Você está na página 1de 15

Bruno Latour

Cogitamus
Seis cartas sobre as humanidades científicas

Tradução de Jamille Pinheiro Dias

Cet ouvrage a bén!ficié du soutien tÚs programmes d'aide à la publication de l1nstitut Français.
Este livro contou com o auxílio dos programas de apoio à publicação do lnstitut Français.

f'h~~t~Is
BRASIL

Cet ouvrage, publié dans /e cadre du Programme d'AitÚ à la Publication 2014


Carlos Drummond tÚ Andrade de la Médiatheque tÚ la Maison de France,
bén!ficie du soutien du Ministere français tÚs Affeim Etrangem et Europünnes.

Este livro, publicado no âmbiro do Programa de Apoio à Publicações 2014


Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France,

...
contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e Europeias.

lJIH-rtl • Êgalltl • Frot•rnltl MéDiaTHêQUe


lttPUBUQ.!JE FRANÇAISE • MaisondeFrance
editora.34
Primeira carta

Prezada senhorita,
Desculpe-me não ter sabido responder de imediato às
suas perguntas - e à sua inquietação, inclusive. Assim como
você, sinto-me sobressaltado com todo este caos em torno da
conferência de Copenhague sobre as mudanças climáticas. Fi-
camos com a impressão de que ela é extremamente importan-
te, algo de que depende toda a vida na Terra, mas, ao mesmo
tempo, parece - de maneira não muito clara- que as ques-
tões em jogo são muito amplas, vagas e incertas para que che-
guemos a nos mobilizar de forma duradoura. Tampouco sei co-
mo escolher entre as trágicas previsões de determinados ecolo-
gistas, que falam de um mundo que está desabando diante dos
nossos olhos, e as declarações tranquilizadoras que, para que
não nos sintamos em apuros, dizem que temos que nos acal-
mar, depositando nossa confiança no desenvolvimento das
ciências e das técnicas. ~mos escolher entre o Apocalipse e
o futu!9- radi~? Acredito, antes, que precisamos retro~der
um--pe-tt€6,a-fim de questionar de onde podem surgir senti-
mentos.-táo__çontraditórios. Foi por isso que tomei a liberdade
Gravura anônima reproduzida em
de informá-la a respeito da existência do meu curso, no qual
Pierre Varignon, Projet d'une nouvelle méchanique, você não está inscrita - eu sei - , mas do qual posso, se você
Paris, Chez la Veuve d'Édme Martin, Jean Boudot quiser, resumir o começo, de maneira que você esteja em ple-
et Éstienne Martin, 1687, p. 1. nas condições de começar a frequentá-lo sem dificuldades.

Primeira carta 9
..

Saiba que o curso é totalmente baseado em uma leitura Ah, acabo de me dar conta de que ainda não comentei a
atenta da atualidadç; restrinjo-me a dar aos meus alunos algu- respeito de que o curso de fato trata; é um pouco difícil defi-
mas noções de história, filosofia, sociologia para ajudá-los a ni-lo em apenas algumas palavras. Se você fosse fazer um curso
identificar na massa de acontecimentos correntes aqueles que de economia, grego antigo, estatística ou agronomia, seria mais
nos interessam. De algum modo, é como se eu me limitasse a fácil explicá-lo. Haveria nesses campos centenas, milhares de
oferecer a voz em ojfde um documentário sem interrupções:_ pessoas para ensiná-los e para acompanhá-los. Hábitos se esta-
Depois, caberia aos alunos ter autonomia para.lidar com essas b~leceriam;_ você <lispo-ria de manuais, livros d~xercícios, bi-
noções, para compor sua..propria- doeumentação, elaborar Sl!a bliografia. Infelizmente, ensino um domínio que não existe ver-
própria opinião e redigir seus próprios comentários.. Eu não os dadeiramente; sou praticamente o único que o define dessa ma-
avaliaria por seus conhecimentos, mas sim por sua aptidão pa- neira: em suma, eu e - digamos - algumas dezenas de cole-
ra mobilizar os instrumentos que lhes propus para avançare.q:i gas, a quem quase em sua totalidade tenho o privilégio de co-
em sua investigação pessoal., nhecer! 1 Por um lado, esse terreno é tão vasto que afeta a exis-
Não sei se para você esse procedimento parece convenien- tência desde o princípio dos tempos e, por outro, tão reduzi-
te. Em todo caso, se o assunto interessar, aconselho que faça do que repousa sobre apenas um pouco mais de uma dúzia de
como meus alunos e crie um diário de borJ;;; que você poderá conceitos. É isso que com frequência faz com que os estudan-
preencher de acordo com sua vontade, na maior frequência
possível, com o intuito de incluk.-nele.__us ducumentos....jl!illa-
1
mente com os acontecimentos que tenha encontrado, aos gy_ais O terreno dos science studies é bastante vasto, sobretudo em língua in-
você agregará depois os comentários que o curso lhe suscitar. glesa. A melhor introdução é a de Dominique Pestre (lntroduction aux science
studies, Paris, La Découverte, 2006), que inclui numerosas referências. Para
Minhas anotações não serão nada além de um estímulo p~ra
uma versão bastante crítica, procure por Pierre Bourdieu, Science de la science
ajudá-la a avançar nesse diário. Por outro lado, eu também man- et réflexivité, Paris, Raisons d'Agir, 2001. Para uma mais filosófica, mas muito
tenho meu próprio diário, de modo que poderemos comparar sucinta, leia Isabelle Stengers, Sciences etpouvoirs: la démocratie face à la techno-
com facilidade nossas conclusões. Para você está bem que proce- science, Paris, La Découverte, 2002. Um pouco mais antigo e de acesso mais di-
fícil, mas muito representativo a respeito de outras formas de fazer história das
damos dessa forma? Na medida do possível, irei comentar suas
ciências, é o livro compilado por Michel Serres, Éléments d'histoire des sciences
descobertas_, re~ponder às su?S objeções e esclarecer as noções - (Paris, Bordas, 1989; reedição, Larousse, in extenso, 1997). Você pode comple-
não totalmente elaboradas, advirto desde já - que apresento tá-lo com a excelente coleção de textos proposta por Jean-François Braustein,
nesse curso. Se necessário, podemos utilizar um site ou algum L'histoire des sciences: méthodes, styles et controverses, Paris, Vrin, 2008. O Dic-
desses novos meios de comunicação digital que - de acordo tionnaire culturel des sciences, dirigido por Nicolas Witkowski (La Tour d'Ai-
gües, Éditions de l'Aube, 2003), contém um grande número de exemplos in-
com o que dizem - modificarão profundamente a pedagogia. teressantes para os estudantes. Para os que leem sem dificuldades em inglês, a
Com o tempo veremos se são aptos a substituir o sistema de melhor coleção de artigos continua sendo a de Maria Biagioli, The Science Stu-
tutorias e a relação direta entre um docente e um estudante. dies Reader, Londres, Routledge, 1999.

10 Cogitamus Primeira carta 11


tes desistam. Eles se sentem aturdidos, tanto pela amplitude do entre a primeira e a última aula, a boa vontade dos alunos se
assunto quanto por sua simplicidade. Sentiriam-se satisfeitos perca... Você ainda está aí ou já a perdi?
se eu pudesse defini-lo de maneira um pouco mais precisa. Bem, se você estiver de acordo, poderíamos começar por
Se eu disser a você que o curso aborda a questão "das ciên- esta primeira dificuldadt: as ciências e as técnicas são amadas
cias e das técnicas,,, terei bastante receio de apenas desanimá- ou detestadas porque demonstram ser disciplinas excessiva-
-la e fazer com que desista imediatamente de acompanhá-lo. mente autônomas. Para a maioria das pessoas, não vale a pena
Se alguém deseja mobilizar seus alunos, não há nada pior que se interessar por elas exatamente por não terem relação com-
lhes dizer que vamos "estudar as ciências e as técnicas,,. Deve- o que chamam - a vida cotidiana, a cultura, os valores, as hu-
-se reconhecer que grande parte das pessoas tem recordações manidades, as paixões políticas, em suma, tudo o que verda-
péssimas de um ensino frequentemente deficiente... ao menos deiramente as interessa. Por serem tão autônomos, esses cam-
na França. Não sei como é na Alemanha, seu país. Talvez vo- pos se tornaram corpos estrangeiros. Uma pessoa culta, proce-
cê tenha tido oportunidades melhores. O mais triste é que dente das letras, do direito ou das humanidades, ou inclusive
muitos dos meus alunos seguiram a orientação científica no co- das ciências sociais, apenas se vinculará a elas para admirá-las,
légio. Mesmo que sejam - como se costuma dizer - "bons mas de longe. Sem dúvida, para outros, o que concede todo o
em matemática,,, com frequência têm somente uma ideia fixa: valor às ciências e às técnicas é o inverso: "Felizmente", dizem
fugir das ciências o mais rápido possível. Quanto às técnicas, eles, "as ciências permanecem absolutamente alheias às preo-
elas lhes parecem ainda mais ingratas. "Tudo", dizem eles, "me- cupações políticas, às disputas, à ideologia, à religião. Sua au-
. "
nos isso. toridade escapa a qualquer outra instância que não sejam elas
Pois bem. Eu, evidentemente, não ensino uma ciência mesmas. E esta é sua principal virtude: são verídicas (no caso
nem uma técnica (minha capacidade de fazê-lo, aliás, seria mí- das ciências) e eficazes (no caso das técnicas) precisamente por-
nima), mas sim as ciências e as técnicas em suas relações c~ a
~ A ))
que sao autonomas .
história, a cultura, a literatura, a economia, a política. Conse- Aparentemente, portanto, há pleno consenso: as ciências
quentemente, o que chamo de "ciências e técnica? não tem e as técnicas são autônomas. "Infelizmente", diriam alguns; "fe-
quase nenhuma relação com aquilo que causa tanto temor nos lizmente", diriam outros. Em seguida, irão se separar: de um
alunos ou com o que os meios de comunicação apresentam ao lado os "literatos,, - corno se diz na França - e do outro os
público. Tampouco tem relação, é claro, com o que os cientis- "matemáticos,,. Essa é a situação habitual. A situação estabele-
tas celebram com frequência quando tentam reanimar o entu- cida de modo-padrão. Pois bem, o__ohj.e.tivo do meu curso é
siasmo do povo a respeito do que às vezes se costuma denomi- q_uestionar essa.ideia de autonomia das ciências e das técnicas.
nar o "espírito científico,, ou a "visão racional do mundo,,. Es- Você imaginava que era isso? Sim, sobretudo se já começou a
se é o problema do meu curso: é neeessário ir até o fim p~ preencher - como eu - o seu diário de bordo. (Atenção: não
compreender do que ele trata! E ainda se corre o risco de que, se esqueça de anotar sempre com o maior cuidado a fonte de

12 Cogitamus Primeira carta 13


seus documentos.) No início, não se preocupe: recorte com rão os peixes nas águas sujas da política? Este é o ti-
tranquilidade o que pareça ter relação com o tema conforme po de documento que vai nos interessar muito por-
~
eu - bastante vagamente - o defini e se limite a sublinhar as que mostra que a ''natureza» nao e' mais

autonoma e
A

passagens que você considera que têm uma relação qualquer que, também nesse âmbito, as coisas são um pouco
com as ciências, as técnicas e as outras formas de vida. Não ten- mais complicadas do que acreditávamos. Não hesite
te fazer um comentário brilhante de imediato. Veja, por exem- em recortar anúncios publicitários, tirar fotografias,
plo, o que eu reuni nesses últimos dias. Apenas para ajudá-la a transcrever conversas. Para nossos propósitos, ne-
iniciar a tarefa, recortei os artigos e, abaixo, esbocei algumas nhum desses formatos de informação é demais.
sugestões.
Também recortei, do Le Monde de 5 de setem-
Li no Le Figaro de 31 de julho de 2009: "a gri- bro de 2009, um artigo muito interessante com um
pe A (HJNJ) está se tornando uma questão política". título bem provocador: "A crise coloca em questão o
Aqui está uma questão relacionada à medicina, saber e o lugar que ocupam os economistas".
à virologia, um assunto verdadeiramente técnico Nele, o jornalista acusa os economistas não ape-
apresentado por um jornalista que, aparentemente, nas de não terem previsto a crise financeira, mas tam-
não sabe senão que as ciências são autônomas e não bém de tê-la ampliado pela confiança excessiva que
devem se politizar. É o tipo de declaração que deve depositaram em uma macroeconomia "na melhor
nos alertar: as relações entre as ciências e a política das hipóteses espetacularmente inútil e, na pior, de-
são um pouco mais complicadas do que aquilo que cididamente nociva''. O que chama particularmente
a versão oficial nos diz. a atenção é que se trata de uma citação de Paul Krug-
man, Prêmio Nobel de Economia e, além disso, cro-
No Le Monde de 28 de agosto de 2009, encon- nista regular do New York Times...
tro um anúncio publicitário do Fundo Mundial pa- Escolhi este exemplo para incitá-la a não se li-
ra a Natureza (World Wildlife Fund) que menciona mitar aos temas de ciências naturais: a economia é
o presidente Sarkozy, que afirma que a França "de- uma ciência social, mas se estende por todas as par-
fende que o atum vermelho seja inscrito no anexo da tes e intervém em todos os aspectos da nossa vida, as-
convenção internacional sobre as espécies selvagens, sim como a química ou a medicina. Toda controvér-
para proibir sua comercialização". sia sobre seus objetivos e funções, sobre sua confia-
Parece que os amantes de sushi terão que se bilidade e poder de predição, nos interessa de forma
preocupar se nosso hiperpresidente decidir interferir direta.
nas técnicas de pesca de seu peixe favorito. Nada-

14 Cogitamus Primeira carta 15


Como você pode ver, manter um diário de bordo não é sim tomá-la como um objeto. Os antropólogos ingleses têm
muito difícil, pelo menos no início. Ainda que, em teoria, pa- um princípio de método que resumem com o seguinte slogan:
reça evidente que se deva "começar separando muito bem" as "To learn how to transform resources into topics", que poderia ser
questões científicas das políticas, na prática o assunto não está traduzido como: aprender a transformar o que habitualmente
tão claramente definido, ao menos no âmbito da imprensa. Te- serve de explicação naquilo que, ao contrário, deve ser explica-
nho certeza de que você não terá nenhuma dificuldade em en- do. Esse princípio sempre me pareceu excelente. É como se ti-
contrar muitos exemplos desse tipo. As coisas se complicam véssemos, inadvertidamente, um conjunto de recursos já ela-
quando há a tentativa de analisar as ligações - aparentemen- borados que nos servem para julgar, mas, com frequência, de
te bastante diferentes - que nosso diário de bordo vai multi- forma excessivamente rápida e automática, por reflexo condi-
plicando com muita rapidez. Dessa forma, deveremos passar cionado. Para começar a pensar com um pouco mais de serie-
de forma progressiva do simples recorte de documentos à i~­ dade, devemos nos esforçar para trazer à tona esses recursos) e
vestigação mais profunda e, depois, ao comentário. Como co- colocá-los diante de nós, dissecá-los e ver no que consistem. É
locar em ordem, de um lado, o senso comum que - para re- assim que opera a autonomia das ciências. Esse argumento nos
gozijar-se ou lamentar-se - nos diz que as ciências são corpos parece indispensável para solucionar debates como os que aca-
estrangeiros e, por outro, esse mesmo senso comum que mul- bamos de reunir em nosso diário de bordo; evidentemente, a
tiplica os exemplos das relações entre eles? utilidade dos ditos recursos continua em questão, e vemos uma
É precisamente este o objeto do primeiro curso que ofe- vez ou outra que as circunstâncias a contradizem. Então, va-
reço a meus alunos: não se pode colocá-los em ordem. Mergulha- mos colocá-los diante de nós; façamos deles o objeto de nossa
mos de modo ineludível em uma contradição da qual não é análise.
conveniente tentarmos nos evadir tão rapidamente... Não se
pode fazer nada: torna-se necessário aceitar os dois argumentos Para ajudar meus alunos a compreenderem esse ponto, re-
simultaneamente. É inútil exclamar: "Isso são aberrações. As corro a Plutarco e ao relato que ele desenvolve, em seu Vidas
ciências devem se manter afastadas de todas essas questões in- paralelas, a respeito do papel cumprido por Arquimedes no cer-
dignas delas". Essa é a primeira noção que eu gostaria que os co de Siracusa. 2
alunos absorvessem: tomemos como objeto essa contradição,
esse discurso duplo, e nos esforcemos para não nos precipitar- 2 Sobre o comentário a respeito desse acontecimento contado por Plu-
mos tomando partido imediatamente. Desaceleremos. Tenha- tarco em seu livro Vidas paralelas - no capículo sobre Marcelo e Pelópidas - ,
•A •
mos pac1enc1a. consulte também, de Michel Authier, "Archimede, le canon du savant'', em
Acredito que você tenha avançado o suficiente em seus es- Michel Serres (org.), Éléments d'histoire des sciences, cit., pp. 101-27. O exce-
lente livro de Paul Sandori, Petite logique des forces: constructions et machines,
tudos para ter adquirido este hábito: diante de uma contradi- Paris, Seuil, 1983 (em edição de bolso), pode servir de útil acompanhamento
ção a princípio insuperável, não mergulhar nela de cabeça, mas à cultura técnica.

16 Cogitamus Primeira carta 17


Você dirá que é fácil recorrer a episódios tão conhecidos. trabalhos. Hierão, por sua vez, não pedia nada. Das alavancas
Mas não se esqueça de que, em um curso, é necessário drama- do poder, certamente entendia tudo, mas sobre as da física ou
tizar adequadamente os argumentos: nada melhor do que uma da estática - as verdadeiras forças - nada podia dizer. Ou, se
vinheta, já que é conhecida por todos. Ademais, não devería- já tinha ouvido falar sobre elas, certamente não sabia como re-
mos sempre, em um momento ou outro, retornar aos gregos? lacionar questões ditas obscuras da geometria com as situações
O que me interessa nesse relato é que ele oferece um exemplo concretas do poder que devia enfrentar todos os dias em seu
claro de que há mil e oitocentos anos já existia, completamen- palácio. Quanto à louca ideia de mover a Terra com uma ala-
te pronto, o duplo discurso sobre a autonomia das ciências e vanca de dimensões infinitas, não pôde senão ter-lhe parecido
das técnicas, e que, desde então, ele não se alterou significati- uma fanfarrice oca. Por outro lado, como todos os príncipes
vamente. que ao longo da história se encontraram diante das elucubra-
Com certeza você se lembrará de que Hierão, o rei de Si- ções dos sábios, Hierão sem dúvida se alegraria por ficar sur-
racusa, mobilizou os talentos do maior sábio da época, Arqui- preso com as proezas de seu parente e amigo, com a condição
medes, para que este organizasse a defesa da cidade contra o de que este provasse o que ele havia dito. Foi nesse momento
cerco imposto pelo general romano Marcelo (isso ocorre por que surgiu o célebre episódio do barco de três mastros movido
volta do ano 212 AEC- antes da era comum). No entanto, sem esforço por um ancião:
o que às vezes se costuma esquecer é que, no início da narrati-
va de Plutarco, é Arquimedes quem toma a iniciativa de entrar Hierão, maravilhado, solicitou a Arquimedes
em contato com o príncipe. que realizasse uma demonstração de sua teoria, mos-
trando-lhe uma grande massa posta em movimento
Arquimedes havia escrito ao rei Hierão, seu pa- por uma pequena força. Arquimedes fez então com
rente e amigo, que com uma determinada força é que fosse posto em terra, após enormes esforços de
possível deslocar um determinado peso e, inclusive, um grande número de homens, um barco de trans-
satisfeito com sua demonstração, declarou que se porte de três mastros pertencente à marinha real.
existisse outra Terra à sua disposição, ele poderia le- Após carregar o barco com muitos homens e
vantá-la. (Plut., Mar., 14, 7) abastecer os porões, Arquimedes sentou-se a certa
distância e, puxando com um movimento tranquilo
Foi daí que saiu a famosa frase: "Dê-me um ponto de uma corda que acionava uma máquina com muitas
apoio e eu levantarei o mundo". Vemos que, nesta venerável roldanas, arrastou o barco sem sacudi-lo, tirando-o
história, Arquimedes, sumamente orgulhoso do descobrimen- da água tão direito e estável como se ainda permane-
to do princípio da alavanca, se jacta (não há outra palavra) cesse no mar. (Plut., Mar., 14, 8)
diante do príncipe para fazer com que ele se interesse pelos seus

18 Cogitamus Primeira carta 19


Que o experimento fosse irrealizável (por conta da fric- O rei, estupefato, compreendendo a potência
ção) não impede que esta seja (ao menos no relato de Plutar- da ciência [em sentido literal, a potência da técnica],
co) a primeira experiência pública durante a qual um sábio pro- contratou Arquimedes para construir, prevendo to-
va, diante de uma multidão reunida, um princípio da física. O da espécie de cerco, máquinas tanto para a defesa
que se coloca em cena é, sem sombra de dúvida, uma inovação quanto para o ataque. (Plut., Mar., 14, 9)
técnica, mas note que também constitui uma séria inversão da
relação de forças: um ancião - Arquimedes - , graças ao jogo Arquimedes se encontra, então, embarcado (mas deve-se
de roldanas, consegue ser mais forte do que um barco com três dizer que ele buscou isso, em todos os sentidos ... ) em uma es-
mastros repleto de soldados e carga. pécie de "miniprograma Manhattan" para a reorganização das
Não vou surpreendê-la se disser que, quando se fala de in- defesas de Siracusa contra o exército de Marcelo. Ele sozinho
versão da relação de forças, todo príncipe fica de orelhas em pé! defende Siracusa de todos os romanos. O princípio da ala-
Até a física mais obscura se torna verdadeiramente digna de in- vanca se transformou na arma secreta dos siracusanos para cal-
teresse. A alavanca, em seu próprio princípio, já estabelecia - cular a mudança de escala das máquinas, a famosa poliorcéti-
mas apenas no mundo da geometria e estatística - uma inver- ca - ou ciência da defesa e do ataque das praças-fortes-, que
são da relação de forças mediante o cálculo dos vetores: estes ocupou os engenheiros por dois mil anos. Na continuação do
possibilitam que uma grande distância e um pequeno peso de texto, ao ter conseguido redimensionar todas as máquinas de
um lado sejam comensurdveis do outro lado com um grande pe- guerra, Arquimedes adquire uma magnitude verdadeiramente
so e uma pequena distância (todos aprendemos isso na sexta pantagruélica:
série). Com a condição, é claro, de contar com um ponto de ·
apoio, de um fulcro. Mas a experiência pública traduz uma ex- Marcelo concentrava seus soldados: "Não ces-
pressão da geometria a um dispositivo técnico - o jogo de rol- saremos - dizia-lhes - de guerrear contra esse geô-
danas - cujo resultado concreto (imaginário, sem dúvida) é metra Briareu [um gigante de cem braços e cinquen-
de que um homem sozinho pode dominar um grande núme- ta cabeças], que usa nossos barcos como frascos para
ro de marinheiros e soldados. "Nossà' - diz a si mesmo o rei tirar água do mar, que eliminou de maneira aviltan-
Hierão - , "será que esse Arquimedes conseguiria inverter a re- te nossa sambuca, atingindo-a em cheio, superando
lação de forças, não mais entre os lados grandes e pequenos, enfim os gigantes de cem braços da fábula, lançan-
mas, dessa vez, entre os romanos e Siracusa?" Da geometria se do-nos tantas flechas de uma só vez?". De fato, to-
passaria furtivamente para a geopolítica... Os dois tipos de for- dos os demais siracusanos eram apenas o corpo do
ça - e esta é a chave da história - também foram tornados organismo criado por Arquimedes e ele era a alma, a
comensuráveis. que tudo punha em jogo e em movimento; as demais
E Plutarco estabelece a conexão de imediato: armas continuavam em repouso e a cidade fazia uso

20 Cogitamus Primeira carta 21


apenas daquele grande homem para garantir a sua e reputação de uma inteligência não humana, mas
defesa e a sua salvação. (Plut., Mar., 17, 1-2) divina; é que considerava um ofício manual despro-
vido de nobreza toda ocupação da mecânica e toda
Inversão máxima da relação de forças: um ancião contra arte aplicada às necessidades da vida, e consagrava
o exército romano - e os romanos derrotados! (Isso é ainda seu zelo unicamente àqueles objetos em que a bele-
mais forte do que a poção mágica de Asterix!) Evidentemente, za e a excelência não se misturam a nenhuma neces-
trata-se de um exagero grosseiro. É como se disséssemos: "Gra- sidade material, aqueles objetos que não podem ser
ças a sua fórmula e = mc2 , Albert Einstein fez o império japo- comparados com outros e nos quais a demonstração
nês ajoelhar-se diante de si e ganhou sozinho a guerra no Pací- compete com o motivo quando este proporciona a
fico". Mas o que me interessa não é esse exagero - no fundo, grandeza e a beleza, e aquela, uma exatidão e um po-
bastante bobo - , mas a continuação do relato de Plutarco, der sobrenaturais. (Plut., Mar., 17, 3-4)
que nos deixa verdadeiramente estupefatos.
Tendemos a imaginar que, após semelhante demonstra- Eis o que praticamente impossibilitou, até pouco tempo,
ção de força, alguma celebração do poder da técnica e da ciên- todo estudo das ciências e sua história. Ato I: Arquimedes vai
cia haveria acontecido. Ou que haveria sido suscitada uma até Hierão para compartilhar com ele suas ideias mais loucas.
grande meditação sobre o acordo profundo entre a política (um Ato II: Hierão propõe a Arquimedes o desafio de comprovar a
homem domina todos os demais invertendo a relação de for- utilidade prática de suas ideias. Ato III: Arquimedes consegue
ças mediante as alavancas metafóricas do poder) e a estática realizar uma façanha tamanha que, sozinho, defende Siracusa
fundada na razão (todo peso, por menor que seja, pode levan- dos romanos. (Marcelo, no fim, vence, mas por traição; se Ar-
tar outro, tão grande quanto for, por intermédio de uma ala- quimedes morre assassinado no fim, isso se deve a um triste er-
vanca precisamente calculada). Pois bem, nada disso aconte- ro de um soldado excessivamente diligente de Marcelo.) Ato
ceu. E aqui é que vamos encontrar, se não a fonte, ao menos a IV: Arquimedes não tem nada a ver com nenhum tipo de con-
demonstração mais clara do discurso duplo que opera nesse re- sideração prática: apenas se interessa pela ciência pura, aquela
lato e que eu queria sinalizar para você. Com uma única taca- cuja demonstração se apoia somente em si própria e que bem
da, Plutarco apaga tudo o que havia dito antes e traça um re- pode ser chamada de "sobrenatural". Você percebe a tarefa que
trato completamente diferente de Arquimedes: nos espera? As humanidades científicas, se você quiser uma pri-
meira definição, consistem em aprender a considerar toda a
Arquimedes tinha um espírito tão elevado e tão obra, e não apenas um de seus atos. No início, a ciência de Ar-
profundo, e havia adquirido um tesouro tão rico em quimedes é completamente autônoma (de fato, interessa ape-
observações científicas, que não quis deixar por es- nas a ele e a alguns colegas espalhados pelo Mediterrâneo); em
crito nenhuma das invenções que lhe deram renome meio ao drama, essa ciência se encontra em absoluta continui-

22 Cogitamus 23
Primeira carta
dade com a técnica e as questões de defesa; e, no fim, mais uma 'f-; Como é possível que esses domínios alheios sejam,
vez, é caracterizada por sua autonomia, a ponto de repou~ar contudo, suscetíveis a uma continuidade tão perfeita que pos-
apenas sobre si mesma. (Depois retornarei a essa questão da sam se transformar em comensuráveis?
demonstração.) -4 Graças a qual terceiro milagre, ainda que se encontrem

Aqui, evidentemente, não nos encontramos diante de perfeitamente unidos, eles são apresentados como absoluta-
uma descrição histórica: Plutarco escreve aproximadamente mente incomensuráveis?
três séculos após os acontecimentos de Siracusa e, como um
bom platônico, transforma Arquimedes em frequentador do Aproveito a ocasião para apresentá-la a uma definição que
Céu das Ideias. No entanto, esse relato mítico em quatro epi- não costumo compartilhar com os meus alunos com a finali-
sódios teve uma influência tão duradoura no pensamento oci- dade de não lhes complicar a vida: digo-lhes que meu curso se
dental que ainda hoje podemos detectá-lo, muito pouco mo- chama Humanidades Científicas (o que não quer dizer muita
dificado em seu todo. Na realidade, se o considerássemos em coisa). Na realidade, o curso corresponde a um domínio com
sua integralidade, ele deveria provar em que medida a autono- cuja criação contribuí e para o qual utilizamos - inclusive em
mia das ciências é uma questão difícil, cheia de contradições e francês - a expressão "science studies" ou science and technolo-
mistérios, mas ele é utilizado para avivar a distinção absoluta gy studies, por vezes sendo denominado também "sociologia
- e não relativa, provisória, parcial- entre a ciência e - di- das ciências". 3 Você com certeza perceberá que science studies
gamos - o mundo da política. Ou seja, para relatar atualmen- tampouco diz muito, exceto por ser a tradução para o inglês de
te as proezas da física ou da biologia molecular, seriam utiliza- uma palavra bastante usual, de origem grega: epistemologia. Por
dos exatamente os mesmos tropos que Plutarco usou para con- que então não dizer que dou um curso de epistemologia? Em
tar as proezas de Arquimedes. Nada mudou no emprego desse primeiro lugar, porque faria com que os estudantes fugissem
duplo discurso. Você compreende agora por que não nos ser- de mim ... mas, além disso, porque esse termo acabou por de-
viria de nada tomar partido a favor ou contra a autonomia
científica?
3 Existem muitos manuais sobre o domínio da sociologia das ciências,
No meu curso, eu também retomo esse relato, mas na to- entre eles o de Dominique Vinck, Sciences et société: sociologfr du travai! scien-
talidade de seus atos, pois não quero reduzi-lo a apenas uma tifique, Paris, Armand Colin, 2007, e o mais tradicional de Michel Dubois, In-
de suas fases. Se você estiver de acordo, pedirei então que faça troduction à la sociologie des sciences, Paris, PUF, 1999. Os estudantes interessa-
como meus alunos e, de agora em diante, tenha presente os três dos em uma apresentação mais avançada podem ler, de Bruno Latour, La scien-
ce en action: introduction à la sociologie des sciences, Paris, La Découverte, 2006
seguintes "milagres", sem separá-los:
[ed. bras.: Ciência em ação: como segu.ir cientistas e engenheiros sociedade afora,
- Como é possível que um homem das ciências possa São Paulo, Editora Unesp, 2000]. Estudos mais profundos podem ser consul-
despertar interesse em um príncipe, visto que os domínios de tados nas revistas (em inglês) Social Studies ofScience e Science, Technology and
ambos são completamente alheios entre si? Human Values.

24 Primeira carta 25
Cogitamus
signar, sobretudo na França, um esforço para extirpar das ciên- alunos aplicarem-no no que puderem encontrar na atualidade.
cias toda conexão com o restante das disciplinas. Na perspec- O primeiro conceito que ofereço a vocês é o d~ tradução. Pego
tiva de um epistemólogo francês formado na escola de Gaston emprestado o termo do filósofo Michel Serres, que, há cerca de
Bachelard (1884-1962), para poder chegar a ser verdadeira- trinta anos, renovou profundamente a história das ciências,
mente científica, uma ciência deve se despojar pouco a pouco vinculando-a - graças àquela noção - às humanidades, isto
de toda aderência que ameace invalidá-la ou pervertê-la. 4 Is- é, às literaturas grega e latina, mas também à poesia. Darei a
so seria equivalente a considerar apenas o Ato IV do relato de você, se estiver interessada nisso, referências mais avançadas. 5
Plutarco e esquecer de Hierão, de Marcelo, da alavanca e das Mas, a meus alunos, proponho que substituam a ideia de um
inversões da relação de forças que esta permite. Eu poderia, corte entre as ciências e o restante da existência (separação que,
certamente, dizer que ministro um curso de epistemologia polí- como acabamos de ver, não faz jus nem sequer aos aconteci-
tica; a expressão se ajustaria de modo excelente ao que faço, mentos míticos) pelas noções de desvio e composição. Tenho a
mas quem me compreenderia? Portanto, mantenho certa bru- pretensão, talvez um pouco exagerada, de que o curso pode se
ma em torno da questão, e por fim, acostumei-me a humani- sustentar nessas duas únicas noções. (Em outras palavras, po-
dades, essa bela palavra que durante tanto tempo serviu para derei dizer, ao modo de Arquimedes: "Dê-me os conceitos de
definir a educação e que tem um cheirinho bom de Renasci- tradução e de composição e levantarei o mundo".)
mento ... (Diga-se de passagem, nos últimos tempos desenvol- Para facilitar a compreensão, emprego um esquema bas-
vi certa afeição pelo século XVI, assunto sobre o qual voltarei tante elementar (e apenas para constar, você poderá encontrar
depois.) outros ou abandoná-lo de imediato). O importante é substi-
tuir a metáfora da cisão necessária entre ciência e política por
A esta altura, você já sabe, exceto por alguns poucos deta- outra metáfora, outra encenação, se você preferir, mediante a
lhes, do que trata a matéria do primeiro curso. Sempre tento qual possamos representar os episódios sucessivos das relações,
passar de um exemplo conqeto - neste caso, a vinheta de Plu- para prolongar meu exemplo, entre Arquimedes e Hierão. Eu
tarco - para um conceito mais geral, que deve permitir aos

5 Michel Serres descreve muito bem o conceito de tradução em La tra-


4
Para compreender a diferença entre a epistemologia e os science studies, duction (Hermes 111), Paris, Minuit, 1974. Este autor desenvolveu amplamen-
pode-se ler o bastante útil e clássico livro de Alan Chalmers, Qu'est-ce que la te a temática das humanidades científicas em livros que não são de fácil acesso,
science?, Paris, Le Livre de Poche, 1990 [ed. bras.: O que é ciência, afinal?, São mas que merecem o esforço dos estudantes, em particular quanto a L'origine de
Paulo, Brasiliense, 1993]. Para entender o contraste com as humanidades cien- la géométrie, Paris, Flammarion, 1993 (1998, em edição de bolso); Le contrat
tíficas, pesquise, de Gaston Bachelard, La formation de l'esprit scientifique, Pa- naturel, Paris, Bourin, 1990 (edição de bolso, Flammarion, 2009) [ed. bras.: O
ris, Vrin, 1967 [ed. bras.: A formação do espírito científico, Rio de Janeiro, Con- contrato natural, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991], e Le tiers-instruit, Pa-
traponto, 1996], que pode ser comparado com Steven Shapin, La révolution ris, Bourin, 1991 (em edição de bolso, Gallimard, 1992); ~te último é prova-
scientifique, Paris, Flammarion, 1998. velmente o mais próximo do espírito deste livro.

26 Cogitamus 27
Primeira carta
gostaria de fazer com que você se acostumasse a compreender blema de Hierão a partir da perspectiva de um físico? "Você
- como faço com meus alunos - que !!_m determinado CJ;lr- não poderá defender Siracusa - e, portanto, completar seu
.so de ação sempre é composto por uma série de desvios cuja in- curso de ação-, a não ser que aceite fazer um contorno- is-
terpretação, posteriormente, define uma defasagem que dá a to é, um desvio - , passando por minhas pesquisas esotéricas
medida da tradução. E uma tradução, certamente, sempre é sobre geometria e estáticà' (etapas 2, 3 e 4). Entre Hierão e sua
fonte de ambiguidade (esta é a vantagem do termo). Dito des- meta, Arquimedes situa - eu me atreveria a dizer dessa forma
sa maneira, de supetão, parece complicado, mas vo~ê logo per- - uma placa de sentido proibido e lhe propõe desviar seu ca-
ceberá que, na verdade, é bastante simples (Figura 1.1). minho e aceitar suas ideias sobre a física das armas de cerco.
Nesse desvio há - acabo de demonstrar a você - uma
Figura 1.1 promessa, mas também um risco. A promessa consiste em que
Esquema de base se deve assegurar ao príncipe que ele chegará da mesma forma
de uma operação de tradução.
à meta inicial, mas, dessa vez, equipado com as máquinas da
2. Interrupção poliorcética renovadas por Arquimedes: Siracusa será, dessa
maneira, defendida pelos exércitos do príncipe associados à geo-
1. Hierão ----4 -0-----------------)
metria (etapa 5). Entretanto, também existe um risco: não re-

3. contorno /? 5. Defesa de Siracusa


pelas armas de cerco
Medida da
cuperar o objetivo inicial (agora composto pelos interesses con-
juntos de Hierão e Arquimedes). Como acontece com todos
nós: certamente ao dirigir você já deve ter sentido uma ligeira
4. Arquimedes ----~ ? defasagem
angústia ao encontrar na estrada uma placa dizendo "Desvio";

~)~ 5 bis. Desenvolvimento


sempre se corre o risco de perder a continuidade e se extraviar
no caminho. E é isso o que o apólogo de Plutarco nos indica:
na verdade, Arquimedes não perseguia outro propósito que não
da física
o seu próprio, o desenvolvimento de uma pesquisa pura em
geometria (etapa 5 bis). Dizendo de forma mais clara: a ação
Comento o esquema para que você compreenda como va- composta por um desvio mais ou menos longo oferece agora
mos tecer essas questões de tradução. Hierão percorria seu ca- uma grande defasagem entre, de um lado, a defesa de Siracusa,
minho com retidão, o caminho dos príncipes habituados aos e, do outro, as demonstrações sem nenhuma aplicação prática 1
arcanos do poder, mas não sabia como sobreviver ao invasor (daí a existência da seta vertical que dá a medida da ambigui-
romano (seta tracejada). Esse era seu maior objeto de preocupa- dade). Pois bem, essa defasagem é o que se deve levar em cpn-
ção. Surge Arquimedes, que lhe propõe uma nova versão, uma ta: ou Hierão, para atingir os seus objetivos, mobiliza Arquirp.e-
nova tradução dessa inquietude. Como se apresentaria o pro- des, ou Arquimedes consegue desviá-lo de suas metas em be-

28 Cogitamus Primeira carta 29


nefício das suas próprias~ Você verá por que Il!9tivo falo sobre tros cursos de ação, para alcançar a aceitação dos desvios ne-
~omposição: no fim, esses encadeamentos tecem a ação e es~ cessários, para cumprir suas promessas e - operação sempre
se assemelha a um folheado de preocupações, práticas e línguas delicada - para se fazer reconhecer depois como a fonte prin-
diferentes: as da guerra, da geometria, da filosofia, da política. cipal do conjunto (que, contudo, em todos os casos, é compos-
Traduzir é ao mesmo tempo transcrever, transpor, deslocar, to). Os interesses nunca se dão logo de cara, mas - pelo con-
t~sferir e, portanto, transportar transformando. trário - dependem da composição. 7
A vantagem deste pequeno esquema é que já não precisa- Sem dúvida, por ter sido depurado, meu exemplo mito-
mos abordar a ciência e a política como dois conjuntos desco- lógico agora ficou muito simplista. Escolhamos outro mais
nexos que se olhariam de frente e cuja intersecção comum se- próximo aos alunos: o da pílula anticoncepcional. Em sua uti-
ria necessário procurar. Temos, por outro lado, dois tipos ele lização, hoje comum para a maioria das mulheres jovens, es-
atividades que, de modo geral, seguem a mesma direção e cujos condem-se, por uma sucessão bastante vertiginosa de desvios
percursos vão se misturar e desenredar com o passar do tempo. e co~posições, a militante feminista Margaret Sanger (1879-
Na verdade a ação é sempre composta, e a soma dessa compo- 1966), bem como Katherine Dexter McCormick (1875-1967)
sição tem caráter ambíguo. Esse resultado nos será muito útil - viúva herdeira da imensa fortuna do fabricante de tratores
depois, no momento em que abordaremos o labirinto das téc- de mesmo sobrenome - , o grande químico Gregory Pincus
nicas (se você aceitar me seguir até tal ponto). Além disso, ele (1903-1967) e a família de moléculas chamadas "esteroides",
permite que eu dê um sentido um pouco mais preciso à noção que este químico, junto com diversos outros, contribuiu bas-
de interesse ou - de forma mais exata - de "interessamento" tante para analisar, sintetizar e transformar em uma pílula ca-
[intértrsrement]. 6 Sem dúvida, você deve se lembrar de que em da vez mais bem dosada. 8 Para esclarecer a noção de tradução,
latim o interesse é o que se situa entre duas coisas: inter-esse. resumo para você uma longa história cuja importância para os
Arquimedes interessa a Hierão porque se coloca, se introduz e;;; costumes é infinitamente maior que a de Arquimedes para Si-
tre este e sua meta: defender Siracusa. As ciências serão ou não racusa e que está muito bem inserida, oculta - e, portanto,
interessantes de acordo com sua aptidão para se associar a ou-
7 Sobre o desenvolvimento do conceito de tradução na sociologia das

m firances,
• .mteressement
'
6E
abrange o sentido de incentivo, como no ca- ciências, o leitor pode se remeter aos textos reunidos por Madeleine Akrich,
so de um acordo entre os funcionários de uma empresa sobre a participação Michel Callon e Bruno Latour, Sociologie de la traduction: textes fondateurs, Pa-
nos lucros e resultados obtidos por ela. Sobre o alto rendimento da noção nos ris, Presses des Mines, 2006.
science studies, ver o já clássico artigo de Michel Callon: "Some Elements of a 8 Sobre esta história, utilizo o excelente informe (em francês) de Les
Sociology of Translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of Cahiers de Science et Vie, nº 1O, 1992 (aliás, roda a série de Cahiers desses anos
St. Brieuc Bay", em Power, Action and Belief A N ew Sociology o/Knowledge? é notável) . Para saber mais, no entanto, é conveniente conseguir o bastante
(organizado por John Law), Londres, Routledge & Kegan Paul, 1986, pp. 196- acessível livro de Elaine Tyler May, America and the Pi!!: A History o/Promise,
233. Peril and Liberation, Nova York, Basic Books, 2010.

30 31
Cogitamus Primeira carta
ignorada - na utilização cotidiana da pílula por dezenas de átomos dos esteroides, as mudanças na legislação, os debates
milhões de mulheres. mantidos no Congresso a favor e contra a pílula, as competên-
Sanger tenta tirar da infelicidade centenas de mulheres cias da indústria química, as reações das usuárias, a qualidade
que sofrem com o peso da gravidez não desejada. Ela não é quí- do acompanhamento médico etc. (Figura 1.2).
mica, mas conhece Pincus de nome e se interessa pela nascen-
te endocrinologia. Pincus, por sua vez, estaria disposto a se lan- Figura 1.2
Generalização do esquema
çar ao assunto, mas não conta com nenhum dos meios mate-
que representa as operações de tradução.
riais necessários para fazê-lo e resiste - como muitos pesqui-
sadores homens - a perverter sua ciência com esses horríveis Interrupção
"segredos de senhoras". Quanto a McCormick, ela tampouco Ator 1 -----~ -0-------------
é química nem realmente feminista, mas, sim, imensamente ri-
ca. Quem atua? Quem é o responsável? Quem descobriu a pí-
lula? Evidentemente, a história poderia ser contada como a ir-
Contoc! Interrupção
rupção dos esteroides que depois "impactarão" - como se diz
agora - a sociedade e os costumes. Mas se os esteroides não
Ator 2 -0--------
tivessem interessado - no sentido que acabei de definir - a
ninguém além dos químicos, a ação teria sido composta ape-
~ntoc! Interrupção o
:~
nas de forma parcial. Em todo caso, não se teria passado pela
química para resolver a questão dos nascimentos não deseja-
"'o
·~
a
Ator 3 -0-------- "'
o
ea..o
dos, mas sim - como se vinha fazendo até esse momento -
apelando para a moral, a religião e as agulhas de tricô, com os
~ntor! Interrupção
u

imensos perigos que estas últimas implicavam para as mulhe-


Ator 4 -----~
res pertencentes às camadas populares.
Como funcionaria, diante desta história - admito que
muito grosseiramente resumida-, meu pequeno esquema?
Irão se multiplicar as diferentes camadas, cada uma correspon-
Ator 5 -----~ -------~
dente a um curso de ação diferente precedido e seguido por
numerosos desvios. Em seu momento, cada um desses desvios
modifica o objetivo inicial e compõe uma ação coletiva, na qual Compreendemos bem então que, em relação a essa suces-
devem ser considerados o estado dos costumes, o ativismo de são de desvios e encaixes, a questão de saber quem, afinal, é o
Sanger, o dinheiro de McCormick, as ligações químicas dos responsável pelo movimento do conjunto se torna em todos os

32 Cogitamus Primeira carta 33


sentidos secundária (veja, no desenho, a seta vertical à direita). tumes e dos esteroides se cruzaram e recruzaram de tal forma
Por quê? Porque isso só pode ser claramente reconhecido de- que acabaram compondo outra maneira de se reproduzir para
pois dos movimentos de desvio e composição. Um historiador uma parte da espécie humana.
das ciências também poderia dizer que, sem o trabalho das ati- Você verá que - como quem não quer nada - avança-
vistas, a química nunca teria sido vinculada às questões da re- mos bastante, visto que substituímos uma pergunta insolúvel
produção, ou que, sem uma mudança na legislação, as inova- por um programa de pesquisa perfeitamente empírico. Graças
ções da indústria química nunca teriam passado do estágio de a ele vamos poder seguir - tanto quanto formos capazes -
protótipo; mas, com a mesma razão, poderia afirmar que "tu- as sinuosidades da ação coletiva que, por desvios e composi-
do se baseià' no descobrimento dos esteroides. Apenas de for- ções, vão embaralhar elementos de origens muito diferentes.
ma retrospectiva - e mesmo quando isso se mantiver sem.J?_re Tinha, portanto, razão quando a convidei para transformar a
no plano da conjectura - é possível avaliar o papel dos dif~-­ noção de autonomia das ciências - que talvez, até então, vo-
rentes atores para compreender suas motivações. cê considerasse um recurso indispensável para julgar a atuali-
Você se dará conta de por que é impensável partir de um dade - em um objeto de estudo que deve ser posto em ques-
domínio recortado de antemão, categorizado previamente - tão com seriedade. Também espero que você compreenda por
que teríamos chamado de "as ciências" - , depois de outro do- que não digo aos meus alunos que meu curso "tratà' das ciên-
mínio pré-categorizado - que teríamos chamado de "a épo- cias e das técnicas. Não é apenas porque os faria fugir! Não fa-
cà', "o estado da sociedade", "o meio intelectual" ou o Zeitgeist ço isso também porque nunca ninguém foi capaz de separar,
(esta é, infelizmente, e me desculpo por isso, uma das poucas na sobreposição de traduções, algo que seriam "as ciências" -
palavras que sei em alemão) - , para, em seguida, se pergun- e que tivesse margens bem delimitadas - e uma história pró-
tar se eles podem ou não ter relação. A famosa autonomia das pria, que poderíamos em seguida decidir vincular ou não a ou-
ciências - que deve ser defendida a qualquer custo ou contes- tras histórias (a do mundo, a do's costumes, a da economia
tada como uma velharia - não é mais que uma forma de re- etc.). É daí que vem a expressão, muito bonita, humanidades.
corte arbitrária e tardia que apenas consegue isolar certos ele- científicas. (De toda forma, darei a você uma definição das ciên-
mentos nesses jogos de traduções e de "interessamentos", para _ cias ... mas isso será no último curso!)
colocá-los depois em um cara a cara incompreensível. Diante Esperando que este último desvio não dê a você a impres-
desta divisão, não se pode senão fazer perguntas que sabemos são de afastá-la demais de sua pergunta inicial, desejo-lhe uma
que não têm solução: "Que intersecção pode existir entre os es- boa leitura.
tero1ºdes e os costumes;"" . A resposta so' po d e ser: "Nen h uma" . Seu professor etc.
Na realidade, estes não são dois domínios isolados que p.reci-
saríamos tentar justapor, mas, sim, dois ramos do mesmo or-
ganismo que se desenvolveram juntos. As trajetórias dos cos-

34 Cogitamus Primeira carta 35

Você também pode gostar