Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Que e o Conhecimento Questoes de Epist
O Que e o Conhecimento Questoes de Epist
O QUE É O CONHECIMENTO?
QUESTÕES DE EPISTEMOLOGIA
LISBOA
2
2004
3
4
INDICE
INTRODUÇÃO
5. Objectividade/Objectualidades
5.1. O "real" e o "objectivo" em Frege
I.2. Epistemologia sem sujeito
I.3. Objectividade e Falibilismo
I.4. O Pensamento: lugar das formas
Bibliografia
6
INTRODUÇÃO
episteme. E esta é a questão mais comum a partir da qual partem muitas das
actuais exposições básicas da Epistemologia: poderia definir-se, neste sentido
como o estudo da justificação da crença ou opinião. "Quais as crenças que são
justificadas ou fundamentadas e quais não o são?", "Qual a diferença entre
conhecer verdadeiramente, e ter uma mera crença ou opinião verdadeira?" "Qual a
relação entre crer e conhecer?", "Porque é que pensamos ou cremos que p ?"
seriam perguntas centrais da epistemologia.
A definição proposta - o estudo da justificação ou fundamentação da crença
- parece, no entanto demasiado restritiva, pois qualquer outro estado cognitivo que
não o da crença verdadeira justificada, ficaria fora das suas fronteiras: a dúvida,
conjectura, probabilidade, interrogação constituem estados cognitivos de
indubitável interesse para a epistemologia. Não há dúvida que o problema da
justificação ou fundamentação da mera crença verdadeira é fulcral na
epistemologia, mas não é o único. O conhecimento é tradicionalmente, desde
Platão, caracterizado como crença justificada, mas é o próprio processo cognitivo
que carece, ele próprio, de uma justificação, que pressupõe a elucidação da
questão originária sobre o que é conhecer.
conhecer? Não será tudo um sonho? Uma ilusão? E, no limite, não estaremos a ser
constantemente enganados por um «génio maligno»?
Perante as variadas atitudes de cepticismo, é possível adoptar diferentes
posições:
a) enredar-se em tentativas de argumentos contra os argumentos
cépticos, uma discussão directa na qual se admite, até certo ponto, as próprias
dúvidas que se tentam ultrapassar;
b) contornar esses argumentos, evitando um confronto directo e
colocar-se à partida numa atitude realista, de um realismo duro no qual se toma
como inquestionável a aceitação de uma realidade objectiva, independente do
nosso próprio ponto de vista; mesmo reconhecendo o grande abismo entre os
fundamentos das nossas crenças sobre o mundo e os conteúdos dessas mesmas
crenças, a falibilidade do que se nos apresenta, em contraste com a consistência
ontológica do real, tenta-se o salto sobre o abismo sem o anular. Exemplos desta
atitude são por exemplo as “teoria heróicas” (empregando uma expressão de
Thomas Nagel) como a teoria das Formas de Platão, a defesa cartesiana da
fiabilidade do conhecimento humano em geral assente numa prova a priori da
existência de um Deus à prova de toda a confiança. E em tempos mais recentes,
com nítidas tonalidades platónicas, as propostas de um mundo objectivo, real,
constituído por entidades ontologicamente consistentes, não submetidas à
precaridade do nosso conhecimento sensível, como é o caso do «terceiro mundo»
de Frege, um mundo de objectualidades independente do nosso modo de as
apreender;
c) desconstuir a dúvida céptica apontando-lhe a sua falta de
fundamento – quem duvida, sabe já alguma coisa, e tendo em conta o senso
comum, fará sentido a formulação de dúvidas radicais que ponham em causa
qualquer forma de conhecimento, ou de possibilidade de acesso ao mundo externo
e a uma realidade objectiva? Ao céptico caberá a tarefa de fundamentar a sua
dúvida, caso contrário ela será rejeitada como sem sentido nem fundamento. Neste
12
Não se pode evitar que uma certa dose de cepticismo ronde sempre todo o
empreendimento, pelo menos como uma via de reconhecimento da nossa própria
situação; a dúvida, a incerteza e a falibilidade não constituirão, no entanto,
impedimentos para persistir na busca de conhecimento, pois o nosso impulso para
o real torna impossível que nos satisfaça uma perspectiva meramente subjectiva e
minada à partida pela distância e inacessibilidade do objecto a conhecer.
13
Formulando bem a questão, notar-se-á que estas duas "imagens" não são
necessariamente antagónicas, nem constituem dois modelos epistemológicos em
disjunção irreconciliável, mas é possível integrar ambas numa perspectiva
panorámica que abarque tanto o problema da verdade como o do sentido, o
problema da correspondência ou adequação do nosso conhecimento com a
realidade, como o da coerência interna das nossas crenças, opiniões e juízos.
É precisamente o problema do fundamento, no sentido de origem do
conhecimento, que fará a passagem ao tema seguinte, o da análise da percepção.
Não se pretende apresentar exaustivamente as teorias da percepção, mas rever o
problema da representação, o seu "espectro" e repercussões na temática
epistemológica. No cerne de todo este tópico, estará a questão da evidência
perceptiva, da fiabilidade do nosso percepcionar, da viabilidade de aceder, pelos
vários processos perceptivos, ao mundo real tal como é. Correlativa da experiência
do mundo, a experiência de si, a auto-consciência apresenta-se como uma forma
de consciência reflexiva, não tética, imediata e evidente. A sua força e imediatez
leva a pensar no cogito como um fundamento inquestionável de todo o
conhecimento e experiência. Mas pode também traçar uma fronteira intransponível
entre eu e mundo, e constituir assim um obstáculo para a constituição da
objectividade do conhecimento. Com uma breve revisão dos problemas centrais
em torno da consciência de si, procurar-se-á reconstituir a dimensão dual de toda a
consciência, que remete simultanea e indissoluvelmente, quer para o mundo
externo, objectivo, quer para o próprio eu e o conhecimento em primeira pessoa.
Este último, tendo em conta as duas perspectivas da consciência - intencional e
reflexiva, autónoma e heterónoma - não se instituirá como um óbice à
possibilidade de acesso ao mundo, à objectividade.
Se essa viabilidade for estabelecida, fará então sentido perguntar-nos pela
objectividade do conhecimento, em geral, ou seja pela possibilidade de deter
intencionalmente algo que não é constitutivamente o próprio sujeito cognoscente,
algo que não lhe pertence, que o transcende, mas de que se pode apoderar de uma
15
Antes de terminar esta introdução, parece-nos que será útil fazer umas
breves observações sobre a situação actual da Epistemologia. Não se pretenderá de
modo algum fazer a sua história, mas apontar apenas os principais factores que
fizeram convergir os interesses e as atenções sobre alguns tópicos mais recorrentes
na literatura epistemológica contemporânea.
compreensão que envolve a pessoa no seu todo. O risco que corre a crítica à
"objectividade", é a excessiva "subjectivização" da ciência nos seus processos de
descoberta, justificação e prova.
Com os seus títulos provocatórios - Contra o Método, Adeus à Razão -
Feyerabend é o enfant terrible da epistemologia, objectando vivamente contra
tentativas vâs de construir uma teoria do conhecimento ou uma teoria da ciência.
Não há uma estrutura comum aos factos, operações e resultados que constituem as
ciências, não há modelos gerais que expliquem a dinâmica das ciências, não há
uma lógica da descoberta e da justificação; os procedimentos são tão variáveis, tão
contingentemente afectados pelas circunstâncias históricas, sociais, políticas, que o
anarquismo epistemológico impõe-se como único princípio não inibidor do
progresso. O célebre slogan "qualquer coisa serve" (anything goes) destrói toda a
pretensão das velhas ideias de objectividade da Ciência, da Razão, da
universalidade dos saberes. E dissuade qualquer intuito de formular uma teoria da
ciência, de reconstruir uma nova epistemologia.
2. Uma Epistemologia externa, feita pela filosofia, mas tendo como tema e
objectivo os problemas das ciências mesmas e das suas práticas: os problemas da
objectividade do conhecimento científico, da percepção, a concepção de lei, de
causalidade, a explicação e a compreensão científicas, o problema do
determinismo/acaso, ordem/caos, as relações corpo/mente, etc. são problemas
filosóficos cujo conteúdo advém principalmente das diversas ciências. E no campo
das ciências sociais e humanas, os problemas da racionalidade prática, do estatuto
epistémico de saberes como a História, a Sociologia, a Antropologia, os modelos
de compreensão, do sentido da acção humana e social. Considerar do ponto de
vista filosófico os problemas que estão em causa no próprio desenvolvimento da
investigação científica e que de certo modo lhe podem dar uma ou outra direcção
3
Quine, “Epistemology Naturalized”, pp. 82-83.
4
Sobre e "epistemologia naturalizada", cfr o texto de Quine em Ontological Relativity and other
essays e Haack S. - Evidence and Inquiry, pp. 118-138.
24
discussões, sobretudo a partir do célebre artigo de Gettier “Is Justified True Belief
Knowledge?”, que desafia esta definição tradicional, apresentando contra-
exemplos que envolvem casos de crença verdadeira justificada e que no entanto
não são propriamente conhecimento. O «problema de Gettier» originou uma
explosão de tentativas de respostas da parte de epistemólogos que, guiados pela
estratégia de Gettier propõem alternativas à definição em causa, acrescentando ou
modificando as condições para que se dê efectivamente conhecimento. O tópico da
justificação é sempre recorrente em todas as abordagens da epistemologia, bem
como as análises da estrutura do conhecimento, que seguem fundamentalmente as
duas grandes vias – fundacionalista e coerentista.
A análise do conhecimento feita a partir destes parâmetros – quais as condições
de conhecimento, qual a estrutura do processo de justificação – não esgota de
modo algum o problema filosófico da cognição. Trata-se de um processo que
envolve múltiplos factores e que deverá ser investigado na sua dinâmica própria,
apreendido no seu in fieri, e não apenas analisado assepticamente enquanto um
sistema de enunciados que traduzem proposições verdadeiras, já constituído em si
mesmo, como o resultado objectivado das várias dinâmicas cognitivas. A
elucidação filosófica de conceitos fundamentais para compreender o que é o
conhecimento – como a percepção, a intuição, o raciocínio, a compreensão, e
também a dúvida, a incerteza, a expectativa, a procura – é um complemento
essencial da análise estrutural do processo cognitivo. Neste sentido se compreende
que Wittgenstein tenha afirmado que a teoria do conhecimento é a filosofia da
psicologia.
26
6
Dancy, J. -Epistemologia contemporânea, p. 13.
29
se sabe, porque não se sabe o que se pretende investigar (cfr 80e). A solução
platónica proposta por Sócrates, é a afirmação que todo o ensino e investigação
não é senão reminiscência de algo previamente conhecido (81d5, 86bc) 8. O
conhecimento não é mera "opinião verdadeira", mas opinião verdadeira plus
razões que fundamentam essa opinião: o conhecimento difere da opinião
verdadeira na sua relação com um aitias logismos.
8
Cfr Woodruff, P., art. cit., p. 82: exposição e discussão da tese platónica da reminiscência.
9
Para uma análise da auto-refutação da tese de Protágoras, cfr Burnyeat, M. F. - "Protagoras and
self-refutation in Plato's Theaetetus" in Everson, S. - Epistemology, pp. 39-59. Cfr Teeteto, 169d-
172c.
31
(meta logou alethe doxan episteme einai) (201c). Desprovida de razão (alogon), a
opinião verdadeira não constitui ciência. A definição responde à questão
fundamental da epistemologia: O que se deve acrescentar à opinião verdadeira
para que se constitua como ciência? A resposta de Platão vai para além da mera
exigência de uma justificação, de razões fortes para fundar a opinião. A "razão"
(logos) requerida para que a opinião verdadeira seja ciência corresponde à resposta
à pergunta "O que é x?", que leva Platão a dar uma explicação em termos de
análise dos elementos últimos e originários que constituem "x". Destes elementos
últimos não é possível apresentar uma "razão", eles são, de certo modo alogon, e
consequentemente incognoscíveis. A assimetria na estrutura do conhecimento é
manifesta: os compostos são cognoscíveis, deles é possível dar uma razão, mas os
simples são incognoscíveis, embora constituam, em última análise, a razão que
explica os compostos10. A razão (logos) pertence ao nível dos compostos, os
elementos últimos são apenas designáveis, denomináveis. No entanto, Platão
pensa que o conhecimento deve basear-se em conhecimento, conhecer p significa
conhecer a explicação, ou a razão de p, ou seja conhecer p requer conhecer q, a
razão (logos) de p. Por sua vez, conhecer q, exigirá conhecer a razão de q, e assim
sucessivamente. Para evitar um infinito regresso, parece necessário admitir
algumas verdades básicas: se a base de todo o conhecimento forem os elementos
últimos, estes são desprovidos de razão (logos)11, e portanto incognoscíveis, o que
viola o princípio, que Platão parece defender, de que o conhecimento se basea em
conhecimento; na República, esta exigência de um fundamento ou razão básica de
todo o conhecimento, faz depender o conhecimento da compreensão da ideia de
Bem, e apresenta-o dotado de uma estrutura hierárquica. Neste diálogo as
metáforas do conhecimento são sobretudo as do ascenso da alma até uma
10
Cfr Annas, J. "Knowledge and language: the Theaetetus and the Cratylus" in Schofield, M. e
Nussbaum, M. - Language and Logos, pp. 95-114.
11
É patente a proximidade com a argumentação de Wittgenstein no Da Certeza, §§ 204-205:
"Mas a fundamentação, a justificação da evidência tem um fim - mas o fim não é o facto de certas
proposições se nos apresentarem como sendo verdadeiras…" "Se o verdadeiro é o que é
fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro nem falso."
32
12
Uma interessante discussão sobre o "sonho de Sócrates" pode encontrar-se em Rosen, S. - The
Limits of Analysis, pp. 120-128.
13
Investigações Filosóficas, § 49.
14
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, p. 39.
33
16
Cfr. Taylor, C. C. W. – “Aristotle’s epistemology” in Everson, S. Epistemology, pp. 116. Sobre
o “naturalismo” de Quine, cfr. Haack, S. – Evidence and Inquiry, cap. 6, onde se mostram as
ambiguidades de Quine no uso genérico do termo “ciência”.
17
Cfr Gourinat, J. B. - "Aristote et la forme démonstrative de la science", in Wagner, P. (org.) -
Les philosophes et la science, pp.581-623.
18
Um texto do livro VI da Ética Nicomaqueia propõe uma definição de episteme, reportando-a
aos II Analíticos: "Deste modo a ciência é uma disposição para produzir demonstrações (hexis
apodeiktike), acrescentando a esta definição todas as outras características mencionadas nos
Analíticos; com efeito, quando um homem acredita de uma certa maneira, e os princípios lhe são
familiares, então ele sabe (epistatai). Se os princípios não lhe são mais familiares do que a
conclusão, é porque ele possui apenas a ciência por acidente" (VI, 3, 1139b31-34).
36
19
Cfr Boulakia, L. - "A propósito da força da demonstração", Análise, n. 20, pp. 17-46.
20
Note-se, porém que Aristóteles distingue entre demonstração ou silogismo propriamente ditos e
ciência: esta é a posse do silogismo e é esta disposição ou hábito subjectivo que Aristótleles
pretende caracterizar. A sua interrogação é sobre o que possui um sujeito que possui uma
demonstração, em que consiste esta posse? Cfr Brunschwig, J. - "L'objet et la structure des
Seconds Analytiques d'après Aristote" in Berti, E. (ed.) - Aristotle on Science: The Posterior
Analytics, Pádua, 1981, p. 71: "Não saberíamos atribuir a Aristóteles uma identificação pura e
simples da demonstração e da ciência demonstrativa sem o acusar de um erro categorial que ele
dificilmente poderia cometer: a demonstração sendo uma espécie de silogismo cai sob o género
do logos, do discurso; a ciência demonstrativa é um dos estados mentais ou intelectuais nos quais
nos encontramos capacitados para dizer o verdadeiro".
37
25
Fundacionalismo e Coerentismo tem sido apresentados, na Epistemologia Contemporânea
como duas teses opostas. No entanto, estas duas posições não são necessariemtne incompatíveis,
como o mostra S. Haacks em Evidence and Inquiry. Propõe mesmo um neologismo -
"funderentismo" - para traduzir uma teoria que concilia as duas teses aparentemente opostas.
40
26
Cfr Sellars, W. – “Empiricism and the Philosophy of Mind”, in Science, Perception and
Reality, p. 170.
41
outra crença justificada, e esta por sua vez, carecerá de ulterior justificação, a
cadeia de crenças a justificar seria infinita, a menos que a série encontre um termo
num tipo de crenças que não carecem elas próprias de justificação. O argumento
foi já formulado por Aristóteles30: os que rejeitam a apreensão imediata dos
primeiros princípios, negam a possibilidade de todo o conhecimento científico
porque se vêm confrontados com duas perspectivas impossíveis: ou todas as
verdades são demonstráveis (justificáveis) por uma prova circular, o que
singificaria que nenhuma é verdadeiramente demonstrada, ou se dá um infinito
regresso no processo da demonstração, o que anula também a demonstrabilidade
de qualquer verdade. Salientemos desde já que Aristóteles, neste contexto, está a
tratar da demonstração que consiste na captação do silogismo - premissas e
conclusão - e que se apresenta como o protótipo da episteme. Mas a episteme não
esgota de forma alguma, na concepção aristotélica, todas as formas de
conhecimento ou de estados cognitivos - há a considerar outras formas de
conhecimento ou estados cognitivos nos quais o sujeito cognoscente "possui a
verdade afirmando ou negando": techne, phronesis, sophia e nous31. Há, portanto
uma diversidade de "modos de pensar e de conhecer", não uniformizáveis num
modelo único. Além disso, ao postular a necessidade da apreensão imediata, não
via demonstração, dos primeiros princípios, Aristóteles afirma que estes princípios
são a causa do nosso conhecimento e que é o grau de convicção com que os
possuímos que causa o conhecimento de tudo o que deles se deriva. O que indica
claramente que não é tanto o problema da justificação que está em causa, quanto o
problema da própria genealogia do conhecimento demonstrativo: os princípios não
são o resultado de um processo regressivo, mas o ponto de partida que viabiliza a
demonstração.
argumento em diferentes registos deve-se em parte à sua forma de redução ao absurdo: mostra-
nos o que temos de rejeitar, mas deixa em aberto o que se poderá afirmar como alternativa. Por
isso ele é empregue para problemas em diferentes campos - desde a epistemologia à metafísica e
ética - e invocado, não só por diversas atitudes fundacionalistas, como aceite mesmo por algumas
formas de coerentismo.
30
Cfr II Analíticos, I, 2-3.
31
Cfr Et. Nic., 1139b15-17.
45
33
Cfr ibidem, p. 27.
34
Lewis, C. I. - "The Given Element in Empirical Knowledge", Philosophical Review, 61, 1952,
p. 168-69.
35
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, pp. 156-158. Sobre a teoria da coerência e suas
variantes cfr cap. 8.
47
portanto sem se tornar num fundacionalista? Uma proposta que tenta conciliar o
papel da experiência com uma estrutura coerentista é a de BonJour36.
Importa sublinhar mais uma vez que o problema da justificação não se deve
confundir com o problema da génese do conhecimento. A discussão
fundacionalismo/coerentismo diz respeito ao primeiro problema, não ao segundo.
É frequente, no entanto, encontrar nesta discussão interferências entre os dois
problemas que desfocam a questão central que está em causa.
O par externalismo/internalismo tem também interferências com o
fundacionalismo/coerentismo. Importa destrinçar as problemáticas: uma teoria da
justificação é considerada internalista se exige que todos os factores necessários
para a justificação epistemológica de uma crença sejam cognitivamente acessíveis
ao sujeito dessa crença; externalista, se permite que pelo menos alguns desses
factores não sejam acessíveis, portanto externos à perspectiva cognitiva do sujeito
da crença.Uma versão forte do internalismo exige que o sujeito de uma crença
esteja realmente consciente dos factores que a justificam e só assim a crença será
de facto justificada; segundo uma versão mais fraca, exige apenas que o sujeito da
crença seja capaz de tornar-se consciente desses factores sem necessidade de
qualquer mudança de posição, nova informação, etc. Embora a expressão
"cognitivamente acessível" pareça sugerir apenas esta versão mais fraca, a
motivação principal para o internalismo exigiria a interpretação mais forte.
O exemplo mais evidente de internalismo será uma perspectiva
fundacionalista na qual as crenças fundacionais pertencem aos estados da mente
imediatamente experimentados e as outras crenças são justificadas por estarem
numa relação lógica ou inferencial cognitivamente acessível com essas crenças
fundacionais. Uma perspectiva coerentista poderia ser também internalista, se
tanto as crenças e outros estados com os quais a justificação deve ser coerente,
como as próprias relações de coerência forem reflexivamente acessíveis.
36
BonJour, L. - The Structure of Empirical Knowledge.
48
37
Chisholm, R. "The Indispensability of Internal Justification", in Bernecker, S. e Dretske, F. -
Knowledge. Readings in Contemporary Epistemology, pp. 118-127.
38
Cfr. Haack, S. - Evidence and Inquiry, cap. 7 : "The Evidence against Reliabilism".
49
46
"Protocol Statements and the Formal Mode of Speech", in Hanfling, O. (ed.) Essential
Readings in Logical Positivism, p.153.
52
50
Carnap, Intellectual Autobiography in Schilpp. The Philosophy of R. Carnap, 50.
54
parece-nos impossível; o que induziu Schlick, sob influência de Wittgenstein, a considerar as leis
da física, já não como enunciados gerais, mas meras regras para a derivação de asserções
singulares […]. Assim, à semelhabça sobretudo de Neurath e de Hahn, convenci-me de que devia
procurar um critério de significado mais liberal do que o da verificabilidade" 51. Carnap opta por
um critério muito mais flexível de "confirmabilidade", que atribui às bases do conhecimento
científico um carácter hipotético, conjectural, contribuindo assim para uma certa "liberalização do
empirismo". Segundo este critério, "uma proposição S diz-se "confirmável" (completamente ou
incompletamente) se a confirmação de S for redutível (completamente ou incompletamente) à
confirmação de uma classe de predicados observáveis" 52. Carnap especifica o significado das
"proposições de redução": "Quando um termo x é tal que as condições do seu uso são enunciáveis
mediante os termos y, z, etc., o enunciado que daí resulta pode denominar-se de 'proposição de
redução' de x nos termos y, z, etc., e x pode ser considerado redutível a y, z, etc. […] As
definições são as formas mais simples de proposições de redução" 53.
51
Carnap, ob. cit. pp. 57-58.
52
"Testability and Meaning", cfr Barone, F. ob. cit., p.391. Cfr Intellectual Autobiography, p. 59.
53
Logical Foundations of the Unity of Science, § 3, cit. por Pasquinelli, ob.cit., p. 71.
54
"The Foundation of Knowledge", p. 209. Cfr Jacob, P. "La Controverse entre Neurath et
Schlick", Sebestik, J. e Soulez, A. - ob. cit., pp. 197-218.
55
Ibidem, p. 210.
55
56
Ibidem, p. 222.
57
Ibidem, p. 223.
58
"Foundation of Knowledge", p. 226.
59
Cfr ibidem, p. 227
57
60
Cfr Hempel, C. G. - "On the Logical Positivists' Theory of Truth", Analysis, 2, 1934-35, pp. 50-
51.
61
Analysis, 2, 1934-35, pp. 65-70.
62
"Some Remarks on 'Facts and Propositions'", Analysis, 2, 1934-35, pp. 93-96.
58
63
Cfr "Two Dogmas of Empiricism", From a Logical Point of View, pp. 20-46.
59
64
Cfr Haller, R. - "Wittgenstein, était-il neopostiviste?" in Soulez, A. - Le Cercle de Vienne, p.
104. Este artigo é elucidativo sobre a relação e influência de Wittgenstein no Círculo de Viena.
Note-se que os representantes do Círculo nunca se reviram na designação de "positivistas" nem
reconheceram no termo "neopositivismo" um nome próprio do movimento. Feigl propôs a
designação de "positivismo lógico", Neurath, "empirismo racional". Se bem que, ao traçar a pré-
história do seu pensamento não tenham renegado a herança do empirismo clássico, ninguém
apontou, como referência dominante, o positivismo de Comte (cfr ibidem, pp. 108-109.
65
Cfr Baker, G. - "Présentation des Dictées", Soulez, A. (org.) - Dictées de Wittgenstein à
Waismann et pour Schlick, p. XV. As principais informações sobre este período crucial de
transição, que marca "a viragem gramatical" do pensamento de Wittgenstein, vêm-nos das
transcrições de Waismann e dos textos de Wittgenstein nas Philosophische Bemerkungen e
Philosophische Gramatik.
60
66
Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circel, p. 45;Cfr Philosophical Remarks, §§ 1, 11, 47, 57.
67
Philosophical Remarks, § 57.
68
Cfr McGuiness, Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circel, p. 45, n. 8: "Here Wittgenstein no
doubt refers to earlier manuscript volumes in which some of the Philosophical Remarks may have
occurred for the first time". Para uma discussão das interpretações do sentido de "fenómeno" e
"linguagem fenoménica" nos escritos de Wittgenstein, cfr Pears, D. - The False Prison, I vol., pp.
92-94.
69
Cfr Pears, D. - The False Prison, I, p. 98. Segundo outra interpretação, nos antípodas desta
assimilação dos objectos aos sense data, os objectos do Tractatus não poderão identificar-se com
nenhuma espécie de coisa independentemente especificável. Cfr H. Ishiguro "The Use and
Reference of Names", Studies in the Philosophy of Wittgenstein (P. Winch ed.) Routledge, 1969,
e B. McGuiness "The Socalled Realism of Wittgenstein's Tractatus in Block, I. (ed.) -
Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein, Blackwell, 1981.
70
Um exemplo flagrante desta interpretação é Popper, K. - British Philosophy in Mid-Century,
Allen and Unwin, 1957, pp. 163-164.
61
71
McGuiness, considera que a «teoria do conhecimento» do Tractatus pressupõe a existência de
enunciados protocolares, que Wittgenstein denomina Aussagen, em oposição às Hypothesen. A
leitura de 6.3751 inclina McGuiness para uma interpretação em sentido fisicalista, se bem que
este parágrafo possa sugerir uma certa indiferença em relação à alternativa fisicalista ou relação
com os sense data. (Cfr "The so-called Realism of Wittgenstein's Tractatus", Block, I. (ed.)
Perspectives on the Philosophy of Wittgenstein).
72
Cfr Anscombe, G. E. M. - An Introduction to Wittgenstein's Tractatus, p. 27.
62
74
Cfr Tractatus 6.3751. Sobre a interpretação do atomismo lógico de Wittgenstein e o estatuto
das proposições elementares, cfr Pears, D. - The False Prison, vol I, cap. 4.
75
Cfr Soulez, A. - Dictées de Wittgenstein á Waismann et pour Schlick, p.162.
64
Até que ponto esta "nova maneira de pensar" teve eco nos próprios
destinatários destas notas e reflexões? Será que as relações de Wittgenstein com os
membros do Círculo de Viena não terá passado de um profundo e insanável mal-
entendido? De facto, neste período da vida de Wittgenstein a sua posição em
relação ao Tractatus reflectia exactamente o que escreveu em 6.54: reconhecia as
suas próprias proposições como falhas de sentido e elevara-se para além delas,
lançando fora a escada, depois de a ter subido. A lição final a tirar do percurso de
Wittgenstein situa-o a uma longa distância dos ideias expressos no Manifesto:
transcender estas proposições para ver o mundo a direito, pressupõe ver o
Tractatus como um todo, e elucidar o sentido último das suas proposições.
Neurath baptiza esta atitude como "a escada metafísica da elucidação". Com ela,
Wittgenstein não só se exclui da "Concepção Científica do Mundo", como
compromete a sua realização. A "transcendência" de Wittgenstein é razão
suficiente para Neurath excluir o Tractatus do sistema unitário da ciência82. A
"segunda parte" da obra de Wittgenstein, a que ele próprio considerava mais
valiosa não teve qualquer receptividade no ambiente neo-positivista do Círculo de
Viena.
estéticas), por serem desprovidas de sentido, mantém-se mesmo depois do Tractatus; mas o
critério deixa de ter o carácter rígido desse período, para se conformar mais com a variedade das
necessidades e interesses humanos. Sobre o sentido e verificação das hipóteses, cfr Dictées de
Wittgenstein, pp. 169-171.
82
Sobre a crítica de Neurath ao Tractatus, a partir da leitura de 6.54, e a incompreensão do
pensamento de Wittgenstein por parte dos membros do Círculo de Viena mais próximos de
Wittgenstein, cfr Soulez, A. "Comprendre Wittgenstein", Visages de Wittgenstein, pp. 105-134.
67
O termo percepção tem uma conotação bastante ampla que ultrapassa tudo
o que se refere apenas aos sentidos, sensações e conhecimento sensitivo. Em
sentido lato, apreendemos a realidade do mundo externo de um modo imediato e
directo sem tematizar ou consciencializar os próprios processos internos que são
veículos dessa apreensão. Quando dizemos "«vemos» uma árvore, uma casa, o
céu…", exprimimos que estes objectos se nos apresentam, se nos dão no seu todo
configurado com um inegável carácter de unificação objectiva, que integra
diversos planos perceptivos. Esta apreensão conjunta pressupõe um princípio de
ordem e de organização que mobiliza o sujeito todo, integral, e os seus diferentes
estratos cognitivos. Trata-se, com efeito, de um "pensamento vivido", que
incorpora a si a experiência. Não se dá propriamente a percepção sem o momento
essencial da "incorporação do significado": o "dar-se" do objecto é inseparável da
própria acção perceptiva do sujeito, e é todo o sujeito que percepciona ou se
apercebe, apreende, capta o mundo real dos objectos.
Descrever, explicar os processos causais que dão origem á percepção é
tarefa que cabe à psicologia, à neurofisiologia, à filosofia da mente. Esta descrição
exige, no entanto, a perspectiva da terceira pessoa. Na perspectiva da primeira
pessoa não se pode responder à questão do «como se dá a percepção», porque o
sujeito ao ter consciência imediata das suas próprias experiências perceptivas não
tem acesso fenomenológico à relação causal entre o objecto percebido e a sua
própria percepção. Nesta dimensão não nos apercebemos dos meios pelos quais
68
83
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 36.
84
Cfr ibidem, p. 81.
69
ocorrem de facto dados seguros provenientes dos sentidos (sense data) e, no caso
afirmativo, qual a sua relação com os chamados objectos materiais.
As questões epistémicas do estatuto da representação, da viabilidade do
acesso ao objecto real, e da fronteira entre aparência/realidade, constituirão o fio
condutor do tratamento da percepção. Como ponto de partida, propõe-se uma
breve síntese das principais teses aristotélicas sobre a psicologia da percepção,
para salientar o carácter imanente e simultaneamente identitário com que se
apresenta a relação entre a experiência perceptiva do sujeito e o seu objecto. A
perspectiva «representacionista» pressupõe uma psicologia da percepção que
contrasta nitidamente com a aristotélica: na origem deste distanciamento estão
dois modelos distintos da mente85, do conhecimento e sua relação com a realidade.
3.1. Aisthesis
85
A palavra "mente" não traduz de modo algum a grega psyche. Esta noção aristotélica ressurge
hoje em muitos dos enquadramentos teóricos dos psicólogos e filósofos da mente. Cfr Wilkes, K.
V. "Pyche versus the Mind", Nussbaum e Rorty - Essays on Aristotle's De Anima, cap. 7. O
modelo da tradição cartesiana, norteado pelo objectivo epistemológico de encontrar um
fundamento incorrigível do conhecimento, faz radicar este fundamento na introspecção imediata
da consciência que tem por objecto directo os conteúdos da mente - as ideias. Rorty assinala o
contraste entre este modelo e o clássico grego, no qual não se encontra "(…) the conception of the
human mind as an inner space in which both pains and clear and distinct ideas passed in review
before a single Inner Eye. There were, to be sure, the notions of taking tacit thought, forming
resolutions in foro interno and the like. The novelty was the notion of a single inner space in
which bodily and perceptual sensations, mathematical truths, moral rules, the idea of God, moods
of depression, and all the rest of what we now call 'mental' were objects of quasi-observation"
("Cartesian Epistemology and Changes in Ontology", in J. E. Smith (ed.) Contemporary
American Philosophy, London, Allen and Unwinn, 1970, pp. 273-292.)
70
86
Com este item do Programa, não nos propomos uma exposição da teoria da percepção de
Aristóteles, mas tão-só assinalar um aspecto relevante para as perspectivas actuais no âmbito da
psicologia filosófica, da filosofia da mente, decisivo para apreciar a incidência das posições
aristotélicas nas discussões contemporâneas. Em notas bibliográficas indicam-se textos para um
estudo mais abrangente sobre a teoria aristotélica da percepção.
87
Cfr Burnyeat, "Is an Aristotelian Philosophy of Mind Still Credible?" in Nussbaum e Rorty,
Essays on Aristotle's De Anima, p. 19: "the physical material of which Aristotelian sense-organs
are made does not need to undergo any ordinary physical change to become aware of a colour or
a smell: one might say that the physical material of animal bodies in Aristotle's world is already
pregnant with consciousness, needing only to be awakened to red or warmth". Este tópico tem
sido objecto de debate nas leituras que os filósofos da mente fazem dos textos aristotélicos. O
cerne da questão está em saber qual a relação que se dá entre a actividade perceptiva e a alteração
material dos órgãos dos sentidos.
Para um confronto da psicologia da percepção aristotélica com as explicações actuais na filosofia
da mente e ciências cognitivas, cfr. Everson, S. - Aristotle on Perception, que recolhe a literatura
em torno desta questão e mostra que Aristóteles se propõe explicar a actividade perceptiva como
a actividade de um corpo vivo, tendo em conta as alterações materiais nos órgãos que detêm as
diversas capacidades perceptivas. Cfr "Introduction", pp. 9-10: o autor contrapõe uma
interpretação «espiritualista», que dispensa os processos fisiológicos no tornar-se consciente das
qualidades sensíveis, a uma interpretação «literal» (literalist), segundo a qual sempre que um
órgão sensível é actualizado e ocorre a percepção, este órgão sofre uma alteração, tornando-se
literalmente semelhante ao seu próprio objecto. Esta relação entre a alteração material e a
actividade perceptiva seria uma relação de composição ("a cólera é um processo fisiológico no
mesmo sentido em que uma casa é um conjunto de tijolos", Sorabji, "Body and Soul", in Barnes e
ots, Articles on Aristotle, 4, p. 55) e não de identidade, uma especificação que elucida o tipo de
fisicalismo pressuposto na teoria aristotélica. Cfr Everson, cap. 6, pp. 229-288. Uma leitura atenta
de Aristóteles permite situá-lo numa posição de equilibrio entre dois extremos, se bem que tão-
pouco se poderá asimilar a psicologia aristotélica ao funcionalismo. "Certainly, he does not
identify perceptual events with material events, but nor does he think that the two are merely
accidentally related. The difficulty, of course, is in determining quite in what relation they do
stand - and since Aristotle himself does not discuss this question explicitly, any contemporary
71
answer will be somewhat speculative. Nevertheless, there are various passages both in the
psychological treatises and elsewhere which serve to guide such speculation" (Everson, p. 231).
Sobre a hipótese da aproximação da estrutura da explicação aristotélica do "funcionalismo
analítico", cfr p. 252-258. Note-se a observação ao texto da Metafísica 1048b29, no qual
Aristóteles distingue entre kinesis, movimento, processo sempre incompleto (ateles) e energeia,
actividades completas, constituindo o seu próprio fim: quando alguém percepciona, é verdade que
se percepcionou, quando alguém pensa, é verdade que pensou. Em qualquer processo, no entanto,
dá-se um ponto final, e este não está completo enquanto o sujeito da alteração não tiver atingido o
estado que constitui esse ponto final, no qual deixa de haver processo ou alteração. Tendo em
conta a distinção, Everson conclui que "the material change to the organ cannot be identified with
the perceiving, since the latter, as an activity, is not complete until the organ has taken on the
colour or temperature of the object affecting it. A simple application of Leibniz's law will show
that the perceiving and the organ's material alteration are not identical. If this is right, then
Aristotle is no functionalist." (p. 255, sublinhados nossos).
88
. Confronte-se em Nussbaum e Rorty, ob. cit.,o ensaio de M. Nussbaum e H. Putnam "Changing
Aristotle's Mind", no qual se defende, contra Burnyeat, uma interpretação de Aristóteles que se
afasta tanto de um reducionismo materialista como da interpretação de Burnyeat, segundo a qual
a percepção sensível dispensaria qualquer alteração material concomitante.
89
Cfr. Leçons sur l'Histoire de la Pensée, Paris, Vrin, 1972, p. 573-74. Como assinala Hegel, a
reflexão da consciência é a distinção posterior entre subjectivo e objectivo: sentir é precisamente
a superação desta separação, uma forma de identidade que abstrai da subjectividade e
objectividade. A psyche em sentido próprio, e o eu, são no sentir a unidade na diferença.
90
É precisamente a esta passagem de Aristóteles que se reporta Brentano ao reintroduzir a noção
de intencionalidade.
72
91
Cfr Kelley, D. - ob. cit., p. 121.
92
Cfr Locke, J. Ensaio sobre o Entendimento Humano II, II, §§ 1-2.
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 18. Se as ideias que percebemos directamente são
distintas dos objectos externos, há que explicar que tipo de relação se dá entre eles, de modo a
justificar a correspondência que se estabelece entre ambos. Em resposta à questão apontam-se
duas relações básicas: a de semelhança entre o conteúdo da ideia e a identidade qualitativa do
objecto externo; a relação causal entre o objecto externo e a ocorrência da ideia na consciência.
Uma teoria «representacionalista» enfrenta-se com duas alternativas: ou explicar a relação das
ideias com os objectos externos através da sua natureza representacional, sendo o conteúdo da
ideia semelhante ao objecto; ou atribuir a relação à natureza formal da ideia que, enquanto
ocorrência psicológica, deverá ter uma causa. A suposta semelhança - tema recorrente nas teorias
representacionais - é posta em cheque por Berkeley: como pode uma ideia ser semelhante a
qualquer coisa que não seja uma ideia? Quanto à relação causal, que constitui para Locke a base
do nosso conhecimento dos objectos externos, não resiste aos argumentos de Berkeley e Hume
(cfr Kelley, ob. cit., p. 20).
74
ao qual temos acesso, será sobre estas representações que se poderá reflectir93,
manipulando, combinando, de modo a construir ideias mais complexas. Uma
concepção atomista preside a toda a concepção lockiana do conhecimento: as
ideias simples são os átomos gravados na mente através do impacto dos sentidos,
que lhe fazem chegar partículas insensíveis, a que Locke chama "glóbulos" 94. Por
um processo de associação quase mecânico, combinam-se estas partículas dando
origem às ideias complexas cuja composição se rege por leis que procedem do
próprio "eu pontual".
Esta teoria do conhecimento está em perfeita consonância com a imagem
mecanicista do mundo: conhecer consiste em receber passivamente impressões
sensíveis, "materiais" que a mente combina e associa livremente. Não há lugar
para uma concepção do saber em que a forma intencionalmente possuída é a forma
realmente existente, porque se anula, com a mediação da representação, aquela co-
actualização de cognoscente e conhecido. Entre as ideias na mente e as qualidades
que as produzem dá-se uma relação causal, que, no entanto, nem sempre é a
mesma. Segundo a terminologia introduzida por Locke, há que distinguir entre
qualidades primárias e secundárias: primárias são qualidades originárias e básicas
de um objecto, que produzem em nós as ideias simples da solidez, extensão,
movimento, repouso e número. São parâmetros "inteiramente inseparáveis do
corpo, qualquer que seja o estado em que se encontre, de modo que ele as conserva
sempre em todas as alterações e mudanças que sofra, por maior que seja a força
que possa exercer-se sobre ele" 95. As secundárias, pelo contrário, "nos próprios
corpos não são mais do que potências para produzir em nós várias sensações por
meio das suas qualidades primárias, isto é, pelo volume, pela figura, pela textura e
93
Cfr Locke, J. - ob. cit. II, VI e VII.
94
Cfr ibidem, II, VIII, §§11-12: "Se, portanto, os objectos exteriores não se unem à nossa mente
quando nela produzem ideias, e, no entanto, percebemos essas qualidades originais daqueles
objectos que individualmente caem sob o alcance dos nossos sentidos, é evidente que haverá
algum movimento nesses objectos que, afectando algumas partes do nosso corpo, se prolongue
por meio dos nossos nervos ou dos espíritos animais até ao cérebro ou sede da sensação para aí
produzir na nossa mente as ideias particulares que temos acerca dos ditos objectos."
95
Ibidem, II.VIII. §9.
75
movimento das suas partes insensíveis"96. É o caso das cores, odores, gostos, sons
e outras características de tipo qualitativo que cheguem à nossa mente. Não se
trata de qualidades objectivas, embora erroneamente as julguemos como tal, mas
constituem-se na mente por efeito de processos quase-mecânicos.
Demócrito afirma, destas "imagens" ou "aparências" designadas por termos
como "doce", "amargo", "quente", "frio", "vermelho", "preto" que existem só
enquanto sentidas por algum sujeito percipiente. Nada "aparece" de nenhum modo,
se não aparece a algum ser vivo. A partir daqui infere Demócrito que de nenhuma
coisa física não-percepcionada se pode dizer que é doce ou amarga, quente ou fria,
vermelha ou preta. Aristóteles aponta uma certa ambiguidade na inferência de
Demócrito (que se encontra também em Locke). Dizer que sem a visão não há
branco ou preto, sem o gosto não há qualquer sabor é, em parte verdade, em parte
falso. O "sentido" o "objecto sensível" são termos ambíguos, porque podem
designar potencialidades ou actualidades. No primeiro caso, a afirmação é
verdadeira, no segundo é falsa97. Uma coisa física quando não está a ser
percepcionada, não é actualmente quente ou fria, vermelha ou preta, mas possui
um "poder" ou "capacidade" para estimular o sentir da cor, do calor, etc.; dadas
certas condições, causaria a respectiva sensação. Portanto pode considerar-se,
segundo Aristóteles, que essas coisas, mesmo quando não percepcionadas
possuem potencialmente, mas não actualmente, sons, cores, sabores. Esta
"capacidade" ou "potencialidade" pode parecer paradoxal no contexto actual das
teorias da percepção, sobretudo devido à "tentação de reduzir as potencialidades a
actualidades"98, mas não dista tanto do critério em que Reid assenta a distinção
entre qualidades primárias e secundárias: enquanto a figura, movimento são
propriedades intrínsecas dos objectos, as cores, sons, sabores e odores são
propriedades relacionais, ou poderes de produzir determinadas sensações em nós,
em condições normais; percepcionar essas qualidades é percepcionar que o objecto
96
Ibidem, II, VIII, §10.
97
Cfr De Anima, III, II, 426a; Metafísica, IV, V, 1010b.
98
Cfr Kenny, A. - The Metaphysics of the Mind, pp. 98-99.
76
tem uma certa relação com o sujeito percepcionante. Dizer que são propriedades
relacionais não implica que não sejam objectivas: o predicado "venenoso"
significa ser "venenoso para os seres humanos", designa uma propriedade
relacional, mas objectiva. Nem Aristóteles, nem Reid inferem da relatividade deste
tipo de propriedades a sua subjectividade. A relação dos sensibilia com os
sentidos é semelhante à relação da chave com a fechadura99.
Tão pouco se poderá dizer que ao empregar predicados como "vermelho",
"doce", "amargo", etc., os aplicamos primeiro às aparências e depois às coisas que
nos apresentam essas aparências: desde o princípio, aplicamos os predicados às
coisas. Este é um pressuposto do empirismo, afirmar que não podemos aplicar
qualquer predicado ou adjectivo como "vermelho", enquanto não soubermos
aplicar "parece vermelho". Esta suposição implicaria que aprendemos a descrever
as aparências ou modos de sentir antes de aprender a descrever coisas físicas
"externas"; mas, de facto, quando descrevemos modos de aparência, estamos a
descrever as coisas físicas que nos aparecem 100. Nenhuma barreira, nenhum "véu
da percepção"101 separa esta do percebido - há uma passagem "contínua" através da
species, que é uma similitudo. "As cores têm o mesmo modo de existir na matéria
individual e no poder de ver: e elas podem também imprimir a sua similitude na
sensação visual"102. O que não significa que os sentidos constituam um mero
receptáculo; a passividade significa que a coisa percebida se apresenta a si própria,
se dá a conhecer de um modo directo, sem nenhuma mediação entre o percepto e o
sentido. Nem mesmo a mediação das "aparências" - estas são sempre o aparecer, a
presentação imediata da coisa. "A similitude é acompanhada de uma dupla posição
99
Cfr ibidem, p. 104.
100
Cfr Chisholm, R. Perceiving, p. 136
101
Cfr Kelley, D. - The Evidence of the Senses, p. 81: "… perceptual relativity was widely used by
modern philosophers to support representationalism in perception. They turned appearance from a
relation between subject and object into a separate object of awareness constituting a veil that
pervents us from perceiving external objects after all."
102
S. Tomás, Summa Theologiae, I, q. 85, a. 1, ad. 3.
77
103
Cfr Gil, F., Tratado da Evidência, p. 63.
104
Cfr McGinn, The Subjective View, p. 1.
105
Cfr "Der Gedanke". Kelley aproxima a distinção entre a perspectiva da primeira e da terceira
pessoa, dos princípios da primazia da existência e primazia da consciência que regulam o modo
de pensar o conhecimento. Os dois pontos de partida - primeira ou terceira pessoa - exprimem
dois modos diferentes da relação entre o sujeito e objecto. Cfr The Evidence of the Senses, p. 36.
106
Cfr The Subjective View, cap.5.
107
Ibidem, cap. 6.
78
tem qualquer objecto distinto do próprio acto"; a percepção, por contraste, implica
uma "concepção ou noção do objecto percebido" e pressupõe "convicção e crença
forte e irresistível da sua existência presente"111. O que Reid refuta nos filósofos
empiristas é o distanciamento gnoseológico dos objectos externos, que não podem
nunca ser objectos imediatos para a nossa mente. Afirma Reid:
"Os filósofos modernos (…) conceberam que os objectos externos não
podem ser objectos imediatos do nosso pensamento; tem que haver certa imagem
deles na própria mente, na qual se vêm como num espelho. E o nome ideia, no seu
sentido filosófico, aplica-se a esses objectos internos e imediatos do nosso
pensamento. A coisa externa é o objecto remoto ou mediato; enquanto a ideia ou
imagem desse objecto na mente é o objecto imediato, sem o qual não poderíamos
ter percepção, nem recordação, nem concepção do objecto mediato" 112.
Reid emprega também expressões como "ideia" ou "representação" para
designar a actividade cognoscitiva, mas nega-se a utilizá-las para designar
indiscrimidadamente um suposto objecto que tivesse necessariamente que mediar
entre a faculdade e a realidade efectiva.
"Para prevenir erros, é necessário recordar de novo ao leitor que se por
ideias se entendem só os actos ou operações das nossas mentes, ao perceber,
recordar ou imaginar objectos, estou longe de pôr em causa a existência desses
actos; somos conscientes deles em cada dia e cada hora da nossa vida; e creio que
nenhum homem de mente sensata duvidou jamais da existência real de operações
da mente, das quais é consciente. (…) As ideias, de cuja existência exijo uma
prova, não são as operações de mente alguma, mas supostos objectos dessas
111
Reid, T. - Essays on the Intellectual Powers of Man, II, V, p. 258: Na percepção de um objecto
externo, dão-se sempre, "uma concepção ou noção do objecto percebido, uma forte e irresistível
convicção e crença da sua existência presente, convicção que é imediata, e não efeito de
argumentação ou raciocínio. Enquanto na sensação se dá apenas uma distinção gramatical entre o
acto e o objecto, na percepção externa há sempre um objecto distinto do acto pelo qual é
percebido. A convicção da existência do objecto é efeito imediato da minha constituição, uma
convicção instintiva, um dos melhores dons da natureza, que seria imprudente rejeitar ou pôr em
dúvida (cfr Inquiry into the Human Mind, VI, XX, p. 183-84).
112
Essays on the Intelectual Powers of Man, I, I p. 226.
81
operações. Não são percepção, recordação ou concepção, mas coisas das quais se
diz que são percebidas, ou recordadas, ou imaginadas.
"Tão pouco discuto a existência do que vulgarmente se chama objectos de
percepção. Estes são chamados coisas reais, não ideias, por todos os que
reconhecem a sua existência. Mas os filósofos defendem que, além dessas coisas,
há objectos imediatos de percepção na mente; que, por exemplo, não vemos o sol
imediatamente, mas uma ideia. (…) E é a partir desta ideia que temos de inferir a
existência do sol113. Mas não pode haver qualquer dúvida da existência da própria
ideia, pensam os filósofos, visto que é imediatamente percebida"114.
Para Reid, a imagem na mente é só a concepção do objecto e não o objecto
concebido. É um acto da mente e não o objecto desse acto. E, inflectindo o ónus da
prova, Reid exige uma prova da existência das ideias, e não dos objectos da
percepção dos quais temos uma forte convicção da sua existência. A maioria dos
filósofos são unânimes em admitir a existência de ideias ou imagens mentais, mas
é curioso como divergem tanto ao definir ou caracterizar essas representações:
alguns consideram-nas auto-existentes, outros que estão na mente divina, outros
que se encontram na mente humana, e outros que se encontram no cérebro ou
sensorium. As considerações de Reid sobre a suposta localização das ideias ou
imagens mentais no cérebro, adquirem uma relevância inquestionável para a actual
ciência cognitiva. Para Reid é absurdo pensar que as impressões de objectos
externos sobre a máquina do nosso corpo possam ser a causa eficiente do
pensamento e da percepção. As teorias causais da percepção incorrem na falácia
113
Numa passagem da Recherche de la vérité, (III, II, p. 320) Malebranche invoca também o
exemplo do sol, para ilustrar a imediatez e evidência das ideias: "O objecto imediato do nosso
espírito quando, por exemplo vê o sol, não é o sol, mas algo que está intimamente unido à nossa
alma, e é a isso que chamo ideia". Mas a visão do espírito não é senão um retorno a si mesmo e
uma iluminação directa de Deus, que nos faz ver com evidência. Cfr Gil, F. - Tratado da
Evidência, p. 20.
114
Ibidem, cap XIV, p. 298. Reid rejeita este carácter inferencial da percepção: a convicção de
existência é não só irresistível, mas imediata, sem o recurso a qualquer passo argumentativo ou
dedutivo. A percepção domina com a sua autoridade a nossa crença e dispensa a necessidade de
fundar a sua própria autoridade em qualquer forma de raciocínio ou argumentação. Cfr Essays on
the Intellectual Powers of Man, II, V, p. 259.
82
115
Ibidem, II, IV, p. 253.
116
Ibidem, II, IV, p. 257.
83
dados sensoriais disponíveis; a percepção vai para além dos modelos sensoriais
por algum processo difícil de compreender.
Salvas as devidas distâncias, as observações de Reid não são destituídas de
sentido, se pensarmos nas abordagens actuais da psicologia da percepção: um dos
problemas é tentar compreender como é que o olho, localizado algures no
ambiente, é de facto capaz de extrair a informação útil opticamente localizada no
seu campo de visão; uma especificação puramente geométrica parece ser uma
perspectiva pobre, como ponto de partida, porque essa especificação do estímulo
implica claramente que já foi feita uma observação visual. Por isso mesmo, a
óptica ecológica de Gibson não se concentra nos mecanismos psicofisiológicos e
psicofísicos e nos estudos quantitativos que se tornam irrelevantes para
compreender a percepção no enquadramento da sua própria perspectiva.117.
117
Cfr Boynton, R. M. - "The Visual System: Environmental Information", in Carterette , E. C. e
Friedman, M. P. (ed.) - Handbook of Perception, p. 294. Cfr a resposta de Gison, neste mesmo
volume: "A Note on Ecological Optics", pp.309-312. "Defendo que a percepção visual não se
baseia em ter sensações mas em prestar atenção à informação da luz. A essência da óptica
ecológica é a demonstração de que há informação no ambiente luz. A tese comum na óptica
física, geométrica e fisiológica, no entanto, defende que não há informação na luz, isto é,
nenhuma informação sobre as coisas normais das quais se reflecte a luz (…) Esta é a razão pela
qual a óptica ecológica é teoreticamente crucial. O tipo de óptica que se aceitar determina a teoria
da percepção".
84
apresenta uma… aparência a S", ou "S sente uma… aparência de x" ou "S tem
consciência (is acquainted) de um…sense-datum pertencente a x", tornam-se
extremamente ambíguas118. Induzem-nos a pensar que o adjectivo qualificativo do
verbo atribui uma propriedade à coisa designada pelo nome que o segue. De facto,
não devem ser considerados como tal, mas atribuem algo ao que o nome ou sujeito
do verbo se refere. "x parece um centauro" traduzir-se-ia mais adequadamente por
"x aparece «centáureo»" "x é verde", por "x aparece-me 'verdemente'”. A
gramática do "aparecer" ou "apresentar-se-me" explicita-se em formas adverbiais,
não em formas objectuais, em termos de acto/objecto.
O "adverbialismo" apresenta-se como uma versão rival da teoria dos sense data. O que
propõe fundamentalmente é que as qualidades secundárias não são qualidades de objectos
internos, mas modos segundo os quais os objectos externos aparecem: o objecto externo aparece-
me "verdemente", e a forma adverbial indica que o verde é o modo segundo o qual este aparece
ou o modo como o percebemos. No entanto, do ponto de vista do sujeito, o que se passa quando o
objecto aparece "verdemente" pode também acontecer não havendo nenhum objecto presente. O
estatuto das qualidades secundárias encontra uma melhor descrição eliminando qualquer
referência ao objecto. Os sense data e as teroias adverbiais são realmente teorias da experiência
sensorial, encaradas como um pólo subjectivo da percepção. A primeira aceita e a segunda rejeita
uma análise em termos de acto-objecto da experiência. Como observa Kelley (The Evidence of
the Senses) ambas teorias podem ser vistas como variantes da teoria cartesiana das ideias.
Portanto, os problemas que as duas teorias enfrentam derivam de uma característica central do
modelo representacionalista: a afirmação que o que é experienciado deve estar contido no estado
118
Cfr Chisholm, R. - Perceiving, p. 117. Chisholm reconhece expressamente a afinidade da sua
análise gramatical de "aparece" com a perspectiva de Reid.
119
Examinados os argumentos a favor do modelo representacionalista, Kelley conclui: "This
approach is appropriate if the mind is an inner theater, with various contents appearing before an
inner eye. But if the mind is a faculty for grasping reality, if awareness by nature is a relation to
what is outside the mind, then perception must be defined in quite a different way." Cfr ibidem,
pp. 122-142.
85
120
Cfr The Concept of the Mind, p. 208.
121
Note-se a afinidade com Reid: a análise gramatical das expressões de sensação mostra que não
há uma distinção real, mas apenas gramatical, entre acto e objecto. "A forma da expressão sinto
uma dor, poderia parecer que implica que o sentir é algo distinto da dor sentida; no entanto, na
realidade, não há tal distinção. Tal como pensar um pensamento é uma expressão que não pode
significar senão o pensar, também sentir uma dor não significa senão estar dorido" (Inquiry into
the human mind, VI, XX, p. 183).
122
Gil, F. ob. cit., p. 79.
123
Cfr Chisholm, R. ob. cit., p.123.
86
124
Process and Reality, p. 89, cit. por Chisholm, R. ob.cit., p. 124.
125
Gil, F., ob. cit., p. 61.
87
126
Cfr Firth,, R. - "Sense Data and the Percept Theory", Mind, 58, 1949.
127
Méditation Seconde, pp. 48-49.
128
Some Main Problems of Philosophy, p. 34.
88
129
"Knowledge and Its Categories" cit. por Chisholm, 1957, p. 157.
130
Cfr Firth, 1949.
131
Gil, F. ob. cit., pp. 65-66.
89
135
Broad, Scientific Thought, cit. por Firth, 1949. Do mesmo modo Gibson refere a "irrelevância
das sensações para o sistema perceptivo”. Embora um observador humano, por um esforço de
introspecção, possa ter uma certa consciência da qualidade do nervo estimulado, este facto não
tem nada a ver com a consciência do ambiente que o rodeia e que é o objecto da percepção. As
sensações não são, de modo algum, os elementos da percepção, portanto, o processo perceptivo
não consiste nem pressupõe uma espécie de processo de organização, associando a diversidade
dos elementos recebidos através de estímulos próprios no cérebro (cfr The senses considered as
perceptual systems, pp. 55-56).
136
Cfr Husserl, Logische Untersuchungen, vol II, pt. II, pp. 237-38, cit. por Chisholm, R., ob. cit.,
p. 161.
137
Cfr Austin, J. L. - Sentido e Percepção, cap. IV: um exame da linguagem revela bem as
ambiguidades de expressões como "parecer", "ter aparência de" (look), "afigurar-se" (appear),
"dar a impressão de" (seem).
138
The World as Will and Idea, trad. R. G. Haldane e John Kemp, II, p. 193; cfr Reid, Essays on
the Intellectual Powers, cap. V, sec. 2.
91
139
Cit. por Gil, F. ob. cit., p. 79.
140
Metafísica, ∆, 20, 1022b 4-12.
141
Cfr Gil, F. ob. cit., p. 62 n. 27.
142
Cfr ibidem, p. 79.
92
145
"On a Confusion about a Function of Consciousness", in Block, Flanagan, Güzeldere, 1997,
pp. 375-415.
146
Contra o argumento de Block, cfr Harman, "The Intrinsic Quality of Experience" in Block,
Flanagan e Güzeldere, p. 663-675.
96
147
Cfr Martin, M. G. F. "Perceptual Content", in Guttenplan, S., A Companion to the Philosophy
of Mind, pp. 463-471. A leitura deste artigo é elucidativa para um confronto entre a teoria
intencional da perceção e as teorias dos sense data. Aquela não implica necessariamente a
terminologia e a noção de "conteúdo perceptivo".
97
consiste naquilo que se crê, se julga ou se deseja. No entanto, será necessário falar
de "conteúdo" para compreender a relação intencional dos actos de consciência? E,
nomeadamente, para atribuir intencionalidade aos processos perceptivos? Sem
dúvida que se torna muito mais elucidativo aproximar a noção de percepção da
noção de crença, juízo, desejo, etc. E demarcar bem uma teoria intencional da
percepção das teorias dos sense data, mostrando os contrastes que distanciam estas
duas formas de perspectivar os problemas da percepção. Nesse sentido, será útil
um breve exame sobre a noção de "conteúdo perceptivo" como instrumento ou via
para apresentar a relação intencional que se dá no acto perceptivo. Convém, no
entanto, ter em conta que defender a intencionalidade da percepção não pressupõe
necessariamente atribuir-lhe um "conteúdo", entendido como o aspecto
estritamente subjectivo do processo perceptivo.
Considerar os processos perceptivos como intencionais pressupõe, portanto,
assimilá-los àqueles fenómenos mentais que se apresentam paradigmaticamente
intencionais como as crenças, desejos, juízos, pensamentos; a razão desta
assimilação está no papel funcional que a percepção desempenha dentro de toda a
dinâmica dos processos mentais, nomeadamente na interacção com a fixação da
crença, desenvolvimento e controle das nossas acções, etc.: o sujeito recebe
informação sobre o estado do seu próprio corpo e o ambiente que o rodeia através
da percepção; o conteúdo das suas crenças e o modo como realiza as diversas
actividades pode compreender-se com base no respectivo conteúdo dos processos
perceptivos que dão origem a essas crenças e controlam as suas acções. Deste
modo, a percepção integra-se em todo o organismo psíquico, interage com outros
processos cognitivos, com os desejos, decisões, actividades do sujeito e,
sobretudo, estabelece os elos para uma compreensão da interacção sujeito-mundo.
Esta teoria intencional da percepção contrasta nitidamente, como vimos,
com as designadas teorias dos sense data, nas quais se torna difícil compreender
como a consciência imediata dessas «entidades mentais» pode explicar a fixação
das crenças àcerca do meio ambiente ou das actividades sobre esse meio ambiente.
98
148
Cfr Mohanty, J. N. - The Concept of Intentionality, pp. 26-35.
149
Cfr Chisholm, R. - Perceiving, p. 170.
100
150
Cfr ibidem, pp. 171-172.
151
Cfr Mohanty, J. N. - ob. cit., p. 28.
101
152
De Trinitate, X.II
153
Cfr Ryle, The concept of mind, p.198.
104
154
O modelo perceptual segundo o qual se pensa tradicionalmente a introspecção foi objecto das
críticas e elucidações de Wittgenstein.
105
155
A expressão é de Ryle, G. – The Concept of Mind, p. 160.
156
II Meditação, § 6.
157
Ibidem, § 16.
158
Principios, I, 7.
106
existente. "Uma simples percepção nunca pode produzir a ideia de uma existência
dupla, a não ser por alguma inferência da razão ou da imaginação. Quando a
mente ultrapassa as aparências imediatas, as suas conlusões nunca podem ser
creditadas nos sentidos; e ela certamente que as ultrapassa, quando de uma
percepção única infere uma existência dupla e admite relações de semelhança e
causalidade entre elas"159. Há uma distância de estatuto, de fundamento entre as
impressões imediatas dos sentidos na consciência e a percepção da unidade,
continuidade temporal, independência em relação à mente, de qualquer objecto
externo: esta distância vai abrindo mais o hiato entre o auto-conhecimento e o
conhecimento de… O alicerce de todo o processo cognitivo radica sempre e cada
vez mais na apreensão directa e inabalável dos vários estados e fenómenos da
própria mente.
As teorias do acesso privilegiado incrementam a forte assimetria epistémica
entre o conhecimento imediato, evidente, infalível do mundo interno e o
conhecimento mediato, provável, incerto do mundo externo. Esta assimetria entre
o acesso ao mundo da consciência e o acesso ao mundo objectivo, herança da
concepção cartesiana e empirista, é explicitamente assumida por Frege 160:
"Até o não filósofo descobre depressa a necessidade de reconhecer um
mundo interno distinto de um mundo externo, um mundo de impressões sensíveis,
de criações da sua imaginação, de sensações, de sentimentos e disposições, de
desejos e decisões".
Na sequência desta distinção, uma outra dualidade se impõe: o mundo
externo é constituído por objectos físicos, que existem fora de nós e
independentemente, pertencem ao domínio público, podem ser percebidos e
conhecidos por todos - são objectivos; o mundo interno é constituído por toda uma
série e variedade de fenómenos que dependem essencialmente do seu portador,
pertencem a alguém. "Parece-nos absurdo - continua Frege - que uma dor, uma
159
Cfr Tratado da Natureza Humana, Parte IV, Secção II.
160
Der Gedanke, p. 351. Cfr meu artigo "Exercícios do Olhar", Análise, n.20, 1998, pp.197-211.
107
próprio o que ele chama de eu"162. Ao contrário de Descartes, Locke não pensa que
o self seja uma substância pensante, mas algo "anexado" a uma substância. Algo
que permanece através da mudança e que se manifesta no facto de "eu ter a mesma
consciência" no decorrer da minha experiência passada e presente. Mas, tal como
Descartes, apresenta-se como uma dobra interior, um duplicado interno que assiste
e persiste a todos os actos psíquicos: vejo e tenho consciência de que vejo, penso e
tenho consciência de que penso, e só esta permanente vigilância íntima de todos os
processos pode garantir a unidade do "eu". Este contínuo simples e indivisível a
que se chama self, é posto em causa por Hume, que não vê no "eu" mais do que
um feixe de diferentes percepções no qual se esfuma a unidade na diversidade das
experiências vividas: "…quando penetro mais intimamente naquilo a que chamo
eu prórpio, tropeço sempre numa ou outra percepção particular, de frio ou calor,
de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Nunca consigo apanhar-me a
mim próprio, em qualquer momento, sem uma percepção, e nada posso observar a
não ser a percepção"163. O self estilhaça-se na multiplicidade e variedade de
fenómenos discontínuos. A imagem da mente é a de uma espécie de teatro, pelo
qual perpassam sucessivamente uma infinita variedade de situações, entre as quais
se torna impossível divisar quer a simplicidade quer a identidade transtemporal164.
162
Essay Concerning Human Understanding, II, cap. XXVII, sect. 11. Trad. port. Ensaio sobre o
entendimento Humano, de Eduardo Abranches de Soveral, F. C. Gulbenkian, 1999, vol I, Livro II
cap. XXVII, sec. 11.
163
Treatise of Human Nature, Bk I, pt. IV, Sect. 6. Trad. port. De Serafim da Silva Fontes, F.
Gulbenkian, 2001, p. 300.
164
Russell apresenta um argumento contra Hume: "… when I am acquainted with my seeing the
sun, the whole fact which I am acquainted is 'Self-acquainted-with-sense-datum'. Further, we
know the truth 'I am acquainted with this sense-datum’. It is hard to see how we could know this
truth, or even understand what is meant by it, unless we were acquainted with something we call
'I'. It does not seem necessary to suppose that we are acquainted with a more or less permanent
person, the same today as yesterday, but it does seem as though we must be acquainted with that
thing, whatever its nature, which sees the sun and has acquaintance with sense-data. Thus, in
some sense it would seem we must be acquainted with our Selves as opposed to our particular
experiences" Problems of Philosophy, p. 51.
Outra crítica dirigida a Hume é a de que na sua argumentação parece pressupor a própria
proposição que pretende negar. Neste sentido, escreve Chisholm: "How can he say that he doesn't
find himself? (…) If he finds not only perceptions, but also that he finds them and hence that
there is someone who finds them, how can his premisses be used to establish the conclusion that
he never observes anything but perceptions?" "On the Observability of the Self", in Self-
110
conhecimento".165
167
Werke, ed. Weschedel, t. VI, p. 601.
168
Wittgenstein aponta as incongruências implícitas no emprego do possessivo. Cfr Philosophical
Remarks § 65.
112
modo essencial, parte da natureza de todo o acto psíquico. Isto significa que, para
Brentano, todo o acto psíquico é acompanhado de uma consciência de si mesmo,
todo o acto psíquico é consciente e não há fenómenos psíquicos inconscientes. A
principal originalidade de Brentano reside aqui no concomitantemente, na
simultaneidade entre todo o fenómeno ou acto psíquico enquanto tal e a
consciência desse mesmo fenómeno. Poderia objectar-se que, no campo psíquico,
não se dá uma tal contrapartida para a percepção, apenas uma forma de
consciência mediata ou reflectinte, um tornar presente a si, de modo retrospectivo,
uma reviver representativo no qual intervém o representar 172. Neste sentido a
consciência de si seria sempre retrospectiva. Mas Brentano insiste na
simultaneidade imediata, sem mediação de quaquer factor representativo ou
retrospectivo: o fenómeno ou acto psíquico está presente a si mesmo, é um só acto
com dois. Não se dá, assim um voltar-se sobre si mesmo, visto que todos os
fenómenos psíquicos são, por definição auto-conscientes, auto-reflexivos. Não há
fenómenos psíquicos inconscientes, a própria expressão é intrinsecamente
contraditória.
Na Psicologia, Brentano discute amplamente vários argumentos a favor de
fenómenos inconscientes173. Interessa de um modo particular o argumento segundo
o qual, se admitirmos que todo o fenómeno psíquico é objecto de um outro
fenómeno psíquico, a consequência é uma complicação infinita, impossível à
partida e contrária à própria experiência. Tomando como exemplo o simples acto
de ouvir um som, este acto, enquanto presentação de um som, será acompanhado
pela representação da presentação do som. Temos, portanto duas presentações de
natureza diferente - a mera audição e a representação desta audição, que difere da
primeira. Mas, como qualquer fenómeno psíquico, deve ser acompanhado de uma
outra representação e assim sucessivamente. Portanto, ou a série é infinita,
172
Cfr Maier, Philosophie der Wirklichkheit, I, Wahrheit und Wirklichkheit, 175-176: a
«percepção interna» é uma pura ficção (ein Phantom). O único caminho que nos conduz ao
conhecimento dos factos psíquicos e do seu portador imediato (Träger), o eu psíquico, é a
consciência mediata ou reflectinte,
173
Cfr Psychologie vom empirischen Standpunkt I pp.141-194.
114
175
Psychologie,I "Weitere Betrachtungen über das innere Bewuβtsein”, p. 195..
117
176
Psychologie III , p.11.
119
177
Cfr Logical Investigations V, § 1.
178
Cfr Husserl, Logical Investigations V, § 5
120
como é. Pela própria essência da percepção, é claro que a adequação só pode dar-
se na percepção interna, forjada em experiências dadas simultâneamente e
pertencentes a uma só experiência. Mas daqui não se pode de modo algum inferir a
conversa: cada perceptum direccionado para a nossa própria experiência interna,
tem de ser adequado. É necessário distinguir entre percepção interna como
percepção das nossas próprias experiências e percepção adequada e evidente.
A expressão «percepção interna», assimilada geralmente a consciência,
recobre dois sentidos ou dois dos aspectos da consciência acima discriminados: a
consciência como simples vivência, experiência, por um lado, e a consciência
como percepção interna por outro lado: "Muitos pensadores, como por exemplo
Brentano, são levados a pressupor uma estreita conexão entre os dois conceitos de
consciência (…) porque pensam que podem considerar a consciência, ou a
experiência de conteúdos, no primeiro sentido e ao mesmo tempo um segundo
sentido de consciência. O equívoco que nos induz a tratar a consciência como uma
espécie de saber, e na verdade como um conhecimento intuitivo, pode ter aqui
inspirado uma concepção cheia de grande dificuldades (…)179.
Para Husserl não se pode identificar a esfera das vivências ou das
experiências internas no seio da consciência com a esfera universal do «aparecer»,
do «apresentar-se» perante uma segunda instância da consciência egológica que
retornaria a si com um olhar interior, numa espécie de inspectio sui, segundo um
modelo de saber. É justamente esta noção tão enraizada na própria linguagem
expressiva da vida da consciência, que Husserl se propõe esclarecer: a consciência
não é saber de si, não é de todo uma espécie de saber. Ela caracteriza-se mais
como um deixar aparecer o aparecer, como pura abertura ao dado, deixar ser o que
surge no aparecer - este é o sentido primário do termo a que se refere Husserl, que
dista muito de qualquer assomo de modelo perceptivo e muito menos cognitivo.
As inevitáveis aporias dos filósofos da reflexão, que vêem na consciência uma
estrutura essencial e imediatamente refelxiva, como olhar voltado para si,
179
Logical Investigations V , § 5.
121
modelo perceptual, consciência como uma certa forma interna de saber e uma
acepção muito mais lata, na qual a distinção entre percepção adequada/não
adequada substitui a ambiguidade da distinção entre percepção interna/externa.
É conhecida a clarificação conceptual de Wittgenstein em torno deste par
ilusório do interior/exterior, do mundo interno/mundo externo. O seu argumento
da linguagem privada - se bem que seja por alguns comentadores considerado um
argumento no registo meramente semântico - tem indubitavelmente repercussões
no modo de situar e pensar a evidência, a auto-consciência, a percepção de si.
Interessar-nos-á examinar até que ponto a teoria brentaniana da evidência da
percepção interna é abarcada pela crítica de Wittgenstein à "linguagem privada". A
noção de consciência de Brentano, na qual se fundem em cada fenómeno psíquico
o dentro e o fora poderá constituir uma alternativa a uma teoria evidencialista do
eu que não incorra nos erros gramaticais denunciados por Wittgenstein? Situar-se-
á a teoria de uma consciência concomitante aquém desses "mitos" sobre o
"dentro", precisamente por desenhar cada acto consciente como um entre-dois,
simultaneamente direccionado para "fora", para o objecto, e para si mesmo?
O par quase-categorial do dentro/fora tem-se imposto a toda a reflexão
antropológica com as suas inevitáveis incidências epistémicas: no horizonte deste
enquadramente distingue-se claramente uma assimilação do "dentro", do mundo
interno com a consciência apresentada sob o modelo da representação de si que se
identifica teoricamente com o "eu"; o "fora" é o mundo externo, dos objectos ou
das objectualidades que se nos apresentam mediadas pelas nossas próprias
estruturas cognitivas ou, em casos extremos, numa presentação imediata e
evidente.
O emprego da primeira pessoa induz uma série de ilusões - "O sujeito
pensante é certamente mera ilusão (…) O Eu, o Eu, isso é que é profundamente
misterioso"181. Há casos em que empregamos o pronome como "objecto" "Eu
cresci doze centímetros", e casos em que o empregamos como sujeito "Eu ouço
181
Notebooks 1914-16, p. 80.
123
isto", "Eu penso que vai chover". Nestes últimos casos temos a clara intuição de
que não o empregamos por reconhecermos uma determinada pessoa através das
suas características corpóreas; "e isto cria a ilusão de que usamos esta palavra para
nos referirmos a algo incorpóreo que, todavia, tem a sua morada no nosso corpo.
De facto, isto parece ser o verdadeiro ego, aquele do qual se disse 'Cogito, ergo
sum'"182.
A estratégia de Wittgenstein consiste em mostrar que expressões deste tipo
só têm sentido se integradas em formas de comportamento e de expressão. A
expressão "tenho dores" não pode ser analisada em sujeito (referido pelo pronome
"eu") e predicado ("ter dores")183. Nesse caso o uso de um nome (ou pronome)
exigiria a identificação do objecto designado, e de facto tal identificação não é
requerida para exprimir dores. Portanto, poderia concluir-se que nestes casos "eu"
não é um nome nem uma expressão referencial. Se consideramos o pronome como
uma expressão referencial, então teremos que dar razão a Descartes: "eu" designa
o que há de mais claro e evidente para mim, a consciência imediata do meu
próprio pensar, da mente, do self. O que volta a reformular as objecções e as
dificuldades de tratar da consciência que acompanha todas as representações, a
impossibilidade de ver o próprio "eu" como um objecto e as consequentes críticas
182
Das blaue Buch, p. 110 (trad. port. P. 119). Cfr Hacker, P. M. S. "The Refutation of
Solipsism", p. 139: a passagem de Wittgenstein apresenta certas ressonâncias com Kant, que na
Crítica, ao expor os Paralogismos reitera uma e outra vez o carácter originário e inderivado da
auto-consciência transcendental e a impossibilidade de inferir a personalidade da alma. Cfr
Crítica, p. 369 (trad. port.).
183
A argumentação de Wittgenstein sobre os paradoxos da atitude solipsista encontra-se já nos
escritos e notas do período de transição posterior ao Tractatus. As Philosophical Remarks (1930)
são particularmente significativas e correspondem à primeira fase da refutação do solipsismo. As
Notes for Lectures on "Private Experience" and "Sense Data" (1934-35) e Das blaue Buch
correspondem à segunda fase e prenunciam a argumentação final nas Philosophische
Untersuchungen. Cfr. Hacker, P. M. S. - "The Refutation of Solipsism", p. 121. A análise
gramatical das expressões "ter dores", "ter uma experiência…" e o carácter pradoxal desta relação
de posse, ocorre já em Philosophical Remarks, §§60, 65. Wittgenstein aponta a inconsistência do
sentido da "posse lógica da experiência" por um Ego ilusório e a ilegitimidade de pensar numa
dependência causal entre a experiência e um corpo particular. Cfr Hacker, P. M. S. art. cit., p.
125.
124
de Hume, perplexo com a unidade deste "eu", que não passa de um feixe de
representações.
Na vasta literatura sobre a gramática do "Eu" e seus pressupostos, a
discussão sobre a função referencial ou não-referencial do pronome da primeira
pessoa prende-se sempre directamente com os problemas da auto-consciência, da
evidência do cogito, da identidade e unidade da consciência184. A fonte principal
dos problemas está no modo como se concebe a consciência de si, o auto-
conhecimento: ser consciente de si não significa tomar conhecimento de si como
um objecto, nem esta consciência de si pode ser pensada segundo o modelo da
percepção, no qual eu sou apresentada a mim mesma como um objecto. No
exemplo de Wittgenstein - "eu tenho dores" - tenho consciência do facto de ter
dores, ou conheço-me como sentindo dores. Não me conheço como um sujeito
(coisa, objecto) e nesse sujeito a propriedade , o predicado de sentir dores 185.
Empregar o pronome "eu" com a pretensão de referir "algo" - substância pensante,
cogito, mundo interno - que se pode identificar ostensivamente, e a que se tem um
"acesso privilegiado", directo, privado, traduz uma acentuada atomicidade
psicológica, incapaz de captar o próprio dinamismo vital, a relacionalidade e
contextualização do ser humano. O solipsismo a que conduz a tese do "acesso
privilegiado" é inevitável - só tenho acesso imediato, certo, evidente aos
fenómenos psíquicos internos, próprios. O "eu" apresenta-se-me directamente, mas
isolado de tudo o resto que o rodeia, há uma barreira intransponível entre esse
184
Cfr meu artigo "Exercícios do Olhar", Análise, n. 20, 1998, p. 204. Sobre o problema da
referencialidade do "Eu", cfr Canfield, J. V. (ed.) - The Philosophy of Wittgenstein, vol 12 os
artigos de Shoemaker, "Self-Reference and Self- Awareness", Zemach, "The Reference of I",
Anscombe, "The First Person", Kenny, "The First Person", Malcolm, "Whether 'I' is a Referring
Expression", Noonan, "Identity and the First Person".
185
Aqui detecta Wittgenstein a ilegitimidade de emprego do pronome "Eu" como signo referencial
e a correspondente identificação de um sujeito, e a incompreensibilidade da relação de posse da
experiência. Cfr Hacker, P. M. S. art .cit, pp. 144 e ss. "Pensamos a auto-consciência como um
'sentido interno' no qual observamos (…) o que se passa in foro interno. Podemos então
considerar que somos conscientes destas 'propriedades da experiência' (ver, ouvir, sentir)
independentemente da 'substância na qual elas são inerentes'. E isto, por sua vez induz-nos a cair
na tentação sugerida pela própria gramática, de reificar as nossas experiências". O modelo
perceptual imposto à introspecção promove as ilusões da identidade do 'Eu' e da relação de
pertença entre o sujeito e as experiências.
125
"maneira de ver" que nos sugere Wittgenstein corrige toda uma tradição filosófica
inspirada nos pressupostos da filosofia cartesiana, da filosofia idealista e
transcendental, na noção empirista da subjectividade na base dos quais se concebe
uma semântica fundada na relação directa e ostensiva da palavra com uma
representação, ideia, ou qualquer tipo de estado ou processo mental privado. Esta
herança comum a toda a filosofia moderna - empirismo, racionalismo, idealismo
transcendental kantiano e representacionalismo cognitivista contemporâneo -
assenta na ideia que o conhecimento da nossa experiência pode exprimir-se numa
linguagem, pelo menos para nós próprios, e a possibilidade desta auto-expressão
não pressupõe qualquer conhecimento do mundo externo ou de outras mentes.
Pensar assim pressupõe a possibilidade de uma linguagem privada, na qual as
palavras adquirem significado através de uma relação semântica directa com as
experiências privadas190. O propósito de Wittgenstein consiste em desmitificar esta
falsa imagem com todas as suas complexas ramificações.
O argumento da linguagem privada não aponta, no entanto, como
alternativa uma forma de behaviourismo. Pelo contrário, Wittgenstein sublinha a
distinção entre dor e comportamento de dor191 e não defende que o "interior" seja
uma ficção, mas sim que uma certa imagem filosófica do "interior" é uma ficção
gramatical. Ao rejeitar a linguagem privada com toda a sua "mitologia",
Wittgenstein rejeita também qualquer explicação behaviourista: de facto, dissolve
o aparente dilema entre uma atomização do privado, interno, mental, e a
Last Writings on the Philosophy of Psychology, § 767: "Além da chamada tristeza das suas
expressões faciais, também observo o seu estado mental de tristeza? Ou deduzo-o a partir do seu
rosto? Posso dizer: 'as suas expressões e o seu comportamento eram tristes, portanto também ele
está provavelmente triste'?"
190
Cfr Kenny, A. - Wittgenstein, p. 179.
191
Investigações Filosóficas, § 304: "«Mas tens que concordar que existe uma diferença entre
comportamento de dor com dores e comportamento de dor sem dores». - Concordar? Não há
maior diferença! (…)". Para um exame da posição de Wittgenstein em relação ao behaviourismo,
cfr Hacker, P. M. S. - ob. cit. pp.112-117. A relação da expressão comportamental com aquilo de
que é expressão não é uma relação externa. O 'dentro' não se relaciona com as suas manifestações
externas como se fosse uma entidade inobservável, causa das expressões e do comportamento.
Trata-se de uma relação interna, gramatical. O mental, o 'dentro' não é redutível ao
comportamento, este último não é como um sintoma, mas sim um critério.
127
A questão que se formulou era a de saber até que ponto a teoria de Brentano
sobre a evidência da percepção interna era atingida pela crítica de Wittgenstein.
O que Brentano defende é o reconhecimento de uma consciência
consciente, na qual se conciliam o princípio da intencionalidade de toda a
actividade psíquica e a reflexividade da consciência. A simultaneidade destas duas
relações significa que todo o acto psíquico consiste necessariamente numa relação
intencional a algo, e ao mesmo tempo numa relação de auto-presença, presença
192
Investigações, §357.
193
Investigações, II, IV, § 3. Cfr o interessante artigo de P. Winch "Eine Einstellung zur Seele", e
a distinção entre "atitude" e "crença".
128
esta que Brentano formula em termos de objecto. Trata-se, como foi dito de um
mesmo acto com dois objectos - o objecto primário para o qual se dirige e,
concomitantemente o próprio acto é objecto secundário para si mesmo. Brentano
insiste reiteradamente que não se trata de um segundo acto dirigido sobre o
primeiro, mas que a duplicidade de objectos se dá num só e mesmo acto. Todo o
fenómeno psíquico apresenta este plus, que o torna consciente segundo uma
presença dupla que se traduz numa dupla objectualidade: o objecto intencional do
acto e o próprio acto de que temos consciência. Trata-se, portanto de afirmar a
dimensão reflexiva de todos os fenómenos psíquicos ou da própria consciência.
Esta dimensão fundamental de toda a actividade psíquica tem as suas
origens na filosofia aristotélica. Brentano invoca um texto da Metafísica que está
em consonância com a sua própria tese. Escreve Aristóteles: "a ciência, a
percepção, a opinião e a reflexão parecem sempre ser dirigidas a algo distinto, mas
também concomitantemente (en parergo) a si mesmas"194. A expressão aristotélica
é recorrentemente citada por Brentano para explicitar a sua teoria da coexistência
em todo o acto psíquico de uma captação intencional do objecto e da apreensão
reflexiva, conhecimento desse conhecimento. As duas dimensões são inseparáveis,
de tal modo que não se pode falar de intencionalidade sem reflexão. Enquanto
reflexiva, a consciência é auto-presença imediata, tautológica. A integração num
acto único de uma dimensão "heterológica" e de uma dimensão "tautológica"
exprime bem, em Brentano, em que consiste propriamente a consciência enquanto
consciência. No entanto, a expressão "objecto secundário" aplicada a esta auto-
presença da consciência a si mesma reintroduz uma certa dualidade dentro do
próprio acto. E a afirmação que a auto-consciência de todo o fenómeno psíquico é
percepção confirma a tendência "objectivante". Poder-se-ia pensar num outro
sentido de "percepção interna" como uma espécie de auto-consciência inobjectiva,
que só derivadamente se poderia designar como "percepção", pois não consistiria
194
Metafísica, XII, 9 1074b35; cfr Psychologie vom empiriscen Standpunkt I, p.185. As traduções
da expressão en parergo são muito variadas: Ross propõe "only by the way", Tricot traduz por
"accessoirement" e a versão alemã utilizada por Brentano adopta o termo "Nebenprodukt".
129
propriamente num acto de percepcionar, mas numa mera dimensão dos nossos
actos conscientes. Seria como uma presença "a-temática" do acto de consciência
ou uma "pré-objectualidade", a montante de qualquer objectivação. No entanto,
Brentano refere-se sempre expressamente ao acto psíquico como "objecto
secundário" e a "percepção interna" é efectivamente percepção (Wahrnehmung).
Em confronto com as elucidações gramaticais de Wittgenstein, parece que o
reconhecimento de uma dimensão reflexiva dos fenómenos psíquicos não
constituiria problema em relação ao argumento da linguagem privada.
Wittgenstein não põe em causa o carácter consciente dos fenómenos psíquicos,
embora talvez não partilhasse a tese de que todos os fenómenos psíquicos são
conscientes. A gramática que a crítica da linguagem privada corrige é a do verbo
saber aplicado aos fenómenos internos: "sei que tenho uma dor" não faz sentido. A
expressão pressupõe um observador que por introspecção vê, sabe que tem uma
dor e designa-a com uma palavra. Brentano insiste reiteradamente que os
fenómenos psíquicos não são observáveis. A percepção interna não é uma
observação. Uma das fontes da teoria brentaniana é a própria tese aristotélica sobre
a sensibilidade, proposta no De Anima: quando percepcionamos através de
qualquer dos sentidos, percebemos que percebemos (425 b12). Percebemos que
vemos, que ouvimos e esta percepção, se se dá no próprio sentido da vista, ouvido,
etc., então teremos que atribuir a cada sentido a capacidade de percepcionar a
visão e a cor, objecto da visão. Se atribuimos esta percepção a um outro sentido
que percepciona a visão, ou caímos num processo ao infinito, ou teremos que
afirmar um sentido que se percepciona a si mesmo (416b 16-17). Brentano cita
esta passagem de Aristóteles195, embora considere insatisfatória a explicação que
aqui Aristóteles propõe para a percepção da percepção. Prefere o referido texto da
Metafísica e a expressão en parergo parece-lhe a mais adequada para traduzir a
natureza dessa consciência concomitante196. No pensamento aristotélico não se fala
195
Psychologie I, p. 183.
196
Um texto de S. Tomás que se aproxima muito da tese brentaniana é o de S. Th., q. 87, a. 3, c:
"Est autem alius intellectus, scilicet humanus, qui nec est suum intelligere, nec sui intelligere est
130
199
Cfr Fano, V., ob.cit., p. 189.
200
Cabe aqui perguntar como explica Brentano a unidade da consciência. De facto, esse problema
é tratado por Brentano em Psychologie I, pp. 221-251. A consciência é uma unidade real análoga
à de um contínuo. O estatuto do «unitário não simples» constitui um paradigma do pensamento de
Brentano. O problema das partes da consciência e da sua interdependência é um dos temas
centrais da sua psicologia descritiva: cfr Descriptive Psychology, pp. 13-30.
133
5. Objectividade - Objectualidades
135
Não nos vamos deter na exposição da teoria de Meinong. Convém apenas esclarecer que
segundo a sua terminologia e classificação, se faz a distinção entre os objectos que realmente
existem - uma folha verde - e objectos "reais" mas não existentes, como "a diferença entre
vermelho e verde", uma diferença "real", mas não "existente". Estes objectos "reais não
204
Cfr Passmore, J. - A Hundred Years of Philosophy, cap. 8.
136
existentes", são "subsistentes". Além desta primeira divisão entre existentes e subsistentes, há a
considerar aqueles objectos, como "o círculo quadrado", que nem existem nem subsistem, mas
são, no entanto, "objectos". Alguns objectos "são", outros "não são", como por exemplo "uma
montanha dourada". Meinong designa de "objectivo", por exemplo "a existência da montanha
dourada". A natureza de um "objectivo" compreende-se bem se pensarmos por exemplo no
significado de uma proposição: "a montanha dourada não existe" significa ou é sobre "a não
existência da montanha dourada", não apenas sobre a "montanha dourada", e este significado da
proposição é o que Meinong considera um "objectivo", diferente dos "meros objectos".
Deste modo, Meinong assegura a "objectividade" dos factos, coisas, números, universais,
relações, distinções modais, etc. Não são propriedades da mente que as pensa ou afirma, mas
possuem uma independência em relação à mente que as apreende. Isto leva, no entanto, a povoar
o Universo de uma variedade de entidades com propriedades bastante surpreendentes: inclui, por
exemplo, o facto de as montanhas douradas serem douradas e o facto destas serem não existentes.
Esta proliferação ontológica leva a perguntar se não será possível evitar o subjectivismo sem cair
em teses com consequências tão estranhas e mesmo inacreditáveis.
205
Na Wissenschaftslehre (1837), Bolzano considera as "proposições-em-si" (Sätze an sich) como
objectos com as seguintes características: são objectos não-existentes, na medida em que não
entram na cadeia causal, nem existem em nenhum lugar nem tempo, mas subsistem no universo
como algo; constituem o conteúdo de actos psíquicos e o sentido ou significado de expressões
linguísticas e subsistem independentemente de serem pensadas ou expressas linguisticamente; os
actos psíquicos e as expressões linguísticas, que são reais, existem; são objectos complexos,
compostos de partes designadas por "ideias-em-si", que podem referir-se aos objectos; estes
objectos podem subdividir-se em qualidades (das quais as relações são uma espécie particular), i.
é qualquer objecto que pertença a pelo menos um outro objecto, e objectos puros, que não são
qualidades. Todas as qualidades são objectos, nem todos os objectos são qualidades. Qualquer
proposição é verdadeira ou falsa e permanece sempre como tal, mesmo se não for conhecida e
expressa linguisticamente. A determinação temporal faz parte do sujeito: por isso as proposições
"Caio é agora um homem instruído" e "Caio não era instruído há dez anos", não têm o mesmo
sujeito. No primeiro caso, o sujeito é "Caio-agora", no segundo, "Caio-há-dez-anos". Assim, a
determinação temporal não altera a verdade perene da proposição.
137
206
Para um confronto entre os dois alcances da noção de objectividade cfr Bell, D. "Objectivity"
in Dancy, J. e Sosa, E. - A Companion to Epistemology, pp. 310-312.
138
207
Cfr Freeman, E. e Skolimovski, H. - "The search for objectivity in Peirce and Popper" in
Schilpp. P. (ed.)- The Philosophy of Karl Popper, pp. 465-466.
208
Cfr ibidem. Freeman designa este sentido de objectividade de rule objectivity e caracteriza-a
genericamente: "The latter is epistemological and involves conformity to rules which establish
objectivity by fiat and social agreement."
209
Cfr Freeman, E., art. cit., p. 466.
139
mentes, mas porque essas mesmas entidades são reais, possuem uma dimensão
ontológica e constituem uma dimensão real do próprio mundo. São, portanto,
também independentes da mente que as pensa ou as apreende. O sentido de uma
proposição, um conceito ou uma relação, um teorema da geometria ou uma
verdade da matemática são objectivos por corresponderem exactamente a este
critério: não estão na mente, não se circunscrevem ao domínio do subjectivo e
individual, mas são partilháveis por várias mentes210. Pelo contrário, as
representações, sensações, emoções, etc. pertencem ao sujeito, só podem ser
conhecidas ou percebidas pelo próprio sujeito e por ninguém mais, e são portanto
subjectivas. Neste caso, para garantir a objectividade epistemológica, atribui-se
um realismo ontológico a entidades como números, proposições, o verdadeiro e o
falso, etc.: Frege considera que os números, o verdadeiro e o falso são objectos e
os conceitos, as funções, as relações e os pensamentos, não são objectos, mas são
reais e independentes da mente que os apreende. Em Kant, objectividade
epistemológica não pressupõe objectividade ontológica: o espaço é uma forma da
subjectividade, ontologicamente subjectivo, mas isso não impede que as
proposições da geometria, a ciência do espaço sejam um exemplo de objectividade
epistemológica. Validade objectiva significa para Kant validade universal
necessária211. O "movimento para a objectividade" que caracterizou alguns dos
210
Para Frege, a aritmética é epistemologicamente objectiva devido ao facto das suas proposições
se referirem a objectos que existem independentemente de quem formule ou compreenda os
enunciados matemáticos. A objectividade epistemológica das matemáticas pressupõe, portanto, a
existência de objectos matemáticos ontologicamente objectivos. Cfr Bell, D. “Objectivity” A
Companion to Epistemology, pp. 310-312.
211
Cfr Kant, Prolegómenos, § 18: “Todos os nossos juízos são primeiramente simples juízos de
percepção; têm validade apenas para nós, isto é, para o sujeito, e só mais tarde lhes damos uma
nova relação, a saber, com um objecto, e queremos que ele seja sempre válido para nós e
igualmente para todos; pois, quando um juízo concorda com um objecto, todos os juízos sobre o
mesmo objecto devem igualmente harmonizar-se entre si, e, assim, a validade objectiva do juízo
de experiência nada mais significa do que a validade universal necessária do mesmo.”
A distinção e contraste entre a perspectiva subjectiva e a objectiva traduz-se também na
diferença entre imagens do mundo intrinsecamente perspectivadas e pontos de vista não
perspectivados. Este ponto de vista exprimir-se-ia numa linguagem totalmente destituída de
demonstrativos, ou quaisquer termos indicativos de tempo, espaço, etc. Nagel designa este ponto
de vista imparcial “the view from nowhere” e formula a questão de saber se haverá aspectos
genuína e irredutivelmente subjectivos que pertencem apenas à minha perspectiva única do
140
mundo e que resistem a serem captados por uma concepção puramente objectiva desse mundo.
212
Grundlagen der Arithmetik, § 26.
141
Frege seria atingido pela crítica de Wittgenstein à linguagem privada. Mas só na medida
em que parece advogar um "acesso privilegiado" ao mundo interno, das representações
subjectivas. No entanto, ao dar os exemplos dos termos de cores, Frege esclarece que, embora o
termo 'branco' evoque uma impressão determinada que é subjectiva, o uso comum da linguagem
traz já a marca de um sentido objectivo. Quando alguém diz que a neve é branca, pretende
exprimir uma propriedade objectiva, reconhecida através de uma certa impressão à luz normal. O
nome da cor não designa propriamente a sensação subjectiva, que não podemos saber se se
assemelha à de outro sujeito, mas uma propriedade objectiva. "Por objectividade, entendo
independência em relação às nossas sensações, intuições e representações, em relação aos
esboços de imagens interiores que nos vêm das recordações de impressões passadas, mas não
independência em relação à razão. Pretender dizer que são coisas independentes da razão, seria
pretender julgar sem julgar, lavar o couro sem o molhar"214
213
Ibidem, § 26.
214
Ibidem, § 26. Cfr a discussão sobre a linguagem das sensações em Bouveresse, J. - Langage
perception et réalité, pp.411-420. Note-se que Frege tem bem clara a ideia que qualquer termo
empregue na linguagem só tem sentido no contexto do seu uso na frase, e a sua relação
referencial não se dá entre o signo e a sensação subjectiva. Portanto, no que diz respeito à crítica
de Wittgenstein à "definição ostensiva", a teoria fregeana parece que não incorre nesse erro
gramatical.
142
215
Cfr Grundgesetze, p. XVIII.
216
"Der Gedanke", pp. 351-352.
143
esse pensamento que existia já, e esta relação é muito diferente do modo como se
vê uma coisa ou como se tem uma representação218.
A caracterização do mundo interior que Frege propõe conduz, sem dúvida à
hipótese solipsista: se afirma que só a minha representação pode ser objecto do
meu conhecimento, que o meu saber se limita ao domínio das minhas
representações, ao conteúdo da minha consciência, então eu teria apenas um
mundo interior e não poderia saber nada dos outros seres humanos. Mais: que sou
eu próprio, senão também uma representação? Não serei eu mesmo uma reunião
de impressões sensíveis, uma representação? Onde está então o portador de todas
estas representações? Como posso seleccionar uma das representações para a
instituir como portadora das outras representações? E porque designar esta
representação como «eu»? Se tudo fosse representação não há nenhum portador
das representações, mas se não há portador, tão-pouco haverá qualquer
representação219. Frege pretende apresentar uma espécie de redução ao absurdo da
tese que defende ser tudo representação: as suas consequências são absurdas, e a
única conclusão a tirar é que nem tudo é representação. Para evitar o absurdo de
um solipsismo extremo, e da impossibilidade total de saber algo do mundo
exterior, ter acesso a algo que não seja o próprio conteúdo da consciência, a única
solução é admitir outra forma de conhecer que não tenha por objecto apenas
representações. Será o caso dos pensamentos, dos quais não somos portadores,
como o somos das nossas impressões sensíveis, dos quais não podemos ter
impressões sensíveis, mas podemos captar, apreender (fassen): a capacidade de
pensar corresponde justamente ao poder espiritual de apreender o pensamento;
pensar não é produzir pensamentos, mas apreendê-los 220. Os pensamentos não
pertencem nem ao mundo exterior das coisas que se captam pelos sentidos, nem ao
mundo interior, enquanto mera representação.
218
Ibidem, pp. 353-354.
219
Ibidem, pp. 355-356.
220
Ibidem, p. 359.
145
221
Ibidem, p. 360.
222
Ibidem, p. 362.
146
224
Cfr Logic of Scientific Discovery, pp. 44, 47, 111.
149
228
Ibidem, p. 111.
229
Cfr "Der Gedanke", p. 32.
230
Cfr Skolimowski, H. - art. cit., p. 494.
151
234
Cfr Haack, S. - Evidence and Inquiry, p. 97: "It would be true to say that Popper denies that we
have knowledge, in the usual sense; but more illuminating, in the interests of locating the point of
intersection of our projects where my critique will get its purchase, to say that he denies that we
can have knowledge, in the usual sense, while holding that, for all that, science is a rational
enterprise - not because scientists are ever justified in believing their theories, but because
genuinely scientific theories are subject to rational criticism". A autora mostra nas páginas
seguintes a impossibilidade de resolver o "problema da base empírica do conhecimento" dentro
das exigências popperianas de anti-indutivismo e anti-psicologismo. Uma vez que a indução é
injustificável, o método científico deve ser exclusivamente de carácter dedutivo - esta é a ideia
básica do falsificacionismo de Popper. As questões da justificação são lógicas e não de carácter
causal - esta é a ideia fundamental na base da distinção entre descoberta e justificação; as
questões da descoberta são relegadas para o domínio da sociologia ou psicologia e em
consequência os conceitos psicológicos são classificados como "subjectivos". A epistemologia
que importa deve ocupar-se apenas com o terceiro mundo, uma "epistemologia sem sujeito
cognoscente".Cfr ibidem, p. 101.
235
Polanyi com a sua concepção do conhecimento pessoal representa um dos principais oponentes
à epistemologia objectivista de Popper, no início dos anos 60. A ciência, tal como é concebida
por Polanyi é um assunto subjectivo (a subjective affair) de cientistas individuais, em oposição
nítida ao carácter objectivo, "trans-subjectual" que Popper pretende imprimir à sua epistemologia.
Cfr Freeman e Skolimowski, art. cit., p. 485. Cfr. a resposta de Popper a este artigo, na qual
esclarece que a sua defesa da objectividade no chamado "período metafísico", não foi uma
reacção às obras de Polanyi e Kuhn, publicadas respectivamente em 1958 e 1962, mas tem uma
154
ia, neste caso à concepção de Popper: uma teoria é algo de diferente de mim
mesmo, pode formular-se através de um sistema de regras, que medeia entre mim
e a própria realidade experiencial; assemelha-se a um mapa, que pode ser correcto
ou errado, mas é a ele que atribuo a correcção ou o erro das informações que me
dá. Do mesmo modo, uma teoria na qual me baseio é conhecimento objectivo na
medida em que não sou eu, mas a teoria que está correcta ou errada quando utilizo
esse conhecimento. Consequentemente, uma teoria não será nunca afectada por
quaisquer flutuações em mim mesmo, ela tem uma estrutura formal rígida, da qual
eu dependo sejam quais forem as disposições, ou estados mentais pessoais. Uma
vez que a afirmação formal de uma teoria não é afectada pelo estado da pessoa que
a aceita, as teorias podem ser construídas independentemente da relação normal
que qualquer pessoa tem com a experiência236.
Levando ao extremo a "objectividade", Polanyi infere consequências
surpreendentes: das duas formas de conhecimento, - o teorético e o experiencial -
deveremos considerar aquela que assenta sobretudo na teoria, mais objectiva do
que o conhecimento baseado na experiência sensorial imediata. De tal modo que a
teoria apresentar-se-ia como um filtro entre os nossos sentidos e as coisas das
quais poderíamos obter uma percepção mais directa; e seríamos mesmo orientados
mais por essa perspectiva teorética na interpretação da nossa própria experiência,
cujo estatuto se reduziria a um conjunto de aparências de carácter duvidoso e
possivelmente enganador. Teríamos assim fortes razões para concluir que o
conhecimento teórico tem um carácter muito mais objectivo do que a experiência
imediata: uma teoria é algo de totalmente diferente e independente de mim
próprio; não pode ser alvo de erros ou desvios devido a ilusões pessoais (posso
errar ou enganar-me ao ler e interpretar um mapa, mas o mapa permanece correcto
ou errado em si mesmo, de uma forma impessoal); uma vez que as afirmações
origem anterior, originada pelo seu interesse na mecânica quântica e no indeterminismo. No
Prefácio à tradução inglesa de The Logic of Scientific Discovery, refere-se, no entanto, à era
"post-crítica" e "post-racionalista", que é uma alusão crítica ao Personal Knowledge de Polanyi.
Cfr. Schilpp, P. A., The Philosophy of Karl Popper, II vol., p. 1067.
236
Cfr Polanyi, M. - Personal Knowledge, p. 4.
155
formais de uma teoria não são afectadas pelo estado da pessoa que a assume,
podem ser construídas sem qualquer relação com o acesso normal à própria
experiência237.
verdade de Tarski, que Popper considera uma teoria realista da verdade como
correspondência no sentido tradicional aristotélico, desempenha uma função
reguladora.
reconhecer que o seu alcance satisfatório está para além das possibilidades da
nossa captação.
241
Cfr ibidem, p. 6.
242
Cfr ibidem, p. 61.
159
como a capacidade da tábua em branco de poder ter qualquer coisa escrito nela.
Esta dimensão potencial do intelecto é o que se designa por intelecto possível ou
passivo, fazendo eco ao termo dunatos em 429a22. Por ser imaterial, no nous, o
que pensa e o que é pensado são idênticos, portanto o conhecimento teorético
(episteme he theoretike) é idêntico ao que é conhecido (episteton)248.
Exemplificando: a estrutura noética das verdades da geometria é idêntica ao pleno
domínio desta estrutura na mente do geómetra, de modo que as verdades da
geometria são plenamente actualizadas no exercício actual de pensar de um
geómetra. Esta afirmação respeitante á geometria pode parecer em perfeita
sintonia com a forma moderna de pensar. Mas Aristóteles defenderá a mesma
identidade entre a estrutura noética do que é conhecido e o pensar actual do
cientista, a propósito das ciências naturais como a física ou a biologia: a estrutura
formal do mundo natural só se realiza plenamente no nous que a pensa249. O que
confere inteligibilidade às formas geométricas ou à estrutura do mundo natural, ou
a qualquer ser material é o próprio intelecto (a matéria é ininteligível 250). Só o
intelecto é inteligível, as formas para serem inteligíveis, devem ser de certo modo
já algo do intelecto, mesmo antes de serem conhecidas. Não há, portanto
inteligíveis em si, o que é inteligível é-o pelo intelecto. Por isso "o nous enquanto
acto (kat'enérgeian) é as coisas"251. A própria expressão "forma inteligível" pode
suscitar equívocos: não se trata de alguma forma prévia ao acto de pensar ou
entender, e a forma é inteligível só na medida em que é pensada ou entendida.
Pode dizer-se que não há formas inteligíveis, mas formas entendidas e esta forma
entendida é simultânea ao acto de entender. Isto significa que as formas só se
tornam inteligíveis pela actividade do nous, a fonte única de toda a
inteligibilidade. Mas por outro lado o nous, enquanto passivo, é só em potência
todas as formas que serão pensadas.
248
Cfr ibidem 430a5-7
249
Cfr Kahn, C. H. - "Aristotle on Thinking", in Nussbaum, M. e Rorty A. O. - Essays on
Aristotle's De Anima, p.374.
250
Cfr Fisica, I-7, 191a7-8.
251
De Anima, III-VII, 431b17.
162
252
Ibidem, 430a14-15.
253
Cfr De Anima, III-V, 419a19-22.
254
Cfr um interessante texto da Metafísica, M, 10, 1087a10-25: "A ciência, com efeito, tal como o
facto de saber, é dupla, existe a ciência em potência e a ciência em acto. A potência sendo, como
a matéria, universal e indefinida, é do universal e do indefinido; o acto, sendo determinado, é
igualmente do determinado (…) Mas é evidente que a ciência é num certo sentido universal, e
noutro não." Saber universalmente origina uma potência de identificar, reconhecer, compreender,
captar, entender, etc. Mas é apenas uma potência. No saber em acto, quando se entende isto aqui,
há uma inteligência de algo existente definido, realmente delimitado e compreendido: o saber
capta a coisa que se sabe de um modo determinado. Cfr Boulakia, L. - art. cit., p. 35.
255
Cfr ibidem, III-VII, 431a1-5.
163
256
Cfr Gil, F. - La Conviction, p. 236.
164
257
É possível saber algo no qual não se crê? Cfr o contra-exemplo apresentado por Lehrer, K.
Theory of Knowledge, pp. 28-30.
165
258
Gettier - "Is Justified True Belief Knowledge?" Analysis, 23, 1963, pp. 121-123 - apresenta
contra-exemplos à definição clássica de conhecimento: os seus argumentos apontam casos em
que uma pessoa pode ter justificação para uma crença que de facto é falsa. As condições
apresentadas pela definição podem ser verdadeiras para alguma proposição, embora seja falso que
haja um conhecimento dessa mesma proposição. Os paradoxos de Gettier foram objecto de
numerosas tentativas de solução: por exemplo, Chisholm, Lehrer, entre outros. Suspeito que o
paradoxo de Gettier radica numa asimilação equívoca entre o conceito de conhecimento, que tem
o carácter categórico, e o de justificação, que é essencialmente gradual. Cfr. Haack, S. Evidence
and Inquiry, p. 7. Para uma exploração dos paradoxos de Gettier, entre a vastíssima literatura, cfr
Lehrer, K. - Theory of Knowledge, pp. 16-18, 135-138.
259
Cfr Reinach, A. - "Théorie du jugement négatif", Revue de Métaphysique et de Morale, n.
3/1996, p. 385: o termo "juízo" emprega-se de um modo equívoco, englobando todo este feixe de
noções, que Reinach distingue nitidamente. Nomeadamente convicção e afirmação, embora
tenham estreitas relações, não são de modo algum idênticas. A convicção apresenta-se como um
sentimento, ou como uma disposição de consciência, a afirmação é sobretudo um acto
espontâneo. Ambas se efectuam no tempo, mas enquanto tem sentido falar de uma certa duração
da convicção, a natureza da afirmação não autoriza qualquer extensão temporal: não dura no
tempo, mas é de certo modo pontual (cfr ibid., pp. 389-390).
166
260
Investigações Filosóficas, §371.
261
Ibidem, §373.
167
regra, ao hábito, à nossa «imagem do mundo», que não é uma teoria construída por
nós, mas que nos é conatural, de certa forma herdada, pertence-nos e possui-nos,
dominando-nos inconscientemente. As teorias científicas constroiem-se sobre o
fundo desta imagem e poderão vir a pô-la em causa ou mesmo a desconstruí-la;
mas para esta conversão teórica da nossa «imagem do mundo», do «mundo da
vida» será necessário um esforço intelectual que ultrapasse as fortes resistências
naturais a abdicar da nossa imagem.
Embora algumas crenças não estejam sob o domínio da nossa vontade e nos
submetamos a elas como a um conjunto de hábitos herdados ou adquiridos mas de
um modo quase instintivo, isso não significa que não as possamos reavaliar, rever:
elas não são totalmente irrevisíveis e a revisibilidade constitui, de facto, um
instrumento apropriado para compreender os diferentes tipos de crenças e as
diferentes relações entre elas.
264
Encontra-se uma breve aprersentação da noção de "atitude proposicional" e os debates que a
expressão origina no âmbito da Filosofia Analítica e da Filosofia da Mente em Branquinho, J. e
Murcho, D. - Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, pp. 85 e ss.
171
"p", tal como ocorre no complexo "A crê que p", se comportar de um modo que
apresenta graves dificuldades para a formulação de uma semântica puramente
extensional, um desideratum comum a filósofos como Carnap, Wittgenstein
(Tractatus), etc. É este último que exprime com admirável concisão o problema,
num pequeno grupo de textos do Tractatus (5.54, 5.541, 5.542): "Na forma
proposicional geral a proposição só ocorre na proposição como base das operações
de verdade."(5.54)
"À primeira vista parece que uma proposição também poderia ocorrer numa
outra, de uma outra maneira.
Particularmente em certas formas proposicionais da Psicologia como "A crê
que p é o caso" ou "A pensa p"" (5.541).
Nestes casos, o valor de verdade da proposição complexa não é função de
verdade das proposições componentes. E é esta perturbação na extensionalidade
que constitui problema, e que interessou muitos dos analíticos e lógicos
contemporâneos; a problemática dos enunciados de crença tem, no entanto, uma
longa tradição desde Aristóteles, que nas Refutações Sofísticas (cap. sobre as
falácias do acidente) aborda já a análise destes enunciados no quadro de uma
teoria da predicação. Os lógicos medievais, na esteira do texto aristotélico,
prestaram também considerável atenção aos problemas levantados por estes
enunciados. No século XX, esta problemática encontra um novo surto em Frege,
nos escritos semânticos dos anos 90, em Russell que mostra as incoerências da
teoria fregeana e tenta várias soluções 265. Wittgenstein herdou todas as aporias da
semântica dos enunciados de crença266 e no Tractatus faz uma síntese radical de
grande lucidez: a forma destes enunciados ("A crê que p", "A pensa que p") deve
reconduzir-se à forma básica "'p' crê p". Pretende mostrar assim que as "relações
265
Cfr Frege, G. "Über Sinn und Bedeutung", Kleine Schriften, pp. 145, 151; Russell, B. "On
Denoting", Mind 14 (1905), pp. 479-493; The Philosophy of Logical Atomism (1918), The
Analysis of Mind (1921).
266
Além de Wittgenstein, também Carnap recebeu a herança da problemática de Frege e Russell.
Cfr Meaning and Necessity, The University of Chicago Press, 1947, I, § 13. Partindo da
perspectiva carnapiana, os trabalhos de Church, Putnam, Quine, Davidson, Rescher, Chisholm
tratam da análise lógica dos "enunciados de crença".
172
267
Cfr Investigações Filosóficas II, X. Sobre o "paradoxo de Moore", cfr Schulte, J. - Experience
and Expression. Wittgenstein's Philosophy of Psychology, pp. 135-158.
173
270
Cfr "A fixação da crença", p. 71.
271
Cfr ibidem, pp. 73-74.
176
272
Cfr Remarks on the Philosophy of Psychology, § 362.
273
Cfr Collected Papers, 1.44.
177
se pode considerar de facto que esse objecto existe. Neste caso a justificação apela
para um factor externo, algo existente no mundo externo, que confirma e justifica
a crença. Uma crença justificada tem aquele tipo de propriedade que, pela sua
própria natureza, parece fundar a crença no mundo real e assegurar deste modo
que podemos considerar a crença como verdadeira, sendo portanto conhecimento
em sentido próprio. O conhecimento parece, assim, ter as mesmas origens que a
justificação: normalmente os processos internos que justificam as nossas crenças
estabelecem também a conexão entre as nossas crenças e os factos externos em
virtude dos quais estas crenças são verdadeiras274.
Este enquadramento da justificação e verdade das crenças inspira-se
nitidamente numa concepção realista e correspondencionalista da verdade. A
crença no prado verde que vejo diante de mim, não é uma questão puramente
mental, interna, mas uma questão objectiva, independente de qualquer mente: o
verde do campo parece estar presente, independentemente de alguém o
percepcionar ou não. A verdade da crença é determinada pelo facto do campo
existir realmente aí diante, e depende da realidade externa, que não está
determinada nem depende daquilo em que creio. A proposição que exprime esta
crença é verdadeira em virtude da sua correspondência com a realidade externa a
que se refere. Esta é a formulação da tese da verdade como correspondência: dizer
que a proposição é verdadeira significa dizer que representa a realidade tal como
ela é, ou seja, ela exprime um facto.
Haverá outro modo de pensar a verdade da crença e das proposições que a
exprimem? Esquematicamente, esta ideia traduz-se na fórmula: " 'p' é verdadeira
se e só se p", ou " 'A relva é verde' se e só se a relva é verde". Os defensores de
uma concepção minimalista e redundante da verdade argumentarão que dizer que
'p' é verdadeiro equivale a afirmar p, e esta equivalência é tudo o que
necessitamos de compreender àcerca da verdade. Esta abordagem está associada a
274
Cfr Audi, R. - Epistemology, pp. 238-239.Encontra-se no Apêndice uma exposição mais
detalhada das principais teorias da verdade.
178
uma concepção minimalista da verdade: nada mais há a dizer sobre a verdade para
além da compreensão desta equivalência. Poderia argumentar-se mesmo dizendo
que "'A relva é verde' é verdadeiro" não só é equivalente a "A relva é verde", mas
essencialmente têm o mesmo significado. E assim, a expressão "é verdadeiro"
tornar-se-ia redundante: atribuí-la a uma proposição não acrescenta nada ao
sentido da mera asserção dessa mesma proposição. Esta é a perspectiva de uma
teoria redundante da verdade: dizer "isto é verdade" é outro modo, talvez mais
enfático, de afirmar o que está em causa, tem exactamente o mesmo conteúdo.
A alternativa mais frequentemente invocada à perspectiva
correspondencionalista é a teoria coerentista da verdade. Há várias formas de a
traduzir, mas a ideia central e mais genérica é que uma proposição verdadeira é
aquela que se apresenta coerente com outras proposições. Centrando-nos no
conceito de justificação, esta concepção coerentista defenderá que uma proposição
verdadeira é aquela que se justifica plenamente em virtude da coerência com
outras proposições relevantes justificadas. Como se apresenta aqui a relação entre
justificação e verdade?
Brevemente, poderá dizer-se que um conjunto de crenças com uma razoável
coerência tornará justificado cada um dos seus membros. O que não quer dizer que
eles sejam todos verdadeiros. Na concepção coerentista há a possibilidade de
dissociar justificação e verdade. Uma crença pode ser verdadeira sem ser
justificada e justificada sem ser verdadeira. A justificação pode crescer, mas, à
medida que um conjunto de crenças cresce e se torna mais coerente, apresenta
cada vez mais razão para supôr que os seus membros são verdadeiros. Mas podem
não o ser; uma crescente expansão do conjunto de crenças exige sempre alguma
revisão275.
A outra alternativa recorrente à concepção correspondencionalista é a teoria
pragmática da verdade, que assume também variadas formulações. A ideia central
será, em breves palavras, a de que as proposições verdadeiras são aquelas que
275
Cfr Dancy, J. - Epistemologia Contemporânea, p.148-149.
179
APÊNDICE
TEORIAS DA VERDADE
falsidade das crenças ou juízos 278. Quando é que uma crença pode ser considerada
verdadeira ou falsa? Em primeiro lugar, Russell defende que a verdade ou
falsidade de um determinado juízo não depende da pessoa que julga, mas apenas
dos factos sobre os quais julga, tem sempre um fundamento objectivo. Esta
perspectiva pressupõe a existência de verdades e falsidades objectivas, perspectiva
que é plausível em relação à verdade, mas aprresenta-se bastante estranha em
relação á falsidade. Examinando a primeira hipótese, segundo a qual um juízo,
verdadeiro ou falso, consiste numa certa relação com um simples objecto, Russell
adopta a terminologia de Meinong, denominando estes últimos como "objectivos"
ou objectualidades. Mas surge imediatamente o problema dos juízos falsos: a que
corresponde, ou qual o termo da relação de um juízo falso? É difícil aceitar
"objectos" que sejam como "falsidades objectivas". No caso do juízo verdadeiro,
existe um facto que corresponde a esse juízo, no caso de um juízo falso não se dá
esse facto. Esta dificuldade de admitir "entidades" bizarras como "objectualidades
falsas", leva Russell a abandonar a ideia de que os juízos consistem numa relação
com um simples objecto e a admitir que se trata de uma relação da mente com
vários termos. Não se trataria de uma relação dual da mente com um simples
objecto, mas de uma relação múltipla da mente com vários outros termos aos quais
o juízo diz respeito. Se julgo que "A ama B", não se trata de uma relação da mente
com "o amor de A por B", mas de uma relação entre a mente com A, o amor de A
por B e B. Se o juízo "A ama B" for verdadeiro, há uma relação entre os objectos
do juízo. Todo o juízo é uma relação da mente com vários objectos, um dos quais
é uma relação; o juízo é verdadeiro se a relação, que é um dos objectos relaciona
os outros objectos, caso contrário será falso. Russell sublinha que o Verdadeiro e
Falso são propriedades dos juízos, portanto não haveria verdade nem falsidade se
não houvesse mentes que julgam; no entanto, o verdadeiro/falso não depende da
pessoa que julga, visto que o complexo correspondente do qual depende a sua
verdade ou falsidade não contém a pessoa que julga como seu constituinte. Assim,
278
Russell, "On the Nature of Truth and Falsehood", Philosophical Essays, pp. 170-185.
185
279
Cfr "The Philosophy of Logical Atomism", Logic and Knowledge, pp.177-281: as dificuldades
de estender a teoria correspondencionalista da verdade ás crenças moleculares e gerais radicam no
paradoxo da falsidade que Russell quer evitar e, por isso é obrigado a negar que a crença seja uma
relação diádica entre alguém que crê e o facto, pois se essa proposição for falsa, não representa
nenhum facto. Esta não é a única dificuldade: a inexistência de objectos lógicos impede a
existência de factos moleculares e gerais. Daí as restrições que Russell é obrigado a fazer à noção
correspondencionalista em nome do seu atomismo lógico.
280
Cfr Haack, S. - Filosofía de las Logicas, p. 113; v. Russell, B - "The Philosophy of Logical
Atomism", Logic and Knowledge, 1956.
186
verdade das moleculares: "não-p" será verdadeira se e só se "p" for falsa; "pvq"
será verdadeira se ou "p" ou "q" forem verdadeiras, e assim sucessivamente. A
«teoria pictórica» do Tractatus propõe assim uma versão forte da correspondência
como uma refiguração isomórfica na proposição do que se passa no mundo.
Os críticos das teorias da correspondência apontam a dificuldade em
elucidar adequadamente a ideia mestra em que assentam, a da correspondência;
mesmo no caso mais emblemático, o do isomorfismo, essa perfeita correlação
entre a estrutura de uma proposição como "O gato está à esquerda do homem" e o
facto correspondente, que se pode figurar no desenho, não parece ser perfeita, pois
enquanto a proposição apresenta pelo menos três componentes, o facto tem apenas
duas; e as dificuldades aumentam com a crescente complexidade das proposições.
A interpretação da correspondência como um isomorfismo está intimamente
relacionada com uma teoria ontológica sobre a estrutura última do mundo e com o
ideal de uma linguagem perfeitamente rigorosa, teses básicas do atomismo lógico.
A questão que se põe é a de saber se a teoria da correspondência se poderá
dissociar do atomismo lógico e, nesse caso, que explicação se poderia dar da
relação de correspondência281.
282
Cfr "Der Gedanke", Kleine Schriften, p. 343.
283
Ibidem, p. 343.
284
Cfr ibidem, p. 344.
285
"Truth", Proceedings of the Aristotelian Society, Supplement 24, p. 115.
188
condições têm que ser satisfeitas. Austin propõe dois tipos de convenções para que
se realize efectivamente a comunicação: 1) convenções descritivas que
correlacionam as palavras com os tipos de situação, coisa, evento, etc. ; 2)
convenções demonstrativas que correlacionam as palavras com situações
específicas. "Um enunciado diz-se verdadeiro quando o estado de coisas histórico
com o qual se correlaciona pelas convenções demonstrativas é de um tipo com o
qual a frase usada no enunciado está correlacionada pelas convenções
descritivas"286. É importante notar que a correlação entre as palavras (frases) e o
tipo de situações, é absoluta e puramente convencional. Somos totalmente livres
para empregar qualquer símbolo para descrever qualquer tipo de situação; a
correlação não depende de modo algum de um isomorfismo entre palavras e
mundo.
Embora a teoria de Austin apresente uma dificuldade séria que é a de se
aplicar directamente apenas aos enunciados formados por orações indexicais, uma
vez que as convenções demonstrativas não desempenhariam nenhum papel no
caso de orações como "Júlio César era calvo", a sua versão evita as dificuldades
levantadas pelos "factos" de Russell. Austin localiza a verdade do enunciado "p",
não na sua correspondência com o facto de que "p", mas sim em que os factos
sejam como diz "p", ou, segundo a expressão de Austin, nas convenções
demonstrativas que correlacionam "p" com uma situação que é do tipo com o qual
as convenções descritivas o correlacionam.
288
. Cfr ibidem. Tomando como ponto de partida as teses do Tractatus, Hempel explana as
discussões que estas originaram no âmbito do Círculo de Viena, entre Carnap, Neurath e Schlick.
As principais teses de Neurath são sucintamente formuladas: a ciência é um sistema de
enunciados de uma mesma espécie. Cada enunciado pode ser combinado ou comparado com cada
um dos outros enunciados, de modo a tirar conclusões a partir dos enunciados confrontados, ou
confirmar se são compatíveis entre si. Os enunciados não são nunca comparados com a
"realidade", com os "factos". Os que defendem uma clivagem entre enunciados e realidade, não
são capazes de apresentar uma explicação precisa de como um confronto entre enunciados e
factos pode ser possível e como podemos estabelecer a estrutura dos factos. Portanto, essa
clivagem não é senão o resultado de uma insistência metafísica, e todos os problemas com ela
relacionados são meros pseudo-problemas. Os enunciados protocolares não podem ser
considerados como constituindo uma base inalterável de todo o sistema de enunciados científicos,
embora seja verdade que muitas vezes retrocedemos até aos enunciados protocolares para testar
uma proposição. Mas, segundo Neurath, nós não renunciamos a um juíz que decida se um
enunciado deve ser adoptado ou rejeitado; este juíz é representado pelo sistema dos enunciados
191
protocolares e, além do mais, este mesmo juíz não é, de modo algum inamovível. Sendo assim, a
cada enunciado empírico, pode associar-se uma cadeia de passos para o testar, mas não se
encontra nunca um elo absoluto e final. Depende da nossa decisão pôr termo ao processo de
confirmação, não faz sentido, por isso, comparar a ciência a uma pirâmide assente numa base
sólida. Neurath propõe aqui a conhecida comparação da ciência com um navio que está
perpetuamente a ser alterado no alto mar, e que não pode nunca ser trazido a terra firme para uma
reconstrução total desde a quilha. É evidente que estas ideias gerais presupõem uma teoria
coerencial da verdade. Cfr ibidem, p. 54.
289
Cfr Haack, S. - ob.cit., pp. 109-112.
290
Cfr "William James's Conception of Truth" Philosophical Essays, London: G. Allen & Unwin,
1966, pp. 112-30.
291
Cfr The Coherence Theory of Truth, Oxford University Press, 1973
292
Bradley, F. H. - Essays on Truth and Reality, Oxford University Press, 1914, p. 325.
192
300
"I do not say that it is infallibly true that there is any belief to which a person would come if he
were to carry his inquiries far enough. I only say that that alone is what I call Truth. I cannot
infallibly know that there is any true." Cfr Charles S. Peirce: Selected Writings, ed. P.P. Weiner,
New York, Dover Publications, 1966, p. 398.
196
301
Cfr também Ayer, A. J. - Language, Truth and logic. Trad. port. Editorial Presença, Lisboa,
1991, p.72-73: "Concluímos então que não há qualquer problema de verdade, tal como este é
geralmente concebido. A concepção tradicional da verdade como uma "qualidade real" ou uma
"relação real" deve-se, como a maior parte dos erros filosóficos, a um fracasso em analisar frases
correctamente. Há frases (…) em que a palavra "verdade" parece representar algo real; e isto leva
o filósofo especulativo a investigar o que este "algo" é. Naturalmente não consegue obter uma
resposta satisfatória, uma vez que a sua questão é ilegítima. Porque a nossa análise tem vindo a
demonstrar que a palavra "verdade" não representa nada, da forma como tal questão o exige."
A versão da verdade como redundância em Ayer é marcadamente ditada pela sua posição
claramente anti-filosófica ou anti-metafísica. O problema da verdade trata-se de um desses
problemas sem sentido que uma análise lógica trata de eliminar pura e simplesmente.
197
incontroversa a proposição que "a neve é branca é verdadeira se, e só se, a neve é
branca", mas insuficiente porque não especifica o que é ser verdadeiro; por isso
inflacionam-na com algum princípio adicional da forma "X é verdadeiro se e só se
X tem a propriedade P", sendo "P" uma propriedade como corresponder à
realidade, ou ser verificável, ou ser adequado como base para a acção. As teorias
deflacionistas apresentam-se como alternativas radicais, negando a necessidade de
semelhante especificação, pressupondo que uma teoria da verdade contém apenas
equivalências da forma "a proposição de que p é verdadeira se e só se p"302.
Uma variante da concepção deflacionista é a teoria "pro-oracional"
(prosetential) apresentada por Grover, Camp e Belnap303: o cerne da teoria está nas
frases "isso é verdadeiro", ou "é verdadeiro", que não são predicações mas "pro-
orações" atómicas, nas quais "verdadeiro" não é um predicado separável, mas uma
expressão análoga a um pronome. Trata-se, portanto, de expressões
sincategoremáticas, "símbolos incompletos", que não constituem nenhum
predicado nem descrevem ou dizem nada sobre uma oração, tal como um pronome
não diz nada, mas serve apenas para fazer uma referência ao termo singular
antecedente304. Não obstante, a teoria "pro-oracional" permite-nos falar
genericamente sobre proposições que não exibimos realmente, mas às quais nos
referimos indirectamente, desempenhando um papel semelhante ao dos
quantificadores de segunda ordem (proposicionais). De qualquer modo, pemanece
em aberto a dúvida sobre a pretensão de Ramsey de eliminar completamente a
referência à verdade305.
302
Cfr Horwich, P. - "Theories of Truth" in A Companion to Epistemology, p. 511 e ss. Cfr
Horwich, Truth, p. 2: a verdade não tem nenhuma "estrutura escondida esperando a nossa
descoberta".
303
Grover, D., Camp, J. L. e Belnap, N. D. Jr. - "A Prosetential Theory of Truth", Philosophical
Studies, 27, 1975, pp. 73-125. Grover, D. L. - "On two deflationary truth theories" in Dunn, M. e
Gupta, A. (eds) - Truth and Consequences, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, pp. 1-17.
304
Cfr Devitt, M. - Realism and Truth, p. 31: "… the truth is not really a predicate, and does not
describe or say anything about a sentence any more than anaphoric reference using 'it' describes
or says anything about its antecedent singular term."
305
Cfr Haack, S. - ob. cit., p. 157.
198
311
Putnam, H. - Words and life, p. 333.
312
Cfr Quine - Philosophy of Logic, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1970, pp. 1o-13. Reeditado
em Blackburn, S. e Simmons, K., pp. 144-46.
313
Putnam, H. - Realism and Reason. Philosophical Papers vol 3, p.76.
203
314
Cfr Davidson, "In defense of convention T", Truth, Syntax and Modality Leblanc (ed.), North
Holland, 1973.
315
Cfr Haack, S. - ob. cit., pp.140-150.
316
Cfr Davidson, "The Folly of trying to define truth", Blackburn, S. e Simmons, K. - Truth,
p.314.
204
BIBLIOGRAFIA
205
Dialogo sul metodo, Roma-Bari, Laterza & Figli Spa, 1989 (Trad.
port.:Diálogo sobre o Método, Lisboa, Presença, 1991).
Farewell to Reason (Trad. Port.: Adeus à Razão, Lisboa, Edições 70, 1991).
"Sense, Nonsense, and the Senses: An Inquiry into the Powers of the
Human Mind", The Journal of Philosophy, vol XCI, n. 9, 1994, pp. 445-
487.
REID, T. - Philosophical Works I/II: Inquiry into the Human Mind; Essays
on the Intellectual Powers of Man; Essays on the Active Powers of the
Human Mind, Hildesheim, Zürich, New York, G. Olms Verlag, 1983.
SEARLE, J. - The Rediscovery of the Mind, Cambridge Mass. The MIT Press,
1994.
WHITEHEAD, A. N. - Science and the Modern World, New York, The Free
Press, 1967.
224