. O diálogo divide-se em três grandes
andamentos, correspondentes ao exame das três definições: a ciência é sensação; a
ciência é opinião verdadeira; a ciência é opinião verdadeira acompanhada de razão
(logos). A ciência-sensação origina uma crítica na qual se debatem argumentos
que antecipam, de certo modo, toda a discussão em torno do fenomenalismo, da
natureza das "aparências"; identificar ciência com sensação conduz à revisão da
famosa afirmação de Protágoras - "o homem é a medida de todas as coisas" -, tese
que se revela auto-refutatória, como Sextus o demonstra. Tudo o que "aparece" é
verdade, segundo Protágoras, implica que também é verdade que nem tudo o que
"aparece" é verdade: se o subjectivismo da tese é levado até ao fim, esta auto-
refuta-se a si mesma, pois terá que aceitar também a verdade da opinião de que
nem toda a "aparência" é verdadeira9.
Depois de examinar a segunda proposta de definição - ciência-opinião
verdadeira -, que suscita uma elucidação sobre o problema do erro e da opinião
falsa, a episteme é definida como "opinião verdadeira acompanhada de uma razão"

8
Cfr Woodruff, P., art. cit., p. 82: exposição e discussão da tese platónica da reminiscência.
9
Para uma análise da auto-refutação da tese de Protágoras, cfr Burnyeat, M. F. - "Protagoras and
self-refutation in Plato's Theaetetus" in Everson, S. - Epistemology, pp. 39-59. Cfr Teeteto, 169d-
172c.
31

(meta logou alethe doxan episteme einai) (201c). Desprovida de razão (alogon), a
opinião verdadeira não constitui ciência. A definição responde à questão
fundamental da epistemologia: O que se deve acrescentar à opinião verdadeira
para que se constitua como ciência? A resposta de Platão vai para além da mera
exigência de uma justificação, de razões fortes para fundar a opinião. A "razão"
(logos) requerida para que a opinião verdadeira seja ciência corresponde à resposta
à pergunta "O que é x?", que leva Platão a dar uma explicação em termos de
análise dos elementos últimos e originários que constituem "x". Destes elementos
últimos não é possível apresentar uma "razão", eles são, de certo modo alogon, e
consequentemente incognoscíveis. A assimetria na estrutura do conhecimento é
manifesta: os compostos são cognoscíveis, deles é possível dar uma razão, mas os
simples são incognoscíveis, embora constituam, em última análise, a razão que
explica os compostos10. A razão (logos) pertence ao nível dos compostos, os
elementos últimos são apenas designáveis, denomináveis. No entanto, Platão
pensa que o conhecimento deve basear-se em conhecimento, conhecer p significa
conhecer a explicação, ou a razão de p, ou seja conhecer p requer conhecer q, a
razão (logos) de p. Por sua vez, conhecer q, exigirá conhecer a razão de q, e assim
sucessivamente. Para evitar um infinito regresso, parece necessário admitir
algumas verdades básicas: se a base de todo o conhecimento forem os elementos
últimos, estes são desprovidos de razão (logos)11, e portanto incognoscíveis, o que
viola o princípio, que Platão parece defender, de que o conhecimento se basea em
conhecimento; na República, esta exigência de um fundamento ou razão básica de
todo o conhecimento, faz depender o conhecimento da compreensão da ideia de
Bem, e apresenta-o dotado de uma estrutura hierárquica. Neste diálogo as
metáforas do conhecimento são sobretudo as do ascenso da alma até uma

10
Cfr Annas, J. "Knowledge and language: the Theaetetus and the Cratylus" in Schofield, M. e
Nussbaum, M. - Language and Logos, pp. 95-114.
11
É patente a proximidade com a argumentação de Wittgenstein no Da Certeza, §§ 204-205:
"Mas a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim - mas o fim não é o facto de certas
proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras…" "Se o verdadeiro é o que é
fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro nem falso."
32

compreensão total, à luz da ideia de Bem. As duas caracterizações da noção de


conhecimento - requer logos e tem uma estrutura hierárquica, - obrigam a
reconhecer que este não se pode basear, em última análise, em elementos
incognoscíveis. Não passará esta interpretação de logos como decomposição nos
constituintes últimos e simples de cada composto, de um sonho? (201e)12.
De facto o "sonho" de alcançar os elementos simples e últimos de qualquer
complexo prevalece como uma ilusão da análise: exemplos múltiplos e em
diversos registos dessa ilusão são as mónadas de Leibniz os objectos simples de
Wittgenstein, os "indivíduos" de Russell, as proposições protocolares os sense
data (na decomposição estrutural do conhecimento). O par simples/composto
funciona como um atractor em diferentes domínios - do lógico ao epistemológico
e ontológico, e conduz "facilmente a toda a espécie de superstições filosóficas",
segundo palavras de Wittgenstein13.
A definição proposta no Teeteto conduz a uma discussão última sobre os
possíveis sentidos de logos, todos eles considerados insatisfatórios; o diálogo é
aporético e a 3ª definição apresentada não representa definitivamente a concepção
platónica sobre a episteme - o problema da justificação da crença depara-se com
aporias não resolvidas no diálogo e deixadas em aberto; no entanto, esta definição
revive hoje ainda como um ponto de referência na formulação das questões
centrais da epistemologia: o conhecimento é em geral apresentado nesta "definição
tripartida"14 como "crença verdadeira justificada". O que significa "justificada"? A
justificação pode exigir a aceitação de crenças básicas, que não carecem por sua
vez de mais justificação porque são evidentes, porque se auto-justificam, porque
constituem os alicerces a partir dos quais se constrói toda a estrutura do sistema de
crenças. As várias formas de fundacionalismo pressupõem a divisão das crenças
em básicas e derivadas: as primeiras não necessitam de justificação e servem de

12
Uma interessante discussão sobre o "sonho de Sócrates" pode encontrar-se em Rosen, S. - The
Limits of Analysis, pp. 120-128.
13
Investigações Filosóficas, § 49.
14
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, p. 39.
33

base e fundamento para a justificação de todas as outras; as atitudes coerentistas,


por seu lado, defendem uma perspectiva segundo a qual no sistema de crenças não
há crenças básicas injustificáveis, mas a justificação passa por um critério de
coerência interna do próprio sistema. O problema da fiabilidade da crença ocupará
também um lugar central entre as questões epistemológicas: o "fiabilismo"
defende que uma crença adquire um estatuto epistémico favorável se tiver uma
ligação fiável com a verdade15. A relação de uma crença com a verdade, pode
assentar no facto de o processo que conduziu até ela ser fiável, isto é, as razões
dessa mesma crença não ocorreriam se esta não fosse verdadeira. O "fiabilismo" é
normalmente considerado uma teoria "externalista" porque apela para factores
relacionados com a verdade, e esta é "externa" ao sujeito da crença.
A herança da definição platónica e seus problemas, apesar dos avatares das
noções de episteme e de justificação, permanece viva na epistemologia
contemporânea, mesmo quando não explicitamente mencionada: as questões
suscitadas pelas discussões do Teeteto continuam a alimentar os debates
contemporâneos da epistemologia.

1.2. A "epistemologia naturalista" de Aristóteles

Como dissémos já, Aristóteles não centra a sua filosofia do conhecimento


numa indagação sobre a própria possibilidade de conhecer, mas parte dos estados
cognitivos do sujeito como dados, procurando averiguar como se constituem,
como se organizam e se integram no contexto da vida e actividade humanas. Por
isso mesmo, não encontramos em Aristóteles uma obra exclusivamente dedicada
ao problema do conhecimento. Os II Analíticos apresentam uma explanação das
condições necessárias e suficientes para a episteme entendida como uma ciência
exacta, dedutiva; esta constitui uma das formas de conhecimento, conhecimento
científico, entre outras, como o conhecimento perceptivo, a sabedoria prática, etc.
15
Cfr Dancy e Sosa - A Companion to Epistemology, "Reliabilism, pp. 433-436.
34

Não existe tão-pouco na obra aristotélica nada que se possa assimilar a um


discurso do método, nem uma atenção centrada no problema da fundamentação da
experiência humana como experiência de um mundo real e objectivo. A filosofia
post-cartesiana terá sempre que enfrentar-se com esta questão, uma vez que a
dúvida radical originou um recuo para o domínio seguro da experiência privada;
dado este recuo, torna-se imprescindível reestabelecer a viabilidade da relação da
experiência com o mundo objectivo. A recuperação da objectividade será
inevitavelmente o primeiro passo para justificar o conhecimento. No entanto, o
recuo para a órbita do puramente subjectivo, deixará sempre uma cicatriz indelével
em qualquer investigação epistemológica que adopte este ponto de partida. O
ponto de vista da subjectividade impõe a qualquer abordagem do problema do
conhecimento a necessidade de uma recuperação da objectividade, recuperação
sempre problemática porque o par subjectivo/objectivo apresentar-se-á sempre de
um modo disjuntivo e dilemático.
Aristóteles assume outro ponto de partida: a do sujeito agente e
cognoscente numa relação directa com o mundo real, através da experiência e da
acção. Esta relação directa via experiência e acção, constitui para Aristóteles um
dado, não uma conclusão mais ou menos fundada. Como se dá esta relação será
um tópico fulcral na teoria aristotélica da percepção e do conhecimento em geral.
Num certo sentido, a epistemologia aristotélica tem um carácter
“naturalista” e apresenta algumas afinidades com o programa de Quine de uma
“epistemologia naturalizada”: o pensador “naturalista" tenta clarificar,
compreender o sistema global – a experiência e a acção humana nas suas inter-
relações com o mundo – a partir de dentro, como o marinheiro de Neurath que
reconstrói o barco no alto mar; não considera a epistemologia como uma disciplina
separada, a priori, mas como uma parte integrada em todo o conjunto de crenças,
conhecimentos e relações com o mundo. No entanto, o “naturalismo” de
35

Aristóteles não é levado ao ponto de integrar a epistemologia nas ciências naturais,


adoptando um cientismo extremo16.

1.2.1. II Analíticos: Os princípios da demonstração


O conhecimento científico (episteme) apresenta uma estrutura
demonstrativa17, rigorosamente dedutiva18. Partindo de premissas conhecidas, a
dedução (syllogismos) chega a uma conclusão. Todo conhecimento demonstrativo
parte, portanto de algo já conhecido. O que é conhecido é o que pode ser ensinado
ou aprendido. "Todo o ensino é de coisas previamente conhecidas" - é a primeira
afirmação com que abrem os II Analíticos. No caso do conhecimento dedutivo, o
que é "previamente conhecido" são os princípios da demonstração. No caso da
indução (epagoge), conhece-se previamente a verdade dos casos particulares a
partir dos quais se deriva a generalização indutiva. A teoria de Aristóteles
apresenta uma resposta ao problema sobre a possibilidade de qualquer
investigação levantada no Menon de Platão (80d-e): ou se conhece já o objecto que
se pretende investigar, e, nesse caso não se dá propriamente uma situação de
investigação ou de busca, ou não se conhece, e tão-pouco é viável investigar ou
procurar sem saber o que se investiga ou procura. A resposta platónica opta pela
pressuposição de um conhecimento pré-existente, implícito e tácito, a partir do
qual assenta todo o processo de investigação. A alternativa aristotélica consiste em
aceitar que toda a investigação parte de um certo conhecimento prévio, mas rejeita

16
Cfr. Taylor, C. C. W. – “Aristotle’s epistemology” in Everson, S. Epistemology, pp. 116. Sobre
o “naturalismo” de Quine, cfr. Haack, S. – Evidence and Inquiry, cap. 6, onde se mostram as
ambiguidades de Quine no uso genérico do termo “ciência”.
17
Cfr Gourinat, J. B. - "Aristote et la forme démonstrative de la science", in Wagner, P. (org.) -
Les philosophes et la science, pp.581-623.
18
Um texto do livro VI da Ética Nicomaqueia propõe uma definição de episteme, reportando-a
aos II Analíticos: "Deste modo a ciência é uma disposição para produzir demonstrações (hexis
apodeiktike), acrescentando a esta definição todas as outras características mencionadas nos
Analíticos; com efeito, quando um homem acredita de uma certa maneira, e os princípios lhe são
familiares, então ele sabe (epistatai). Se os princípios não lhe são mais familiares do que a
conclusão, é porque ele possui apenas a ciência por acidente" (VI, 3, 1139b31-34).
36

a caracterização platónica da investigação como reminiscência de uma visão


originária das Formas. Para Aristóteles, saber consiste em crer de uma certa
maneira, uma disposição que assenta numa maior familiaridade com os princípios
do que com a conclusão. Não é o silogismo ou demonstração, que é da ordem do
logos que por si só comunica um saber com a convicção que lhe é própria. Este só
produzirá ciência se se apoiar numa disposição previamente constituída - todo o
saber consiste numa articulação entre duas disposições ou hábitos (hexis), o nous e
a episteme. Esta é uma disposição para produzir demonstrações (hexis
apodeiktike); mas esta dispoisção funda-se na posse dos princípios da
demonstração, que é própria do nous19.
Segundo Aristóteles, o que se conhece previamente a qualquer
demonstração são os princípios da demonstração, que não podem ser eles
próprios objecto da episteme, ou seja não pode haver demonstração dos
princípios (II Analíticos, I. 3). Levanta-se então a questão: não sendo conhecidos
por demonstração - os princípios são indemonstráveis - qual a forma de
conhecimento destes mesmos princípios? O conhecimento ou apreensão dos
princípios, não pertencendo à episteme, deve caber ao nous. Qual a natureza do
nous? O conhecimento teorético é constituído por episteme e nous, e, sendo a
primeira forma de conhecimento, um conhecimento dedutivo, demonstrativo20,
segue-se que o modo de alcançar o nous, enquanto estado cognitivo de
conhecimento dos princípios, é a indução. Existe uma íntima conexão entre
indução (epagoge) e apreensão dos princípios. No entanto, também a indução

19
Cfr Boulakia, L. - "A propósito da força da demonstração", Análise, n. 20, pp. 17-46.
20
Note-se, porém que Aristóteles distingue entre demonstração ou silogismo propriamente ditos e
ciência: esta é a posse do silogismo e é esta disposição ou hábito subjectivo que Aristótleles
pretende caracterizar. A sua interrogação é sobre o que possui um sujeito que possui uma
demonstração, em que consiste esta posse? Cfr Brunschwig, J. - "L'objet et la structure des
Seconds Analytiques d'après Aristote" in Berti, E. (ed.) - Aristotle on Science: The Posterior
Analytics, Pádua, 1981, p. 71: "Não saberíamos atribuir a Aristóteles uma identificação pura e
simples da demonstração e da ciência demonstrativa sem o acusar de um erro categorial que ele
dificilmente poderia cometer: a demonstração sendo uma espécie de silogismo cai sob o género
do logos, do discurso; a ciência demonstrativa é um dos estados mentais ou intelectuais nos quais
nos encontramos capacitados para dizer o verdadeiro".
37

procede a partir de algo previamente conhecido. Em que consiste este


conhecimento, e como se tornam conhecidos os princípios da demonstração a
partir desse conhecimento prévio? A resposta a esta questão é dada por Aristóteles
em II, 19: os princípios são conhecidos por indução através da memória. As
percepções sensíveis persistem em nós depois do acto perceptivo e produzem
memória; e a reiteração da memória dá origem à experiência (empeiria); e a
experiência, que não é senão a presença do universal na psyche, como um todo,
constitui o ponto de partida da techne e da episteme: techne, no domínio dos
processos, episteme no domínio dos factos (100a 5-15). Aristóteles afirma
claramente a capacidade da percepção sensível de originar a apreensão do
universal ("a sensação engendra o universal"): embora seja o particular que é
percepcionado, o acto da percepção implica o universal, por exemplo, "homem", e
não apenas "um homem, Calias". Trata-se de um processo indutivo, no qual se dá
uma passagem directa da percepção à apreensão do universal. Este é captado na
ocasião de um encontro singular, não por um processo de abstracção, mas por
uma progressiva clarificação da noção do próprio singular.
O estado cognitivo no qual se apreendem os princípios é nous, sobre o qual
Aristóteles nada mais diz sobre como actua, limitando-se a repetir a caracterização
dos dois estados cognitivos nos quais se capta teoreticamente a verdade, episteme
e nous: episteme, conhecimento demonstrativo tem que partir de princípios
indemonstráveis, dos quais não pode, portanto haver episteme, mas sim nous, por
indução a partir da percepção sensível21.
A teoria sobre a apreensão dos princípios e sua indemonstrabilidade tem
sido motivo para considerar a epistemologia aristotélica como fundacionalista: os
princípios são proposições que se auto-justificam e constituem os princípios
básicos de todas as ciências, que não se podem justificar por nenhum outro
princípio ou proposição mais fundamental dentro da ciência. Se se entende por
fundacionalismo a tese segundo a qual todo o sistema de crenças justificadas
21
Cfr Taylor, C. C. W. - art. cit., p. 127.
38

assenta, em última análise em crenças imediatamente justificadas, ou seja todo o


conhecimento apresenta uma estrutura que tem na sua base alguma forma de
crença ou conhecimentos que não carecem eles mesmos de outros para a sua
justificação, poderá considerar-se a teoria aristotélica como fundacionalista 22. De
facto os princípios da demonstração auto-justificam-se a si mesmos, e não é
possível demonstrá-los. No entanto, Aristóteles exige também que todo o
conhecimento assente na base da evidência sensível da percepção, considerando
esta o ponto de partida para todo o processo indutivo, que culmina na apreensão
dos princípios. Poderia considerar-se a epistemologia aristotélica um
fundacionalismo com duas frentes: a dos princípios da demonstração e a da
evidência da percepção sensível. Como reconciliar estas duas frentes, ou estas
duas formas de conhecimento imediato, que se auto-justifica a si mesmo? A
concepção do conhecimento científico (episteme), baseada no critério da
demonstração e dedução rigorosas, colide com o reconhecimento da necessidade
de basear a investigação sobre a natureza na observação dos fenómenos e
aparências (phainomena)23. A sua Historia Animalium é uma colectánea de
observações de fenómenos, apresentadas como uma introdução preliminar
imprescindível para qualquer teorização. E a sua atitude em relação à investigação
filosófica mostra claramente a necessidade de partir da consideração das
"aparências", que neste caso são as opiniões várias a respeito de um problema 24. O
método que Aristóteles adopta é o dialéctico, o mais adequado para procurar os
primeiros princípios das ciências. Através de um exame e confronto das diversas
opiniões (endoxa), e sobretudo das opiniões da maioria e dos mais sábios, a
investigação procede a uma selecção das opiniões mais adequadas e a uma rejeição
daquelas que apresentam incompatibilidades com o senso comum, ou com o
22
Sobre as várias formas de fundacionalismo, cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, pp. 14 e ss. E
pp. 34-51. Cfr também Alston, W. P. - "Foundationalism" in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion
to Epistemology, pp. 144-147.
23
Sobre esta tensão na metodologia aristotélica cfr Owen, G. E. L. - "Tithenai ta Phainomena" in
Barnes, Shofield e Sorabji, Articles on Aristotle I, pp. 113-126. Owen sublinha o contraste entre o
método da ciência proposto nos II Analíticos e o que preconiza na Física.
24
Cfr Et. Nic. 1145a2-7.
39

conjunto de opiniões mais prováveis: neste caso a argumentação releva sobretudo


de um critério de coerência. E o coerentismo, em oposição ao fundacionalismo
rejeita qualquer dependência de um fundamento último e infalível25.
Vários problemas epistemológicos actualmente em debate encontram uma
antecipação nos escritos de Platão e Aristóteles: no primeiro, a ciência-sensação
enuncia as controvérsias em torno do fenomenismo e suas aporias, das proposições
protocolares que virão a ser objecto de debate entre os membros do Círculo de
Viena, a hipótese solipsista como consequência última do estatuto subjectivo da
sensação e as dificuldades que esta consequência paradoxal levanta para a
objectividade do conhecimento científico; o estatuto da crença e o problema da sua
justificação levado, no Teeteto até um fundacionalismo extremo e aporético; em
Aristóteles, o exame do estatuto cognitivo de uma ciência rigorosamente dedutiva,
os fundamentos da demonstração e a relação entre conhecimento indutivo/
dedutivo, ou a hipótese intuicionista como princípio justificativo de todo o
conhecimento; a conciliação de um certo fundacionalismo com um princípio de
coerência na arquitectónica da ciência considerada como processo zetético, no
próprio processo da sua constituição; e, como veremos adiante, uma concepção do
conhecer que contorna ou ultrapassa os dilemas assentes na consideração
disjuntiva do binómio sujeito/objecto.
Ler hoje os texos clássicos, constitui por isso uma ocasião para confrontá-
los com toda esta problemática latente, nalguns casos, explícita noutros, e detectar
continuidades bem patentes nos diversos modos e estilos com que se têm abordado
os problemas do conhecimento.

25
Fundacionalismo e Coerentismo tem sido apresentados, na Epistemologia Contemporânea
como duas teses opostas. No entanto, estas duas posições não são necessariemtne incompatíveis,
como o mostra S. Haacks em Evidence and Inquiry. Propõe mesmo um neologismo -
"funderentismo" - para traduzir uma teoria que concilia as duas teses aparentemente opostas.
40

2. Justificação: Fundacionalismo versus Coerentismo

2.1.Os argumentos: um falso dilema

Formular o problema da justificação dos nossos conhecimentos em termos


dilemáticos levou a um desencanto que propugna pelo fim da epistemologia: os
seus problemas falaciosos e mal concebidos deveriam ser abandonados ou
substituídos por questões científicas sobre a cognição humana. Um desses dilemas
é precisamente o que se esboçou na referência ao par fundacionalismo versus
coerentismo. Ele coloca-nos perante a necessidade imperiosa de optar entre duas
imagens: a do elefante sobre uma tartaruga (o que é que sustém a tartaruga?) ou a
de uma enorme serpente do conhecimento hegeliana com a cauda na boca (Onde é
que tudo começa?) E a única opção razoável será rejeitar ambas imagens 26.
Uma teoria fundacionalista defende as seguintes teses:
1. Algumas crenças justificadas são básicas, sendo uma crença básica
justificada independentemente de qualquer fundamento noutra crença.

26
Cfr Sellars, W. – “Empiricism and the Philosophy of Mind”, in Science, Perception and
Reality, p. 170.
41

2. Todas as outras crenças justificadas derivam das crenças básicas:


justificam-se mediante o fundamento directo ou indirecto numa ou várias
crenças básicas.

Em que consistem estas crenças básicas, qual a relação entre estas e as


derivadas, são questões que recebem diversas respostas segundo as diversas
formas de fundacionalismo.
A tese central do coerentismo defende que a justificação é exclusivamente
um problema de relação entre as crenças, e é a coerência entre crenças dentro
de um mesmo sistema que constitui o critério principal para justificar uma
crença. Assim, a teoria afirma:

1. Uma crença é justificada se e só se pertencer a um conjunto coerente


de crenças.
2. Não há uma distinção de estatuto epistémico entre as crenças,
nenhuma ocupa um lugar peculiar dentro do sistema coerente27.

Estas duas posições apresentam-nos dois modelos da estrutura do


conhecimento aparentemente opostas e irreconciliáveis: segundo o
fundacionalismo todo o conhecimento assenta numa base absolutamente primeira,
originária, que não carece de justificação por se auto-justificar a si mesma, pela
sua evidência imediata, pela sua infalibilidade, incorrigibilidade, certeza. A
estrutura do conhecimento apresenta a forma de uma pirâmide construída a partir
dessa base fundacional, alicerce último de todas as crenças e conhecimentos daí
derivados. Há uma distinção radical entre os dados de base, não inferenciais, não
derivados, mas primeiros, imediatos. Justificar qualquer conhecimento ou crença
significará retroceder na série até estes dados últimos, base segura e certa na qual,
por inferência se podem jutificar outras crenças e conhecimentos. São estes dados
27
Cfr Haack, S. – Evidence and Inquiry, pp. 13-18.
42

últimos que estabelecem o elo de ligação de todo o conhecimento com a verdade.


Renunciar a esta base significaria inviabilizar a possibilidade de justificar qualquer
crença ou conhecimento.
O coerentismo, apresenta o conhecimento como uma estrutura na qual não
há fractura entre crenças primeiras, básicas e crenças inferenciais ou derivadas.
Numa perspectiva holística, é o conjunto de crenças que faz sistema e o critério de
justificação será um critério interno de coerência; qualquer conhecimento justifica-
se através da sua integração e conciliação com as restantes crenças. Se se apresenta
algum contraste ou incompatibilidade de uma crença com o sistema não se
justifica a aceitação dessa crença, por não satisfazer o critério de coerência.
Enquanto no caso do fundacionalismo, a pirâmide do conhecimento assenta numa
base com um estatuto epistémico especial, no coerentismo o sistema não
reconhece qualquer estatuto epistémico peculiar a um certo tipo de crenças ou
conhecimentos: todos estão nivelados num mesmo estatuto e sustentam-se
mutuamente, sem qualquer necessidade de recorrer a uma forma peculiar de
conhecimentos básicos, auto-justificando-se a si mesmos, ou apresentando-se
como não necessitados de justificação.
Aparentemente estes dois modelos excluem-se mutuamente, e constituem
duas perspectivas exaustivas do modo de conceber estruturalmente todo o
conhecimento. E, sendo assim, seria necessário optar por um ou outro destes
modelos. Mas será de facto assim? Para explorar o dilema será necessário, em
primeiro lugar, situar o contexto do problema que ambas posições pretendem
resolver; em segundo lugar, fazer uma breve análise dos principais argumentos de
cada uma destas posições.
O apelo a dados últimos, não inferenciais, no qual assenta todo o
conhecimento pode ocorrer tanto no contexto da justificação do conhecimento,
como no da génese ou origem de todo o conhecimento. Trata-se de duas questões
radicalmente diferentes: no primeiro caso, a partir de uma crença segue-se um
processo restrospectivo na busca de outra(s) crença(s) que justifique a primeira.
43

Neste processo restrospectivo o fundacionalismo exige que a série não seja


infinita, mas que se encontre um termo da série, a partir do qual se dê origem a
todo o processo reconstrutivo da justificação; o coerentismo não considera esta
série de um modo linear, mas como uma espiral na qual se dão entrecruzamentos
entre diversas crenças e conhecimentos que se sustêm mutuamente.
Se o que está em causa é a origem, a genealogia de todo o conhecimento,
trata-se de saber, não exactamente como justificar, mas onde começa, donde parte
o conhecimento. Embora os dois problemas se entrecruzem e as soluções
interfiram com ambas questões - a da justificação e a da genealogia do
conhecimento - trata-se de questões diferentes 28. Frequentemente consideram-se
fundacionalistas concepções do conhecimento que propõem uma explicação
genealógica, partindo das origens de todo o conhecimento - como será o caso de
Descartes e os filósofos empiristas - por indicarem onde começa o conhecimento.
Mas nesta explicação genealógica nem sempre está em causa o problema da
justificação. O que se pretende é reconstruir arquitectonicamente todo o edifício
do conhecimento a partir dos seus alicerces. A justificação percorre o caminho
inverso: assumindo um conhecimento ou crença como tal, recua-se na cadeia de
outros conhecimentos ou crenças que o provam como sendo verdadeiro e fiável.
Tentaremos detectar, na discussão dos argumentos e dos exemplos das duas
posições em causa, qual destes dois problemas está verdadeiramente na origem
dessas formulações.

O principal argumento do fundacionalismo é o do infinito regresso na


cadeia da justificação29. Se qualquer crença parece ser justificada, deve recorrer a
28
Cfr BonJour, L. - The Structure of Empirical Knowledge, p.19: "The issue of how a belief is
justified (for a person at a time) is distinct from the issue of how the person first arrived at that
belief. In particular, though inferentially justified beliefs will often also have been arrived at via a
conscious process of inference, they need not have been arrived at in that way in order to be
inferentially justified.
29
O argumento do infinito regresso não se limita ao domínio da epistemologia: Aristóteles invoca
o mesmo argumento na ética para provar a existência de um único fim da acção racional; Tomás
de Aquino emprega-o para o motor imóvel, para a causa incausada, etc. O recurso frequente ao
44

outra crença justificada, e esta por sua vez, carecerá de ulterior justificação, a
cadeia de crenças a justificar seria infinita, a menos que a série encontre um termo
num tipo de crenças que não carecem elas próprias de justificação. O argumento
foi já formulado por Aristóteles30: os que rejeitam a apreensão imediata dos
primeiros princípios, negam a possibilidade de todo o conhecimento científico
porque se vêm confrontados com duas perspectivas impossíveis: ou todas as
verdades são demonstráveis (justificáveis) por uma prova circular, o que
singificaria que nenhuma é verdadeiramente demonstrada, ou se dá um infinito
regresso no processo da demonstração, o que anula também a demonstrabilidade
de qualquer verdade. Salientemos desde já que Aristóteles, neste contexto, está a
tratar da demonstração que consiste na captação do silogismo - premissas e
conclusão - e que se apresenta como o protótipo da episteme. Mas a episteme não
esgota de forma alguma, na concepção aristotélica, todas as formas de
conhecimento ou de estados cognitivos - há a considerar outras formas de
conhecimento ou estados cognitivos nos quais o sujeito cognoscente "possui a
verdade afirmando ou negando": techne, phronesis, sophia e nous31. Há, portanto
uma diversidade de "modos de pensar e de conhecer", não uniformizáveis num
modelo único. Além disso, ao postular a necessidade da apreensão imediata, não
via demonstração, dos primeiros princípios, Aristóteles afirma que estes princípios
são a causa do nosso conhecimento e que é o grau de convicção com que os
possuímos que causa o conhecimento de tudo o que deles se deriva. O que indica
claramente que não é tanto o problema da justificação que está em causa, quanto o
problema da própria genealogia do conhecimento demonstrativo: os princípios não
são o resultado de um processo regressivo, mas o ponto de partida que viabiliza a
demonstração.
argumento em diferentes registos deve-se em parte à sua forma de redução ao absurdo: mostra-
nos o que temos de rejeitar, mas deixa em aberto o que se poderá afirmar como alternativa. Por
isso ele é empregue para problemas em diferentes campos - desde a epistemologia à metafísica e
ética - e invocado, não só por diversas atitudes fundacionalistas, como aceite mesmo por algumas
formas de coerentismo.
30
Cfr II Analíticos, I, 2-3.
31
Cfr Et. Nic., 1139b15-17.
45

O argumento é forte, mas deixa em aberto a alternativa a adoptar para evitar


o escolho do absurdo a que conduz. Por isso, com base no mesmo argumento
podem assumir-se diversas variações fundacionalistas e não só.
Outro argumento fundacionalista contra o coerentismo: a consistência entre
os conhecimentos e crenças - condição necessária da coerência - é um requisito
demasiado forte para a justificação. Um coerentista defende que se alguém
sustenta crenças inconsistentes, e portanto mantém um conjunto incoerente de
crenças, não tem justificação para nenhuma das suas crenças. Esta exigência é
demasiado forte: possivelmente ninguém tem um sistema de crenças
completamente consistente, mas pelo facto de ocorrer alguma contradição latente
dentro do corpus das suas crenças sobre a geografia de Portugal, por exemplo, isso
não implica necessariamente que não tenha justificação para crer que a neve é
branca, ou que existe uma folha de papel diante de si, que o seu nome é João…
Não parece plausível admitir que todas as crenças de uma pessoa sejam relevantes
para a justificação de cada uma das suas crenças32. O holismo pressuposto no
coerentismo forte imprime um carácter monista a todo o sistema de crenças e
conhecimentos demasiado radical e insustentável. A única alternativa seria admitir
que o conjunto de crenças para o qual a coerência é o critério de justificação, não é
constituído por todas as crenças de um sujeito, mas por um sub-conjunto dessa
totalidade.
Embora o fundacionalismo também possa por vezes perspectivar os
conhecimentos e as crenças no seu todo, e exigir um conjunto de crenças básicas
único e comum a todo o tipo de conhecimentos, não pressupõe sempre nem
necessariamente que a inconsistência de alguma ou algumas crenças implique que
nenhuma crença tenha justificação. Pode tratar-se de um fundacionalismo local e
não global: não focado no conjunto total de crenças, mas no sub-conjunto que
desempenha um papel na árvore de razões de uma crença particular e no estatuto
de justificação dessa crença.
32
Cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, p. 25.
46

Contra o coerentismo, o fundacionlista objectará também que a consistência


de um conjunto de crenças é insuficiente para garantir ou constituir uma indicação
da sua verdade. Não basta a coerência interna para que um conjunto de crenças
corresponda a um estado de coisas do mundo real, portanto não proporciona
nenhuma via para a verdade das crenças. Se a justificação depende unicamente das
relações internas entre as crenças, estabelece apenas uma conexão dentro do
sistema de crenças, mas isola completamente o processo de justificação do
processo de verificação, ou de confronto com a verdade. A tese coerentista
segundo a qual as crenças só podem ser justificadas por relações de suporte mútuo
é tão absurda como a ideia de que dois marinheiros bêbados possam sustentar-se a
si mesmos encostando-se um ao outro de costas com costas (a metáfora é de C. I.
Lewis)33. A dificuldade insuperável do coerentismo radica na irrelevância que
atribui á experiência no processo de justificação 34. Note-se que este argumento
vale só para as formas de fundacionalismo que assumem uma posição
experiencialista. Mas seria precipitado assimilar fundacionalismo com qualquer
forma de empirismo (pode admitir-se um fundacionalismo que considere como
crenças basicas, não os dados empíricos, mas certas verdades evidentes por si
mesmas), e considerar incompatíveis o coerentismo com o empirismo. O problema
é bem mais complexo. Há teorias coerentistas da justificação que contornam a
crítica da irrelevância da experiência, tendo em conta também os dados dos
sentidos como crenças dentro do sistema de crenças (Bradley é um exemplo de
empirista que defende uma teoria coerentista da justificação 35). Será possível um
coerentista aceitar as exigências do empirismo, atribuindo uma relação assimétrica
entre os dados sensoriais e as outras crenças, sem romper com o seu monismo que
propõe um direccionamento horizontal em todos os processos de justificação, e

33
Cfr ibidem, p. 27.
34
Lewis, C. I. - "The Given Element in Empirical Knowledge", Philosophical Review, 61, 1952,
p. 168-69.
35
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, pp. 156-158. Sobre a teoria da coerência e suas
variantes cfr cap. 8.
47

portanto sem se tornar num fundacionalista? Uma proposta que tenta conciliar o
papel da experiência com uma estrutura coerentista é a de BonJour36.
Importa sublinhar mais uma vez que o problema da justificação não se deve
confundir com o problema da génese do conhecimento. A discussão
fundacionalismo/coerentismo diz respeito ao primeiro problema, não ao segundo.
É frequente, no entanto, encontrar nesta discussão interferências entre os dois
problemas que desfocam a questão central que está em causa.
O par externalismo/internalismo tem também interferências com o
fundacionalismo/coerentismo. Importa destrinçar as problemáticas: uma teoria da
justificação é considerada internalista se exige que todos os factores necessários
para a justificação epistemológica de uma crença sejam cognitivamente acessíveis
ao sujeito dessa crença; externalista, se permite que pelo menos alguns desses
factores não sejam acessíveis, portanto externos à perspectiva cognitiva do sujeito
da crença.Uma versão forte do internalismo exige que o sujeito de uma crença
esteja realmente consciente dos factores que a justificam e só assim a crença será
de facto justificada; segundo uma versão mais fraca, exige apenas que o sujeito da
crença seja capaz de tornar-se consciente desses factores sem necessidade de
qualquer mudança de posição, nova informação, etc. Embora a expressão
"cognitivamente acessível" pareça sugerir apenas esta versão mais fraca, a
motivação principal para o internalismo exigiria a interpretação mais forte.
O exemplo mais evidente de internalismo será uma perspectiva
fundacionalista na qual as crenças fundacionais pertencem aos estados da mente
imediatamente experimentados e as outras crenças são justificadas por estarem
numa relação lógica ou inferencial cognitivamente acessível com essas crenças
fundacionais. Uma perspectiva coerentista poderia ser também internalista, se
tanto as crenças e outros estados com os quais a justificação deve ser coerente,
como as próprias relações de coerência forem reflexivamente acessíveis.

36
BonJour, L. - The Structure of Empirical Knowledge.
48

As principais perspectivas externalistas são versões do "fiabilismo", para o


qual o requisito fundamental para a justificação é que, em geral, a crença seja
produzida de um modo ou segundo um processo que apresente uma certa garantia
de que a crença é verdadeira. Sintetizando a teoria numa fórmula breve, seguindo
Chisholm, poder-se-ia dizer: "S está externamente justificado a acreditar que p =
Df. S crê que p; e a causa da sua crença está no facto de S ter seguido um
processo de formação da crença que em geral conduz a uma crença verdadeira."
Na perspectiva de Chisholm37 as explicações "externalistas" da justificação
epistémica ou são vazias ou recorrem a conceitos "internos", portanto não há
qualquer hipótese de substituir os conceitos internos por conceitos
"externalísticos".
Mais uma vez nos encontramos perante um dilema que possivelmente se
dissolve perante uma análise mais fina: mesmo que se considere, numa perspectiva
"externalista" que é a verdade da crença que causa a crença, ou o processo fiável
na base do qual se forma a crença que a justifica, parece de facto difícil dispensar
em qualquer caso uma certa consciência interna desse mesmo processo, ou uma
consciência evidente da verdade daquilo em que se crê. Só se crê verdadeiramente
numa proposição quando ela se torna evidente. O recurso à evidência é
incontornável38. O externalismo não poderia assim substituir ou apresentar-se
como uma concepção alternativa do internalismo, não sendo as duas perspectivas
totalmente exaustivas na sua análise da justificação epistémica. De qualquer modo
torna-se difícil apresentar com clareza o panorama das discussões sobre este par de
teorias ou perspectivas, porque nem sempre se explicita com precisão o que se

37
Chisholm, R. "The Indispensability of Internal Justification", in Bernecker, S. e Dretske, F. -
Knowledge. Readings in Contemporary Epistemology, pp. 118-127.
38
Cfr. Haack, S. - Evidence and Inquiry, cap. 7 : "The Evidence against Reliabilism".
49

entende por internalismo ou por externalismo 39. O que está em causa


provavelmente não chega a constituir uma verdadeira dicotomia40.
A disjuntiva entre fundacionalismo e coerentismo tão-pouco constitui uma
verdadeira disjuntiva: as duas teorias da justificação não esgotam as opções
possíveis, deixam algum espaço lógico entre elas. Aproveitando esse espaço é
possível admitir a sugestão de Haack de uma nova teoria da justificação, que
designa de "funderentismo"41 e que reconcilia as duas versões aparentemente
opostas. Esquematicamente, o "funderentismo" sintetiza-se em dois tópicos:
1. A experiência do sujeito é relevante para a
justificação das crenças empíricas (o que contorna uma das dificuldades do
coerentismo que dispensa qualquer recurso à experiência); no entanto, não é
necessário assegurar nenhum conjunto de crenças exclusivamente justificadas com
base na experiência, independentemente da sua relação com outras crenças (o que
evita as dificuldades do fundacionalismo para encontrar esse tipo de crenças
imediatamente fundadas em dados exclusivamente empíricos, como será o caso
das designadas proposições "protocolares", as constatações, etc.).
2. O processo de justificação não é exclusivamente
direccionado das crenças derivadas para um só tipo de crenças básicas, mas
envolve múltiplas e interpenetrantes relações de apoio mútuo (o que confere ao
conjunto de crenças um certo carácter sistemático, tendo em conta o critério da sua
coerência interna).
O principal objectivo desta terceira alternativa para dar conta da justificação
epistémica, é apresentar um modelo no qual a experiência tem relevância para a
justificação empírica, não podendo portanto prescindir-se da dimensão subjectiva
e fenoménica; no entanto, o critério empírico não exclui, mas carece de ser
39
Para um exame do externalismo/internalismo cfr BonJour, L. in Dancy e Sosa, A Companion to
Epistemolgy, pp. 132-136. Uma discussão sobre as várias formas de externalismo pode
encontrar--se em Goldman, A. - Epistemology and Cognition, Cambridge, MA, Harvard
University Press, 1985.
40
Cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, pp. 53-59 e Alston, W. P. - "Internalism and Externalism
in Epistemology", Philosophical Topics, XIV, 1, 1986, pp. 179-221
41
Cfr Haack, S. - ob. cit., p. 19.
50

complementado com um critério de reforço e de fundamentação mútua entre


diversas crenças que fazem sistema. A exigência cartesiana da evidência ou a
própria evidência perceptiva não é incompatível com uma dimensão inter-
contextual, "perspectivística". A hipótese "funderentista" é rica e sugestiva e abre
novos horizontes a explorar para uma reconstrução da Epistemologia,
desobstruindo terrenos preenchidos por antagonismos aparentes, mas sem saída. A
sua estratégia segue o sábio conselho de Austin de sempre que suspeitarmos de um
membro de um pretenso par conceptual ou categorial, suspeitar também da parte
aparentemente inocente. Nem Cila nem Caríbides…

2.2. Proposições protocolares: sua discussão no Círculo de Viena

Embora o fundacionalismo não pressuponha necessaria e exclusivamente


uma perspectiva empirista, nem promova apenas o apelo para a evidência
perceptiva, uma das expressões do aparente dilema fundacionalismo/coerentismo é
precisamente o estatuto de imediatez, fiabilidade e solidez dos dados empíricos. E
a discussão dos protocolos, no seio do Círculo de Viena 42 representa,
emblematicamente um caso típico da controvérsia do fundacionalismo versus
coerentismo. No debate sobre as proposições protocolares intervieram Carnap, que
lança os dados da discussão43, ao qual responde Neurath44 que é criticado por
Schlick45. Nela intervêm também Hempel, Ayer e o debate em torno da
42
Sobre o princípio de verificação e a discussão dos enunciados protocolares, cfr Soulez, A. -
Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, Introduction, pp.48-73. Cfr também Barone, F. -
Il neopositivismo logico, I vol., pp. 282-289, e p. 319. Deste mesmo autor, cfr "La polémique sur
les énoncés protocolaires dans l'épistémologie du Cercle de Vienne", Sebestik J. e Soulez, A. - Le
Cercle de Vienne, pp. 181-196.
43
Carnap, R. - "Die Physikalische Sprache als Universalsprache der Wissenschaft", Erkenntnis,
1932, vol II, pp. 432 ss. ". Trad. inglesa "Protocol Statements and the Formal Mode of Speech",
in Hanfling, O. (ed.) Essential Readings in Logical Positivism, p.153.
44
Neurath, O. - "Protokllsätze", Erkenntnis, III, 1932-33. Trad. inglesa in Ayer, A. J. - Logical
Positivism, pp. 199-208.
45
Schlick, M. - "Über das Fundament der Erkenntnis", Erkenntnis, vol V 1934. Trad. inglesa in
Ayer, A. J. - Logical Positivism, pp. 209-227.
51

verificação, dos enunciados protocolares ou de observação, será um dos temas


discutidos nos diálogos de Wittgenstein com alguns dos representantes do Círculo
de Viena, nomeadamente com Schlick.
O que está em causa é a tese verificacionista do sentido, ou a adopção,
como critério de sentido, do processo de verificação de uma proposição; e o
estatuto das proposições protocolares ou de observação imediata. Na minuciosa
análise de Carnap, as proposições protocolares constituem a base fundacional a
partir da qual se estabelece, em última análise a validade de todas as proposições
científicas. Todo o sistema linguístico é constituído em virtude dos protocolos –
aos quais Carnap se refere metaforicamente com uma expressão (an Hand der
Erfahrung) que traduz o seu carácter experiencial básico, a sua acessibilidade
imediata e directa na experiência. As proposições protocolares são o ponto de
partida para qualquer sujeito que vise uma linguagem intersubjectiva: estas
asserções básicas apresentam afinidades com o critério absoluto de verificação
através das Erlebnisse extra-linguísticas. Só uma proposição que permite a
possibilidade de verificação tem sentido cognitivo. Escreve Carnap: "As
proposições mais simples na linguagem protocolar são proposições protocolares,
isto é proposições que não necessitam de justificação e que servem de fundamento
para todas as restantes proposições da ciência".
"As proposições mais simples na linguagem-protocolar referem-se ao dado,
e descrevem directamente a experiência ou os fenómenos dados, i. é os estados
mais simples dos quais se pode ter conhecimento"46.
Neurath rejeita esta imagem de linguagem-protocolar, destituindo qualquer
proposição dessa infalibilidade dos protocolos que não são privilegiados com o
noli me tangere que Carnap lhes atribui: "Não há qualquer modo de considerar
definitivamente estabelecidas as proposições protocolares como o ponto de partida
das ciências. Não existe qualquer tabula rasa. Somos como marinheiros que têm

46
"Protocol Statements and the Formal Mode of Speech", in Hanfling, O. (ed.) Essential
Readings in Logical Positivism, p.153.
52

de reconstruir o seu navio no mar alto, jamais capazes de o desmontar em terra


seca e reconstruí-lo aí com os melhores materiais"47.
Nenhuma proposição se pode apresentar como irrevogável e irrevisível,
portanto, nenhuma pode proporcionar um critério último e absoluto de verdade. O
único critério de verdade reside na coerência da totalidade do corpus científico. A
ciência consiste na construção de um sistema não contraditório de proposições
reais - protocolares e não protocolares -, o que significa que qualquer proposição
pode ser alterada ou cancelada em nome da coerência. Na concepção de Neurath, a
nova forma dos protocolos mostra que a elaboração do conhecimento científico
não tem o seu começo num determinado momento, mas está sempre presente
como um todo, forjando-se com os seus próprios resultados, e transformando-se
continuamente cancelando ou substituindo proposições aceites num período
histórico prévio. "Todas as leis e todas as proposições fisicalistas da ciência
unificada ou de uma das suas sub-ciências estão sujeitas a esta transformação. E o
mesmo vale para as proposições protocolares" 48. Em oposição a Carnap, Neurath
rejeita a admissão de qualquer tipo de proposições não sujeitas a verificação, que
sejam primitivas, atómicas, elementos básicos directamente relacionadas com
experiências imediatas49. Toda a linguagem é inter-subjectiva, os protocolos de um
momento A têm que ser incorporados nos protocolos de um momento B, tal como
os protocolos de um sujeito têm de ser confrontados com os protocolos de outro
sujeito. Não faz qualquer sentido, portanto, falar de uma linguagem privada. Na
linguagem universal e unificada da ciência não tem sentido falar de um protocolo
pessoal, ou falar de um aqui ou agora; na linguagem fisicalista os nomes pessoais
47
Neurath,"Protocol Sentences", p. 201.
48
Ibidem, p. 203.
49
Sobre a evolução do pensamento de Carnap e sua relação com o Círculo de Viena, cfr Quine,
W. V. "Le combat positiviste de Carnap", in Sebestik, J. e Soulez, A. (orgs.) - Le Cercle de
Vienne.Doctrines et controverses, pp.167-180. Na mesma obra cfr. Proust, J. "Empirisme et
Objectivité", pp. 131-148, onde se precisa o sentido do 'empirismo' de Carnap: o método de
reconstrução racional limita ou atenua o carácter empirista da sua epistemologia, visto que
substitui a génese concreta, psicológica dos conceitos por uma génese ideal, na qual se
repartiriam os dois pólos do trabalho científico. Tal como Kant, Carnap procura a montante da
ciência, uma articulação de forma e conteúdo que justifique a própria ciência.
53

são simplesmente substituídos por coordenadas e coeficientes de estados físicos.


Deste modo, Neurath resolve à partida todo o puzzle das outras mentes.

A crítica de Neurath levou Carnap a rever a sua concepção fenomenista da linguagem,


substituindo-a por um fisicalismo, em conformidade com a tese de Neurath, segundo a qual a
verdade de um enunciado não se pode decidir isoladamente pelo critério da sua concordância com
a experiência, mas só contextualmente, tendo em conta a coerência interna do discurso.
"Sobretudo por influxo de Mach e de Russell, - escreve Carnap na sua Intellectual Autobiography
- no Aufbau considerei óptimo, nos finais da análise filosófica do conhecimento, uma linguagem
fenomenista. Acreditava, então, que a tarefa da filosofia consistia na redução do saber a uma base
certa. Dado que o conhecimento mais certo é o do imediatamente dado, enquanto o conhecimento
das coisas materiais é derivado e menos certo, parecia-me que o filósofo devia usar uma
linguagem fundamentada nos dados sensíveis. Mas, durante os debates do Círculo de Viena, a
minha atitude mudou gradualmente, ao ponto de determinar-se por uma preferência pela
linguagem fisicalista […]. Foi Neurath em particular que promoveu, nas nossas discussões, a
viragem para uma atitude fisicalista. Falo de 'atitude' e não de 'crença', na medida em que se
tratou de uma questão prática e de escolha, e não de um problema teórico de verdade[…]. Em
minha opinião, uma das principais vantagens da linguagem fisicalista é constituída pela sua
intersubjectividade, isto é, pela circunstância de que todos os eventos nela descritos, são, por
princípio, observáveis por acção de quem quer que a use" 50.
Mais tarde, com a publicação de "Testability and Meaning" (1936-1937), Carnap revê
totalmente o critério de significado do discurso científico, concluindo pela impossibilidade de
uma verificação completa dos enunciados científicos. A revisão dos critérios de interpretação e de
significação do discurso científico levou ao reconhecimento do carácter em princípio hipotético
das asserções tanto universais como singulares, formuláveis no interior da ciência. Carnap
recorda esta evolução e revisão das teses centrais do positivismo lógico, na Intellectual
Autobiography: "A clarificação e o desenvolvimento dos nossos pontos de vista metodológicos
conduziram inevitavelmente ao abandono dos rígidos esquemas que anteriormente havíamos
assumido na teoria do conhecimento. Para isso, foi fundamental a importância atribuída ao
carácter hipotético das leis da natureza, e especialmente das teorias físicas, sob a influência, quer
de sugestões de estudiosos como Poincaré e Duhem, quer das nossas pesquisas pessoais de
axiomática aplicada às ciências empíricas. Uma verificação completa dos princípios físicos

50
Carnap, Intellectual Autobiography in Schilpp. The Philosophy of R. Carnap, 50.
54

parece-nos impossível; o que induziu Schlick, sob influência de Wittgenstein, a considerar as leis
da física, já não como enunciados gerais, mas meras regras para a derivação de asserções
singulares […]. Assim, à semelhabça sobretudo de Neurath e de Hahn, convenci-me de que devia
procurar um critério de significado mais liberal do que o da verificabilidade" 51. Carnap opta por
um critério muito mais flexível de "confirmabilidade", que atribui às bases do conhecimento
científico um carácter hipotético, conjectural, contribuindo assim para uma certa "liberalização do
empirismo". Segundo este critério, "uma proposição S diz-se "confirmável" (completamente ou
incompletamente) se a confirmação de S for redutível (completamente ou incompletamente) à
confirmação de uma classe de predicados observáveis" 52. Carnap especifica o significado das
"proposições de redução": "Quando um termo x é tal que as condições do seu uso são enunciáveis
mediante os termos y, z, etc., o enunciado que daí resulta pode denominar-se de 'proposição de
redução' de x nos termos y, z, etc., e x pode ser considerado redutível a y, z, etc. […] As
definições são as formas mais simples de proposições de redução" 53.

Schlick assume posição contra o critério da coerência de Neurath,


requerendo um fundamento indubitável, firme e inamovível que constitua a base
de toda a estrutura do conhecimento. Retomando a tradição cartesiana da fundação
do conhecimento, Schlick considera o problema das proposições protocolares, sua
estrutura e funções, como a versão empirista na qual se formula a questão do
fundamento último do conhecimento54. "É claro, e tanto quanto sei inquestionável,
que o conhecimento na vida e na ciência, em certo sentido começa com a
confirmação dos factos e que as "proposições protocolares" nas quais esta ocorre
estão, no mesmo sentido, no começo da ciência. Qual é este sentido? Este começo
deve ser entendido no sentido temporal ou lógico?"55.
Com esta pergunta, Schlick põe o dedo no cerne da questão: trata-se do
problema da génese do conhecimento (o começo no sentido temporal) ou da sua
justificação (o começo no sentido lógico)? São estas duas questões que se

51
Carnap, ob. cit. pp. 57-58.
52
"Testability and Meaning", cfr Barone, F. ob. cit., p.391. Cfr Intellectual Autobiography, p. 59.
53
Logical Foundations of the Unity of Science, § 3, cit. por Pasquinelli, ob.cit., p. 71.
54
"The Foundation of Knowledge", p. 209. Cfr Jacob, P. "La Controverse entre Neurath et
Schlick", Sebestik, J. e Soulez, A. - ob. cit., pp. 197-218.
55
Ibidem, p. 210.
55

encontram imbricadas na procura de um fundamento para o conhecimento: pode


tentar-se uma reconstrução genealógica do conhecimento desde o seu ponto de
partida, ou, partindo da estrutura do conhecimento como um dado, retroceder até à
sua justificação mais radical e última. As proposições protocolares, em geral, são
tratadas como precedendo temporalmente as outras asserções da ciência,
constituindo a base originária do conhecimento da realidade: sobre elas se constrói
todo o sistema das proposições das ciências. Mas, de facto, Schlick considera
compatíveis a perspectiva temporal e lógica: as proposições que registam os
simples dados de observação e ocorrem temporalmente no começo do
conhecimento, podem ser ao mesmo tempo, pela sua própria estrutura, o ponto de
partida lógico da ciência e a justificação última de todas as suas afirmações. E o
problema da base do conhecimento não é senão a questão do critério de verdade. É
justamente nesta questão que Schlick se opõe a Neurath: no contexto da linguagem
fisicalista, a verdade consistiria apenas na ausência de contradição ou na coerência
e acordo mútuos entre proposições. Segundo Schlick, adoptar uma teoria da
coerência como critério de verdade, levaria inevitavelmente a considerar histórias
puramente arbitrárias, tão verdadeiras como um relato histórico ou as afirmações
de um livro de química, desde que a história imaginária fosse construída de um
modo coerente e não contraditório.
A alternativa que Schlick propõe à teoria coerentista de Neurath considera
as proposições de observação como o começo temporal de todo o processo
cognitivo. Estão na "origem" de todo o processo estas proposições sobre o
imediatamente percebido que Schlick designa de Konstatierung. É com base
nestas observações que a ciência faz certas previsões, formula hipóteses. A
confirmação destas previsões através das observações básicas produz no sujeito
um sentimento de "preenchimento" (fulfilment), de satisfação: "Com a
confirmação da previsão atinge-se o objectivo científico: a alegria no
conhecimento é a alegria da verificação, o sentimento triunfante de ter adivinhado
56

correctamente"56. É portanto nas proposições de observação que a ciência realiza o


seu objectivo. Konstatierungen distinguem-se das proposições protocolares, na
medida em que são formuladas em termos demonstrativos: "aqui coincidem dois
pontos negros", "aqui e agora uma dor", e, devido a este carácter demonstrativo
nem sequer podem escrever-se: constituem estritamente falando os primeiros
estímulos que dão início ao processo cognitivo e o conduzem a termos
momentâneos em actos de verificação, mas o seu carácter transitório não permite
que sirvam como um fundamento duradouro e pleno: "A ciência não assenta nelas,
mas conduz a elas, e indicam que foi conduzida correctamente. São realmente os
pontos fixos absolutos; dá-nos alegria alcançá-los, embora não possamos
fundamentar-nos neles"57. Schlick sugere claramente que não considera as
Konstatierungen como o começo no sentido lógico, a justificação última no
processo regressivo de fundamentação do conhecimento, mas como o ponto de
partida dado o seu carácter absolutamente certo e evidente no momento em que
ocorrem. Em confronto com os enunciados protocolares, as Konstatierungen, não
exprimem nunca um conteúdo proposicional completo, não podendo identificar-se
nunca com os primeiros, que são simultaneamente hipotéticos e desprovidos de
expressão indexical. "Uma autêntica constatação não pode ser posta no papel,
porque os demonstrativos 'aqui' ou 'agora' perdem o seu significado uma vez
escritos" 58. De acordo com esta concepção, as constatações de um homem são
ininteligíveis para qualquer outro, e mesmo para o mesmo homem num tempo e
lugar diferentes. Não surpreende, por isso, que não se possam constituir em base
dos enunciados objectivos da ciência. Na expressão de Schlick, a cognição vem
lambê-las tal como uma chama, num contacto fugaz e instantâneo antes de as
consumir. É destes momentos de satisfação e de combustão que dimana toda a luz
do conhecimento59.

56
Ibidem, p. 222.
57
Ibidem, p. 223.
58
"Foundation of Knowledge", p. 226.
59
Cfr ibidem, p. 227
57

O artigo de Schlick é alvo de uma nova réplica de Hempel, que defende


essencialmente a posição de Neurath, rejeitando a inteligibilidade de um confronto
entre uma proposição com os factos ou a realidade, reafirmando que as
proposições só podem ser comparadas com outras proposições. Hempel reitera a
argumentação de Neurath contra a admissibilidade de uma clivagem entre
linguagem e realidade, vendo nesta o resultado da insistência metafísica em
pseudo-problemas falhos de sentido60. A discussão prolonga-se com nova resposta
de Schlick em "Facts and Propositions" 61, onde insiste que não há nada de
"metafísico" na ideia de verificabilidade das proposições através de um confronto
com os factos ou com a realidade, e com outra contra-argumentação de Hempel62.
O debate é interminável. As críticas e objecções tendem a extremar as duas
posições em confronto: o fisicalismo coerentista de um lado, o empirismo
fundacionalista do outro. A questão dos protocolos desempenha o papel decisivo
na discussão, mas o seu estatuto não é totalmente claro flutuando entre o
fenomenismo e o fisicalismo, e apresentando-se ora como pontos de partida na
génese de todos os conhecimentos, ora como pontos de chegada no auge do
processo cognitivo da ciência. Não há uma fronteira nítida, nas discussões dos
neo-positivistas, entre o problema da origem do conhecimento e o da sua
justificação.
Poderá, de facto, ver-se na discussão das proposições protocolares uma
versão do dilema fundacionalismo/coerentismo? O que está em causa é o problema
da justificação do conhecimento? Parece tratar-se sobretudo da tentativa de
reconstruir todo o sistema da ciência unitária sobre uma base firme e segura, ou de
garantir um monismo metodológico que assegure o estatuto objectivo de todo o
conhecimento científico e o critério verificacionista do sentido. Com este critério,
os representantes do Círculo de Viena pretenderam sobretudo estabelecer uma

60
Cfr Hempel, C. G. - "On the Logical Positivists' Theory of Truth", Analysis, 2, 1934-35, pp. 50-
51.
61
Analysis, 2, 1934-35, pp. 65-70.
62
"Some Remarks on 'Facts and Propositions'", Analysis, 2, 1934-35, pp. 93-96.
58

fronteira entre filosofia e ciência, denunciando o sem sentido dos problemas


filosóficos. Todo o programa neo-positivista se alimenta de um ideal científico:
construir toda a estrutura do conhecimento numa base empirista e, a partir daí,
numa linguagem que traduza fidedignamente a própria estrutura do mundo. A
convicção de que os enunciados que relatam directamente a experiência sensível
constituem o fundamento último e irrevisível de toda a ciência, corresponde a um
dos dois "dogmas do empirismo" denunciados por Quine. Este reducionismo
radical assenta no equívoco apontado por Quine de considerar que "qualquer
enunciado dotado de sentido pode ser traduzido para um enunciado (verdadeiro ou
falso) referente à experiência imediata". Contra este ideal frustrado, Quine propõe
uma concepção holística da ciência: "os nossos enunciados sobre o mundo exterior
são julgados pelo tribunal da experiência sensível, não individualmente, mas
apenas colectivamente"63. O seu carácter essencialmente anti-metafísico não
permite formular o problema do conhecimento como problema filosófico. Não se
trata de saber o que é conhecer, mas, partindo de uma ciência dada e
inquestionável, construir a linguagem e a estrutura que a confirmem e justifiquem
plenamente.

2.3. Wittgenstein: proposições elementares.

O pensamento dos representantes do Cículo de Viena, a partir da publicação


do Tractatus, centrou-se numa série de comentários sobre esta obra fundamental

63
Cfr "Two Dogmas of Empiricism", From a Logical Point of View, pp. 20-46.
59

de Wittgenstein64. O Manifesto declarava que Wittgenstein era um dos seus


principais iinspiradores (com Russell, Einstein, entre outros). Para Schlick, o
Tractatus foi adoptado como uma fonte principal da concepção lógica do Círculo
de Viena, assim como do designado "princípio da verificação", e da ideia que a
filosofia se deveria constituir fundamentalmente em análise lógica da linguagem.
Decidiu, por isso, que a tarefa central do programa do Círculo deveria ser assimilar
e tornar inteligíveis as ideias de Wittgenstein, tendo confiado a Waismann o
projecto de reunir, organizar e expôr estas ideias65.
Bem ou mal entendido, o certo é que Wittgenstein representou uma
presença fulcral, em torno da qual se discutiram algumas das principais teses
filosóficas dos principais representantes do Círculo, como Schlick, Waismann,
Neurath (este último foi o grande opositor ao pensamento de Wittgenstein).
Convém, por isso, clarificar a posição de Wittgenstein no Tractatus e no
pensamento dos anos imediatamente posteriores à sua publicação, e a sua relação
com a discussão em causa, nomeadamente sobre as proposições protocolares e seu
papel no processo de verificação e justificação do conhecimento científico.
O atomismo lógico defendido no Tractatus foi assimilado ao de Russell,
quando da primeira recepção da obra de Wittgenstein. Não há dúvida que nos anos
de 1929-1930, Wittgenstein se refere em mais do que uma ocasião a duas
linguagems: "a linguagem corrente que todos geralmente falamos e uma
linguagem primária que exprime aquilo que realmente conhecemos,

64
Cfr Haller, R. - "Wittgenstein, était-il neopostiviste?" in Soulez, A. - Le Cercle de Vienne, p.
104. Este artigo é elucidativo sobre a relação e influência de Wittgenstein no Círculo de Viena.
Note-se que os representantes do Círculo nunca se reviram na designação de "positivistas" nem
reconheceram no termo "neopositivismo" um nome próprio do movimento. Feigl propôs a
designação de "positivismo lógico", Neurath, "empirismo racional". Se bem que, ao traçar a pré-
história do seu pensamento não tenham renegado a herança do empirismo clássico, ninguém
apontou, como referência dominante, o positivismo de Comte (cfr ibidem, pp. 108-109.
65
Cfr Baker, G. - "Présentation des Dictées", Soulez, A. (org.) - Dictées de Wittgenstein à
Waismann et pour Schlick, p. XV. As principais informações sobre este período crucial de
transição, que marca "a viragem gramatical" do pensamento de Wittgenstein, vêm-nos das
transcrições de Waismann e dos textos de Wittgenstein nas Philosophische Bemerkungen e
Philosophische Gramatik.
60

nomeadamente os fenómenos"66. Numa das passagens destes anos, afirma que a


linguagem fenomenológica não era sobre objecto físicos, mas sense-data67. No
entanto, estes textos não permitem concluir decisivamente que Wittgenstein se
estivesse a referir ao Tractatus, nem que a sua noção de fenómeno fosse idêntica à
de Russell68.
Confrontando as passagens em que Wittgenstein faz referência à linguagem
fenomenológica, com as teses de Tractatus, nomeadamente com o atomismo
lógico, não parece ser correcta a identificação dos objectos com os sense data tal
como os entende Russell. Uma "linguagem fenoménica", no sentido em que
Wittgenstein a emprega, significa uma linguagem para descrever o mundo tal
como o encontramos, ou, em termos kantianos, é uma linguagem para descrever os
fenómenos e não as coisas em si mesmas; ou, recorrendo à terminologia de
Schopenhauer, é uma linguagem para descrever o mundo como ideia69.
Uma interpretação corrente, pelo menos nas primeiras leituras do Tractatus,
identificava as suas proposições elementares com proposições de observação ou,
na terminologia do Círculo de Viena, com as proposições protocolares: elementos
simples e últimos na análise da linguagem, as proposições elementares pareciam
corresponder a uma decomposição da estrutura cognitiva que reflecte a imagem do
mundo70. E na base desta estrutura, estão proposições de observação directa e

66
Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circel, p. 45;Cfr Philosophical Remarks, §§ 1, 11, 47, 57.
67
Philosophical Remarks, § 57.
68
Cfr McGuiness, Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circel, p. 45, n. 8: "Here Wittgenstein no
doubt refers to earlier manuscript volumes in which some of the Philosophical Remarks may have
occurred for the first time". Para uma discussão das interpretações do sentido de "fenómeno" e
"linguagem fenoménica" nos escritos de Wittgenstein, cfr Pears, D. - The False Prison, I vol., pp.
92-94.
69
Cfr Pears, D. - The False Prison, I, p. 98. Segundo outra interpretação, nos antípodas desta
assimilação dos objectos aos sense data, os objectos do Tractatus não poderão identificar-se com
nenhuma espécie de coisa independentemente especificável. Cfr H. Ishiguro "The Use and
Reference of Names", Studies in the Philosophy of Wittgenstein (P. Winch ed.) Routledge, 1969,
e B. McGuiness "The Socalled Realism of Wittgenstein's Tractatus in Block, I. (ed.) -
Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, Blackwell, 1981.
70
Um exemplo flagrante desta interpretação é Popper, K. - British Philosophy in Mid-Century,
Allen and Unwin, 1957, pp. 163-164.
61

imediata. No Tractatus pode encontrar-se algum fundamento para esta


perspectiva71, por exemplo, na referência aos signos primitivos, que só podem ser
compreendidos, se há uma relação de conhecimento directa com as referências
destes signos (3.263). Os sinais primitivos são nomes e um exemplo de um nome
poderia ser a palavra "vermelho" empregue numa expressão como "mancha
vermelha aqui", usada por alguém na presença de um objecto vermelho.
No entanto, este exemplo não corresponde ao que Wittgenstein entende por
"proposição elementar", tendo em conta a condição que apresenta em 6.3751:"É
óbvio que o produto de duas proposições elementares não pode ser nem uma
tautologia nem uma contradição. A proposição segundo a qual um ponto no campo
visual tem simultaneamente duas cores diferentes é uma contradição". Para
qualquer proposição de simples observação é possível encontrar outra que possa
ser incompatível com ela e ao mesmo tempo logicamente análoga72.
O problema central de que Wittgenstein se ocupa no Tractatus situa-se no
âmbito dos fundamentos da lógica e da teoria do significado, e não no da
epistemologia. Não se trata portanto de apresentar uma análise genética do
processo cognitivo, tarefa que Wittgenstein considera ser a da teoria do
conhecimento que, no fundo, não é senão filosofia da psicologia (4.1121). O
reconhecimento das proposições elementares assenta em razões puramente lógicas
(5.5562), e a existência de objectos simples e de nomes é uma exigência da
determinação do sentido (3.23).
Um exame detalhado sobre o estatuto das proposições elementares no
contexto do Tractatus mostra claramente que estas correspondem a uma exigência
lógica da teoria do sentido e da teoria "pictórica" da linguagem, e não constituem,

71
McGuiness, considera que a «teoria do conhecimento» do Tractatus pressupõe a existência de
enunciados protocolares, que Wittgenstein denomina Aussagen, em oposição às Hypothesen. A
leitura de 6.3751 inclina McGuiness para uma interpretação em sentido fisicalista, se bem que
este parágrafo possa sugerir uma certa indiferença em relação à alternativa fisicalista ou relação
com os sense data. (Cfr "The so-called Realism of Wittgenstein's Tractatus", Block, I. (ed.)
Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein).
72
Cfr Anscombe, G. E. M. - An Introduction to Wittgenstein's Tractatus, p. 27.
62

de modo algum, o termo de uma análise e decomposição dos processos


cognitivos73.
A argumentação de Russell para a sua versão do atomismo lógico diverge
da de Wittgenstein: para Russell, a análise da linguagem fáctica deverá alcançar
palavras que são compreendidas em virtude de um conhecimento directo
(acquaintance) das coisas designadas; o argumento de Wittgenstein processa-se a
priori a partir da existência de proposições fácticas com sentido para a existência
de uma estrutura subjacente de possibilidades elementares. As proposições fácticas
podem ser analisadas descendo até proposições fácticas nas quais ocorrem só
nomes de objectos simples: estas últimas são as proposições elementares,
caracterizadas pela sua independência lógica, portanto não se contradizendo nunca
umas às outras. São simples porque os objectos designados são desprovidos de
estrutura interna. Para provar a possibilidade de análise de todas as proposições do
discurso fáctico, recorre a um argumento redutor: se uma proposição complexa
tiver sentido, a sua análise far-se-á através de outras proposições com sentido, e é
evidente que não seriam possíveis coisas complexas se não fosse verdade que os
seus componentes se encontrassem estruturados segundo o modo exigido para a
sua existência. O sentido de uma proposição sobre uma coisa complexa não pode
depender da verdade de outra proposição sobre os seus componentes. Portanto, a
análise deve proceder até ao nível seguinte e incluir a nova proposição no sentido
da proposição originária; este processo deverá continuar até que todas as palavras
para coisas complexas sejam substituídas por nomes genuínos que designem
objectos simples. O descenso da análise do sentido de uma proposição complexa,
deverá logicamente ter o seu termo em proposições elementares, não analisáveis
nas quais ocorrem apenas nomes de objectos simples, sem qualquer complexidade
interna. A teoria de Wittgenstein é extremamente abstracta: não são apresentados
nenhuns exemplos de objectos simples nem de proposições elementares ("isto é
73
Para a compreensão das proposições elementares na lógica do Tractatus, cfr 2-021, 2.0211,
3.23, 3.24, 4.0621, 4.211, 4.22, 4.221, 4.25, 5.134, 6.3751. Cfr Anscombe, G. E. M., ob.cit., pp.
25-40.
63

vermelho" ou "isto é verde", que são necessariamente incompatíveis, não são


evidentemente proposições elementares)74.

2.4. Notas sobre verificação e justificação

As reflexões ditadas a Waismann por volta de 1930 e as notas para Schlick


(1932), reflectem já claramente a "viragem gramatical" de Wittgenstein nas
abordagens de algumas das teses do empirismo lógico: o sentido como verificação,
a linguagem fenoménica, a demarcação entre linguagem com sentido e sem
sentido, a noção de regra. A nova maneira de pensar que marcará a "viragem" na
filosofia de Wittgenstein (se é que se pode falar de uma "viragem" e de um
"primeiro" e "segundo" Wittgenstein) está já presente e dá origem a revisões de
fundo nalgumas das questões centrais discutidas entre os representantes do Círculo
de Viena: é o caso da noção de verificação e de linguagem fenoménica.
Wittgenstein matiza cuidadosamente e aborda de um modo muito mais flexível
toda a teoria do sentido como verificação e da base fenoménica de toda a
linguagem. Desponta a suspeita em relação a um tratamento em bloco da
linguagem e suas relações com a realidade: apenas se poderá tratar, na linguagem
de casos particulares: "a descrição do meu campo visual, quer o faça com a ajuda
de palavras, ou com a ajuda de um desenho, ou de qualquer outro modo, será
sempre aproximativa, bruta, imprecisa - cada uma à sua maneira. O melhor, mais
uma vez, é não fazer qualquer enunciado geral, mas procurar no caso específico o
que poderá ser chamado «uma maior exactidão»"75. Aquela certeza da linguagem
fenoménica, na qual se pretendia assentar todo o edifício do conhecimento
científico, qual imagem especular do mundo, desmorona-se perante a ideia de uma

74
Cfr Tractatus 6.3751. Sobre a interpretação do atomismo lógico de Wittgenstein e o estatuto
das proposições elementares, cfr Pears, D. - The False Prison, vol I, cap. 4.
75
Cfr Soulez, A. - Dictées de Wittgenstein á Waismann et pour Schlick, p.162.
64

multiplicidade de modos de compreender a própria linguagem 76, de casos


singulares com diferentes regras, diferentes jogos em acção que se torna
necessário apreender: "…O sentimento que com a linguagem não aderimos à
realidade, porque o tempo escapa-se enquanto falamos, [este sentimento]
permanece inatingível, mesmo que nos representemos um momento em que, por
uma vez, não ocorrese à nossa volta nenhuma alteração. Tem-se o sentimento que
os fenómenos nos escapam e se desvanecem no passado sem poderem ser
retidos"77. São os próprios alicerces do fenomenismo que são minados nestas
reflexões. As vivências, a experiência interna directa e imediata, escapa-se-nos
totalmente, não se deixa fixar ne linguagem. O caso ideal da descrição exacta,
isomórfica da realidade, que inspirara a teoria pictórica da linguagem, revela-se,
de facto inatingível; a descrição não pode nunca alcançar a realidade, deparamo-
nos aqui com um limite da linguagem verbal78.
Um outro tópico fulcral para o pensamento dos neopositivistas: a exigência
de verificação, como critério e índice do sentido. Também este tema é
profundamente revisto por Wittgenstein já nos anos de contactos com os membros
do Círculo de Viena, particularmente com Schlick. A demarcação nítida entre
proposições verificáveis, e por isso com sentido, e não verificáveis, sem sentido, é
a principal tarefa que o empirismo lógico atribui à filosofia e que a nova maneira
de pensar de Wittgenstein obriga a reformular: os adjectivos «verificável» e «não
verificável» já não constituem duas determinações vizinhas do mesmo conceito, as
expressões «proposição verificável» e «proposição não verificável» significam
algo totalmente diferente, possuem gramáticas completamente diferentes 79. De
facto, Wittgenstein renuncia expressamente à tese verificacionista do sentido: “... o
dictum ssegundo o qual o sentido de uma proposição reside na sua verificação
76
Já no Tractatus Wittgenstein escreve que esta multiplicidade pode estar completamente
implícita. Cfr 4.002: "O homem possui a capacidade de construir linguagens com as quais pode
expressar qualquer sentido sem ter nenhuma noção de como e do que significa cada palavra. - tal
como se fala sem se saber como os sons individuais são produzidos."
77
Soulez, A. - ob. cit., p. 161.
78
Cfr ibidem, p. 158.
79
Cfr ibidem, p. 251.
65

induz-nos em erro”. O que é explicar o sentido de uma proposição, para além da


própria proposição? “Uma proposição e a explicação do seu sentido não podem ser
duas coisas independentes. Uma coisa é clara: quando pomos no papel a
explicação integral do sentido de uma proposição, só se pode tratar da proposição
e nada mais além da proposição(...) A proposição não é senão uma explicação
abreviada (...) a resposta a dar à questão da verificação de uma proposição reside
numa transformação totalmente determinada desta proposição, um modo de
transformação determinada por esta questão”80.
Não se trata agora de explicar redutivamente, de analisar
unidireccionalmente do todo para o elemento último, do complexo para o simples,
mas de ver numa sinopse os múltiplos traços duma linguagem mediante a qual
acedemos a uma compreensão dos próprios processos de compreensão, expressão,
simbolização do mundo. A grande maioria das nossas asserções podem ser
consideradas como hipóteses, no sentido em que podem ser confirmadas ou
infirmadas por uma considerável diversidade de testemunhos sensoriais - só as
proposições que exprimem estes testemunhos são proposições verdadeiras,
susceptíveis de uma verificação completa. Quanto às hipótese pode-se apenas
estabelecer o seu maior ou menor grau de probabilidade: são como um corpo
sólido, representando as proposições empíricas as secções transversais do corpo
sólido. O valor das proposições ditas empíricas é função do lugar que ocupam na
nossa imagem do mundo como totalidade. Está já no horizonte a ideia típica do
pensamento posterior de Wittgenstein, segundo a qual o significado de uma
proposição reside no conjunto de diferenças que ela introduz no nosso modo de
actuar e na nossa vida social. Mesmo que uma proposição não possa ser objecto de
verificação ou de infirmação, pode, no entanto repercutir nas nossas vidas e na
nossa actividade e estas consequências práticas determinariam o papel da
proposição na vida: este papel constituiria o seu significado81.
80
Cfr ibidem, pp. 60-61.
81
Cfr B. McGuiness, "Wittgenstein et le Cercle de Vienne", Visages de Wittgenstein (org. R.
Bouveresse-Quillot), p. 101. O direito de rejeitar uma série de proposições (filosóficas, éticas,
66

Até que ponto esta "nova maneira de pensar" teve eco nos próprios
destinatários destas notas e reflexões? Será que as relações de Wittgenstein com os
membros do Círculo de Viena não terá passado de um profundo e insanável mal-
entendido? De facto, neste período da vida de Wittgenstein a sua posição em
relação ao Tractatus reflectia exactamente o que escreveu em 6.54: reconhecia as
suas próprias proposições como falhas de sentido e elevara-se para além delas,
lançando fora a escada, depois de a ter subido. A lição final a tirar do percurso de
Wittgenstein situa-o a uma longa distância dos ideias expressos no Manifesto:
transcender estas proposições para ver o mundo a direito, pressupõe ver o
Tractatus como um todo, e elucidar o sentido último das suas proposições.
Neurath baptiza esta atitude como "a escada metafísica da elucidação". Com ela,
Wittgenstein não só se exclui da "Concepção Científica do Mundo", como
compromete a sua realização. A "transcendência" de Wittgenstein é razão
suficiente para Neurath excluir o Tractatus do sistema unitário da ciência82. A
"segunda parte" da obra de Wittgenstein, a que ele próprio considerava mais
valiosa não teve qualquer receptividade no ambiente neo-positivista do Círculo de
Viena.

estéticas), por serem desprovidas de sentido, mantém-se mesmo depois do Tractatus; mas o
critério deixa de ter o carácter rígido desse período, para se conformar mais com a variedade das
necessidades e interesses humanos. Sobre o sentido e verificação das hipóteses, cfr Dictées de
Wittgenstein, pp. 169-171.
82
Sobre a crítica de Neurath ao Tractatus, a partir da leitura de 6.54, e a incompreensão do
pensamento de Wittgenstein por parte dos membros do Círculo de Viena mais próximos de
Wittgenstein, cfr Soulez, A. "Comprendre Wittgenstein", Visages de Wittgenstein, pp. 105-134.
67

3. Percepção: Aparência e Realidade

O termo percepção tem uma conotação bastante ampla que ultrapassa tudo
o que se refere apenas aos sentidos, sensações e conhecimento sensitivo. Em
sentido lato, apreendemos a realidade do mundo externo de um modo imediato e
directo sem tematizar ou consciencializar os próprios processos internos que são
veículos dessa apreensão. Quando dizemos "«vemos» uma árvore, uma casa, o
céu…", exprimimos que estes objectos se nos apresentam, se nos dão no seu todo
configurado com um inegável carácter de unificação objectiva, que integra
diversos planos perceptivos. Esta apreensão conjunta pressupõe um princípio de
ordem e de organização que mobiliza o sujeito todo, integral, e os seus diferentes
estratos cognitivos. Trata-se, com efeito, de um "pensamento vivido", que
incorpora a si a experiência. Não se dá propriamente a percepção sem o momento
essencial da "incorporação do significado": o "dar-se" do objecto é inseparável da
própria acção perceptiva do sujeito, e é todo o sujeito que percepciona ou se
apercebe, apreende, capta o mundo real dos objectos.
Descrever, explicar os processos causais que dão origem á percepção é
tarefa que cabe à psicologia, à neurofisiologia, à filosofia da mente. Esta descrição
exige, no entanto, a perspectiva da terceira pessoa. Na perspectiva da primeira
pessoa não se pode responder à questão do «como se dá a percepção», porque o
sujeito ao ter consciência imediata das suas próprias experiências perceptivas não
tem acesso fenomenológico à relação causal entre o objecto percebido e a sua
própria percepção. Nesta dimensão não nos apercebemos dos meios pelos quais
68

temos consciência dos objectos83. Só numa perspectiva externa se pode abordar o


problema de saber como funciona a percepção: os psicólogos e neurofisiólogos
têm detectado várias dimensões da experiência perceptiva e as suas conexões com
os processos neuronais. À filosofia da percepção interessa, não tanto a questão de
saber o «como se dá», mas «o que é que se dá» na percepção. Um dos problemas
centrais do qual se têm ocupado a filosofia da mente actual é o de saber se a
consciência perceptiva é ou não algo de distinto dos processos neuronais.
Do ponto de vista epistemológico, a questão primordial consiste em saber
se de facto nos apercebemos dos objectos do mundo externo tal como são
realmente, ou se a nossa percepção ocorre sempre velada pelo mundo interno das
nossas imagens, representações, sensações e aparências. Estão aqui em confronto
duas posições fortes no que respeita à nossa experiência perceptiva: um realismo
directo para o qual na percepção somos directamente conscientes dos objectos
físicos e suas propriedades; uma perspectiva «representacionalista» segundo a qual
só nos apercebemos directamente das próprias entidades mentais (imagens,
sensações, ideias) que representam os próprios objectos físicos. No primeiro caso,
a aparência e percepção são consideradas como termos correlativos e exprimem a
mesma relação cognitiva entre sujeito e objecto; no segundo, a aparência assume,
não o estatuto de uma relação, mas o de um objecto de consciência que se
apresenta como mediação incontornável, interposição entre o sujeito e os próprios
objectos externos, que não são apreendidos em si mesmos84.
A questão da fiabilidade da nossa experiência perceptiva tem dominado a
epistemologia moderna, herdeira das duas grandes tradições filosóficas: a
cartesiana e o seu modelo das ideias como estados subjectivos internos, mais
evidentes e imediatos do que os objectos do mundo externo; a filosofia anglo-
saxónica, marcadamente empirista, e actualmente centrada na pergunta sobre se

83
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 36.
84
Cfr ibidem, p. 81.
69

ocorrem de facto dados seguros provenientes dos sentidos (sense data) e, no caso
afirmativo, qual a sua relação com os chamados objectos materiais.
As questões epistémicas do estatuto da representação, da viabilidade do
acesso ao objecto real, e da fronteira entre aparência/realidade, constituirão o fio
condutor do tratamento da percepção. Como ponto de partida, propõe-se uma
breve síntese das principais teses aristotélicas sobre a psicologia da percepção,
para salientar o carácter imanente e simultaneamente identitário com que se
apresenta a relação entre a experiência perceptiva do sujeito e o seu objecto. A
perspectiva «representacionista» pressupõe uma psicologia da percepção que
contrasta nitidamente com a aristotélica: na origem deste distanciamento estão
dois modelos distintos da mente85, do conhecimento e sua relação com a realidade.

3.1. Aisthesis

85
A palavra "mente" não traduz de modo algum a grega psyche. Esta noção aristotélica ressurge
hoje em muitos dos enquadramentos teóricos dos psicólogos e filósofos da mente. Cfr Wilkes, K.
V. "Pyche versus the Mind", Nussbaum e Rorty - Essays on Aristotle's De Anima, cap. 7. O
modelo da tradição cartesiana, norteado pelo objectivo epistemológico de encontrar um
fundamento incorrigível do conhecimento, faz radicar este fundamento na introspecção imediata
da consciência que tem por objecto directo os conteúdos da mente - as ideias. Rorty assinala o
contraste entre este modelo e o clássico grego, no qual não se encontra "(…) the conception of the
human mind as an inner space in which both pains and clear and distinct ideas passed in review
before a single Inner Eye. There were, to be sure, the notions of taking tacit thought, forming
resolutions in foro interno and the like. The novelty was the notion of a single inner space in
which bodily and perceptual sensations, mathematical truths, moral rules, the idea of God, moods
of depression, and all the rest of what we now call 'mental' were objects of quasi-observation"
("Cartesian Epistemology and Changes in Ontology", in J. E. Smith (ed.) Contemporary
American Philosophy, London, Allen and Unwinn, 1970, pp. 273-292.)
70

No final do Livro II, Aristóteles sintetiza o seu exame das sensações em


duas teses que constituem o fulcro de uma teoria do sentir86:
1. Em geral, de todas as sensações, deve entender-se o sentido como "a
faculdade apta para receber as formas sensíveis sem a matéria" (424a17-19). A
expressão "sem a matéria" tem sido, nos nossos dias, objecto de controvérsias
sobre o papel atribuído ao processo fisiológico da sensação. Burnyeat conclui da
leitura desta passagem que a recepção das formas sensíveis deve entender-se como
tornar-se consciente das cores, sons, odores, etc., e não como uma alteração
fisiológica qualitativa do orgão sensível; e, em consequência, não é necessária
qualquer alteração fisiológica para que um orgão sensível tome conhecimento dos
respectivos objectos sensíveis87. A recepção da formas sensíveis não é de modo

86
Com este item do Programa, não nos propomos uma exposição da teoria da percepção de
Aristóteles, mas tão-só assinalar um aspecto relevante para as perspectivas actuais no âmbito da
psicologia filosófica, da filosofia da mente, decisivo para apreciar a incidência das posições
aristotélicas nas discussões contemporâneas. Em notas bibliográficas indicam-se textos para um
estudo mais abrangente sobre a teoria aristotélica da percepção.
87
Cfr Burnyeat, "Is an Aristotelian Philosophy of Mind Still Credible?" in Nussbaum e Rorty,
Essays on Aristotle's De Anima, p. 19: "the physical material of which Aristotelian sense-organs
are made does not need to undergo any ordinary physical change to become aware of a colour or
a smell: one might say that the physical material of animal bodies in Aristotle's world is already
pregnant with consciousness, needing only to be awakened to red or warmth". Este tópico tem
sido objecto de debate nas leituras que os filósofos da mente fazem dos textos aristotélicos. O
cerne da questão está em saber qual a relação que se dá entre a actividade perceptiva e a alteração
material dos órgãos dos sentidos.
Para um confronto da psicologia da percepção aristotélica com as explicações actuais na filosofia
da mente e ciências cognitivas, cfr. Everson, S. - Aristotle on Perception, que recolhe a literatura
em torno desta questão e mostra que Aristóteles se propõe explicar a actividade perceptiva como
a actividade de um corpo vivo, tendo em conta as alterações materiais nos órgãos que detêm as
diversas capacidades perceptivas. Cfr "Introduction", pp. 9-10: o autor contrapõe uma
interpretação «espiritualista», que dispensa os processos fisiológicos no tornar-se consciente das
qualidades sensíveis, a uma interpretação «literal» (literalist), segundo a qual sempre que um
órgão sensível é actualizado e ocorre a percepção, este órgão sofre uma alteração, tornando-se
literalmente semelhante ao seu próprio objecto. Esta relação entre a alteração material e a
actividade perceptiva seria uma relação de composição ("a cólera é um processo fisiológico no
mesmo sentido em que uma casa é um conjunto de tijolos", Sorabji, "Body and Soul", in Barnes e
ots, Articles on Aristotle, 4, p. 55) e não de identidade, uma especificação que elucida o tipo de
fisicalismo pressuposto na teoria aristotélica. Cfr Everson, cap. 6, pp. 229-288. Uma leitura atenta
de Aristóteles permite situá-lo numa posição de equilibrio entre dois extremos, se bem que tão-
pouco se poderá asimilar a psicologia aristotélica ao funcionalismo. "Certainly, he does not
identify perceptual events with material events, but nor does he think that the two are merely
accidentally related. The difficulty, of course, is in determining quite in what relation they do
stand - and since Aristotle himself does not discuss this question explicitly, any contemporary
71

algum um processo fisiológico, dá-se uma transição de conhecimento potencial


para conhecimento actual, que não é a transição de qualquer material de um estado
para o outro. Há transição psicológica sem transição material. Por esta razão, a
teoria da sensação de Aristóteles não teria qualquer pertinência em confronto com
os actuais conhecimentos sobre a fisiologia humana88.
2. A actividade do sensível (aisthetou energeia) e a do sentido (aisthesews)
é a mesma e única, se bem que a sua essência não seja a mesma (III, 2, 425b24-
25): o som em acto e o ouvir em acto são uma e a mesma coisa. Esta actividade é a
própria interacção da forma sensível e da capacidade sensórea. Hegel sublinha
bem a relevância desta tese: sentir é precisamente a superação do hiato entre
subjectivo/objectivo, uma forma de identidade que abstrai da subjectividade e
objectividade89. O ponto de encontro entre Aristóteles e Hegel situa-se
exactamente na identidade intencional entre cognoscente e conhecido90.
O tratamento aristotélico da sensação distancia-se de qualquer aproximação
em termos de teorias causais, das "hipóteses para-mecânicas supérfluas",

answer will be somewhat speculative. Nevertheless, there are various passages both in the
psychological treatises and elsewhere which serve to guide such speculation" (Everson, p. 231).
Sobre a hipótese da aproximação da estrutura da explicação aristotélica do "funcionalismo
analítico", cfr p. 252-258. Note-se a observação ao texto da Metafísica 1048b29, no qual
Aristóteles distingue entre kinesis, movimento, processo sempre incompleto (ateles) e energeia,
actividades completas, constituindo o seu próprio fim: quando alguém percepciona, é verdade que
se percepcionou, quando alguém pensa, é verdade que pensou. Em qualquer processo, no entanto,
dá-se um ponto final, e este não está completo enquanto o sujeito da alteração não tiver atingido o
estado que constitui esse ponto final, no qual deixa de haver processo ou alteração. Tendo em
conta a distinção, Everson conclui que "the material change to the organ cannot be identified with
the perceiving, since the latter, as an activity, is not complete until the organ has taken on the
colour or temperature of the object affecting it. A simple application of Leibniz's law will show
that the perceiving and the organ's material alteration are not identical. If this is right, then
Aristotle is no functionalist." (p. 255, sublinhados nossos).
88
. Confronte-se em Nussbaum e Rorty, ob. cit.,o ensaio de M. Nussbaum e H. Putnam "Changing
Aristotle's Mind", no qual se defende, contra Burnyeat, uma interpretação de Aristóteles que se
afasta tanto de um reducionismo materialista como da interpretação de Burnyeat, segundo a qual
a percepção sensível dispensaria qualquer alteração material concomitante.
89
Cfr. Leçons sur l'Histoire de la Pensée, Paris, Vrin, 1972, p. 573-74. Como assinala Hegel, a
reflexão da consciência é a distinção posterior entre subjectivo e objectivo: sentir é precisamente
a superação desta separação, uma forma de identidade que abstrai da subjectividade e
objectividade. A psyche em sentido próprio, e o eu, são no sentir a unidade na diferença.
90
É precisamente a esta passagem de Aristóteles que se reporta Brentano ao reintroduzir a noção
de intencionalidade.
72

empregando a expressão de Ryle, ou de "eficácia causal" segundo expressão de


Whitehead. Em The Concept of Mind, Ryle denuncia o emprego que em psicologia
ou em filosofia se faz do termo sensação, identificando-a com impressão, afecção
nos sentidos que pode ser observada internamente, e transformada numa espécie
de "objecto" de um sentido interno. Este "uso pretencioso" do termo é frequente
nas teorias representacionistas, mentalistas e fenomenistas, que Ryle rejeita. O
traço comum a estas teoria da percepção é a sua abordagem em termos de
acto/objecto, sendo o «objecto» uma espécie de entidade dependente da própria
mente, uma "ideia" no sentido lockiano, um dado dos sentidos mecanicamente
produzido por um estímulo externo. Voltaremos adiante a um breve exame destas
perspectivas sobre a percepção sensível.
A teoria aristotélica unifica numa mesma explicação o funcionamento dos
vários sentidos: a recepção da forma sensível sem a matéria e a identidade do acto
de quem sente com o que é sentido, são duas ideias que valem para todos os
sentidos em geral. Aristóteles não discrimina por um lado a vista, o ouvido e por
outro o tacto, o gosto, o olfato, embora os distinga como sentidos da distância, os
primeiros e sentidos do contacto, os segundos. Em todo o caso trata-se sempre de
um acto de uma capacidade sensitiva, no qual se apreende, recebe a forma
sensível, numa identidade intencional que une aquele que sente com o que é
sentido.

3.2. Problemas da representação


O modelo do processo cognitivo que domina a reflexão epistemológica,
herdeiro em parte do modo de conceber a consciência na filosofia de inspiração
cartesiana, apresenta-se arquitectonicamente construído sobre a separação entre o
73

mundo da consciência e seus conteúdos e o mundo dos objectos externos; o


primeiro é constituído pelo conteúdo das nossas experiências ou crenças, que por
sua vez são consideradas como estados subjectivos. Mediante estes estados da
mente - representações, sense data, imagens, etc. - poderemos aceder ao mundo
dos objectos realmente existentes. O conhecimento pode ser considerado como
uma certa relação entre a mente e a realidade, mas a «realidade» que
primeiramente me é dada é a dos próprios conteúdos internos da consciência. Esta
posição epistemológica traduz a convicção cartesiana de que a mente e a matéria
são dois domínios perfeitamente autónomos e distintos91.
Neste enquadramento, as ideias são os objectos imediatos da consciência,
ou estados da consciência nos quais o conteúdo representacional é apreendido.
Tanto a perspectiva cartesiana da consciência como o empirismo de Locke
partilham este mesmo ponto de partida: em confronto com Descartes, Locke
afirma que as ideias básicas da mente não são inatas, mas adquiridas a partir da
realidade, posição que, no entanto dificilmente se enquadra no modelo cartesiano
das ideias e da consciência.
Em Locke, as ideias simples não são mais do que fenómenos ou aparências
e só temos acesso ao mundo real mediante as ideias que este produz na mente,
através dos sentidos92. O âmbito das ideias é um "pequeno mundo" interno,
semelhante ao mundo externo dos objectos. Sendo este "pequeno mundo" o único

91
Cfr Kelley, D. - ob. cit., p. 121.
92
Cfr Locke, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano II, II, §§ 1-2.
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 18. Se as ideias que percebemos directamente são
distintas dos objectos externos, há que explicar que tipo de relação se dá entre eles, de modo a
justificar a correspondência que se estabelece entre ambos. Em resposta à questão apontam-se
duas relações básicas: a de semelhança entre o conteúdo da ideia e a identidade qualitativa do
objecto externo; a relação causal entre o objecto externo e a ocorrência da ideia na consciência.
Uma teoria «representacionalista» enfrenta-se com duas alternativas: ou explicar a relação das
ideias com os objectos externos através da sua natureza representacional, sendo o conteúdo da
ideia semelhante ao objecto; ou atribuir a relação à natureza formal da ideia que, enquanto
ocorrência psicológica, deverá ter uma causa. A suposta semelhança - tema recorrente nas teorias
representacionais - é posta em cheque por Berkeley: como pode uma ideia ser semelhante a
qualquer coisa que não seja uma ideia? Quanto à relação causal, que constitui para Locke a base
do nosso conhecimento dos objectos externos, não resiste aos argumentos de Berkeley e Hume
(cfr Kelley, ob. cit., p. 20).
74

ao qual temos acesso, será sobre estas representações que se poderá reflectir93,
manipulando, combinando, de modo a construir ideias mais complexas. Uma
concepção atomista preside a toda a concepção lockiana do conhecimento: as
ideias simples são os átomos gravados na mente através do impacto dos sentidos,
que lhe fazem chegar partículas insensíveis, a que Locke chama "glóbulos" 94. Por
um processo de associação quase mecânico, combinam-se estas partículas dando
origem às ideias complexas cuja composição se rege por leis que procedem do
próprio "eu pontual".
Esta teoria do conhecimento está em perfeita consonância com a imagem
mecanicista do mundo: conhecer consiste em receber passivamente impressões
sensíveis, "materiais" que a mente combina e associa livremente. Não há lugar
para uma concepção do saber em que a forma intencionalmente possuída é a forma
realmente existente, porque se anula, com a mediação da representação, aquela co-
actualização de cognoscente e conhecido. Entre as ideias na mente e as qualidades
que as produzem dá-se uma relação causal, que, no entanto, nem sempre é a
mesma. Segundo a terminologia introduzida por Locke, há que distinguir entre
qualidades primárias e secundárias: primárias são qualidades originárias e básicas
de um objecto, que produzem em nós as ideias simples da solidez, extensão,
movimento, repouso e número. São parâmetros "inteiramente inseparáveis do
corpo, qualquer que seja o estado em que se encontre, de modo que ele as conserva
sempre em todas as alterações e mudanças que sofra, por maior que seja a força
que possa exercer-se sobre ele" 95. As secundárias, pelo contrário, "nos próprios
corpos não são mais do que potências para produzir em nós várias sensações por
meio das suas qualidades primárias, isto é, pelo volume, pela figura, pela textura e
93
Cfr Locke, J. - ob. cit. II, VI e VII.
94
Cfr ibidem, II, VIII, §§11-12: "Se, portanto, os objectos exteriores não se unem à nossa mente
quando nela produzem ideias, e, no entanto, percebemos essas qualidades originais daqueles
objectos que individualmente caem sob o alcance dos nossos sentidos, é evidente que haverá
algum movimento nesses objectos que, afectando algumas partes do nosso corpo, se prolongue
por meio dos nossos nervos ou dos espíritos animais até ao cérebro ou sede da sensação para aí
produzir na nossa mente as ideias particulares que temos acerca dos ditos objectos."
95
Ibidem, II.VIII. §9.
75

movimento das suas partes insensíveis"96. É o caso das cores, odores, gostos, sons
e outras características de tipo qualitativo que cheguem à nossa mente. Não se
trata de qualidades objectivas, embora erroneamente as julguemos como tal, mas
constituem-se na mente por efeito de processos quase-mecânicos.
Demócrito afirma, destas "imagens" ou "aparências" designadas por termos
como "doce", "amargo", "quente", "frio", "vermelho", "preto" que existem só
enquanto sentidas por algum sujeito percipiente. Nada "aparece" de nenhum modo,
se não aparece a algum ser vivo. A partir daqui infere Demócrito que de nenhuma
coisa física não-percepcionada se pode dizer que é doce ou amarga, quente ou fria,
vermelha ou preta. Aristóteles aponta uma certa ambiguidade na inferência de
Demócrito (que se encontra também em Locke). Dizer que sem a visão não há
branco ou preto, sem o gosto não há qualquer sabor é, em parte verdade, em parte
falso. O "sentido" o "objecto sensível" são termos ambíguos, porque podem
designar potencialidades ou actualidades. No primeiro caso, a afirmação é
verdadeira, no segundo é falsa97. Uma coisa física quando não está a ser
percepcionada, não é actualmente quente ou fria, vermelha ou preta, mas possui
um "poder" ou "capacidade" para estimular o sentir da cor, do calor, etc.; dadas
certas condições, causaria a respectiva sensação. Portanto pode considerar-se,
segundo Aristóteles, que essas coisas, mesmo quando não percepcionadas
possuem potencialmente, mas não actualmente, sons, cores, sabores. Esta
"capacidade" ou "potencialidade" pode parecer paradoxal no contexto actual das
teorias da percepção, sobretudo devido à "tentação de reduzir as potencialidades a
actualidades"98, mas não dista tanto do critério em que Reid assenta a distinção
entre qualidades primárias e secundárias: enquanto a figura, movimento são
propriedades intrínsecas dos objectos, as cores, sons, sabores e odores são
propriedades relacionais, ou poderes de produzir determinadas sensações em nós,
em condições normais; percepcionar essas qualidades é percepcionar que o objecto
96
Ibidem, II, VIII, §10.
97
Cfr De Anima, III, II, 426a; Metafísica, IV, V, 1010b.
98
Cfr Kenny, A. - The Metaphysics of the Mind, pp. 98-99.
76

tem uma certa relação com o sujeito percepcionante. Dizer que são propriedades
relacionais não implica que não sejam objectivas: o predicado "venenoso"
significa ser "venenoso para os seres humanos", designa uma propriedade
relacional, mas objectiva. Nem Aristóteles, nem Reid inferem da relatividade deste
tipo de propriedades a sua subjectividade. A relação dos sensibilia com os
sentidos é semelhante à relação da chave com a fechadura99.
Tão pouco se poderá dizer que ao empregar predicados como "vermelho",
"doce", "amargo", etc., os aplicamos primeiro às aparências e depois às coisas que
nos apresentam essas aparências: desde o princípio, aplicamos os predicados às
coisas. Este é um pressuposto do empirismo, afirmar que não podemos aplicar
qualquer predicado ou adjectivo como "vermelho", enquanto não soubermos
aplicar "parece vermelho". Esta suposição implicaria que aprendemos a descrever
as aparências ou modos de sentir antes de aprender a descrever coisas físicas
"externas"; mas, de facto, quando descrevemos modos de aparência, estamos a
descrever as coisas físicas que nos aparecem 100. Nenhuma barreira, nenhum "véu
da percepção"101 separa esta do percebido - há uma passagem "contínua" através da
species, que é uma similitudo. "As cores têm o mesmo modo de existir na matéria
individual e no poder de ver: e elas podem também imprimir a sua similitude na
sensação visual"102. O que não significa que os sentidos constituam um mero
receptáculo; a passividade significa que a coisa percebida se apresenta a si própria,
se dá a conhecer de um modo directo, sem nenhuma mediação entre o percepto e o
sentido. Nem mesmo a mediação das "aparências" - estas são sempre o aparecer, a
presentação imediata da coisa. "A similitude é acompanhada de uma dupla posição

99
Cfr ibidem, p. 104.
100
Cfr Chisholm, R. Perceiving, p. 136
101
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 81: "… perceptual relativity was widely used by
modern philosophers to support representationalism in perception. They turned appearance from a
relation between subject and object into a separate object of awareness constituting a veil that
pervents us from perceiving external objects after all."
102
S. Tomás, Summa Theologiae, I, q. 85, a. 1, ad. 3.
77

de existência, a do percebido e a da entidade: a percepção atinge a própria


coisa"103.

3.2.1. Duas Imagens do Mundo: Senso Comum e Ciência

A distinção de Locke leva a uma demarcação nítida entre um modo


subjectivo e um objectivo de representar o mundo, o que suscita a interminável
questão de saber o que distingue cada uma destas perspectivas e como se podem
relacionar. Quais os aspectos da nossa perspectiva da realidade têm a sua origem
na nossa estrutura subjectiva e quais reflectem a realidade tal como é em si? 104
Formulado nestes termos dilemáticos, o problema apresenta-se como um beco sem
saída. A subjectivização das qualidades secundárias contagiará e alimentará o mito
da incomunicabilidade da Primeira Pessoa, de tudo o que directamente se refere ao
Eu - como dirá Frege, ninguém poderá ter acesso aos pensamentos referidos ao Eu,
os fenómenos da experiência em primeira pessoa são totalmente
incomunicáveis.105 McGinn apresenta uma proposta de ultrapassar as
consequências da incomunicabilidade quer das qualidades secundárias, quer de
todas as experiências da primeira pessoa106, embora reconheça a impossibilidade
de eliminar a perspectiva subjectiva107. Um exame da viabilidade de superar a
incomunicabilidade e de evitar os escolhos de uma perspectiva subjectivista, será
apresentado ao tratar a intencionalidade da percepção.

103
Cfr Gil, F., Tratado da Evidência, p. 63.
104
Cfr McGinn, The Subjective View, p. 1.
105
Cfr "Der Gedanke". Kelley aproxima a distinção entre a perspectiva da primeira e da terceira
pessoa, dos princípios da primazia da existência e primazia da consciência que regulam o modo
de pensar o conhecimento. Os dois pontos de partida - primeira ou terceira pessoa - exprimem
dois modos diferentes da relação entre o sujeito e objecto. Cfr The Evidence of the Senses, p. 36.
106
Cfr The Subjective View, cap.5.
107
Ibidem, cap. 6.
78

Outra consequência inevitável deste dilema é a discontinuidade entre a


imagem do mundo que nos é apresentada na percepção sensível, o mundo tal como
o vemos, e a "imagem científica do mundo": O ponto de vista científico não pode
reconciliar-se com um ponto de vista perceptual, o conteúdo da concepção
científica não é um possível conteúdo da experiência. O mundo em que vivemos
tem cores, sons, sabores, etc.; a imagem científica do mundo exclui todas essas
características qualitativas, fundadas apenas na estrutura subjectiva da nossa
sensibilidade108. O reconhecimento desta discontinuidade entre as concepções da
ciência e as representações dos sentidos foi detectado por pensadores e cientistas
tão variados como Husserl, Whitehead, Polanyi, Prigogine… para citar só alguns.
Depois de examinar o distanciamento entre experiência perceptiva e ciência,
McGinn conclui pela impossibilidade de optar por uma das perspectivas em
detrimento da outra: abandonar a perspectiva subjectiva significaria abandonar a
possibilidade da experiência do mundo; abandonar a perspectiva objectiva
significaria renunciar à pretensão de uma realidade unitária, independente do
observador109. As duas alternativas parecem verdadeiramente irreconciliáveis. O
salto do qualitativo ao quantitativo seria inviável. Entre o subjectivo e o objectivo,
108
Cfr, no entanto Kelley, D. ob. cit., pp. 95-111: é possível integrar as duas perspectivas, sem ter
de negar nenhuma das conclusões a que se chega dentro delas. A cor, considerando o ponto de
vista do sujeito, não é um traço característico da sua consciência perceptiva. O facto físico mostra
que a cor é uma propriedade relacional dos objectos, originada na interacção entre eles e o nosso
sistema visual. Como outras propriedades relacionais, não há qualquer razão para a localizar, nem
para a considerar como subjectiva. A cor não é um objecto separado da consciência, mas um
aspecto do modo como os objectos externos nos aparecem no que respeita as suas propriedades
de reflexão da luz. "Experienciar a cor como externa é o único modo de poder experimentar a
externalidade das propriedades de reflexão. Dada a necessidade de percepcionar através de meios
específicos, tem-se experiência da cor justamente no "local" certo - o local do atributo de que se
tem consciência através dela" (p. 109).
109
Cfr McGinn, C. ob. cit, p. 126-27: não há possível tradução entre a imagem científica e a
imagem experiencial do senso comum, a concepção absoluta do mundo, da qual são eliminadas as
qualidades secundárias não se pode fundar nem construir a partir duma experiência perceptiva. As
várias tentativas de resolver este conflito entre senso comum e ciência pressupõem esta
incomensurabilidade entre as duas imagens. O conflito aparente tem a sua origem numa
ambiguidade da noção de "realmente", que significa tanto "verdadeiramente", como
"objectivamente". A distinção entre estes dois sentidos dissolve o conflito entre ciência e senso
comum: "a ciência permite que os objectos sejam realmente (verdadeiramente) coloridos, mas
nega que sejam objectivamente coloridos; o senso comum defende que as coisas externas têm cor,
mas não comete o erro de afirmar que isso é uma questão objectiva" (McGinn, ob. cit., p. 121).
79

a experiência perceptiva e a imagem científica do mundo, o abismo parece


intransponível.
Esta fronteira entre duas "imagens incomensuráveis", assenta na
interpretação subjacente à distinção entre qualidades primárias e secundárias, que
considera o carácter relacional das últimas como um sinal inequívoco da sua
subjectividade e consequentemente atribui-lhes o estatuto de ilusóras. No entanto,
um exame detalhado da "relatividade" de todo o fenómeno perceptivo mostra que
não há nada que nos comprometa filosoficamente com a relatividade das
qualidades secundárias. A um nível mais profundo, poder-se-á concluir que até as
qualidades primárias e todo o mundo espacial são de certo modo relativos ao
nossos sistema perceptivo, e daí não se deverá concluir que a experiência do
mundo espacial é completamente ilusória. O hiato entre as duas imagens,
alimentado pela distinção radical entre qualidades primárias e secundárias,
difumina-se e a percepção da cor, do cheiro, do tacto revela-se muito mais
semelhante com a da forma e da figura110.

3.2.2. Percepção - Convicção da Existência

Um crítico da perspectiva "representacionista" do conhecimento perceptivo,


que denuncia os inconvenientes de fazer intervir nos processos sensitivos um
«objecto interno», conhecido imediatamente, em vez do objecto real, é Thomas
Reid. O emprego generalizado pelos filósofos empiristas do termo ideia, é
considerado por Reid a fonte de uma homogeneização de todos os objectos do
pensamento, incluindo até os objectos externos, que seriam conhecidos apenas
através das imagens, impressões produzidas por eles na própria mente. Esta tem
um carácter eminentemente activo, e não passivo, na concepção de Reid. A própria
sensação, que Reid distingue da percepção, implica um acto da mente "que não
110
Cfr Kelley, D. - ob. cit., pp. 111-120, 231-232.
80

tem qualquer objecto distinto do próprio acto"; a percepção, por contraste, implica
uma "concepção ou noção do objecto percebido" e pressupõe "convicção e crença
forte e irresistível da sua existência presente"111. O que Reid refuta nos filósofos
empiristas é o distanciamento gnoseológico dos objectos externos, que não podem
nunca ser objectos imediatos para a nossa mente. Afirma Reid:
"Os filósofos modernos (…) conceberam que os objectos externos não
podem ser objectos imediatos do nosso pensamento; tem que haver certa imagem
deles na própria mente, na qual se vêm como num espelho. E o nome ideia, no seu
sentido filosófico, aplica-se a esses objectos internos e imediatos do nosso
pensamento. A coisa externa é o objecto remoto ou mediato; enquanto a ideia ou
imagem desse objecto na mente é o objecto imediato, sem o qual não poderíamos
ter percepção, nem recordação, nem concepção do objecto mediato" 112.
Reid emprega também expressões como "ideia" ou "representação" para
designar a actividade cognoscitiva, mas nega-se a utilizá-las para designar
indiscrimidadamente um suposto objecto que tivesse necessariamente que mediar
entre a faculdade e a realidade efectiva.
"Para prevenir erros, é necessário recordar de novo ao leitor que se por
ideias se entendem só os actos ou operações das nossas mentes, ao perceber,
recordar ou imaginar objectos, estou longe de pôr em causa a existência desses
actos; somos conscientes deles em cada dia e cada hora da nossa vida; e creio que
nenhum homem de mente sensata duvidou jamais da existência real de operações
da mente, das quais é consciente. (…) As ideias, de cuja existência exijo uma
prova, não são as operações de mente alguma, mas supostos objectos dessas

111
Reid, T. - Essays on the Intellectual Powers of Man, II, V, p. 258: Na percepção de um objecto
externo, dão-se sempre, "uma concepção ou noção do objecto percebido, uma forte e irresistível
convicção e crença da sua existência presente, convicção que é imediata, e não efeito de
argumentação ou raciocínio. Enquanto na sensação se dá apenas uma distinção gramatical entre o
acto e o objecto, na percepção externa há sempre um objecto distinto do acto pelo qual é
percebido. A convicção da existência do objecto é efeito imediato da minha constituição, uma
convicção instintiva, um dos melhores dons da natureza, que seria imprudente rejeitar ou pôr em
dúvida (cfr Inquiry into the Human Mind, VI, XX, p. 183-84).
112
Essays on the Intelectual Powers of Man, I, I p. 226.
81

operações. Não são percepção, recordação ou concepção, mas coisas das quais se
diz que são percebidas, ou recordadas, ou imaginadas.
"Tão pouco discuto a existência do que vulgarmente se chama objectos de
percepção. Estes são chamados coisas reais, não ideias, por todos os que
reconhecem a sua existência. Mas os filósofos defendem que, além dessas coisas,
há objectos imediatos de percepção na mente; que, por exemplo, não vemos o sol
imediatamente, mas uma ideia. (…) E é a partir desta ideia que temos de inferir a
existência do sol113. Mas não pode haver qualquer dúvida da existência da própria
ideia, pensam os filósofos, visto que é imediatamente percebida"114.
Para Reid, a imagem na mente é só a concepção do objecto e não o objecto
concebido. É um acto da mente e não o objecto desse acto. E, inflectindo o ónus da
prova, Reid exige uma prova da existência das ideias, e não dos objectos da
percepção dos quais temos uma forte convicção da sua existência. A maioria dos
filósofos são unânimes em admitir a existência de ideias ou imagens mentais, mas
é curioso como divergem tanto ao definir ou caracterizar essas representações:
alguns consideram-nas auto-existentes, outros que estão na mente divina, outros
que se encontram na mente humana, e outros que se encontram no cérebro ou
sensorium. As considerações de Reid sobre a suposta localização das ideias ou
imagens mentais no cérebro, adquirem uma relevância inquestionável para a actual
ciência cognitiva. Para Reid é absurdo pensar que as impressões de objectos
externos sobre a máquina do nosso corpo possam ser a causa eficiente do
pensamento e da percepção. As teorias causais da percepção incorrem na falácia

113
Numa passagem da Recherche de la vérité, (III, II, p. 320) Malebranche invoca também o
exemplo do sol, para ilustrar a imediatez e evidência das ideias: "O objecto imediato do nosso
espírito quando, por exemplo vê o sol, não é o sol, mas algo que está intimamente unido à nossa
alma, e é a isso que chamo ideia". Mas a visão do espírito não é senão um retorno a si mesmo e
uma iluminação directa de Deus, que nos faz ver com evidência. Cfr Gil, F. - Tratado da
Evidência, p. 20.
114
Ibidem, cap XIV, p. 298. Reid rejeita este carácter inferencial da percepção: a convicção de
existência é não só irresistível, mas imediata, sem o recurso a qualquer passo argumentativo ou
dedutivo. A percepção domina com a sua autoridade a nossa crença e dispensa a necessidade de
fundar a sua própria autoridade em qualquer forma de raciocínio ou argumentação. Cfr Essays on
the Intellectual Powers of Man, II, V, p. 259.
82

vulgar de concluir da sucessividade de duas coisas, uma relação causal entre a


primeira e a segunda: "Dia e noite sempre se dão numa constante sucessão desde o
princípio do mundo; mas quem é tão louco que conclua daqui que o dia é causa da
noite, ou a noite causa do dia seguinte? Não há nada mais ridículo do que imaginar
que um movimento ou modificação da matéria possa produzir pensamento" 115. Tão
absurdo como pensar que um telescópio tem a capacidade de ver, será pensar que
as impressões dos objectos externos sobre a máquina do nosso corpo são as causas
reais e eficientes do pensamento e percepção Não se pode esquecer que Reid
escreve no século XVIII, mas deve reconhecer-se que as suas críticas prenunciam
já alguns dos problemas suscitados pelos estudos cognitivos da percepção,
nomeadamente a falácia do homúnculo, com o seu inevitável processo ao infinito.
Não há preconceito mais natural do que conceber a mente à semelhança do corpo,
de modo que tal como imaginamos que os corpos se põem em movimento por
algum impulso exercido sobre eles por outros corpos contíguos, assim se julga que
a mente pensa, percebe, etc., por obra de certas impressões provenientes de
objectos contíguos. Reid encontra sérias dificuldades em atribuir algum sentido à
expressão "impressões exercidas sobre a mente". É certo que só percepcionamos
objectos externos através dos órgãos dos sentidos, mas estes órgão não
percepcionam. O olho é o órgão natural da vista, mas não vê, tal como o telescópio
é um órgão artificial, mas não vê. "Sabemos como é que o olho forma uma
imagem do objecto visível na retina; mas não sabemos como é que esta imagem
nos faz ver o objecto (…) Não podemos encontrar nenhuma razão pela qual à
imagem na retina se deva seguir a visão, quando uma imagem em qualquer outra
parte do corpo não produz nada como a visão"116.
Em certa medida, o problema de Reid é reformulado hoje em dia por todos
aqueles que, no campo da neurofisiologia, óptica, psicologia experimental, ciência
cognitiva, tentam desvendar o mistério do processo da percepção a partir dos

115
Ibidem, II, IV, p. 253.
116
Ibidem, II, IV, p. 257.
83

dados sensoriais disponíveis; a percepção vai para além dos modelos sensoriais
por algum processo difícil de compreender.
Salvas as devidas distâncias, as observações de Reid não são destituídas de
sentido, se pensarmos nas abordagens actuais da psicologia da percepção: um dos
problemas é tentar compreender como é que o olho, localizado algures no
ambiente, é de facto capaz de extrair a informação útil opticamente localizada no
seu campo de visão; uma especificação puramente geométrica parece ser uma
perspectiva pobre, como ponto de partida, porque essa especificação do estímulo
implica claramente que já foi feita uma observação visual. Por isso mesmo, a
óptica ecológica de Gibson não se concentra nos mecanismos psicofisiológicos e
psicofísicos e nos estudos quantitativos que se tornam irrelevantes para
compreender a percepção no enquadramento da sua própria perspectiva.117.

A concepção da mente, segundo Reid, assenta na ideia de actividade,


energeia, todos os seus "estados" são actos, actividades não susceptíveis de uma
análise em termos de acto/objecto. Os objectos "sentidos", "percebidos" são os
objectos do mundo externo, nada mais. Não há lugar para interpor, entre o acto de
perceber e o objecto externo percebido, um segundo "objecto" considerado como a
"aparência" propriamente dita. As críticas de Reid a esta interpretação da
gramática do "aparecer" estão muito próximas de algumas das discussões actuais
na filosofia da mente (Ryle, Austin, Chisholm). As aparências, que nos apresentam
as sensações, percepções são os objectos sob um determinado aspecto: as próprias
aparências não são elas próprias "objectos para um sujeito". Expressões como "x

117
Cfr Boynton, R. M. - "The Visual System: Environmental Information", in Carterette , E. C. e
Friedman, M. P. (ed.) - Handbook of Perception, p. 294. Cfr a resposta de Gison, neste mesmo
volume: "A Note on Ecological Optics", pp.309-312. "Defendo que a percepção visual não se
baseia em ter sensações mas em prestar atenção à informação da luz. A essência da óptica
ecológica é a demonstração de que há informação no ambiente luz. A tese comum na óptica
física, geométrica e fisiológica, no entanto, defende que não há informação na luz, isto é,
nenhuma informação sobre as coisas normais das quais se reflecte a luz (…) Esta é a razão pela
qual a óptica ecológica é teoreticamente crucial. O tipo de óptica que se aceitar determina a teoria
da percepção".
84

apresenta uma… aparência a S", ou "S sente uma… aparência de x" ou "S tem
consciência (is acquainted) de um…sense-datum pertencente a x", tornam-se
extremamente ambíguas118. Induzem-nos a pensar que o adjectivo qualificativo do
verbo atribui uma propriedade à coisa designada pelo nome que o segue. De facto,
não devem ser considerados como tal, mas atribuem algo ao que o nome ou sujeito
do verbo se refere. "x parece um centauro" traduzir-se-ia mais adequadamente por
"x aparece «centáureo»" "x é verde", por "x aparece-me 'verdemente'”. A
gramática do "aparecer" ou "apresentar-se-me" explicita-se em formas adverbiais,
não em formas objectuais, em termos de acto/objecto.

O "adverbialismo" apresenta-se como uma versão rival da teoria dos sense data. O que
propõe fundamentalmente é que as qualidades secundárias não são qualidades de objectos
internos, mas modos segundo os quais os objectos externos aparecem: o objecto externo aparece-
me "verdemente", e a forma adverbial indica que o verde é o modo segundo o qual este aparece
ou o modo como o percebemos. No entanto, do ponto de vista do sujeito, o que se passa quando o
objecto aparece "verdemente" pode também acontecer não havendo nenhum objecto presente. O
estatuto das qualidades secundárias encontra uma melhor descrição eliminando qualquer
referência ao objecto. Os sense data e as teroias adverbiais são realmente teorias da experiência
sensorial, encaradas como um pólo subjectivo da percepção. A primeira aceita e a segunda rejeita
uma análise em termos de acto-objecto da experiência. Como observa Kelley (The Evidence of
the Senses) ambas teorias podem ser vistas como variantes da teoria cartesiana das ideias.
Portanto, os problemas que as duas teorias enfrentam derivam de uma característica central do
modelo representacionalista: a afirmação que o que é experienciado deve estar contido no estado

experiencial, que é considerado um estado do percipiente 119.

118
Cfr Chisholm, R. - Perceiving, p. 117. Chisholm reconhece expressamente a afinidade da sua
análise gramatical de "aparece" com a perspectiva de Reid.
119
Examinados os argumentos a favor do modelo representacionalista, Kelley conclui: "This
approach is appropriate if the mind is an inner theater, with various contents appearing before an
inner eye. But if the mind is a faculty for grasping reality, if awareness by nature is a relation to
what is outside the mind, then perception must be defined in quite a different way." Cfr ibidem,
pp. 122-142.
85

A correcção gramatical proposta por Chisholm está em consonância com a


análise de Ryle120: a linguagem dos sense data exprime-se como se tivesse
encontrado uma nova classe de objectos, quando, de facto, o que traduz é a
desconstrução de uma série de expressões correntes que indicam como se
apresentam objectos correntes. Na linguagem do sentir e da aparência exprime-se
o «como» sentimos, não «o que» sentimos121. Porque nada medeia entre a
aparência e «o que aparece». "O sentir condensa em si a prova permanente do
mundo (…) O sentir não se separa das suas fontes, mas molda-se
permanentemente na experiência que o informa"122.
A afinidade com o pensamento de Reid é patente na seguinte análise
gramatical de Chisholm: mesmo em casos de experiências como a de dor, e
sensações semelhantes, a expressão "Sinto uma dor" ou "Tenho uma dor" pode ser
substituída por "Sinto-me dorido ou doloroso". Este modo de exprimir evita os
paradoxos filosóficos sobre "outras mentes": "Pode outra pessoa sentir a minha
dor? É logicamente possível que a dor que experimento seja idêntica à dor que
outro experimenta?" Tais questões não se podem simplesmente formular na
terminologia do sentir, exigem uma correcção gramatical, e não uma resposta
directa. Se substituirmos o nome "dor", já não o poderemos empregar como o
sujeito da frase "é idêntica a…", e portanto não se poderá perguntar se outra
pessoa pode sentir a minha dor123.
As dificuldades suscitadas pela terminologia das aparências, ou sense-data
difuminam-se também à luz da noção de "preensão" em Whitehead, sendo "todas
as coisas reais sujeitos, cada um dos quais "preende" o universo do qual

120
Cfr The Concept of the Mind, p. 208.
121
Note-se a afinidade com Reid: a análise gramatical das expressões de sensação mostra que não
há uma distinção real, mas apenas gramatical, entre acto e objecto. "A forma da expressão sinto
uma dor, poderia parecer que implica que o sentir é algo distinto da dor sentida; no entanto, na
realidade, não há tal distinção. Tal como pensar um pensamento é uma expressão que não pode
significar senão o pensar, também sentir uma dor não significa senão estar dorido" (Inquiry into
the human mind, VI, XX, p. 183).
122
Gil, F. ob. cit., p. 79.
123
Cfr Chisholm, R. ob. cit., p.123.
86

procede"124. É nítida a inspiração leibniziana da concepção de Whitehead. O que


justificaria bem a perspectiva de "uma espécie de harmonia pré-estabelecida entre
a percepção e o percebido"125.

3.3. A Falácia dos sense-data

No uso corrente de verbos perceptuais de forma não proposicional (não "ver


que…" mas "ver x"), com um objecto gramatical, este objecto designa algo que se
presenta de algum modo ao sujeito percipiente. O objecto "aparece-nos", ou o
objecto apresenta-se com uma certa aparência. Mas inferir desta construção
gramatical que o que percecpionamos é "uma aparência" seria falacioso. Tem sido
referida esta forma de inferência como a "falácia dos sense data. A primeira
conclusão a tirar a partir das premissas seria a seguinte - 1) Vejo um homem; 2)
Um homem aparece-me de um certo modo; 3) Um homem apresenta-se com uma
certa aparência; - portanto vejo uma aparência. E esta primeira conclusão convida
a outra, que seria a negação da primeira premissa: portanto, não vejo um homem.
As "aparências" correspondem ao que tem sido definido como sense data -
objectos de "apreensão directa" (Moore), dos quais somos "directamente
conscientes numa situação perceptual" (Broad), "directamente presentes à
consciência" na percepção (Price). Nem sempre as definições envolvem os termos
"observação" ou "consciência directa"; por vezes são simplesmente caracterizados
como "entidades que são (ou podem ser) sentidas, ou dadas aos sentidos”. De
qualquer modo, os sense data são definidos por referência ao modo como nos
tornamos conscientes deles: são o que sentimos, percebemos, intuimos ou
observamos imediatamente, ou são-nos dados, são aquilo de que somos
directamente conscientes na percepção - assim quando vemos um cão, os nossos
sense data são "uma mancha de cor canina" (Russell), quando vemos uma maçã,

124
Process and Reality, p. 89, cit. por Chisholm, R. ob.cit., p. 124.
125
Gil, F., ob. cit., p. 61.
87

"algo redondo, rosado…" (Lewis), etc.126. Estas são as "aparências" directamente


acessíveis à consciência na percepção; por contraste, os objectos físicos são
percebidos, mas nunca são objectos de "consciência directa". O que realmente
percebemos são apenas certas partes dos objectos, não os objectos propriamente.
Leia-se, por exemplo, o texto de Descartes na Segunda Meditação:
"…si par hasard je ne regardais d'une fenêtre des hommes qui passent dans
la rue, à la vue desquels je ne manque pas de dire que je vois des hommes, tout de
même que je dis que je vois de la cire, et cependant que vois-je de cette fenêtre
sinon des chapeaux et des manteaux, qui peuvent couvrir des spectres ou des
hommes feints qui ne se remuent que par ressorts, mais je juge que ce sont de vrais
hommes;"127
De modo semelhante argumenta Moore: "sempre que falamos em geral de
ver um objecto, a verdade é que, num outro sentido mais estrito da palavra ver, só
vemos uma parte desse objecto"128.
A gramática do ver encontra-se aqui construída à semelhança de verbos
como "possuir", ou "conter" - possuir algo implica possuir todas as suas partes,
conter algo implica conter todas as suas partes. Se construímos a gramática do ver
à semelhança de verbos como "destruir", "habitar" - uma bomba destrói uma
catedral sem destruir todas as partes da catedral, alguém habita em Portugal sem
habitar em todas as partes de Portugal - os verbos perceptuais deixam de induzir
em problemas paradoxais que partem de uma reconstrução dos constituintes da
percepção como se esta fosse um agregado de partes.
A percepção das "aparências" das coisas, não passa então de uma "ilusão",
de um "mistaking", de um "simulacro" - porque tomamos as aparências pelas
próprias coisas que percebemos normalmente. Todo o nosso aparato perceptual
constituiria um logro construído sobre simulacros e não alcançaria nunca a

126
Cfr Firth,, R. - "Sense Data and the Percept Theory", Mind, 58, 1949.
127
Méditation Seconde, pp. 48-49.
128
Some Main Problems of Philosophy, p. 34.
88

percepção verdadeira de objectos. Segundo expressão de Sellars 129: "estas


características sensíveis abertas à inspecção e tomadas como se fossem
literalmente aspectos, superfícies, e qualidades inerentes das coisas físicas são
substitutos subjectivos das partes correspondentes do mundo físico".
Atribui-se frequentemente à percepção um carácter inferencial, a
consciência perceptiva seria de certo modo discursiva. O sense datum dado na
experiência perceptual constituiria um "signo" da existência do objecto físico, ou
actuaria como a causa que nos levaria a formular um juízo sobre um objecto
físico130. Termos como "signo", "pista", "causa" ocorrem para explicar a relação
funcional entre o constituinte sensível, o sense datum e a crença perceptiva. Todos
eles pertencem a uma gramática falaciosa, que leva a conceber a percepção como a
formulação de uma hipótese, ou «conjectura». Neste sentido as teoria inferenciais
são de certo modo extravagantes, senão mesmo "abusivas".
"Aquando da discriminação dos factores de uma forma, é precisamente a
esta forma que os factores se referem: os detectores foram excitados no momento
da sua percepção, nem antes nem depois. Seria abusivo afirmar que a forma global
é inferida, se isso significa que a forma poderia ser diferente daquilo que é. Se,
pelo contrário, se entende por inferência o facto de um processo causal cuja
dinâmica é mal compreendida gerar a forma a partir dos seus factores (ângulos,
lados, etc.), então a inferência não põe em causa o princípio da percepção directa:
o directo não implica o imediato." Considerar a percepção inferencial, no sentido
de "conjectura", pressupõe admitir que a percepção de uma forma poderia ser
sempre diferente do que ela é - uma inferência pode sempre ser infirmada: "…a
forma é sempre o que parece dever ser, mas também poderia ter sido diferente: a
coincidência entre o percebido e os seus elementos seria um milagre
permanente"131.

129
"Knowledge and Its Categories" cit. por Chisholm, 1957, p. 157.
130
Cfr Firth, 1949.
131
Gil, F. ob. cit., pp. 65-66.
89

" O facto de percebermos os atributos dos objectos através de caracteres das


excitações que lhes são específicos não implica que estejamos conscientes destes
atributos indirectamente. A consciência do atributo não depende de uma
consciência do carácter ou da relação causal entre os dois. Além disso, o papel dos
processos neuronais na individuação dos caracteres das excitações tão-pouco torna
indirecta a percepção, pois não há motivo para querer pensar estes processos
segundo o modelo da inferência. Finalmente, o facto de percebermos os objectos
por meio de uma forma não implica que estejamos conscientes dos atributos
indirectamente. Não estamos perceptualmente conscientes de uma forma que se
opusesse ao atributo objectivo, nem da relação entre os dois. A forma é a maneira
como estamos directamente conscientes do atributo"132.
Considerar a percepção como uma "inferência" ou como a "formulação de
uma hipótese" significaria que quando alguém percepciona algo através dos
estímulos sensoriais próprios, teria que inferir, a partir dessa experiência sensorial,
que os objectos familiares que o rodeiam são a causa dos estímulos dessa mesma
experiência133.A percepção não pode ser vista como "inferência" ou "hipótese", no
sentido usual destas palavras. As "teorias inferenciais" assentam nas premissas
mencionadas: 1) o que se percepciona são as aparências; 2) as aparências são
"semelhanças de algo realmente existente nos próprios objectos". A primeira
deriva da "falácia dos sense data" e a segunda releva de uma duplicação espúrea
que considera algo como "objecto interno", "signo mediador" de um outro objecto,
que é o objecto propriamente percepcionado. De facto, o que se passa na
percepção é uma não-consciência explícita do modo como se dá a percepção; ou
seja as "aparências" são justamente o que não aparece na percepção, mas,
empregando uma expressão de Reid, como que se "escondem a si mesmas" para lá
da sombra do objecto percebido e "perpassam pela mente inobservadas" 134. Um
132
Kelley, The evidence of the senses, p. 151.
133
Cfr Chisholm, R. ob.cit., p. 158.
134
An Inquiry into the Human Mind, cap. V, II, p. 120: Há hábitos de desatenção adquiridos desde
muito cedo, que nos levam a concentrar-nos apenas naquilo que a sensção significa, e a ignorar a
própria sensação, que se esconde na sombra da qualidade externa percepbida.
90

exemplo que aponta nitidamente neste sentido é o da leitura de um texto escrito


numa linguagem familiar: "o que nos interessa normalmente é o significado das
palavras impressas, não as peculiaridades da impressão. Não reparamos
explicitamente nesta, a não ser que ocorra alguma coisa errada, como uma letra
escrita de cima para baixo… Exactamente do mesmo modo não estamos
normalmente interessados nos sense data"135. Por isso se diz que o objecto da
percepção "transcende" o "veículo da percepção", ou que se dá uma certa
"transparência" na percepção: percebe-se o objecto "através" da aparência
sensível"136.
Há situações em que as "aparências" 137 comparecem explicitamente, o que
reforça a ideia da sua "transparência" noutras situações correntes: quando se tem
uma sensação dolorosa, ou agradável, ou esteticamente significativa, a sua
"aparência" pode atrair mais a atenção do que o próprio objecto que aparece.
Schopenhauer afirma, neste sentido, que as sensações que nos proporcionam uma
compreensão objectiva do mundo externo não podem ser, em si mesmas
agradáveis ou desagradáveis, não podem afectar a vontade. Caso contrário a
própria sensação atrairia a nossa atenção138.
Para centrar a atenção nas "aparências" torna-se necessário um esforço para
superar o hábito natural de "olhar através" delas. Este hábito natural é uma certa
forma de "posse" - ao percepcionar "possuímos imaterialmente" as formas

135
Broad, Scientific Thought, cit. por Firth, 1949. Do mesmo modo Gibson refere a "irrelevância
das sensações para o sistema perceptivo”. Embora um observador humano, por um esforço de
introspecção, possa ter uma certa consciência da qualidade do nervo estimulado, este facto não
tem nada a ver com a consciência do ambiente que o rodeia e que é o objecto da percepção. As
sensações não são, de modo algum, os elementos da percepção, portanto, o processo perceptivo
não consiste nem pressupõe uma espécie de processo de organização, associando a diversidade
dos elementos recebidos através de estímulos próprios no cérebro (cfr The senses considered as
perceptual systems, pp. 55-56).
136
Cfr Husserl, Logische Untersuchungen, vol II, pt. II, pp. 237-38, cit. por Chisholm, R., ob. cit.,
p. 161.
137
Cfr Austin, J. L. - Sentido e Percepção, cap. IV: um exame da linguagem revela bem as
ambiguidades de expressões como "parecer", "ter aparência de" (look), "afigurar-se" (appear),
"dar a impressão de" (seem).
138
The World as Will and Idea, trad. R. G. Haldane e John Kemp, II, p. 193; cfr Reid, Essays on
the Intellectual Powers, cap. V, sec. 2.
91

percebidas. E a caracterização de héxis dada por Aristóteles é elucidativa a este


respeito139:
"«Ter»(héxis) (ou possuir) signifca, num certo sentido, um determinado
acto (enérgeia), por assim dizer, daquele que tem e da coisa que é tida, como no
caso de uma acção ou movimento; porque quando uma coisa produz e outra é
produzida, há entre elas o acto de produzir… é evidente, por isso, que é impossível
ter o ter (a posse) (echein hexin), neste sentido; porque dar-se-ia uma série infinita
se pudéssemos ter o ter do que temos. Mas há outro sentido do "ter" que significa
uma disposição, em virtude da qual a coisa que está disposta, está bem ou mal
disposta, quer independentemente quer em relação a outra coisa"140.
A impossibilidade de ter o ter aponta justamente para esse aspecto do sentir
como um acto entre aquele que sente e o que é sentido, que constitui propriamente
o ter, um hábito eminentemente transitivo que não se pode deter a si mesmo. A
mesma regressão ao infinito se daria na hipótese de ser possível percepcionar o
que se sente quando se percebe: a imagem retiniana não se deixa ver, pois isso
exigiria, no interior do olho, um homúnculo que a perceba e assim por diante 141.
No modelo do olho e do campo visual, "o olho não o vês de facto. E nada no
campo visual permite inferir que é visto por um olho" (Tractatus, 5.633). O
primado da percepção sobre a sensação é um ponto assente na psicologia
cognitiva: esta apresenta-se como o seu "limite ideal"142.
A semântica do sentir assente no modelo acto-objecto origina, de facto uma
perspectiva deformadora para uma teoria da percepção e da sensação. A
terminologia adoptada representa a experiência sensorial como um acto de
perceber, sentir, experimentar, ter consciência de "objectos" como aparências,
imagens, sense data - uma experiência ou consciência explícita. Corrigir esta
gramática é uma tarefa da psicologia, da filosofia da mente, mas os seus resultados

139
Cit. por Gil, F. ob. cit., p. 79.
140
Metafísica, ∆, 20, 1022b 4-12.
141
Cfr Gil, F. ob. cit., p. 62 n. 27.
142
Cfr ibidem, p. 79.
92

devem ser tidos em conta, pois conduzem a uma reformulação de problemas


epistemológicos fulcrais na justificação do conhecimento.

3.4. Intencionalidade da percepção

Intentio é um dirigir-se, inclinar-se, tender para algo e de algum modo


apoderar-se, possuir, ter, conter esse algo de uma forma peculiar, não fisicamente,
mas intencionalmente. Esse arco intencional entre a consciência e o seu objecto
(aqui os termos "objecto", ou "conteúdo de consciência" apresentam-se ambíguos
será preferível dizer simplesmente, aquilo de que é consciência) origina uma
identidade entre os dois pólos - o eu, a consciência e um segundo termo que tem
um estatuto muito peculiar, porque, não perdendo a sua autonomia existencial
própria, passa a fazer parte integrante da própria consciência. Este modo peculiar
de ser possuído, de ser integrado pela consciência designa-se tradicionalmente
como a inexistência intencional.
Brentano considera a intencionalidade como a marca distintiva de todos os
fenómenos psíquicos:
"Todos os fenómenos mentais se caracterizam pelo que os escolásticos da
Idade Média chamavam a inexistência (Inexistenz) intencional (e também mental)
de um objecto (Gegenstand), e que eu poderia chamar, embora em termos não
completamente desprovidos de ambiguidade, referência a um conteúdo, direcção
para um objecto ( pelo qual não entendemos uma realidade neste caso), ou uma
93

objectividade imanente. Cada um inclui algo como objecto dentro de si mesmo,


embora nem sempre do mesmo modo. Na presentação algo é apresentado, no juízo
algo é afirmado ou negado, no amor (algo é) amado, no ódio odiado, no desejo
desejado, etc."143.
A ideia de um "objecto intencional" encontra-a Brentano, remotamente, em
Aristóteles, precisamente na sua teoria da percepção sensível. Na citada passagem
do De Anima (412a 18), Aristóteles define os sentidos como "a capacidade de
receber em si mesmo as formas sensíveis das coisas sem a matéria". Na sua obra
sobre a Psicologia de Aristóteles, Brentano interpreta esta passagem como
significando que o objecto da sensação e percepção (cor, temperatura, etc. ) não
está só fisicamente presente no sujeito, mas presente como um objecto, isto é,
como um objecto da percepção. E na Psicologia from an Empirical Standpoint,
Brentano afirma que Aristóteles falou já desta in-existência mental, ao dizer que o
objecto percebido, como tal, está no sujeito que percebe, e que o sentido contém o
objecto sentido sem a matéria. A presença das formas sensíveis no sujeito sentinte,
constitui, segundo Brentano o objecto intencional da percepção sensível. Presença
das formas no sujeito significa uma certa afecção, que pode entender-se num
sentido estrito como uma alteração real na coisa afectada - no caso dos sentidos,
consiste no tornar-se fisiologicamente afectado pelos estímulos externos ou
internos da sensação - e num sentido lato como actualização no sujeito de algo já
presente potencialmente. Sentir, perceber e pensar são casos de afecção neste
último sentido. Estes dois sentidos permitem a distinção clara entre tornar-se
vermelho e "sentir ou ver vermelho", entre aquecer material ou fisicamente e
"sentir calor"; esta diferença constitui a distinção entre a afecção material,
fisiológica do órgão sensorial e o próprio acto de sentir, o receber e possuir
intencionalmente a forma sensível. Brentano vê na distinção aristotélica o
fundamento para captar precisamente o que é sentir, destrinçando a componente
fisiológica, material de uma outra que seria propriamente a dimensão intencional.
143
Brentano, F. Psychology from an Empirical Standpoint, p. 88.
94

"Não é na medida em que arrefecemos ou nos tornamos frios, que sentimos


o que é o frio; se assim fosse também as plantas e os corpos inorgânicos sentiriam;
mas só na medida em que o que é frio existe em nós objectivamente, isto é,
enquanto conhecido, que é percebido ou sentido, ou seja na medida em que
recebemos o frio, sem sermos o seu sujeito físico"144.
Em que consiste propriamente esta identidade intencional entre sujeito
sentinte e objecto sentido? Aristóteles apresenta a sensação como uma certa
harmonia, uma ratio (logos). O sentido é a ratio, uma certa proporção
harmoniosa, e os excessos ferem ou destroem o próprio órgão do sentido. Não se
trata, portanto de um rudimentar mecanismo causal, uma relação directa de causa a
efeito, mas a realização, a viabilização de uma harmonia entre os dois termos que
se fundam num só e único acto. Este processo que constitui a sensação revela, de
uma forma seminal, uma estrutura e uma dinâmica intencional.
A atribuição de um carácter intencional a todos os fenómenos psíquicos,
incluindo os fenómenos perceptivos e sensíveis, tem sido posta em causa
actualmente na literatura da filosofia da mente (cfr Fodor, J., 1975, Block,
N.,1997, entre outros). Como estratégia de investigação, tem sido proposta uma
bifurcação entre consciência e intencionalidade que viabiliza uma teoria autónoma
da intencionalidade, tendo em conta sobretudo a sua dimensão semântica,
referencial. Intencionais serão as crenças, os desejos, os pensamentos, expressos
linguisticamente através das chamadas "atitudes proposicionais". Não seriam
intencionais todos aqueles fenómenos que se enquadram numa dimensão mais
subjectiva, fenoménica, qualitativa da consciência: a este último grupo pertence
precisamente o sentir em geral, o aperceber-se directo dos fenómenos, a
experiência sensitiva directa de ver esta mancha de cor, de sentir o cheiro desta
rosa, de ouvir tal som, de sentir prazer, dor, etc. - fenómenos designados, na actual
filosofia da mente por qualia. Entende-se por qualia as propriedades experienciais
das sensações, sentimentos, percepções, e também dos pensamentos e desejos.
144
Brentano, The Psychology of Aristotle, Berkeley, University of California Press, 1977, p. 54.
95

Sentir esses fenómenos é algo apenas acessível ao próprio sujeito, incomunicável


aos outros, susceptível somente de uma descrição na primeira pessoa. Tudo isto os
torna inefáveis dada a sua imediatez, o seu carácter privado, directamente
apreensível apenas pela própria consciência e não têm um carácter intencional,
próprio apenas dos estados mentais funcionais, como pensamento, crenças e
desejos. Block145 propõe mesmo a distinção entre uma consciência fenoménica (P-
consciousness) e uma consciência representacional (A-consciousness): estados
paradigmáticos da primeira são as sensações, da segunda as "atitudes
proposicionais" como pensamentos, desejos e crenças, expressos por casos de
proposições introduzidos por "que". A distinção entre as propriedades intencionais
destas últimas e as qualitativas da consciência fenoménica assenta no facto de
serem as primeiras funcionalmente caracterizáveis, enquanto as segundas não o
são. Atribuir um carácter intencional a essa dimensão fenoménica, qualitativa da
consciência, incorre numa falácia, que Block designa como "a falácia de
intencionalizar os qualia"146.
Pretender «desintencionalizar» a experiência fenoménica, perceptiva, no
seu todo, implica traçar uma linha de fronteira que separa artificiosamente, a sua
dimensão fenoménica, qualitativa, subjectiva, da dimensão informativa, do seu
conteúdo simbólico e da sua relação semântica com o mundo externo. Isolar os
qualia na experiência perceptiva estabelece um corte demasiado arbitrário, uma
desconstrução da experiência até uns componentes últimos, atomizados, que de
facto só se dão no todo, como momentos, aspectos, perspectivas não separáveis.
As sensações em si mesmas consideradas poderão não ser intencionais, mas só se
dão numa experiência intencional. A dimensão qualitativa, subjectiva da
experiência diz respeito à afecção da consciência que vive essa experiência - aí
reside a sua subjectividade. Mas a experiência perceptiva está direccionada para o

145
"On a Confusion about a Function of Consciousness", in Block, Flanagan, Güzeldere, 1997,
pp. 375-415.
146
Contra o argumento de Block, cfr Harman, "The Intrinsic Quality of Experience" in Block,
Flanagan e Güzeldere, p. 663-675.
96

mundo, apresenta-nos o mundo sob múltiplas perspectivas, os objectos


apresentam-se-nos a si mesmos na sua "auto-presença palpável" (leibhaftigen
Selbstgegenwart), para empregar uma expressão husserliana. Só um desvio do
interesse da experiência vivida do objecto perceptual externo para a experiência
viva da sua percepção é que nos conduzirá aos conteúdos das sensações em
conexão directa com o objecto físico perceptual. A experiência perceptiva é como
a face de Jano - aponta para fora, para o mundo externo, ao mesmo tempo que
envolve constitutivamente uma afecção do sujeito que a vive. Estas duas faces
estão indissociavelmente unidas, porque o aspecto subjectivo, o como é da
experiência, é função daquilo sobre o que a experiência é.

Uma teoria intencional da percepção defende que os processos perceptivos


nos apresentam como é o mundo que nos rodeia e nos informam sobre o nosso
próprio corpo. Na bibliografia actual da Epistemologia e da Filosofia da Mente,
emprega-se com frequência a expressão "conteúdo perceptivo" (perceptual
content), para designar os aspectos subjectivos dos estados mentais; o termo
"conteúdo", intimamente associado a "conteúdo da consciência", apresenta, no
entanto, alguma ambiguidade e induz a formular os problemas da percepção no
enquadramento dual de sujeito/objecto, subjectivo/objectivo, que, de algum modo,
assenta numa perspectiva da percepção entendida à luz do par conceptual
acto/objecto. As experiências perceptivas, neste sentido, têm um conteúdo que
consiste no modo como o mundo é representado, e poderão ser verídicas ou
ilusórias, segundo nos representem ou não o mundo tal como é147. A noção de
"conteúdo" parece fundamental para defender uma teoria intencional da percepção,
porque se considera que o "conteúdo" é justamente o elemento intencional de um
acto mental: as crenças, os juízos, os desejos, parecem ter um "conteúdo" que

147
Cfr Martin, M. G. F. "Perceptual Content", in Guttenplan, S., A Companion to the Philosophy
of Mind, pp. 463-471. A leitura deste artigo é elucidativa para um confronto entre a teoria
intencional da perceção e as teorias dos sense data. Aquela não implica necessariamente a
terminologia e a noção de "conteúdo perceptivo".
97

consiste naquilo que se crê, se julga ou se deseja. No entanto, será necessário falar
de "conteúdo" para compreender a relação intencional dos actos de consciência? E,
nomeadamente, para atribuir intencionalidade aos processos perceptivos? Sem
dúvida que se torna muito mais elucidativo aproximar a noção de percepção da
noção de crença, juízo, desejo, etc. E demarcar bem uma teoria intencional da
percepção das teorias dos sense data, mostrando os contrastes que distanciam estas
duas formas de perspectivar os problemas da percepção. Nesse sentido, será útil
um breve exame sobre a noção de "conteúdo perceptivo" como instrumento ou via
para apresentar a relação intencional que se dá no acto perceptivo. Convém, no
entanto, ter em conta que defender a intencionalidade da percepção não pressupõe
necessariamente atribuir-lhe um "conteúdo", entendido como o aspecto
estritamente subjectivo do processo perceptivo.
Considerar os processos perceptivos como intencionais pressupõe, portanto,
assimilá-los àqueles fenómenos mentais que se apresentam paradigmaticamente
intencionais como as crenças, desejos, juízos, pensamentos; a razão desta
assimilação está no papel funcional que a percepção desempenha dentro de toda a
dinâmica dos processos mentais, nomeadamente na interacção com a fixação da
crença, desenvolvimento e controle das nossas acções, etc.: o sujeito recebe
informação sobre o estado do seu próprio corpo e o ambiente que o rodeia através
da percepção; o conteúdo das suas crenças e o modo como realiza as diversas
actividades pode compreender-se com base no respectivo conteúdo dos processos
perceptivos que dão origem a essas crenças e controlam as suas acções. Deste
modo, a percepção integra-se em todo o organismo psíquico, interage com outros
processos cognitivos, com os desejos, decisões, actividades do sujeito e,
sobretudo, estabelece os elos para uma compreensão da interacção sujeito-mundo.
Esta teoria intencional da percepção contrasta nitidamente, como vimos,
com as designadas teorias dos sense data, nas quais se torna difícil compreender
como a consciência imediata dessas «entidades mentais» pode explicar a fixação
das crenças àcerca do meio ambiente ou das actividades sobre esse meio ambiente.
98

Enquanto a teoria do sense datum defende que somos imediatamente conscientes


das «entidades mentais», a teoria intencional defende simplesmente que somos
conscientes dos objectos do meio ambiente, em virtude do conteúdo da nossa
experiência.
Consideremos o caso das ilusões ou alucinações: se é possível experimentar
a percepção de um objecto, mesmo não estando realmente presente nenhum
objecto, como no caso da alucinação, não é essencial para a experiência dessa
percepção - desse estado mental perceptivo - que exista de facto algum objecto,
independente do sujeito, com as qualidades sensíveis percepcionadas. A teoria do
sense datum considera, no entanto, que deve existir algum objecto com as
respectivas qualidades percepcionadas pelo sujeito, e conclui, portanto, que se
trata, neste caso, de um objecto mental, sendo a sua existência totalmente
dependente da consciência que o sujeito tem dele. As teorias intencionais aceitam,
do mesmo modo, que se dá de facto uma experiência perceptiva, mesmo no caso
da alucinação, mas não inferem, da existência desta experiência, a existência de
um "objecto mental"; para explicar casos de ilusão ou alucinação perceptiva,
estabelecem uma analogia entre a percepção e a crença. É possível pensar - julgar,
crer - que Coimbra se encontra ao norte do Porto, embora isso não seja verdade.
Mas não é necessário supor que, por não existir nenhum facto objectivo no mundo
correspondente a essa crença, esta deva ser uma relação com algum facto
subjectivo. Faz parte da natureza das crenças poderem ser verdadeiras ou falsas, e
o seu conteúdo intencional especifica como deveria ser o mundo para que a crença
seja verdadeira. Do mesmo modo, se a experiência perceptiva tiver um conteúdo
intencional, essa experiência pode referir-se a algum estado de coisas físico,
mesmo que esse estados de coisas, na realidade, não se dê. A peculiaridade da
relação intencional é precisamente o facto de ser uma relação na qual é possível
que um dos termos não exista: um sujeito pode relacionar-se "intencionalmente"
com algo que não existe.
99

A linguagem que descreve os fenómenos psicológicos e cognitivos reflecte


estas propriedades da intencionalidade, e pode constituir um índice do carácter
intencional. Chisholm propõe-se detectar estas peculiaridades lógico-linguísticas,
distinguindo três critérios que permitiriam demarcar as descrições dos fenómenos
psicológicos das descrição de outros fenómenos não mentais:
1) o critério da existência independente
2) o critério da indiferença em relação ao valor de verdade
3) o critério da opacidade referencial.
No entanto, examinando os exemplos para cada um destes critérios pode
comprovar-se que não são definitivos: nos três casos, há proposições intencionais
que não os satisfazem, e por outro lado há proposições não-intencionais que
satisfazem estes mesmos critérios148.
O primeiro dos critérios indicados por Chisholm para distinguir uma
expressão intencional, é precisamente o de que nem essa expressão, nem a sua
contraditória implicam a existência ou a não existência daquilo a que se refere essa
expressão: seguindo este critério, "Diógenes procurava um homem honesto", é
intencional, pois nem esta afirmação, nem a sua negação implicam que exista nem
que não exista um homem honesto. Pelo contrário, "Diógenes senta-se na sua
tina", segundo este mesmo critério, não é intencional, visto que implica a
existência de uma tina149. O caso da alucinação vem comprovar, neste sentido, que
o verbo "ver" se pode considerar também que designa um acto intencional. No
entanto, encontramos contra-exemplos em proposições psicológicas sobre
sentimentos que põe em causa este critérios: "Estou-lhe grato pelo favor", ou
"Sinto-me excitado pela música" não são indiferentes quanto à existência.
Do mesmo modo frases como "é possivel que…", "é necessário que…" são
tanto independentes quanto à existência como indiferentes quanto ao seu valor de
verdade. Se é certo que este critério se aplica a expressões como "X acredita p" -

148
Cfr Mohanty, J. N. - The Concept of Intentionality, pp. 26-35.
149
Cfr Chisholm, R. - Perceiving, p. 170.
100

nem esta proposição nem a sua contraditória implicam p - também se aplica a


expressões como "É provável que p" ou "É consistente com p", que não são
intencionais.
O terceiro critério, aplicável a verbos como "saber" ou "perceber" e outros
verbos cognitivos, é ilustrado por Chisholm com o seguinte exemplo: supondo
dois nomes ou descrições que designam a mesma coisa, e seja E uma proposição
constituída apenas pela separação destes dois nomes ou descrições através da
forma "é idêntico a"; supondo que A é uma proposição na qual se emprega um
destes nomes ou descrições e B é semelhabte a A, excepto que emprega o outro
nome ou descrição. Pode dizer-se que A é intencional se a conjunção de A e E não
implica B. Chisholm propõe o seguinte exemplo: Muitos sabiam em 1944 que era
Eisenhower quem estava no comando (A); no entanto, embora Eisenhower fosse o
mesmo (fosse idêntico a) homem que sucederia a Truman (E), não é verdade que
se soubesse em 1944 que o homem que sucederia a Truman era o mesmo que
estava no comando (B).
Quando se empregam termos perceptuais proposicionalmente, as
proposições resultantes revelam esta característica da intencionalidade. Posso ver
que João é o homem que está na esquina, e João pode estar doente; mas não vejo
que João é alguém que está doente. As proposições de percepção revelam
afinidades com as proposições que exprimem pressuposições ou presunções. E
estas exibem a característica referida acima: "Ele supõe que aquelas rochas são o
recife" não implica que as rochas são o recife nem implica que não o são. E o
mesmo acontece com a negação desta proposição150. Aqui se detecta a íntima
correlação da percepção com as crenças e o juízo, actos cognitivos eminentemente
intencionais.
No entanto, a opacidade referencial ocorre também em frases não
intencionais, como casos introduzidos por operadores modais 151. Isto mostra como

150
Cfr ibidem, pp. 171-172.
151
Cfr Mohanty, J. N. - ob. cit., p. 28.
101

as duas noções de intencionalidade e intensionalidade estão estreitamente


relacionadas. No caso dos critérios propostos por Chisholm, alguns são também
critérios de intensionalidade.
O que Chisholm tenta é detectar na linguagem intencional certas
características que lhe pertencem por se tratar de eventos psicológicos, processos e
actos caracterizados por aquilo que Brentano designava de intencionalidade. Os
critérios propostos, revelam sem dúvida algumas das propriedades lógico-
linguísticas da intencionalidade, mas não são exclusivos dos actos ou processos
intencionais; aplicam-se da mesma forma a alguns casos de proposições
intensionais.
Apesar da insuficiência da caracterização linguística do intencional tentada
por Chisholm, os seus critérios aplicar-se-iam plenamente aos verbos perceptivos,
indicando o seu carácter nitidamente intencional, e mostram particularmente a
possibilidade de caracterizar a dimensão intencional da percepção, sem invocar
noções como "conteúdo" perceptivo, ou "conteúdo" de consciência.

Em conclusão: a percepção é o nosso primeiro modo de acesso às coisas e


também um processo centrífugo que nos coloca numa inter-relação activa com
todo o mundo circundante. A realidade é-nos dada, as aparências não são meros
simulacros, não são «aparentes» no sentido de ilusões, mas «aparências» no
sentido de presentações ou revelações. É de facto o sujeito que percepciona,
tomando posse daquilo que percepciona, como um modo de acção, uma praxis
originária, fundacional e imanente. Sentir, percepcionar não se inserem no registo
da produção, do facere, ou da kinesis, mas são em sentido próprio acções do
sujeito, do registo da energeia. A actividade sensitiva é pensamento vivido,
"incorporação do significado" é o alicerce e fundamento de toda a acção prática.
Este carácter originário e fundacional assume um estatuto peculiar no caso
da percepção do próprio eu, dos seus processos e actos psiquícos: por um lado a
102

auto-percepção o saber-me a mim mesmo exibe-se com uma inegável


evidencialidade e produz uma convicção forte; por outro lado, e apesar da
evidência com que me represento e apresento a mim mesma, poderá a auto-
consciência fenoménica constituir uma forma primeira, seminal de identidade
pessoal? O caso particular da percepção do eu será o objecto do próximo capítulo.
103

4. Consciência de si. Percepção do eu.

Os fenómenos perceptivos têm vindo a ser examinados na sua dimensão


real, como vias de acesso a tudo o que não é sujeito, tudo o que não é o eu. No
entanto, há outra dimensão na percepção, segundo a qual o eu se percepciona a si
mesmo, como sujeito da percepção, da compreensão, do desejo e de todos os
outros actos príquicos. Santo Agostinho sintetiza-o na fórmula "compreendo que
compreendo"152 Ambas dimensões se dão em simultâneo nos fenómenos
perceptivos, embora a percepção do próprio eu possa parecer que se esconde por
vezes, ou que quase não comparece no processo perceptivo. A auto-evidência
imediata de si mesmo e dos próprios fenómenos psíquicos é inquestionável, e, no
entanto, a ideia de um «eu» que assiste, persiste numa copresença constante, pode
parecer algo misterioso. Ryle compara-o à própria sombra, da qual ninguém se
pode libertar, que sempre nos acompanha e que induz a mistificar o Eu com um
carácter de unicidade e apropriação153. Todo o fenómeno consciente apresente este
carácter bifronte, simultaneamente voltado para algo e para si mesmo. É este
carácter reflexivo, de auto-presença a si mesmo, que interessa explorar. Inferir

152
De Trinitate, X.II
153
Cfr Ryle, The concept of mind, p.198.
104

daqui a ideia de um «eu» - empírico, transcendental ou mesmo metafísico - será


outra questão com múltiplas e variadas repercussões filosóficas.
O breve exame da intencionalidade da percepção aponta para a coexistência
de uma correlativa auto-percepção. Enquanto intencional, direccionada para algo,
a percepção e todo o fenómeno psíquico abre-nos o horizonte de um mundo para
lá do próprio sujeito. Há outra dimensão dos fenómenos psíquicos, incluindo os
fenómenos sensitivos e perceptivos pela qual acedemos imediatamente ao próprio
mundo subjectivo, ao mundo interno: vejo e tenho consciência que vejo,
percepciono um objecto e tenho consciência dessa percepção, sinto uma dor e
tenho consciência dessa sensação dolorosa, etc. Esta dupla direccionalidade dos
fenómenos psíquicos - por um lado, para além de si mesmos, para algo que não os
próprios fenómenos, por outro, para dentro, para uma auto-consciência - pode
induzir uma aparente dualidade entre o fora/dentro, entre o mundo externo/mundo
interno, entre o eu e o mundo. A herança cartesiana instaurou essa dualidade
fundamental que divide e classifica o físico, o corpo, o exterior por um lado, e o
mental, o eu, o interno, por outro. O mundo físico é constituído por objectos
materiais existentes no espaço e tempo, que actuam e se relacionam entre si em
processos físicos e acontecimentos. O mundo interno é constituído pelas
sensações, sentimentos, imaginações, desejos e decisões que povoam a nossa
consciência.
Intuitivamente pensamos que o acesso a este mundo interno se dá por
introspecção, por uma espécie de sentido interno que se apercebe directamente dos
fenómenos psíquicos. Na tradição filosófica este sentido interno é assimilado ao
modelo perceptual154 e aos seus objectos é atribuida uma dimensão realista,
considerados como sense data vistos por uma espécie de visão interior. Teríamos,
assim, consciência directa de imagens de segunda ordem – imagens de imagens,
representações internas. A perspectiva adverbial reduz a inclinação a pensar no

154
O modelo perceptual segundo o qual se pensa tradicionalmente a introspecção foi objecto das
críticas e elucidações de Wittgenstein.
105

modelo introspectivo como uma percepção de objectos, propondo uma alternativa


a estas pressupostas imagens segundas: a analogia visual induz-nos a postulá-los,
quando de facto, em vez de pensar que vemos uma mancha verde, focando a
sensação como o termo da percepção, podemos focar a própria percepção como
um ver verdemente.
Do ponto de vista epistémico, estes dados imediatos, se têm o carácter
evidente e funcadional, parece poderem constituir-se em base e alicerce de todo o
edifício do conhecimento. A sua infalibilidade, omnisciência e o acesso
privilegiado155 torna estas crenças originárias em fundamento de todo o processo
de justificação. A forte convicção no acesso privilegiado encontra-se radicada no
pensamento de Descartes: a evidência originária do cogito é a pedra angular do
conhecimento. "Eu sou, eu existo: isso é certo… Naõ admito agora nada que não
seja necessariamente verdadeiro: não sou, portanto, falando precisamente, nada
mais do que uma coisa que pensa, isto é um espírito, um entendimento, ou uma
razão…"156. Esta verdade certa, indubitável, fundante, é também aquela que se
alcança de um modo imediato e destrói qualquer assomo de dúvida ou incerteza.
"Conhecço com toda a evidência que não há nada mais fácil de conhecer para mim
do que o meu próprio espírito"157. O «penso, logo existo» é, com efeito "a primeira
e a mais certa (verdade) que se apresenta `qauele que conduz os seus pensamentos
por ordem"158.
A infalibilidade das impressões, aparências imediatamente dadas à
consciência é um dado inquestionável para Hume. Mas, o que se torna duvidoso e
problemático é inferir destas impressões, a existência de objectos exteriores à
mente. A existência não é nunca percepcionada pelos sentidos, ela está para além
das impressões, imagens que se dão aos sentidos e só um inferência (sempre
duvidosa e infundada) poderá fazer passar da mera aparência ao realmente

155
A expressão é de Ryle, G. – The Concept of Mind, p. 160.
156
II Meditação, § 6.
157
Ibidem, § 16.
158
Principios, I, 7.
106

existente. "Uma simples percepção nunca pode produzir a ideia de uma existência
dupla, a não ser por alguma inferência da razão ou da imaginação. Quando a
mente ultrapassa as aparências imediatas, as suas conlusões nunca podem ser
creditadas nos sentidos; e ela certamente que as ultrapassa, quando de uma
percepção única infere uma existência dupla e admite relações de semelhança e
causalidade entre elas"159. Há uma distância de estatuto, de fundamento entre as
impressões imediatas dos sentidos na consciência e a percepção da unidade,
continuidade temporal, independência em relação à mente, de qualquer objecto
externo: esta distância vai abrindo mais o hiato entre o auto-conhecimento e o
conhecimento de… O alicerce de todo o processo cognitivo radica sempre e cada
vez mais na apreensão directa e inabalável dos vários estados e fenómenos da
própria mente.
As teorias do acesso privilegiado incrementam a forte assimetria epistémica
entre o conhecimento imediato, evidente, infalível do mundo interno e o
conhecimento mediato, provável, incerto do mundo externo. Esta assimetria entre
o acesso ao mundo da consciência e o acesso ao mundo objectivo, herança da
concepção cartesiana e empirista, é explicitamente assumida por Frege 160:
"Até o não filósofo descobre depressa a necessidade de reconhecer um
mundo interno distinto de um mundo externo, um mundo de impressões sensíveis,
de criações da sua imaginação, de sensações, de sentimentos e disposições, de
desejos e decisões".
Na sequência desta distinção, uma outra dualidade se impõe: o mundo
externo é constituído por objectos físicos, que existem fora de nós e
independentemente, pertencem ao domínio público, podem ser percebidos e
conhecidos por todos - são objectivos; o mundo interno é constituído por toda uma
série e variedade de fenómenos que dependem essencialmente do seu portador,
pertencem a alguém. "Parece-nos absurdo - continua Frege - que uma dor, uma

159
Cfr Tratado da Natureza Humana, Parte IV, Secção II.
160
Der Gedanke, p. 351. Cfr meu artigo "Exercícios do Olhar", Análise, n.20, 1998, pp.197-211.
107

disposição, um desejo possam andar pelo mundo independentemente de um


portador. Uma sensação é impossível sem um ser sensível. O mundo interno
pressupõe alguém a quem pertence como mundo interno".
Ao mundo interno, privado, temos um acesso privilegiado, um
conhecimento imediato, directo, através da introspecção, ao qual corresponde o
carácter de indubitável, certo, evidente, transparente; o mundo externo pertence ao
domínio público, o seu conhecimento é sempre mediatizado pela representação
interna, e sujeita-se inevitavelmente ao erro, à ilusão, à dúvida, à incerteza. Esta
dualidade epistémica entre o certo, evidente e imediato do mundo interno e o
duvidoso, obscuro e mediato do mundo externo foi acentuada recorrentemente na
tradição post-cartesiana: "Não posso duvidar da minha impressão visual do verde,
mas não tenho a certeza se o que eu vejo é uma folha de tília. Por isso…
encontramos certeza no mundo interno, enquanto a dúvida não nos abandona nas
nossas excursões pelo mundo externo"161.
Esta convicção, profundamente enraizada, de que se pode conhecer melhor
a mente do que a matéria, privilegiou a reflexão como uma dobra introspectiva, a
"inspecção do espírito", ou "testemunho interior", a percepção de si como fonte
primeira, imediata e segura de qualquer conhecimento. E esse conhecimento
directo, em primeira pessoa, pode ser claramente expresso em descrições
completas e fidedignas dos próprios estados e processos mentais. Todo o discurso
em primeira pessoa apresenta um grau máximo de fiabilidade, de certeza,
contrariamente a um discurso em terceira pessoa, pois ao "acesso privilegiado" à
própria mente, corresponde um difícil acesso à mente de outra pessoa. O
conhecimento da experiência interna dos outros torna-se problema, não podemos
perceber a mente, o mundo interno da consciência dos outros, a não ser através do
que transparece no seu comportamento externo, no que se revela através do
visível, do externo, do corpo. O interno, a mente, o "eu" parece estar escondido,
oculto para lá do externo, e só pode ser conhecido por analogia a partir do que é
161
Ibidem, p. 358.
108

perceptível corporalmente. A tese do "acesso privilegiado" à própria mente produz


um "semi-solipsismo", assente na pura reflexividade do sujeito. A consciência
evidente que acompanha toda a vida psíquica – saber de si, percepção interna –
apresenta-se como um índice irrevogável da identidade pessoal e funda a
convicção forte da ideia de um “eu” permanente, idêntico, uma “substância
pensante”, sujeito e dono de todos os seus actos, impressões, percepções, desejos,
emoções. Poderá o “eu” apreender-se a si mesmo como pura consciência reflexiva,
como um objecto distinto de todos os outros objectos, isolado do seu próprio
mundo? Poderá a identidade do “eu” fundar-se na identidade fenoménica, na auto-
presença constante de si mesmo? Hume e Kant assinalaram as dificuldades e os
paradoxos da tentativa de derivar a ideia de “eu” da experiência interna: esta não
detém um sempre da diversidade, apenas uma consciência pontual de momentos
sucessivos, a partir da qual é impossível aceder à permanência. As suas objecções
repercutem nas análises gramaticais de Wittgenstein que insistentemente
denunciam as ilusões do cogito. A atracção racional pela categoria do sujeito
fomenta a sua reificação como referente do pronome da primeira pessoa.
Wittgenstein corrige esta gramática do "eu" que postula uma substância
pensante absolutamente "privada", um sujeito de todos os actos internos ou
mentais espectador único de si mesmo. O "eu" cartesiano é a res cogitans, distinta
e separada do corpo, res extensa. Todas as ideias, impressões e sense-data são
entidades mentais, directamente apreendidas pelo cogito, com prioridade
epistémica em relação às substâncias físicas do problemático mundo externo. O
empirismo clássico advoga esta mesma tese da prioridade epistémica dos
fenómenos internos. Locke sublinha a primazia do modelo perceptual do sentido
interno, dizendo que "é impossível que alguém perceba algo, sem perceber que
percebe. Quando vemos, ouvimos, cheiramos, sentimos, reflectimos ou desejamos
alguma coisa, sabemos o que estamos a fazer. Portanto, é sempre em relação às
nossas sensações e percepções do presente, e através disto, que cada um é para si
109

próprio o que ele chama de eu"162. Ao contrário de Descartes, Locke não pensa que
o self seja uma substância pensante, mas algo "anexado" a uma substância. Algo
que permanece através da mudança e que se manifesta no facto de "eu ter a mesma
consciência" no decorrer da minha experiência passada e presente. Mas, tal como
Descartes, apresenta-se como uma dobra interior, um duplicado interno que assiste
e persiste a todos os actos psíquicos: vejo e tenho consciência de que vejo, penso e
tenho consciência de que penso, e só esta permanente vigilância íntima de todos os
processos pode garantir a unidade do "eu". Este contínuo simples e indivisível a
que se chama self, é posto em causa por Hume, que não vê no "eu" mais do que
um feixe de diferentes percepções no qual se esfuma a unidade na diversidade das
experiências vividas: "…quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo
eu prórpio, tropeço sempre numa ou outra percepção particular, de frio ou calor,
de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me a
mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a
não ser a percepção"163. O self estilhaça-se na multiplicidade e variedade de
fenómenos discontínuos. A imagem da mente é a de uma espécie de teatro, pelo
qual perpassam sucessivamente uma infinita variedade de situações, entre as quais
se torna impossível divisar quer a simplicidade quer a identidade transtemporal164.
162
Essay Concerning Human Understanding, II, cap. XXVII, sect. 11. Trad. port. Ensaio sobre o
entendimento Humano, de Eduardo Abranches de Soveral, F. C. Gulbenkian, 1999, vol I, Livro II
cap. XXVII, sec. 11.
163
Treatise of Human Nature, Bk I, pt. IV, Sect. 6. Trad. port. De Serafim da Silva Fontes, F.
Gulbenkian, 2001, p. 300.
164
Russell apresenta um argumento contra Hume: "… when I am acquainted with my seeing the
sun, the whole fact which I am acquainted is 'Self-acquainted-with-sense-datum'. Further, we
know the truth 'I am acquainted with this sense-datum’. It is hard to see how we could know this
truth, or even understand what is meant by it, unless we were acquainted with something we call
'I'. It does not seem necessary to suppose that we are acquainted with a more or less permanent
person, the same today as yesterday, but it does seem as though we must be acquainted with that
thing, whatever its nature, which sees the sun and has acquaintance with sense-data. Thus, in
some sense it would seem we must be acquainted with our Selves as opposed to our particular
experiences" Problems of Philosophy, p. 51.
Outra crítica dirigida a Hume é a de que na sua argumentação parece pressupor a própria
proposição que pretende negar. Neste sentido, escreve Chisholm: "How can he say that he doesn't
find himself? (…) If he finds not only perceptions, but also that he finds them and hence that
there is someone who finds them, how can his premisses be used to establish the conclusion that
he never observes anything but perceptions?" "On the Observability of the Self", in Self-
110

Kant vai mais longe do que Hume na crítica à "substância pensante"


cartesiana, e aponta mesmo a principal falha na argumentação humeana: toda a
psicologia racionalista, pensa Kant, confunde a unidade da experiência com a
experiência da unidade, ou seja uma substância-alma.
" A aparência dialéctica na psicologia racional assenta na confusão de uma ideia da razão
(ideia de uma inteligência pura) com o conceito, a todos os títulos indeterminado, de um ser
pensante em geral. Penso-me a mim próprio com vista a uma experiência possível, abstraindo de
toda a experiência real e daí concluo que também posso ter consciência da minha existência fora
da experiência e das condições empíricas da mesma. Confundo, por conseguinte, a abstracção
possível da minha existência, empiricamente determinada, com a suposta consciência de uma
experiência possível do meu eu pensante isolado e julgo conhecer o que há em mim de
substancial como sujeito transcendental, quando apenas tenho no pensamento a unidade da
consciência, que é o fundamento de toda a determinação, considerada como simples forma de

conhecimento".165

Kant não abandona o modelo perceptivo do "sentido interno", mas


considera que a constrição de uma auto-referenciação das experiências é apenas
uma condição puramente formal da experiência conceptualizada. A consciência
desta necessária auto-referência da experiência, o "Eu penso" que deve ser capaz
de acompanhar todas as minhas representações, não é uma consciência de um ego
cartesiano. Este "eu" que se me apresenta como "objecto" é pura aparência, sujeito
empírico.
"A proposição 'eu penso' ou 'eu existo pensando' é uma proposição empírica. Porém, uma
tal proposição tem por fundamento uma intuição empírica, e, portanto, também o objecto pensado
como fenómeno; assim deveria parecer que, segundo a nossa teoria, a alma seria inteiramente
reduzida ao fenómeno, até no pensamento, e dessa maneira a nossa própria consciência, como

mera aparência, se reduziria realmente a nada". 166.

Knowledge, Oxford, Oxford Univesity Press, 1994, pp.97-98.


165
Cfr Crítica da Razão Pura, p. 369.
166
Cfr ibidem, p. 372
111

Embora Kant não negue uma auto-consciência empírica, fonte de auto-


conhecimento, rejeitará a possibilidade de tratar o «eu», sujeito do pensamento
com objecto da psicologia:
"Eu sou consciente de mim mesmo é um pensamento que contém já um eu duplo: o eu
enquanto sujeito e o eu enquanto objecto. É completamente impossível explicar, embora seja um
facto indubitável, que eu que penso, seja para mim mesmo um objecto (da intuição) e que possa
diferenciar-me de mim mesmo(…)167
Não se trata agora de percorrer o itinerário filosófico da ideia de auto-
reflexão como re-presentação de si mesmo. A consciência, entendida como
representação de representações, torna problemática a identidade e unidade do
"eu" - a egoidade (Ichkeit, égoïté) - e provoca as perplexidades humeanas perante
o "feixe de percepções", sua diversidade e multiplicidade.
Trata-se, sim, de analisar uma versão mais fraca da auto-consciência ou da
subjectividade: a montante de auto-reflexão tética, que se põe o "eu" como objecto
para si, há um sentir-se a si mesmo,uma certa forma de auto-conhecimento directo
e imediato do que se passa, no âmbito da percepção interna. Esta forma de acesso
imediato não é uma representação, mas uma fusão, sem qualquer mediação, entre
o próprio fenómeno psíquico e a consciência imediata desse mesmo fenómeno;
devida a esta fusão, ele é vivido e sentido como meu168. Aqui o possessivo indica
fortemente apropriação: eu sinto e sinto que sinto uma dor, vejo e percebo que
vejo uma cor, etc. Brentano faz um exame psicológico detalhado deste modo da
percepção interna, à qual atribui um estatuto de fundamento e princípio de todo o
processo cognitivo.

167
Werke, ed. Weschedel, t. VI, p. 601.
168
Wittgenstein aponta as incongruências implícitas no emprego do possessivo. Cfr Philosophical
Remarks § 65.
112

4.1. Brentano: percepção interna e evidência

É bem conhecida a tese de Brentano sobre a intencionalidade: toda a


consciência se manifesta como uma certa relação, relação entre um sujeito e um
objecto. Esta relação é designada por "relação intencional". Os dois correlatos
desta relação são o acto da consciência, e a coisa para a qual este se direcciona:
ver e o que é visto, apresentar-se e o que é apresentado, querer e o que é querido,
etc.169.
Mas há um segundo factor que caracteriza a consciência, a conexão
inseparável de uma relação psíquica primária com uma concomitante: toda a
consciência dirigida primariamente para qualquer objecto, está concomitantemente
dirigida para si mesma (geht nebenher auf sich selbst). Numa presentação da cor,
está portanto concomitantemente presente uma presentação desta presentação 170.
Esta relação concomitante não é, evidentemente um segundo acto de observação
nem de reflexão sobre o próprio acto: coexiste na consciência (mit ins Bewusstsein
fallen), o que é diferente de ser especificamente notada e compreendida com a
clareza que permita uma determinação e descrição correctas. A experiência
concomitante (mitempfinden) não é uma representação da experiência primária,
coexiste com ela, directa e imediatamente relacionada. Esta segunda relação é tão
essencial à consciência como a relação intencional: "O facto de não poder haver
qualquer consciência sem alguma relação intencional é tão certo como o facto de a
consciência se ter, concomitantemente, a si mesma como objecto, para além do
objecto para o qual primariamente se direcciona"171. A dupla relação - da
consciência ao objecto e secundaria e concomitantemente a si mesma - é, de um
169
Cfr Descriptive Psychologie, pp. 24-25.
170
Cfr ibidem. Aristóteles afirmara o mesmo em De Anima, III, cap. 2, 425b12.
171
Cfr Descriptive Psychology, p. 26: "The fact that there is no consciousness without any
intentional relation at all is as certain as the fact that apart from the object upon which it is
primarily directed, consciouness has, on the side, itself as an object".
113

modo essencial, parte da natureza de todo o acto psíquico. Isto significa que, para
Brentano, todo o acto psíquico é acompanhado de uma consciência de si mesmo,
todo o acto psíquico é consciente e não há fenómenos psíquicos inconscientes. A
principal originalidade de Brentano reside aqui no concomitantemente, na
simultaneidade entre todo o fenómeno ou acto psíquico enquanto tal e a
consciência desse mesmo fenómeno. Poderia objectar-se que, no campo psíquico,
não se dá uma tal contrapartida para a percepção, apenas uma forma de
consciência mediata ou reflectinte, um tornar presente a si, de modo retrospectivo,
uma reviver representativo no qual intervém o representar 172. Neste sentido a
consciência de si seria sempre retrospectiva. Mas Brentano insiste na
simultaneidade imediata, sem mediação de quaquer factor representativo ou
retrospectivo: o fenómeno ou acto psíquico está presente a si mesmo, é um só acto
com dois. Não se dá, assim um voltar-se sobre si mesmo, visto que todos os
fenómenos psíquicos são, por definição auto-conscientes, auto-reflexivos. Não há
fenómenos psíquicos inconscientes, a própria expressão é intrinsecamente
contraditória.
Na Psicologia, Brentano discute amplamente vários argumentos a favor de
fenómenos inconscientes173. Interessa de um modo particular o argumento segundo
o qual, se admitirmos que todo o fenómeno psíquico é objecto de um outro
fenómeno psíquico, a consequência é uma complicação infinita, impossível à
partida e contrária à própria experiência. Tomando como exemplo o simples acto
de ouvir um som, este acto, enquanto presentação de um som, será acompanhado
pela representação da presentação do som. Temos, portanto duas presentações de
natureza diferente - a mera audição e a representação desta audição, que difere da
primeira. Mas, como qualquer fenómeno psíquico, deve ser acompanhado de uma
outra representação e assim sucessivamente. Portanto, ou a série é infinita,
172
Cfr Maier, Philosophie der Wirklichkheit, I, Wahrheit und Wirklichkheit, 175-176: a
«percepção interna» é uma pura ficção (ein Phantom). O único caminho que nos conduz ao
conhecimento dos factos psíquicos e do seu portador imediato (Träger), o eu psíquico, é a
consciência mediata ou reflectinte,
173
Cfr Psychologie vom empirischen Standpunkt I pp.141-194.
114

provocando um infinito regresso, ou termina numa representação inconsciente. A


resposta de Brentano a esta objecção forte consiste em afirmar que a audição e o
objecto da audição são um só e mesmo fenómeno, sendo a audição pensada como
dirigida a si mesma, como constituindo o seu próprio objecto. O som e a audição
não seriam, neste caso, senão dois nomes diferentes para um só e mesmo
fenómeno. Existe uma ligação muito peculiar entre o objecto da presentação
interna e esta mesma presentação, pertencendo ambas a um só e mesmo acto
psíquico, embora com dois objectos diferentes. A presentação do som - insiste
Brentano - e a representação da presentação do som formam um só fenómeno
psíquico que nós, de modo abstracto, decompomos em duas representações
relacionadas com dois objectos diferentes. Mas, segundo Brentano, embora os
objectos sejam diferentes, o fenómeno psíquico é um só. O som é o objecto
primeiro da audição, e a audição é o objecto segundo. Não se trata, portanto de
uma reduplicação, de um segundo acto psíquico que tem por objecto o primeiro, e
que seria por sua vez objecto de um outro acto psíquico, o que levaria à regressão
até ao infinito. A representação da presentação que acompanha todo o acto
psíquico faz parte do objecto ao qual este se refere. Por isso, Brentano sublinha
claramente a distinção entre esta presentação interna concomitante, fundida no
mesmo acto psíquico, e a observação ou introspecção; nunca a percepção interna
se poderá transformar em observação, que exige direcção para o objecto enquanto
objecto primeiro. Só num acto segundo, um acto simultâneo dirigido para um acto
existente em nós a título de objecto primeiro, é que esta realidade poderia ser
observada. Mas precisamente a presentação interna concomitante não pertence a
um segundo acto, mas funde-se imediatamente com o primeiro.
A evidência da percepção interna radica nesta fusão num só e mesmo acto.
É devido a este conhecimento que acompanha todo o acto psíquico que sabemos
que pensamos, que desejamos, que sentimos, etc. Como qualquer conhecimento
pressupõe o juízo, Brentano pode afirmar que todo o acto psíquico é acompanhado
não só de uma representação correlativa, mas também de um juízo correlativo.
115

A infalibilidade da percepção interna dispensa qualquer prova ou


justificação, já que constitui uma evidência imediata. Duvidar deste fundamento
último do conhecimento seria pôr em causa todo o edifício do saber, pois não
encontraríamos qualquer outro fundamento possível. Nem sequer se põe a questão
de justificar a confiança atribuída à percepção interna. O que Brentano necessita é
de uma teoria sobre a relação desta percepção com o seu objecto que se concilie
com a sua evidência imediata. Esta teoria assenta na unidade real, na ligação
particularmente íntima entre o acto psíquico e a representação que o acompanha:
se esta não ocorresse a evidência do seu conhecimento seria impossível. Por este
carácter de evidência imediata, a percepção interna e só esta é propriamente
percepção (Wahrnehmung, apreensão do verdadeiro), e, por isso, mais certa e
infalível do que a percepção externa: nesta, os objectos não existem
verdadeiramente tal como nos aparecem, são simples fenómenos, no sentido de
aparência, por oposição ao que é, verdadeira e realmente174.
Recapitulando: todo o acto psíquico é consciente, contém em si mesmo a
consciência de si. Tem, portanto, um objecto duplo, um objecto primeiro e um
objecto segundo. O acto mais simples, como o acto de ouvir, tem como objecto
primeiro o som, e é para si mesmo o seu objecto segundo, enquanto fenómeno
psíquico pelo qual se ouve o som. A objecção da reduplicação até ao infinito da
consciência é contornada por Brentano pela sua reiterada afirmação da unidade
real entre a consciência do objecto e a consciência da consciência, que não é um
acto diferente e sucessivo em relação ao primeiro. Na realidade, é a mesma
consciência do objecto que, num acto simples, se sabe em conjunto a si mesma,
sem necessidade de se pôr como um segundo saber que se acrescenta ao primeiro,
com o mesmo conteúdo do primeiro, mais a consciência desse conteúdo. Sendo a
174
Em contraste com Brentano, cfr Fabro, C. - Percepción y Pensamiento, p. 480, que situa a
atribuição imediata de existência no âmbito da percepção externa; tendo em conta o testemunho
da fenomenologia, a atribuição da existência à realidade exterior está tanto mais justificada,
quanto mais o sujeito considerar os dados da experiência externa e moderar o influxo dos da
experiência interna. São os dados sensíveis procedentes do mundo externo que induzem uma
"persuasão perceptiva de existência»; na experiência interna o real e o aparente coincidem numa
única dimensão existencial, a da consciência.
116

consciência sempre auto-consciência, a sua circularidade exclui o reenvio ao


infinito.
Brentano emprega o termo consciência num sentido lato: identifica-a
praticamente com fenómenos psíquicos ou actos psíquicos. Por isso rejeita a
hipótese de actos psíquicos inconscientes: seria uma contradição in terminis. Um
acto psíquico ou se dá ou não se dá. Se se dá, apresenta a relação dupla referida
por Brentano - uma relação intencional, dirigida ao objecto, e uma relação consigo
mesmo, uma representação concomitante, intimamente unida ao próprio acto
psíquico. Assim, todos os fenómenos psíquicos são objecto de percepção interna
enquanto representação concomitante, imediata, unida intrinsecamente ao próprio
acto psíquico, fundindo-se com este numa unidade real. Nesta imediatez da
percepção interna reside a sua evidência e infalibilidade. "Se o conhecimento que
acompanha um acto mental fosse um acto por si só, um segundo acto acrescentado
ao primeiro, se a sua relação com o seu objecto fosse simplesmente a de um efeito
com a sua causa, semelhante ao que se dá entre uma sensação e o estímulo físico
que a provoca, como poderia ser certo em e por si mesmo? Como poderíamos de
facto ter a certeza da sua total infalibilidade?"175
Esta evidência directa e imediata da percepção interna é inatacável.
Qualquer dúvida ou objecção a este carácter único da evidência da percepção
interna provém da confusão com algum outro fenómeno que não é percepção
interna. Afirmar que a percepção externa pode por vezes ser directamente
evidente, indica que se está a tomar algum facto da percepção interna por um outro
de percepção externa. Diz-se por vezes que ao apresentar-se-nos um «vermelho»
que não existe, a percepção externa mostra um vermelho que «existe
fenomenicamente», mas o que se deveria dizer, neste caso, é que a percepção
interna nos faz saber que a percepção externa nos apresenta um «vermelho» - um
«vermelho» que, na verdade, não existe.

175
Psychologie,I "Weitere Betrachtungen über das innere Bewuβtsein”, p. 195..
117

A evidência da percepção interna levanta, no entanto um problema:


Brentano afirma reiteradamente que a evidência reside no juízo, portanto só um
juízo sobre a própria percepção interna lhe poderá conferir o carácter de evidente.
Mas, sendo o juízo evidente um acto psíquico distinto da percepção, este acto
deveria ser, por sua vez acompanhado de uma consciência concomitante, o que
nos levaria de novo a um infinito regresso. Por isso mesmo, Brentano formula
frequentemente a sua tese da consciência concomitante através de expressões
como "Na presentação da cor dá-se simultaneamente uma representação desta
presentação" e "A experiência da cor e a experiência concomitante desta
experiência dirigem-se a objectos diferentes". Em que sentido se pode então
entender que todo o acto psíquico é evidente para o sujeito, se a evidência não se
encontra de modo algum na experiência?
A resposta, que Brentano nunca explicitou claramente, parece ser esta: a
ocorrência do acto psíquico pode dizer-se evidente para o sujeito no sentido lato,
isto é, se alguém realiza esse acto, simultaneamente julga com evidência que o
realiza. No entanto, este juízo é uma espécie de juízo tácito, não resultante de
nenhuma observação posterior que tenha por objecto o próprio acto psíquico. E a
evidência da percepção interna, tal como Brentano a formula não pressupõe
qualquer hipostaziação de um Eu, de um cogito anterior a qualquer experiência,
embora a influência cartesiana esteja claramente presente em Brentano, que
defende enfaticamente a evidência do cogito ergo sum. Mas na sua concepção de
consciência, o cogito inclui uma pluralidade de fenómenos psíquicos - vejo, ouço,
duvido, experimento um prazer, desejo, quero, irrito-me, etc. E tudo isto é
conhecido simultaneamente pelo sujeito e apreendido de modo imediatamente
evidente. É uma evidência concomitante a cada acto psíquico, pontual, mas
intrínseca à própria consciência - consciência sempre bi-direccionada,
simultaneamente para o objecto e para si mesma enquanto consciência desse
objecto.
118

O pensamento de Brentano é uma filosofia da evidência, o carácter


evidente, em última análise só se dá na percepção interna. Que todos os conceitos
derivam da experiência, é uma tese que Brentano também subscreve. Sendo assim,
o único modo de clarificar um conceito deve ser o de exibir a fonte experiencial do
qual ele deriva. E, para Brentano a experiência que constitui a base e fundamento
do conceito de verdade é a experiência da auto-evidência. A validade universal de
qualquer juízo é corolário da auto-evidência, pois quem julga com base na auto-
evidência está absolutamente certo da verdade desse juízo, e é impossível que
qualquer outro sujeito julgue o contrário, baseando-se na mesma auto-evidência.
Claro que a auto-evidência só se aplica aos juízos da percepção interna, portanto,
epistemologicamente, todos os juízos da percepção externa são cegos. Nenhum
juízo de existência sobre o mundo externo poderá ser jamais evidente. Brentano
afirmará expressamente que nem nós, nem ninguém que conheça algo com
evidência e imediatamente, pode ter como objecto desse conhecimento algo que
não seja o próprio eu. Qualquer outro conhecimento será meramente fáctico, não
necessário (Cfr Psychologie III, p.5-6) O solipsismo, ao negar a existência de um
mundo externo, não é internamente inconsistente como doutrina filosófica. De
facto, afirmar a existência de um mundo externo não pode ter senão um carácter de
certa probabilidade.
De qualquer modo a evidência emblemática da percepção interna e a sua
supremacia sobre a percepção externa parece poder conduzir a um solipsismo. O
próprio Brentano chega a pôr essa hipótese: "Em boa lógica, seria necessário ir
mais longe e só admitir como imediatamente evidente o Eu presente, rejeitando
como injustificada a crença no eu passado e na duração anterior. Poderia mesmo
pensar-se que este pensamento se impõe antes de qualquer outro. É o que se chama
solipsismo, quer levado até às suas consequência extremas, quer mantido em
limites mais moderados"176.

176
Psychologie III , p.11.
119

4.2. Percepçãp adequada/percepção inadequada: o ponto de


vista husserliano
Husserl na V Investigação evidencia a ambiguidade da expressão
"percepção interna", e propõe uma nova distinção terminológica entre percepção
interna (enquanto percepção das próprias vivências) e percepção adequada, ou
evidente. O critério da adequação para discernir as percepções evita a falsa
oposição recorrente em toda a teoria do conhecimento, entre percepção interna e
externa.
A clarificação de Husserl parte de três diferentes conceitos de consciência
que são relevantes para a compreensão da noção de «acto mental» e sua distinção
dos fenómenos físicos:
Em primeiro lugar há a considerar o ser fenomenológico total, real, do ego
empírico, que entretece as experiências psíquicas na corrente unificada da
consciência.
A consciência é também considerada como a percepção interna das próprias
experiências psíquicas.
Finalmente emprega-se consciência como uma designação que compreende
os "actos mentais" ou as "experiências intencionais", de todo o género177.
A auto-evidência geralmente atribuída à percepção interna mostra que se
trata efectivamente de uma percepção adequada, que não atribui nada aos seus
objectos que não seja intuitivamente presentado e dado como uma parte real da
experiência perceptiva178. Para Hussel, qualquer percepção se caracteriza por esta
intenção de apreender o seu objecto como presente, in propria persona. Esta
intenção realiza-se plenamente quando o objecto se encontra ele próprio realmente
presente, em sentido estrito, in propria persona e é exaustivamente apreendido tal

177
Cfr Logical Investigations V, § 1.
178
Cfr Husserl, Logical Investigations V, § 5
120

como é. Pela própria essência da percepção, é claro que a adequação só pode dar-
se na percepção interna, forjada em experiências dadas simultâneamente e
pertencentes a uma só experiência. Mas daqui não se pode de modo algum inferir a
conversa: cada perceptum direccionado para a nossa própria experiência interna,
tem de ser adequado. É necessário distinguir entre percepção interna como
percepção das nossas próprias experiências e percepção adequada e evidente.
A expressão «percepção interna», assimilada geralmente a consciência,
recobre dois sentidos ou dois dos aspectos da consciência acima discriminados: a
consciência como simples vivência, experiência, por um lado, e a consciência
como percepção interna por outro lado: "Muitos pensadores, como por exemplo
Brentano, são levados a pressupor uma estreita conexão entre os dois conceitos de
consciência (…) porque pensam que podem considerar a consciência, ou a
experiência de conteúdos, no primeiro sentido e ao mesmo tempo um segundo
sentido de consciência. O equívoco que nos induz a tratar a consciência como uma
espécie de saber, e na verdade como um conhecimento intuitivo, pode ter aqui
inspirado uma concepção cheia de grande dificuldades (…)179.
Para Husserl não se pode identificar a esfera das vivências ou das
experiências internas no seio da consciência com a esfera universal do «aparecer»,
do «apresentar-se» perante uma segunda instância da consciência egológica que
retornaria a si com um olhar interior, numa espécie de inspectio sui, segundo um
modelo de saber. É justamente esta noção tão enraizada na própria linguagem
expressiva da vida da consciência, que Husserl se propõe esclarecer: a consciência
não é saber de si, não é de todo uma espécie de saber. Ela caracteriza-se mais
como um deixar aparecer o aparecer, como pura abertura ao dado, deixar ser o que
surge no aparecer - este é o sentido primário do termo a que se refere Husserl, que
dista muito de qualquer assomo de modelo perceptivo e muito menos cognitivo.
As inevitáveis aporias dos filósofos da reflexão, que vêem na consciência uma
estrutura essencial e imediatamente refelxiva, como olhar voltado para si,
179
Logical Investigations V , § 5.
121

conduzem à regressão ao infinito, minam a interpretação fenomenológica da


consciência, apoiada no sentir da sua própria imanência, imanência do fenómeno e
não de um sujeito que estaria aí para ser «visto». Um dos sentidos da imanência
vivida como limite é precisamente esta impossibilidade de a consciência ver o seu
próprio ponto de partida.
Brentano tenta evitar este infinito regresso até um ponto imaginário e
impossível de situar, com a distinção em todo o acto psíquico entre o objecto
primário e o secundário: a consciência reflexiva não é um acto realmente diferente
do acto psíquico no sentido normal do termo; dá-se apenas um só fenómeno
psíquico, que pode ser considerado na sua relação a dois objectos diferentes - o
som, fenómeno físico é o «objecto primeiro» do fenómeno psíquico, a audição é o
«objecto segundo». Toda a forma de consciência inclui em si mesma, além da
relação ao seu objecto, uma outra relação paralela dirigida a si mesma. Brentano
responde deste modo aos argumentos de infinito regresso e complicação da
consciência consciente.
As distinções subtis brentanianas não bastam para satisfazer as exigências
do exame fenomenológico, puramente descritivo. A noção de «percepção interna»
poderá conservar algum sentido, se for desvinculada de qualquer ideia de
interioridade, para adquirir o sentido de pura imanência, como presença, que é o
limite constitutivo de todo o aparecer180

4.3 Wittgenstein e o argumento da linguagem privada: objecção


a Brentano?
A crítica husserliana à noção de "percepção interna" de Brentano, passa
sobretudo por um apuramento da ideia de consciência, separando as águas de um
180
Cfr Benoist, Phénboménologie, sémantique, ontologie, pp.263-271.
122

modelo perceptual, consciência como uma certa forma interna de saber e uma
acepção muito mais lata, na qual a distinção entre percepção adequada/não
adequada substitui a ambiguidade da distinção entre percepção interna/externa.
É conhecida a clarificação conceptual de Wittgenstein em torno deste par
ilusório do interior/exterior, do mundo interno/mundo externo. O seu argumento
da linguagem privada - se bem que seja por alguns comentadores considerado um
argumento no registo meramente semântico - tem indubitavelmente repercussões
no modo de situar e pensar a evidência, a auto-consciência, a percepção de si.
Interessar-nos-á examinar até que ponto a teoria brentaniana da evidência da
percepção interna é abarcada pela crítica de Wittgenstein à "linguagem privada". A
noção de consciência de Brentano, na qual se fundem em cada fenómeno psíquico
o dentro e o fora poderá constituir uma alternativa a uma teoria evidencialista do
eu que não incorra nos erros gramaticais denunciados por Wittgenstein? Situar-se-
á a teoria de uma consciência concomitante aquém desses "mitos" sobre o
"dentro", precisamente por desenhar cada acto consciente como um entre-dois,
simultaneamente direccionado para "fora", para o objecto, e para si mesmo?
O par quase-categorial do dentro/fora tem-se imposto a toda a reflexão
antropológica com as suas inevitáveis incidências epistémicas: no horizonte deste
enquadramente distingue-se claramente uma assimilação do "dentro", do mundo
interno com a consciência apresentada sob o modelo da representação de si que se
identifica teoricamente com o "eu"; o "fora" é o mundo externo, dos objectos ou
das objectualidades que se nos apresentam mediadas pelas nossas próprias
estruturas cognitivas ou, em casos extremos, numa presentação imediata e
evidente.
O emprego da primeira pessoa induz uma série de ilusões - "O sujeito
pensante é certamente mera ilusão (…) O Eu, o Eu, isso é que é profundamente
misterioso"181. Há casos em que empregamos o pronome como "objecto" "Eu
cresci doze centímetros", e casos em que o empregamos como sujeito "Eu ouço
181
Notebooks 1914-16, p. 80.
123

isto", "Eu penso que vai chover". Nestes últimos casos temos a clara intuição de
que não o empregamos por reconhecermos uma determinada pessoa através das
suas características corpóreas; "e isto cria a ilusão de que usamos esta palavra para
nos referirmos a algo incorpóreo que, todavia, tem a sua morada no nosso corpo.
De facto, isto parece ser o verdadeiro ego, aquele do qual se disse 'Cogito, ergo
sum'"182.
A estratégia de Wittgenstein consiste em mostrar que expressões deste tipo
só têm sentido se integradas em formas de comportamento e de expressão. A
expressão "tenho dores" não pode ser analisada em sujeito (referido pelo pronome
"eu") e predicado ("ter dores")183. Nesse caso o uso de um nome (ou pronome)
exigiria a identificação do objecto designado, e de facto tal identificação não é
requerida para exprimir dores. Portanto, poderia concluir-se que nestes casos "eu"
não é um nome nem uma expressão referencial. Se consideramos o pronome como
uma expressão referencial, então teremos que dar razão a Descartes: "eu" designa
o que há de mais claro e evidente para mim, a consciência imediata do meu
próprio pensar, da mente, do self. O que volta a reformular as objecções e as
dificuldades de tratar da consciência que acompanha todas as representações, a
impossibilidade de ver o próprio "eu" como um objecto e as consequentes críticas

182
Das blaue Buch, p. 110 (trad. port. P. 119). Cfr Hacker, P. M. S. "The Refutation of
Solipsism", p. 139: a passagem de Wittgenstein apresenta certas ressonâncias com Kant, que na
Crítica, ao expor os Paralogismos reitera uma e outra vez o carácter originário e inderivado da
auto-consciência transcendental e a impossibilidade de inferir a personalidade da alma. Cfr
Crítica, p. 369 (trad. port.).
183
A argumentação de Wittgenstein sobre os paradoxos da atitude solipsista encontra-se já nos
escritos e notas do período de transição posterior ao Tractatus. As Philosophical Remarks (1930)
são particularmente significativas e correspondem à primeira fase da refutação do solipsismo. As
Notes for Lectures on "Private Experience" and "Sense Data" (1934-35) e Das blaue Buch
correspondem à segunda fase e prenunciam a argumentação final nas Philosophische
Untersuchungen. Cfr. Hacker, P. M. S. - "The Refutation of Solipsism", p. 121. A análise
gramatical das expressões "ter dores", "ter uma experiência…" e o carácter pradoxal desta relação
de posse, ocorre já em Philosophical Remarks, §§60, 65. Wittgenstein aponta a inconsistência do
sentido da "posse lógica da experiência" por um Ego ilusório e a ilegitimidade de pensar numa
dependência causal entre a experiência e um corpo particular. Cfr Hacker, P. M. S. art. cit., p.
125.
124

de Hume, perplexo com a unidade deste "eu", que não passa de um feixe de
representações.
Na vasta literatura sobre a gramática do "Eu" e seus pressupostos, a
discussão sobre a função referencial ou não-referencial do pronome da primeira
pessoa prende-se sempre directamente com os problemas da auto-consciência, da
evidência do cogito, da identidade e unidade da consciência184. A fonte principal
dos problemas está no modo como se concebe a consciência de si, o auto-
conhecimento: ser consciente de si não significa tomar conhecimento de si como
um objecto, nem esta consciência de si pode ser pensada segundo o modelo da
percepção, no qual eu sou apresentada a mim mesma como um objecto. No
exemplo de Wittgenstein - "eu tenho dores" - tenho consciência do facto de ter
dores, ou conheço-me como sentindo dores. Não me conheço como um sujeito
(coisa, objecto) e nesse sujeito a propriedade , o predicado de sentir dores 185.
Empregar o pronome "eu" com a pretensão de referir "algo" - substância pensante,
cogito, mundo interno - que se pode identificar ostensivamente, e a que se tem um
"acesso privilegiado", directo, privado, traduz uma acentuada atomicidade
psicológica, incapaz de captar o próprio dinamismo vital, a relacionalidade e
contextualização do ser humano. O solipsismo a que conduz a tese do "acesso
privilegiado" é inevitável - só tenho acesso imediato, certo, evidente aos
fenómenos psíquicos internos, próprios. O "eu" apresenta-se-me directamente, mas
isolado de tudo o resto que o rodeia, há uma barreira intransponível entre esse
184
Cfr meu artigo "Exercícios do Olhar", Análise, n. 20, 1998, p. 204. Sobre o problema da
referencialidade do "Eu", cfr Canfield, J. V. (ed.) - The Philosophy of Wittgenstein, vol 12 os
artigos de Shoemaker, "Self-Reference and Self- Awareness", Zemach, "The Reference of I",
Anscombe, "The First Person", Kenny, "The First Person", Malcolm, "Whether 'I' is a Referring
Expression", Noonan, "Identity and the First Person".
185
Aqui detecta Wittgenstein a ilegitimidade de emprego do pronome "Eu" como signo referencial
e a correspondente identificação de um sujeito, e a incompreensibilidade da relação de posse da
experiência. Cfr Hacker, P. M. S. art .cit, pp. 144 e ss. "Pensamos a auto-consciência como um
'sentido interno' no qual observamos (…) o que se passa in foro interno. Podemos então
considerar que somos conscientes destas 'propriedades da experiência' (ver, ouvir, sentir)
independentemente da 'substância na qual elas são inerentes'. E isto, por sua vez induz-nos a cair
na tentação sugerida pela própria gramática, de reificar as nossas experiências". O modelo
perceptual imposto à introspecção promove as ilusões da identidade do 'Eu' e da relação de
pertença entre o sujeito e as experiências.
125

mundo interno de que tenho consciência e o mundo externo, nomeadamente, as


"outras mentes" às quais não posso nunca aceder. Afirmar um "eu" como referente
unívoco do pronome, significa aceitar a ideia de uma linguagem privada, cujos
paradoxos provêm da pressuposição de que deve haver sempre "algo" por trás da
palavra - um facto psíquico, uma imagem mental, uma representação subjectiva.
Tratar todos os fenómenos psíquicos como acontecimentos mentais localizáveis no
tempo, referentes de todas as proposições relativas ao próprio "eu", não só leva ao
solipsismo, como dá do "sujeito" uma visão reificada, constituído por um conjunto
de acontecimentos e factos internos temporalmente mensuráveis.
É contra este isolamento do "mental", do privado, e sua demarcação nítida
do público, do corporal, que argui Wittgenstein na sua rejeição da linguagem
privada, nas análises da gramática das sensações, dores e processos mentais. As
suas elucidações vão no sentido de desmitificar a fronteira entre corpo/mente,
público/privado, fora/dentro: a ideia de uma identificação interna, privada do
próprio "eu" e seus estados, processos e acontecimentos mentais é problemática 186,
porque ao polarizar estes pares de conceitos, deixa no extremo oposto um corpo
que não é mais do que um "resto físico", inexpressivo. Esta imagem dual do ser
humano, que impregnou a psicologia, epistemologia e antropologia filosóficas, é
um dos preconceitos com raízes numa má interpretação da gramática dos nossos
conceitos.
A estratégia adoptada por Wittgenstein na crítica da linguagem privada visa
mostrar fundamentalmente a ininteligibilidade da definição ostensiva privada187, as
confusões sobre a privacidade da experiência e sobre a privacidade epistémica 188,
os mal-entendidos sobre o nosso conhecimento das "outras mentes" 189. A nova
186
Cfr Investigações Filosóficas, §§288-316.
187
Cfr Hacker, P. M. S. - Wittgenstein - Meaning and Mind, Part I Essays, cap. III.
188
Cfr ibidem, cap. II.
189
Cfr ibidem, p. cap. VII: "Não podemos percepcionar as mente ou experiências das outras
pessoas, mas apenas os seus corpos e comportamento - e o comportamento corporal parece ser
apenas uma questão de movimento de um corpo físico no espaço" (p. 128.). Cfr cap. VI, p. 125: o
comportamento é certamente um critério para o mental, mas isso não significa que todos os
fenómenos mentais estejam escondidos dentro detrás do rosto que os exprime. Cfr Wittgenstein,
126

"maneira de ver" que nos sugere Wittgenstein corrige toda uma tradição filosófica
inspirada nos pressupostos da filosofia cartesiana, da filosofia idealista e
transcendental, na noção empirista da subjectividade na base dos quais se concebe
uma semântica fundada na relação directa e ostensiva da palavra com uma
representação, ideia, ou qualquer tipo de estado ou processo mental privado. Esta
herança comum a toda a filosofia moderna - empirismo, racionalismo, idealismo
transcendental kantiano e representacionalismo cognitivista contemporâneo -
assenta na ideia que o conhecimento da nossa experiência pode exprimir-se numa
linguagem, pelo menos para nós próprios, e a possibilidade desta auto-expressão
não pressupõe qualquer conhecimento do mundo externo ou de outras mentes.
Pensar assim pressupõe a possibilidade de uma linguagem privada, na qual as
palavras adquirem significado através de uma relação semântica directa com as
experiências privadas190. O propósito de Wittgenstein consiste em desmitificar esta
falsa imagem com todas as suas complexas ramificações.
O argumento da linguagem privada não aponta, no entanto, como
alternativa uma forma de behaviourismo. Pelo contrário, Wittgenstein sublinha a
distinção entre dor e comportamento de dor191 e não defende que o "interior" seja
uma ficção, mas sim que uma certa imagem filosófica do "interior" é uma ficção
gramatical. Ao rejeitar a linguagem privada com toda a sua "mitologia",
Wittgenstein rejeita também qualquer explicação behaviourista: de facto, dissolve
o aparente dilema entre uma atomização do privado, interno, mental, e a

Last Writings on the Philosophy of Psychology, § 767: "Além da chamada tristeza das suas
expressões faciais, também observo o seu estado mental de tristeza? Ou deduzo-o a partir do seu
rosto? Posso dizer: 'as suas expressões e o seu comportamento eram tristes, portanto também ele
está provavelmente triste'?"
190
Cfr Kenny, A. - Wittgenstein, p. 179.
191
Investigações Filosóficas, § 304: "«Mas tens que concordar que existe uma diferença entre
comportamento de dor com dores e comportamento de dor sem dores». - Concordar? Não há
maior diferença! (…)". Para um exame da posição de Wittgenstein em relação ao behaviourismo,
cfr Hacker, P. M. S. - ob. cit. pp.112-117. A relação da expressão comportamental com aquilo de
que é expressão não é uma relação externa. O 'dentro' não se relaciona com as suas manifestações
externas como se fosse uma entidade inobservável, causa das expressões e do comportamento.
Trata-se de uma relação interna, gramatical. O mental, o 'dentro' não é redutível ao
comportamento, este último não é como um sintoma, mas sim um critério.
127

identificação de toda a vida interna com o comportamento e sua exteriorização:


"Bem, poder-se-ia dizer o seguinte: quando se vê o comportamento de um ser
vivo, vê-se a sua alma"192. Como vê? Neste ver não está a exigência de um
fundamento ou de uma intuição intelectual. O mais originário que Wittgenstein
encontra é uma atitude (eine Einstellung): "A minha atitude em relação a ele é
uma atitude em relação a uma alma. Não sou da opinião que ele tem uma alma"193.
A argumentação wittgensteiniana sobre a linguagem privada origina uma
viragem em toda a tradição do pensamento filosófico sobre a natureza da mente e
da relação entre o "dentro e fora", o "interno e externo": as suas implicações
abarcam tanto a ideia dos fundamentos da linguagem na experiência privada,
como, no domínio epistemológico a noção dos fundamentos do conhecimento na
evidência interna da auto-consciência.

4.4. A estrutura da consciência e a intersubjectividade da percepção


interna

A questão que se formulou era a de saber até que ponto a teoria de Brentano
sobre a evidência da percepção interna era atingida pela crítica de Wittgenstein.
O que Brentano defende é o reconhecimento de uma consciência
consciente, na qual se conciliam o princípio da intencionalidade de toda a
actividade psíquica e a reflexividade da consciência. A simultaneidade destas duas
relações significa que todo o acto psíquico consiste necessariamente numa relação
intencional a algo, e ao mesmo tempo numa relação de auto-presença, presença
192
Investigações, §357.
193
Investigações, II, IV, § 3. Cfr o interessante artigo de P. Winch "Eine Einstellung zur Seele", e
a distinção entre "atitude" e "crença".
128

esta que Brentano formula em termos de objecto. Trata-se, como foi dito de um
mesmo acto com dois objectos - o objecto primário para o qual se dirige e,
concomitantemente o próprio acto é objecto secundário para si mesmo. Brentano
insiste reiteradamente que não se trata de um segundo acto dirigido sobre o
primeiro, mas que a duplicidade de objectos se dá num só e mesmo acto. Todo o
fenómeno psíquico apresenta este plus, que o torna consciente segundo uma
presença dupla que se traduz numa dupla objectualidade: o objecto intencional do
acto e o próprio acto de que temos consciência. Trata-se, portanto de afirmar a
dimensão reflexiva de todos os fenómenos psíquicos ou da própria consciência.
Esta dimensão fundamental de toda a actividade psíquica tem as suas
origens na filosofia aristotélica. Brentano invoca um texto da Metafísica que está
em consonância com a sua própria tese. Escreve Aristóteles: "a ciência, a
percepção, a opinião e a reflexão parecem sempre ser dirigidas a algo distinto, mas
também concomitantemente (en parergo) a si mesmas"194. A expressão aristotélica
é recorrentemente citada por Brentano para explicitar a sua teoria da coexistência
em todo o acto psíquico de uma captação intencional do objecto e da apreensão
reflexiva, conhecimento desse conhecimento. As duas dimensões são inseparáveis,
de tal modo que não se pode falar de intencionalidade sem reflexão. Enquanto
reflexiva, a consciência é auto-presença imediata, tautológica. A integração num
acto único de uma dimensão "heterológica" e de uma dimensão "tautológica"
exprime bem, em Brentano, em que consiste propriamente a consciência enquanto
consciência. No entanto, a expressão "objecto secundário" aplicada a esta auto-
presença da consciência a si mesma reintroduz uma certa dualidade dentro do
próprio acto. E a afirmação que a auto-consciência de todo o fenómeno psíquico é
percepção confirma a tendência "objectivante". Poder-se-ia pensar num outro
sentido de "percepção interna" como uma espécie de auto-consciência inobjectiva,
que só derivadamente se poderia designar como "percepção", pois não consistiria
194
Metafísica, XII, 9 1074b35; cfr Psychologie vom empiriscen Standpunkt I, p.185. As traduções
da expressão en parergo são muito variadas: Ross propõe "only by the way", Tricot traduz por
"accessoirement" e a versão alemã utilizada por Brentano adopta o termo "Nebenprodukt".
129

propriamente num acto de percepcionar, mas numa mera dimensão dos nossos
actos conscientes. Seria como uma presença "a-temática" do acto de consciência
ou uma "pré-objectualidade", a montante de qualquer objectivação. No entanto,
Brentano refere-se sempre expressamente ao acto psíquico como "objecto
secundário" e a "percepção interna" é efectivamente percepção (Wahrnehmung).
Em confronto com as elucidações gramaticais de Wittgenstein, parece que o
reconhecimento de uma dimensão reflexiva dos fenómenos psíquicos não
constituiria problema em relação ao argumento da linguagem privada.
Wittgenstein não põe em causa o carácter consciente dos fenómenos psíquicos,
embora talvez não partilhasse a tese de que todos os fenómenos psíquicos são
conscientes. A gramática que a crítica da linguagem privada corrige é a do verbo
saber aplicado aos fenómenos internos: "sei que tenho uma dor" não faz sentido. A
expressão pressupõe um observador que por introspecção vê, sabe que tem uma
dor e designa-a com uma palavra. Brentano insiste reiteradamente que os
fenómenos psíquicos não são observáveis. A percepção interna não é uma
observação. Uma das fontes da teoria brentaniana é a própria tese aristotélica sobre
a sensibilidade, proposta no De Anima: quando percepcionamos através de
qualquer dos sentidos, percebemos que percebemos (425 b12). Percebemos que
vemos, que ouvimos e esta percepção, se se dá no próprio sentido da vista, ouvido,
etc., então teremos que atribuir a cada sentido a capacidade de percepcionar a
visão e a cor, objecto da visão. Se atribuimos esta percepção a um outro sentido
que percepciona a visão, ou caímos num processo ao infinito, ou teremos que
afirmar um sentido que se percepciona a si mesmo (416b 16-17). Brentano cita
esta passagem de Aristóteles195, embora considere insatisfatória a explicação que
aqui Aristóteles propõe para a percepção da percepção. Prefere o referido texto da
Metafísica e a expressão en parergo parece-lhe a mais adequada para traduzir a
natureza dessa consciência concomitante196. No pensamento aristotélico não se fala
195
Psychologie I, p. 183.
196
Um texto de S. Tomás que se aproxima muito da tese brentaniana é o de S. Th., q. 87, a. 3, c:
"Est autem alius intellectus, scilicet humanus, qui nec est suum intelligere, nec sui intelligere est
130

nunca de "objecto" captado ou apreendido por um sentido interno; percebo que


percebo a-tematicamente, pré-objectualmente. Esta dimensão reflexiva dos actos
psíquicos, reconhecida na filosofia aristotélica, dista muito da imagem
preponderante na filosofia moderna post-cartesiana da auto-consciência temática,
objectivante. E é esta última que a crítica de Wittgenstein atinge.
Por outro lado, nos textos de Brentano nota-se uma nítida intensificação no
interesse por esta dimensão reflexiva do fenómeno psíquico que constitui um todo
apreendido como um objecto pelo acto de um sujeito e só por ele,
independentemente da intervenção externa. A relação intencional, em certo sentido
é postergada por esta autodireccionalidade da consciência, sem necessidade de um
"algo" distinto dela. O horizonte solipsista vislumbra-se neste acento da auto-
evidência do sujeito que se apreende "em privado", dispensando quase a relação
intencional que estabelece a comunicabilidade da consciência com o mundo. A
evolução do pensamento de Brentano no que respeita à percepção interna permite
diferentes leituras: se a raíz aristotélica das suas teses está patente, não se pode
negar também a forte inspiração cartesiana. E esta última, com todas as suas
consequências e ramificações nos vários domínios da filosofia, sugere e alimenta a
"gramática da linguagem privada" que os argumentos de Wittgenstein denunciam
e pretendem corrigir.
No entanto, há um outro aspecto a considerar, salientado na obra de
Vincenzo Fano197: o argumento de Wittgenstein incide particularmente na
exigência do carácter «público» do modo de referência aos próprios conteúdos da
percepção: o adjectivo assinala precisamente que as modalidades da referência não
podem ser individuais, privadas, porque qualquer objecto deverá ser acessível a
todas as pessoas e não apenas acessível em exclusivo a cada um. Ora, a estrutura
da percepção interna, tal como Brentano a apresenta, é garantia deste carácter
objectum primum ipsa eius essentia, sed aliquid extrinsecum, scilicet natura materialis rei. Et
ideo, id quod primo cognoscitur ab intellectu humano, est huiusmodi objectum; et secundario
cognoscitur ipse actus quo cognoscitur objectum; et per actum cognoscitur ipse intellectus, cuius
est perfectio ipsum intelligere".
197
La Filosofia dell’evidenza. Saggio sull’epistemologia di Franz Brentano, pp.180-195.
131

público, na medida em que concebe o conteúdo essencialmente unido e parte


integrante do acto psíquico, portanto, não «individualiza» esse conteúdo 198. Se se
considera o conteúdo da percepção interna como demarcado do acto, aquele
constitui evidentemente uma componente subjectiva e individual: no caso da visão
de um objecto vermelho, se lhe atribuo um estatuto «substancial», por assim dizer,
hispostasiando «aquilo que vejo», como conteúdo independente do meu acto de
percepcionar, é evidente que isso implica a incomunicabilidade e a privacidade do
«objecto» da percepção, visto que não se pode garantir que «aquilo que eu vejo»
seja igual «àquilo que tu vês». Mas, se se concebe o conteúdo como parte
integrante do acto da percepção, como modalidade de relação com o objecto, o
conteúdo adquire um carácter de generalidade e universalidade. Se, no exemplo da
visão referido, focalizo, não o «objecto visto interna e privadamente», mas «o
modo como vejo o vermelho», isto é, a modalidade da relação da consciência com
o objecto vermelho, é claro que eu vejo o vermelho do mesmo modo que qualquer
outra pessoa, embora possivelmente vejamos coisas diferentes. Não é a
individualidade do «objecto visto», independentemente do «acto de o ver» que
estamos a considerar, mas a modalidade geral da percepção, e assim esta adquire
um carácter genérico, não individual.
Isto levanta um problema: se a percepção interna é geral e não faz
referência a qualquer fenómeno psíquico individual, como é possível a convicção
que todo o homem tem, de ser uma substância individual? Sendo esta, no
enquadramento proposto por Brentano, uma mero substrato, em si mesmo
indeterminado, da vida psíquica, como é possível a completa individuação apenas
através das vivências acidentais, que ocorrem pontualmente, uma e outra vez? Esta
questão permanece sem resposta, no pensamento de Brentano, que não admite uma
percepção directa de si mesmo. No entanto, é possível demonstrar a priori que
somos necessariamente substâncias individuais, embora não nos possamos
percepcionar directamente como tal. Não é pelo recurso à percepção directa de si
198
Cfr Fano, V. ob. Cit, pp. 191 ss.
132

mesmo, à auto-consciência do eu numa espécie de apercepção transcendental, que


acedemos à noção e convicção de nós próprios como substâncias individuais; essa
convicção assenta no facto de ser totalmente contraditório admitir qualquer coisa
que não fosse individual, de acordo com o nominalismo brentaniano. Aquele que
percepciona é necessariamente um individuo, de contrário não seria um «algo»,
não seria nada; e de facto nada mais existe para além daquele que percepciona, não
existe um suposto «objecto», um «algo» que é percepcionado, todo o «conteúdo»
da percepção se reduz a modalidade segundo a qual se percepciona.
É precisamente a não individualidade da percepção interna que dá
passagem à possibilidade da sua intersubjectividade. Para Brentano, o conceito de
apercepção transcendental apresenta uma dificuldade insuperável, que o leva a
rejeitá-la, em nítida oposição a Kant. A representação do eu, como síntese de todas
as representações e ponto de chegada de todos actos da consciência contraria a
própria definição de fenómeno psíquico – essencialmente intencional,
direccionado para algo que o transcende 199. Precisamente a representação do eu
não tem essa capacidade de transcender-se, de tender ou dirigir-se para algo
distinto de si mesma, mas concentra-se, fecha em si o arco intencional que deveria
abri-la, enquanto fenómeno psíquico para um algo que não a própria
representação. Para Brentano a auto-consciência é a consciência secundária ou
concomitante, que segue como uma sombra todo e qualquer acto psíquico, sem lhe
fechar o horizonte intencional que o caracteriza 200. Neste sentido, o problema do
solipsismo, que o próprio Brentano vislumbra na sua concepção da evidência da
percepção interna, desvanecer-se-ia. O «eu», o sujeito, necessariamente individual,
não se daria nunca como um «objecto» interno da consciência de uma forma
unitária, isolada, encerrado em si mesmo. Pelo contrário, a percepção interna, é

199
Cfr Fano, V., ob.cit., p. 189.
200
Cabe aqui perguntar como explica Brentano a unidade da consciência. De facto, esse problema
é tratado por Brentano em Psychologie I, pp. 221-251. A consciência é uma unidade real análoga
à de um contínuo. O estatuto do «unitário não simples» constitui um paradigma do pensamento de
Brentano. O problema das partes da consciência e da sua interdependência é um dos temas
centrais da sua psicologia descritiva: cfr Descriptive Psychology, pp. 13-30.
133

precisamente a única fonte de experiência que abre para a intersubjectividade, tem


mesmo uma marca «asubjectiva», empregando o neologismo adoptado por
Fano201. Aqui radica a possibilidade de comunicação e de ter acesso ao mundo
psíquico do outro. Com efeito, Brentano afirma expressamente, em várias ocasiões
a viabilidade de uma concordância e comunicação entre indivíduos diferentes: “Se
alguém se apercebe internamente a si mesmo, não se apercebe verdadeiramente de
nada que muitos outros seres pensantes possam igualmente aperceber-se. Tudo o
que ele aqui se apercebe poderia igualmente ser também apercebido por um outro.
Aquilo que o torna individual não se manifesta na sua própria percepção interna.
Segundo a sua substância, ele apercebe-se apenas como coisa”202. E o carácter
público da percepção interna é expressamente afirmado por Brentano numa outra
passagem que contrasta com os textos já citados que indiciam claramente o
desfecho solipsista de todas as condições da mesma percepção interna. Escreve
Brentano: “Se alguém se apercebe a si mesmo fazendo um juízo, não há qualquer
obstáculo que impeça que alguém faça um juízo sobre a mesma coisa, podendo
mesmo aperceber-se a si mesmo como alguém que faz um juízo exacatamente do
mesmo modo. E duas pessoas poderiam, da mesma forma, ter emoções que
correspondam completamente umas com as outras”203.

Em suma: toda a teoria brentaniana sobre a percepção interna exprime um


carácter nitidamente cartesiano, o cogito, como intuição imediata e primeira
corresponde à descrição psicológica que Brentano faz da percepção da própria
consciência. Mas, por outro lado, se levarmos ás últimas consequências a
ontologia «reista» da última fase do pensamento brentaniano, não é de facto
possível pensar em algo como «objectos imediatos da concciência» ou «conteúdos
perceptivos internos» aos quais cada sujeito tem um acesso privado, porque são
«seus«, individualmente seus. Para Brentano tais tipo de «entidades» não são nada
201
Cfr ob.cit., p. 193.
202
Psychologie III, p. 113.
203
Psychologie II, p.199.
134

de individual, individual é apenas o sujeito que pensa, julga, percebe, deseja...Mas


o «pensado», o «percebido», etc., são universais, e por isso potencialmente
públicos, comunicáveis, participáveis por uma pluralidade de sujeitos.
É talvez esta tensão interna do pensamento de Brentano que o torna, até
certo ponto alvo das críticas de Wittgenstein, mas em última análise lhes escapam
completamente. Antes de Wittgenstein, é Brentano a propor a necessidade do
carácter público de qualquer acto ou fenómeno psíquico, condição necessária para
o uso da linguagem e da comunicação inter-pessoal.

5. Objectividade - Objectualidades
135

Se no século XIX a tendência marcante do pensamento consistia em pensar


que os factos e as coisas reais dependem na sua existência e natureza das
operações da mente, nos princípios do século XX há um surto filosófico que se
pode caracterizar, segundo expressão de Passmore como um "movimento para a
objectividade"204. Brentano imprime um primeiro golpe na tradição filosófica
desde Descartes a Locke, ao rejeitar o pressuposto comum segundo o qual o ser
mental é uma "ideia", com a conhecida caracterização de todos os fenómenos
psíquicos pela relação intencional - direcção a um objecto, relação a um conteúdo.
A noção e terminologia brentaniana - "acto", "objecto" "inexistência intencional" -
foram alvo de diversas leituras e interpretações, além de terem seguido um
itinerário evolutivo no próprio pensamento de Brentano. De qualquer modo, e é
isso o que interessa salientar, dá-se uma viragem inequívoca no que respeita ao
modo de considerar o "mental" ou o "ser conhecido": já não consiste numa mera
"ideia" ou representação subjectiva, mas refere-se a algo de "objectivo".
Os pensadores na esteira de Brentano tiveram certamente um papel
preponderante neste "movimento para a objectividade". Bastará referir Meinong e
a sua "teoria dos objectos", Twardowski, que introduz a distinção, em todo o
fenómeno psíquico entre o acto mental, o seu conteúdo e o seu objecto, distinção
que passará a ser preponderante nos inícios da filosofia analítica (Frege) e da
fenomenologia (Husserl). "Objecto" será algo para o qual se dirige o acto psíquico,
e esse "algo" poderá ser uma coisa realmente existente ou não, uma noção
abstracta, os números, a raiz quadrada de dois, o unicórnio, tudo aquilo que pode
ser pensado.

Não nos vamos deter na exposição da teoria de Meinong. Convém apenas esclarecer que
segundo a sua terminologia e classificação, se faz a distinção entre os objectos que realmente
existem - uma folha verde - e objectos "reais" mas não existentes, como "a diferença entre
vermelho e verde", uma diferença "real", mas não "existente". Estes objectos "reais não

204
Cfr Passmore, J. - A Hundred Years of Philosophy, cap. 8.
136

existentes", são "subsistentes". Além desta primeira divisão entre existentes e subsistentes, há a
considerar aqueles objectos, como "o círculo quadrado", que nem existem nem subsistem, mas
são, no entanto, "objectos". Alguns objectos "são", outros "não são", como por exemplo "uma
montanha dourada". Meinong designa de "objectivo", por exemplo "a existência da montanha
dourada". A natureza de um "objectivo" compreende-se bem se pensarmos por exemplo no
significado de uma proposição: "a montanha dourada não existe" significa ou é sobre "a não
existência da montanha dourada", não apenas sobre a "montanha dourada", e este significado da
proposição é o que Meinong considera um "objectivo", diferente dos "meros objectos".
Deste modo, Meinong assegura a "objectividade" dos factos, coisas, números, universais,
relações, distinções modais, etc. Não são propriedades da mente que as pensa ou afirma, mas
possuem uma independência em relação à mente que as apreende. Isto leva, no entanto, a povoar
o Universo de uma variedade de entidades com propriedades bastante surpreendentes: inclui, por
exemplo, o facto de as montanhas douradas serem douradas e o facto destas serem não existentes.
Esta proliferação ontológica leva a perguntar se não será possível evitar o subjectivismo sem cair
em teses com consequências tão estranhas e mesmo inacreditáveis.

A "teoria dos objectos" de Meinong será reformulada e revista, mas ela


está na origem da concepção de um novo domínio, o do "objectivo não actual" em
Frege, dos pensamentos eternamente verdadeiros ou falsos, com afinidades nítidas
com as proposições em si de Bolzano 205, do "terceiro reino" (Frege e Popper). A
descoberta deste novo mundo vem responder a um desideratum da filosofia de
autonomizar-se das ciências naturais, e nomeadamente afirmar-se como uma tarefa

205
Na Wissenschaftslehre (1837), Bolzano considera as "proposições-em-si" (Sätze an sich) como
objectos com as seguintes características: são objectos não-existentes, na medida em que não
entram na cadeia causal, nem existem em nenhum lugar nem tempo, mas subsistem no universo
como algo; constituem o conteúdo de actos psíquicos e o sentido ou significado de expressões
linguísticas e subsistem independentemente de serem pensadas ou expressas linguisticamente; os
actos psíquicos e as expressões linguísticas, que são reais, existem; são objectos complexos,
compostos de partes designadas por "ideias-em-si", que podem referir-se aos objectos; estes
objectos podem subdividir-se em qualidades (das quais as relações são uma espécie particular), i.
é qualquer objecto que pertença a pelo menos um outro objecto, e objectos puros, que não são
qualidades. Todas as qualidades são objectos, nem todos os objectos são qualidades. Qualquer
proposição é verdadeira ou falsa e permanece sempre como tal, mesmo se não for conhecida e
expressa linguisticamente. A determinação temporal faz parte do sujeito: por isso as proposições
"Caio é agora um homem instruído" e "Caio não era instruído há dez anos", não têm o mesmo
sujeito. No primeiro caso, o sujeito é "Caio-agora", no segundo, "Caio-há-dez-anos". Assim, a
determinação temporal não altera a verdade perene da proposição.
137

própria não redutível a um ramo descritivo da psicologia: apresenta-se-lhe um


domínio próprio a conquistar e explorar. Além disso, a defesa de um domínio do
"objectivo" constitui uma garantia para a recuperação dos fundamentos da lógica e
da matemática, libertando-os de pressupostos psicologistas que minam a sua
objectividade e autonomia.
A noção de objectividade tem, por um lado, um alcance ontológico e por
outro um epistemológico206. Na perspectiva ontológica, ser objectivo significa
existir independentemente de ser conhecido, percebido, pensado ou apreendido
pela consciência de alguém: todos os objectos físicos e seres vivos que povoam o
universo externo são obviamente objectivos, existem independentemente de serem
conhecidos ou apreendidos por alguma mente; ontologicamente objectivos serão
também para alguns os números, classes, proposições, qualidades primárias,
factos, estados de coisas, etc. A objectividade neste sentido ontológico implica a
conformidade, ou adequação ou correspondência com a realidade ou com factos.
Por isso mesmo também se pode designar como objectividade fáctica,
intimamente relacionada com o sentido de objectividade da linguagem corrente,
que pressupõe uma distinção realista acrítica e mutuamente exclusiva entre
"sujeitos" (selves) e "objectos" (not-selves). Deixando de lado, por agora, as
dificuldades e problemas para traçar esta linha de fronteira entre o eu e o não eu (o
self e o not-self), podemos assumir provisoriamente a definição de "objecto" do
Dicionário Webster como "a totalidade dos fenómenos externos que constituem o
não-eu (not-self), e a de "objectivo" como "algo que é externo à mente". Ser
objectivo, neste sentido significa ser algo de distinto do eu, externo ao eu (ou à
mente, ao sujeito, ao self, tomados em sentido genérico, sem entrar nas distinções
entre estas noções); o critério em que se baseia aqui a diferença entre objectividade
e subjectividade é o de ser algo na mente ou fora da mente. Obviamente a noção
de objecto/sujeito da linguagem corrente, implica o pressuposto realista e acrítico

206
Para um confronto entre os dois alcances da noção de objectividade cfr Bell, D. "Objectivity"
in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion to Epistemology, pp. 310-312.
138

que percepcionamos as coisas, os objectos que estão fora da mente e não


representações dessas mesmas coisas207.
Em contraposição as sensações, sonhos, recordações, desejos e outros
estados ou processos mentais são ontologicamente subjectivos, intrinsecamente
dependentes da mente, do sujeito psíquico.
Na perspectiva epistemológica, a distinção não divide a realidade segundo
um critério de autonomia ou dependência da mente, mas sim segundo um certo
acordo intersubjectivo em contraste com um acesso meramente individual e
subjectivo; e consequentemente, o pressuposto de uma conformidade com a
realidade, é substituído pelo de uma conformidade com regras 208. Nesta
perspectiva, pode entender-se a objectividade epistemológica a partir de um ponto
de vista pragmático, pressupondo uma espécie de "júri colectivo", que formula
certos consensos e decide sobre o que é objectivo a partir de regras segundo as
quais opera e que constituem o fundamento de validade dessas operações. Não
pretende ser uma objectividade "fáctica", ontológica, mas apenas se assume um
acordo intersubjectivo adequado (este o sentido de objectividade epistemológica
que caracteriza o pensamento de Peirce, Popper e várias formas de considerar a
validade do conhecimento científico reportando-se a esta inspiração
pragmatista)209.
Em Frege há uma caracterização de um sentido de objectividade que
recorre também a um critério de intersubjectividade, mas sem o cunho pragmatista
a que nos referimos antes. Frege considera estes dois sentidos de objectividade - o
ontológico e o epistemológico - e caracteriza o segundo como a capacidade de
certas entidades serem apreendidas, captadas ou pensadas por várias mentes. Não
por se basear num consenso ou num acordo, da parte dessa colectividade das

207
Cfr Freeman, E. e Skolimovski, H. - "The search for objectivity in Peirce and Popper" in
Schilpp. P. (ed.)- The Philosophy of Karl Popper, pp. 465-466.
208
Cfr ibidem. Freeman designa este sentido de objectividade de rule objectivity e caracteriza-a
genericamente: "The latter is epistemological and involves conformity to rules which establish
objectivity by fiat and social agreement."
209
Cfr Freeman, E., art. cit., p. 466.
139

mentes, mas porque essas mesmas entidades são reais, possuem uma dimensão
ontológica e constituem uma dimensão real do próprio mundo. São, portanto,
também independentes da mente que as pensa ou as apreende. O sentido de uma
proposição, um conceito ou uma relação, um teorema da geometria ou uma
verdade da matemática são objectivos por corresponderem exactamente a este
critério: não estão na mente, não se circunscrevem ao domínio do subjectivo e
individual, mas são partilháveis por várias mentes210. Pelo contrário, as
representações, sensações, emoções, etc. pertencem ao sujeito, só podem ser
conhecidas ou percebidas pelo próprio sujeito e por ninguém mais, e são portanto
subjectivas. Neste caso, para garantir a objectividade epistemológica, atribui-se
um realismo ontológico a entidades como números, proposições, o verdadeiro e o
falso, etc.: Frege considera que os números, o verdadeiro e o falso são objectos e
os conceitos, as funções, as relações e os pensamentos, não são objectos, mas são
reais e independentes da mente que os apreende. Em Kant, objectividade
epistemológica não pressupõe objectividade ontológica: o espaço é uma forma da
subjectividade, ontologicamente subjectivo, mas isso não impede que as
proposições da geometria, a ciência do espaço sejam um exemplo de objectividade
epistemológica. Validade objectiva significa para Kant validade universal
necessária211. O "movimento para a objectividade" que caracterizou alguns dos
210
Para Frege, a aritmética é epistemologicamente objectiva devido ao facto das suas proposições
se referirem a objectos que existem independentemente de quem formule ou compreenda os
enunciados matemáticos. A objectividade epistemológica das matemáticas pressupõe, portanto, a
existência de objectos matemáticos ontologicamente objectivos. Cfr Bell, D. “Objectivity” A
Companion to Epistemology, pp. 310-312.
211
Cfr Kant, Prolegómenos, § 18: “Todos os nossos juízos são primeiramente simples juízos de
percepção; têm validade apenas para nós, isto é, para o sujeito, e só mais tarde lhes damos uma
nova relação, a saber, com um objecto, e queremos que ele seja sempre válido para nós e
igualmente para todos; pois, quando um juízo concorda com um objecto, todos os juízos sobre o
mesmo objecto devem igualmente harmonizar-se entre si, e, assim, a validade objectiva do juízo
de experiência nada mais significa do que a validade universal necessária do mesmo.”
A distinção e contraste entre a perspectiva subjectiva e a objectiva traduz-se também na
diferença entre imagens do mundo intrinsecamente perspectivadas e pontos de vista não
perspectivados. Este ponto de vista exprimir-se-ia numa linguagem totalmente destituída de
demonstrativos, ou quaisquer termos indicativos de tempo, espaço, etc. Nagel designa este ponto
de vista imparcial “the view from nowhere” e formula a questão de saber se haverá aspectos
genuína e irredutivelmente subjectivos que pertencem apenas à minha perspectiva única do
140

pensadores do início do século XX marca precisamente um retorno a uma


fundamentação da objectividade epistemológica na objectividade ontológica, e
adopta uma forma de "realismo" forte, com ressonâncias platónicas, em contraste
com a "objectividade" da filosofia transcendental kantiana, e distanciando-se da
inspiração pragmatista com a consequente referência a um consenso
intersubjectivo.
Frege dá-nos uma versão forte desta concepção realista, um tanto
platonizante, da noção de objectividade. É oportuno, por isso, um breve exame do
seu pensamento.

5.1. O "real" e o "objectivo" em Frege

Nos Fundamentos da Aritmética, Frege escreve: "Distingo objectivo de


palpável, espacial, real. O eixo da terra, o centro de gravidade do sistema solar são
objectivos; não posso, no entanto, dizer que são reais como a própria terra. Diz-se
muitas vezes que o equador é uma linha imaginária (gedachte); mas seria falso ver
nela um algo inventado(erdachte). O equador não nasce do nosso pensamento, não
é o resultado de um processo mental, é simplesmente conhecido, apreendido pelo
pensamento. Se o facto de ser conhecido equivalesse a uma criação, nada
poderíamos dizer de positivo sobre o equador relativamente a uma época anterior a
esta pretensa criação"212. O termo para real é wirklich - são reais neste sentido de
efectivo, a terra, e os objectos físicos. Mas há um domínio do objectivo não actual
(Nichtwirklichen), ao qual pertencem precisamente os números, como os
conceitos, as funções. Este domínio não se identifica, segundo Frege, com o das
representação, o mundo inteiramente subjectivo, nem é fruto da nossa imaginação
ou de qualquer processo mental. Referindo-se ao espaço, que segundo Kant

mundo e que resistem a serem captados por uma concepção puramente objectiva desse mundo.
212
Grundlagen der Arithmetik, § 26.
141

pertence ao fenoménico, Frege admite a possibilidade de um ser racional de uma


outra espécie poder ter uma representação espacial diferente da nossa. Não se
poderá mesmo saber, pensa Frege, se as representações espaciais de diferentes
sujeitos coincidem ou não, porque, sendo subjectivas, são impossíveis de
comparar. No entanto esta aparência tem algo de objectivo, visto que todos
admitem os mesmos axiomas geométricos. "É objectivo- escreve Frege - o que é
conforme a uma lei; conceptual o que pode ser o conteúdo de um juízo e se deixa
exprimir por palavras. Não se pode comunicar o que é puramente intuitivo"213.

Frege seria atingido pela crítica de Wittgenstein à linguagem privada. Mas só na medida
em que parece advogar um "acesso privilegiado" ao mundo interno, das representações
subjectivas. No entanto, ao dar os exemplos dos termos de cores, Frege esclarece que, embora o
termo 'branco' evoque uma impressão determinada que é subjectiva, o uso comum da linguagem
traz já a marca de um sentido objectivo. Quando alguém diz que a neve é branca, pretende
exprimir uma propriedade objectiva, reconhecida através de uma certa impressão à luz normal. O
nome da cor não designa propriamente a sensação subjectiva, que não podemos saber se se
assemelha à de outro sujeito, mas uma propriedade objectiva. "Por objectividade, entendo
independência em relação às nossas sensações, intuições e representações, em relação aos
esboços de imagens interiores que nos vêm das recordações de impressões passadas, mas não
independência em relação à razão. Pretender dizer que são coisas independentes da razão, seria
pretender julgar sem julgar, lavar o couro sem o molhar"214

Frege considera um mundo interno, de representações subjectivas, apenas


apreensíveis pelo próprio sujeito, como as sensações de cor, a intuição de um
ponto ou de uma recta; estas representações de homens diferentes, por muito
semelhantes que possam ser, não se poderão nunca comparar, e serão sempre

213
Ibidem, § 26.
214
Ibidem, § 26. Cfr a discussão sobre a linguagem das sensações em Bouveresse, J. - Langage
perception et réalité, pp.411-420. Note-se que Frege tem bem clara a ideia que qualquer termo
empregue na linguagem só tem sentido no contexto do seu uso na frase, e a sua relação
referencial não se dá entre o signo e a sensação subjectiva. Portanto, no que diz respeito à crítica
de Wittgenstein à "definição ostensiva", a teoria fregeana parece que não incorre nesse erro
gramatical.
142

distintas. Pertencem ao domínio privado e incomunicável de cada sujeito 215. Pelo


contrário o domínio do "objectivo" pode ser apreendido por vários sujeitos, pode-
se comunicar, porque diversas mentes podem pensar num mesmo conteúdo - um
conceito, uma lei da ciência ou um teorema de geometria: e se uma coisa é comum
e acessível a todos, isso significa que não depende de quem a pensa.
É no texto mais tardio Der Gedanke, que Frege expõe com mais firmeza a
sua distinção entre subjectio e objectivo, e onde introduz a noção do "terceiro
domínio" não dependente das mentes que o pensam ou apreendem, embora tão-
pouco constituído por objectos reais (wirklich). O mundo interior é constituído por
representações (Vorstellungen): impressões sensíveis, criações da imaginação,
emoções, sentimentos e estados de alma, inclinações, desejos, volições. Mas o
pensamento não se pode incluir neste conjunto de estados e actos psíquicos,
inteiramente subjectivos. As representações caracterizam-se, em primeiro lugar,
por não poderem ser vistas, nem tocadas, nem sentidas, nem saboreadas, nem
ouvidas (não posso ver a impressão sensível do verde que me produz a visão de
um prado verde); em segundo lugar, as representações são algo que se tem . Tem-
se uma emoção, um sentimento, um estado de alma, uma inclinação… e tudo isto
pertence ao conteúdo da consciência; as representações têm necessidade de um
portador (Träger), em contraste com as coisas do mundo exterior, que são
independentes; por este facto não posso nunca comparar as minhas representações,
a minha sensação de «vermelho» com a de outro sujeito; não são idênticas, mas
sempre diferentes as representações de um e de outro sujeito: mesmo se vários
indivíduos vêm a mesma coisa, cada um tem a «sua» representação. Cada
representação tem um e apenas um protador; dois homens não podem ter a mesma
representação216.
Caracterizado o mundo interior, o mundo das representações como um
mundo do sujeito, do conteúdo da sua consciência, incomunicável, Frege

215
Cfr Grundgesetze, p. XVIII.
216
"Der Gedanke", pp. 351-352.
143

confronta-o com o mundo do pensamento. Os pensamentos podem ser


representações? Um pensamento como o teorema de Pitágoras pode ser
compreendido, captado por vários indivíduos, não pertence ao conteúdo da
consciência, não necessita de um portador (Träger). Se assim fosse, não
falaríamos do «teorema de Pitágoras» mas do «meu teorema de Pitágoras», do
«seu teorema de Pitágoras», sendo ambos diferentes. As palavras «verdadeiro» e
«falso» teriam também um emprego restrito ao domínio da minha consciência. A
possibilidade de pensar numa ciência comum, em cujos conteúdos vários
indivíduos pudessem pensar seria inviável. Cada um teria a sua ciência, constituída
por um conjunto de pensamentos dos quais seria o portador, uma ciência
pertencente exclusivamente ao conteúdo de cada consciência. Nestas condições
seria impensável qualquer contradição entre dois saberes, a objectividade da
ciência estaria minada na sua raiz217.
Os pensamentos não são nem coisas do mundo externo, nem
representações. Há que admitir, portanto, um "terceiro domínio" que tem de
comum com o mundo das representações, a característica de não poder ser
apreendido pelos sentidos, mas também, tem de comum com o mundo externo, o
facto de não necessitar de um portador, ao qual pertenceria como conteúdo da sua
consciência (veremos as afinidades desta tese de Frege com a postulação do 3º
reino de Popper, e os problemas da sua relação com o 2º reino, o mundo da própria
mente subjectiva). Os pensamentos - como o teorema de Pitágoras - são
verdadeiros intemporalmente e independentemente do facto de serem conhecidos
como verdadeiros ou não. Não são verdadeiros por terem sido descobertos por
alguém, mas têm um modo de existência próprio, tal como um planeta existe já no
Universo em interacção com outros planetas, mesmo antes de ter sido observado.
A diferença com a representação é flagrante: vê-se uma coisa, tem-se uma
representação, mas um pensamento é apreendido, pensado, não criado por quem o
apreende. Apreender um pensamento consiste em entrar numa certa relação com
217
Ibidem, p. 352-353.
144

esse pensamento que existia já, e esta relação é muito diferente do modo como se
vê uma coisa ou como se tem uma representação218.
A caracterização do mundo interior que Frege propõe conduz, sem dúvida à
hipótese solipsista: se afirma que só a minha representação pode ser objecto do
meu conhecimento, que o meu saber se limita ao domínio das minhas
representações, ao conteúdo da minha consciência, então eu teria apenas um
mundo interior e não poderia saber nada dos outros seres humanos. Mais: que sou
eu próprio, senão também uma representação? Não serei eu mesmo uma reunião
de impressões sensíveis, uma representação? Onde está então o portador de todas
estas representações? Como posso seleccionar uma das representações para a
instituir como portadora das outras representações? E porque designar esta
representação como «eu»? Se tudo fosse representação não há nenhum portador
das representações, mas se não há portador, tão-pouco haverá qualquer
representação219. Frege pretende apresentar uma espécie de redução ao absurdo da
tese que defende ser tudo representação: as suas consequências são absurdas, e a
única conclusão a tirar é que nem tudo é representação. Para evitar o absurdo de
um solipsismo extremo, e da impossibilidade total de saber algo do mundo
exterior, ter acesso a algo que não seja o próprio conteúdo da consciência, a única
solução é admitir outra forma de conhecer que não tenha por objecto apenas
representações. Será o caso dos pensamentos, dos quais não somos portadores,
como o somos das nossas impressões sensíveis, dos quais não podemos ter
impressões sensíveis, mas podemos captar, apreender (fassen): a capacidade de
pensar corresponde justamente ao poder espiritual de apreender o pensamento;
pensar não é produzir pensamentos, mas apreendê-los 220. Os pensamentos não
pertencem nem ao mundo exterior das coisas que se captam pelos sentidos, nem ao
mundo interior, enquanto mera representação.

218
Ibidem, pp. 353-354.
219
Ibidem, pp. 355-356.
220
Ibidem, p. 359.
145

A argumentação de Frege vai mais longe ainda: as impressões sensíveis


são, sem dúvida a fonte de todos os nossos conhecimentos. Mas ter uma impressão
sensível não é ainda ver uma coisa; a impressão visual é necessária, mas não
suficiente para a visão das coisas. Algo de não sensível se deve aqui acrescentar
para que da mera impressão sensível se passe ao ver. É este algo não sensível que
permite passar das impressões aos actos perceptivos, que nos abre para o mundo
exterior; sem este elemento não sensível, cada indivíduo permaneceria fechado no
seu mundo interior. Se, portanto, o elemento não sensível é determinante no
próprio conhecimento dos sentidos, para que da impressão se passe ao ver, é
perfeitamente plausível que este elemento não sensível, mesmo em casos nos quais
não se dão nenhumas impressões sensíveis, nos abra para o mundo exterior e nos
faça captar os pensamentos. Frege propõe, além do mundo interior, o mundo
exterior propriamente dito, constituído por coisas perceptíveis, e um domínio,
exterior também, não apreendido pelos sentidos221.
Atribuir "realidade" aos pensamentos pode parecer estranho, dada a sua
intemporalidade e inalterabilidade. No entanto, os pensamentos não são irreais, se
bem que a sua «realidade» seja diferente da das coisas correntes. A sua eficácia
real dá-se através do acto daquele que os pensa; no entanto, ao pensá-los não os
produz, mas apreende-os tal como são. O seu carácter de pensamentos verdadeiros
não depende de serem ou não pensados, e mesmo os pensamentos não apreendidos
como tais são, de certo modo, reais222.
O problema epistemológico que levanta esta defesa da «realidade» e
objectividade do pensamento é simplesmente o de saber com mais precisão como
se apreendem esses pensamentos intemporalmente verdadeiros ou falsos, não
dependentes nem da consciência nem dos processos cognitivos que a eles
conduzem (a mesma dificuldade se encontra na formulação de Popper). Em que
consiste propriamente essa capacidade de captar (fassen) os pensamentos? Claro

221
Ibidem, p. 360.
222
Ibidem, p. 362.
146

que a argumentação de Frege se move num plano não estritamente epistemológico,


mas poder-se-á perguntar como explica essa relação de um sujeito individual com
o pensamento real, existindo antes e independentemente de quem o pensa? E qual
o estatuto estranho de um pensamento não pensado, de um pensamento
eternamente verdadeiro ou falso, mas ainda não captado por nenhuma mente?
No caso de Frege, foi a desvinculação da lógica das interferências
epistémicas e psicológicas que o levou a situar todo o pensamento num domínio
objectivo, fora do âmbito da consciência. Ao negar aos pensamentos - tal como
aos conceitos - o estatuto de conteúdos de consciência, Frege pretende garantir a
sua objectividade, realidade e autonomia: um pensamento não depende do facto de
ser captado ou apreendido pela mente. Esta autonomização do pensamento suscita,
no entanto, questões bastante difíceis sobre o estatuto desse mesmo pensamento: o
que será um noema sem nous? Um pensamento completamente desenraizado de
qualquer mente pensante? O "realismo" de Frege parece excessivo, no que diz
respeito a conceitos e pensamentos: fica por justificar toda a epistemologia que dê
conta do modo e do porquê captamos nós esses pensamentos. Não existe, em
Frege, uma teoria causal que explique a captação de um pensamento, pois não é a
partir do mundo dos objectos que se forma o mundo dos pensamentos. Estes são
captados, apreendidos por uma certa visão intelectual, mas não há nada que prove
ou explique esta forma de conhecimento ou de acesso do sujeito ao pensamento.
Falta, portanto, a justificação epistémica que, admitindo a "objectividade" e
realidade do mundo conhecido, dê conta do processo como esse "domínio a
conhecer" se torna conhecimento.
As consequências para uma teoria do sentido e da comunicação são também
bastante problemáticas: existindo os pensamentos antes e independentemente de
serem apreendidos ou expressos por alguém, Frege é levado a considerar as
relações entre uma pessoa e um pensamento, e entre um pensamento e a
linguagem que o exprime, como arbitrárias e não complexas. Como é possível
explicar assim a comunicação de um pensamento? Não é possível sequer saber se
147

uma pessoa está a exprimir o mesmo pensamento, e não há qualquer acesso à


apreensão que os outros têm de um pensamento, apenas aos signos que emprega.
Perde-se, assim qualquer justificação para falar de uma linguagem intersubjectiva,
comum, o que conduz a um total solipsismo linguístico. Um solipsismo
devastador, que atinge a própria possibilidade de uma mesma pessoa poder
identificar um pensamento seu, como sendo o mesmo, independentemente da
linguagem na qual o exprime. Wittgenstein dá conta desta situação paradoxal e
frustrante: "Se dizes: 'Como posso eu saber o que ele quer dizer se vejo apenas os
signos que apresenta?', então direi: 'como pode ele saber o que quer dizer, se ele
próprio não tem nada a não ser os signos?' " (Philosophical Grammar, 40).
A falha da epistemologia fregeana não é tanto a ontologização dos
pensamentos e valores de verdade como entidades existindo independentemente,
mas a impossibilidade desta hipótese - quer seja verdadeira ou falsa - para explicar
a objectividade. Postular entidades como os pensamentos, para garantir a
objectividade pressupõe necessariamente uma petição de princípio, porque retorna
a questão de que se parte: como é possível um conhecimento objectivo de tais
entidades? O problema envolve-se no enredo paradoxal de um infinito regresso
vicioso223.
O intuito que leva a situar os pensamentos num mundo de "objectualidades"
ontologicamente existentes e independentes do processo de apreensão da mente,
para assegurar o carácter "objectivo" do conhecimento, é frustrado pelas próprias
consequências extremas deste "realismo": a "objectividade" que se pretendia
fundamentar, é posta em causa e inviabilizada pela própria hipótese da
"ontologização" do pensamento

5.2. Epistemologia sem sujeito


223
Cfr Bell, D. - Frege's Theory of Judgement, cap. IV.
148

A caracterização da objectividade científica na filosofia de Popper tem as


suas raízes, numa primeira fase, na oposição da sua concepção de ciência às
perspectivas defendidas pelos representantes do Círculo de Viena. À noção
estática, estrutural da ciência, assente no solo fixo dos enunciados protocolares,
Popper contrapõe uma perspectiva evolucionária, dinâmica do conhecimento
científico, em permanente crescimento, não baseado em dados de observação e em
proposições irrevisíveis, mas em hipóteses e conjecturas, sempre sujeitas a uma
possível refutação, nunca total e absolutamente confirmáveis. Enquanto a
justificação da objectividade da ciência no enquadramento da concepção estática
dos neopositivistas significa a sua fundamentação num estrato firme de
conhecimentos indubitáveis, na concepção dinâmica popperiana, essa justificação
pressupõe o estabelecimento de critérios racionais para a aquisição do
conhecimento e compreensão do conhecimento acumulado; não há lugar para um
estrato de conhecimento absoluto, nem para a classe privilegiada de enunciados
básicos que dispensam a verificação e que constituem o fundamento inamovível da
certeza e evidência. Para Popper objectividade significa refutabilidade: as teorias
científicas nunca se podem considerar completamente justificadas ou verificadas,
mas sempre sujeitas à refutação. Aí reside a sua objectividade, no facto dos
enunciados científicos poderem ser intersubjectivamente testados. Contra a
objectividade fundada em dados últimos, em enunciados protocolares, argumenta
Popper com a exigência da possibilidade de testar qualquer enunciado, não
havendo por isso lugar para uma base empírica da ciência objectiva com um
carácter de "absoluto"224. Enquanto tradicionalmente a objectividade do
conhecimento científico significava o reconhecimento do seu carácter absoluto, no
pensamento de Popper a objectividade do conhecimento exclui precisamente
qualquer carácter de absoluto: nenhum conhecimento objectivo pode ter o carácter

224
Cfr Logic of Scientific Discovery, pp. 44, 47, 111.
149

de absoluto. Objectivo significa testável e testável significa refutável, ou seja não


absoluto225.
Em "Epistemology without a Knowing Subject", Popper propõe uma
reformulação da noção de objectividade com a proposta da sua "teoria do 3º
mundo", com a qual se pretende demarcar de uma abordagem psicológica e
sociológica da filosofia da ciência, com a intenção de garantir a racionalidade e
objectividade do conhecimento científico que poderia ser ameaçada por estas
abordagens. A tese de Popper - como ele próprio o admite - tem muito em comum
com a teoria das ideias de Platão e também com a noção de "espírito objectivo" de
Hegel.
No entanto, ao propor a tese sobre o «terceiro mundo», Popper reconhece a
sua filiação nas noções de Bolzano de um universo de proposições em si mesmas e
de Frege, de um universo de conteúdos objectivos de pensamento226. A própria
terminologia é de origem fregeana, que foi o primeiro a empregar a expressão
«terceiro domínio»: para Popper, o primeiro mundo é o "dos objectos físicos ou de
estados materiais; o segundo, é constituído por "estados de consciência ou estados
mentais, ou talvez disposições comportamentais para agir;" o terceiro, é o "mundo
de conteúdos objectivos de pensamento, especialmente de pensamentos científicos
e poéticos e de obras de arte"227. A defesa da existência de um «terceiro mundo» é
dirigida contra os filósofos da crença, como Descartes, Locke, Berkeley, Hume,
Kant e Russell que, no entender de Popper estão mais interessados em
fundamentar as nossas crenças subjectivas indagando das suas origens últimas. A
225
Cfr Skolimowski, H. - art. cit., p. 488. Este critério de objectividade corrresponde ao primeiro
período do pensamento de Popper que Skolimowski designa como o "período metodológico"; no
segundo período, "metafísico", que tem início nos princípios dos anos 60, Popper formula a sua
teoria dos "três mundos".
226
Embora reconhecendo as afinidades com a teoria das formas e ideias de Platão e a noção de
espírito objectivo de Hegel, Popper argumenta: "Tem ainda mais em comum com a teoria de
Bolzano de um universo de proposições em si e verdades em si mesmas, embora difira também
de Bolzano. O meu terceiro mundo assemelha-se mais de perto com o universo dos conteúdos
objectivos de pensamento de Frege" (Cfr "Epistemology without a Knowing Subject", Objective
Knowledge. An Evolucionary Approach, London, Oxford University Press, 1973, trad. brasileira
in Conhecimento Objectivo, cap. 3).
227
Ibidem, p. 106.
150

epistemologia tradicional preocupou-se sobretudo com o problema subjectivo do


conhecimento, explorando apenas o domínio do primeiro mundo; o conhecimento
científico, o mundo das teorias e problemas objectivos pertence ao terceiro mundo.
Pode considerar-se a noção de conhecimento em dois sentidos diferentes: num
primeiro sentido, conhecimento como um estado de espírito ou de consciência ou
como uma certa disposição para agir; num segundo sentido, conhecimento
constituído por problemas, teorias e argumentos como tais. Neste sentido
objectivo, considera-se o conhecimento independentemente dos processos
cognoscitivos de qualquer sujeito cognoscente, da crença, dos juízos, etc. "O
conhecimento no sentido objectivo é conhecimento sem conhecedor; é
conhecimento sem sujeito que conheça228.
Popper baseia esta distinção na noção de pensamento de Frege, que não é o
acto subjectivo de pensar, mas o seu conteúdo objectivo 229. Concentrar a
epistemologia no aspecto subjectivo, tentar explicar os processos cognoscitivos
que conduzem ao conhecimento é irrelevante para Popper. Uma epistemologia
subjectivista situa-se no segundo mundo - o mundo do sujeito cognoscente, seus
estados de consciência e não pode atingir o mundo do conhecimento científico.
Por isso, Popper propõe uma epistemologia objectivista, dirigida ao terceiro
mundo; esta perspectiva pode contribuir para uma compreensão do segundo
mundo da consciência subjectiva, mas o inverso, uma epistemologia subjectivista
não poderá nunca resolver os problemas do conhecimento científico.
A justificação da objectividade do conhecimento científico e de todo o
conhecimento em geral reside no facto de o terceiro mundo ser autónomo, não no
sentido tradicional platónico com as suas implicações ontológicas; o terceiro
mundo de Popper é autónomo, mas simultaneamente um produto da mente
humana230. Do ponto de vista genético, é um produto humano, embora o seu

228
Ibidem, p. 111.
229
Cfr "Der Gedanke", p. 32.
230
Cfr Skolimowski, H. - art. cit., p. 494.
151

estatuto ontológico seja, no entanto, autónomo, independente de qualquer sujeito


cognoscente.
Agora a objectividade do conhecimento científico adquire um novo
fundamento: já não é considerada com base na capacidade da crítica
intersubjectiva, da testabilidade e refutabilidade das teorias pela comunidade
científica racional, mas encontra uma garantia no estatuto independente dessas
"entidades" que constituem o terceiro mundo. Na Lógica da Descoberta Científica
e em Conjecturas e Refutações231 Popper propõe uma forma muito mitigada de
platonismo, totalmente diferente da noção de justificação da objectividade. A sua
"nova epistemologia" combate os assaltos do psicologismo e sociologismo que
afectam o carácter objectivo do conhecimento, e pretende pôr a ciência a salvo do
relativismo sociológico e do subjectivismo psicológico: as teorias científicas não
estão à mercê da comunidade dos investigadores de uma determinada época, e
muito menos da situação cognitiva individual do sujeito cognoscente.
A principal dificuldade da teoria popperiana e a sua vulnerabilidade reside
precisamente na relação entre o terceiro e o segundo mundos. As entidades do
terceiro mundo, os intelligibilia, são autónomos, tal como o são as entidades do
segundo mundo, os actos mentais, visto que há uma total independência inter-
mundos, embora estejam relacionados. Como entende e explica Popper esta
relação? A actividade de uma mente individual pertence inteiramente ao segundo
mundo - actos de compreensão, entidades mentais. Mas, por outro lado os
produtos desta actividade passam a constituir as entidades do terceiro mundo: os
sentidos das proposições, conteúdos de pensamento, etc. Como é possível que a
actividade mental (inserida no segundo mundo), tenha como resultado produtos
que constituem o terceiro mundo, sendo ambos mundos constituídos por entidades
totalmente distintas e independentes? Tal como em Frege, fica sem resposta o
problema da relação entre a actividade cognoscitiva e os seus próprios objectos, os
próprios processos da compreensão, da apreensão ou captação dos conhecimentos.
231
Cfr ibidem, p. 495.
152

Também Popper recorre à metáfora da "visão" e emprega o termo captar um


objecto matemático ou geométrico, um número ou forma geométrica: a relação
entre a mente e os seus objectos é intimamente análoga ao "ver" no sentido
literal232. De qualquer modo as explicações de Popper não são muito elucidativas:
não se compreende como é que os actos cognitivos do sujeito conduzem a
resultados cognitivos intersubjectivos. A dificuldade permanece dada a insistência
de Popper em rejeitar qualquer tipo de aproximação entre os conteúdos mentais, os
actos cognoscitivos e os seus próprios objectos, para evitar qualquer assomo de
psicologismo. Admitir uma semelhança ou uma aproximação seria uma concessão
ao psicologismo, identificando os intelligibilia com os processos do pensamento.
Tal identificação dissolveria a autonomia do terceiro mundo, removendo os
fundamentos objectivos do nosso conhecimento, o que significaria em última
análise dissolver a própria objectividade do conhecimento233.

Mesmo reconhecendo a evolução que a tese do terceiro mundo vem


imprimir à noção de justificação e de objectividade do conhecimento científico, há
um factor de continuidade no pensamento de Popper que importa sublinhar. Um
dos pontos de partida da sua epistemologia é o problema da demarcação entre
ciência e não-ciência. Não é o problema da génese dos nossos conhecimentos que
está em causa, mas o estatuto do conhecimento científico em si mesmo. As teorias
científicas situadas nesse terceiro mundo, não podem nunca ser totalmente
verificadas, confirmadas ou justificadas, mas apenas falsificadas ou refutadas; e a
232
Cfr Popper, K. - "Objective Mind", p. 26 (cit. por Skolimowski, art. cit., p. 497.)
233
Skolimowski, H., no art. cit., p. 508 tenta dar uma solução a esta dificuldade recorrendo a uma
adaptação da teoria da linguagem de Chomsky, para concluir: "…the notion of objectivity here
proposed is based on the recognition that there is a parallelism between the conceptual
development of knowledge and the conceptual development of mind: they depend on each other
and limit each other (…) "The justification for the objectivity of scientific knowledge given above
is that 1) it accepts Kuhn's historical and social approach, but escapes the dangers of irrationality
inherent in Kuhn's conception; 2) it accepts Popper's conception of the third world of intelligible
entities, (…) but is escapes the difficulties in which Popper found himself by denying that there is
any ressemblance between the entities of the second and the third world; 3) it accepts Chomsky's
idea of the structure of mind (…) but it avoids the pitfalls of Chomsky innatism which is
incompatible with the growth of scientific knowledge."
153

epistemologia "objectivista" deve ocupar-se apenas com os conteúdos objectivos


das teorias e suas relações lógicas. Os cientistas não têm de crer nas suas teorias,
não são as crenças dos cientistas que têm relevância - isso é uma questão
subjectiva - mas as teorias, proposições e problemas abstractos, a que se refere o
"conhecimento científico objectivo". Esta nítida demarcação e fronteira entre as
crenças e sua justificação, o processo subjectivo de aquisição do conhecimento,
por um lado, e o conjunto de teorias e problemas científicos em si mesmos
considerados, com total independência da sua relação com o sujeito, por outro,
traduz o cepticismo e o "falibilismo" epistemológico de Popper; não temos nunca
conhecimento no sentido de crença verdadeira justificada. O "conhecimento
científico objectivo" não é nunca justificado, não pode constituir o objecto de uma
crença verdadeira, pode muitas vezes ser falso. Pode, por isso dizer-se que Popper
nega que tenhamos conhecimento no sentido corrente da palavra234.
A "epistemologia objectivista" popperiana pressupõe um isolamento das
teorias, problemas e argumentos científicos em relação à experiência do sujeito. A
caracterização da objectividade do conhecimento teorético de Polanyi 235 aplicar-se-

234
Cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, p. 97: "It would be true to say that Popper denies that we
have knowledge, in the usual sense; but more illuminating, in the interests of locating the point of
intersection of our projects where my critique will get its purchase, to say that he denies that we
can have knowledge, in the usual sense, while holding that, for all that, science is a rational
enterprise - not because scientists are ever justified in believing their theories, but because
genuinely scientific theories are subject to rational criticism". A autora mostra nas páginas
seguintes a impossibilidade de resolver o "problema da base empírica do conhecimento" dentro
das exigências popperianas de anti-indutivismo e anti-psicologismo. Uma vez que a indução é
injustificável, o método científico deve ser exclusivamente de carácter dedutivo - esta é a ideia
básica do falsificacionismo de Popper. As questões da justificação são lógicas e não de carácter
causal - esta é a ideia fundamental na base da distinção entre descoberta e justificação; as
questões da descoberta são relegadas para o domínio da sociologia ou psicologia e em
consequência os conceitos psicológicos são classificados como "subjectivos". A epistemologia
que importa deve ocupar-se apenas com o terceiro mundo, uma "epistemologia sem sujeito
cognoscente".Cfr ibidem, p. 101.
235
Polanyi com a sua concepção do conhecimento pessoal representa um dos principais oponentes
à epistemologia objectivista de Popper, no início dos anos 60. A ciência, tal como é concebida
por Polanyi é um assunto subjectivo (a subjective affair) de cientistas individuais, em oposição
nítida ao carácter objectivo, "trans-subjectual" que Popper pretende imprimir à sua epistemologia.
Cfr Freeman e Skolimowski, art. cit., p. 485. Cfr. a resposta de Popper a este artigo, na qual
esclarece que a sua defesa da objectividade no chamado "período metafísico", não foi uma
reacção às obras de Polanyi e Kuhn, publicadas respectivamente em 1958 e 1962, mas tem uma
154

ia, neste caso à concepção de Popper: uma teoria é algo de diferente de mim
mesmo, pode formular-se através de um sistema de regras, que medeia entre mim
e a própria realidade experiencial; assemelha-se a um mapa, que pode ser correcto
ou errado, mas é a ele que atribuo a correcção ou o erro das informações que me
dá. Do mesmo modo, uma teoria na qual me baseio é conhecimento objectivo na
medida em que não sou eu, mas a teoria que está correcta ou errada quando utilizo
esse conhecimento. Consequentemente, uma teoria não será nunca afectada por
quaisquer flutuações em mim mesmo, ela tem uma estrutura formal rígida, da qual
eu dependo sejam quais forem as disposições, ou estados mentais pessoais. Uma
vez que a afirmação formal de uma teoria não é afectada pelo estado da pessoa que
a aceita, as teorias podem ser construídas independentemente da relação normal
que qualquer pessoa tem com a experiência236.
Levando ao extremo a "objectividade", Polanyi infere consequências
surpreendentes: das duas formas de conhecimento, - o teorético e o experiencial -
deveremos considerar aquela que assenta sobretudo na teoria, mais objectiva do
que o conhecimento baseado na experiência sensorial imediata. De tal modo que a
teoria apresentar-se-ia como um filtro entre os nossos sentidos e as coisas das
quais poderíamos obter uma percepção mais directa; e seríamos mesmo orientados
mais por essa perspectiva teorética na interpretação da nossa própria experiência,
cujo estatuto se reduziria a um conjunto de aparências de carácter duvidoso e
possivelmente enganador. Teríamos assim fortes razões para concluir que o
conhecimento teórico tem um carácter muito mais objectivo do que a experiência
imediata: uma teoria é algo de totalmente diferente e independente de mim
próprio; não pode ser alvo de erros ou desvios devido a ilusões pessoais (posso
errar ou enganar-me ao ler e interpretar um mapa, mas o mapa permanece correcto
ou errado em si mesmo, de uma forma impessoal); uma vez que as afirmações
origem anterior, originada pelo seu interesse na mecânica quântica e no indeterminismo. No
Prefácio à tradução inglesa de The Logic of Scientific Discovery, refere-se, no entanto, à era
"post-crítica" e "post-racionalista", que é uma alusão crítica ao Personal Knowledge de Polanyi.
Cfr. Schilpp, P. A., The Philosophy of Karl Popper, II vol., p. 1067.
236
Cfr Polanyi, M. - Personal Knowledge, p. 4.
155

formais de uma teoria não são afectadas pelo estado da pessoa que a assume,
podem ser construídas sem qualquer relação com o acesso normal à própria
experiência237.

5.3. Objectividade e Falibilismo

O impulso para a objectividade que levou Popper a postular um terceiro


mundo, está longe de constituir uma atitude epistemologicamente optimista. Pelo
contrário, Popper é fundamentalmente um falibilista. Rejeita que haja fontes
infalíveis de conhecimento, contra o fundacionalismo justificacionista do
positivismo lógico, e nega que uma proposição possa ser verificada de um modo
conclusivo. Todo o conhecimento assenta num conhecimento anterior que não é
necessariamente verdadeiro, mas apenas aceite como um ensaio ou conjectura, e
está sempre aberto à crítica e à refutação. Mas, de facto o falibilismo científico de
Popper pressupõe, à partida a aceitação da possibilidade de um progresso ou de
uma evolução em direcção a certos valores epistémicos como por exemplo a
pretensão de sentido, de verdade ou de verosimilhança. Como nota Apel, não é
possível refutar uma proposição se não se admitir simultaneamente a possibilidade
de um ideal regulador, uma condição de possibilidade e sentido do próprio
processo de auto-regulação racional, em si mesmo falibilista 238. A teoria da
237
Cfr ibidem, p. 4. A intenção de Polanyi situa-se no pólo oposto dos «construtores» da
«objectividade científica»: "The purpose of this book is to show that complete objectivity as
usually attributed to the exact sciences is a delusion and is in fact a false ideal. But I shall not try
to repudiate strict objectivity as an ideal without offering a substitute, which I believe to be more
worthy of intelligent allegiance: this I have called 'personal knowledge' " (ibidem, p. 18).
238
Cfr Apel, K. O. - Transformation der Philosophie, II, Suhrkamp, Frankfurt, 1973, pp. 138-167:
Num artigo de 1959, "Linguagem e verdade na situação actual da filosofia", Apel critica já o
modo decisionista como o falibilismo de Popper pretendeu garantir a validade do seu
evolucionismo pragmatista. De acordo com Apel, as posições de Peirce e de Popper são muito
diferentes: Popper justifica a sua posição através de um decisionismo metodológico, enquanto
156

verdade de Tarski, que Popper considera uma teoria realista da verdade como
correspondência no sentido tradicional aristotélico, desempenha uma função
reguladora.

O seu ataque às epistemologias tradicionais como "filosofias da crença",


propondo concentrar o exame do conhecimento em proposições objecto de crença,
mais do que em crenças, nasce da sua atitude para com a indução. As objecções à
filosofia da crença são ditadas pela constante insistência em isolar a epistemologia
da psicologia ou sociologia da investigação científica, para concentrar a sua
atenção na lógica da situação dos problemas, hipóteses e prova, questão totalmente
diferente. E para Popper, como para Peirce, todos os nossos conhecimentos
científicos estão invariavelmente sujeitos à vulnerabilidade de poderem vir a
revelar-se como falsos. Nenhuma teoria científica, nesta perspectiva, poderá ser
categoricamente afirmada, mas apenas mantida com uma certa probabilidade de
ser verdadeira. Tanto Peirce, como Popper insistem na necessidade de
reconhecermos a nossa incapacidade de alcançar a verdade final e definitiva no
que diz respeito às ciências naturais.
Falibilismo é mesmo a designação que Peirce dá como síntese das suas
ideias respeitantes à lógica da investigação científica: o primeiro passo para
qualquer nova descoberta é o reconhecimento de que pouco ou nada sabemos já
satisfatoriamente239. No entanto, Peirce insiste também em não considerar o
falibilismo dos nossos conhecimentos científicos como uma motivação para o
abandono céptico do empreendimento científico; pelo contrário, constitui um
incentivo para prosseguir a investigação da melhor maneira possível, assente na
convicção que o ideal cognitivo é correlativo à busca da verdade, ideal que orienta
e justifica plenamente todo o trabalho científico, a despeito do facto de termos de
Peirce justifica a sua perspectiva através de um fundamento pragmático transcendental, que, para
Apel é á única válida. Sobre Apel e as posições de Peirce e Popper, cfr Ortiz de Landázuri, C. -
"Dos melioristas: Decisionismo metodológico o Ética de las creencias? (a través de Karl Otto
Apel)", Anaurio Filosofico,2001 (34), pp. 75-100.
239
Cfr Collected Papers, I, 1.13
157

reconhecer que o seu alcance satisfatório está para além das possibilidades da
nossa captação.

O contraste entre o "terceiro mundo", em Popper, constituído por meras


objectualidades, ou a situação ideal de consenso que se identificaria com a
verdade, em Peirce, e o mundo da consciência, com a sua experiência imediata,
reflecte-se no confronto entre a perspectiva subjectiva da primeira pessoa, sempre
falível, e um ponto de vista não perspectivista, que se pretende absoluto, sem
qualquer referência a dados que contenham elementos demonstrativos, pessoais
temporais: a tentativa de construir uma linguagem que exprima uma imagem do
mundo sem a perspectivar a partir de nenhum lugar, tempo ou circunstância
pessoal. Uma perspectiva ou modo de pensar será tanto mais objectiva quanto
mais distante e independente das próprias estruturas do sujeito até chegar a um
ponto totalmente desubjectivado, descentrado. Esta atracção para a objectividade
revela uma tensão para superar a falibilidade do ponto de vista subjectivo, limitado
e condicionado pelas condições do conhecimento o próprio sujeito. O "eu" - esse
ponto de vista único e constitutivo a partir do qual se vê o mundo – é substituído
por uma perpectiva rapsódica e sem ponto de fuga, que dá lugar a uma visão
descentrada, desprendida de qualquer factor subjectivo ou pessoal. Como propõe
Nagel240, devemos pensar na realidade como um conjunto de esferas concêntricas,
que se vão revelando progressivamente na medida em que gruadualmente nos
formos desprendendo das contingências do próprio eu. Nagel apresenta uma
defesa e uma crítica da objectividade, que é simultaneamente sobrevalorizada e
desvalorizada pelas mesmas pessoas: desvalorizada quando não é vista como um
método de compreensão do mundo tal como é em si mesmo; sobrevalorizada por
aqueles que pensam que pode proporcionar uma imagem completa do mundo em
si próprio, substituindo a perspectiva subjectiva na qual tem o seu ponto de
240
The View from Nowhere, p. 5.
158

partida. Qualquer avanço objectivo dá origem a uma nova concepção do mundo


que inclui o próprio ponto de vista do eu e a sua anterior concepção; por isso, põe-
se sempre a questão de saber o que fazer com a primeira perspectiva, mais
subjectiva e como conciliá-la com a nova perspectiva. À medida que se avança
numa compreensão mais objectiva da realidade, as perspectivas pessoais e
subjectivas vão ficando cada vez mais para trás. Mas se queremos abarcar o
mundo no seu todo, não podemos esquecer indefinidamente esses pontos de
partida subjectivos, que pertencem, eles próprios ao mundo e à realidade. Em
muitos casos, há a possibilidade de integração na objectividade dos pontos de vista
subjectivos. Nos casos em que essa integração for impossível, o que Nagel propõe
é não declarar a vitória a nenhum dos extremos - objectivo/subjectivo - mas
manter a oposição em mente, sem suprimir nenhum dos dois pólos241.
Subjectividade e objectividade são simultaneamente levadas a um extremo
na noção de um "eu objectivo", um eu capaz de experiências a partir de qualquer
ponto de vista, ou de uma perspectiva descentrada: "essencialmente não tenho
nenhum ponto de vista particular, mas apreendo o mundo como sem centro
(centerless)242. Wittgenstein no Tractatus tira as últimas consequências desta
tensão irredutível: o eu identifica-se com o seu mundo (5.63), "os limites da minha
linguagem significam os limites do meu mundo" (5.6), mas o sujeito é um limite
do mundo (5.632). Por isso, o Solipsismo verdadeiramente coincide com o puro
realismo: "O eu do Solipsismo contrai-se e fica um ponto sem extensão, fica a
realidade coordenada com ele" (5.64). A pura objectualidade faz recuar o sujeito
até ao limite, limite a partir do qual, no entanto se coordena a perspectiva do todo:
uma perspectiva omnienglobante que não pode contemplar, no entanto, o próprio
sujeito, porque nada do que se dá nessa perspectiva permite ver o próprio sujeito
(5.633).

241
Cfr ibidem, p. 6.
242
Cfr ibidem, p. 61.
159

Aparentemente a situação apresenta-se como um dilema sem saída: ou a


possibilidade de integrar a subjectividade com todos os seus condicionamentos na
perspectiva que nos é dada, aceitando implicitamente o risco de um limite imposto
ao próprio conhecimento e portanto a sua falibilidade; ou a superação desse ponto
de vista limitado e falível para uma perspectiva objectivista e uma situação de
absoluto consenso inter-subjectivo, ao preço de rejeitar as próprias condições
inerentes ao modo de conhecer do sujeito.
Tanto a posição de Popper como a de Peirce, apesar do impulso para a
objectividade do primeiro e da convicção do segundo, de que a ciência é o
caminho que evolutivamente se dirige para a verdade, contornam este dilema,
assumindo-se sempre como falibilistas.

5.4. O Pensamento: lugar das formas

Formular a questão do conhecimento em termos de uma certa oposição


sujeito-objecto conduz a uma série de impasses: para evitar os excessos de uma
concepção subjectiva, que debilita o estatuto do conhecimento científico, a
tendência marcante é garantir a objectividade através do recurso a um mundo de
"objectualidades", reificando os inteligíveis, pondo-os como entidades em si, que
podem ser apreendidas, captadas pelo pensamento, como vimos em Frege e, em
certa medida em Popper. Mas a forma de apreensão dessas "objectualidades"
torna-se problemática: não sendo objectos captáveis pelos sentidos, pressupõem
uma certa capacidade intuitiva que fica por explicar. O que é, neste caso pensar?
Como se pensa? Qual a relação do pensamento com o pensado? São perguntas que
ficam por responder, ao distanciar os actos de pensar dos seus próprios conteúdos,
situados num mundo quase-platónico.
A este respeito, é interessante revisitar a noção de nous em Aristóteles e o
modo como expõe a sua relação com os objectos inteligíveis: uma das teses
160

fulcrais na teoria aristotélica do intelecto é a afirmação da identidade do intelecto


em acto com o seu objecto inteligível. A ideia não é nova, porque vem reiterar o
que Aristóteles afirma sobre a percepção: a actualização (energeia) do sentido e o
objecto sensível são o mesmo: o acto de ouvir ocorre em simultâneo e distingue-se
só conceptualmente do acto de soar243. No início da discussão sobre o nous,
Aristóteles compara o pensar com a percepção: "assim como a faculdade sensitiva
se relaciona com os objectos sensíveis (to aisthetikon pros ta aistheta), assim deve
o nous relacionar-se com os inteligíveis (ta noeta)"244. Para poder receber as
formas inteligíveis, o nous deve ser potencialmente todas estas formas, mas em
acto não é nada antes de que ocorra o pensar (noein). O nous é "o lugar das
formas", porque é potencialmente todas estas formas, o lugar onde estas se
realizam245. Mas as faculdades sensitiva e intelectiva diferem na sua
impassividade, pois os órgãos dos sentidos, localizados no corpo, perdem a
capacidade de sentir quando recebem estímulos demasiado violentos: um som
demasiado alto afecta de tal modo o órgão auditivo que o impede de ouvir, o
mesmo acontece com luzes ou cores excessivas; pelo contrário, quando o nous
pensa no que há de mais inteligível, não é menos capaz de o pensar, antes pelo
contrário torna-se mesmo mais capaz de o pensar246.
Sendo o nous algo de simples, não pode ser afectado por nada (apathes), ou
objecto de uma acção de outro que não ele próprio, e sendo pensar uma certa
forma de ser afectado (to noein paschein ti estin) como pensa o nous247? Deixamos
agora de lado a outra questão que Aristóteles formula: pode o nous ser, ele próprio
objecto de pensamento, ou seja pode pensar-se a si mesmo? Para responder à
primeira pergunta - como pensa o nous? - Aristóteles reinvoca a sua tese inicial: o
nous é potencialmente idêntico a todos os objectos de pensamento, mas em acto
não é nada, antes de pensar. É como uma tábua onde nada está escrito: melhor, é
243
Cfr De Anima III-II 425b26.
244
Ibidem, 429a17-18.
245
Cfr Ibidem, 429a28-30.
246
Cfr ibidem, 429b1-5.
247
Cfr ibidem 429b23-25.
161

como a capacidade da tábua em branco de poder ter qualquer coisa escrito nela.
Esta dimensão potencial do intelecto é o que se designa por intelecto possível ou
passivo, fazendo eco ao termo dunatos em 429a22. Por ser imaterial, no nous, o
que pensa e o que é pensado são idênticos, portanto o conhecimento teorético
(episteme he theoretike) é idêntico ao que é conhecido (episteton)248.
Exemplificando: a estrutura noética das verdades da geometria é idêntica ao pleno
domínio desta estrutura na mente do geómetra, de modo que as verdades da
geometria são plenamente actualizadas no exercício actual de pensar de um
geómetra. Esta afirmação respeitante á geometria pode parecer em perfeita
sintonia com a forma moderna de pensar. Mas Aristóteles defenderá a mesma
identidade entre a estrutura noética do que é conhecido e o pensar actual do
cientista, a propósito das ciências naturais como a física ou a biologia: a estrutura
formal do mundo natural só se realiza plenamente no nous que a pensa249. O que
confere inteligibilidade às formas geométricas ou à estrutura do mundo natural, ou
a qualquer ser material é o próprio intelecto (a matéria é ininteligível 250). Só o
intelecto é inteligível, as formas para serem inteligíveis, devem ser de certo modo
já algo do intelecto, mesmo antes de serem conhecidas. Não há, portanto
inteligíveis em si, o que é inteligível é-o pelo intelecto. Por isso "o nous enquanto
acto (kat'enérgeian) é as coisas"251. A própria expressão "forma inteligível" pode
suscitar equívocos: não se trata de alguma forma prévia ao acto de pensar ou
entender, e a forma é inteligível só na medida em que é pensada ou entendida.
Pode dizer-se que não há formas inteligíveis, mas formas entendidas e esta forma
entendida é simultânea ao acto de entender. Isto significa que as formas só se
tornam inteligíveis pela actividade do nous, a fonte única de toda a
inteligibilidade. Mas por outro lado o nous, enquanto passivo, é só em potência
todas as formas que serão pensadas.
248
Cfr ibidem 430a5-7
249
Cfr Kahn, C. H. - "Aristotle on Thinking", in Nussbaum, M. e Rorty A. O. - Essays on
Aristotle's De Anima, p.374.
250
Cfr Fisica, I-7, 191a7-8.
251
De Anima, III-VII, 431b17.
162

Estes dois níveis ou dimensões correspondem ao que se designa como nous


activo ou agente e passivo ( nous poietikos e nous pathetikos), expressões
introduzidas a partir de Alexandre de Afrodísia.: "O nous é, em certo sentido
passivo porque pode ser todas as coisas, mas o nous tem um outro aspecto pelo
qual é capaz de fazer todas as coisas (panta poiein)"252. O nous activo, que é
princípio de inteligibilidade, é anterior ao nous passivo que conhece o inteligível.
Esta prioridade é a que possui todo o acto em relação à potência. Por isso,
Aristóteles afirma que do ponto de vista do indivíduo a ciência em potência é
anterior, quanto ao tempo, mas falando absolutamente não é anterior nem sequer
quanto ao tempo. O nous não pensa intermitentemente, não entende às vezes, e
deixa de entender outras vezes. A prioridade do nous activo transcende o tempo253.
A ciência em acto está já, de certo modo, no nous activo254.
Na concepção do intelecto segundo Aristóteles, não há portanto lugar para
pensar num mundo de formas inteligíveis independentes, em si, existindo fora da
mente que as pensa. Elas são inteligíveis precisamente na medida em que se
actualizam no nous activo, que, de certo modo as faz ser. Sem a anterioridade
absoluta do nous activo não é possível pensar em algo em si mesmo inteligível,
com absoluta dependência da mente: o conhecimento em acto é idêntico com o seu
objecto. Uma anterioridade de objectos de conhecimento não se dá, dá-se apenas
uma prioridade temporal do conhecimento em potência no indivíduo, mas em
absoluto, a prioridade pertence ao que é em acto255.

252
Ibidem, 430a14-15.
253
Cfr De Anima, III-V, 419a19-22.
254
Cfr um interessante texto da Metafísica, M, 10, 1087a10-25: "A ciência, com efeito, tal como o
facto de saber, é dupla, existe a ciência em potência e a ciência em acto. A potência sendo, como
a matéria, universal e indefinida, é do universal e do indefinido; o acto, sendo determinado, é
igualmente do determinado (…) Mas é evidente que a ciência é num certo sentido universal, e
noutro não." Saber universalmente origina uma potência de identificar, reconhecer, compreender,
captar, entender, etc. Mas é apenas uma potência. No saber em acto, quando se entende isto aqui,
há uma inteligência de algo existente definido, realmente delimitado e compreendido: o saber
capta a coisa que se sabe de um modo determinado. Cfr Boulakia, L. - art. cit., p. 35.
255
Cfr ibidem, III-VII, 431a1-5.
163

A ideia da actividade do conhecimento é constante em Aristóteles: no


"contacto" directo com o objecto, o nous passa da potência ao acto. A metáfora da
mão e do tacto é fulcral na revisão da teoria platónica da intuição noética. Embora
a vista seja o mais nobre de todos os sentidos, é um sentido da distância, enquanto
o tacto é directo, não carece de nenhum meio ou intermediário. Se nos baseamos
apenas na linguagem da visão, é impossível suturar o hiato entre a visão intelectual
e o que é visto. Na óptica e fisiologia modernas da vista, de facto, a vista e o tacto
devem combinar-se para explicar o fenómeno da visão. Considerando o intelecto
como uma mão, além de uma visão, não pode ver o objecto original sem o tocar e
captar. Além disso, com a metáfora do tacto, mostra-se como o intelecto é capaz
de ver com precisão aquilo que capta.
Por outro lado, o objecto só se revela através da actividade cognitiva, antes
dessa actividade ele é comparável às letras sobre uma tábua na qual nada está
ainda escrito. A teoria aristotélica não é nem intuicionista nem uma espécie de
platonismo naturalizado, mas prenuncia uma forma de conceptualismo. O nous
manifesta-se como dynamis e como hexis, e "antes de ter pensado" não se poderá
falar de um objecto do pensamento. Sob este aspecto o nous tem o estatuto de uma
fundação que segue todo o processo de conhecimento, sendo princípio de
actividade e de construção que apresenta a elaboração cognitiva do noeton256.

256
Cfr Gil, F. - La Conviction, p. 236.
164

6. Crença, Justificação, Verdade

Voltemos à definição clássica de conhecimento - «crença verdadeira


justificada» e assinalemos a primeira noção, a de crença. De certo modo, todo o
conhecimento assenta em crenças ou parte delas, é também crença. Mas não só.
Uma crença falsa não é conhecimento; uma crença baseada numa mera suposição
à sorte que por acaso é verdadeira, tão-pouco é conhecimento. O conhecimento
parece implicar a crença257, mas a conversa não é verdadeira. Uma crença pode
não ter o estatuto de conhecimento: a própria linguagem corrente acentua, por
vezes, a diferença: "não creio que 'p'; sei que 'p'", exprime a evidência e as razões
em que funda o saber que 'p'.

257
É possível saber algo no qual não se crê? Cfr o contra-exemplo apresentado por Lehrer, K.
Theory of Knowledge, pp. 28-30.
165

Ao examinar a análise platónica da episteme, faz-se exactamente a


pergunta: o que se deverá acrescentar à mera crença para que se torne
conhecimento? Para Platão, a crença representa um nível cognitivo inferior ao
conhecimento propriamente dito, sinónimo de opinião, doxa. E a doxa só se
tornará conhecimento se for fundada ou justificada. A definição platónica e suas
variantes tem servido de pauta para grande parte dos programas de
epistemologia258.
O termo «crença» tem, no entanto, um amplíssimo "espectro" que abarca
noções que vão da convicção, certeza, evidência, à suposição, disposição para
aderir a algo, aceitação, assentimento... Este feixe de conceitos envolve uma série
de ambiguidades e equívocos que será necessário esclarecer. Eles pertencem a
registos diferentes: distinguiremos crença (belief) de juízo, convicção de afirmação
e assentimento259. Deixaremos estas distinções conceptuais de momento, para
explorar um pouco este amplo "espectro" que a noção de crença manifesta
intuitivamente na linguagem. Ao examinar a linguagem da crença, deparamo-nos
com uma rede de dimensões e de aspectos onde estão em jogo uma pluralidade de
problemas: a crença depende e baseia-se nas nossas percepções sensíveis, das
impressões que temos do nosso mundo, das observações quotidianas, ou tem as

258
Gettier - "Is Justified True Belief Knowledge?" Analysis, 23, 1963, pp. 121-123 - apresenta
contra-exemplos à definição clássica de conhecimento: os seus argumentos apontam casos em
que uma pessoa pode ter justificação para uma crença que de facto é falsa. As condições
apresentadas pela definição podem ser verdadeiras para alguma proposição, embora seja falso que
haja um conhecimento dessa mesma proposição. Os paradoxos de Gettier foram objecto de
numerosas tentativas de solução: por exemplo, Chisholm, Lehrer, entre outros. Suspeito que o
paradoxo de Gettier radica numa asimilação equívoca entre o conceito de conhecimento, que tem
o carácter categórico, e o de justificação, que é essencialmente gradual. Cfr. Haack, S. Evidence
and Inquiry, p. 7. Para uma exploração dos paradoxos de Gettier, entre a vastíssima literatura, cfr
Lehrer, K. - Theory of Knowledge, pp. 16-18, 135-138.
259
Cfr Reinach, A. - "Théorie du jugement négatif", Revue de Métaphysique et de Morale, n.
3/1996, p. 385: o termo "juízo" emprega-se de um modo equívoco, englobando todo este feixe de
noções, que Reinach distingue nitidamente. Nomeadamente convicção e afirmação, embora
tenham estreitas relações, não são de modo algum idênticas. A convicção apresenta-se como um
sentimento, ou como uma disposição de consciência, a afirmação é sobretudo um acto
espontâneo. Ambas se efectuam no tempo, mas enquanto tem sentido falar de uma certa duração
da convicção, a natureza da afirmação não autoriza qualquer extensão temporal: não dura no
tempo, mas é de certo modo pontual (cfr ibid., pp. 389-390).
166

suas raízes na própria acção, na prática, constituindo um fundo e fundamento de


toda a nossa conduta, atitudes e decisões práticas? Pertencerá a crença ao registo
das disposições, tendências, propensões ou exprime-se por um sentimento
subjectivo não fundado, mas forte e determinante? A crença opõe-se radicalmente
à racionalidade, ou haverá uma continuidade entre o mundo das crenças e a sua
racionalização? São as crenças justificáveis, objecto de prova, ou, enquanto
crenças, a sua justificação torna-se supérflua e inapropriada? Por outro lado, qual a
relação entre crença e verdade? Há uma orientação das crenças para a verdade,
poderá esta ser vista como o seu foco atractor ou como uma espécie de ideia
reguladora para a qual assintoticamente tendem preferencialmente todas as
crenças? E esta propensão para a verdade afecta as crenças no seu conjunto, no seu
todo, ou poderá questionar-se isoladamente a verdade ou falsidade de uma crença?
Encontramo-nos perante um conjunto de questões de ordem prática e
epistemológica concentricamente dirigidas para o problema da crença que se
revela difícil de circunscrever conceptualmente, dada a complexidade e variedade
das suas afinidades e relações com outras noções que necessariamente a reflexão
sobre a crença convoca e interpela.
Passaremos a uma sinopse introdutória sobre a "gramática da crença", para
entrar depois numa breve análise dos "enunciados de crença": um olhar atento
sobre os enunciados em que se exprimem as crenças são elucidativos sobre o
fenómeno da crença. "A essência manifesta-se na gramática"260, era a convicção de
Wittgenstein, "Que espécie de objecto uma coisa é, di-lo a gramática" 261.

6.1. Gramática da crença

260
Investigações Filosóficas, §371.
261
Ibidem, §373.
167

O "espectro" da crença revela-nos uma diversidade de tonalidades


traduzidas na "gramática": segundo Ryle, crer é um verbo disposicional que indica
uma tendência, uma propensão, uma inclinação262; por seu lado, "saber" é um
verbo que indica uma capacidade de conseguir alguma coisa ou de ter razão sobre
alguma coisa. Para qualificar as crenças, os adjectivos multiplicam-se: as crenças
podem ser indecisas, duvidosas, estúpidas, fanáticas, apaixonadas, infantis,
insuperáveis; adjectivos apropriados também às palavras "confiança", "lealdade",
"tendência", "aversão", "esperança", "hábito", "dependência". Tal como os hábitos,
as crenças podem tornar-se inveteradas, enraizadas, contraídas ou abandonadas;
como a esperança, a devoção, podem ser cegas e obsessivas; como as aversões e as
fobias, podem ser inconscientes; como as modas e os gostos, podem ser
contagiosas. Uma pessoa pode tentar não ter uma determinada crença e conseguir
ultrapassá-la ou não: diz-se frequentemente: "Não posso deixar de crer nisto ou
naquilo…" Todas estas expressões da crença caracterizam-se de um modo
particular por não se aplicarem em relação ao verbo conhecer ou saber, que não
traduz a ideia de uma propensão ou tendência a actuar ou a reagir de uma
determinada maneira.
Na «gramática» proposta por Ryle - uma gramática claramente fundada
numa perspectiva pragmatista - as crenças significam hábitos, tendências ou
propensões para agir de certos modos, muito variáveis, elas não determinam um
único modo de agir, mas "inclinam sem necessitar" (empregando uma expressão
de Leibniz). Alguém pode ser levado a crer em algo que não existe ou que nunca
terá lugar. As expressões de crença traduzem também suspeitas, dúvidas positivas,
desejos de certeza insatisfeitos.
Para além desta abordagem, poder-se-ia explorar outras «gramáticas», ou
outras tonalidades reveladas no "espectro" da crença. Numa perspectiva mais
epistémica, a crença pode ser acompanhada ou não de certeza, de convicção. A
análise «gramatical» pode servir para distinguir os dois conceitos - crença e
262
Ryle, G. The Concept of Mind, p. 128-129.
168

convicção: o tom da convicção vibrante que nos oferece uma apresentação da


gramática do termo «convicção», não se dá em todas as expressões de crença.
"Estar certo", "estar absolutamente convencido" exprime uma ideia de
necessidade, e opõe-se claramente a expressões como "considerar possível" 263. A
descrição da convicção a partir do par categorial necessidade/possibilidade, leva a
um confronto com a crença que permanece no registo do possível. Poder-se-á dizer
que a convicão compreende a crença, mas o inverso não é verdadeiro, a crença não
implica a convicção: de facto qualquer convicção assenta numa crença forte, certa,
indubitável; mas há crenças meramente intuitivas, instintivas, assentes em hábitos,
em esperanças ou desejos, nas quais o grau de certeza está ausente.
Um possível critério para distinguir entre crença e convicção poderia ser o
da revisibilidade das crenças, como meio para distinguir as diversas crenças -
aquelas que se apresentam "imunes" à revisão, ou pelo menos resistem fortemente,
aproximam-se das convicções e das certezas. Neste caso, invocando a
terminologia de Wittgenstein nas suas elucidações sobre as regras, a parte de acção
é dominante. Não se trata, no caso de uma convicção ou de uma crença
praticamente irrevisível, de "seguir a regra", submetendo-se simplesmente,
tacitamente, instintivamente; a regra aqui torna-se bem consciente, ela é mesmo
tematisada e assumida de um modo activo. Algumas convicções - sobretudo todas
aquelas que se referem a valores como as convicções religiosas ou morais -
resistem bem aos avatares dos acontecimentos que nos rodeiam ou às
circunstâncias desfavoráveis, condições políticas, sociais, etc. Elas fundam-se
numa vontade firme e segura que se afirma positivamente e não se deixa afectar
pelos factos aparentemente negativos e contrários às suas certezas.
No entanto, isto não significa que possamos controlar absolutamente as
nossas crenças: não são de modo algum uma questão de vontade. Submetemo-nos
às crenças - como seguimos as regras - sobretudo a essas crenças práticas sobre as
quais se funda toda uma forma de vida e de conduta. E aqui dá-se submissão: à
263
Cfr Gil, F. - La Conviction, p. 244.
169

regra, ao hábito, à nossa «imagem do mundo», que não é uma teoria construída por
nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos,
dominando-nos inconscientemente. As teorias científicas constroiem-se sobre o
fundo desta imagem e poderão vir a pô-la em causa ou mesmo a desconstruí-la;
mas para esta conversão teórica da nossa «imagem do mundo», do «mundo da
vida» será necessário um esforço intelectual que ultrapasse as fortes resistências
naturais a abdicar da nossa imagem.
Embora algumas crenças não estejam sob o domínio da nossa vontade e nos
submetamos a elas como a um conjunto de hábitos herdados ou adquiridos mas de
um modo quase instintivo, isso não significa que não as possamos reavaliar, rever:
elas não são totalmente irrevisíveis e a revisibilidade constitui, de facto, um
instrumento apropriado para compreender os diferentes tipos de crenças e as
diferentes relações entre elas.

6.1.1. A semântica dos enunciados de crença

A breve panorâmica da "gramática da crença" mostra bem o amplo alcance


desta noção, difícil de contornar conceptualmente. Deter-nos-emos num aspecto
mais pontual, que se tem fixado sobretudo nos problemas semânticos levantados
pela atribuição de crenças a outras pessoas através de enunciados que descrevem
crenças - e outras atitudes como desejos, expectativas, etc. O intuito principal será
o de tentar detectar o específico da crença em contraste com o assentimento, a
asserção - da crença à crença afirmada e justificada.

A análise dos enunciados de asserção e de crença tem ocupado um grande


número de pensadores desde Frege, Russell, Carnap, Quine, Wittgenstein, Church,
Hintikka: o problema consiste em apresentar uma semântica adequada para uma
classe de enunciados, paradigmaticamente da forma
170

"A Φ que p"


"A" deverá ser substituído por um nome próprio, descrição definida ou
pronome pessoal designando uma pessoa; "Φ" será substituído por um verbo como
"duvida", "pensa", "julga", "crê", "espera", "deseja"; e "p" por qualquer frase. Um
exemplo de substituição será:
"João crê que não há nada a esperar"
O esquema acima referido apresenta a forma de enunciados tipicamente
empregues para atribuir uma crença, juízo, desejo, dúvida, etc., a uma pessoa e,
desde Russell esta classe de enunciados é designada pela expressão "atitudes
proposicionais". Este termo indica, por um lado que se trata de uma estrutura que
envolve, por um lado, um certo estado psicológico (crença, desejo, dúvida) que
pressupõe a assunção de uma posição em relação a algo (aceitar, rejeitar, duvidar,
etc.); por outro lado, a estrutura do esquema acima referido exibe o carácter
relacional entre o estado mental e alguma proposição que, semanticamente
considerada, possui um valor de verdade. Assim por exemplo se tenho a crença
que "a Torre Eifel é mais alta do que a Torre dos Clérigos", poder-se-á dizer que
se dá uma relação de acreditar entre mim e a proposição que a Torre Eifel é mais
alta do que a Torre dos Clérigos. O que distingue as atitudes proposicionais de
outras experiências, sensações, etc., é precisamente o facto de as primeiras
envolverem cognição e é possível atribuir-lhes um conteúdo proposicional ("que a
T. Eifel é mais alta do que a T. dos Clérigos", "que vai chover", etc.). Contrastam
nitidamente com experiências de sensações, dores, algumas formas de ansiedade,
temor, que não possuem qualquer conteúdo proposicional264.
A semântica destes enunciados apresenta uma série de problemas e
perplexidades que têm sido largamente debatidos por linguistas, lógicos e filósofos
da linguagem: basicamente, a principal dificuldade reside no facto de a proposição

264
Encontra-se uma breve aprersentação da noção de "atitude proposicional" e os debates que a
expressão origina no âmbito da Filosofia Analítica e da Filosofia da Mente em Branquinho, J. e
Murcho, D. - Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, pp. 85 e ss.
171

"p", tal como ocorre no complexo "A crê que p", se comportar de um modo que
apresenta graves dificuldades para a formulação de uma semântica puramente
extensional, um desideratum comum a filósofos como Carnap, Wittgenstein
(Tractatus), etc. É este último que exprime com admirável concisão o problema,
num pequeno grupo de textos do Tractatus (5.54, 5.541, 5.542): "Na forma
proposicional geral a proposição só ocorre na proposição como base das operações
de verdade."(5.54)
"À primeira vista parece que uma proposição também poderia ocorrer numa
outra, de uma outra maneira.
Particularmente em certas formas proposicionais da Psicologia como "A crê
que p é o caso" ou "A pensa p"" (5.541).
Nestes casos, o valor de verdade da proposição complexa não é função de
verdade das proposições componentes. E é esta perturbação na extensionalidade
que constitui problema, e que interessou muitos dos analíticos e lógicos
contemporâneos; a problemática dos enunciados de crença tem, no entanto, uma
longa tradição desde Aristóteles, que nas Refutações Sofísticas (cap. sobre as
falácias do acidente) aborda já a análise destes enunciados no quadro de uma
teoria da predicação. Os lógicos medievais, na esteira do texto aristotélico,
prestaram também considerável atenção aos problemas levantados por estes
enunciados. No século XX, esta problemática encontra um novo surto em Frege,
nos escritos semânticos dos anos 90, em Russell que mostra as incoerências da
teoria fregeana e tenta várias soluções 265. Wittgenstein herdou todas as aporias da
semântica dos enunciados de crença266 e no Tractatus faz uma síntese radical de
grande lucidez: a forma destes enunciados ("A crê que p", "A pensa que p") deve
reconduzir-se à forma básica "'p' crê p". Pretende mostrar assim que as "relações
265
Cfr Frege, G. "Über Sinn und Bedeutung", Kleine Schriften, pp. 145, 151; Russell, B. "On
Denoting", Mind 14 (1905), pp. 479-493; The Philosophy of Logical Atomism (1918), The
Analysis of Mind (1921).
266
Além de Wittgenstein, também Carnap recebeu a herança da problemática de Frege e Russell.
Cfr Meaning and Necessity, The University of Chicago Press, 1947, I, § 13. Partindo da
perspectiva carnapiana, os trabalhos de Church, Putnam, Quine, Davidson, Rescher, Chisholm
tratam da análise lógica dos "enunciados de crença".
172

intencionais" ("crer", "pensar") são relações derivadas da relação figurativa - a


"relação intencional" na qual se funda o "dizer" -, portanto, também "relações
figurativas", que não podem ser "ditas", mas apenas "mostradas". Os "enunciados
de crença" não são verdadeiras proposições, refigurações de relações entre
objectos, porque pretendem refigurar relações entre factos, e não entre objectos;
esta refiguração não é possível no quadro da lógica do Tractatus. Portanto, não
têm simplesmente sentido. A análise de Wittgenstein diz respeito precisamente à
conexão verbal entre o sujeito ("A") e o conteúdo da crença ("p"), expressa por
""crê" ("Pensa", "julga") que…". Esta relação figurativa não pode ser "dita" e,
portanto, os enunciados de crença são meras pseudo-proposições sem sentido.
Esta impossibilidade semântica de "dizer" ou "descrever" a crença, no
quadro da teoria da refiguração, não poderá sugerir a necessidade de outras vias
para compreender a noção de crença? A análise do Tractatus não terá continuidade
no pensamento de Wittgenstein. Depois de abandonar a teoria da refiguração,
voltará a prestar atenção aos enunciados de crença nas Investigações Filosóficas,
onde o problema se centra na dimensão pragmática do "paradoxo de Moore"267.
Esta viragem da semântica para a pragmática é significativa para a captação
da especificidade da crença e para a sua expressão: além de Wittgenstein, autores
como Austin, Grice, manifestam outro motivo para fixar a atenção nos enunciados
de crença: os enunciados da forma que apresentamos "A Φ que p", são relevantes
para a atribuição de crenças, juízos, etc., a outras pessoas, são portanto modos de
falar sobre as crenças, mas não a expressão de uma crença ou a formulação de
uma asserção ou de um juízo. A forma paradigmática para exprimir uma crença é
simplesmente "p", é para o discurso directo e não para a oratio obliqua que
devemos olhar para procurar a chave da natureza da crença e do juízo. A dimensão
pragmática - o performativo - tem uma especial relevância nos enunciados que
exprimem crenças, uma vez que estas apresentam uma componente

267
Cfr Investigações Filosóficas II, X. Sobre o "paradoxo de Moore", cfr Schulte, J. - Experience
and Expression. Wittgenstein's Philosophy of Psychology, pp. 135-158.
173

essencialmente prática, não são meras constatações, mas envolvem disposições,


propensões para agir de determinado modo, comprometem a determinadas acções
e atitudes.
Nomeadamente, esta dimensão pragmática será relevante para formular
uma teoria do juízo. Ver-se-á com nitidez que é na força assertiva - ausente na
expressão de uma crença - que reside a chave para compreender a natureza do
juízo, da afirmação, do consentimento. Pensadores como Frege, Wittgenstein,
Austin, consideram a estrutura do juízo como a de um conteúdo proposicional
sobre o qual recai uma força que opera precisamente o assentimento, a asserção. É
esta força assertiva que compromete a mera expressão de uma crença com a
verdade.

6.2. Crença e Racionalidade

A justificação duma crença é um processo epistemológico que tem o seu


ponto de partida na própria crença e o seu termo garante-nos uma certeza racional,
um fundamento que confere à crença um outro estatuto: ela torna-se objectiva,
discursiva, fundada em razões, e é acompanhada de um sentimento de
racionalidade, que James descreve no seu The Will to Believe : "… a racionalidade
reconhece-se, como todas as coisas, por certos sinais subjectivos que afectam o
sujeito pensante; aperceber-se desses sinais, significa reconhecer que se está na
posse da racionalidade. Mas quais são estes sinais? Antes de mais um sentimento
muito vivo de tranquilidade, de paz, de repouso. A passagem da incerteza e da
perplexidade à compreensão racional proporciona uma impressão de sossego e de
prazer. Esse sossego apresenta um carácter mais negativo que positivo: a
conclusão a tirar será que o sentimento de racionalidade se reduz simplesmente à
ausência de qualquer sentimento de irracionalidade?" Examinando a racionalidade
puramente teórica, James descreve-a de um modo claramente positivo, atribuindo-
174

lhe "uma familiaridade mais completa com as coisas". E o processo de justificação


apresenta-se-lhe como um processo de retrocesso até às origens, causas ou razões
que dão conta do que se passa: "Explicar uma coisa, é retroceder facilmente aos
seus antecedentes; conhecer uma coisa, é prever facilmente as suas consequências.
O hábito, que nos abre estas duas vias, é assim a fonte do sentimento de
racionalidade que um fenómeno pode suscitar em nós."
Esta segurança que dá o sentimento de racionalidade não é um sentimento
simplesmente subjectivo, mas um apaziguamento de todas as controvérsias, de
todas as oposições e divergências intersubjectivas, que nos proporciona uma
orientação dos desejos e uma configuração das acções. A satisfação que a crença
produz em nós é um índice relativamente seguro da aquisição de um hábito mental
que determinará o nosso modo de actuar. Pelo contrário a dúvida provoca em nós
um mal-estar e uma inquietação interior da qual nos tentamos libertar para
alcançar um estado de crença que nos devolva a satisfação e a harmonia
necessárias para a acção. Toda a investigação, procura, zetesis, é esta luta pela
conquista da crença, ultrapassando a irritação provocada pela dúvida 268. No
entanto, a satisfação plena num estado de perfeito consenso é mais um ponto de
mira para a pesquisa, que será sempre estimulada pela dúvida: "uma vez que a
crença é uma regra para a acção, cuja aplicação conduz a outras dúvidas e outros
pensamentos, ao mesmo tempo que é um ponto de chegada, é também um novo
ponto de partida para o pensamento"269.
O processo de justificação aproxima-nos progressivamente dessa
comunidade de investigadores que se encontram numa situação ideal de consenso
que define, para Peirce, a própria verdade: a opinião sobre a qual estarão de acordo
todos aqueles que empregam o método científico, encontrando um consenso
268
Cfr Peirce, C. S. - "The Fixation of Belief", trad. port. in Peirce, C. S. - Antologia Filosófica,
pp. 59-74: "…a luta começa com a dúvida e termina com a cessação da dúvida. Assim, o único
objecto do inquérito é a fixação da opinião. Podemos imaginar que isso não é suficiente, e que
não buscamos apenas uma opinião mas igualmente uma opinião verdadeira. Mas se se submeter
essa imaginação a um teste, ela revelar-se-á sem fundamento; de facto, assim que uma crença
sólida é atingida nós ficamos completamente satisfeitos, seja essa crença verdadeira ou falsa."
269
Peirce, C. S. - "How to make our ideas clear",
175

comum, uma situação de verdadeira satisfação do seu esforço de investigação.


Sendo o método científico, induzido pelo real, a verdade será a correspondência
com a realidade, uma situação de estabilidade das crenças. Para Peirce, o único
método apto a fixar as nossas crenças é o científico, que nos permite distinguir
entre uma via correcta e uma errónea, distinção que permite o progresso na
procura da verdade270.
Só o método científico tem a prerrogativa de fazer com que as nossas
opiniões coincidam com os factos, porque não são determinadas por nenhum
factor humano, mas por uma "permanência externa", algo sobre o qual o nosso
pensamento não tem qualquer efeito, algo que afecta ou pode afectar qualquer ser
humano". Essa "permanência externa" garante um consenso, que ultrapassa a
fronteira da opinião meramente individual e assume o carácter objectivo da
verdade pública. Ela exige um acordo sobre "coisas reais com características
inteiramente independentes das nossas crenças sobre elas", cujas condições só a
investigação científica e o seu método de fixação da crença podem satisfazer. A
pesquisa pode recorrer a outros métodos de fixação das crenças - a "tenacidade" ou
a "autoridade" - aos quais Peirce reconhece algumas vantagens. Mas, apesar de
tudo, só o método científico satisfaz o desejo humano que as opiniões coincidam
com o facto. Esta é a prerrogativa do método científico271.
Peirce não concede importância ao papel do "gosto", da fixação de algumas
crenças pelo facto de serem "agradáveis à razão" (cfr p. 69). No entanto, o gosto
tem um inegável valor cognoscitivo: há um impulso natural para a beleza e para as
coisas boas, não guiado pela razão, que desencadeia a busca, tacteia ao longo de
uma cadeia de juízos e acaba por escolher: trata-se desse "dom natural" a que se
referia Kant, o "impulso não racional para o belo" que precede a razão, sem ser, no
entanto irracional. É certamente a este memso dom que se refere Wittgenstein: "…
não preciso sempre de julgar, explicar, porque é que esta ou aquela não é a palavra

270
Cfr "A fixação da crença", p. 71.
271
Cfr ibidem, pp. 73-74.
176

correcta. Simplesmente não é ainda a correcta. Continuo à procura, não estou


satisfeito. Este é exactamente o aspecto da busca e este é exactamente o aspecto do
encontrar"272.
A situação ideal de consenso, de estabilidade das crenças, não será, no
entanto, jamais alcançada com uma plena e total certeza, e parece desempenhar no
pensamento de Peirce uma função mais reguladora do que constitutiva, necessária
como atractor de todo o processo racional. Este processo, que constitui a ciência,
não significa saber, nem saber organizado, mas define-se sobretudo como uma
busca diligente da verdade, pela verdade mesma, não pelo desejo da sua
contemplação, mas uma busca que traduz o impulso para penetrar na razão das
coisas273.

6.3 Justificação e Verdade

Justificar uma crença é um processo que consiste em mostrar as razões nas


quais se funda essa crença, provando assim que a crença tem a propriedade de ser
justificada, o que significa que há fundamentos para considerar que a crença é
verdadeira. A justificação das crenças é, portanto, um processo desencadeado
quando está em cuasa a sua verdade, e justificar consiste em provar que são
verdadeiras. Há portanto uma íntima conexão entre justificação e verdade. Esta
conexão está bem patente no caso da justificação a priori: nos casos
paradigmáticos, como nas proposições auto-evidentes e nas que são consequências
evidentes destas, a justificação a priori, implica a verdade das crenças justificadas
deste modo.
A justificação das crenças empíricas está também conectada com a verdade.
Uma crença assente na percepção de qualquer objecto, considera-se justificada se

272
Cfr Remarks on the Philosophy of Psychology, § 362.
273
Cfr Collected Papers, 1.44.
177

se pode considerar de facto que esse objecto existe. Neste caso a justificação apela
para um factor externo, algo existente no mundo externo, que confirma e justifica
a crença. Uma crença justificada tem aquele tipo de propriedade que, pela sua
própria natureza, parece fundar a crença no mundo real e assegurar deste modo
que podemos considerar a crença como verdadeira, sendo portanto conhecimento
em sentido próprio. O conhecimento parece, assim, ter as mesmas origens que a
justificação: normalmente os processos internos que justificam as nossas crenças
estabelecem também a conexão entre as nossas crenças e os factos externos em
virtude dos quais estas crenças são verdadeiras274.
Este enquadramento da justificação e verdade das crenças inspira-se
nitidamente numa concepção realista e correspondencionalista da verdade. A
crença no prado verde que vejo diante de mim, não é uma questão puramente
mental, interna, mas uma questão objectiva, independente de qualquer mente: o
verde do campo parece estar presente, independentemente de alguém o
percepcionar ou não. A verdade da crença é determinada pelo facto do campo
existir realmente aí diante, e depende da realidade externa, que não está
determinada nem depende daquilo em que creio. A proposição que exprime esta
crença é verdadeira em virtude da sua correspondência com a realidade externa a
que se refere. Esta é a formulação da tese da verdade como correspondência: dizer
que a proposição é verdadeira significa dizer que representa a realidade tal como
ela é, ou seja, ela exprime um facto.
Haverá outro modo de pensar a verdade da crença e das proposições que a
exprimem? Esquematicamente, esta ideia traduz-se na fórmula: " 'p' é verdadeira
se e só se p", ou " 'A relva é verde' se e só se a relva é verde". Os defensores de
uma concepção minimalista e redundante da verdade argumentarão que dizer que
'p' é verdadeiro equivale a afirmar p, e esta equivalência é tudo o que
necessitamos de compreender àcerca da verdade. Esta abordagem está associada a

274
Cfr Audi, R. - Epistemology, pp. 238-239.Encontra-se no Apêndice uma exposição mais
detalhada das principais teorias da verdade.
178

uma concepção minimalista da verdade: nada mais há a dizer sobre a verdade para
além da compreensão desta equivalência. Poderia argumentar-se mesmo dizendo
que "'A relva é verde' é verdadeiro" não só é equivalente a "A relva é verde", mas
essencialmente têm o mesmo significado. E assim, a expressão "é verdadeiro"
tornar-se-ia redundante: atribuí-la a uma proposição não acrescenta nada ao
sentido da mera asserção dessa mesma proposição. Esta é a perspectiva de uma
teoria redundante da verdade: dizer "isto é verdade" é outro modo, talvez mais
enfático, de afirmar o que está em causa, tem exactamente o mesmo conteúdo.
A alternativa mais frequentemente invocada à perspectiva
correspondencionalista é a teoria coerentista da verdade. Há várias formas de a
traduzir, mas a ideia central e mais genérica é que uma proposição verdadeira é
aquela que se apresenta coerente com outras proposições. Centrando-nos no
conceito de justificação, esta concepção coerentista defenderá que uma proposição
verdadeira é aquela que se justifica plenamente em virtude da coerência com
outras proposições relevantes justificadas. Como se apresenta aqui a relação entre
justificação e verdade?
Brevemente, poderá dizer-se que um conjunto de crenças com uma razoável
coerência tornará justificado cada um dos seus membros. O que não quer dizer que
eles sejam todos verdadeiros. Na concepção coerentista há a possibilidade de
dissociar justificação e verdade. Uma crença pode ser verdadeira sem ser
justificada e justificada sem ser verdadeira. A justificação pode crescer, mas, à
medida que um conjunto de crenças cresce e se torna mais coerente, apresenta
cada vez mais razão para supôr que os seus membros são verdadeiros. Mas podem
não o ser; uma crescente expansão do conjunto de crenças exige sempre alguma
revisão275.
A outra alternativa recorrente à concepção correspondencionalista é a teoria
pragmática da verdade, que assume também variadas formulações. A ideia central
será, em breves palavras, a de que as proposições verdadeiras são aquelas que
275
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, p.148-149.
179

"funcionam", no sentido em que resultam na prática: as crenças em que assentam


estas proposições constituem uma garantia para a acção, pode actuar-se com base
nessas crenças, porque elas darão resultados positivos. Uma objecção óbvia: por
vezes pode acontecer que crenças e proposições falsas também resultem na
prática, o que debilita fortemente o princípio pragmático. E pode pensar-se em
modos de agir aparentemente eficazes e positivos assentes em crenças falsas.
Os defensores da correspondência argumentam, contra as teorias
coerentistas e pragmatistas, que se confunde o critério da verdade com a própria
natureza da verdade. A coerência ou a eficácia prática de uma proposição pode
proporcionar um critério de verdade, mas não nos diz o que é a verdade. E trata-
se, em última análise, de critérios falíveis, pois uma proposição falsa poderia ser
coerente com todo um conjunto de proposições justificadas. Poderia dar-se o caso,
mesmo, de todas as tentativas de confirmação para testar uma crença falharem
permanentemente, ou de um génio maligno lograr qualquer processo de
confirmação ou de justificação, de modo que nunca se descobriria a falsidade da
crença e o erro sobre o qual se labora.

Em suma: a definição clássica de conhecimento como crença verdadeira


justificada aponta para uma dupla relação da noção do conhecimento com a da
justificação e com a da verdade. Se no caso da primeira, se pode pensar na
possibilidade de uma crença estar bem fundada sem que o sujeito tenha suficientes
razões ou fundamentos para a sua justificação, sendo neste caso possível um certo
180

conhecimento sem justificação276, a segunda relação, parece incontornável para


pensar a natureza do conhecimento: o conhecimento pressupõe a verdade.
A análise da noção de conhecimento assenta numa primeira condição, a
condição da verdade, que se pode traduzir na seguinte expressão: "se S sabe que p,
então é verdade que p"277. Para compreender esta condição de conhecimento,
necessitamos de alguma concepção ou explicação da noção de verdade.
Na filosofia e epistemologia contemporâneas, a noção de verdade surge
envolvida em múltiplas controvérsias e paradoxos. O desacordo encontra-se à
partida, em torno do tipo de objectos aos quais se deverá atribuir a verdade -
crenças, juízos, proposições, enunciados. Considerando a sugestão natural de que é
às frases declarativas que deve ser atribuída a verdade, deverá apresentar-se uma
teoria das condições de verdade das frases, segundo o esquema proposto por
Tarski: "X é verdadeiro se e só se…", no qual se procederá à descrição das
condições sob as quais cada frase é verdadeira. Mas esta proposta poderá
responder à questão "O que é a verdade?"
Outra condição do conhecimento é o assentimento: "Se S sabe que p, então
S aceita p". Assentimento e verdade estão intimamente relacionados. O tipo de
assentimento que é condição de conhecimento é o assentimento que visa a
verdade. A condição necessária para o conhecimento é o assentimento que
pretende aceitar algo precisamente no caso desse algo ser verdadeiro e não falso:
aceitar p se e só se é verdade que p.
276
Pense-se em certos casos de uma espécie de intuição que origina directamente crenças
justificadas na base de certas experiências, tal como a percepção o faz, ou no idiot savant, que
apesar de mentalmente deficiente, possui certas capacidades extraordinárias, como a compreensão
intuitiva imediata para usar conceitos matemáticos elementares e realizar de modo imediato
cálculos de uma certa complexidade, sem que tenha consciência de qualquer processo mental de
cálculo aritmético. Estes casos de intuição, evidência, visão imediata, sugerem que pode haver
uma diferença entre conhecimento e justificação que explica a possibilidade e pensabilidade de
conhecimento sem justificação. A exploração deste contraste levaria ao exame do binómio
internalismo/externalismo e seus graus no processo de justificação.
277
Cfr Lehrer, K. - Theory of Knowledge, p. 20 e ss. Wittgenstein propõe uma outra concepção de
conhecimento, através da análise gramatical dos verbos "saber" e "conhecer", que se diferenciam
de "ver" ou "crer". O conhecer está sujeito à dúvida, e não se assemelha a "ver" porque é possível
o erro. "Eu sei que p" não implica "p", o conhecer não implica nem a verdade nem a
indubitabilidade. Cfr Da Certeza, §§12, 549.
181

Assentimento, verdade, pressupõem e remetem para uma teoria do juízo,


como sede própria para a análise da intrínseca conexão entre conhecimento e
verdade Um desafio que se apresenta à epistemologia contemporânea é
precisamente o de revisitar as teorias do juízo e da verdade e reformular uma
concepção que reconcilie duas noções que a modernidade tem pensado
recorrentemente de uma forma disjuntiva: a noção de verdade e de sentido.
182

APÊNDICE

TEORIAS DA VERDADE

O objectivo de toda a investigação científica e de todo o conhecimento é


sem dúvida a verdade. Se, por um lado um conhecimento não se pode considerar
autênticamente científico a menos que dê conta da sua justificação, por outro lado,
tão-pouco se pode eludir completamente a questão da verdade. Mas o que é a
verdade? A que é que se deve atribuir o verdadeiro ou o falso? A crenças, juízos,
asserções? A proposições ou a enunciados linguísticos? E que tipo de propriedade
é essa - se é que se pode considerar uma propriedade - que faz com que uma
crença ou um juízo sejam verdadeiros? Uma relação de conformidade,
correspondência com a realidade, ou uma mera relação interna ao sistema de
crenças e de juízos, que torna o sistema ou um conjunto de crenças coerente?
Correspondência/coerência são as duas grandes alternativas para dar conta dessa
propriedade, apresentando-a como uma relação entre pensamento-linguagem e
mundo externo ou como uma relação dentro do próprio pensamento-linguagem.
No primeiro caso a verdade poderá ser atribuída localmente a uma crença ou a um
183

juízo isoladamente, no segundo, as noções de juízo e proposição tornam-se


problemáticas, por serem consideradas como meras abstracções subtraídas a um
todo com significado e é nesta estrutura sistemática no seu conjunto que deve
situar-se a questão da verdade. O holismo está implícito nas concepções
coerentistas da verdade.
As dificuldades levantadas pelas teorias correspondencionalistas e
coerentistas provocaram uma atitude pessimista em relação à viabilidade de dar
conta do problema da verdade: o deflacionismo e as teorias minimalistas negam
qualquer consistência à questão da "natureza da verdade em geral", negando que a
verdade seja uma propriedade "real", ou um predicado que se possa atribuir a
proposições. O desafio das diversas formulações deflacionistas provoca um certo
desconcerto ao fazer desaparecer a verdade como um tópico geral e com ela
muitos outros problemas filosóficos e epistemológicos.
Apesar disso, o problema da verdade continua candente e surge no
horizonte como uma questão enigmática, mas ineludível.

1. Pressupondo que a verdade é algum dipo de propriedade que se pode


atribuir a crenças, juízos ou asserções, a noção tradicional e intuitiva considera a
verdade como uma certa correspondência, uma relação entre dois tipos de
factores: um factor mental - o acto de julgar, a crença, um determinado estado
mental, expresso em palavras ou imagens na mente, e um factor objectivo, o facto
sobre o qual versa o juízo ou a crença. A verdade de uma proposição, expressão de
um juízo ou crença, consiste, neste caso na sua correspondência com os factos, na
sua relação com o mundo.
Apresentaram versões correspondencialistas da verdade Russell e
Wittgenstein, em íntima conexão com a concepção do atomismo lógico.
Para Russell, a verdade ou falsidade é um atributo de enunciados, crenças e
juízos, embora propriamente a verdade dos enunciados deriva da verdade ou
184

falsidade das crenças ou juízos 278. Quando é que uma crença pode ser considerada
verdadeira ou falsa? Em primeiro lugar, Russell defende que a verdade ou
falsidade de um determinado juízo não depende da pessoa que julga, mas apenas
dos factos sobre os quais julga, tem sempre um fundamento objectivo. Esta
perspectiva pressupõe a existência de verdades e falsidades objectivas, perspectiva
que é plausível em relação à verdade, mas aprresenta-se bastante estranha em
relação á falsidade. Examinando a primeira hipótese, segundo a qual um juízo,
verdadeiro ou falso, consiste numa certa relação com um simples objecto, Russell
adopta a terminologia de Meinong, denominando estes últimos como "objectivos"
ou objectualidades. Mas surge imediatamente o problema dos juízos falsos: a que
corresponde, ou qual o termo da relação de um juízo falso? É difícil aceitar
"objectos" que sejam como "falsidades objectivas". No caso do juízo verdadeiro,
existe um facto que corresponde a esse juízo, no caso de um juízo falso não se dá
esse facto. Esta dificuldade de admitir "entidades" bizarras como "objectualidades
falsas", leva Russell a abandonar a ideia de que os juízos consistem numa relação
com um simples objecto e a admitir que se trata de uma relação da mente com
vários termos. Não se trataria de uma relação dual da mente com um simples
objecto, mas de uma relação múltipla da mente com vários outros termos aos quais
o juízo diz respeito. Se julgo que "A ama B", não se trata de uma relação da mente
com "o amor de A por B", mas de uma relação entre a mente com A, o amor de A
por B e B. Se o juízo "A ama B" for verdadeiro, há uma relação entre os objectos
do juízo. Todo o juízo é uma relação da mente com vários objectos, um dos quais
é uma relação; o juízo é verdadeiro se a relação, que é um dos objectos relaciona
os outros objectos, caso contrário será falso. Russell sublinha que o Verdadeiro e
Falso são propriedades dos juízos, portanto não haveria verdade nem falsidade se
não houvesse mentes que julgam; no entanto, o verdadeiro/falso não depende da
pessoa que julga, visto que o complexo correspondente do qual depende a sua
verdade ou falsidade não contém a pessoa que julga como seu constituinte. Assim,
278
Russell, "On the Nature of Truth and Falsehood", Philosophical Essays, pp. 170-185.
185

assegura Russell, a sua teoria preserva plenamente a mistura de dependência e


independência da mente, que é uma característica da verdade.
A versão correspondencialista de Russell - tal como a de Wittgenstein -
estão em íntima conexão com o «atomismo lógico», embora as teses de Russell
difiram substancialmente das de Wittgenstein. Para Russell, os «objectos simples
lógicos», que Wittgenstein evita identificar claramente com qualquer espécie de
dados empíricos básicos, são os dados sensoriais, objecto de conhecimento directo,
e o significado de uma proposição derivar-se-ia da sua composição de nomes de
objectos de conhecimento directo. A versão «atomista» de Russell reconhece as
dificuldades de considerar todas as proposições moleculares, sobretudo as
proposições de crenças e as proposições quantificadas, como funções de verdade
das proposições atómicas279. Outras consequências do atomismo russelliano dão
origem a dificuldades desnecessárias, como por exemplo a admissão de factos
tanto positivos como negativos, de tal modo que a verdade da negação de "p"
consistiria na sua correspondência com o facto de que não "p".280
O «atomismo lógico» defendido por Wittgenstein no Tractatus pressupõe
que as proposições são complexos verbais, sendo as moleculares compostas
veritativo-funcionalmente de proposições atómicas. O mundo é constituído por
objectos simples, ou átomos lógicos, em distintos complexos ou composições, que
são os factos. Numa linguagem perfeitamente rigorosa, a disposição das palavras
numa proposição atómica verdadeira reflecte a disposição dos objectos simples no
mundo; a correspondência consiste precisamente neste isomorfismo estrutural. A
partir da verdade/falsidade das proposições atómicas, dão-se as condições de

279
Cfr "The Philosophy of Logical Atomism", Logic and Knowledge, pp.177-281: as dificuldades
de estender a teoria correspondencionalista da verdade ás crenças moleculares e gerais radicam no
paradoxo da falsidade que Russell quer evitar e, por isso é obrigado a negar que a crença seja uma
relação diádica entre alguém que crê e o facto, pois se essa proposição for falsa, não representa
nenhum facto. Esta não é a única dificuldade: a inexistência de objectos lógicos impede a
existência de factos moleculares e gerais. Daí as restrições que Russell é obrigado a fazer à noção
correspondencionalista em nome do seu atomismo lógico.
280
Cfr Haack, S. - Filosofía de las Logicas, p. 113; v. Russell, B - "The Philosophy of Logical
Atomism", Logic and Knowledge, 1956.
186

verdade das moleculares: "não-p" será verdadeira se e só se "p" for falsa; "pvq"
será verdadeira se ou "p" ou "q" forem verdadeiras, e assim sucessivamente. A
«teoria pictórica» do Tractatus propõe assim uma versão forte da correspondência
como uma refiguração isomórfica na proposição do que se passa no mundo.
Os críticos das teorias da correspondência apontam a dificuldade em
elucidar adequadamente a ideia mestra em que assentam, a da correspondência;
mesmo no caso mais emblemático, o do isomorfismo, essa perfeita correlação
entre a estrutura de uma proposição como "O gato está à esquerda do homem" e o
facto correspondente, que se pode figurar no desenho, não parece ser perfeita, pois
enquanto a proposição apresenta pelo menos três componentes, o facto tem apenas
duas; e as dificuldades aumentam com a crescente complexidade das proposições.
A interpretação da correspondência como um isomorfismo está intimamente
relacionada com uma teoria ontológica sobre a estrutura última do mundo e com o
ideal de uma linguagem perfeitamente rigorosa, teses básicas do atomismo lógico.
A questão que se põe é a de saber se a teoria da correspondência se poderá
dissociar do atomismo lógico e, nesse caso, que explicação se poderia dar da
relação de correspondência281.

2. Entre as críticas à noção de correspondência, é de mencionar a que Frege


apresenta em Der Gedanke: nota Frege que a verdade se atribui habitualmente
tanto a imagens como a proposições e pensamentos. Poderá atribuir-se a uma
imagem (Bild), como simples objecto visível ou tangível? E, nesse caso, porque
não será também verdadeira uma pedra ou uma folha? É evidente que só se diria
de uma imagem que é verdadeira se houvesse nela uma intenção (Absicht), a
intenção de representar algo. Mas de uma representação só diríamos que é
verdadeira se concordasse com algo, o que parece pressupor que a verdade
consiste numa certa concordância (Übereinstimmung) entre a imagem e o
281
Cfr Haack, S., ob. cit., p. 114.
187

representado por ela282. No entanto, Frege vê sérios obstáculos em aceitar uma


versão da verdade como concordância assim entendida. "Se eu não sei - escreve -
que uma imagem deveria representar a catedral de Colónia, tão-pouco sei com que
devo comparar a imagem para decidir sobre a sua verdade. Assim, uma
concordância só pode ser perfeita se as coisas concordantes coincidirem, isto é,
quando não são coisas diferentes. (…)"283 Se se definir a verdade como uma
concordância da representação com algo de real, é absolutamente essencial que o
real seja distinto da representação, mas neste caso não haveria concordância
perfeita. Nada seria verdadeiro, e fracassa totalmente a tentativa de explicar a
verdade como uma adequação. E, do mesmo modo, fracassa qualquer tentativa de
definir o verdadeiro: numa definição apresentam-se determinadas características e
na sua aplicação a um caso particular voltaria sempre a questionar-se se essas
características lhe pertenceriam. Estaríamos assim continuamente em círculo. Por
isso, a partir deste impasse de encontrar uma explicação satisfatória para a verdade
como correspondência, Frege conclui que provavelmente o conteúdo da palavra
"verdadeiro" é completamente peculiar e indefinível284.

3. A teoria de Austin minimiza as dificuldades da noção de


correspondência, e contorna tanto a metafísica atomista como a linguagem ideal; a
relação de correspondência não se traduz num isomorfismo estrutural entre
proposição e facto, mas através de relações puramente convencionais entre as
palavras e o mundo. Quando é que um enunciado é verdadeiro? pergunta Austin 285
Instintivamente a resposta é: "quando corresponde aos factos". Certamente a
resposta não está errada. "A teoria da verdade é uma série de truismos". E, no
entanto, pode ser, pelo menos, equívoca. Para que se dê comunicação, observa
Austin, deve haver algo mais do que meras "palavras" e "mundo". Outras

282
Cfr "Der Gedanke", Kleine Schriften, p. 343.
283
Ibidem, p. 343.
284
Cfr ibidem, p. 344.
285
"Truth", Proceedings of the Aristotelian Society, Supplement 24, p. 115.
188

condições têm que ser satisfeitas. Austin propõe dois tipos de convenções para que
se realize efectivamente a comunicação: 1) convenções descritivas que
correlacionam as palavras com os tipos de situação, coisa, evento, etc. ; 2)
convenções demonstrativas que correlacionam as palavras com situações
específicas. "Um enunciado diz-se verdadeiro quando o estado de coisas histórico
com o qual se correlaciona pelas convenções demonstrativas é de um tipo com o
qual a frase usada no enunciado está correlacionada pelas convenções
descritivas"286. É importante notar que a correlação entre as palavras (frases) e o
tipo de situações, é absoluta e puramente convencional. Somos totalmente livres
para empregar qualquer símbolo para descrever qualquer tipo de situação; a
correlação não depende de modo algum de um isomorfismo entre palavras e
mundo.
Embora a teoria de Austin apresente uma dificuldade séria que é a de se
aplicar directamente apenas aos enunciados formados por orações indexicais, uma
vez que as convenções demonstrativas não desempenhariam nenhum papel no
caso de orações como "Júlio César era calvo", a sua versão evita as dificuldades
levantadas pelos "factos" de Russell. Austin localiza a verdade do enunciado "p",
não na sua correspondência com o facto de que "p", mas sim em que os factos
sejam como diz "p", ou, segundo a expressão de Austin, nas convenções
demonstrativas que correlacionam "p" com uma situação que é do tipo com o qual
as convenções descritivas o correlacionam.

4. As teorias da correspondência teriam de ser complementadas por teorias


acerca do que são factos e em que consiste corresponder. Enquanto a noção de
"correspondência com a realidade" for uma propriedade de certo modo misteriosa,
é difícil resistir às tentativas de a complementar pelo recurso à verificabilidade,
identificando verdade com verificação. Não há dúvida que verdade e
verificabilidade estão intimamente relacionadas, mas não são a mesma coisa. E se
286
Ibidem, p. 116.
189

à verificabilidade lhe adicionarmos a suposição de que a verificação é holística, a


noção de correspondência será substituída pela de coerência: uma crença é
justificada se se integrar num sistema de crenças consistente e harmoniosa. Às
teorias da correspondência, apresentar-se-ão como alternativas, várias versões de
teroias da coerência: a verdade de um juízo, crença ou proposição não consiste na
sua confrontação com factos do mundo, mas na sua «harmonia» com outras
proposições, crenças, juízos que constituem um sistema. Desde o coerentismo de
Bradley, até ao fisicalismo de Neurath, a verdade será considerada uma propiedade
do sistema, não de uma crença ou proposição isolado. A verificação é holística,
não há possível confronto directo entre um determinado enunciado e a experiência
imediata, mas apenas uma relação dentro de um sistema de crenças que devem ser
coerentes entre si. O debate 287, no Circulo de Viena a partir das discussões das
teses do Tractatus, começa por eliminar a relação com os "factos" e caracterizar
uma certa classe de enunciados como verdadeiros enunciados atómicos, os
protocolos, que exprimem o resultado de uma experiência pura imediata sem
qualquer suposição adicional teórica. O segundo passo da evolução da teoria da
verdade de Wittgenstein para a de Carnap e Neurath, é uma mudança de
perspectiva no que diz respeito à estrutura formal do sistema dos enunciados
científicos. Segundo Wittgenstein, uma proposição inverificável não tem sentido,
visto que não obedece ao critério de ser uma função de verdade das proposições
atómicas: estão neste caso as leis da natureza que não podem ser inteiramente
verificadas, portanto não representam, na lógica do Tractatus nenhum tipo de
proposições, mas são meras elucidações ou instruções para o estabelecimento de
enunciados com sentido. Carnap, no entanto, considera que na ciência, as leis
empíricas são formuladas na mesma linguagem das outras proposições e podem
ser combinadas com proposições singulares, das quais se podem derivar predições,
287
Cfr Hempel, C. G. - "On the logical positivists' theory of truth", Analysis vol 2 n. 4, 1935,
pp.50-59. Apresenta uma excelente visão de conjunto do desenvolvimento das posições
positivistas em relação ao problema da verdade, que se desenvolveu passo a passo desde uma
teoria da correspondência até uma estrita teoria da coerência. Sigo a exposição de Hempel na
evolução do debate no Círculo de Viena.
190

concluindo assim que o critério wittgensteiniano de sentido era demasiado estrito.


Caracteriza as leis empíricas como enunciados de implicação gerais: um
enunciado geral é testado pelo exame das suas consequências singulares. Como
estas são em número infinito, o enunciado geral não poderá nunca ser totalmente
verificado, mas apenas mais ou menos assegurado pelas consequências singulares:
não é uma função de verdade de enunciados singulares, mas tem, em relação a
estes, o carácter de uma hipótese. Isto significa que no estabelecimento do sistema
da ciência há um momento convencional: somos obrigados a escolher entre uma
grande quantidade de hipóteses todas logicamente possíveis, e a opção é orientada
pela simplicidade formal, como Poincaré e Duhem frequentemente apontaram. O
conceito de verdade, como é óbvio, vai sendo paulatinamente afrouxado ou
debilitado: em ciência, um enunciado é considerado verdadeiro se for
suficientemente apoiado por enunciados protocolares. O último passo da evolução
lógica da teoria da verdade é constituído pela própria eliminação desta base firme
de todo o sistema dos enunciados científicos num tipo de proposições com um
estatuto peculiar, os enunciados protocolares. E este último passo é
definitivamente dado por Neurath, que põe em dúvida a suposta incorrigibilidade
dos "protocolos", e negando a possibilidade de uma comprovação directa mesmo
das crenças perceptivas com os factos, defende que o unico test de verdade
consiste nas relações entre as próprias crenças288.

288
. Cfr ibidem. Tomando como ponto de partida as teses do Tractatus, Hempel explana as
discussões que estas originaram no âmbito do Círculo de Viena, entre Carnap, Neurath e Schlick.
As principais teses de Neurath são sucintamente formuladas: a ciência é um sistema de
enunciados de uma mesma espécie. Cada enunciado pode ser combinado ou comparado com cada
um dos outros enunciados, de modo a tirar conclusões a partir dos enunciados confrontados, ou
confirmar se são compatíveis entre si. Os enunciados não são nunca comparados com a
"realidade", com os "factos". Os que defendem uma clivagem entre enunciados e realidade, não
são capazes de apresentar uma explicação precisa de como um confronto entre enunciados e
factos pode ser possível e como podemos estabelecer a estrutura dos factos. Portanto, essa
clivagem não é senão o resultado de uma insistência metafísica, e todos os problemas com ela
relacionados são meros pseudo-problemas. Os enunciados protocolares não podem ser
considerados como constituindo uma base inalterável de todo o sistema de enunciados científicos,
embora seja verdade que muitas vezes retrocedemos até aos enunciados protocolares para testar
uma proposição. Mas, segundo Neurath, nós não renunciamos a um juíz que decida se um
enunciado deve ser adoptado ou rejeitado; este juíz é representado pelo sistema dos enunciados
191

5. Definição versus critério de verdade289. Autores como Russell290 e


Rescher291 fazem uma distinção entre definições de verdade e critérios de verdade:
as primeiras dão o significado da palavra "verdadeiro", enquanto os segundos
propõem um teste mediante o qual se poderá decidir da verdade ou falsidade de
uma proposição. Neste contexto, cabe perguntar quais as teorias da verdade
oferecem de facto uma definição e quais as que propõem um critério. Por um lado,
ao dar uma definição poder-se-ia pensar que esta indica já um critério ou um
processo de decisão da verdade ou falsidade de uma dada proposição. No entanto,
nem sempre é assim. Ao apresentar a sua definição de verdade, Tarski recusa-se
mesmo a proporcionar qualquer critério de verdade. Russell acusa os pragmatistas
de confundirem definição e critério.
No que diz respeito às teorias da correspondência e da coerência,
geralmente consideradas como alternativas em disjuntiva, caberia a questão de
saber se não poderão ser complementares, fornecendo a correspondência uma
definição, enquanto a coerência se apresentaria como um critério. Não se trata de
uma questão pacífica, mesmo entre os defensores da coerência. Bradley, por
exemplo, reconhece que "a verdade para ser verdade deve ser verdadeira de algo e
este algo não é em si mesmo verdade" 292, o que parece admitir a correspondência
como necessária para explicar o significado da verdade, enquanto a coerência será
sobretudo um test, uma marca distintiva do verdadeiro.

protocolares e, além do mais, este mesmo juíz não é, de modo algum inamovível. Sendo assim, a
cada enunciado empírico, pode associar-se uma cadeia de passos para o testar, mas não se
encontra nunca um elo absoluto e final. Depende da nossa decisão pôr termo ao processo de
confirmação, não faz sentido, por isso, comparar a ciência a uma pirâmide assente numa base
sólida. Neurath propõe aqui a conhecida comparação da ciência com um navio que está
perpetuamente a ser alterado no alto mar, e que não pode nunca ser trazido a terra firme para uma
reconstrução total desde a quilha. É evidente que estas ideias gerais presupõem uma teoria
coerencial da verdade. Cfr ibidem, p. 54.
289
Cfr Haack, S. - ob.cit., pp. 109-112.
290
Cfr "William James's Conception of Truth" Philosophical Essays, London: G. Allen & Unwin,
1966, pp. 112-30.
291
Cfr The Coherence Theory of Truth, Oxford University Press, 1973
292
Bradley, F. H. - Essays on Truth and Reality, Oxford University Press, 1914, p. 325.
192

Rescher distingue critérios infalíveis, garantizadores e falíveis ou


autorizadores, considerando que nos primeiros se dá uma conexão íntima com a
definição de verdade: uma definição da verdade fornecerá também um critério
infalível ou garantizador. A conversa, no entanto, não é tão evidente: constitui um
critério infalível de que um número é divisível por 3, o facto da soma dos seus
dígitos ser divisível por 3, mas isto não é o que significa um número ser divisível
por 3. Na perspectiva de Rescher poderá considerar-se a coerência como um
critério autorizador, portanto não infalível da verdade, mas não uma definição de
verdade. É possível pensar que Bradley considerasse que se dá uma conexão entre
o facto das crenças serem coerentes e a sua correspondência com a realidade,
porque defende que a realidade é coerente.
As teorias da verdade com uma importante componente epistemológica dão
especial relevo à acessibilidade da verdade e, nesse sentido, é importante propor
um critério, ou um processo de decisão sobre o que é verdadeiro ou falso. Como é
óbvio as teorias coerentistas, pragmatistas, correspondencionalistas, de um modo
geral, têm mais em conta a dimensão epistemológica, enquanto a teoria semântica,
a da redundância passam completamente ao lado do problema do acesso à verdade,
tendo, por isso muito menos repercussão numa concepção epistemológica da
verdade.

6. As teorias de Peirce, James e Dewey propõem uma perspectiva


"pragmática" da verdade, na qual reconciliam alguns elementos da coerência e da
correspondência. Segundo a "máxima pragmática", o significado de um conceito é
dado pela referência às consequências "práticas" ou "experimentais" da sua
aplicação. James sempre assumiu a definição da verdade integrada nas teorias da
correspondência, nomeadamente, que uma crença verdadeira é aquela que
"concorda com a realidade". Mas esta realidade, à qual devem corresponder as
ideias verdadeiras é dependente da mente. A realidade não é senão uma
"acumulação das nossas invenções intelectuais", que incluem noções como as do
193

Tempo e Espaço como simples receptáculos contínuos, a distinção entre


pensamentos e coisas, matéria e mente, sujeitos permanentes e atributos mutáveis,
a concepção de classes e sub-classes, a separação de conexões causadas
fortuitamente das causadas regularmente. Estas construções são invenções dos
nossos antepassados, que literalmente fizeram assim o mundo, ao concebê-lo deste
modo. E a escolha da estrutura do mundo assim construído deve-se simplesmente
ao facto de ter sido a que encontraram mais útil para a sua organização.
Uma vez que a realidade não é senão uma construção mental útil feita pela
colecção das mentes passadas e presentes, a palavra "concordar" ou
"corresponder" adquire um sentido novo: uma crença "concorda" com a realidade
na medida em que se revela útil para aqueles que a possuem. As crenças úteis são
as que nos capacitam para manipular os objectos do mundo, nos permitem
comunicar com os outros, nos proporcionam boas explicações para outras
ocorrências e nos conduzem a previsões correctas 293. A concepção de James
incorpora a noção de correspondência, rejeitando a hipótese de casos em que a
verdade se apresenta em disjunção com os factos; se os factos não são senão
construções mentais que se revelaram úteis, não pode dar-se um caso de uma
crença útil que não concorda com os factos.

Peirce considera a crença como uma disposição para a acção e a dúvida


como uma espécie de "irritação" que nos impede de actuar, mas que estimula a
investigação para ultrapassar esse estado desagradável e paralizador que é a dúvida
e substituí-lo por uma crença firme294. Alguns métodos de aquisição de crenças - o
da tenacidade, o da autoridade, o método a priori - são intrinsecamente instáveis,
mas o método científico permite a aquisição de crenças estáveis que resistirão à
dúvida; este é o único método de investigação que é exigido por uma realidade
independente das nossas próprias crenças e é isso o que lhe permite conduzir a um
293
Cfr James, W. - Pragmatism, Longman's, Green, 1907; The Meaning of Truth, Longaman's
Green, 1909; Michigan University Press, 1970
294
Cfr Peirce, C. S. - "A fixação da crença", p. 64. Cfr 6.2.
194

consenso. A verdade é a opinião sobre a qual assentará eventualmente o método


científico, e sendo este exigido pela própria realidade, a verdade será a
correspondência com a realidade295. A opinião sobre a qual estão destinados a um
último acordo, todos os que investigam, é o que significa a verdade, e o que se
representa nesta opinião é o real296.
Em que se baseia a confiança de Peirce em que os investigadores se
encaminharão para um consenso? Em última análise, uma vez que há apenas uma
realidade objectiva que nos conduz a todos para crenças que a reflectem
correctamente, somos levados a concordar uns com os outros. Deste modo, a longo
prazo, as únicas proposições com as quais todos estarão de acordo serão aquelas
que reflectem correctamente a realidade. Portanto "é verdadeiro" significa
exactamente "reflecte correctamente a realidade". A primeira relação é trivial, para
Peirce, visto que a realidade é apenas uma construção da comunidade das mentes
humanas; no fundo, o que é real é precisamente aquilo em que concordarmos que é
real - em palavras de Peirce, "o real é a ideia na qual a comunidade finalmente se
fixará"297, e "tudo aquilo que será pensado existir na opinião final é real, e nada
mais"298. Assim formula Peirce o que designa por "teoria social da realidade". Não
se pode garantir que se alcance alguma vez esta completa unanimidade, nem se
pode presumir um consenso dominante da opinião a respeito de todas as questões.
Tudo o que se pode assumir é uma esperança de atingir substancialmente
conclusões consensuais a respeito dos problemas particulares sobre os quais tratam
as nossas investigações299.
A teoria de Peirce é alimentada por esta esperança na possibilidade do
método científico conduzir a um consenso - a verdade -, porque é a própria
295
Cfr Haack, S. - ob. cit. pp. 118-119.
296
Peirce, C. S. - Collected Papers, V, § 407, p. 268: "The opinion which is fated to be ultimately
agreed to by all who investigate, is what we mean by the truth, and the object represented in this
opinion is the real."
297
Collected Papers, vol VI, § 610, p. 420: "the real is the idea in which the community ultimately
settles down, the existence of something inevitable is to be inferred."
298
Ibidem, vol VIII, § 12.
299
Cfr Collected Papers, VI, § 610, p. 420.
195

realidade que o compele e constringe, o que permite afirmar que a verdade é


correspondência com a realidade. No entanto, há uma certa ambivalência no
estatuto objectivo e independente das crenças de qualquer indivíduo, que Peirce
atribui à realidade; por vezes parece admitir que a realidade não é independente do
que todos, a comunidade científica como um todo, criam ao investigar, e o carácter
intersubjectivo sobrepõe-se ao plenamente objectivo. A mesma tensão se pode
detectar na esperança de alcançar no final a verdade: por exemplo a ambiguidade
de Peirce, nunca totalmente esclarecida sobre se a verdade é aquela opinião sobre a
qual coincidirão os que usam o método científico, ou sobre a qual coincidiriam
num prazo infinitamente longo.
A esperança de Peirce é uma esperança atenuada pelo seu falibilismo: não
se trata de afirmar com infalibilidade a existência de uma crença consensual no
termo de uma longo processo de investigação, mas apenas de designar essa
possibilidade como sendo o único significado de verdade, embora não se possa
garantir que haja alguma verdade300.

7. Embora tenha já sido sugerida por Frege (1918), a teoria da redundância


tem a sua origem na obra de Ramsey, que apresenta um esboço numa breve
passagem de um ensaio "Facts and Propositions", de 1927, no contexto de uma
análise da crença e do juízo: antes de prosseguir com esta análise é necessário
dizer algo sobre a verdade e falsidade, para mostrar que não há realmente qualquer
problema da verdade, mas apenas uma confusão linguística. Verdade ou falsidade
são atribuídas a proposições, que podem ser dadas explicitamente ou descritas. No
primeiro caso, é evidente que dizer por exemplo "É verdade que César foi
assassinado" significa o mesmo que "César foi assassinado". Acrescentar "é
verdade que…" ou "é falso que…" é exactamente o mesmo que afirmar ou negar o

300
"I do not say that it is infallibly true that there is any belief to which a person would come if he
were to carry his inquiries far enough. I only say that that alone is what I call Truth. I cannot
infallibly know that there is any true." Cfr Charles S. Peirce: Selected Writings, ed. P.P. Weiner,
New York, Dover Publications, 1966, p. 398.
196

facto, se se empregam é simplesmente como recursos estilísticos para dar maior


ênfase à frase. É portanto perfeitamente eliminável a atribuição de verdade ou
falsidade a uma proposição: não passam de predicados redundantes que não
alteram em nada o significado da proposição. No segundo caso, em que a
proposição é descrita, torna-se mais problemática a sua eliminação como no
caso:"o que ele diz é sempre verdadeiro". Ramsey propõe superar esta dificuldade
recorrendo à quantificação proposicional para apresentar no caso mencionado algo
como "para todo p, se ele afirma p, então p". Uma proposição do género "Ele tem
sempre razão" poderia expirmir-se "para todo a, R, b, se ele afirma aRb então
aRb", onde o predicado "é verdade" é obviamente supérfluo.
A teoria da redundância apresenta a vantagem de dispensar os problemas
suscitados por uma explicação da correspondência sobre a natureza e a
individualização dos factos. "É um facto que…", nota Ramsey, tem a mesma
redundância semântica e o mesmo uso enfático de "É verdade que…". Além disso,
como a teoria nega que a expressão "é verdadeiro…" se deva considerar como um
predicado que atribui uma propriedade a qualquer coisa representada por "p",
contorna-se a questão dos portadores de verdade; se não se trata de uma
propriedade, não há necessidade de se interrogar de que é que a verdade é
propriedade301.
Na sequência de Ramsey, Strawson, Quine e as designadas teorias
deflacionistas negam a necessidade de qualquer especificação adicional que
pretenda definir o que é a verdade. As teorias tradicionais consideram

301
Cfr também Ayer, A. J. - Language, Truth and logic. Trad. port. Editorial Presença, Lisboa,
1991, p.72-73: "Concluímos então que não há qualquer problema de verdade, tal como este é
geralmente concebido. A concepção tradicional da verdade como uma "qualidade real" ou uma
"relação real" deve-se, como a maior parte dos erros filosóficos, a um fracasso em analisar frases
correctamente. Há frases (…) em que a palavra "verdade" parece representar algo real; e isto leva
o filósofo especulativo a investigar o que este "algo" é. Naturalmente não consegue obter uma
resposta satisfatória, uma vez que a sua questão é ilegítima. Porque a nossa análise tem vindo a
demonstrar que a palavra "verdade" não representa nada, da forma como tal questão o exige."
A versão da verdade como redundância em Ayer é marcadamente ditada pela sua posição
claramente anti-filosófica ou anti-metafísica. O problema da verdade trata-se de um desses
problemas sem sentido que uma análise lógica trata de eliminar pura e simplesmente.
197

incontroversa a proposição que "a neve é branca é verdadeira se, e só se, a neve é
branca", mas insuficiente porque não especifica o que é ser verdadeiro; por isso
inflacionam-na com algum princípio adicional da forma "X é verdadeiro se e só se
X tem a propriedade P", sendo "P" uma propriedade como corresponder à
realidade, ou ser verificável, ou ser adequado como base para a acção. As teorias
deflacionistas apresentam-se como alternativas radicais, negando a necessidade de
semelhante especificação, pressupondo que uma teoria da verdade contém apenas
equivalências da forma "a proposição de que p é verdadeira se e só se p"302.
Uma variante da concepção deflacionista é a teoria "pro-oracional"
(prosetential) apresentada por Grover, Camp e Belnap303: o cerne da teoria está nas
frases "isso é verdadeiro", ou "é verdadeiro", que não são predicações mas "pro-
orações" atómicas, nas quais "verdadeiro" não é um predicado separável, mas uma
expressão análoga a um pronome. Trata-se, portanto, de expressões
sincategoremáticas, "símbolos incompletos", que não constituem nenhum
predicado nem descrevem ou dizem nada sobre uma oração, tal como um pronome
não diz nada, mas serve apenas para fazer uma referência ao termo singular
antecedente304. Não obstante, a teoria "pro-oracional" permite-nos falar
genericamente sobre proposições que não exibimos realmente, mas às quais nos
referimos indirectamente, desempenhando um papel semelhante ao dos
quantificadores de segunda ordem (proposicionais). De qualquer modo, pemanece
em aberto a dúvida sobre a pretensão de Ramsey de eliminar completamente a
referência à verdade305.

302
Cfr Horwich, P. - "Theories of Truth" in A Companion to Epistemology, p. 511 e ss. Cfr
Horwich, Truth, p. 2: a verdade não tem nenhuma "estrutura escondida esperando a nossa
descoberta".
303
Grover, D., Camp, J. L. e Belnap, N. D. Jr. - "A Prosetential Theory of Truth", Philosophical
Studies, 27, 1975, pp. 73-125. Grover, D. L. - "On two deflationary truth theories" in Dunn, M. e
Gupta, A. (eds) - Truth and Consequences, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, pp. 1-17.
304
Cfr Devitt, M. - Realism and Truth, p. 31: "… the truth is not really a predicate, and does not
describe or say anything about a sentence any more than anaphoric reference using 'it' describes
or says anything about its antecedent singular term."
305
Cfr Haack, S. - ob. cit., p. 157.
198

8. Tarski propõe-se dar uma definição satisfatória de verdade, isto é, uma


definição que seja materialmente adequada e formalmente correcta. É intenção
sua captar o sentido efectivo de uma velha noção, recuperando as intuições da
concepção clássica aristotélica da verdade, expressa no célebre dito da Metafísica:
"Dizer do que é que não é ou do que não é que é, é falso, enquanto dizer do que é
que é ou do que não é que não é, é verdadeiro" que estaria na base da concepção
correspondencialista da verdade.
Como critério de adequação material, Tarski propõe que qualquer definição
aceitável tenha como consequência todas as instâncias do esquema (V)
(V) S é verdadeira se e sómente se p
em que "p" pode ser substituída por qualquer oração da linguagem para a qual se
está a definir a verdade e "S" deverá substituir-se por um nome da oração que
substitui "p". Um caso da convenção (V) é:
"A neve é branca" é verdadeira se e só se a neve é branca.
O intuito de Tarski é empregar o termo "verdadeiro" de tal modo que todas
as equivalências da forma (V) possam ser afirmadas e considera adequada uma
definição de verdade tal que todas estas equivalências se possam inferir dela 306.
Insiste que nem a expressão (V), que é apenas um esquema de proposição, nem
nenhuma expressão concreta proveniente de (V) pode ser considerada como uma
definição de verdade. O esquema (V) fixa a extensão, não a intensão do termo
"verdadeiro".
O requisito de correcção formal estabelecido por Tarski diz respeito à
estrutura da linguagem na qual é dada a definição. Os conceitos semânticos
indevidamente usados dão origem a paradoxos, como o do Mentiroso ("esta oração
é falsa"), o paradoxo de Grelling (" 'não verdadeiro de si mesmo' é verdadeiro de si
mesmo se e só se não for verdadeiro de si mesmo"); Tarski examina
pormenorizadamente o primeiro destes paradoxos, atribuindo a sua origem aos

Sigo o ensaio de Tarski "The semantic conception of truth" (1944) in Blackburn, S. e


306

Simmons, K. (eds) Truth, pp.115-143.


199

seguintes factores: 1) a linguagem usada contém, além das suas próprias


expressões, os meios para se referir a essas expressões e predicados semânticos
tais como "verdadeiro" e "falso" - Tarski designa este tipo de linguagens de
"semânticamente fechadas"; 2) as leis lógicas habituais valem nesta linguagem.
Não podendo prescindir das leis lógicas, Tarski conlui que uma definição
formalmente correcta da verdade não se pode exprimir numa linguagem
semânticamente fechada.
A definição da verdade-em-O (O é a linguagem objecto, para a qual se está
a definir verdade), deverá dar-se numa metalinguagem M ( a linguagem na qual se
define verdade-em-O). Só para as linguagem cuja estrutura foi rigorosamente
especificada pode ter um sentido preciso a definição da verdade. E com a distinção
entre a linguagem objecto e a metalinguagem, Tarski apresenta uma solução para o
paradoxo do Mentiroso: a sua oração traduzir-se-á por "Esta oração é falsa-em-O",
que é uma oração de M e, portanto não se torna paradoxal.
A construção da definição poderá obter-se agora a partir de um outro
conceito semântico, o de satisfação - uma relação entre qualquer categoria de
objectos e certas expressões chamadas "funções proposicionais". São expressões
do tipo "x é branco", "x é maior que y", etc., com uma estrutura formal semelhante
à das proposições, mas que devem conter variáveis livres. Empregando o
"procedimento recursivo", pode definir-se uma função proposicional numa
linguagem formalizada partindo das funções proposicionais de estrutura mais
simples, indicando as operações através das quais é possível construir funções
proposicionais compostas a partir das mais simples. A noção de satisfação pode
assim definir-se dizendo que os objectos dados satisfazem a função em causa
desde que esta se torne uma proposição verdadeira se substituímos as variáveis
livres pelos nomes desses objectos. E recorrendo de novo ao procedimento
recursivo, estabelecer-se-á as condições nas quais os objectos dados satisfazem
uma função composta, desde que saibamos quais os objectos que satisfazem as
funções mais simples a partir das quais foi construída a composta. A partir da
200

definição de satisfação pode obter-se uma definição de verdade e falsidade


dizendo simplesmente que uma proposição é verdadeira se for satisfeita por todos
os objectos e falsa no caso oposto.
Sem entrar aqui nos pormenores técnicos e formais da definição, interessa
notar as relações da definição de Tarski com o problema filosófico e
epistemológico da verdade. É significativo o que o próprio Tarski afirma quanto
ao problema: "em geral, não creio que o problema filosófico da verdade exista
enquanto tal"; e quanto às suas consequências epistemológicas, a definição
semântica não tem qualquer tipo de implicação que diga respeito às condições de
possibilidade de afirmar uma proposição como verdadeira, e portanto, é possível
aceitar a concepção semântica da verdade sem abandonar qualquer posição
epistemológica: "Podemos permanecer realistas ingénuos, realistas críticos ou
idealistas, empiristas ou metafísicos, como antes. A concepção semântica da
verdade é totalmente neutra em relação a todas estas atitudes." 307
Desta neutralidade da definição, infere Black 308 a sua falta de relevância
filosófica; mas há quem observe que a teoria de Tarski pertence à análise fáctica
mais que à conceptual e é bem substancial, enquanto a análise conceptual correcta
da verdade tem muito pouco a dizer309. Por seu lado, Popper adopta a teoria de
Tarski e considera-a um contributo de grande alcance por ter reabilitado a teoria da
correspondência da verdade absoluta ou objectiva; emprega as ideias de Tarski na
sua própria concepção da verdade científica, atribuindo-lhe, no entanto, mais o
papel de um ideal regulador da investigação. Para Popper, Tarski proporciona
justamente o que faltava às teorias tradicionais da correspondência - um sentido
preciso de "corresponde". Esta apreciação torna-se um tanto problemática, tendo
em conta que o próprio Tarski observa explicitamente que a teoria da
correspondência é insatisfatória e não se considera a si mesmo como tendo
contribuído para uma nova versão da teoria da correspondência: a sua condição de
307
Cfr ibidem, p. 140.
308
Cfr Black, M. - "The Semantic Definition of Truth", Analysis 8, 1948, pp. 49-63.
309
Cfr Mackie, J. L. - Truth, Probability and Paradox, Oxford University Press, 1973.
201

adequação material é de facto neutra em relação à correspondência e outras


definições da verdade; podem encontrar-se algumas analogias entre a definição de
satisfação com as teorias da correspondência - nomeadamente as de Russell e
Wittgenstein. Apesar disso é bastante discutível e problemático considerar a
definição de Tarski uma versão da teoria correspondencialista.
É também duvidoso que a teoria de Tarski possua aquelas características
que Popper considera como a suas maiores virtudes - o seu carácter "absoluto" e
"objectivo". Tarski sublinha sempre que a verdade pode definir-se só
relativamente a uma linguagem, não define "verdadeiro", mas "verdadeiro-em-O".
Neste sentido, não se trata de uma definição absoluta, mas relativa. Parece que
Popper considera "absoluto" equivalente a "objectivo", em contraste com
"subjectivo", que significa "relativo ao nosso conhecimento ou crença", e rejeita
qualquer teoria criterial da verdade. Se damos o significado de "verdadeiro" em
termos dos nossos critérios de verdade, não há lugar para a possibilidade de uma
proposição ser falsa, embora passe nos nossos testes de verdade, ou verdadeira
embora infirmada por estes. E determinar a verdade/falsidade de uma proposição
pelos procedimentos de decisão ou verificação, constitui uma ameaça ao
objectivismo. Com efeito, Tarski renuncia expressamente à pretensão de
apresentar um critério de verdade e a sua definição não faz qualquer referência aos
nossos testes de verdade. Pode, por isso, considerar-se objectiva no sentido de
Popper. Mas o carácter "objectivo" da teoria de Tarski torna-a irrelevante do ponto
de vista epistemológico.
Embora a teoria tenha explicado intralinguisticamente as condições em que
se deve entender a verdade como correspondência - o que levaria a pensar que
Tarski se pode efectivamente reclamar da definição aristotélica - toda a sua
contrução semântica "é muda quanto aos critérios epistémicos" 310. Por esta razão a
palavra "verdade" perde de facto qualquer sentido filosófico e é alvo de críticas tão
severas como por exemplo a desta passagem de Putnam: "a tarefa da filosofia é
310
Cfr Gil, F. - Provas, p. 68.
202

precisamente descobrir o que é a noção intuitiva de verdade. Como explicação


filosófica da verdade a teoria de Tarski falha tão gravemente quanto é possível que
uma explicação possa falhar"311.
Num texto de 1980, retomando o conhecido slogan de Quine "a verdade é
descitação" (disquotation)312, Putnam comenta este carácter quase trivial que
parece assumir o significado de "verdade" na teoria de Tarski: "(…) para
compreender P é verdadeiro em que P é um enunciado entre aspas, eliminem-se as
aspas (disquote) de P (e elimine-se "é verdadeiro"). Por exemplo que significa "«A
neve é branca» é verdadeiro"? Significa "A neve é branca". (…) Os defensores da
disquotation sustentam que a pergunta: "Que quer dizer que algo é verdadeiro?"
não exige qualquer comprometimento com uma opinião sobre o significado do
algo em questão, nem tão-pouco saber como é possível verificar este algo. Pode
interpretar-se "A neve é branca" em termos materialistas; pode pensar-se que "A
neve é branca" é verificável, ou que é apenas refutável mas não verificável, ou
simplesmente confirmável com um grau de probabilidade entre 0 e 1; ou nada de
tudo isto; mas "A neve é branca" permanece equi-enunciável com "«A neve é
branca» é verdadeiro". Nesta perspectiva, "verdadeiro" é, surpreendentemente,
uma noção filosoficamente neutra. "Verdadeiro" é apenas um expediente para
permitir uma "ascese semântica": para "elevar" uma asserção da "linguagem
objecto" à "metalinguagem", e este expediente não compromete ninguém, nem
epistemologicamente nem metafisicamente"313.
Em contraste com esta apreciação negativa, o programa de Davisdon serve-
se precisamente da teoria de Tarski como instrumento para uma teoria do
significado, uma vez que o significado de uma oração pode ser dado especificando
as suas condições de verdade. Precisamente Davidson pensa que as definições
tarskianas da verdade são, elas próprias, teorias do significado para as linguagens a

311
Putnam, H. - Words and life, p. 333.
312
Cfr Quine - Philosophy of Logic, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1970, pp. 1o-13. Reeditado
em Blackburn, S. e Simmons, K., pp. 144-46.
313
Putnam, H. - Realism and Reason. Philosophical Papers vol 3, p.76.
203

que são relativas. A atracção de uma teoria do significado em termos de condições


de verdade compreende-se bem recordando a classificação de Quine das noções
semânticas em dois grupos - o extensional, que constitui "a teoria da referência" e
o intensional", objecto da teoria do significado. A teoria das condições de verdade
prenuncia uma explicação do significado (noção marcada pelo carácter
intensional) em termos de verdade (noção que se enquadra numa teoria da
referência).
Apesar do pessimismo de Tarski quanto á aplicabilidade da sua teoria a
linguagens não formalizadas, Davidson inclui no seu programa a proposta de
ampliar os métodos de Tarski para aplicá-los á linguagem natural. O êxito do
programa justificaria, sem dúvida a aplicabilidade da teoria de Tarski às
linguagens naturais, mas a sua avaliação depende obviamente do estudo
pormenorizado das análises específicas, como por exemplo dos indexicais, da
oratio obliqua, atitudes proposicionais, etc. E, embora Davidson fale de
"progresso bastante impressionante" no que respeita à investigação sobre atitudes
proposicionais, advérbios, citações314, estas questões levantam problemas
metodológicos bastante difíceis de resolver, que não permitem garantir com toda a
confiança que Davidson tenha mostrado que a teoria de Tarski se aplica ao
inglês315. Em 1996, Davidson considera que Tarski não está a tentar definir o
conceito de verdade, mas a usar esse conceito para caracterizar as estruturas
semânticas de linguagens específicas. No entanto, Tarski não indica como é
possível em geral reduzir o conceito de verdade a outros conceitos mais básicos,
nem como eliminar o predicado «é verdade» de todos os contextos nos quais se
aplica de um modo inteligível a frases316

314
Cfr Davidson, "In defense of convention T", Truth, Syntax and Modality Leblanc (ed.), North
Holland, 1973.
315
Cfr Haack, S. - ob. cit., pp.140-150.
316
Cfr Davidson, "The Folly of trying to define truth", Blackburn, S. e Simmons, K. - Truth,
p.314.
204

BIBLIOGRAFIA
205

 ALCOFF, LINDA M. - Epistemology; The Big Questions, Oxford, Blackwell,


1998.

 ANNAS, J. - "Knowledge and Language: the Theaetetus and the Cratylus" in


Schofield, M. e Nussbaum, M. - Language and Logos, pp. 95-114.

 ANSCOMBE, G. E. M. - Intention, Oxford, 1957.

 An Introduction to Wittgenstein's Tractatus, London, Hutchinson


University Library, 1959.

 APEL, K. O. -Die Erklaren. Verstehen Kontroverse im traszendental


pragmatischer Sicht, Frankfurt, Suhrkamp, 1976.

 ARISTÓTELES - Posterior Analytics (trad. H. Tredennick) The Loeb Classical


Library, Cambridge, Massachusetts, London, Harvard University Press,
1989.

 Metahysics (trad. Hugh Tredennick) The Loeb Classical Library,


Cambridge, Massachusetts, London, Harvard University Press, vol XVII,
1989, vol XVIII, 1990.

 On the Soul (trad. W. S. Hett), The Loeb Classical Library; Cambridge,


Massachusetts, London, Harvard University Press, vol VIII, 1995.

 AUDI, R. - The Structure of Justification, Cambridge and new York, 1993.

 Epistemology, a contemporary introduction to the theory of knowledge,


London and New York, Routledge, 1998.

 AUSTIN, J. – Sense and Sensibilia, Oxford, Clarendon Press, 1962.

 AYER, A. J. - The Problem of Knowledge, Harmondsworth, Middlesex,


1956.
206

 Language, Truth and Logic, Harmondsworth, Penguin Books, 1978. (Trad.


port. Linguagem, Verdade e Lógica, Lisboa, Presença, 1991.

 AYER, A. J. (ED.) - Logical Postitivism, New York, Free Press, 1959.

 BARBEROUSSE, A., KISTLER, M. e LUDWIG, P. - La Philosophie des Sciences au


XXème siècle, Flammarion, 2000 (trad. port. Instituto Piaget).

 BARNES, J., SCHOGIELD, M. E SORABJI, R. (EDS) - Articles on Aristotle: I


vol:Science, London, Duckworth, 1975.

 BARONE, F. - Il neopositivismo logico, Roma-Bari, Ed. Laterza, 1986.

 BARRETT, R. B. E GIBSON, R. F. – Perspectives on Quine, Cambridge,


Blackwell, 1990.

 BELL, D. - Frege's Theory of Judgement, Oxford, Clarendon Press, 1979.

 BENNETT, J. - Kant's Analytic, Cambridge, Cambridge Univesity Press, 1966.

 Kant's Dialectic, Cambridge, Cambridge University Press, 1974.

 BERGMANN, G. - The Metaphysics of Logical Positivism, Madison,


Milwaukee and London, The University of Wisconsin Press, 1967.

 BERNECKER, S. e DRETSKE, F. - Knowledge - Readings in Contemporary


Epistemology, Oxford University Press 2000.

 BERTI, E. - Aristotle on Science: The Posterior Analytics, Pádua, 1981.

 BLACK, M. – A Companion to Wittgenstein’s Tractatus, Cambridge


University Press, 1971.

 BLACKBURN, S. E SIMMONS, K. – Truth, Oxford University Press, 1999.


207

 BLOCK, N., FLANAGAN, O. GÜZELDERE, G. - The Nature of Consciousness:


philosophical debates, Cambridge, The MIT Press, 1997.

 BOLZANO, B. - Wissenschaftslehre. 4 vols. Sulzbach, Seidel, 1837 (Trad.


ingl. Theory of Science de R. George, Oxford, Blackwell, 1972.

 BONJOUR, L. - The Structure of Empirical Knowledge, Cambridge Mass.,


Harvard University Press, 1985.

 BOUVERESSE, J. – Langage, perception et réalité, Tome I – La perception et


le jugement, Ed. Jacqueline Chambon, Nîmes, 1995.

 BOUVERESSE-QUILLOT, R. (ORG.)- Visages de Wittgenstein, Paris, Beauchesne,


1995.

 BRADLEY; F. H. - Essays on Truth and Reality, Oxford, Oxford Univesrsity


Press, 1914.

 BRANDÃO DA LUZ, J. L. - Introdução à Epistemologia. Conhecimento,


Verdade e História, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

 BRENTANO, F. - Psychology from an empirical standpoint, (trad. de A.C.


Rancurello, D. B. Terrell e Linda L. McAlister), London and New York,
Routledge, 1995.

 Descriptive Psychology (trad. B. Müller), London e New York, Routledge,


1995.

 BROAD, C. D. - Scientific Thought, London, 1923.

 BROAD, C. D. - The Mind and its Place in Nature, London, 1925.

 BURNYEAT, M & FREDE, M. (EDS.) - The Original Sceptics: A controversy,


Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc., 1997.
208

 CANFIELD, J. V. (ed.) - The Philosophy of Wittgenstein, New York &


London, Garland Publishing, Inc., 1986.

 CARNAP, R. - The Logical Structure of the World, London, Routledge &


Kegan Paul, 2ª ed., 1968.

 "Die physikalische Sprache als Universalsprache der Wissenschaft",


Erkenntnis, vol II, 1932 (Trad. ingl. "Protocol Statements and the Formal
Mode of Speech" in Hanfling, O. (ed.) - Essential Readings in Logical
Positivism, Oxford, Basil Blackwell, 1981, pp. 150-160.

 "Testability and Meaning", Feigl, H. e Brodbeck, M. (org.) - Readings in


the Philosophy of Science, New York, Appleton-Century-Crofts, 1953, pp.
47-92.

 "Intellectual Autobiography", in Schilpp, P. A. - The Philosophy of Rudolf


Carnap, pp. 3-84.

 CARTERETTE, E. C. E FRIEDMAN, M. P. (EDS) - Handbook of Perception, vol I,


Academic Press, New York, 1974.

 CASSIRER, E. - Das Erkenntniss Problem in der Philosophie und


Wissenschaft der neuren Zeit (Tradução castelhana de W. Roces - El
Problema del Conocimiento, México, Fondo de Cultura Economico, 1979).

 CHISHOLM, R. – Perceiving: A Philosophical Study, Ithaca, New York, 1957.

 CHISHOLM, R. - Realism and the Background of Phenomenology, Glencoe,


1960

 CHISHOLM, R. – Theory of Knowledge, Prentice-Hall International, Inc.,


Englewood Cliffs, New Jersey, 1989.
209

 CHISHOLM, R. - "On the Observability of the Self" in Self-Knowledge, ed.


Quassim Cassam, Oxford, Oxford University Press, 1994, pp. 94-108.

 COBB- STEVENS, R. - Husserl et la philosophie analytique, Paris, J. Vrin,


1998.

 COMETTI, J.-P.- - Philosopher avec Wittgenstein, Paris, PUF, 1996.

 COOK, J. - "Human Beings" in Canfield, vol 12.

 COPI, I. M. E BEARD, R. W. - Essays on Wittgenstein's Tractatus, New York,


The Macmillan Company, 1966.

 COPI, I. M. - "'Tractatus' 5.542", Copi, I. M. e Beard, R. W. - Essays on


Wittgenstein's Tractatus, pp. 163-165.

 CORNMAN, J. W. - Perception, Common Sense & Science, New Haven e


London, Yale University Press, 1975.

 DANCY, J. – An Introduction to Contemporary Epistemology, Oxford/New


York, 1985 (trad. Port.: Epistemologia Contemporânea, Edições 70,
Lisboa, 1990).

 DANCY, J. E SOSA, E. – A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell,


1992.

 DESCARTES, R. - Méditations Métaphysiques, Paris, PUF, 1968.

 DESCOMBES, V. - La Denrée Mentale, Paris, Les Éditions de Minuit, 1995.

 DEVITT, M. - Realism and Truth, Princeton, New Jersey, Princeton


University Press, 1997 (2ª ed.).
210

 DHERBEY, G. R. (DIR.) - Corps et Ame. Sur le «De Anima» d'Aristote. Études


réunies par Cristina Viano, Paris, Vrin,1996.

 DONAGAN, A. - "Wittgenstein on Sensations" in Canfield, vol 12.

 DRETSKE, F. - "Perceptual Knowledge" in Dancy, J. e Sosa, E. - A


Companion to Epistemology, pp. 333-338.

 "Sensation/cognition" in Dancy, J. e Sosa, E. - A companion to


Epistemology, pp. 472-475.

 DUMMETT, M. A. E. - Frege, Philosophy of Language, Londres, Duckworth


(2ª ed.), 1981.

 DUMMETT, M. A. E. - Origins of Analytical Philosophy, Cambridge (Mass.),


Harvard University Press, 1994.

 DUMMETT, M. A. E. - The Interpretation of Frege’s Philosophy, Londres,


Duckworth, 1981.

 DUMMETT, M. A. E. – Truth and Other Enigmas, London, Duckworth, 1978.

 ENGEL, P. - Identité et Référence. La théorie des noms propres chez Frege et


Kripke, Paris, Presses de l'École Normale Supérieure, 1985.

 Introduction à la philosophie de l'esprit, Paris, La Découverte, 1994.

 Philosophie et pscyhologie, Gallimard, 1996.

 EVERSON, S. - Aristotle on Perception, Oxford, Clarendon Press, 1997.

 EVERSON, S. (ED.) – Epistemology (Companions to Ancient Thought: 1),


Cambridge University Press, Cambridge, 1990.
211

 FABRO, C. - Percezione e Pensiero, Brescia, Morcelliana, 1962. Trad.


castelhana: Pamplona, EUNSA, 1978.

 FEYERABEND, P. - Against method New Left Books, 1975 (Trad. port.:


Contra o Método, Lisboa, Relógio d'Água, 1993).

 Dialogo sul metodo, Roma-Bari, Laterza & Figli Spa, 1989 (Trad.
port.:Diálogo sobre o Método, Lisboa, Presença, 1991).

 Farewell to Reason (Trad. Port.: Adeus à Razão, Lisboa, Edições 70, 1991).

 FIRTH, R. - "Sense Data and the Percept Theory", Mind, 58 (1949); 59


(1950); reeditado in Swartz, R. J. (1965).

 FODOR, J. – The Language of Thought, Cambridge Mass., Harvard


University Press, 1975.

 In critical condition: polemical essays on cognitive science and the


philosophy of mind, Cambridge Mass., The MIT Press, 1998.

 FREEMAN, E. E SKOLIMOWSKI, H. - "The Search for Objectivity in Peirce and


Popper", in Schilpp, P. A. - The Philosophy of Karl Popper, I vol. pp. 464-
519.

 FREGE, G. - Die Grundlagen der Arithmetik, eine logisch-mathematische


Untersuchung über den Begriff der Zahl Breslau, 1884. Trad. port.:Os
Fundamentos da Aritmética (trad., prefácio e notas A. Zilhão), Lisboa,
INCM, 1992.

 Kleine Schriften,.(I. Angelelli org.), Darmstadt and Hildesheim, 1967.


212

 Logische Untersuchungen (Günther Patzig (org.) Vandenhoeck and


Ruprect, Göttingen, 1966 (Trad. Logical Investigations de P. T. Geach and
R. H. Stoothoft, Yale University Press, 1977).

 Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege (P. Geach


and M. Black), Oxford, Basil Blackwell, 1980 (3ª ed.).

 GEACH, P. - Mental Acts, London, Routledge and Kegan Paul, 1957.

 GEYMONAT, L. E GIORELLO, G. - As Razões da Ciência, Lisboa, Edições 70,


1989.

 GIBSON, J. J. - The Senses Considered as Perceptual Systems, Boston,


Houghton Mifflin, 1966.

 GIBSON, R. F. JR. - The Philosophy of W. V. Quine, Tampa, St Petersboug,


Sarasota, University Presses of Florida, 1986.

 GIL, F. - Provas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.

 Tratado da Evidência, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996.

 La Conviction, Paris, Flammarion, 2000.

 GILSON, L. - La Psychologie Descriptive selon Franz Brentano, Paris, Vrin,


1955.

 GOLDMAN, A. I. - Epistemology and Cognition, Cambridge, Mass.: Harvard


University Press, 1986.

 GOURINAT, J.-B. - "Platon et l'invention de la science", "Aristote et la forme


démonstrative de la science", in Wagner, P. (org.) - Les philosophes et la
science, pp. 69-109 e 581-623.
213

 GRANGER, G.-G. - La notion aristotélicienne de science, Paris, Aubier, 1977.

 GREGORY, R. - Eye and Brain. The psychology of seeing, McGraw-Hill,


1966.

 GUYER, P. (ED.) - The Cambridge Companion to Kant, Cambridge


University Press, 1992.

 HAACK, S. - Evidence and Inquiry. Towards Reconstruction in


Epistemology, Oxford, Blackwell, 1993.

 Philosophy of Logics, Cambridge University Press, 1978 (trad. cast.


Filosofía de las lógicas, Madrid, Teorema, 1991, 2ª ed.)

 HACKER, P. M. S. – Appearance and Reality, Oxford, Basil Blackwell, 1987.

 HACKER, P. M. S. - Wittgenstein: Meaning and Mind (vol 3: Analytical


Commentary on the Philosophical Investigations), Oxford, Basil Blackwell,
1993.

 HACKER, P. M. S. - "The Refutation of Solipsism" in Canfield, vol 12.

 HACKING, I. - Representing and Intervening: Introductory Topics in the


Philosophy of Natural Science, Cambridge University Press, 1983.

 HARRÉ, R. - As filosofias da ciência, Lisboa, Edições 70, 1988.

 HEMPEL, C. G. – Philosophy of Natural Science, Prentice Hall, Englewood


Cliffs, N. J., 1966 (trad. Fr.: Éléments d’Épistémologie, Librairie A. Colin,
Paris, 1972).

 HINTIKKA, J., MACINTYRE, A., WINCH, P. – Articles from «Essays on


Explanation and Understanding», Dordrecht, Holland, D. Reidel
214

Publishing Company, 1976. Trad. castelhana: Ensayos sobre explicación y


comprensión, Madrid, Alianza Editorial, 1980.

 Inquiry as inquiry: a logic of scientific discovery, Dordrecht, Kluwer


Academic Publishers, 1999.

 HIRST, R. J. - Perception and the External World, Macmillan, New York,


1965.

 HORWICH, P. (ed.) - Theories of Truth, Dartmouth Publishing Company


Limited, 1994.

 HÜBNER, K. - Crítica da razão científica, Lisboa, Edições 70, 1993.

 HUEMER, M. (ED.) - Epistemology. Contemporary Readings, London and


New York, Routledge, 2002.

 HUME, D. – An Enquiry Concerning Human Understanding, in Enquiries


Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of
Morals, ed. L. A. Selby-Bigge, Oxford, Clarendon Press, 1902. (Tradução
portuguesa Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1985).

 A Treatise of Human Nature, Oxford University Press, 1888 (trad. port.


Fundação C. Gulbenkian, 2001).

 HUSSERL, E. - A Filosofia como Ciência de Rigor, (trad. A. Beau), Coimbra,


Atlântida, 1952.

 Logical Investigations, (trad. J. N. Findlay), New York, Humanity Books,


2000.

 La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale,


(trad. G. Granel), Paris, Gallimard, 1976.
215

 INCIARTE, F. - El Reto del Positivismo Logico, Madrid, Rialp, 1974.

 IRWIN, T. - "Aristotle" in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion to


Epistemology, pp. 27-30.

 JACKSON, F. - "Representative realism", in Dancy, J. e Sosa, E. - A


Companion to Epistemology, pp. 445-448.

 JACOB, P. - L'empirisme logique. Ses antécédents, ses critiques, Paris,


Éditions de Minuit, 1980.

 JACOB, P. (ORG.) - De Vienne à Cambridge. L'héritage du positivisme


logique, Paris, Éditions Gallimard, 1996.

 KANT, E. – Kritik der reinen Vernunft, Frankfust am Main, Suhrkamp, 1981


(5ª ed.), (trad. Port.: Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1985).

 KELLEY, D. - The Evidence of the Senses. A Realist Theory of Perception,


Baton Rouge and London, Louisiana State University Press, 1986

 KENNY, A. - The Metaphysics of the Mind, Oxford University Press, 1992.

 KNEALE, W. E M. - O Desenvolvimento da Lógica, Lisboa, Fundação


Gulbenkian, 1980.

 KORNBLITH, H. (ED.) - Naturalizing Epistemology, Cambridge Mass. MIT


Press, 1985.

 "Beyond Foundationalism and the Coherence Theory" in Naturalizing


Epistemology, pp. 115-128.

 "Naturalized Epistemology", in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion to


Epistemology, pp.297-300.
216

 KRIPKE, S. – Naming and Necessity, Harvard University Press, 1980.

 KRIPKE, S. - Wittgenstein: On Rules and Private Language, Oxford,


Blackwell, 1982.

 KUHN, T. S. - The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, The


University of Chicago Press, 1970 (2ª ed.).

 KÜNG, G. - Ontology and the logistic analysis of language, Dordrecht, D.


Reidel Publishing Company, 1967.

 LAKATOS, I. - História da Ciência e Suas Reconstruções Racionais, Lisboa,


Edições 70, 1998.

 Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica,


Lisboa, Edições 70, 1999.

 LANDESMAN, CH. – An Introduction to Epistemology, Cambridge Mass.


Blackwell, 1997.

 LAUGIER, S. - "Wittgenstein et la Science: au-delà des mythologies", in


Wagner, P. (org.) - Les philosophes et la science, pp. 498-577.

 LEHRER, K. - Knowledge, Oxford, Clarendon Press, 1974.

 Theory of Knowledge, Boulder and San Francisco, Westview Press, 1990.

 LEIBNIZ, G. - Die Philosophischen Schriften, Hildesheim, G. Olms, 1960-61,


7 vols; Nouveaux Essais sur l'entendement humain, vol 5.

 LEWIS, C. I. - An Analysis of Knowledge and Valuation, La Salle II, Open


Court, 1946.
217

 LEWIS, C. I. - "The Given Element in empirical Knowledge", Philosophical


Review, 61, 1952, 168-175.

 LLANO, A. - El enigma de la representación, Madrid, Ed. Síntesis, 1999.

 LOCKE, J. – An Essay Concerning Human Understanding, Londres,


Everyman’s Library, Dent/Dutton, 1961 (publicado originalmente
1690).Tradução portuguesa: Introdução, notas, coordenaão tradução
Eduardo A. de Soveral, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, 2 vols.).

 LOVEJOY, A. O. – The Revolt Against Dualism. An Inquiry Concerning the


Existence of Ideas, Transaction Publishers, New Jersey, 1996.

 MACDONALD, G.F. (ed.) - Perception and Identity, Macmillan, London, 1979.

 MAIER, H. - Philosophie der Wirklichkeit, Tübingen, 1926-1935

 MALCOLM, N. – Knowledge and Certainty, Cornell University Press, Ithaca


and London, 1963.

 MALCOLM, N. - Thought and Knowledge, Cornell University Press, Ithaca


and London, 1977.

 McGINN, C. - The Subjective View, Secondary Qualities and Indexical


Thoughts, Clarendon Press, Oxford, 1983.

 MCGUINESS, B. - "Wittgenstein et le Cercle de Vienne", Bouveresse-Quillot,


R., Visages de Wittgenstein, pp. 93-103.

 MOHANTY, J. N. - The Concept of Intentionality, St Louis, Missouri, Warren


H. Green Inc., 1972.

 MOORE, G. - Some Main Problems of Philosophy, London, 1953.


218

 NAGEL, E. - The Structure of Science: Problems in the Logic of Scientific


Explanation, New York, Harcourt, Brace & Worlf, Inc., 1961. (Tradução
castelhana: Barcelona, Ed. Paidos, 1989)

 NAGEL, T. – The View From Nowhere, Oxford University Press, 1986.

 NEURATH, O. - "Protokollsätze", Erkenntnis, III, 1932-33 (Trad. ingl. in


Ayer, A. J. - Logical Positivism, pp. 199-208).

 NOZICK, R. - Philosophical Explanations, Cambridge Mass., 1981

 NUSSBAUM, M. E RORTY, A. O. - Essays on Aristotle's De Anima, Oxford,


Clarendon Press, 1992.

 OWEN, G. E. L. - "Tithenai ta Phainomena" in Barnes, J., Schofield, M.,


Sorabji, R. - Articles on Aristotle I. Science, London, Duckworth, 1975, pp.
113-126.

 PASQUINELLI, A. - Carnap e o Positivismo Lógico, Lisboa, Edições 70, 1983.

 PASSMORE, J. – A Hundred Years of Philosophy, Duckworth & Co. Ltd,


London, 1957.

 Philosophical Reasoning, London, 1961.

 PEARS, D. - The False Prison, Oxford, Clarendon Press, 1988 (2 vols).

 PEIRCE, C. S. - Collected Papers of Charles Sanders Peirce, (ed. Charles


Hartshorne e Paul Weiss), The Belknap Press of Harvard University Press,
Cambridge Massachussetts, 1930-58.

 Charles S. Peirce: Selected Writings (ed. P. P. Weiner), New York, Dover


Publications, 1966.
219

 Antologia Filosófica, Prefácio, selecção, tradução e notas de António


Machuco Rosa, Lisboa, Lisboa, INCM, 1998.

 PLATÃO - Oeuvres Complètes. Tome VIII: Théétète (Trad. A. Diès), Paris,


«Les Belles Lettres», 1976

 POLANYI, M. - Personal Knowledge. Towards a Post-Critical Philosophy,


Chicago, The University of Chicago Press, 1962.

 POPPER, K. - The Logic of Scientific Discovery, New York, Basic Books


Inc., 1961.

 O Realismo e o Objectivo da Ciência. Pós-Escrito à 'Lógica da Descoberta


Científica' 1º vol., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.

 Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge, London,


Routledge & Kegan Paul, 1963.

 Objective Knowledge, London, Routledge & Kegan Paul, 1972 (trad.


brasileira: Conhecimento Objectivo, Editora da Universidade de São Paulo,
Ed. Itatiaia Lda, 1975).

 PRICE, Henry H. – Perception, Thoemmes Press, Bristol, 1996.

 PRICHARD, H. A. - Knowledge and Perception, Oxford, 1950.

 PRIGOGINE, I E STENGHERS, I. - A Nova Aliança, Lisboa, Gradiva, 1986.

 PUTNAM, H. – Mind Language and Reality (Philosophical Papers, vol II),


Cambridge, Cambridge University Press, 1975. Realism and Reason
(Philosophical Papers, III), Cambridge, Cambridge University Press, 1983.

 Reason, Truth and History, Cambridge, Cambridge University Press, 1981


(Trad. port. Razão, Verdade e História, Lisboa, Dom Quixote, 1992).
220

 Representation and Reality, Cambridge, Mass., MIT Press, 1988.

 "Sense, Nonsense, and the Senses: An Inquiry into the Powers of the
Human Mind", The Journal of Philosophy, vol XCI, n. 9, 1994, pp. 445-
487.

 QUINE, W. V. - From a Logical Point of View, Cambridge, Mass: Harvard


University Press, 1961.

 Ontological Relativity an Other Essays, New York, Columbia University


Press, 1969.

 REID, T. - Philosophical Works I/II: Inquiry into the Human Mind; Essays
on the Intellectual Powers of Man; Essays on the Active Powers of the
Human Mind, Hildesheim, Zürich, New York, G. Olms Verlag, 1983.

 ROBINSON, H. – Perception, Routledge, London and New York, 1994.

 ROCK, I. - Perception, Scientific American Books, New York, 1984.

 ROSEN, S. - The Limits of Analysis, New York, Basic Books, 1980.

 RUSSELL, B. - The Problems of Philosophy, London, Oxford University


Press, 1951.

 Logic and Knowledge. Essays 1901-1950 (ed. Robert C. Marsh), Londres,


George Allen & Unwin, 1977.

 RYLE, G. – The Concept of Mind, Londres, Hutchinson, 1949.

 SCHILPP, P. A. - The Philosophy of Rudolf Carnap, La Salle Illinois, Open


Court, 1964.

 The Philosophy of G. E. Moore, La Salle, Illinois, Open Court, 1968.


221

 The Philosophy of Karl Popper, La Salle, Illinois, Open Court, 1974.

 SCHLICK, M. - "Über das Fundament der Erkenntnis", Erkenntnis, vol IV,


1934 (Trad. ingl. in Ayer, A. J. - Logical Positivism, pp. 209-227).

 SCHOEMAKER, S. S. - "Self-reference and Self-awareness" in Canfield, vol 12.

 SCHOFIELD, M. E NUSSBAUM, M. C.(ED.) – Language and Logos. Studies in


Ancient Greek Philosophy, Cambridge University Press, 1982.

 SCHULTE, J. - Experience & expression. Wittgenstein's Philosophy of


Psychology, Oxford, Clarendon Press, 1993.

 SEARLE, J. – Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, Cambridge


University Press, 1983.

 SEARLE, J. - The Rediscovery of the Mind, Cambridge Mass. The MIT Press,
1994.

 SEBESTIK, J. E SOULEZ, A. - Le Cercle de Vienne. Doctrines et Controverses,


Paris, Meridiens Klincksieck, 1986

 SELLARS, W. - Science, Perception and Reality, Routledge &Kegan Paul


Ltd., London.

 SORABJI, R. - Necessity, Cause and Blame: Perspectives on Aristotle's


Theory, Ithaca, Cornell University Press, 1980.

 SOULEZ, A. - Le Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrits, Paris, PUF,


1985.

 Dictées de Wittgenstein à Waismann et pour Schlick, Paris, PUF, 1997.


222

 "Comprendre Wittgenstein? Une affaire de citation truquée dans le


Manifeste du Cercle de Vienne, Bouveresse-Quillot, R. , Visages de
Wittgenstein, pp. 105-134.

 SOSA, E. - Knowledge in Perspective, Cambridge and New York, 1991.

 Epistemology: an anthology, Oxford, Blackwell, 2000.

 STEGMÜLLER, W. – Hauptstromungen der Gegenwartsphilosophie; eine


kritische Eiinführung, Stuttgart: Körner Verlag, 1969 (4ª ed.). Trad. Inglesa
de Albert E. Blumberg: Main Currents in Contemporary German, British
and American Philosophy, D. Reidel Publishing Company, Dordrecht,
Holland, 1969.

 Glauben, Wissen und Erkennen, Darmstadt, Wissenschaftliche


Buchgesellschaft, 1965. Trad. espanhola de E. Garzón Valdés, Crer, Saber,
Conocer, Buenos Aires, Ed. Alfa Argentina, 1978.

 STRAYSON, P. F. - The Bounds of Sense. An Essay on Kant's Critique of Pure


Reason, London and New York, Methuen, 1966.

 STROLL, A. - Twentieth-century analytic philosophy, New York, Columbia


University press, 2000.

 STROLL, A. (ED.) – Epistemology, New York, Harper & Row, 1967.

 STROLL, A. –Moore and Wittgenstein on Certainty, Oxford, Oxford


University Press, 1994.

 STROUD, B. - The Significance of Philosophical Scepticism, Oxford, 1984.

 SWARTZ, R. J. - Perceiving, Sensing and Knowing, Doubleday, New York,


1965.
223

 The Ecological Approach to Visual Perception, Boston, Houghton Mifflin,


1979.

 TARSKI, A. - Logic, Semantics Metamathematics, Oxford, Oxford University


Press, 1956 (Trad. fr.: Logique, sémantique, mathématique (1923-1944),
Paris, A. Collin, 1972, 2 vols.).

 URMSON, J. O. - Philosophical Analysis. Its Development between the two


world wars, London-Oxford, 1956.

 VESEY, G. – Perception, Thoemmes Press, 1992

 WAGNER, P. (ORG.) - Les philosophes et la science, Paris, Éditions Gallimard,


2002.

 "Carnap et la logique de la science", in Les philosophes et la science, pp.


246-298.

 WARNOCK, G.J. - The Philosophy of Perception Oxford University Press,


Oxford, 1967.

 WATKINS, J. W. N. - Ciência e Cepticismo, Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 1990.

 WEBER, M. - "Wissenschaft als Beruf", Trad. espanhola in Weber, M.-


Politica y Ciencia, Buenos Aires, Ed. La Pléyade, 1976.

 WEINER, J. - Frege in Perspective, Ithaca and London, Cornell University


Press, 1990.

 WHITEHEAD, A. N. - Concept of Nature, Cambridge, 1920.

 WHITEHEAD, A. N. - Science and the Modern World, New York, The Free
Press, 1967.
224

 WITTGENSTEIN, L. - Schriften, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1960-


1982 (8 vols).

 Notebooks, 1914-16 ed. G. E. M. Anscombe e G. H. von Wright, Oxford,


Blackwell, 1961.

 Tractatus Logico-Philosophicus, Londres, Routledge, 1922 (trad. Port.


Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1987).

 Philosophical Grammar (ed. R. Rhees, trad. A. Kenny), Oxford, Blackwell,


1974.

 Philosophical Investigations, Oxford, Blackwell, 1953 (trad. port. Lisboa,


Fundação C. Gulbenkian, 1987).

 On Certainty, Oxford, Blackwell, 1969 (Tradução Portuguesa Lisboa,


Edições 70, 1990).

 Remarks on the Philosophy of Psychology, vol I (Eds: Anscombe, G. F. M.


e Wright, G. H. von), Oxford, Basil Blackwell, 1980

 Remarks on the Philosophy of Psychology, vol. II (Eds. Wright, G. H. von e


Nyman, H.), Chicago, The University of Chicago Press, 1988.

 Last Writings on the Philosophy of Psychology vol. II (Eds. Wright, G. H.


von e Nyman, H.), Oxford, Basil Blackwell, 1992.

 Philosophical Occasions (1912-1951) (Eds Klagge, J. e Nordmann, A.),


Indianapolis & Cambridge, Hackett Publishing Company, 1993

 WOODFIELD, A. – Thought and Object, Oxford, Clarendon Press, 1982.

 WRIGHT, G. H. VON - Explanation and Understanding, Ithaca, New York,


Cornell University Press, 1971.
225

Você também pode gostar