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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

DIOGO COUTINHO IENDRICK

DO CAMISU À BATA, AS ROUPAS CONTAM A HISTÓRIA:


AS TRAMAS DO VESTUÁRIO NO CANDOMBLÉ

NITERÓI
2020
DIOGO COUTINHO IENDRICK

DO CAMISU À BATA, AS ROUPAS CONTAM A HISTÓRIA:


AS TRAMAS DO VESTUÁRIO NO CANDOMBLÉ

Dissertação de Mestrado submetida ao Corpo


Docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia (PPGA), do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da
Universidade Federal Fluminense (UFF)
como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do grau de Mestre em
Antropologia.

Orientador:
Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga

Niterói, RJ
2020

ii
DIOGO COUTINHO IENDRICK

DO CAMISU À BATA, AS ROUPAS CONTAM A HISTÓRIA:


AS TRAMAS DO VESTUÁRIO NO CANDOMBLÉ

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga – PPGA-UFF (Orientador)

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello – PPGA-UFF

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Robson Rogério Cruz – UNILAB

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo Martins Costa Medawar – LeMetro/IFCS-UFRJ

_______________________________________________________________
Prof. Dra. Ana Paula Mendes de Miranda – PPGA-UFF (suplente interno)

_______________________________________________________________
Prof. Dra. Soraya Silveira Simões – IFRJ (suplente externo)

Niterói
2020

iii
iv
DEDICATÓRIA

Dedico esta Dissertação de Mestrado em Antropologia a Mãe Stella de Oxóssi, Odé


Kayodê, a quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (BA). Seu falecimento, na última quinta-
feira — dia da semana consagrado a seu orixá patrono — do ano de 2018 deixou uma lacuna
nas casas de candomblé de todo o Brasil.

Impecável no vestir, foi a partir dos posicionamentos de Mãe Stella acerca da


indumentária religiosa que o tema começou a me chamar atenção, instigando grande parte das
reflexões aqui apresentadas. Seu livro, Meu tempo é agora, me alcançou em momento
fundamental da minha caminhada religiosa e solidificou minha conduta enquanto iniciado.

Gratidão por ter vivido em seu tempo, Iyá, que continuará sendo agora. A senhora já
era imortal.

Fotografia 1 – Iá Odé Kayodê.


Fonte: Mario Cravo Neto (198-).

v
AGRADECIMENTOS

Gostaria de lembrar onde li ou ouvi, em algum momento da vida, que “gratidão é


uma dádiva que se deve exercer sem modéstia”. Pode ter sido em um terreiro de candomblé,
em um livro de filosofia, em uma imagem de internet ou em alguma sala de aula. Não lembro
o momento ou o autor, mas a frase sempre persistiu em mim. Esta seção, por piegas que possa
parecer, é extremamente necessária. É o reconhecimento da importância das pessoas e eventos
que nos levam a pessoas e eventos. Os encontros felizes e potentes de que fala a filosofia
ocidental.

Primeiramente agradeço aos que vieram antes de mim. Ancestrais, espirituais ou não,
que umedeceram a grande custo a terra em que piso. E também às antropólogas e
antropólogos — e demais pensadores e pensadoras — que pavimentaram o caminho que hoje
trilho.

A Ajagunã, meu deus particular, que me guia e guarda 24 horas por dia, 365 dias por
ano — às vezes 366. Ao qual fui iniciado pelas mãos de Oxum em dezembro de 2003 e que
me acompanhará até minha penúltima jornada. Desde o primeiro dia tem sido uma honra ser
filho desse orixá e o orgulho só aumenta. A Oxum, o eterno brilho dos meus olhos e pilar de
sustentação. A Xangô e Iemanjá por me acolherem e me enxergarem de maneira especial. A
todas as forças espirituais que me amparam e brilham sobre mim.

Ao babalorixá Mauricio Obá Guerê e à fantástica egbé do Ilê Axé Aganju Ixolá
que me acolheram durante a pesquisa e em um momento difícil de minha trajetória religiosa.
Além de interlocutor especial, Mauricio foi um mais velho exemplar. O fogo de Xangô
retornou o brilho aos meus olhos por seu intermédio; sou extremamente grato. A Pai Julio de
Omolu pelo carinho e remédios para a coluna. Mencionando algumas pessoas da egbé de
Aganju: Letícia de Obá, Cristiana de Oxóssi, Fabio de Airá, Agba Nilza Iyá Ominiké, Iyá
Ely de Oxum, Thiago de Ogum, Karine de Ogum — doutora em Antropologia —, Marcia
de Exu, Equede Valeria de Oyá e Bernadete de Oyá. Irmãs e irmãos de fé que deram um
pouco de seu tempo, carinho e amor pelos orixás e pelo terreiro através das palavras e também
escuta. Mo dupé!

vi
À Dona Leila, de Omolu, costureira de mão cheia, pela disponibilidade, simpatia e
por ter recebido a mim e a meu orientador em meio a potes de botões, tecidos, máquinas e
linhas, compartilhando conosco seu sagrado.

Ao meu orientador, professor Dr. Felipe Berocan Veiga (PPGA-UFF) pela


confiança, estímulo e paciência com minhas inseguranças; por entender meus movimentos e
silêncios, lendo as entrelinhas. Ao professor Dr. Marco Antonio da Silva Mello (PPGA-
UFF) por compartilhar parte de sua trajetória, ensinando a partir dela, também presente na
banca de qualificação com observações assertivas e generosas. Ouvi deste professor, em uma
das aulas, que era impossível um estudante passar por um programa de pós-graduação e não
se reconhecer parte dos professores em seu texto. Hoje entendo do que se trata. Ao professor
Dr. Robson Cruz (UNILAB) minha admiração e gratidão pelas indicações de leitura —
desde 2011 —, sugestões enriquecedoras na banca de qualificação e pelos apontamentos
imprescindíveis à versão final deste trabalho. Agradeço por toda aprendizagem que me
possibilita ao longo dos anos de participação e convívio nas redes, desde o Orkut até o
Facebook.

À professora Dra. Delma Pessanha Neves (PPGA-UFF) pela atenção, carinho e


ensinamentos preciosos sobre quadros referenciais, categorias, representações e unidades de
análise; seu rosto e voz chegam a mim sempre que percebo um deslize em relação a esses
aspectos. À professora Dra. Laura Graziela Gomes (PPGA-UFF) pelo carinho,
proximidade, estímulo e “engajamentos”. À professora Dra. Lucía Eilbaum (PPGA-UFF)
por ajudar na ampliação de meus horizontes metodológicos.

Aos colegas de turma Thuani Queiroz, Juliana Coelho, Christian Thorstensen e


Leonardo Vieira, os poucos com quem estreitei contato. Este último — também iniciado no
candomblé —, em especial, pela conversa sobre família, pertencimento e aceitação.

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade


Federal Fluminense e a essa instituição como um todo. Foi minha primeira e única escolha
tanto para a graduação quanto para o mestrado; era um desejo meu. É motivo de orgulho ter
cursado graduação e pós-graduação em uma instituição federal de excelência, ainda que os
tempos sejam adversos.

Ao meu babalorixá, Geraldo de Iemanjá, pelo novo começo, pelas madrugadas de


aprendizagem no frio da cozinha externa e compreensão com minhas ausências. Agradeço
também pelo acesso a considerável parte da bibliografia de temática afro-brasileira consultada
vii
para este trabalho e, principalmente, por me apresentar ao Tempo de Mãe Stella e
compreender meu apego a este livro.

À egbé do Ilé Ìyá Ògùn Òpó Airá, à qual retornei em consequência, também, da
experiência modificadora que foi esta etnografia. Obrigado pelo acolhimento, pela paciência
com a minha “obsessão” por roupas e por me ouvirem com carinho. Em especial às três
sereias: Adriana, Máuria e Melissa, as três de Iemanjá, que se tornaram senhoras do vestir.
A primeira e iniciada há mais tempo dentre elas acabou se encaminhando para a Antropologia
também. Bem-vinda!

A meu irmão João de Ajagunã, biólogo, companheiro de partilhas e planejamento


de artigos, o encontro entre natureza e cultura. A meu mais velho Marcelo de Omolu e a
Pedro de Airá pelas leituras e considerações durante o projeto, este último sempre disponível
e paciente para minhas dúvidas gramaticais. A Flávio de Oxalá, “dofono”, pelas orientações
e insistências jurídicas; somente um homem de Oxalá para encontrar as referências que eu
precisava sobre algodão. A Fabio Costa, abiã no terreiro e doutor fora dele, pelas indicações
de leitura e também pela iniciativa de reunir vasto e raro acervo sobre candomblé, ao qual
recorri inúmeras vezes. À Equede Telma de Oxum por uma certa caneta dourada...

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Agradeço pelo
investimento através do qual pude me dedicar com exclusividade à pesquisa e também
engrossar minhas prateleiras de livros. Possibilitou-me também a participação na II
Conferência Internacional e Interdisciplinar de Religiões Africanas e Afrodiaspóricas
Globais na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), experiência modificadora e minha
primeira comunicação em um evento acadêmico internacional. Neste evento conheci a Dra.
Lily Rose Nomfundo Mlisa, a quem agradeço profundamente os momentos de conhecimento
e cura partilhados.

Ao meu pai, Miguel Archanjo Iendrick Filho, que recebeu o diagnóstico de um


câncer no decorrer desta pesquisa e desafiou tudo e todos, mantendo-se de pé, literalmente.
Obrigado pelo apoio e suporte.

À minha mãe, Elaine Coutinho, que não concordando com nada referente à temática
do candomblé, se orgulha e é parte do caminho até aqui. Aquela que registrou o “pulo que eu
dei na máquina de lavar” quando decidi fazer mestrado. Diz ela que, ali, já sabia que eu seria
aprovado no processo de seleção. Eu acredito.
viii
Por último, mas com certeza não menos importante, ao meu companheiro de vida,
Cleber Ricardo. Obrigado pela presença constante, pelo apoio e pelo amor. Pelo “almocinho
simples” quando eu não podia interromper a leitura e a escrita para ajudar nas tarefas da casa.

Obrigado!

ix
RESUMO

O vestuário é importante marcador identitário, revelando aspectos culturais, políticos,


econômicos e morais das culturas. Linguagem simbólica, torna inteligível estados emocionais,
ocasiões sociais e níveis hierárquicos. Conta trajetórias, indica pertencimentos, papéis sociais
e escolhas de vida, formando subjetividades específicas. No candomblé, manifesta também
nível de iniciação ou conhecimento religioso de indivíduos vivendo em rotina doméstica e em
um arranjo social chamado família de santo. É a valorização dos engajamentos construídos
em torno da família de santo a responsável pela fixação de regras do vestuário, justificando a
manutenção de técnicas e usos ao longo do tempo e compreendendo o pertencimento religioso
como processo que comporta dimensões éticas e estéticas reforçadas pela rotina doméstica e
engajamentos afetivos que evoca.

Palavras-chave: Candomblé. Vestuário. Indumentária. Família de santo. Religiões afro-


brasileiras. Rio de Janeiro (RJ).

x
ABSTRACT

Clothing is an important identity marker, revealing cultural, political, economic and moral
aspects of cultures. As symbolic language, becomes intelligible in emotional states, social
occasions and hierarchical levels. It narrates paths, indicates inheritance, social roles and life
choices, creating specific subjectivities. In candomblé, it also manifests initiation level or
religious knowledge of individuals living in domestic routine and in a social arrangement
called “família de santo”. The appreciation of the engagements built around the “família de
santo” is responsible for setting the rules of dress, justifying the maintenance of techniques
and uses over time, therefore understanding religious belonging as a process including ethical
and aesthetic dimensions reinforced by domestic routine and affective engagements it evokes.

Keywords: Candomblé. Clothing. Costume. “Família de santo”. Afro-Brazilian religions. Rio


de Janeiro (RJ).

xi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E QUADROS

Fotografia 1 – Iá Odé Kayodê.......................................................................................... v


Figura 1 – Diagrama de fundação e sucessão no Ilê Axé Opô Afonjá – RJ/ BA............ 8
Fotografia 2 – Orientando durante a função.................................................................... 11
Figura 2 – Diagrama de filiação no candomblé, a partir de Mãe Aninha........................ 16
Fotografia 3 – Sianinha, vagonite e rendas...................................................................... 24
Fotografia 4 – Babadinho da saia..................................................................................... 28
Fotografia 5 – Bilhetinho de orientação........................................................................... 39
Fotografia 6 – Saia da iaô de Ewá................................................................................... 40
Fotografia 7 – Tecido recortado com renda de meio branca e renda palito..................... 41
Fotografia 8 – Etapas da bainha aberta............................................................................ 43
Fotografia 9 – Fundo de balaio........................................................................................ 43
Fotografia 10 – Flor de quiabo......................................................................................... 44
Fotografia 11 – Asa de mosca.......................................................................................... 44
Fotografia 12 – Percevejo de 2 nós.................................................................................. 44
Fotografia 13 – Estrelinha................................................................................................ 44
Fotografia 14 – Florzinha ou quadradinho....................................................................... 45
Fotografia 15 – Roda de quiabo....................................................................................... 45
Fotografia 16 – Cristiana de Oxóssi na cozinha de branco.............................................. 51
Fotografia 17 – Batas recém adquiridas.......................................................................... 54
Quadro 1 – Cores no Ilê Axé Aganju Ixolá..................................................................... 59
Fotografia 18 – Oxalá em procissão sob o alá................................................................. 63
Fotografia 19 – Abiã, ebame e ogã em função................................................................ 66
Fotografia 20 – Xirê......................................................................................................... 67
Fotografia 21 – Ebames aguardando o xirê..................................................................... 69
Fotografia 22 – Recebendo a primeira bata..................................................................... 73
Fotografia 23 – Bata em opala pele de ovo e renda......................................................... 76
Fotografia 24 – Bata sobreposta ao camisu de renda....................................................... 76
Fotografia 25 – Batas masculinas.................................................................................... 77
Fotografia 26 – Terceira anágua com rendas................................................................... 80
Fotografia 27 – Quebra-goma com nervuras e rendas..................................................... 80

xii
Fotografia 28 – Pano da costa atado com laço................................................................. 87
Fotografia 29 – Pano da costa ao ombro.......................................................................... 87
Fotografia 30 – Delogun de Ogum.................................................................................. 92
Fotografia 31 – Delogun de Ogum Já.............................................................................. 92
Fotografia 32 – Quelês no Opô Xangô............................................................................ 93
Fotografia 33 – Iaô de Iemanjá de quelê.......................................................................... 93
Fotografia 34 – Pitanga encastoada em rosa.................................................................... 97
Fotografia 35 – Mule....................................................................................................... 99
Figura 3 – Diagrama de filiação das casas, a partir do Ilê Axé Opô Afonjá (RJ)............ 103
Fotografia 36 – Família de santo em função.................................................................... 106
Fotografia 37 – Ajeitando o laço..................................................................................... 113

xiii
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................... 1
1. ENTRANDO NO TERREIRO........................................................................ 4
2. DA RUA AO XIRÊ – O CAMINHO DO VESTUÁRIO................................ 20
2.1. Da rua à costureira........................................................................................... 32
2.2. O corpo, o gênero, a roupa............................................................................... 45
2.3. Branco e as demais cores................................................................................. 56
2.4. A roupa de ração e a roupa de festa................................................................. 65
2.5. Algumas peças e seus usos.............................................................................. 70
2.5.1. Camisu e bata................................................................................................... 70
2.5.2. As anáguas....................................................................................................... 78
2.5.3. A saia............................................................................................................... 82
2.5.4. Pano da costa................................................................................................... 85
2.5.5. Ojá de peito..................................................................................................... 88
2.5.6. Ojá de cabeça, equeté e cabelo......................................................................... 88
2.5.7. Fios de contas.................................................................................................. 91
2.5.8. Joias................................................................................................................. 96
2.5.9. Perfume e maquiagens..................................................................................... 98
2.5.10. Calçados.......................................................................................................... 99
3. CASA, FAMÍLIA E TRADIÇÃO.................................................................. 101
3.1. Casa e domesticidade...................................................................................... 109
3.2. Casa, ancestralidade, tradição e memória....................................................... 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 124
Dicionários...................................................................................................... 131
Legislação e notícia......................................................................................... 131

xiv
APRESENTAÇÃO

As saias estampadas de flores, os panos listrados em torno do busto das filhas de


santo e os colares multicoloridos encantam muitos que pisam pela primeira vez em um
terreiro de candomblé. O som dos atabaques e o rodopiar das saias engomadas chamam à terra
os deuses africanos conhecidos como orixás, que se fazem presentes em transe no corpo de
seus iniciados e iniciadas.

Saias brancas, em cores, panos diversos em laços e tiras envolvem bustos, pilastras
tigelas e pessoas. Amarram, apertam, unem, adornam, guarnecem, protegem e embelezam. Os
tecidos estão em todos os lugares em um terreiro, em diferentes usos e funções. Tramas
imbricadas e implicadas que permeiam as relações e são, elas próprias, relações.

Trama é um conjunto de fios que se cruzam de maneira transversal. Entrelaçam-se


em diferentes cores, texturas e quantidades. É o que compõe um tecido e manifesta sua
qualidade, de acordo com a quantidade de fios. Aumenta-se a quantidade de fios e também as
relações, os entrecruzamentos, a trama.

O tecido é o fio condutor deste trabalho, enredando tramas de pessoas, objetos e


mundo. A trama das relações sociais entrelaçadas aos objetos, seus significados e as
complexas narrativas que os envolvem. O fio também liga o passado ao presente, puxando-o
pela memória, alinhavando técnicas e formas de uso do passado ao presente, atribuindo valor,
criando regras e nostalgia em torno de um ideal de vestuário e pertencimento. Vestuário é
pertencimento, ambos costurados em narrativas emocionadas que ligam fios em trama e
formam um tecido.

Da ida à rua com o pai de santo em busca de pano e materiais de aviamento até o
xirê 1 , tecidos se transformam em axó, roupa, atravessando gerações e criando relações. As
roupas contam histórias, se soubermos perguntar. Falam sobre escravização e privações, sobre
liberdade e alegria. Contam histórias de períodos imemoriais, da criação do mundo, da
generosidade das plantas e também histórias mais próximas, de família.

O presente trabalho se divide em três capítulos. No primeiro deles, Entrando no


terreiro, apresento o tema e uma breve biografia, me posicionando em relação ao campo

1 Do iorubá, ṣiré é o ritual público, a festa, culminância de semanas de rituais privados. É marcado por seu
caráter festivo, roupas luxuosas e alimentação farta. Os orixás são vestidos em suas roupas de gala, dançam e
abraçam seus fiéis.
1
construído. Aponto também a relevância desse posicionamento para a pesquisa. É onde
explicito meu objetivo de compreender de que maneira as práticas em torno do vestir
consolidam e fortalecem suas regras. Apresento a organização social do Ilê Axé Aganju Ixolá
e sua estrutura. Entrar no terreiro é uma forma de contextualizar minha abordagem de
construção do campo de pesquisa, que é, em si, constitutiva deste e está implicada em todas as
reflexões que elaboro.

Mais extenso, Da rua ao xirê – o caminho do vestuário é o segundo capítulo, ponto


central da dissertação, no qual especifico as peças de vestuário mais características em um
terreiro e suas formas de uso, considerando a encomenda, a produção, o mercado, as técnicas,
os tecidos, os materiais, as cores e os cortes utilizados.

O terceiro capítulo, Casa, família e tradição, apresenta abordagens sobre


ancestralidade, família de santo, domesticidade, tradição e memória, identificando os quadros
que dão institucionalidade à vida social. É a parte do trabalho em que apresento os
engajamentos que me levaram a considerar a família de santo como chave interpretativa para
as relações com o vestuário e também onde contextualizo o entendimento de tradição e
memória, propondo uma reflexão sobre as estruturas condicionantes do reconhecimento dos
adeptos enquanto grupo. Para encerrar, nas considerações finais, observo a rigidez das regras
de vestuário no terreiro estudado e seus aspectos identitários, reforçando a filiação da casa ao
Ilê Axé Opô Afonjá em Coelho da Rocha, no Rio de Janeiro.

No presente trabalho adotei a grafia aportuguesada dos vocábulos em iorubá para


facilitar a leitura. Termos menos conhecidos estão indicados em nota de rodapé em sua
primeira ocorrência, contextualizados com informações dos interlocutores, definições do
Dicionário de cultos afro-brasileiros de Olga Cacciatore ou do FAMA’S Èdè Awo (Orixá
Yorùbá Dictionary), quando em iorubá. Da mesma forma, mantive aportuguesada as
transcrições das falas dos interlocutores.

O idioma iorubá, conforme utilizado nos terreiros, é antes uma associação de


memória entre som e sentido do que tradução literal. Abimbola (1976 apud BARROS, 2011)
classifica o iorubá dos terreiros como antigo e fossilizado em função do uso ritual. Trata-se de
uma mistura de diferentes dialetos do território iorubá a particularidades da própria língua
portuguesa em contexto de colonização. Nos terreiros, constitui um esforço de preservação da
memória (BARROS, 2011).

2
Foram duas as questões que me levaram a apresentar também a grafia iorubá. A
primeira delas se refere ao idioma como língua tonal e predominante nos ritos de candomblé
aqui abordados. A grafia assertiva permite a eventual busca do vocábulo em dicionários
especializados e verificação das diferentes acepções da palavra e diversidade do campo
semântico 2 , justificativa adotada pelos antropólogos Arno Vogel, Marco Antonio da Silva
Mello e José Flávio Pessoa de Barros para o uso da grafia iorubá no livro Galinha d’Angola,
publicado em 1993, e com a qual concordo plenamente. Essa diversidade não necessariamente
é conhecida e julguei pertinente apresentar essa possibilidade aos que tiverem acesso ao
presente trabalho.

Um exemplo claro é a palavra bori (bọrí), ritual bastante comum na prática do


candomblé que consiste em adorar à cabeça como sede da individualidade e particularidade de
cada ser, precisando ser cultuada para que o indivíduo tenha bons direcionamentos em sua
vida. Em um ritual que costuma envolver muitas comidas, geralmente seu significado se
associa a dar comida à cabeça. O vocábulo pode ser traduzido como prestar culto à cabeça.
A grafia iorubá permite a localização e compreensão da palavra em um sentido mais
abrangente, até mesmo para sua contestação. A verificação no dicionário indica a associação
do verbo bọ — prestar culto, reverenciar — com o substantivo orí 3 , cabeça: “Ó nbọ Orí – ele
está cultuando Orí”.

A segunda justificativa é uma forma de valorização do idioma iorubá que, inclusive,


é Patrimônio Imaterial do Estado do Rio de Janeiro — Lei 8085/18 (Rio de Janeiro, 2018) —
e segue o mesmo processo em trâmite no Estado da Bahia — Projeto de Lei 23.739/2020
(Bahia, 2020). Visibilizar e valorizar o idioma é, também, reconhecer a importância das
tradições africanas na construção do país. Constantemente encontramos expressões em inglês,
francês, latim ou mesmo alemão — todas elas, eventualmente, sem qualquer tradução — em
muitos textos acadêmicos e não há qualquer constrangimento dos autores e editores. É
necessário construir novas familiaridades.

2 Informação obtida em aula ministrada pelo professor Marco Antonio da Silva Mello na disciplina Problemas
específicos de análise antropológica do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense em 28 de agosto de 2018.
3 Do iorubá, orí, cabeça. É o “eu” interior, reverenciado no ritual de bori.

3
1. ENTRANDO NO TERREIRO

Àkòró ko láṣọ
Màrìwò láṣọ Ogum o
Màrìwò 4
(Cântico de Ogum)

Toda religião é um sistema simbólico de comunicação e pensamento, um conjunto de


práticas e representações de caráter sagrado que opera uma ordenação lógica do mundo e o
integra a uma ordem cósmica (OLIVEIRA, 2007). É ainda um elemento central da
experiência humana (DURKHEIM, 1995) e interfere nos modos de pensar, sentir e agir.

Consequência imprevista do tráfico de pessoas escravizadas, a religião conhecida


como candomblé nasce do choque de diferentes culturas africanas entre si e com a própria
cultura brasileira em formação à época da colonização (ROCHA, A., 2000). Surgindo
historicamente como foco de resistência cultural e religiosa das populações negras em
preservação dos elementos fundamentais de seu conjunto de crenças (SANDOVAL, 2001), os
terreiros de candomblé se espalham pelo país a partir de fundamentos africanos
brasileiramente integrados à vida nacional (LODY, 1995).

Em diferentes processos históricos e sociais, o candomblé passa a construir e assume


o significado de uma espécie de núcleo de africanidade no Brasil (LODY, 2008), sintetizando
diferentes valores e formando uma complexa organização sócio-religiosa sem paralelos nas
sociedades africanas envolvidas na dinâmica de escravização (BRAGA, 1992). Claude Lépine
(2000) afirma que o candomblé não é folclore, nem apenas religião ou ideologia, mas sim
uma sociedade com vida própria, ou mesmo uma forma de vida (VOGEL; MELLO;
BARROS, 1993). Raul Lody complementa:

Embora eminentemente religioso e constituído por papéis hierarquizados de homens


e mulheres, o candomblé assume sua vocação de reunir e de manter memórias
remotas e outras próximas, referenciando culturas, idiomas, códigos éticos e morais,

4 Ogum não tem roupa; o mariô é a roupa de Ogum.


4
tecnologias, culinária, música, dança entre tantas outras maneiras de manter
identidades, de situar e manifestar cada modelo, nação (LODY, 2008, p. XIV).

Os diferentes grupos étnicos africanos traficados para o Brasil durante o período


colonial se reuniram, inicialmente, a partir do reconhecimento de suas línguas. Esse
agrupamento deu origem também às chamadas nações de candomblé. Termos religiosos,
cânticos, comidas e até mesmo divindades — orixás, voduns e inquices —, quando em
determinado idioma, indicam provável pertença a uma nação específica (BASTIDE, 1978;
LODY, 2008).

Conforme Raul Lody (2008), terreiros cujos termos linguísticos e rituais se


apresentam em ewe e fon, tendem a indicar a nação de candomblé jeje. Terreiros de
linguagem iorubá indicam provável modelo Queto-Nagô, enquanto terreiros de língua bantu
indicam o modelo Congo-Angola (BENISTE, 2009). Esse agrupamento linguístico, étnico, é
determinante nas tradições e nos costumes de um terreiro de candomblé.

O primeiro terreiro Queto-Nagô, ou Kétu 5 , tem sua origem no candomblé da


Barroquinha, cuja fundação ocorreu entre 1788 e 1830 (SILVEIRA, 2006), que
posteriormente se consolidou como o candomblé da Casa Branca do Engenho Velho. Este é
considerado por muitos o candomblé mais antigo da Bahia (LIMA, 2003), do qual teriam
derivado as principais casas 6 de candomblé.

O Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), o Alaketu (Ilê Maroialaji), o Gantois (Ilê
Iyá Omi Axé Iyá Massê), a Casa de Oxumarê (Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô) e o Ilê Axé
Opô Afonjá são há muito consideradas casas matrizes do modelo queto.

Vivaldo da Costa Lima (2003) chama atenção para a utilização do termo jeje-nagô
como forma de considerar a interpenetração de influências dos diversos grupos étnicos
oriundos da África, denominação criada por Nina Rodrigues (CAPONE, 2018), designando o
sincretismo anterior ao processo de escravização. Ainda que existam terreiros jeje-nagô
predominantemente nagô, ou seja, de culto marcadamente iorubá, a utilização do referido
termo reconhece elementos estruturais da cultura jeje. É esta concepção que adoto para o
presente trabalho.

5 Uma importante cidade surgida no território iorubá. Com posterior demarcação de fronteiras ficou situada no
antigo país do Daomé, atual Benim (VERGER, 2018). O soberano é denominado alaketu. No Brasil, passou a
definir uma das modalidades de candomblé oriundas do território iorubá.
6 O termo casa é entendido por Vogel, Mello e Barros (1993) como uma categoria emblemática do campo

religioso afro-brasileiro, questão aprofundada no terceiro capítulo.


5
Como temática antropológica, muitos autores têm construído objeto de pesquisa
acerca do candomblé, problematizando seu processo de formação, rituais, relações intragrupo,
vestuário, identidade, etc. É possível mesmo afirmar que as religiões afro-brasileiras em si
constituem — ao lado dos estudos de grupos indígenas — um dos temas clássicos da
antropologia brasileira. Arno Vogel, Marco Antonio da Silva Mello e José Flávio Pessoa de
Barros afirmam, inclusive, que o candomblé oferece uma “perspectiva privilegiada de leitura
da trama das relações sociais com suas polaridades, conflitos e articulações” (VOGEL;
MELLO; BARROS, 1992, p. 9). Os autores partem da perspectiva inovadora de que o
processo ritual de iniciação no candomblé tem seu início e seu fim no espaço público,
primeiro com as compras piedosas no mercado, uma verdadeira “lição-de-coisas”, e por fim
na igreja católica com a Missa de Iaô, explicitando complexas relações e diferenças no campo
religioso (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993) 7 .

A indumentária como temática dentro do próprio candomblé é privilegiada nos


oriquis 8 , itans 9 e cantigas, tamanha sua importância: a roupa de Ogum é o mariô 10 ; o balanço
das pulseiras de Oxum é ouvido no céu; Oxaguiã é o senhor dos belos ornamentos; a roupa
suja confunde Oxalá; Omolu veste-se de palha-da-costa 11 . Até mesmo diferentes ebós 12
indicam a centralidade da vestimenta na lida do terreiro: em alguns ebós a roupa é rasgada e
despachada para afastar a miséria, em outro tipo, a pessoa deve tomar três banhos e trocar de
roupa três vezes. Assentamentos 13 têm suas próprias roupas, árvores e pilastras são adornadas
com laços brancos ou coloridos, indicando festividades e suas divindades. O próprio ato de
“cobrir” é recorrente e até mesmo central no candomblé: o corpo nunca fica “desguarnecido”,
informou Pai Mauricio, um dos interlocutores que apresento adiante. Também os sacrifícios

7 Sobre a Missa de Iaô no Ilê Axé Fí Orô Sakapata, Pai Mauricio de Aganju relatou: “Meu barco foi o último a
ter missa, na Igreja de Coelho da Rocha. A missa era o primeiro ato externo, antes da bênção à casa dos mais
velhos. Minha irmã de barco foi empurrada, por intolerância religiosa, durante a missa e Oya chegou. Eu ensaiei
reagir, mas minha Senhora que me comprou, Ekede Geni de Osagiyan, a única Ekede de Osanyin do Tio Nilson,
não me deixou. Imagina ela sozinha conosco! Oya só foi embora no Afonjá, onde fomos tomar bênção ainda de
kelê. Depois disso, julho de 1989, os últimos barcos não tiveram mais missa, só a benção e a venda.”
8 Do iorubá, oríkì. Registro oral de um evento, louvando atributos e feitos de um orixá, pessoas, linhagens,

objetos ou lugares (SANTOS, J., 2008). De acordo com Verger (2012), recitar um oríkì é um meio do adepto
agradar e provar à divindade que lhe pertence e é digno de proteção.
9 Do iorubá, ìtàn. Mitos, histórias.
10 Folhas do dendezeiro, igi ọ pẹ — Elaeis guinensis —, desfiadas (BARROS, 2011).
̀
11 Raphia vinífera (BARROS, 2011).
12 Do iorubá, ẹbọ. Oferenda, sacrifício.
13 Conjunto de símbolos em que, de acordo com Vogel, Mello e Barros (1993), se condensam as relações entre

os homens e os deuses.
6
realizados para os orixás são cobertos por penas ou por uma membrana animal específica 14 ,
assim como alguém que bola 15 com o orixá é coberto por um lençol branco.

Luxuoso e individualizado, em comparação ao vestir uniformizado e sóbrio do


vodu16 (VOGEL; MELLO; BARROS, 2008) ou mesmo da umbanda carioca — sistemas
religiosos que guardam algumas semelhanças com o candomblé —, o vestuário do “povo de
santo” expressa identidades específicas e também opera significados e manutenção de valores.
As saias rodadas, fios de contas, camisus, panos da costa e outras peças são sinais diacríticos
de pertença religiosa, de uma forma específica de vida (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993) e
desempenham papel central no processo de constituição da identidade do adepto. Nesse
sentido, o vestuário, de forma geral, “estimula as emoções, induz a modos de pensamento,
provoca mudanças comportamentais [...]” (ROCHA, G., 2014).

O vestuário no candomblé, com suas peças específicas, marca a passagem do


indivíduo entre o mundo profano e o mundo do terreiro, entre o profano e o sagrado
(ABRANTES, 1999). Estar no terreiro implica em adotar as vestimentas adequadas durante o
período de permanência nesse espaço, realizando um ato ritual em que o indivíduo penetra
temporariamente em outro mundo, permeado de obrigações, tabus e sentimentos (ROCHA, G.
2014).

Lembro-me, ainda com onze anos de idade, de passar a ferro as “baianas”17 da minha
mãe. Eu as pendurava passadas na porta do quarto onde aguardariam o sábado de festa no
terreiro. Hoje, minha mãe não mais faz parte do candomblé e suas baianas tiveram algum fim
trágico destinado a todos os antigos pertences religiosos de um novo convertido ao evangelho.

Minhas próprias roupas da época — pequenas blusas e calças brancas — tiveram o


mesmo fim. Eu, ainda criança, fui afastado dos terreiros durante anos, mas o interesse pelas
“coisas do santo” permaneceria latente e em 2003 fui então iniciado na religião dos orixás,
hoje afiliado a um terreiro da nação queto descendente do Ilê Axé Opô Afonjá.

14 Peritônio.
15 Termo que caracteriza uma espécie de desmaio em função do despreparo de um não iniciado para o transe de
orixá. Em muitos casos é interpretado como indicativo da necessidade de iniciação.
16 Tradição religiosa originária da África Ocidental e difundida pela América Latina.
17 O traje feminino completo de candomblé é frequentemente chamado de baiana (LODY, 1995). Pode se referir,

também, somente à saia ou a esta em conjunto com as anáguas.


7
Figura 1 – Diagrama de fundação e de sucessão do Ilê Axé Opô Afonjá – RJ e BA.
Fonte: Diogo Coutinho Iendrick; Felipe Berocan Veiga (2020)

8
Fundado no centro do Rio de Janeiro (RJ) — na região da Pedra do Sal18 — ao final
do século XIX e em Salvador (BA) em 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá se mantém como
referência do modelo queto de candomblé por ser considerado uma das casas matrizes,
terreiros antigos que reúnem identidades e saberes tradicionais (LODY, 2008). Ambos
tombados como patrimônio histórico e cultural; o terreiro do Rio de Janeiro pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) em primeiro de junho de 2016 (Rio de Janeiro,
2016) 19 e o terreiro baiano pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
em julho de 2000 (BRASIL, 2000). Tais procedimentos caracterizam sua importância e
legitimidade no âmbito público, conforme destacado no diagrama (figura 1).

Dez anos após minha iniciação, ao ser consagrado ao cargo de babá egbé 20 do
terreiro de minha afiliação, o Ilê Iyá Ogum Opô Aira, a indumentária passou a ocupar uma
posição especial em minha lida no candomblé. Uma de minhas responsabilidades seria zelar
pela tradição do terreiro e nisso se incluíam, dentre outras questões, as vestimentas adequadas.

Como de praxe, recorri aos adeptos mais antigos da religião, uma vez que grande
parte do saber do candomblé ainda se encontra na oralidade e a lembrança dos mais velhos é a
principal fonte das regras do grupo (DINIZ, 2001), no caso de grupos ágrafos, como eram os
terreiros à época de formação. Embora atualmente muitos livros estejam à disposição —
vários deles elaborados por antropólogos e antropólogas — registrando história e costume dos
terreiros, há na fala de um mais velho a transmissão do axé.

Na acepção aqui pretendida, axé significa a força espiritual dinâmica dos orixás e
poder de realização, assegurando a existência, o acontecer e o devir (SANTOS, J., 2008). É
liberado e canalizado por meio da atividade ritual, fixado e transmitido temporariamente a
seres e objetos (SANTOS, J., 2008). Maria das Graças Rodrigué caracteriza o termo como:

[...] energia primordial que promove a vitalidade enraizada do ser humano, com o
que ele tem de mais essencial em si. É uma qualidade de energia latente mobilizada
pelo aspecto sensível nas relações, daí dizer que ela é doada. A força que promove
os acontecimentos. A palavra Axé também pode ser pronunciada e escutada como
forma de agradecimento (RODRIGUÉ, 2001, p. 21-22).

18 Transferido após algumas mudanças para o bairro de Coelho da Rocha (São João de Meriti, RJ), em 1944,
onde permanece até os dias de hoje. (MACHADO, 2015).
19 Sobre os processos de tombamento do Ilê Axé Opô Afonjá na Bahia e no Rio de Janeiro, ver SILVA, G.,

2019.
20 Do iorubá, Bàbá Ẹgbẹ (ou o feminino Ìyá Ẹgbẹ). É título que designa o conselheiro e responsável pela
́ ́
manutenção da tradição, da ordem e hierarquia no terreiro (SANTOS, Maria Stella, 1993).
9
Quando grafado Axé, com inicial maiúscula, faço referência ao Ilê Axé Opô Afonjá
(Salvador, BA), termo usado pelos membros do Ilê Axé Aganju Ixolá ao se referirem ao
terreiro baiano. Esse uso da palavra reforça a construção da legitimidade em torno das práticas
realizadas no terreiro de Salvador — onde o convívio de Mãe Aninha de Xangô foi maior — e
transmitidas, tal como axé a seus descendentes, a que me detenho no capítulo 3.

Metragem de saias, combinação de tecidos, aviamentos, composição de roupas e


formas de uso. Todas essas questões passaram a permear minhas preocupações no cotidiano
do terreiro. Em toda e qualquer festa de candomblé que eu visitava, as roupas tinham grande
parte de minha atenção.

A proximidade da conclusão de meu curso de graduação em Ciências Sociais


permitiu transformar inquietações acerca da indumentária do povo de santo em pesquisa
antropológica. Comecei a questionar como os membros do candomblé lidavam com o vestir e
por que alguns terreiros davam mais atenção à roupa e outros não pareciam seguir regras
muito fixas, permitindo maior penetração de modismos. Como o assunto dava pano para
manga — e também para uma saia inteira —, ampliei a pesquisa em direção ao mestrado em
Antropologia.

Meu ponto de partida para a construção do objeto de pesquisa foi analisar como a
rigidez ou permissividade de regras para o vestuário dos adeptos do candomblé durante os
longos períodos de realização dos rituais em um terreiro constroem e são construídas por
determinadas identidades. Quais narrativas os indivíduos elaboram no enquadramento ou não
a regras mais rígidas em torno do vestir e como essas regras são fixadas?

Os membros do candomblé frequentemente se referem aos rituais e afazeres


anteriores ao seu ápice, a festa pública, como função. Esse termo designa o período em que
todo o terreiro cumpre determinada sequência de ritos que podem durar semanas e sempre
incluem a estada prolongada de alguns adeptos no local. “Estar em função no terreiro”
significa participar de um longo período de rituais privados que envolvem também atividades
corriqueiras, tarefas obrigatórias e cotidianas como varrer, preparar refeições, depenar
galinhas, lavar roupas e banheiros, etc.

Destaco o interesse no período de função, pois é neste momento que as portas do


terreiro estão fechadas ao público externo e mães, pais, filhas e filhos de santo interagem com
maior espontaneidade enquanto desempenham todo tipo de tarefas. A cerimônia pública, o
xirê, se caracteriza por maior rigor e formalismo de desempenhos, abertos ao público externo
10
— aos de fora —, sujeitando os membros do terreiro a avaliação rigorosa de dignitários do
candomblé, atestando ou reprovando suas práticas. Nesse momento a hierarquia é bastante
rígida em qualquer terreiro de candomblé, pois sua sala é a vitrine ao público, momento de
angariar prestígio e mesmo novos afiliados. Já o período de função, por outro lado, costuma
se caracterizar por algum relaxamento das regras e espontaneidade nas relações. É período
interno, momento de rituais privados aos membros do terreiro, raramente recebendo
visitantes, ainda que ligados ao grupo.

Fotografia 2 – Orientando durante a função.


Fonte: Autor (2018).

Devido à fundação recente do terreiro a que pertenço decidi buscar um local de


pesquisa empírica mais antigo e cujos hábitos de vestuário estivessem consolidados. Em
visitas anteriores ao Ilê Axé Aganju Ixolá, em Itaipu (Niterói, RJ), percebi que havia ali um
rigor e preocupação na utilização do vestuário que dificilmente encontrei em outro lugar. Esse
terreiro, assim como o de minha afiliação, é descendente do Ilê Axé Opô Afonjá. A
ascendência comum torna os dois, de certa forma, aparentados.

11
O dirigente do Ilê Axé Aganju Ixolá, Pai Mauricio de Aganju, muito solícito, aceitou
com entusiasmo minha proposta de realização da pesquisa empírica em seu terreiro.
Mantínhamos relação de cordialidade, sempre me recebendo com educação e diligência nas
visitas às festas públicas, sendo ele amigo de meu babalorixá 21 , Geraldo de Iemanjá.

É comum, entre os membros do candomblé, a ocorrência e o uso da tecnonímia para


identificar o indivíduo em uma relação de filiação com a divindade tutelar a que fora iniciado.
Nesse sentido, Mauricio Moraes, filho de Xangô Aganju, passa a ser conhecido como
Mauricio de Xangô — ou Mauricio de Aganju. Essa rotulação retira o indivíduo de uma
indistinção dentre os muitos filhos de um terreiro ou de alguém e o destaca individualmente.
É quando se inverte a ordem de apresentação, de “sou filho de Pai Joaquim de Omolu,
Mauricio de Aganju” a “sou Mauricio de Aganju, filho de Pai Joaquim de Omolu”. Não
diminui o indivíduo que inicia, mas garante ao iniciado um nome próprio, seu, principalmente
quando se adquire o status de ialorixá 22 ou babalorixá.

Devo destacar que minha situação de campo não esteve restrita ao número 2392 da
Avenida Central de Itaipu, região oceânica da cidade de Niterói, em que se localiza o Ilê Axé
Aganju Ixolá, mas onde quer que se colocassem situações que me possibilitassem reflexões
acerca do problema que me propus, incluindo grupos virtuais de encomenda e venda de
roupas. Estar no campo, como propõe a antropóloga Rena Lederman,

[...] não precisa envolver uma viagem: às vezes envolve simplesmente um


deslocamento de atenção e de conexão sociável dentro dos próprios meios habituais.
Nessa perspectiva, ‘o campo’ não é tanto um lugar, mas uma relação particular entre
si e os outros [...] (LEDERMAN, 1990, p. 88, tradução nossa) 23 .

Nesse sentido, fazer trabalho de campo não é apenas ir ao terreiro, mas estar atento a
situações, conversas e terreiros ainda que não tenham ou dediquem centralidade e
significância às roupas. Essas situações podem ser pensadas como formas de contraste entre
classificações mais rígidas ou mais liberais e possibilitar compreensão aprofundada de
significados em torno dos modos de vestir, entre o aceitável e o inaceitável.

21 Do iorubá, bàbálórìṣà. Sacerdote, pai de santo.


22 Do iorubá, ìyálórìṣà. Sacerdotisa, mãe de santo.
23 “[...] need not involve any traveling at all: it sometimes involves simply a shifting of attention and of sociable

connection within one's own habitual milieus. From this perspective ‘the field’ is not so much a place as it is a
particular relation between oneself and others [...]” (LEDERMAN, 1990, p. 88).
12
Ser adepto do candomblé e pesquisar sobre candomblé não é algo inédito ou mesmo
incomum, como também não o é a iniciação de um pesquisador durante ou após sua pesquisa
etnográfica (SILVA, V., 2000). Não acredito que a condição de iniciado, ao contrário do
proposto por Juana Elbein dos Santos (2008), fosse absolutamente indispensável para o
trabalho que propus realizar, mas reconheço que me possibilitou certo conforto com termos e
relações, embora também trouxesse outros desconfortos e o desafio de observar o
excessivamente familiar. Meu envolvimento com o campo em construção é anterior à
pesquisa. Mais que familiaridade, foi o estranhamento que busquei em minhas visitas ao Ilê
Axé Aganju Ixolá:

Se, por um lado, o antropólogo pode contar com maior segurança em estabelecer
contato e conviver no ambiente da pesquisa, pois parte do código de comportamento
do grupo ele conhece, por outro, seu esforço será redobrado para não restringir a
pesquisa às relações e posições mais contingenciais à sua própria experiência de
vida na religião (SILVA, V., 2000, p. 69).

A familiaridade com os códigos do candomblé faz parte da minha biografia como


pesquisador (PEIRANO, 1995), mas é imperativo manter em mente a delicada situação de
pesquisador-iniciado, de forma que a opção profissional e a militância religiosa não se
sobreponham (CRUZ, 1995). Nesse sentido, não é meu objetivo confirmar ideias prévias
sobre a indumentária ou mesmo reificar crenças e narrativas que legitimem uma pureza
tradicional em si, mas entender as práticas e os investimentos que os atores sociais realizam
em um determinado conhecimento que é aceito e reconhecido socialmente como legítimo.

Comunicar a meu babalorixá o início de uma pesquisa em outro terreiro — como fiz
em 2016 — significava instaurar a potencialidade perigosa de fazer irromper um conflito. Há
uma competição entre terreiros que ao mesmo tempo os irmana e os coloca em disputa por
fiéis, fruto do pluralismo religioso e da livre competição entre religiões e tradições (BERGER,
2009). A própria vitalidade dos terreiros de candomblé os impele a essa competição e à
visibilidade pública (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).

Iniciar uma pesquisa em outro terreiro trazia uma questão: porque não no terreiro de
minha própria afiliação? Essa foi uma das explicações que precisei prestar a meu babalorixá à
época. Qualquer tipo de contato entre um membro de um terreiro de candomblé com outro
terreiro ou dirigente gera especulações e ansiedades nas duas comunidades por sempre existir
a possibilidade de migração.

13
Entender essa disputa como parte intrínseca do campo de pesquisa possibilitou
compreender que ocupo um lugar nesse sistema e também o quanto o campo envolve essas
relações. Pesquisar um grupo do qual se faz parte pode parecer cômodo em princípio, mas traz
problemas específicos. É possível dizer que já iniciamos o trabalho de campo afetados, no
sentido de Jeanne Favret-Saada (2005).

Conforme proposto pela autora acima, ser afetado é ocupar um lugar no sistema em
que se pesquisa e abrir uma comunicação específica com seus agentes, mobilizando e até
mesmo modificando categorias e representações (FAVRET-SAADA, 2005); é estar sujeito às
mesmas forças e intensidades que afetam o campo, justamente por ocupar um lugar nesse
sistema. A partir de Favret-Saada pude compreender que iniciar uma pesquisa em outro
terreiro suscitava inúmeras perspectivas de afetamento. Antes de mais nada, instaurava um
conflito com meu pai de santo em que a migração para o terreiro estudado poderia ser
entendida como possibilidade.

Gostaria de destacar Evans-Pritchard quando este afirma que “o que se traz de um


estudo de campo depende muito do que se leva para ele” (EVANS-PRITCHARD, 2005, p.
300). Levei para o campo a vantagem de alguns anos de experiência com o candomblé, mas
também os conflitos de pertencer ao próprio campo que pesquiso. Da mesma forma, a
construção de meus dados de campo passou por todas essas questões e é também fruto dessas
tensões.

O terreiro Ilê Omi Iyamassê Axé Aganju Ixolá (Casa das águas de Iyamassê e da
força de Aganju Ixolá), localizado na Avenida Central de Itaipu, Niterói (RJ), foi fundado em
primeiro de dezembro de 2002 pelo babalorixá Mauricio de Xangô Aganju. Aganju Ixolá,
segundo Pai Mauricio, é uma referência ao momento em que o príncipe herdeiro de Oyó está
apto a assumir seu comando, aos doze anos de idade. O povo então clama: Aganju Ixolá! Em
que “axó”, ainda conforme Pai Mauricio, seria vestido ou coberto e “olá” significa honrarias.
Portanto, ixolá é entendido como coberto de honras.

Oyó 24 , fundado entre 1380 e 1430 (M’BOKOLO, 2009), é um território africano


iorubá — parte da atual Nigéria — em que Xangô, personagem mítico e também histórico
(VERGER, 2018), teria sido o terceiro alafim25 (soberano), como aponta Pierre Verger

24 Do iorubá, Ọ̀yọ́ .
25 Do iorubá, aláàfin.
14
(2018) 26 , antes de sua divinação, conforme a crença na chamada “apoteose de Xangô”.
Aganju, um dos soberanos históricos do mesmo território, também identificado como
sobrinho de Xangô, é tido no Brasil como uma das qualidades ou caminhos desse orixá no
candomblé.

As divindades principais apresentam variadas caracterizações que indicam seus


diferentes aspectos ou fases. Possuem temperamentos e predileções específicas; Xangô é um,
mas se apresenta em diferentes aspectos que o povo de santo chama de qualidades. É comum
que uma qualidade seja marcada pela aproximação e afinidade de um orixá com outro.

Para o candomblé, Aganju é Xangô, orixá para o qual Pai Mauricio fora iniciado em
19 de julho de 1989 por Pai Joaquim de Omolu, no Ilê Fí Orô Sakapata, na Baixada
Fluminense (RJ). Este, coincidentemente, foi o terreiro escolhido pelo pesquisador brasileiro
Samuel Abrantes nos anos 1990 para pesquisa também acerca da indumentária de candomblé.
O falecimento de Pai Joaquim em 1998 levou o babalorixá Mauricio a finalizar seu ciclo de
obrigações 27 no Ilê Axé Opô Afonjá (Coelho da Rocha, São João de Meriti, RJ) sob cuidados
da ialorixá Regina Lúcia de Iemanjá que, então, em 2002, inaugurou28 o terreiro dirigido por
Pai Mauricio.

Cabe situar que Pai Joaquim de Omolu foi iniciado no Ilê Axé Opô Afonjá (RJ), no
ano de 1962, pela então ialorixá Agripina Soares de Souza — também de Aganju —, iniciada
ela mesma por Mãe Aninha de Xangô, fundadora tanto do terreiro no Rio de Janeiro quanto
na Bahia. Sendo assim, Pai Mauricio concluiu suas obrigações no mesmo terreiro em que seu
sacerdote fora iniciado e, sobretudo, na mesma família de santo. É importante ressaltar esse
aspecto, pois o candomblé “une os mortos e os vivos em um todo familiar, contínuo e
solidário” (VERGER, 2012, p. 16), tornando todos membros de uma mesma coletividade
espiritual, como é possível observar no diagrama de filiação no candomblé (figura 2) que
também mostra outros parentes classificatórios que menciono adiante.

Tanto o terreno do Opô Afonjá de Coelho da Rocha, quanto o imóvel que abriga o
terreiro de Xangô pertenciam a filhas de Oxum. O primeiro à Filhinha de Oxum, irmã

26 Ou o quarto soberano, conforme o Reverendo Samuel Johnson (1921), sacerdote anglicano e historiador
iorubá do final do século XIX.
27 Termo que designa os rituais periódicos e complementares à iniciação (1, 3 e 7 anos, no caso do terreiro

analisado) ou mesmo qualquer atividade ritual no terreiro.


28 É comum — e desejável — no candomblé que a mãe (ou pai) de santo inaugure o terreiro de seu filho,

realizando os rituais necessários. Essa concepção é de fundamental importância para manutenção do elo de
ancestralidade que deve ser mantido e mesmo legitimidade de abertura da casa.
15
biológica de Mãe Agripina, e o terreno de Itaipu pertencia a Dona Ely, iniciada por Joaquim
de Omolu, mãe biológica de Mauricio e hoje Iyá Efum29 do Ilê Axé Aganju Ixolá. Dona Ely
doou a casa de Itaipu para as atividades do terreiro, acentuando a relação da iabá 30 com o
mundo doméstico. Reforça também a importância das relações familiares na constituição de
um terreiro enquanto rede de apoio. Assim como outras irmãs de santo de Pai Mauricio,
iniciadas por Pai Joaquim, Dona Ely se integrou à Casa de Xangô com o falecimento de seu
babalorixá, em uma relação que evoca continuidade.

Figura 2 – Diagrama de filiação no candomblé, a partir de Mãe Aninha (Opô Afonjá).


Fonte: Autor (2020).

Frequento o Ilê Axé Aganju Ixolá desde 2009 como visitante acompanhando meu
babalorixá ou mesmo sozinho em algumas ocasiões. Minha primeira visita como pesquisador
— ainda graduando em Ciências Sociais — aconteceu em 25 de janeiro de 2017, período de
iniciação de três iaôs. A partir de então mantive contato contínuo com Pai Mauricio, também
o acompanhando nas redes sociais. Realizamos outras entrevistas e pude acompanhar, em
observação direta, um mês de função para uma série de obrigações que aconteceram em
outubro de 2018: três obrigações de sete anos e uma de três anos.

29Do iorubá, Ìyá Ẹfun. Responsável pela pintura ritual de iaô durante a iniciação.
30Do iorubá, ayaba. Significa rainha, esposa do rei. No candomblé, se refere às “santas mulheres” ou mesmo às
mulheres iniciadas para orixá feminino, situação em que se costuma dizer que são duas vezes mulher. (SANTOS,
Maria Stella, 1993).
16
Ao longo desse período de outubro participei das atividades do terreiro e conversei
com seus membros. Pai Mauricio me apresentou como um parente de santo realizando
pesquisa universitária e fui muito bem recebido. Ser parente de santo é ser reconhecido dentro
de um conjunto de relações que se referem a uma linhagem iniciática comum ou próxima. A
terminologia de parentesco é amplamente empregada nos terreiros de candomblé e
estruturante das relações que neles se desenvolvem, como abordo no terceiro capítulo.

Trajado de branco e com fio de contas também branco permeado com seguis 31 ,
característicos de Oxaguiã, orixá para o qual sou iniciado, me portei como um adepto em
posição especial: era do santo, mas não era afiliado ao terreiro. Colocava-me disponível para
ajudar no que fosse possível — segurei animais para sacrifício, descasquei batatas para
almoço, varri o chão, auxiliei na montagem de alguns novos assentamentos —, mas também
escrevi, conversei, observei e realizei registros fotográficos.

Mantive contato constante com Pai Mauricio ao longo dos anos de pesquisa,
especialmente no processo final de escrita, sempre atendido em sua disponibilidade e,
inclusive, atento a seus engajamentos nas redes sociais. Constituir o babalorixá — ou ialorixá
— de um terreiro como interlocutor privilegiado é, conforme Vagner Silva (2000), uma
adequação à própria visão do grupo que o constitui como maior guardatário do conhecimento
ao qual todos recorrem. Além do terreiro, nos encontramos em um shopping e também em sua
residência no bairro de Vila Isabel, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. No mesmo bairro
fomos, eu e meu orientador, o professor Felipe Berocan Veiga, ao ateliê da costureira que
atende à maior parte da demanda de vestuário do Ilê Axé Aganju Ixolá, Dona Leila.

Acredito, como propõe Daniel Miller (2013, p. 23), que “a questão para a
antropologia é investigar empaticamente como outras pessoas veem o mundo”. Desde os
primeiros momentos no Ilê Axé Aganju Ixolá, me chamou a atenção a recorrência das
narrativas construídas em torno da ancestralidade e da família de santo enquanto articuladoras
da própria existência do grupo. A evocação constante de membros antigos e próximos da
linhagem do terreiro — célebres ou não — me direcionou a uma chave interpretativa que em
um primeiro momento não me estava colocada.

Interessou-me, portanto, compreender de que maneira as práticas de vestuário se


relacionam com as narrativas do grupo sobre ancestralidade e família. A questão que se
colocava, a partir desse primeiro momento, era entender se e como as narrativas, enquanto

31 Do iorubá, sẹ̀gi. Espécie de conta vítrea azul de procedência africana.


17
práticas, funcionavam como fixadoras e mesmo justificadoras das regras do vestir. Como
propõe Miriam Rabelo:

Conferir prioridade às práticas também não equivale a priorizar o concreto a


expensas do abstrato. [...] a experiência prática é tão abstrata quanto é concreta —
seguindo Merleau-Ponty (1992), defendo que é preciso considerar uma idealidade
que adere ao sensível, um gênero de ideias que se situam em e não sobre as
articulações sensíveis dos corpos, coisas e paisagens. (RABELO, 2014, p. 23-24).

O mundo vivido enquanto um mundo de práticas se estabelece tanto enquanto


posição teórica como estratégia metodológica, a exemplo de Rabelo (2014). Entendo
subjetividade e objetividade como resultados de engajamentos práticos da vida: “Mundo
vivido é o mundo que se abre (e que se faz) na experiência prática de viver junto com outros e
em meio a processos diversos, experiência que implica tornar-se sensível a certas solicitações
e capaz de responder a elas”. (RABELO, 2014, p. 23).

Nesse sentido, mundo não é uma coleção de coisas às quais atribuímos significado,
mas sim lugar de relações de pertencimento e envolvimento que se operam em contextos de
prática (RABELO, 2014). Habitamos o mundo junto com as coisas e um estudo da
indumentária, então, precisa evocar o mundo emocional e íntimo dos sentimentos; não deve
ser frio (MILLER, 2013).

Ao pensar sobre as regras do vestuário, caracterizo regra a partir do sociólogo Harold


Garfinkel (1967), como um recurso interpretativo usado pelos indivíduos e que dá sentido às
circunstâncias e ações. Não é função da regra a regulagem do comportamento, mas sim
constituição reflexiva da situação. O encaixe entre a situação empírica e a regra, porém,
conforme Miriam Rabelo (2014), é frouxo, pois a regra não esgota todas as circunstâncias de
sua aplicação. Ou seja, o encaixe é prático, e não previamente dado; é realizado a cada
situação. Ainda assim existem situações corriqueiras prescritas em um terreiro — as quais
procurei elencar — e o uso que demandam das peças de roupa e combinações mais comuns.
Como observa José Reginaldo Santos Gonçalves ao analisar objetos, museus e coleções
(2007, p. 8), “a interpretação antropológica de quaisquer formas de vida social e cultural passa
necessariamente pela descrição etnográfica dos usos individuais e coletivos de objetos
materiais”.

A análise da indumentária me permitiu compreender as opções por determinadas


formas, cores, texturas, objetos, tecidos, materiais e a “sabedoria implícita” nessas escolhas
18
(ABRANTES, 1999) — e também conveniências — bem como as narrativas que as
mobilizam. Essas decisões são orientadas por histórias de família recontadas um sem número
de vezes e que organizadas em forma de conhecimento prático estabelecem o comportamento
em torno do vestir, além de atuar como aide-mémoire 32 : o babadinho da saia é o mesmo usado
por Vó Aninha, a gola do camisu igual à de Tia Helena, a bata valorizada como a de Tia
Angela, exemplos que menciono à frente.

32 Lembrete, associação evocativa.


19
2. DA RUA AO XIRÊ – O CAMINHO DO VESTUÁRIO

Segundo a nossa tradição,


estar bem vestida é um ato de fé.
(Mãe Carmem, 6ª ialorixá do terreiro do Gantois)

A tradição de uma casa tem de ser seguida à risca;


é sua história, não se inova na maneira de se vestir de forma ritual.
(Mãe Stella, 5ª ialorixá do terreiro Opô Afonjá – SSA)

As pessoas se vestem de acordo com as formas apropriadas de suas comunidades,


seguindo padrões sociais compartilhados e valores morais (ABU-LUGHOD, 2012). A
vestimenta é uma linguagem simbólica, estratégia de que se serve o indivíduo para tornar
inteligíveis seu estado emocional, ocasiões sociais, identificar ocupações e nível hierárquico
(SOUZA, 1987), contar trajetórias, indicar pertencimentos, papéis sociais, escolhas de vida,
participando da formação de subjetividades específicas (SANTOS, Mariana, 2017). No
candomblé também indica o nível de conhecimento religioso ou de iniciação (ABRANTES,
1999).

Mary Ellen Roach-Higgins e Joanne B. Eicher (1992) conceituam vestuário — em


uma tradução livre de dress — como a coleção de modificações do corpo e (ou)
suplementares ao corpo. Nessa lista entrariam roupas, joias, penteados, tatuagens e até mesmo
perfume. Para Gilmar Rocha (2014), esta seria a conceituação de indumentária, que
englobaria o vestuário, máscara e adereços.

De acordo com o dicionário Caldas Aulete, vestuário e indumentária são sinônimos


ao se referirem a um conjunto de roupas ou trajes e também maneiras de se vestir ou arrumar.
A palavra indumentária, porém, é mais abrangente, sendo classificada como história, arte e
sistema do vestuário. Adotarei, então, neste trabalho, ambas como sinônimos, ora me
referindo a indumentária, ora a vestuário, mas sempre em referência às roupas, joias,
paramentas, panos e demais peças características de um terreiro de candomblé e considerando
sua historicidade.

20
A exemplo dos fatos sociais totais, a indumentária pode revelar aspectos “culturais,
políticos, econômicos, estéticos, morais, etc., das culturas nas quais estão performatizando
comportamentos, agenciando poderes, dramatizando valores, comunicando sentimentos,
enfim, ritualizando identidades” (ROCHA, 2014, p. 10). No candomblé, a indumentária é
marcador hierárquico — e, portanto, político —; manifesta poder aquisitivo, é trocada,
emprestada, vendida ou presenteada — buscando favores, gostos ou predileções —, reunindo
peças concorridas para embelezamento do corpo e exibição da personalidade.

Mais do que vestir, trata-se de investir-se de significação comportamental (ROCHA,


2014), como já havia observado Virginia Woolf na ficção Orlando (WOOLF, 2011, p. 133):
“[...] pode-se sustentar o ponto de vista de que são as roupas que nos usam, e não nós que as
usamos; podemos fazê-las tomar a forma do braço ou do peito, mas elas moldam nosso
coração, nosso cérebro, nossa língua, à sua vontade”. A roupa impõe comportamentos e
condiciona o porte (ABRANTES, 1999), afetando nosso ser, se inscrevendo em nossos corpos
e tornando real a nossa existência (ROCHA, 2007). O próprio babalorixá Mauricio, em nossa
primeira conversa, afirmou de maneira bastante espontânea que a “anágua veste a iaô”.

Neste trabalho, a indumentária é analisada para além da abordagem semiótica, o que


não significa secundarizar símbolos e signos, mas compreender que o vestuário não é um
mero servo cuja tarefa única seria representar o ser humano; não representa as pessoas, mas as
constitui: “As roupas estão entre nossos pertences mais pessoais. Elas constituem o principal
intermediário entre nossa percepção de nossos corpos e nossa percepção do mundo exterior”
(MILLER, 2013, p. 38).

Ao longo dos anos de participação em grupos de discussão virtual sobre candomblé,


é possível notar os constantes conflitos que o vestuário suscita em relação à elasticidade ou
não de regras e uso contraditório de algumas peças. Há também um recorrente desdém, como
se tratar do vestuário excluísse questões supostamente mais urgentes.

A moda deveria constituir assunto prestigiado na tradição sociológica, mas é, em


certa medida, desprezada por sua aparência frívola, como aponta Pierre Bourdieu (2003),
constatando também o ganho científico ao se estudar objetos considerados hierarquicamente
indignos. Daniel Miller (2013) chama atenção para o perigo de se tratar a indumentária como
algo superficial e questiona o próprio termo. Não há, segundo este autor, uma distinção entre
interior e exterior em termos de profundidade ontológica; o verdadeiro ser de uma pessoa
também está em sua superfície e não em algum recôndito interno:
21
Nós possuímos o que poderia ser chamado de uma ontologia de profundidade. A
hipótese é que ser – o que realmente somos – está profundamente situado dentro de
nós e em oposição direta à superfície. Um comprador de roupas é superficial porque
um filósofo ou um santo é profundo. O verdadeiro núcleo do eu é relativamente
constante e imutável, e também indiferente à mera circunstância. Nós temos de olhar
profundamente dentro de nós para nos encontrar. Mas tudo isso são metáforas.
Profundamente dentro de nós há sangue e bile, não certezas filosóficas. Nós não
encontraremos uma alma se cortarmos alguém em profundidade, embora eu suponha
que desse modo talvez incidentalmente pudéssemos libertá-la. (MILLER, 2013, p.
28).

Vestir a baiana, investida de valor simbólico, é vestir um tipo de pessoa (ROCHA,


2014). Se as roupas fazem de nós o que pensamos ser, é meu interesse explorar a
compreender como as roupas conformam os adeptos de candomblé, que valorizam
determinados códigos, em sua identidade, considerando que não é possível vestir o que se
quer.

Ao considerar o vestuário como possível tema para construção de um objeto de


pesquisa antropológica, estranhamente, a palavra moda não me ocorreu de início. Talvez esse
termo remetesse a uma efemeridade que eu não conseguia associar diretamente a uma
totalidade de usos consolidados e pouco variáveis, muito embora fosse consciente de
modismos e justamente a baixa incidência destes em determinados terreiros me levasse à
consideração antropológica. Alfred Kroeber, pioneiramente, em análise a variações de
tamanho e estilos retratados em publicações de moda, tratou a moda feminina como um vasto
repertório cultural cujos sistemas de ideias contribuem para a compreensão da própria
sociedade em diferentes contextos: “Um conhecimento do curso seguido pelos ideais do vestir
é tão valioso, tanto como contribuição para a compreensão da civilização, quanto como
conhecimento do vestuário real; e ambos por si só e como explicação dos processos
envolvidos” (KROEBER, 1919, p. 238, grifo do autor, tradução nossa) 33 .

Simmel (1957) define moda como a imitação de um exemplo que satisfaz a demanda
por adaptação social. Para Daniel Miller (2013), a moda é seguir coletivamente uma
tendência. Gilda de Mello e Souza (1987) caracteriza-a como filha da revolução industrial e
da máquina a vapor, definindo-a como uma manifestação do gosto:

33 “A knowledge of the course followed by ideals of dress is quite as valuable, as a contribution to the
understanding of civilization, as knowledge of real dress; and this both per se and as an exemplification of the
processes involved” (KROEBER, 1919, p. 238, grifo do autor).
22
A moda é um todo harmonioso e mais ou menos indissolúvel. Serve à estrutura
social, acentuando a divisão em classe; reconcilia o conflito entre o impulso
individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o
socializador (necessidade de afirmação como membro do grupo); exprime ideias e
sentimentos, pois é uma linguagem que se traduz em termos artísticos. (SOUZA,
1987, p. 29).

Sendo a moda vigente a da classe dominante (SOUZA, 1987), a imitação indicada


por Simmel é identificada nos grupos mais próximos, caracterizando a moda como poderoso
instrumento de interação e de nivelação, ao permitir que o indivíduo se confunda no grupo,
desaparecendo num todo maior que lhe protege e lhe dá segurança (SOUZA, 1987). A
vestimenta é também instrumento de luta entre grupos ou entre os gêneros, tal como a força
física, as armas e a inteligência (SOUZA, 1987).

O termo moda também faz referência a uma efemeridade no uso de peças, técnicas e
materiais. A orientação da moda secular é vasta e muitas vezes contraditória: não se tem
muita clareza do que realmente está na moda, culminando na ansiedade como seu núcleo
(MILLER, 2013). Esse sentido se contrapõe a um ideal de tradição que valoriza a pouca
modificação do vestuário ao longo do tempo, relacionada a aspectos históricos e sociais. O
vestuário do candomblé, então, no Ilê Axé Aganju Ixolá, se contrapõe à ideia de moda em seu
caráter efêmero.

Ao longo dos anos nas redes sociais, acompanhando grupos de candomblé —


especialmente os voltados para compra e venda de roupas —, assim como em visitas a
terreiros do estado do Rio de Janeiro, é possível perceber variações nas formas de consumo do
estilo do vestuário. De tempos em tempos, algum modismo se espalha pelos terreiros, seja
através de técnicas ou materiais têxteis.

Certa feita, como diriam os antigos, presenciei um babalorixá repreender o uso da


bata por uma de suas filhas ebame 34 . Segundo ele, a bata estaria fora de moda, devendo seu
uso ficar restrito a festas grandiosas. O mesmo pai de santo, ao vislumbrar Oxum plenamente
paramentada em outra ocasião, comentou que “o adê 35 de latão voltou com tudo” (para a
moda), ao notar a peça dourada exibida pelo orixá, apontando para uma temporalidade cíclica

34 Sênior pela idade, também chamada ebome ou ebômin. Traduzido como “minha (meu) irmã(o) mais
velha(o)”: ẹ̀gbọ́ n mi.
35 Do iorubá, adé. Coroa. Quando usado por Oxalá, Oxum e Iemanjá apresenta uma franja metálica ou de contas

cobrindo o rosto do orixá em transe.


23
do uso de certas peças, como no mundo da moda, em oposição à continuidade no tempo de
outras.

Há, atualmente, preferência pelas saias de sianinhas 36 justapostas, capulana 37 — o


famoso tecido estampado africano original de Moçambique — e camisu com a gola alta de
guipir, para mencionar alguns exemplos. Já a baiana de renda filé, muito apreciada e
disputada há alguns anos, desapareceu quase completamente das rodas 38 de candomblé e dos
mercados. O único que parece resistir ao longo dos anos é o richelieu, bordado nobre que está
sempre presente em algumas peças das ebames, seja em uma bata, camisu ou saia.

Fotografia 3 – Sianinha, vagonite e rendas.


Fonte: Oyá Moda Afro, Facebook (2018)

A exemplo do que propõe Pierre Bourdieu (2003) sobre as narrativas em torno da


moda e sua relação estruturante com estilos de vida, ao inovar em materiais e formatos, a
costura do candomblé se afasta de ideias tradicionais e de certa forma entendidas como
engessadas, “velhas”. Há uma oposição entre jovem e idoso, assim como moderno se opõe a
tradicional (BOURDIEU; DELSAUT, 2001). Estabelece-se, então, um diálogo com o novo,

36 Fita em zigue-zague.
37 Tecido de algodão com estampas variadas, especialmente cornucópias, flores, geométricas e abstratas. É
bastante difundido em Moçambique, onde é um objeto de identidade nacional, mas há um consenso histórico de
que sua origem está entre os povos asiáticos e árabes, não africanos. (TORCATO; ROLLETTA, 2003).
38 Referência à dança em roda por ocasião do xirê.

24
com materiais brilhosos e atrativos financeira e esteticamente. Carlos Eduardo Medawar
(2019) observa que a tendência atual ao luxo no candomblé coincide com sua paulatina
inserção e abertura à apresentação pública 39 . É inegável que o luxo também se associa à ideia
de prosperidade e progresso como resultados positivos da prática religiosa: “Uma casa passou
a ter sua força medida pela forma como recebe seus convidados, pelo que oferece para comer
ou beber e pelo luxo das roupas dos iniciados e as performances que assumem nas danças
rituais dos salões” (MEDAWAR, 2019, p. 273).

Um ícone das transformações do vestuário no candomblé foi Joãozinho da Gomeia,


que incrementou as roupas de santo com o uso de novos materiais, a partir de sua paixão e
ligação com o carnaval. Elaborou vestimentas mais luxuosas que logo se propagariam para
outras casas de candomblé como uma tendência iniciada na década de 1960 (GAMA, 2012),
gerando críticas à época.

Se as estampas florais, fitas e panos listrados se relacionam ao passado, às sóbrias


velhas senhoras do candomblé, as novas estampas, brocados e sianinhas são a marca da
mulher jovem de candomblé, maquiada e preparada para aparecer em fotos e redes sociais, tão
características dos tempos atuais. Há uma valorização da presença de pessoas jovens no
candomblé, assinaladas como o futuro da religião e necessárias à sua reprodução social. As
novas adesões do vestuário dialogam com essa questão, especialmente ao se tratar de uma
sociedade — a contemporânea — que preza o dinamismo e a autonomia.

Se a distinção é a lei implícita do campo da moda (BOURDIEU, 2003), o mesmo


acontece no candomblé, tanto em relação aos grupos que aderem às inovações quanto aos que
buscam permanecer inalterados. A inovação e a fixação do vestuário manterão os dois grupos
em diferenciação. E, nesse sentido, operam duas lógicas diferentes de distinção, em que um
grupo valoriza o reconhecimento por sua fixação de formas e materiais e o outro valoriza o
reconhecimento por sua capacidade de inovação e adesão a novas formas e materiais. O
distanciamento das narrativas que valorizam a moda dá vantagem aos terreiros que se
colocam como tradicionais: escapam da lei comum que reenvia a última moda ao démodé e
condena o criador à necessidade constante de reinvenção (BOURDIEU; DELSAUT, 2001).

39 Exemplo da projeção dos terreiros à esfera pública é a criação dos títulos honoríficos dos Obás de Xangô por
Mãe Aninha no Ilê Axé Opô Afonjá (Bahia) em 1937, concretizando alianças com os meios artístico, intelectual
e político, ver LIMA, 1966. Destacam-se Dorival Caymmi, Hector Julio Páride Bernabo (Carybé), Jorge Amado,
Ildásio Tavares, Gilberto Gil, Mário Cravo, Muniz Sodré, Rodolpho Tourinho Neto e Vivaldo da Costa Lima.
25
Pierre Bourdieu e Yvette Delsaut (2001) chamam atenção para a facilidade de se
criar algo belo no que já se está estabelecido e a dificuldade da inovação nas exigências da
vanguarda, que demanda maior emprego criativo e pretensão:

[...] o pretendente empenha-se a parecer pretensioso: de fato, tendo que mostrar e


demonstrar a legitimidade de suas pretensões, tendo que prestar provas porque não
possui todas as credenciais exigidas, “ele exagera”, como se diz, denunciando-se
perante aqueles que só precisam ser o que são para serem como convém, pelo
próprio excesso de sua conformidade ou de seus esforços no sentido da
conformidade. (BOURDIEU; DELSAUT, 2001, p. 11-12, grifos dos autores).

O pretendente mencionado por Bourdieu e Delsaut é referência às novas grifes


francesas em busca de legitimidade e estabelecimento. Aos tradicionais basta permanecerem
como são; é sua invariabilidade no vestuário a sua credencial. Nos terreiros cujas narrativas
em torno do vestuário não se baseiam na tradição, há a busca pela novidade, pela ostentação
dos materiais mais recentes, ao sabor das tendências da moda e de novos produtos da indústria
têxtil, responsáveis também por transformações constantes no figurino do carnaval carioca.

Há, conforme Samuel Abrantes (1999), uma incitação por parte da produção
industrial e comércio ao consumo de novos tecidos e materiais estranhos à tradição do orixá.
Contribuiu também o processo de “urbanização” da vida do santo, em que os elementos antes
produzidos no terreiro ou buscados na natureza passam a ser comprados nas lojas
(MEDAWAR, 2003). Abrantes identificou, à época de sua pesquisa, um constante trabalho de
resgate e valorização, por parte do próprio Opô Afonjá de Coelho da Rocha e do babalorixá
Ogum Jobi40 , de materiais mais simples e utilização de cores naturais (ABRANTES, 1999).

A partir das conversas e observação no terreiro, pude verificar que as variações que
afetam o candomblé não têm grande penetração no Ilê Axé Aganju Ixolá. Fixar regras rígidas
de vestuário constitui uma singularidade que distingue o terreiro, se relacionando com uma
identidade que se quer construir:

A combinação de materiais diferenciados em cor, textura, tamanho e forma constitui


a singularidade de cada casa, grupo ou pessoa. Torna-se o código de ligação entre os
componentes de uma determinada comunidade e dos conceitos veiculados pelos
rituais, identificando as raízes, as famílias, os clãs (ABRANTES, 1999, p. 14).

40 Sergio Barbosa, irmão de santo mais velho de Pai Mauricio, iniciado também por Pai Joaquim de Omolu e
falecido em 2010.
26
Delimitar de maneira rígida o que se usa dentro do terreiro de maneira tradicional é
também estabelecer uma diferenciação, separar. Mary Douglas (2014) afirma que a principal
função dessa separação é sistematizar uma experiência inerentemente desordenada; o exagero
na diferença produz um semblante de ordem que agrega a experiência. Direcionar o vestuário
a um ideal de tradição visa unificar e aproximar a experiência dos membros do Ilê Axé
Aganju Ixolá entre si e também com seus correlatos.

Ainda que o consumo seja, em grande parte, orientado pelo preço, não é
determinante para a composição das roupas. A sianinha, por exemplo, não estava
significativamente presente no terreiro, mesmo sendo um material mais acessível sob a
perspectiva econômica. Já a capulana, embora ocasionalmente presente, é justificada tanto
pela origem africana quanto pelo preço atrativo; Pai Mauricio informou em nosso primeiro
encontro que é possível encontrar a peça de 5 metros deste tecido a R$ 60,00, valor que não
paga 3 metros do tecido de cretone estampado, comumente utilizado nas saias coloridas. Ao
final deste trabalho, o posicionamento em relação à capulana já era outro, conforme relato
adiante. Em contrapartida, peças de barafunda — delicado bordado feito à mão — e richelieu
adornavam as ebames no dia da festa pública.

No momento de consolidação dos candomblés, poucas eram as opções de vestuário


financeiramente viáveis às adeptas. Camisus eram confeccionados a partir de retalhos de
sobras de tecidos, da mesma forma, o barafunda era bordado em semelhantes condições. Hoje,
esses símbolos de um período de maior privação são valorizados e portados com orgulho; são
legado ancestral imbuído de resistência e vendido a altos preços.

Gilda de Mello e Souza (1987) afirma que não é possível estudar algo tão
comprometido pelas injunções sociais, como a moda, focando apenas os elementos estéticos.
Abordar a moda — enquanto vestuário — no candomblé é entender seu processo de
constituição como religião de resistência negra e também que muitos materiais, técnicas e
elementos estéticos são referência a uma conjuntura histórica, relembrando o contexto de
escravização.

Essas referências, como técnicas, estilos e mesmo usos, são legado valorizado por
determinados terreiros e por isso perpetuados e mantidos sob a égide da tradição. Os códigos
de vestuário do candomblé são complexos e sutis e Pai Mauricio afirma seguir à risca o
legado ancestral deixado por Mãe Aninha — a quem se refere por Vó Aninha —, a fundadora
do Axé, e também perpetuado com rigor por seu pai, Joaquim de Omolu: “No vácuo dos
27
questionamentos sem as respostas seguras e precisas do meu pai, descobri que boa parte das
respostas se elucidam quando penso: o que faria ele?” (Mauricio de Aganju) 41 .

O modelo da saia de ração instituído por Mãe Aninha era uma forma de evitar o
gasto com aviamentos e acabamentos à época. Embora a falta de dinheiro para os aviamentos
do dia a dia não se coloque como questão central atualmente, a preservação do “babadinho”
na saia é herança ancestral, memória de tempos mais difíceis em que técnicas foram
elaboradas para superar adversidades. A valorização dessas técnicas e seus produtos é também
consideração e reconhecimento da historicidade das práticas sociais.

Fotografia 4 – Babadinho da saia.


Fonte: Autor (2018).

Os valores dos tecidos, as formas de composição — Pai Mauricio me mostrou uma


saia de Iemanjá na qual um tecido bordado caro e insuficiente foi decomposto e aplicado
como detalhe sobre um tecido mais barato —, as alternativas e preferências de materiais são
condicionantes e interferem criativamente na indumentária dentro de um terreiro. Do mesmo

41 Participação na rede social Facebook em 30/08/2019.


28
modo, a economia da indumentária mobiliza e afeta os adeptos de diferentes formas e
direções, principalmente em um terreiro com certa quantidade de artesãos e pessoas que
dominam técnicas especiais de confecção. A ebame Marcia de Exu, filha de Pai Mauricio, por
exemplo, tem se dedicado à bainha aberta no Rio de Janeiro.

Colin Campbell (2006) diferencia a sociedade consumidora moderna, em que a


variedade de produtos e o gosto pessoal são tão importantes, da época de “nossos avós”, em
que a identidade estava mais relacionada ao status e posição ocupada em instituições do que o
gosto pessoal. Nesse sentido, as relações de consumo vestuário do Ilê Axé Aganju Ixolá em
muito se assemelham à época de nossos avós. Embora haja alguma margem para negociação
particular do gosto, essa é pequena diante da autoridade da tradição. A tendência geral em
rejeitar essa autoridade em favor dos desejos, vontades e preferências dos indivíduos
(CAMPBELL, 2006) tem pouca penetração no candomblé dirigido por Pai Mauricio.

O processo de consolidação da sociedade brasileira agregou diferentes estilos de


vestimenta. Não se pode entender estudos sobre indumentária de sociedades complexas
ignorando a incidência de elementos plurais e de diferentes fontes culturais (LODY, 2001).
Parte da indumentária tradicional portuguesa já chegou às terras brasileiras incorporada de
uma afro-islamização e também acrescida de vertentes civilizatórias da Índia e da Ásia
(LODY, 2015). A roupa da baiana reúne elementos visuais barrocos da Europa, tecnologias
africanas e estilos afro-islâmicos. Raul Lody destaca:

Essa indumentária traz também fortes marcas muçulmanas, como a bata, peça larga
de pano; o turbante; as chinelas de couro com ponta virada para cima — à mourisca;
além de uma evidente permanência do barroco, que revive a estética do século
XVIII, com o uso das amplas e arredondadas saias e anáguas e os bordados em
richilieu. Ainda, traz a África Ocidental simbolizada com o pano da costa, feito em
tear artesanal, procedente da costa africana, de onde vem o nome. (LODY, 2015, p.
20, grifo do autor).

As transformações na vestimenta do povo de santo seguiram necessidades de


adaptação e soluções criativas. A indumentária do candomblé diferenciou-se das roupas da
crioula baiana e encontrou proteção nos terreiros:

Assim, a negra baiana foi criando sucessivamente trajes próprios com finalidades
diferentes. Sua substituição se foi operando à medida que as condições da vida foi
tornando difícil a continuidade de qualquer deles: o traje de beca, a roupa da baiana
e finalmente a indumentária do candomblé. Só aí, pela continuidade da prática

29
religiosa, ela julga ter encontrado abrigo seguro para a preservação da nova
indumentária que está criando. (TORRES, 2004, p. 447).

As composições elaboradas produzem um efeito estético, especialmente as roupas de


festa, com as baianas em anáguas, que chamam atenção e encantam visitantes. O corpo da
mulher tem, então, sua forma ocultada sob camadas de tecidos, arredondada. É praticamente
um outro corpo, o corpo da iniciada. A beleza se relaciona com motivos, temas e
interpretações particulares, considerando diferentes momentos históricos, sociais e
econômicos (LODY, 2015). Adornar, para a crioula do século XX, era retomar matrizes
étnicas e identitárias (LODY, 2001). A estética no candomblé é utilitária e dinâmica
(SANTOS, J., 2008) e assim como o conceito de beleza está profundamente relacionada à
ideia de pertencimento (LODY, 2015), compondo todo um sistema. A própria manifestação
do sagrado, no candomblé, é expressa por seu conteúdo estético (SANTOS, J., 2008).

A lida do candomblé requer atenção para os detalhes, preocupação com a beleza e,


além de conhecimento, sensibilidade para combinação de cores, materiais e formas
(RABELO, 2014); alguns terreiros possuem um cargo específico, a iyalaxó 42 , a mãe da roupa,
mulher responsável pelo cuidado das roupas dos adeptos e também dos orixás (MEDAWAR,
2019). Cuidar do santo constitui um engajamento em práticas repetitivas e prolongadas que
envolvem toda a rotina do terreiro e também o vestuário, e que moldam uma sensibilidade
estética (RABELO, 2014). O efeito estético também agrada os orixás, é oferenda. Da mesma
forma que os vasilhames com as comidas votivas são adornados com laços, também as iaôs
são adornadas.

Pai Mauricio afirmou desde os primeiros encontros que o corpo, feminino ou


masculino, nunca deve ficar desguarnecido. Não é exposto demais, deixado à mostra mais
que o necessário. Os panos precisam estar muito bem ajustados e as roupas devem ter
sustentação. Não há espaço para rendas e bordados abertos ou transparentes que deixem o
corpo exposto em excesso. A indumentária é então uma necessidade do candomblé. É ela
quem permite a participação do corpo, constituindo-o como algo possível.

O ato de cobrir é recorrente na oralidade e em significados do candomblé,


especialmente associados ao vestuário. Arcar com as custosas despesas da obrigação de
alguém é cobrir; ao conjunto de animais de penas que acompanham o sacrifício ritual de

42 Este cargo não é mencionado no terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá.


30
qualquer quadrúpede se chama ibossé 43 , que se traduz por meias, a que também é referido
como cobrir o sacrifício.

Um itan do odu44 Obará Meji45 registra a importância de se cobrir diante de forças


poderosas:

Ọ̀bàrà ni, ki ndojúbolẹ̀


Ki n’ba búrú,
Ki Ẹlẹ́gbáa ó jékí ng lo,
Njẹ́ Ìkúdẹ̀rin
Mo foribalẹ̀ f’Ẹlẹ́gbáa. (SANTOS, J., 2008, p. 188, grifos da autora).

Obará pediu-me que me prostrasse em reverência cobrindo-me (mesmo a cabeça)


Que eu me deveria prostrar e me cobrir em temor,
Para que Elegbá me permita prosseguir (seguir meu caminho na felicidade e na
riqueza).
Assim minha Morte transformou-se em longa vida de alegria.
Portanto, curvo-me a Elegbá (SANTOS, J., 2008, p. 188).

Em diversos rituais é importante e imprescindível cobrir a cabeça como forma de


proteção. Após ritual de bori, por exemplo, a cabeça é coberta e protegida contra exposição ao
sol e ao sereno. Denota-se assim a função essencial do tecido, do pano, funcionando como
item de vedação às energias consideradas impertinentes ao indivíduo. Rituais como ipadê 46 e
axexê 47 , em que existe manipulação de energias diretamente relacionadas aos ancestrais,
requerem a cabeça coberta. Homens também não devem entrar no Ibó 48 com a cabeça
descoberta. Além da proteção ritual, cobrir a cabeça, envolver ori, é também forma — diante
de um conjunto indistinto e coletivo de seres que habitam outro plano — de demarcar a
individualidade da vida, noção que abordo adiante ao tratar das roupas brancas.

Pai Mauricio não sabe pregar um botão, mas a partir do convívio prolongado em
terreiro, cuidando do santo, adquiriu a sensibilidade estética e também familiaridade com
termos, materiais, marcas, medidas e usos. Também essa atenção com o vestuário é um hábito
familiar construído socialmente; o babalorixá afirma categórico que a preocupação que tem
com o vestuário é herança do pai, que também não sabia pregar um botão.

43 Do iorubá, ìbọ̀ sẹ̀. Meias. Por isso, comumente, se usa o termo “calço” ao se referir às aves — “bichos de pena”
— que acompanham o quadrúpede; “calçar o bicho de quatro”.
44 Do iorubá, odù. Conjunto de signos de Ifá, cujas histórias são reveladas através de poemas que servem de

orientação nas consultas à divindade.


45 Do iorubá, Ọ̀bàrà Méjì.
46 Do iorubá, ipàdé. Ritual precedente ao xirê, que significa “reunião”. É realizado ainda a portas fechadas, em

âmbito de função. Para maiores informações conferir Juana Elbein dos Santos (2008).
47 Ritual fúnebre.
48 Do iorubá, Ilé-Ibọ-Akú. Casa de veneração aos mortos.

31
2.1. Da rua à costureira

Roupa é estrutura de tecido e medida, Pai Mauricio afirmou diversas vezes,


categórico: “Não adianta você pegar uma renda linda, europeia, e fazer uma roupa para uma
iabá e ela não estar dentro da medida. Se ela não estiver dentro da medida acabou a roupa”
(Mauricio de Aganju, 2017).

Comprar tecidos e acabamentos ideais pelos preços mais vantajosos é a preocupação


que precede a elaboração da roupa. Existem orientações e recomendações. Existe o ideal e o
possível e também o indispensável, o que “não se abre mão”, como os tecidos 100% de
algodão exigidos para a confecção das roupas de ração — inclusive a linha do mesmo
material. Ainda assim existem contemporizações; o mais importante é a conscientização do
legado ancestral e não a proibição.

A quantidade de fios por polegada e a trama (entrelaçamento dos fios) têm relação
direta com a qualidade, durabilidade e preço do tecido. Maior a quantidade de fios por
centímetro de tecido e o comprimento do fio, maior a vida útil e também o preço do metro.

As primeiras roupas de ração, brancas, não precisam de grande envolvimento do


babalorixá: o tecido é de algodão puro e não possui acabamentos extras além do que é
realizado com o próprio tecido. Os padrões para saia e camisu já são de conhecimento das
costureiras indicadas. Ainda assim, Pai Mauricio gosta de acompanhar a abiã 49 à rua; é o
responsável direto pela vestimenta dos filhos e filhas de santo.

A dimensão do consumo não pode ser desconsiderada quando se trata de moda ou


vestuário, principalmente o vestuário feminino (MEZABARBA, 2012). Ir à rua, ou ao
mercado, como categorizam Vogel, Mello, Barros (1987) e posteriormente Medawar (2003),
não se esgota na aquisição de bens. É atividade que revela propósitos, oportunidades, meios,
técnicas, relações e identidades.

A iniciação para orixá e demais obrigações são rituais custosos 50 , levando a uma
busca contínua por preços vantajosos. Combinar materiais de qualidade e apreciados
esteticamente a preços acessíveis é o primeiro desafio da ida à rua. O conhecimento da técnica
é imprescindível ao consumo:

49 Membro não iniciado do terreiro e que já participa de sua rotina litúrgica, guardadas as devidas restrições.
50 Sobre custos da iniciação no candomblé, ver MEDAWAR, 2019.
32
A roupa, ela é feita de medida. De medida e estrutura de tecido. É o primeiro passo
para uma roupa dar certo. Você tem como gastar uma ninharia e fazer uma roupa
belíssima, como você tem como gastar uma fortuna e fazer uma lambança se você
errar na textura e nas metragens, nas medidas. (Mauricio de Aganju) 51 .

Apesar de associado às classes mais populares, o candomblé é, conforme Carlos


Eduardo Medawar (2003), um dos sistemas de culto mais caros do Brasil, tornando-o uma
verdadeira religião de consumo (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993). A beleza plástica se
reverte em competência do iniciador, acirrando disputas entre terreiros (VOGEL; MELLO;
BARROS, 1993; MEDAWAR, 2019) e mesmo dentro da própria casa (MEDAWAR, 2003).

Importante ressaltar o consumo não apenas como questão econômica, mas de


moralidade (SANTOS, Mariana, 2017). Existe um longo planejamento anterior a cada
obrigação em que as filhas de santo economizam para comprar o que for melhor para o orixá e
também para si. Existem expectativas, principalmente, para a obrigação de sete anos — a
última — que é também marcador da senioridade. A nova ebame deve então se apresentar
trajando os novos símbolos de distinção aos quais teve acesso com a finalização de seu ciclo
iniciático.

Conhecer o modo de consumo é também conhecer o culto, sendo essa uma forma de
distinguir nações e terreiros, tanto pela diferença quanto pela aproximação:

Assim se diferenciam, umas das outras, as grandes nações do candomblé, [...] pois
não fazem os seus santos exatamente da mesma forma; não usam as mesmas coisas,
da mesma maneira, nos rituais do mesmo ciclo. No âmbito da mesma nação,
entretanto, encontramos também diferenças de uma casa para outra. E novamente
estas se estabelecem pelo uso litúrgico, por sua vez informado por diferentes versões
do sistema cosmológico. (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 8, grifo do autor).

Mas se o consumo permite reconhecer as diferenças que separam os terreiros, é


igualmente ele quem aproxima certas casas em virtude de seus laços genealógicos,
atestados pelo modo comum de realizar os ritos (VOGEL; MELLO; BARROS,
1993, p. 8, grifo do autor).

Aos abiãs que irão se iniciar no terreiro é dada uma lista de “enxoval de tecidos”
assinalando todas as necessidades de vestuário para o período de recolhimento que dura em
torno de 20 dias. Aos homens são pedidas 6 calças de ração, 6 camisas de malha, 3 blusas de
ração (jalabinha), 10 cuecas box e 4 equetés 52 com 10cm de altura. Às mulheres, 6 saias de

51 Diálogo realizado em 14 de março de 2018.


52 Do iorubá, àkẹtẹ̀. Traduzido como chapéu de palha ou chapéu. Também chamado de fìlà, chapéu.
33
ração com o padrão do acabamento pregueado (babadinho), 4 camisus de ração, 3 panos da
costa, 3 ojás 53 de cabeça, 3 ojás de peito, 4 singuês 54 e 10 calçolas. Todas as peças brancas. A
partir da lista de enxoval é possível perceber a diferença em quantidade de peças e
complexidade que compõem a indumentária feminina.

O primeiro ponto de atenção à lida com a roupa é a disponibilidade financeira. As


regras existem e sua função maior é na conscientização das práticas, mas alguma
contemporização pode ocorrer com a necessidade; o chamado encaixe à regra que menciono
anteriormente. A exigência dos tecidos em algodão não impediu que o segundo barco do Ilê
Axé Aganju Ixolá usasse o gorgurinho, tecido mesclado de algodão e poliéster. Como reparou
Herkovits (1966), não há regra do candomblé que não tenha exceção, sendo a flexibilidade
sua maior característica.

É também na ida à rua que se aprende a buscar os melhores aviamentos. As rendas de


algodão das fabricantes Ipiranga e Paraíba são as indispensáveis enquanto não são
“engolidas” pelas marcas chinesas. Garimpar é a palavra de lei quando se trata de buscar os
melhores e mais pertinentes materiais por preços atrativos.

A preferência e indicação dos tecidos brancos passaram por transformação ao longo


dos anos e inclusive durante esta pesquisa. O conhecido morim se tornou sinônimo de tecido
de ração, muito embora não seja usado para esse fim há bastante tempo. Sua trama ficou fina
e transparente ao longo dos anos e, à época da iniciação do babalorixá (1989), constava em
sua lista de compras, mas já se referia a outro tecido, o cretone. O que era o morim,
atualmente, é uma espécie de gaze, inútil para confecção de roupas, mas ainda usada em ebós.
O mesmo ocorre, atualmente, com o cretone, ficando cada vez mais fino.

O cedro hospitalar, que ao início desta pesquisa era a referência de uso para o tecido
branco, por ser bastante encorpado, ao final foi desaconselhado. Constatou-se que amarelava
com certa frequência, além de pesar nas saias e incomodar ao formar palas grossas. Quando
encontrado em boa qualidade ainda é desejável para confecção de calças masculinas. O
transcorrer da pesquisa revelou o tempo de ajustamento e encaixe dessa prática. A orientação
atual é pelo percal, a depender da qualidade da trama.

É pedida uma peça de 20 a 30 metros desse tecido branco na lista de iniciação para o
enxoval do iaô homem e 30 a 35 metros para a iaô mulher, estas considerando as anáguas.

53 Do iorubá, ọ̀ já. Faixa de tecido para diversos fins.


54 Também chamado de sunguê ou zinguê. Peça que substitui o sutiã no terreiro de candomblé.
34
Dessa peça serão confeccionadas as roupas iniciais e também pequenas toalhas e cortes de
tecido necessários aos rituais. Pai Mauricio relatou o hábito de seu pai em dar o primeiro corte
na peça de tecido, prática que o falecido babalorixá não teve tempo de passar adiante e se
perdeu.

As lojas de tecido do centro do Rio de Janeiro, especialmente as localizadas na Rua


Buenos Aires, são as preferidas para o “garimpo” de tecidos. Na loja do Seu Sírio, na Rua
Senhor dos Passos, há quase 20 anos era possível encontrar peças de cretone de boa
qualidade. A loja São Januário 55 ainda é referência pela diversidade de estampas e também
bordados em laise, apesar dos altos preços; o metro de uma laise simples custa em torno de
R$80, mas é considerado um excelente investimento:

A laise é eterna, né? A laise para uma baiana de candomblé ela é eterna, ela cabe em
qualquer momento. Ela vai estar sempre bem vestida, se ela bota um pano da costa
de bainha aberta, ou bota um pano da costa com uma outra laise, ou então de renda,
ela está muito bem vestida, combinando uma coisa com a outra. Contanto que seja
aquela laise de linha de algodão e não aquela laise sintética. [...] Eu prefiro uma
baiana de chitão, uma baiana de algodãozinho de lençol a uma laise sintética. [...]
Mas aí é o meu feeling, entendeu? É o que eu acho. (Mauricio de Aganju, 2020) 56 .

O Shopping Vida 57 é o preferido e indicado para grandes compras, pelos preços


atrativos e diversidade de aviamentos, estes também comprados em lojas grandes
especializadas, como a Caçula, encontrada em alguns bairros e municípios do Rio de Janeiro,
embora, segundo uma das costureiras, que apresento adiante, a loja de São Cristóvão seja a
mais diversificada. O Mercadão de Madureira, embora referência no comércio de artigos
religiosos no Rio de Janeiro, não foi mencionado como parte do roteiro relacionado ao
vestuário.

As rendas de algodão das fabricantes Paraíba e Ipiranga são as atuais indicadas


enquanto não são engolidas pelas fabricantes chinesas que podem ser usadas em necessidade,
embora não sejam de algodão puro e precisem ficar de molho antes da costura, pois costumam
encolher. A negociação do uso do algodão, porém, não é possível se a pessoa for de Oxalá ou
Oyá Bale 58 , orixás que demandam o uso exclusivo deste material. Pai Mauricio recordou a

55 Rua Buenos Aires, 228, Centro, Rio de Janeiro, RJ.


56 Diálogo realizado em maio de 2020.
57 Rodovia Presidente Dutra, 9000, Coelho da Rocha, município de São João de Meriti, RJ.
58 Do iorubá, Ọya Ìgbàlẹ. Existem três formas similares para o segundo vocábulo. A forma adotada é traduzida
̀
como ato de espalhar ou propagar. Há ainda as formas ìgbálẹ̀, vassoura, e ìgbàlẹ̀, dependência secreta em local
de culto aos Egúngún. Ọya Ìgbalẹ̀ faz referência a uma qualidade específica do orixá Oyá.
35
roupa de Oyá de um filho, confeccionada a partir dos últimos bordados da extinta Arp
disponíveis no mercado a R$120 a embalagem com aproximadamente 10 metros; “o bordado
da Arp era uma poesia”, afirmou.

A partir da confecção das primeiras roupas coloridas, geralmente à época da


iniciação, entram outros materiais e tipos de tecido e Pai Mauricio faz questão de participar do
processo, especialmente na confecção das roupas dos orixás. É nesse momento,
principalmente, que as novas filhas começam a ter contato maior com as estampas e
combinações desejáveis. E também com as primeiras interdições (èèwọ̀) — as famosas
quizilas —, como estampas de bolas para filhas e filhos de Oxum e a cor vermelha para esse
mesmo orixá e também Iemanjá. Existe um espectro de cores aceitáveis para cada filha 59 de
orixá, relacionado à identidade da divindade, e o acesso a esse conhecimento se inicia com a
“ida à rua”.

A saia estampada, preferencialmente floral, deve ser combinada com um pano da


costa horizontalmente listrado ou xadrez. Há uma resistência cultural a essa combinação, da
qual o babalorixá afirma não abrir mão:

[...] uma coisa que me fez preocupar desde o início foi que eu ia, sempre fui com
eles pra rua pra comprar e as meninas sempre tiveram, todas elas, isso eu verifiquei
desde o início, verifico até hoje, por isso com mais força eu faço isso, porque há uma
resistência, porque é uma coisa cultural, né? Há uma resistência em aceitar a
combinação do estampado com a listra, que é o padrão desejável para uma
vestimenta tradicional [...]. Tanto a listra quanto o xadrez eles remetem à gramatura
do alaká, né? Então é o desejável. E as meninas têm uma visão ocidental e se elas
vão usar um floral ou um estampado elas querem combinar geralmente com o liso.
[...] É impensável isso e eu nunca deixei rolar isso; foi sob protesto, mas assim vai
(Mauricio de Aganju, 2020) 60 .

Ainda assim, não é incomum o uso do pano da costa liso; é possível constatar que as
mulheres do terreiro conseguem elaborar uma combinação de saia estampada e pano da costa
liso que não ofendam o que o babalorixá considera ideal; uma saída encontrada é a aplicação
de nervuras — também chamada prega palito — ao longo do comprimento do tecido. Há uma
negociação entre as noções estéticas exteriores ao terreiro e a tradição.

De toda forma, ir com a filha à rua também é o momento de ouvir as preferências da


iaô e conciliar com o ideal do vestuário. Pai Mauricio preza para que as filhas estejam

59 A partir deste ponto passo a me referir à totalidade de indivíduos no terreiro no feminino, considerando maior
menção ao vestuário das mulheres por sua complexidade.
60 Diálogo realizado em 30 de abril de 2020.

36
confortáveis e gostem do que vão vestir. É importante que seja dentro da padronização, mas o
babalorixá procura ser “democrático” até onde é possível.

Os tecidos desejáveis para a composição das saias estampadas, atualmente, são o


tricoline e o percal. O chitão, embora apreciado pelas estampas florais, costuma desbotar
rapidamente. A capulana, bastante difundida no mercado do candomblé por suas estampas
coloridas e procedência africana — embora boa parte, atualmente, venha da China — perde
espaço no Ilê Axé Aganju Ixolá.

Se até o ano de 2008 era difícil e caro encontrar capulana no Brasil, com a entrada da
China nesse comércio, os preços baratearam e ficou mais fácil a compra. O preço mais
atrativo que o tricoline despertou grande procura pelo famoso tecido africano, além da tão
sonhada proximidade com a África, busca incessante do candomblé (CAPONE, 2018).
Enquanto o metro do tricoline custa em torno de R$25, é possível encontrar a peça de 5m de
capulana a R$60.

No entanto, a partir de 2015, Pai Mauricio relata que as estampas começaram a ficar
“complicadas” e atualmente quase impossível encontrar algo conveniente. Embora possam ter
procedência 100% africana, existem estampas com ventiladores, secadores de cabelo e etc.,
inaceitáveis. A entrada da China trouxe também a capulana com fios sintéticos e estampada
em apenas um lado; a original não possui lado avesso.

A capulana no Ilê Axé Aganju Ixolá é submetida a uma triagem até a utilização. A
primeira etapa é a busca por estampas e cores adequadas. A segunda consiste em verificar se é
composto 100% de algodão e a terceira, mais complicada, é colocar o tecido na água com
sabão antes de costurar, verificando se perde a cor. Nessa etapa, o tecido já foi comprado e
caso desbote, o prejuízo é certo. Em todo caso, seria maior se os aviamentos já estivessem
aplicados à roupa pronta; a saia de candomblé possui como acabamento várias fileiras de fita
de cetim, gorgurinho ou mesmo sianinha.

Toda a dinâmica envolvendo a capulana fez com que Pai Mauricio decretasse o
retorno aos tecidos de lençol. O babalorixá acredita que a baiana florida de tricoline é mais
adequada à tradição que a capulana africana. A baiana estampada de flores com um pano da
costa xadrez é considerada a combinação perfeita.

Para a composição da roupa, no geral, é indispensável bater o olho e casar,


faculdade adquirida em atenção aos anos de rotina de candomblé, que significa elaborar uma

37
imagem mental do tecido e aviamentos aplicáveis, visualizando o resultado final. Os tecidos,
acabamentos e diferentes peças precisam estar dentro do tom. É muito provável que as fitas de
uma saia sejam da cor de algum detalhe presente nela, da mesma forma o pano da costa.

As três costureiras que majoritariamente atendem ao Ilê Axé Aganju Ixolá são todas
elas adeptas do candomblé; duas filhas do terreiro e a terceira, Dona Leila, é amiga do
babalorixá e filha de santo de uma antiga e falecida ialorixá do Rio de Janeiro. Não pertence
ao terreiro de Xangô, mas atende à maior demanda de Pai Mauricio, cerca de 90%.

Não existe segredo ou requerimento litúrgico para a elaboração das roupas que
demandem costureiras iniciadas. A incidência se dá pela familiaridade com os códigos e
especificidades da indumentária, principalmente quando determinadas regras são seguidas
rigorosamente. Trata-se de falar a mesma língua; reconhecer traços indumentários já
constituídos que compõem um mesmo sistema de sentido (BARTHES, 2009). É comum então
que os próprios adeptos se dediquem à costura atendendo à demanda dos terreiros aos quais
são afiliados e, posteriormente, expandindo seu atendimento a outras casas de candomblé.
Conheço terreiros que mantêm uma ou mais máquinas de costura disponíveis durante as
funções para eventuais ajustes, reparos e mesmo confecções complementares. O terreiro,
portanto, pode abrigar em sua estrutura compósita seu próprio atelier.

Dona Leila, filha de Omolu, costura para o Ilê Axé Aganju Ixolá há cerca de 12 anos,
além de atender, também de maneira fixa, à demanda de oito terreiros de umbanda e
candomblé. Conhece o babalorixá há vinte e cinco anos; ambos residem no mesmo bairro,
Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro, o que facilita a comunicação e toda dinâmica que
envolve a costura, da entrega dos tecidos à prova e aprovação da roupa. E, embora algumas
filhas façam suas próprias roupas, a indicação de Pai Mauricio é para Leila.

Afastada da vivência em terreiro há cerca de dez anos, Dona Leila fez da costura
para candomblé sua forma de conexão com o orixá e com a espiritualidade: “o compromisso
que eu tenho com meu santo é de deixar os orixás bonitos. Eu faço as roupas do santo, eu abro
mão de tudo, de qualquer coisa para fazer uma roupa de santo” (Dona Leila, 2019) 61 . Não é
incomum a confecção gratuita para roupas de orixá cujo filho não tem condições de pagar. É
na costura de cada roupa que Dona Leila conversa com os orixás, agradece, acrescentando,
assim, seu axé à produção, conforme acredita. E nisso se considera exigente.

61 Entrevista realizada em 17 de julho de 2019.


38
Nas palavras um do outro — babalorixá e costureira — são chatos, sendo chato
sinônimo de caprichoso, exigente. Dona Leila atende às minúcias exigidas por Pai Mauricio e
este se rende em elogios e recomendações; sabe que ela “dá conta do recado”. Os grandes
sacos de tecidos e aviamentos chegam ao quarto dos fundos da residência da costureira
acompanhados de bilhetinhos com orientações minuciosas, desde quantidade de fileiras de
fitas até maneira de plissar.

De todo modo, a costura é sempre um diálogo entre o pai de santo e a costureira, a


depender, sobretudo, do investimento disponível. Nem todas as ideias são executáveis, a
depender dos materiais e arranjos estéticos. Pai Mauricio consulta bastante Dona Leila sobre
as melhores formas de se trabalhar tecidos e materiais e ela não omite sua opinião.

Fotografia 5 – Bilhetinho de orientação.


Fonte: Felipe Berocan Veiga (2019).

À época de nossa visita à casa de Dona Leila, havia uma pequena querela sobre a
saia da iaô de Ewá. A saia fora encomendada numa medida que a costureira imaginou ser

39
curta demais. Avisou a Pai Mauricio e este manteve as medidas; Dona Leila acabou fazendo
mesmo assim e pouco tempo depois a saia de capulana retornou para um aumento de 10cm e
não havia mais tecido. A sugestão emergencial e desesperada do babalorixá foi por uma pala
branca na altura do cós, a que Leila se negou veementemente.

A costureira poderia, com aval do próprio pai de santo, entregar a saia com a solução
mais simples, da pala branca, que de fato não ficaria visível em momento algum, coberta pelo
pano da costa. Optou, porém, pelo conserto mais trabalhoso e cujo acabamento, em sua
opinião, ficaria melhor. Quanto mais bonita e bem-acabada a roupa, maior a satisfação da
costureira e para isso não importa o quanto é trabalhoso. A beleza das peças, do trabalho bem
feito e a satisfação dos orixás são os incentivos para o trabalho contínuo, em consonância com
a própria importância estética que permeia as relações do candomblé.

Fotografia 6 – Saia da iaô de Ewá.


Fonte: Felipe Berocan Veiga (2019).

40
Os anos de amizade permitem troças entre os dois. O rigor dos moldes de Mauricio é
frequentemente contestado por “Leiloca”, como o tamanho da fralda do camisu, a quantidade
de anáguas e os milímetros demarcados. Existem tensões também na discordância da
costureira. O número de anáguas, por exemplo, cujas especificidades soube citar de cabeça,
considera exagerado, mas ao final afirma compreender quando Pai Mauricio argumenta em
favor da tradição.

Mais elaboradas que as roupas dos adeptos, a maioria das roupas dos orixás é de
composições idealizadas pelo babalorixá e que requerem o máximo da habilidade da
costureira. A uma saia, dificilmente, é aplicado apenas acabamento ao longo de seu
comprimento; muitas vezes o tecido é recortado e entremeado a outros tecidos ou rendas para
o resultado final; a renda palito e o cadarço estão entre os mais usados, principalmente pelo
custo acessível. Esse procedimento reforça a necessidade do envolvimento do pai de santo na
“ida à rua”, uma vez que os detalhes são essenciais e é necessário “bater o olho”.

Fotografia 7 – Tecido recortado com renda de meio branca e renda palito.


Fonte: Felipe Berocan Veiga (2019).

41
A compra do tecido e mesmo aviamentos para a roupa do orixá do nome da iaô 62 é
feita apenas por Pai Mauricio. O tecido e a própria roupa permanecem em segredo até após a
saída. A iaô de Ewá, Patricia, esteve na casa de Dona Leila para provas da roupa de ração,
mas não viu a roupa de seu próprio orixá, hábito tradicionalmente preservado no Ilê Axé
Aganju Ixolá.

As roupas das iaôs são menos requintadas. Usam-se poucas rendas e materiais de
acabamento, este ficando para as anáguas e a cargo da criatividade e preservação das técnicas
das ancestrais. Enquanto as abiãs e iaôs se trajam com sobriedade, as ebames esbanjam
rendas, bordados e joias. Peças de barafunda e richelieu adornam as mais velhas no dia da
festa pública.

Entendido como legado ancestral, o bordado barafunda — uma forma de bainha


aberta 63 — em seus variados estilos de ponto, é uma relíquia afro-brasileira. Mãe Carmem de
Oxóssi, antiga iyamorô 64 do Axé Opô Afonjá de Coelho da Rocha, falecida em 2016, era
conhecida por dominar a bainha aberta e também o bordado richelieu; muitos membros da
Casa de Xangô possuem peças confeccionadas por ela. Pai Mauricio menciona a roupa de
Oxalá de seu irmão biológico, Marcelo, e uma baiana completa de Iyá Regina Lúcia de
Iemanjá, ambas bordadas por Mãe Carmem no ponto asa de mosca.

Muito usada há quarenta anos, inclusive por iaôs, a técnica das mulheres negras
recém libertas que não tinham acesso ao richelieu recupera fôlego com bordadeiras no Rio de
Janeiro e na Bahia. Em Salvador, a ebame Fernanda de Nanã, do Ilê Axé Opô Afonjá, tem
ganhado notoriedade com o barafunda 65 .

A raridade e elevado preço, atualmente, são traduzidos em distinção, e indicação do


padrão pecuniário, como é comum do gasto com vestuário em geral (VEBLEN, 1983). Se no
passado, por volta dos anos 1930, era comum encontrar as peças de barafunda no corpo de
uma iaô, atualmente é restrito às mais velhas como símbolo de senioridade em uma
reinterpretação dos valores tradicionais.

Totalmente feito à mão, um pano da costa (2,00m x 0,90m) deste bordado leva um
mês para ser confeccionado — trabalhando-se doze horas por dia — e custa em torno de R$

62 Roupa usada pelo orixá durante o climáx do processo iniciático, em que dirá publicamente o nome pelo qual
sua iniciada será reconhecida entre os adeptos.
63 Também conhecida como ponto de ajour (CALLAN, 1992).
64 Do iorubá, Ìyámórò. Uma das oficiantes do ritual de ipadê.
65 https://www.youtube.com/watch?v=my1vvSxoVO8&t=23s

42
1.500 66 . O elevado preço das peças de barafunda não impediu sua utilização pelas ebames do
Ilê Axé Aganju Ixolá. Como observa Felipe Berocan Veiga (2011), a respeito do valor do
traje das gafieiras, também o valor do traje do candomblé ressalta o valor da pessoa e do
grupo.

Marcia de Exu, ebame do terreiro, incentivada por Pai Mauricio, se dedicou a


aprender a bainha aberta a partir da compra de um conjunto de camisu e bata por ocasião da
própria obrigação de sete anos, em 2015. Já costurava e bordava, mas se encantou mesmo
com a bainha aberta. Aprendeu alguns pontos com ebame Júlia de Oxóssi, filha de Iyá
Omindarewá 67 e atualmente dedica 80% de seu tempo profissional à bainha aberta.

Fotografia 8 – Etapas da bainha aberta Fotografia 9 – Fundo de balaio


Fonte: Marcia de Exu (2020) Fonte: Marcia de Exu (2020)

66 Valor referente a orçamento de julho de 2017 da África Ponto a Ponto, Salvador, Bahia.
67 Gisèle Cossard Binon, iyalorixá e antropóloga, de ascendência francesa, falecida em 2016.
43
Fotografia 10 – Flor de quiabo. Fotografia 11 – Asa de mosca.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).

Fotografia 12 – Percevejo de 2 nós Fotografia 13 – Estrelinha


Fonte: Marcia de Exu (2020) Fonte: Marcia de Exu (2020)

44
Fotografia 14 – Florzinha ou quadradinho. Fotografia 15 – Roda de quiabo.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).

O incentivo do babalorixá à produção de suas filhas e filhos é parte de seu desejo em


concentrar a maior parte das técnicas em casa, como garantia de preservação e facilidade de
acesso. Além do apoio à Marcia, Pai Mauricio também incentiva outras filhas à joalheria de
crioula e não esconde o desejo de ter um filho ferramenteiro.

A presença de artesãos de diferentes áreas no terreiro também proporciona


engajamentos específicos. Uma filha de santo que costura pode presentear uma irmã com uma
peça ou mesmo contribuir generosamente nas custosas iniciações e obrigações. A própria
Marcia presenteou o terreiro com laços para atabaque e também com uma roupa de Oxalá,
todos em bainha aberta. Da mesma forma, é possível que peças sejam presenteadas ou
oferecidas a preços menores como forma de adquirir prestígio com diferenciados níveis
hierárquicos.

2.2. O corpo, o gênero e a roupa

O corpo, como destaca Sônia Maluf (2001), não é simples objeto de uma ação
cultural, receptáculo de símbolos, mas é produtor de sentido; produto da cultura e também
produtor de regras e valores culturais. Para Marcel Mauss (1974), o corpo é o primeiro
45
instrumento humano; um objeto técnico. É lugar de investimento simbólico. Está diretamente
associado à noção de pessoa, uma vez que o corpo é partícipe de sua construção. A iniciação
é, para o candomblé, o marco zero na construção do indivíduo, da pessoa de candomblé. É a
partir do rito iniciático que começa a se desenvolver gradualmente uma maneira de ser
peculiar, ajustada a um sistema de crenças que privilegia o corpo (BARROS; TEIXEIRA,
2000).

A noção de pessoa se refere à caracterização dos seres humanos individuais enquanto


representantes de certas categorias de indivíduos; se refere às estruturas simbólicas nos termos
das quais as pessoas são percebidas (GEERTZ, 2017). Necessária e fundamental para
compreensão dos engajamentos sociais, a noção de pessoa é uma coleção de visões que
constituem o ser humano, diferindo conforme os grupos sociais e atuando como formas de
reconhecimento. Existe uma diversidade de estruturas a partir das quais se dá esse
reconhecimento, todas elas relacionadas:

O mundo cotidiano no qual se movem os membros de qualquer comunidade, seu


campo de ação social considerado garantido, é habitado não por homens quaisquer,
sem rosto, sem qualidades, mas por homens personalizados, classes concretas de
pessoas determinadas, positivamente caracterizadas e adequadamente rotuladas. Os
sistemas de símbolos que definem essas classes não são dados pela natureza das
coisas — eles são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados
individualmente. (GEERTZ, 2017, p. 151).

O vestuário é no candomblé também uma forma legítima de controle do corpo e da


experiência do corpo e neste. E ao estabelecer o corpo humano como mediador do contato
com os deuses, há um reforço da necessidade de controle, seja em nível narrativo quanto em
nível de prática objetiva: o favor da divindade e mesmo a performance ritual depende de um
corpo limpo — termo que denota abstinência de atividade sexual —, banhado em misturas
específicas contendo axé e também de roupas apropriadas. A tradição, portanto, é também
forma de controle do corpo, da experiência e da pessoa.

Debora Diniz (2001) chama atenção para o fato de o corpo, em muitas culturas, se
transformar em documento vivo, prova da existência de regras, funcionando como a
ressurreição do passado no presente. De modo geral, a indumentária é território de identidade
experimentada no corpo; é onde se marca e se expõe o sentido espacial deste (LODY, 2015).

Desde as sociedades mais antigas, homem e mulher estão separados por uma barreira
em mundos opostos, em que a mulher se dedica às atividades mais sedentárias e o homem às

46
atividades de maior movimento (SOUZA, 1987). Todo um conjunto de diferenças acentua as
características sexuais através da roupa, produzindo movimentos corporais específicos: “[...] a
roupa pode ser vista como algo constitutivo das técnicas corporais (ROCHA, 2005, p. 133,
grifos do autor). Marcel Mauss define técnica corporal, ou técnica do corpo, como “as
maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional sabem
servir-se de seu corpo” (MAUSS, 1974, p. 211), de maneira semelhante ao ato mágico,
religioso e simbólico.

Gilda de Mello e Souza (1987) afirma que a partir do século XIX, mais que nos
anteriores, a moda afastou o gênero feminino do masculino, conferindo aos dois formas, cores
e tecidos diferentes, restrito para o homem — caracterizado pelo despojamento completo — e
abundante para a mulher, “exilando o primeiro numa existência sombria onde a beleza está
ausente, enquanto afoga a segunda em fofos e laçarotes” (SOUZA, 1987, p. 71-72). A roupa
masculina simplificou-se progressivamente, tendendo a se cristalizar em um uniforme, pois
perde sua característica ornamental no século XIX, não mais se caracterizando como arma de
sedução erótica (SOUZA, 1987).

A diferença entre a indumentária feminina e a masculina é importante para se pensar


a dinâmica das relações sociais dentro de um terreiro de candomblé e o quanto o próprio
vestuário conforma e agencia papéis e identidades. Como propõe Miguel Vale de Almeida
(1996, p. 163), “os significados circulantes sobre género, herdados do passado, assentam
numa simbólica divisão do mundo em masculino e feminino, constituindo-se esta numa
dicotomia fundamental e princípio classificatório”. As práticas de um terreiro de candomblé
são constituídas a partir de uma concepção dicotômica de gênero e com o vestuário não é
diferente; é produto de uma concepção de gênero e também a produz e a reforça no dia a dia.

A quantidade de peças de roupa que a mulher usa obrigatoriamente em uma função


— no mínimo quatro — é o dobro em relação aos homens. Considerando a quantidade de
conjuntos de roupa necessários para um final de semana — de três a quatro, conforme a
ebame agbá 68 Nilza Iyá Ominiké — e o volume de cada peça, já se estabelece uma diferença
inicial na bagagem levada para a casa de santo a cada função, em uma profusão de sacolas e
bolsas de viagem com as quais, muitas vezes, adentram em dois ou mais transportes públicos

68 Do iorubá, àgbà. Anciã.


47
— ônibus, metrôs, trens e barcas. Por sorte, as anáguas, quatro para cada mulher e utilizadas
somente nos dias de festa, costumam ficar na roça 69 .

Há, no candomblé, uma acentuada divisão social do trabalho, conforme pude


observar no Ilê Axé Aganju Ixolá, que está diretamente relacionada às atividades domésticas
comumente atribuídas a homens e mulheres e cristalizadas na sociedade (BIRMAN, 1995); os
significados circulantes de gênero, como proposto por Almeida (1996). Mulheres se dedicam
e comandam as cozinhas enquanto homens cuidam das áreas externas, carregam peso, pintam
paredes, consertam portas e etc.: “Enquanto a relação das mulheres com o domínio da casa é
imediata — por assim dizer, não chegam a “sair de casa” —, a relação masculina com a casa
implica um processo que carrega certas dificuldades” (BIRMAN, 1995, p. 137).

Como propõe Patricia Birman (1995), há uma eterna reposição do doméstico, seja na
sociedade mais ampla ou dentro da casa de candomblé. Se a roupa masculina não sofre
grandes transformações da rua para o terreiro, a feminina, em seu acréscimo de saias e laços,
constringe ainda mais o corpo da mulher, apertando-o. Essa característica é um reforço do
ethos identificado por Birman, que caracteriza o valor feminino como associado ao sacrifício
e ao trabalho duro. É o aperto do camisu — que costuma ser justo —, o pano da costa e o ojá
que o amarra, a saia longa. Todas peças de que não podem dispor. A roupa feminina, nesse
sentido, conforma o corpo a um certo grau de mobilidade, performance e atitudes, a que a
maioria das filhas de santo se acostuma. Inclusive em relação ao calor. Como afirma Souza
(1987, p. 127), “[...] coerência e comodidade são elementos estranhos à moda, sobretudo à
moda feminina”; no terreiro não é diferente.

Existe, é claro, uma criação artística individual enquanto diferenciação pessoal


dentro do próprio grupo. A maneira de usar a roupa e adequá-la à alma, imprimindo
movimento em gestos ritmados, caracterizados pelo desenvolvimento feminino de um estilo
de existência (SOUZA, 1987). O gênero, enquanto construção sócio-cultural (OYĚWÙMI,
2004) é o grande regulador dos desempenhos das atividades do terreiro.

Os homens, nesse aspecto, gozam de maior liberalidade e liberdade no vestir. A


jalabinha, blusa especialmente confeccionada para ração, não é peça obrigatória e em dias
mais quentes o uso de camisetas sem mangas é praticamente unânime. Da mesma forma, a
calça larga de ração é confortável e pode ser utilizada em uma versão mais curta, na altura das

69Outra forma de se referir aos terreiros, muito embora a maioria fique em meio urbano e o próprio candomblé,
segundo Edison Carneiro (2008), seja um fenômeno urbano.
48
canelas. As roupas masculinas também não possuem qualquer tipo de aviamento, apenas
bainha reta, o que, além da menor quantidade de tecido, contribui para o baixo custo.

As peças masculinas são poucas e permitem flexibilização na utilização: jalabinha,


calça — calçolão, como é comumente chamado — e o filá ou equeté. Este último só observei
rigorosa utilização no terreiro durante o ipadê. A jalabinha foi facilmente substituída pela
blusa de malha, principalmente em dias de calor. Durante os momentos de função, apenas três
dos homens que circulavam pelo terreiro — dentre os mais de vinte — utilizaram jalabinha e
não a camiseta (regata ou de manga) de malha branca.

Os homens de candomblé, no âmbito do Ilê Axé Aganju Ixolá, e independente de


orientação sexual, se beneficiam, por assim dizer, de um privilégio da masculinidade
hegemônica (ALMEIDA, 1996) e seu deslizamento para o terreiro. O corpo masculino no
terreiro, assim como fora dele, não é regulado como o feminino. Da mesma forma, a
masculinidade hegemônica e seus valores cristalizados pela tradição caracterizam como
indesejáveis para os homens do terreiro o uso de bordados, rendas ou qualquer material têxtil
considerado delicado. Flores, brilhos, bordados finos e rendas transparentes, embora
amplamente comercializados para homens no grande mercado do candomblé e empregados
em muitos terreiros, não compõem as roupas masculinas do Ilê Axé Aganju Ixolá.

Das três peças que constituem seu vestuário, podem facilmente dispor das duas que
caracterizam maior sinal diacrítico da pertença religiosa: a jalabinha e o equeté. Às mulheres
não é permitido esse tipo de concessão, nem mesmo em virtude do calor: no Ilê Axé Aganju
Ixolá não constatei o uso da saia zingada 70 ; o máximo concedido em termos de liberalidade é
a retirada do pano da costa em ambientes fechados como cozinha, copa e vestiário, embora
durante todo o momento em que estive no terreiro, independente do calor que já fazia em
outubro, as mulheres estivessem rigorosamente trajadas. Vez ou outra uma ebame passou da
cozinha de santo à cozinha de branco 71 apenas de saia e camisu. Enquanto os homens trajam-
se praticamente de maneira indistinta, a indumentária feminina é composta por um número
maior de peças e formas específicas de utilização.

Iaô e abiã mulheres usam saia, camisu, pano da costa, ojá de peito e ojá de cabeça.
Este último observei presente com maior frequência na cozinha, também pela lida com as

70 É a saia comum de ração usada na altura das axilas, geralmente sem laços, pano da costa ou camisu, deixando
o colo exposto.
71 Refere-se, na casa de Pai Mauricio, à cozinha onde são preparados os alimentos dos membros do terreiro, em

distinção à cozinha de santo.


49
diversas comidas — tanto de alimentação do grupo quanto de oferendas. Às ebames e
equedes 72 não cabe o uso do ojá de peito e sim da bata; o pano da costa, para estas mulheres,
só é utilizado em determinados rituais. A iaô tem o corpo atado em oferenda, a ebame, um
pouco mais dona de si, marca sua senioridade com a própria bata, afirmando o corpo como
seu diante do grupo e também das divindades. As quatro equedes que se alternaram no
terreiro durante minha estada estavam sempre de bata, enquanto as ebames trocaram esta pelo
pano da costa durante a maior parte do tempo, por facilitar a lida em caso de possessão,
conforme caracterizo adiante.

A possibilidade de ausência da bata e também do ojá de peito permite a fácil retirada


do pano da costa em momentos específicos. Fechada à cozinha de santo, é possível retirar o
pano da costa e ficar somente de camisu, minimizando o desconforto diante do fogão, algo
inviável com a bata; a mulher estaria encerrada nas duas peças de roupa sobre o dorso. Esse é
um exemplo de negociação da mulher com o ambiente, a casa, e também com as regras
rígidas do vestuário.

Ainda assim, a roupa não constitui grande atrapalhação ao desempenho das


atividades femininas. Ana de Nanã, ebame e iabassê 73 , na pequena cozinha de santo, utilizava
somente camisu e saia, sem pano da costa ou bata. A condição de iaô permite menos
negociação: Cristiana de Oxóssi estava encarregada da alimentação das pessoas nos dias em
que estive no terreiro, auxiliada por outras mulheres, e se manteve de pano da costa e ojá de
peito em todos os momentos.

Cristiana, iaô, passou a integrar o Ilê Axé Aganju Ixolá havia 2 anos e afirmou não
ter encontrado muitas diferenças no vestir entre o terreiro em que fora iniciada, descendente
do Engelho Velho, e o atual. Destacou, no terreiro atual, o rigor nos aviamentos para as
mulheres iniciadas para orixá masculino, seu caso, e também o uso de brincos, que era
permitido no terreiro anterior. Quando perguntei sobre incômodos de calor ou excesso de
roupa, foi categórica: “Nenhum. Você acostuma”. Se acostumar é se encaixar à regra e ao
grupo, assimilar seus códigos e se conformar a uma forma de ser específica com práticas e
estéticas específicas da prática:

72 Mulher que não entra em transe e auxilia na lida de roupa e cuida dos adeptos em transe. Supõe-se que a
origem do termo seja os candomblés jeje. Em alguns terreiros é chamada de ajòyè (iorubá), a possuidora do
título.
73 Do iorubá, ìyábásè. Responsável pela cozinha de santo e preparo das oferendas.

50
Até que a iaô aprenda a se mover com a saia, esta parece se meter no meio de tudo o
que faz, atrapalhando os movimentos e dificultando sua performance. Com o tempo
e prática adquire alguma destreza e desenvolve um estilo — discernível nos passos
de seus pés descalços pelo terreiro, na agilidade e firmeza dos movimentos na
cozinha, nas saias presas entre as pernas para não atrapalhar a execução de alguma
tarefa, no corpo frequentemente acocorado enquanto as mãos trabalham e no modo
como imobiliza as aves que serão sacrificadas, prendendo-as pelas asas a uma
distância segura do corpo, e na habilidade com que, uma vez mortas, põe-se a
depená-las (RABELO, 2014, p. 109).

Fotografia 16 – Cristiana de Oxóssi na cozinha de branco.


Fonte: Autor (2018).

Pertencer é um processo que comporta dimensões éticas e estéticas. Assim como o


peso dos numerosos fios de contas compõe uma estética que refina a sensibilidade ética
(RABELO, 2014) — o olhar inclinado ao chão em submissão —, todo o restante da
indumentária induz a comportamentos. Se a indumentária feminina prende o corpo e requer
uma adaptação específica, o mesmo não ocorre com o homem, já que pouca diferenciação
existe entre a indumentária masculina do terreiro e o mundo exterior. O privilégio de gênero
como parte essencial do ethos europeu consagrado na cultura da modernidade (OYĚWÙMI,
2004) está, também, imbricado no vestuário dos terreiros e nas relações que ali se
desenvolvem.

51
Há um deslizamento da gramática dos termos familiares para o terreiro, conforme
abordo em pormenores no próximo capítulo. Nesse deslizamento também se incluem as
noções de gênero associadas à lida do mundo doméstico, como também observou Miriam
Rabelo (2014). À mulher a cozinha, ao homem o quintal. À mulher o interno, ao homem o
externo. Essa reflexão de base estrutural e estruturante é bastante presente nos trabalhos do
sociólogo Pierre Bourdieu (1999; 2010) e me interessa para pensar as dinâmicas entre a casa,
o vestuário, homens e mulheres.

Há um grande contraste do vestuário feminino da casa de candomblé em relação ao


cotidiano externo, enquanto as roupas masculinas do dia a dia no terreiro sugerem
continuidade, muito embora as atividades referentes à casa e à lida doméstica permaneçam
praticamente as mesmas para homens e mulheres. Quando é necessário ir à rua para comprar
algum tipo de material que sempre falta de última hora, o homem já está pronto. As mulheres
precisariam trocar suas roupas quase completamente, pois dificilmente vão à rua com as saias
e os laços da roupa de ração. O uso da blusa de malha pelo homem reforça a ligação deste
com o mundo externo e mesmo sua intrusão no ambiente doméstico que é uma casa de
candomblé, como categorizo posteriormente. Já está, porém, encaixado como regra; não é
visto como elemento comprometedor da experiência total.

Mais do que perceber que a indumentária feminina é diferente da masculina, a


possibilidade de o homem dispor da jalabinha, por exemplo, me chama atenção. É uma única
peça de roupa, bastante similar à blusa de malha, sendo, inclusive, mais folgada e, no entanto,
é possível sua dispensa sem qualquer constrangimento. Da mesma forma que, durante o ritual
de bori, as mulheres estavam rigorosamente com a cabeça coberta, o que não aconteceu entre
os homens.

É possível argumentar que mesmo no candomblé as mulheres seguem conformadas a


determinados espaços, papéis e expectativas amplamente institucionalizados na sociedade,
ainda que tenham posição de mando, algo bastante incomum nas religiões, segundo Maria
José Rosado-Nunes:

Historicamente, os homens dominam a produção do que é ‘sagrado’ nas diversas


sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas,
regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões
conhecidas. As mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e
das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento
da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais,

52
na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso. (ROSADO-NUNES,
2005, p. 363).

O corpo feminino, verdadeiramente, é em si o guardião desse capital religioso e


também objeto de maior pudor quanto à sua exposição, embora “menos por uma necessidade
de sua natureza do que por imposição da sociedade [...]” (SOUZA, 1987, p. 104-105) 74 . É
nele que se encontram a saia com babadinhos, o camisu de retalhos, o pano da costa, os
bordados quase extintos. É no corpo feminino e nas roupas das mulheres que se encontra a
memória dos terreiros:

[...] está na mulher africana e em suas descendentes no Brasil uma base civilizadora
na construção de costumes que trazem memórias arcaicas e ancestrais, e outras que
são reveladoras da diáspora de tantas culturas, etnias e de povos do continente
africano. (LODY, 2015, p. 13).

O corpo da mulher, mais que o do homem, se torna um “quadro vivo de regras e


costumes” (DE CERTEAU, 1998, p. 231). A lei do vestuário do candomblé encontra-se nele
encarnado, pois a experiência feminina do corpo, segundo Bourdieu (2010), é o limite da
experiência universal do corpo-para-o-outro, exposto de maneira incessante à objetivação
operada pelo olhar e pelo discurso do outro, o homem. A mulher de candomblé, como
elemento base dos relacionamentos mágicos, porta, em seus trajes, os emblemas sociais que
controlam e ordenam toda a complexidade das práticas de um terreiro (LODY, 1977):

Com efeito, o corpo e o vestuário da baiana adquirem uma importância significativa


nesse processo de patrimonialização, na medida em que a baiana pode ser vista
como uma espécie de roupa que expressa uma técnica corporal. A roupa da baiana é
algo mais que um simples traje típico, pois contém propriedades e qualidades de
afecção, tal como pensa Viveiros de Castro. Pensar a baiana como uma roupa
significa pensá-la como patrimônio cultural cuja característica é a de ser uma técnica
corporal. Assim, vestir uma roupa é investir-se de um habitus, no sentido atribuído
por Mauss (2003). Vestir a roupa de baiana é na verdade investir-se de funções
religiosas, estéticas, sociais, políticas, econômicas, e mais, assim como as roupas dos
xamãs investem os portadores de poderes mágicos capazes de seduzir as pessoas
pela comida, pela dança, pelas rezas, pela beleza, pela maternidade. Nesta
perspectiva, o significado da roupa da baiana como patrimônio cultural é o de
expressar uma técnica corporal (ROCHA, 2007, p. 76-77, grifo do autor).

Bernardete e Marisa, ambas de Oyá, estavam recolhidas para obrigação de sete anos
no período em que acompanhei as funções do terreiro. Ao final da festa do dia 27 de outubro

74Bourdieu (1979) faz alusão às perspectivas de gênero subdivididas entre nif (honra masculina) e horma (recato
feminino) ao abordar o haram (tabu) em sua etnografia argelina.
53
de 2018, receberam de Pai Mauricio suas batas em cerimônia informal diante do bolo
comemorativo. O mesmo aconteceu com Marcelo de Oxalá que, também finalizando seu ciclo
iniciático, recebeu uma bata masculina das mãos de Julio de Omolu, balé 75 Xangô do terreiro
e responsável pela finalização de suas obrigações, já que Pai Mauricio e Marcelo são irmãos
biológicos 76 .

Fotografia 17 – Batas recém adquiridas.


Fonte: Autor (2018).

A bata feminina é retirada durante o transe de orixá: assim que a divindade chega,
uma das equedes se aproxima e, cuidadosamente, retira a bata, deixando a mulher em transe
com o camisu e operando um pequeno ajuste em seu pano da costa, que detalho adiante. O
mesmo não acontece com os homens: o transe não requer a retirada da bata masculina,
tampouco os homens usam obrigatoriamente qualquer peça por baixo que viabilizasse a
modificação de suas roupas.

75 Do iorubá, baálẹ̀. Governador ou chefe de uma comunidade. No caso do terreiro abordado, é o governador da
Casa de Xangô, por isso balé Xangô.
76 Há uma espécie de interdição, se não ritualística, social, na iniciação ou filiação de parentes consanguíneos

diretos, bem como cônjuges.


54
É possível interpretar essa adaptação ritual a exemplo do que relata Victor Turner
(2005) sobre a observação de Bruno Bettelheim:

Após ter observado o comportamento de quatro adolescentes esquizoides que


formavam uma sociedade secreta, Bettelheim considerou que nesse comportamento
encontrava-se a chave para uma compreensão de muitos traços do ritual primitivo. A
partir de seus esquizoides, inferiu que um dos propósitos (inconscientes) dos ritos de
iniciação masculinos pode ser o de afirmar que os homens também podem parir
filhos e que “através de operações tais como a subincisão os homens podem tentar
adquirir aparelhos e funções sexuais iguais aos das mulheres” (BETTELHEIM,
1954, p. 105-123). Inveja do útero e uma identificação infantil inconsciente com a
mãe, na opinião de Bettelheim, foram os fatores formativos poderosos, tanto no
ritual ad hoc dos seus quatro esquizoides, quanto nos rituais de circuncisão dos
homens pelo mundo afora (TURNER, 2005, p. 67, grifo do autor).

A entrega de uma bata ao homem — já que esta não tem sentido próprio que não um
simulacro da bata feminina — seria apenas uma forma de marcar o rito de passagem, da
mesma maneira que a mulher, em uma tentativa de igualá-lo em status como rodante 77 . É uma
adaptação ritualizada da concessão feita às mulheres em razão de seu status de maioridade
ritual. A bata não encontra no corpo do homem qualquer função para além de distingui-lo
como ebame e igualá-lo à mulher em termos de status. Retorno à questão da bata adiante.

Por ocasião do transe, há uma leve alteração nas vestimentas para demarcá-lo,
variando de acordo com a própria forma do orixá se vestir. As iaôs de iabá já se encontram
prontas; nada precisa ser alterado. A presença do laço de peito se justifica em decorrência do
transe mais frequente da iaô; ebames não entram em transe com a mesma frequência.

A lida com os orixás masculinos — ainda se tratando das mulheres — pode variar;
alguns têm o laço retirado e o pano da costa amarrado como uma tira para trás, outros têm o
pano da costa atravessado a tiracolo, de banda — como também é chamado este pano quando
desempenha essa função —, com um nó sobre o ombro. O tecido que antes compunha o laço
de peito passa a envolver horizontalmente a região do ventre em um laço lateral na mesma
direção em que está o nó superior da banda, chamando-se nesta função ojá de banda.

As mulheres, de maneira geral — iaôs e ebames — estão mais preparadas, do ponto


de vista do vestuário, para entrar em transe. Se há a mudança comportamental de atitudes e
expressões, também ocorre a mudança no vestuário. Raul Lody a nomeia como estética
peculiar do estado de santo: “As divindades masculinas recebem tratamento e distinção, tendo
o pano-da-Costa amarrado a tiracolo ou para trás. As divindades femininas são caracterizadas
77 Termo referente às pessoas que entram em transe de orixá.
55
com os panos-da-Costa amarrados na altura do busto” (LODY, 1995, p. 225). As demarcações
de transe também acontecem com os homens e seguem o mesmo princípio, porém as peças de
roupa não estão consigo; são emprestadas às pressas das mulheres acordadas 78 , decompondo-
as. Em alguns casos, as equedes, prevendo momento de possível chegada dos orixás, separam
previamente ojá de peito e tecidos para utilização como banda ou pano da costa. Da mesma
forma que são demarcados em transe, antes mesmo de acordar, as pessoas são
“desamarradas”, ou seja, o vestuário prepara o corpo para a saída da divindade, demarcando
também a ausência do transe.

Durante muitos anos, homens não eram iniciados para orixá na mesma condição que
as mulheres, a de rodantes, e ainda existem terreiros que não iniciam, como se diz da Casa
Branca do Engenho Velho, por exemplo. Este é um dos motivos que justifica a diferenciação
entre a complexa indumentária e o maior preparo do conjunto de peças feminino para se
adequar ao transe das mulheres; a absorção dos homens na condição de rodantes é posterior à
consolidação do candomblé. Mãe Senhora, antiga ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá (BA),
iniciou mais de oitenta pessoas e apenas oito homens dentre esse número (LIMA, 2003). O
próprio Edison Carneiro, como afirma Vivaldo da Costa Lima (2003), associou a presença de
homens iniciados no candomblé à degradação dos cultos 79 .

2.3. Branco e demais cores

Cor é vida, afirma o teórico suíço Johannes Itten (1976).

No terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá o uso de roupas coloridas sempre que possível é
determinação expressa de Xangô, dono da casa, orixá simbolizado como o fogo da vida, que
não gosta de morte, e caracterizado por cores fortes como o vermelho, o marrom, o coral e
demais cores relacionadas ao seu elemento, o fogo:

Acredito que Xangô é vivo, esperando e vivenciando cada geração, pois ele
indubitavelmente fica. Vai além do não gostar da morte. É a personificação da vida.

78Termo empregado para designar quem não está em transe.


79 Essa perspectiva, abordando a homossexualidade, é tratada no trabalho de Ruth Landes (1967), de quem
Carneiro foi próxima.
56
O fogo da eternidade, da continuidade sem interrupção, avesso ao frio do fim, ainda
que seja de um ciclo. (Mauricio de Aganju, 2020) 80 .

As cores são o resultado de ondas de luz e uma forma particular de energia


eletromagnética; podem ser abordadas a partir de três direções distintas: impressão (visual),
expressão (emocional) e construção (simbólica) (ITTEN, 1976). Embora as análises e estudos
da cor possam ter enfoque em um desses aspectos, são indissociáveis (ITTEN, 1976). Essas
elaborações não estão restritas à análise científica, mas são abordagem norteadora da estética
das cores também do próprio senso comum (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).

A cosmologia do candomblé também admite que as cores são dotadas de energia,


podendo influenciar o destino das pessoas e extremamente relevantes para afazeres do
terreiro, rituais e objetos litúrgicos; é a cor como substância, dotada de poder (VOGEL;
MELLO; BARROS, 1993):

Químicos, naturalistas, fisiólogos e psicólogos adotaram a perspectiva da cor como


recurso para detectar e sinalizar estados e processos da matéria e da vida. Profetas,
sacerdotes e feiticeiros, antropólogos e filósofos, místicos e artistas e, nos tempos
que correm, também os comunicadores visuais veem na cor o que transcende a
natureza imediata das coisas, referindo-a a uma outra ordem de fenômenos, a dos
fatos sociais e morais. Tanto num caso quanto no outro, porém, verifica-se a
hipótese de Sahlins segundo a qual a cor corresponde, na cultura, não ao processo de
reconhecimento, mas à atividade classificatória do relacionar. Por esse motivo, não
há um único projeto cultural onde as cores não se constituam como sistema. Graças
a esse fato, as maneiras pelas quais os fenômenos de caráter visual, mental e
espiritual se associam multiplamente ao reino da cor, para retomar uma expressão de
Itten, não são, pois, convenções arbitrárias, mas nexos motivados de significação.
(VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 102).

Nesse sentido, Victor Turner (2005) e também Juana Elbein dos Santos (2008), a
partir deste, mencionam as cores como fontes de fenômenos e relações. Turner (2005) destaca
a importância das cores branca, preta e vermelha em diversas culturas e semelhante faz Juana
Elbein dos Santos (2008) em relação ao candomblé, conforme já apontado por Vogel, Mello e
Barros (1993). Raul Lody atribui a essas três cores, em contextos específicos, um valor
primário, “afinidades aos elementos da natureza, a histórias mitológicas, aos fenômenos
marcantes e formadores do imaginário de diferentes culturas” (LODY, 2001, p. 94).

Juana Elbein dos Santos (2008) agrupa os elementos portadores de axé em três
categorias identificadas por cores: sangue vermelho, sangue branco e sangue preto. As três

80 Diálogo realizado em 24 de junho de 2020.


57
cores de sangue são localizadas nos reinos animal, vegetal e mineral81 , reforçando o próprio
número três como emblemático das religiões afro-brasileiras: “Em todo o sistema, o número
três está associado a movimento” (SANTOS, J., 2008, p. 49). Esses elementos-signos se unem
de diferentes maneiras a formar forças específicas que categorizam os orixás e suas energias;
o próprio mundo, segundo a autora, se origina da união dos três elementos-signos. Oxalá, por
exemplo é associado à água e ao ar, pertencendo ao elemento-signo do sangue branco. Oxum
é relacionada pelo candomblé à cor amarela, categorizada como símbolo do vermelho.

As três cores destacadas por Victor Turner (2005) e Juana Elbein dos Santos (2008) e
seus símbolos próximos (azul para o preto, amarelo para o vermelho, etc.) — que não podem
ser tomados pelas cores elementos-signos à revelia — estão presentes no candomblé e são
indispensáveis em muitos rituais. É possível encontrar representação das três desde ebós, nos
pedaços de morim, à iniciação, nas pinturas de efum82 , ossum83 e waji84 .

Na indumentária de candomblé se fazem presentes observando interdições e


predileções conforme iniciação do indivíduo. No vestuário geral, as cores se relacionam com
o tipo de tecido, que pode afetar a luminosidade e o tom (SOUZA, 1987). Gilda de Mello e
Souza destaca cinco fins a que visa a utilização das cores no vestuário:

1 Aumentar ou diminuir o peso aparente e o tamanho de uma região, as cores


escuras tendendo a aumentar o primeiro e reduzir o segundo, as cores claras
produzindo efeito contrário. 2 Tornar uma região menos evidente através de tons
escuros e superfícies opacas. 3 Afetar o tom emocional da vestimenta toda, pois que
as cores têm um significado simbólico e podem atrair, repelir ou esposar os nossos
sentimentos. 4 Conduzir o olhar numa determinada direção por meio de ângulos
coloridos, enfeites angulares, etc. 5 Produzir ilusão de ótica, as linhas verticais
aumentando a altura, as horizontais, a largura. (SOUZA, 1987, p. 43-44, grifos da
autora).

Em importância no vestuário, as cores estão logo após a forma (SOUZA, 1987),


porém assumem particular centralidade no candomblé. Existe uma diferenciação entre as
cores votivas dos orixás e um espectro de cores pertinentes ao vestuário. O domínio desse
conhecimento é também domínio do conhecimento de culto, uma vez que as cores estão
relacionadas às divindades e à própria biografia do indivíduo enquanto iniciado e se
relacionam por atração ou repulsa, harmonia ou incompatibilidade em um sistema (VOGEL;

81 Cf. SANTOS, J., 2008.


82 Do iorubá, ẹfun. Giz, mineral branco imprescindível aos rituais iniciáticos.
83 Do iorubá, osùn. Pó de cor vermelha de origem vegetal.
84 Do iorubá, wájì. Pó azul, anil, de origem vegetal.
58
MELLO; BARROS, 1993). Considero cores votivas as anunciadas pelos fios de contas, por
serem invariáveis, a não ser quando se referem a qualidades específicas das divindades.

Quadro 1 – Cores no Ilê Axé Aganju Ixolá

Orixá Cores votivas


Exu Lilás
Ogum Azul marinho ou verde – ambos foscos
Oxóssi Azul turquesa
Omolu Marrom rajado de preto e branco
Ossaim Verde rajado de amarelo
Oxumarê Amarelo rajado de preto
Nanã Branco rajado de azul
Ewá Amarelo rajado de vermelho
Obá Vermelho (intercalado com azul claro)
Oyá Vermelho caboclo (marrom telha)
Oxum Dourado
Ibeji Amarela rajada de verde e vermelho
Iroko Vermelho caboclo (marrom telha) rajado de verde
Xangô Branco alternado com vermelho caboclo (marrom telha)
Iemanjá Transparente
Oxaguiã Branco intercalado com azul claro
Oxalá Branco

As roupas coloridas são marcantes em um terreiro e a profusão de estampas chama a


atenção. Mas é a cor branca a mais associada às religiões de matriz africana e também
obrigatória em muitos rituais. Bori, iniciação, sextas-feiras, Águas de Oxalá, obrigação de
filhos de Oxalá, axexê e luto. No candomblé, a cor branca é a regra e as demais cores
constituem exceção. Vestido de branco, um iniciado entra em todos os cômodos e participa de
todos os rituais. O mesmo não ocorre se estiver trajado de cor.

Quando cheguei ao Ilê Axé Aganju Ixolá para a primeira entrevista com Pai
Mauricio, em uma noite de janeiro de 2017, o babalorixá me explicou que embora Xangô, o
dono da casa, tenha preferência por roupas coloridas no dia a dia, durante o recolhimento de

59
iaô a roupa branca amplia a circulação pelo terreiro, permitindo a entrada na casa 85 de Oxalá,
impensável com roupa colorida. E, muito embora fosse uma quarta-feira, dia consagrado a
Xangô e, portanto, boa parte do terreiro estivesse de cor, havia uma pessoa vestida de branco
dentre o grupo que poderia entrar na casa consagrada ao orixá do branco. É nesse cômodo que
se concentram muitos dos elementos necessários à iniciação, como efum e ori86 e que são
atribuídos a Oxalá.

Ressalto que desde esse primeiro dia de contato para pesquisa, Pai Mauricio reforçou
sua preferência pela produção interna de tudo o que fosse possível, principalmente
relacionado ao ritual. Esse detalhe não me chamou atenção à época, imediatamente, mas à
recorrência no discurso ao longo dos contatos posteriores se tornou impossível não notar.
Controlar a produção é garantir a correta elaboração do produto, seja ele uma mistura
orgânica ou um bordado; é manter as coisas feitas dentro de casa.

A cor branca, reconhecida como o somatório de todas as cores, é significada de


diferentes formas nas sociedades humanas (ITTEN, 1976). Victor Turner, no âmbito dos
rituais, observou que:

o elo associativo oferecido por “brancura” permite à argila branca (mpemba)


representar uma multiplicidade de idéias e fenômenos, que vão de referentes
biológicos, como “sêmen”, a idéias abstratas como “pureza ritual”, “inocência” de
feitiçaria e “solidariedade para com os espíritos ancestrais” (TURNER, 2005, p. 85,
grifo do autor) 87 .

No âmbito do terreiro, “significa a criação, o poder genitor masculino e feminino, a


passagem da transformação de um nível de existência a outro. O branco está presente nas
vestes dos rituais de passagem (nascimento e morte)” (RODRIGUÉ, 2001, p. 76). “Sua
utilização permite denotar a calma, a estabilidade, a imobilidade, o frio, o silêncio, a pureza e
a prudência” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 103). Representa, ainda, pureza ética e
moral, associadas a Oxalá (BENISTE, 2009), morte e renascimento reais e também rituais
(SANTOS, J., 2008). O começo da vida religiosa (iniciação) e seu final são marcados pela cor
branca, obrigatória.

85 Outro sentido para o termo casa. Os membros do Ilê Axé Aganju Ixolá se referem desta forma aos diferentes
quartos onde se encontram os assentamentos dos orixás.
86 Do iorubá, òrí. Manteiga de karité.
87 Turner elabora outras comparações interessantes sobre o simbolismo do branco, inclusive com seu uso na

literatura. Cf. TURNER, 1975.


60
Funfun é o termo em iorubá que designa a cor branca, entendido por Vogel, Mello e
Barros (1993) como categoria que abarca tanto a cor quanto substâncias brancas e incolores
enquanto formas emblemáticas da placidez. Funfun também se refere aos orixás primordiais,
partícipes da criação do mundo conforme mito iorubá:

Òrìṣálá, Òrìṣànlá, Òṣàlá ou Obátálà, simboliza um elemento fundamental do


começo dos começos, massa de ar e massa de água; um dos elementos que deram
origem a novas formas de existência — à protoforma e à formação de todos os tipos
de criaturas — no àiyé ou no ọ̀ run. Os funfun são as entidades que manipulam e têm
o domínio sobre a formação dos seres deste mundo — os ara-àiyé — e também a
formação de seres no além. Os vivos e os mortos, os dois planos da existência, são
controlados pelo àṣẹ de Òrìṣànlá. (SANTOS, J., 2008, p. 75, grifos da autora).

Oxalá é o orixá a que se presta maior reverência dentro do candomblé e também o


que mais impõe restrições à sua lida e a seus filhos. É considerado a suprema divindade da
terra iorubá, tratado como pai dos outros orixás, denotando seu caráter de divindade original
(ÌDOÒWÚ, 1994; RODRIGUÉ, 2001; SANTOS, J., 2008). “É pai de vivos e mortos
indiscriminadamente”, como afirmou o babalorixá Mauricio diversas vezes, abrigando sob
seu alá 88 a vida e a morte, como também observado por Vogel, Mello e Barros (1993) e Maria
das Graças Rodrigué (2001). Em reverência a este orixá, todos os membros do Ilê Axé Aganju
Ixolá chegam ao terreiro às sextas-feiras vestidos de branco e assim permanecem durante o
dia consagrado a Oxalá.

Dessa forma, diante da iniciação, da morte (Ikú) e de ori (cabeça) o adepto deve se
apresentar com humildade e diligência ritual. A roupa deve ser imaculadamente branca e se
eximir de enfeites e aviamentos, independentemente de posição hierárquica. A iaô e a agbá se
trajam rigorosamente da mesma forma. Não há o uso de bata; não se demonstra senioridade
diante de Ikú ou de ori.

Na iniciação, todos devem se vestir de branco e com sobriedade, sem excessos;


homens e mulheres com as roupas de ração que especifico adiante. Para o bori, especialmente
a pessoa submetida ao ritual, deve se trajar com roupas de algodão e também sem aviamentos.
Camisu, saia e pano da costa liso para as mulheres, calça e jalabinha e também um pano da
costa liso para os homens. Esse pano da costa desempenhará papel específico ao cobrir as
costas, denominado por José Beniste (2011b) ọ̀já ẹ̀hìn 89 .

88 Do iorubá, àlà. Tipo de roupa branca símbolo da pureza ética.


89 Literalmente pano e costas, em iorubá.
61
No ritual do axexê é usado envolvendo os ombros e as costas, a exemplo de uma
estola. Cobrir as costas opera uma separação ritual entre o passado e a prática que se
desenrola no presente: “No corpo, o passado é associado às costas, à coluna vertebral, marco
consagrado à história já vivida” (RODRIGUÉ, 2001, p. 117). Enrolar o corpo é também
marcar a individualidade da vida diante de energias coletivas, indistintas e poderosas dos
antepassados, sempre adorados coletivamente. Se o alá cobre vivos e mortos indistintamente,
marcar e separar os indivíduos com um pano único de cabeça e também envolvê-lo com um
pano às costas, opera poderosa diferenciação simbólica e ritual. Essa individuação se
relaciona também com o medo iorubá da aniquilação total — conforme relata Juana E. dos
Santos (2008) — de ser completamente absorvido pela massa indistinta e não renascer
novamente.

Embora diante de Ikú todos sejam iguais, no ritual de axexê homens não usam o
pano da costa branco envolvendo as costas e os ombros, somente as mulheres.
Independentemente da concordância ou não de Pai Mauricio, que vê sentido no uso da peça
por homens, justamente pela igualdade humana diante de Ikú, o babalorixá não se sente
autorizado a modificar o estabelecido pela tradição que, mais uma vez, é reforçado com
exemplos familiares. No axexê de seu pai, Joaquim de Omolu, os oficiantes do ritual
orientaram o uso do pano até para os homens: “Minhas mais velhas não deixaram pois
disseram que o que meu pai havia deixado ficaria, mesmo depois de morto e assim ficamos”.

O alá, representado por um pano branco aberto que serve de cobertura a Oxalá e
participa de seu ritual, simboliza a própria atmosfera, proteção individual e coletiva e também
se refere a algo puro, sem mácula:

O Alá está associado a essa massa invisível de ar que está suspensa como um grande
pano aberto acima de todas as cabeças dos indivíduos nascidos. O Alá preserva a
existência dos vivos e ao fechar-se sobre alguém significa a morte do corpo, perda
do calor vital, nascimento de Orí no Além, no Orún. (RODRIGUÉ, 2001, p. 78,
grifos da autora).

Individualmente, o alá é simbolizado pelo pakajá 90 — pano da costa branco


amarrado a tiracolo no ombro direito, cobrindo peito e costas e ajustado com um laço à volta
da cintura, chamado de ojá de banda — usado por todos os membros do terreiro iniciados para

90 Do iorubá, pakájà. Mudar a forma de vestir uma roupa, alusão ao pano da costa usado de forma diferenciada.
62
Oxalá ou Oxaguiã e outros dignitários 91 , mulheres ou homens, no segundo e terceiro
domingos do ciclo de rituais das Águas de Oxalá.

Fotografia 18 – Oxalá em procissão sob o alá.


Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2013).

Aos iniciados para as divindades funfun e também para Oyá Bale, quando no
terreiro, é vetado o uso de roupas coloridas: “nunca vi das minhas irmãs de Oyá Bale
nenhuma usar cor. Sempre todas de branco. No máximo um pano da costa rosinha”, Pai
Mauricio cita as irmãs mais velhas como referência. Os iniciados para esses orixás devem se
trajar obrigatoriamente de branco e em tecido 100% algodão, seja em uma festa ou nos
afazeres cotidianos. É desse mesmo material a preferência para as roupas de ração.

O algodão 92 , òwú, é a base da confecção de vestimentas de Oxalá e também o ideal


para confecção das roupas do dia a dia. À exceção da festa, é com a roupa de ração de algodão

91 Agbá que carregam a charola da procissão e iniciados para Xangô que carregam o pilão.
92 Gossypium Sp.
63
que se deve participar de todos os outros rituais de extrema importância dentro do candomblé.
Raul Lody (2015) destaca a existência de tecelagem funcional nas antigas fazendas e
engenhos em que panos de algodão cru eram produzidos exclusivamente para “tapagem das
vergonhas” de pessoas negras e indígenas escravizadas, já que as vestimentas para uso de
europeus e descendentes provinham da Europa.

Samuel Abrantes (1999) caracteriza o algodão como o mais importante filamento


natural, de fácil cultivo, fácil tinturação, não absorção do calor e baixo custo de fabricação:
“Simplicidade, humildade e harmonia são conceitos ligados à utilização do algodão”
(ABRANTES, 1999, p. 46). A naturalidade da fibra do algodão reforçada pela ausência de
elementos sintéticos é um propiciador ritual conveniente, uma parte da natureza transformada
em vestuário e de maneira simples. É um registro da natureza vegetal no corpo. Diversos odus
se relacionam com o algodoeiro ou o algodão, especificamente, atestando sua importância:

Quando algodoeiro desejou sair do Ọ̀run para vir para o Aiyé, procurou Ọ̀sà Méjì,
enquanto sacerdote de Ifá. Como o povo da Terra se vestia de folhas, Algodoeiro
prometeu agasalhar a humanidade. Foi, então, indicado para a referida planta que ela
fizesse sacrifício com um bode para Èṣù, adicionando muito efún. Assim,
Algodoeiro, que antes gerava filhos de cor marrom, passou a produzir filhos na Terra
cujos cabelos eram brancos como é a lã. Foi Èṣù quem fez o algodão ser branco
usando o efún, como também foi Ele quem ensinou a Yemonjá Sábà a fiar e tecer o
algodão, que por sua vez transmitiu este ensinamento à humanidade, a fim de que o
algodão pudesse ser usado como vestuário. (SANTOS; PEIXOTO, 2014, p. 174-
176, grifo das autoras).

O itan caracteriza o algodoeiro como árvore caridosa e benfeitora, que doa parte de si
para vestir a humanidade (JAGUN, 2017); a primeira forma de vestimenta depois das folhas.
É relacionado à ancestralidade, relatado em alguns itans como a primeira árvore plantada no
mundo (SANTOS; PEIXOTO, 2014) e também associado ao cabelo branco, símbolo de
senioridade e sabedoria.

Ainda que a explicação mais detalhada se perca no tempo, a permanência da


exigência de um determinado tipo de tecido, preservada pela tradição, permite que o algodão
continue desempenhando seu papel propiciatório, em consonância com o que se acredita,
independentemente da consciência dos adeptos. Em outras palavras, ainda que o grupo atual
não saiba explicar a razão do uso obrigatório do algodão estabelecido pelas antigas mães de
santo, manter a tradição significa manter um elemento cuja eficácia ritual é essencial e
condicionante do próprio ritual.

64
A exigência pelo tecido em puro algodão costurado com a linha do mesmo material é
um exemplo do esforço de ordenamento da experiência em direção a uma unidade. A entrada
do poliéster na trama ou na linha quebra a ideia de totalidade que é uma ideia de classificação
ideal, de pureza: “nosso comportamento de poluição é reação que condena qualquer objeto ou
ideia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais (DOUGLAS, 2014, p. 50-51)”.
E, sendo Oxalá o representante maior da pureza ética no ritual (ÌDOÒWÚ, 1994; SANTOS,
J., 2008), romper a classificação ideal desorganizando a ordem é desagradar ao orixá.

É interessante destacar que a sujeira agride diretamente Oxalá; seus filhos não devem
permanecer com as roupas sujas sob pena de desagradar à divindade. A roupa suja confunde
Oxalá, canta-se em parte do ritual das Águas de Oxalá: Aṣọ dúdu gọ́ ya pi (A roupa ficou suja
e ele ficou confuso), Aṣọ dúdu Òrìṣànlá (Rasgou-a imediatamente), A e a já lé o (Ele seguiu
viagem), Aṣọ dúdu Òrìṣànlá 93 .

A confusão expressa no cântico, como aponta Mary Douglas (2014), é a ruptura da


totalidade e pureza que o branco simboliza e o próprio Oxalá simboliza em si e através da cor
branca enquanto sua representação. Santidade e impureza, conforme essa autora, estão em
polos opostos. Oxalá é a expressão da ordem, da retidão e a sujeira fere essa classificação, não
por ser suja em si, mas por se colocar, nesta relação, em caráter de oposição.

Considerando o algodão sangue vegetal, como propõe Juana Elbein dos Santos
(2008), a afirmação de Raul Lody (2015) sobre roupa de ração ter este nome por ser roupa
que come, que recebe sacrifício, é assertiva. A roupa de ração, então, seria sagrada pois é
confeccionada a partir do sangue vegetal relacionado aos orixás funfun, orixás da criação.

2.4. A roupa de ração e a roupa de festa

O termo roupa de ração se refere ao traje interno da lida cotidiana despojado dos
luxos do dia do xirê. Raul Lody (2015, p. 28) afirma que o termo “vem de roupa que come,
que recebe obrigações durante os diferentes rituais religiosos”. O termo faz referência também
aos primeiros tecidos utilizados para a confecção das roupas, usualmente feitas de algodão cru
e grosseiro, mesmo tecido dos sacos de ração.

93 Cf. José Beniste (2009).


65
Os inúmeros afazeres cotidianos de uma casa de candomblé deslocam com rapidez
seus filhos e filhas pelo terreno. Quando possível, estão de roupa colorida, mas ainda assim
muitos optam pelo branco, que realmente se apresenta como a cor principal da liturgia do
candomblé. É indispensável nos rituais mais importantes, se configurando a melhor cor para
fins espirituais, atraindo prosperidade e afastando morte e doença (BADIRU, 1989 apud
RODRIGUÉ, 2001); é a roupa de base para os rituais internos.

Homens usam calça e blusa de malha, podendo optar até mesmo por uma bermuda
folgada pouco abaixo dos joelhos. A jalabinha, com ou sem mangas, pouco foi usada durante
as funções que observei; a blusa de malha predominava. Abiã, iaô, ebame e ogã 94 se trajam
sem qualquer distinção hierárquica a não ser pelos fios de contas, os colares rituais.

Fotografia 19 – Abiã, ebame e ogã em função.


Fonte: Autor (2018).

Às mulheres pouca liberalidade é permitida. Saia e camisu são indispensáveis. Ora


com o pano da costa e laço de peito, ora com a bata. Da abiã à ebame, todas se trajam com o

94 Do iorubá, Ọ̀gá. Chefe e pessoa que se distingue em uma sociedade. Nos terreiros de candomblé o termo se
refere, majoritariamente, aos tocadores de atabaque.
66
rigor a que muitas — filhas antigas de Pai Joaquim de Omolu, principalmente — já estavam
acostumadas. Ebame Nilza de Iemanjá disse não haver diferença entre os “tempos de seu pai”
e agora, na casa de Xangô: as regras são seguidas com o mesmo rigor. Alguma
contemporização foi feita de acordo com o que o próprio babalorixá do terreiro considerava
não agredir a tradição em atenção a novos materiais, como abordado anteriormente.

Fotografia 20 – Xirê.
Fonte: Autor (2018).

No dia do xirê público 95 , as roupas se modificam significativamente. Retomando o


significado de xirê:

Xirê é uma palavra normalmente entendida como festa, significando um momento


onde se canta, dança e come. Essa é uma tradução que usamos na informalidade,
para nos fazermos entender por aqueles que pouco conhecem ainda sobre o culto aos
orixás; isto porque, literalmente traduzida, esta palavra yorubá — xirê — significa
jogo, competição, esporte. Entretanto, quando falamos sobre o ritual Xirê de maneira
mais profunda, traduzimos esta palavra como: abertura para as bênçãos e favores dos
orixás. Apesar de em sua origem a palavra festa referir-se a dia santificado, de

95 Embora todo xirê seja público, existem xirês caracterizados como internos, em que somente pessoas muito
próximas são convidadas, como familiares dos envolvidos e parentes de santo.
67
descanso e regozijo, ela se diferencia de cerimônia porque não tem regra fixa. Xirê,
portanto, é uma cerimônia religiosa, com regras fixas e vestuário pré-fixado, cujo
objetivo é louvar as divindades para que elas nos fortaleçam com suas graças.
(SANTOS, Maria Stella, 2012).

A simplicidade das roupas de ração dá lugar ao luxo de rendas e bordados. Abrir as


portas de um terreiro é coletivizar um espaço privado; um terreiro de candomblé, em dia de
festa, é um local de abertura (VOGEL; MELO; MOLLICA, 2017). É o momento em que um
espaço privado funcionará como se fosse público e servirá a um conjunto de desempenhos
não mais privados. Os ritos de candomblé, sempre reservados e intimistas, ganham outra
atmosfera em um dia de xirê: são voltados ao público.

Nesse dia, os homens aparecem pela primeira vez trajados com jalabinha ou abadá,
calças — estas com o corte comum de uma calça social, porém não muito justas — e alguns
utilizando equeté. No caso dos ebames, está presente também a bata masculina, que pode ter
as mangas dobradas, ser confeccionada por encomenda ou comprada em lojas masculinas
comuns. Os tecidos permanecem de algodão com poucos detalhes, nervuras quando muito. A
roupa masculina é marcada pela sobriedade de cores e formas. Os equetés, sim, podem
apresentar bordados discretos; Pai Mauricio usava um de barafunda no xirê que assisti. Como
tratado anteriormente, a noção de masculinidade em prática no Ilê Axé Aganju Ixolá se
abastece da masculinidade hegemônica, rejeitando bordados e tecidos delicados.

As roupas femininas em um dia de festa chamam atenção pelo capricho, as armações


das saias com perfeito caimento, garantido desde o corte correto do tecido. As ebames se
exibem pelo terreno antes do xirê, recebendo convidados, cumprimentando conhecidos e se
destacam pelos bordados mais elaborados, maior quantidade de joias. Enquanto a vestimenta
das iaôs é confeccionada com composições de laise, entremeios, cadarço e tecido liso de
algodão com nervuras, as ebames exibem laise, richelieu, composições de entremeio, tecidos
de algodão ricamente trabalhados e diferentes pontos do bordado barafunda.

Rodrigué (2001) diferencia o camisu de festa do camisu de ração por ser bordado,
mas não é incomum que antigos camisus de festa, gastos pelo uso prolongado, se tornem
camisus de ração, em um aproveitamento de uma peça que deixa de servir para um propósito,
mas se adequa a outro. Isso não dá margem para o uso de roupas rotas ou rasgadas durante a
função, pois como é constantemente pontuado, roupa furada é euó 96 , sendo o furo e o rasgo
elementos que comprometem a totalidade simbólica da roupa, sua unidade (DOUGLAS,
96 Do iorubá, èèwọ̀ . Tabu, proibição, interdição.
68
2014). Permitidos no xirê — afinal richelieu e bainha aberta são descontinuidades do tecido
—, em rituais mais complexos e importantes, não têm lugar. É importante destacar que a
ausência de tecidos bordados ou tecnicamente furados no dia a dia acentuam o caráter de
exceção do xirê nas práticas do candomblé. Não obstante, as saias de ração, especialmente as
coloridas, costumam ser antigas saias de festa cujo desbotar reforça a aura de antiguidade e de
trabalho em um terreiro.

Fotografia 21 – Ebames aguardando o xirê.


Fonte: Autor (2018).

O acréscimo das anáguas e de saltos condiciona uma mudança de comportamento, de


movimentos. Diferente do momento de função em que os laços pendem sem forma muito
definida, no dia da festa pública devem se sustentar, engomados e passados. Se mexer demais
é despinguelar a roupa, desajustar a composição e comprometer a harmonia plástica do
momento. A dança do xirê é caracterizada por gestos suaves e contidos: gestos vigorosos
pertencem ao orixá em transe, que têm as equedes para garantir que a roupa não despenque.

Pai Mauricio garante que a consciência de preservação da tradição tem sido bem
absorvida. Ofereceu às equedes do terreiro a opção de usarem um conjunto africano de saia
69
envelope e blusa de manga com o pano da costa sobreposto, em substituição à baiana
completa, ficando esta apenas para ocasião de confirmação 97 . A roupa daria maior mobilidade
à lida da equede, que precisa ser fluida e rápida a atender os membros do terreiro caindo em
transe e também os próprios orixás nesse estado. Nenhuma delas adotou o traje, preferindo
permanecer com a baiana e todas as suas peças.

Indispensável às equedes é a toalha ao ombro, símbolo de seu mister. Antigamente


era bastante comum usarem vestidos sociais; muitas eram mulheres de alta posição na
sociedade civil que recebiam o cargo como honraria dentro de um terreiro, assim como os
ogãs. Vestido civil ou baiana, a toalha está sempre presente, medindo 1,20m por 0,50m, do
meio das costas, pendendo ao ombro direito, até a cintura. Até mesmo o modo como é
dobrada é especificado dentro de um padrão.

2.5. Algumas peças e seus usos

2.5.1. Camisu e bata

O camisu é também chamado camisa de crioula, primeira peça da indumentária a


cobrir o corpo da mulher; sobre ele se assentarão todas as outras. Da abiã à ebame e equede,
todas fazem uso. Trata-se de uma blusa exclusivamente branca, confeccionada sob medida e
seguindo padrões rigorosos, a que Pai Mauricio chamou do “modelo de Vó”, referindo-se a
Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá.

O acabamento da gola é obrigatório e deve ser discreto, preferivelmente até 4 cm.


Encontrei camisus disponíveis em diversos ateliês com a chamada gola rainha, em rendas
ultrapassando 10 cm de largura, que não é usado no Ilê Axé Aganju Ixolá. O formato da gola
é em canoa e pode conter acabamentos de renda ou do próprio tecido, a exemplo do
babadinho da saia. Pai Mauricio mencionou uma falecida tia de santo, Helena de Ogum, e
também uma antiga equede de Oxaguiã do Ilê Axé Opô Afonjá de Itaúna 98 , também parente,
cujo hábito citou como exemplo: “E ela assim primava por usar só branco, só algodão e ela
não era dada a laise, nada disso. Ela só gostava de algodão. Então os camisus dela de algodão
eram também com a golinha de tecido virado. Fica um charme”. (Pai Mauricio de Aganju) 99 .

97 Corresponde, para ogã e equede, ao ritual de iniciação, sendo menos complexo e envolvendo menos dias de
reclusão.
98 Extinto terreiro no município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, chefiado pelo babalorixá Reinaldo de Aira.
99 Diálogo realizado em 12 de setembro de 2018.

70
É uma das peças mais complicadas da costura e até mesmo evitada, conforme alguns
costureiros e costureiras com quem conversei. É composta de muitas emendas
milimetricamente ajustadas. Há uma emenda de tecido nas axilas em formato de quadrado,
chamado de naco ou balão, com cerca de 8 cm de lado. Alguns possuem uma tira de tecido da
gola ao ombro, chamada de taco, o que é preferível.

Um palmo abaixo dos seios é aplicada uma saieta, também chamada fralda, que
desce à altura dos joelhos. A fralda pode ser de um tecido mais simples que o restante da
composição e serve para evitar que os cadarços das inúmeras saias machuquem a mulher.
Evita também o deslocamento do camisu e oferece resguardo às pernas quando se abaixa para
alguma atividade.

O acabamento ao fim das mangas é sempre reto com duas pregas, na parte anterior e
posterior do braço, ou viés; “em hipótese alguma” renda de ponta ou qualquer outro
aviamento. Antigamente, no camisu das iabás, era comum incorporar um pequeno botão ou
pedraria junto à prega externa do camisu. Pai Mauricio mencionou que havia botões com
aplicações em ouro nas mangas do camisu de Oxum na iniciação de sua mãe, Dona Ely, em
1991:

É uma coisa que nunca mais vi em uso. Algumas ayaba tinham isso lá em casa e no
camisu dela tinha. Não sei nem porque não fiz aqui em nenhuma. Tá aí, a gente vai
falando e lembrando agora. Tem no camisu do nome dela e tá perfeito. Que ela toma
cuidado pra guardar. (Pai Mauricio de Aganju) 100 .

O camisu da abiãs é o mais simples, em tecido de algodão sem acabamentos, assim


como das iaôs mais novas. Conforme se graduam com as obrigações podem aplicar rendas
vazadas e bordados. É comum encontrar as ebames com camisus abertos em renda,
mostrando o colo, sempre guarnecido pelo pano da costa.

Durante os períodos de função é permitido às filhas de santo o uso de sutiã, até


mesmo expondo a alça, algo inadmissível por ocasião do xirê, quando é então adotado o
singuê (também chamado de zinguê ou sunguê). Este é uma tira de tecido franzida em elástico
nas bordas superior e inferior e substitui o sutiã nas festividades públicas.

Ouvi algumas reclamações acerca do singuê. Em alguns terreiros já nem se usa,


sendo o sutiã adotado mesmo com alças expostas. A reclamação maior é de que o singuê não

100 Diálogo realizado em 25 de janeiro de 2017.


71
dá sustentação aos seios, somente os cobre, causando muito desconforto às mulheres com
seios maiores. Diante disso, Pai Mauricio contemporizou o uso de sutiã similar, em lycra,
inclusive já comercializado no Mercadão de Madureira.

Nem todos os orixás femininos fazem uso do camisu, peça que está diretamente
relacionada ao orixá em que a feminilidade seja um dos atributos mais marcantes. A maioria
das qualidades de Oxum, por exemplo, usa. De todo modo, ainda que iniciados e em transe de
orixá feminino, o uso do camisu é rigorosamente proibido aos homens no Ilê Axé Aganju
Ixolá; a condição masculina do corpo, conforme Mãe Stella, não deve ser desconsiderada: “A
despeito do filho ser Ayaba, é do sexo masculino e esta condição prevalece” (SANTOS,
Maria Stella, 1993, p. 38). No caso de homens iniciados para iabá, Pai Mauricio adota, se
necessário, o uso da jalabinha para que o corpo não fique desguarnecido em transe.
Especialmente em iabá considerada mais senhora, cujas representações se usam de recato.

A partir do proposto por Mary Douglas (2014), é possível entender o camisu,


intrincada peça de vestuário feminino, como elemento que não se ajusta ao conjunto de um
corpo masculino. A presença de uma divindade feminina em transe em um corpo masculino
não é o suficiente para operar uma modificação que permita o uso do camisu, peça, nesse
sentido, mais marcadamente feminina que o pano da costa, permitido ao homem em transe. O
pano da costa apresenta aspectos litúrgicos que abordo à frente, já o camisu, diretamente, não.
É a complexidade da composição da peça que acentua a sua caracterização como feminina.

A complexidade do vestuário é reservada às mulheres; o camisu é um elaborado e


intrincado conjunto de pedaços de tecidos milimetricamente medidos. O pano da costa é uma
faixa de tecido de corte reto com bainha. Quanto mais complexa a roupa, mais associada ao
feminino; ao masculino cabe o despojamento.

O uso da bata para as adoxu101 com obrigações concluídas foi determinado por Mãe
Aninha (SANTOS, Maria Stella, 1993), sendo então usada por equedes e iniciadas com
obrigação de sete anos completa. Mãe Aninha fazia questão, afirma Mãe Stella (SANTOS,
Maria Stella, 1993). É símbolo da maioridade feminina dentro do candomblé, outorgada
publicamente. Seu formato remete aos seios volumosos das grandes matriarcas, as agbás,
acomodando-os. Demarca a senioridade da mulher não só religiosamente, mas

101 Do iorubá, adóṣù. Outro termo para designar a pessoa iniciada. Não deve ser confundido com òṣù. Este se
refere à substância cônica manipulada à cabeça na iniciação de uma pessoa. Adóṣù é qualquer pessoa que o tenha
portado por ocasião da iniciação.
72
biologicamente: Pai Mauricio cita seu pai ao afirmar que a função da bata é também proteger
os seios muito grandes de uma mulher, remetendo à imagem das mulheres negras que
amamentavam muitas crianças. Costuma ser justa na altura do colo e desce folgada até a
cintura, de onde não deve ultrapassar em altura.

Fotografia 22 – Recebendo a primeira bata.


Fonte: Autor (2018).

Mãe Stella, segundo me relatou um ebame do Axé, tinha por hábito dar uma de suas
batas antigas às novas ebames, como um presente de graduação da mãe à filha. Não é somente
a autorização para o uso; há a concessão pública e ritualizada, extremamente importante em
uma religião hierarquizada como o candomblé. Pai Mauricio destaca: “é muito importante a
gente colocar a bata na filha da gente”. A solenidade do momento caracteriza a importância
da peça e o orgulho de sua aquisição em uma trajetória longa e muitas vezes dolorosa de
aprendizados.

73
Pai Mauricio menciona uma parente de santo, Angela de Oyá, em seu orgulho pela
bata dada pelo pai, Reinaldo de Aira 102 , em discussão sobre o uso ou não da bata por ebames:

[...] essa bata quem botou no meu corpo foi Seu Reinaldo Carvalho. Quem botou
essa bata no meu corpo foi Seu Reinaldo e ninguém tira. A bata não tiro não, não
tiro não, porque quem botou tá debaixo da terra. Eu não botei por minha conta. Ele
tirou o laço do meu peito e botou. Tirou o pano da costa, botou bata e botou o pano
da costa (Pai Mauricio de Aganju reproduzindo as palavras de Angela de Oyá) 103 .

A fala destacada se refere à entrega simbólica da primeira bata, que autoriza a então
ebame a portá-la. A partir desse momento pode confeccionar ou comprar para si quantas batas
quiser. Pai Mauricio retirou o laço de peito, pano da costa e fios de contas de suas filhas,
Bernardete e Marisa, ambas de Oyá, e então colocou a bata. Usar a bata é atitude de respeito e
reverência a quem outorgou esse direito, respeitando um elo estabelecido pelo processo
iniciático.

A confecção sob medida é desejável, para evitar que fique muito larga ou muito
comprida. Pode ter mangas pendentes ou mais curtas, evidenciando o camisu, o que é
classificado como elegante. O corte de tecido deve ser feito em modelo godê 104 ou mesmo
evasê 105 , modelagens que proporcionam a roda adequada e desejada, embora impliquem em
grande gasto de tecido; uma bata cortada e costurada reta “é uma bata perdida”. É necessário
também que o corte do tecido seja realizado pela altura (tecido em pé).

O tecido de ração é o de algodão 100% habitual. Embora seja permitido o uso de


batas estampadas durante o período de função, percebi que seu uso não é comum no Ilê Axé
Aganju Ixolá, talvez pela universalidade e praticidade da cor branca, conforme já abordado. A
bata usada em dias de festa abrange grande variação de tecidos e bordados, mas sempre na cor
branca.

O bordado richelieu é o mais comum. Durante muitos anos apreciado e desejado


paras as obrigações de sete anos, perdeu espaço para as novas composições de rendas e
sianinha no grande mercado, embora ainda amplamente comercializado. Questionei a pouca
presença do richelieu no terreiro. Em um primeiro momento pensei se dever ao caráter mais
massificado da produção, pois há, nitidamente, no Ilê Axé Aganju Ixolá, preferência por peças

102 Babalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá de Itaúna, falecido em 7 junho de 2001.
103 Diálogo realizado em 14 de março de 2018.
104 Corte enviesado que deixa o tecido ondulado.
105 Corte que se alonga na base, em formato de cone.

74
mais artesanais, se possível, próprias. Pai Mauricio manifestou então insatisfação com a
qualidade do bordado, sempre evocando o parentesco como exemplo:

[...] richelieu tem que ser de um tecido de algodão, sim, ter um bordado cheio alto.
[...] que tia Palmira ainda tem, minha avó Eunice ainda tinha, que minha mãe usa de
vez em quando. Agora um richelieu desses ralos, um buraco mal feito [...]. (Pai
Mauricio de Aganju). 106

Além do richelieu, o bordado barafunda é uma recuperação recente e bastante


presente no terreiro. O tecido opala pele de ovo, espécie de cambraia 107 , é apontado como
tradicional, usado com entremeios de renda de linha de algodão. Este é o que mais possibilita
a variação de formatos, pertinente às mulheres enquanto consagradas a divindades distintas.

As batas cuja finalização à cintura é arredondada são para as mulheres que Pai
Mauricio definiu como iniciadas para “iabás mais senhoras”. Seriam as de Oxum e de Iemanjá
cuja feminilidade é a característica mais marcante, conforme anteriormente abordado, e Nanã.
As iniciadas para iabá de faca, cuja característica mais marcante é a disposição guerreira,
usam batas finalizadas em bico, assim como as iniciadas para orixá masculino. Como
exemplo, mencionou parentes e também a célebre Iyá Regina Bamboxê, que tinha costume de
usar bata em bico.

A sobreposição da bata ao camisu é uma complementação, principalmente se


observarmos que, rigorosamente, o camisu só possui “acabamento” na gola e não nas mangas,
o oposto da bata. O camisu esperou a bata durante longos anos para compor plenamente a
ebame e atestar a finalização e completude de seu processo iniciático. Essa espera quase
nunca é de apenas sete anos, devido ao custo elevado envolvendo toda a obrigação. A
primeira obrigação de sete anos a que assisti foi de uma senhora com mais de vinte anos de
iniciada, como era o caso de Bernadete de Oyá.

Durante o período de função no Ilê Axé Aganju Ixolá, enquanto as equedes usavam
camisu e bata, as ebames mantiveram apenas o uso do camisu com o pano da costa. No
momento do ipadê, no entanto, a ebame Andreia de Iemanjá, iyadagan108 do terreiro, colocou
uma bata de ração, acomodando o pano da costa por cima.

106 Diálogo realizado em 12 de setembro de 2018.


107 Tecido muito fino de linho ou algodão.
108 Ìyádagan. Uma das oficiantes da cerimônia do ipadê.

75
A bata feminina é retirada durante o transe de orixá: assim que a divindade chega,
uma das equedes se aproxima e cuidadosamente retira a bata, deixando a mulher em transe
com o camisu. Ao longo dos anos esse ato sempre me despertou curiosidade. A explicação
dada é de que a bata pertence à ebame — é seu símbolo de maioridade — e o orixá respeita,
pois a senioridade é um valor iorubá. O único a quem seria feita concessão seria Oxalá.

Fotografia 23 – Bata em opala pele de ovo e renda. Fotografia 24 – Bata sobreposta ao camisu de renda.
Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017). Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017).

Há uma liberalidade para o uso da bata sem o camisu durante os períodos de função,
devido ao calor, mas não é adotada pelas filhas de santo. As ebames, sujeitas ao transe, se
submeteriam ao constrangimento de ter o orixá encaminhado a um quarto para colocar um
camisu, sujeitando uma outra pessoa a procurar uma peça adequada. Nem mesmo as equedes
usam bata sem camisu, ainda que não suscetíveis ao transe.

Outro aspecto interessante na lida com a bata é a sua ausência em determinados


momentos. O uso da bata é considerado grosseria quando o orixá da própria pessoa ou do
babalorixá está recebendo sacrifício. É um momento em que a iniciada deve abdicar da
demonstração de senioridade, dando, assim maior relevo e importância ao seu orixá e ao do

76
babalorixá. Na festa anual em celebração ao orixá de Pai Mauricio, todas as suas filhas
ebames e equedes não usam bata.

A bata masculina é comprada em lojas seculares; são batas de “modelo indiano”,


com mangas compridas ou 3/4 e gola de padre. Algumas poucas são feitas sob encomenda,
pois não há qualquer padronagem especificamente do candomblé. Os bordados e conjuntos
africanos não são usados no Ilê Axé Aganju Ixolá, embora não haja qualquer proibição
formal. Em todo caso, o estilo de vestir em si enquadra os membros, uma vez que ninguém
usa bordado. Pai Mauricio os considera demasiadamente delicados para compor roupas
masculinas: “homem lá em casa não usa flor, não usa brocado, bordado inglês com brocado,
essas coisas, renda” (Pai Mauricio de Aganju) 109 . A bata, então, é um recurso da negociação
masculina — ainda que limitado — à sua inclusão neste universo feminino.

Fotografia 25 – Batas masculinas.


Fonte: Autor (2018).

109 Diálogo realizado em 12 de setembro de 2018.


77
2.5.2. As anáguas

“Anágua é o que dá enchimento às vestes, mas nem tudo que enche é anágua”,
declara Pai Mauricio categórico. Sempre brancas, constituem aspecto particular da lida no Ilê
Axé Aganju Ixolá e ganham do babalorixá bastante atenção: “anágua tem ciência”. Raul Lody
(2015) aponta que as anáguas são mais comuns nos terreiros da nação queto e angola e menos
armadas na nação jeje.

As anáguas, assim como qualquer saia, são vestidas por cima. Uma das primeiras
coisas que uma mulher de candomblé aprende é a não colocar a saia por baixo, pelos pés.
Uma explicação única não é dada. Do ponto de vista utilitário, a saia fica menos amarrotada
quando vestida por cima. Sob aspecto ritual, é possível considerar o nascimento biológico e
espiritual pela cabeça: chegamos ao mundo a partir da cabeça, seja no parto ou na iniciação.
Há também a oposição às vestes de egungun110 , que entra em sua vestimenta de baixo para
cima. Pai Mauricio, ao comentar que “a anágua veste a iaô”, destaca a posição especial da
indumentária de candomblé: a anágua, a saia e o camisu entram na iaô por cima.

Usadas apenas em dias de festa, as anáguas são medidas a partir da última saia — a
saia de cima — colocada pela mulher e que varia de 0,90m a 1,00 de altura, considerando
como padrão uma mulher de 1,65m de altura. As anáguas possuem diferenciação conforme o
orixá da iniciada. Mulheres de Omolu e Exu, por exemplo, têm anáguas diferentes para si e
para seus orixás, isso porque as saias principais dessas divindades costumam ser menores. Se
colocassem as anáguas curtas dos orixás, estas terminariam muito antes da saia, sobrando uma
parte desta sem apoio, balançando desgovernada e dando tchau.

As mulheres iniciadas para orixá masculino usam três anáguas, as iniciadas para
iabá, preferencialmente, quatro. As anáguas para as mulheres de santo homem variam em
altura e comprimento, pois têm, obrigatoriamente, menor roda, também destacado por Mãe
Stella (SANTOS, Maria Stella, 1993); não é adequado que as saias fiquem muito
arredondadas, forma comumente relacionada ao feminino:

Para as santas-fêmeas, são guardadas formas arredondadas, comparadas à anatomia


da mulher – seios, nádegas e barriga –, onde novamente se referem à cabaça-útero
fortemente ligadas a laços ancestres e formuladores da gênese dos mundos e dos
homens. (LODY, 1995, p. 219, grifos do autor).

110 Do iorubá, égún. Egúngún, espírito de ancestral que se manifesta em ritual específico.
78
Detalho a seguir as anáguas referentes às iabás.

A primeira delas é confeccionada em pano de saco com uma barra de 20cm de tecido
na ponta para dar peso: barra virada. Possui uma roda de 4m e altura de 0,70m e é
mergulhada na goma mais dura. É importante que sua pala seja confeccionada em tecido
comum e não receba goma para não machucar ou cortar a filha de santo.

A segunda anágua, de tecido comum puro de algodão, é acrescida em 5cm de altura,


também com uma barra virada de 20cm e mantendo a mesma roda, 4m. A goma tão dura
quanto a saia anterior. A partir da próxima anágua as saias começam a receber enfeites e
mesmo aumentar a roda. A terceira é confeccionada também em tecido de algodão e tem a
ponta terminada em renda, preferencialmente com 5 fileiras de nervura, uma a cada 3 cm e
subindo a partir da renda final. A goma é menos dura e ela tem altura de 0,78m com 4,20m de
roda.

A última anágua recebe enfeites até quase a metade de sua altura, como renda na
ponta e rendas de meio espaçadas em intervalos regulares, intercalando com nervuras
semelhantes à saia anterior. Essa saia possui 4,20m de roda e 0,80cm de altura com uma goma
leve.

Antes da saia de cima existe uma quebra-goma, saia com uma goma bem fraca, toda
aberta em renda. Essa goma fraca é comumente chamada de ar de goma e muitas vezes
aplicada fria com um borrifador. A renda palito e o cadarço podem ser opções menos
custosas, caso necessário. Essa saia tem 4,50m de roda e 82cm a 85cm de altura, recebendo
por cima a saia da festa com 90cm e 5m de roda.

As rendas das fabricantes Ipiranga e Paraíba são desejadas quando o assunto é


anágua. Principalmente porque as rendas chinesas, que Pai Mauricio acredita estarem prestes
a dominar o mercado, não aceitam bem a goma quente e “esgrouvinham”.

Esse rigor nas medidas é para que a roda fique progressiva, em que as saias mais
rústicas são as primeiras e se atinja um caimento sem erros: “conforme a roda cresce, a altura
desce e a goma enfraquece” é o artifício mnemônico para confecção e uso adequados. Pai
Mauricio reforça, ainda, que o caimento perfeito depende do corte do tecido em pé, na altura
da pessoa, devendo então ocorrer emendas no comprimento da saia.

Dessa forma as anáguas se encaixam e não corre o risco de aparecerem por baixo da
saia — a que, em alguns terreiros, se chama vender queijo —, pois têm ordem certa para

79
entrar no corpo. Pai Mauricio se orgulha de manter as anáguas usadas conforme a tradição e
de suas filhas sequer terem ouvido falar das diversas formas de anágua disponíveis no amplo
mercado: plástico, entretela, tela de mosquito, tule, plástico bolha e saco de ração de cachorro.
O babalorixá considera esses formatos “um esculhambo” ao lembrar das ancestrais que
usavam ferro a carvão para engomar suas anáguas. Pai Mauricio enfatiza a diferença do
resultado no caimento e é possível que um olho treinado reconheça, de longe, quando as
anáguas são de outro material que não algodão e goma.

Fotografia 26 – Terceira anágua com rendas. Fotografia 27 – Quebra-goma com nervuras e rendas.
Fonte: Marcia de Exu (2020). Fonte: Marcia de Exu (2020).

A antropóloga Heloisa Alberto Torres recolheu informações de cuidado similar em


pesquisa da indumentária da crioula baiana realizada em torno dos anos 1940 no Rio de
Janeiro e em Salvador:

80
A anágua inferior, com cerca de quatro metros de roda de morim, é lisa; às vezes
termina por um acabamento de recorte ou de bordado inglês. É mergulhada na goma
quase crua e distendida sobre uma cruzeta de paus até secar; durante o tempo em que
fica “crucificada”, é frequentemente alisada com as mãos e, depois de seca, é batida
com um pau para “amansar”. A anágua média apresenta mais enfeites é engomada e
passada a ferro tal como a superior, está sempre bordada com grande esmero.
Bordado inglês, barafunda, rendas de bilro dispunham-se nela em profusão. Nos
exemplares que medi, a roda ia a quase 3,50m e o babado era muito franzido
(TORRES, 2004, p. 440, grifos da autora).

Já à época de publicação da pesquisa de Torres, cerca de 1950, o número de anáguas


diminuíra de três a duas. As filhas de santo podem usar menos anáguas que seus orixás em
transe, especialmente as ebames. Já quando a divindade toma roupa — termo que significa
vestir o orixá para que dance ao som de seus cânticos —, Pai Mauricio mantém maior número
de anáguas para sustentação das roupas, que costumam ser de tecidos mais pesados,
especialmente as iabás.

A anágua precisa ter ponto de goma mais grosso, para as mais rústicas e mais fino
para as mais exteriores de modo a compor uma roda natural: “A goma tem que ser
progressiva, senão fica igual a um fusca empenado, fora do eixo”. A referência do babalorixá
é às anáguas tortas em que a saia parece estar amassada ou formando bicos laterais. A goma
ideal é feita a partir de polvilho doce, vela, anil, álcool e amaciante, a mesma feita desde os
anos 1960 em “Juscelino”111 , como se refere o babalorixá ao terreiro em que fora iniciado,
sua casa.

O polvilho doce pode ser substituído pelo amido de milho, mas os anos de prática
ensinaram que as saias vão amarelar em três meses, quando é ideal que permaneçam
engomadas por um ano e sejam submetidas novamente à goma em janeiro, quando o sol é
mais quente e o vento menos constante: “goma não gosta de vento”.

As saias são molhadas na goma quente — “que chegava a cozinhar a mão” — até a
altura da pala, que deve ficar de fora de modo que não machuque ou faça volume durante o
uso. A primeira saia engomada é sempre a mais rústica, a de pano de saco, que deve estar seca
para “levar a goma”. A saia é pendurada toda aberta para que não grude, similar ao modo
descrito acima por Heloisa Alberto Torres. O procedimento é repetido com todas as outras
saias de goma, sendo que as mais leves são molhadas em água com amaciante antes de

111 Presidente Juscelino é a estação de trem próxima ao terreiro Ilê Fí Orô Sakapata, no bairro de mesmo nome,
localizado no município de Mesquita, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.
81
entrarem na goma quente, dessa forma o próprio tecido não absorverá tanta goma, chegando-
se ao efeito desejado.

Janeiro é mês de goma, diziam as antigas irmãs em Juscelino. A saia engomada com
capricho, pegando sol ocasionalmente e guardada bem enrolada em um saco azul amarrado
dura um ano, a menos que o suor excessivo amarele a saia ao longo desse período. O
babalorixá lembra do rigor do falecido pai de santo: “Goma tem que ser um papel. Meu pai
levantava [as saias das filhas para verificar a goma]. Meu pai levantava mesmo”.

2.5.3. A saia

A saia de candomblé é importante na composição da persona da mulher de terreiro,


como menciono anteriormente, conforma seu corpo, suas atividades e seu ser dentro da casa
de candomblé. Todas as outras peças em qualquer terreiro podem se ausentar ou variar em
maior ou menor medida, mas nunca a saia. É comum ser tomada pelo todo, como aponta Raul
Lody (1995): “estar de saia” ou “botar saia” muitas vezes implica em estar vestida para a
atividade de terreiro; é um emblema da função.

Ouvia muito, desde minhas primeiras aproximações do candomblé, que o rodopiar


das saias em um xirê é propiciatório ao transe: são as saias que invocam, junto com os
atabaques, os orixás à terra. Raul Lody (1995) destaca a importância da saia nas performances
das divindades em transe:

Esse traje é um importante suporte para a realização das danças rituais. O auxílio da
saia para rodadas ou para certos passos que exigem volume de corpo, graça ou
mesmo impetuosidade, será garantido com o uso de repuxar saia e anáguas, levantar
sensualmente a barra da saia ou displicentemente com intenção charmosa deixar um
dos ombros à mostra para realizar um gingado miúdo e dengoso como, por exemplo,
é característico no passo básico do toque gexá. Esse toque é a fundamentação
coreográfica das danças do orixá Oxum [...]. (LODY, 1995, p. 109-110, grifo do
autor).

A saia de ração branca é elaborada com tecido em 100% algodão e tem o acabamento
final a partir do próprio tecido, no já mencionado babadinho, solução criativa em um cenário
de falta de recursos que se tornou o modelo tradicional, cuja memória dos tempos antigos é
conveniente resguardar, prestigiando a trajetória e técnica ancestral. Esse acabamento final é
feito pregueado em dobras com 3cm de largura.

82
Considerando uma mulher com altura em torno de 1,65m, o tamanho padrão da saia
branca de ração é de 4,00m de roda por 0,80m de altura — incluindo uma pala de 10cm —,
variando de acordo com a própria altura da mulher. Uma dobra de tecido com 3cm e 6cm de
largura é aplicada a todo o comprimento da saia, como contrapeso, para que a saia tenha
movimento e não levante com facilidade. As saias de ração podem incluir 3 “ordens de
nervurinha” espaçadas em 3cm.

As saias estampadas de ração seguem o mesmo tamanho, mas o acabamento é


diferenciado, geralmente elaborado em fitas de cetim. Uma fita mais espessa é pregueada ao
final enquanto fitas mais finas cercam todo o comprimento em intervalos regulares próximas
ao acabamento final da saia. A quantidade de fitas pode variar e antigamente considerava o
tempo de iniciada da mulher, como também observado por Abrantes (1999); uma saia nova
para uma iaô com três anos de iniciação teria 3 ordens de fita ao redor de seu comprimento.

Pai Mauricio já encontrou essa tradição em relativo desuso no Ilê Fí Oro Sakapata. A
descontinuação da tradição pode ser interpretada como resultado da dificuldade em se aplicar
novas fitas ao passar dos anos. Como as obrigações não costumam ser realizadas no exato
período da contagem, a aplicação de uma fita necessita do desmanche quase completo da saia.
E mesmo que as obrigações fossem realizadas no período, as fitas desbotam; colocar uma fita
nova em uma saia já em uso afetaria sua estética em um todo, incorrendo em desarmonia.

Saias de festa são mais amplas, as das iabás chegando a 5m de roda e largura de
0,90m para considerar as anáguas. Podem, inclusive, levar um “ar de goma” se o tecido assim
necessitar. Esta é elaborada especificamente para ser aplicada fria com auxílio de um
borrifador no momento em que a saia for passada a ferro. Os bordados floridos são bastante
apreciados, mais até que as estampas africanas (capulana), conforme tratei em momento
anterior. As flores maiores são adotadas para as mulheres de orixá masculino ou iabá de
traços jovens ou guerreiras, enquanto as flores menores e mais “mimosas” são as indicadas
para as filhas de orixás anciãs como Nanã e algumas qualidades de Iemanjá e Oxum. Há
também as interdições pessoais e de orixá que devem ser respeitadas, como estampas de poá
são proibitivas a Oxum e suas filhas.

A saia, tanto de ração quanto a de festa — mesmo com anáguas — deve cobrir o
tornozelo; às ebames é permitido mostrá-lo, inclusive com alguma tornozeleira para as iabás.
A canela jamais é exposta. A altura da saia é, para todas as mulheres, rigorosamente no

83
tornozelo, no “ossinho do pé”112 . Quando atinge a maioridade, a ebame pode, aí sim, encurtar
um pouco as saias, exibindo o tornozelo, realçado ainda mais por um pequeno salto do sapato
a que passa a ter direito. Pode, inclusive, diminuir sua quantidade de anáguas. Marcia de Exu
foi uma das ebames que, pela facilidade de costurar, encurtou as saias antigas ao tomar a
obrigação de sete anos.

Assim como ocorre com outras peças de roupa, às iabás que guardam maior relação
com a feminilidade a roda da saia costuma ser maior, assim como sua largura. A feminilidade,
no candomblé, sempre requer mais tecidos e aparatos. É desejável que a saia combine em
estampa com o ojá de peito, assim como o pano da costa deve combinar em listra com o pano
de cabeça. Antigamente, como é possível constatar em fotografias antigas relacionadas ao Ilê
Axé Opô Afonjá, essa combinação não era tão regular.

A saia deve ser cortada na largura e não simplesmente emendada no comprimento; 5


metros de tecido comprados, então, não correspondem a uma roda de 5 metros, a depender da
largura do tecido. Chama-se fazer a roupa atravessada, cortar o tecido atravessado, juntando
suas alturas. Em um tecido cuja largura tenha 1,40m, três alturas equivalem a uma saia de
4,20m de roda. Pai Mauricio consegue identificar facilmente uma saia com tecido atravessado
ou não. Cortar o tecido para saia no comprimento, reto, é perder todo o movimento da peça.
Existe uma diferença no corte pela largura que proporciona o “caimento perfeito”, embora
não seja possível a todos os tecidos, como bordados e estampas que ficariam de ponta-cabeça.
É importante ressaltar que há sempre alguma perda de tecido ao medir esses comprimentos,
uma vez que se tem a costura de junção e também o descarte da auréola, a parte com o nome
do fabricante.

As roupas de orixá têm consideração mais detalhada, pela natureza da divindade.


Orixás como Iemanjá, Oxum e Oyá, que movimentam bastante a saia, costumam ter saias
mais amplas, ajudando no desenvolvimento das danças e na própria performance da
divindade. A saia de Oyá, então, pode chegar a unir 4 alturas, somando aproximadamente
5,60m de roda. Passar dessa medida é embolar a roupa; não é adequado.

A saia é comumente a peça mais cara do candomblé pela quantidade de material.


Uma saia de 5 metros, por exemplo, pode levar 10 metros de fita grossa — a plissagem faz a
quantidade dobrar — no acabamento final e mais 35 metros de fita menos espessa, caso se

112 Maléolo lateral.


84
opte pelas 7 ordens de fita. Além disso, considera-se sempre o laço de peito, da mesma
estampa, que pode medir até 3m, também em acabamento fitado.

2.5.4. Pano da costa

“Xangô tem horror a mulher de calça”, Pai Mauricio lembra o ensinamento do


saudoso pai. As mulheres, ao entrarem no terreiro, devem estar de vestido ou saia. Caso se
dirijam do trabalho e estejam de calça, já sabem que o pano da costa deve estar à mão para
envolver cintura e pernas ao passarem pelo portão; não entram sem ele. Caso esqueçam,
tocam a campainha e aguardam do portão uma irmã correr e apanhar um pano para cobrir a
calça.

O termo “da costa” faz referência à procedência original de muitos produtos da costa
atlântica africana (LODY, 2015; TORRES, 2004), atualmente tratam de tipos específicos de
pano, pimenta ou sabão, ainda que esses artigos não mais venham da África (VOGEL;
MELLO; BARROS, 1993). Curioso notar que, eventualmente, é usado às costas por ocasião
de rituais como bori e axexê. Originalmente era chamado de pano de alaká ou simplesmente
alaká, em referência à técnica empregada de tecelagem em tear manual.

Não é mero elemento decorativo, mas um símbolo e relação ancestral, como afirma
Raul Lody (1977) e também Heloisa Alberto Torres (2004), marca do próprio sentido das
ações da mulher de terreiro (LODY, 1995). E embora a maioria dos tecidos realmente não
venha mais da costa africana, a relação com o continente pode se operar de outras formas:

O pano da Costa é mais do que um elemento decorativo no traje da baiana: é um


símbolo. Varia na sua padronagem, conforma-se a certos preceitos convencionais de
disposição, nos atos do culto, indica pelo colorido o santo a que é consagrada cada
crioula. Além disso, ele traduz um sentimento de fidelidade para com o passado;
prende as suas portadoras à terra de origem. Elo que a capacidade artística da crioula
modificou a ponto de torna-lo irreconhecível pelas suas irmãs da Costa, constitui,
entretanto, no campo afetivo da crioula, uma amarra emocional com a pátria
distante. A crioula guarda o sentimento profundo de que o pano é da Costa e
representa a herança transmitida através de gerações. Este sentimento, fortalece sua
significação e faz do pano da Costa um símbolo de classe. (TORRES, 2004, p. 435,
grifo da autora).

É a peça de maior significação para uma iniciada no candomblé, segundo Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993), e também afirmação do próprio Pai Mauricio. Já foi abordado
por autores como Raul Lody (1977; 1995; 2015), Heloisa Alberto Torres (2004) e pela própria

85
Mãe Stella de Oxóssi (SANTOS, Maria Stella, 1993). Exerce função sócio-religiosa, ao
oferecer proteção ou mesmo marcar atividade litúrgica, fundamental para as sobrevivências
dos rituais de matriz africana (LODY, 1995).

É tradicionalmente uma peça única e retangular de tecido — à exceção dos


tradicionais alakás de tear, cujas partes são unidas em técnica própria — com bainhas e sem
qualquer emenda ou aviamento. Seu tamanho varia de 1,80m a 2,00m por 0,80m a 0,85m,
jamais chegando a 1,00m de altura. O tecido, como de toda roupa de candomblé, conforme
indicado por Pai Mauricio, deve “se sustentar”. Mãe Stella (SANTOS, Maria Stella, 1993)
afirma que é errado e antiestético pano da costa confeccionado a partir de tecidos leves, como
a seda.

É desejado em listras ou xadrez, mas pode ser liso em cores suaves. Pai Mauricio,
preferencialmente, não gosta dos panos lisos, acredita que ferem a tradição, embora as filhas
julguem combinar melhor com as saias estampadas, conforme menciono anteriormente. A
solução encontrada é a aplicação de nervuras em intervalos de 2cm a 3cm no comprimento do
tecido, simulando listras. Torres (2004) ressalta que a combinação de cores atualmente é
criação afro-brasileira; os panos da costa africanos do século XX eram em cores muito
específicas. Embora a padronagem original — incluindo coloração — tenha quase
desaparecido, existe a continuidade de suas funções (LODY, 1995).

As listras ou quadros remetem ao modelo do pano da costa confeccionado em tear,


considerado tradicional e desejável. E embora a preferência maior seja pelo xadrez, Pai
Mauricio relata dificuldade em encontrar combinações de cores adequadas e que “não
pareçam toalhas de mesa”, por isso é maior a presença dos tecidos listrados; nunca
estampados. Mãe Stella corrobora: “Panos-da-costa estampados, de cores fortes, finos,
causariam risos e diz-que diz-que entre nossas avós...” (SANTOS, Maria Stella, 1993).

Usar o pano da costa é empreender uma linguagem visual (LODY, 2015). Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993) destaca formas diferentes de uso que indicam atividade
religiosa — sobre o peito, levemente enrolado à altura das axilas e pendendo ao corpo — ou
elegantemente dobrado pendendo ao ombro, indicando atividade civil. O arranjo do pano da
costa enrolado avoluma a região do tronco anterior de forma muito própria à da arte plástica
africana (TORRES, 2004), enquanto as listras horizontais produzem ilusão de ótica que
aumenta a largura da mulher (SOUZA, 1987), realçando seu busto.

86
Fotografia 28 – Pano da costa atado com laço. Fotografia 29 – Pano da costa ao ombro.
Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017). Fonte: Acervo Aganju Ixolá (2017).

O pano da costa com 2m de comprimento alcança com suas pontas as duas axilas e,
enrolado adequadamente, se sustenta. Nó é impensável para Pai Mauricio, sinal de mau uso e
afronta. Assim também como o pano deve envolver o corpo e cair bonito por cima da saia.
Para isso, Pai Mauricio relembra o pai e irmãs mais velhas, ensinando as filhas a projetarem o
corpo para frente no momento de colocar o pano, para que este se ajuste ao corpo como um
tecido cortado evasê e não como “uma toalha de banho”.

Como mencionado anteriormente, e constatado por Raul Lody (1977), o pano da


costa também é símbolo da possessão de orixá e indispensável para marcar inicialmente o
transe, caracterizando uma de suas primeiras providências (LODY, 1995). Envolve o dorso
das iabás, é amarrado para trás e arrematado em laço em orixás como Exu, Ogum, Xangô e
Omolu e trespassado a tiracolo em orixás como Logum Edé, Ossaim, Oxaguiã, Oxóssi e
Oxumarê. Oxalá é coberto com um pano da costa branco, que neste momento é tratado
diretamente como um alá.

O ideal é que as mulheres façam uso do pano da costa em todo o momento. Ebames e
equedes podem se abster de seu uso na lida mais comum do terreiro, em função da bata, mas
jamais participam de atividades litúrgicas sem a peça, estejam de bata ou não, a exemplo do

87
ipadê. Liberações eventuais podem acontecer no dia a dia, pelo calor. E ainda que ocorra, Pai
Mauricio garante que as filhas entendem a liberalidade como algo momentâneo e muitas nem
mesmo aderem.

Uma mulher não deve se aproximar de orixá ou de seus quartos sem pano da costa;
serve para mostrar o respeito diante do sagrado e marcar sua atitude religiosa, como já
destacou Lody (1977). Como à iaô não é dispensável o pano da costa — ao qual é literalmente
amarrada por um laço —, reafirma que a presença da iaô em um terreiro de candomblé em
nenhum momento é desassociada do trabalho religioso, enquanto a ebame, por prerrogativa de
senioridade, é possível estar “à paisana”.

2.5.5. Ojá de peito

O laço de peito 113 , ou ojá de peito, ata o pano da costa ao corpo da iaô. Quando
colorido é preferencialmente confeccionado com o mesmo tecido da saia, criando uma
estética desejável. Nas medidas de 2,80m a 3,00m por 25cm e com a ponta arredondada ou
em quadrado para mulheres de orixá feminino e de 2,60m a 2,80 por 25cm com a ponta
finalizada em gravata, triangular, para as de orixá masculino. Todos os formatos podem
conter acabamentos, os mais discretos para orixá masculino. Os laços brancos de ração
costumam ser finalizados em quadrado ou gravata somente com bainha.

A ebame, ao receber sua bata, é liberada do compromisso de usar o laço, porém este
volta ao seu corpo quando o próprio orixá for receber sacrifício. A atitude é de reverência e
reforça o entendimento de que, perante orixá, sua filha é sempre uma noviça, iaô. Como é
comum que oferendas sejam envoltas por laços, o próprio corpo da iniciada, atado por um
laço, é oferenda viva de consagração às divindades.

2.5.6. Ojá de cabeça, equeté e cabelo

Embora já abordado em momentos anteriores, acredito que a peça que cobre a cabeça
— ojá de cabeça (ojá ori) para mulheres e equeté para os homens — merece mais algumas
considerações, tamanha sua importância. Raul Lody (2015) destaca — e também pude

113 É também chamado de atakan em alguns terreiros, embora tenha ouvido essa forma no Ilê Axé Aganju Ixolá

apenas uma vez; também não encontrei referência nos dicionários consultados.
88
perceber — que alguns momentos rituais demandam a cabeça descoberta, para contato mais
direto com o sagrado e em outros é necessário se proteger de determinadas energias.

Diante de Oxalá, como mencionado, é necessário cobrir a cabeça. Já perante Xangô,


todos ficam com a cabeça descoberta, pois este orixá gosta de sentir a quentura — vida — da
cabeça dos filhos e filhas. Durante os cânticos a este orixá, no xirê, todos descobrem a cabeça,
em reverência. Ipadê e axexê também requerem a cabeça obrigatoriamente coberta, assim
como a entrada de homens no Ilê Ibó Aku. Da mesma forma, é desrespeito colocar a cabeça
no chão para orixá ou autoridade do culto com a cabeça coberta; pode se entender que a
pessoa quer evitar exposição àquela energia. Cobrir a cabeça não é obrigatório durante todo o
período de função, embora o ojá ou equeté devam estar sempre à mão.

O cabelo deve ficar totalmente coberto, assim como a nuca, e a testa descoberta,
informou Pai Mauricio, e é possível também encontrar como orientação de Mãe Stella
(SANTOS, Maria Stella, 1993). É aconselhável que o cabelo da mulher esteja preso, não
sendo problema permanecer assim durante o transe, especialmente por ser o ojá retirado. O
cabelo preso ou contido da mulher foi ritualmente observado por Edmund Leach em
diferentes contextos:

[...] uma proporção assustadoramente alta da documentação etnográfica se ajusta de


maneira bastante óbvia ao modelo que se segue. Em situações rituais: cabelo longo =
sexualidade não restringida; cabelo curto, cabeça parcialmente raspada ou cabelo
bem amarrado = sexualidade restringida; cabeça totalmente raspada = celibato”.
(LEACH, 1983, p. 152).

O período de iniciação, marcado pelos cabelos recém raspados é de claro celibato e


assim segue por três meses de resguardo. A raspagem da cabeça tem ligação direta com o
transe e é propiciatória deste, uma vez que ogãs e equedes não entram em transe e não são
raspados. O cabelo obrigatoriamente coberto durante boa parte dos rituais é o indicativo da
sexualidade restringida apontada pelo autor, assim como também é possível associar o cabelo
exposto à sexualidade não restringida diante de Xangô, orixá símbolo da virilidade masculina.
Da mesma forma, os homens, comumente com cabelos curtos e livres, têm sua sexualidade
apenas parcialmente restringida, principalmente se observarmos o quanto sua indumentária
pouco se altera em relação à vida extramuros do terreiro. A ideia de recato acompanha a
mulher, restringindo-a desde fora até o terreiro, seja ela iaô ou mesmo ialorixá.

89
O cabelo também já foi objeto de discussão, antigamente, sobre os cuidados capilares
permitidos a quem é iniciado para orixá (CRUZ, 1995). Incomuns à época de consolidação
dos candomblés, os alisantes químicos causaram escândalo e proibições inicialmente.
Atualmente não há qualquer questão sobre o assunto ou impedimento litúrgico. O uso de
“chapinhas”, escovas à base de formol ou outros produtos mais ou menos agressivos, são
populares também entre as mulheres de terreiro.

Como já abordei ao tratar de gênero, o uso frequente do ojá de cabeça pela mulher e
a omissão do equeté para os homens pode ser percebido como fruto de adaptação da realidade
feminina do candomblé à absorção de homens, especialmente na categoria de rodantes. As
prerrogativas da masculinidade hegemônica, abordada anteriormente, acompanham o homem
desde fora do terreiro até sua condição de rodante.

As mulheres iniciadas para iabá podem arrumar o ojá com as duas pontas levemente
para cima e as iniciadas para orixá masculino podem fazer o mesmo apenas com uma ponta. É
um uso tradicional do pano de cabeça, apontado também por Mãe Stella (SANTOS, Maria
Stella, 1993), que necessita de um tecido encorpado ou mesmo das pontas engomadas.

A medida ideal para o pano de cabeça de uma iabá é de 2,80m por 25cm e de 2,20m
por 25cm para a mulher iniciada para orixá masculino. Dessa forma, o primeiro é ligeiramente
mais volumoso, arredondado, e o segundo mais discreto. O acabamento nas pontas pode
seguir o aviamento da saia e deve ser discreto no caso de iniciada para orixá masculino, o
pano terminando em ponta quadrada. Pai Mauricio mencionou grandes matriarcas do
candomblé para exemplificar que o ojá de cabeça não deve ser exagerado, Mãe Stella, Mãe
Meninazinha e Mãe Beata: “É sempre muito certinho, muito justinho na cabeça”. Robson
Cruz (1995) indica que o estilo de se amarrar o pano de cabeça — a que chama turbante — ou
sua ausência distingue a procedência da casa ou da nação à qual a mulher pertence.

O equeté segue a sobriedade de toda indumentária masculina em uma altura que não
deve ultrapassar 10cm. É acusado de assimilação recente, como argumento que justifique o
uso de pano de cabeça por homens nos terreiros 114 . Pai Mauricio, porém, afirma que já
encontrou os irmãos com a referida peça quando chegou, ainda para ser iniciado, em
Juscelino, antes de 1989.

114 Consideradas peças femininas, o uso do pano da costa e do pano de cabeça por homens é constante tema de

debate nas redes sociais.


90
Homens não usam pano de cabeça em momento algum no Ilê Axé Aganju Ixolá —
como não usavam no Ilê Fí Orô Sakapata — a não ser um modelo específico durante
obrigações, para acomodar elementos rituais sobre a cabeça. É o ojá de rabo, ou ojá de ponta,
uma tira de tecido que afina nas pontas, dá duas voltas à cabeça e possui um bico a descer à
nuca.

2.5.7. Fios de contas

Os fios de contas, em definição mais simples, são fios com contas — tudo que pode
ser processado por enfiamento (LODY, 1995) — enfiadas em cordonê. Este material é
necessário e preferível, em vez do náilon, por ser de algodão e absorver os elementos a que é
submetido o fio de contas já elaborado para sua consagração, tais como água com ervas e
mesmo sangue sacrificial:

Os materiais, as quantidades, as transformações artesanais, o fazer/enfiar das contas


e a lavagem que é um ato de transformação religiosa – água, folhas, sangue,
sementes, sabão, pós, entre outros – têm atuação física sobre os materiais e,
principalmente, são agentes da mudança dos simples materiais para materiais
portadores de axé [...]. (LODY, 1995, p. 204-205).

Raul Lody (2015, p. 45) os classifica como “emblema social, religioso e estético que
marca um compromisso ético e cultural. É um objeto de uso cotidiano, público, que situa o
indivíduo na sociedade”. A partir dos fios de contas é possível identificar orixá de iniciação,
nível hierárquico, ritual de passagem ou mesmo tipo de nação (LODY, 1995). “É nosso
crachá de identificação”, relembra Pai Mauricio os ensinamentos do pai. Alguns fios, embora
materialmente possíveis, em função de cor e forma, não são esteticamente desejáveis a
depender da casa de candomblé; é comum que um terreiro tenha uma identidade e estilo
específico para o uso de fios de contas.

A cor é o grande sinal diacrítico do fio de contas — ou, simplesmente, fio — a partir
da qual é possível indicar a divindade a que pertence o indivíduo (LODY, 1995) e em alguns
casos diferenciar qualidades de orixá. O caso mais comum é a diferença entre Ogum,
simbolizado pela cor azul escura e Ogum Já cujos fios de contas são verdes. Algumas
qualidades de orixá são tratadas de forma mais reservada e seus códigos cromáticos não
facilmente reconhecíveis ou mesmo adotados. Em todo caso, é sempre assumida uma cor

91
genérica principal que é primeiramente relacionada ao orixá, como o azul para Ogum.
Qualquer outra diferenciação é atribuída em caráter excepcional.

Fotografia 30 – Delogun de Ogum. Fotografia 31 – Delogun de Ogum Já e rosário.


Fonte: Autor (2018). Fonte: Autor (2018).

Conhecer o código cromático e estético bem como contagens apropriadas quando há


intercalação de outros materiais é imprescindível. Os números três e sete, por exemplo,
associados a Ogum, são comumente usados como medida para intercalar materiais nos fios
desse orixá; não é regra, mas um refinamento estético e litúrgico, mostrando o conhecimento
do iniciado.

Ao se passarem os anos, mediante obrigações que contabilizam a idade hierárquica e


introduzem o adepto em seus novos níveis, os fios de contas podem ser mais ricamente
trabalhados e receber novos materiais, como firmas, dentes de animais encastoados, pingentes
que remetem aos orixás — um fio de contas de Xangô certamente terá um oxê 115 , machado,
pendendo —, etc. Pai Mauricio lembra os esporões de galo encastoados com elementos rituais
em seu interior: “meu pai tinha cada um lindo, lindo”. O coral, por seu preço elevado, muitas
vezes é substituído por materiais de cor e textura semelhantes (LODY, 1995).

O contato do adepto com os fios de contas se dá inicialmente através do ritual de


lavagem de contas 116 , que Pai Mauricio afirma estar praticamente extinto e que procura
manter. É um primeiro compromisso moral que o adepto, na condição de abiã e ingressante,
assume com o terreiro (LODY, 1995). Recebe contas emblemáticas como de seu orixá, de
Xangô, patrono do terreiro, e de Oxalá, o grande orixá.

115Do iorubá, oṣé. Machado.


116Roger Bastide aborda a lavagem de contas em texto presente em Estudos Afro-Brasileiros, publicado em
1973.
92
O rito de passagem caracterizado na iniciação tem um fio de contas de formato
específico e particular, o quelê. Este é símbolo do elo entre a noviça e sua divindade,
simbolizando sujeição absoluta a esta e também a quem a está iniciando. É um fio de contas
rente ao pescoço, amarrado durante o ritual iniciático e retirado após o período indicado. No
Ilê Axé Aganju Ixolá é confeccionado em 16 fios — a que os adeptos se referem como pernas
— intercalados por firmas, corais ou similares, formando gomos. Excetuam-se os orixás
Xangô e Omolu, cujos quelês são compostos por doze e quatorze pernas, respectivamente. O
quelê, conforme observado por Rabelo (2014), compõe uma estética que contribui para
refinamento da sensibilidade ética da iaô “para testar seus limites e abrir novas possibilidades
de engajamento consigo e com outros (orixás inclusive)” (RABELO, 2014, p. 112).

Fotografia 32 – Quelês no Òpó Xangô. Fotografia 33 – Iaô de Iemanjá de quelê.


Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2017). Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2017).

Ao final do período determinado, o quelê passa a compor o Opô Xangô, mastro em


que são reunidos todos os quelês das pessoas iniciadas no Ilê Axé Aganju Ixolá. Pai Mauricio
o categoriza como sua “lavra de ata”, registro do compromisso assumido com Oxóssi ao
inaugurar o terreiro, sob determinação deste orixá.

93
Uma peça especial, que não é exatamente categorizada como fio de contas, mas
constitui emblema maior da iniciação é o rosário, comumente conhecido como mocã, embora
eu não tenha ouvido a ocorrência deste termo uma vez sequer, assim como também não
localizei grafia aproximada em iorubá. É rosário a que se referem em todo o momento no Ilê
Axé Aganju Ixolá. Trata-se de um trançado de palha da costa arrematado nas pontas superior
e inferior com uma espécie de vassourinha do mesmo material. Acompanha a iaô desde a
iniciação até a obrigação de sete anos, na qual é desobrigada de seu uso. Ainda assim, a peça
retorna ao pescoço toda vez que a ebame exercer a função de ojubonã 117 de uma iaô ou esteja
envolvida diretamente na iniciação, reforçando sua condição de iniciada e de humildade
diante do nascimento. Apesar de todo luxo que os fios de contas podem carregar, não escapa
aos iniciados o fato de que sua conta mais importante é feita de palha.

Também adquiridos na iniciação estão os deloguns 118 , fios de contas de dezesseis


pernas reunidas sob um mesmo fechamento elaborado com um grupo de firmas, corais ou
outros materiais. A numeração segue a disposição já mencionada, variando para Xangô e
Omolu. É comum que a iaô receba deloguns de seu orixá, do patrono do terreiro, de Oxalá e,
possivelmente, de seu segundo orixá, além de fios de contas individuais — uma perna só —
das demais divindades. Essa quantidade de deloguns e demais fios de contas podem somar
cerca de 3kg de fios no pescoço da iaô, condicionando sua postura contrita e direcionando o
olhar ao chão: “O mundo percebido da iaô é orientado para o chão: pisa descalço, olha para
baixo, anda curvado e é sentado no chão ou acocorada que desempenha muitas das suas
obrigações no terreiro. (RABELO, 2014, p. 102)”.

Durante o período de função é comum que as iaôs usem somente o delogum de seu
orixá, um fio comum de Xangô, de Oxalá e algum outro de sua estima ou afinidade. Essa
liberalidade garante maior mobilidade durante as atividades e também resguarda os fios de
acidentes; um delogum dificilmente chega ao final dos sete primeiros anos de vida religiosa
com todas as pernas com que começou. Na festividade pública, se usam todos os deloguns,
reforçando a condição hierárquica da iaô diante dos adeptos, momento em que toda a etiqueta
do candomblé é reforçada em sua performance voltada ao público.

117 Do iorubá, ojùgbọ̀ nà. É a mãe pequena da iaô, encarregada de seus cuidados — litúrgicos ou não — durante o
período iniciático e de sua orientação e encaminhamento na vida religiosa após iniciação. Também grafado como
ojùbonà.
118 Provável corruptela para o número dezesseis (20 - 4), que pode se apresentar nas formas ẹrìndínlógún,
̀
mẹ́rìndínlógún ou ẹ́ẹ́rìndínlógún.
94
A obrigação de sete anos substitui os deloguns pesados por fios de contas mais
trabalhados e de diferentes formatos, alguns até mais curtos. Podem ser fios únicos ou
gomados — com gomos — em número de pernas variados. O acesso a materiais também é
ampliado a partir do momento em que se torna ebame; não existe mais restrição hierárquica
para uso de corais ou outras pedrarias e materiais.

Algumas condições, no entanto, devem ser observadas. Uma pessoa iniciada para
Oxalá não deve trazer o pescoço com muitas cores, especialmente vermelho e similares; o
branco deve sobressair. Pai Mauricio mostrou o delogum de uma iaô de Oxalá, confeccionado
com miçangas maiores para que ficasse ainda mais grosso e então sobrepujasse as outras
cores. O uso do alabastro na composição dos fios de conta, por exemplo, é restrito aos filhos
de Oxalá, assim como o laguidiba aos filhos de Omolu ou aos presenteados por este orixá.

Fios de contas são usados sobre a roupa, dispostos, em princípio, organizadamente de


modo que o orixá de iniciação se sobressaia. O fechamento é orientado ao pescoço, à nuca,
mas é comum deslizar sobre o corpo durante a execução das inúmeras tarefas do terreiro,
principalmente pelo peso das firmas e materiais usados. É usado como colar pelas iabás e
desta forma ou a tiracolo para as iniciadas de orixá masculino. Algumas ebames usam os fios
entre o camisu e a bata, deixando visível somente a extremidade superior circundante ao
pescoço e colo e também uma insinuação sob o bordado da bata. Quando externo, pode se
colocar por cima do pano da costa ou, mais comumente, com este sobreposto, forma
obrigatória às iaôs.

É considerado deselegante usar fios de contas amplamente mais elaborados do que o


do babalorixá, especialmente os homens; as mulheres passam ao largo por toda complexidade
própria de sua indumentária. Como Pai Mauricio tem preferência pelos fios simples, essa
característica se reflete no pescoço dos filhos que não costumam portar fios grossos. Da
mesma forma, ao visitar outros terreiros, é deselegante usar fios de contas grossos ou em
gomos. “A vez é deles”, se refere Pai Mauricio aos membros do terreiro que se visita.

O fio de contas é um dos objetos de maior troca e circulação dentro de um terreiro,


alvo de disputas. É considerada honraria receber um fio de contas, especialmente se for de
uma ebame e se o fio for antigo, sinal de apreço e deferência. É comum também que o próprio
orixá, em transe, presenteie com fios de contas, o que aumenta o valor afetivo e espiritual do
presente.

95
Após a morte da filha de santo seus fios de contas podem seguir no ritual fúnebre,
despachados, como orientado também em relação às outras peças de roupa, ou então são
deixados para irmãs próximas ou mesmo filhas pequenas, conforme também observado por
Raul Lody (1995).

2.5.8. Joias

Consideradas também parte do vestuário, em seu refinamento e filigranas, as joias


são exibidas em abundância pelas iabás duas vezes — como nomeia Mãe Stella de Oxóssi
(SANTOS, Maria Stella, 1993) —, mulheres iniciadas para orixá feminino. Idés 119 , braceletes
e brincos em búzios ou pitangas, as chamadas joias de crioula, adornam em profusão o corpo
das mais velhas. Diferentes cores conforme o orixá de iniciação. Mesmo nos momentos de
função, é possível ver as mulheres circulando com brincos mais modestos. No período de
recolhimento iniciático, os idés possuem a função de afastar espíritos adversos aos rituais com
seu barulho: “pein, pein, pein, pein”. Também o xaorô 120 amarrado ao tornozelo.

Às iniciadas para orixás masculinos como Ogum e Oxóssi, é vedada a utilização de


brincos, mesmo durante os períodos de função. Alguns orixás até admitem que suas filhas
usem brincos discretos, como é o caso de Exu, Oxumarê, Oxalá e Logum Edé (SANTOS,
Maria Stella, 1993), porém a preferência particular do orixá deve ser preservada. Argolas e
búzios são os mais comuns para os orixás masculinos. As iabás possuem maior gama de
variação. Vogel, Mello e Barros observaram essa questão:

“[...] os próprios santos se distinguem e identificam por meio de suas preferências


em matéria de consumo; pelas peculiaridades do gosto de cada um deles. Uma
divindade privilegia certas cores e texturas, nas suas vestimentas; [...] certos metais,
nos seus adereços e emblemas; certas pedrarias, nas suas joias. (VOGEL; MELLO;
BARROS, 1993, p. 8, grifo dos autores).

Além de um sentido amplo de preferências das divindades, Pai Mauricio conta sobre
uma parente de santo, Angela de Oyá, a quem já me referi, cuja divindade não gostava de
brincos e sempre os arrancava de forma bruta, machucando as orelhas, se por ocasião do
transe sua filha estivesse com as peças. Não existe nenhum impeditivo na utilização de
brincos e joias por Oyá, porém esta é uma característica muito particular do orixá em transe

119 Do iorubá, idẹ. Pulseira.


120 Do iorubá, ṣaworo. Pequeno guizo amarrado a uma fina trança de palha da costa.
96
da pessoa em questão. Marcia de Exu, ebame do Ilê Axé Aganju Ixolá, teve problema
semelhante com brincos. Ainda que Exu aceite brincos, o seu orixá, particularmente, relutava
em permitir, até que Marcia, em negociação, conseguiu usar brincos de crioula discretos.

As joias de crioula “nascem da milenar joalheria portuguesa de base greco-romana”


(LODY, 2015, p. 38), associam-se a elementos de matriz africana em novas interpretações;
são pulseiras de aro, idés, pulseiras de placas, brincos de barrilzinho, pitanga, cabochão,
encastoados com contas africanas, búzios, firmas, peças de murano 121 e mesmo filigranas. No
passado prezava-se o excesso, atualmente são usadas com parcimônia e observados alguns
critérios.

Os idés são confeccionados em materiais e cores diferentes características a cada


orixá a depender também das diferentes qualidades. Os usos mais comuns são ferro liso para
Omolu, dourado para Oxumarê e Oxum, dourado e cobre para Xangô e Oyá — ou todo cobre
— e metal branco para Oxalá e Iemanjá.

Fotografia 34 – Pitanga encastoada em rosa.


Fonte: Autor (2018).

121 Contas de vidro e louça, referência ao arquipélago de Murano, na Itália, famoso por objetos decorativos de

vidro.
97
O xabá 122 é uma pulseira de formato retorcido característica do orixá Ogum, quando
em ferro; em número de sete em cada braço. Usado também por Exu. Pai Mauricio mostrou
os xabás de sua iaô, Karine, enegrecidos a partir de técnica especial. A pulseira é embolada no
jornal e queimada, na brasa. Depois é submersa na água de folha do orixá e volta a queimar,
para então passar verniz sem brilho. Dessa forma “fica um ferro preto, preto, preto”, sem
manchar o pulso ou mesmo a roupa. Pude ver o xabá em suas duas formas, antes e após a
técnica e parecem feitos a partir de materiais diferentes. Pai Mauricio reforça a importância na
preservação dos símbolos dos orixás, que não sejam usados à revelia: “Aquilo não é
decoração. Aquilo é uma insígnia só dele. Só dele. Só de Ogum. A gente bota um xabá de
ferro assim se for uma mulher de Apará, uma mulher de Ogunté”.

2.5.9. Perfume e maquiagens

O perfume está para o olfato como o adorno está para a vista (SIMMEL, 1939). Não
há grandes regras ou interdições para o uso de perfumes no Ilê Axé Aganju Ixolá, embora não
seja adequado que pessoas consagradas a divindades masculinas usem perfumes classificados
como muito doces, pois as noções de gênero dentro de um terreiro seguem a norma social
mais ampla, as noções circulantes de gênero, conforme trata Almeida (1996). Mãe Stella
menciona essa tensão como “adereços de interpretações conflitantes, no consenso médio”
(SANTOS, Maria Stella, 1993, p. 38).

Há também, como sempre, o respeito à característica particular de cada orixá. Pai


Mauricio nunca teve qualquer problema com perfume — Xangô é um orixá masculino muito
vaidoso —, mas relata experiência do irmão Ogum Jobi como exemplo a orientar seus filhos:

Eu sempre usei o perfume sem o menor problema. Meu irmão sempre teve problema
com isso, Ogun Jobi. Ogun Jobi era um cara muito vaidoso. Ele adorava perfume.
Chegou na festa de Ogum, Ogum pediu “não coloca”. Ogum não gostava. [...] “Não
coloca, não coloca”. Jobi foi, não resistiu, colocou de leve. Ogum quando chegou,
antes de se vestir, se banhou todo de dendê e aí botou a roupa. Jobi era vaidosíssimo.
E saiu com a roupa toda manchada de dendê. (Mauricio de Aganju) 123 .

A maquiagem é impensável para qualquer mulher iniciada para orixá masculino;


inadmissível. Assim como esmalte em cor que se faça notar. Às mulheres de iabá é permitido

122 Do iorubá, ṣábá.


123 Diálogo realizado em 25 de janeiro de 2017.
98
apenas corretivo ou alguma maquiagem cor da pele suave; jamais delineadores, batons e
sombras. Por ocasião da primeira festa de ipeté 124 realizada no Ilê Axé Aganju Ixolá, Iyá Ely,
mãe biológica do babalorixá, e sua iaô de Oxum estavam ansiosas e animadas com a
celebração. Ambas de Oxum, caracterizada sobretudo pela vaidade e feminilidade, se
arrumaram para o ipeté e se maquiaram. Pai Mauricio relata o espanto com as maquiagens
produzidas: “parecia que iam para um casamento”. Mesmo sendo mãe biológica, o babalorixá
não abriu mão: as duas removeram a maquiagem e tiveram permissão para o uso apenas de
corretivo.

2.5.10. Calçados

Samuel Abrantes (1999), a partir de Roger Bastide, afirma que retirar os sapatos é
“referência à condição primordial do africano, participante da vida tribal de seus ancestrais,
em contato direto com as forças da terra, que além de ser representação de uma deusa,
estabelece uma relação de polaridade com o céu, o infinito, é o Aye, o Orum (Terra e Céu)”
(ABRANTES, 1999, p. 93). Estar descalço é condição para muitos rituais e também para
entrar nas casas de orixá, diante de seus assentamentos. Além do contato com a terra, denota
também reverência e submissão à divindade.

Fotografia 35 - Mule.
Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2017).

124 Do iorubá, ìpẹ̀tẹ̀. Festejo em que se celebra o orixá Oxum, servindo sua comida votiva de mesmo nome.
99
No dia a dia todos usam sandálias de borracha, chinelos, e para a festa sandálias
elegantes de couro. As sandálias das ebames, de salto não muito alto, são herança mourisca
(LODY, 2015), changrins e mules, chinelos de ponta de couro. Embora pareçam
desconfortáveis para dançar, estavam nos pés de quase todas as ebames, à exceção das mais
idosas. Marcia de Exu afirmou não haver qualquer desconforto ou atrapalho do salto para as
danças do xirê. Não abrir mão das insígnias de maioridade é também ajustamento por que
passam as ebames; ainda que desconfortáveis, os portam com orgulho.

100
3. CASA, FAMÍLIA E TRADIÇÃO

“Meu luto pela perda do meu pai é irreparável.


Ele me fez adoxú, consagrou Xangô em minha cabeça,
me apresentou uma religião com tradição e liturgias robustas, ricas
e me ensinou a amar e respeitar minhas ancestrais”.
(Mauricio de Aganju).

Olga Cacciatore, no Dicionário de cultos afro-brasileiros, define terreiro como


conjunto de terrenos em que se processam as cerimônias religiosas do candomblé.
Fisicamente, Robson Cruz (1995) caracteriza a casa de candomblé como obra nunca acabada,
entidade viva que se expande conforme cresce seu axé, desconsiderando até mesmo a morte.
Raul Lody amplia o entendimento como o espaço em que são reativados os laços de
parentesco de santo e mantidos os elos com os orixás através de

suas liturgias, suas festas, comidas, danças, música vocal, música instrumental,
indumentárias, vocabulários, posturas hierárquicas, sistemas de poder, processos
adivinhatórios, medicina, ludicidade; enfim, é local onde a memória afro-brasileira é
aquecida através dos rituais, que podem ser diários e cíclicos. (LODY, 1995, p. 44).

Funciona como polo produtor e mantenedor de memória e sabedoria ancestral


(LODY, 1995). O termo terreiro comumente se refere ao espaço físico, assim como templo,
que não é usado pelos adeptos 125 . Já o termo egbé 126 se refere à sociedade formada pelos
membros de um determinado terreiro, enquanto organismo de relações.

Existem, no contexto do candomblé, diversas aplicações do termo “casa” ou “ilê”,


porém sempre se refere a um lugar de memória, origens e tradição (BARROS, 2010). Vogel,
Mello e Barros (1993) entendem “casa” como uma categoria emblemática do campo religioso
afro-brasileiro, aplicada no mesmo sentido de casas nobres ou reais. É a sociedade de corte a
que se refere Norbert Elias (2001), cujo entendimento os autores desdobram para o

125 Existe também um constante emprego do termo “comunidade-terreiro” em uma tentativa de reivindicar
reconhecimento, direitos e recursos.
126 Do iorubá, ẹgbẹ. Termo traduzido como fraternidade, sociedade ou companhia.
́
101
candomblé, constatando que todos os indivíduos ocupam posições diferenciadas nesse sistema
hierárquico, onde ninguém é igual a ninguém, destacando as características desse processo
permanente de classificação social: “o protocolo com a sua detalhada ritualização das
precedências e delicadezas, a competição pelos títulos honoríficos e pelo prestígio iniciático;
as sutis intrigas decorrentes desse jogo e, finalmente, o dispêndio ostentatório, o luxo e o
brilho” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 84). A etiqueta do candomblé é também
ferramenta de controle, regulagem e dominação (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).

Um exemplo pertinente da hierarquização é a classificação ritual dos neófitos já por


ocasião da iniciação. Chama-se barco o conjunto de pessoas iniciadas em um mesmo período.
Quando são recolhidos para fazer o santo, são definidos hierarquicamente a partir de variados
critérios e assumem títulos que as acompanharão durante toda a vida religiosa, formando uma
sequência do primeiro iniciado em diante: dofono, dofonitin, gamo, gamotin, fomo, fomotin,
vito, vitotin, domo, domotin (BENISTE, 2011). Embora o Ilê Axé Aganju Ixolá não adote
essa terminologia distintiva, a mesma é comum em muitos terreiros. No terreiro pesquisado,
durante o período de recolhimento, os indivíduos são classificados como iaô de Xangô, iaô de
Ogum, etc.

Em outro sentido que me interessa para este trabalho, o termo “casa” é usado pelos
membros do candomblé para se referir especificamente a um terreiro como unidade
doméstica; é a casa como ambiente de um tipo peculiar de família. A casa de Pai Mauricio,
por exemplo, se refere ao terreiro de candomblé chefiado pelo babalorixá Mauricio Moraes,
Ilê Axé Aganju Ixolá. Embora a maioria dos terreiros tenha um nome específico, é comum
que seja tratado dessa forma: “ela é da casa de Pai Mauricio (Ilê Axé Aganju Ixolá); vou à
casa de Mãe Beata de Iemanjá (Ilê Axé Omiojuaro)”.

Embora Vogel, Mello e Barros (1993) oponham a casa — no sentido das sociedades
de corte e sua face pública — ao termo família — caracterizada pela vida privada, convívio
restrito e íntimo de um grupo doméstico —, considero aceitável a ocorrência dos dois termos,
se não simultaneamente, em momentos bem marcados em um terreiro de candomblé.

O xirê, caracterizado por cânticos, dança ao som de atabaques, roupas vistosas e


ampla refeição, é a face pública mencionada pelos autores. É o dia da festa. Porém, como
tratei anteriormente, para um único dia de festa pública, são necessários dias consecutivos de
intensa atividade privada: as funções de candomblé ocorrem a portas fechadas e não admitem
visitas com facilidade. E é durante esses dias que o candomblé efetivamente acontece, quando
102
seus membros partilham banheiro, esteira, refeição e intimidade. Não é incomum que os
membros, durante o período de funções, se “mudem” para o terreiro: levam malas de viagem
e saem do terreiro para o trabalho e retornam diariamente, enquanto durarem os rituais.

Caracterizar o terreiro enquanto unidade doméstica não significa ignorar a face


pública de sua existência, mas admitir que esta não é a única à qual se restringe. Ambas
aplicações — casa no sentido da sociedade de corte e âmbito da família — são estruturantes
das relações que os adeptos desenvolvem entre si e também com seus predecessores, estes no
sentido de Geertz (2017) 127 . Como categoria emblemática, a “casa” ocupa uma posição dentro
do campo de legitimidade dos terreiros.

Figura 3 – Diagrama de filiação das casas, a partir do Ilê Axé Opô Afonjá (RJ).
Fonte: Autor (2020).

A família de santo, conforme Vivaldo da Costa Lima, é “um equivalente


significativo dos sistemas familiares tradicionais” (LIMA, 2003, p. 24), embora Vogel, Mello
e Barros (1993) ampliem a abrangência do termo, associando-o às “genealogias e
ramificações dos grupos de nobreza” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993, p. 84). Em atenção
às relações desenvolvidas no Ilê Axé Aganju Ixolá, destaco a ocorrência dos dois significados.

127Os predecessores, ancestrais, influenciam efetivamente a vida de seus descendentes, embora a temporalidade
da análise de Geertz (2017) não se aplique ao candomblé, em que os ancestrais se fazem, sim, presentes, de
acordo com a crença dos adeptos.
103
Em uma escala abrangente, considerando os vários ramos de linhagem a partir de Mãe Aninha
de Xangô; é comum os adeptos entenderem a descendência das casas matrizes como
linhagens e se reconhecerem como parentes, conforme indicado no diagrama de filiação das
casas (figura 3). E também em uma escala menor referente aos laços desenvolvidos dentro do
próprio terreiro.

A organização social de um terreiro e os termos que evoca se fazem necessários para


compreensão da força geradora de normas comportamentais e ação disciplinadora, a exemplo
do que propõe Julio Braga (1992) no estudo das comunidades de culto egum. A estrutura
hierárquica do candomblé é a base de sua organização social, operando em analogia à família
como modelo de representação. Analisar a organização social de um grupo é identificar os
quadros que dão institucionalidade à vida social, sendo imprescindíveis à densidade da
compreensão das relações sociais. Conforme proposto por Geertz (2017, p. 150), “é preciso
compreender tanto a organização da atividade social, suas formas institucionais e os sistemas
de ideias que as animam, como a natureza das relações existentes entre elas”.

Pai Mauricio é o chefe do terreiro, sendo auxiliado por Pai Julio de Omolu, que
ocupa o cargo de balé Xangô e é pai de santo de alguns dos membros. Algumas antigas irmãs
de santo procuraram os dois sacerdotes para realizar suas obrigações pendentes, se tornando
então irmãs-filhas e estabelecendo também uma relação de tias-irmãs com seus novos irmãos
de santo 128 . As equedes são chamadas de mães, os ogãs são pais. Ebames também são mães e
pais, além da frequente classificação a partir dos laços míticos entre os orixás. Mãe Stella de
Oxóssi (SANTOS, Maria Stella, 2010) chama de “relação espiritual fina” o tratamento entre
os membros do terreiro em função da relação mítica entre seus orixás, também observada por
Vogel, Mello e Barros (1993). Essa relação faz com que uma filha de Nanã — uma divindade
anciã —, por exemplo, seja chamada por todos de minha avó, independentemente de sua
idade biológica.

Tomando a “família de santo” como unidade social de análise, é possível perceber o


quanto as narrativas dos membros do terreiro reforçam sua estrutura e conformam o membro
em um sistema de classificações e relações bastante conhecido — termos classificatórios de
parentesco —, ainda que o adepto nunca tenha pisado em uma casa de santo. Destaco a
caracterização da família de santo conforme elaborada por Vivaldo da Costa Lima:

128 O falecimento do babalorixá Joaquim Motta de Omolu, pai de santo de Mauricio e também de Julio, em 1998,

deixou muitos de seus filhos e filhas com o ciclo de obrigações incompleto.


104
Os laços familiares criados no candomblé através da iniciação no santo não são
apenas uma série de compromissos aceitos dentro de uma regra mais ou menos
estrita, como nas ordens monásticas e fraternidades laicas, iniciáticas ou não; são
laços muito mais amplos no plano das obrigações recíprocas e muito mais densos no
âmbito psicológico das emoções e do sentimento. São laços efetivamente familiares:
de obediência e disciplina; de proteção e assistência; de gratificação e sanções; de
tensões e atritos — tudo isso existe numa família e tudo isso existe no candomblé. A
simples analogia desses aspectos situacionais não bastará, é certo, para caracterizar a
instituição, mas ela encerra, também toda a expressiva terminologia do parentesco,
impondo com a expressão verbal dos termos, a expectativa correspondente do
comportamento (LIMA, 2003, p. 161).

Vivaldo da Costa Lima (2003) chama, inclusive, atenção para o imbricamento do


termo família e correlatos termos de parentesco na atividade e práticas de uma casa de
candomblé, examinando

a expressão “família de santo” como uma hipótese de explanação, utilizando a


referência popular corrente nesses grupos com o reconhecido valor semântico do
termo “família”, enfatizando, na estrutura desses sistemas, os aspectos
classificatórios do “parentesco de santo”, os papéis sociais do “pai” ou da “mãe” dos
terreiros; seu relacionamento com seus “filhos” e “filhas” e a relação desses filhos
entre si. A solidariedade familiar do grupo e as expectativas dos papéis; a autoridade
e a disciplina exercidas pelos pais e mães sobre os filhos; as interdições prescritivas
– o tabu do incesto especialmente – enfim, todos os aspectos estruturais e funcionais
do grupo que o fazem enquadrar-se, de certa maneira, na categoria do que, de um
ponto de vista antropológico, bem se pode chamar de família (LIMA, 2003, p. 12,
grifos do autor).

Conforme destacado, a gramática classificatória de termos relativos à família não


passa da lida doméstica à lida do terreiro isenta de seus pesos e significados da vida cotidiana;
há um deslizamento de contexto e expectativa de correspondência de significado, como
afirmou Vivaldo da Costa Lima. Mauricio não é apenas um chefe de terreiro: ele é pai. Esse
termo tem sua carga de significados no imaginário das pessoas que ingressam na vida do
candomblé. Da mesma forma, a própria estrutura do candomblé reforça essa gramática a partir
de sua rotina bastante peculiar: os iniciados passam dias dormindo sob o mesmo teto, encaram
filas de banheiro para banho ou escovar os dentes, almoçam juntos e dividem toda uma rotina
doméstica nos períodos de função. Existem também os conflitos e tensões inerentes a esses
ambientes, como ciúmes por predileções dos pais e mães, disputa de atenção, fofocas, muitas
vezes até emulando as disputas entre seus orixás de cabeça.

Para Gilberto Freyre (2006), a família é o grande fator colonizador do Brasil, se


constituindo em uma força social que se desdobra em política, responsável pela configuração
de um ethos nacional (LIMA, 2003). As terminologias de parentesco empregadas no âmbito

105
do candomblé, em grande parte, moldam as relações que ali se desenvolvem, inclusive a
relação com o próprio espaço, dando-lhe e reforçando o sentido de casa. Quando distinguem a
casa de família da casa de candomblé, Vogel, Mello e Barros (1993) consideram a vitalidade
da face pública do terreiro. Gostaria de chamar a atenção, para efeitos da reflexão que
proponho, à dinâmica do terreiro quando este tem suas portas fechadas ao grande público,
durante os períodos de função. É durante esses períodos que os laços de afeto se consolidam e
intensificam. Para um único dia de festa pública, anteriormente, podem ter ocorrido vinte dias
de função e convívio contínuo em um contexto mais privado.

Fotografia 36 – Família de santo em função.


Fonte: Acervo Ilê Axé Aganju Ixolá (2020).

Em outubro de 2018, durante o período de função no Ilê Axé Aganju Ixolá, ocorreu
um princípio de incêndio no corredor sem saída em que são lavadas as pilhas de louças
utilizadas e limpas praticamente de maneira ininterrupta em um terreiro. A mangueira de um
botijão de gás se desprendeu, formando uma língua de fogo fora de controle. Duas filhas de
santo e um filho de santo estavam no corredor sem conseguir sair e os gritos de ajuda
106
chamavam pelo pai, embora outras pessoas estivessem mais próximas. Da mesma forma, Pai
Mauricio saltou pelo fogo para auxiliar as filhas e o filho, exercendo o papel social de pai,
assumindo o que considerava sua responsabilidade enquanto tal. A estrutura de um terreiro
enfatiza e reforça os aspectos classificatórios de parentesco e os papéis sociais de pai, mãe,
filhos e filhas, bem como suas expectativas.

São essas terminologias de parentesco que definem o status de um indivíduo e os


termos de sua relação com outros (GEERTZ, 2017) dentro de um terreiro: chamar Mauricio
de pai é se colocar na posição de filho e, nesse sentido, construir essa relação afetiva a partir
do que se entende de maneira mais ampla como os papéis de pai e de filho. Por ocasião do
aniversário de uma filha de santo, Bernardete de Oyá, Pai Mauricio a parabenizou
publicamente no Facebook: “Detinha, minha filha amada. Que Xangô lhe cubra com o que
melhor houver nessa vida! Sou mais feliz por ter você na minha vida. Bjs do pai que te
ama”129 .

Da mesma forma, o recém-nascido filho biológico de Augusto de Oxaguiã, filho


espiritual de Pai Mauricio, foi chamado por este de neto, em uma clara extrapolação das
relações puramente rituais. O próprio Augusto é filho biológico de uma irmã de santo de Pai
Mauricio: “o terreiro não apenas recria uma estrutura familiar particular — que pode se
mostrar um meio poderoso para inserir novos membros —, como incorpora, também,
familiares de adeptos, compondo-se de redes cruzadas de parentesco de sangue e afinidade”
(RABELO, 2014, p. 63). Em outra ocasião, o babalorixá, contando sua trajetória, não
conseguiu evitar as lágrimas — em meio a um movimentado shopping público — ao lembrar
de filhos de santo que se desligaram de sua casa de candomblé.

O estudo antropológico de um grupo não pode ocorrer desvinculado de um conjunto


de representações: uma representação não tem sentido em si mesma; é sinalizadora de visões
de mundo e institucionalidades que se concretizam no termo empregado. Remi Lenoir (1990)
aponta o peso das categorias na construção da realidade social e também na elaboração de
reflexões acerca da mesma. É a partir dessa perspectiva que os termos classificatórios
relacionados à família me chamaram a atenção.

O investimento que os atores sociais realizam em um determinado conhecimento que


é aceito e reconhecido socialmente é o que os sociólogos Peter L. Berger e Thomas
Luckmann chamam de legitimidade. Para esses autores, “a função da legitimação consiste em

129 Publicação no Facebook em 29 de março de 2019.


107
tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível as objetivações de ‘primeira
ordem’, que foram institucionalizadas” (BERGER; LUCKMANN, 2010, p. 122).

É a legitimação que explica a ordem institucional e normatiza as ideias na prática


social; não diz ao indivíduo somente por que deve realizar determinada ação, mas diz por que
as coisas são o que são (BERGER; LUCKMANN, 2010). Utilizar os termos de parentesco é
investir nos papéis sociais de pai e de filho; é criar e recriar o terreiro de candomblé a cada
função, reforçando o significado dos próprios papéis. A família de santo, não diferente do
sistema familiar tradicional, é o princípio de construção da realidade coletiva da casa de
candomblé.

A mencionada emoção de Pai Mauricio, ao falar de filhos afastados, é emblemática


do quanto as relações construídas intramuros extrapolam os limites geográficos do terreiro. A
paternidade espiritual não é exercida apenas no âmbito do candomblé, assim como também
não é apenas espiritual. Em algumas ocasiões escutei do babalorixá que “um pai conhece mil
filhos, mil filhos só conhecem um pai”, sobre a experiência de ser pai de santo e das
implicações do investimento nesse papel.

Além de “pai”, “filha” e “filho”, os membros do terreiro se referem a Tio Miguel, Tia
Maria, Tia Helena, Tia Dani e alguns outros. Foi possível ouvir também expressões como
minha avó Aninha, meu avô Joaquim, durante os dias que passei no terreiro de Xangô; ambos
falecidos, porém, presentes no cotidiano através de ensinamentos e mesmo evocações
narrativas e rituais 130 . A continuidade entre o terreiro de Pai Joaquim e o de Pai Mauricio e
mesmo desses dois com o Ilê Axé Opô Afonjá estabelece uma rota de memória que se realiza
e atualiza a cada invocação.

Se liturgicamente os ancestrais são invocados para presenciar e validar cada ritual


realizado, socialmente, também se fazem presentes a partir das menções constantes de seus
descendentes. “Meu avô Joaquim dizia...”, foi uma frase que ouvi de alguns dos membros do
terreiro que sequer conheceram pessoalmente o babalorixá Joaquim Motta. A linhagem é
reavivada a cada ritual, a cada instante. Essa aproximação, longe de ser somente retórica, é
litúrgica e também emocional. Não se trata de um antigo dirigente religioso já falecido; por
ser pai de Mauricio, ele é “avô”.

130 Ao início de qualquer cerimônia ritual, um pouco de água é derramada três vezes no chão, reforçando a
ligação da atividade ritual do terreiro com a terra, conforme já observado por Juana Elbein dos Santos (2008).
108
Referir-se a Mãe Aninha — e também Mãe Agripina — como “minha avó” produz,
além de legitimidade, proximidade e familiaridade com essas senhoras e o legado que
deixaram. E as roupas, a permanência e manutenção de modelos usados desde o final do
século XIX, bem como técnicas, reforçam essa proximidade, criando uma nostalgia. O
candomblé realizado no Ilê Axé Aganju Ixolá fixa suas regras a partir dessa nostalgia.

Não ignoro a dificuldade para definição da categoria família, já apontada por


William N. Stephens (1963) e pelo próprio Vivaldo da Costa Lima. As definições nunca
parecem suficientes, o que, por outro lado, se mostra profícuo, uma vez que a antropologia
não mais busca universais explicativos, generalizadores e indiscutíveis. Para os fins deste
trabalho, considero oportuna a definição elaborada por Vivaldo da Costa Lima para a família
de santo, ampliando-a em direção ao sentido público de sua existência, conforme Vogel,
Mello e Barros, e também às considerações que elaboro adiante.

3.1. Casa e domesticidade

A casa era, à época da fundação dos primeiros terreiros, como ainda é, o local do
trabalho doméstico especializado, que é eminentemente feminino (RYBCZYNSKI, 1999). É a
partir do conhecimento que detêm sobre a lida doméstica da casa que as primeiras mães de
santo estabelecem seus terreiros; soma-se a isso o acolhimento a famílias inteiras refregadas
pela dinâmica de escravização e abolição. Há um deslocamento dos quadros referenciais
domésticos para essa nova realidade que se constitui também como doméstica. Em outras
palavras, o mundo doméstico tem uma gramática própria de significados e esta é deslocada
para o universo do candomblé, quando ainda em constituição. E, sendo a casa um território
feminino, pertencente a este gênero (TORQUATO, 2013), os terreiros manterão essa
proximidade com o universo feminino 131 , sendo este regido pelo trabalho doméstico e pela
reprodução da família de santo (BIRMAN, 1995).

Esse deslocamento a que me referi é proposto por Laurent Thévenot (2016) para
compreensão das relações sociais. Nossa socialização primária é realizada no ambiente
doméstico e é a partir dos códigos fornecidos pela vida doméstica que partimos para

131Refiro-me, com a expressão “universo feminino”, à noção de senso comum de que a casa e a lida doméstica
são ambiente e atividade eminentemente femininos.
109
desbravar outros espaços e universos de significados. Quando nos referimos a um ambiente
outro como casa, é possível entender que existem semelhanças entre este e a casa
propriamente dita. Essas semelhanças são construídas a partir dos regimes de domesticidade,
ou seja, nos engajamentos referentes ao ambiente familiar que se deslocam de um ambiente ao
outro. Nesse sentido, aplicar a um terreiro de candomblé o termo casa e utilizar a categoria
correlata família em sua organização social suscita tensões entre diferentes regimes de
domesticidade e mesmo categorias de gênero.

Domesticidade deve ser entendida aqui, em primeiro lugar, como o conjunto de


engajamentos em que se envolvem os agentes sociais no espaço privado da casa, incluindo as
atividades nomeadas como domésticas. O lar é associado a valores e funções específicos e
como ambiente doméstico e feminino por excelência, já que, inicialmente, o homem foi para
os trabalhos externos e a mulher permaneceu em casa. Nesse sentido, identifico um segundo
entendimento sobre domesticidade como uma ideologia legitimadora das desigualdades de
gênero (GILLIS; HOLLOWS, 2009), associando o lar com a feminilidade — naturalizando
essa relação — e produzindo um mundo moral específico do qual a mulher se torna guardiã.

Embora as noções de domesticidade em nossa sociedade ocidental tenham uma base


comum, as manifestações destas — principalmente na sociedade pós-colonial — se dão de
diferentes maneiras, a partir de diferentes experiências. Noções como conforto, limpeza e
privacidade variam de indivíduo para indivíduo; são também relacionais, como propõe Mary
Douglas (2014). Um terreiro de candomblé reúne pessoas de diferentes origens cujas
socializações nos regimes de domesticidade podem variar e resultar em algumas tensões.

Isto acontece porque as diferentes experiências são moldadas por pontos referenciais
culturais, de gênero e de história de vida (PINK, 2004). Se cada casa é um domínio criativo
em que o indivíduo articula sua identidade em negociação com o ambiente, as negociações
aumentam em um terreiro de candomblé, que nunca é composto por menos que uma dezena
de membros. As divergências entre engajamentos de domesticidade estão em constante tensão
e negociação na casa de santo, “universo regido pelo trabalho doméstico e pela reprodução da
família-de-santo” (BIRMAN, 1995, p. 144). São consequência também da relação entre as
representações dos indivíduos sobre relacionamentos personificados com sua casa e família e
como se situam com seus ambientes domésticos (PINK, 2004).

Ainda sobre os deslocamentos entre os regimes, as atribuições das atividades no


terreiro pesquisado seguem a gramática da divisão social do trabalho doméstico, porém estão
110
relacionadas também à iniciação do adepto. O indivíduo desempenhará atividades conforme a
energia de seu orixá de cabeça: se é feminina ou masculina (SANTOS, Maria Stella, 2010); se
uma mulher for iniciada para orixá masculino, ela desempenhará tarefas masculinas. Assim
observei as atividades em função no Ilê Axé Aganju Ixolá: mulheres se dedicavam à cozinha e
ambientes internos e os homens ao quintal e atividades que demandavam força.

Nesse sentido, a conformidade da divisão social do trabalho entre os gêneros no


ambiente doméstico com seu deslocamento para o terreiro de candomblé é a mesma. O que
muda é apenas o fato de que a energia do orixá define o papel de gênero. Ressalto que, como
homens são comumente iniciados para orixás masculinos 132 , mantendo a conformidade com a
expectativa social consolidada, a iniciação de mulheres para orixás masculinos permite a
ampliação da participação feminina nas atividades cotidianas em um terreiro, ainda que as
atividades que demandem mais força física continuem, como no “mundo de fora”, sendo
exercidas por homens, fato também constatado por Miriam Rabelo (2014). Essa ampliação da
esfera de trabalho da mulher, muito embora se constitua em uma sobrecarga, é importante
para a manutenção da chefia feminina nos terreiros e sua autonomia.

Quando Witold Rybczynski (1999) afirma que o controle feminino sobre a casa
introduz a domesticidade, é possível, a partir de um deslocamento, afirmar que a mulher
empreende o mesmo no terreiro, transformando-o em um ambiente doméstico e
eminentemente feminino, ainda que a domesticidade, enquanto ideologia legitimadora de
desigualdades de gênero, contribua para a dominação masculina (BOURDIEU, 2010), mesmo
no âmbito do candomblé e em um terreiro chefiado por uma mulher. Esse deslocamento existe
também nos terreiros chefiados por homens, uma vez que a estrutura histórica do candomblé
foi consolidada por mulheres e as atividades continuam divididas segundo o gênero.

A casa é incorporadora do conjunto de emoções e atributos caracterizados como


domesticidade: relação familiar, intimidade e devoção ao lar (RYBCZYNSKI, 1999). O
mesmo é possível afirmar em relação ao terreiro, cuja organização social básica, a da família
de santo, remete à intimidade e devoção à construção da noção de lar: a casa de santo. Noção
essa aprofundada pela constante utilização dos termos de parentesco que, como mencionado
anteriormente, objetivam e subjetivam uma realidade específica.

132 Dentre os cerca de 50 adeptos que passaram e permanecem no Ilê Axé Aganju Ixolá, constam 2 homens
iniciados para iabá. No Ilê Fí Orô Sakapata, dentre os quase 250 adeptos à época de seu babalorixá, Pai Mauricio
se recorda de apenas 3 iniciados para iabá.
111
A objetivação social de uma ideia cria universos simbólicos que reúnem ideias em
um conjunto de sentido: “o universo simbólico é concebido como a matriz de todos os
significados socialmente objetivados e subjetivamente reais” (BERGER; LUCKMANN,
2010, p. 127). É o contexto ao qual determinado sistema de categorias está relacionado; os
dois não podem ser separados. A casa de candomblé é composta por “pais”, “mães”, “tios” e
“avós” em rotina doméstica e que se reconhecem como tais a partir desses próprios termos e
engajamentos. Nas palavras de José Flávio Pessoa de Barros, a casa de candomblé:

[...] é o lugar da memória, das origens e das tradições, onde, além de se preservar
uma língua ancestral, na qual são entoados os cantos e as louvações, se celebra a
vida de uma maneira muito particular, isto é, daqueles que decidiram, juntos,
vivenciar uma visão de mundo comum, com regras específicas de convivência,
baseadas no parentesco mítico, no princípio de senioridade e na iniciação religiosa
(BARROS, 2010, p. 31).

Como acontece na casa residencial, o terreiro é um ambiente em constante


negociação de domesticidade: entre os adeptos membros de uma família de santo e entre os
adeptos com a própria casa de santo, à qual é conferida uma vida própria. A diversidade de
socializações levará para o terreiro variados engajamentos com o ambiente doméstico. Noções
e prioridades diferentes de espaço, conforto e limpeza, preferência por produtos, gostos e
estilos; indivíduos diferentes tomam diferentes rotas para o que se percebe como o mesmo
sentimento ou declaração moral (PINK, 2004). Qualquer espaço, em suma, é lugar de
constituição de diferença e, portanto, de sua negociação (MASSEY, 2005).

Nesse sentido, Torquato (2013) afirma que a casa é uma entidade moral, sendo
também uma categoria sociológica fundamental, assim como a família. Os quadros
referenciais deslocados do ambiente residencial para o terreiro de candomblé o constroem
como casa e lugar de família. O cotidiano dessa casa será marcado, assim como o de qualquer
outra, por negociações de gênero e domesticidade. Só existem conflitos domésticos porque os
indivíduos se reconhecem como família em uma casa e em rotina doméstica. Esse processo,
ao mesmo tempo em que cria, também alimenta o engajamento nesse universo simbólico,
construindo, assim, diuturnamente, a própria realidade do candomblé.

112
Fotografia 37 – Ajeitando o laço.
Fonte: Autor (2018).

Estudar a indumentária de terreiro me possibilita entender o quanto a lida entre os


adeptos é lida entre parentes classificatórios e a própria indumentária marca essas relações.
Saias são emprestadas, fios de contas são presenteados — e muitas vezes “roubados”. Da
mesma forma que uma irmã biológica pega uma peça de roupa da outra sem avisar, acredito
que nenhum item de vestuário tenha a capacidade de gerar conflitos em uma casa de
candomblé como as anáguas. Conta-se, em dias de função, que uma filha de santo levantou as
saias das irmãs procurando suas anáguas. Em contrapartida, há também o cuidado e
acolhimento entre irmãos e irmãs: ajeitam laços umas das outras, panos de cabeça, dobram
mangas, passam e doam roupas.

3.2. Casa, ancestralidade, tradição e memória

Toda religião, conforme Roger Bastide (1971, p. 333), “se compõe da tradição de
gestos estereotipados e de imagens mentais, ritos e mitos respectivamente”. No candomblé, a
discussão sobre tradição é subjacente a qualquer temática. De uma perspectiva intragrupo, o
113
termo é usado para legitimar ou desqualificar a validade de práticas rituais. Patrícia Birman
(1995) ressalta a crítica permanente que existe entre os terreiros a partir do conhecimento
demonstrado e também comportamento ritual. Observa-se que nem sempre a retórica da
tradição é necessária; tudo pode ser criticado sob um sem número de perspectivas. A autora
aponta que essa crítica é mecanismo básico para a reprodução de um diferencial constitutivo
da identidade. Do ponto de vista da produção intelectual e acadêmica, Stefania Capone (2018)
afirma existir uma tentativa de monopólio, por parte da antropologia, do que pode ser
considerado tradicional ou africano.

Há uma ideia de pureza implícita — e muitas vezes explícita — ao se abordar


tradição, principalmente no que se refere ao candomblé. As categorias de puro e impuro, para
Mary Douglas (2014), sustentam uma produção de separações, regras de interdições e
moralidades e, portanto, constroem uma ordem normativa para a vida social. Construiu-se,
com apoio da antropologia, a ideia de que alguns formatos de culto seriam mais puros que
outros, pureza essa associada à fidelidade a um passado africano, mais intimamente
relacionado aos cultos de formato nagô, tornados sinônimo de tradição e cultura baiana
(CAPONE, 2018).

A fidelidade ao passado, em um primeiro momento, definiria o que é mais


tradicional; quanto mais referenciado a esse passado, mais puro o terreiro se constitui,
sobretudo os de origem nagô. O passado se relaciona com a fundação do candomblé da Bahia
e as chamadas casas matrizes, anteriormente abordadas, que reúnem sentimentos idealizados e
servem como espécie de autenticação de patrimônio (LODY, 2008), pensamento que estimula
a ação dos adeptos. Em última análise, essa referência reporta a uma África criada
liturgicamente no candomblé.

Tal pressuposto encobre o caráter de negociação da tradição; encobre a mistura do


presente com o passado, que é fundante da própria tradição enquanto invenção
(HOBSBAWN, 1997). É necessário pensar, então, a tradição, não como um reservatório de
ideias e elementos culturais, mas sim como um modelo de interação social:

O confronto entre um modelo ideal de tradição e a realidade da prática ritual revela a


amplitude da agency dos iniciados e seu poder de negociação, mesmo nos círculos
mais restritos da hierarquia ritual. A “construção da tradição” é assim produzida a
partir de um duplo movimento, um projeto compartilhado que vincula certas elites
religiosas a intelectuais, na mesma busca de uma africanidade idealizada (CAPONE,
2018, p. 18, grifo da autora).

114
Se existe, porém, a busca de um território idealizado para ancorar a tradicionalidade
do candomblé, a África tem perdido espaço, pelo menos nos discursos do Ilê Axé Aganju
Ixolá. Uma das razões é a popularização no Brasil dos cultos a Ifá, caracterizados pelo ixexé
lagbá 133 ou essim orixá ibilé 134 , religião tradicional iorubá praticada na África. A divergência
entre as classificações dessas vertentes e o candomblé tem produzido confusões e causado
reserva entre alguns adeptos, que preferem se ater às práticas já consolidadas. Pai Mauricio é
enfático ao afirmar que já encontrou tudo muito bem estruturado por suas ancestrais e não
precisa “africanizar” nada:

[...] essa foi a tradição que nós recebemos dos nossos ancestrais e do qual eu hoje
como babalorixá faço questão de manter. E de forma alguma reafricanizar o
candomblé, porque o candomblé não é uma religião de África, o candomblé é uma
religião brasileira, de culto a orixás africanos. Então nós não temos mais nada a
acrescentar do que a brilhante inteligência que as nossas ancestrais, nossas bisavós,
Mãe Aninha, Mãe Davina, Iá Nassô, Pai Bamboxê Obitikô, a bênção à minha Mãe
Regina Bomboxê, aonde a senhora estiver (Mauricio de Aganju) 135 .

Interessa-me, para efeitos da reflexão deste trabalho, entender como a chamada


tradição chegou ao terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá e como se perpetua nos discursos e práticas
relacionados ao vestuário, justificando-o. Considero oportuna a definição elaborada pelo
antropólogo Talal Asad:

Uma tradição consiste essencialmente em discursos que buscam instruir os


praticantes sobre a forma e o objetivo corretos de uma determinada prática que,
precisamente por estar estabelecida, tem uma história. Esses discursos se relacionam
conceitualmente a um passado (quando a prática foi instituída e a partir da qual o
conhecimento de seu propósito e desempenho adequado foi transmitido) e a um
futuro (como o propósito dessa prática pode ser melhor garantido a curto ou longo
prazo, ou por que deveria ser modificado ou abandonado), através de um presente
(como está vinculado a outras práticas, instituições e condições sociais) (ASAD,
2009, p. 20, grifos do autor, tradução nossa). 136

Diante de tantas possibilidades de vestuário atrativas por questões estéticas ou


mesmo econômicas, é necessário entender as ideias que mobilizam as práticas. Há uma

133 Ìṣẹ̀ṣẹ lagbá.


134 Ẹ̀sìn òrìṣà ìbílẹ̀.
135 Palestra proferida em 16/01/2018 no Grupo de Estudos Braulio Goffman.
136 “A tradition consists essentially of discourses that seek to instruct practitioners regarding the correct form and

purpose of a given practice that, precisely because it is established, has a history. These discourses relate
conceptually to a past (when the practice was instituted, and from which the knowledge of its point and proper
performance has been transmitted) and a future (how the point of that practice can best be secured in the short or
long term, or why it should be modified or abandoned), through a present (how it is linked to other practices,
institutions, and social conditions)”. (ASAD, 2009, p. 20, grifos do autor).
115
permanência de técnicas e materiais no Ilê Axé Aganju Ixolá, diferente do que é possível
observar em muitos terreiros, e mesmo diante da oferta de roupas de candomblé. E essa
permanência está associada, sim, ao discurso de tradição, porém algo mais o sustenta.

Tradição em si não explica o processo de valorização e investimento de um grupo em


determinados elementos e tipos de indumentária. Não é suficiente afirmar que os adeptos do
terreiro de Aganju possuem regras mais rígidas de vestuário porque são tradicionais. A
tradição é a ligação de um grupo com o tempo e este é histórico, constituído entre a
experiência do passado e a expectativa do futuro (KOSELLECK, 2006). Ser tradicional, nesse
sentido, é estar ancorado no passado e, a partir deste, realizar investimentos. Isso significa
considerar os processos em que um determinado conjunto de conhecimentos — no caso deste
trabalho, as técnicas de vestuário e modos de uso da indumentária — é reconhecido
socialmente como real, pois conhecimento e tradição são revividos e alimentados
permanentemente (SANTOS, Juana, 2008).

A tradição não é apenas um reservatório de elementos culturais ou ideias; é um


modelo de interação social (CAPONE, 2018), conjunto de representações coletivas que o
grupo elabora e, enquanto sistema, caracteriza uma forma de organização social. Nesse
sentido, é uma das principais ferramentas de construção identitária. É a unidade e coesão da
família de santo que se defenderão tanto quanto possível da mudança (BOSI, 1979) ou
impureza, no sentido de Douglas (2014); a impureza compromete a unidade da experiência.

Mary Douglas (2014) propõe que a impureza é a desordem, caracterizada como


ilimitada. O contrário é o padrão, que organiza, define, restringe e unifica a experiência. Não
há padrão na desordem, já a tradição enquanto padrão, oferece um ordenamento de mundo,
um roteiro diante de tantas opções e oportunidades angustiantes — e perigosas — que a
desordem oferece. É a desordem também, em seu aspecto relacional, que oferece os materiais
do padrão.

Minha intenção foi analisar as práticas de vestuário e as narrativas que sustentam


essas práticas que estão, sim, inscritas em uma tradição. A construção da tradição, sendo
assim, está relacionada a um duplo movimento de negociação entre um modelo ideal
consagrado de tradição e também a prática de seus adeptos, principalmente os inseridos em
círculos mais restritos da hierarquia (CAPONE, 2018). Essa elasticidade, inclusive, favorece o
equilíbrio e coerência do grupo (LIMA, 2003).

116
É recorrente nas narrativas do terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá, a menção à
ancestralidade. Os ancestrais do terreiro são evocados constantemente para a liturgia — como
testemunhas a avalizar o que é praticado — e também nas conversas cotidianas. A vida em
um terreiro de candomblé, porém, como caracterizada anteriormente, vai além da prática
religiosa; os membros estão unidos por uma estrutura “sócio-cultural cujos conteúdos recriam
a herança legada por seus ancestrais africanos” (SANTOS, J., 2008, p. 38). Comportamentos,
alimentação e práticas de vestuário, bem como técnicas, também são expressão importante e
estão sob constante escrutínio ancestral. Ignorar o conjunto de todas essas práticas — não só
as estritamente religiosas — é atrair desagrado de ancestrais e também dos orixás.

Juana Elbein dos Santos (2008) propõe uma distinção entre os orixás e os ancestrais,
espíritos dos seres humanos. Os primeiros estariam associados à estrutura da natureza e os
ancestrais à estrutura da sociedade. Estes são os genitores humanos e sua caracterização
enquanto antepassados religiosos interioriza a pertença do indivíduo a uma estrutura social
específica (SANTOS, J., 2008).

Nesse sentido, o parentesco religioso leva os membros do terreiro à participação de


uma experiência comum no que se refere à ancestralidade:

Do ponto de vista teórico, essa ancestralidade, construída a partir de especificidade


cultural e psicossocial que tem por base ideal uma figura ancestral, se manifesta em
dois campos bem distintos da sociedade. Primeiramente, no campo objetivo da
formação social, através da herança reconhecida e recriada no segmento das
comunidades religiosas. Acrescentem-se, ainda, neste mesmo plano, outros rituais
mais herméticos nos quais se veneram também os ancestrais afro-brasileiros. Em
seguida, no campo subjetivo das representações coletivas da herança africana,
reivindicada e redefinida na ação sociopolítica como pressuposto fundamental da
identidade do negro na Bahia (BRAGA, 1992, p. 96).

Ser tradicional, observando o terreiro Ilê Axé Aganju Ixolá, é valorizar o


pertencimento a determinada linhagem, reconhecendo sua estrutura e seus dogmas. Esse
pertencimento não é dado apenas com o rito iniciático, mas precisa ser construído
diuturnamente, na prática, que também é discursiva. As evocações aos ancestrais produzem
proximidade e também afeto, principalmente a partir dos termos de parentesco. Desconsiderar
o vestuário adequado não é somente desagradar uma ancestral distanciada no tempo, é
desagradar a Vó Agripina, Tia Helena, cujas histórias são rememoradas constantemente.

117
A iniciação estabelece o laço ancestral e cria o compromisso, mas esse precisa ser
alimentado, recriado e adaptado às experiências contemporâneas (LODY, 1995). Tradição não
é repetição de uma forma antiga, mas sim o entendimento sobre o desempenho adequado e de
como o passado se relaciona à prática atual (ASAD, 2009); é necessário um futuro imaginado
para direcionar o trabalho de criação do desempenho, não apenas uma retomada do passado
(RABELO, 2014).

As técnicas de vestuário, para além de acabamento estético ou viabilidades


meramente econômicas, são a inscrição no corpo da história de uma prática. Pai Mauricio
ressaltou diversas vezes a importância desse tipo de compreensão no candomblé, pois a
associação das práticas cotidianas à ancestralidade passa despercebida, ou é conscientemente
negligenciada. Cumprir as determinações vai muito além das conveniências:

Nossa legitimidade está na nossa ancestralidade e descendência. [...] As pessoas têm


necessidade de aceitação. Em busca disso abrem mão do correto para acolher o
absurdo da boca do "famoso". Em nome da "fama", obviamente não construída por
aquele que hoje deita na cama "herdada" sem sequer saber de onde veio o lençol,
subsidia o caos. Levantar-se contra é se arriscar ao linchamento virtual. Anônimo,
claro. Sempre anônimo! Meus irmãos, meus agbas, precisam saber que são netos,
bisnetos da "dona da cama" que hoje eles se satisfazem em ficar na beira, abanando
rabo. Casa de axé não é canil. Gente não é cachorro (coitados dos cachorros) e
ancestralidade não é pedigree. É pertencimento. Não é virose. Não passa no vento.
Ou tem ou não tem. Que Xangô nos preserve a dignidade (Mauricio de Aganju) 137 .

O posicionamento contundente do babalorixá caracteriza a importância que atribui às


práticas do terreiro enquanto ligação com a ancestralidade e marca também sua preocupação
de que essa seja reconhecida e lembrada enquanto tal. A ligação do terreiro com estruturas
maiores — terreiros mais antigos — estabelece uma rota de memória, uma invocação
constante e também uma vigília. As proibições, como propõe Mary Douglas (2014, p. 91),
“traçam o perfil cósmico e a ordem social ideal”.

É essa rota de memória, ancorada em uma estrutura familiar que valoriza um


discurso de unidade e linhagem, a responsável pela alimentação da tradição que é o alimento
de um grupo, sua ligação com o tempo (BENEDICT, 2013). São as histórias familiares
construídas em torno dos materiais e técnicas que possibilitam sua absorção e manutenção
pelo grupo. Quando uma neófita vai às compras de tecido, acompanhada por uma mais velha
ou pelo próprio Pai Mauricio, ouve histórias, conhece as preferências do grupo e se integra às

137 Participação na rede social Facebook ao dia 25 de setembro de 2019.


118
suas regras. Ali começa a aprender as combinações entre tipos de tecido e aviamentos, as
marcas desejáveis e as evitáveis. A tradição, como herança cultural, se encarrega da
transmissão de crenças e técnicas (ABBAGNANO, 1998).

A “memória é a vida” (NORA, 1993, p. 9), sempre constituída em grupo, e também


um trabalho do sujeito (HALBWACHS, 1990), dinamizando as tradições. É ela que opera o
reconhecimento e reconstrução na atualização dos quadros sociais, localizando e articulando
as lembranças em uma espécie de acervo que constitui o próprio conteúdo da memória
coletiva (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993).

Enquanto grupo doméstico, o convívio prolongado e afetivo dá consistência às


lembranças, que permanecem em seus membros. De fato, a comunidade afetiva é necessária
para existência da lembrança, ainda que o núcleo de origem se desagregue (BOSI, 1979). A
experiência ritualizada do candomblé é responsável por animar a memória e ligar o presente
ao passado (DOUGLAS, 2014). O ancestral precisa sobreviver na memória de seus
descendentes, ou morre novamente no ostracismo indiferenciado do passado.

No candomblé, assim como entre povos que não fazem uso da escrita,

[...] a lembrança dos velhos transforma-se na principal fonte das regras do grupo.
Pelas lembranças recupera-se do passado o tempo mítico da origem do mundo, dos
animais e dos seres; justificam-se as regras e os tabus, ordena-se o presente e
controla-se o futuro. (DINIZ, 2001, p. 18).

É essa lembrança dos mais velhos, evocada como memórias familiares, que dão a
liga necessária à manutenção das regras de conduta e vestuário. O parentesco religioso é a
estrutura a partir da qual a lembrança é reativada e associada a ocorrências sociais retidas no
corpus da tradição oral do grupo (BRAGA, 1992). A tradição, reitero, opera como modelo de
interação social.

119
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dormir e acordar no Ilê Axé Aganju Ixolá proporciona a sensação de que Joaquim
Motta, Eugênia Anna dos Santos e Agripina Sousa — pai e avós —, dentre tios, mães e tias,
outros familiares falecidos, entrarão a qualquer momento pelas portas do terreiro, tamanha a
recorrência em evocações. São exemplos de conduta, predileções por materiais, exortações e
saudades. Lembrar datas, causos e fatos imortaliza um ancestral; do contrário, morre uma
segunda vez. É o medo do aniquilamento total que tanto temem os iorubás.

A ancestralidade é um valor caro à cultura iorubá — mesmo africana, em geral — e


também cara a muitos descendentes, ainda que espirituais, da diáspora. Ancestralidade, na
noção do terreiro chefiado por Pai Mauricio, é pertencimento. O vestuário do terreiro é
resultado de uma noção especifica de pertencimento familiar e também de um modo
específico de reger a casa. É possível que em outros terreiros a preocupação maior seja com
rituais e a prática litúrgica diretamente relacionada a estes, secundarizando ou mesmo
desconsiderando o uso da indumentária enquanto ritual.

Não no Ilê Axé Aganju Ixolá.

No Ilê Axé Aganju Ixolá, as histórias contadas e recontadas sobre Vó Aninha, Tia
Angela, Tia Maria, Vó Agripina, Tio Jobi e outros, funcionam como mitos implícitos (LÉVI-
STRAUSS, 1971), justificando e atualizando a indumentária enquanto rito. Os ensinamentos a
partir da repetição das preferências e técnicas das ancestrais, unem discurso e prática em um
todo ritualizado.

Na Casa de Xangô existe a construção de uma narrativa de totalidade, em que todas


as práticas da vida de terreiro são orientadas pelo pertencimento espiritual a uma linhagem.
Desde as roupas, o comportamento no dia a dia até às liturgias mais complexas, todos estão
sob escrutínio ancestral para validação e por isso são regulados de perto.

A inquietação principal que orientou essa pesquisa foi a maneira com que o
babalorixá e seu terreiro constroem uma narrativa que justifique o rigor do vestuário. A
ausência das tendências verificadas no amplo mercado de roupas, das composições de
sianinha, das golas rainha, das anáguas sintéticas e das roupas masculinas ricamente bordadas
me levaram a questionar que mecanismos operavam o rigor vestuário em torno de um padrão
bem delimitado.
120
As narrativas em torno do pertencimento familiar se operam no Ilê Axé Aganju Ixolá
em duas direções. A primeira, mais ampla e que serve de sustentação para a segunda, é no
sentido da linhagem. É o conjunto de noções e engajamentos que faz com que os adeptos
desse terreiro se entendam e se construam como descendentes do Ilê Axé Opô Afonjá. A
segunda direção é a que mobiliza, principalmente, os termos de parentesco empregados na
lida cotidiana e reforçados pela vivência em um ambiente caracterizado como doméstico. A
rotina doméstica reforça as duas direções dessas narrativas, operando a eficácia delas e apelo
emocional na construção dos discursos. As roupas são, então, a forma característica de uma
família se vestir e se identificar enquanto família.

O caminho das roupas se revelou profícuo para entender as relações que os


indivíduos desenvolvem dentro de um terreiro, os investimentos suscitados pelo vestuário. A
prática precede a representação, o que não torna esta secundária, mas a caracteriza também
enquanto prática. Observá-la — e também ao discurso enquanto prática — possibilita retirar
as roupas e as relações em que estão inseridas de um quadro estático em que estas já estão
estabilizadas e, por isso, invisibilizadas.

Os engajamentos acerca da indumentária geram representações simbólicas que


encontram e fortalecem as raízes no discurso familiar. É importante uma narrativa que
homogeneíze; é fator de coesão do grupo e de legitimidade, criando também uma fronteira em
relação a outros grupos e linhagens do candomblé. A reverência à ancestralidade, além de
legitimidade dentro de um quadro de relações, é reverência à estrutura da sociedade,
representada pelos próprios ancestrais. Em outras palavras, cultuar os ancestrais é reforçar o
pertencimento a uma estrutura social, é criar mecanismos que garantam a reprodução dessa
estrutura.

A rigidez das regras de vestuário é uma declaração identitária, uma construção de


legitimidade que liga o Ilê Axé Aganju Ixolá ao Ilê Fí Orô Sakapata e ao Ilê Axé Opô Afonjá.
Um pano da costa listrado, as anáguas de algodão e goma cozida, o ojá de peito, todas essas
peças operam declarações identitárias, fabricam uma autoimagem, são tijolos que constroem
um discurso e ligam o passado ao futuro que se quer construir (GONÇALVES, 2007).
Veiculam uma imagem sobre quem são e quem buscam ser os adeptos do terreiro.

A tradição como modelo de interação social mobiliza um conjunto de representações


coletivas que o grupo elabora. Não é importante somente para a esfera pública, pois não é
neste momento apenas que o indivíduo se constrói enquanto pessoa; a noção de pessoa e de
121
pertencimento é construída paulatinamente. A tradição enquanto sistema, caracteriza uma
forma de organização social eficaz para fixação de regras em que a sistematização do
vestuário é elaborada com o propósito de unificar a experiência. As regras de vestuário do Ilê
Axé Aganju Ixolá são recursos que dão sentido às suas práticas, às suas formas próprias de
engajamento e derivam das próprias práticas; as roupas são as regras de reforço dos quadros
institucionais que regulam a vida e a memória do grupo e ao mesmo tempo formam o grupo.

A circulação das narrativas funciona como um conjunto de mitos próprios,


implícitos, como mencionado anteriormente, que justificam a ritualística em torno da roupa. É
o brinco de Tia Angela e também seu apego à bata. É o perfume e o banho de dendê de Tio
Jobi, o babadinho da saia deixada por Vó Aninha e as inúmeras menções a Pai Joaquim. Usar
uma saia elaborada a partir de técnicas preservadas com poucas tecnologias e poucos
elementos sintéticos instaura uma rota nostálgica em direção ao passado. Como afirma José
Flávio Pessoa de Barros (2010, p. 17): “É pela memória que os grupamentos humanos
guardam seu patrimônio material ou imaterial”. Há um engajamento afetivo, uma conexão
estabelecida por essas narrativas, uma construção de proximidade que as torna pessoais. É
usar a saia como minha avó usava. São essas narrativas que se ligam à tradição enquanto um
modelo de regras que orientam os engajamentos.

Vestir a baiana é ato ritual em que a mulher de candomblé “penetra,


temporariamente, num outro mundo passando a viver, fenomenologicamente, uma história
mítica permeada de obrigações, tabus, perigos, emoções, sacrifícios, aventuras” (ROCHA,
2014). É no corpo feminino que estão inscritas as memórias, a herança, as regras. A mulher e
seu corpo operam como guardiões do capital religioso do candomblé. O corpo feminino, nesse
sentido, se torna um museu em miniatura (ROCHA, 2007) onde, em uma operação de
bricolagem, são reunidos retalhos, técnicas, rendas, bordados e formas de uso que têm
historicidade, rememoram um conjunto de relações concretas e virtuais.

O despojamento e flexibilização da roupa masculina no Ilê Axé Aganju Ixolá


também é marca de uma prática historicizada: é lembrança da ausência dos homens nos
antigos xirês, da inadequação de sua vestimenta à prática ritual, à roda de candomblé, ao
transe de orixá. Para este, precisa de empréstimos de indumentária, ou fica indistinto, sem
qualquer marcação que o caracterize enquanto no estado de transe. Não traz em seu corpo
marcas para essa condição. Não há rigor para o vestuário masculino pois o candomblé não era

122
seu lugar enquanto rodante. De todo modo, até mesmo a sobriedade desses trajes reforça, por
contraste, a roupa da mulher; opera como reforço da estrutura social.

O mundo doméstico deslizado para os terreiros de candomblé — a casa de


candomblé —, ainda que chefiado por um homem, continua se servindo da mulher e de seu
corpo como guardiães de um mundo moral específico. A indumentária feminina tem maior
atenção em todos os momentos, desde a ida à rua, à costureira e as complicadas e intrincadas
técnicas e formas de uso; a roupa masculina não merece qualquer bilhetinho à costureira além
de medidas básicas.

A roupa é uma mobilização política. A institucionalização das práticas em torno do


vestuário tem sua maior força depositada na valorização pessoal de seu dirigente. A narrativa
constrói a prática e essa constrói a narrativa; a legitimação explica a ordem institucional,
normatizando as ideias em uma prática social. Ora, nenhum pertencimento é apenas dado:
precisa ser construído. No caso da família de santo, a mobilização afetiva em torno das
narrativas proporciona elemento potente de fixação de regras, uma vez que produz uma
nostalgia e constrói noção de pertencimento resguardado com afinco. Vestuário é, então,
assunto de família.

123
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