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Uma deliciosa sátira de Harold Ben- vida e que nunca poderia surgir de
jamin, intitulada “O currículo dentes-de- uma atividade tão básica como matar
-sabre”, publicada em 1939, nos faz voltar ursos.” Todos os radicais ficaram sem
às primeiras disciplinas do currículo: for- palavras diante desta declaração; to-
dos exceto o mais radical de todos.
mar os jovens na arte de capturar peixes,
Estava perplexo, é verdade, mas era
caçar cavalos lanudos com garrote e as- tão radical que ainda fez um último
sustar com fogo os tigres dentes-de-sabre. protesto. “Mas, mas contudo”, suge-
A questão era: o que aconteceria com es- riu, “vocês devem admitir que os tem-
tas veneráveis disciplinas quando alguém pos mudaram. Vocês não poderiam
inventasse a vara de pescar, os cavalos dignar-se a experimentar estas outras
lanudos mudassem para terras mais altas atividades mais modernas? Afinal de
e fossem substituídos por antílopes, mais contas, talvez elas tenham algum va-
velozes, e os tigres morressem e seu lugar lor educativo.” Até os companheiros
radicais desse homem pensaram que
fosse ocupado por alguns ursos? Elas não
ele tinha ido longe demais. Os sábios
deveriam ser aposentadas ou substituídas anciãos estavam indignados. O sorriso
por estudos mais pertinentes? sumiu de seus rostos. “Se você tivesse
alguma educação”, disseram em tom
“Não seja tolo” disseram os sábios grave, “saberia que a essência da ver-
anciãos, mostrando seus sorrisos dadeira educação é a atemporalidade.
mais benevolentes. “Não ensinamos É algo que permanece mesmo quando
a capturar peixes com a finalidade mudam as condições, como uma rocha
de capturar peixes: ensinamos para firmemente afincada no meio de uma
desenvolver uma agilidade geral que tumultuosa torrente. É preciso saber
nunca poderá ser obtida com uma que há verdades eternas e que o currí-
mera instrução. Não ensinamos a culo dentes-de-sabre é uma delas!”.
caçar cavalos com garrote para caçar
cavalos: ensinamos para desenvolver Guy Claxton,
uma força geral no aprendizado, que Educar mentes curiosas
ele nunca iria obter de uma coisa tão
prosaica e especializada como caçar
antílopes com rede. Não ensinamos
a assustar tigres com a finalidade A crise da educação científica
de assustar tigres: ensinamos com o
propósito de dar essa nobre coragem Espalha-se entre os professores de
que se aplica a todos os níveis da ciências, especialmente nos anos finais do
A aprendizagem e o ensino de ciências 15
ensino fundamental e do ensino médio, Será por medo do pecado ou por ou-
uma crescente sensação de desassossego, tras razões mais mundanas que tentaremos
de frustração, ao comprovar o limitado ir desentranhando nas próximas páginas,
sucesso de seus esforços docentes. Apa- mas a verdade é que os alunos se mantêm
rentemente, os alunos aprendem cada vez muito afastados da tentação da árvore da
menos e têm menos interesse pelo que ciência, e quando provam seus suculentos
aprendem. Essa crise da educação cien- frutos não parecem desfrutar muito deles.
tífica, que se manifesta não só nas salas Assim é percebido e vivenciado por mui-
de aula, mas também nos resultados da tos professores de ciências em seu trabalho
pesquisa em didática das ciências, da qual cotidiano, e é isso que mostram inúmeras
falaremos em breve, é atribuída por mui- pesquisas: a maioria dos alunos não apren-
tos às mudanças educacionais introdu- dem a ciência que lhes é ensinada. Alguns
zidas nos últimos anos nos currículos de dados e exemplos incluídos no Quadro 1.1
ciências, no marco geral da Reforma Edu- bastarão para ilustrar isso.
cativa.* Contudo, as causas parecem mais Qualquer professor pode encontrar
profundas e remotas. De fato, em certo exemplos dessas ideias em seu trabalho
sentido esta crise não é nova, uma vez que cotidiano, se utilizar as tarefas de avalia-
faz parte, inclusive, das nossas próprias ção adequadas. Embora tradicionalmen-
origens, dos nossos mitos. Assim, segundo te tenham sido recolhidos apenas como
narra o Gênese, após criar pacientemente exemplos divertidos ou chocantes, bestei-
o céu e a terra e todo seu cortejo, a luz ras conceituais dignas das corresponden-
e as trevas e todas as criaturas que neles tes antologias, parece – segundo indicam
habitam, incluídos o homem e a mulher, pesquisas recentes, que analisaremos em
Deus advertiu Adão e Eva dos perigos de detalhe no Capítulo 4 – que é necessário
ir à árvore da ciência do bem e do mal, considerar esses exemplos com muita se-
dos riscos de tentar compreender o porquê riedade se queremos melhorar a educa-
desse céu e dessa terra, dessa luz e dessas ção científica. Não se tratam de respostas
trevas em que habitavam; mas eles não o anedóticas e casuais dadas por alunos
escutaram e, em vez da suposta maçã, na especialmente distraídos ou descuidados.
verdade o que provaram foi o fruto amar- Mais do que respostas excepcionais são,
go do conhecimento, que está na origem em muitos casos, a regra, a forma como
de nossa expulsão do Paraíso, que é, de os alunos habitualmente entendem os fe-
fato, nosso verdadeiro pecado original, nômenos científicos. Mas também se tra-
pelo qual fomos expulsos daquele mundo tam, com frequência, de concepções mui-
prazeroso e devemos vagar por este ou- to persistentes, que praticamente não se
tro mundo, nem sempre tão prazeroso, no modificam após muitos anos de instrução
qual, entre outras coisas, abundam os alu- científica. Por exemplo, em uma pesqui-
nos que resistem tenazmente, talvez por sa recente comprovamos as dificuldades
medo do pecado e de suas dores eternas, trazidas pela concepção descontínua da
a comer da frondosa árvore da ciência, matéria, a ideia de que ela está constituí-
que com tanto esforço seus professores, da por partículas que interagem entre si,
tentadoramente, oferecem. separadas por um espaço vazio. Como es-
perávamos, a partir de estudos anteriores
(Pozo, Gómez Crespo e Sanz, 1993; Stavy,
*
N. de R.T. Em 1990, a Espanha promulgou a LOGSE 1995), apenas entre 10 e 30% das respos-
(Lei de Ordenação Geral do Sistema Educativo). promo-
vendo uma profunda reforma na educação desse país. tas dos alunos adolescentes de diferentes
séries assumem a ideia de vazio entre as
16 Pozo & Gómez Crespo
Quadro 1.1
Algumas dificuldades que os alunos encontram na
compreensão de conceitos da Área de Ciências da Natureza
Geologia
– Considerar que a formação de uma rocha e um fóssil que aparece em sua superfície não são processos
sincronizados. Para muitos alunos, a rocha existia antes do fóssil (Pedrinaci, 1996).
– O relevo terrestre e as montanhas são vistos como estruturas muito estáveis, que mudam pouco ou
muito pouco, exceto pela erosão (Pedrinaci, 1996).
Biologia
– Para muitos alunos, a adaptação biológica é baseada na ideia de os organismos efetuarem conscien-
temente mudanças físicas como resposta a mudanças ambientais, de tal maneira que o mecanismo
evolutivo seria baseado em uma mistura de necessidade, uso e falta de uso (De Manuel e Grau, 1996).
– Alguns alunos pensam que o tamanho dos organismos é determinado pelo tamanho de suas células
(De Manuel e Grau, 1996).
Física
– O movimento implica uma causa e, quando necessário, esta causa está localizada dentro do corpo como
força interna que vai se consumindo até que o objeto pare (Varela, 1996).
– O termo energia é interpretado como sinônimo de combustível, como algo “quase” material, que está
armazenado e pode ser consumido e desaparecer (Hierrezuelo e Montero, 1991).
Química
– O modelo corpuscular da matéria é muito pouco utilizado para explicar suas propriedades e, quando se
utiliza, são atribuídas às partículas, propriedades do mundo macroscópico (Gómez Crespo, 1996).
– Em muitas ocasiões não se diferencia mudança física de mudança química e podem aparecer interpreta-
ções do processo de dissolução em termos de reações, e estas podem ser interpretadas como se fossem
uma dissolução ou uma mudança de estado (Gómez Crespo, 1996).
partículas. Mas acontece que, entre os trabalho científico. O Quadro 1.2 resume
alunos universitários dos últimos anos algumas das dificuldades mais comuns no
de química, apenas 15% das respostas domínio daquilo que podemos chamar de
aceitam a concepção descontínua (Pozo conteúdos procedimentais do currículo de
e Gómez Crespo, 1997a). De fato, essas ciências, o que eles precisam aprender a
dificuldades de compreensão podem che- fazer com seus conhecimentos científicos.
gar a ocorrer inclusive entre os próprios Muitas vezes, os alunos não conse-
professores de ciências e, com alguma fre guem adquirir as habilidades necessárias,
quência, nos livros didáticos que os alunos seja para elaborar um gráfico a partir de
estudam (por exemplo, Bacas, 1997). alguns dados ou para observar correta-
No Capítulo 4, vamos estudar em mente através de um microscópio, mas
detalhe essas dificuldades conceituais na outras vezes o problema é que eles sabem
aprendizagem da ciência e tentaremos fazer as coisas, mas não entendem o que
compreender melhor suas causas e possí- estão fazendo e, portanto, não conseguem
veis soluções a partir dos recentes estudos explicá-las nem aplicá-las em novas situa
em psicologia cognitiva da aprendizagem. ções. Esse é um déficit muito comum. Mes-
Mas os alunos não encontram somente di- mo quando os professores acreditam que
ficuldades conceituais; também enfrentam seus alunos aprenderam algo – e de fato
problemas no uso de estratégias de racio- comprovam esse aprendizado por meio
cínio e solução de problemas próprios do de uma avaliação –, o que foi aprendido
A aprendizagem e o ensino de ciências 17
Quadro 1.2
Algumas dificuldades na aprendizagem de procedimentos
no caso dos problemas quantitativos
1. Fraca generalização dos procedimentos adquiridos para outros contextos novos. Assim que o
formato ou o conteúdo conceitual do problema muda, os alunos sentem-se incapazes de aplicar a essa
nova situação os algoritmos aprendidos. O verdadeiro problema dos alunos é saber do que trata o
problema (da regra de três, do equilíbrio químico, etc.).
2. O fraco significado do resultado obtido para os alunos. De modo geral, aparecem sobrepostos dois
problemas, o de ciências e o de matemática, de maneira que muitas vezes este mascara aquele. Os
alunos limitam-se a encontrar a “fórmula” matemática e chegar a um resultado numérico, esquecendo o
problema de ciências. Aplicam cegamente um algoritmo ou um modelo de “problema”, sem compreen-
der o que estão fazendo.
3. Fraco controle metacognitivo alcançado pelos alunos sobre seus próprios processos de solução. O
trabalho fica reduzido à identificação do tipo de exercício e a seguir de forma algorítmica os passos que
já foram seguidos em outros exercícios similares na busca da solução “correta” (normalmente única). O
aluno olha somente para o processo algorítmico, está interessado apenas no resultado (que é o que ge-
ralmente é avaliado). Assim, a técnica impõe-se sobre a estratégia e o problema passa a ser um simples
exercício rotineiro.
4. O fraco interesse que esses problemas despertam nos alunos, quando são utilizados de forma massi-
va e descontextualizada, diminuindo a motivação dos alunos para o aprendizado da ciência.
Quadro 1.3
Algumas atitudes e crenças inadequadas mantidas pelos alunos
com respeito à natureza da ciência e sua aprendizagem
– Aprender ciência consiste em repetir da melhor maneira possível aquilo que o professor explica duran-
te a aula.
– Para aprender ciência é melhor não tentar encontrar suas próprias respostas, mas aceitar o que o pro-
fessor e o livro didático dizem, porque isso está baseado no conhecimento científico.
– O conhecimento científico é muito útil para trabalhar no laboratório, para pesquisar e para inventar
coisas novas, mas não serve praticamente para nada na vida cotidiana.
– A ciência proporciona um conhecimento verdadeiro e aceito por todos.
– Quando sobre o mesmo fato há duas teorias, é porque uma delas é falsa: a ciência vai acabar demos-
trando qual delas é a verdadeira.
– O conhecimento científico é sempre neutro e objetivo.
– Os cientistas são pessoas muito inteligentes, mas um pouco estranhas, e vivem trancados em seus
laboratórios.
– O conhecimento científico está na origem de todos os descobrimentos tecnológicos e vai acabar subs-
tituindo todas as outras formas do saber.
– O conhecimento científico sempre traz consigo uma melhora na forma de vida das pessoas.
Além dessa falta de interesse, os alu- mais detalhes como podemos interpretar
nos tendem a assumir atitudes inadequa- esta defasagem entre as atitudes suposta-
das com respeito ao trabalho científico, mente buscadas e as obtidas nos alunos,
assumindo posições passivas, esperando com especial ênfase no eterno problema
respostas em vez de dá-las, e muito menos da motivação ou, para ser exatos, da fal-
são capazes de fazer eles mesmos as per- ta de motivação dos alunos pela aprendi-
guntas; também tendem a conceber os ex- zagem da ciência. De qualquer modo, a
perimentos como “demonstrações” e não aprendizagem de atitudes é muito mais
como pesquisas; a assumir que o trabalho relevante e complexa do que com frequên
intelectual é uma atividade individual e cia se admite (ver, por exemplo, Koballa,
não de cooperação e busca conjunta; a 1995; Simpson et al., 1994).
considerar a ciência como um conheci- Portanto, a educação científica tam-
mento neutro, desligado de suas reper- bém deveria promover e modificar certas
cussões sociais; a assumir a superioridade atitudes nos alunos, algo que normal-
do conhecimento científico com respeito mente não consegue, em parte porque
a outras formas de saber culturalmente os professores de ciências não costumam
mais “primitivas”, etc. considerar que a educação em atitudes
Essa imagem da ciência, que na ver- faça parte de seus objetivos e conteúdos
dade não corresponde ao que os cientistas essenciais – apesar de, paradoxalmente,
realmente fazem, apesar de estar também as atitudes dos alunos nas salas de aula
muito presente nos meios de comunicação geralmente serem um dos elementos mais
social – um cientista é sempre alguém ves- incômodos e agressivos para o trabalho
tido com um avental branco manipulando de muitos professores.
aparelhos em um laboratório –, é mantida De fato, a deterioração do clima edu
e reforçada por meio da atividade cotidia- cacional nas salas de aula e nas escolas,
na na sala de aula, mesmo que isso nem especialmente nos anos finais do ensino
sempre seja feito de maneira explícita. fundamental e do ensino médio, e o desa-
No próximo capítulo, vamos analisar com juste crescente entre as metas dos profes-
A aprendizagem e o ensino de ciências 19
sores e as dos alunos são alguns dos sin- ainda não fomos a lugar algum do qual
tomas mais presentes e inquietantes desta tenhamos que voltar. As dificuldades que
crise da educação científica, cujos riscos os professores de ciências vivem cotidia-
mais visíveis acabamos de esboçar. Talvez namente nas salas de aula quase nunca
os alunos nunca tenham entendido muito são consequência da aplicação de novas
bem o processo de dissolução ou o princí- propostas curriculares com uma orienta-
pio de conservação da energia, e, talvez, ção construtivista, senão que, na maior
nunca tenham sido capazes de fazer uma parte dos casos, ocorrem devido à tentati-
pesquisa, mas pelo menos tentavam e fa- va de manter um tipo de educação cientí-
ziam um esforço maior para fingir que es- fica que em seus conteúdos, em suas ativi-
tavam aprendendo. Essa deterioração da dades de aprendizagem, em seus critérios
educação científica se traduz, também,em de avaliação e, sobretudo, em suas metas
uma suposta queda dos níveis de apren está muito próxima dessa tradição à qual,
dizagem dos alunos, em uma considerável supostamente, se quer voltar.
desorientação entre os professores diante Do nosso ponto de vista (argumenta-
da multiplicação das demandas educacio- do com mais detalhe em Pozo, 1997b), o
nais que precisam enfrentar (novas discipli- problema é justamente que o currículo de
nas, novos métodos, alunos diversificados, ciências praticamente não mudou, enquan-
etc.) e, em geral, uma defasagem crescente to a sociedade à qual vai dirigido esse en-
entre as demandas formativas dos alunos, sino da ciência e as demandas formativas
especialmente a partir da adolescência, e a dos alunos mudaram. O desajuste entre a
oferta educacional que recebem. ciência que é ensinada (em seus forma-
Com as coisas dessa forma, não é de tos, conteúdos, metas, etc.) e os próprios
se estranhar que âmbitos acadêmicos, pro- alunos é cada vez maior, refletindo uma
fissionais e até políticos peçam um retorno autêntica crise na cultura educacional, que
ao básico, aos conteúdos e formatos tradi- requer adotar não apenas novos métodos,
cionais da educação científica, ao currícu- mas, sobretudo, novas metas, uma nova
lo dentes-de-sabre, como uma espécie de cultura educacional que, de forma vaga e
reflexo condicionado diante da confusa imprecisa, podemos vincular ao chamado
ameaça composta pelos ingredientes que construtivismo. Não vamos analisar aqui
acabamos de descrever, vagamente asso- as diversas formas de conceber a constru-
ciados aos ares de mudança e à Reforma ção do conhecimento, o que elas têm em
Educacional e suas novas propostas cur- comum e o que as diferencia, dado que
riculares de orientação construtivista. É há fontes recentes nas quais essa análise
compreensível que nesta situação de per- é feita de maneira detalhada (Carretero,
plexidade se pretenda recorrer a fórmu- 1993; Coll, 1996; Monereo, 1995; Pozo,
las conhecidas, a formatos educacionais 1996b; Rodrigo e Arnay, 1997). Contudo,
amplamente utilizados, e que, sem dúvi- tentaremos sim justificar como este enfo-
da, durante décadas cumpriram de forma que é bastante mais adequado do que os
mais ou menos adequada sua função so- formatos tradicionais para a forma como
cial. Contudo, a saudade do passado não o conhecimento científico é elaborado na
deve impedir que percebamos as enormes própria evolução das disciplinas, é apren-
mudanças culturais que estão ocorrendo dido do ponto de vista psicológico e é dis-
e que tornam inviável um retorno – ou tribuído e divulgado na nova sociedade da
a permanência – desses formatos educa- informação e do conhecimento, no limiar
cionais tradicionais. Um dos problemas do século XXI. A nova cultura da apren-
de defender o “retorno ao básico” é que dizagem que se abre neste horizonte do
20 Pozo & Gómez Crespo
processo de construção de modelos e teo- nos permite estar atentos a muito poucas
rias também exigem, no plano psicológico, coisas novas de cada vez. Essa capacidade
adotar um enfoque construtivista no ensi- limitada pode, contudo, ser notavelmente
no das ciências. Superada, aqui também, ampliada por meio do aprendizado, que
a glaciação condutista, paralela à anterior, nos permite reconhecer situações que já
não é mais possível conceber a aprendi- havíamos enfrentado antes ou automati-
zagem como uma atividade apenas de zar conhecimentos e habilidades, reser-
reprodução ou cumulativa. Nosso sistema vando essas escassas capacidades para o
cognitivo possui características muito es- que há de realmente novo em uma situa
pecíficas que condicionam nossa forma de ção (para mais detalhes dos processos en-
aprender (Pozo, 1996a). Frente a outras volvidos, ver Pozo, 1996a).
espécies, que dispõem, em um alto grau, Além da memória de trabalho muito
de condutas geneticamente programadas limitada, há outra diferença essencial entre
para se adaptar a ambientes muito está- o funcionamento cognitivo humano e o de
veis, os seres humanos precisam se adap- um computador no que se refere ao apren-
tar a condições muito mais variáveis e dizado. Nossa memória permanente não é
imprevisíveis, em grande medida devido nunca uma reprodução fiel do mundo, nos-
à própria intervenção da cultura, e, por- sas recordações não são cópias do passado,
tanto, precisam dispor de mecanismos de mas reconstruções desse passado a partir
adaptação mais flexíveis, que não podem do presente. Assim, a recuperação do que
estar pré‑programados. Em resumo, nós aprendemos tem um caráter dinâmico e
precisamos de processos de aprendiza- construtivo: diferentemente de um compu-
gem muito potentes. tador, somos muito limitados na recupera-
A prolongada imaturidade da espé- ção de informação literal, mas muito dota-
cie humana permite que nos adaptemos dos para a interpretação dessa informação.
lentamente às demandas culturais (Bru- Se o leitor tentar lembrar literalmente a
ner, 1972, 1997), graças ao efeito ampli- frase que acaba de ler, provavelmente isso
ficador dos processos de aprendizagem lhe será impossível, mas queremos pensar
sobre nosso sistema cognitivo, que de que não terá problemas para lembrar seu
fato tem uma arquitetura surpreenden- significado, interpretando o que acaba de
temente limitada. Assim, diferentemen- ler em suas próprias palavras, que certa-
te, por exemplo, do computador em que mente não serão exatamente iguais às de
escrevemos estas linhas, nós, as pessoas, outro leitor e, é claro, não serão uma cópia
temos uma capacidade de trabalho si- literal do texto que acabou de ler.
multâneo muito limitada, ou memória de Na verdade, o aprendizado e o es-
trabalho, dado que podemos absorver ou quecimento não são processos opostos.
ativar muito pouca informação ao mesmo Um sistema cognitivo que faz cópias li-
tempo. Caso tenha dúvidas, o leitor pode terais de toda a informação, como um
tentar realizar uma fácil operação de computador, é um sistema que não esque-
multiplicação com o único apoio de seus ce e, portanto, que também não é capaz
recursos cognitivos, por exemplo, multi- de aprender. De fato, com suas limitações
plicar 27 vezes 14. Perceberá que está sur- na memória de trabalho e na recuperação
preendentemente limitado, não devido à literal da informação, o sistema humano
complexidade da operação (com a ajuda de aprendizado e memória é o dispositi-
de lápis e papel é muito simples), mas vo de aprendizagem mais complexo que
devido à escassa capacidade de processa- conhecemos. Os computadores conse-
mento simultâneo da mente humana, que guem superar o rendimento humano em
A aprendizagem e o ensino de ciências 23
muitas tarefas, mas é difícil imaginar um para exigir esta mudança cultural na for-
computador que aprenda tão bem quanto ma de aprender e ensinar. Um sistema
um aluno – embora, talvez, muitos pro- educacional, mediante o estabelecimento
fessores assumam, quando ensinam, que dos conteúdos das diferentes disciplinas
seus alunos aprendem tão mal quanto um que compõem o currículo, tem como fun-
computador, uma vez que, paradoxalmen- ção formativa essencial fazer com que os
te, a aprendizagem escolar tende a exigir futuros cidadãos interiorizem, assimilem
dos alunos aquilo para o que eles estão a cultura em que vivem, em um sentido
menos dotados: repetir ou reproduzir as amplo, compartilhando as produções ar-
coisas com exatidão. Aprender não é fazer tísticas, científicas, técnicas, etc. próprias
fotocópias mentais do mundo, assim como dessa cultura e compreendendo seu sen-
ensinar não é enviar um fax para a men- tido histórico, mas, também, desenvol-
te do aluno, esperando que ela reproduza vendo as capacidades necessárias para
uma cópia no dia da prova, para que o acessar esses produtos culturais, desfrutar
professor a compare com o original envia- deles e, na medida do possível, renová-
do por ele anteriormente. Esta é, talvez, a -los. Mas essa formação cultural ocorre no
tese central do construtivismo psicológi- marco de uma cultura da aprendizagem,
co, o que todo modelo ou postura baseada que evolui com a própria sociedade.
nesse enfoque tem em comum: o conhe- As formas de aprender e ensinar são
cimento nunca é uma cópia da realidade uma parte da cultura que todos devemos
que representa. Mas existem muitas for- aprender e sofrem modificações com a
mas diferentes de interpretar os processos própria evolução da educação e dos co-
psicológicos envolvidos nessa construção nhecimentos que devem ser ensinados. A
e, portanto, longe de ser um modelo úni- primeira forma regrada de aprendizagem,
co, existem diferentes alternativas teóricas a primeira escola historicamente conheci-
que compartilham esses pressupostos co- da, as “casas de tabuinhas” aparecidas na
muns, com implicações bem diferenciadas Suméria há uns 5 mil anos, estava vincu-
para o currículo de ciências (uma análise lada ao ensino do primeiro sistema de lec-
de diferentes teorias cognitivas de apren- toescritura conhecido, e daí surge a pri-
dizagem pode ser encontrada em Pozo, meira metáfora cultural do aprendizado,
1989). Essas formas diferentes de conce- que ainda perdura entre nós (“aprender
ber a aprendizagem não são, realmente, é escrever em uma tábula rasa”, as tabui-
incompatíveis ou contraditórias; elas es- nhas de cera virgem nas quais os sumérios
tão relacionadas com as diferentes metas escreviam). Desde então, cada revolução
da educação, que mudam não só devido a cultural nas tecnologias da informação e,
novas colocações epistemológicas ou psi- como consequência disso, na organização
cológicas, mas principalmente pelo apare- e distribuição social do saber trouxe consi
cimento de novas demandas educacionais go uma revolução paralela na cultura da
e por mudanças na organização e distri- aprendizagem, a mais recente das quais
buição social do conhecimento. ainda não terminou: as novas tecnologias
da informação, unidas a outras mudanças
As novas demandas educacionais sociais e culturais, estão abrindo espaço
na sociedade da informação para uma nova cultura da aprendizagem,
e do conhecimento que transcende o marco da cultura impres-
sa e deve condicionar os fins sociais da edu-
Há outras razões ainda mais impor- cação e, especialmente, as metas dos anos
tantes do que as mencionadas até agora finais dos ensinos fundamental e médio.
24 Pozo & Gómez Crespo
no que se refere aos seus fins ou metas o acesso a etapas educacionais superiores.
educacionais (Pozo, no prelo). A extensão Pelo contrário, na educação superior a se-
da educação obrigatória* até os 16 anos, leção dos alunos de acordo com esses ní-
junto com o caráter abrangente, ou não veis estabelecidos frequentemente prima
diferenciador, desta etapa inicial da edu- sobre os critérios formativos. Embora am-
cação secundária, traz consigo a neces- bas as funções, formação e seleção, não
sidade de atender alunos com capacida- precisem estar necessariamente reunidas,
des e condições iniciais diferentes, assim há, sem dúvida, uma primazia de uma ou
como estabelecer metas educacionais diri- de outra nas diferentes etapas educacio-
gidas tanto a promover os alunos para ní- nais, e não é ousado dizer que no ensino
veis educacionais superiores quanto para médio tradicionalmente o critério seletivo
proporcionar-lhes uma bagagem cultural tem tido prioridade sobre o formativo.
e científica de caráter geral, que deverá Na Espanha houve uma longa tradi-
ser aprofundada e se tornar mais especia- ção educacional durante a qual a educação
lizada para aqueles alunos que chegarem secundária foi basicamente um período
ao ensino pós‑obrigatório. de preparação ou seleção para ingressar
Portanto, as metas da educação se- na universidade (para superar o exame de
cundária obrigatória e pós-obrigatória de- “seleção”), mais do que uma etapa com
vem ser, até certo ponto, diferentes. Nesse metas formativas que se justificassem por
sentido, trata-se de uma etapa de transi- si mesmas. De fato, entre os professores
ção entre duas culturas educacionais bem de ciências está muito estendida essa
diferenciadas, dirigidas a metas diversas, crença seletiva, segundo a qual não só é
uma vez que cumprem funções sociais di- normal, mas quase necessário, que boa
ferentes. Das duas funções que todo siste- parte dos alunos fracasse em ciências. Por
ma educacional ou de instrução costuma exemplo, em uma pesquisa sobre a forma
cumprir, a educação primária está, neces- como os professores de ciências concebem
sariamente, mais dirigida à formação do a avaliação, Alonso, Gil e Martínez Torre-
que à seleção dos alunos. Os conteúdos grosa (1995) descobriram que quase 90%
nessa etapa eram fixados, e ainda são, pen- dos professores de física e química estão
sando mais nas necessidades formativas convencidos de que na sua disciplina uma
de todos os cidadãos do que no estabele- avaliação adequada é aquela que “repro-
cimento de níveis mínimos exigidos para va” metade dos alunos. Se a maioria dos
alunos é aprovada, tendem a pensar que
essa avaliação foi mal projetada. Essa
*
N. de R.T. Na Espanha, a escolaridade obrigatória com- tradição seletiva é, contudo, dificilmente
preende a educación primaria (de 6 a 11 anos) e a edu- compatível com as próprias metas de um
cación secundaria obrigatoria (de 12 a 16 anos). Depois ensino secundário obrigatório e, em um
do ensino secundário obrigatório, o sistema educativo
disponibiliza estudos ainda em nível secundário pós- sentido mais geral, com as novas necessi-
obrigatório. O estudante pode optar em cursar os ciclos dades formativas que devem ser exigidas
de formação profissional de grau médio ou o bachillera- ao sistema educacional em nossa socieda-
to. O bachillerato (dos 17 aos 18 anos) pretende prepa-
rar tanto para a universidade, quanto para a formação de. Na medida em que um sistema educa-
profissional de grau superior (não universitária). cional se estende, chega a mais camadas
No Brasil, a obrigatoriedade do ensino se restringe ao da população e se prolonga mais no tem-
ensino fundamental: anos iniciais (dos 6 aos 10 anos)
e anos finais (dos 11 aos 14 anos). O Ensino médio (dos po, sua função seletiva decresce ou, pelo
15 aos 17 anos), apesar de ser considerado uma etapa da menos, fica postergada (com respeito às
educação básica, não é obrigatório. mudanças ocorridas devido à generaliza-
ção da educação secundária em nossas sa-
A aprendizagem e o ensino de ciências 27
las de aula, ver Gimeno Sacristán, 1996). cação científica, para se justificar em nos-
Hoje em dia, sequer ingressar na univer- sa sociedade, deve ter metas que estejam
sidade e obter um título superior é real- além da seleção dos alunos, ou considerar
mente seletivo, se considerarmos a massi- o ensino da ciência como um fim em si;
ficação que encontramos em nossas salas e isso condicionará seriamente os conteú-
de aula e o nível de desemprego entre os dos e os métodos desse ensino.
universitários. Frente à função eminente- Quais devem ser os fins da educação
mente seletiva do ensino médio tradicio- científica, especialmente nesse período
nal, é preciso buscar novas metas educa- crítico do ensino médio? Jiménez Alei-
cionais para o ensino médio, dirigidas mais xandre e Sanmartí (1997) estabelecem
a desenvolver capacidades nos alunos que cinco metas ou finalidades que parecem
permitam enfrentar as mudanças culturais claramente possíveis de assumir:
que estão ocorrendo não só na vida social,
mas, sobretudo, nos perfis profissionais e a) A aprendizagem de conceitos e a cons-
laborais e na própria organização e distri- trução de modelos.
buição social do conhecimento que descre- b) O desenvolvimento de habilidades cog-
víamos anteriormente. nitivas e de raciocínio científico.
Por isso, uma volta ao básico, às for- c) O desenvolvimento de habilidades expe
mas e aos conteúdos do tradicional cur- rimentais e de resolução de problemas.
rículo seletivo para o ensino das ciências, d) O desenvolvimento de atitudes e valores.
longe de melhorar a educação científica, e) A construção de uma imagem da ciência.
provavelmente não faria mais do que pio-
rar as coisas, ao acrescentar uma defasa- Ao traduzir essas metas em conteú
gem entre o que se pretende – as metas dos concretos do ensino da ciência, por
educacionais –, o que se ensina – os con- meio dos quais seriam desenvolvidas nos
teúdos – e o que se aprende – o que apren- alunos as capacidades correspondentes a
dem os alunos (Duchsl e Hamilton, 1992). essas finalidades, encontraríamos três ti-
Não basta pretendermos ensinar muitas pos de conteúdos, que correspondem aos
coisas, todas muito relevantes, nem se- três tipos de dificuldades de aprendiza-
quer ensiná-las realmente. A eficácia da gem identificados em páginas anteriores
educação científica deverá ser medida (ver Quadro 1.4).
pelo que conseguimos que os alunos real- A finalidade de conseguir “a aprendi
mente aprendam. E para isso é necessário zagem de conceitos e a construção de mo
que as metas, os conteúdos e os métodos delos” vai requerer a superação das dificul-
de ensino da ciência levem em conside- dades de compreensão e envolve trabalhar
ração não apenas o saber disciplinar que os conteúdos conceituais,* dos mais especí-
deve ser ensinado, mas também as carac- ficos e simples (os fatos ou dados) aos con-
terísticas dos alunos a quem esse ensino ceitos disciplinares específicos até alcançar
vai dirigido e as demandas sociais e edu- os princípios estruturais das ciências (so-
cacionais que esse ensino deve satisfazer. bre cujo aprendizado tratará o Capítulo 4).
Se esses três aspectos são analisados de “O desenvolvimento de habilidades cogni-
modo conjunto, como tentamos fazer bre- tivas e de raciocínio científico” e de “habi-
vemente na seção anterior, ao definir essa
nova cultura da aprendizagem (uma aná- *
N. de R.T. No original em espanhol, encontra-se “con-
tenidos verbales”. No Brasil, os Parâmetros Curricula-
lise mais extensa dessas novas demandas
res Nacionais denominam esse tipo de conteúdo como
de aprendizagem pode ser encontrada em “conceitual”. Portanto, optamos pela tradução do termo
Pozo, 1996a), é preciso convir que a edu- conforme adotado no Brasil.
28 Pozo & Gómez Crespo
Quadro 1.4
Tipos de conteúdos no currículo. Os mais específicos devem ser instrumentais
para acessar os conteúdos mais gerais, que devem constituir a verdadeira
meta do currículo de ciências