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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

TÓPICOS ESPECIAIS DE METAFÍSICA

Prof. Vincenzo Ciccarelli

APOSTILA DA UNIDADE 1

ANO 2023
© Vincenzo Ciccarelli, 2023.
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“Bruma de Oro, el Occidente alumbra
la ventana. El asiduo manuscrito
aguarda, ya cargado de infinito.
Alguien construye a Dios en la penumbra.
Un hombre engendra a Dios. Es un judio
de tristes ojos y de piel cetrina;
lo lleva el tiempo como lleva el río
una hoja en el agua que declina.
No importa. El hechicero insiste y labra
a Dios con geometría delicada;
desde su enfermedad, desde su nada,
sigue erigiendo a Dios con la palabra.
El más pródigo amor le fue otorgado,
el amor que no espera ser amado.”

JORGE LUIS BORGES, Baruch Spinoza.

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Sumário

1.Preliminares p. 6

2. Os fundamentos lógicos da Metafísica: dedução, p. 7


abdução e explicação

3. Proposições analíticas e sintéticas p. 19

3.1 A justificativa dos princípios e a análise conceitual p. 19

3.2 Os limites da análise conceitual e o futuro da Metafísica p. 21

4. Os fundamentos lógicos da Metafísica: os princípios p. 27

4.1 O princípio de não contradição p. 28

4.2 O princípio de razão suficiente p. 35

4.3 O princípio de identidade dos indiscerníveis p. 49

5. Noções de necessidade p. 61

6. A classificação das controvérsias ontológicas: realismo, p. 71


nominalismo e idealismo

7. Conclusão p. 74

8. Referências p. 76

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A Metafísica tradicional:
uma introdução metodológica

1. Preliminares

Este breve texto não é, especificamente, uma introdução à metafísica, no sentido que ele não foi
pensado como uma apresentação dos temas clássicos desta disciplina; como veremos, ele
articula-se na intersecção entre a metafísica, a epistemologia e a lógica. O propósito das
análises aqui expostas é mais o de fornecer certas ferramentas fundamentais que, mais ou
menos explicitamente, foram empregadas na construção de argumentos tradicionais em favor
de uma ou outra tese metafísica. Dado que até o século XIX houve sempre uma certa confusão
entre a estrutura formal subjacente ao raciocínio metafísico e seus conteúdos específicos, falar
em “ferramentas” poderia não ser totalmente adequado, pois, mesmo no caso de princípios
considerados “lógicos”, teremos de esbarrar em considerações que concernem ao Ser, o
Universo como totalidade, a origem e o fundamento de todas as coisas. Portanto, este texto é
também uma introdução à metafísica, se bem não o seja nas intenções do seu autor, mas nos
inevitáveis efeitos colaterais da histórica confusão entre princípios lógicos e princípios
metafísicos que acompanha as reflexões sistemáticas da filosofia antiga e moderna.
Primeiramente precisamos esclarecer o que significa ‘raciocinar’. Em qualquer curso de
introdução à lógica aprendemos que raciocínios são cadeias de argumentos e argumentos são
estruturas de proposições que, dependendo do papel lógico, chamamos de premissas e
conclusões. Dizemos que um argumento é válido quando a conclusão se segue das premissas
(isto é, quando a verdade das premissas impõe a verdade da conclusão); dizemos um argumento
correto, quando é válido e tem todas as premissas verdadeiras. Além disso, dizemos que um
argumento é cogente quando, embora não seja válido, a verdade das premissas parece tornar a
conclusão mais plausível, ou – numa formulação não equivalente – quando a verdade das
premissas parece reforçar notavelmente a nossa crença na verdade da conclusão. Só os
argumentos dedutivos podem ser válidos e corretos; os outros tipos de raciocínio (ex: indutivo
ou abdutivo) almejam, no máximo, um bom nível de cogência.

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Nesta apostila consideraremos os tipos principais de raciocínio empregados na metafísica
moderna e contemporânea e os princípios fundamentais usados como premissas em tais
raciocínios, as tentativas de justificar tais princípios e algumas ideias de como classificá-los.
Além disso, faremos algumas considerações críticas que remetem ao eterno problema da
metafísica como ciência.

2. Os fundamentos lógicos da Metafísica: dedução, abdução e explicação

O raciocínio dedutivo é certamente a tipologia mais familiar, dado que é estudado em todos os
cursos de introdução à Lógica. Neste tipo de raciocínio, o conteúdo expresso pela conclusão
está, de certa forma, implicitamente incluído no conteúdo expresso pelas premissas1. Por este
motivo, quando um raciocínio dedutivo é válido, a verdade das premissas (isto é, quando os
estados de coisas descritos pelas premissas são o caso) acarreta necessariamente a verdade da
conclusão (isto é, o estado de coisas descrito pela conclusão também deve ser o caso, deve
acontecer). Considere o seguinte exemplo:

Argumento 1

Premissa 1: Todos os seres humanos são mortais;


Premissa 2: Os santos são seres humanos;
Conclusão: Os santos são mortais.

É impossível imaginar um contra-exemplo para este argumento, pois haveria uma contradição
com o que é afirmado pelas premissas em pensar um santo que seja humano e, ao mesmo
tempo, imortal. Com isso queremos dizer que o argumento apresentado além de ser dedutivo é
também válido. Se aceitarmos também as premissas como verdadeiras, seremos obrigados a
aceitar a verdade da conclusão; neste caso o argumento seria, além de válido, correto.
Observamos também que, se o argumento é correto, a conclusão alcança a indubitabilidade;
caso ele seja apenas válido, a única brecha para duvidar da verdade da conclusão seria a

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A rigor, não poderíamos definir o raciocínio dedutivo em termos de relações entre conteúdos. Contudo,
limitadamente aos nossos propósitos no âmbito da Metafísica, podemos admitir esta definição intuitiva e pouco
rigorosa.

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possibilidade que pelo menos uma das premissas seja falsa (mas seria impossível duvidar da
legitimidade da inferência).
A Metafísica clássica – desde as reflexões de Aristóteles, mas sobretudo nas suas formulações
racionalistas do século XVII e XVIII – almeja ao estatuto de uma ciência dedutiva, isto é, de um
saber cujas proposições são sempre conclusões de argumentos dedutivos válidos e corretos:
válidos na medida em que os grandes metafísicos racionalistas lançam mão de refinadas
técnicas silogísticas, desenvolvidas e estudadas pela tradição escolástica; corretos na medida em
que as premissas iniciais são sempre princípios lógico-metafísicos (ex: princípio de razão
suficiente, de identidade dos indiscerníveis ou de causalidade) considerados auto-evidentes, ou
definições de conceitos fundamentais (ex: substância, modo, atributo, etc…) também
consideradas verdadeiras com a máxima evidência. Para um pensador desta tradição, negar as
premissas do sistema dedutivo da sua Metafísica levaria a um absurdo.
Todavia, a profunda força persuasiva dos argumentos dedutivos válidos quase sempre traz
consigo uma certa sensação de banalidade: afinal, se eu já sei que todos os seres humanos são
mortais e que todos os santos são humanos, parece que já possuo a informação sobre a
mortalidade dos santos; parece que a inferência dedutiva não acrescentou nada ao que eu já
sabia das premissas. Em outras palavras, a inferência dedutiva parece ser uma mera
explicitação das informações que eu já possuía na hora em que eu compreendi e aceitei as
premissas. Se, portanto, a dedução nada mais é que a operação de explicitar o que já está
incluído nas premissas, o desenvolvimento de um sistema metafísico (no sentido clássico) não
corresponderia a uma extensão de conhecimento – já que não acarretaria a produção de novos
conteúdos – mas apenas a uma reorganização linguística de quanto os princípios fundamentais
já haviam expressado. De acordo com esta objeção – baseada no caráter não ampliativo e não
informativo do raciocínio dedutivo – a Metafísica, além de seus princípios, seria uma ciência
banal e pouco interessante. Podemos oferecer duas respostas preliminares a esta observação: 1)
podemos pensar que no caso de deduções complexas não é óbvio que um certo conteúdo estava
desde sempre incluído nas premissas, e que a explicitação dedutiva corresponde a uma
verdadeira “descoberta subjetiva” de informações ocultadas pela forma das premissas; 2) a
Metafísica não lança mão apenas de raciocínios dedutivos, mas também de raciocínios de um
segundo tipo – no caso, abdutivo – que supostamente teria uma caráter ampliativo e
informativo. Pelo tocante à primeira questão, podemos ilustrar por meio de um exemplo como
funciona uma demonstração metafísica:

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Argumento 2

Premissa 1: Tudo tem uma causa;


Premissa 2: Se A é causa de B, então ou A deve exceder B ou A é equivalente a B sob algum respeito;
Premissa 3: Deus é o máximo, isto é, nada o excede em nenhum respeito
Premissa 4: Cada coisa é equivalente a si mesma sob todos os respeitos;
Conclusão 1: Nada diferente de Deus pode causar Deus;
Conclusão 2: Deus é causa de si mesmo.

O argumento é complexo, pois, na verdade, trata-se de dois argumentos aninhados. Ele é válido
e deixaremos a avaliação da sua validade para os cursos de Lógica. O que faremos agora é um
exame da natureza das premissas e uma avaliação da informatividade da conclusão. A premissa
1 corresponde a um princípio fundamental da Metafísica clássica, isto é, o princípio de causalidade
universal: nada pode surgir sem a ação produtiva/criativa de alguma causa eficiente. A premissa
2 é um clássico princípio de conservação da natureza: nenhuma característica de uma certa entidade
pode surgir do nada, mas deve já estar presente na sua causa; segue-se que o efeito não pode
exceder a causa. A premissa 3 nada mais é que a própria definição de Deus como maximalidade
absoluta, enquanto a premissa 4 é um princípio lógico de identidade, isto é, tudo é igual a si mesmo
e, portanto, equivalente a si mesmo sob todos os aspectos. Como vimos, o argumento é dedutivo
e suas premissas são ou princípios fundamentais da Metafísica clássica (como as premissas 1, 2
e 4) ou definições (como no caso da premissa 3). Claramente, o fato que as premissas
correspondam a princípios e definições tradicionalmente considerados verdadeiros não
significa que o argumento 2 seja inatacável; poderíamos apresentar razões para duvidar de cada
premissa (não o faremos agora, pois estamos ainda em fase de “aquecimento metafísico”). A
complexidade do argumento parece também corroborar a nossa resposta à objeção da
banalidade de uma Metafísica puramente dedutiva: poderíamos de fato ter enxergado a noção
de Deus como ‘causa sui’ (i.e. causa de si mesmo) a partir dos princípios de causalidade,
identidade e da própria definição de Deus? É claro que o leitor logicamente treinado continuaria
a achar a conclusão do Argumento 2 tão óbvia quanto a do Argumento 1. Mas o que dizer de
argumentos ainda mais complexos? O que dizer das longas e articuladas cadeias de raciocínios
da Matemática? Teoremas que revolucionaram a história desta área de conhecimento cuja
demonstração foi procurada por séculos seriam realmente meras banalidades? É claro que não.
Neste sentido, um sistema metafísico que apresente uma certa complexidade argumentativa
(comparável com a da Matemática) pode ser considerado algo que nos faz descobrir novas

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informações, pelo menos do ponto de vista subjetivo. Claramente, resta sempre o problema de
avaliar a verdade dos princípios fundamentais e o nosso acesso epistêmico a eles. Afinal, como
podemos ter certeza da verdade de proposições do tipo ‘tudo tem uma causa’ ou ‘o efeito nunca
pode ultrapassar a causa’? De certo não por meio da experiência.
Observando a atitude filosófica dos autores que produziram os grandes sistemas metafísicos da
modernidade (ex: Descartes, Spinoza, Leibniz, Wolff), notamos uma certa confiança na
informatividade do método dedutivo. E de fato, nós mesmos – enquanto leitores de suas obras
fundamentais – acompanhamos as longas cadeias de silogismos com grande estupor. Além
disso, como poderiam esses sistemas filosóficos tão diferentes estar, por assim dizer-se,
“empacotados” nos mesmos princípios fundamentais? Afinal, Leibniz, Descartes e Spinoza
empregam – pelo menos em alguns pontos da suas reflexões – definições de ‘substância’ muito
parecidas: eles concordam que ‘substância’ é aquilo que não precisa de outro para existir; além
disso, eles concordam sobre muitos “axiomas” (causalidade, conservação, razão suficiente,
etc…). Contudo, as conclusões que tiram sobre as substâncias existentes são radicalmente
diferentes. Para Descartes, existe uma pluralidade de substâncias de dois tipo, a saber, mental e
físico; para Leibniz, existe uma pluralidade de substâncias mas nenhuma delas é de tipo físico;
para Spinoza, existe uma única substância que retém, ao mesmo tempo, aspectos
irredutivelmente físicos e aspectos irredutivelmente mentais (e mais uma infinidade de outros
aspectos nem físicos nem mentais). Longe de ser um "desempacotamento" banal de informações
contidas nas premissas, a Metafísica se parece mais como um saber “explosivo”, onde grandes
novidades emergem segundo perspectivas diferentes. Como sistemas metafísicos tão diversos e
incompatíveis podem “emanar” dedutivamente de definições muito parecidas e dos mesmos
princípios?
A resposta é simples: é falso que, na Metafísica clássica, foram empregados apenas raciocínios dedutivos.
Esta afirmação gera uma aparente contradição: como isso possível, à luz do fato que autores
como Spinoza declaram explicitamente que o inteiro sistema filosófico proposto nada mais é
que um edifício construído nos moldes da geometria Euclidiana, isto é, seguindo uma cadeia
rigorosa e detalhada de demonstrações dedutivas? Para compreender este aparente conflito,
precisamos relembrar brevemente uma etapa fundamental na história da Lógica. Até a
descoberta da lógica formal no século XIX, graças às revolucionárias reflexões de Boole, Frege e
Peirce, o conceito de argumento dedutivo não era totalmente claro. Com efeito, muitos autores
da época moderna acreditavam piamente que estavam construindo cadeias de deduções,
enquanto, de fato, estavam lançando mão também de um outro tipo de argumento, a abdução.
Antes de entrar nos detalhes da definição de raciocínio abdutivo é importante destacar que a

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abdução não garante a verdade da conclusão com a mesma força que a dedução; além disso,
dado um conjunto de premissas, existem diferentes conclusões (às vezes incompatíveis) que
podem ser inferidas abdutivamente; isto explicaria como a partir dos mesmos princípios
metafísicos diferentes sistemas filosóficos foram desenvolvidos.
A abdução é também conhecida como inferência em favor da melhor explicação. Dado um
conjunto de premissas que apresenta um aparente conflito ou algo inesperado, a inferência
abdutiva nos permite inferir como conclusão a melhor explicação para dissipar o aparente
conflito ou tornar previsível o inesperado. Será melhor compreender esta estrutura com um
exemplo:

Argumento 3

Premissa 1. Ontem João e Maria brigaram;


Premissa 2. Hoje João e Maria estavam andando de mão dada;
Conclusão. Entre ontem e hoje João e Maria fizeram as pazes.

As duas premissas apresentam um aparente conflito: duas pessoas que tiveram uma briga
dificilmente andariam de mão dada. A conclusão explicaria como resolver o conflito: é plausível
que João e Maria se acertaram e que, por isso, estão andando de mão dada. Uma inferência
abdutiva visa uma explicação para fatos aparentemente surpreendentes, inesperados ou em
conflito. Obviamente, o raciocínio não possui a força conclusiva da dedução. É possível que João
e Maria continuem brigados e que andem de mão dada por outros motivos, por exemplo, é
possível que eles não queiram que a vizinhança saiba da briga que ocorreu ontem. É possível
que eles tenham se prometido que andariam de mão dada aconteça o que acontecer, e, portanto,
mesmo estando com raiva um do outro, andam de mão dada. Todas essas possibilidades
permanecem em aberto e a conclusão do Argumento 3 poderia ser falsa. Todavia, em ausência
de evidência ulteriores, a conclusão do Argumento 3 parece ainda a explicação mais plausível, a
melhor explicação.
O problema fundamental do raciocínio abdutivo é que existem uma série de variáveis que não
são sempre claras: por exemplo, o que é uma explicação? Quando uma explicação é melhor que a
outra? Quando determinados fatos requerem uma explicação? Será que possuímos todas as
informações para avaliar as explicações disponíveis? Muitos autores da Metafísica antiga e
moderna tentaram responder a estas perguntas. Por exemplo, o famoso princípio de economia de
Guilherme de Ockham (a tal de “navalha”) é uma tentativa de definir o conceito de melhor

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explicação: de duas proposições P e Q que explicam um fato X, P é uma explicação melhor que Q
se P apela a uma ontologia mais parcimoniosa. Mas o que nos obriga a aceitar a navalha de
Ockham? Claramente nenhuma evidência conclusiva. Quem disse que a natureza favorece a
parcimônia ontológica? Usando – e talvez distorcendo um pouco – as palavras do filósofo
estadunidense W.V.O. Quine, não poderíamos pensar que a economia ontológica surja mais de
um gosto estético pelas “paisagens desérticas”, que de fatores epistêmicos? Como acabamos de
ver, o caráter não conclusivo da abdução e a ausência de um critério objetivo da “melhor
explicação” trazem consigo as eternas lutas dos debates metafísicos.
Um clássico exemplo de abdução em Metafísica é o argumento platônico em favor da existência
das Formas ou Ideais. Podemos reconstruir o argumento da seguinte maneira:

Argumento 4

Premissa 1. A matéria é caótica, instável, particular e em constante transformação;


Premissa 2. O mundo material apresenta regularidades, semelhanças, padrões universais;
Conclusão. Existem entidades universais, eternas e imutáveis que governam o comportamento da matéria.

As duas premissas representam um aparente conflito. Notamos que no mundo físico existem
padrões: todos os cavalos apresentam semelhanças morfológicas, os planetas seguem órbitas
geométricas, a mesma doença insurge com os mesmos sintomas. Este fato é surpreendente se
considerarmos que a matéria – pelo menos na concepção platônica – não possui nenhuma
organização ou estrutura fixa: é mera passividade em transformação, instabilidade. Como
poderia um “blob ontológico” como a matéria produzir a grande harmonia do cosmo e da
natureza? Esta pergunta é um pedido de explicação. E, para Platão, a melhor explicação possível
consiste em invocar a existência de um plano da realidade não material, não caótico, não sujeito
a devir. Somos obrigados a concordar com Platão? Não! O argumento 4 não é a dedução, mas
uma abdução: isto significa que a verdade das premissas não garante com certeza absoluta a
verdade da conclusão. Portanto, existe sempre uma brecha para duvidar da conclusão platônica,
isto é, da existência das formas imutáveis e imateriais. Poderíamos pensar, por exemplo, que a
explicação abdutivamente inferida por Platão não seja, de fato, a melhor explicação. Poderíamos
apelar à navalha de Ockham e buscar uma explicação alternativa que não nos faça comprometer
com a existência de entidades adicionais. Por exemplo, alguém poderia propor a seguinte
abdução:

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Argumento 5

Premissa 1. A matéria é caótica, instável, particular e em constante transformação;


Premissa 2. O mundo material apresenta regularidades, semelhanças, padrões universais;
Conclusão. As regularidades que percebemos no mundo material são um efeito do nosso sistema cognitivo e
não algo de fato presente na natureza; o mundo material é governado pelo caos e pelo acaso, enquanto o nosso
sistema cognitivo o organiza fazendo-o erroneamente aparecer como harmônico.

Eis aqui um exemplo de como, a partir das mesmas premissas, seja possível fazer inferências
abdutivas totalmente diferentes (e, logo, chegar a sistemas filosóficos totalmente diferentes) só
apelando a critérios diferentes para selecionar “a melhor explicação”. Além disso, poderíamos
até discordar de algo mais profundo: poderíamos discordar do fato que as duas premissas
requerem uma explicação. Alguém poderia dizer que o mundo material é assim, que, sem um
motivo particular, a matéria caótica acabou produzindo organização e harmonia. Alguém
poderia dizer que isto nada mais é que um fato bruto. Logo, nenhuma inferência abdutiva seria
possível, pois a melhor explicação para as premissas simplesmente não existiria.
A inferência abdutiva tem a sua centralidade metodológica por um motivo fundamental que
concerne à diferença entre a Metafísica e a ciência natural. Enquanto a segunda é, em primeira
instância, meramente descritiva, a Metafísica tem a pretensão de ser um saber explicativo. Em
outras palavras, enquanto a ciência natural se ocupa apenas de descrever de forma eficaz os
padrões matemáticos existentes entre os dados da experiência, a Metafísica almeja capturar os
aspectos fundamentais da realidade, isto é, a estrutura profunda que está por trás dos dados da
experiência. Ora, ‘explicar’ na sua acepção etimológica (do latim “ex-plicare”, desdobrar,
desvendar) significa exatamente isso, revelar a estrutura oculta do que é manifesto, desvendar a
natureza escondida do nóumeno que determinou um dado fenômeno. Segue-se que a vocação
eminente da Metafísica é a explicação. Logo, a articulação do método da Metafísica deve prever
o recurso à inferência explicativa, isto é, de um tipo de raciocínio em que a conclusão explique as
premissas ou vice-versa. Como já Aristóteles tinha percebido, na maioria dos casos a dedução
não é explicativa, pois as regras da Lógica se ocupam apenas com a preservação da verdade e
não com a sua explicação. Por outro lado, a abdução tem a pretensão de inferir uma conclusão
informativa e explicativa relativamente ao conteúdo das premissas. Isto porque, por definição,
a conclusão de um argumento abdutivo é, em tese, a melhor explicação para as circunstâncias
representadas pelas premissas (lembramos que um outro nome para a inferência abdutiva é
‘inferência em favor da melhor explicação’). Compreendemos, portanto, a significatividade do

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método abdutivo para o desenvolvimento de sistemas metafísicos: a Metafísica é a ciência
explicativa por antonomásia.
Mas o que é uma explicação? Temos aqui uma questão epistemológica muito complexa e
controversa, para a qual é difícil fornecer uma exposição breve e simplificada. A um nível
preliminar, podemos dizer que uma explicação (metafísica) de um fato X deve conter pelo
menos um dos seguintes ingredientes:

1. Causa eficiente: explicar X significa especificar os fatores que produziram X, isto é, o que
determinou que X viesse a ser (ex: explicar a existência de uma estátua em termos da
atividade do escultor);
2. Causa funcional (ou final): explicar X significa especificar a função que X desempenha
num dado sistema ou o propósito da existência de X num dado contexto (ex: explicar a
morfologia da asa de uma ave em termos da função mecânica do voo);
3. Elementos estruturais (ou causa formal): explicar X significa especificar alguma estrutura
ou organização interna de X que não é manifesta aos nossos sentidos (ex: explicar a
resistência ao corte de um diamante em termos da geometria da sua microestrutura
cristalina );
4. Constituição interna (ou causa material): explicar X significa mostrar que X tem
determinadas propriedades fenomenológicas em virtude de algumas partes ou
elementos constitutivos de X (ex: explicar as propriedades estéticas de uma pintura em
termos das propriedades químicas das tintas empregadas para realizá-la).
5. Fundamento ontológico: explicar X significa mostrar que X não possui independência
ontológica e especificar um outro fato Y em virtude do qual X pode existir, isto é, algo
ontologicamente mais fundamental que X e do qual a existência/ocorrência de X
depende (ex: explicar a mente, suas atividades e suas faculdades em termos de processos
cerebrais);
6. Fundamento nomológico: explicar X significa mostrar que X ocorre, dadas certas
condições, em virtude de um certo princípio fundamental do universo ou lei da natureza
(ex: explicar o funcionamento de um termómetro a mercúrio em termos da lei de
dilatação térmica dos metais);

À luz dessas distinções, podemos fornecer uma definição preliminar de explicação:

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Explicação: explicitação dos fundamentos (ontológicos ou nomológicos) ou dos fatores causais, estruturais,
constitutivos da existência de uma certa entidade ou da ocorrência de um dado evento.

Alguns comentários. Primeiramente, nem sempre precisamos explicitar todos os seis


ingredientes fundamentais de uma explicação: em determinados contextos, pode ser suficiente
apenas um. Nem sempre é claro que tipo de explicação é exigida pelo problema filosófico em
questão; isto torna a noção de explicação de difícil aplicação e acarreta todos os intermináveis
debates metafísicos sobre as abordagens explicativas. Em segunda instância, podemos tentar
compreender a noção de explicação investigando qual é o traço comum a todos os diferentes
tipos de fatores explicativos. Em outras palavras, o que há em comum entre fundamentos,
causas, estruturas e constituições? Preliminarmente, podemos afirmar que causas, estruturas,
constituições e fundamentos são os fatores que tornam necessária a ocorrência de um evento que, sem o
conhecimento deles, seria concebido como meramente possível, surpreendente, ou até implausível.
Com este breve esclarecimento da noção de explicação , podemos continuar a nossa análise dos
raciocínios dedutivos e abdutivos fazendo interessantes aprofundamentos. No caso de um
raciocínio abdutivo, a conclusão representa sempre uma explicação (possivelmente a melhor) de
circunstâncias apresentadas nas premissas. Consideremos, novamente, o Argumento 5. As
premissas descrevem circunstâncias que, de certa forma, necessitam de explicação, pois
aparecem em conflito: temos a coexistência da instabilidade da matéria e da ordem harmônica
do mundo material. Por meio de uma inferência abdutiva, concluímos que a melhor explicação
deste aparente conflito é a existência das formas platônicas. Estas formas – que com uma
terminologia infeliz chamamos também de “ideias” – representam vários fatores explicativos
das características do mundo material. Participam no processo da causalidade eficiente na
medida em que a matéria bruta foi “plasmada” pelo Demiurgo usando as formas como
modelos. Definem, portanto, a estrutura do mundo material: todos os cavalos possuem
características fisiológicas, morfológicas e fenotípicas em comum devido ao fato que participam
da mesma forma de “cavalinidade”. As formas são também fundamento nomológico do universo
físico: todos os movimentos dos corpos ocorrem sempre de acordo com leis universais que são
codificadas nas próprias formas platônicas. Em suma, no sistema platônico, as formas e suas
relações com a matéria são os fatores que tornam necessária a existência de determinados
padrões e regularidades no mundo físico: dada a existência das formas e o fato que a matéria
tem sido plasmada a imitação delas, a ordem e a harmonia do universo que observamos
torna-se um fato necessário, isto é, um fato que não poderia ocorrer de outro modo. Todavia,
devemos sempre lembrar que a abdução não é um raciocínio conclusivo e que, dada a verdade

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das premissas, a verdade da conclusão – isto é, dos fatores explicativos – poderia não ser
garantida. Em outras palavras, nem sempre o que enxergamos como a melhor explicação de
determinados fatos corresponde a algo efetivamente real, ao fator ontológico que determinou tais
fatos. O caso das formas platônicas é paradigmático: temos, na verdade, muitas razões para
duvidar da existência de uma dimensão imaterial e imutável da realidade.
Vimos que a abdução é um tipo raciocínio adequado à Metafísica, enquanto pressupõe que a
conclusão seja explicativa das premissas e a explicação (em todas as suas formas) é o propósito
deste saber. Vimos também que, historicamente, a diferença entre abdução e dedução, e o
caráter não conclusivo da primeira, não foi claramente entendido até o século XIX, motivo pelo
qual muitos autores da modernidade acharam que estavam construindo sistemas dedutivos
parecidos ao da Geometria e, em geral, da Matemática. Vimos também que a abdução é sempre
informativa, isto é, a conclusão introduz informações novas, que não estavam, nem
implicitamente, incluídas nas premissas. Por outro lado, a dedução parece não ser informativa
ou informativa num sentido mais fraco: a conclusão não introduz novas informações, pois
limita-se a explicitar o que estava sendo afirmado implicitamente pelas premissas. Às vezes esta
operação de explicitação pode ter um “ar de informatividade”, pois pode ser
computacionalmente complexo “enxergar” estas informações implícitas nas premissas.
Contudo, não devemos pensar que não existam deduções explicativas. Consideremos o seguinte
exemplo:

Argumento 6

Premissa 1. O brilho dos corpos celestes diminui com a distância;


Premissa 2. O planeta Vênus é mais próximo à Terra que Júpiter;
Conclusão. Para um observador na Terra, Vênus brilha mais que Júpiter.

Um argumento muito semelhante a este é usado por Aristóteles nos “Analíticos Segundos” como
exemplo de uma demonstração explicativa. Notamos imediatamente que o Argumento 6 pode
ser interpretado como uma explicação do fato que Vênus aparece para nós como um corpo mais
brilhante que Júpiter. A premissa 1 pode ser entendida como uma lei da natureza, em particular,
como uma lei da óptica: a luz de um corpo celeste diminui com a distância. A premissa 2 pode
ser concebida como a descrição das circunstâncias a que a lei da óptica se aplica: a configuração
espacial dos planetas Vênus, Júpiter e Terra. A conclusão é um fato observado: Vênus brilha mais
que Júpiter. O argumento 6 é a maneira em que uma explicação é formulada e apresentada: se

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alguém nos pergunta por que Vênus aparece mais brilhante que Júpiter para nós terrestres,
responderemos apresentando a seguinte explicação: corpos mais distantes brilham menos e
Júpiter é mais distante de nós que Vênus. Claramente o argumento não é informativo: se eu já
sei que o brilho diminui com a distância e que Vênus é mais próximo que Júpiter, então a
informação de que Vênus aparecerá mais brilhante já está incluída no conteúdo do meu
conhecimento (se bem de forma implícita). Como podemos entender as relações entre
informatividade e explicação na dedução e na abdução?
Numa abdução, as premissas representam os fatos que requerem uma explicação (em latim o
explanandum) enquanto a conclusão representa o fator explicativo (o explanans). Além disso, uma
abdução pode ser vista como o processo de descoberta da explicação por meio de uma inferência
informativa. De fato, quem conclui a existência das formas platônicas a partir da harmonia do
mundo físico está adquirindo novas informações sobre o universo e está descobrindo o porquê
(i.e. a explicação) desta harmonia apesar da caoticidade da matéria. Muito diferente é o caso de
uma dedução explicativa. Nesta situação, a conclusão representa o fato que requer uma
explicação (o explanandum), enquanto pelo menos uma das premissas representa o fator
explicativo. Neste caso, se trata da formulação de uma explicação que já conhecemos e não da
sua descoberta. Ao explicar o maior brilho de Vênus apelando à sua menor distância eu estou
usando as informações que já possuo sobre a lei da óptica que determina este efeito visual.
Se é verdade que todas as abduções são, por definição, explicativas, nem toda dedução o é.
Algumas deduções são válidas apenas em virtude de princípios lógicos e não necessariamente a
conexão entre premissas e conclusão representa uma “relação metafísica”. Considere o seguinte
exemplo:

Argumento 7.

Premissa 1. Todos os pacientes que tomaram a pílula anticoncepcional e que tiveram relações sexuais não
engravidaram;
Premissa 2. João é um paciente que tomou a pílula anticoncepcional e teve relações sexuais;
Conclusão. João não engravidou.

O argumento é claramente válido (suporemos também correto). A premissa 1 pode ser


interpretada como a descrição de um mecanismo causal: a pílula anticoncepcional é a causa da
falha na fecundação. Todavia, a razão pela qual João não engravidou não é o fato de ter tomado a
pílula anticoncepcional, mas o fato de não possuir um determinado aparato reprodutor

17
(estamos supondo João biologicamente de sexo masculino). Ou seja, a conclusão se segue das
premissas, mas não em virtude de uma conexão metafísica, explicativa; simplesmente pelo fato
que João, sendo de sexo masculino, não engravidou, independentemente do que acontecer (e,
logo, independentemente das premissas). O que o exemplo mostra é que nem toda dedução é
uma explicação: as leis da lógica valem também em casos em que não há conexão causal (ou
fundação metafísica). Podemos dizer que a lógica dedutiva trata de conexões formais e
linguísticas, que independem do modo de ser do nosso universo: elas valeriam também em um
universo totalmente diferente; por outro lado, uma explicação metafísica requer a descoberta e
a formulação de conexões ontológicos entre fatos do nosso universo.
Antes de concluir esta seção é importante organizar as principais ideias filosóficas que
apresentamos. Começamos dizendo que, historicamente, a Metafísica sempre almejou o
estatuto de ‘ἐπιστήμη’ (translit. “episteme”), isto é, de ciência universal e necessariamente
verdadeira. Para alcançar isto era necessário que se estruturasse como um sistema dedutivo
onde as premissas fundamentais fossem princípios universais e definições maximamente
evidentes. Contudo, detectamos vários problemas neste projeto: se os raciocínios dedutivos, por
um lado, garantem com certeza absoluta a verdade da conclusão dada a verdade das premissas,
por outro lado eles não são informativos, isto é, todos os sistemas metafísicos não seriam nada
mais que uma reformulação das informações contidas nos princípios fundamentais. A tal
propósito, vimos também que, na verdade, a dedução não foi o único tipo de raciocínio
empregado na metafísica antiga e moderna, mas também a abdução teve um certo espaço. A
abdução – conhecida também como inferência em favor da melhor explicação – tem a vantagem
de ser informativa, ampliativa, mas não garante a verdade da conclusão com a mesma “força
lógica” da dedução. Mencionamos o fato que até as reflexões de Frege e Peirce no século XIX,
não havia muita consciência do fato que raciocínios não dedutivos estavam sendo empregados
nas longas cadeias de demonstrações da Metafísica clássica. O conceito de abdução nos levou a
examinar o conceito de explicação, que definimos em termos das noções de causalidade,
fundamento, estrutura e constituição. Vimos que a explicação é central na Metafísica – que não
pretende ser um saber empiricamente descritivo – e que, em alguns casos, até uma dedução
pode ser explicativa. Concluímos as nossas análises vendo que no caso de um argumento
abdutivo, a conclusão é a explicação das premissas e que a abdução pode corresponder ao
processo de descoberta de uma explicação. Por outro lado, no caso da dedução explicativa, as
premissas representam a explicação da conclusão e que tal tipo de raciocínios podem ser vistos
como a formulação de uma explicação já conhecida.

18
Estas reflexões serão muito importantes para a compreensão dos principais argumentos da
tradição metafísica. O próximo passo será compreender os elementos constitutivos dos
argumentos, isto é, as proposições.

3. Proposições analíticas e sintéticas

3.1 A justificativa dos princípios e a análise conceitual

O sonho da construção da Metafísica, como corpo de proposições derivadas a partir de


princípios fundamentais e definições, é o sonho de uma ciência a priori dos fundamentos da
realidade que observamos. Na seção anterior vimos um primeiro elemento de crítica a este
projeto: os autores antigos e modernos tinham ideias bastante confusas a respeito do conceito
de ‘dedução’ e, frequentemente, confundiam abduções com deduções. Isto significa que, de
modo inconsciente, introduziram elementos de dubitabilidade nas longas cadeias de
inferências que constituiam o esqueleto dos grandes sistemas metafísicos. Nesta seção nos
ocuparemos com o estatuto dos princípios fundamentais e das definições empregadas por estes
autores; examinaremos o estatuto epistêmico dos “axiomas”, por assim dizer-se, dos sistemas
filosóficos da Metafísica clássica e moderna.
Suponhamos que podemos efetivamente dispor de um sistema dedutivo da Metafísica, algo
parecido com o sistema da Ètica de Spinoza; suporemos, portanto, que todas as demonstrações
apresentadas sejam efetivamente deduções (o que, a rigor, não pode ser dito da Ética de
Spinoza) e que todas as deduções sejam válidas. Em outras palavras, estamos supondo que o
sistema da Metafísica não contenha nenhuma falácia e que seja logicamente irrepreensível.
Como sabemos, isso ainda não garante a verdade de suas proposições; para isso, precisaríamos
que o nosso sistema seja correto, além de válido. Isto é, precisaremos da garantia da verdade de
todos os princípios fundamentais e das definições que introduzimos. Mais especificamente,
necessitamos de justificativas para a verdade de proposições do tipo ‘Tudo tem uma causa’,
‘Todos os corpos são extensos’ ou ‘substância é aquilo cuja existência não requer a existência de
nenhuma outra entidade’. Claramente, a verdade destes princípios primeiros não pode ser
demonstrada dedutivamente, pois eles próprios são o fundamento de qualquer dedução que
possamos construir. Portanto, precisamos de uma forma mais imediata para justificar a sua

19
verdade. Necessitamos de alguma forma não demonstrativa de “enxergar” a evidência da
verdade deste tipo de proposições. Podemos chamar esta questão de ‘problema da evidência dos
princípios primeiros’ ou, usando a famosa fórmula de Hegel, o problema do início da Filosofia .
Existe uma ampla diversidade de soluções ao problema da evidência dos princípios que não
temos espaço para examinar adequadamente. O que faremos aqui, é tentar esboçar, em linhas
gerais, a característica comum de uma família de soluções que se delineou a partir da Idade
Média, e que teve sua consagração com Leibniz no começo do século XVIII. A ideia pode ser
nomeada de critério de evidência por análise conceitual. Em termos mais simples, os princípios
primeiros concernem a alguns conceitos fundamentais, como, por exemplo, ‘substância’,
‘matéria’, ‘mente’, ‘causa’, etc… . Ora, o nosso intelecto é capaz, de certa forma, de ter um alcance
intuitivo desses conceitos, ou seja, somos capazes de pensá-los de maneira embrionária, isto é,
mesmo sem possuir uma definição rigorosa. Os princípios e as definições são, por assim
dizer-se, “extraídos” efetuando uma análise conceitual, isto é, decompondo estes conceitos, que já
compreendemos intuitivamente, em suas partes que são, por sua vez, conceitos componentes2.
Por exemplo, analisando o conceito de ‘corpo’, que compreendemos intuitivamente, chegamos a
“enxergar” que ele é composto pelo conceito de ‘extensão’ e o conceito de ‘resistência à
penetração’; este procedimento nos permite enunciar a seguinte definição: ‘algo é um corpo se e
somente se é extenso e resiste à penetração’. Desta definição seguem – por meio de regras
lógicas básicas – alguns princípios, como, por exemplo, ‘todos os corpos são extensos’.
Esta introdução ao problema da evidência dos princípios primeiros é claramente lacunosa, pois
não explica muito bem como podemos ter um acesso imediato a determinados conceitos, isto é,
não esclarece a suposta faculdade da “intuição intelectual”. As tentativas, ao longo da história da
filosofia, de esclarecer esta suposta faculdade não foram bem sucedidas e não tentaremos
examiná-las neste contexto. O que importa é que quando a análise conceitual é efetuada a partir
de conceitos que não são nos dado pela experiência, mas pela “intuição intelectual”, o inteiro
procedimento de averiguação dos princípios primeiros é a priori.
O segundo ingrediente da solução ao problema da evidência dos princípios é a análise conceitual,
que podemos aprofundar mais um pouco. A ideia fundamental é que alguns conceitos possuem
uma “estrutura lógica”, isto é, são compostos por outros conceitos mais elementares
interconectados por operadores lógicos. Por exemplo, o conceito ‘ser humano’ é composto pelos
conceitos ‘animal’ e ‘racional’ conectados por meio do operador de conjunção; o que nos leva a
dizer que ‘x é um ser humano se e somente se x é animal e x é racional’. Analisar conceitos significa

2
A palavra ‘análise’ vem do verbo grego ‘ἁναλύω’ (translit. analúo) que significa “desatar”, “decompor em partes”,
“derreter”.

20
desvendar esta estrutura e destacar os conceitos componentes para alcançar uma definição
rigorosa ou, em termos cartesianos, uma ideia clara e distinta. Uma vez que possuímos a definição
de um conceito, podemos estabelecer a falsidade ou a verdade de certas proposições em que ele
ocorre totalmente a priori. Considere a proposição ‘Todos os seres humanos são animais’;
podemos afirmar que ela é verdadeira de forma imediata, isto é, fazendo a simples constatação
que o conceito ‘animal’ é “parte” do conceito de ‘ser humano’, logo, necessariamente, um ser
humano deve ser um animal. Em outras palavras, o conceito ‘animal’ está de certa forma
“implicado” pelo conceito ‘ser humano’. Chegamos a justificar a verdade de ‘todos os seres
humanos são animais’ totalmente a priori, apelando apenas à constituição lógica do conceito de
‘ser humano’. A proposição ‘todos os seres humanos são animais’ é, por assim dizer-se, auto
evidente em virtude da própria estrutura dos conceitos envolvidos e não foi deduzida a partir de
outros princípios.

3.2 Os limites da análise conceitual e o futuro da Metafísica

A análise conceitual não parece suficiente para justificar a verdade de todas as proposições
fundamentais. Consideremos um exemplo tomado da teoria da relatividade geral: ‘Todos os
corpos induzem curvaturas no espaço-tempo’. Neste caso, parece que o conhecimento da
definição dos conceitos de ‘corpo’, ‘curvatura’ e ‘espaço-tempo’ é insuficiente para “enxergar” a
verdade dessa proposição. A ideia de corpo como algo extenso e resistente à penetração não
remete de forma alguma à ideia de uma curvatura (definida matematicamente) no contínuo
quadridimensional que a Física chama de ‘espaço-tempo’. Parece que a proposição ‘Todos os
corpos induzem curvaturas no espaço-tempo’ contém informações adicionais – sobre os corpos
e a configuração do espaço-tempo – que não podem ser acessadas efetuando uma mera análise
dos conceitos envolvidos. E este fato é confirmado pelas nossas atitudes perante a esta
proposição: quando Einstein a formulou, a comunidade científica exigiu também uma
corroboração experimental, pois não era evidente que ela fosse verdadeira apenas em virtude
das definições fundamentais.
O nosso exemplo sugere que além de proposições averiguadas por mera análise conceitual,
existam proposições caracterizadas por um conteúdo adicional, impossível de ser conhecido
apenas dominando as definições dos conceitos envolvidos. Enquanto, no primeiro caso, será
suficiente decompor (i.e. analisar) as informações que já possuímos em seus constituintes
lógicos, no segundo caso parece que novas informações sobre os conceitos envolvidos estão

21
sendo “veiculadas”, “compostas”, “constituídas” (i.e. sintetizadas) na proposição. Se alguém
afirmar que ‘Todos os corpos são extensos’ podemos concordar apenas decompondo, analisando as
informações necessárias para compreender o significado de ‘corpo’ e ‘extenso’; por outro lado, ao
aprendermos que ‘Todos os corpos induzem curvaturas no espaço-tempo’ estamos aprendendo
algo novo sobre os corpos e o espaço-tempo, isto é, estamos sintetizando novas informações não
incluídas nas meras definições destes conceitos. A ideia de “síntese” aqui metaforicamente
invocada pode ser entendida pensando ao uso que esta palavra tem na química: quando
dizemos que uma nova proteína foi “sintetizada” a partir de certos compostos mais elementares,
estamos afirmando que uma nova espécie química foi constituída a partir de outras e que as
propriedades macroscópicas dessa nova substância (i.e. a proteína) não podem ser reduzidas ao
comportamento dos compostos básicos que utilizamos para constituí la. Ao sintetizar uma
proteina, obtemos uma substância com características completamente novas, algo que não é
simples soma das suas partes. Esta oposição entre a mera análise das informações sobre os
conceitos e a síntese de novas informações inspirou uma distinção fundamental na
epistemologia moderna: a distinção entre proposições analíticas e sintéticas.
A questão das proposições analíticas e sintéticas é extremamente controversa e complexa; para
compreender o significado da distinção e suas problemáticas precisaremos colocar em diálogo
dois gigantes da filosofia moderna: Leibniz e Kant. Leibniz introduziu esta terminologia e foi o
primeiro a esclarecer o papel da análise conceitual e das proposições analíticas na Metafísica
tradicional; Kant retomou esta distinção, mas com uma substancial ressignificação, e a usou
para articular a sua crítica à Metafísica tradicional. Começaremos o nosso exame destas noções
partindo da reflexão kantiana.
Na “Crítica da Razão Pura”, Kant introduz duas definições de ‘proposição analítica’ (ele usa a
expressão ‘juízo analítico’): a primeira em termos cognitivo-psicológicos e a segunda em termos
lógicos. De acordo com a primeira definição, uma proposição da forma ‘A é B’ é analítica se e
somente se quem representa mentalmente o conceito A (o conceito do sujeito),
automaticamente, tem de representar também o conceito B (o conceito do predicado). ‘Todos os
corpos são extensos’ é, portanto, analítica, pois para ter uma representação do conceito de
‘corpo’ é necessário pensar também o conceito de extensão. Esta definição, todavia, é
problemática, enquanto apela a operações da mente não muito claras (‘pensar conceitos’,
‘representar conceitos’). Por isto, Kant introduziu uma nova definição: a proposição ‘A é B’ é
analítica se e somente se o conceito do predicado (o conceito B) está contido no conceito do
sujeito (o conceito A). De acordo com esta definição, o conceito de extensão estaria “contido” no
conceito de corpo, seria como uma sua parte; logo, ‘todos os corpos são extensos’ seria uma

22
proposição analítica. Finalmente, Kant define uma proposição sintética como a negação da
analiticidade: quando o conceito expresso pelo predicado não está incluído no conceito expresso
pelo sujeito. É o caso de ‘todos os corpos induzem curvaturas no espaço-tempo’, onde o conceito
de ‘induzir curvaturas no espaço-tempo’ não estaria incluído no conceito de ‘corpo’.
A definição kantiana teria o propósito de esclarecer a informatividade das proposições sintética
e a banalidade das analíticas: afinal, nada de novo é apreendido a partir da verdade de uma
proposição analítica, dado que, analisando as informações contidas no sujeito encontramos
exatamente as informações contidas no predicado e, logo, a descoberta da conexão entre sujeito
e predicado estava já presente no conceito do sujeito. Em outras palavras, quem compreende o
significado da palavra ‘corpo’, automaticamente compreende que ‘corpos são extensos’ e,
portanto, não descobre nada que não soubesse já sobre os corpos. A primeira conclusão de Kant
é que verdades analíticas não veiculam nenhum novo conhecimento, mas são apenas
explicitações de definições. Para operar uma síntese de novas informações, faz-se necessário o
apelo à experiência:

“Pelo contrário, embora eu já não inclua no conceito de um corpo em geral o predicado


do peso, esse conceito indica, todavia, um objeto da experiência obtido mediante uma
parte desta experiência, à qual posso ainda acrescentar outras partes dessa mesma
experiência, diferentes das que pertencem ao conceito de objeto. Posso ainda
previamente conhecer o conceito de corpo, analiticamente, pelas características da
extensão, da impenetrabilidade, da figura, etc., todas elas pensadas nesse conceito.
Ampliando agora o conhecimento e voltando os olhos para a experiência de onde abstraí
esse conceito de corpo, encontro também o peso sempre ligado aos caracteres
precedentes e, por conseguinte, acrescento-o sinteticamente, como predicado, a esse
conceito. E pois sobre a experiência que se funda a possibilidade de síntese do predicado do peso
com o conceito de corpo, porque ambos os conceitos, embora não contidos um no outro,
pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo contingente, como partes de
um todo, a saber, o da experiência, que é, ela própria, uma ligação sintética das
intuições.” I. KANT, Crítica da Razão Pura, B12

As definições kantians são um pouco obscuras e nos deixam com muita perplexidade: afinal, o
que significa que um conceito é parte de outro? O que significa que um conceito está contido no
outro? Além disso, elas se aplicam apenas a proposições da forma ‘A é B’. O que dizer da
proposição ‘Existe pelo menos um burraco negro no universo’? Ela não é da forma
sujeito-cópula-predicado. Por isto, usaremos uma definição “melhorada”, que consolidou-se no
contexto da filosofia analítica da primeira metade do século XX: uma proposição é analítica se e
somente se ela é verdadeira apenas em virtude do significado das expressões que ocorrem nela e não em

23
virtude de algum fato do mundo. De acordo com esta definição, para reconhecer a verdade de uma
proposição analítica não é necessário “conhecer o nosso mundo”, mas apenas dominar a
linguagem (i.e. conhecer os significados das palavras) em que ela é expressa. Quem compreende
o significado da palavra ‘pediatra’ e da palavra ‘médico’, já sabe que ‘todos os pediatras são
médicos’ sem precisar examinar a titulação de cada pediatra. Proposições analíticas requerem
apenas competências lógico-linguísticas para serem reconhecidas como verdadeiras. Por outro
lado, proposições sintéticas requerem competências ligadas à maneira de ser do nosso mundo: o
reconhecimento da verdade de ‘todos os corpos induzem curvaturas no espaço-tempo’ requer
um conhecimento do mundo físico e não apenas um domínio da terminologia.
Para compreendermos como a distinção analítico/sintético é usada por Kant para articular a sua
crítica da Metafísica tradicional, precisamos dar um passo atrás e voltar a Leibniz. Leibniz é o
primeiro a introduzir a distinção e o faz com o intuito de explicitar o modus operandi da
Metafísica tradicional. Para o filósofo de Hannover, a Metafísica é a ciência que explica a
natureza a partir de princípios primeiros necessários, universais e indubitáveis. De acordo com
Leibniz, todas as verdades são inferidas a partir desses princípios; quanto aos próprios
princípios, eles não são inferidos a partir de outras verdades – o que geraria um regresso ao
infinito – mas são verdadeiros em virtude da análise conceitual, isto é, são proposições
analíticas. Em outras palavras, a mente “inspecionando” os conceitos fundamentais da
Metafísica, i.e. ‘causa’, ‘substância’, ‘matéria’, ‘espaço’, ‘alma’, etc…, extrai verdades primitivas
sobre eles que desempenham a função de axiomas do sistema da Metafísica. Portanto, a
combinação da intuição intelectual, que nos permite acessar aos conceitos fundamentais, da
análise conceitual, que nos permite decompor estes conceitos em suas partes, e da lógica
dedutiva, que nos permite inferir novas proposições, é o que determina o método da Metafísica
como ciência e o “corpus” das suas verdades. Notamos que em nenhum momento foi necessário
apelar à experiência: intuição intelectual, análise conceitual e inferência lógica são operações e
faculdades que a mente humana já possui e que pode efetuar sem precisar de nada “fora de si”.
A Metafísica, segundo Leibniz, é portanto uma ciência a priori, universal, em virtude da
generalidade dos princípios primeiros, e necessária, em virtude da solidez das conexões lógicas e
analíticas. Uma concepção deste tipo não seria aplicável apenas a Leibniz e aos racionalistas
modernos, mas também a muitos filósofos medievais, neoplatônicos e ao próprio Platão. Ela
mostra claramente como a noção de ‘proposição analítica’ é crucial para compreender a suposta
metodologia da Metafísica tradicional.
Vamos agora à crítica de Kant. O primeiro ponto fundamental é que não só não é claro o que
seria uma intuição intelectual, mas também é bastante implausível que nós possuímos uma

24
faculdade para “enxergar dentro dos conceitos”. Mas o que nos interessa mais é o segundo
ponto da crítica kantiana, que decreta a impossibilidade da Metafísica tradicional como ciência.
Vimos que, para Kant, as proposições analíticas são banalidades: ao descobrir que uma
proposição analítica é verdadeira, não aprendemos nada de novo sobre o mundo, mas apenas
usamos o que já sabemos sobre a nossa linguagem. Portanto, a lista dos princípios primeiros da
Metafísica é apenas a explicitação de definições banais; é como um dicionário filosófico que,
enquanto esclarece o significado da terminologia a ser empregada, não nos diz nada sobre o
mundo. Ora, se começamos a construir cadeias de silogismos dedutivos a partir destes
princípios primeiros, também não conseguiremos acrescentar novas informações e descobrir
algo sobre o mundo: de fato, a dedução também é uma forma de explicitar informações que já
possuímos. Vimos que muitos autores da Metafísica tradicional usam, subrepticiamente e
inconscientemente, inferências abdutivas, que são sim informativas. Contudo, isto não será
reconhecido até o século XIX e também, uma vez reconhecido, enfraqueceria muito os sistemas
metafísicos, pois as conclusões tiradas por abdução não se seguem necessariamente das
premissas. Portanto, eis o veredito de Kant: a Metafísica tradicional não é uma ciência, pois ela não
nos fornece novas informações; para fazer afirmações informativas necessitamos apelar à experiência ou,
pelo menos, às condições de toda experiência possível. O máximo que ela pode fazer é listar uma série
de banalidades sobre a linguagem filosófica e se debruçar numa cadeia de pedantes silogismos
que não chegam a lugar nenhum. Para que um corpus de princípios possa fundamentar uma
ciência é preciso, além da sua universalidade e necessidade, de um outro requisito: que essas
proposições sejam sintéticas, isto é, que elas contenham informações adicionais às meras
definições das expressões linguísticas envolvidas, que elas sejam sobre o mundo ou, pelo menos,
sobre o mundo enquanto objeto de experiência, fenômeno. Ora, a experiência é fonte de muitas
informações e, logo, de muitas proposições sintéticas; contudo, os relatórios das nossas
experiências são sempre particulares (ligados a uma situação perceptiva singular) e
contingentes. Daí a grande pergunta que inspira a inteira missão da “Crítica da Razão Pura”:
existem proposições sintéticas a priori, isto é, informativas, universais e necessárias?
Não teremos tempo de ver o que legitimará a resposta positiva de Kant a esta pergunta; o que
nos interessa é como o debate sobre o estatuto da distinção analítico/sintético afetará a
Metafísica. Afinal, se Kant estivesse totalmente certo, o estudo das questões metafísicas teria
apenas um valor histórico, como quando os historiadores da ciência estudam a teoria do flogisto
ou do éter luminífero.
Podemos vislumbrar uma “brecha epistêmica” para a Metafísica refletindo sobre alguns detalhes
que o próprio Kant não compreendeu profundamente. Primeiramente, poderíamos “morder a

25
bala” e aceitar a inteira linha de raciocínio; todavia, poderíamos observar que a Metafísica não é
baseada apenas na dedução, mas também na abdução. Isto nos obrigaria a ceder sobre o
estatuto da Metafísica como ciência necessária: sabemos que as inferências explicativas
abdutivas têm um caráter hipotético e que suas conclusões são apenas plausíveis. A Metafísica
poderia sobreviver como saber hipotético, contingente, sujeito a constante revisão: um campo
de batalhas sem fim, para usar uma expressão do filósofo de Königsberg. Kant não pude aceitar
esta possibilidade por duas razões: primeiramente, ele, como os seus contemporâneos, não
tinha uma visão clara da Lógica e do estatuto da abdução; secundariamente, ele acreditava que a
ciência natural – em particular a física newtoniana – fosse um saber universal e necessário.
Hoje sabemos que isto não é o caso: a ciência natural também é um saber hipotético, em
constante revisão, baseada sobre métodos de raciocínios prováveis, como a indução e a abdução.
E se a ciência indutiva, paradigma do saber que estamos dispostos a aceitar, não é uma
“episteme”, talvez poderíamos aceitar também uma Metafísica hipotética e abdutiva.
Obviamente uma tal aceitação deveria passar por um exame prévio das diferenças epistêmicas
entre Metafísica e ciência natural, o que poderia mostrar outros defeitos e falhas da segunda em
comparação com a primeira. Mas há um outro motivo pelo qual a Metafísica poderia sobreviver
e está relacionado a uma bela caracterização deste saber proposta pelo próprio Kant. A
Metafísica, segundo ele, estaria atrelada à natureza humana: é próprio do nosso modo de
habitar este universo de buscar pelo fundamento, pelas explicações últimas, pela estrutura
profunda oculta aos nossos sentidos. Nós, em outras palavras, somos animais metafísicos e a
Metafísica é a nossa maneira de estar no mundo. Em termos contemporâneos, poderíamos
ousadamente dizer que o nosso sistema cognitivo foi selecionado para ter uma atitude
metafísica perante ao problema da nossa sobrevivência, almejando assim a profundidade da
natureza, a universalidade, desenvolvendo a capacidade de projetar o nosso eu no futuro e no
“espaço” das possibilidades. Kant acreditou que nós tivéssemos de passar por uma “reeducação
cognitiva”, segurar este instinto assim como fazemos com as pulsões mais brutais e violentas
que nos fazem relembrar da nossa origem selvagem. O “homem de ciência” seria portanto o
“animal metafísico domado” que se atém aos limites da razão e segura seus instintos de buscar
as explicações universais.
Hoje sabemos que o projeto kantiano de reeducação cognitiva é mais uma quimera de um sonho
iluminista: redesenhamos os limites da razão e sabemos que dentro deles não há possibilidade
de uma “episteme”, isto é, de um saber a priori, universal e necessário; o animal domado não
recebeu o biscoito da ciência, prêmio prometido pela sua mansuetude. Tudo o que nos resta são
as nossas conjecturas sobre o universo e, talvez, o nosso instinto metafísico; um instinto que

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ainda anima a pesquisa na ciência natural e que nos faz procurar explicações também onde o
experimento é mudo. Fazemos metafísica o tempo todo, só não temos mais a coragem de
chamá-la por este nome: falamos em divulgação científica, física especulativa, ontologia da
ciência, abordagem multidisciplinar aos problemas científicos, etc… . O problema é traçar os
novos trilhos de uma racionalidade metafísica, pois não podemos simplesmente voltar no
tempo e recomeçar onde Descartes, Spinoza e Leibniz tinham nos levado antes que Kant
colocasse o arame farpado da filosofia crítica. Tampouco podemos nos embarcar na estéril
jornada do idealismo alemão que, em oposição a Kant, tentou um resgate da Metafísica
apelando à universalidade e autoridade ontológica do mental; isto seria uma vã tentativa de
“pular a cerca” da crítica kantiana. Mas este novo modelo de racionalidade, cuja urgência é
testemunhada por cada debate científico contemporâneo, nunca será desenvolvido se
continuarmos a enxergar a Metafísica como um tabu. Aceitar a Metafísica é portanto o reflexo de uma
profunda atitude racional: colocar explicitamente no debate e na agenda filosófica o que nunca deixou de
existir, mas apenas foi escondido embaixo do tapete. É a atitude contrária ao dogmatismo.

4. Os fundamentos lógicos da Metafísica: os princípios

Nas seções anteriores vimos que os sistemas metafísicos tradicionais funcionam um pouco
como sistemas axiomáticos nos quais, a partir de princípios fundamentais, novas proposições
são inferidas de acordo com determinados tipos de raciocínio (tipicamente dedutivos e
abdutivos). Vimos também que alguns princípios fundamentais são proposições analíticas a
priori, tipicamente definições de conceitos fundamentais (ex: ‘todos os corpos são extensos’,
‘toda substância é o substrato da predicação’, etc…). Nesta seção examinaremos alguns
princípios cujo estatuto é mais dificilmente classificável e que habitam uma região cinzenta
entre a Lógica e a Metafísica. Alguns destes princípios parecem extremamente evidentes, como
no caso do princípio de não contradição, outros são mais controversos, como no caso do
princípio de razão suficiente. Estes princípios foram empregados frequentemente, de forma
mais ou menos explícita, ao longo da história da Metafísica antiga e moderna; por este motivo
estamos interessados em entender suas formulações e consequências.

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4.1. O princípio de não contradição

O primeiro princípio que analisaremos é o princípio de não contradição (PNC), sem dúvida um
princípio lógico. Como todas as leis da Lógica, este princípio não tem muito a dizer sobre a
realidade: apenas afirma que ela não é contraditória. Será interessante, todavia, entender o que
é a contradição, tentar explicar o porquê estados de coisas contraditórios não pode ocorrer e
como justificar uma lei tão básica.
Começaremos por uma das formulações mais famosa do PNC, a de Aristóteles:

“É impossível para a mesma coisa pertencer e não pertencer à mesma coisa ao mesmo
tempo e no mesmo respeito” ARISTÓTELES, Metafísica, IV 3 1005b19–20.

A primeira observação a ser feita é que Aristóteles enuncia este princípio na sua obra dedicada à
Metafísica (além de outras formulações contidas nas obras de Lógica). Isto significa que o PNC
não é visto apenas como uma lei lógico-linguística, mas também como um princípio ontológico,
isto é, um princípio fundamental e maximamente geral sobre como as coisas são e, sobretudo,
como elas não são. Em outras palavras, Aristóteles quer dizer que o mundo não é contraditório,
que ele é organizado de forma tal de tornar impossível qualquer contradição. Quanto à
formulação em si, é uma tentativa de explicar o que é uma contradição.
A formulação aristotélica é bastante obscura, pois é expressa numa linguagem muito diferente
da que usamos hoje em dia. O primeiro passo será entender o que Aristóteles quer dizer com
‘pertencer’. Este verbo denota, no léxico do Estagirita, a relação fundamental que subsiste entre
um ente individual e suas propriedades (correspondente ontológico da relação
lógico-gramatical entre sujeito e predicado). Por exemplo, a sentença ‘Sócrates é sábio’ pode ser
traduzida na linguagem técnica da lógica aristotélica como ‘A propriedade de ser sábio pertence
ao indivíduo Sócrates’. Não entraremos nos detalhes das relações entre particulares e universais
na metafísica aristotélica, mas nos interessará apenas compreender a formulação do PNC. De
acordo com as breves considerações apresentadas, a primeira parte do PNC afirma que é
impossível que o mesmo indivíduo possua e não possua uma dada propriedade. É impossível
que Sócrates seja e não seja sábio, que Messi seja e não seja habilidoso, que hoje seja e não seja
um dia chuvoso.
Durante as aulas introdutórias de Lógica tipicamente uma objeção é levantada: mas é claro que
hoje pode ser e não ser um dia chuvoso! Poderia ser chuvoso pela manhã e ensolarado pela

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tarde! Assim como Sócrates poderia ter sido sábio na velhice mas extremamente inconsequente
na juventude. Eis que a primeira qualificação de Aristóteles torna-se necessária: “ao mesmo
tempo”. Nenhum dia pode ser chuvoso e não chuvoso no mesmo instante de tempo. Parece que
o apelo à uma coordenada temporal nos ajuda a especificar quando uma certa sentença é uma
contradição. Contudo, é importante ressaltar que o apelo ao tempo constitui uma referência ao
mundo físico, algo que não esperaríamos de uma lei da Lógica: afinal, sempre nos é dito que a
Lógica é baseada em leis do raciocínio que são verdadeiras independentemente de como o
mundo é. Por isso hoje em dia os lógicos preferem outras formulações do PNC; Aristóteles
também pareceu estar ciente disso e pela mesma razão, provavelmente, adotou esta formulação
na Metafísica que, entro certos limites, é uma disciplina que se interessa também sobre a
realidade nos seus aspectos físicos3.
Mas há novas objeções: num dado instante de tempo t, Messi pode ser e não ser habilidoso, pois
ele pode ter uma ótima habilidade de dribbling, enquanto tem uma péssima habilidade em
determinar a tonalidade exata do canto que a torcida está entoando naquele mesmo instante.
Logo, Messi, ao mesmo tempo, seria e não seria habilidoso. Seria esse um exemplo de um fato
contraditório, isto é, de uma contradição verdadeira? Não para Aristóteles e temos de concordar
com ele. A segunda qualificação no PNC deixa isso claro: “no mesmo respeito”. Messi poderá até
ser e não ser habilidoso ao mesmo tempo, mas estamos falando de habilidades diferentes, isto é,
de ser habilidoso a respeito de coisas diferentes. A sua habilidade diz a respeito do dribbling,
enquanto a sua falta de habilidade a respeito do ouvido musical. Portanto, aqui não temos uma
propriedade (i.e. o ser habilidoso) que pertence ao mesmo indivíduo (i.e. Messi) ao mesmo
tempo e no mesmo respeito: os “respeitos” são diferentes, diferentes aspectos de ser habilidoso.
Agora que entendemos, mesmo que superficialmente, o conteúdo da formulação aristotélica do
PNC, podemos tentar extrapolar seu significado metafísico. Isto vai um pouco além do que
costumamos fazer nos cursos de Lógica. Vimos a necessidade das duas qualificações: tempo e
aspecto. Dizer que Messi é habilidoso em um dado instante t e sob um certo aspecto A, significa
especificar completamente a circunstância em que Messi é habilidoso. Em Metafísica usamos a
palavra ‘determinação’ para denotar uma propriedade completamente especificada, que define
completamente um modo de ser de um dado indivíduo. Dizer simplesmente que Messi é
habilidoso não constitui uma determinação de Messi, pois ainda deixa em aberto (i.e. não
determina) o modo e o tempo em que Messi apresenta esta característica. Ao contrário, dizer
que ele o é ao trigésimo quarto minuto do segundo tempo de Argentina - França da copa de

3
Para analisar metafisicamente a doutrina aristotélica da predicação, precisaríamos apresentar a noção de
‘categoria’, algo que não podemos fazer nos limites de espaço que temos aqui.

29
2022 e que o é pelo tocante à maneira de driblar o adversário, significa especificar
completamente a habilidade de Messi; significa determinar o ser habilidoso de Messi. Logo, o
PNC, na sua versão metafísica, afirma que é impossível que um indivíduo X possua e não
possua uma certa determinação D. Em outras palavras, ou X possui D, ou não a possui, mas as
duas coisas não podem ocorrer. A realidade é estruturada de tal forma que a presença de uma
dada determinação e a sua ausência são absolutamente incompatíveis. Podemos portanto
“traduzir” o PNC na sua formulação metafísica:

PNC-M (formulação metafísica)


Para todo indivíduo x e toda determinação D, é impossível que x possua e não possua a determinação D.

Essas observações nos levam a entender o papel lógico-metafísico da negação. Ela representa a
oposição mais radical, a pura inconciliabilidade com o seu escopo. Nada pode possuir a
determinação D e não possuí-la: a presença de D e a sua ausência são inconciliáveis. Esta
oposição extrema é a que subsiste entre as categorias fundamentais da Lógica e da Metafísica:
respectivamente, a oposição entre Verdadeiro e Falso, entre o Ser e o Nada. O Falso é a negação
do Verdadeiro (e vice versa): se é verdade que ‘2+2=4’, então é falso que ‘2+2≠4’; assim como a
palavra ‘nada’ é expressão sinônima de ‘não ser’. O PNC, portanto, encarna a impossibilidade da
“compresença” dos opostos mais radicais: é impossível que uma sentença seja verdadeira e falsa, é impossível
que o Nada seja ou que o Ser não seja. Na terminologia aristotélica, os opostos mais radicais, os que
são um a negação do outro, são chamados de contraditórios; e a contradição é a afirmação da
conjunção dos contraditórios. O Falso e o Verdadeiro são contraditórios, assim como o Ser e o
Nada. E a negação é a expressão linguística que denota esta oposição máxima, isto é, a
contradição. Se é verdadeiro que ‘X possui a determinação D’, então deve ser falso que ‘X não
possui a determinação D’; ora, afirmar as duas sentenças significa admitir que verdade e
falsidade podem coexistir no sentido de serem atribuídas à mesma sentença. Por isto os lógicos
costumam oferecer a seguinte formulação do PNC:

PNC-L1 (formulação lógica e sintática)


Dada uma qualquer sentença S, a conjunção de S com a sua negação é necessariamente falsa.

Podemos buscar uma formulação mais primitiva, baseada apenas na ideia de oposição máxima
entre verdadeiro e falso:

30
PNC-L2 (formulação lógica e semântica)
Dada uma qualquer sentença S, é impossível que S seja verdadeira e falsa.

A formulação PNC-L1 se segue da formulação PNC-L2 conjuntamente com o princípio que


afirma que a negação de uma sentença verdadeira é sempre falsa e vice versa. Isto é, na ideia de
que a negação realize linguisticamente a oposição máxima, a contraditoriedade.
Aristóteles percebeu que existem outras formas de oposição, não tão fortes quanto a
contradição. Consideremos, por exemplo, as oposições entre quente e frio, rápido e lento, preto
e branco. Em particular, consideremos as seguintes sentenças:

S1) Esta pedra é quente e fria ao mesmo tempo e no mesmo respeito;


S2) Este processo é rápido e lento ao mesmo tempo e no mesmo respeito;
S3) Esta superfície é preta e branca ao mesmo tempo e no mesmo respeito.

A pergunta fundamental é: essas sentenças são contradições? Certamente são três sentenças
falsas; mais ainda, descrevem impossibilidades. Mas a oposição entre quente e fria, rápido e lento
e preto e branco é o tipo de oposição realizado por uma negação, como no caso de Ser e Nada,
Verdadeiro e Falso? Em outras palavras: podemos dizer que ‘frio’ é sinônimo de ‘não quente’,
‘rápido’ de ‘não lento’ e ‘preto’ de ‘não branco’? Absolutamente não. Estas oposições não são
realizadas linguisticamente por meio de uma negação, logo, do ponto de vista estritamente
lógico, não são contradições. Aristóteles usou o termo ‘contrariedade’ para caracterizar este tipo
mais fraco de oposição. Quente e frio são, portanto, contrários e não contraditórios (pelo menos
não do ponto de vista lógico). Contudo, sabemos que as sentenças S1, S2 e S3 são exemplos de
impossibilidades, isto é, elas não poderiam ser verdadeiras em nenhuma situação concreta.
Então que tipo de impossibilidades elas representam? Deveríamos admitir um outro tipo de
impossibilidade que a Lógica não consegue explicar? Aprofundaremos este ponto na seção
dedicada aos vários tipos de necessidade e impossibilidade. Por enquanto, podemos dizer que
S1, S2 e S3 não representam impossibilidades lógicas, isto é, oposições contraditórias; elas
representam oposições por contrariedade, oposições metafísicas. A oposição entre quente e frio
não é algo que pode ser explicado logicamente, isto é, apelando ao comportamento da negação
ou à relação entre o Verdadeiro e o Falso; precisamos apelar à estrutura fundamental da
realidade para podê-la compreender. O mundo é tal que, necessariamente, determinações
contrárias não podem “conviver” num mesmo indivíduo. Podemos fazer um pequeno esforço
para nos representar mais claramente este fato e compreender de forma melhor o que a

31
Metafísica tem a dizer sobre isto. Tentemos construir um argumento para provar a falsidade de,
por exemplo, S1; por simplicidade, consideraremos ‘quente’ e ‘frio’ como determinações, logo
não necessitaremos de especificações ulteriores na predicação:

Argumento 8

Premissa 1: Esta pedra é quente e fria (hipótese);


Premissa 2: Se uma certa coisa é quente, então esta mesma coisa não pode ser fria;
Conclusão 1: Esta pedra é quente, logo ela não é fria (pela Premissa 2);
Conclusão 2: Esta pedra é fria e não fria (pela Premissa 1 e a Conclusão 1);
Premissa 3: É impossível que esta pedra seja fria e não fria (aplicação do PNC na versão metafísica)
Conclusão 3: É falso que esta pedra seja quente e fria (negação da hipótese, pois ela levou a uma
contradição)

O Argumento 8 prova a falsidade de uma sentença que atribui determinações contrárias (calor e
frio) a um certo indivíduo (esta pedra). O problema é que, para fazer isso, ele não lança mão
apenas do PNC; implicitamente, invoca um outro princípio, este de caráter metafísico.
Observemos a premissa 2: ela afirma que tudo o que é quente, não pode ser frio. Claramente,
isto aplica-se a todos os casos de determinações contrárias (rápido/lento, grande/pequeno,
etc…). Mas também a outros casos: intuitivamente, não diríamos que ‘ser alto um metro e
setenta’ é o contrário de ‘ser alto um metro e sessenta nove', contudo sabemos que a primeira
determinação exclui a segunda (ninguém pode, ao mesmo tempo, ser alto um metro e setenta e
um metro e sessenta nove). O que parece estar ocorrendo aqui é uma exclusividade de
determinações do mesmo tipo: tudo o que é totalmente verde não pode ser vermelho, amarelo,
etc…, tudo o que pesa 10kg não pode pesar, ao mesmo tempo, 9kg, 8kg, etc…, tudo o que tem
temperatura de 30°C, não pode ter 29°C, 28°C, etc… . Mas este fato não se segue do PNC: é um
fato sobre a estrutura da realidade, sobre o modo de se determinar das entidades existentes
...um fato metafísico! Logo, para “montar” o Argumento 8, precisamos de um princípio
metafísico que justifique a premissa 2:

Princípio de exclusividade das determinações (PED):


Toda determinação acarreta a negação das demais determinações do mesmo tipo.

32
O filósofo holandês Spinoza resumiu este princípio com uma famosa fórmula latina: ‘Omnis
determinatio est negatio’, toda determinação é uma negação (de determinações distintas do
mesmo tipo e, logo, também da sua contrária). Determinar completamente algo com relação a
um dado respeito significa, automaticamente, negar que seja determinado de forma diferente
com relação ao respeito considerado.
Podemos tirar as nossas conclusões sobre contrariedade e contradição. A contradição é uma
impossibilidade lógica, isto é, uma sentença cuja falsidade pode ser demonstrada invocando
apenas o PNC e apelando apenas ao papel de oposição máxima da negação. A contrariedade é
uma impossibilidade metafísica, isto é, uma sentença cuja falsidade pode ser demonstrada
apelando não só ao PNC, mas também a um princípio metafísico, o PED. É muito importante
manter essas duas noções distintas, sob pena de confundir princípios lógicos (que dizem a
respeito da linguagem e do seu funcionamento) com princípios metafísicos (que dizem a
respeito da estrutura da realidade extra-linguística).

Acabamos de compreender o significado do PNC, da relação de contraditoriedade e da sua


diferença com a contrariedade. Passemos agora a examinar a justificativa para aceitar o PNC
como verdadeiro. Claramente, tratando-se de um princípio primeiro, não podemos esperar que
ele seja demonstrado a partir de outros “axiomas”. Vimos, na seção anterior, que no caso de
princípios fundamentais, podemos justificar sua verdade analiticamente e não dedutivamente.
Isto quer dizer que o PNC deveria ser uma verdade analítica a priori, isto é, deveria ser
verdadeiro apenas em virtude do significado das palavras que ocorrem nele. A tal propósito,
consideremos a enunciação do PNC na sua versão lógica; dada uma sentença S,

É impossível que S e não S sejam ambas verdadeira;

Obviamente, a verdade do PNC não pode estar ligada ao significado de S, já que poderia ser
qualquer sentença. De fato, poderíamos dizer que o PNC é verdadeiro em virtude apenas do
significado da negação ‘não’ e da conjunção ‘e’. A conjunção é simples: o significado do símbolo
‘&’ em ‘A & B’ é exigir a verdade de ‘A’ e ‘B’. Por outro lado, se a negação significa inversão de
valor de verdade, isto é, ela é verdadeira se o que nega é falso e falsa se o que nega é verdadeiro,
então o PNC é realmente verdadeiro apenas em virtude do significado de ‘e’ e ‘não’. Pois se S é
verdadeira, ‘não S’ será falsa (em virtude do significado de ‘não’); logo, para que ‘S e não S’ seja
verdadeira será necessário que ambas ‘S’ e ‘não S’ o sejam (pelo significado de ‘e’); mas isso é

33
impossível, logo o PNC é verdadeiro. Esta explicação um pouco complicada e pedante oferece
uma análise de significado do PNC e uma razão para concluir que ele é analítico a priori.
Todavia, existe uma outra maneira mais convincente de justificar o PNC. Trata-se da estratégia
de Aristóteles que visa mostrar que o PNC é, de certa forma, auto evidente. Ela consiste em
mostrar que quem quisesse negar a verdade do PNC acabaria sendo impossibilitado a fazer
qualquer afirmação: de certa forma, a negação do PNC tornaria impossível o uso assertivo da
linguagem. Suponhamos que Fulano diga: ‘O PNC é falso’. Pelo que ele acabou de dizer, é falso
que uma sentença não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Logo, existe a possibilidade
de atribuir verdade e falsidade à mesma sentença. Portanto, a afirmação ‘O PNC é falso’ poderia
ser, além de verdadeira, falsa. Mas isso significa que, ao mesmo tempo, o nosso Fulano estaria
afirmando a verdade do PNC. Por consequência, Fulano não teria uma posição definida sobre o
PNC e, na verdade, sobre absolutamente nada; ele estaria se recusando a participar no jogo linguístico
do verdadeiro e do falso, ele estaria destruindo a possibilidade de fazer uma asserção.
Um último ponto importante sobre o PNC concerne à forma em que ele tem sido empregado na
Metafísica tradicional. Frequentemente encontramos nos manuais de filosofia afirmações do
seguinte teor: ‘os metafísicos da tradição medieval e moderna pretendiam descobrir as grandes
verdades sobre o universo armados apenas de definições e do princípio de não contradição’.
Sem discutir os detalhes da correção de tal alegação, vamos ver o que ela significa. A proposição
“citada” descreve uma técnica demonstrativa importante baseada no PNC, a redução ao absurdo
(reductio ad absurdum). A “reductio” consiste em assumir a título de hipótese a negação da tese
que pretendemos demonstrar e derivar a partir disso alguma contradição; logo, dado que o
implica contradição é falso, então a negação da nossa tese é falsa, logo a tese é verdadeira.
Consideremos um exemplo:

Argumento 9

Tese: Sócrates é um mamífero (o que pretendemos demonstrar);


Hipótese (negação da tese): Sócrates não é um mamífero;
Premissa 1: Todos os não mamíferos não foram amamentados (por exemplo, uma lei da natureza);
Conclusão 1: Sócrates não foi amamentado (da hipótese e da premissa 1);
Premissa 2: Sócrates foi amamentando (por exemplo, um fato observado);
Conclusão 2: Sócrates foi e não foi amamentado (contradição);
Princípio de não contradição: É impossível que Sócrates tivesse e não tivesse sido amamentado
(falsidade da contradição);

34
Conclusão 3: É falso que Sócrates não é um mamífero (o que implica uma falsidade é falso);
Conclusão 4: Sócrates é um mamífero (a tese demonstrada).

Vamos avaliar a estrutura do argumento. A tese tem sido demonstrada desfrutando o fato que a
sua negação leva a uma contradição com uma lei da natureza (a Premissa 1) e a experiência (a
Premissa 2). Uma tal inferência é possível em virtude do PNC e do significado da implicação: o
PNC nos garante que todas as contradições são falsas e o significado da implicação nos garante
que uma verdade nunca pode implicar uma falsidade e, logo, se algo implica uma falsidade deve
ser falso também. Esta técnica demonstrativa tornou-se uma das ferramentas lógicas
fundamentais não só na matemática, mas também na Metafísica tradicional. Claramente, os
argumentos de redução ao absurdo que encontramos precisam ser avaliados criticamente.
Disso surge a pergunta fundamental: em que uma “reductio” pode falhar? Para responder
precisamos considerar a sua estrutura: argumentos deste tipo consistem em mostrar que a
negação da tese entra em contradição com alguma outra proposição ou princípio já previamente
reconhecido como verdadeiro. Às vezes a controvérsia concerne justamente a esses princípios
com que a nossa hipótese entra em contradição: se eles poderiam ser falsos, então poderia não
haver nenhuma contradição e a negação da nossa tese permaneceria possível, isto é, não teria
sido completamente descartada.

4.2. O princípio de razão suficiente

Na seção anterior consideramos o princípio de não contradição, uma lei da lógica, que, todavia,
nos ofereceu a oportunidade de examinar algumas das suas consequências e formulações de
caráter metafísico. Nesta seção e na próxima, consideraremos dois princípios de natureza
marcadamente metafísica: o princípio de razão suficiente e o princípio de identidade dos indiscerníveis.
O Princípio de Razão Suficiente (PRS) é bastante complexo e controverso em decorrência da
grande variedade de formulações e versões. Resumidamente, o princípio afirma que tudo tem a
sua “razão suficiente”, isto é, tudo possui uma explicação completa. Este princípio está
tradicionalmente associado a Leibniz que o formulou, justificou e empregou em muitos pontos
das suas obras; todavia, o PRS tem uma história que vai muito além do contexto dos escritos de
Leibniz. Spinoza o formulou – se bem de forma diferente de Leibniz – como uma proposição
fundamental da sua metafísica e apelou a ele em muitas passagens fundamentais; Tomás de
Aquino também o usou, embora sem uma formulação clara; implicitamente o princípio foi
empregado também pelos Estóicos e outros filósofos antigos (até Parmênides é considerado um

35
precursor no emprego do PRS). Por isso, podemos dizer que o PRS é uma proposição
fundamental da Metafísica tradicional.
Primeiramente, precisamos entender o significado da expressão ‘razão suficiente’. Em termos
simples, podemos dizer que a razão suficiente para um dado evento ou entidade é uma
explicação da ocorrência do evento, da existência de uma entidade ou do fato que uma certa
entidade possui uma certa característica. Na seção 2 tentamos formular uma definição de
explicação: dissemos que ela é a explicitação dos fundamentos ou dos fatores causais, estruturais,
constitutivos da existência de uma certa entidade ou da ocorrência de um dado evento.
Esses fatores são o que tornam o estado de coisas a ser explicado (o explanandum) necessário: se
a presença da chama é a explicação pela presença do calor, então podemos também dizer que a
chama é condição necessária à presença do calor. Claramente, a nossa ideia de explicação é
maximamente abrangente e geral, pois quisemos extrapolar uma única noção de explicação que
refletisse a inteira história da Metafísica; como veremos, alguns autores têm noções de
explicação mais restrita: por exemplo, para Descartes, apenas a causa eficiente deve ser
invocada numa explicação. Podemos, portanto, considerar preliminarmente a expressão ‘razão’
em ‘razão suficiente’ sinônima de explicação, isto é, de condição necessária, de fator
necessitante. Agora precisamos entender o significado de ‘suficiente’. Voltemos ao nosso
exemplo: nem sempre a presença do calor requer a presença da chama; muitos corpos podem
ser aquecidos por outros meios, por exemplo, usando um fluido quente (por convecção), por
contato com um outro corpo quente (por condução), ou por meio de radiações. Estes são casos
em que há calor, mas não há chama, pois o calor se dá em virtude de outros fatores também. Em
outras palavras, em geral, a presença chama não é suficiente para justificar a presença do calor,
pois ela não representa a variedade dos possíveis mecanismos causais do aquecimento. Embora
a chama seja uma condição necessária, isto é, a sua presença acarreta a presença do calor, ela
não é suficiente, pois não explica, completamente e em todos os casos, a presença do calor.
Precisamos, portanto, de uma explicação mais forte. Por exemplo, poderíamos explicar o
aquecimento de um corpo em termos de um incremento da agitação das moléculas que o
compõem. Neste caso teremos uma “razão”, isto é, uma explicação, uma condição necessária,
dado que todas as vezes em que há um incremento de agitação molecular há um aquecimento;
além disso, a nossa “razão” será também “suficiente”, pois sempre que um corpo é aquecido ela
será caracterizado por um tal incremento de agitação molecular. Podemos resumir essas
considerações da seguinte forma:

36
Razão suficiente:
X é uma razão suficiente para Y, se a existência/ocorrência de X acarreta a existência/ocorrência de Y e
sempre que Y exista/ocorra, X existirá/ocorrerá também.

Na terminologia contemporânea, uma “razão suficiente” seria uma explicação das condições
necessárias e suficientes para a existência de um certo indivíduo ou a ocorrência de um dado
evento. Como pode aparecer neste exemplo, a formulação de uma explicação tão forte é uma
tarefa muito complexa, pois envolve sempre uma grande quantidade de informações e também
critérios adequados para estabelecer quando uma proposição é explicativa de um dado fato e
quando esta explicação é suficiente para o fato considerado.
Tendo em mente esta caracterização preliminar da noção de ‘razão suficiente’, podemos voltar
ao PRS. Afirmando que tudo tem a sua razão suficiente, o princípio nega a existência de
circunstâncias que não requeiram uma explicação completa, isto é, do que em Metafísica
costumamos chamar de “fatos brutos”. Um fato bruto é algo que simplesmente acontece, sem
nenhuma razão particular, sem nenhum fundamento: ele acontece sem um porquê. Acreditar
na existência de fatos brutos significa admitir que haja eventos ou entidades que não requerem
a existência de algo mais fundamental, que não requerem nenhum fundamento. A ideia por trás
da admissão de fatos brutos é que ao considerarmos a cadeia de explicações dos eventos do
mundo, chegaremos, a um certo ponto, a fatos primitivos que não possuem mais nenhuma
explicação e que não podem ser entendidos mais profundamente mas devem ser simplesmente
aceitos. Acontece isso por que acontece, o mundo é assim, aceite. O PRS decreta que fatos
brutos são impossíveis, que não podem existir, que sempre caberá perguntar o porquê de uma
certa coisa e que sempre haverá uma resposta. De certa forma, o PRS repousa sobre a ideia de
um universo totalmente racional, estruturado numa cadeia de fatos conectados, onde nenhum
evento ou circunstância se encontra isolado, mas tudo possui o seu próprio fundamento ou
“razão completa de ser” em alguma coisa existente. Considerado este quadro metafísico de
fundo, não surpreende que o PRS desempenhe um papel central nos sistemas da Metafísica
racionalista dos séculos XVII e XVIII. Mas é claro que a visão metafísica implicada pelo PRS de
uma realidade totalmente explicável, fundamentada e interconectada poderia ser questionada,
como nas eloquentes palavras de Hume:

“Todos os acontecimentos parecem inteiramente soltos e separados. Um acontecimento


segue outro, mas jamais nos é dado observar qualquer liame entre eles. Eles parecem
conjugados mas nunca conectados. E como não podemos ter nenhuma ideia de uma
coisa que nunca se apresentou ao sentido exterior ou ao nosso sentimento interior, a

37
conclusão inevitável parece ser que não temos absolutamente nenhuma ideia de conexão
ou de poder, e que essas palavras acham-se totalmente desprovidas de significado
quando empregadas tanto no raciocínio filosófico quanto na vida ordinária.” D. HUME,
Investigações, VII, II, 1

Claramente Hume manifesta uma atitude "agnóstica" sobre a estrutura metafísica da realidade,
dizendo que não temos nenhum acesso epistêmico a este tipo de coisas. Contudo, ele sugere que
o mundo nos aparece como um conjunto de fatos brutos e que, talvez, ele poderia realmente ser
este mero agregado sem nenhuma racionalidade. Bem entendido, afirmar que todos os fatos
são brutos ou que pelo menos alguns o são (e, logo, rejeitar o PRS) é também uma tese
metafísica: por isso autores como Hume, que querem se manter afastados das armadilhas da
Metafísica, evitam afirmações deste tipo e as endossam apenas como meras conjecturas ou
aparências.
Mas voltemos agora ao nosso princípio e à complexa e rica estrutura metafísica da realidade que
ele envolve. Vimos que podemos formular o PRS da seguinte maneira: tudo requer uma
explicação completa, tudo é completamente explicável. Esclarecemos o significado de
‘explicação’, portanto nos resta entender uma outra expressão problemática que ocorre nele:
‘tudo’. Poderíamos alegar que ‘tudo’ simplesmente se refere a todas as coisas, tudo o que existe
no universo e até o próprio universo como totalidade. Um uso do PRS nesta acepção é presente
no argumento cosmológico do Kalam, uma certa vertente da teologia islâmica:

Argumento cosmológico “Kalam”

Princípio de Razão Suficiente: Tudo o que veio a ser requer um fundamento;


Premissa 1: O universo veio a ser;
Conclusão 1: O universo requer um fundamento;
Conclusão 2: Deve existir uma entidade (Deus) que fundamenta a existência do universo.

Encontramos aqui uma formulação interessante do PRS, pois temos, ao mesmo tempo, uma
restrição e uma extensão do significado de ‘tudo’: o princípio se aplica a todas as coisas que tem
uma origem, que não são eternas, que são contingentes; mas, ao mesmo tempo, ele se aplica
também à totalidade destas coisas. A restrição evita um regresso ao infinito: ao buscarmos uma
explicação pela existência das coisas que percebemos devemos nos arrestar quando chegarmos a
uma entidade eterna e necessária. Por isso, o argumento Kalam não pode ser sucessivamente
aplicado ao próprio Deus: pois ele não seria algo que “vem a ser”; a existência de Deus, enquanto

38
ente necessário, seria um fato bruto, pois apenas fatos contingentes requerem uma explicação.
A extensão do significado de “tudo” entendendo não apenas cada coisa, mas a própria totalidade
das coisas nos autorizaria a procurar uma causa, um fundamento para o próprio universo
concebido como um inteiro.
Poderíamos pensar numa versão do PRS sem nenhuma restrição: tudo o que existe requer uma
explicação completa. Ou seja, para cada coisa existente X (incluindo a própria totalidade das
coisas) deve haver uma entidade Y (não necessariamente distinta de X) tal que Y é o fato
explicativo de X. O problema desta formulação é que ela poderia induzir um regresso ao
infinito: se literalmente todas as coisas requerem uma explicação, então não haverá nenhum
ponto, nenhuma “piso rochoso” da realidade em que a formulação de explicações deveria parar.
Uma solução comum para obviar este problema é a postulação de entidades e fatos auto
explicativos. Mas o que seria um fato auto explicativo e como ele seria distinto de um fato bruto?
Um fato bruto simplesmente não possui nenhuma explicação: devemos aceitar ele sem poder
compreender ulteriormente o seu porquê. Um fato auto explicativo é um fato que possui em si
mesmo todas as características para compreender o porquê ele ocorre. Por exemplo, quando
dizemos que Deus é um ente que contém em si mesmo a razão suficiente da sua própria
existência, estamos afirmando que, para explicar o porquê da existência de Deus, não devemos
invocar entidades diferentes dele, mas devemos apenas examinar as características
fundamentais de Deus. Aqui também temos uma fórmula latina clássica, endossada por
Spinoza, para resumir esta situação: “causa sui”, causa (ou, em geral, explicação) de si mesmo.
Dizer que Deus (ou alguma outra entidade) é ‘causa sui’ significa dizer que Deus possui
determinadas características pelas quais ele se garante autonomamente na existência: por
exemplo, 1) a sua eternidade, que exclui que ele veio a ser, excluindo assim a existência de uma
causa geradora fora de si; 2) a sua perfeição, que exclui que ele dependa do “auxílio” de outras
entidades para realizar seus planos; 3) a sua imutabilidade, que exclui que ela possa ser objeto
da ação de outras entidades, e, portanto, que possa ser determinado de um certo modo pela
ação de algo fora de si. Este exemplo deveria ajudar a compreender a diferença entre a
existência de Deus como fato bruto (sugerida, por exemplo, pelo “fideismo”) e como fato auto
explicativo. Obviamente tudo isso sempre foi objeto de enormes controvérsias: em época
medieval, por exemplo, havia muitos argumentos tentando provar que o conceito de ‘causa sui’
fosse contraditório.
Alguém poderia pensar que seria possível evitar o regresso ao infinito, engendrado pelo PRS,
considerando a possibilidade de “trajetórias circulares” na cadeia das explicações. Por exemplo,
suponhamos que existam apenas três entidades, A, B, e C, e que A explique B, B explique C e, C,

39
por sua vez, explique A. Neste contexto, o PRS seria válido, pois não haveria nenhuma entidade
sem explicação, nenhum fato bruto. Mas esta situação poderia acarretar consequências
indesejadas, para não dizer contraditórias. É opinião comum que a relação de explicação seja
transitiva: isto é, se X explica Y e Y explica Z, então X explica Z. Por exemplo, se a dilatação
térmica dos metais explica o funcionamento do termômetro a Mercúrio e a teoria química das
ligações metálicas explica a dilatação térmica dos metais, então é possível, a princípio, explicar o
funcionamento do termômetro a Mercúrio invocando a teoria química das ligações metálicas.
Mas se esta transitividade da explicação é realmente o caso, então teremos um “colapso
explanatório” na nossa situação imaginária: pois se A explica B, B explica C e C explica A, então
A explica A. O mesmo raciocínio pode ser repetido por B e C, com a consequência que todas as
entidades do nosso mundo imaginário seriam auto explicativas. Mas o nosso mundo não parece
ser desta forma: a grande maioria, e talvez a totalidade, dos fenômenos que presenciam
parecem exigir uma explicação e, por quanto nos aprofundamos no conhecimento deles, não
parece que o fundamento de suas características e existência resida neles mesmos.
Vimos que estender o PRS a todas as coisas existentes acarreta o problema do regresso ao
infinito. Apresentamos, brevemente, uma possível solução, isto é, a existência de fatos auto
explicativos. Agora precisamos considerar o PRS na sua extensão máxima e no seu uso mais
sistemático, para entender as profundas consequências filosóficas. Para fazer isso precisamos
considerar um dos pensadores que mais fez apelo a este princípio: Baruch Spinoza. O
comprometimento de Spinoza com PRS é lindamente descrito pelo estudioso Michael Della
Rocca, na primeira página do seu livro dedicado ao filósofo holandês:

“Todos os filósofos buscam explicações. Todos os filósofos procuram tornar inteligíveis o


mundo e nosso lugar nele. Compreender tais explicações é a esperança perene e a
promessa da filosofia. No entanto, quase todos os filósofos esperam que as explicações se
esgotem em algum momento, seja pelas limitações de nossas faculdades cognitivas, seja
pela recalcitrância do próprio mundo que admite certos fatos brutos, fatos sem
nenhuma explicação. [...] Quase todos os filósofos. Mas não Spinoza. [...]. A filosofia de
Spinoza é caracterizada talvez pelo compromisso mais ousado e completo que já
apareceu na história da filosofia com a inteligibilidade de tudo. Para Spinoza, nenhuma
pergunta por que está fora dos limites, cada pergunta por que - em princípio - admite
uma resposta satisfatória.” M. DELLA ROCCA, Spinoza, p. 1 (tradução nossa)

Mas vamos ver em que sentido Spinoza seria o “campeão” do PRS. Começaremos examinando
cuidadosamente a sua formulação do PRS:

40
“Para cada coisa deve poder designar-se a causa, ou razão, pela qual a coisa existe ou não
existe. Por exemplo: se um triângulo existe, deve dar-se a razão ou causa em virtude da
qual existe; se ele não existe, deve dar-se também a razão, ou causa, que impede que ele
exista, ou, por outras palavras, lhe iniba a existência. Ora, esta razão ou causa deve estar
contida ou na natureza da coisa ou fora dela. Por exemplo: a mera natureza do círculo
indica a razão pela qual não existe um círculo quadrado, a saber, por envolver
contradição” B. SPINOZA, Ética, I, prop. XI, dem. 2

Esta passagem pertence à demonstração da proposição XI da primeira parte de “Ética”, em que


Spinoza afirma a existência de Deus como ente necessário. Ela é muito densa e o apelo ao PRS é
explícito. Além disso, o princípio é enunciado com uma extensão máxima: não só tudo o que
existe requer uma explicação, mas também o que não existe. Por exemplo, a inexistência de
unicórnios, segundo Spinoza, não é um fato bruto: ele requer uma explicação, algo que
esclareça quais fatores e quais leis da biologia impediram o desenvolvimento de uma espécie
com as características morfológicas dos unicórnios. Esta extensão de aplicação do PRS tem
importantes consequências metafísicas. Vimos que explicar significa explicitar os fatores que
tornam necessária a ocorrência de um dado fato. Ora, se tudo o que não existe requer uma
explicação, então para cada coisa inexistente deve existir alguma coisa que torna necessária a
sua inexistência, isto é, impossível a sua existência; ao mesmo tempo, este fator deve ser
suficiente, isto é, deve explicar a ausência de unicórnios em todos os contextos possíveis.
Portanto, tudo o que não acontece, tudo o que não existe é impossível que aconteça ou que
exista, pois há uma razão suficiente que o “inibe”. Se hoje de manhã eu não tomei café, é por que
havia alguma coisa que tornou isso impossível, algum obstáculo insurpassável. A vitória da
Alemanha na segunda guerra mundial, similarmente, não só não ocorreu, mas era impossível
que ocorresse, pois deve haver alguma razão suficiente para a sua ausência. De tudo isso
segue-se que o nosso mundo não poderia ter sido de outro modo, dado que ele possui em si
todos os fatores para excluir qualquer alternativa diferente de como ele é. Se o mundo não
poderia ter sido de outro modo, então ele é necessário: não existem possibilidades alternativas e
o que não aconteceu é simplesmente um absurdo, algo impossível. Ora, se pensarmos ao livre
arbítrio como baseado na possibilidade de agir de outro modo, a formulação do PRS de Spinoza
decreta a sua impossibilidade: eu nunca poderia ter agido de outro modo, dado que para cada
linha de ação alternativa existe atualmente uma razão suficiente que a torna impossível. Por
isso, Leibniz não usará a mesma formulação do PRS e considerará as questões de inexistência
como fatos brutos.
O PRS é considerado por Spinoza e por Leibniz (e, às vezes, por Descartes) como um axioma
fundamental a partir do qual importantes proposições metafísicas são justificadas. Um

41
interessante exemplo é o princípio de conservação da causalidade: nada pode estar presente no efeito
sem estar previamente presente na causa. De fato, se o efeito tivesse características que não
houvesse herdado da sua causa, então tais características teriam simplesmente “surgido do
nada”, isto é, seriam inexplicáveis; mas algo inexplicável é um fato bruto e o PRS nega a
existência de fatos brutos. Uma importante consequência disso, nos sistemas de Spinoza e
Descartes, é a completa separação entre estados físicos e mentais. Suponhamos que eu pense
em erguer o meu braço e, na sequência, o meu braço de fato é erguido pelos meus músculos.
Temos aqui um estado mental, a intenção de erguer meu braço, e um fenômeno físico, o
movimento do meu braço. Ora, o fenômeno físico não possui nenhuma característica mental:
ele não é um pensamento, mas um movimento mecânico. Da mesma forma, segundo Descartes
e Spinoza, a minha intenção de mover meu braço não é um fenômeno físico, pois todos os
fenômenos físicos são interações entre corpos no espaço, enquanto o meu pensamento não é
localizado. Logo, se a minha intenção de erguer o braço fosse a razão suficiente do seu
movimento, teríamos um absurdo: as propriedades físicas do movimento do meu braço teriam
surgido do nada, seriam fatos brutos não contidos na causa mental. Portanto, a cadeia dos
fenômenos físicos deve ser independente da cadeia dos fenômenos mentais. Esta breve
exposição de um argumento clássico da Metafísica racionalista mostra a importância e a
profundidade do PRS. Existem outros exemplos interessantes. Por exemplo, Leibniz demonstra
a inexistência do espaço absoluto da física newtoniana apelando ao PRS. Newton alegou que, no
nosso universo, além dos corpos, existe uma outra entidade, uma “substância especial”: o
espaço. O espaço contém os corpos e não interage com eles: é a “arena dos eventos” para usar
uma expressão do cientista inglês. Ora, Leibniz refutou esta visão recorrendo a um
experimento mental. Imaginemos que cada corpo no universo tivesse uma deslocação de 1
metro numa dada direção; chamemos de U o universo inicial e de U’ o universo uniformemente
deslocado de 1 metro. Leibniz fez uma observação crucial: os universos U e U’ seriam
indistinguíveis do ponto de vista dos eventos físicos que neles ocorrem . Eles abrigariam as
mesmas interações entre corpos, os mesmos sistemas planetários, as mesmas colisões, as
mesmas velocidades e acelerações, etc… . A única diferença seria que as coisas em U’ acontecem
“um metro mais para lá…”. Mas não seria possível mencionar nenhum evento físico que
distinguisse U de U’, então não seria possível mencionar uma razão suficiente para a existência
de U que não fosse também suficiente para a existência de U’. Em outras palavras, não
poderíamos formular uma razão suficiente que garanta que nós estamos no universo U e não no
universo U’. Por consequência, a posição espacial de cada corpo no universo seria um fato bruto;

42
mas, pelo PRS, fatos brutos não existem, logo, tampouco pode existir um espaço de posições
absolutas, que foi o que nos permitiu de imaginar U e U’ como distintos4.
Os exemplos anteriores mostram que o PRS é grávido de consequências metafísicas; além disso
ele está profundamente atrelado ao próprio método da Metafísica tradicional: afinal, se a
Metafísica é uma ciência que procede também abdutivamente, isto é, inferindo novas
proposições por explicação e se tudo o que existe necessita de uma explicação, então o campo de
aplicação da Metafísica torna-se o próprio Ser.
Mas realmente teremos de aceitar a verdade do PRS? Realmente não existem fatos brutos? Para
responder esta pergunta precisamos entender alguns detalhes do princípio que abriram as
portas para críticas contundentes. O primeiro ponto que devemos examinar é a própria noção
de razão suficiente e, em particular, se ela for uma noção ontológica (isto é, pertencente à ordem
das coisas em si) ou se for apenas uma noção epistêmica (isto é, pertencente à nossa maneira de
conceber o mundo). Consideremos as seguintes versões do princípio:

PRS-E (variante epistêmica)


Tudo o que é inteligível requer uma explicação completa.

PRS-O (versão original ontológica)


Tudo o que existe requer uma explicação completa.

Naturalmente, o PRS de que falamos até agora é o PRS-O. Quanto ao PRS-E, ele parece isento
de controvérsias: afinal, 'ser inteligível’ significa ser adequadamente explicado. Poderíamos
dizer que o PRS-E é uma verdade analítica a priori, pois é verdadeiro em virtude do significado
de ‘inteligível’ e ‘explicação completa’. Contudo, ele é muito mais fraco que o PRS-O: ele é
compatível com a existência de fatos brutos, pois eles seriam apenas uma parcela dos fatos não
inteligíveis da realidade. Ou seja, poderíamos aceitar o PRS-E e, ao mesmo tempo, admitir que
o universo não seja totalmente inteligível, que nem tudo esteja ao alcance das nossas
capacidades de formular explicações. Neste caso, perante ao fracasso de séculos em explicar um
dado fato, não seria absurdo conjecturar que ele seja um fato bruto. Por outro lado, o PRS-O
prescinde, na sua formulação, da capacidade do sujeito de compreender a realidade: ele afirma
simplesmente que tudo o que existe possui um fundamento metafísico, seja este fundamento
4
É possível reproduzir o argumento de Leibniz também no caso do espaço-tempo de Minkowski da teoria da
Relatividade. Na sua versão relativística, o experimento mental é conhecido como “argumento do buraco” (em
inglês, ‘hole argument’) e é baseado na impossibilidade de excluir alguns “modelos não standard” das equações de
campo de Einstein (no caso, um modelo de espaço tempo com um burraco).

43
acessível ou não à nossa mente. Podemos até vislumbrar uma pequena diferença de significado
na palavra ‘explicação’ nos dois princípios: no primeiro caso – o PRS-E – ‘explicação’ estaria se
referindo à nossa maneira de compreender, no segundo caso - o PRS-O - explicação estaria se
referindo a uma conexão metafísica entre as coisas em si. No primeiro caso, talvez, seria mais
correto falar de ‘justificativa explanatória’, enquanto, no segundo, de ‘fundação ontológica’; uma
justificativa explanatória representa a nossa maneira de adquirir certeza e conhecimento
detalhado sobre um determinado fato; uma fundação ontológica representa a camada da
realidade mais fundamental da qual a existência do fato a ser explicado depende. Esta distinção
foi introduzida por Aristóteles e reformulada com muita clareza pelos autores medievais: a
famosa diferença entre a “ratio cognoscendi" (a explicação do fundamento do nosso
conhecimento) e a “ratio essendi” (a explicação do fundamento da existência) de uma dada
entidade.
O problema fundamental é que, enquanto o PRS-E é evidente e racionalmente aceitável, o
PRS-O é controverso, pois não temos nenhuma evidência conclusiva sobre a inexistência de
fatos brutos. Spinoza percebeu esta discrepância, isto é, percebeu que a evidência do PRS-E
deixava aberta a possibilidade de habitarmos um universo obscuro, oculto nos seus
fundamentos e, além de parcialmente ininteligível, rico de fatos brutos. Por isso Spinoza
empregou – às vezes sub-repticiamente – um “princípio ponte” que constitui a essência do seu
racionalismo filosófico: tudo o que existe é inteligível. Deste princípio e do PRS-E se segue o
PRS-O. Se aceitarmos esta análise chegaremos a uma concepção da realidade extremamente
racionalista: a realidade é racional não só no sentido que não existem fatos brutos, mas também
no sentido que a fundação ontológica de cada fato pode ser expressada nos moldes da
“racionalidade humana”, isto é, por meio de argumentos formulados nas linguagens humanas.
Em outras palavras, a toda “ratio essendi” corresponde uma clara e acessível “ratio
cognoscendi”. Eis que a Lógica, a Epistemologia, a Metafísica e a própria ação humana se
amarram no projeto de um saber universal; não surpreende que o texto em que Spinoza expõe a
sua Metafísica seja intitulado ‘Ética’.
Tais posições filosóficas são controversas e talvez justificar o PRS a partir da universal
inteligibilidade da realidade não seja a melhor estratégia. Leibniz admitiu os limites da nossa
inteligência, reconhecendo, ao mesmo tempo, a ilimitada abrangência do PRS:

“Nossos raciocínios estão fundados em dois grandes princípios, o da contradição, em


virtude do qual julgamos que é falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto ou
contraditório ao falso. E o de razão suficiente, em virtude do qual consideramos que
nenhum fato pode ser verdadeiro ou existente, nenhum enunciado verdadeiro, sem que

44
haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo, ainda que com muita
freqüência estas razões não possam ser conhecidas por nós.” G.W. LEIBNIZ, Monadologia,
§.31-32

Mas se não podemos demonstrar o PRS a partir da universal inteligibilidade do mundo e da


própria noção de inteligibilidade, por que devemos aceitá-lo? Leibniz tentou uma mirabolante
justificativa do PRS que visasse mostrar a sua analiticidade a priori. Em outras palavras, para
Leibniz, o PRS seria verdadeiro em virtude dos conceitos de ‘existir’, de ‘requisito’ e de ‘razão
suficiente’. Para Leibniz, afirmar que ‘Sócrates existe’ significa afirmar não só a existência de
Sócrates, mas também de todas as condições necessárias à existência de Sócrates. Se Sócrates,
para existir, requer a existência de seus pais, então o significado de ‘Sócrates existe’ incluiria
também a afirmação da existência dos pais do famoso filósofo grego; combinando este conceito
de existência com o de requisito obteremos, de forma não muito clara, o conceito de ‘razão
suficiente’. Portanto, o PRS-O seria uma verdade analítica a priori, enquanto a noção de razão
suficiente estaria já incluída nas noções de existência e de requisito. O que parece muito
obscuro e fortemente duvidoso; Kant criticou de forma eloquente esta abordagem:

“Tomemos a proposição: Tudo o que acontece tem uma causa. No conceito de algo que
acontece concebo, é certo, uma existência precedida de um tempo que a antecede, etc. e
daí se podem extrair conceitos analíticos. Mas o conceito de causa está totalmente fora
desse conceito e mostra algo de distinto do que acontece; não está, pois, contido nesta
última representação. Como posso chegar a dizer daquilo que acontece em geral algo
completamente distinto e reconhecer que o conceito de causa, embora não contido no
conceito do que acontece, todavia lhe pertence e até necessariamente?” I.KANT, Crítica da
Razão Pura, B13

Há também um outro problema relacionado ao PRS. Se todos os fatos requerem uma explicação
e se esta mesma proposição descreve um fato, então precisaremos também de uma explicação
do próprio PRS! Em outras palavras, por que todos os fatos requerem uma explicação? Qual é a
razão suficiente do fato que tudo requer uma razão suficiente? Claramente, não podemos
afirmar que a necessidade de uma razão suficiente para cada coisa seja um fato bruto, pois
cairíamos numa contradição. É interessante que o próprio Leibniz pareceu estar ciente desta
problemática e ele forneceu dois tipos de resposta. A primeira está baseada na observação do
parágrafo anterior: mostrar que o PRS é analítico a priori constitui uma explicação do próprio
PRS. Contudo, vimos que esta justificativa é insatisfatória. A segunda resposta de Leibniz é de
ordem teológica: Deus é um ser perfeito, logo ele é sumamente racional; portanto, Deus não cria

45
o mundo de acordo com o seu capricho pessoal, mas sempre tendo uma boa razão para cada
entidade que ele introduz. Esta resposta parece interessante, mas é inevitavelmente circular: se
o PRS é usado para explicar a existência de Deus (por exemplo, nos argumentos cosmológicos),
como pode Deus explicar o PRS? Afinal, é opinião comum que a relação de explicação seja
anti-simétrica: se A explica B, então B não pode explicar A. Se a estrutura racional do universo
explica a presença de um “arquiteto racional”, então esta mesma estrutura deve ser explicada
por meio de alguma outra coisa. Resta aberta a possibilidade, que em alguns pontos Leibniz
explora, de justificar a existência de Deus apelando apenas à lógica e ao PNC e, sucessivamente,
explicar o PRS apelando à perfeição de Deus. Mas isso não é tão fácil como parece e as provas a
priori da existência de Deus, além de ser logicamente controversas, envolvem outras premissas
cuja verdade é altamente dubitável.
Voltando à abordagem de Spinoza, hoje em dia temos dificuldade em acreditar na universal
inteligibilidade do mundo. Pelo contrário, a filosofia contemporânea tem tematizado
explicitamente o absurdo como categoria fundamental da realidade que não é mais vista como
uma totalidade racional ou, pelo menos, não segundo o cânone da racionalidade humana. Esta
possibilidade, que tem suas raízes no pensamento de Schopenhauer, é aberta pela reflexão de
Kant sobre o PRS. Claramente, o filósofo de Königsberg não aceitaria o PRS-O, enquanto seria
uma afirmação sobre “a coisa em si” e não sobre os fenômenos. Tampouco, como vimos, o
aceitaria como verdade analítica a priori; afinal, se fosse realmente uma proposição deste tipo
seria algo banal, o que não podemos dizer do PRS-O. A estratégia de Kant é formular uma nova
versão do PRS, uma versão transcendental:

PRS-T (variante transcendental)


Todo o material de experiência possível requer uma organização formal em termos de relações de
causa-efeito.

Falamos de ‘causa’ e não de ‘razão suficiente’ pois Kant se coloca na tradição cartesiana da
redução de todas as explicações a explicações causais (segundo a causa eficiente). Precisamos
entender – pelo menos superficialmente – a formulação kantiana e porque não podemos
derivar a partir dela o PRS-O acrescentando a premissa ‘tudo é material de experiência possível’.
De acordo com Kant, a relação de causalidade (e, logo, qualquer relação explicativa) não é uma
relação metafísica que subsiste entre as coisas em si, pois, como Hume nos ensinou, não
podemos afirmar nada sobre a estrutura do mundo em si, mas apenas sobre o conteúdo da
nossa experiência. ‘Causa’ segundo Kant nada mais é que um conceito que o nosso intelecto

46
emprega para organizar o material que vem da experiência. Logo, dizer que ‘A é causa de B’
significa dizer ‘o intelecto organizou a experiência de forma tal que o fenômeno A antecede o
fenômeno B e A e B estão conectados na organização da percepção’. O conceito de ‘causa’ não
denota nada na realidade em si, mas é apenas um “arquivo de sistema” do nosso sistema
cognitivo usado para fazer determinadas operações sobre o material que vem dos sentidos.
Logo, se algo é objeto de experiência possível, é necessário que seja organizado pelo nosso
sistema cognitivo segundo as suas estruturas; dado que a causalidade pertence a esta estrutura
organizativa da cognição, então se algo é objeto de experiência possível será encaixado na cadeia
causal das percepções pelo nosso intelecto. ‘Razão suficiente’ não é, portanto, mais o nome de
uma fundação metafísica das coisas em si, mas o nome de uma mera operação do intelecto
baseada em um acervo de conceitos base da cognição (as famosas categorias kantianas, como
causa, necessidade, substância, etc…). Na Crítica da Razão Pura (em particular, na Analítica dos
Princípios, no parágrafo B da seção dedicada às analogias da experiência) Kant demonstra a
verdade do PRS-T, mas isso não implica nem a racionalidade do mundo, nem a sua
inteligibilidade universal: o princípio é verdadeiro apenas em virtude da estrutura do nosso
sistema cognitivo, do que Kant chama de estrutura do sujeito transcendental. Por isso, mesmo se
aceitarmos a premissa que tudo é objeto de experiência possível (o que Kant não aceitaria), o
princípio que derivamos a partir de PRS-T não teria a mesma significatividade do PRS-O, pois
ainda não implicaria numa estrutura racional do universo em si, mas apenas da pluralidade dos
fenômenos.
A filosofia kantiana ofereceu a base conceitual para uma das críticas mais contundentes ao uso
metafísico do PRS: a de Schopenhauer. Ele aceita o fato que conceitos como os de explicação, de
causa, de razão suficiente pertencem apenas ao nosso modo de representar o mundo e não ao
mundo em si. A exigência de procurar explicações e fundamentos não encontra, portanto, um
respaldo na estrutura metafísica da realidade, mas é apenas uma consequência imediata de
como opera a nossa cognição. Nas suas palavras, a explicação, a causalidade, a conexão entre os
fatos são aspectos pertencentes apenas ao “mundo como representação”. Até aqui Kant
concordaria, pelo menos em linha geral. Mas Schopenhauer dá um passo ulterior: não é verdade
que não podemos dizer nada sobre a realidade em si, sobre o “noumeno”: se tudo o que é objeto
de experiência é organizado segundo determinadas estruturas (e vice versa), então tudo o que
está além da experiência não é organizado segundo essas mesmas estruturas. Em outras
palavras, o noumeno seria caracterizado pela negação das “formas” de toda experiência possível.
Por exemplo, se o nosso sistema cognitivo organiza tudo em base às noções de espaço, tempo e
causalidade, então o mundo em si não possui nem espaço, nem tempo, nem causalidade. No

47
universo “extra-mental” não existiria critério para demarcar espacialmente corpos diferentes,
nem para ordená-los numa série temporal, nem para conectá-los em termos de causa e efeito.
Não haveria nem pluralidade, nem ordem, nem estrutura. O noumeno – que Schopenhauer
passará a chamar de ‘vontade’ – não opera segundo a nossa estrutura cognitiva, e não há razão
suficiente para a sua existência. O mundo é essencialmente e intrinsecamente irracional, um
gigantesco fato bruto unitário e atemporal.
À luz das nossas observações sobre o PRS e das críticas que brevemente examinamos, qual deve
ser a nossa atitude? Devemos rejeitar o PRS como uma relíquia de uma época ultrapassada?
Oferecer uma resposta satisfatória seria uma tarefa de uma complexidade enorme; tudo o que
podemos fazer é tentar esboçar algumas tendências a esse respeito da Metafísica
contemporânea. Em tempos recentes, a filosofia analítica tem colocado ao centro de suas
reflexões a noção de “fundação ontológica” (em inglês, ‘metaphysical grounding’, ou simplesmente
‘grounding’). Esta noção resgata a concepção aristotélica da polissemia da palavra ‘ser’. A
expressão ‘X existe’ teria muitos significados diferentes: em particular, algumas entidades
seriam mais fundamentais do que outras e determinados fatos “primitivos” garantiriam a
existência de outros fatos “derivados”. O quadro geral é de uma ontologia a camadas múltiplas,
onde as camadas mais profundas representam os aspectos mais fundamentais da realidade que
garantem a existência dos aspectos derivados (as camadas mais superficiais). Por exemplo, as
cores de uma pintura não seriam uma mera aparência, mas apenas um fato derivado que
encontra sua fundação ontológica num fato mais fundamental, isto é, a composição química
das tintas empregadas. A Metafísica continuaria sendo o saber explicativo e as explicações que
ela exige seriam proposições sobre a fundação ontológica. A introdução da fundação ontológica
na Metafísica contemporânea levanta inevitavelmente a questão de quais seriam os fatos que
requerem uma fundação ontológica,se existem fatos brutos, isto é, fatos sobre os quais não cabe
perguntar sobre o seu “grounding” e fatos “auto fundantes”. Tudo isso remete à discussão sobre
uma nova versão do PRS:

PRS-G (variante em termos de “grounding”)


Todo fato requer um fato mais fundamental em virtude do qual ele ocorre;
ou,
Todo fato requer a ocorrência de um outro fato como sua fundação ontológica.

48
A expressão ‘em virtude de’ é o correspondente linguístico (no português) da relação de
fundação ontológica. De acordo com as principais tendências da literatura recente sobre o
tema5, a relação de fundação ontológica apresentaria as seguintes propriedades:

1. Nenhum fato é a fundação ontológica de si mesmo (irreflexividade);


2. Se um fato A é fundação ontológica de um fato B, então B não pode ser fundação
ontológica de A (assimetria);
3. Se um fato A é fundação ontológica de um fato B e B é fundação de C, então A é fundação
ontológica de C (transitividade).

A aceitação do PRS-G combinada com a reflexividade da relação de fundação nos levaria de volta
ao problema do regresso ao infinito, logo uma das duas proposições deverá ser rejeitada; a
tendência mais comum é o abandono do PRS-G. O que é interessante nesta sede é que é a
rejeição do PRS-G não necessariamente levaria a uma concepção “irracionalista” da realidade
noumênica; afinal, “quase tudo” continuaria requerendo uma razão suficiente. O universo seria
organizado em camadas ontológicas e ele admitiria uma primeira camada, o leito de pedras
desse grande rio que habitamos e que chamamos de “nosso mundo”. Claramente, não haveria
nenhuma explicação para estes fatos primitivos: o pano de fundo da nossa realidade existiria
sem uma razão suficiente. Mas isto não significa entregar o mundo ao oculto; se a base do que
existe não possui uma explicação, ela tampouco possui um fato que a torna necessária. Por
consequência, estaria aberta a possibilidade para o nosso mundo de ser de outro modo, para a
“existência” de outros mundos possíveis. E uma Metafísica que admita possibilidades
alternativas não necessariamente corresponde à ideia de habitarmos um mundo irracional.

4.3. O princípio de identidade dos indiscerníveis

Nesta seção examinaremos um outro “grande clássico” da Metafísica moderna: o princípio de


identidade dos indiscerníveis (PII). Enunciado claramente por Leibniz, ele foi usado implicitamente
por Spinoza e Descartes em alguns argumentos fundamentais. Antes de examinar a formulação
do princípio precisamos entender um pouco porque a identidade é uma questão relevante para

5
Para aprofundamentos e bibliografia consultar o verbete ‘Metaphysical Grounding’ da Stanford Encyclopedia of
Philosophy ao seguinte link: https://plato.stanford.edu/entries/grounding/

49
a Metafísica e porque precisamos de um princípio que, de certa forma, explique o significado da
identidade.
A relação de identidade – expressa em português pelo verbo ser e denotada simbolicamente por
‘=’ – tem a ver primeiramente com a identificação ou individuação dos entes. Se eu afirmo que
na minha mesa há dois objetos (por exemplo, uma xícara de café e uma caneta), é por que foi
possível identificar cada objeto e, em virtude desta identificação, dizer que um é distinto do
outro. Esta operação, aparentemente banal, é de crucial importância para a ontologia que, entre
outras coisas, tem o objetivo de fazer “o inventário do universo”, isto é, a lista do que existe e de
como existe. Portanto, compreender a identidade é primeiramente uma questão metafísica,
muito embora hoje em dia as leis da identidade sejam apresentadas como leis da Lógica6. Um
claro exemplo da importância metafísica de compreender a identidade e a distinção entre as
coisas é representado pelo problema corpo-mente: o corpo e a mente seriam duas coisas
distintas ou apenas dois aspectos de uma única coisa? E, caso tenhamos uma resposta positiva,
esta única coisa se identifica com o corpo, a mente, ou nenhum dois dois? Como estamos vendo,
a Metafísica é chamada a oferecer respostas sobre questões de identidade e diferença; sabemos,
também, qual é o método da Metafísica para responder: formular conceitos e combiná-los em
proposições com valor explicativo; além disso, a verdade destas proposições deve ser garantida
ou por meio de demonstrações dedutivas/abdutivas, ou de forma mais imediata, caso se trate de
princípios primeiros. Como veremos, o PII representa a resposta metafísica ao problema de
compreender a identidade.
Primeiramente, precisamos definir rigorosamente os conceitos envolvidos, isto é, o conceito de
identidade. Podemos partir do uso comum que fazemos da expressão relacional ‘A é idêntico a B’
(ou, em símbolos, ‘A = B’). Começaremos com dois exemplos:

1. Superman = Clark Kent;


2. A estátua da liberdade de New York = a estátua da liberdade de Colmar.

No primeiro caso, poderíamos parafrasear a afirmação dizendo ‘Superman e Clark Kent são a
mesma pessoa’, ou ‘existe um único indivíduo e este às vezes se apresenta como Clark Kent, às

6
Na Lógica da segunda-ordem de Frege, há um axioma chamado “lei de Leibniz” que combina o princípio de
identidade dos indiscerníveis com o princípio de indiscernibilidade dos idênticos:

a = b ↔ ∀P (Pa ↔ Pb)

Leia-se: a é idêntico a b se e somente se, para toda propriedade P, a possui P se e somente se b possui P.

50
vezes como Superman’. O segundo caso é diferente: claramente não estamos dizendo que há
uma única estátua da liberdade que às vezes está nos EUA, às vezes na França; estamos falando
de duas estátuas, numericamente distintas, mas em um certo sentido iguais. O que queremos
afirmar é que as duas estátuas são perfeitamente idênticas nas suas qualidades: altura, formato,
material, etc… .São cópias uma da outra. Deveria parecer claro que estamos usando a palavra
‘identidade’ com dois significados diferentes e isso pode causar ambiguidades. Então,
precisamos traçar essa distinção e começar a usar palavras diferentes. No segundo caso,
estamos falando de entidades numericamente distintas mas qualitativamente idênticas: por
isto, falamos de ‘identidade qualitativa’ ou ‘indiscernibilidade’. Dizemos que as duas estátuas são
indiscerníveis por que não há nenhuma característica que uma possui e a outra não; não há
nenhuma qualidade a que poderíamos apelar para descrever a diferença qualitativa entre as
duas estátuas. Quanto ao segundo caso, estamos falando de uma identidade mais forte, que não
prevê distinção numérica, já que temos um único indivíduo: neste caso, falamos de ‘identidade
numérica’ ou, simplesmente, de ‘identidade’ (doravante usaremos ‘identidade’ apenas com
referência à identidade numérica). O PII nos diz como essas duas noções se relacionam; em
particular, afirma que indiscernibilidade implica identidade. Estamos prontos para ler a
formulação de Leibniz:

“Seguem-se daqui vários paradoxos consideráveis, entre outros, por exemplo, não ser
verdade duas substâncias assemelharem-se completamente e diferirem apenas solo
numero” G.W. LEIBNIZ, Discurso de Metafísica, §IX.

Vamos entender a passagem. Leibniz fala de ‘diferença solo numero’: em latim, ‘solo numero’
significa ‘apenas numericamente’. Quanto à primeira parte da citação, ‘assemelhar-se
completamente’ denota a identidade qualitativa, isto é, a indiscernibilidade. Portanto, de acordo
com Leibniz, é impossível que duas substâncias (i.e. duas entidades individuais fundamentais)
sejam indiscernível e numericamente distintas, isto é, não idênticas. Podemos esclarecer um
pouco esta formulação:

Princípio de identidade dos indiscerníveis (PII)


Para todo a e b, se a e b possuem todas as propriedades em comum (isto é, se eles são indiscerníveis), então a é
idêntico a b (isto é, ‘a’ e ‘b’ são apenas dois nomes para uma mesma coisa)

Em outras palavras, Leibniz diria que as duas estátuas da liberdade, isto é, a de New York e a de
Colmar, não podem ser indiscerníveis, pois neste caso haveria uma única estátua; deve haver,

51
portanto, alguma característica que a de New York possua e a de Colmar não possua, alguma
qualidade que possa agir como discriminante, que nos permita discernir uma estátua da outra.
A consequência disso é que é impossível que existam duas cópias, duas réplicas, duas entidades
indiscerníveis mas, ao mesmo tempo, duas. O próprio Leibniz reconhece que esta proposição
tem um caráter paradoxal; o que ele quer dizer com isso? O filósofo alemão está usando o
adjetivo paradoxal no seu significado etimológico: o que vai contra a ‘doxa’, a opinião comum, o
bom senso, as nossas intuições fundamentais. De fato, parece perfeitamente concebível que
existam duas coisas perfeitamente similares mas numericamente distintas. Não parece haver
nenhuma contradição em imaginar um universo perfeitamente simétrico contendo apenas duas
esferas perfeitamente equivalentes sob todos os aspectos. Então por que Leibniz está querendo
forçar a aceitação de um princípio tão contra intuitivo?
Leibniz apresenta em vários pontos da fragmentada e heterogênea exposição do seu sistema
justificativas muito diversas para o PII. A mais simples e clara é a que concebe este princípio
como uma consequência do PRS. Suponhamos que realmente existam duas esferas
qualitativamente idênticas e, convencionalmente, chamemos uma de A e a outra B (não importa
qual das duas é A e qual B)7. Pelo PRS, deve existir uma razão suficiente para A e uma razão
suficiente para B. Suponhamos que já temos essas explicações; por exemplo, a esfera A existe
por que a forma esférica é perfeita e Deus criou tudo o que é perfeito; a esfera A tem um raio,
por exemplo, de 1 metro por que a esta geometria corresponde uma condição estável da sua
energia interna; a esfera A é de um certo material M por que M é o único material que pode
realizar uma superfície perfeitamente lisa, etc… . Eis que temos um problema: todas essas
explicações se aplicam também à esfera B. Ou seja, qualquer razão suficiente para explicar a
existência de A, também explica a existência de B. Mas isso significa que esta razão é
insuficiente: se tudo o que explica A explica também B, então por que existem duas esferas?
Qual é a explicação deste fato ulterior? A única maneira de explicar a existência de duas esferas
seria uma razão que seja suficiente para a esfera A e insuficiente para esfera B (ou vice versa);
nesta situação teremos margem para a existência de uma explicação ulterior que seja adequada
apenas a B e não a A. Mas esta explicação ulterior não pode existir, pois, sendo A e B
indiscerníveis, qualquer explicação de B será também uma explicação de A. Logo, a distinção
numérica entre as esferas seria um fato bruto; mas, pelo PRS, fatos brutos são impossíveis.
Portanto, é impossível que existam duas coisas indiscerníveis mas não idênticas.
O argumento de Leibniz, contudo, não parece totalmente convincente; vamos, portanto,
considerar algumas possíveis objeções preliminares. Primeiramente, podemos rejeitar o

7
O exemplo é tomado do célebre artigo de Max Black, ‘The Identity of Indiscernibles’, Mind, 61: 153–64, 1952.

52
próprio PRS: afinal, fatos brutos poderiam existir. Mas isso não resolve a questão, dado que, é
opinião comum entre os estudiosos que Leibniz poderia ter derivado o PII de outro modo, sem
apelar ao PRS.
Uma segunda objeção poderia ser de cunho “newtoniano”: além das duas esferas, deve existir
também o espaço absoluto em que elas estão localizadas. Ora, o espaço é composto por “pontos
inextensíveis” que representam as possíveis posições que os corpos podem ocupar. Portanto, as
duas esferas não seriam indiscerníveis: a esfera A ocupa o ponto P e a esfera B ocupa o ponto Q.
Infelizmente, Leibniz teria munições para resistir ao ataque: o ponto P e o ponto Q seriam, por
sua vez, duas entidades indiscerníveis. Afinal, tudo o que caracteriza individualmente as
entidades geométricas é a forma e a extensão, duas coisas que os pontos não possuem. Logo,
não haveria uma razão suficiente que explicasse a existência de cada um e a diferença numérica
entre eles. Em outras palavras, Leibniz poderia (e de fato fez isso) aplicar novamente o inteiro
raciocínio aos pontos P e Q, rejeitando assim, a própria noção de espaço absoluto. Para ele, não
existe o espaço como uma substância além dos corpos, mas apenas relações entre corpos.
Vale a pena entender como um defensor do PII caracterizaria a situação em termos das relações
recíprocas entre as duas esferas, sem invocar a existência do espaço absoluto. Suponhamos que
as duas esferas estejam à distância de 10 metros uma da outra. Podemos introduzir dois
predicados que denotam duas propriedades distintas: ‘estar a 10 metros de A’ e ‘estar a 10 metros
de B’. Ora, a esfera A possui a propriedade de estar a 10 metros de B (e a esfera B a propriedade
de estar a 10 metros de A); contudo, a esfera B não possui a mesma propriedade, pois seria um
absurdo dizer que B está a 10 metros de si mesma. Disso segue-se que há uma propriedade que
a esfera A possui e que a esfera B não possui; em outras palavras, as duas esferas são
discerníveis. Logo, no exemplo considerado, não seria correto dizer que há duas entidades que
são ao mesmo tempo discerníveis e não idênticas: portanto, o caso do universo das duas esferas
não representa uma contra exemplo ao PII, que continua válido8.
O PII está resistindo ao nosso cerco baseado na “doxa”: afinal, as nossas intuições a favor da
existência de indiscerníveis numericamente distintos não querem calar. Vamos, portanto,
tentar ouvir esta “voz interna” e refinar, com o auxílio de um bom léxico filosófico, suas
sugestões confusas. Parece que as relações entre as duas esferas deveriam ser irrelevantes para a
sua identificação. Afinal, se eu estou sentado numa cadeira no meu escritório e depois me
desloco para outra cadeira na sala (então, por exemplo, a 5 metros de distância da cadeira do
8
Podemos ver logicamente qual seria a forma de um contra exemplo ao PII. O princípio tem a forma de um
condicional: se a e b são indiscerníveis, então são idênticos. Um condicional é falso quando o antecedente é
verdadeiro e o conseguinte é falso; portanto, um contra exemplo ao PII deveria ter a forma: a e b são indiscerníveis e
a e b são numericamente distintos.

53
escritório), não é por isso que a minha identidade vai mudar. Parece que as características que
me definem pelo que eu sou nada têm a ver com as minhas relações espaciais com outras
entidades. A minha deslocação do escritório para a sala não acarretou uma minha
“transformação”: afinal, sou sempre eu, idêntico a mim mesmo, só que em um lugar diferente.
Da mesma forma, não parece relevante para identificar as duas esferas o fato que elas estejam a
uma certa distância uma da outra. Portanto, o defensor do PII estaria cometendo um erro ao
considerar relações espaciais como propriedades características das esferas. Este mesmo discurso
pode ser generalizado para outros tipos de relações. Suponhamos que eu compre uma bicicleta
numa loja X. Ora, o contrato de compra-venda estabelece uma relação entre mim e a loja X. Mas
esta relação parece ser totalmente irrelevante para definir a minha identidade: afinal, como no
caso anterior, eu não me transformo numa outra entidade só por ter assinado um contrato com
a loja X. Em outras palavras, a minha relação com a loja X não parece ter a ver com condições
“internas” ou “intrínsecas” à minha identidade; parece ser um mero fato acidental e “externo” ou
“extrínseco” à minha identidade. Supondo que exista uma cópia exata de mim mesmo, que
chamaremos de Vincenzo2, não parece correto dizer que eu e Vincenzo2 somos discerníveis -
qualitativamente distintos - em virtude do fato que eu comprei a minha bicicleta na loja X e ele
na loja Y. Alguém que quisesse negar o fato que Vincenzo2 seja uma minha cópia exata deveria
apelar a outros fatos; fatos “intrínsecos” como, por exemplo, altura, peso, etc… .
Esta linha de raciocínio parece garantir que as esferas do nosso exemplo sejam, afinal,
indiscerníveis e numericamente distintas; para que isso seja, de fato, um contra exemplo do PII,
precisamos “retificar” a sua formulação à luz dessas observações. Vamos portanto introduzir a
distinção entre propriedades intrínsecas e extrínsecas; definir esses conceitos é muito
complicado e definitivamente controverso, logo, não tentaremos ir além da nossa compreensão
intuitiva. Intuitivamente, ‘estar a 10 metros da esfera B’ é uma propriedade extrínseca, pois não
tem a ver com as condições que identificam um certo objeto, mas com as relações que ele
mantém com outras entidades. Por outro lado, ‘ter um raio de 1 metro’ ou ‘ter formato esférico’
parecem ser propriedades intrínsecas. Podemos agora reformular o PII:

PII-I (PII restrito ao caso de propriedades intrínsecas)


Para todo a e b, se a e b possuem todas as propriedades intrínsecas em comum (isto é, se eles são
indiscerníveis), então a é idêntico a b (isto é, ‘a’ e ‘b’ são apenas dois nomes para uma mesma coisa)

Deveria ficar claro porque o caso das duas esferas é um exemplo “killer” para o PII-I. As duas
esferas possuem todas as propriedades intrínsecas em comum, pois, afinal, elas diferem apenas

54
por suas relações espaciais. Portanto, elas são indiscerníveis; contudo, elas não são idênticas,
enquanto são duas esferas, uma a cópia da outra, em lugares diferentes.
Nesta altura, parece que o defensor do princípio teria duas alternativas: ou rejeitar PII-I, e
admitir que literalmente todas as propriedades entrem na individuação de uma entidade
(aceitando PII), ou aceitar PII-I e, de certa forma, rejeitar a ideia que as relações espaciais (e
todas as relações “externas”, por assim dizer-se) definam propriedades extrínsecas. Como
veremos, Leibniz adotará a segunda alternativa, enquanto Descartes, implicitamente e
inconscientemente, acabará endossando a primeira. Vale a pena discutir brevemente os dois
casos, pois eles representam exemplos interessantes de como alguns princípios metafísicos
podem ter consequências impactantes.
Começaremos pelo segundo caso. Leibniz reconhece o valor das nossas intuições em dizer que
as relações espaciais não parecem definir propriedades relevantes para a identificação das
entidades. Contudo, ele acredita que essas mesmas intuições digam a respeito da aparência das
coisas e não da realidade fundamental subjacente. Ou seja, a um nível mais fundamental de
descrição do universo, a propriedade de ‘estar a 10 metros da esfera B’ seria uma característica
intrínseca da esfera A. Mas como isso é possível? Neste ponto Leibniz dá um dos seus famosos
“voos pindáricos” de criatividade metafísica: na verdade, não existem “relações externas” entre
entidades fundamentais; cada entidade contém em si a estrutura do universo inteiro, é como se
fosse um “espelho do universo”. Logo, as informações sobre as posições recíprocas entre A e B
não são externas a A (ou a B) mas fazem parte da identidade de A (e de B). Mas isso claramente é
absurdo! Como pode a caneta que está em cima da minha mesa neste instante ser um espelho
do universo e conter internamente à sua própria natureza um mapa de todas as relações
espaciais que ela tem com o resto do mundo? Leibniz aceitaria a paradoxalidade da sua tese,
mas, contudo, ele oferece um esclarecimento importante que a torna, se não menos
surpreendente, um pouco mais inteligível. Se lermos com atenção a passagem citada
anteriormente do Discurso de Metafísica, notaremos um detalhe que, certamente, passou
despercebido: para Leibniz o princípio se aplica apenas às “substâncias”. Ora, sem entrar no
debate sobre o significado desta expressão, podemos apenas destacar que as substâncias são as
entidades mais fundamentais do universo, isto é, os indivíduos simples a partir dos quais todos
os demais indivíduos são compostos. Para usar uma locução comum, as substâncias são átomos
metafísicos, “mônadas”, como Leibniz as chamará. A referência às substâncias fundamentais
torna-se explícita na seguinte passagem da “Monadologia”:

55
“É preciso mesmo que cada Mônada seja diferente de cada uma das outras. Pois nunca
há na natureza dois Seres que sejam perfeitamente iguais um ao outro e nos quais não
seja possível encontrar uma diferença interna ou fundada em uma denominação
intrínseca” G.W.LEIBNIZ, Monadologia, §9

Esta passagem pode ser interpretada como uma formulação do PII-I. Na terminologia de
Leibniz, 'perfeitamente iguais’ significa indiscerníveis; dadas duas mônadas, sempre haverá
uma propriedade intrínseca que uma possui e a outra não possui, caso contrário elas não seriam
duas. O ponto fundamental é que o princípio se aplica apenas às substâncias fundamentais (isto
é, às mônadas) e não às entidades compostas. Canetas, mesas, cadeiras, árvores, etc… não são
substâncias mas apenas agregados de mônadas. Quem contém em si o mapa do espaço cósmico
não é, portanto, a caneta em cima da minha mesa, mas as mônadas que a constituem. Ora, se é
verdade que é uma propriedade intrínseca de uma mônada o fato dela “conter” um mapa das
relações espaciais em que ela participa, então também é verdade que duas mônadas que
diferem apenas pelas suas relações espaciais com outras mônadas são discerníveis, pois
discordam sobre certas propriedades intrínsecas. Portanto, para Leibniz, se substituirmos as
duas esferas do nosso exemplo com duas mônadas (e podemos fazer isso por que, afinal, as
esferas são compostas por mônadas), teremos um caso de duas entidades perfeitamente
discerníveis e, de acordo com o PII-I, não idêntica; ou seja, nenhum contra exemplo ao nosso
princípio.
Vamos tentar recuperar o nosso “fôlego metafísico” e analisar a proposta de Leibniz. Ele
concordaria com as nossas observações, isto é, com o fato que devemos considerar apenas as
propriedades intrínsecas na noção de indiscernibilidade (como expresso pelo PII-I). Logo, como
fizemos, será suficiente mostrar um caso de duas entidades discerníveis e não idênticas para
refutar o PII-I. Além disso, a discernibilidade deve ser definida como diferença a respeito de
uma dada propriedade intrínseca e não invocando diferentes relações externas. Imaginamos o
caso de duas esferas – do mesmo raio, material, etc… – a uma certa distância. Para nós isto era
suficiente como contra exemplo, isto é, como caso de indiscernibilidade e não identidade. Mas
Leibniz, para salvar o princípio, está disposto a questionar este último ponto. As duas esferas
(ou, pelo menos, as mônadas que as compõem) são discerníveis sim, enquanto cada uma delas
contém internamente todas as informações sobre a disposição espacial relativa a outras
substâncias. Logo, a diferente disposição espacial de cada uma é sim uma diferença de
propriedades intrínsecas, isto é, uma discernibilidade.
Não precisamos entender aqui os pormenores da monadologia de Leibniz. Consideramos esta
doutrina a título de exemplo e para tirar uma lição sobre o método da Metafísica: certos

56
princípios, mesmo que aparentemente razoáveis, podem ter consequências extremamente
contra intuitivas. Defender o PII-I levou Leibniz a admitir o bizarro universo das mônadas. Por
outro lado, rejeitar o PII-I, teria levado Leibniz a questionar o PRS (na perspectiva dele, pelo
menos) e a própria racionalidade da criação. Para o filósofo de Hannover, abrir mão desta
segunda tese teria sido muito mais absurdo do que duvidar da monadologia. Mas como
podemos avaliar as escolhas filosóficas de Leibniz da nossa perspectiva contemporânea? Afinal,
parece que ele teve uma atitude dogmática em relação ao PII-I, pois esteve disposto a aceitar as
suas consequências ontológicas extremamente contra intuitivas e em oposição a nossa
experiência ordinária. Talvez, teria sido muito mais racional rejeitar o PII-I para “salvar os
fenômenos”. Talvez. Mas será que o saber do nosso tempo – que se diz “anti-metafísico” em
todos os aspectos – representa uma atitude mais racional? Podemos fazer um exemplo tomado
das ciências naturais: o experimento da dupla fenda. Sem entrar nos detalhes deste famoso
experimento da mecânica quântica, podemos apenas dizer que ele parece sugerir
consequências paradoxais sobre o problema da identificação das partículas elementares. Os
manuais divulgativos ou os documentários descrevem uma certa variante do experimento
usando expressões do tipo: ‘é como se a partícula “soubesse” qual é o set up do experimento e se
comportasse de consequência’ ou ‘é como se as informações sobre a configuração espacial do
experimento estivesse “contidas” na partícula’. Já deveria aparecer claro que este tipo de
comentários remeteriam, pelo menos superficialmente, a uma visão próxima da monadologia.
Contudo, os físicos também nos ensinam que não temos nenhuma base teórica (e empírica)
para fazer este tipo de afirmações: devemos simplesmente nos abster da extrapolação de
consequências metafísicas e nos ater apenas aos dados quantitativos do experimento. Ora, o
experimento com certeza está de acordo com as leis fundamentais da Física (que, no caso,
seriam o correspondente dos princípios da Metafísica), leis que aceitamos. Mas não estamos
dispostos a lidar com as consequências das interpretações destas leis. Leibniz, por outro lado,
mostrou claramente onde nos levam os princípios da Metafísica e considerou imprescindível
tomar uma posição até sobre as consequências mais paradoxais (e foi que ele, com grande
honestidade intelectual, fez). Esta atitude, em si, não é irracional, nem dogmática; me parece
muito mais dogmática a nossa maneira de agir perante às consequências indesejadas das
nossas teorias científicas: “shut up and calculate!” como hoje em dia os físicos costumam dizer,
isto é, pare de dissertar sobre as consequências metafísicas e limite-se a usar os princípios
fundamentais apenas como ferramentas de cálculo. O nosso saber “oficial” – a ciência natural –
é anti-metafísico apenas na medida em que foge perante às questões levantadas pelos próprios
princípios e experiências que aceita; não é uma atitude cética, que envolver suspender o

57
julgamento também sobre as leis fundamentais, mas uma atitude dogmática: está
categoricamente proibido falar sobre tudo o que envolve o modo de existir e a identificação das
supostas entidades objeto da Física.

Passemos agora a considerar o caso de Descartes, uma outra instância de “uso suspeito” dos
princípios fundamentais da identidade que remete ao problema das propriedades intrínsecas e
extrínsecas. Descartes lança mão de um princípio considerado tradicionalmente como
complementar ao PII: o princípio de não identidade dos discerníveis. Este princípio afirma que se A e
B são discerníveis, isto é, se existe uma propriedade que A possui e B não possui (ou vice versa),
então A e B devem ser duas entidades distintas. Este princípio, aparentemente, não apresenta
nenhuma controvérsia e é até bastante intuitivo: pareceria absurdo pensar na possibilidade de
traçar distinções entre uma entidade e si mesma. Contudo, como no caso da Metafísica de
Leibniz, teses filosóficas muito duvidosas podem se seguir de princípios razoáveis quando não
fixamos adequadamente o significado da palavra ‘propriedade’ ou quando a usamos com
excessiva liberdade. Mas vamos ao argumento de Descartes. Na segunda e na sexta meditação,
Descartes tira algumas conclusões metafísicas muito fortes a partir do simples argumento do
“cogito”. O ponto de partida parece extremamente correto e aceitável: eu não posso duvidar da
minha atividade mental, pois o próprio duvidar é uma atividade mental. Duvidando, por assim
dizer, eu comprovo a minha existência como algo que pensa. Ora, Descartes atribui um nome a
este ‘algo que pensa’: uma mente, a minha mente9. Logo, o argumento do “cogito” me fornece uma
certeza fundamental: eu sou pelo menos uma mente, isto é, pelo menos algo que pensa. Em
outras palavras, eu tenho certeza da existência da minha mente. Esta certeza primordial, na
verdade, não me diz muito sobre o que é a minha mente e quem sou eu: afinal, o meu
pensamento poderia ser um resultado da atividade do meu corpo (por exemplo, do meu cérebro)
e eu poderia não ser nada além de um corpo, o meu corpo. Mas neste ponto Descartes faz uma
observação que será fundamental para o seu argumento em favor do dualismo: enquanto eu não
posso duvidar da existência da minha mente, eu posso duvidar da existência do meu corpo. Eu
posso pensar, sem entrar em contradição, que a sensação de ter mãos e pés, a fome ou a sede,
enquanto atividades mentais, continuam corroborando apenas a minha existência como mente
e não como corpo. Em outras palavras, a minha mente poderia estar simulando perfeitamente o
conjunto de sensações correspondentes à condição de ter um corpo, mesmo no caso em que eu
não tivesse corpo nenhum. Até aqui tudo bem: é claro que eu tenho um acesso epistêmico direto

9
A palavra latina usada nas Meditações é ‘mens’, normalmente traduzida com ‘mente’. Todavia, na versão francesa,
Descartes usa também a palavra ‘âme’, normalmente traduzida com ‘alma’.

58
à minha mente, enquanto o acesso que eu tenho ao meu corpo é sempre por intermediação das
minhas sensações, isto é, da minha atividade mental. Mas a partir destas considerações
perfeitamente aceitáveis, Descartes dá um passo fatal, um passo baseado num uso impreciso do
princípio de não identidade dos discerníveis. O passo consiste em usar a diferença epistêmica
entre mente e corpo como uma prova da sua discernibilidade e, portanto, da sua distinção
ontológica. Vamos ver como isso funciona. É possível definir a propriedade de ‘ser objeto de
conhecimento indubitável’. Ora, a minha mente, enquanto objeto de conhecimento indubitável,
possui esta propriedade; por outro lado, o corpo não a possui, dado que eu posso duvidar da sua
existência. Portanto, existe uma propriedade que a minha mente possui e que o meu corpo não
possui. Mas isto significa, para Descartes, que a minha mente e o meu corpo são discerníveis.
Como efeito, pelo princípio de não identidade dos discerníveis, a minha mente e o meu corpo
são entidades distintas. Eis o dualismo cartesiano servido numa bandeja de prata.
Qual é o problema com essa inferência? Uma confusão sobre qual deveria ser a noção de
propriedade a ser empregada nos princípios de identidade. Na discussão sobre o PII, vimos que
apenas as propriedades intrínsecas devem ser contempladas quando queremos identificar uma
dada entidade. Contudo, ‘ser objeto de conhecimento indubitável’ não parece ser uma
propriedade intrínseca! Afinal, o que eu sou não parece depender de como outros sujeitos
(incluindo eu mesmo) podem me conhecer. Em geral, temos a forte intuição de que as coisas do
mundo não mudam quando as conhecemos melhor ou quando as ignoramos: as relações
epistêmicas parecem ser relações externas, como as relações espaciais ou a relação entre mim e
a loja X quando compro uma bicicleta. Se, portanto, a propriedade de ser ‘objeto de
conhecimento indubitável’ é, no fim das contas, uma relação externa, ela não pode ser usada
para caracterizar a relação de “discernibilidade” que aparece nos princípios de identidade. A
mente e o corpo poderiam ser uma única e mesma coisa, uma única substância da qual eu
conheço com maior certeza alguns aspectos (os mentais) e com menor certeza outros (os
físicos). Da mesma forma que eu poderia ser sempre uma única e mesma entidade quando
estou sentado na cadeira do escritório e quando estou a 5 metros de distância dela.
Gastamos muitas energias com estes exemplos da história da Metafísica; está na hora de
entender os motivos destas digressões e seu significado. Vimos o emprego de dois princípios de
identidade: o PII no caso de Leibniz e o princípio de não identidade dos discerníveis, no caso de
Descartes. Em ambos os casos, esses princípios, combinados com outras observações,
acarretam consequências ontológicas muito fortes: a monadologia, no caso de Leibniz, o
dualismo mente-corpo, no caso de Descartes. Em ambos os casos, o problema não residia
somente na aceitação dos princípios de identidade, mas também no significado que atribuímos

59
aos conceitos envolvidos; em particular, vimos que a distinção entre propriedades intrínsecas e
extrínsecas desempenha um papel fundamental. No caso de Leibniz vimos uma tentativa
mirabolante de se desfazer da segunda noção em favor da primeira: nas mônadas, espelhos do
universo, as propriedades extrínsecas são reduzidas a características intrínsecas. No caso de
Descartes, provavelmente teremos uma falha em reconhecer o papel desta distinção e, com
efeito, um uso ingênuo de um conceito inadequado de discernibilidade. A moral desses
exemplos é que a determinação deste ou aquele sistema metafísico não depende apenas dos
princípios que os autores estão dispostos a aceitar; mas, e em medida determinante, do
significado atribuído aos conceitos fundamentais e da granularidade das distinções que eles são
capazes de traçar. Os debates seculares da Metafísica, insustentáveis para Kant e Hume, são, em
muitos casos, “batalhas semânticas”, isto é, discussões acerca de significados. O fim destas
eternas controvérsias só poderá chegar quando teremos à disposição critérios confiáveis de
significatividade. Hume acreditou que a experiência pudesse ser a fonte indubitável dos
significados; Kant viu esta fonte na estrutura transcendental da subjetividade. Hoje em dia
temos ótimas razões para questionar ambas as perspectivas; isso nos joga de volta no campo de
batalha.

Concluiremos esta seção oferecendo algumas perspectivas contemporâneas sobre o PII e a


compreensão metafísica da identidade. Quais razões temos para aceitar ou rejeitar o PII? O
exemplo das duas esferas é apenas um exercício de imaginação e o nosso universo é bem mais
complexo. De acordo com a compreensão do nosso mundo no tempo presente, seria plausível
admitir a existência de entidades indiscerníveis mas, ao mesmo tempo, numericamente
distintas?
Uma resposta afirmativa parece ser formulável dentro das nossas teorias físicas, em particular,
apelando à teoria do entrelaçamento quântico (quantum entanglement). De acordo com a
principal concepção das partículas elementares (o tal de “modelo standard”), as nossas teorias
definem rigorosamente a lista de todas as propriedades intrínsecas de uma partícula: massa a
repouso, carga elétrica, momento de spin. Portanto, a questão do PII pode ser “traduzida” na
linguagem da mecânica quântica resultando na seguinte pergunta: de acordo com as nossas
melhores teorias, é possível que duas partículas numericamente distintas possuam a mesma
massa a repouso, mesma carga e mesmo momento de spin? A resposta parece ser afirmativa e
tem a ver com o fenômeno do entrelaçamento quântico: ou seja, o caso em que duas partículas
resultam de certa forma “conectadas” e, em virtude desta conexão, elas mantém, ao longo do

60
tempo, a comunhança de todas as propriedades físicas, mesmo que elas se encontrem em
lugares diferentes, isto é, mesmo que faça fisicamente sentido falar de “duas” partículas.
Podemos, portanto, dizer que a mecânica quântica refuta o PII? Discutir os detalhes das
interpretações metafísicas do fenômeno do entrelaçamento quântico seria muito complexo e
inadequado a este contexto10. Contudo, como frequentemente acontece em Filosofia, não temos
ainda uma resposta definitiva. Existe, de fato, a possibilidade de distinguir partículas
elementares em termos de relações “externas” (não necessariamente espaço-temporais). Vimos
que este tipo de relações não deveriam ser relevantes para a identificação de nenhuma entidade;
contudo, existem interpretações da mecânica quântica (em particular, o relacionismo de Carlo
Rovelli) que questionam este ponto por motivos distintos da avaliação crítica do PII. Em
palavras simples, as entidades quânticas seriam o tipo de entidades para as quais “fatos
relacionais” são relevantes para “questões de identificação”. Logo, duas partículas em
entrelaçamento quântico não seriam indiscerníveis e este fenômeno não constituiria um contra
exemplo ao PII. A perspectiva relacionista é interessante, pois acaba defendendo o PII de uma
posição oposta à de Leibniz: enquanto o filósofo alemão reduzia todas as propriedades
relacionais a propriedades intrínsecas, o relacionismo faria o movimento contrário, negando a
fundamentalidade das propriedades intrínsecas e vislumbrando um universo de relações que,
apesar de serem “externas”, determinam a identificação das entidades do mundo quântico. Em
outras palavras, uma substância – de acordo com esta concepção – não seria definida na sua
essência por um conjunto de características intrínsecas, mas seria uma sorte de “nò” da rede
relacional do universo, uma intersecção de relações. Não pretendemos deixar esta ideia clara,
mas apenas mencionar a sua existência. E mostrar como no campo de batalha que é a
Metafísica, o “armistício” ainda não foi assinado por nenhuma das partes envolvidas, nem pela
ciência natural.

5. Noções de necessidade

Vimos que a Metafísica tradicionalmente está associada com sistemas teóricos, isto é, sistemas de
proposições deduzidas (ou inferidas abdutivamente) a partir de princípios primeiros. Tais
princípios devem ter um papel explicativo e são justificados de forma mais imediata, por

10
A tal propósito, sugere-se como aprofundamento o verbete da Stanford Encyclopedia of Philosophy sobre
identidade e individualidade na teoria quântica: https://plato.stanford.edu/entries/qt-idind/#PII.

61
exemplo lançando mão da nossa capacidade de intuir os conceitos fundamentais e analisá-los.
Apresentamos alguns desses princípios (PNC, PRS, PII) e discutimos sua verdade e suas
possíveis justificativas. Tudo isso deveria ter nos dado uma ideia suficientemente clara do
método da Metafísica tradicional e de como são constituídos seus sistemas. Nesta seção
apresentaremos uma noção filosófica fundamental que, sobretudo quando se trata de
Metafísica, torna-se crucial: o conceito de necessidade.
Qual é a relevância deste conceito para o método da Metafísica? Primeiramente ele pode ser
visto como um requisito fundamental das nossas teorias: quando fazemos Metafísicas não
queremos apenas descrever o mundo como ele é, mas estamos interessados também nos seus
aspectos modais, isto é, com a possibilidade dele ter sido diferente (questões de possibilidade) e
também com o que impede que ele possa ser diferente (questões de necessidade). A Metafísica
não é apenas uma ciência descritiva, isto é, não se propõe apesar de oferecer uma descrição
compacta e clara de tudo o que acontece no nosso mundo; enquanto ciência explicativa, ela
pretende destacar os fatores (lógicos, causais, estruturais, constitutivos, nomológicos, etc…) que
“forçaram” o mundo a ser da forma que ele é, isto é, que tornaram impossível para o mundo ser
de outro modo. Esta ideia de um força que mantém a coerência do mundo e o amarra com suas
leis universais remete ao conceito de necessidade.
Em português usamos comumente as palavras ‘necessidade’ ou ‘necessário’ com um significado
derivado e traslado, diferente da acepção originária e filosófica. A palavra ‘necessidade’ vem do
lema latim ‘necessitas’, obtido compondo a negação ‘ne’ com o verbo ‘caedere’ que significa
interromper, quebrar, infringir, violar, matar. Etimologicamente falando, o necessário é o que
não pode ser quebrado, um decreto ou uma lei que não pode ser infringida. Na língua grega
antiga, a palavra é ‘ἁνάγκη’ (translit. ‘Anánke’, nome também de uma divindade) que deriva da
forma verbal ‘ἤνεγκον’ (translit. ‘énenkon’) que significa o que impele, sustenta, leva para frente.
Encontramos, portanto, as duas componentes semânticas da noção filosófica de necessidade: a
impossibilidade de ser de outro modo (ne-caedere) e a força que carrega e amarra o mundo
(ananke).
Passemos agora ao uso desta palavra. Costumamos, em Filosofia, predicar a necessidade de três
tipos de sujeitos: fatos/eventos, entidades, proposições. Atribuímos necessidade a um evento ou
a um fato para dizer que ele não poderia não ter acontecido ou ter ocorrido diversamente:
quando dizemos que a existência de uma causa para cada efeito é um fato necessário, estamos
afirmando a impossibilidade do contrário, isto é, que seria impossível que houvesse um efeito
sem uma causa. Ou quando dizemos que ‘Os seres humanos são necessariamente mamíferos’
(isto é, ‘É necessário que os seres humanos sejam mamíferos’), estamos dizendo que eles não

62
poderiam ser répteis, ou aves, ou peixes, que seria impossível que existisse um ser humano não
mamífero. Atribuímos a necessidade também a entidades: no léxico filosófico medieval é
comum denotar Deus com a locução ‘ens necessarium’, isto é, ‘ente necessário’: com isso,
queremos dizer que a sua existência é um fato necessário, isto é, que seria impossível que Deus
não existisse. Finalmente, atribuímos necessidade a proposições para dizer que elas não
poderiam ter um valor de verdade diferente: dizer que uma proposição P é necessariamente
verdadeira (falsa) significa dizer que é impossível que ela seja falsa (verdadeira). Tautologias
como ‘Sócrates = Sócrates’ ou ‘se chove, então chove’ são claros exemplos de verdades
necessárias, enquanto contradições do tipo ‘chove e não chove’ ou ‘Sócrates não é Sócrates’ são
necessariamente falsas.
Usamos a palavra ‘necessidade’ também de forma relacional, quando queremos falar de uma
conexão necessária, empregando estruturas sintáticas do tipo ‘A torna B necessário’. Por exemplo,
quando queremos dizer que dada a ocorrência de um evento A, é impossível que o evento B não
ocorra; afirmações deste tipo são comuns no caso de supostas relações de causalidade: colocar
um corpo no fogo torna necessário o seu aquecimento. Da mesma forma, falamos de conexões
necessárias entre entidades: a existência de Deus torna necessária a existência do mundo (para
dizer que Deus não poderia não ter criado o mundo). Finalmente, falamos de conexões
necessárias também entre proposições, quando queremos dizer que a verdade de uma
proposição P torna necessária a verdade de uma proposição Q (tipicamente nos casos de
consequência lógica ou de outro tipo). É importante notar que a afirmação ‘A torna B necessário’
não implica que B seja necessário: pois se A não for necessário, tampouco B o será. Com
referência ao exemplo anterior, dizer que a chama torna o calor necessário não significa que o
calor é um fato necessário, mas apenas que ele o é relativamente à presença da chama: sem ela
não haverá calor. Podemos concluir a necessidade de B apenas no caso em que ‘A torna B
necessário’ e ‘A é necessário’.
O contrário da palavra ‘necessário’ é a expressão ‘contingente’: o que é contingente é o que poderia
ter sido de outro modo, um evento que poderia não ter acontecido, uma proposição verdadeira
que poderia ter sido falsa (ou vice versa). Suponhamos que eu hoje de manhã derramei café na
mesa: poderíamos ter razões para dizer que este fato é contingente, pois, se tivesse prestado
mais atenção, o café não teria sido derramado na mesa. As noções de necessidade e
contingência constituem o que em Filosofia se chama de ‘modalidade’: o modo de ser de uma
entidade, de ocorrer de um fato, de ser verdadeira (ou falsa) de uma proposição. Portanto,
quando ouvimos falar de ‘questões modais’ ou ‘questões de modalidade’ podemos entender que
se trata de questões que têm a ver com necessidade e contingência.

63
A Metafísica lida com a modalidade em três tipos de questões:

1. Questões ontológicas locais: estabelecer se existem entidades ou fatos necessários;


2. Questões ontológicas globais: estabelecer se todos os fatos são necessários;
3. Questões epistemológicas: formular eventuais princípios necessários informativos.

Ao primeiro grupo pertencem todas as questões que lidam com o problema se o nosso mundo
existe totalmente por um acaso ou se existem pelo menos aspectos parciais dele que são
necessários. O segundo grupo de questões tem a ver com o problema do determinismo, isto é,
da necessidade de todos os eventos. O terceiro grupo de questões concerne aos princípios
fundamentais e à possibilidade de ter “axiomas” do nosso sistema metafísico que sejam
necessariamente verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, não banais. Esta qualificação é crucial,
dado que a Lógica já nos diz que há verdades necessárias, a saber, as tautologias. Contudo, não
parece que poderíamos fornecer uma fundação explicativa do universo a partir de sentenças do
tipo ‘A = A’ ou ‘Se P, então P’.
Precisamos agora compreender, de maneira mais aprofundada, o significado filosófico da
modalidade e mostrar que existem diversas noções de necessidade. Começaremos com alguns
exemplos:

1. É necessário que se chove e venta, então venta;


2. É necessário que todos solteiros sejam casados;
3. É necessário que tudo requeira uma causa;
4. É necessário que a atração gravitacional diminua com o quadrado da distância.

Podemos analisar as sentenças 1-4 fazendo a seguinte pergunta: porque, ou, em virtude do que,
dizemos, em cada uma delas, que algo é necessário? Quais seriam os motivos para fundamentar
essas afirmações? Comecemos pela sentença 1. Em virtude do que é necessário que se chove e
venta, então venta? Será que isso depende de fatos meteorológicos? Claramente não.
Poderíamos justificar a necessidade desta proposição mostrando que ela é uma tautologia
proposicional, isto é, apelando à sua forma sintática: (P & Q) → Q. Ou seja, a verdade e a
necessidade da sentença 1 dependem de questões de lógica formal e não do significado das
palavras ‘chove’ ou ‘venta’. Neste caso falaremos de “necessidade lógica”. Algo é logicamente
necessário quando pode ser descrito por uma proposição tautológica, isto é, quando é
verdadeiro em virtude da sua estrutura formal.

64
Vamos agora ao caso da sentença 2. Será este um outro caso de necessidade lógica? Para
responder precisamos considerar a estrutura formal da proposição a que atribuímos
necessidade: todos os A são B. Claramente, o que é declarado como necessário na sentença 2 não
tem a forma de uma tautologia, portanto, não se trata de um caso de necessidade lógica. Mas
porque, então, ‘todos os solteiros não são casados’ é uma verdade necessária? Porque ela não
poderia ser falsa? O que impede isso? Se alguém afirmasse que ‘João é solteiro e casado’,
provavelmente diríamos que não domina o português, isto é, que não conhece o significado de
palavras como ‘solteiro’ ou ‘casado’. Logo, a sentença 2 atribui um tipo de necessidade que
subsiste em virtude do significado das palavras empregadas. Falamos neste caso de “necessidade
analítica”. É importante notar que fatos necessários porque analíticos não dizem nada a respeito
do mundo, mas apenas sobre a linguagem.
Podemos ter a intuição de que as formas analítica e lógica de necessidade tenham algo muito
forte em comum. Esta ideia pode ser resgatada apelando a algumas relações e princípios
linguísticos. Podemos tentar reduzir os casos de necessidade analítica a casos de necessidade
lógica com uma pequena operação de substituição. Por exemplo, podemos afirmar que a palavra
‘solteiro’ é um sinônimo de ‘não casado’; ora, parece legítimo usar duas expressões sinônimas
como intercambiáveis; isto é, podemos substituir ‘não casados’ na sentença 2 com ‘solteiro’;
assim fazendo obtemos:

2’. Todos os solteiros são solteiros;

A 2’ tem a forma de uma tautologia: ‘todos os A são A’. Logo, é verdadeira por necessidade lógica.
Podemos, portanto, formular o seguinte princípio de redução: uma sentença analiticamente
necessária se reduz a uma sentença logicamente necessária após certas substituições de expressões que
ocorrem nela com seus sinônimos. Este princípio nos ajuda a entender o “parentesco” entre as
noções lógicas e analíticas de necessidade. Uma última observação: o que nos autoriza a poder
substituir expressões sinônimas? Afinal, mudando as palavras que ocorrem numa sentença
mudamos a sentença também. Para poder fazer isso e, portanto, reduzir a necessidade analítica
à necessidade lógica, precisamos invocar um princípio semântico fundamental, enunciado
claramente, mais uma vez, pelo nosso Leibniz: o princípio de inter-substitutibilidade “salva veritate”.
De acordo com este princípio, a substituição de uma expressão E por uma expressão sinônima
numa sentença S, não altera o valor da verdade da sentença resultante. Por exemplo, se a
sentença ‘Pluto é um cachorro’ é verdadeira, então a sentença ‘Pluto é um cão’ também o será,
dado que ‘cachorro’ e ‘cão’ são expressões sinônimas. A existência de relações de sinonímia,

65
junto com o princípio de inter-substituibilidade salva veritate, permitem de reduzir a uma
forma tautológica todas as sentenças analíticas; em outros termos, permite a redução da noção
de necessidade analítica à noção de necessidade lógica. Por clareza didática continuaremos
usando as expressões ‘necessidade analítica’ e ‘necessidade lógica’, pois, se bem a primeira possa
ser reconduzida à segunda, há uma diferença de significado nos dois conceitos.
O caso da sentença 3 é mais complexo, mas também mais interessante. Não é uma necessidade
lógica, enquanto não possui a forma sintática de uma tautologia. Dificilmente lhe poderíamos
atribuir necessidade analítica: vimos o quão obscuras foram as tentativas de Leibniz de provar a
analiticidade de proposições deste tipo; afinal, não parece que a sua necessidade possa ser
justificada a partir dos significados de ‘tudo’, ‘requerer’ e ‘causa’. Então o que tornaria
supostamente necessária a afirmação ‘tudo requer uma causa’? O que a “amarra” à sua verdade
de forma tal que a sua negação seria algo impossível? Certamente nem a Lógica, nem a
linguagem. É a maneira de ser do mundo nos seus aspectos mais estruturais e fundamentais
que exerceria a “força” da necessidade neste caso. Falamos, portanto, de “necessidade metafísica”.
Podemos tentar definir esta noção da seguinte forma: uma proposição é metafisicamente
necessária quando a sua negação é impossível em virtude da estrutura fundamental do mundo
nos seus aspectos ontológicos, isto é, em virtude de todos os fatos fundamentais que têm a ver
com o modo em que as coisas existem, vêm a ser, cessam de existir, etc… . Em outras palavras, se
negarmos uma proposição metafisicamente necessária estaríamos descrevendo uma situação
em que seria impossível para os entes existirem, serem colocados ou mantidos na existência de
acordo com os modos em que as coisas são. Esses fatos ontológicos fundamentais seriam,
supostamente, o que garantem a unidade e a coerência do Ser, sem os quais não poderíamos
chamar as totalidades das coisas de “mundo”, “universo”, “cosmo”. A noção de necessidade
metafísica é extremamente problemática, sobretudo quando queremos nos convencer que os
princípios fundamentais da Metafísica apresentam este tipo de necessidade. Afinal, quem disse
que existem fatos ontológicos fundamentais cuja negação é impossível? Quem disse que não
seria possível um mundo de fatos eternos e imutáveis, onde nada vem a ser por causa de alguma
outra entidade? Quem disse que não poderíamos conceber uma realidade possível onde não
existem substâncias mas apenas acidentes, ou onde os acidentes não precisam de substâncias
para existirem? Confrontados com esses problemas, muitos filósofos antigos e modernos
tentaram explicar a noção de necessidade metafísica em termos da necessidade analítica. Os
princípios fundamentais seriam necessários (metafisicamente) porque expressam fatos
ontológicos fundamentais que, por sua vez, são necessários (analiticamente) em virtude do
significado dos conceitos ontológicos fundamentais (ex: ‘causa’, ‘existência’, ‘substância’,

66
‘acidente’, etc…). Como vimos, esta tentativa não foi muito bem sucedida e o problema de
definir e justificar a necessidade metafísica de fatos e princípios está aberto.
A sentença 4 representa uma acepção de necessidade ainda mais complicada e controversa. Ela
expressa uma aplicação da lei de gravitação universal de Newton que, por simplicidade,
suporemos verdadeira. Mas o que tornaria necessária a lei do inverso do quadrado? Porque seria
impossível um mundo em que a força de atração gravitacional diminui com o cubo da distância?
Qual conexão inabalável seria violada? Poderíamos até negar que exista uma noção de
necessidade envolvida neste caso. Poderíamos pensar que o nosso mundo físico simplesmente
se desenvolveu de forma tal de engendrar uma atração entre corpos que siga a regularidade do
inverso do quadrado e que as coisas poderiam ter ido de forma muito diferente. Por exemplo, se
determinadas interações não tivessem acontecido da forma que aconteceram poucos instantes
após o Big Bang, hoje teríamos um padrão matemático para a gravidade muito diferente.
Alternativamente, poderíamos argumentar que há sim uma noção de necessidade envolvida:
que o nosso universo é governado por leis da natureza (descritas por leis científicas) que
governam todos os aspectos físicos da realidade, isto é, os aspectos objetivamente descritos em
termos de matéria e movimento. Neste caso, falaremos de “necessidade nomológica”, com
referência à palavra grega ‘νόμος’ (translit. ‘nómos’) que significa ‘lei’ (subentendido ‘da
natureza’). Contudo, poderíamos dizer que a necessidade nomológica não coincide com a
necessidade metafísica, enquanto as leis da natureza não necessariamente têm a ver com fatos
ontológicos fundamentais; a lei de Newton da gravidade não fala do Ser enquanto Ser, dos
modos de existência, etc… . Claramente, se endossarmos uma forma forte de materialismo de
acordo com a qual: 1) ‘ser’ significa ‘ser um corpo’; 2) a descrição mais fundamental e geral da
realidade é uma descrição física; 3) o mundo físico é governado por leis da natureza necessárias;
então a noção de necessidade nomológica colapsaria na noção de necessidade metafísica.
Vimos que existem diferentes tipos de necessidade, mas como podemos compará-los? Podemos
classificá-los em base à “força” com que a deusa Ananke amarra o mundo e a linguagem; isso
ficará claro em breve. Definimos a “força” de uma noção de necessidade de acordo com o quão
restritiva ela for. A noção de necessidade lógica, por exemplo, é mais forte que a noção de
necessidade analítica, pois há verdades analiticamente necessárias que não são logicamente
necessárias, como por exemplo ‘todos os solteiros não são casados’. Isso porque a necessidade
lógica apela apenas às estruturas sintáticas tautológicas e não considera os significados das
palavras envolvidas, enquanto a necessidade analítica depende deste segundo aspecto.
Similarmente, podemos dizer que a necessidade analítica é mais forte que a necessidade
metafísica, dado que muitas proposições metafisicamente necessárias não parecem ser também

67
analiticamente necessárias (como no caso de ‘tudo requer uma causa’). Na sequência, não seria
absurdo dizer que a necessidade metafísica é mais forte que a necessidade nomológica, dado
que as leis científicas poderiam não ser necessárias em virtude da estrutura ontológica do
mundo, mas apenas dos aspectos “físicos”, “materiais”. Quanto mais forte é uma noção de
necessidade, mais amplo é o leque de possibilidades alternativas que ela permite conceber. Por
exemplo, da perspectiva das leis da lógica (isto é, das formas sintáticas tautológicas), ‘todo
solteiro não é casado’ poderia sim ser falsa (embora ela não poderia sê-lo da perspectiva da
analiticidade), enquanto do ponto de vista meramente lógico esta sentença teria a forma
contingente ‘todos os A não são B’. Da perspectiva da necessidade analítica – isto é, do
significado das palavras – ‘tudo requer uma causa’ poderia ser falsa, dado que não há nada nos
significados de ‘tudo’, ‘requer’ e ‘causa’ que nos impeça de conceber esta possibilidade; contudo,
da perspectiva da necessidade metafísica, que considera também a estrutura fundamental do
Ser, esta possibilidade não está aberta. Continuando, diríamos que da perspectiva da
necessidade metafísica poderíamos admitir a possibilidade que a lei de Newton seja falsa, pois
isso não entraria em conflito com os princípios fundamentais do Ser; todavia, o conceito de
necessidade nomológica preclui esta possibilidade.
Uma outra comparação interessante tem a ver com a relação entre uma noção de necessidade e
o modo de ser do mundo. Podemos dizer que uma proposição necessária é verdadeira em todas
as circunstâncias possíveis, isto é, em todas as possíveis maneiras de ser do mundo (ou, usando
uma expressão de Leibniz, em todos os mundos possíveis). Nos resta entender por que uma certa
sentença permaneceria verdadeira mesmo se o mundo fosse muito diferente de como ele é.
Consideramos os casos das noções lógicas e analíticas de necessidade: elas garantem a verdade
em todos os mundos possíveis simplesmente por que elas não dizem nada sobre o mundo, isto
é, uma sentença logicamente ou analiticamente necessária é verdadeira independente de como
o mundo é. ‘Se chove e venta, então venta’ não é verdadeira em virtude de condições
meteorológicas, mas apenas em virtude da sua forma sintática; similarmente, ‘todos os solteiros
não são casados’ não depende das escolhas conjugais das pessoas do mundo, mas apenas do
significado de ‘solteiro’ e ‘casado’. Não é surpreendente, portanto, que as tautologias e as
sentenças analíticas sejam verdadeiras em todos os mundos possíveis: elas simplesmente não
têm nenhuma relação com o mundo, elas são verdadeiras seja o mundo como for e mesmo se
fosse muito diferente de como é. Diferente é o caso da necessidade metafísica: ao dizer ‘tudo
requer uma causa’ estamos afirmando algo muito interessante sobre o mundo, estamos
descrevendo a sua estrutura de conexões entre fatos. Mas se uma sentença metafisicamente
necessária depende do mundo para sê-lo, então como é possível que ela seja verdadeira “seja o

68
mundo como for”? Afinal, se o nosso mundo fosse muito diferente de como é, porque deveria
ainda valer o princípio ‘tudo requer uma causa’? É muito difícil oferecer uma resposta sem cair
em grandes controvérsias. Preliminarmente (e talvez ingenuamente) podemos dizer que as
proposições metafisicamente necessárias descrevem a estrutura que algo precisa ter para ser
“um mundo”. Por exemplo, se admitirmos que ‘tudo requer uma causa’ seja metafisicamente
necessária, estaríamos dizendo que um mero agregado de fatos “soltos e desligados” não é um
mundo possível, pois não é nem um mundo: para ser tal, um mundo precisa ter a sua coerência
interna, a sua unidade. Logo, as proposições metafisicamente necessárias são verdadeiras em
todos os mundos possíveis por que elas descrevem a “estrutura ontológica fixa” que todos esses
mundos têm em comum. Perceba-se a diferença com a necessidade lógica (ou a analítica):
enquanto proposições logicamente necessárias são verdadeiras em todos os mundos possíveis
por que o são independentemente de como o mundo é, as metafisicamente necessárias são
verdadeiras em todos os mundos possíveis porque sua verdade depende do que todos esses
mundos compartilham. Quanto à necessidade nomológica seria muito ousado propor uma
análise deste tipo: afinal, há um certo consenso em dizer que as leis da natureza não são
verdadeiras em todos os mundos possíveis, mas apenas nos mundos que são “fisicamente
indiscerníveis”.

Antes de encerrar esta seção vale a pena comparar a noção de necessidade com outras noções
filosoficamente fundamentais como as distinções a priori/a posteriori, sintético/analítico. Para
fazer isso, precisamos introduzir uma observação preliminar: desde Platão, é a opinião comum
(bastante razoável) que a nossa experiência seja contingente, pois ela é local e circunstancial.
Suponhamos que eu viaje para Oslo no mês de Janeiro, durante o rígido inverno norueguês.
Com base na minha experiência direta eu posso afirmar ‘Em Oslo faz muito frio’. Alguém
poderia perguntar se a minha afirmação é necessária; para sê-lo é preciso que a sua negação seja
impossível, isto é, que seja impossível que não faça frio em Oslo. Contudo, um outro viajante
que visite a capital norueguesa em Julho – durante o verão do hemisfério norte – constatará
muito facilmente que é perfeitamente possível que em Oslo faça calor, logo que ‘Em Oslo faz
muito frio’ possa ser falsa. Este exemplo mostra que as proposições a posteriori – isto é,
acessíveis apenas por meio da nossa experiência sensível – deveriam ser sempre contingentes e
nunca necessárias. A partir disso, poderíamos argumentar que todas as proposições necessárias
devem ser a priori: de fato, se a nossa experiência é sempre fruto do “aqui” e do “agora”, como
ela poderá nos fornecer informações sobre o que é válido “sempre”, “em qualquer lugar”, “seja o
mundo como for”? Estas observações fundamentaram as associações clássicas da Epistemologia

69
e da Metafísica antigas e modernas: necessidade se dá sempre a priori, enquanto o a posteriori é sempre
contingente11. Contudo, é exatamente a partir dessas associações que surgem uma série de
problemas, sobretudo com a noção metafísica de necessidade. Poderíamos admitir que as
tautologias, assim como as verdades analíticas sejam a priori, enquanto sendo elas
independentes do mundo, independem também da nossa experiência dele. Mas o que dizer das
proposições metafisicamente necessárias? Sabemos que elas dependeriam, supostamente, da
estrutura ontológica do mundo; podemos até concordar com a maioria dos filósofos antigos e
modernos e dizer que esta estrutura está oculta aos nossos sentidos: afinal, como Hume
observou, não temos nenhuma experiência direta das relações causais, ou das essências, ou da
substancialidade. Mas se não temos nenhum acesso empírico ao que torna verdadeira uma
proposição metafisicamente necessária, como podemos conhecer esse tipo de proposições? A
história da Metafísica está repleta das soluções mais diversas a esse problema: da teoria da
reminiscência platônica até o inatismo dos racionalistas modernos, este é o primeiro grande
problema do estatuto epistemológico da Metafísica como ciência.
Passemos agora a comparar a noção de necessidade com o binómio analítico/sintético. As
proposições analíticas deveriam ser necessárias, pelo próprio conceito de necessidade analítica.
Dado que todas as proposições que relatam a nossa experiência imediata são informativas,
então podemos tranquilamente afirmar que muitas proposições sintéticas são contingentes e,
obviamente, a posteriori. Resta estabelecer se existem proposições sintéticas necessárias e,
portanto, a priori; chegamos ao segundo grande problema da Metafísica como ciência, a
pergunta que inspira a Crítica de Kant. Se supomos que todas as informações que temos sobre o
mundo são veiculadas da nossa experiência a qual, como dissemos, é sempre fonte de verdades
contingentes, então devemos concluir que não existem verdades sintéticas necessárias. Esta é a
posição do empirismo clássico, que decreta também o fim da Metafísica como “episteme”. Se, ao
contrário, admitimos que seja possível ter algum acesso à estrutura fundamental do mundo não
por meio da experiência, mas em virtude de uma misteriosa “intuição intelectual”, então
existem verdades sintéticas necessárias. Mas existem soluções de outro tipo ao problema
epistemológico da Metafísica. Leibniz reconhece que todos os princípios fundamentais da
Metafísica são analíticos e, com efeito, embora rejeite a ideia de proposições sintéticas
necessárias, não rejeita a possibilidade de uma Metafísica tradicional como ciência. Quanto a
Kant, ele admite proposições necessárias, sintéticas e a priori; mas ele ressignifica

11
O lógico estadunidense Saul Kripke, em tempos relativamente recentes, tem questionado essas afirmações
construindo exemplos de proposições necessárias a posteriori e contingentes a priori (cfr. S. KRIPKE, Naming and
Necessity, Oxford University Press, 1981).

70
profundamente o conceito de necessidade, introduzindo a ideia de proposições necessárias em
virtude da estrutura transcendental do sujeito (e não da estrutura ontológica do mundo). É como se o
filósofo de Königsberg abandonasse a ideia de necessidade metafísica em virtude de uma certa
noção de necessidade transcendental: ‘tudo requer uma causa’ agora é necessária não por ser
verdadeira em todo mundo possível, mas apenas em toda experiência possível. A consequência
desta ressignificação é a condenação da Metafísica tradicional que é substituída pela Filosofia
transcendental.

6. A classificação das controvérsias ontológicas: realismo, nominalismo,


idealismo

O propósito da Metafísica é explicar a realidade que se apresenta aos nossos sentidos. Para
fazer isso, ela precisa “ir mais a fundo”, isto é, ir além das aparências fenomênicas e apelar à
realidade em si, à estrutura subjacente e noumênica do nosso mundo. Como vimos, este salto
da aparência para a realidade pode apresentar problemáticas epistemológicas muito sérias:
falar da realidade em si, da sua estrutura de conexões metafísicas e das entidades mais
fundamentais significa falar de uma esfera da qual não temos nenhuma experiência direta. Por
isso, as teorias metafísicas costumam enriquecer a realidade dos fenômenos com entidades
supra sensíveis, postuladas em virtude do seu suposto poder explicativo. Mas, reconhecer a
existência de algo oculto, apelando à sua capacidade de explicar o manifesto, é uma inferência
abdutiva, um tipo de raciocínio que não garante a verdade de suas conclusões com a força da
necessidade lógica. Por consequência, surgem disputas ontológicas inevitáveis tendo como
objeto a existência ou a não existência de supostas entidades “metafísicas”. Podemos fazer um
exemplo tomado da história da própria Metafísica. No século XVIII, o filósofo alemão Christian
Wolff, operou uma grande classificação e estruturação das disciplinas metafísicas de acordo
com o seu objeto fundamental: a psicologia racional, tendo como objeto a alma (ou mente), a
teologia racional, tratando de Deus e de suas relações com a criação e a cosmologia racional, focada
no universo concebido como totalidade estruturada, na sua origem e nos seus constituintes
fundamentais. A ideia subjacente a esta classificação é que existam três tipologias de entidades
que são eminentemente objeto da Metafísica: a alma, Deus e o cosmo. Essas entidades
correspondem às noções que Kant, posteriormente e com um lema famoso da Dialética
transcendental, chamará de ideias da razão pura e as considerará as causas de todos os

71
mal-entendidos e disputas sem fim da Metafísica. Claramente, a existência da mente (como
substância distinta do corpo), de Deus e do cosmo como ente unitário é algo bastante
controverso; de fato, não temos evidência da existência dessas entidades assim como a temos no
caso da existência de árvores, mesas, gatos e cadeiras. Com efeito, é sempre possível duvidar de
tais afirmações existenciais e formular a nossa posição sobre estas questões ontológicas
controversas. Se, portanto, a Metafísica está atrelada às disputas sobre a existência ou a não
existência de certas entidades, é fundamental entender quais tipos de posicionamento são
possíveis perante a estas questões. Tradicionalmente, as teses ontológicas são classificadas em
três grandes grupos: o realismo, o nominalismo e o idealismo. ‘Realismo’ e ‘nominalismo’ são termos
de origem medieval e remetem à disputa sobre a existência dos universais; ‘idealismo’ adquire o
seu significado atual na época moderna.
Suponhamos que estamos discutindo sobre a existência da forma platônica da beleza. Alguém,
como o próprio Platão, poderia se pronunciar a favor da existência desta entidade e faria isso
dizendo que a forma platônica da beleza é uma “coisa do mundo”, é real. A palavra latina ‘res’
significa exatamente isso: uma coisa existente; dela procedem expressões como ‘real’,
‘realidade’, ‘realismo’. O realista, portanto, afirma que a forma platônica da beleza é real, é uma
entidade legítima que compõe o inventário do universo. Por outro lado, um outro interlocutor,
poderia dizer que não existe nenhuma forma platônica da beleza, nenhuma “beleza em si”, mas
apenas as coisas belas; ele teria a posição oposta àquela do realista e afirmaria ‘não existe
nenhuma forma platônica da beleza’. Ora, o realista teria uma objeção (muito rasa no contexto
ontológico, mas interessante para a filosofia da linguagem): ao dizer que a forma platônica da
beleza não existe, você está fazendo uma afirmação sobre a forma platônica da beleza! E como pode
a sua afirmação ser verdadeira sendo que o seu próprio objeto não existe? Mas o oponente do
realista não demoraria em deixar a sua posição mais clara: o fato que eu esteja usando a
expressão linguística ‘forma platônica da beleza’ não implica que ela se refira a algum objeto
real. Da mesma forma, eu posso usar o nome ‘unicórnio’ sem necessariamente implicar a
existência de cavalos chifrudos. ‘Forma platônica da beleza’ é apenas um nome, um “nomen”, e
não há nada no mundo que seja denotado por este nome. Portanto, a posição diametralmente
oposta ao realismo, passa a ser chamada de “nominalismo”. O nominalista admite apenas a
existência do “nomen” (isto é, da expressão linguística) e nega a existência da “res” (isto é, da coisa
a que o “nomen” deveria se referir).
A terceira posição mais comum na história da Metafísica é o idealismo que deriva da palavra
latina “idea” (correspondente de ‘ideia’). Esta palavra, que em origem tinha um significado muito
diferente, a partir do século XVII passa a indicar uma representação mental, um conteúdo do

72
pensamento. Na gnosiologia de época moderna é muito comum ler autores traçando a distinção
entre um cavalo como “res”, como coisa do mundo e a ideia que eu tenho deste mesmo cavalo,
isto é, a minha representação mental dele. Ora, ser um idealista a respeito de alguma entidade
significa admitir a existência apenas da ideia, do conteúdo mental e não da “res”, da coisa
extramental. Na disputa sobre a forma platônica de beleza, o idealista discordaria do realista,
enquanto negaria que ela exista como um objeto do mundo, mas discordaria também do
nominalista, enquanto negaria que a expressão linguística ‘forma platônica da beleza’ seja um
nome vazio, sem referência. O idealista diria que este nome se refere apenas a um conteúdo
mental, a uma ideia, isto é, a um conceito produzido por uma mente a que deve a sua existência
“mental”. Em outras palavras, para o idealista, a forma platônica da beleza cessaria de existir se
todas as mentes do mundo também cessassem de existir; enquanto, para o realista, esta forma
não precisaria de nenhuma mente que a pense para se manter na existência.
À luz destas explanações, podemos formular rigorosamente as três posições ontológicas
tradicionais:

Realismo a respeito de X
X existe como uma “res”, um objeto do mundo, isto é, como uma entidade extralinguística e
independente da existência de uma mente que a pense;

Nominalismo a respeito de X
X não existe e existe apenas a expressão linguística ‘X’, que corresponde a um “nomen” sem
denotação;

Idealismo a respeito de X
X existe apenas como uma “idea”, isto é, como conteúdo de uma mente que o pensa e a que deve
a sua própria existência como entidade puramente mental.

A palavra ‘idealismo’ necessita de um esclarecimento ulterior, sobretudo quando é usada para


denotar o “idealismo alemão”. Neste caso falamos de um “idealismo absoluto”, ou seja, da
atribuição de natureza mental a todas as entidades. Nas suas diferentes formulações, o
idealismo absoluto postula a existência de uma “mente universal” que acaba coincidindo com a
própria realidade e, portanto, coincidem também as noções de “res” e de “idea”. Em outras
palavras, o idealismo universal representa a tese ontológica de acordo com a qual todas as coisas

73
são entidades mentais, isto é, representações, ideias, conteúdos de pensamento; diferentes
articulações do realismo absoluto enxergam de forma diferente a mente universal que pensa a
realidade: ela coincide com Deus, no caso, por exemplo, do idealismo de Berkeley, com o “Eu
transcendental”, no caso de Fichte, com o Absoluto no caso de Hegel. Este último exemplo
apresenta uma complexidade ainda maior, enquanto o Absoluto é despojado das características
que comumente associamos a um sujeito (e.g. vontade, capacidade de formulação de juízos,
possibilidade do erro, etc…); neste caso temos um idealismo absoluto onde a noção de mente
universal não é sobreponível com a noção de sujeito universal.

7. Conclusão

Nesta apostila tentamos entender os métodos da Metafísica tradicional por meio da ideia de
“sistema”. Um sistema metafísico, pelo menos nos intuitos dos autores da tradição, corresponde
a um sistema dedutivo cujos axiomas são princípios fundamentais que dizem a respeito da
estrutura ontológica da realidade. Em outras palavras, esses princípios deveriam expressar 1) as
relações fundamentais entre as entidades concebidas como “entes enquanto entes”, isto é, não
nos seus aspectos peculiares mas na sua existência e no modo em que ela se dá; 2) as formas
fundamentais do raciocínio metafísico. Por exemplo, o princípio de razão suficiente nos diz algo
importante sobre o conceito de ‘existência’: as coisas que existem, para existir, precisam de um
fundamento que tem, ao mesmo tempo, uma validade ontológica – enquanto representa a
camada mais fundamental da realidade em virtude da qual as camadas derivadas podem existir
– e uma validade epistêmica – desempenha o papel de ‘explanans’ na construção do saber
metafísico.
A “descoberta” dos princípios fundamentais dos sistemas metafísicos levanta o problema da sua
legitimidade e, portanto, da sua justificativa. Claramente, nenhum argumento dedutivo pode
ser empregado, pois não haveria axiomas mais fundamentais com função de premissas dos
nossos argumentos. Logo, a ideia de metafísica como “episteme” requer uma forma mais
imediata de justificar as verdades primitivas. Vimos que, de formas diversas, a tradição antiga e
moderna apela a uma misteriosa capacidade de “intuição intelectual” para compreender os
conceitos ontológicos fundamentais (ex: substância, acidente, causa, etc…) e a uma análise
conceitual para extrapolar os princípios a partir desses conceitos. Em termos mais resumidos, os
princípios dos sistemas metafísicos encontrariam a sua justificativa na própria estrutura dos

74
conceitos ontológicos e não numa demonstração a partir de outros princípios (o que acarretaria
um regresso ao infinito).
Essas observações nos dizem que a metafísica é um saber dedutivo e fundamentado em
axiomas que representam análises conceituais. Vimos que, todavia, isso não é suficiente para o
projeto original da Metafísica, que deve também ser um saber explicativo. A principal diferença
entre a Metafísica tradicional e a ciência moderna reside precisamente no fato que enquanto a
segunda limita-se a descrever de forma compacta os padrões matemáticos detectáveis nos
dados da experiência (oportunamente coletados na construção do experimento), a Metafísica
pretende ir além desses padrões, descrevendo a realidade subjacente a esses dados e mostrando
como essa realidade os explica. Tentamos dar uma definição de explicação e vimos que nem
toda demonstração dedutiva é explicativa.
Examinando os argumentos famosos da Metafísica tradicional, vimos também que, de forma
inconsciente, muitos autores usaram argumentos não dedutivos, a saber, abdutivos (inferências
em favor da melhor explicação). O lado positivo desta descoberta é que explicaria o caráter
informativo e ampliativo dos sistemas metafísicos; o lado negativo é que nos obrigaria de fato a
abandonar o projeto de sistemas metafísicos como “epistemes”. Em outras palavras, a
Metafísica seria apenas mais um saber baseado em conjecturas a partir das quais são inferidas
conclusões aparentemente plausíveis e não consequências necessárias.
Sabemos que a partir do século XVIII este modelo de saber – a Metafísica sistemática – entrou
numa profunda crise e foi objeto de críticas brilhantes, como, por exemplo, a de Kant. O filósofo
de Königsberg decretou, com suas argumentações complexas, a impossibilidade de uma
metafísica como ciência da coisa em si e também como fonte de princípios analíticos a priori
que pudessem ser informativos. Em outras palavras, a Metafísica tradicional seria falsa ou, na
melhor das hipóteses, banal. Para Kant, o fracasso da Metafísica é visto em contraposição com o
sucesso da ciência moderna; na sua interpretação, esta última seria um saber universal e
necessário, cujos princípios emanam da própria estrutura transcendental da experiência do
sujeito. Em outras palavras, o nosso sistema cognitivo, com as suas formas de espaço e tempo, e
com o conjunto das suas categorias conceituais, forneceria os princípios basilares para a
compreensão sintética de toda experiência possível.
Mas, como dissemos, a Metafísica não morreu com Kant, nem está morta no nosso tempo.
Sabemos que a Física não é uma emanação da filosofia transcendental e que, como a Filosofia, é
um saber hipotético. Há um futuro para a Metafísica, um futuro que já é presente em toda
tentativa de interpretar de forma explicativa as principais teorias da ciências naturais e
humanas. Claramente, o sonho dos sistemas metafísicos de Spinoza e Leibniz deve ser

75
abandonado. A Metafísica é, portanto, devolvida ao debate filosófico na sua precariedade
epistêmica, mas também enriquecida com um novo senso crítico. Disputas sobre a existência de
Deus, dos universais, das relações corpo-mente, das relações causais e do universo como todo,
continuam, fazendo surgir novas formulações interessantes desses problemas, novos conceitos
e traçando novos limites para a nossa compreensão. A ciência moderna, concebida na sua
“infância” como o prego no caixão da Metafísica, está em diálogo constante com ela, lhe
sugerindo novas categorias ontológicas e novos contextos para pensá-las. Afinal, teorias
científicas sem o suporte do exame metafísico, são apenas taxonomias da experiência.
A ciência nasceu da Metafísica da natureza, por meio de um “expurgo” conceitual e
metodológico. O resultado foi um saber hipotético, empírico e descritivo. Mas a exigência
explanatória da natureza humana não se calou e, como dissemos, enxergou os resultados
científicos como novo carburante para novas perguntas e respostas, cujas formulações são,
deliciosamente, metafísicas. As recentes teorias científicas voltam, portanto, às questões
metafísicas com novos termos e renovado senso crítico; o círculo dos saberes se fecha, ou, mais
precisamente, se estende indefinidamente como uma espiral, passando inúmeras vezes pelos
mesmos nòs filosóficos. A volta da ciência à metafísica é testemunhada pelas enigmáticas
palavras de Charles Darwin, extraídas de suas anotações pessoais, com as quais encerramos a
nossa discussão:

“A origem do homem agora está provada – a Metafísica deve florescer! – Aquele que entende
de babuínos contribuirá para a Metafísica mais do que o próprio Locke” C. DARWIN

8. Referências
BLACK, M., ‘The Identity of Indiscernibles’, Mind, n.61, pp.153–64, 1952.

DELLA ROCCA, M., Spinoza, The Routledge Philosophers, 2008

HUME, D., Investigações sobre o Entendimento Humano, Editora UNESP, 2003

KANT, I., Crítica da Razão Pura, Editora Vozes, 2015

KRIPKE, S., O nomear e a necessidade, Editora Gradiva, 2012

LEIBNIZ, G. W., Discurso de Metafísica e outros textos, Martin Fontes, 2004

SPINOZA, B., Ética, edição monolíngue, Autêntica, 2009

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