Você está na página 1de 16

Parte I

Como os alunos aprendem ciências


1
Por que os alunos não aprendem
a ciência que lhes é ensinada?

Uma deliciosa sátira de Harold Ben- vida e que nunca poderia surgir de
jamin, intitulada “O currículo dentes-de- uma atividade tão básica como matar
-sabre”, publicada em 1939, nos faz voltar ursos.” Todos os radicais ficaram sem
às primeiras disciplinas do currículo: for- palavras diante desta declaração; to-
dos exceto o mais radical de todos.
mar os jovens na arte de capturar peixes,
Estava perplexo, é verdade, mas era
caçar cavalos lanudos com garrote e as- tão radical que ainda fez um último
sustar com fogo os tigres dentes-de-sabre. protesto. “Mas, mas contudo”, suge-
A questão era: o que aconteceria com es- riu, “vocês devem admitir que os tem-
tas veneráveis disciplinas quando alguém pos mudaram. Vocês não poderiam
inventasse a vara de pescar, os cavalos dignar-se a experimentar estas outras
lanudos mudassem para terras mais altas atividades mais modernas? Afinal de
e fossem substituídos por antílopes, mais contas, talvez elas tenham algum va-
velozes, e os tigres morressem e seu lugar lor educativo.” Até os companheiros
radicais desse homem pensaram que
fosse ocupado por alguns ursos? Elas não
ele tinha ido longe demais. Os sábios
deveriam ser aposentadas ou substituídas anciãos estavam indignados. O sorriso
por estudos mais pertinentes? sumiu de seus rostos. “Se você tivesse
alguma educação”, disseram em tom
“Não seja tolo” disseram os sábios grave, “saberia que a essência da ver-
anciãos, mostrando seus sorrisos dadeira educação é a atemporalidade.
mais benevolentes. “Não ensinamos É algo que permanece mesmo quando
a capturar peixes com a finalidade mudam as condições, como uma rocha
de capturar peixes: ensinamos para firmemente afincada no meio de uma
desenvolver uma agilidade geral que tumultuosa torrente. É preciso saber
nunca poderá ser obtida com uma que há verdades eternas e que o currí-
mera instrução. Não ensinamos a culo dentes-de-sabre é uma delas!”.
caçar cavalos com garrote para caçar
cavalos: ensinamos para desenvolver Guy Claxton,
uma força geral no aprendizado, que Educar mentes curiosas
ele nunca iria obter de uma coisa tão
prosaica e especializada como caçar
antílopes com rede. Não ensinamos
a assustar tigres com a finalidade A crise da educação científica
de assustar tigres: ensinamos com o
propósito de dar essa nobre coragem Espalha-se entre os professores de
que se aplica a todos os níveis da ciências, especialmente nos anos finais do
A aprendizagem e o ensino de ciências 15
ensino fundamental e do ensino médio, Será por medo do pecado ou por ou-
uma crescente sensação de desassossego, tras razões mais mundanas que tentaremos
de frustração, ao comprovar o limitado ir desentranhando nas próximas páginas,
sucesso de seus esforços docentes. Apa- mas a verdade é que os alunos se mantêm
rentemente, os alunos aprendem cada vez muito afastados da tentação da árvore da
menos e têm menos interesse pelo que ciência, e quando provam seus suculentos
aprendem. Essa crise da educação cien- frutos não parecem desfrutar muito deles.
tífica, que se manifesta não só nas salas Assim é percebido e vivenciado por mui-
de aula, mas também nos resultados da tos professores de ciências em seu trabalho
pesquisa em didática das ciências, da qual cotidiano, e é isso que mostram inúmeras
falaremos em breve, é atribuída por mui- pesquisas: a maioria dos alunos não apren-
tos às mudanças educacionais introdu- dem a ciência que lhes é ensinada. Alguns
zidas nos últimos anos nos currículos de dados e exemplos incluídos no Quadro 1.1
ciências, no marco geral da Reforma Edu- bastarão para ilustrar isso.
cativa.* Contudo, as causas parecem mais Qualquer professor pode encontrar
profundas e remotas. De fato, em certo exemplos dessas ideias em seu trabalho
sentido esta crise não é nova, uma vez que cotidiano, se utilizar as tarefas de avalia-
faz parte, inclusive, das nossas próprias ção adequadas. Embora tradicionalmen-
origens, dos nossos mitos. Assim, segundo te tenham sido recolhidos apenas como
narra o Gênese, após criar pacientemente exemplos divertidos ou chocantes, bestei-
o céu e a terra e todo seu cortejo, a luz ras conceituais dignas das corresponden-
e as trevas e todas as criaturas que neles tes antologias, parece – segundo indicam
habitam, incluídos o homem e a mulher, pesquisas recentes, que analisaremos em
Deus advertiu Adão e Eva dos perigos de detalhe no Capítulo 4 – que é necessário
ir à árvore da ciência do bem e do mal, considerar esses exemplos com muita se-
dos riscos de tentar compreender o porquê riedade se queremos melhorar a educa-
desse céu e dessa terra, dessa luz e dessas ção científica. Não se tratam de respostas
trevas em que habitavam; mas eles não o anedóticas e casuais dadas por alunos
escutaram e, em vez da suposta maçã, na especialmente distraídos ou descuidados.
verdade o que provaram foi o fruto amar- Mais do que respostas excepcionais são,
go do conhecimento, que está na origem em muitos casos, a regra, a forma como
de nossa expulsão do Paraíso, que é, de os alunos habitualmente entendem os fe-
fato, nosso verdadeiro pecado original, nômenos científicos. Mas também se tra-
pelo qual fomos expulsos daquele mundo tam, com frequência, de concepções mui-
prazeroso e devemos vagar por este ou- to persistentes, que praticamente não se
tro mundo, nem sempre tão prazeroso, no modificam após muitos anos de instrução
qual, entre outras coisas, abundam os alu- científica. Por exemplo, em uma pesqui-
nos que resistem tenazmente, talvez por sa recente comprovamos as dificuldades
medo do pecado e de suas dores eternas, trazidas pela concepção descontínua da
a comer da frondosa árvore da ciência, matéria, a ideia de que ela está constituí-
que com tanto esforço seus professores, da por partículas que interagem entre si,
tentadoramente, oferecem. separadas por um espaço vazio. Como es-
perávamos, a partir de estudos anteriores
(Pozo, Gómez Crespo e Sanz, 1993; Stavy,
*
N. de R.T. Em 1990, a Espanha promulgou a LOGSE 1995), apenas entre 10 e 30% das respos-
(Lei de Ordenação Geral do Sistema Educativo). promo-
vendo uma profunda reforma na educação desse país. tas dos alunos adolescentes de diferentes
séries assumem a ideia de vazio entre as
16 Pozo & Gómez Crespo

Quadro 1.1
Algumas dificuldades que os alunos encontram na
compreensão de conceitos da Área de Ciências da Natureza

Geologia
– Considerar que a formação de uma rocha e um fóssil que aparece em sua superfície não são processos
sincronizados. Para muitos alunos, a rocha existia antes do fóssil (Pedrinaci, 1996).
– O relevo terrestre e as montanhas são vistos como estruturas muito estáveis, que mudam pouco ou
muito pouco, exceto pela erosão (Pedrinaci, 1996).
Biologia
– Para muitos alunos, a adaptação biológica é baseada na ideia de os organismos efetuarem conscien-
temente mudanças físicas como resposta a mudanças ambientais, de tal maneira que o mecanismo
evolutivo seria baseado em uma mistura de necessidade, uso e falta de uso (De Manuel e Grau, 1996).
– Alguns alunos pensam que o tamanho dos organismos é determinado pelo tamanho de suas células
(De Manuel e Grau, 1996).
Física
– O movimento implica uma causa e, quando necessário, esta causa está localizada dentro do corpo como
força interna que vai se consumindo até que o objeto pare (Varela, 1996).
– O termo energia é interpretado como sinônimo de combustível, como algo “quase” material, que está
armazenado e pode ser consumido e desaparecer (Hierrezuelo e Montero, 1991).
Química
– O modelo corpuscular da matéria é muito pouco utilizado para explicar suas propriedades e, quando se
utiliza, são atribuídas às partículas, propriedades do mundo macroscópico (Gómez Crespo, 1996).
– Em muitas ocasiões não se diferencia mudança física de mudança química e podem aparecer interpreta-
ções do processo de dissolução em termos de reações, e estas podem ser interpretadas como se fossem
uma dissolução ou uma mudança de estado (Gómez Crespo, 1996).

Pozo e Gómez Crespo, 1997b.

partículas. Mas acontece que, entre os trabalho científico. O Quadro 1.2 resume
alunos universitários dos últimos anos algumas das dificuldades mais comuns no
de química, apenas 15% das respostas domínio daquilo que podemos chamar de
aceitam a concepção descontínua (Pozo conteúdos procedimentais do currículo de
e Gómez Crespo, 1997a). De fato, essas ciências, o que eles precisam aprender a
dificuldades de compreensão podem che- fazer com seus conhecimentos científicos.
gar a ocorrer inclusive entre os próprios Muitas vezes, os alunos não conse-
professores de ciências e, com alguma fre­ guem adquirir as habilidades necessárias,
quência, nos livros didáticos que os alunos seja para elaborar um gráfico a partir de
estudam (por exemplo, Bacas, 1997). alguns dados ou para observar correta-
No Capítulo 4, vamos estudar em mente através de um microscópio, mas
detalhe essas dificuldades conceituais na outras vezes o problema é que eles sabem
aprendizagem da ciência e tentaremos fazer as coisas, mas não entendem o que
compreender melhor suas causas e possí- estão fazendo e, portanto, não conseguem
veis soluções a partir dos recentes estudos explicá-las nem aplicá-las em novas situa­
em psicologia cognitiva da aprendizagem. ções. Esse é um déficit muito comum. Mes-
Mas os alunos não encontram somente di- mo quando os professores acreditam que
ficuldades conceituais; também enfrentam seus alunos aprenderam algo – e de fato
problemas no uso de estratégias de racio- comprovam esse aprendizado por meio
cínio e solução de problemas próprios do de uma avaliação –, o que foi aprendido
A aprendizagem e o ensino de ciências 17

Quadro 1.2
Algumas dificuldades na aprendizagem de procedimentos
no caso dos problemas quantitativos
1. Fraca generalização dos procedimentos adquiridos para outros contextos novos. Assim que o
formato ou o conteúdo conceitual do problema muda, os alunos sentem-se incapazes de aplicar a essa
nova situação os algoritmos aprendidos. O verdadeiro problema dos alunos é saber do que trata o
problema (da regra de três, do equilíbrio químico, etc.).
2. O fraco significado do resultado obtido para os alunos. De modo geral, aparecem sobrepostos dois
problemas, o de ciências e o de matemática, de maneira que muitas vezes este mascara aquele. Os
alunos limitam-se a encontrar a “fórmula” matemática e chegar a um resultado numérico, esquecendo o
problema de ciências. Aplicam cegamente um algoritmo ou um modelo de “problema”, sem compreen-
der o que estão fazendo.
3. Fraco controle metacognitivo alcançado pelos alunos sobre seus próprios processos de solução. O
trabalho fica reduzido à identificação do tipo de exercício e a seguir de forma algorítmica os passos que
já foram seguidos em outros exercícios similares na busca da solução “correta” (normalmente única). O
aluno olha somente para o processo algorítmico, está interessado apenas no resultado (que é o que ge-
ralmente é avaliado). Assim, a técnica impõe-se sobre a estratégia e o problema passa a ser um simples
exercício rotineiro.
4. O fraco interesse que esses problemas despertam nos alunos, quando são utilizados de forma massi-
va e descontextualizada, diminuindo a motivação dos alunos para o aprendizado da ciência.

Pozo e Gómez Crespo, 1996.

se dilui ou se torna difuso rapidamente deiros problemas com conteúdo científico


quando se trata de aplicar esse conheci- (“por que os dias são mais longos no ve-
mento a um problema ou situação nova, rão do que no inverno?”).
ou assim que se pede ao aluno uma expli- Essa perda de sentido do conheci-
cação sobre o que ele está fazendo. mento científico não só limita sua utilida-
Essas dificuldades tornam-se eviden- de ou aplicabilidade por parte dos alunos,
tes principalmente na resolução de pro- mas também seu interesse ou relevância.
blemas, que os alunos tendem a enfren- De fato, como consequência do ensino
tar de um modo repetitivo, como simples recebido os alunos adotam atitudes ina-
exercícios rotineiros, em vez de encará-los dequadas ou mesmo incompatíveis com
como tarefas abertas que exigem reflexão os próprios fins da ciência, que se tradu-
e tomada de decisões (Caballer e Oñorbe, zem sobretudo em uma falta de motiva-
1997; Pozo e Gómez Crespo, 1994). No ção ou interesse pela aprendizagem desta
Capítulo 3, vamos analisar em detalhe es- disciplina, além de uma escassa valoriza-
sas dificuldades de aprendizagem e suas ção de seus saberes, uma vez que, como
possíveis soluções, mas não há dúvida de mostravam Giordan e De Vecchi (1987),
que boa parte delas é consequência das muitas vezes tendem a acreditar em for-
próprias práticas escolares de solução de mas de conhecimento (como a astrologia
problemas, que tendem a estar mais cen- ou a quiromancia) que são muito pouco
tradas em tarefas rotineiras ou delimita- compatíveis com o discurso científico. O
das, com escasso significado científico Quadro 1.3 resume alguns dos problemas
(“qual será a velocidade alcançada aos 43 comportamentais que os alunos tendem a
segundos por um projétil que, partindo do mostrar que, no mínimo, desviam-se da-
repouso, está submetido a uma aceleração queles que caberia esperar de uma instru-
constante de 2m/s²?”), do que em verda- ção científica adequada.
18 Pozo & Gómez Crespo

Quadro 1.3
Algumas atitudes e crenças inadequadas mantidas pelos alunos
com respeito à natureza da ciência e sua aprendizagem

– Aprender ciência consiste em repetir da melhor maneira possível aquilo que o professor explica duran-
te a aula.
– Para aprender ciência é melhor não tentar encontrar suas próprias respostas, mas aceitar o que o pro-
fessor e o livro didático dizem, porque isso está baseado no conhecimento científico.
– O conhecimento científico é muito útil para trabalhar no laboratório, para pesquisar e para inventar
coisas novas, mas não serve praticamente para nada na vida cotidiana.
– A ciência proporciona um conhecimento verdadeiro e aceito por todos.
– Quando sobre o mesmo fato há duas teorias, é porque uma delas é falsa: a ciência vai acabar demos-
trando qual delas é a verdadeira.
– O conhecimento científico é sempre neutro e objetivo.
– Os cientistas são pessoas muito inteligentes, mas um pouco estranhas, e vivem trancados em seus
laboratórios.
– O conhecimento científico está na origem de todos os descobrimentos tecnológicos e vai acabar subs-
tituindo todas as outras formas do saber.
– O conhecimento científico sempre traz consigo uma melhora na forma de vida das pessoas.

Além dessa falta de interesse, os alu- mais detalhes como podemos interpretar
nos tendem a assumir atitudes inadequa- esta defasagem entre as atitudes suposta-
das com respeito ao trabalho científico, mente buscadas e as obtidas nos alunos,
assumindo posições passivas, esperando com especial ênfase no eterno problema
respostas em vez de dá-las, e muito menos da motivação ou, para ser exatos, da fal-
são capazes de fazer eles mesmos as per- ta de motivação dos alunos pela aprendi-
guntas; também tendem a conceber os ex- zagem da ciência. De qualquer modo, a
perimentos como “demonstrações” e não aprendizagem de atitudes é muito mais
como pesquisas; a assumir que o trabalho relevante e complexa do que com frequên­
intelectual é uma atividade individual e cia se admite (ver, por exemplo, Koballa,
não de cooperação e busca conjunta; a 1995; Simpson et al., 1994).
considerar a ciência como um conheci- Portanto, a educação científica tam-
mento neutro, desligado de suas reper- bém deveria promover e modificar certas
cussões sociais; a assumir a superioridade atitudes nos alunos, algo que normal-
do conhecimento científico com respeito mente não consegue, em parte porque
a outras formas de saber culturalmente os professores de ciências não costumam
mais “primitivas”, etc. considerar que a educação em atitudes
Essa imagem da ciência, que na ver- faça parte de seus objetivos e conteúdos
dade não corresponde ao que os cientistas essenciais – apesar de, paradoxalmente,
realmente fazem, apesar de estar também as atitudes dos alunos nas salas de aula
muito presente nos meios de comunicação geralmente serem um dos elementos mais
social – um cientista é sempre alguém ves- incômodos e agressivos para o trabalho
tido com um avental branco manipulando de muitos professores.
aparelhos em um laboratório –, é mantida De fato, a deterioração do clima edu­
e reforçada por meio da atividade cotidia- cacional nas salas de aula e nas escolas,
na na sala de aula, mesmo que isso nem especialmente nos anos finais do ensino
sempre seja feito de maneira explícita. fundamental e do ensino médio, e o desa-
No próximo capítulo, vamos analisar com juste crescente entre as metas dos profes-
A aprendizagem e o ensino de ciências 19
sores e as dos alunos são alguns dos sin- ainda não fomos a lugar algum do qual
tomas mais presentes e inquietantes desta tenhamos que voltar. As dificuldades que
crise da educação científica, cujos riscos os professores de ciências vivem cotidia-
mais visíveis acabamos de esboçar. Talvez namente nas salas de aula quase nunca
os alunos nunca tenham entendido muito são consequência da aplicação de novas
bem o processo de dissolução ou o princí- propostas curriculares com uma orienta-
pio de conservação da energia, e, talvez, ção construtivista, senão que, na maior
nunca tenham sido capazes de fazer uma parte dos casos, ocorrem devido à tentati-
pesquisa, mas pelo menos tentavam e fa- va de manter um tipo de educação cientí-
ziam um esforço maior para fingir que es- fica que em seus conteúdos, em suas ativi-
tavam aprendendo. Essa deterioração da dades de aprendizagem, em seus critérios
educação científica se traduz, também,­em de avaliação e, sobretudo, em suas metas
uma suposta queda dos níveis de apren­ está muito próxima dessa tradição à qual,
dizagem dos alunos, em uma considerável supostamente, se quer voltar.
desorientação entre os professores diante Do nosso ponto de vista (argumenta-
da multiplicação das demandas educacio- do com mais detalhe em Pozo, 1997b), o
nais que precisam enfrentar (novas discipli- problema é justamente que o currículo de
nas, novos métodos, alunos diversificados, ciências praticamente não mudou, enquan-
etc.) e, em geral, uma defasagem crescente to a sociedade à qual vai dirigido esse en-
entre as demandas formativas dos alunos, sino da ciência e as demandas formativas
especialmente a partir da adolescência, e a dos alunos mudaram. O desajuste entre a
oferta educacional que recebem. ciência que é ensinada (em seus forma-
Com as coisas dessa forma, não é de tos, conteúdos, metas, etc.) e os próprios
se estranhar que âmbitos acadêmicos, pro- alunos é cada vez maior, refletindo uma
fissionais e até políticos peçam um retorno autêntica crise na cultura educacional, que
ao básico, aos conteúdos e formatos tradi- requer adotar não apenas novos métodos,
cionais da educação científica, ao currícu- mas, sobretudo, novas metas, uma nova
lo dentes-de-sabre, como uma espécie de cultura educacional que, de forma vaga e
reflexo condicionado diante da confusa imprecisa, podemos vincular ao chamado
ameaça composta pelos ingredientes que construtivismo. Não vamos analisar aqui
acabamos de descrever, vagamente asso- as diversas formas de conceber a constru-
ciados aos ares de mudança e à Reforma ção do conhecimento, o que elas têm em
Educacional e suas novas propostas cur- comum e o que as diferencia, dado que
riculares de orientação construtivista. É há fontes recentes nas quais essa análise
compreensível que nesta situação de per- é feita de maneira detalhada (Carretero,
plexidade se pretenda recorrer a fórmu- 1993; Coll, 1996; Monereo, 1995; Pozo,
las conhecidas, a formatos educacionais 1996b; Rodrigo e Arnay, 1997). Contudo,
amplamente utilizados, e que, sem dúvi- tentaremos sim justificar como este enfo-
da, durante décadas cumpriram de forma que é bastante mais adequado do que os
mais ou menos adequada sua função so- formatos tradicionais para a forma como
cial. Contudo, a saudade do passado não o conhecimento científico é elaborado na
deve impedir que percebamos as enormes própria evolução das disciplinas, é apren-
mudanças culturais que estão ocorrendo dido do ponto de vista psicológico e é dis-
e que tornam inviável um retorno – ou tribuído e divulgado na nova sociedade da
a permanência – desses formatos educa- informação e do conhecimento, no limiar
cionais tradicionais. Um dos problemas do século XXI. A nova cultura da apren-
de defender o “retorno ao básico” é que dizagem que se abre neste horizonte do
20 Pozo & Gómez Crespo

século XXI é dificilmente compatível com deles surgiria, inevitavelmente, a verdade


formatos escolares e metas educacionais científica. Essa imagem da ciência como
que praticamente não mudaram desde um processo de descobrimento de leis cui-
que as instituições escolares foram cons- dadosamente enterradas sob a aparência
tituídas no século XIX. da realidade ainda continua, em grande
medida, vigente nos meios de comunica-
ção e, inclusive, nas salas aula. De fato,
A construção do conhecimento ainda se continua ensinando que o conhe-
como nova cultura educacional cimento científico é baseado na aplicação­
rigorosa do “método científico”, que deve
A ideia básica do chamado enfoque começar pela observação dos fatos, do qual
construtivista é que aprender e ensinar, devem ser extraídas as leis e os princípios.
longe de serem meros processos de re- Essa concepção positivista, segundo
petição e acumulação de conhecimentos, a qual a ciência é uma coleção de fatos ob-
implicam transformar a mente de quem jetivos governados por leis que podem ser
aprende, que deve reconstruir em nível extraídas diretamente observando esses
pessoal os produtos e processos culturais fatos com uma metodologia adequada, foi
com o fim de se apropriar deles. Essa ideia superada – entre os filósofos e historiado-
não é, evidentemente, nova, uma vez que, res da ciência, mas não necessariamente
de fato, tem uma longa história cultural e nas salas de aula, como veremos no Capí-
filosófica (Pozo, 1996a). Porém, devido às tulo 8 – por novas concepções epistemo-
mudanças ocorridas na forma de produzir, lógicas, segundo as quais o conhecimento
organizar e distribuir os conhecimentos em científico nunca se extrai da realidade,
nossa sociedade, entre eles os científicos, mas vem da mente dos cientistas, que ela­
é novidade sim a necessidade de esten- boram modelos e teorias na tentativa de
der essa forma de aprender e ensinar para dar sentido a essa realidade. Superada
quase todos os âmbitos formativos e, é cla- a “glaciação positivista”, hoje parece ser
ro, para o ensino das ciências. As razões um fato assumido que a ciência não é um
deste impulso construtivista podem ser discurso sobre “o real”, mas um processo­
encontradas em diversos níveis de análise socialmente definido de elaboração de mo-
que pressionam na mesma direção, embo- delos para interpretar a realidade. As teo­
ra com notáveis diferenças. Encontramos rias científicas não são saberes absolu­tos
uma primeira explicação para isso no nível ou positivos, mas aproximações relativas,
epistemológico, estudando como se gera ou construções sociais que, longe de “desco-
elabora o conhecimento científico. brir” a estrutura do mundo ou da na­tureza,
constroem ou modelam essa estrutura. Não
é a voz cristalina da Natureza o que um
A elaboração do cientista escuta quando faz uma experiên-
conhecimento científico cia; o que ele escuta é o diálogo entre sua
teoria e a parte da rea­lidade interrogada
Durante muito tempo se concebeu por meio de certos métodos ou instrumen-
que o conhecimento científico surgia de tos. No melhor dos casos, escutamos o eco
“escutar a voz da Natureza da maneira­ da realidade, mas nunca podemos escutar
adequada”, segundo disse Claxton (1991). diretamente a voz da Natureza.
Tudo o que era preciso fazer para desco- Da mesma maneira, os conceitos e
brir uma Lei ou um Princípio era observar as leis que compõem as teorias científi-
e coletar dados da maneira adequada e cas não estão na realidade, senão que são
A aprendizagem e o ensino de ciências 21
parte dessas mesmas teorias. Vladimir Na- interpretar a realidade, como veremos no
bokov ironizava sobre a fé realista, segun- Capítulo 5.
do a qual se “a alizarina existiu no carvão Por outro lado, a ciência é um proces-
sem que soubéssemos, as coisas devem so e não apenas um produto acumulado em
existir independentemente de nossos co- forma de teorias ou modelos, e é necessá-
nhecimentos”. A ideia de que os átomos, rio levar para os alunos esse caráter dinâ-
os fótons ou a energia estão aí, fora de mico e perecedouro dos saberes cientí­ficos
nós, existem realmente e estão esperando (Duchsl, 1994), conseguindo que per­cebam
que alguém os descubra, é frontalmente sua transitoriedade e sua natureza histó-
oposta aos pressupostos epistemológicos rica e cultural, que compreendam as rela-
do construtivismo. Porém, apesar disso, é ções entre o desenvolvimento da ciência,
implícita ou explicitamente assumida por a produção tecnológica e a organização
muitos professores e, evidentemente, por social, entendendo, portanto, o compro-
quase todos os alunos. Isso os leva a con- misso da ciência com a sociedade, em vez
fundir os modelos com a realidade que da neutralidade e objetividade do suposto
eles representam, atribuindo, por exem- saber positivo da ciência. Ensinar ciências
plo, propriedades macroscópicas às partí- não deve ter como meta apresentar aos
culas microscópicas constituintes da ma- alunos os produtos da ciência como sabe-
téria, transformando a energia em uma res acabados, definitivos (a matéria é des-
substância e a força em um movimento contínua, a energia não se consome, mas
perceptível, como veremos em detalhe na se conserva, é a Terra que gira em volta
Parte II do livro (Capítulos 6 e 7). do Sol e não o contrário), nos quais, como
Nem sequer o velho “clichê” da ciên­ assinala ironicamente Claxton (1991),
cia empírica, dedicada a descobrir as leis eles devem crer com fé cega, uma vez que
que governam a natureza por meio da se abrirem bem os olhos todos os indícios
realização de experimentos, é verdadeiro disponíveis indicam justamente o contrá-
hoje em dia. Boa parte da ciência de pon- rio: a matéria é contínua, o Sol é que gira,
ta, de fronteira, é baseada, cada vez mais, a energia (assim como a paciência do alu-
no paradigma da simulação, mais do que no) se gasta... Pelo contrário, a ciência
no experimento em si, o que supõe uma deve ser ensinada como um saber histó-
importante revolução na forma de fazer ci- rico e provisório, tentando fazer com que
ência e de concebê-la (Wagensberg, 1993). os alunos participem, de algum modo, no
A astrofísica, mas também as ciências processo de elaboração do conhecimento
cognitivas, não “descobrem” como são científico, com suas dúvi­das e incertezas,
as coisas indagando na realidade, senão e isso também requer de­les uma forma de
que constroem modelos e, a partir deles, abordar o aprendiza­do como um processo
simulam certos fenômenos, comprovan- construtivo, de busca de signifi­cados e de
do seu grau de ajuste ao que conhecemos interpretação, em vez de reduzir a apren-
da realidade. Aprender ciên­cia deve ser, dizagem a um processo repetitivo ou de
portanto, um exercício de comparar e di- reprodução de conhecimentos pré-cozidos,
ferenciar modelos, não de adquirir sabe- prontos para o consumo.
res absolutos e verdadeiros. A chamada
mudança conceitual, necessária para que A aprendizagem como
o aluno progrida dos seus conhecimentos processo construtivo
intuitivos aos científicos, requer pensar
nos – e não só com os – diversos mode- De fato, esses pressupostos episte-
los e teorias a partir dos quais é possível mológicos e a concepção da ciência como
22 Pozo & Gómez Crespo

processo de construção de modelos e teo- nos permite estar atentos a muito poucas
rias também exigem, no plano psicológico, coisas novas de cada vez. Essa capacidade
adotar um enfoque construtivista no ensi- limitada pode, contudo, ser notavelmente
no das ciências. Superada, aqui também, ampliada por meio do aprendizado, que
a glaciação condutista, paralela à anterior, nos permite reconhecer situações que já
não é mais possível conceber a aprendi- havíamos enfrentado antes ou automati-
zagem como uma atividade apenas de zar conhecimentos e habilidades, reser-
reprodução ou cumulativa. Nosso sistema vando essas escassas capacidades para o
cognitivo possui características muito es- que há de realmente novo em uma situa­
pecíficas que condicionam nossa forma de ção (para mais detalhes dos processos en-
aprender (Pozo, 1996a). Frente a outras volvidos, ver Pozo, 1996a).
espécies, que dispõem, em um alto grau, Além da memória de trabalho muito
de condutas geneticamente programadas limitada, há outra diferença essencial entre
para se adaptar a ambientes muito está- o funcionamento cognitivo humano e o de
veis, os seres humanos precisam se adap- um computador no que se refere ao apren-
tar a condições muito mais variáveis e dizado. Nossa memória permanente não é
imprevisíveis, em grande medida devido nunca uma reprodução fiel do mundo, nos-
à própria intervenção da cultura, e, por- sas recordações não são cópias do passado,
tanto, precisam dispor de mecanismos de mas reconstruções desse passado a partir
adaptação mais flexíveis, que não podem do presente. Assim, a recuperação do que
estar pré‑programados. Em resumo, nós aprendemos tem um caráter dinâmico e
precisamos de processos de aprendiza- construtivo: diferentemente de um compu-
gem muito potentes. tador, somos muito limitados na recupera-
A prolongada imaturidade da espé- ção de informação literal, mas muito dota-
cie humana permite que nos adaptemos dos para a interpretação dessa informação.
lentamente às demandas culturais (Bru- Se o leitor tentar lembrar literalmente a
ner, 1972, 1997), graças ao efeito ampli- frase que acaba de ler, provavelmente isso
ficador dos processos de aprendizagem lhe será impossível, mas queremos pensar
sobre nosso sistema cognitivo, que de que não terá problemas para lembrar seu
fato tem uma arquitetura surpreenden- significado, interpretando o que acaba de
temente limitada. Assim, diferentemen- ler em suas próprias palavras, que certa-
te, por exemplo, do computador em que mente não serão exatamente iguais às de
escrevemos estas linhas, nós, as pessoas, outro leitor e, é claro, não serão uma cópia
temos uma capacidade de trabalho si- literal do texto que acabou de ler.
multâneo muito limitada, ou memória de Na verdade, o aprendizado e o es-
trabalho, dado que podemos absorver ou quecimento não são processos opostos.
ativar muito pouca informação ao mesmo Um sistema cognitivo que faz cópias li-
tempo. Caso tenha dúvidas, o leitor pode terais de toda a informação, como um
tentar realizar uma fácil operação de compu­tador, é um sistema que não esque-
multiplicação com o único apoio de seus ce e, portanto, que também não é capaz
recursos cognitivos, por exemplo, multi- de aprender. De fato, com suas limitações
plicar 27 vezes 14. Perceberá que está sur- na memória de trabalho e na recuperação
preendentemente limitado, não devido à literal da informação, o sistema humano
complexidade da operação (com a ajuda de aprendizado e memória é o dispositi-
de lápis e papel é muito simples), mas vo de aprendizagem mais complexo que
devido à escassa capacidade de processa- conhecemos. Os computadores conse-
mento simultâneo da mente humana, que guem superar o rendimento humano em
A aprendizagem e o ensino de ciências 23
muitas tarefas, mas é difícil imaginar um para exigir esta mudança cultural na for-
computador que aprenda tão bem quanto ma de aprender e ensinar. Um sistema
um aluno – embora, talvez, muitos pro- educacional, mediante o estabelecimento
fessores assumam, quando ensinam, que dos conteúdos das diferentes disciplinas
seus alunos aprendem tão mal quanto um que compõem o currículo, tem como fun-
computador, uma vez que, paradoxalmen- ção formativa essencial fazer com que os
te, a aprendizagem escolar tende a exigir futuros cidadãos interiorizem, assimilem
dos alunos aquilo para o que eles estão a cultura em que vivem, em um sentido
menos dotados: repetir ou reproduzir as amplo, compartilhando as produções ar-
coisas com exatidão. Aprender não é fazer tísticas, científicas, técnicas, etc. próprias
fotocópias mentais do mundo, assim como dessa cultura e compreendendo seu sen-
ensinar não é enviar um fax para a men- tido histórico, mas, também, desenvol-
te do aluno, esperando que ela reproduza vendo as capacidades necessárias para
uma cópia no dia da prova, para que o acessar esses produtos culturais, desfrutar
professor a compare com o original envia- deles e, na medida do possível, renová-
do por ele anteriormente. Esta é, talvez, a -los. Mas essa formação cultural ocorre no
tese central do construtivismo psicológi- marco de uma cultura da aprendizagem,
co, o que todo modelo ou postura baseada que evolui com a própria sociedade.
nesse enfoque tem em comum: o conhe- As formas de aprender e ensinar são
cimento nunca é uma cópia da realidade uma parte da cultura que todos devemos
que representa. Mas existem muitas for- aprender e sofrem modificações com a
mas diferentes de interpretar os processos própria evolução da educação e dos co-
psicológicos envolvidos nessa construção nhecimentos que devem ser ensinados. A
e, portanto, longe de ser um modelo úni- primeira forma regrada de aprendizagem,
co, existem diferentes alternativas teóricas a primeira escola historicamente conheci-
que compartilham esses pressupostos co- da, as “casas de tabuinhas” aparecidas na
muns, com implicações bem diferenciadas Suméria há uns 5 mil anos, estava vincu-
para o currículo de ciências (uma análise lada ao ensino do primeiro sistema de lec-
de diferentes teorias cognitivas de apren- toescritura conhecido, e daí surge a pri-
dizagem pode ser encontrada em Pozo, meira metáfora cultural do aprendizado,
1989). Essas formas diferentes de conce- que ainda perdura entre nós (“aprender
ber a aprendizagem não são, realmente, é escrever em uma tábula rasa”, as tabui-
incompatíveis ou contraditórias; elas es- nhas de cera virgem nas quais os sumérios
tão relacionadas com as diferentes metas escreviam). Desde então, cada revolução
da educação, que mudam não só devido a cultural nas tecnologias da informação e,
novas colocações epistemológicas ou psi- como consequência disso, na organização
cológicas, mas principalmente pelo apare- e distribuição social do saber trouxe consi­
cimento de novas demandas educacionais go uma revolução paralela na cultura da
e por mudanças na organização e distri- aprendizagem, a mais recente das quais
buição social do conhecimento. ainda não terminou: as novas tecnologias
da informação, unidas a outras mudanças
As novas demandas educacionais sociais e culturais, estão abrindo espaço
na sociedade da informação para uma nova cultura da aprendizagem,
e do conhecimento que transcende o marco da cultura impres-
sa e deve condicionar os fins sociais da edu-
Há outras razões ainda mais impor- cação e, especialmente, as metas dos anos
tantes do que as mencionadas até agora finais dos ensinos fundamental e médio.
24 Pozo & Gómez Crespo

De modo resumido, poderíamos ca- também de mudanças culturais mais


racterizar esta nova cultura de aprendiza- profundas –, vivemos também em uma
gem que se aproxima por três traços es- sociedade de conhecimento múltiplo e des-
senciais: estamos diante da sociedade da centralizado. Acompanhando as reflexões
informação, do conhecimento múltiplo e de Ceruti (1991), a evolução do conhe-
do aprendizado contínuo (Pozo, 1996a). cimento científico segue um processo de
Na sociedade da informação a escola não descentralização progressiva dos nossos
é mais a primeira fonte– às vezes, sequer saberes. Ela começa com Copérnico, que
é a principal – de conhecimento para os nos faz perder o centro do Universo, con-
alunos em muitos domínios. Atualmente, tinua com Darwin, que nos faz perder o
são muito poucos os “furos” informativos centro do nosso planeta, ao nos transfor-
reservados à escola. Os alunos, como to- mar em uma espécie ou ramo que é, mais
dos nós, são bombardeados por diversas ou menos, produto do acaso na árvore
fontes que chegam, inclusive, a produzir genealógica da matéria orgânica, e se
uma saturação informativa; nem sequer completa com Einstein e a física contem-
precisam procurar pela informação: é ela porânea, que nos faz perder nossas coor-
que, em formatos quase sempre mais ágeis denadas espaço‑temporais mais queridas,
e atraentes do que os utilizados na esco- situando-nos no vértice do caos e da anti-
la, procura por eles. Consequentemente, -matéria, nos buracos negros e todos esses
quando os alunos vão estudar a extinção mistérios que a cada dia nos diminuem
dos dinossauros, os movimentos dos pla- mais. Praticamente não restam saberes ou
netas ou a circulação do sangue no corpo pontos de vista absolutos que, como fu-
humano, geralmente já possuem informa- turos cidadãos, os alunos devam assumir;
ção proveniente do cinema, da televisão o que devem, na verdade, é aprender a
ou de outros meios de comunicação, mas conviver com a diversidade de perspecti-
é uma informação superficial, fragmenta- vas, com a relatividade das teorias, com
da e, às vezes, deformada. Os alunos da a existência de interpretações múltiplas
educação científica precisam não tanto de de toda informação. E devem aprender a
mais informação (embora possam preci- construir seu próprio julgamento ou ponto
sar também disso), mas sobretudo de ca- de vista a partir de tudo isso. Não é mais
pacidade para organizá-la e interpretá-la, apenas a ciência, conforme já apontamos,
para lhe dar sentido. E, de maneira muito que perdeu sua fé realista: a literatura e
especial, como futuros cidadãos, mais do a arte do final do século XX também não
que tudo, vão precisar de capacidade para adotam uma postura realista, segundo a
buscar, selecionar e interpretar a informa- qual o conhecimento ou a representação
ção. A escola não pode mais proporcio- artística refletem a realidade, senão que
nar toda a informação relevante, porque reinterpretam ou recriam essa realida-
esta é muito mais móvel e flexível do que de. A ciência do século XX se caracteriza
a própria escola; o que ela pode fazer é pela perda da certeza, inclusive aquelas
formar os alunos para que possam ter que eram, antes, chamadas “ciências exa-
acesso a ela e dar-lhe sentido, proporcio- tas”, que cada vez mais estão, também,
nando capacidades de aprendizagem que permea­das de incertezas. Sendo assim, já
per­mitam uma assimilação crítica da in­ não se trata de a educação proporcionar
formação. aos alunos conhecimentos como se fos-
Até certo ponto – como consequên­ sem verdades acabadas, mas que os ajude
cia dessa multiplicação informativa, mas a construir seu próprio ponto de vista, sua
A aprendizagem e o ensino de ciências 25
verdade particular a partir de tantas ver- e capacidades que permitam transformar,
dades parciais. reelaborar e, em resumo, reconstruir os
Em contrapartida, boa parte dos co- conhecimentos que recebem (Pérez Ca-
nhecimentos que podem ser proporciona- baní, 1997; Pozo e Monereo, 1999; Pozo,
dos hoje aos alunos não só são relativos, Postigo e Gómez Crespo, 1995). Longe
mas têm data de vencimento. Neste ritmo de nós pretendermos uma volta aos “ve-
de mudanças tecnológicas e científicas lhos conteúdos” – que, como assinalamos
em que vivemos, ninguém pode prever o antes, na verdade nunca abandonamos –
que precisarão saber os cidadãos dentro pode resolver a crise da educação científi-
de 10 ou 15 anos para poder enfrentar as ca; é necessário renovar não apenas esses
demandas sociais. O que podemos garan- conteúdos, mas também as metas para as
tir é que terão de continuar aprendendo quais eles estão dirigidos, concebendo-os
depois do ensino médio, porque também não tanto como um fim em si – saberes
vivemos na sociedade do aprendizado con- absolutos ou positivos, ao velho estilo –,
tínuo. mas como meios necessários para que os
A educação obrigatória e pós-obriga- alunos atinjam certas capacidades e for-
tória cada vez se prolonga mais e, além mas de pensamento que não seriam possí-
disso, devido à mobilidade profissional e veis sem o ensino da ciência.
ao aparecimento de novos e imprevisíveis
perfis laborais, cada vez é mais necessária
uma formação profissional permanente. As novas metas da
O sistema educacional não pode propor- educação científica:
cionar formação específica para cada uma da seleção à formação
dessas necessidades. O que é possível fa-
zer é formar os futuros cidadãos para que Diante da ideia, que possivelmente é
eles sejam aprendizes mais flexíveis, efi- compartilhada por muitos professores, de
cientes e autônomos, dotando-os de capa- que a educação científica deve ter metas
cidades de aprendizagem e não só de co- fixas, imutáveis, que consistam na trans-
nhecimentos ou saberes específicos, que missão do saber científico estabelecido e,
geralmente são menos duradouros. portanto, alheias às vicissitudes sociais,
Assim, “aprender a aprender” cons- qualquer análise da evolução dos currícu-
titui uma das demandas essenciais que los de ciências mostra que eles evoluem
o sistema educacional deve satisfazer, – em seus fins e, consequentemente, em
como apontam diversos estudos sobre as seus conteúdos e em seus métodos – jun-
necessidades educacionais no próximo sé- to com a sociedade da qual fazem parte
culo.1 O currículo de ciências é uma das e à qual estão dirigidos (para uma aná-
vias por meio das quais os alunos devem lise dessa evolução histórica das metas
aprender a aprender, adquirir estratégias da educação científica, ver Bybee e De-
Boer, 1994). De fato, as mudanças que
acabamos de comentar na produção, na
1
Ver, por exemplo, o Livro Branco da Comissão Euro- distribuição e na aquisição social do co-
peia Ensinar e aprender. Em direção à sociedade do co- nhecimento, unidas a outras mudanças
nhecimento (Ed. Santillana, 1997) no qual, longe de não menos importantes nos mercados de
reclamar um olhar para o passado, aposta-se em uma
profunda renovação e flexibilização dos sistemas edu- trabalho, estão levando a uma prolonga-
cacionais para enfrentar as demandas formativas do ção e extensão da educação obrigatória,
próximo século. que deve ter consequências importantes
26 Pozo & Gómez Crespo

no que se refere aos seus fins ou metas o acesso a etapas educacionais superiores.
educacionais (Pozo, no prelo). A extensão Pelo contrário, na educação superior a se-
da educação obrigatória* até os 16 anos, leção dos alunos de acordo com esses ní-
junto com o caráter abrangente, ou não veis estabelecidos frequentemente prima
diferenciador, desta etapa inicial da edu- sobre os critérios formativos. Embora am-
cação secundária, traz consigo a neces- bas as funções, formação e seleção, não
sidade de atender alunos com capacida- precisem estar necessariamente reunidas,
des e condições iniciais diferentes, assim há, sem dúvida, uma primazia de uma ou
como estabelecer metas educacionais diri- de outra nas diferentes etapas educacio-
gidas tanto a promover os alunos para ní- nais, e não é ousado dizer que no ensino
veis educacionais superiores quanto para médio tradicionalmente o critério seletivo
proporcionar-lhes uma bagagem cultural tem tido prioridade sobre o formativo.
e científica de caráter geral, que deverá Na Espanha houve uma longa tradi-
ser aprofundada e se tornar mais especia- ção educacional durante a qual a educação
lizada para aqueles alunos que chegarem secundária foi basicamente um período
ao ensino pós‑obrigatório. de preparação ou seleção para ingressar
Portanto, as metas da educação se- na universidade (para superar o exame de
cundária obrigatória e pós-obrigatória de- “seleção”), mais do que uma etapa com
vem ser, até certo ponto, diferentes. Nesse metas formativas que se justificassem por
sentido, trata-se de uma etapa de transi- si mesmas. De fato, entre os professores
ção entre duas culturas educacionais bem de ciências está muito estendida essa
diferenciadas, dirigidas a metas diversas, crença seletiva, segundo a qual não só é
uma vez que cumprem funções sociais di- normal, mas quase necessário, que boa
ferentes. Das duas funções que todo siste- parte dos alunos fracasse em ciências. Por
ma educacional ou de instrução costuma exemplo, em uma pesquisa sobre a forma
cumprir, a educação primária está, neces- como os professores de ciências concebem
sariamente, mais dirigida à formação do a avaliação, Alonso, Gil e Martínez Torre-
que à seleção dos alunos. Os conteúdos grosa (1995) descobriram que quase 90%
nessa etapa eram fixados, e ainda são, pen- dos professores de física e química estão
sando mais nas necessidades formativas­ convencidos de que na sua disciplina uma
de todos os cidadãos do que no estabele- avaliação adequada é aquela que “repro-
cimento de níveis mínimos exigidos para va” metade dos alunos. Se a maioria dos
alunos é aprovada, tendem a pensar que
essa avaliação foi mal projetada. Essa
*
N. de R.T. Na Espanha, a escolaridade obrigatória com- tradição seletiva é, contudo, dificilmente
preende a educación primaria (de 6 a 11 anos) e a edu- compatível com as próprias metas de um
cación secundaria obrigatoria (de 12 a 16 anos). Depois ensino secundário obrigatório e, em um
do ensino secundário obrigatório, o sistema educativo
disponibiliza estudos ainda em nível secundário pós- sentido mais geral, com as novas necessi-
obrigatório. O estudante pode optar em cursar os ciclos dades formativas que devem ser exigidas
de formação profissional de grau médio ou o bachillera- ao sistema educacional em nossa socieda-
to. O bachillerato (dos 17 aos 18 anos) pretende prepa-
rar tanto para a universidade, quanto para a formação de. Na medida em que um sistema educa-
profissional de grau superior (não universitária). cional se estende, chega a mais camadas
No Brasil, a obrigatoriedade do ensino se restringe ao da população e se prolonga mais no tem-
ensino fundamental: anos iniciais (dos 6 aos 10 anos)
e anos finais (dos 11 aos 14 anos). O Ensino médio (dos po, sua função seletiva decresce ou, pelo
15 aos 17 anos), apesar de ser considerado uma etapa da menos, fica postergada (com respeito às
educação básica, não é obrigatório. mudanças ocorridas devido à generaliza-
ção da educação secundária em nossas sa-
A aprendizagem e o ensino de ciências 27
las de aula, ver Gimeno Sacristán, 1996). cação científica, para se justificar em nos-
Hoje em dia, sequer ingressar na univer- sa sociedade, deve ter metas que estejam
sidade e obter um título superior é real- além da seleção dos alunos, ou considerar
mente seletivo, se considerarmos a massi- o ensino da ciência como um fim em si;
ficação que encontramos em nossas salas e isso condicionará seriamente os conteú-
de aula e o nível de desemprego entre os dos e os métodos desse ensino.
universitários. Frente à função eminente- Quais devem ser os fins da educação
mente seletiva do ensino médio tradicio- científica, especialmente nesse período
nal, é preciso buscar novas metas educa- crítico do ensino médio? Jiménez Alei-
cionais para o ensino médio, dirigidas mais xandre e Sanmartí (1997) estabelecem
a desenvolver capacidades nos alunos que cinco metas ou finalidades que parecem
permitam enfrentar as mudanças culturais claramente possíveis de assumir:
que estão ocorrendo não só na vida social,
mas, sobretudo, nos perfis profissionais e a) A aprendizagem de conceitos e a cons-
laborais e na própria organização e distri- trução de modelos.
buição social do conhecimento que descre- b) O desenvolvimento de habilidades cog-
víamos anteriormente. nitivas e de raciocínio científico.
Por isso, uma volta ao básico, às for- c) O desenvolvimento de habilidades expe­
mas e aos conteúdos do tradicional cur- rimentais e de resolução de problemas.
rículo seletivo para o ensino das ciências, d) O desenvolvimento de atitudes e va­lores.
longe de melhorar a educação científica, e) A construção de uma imagem da ciência.
provavelmente não faria mais do que pio-
rar as coisas, ao acrescentar uma defasa- Ao traduzir essas metas em conteú­
gem entre o que se pretende – as metas dos concretos do ensino da ciência, por
educacionais –, o que se ensina – os con- meio dos quais seriam desenvolvidas nos
teúdos – e o que se aprende – o que apren- alunos as capacidades correspondentes a
dem os alunos (Duchsl e Hamilton, 1992). essas finalidades, encontraríamos três ti-
Não basta pretendermos ensinar muitas pos de conteúdos, que correspondem aos
coisas, todas muito relevantes, nem se- três tipos de dificuldades de aprendiza-
quer ensiná-las realmente. A eficácia da gem identificados em páginas anteriores
educação científica deverá ser medida (ver Quadro 1.4).
pelo que conseguimos que os alunos real- A finalidade de conseguir “a aprendi­
mente aprendam. E para isso é necessário zagem de conceitos e a construção de mo­
que as metas, os conteúdos e os métodos delos” vai requerer a superação das dificul-
de ensino da ciência levem em conside- dades de compreensão e envolve trabalhar
ração não apenas o saber disciplinar que os conteúdos conceituais,* dos mais especí-
deve ser ensinado, mas também as carac- ficos e simples (os fatos ou dados) aos con-
terísticas dos alunos a quem esse ensino ceitos disciplinares específicos até alcançar
vai dirigido e as demandas sociais e edu- os princípios estruturais das ciências (so-
cacionais que esse ensino deve satisfazer. bre cujo aprendizado tratará o Capítulo 4).
Se esses três aspectos são analisados de “O desenvolvimento de habilidades cogni-
modo conjunto, como tentamos fazer bre- tivas e de raciocínio científico” e de “habi-
vemente na seção anterior, ao definir essa
nova cultura da aprendizagem (uma aná- *
N. de R.T. No original em espanhol, encontra-se “con-
tenidos verbales”. No Brasil, os Parâmetros Curricula-
lise mais extensa dessas novas demandas
res Nacionais denominam esse tipo de conteúdo como
de aprendizagem pode ser encontrada em “conceitual”. Portanto, optamos pela tradução do termo
Pozo, 1996a), é preciso convir que a edu- conforme adotado no Brasil.
28 Pozo & Gómez Crespo

Quadro 1.4
Tipos de conteúdos no currículo. Os mais específicos devem ser instrumentais
para acessar os conteúdos mais gerais, que devem constituir a verdadeira
meta do currículo de ciências

Tipos de conteúdos Mais específicos Mais gerais

Conceituais Fatos/dados Conceitos Princípios


Procedimentais Técnicas Estratégias
Atitudinais Atitudes Normas Valores

lidades experimentais e de resolução de cimento científico, mas, principalmente, a


problemas” vai requerer que os conteúdos diferenciar e valorar esse saber em com-
procedimentais ocupem um lugar relevan- paração com outros tipos de discurso e de
te no ensino das ciências, e teriam como conhecimento social. Como mostravam as
objetivo não só transmitir aos alunos os informações recolhidas por Giordan e De
saberes científicos, mas também torná- Vecchi (1987), a que fizemos referência
los partícipes, na medida do possível, dos anteriormente, um dos dados mais reve-
próprios processos de construção e apro- ladores do escasso sucesso da educação
priação do conhecimento científico, o que científica é que os alunos praticamente
envolve, também, superar limitações es- não diferenciam o discurso científico de
pecíficas no aprendizado tanto de técni- outras formas de conhecimento com cará-
cas ou destrezas como, principalmente, ter paracientífico ou metacientífico. Tal­vez
de estratégias de pensamento e aprendi- não seja estranho que em uma sociedade
zagem, como veremos no Capítulo 3. Por governada, teoricamente, pela racionaliza-
sua vez, “o desenvolvimento de atitudes e ção as pessoas acreditem em extraterres-
valores” vai exigir que os conteúdos atitu- tres, horóscopos e curandeiros, mas pelo
dinais sejam reconhecidos explicitamente menos do ponto de vista da educação cien-
como uma parte constitutiva do ensino tífica seria relevante que os alunos com-
das ciências, que deve promover não ape- preendessem que essas crenças são de uma
nas atitudes ou condutas específicas, mas natureza diferente daquela do discurso
também normas que regulem essas con- científico, que constituem uma forma dife-
dutas e, sobretudo, valores mais gerais rente de conhecer o mundo, e que saibam
que, como veremos no próximo capítulo, valorizar as vantagens, mas também os
permitam sustentar e interiorizar nos alu- inconvenientes, da ciência como forma de
nos essas formas de comportamento e de aproximar-se ao conhecimento do mundo.
aproximação ao conhecimento. Por isso, construir uma imagem da ciên-
Por último, a finalidade de promo- cia requer não apenas conhecer os fatos,
ver “uma imagem da ciência”, como as- conceitos e princípios que caracterizam a
sinalam Jiménez Aleixandre e Sanmartí ciência, ou a forma como o discurso cien-
(1997), é, de certa maneira, transversal a tífico analisa, estuda e interroga a realida-
todas as anteriores e deve ser desenvolvi- de, mas também adotar uma determinada
da por meio de todos os conteúdos men- atitude nessa aproximação e adotar certos
cionados – conceituais, procedimentais e valores em sua análise, o que traz dificul-
atitudinais –, ajudando os alunos não só dades específicas de aprendizagem, das
a identificar as características do conhe- quais nos ocuparemos a seguir.

Você também pode gostar