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NITERÓI
2020
DIOGO COUTINHO IENDRICK
Orientador:
Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga
Niterói, RJ
2020
ii
DIOGO COUTINHO IENDRICK
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga – PPGA-UFF (Orientador)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello – PPGA-UFF
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Robson Rogério Cruz – UNILAB
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Martins Costa Medawar – LeMetro/IFCS-UFRJ
_______________________________________________________________
Prof. Dra. Ana Paula Mendes de Miranda – PPGA-UFF (suplente interno)
_______________________________________________________________
Prof. Dra. Soraya Silveira Simões – IFRJ (suplente externo)
Niterói
2020
iii
iv
DEDICATÓRIA
Gratidão por ter vivido em seu tempo, Iyá, que continuará sendo agora. A senhora já
era imortal.
v
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço aos que vieram antes de mim. Ancestrais, espirituais ou não,
que umedeceram a grande custo a terra em que piso. E também às antropólogas e
antropólogos — e demais pensadores e pensadoras — que pavimentaram o caminho que hoje
trilho.
A Ajagunã, meu deus particular, que me guia e guarda 24 horas por dia, 365 dias por
ano — às vezes 366. Ao qual fui iniciado pelas mãos de Oxum em dezembro de 2003 e que
me acompanhará até minha penúltima jornada. Desde o primeiro dia tem sido uma honra ser
filho desse orixá e o orgulho só aumenta. A Oxum, o eterno brilho dos meus olhos e pilar de
sustentação. A Xangô e Iemanjá por me acolherem e me enxergarem de maneira especial. A
todas as forças espirituais que me amparam e brilham sobre mim.
Ao babalorixá Mauricio Obá Guerê e à fantástica egbé do Ilê Axé Aganju Ixolá
que me acolheram durante a pesquisa e em um momento difícil de minha trajetória religiosa.
Além de interlocutor especial, Mauricio foi um mais velho exemplar. O fogo de Xangô
retornou o brilho aos meus olhos por seu intermédio; sou extremamente grato. A Pai Julio de
Omolu pelo carinho e remédios para a coluna. Mencionando algumas pessoas da egbé de
Aganju: Letícia de Obá, Cristiana de Oxóssi, Fabio de Airá, Agba Nilza Iyá Ominiké, Iyá
Ely de Oxum, Thiago de Ogum, Karine de Ogum — doutora em Antropologia —, Marcia
de Exu, Equede Valeria de Oyá e Bernadete de Oyá. Irmãs e irmãos de fé que deram um
pouco de seu tempo, carinho e amor pelos orixás e pelo terreiro através das palavras e também
escuta. Mo dupé!
vi
À Dona Leila, de Omolu, costureira de mão cheia, pela disponibilidade, simpatia e
por ter recebido a mim e a meu orientador em meio a potes de botões, tecidos, máquinas e
linhas, compartilhando conosco seu sagrado.
À egbé do Ilé Ìyá Ògùn Òpó Airá, à qual retornei em consequência, também, da
experiência modificadora que foi esta etnografia. Obrigado pelo acolhimento, pela paciência
com a minha “obsessão” por roupas e por me ouvirem com carinho. Em especial às três
sereias: Adriana, Máuria e Melissa, as três de Iemanjá, que se tornaram senhoras do vestir.
A primeira e iniciada há mais tempo dentre elas acabou se encaminhando para a Antropologia
também. Bem-vinda!
À minha mãe, Elaine Coutinho, que não concordando com nada referente à temática
do candomblé, se orgulha e é parte do caminho até aqui. Aquela que registrou o “pulo que eu
dei na máquina de lavar” quando decidi fazer mestrado. Diz ela que, ali, já sabia que eu seria
aprovado no processo de seleção. Eu acredito.
viii
Por último, mas com certeza não menos importante, ao meu companheiro de vida,
Cleber Ricardo. Obrigado pela presença constante, pelo apoio e pelo amor. Pelo “almocinho
simples” quando eu não podia interromper a leitura e a escrita para ajudar nas tarefas da casa.
Obrigado!
ix
RESUMO
x
ABSTRACT
Clothing is an important identity marker, revealing cultural, political, economic and moral
aspects of cultures. As symbolic language, becomes intelligible in emotional states, social
occasions and hierarchical levels. It narrates paths, indicates inheritance, social roles and life
choices, creating specific subjectivities. In candomblé, it also manifests initiation level or
religious knowledge of individuals living in domestic routine and in a social arrangement
called “família de santo”. The appreciation of the engagements built around the “família de
santo” is responsible for setting the rules of dress, justifying the maintenance of techniques
and uses over time, therefore understanding religious belonging as a process including ethical
and aesthetic dimensions reinforced by domestic routine and affective engagements it evokes.
xi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E QUADROS
xii
Fotografia 28 – Pano da costa atado com laço................................................................. 87
Fotografia 29 – Pano da costa ao ombro.......................................................................... 87
Fotografia 30 – Delogun de Ogum.................................................................................. 92
Fotografia 31 – Delogun de Ogum Já.............................................................................. 92
Fotografia 32 – Quelês no Opô Xangô............................................................................ 93
Fotografia 33 – Iaô de Iemanjá de quelê.......................................................................... 93
Fotografia 34 – Pitanga encastoada em rosa.................................................................... 97
Fotografia 35 – Mule....................................................................................................... 99
Figura 3 – Diagrama de filiação das casas, a partir do Ilê Axé Opô Afonjá (RJ)............ 103
Fotografia 36 – Família de santo em função.................................................................... 106
Fotografia 37 – Ajeitando o laço..................................................................................... 113
xiii
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.......................................................................................... 1
1. ENTRANDO NO TERREIRO........................................................................ 4
2. DA RUA AO XIRÊ – O CAMINHO DO VESTUÁRIO................................ 20
2.1. Da rua à costureira........................................................................................... 32
2.2. O corpo, o gênero, a roupa............................................................................... 45
2.3. Branco e as demais cores................................................................................. 56
2.4. A roupa de ração e a roupa de festa................................................................. 65
2.5. Algumas peças e seus usos.............................................................................. 70
2.5.1. Camisu e bata................................................................................................... 70
2.5.2. As anáguas....................................................................................................... 78
2.5.3. A saia............................................................................................................... 82
2.5.4. Pano da costa................................................................................................... 85
2.5.5. Ojá de peito..................................................................................................... 88
2.5.6. Ojá de cabeça, equeté e cabelo......................................................................... 88
2.5.7. Fios de contas.................................................................................................. 91
2.5.8. Joias................................................................................................................. 96
2.5.9. Perfume e maquiagens..................................................................................... 98
2.5.10. Calçados.......................................................................................................... 99
3. CASA, FAMÍLIA E TRADIÇÃO.................................................................. 101
3.1. Casa e domesticidade...................................................................................... 109
3.2. Casa, ancestralidade, tradição e memória....................................................... 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 124
Dicionários...................................................................................................... 131
Legislação e notícia......................................................................................... 131
xiv
APRESENTAÇÃO
Saias brancas, em cores, panos diversos em laços e tiras envolvem bustos, pilastras
tigelas e pessoas. Amarram, apertam, unem, adornam, guarnecem, protegem e embelezam. Os
tecidos estão em todos os lugares em um terreiro, em diferentes usos e funções. Tramas
imbricadas e implicadas que permeiam as relações e são, elas próprias, relações.
Da ida à rua com o pai de santo em busca de pano e materiais de aviamento até o
xirê 1 , tecidos se transformam em axó, roupa, atravessando gerações e criando relações. As
roupas contam histórias, se soubermos perguntar. Falam sobre escravização e privações, sobre
liberdade e alegria. Contam histórias de períodos imemoriais, da criação do mundo, da
generosidade das plantas e também histórias mais próximas, de família.
1 Do iorubá, ṣiré é o ritual público, a festa, culminância de semanas de rituais privados. É marcado por seu
caráter festivo, roupas luxuosas e alimentação farta. Os orixás são vestidos em suas roupas de gala, dançam e
abraçam seus fiéis.
1
construído. Aponto também a relevância desse posicionamento para a pesquisa. É onde
explicito meu objetivo de compreender de que maneira as práticas em torno do vestir
consolidam e fortalecem suas regras. Apresento a organização social do Ilê Axé Aganju Ixolá
e sua estrutura. Entrar no terreiro é uma forma de contextualizar minha abordagem de
construção do campo de pesquisa, que é, em si, constitutiva deste e está implicada em todas as
reflexões que elaboro.
2
Foram duas as questões que me levaram a apresentar também a grafia iorubá. A
primeira delas se refere ao idioma como língua tonal e predominante nos ritos de candomblé
aqui abordados. A grafia assertiva permite a eventual busca do vocábulo em dicionários
especializados e verificação das diferentes acepções da palavra e diversidade do campo
semântico 2 , justificativa adotada pelos antropólogos Arno Vogel, Marco Antonio da Silva
Mello e José Flávio Pessoa de Barros para o uso da grafia iorubá no livro Galinha d’Angola,
publicado em 1993, e com a qual concordo plenamente. Essa diversidade não necessariamente
é conhecida e julguei pertinente apresentar essa possibilidade aos que tiverem acesso ao
presente trabalho.
2 Informação obtida em aula ministrada pelo professor Marco Antonio da Silva Mello na disciplina Problemas
específicos de análise antropológica do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense em 28 de agosto de 2018.
3 Do iorubá, orí, cabeça. É o “eu” interior, reverenciado no ritual de bori.
3
1. ENTRANDO NO TERREIRO
Àkòró ko láṣọ
Màrìwò láṣọ Ogum o
Màrìwò 4
(Cântico de Ogum)
O Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), o Alaketu (Ilê Maroialaji), o Gantois (Ilê
Iyá Omi Axé Iyá Massê), a Casa de Oxumarê (Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô) e o Ilê Axé
Opô Afonjá são há muito consideradas casas matrizes do modelo queto.
Vivaldo da Costa Lima (2003) chama atenção para a utilização do termo jeje-nagô
como forma de considerar a interpenetração de influências dos diversos grupos étnicos
oriundos da África, denominação criada por Nina Rodrigues (CAPONE, 2018), designando o
sincretismo anterior ao processo de escravização. Ainda que existam terreiros jeje-nagô
predominantemente nagô, ou seja, de culto marcadamente iorubá, a utilização do referido
termo reconhece elementos estruturais da cultura jeje. É esta concepção que adoto para o
presente trabalho.
5 Uma importante cidade surgida no território iorubá. Com posterior demarcação de fronteiras ficou situada no
antigo país do Daomé, atual Benim (VERGER, 2018). O soberano é denominado alaketu. No Brasil, passou a
definir uma das modalidades de candomblé oriundas do território iorubá.
6 O termo casa é entendido por Vogel, Mello e Barros (1993) como uma categoria emblemática do campo
7 Sobre a Missa de Iaô no Ilê Axé Fí Orô Sakapata, Pai Mauricio de Aganju relatou: “Meu barco foi o último a
ter missa, na Igreja de Coelho da Rocha. A missa era o primeiro ato externo, antes da bênção à casa dos mais
velhos. Minha irmã de barco foi empurrada, por intolerância religiosa, durante a missa e Oya chegou. Eu ensaiei
reagir, mas minha Senhora que me comprou, Ekede Geni de Osagiyan, a única Ekede de Osanyin do Tio Nilson,
não me deixou. Imagina ela sozinha conosco! Oya só foi embora no Afonjá, onde fomos tomar bênção ainda de
kelê. Depois disso, julho de 1989, os últimos barcos não tiveram mais missa, só a benção e a venda.”
8 Do iorubá, oríkì. Registro oral de um evento, louvando atributos e feitos de um orixá, pessoas, linhagens,
objetos ou lugares (SANTOS, J., 2008). De acordo com Verger (2012), recitar um oríkì é um meio do adepto
agradar e provar à divindade que lhe pertence e é digno de proteção.
9 Do iorubá, ìtàn. Mitos, histórias.
10 Folhas do dendezeiro, igi ọ pẹ — Elaeis guinensis —, desfiadas (BARROS, 2011).
̀
11 Raphia vinífera (BARROS, 2011).
12 Do iorubá, ẹbọ. Oferenda, sacrifício.
13 Conjunto de símbolos em que, de acordo com Vogel, Mello e Barros (1993), se condensam as relações entre
os homens e os deuses.
6
realizados para os orixás são cobertos por penas ou por uma membrana animal específica 14 ,
assim como alguém que bola 15 com o orixá é coberto por um lençol branco.
Lembro-me, ainda com onze anos de idade, de passar a ferro as “baianas”17 da minha
mãe. Eu as pendurava passadas na porta do quarto onde aguardariam o sábado de festa no
terreiro. Hoje, minha mãe não mais faz parte do candomblé e suas baianas tiveram algum fim
trágico destinado a todos os antigos pertences religiosos de um novo convertido ao evangelho.
14 Peritônio.
15 Termo que caracteriza uma espécie de desmaio em função do despreparo de um não iniciado para o transe de
orixá. Em muitos casos é interpretado como indicativo da necessidade de iniciação.
16 Tradição religiosa originária da África Ocidental e difundida pela América Latina.
17 O traje feminino completo de candomblé é frequentemente chamado de baiana (LODY, 1995). Pode se referir,
8
Fundado no centro do Rio de Janeiro (RJ) — na região da Pedra do Sal18 — ao final
do século XIX e em Salvador (BA) em 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá se mantém como
referência do modelo queto de candomblé por ser considerado uma das casas matrizes,
terreiros antigos que reúnem identidades e saberes tradicionais (LODY, 2008). Ambos
tombados como patrimônio histórico e cultural; o terreiro do Rio de Janeiro pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em primeiro de junho de 2016 (Rio de Janeiro,
2016) 19 e o terreiro baiano pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
em julho de 2000 (BRASIL, 2000). Tais procedimentos caracterizam sua importância e
legitimidade no âmbito público, conforme destacado no diagrama (figura 1).
Dez anos após minha iniciação, ao ser consagrado ao cargo de babá egbé 20 do
terreiro de minha afiliação, o Ilê Iyá Ogum Opô Aira, a indumentária passou a ocupar uma
posição especial em minha lida no candomblé. Uma de minhas responsabilidades seria zelar
pela tradição do terreiro e nisso se incluíam, dentre outras questões, as vestimentas adequadas.
Como de praxe, recorri aos adeptos mais antigos da religião, uma vez que grande
parte do saber do candomblé ainda se encontra na oralidade e a lembrança dos mais velhos é a
principal fonte das regras do grupo (DINIZ, 2001), no caso de grupos ágrafos, como eram os
terreiros à época de formação. Embora atualmente muitos livros estejam à disposição —
vários deles elaborados por antropólogos e antropólogas — registrando história e costume dos
terreiros, há na fala de um mais velho a transmissão do axé.
Na acepção aqui pretendida, axé significa a força espiritual dinâmica dos orixás e
poder de realização, assegurando a existência, o acontecer e o devir (SANTOS, J., 2008). É
liberado e canalizado por meio da atividade ritual, fixado e transmitido temporariamente a
seres e objetos (SANTOS, J., 2008). Maria das Graças Rodrigué caracteriza o termo como:
[...] energia primordial que promove a vitalidade enraizada do ser humano, com o
que ele tem de mais essencial em si. É uma qualidade de energia latente mobilizada
pelo aspecto sensível nas relações, daí dizer que ela é doada. A força que promove
os acontecimentos. A palavra Axé também pode ser pronunciada e escutada como
forma de agradecimento (RODRIGUÉ, 2001, p. 21-22).
18 Transferido após algumas mudanças para o bairro de Coelho da Rocha (São João de Meriti, RJ), em 1944,
onde permanece até os dias de hoje. (MACHADO, 2015).
19 Sobre os processos de tombamento do Ilê Axé Opô Afonjá na Bahia e no Rio de Janeiro, ver SILVA, G.,
2019.
20 Do iorubá, Bàbá Ẹgbẹ (ou o feminino Ìyá Ẹgbẹ). É título que designa o conselheiro e responsável pela
́ ́
manutenção da tradição, da ordem e hierarquia no terreiro (SANTOS, Maria Stella, 1993).
9
Quando grafado Axé, com inicial maiúscula, faço referência ao Ilê Axé Opô Afonjá
(Salvador, BA), termo usado pelos membros do Ilê Axé Aganju Ixolá ao se referirem ao
terreiro baiano. Esse uso da palavra reforça a construção da legitimidade em torno das práticas
realizadas no terreiro de Salvador — onde o convívio de Mãe Aninha de Xangô foi maior — e
transmitidas, tal como axé a seus descendentes, a que me detenho no capítulo 3.
Meu ponto de partida para a construção do objeto de pesquisa foi analisar como a
rigidez ou permissividade de regras para o vestuário dos adeptos do candomblé durante os
longos períodos de realização dos rituais em um terreiro constroem e são construídas por
determinadas identidades. Quais narrativas os indivíduos elaboram no enquadramento ou não
a regras mais rígidas em torno do vestir e como essas regras são fixadas?
11
O dirigente do Ilê Axé Aganju Ixolá, Pai Mauricio de Aganju, muito solícito, aceitou
com entusiasmo minha proposta de realização da pesquisa empírica em seu terreiro.
Mantínhamos relação de cordialidade, sempre me recebendo com educação e diligência nas
visitas às festas públicas, sendo ele amigo de meu babalorixá 21 , Geraldo de Iemanjá.
Devo destacar que minha situação de campo não esteve restrita ao número 2392 da
Avenida Central de Itaipu, região oceânica da cidade de Niterói, em que se localiza o Ilê Axé
Aganju Ixolá, mas onde quer que se colocassem situações que me possibilitassem reflexões
acerca do problema que me propus, incluindo grupos virtuais de encomenda e venda de
roupas. Estar no campo, como propõe a antropóloga Rena Lederman,
Nesse sentido, fazer trabalho de campo não é apenas ir ao terreiro, mas estar atento a
situações, conversas e terreiros ainda que não tenham ou dediquem centralidade e
significância às roupas. Essas situações podem ser pensadas como formas de contraste entre
classificações mais rígidas ou mais liberais e possibilitar compreensão aprofundada de
significados em torno dos modos de vestir, entre o aceitável e o inaceitável.
connection within one's own habitual milieus. From this perspective ‘the field’ is not so much a place as it is a
particular relation between oneself and others [...]” (LEDERMAN, 1990, p. 88).
12
Ser adepto do candomblé e pesquisar sobre candomblé não é algo inédito ou mesmo
incomum, como também não o é a iniciação de um pesquisador durante ou após sua pesquisa
etnográfica (SILVA, V., 2000). Não acredito que a condição de iniciado, ao contrário do
proposto por Juana Elbein dos Santos (2008), fosse absolutamente indispensável para o
trabalho que propus realizar, mas reconheço que me possibilitou certo conforto com termos e
relações, embora também trouxesse outros desconfortos e o desafio de observar o
excessivamente familiar. Meu envolvimento com o campo em construção é anterior à
pesquisa. Mais que familiaridade, foi o estranhamento que busquei em minhas visitas ao Ilê
Axé Aganju Ixolá:
Se, por um lado, o antropólogo pode contar com maior segurança em estabelecer
contato e conviver no ambiente da pesquisa, pois parte do código de comportamento
do grupo ele conhece, por outro, seu esforço será redobrado para não restringir a
pesquisa às relações e posições mais contingenciais à sua própria experiência de
vida na religião (SILVA, V., 2000, p. 69).
Comunicar a meu babalorixá o início de uma pesquisa em outro terreiro — como fiz
em 2016 — significava instaurar a potencialidade perigosa de fazer irromper um conflito. Há
uma competição entre terreiros que ao mesmo tempo os irmana e os coloca em disputa por
fiéis, fruto do pluralismo religioso e da livre competição entre religiões e tradições (BERGER,
2009). A própria vitalidade dos terreiros de candomblé os impele a essa competição e à
visibilidade pública (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).
Iniciar uma pesquisa em outro terreiro trazia uma questão: porque não no terreiro de
minha própria afiliação? Essa foi uma das explicações que precisei prestar a meu babalorixá à
época. Qualquer tipo de contato entre um membro de um terreiro de candomblé com outro
terreiro ou dirigente gera especulações e ansiedades nas duas comunidades por sempre existir
a possibilidade de migração.
13
Entender essa disputa como parte intrínseca do campo de pesquisa possibilitou
compreender que ocupo um lugar nesse sistema e também o quanto o campo envolve essas
relações. Pesquisar um grupo do qual se faz parte pode parecer cômodo em princípio, mas traz
problemas específicos. É possível dizer que já iniciamos o trabalho de campo afetados, no
sentido de Jeanne Favret-Saada (2005).
Conforme proposto pela autora acima, ser afetado é ocupar um lugar no sistema em
que se pesquisa e abrir uma comunicação específica com seus agentes, mobilizando e até
mesmo modificando categorias e representações (FAVRET-SAADA, 2005); é estar sujeito às
mesmas forças e intensidades que afetam o campo, justamente por ocupar um lugar nesse
sistema. A partir de Favret-Saada pude compreender que iniciar uma pesquisa em outro
terreiro suscitava inúmeras perspectivas de afetamento. Antes de mais nada, instaurava um
conflito com meu pai de santo em que a migração para o terreiro estudado poderia ser
entendida como possibilidade.
O terreiro Ilê Omi Iyamassê Axé Aganju Ixolá (Casa das águas de Iyamassê e da
força de Aganju Ixolá), localizado na Avenida Central de Itaipu, Niterói (RJ), foi fundado em
primeiro de dezembro de 2002 pelo babalorixá Mauricio de Xangô Aganju. Aganju Ixolá,
segundo Pai Mauricio, é uma referência ao momento em que o príncipe herdeiro de Oyó está
apto a assumir seu comando, aos doze anos de idade. O povo então clama: Aganju Ixolá! Em
que “axó”, ainda conforme Pai Mauricio, seria vestido ou coberto e “olá” significa honrarias.
Portanto, ixolá é entendido como coberto de honras.
24 Do iorubá, Ọ̀yọ́ .
25 Do iorubá, aláàfin.
14
(2018) 26 , antes de sua divinação, conforme a crença na chamada “apoteose de Xangô”.
Aganju, um dos soberanos históricos do mesmo território, também identificado como
sobrinho de Xangô, é tido no Brasil como uma das qualidades ou caminhos desse orixá no
candomblé.
Para o candomblé, Aganju é Xangô, orixá para o qual Pai Mauricio fora iniciado em
19 de julho de 1989 por Pai Joaquim de Omolu, no Ilê Fí Orô Sakapata, na Baixada
Fluminense (RJ). Este, coincidentemente, foi o terreiro escolhido pelo pesquisador brasileiro
Samuel Abrantes nos anos 1990 para pesquisa também acerca da indumentária de candomblé.
O falecimento de Pai Joaquim em 1998 levou o babalorixá Mauricio a finalizar seu ciclo de
obrigações 27 no Ilê Axé Opô Afonjá (Coelho da Rocha, São João de Meriti, RJ) sob cuidados
da ialorixá Regina Lúcia de Iemanjá que, então, em 2002, inaugurou28 o terreiro dirigido por
Pai Mauricio.
Cabe situar que Pai Joaquim de Omolu foi iniciado no Ilê Axé Opô Afonjá (RJ), no
ano de 1962, pela então ialorixá Agripina Soares de Souza — também de Aganju —, iniciada
ela mesma por Mãe Aninha de Xangô, fundadora tanto do terreiro no Rio de Janeiro quanto
na Bahia. Sendo assim, Pai Mauricio concluiu suas obrigações no mesmo terreiro em que seu
sacerdote fora iniciado e, sobretudo, na mesma família de santo. É importante ressaltar esse
aspecto, pois o candomblé “une os mortos e os vivos em um todo familiar, contínuo e
solidário” (VERGER, 2012, p. 16), tornando todos membros de uma mesma coletividade
espiritual, como é possível observar no diagrama de filiação no candomblé (figura 2) que
também mostra outros parentes classificatórios que menciono adiante.
Tanto o terreno do Opô Afonjá de Coelho da Rocha, quanto o imóvel que abriga o
terreiro de Xangô pertenciam a filhas de Oxum. O primeiro à Filhinha de Oxum, irmã
26 Ou o quarto soberano, conforme o Reverendo Samuel Johnson (1921), sacerdote anglicano e historiador
iorubá do final do século XIX.
27 Termo que designa os rituais periódicos e complementares à iniciação (1, 3 e 7 anos, no caso do terreiro
realizando os rituais necessários. Essa concepção é de fundamental importância para manutenção do elo de
ancestralidade que deve ser mantido e mesmo legitimidade de abertura da casa.
15
biológica de Mãe Agripina, e o terreno de Itaipu pertencia a Dona Ely, iniciada por Joaquim
de Omolu, mãe biológica de Mauricio e hoje Iyá Efum29 do Ilê Axé Aganju Ixolá. Dona Ely
doou a casa de Itaipu para as atividades do terreiro, acentuando a relação da iabá 30 com o
mundo doméstico. Reforça também a importância das relações familiares na constituição de
um terreiro enquanto rede de apoio. Assim como outras irmãs de santo de Pai Mauricio,
iniciadas por Pai Joaquim, Dona Ely se integrou à Casa de Xangô com o falecimento de seu
babalorixá, em uma relação que evoca continuidade.
Frequento o Ilê Axé Aganju Ixolá desde 2009 como visitante acompanhando meu
babalorixá ou mesmo sozinho em algumas ocasiões. Minha primeira visita como pesquisador
— ainda graduando em Ciências Sociais — aconteceu em 25 de janeiro de 2017, período de
iniciação de três iaôs. A partir de então mantive contato contínuo com Pai Mauricio, também
o acompanhando nas redes sociais. Realizamos outras entrevistas e pude acompanhar, em
observação direta, um mês de função para uma série de obrigações que aconteceram em
outubro de 2018: três obrigações de sete anos e uma de três anos.
29Do iorubá, Ìyá Ẹfun. Responsável pela pintura ritual de iaô durante a iniciação.
30Do iorubá, ayaba. Significa rainha, esposa do rei. No candomblé, se refere às “santas mulheres” ou mesmo às
mulheres iniciadas para orixá feminino, situação em que se costuma dizer que são duas vezes mulher. (SANTOS,
Maria Stella, 1993).
16
Ao longo desse período de outubro participei das atividades do terreiro e conversei
com seus membros. Pai Mauricio me apresentou como um parente de santo realizando
pesquisa universitária e fui muito bem recebido. Ser parente de santo é ser reconhecido dentro
de um conjunto de relações que se referem a uma linhagem iniciática comum ou próxima. A
terminologia de parentesco é amplamente empregada nos terreiros de candomblé e
estruturante das relações que neles se desenvolvem, como abordo no terceiro capítulo.
Trajado de branco e com fio de contas também branco permeado com seguis 31 ,
característicos de Oxaguiã, orixá para o qual sou iniciado, me portei como um adepto em
posição especial: era do santo, mas não era afiliado ao terreiro. Colocava-me disponível para
ajudar no que fosse possível — segurei animais para sacrifício, descasquei batatas para
almoço, varri o chão, auxiliei na montagem de alguns novos assentamentos —, mas também
escrevi, conversei, observei e realizei registros fotográficos.
Mantive contato constante com Pai Mauricio ao longo dos anos de pesquisa,
especialmente no processo final de escrita, sempre atendido em sua disponibilidade e,
inclusive, atento a seus engajamentos nas redes sociais. Constituir o babalorixá — ou ialorixá
— de um terreiro como interlocutor privilegiado é, conforme Vagner Silva (2000), uma
adequação à própria visão do grupo que o constitui como maior guardatário do conhecimento
ao qual todos recorrem. Além do terreiro, nos encontramos em um shopping e também em sua
residência no bairro de Vila Isabel, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. No mesmo bairro
fomos, eu e meu orientador, o professor Felipe Berocan Veiga, ao ateliê da costureira que
atende à maior parte da demanda de vestuário do Ilê Axé Aganju Ixolá, Dona Leila.
Acredito, como propõe Daniel Miller (2013, p. 23), que “a questão para a
antropologia é investigar empaticamente como outras pessoas veem o mundo”. Desde os
primeiros momentos no Ilê Axé Aganju Ixolá, me chamou a atenção a recorrência das
narrativas construídas em torno da ancestralidade e da família de santo enquanto articuladoras
da própria existência do grupo. A evocação constante de membros antigos e próximos da
linhagem do terreiro — célebres ou não — me direcionou a uma chave interpretativa que em
um primeiro momento não me estava colocada.
Nesse sentido, mundo não é uma coleção de coisas às quais atribuímos significado,
mas sim lugar de relações de pertencimento e envolvimento que se operam em contextos de
prática (RABELO, 2014). Habitamos o mundo junto com as coisas e um estudo da
indumentária, então, precisa evocar o mundo emocional e íntimo dos sentimentos; não deve
ser frio (MILLER, 2013).
20
A exemplo dos fatos sociais totais, a indumentária pode revelar aspectos “culturais,
políticos, econômicos, estéticos, morais, etc., das culturas nas quais estão performatizando
comportamentos, agenciando poderes, dramatizando valores, comunicando sentimentos,
enfim, ritualizando identidades” (ROCHA, 2014, p. 10). No candomblé, a indumentária é
marcador hierárquico — e, portanto, político —; manifesta poder aquisitivo, é trocada,
emprestada, vendida ou presenteada — buscando favores, gostos ou predileções —, reunindo
peças concorridas para embelezamento do corpo e exibição da personalidade.
Simmel (1957) define moda como a imitação de um exemplo que satisfaz a demanda
por adaptação social. Para Daniel Miller (2013), a moda é seguir coletivamente uma
tendência. Gilda de Mello e Souza (1987) caracteriza-a como filha da revolução industrial e
da máquina a vapor, definindo-a como uma manifestação do gosto:
33 “A knowledge of the course followed by ideals of dress is quite as valuable, as a contribution to the
understanding of civilization, as knowledge of real dress; and this both per se and as an exemplification of the
processes involved” (KROEBER, 1919, p. 238, grifo do autor).
22
A moda é um todo harmonioso e mais ou menos indissolúvel. Serve à estrutura
social, acentuando a divisão em classe; reconcilia o conflito entre o impulso
individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o
socializador (necessidade de afirmação como membro do grupo); exprime ideias e
sentimentos, pois é uma linguagem que se traduz em termos artísticos. (SOUZA,
1987, p. 29).
O termo moda também faz referência a uma efemeridade no uso de peças, técnicas e
materiais. A orientação da moda secular é vasta e muitas vezes contraditória: não se tem
muita clareza do que realmente está na moda, culminando na ansiedade como seu núcleo
(MILLER, 2013). Esse sentido se contrapõe a um ideal de tradição que valoriza a pouca
modificação do vestuário ao longo do tempo, relacionada a aspectos históricos e sociais. O
vestuário do candomblé, então, no Ilê Axé Aganju Ixolá, se contrapõe à ideia de moda em seu
caráter efêmero.
34 Sênior pela idade, também chamada ebome ou ebômin. Traduzido como “minha (meu) irmã(o) mais
velha(o)”: ẹ̀gbọ́ n mi.
35 Do iorubá, adé. Coroa. Quando usado por Oxalá, Oxum e Iemanjá apresenta uma franja metálica ou de contas
36 Fita em zigue-zague.
37 Tecido de algodão com estampas variadas, especialmente cornucópias, flores, geométricas e abstratas. É
bastante difundido em Moçambique, onde é um objeto de identidade nacional, mas há um consenso histórico de
que sua origem está entre os povos asiáticos e árabes, não africanos. (TORCATO; ROLLETTA, 2003).
38 Referência à dança em roda por ocasião do xirê.
24
com materiais brilhosos e atrativos financeira e esteticamente. Carlos Eduardo Medawar
(2019) observa que a tendência atual ao luxo no candomblé coincide com sua paulatina
inserção e abertura à apresentação pública 39 . É inegável que o luxo também se associa à ideia
de prosperidade e progresso como resultados positivos da prática religiosa: “Uma casa passou
a ter sua força medida pela forma como recebe seus convidados, pelo que oferece para comer
ou beber e pelo luxo das roupas dos iniciados e as performances que assumem nas danças
rituais dos salões” (MEDAWAR, 2019, p. 273).
39 Exemplo da projeção dos terreiros à esfera pública é a criação dos títulos honoríficos dos Obás de Xangô por
Mãe Aninha no Ilê Axé Opô Afonjá (Bahia) em 1937, concretizando alianças com os meios artístico, intelectual
e político, ver LIMA, 1966. Destacam-se Dorival Caymmi, Hector Julio Páride Bernabo (Carybé), Jorge Amado,
Ildásio Tavares, Gilberto Gil, Mário Cravo, Muniz Sodré, Rodolpho Tourinho Neto e Vivaldo da Costa Lima.
25
Pierre Bourdieu e Yvette Delsaut (2001) chamam atenção para a facilidade de se
criar algo belo no que já se está estabelecido e a dificuldade da inovação nas exigências da
vanguarda, que demanda maior emprego criativo e pretensão:
Há, conforme Samuel Abrantes (1999), uma incitação por parte da produção
industrial e comércio ao consumo de novos tecidos e materiais estranhos à tradição do orixá.
Contribuiu também o processo de “urbanização” da vida do santo, em que os elementos antes
produzidos no terreiro ou buscados na natureza passam a ser comprados nas lojas
(MEDAWAR, 2003). Abrantes identificou, à época de sua pesquisa, um constante trabalho de
resgate e valorização, por parte do próprio Opô Afonjá de Coelho da Rocha e do babalorixá
Ogum Jobi40 , de materiais mais simples e utilização de cores naturais (ABRANTES, 1999).
A partir das conversas e observação no terreiro, pude verificar que as variações que
afetam o candomblé não têm grande penetração no Ilê Axé Aganju Ixolá. Fixar regras rígidas
de vestuário constitui uma singularidade que distingue o terreiro, se relacionando com uma
identidade que se quer construir:
40 Sergio Barbosa, irmão de santo mais velho de Pai Mauricio, iniciado também por Pai Joaquim de Omolu e
falecido em 2010.
26
Delimitar de maneira rígida o que se usa dentro do terreiro de maneira tradicional é
também estabelecer uma diferenciação, separar. Mary Douglas (2014) afirma que a principal
função dessa separação é sistematizar uma experiência inerentemente desordenada; o exagero
na diferença produz um semblante de ordem que agrega a experiência. Direcionar o vestuário
a um ideal de tradição visa unificar e aproximar a experiência dos membros do Ilê Axé
Aganju Ixolá entre si e também com seus correlatos.
Ainda que o consumo seja, em grande parte, orientado pelo preço, não é
determinante para a composição das roupas. A sianinha, por exemplo, não estava
significativamente presente no terreiro, mesmo sendo um material mais acessível sob a
perspectiva econômica. Já a capulana, embora ocasionalmente presente, é justificada tanto
pela origem africana quanto pelo preço atrativo; Pai Mauricio informou em nosso primeiro
encontro que é possível encontrar a peça de 5 metros deste tecido a R$ 60,00, valor que não
paga 3 metros do tecido de cretone estampado, comumente utilizado nas saias coloridas. Ao
final deste trabalho, o posicionamento em relação à capulana já era outro, conforme relato
adiante. Em contrapartida, peças de barafunda — delicado bordado feito à mão — e richelieu
adornavam as ebames no dia da festa pública.
Gilda de Mello e Souza (1987) afirma que não é possível estudar algo tão
comprometido pelas injunções sociais, como a moda, focando apenas os elementos estéticos.
Abordar a moda — enquanto vestuário — no candomblé é entender seu processo de
constituição como religião de resistência negra e também que muitos materiais, técnicas e
elementos estéticos são referência a uma conjuntura histórica, relembrando o contexto de
escravização.
Essas referências, como técnicas, estilos e mesmo usos, são legado valorizado por
determinados terreiros e por isso perpetuados e mantidos sob a égide da tradição. Os códigos
de vestuário do candomblé são complexos e sutis e Pai Mauricio afirma seguir à risca o
legado ancestral deixado por Mãe Aninha — a quem se refere por Vó Aninha —, a fundadora
do Axé, e também perpetuado com rigor por seu pai, Joaquim de Omolu: “No vácuo dos
27
questionamentos sem as respostas seguras e precisas do meu pai, descobri que boa parte das
respostas se elucidam quando penso: o que faria ele?” (Mauricio de Aganju) 41 .
O modelo da saia de ração instituído por Mãe Aninha era uma forma de evitar o
gasto com aviamentos e acabamentos à época. Embora a falta de dinheiro para os aviamentos
do dia a dia não se coloque como questão central atualmente, a preservação do “babadinho”
na saia é herança ancestral, memória de tempos mais difíceis em que técnicas foram
elaboradas para superar adversidades. A valorização dessas técnicas e seus produtos é também
consideração e reconhecimento da historicidade das práticas sociais.
Essa indumentária traz também fortes marcas muçulmanas, como a bata, peça larga
de pano; o turbante; as chinelas de couro com ponta virada para cima — à mourisca;
além de uma evidente permanência do barroco, que revive a estética do século
XVIII, com o uso das amplas e arredondadas saias e anáguas e os bordados em
richilieu. Ainda, traz a África Ocidental simbolizada com o pano da costa, feito em
tear artesanal, procedente da costa africana, de onde vem o nome. (LODY, 2015, p.
20, grifo do autor).
Assim, a negra baiana foi criando sucessivamente trajes próprios com finalidades
diferentes. Sua substituição se foi operando à medida que as condições da vida foi
tornando difícil a continuidade de qualquer deles: o traje de beca, a roupa da baiana
e finalmente a indumentária do candomblé. Só aí, pela continuidade da prática
29
religiosa, ela julga ter encontrado abrigo seguro para a preservação da nova
indumentária que está criando. (TORRES, 2004, p. 447).
Pai Mauricio não sabe pregar um botão, mas a partir do convívio prolongado em
terreiro, cuidando do santo, adquiriu a sensibilidade estética e também familiaridade com
termos, materiais, marcas, medidas e usos. Também essa atenção com o vestuário é um hábito
familiar construído socialmente; o babalorixá afirma categórico que a preocupação que tem
com o vestuário é herança do pai, que também não sabia pregar um botão.
43 Do iorubá, ìbọ̀ sẹ̀. Meias. Por isso, comumente, se usa o termo “calço” ao se referir às aves — “bichos de pena”
— que acompanham o quadrúpede; “calçar o bicho de quatro”.
44 Do iorubá, odù. Conjunto de signos de Ifá, cujas histórias são reveladas através de poemas que servem de
âmbito de função. Para maiores informações conferir Juana Elbein dos Santos (2008).
47 Ritual fúnebre.
48 Do iorubá, Ilé-Ibọ-Akú. Casa de veneração aos mortos.
31
2.1. Da rua à costureira
A quantidade de fios por polegada e a trama (entrelaçamento dos fios) têm relação
direta com a qualidade, durabilidade e preço do tecido. Maior a quantidade de fios por
centímetro de tecido e o comprimento do fio, maior a vida útil e também o preço do metro.
A iniciação para orixá e demais obrigações são rituais custosos 50 , levando a uma
busca contínua por preços vantajosos. Combinar materiais de qualidade e apreciados
esteticamente a preços acessíveis é o primeiro desafio da ida à rua. O conhecimento da técnica
é imprescindível ao consumo:
49 Membro não iniciado do terreiro e que já participa de sua rotina litúrgica, guardadas as devidas restrições.
50 Sobre custos da iniciação no candomblé, ver MEDAWAR, 2019.
32
A roupa, ela é feita de medida. De medida e estrutura de tecido. É o primeiro passo
para uma roupa dar certo. Você tem como gastar uma ninharia e fazer uma roupa
belíssima, como você tem como gastar uma fortuna e fazer uma lambança se você
errar na textura e nas metragens, nas medidas. (Mauricio de Aganju) 51 .
Conhecer o modo de consumo é também conhecer o culto, sendo essa uma forma de
distinguir nações e terreiros, tanto pela diferença quanto pela aproximação:
Assim se diferenciam, umas das outras, as grandes nações do candomblé, [...] pois
não fazem os seus santos exatamente da mesma forma; não usam as mesmas coisas,
da mesma maneira, nos rituais do mesmo ciclo. No âmbito da mesma nação,
entretanto, encontramos também diferenças de uma casa para outra. E novamente
estas se estabelecem pelo uso litúrgico, por sua vez informado por diferentes versões
do sistema cosmológico. (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 8, grifo do autor).
Aos abiãs que irão se iniciar no terreiro é dada uma lista de “enxoval de tecidos”
assinalando todas as necessidades de vestuário para o período de recolhimento que dura em
torno de 20 dias. Aos homens são pedidas 6 calças de ração, 6 camisas de malha, 3 blusas de
ração (jalabinha), 10 cuecas box e 4 equetés 52 com 10cm de altura. Às mulheres, 6 saias de
O cedro hospitalar, que ao início desta pesquisa era a referência de uso para o tecido
branco, por ser bastante encorpado, ao final foi desaconselhado. Constatou-se que amarelava
com certa frequência, além de pesar nas saias e incomodar ao formar palas grossas. Quando
encontrado em boa qualidade ainda é desejável para confecção de calças masculinas. O
transcorrer da pesquisa revelou o tempo de ajustamento e encaixe dessa prática. A orientação
atual é pelo percal, a depender da qualidade da trama.
É pedida uma peça de 20 a 30 metros desse tecido branco na lista de iniciação para o
enxoval do iaô homem e 30 a 35 metros para a iaô mulher, estas considerando as anáguas.
A laise é eterna, né? A laise para uma baiana de candomblé ela é eterna, ela cabe em
qualquer momento. Ela vai estar sempre bem vestida, se ela bota um pano da costa
de bainha aberta, ou bota um pano da costa com uma outra laise, ou então de renda,
ela está muito bem vestida, combinando uma coisa com a outra. Contanto que seja
aquela laise de linha de algodão e não aquela laise sintética. [...] Eu prefiro uma
baiana de chitão, uma baiana de algodãozinho de lençol a uma laise sintética. [...]
Mas aí é o meu feeling, entendeu? É o que eu acho. (Mauricio de Aganju, 2020) 56 .
[...] uma coisa que me fez preocupar desde o início foi que eu ia, sempre fui com
eles pra rua pra comprar e as meninas sempre tiveram, todas elas, isso eu verifiquei
desde o início, verifico até hoje, por isso com mais força eu faço isso, porque há uma
resistência, porque é uma coisa cultural, né? Há uma resistência em aceitar a
combinação do estampado com a listra, que é o padrão desejável para uma
vestimenta tradicional [...]. Tanto a listra quanto o xadrez eles remetem à gramatura
do alaká, né? Então é o desejável. E as meninas têm uma visão ocidental e se elas
vão usar um floral ou um estampado elas querem combinar geralmente com o liso.
[...] É impensável isso e eu nunca deixei rolar isso; foi sob protesto, mas assim vai
(Mauricio de Aganju, 2020) 60 .
Ainda assim, não é incomum o uso do pano da costa liso; é possível constatar que as
mulheres do terreiro conseguem elaborar uma combinação de saia estampada e pano da costa
liso que não ofendam o que o babalorixá considera ideal; uma saída encontrada é a aplicação
de nervuras — também chamada prega palito — ao longo do comprimento do tecido. Há uma
negociação entre as noções estéticas exteriores ao terreiro e a tradição.
59 A partir deste ponto passo a me referir à totalidade de indivíduos no terreiro no feminino, considerando maior
menção ao vestuário das mulheres por sua complexidade.
60 Diálogo realizado em 30 de abril de 2020.
36
confortáveis e gostem do que vão vestir. É importante que seja dentro da padronização, mas o
babalorixá procura ser “democrático” até onde é possível.
Se até o ano de 2008 era difícil e caro encontrar capulana no Brasil, com a entrada da
China nesse comércio, os preços baratearam e ficou mais fácil a compra. O preço mais
atrativo que o tricoline despertou grande procura pelo famoso tecido africano, além da tão
sonhada proximidade com a África, busca incessante do candomblé (CAPONE, 2018).
Enquanto o metro do tricoline custa em torno de R$25, é possível encontrar a peça de 5m de
capulana a R$60.
No entanto, a partir de 2015, Pai Mauricio relata que as estampas começaram a ficar
“complicadas” e atualmente quase impossível encontrar algo conveniente. Embora possam ter
procedência 100% africana, existem estampas com ventiladores, secadores de cabelo e etc.,
inaceitáveis. A entrada da China trouxe também a capulana com fios sintéticos e estampada
em apenas um lado; a original não possui lado avesso.
A capulana no Ilê Axé Aganju Ixolá é submetida a uma triagem até a utilização. A
primeira etapa é a busca por estampas e cores adequadas. A segunda consiste em verificar se é
composto 100% de algodão e a terceira, mais complicada, é colocar o tecido na água com
sabão antes de costurar, verificando se perde a cor. Nessa etapa, o tecido já foi comprado e
caso desbote, o prejuízo é certo. Em todo caso, seria maior se os aviamentos já estivessem
aplicados à roupa pronta; a saia de candomblé possui como acabamento várias fileiras de fita
de cetim, gorgurinho ou mesmo sianinha.
Toda a dinâmica envolvendo a capulana fez com que Pai Mauricio decretasse o
retorno aos tecidos de lençol. O babalorixá acredita que a baiana florida de tricoline é mais
adequada à tradição que a capulana africana. A baiana estampada de flores com um pano da
costa xadrez é considerada a combinação perfeita.
37
imagem mental do tecido e aviamentos aplicáveis, visualizando o resultado final. Os tecidos,
acabamentos e diferentes peças precisam estar dentro do tom. É muito provável que as fitas de
uma saia sejam da cor de algum detalhe presente nela, da mesma forma o pano da costa.
As três costureiras que majoritariamente atendem ao Ilê Axé Aganju Ixolá são todas
elas adeptas do candomblé; duas filhas do terreiro e a terceira, Dona Leila, é amiga do
babalorixá e filha de santo de uma antiga e falecida ialorixá do Rio de Janeiro. Não pertence
ao terreiro de Xangô, mas atende à maior demanda de Pai Mauricio, cerca de 90%.
Não existe segredo ou requerimento litúrgico para a elaboração das roupas que
demandem costureiras iniciadas. A incidência se dá pela familiaridade com os códigos e
especificidades da indumentária, principalmente quando determinadas regras são seguidas
rigorosamente. Trata-se de falar a mesma língua; reconhecer traços indumentários já
constituídos que compõem um mesmo sistema de sentido (BARTHES, 2009). É comum então
que os próprios adeptos se dediquem à costura atendendo à demanda dos terreiros aos quais
são afiliados e, posteriormente, expandindo seu atendimento a outras casas de candomblé.
Conheço terreiros que mantêm uma ou mais máquinas de costura disponíveis durante as
funções para eventuais ajustes, reparos e mesmo confecções complementares. O terreiro,
portanto, pode abrigar em sua estrutura compósita seu próprio atelier.
Dona Leila, filha de Omolu, costura para o Ilê Axé Aganju Ixolá há cerca de 12 anos,
além de atender, também de maneira fixa, à demanda de oito terreiros de umbanda e
candomblé. Conhece o babalorixá há vinte e cinco anos; ambos residem no mesmo bairro,
Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, o que facilita a comunicação e toda dinâmica que
envolve a costura, da entrega dos tecidos à prova e aprovação da roupa. E, embora algumas
filhas façam suas próprias roupas, a indicação de Pai Mauricio é para Leila.
Afastada da vivência em terreiro há cerca de dez anos, Dona Leila fez da costura
para candomblé sua forma de conexão com o orixá e com a espiritualidade: “o compromisso
que eu tenho com meu santo é de deixar os orixás bonitos. Eu faço as roupas do santo, eu abro
mão de tudo, de qualquer coisa para fazer uma roupa de santo” (Dona Leila, 2019) 61 . Não é
incomum a confecção gratuita para roupas de orixá cujo filho não tem condições de pagar. É
na costura de cada roupa que Dona Leila conversa com os orixás, agradece, acrescentando,
assim, seu axé à produção, conforme acredita. E nisso se considera exigente.
À época de nossa visita à casa de Dona Leila, havia uma pequena querela sobre a
saia da iaô de Ewá. A saia fora encomendada numa medida que a costureira imaginou ser
39
curta demais. Avisou a Pai Mauricio e este manteve as medidas; Dona Leila acabou fazendo
mesmo assim e pouco tempo depois a saia de capulana retornou para um aumento de 10cm e
não havia mais tecido. A sugestão emergencial e desesperada do babalorixá foi por uma pala
branca na altura do cós, a que Leila se negou veementemente.
A costureira poderia, com aval do próprio pai de santo, entregar a saia com a solução
mais simples, da pala branca, que de fato não ficaria visível em momento algum, coberta pelo
pano da costa. Optou, porém, pelo conserto mais trabalhoso e cujo acabamento, em sua
opinião, ficaria melhor. Quanto mais bonita e bem-acabada a roupa, maior a satisfação da
costureira e para isso não importa o quanto é trabalhoso. A beleza das peças, do trabalho bem
feito e a satisfação dos orixás são os incentivos para o trabalho contínuo, em consonância com
a própria importância estética que permeia as relações do candomblé.
40
Os anos de amizade permitem troças entre os dois. O rigor dos moldes de Mauricio é
frequentemente contestado por “Leiloca”, como o tamanho da fralda do camisu, a quantidade
de anáguas e os milímetros demarcados. Existem tensões também na discordância da
costureira. O número de anáguas, por exemplo, cujas especificidades soube citar de cabeça,
considera exagerado, mas ao final afirma compreender quando Pai Mauricio argumenta em
favor da tradição.
Mais elaboradas que as roupas dos adeptos, a maioria das roupas dos orixás é de
composições idealizadas pelo babalorixá e que requerem o máximo da habilidade da
costureira. A uma saia, dificilmente, é aplicado apenas acabamento ao longo de seu
comprimento; muitas vezes o tecido é recortado e entremeado a outros tecidos ou rendas para
o resultado final; a renda palito e o cadarço estão entre os mais usados, principalmente pelo
custo acessível. Esse procedimento reforça a necessidade do envolvimento do pai de santo na
“ida à rua”, uma vez que os detalhes são essenciais e é necessário “bater o olho”.
41
A compra do tecido e mesmo aviamentos para a roupa do orixá do nome da iaô 62 é
feita apenas por Pai Mauricio. O tecido e a própria roupa permanecem em segredo até após a
saída. A iaô de Ewá, Patricia, esteve na casa de Dona Leila para provas da roupa de ração,
mas não viu a roupa de seu próprio orixá, hábito tradicionalmente preservado no Ilê Axé
Aganju Ixolá.
As roupas das iaôs são menos requintadas. Usam-se poucas rendas e materiais de
acabamento, este ficando para as anáguas e a cargo da criatividade e preservação das técnicas
das ancestrais. Enquanto as abiãs e iaôs se trajam com sobriedade, as ebames esbanjam
rendas, bordados e joias. Peças de barafunda e richelieu adornam as mais velhas no dia da
festa pública.
Muito usada há quarenta anos, inclusive por iaôs, a técnica das mulheres negras
recém libertas que não tinham acesso ao richelieu recupera fôlego com bordadeiras no Rio de
Janeiro e na Bahia. Em Salvador, a ebame Fernanda de Nanã, do Ilê Axé Opô Afonjá, tem
ganhado notoriedade com o barafunda 65 .
Totalmente feito à mão, um pano da costa (2,00m x 0,90m) deste bordado leva um
mês para ser confeccionado — trabalhando-se doze horas por dia — e custa em torno de R$
62 Roupa usada pelo orixá durante o climáx do processo iniciático, em que dirá publicamente o nome pelo qual
sua iniciada será reconhecida entre os adeptos.
63 Também conhecida como ponto de ajour (CALLAN, 1992).
64 Do iorubá, Ìyámórò. Uma das oficiantes do ritual de ipadê.
65 https://www.youtube.com/watch?v=my1vvSxoVO8&t=23s
42
1.500 66 . O elevado preço das peças de barafunda não impediu sua utilização pelas ebames do
Ilê Axé Aganju Ixolá. Como observa Felipe Berocan Veiga (2011), a respeito do valor do
traje das gafieiras, também o valor do traje do candomblé ressalta o valor da pessoa e do
grupo.
66 Valor referente a orçamento de julho de 2017 da África Ponto a Ponto, Salvador, Bahia.
67 Gisèle Cossard Binon, iyalorixá e antropóloga, de ascendência francesa, falecida em 2016.
43
Fotografia 10 – Flor de quiabo. Fotografia 11 – Asa de mosca.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).
44
Fotografia 14 – Florzinha ou quadradinho. Fotografia 15 – Roda de quiabo.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).
O corpo, como destaca Sônia Maluf (2001), não é simples objeto de uma ação
cultural, receptáculo de símbolos, mas é produtor de sentido; produto da cultura e também
produtor de regras e valores culturais. Para Marcel Mauss (1974), o corpo é o primeiro
45
instrumento humano; um objeto técnico. É lugar de investimento simbólico. Está diretamente
associado à noção de pessoa, uma vez que o corpo é partícipe de sua construção. A iniciação
é, para o candomblé, o marco zero na construção do indivíduo, da pessoa de candomblé. É a
partir do rito iniciático que começa a se desenvolver gradualmente uma maneira de ser
peculiar, ajustada a um sistema de crenças que privilegia o corpo (BARROS; TEIXEIRA,
2000).
Debora Diniz (2001) chama atenção para o fato de o corpo, em muitas culturas, se
transformar em documento vivo, prova da existência de regras, funcionando como a
ressurreição do passado no presente. De modo geral, a indumentária é território de identidade
experimentada no corpo; é onde se marca e se expõe o sentido espacial deste (LODY, 2015).
Desde as sociedades mais antigas, homem e mulher estão separados por uma barreira
em mundos opostos, em que a mulher se dedica às atividades mais sedentárias e o homem às
46
atividades de maior movimento (SOUZA, 1987). Todo um conjunto de diferenças acentua as
características sexuais através da roupa, produzindo movimentos corporais específicos: “[...] a
roupa pode ser vista como algo constitutivo das técnicas corporais (ROCHA, 2005, p. 133,
grifos do autor). Marcel Mauss define técnica corporal, ou técnica do corpo, como “as
maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional sabem
servir-se de seu corpo” (MAUSS, 1974, p. 211), de maneira semelhante ao ato mágico,
religioso e simbólico.
Gilda de Mello e Souza (1987) afirma que a partir do século XIX, mais que nos
anteriores, a moda afastou o gênero feminino do masculino, conferindo aos dois formas, cores
e tecidos diferentes, restrito para o homem — caracterizado pelo despojamento completo — e
abundante para a mulher, “exilando o primeiro numa existência sombria onde a beleza está
ausente, enquanto afoga a segunda em fofos e laçarotes” (SOUZA, 1987, p. 71-72). A roupa
masculina simplificou-se progressivamente, tendendo a se cristalizar em um uniforme, pois
perde sua característica ornamental no século XIX, não mais se caracterizando como arma de
sedução erótica (SOUZA, 1987).
Como propõe Patricia Birman (1995), há uma eterna reposição do doméstico, seja na
sociedade mais ampla ou dentro da casa de candomblé. Se a roupa masculina não sofre
grandes transformações da rua para o terreiro, a feminina, em seu acréscimo de saias e laços,
constringe ainda mais o corpo da mulher, apertando-o. Essa característica é um reforço do
ethos identificado por Birman, que caracteriza o valor feminino como associado ao sacrifício
e ao trabalho duro. É o aperto do camisu — que costuma ser justo —, o pano da costa e o ojá
que o amarra, a saia longa. Todas peças de que não podem dispor. A roupa feminina, nesse
sentido, conforma o corpo a um certo grau de mobilidade, performance e atitudes, a que a
maioria das filhas de santo se acostuma. Inclusive em relação ao calor. Como afirma Souza
(1987, p. 127), “[...] coerência e comodidade são elementos estranhos à moda, sobretudo à
moda feminina”; no terreiro não é diferente.
69Outra forma de se referir aos terreiros, muito embora a maioria fique em meio urbano e o próprio candomblé,
segundo Edison Carneiro (2008), seja um fenômeno urbano.
48
canelas. As roupas masculinas também não possuem qualquer tipo de aviamento, apenas
bainha reta, o que, além da menor quantidade de tecido, contribui para o baixo custo.
Das três peças que constituem seu vestuário, podem facilmente dispor das duas que
caracterizam maior sinal diacrítico da pertença religiosa: a jalabinha e o equeté. Às mulheres
não é permitido esse tipo de concessão, nem mesmo em virtude do calor: no Ilê Axé Aganju
Ixolá não constatei o uso da saia zingada 70 ; o máximo concedido em termos de liberalidade é
a retirada do pano da costa em ambientes fechados como cozinha, copa e vestiário, embora
durante todo o momento em que estive no terreiro, independente do calor que já fazia em
outubro, as mulheres estivessem rigorosamente trajadas. Vez ou outra uma ebame passou da
cozinha de santo à cozinha de branco 71 apenas de saia e camisu. Enquanto os homens trajam-
se praticamente de maneira indistinta, a indumentária feminina é composta por um número
maior de peças e formas específicas de utilização.
Iaô e abiã mulheres usam saia, camisu, pano da costa, ojá de peito e ojá de cabeça.
Este último observei presente com maior frequência na cozinha, também pela lida com as
70 É a saia comum de ração usada na altura das axilas, geralmente sem laços, pano da costa ou camisu, deixando
o colo exposto.
71 Refere-se, na casa de Pai Mauricio, à cozinha onde são preparados os alimentos dos membros do terreiro, em
Cristiana, iaô, passou a integrar o Ilê Axé Aganju Ixolá havia 2 anos e afirmou não
ter encontrado muitas diferenças no vestir entre o terreiro em que fora iniciada, descendente
do Engelho Velho, e o atual. Destacou, no terreiro atual, o rigor nos aviamentos para as
mulheres iniciadas para orixá masculino, seu caso, e também o uso de brincos, que era
permitido no terreiro anterior. Quando perguntei sobre incômodos de calor ou excesso de
roupa, foi categórica: “Nenhum. Você acostuma”. Se acostumar é se encaixar à regra e ao
grupo, assimilar seus códigos e se conformar a uma forma de ser específica com práticas e
estéticas específicas da prática:
72 Mulher que não entra em transe e auxilia na lida de roupa e cuida dos adeptos em transe. Supõe-se que a
origem do termo seja os candomblés jeje. Em alguns terreiros é chamada de ajòyè (iorubá), a possuidora do
título.
73 Do iorubá, ìyábásè. Responsável pela cozinha de santo e preparo das oferendas.
50
Até que a iaô aprenda a se mover com a saia, esta parece se meter no meio de tudo o
que faz, atrapalhando os movimentos e dificultando sua performance. Com o tempo
e prática adquire alguma destreza e desenvolve um estilo — discernível nos passos
de seus pés descalços pelo terreiro, na agilidade e firmeza dos movimentos na
cozinha, nas saias presas entre as pernas para não atrapalhar a execução de alguma
tarefa, no corpo frequentemente acocorado enquanto as mãos trabalham e no modo
como imobiliza as aves que serão sacrificadas, prendendo-as pelas asas a uma
distância segura do corpo, e na habilidade com que, uma vez mortas, põe-se a
depená-las (RABELO, 2014, p. 109).
51
Há um deslizamento da gramática dos termos familiares para o terreiro, conforme
abordo em pormenores no próximo capítulo. Nesse deslizamento também se incluem as
noções de gênero associadas à lida do mundo doméstico, como também observou Miriam
Rabelo (2014). À mulher a cozinha, ao homem o quintal. À mulher o interno, ao homem o
externo. Essa reflexão de base estrutural e estruturante é bastante presente nos trabalhos do
sociólogo Pierre Bourdieu (1999; 2010) e me interessa para pensar as dinâmicas entre a casa,
o vestuário, homens e mulheres.
52
na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso. (ROSADO-NUNES,
2005, p. 363).
[...] está na mulher africana e em suas descendentes no Brasil uma base civilizadora
na construção de costumes que trazem memórias arcaicas e ancestrais, e outras que
são reveladoras da diáspora de tantas culturas, etnias e de povos do continente
africano. (LODY, 2015, p. 13).
Bernardete e Marisa, ambas de Oyá, estavam recolhidas para obrigação de sete anos
no período em que acompanhei as funções do terreiro. Ao final da festa do dia 27 de outubro
74Bourdieu (1979) faz alusão às perspectivas de gênero subdivididas entre nif (honra masculina) e horma (recato
feminino) ao abordar o haram (tabu) em sua etnografia argelina.
53
de 2018, receberam de Pai Mauricio suas batas em cerimônia informal diante do bolo
comemorativo. O mesmo aconteceu com Marcelo de Oxalá que, também finalizando seu ciclo
iniciático, recebeu uma bata masculina das mãos de Julio de Omolu, balé 75 Xangô do terreiro
e responsável pela finalização de suas obrigações, já que Pai Mauricio e Marcelo são irmãos
biológicos 76 .
A bata feminina é retirada durante o transe de orixá: assim que a divindade chega,
uma das equedes se aproxima e, cuidadosamente, retira a bata, deixando a mulher em transe
com o camisu e operando um pequeno ajuste em seu pano da costa, que detalho adiante. O
mesmo não acontece com os homens: o transe não requer a retirada da bata masculina,
tampouco os homens usam obrigatoriamente qualquer peça por baixo que viabilizasse a
modificação de suas roupas.
75 Do iorubá, baálẹ̀. Governador ou chefe de uma comunidade. No caso do terreiro abordado, é o governador da
Casa de Xangô, por isso balé Xangô.
76 Há uma espécie de interdição, se não ritualística, social, na iniciação ou filiação de parentes consanguíneos
A entrega de uma bata ao homem — já que esta não tem sentido próprio que não um
simulacro da bata feminina — seria apenas uma forma de marcar o rito de passagem, da
mesma maneira que a mulher, em uma tentativa de igualá-lo em status como rodante 77 . É uma
adaptação ritualizada da concessão feita às mulheres em razão de seu status de maioridade
ritual. A bata não encontra no corpo do homem qualquer função para além de distingui-lo
como ebame e igualá-lo à mulher em termos de status. Retorno à questão da bata adiante.
Por ocasião do transe, há uma leve alteração nas vestimentas para demarcá-lo,
variando de acordo com a própria forma do orixá se vestir. As iaôs de iabá já se encontram
prontas; nada precisa ser alterado. A presença do laço de peito se justifica em decorrência do
transe mais frequente da iaô; ebames não entram em transe com a mesma frequência.
A lida com os orixás masculinos — ainda se tratando das mulheres — pode variar;
alguns têm o laço retirado e o pano da costa amarrado como uma tira para trás, outros têm o
pano da costa atravessado a tiracolo, de banda — como também é chamado este pano quando
desempenha essa função —, com um nó sobre o ombro. O tecido que antes compunha o laço
de peito passa a envolver horizontalmente a região do ventre em um laço lateral na mesma
direção em que está o nó superior da banda, chamando-se nesta função ojá de banda.
Durante muitos anos, homens não eram iniciados para orixá na mesma condição que
as mulheres, a de rodantes, e ainda existem terreiros que não iniciam, como se diz da Casa
Branca do Engenho Velho, por exemplo. Este é um dos motivos que justifica a diferenciação
entre a complexa indumentária e o maior preparo do conjunto de peças feminino para se
adequar ao transe das mulheres; a absorção dos homens na condição de rodantes é posterior à
consolidação do candomblé. Mãe Senhora, antiga ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (BA),
iniciou mais de oitenta pessoas e apenas oito homens dentre esse número (LIMA, 2003). O
próprio Edison Carneiro, como afirma Vivaldo da Costa Lima (2003), associou a presença de
homens iniciados no candomblé à degradação dos cultos 79 .
No terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá o uso de roupas coloridas sempre que possível é
determinação expressa de Xangô, dono da casa, orixá simbolizado como o fogo da vida, que
não gosta de morte, e caracterizado por cores fortes como o vermelho, o marrom, o coral e
demais cores relacionadas ao seu elemento, o fogo:
Acredito que Xangô é vivo, esperando e vivenciando cada geração, pois ele
indubitavelmente fica. Vai além do não gostar da morte. É a personificação da vida.
Nesse sentido, Victor Turner (2005) e também Juana Elbein dos Santos (2008), a
partir deste, mencionam as cores como fontes de fenômenos e relações. Turner (2005) destaca
a importância das cores branca, preta e vermelha em diversas culturas e semelhante faz Juana
Elbein dos Santos (2008) em relação ao candomblé, conforme já apontado por Vogel, Mello e
Barros (1993). Raul Lody atribui a essas três cores, em contextos específicos, um valor
primário, “afinidades aos elementos da natureza, a histórias mitológicas, aos fenômenos
marcantes e formadores do imaginário de diferentes culturas” (LODY, 2001, p. 94).
Juana Elbein dos Santos (2008) agrupa os elementos portadores de axé em três
categorias identificadas por cores: sangue vermelho, sangue branco e sangue preto. As três
As três cores destacadas por Victor Turner (2005) e Juana Elbein dos Santos (2008) e
seus símbolos próximos (azul para o preto, amarelo para o vermelho, etc.) — que não podem
ser tomados pelas cores elementos-signos à revelia — estão presentes no candomblé e são
indispensáveis em muitos rituais. É possível encontrar representação das três desde ebós, nos
pedaços de morim, à iniciação, nas pinturas de efum82 , ossum83 e waji84 .
Quando cheguei ao Ilê Axé Aganju Ixolá para a primeira entrevista com Pai
Mauricio, em uma noite de janeiro de 2017, o babalorixá me explicou que embora Xangô, o
dono da casa, tenha preferência por roupas coloridas no dia a dia, durante o recolhimento de
59
iaô a roupa branca amplia a circulação pelo terreiro, permitindo a entrada na casa 85 de Oxalá,
impensável com roupa colorida. E, muito embora fosse uma quarta-feira, dia consagrado a
Xangô e, portanto, boa parte do terreiro estivesse de cor, havia uma pessoa vestida de branco
dentre o grupo que poderia entrar na casa consagrada ao orixá do branco. É nesse cômodo que
se concentram muitos dos elementos necessários à iniciação, como efum e ori86 e que são
atribuídos a Oxalá.
Ressalto que desde esse primeiro dia de contato para pesquisa, Pai Mauricio reforçou
sua preferência pela produção interna de tudo o que fosse possível, principalmente
relacionado ao ritual. Esse detalhe não me chamou atenção à época, imediatamente, mas à
recorrência no discurso ao longo dos contatos posteriores se tornou impossível não notar.
Controlar a produção é garantir a correta elaboração do produto, seja ele uma mistura
orgânica ou um bordado; é manter as coisas feitas dentro de casa.
85 Outro sentido para o termo casa. Os membros do Ilê Axé Aganju Ixolá se referem desta forma aos diferentes
quartos onde se encontram os assentamentos dos orixás.
86 Do iorubá, òrí. Manteiga de karité.
87 Turner elabora outras comparações interessantes sobre o simbolismo do branco, inclusive com seu uso na
Dessa forma, diante da iniciação, da morte (Ikú) e de ori (cabeça) o adepto deve se
apresentar com humildade e diligência ritual. A roupa deve ser imaculadamente branca e se
eximir de enfeites e aviamentos, independentemente de posição hierárquica. A iaô e a agbá se
trajam rigorosamente da mesma forma. Não há o uso de bata; não se demonstra senioridade
diante de Ikú ou de ori.
Embora diante de Ikú todos sejam iguais, no ritual de axexê homens não usam o
pano da costa branco envolvendo as costas e os ombros, somente as mulheres.
Independentemente da concordância ou não de Pai Mauricio, que vê sentido no uso da peça
por homens, justamente pela igualdade humana diante de Ikú, o babalorixá não se sente
autorizado a modificar o estabelecido pela tradição que, mais uma vez, é reforçado com
exemplos familiares. No axexê de seu pai, Joaquim de Omolu, os oficiantes do ritual
orientaram o uso do pano até para os homens: “Minhas mais velhas não deixaram pois
disseram que o que meu pai havia deixado ficaria, mesmo depois de morto e assim ficamos”.
O alá, representado por um pano branco aberto que serve de cobertura a Oxalá e
participa de seu ritual, simboliza a própria atmosfera, proteção individual e coletiva e também
se refere a algo puro, sem mácula:
O Alá está associado a essa massa invisível de ar que está suspensa como um grande
pano aberto acima de todas as cabeças dos indivíduos nascidos. O Alá preserva a
existência dos vivos e ao fechar-se sobre alguém significa a morte do corpo, perda
do calor vital, nascimento de Orí no Além, no Orún. (RODRIGUÉ, 2001, p. 78,
grifos da autora).
90 Do iorubá, pakájà. Mudar a forma de vestir uma roupa, alusão ao pano da costa usado de forma diferenciada.
62
Oxalá ou Oxaguiã e outros dignitários 91 , mulheres ou homens, no segundo e terceiro
domingos do ciclo de rituais das Águas de Oxalá.
Aos iniciados para as divindades funfun e também para Oyá Bale, quando no
terreiro, é vetado o uso de roupas coloridas: “nunca vi das minhas irmãs de Oyá Bale
nenhuma usar cor. Sempre todas de branco. No máximo um pano da costa rosinha”, Pai
Mauricio cita as irmãs mais velhas como referência. Os iniciados para esses orixás devem se
trajar obrigatoriamente de branco e em tecido 100% algodão, seja em uma festa ou nos
afazeres cotidianos. É desse mesmo material a preferência para as roupas de ração.
91 Agbá que carregam a charola da procissão e iniciados para Xangô que carregam o pilão.
92 Gossypium Sp.
63
que se deve participar de todos os outros rituais de extrema importância dentro do candomblé.
Raul Lody (2015) destaca a existência de tecelagem funcional nas antigas fazendas e
engenhos em que panos de algodão cru eram produzidos exclusivamente para “tapagem das
vergonhas” de pessoas negras e indígenas escravizadas, já que as vestimentas para uso de
europeus e descendentes provinham da Europa.
Quando algodoeiro desejou sair do Ọ̀run para vir para o Aiyé, procurou Ọ̀sà Méjì,
enquanto sacerdote de Ifá. Como o povo da Terra se vestia de folhas, Algodoeiro
prometeu agasalhar a humanidade. Foi, então, indicado para a referida planta que ela
fizesse sacrifício com um bode para Èṣù, adicionando muito efún. Assim,
Algodoeiro, que antes gerava filhos de cor marrom, passou a produzir filhos na Terra
cujos cabelos eram brancos como é a lã. Foi Èṣù quem fez o algodão ser branco
usando o efún, como também foi Ele quem ensinou a Yemonjá Sábà a fiar e tecer o
algodão, que por sua vez transmitiu este ensinamento à humanidade, a fim de que o
algodão pudesse ser usado como vestuário. (SANTOS; PEIXOTO, 2014, p. 174-
176, grifo das autoras).
O itan caracteriza o algodoeiro como árvore caridosa e benfeitora, que doa parte de si
para vestir a humanidade (JAGUN, 2017); a primeira forma de vestimenta depois das folhas.
É relacionado à ancestralidade, relatado em alguns itans como a primeira árvore plantada no
mundo (SANTOS; PEIXOTO, 2014) e também associado ao cabelo branco, símbolo de
senioridade e sabedoria.
64
A exigência pelo tecido em puro algodão costurado com a linha do mesmo material é
um exemplo do esforço de ordenamento da experiência em direção a uma unidade. A entrada
do poliéster na trama ou na linha quebra a ideia de totalidade que é uma ideia de classificação
ideal, de pureza: “nosso comportamento de poluição é reação que condena qualquer objeto ou
ideia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais (DOUGLAS, 2014, p. 50-51)”.
E, sendo Oxalá o representante maior da pureza ética no ritual (ÌDOÒWÚ, 1994; SANTOS,
J., 2008), romper a classificação ideal desorganizando a ordem é desagradar ao orixá.
É interessante destacar que a sujeira agride diretamente Oxalá; seus filhos não devem
permanecer com as roupas sujas sob pena de desagradar à divindade. A roupa suja confunde
Oxalá, canta-se em parte do ritual das Águas de Oxalá: Aṣọ dúdu gọ́ ya pi (A roupa ficou suja
e ele ficou confuso), Aṣọ dúdu Òrìṣànlá (Rasgou-a imediatamente), A e a já lé o (Ele seguiu
viagem), Aṣọ dúdu Òrìṣànlá 93 .
Considerando o algodão sangue vegetal, como propõe Juana Elbein dos Santos
(2008), a afirmação de Raul Lody (2015) sobre roupa de ração ter este nome por ser roupa
que come, que recebe sacrifício, é assertiva. A roupa de ração, então, seria sagrada pois é
confeccionada a partir do sangue vegetal relacionado aos orixás funfun, orixás da criação.
O termo roupa de ração se refere ao traje interno da lida cotidiana despojado dos
luxos do dia do xirê. Raul Lody (2015, p. 28) afirma que o termo “vem de roupa que come,
que recebe obrigações durante os diferentes rituais religiosos”. O termo faz referência também
aos primeiros tecidos utilizados para a confecção das roupas, usualmente feitas de algodão cru
e grosseiro, mesmo tecido dos sacos de ração.
Homens usam calça e blusa de malha, podendo optar até mesmo por uma bermuda
folgada pouco abaixo dos joelhos. A jalabinha, com ou sem mangas, pouco foi usada durante
as funções que observei; a blusa de malha predominava. Abiã, iaô, ebame e ogã 94 se trajam
sem qualquer distinção hierárquica a não ser pelos fios de contas, os colares rituais.
94 Do iorubá, Ọ̀gá. Chefe e pessoa que se distingue em uma sociedade. Nos terreiros de candomblé o termo se
refere, majoritariamente, aos tocadores de atabaque.
66
rigor a que muitas — filhas antigas de Pai Joaquim de Omolu, principalmente — já estavam
acostumadas. Ebame Nilza de Iemanjá disse não haver diferença entre os “tempos de seu pai”
e agora, na casa de Xangô: as regras são seguidas com o mesmo rigor. Alguma
contemporização foi feita de acordo com o que o próprio babalorixá do terreiro considerava
não agredir a tradição em atenção a novos materiais, como abordado anteriormente.
Fotografia 20 – Xirê.
Fonte: Autor (2018).
95 Embora todo xirê seja público, existem xirês caracterizados como internos, em que somente pessoas muito
próximas são convidadas, como familiares dos envolvidos e parentes de santo.
67
descanso e regozijo, ela se diferencia de cerimônia porque não tem regra fixa. Xirê,
portanto, é uma cerimônia religiosa, com regras fixas e vestuário pré-fixado, cujo
objetivo é louvar as divindades para que elas nos fortaleçam com suas graças.
(SANTOS, Maria Stella, 2012).
Nesse dia, os homens aparecem pela primeira vez trajados com jalabinha ou abadá,
calças — estas com o corte comum de uma calça social, porém não muito justas — e alguns
utilizando equeté. No caso dos ebames, está presente também a bata masculina, que pode ter
as mangas dobradas, ser confeccionada por encomenda ou comprada em lojas masculinas
comuns. Os tecidos permanecem de algodão com poucos detalhes, nervuras quando muito. A
roupa masculina é marcada pela sobriedade de cores e formas. Os equetés, sim, podem
apresentar bordados discretos; Pai Mauricio usava um de barafunda no xirê que assisti. Como
tratado anteriormente, a noção de masculinidade em prática no Ilê Axé Aganju Ixolá se
abastece da masculinidade hegemônica, rejeitando bordados e tecidos delicados.
Rodrigué (2001) diferencia o camisu de festa do camisu de ração por ser bordado,
mas não é incomum que antigos camisus de festa, gastos pelo uso prolongado, se tornem
camisus de ração, em um aproveitamento de uma peça que deixa de servir para um propósito,
mas se adequa a outro. Isso não dá margem para o uso de roupas rotas ou rasgadas durante a
função, pois como é constantemente pontuado, roupa furada é euó 96 , sendo o furo e o rasgo
elementos que comprometem a totalidade simbólica da roupa, sua unidade (DOUGLAS,
96 Do iorubá, èèwọ̀ . Tabu, proibição, interdição.
68
2014). Permitidos no xirê — afinal richelieu e bainha aberta são descontinuidades do tecido
—, em rituais mais complexos e importantes, não têm lugar. É importante destacar que a
ausência de tecidos bordados ou tecnicamente furados no dia a dia acentuam o caráter de
exceção do xirê nas práticas do candomblé. Não obstante, as saias de ração, especialmente as
coloridas, costumam ser antigas saias de festa cujo desbotar reforça a aura de antiguidade e de
trabalho em um terreiro.
Pai Mauricio garante que a consciência de preservação da tradição tem sido bem
absorvida. Ofereceu às equedes do terreiro a opção de usarem um conjunto africano de saia
69
envelope e blusa de manga com o pano da costa sobreposto, em substituição à baiana
completa, ficando esta apenas para ocasião de confirmação 97 . A roupa daria maior mobilidade
à lida da equede, que precisa ser fluida e rápida a atender os membros do terreiro caindo em
transe e também os próprios orixás nesse estado. Nenhuma delas adotou o traje, preferindo
permanecer com a baiana e todas as suas peças.
97 Corresponde, para ogã e equede, ao ritual de iniciação, sendo menos complexo e envolvendo menos dias de
reclusão.
98 Extinto terreiro no município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, chefiado pelo babalorixá Reinaldo de Aira.
99 Diálogo realizado em 12 de setembro de 2018.
70
É uma das peças mais complicadas da costura e até mesmo evitada, conforme alguns
costureiros e costureiras com quem conversei. É composta de muitas emendas
milimetricamente ajustadas. Há uma emenda de tecido nas axilas em formato de quadrado,
chamado de naco ou balão, com cerca de 8 cm de lado. Alguns possuem uma tira de tecido da
gola ao ombro, chamada de taco, o que é preferível.
Um palmo abaixo dos seios é aplicada uma saieta, também chamada fralda, que
desce à altura dos joelhos. A fralda pode ser de um tecido mais simples que o restante da
composição e serve para evitar que os cadarços das inúmeras saias machuquem a mulher.
Evita também o deslocamento do camisu e oferece resguardo às pernas quando se abaixa para
alguma atividade.
O acabamento ao fim das mangas é sempre reto com duas pregas, na parte anterior e
posterior do braço, ou viés; “em hipótese alguma” renda de ponta ou qualquer outro
aviamento. Antigamente, no camisu das iabás, era comum incorporar um pequeno botão ou
pedraria junto à prega externa do camisu. Pai Mauricio mencionou que havia botões com
aplicações em ouro nas mangas do camisu de Oxum na iniciação de sua mãe, Dona Ely, em
1991:
É uma coisa que nunca mais vi em uso. Algumas ayaba tinham isso lá em casa e no
camisu dela tinha. Não sei nem porque não fiz aqui em nenhuma. Tá aí, a gente vai
falando e lembrando agora. Tem no camisu do nome dela e tá perfeito. Que ela toma
cuidado pra guardar. (Pai Mauricio de Aganju) 100 .
Nem todos os orixás femininos fazem uso do camisu, peça que está diretamente
relacionada ao orixá em que a feminilidade seja um dos atributos mais marcantes. A maioria
das qualidades de Oxum, por exemplo, usa. De todo modo, ainda que iniciados e em transe de
orixá feminino, o uso do camisu é rigorosamente proibido aos homens no Ilê Axé Aganju
Ixolá; a condição masculina do corpo, conforme Mãe Stella, não deve ser desconsiderada: “A
despeito do filho ser Ayaba, é do sexo masculino e esta condição prevalece” (SANTOS,
Maria Stella, 1993, p. 38). No caso de homens iniciados para iabá, Pai Mauricio adota, se
necessário, o uso da jalabinha para que o corpo não fique desguarnecido em transe.
Especialmente em iabá considerada mais senhora, cujas representações se usam de recato.
O uso da bata para as adoxu101 com obrigações concluídas foi determinado por Mãe
Aninha (SANTOS, Maria Stella, 1993), sendo então usada por equedes e iniciadas com
obrigação de sete anos completa. Mãe Aninha fazia questão, afirma Mãe Stella (SANTOS,
Maria Stella, 1993). É símbolo da maioridade feminina dentro do candomblé, outorgada
publicamente. Seu formato remete aos seios volumosos das grandes matriarcas, as agbás,
acomodando-os. Demarca a senioridade da mulher não só religiosamente, mas
101 Do iorubá, adóṣù. Outro termo para designar a pessoa iniciada. Não deve ser confundido com òṣù. Este se
refere à substância cônica manipulada à cabeça na iniciação de uma pessoa. Adóṣù é qualquer pessoa que o tenha
portado por ocasião da iniciação.
72
biologicamente: Pai Mauricio cita seu pai ao afirmar que a função da bata é também proteger
os seios muito grandes de uma mulher, remetendo à imagem das mulheres negras que
amamentavam muitas crianças. Costuma ser justa na altura do colo e desce folgada até a
cintura, de onde não deve ultrapassar em altura.
Mãe Stella, segundo me relatou um ebame do Axé, tinha por hábito dar uma de suas
batas antigas às novas ebames, como um presente de graduação da mãe à filha. Não é somente
a autorização para o uso; há a concessão pública e ritualizada, extremamente importante em
uma religião hierarquizada como o candomblé. Pai Mauricio destaca: “é muito importante a
gente colocar a bata na filha da gente”. A solenidade do momento caracteriza a importância
da peça e o orgulho de sua aquisição em uma trajetória longa e muitas vezes dolorosa de
aprendizados.
73
Pai Mauricio menciona uma parente de santo, Angela de Oyá, em seu orgulho pela
bata dada pelo pai, Reinaldo de Aira 102 , em discussão sobre o uso ou não da bata por ebames:
[...] essa bata quem botou no meu corpo foi Seu Reinaldo Carvalho. Quem botou
essa bata no meu corpo foi Seu Reinaldo e ninguém tira. A bata não tiro não, não
tiro não, porque quem botou tá debaixo da terra. Eu não botei por minha conta. Ele
tirou o laço do meu peito e botou. Tirou o pano da costa, botou bata e botou o pano
da costa (Pai Mauricio de Aganju reproduzindo as palavras de Angela de Oyá) 103 .
A fala destacada se refere à entrega simbólica da primeira bata, que autoriza a então
ebame a portá-la. A partir desse momento pode confeccionar ou comprar para si quantas batas
quiser. Pai Mauricio retirou o laço de peito, pano da costa e fios de contas de suas filhas,
Bernardete e Marisa, ambas de Oyá, e então colocou a bata. Usar a bata é atitude de respeito e
reverência a quem outorgou esse direito, respeitando um elo estabelecido pelo processo
iniciático.
A confecção sob medida é desejável, para evitar que fique muito larga ou muito
comprida. Pode ter mangas pendentes ou mais curtas, evidenciando o camisu, o que é
classificado como elegante. O corte de tecido deve ser feito em modelo godê 104 ou mesmo
evasê 105 , modelagens que proporcionam a roda adequada e desejada, embora impliquem em
grande gasto de tecido; uma bata cortada e costurada reta “é uma bata perdida”. É necessário
também que o corte do tecido seja realizado pela altura (tecido em pé).
102 Babalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá de Itaúna, falecido em 7 junho de 2001.
103 Diálogo realizado em 14 de março de 2018.
104 Corte enviesado que deixa o tecido ondulado.
105 Corte que se alonga na base, em formato de cone.
74
mais artesanais, se possível, próprias. Pai Mauricio manifestou então insatisfação com a
qualidade do bordado, sempre evocando o parentesco como exemplo:
[...] richelieu tem que ser de um tecido de algodão, sim, ter um bordado cheio alto.
[...] que tia Palmira ainda tem, minha avó Eunice ainda tinha, que minha mãe usa de
vez em quando. Agora um richelieu desses ralos, um buraco mal feito [...]. (Pai
Mauricio de Aganju). 106
As batas cuja finalização à cintura é arredondada são para as mulheres que Pai
Mauricio definiu como iniciadas para “iabás mais senhoras”. Seriam as de Oxum e de Iemanjá
cuja feminilidade é a característica mais marcante, conforme anteriormente abordado, e Nanã.
As iniciadas para iabá de faca, cuja característica mais marcante é a disposição guerreira,
usam batas finalizadas em bico, assim como as iniciadas para orixá masculino. Como
exemplo, mencionou parentes e também a célebre Iyá Regina Bamboxê, que tinha costume de
usar bata em bico.
Durante o período de função no Ilê Axé Aganju Ixolá, enquanto as equedes usavam
camisu e bata, as ebames mantiveram apenas o uso do camisu com o pano da costa. No
momento do ipadê, no entanto, a ebame Andreia de Iemanjá, iyadagan108 do terreiro, colocou
uma bata de ração, acomodando o pano da costa por cima.
75
A bata feminina é retirada durante o transe de orixá: assim que a divindade chega,
uma das equedes se aproxima e cuidadosamente retira a bata, deixando a mulher em transe
com o camisu. Ao longo dos anos esse ato sempre me despertou curiosidade. A explicação
dada é de que a bata pertence à ebame — é seu símbolo de maioridade — e o orixá respeita,
pois a senioridade é um valor iorubá. O único a quem seria feita concessão seria Oxalá.
Fotografia 23 – Bata em opala pele de ovo e renda. Fotografia 24 – Bata sobreposta ao camisu de renda.
Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017). Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017).
Há uma liberalidade para o uso da bata sem o camisu durante os períodos de função,
devido ao calor, mas não é adotada pelas filhas de santo. As ebames, sujeitas ao transe, se
submeteriam ao constrangimento de ter o orixá encaminhado a um quarto para colocar um
camisu, sujeitando uma outra pessoa a procurar uma peça adequada. Nem mesmo as equedes
usam bata sem camisu, ainda que não suscetíveis ao transe.
76
babalorixá. Na festa anual em celebração ao orixá de Pai Mauricio, todas as suas filhas
ebames e equedes não usam bata.
“Anágua é o que dá enchimento às vestes, mas nem tudo que enche é anágua”,
declara Pai Mauricio categórico. Sempre brancas, constituem aspecto particular da lida no Ilê
Axé Aganju Ixolá e ganham do babalorixá bastante atenção: “anágua tem ciência”. Raul Lody
(2015) aponta que as anáguas são mais comuns nos terreiros da nação queto e angola e menos
armadas na nação jeje.
As anáguas, assim como qualquer saia, são vestidas por cima. Uma das primeiras
coisas que uma mulher de candomblé aprende é a não colocar a saia por baixo, pelos pés.
Uma explicação única não é dada. Do ponto de vista utilitário, a saia fica menos amarrotada
quando vestida por cima. Sob aspecto ritual, é possível considerar o nascimento biológico e
espiritual pela cabeça: chegamos ao mundo a partir da cabeça, seja no parto ou na iniciação.
Há também a oposição às vestes de egungun110 , que entra em sua vestimenta de baixo para
cima. Pai Mauricio, ao comentar que “a anágua veste a iaô”, destaca a posição especial da
indumentária de candomblé: a anágua, a saia e o camisu entram na iaô por cima.
Usadas apenas em dias de festa, as anáguas são medidas a partir da última saia — a
saia de cima — colocada pela mulher e que varia de 0,90m a 1,00 de altura, considerando
como padrão uma mulher de 1,65m de altura. As anáguas possuem diferenciação conforme o
orixá da iniciada. Mulheres de Omolu e Exu, por exemplo, têm anáguas diferentes para si e
para seus orixás, isso porque as saias principais dessas divindades costumam ser menores. Se
colocassem as anáguas curtas dos orixás, estas terminariam muito antes da saia, sobrando uma
parte desta sem apoio, balançando desgovernada e dando tchau.
As mulheres iniciadas para orixá masculino usam três anáguas, as iniciadas para
iabá, preferencialmente, quatro. As anáguas para as mulheres de santo homem variam em
altura e comprimento, pois têm, obrigatoriamente, menor roda, também destacado por Mãe
Stella (SANTOS, Maria Stella, 1993); não é adequado que as saias fiquem muito
arredondadas, forma comumente relacionada ao feminino:
110 Do iorubá, égún. Egúngún, espírito de ancestral que se manifesta em ritual específico.
78
Detalho a seguir as anáguas referentes às iabás.
A primeira delas é confeccionada em pano de saco com uma barra de 20cm de tecido
na ponta para dar peso: barra virada. Possui uma roda de 4m e altura de 0,70m e é
mergulhada na goma mais dura. É importante que sua pala seja confeccionada em tecido
comum e não receba goma para não machucar ou cortar a filha de santo.
A última anágua recebe enfeites até quase a metade de sua altura, como renda na
ponta e rendas de meio espaçadas em intervalos regulares, intercalando com nervuras
semelhantes à saia anterior. Essa saia possui 4,20m de roda e 0,80cm de altura com uma goma
leve.
Antes da saia de cima existe uma quebra-goma, saia com uma goma bem fraca, toda
aberta em renda. Essa goma fraca é comumente chamada de ar de goma e muitas vezes
aplicada fria com um borrifador. A renda palito e o cadarço podem ser opções menos
custosas, caso necessário. Essa saia tem 4,50m de roda e 82cm a 85cm de altura, recebendo
por cima a saia da festa com 90cm e 5m de roda.
Esse rigor nas medidas é para que a roda fique progressiva, em que as saias mais
rústicas são as primeiras e se atinja um caimento sem erros: “conforme a roda cresce, a altura
desce e a goma enfraquece” é o artifício mnemônico para confecção e uso adequados. Pai
Mauricio reforça, ainda, que o caimento perfeito depende do corte do tecido em pé, na altura
da pessoa, devendo então ocorrer emendas no comprimento da saia.
Dessa forma as anáguas se encaixam e não corre o risco de aparecerem por baixo da
saia — a que, em alguns terreiros, se chama vender queijo —, pois têm ordem certa para
79
entrar no corpo. Pai Mauricio se orgulha de manter as anáguas usadas conforme a tradição e
de suas filhas sequer terem ouvido falar das diversas formas de anágua disponíveis no amplo
mercado: plástico, entretela, tela de mosquito, tule, plástico bolha e saco de ração de cachorro.
O babalorixá considera esses formatos “um esculhambo” ao lembrar das ancestrais que
usavam ferro a carvão para engomar suas anáguas. Pai Mauricio enfatiza a diferença do
resultado no caimento e é possível que um olho treinado reconheça, de longe, quando as
anáguas são de outro material que não algodão e goma.
Fotografia 26 – Terceira anágua com rendas. Fotografia 27 – Quebra-goma com nervuras e rendas.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).
80
A anágua inferior, com cerca de quatro metros de roda de morim, é lisa; às vezes
termina por um acabamento de recorte ou de bordado inglês. É mergulhada na goma
quase crua e distendida sobre uma cruzeta de paus até secar; durante o tempo em que
fica “crucificada”, é frequentemente alisada com as mãos e, depois de seca, é batida
com um pau para “amansar”. A anágua média apresenta mais enfeites é engomada e
passada a ferro tal como a superior, está sempre bordada com grande esmero.
Bordado inglês, barafunda, rendas de bilro dispunham-se nela em profusão. Nos
exemplares que medi, a roda ia a quase 3,50m e o babado era muito franzido
(TORRES, 2004, p. 440, grifos da autora).
A anágua precisa ter ponto de goma mais grosso, para as mais rústicas e mais fino
para as mais exteriores de modo a compor uma roda natural: “A goma tem que ser
progressiva, senão fica igual a um fusca empenado, fora do eixo”. A referência do babalorixá
é às anáguas tortas em que a saia parece estar amassada ou formando bicos laterais. A goma
ideal é feita a partir de polvilho doce, vela, anil, álcool e amaciante, a mesma feita desde os
anos 1960 em “Juscelino”111 , como se refere o babalorixá ao terreiro em que fora iniciado,
sua casa.
O polvilho doce pode ser substituído pelo amido de milho, mas os anos de prática
ensinaram que as saias vão amarelar em três meses, quando é ideal que permaneçam
engomadas por um ano e sejam submetidas novamente à goma em janeiro, quando o sol é
mais quente e o vento menos constante: “goma não gosta de vento”.
As saias são molhadas na goma quente — “que chegava a cozinhar a mão” — até a
altura da pala, que deve ficar de fora de modo que não machuque ou faça volume durante o
uso. A primeira saia engomada é sempre a mais rústica, a de pano de saco, que deve estar seca
para “levar a goma”. A saia é pendurada toda aberta para que não grude, similar ao modo
descrito acima por Heloisa Alberto Torres. O procedimento é repetido com todas as outras
saias de goma, sendo que as mais leves são molhadas em água com amaciante antes de
111 Presidente Juscelino é a estação de trem próxima ao terreiro Ilê Fí Orô Sakapata, no bairro de mesmo nome,
localizado no município de Mesquita, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.
81
entrarem na goma quente, dessa forma o próprio tecido não absorverá tanta goma, chegando-
se ao efeito desejado.
Janeiro é mês de goma, diziam as antigas irmãs em Juscelino. A saia engomada com
capricho, pegando sol ocasionalmente e guardada bem enrolada em um saco azul amarrado
dura um ano, a menos que o suor excessivo amarele a saia ao longo desse período. O
babalorixá lembra do rigor do falecido pai de santo: “Goma tem que ser um papel. Meu pai
levantava [as saias das filhas para verificar a goma]. Meu pai levantava mesmo”.
2.5.3. A saia
Esse traje é um importante suporte para a realização das danças rituais. O auxílio da
saia para rodadas ou para certos passos que exigem volume de corpo, graça ou
mesmo impetuosidade, será garantido com o uso de repuxar saia e anáguas, levantar
sensualmente a barra da saia ou displicentemente com intenção charmosa deixar um
dos ombros à mostra para realizar um gingado miúdo e dengoso como, por exemplo,
é característico no passo básico do toque gexá. Esse toque é a fundamentação
coreográfica das danças do orixá Oxum [...]. (LODY, 1995, p. 109-110, grifo do
autor).
A saia de ração branca é elaborada com tecido em 100% algodão e tem o acabamento
final a partir do próprio tecido, no já mencionado babadinho, solução criativa em um cenário
de falta de recursos que se tornou o modelo tradicional, cuja memória dos tempos antigos é
conveniente resguardar, prestigiando a trajetória e técnica ancestral. Esse acabamento final é
feito pregueado em dobras com 3cm de largura.
82
Considerando uma mulher com altura em torno de 1,65m, o tamanho padrão da saia
branca de ração é de 4,00m de roda por 0,80m de altura — incluindo uma pala de 10cm —,
variando de acordo com a própria altura da mulher. Uma dobra de tecido com 3cm e 6cm de
largura é aplicada a todo o comprimento da saia, como contrapeso, para que a saia tenha
movimento e não levante com facilidade. As saias de ração podem incluir 3 “ordens de
nervurinha” espaçadas em 3cm.
Pai Mauricio já encontrou essa tradição em relativo desuso no Ilê Fí Oro Sakapata. A
descontinuação da tradição pode ser interpretada como resultado da dificuldade em se aplicar
novas fitas ao passar dos anos. Como as obrigações não costumam ser realizadas no exato
período da contagem, a aplicação de uma fita necessita do desmanche quase completo da saia.
E mesmo que as obrigações fossem realizadas no período, as fitas desbotam; colocar uma fita
nova em uma saia já em uso afetaria sua estética em um todo, incorrendo em desarmonia.
Saias de festa são mais amplas, as das iabás chegando a 5m de roda e largura de
0,90m para considerar as anáguas. Podem, inclusive, levar um “ar de goma” se o tecido assim
necessitar. Esta é elaborada especificamente para ser aplicada fria com auxílio de um
borrifador no momento em que a saia for passada a ferro. Os bordados floridos são bastante
apreciados, mais até que as estampas africanas (capulana), conforme tratei em momento
anterior. As flores maiores são adotadas para as mulheres de orixá masculino ou iabá de
traços jovens ou guerreiras, enquanto as flores menores e mais “mimosas” são as indicadas
para as filhas de orixás anciãs como Nanã e algumas qualidades de Iemanjá e Oxum. Há
também as interdições pessoais e de orixá que devem ser respeitadas, como estampas de poá
são proibitivas a Oxum e suas filhas.
A saia, tanto de ração quanto a de festa — mesmo com anáguas — deve cobrir o
tornozelo; às ebames é permitido mostrá-lo, inclusive com alguma tornozeleira para as iabás.
A canela jamais é exposta. A altura da saia é, para todas as mulheres, rigorosamente no
83
tornozelo, no “ossinho do pé”112 . Quando atinge a maioridade, a ebame pode, aí sim, encurtar
um pouco as saias, exibindo o tornozelo, realçado ainda mais por um pequeno salto do sapato
a que passa a ter direito. Pode, inclusive, diminuir sua quantidade de anáguas. Marcia de Exu
foi uma das ebames que, pela facilidade de costurar, encurtou as saias antigas ao tomar a
obrigação de sete anos.
Assim como ocorre com outras peças de roupa, às iabás que guardam maior relação
com a feminilidade a roda da saia costuma ser maior, assim como sua largura. A feminilidade,
no candomblé, sempre requer mais tecidos e aparatos. É desejável que a saia combine em
estampa com o ojá de peito, assim como o pano da costa deve combinar em listra com o pano
de cabeça. Antigamente, como é possível constatar em fotografias antigas relacionadas ao Ilê
Axé Opô Afonjá, essa combinação não era tão regular.
O termo “da costa” faz referência à procedência original de muitos produtos da costa
atlântica africana (LODY, 2015; TORRES, 2004), atualmente tratam de tipos específicos de
pano, pimenta ou sabão, ainda que esses artigos não mais venham da África (VOGEL;
MELLO; BARROS, 1993). Curioso notar que, eventualmente, é usado às costas por ocasião
de rituais como bori e axexê. Originalmente era chamado de pano de alaká ou simplesmente
alaká, em referência à técnica empregada de tecelagem em tear manual.
Não é mero elemento decorativo, mas um símbolo e relação ancestral, como afirma
Raul Lody (1977) e também Heloisa Alberto Torres (2004), marca do próprio sentido das
ações da mulher de terreiro (LODY, 1995). E embora a maioria dos tecidos realmente não
venha mais da costa africana, a relação com o continente pode se operar de outras formas:
É a peça de maior significação para uma iniciada no candomblé, segundo Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993), e também afirmação do próprio Pai Mauricio. Já foi abordado
por autores como Raul Lody (1977; 1995; 2015), Heloisa Alberto Torres (2004) e pela própria
85
Mãe Stella de Oxóssi (SANTOS, Maria Stella, 1993). Exerce função sócio-religiosa, ao
oferecer proteção ou mesmo marcar atividade litúrgica, fundamental para as sobrevivências
dos rituais de matriz africana (LODY, 1995).
É desejado em listras ou xadrez, mas pode ser liso em cores suaves. Pai Mauricio,
preferencialmente, não gosta dos panos lisos, acredita que ferem a tradição, embora as filhas
julguem combinar melhor com as saias estampadas, conforme menciono anteriormente. A
solução encontrada é a aplicação de nervuras em intervalos de 2cm a 3cm no comprimento do
tecido, simulando listras. Torres (2004) ressalta que a combinação de cores atualmente é
criação afro-brasileira; os panos da costa africanos do século XX eram em cores muito
específicas. Embora a padronagem original — incluindo coloração — tenha quase
desaparecido, existe a continuidade de suas funções (LODY, 1995).
Usar o pano da costa é empreender uma linguagem visual (LODY, 2015). Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993) destaca formas diferentes de uso que indicam atividade
religiosa — sobre o peito, levemente enrolado à altura das axilas e pendendo ao corpo — ou
elegantemente dobrado pendendo ao ombro, indicando atividade civil. O arranjo do pano da
costa enrolado avoluma a região do tronco anterior de forma muito própria à da arte plástica
africana (TORRES, 2004), enquanto as listras horizontais produzem ilusão de ótica que
aumenta a largura da mulher (SOUZA, 1987), realçando seu busto.
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Fotografia 28 – Pano da costa atado com laço. Fotografia 29 – Pano da costa ao ombro.
Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017). Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017).
O pano da costa com 2m de comprimento alcança com suas pontas as duas axilas e,
enrolado adequadamente, se sustenta. Nó é impensável para Pai Mauricio, sinal de mau uso e
afronta. Assim também como o pano deve envolver o corpo e cair bonito por cima da saia.
Para isso, Pai Mauricio relembra o pai e irmãs mais velhas, ensinando as filhas a projetarem o
corpo para frente no momento de colocar o pano, para que este se ajuste ao corpo como um
tecido cortado evasê e não como “uma toalha de banho”.
O ideal é que as mulheres façam uso do pano da costa em todo o momento. Ebames e
equedes podem se abster de seu uso na lida mais comum do terreiro, em função da bata, mas
jamais participam de atividades litúrgicas sem a peça, estejam de bata ou não, a exemplo do
87
ipadê. Liberações eventuais podem acontecer no dia a dia, pelo calor. E ainda que ocorra, Pai
Mauricio garante que as filhas entendem a liberalidade como algo momentâneo e muitas nem
mesmo aderem.
Uma mulher não deve se aproximar de orixá ou de seus quartos sem pano da costa;
serve para mostrar o respeito diante do sagrado e marcar sua atitude religiosa, como já
destacou Lody (1977). Como à iaô não é dispensável o pano da costa — ao qual é literalmente
amarrada por um laço —, reafirma que a presença da iaô em um terreiro de candomblé em
nenhum momento é desassociada do trabalho religioso, enquanto a ebame, por prerrogativa de
senioridade, é possível estar “à paisana”.
O laço de peito 113 , ou ojá de peito, ata o pano da costa ao corpo da iaô. Quando
colorido é preferencialmente confeccionado com o mesmo tecido da saia, criando uma
estética desejável. Nas medidas de 2,80m a 3,00m por 25cm e com a ponta arredondada ou
em quadrado para mulheres de orixá feminino e de 2,60m a 2,80 por 25cm com a ponta
finalizada em gravata, triangular, para as de orixá masculino. Todos os formatos podem
conter acabamentos, os mais discretos para orixá masculino. Os laços brancos de ração
costumam ser finalizados em quadrado ou gravata somente com bainha.
A ebame, ao receber sua bata, é liberada do compromisso de usar o laço, porém este
volta ao seu corpo quando o próprio orixá for receber sacrifício. A atitude é de reverência e
reforça o entendimento de que, perante orixá, sua filha é sempre uma noviça, iaô. Como é
comum que oferendas sejam envoltas por laços, o próprio corpo da iniciada, atado por um
laço, é oferenda viva de consagração às divindades.
Embora já abordado em momentos anteriores, acredito que a peça que cobre a cabeça
— ojá de cabeça (ojá ori) para mulheres e equeté para os homens — merece mais algumas
considerações, tamanha sua importância. Raul Lody (2015) destaca — e também pude
113 É também chamado de atakan em alguns terreiros, embora tenha ouvido essa forma no Ilê Axé Aganju Ixolá
apenas uma vez; também não encontrei referência nos dicionários consultados.
88
perceber — que alguns momentos rituais demandam a cabeça descoberta, para contato mais
direto com o sagrado e em outros é necessário se proteger de determinadas energias.
O cabelo deve ficar totalmente coberto, assim como a nuca, e a testa descoberta,
informou Pai Mauricio, e é possível também encontrar como orientação de Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993). É aconselhável que o cabelo da mulher esteja preso, não
sendo problema permanecer assim durante o transe, especialmente por ser o ojá retirado. O
cabelo preso ou contido da mulher foi ritualmente observado por Edmund Leach em
diferentes contextos:
89
O cabelo também já foi objeto de discussão, antigamente, sobre os cuidados capilares
permitidos a quem é iniciado para orixá (CRUZ, 1995). Incomuns à época de consolidação
dos candomblés, os alisantes químicos causaram escândalo e proibições inicialmente.
Atualmente não há qualquer questão sobre o assunto ou impedimento litúrgico. O uso de
“chapinhas”, escovas à base de formol ou outros produtos mais ou menos agressivos, são
populares também entre as mulheres de terreiro.
Como já abordei ao tratar de gênero, o uso frequente do ojá de cabeça pela mulher e
a omissão do equeté para os homens pode ser percebido como fruto de adaptação da realidade
feminina do candomblé à absorção de homens, especialmente na categoria de rodantes. As
prerrogativas da masculinidade hegemônica, abordada anteriormente, acompanham o homem
desde fora do terreiro até sua condição de rodante.
As mulheres iniciadas para iabá podem arrumar o ojá com as duas pontas levemente
para cima e as iniciadas para orixá masculino podem fazer o mesmo apenas com uma ponta. É
um uso tradicional do pano de cabeça, apontado também por Mãe Stella (SANTOS, Maria
Stella, 1993), que necessita de um tecido encorpado ou mesmo das pontas engomadas.
A medida ideal para o pano de cabeça de uma iabá é de 2,80m por 25cm e de 2,20m
por 25cm para a mulher iniciada para orixá masculino. Dessa forma, o primeiro é ligeiramente
mais volumoso, arredondado, e o segundo mais discreto. O acabamento nas pontas pode
seguir o aviamento da saia e deve ser discreto no caso de iniciada para orixá masculino, o
pano terminando em ponta quadrada. Pai Mauricio mencionou grandes matriarcas do
candomblé para exemplificar que o ojá de cabeça não deve ser exagerado, Mãe Stella, Mãe
Meninazinha e Mãe Beata: “É sempre muito certinho, muito justinho na cabeça”. Robson
Cruz (1995) indica que o estilo de se amarrar o pano de cabeça — a que chama turbante — ou
sua ausência distingue a procedência da casa ou da nação à qual a mulher pertence.
O equeté segue a sobriedade de toda indumentária masculina em uma altura que não
deve ultrapassar 10cm. É acusado de assimilação recente, como argumento que justifique o
uso de pano de cabeça por homens nos terreiros 114 . Pai Mauricio, porém, afirma que já
encontrou os irmãos com a referida peça quando chegou, ainda para ser iniciado, em
Juscelino, antes de 1989.
114 Consideradas peças femininas, o uso do pano da costa e do pano de cabeça por homens é constante tema de
Os fios de contas, em definição mais simples, são fios com contas — tudo que pode
ser processado por enfiamento (LODY, 1995) — enfiadas em cordonê. Este material é
necessário e preferível, em vez do náilon, por ser de algodão e absorver os elementos a que é
submetido o fio de contas já elaborado para sua consagração, tais como água com ervas e
mesmo sangue sacrificial:
Raul Lody (2015, p. 45) os classifica como “emblema social, religioso e estético que
marca um compromisso ético e cultural. É um objeto de uso cotidiano, público, que situa o
indivíduo na sociedade”. A partir dos fios de contas é possível identificar orixá de iniciação,
nível hierárquico, ritual de passagem ou mesmo tipo de nação (LODY, 1995). “É nosso
crachá de identificação”, relembra Pai Mauricio os ensinamentos do pai. Alguns fios, embora
materialmente possíveis, em função de cor e forma, não são esteticamente desejáveis a
depender da casa de candomblé; é comum que um terreiro tenha uma identidade e estilo
específico para o uso de fios de contas.
A cor é o grande sinal diacrítico do fio de contas — ou, simplesmente, fio — a partir
da qual é possível indicar a divindade a que pertence o indivíduo (LODY, 1995) e em alguns
casos diferenciar qualidades de orixá. O caso mais comum é a diferença entre Ogum,
simbolizado pela cor azul escura e Ogum Já cujos fios de contas são verdes. Algumas
qualidades de orixá são tratadas de forma mais reservada e seus códigos cromáticos não
facilmente reconhecíveis ou mesmo adotados. Em todo caso, é sempre assumida uma cor
91
genérica principal que é primeiramente relacionada ao orixá, como o azul para Ogum.
Qualquer outra diferenciação é atribuída em caráter excepcional.
93
Uma peça especial, que não é exatamente categorizada como fio de contas, mas
constitui emblema maior da iniciação é o rosário, comumente conhecido como mocã, embora
eu não tenha ouvido a ocorrência deste termo uma vez sequer, assim como também não
localizei grafia aproximada em iorubá. É rosário a que se referem em todo o momento no Ilê
Axé Aganju Ixolá. Trata-se de um trançado de palha da costa arrematado nas pontas superior
e inferior com uma espécie de vassourinha do mesmo material. Acompanha a iaô desde a
iniciação até a obrigação de sete anos, na qual é desobrigada de seu uso. Ainda assim, a peça
retorna ao pescoço toda vez que a ebame exercer a função de ojubonã 117 de uma iaô ou esteja
envolvida diretamente na iniciação, reforçando sua condição de iniciada e de humildade
diante do nascimento. Apesar de todo luxo que os fios de contas podem carregar, não escapa
aos iniciados o fato de que sua conta mais importante é feita de palha.
Durante o período de função é comum que as iaôs usem somente o delogum de seu
orixá, um fio comum de Xangô, de Oxalá e algum outro de sua estima ou afinidade. Essa
liberalidade garante maior mobilidade durante as atividades e também resguarda os fios de
acidentes; um delogum dificilmente chega ao final dos sete primeiros anos de vida religiosa
com todas as pernas com que começou. Na festividade pública, se usam todos os deloguns,
reforçando a condição hierárquica da iaô diante dos adeptos, momento em que toda a etiqueta
do candomblé é reforçada em sua performance voltada ao público.
117 Do iorubá, ojùgbọ̀ nà. É a mãe pequena da iaô, encarregada de seus cuidados — litúrgicos ou não — durante o
período iniciático e de sua orientação e encaminhamento na vida religiosa após iniciação. Também grafado como
ojùbonà.
118 Provável corruptela para o número dezesseis (20 - 4), que pode se apresentar nas formas ẹrìndínlógún,
̀
mẹ́rìndínlógún ou ẹ́ẹ́rìndínlógún.
94
A obrigação de sete anos substitui os deloguns pesados por fios de contas mais
trabalhados e de diferentes formatos, alguns até mais curtos. Podem ser fios únicos ou
gomados — com gomos — em número de pernas variados. O acesso a materiais também é
ampliado a partir do momento em que se torna ebame; não existe mais restrição hierárquica
para uso de corais ou outras pedrarias e materiais.
Algumas condições, no entanto, devem ser observadas. Uma pessoa iniciada para
Oxalá não deve trazer o pescoço com muitas cores, especialmente vermelho e similares; o
branco deve sobressair. Pai Mauricio mostrou o delogum de uma iaô de Oxalá, confeccionado
com miçangas maiores para que ficasse ainda mais grosso e então sobrepujasse as outras
cores. O uso do alabastro na composição dos fios de conta, por exemplo, é restrito aos filhos
de Oxalá, assim como o laguidiba aos filhos de Omolu ou aos presenteados por este orixá.
95
Após a morte da filha de santo seus fios de contas podem seguir no ritual fúnebre,
despachados, como orientado também em relação às outras peças de roupa, ou então são
deixados para irmãs próximas ou mesmo filhas pequenas, conforme também observado por
Raul Lody (1995).
2.5.8. Joias
Além de um sentido amplo de preferências das divindades, Pai Mauricio conta sobre
uma parente de santo, Angela de Oyá, a quem já me referi, cuja divindade não gostava de
brincos e sempre os arrancava de forma bruta, machucando as orelhas, se por ocasião do
transe sua filha estivesse com as peças. Não existe nenhum impeditivo na utilização de
brincos e joias por Oyá, porém esta é uma característica muito particular do orixá em transe
121 Contas de vidro e louça, referência ao arquipélago de Murano, na Itália, famoso por objetos decorativos de
vidro.
97
O xabá 122 é uma pulseira de formato retorcido característica do orixá Ogum, quando
em ferro; em número de sete em cada braço. Usado também por Exu. Pai Mauricio mostrou
os xabás de sua iaô, Karine, enegrecidos a partir de técnica especial. A pulseira é embolada no
jornal e queimada, na brasa. Depois é submersa na água de folha do orixá e volta a queimar,
para então passar verniz sem brilho. Dessa forma “fica um ferro preto, preto, preto”, sem
manchar o pulso ou mesmo a roupa. Pude ver o xabá em suas duas formas, antes e após a
técnica e parecem feitos a partir de materiais diferentes. Pai Mauricio reforça a importância na
preservação dos símbolos dos orixás, que não sejam usados à revelia: “Aquilo não é
decoração. Aquilo é uma insígnia só dele. Só dele. Só de Ogum. A gente bota um xabá de
ferro assim se for uma mulher de Apará, uma mulher de Ogunté”.
O perfume está para o olfato como o adorno está para a vista (SIMMEL, 1939). Não
há grandes regras ou interdições para o uso de perfumes no Ilê Axé Aganju Ixolá, embora não
seja adequado que pessoas consagradas a divindades masculinas usem perfumes classificados
como muito doces, pois as noções de gênero dentro de um terreiro seguem a norma social
mais ampla, as noções circulantes de gênero, conforme trata Almeida (1996). Mãe Stella
menciona essa tensão como “adereços de interpretações conflitantes, no consenso médio”
(SANTOS, Maria Stella, 1993, p. 38).
Eu sempre usei o perfume sem o menor problema. Meu irmão sempre teve problema
com isso, Ogun Jobi. Ogun Jobi era um cara muito vaidoso. Ele adorava perfume.
Chegou na festa de Ogum, Ogum pediu “não coloca”. Ogum não gostava. [...] “Não
coloca, não coloca”. Jobi foi, não resistiu, colocou de leve. Ogum quando chegou,
antes de se vestir, se banhou todo de dendê e aí botou a roupa. Jobi era vaidosíssimo.
E saiu com a roupa toda manchada de dendê. (Mauricio de Aganju) 123 .
2.5.10. Calçados
Samuel Abrantes (1999), a partir de Roger Bastide, afirma que retirar os sapatos é
“referência à condição primordial do africano, participante da vida tribal de seus ancestrais,
em contato direto com as forças da terra, que além de ser representação de uma deusa,
estabelece uma relação de polaridade com o céu, o infinito, é o Aye, o Orum (Terra e Céu)”
(ABRANTES, 1999, p. 93). Estar descalço é condição para muitos rituais e também para
entrar nas casas de orixá, diante de seus assentamentos. Além do contato com a terra, denota
também reverência e submissão à divindade.
Fotografia 35 - Mule.
Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2017).
124 Do iorubá, ìpẹ̀tẹ̀. Festejo em que se celebra o orixá Oxum, servindo sua comida votiva de mesmo nome.
99
No dia a dia todos usam sandálias de borracha, chinelos, e para a festa sandálias
elegantes de couro. As sandálias das ebames, de salto não muito alto, são herança mourisca
(LODY, 2015), changrins e mules, chinelos de ponta de couro. Embora pareçam
desconfortáveis para dançar, estavam nos pés de quase todas as ebames, à exceção das mais
idosas. Marcia de Exu afirmou não haver qualquer desconforto ou atrapalho do salto para as
danças do xirê. Não abrir mão das insígnias de maioridade é também ajustamento por que
passam as ebames; ainda que desconfortáveis, os portam com orgulho.
100
3. CASA, FAMÍLIA E TRADIÇÃO
suas liturgias, suas festas, comidas, danças, música vocal, música instrumental,
indumentárias, vocabulários, posturas hierárquicas, sistemas de poder, processos
adivinhatórios, medicina, ludicidade; enfim, é local onde a memória afro-brasileira é
aquecida através dos rituais, que podem ser diários e cíclicos. (LODY, 1995, p. 44).
125 Existe também um constante emprego do termo “comunidade-terreiro” em uma tentativa de reivindicar
reconhecimento, direitos e recursos.
126 Do iorubá, ẹgbẹ. Termo traduzido como fraternidade, sociedade ou companhia.
́
101
candomblé, constatando que todos os indivíduos ocupam posições diferenciadas nesse sistema
hierárquico, onde ninguém é igual a ninguém, destacando as características desse processo
permanente de classificação social: “o protocolo com a sua detalhada ritualização das
precedências e delicadezas, a competição pelos títulos honoríficos e pelo prestígio iniciático;
as sutis intrigas decorrentes desse jogo e, finalmente, o dispêndio ostentatório, o luxo e o
brilho” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 84). A etiqueta do candomblé é também
ferramenta de controle, regulagem e dominação (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).
Em outro sentido que me interessa para este trabalho, o termo “casa” é usado pelos
membros do candomblé para se referir especificamente a um terreiro como unidade
doméstica; é a casa como ambiente de um tipo peculiar de família. A casa de Pai Mauricio,
por exemplo, se refere ao terreiro de candomblé chefiado pelo babalorixá Mauricio Moraes,
Ilê Axé Aganju Ixolá. Embora a maioria dos terreiros tenha um nome específico, é comum
que seja tratado dessa forma: “ela é da casa de Pai Mauricio (Ilê Axé Aganju Ixolá); vou à
casa de Mãe Beata de Iemanjá (Ilê Axé Omiojuaro)”.
Embora Vogel, Mello e Barros (1993) oponham a casa — no sentido das sociedades
de corte e sua face pública — ao termo família — caracterizada pela vida privada, convívio
restrito e íntimo de um grupo doméstico —, considero aceitável a ocorrência dos dois termos,
se não simultaneamente, em momentos bem marcados em um terreiro de candomblé.
Figura 3 – Diagrama de filiação das casas, a partir do Ilê Axé Opô Afonjá (RJ).
Fonte: Autor (2020).
127Os predecessores, ancestrais, influenciam efetivamente a vida de seus descendentes, embora a temporalidade
da análise de Geertz (2017) não se aplique ao candomblé, em que os ancestrais se fazem, sim, presentes, de
acordo com a crença dos adeptos.
103
Em uma escala abrangente, considerando os vários ramos de linhagem a partir de Mãe Aninha
de Xangô; é comum os adeptos entenderem a descendência das casas matrizes como
linhagens e se reconhecerem como parentes, conforme indicado no diagrama de filiação das
casas (figura 3). E também em uma escala menor referente aos laços desenvolvidos dentro do
próprio terreiro.
Pai Mauricio é o chefe do terreiro, sendo auxiliado por Pai Julio de Omolu, que
ocupa o cargo de balé Xangô e é pai de santo de alguns dos membros. Algumas antigas irmãs
de santo procuraram os dois sacerdotes para realizar suas obrigações pendentes, se tornando
então irmãs-filhas e estabelecendo também uma relação de tias-irmãs com seus novos irmãos
de santo 128 . As equedes são chamadas de mães, os ogãs são pais. Ebames também são mães e
pais, além da frequente classificação a partir dos laços míticos entre os orixás. Mãe Stella de
Oxóssi (SANTOS, Maria Stella, 2010) chama de “relação espiritual fina” o tratamento entre
os membros do terreiro em função da relação mítica entre seus orixás, também observada por
Vogel, Mello e Barros (1993). Essa relação faz com que uma filha de Nanã — uma divindade
anciã —, por exemplo, seja chamada por todos de minha avó, independentemente de sua
idade biológica.
128 O falecimento do babalorixá Joaquim Motta de Omolu, pai de santo de Mauricio e também de Julio, em 1998,
105
do candomblé, em grande parte, moldam as relações que ali se desenvolvem, inclusive a
relação com o próprio espaço, dando-lhe e reforçando o sentido de casa. Quando distinguem a
casa de família da casa de candomblé, Vogel, Mello e Barros (1993) consideram a vitalidade
da face pública do terreiro. Gostaria de chamar a atenção, para efeitos da reflexão que
proponho, à dinâmica do terreiro quando este tem suas portas fechadas ao grande público,
durante os períodos de função. É durante esses períodos que os laços de afeto se consolidam e
intensificam. Para um único dia de festa pública, anteriormente, podem ter ocorrido vinte dias
de função e convívio contínuo em um contexto mais privado.
Em outubro de 2018, durante o período de função no Ilê Axé Aganju Ixolá, ocorreu
um princípio de incêndio no corredor sem saída em que são lavadas as pilhas de louças
utilizadas e limpas praticamente de maneira ininterrupta em um terreiro. A mangueira de um
botijão de gás se desprendeu, formando uma língua de fogo fora de controle. Duas filhas de
santo e um filho de santo estavam no corredor sem conseguir sair e os gritos de ajuda
106
chamavam pelo pai, embora outras pessoas estivessem mais próximas. Da mesma forma, Pai
Mauricio saltou pelo fogo para auxiliar as filhas e o filho, exercendo o papel social de pai,
assumindo o que considerava sua responsabilidade enquanto tal. A estrutura de um terreiro
enfatiza e reforça os aspectos classificatórios de parentesco e os papéis sociais de pai, mãe,
filhos e filhas, bem como suas expectativas.
Além de “pai”, “filha” e “filho”, os membros do terreiro se referem a Tio Miguel, Tia
Maria, Tia Helena, Tia Dani e alguns outros. Foi possível ouvir também expressões como
minha avó Aninha, meu avô Joaquim, durante os dias que passei no terreiro de Xangô; ambos
falecidos, porém, presentes no cotidiano através de ensinamentos e mesmo evocações
narrativas e rituais 130 . A continuidade entre o terreiro de Pai Joaquim e o de Pai Mauricio e
mesmo desses dois com o Ilê Axé Opô Afonjá estabelece uma rota de memória que se realiza
e atualiza a cada invocação.
130 Ao início de qualquer cerimônia ritual, um pouco de água é derramada três vezes no chão, reforçando a
ligação da atividade ritual do terreiro com a terra, conforme já observado por Juana Elbein dos Santos (2008).
108
Referir-se a Mãe Aninha — e também Mãe Agripina — como “minha avó” produz,
além de legitimidade, proximidade e familiaridade com essas senhoras e o legado que
deixaram. E as roupas, a permanência e manutenção de modelos usados desde o final do
século XIX, bem como técnicas, reforçam essa proximidade, criando uma nostalgia. O
candomblé realizado no Ilê Axé Aganju Ixolá fixa suas regras a partir dessa nostalgia.
A casa era, à época da fundação dos primeiros terreiros, como ainda é, o local do
trabalho doméstico especializado, que é eminentemente feminino (RYBCZYNSKI, 1999). É a
partir do conhecimento que detêm sobre a lida doméstica da casa que as primeiras mães de
santo estabelecem seus terreiros; soma-se a isso o acolhimento a famílias inteiras refregadas
pela dinâmica de escravização e abolição. Há um deslocamento dos quadros referenciais
domésticos para essa nova realidade que se constitui também como doméstica. Em outras
palavras, o mundo doméstico tem uma gramática própria de significados e esta é deslocada
para o universo do candomblé, quando ainda em constituição. E, sendo a casa um território
feminino, pertencente a este gênero (TORQUATO, 2013), os terreiros manterão essa
proximidade com o universo feminino 131 , sendo este regido pelo trabalho doméstico e pela
reprodução da família de santo (BIRMAN, 1995).
Esse deslocamento a que me referi é proposto por Laurent Thévenot (2016) para
compreensão das relações sociais. Nossa socialização primária é realizada no ambiente
doméstico e é a partir dos códigos fornecidos pela vida doméstica que partimos para
131Refiro-me, com a expressão “universo feminino”, à noção de senso comum de que a casa e a lida doméstica
são ambiente e atividade eminentemente femininos.
109
desbravar outros espaços e universos de significados. Quando nos referimos a um ambiente
outro como casa, é possível entender que existem semelhanças entre este e a casa
propriamente dita. Essas semelhanças são construídas a partir dos regimes de domesticidade,
ou seja, nos engajamentos referentes ao ambiente familiar que se deslocam de um ambiente ao
outro. Nesse sentido, aplicar a um terreiro de candomblé o termo casa e utilizar a categoria
correlata família em sua organização social suscita tensões entre diferentes regimes de
domesticidade e mesmo categorias de gênero.
Isto acontece porque as diferentes experiências são moldadas por pontos referenciais
culturais, de gênero e de história de vida (PINK, 2004). Se cada casa é um domínio criativo
em que o indivíduo articula sua identidade em negociação com o ambiente, as negociações
aumentam em um terreiro de candomblé, que nunca é composto por menos que uma dezena
de membros. As divergências entre engajamentos de domesticidade estão em constante tensão
e negociação na casa de santo, “universo regido pelo trabalho doméstico e pela reprodução da
família-de-santo” (BIRMAN, 1995, p. 144). São consequência também da relação entre as
representações dos indivíduos sobre relacionamentos personificados com sua casa e família e
como se situam com seus ambientes domésticos (PINK, 2004).
Quando Witold Rybczynski (1999) afirma que o controle feminino sobre a casa
introduz a domesticidade, é possível, a partir de um deslocamento, afirmar que a mulher
empreende o mesmo no terreiro, transformando-o em um ambiente doméstico e
eminentemente feminino, ainda que a domesticidade, enquanto ideologia legitimadora de
desigualdades de gênero, contribua para a dominação masculina (BOURDIEU, 2010), mesmo
no âmbito do candomblé e em um terreiro chefiado por uma mulher. Esse deslocamento existe
também nos terreiros chefiados por homens, uma vez que a estrutura histórica do candomblé
foi consolidada por mulheres e as atividades continuam divididas segundo o gênero.
132 Dentre os cerca de 50 adeptos que passaram e permanecem no Ilê Axé Aganju Ixolá, constam 2 homens
iniciados para iabá. No Ilê Fí Orô Sakapata, dentre os quase 250 adeptos à época de seu babalorixá, Pai Mauricio
se recorda de apenas 3 iniciados para iabá.
111
A objetivação social de uma ideia cria universos simbólicos que reúnem ideias em
um conjunto de sentido: “o universo simbólico é concebido como a matriz de todos os
significados socialmente objetivados e subjetivamente reais” (BERGER; LUCKMANN,
2010, p. 127). É o contexto ao qual determinado sistema de categorias está relacionado; os
dois não podem ser separados. A casa de candomblé é composta por “pais”, “mães”, “tios” e
“avós” em rotina doméstica e que se reconhecem como tais a partir desses próprios termos e
engajamentos. Nas palavras de José Flávio Pessoa de Barros, a casa de candomblé:
[...] é o lugar da memória, das origens e das tradições, onde, além de se preservar
uma língua ancestral, na qual são entoados os cantos e as louvações, se celebra a
vida de uma maneira muito particular, isto é, daqueles que decidiram, juntos,
vivenciar uma visão de mundo comum, com regras específicas de convivência,
baseadas no parentesco mítico, no princípio de senioridade e na iniciação religiosa
(BARROS, 2010, p. 31).
Nesse sentido, Torquato (2013) afirma que a casa é uma entidade moral, sendo
também uma categoria sociológica fundamental, assim como a família. Os quadros
referenciais deslocados do ambiente residencial para o terreiro de candomblé o constroem
como casa e lugar de família. O cotidiano dessa casa será marcado, assim como o de qualquer
outra, por negociações de gênero e domesticidade. Só existem conflitos domésticos porque os
indivíduos se reconhecem como família em uma casa e em rotina doméstica. Esse processo,
ao mesmo tempo em que cria, também alimenta o engajamento nesse universo simbólico,
construindo, assim, diuturnamente, a própria realidade do candomblé.
112
Fotografia 37 – Ajeitando o laço.
Fonte: Autor (2018).
Toda religião, conforme Roger Bastide (1971, p. 333), “se compõe da tradição de
gestos estereotipados e de imagens mentais, ritos e mitos respectivamente”. No candomblé, a
discussão sobre tradição é subjacente a qualquer temática. De uma perspectiva intragrupo, o
113
termo é usado para legitimar ou desqualificar a validade de práticas rituais. Patrícia Birman
(1995) ressalta a crítica permanente que existe entre os terreiros a partir do conhecimento
demonstrado e também comportamento ritual. Observa-se que nem sempre a retórica da
tradição é necessária; tudo pode ser criticado sob um sem número de perspectivas. A autora
aponta que essa crítica é mecanismo básico para a reprodução de um diferencial constitutivo
da identidade. Do ponto de vista da produção intelectual e acadêmica, Stefania Capone (2018)
afirma existir uma tentativa de monopólio, por parte da antropologia, do que pode ser
considerado tradicional ou africano.
114
Se existe, porém, a busca de um território idealizado para ancorar a tradicionalidade
do candomblé, a África tem perdido espaço, pelo menos nos discursos do Ilê Axé Aganju
Ixolá. Uma das razões é a popularização no Brasil dos cultos a Ifá, caracterizados pelo ixexé
lagbá 133 ou essim orixá ibilé 134 , religião tradicional iorubá praticada na África. A divergência
entre as classificações dessas vertentes e o candomblé tem produzido confusões e causado
reserva entre alguns adeptos, que preferem se ater às práticas já consolidadas. Pai Mauricio é
enfático ao afirmar que já encontrou tudo muito bem estruturado por suas ancestrais e não
precisa “africanizar” nada:
[...] essa foi a tradição que nós recebemos dos nossos ancestrais e do qual eu hoje
como babalorixá faço questão de manter. E de forma alguma reafricanizar o
candomblé, porque o candomblé não é uma religião de África, o candomblé é uma
religião brasileira, de culto a orixás africanos. Então nós não temos mais nada a
acrescentar do que a brilhante inteligência que as nossas ancestrais, nossas bisavós,
Mãe Aninha, Mãe Davina, Iá Nassô, Pai Bamboxê Obitikô, a bênção à minha Mãe
Regina Bomboxê, aonde a senhora estiver (Mauricio de Aganju) 135 .
purpose of a given practice that, precisely because it is established, has a history. These discourses relate
conceptually to a past (when the practice was instituted, and from which the knowledge of its point and proper
performance has been transmitted) and a future (how the point of that practice can best be secured in the short or
long term, or why it should be modified or abandoned), through a present (how it is linked to other practices,
institutions, and social conditions)”. (ASAD, 2009, p. 20, grifos do autor).
115
permanência de técnicas e materiais no Ilê Axé Aganju Ixolá, diferente do que é possível
observar em muitos terreiros, e mesmo diante da oferta de roupas de candomblé. E essa
permanência está associada, sim, ao discurso de tradição, porém algo mais o sustenta.
116
É recorrente nas narrativas do terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá, a menção à
ancestralidade. Os ancestrais do terreiro são evocados constantemente para a liturgia — como
testemunhas a avalizar o que é praticado — e também nas conversas cotidianas. A vida em
um terreiro de candomblé, porém, como caracterizada anteriormente, vai além da prática
religiosa; os membros estão unidos por uma estrutura “sócio-cultural cujos conteúdos recriam
a herança legada por seus ancestrais africanos” (SANTOS, J., 2008, p. 38). Comportamentos,
alimentação e práticas de vestuário, bem como técnicas, também são expressão importante e
estão sob constante escrutínio ancestral. Ignorar o conjunto de todas essas práticas — não só
as estritamente religiosas — é atrair desagrado de ancestrais e também dos orixás.
Juana Elbein dos Santos (2008) propõe uma distinção entre os orixás e os ancestrais,
espíritos dos seres humanos. Os primeiros estariam associados à estrutura da natureza e os
ancestrais à estrutura da sociedade. Estes são os genitores humanos e sua caracterização
enquanto antepassados religiosos interioriza a pertença do indivíduo a uma estrutura social
específica (SANTOS, J., 2008).
117
A iniciação estabelece o laço ancestral e cria o compromisso, mas esse precisa ser
alimentado, recriado e adaptado às experiências contemporâneas (LODY, 1995). Tradição não
é repetição de uma forma antiga, mas sim o entendimento sobre o desempenho adequado e de
como o passado se relaciona à prática atual (ASAD, 2009); é necessário um futuro imaginado
para direcionar o trabalho de criação do desempenho, não apenas uma retomada do passado
(RABELO, 2014).
No candomblé, assim como entre povos que não fazem uso da escrita,
[...] a lembrança dos velhos transforma-se na principal fonte das regras do grupo.
Pelas lembranças recupera-se do passado o tempo mítico da origem do mundo, dos
animais e dos seres; justificam-se as regras e os tabus, ordena-se o presente e
controla-se o futuro. (DINIZ, 2001, p. 18).
É essa lembrança dos mais velhos, evocada como memórias familiares, que dão a
liga necessária à manutenção das regras de conduta e vestuário. O parentesco religioso é a
estrutura a partir da qual a lembrança é reativada e associada a ocorrências sociais retidas no
corpus da tradição oral do grupo (BRAGA, 1992). A tradição, reitero, opera como modelo de
interação social.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dormir e acordar no Ilê Axé Aganju Ixolá proporciona a sensação de que Joaquim
Motta, Eugênia Anna dos Santos e Agripina Sousa — pai e avós —, dentre tios, mães e tias,
outros familiares falecidos, entrarão a qualquer momento pelas portas do terreiro, tamanha a
recorrência em evocações. São exemplos de conduta, predileções por materiais, exortações e
saudades. Lembrar datas, causos e fatos imortaliza um ancestral; do contrário, morre uma
segunda vez. É o medo do aniquilamento total que tanto temem os iorubás.
No Ilê Axé Aganju Ixolá, as histórias contadas e recontadas sobre Vó Aninha, Tia
Angela, Tia Maria, Vó Agripina, Tio Jobi e outros, funcionam como mitos implícitos (LÉVI-
STRAUSS, 1971), justificando e atualizando a indumentária enquanto rito. Os ensinamentos a
partir da repetição das preferências e técnicas das ancestrais, unem discurso e prática em um
todo ritualizado.
A inquietação principal que orientou essa pesquisa foi a maneira com que o
babalorixá e seu terreiro constroem uma narrativa que justifique o rigor do vestuário. A
ausência das tendências verificadas no amplo mercado de roupas, das composições de
sianinha, das golas rainha, das anáguas sintéticas e das roupas masculinas ricamente bordadas
me levaram a questionar que mecanismos operavam o rigor vestuário em torno de um padrão
bem delimitado.
120
As narrativas em torno do pertencimento familiar se operam no Ilê Axé Aganju Ixolá
em duas direções. A primeira, mais ampla e que serve de sustentação para a segunda, é no
sentido da linhagem. É o conjunto de noções e engajamentos que faz com que os adeptos
desse terreiro se entendam e se construam como descendentes do Ilê Axé Opô Afonjá. A
segunda direção é a que mobiliza, principalmente, os termos de parentesco empregados na
lida cotidiana e reforçados pela vivência em um ambiente caracterizado como doméstico. A
rotina doméstica reforça as duas direções dessas narrativas, operando a eficácia delas e apelo
emocional na construção dos discursos. As roupas são, então, a forma característica de uma
família se vestir e se identificar enquanto família.
122
seu lugar enquanto rodante. De todo modo, até mesmo a sobriedade desses trajes reforça, por
contraste, a roupa da mulher; opera como reforço da estrutura social.
123
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