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Immanuel

Kant
Sobre
a Pedagogia

70 —
Immanuel
Kant
Sobre
a Pedagogia
Pôr o leitor directam ente em contacto

com textos m arcantes da história da filosofia

- através de traduções feitas

a partir dos respectivos originais,

por tradutores responsáveis,

acompanhadas de introduções

e notas explicativas -

fo i o ponto de partida

para esta colecção.

O seu âm bito estender-se-á

a todas as épocas e todos os tipos

e estilos de filosofia,

procurando incluir os textos

m ais significativos do pensam ento filosófico

na sua multiplicidade e riqueza.

Será assim um reflexo da vibratilidade

do espírito filosófico perante o seu tempo,

1
perante a d ência

o problema do homem
e do mundo.

2
Título original:
Ober die Pedagogik

© desta tradução, João Tiago Proença e Edições 70, Lda.

Tradução e notas:
João Tiago Proença

Capa:
FBA

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação

KANT, Immanuel, 1724-1804

Sobre a Pedagogia. - (Textos filosóficos)


ISBN 978-972-44-2126-1

CDU 37.01

ISBN: 978-972-44-2126-1

EDIÇÕES 70, LDA.

Fevereiro de 2017

EDIÇÕES 70, Lda.


Avenida Engenheiro Arantes e Oliveira, 11 - 3.® C -1 9 0 0 -2 2 1 Lisboa / Portugal Telefs.: 213 190

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índice

Nota prévia

Introdução

Dissertação

Da educação física

Da educação prática

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Nota prévia

O texto “Sobre a pedagogia” de Im m anuel Kant é o resultado da edição,


autorizada, que o seu aluno Friedrich Theodor Rink efectuou sobre as notas
enviadas pelo filósofo para publicação e que correspondem, pelo menos
parcialm ente, ao m aterial usado nas cadeiras de pedagogia de que foi
encarregado de leccionar nos sem estres de Inverno de 1776-7, de Verão de
1780 e de Inverno de 1 7 8 6 -7 .0 texto foi publicado origm alm ente por Rink,
em 1803, na casa de Friedrich Nicolavius, Königsberg. Apresente tradução
utilizou o texto publicado em W erke in zehn Bänden, editada por W ilhelm
Weischedel, W issenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1964, vol. 10,
pp. 697-761.

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Introdução

O homem é a única criatura que tem de ser educada. Por educação


compreendemos os cuidados (alim entação, subsistência), disciplina e
instrução juntam ente com a form ação. Por conseguinte, o homem é bebé -
educando - formando.

Os anim ais utilizam as suas forças de modo regular logo que as têm , quer
dizer, de modo a não serem prejudiciais a si próprios. É, com efeito, digno
de admiração ver como as crias das andorinhas, m al se arrastando para fora
do ovo e ainda cegas, nem por isso deixam de saber fazer os excrem entos
cair fora do ninho. Os anim ais não precisam , por isso, de cuidados, quando
m uito de alim ento, calor e orientação, ou de um a certa protecção. A m aioria
dos anim ais necessita de alim entação, m as não de cuidados. Por cuidados
entende-se a previdência dos pais para que as crias não façam um uso
prejudicial das suas forças. Se um anim al, por exemplo, gritasse ao vir ao
mundo, com o as crianças o fazem , tom ar-se-ia fatalm ente presa dos lobos e
de outros anim ais selvagens atraídos pelos seus gritos.

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A disdplina transform a a animalidade em humanidade. Um anim al é já
tudo m ediante o instinto; um a razão alheia já lhe dispensou tudo de que
ele precisa. O homem, porém, tem precisão de um a razão própria. Não tem
instinto e tem de se dotar do plano do seu com portam ento. Mas, porque não
está desde logo em condições de o fazer, antes vem ao mundo em estado
rude, assim outrem tem de o fazer por ele.

O género humano deve desenvolver todas as disposições naturais da


humanidade, gradualmente a partir de si, através do seu próprio esforço.
Uma geração educa a outra. Pode procurar-se o prim eiro com eço num
estado rude ou num estado perfeito, já formado. Se se supuser este últim o
como tendo existido prim eira e anteriorm ente, o homem tem de se ter
tom ado novam ente selvagem em seguida e resvalado para o estado m de.

A disciplina preserva o homem de se desviar, m ediante os seus impulsos


anim ais, da sua destinação - a humanidade. Tem de o lim itar, por exemplo,
para que não corra perigos de modo selvagem e irreflectido. A disciplina é,
pois, m eram ente negativa, a saber, a acção pela qual se remove o elem ento
selvagem do homem; a instrução é, pelo contrário, a parte positiva da
educação.

O elem ento selvagem é a independência das leis. A disciplina subm ete o


homem às leis da humanidade e com eça a fazer-lhe sentir a coacção das leis.

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Isto tem , contudo, de acontecer cedo. Assim, por exemplo, as crianças são
enviadas à escola, de início, não com o propósito de aprenderem lá alguma
coisa, mas para que se consigam habituar a estar sentadas em silêncio e a
observarem pontualm ente o que lhes é prescrito, para que no futuro não
possam tam bém pôr em prática, real e im ediatam ente, tudo o que lhes
passa pela cabeça.

O homem, contudo, tem por natureza um tão grande pendor para a


liberdade que, se a ela se tiver de início habituado durante algum tempo,
tudo lhe sacrifica. Justam ente por isso, deve-se lançar m ão da disciplina
desde m uito cedo, como já se disse, pois, se ta l não suceder, tom a-se
difícil m odificar o homem posteriorm ente. Passa a seguir cada um dos seus
caprichos. Pode-se tam bém observar isto nas nações selvagens que, ainda
que prestem serviços aos europeus durante um longo período de tempo,
nunca se habituam ao seu modo de vida. Mas nelas, isso não é um nobre
pendor para liberdade, com o o pretendiam Rousseau e outros, m as um certo
estado rude, na medida em que o anim al como que ainda não desenvolveu
em si a humanidade. Daí que o homem tenha de ser acostum ado desde
cedo a subm eter-se aos preceitos da razão. Quando é deixado entregue à sua
vontade na juventude e nada lhe opõe resistência, conservará então um a
certa disposição selvagem ao longo de toda a sua vida. E tam bém não o
ajuda ser poupado na juventude pela excessiva ternura m aterna, pois desse

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modo sentirá ainda m ais resistências de todos os lados e por toda a parte
sofrerá revezes, assim que entrar nos negócios do mundo.

É um erro com um na educação dos grandes que, logo na sua juventude,


nunca se lhes oponha realm ente nada, porque estão destinados a reinar. No
homem, por causa do seu pendor para a liberdade, é necessário lim ar o seu
estado rude; no anim al, pelo contrário, por causa do seu instinto, isso não é
necessário.

O homem necessita de cuidados e form ação. A form ação compreende


sob si disciplina e instrução. Nenhum anim al, tanto quanto se sabe,
necessita desta últim a. Pois destes nenhum aprende o que quer que seja
dos m ais velhos, com excepção das aves que aprendem o seu canto. Neste
caso, são ensinadas pelos m ais velhos, e é comovedor contemplar, quando,
como que num a escola, os m ais velhos cantam com todas as suas forças
para os m ais novos, e estes se esforçam por em itir os mesmos sons com as
suas pequenas goelas. Para se ficar convencido de que as aves não cantam
por instinto, m as que realm ente o aprendem, vale a pena o esforço de tirar
a prova, e retirar aos canários, por exemplo, m etade dos seus ovos e colocá-
los entre ovos de pardais, ou m isturar as crias de uns e outros. Coloque-se
estes assim m isturados num local onde não possam ouvir os pardais lá fora
e aprendem o canto dos canários, obtemos pardais cantantes. É, com efeito.

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motivo de grande admiração o facto de cada espécie de aves conservar, ao
longo de todas as gerações, um certo canto principal, e a tradição do canto é
a m ais fiel no mundo.

O hom em só se pode to m ar hom em através da educação. Nada m ais é


do que aquilo em que a educação o tom a. É de notar que o homem só pode
ser educado por hom ens, por hom ens que foram igualm ente educados. Daí
que a falta de disciplina e instrução em alguns hom ens os to m e maus
educadores dos seus educandos. Se um ser de género m ais elevado se
interessasse pela nossa educação, ver-se-ia o que o hom em poderia vir a
ser. Dado que, porém, a educação, em parte, ensina algo aos hom ens, em
parte, só desenvolve nele certas coisas: não se pode saber que extensão
alcançam em si as disposições naturais. Se se fizesse aqui, pelo menos,
um experim ento com o apoio dos grandes e através das forças unidas de
m uitos, obteríam os esclarecim entos acerca da extensão do que o homem
conseguiria porventura realizar. Mas é igualm ente tão im portante para a
cabeça especulativa com o um a nota triste para os filantropos ver como os
grandes só se preocupam, na m aioria dos casos, consigo e não tom am parte
no im portante experim ento da educação do género humano, de modo a que
a natureza desse um passo em frente, rum o à perfeição.

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Não existe ninguém que, desprovido de cuidados na sua juventude, não
veja por si, na idade madura, onde fo i negligenciado, seja na disciplina,
seja na cultura (como tam bém se pode designar a instrução). Quem não
é cultivado é rude, quem não é disciplinado é selvagem. O descuido da
disciplina é um m al m aior que o descuido da cultura, pois esta pode ser
recuperada posteriorm ente; o elem ento selvagem, porém, não pode ser
removido, e um engano na disciplina nunca pode ser reparado. Talvez
que a educação se tom e sempre m elhor e que cada geração subsequente
dê um passo em direcção ao aperfeiçoam ento da humanidade; pois, por
detrás da educação, aloja-se o grande segredo da perfeição da natureza
humana. De agora em diante, tal pode acontecer. Pois só agora se com eça a
avaliar correctam ente e a ver com nitidez o que pertence intrinsecam ente
a um a boa educação. É encantador im aginar que a natureza hum ana se
desenvolverá cada vez m elhor através da educação e que se pode levar esta
a um a form a que seja adequada à humanidade. Isto abre-nos o prospecto de
um género humano vindouro m ais feliz.

Um esboço de um a teoria da educação é um ideal m agnífico, e o facto de


ainda não estarm os em condições de o realizar não causa qualquer dano. É
necessário som ente não considerar a ideia como quim érica e não a difamar
como um belo sonho, por m ais obstáculos que surjam n a sua execução.

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Uma ideia nada m ais é que o conceito de um a perfeição que ainda não
se encontra na experiência. Por exemplo, a ideia de um a república perfeita,
governada segundo as regras da ju stiça! Será por isso impossível? Primeiro,
a nossa ideia tem de ser correcta e então, por m ais obstáculos que surjam
no cam inho da sua execução, não é de todo impossível. Se, por exemplo,
alguém m entisse, dizer a verdade passaria a ser um m ero capricho? E a ideia
de um a educação que desenvolva todas as disposições naturais no homem é,
sem dúvida, verdadeira.

Na educação actual, o homem não alcança a finalidade da sua existência.


Pois quão distintam ente vivem os hom ens! Só pode ter lugar um a
uniform idade entre eles, quando agirem segundo os m esm os princípios, e
estes princípios se tom arem para si outra natureza. Podemos trabalhar no
plano de um a educação m ais adequada e entregar os preceitos para tal aos
vindouros, que a podem realizar a pouco e pouco. Vê-se nas orelhas-de-urso,
por exemplo, quando as plantam os por estaca, que são de um a e m esm a
cor; quando as semeamos, pelo contrário, são de cores totalm ente diferentes
e variadas. A natureza colocou nelas, pois, os germes, e tudo depende de
serem devidamente semeadas ou plantadas para os desenvolverem em si. O
mesmo se passa com os homens!

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Existem m uitos germes na humanidade, e é tarefa nossa desenvolver
proporcionadamente as disposições naturais e desenvolver a humanidade
a partir dos seus germes e fazer que o homem alcance a sua destinação.
Os anim ais realizam -na por si e sem a conhecerem . O homem tem
prim eiro de procurar alcançá-la, m as tal não pode suceder, se não tiver
um conceito da sua destinação. É totalm ente impossível atingir tal
destinação, considerando apenas o indivíduo. Se supusermos um primeiro
casal humano realm ente formado, queremos ver com o educa ele os seus
educandos. Os prim eiros pais dão logo aos filhos um exemplo que os
filhos im itam , e assim desenvolvem-se algumas disposições naturais. Mas
nem todas podem ser form adas deste modo, pois é sobretudo em ocasiões
circunstanciais que os filhos vêem exemplos. Antigam ente, os hom ens não
tinham um conceito da perfeição que a natureza hum ana pode alcançar.
Nós próprios ainda não clarificám os totalm ente ta l conceito. Mas já se sabe
certam ente o suficiente para afirm ar que não é o homem individualm ente,
na form ação dos seus educandos, que pode levá-los a alcançarem a sua
destinação. Não é o hom em individualm ente, m as o género humano que
deve te r êxito nessa tarefa.

Educar é um a arte cujo exercício tem de ser aperfeiçoado através de


m uitas gerações. Cumulada com os conhecim entos dos que já passaram,
cada geração pode sempre levar a cabo, cada vez m ais, um a educação que

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desenvolva propordonadam ente e de modo conform e ao seu fim todas as
disposições naturais do homem, e assim conduzir todo o género humano à
sua destinação. A Providênda quis que o hom em deva sempre produzir o
bem a partir de si próprio e dirigiu-se, por assim dizer, ao homem: - vai para
o mundo - o Criador poderia porventura te r falado aos hom ens deste modo!
- Equipei-te com todas as disposições para o bem . Cabe-te desenvolvê-las e,
por isso, a tu a feliddade ou infelicidade depende de t i próprio.

O hom em deve desenvolver prim eiro as suas disposições para o bem ; a


Providênda não as colocou já prontas nele; são meras disposições e sem
a nota da moralidade. Tom ar-se m elhor, cultivar-se e, quando se é mau,
produzir em si a moralidade, isso é tarefa do homem. Mas, quando se
reflecte m aduramente sobre isso, descobre-se que tal é m uito difícil. Daí que
a educação seja o m aior e m ais difícil problema que pode ser confiado ao
homem. Pois o saber depende da educação, e a educação depende, por seu
turno, do saber. Daí que a educação tam bém só possa avançar a pouco e
pouco, e é apenas pelo facto de um a geração transm itir as suas experiências
e conhecim entos à seguinte, e esta acrescentar algo por sua vez e passá-
lo desse modo à seguinte, que pode em ergir um conceito correcto do modo
de educar. Que grande cultura e experiência não pressupõe este conceito?
Só podia nascer, por conseguinte, tardiam ente, e nós próprios ainda não o

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clarificám os inteiram ente. Deve a educação no indivíduo im itar a form ação
da humanidade em geral, ao longo das suas diferentes gerações?

Duas invenções dos hom ens podem ser consideradas como sendo as
m ais difíceis, a saber, a arte de governar e a arte de educar, e, no entanto, as
ideias de ambas ainda são controversas.

Desde quando começamos nós a desenvolver as disposições humanas?


Devemos com eçar de um estado rude ou de um já formado! É
difícil pensarm os um desenvolvimento a partir do estado rude (daí ser
tam bém tão difícil o conceito de prim eiro hom em ), e vemos que, num
desenvolvimento a partir de um tal estado, acaba-se por recair sempre no
estado rude e que só então se eleva outra vez para aquele estado que era
o objectivo prim eiro. Também em povos m uito civilizados, algum a coisa
encontram os, nos m ais antigos documentos escritos que deixaram - e
quantas culturas não pertencem já à escrita? de modo que, em referência
aos hom ens civilizados, poder-se-ia cham ar ao início da escrita o início do
mundo - que é um a forte delim itação do estado rude.

Posto que, nos hom ens, o desenvolvimento das disposições naturais não
ocorre por si, então toda a educação é um a arte. A natureza não depositou
nele nenhum instinto para tal. A origem bem com o a continuação desta arte
ou é m ecânica, sem plano, ordenada segundo as circunstâncias dadas, ou

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ju d iciosa. A arte da educação nasce m ecanicam ente nas m eras ocasiões que
vão surgindo, onde experim entam os se algo é prejudicial ou ú til ao homem.
Toda a arte da educação que brota de modo m eram ente m ecânico tem de
com portar em si m uitos erros e lacunas, porquanto não tem nenhum plano
na sua base. A arte da educação ou pedagogia tem de se tom ar, portanto,
judiciosa, se quiser desenvolver a natureza hum ana de tal modo, que esta
alcance a sua destinação. Os pais já educados são exemplos segundo os
quais os filhos se form am para se guiarem. Mas, se estes se devem tom ar
melhores, a pedagogia tem de se tom ar um a disciplina autónom a, senão
nada há a esperar dela, e alguém já estragado na educação educa outros
em vão. O m ecanism o na arte da educação deve transform ar-se em ciência,
senão nunca se tom ará um esforço com nexo, e um a geração poderia arrasar
o que outra já edificara.

Um princípio da arte da educação que os hom ens que fazem planos


para a educação deveriam ter presente é: as crianças devem ser educadas
não para o estado presente do género humano, m as para um estado futuro,
melhor, isto é, adequado à ideia de humanidade e à sua destinação integral.
Este princípio é de grande im portância. Os pais educam com um m ente os
seus filhos apenas de modo a que estes se adaptem ao mundo presente, por
m ais corrompido que possa estar. Deviam, porém, educá-los melhor, para

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que um estado futuro m elhor possa desse modo ser produzido. Mas aqui
deparamos com dois obstáculos:

1) É que os pais cuidam com um m ente apenas de que os seus filhos


vinguem no mundo, e 2) os príncipes consideram os seus súbditos apenas
como instrum entos dos seus propósitos.

Os pais cuidam do lar, os príncipes do Estado. Nem uns nem outros


têm como fim últim o a perfeição do mundo, e a perfeição a que está
destinada a humanidade e para a qual possui tam bém as disposições. As
disposições para um plano educativo têm de se to m ar cosm opolitas. E será
então a perfeição do mundo um a ideia que pode ser nociva ao nosso bem -
estar privado? Nunca! pois ainda que parecesse que nela algo teria de ser
sacrificado, não se estaria senão a fom entar, através dela, a m elhoria do seu
estado presente. E que m agníficas consequências as acom panham então!
Uma boa educação é justam ente aquilo donde brota todo o bem no mundo!
É necessário som ente desenvolver cada vez m ais os germes que residem
no homem. Pois os fundam entos do m al não se encontram nas disposições
naturais do homem. A causa do m al é som ente o não se subm eter a natureza
a regras. No homem residem apenas germes para o bem.

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Mas donde deve provir o estado m elhor do mundo? Dos príncipes ou
dos súbditos? a saber, que apenas estes se aperfeiçoem e vão ao encontro,
a m eio cam inho, de um bom governo? Se tal houver de ser fundado pelos
príncipes, a educação dos príncipes tem de ser prim eiro melhorada, esta
incorreu sempre no grande erro, ao longo de um vasto período de tempo,
de não se lhes oferecer resistência na sua juventude. Uma árvore, porém,
que se ergue isoladam ente no campo cresce retorcida e estende os seus
ramos bem longe; um a árvore, pelo contrário, que esteja no m eio de um a
floresta, dado que as árvores em seu redor lhe oferecem resistência, cresce
a direito, e procura ar e sol acim a de si. O mesmo se passa com os príncipes.
É ainda melhor, porém, que sejam educados por alguém do número dos
súbditos que serem educados por algum dos seus pares: só podemos esperar
que o bem venha de cim a no caso da educação ser ali m ais aprimorada!
Daí que o im portante aqui seja prindpalm ente os esforços privados e não
a intervenção dos príncipes, como o pretendiam Basedow ( ’) e outros, pois
a experiência ensina que aqueles, a fim de alcançarem os seus fins, têm
como propósito não tanto a perfeição do mundo quanto apenas o bem do
seu Estado. Além de que, se forem eles a contribuir com o dinheiro para tal,
os planos terão tam bém de ficar sujeitos ao seu parecer. E assim acontece
em tudo o que respeita à form ação do espírito humano, ao alargamento
dos conhecim entos humanos. O poder e o dinheiro não o realizam , quando

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m uito fadlitam -no. Mas poderiam realizá-lo, se a econom ia do Estado não
capitalizasse de antem ão os im postos para os cofres do reino. Também as
academias não o fizeram até ao presente, e que ainda o venham a fazer,
sobre isso nunca houve m enos ilusões que actualm ente.

A instituição de escolas, por conseguinte, devia tam bém depender


m eram ente do juízo dos conhecedores m ais esclarecidos. Toda a cultura
com eça no hom em privado e dissem ina-se a partir dele. A aproximação
gradual da natureza hum ana à sua finalidade é possível som ente através
do esforço de pessoas de inclinações m ais amplas que se interessam pela
perfeição do mundo e são capazes da ideia de um estado futuro m elhor. Mais
do que um dos grandes considera, por vezes, porém, a dimensão variada
do seu povo como que apenas um a parte do reino da natureza, e tam bém
tem em m ira, portanto, apenas o facto de ser propagada. Quando muito
continua a requer-se habilidade, m as apenas para os súbditos poderem ser
tanto m ais bem usados com o instrum entos para os seus propósitos. Os
hom ens privados têm , claro está, de ter em vista, em prim eiro lugar, os
fins da natureza, m as então têm tam bém de aspirar ao desenvolvimento da
humanidade e velar para que esta se tom e não som ente hábil como tam bém
m oral, e, o que é m ais difícil, de procurar levar a sua descendência m ais
além do ponto a que eles próprios chegaram.

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Na educação, o homem tem de ser 1) disciplinado. Disciplinar significa
procurar im pedir que a animalidade prejudique a humanidade, tanto no
homem individual como no social. A disciplina é, pois, a m era doma da
condição selvagem.

2) O homem tem de ser cultivado. Por cultura entende-se o ensino e a


instrução. Obtém-se assim aptidões. Esta é a posse de um a capacidade que
basta a todas e quaisquer finalidades. Não determ ina, portanto, nenhum
fim , m as deixa isso por conta das circunstâncias posteriores.

Algumas aptidões são boas em todos os casos, por exemplo, ler e


escrever; outras apenas para alguns fins, por exemplo, a m úsica para nos
tom arm os populares. Por causa da grande quantidade de fins, a aptidão não
tem de certo modo term o.

3) Tem de se velar para que o homem tam bém se to m e prudente, se


ajuste à sociedade humana, que seja popular e tenha influência. A tal
pertence um a certa espécie de cultura que se designa por civilizar. Para tal
requer-se m aneiras, amabilidade e um a certa pm dênda segundo a qual se
pode usar todos os hom ens para os seus fins últim os. Aquela pauta-se pelo

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gosto m utável de qualquer época. Assim, ainda há algumas décadas eram
apreciadas cerim ónias no trato.

4) Tem de se velar pela m oralização. O hom em não deve estar apto pura
sim plesm ente a todos os fins, m as deve tam bém ser dotado de consciência,
de molde a eleger de preferência apenas bons fins. Fins bons são aqueles
que são necessariam ente aprovados por todo o homem e que podem ser
sim ultaneam ente os fins de cada qual.

O hom em pode ser ou m eram ente adestrado, amestrado, instruído


m ecanicam ente, ou ser realm ente esclarecido. Adestra-se cães, cavalos, e
tam bém se pode adestrar homens.

Com o adestram ento, porém, ainda não se esgota a educação, o


im portante é prindpalm ente que as crianças aprendam a pensar. Isso leva-
nos aos princípios donde brotam todas as acções. Vê-se, portanto, que há
m uito a fazer num a educação genuína. Habitualm ente, porém, na educação
privada exerdta-se ainda pouco a quarta parte, a m ais im portante, pois
educa-se os filhos essencialm ente de tal modo, que a moralização é deixada

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por conta dos clérigos. Mas quão infinitam ente im portante não é ensinar
os filhos a aborrecerem o vício desde a juventude, não apenas pela razão de
Deus o te r justam ente proibido, mas sim porque é digno de aborrecim ento
em si próprio. No caso contrário, chegam facilm ente ao pensam ento de
que o poderiam praticar a seu bel-prazer e, aliás, seria de facto permitido,
se Deus o não tivesse proibido, e que Deus poderia, por isso, abrir um a
excepção só por um a vez. Deus é o ser m ais sagrado e só quer aquilo que é
bom , e exige que devamos praticar a virtude apenas por causa do seu valor
íntim o, e não porque ele o exija.

Vivemos na época da disciplinização, da cultura e da civilização, mas


estam os m uito longe de viver n a época da moralização. No estado actual do
homem, pode dizer-se que a felicidade dos Estados cresce em sim ultâneo
com a m iséria dos hom ens. E há ainda a questão de saber se nós no estado
rude, dado que não se encontraria em nós toda esta cultura, não seríam os
m ais felizes que no nosso estado actual. Pois como podemos fazer o homem
feliz, se não o tom arm os m oral e sábio? Em caso contrário, a quantidade do
m al não se reduzirá.

Em prim eiro lugar, tem de se institu ir escolas experim entais, antes de


se poder institu ir escolas norm ais. A educação e a instrução não podem
ser m eram ente m ecânicas, têm antes de assentar em princípios. Mas não

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podem ser um m ero arrazoado, devem ser, de certa m aneira, tam bém um
m ecanism o. Na Áustria havia m aioritariam ente escolas norm ais que foram
edificadas segundo um plano, contra o qual m uito se disse, e com razão, e
ao qual se poderia censurar, em particular, o m ecanism o cego(*). Todas as
outras escolas tinham de se regular por estas, e chegava-se ao pondo de
recusar emprego a pessoas que não tivessem frequentado estas escolas. Tais
preceitos m ostram o elevado grau em que o governo se im iscui nisto, e, com
um tal constrangim ento, é de facto impossível que m edre algo de bom.

Im agina-se com um m ente que não seriam precisos experim entos na


educação e que se poderia ajuizar directam ente a partir da razão se
algo será bom ou não. Mas aqui há m uitos enganos, e a experiência
ensina que se m ostram com frequência, nas nossas tentativas, efeitos
diam etralm ente opostos aos que se esperava. Vê-se, portanto, que, no
atinente aos experim entos, nenhum a época hum ana pode apresentar um
plano educativo completo. A única escola experim ental que de certo modo
com eçou a desbravar cam inho foi o instituto de Dessau. Cabe-lhe essa
honra, sem atender aos m uitos erros que se lhe poderia censurar; erros que
se encontram em todas as conclusões que se extraem de tentativas - é que
lhe são sempre inerentes novas tentativas. De certo modo, fo i a única escola
em que os professores tinham a liberdade de trabalhar segundo métodos

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e planos próprios, e onde estavam em ligação entre si, como tam bém com
todos os eruditos na Alemanha.

A educação encerra em si cu idado e fo rm a çã o . Esta é 1) negativa, a


disciplina que impede os m eros erros; 2) positiva, a instrução e orientação,
e nesta medida faz parte da cultura. O rientação é a condução na prática
daquilo que se aprendeu. Daí que se gere um a distinção entre instrutor, que
é um m ero professor e preceptor, que é um guia. Aquele educa m eram ente
para a escola, este para a vida.

A prim eira época no educando é aquela em que tem de dar provas


de subm issão e obediência passivas; a outra, aquela em que lhe deve ser
perm itido fazer já um uso da reflexão e da sua liberdade, claro que sob leis.
Na prim eira, trata-se de um a coacção m ecânica, na segunda, moral.

A educação ou é um a educação p riv ad a ou pública. A últim a diz respeito


som ente à inform ação e pode perm anecer sempre pública. O exercício dos
preceitos fica entregue à prim eira. Uma educação pública com pleta é aquela
que une ambas: instrução e form ação moral. A sua finalidade é: promoção
de um a boa educação privada. Uma escola onde tal ocorre designa-se por

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instituto educativo. Tais institutos não podem ser numerosos, e o número
de educandos neles não pode ser grande, porquanto são m uito dispendiosos
e a sua m era edificação requer desde logo m uito dinheiro. Passa-se com eles
o mesmo que se passa com os asilos e hospitais. Os edifícios requeridos
para isso, os salários dos directores, bedéis e contínuos levam logo metade
do dinheiro que lhes estava destinado e é certo que, se se rem etesse este
dinheiro aos pobres nas suas casas, eles seriam m uito m ais bem tratados.
Daí que seja igualm ente difícil que outras crianças além das de pessoas ricas
possam frequentar esses institutos.

A finalidade de tais institutos públicos é o aperfeiçoam ento da educação


dom éstica. Som ente se os pais, ou outros que são seus auxiliares na
educação, fossem bem-educados, poderia ser suprimida a despesa dos
institutos públicos. Neles deve-se proceder a tentativas para a form ação de
sujeitos, e assim deve brotar deles um a boa educação doméstica.

Da educação privada cuidam ou os próprios pais ou, se estes às vezes não


tiverem tem po, capacidade ou tam bém se não encontrarem prazer nisso,
outras pessoas que são auxiliares assalariados. Na educação m ediantes
estes auxiliares dá-se a circunstância m uito m elindrosa de a autoridade
estar repartida entre os pais e estes preceptores. A criança deve regular-se
pelas prescrições dos preceptores e depois seguir novam ente os caprichos

26
dos pais. É necessário que num a tal educação os pais cedam toda a sua
autoridade aos preceptores.

Em que medida, porém, deve a educação privada te r a prim azia perante


a pública, ou vice-versa? Em geral parece, porém, que a educação pública
é m ais vantajosa que a educação dom éstica, não m eram ente do lado das
aptidões, com o tam bém no atinente ao carácter de um cidadão. A últim a
não só produz erros de fam ília como tam bém os propaga.

Mas quanto tem po deve a educação durar? Até à época em que a própria
natureza determ ina o homem a conduzir-se a si próprio, até que o instinto
para o sexo se desenvolva nele, até que ele possa ser pai e deva ele próprio
educar - aproximadamente, até aos dezasseis anos. Depois desta idade, bem
se pode utilizar os expedientes da cultura e exercer um a disciplina oculta,
mas já não se educa com a necessária regularidade.

A submissão do educando ou é positiva, quando faz o que lhe é prescrito,


porquanto não pode julgar por si próprio e ainda persiste nele a mera
capacidade de im itação, ou é negativa, quando faz o que os outros querem,
se quiser que os outros lhe devam fazer, por seu turno, algo do seu agrado.
Na prim eira, intervém o castigo, na outra, que não se faça o que ele quer; é
que ele é aqui, pese em bora o facto de já poder pensar, dependente no seu
contentam ento.

27
Um dos m aiores problemas da educação é saber com o se pode unir a
sujeição sob a coacção de leis com a capacidade de se servir da sua liberdade.
Pois é necessário que h aja coacção! Como cultivo eu a liberdade na coacção?
Devo habituar o meu educando a tolerar um a coacção da sua liberdade e
devo levá-lo sim ultaneam ente a fazer um bom uso da sua liberdade. Sem
isto, tudo é m ero m ecanism o, e aquele que completou a sua educação não
se sabe servir da sua liberdade. Tem de sentir m uito cedo a inevitável
resistência da sociedade, para se fam iliarizar a passar pela dificuldade de se
sustentar e de adquirir o necessário à sua independência.

Deve-se observar aqui o seguinte: 1) que se deixe a criança em liberdade,


desde a m ais tem a infância, em todos os aspectos (com a excepção das
coisas com as quais se pode magoar, por exemplo, ao agarrar um a faca
afiada), se tal não suceder de modo a que esteja no cam inho da liberdade
de outrem, por exemplo, quando grita ou quando está ruidosam ente alegre,
isso incom oda desde logo os outros. 2) tem de se lhe m ostrar que não
poderia alcançar os seus fins de outro modo, senão perm itindo que os
outros alcancem os deles, por exemplo, que não se lhe dê prazer nenhum,
quando não faz aquilo que se quer, que ele deve aprender, etc. 3) tem de se
lhe provar que se lhe inflige um a coacção que o conduz ao uso da sua própria
liberdade, que se o cultiva, para que um dia possa ser livre, quer dizer, não
tenha de estar dependente do cuidado de outrem. Esta últim a coisa é a m ais

28
tardia. Pois, nas crianças, a consideração de que, por exemplo, têm de cuidar
do seu sustento só surge tardiam ente. Julgam que as coisas serão sempre
como na casa dos pais, onde têm de com er e beber, sem que tenham de
se preocupar com isso. Sem aquele tratam ento, as crianças, em particular
as de pais ricos e os filhos de príncipes, bem com o os habitantes do Taiti,
continuam a ser crianças durante toda a sua vida. É aqui que a educação
pública tem as suas vantagens m ais evidentes, pois nela aprende-se a m edir
as suas forças, aprende-se as suas lim itações através do direito dos outros.
Aqui não gozamos de vantagens, porquanto sentim os resistência por toda
a parte e porque é som ente através desta que nos tom am os cientes de que
só nos distinguim os pelo m érito. Tal apresenta o m elhor modelo do futuro
cidadão.

Mas aqui tem de se pensar ainda noutra dificuldade, que consiste em


antecipar o conhecim ento do sexo, a fim de protegê-las dos vícios, mesmo
antes da entrada na puberdade. Mas disso tratar-se-á m ais à frente.)*(

(*) Johann Bernard Basedow (1723-90), filho de um peruqueiro de Hamburgo, estudou


Teologia em Leipzig. Desempenhou funções educativas em várias instituições. Depois de ter
visto a sua obra Philalethie proibida, dedicou-se à reforma do ensino. Em 1771, foi chamado
pelo príncipe de Anhalt-Dessau para apoiar a sua reforma pedagógica. É em Dessau que, em
1774, funda a Filantropa de Dessau, escola experimental, onde procura pôr em prática as

29
concepções pedagógicas expostas na sua obra principal, publicada em 1769, Elementarwerk.
(N . T )

(-) Kant refere-se ao regulam ento escolar de Johann Ignaz von Felbiger (1 7 2 4 -8 8 ), de 1774.
Felbiger estudou Teologia em Breslau, foi preceptor privado e ordenado Padre em 1 7 4 8 . Em
1774 foi cham ado a Viena pela Im peratriz Maria Teresa e nom eado Comissário Geral da
Educação para todas as regiões alem ãs do Im pério. A prim eira escola norm al austríaca foi
fundada em 1 7 7 1 . (N. 7 )

30
Dissertação

A pedagogia, ou doutrina da educação, ou é fís ic a ou é p rática. A


educação fís ic a é aquela que o homem tem em com um com o anim al, ou
cuidado. A educação p rática ou m oral é aquela através da qual o homem
deve ser formado, para que possa viver como um ser que age livremente.
(Designamos por prático tudo aquilo que se relaciona com a liberdade.) Esta
é educação para a personalidade, educação de um ser que age livrem ente,
que se pode sustentar a si próprio e constitui um membro da sociedade, mas
que pode te r um valor interior por si próprio.

A educação consiste, por conseguinte, 1) na form ação escolástico-


m ecânica, em atenção à aptidão; é portanto did áctica (instrutor), 2) na
form ação pragm ática, em atenção à prudência (preceptor), 3) na form ação
m oral, em atenção aos costumes.

O ser humano tem necessidade de um a form ação escolástica ou de


instrução, a fim de se to m ar apto à prossecução de todos os seus fins. Esta

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confere-lhe um valor em atenção a si próprio enquanto indivíduo. Através
da form ação para a pru dên cia, porém, é formado para cidadão, adquire
então um valor público. Aprende então tanto a dirigir a sociedade civil para
as suas intenções com o a adaptar-se à sociedade civil. Por fim , m ediante a
form ação m oral, recebe um valor em atenção a todo o género humano.

A form ação escolástica é m ais tem porã e a prim eira. Pois toda a
prudência pressupõe a aptidão. Prudência é a faculdade de usar a sua
aptidão de modo a que aproveite aos outros. A form ação m oral, na medida
em que assenta em princípios que o próprio hom em deve reconhecer, é a
m ais tardia; conquanto assente apenas no são entendim ento humano, tem
de ser observada de início, desde logo na educação física tam bém , pois, em
caso contrário, arreigam -se facilm ente erros em que toda a arte da educação
labora posteriorm ente debalde. Em atenção à aptidão e à prudência tudo
tem de ir sucedendo com os anos. Na infância, ser hábil, prudente e de boa
índole, sem m atreirice, à m aneira dos adultos, serve de tão pouco como um a
m entalidade infantil num adulto.

32
Da educação física

Sendo certo que aqueles que se encarregam da educação enquanto


preceptores não se ocupam das crianças tão cedo, de modo a poderem
cuidar tam bém da sua educação física, não deixa de ser ú til saber tudo
aquilo que se deve necessariam ente observar na educação desde o seu início
até ao seu term o. Mesmo que se lide, enquanto preceptor, apenas com
crianças crescidas, pode m uito bem acontecer que nasçam novas crianças
na casa e, se aquele se conduziu bem , tem sempre pretensões a ser da
confiança dos pais e de ser tam bém consultado por estes sobre a educação
física delas, dado que, além disso, é frequentem ente a única pessoa com
form ação na casa. Daí que tam bém sejam necessários a um preceptor
conhecim entos daquela.

Na realidade, a educação física consiste apenas em cuidados, ou dos


pais ou de amas ou de aias. O alim ento que a natureza determ inou à
criança é o leite m aterno. Que a criança sorva com ele as suas convicções,
como se ouve dizer com frequência: já m am aste isso com o leite m aterno!

33
é um m ero preconceito. É m ais benéfico à m ãe e ao filho que a própria
m ãe am am ente. É claro que, em casos extrem os, h aja excepções a isto, por
motivos de doença. Há m uito tem po, acreditava-se que o prim eiro leite que
se encontra na m ãe depois do parto e é seroso seria prejudicial à criança, e
que a m ãe teria de o expelir prim eiro, antes de poder am am entar o filho. Foi
R ousseau o prim eiro a cham ar a atenção dos médicos para o facto de este
leite poder ser benéfico à criança, já que a natureza nada dispôs em vão.
E tam bém se chegou realm ente à opinião de que este leite seria o m elhor
para expelir as impurezas, que se encontram nos recém -nascidos, que os
médicos designam como m ecónio, e que, portanto, seria altam ente benéfico
às crianças.

Levantou-se a questão de saber se se poderia alim entar a criança


igualm ente bem com leite anim al. O leite humano é bastante diferente do
anim al. O leite de todos os herbívoros, dos anim ais que vivem de vegetais,
coalha m uito rapidam ente, quando se lhe adiciona um pouco de ácido,
por exemplo, vinagre, ou sumo de lim ão, ou particularm ente o ácido do
estômago dos vitelos que se cham a coalho. O leite humano, porém, não
coalha de modo nenhum . Mas, se a mãe ou as amas só com erem refeições
de vegetais durante alguns dias, o leite delas coalhará tão bem com o o leite
de vaca, etc., m as, se só comerem refeições de cam e durante algum tempo,
o leite delas volta a ser tão bom com o anteriorm ente. Daqui concluiu-se que

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seria melhor, e m ais benéfico à criança, que a m ãe ou as amas comessem
carne durante o período de amamentação. Pois, quando as crianças bolçam
o leite, vê-se que coalhou. Os ácidos do estômago das crianças têm de
fom entar ainda m ais que os outros ácidos o coalhar do leite, porque o leite
humano não pode ser levado a coalhar de nenhum outro modo. Quão pior
seria, portanto, se se desse à criança leite que já coalha por si. Mas que isto
não é tudo o que im porta vê-se nas outras nações. Os Tungueses(*), por
exemplo, quase nada m ais com em a não ser carne, e são pessoas fortes e
saudáveis. Todos esses povos, contudo, tam bém não vivem m uito tempo,
e pode-se levantar no ar com pouco esforço um rapaz já crescido que não
dá a ideia de ser m uito leve. Os suecos, ao invés, mas principalm ente as
nações nas índias, quase não com em cam e de todo e, no entanto, as pessoas
desenvolvem-se bem . Parece, portanto, que o im portante é sim plesm ente
aquilo a que as amas se adaptam e que o m elhor alim ento é aquele que lhes
cai bem .

Mas pergunta-se então: com que se alim enta a criança, quando o leite
m aterno cessar? Desde há algum tem po experim entou-se todo o tipo
de papas. Não é bom , porém, alim entar a criança desde logo com tais
refeições. Em particular, é de sublinhar que não se dê às crianças nada de
estim ulante, com o vinho, especiarias, sal, etc. Mas é, sem dúvida, singular
que as crianças tenham um tão grande desejo por todas as coisas desse

35
género! A causa disso reside no facto de ta l proporcionar um estím ulo e
um a anim ação às suas sensações ainda embotadas, o que lhes é agradável.
As crianças, na Rússia, recebem , claro que das suas m ães, aguardente, que
estas bebem com assiduidade, e coisas do género, e nota-se que nisso os
russos são pessoas sadias, fortes. É claro que aquelas que resistem a isso são
de boa constituição física; m as tam bém m orrem m uitas que bem podiam
te r sobrevivido. Pois um ta l estím ulo precoce nos nervos produz m uitas
desordens. Até das refeições ou bebidas demasiado quentes tem os de
guardar cuidadosamente as crianças, pois tam bém elas causam fraquezas.

Além disso, deve-se notar que as crianças não devem ser m antidas muito
quentes, pois o seu sangue já é em si m uito m ais quente que o de um
adulto. O calor do sangue nas crianças m onta, em term óm etros Fahrenheit,
a 110«, e o sangue do adulto apenas a 96a graus. A criança sufoca no
calor em que os m ais velhos se sentem bem . Aposentos frescos tom am em
geral as pessoas m ais fortes. E tam bém não é bom nos adultos vestirem -se,
agasalharem -se em excesso, e habituarem -se a bebidas demasiado quentes.
Daí que a criança deva te r um local fresco e rigoroso. Também os banhos
frios são bons. Não se deve adm itir nenhum m eio para estim ular o apetite
nas crianças, antes este deve ser sempre a consequência da actividade e da
ocupação. Não se deve, porém, deixar que a criança se habitue a nada que

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acabe por se lhe to m ar um a necessidade. Até m esm o coisas boas não se lhe
devem tom ar um hábito através da arte.

Os cueiros quase não se encontram em povos rudes. As nações selvagens


na América, por exemplo, escavam buracos na terra para os seus filhos
pequenos, espargem-nas com pó de árvores podres, para absorverem a
urina e as impurezas da criança, e assim as crianças podem perm anecer
enxutas, e cobrem -nas com folhas; no resto perm item -lhes um livre uso dos
seus membros. É tam bém apenas comodismo da nossa parte enfaixar as
crianças com o múmias, para não sermos obrigados a te r cautelas para que
a criança não fique deformada, o que acaba frequentem ente por suceder,
contudo, com os cueiros. Também é pavoroso para as próprias crianças não
poderem utilizar os seus m embros, e por isso caem num certo desespero.
E então pretendemos calar a sua gritaria com meras admoestações. Mas
enfaixe-se um homem adulto um a só vez, e veja-se então se ele não gritará e
não com eçará a angustiar-se e a desesperar.

É de notar em geral que a prim eira educação deverá ser m eram ente
negativa, quer dizer, não é necessário acrescentar nada de novo, nem um a
só coisa, à providência da natureza, m as perm itir apenas que a natureza
não estorve. Se alguma arte for perm itida na educação só pode ser a do
fortalecim ento. Também por isso é de rejeitar os cueiros. Se se quiser

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observar, no entanto, alguma precaução, o m ais adequado é um a espécie
de caixa m unida na parte de cim a com correias. Os italianos usam -na e
cham am -lhe arcuccio. A criança perm anece sempre nesta caixinha e é lá
colocada para a am am entação. Assim, fica protegida, de modo a que, ainda
que a mãe adormeça à noite enquanto am am enta, a criança, porém, não
possa ser esmagada a ponto de morrer. Entre nós, todavia, m orrem m uitas
crianças desta m aneira. Esta precaução é, portanto, m elhor que os cueiros,
pois as crianças têm aí m ais liberdade e protegem -se das deformações; ao
passo que se tom am disform es m uitas vezes através dos próprios cueiros.

Um outro hábito na prim eira educação é o em balar. A m aneira m ais


fácil é aquela de que alguns camponeses se servem. Penduram o berço por
um cabo num a trave, e, portanto, só é preciso darem o prim eiro empurrão
para que ele balance por si próprio de um lado para o outro. O embalar,
porém, para nada serve. Pois o ir e vir do balanço é prejudicial à criança.
Vê-se até em pessoas crescidas que o baloiçar produz um m ovim ento que
conduz ao vóm ito e às tonturas. O objectivo é entorpecer as crianças
para que elas não gritem . Mas gritar é saudável para as crianças. Assim
que saem do ventre m aterno, onde não fruem de qualquer ar, inspiram o
prim eiro ar. A circulação do sangue, modificada desse modo, produz um a
sensação dolorosa. Através dos gritos, porém, a criança desenvolve tanto
m elhor os com ponentes internos e os canais do seu corpo. Acorrer logo

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em ajuda da criança, quando ela grita, cantar-lhe qualquer coisa, com o é
hábito das amas, ou fazer qualquer desse género, é m uito prejudicial. Isso
é habitualm ente a prim eira coisa a estragar a criança, pois, ao ver que tudo
acorre ao seu cham am ento, repete os seus gritos com m ais frequência.

Bem se pode dizer com verdade que as crianças das pessoas com uns são
m ais estragadas com mimos do que as das pessoas distintas. Pois as pessoas
com uns brincam com elas como com m acacos. Cantam-lhes, acariciam -
nas, beijam -nas, dançam com elas. Pensam fazer algo de bom à criança,
quando, logo que ela grita, acorrem a brincar com ela, etc. Mas assim gritam
m ais frequentem ente. Se, pelo contrário, não nos voltarm os ao seu choro,
acabam por parar de chorar. Pois nenhum a criatura se dá a trabalhos vãos.
Se as habituarm os, contudo, a verem todos os seus caprichos satisfeitos,
o quebrar da vontade chega depois demasiado tarde. Mas se as deixarmos
gritar, acabam por se fartar. Se satisfizerm os, na prim eira infância, porém,
todos os seus caprichos, estragam os-lhes o coração e os costum es.

É claro que a criança ainda não tem um conceito de costum es, mas
estraga-se-lhe as suas disposições naturais pelo facto de se te r de aplicar
castigos m uito duros depois, a fim de reparar os estragos. Depois, quando
se quer desabituá-las de nos apressarmos às suas exigências, as crianças
m anifestam um a fúria tão grande nos seus gritos de que apenas os adultos

39
são capazes, só que àquelas faltam as forças para passar a vias de facto.
Enquanto só tiverem de cham ar para que tudo em seu redor lhes acorra,
dominam, por conseguinte, despoticam ente. Ora, quando esta dominação
cessa, aborrecem -se com isso naturalm ente. Pois até a grandes hom ens que
tenham detido um poder, durante algum tem po, lhes custa sempre muito
desabituarem -se rapidam ente dele.

As crianças não conseguem ver correctam ente nos prim eiros tem pos,
aproximadamente nos três prim eiros meses. É certo que têm a sensação
da luz, m as não distinguem os objectos entre si. Podemos veriíicá-lo da
seguinte m aneira: se lhes pusermos algo brilhante à frente, não o seguem
com os olhos. Com a visão dá-se tam bém a faculdade de rir e chorar. Quando
a criança chega então a este estado, chora reflectidam ente porque não
está tão escuro com o queria. Significa sempre, então, que se lhe provocou
algum sofrim ento. Rousseau diz que se se bater n a m ão de um a criança
de aproximadamente seis m eses, ela grita tanto com o se lhe tivesse caído
um tição nas mãos(-). A isto já se liga realm ente o conceito de ofensa. Os
pais m uito falam ordinariam ente do quebrar da vontade nas crianças. Não
é necessário quebrar-lhes a vontade, se ela não tiver sido anteriorm ente
estragada. O prim eiro estrago, contudo, consiste em anuirm os à vontade
despótica das crianças, ao deixarm os que elas consigam tudo o que querem
com base na gritaria. Além de que é extrem am ente difícil reparar isso

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depois, e raram ente se tem êxito. Pode-se conseguir, com efeito, que a
criança fique calada, m as ela engole a bílis em si e nutre um a fu ria interior
tanto maior. Habitua-se assim a criança à dissim ulação e a movim entos
interiores do ânim o. É m uito estranho, por isso, que, por exemplo, os
pais exijam que as crianças, depois de terem apanhado com o açoite, lhes
beijem as mãos. Desse modo habituam o-las à dissim ulação e à falsidade.
Pois o açoite não é precisam ente um presente assim tão belo que se fique
agradecido por ele, e facilm ente se im agina com que coração a criança
beijará um a tal mão.

Servimo-nos habitualm ente, para ensinar as crianças a andar, de


an dadeiras e an darilhos. Mas é surpreendente que se queira ensinar as
crianças a andar, com o se algum a pessoa tivesse ficado sem o saber por falta
de lições. As andadeiras, em particular, são m uito prejudiciais. Um escritor
queixou-se outrora de crises de falta de ar que atribuía pura e sim plesm ente
às andadeiras. Pois, dado que um a criança agarra tudo e apanha tudo do
chão, debruça-se com o peito sobre a andadeira. Mas, dado que o peito
ainda é mole, é pressionado até ficar chato e acaba por conservar depois
esta form a. As crianças tam bém não aprendem a andar tão seguramente
com estes m eios como se o aprendessem por si próprias. O m elhor é deixá-
las gatinhar no chão, até que com ecem a pouco e pouco a andar por si.

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Por precaução, pode-se equipar o aposento com tapetes de lã, para que não
espetem picos e tam bém não caiam tão duramente.

Diz-se vulgarm ente que as crianças caem m uito pesadam ente. Mas, além
de nem sequer poderem cair pesadam ente, não lhes vem grande m al por
caírem um a vez por outra. Aprendem a distribuir m elhor o peso e a virarem -
se de modo a que a queda não lhes faça mal. Também se lhes coloca amiúde
o chamado gorro acolchoado, tão proem inente que a criança nunca pode
cair de cara no chão. Mas isto é apenas um a educação negativa, empregando
m eios artificiais quando a criança os tem naturais. Os instrum entos
naturais são aqui as mãos que a criança, ao cair, põe logo à frente. Quantos
m ais instrum entos artificiais se usar, m ais dependente de utensílios se
to m a o homem.

Em geral, seria m elhor se se usasse, de início, poucos utensílios e se


deixasse as crianças aprenderem m ais por si, poderiam então aprender
poucas coisas, mas m uito m ais fundam entadam ente. Assim, seria bem
possível, por exemplo, que a criança aprendesse por si a escrever. Pois
alguém inventou a escrita em algum m omento, e tam bém não é um a
invenção assim tão grande. Seria necessário som ente, por exemplo, quando
a criança quer pão, dizer: consegues desenhá-lo? A criança desenharia então
um a figura oval. Então dir-se-lhe-ia que não se sabe se ela representou um

42
pão ou um a pedra: então tentaria em seguida desenhar o P, etc. e assim a
criança inventaria para si o seu próprio ABC, que depois só teria de trocar
por outros sinais.

Algumas crianças vêm ao mundo com aleijões. Não se tem m eios para
corrigir novam ente esta figura defeituosa, como que estragada? Chegou-
se à opinião, m ediante os esforços de m uitos e sábios escritores, de que os
espartilhos de nada servem aqui, pelo contrário, ainda aum entam o mal,
na medida em que obstam à circulação do sangue e dos humores, bem
como à altam ente necessária expansão das partes internas e externas do
corpo. Quando se deixa a criança à vontade, ela exercita m ais o seu corpo,
e um hom em que usa um espartilho, estará, quando o tirar, m uito m ais
fraco que outro que nunca o tenha posto. Pode-se talvez ajudar aqueles que
nasceram com aleijões, colocando m ais peso no lado em que os músculos
são m ais robustos. Mas isto tam bém é m uito perigoso: pois que homem
pode estipular o equilíbrio? O m elhor é que a criança se exercite a si m esm a
e adquira um a posição, ainda que lhe seja custosa, pois aqui nenhum a
m áquina rem edeia a coisa.

Todos os aparelhos artificiais desse género são tanto m ais prejudiciais


quanto vão ao arrepio da finalidade da natureza num ser organizado,
racional, ao qual, por conseguinte, deve assistir a liberdade de aprender

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a utilizar as suas forças. Na educação, deve-se im pedir som ente que as
crianças se tom em m oles. E o fortalecim ento é o oposto da moleza. É
arriscar demasiado querer habituar a criança a tudo. A educação dos Russos
vai m uito longe a este respeito. Mas, por isso, m orre um inacreditável
número de crianças. A habituação, através de um a repetição m ais frequente
do m esm o gozo ou acção, tom a-se em necessidade do gozo ou da acção. A
nada as crianças se habituam m ais facilm ente e nada se deve dar menos
às crianças do que coisas estim ulantes, por exemplo, tabaco, aguardente e
bebidas quentes. A desabituação depois é m uito difícil e, de início, im plica
queixas, porque através do prazer m ais frequente ocorreu um a modificação
nas funções do nosso corpo.

Quanto m ais hábitos um hom em tem , m enos livre e independente é.


Sucede ao hom em o m esm o que a todos os outros anim ais: acaba por lhe
ficar um certo pendor para aquilo a que cedo se habituou. Deve-se impedir,
por isso, que a criança contraia habituações; não se pode perm itir que nasça
nela um a habituação.

Muitos pais querem que os seus filhos se acostum em a tudo. Isto, porém,
de nada serve. Pois a natureza hum ana em geral, e em parte a própria
natureza do sujeito individual, não lhe perm ite habituar-se a tudo, e m uitas
crianças quedam-se pelas prim eiras lições. Assim, querem, por exemplo,

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que as crianças durmam e se levantem a qualquer altura do dia ou que
devam com er quando eles lho exigem. Mas, para aguentar isso, requer-se
um modo de vida peculiar, um modo de vida que robustece o corpo e que
restaura o que o deteriorou. Mas na natureza tam bém encontram os m uita
coisa periódica. Os anim ais tam bém têm o seu tem po certo para dormir. O
homem deve habituar-se igualm ente a um tem po certo, para que o corpo
não seja perturbado nas suas funções. No que diz respeito ao facto de
as crianças deverem com er a qualquer hora, não podemos invocar aqui o
exemplo dos anim ais. Pois, por exemplo, todos os anim ais que se alim entam
de erva ingerem com ida pouco rica, por isso, com er é um assunto
corriqueiro. Mas é m uito saudável para o hom em com er sempre num a
determ inada altura. Assim, alguns pais querem que os seus filhos consigam
suportar grandes frios, o fedor, todo e qualquer ruído, e coisas do género.
Mas isso de modo nenhum é necessário, se eles a nada se acostum arem . E,
para tal, é de grande préstim o que se transponha as crianças para diferentes
estados.

Uma cam a dura é m uito m ais saudável que um a m ole. Em geral, um a


educação dura ajuda m uito ao fortalecim ento do corpo. Por educação
dura entendem os, porém, o m ero impedimento do conforto. Não faltam
exemplos notáveis para corroborar esta afirm ação, só que não se atenta
neles, ou, m ais bem dito, não se quer atentar.

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No que diz respeito à form ação do ânim o, que realm ente e em
certa medida tam bém se pode designar por física, é necessário observar
principalm ente que a disciplina não seja servil, m as que a criança
tenha sempre de sentir a sua liberdade, só que de tal modo que não
perturbe a liberdade dos dem ais; daí que tenha de encontrar resistência.
Alguns pais cerceiam tudo aos seus filhos, a fim de exercitarem a sua
paciência, e exigem, por conseguinte, m ais paciência aos filhos do que
aquela que eles próprios têm . Isto, no entanto, é cruel. Dê-se à criança
tanto quanto lhe serve e depois diga-se-lhe: tens o suficiente! Mas é, sem
dúvida, necessário que tal seja então irrevogável. Atenda-se aos gritos das
crianças e condescenda-se com elas som ente se elas não quiserem forçar a
algum a coisa através da gritaria: m as conceda-se-lhes aquilo que pedirem
amavelmente, se lhes for de préstim o. Assim, habitua-se tam bém a criança
a ser sincera e a não se tom ar im pertinente através da sua gritaria, e desse
modo todos serão tam bém afáveis com ela. A Providência parece te r dado
um sem blante afável às crianças, para que possam inspirar sim patia às
pessoas e obterem vantagens. Nada é m ais prejudicial que um a disciplina
trocista, servil, para quebrar o egoísmo.

Costuma-se censurar as crianças: Que porcaria, não tem vergonha!


que feio! etc. Mas não se deve fazer isso na prim eira educação. A
criança ainda não tem conceitos de vergonha e de decoro, nada tem de

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que se envergonhar, não se deve envergonhar e, deste modo, tom a-se
sim plesm ente acanhada. Fica embaraçada assim que vê outrem e esconde-
se de bom grado perante outras pessoas. Nasce assim um a reserva e um a
dissim ulação prejudiciais. Já não se atreve a pedir o que quer que seja, e
deveria, contudo, poder pedir tudo; dissim ula a sua disposição e parece
sempre diferente do que realm ente é, em lugar de te r de lhe ser permitido
dizer tudo com sinceridade. Em vez de estar sempre n a proximidade dos
pais, evita-os e lança-se nos braços da criadagem condescendente.

Em nada m elhor que aquela educação trocista é perder tem po com


ninharias e carícias ininterruptas. Isso reforça a vontade própria da criança,
tom a-a falsa e, na medida em que lhe denuncia um a fraqueza dos pais,
arrebata-lhes o respeito necessário aos olhos da criança. Mas quando se
educa de tal modo, que a criança nada consegue com os seus gritos,
tom a-se livre sem im pertinência e m odesta sem ser acanhada. Dever-se-
ia dizer dräust [ameaçador] e não dreist [insolente], pois deriva de dräuen,
drohen [ameaçar]. Ninguém pode tolerar um a pessoa ameaçadora. Algumas
pessoas tem rostos de tal modo insolentes que se tem sempre de recear
um a grosseria da sua parte, tal como se vêem outros rostos que nunca
poderiam dizer um a grosseria a quem quer que seja. Pode-se sempre parecer
sincero, quando há um a ligação a um a certa bondade. As pessoas dizem
frequentem ente de hom ens distintos que têm a aparência de um rei. Mas

47
isto nada m ais é que um certo olhar insolente a que se habituaram desde a
juventude, porque não se lhes opôs resistência.

Tudo isto ainda se pode contar som ente na form ação negativa. Pois
m uitas fraquezas do hom em não provêm frequentem ente do facto de não
se lhes te r ensinado nada, m as m ais do facto de se lhes te r ensinado
impressões falsas. Assim, por exemplo, as amas passam para as crianças o
medo das aranhas, sapos, etc. As crianças poderiam certam ente apanhar as
aranhas da m esm a m aneira em que agarram outras coisas. Mas, porque as
amas, assim que vêem um a aranha, m ostram a sua repugnância através de
caretas, isso acaba por influenciar a criança através de um a certa simpatia.
Muitas conservam este medo por toda a sua vida, e, a esse respeito,
perm anecem sempre pueris. Pois as aranhas são de facto perigosas para as
m oscas, e a sua mordedura é-lhes venenosa, m as não são prejudiciais ao
homem. E um sapo é um anim al tão inocente como um a bela rã verde ou
qualquer outro anim al.

A parte positiva da educação física é a cultura. O hom em distingue-se do


anim al pela sua referência a esta. Consiste ela principalm ente no exercício

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das faculdades do ânim o. Por isso, os pais têm de proporcionar aos filhos as
oportunidades para que ta l suceda. A prim eira e m ais im portante regra para
isso é que se prescinda, tanto quanto possível, de todos os instrum entos.
Assim, presdnda-se, de início, das andadeiras e dos andarilhos, e deixe-se a
criança gatinhar no chão até que aprenda a andar por si própria, pois assim
andará com m aior segurança. É que os instrum entos apenas arruinam o
jeito natural. Pode-se utilizar um fio para m edir um a dada extensão, mas
pode-se fazê-lo igualm ente bem a olho; um relógio para determ inar o
tem po, m as pode-se fazê-lo através da posição do sol; um a bússola para nos
orientarm os na floresta, m as pode-se fazê-lo tam bém através da posição do
sol, de dia, e da posição das estrelas, à noite. Até se pode dizer que em vez de
precisar de um batel para avançar sobre as águas, se pode nadar. O célebre
FranklinO admira-se que haja alguém que o não aprenda, visto que é tão
agradável e útil. M enciona igualm ente um modo fácil de cada qual aprendê-
lo por si. Coloque-se um ovo no fundo de um ribeiro onde se tenha pé de
modo a que, pelo m enos, a cabeça fique à tona. Procure-se então agarrar o
ovo. Ao inclinarm o-nos, os pés sobem e, para que não entre água na boca,
giraremos logo a cabeça no sentido da nuca e assim obtém -se a posição
correcta que é necessária para podermos nadar. Pode-se, nessa altura,
trabalhar com as m ãos, e assim já estam os a nadar. O que im porta é cultivar

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a aptidão natural. Ora se requer inform ação para tal, ora a própria criança
tem inventiva quanto baste, ou descobre instrum entos por si própria.

O que há a observar na educação física, ou seja, do ponto de vista do


corpo, refere-se ou ao uso de m ovim ento voluntário ou aos órgãos dos
sentidos. No prim eiro caso, im porta que a criança se auxilie sempre a
si própria. Para isso requer-se forças, destreza, agilidade, segurança; por
exemplo, o poder andar sobre um a base vacilante, em veredas estreitas,
em elevações alcantiladas onde se tem um precipício diante de si. Se um a
pessoa o não consegue fazer, tam bém não é com pletam ente o que poderia
ser. Desde que a F ilan tropa de Dessau nos precedeu aqui com o seu modelo,
foram feitas m uitas tentativas do género com crianças noutros institutos. É
assaz admirável ler que os Suíços são habituados desde a juventude a andar
nas serras e a que perícia chegam, de tal modo que podem cam inhar com
to tal segurança nas veredas m ais estreitas, e saltam sobre precipícios que
sabem a olho que conseguirão transpor. A m aioria das pessoas, porém, tem
medo perante um caso desses m eram ente imaginado, e este medo como
que lhes tolhe os m embros, de modo que depois um ta l cam inho se associa
im ediatam ente a perigo. Este medo aum enta geralm ente com a idade, e
encontram o-lo principalm ente em pessoas m uito habituadas ao trabalho
intelectual.

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Tais feitos nas crianças não são realm ente m uito perigosos. Pois as
crianças têm um peso de longe m ais escasso em proporção às suas forças
que as outras pessoas e, por isso, não lhes custa tanto. Além disso, os ossos
não são nelas tão rígidos e quebradiços com o vêm a ser com a idade. As
crianças tam bém experim entam por si as suas forças. Por isso as vemos,
às vezes, por exemplo, a escalarem sem que tenham um qualquer desígnio.
Correr é um movim ento saudável e fortalece o corpo. Saltar, a elevação,
carregar, a fisga, o tiro ao alvo, a luta, a corrida e exercícios sem elhantes são
m uito bons. A dança, na medida em que for artística, parece precoce para
crianças em sentido próprio.

O exercício de atirar, seja o atirar longe, seja tam bém o acertar em


algum a coisa, tem com o finalidade o exercício dos sentidos, em particular
da vista. O jogo da bola é um dos melhores jogos infantis, para o
qual contribui tam bém a corrida saudável. Em geral, os melhores jogos
são aqueles em que ao exercício da destreza se som am os exercícios
dos sentidos, por exemplo, o exercício de avaliar correctam ente a olho a
distância, a dimensão e as proporções, de encontrar a posição dos lugares
segundo os quadrantes do mundo, onde é ú til o sol, etc., tudo isso são bons
exercícios. Também a im aginação local, pelo que entendem os a proficiência
para im aginar tudo aquilo que realm ente se viu nos sítios certos, é algo
de m uito vantajoso, por exemplo, o prazer de se orientar para sair de um a

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floresta, nomeadam ente através do facto de se ter reparado nas árvores
pelas quais já se passou. O m esm o sucede com a m em ória localis, que se
saiba, por exemplo, não só em que livro se leu algo como tam bém o seu
preciso local no mesmo. Assim, o m úsico tem as teclas na cabeça de tal
modo que já não precisa de as procurar com o olhar. A cultura da audição é
igualm ente precisa para se saber através dela se algo está longe ou perto e de
que lado está.

O jogo da cabra-cega já era conhecido dos gregos, designavam-no


por muAinda. Regra geral, os jogos infantis encontram -se um pouco por
toda a parte. Aqueles que tem os n a Alem anha tam bém se encontram
na Inglaterra, na França, etc. Subjaz-lhes um certo instinto natural das
crianças; no jogo da cabra-cega, por exemplo, apercebem-se de como se
desenvencilhariam , se lhes faltasse um sentido. O pião é um jogo particular;
tais jogos infantis, no entanto, são m atéria para os hom ens prosseguirem as
suas reflexões e dão azo, de quando em quando, a invenções im portantes.
Assim, Segner(*) escreveu um a dissertação acerca do pião, e este deu
oportunidade a um capitão inglês para inventar um espelho através do qual
se conseguisse, no barco, m edir a altitude das estrelas.

As crianças gostam de te r instrum entos que fazem barulho, por


exemplo, com etas, tam bores, etc. Mas isso não serve para nada, porque

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desse modo tom am -se maçadoras para os outros. Já seria melhor, no
entanto, que aprendessem a cortar um a cana de tal modo que pudessem
tocar m úsica com ela.

O baloiço tam bém constitui um bom m ovim ento, mesmo os adultos


necessitam dele para efeitos de saúde, as crianças necessitam de supervisão,
porquanto o movim ento pode atingir um a grande velocidade. O papagaio-
de-papel tam bém é um jogo que não suscita objecções. Cultiva a destreza,
na medida em que depende de um a certa posição, da direção do vento, se se
quer que suba m uito alto.

O rapaz priva-se de outras necessidades em favor destes jogos e aprende


gradualmente a prescindir de variadíssim as coisas. Além de que se habitua
a um a ocupação duradoura, m as justam ente por isso não se perm ite o
m ero jogo, antes tem de jogar com intenção e um fim últim o. Pois,
quanto m ais o seu corpo se fortalece e endurece desta m aneira, tanto m ais
seguro está das consequências nocivas do mimo. A ginástica tam bém deve
som ente conduzir a natureza, não pode suscitar um a graciosidade forçada.
A disciplina tem de ser introduzida de início, m as não a inform ação. Aqui
deve-se velar, porém, para que se form e as crianças, na cultura do seu corpo,
tam bém para a sociedade. Rousseau afirm a: “Nunca conseguireis fazer
sages se não começardes por fazer traquinas”(’). Mais depressa se faz de um

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rapaz vivo um bom homem do que de um im pertinente um m oço prudente
e trabalhador. A criança não só não pode ser enfadonha na sociedade como
tam bém não pode ser insinuante. Deve ser fam iliar com quem frequenta
sem ser indiscreta; sincera sem ser im pertinente. O m eio para isso é: nada
se corrompa, não se lhe ensine conceitos de decoro, através dos quais se
to m e acanhada e receosa dos hom ens, ou, por outro lado, seja levada à
ideia de se querer fazer valer. Nada é m ais ridículo do que o recato precoce
ou a presunção im pertinente da criança. No últim o caso, tanto m ais tem os
de fazer sentir à criança as suas fraquezas, m as não em dem asia a nossa
superioridade e domínio, para que se form e de facto a partir de si mesma,
como um hom em que deve viver em sociedade, onde o mundo tem de ser
suíicientem ente grande para ela própria, m as tam bém para os outros.

No Tristram Shandy, Toby diz a um a m osca que o m açara durante muito


tem po, enquanto a soltava à janela Ide, pobre diabo, ide-vos daqui, por
que vos haveria eu de fazer mal? - este mundo é por certo bastante grande
para nós os dois.”(") Cada qual poderia adoptar esta divisa. Não devemos ser
im portunos entre nós, o mundo é suficientem ente grande para todos nós.

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Chegamos agora à cultura da alm a, que tam bém podemos designar em
certa medida como física. Tem de se distinguir, porém, entre natureza e
liberdade. Dar leis à liberdade é algo com pletam ente diferente de form ar a
natureza. A natureza do corpo e da alm a concordam no facto de se procurar
impedir um a corrupção, aquando da sua form ação recíproca, e no facto de
a arte acrescentar então algo àquela bem como a esta. Pode-se igualm ente
designar a form ação da alma, portanto, em certa medida, por física, tal
como a form ação do corpo.

Esta form ação física do espírito distingue-se da m oral, contudo, por esta
visar apenas a liberdade e aquela apenas a natureza. Uma pessoa pode ser
fisicam ente m uito cultivada; pode te r um espírito m uito formado, m as ser
em sim ultâneo m al cultivada m oralm ente, ser um a criatura má.

A cultura fís ic a , porém, deve ser distinguida da p rática, esta últim a é


pragm ática ou m oral. No últim o caso é m oralização, não cultivo.

Dividimos a cultura fís ic a do espírito em livre e escolástica. A livre é como


que apenas um jogo, a escolástica, pelo contrário, constitui um negócio; a
livre é aquela que tem de ser sempre observada no educando; na escolástica,
porém, o educando é considerado como que sob coacção. Pode-se estar
ocupado no jogo, a isso cham amos tam bém estar ocupado no ódo; mas

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tam bém se pode estar ocupado sob coacção, e a isso cham a-se trabalhar. A
form ação escolástica deve ser trabalho para a criança; a livre, jogo.

Foram esboçados vários planos educativos para experim entar, o que é


sempre m uito louvável, qual seria o m elhor m étodo na educação. Aventou-
se tam bém a ideia, entre outras, de que a criança deixa que lhe ensinem
tudo com o num jogo. Lichtenberg queixou-se num texto do magazine de
Gotinga (*) da ilusão segundo a qual dever-se-ia fazer tudo aos rapazes como
num jogo, que, no entanto, cumpre habituar desde m uito cedo aos negócios,
um a vez que um dia têm de entrar n a vida activa. Isto produz um efeito
com pletam ente invertido. A criança deve brincar, deve ter horas de repouso,
mas tam bém tem de aprender a trabalhar. A cultura da sua aptidão é, claro
está, igualm ente tão boa como a cultura do espírito, mas ambos os géneros
de cultura têm de ser exercitados em tem pos diferentes. Mesmo sem isso, já
é um a infelicidade para o hom em que ele seja tão inclinado à inactividade.
Quanto m ais um hom em m andriar, m ais dificilm ente se resolve a trabalhar.

No trabalho, a ocupação não é agradável em si m esm a, é empreendida


por m or de outro propósito. No jogo, pelo contrário, a ocupação é agradável
em si, sem se propor qualquer propósito para além de si própria. Quando
se vai passear, o passeio é em si o propósito, e quanto m ais longo for o
cam inho, m ais nos é agradável. Mas, se queremos ir a algum lado, onde a

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sociedade que lá se encontra, ou qualquer outra coisa, é o propósito do nosso
passeio, preferim os escolher o cam inho m ais curto. O mesmo se passa com
os jogos de cartas. É realm ente notável vermos hom ens razoáveis sentados,
frequentem ente durante horas, a baralharem cartas. Donde se depreende
que os hom ens não deixam de ser crianças assim tão facilm ente. Pois em
que é que ta l jogo é m elhor do que o jogo da bola das crianças? Os adultos
não andam em cavalos de batalha, m as não deixam de te r as suas m anias.

É da m aior im portância que as crianças aprendam a trabalhar. O


homem é o único anim al que tem de trabalhar. Som ente depois de m uitos
preparativos chega o homem ao estado de poder fru ir de algo para seu
sustento. À pergunta: não teria o céu cuidado de nós m ais bondosamente,
se nos perm itisse encontrar tudo já de tal modo preparado que não
nos veríam os obrigados a trabalhar? deve decerto responder-se com um
não: pois o homem requer negócios, mesmo os que acarretam um a certa
coacção. Igualm ente tão falsa é a ideia de que se Adão e Eva tivessem
permanecido sempre no Paraíso nada m ais teriam feito que estar sentados
lado a lado, cantado canções arcádicas e contemplado a beleza da natureza.
O tédio teria sido tão certo como o que torturou outros hom ens em situação
análoga.

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O homem tem de estar de ta l modo ocupado, que, com o propósito
que tem em vista realizar dessa m aneira, não se sinta a si m esm o e que
o seu m elhor repouso seja aquele que se segue ao trabalho. A criança tem
de ser, pois, habituada a trabalhar. E onde a não ser na escola se deve
cultivar a inclinação para o trabalho? A escola é um a cultura por coação.
É extrem am ente nocivo que a criança seja habituada a considerar tudo
como jogo. Tem de ter tem po para se recrear, m as tam bém tem de haver
tem po em que trabalha. Ainda que a criança não vislum bre logo qual seja a
utilidade dessa coacção: descobrirá no futuro o m aior proveito disso. Seria
am im alhar excessivam ente a curiosidade indiscreta da criança responder
sempre às suas perguntas: para que serve isto? e aquilo? A educação tem de
se conform ar à coacção, m as nem por isso lhe é perm itido ser servil.

No atinente à livre cultura das faculdades do ânim o, deve notar-


se que está sempre a avançar. Tem de dizer respeito, com efeito, às
faculdades superiores. As inferiores são igualm ente cultivadas, m as apenas
em referência às superiores; a argúcia, por exemplo, em referência ao
entendim ento. Aqui, a regra principal é que nenhum a faculdade do ânimo
deva ser cultivada isoladam ente por si, m as sim que cada um a o seja em
referência às outras; por exemplo, a im aginação apenas para vantagem do
entendim ento.

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As faculdades inferiores não têm por si só nenhum valor, por exemplo,
um hom em com um a grande m em ória, m as sem faculdade de ajuizar.
Um tal hom em é um a enciclopédia viva. Tais burros de carga do Pamasso
tam bém são necessários, ainda que não consigam realizar nada de
brilhante, pois carreiam consigo m ateriais para que outros possam realizar
algo de bom a partir disso. A argúcia dá puras tolices, quando não se lhe
acrescenta a faculdade de julgar. O entendim ento é o conhecim ento do
geral. A faculdade de julgar é a aplicação do geral ao particular. A razão é
a faculdade de apreender a ligação do geral ao particular. Esta cultura livre
abre o seu cam inho desde a in fan d a até à época em que o adolescente
com pleta toda a educação. Quando um adolescente, por exemplo, invoca
um a regra geral, pode-se fazê-lo indicar casos da história, das fábulas em
que esta regra está mascarada, passagens dos poetas, onde já se encontra
expressa, e assim dar-lhe ensejo de exerd tar a sua argúcia, a sua m em ória,
etc.

A sentença tantum scimus, quantum m em ória tenem us tem decerto a sua


justeza, e, por isso, a cultura da m em ória é m uito necessária. Todas as coisas
estão constituídas de tal modo, que o entendim ento segue prim eiram ente
as im pressões sensíveis, e a m em ória deve retê-las. O m esm o sucede, por
exemplo, com as línguas. Pode-se aprendê-las pela memorização form al ou
através do convívio, e este últim o método é o m elhor nas línguas vivas.

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Aprender os vocábulos é realm ente im portante, mas o que de m elhor há
a fazer é aprender aquelas palavras que aparecem no autor que se está
precisam ente a ler com o adolescente. Os jovens têm de ter o seu programa
certo e determinado. Assim, a geografia tam bém se aprende m elhor
m ediante um certo m ecanism o. A m em ória gosta preferencialm ente deste
m ecanism o, que tam bém é m uito ú til num a série de casos. Para a história
ainda não se inventou até ao presente um m ecanism o adequado; é certo que
já se tentou com tabelas, m as parece que, ainda assim , as coisas tam bém
não correram lá m uito bem . A história, porém, é um excelente m eio para
exercitar o entendim ento no juízo. A memorização é m uito necessária, mas
de nada serve como m ero exercício, por exemplo, aprender discursos de cor.
Em todo caso, ajuda com o fom ento da ousadia, e, além disso, o declam ar é
assunto de homens. Têm aqui lugar todas as coisas que se aprendem apenas
para um futuro exame ou em referência ao fu tu ram oblivionem . Deve-se
ocupar a m em ória apenas com assuntos que tem os interesse em conservar
e que têm um a relação com a vida real. Nas crianças, o m ais nocivo é a
leitura de rom ances, visto que não farão outro uso deles a não ser o de se
divertirem no m om ento em que os lêem . A leitura de rom ances enfraquece
a m em ória. Pois seria ridículo fixar rom ances e querer contá-los a outrem.
Daí que se tenha de tirar todos os rom ances das m ãos das crianças. Ao lê-
los, im aginam , por seu turno, um novo rom ance no rom ance, dado que

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im aginam as circunstâncias diferentem ente, devaneiam e ficam sentadas,
absortas.

Nunca podem ser toleradas distracções, pelo m enos na escola, pois


acabam por produzir um certo pendor para tal, um certo hábito. Mesmo
os talentos m ais belos arruínam -se naquele que se entregue à distracção.
Quando as crianças se distraem com prazeres, voltam a concentrar-
se em breve; m as vem o-las no ponto m áxim o da distracção, quando
têm m arotices na cabeça, pois então cism am como podem ocultá-las ou
repará-las. Nessa altura, ouvem tudo som ente pela metade, respondem ao
contrário e não sabem o que lêem , etc.

A m em ória tem de ser cultivada cedo, m as im ediatam ente a par disso o


entendim ento.

Cultiva-se a m em ória 1) através da fixação de nom es nas narrativas;


2) através da leitura e da escrita, aquela, porém, tem de ser exercitada de
cabeça e não soletrando; 3) através das línguas que têm de ser ensinadas
às crianças inidalm ente através da audição, antes de conseguirem ler
algum a coisa. Nessa altura, é de grande préstim o o chamado Orbis pictusÇ),
adequadamente organizado, e pode-se dar início à Botânica, à Mineralogia
e à descrição da natureza em geral. Fazer um bosquejo destes objectos dá
azo ao desenho e à modelação, para o que se precisa de m atem ática. O m ais

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vantajoso no prim eiro ensino científico é versar a geografia, a m atem ática
bem com o a física. As narrativas de viagens, ilustradas com gravuras e
mapas, levam então à geografia política. Do estado actual da superfície do
globo rem onta-se ao estado anterior, passa-se então à descrição da terra
antiga, à história antiga, etc.

Na criança, porém, deve-se procurar com binar gradualmente, no ensino,


o saber e o poder. Entre todas as ciências, a m atem ática parece ser a única
do género que satisfaz este fim últim o. Além disso, o saber e o falar tem de
estar ligados (facúndia, oratória, eloquência). Mas a criança tem tam bém de
aprender a distinguir m uito bem o saber do m ero opinar e crer. Deste modo,
prepara-se um entendim ento correcto e um gosto correcto, não fin o ou tem o.
Aquele deve ser antes de m ais um gosto dos sentidos, nomeadam ente dos
olhos, e, por fim , um gosto das ideias.

Devem estar presentes regras em tudo o que deve educar o


entendim ento. É tam bém m uito ú til abstrair as regras, para que o
entendim ento não proceda m ecanicam ente, m as sim com a consciência de
um a regra.

Também é m uito bom levar as regras a um a certa fórm ula e assim


confiá-las à m em ória. Se tiverm os as regras na m em ória e nos esquecermos
do seu uso, rapidam ente nos orientam os. A questão aqui é: devem as regras

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preceder apenas in abstracto ou devem as regras ser aprendidas apenas
depois de se te r feito uso delas? Ou devem a regra e o uso andar a par
e passo? Só este últim o caso é de aconselhar. No outro caso, demora-
se tanto até chegar às regras que o uso é m uito inseguro. As regras têm
de ser oportunam ente enquadradas em classes, pois não se fixam , se não
estiverem em ligação entre si. Nas línguas, a gram ática tem , portanto, de ter
algum a precedência.

Temos agora de dar tam bém um conceito sistem ático do fim to tal da
educação e do modo como se pode alcançá-lo.

1) A cultura geral d as fa cu ld a d es do ân im o distingue-se da cultura


particular. Dirige-se à aptidão e ao aperfeiçoam ento, que não se inform e
o educando nisso, m as antes que se fortaleça as suas faculdades do
ânim o. Ela é

a) ou fís ic a . Aqui tudo assenta no exercício e na disciplina, sem que


as crianças possam conhecer as m áxim as. É passiva para o formando,
este tem de ser obediente à direcção de outrem. Outros pensam por ele.

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b) ou m oral. Assenta então não na disciplina, m as em máximas.
Está tudo estragado, quando se quer fundam entá-la em exemplos,
ameaças, castigos, etc. Nesse caso, seria um a m era disciplina. Deve-
se velar aí para que o educando aja bem a partir das suas próprias
m áxim as, não por hábito, que ele não se lim ite a fazer o bem , m as sim
que o faça porque é bom. Pois todo o valor m oral das acções consiste
nas m áxim as do bem . A educação física distingue-se da m oral por
ser passiva para o educando, ao passo que esta é activa. Ele tem de
vislum brar sempre o fundam ento e a derivação da acção a partir dos
conceitos do dever.

2) A cultura p articu lar das fa cu ld ad es do ânim o. Aqui tem os: a cultura


da faculdade de conhecer, dos sentidos, da im aginação, da m em ória,
da fortaleza da atenção, e da argúcia, o que diz igualm ente respeito
às fa cu ld ad es in feriores do entendim ento. Da cultura dos sentidos, por
exemplo, do olhar, já se falou m ais acim a. No atinente à cultura da
im aginação deve-se notar o seguinte. As crianças têm um a im aginação
descom unalm ente forte, e esta não necessita de ser alargada e excitada
pelos contos. Tem antes de ser refreada e posta sob regras, m as tam bém
não a podemos deixar totalm ente desocupada.

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Os mapas têm em si algo que encanta todas as crianças, inclusive as
m ais pequenas. Quando já estão saturadas de tudo, ainda aprendem m ais
qualquer coisa, se utilizarm os mapas. E é um bom divertim ento para
crianças, onde a sua im aginação não pode devanear, m as como que tem de
se ater a um a certa figura. Poder-se-ia realm ente com eçar nas crianças com
a geografia. Pode-se com binar com ela, em sim ultâneo, figuras de anim ais,
plantas, etc.; estas devem dar vida à geografia. A história, porém, deveria ser
introduzida som ente m ais tarde.

No que diz respeito ao fortalecim ento da atenção, deve-se notar que esta
tem de ser fortalecida em geral. Um vínculo rígido dos nossos pensamentos
a um objecto não é tanto um talento, m as antes um a fraqueza do nosso
sentido interno, já que, neste caso, é inflexível e não se pode aplicar a nosso
belo talante. A distracção é inim iga de toda a educação. A m em ória, porém,
assenta na atenção.

Mas no que concerne às fa cu ld a d es superiores do entendim ento tem os: a


cultura do entendim ento, da faculdade de julgar e da razão. De início, o
entendim ento pode ser, em certa medida, formado tam bém passivamente:
através de m enção de exemplos para as regras ou, ao invés, através da
descoberta de regras para os casos particulares. A faculdade de julgar
m ostra que uso se deve fazer do entendim ento. Este é necessário para

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compreender o que se aprende ou se diz, e para não repetir nada
sem o compreender. Como alguns que lêem e escutam algo sem o
compreenderem, ainda que acreditem que o compreendem. Para tal requer-
se im agens e objectos.

Através da razão penetra-se nos fundam entos. Mas tem os de ponderar


que o que está aqui em causa é um a razão que ainda não está encaminhada.
Não tem de estar sempre a querer raciocinar, m as tam bém não se deve
arrazoar-lhe m uito, de antem ão, sobre aquilo que ultrapassa os conceitos.
Também não se refere à razão especulativa, m as sim à reflexão sobre o
que acontece, segundo as suas causas e efeitos. É um a razão prática n a sua
econom ia e disposições.

O m elhor cultivo das faculdades do ânim o é fazer por si tudo o que


se quer realizar, por exemplo, quando se exercita de im ediato a regra
gram atical que se aprendeu. Compreende-se m elhor um m apa de um a
região, quando se pode traçá-lo por si. O compreender tem como expediente
m aior a produção. Aprende-se m ais radicalm ente e fixa-se m elhor aquilo
que como que se aprende de si mesmo. Só poucas pessoas, no entanto, estão
em condições de o fazer. Designam-se por (autodidaktoi) autodidactas.

Na form ação da razão tem de se proceder socraticam ente. É que Sócrates,


que se intitulava a parteira dos conhecim entos dos seus ouvintes, dá

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exemplos, nos seus diálogos que Platão em certa medida nos conservou,
de como, mesmo no caso de pessoas já de idade, se pode extrair m uita
coisa da sua própria razão. A razão não precisa, em m uitos assuntos, de ser
exercitada pelas crianças. Não têm de arrazoar acerca de tudo. Não precisam
de saber os fundam entos daquilo que os faz bem-educados, m as, assim
que concerne ao dever, têm de ser fam iliarizadas com esses fundamentos.
Deve-se velar, no entanto, para que os conhecim entos racionais não lhes
sejam introduzidos a partir de fora, m as sim que elas os hauram em
si m esm as. O método socrático devia constituir a regra no catecism o. É
claro que é aborrecido, e é difícil organizá-lo de tal m aneira que, enquanto
se faz sair os conhecim entos de um , os outros tam bém aprendam em
sim ultâneo algum a coisa. O m étodo m ecânico-catedsta é igualm ente bom
em algumas ciências; por exemplo, na exposição da religião revelada. Na
religião universal, pelo contrário, tem de se utilizar o método socrático.
Atendendo àquilo que tem de ser aprendido historicam ente, recomenda-se
de preferência o método m ecânico-catecista.

Também cabe aqui a form ação do sentim ento de prazer e desprazer.


Aquela tem de ser negativa, m as o sentim ento em si não deve ser
amimalhado. O pendor para a comodidade é pior para os hom ens que todos
os m ales da vida. Daí que seja extrem am ente im portante que as crianças
aprendam a trabalhar desde a juventude. As crianças, se não estiverem já

67
estragadas com mimos, gostam realm ente dos prazeres que se associam às
canseiras, das ocupações que requerem as suas forças. No que diz respeito
à alim entação, não se deve deixar que se tom em gulosas e não se pode
deixá-las escolher. Geralmente, as m ães estragam os filhos com mimos
neste particular e am im alham -nos em geral. E, no entanto, nota-se que as
crianças, prindpalm ente os rapazes, gostam m ais dos pais que das mães.
Isto provém do facto de as m ães não os deixarem andar aos pinotes, a
correr, etc., com medo de que se possam magoar. O pai, ao invés, que é quem
repreende e tam bém lhes bate, se forem m alcriados, leva-os de quando em
quando ao campo e aí deixa-os correrem , brincarem e folgarem à medida da
idade.

Crê-se exercitar a paciência das crianças, fazendo-as esperar muito


tem po por alguma coisa. Mas tal não deveria ser necessário. De paciência
precisam realm ente na doença e coisas do género. A paciência é dupla.
Consiste ou na renúncia a toda a esperança, ou no cobrar um novo ânimo.
A prim eira não é necessária, se se exigir sempre o possível, e o últim o é
o que se deve fazer, se se desejar sempre apenas o que é ju sto. Na doença,
a desesperança piora tanto quanto o bom ânim o traz m elhoras. Quem o
consegue recobrar, em relação ao seu estado físico ou m oral, ainda não
renunciou a toda a esperança.

68
Também não se pode tom ar as crianças acanhadas. Isso acontece
principalm ente quando usamos de injúrias com elas e as envergonhamos
reiteradam ente. Aqui entra, em particular, a exclam ação dos pais: que
porcaria, não ten s vergonha! Não se deve de modo nenhum fazer vista
grossa àquilo de que a criança deveria realm ente ter vergonha, por exemplo,
quando põe o dedo na boca, etc. Isso não se faz, não é bonito! pode-se
dizer-lhe, mas nunca gritar-lhe um “que porcaria, que vergonha!”, a não ser
no caso de m entirem . A natureza deu ao homem a pudicícia para que se
traia assim que m entir. Por isso, nunca os pais dêem às crianças sermões
sobre a vergonha, a não ser que m intam , assim elas conservarão, por toda
a sua vida, o m bor de vergonha no que diz respeito à m entira. Se são
envergonhadas sem cessar, isso provoca um acanham ento que se lhes cola
de longe m ais im utavelm ente.

A vontade da criança não tem , como já foi dito atrás, de ser quebrada,
mas apenas de ser conduzida de modo a que ceda aos obstáculos naturais.
É claro que, de início, a criança tem de obedecer às cegas. Não é natural
que a criança comande através da sua gritaria e que o forte obedeça ao
fraco. Daí que nunca se possa condescender à gritaria das crianças, inclusive
na prim eira infância, e perm itir-lhes que se im ponham . Geralmente, os
pais erram aqui e querem em seguida reparar a situação de ta l modo, que
cerceiam posteriorm ente tudo o que as crianças pedem. Mas cercear-lhes

69
sem causa aquilo que esperam da bondade dos pais, pura e sim plesm ente
para oferecer resistência e poder fazer sentir aos m ais fracos a supremacia
dos m ais velhos, é o inverso do que deve acontecer.

Estraga-se as crianças com mimos, quando se lhes faz a vontade,


e são educadas de modo com pletam ente errado, quando se contraria a
sua vontade e os seus desejos. A prim eira situação acontece geralmente
na fase em que são um brinquedo dos pais, prindpalm ente n a altura
em com eçam a falar. Mas daí brota um grande dano para toda a vida.
Na segunda situação, impede-se em sim ultâneo que elas m ostrem o seu
espírito de contradição, o que tem necessariam ente de acontecer, mas
assim , ainda m ais se enraivecem no íntim o. Ainda não estão fam iliarizadas
com o modo em que se devem então comportar. A regra que se tem de
observar nas crianças desde cedo é esta: que quando chorarem e se crê
que alguma coisa lhes faz m al, ir em sua ajuda, m as, se o fazem por mera
m á vontade, deixá-las estar. E depois tem de se seguir incansavelm ente
um procedim ento igual. A resistência que a criança encontra neste caso é
totalm ente natural e intrinsecam ente negativa, na medida em que apenas
se não é condescendente. Algumas crianças, ao invés, conseguem dos pais
tudo o que pretendem, assim que se põem a pedinchar. Quando se perm ite
às crianças que consigam tudo pelos gritos, tom am -se m ás; se conseguem
tudo pelo pedinchar tom am -se moles. Se não houver bons motivos para

70
agir em sentido contrário, deve-se aceder ao pedido da criança. Se se
encontrar um a causa para não o aceitar, tam bém não nos podemos deixar
mover pelo pedinchar reiterado. Toda a resposta negativa tem de ser
irrevogável. O seu prim eiro efeito é o de que não é preciso estar sempre a
negar.

Supondo que existisse n a criança um a disposição natural para a


teim osia, o que, contudo, só m uito raram ente se pode supor, o m elhor modo
de proceder é: que se não fazemos nada para nos obsequiarmos, tam bém
não lhe façam os nada para a obsequiar. Quebrar a vontade acarreta um
modo de pensar servil, a resistência natural, pelo contrário, mansidão.

A cultura m oral tem de se fundar em m áxim as, não na disciplina. Esta


impede a falta de educação, aquela form a o modo de pensar. Tem de se velar
para que a criança se habitue a agir segundo máxim as e não segundo certos
móbiles. Através da disciplina fica apenas um a habituação que se extingue
com o passar dos anos. A criança deve aprender a agir segundo máxim as
de cuja equidade se aperceba. Facilm ente se percebe que isso é difícil de
conseguir nas crianças pequenas, e que, por isso, a form ação m oral requer
os m aiores conhecim entos dos pais e dos professores.

Se a criança m entir, por exemplo, não se deve castigá-la, m as sim tratá-


la com desprezo, dizer-lhe que de futuro não acreditarem os nela, etc. Se se

71
castigar a criança, quando faz o m al, e for recompensada, quando faz o bem ,
fará o bem para ter o bem . E se depois entrar no mundo, onde ta l não sucede,
onde pode agir bem sem receber recom pensa e m al sem receber um castigo,
tom ar-se-á um a pessoa que vê apenas como pode vingar no mundo e será
boa ou m á consoante lhe for m ais propício.

As m áxim as têm de nascer da própria pessoa. Na cultura m oral, deve-se


procurar ensinar à criança, desde cedo, os conceitos do que é bom e mau. Se
se quer fundar a moralidade, não se pode castigar. A moralidade é algo tão
sagrado e sublime que não se pode aviltá-la colocando-a no mesmo patam ar
da disciplina. O prim eiro esforço, na educação moral, é fundar um carácter.
O carácter consiste na prontidão a agir segundo m áxim as. De início, são
m áxim as escolares, em seguida, m áxim as da humanidade. De início, a
criança obedece a leis. As m áxim as tam bém são leis, só que subjectivas;
nascem do próprio entendim ento do homem. Mas nenhum a infracção da lei
escolar pode passar impune, apesar do castigo ter de ser sempre adequado à
infracção.

Se se quer form ar um carácter nas crianças, é m uito im portante tom ar-


lhes perceptível, em todas as coisas, um certo plano, certas leis, que têm
de ser estritam ente seguidas. Estabeleça-se-lhes então, por exemplo, um
tem po para dormir, para o trabalho, para os folguedos, e não se encurte nem

72
se amplie ta l tempo. Em coisas indiferentes, deixe-se a escolha às crianças,
têm apenas de seguir sempre posteriorm ente aquilo que de início quiseram
como lei. Nas crianças deve-se form ar não o carácter de um cidadão, mas
sim o carácter de um a criança.

Pessoas que não se propuseram certas leis não são de fiar, não as
compreendemos, porque nunca sabemos ao certo o que havemos de esperar
delas. É certo que hoje se censura frequentem ente as pessoas que agem
sempre segundo regras, por exemplo, o homem que estabeleceu um tempo
certo pelo relógio para cada acção, m as esta censura é amiúde injusta, e esta
exactidão, ainda que pareça penosa, é um a disposição para o carácter.

Ao carácter de um a criança, em particular de um aluno, compete


antes de m ais a obediência. Esta é dupla: prim eiro, um a obediência à
vontade absolu ta; segundo, à von tade recon hecida com o racion al e b o a de
um guia. A obediência pode ser derivada da coacção e, então, é absolu ta,
ou da confiança, e então é do outro género. Esta obediência voluntária é
m uito im portante; aquela, porém, é tam bém extrem am ente necessária, na
medida em que prepara a criança para cum prir aquelas leis que, como
cidadão, terá de cum prir no futuro, ainda que lhe não agradem.

As crianças têm de estar, por isso, sob um a certa lei da necessidade.


Esta lei, porém, tem de ser geral, pelo que se tem de velar, em particular

73
na escola. O professor não pode m ostrar predilecção entre os vários alunos,
nem um a afeição preferencial por um a criança em particular. Pois senão a
lei cessa de ser geral. Assim que a criança repara que todos os demais não
têm de se sujeitar à m esm a lei, tom a-se insubordinada.

Está sempre a dizer-se que se deveria de apresentar tudo às crianças de


molde a que o façam por inclinação. É claro que, em certos casos, isso é
bom , m as tam bém tem de se lhes prescrever m uitas coisas como dever. Isto
tem posteriorm ente um a grande utilidade ao longo de toda a vida. Pois nas
tarefas públicas, no trabalho num oficio e em m uitos outros casos só o dever
nos pode conduzir, não a inclinação. Supondo que a criança tam bém não
compreenda o seu dever, é sempre tanto m elhor que compreenda que algo é
seu dever como criança, m as é m ais difícil ver o que seja o seu dever como
homem. Se o conseguisse compreender, mas isso só é possível nos anos
seguintes, a obediência seria assim ainda m ais perfeita.

Toda a infracção de um m andam ento num a criança é um a falta de


obediência, e esta acarreta um castigo. Mas tam bém na infracção desatenta
de um m andam ento não deixa de ser necessário o castigo. Este castigo ou é
fís ic o ou é m oral.

Castiga-se m oralm ente, quando se prejudica a inclinação de ser honrado


e amado, que são os m eios auxiliares da moralidade, por exemplo, quando

74
se envergonha a criança, quando a tratam os com um a frieza glacial. Estas
inclinações têm de ser conservadas tanto quanto possível. Por isso, este
modo de castigar é o m elhor; porque vem em socorro da moralidade,
por exemplo, quando um a criança m ente, um olhar de desprezo é castigo
quanto baste e é o castigo m ais adequado.

Os castigos físic o s consistem ou na denegação do desejado ou na


aplicação de penas. O prim eiro género é aparentado com o castigo m oral e
é negativo. Os outros castigos têm de ser exercidos com cautela, para que
não se gere um a índoles servilis. Que se dê recompensas às crianças de nada
serve, tom am -se interesseiras e gera-se daí um a índoles m ercenária.

A obediência é, por seu turno, ou obediência da crian ça ou do adolescente.


A um a infracção deste segue-se o castigo. Este ou é um castigo realm ente
natural, no qual o homem incorre através da sua conduta, por exemplo, se
a criança com er demasiado, adoecerá, e estes castigos são os m elhores, pois
o hom em experim enta-os ao longo da vida e não apenas enquanto mera
criança; ou o castigo é artificial. A inclinação de ser respeitado e amado é
um m eio seguro de levar os castigos a terem um efeito m ais duradouro.
Os castigos físicos têm de ser m eros com plem entos da insuficiência dos
castigos m orais. Quando os castigos m orais já não ajudam em nada, avança-
se para os castigos físicos, mas através destes já não se form a um carácter

75
bom . De início, porém, a coacção física substitui a falta de reflexão da
criança.

Os castigos que são infligidos com a nota da cólera actuam de modo


falso. As crianças consideram -nos, então, como consequências do afecto
de outrem, e consideram -se a si m esm as como objectos desse mesmo
afecto. Em geral, os castigos têm de ser aplicados às crianças sempre com
cautela, para que vejam que o fim últim o dos mesmos é som ente o seu
m elhoram ento. Querer que as crianças, quando são castigadas, agradeçam,
beijem as mãos e coisas do género, é loucura, e to m a as crianças servis. Se
os castigos físicos forem repetidos com frequência form am um teim oso, e
se os pais castigam os seus filhos por causa da sua obstinação, assim apenas
os tom am ainda m ais obstinados. Aqueles que são teim osos, nem sempre
são os hom ens piores, mas cedem facilm ente com m ais frequência às boas
exortações.

A obediência do adolescente é distinta da da criança. Consiste na sujeição


às regras do dever. Fazer algo por dever significa: obedecer à razão. Perorar
às crianças acerca do dever é trabalho vão. Acabam por considerá-lo como
algo a cuja infracção se segue o açoite. A criança poderia ser guiada através
de m eros instintos, m as assim que cresce, tem de se introduzir o conceito
de dever. A vergonha tam bém não deve ser usada com crianças, m as apenas

76
nos prim eiros anos da adolescência. É que só pode ter lugar, quando o
conceito de honra já lançou raízes.

Um segundo traço principal da fundação do carácter da criança é a


veracidade. Esta é o traço fundam ental e o essencial de um carácter. Um
homem que m ente não tem carácter, e, se algo de bom tem em si, isso
prom ana pura e sim plesm ente do tem peram ento. Algumas crianças têm
um pendor para a m entira, que deve ser assacado a um a im aginação
m uito viva. A tarefa do pai é velar para que a criança se desabitue disso;
pois as m ães habitualm ente não dão nenhum a atenção, ou pouca, a um a
coisa que consideram de somenos; frequentem ente, encontram nisso até
um a prova, que as lisonjeia, das prim orosas disposições e capacidades
dos seus filhos. Aqui é que é o lugar de fazer uso da vergonha, pois
aqui a criança compreende-o bem . O rubor da vergonha trai-nos, quando
m entim os, m as nem sempre é um a prova disso. Frequentem ente coramos
devido à desfaçatez de outrem que nos acusa injustam ente. Em nenhum a
circunstância podemos procurar forçar a verdade das crianças m ediante
castigos, pois o facto de m entirem acarretaria o mesmo dano e elas seriam
então castigadas por causa desses m esm os danos. Privá-los do respeito é o
único castigo adequado da m entira.

77
Os castigos tam bém se deixam dividir em negativos e positivos, dos quais
os prim eiros têm de entrar nos casos de preguiça ou imoralidade, por
exemplo, na m entira, na falta de obsequiosidade, na falta de civilidade. Os
castigos positivos, porém, valem para a maldade. Mas devemos, sobretudo,
precatarm o-nos de guardar rancor às crianças.

Um terceiro traço no carácter de um a criança tem de ser a sociabilidade.


Deve travar amizade com outras crianças e não estar sempre sozinha.
Alguns professores são, com efeito, contra isso nas escolas; mas isso é muito
injusto. As crianças devem preparar-se para o m ais doce gozo da vida.
Os professores, porém, não podem preferir nenhum a criança por causa
dos seus talentos, m as som ente por causa do seu carácter, pois, de outra
m aneira, gera-se a inveja que é contrária à amizade.

As crianças tam bém têm de ser francas e tão alegres no seu olhar como
o sol. Só o coração alegre é capaz de sentir comprazimento no bem . Uma
religião que to m a os hom ens lúgubres é falsa, pois eles devem servir a Deus
com um coração alegre e não por coacção. O coração alegre não tem de se
m anter sempre rigorosam ente sob coação escolar, pois neste caso em breve
fica abatido. Se tiver liberdade, recupera rapidam ente. Para isso servem
certos jogos em que tem liberdade e onde a criança se esforça por exceder

78
outrem a propósito de alguma coisa. A alm a tom a-se logo novamente
alegre.

Muitas pessoas pensam que os anos da sua m eninice foram os melhores


e os m ais agradáveis da sua vida. Mas não é assim . São os anos m ais penosos,
porque se está sempre sob disciplina, raram ente se pode ter um verdadeiro
amigo e ainda m ais raram ente se pode te r liberdade. Já Horádo dizia: m ulta
tulit, fec itq u e puer, su dau it et alsitÇ).

Às crianças tem de se ensinar apenas aquelas coisas que se adequam


à sua idade. Alguns pais alegram-se por os filhos conseguirem falar
precocem ente. Mas habitualm ente tais crianças em nada dão. Uma criança
tem de ser esperta como um a criança. Não pode ser um macaqueador cego.
Uma criança, porém, que está já de posse de sentenças m orais precocem ente
está totalm ente fora da determ inação da sua idade e está a macaquear.
Deve ter apenas o entendim ento de um a criança e não fazer boa figura
devido à sua precocidade. Uma ta l criança nunca se tom ará um homem
perspicaz e de entendim ento alegre. Igualm ente insuportável é o facto de
um a criança querer participar em todas as modas, por exemplo, andar de

79
cabelo arranjado, com pulseiras, ou m esm o possuir um a bolsa de tabaco
sua. Tom a-se um ser afectado, o que não convém a um a criança. Um
m eio educado tom a-se-lhe um fardo e, por fim , falta-lhe com pletam ente
a desenvoltura de um homem. Justam ente por isso, deve-se contrariar
tam bém desde cedo a vaidade, ou, m ais bem dito, não se lhe deve dar azo a
que se to m e vaidosa. Isso acontece, porém, quando se impinge às crianças
m uito cedo quão belas são, ou quão amoroso é este ou aquele enfeite, ou
quando este lhe é prometido e dado com o recompensa. Os adornos não
servem às crianças. As suas vestes lim pas ou sujas devem-lhe ser dadas
como necessidade. Mas os pais tam bém não devem valorizar tais coisas, não
se devem m irar ao espelho, pois, aqui como em todo o lado, o exemplo é
todo-poderoso, e consolida ou aniquila a boa doutrina.

(-) Povo do Norte da Sibéria. (fi.T.)

(*) Rousseau, Em ílio, Livro I: “Tenho a certeza de que um pedaço de carvão em brasa que
tivesse caído em cim a da m ão daquela criança a teria feito sofrer m enos que aquela palmada
assaz ligeira, m as dada com a intenção m anifesta de a ofender.” Publicações Europa-América,
Vol. 1 ,1 9 9 0 , trad. de Pilar Delvaulx. (N. T.)

(-) Kant refere-se a Benjam in Franklin (1 7 0 6 -9 0 ), cien tista e um dosfoundingfathers. (N. T)

(-) Kant refere-se ao m atem ático Johann Andreas Segner (1 7 0 4-77), professor em lena,
Gotinga e Halle, onde sucedeu a C. W olf em 1758.

80
(-) Rousseau, op. d t , livro II, Vol. I, p. 117. (N. T.)

(-) Laurence Stem e, A vida e opiniões de Tristram Shandy, Lisboa, Antígona, 1998, vol. I.
Trad. de Manuel Portela, p. 1 91. A versão que Kant apresenta não confere textualm ente com a
tradução portuguesa.

(-) O texto de Lichtenberg tin h a por títu lo Antwort a u f das Sendschreiben eines Ungennanten,
e foi publicado no núm ero 4 do terceiro ano do magazine de Gotinga. (N. I )

(-) Título da obra de Jan Amos Komensky (1 5 9 2 -1 6 7 1 ), pedagogo checo m ais conheddo
pela designação latina de Comenius, intitulada, em alem ão, O mundo vísivel das coisas que
apresentava im agens legendadas e constituiu o modelo para inúm eras obras entre as quais a
Elementarwerk de Basedow. (N. T.)

(-) Muito fez e suportou desde menino, suou, sofreu, verso 4 1 3 da Epistola ad Pisones m ais
conhedda, desde Q uintiliano, como Arte poética. A passagem com pleta reza: “O atleta que
forceja por atingir na corrida a m eta desejada, m uito fez e suportou desde m enino, suou, sofreu
e absteve-se do vinho e de Vénus...” in Horácio, Arte poética, Lisboa, Editorial Inquérito, 2 0 0 14,
trad. de Rosado Fernandes, p. 105. (N. T )

81
Da educação prática

Da educação prática fazem parte 1) aptidão, 2) prudência mundana, 3)


moralidade. No que diz respeito à ap tid ão tem de se velar para que esteja
arreigada e não seja efém era. Não se pode aparentar conhecim entos de
coisas que não se é capaz posteriorm ente de realizar. Tem de haver solidez
na aptidão, e esta deve tom ar-se gradualmente num hábito do modo de
pensar. Ela é o essencial para o carácter de um homem. A aptidão pertence
ao talento.

No que diz respeito kpru dên cia m undana: esta consiste na arte de utilizar
a nossa aptidão entre os hom ens, quer dizer, o modo em que nos podemos
servir dos hom ens para os nossos propósitos. Para ta l requer-se várias
coisas. Na verdade, trata-se do m ais im portante no hom em ; mas, segundo o
valor, ocupa o segundo lugar.

82
No caso de a criança ficar entregue à prudência m undana, tem de
disfarçar e de se tom ar impenetrável, m as tem de poder sondar os outros.
Tem de disfarçar prindpalm ente no atinente ao seu carácter. A arte da
aparência externa é o decoro. E deve-se possuir esta arte. Sondar os outros é
difícil, mas tem de se compreender necessariam ente esta arte para se tom ar
a si próprio, ao invés, im penetrável. Para isso requer-se dissim ulação, quer
dizer, a reserva dos seus erros, e aquela aparência exterior. A dissimulação
nem sempre é disfarçar, e pode de vez em quando ser perm itida, m as roça a
desonestidade. O disfarce é um m eio desesperado. É preciso, na prudência
mundana, não nos em pertigarm os; não podemos, porém, ser de modo
nenhum demasiado negligentes. Não devemos, portanto, ser impetuosos,
mas antes voluntariosos. O voluntarism o é distinto da impetuosidade.
Voluntarioso (strennus) é aquele que tem prazer no querer. A isto pertence
moderação do afecto. A prudência m undana diz respeito ao temperamento.

A m oralidade diz respeito ao carácter. Sustine et abstineÇ) é a preparação


para um a sábia moderação. Se se quer form ar um bom carácter, só tem de se
elim inar as paixões. O homem tem de se habituar às suas inclinações de tal
modo que elas não se tom em paixões, tem antes de aprender a passar sem
aquilo que lhe é recusado. Sustine significa: suporta e habitua-te a aguentar.

83
Requer-se força de ânim o e inclinação, se se quer aprender a passar por
carências. Temos de nos habituar a respostas demolidoras, resistência, etc.

Do tem peram ento faz parte a sim patia. Deve-se evitar um


compadecimento m elancólico e lânguido nas crianças. O compadecimento
é um a sensibilidade real; harm oniza-se apenas com um carácter ta l que
seja sensível. Distingue-se ainda da compaixão, e é um m al quando consiste
apenas em lam entar m eram ente um a coisa. Dever-se-ia dar dinheiro de
bolso às crianças, para que pudessem fazer bem aos necessitados, assim ver-
se-ia se são compassivas ou não; se, porém, são generosas apenas com o
dinheiro dos pais, é porque tal não é o caso.

A sentença: fe s tin a lenteÇ) indica um a actividade contínua na qual


tem os de nos apressar para aprendermos m uito, quer dizer, festin a . Mas
tem os tam bém de aprender fundam entadam ente e gastar tem po em cada
caso, isto é, lente. A questão é então a de saber o que é preferível: deve-se
abranger m uitos conhecim entos ou poucos, m as fundamentados? É m elhor
te r poucos conhecim entos, m as saber estes poucos fundam entadam ente,
que m uitos e superficiais, pois acaba-se por avistar a superficialidade neste
últim o caso. Mas a criança não sabe, de facto, em que circunstâncias pode
vir a precisar destes ou daqueles conhecim entos, e, por isso, é bem m elhor

84
que de tudo saiba algo fundamentado, pois senão engana e confunde os
outros com os seus conhecim entos aprendidos pela rama.

O m ais im portante é alicerçar o carácter. Este consiste na firm e intenção


de querer fazer algo e tam bém no seu exercício real. V irpropositi tenaxÇ ), diz
Horácio, e é isso um bom carácter! Por exemplo, se prometo algo a alguém,
tenho de o cumprir, independentem ente de m e vir assim a prejudicar. Pois
um hom em que se propõe algo, m as não o faz, já não pode confiar em si
próprio; por exemplo, se alguém se propõe levantar-se sempre cedo para
estudar, ou para fazer isto ou aquilo, ou para dar um passeio e se desculpa na
Primavera porque as m anhãs são demasiado frias e lhe poderiam fazer mal;
no Verão, porém, que lhe sabe bem dorm ir e o sono lhe é agradável, e assim
adie o seu propósito de dia para dia, acaba por já não confiar em si próprio.

Aquilo que é contra a m oral é exceptuado de tais propósitos. Num


homem m au, o carácter é m uito mau, m as aqui tam bém já se trata de
pertinácia, ainda que o facto de ser constante e consum ar os seus propósitos
suscite agrado, se bem que fosse m elhor que ele se m ostrasse assim no bem.

De alguém que adia sempre a consumação dos seus propósitos não se


espera m uito. A cham ada conversão futura é da m esm a espécie. Pois é
impossível que o homem que viveu sempre viciosam ente e que se quer
converter num instante, a não ser que suceda logo um m ilagre, acabe por

85
se tom ar de um a só vez igual àquele que se aplicou bem toda a sua vida
e que sempre pensou integram ente. Justam ente por isso tam bém nada há
a esperar de peregrinações, m ortificações e jeju n s; pois não se vê em que é
que as peregrinações e outros rituais podem contribuir para fazer de um a
penada de um homem vicioso um homem nobre.

Em nada contribui para a integridade e aperfeiçoam ento o facto de se


jeju ar de dia, e de noite se com er novam ente outro tanto, nem pode em nada
contribuir para a modificação da alm a infligir penitências ao corpo.

Para alicerçar o carácter m oral nas crianças, tem os de observar o


seguinte:

Tem de se lhes apresentar os deveres que têm de cumprir, tanto quanto


possível, através de exemplos e preceitos. É que os deveres que a criança
tem de cum prir são apenas deveres habituais para consigo e para com os
outros. Estes deveres têm de ser traçados pela natureza das coisas. Temos de
considerar, por isso, m ais pormenorizadamente:

a) os deveres para consigo mesmo. Estes não consistem em adquirir


vestim entas m agníficas e tom ar lautas refeições, etc., ainda que tudo tenha
de andar limpo. Não consistem no facto de se procurar satisfazer os apetites
e inclinações, pois deve-se ser, pelo contrário, m uito moderado e sóbrio, mas

86
antes, no facto de o homem te r no seu íntim o um a certa dignidade que o
enobrece perante todas as criaturas, e o seu dever é não negar esta dignidade
da humanidade na sua própria pessoa.

Negamos, contudo, a dignidade da humanidade, se, por exemplo, nos


dermos à bebida, com eterm os pecados não naturais, e nos entregarm os a
toda a espécie de licenciosidades, etc., que rebaixam todas elas o homem
m uito para lá dos anim ais. Além disso, se um hom em se com portar
servilm ente com os outros, se fizer sempre um cum prim ento, para se
insinuar, como ele julga, através de um a conduta tão indigna, tam bém isto
vai contra a dignidade da humanidade.

A dignidade do homem tam bém se to m a perceptível à criança logo


em si própria, por exemplo, em caso de falta de asseio, que é, pelo
menos, indecorosa para a humanidade. A criança pode, porém, rebaixar-
se realm ente para lá da dignidade da humanidade através da m entira,
conquanto já seja capaz de pensar e de com unicar os seus pensam entos a
outrem. O acto de m entir to m a o homem objecto de desprezo geral, e é um
m eio de lhe arrebatar a si próprio o respeito e a confiança que cada qual
deveria te r para consigo.

87
b) Deveres para com os outros. A veneração e respeito pelo direito dos
hom ens têm de lhe ser ensinados m uito cedo, e tem de se velar muito
para que os ponha em prática; por exemplo, se um a criança encontrar um a
outra criança pobre e a empurrar orgulhosam ente para fora do cam inho ou
sim plesm ente a afastar de si com um ta l empurrão, ou lhe bater, etc., não
se lhe deve dizer: não faças isso, isso dói, sê compassivo! é um a criança
pobre, etc., deve-se antes fazer-lhe o mesmo tão orgulhosamente e com a
m esm a força, porquanto a sua conduta repugna ao direito da humanidade.
As crianças, porém, não possuem intrinsecam ente qualquer generosidade.
Pode-se verificá-lo, por exemplo, no facto de que, quando os pais lhes
mandam dividir m etade do seu pão-de-leite com outra criança, sem que,
contudo, receba posteriorm ente desta por isso um a parte igual, ou pura e
sim plesm ente não o fazem , ou só m uito raram ente e contrariadas. Também
não se pode sem m ais arengar-lhes m uito sobre a generosidade, um a vez
que elas nada têm que seja seu.

Muitos autores om itiram a secção da m oral, que inclui a doutrina


dos deveres para consigo mesmo, ou explicaram -na erradam ente, como
Cm gottC). O dever para consigo mesmo, contudo, consiste, como já se disse,
em o hom em conservar a dignidade da humanidade na sua própria pessoa.
Ele censura-se, quando tem diante dos olhos a ideia da humanidade. Tem
um original na sua ideia com o qual se compara. Quando o número de

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anos cresce, quando a inclinação para o sexo se com eça a agitar, então é o
m omento crítico em que apenas a dignidade do hom em está em condições
de conter o jovem dentro de lim ites. É necessário, com antecedência,
adverti-lo de como se precatar diante deste ou daquele.

Falta às nossas escolas, quase sem excepção, algo que fom entaria muito
a form ação das crianças para a integridade, nomeadam ente um catecism o
do direito. Este deveria conter casos populares que sucedem na vida comum
e nos quais se levanta sem querer a questão de saber se algo será ou não
ju sto. Por exemplo, se alguém que deve pagar hoje ao seu credor for tocado
pela visão de um indigente e lhe entregar a som a em dívida, e que deveria
pagar: isso é ju sto ou não? Não! é injusto, pois tenho de ser livre, se quiser
ser beneficente. E, se eu der o dinheiro ao pobre, faço um a obra m eritória;
mas, se pagar a m inha dívida, faço um a obra devida. Além disso, seria
perm itida um a m entira por necessidade? Não! não é pensável um único
caso em que aquela m ereça desculpa, m uito m enos por parte de crianças,
que, aliás, consideram toda a m inudência um caso de necessidade, e se
perm itiriam m entir reiteradam ente. Se já existisse um ta l livro, poder-se-
ia, com m uito proveito, achar que dizer diariam ente durante um a hora para
que as crianças conhecessem e aprendessem a levar a peito o direito dos
homens, essa m enina dos olhos de Deus na terra.

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No que diz respeito à obrigação de beneficência: é um a obrigação
apenas im perfeita. Não se tem tanto de am olecer o coração das crianças,
de modo a que sejam afectadas pelo infortúnio dos outros, como de
o tom ar voluntarioso. Que ele não esteja repleto de sentim entos, mas
sim com a ideia do dever. Muitas pessoas tom aram -se, com efeito, de
coração empedernido, porquanto, dado que haviam sido anteriorm ente
compassivas, se viram amiúde intrujadas. É vão querer fazer compreender
a um a criança o m érito das acções. Os clérigos erram com m uita frequência
ao representarem as obras de beneficência como algo m eritório. Sem
pensarem no facto de que, em referência a Deus, nunca podemos fazer
m ais que aquilo que devemos, tam bém é apenas nosso dever fazer bem
ao pobre. Pois a desigualdade da prosperidade dos hom ens provém apenas
de circunstâncias fortuitas. Se possuo um pecúlio, tam bém devo agradecê-
lo apenas ao partido que eu próprio ou o m eu antepassado tirám os de
determ inadas circunstâncias, e a referência ao todo permanece sempre a
mesma.

Quando se cham a a atenção de um a criança para se avaliar segundo o


valor das outras, provoca-se inveja. Ela deve, antes, avaliar-se segundo os
conceitos da sua razão. Daí que a humildade nada m ais seja, na verdade, do
que um a comparação do seu valor com a perfeição m oral. Assim , a religião
cristã, por exemplo, não ensina tanto a humildade quanto to m a o homem

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humilde, porquanto ele tem de se comparar, de acordo com aquela, com o o
supremo modelo da perfeição. É um a com pleta inversão fazer da humildade
um a avaliação de si inferior à de outrem. Vê com o esta e aquela criança se
comporta! e coisas do género, um a exclam ação deste tipo suscita apenas
um modo de pensar m uito vulgar. Se o homem avalia o seu valor segundo
outrem , ou procura elevar-se acim a dos outros ou então am esquinhar o
valor de outrem. Este últim o facto, porém, constitui a inveja. Procura-se
sempre, então, atribuir um a falta ao outro; pois se ele não existisse, tam bém
não se poderia ser comparado com ele, e assim ser-se-ia o melhor. Através
de um espírito de emulação m al apresentado apenas se provoca inveja. O
caso em que a em ulação ainda poderia servir para algum a coisa seria aquele
em que, para convencer alguém da exequibilidade de algo, por exemplo, ao
requerer de um a criança que aprenda um a certa m atéria, lhe m ostro que
outros o conseguem fazer.

Em nenhum caso se pode perm itir que um a criança envergonhe outra.


Tem de se procurar evitar todo o orgulho que se funde em prerrogativas da
fortuna. Em sim ultâneo, porém, tem de se procurar m otivar nas crianças
a franqueza. Esta é um a m odesta confiança em si próprio. Através dela,
o homem coloca-se em posição de m ostrar convenientem ente todos os
seus talentos. Aquela distingue-se bem da im pudência que consiste na
indiferença ante o juízo dos outros.

91
Todos os desejos do hom em ou são form ais (liberdade e capacidade)
ou m ateriais (referidos a um objecto), desejos do capricho ou do prazer,
ou acabam por se referir à m era duração de ambos como elem entos da
felicidade.

Desejos da prim eira espécie são a ambição, a ganância e o am or da


dominação. Da segunda: o gozo sexual (luxúria), das coisas (conforto) ou
da sociedade (gosto pelo divertim ento). Desejos da terceira espécie, por fim ,
são: o am or da vida, da saúde, das comodidades (no futuro: estar livre de
cuidados).

Os vícios são, porém, ou da maldade ou da vileza ou da índole. Aos


prim eiros pertencem : a inveja, a ingratidão e a alegria m aligna; aos da
segunda espécie: a injustiça, a perfídia (falsidade), a leviandade, tanto na
dissipação dos bens como na da saúde (intem perança) e da honra. São vícios
da terceira espécie: a insensibilidade, a cupidez, a indolência (moleza).

As virtudes ou são virtudes do m érito ou sim plesm ente da obrigação ou


da inocência. Das prim eiras fazem parte: a generosidade (na superação de si,
tanto da vingança com o das comodidades e da ganância), a beneficência, o
domínio de si; da segunda espécie: a lealdade, o decoro e a índole pacífica; da
terceira espécie: a honradez, a m odéstia e a sobriedade.

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Mas é o homem, por natureza, m oralm ente bom ou mau? Nem um a coisa
nem outra, pois não é um ser m oral por natureza; só se to m a um ser moral,
se a sua razão se elevar aos conceitos de dever e de lei. Pode-se dizer, no
entanto, que tem em si originariam ente estím ulos para todos os vícios, pois
tem inclinações e instintos que o incitam , como se a razão já se exercesse
como contraponto. Por isso, só se pode to m ar m oralm ente bom através da
virtude, ou seja, coagindo-se a si mesmo, se bem que pudesse ser inocente
sem estím ulos.

Os vícios promanam m aioritariam ente do facto de o estado civilizado


fazer violência à natureza, e a nossa destinação como seres humanos é,
no entanto, sair do rude estado natural enquanto anim ais. A arte perfeita
tom a-se novam ente natureza.

Na educação, tudo assenta no estabelecim ento por toda a parte dos


alicerces correctos, e em tom á-los compreensíveis e aceitáveis às crianças.
Estas têm de aprender a colocar o aborrecim ento daquilo que é repugnante
e do disparate no lugar do ódio; o aborrecer interno, em vez das penas
exteriores, hum anas e divinas, a avaliação de si e a dignidade interior em
vez da opinião dos hom ens, o valor interno da acção e do acto, em vez da
palavra e m ovim entos de alma, entendim ento em vez de sentim ento, e a

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alegria e piedade com bom humor, em vez da devoção rabugenta, tem erosa
e lúgubre.

Acima de todas as coisas, porém, é de evitar tam bém que as crianças


estim em excessivam ente os m eritafortu n ae.

No que diz respeito à educação das crianças de um ponto de vista


religioso, põe-se um a questão prévia: será oportuno ensinar desde cedo
conceitos religiosos às crianças? Sobre isto m uito se disputou na pedagogia.
Os conceitos religiosos pressupõem sempre alguma teologia. Deveria a
juventude, que não conhece o mundo, que não se conhece a si própria,
poder ser ensinada teologicam ente? Deveria a juventude, que ainda não
conhece o dever, estar em condições de compreender um dever imediato
para com Deus? Uma coisa é certa, se fosse possível que as crianças não
testem unhassem actos de veneração do ser supremo, se não ouvissem,
nem um a única vez, o nom e de Deus, seria adequado à ordem das coisas
conduzi-las a essa finalidade e àquilo que convém ao homem, apurar a sua
faculdade de apreciar, ensinar-lhes a ordem e beleza das obras da natureza,
e acrescentar ainda um conhecim ento alargado do sistem a do mundo, e

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assim abrir-lhes então o conceito de um ser supremo, de um legislador. Mas,
um a vez que isto não é possível na nossa situação actual, se se quisesse
ensinar-lhes só m uito tardiam ente algo acerca de Deus, acabariam por
ouvir alguém a nom eá-lo e veriam o chamado culto para com ele, o que ou
lhes provocaria indiferença ou suscitaria nelas um conceito invertido, por
exemplo, um tem or perante o seu poder. Mas, dado que se tem de cuidar
que este não se possa anichar na im aginação das crianças: é necessário, para
evitá-lo, procurar m inistrar-lhes desde cedo conceitos religiosos. Isto não
pode ser, porém, um trabalho de memorização, m era im itação e apenas um
macaquear, m as antes o cam inho que se escolhe deve ser sempre adequado
à natureza. As crianças compreendem, m esm o sem conceitos abstractos do
dever, das obrigações, do bom e m au com portam ento, que existe um a lei do
dever, que a comodidade, o ú til e coisas do género não deviam determ iná-
las, m as sim algo universal, que não se pauta pelo hum or dos hom ens. O
próprio professor, porém, tem de estar munido deste conceito.

Antes de m ais, deve-se atribuir tudo à natureza e depois esta a Deus,


como, por exemplo, prim eiro atribuir tudo à conservação das espécies e ao
seu equilíbrio, m as ainda m ais, em sim ultâneo, ao homem, para que ele
próprio se to m e feliz.

95
O conceito de Deus deveria ser m ais bem clarificado, de in íd o, em
analogia com o de pai sob cujo cuidado nos encontram os, com o qual
se pode reladonar vantajosam ente a unidade dos hom ens, como num a
fam ília.

Mas o que é afinal a religião? A religião é a lei em nós, na medida em


que, através de um legislador e juiz, conserva um a impressão sobre nós; é
um a m oral aplicada ao conhecim ento de Deus. Se não se ligar a religião à
moralidade, ela tom a-se um a demanda de favores. Os cânticos, orações, e
a ffequênda da igreja devem apenas dar ao hom em novas forças, um novo
alento para se aperfeiçoar, ou ser expressão de um coração animado pela
representação do dever. São apenas preparações para as boas obras, m as não
obras boas em si m esm as, e de nenhum outro modo podemos ser agradáveis
ao ser supremo a não ser tom ando-nos hom ens melhores.

Em prim eiro lugar, deve-se com eçar, na criança, com a lei que ela tem
em si. Se for vidoso, o homem é em si digno de desprezo. Isto fundam enta-
se nele próprio, e não som ente porque Deus proibiu o m al. Pois não é
necessário que o legislador seja tam bém o autor da lei. Assim, um príndpe
pode proibir o roubo nos seus domínios, sem por isso poder ser chamado
o autor da proibição do roubo. A partir daqui, o hom em aprende a ver que
som ente o seu bom com portam ento o to m a digno da felicidade. A lei divina

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tem de aparecer como um a lei da natureza, pois não é arbitrária. Daí toda a
moralidade requerer religião.

Não se deve, porém, com eçar com a teologia. A religião que se constrói
m eram ente sobre a teologia nunca pode conter nada de m oral. Neste caso,
só se tem temor, por um lado, e intenções e disposições que buscam
recompensa, por outro, ora isso vem a ser um m ero culto supersticioso. A
moralidade tem , portanto, de te r a precedência, a teologia segue-a então, é
isto a religião

A lei em nós designa-se por consciência. A consciência é, de facto, a


aplicação das nossas acções a esta lei. As censuras desta ficarão sem efeito,
se a não pensarm os como o representante de Deus, que estabeleceu a sua
sede sublime sobre nós, m as tam bém um a sede de juízo em nós. Se a religião
não for acrescentada ao escrúpulo m oral, não tem efeito. A religião sem
escrúpulo m oral é um culto supersticioso. Quer-se servir a Deus, quando,
por exemplo, se O louva, se exalta o seu poder, a sua sabedoria, sem pensar
como se cum priria as leis divinas, e mesmo sem conhecer e investigar o seu
poder, a sua sabedoria, etc. Estes louvores são um opiáceo para a consciência
de tais pessoas, um a almofada para dormirem tranquilam ente.

As crianças não conseguem apreender todos os conceitos da religião,


m as tem de se lhes ensinar alguns; só que estes devem ser m ais negativos

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que positivos. Fazer que as crianças repitam fórm ulas m aquinalm ente
não serve de nada e produz apenas um conceito invertido da piedade. A
verdadeira veneração de Deus consiste em agir segundo a vontade de Deus,
e é isto que deve ser ensinado às crianças. Tem de se velar nas crianças, bem
como em si mesmo, para que o nom e de Deus não seja invocado em vão
com tan ta frequência. Se se o utilizar nos desejos de felicidade, mesmo com
intenção piedosa, trata-se de um abuso. O conceito de Deus deveria instilar
no homem reverência de cada vez que se pronunciar o seu nom e e, por isso,
raram ente deveria ser utilizado, e nunca de modo leviano. A criança tem de
aprender a sentir reverência perante Deus, como perante o senhor da vida e
de todo o mundo; além disso, como perante o protector dos hom ens, e, em
terceiro e últim o lugar, como perante o ju iz deles. Diz-se que Newton sempre
que pronunciava o nom e de Deus recolhia-se um m om ento e meditava.

Através de um a clarificação conjunta do conceito de Deus e do de dever,


a criança aprende tanto m elhor a respeitar a Providência divina pelas
criaturas e a guardar-se do pendor para a destruição e para a crueldade,
que se m anifesta frequentem ente na tortura de anim ais pequenos. Em
sim ultâneo, dever-se-ia igualm ente instru ir a juventude para que descubra
o bem no m al, por exemplo, os anim ais de rapina, os insectos são modelos
de asseio e diligência. Despertam os hom ens m aus para a lei. As aves que
perseguem os verm es são guardas do jardim , etc.

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Deve-se tam bém ensinar às crianças alguns conceitos do ser supremo,
para que, quando virem outrem a orar, etc., possam saber a quem e por
que acontece isso. Estes conceitos, porém, devem ser poucos em número e,
como já foi dito, apenas negativos. Deve-se com eçar a ensinar-lhos desde
tenra juventude, velando para que vejam aí que os hom ens não se avaliam
pela sua observância religiosa, pois, a despeito da m ultiplicidade religiosa,
há por toda a parte unidade da religião.

Vamos agora acrescentar aqui, com o conclusão, alguns reparos que


deveriam ser observados principalm ente pelas crianças, aquando da sua
entrada nos anos da adolescência. O adolescente com eça, por esta altura,
a fazer certas distinções que não fazia anteriorm ente. A saber, em prim eiro
lugar, a diferença dos sexos. A natureza espalhou sobre isto um certo m anto
de segredo, como se este assunto não fosse algo com pletam ente decente
para o homem e um a m era necessidade da animalidade no homem. A
natureza, porém, procurou ligar este tem a a toda a espécie de moralidade
que é apenas possível. Até as nações selvagens se com portam aí com um a
espécie de pudor e recato. As crianças fazem de vez em quando perguntas

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indiscretas aos adultos, como por exemplo, donde vêm os bebés? mas não
se dão por satisfeitas facilm ente, se se lhes der respostas absurdas que
nada significam ou se forem despedidas com a resposta de que se trata de
perguntas de crianças.

O desenvolvimento destas inclinações no adolescente é m ecânico, e


passa-se aí o m esm o que em todos os instintos que se desenvolvem até na
ausência de conhecim ento do seu objecto. É, portanto, impossível conservar
o adolescente n a ignorância e na inocência que se liga àquela. Com o
silêncio, porém, só se consegue agravar o m al. O que se pode verificar
na educação dos nossos antepassados. Na educação dos novos tem pos,
supõe-se com razão que se tem de falar sobre isso sem rebuço, clara e
distintam ente. É claro que se trata de um a questão delicada, porquanto não
será considerada objecto de um a conversa pública. Mas tudo decorrerá da
m elhor form a, se se falar disso com um a seriedade digna e se não entrar nas
inclinações do adolescente.

O décimo terceiro ou décimo quarto ano é habitualm ente o m omento em


que se desenvolve no adolescente a inclinação para o sexo (pois as crianças
teriam de te r sido desencaminhadas e corrompidas por m aus exemplos,
se sobreviesse antes disso). A sua faculdade de julgar já está então bem

100
form ada, e a natureza já as preparou de molde a que se possa falar com eles
sobre isso.

Nada enfraquece m ais o espírito bem com o o corpo do hom em que a


espécie de luxúria que se orienta para si e que conflitua com a natureza do
homem. Mas tam bém isto não deve ser escondido ao adolescente. Tem de
se lhe apresentar em toda a sua repugnância, tem de se lhe dizer que se
tom aria inú til para a propagação do género humano, que o vigor do corpo
se afunda m ais, que ele chega assim m ais rapidam ente à velhice e que o seu
espírito sofrerá m uito com isso, etc.

Pode-se contrariar o estím ulo para tal através da ocupação contínua,


não consagrando à cam a e ao sono m ais tem po que o necessário. Os
pensam entos para ta l têm de ser expulsos do sentido através daquela
ocupação, pois, se o objecto perm anecer, ainda que seja n a mera
im aginação, continua a corroer a força vital. Se se orientar a sua inclinação
para o sexo oposto, depara-se sempre com alguma resistência, se se orientar
para si m esm o, pode-se satisfazer-se a qualquer altura. O efeito físico é
de sobrem aneira prejudicial, m as as consequências do ponto de vista da
moralidade são de longe ainda piores. Transgride-se aqui os lim ites da
natureza, e a inclinação causa estragos sem cessar, porquanto não tem lugar
um a satisfação real. Os professores de adolescentes já crescidos colocaram a

101
questão de saber se seria proibido um adolescente te r relações sexuais com
o sexo oposto. Se se tiver de escolher um a das duas coisas, esta últim a é,
sem dúvida, melhor. Naquela, o adolescente age contra a natureza, m as aqui
não. A natureza chama-o à virilidade, logo que se to m a adulto, e tam bém ,
por isso, à propagação da espécie; as necessidades, porém, que o homem
necessariam ente tem num estado cultivado fazem que ele nem sempre
possa educar os seus filhos. Comete aqui um a falta contra a ordem civil. O
m elhor é, portanto, ou antes, o dever é que o adolescente espere até estar
em condições de se casar devidamente. Age assim não só com o um homem
bom , m as tam bém como um bom cidadão.

Que o adolescente aprenda desde cedo a nu trir um respeito conveniente


perante o sexo oposto, a conquistar para si, pelo contrário, através de um a
actividade sem vícios, o m esm o respeito, e assim a aspirar ao elevado
prémio de um m atrim ónio feliz.

Uma segunda distinção que o adolescente com eça a fazer pela época em
que entra n a sociedade consiste no conhecim ento da diferença dos estados
e da desigualdade dos hom ens. Enquanto criança, não se pode deixá-la
aperceber-se desta últim a. Não se pode sequer adm itir que dê ordens à
criadagem. Se ela vir que os pais dão ordens à criadagem, pode-se dizer-lhe
em todo o caso: dam os-lhes pão e por isso obedecem-nos, tu não o fazes, por

102
isso tam bém não têm de te obedecer. As crianças tam bém nada sabem disto,
se os pais não lhes ensinarem tal ilusão. Deve-se m ostrar ao adolescente
que a desigualdade dos hom ens é um a instituição que nasceu porque
um hom em procurou adquirir vantagens perante outro. A consciência da
igualdade dos hom ens na desigualdade civil pode ser-lhe ensinada a pouco
e pouco.

Deve-se velar para que o jovem se avalie em absoluto e não segundo


os outros. A sobrevalorização dos outros relativam ente àquilo que não
constitui o valor do hom em é vaidade. Além disso, deve-se indicar-lhe o
escrúpulo em todas as coisas e que ele não pareça m eram ente, m as que
se esforce por ser. Deve-se cham ar-lhe a atenção para que, em nenhum
assunto onde tenha bem ponderado sobre um propósito, o deixe tom ar-se
um propósito vazio. É preferível não se propor nenhum propósito e deixar
a coisa na dúvida - para que seja modesto para com as circunstâncias
exteriores e paciente nos trabalhos: sustine e t abstin e - para que seja
modesto nos prazeres. Se não se anseia por m eros prazeres, m as se form os
pacientes nos trabalhos, tom am o-nos um m embro ú til na comunidade e
guardamo-nos do tédio.

Além disso, deve-se indicar ao adolescente a alegria e o bom humor. A


alegria do coração promana de não se ter nada a censurar-se, da igualdade

103
do humor. Pode-se atingir através do exercido o ponto de se poder m ostrar
sempre um participante bem -disposto da sodedade.

Deve-se ainda cham ar a sua atenção para que considere m uitas coisas
sempre como dever. Uma acção tem de te r valor para m im não porque
concorde com a m inha inclinação, m as sim porque cumpro o meu dever.

Para que ame os outros e assim para disposições cosmopolitas. Na nossa


alm a existe algo que faz que tenham os interesse 1) em nós próprios, 2) nos
outros com quem crescem os, e então tem 3) ainda de ter lugar um interesse
na perfeição do mundo. É necessário fam iliarizar as crianças com este
interesse, a fim de que possam nele aquecer as suas almas. Têm de se alegrar
com um mundo m elhor, ainda que não redunde em vantagem para a sua
pátria ou para si próprios.

Para que atribua um valor dim inuto à fruição dos divertim entos da
vida. O tem or pueril da m orte desvanecer-se-á então. Deve-se m ostrar ao
adolescente que a fruição não proporciona o que o prospecto promete.

Para a necessidade, por fim , de fazer as contas consigo próprio em cada


dia, para que no fim da vida possa fazer um cálculo sobre o valor da sua vida.

(-) Aguenta e abstém-te, divisa estóica. (N. T.)

(-) Devagar com pressa. (N. T.)

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(-) Citação da ode de H orádo cuja prim eira estrofe é “O hom em ju sto e tenaz no seu
propósito/em sua firm e m ente não se perturba/com o furor dos cidadãos impondo a in ju stiça/
nem com o vulto do am eaçador tirano”. Horácio, Odes, III, 3 , Livros Cotovia, Lisboa, 2 0 0 8 , trad.
de Pedro Braga Falcão.

(-) Kant refere-se a M artin Crugot (1 7 2 5 -9 0 ), teólogo de Bremen, cuja obra principal é Der
Christ in der Einsamkeit. (N. T.)

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