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Richard Swinburne

O ENSINO MORAL CRISTÃO


sobre sexo, família e vida
Tradução
William Campos da Cruz
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1.ª edição, 2022

Tradução: William Cruz


Editor: Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Thiago McHertt

Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista Atualizada (ARA) salvo
indicação em contrário.
SUMÁRIO
O ensino moral cristão sobre sexo, família e vida
[Introdução]
[Premissas]
[Adultério]
[Aborto]
[Suicídio e eutanásia]
[Dos mandamentos divinos]
[Divórcio]
[Atos sexuais homossexuais]
[Contracepção]
[Liderança familiar]
[Conclusão]
PREFÁCIO
Um dos elementos teológicos centrais que constitui a natureza lógica, formal e existencial da fé
cristã é aquele que preceitua o processo didático da organização moral do comportamento
humano, visto que, em Cristo os que não conheciam a verdade do evangelho experimentam,
agora, uma ressignificação espiritual de si mesmos, de suas crenças e de suas atitudes a partir dos
valores absolutos do reino. Isto significa que existem princípios fundamentais que estabelecem
parâmetros bíblicos no modo como cada cristão deve viver e se relacionar com realidade
histórico-social e suas diversas implicações morais.
Desde o Éden, perpassando por toda a história revelacional, é possível contemplar Deus, de
maneira singular, estabelecendo padrões absolutos a fim de que o seu povo fosse atravessado e
tocado pela consciência ou a sensibilidade intelectual do cuidado divino, dos benefícios da
obediência, e acima de tudo, da felicidade, posto que, poderiam viver conforme a boa, agradável
e perfeita vontade do Senhor. Assim, a verdade escriturística não se limita apenas a uma espécie
de ascetismo platônico como conjugação de fé, pelo contrário, ela estabelece regras importantes
e práticas para questões morais que se revelam no cotidiano das pessoas como, o divórcio, o
adultério, o aborto, o suicídio e a eutanásia, dentre outros temas que personificam o ensino moral
cristão.
Neste sentido, o presente ensaio é o resultado das reflexões do filósofo cristão Richard
Swinburne, professor de Filosofia da Religião na Universidade Oxford e autor de diversas obras,
dentre as quais citamos, — A existência de Deus e Deus existe? — já traduzidas por esta editora.
O que temos em mãos, e diante de nossos olhos é a escrita de uma análise teológica precisa sobre
sexo, família e vida. Para isto, o autor no desenvolvimento de sua obra evidencia rigor filosófico
e fundamentação bíblica ao discutir o tema proposto e uma série de premissas essenciais que
estruturam a elaboração lógica dos seus argumentos. Em síntese, Swinburne nos faz um convite
moral e intelectual, a fim de percebermos que Deus estabelece instruções ou ensinos
fundamentais para o uso de dádivas criadas por Ele mesmo, que devem ser experimentadas com
temor, maturidade bíblica, abstração espiritual, e exercício teo-filosófico diário.
Então, o desafio estabelecido pelo autor envolve a leitura de um texto de teologia moral, campo
do conhecimento teológico brasileiro que carece de reflexões pautadas num exercício bíblico,
teológico e filosófico que não se enreda pelo hedonismo utilitarista e nem por um
tradicionalismo moralizante.
Emerson de Arruda
Doutor em História e Ph.D. em Educação, Arte e História da Cultura

Rondonópolis, 24 de abril de 2022


O ENSINO MORAL CRISTÃO
SOBRE SEXO, FAMÍLIA E VIDA

[Introdução]
Como todos sabemos, o ensino cristão tradicional sobre muitas questões morais — em particular
sobre sexo, família e vida — é considerado por todos os não religiosos, e até por alguns crentes
religiosos, total e evidentemente equivocado. Entre os problemas nesta área, dedicarei tempo à
reflexão, só muito brevemente, sobre adultério, divórcio, fornicação, atos sexuais homossexuais,
contracepção, aborto, suicídio e eutanásia, todos os quais foram declarados moralmente errados
pela moral cristã tradicional; e também abordarei o ensino tradicional de que o marido é o cabeça
da família, de modo que a esposa e os filhos têm obrigação de obedecê-lo. Minha maior
preocupação será com os princípios gerais para determinar se e por que o ensino cristão
tradicional sobre essas questões é correto, e não com soluções particulares de cada problema.
Neste ensaio, procuro analisar a estrutura geral de qualquer defesa plausível da visão tradicional
sobre essas questões. Todos os argumentos começam com premissas, e meus argumentos neste
ensaio partem de muitas premissas, algumas das quais bem discutidas. Entretanto, todas são
premissas que podem em si mesmas ser defendidas por argumentos completamente
independentes das questões tratadas no presente ensaio; eu mesmo tentei defender todos eles vez
ou outra. Eis as minhas premissas:
[Premissas]
1. Princípios morais fundamentais são verdades necessárias, independentes da existência,
natureza ou vontade de Deus; muitos deles são descobríveis pelos humanos. Esses princípios são
aqueles em torno dos quais os estados de coisas são intrinsecamente bons, as ações são
moralmente boas e, entre essas últimas, estão as obrigações morais (ou deveres). (Chamo de
“obrigações negativas”, ou ações “erradas”, aquelas que temos obrigação de não praticar.)
Obrigações morais sempre são obrigações de uma pessoa para com alguma outra (não é possível
ter obrigações para consigo mesmo); obrigações positivas surgem somente dos compromissos
assumidos por alguém – explícita ou implicitamente, ou de benefícios recebidos por meio deles.
2. Há um princípio moral fundamental segundo o qual os beneficiários têm a obrigação de
agradar seus benfeitores, e agradá-los em maior grau quanto maior o benefício. Se o beneficiário
é capaz de aceitar ou recusar a dádiva, deve aceitá-la antes que surja a obrigação. No entanto, se
o beneficiário não está nesta posição e se a dádiva é algo evidentemente bom, ainda assim surge
a obrigação. Daí a obrigação dos filhos de agradar aos pais carinhosos que lhes deram muito
amor e cuidado, alimentação e educação bem antes que os filhos estivessem em posição de
aceitar ou rejeitar essas dádivas. Uma obrigação para com um benfeitor inclui a obrigação de
tratar a dádiva com respeito e usá-la apenas para os tipos de propósito para os quais – explícita
ou implicitamente — ela foi dada. Assim, se uma tia dá a uma criança um vestido novo no Natal,
a criança tem a obrigação de não cortá-lo e fazer um vestido diferente a partir dele. Essa
obrigação permanece, quer a criança goste do vestido, quer não; ainda assim, se não gosta do
vestido, pode ser que ela não tenha a obrigação de usá-lo.
3. Deus é nosso criador; tudo que somos e temos é dádiva de Deus, com exceção daquelas
poucas dádivas dadas a nós por outros, sobretudo nossos pais, cuja capacidade de dar suas
dádivas é ela mesma uma dádiva de Deus. Assim, temos uma obrigação enorme de agradar a
Deus, o que — dada a premissa 2 — inclui a obrigação de tratar suas dádivas com respeito e usá-
las apenas da maneira que — explícita ou implicitamente — Deus estabeleceu. As instruções de
Deus para o uso de suas dádivas são mandamentos.
4. Deus só pratica ações boas, ações para as quais há uma razão. Assim, somente ordenará
alguma ação que seja bom que Ele ordene.
5. Deus tem motivo para ordenar-nos praticar ações que são obrigatórias ou para proibir-nos de
praticar ações que são erradas por razões independentes de sua ordem ou proibição. Chamarei
tais ações de intrinsecamente obrigatórias ou erradas. O motivo pode ser informar-nos de
obrigações que não descobrimos ou chamar nossa atenção para obrigações das quais estamos
conscientes e assim pressionar-nos a conformar-nos a elas. Por uma ou outra dessas razões, pais
com frequência pedem aos filhos que façam o que estes são obrigados a fazer de qualquer jeito.
6. Deus, como qualquer outro benfeitor, como os pais ou o estado, também tem razões para
ordenar que humanos pratiquem ações que de outro modo não seriam obrigatórias. Essas razões
incluem (A) coordenar ações imperfeitamente obrigatórias a fim de garantir a realização de um
objetivo geral bom. Isso pode envolver dizer a pessoas diferentes que pratiquem ações diferentes.
Deus pode mandar Jonas pregar em Nínive e algum outro profeta pregar na Babilônia, e assim
por diante, para garantir que sua mensagem seja ouvida em toda parte. De outra maneira, todos
os profetas poderiam pregar em Nínive, e então a Babilônia e outras cidades não ouviriam a
mensagem. Contudo, a coordenação pode exigir, em vez disso, que todos pratiquem a mesma
ação, quando muitas outras ações incompatíveis seriam igualmente boas — enquanto todos as
praticam. Deus pode ordenar que todos os cristãos O adorem reunidos a cada semana no
domingo em vez de na quinta-feira, a fim de garantir que a comunidade cristã adore unida. (Por
“ações imperfeitamente obrigatórias”, entendo ações de um tipo tal que há uma obrigação de
praticar alguma ação desse tipo, mas não uma obrigação de praticar alguma ação particular desse
tipo.)
As razões podem incluir (B) fazer que humanos pratiquem ações de um tipo que só seria bom se
muitos humanos em posições similares praticassem as mesmas ações. Só é bom lutar por seu país
numa guerra justa se você tem alguma perspectiva de sucesso; este será o caso somente se muitos
outros de seus conterrâneos fizerem o mesmo. Se não há muitos voluntários, o estado precisará
impor o serviço militar obrigatório, e assim obrigará muitos outros a lutar. No devido tempo,
sugerirei casos em que Deus precisa impor obrigações por esse motivo.
As razões também incluem (C) levar-nos — para o nosso bem — ao hábito de fazer mais do que
somos obrigados. Convencer as pessoas a fazer o que de outro modo seria supérfluo pelas razões
acima ou quaisquer outras serve ao bom propósito adicional de começar a torná-los pessoas
naturalmente boas. Pais com razão tentam estimular em seus filhos o hábito de fazer mais pela
família, pelos vizinhos e por outras pessoas a quem são estritamente obrigados a fazer. Querem
que seus filhos, para o bem deles mesmos, sejam pessoas naturalmente boas. Assim também faz
Deus, e Deus, que quer o melhor para nós, quer que sejamos santos. Parece-me que a ordem de
Jesus ao jovem rico de “vender tudo que tinha e dar o dinheiro aos pobres” (Mc 10.17-27)
pretendia servir a este propósito. E onde quer que Deus ordene que indivíduos ou grupos
particulares pratiquem ações por alguma das razões anteriores, há o bem adicional de que o
indivíduo ou grupo é escolhido para uma tarefa especial. Ser escolhido por um comandante para
uma missão particular em seu plano sempre é um privilégio.
7. Jesus Cristo era Deus encarnado e, por esse motivo, seu ensino sobre questões morais
importantes é verdadeiro. Ele fundou uma Igreja para interpretar e desenvolver esse ensino; e
isso garante que qualquer ensino unânime da Igreja sobre tais questões também é verdadeiro.
Esse ensino pode incluir o ensino sobre princípios fundamentais bem como sobre quais são as
ações que se tornam obrigatórias em virtude da existência ou do mandamento de Deus.
8. Esse ensino está incluso na Bíblia conforme interpretado e desenvolvido pela Igreja, e talvez
também — se não estiver em conflito com a Bíblia — em algum ensino extrabíblico. A Igreja
que autenticou a Bíblia como a revelação de Deus teve em seus primeiros 1400 anos de
existência certas regras de interpretação da Bíblia, particularmente a respeito de seu ensino
moral. Agostinho afirmou acerca desta regra que é “preciso saber que certos preceitos são
comuns a todos e outros são particulares a classes diferentes de pessoas” (De Doctrina
Christiana 3.17.25).[1] Uma segunda regra é que — como a própria Bíblia o diz — os apóstolos,
inspirados pelo Espírito Santo, declararam que toda a Lei de Moisés já não se aplica (At 15.5,
19-20, 28-29). A única parte que permaneceu era que “se abstivessem das coisas sacrificadas aos
ídolos, da fornicação, do que é sufocado e do sangue”. Assim, nenhuma parte do ensino do
Antigo Testamento que pudesse ser considerada como Lei Mosaica se aplica. Apelos ao ensino
moral da Bíblia, portanto, normalmente devem basear-se no Novo Testamento. Uma terceira
regra era a regra de Agostinho segundo a qual “tudo o que na palavra divina não puder se referir,
em sentido próprio, à honestidade dos costumes nem à verdade da fé, devemos tomar em sentido
figurado” (De Doctrina Christiana 3.10.14).[2] Essa regra supõe que o leitor cristão chega ao
texto com um entendimento prévio do que constitui “honestidade de costumes e verdade da fé”,
ou seja, que a Bíblia deve ser interpretada à luz da compreensão prévia dessas coisas pela Igreja.
Assim, nós, que vamos ao texto, temos de compreendê-lo da mesma maneira, ou seja, à luz de
alguma compreensão que possamos ter de quais passagens eram vistas como chave para
interpretar outras passagens, e de algum conhecimento que podemos ter do que a Igreja entendia
por “honestidade de costumes e verdade da fé” à parte daquela registrada na Bíblia. Embora essa
terceira regra, diferentemente da anterior, não esteja contida na Bíblia, parece natural usá-la –
uma vez que a Igreja selecionou quais livros constituiriam a Bíblia em parte com base em sua
conformidade a um entendimento prévio da mensagem cristã. Uma vez que foi só em 361 d.C.
que pela primeira vez uma lista dos livros da Bíblia idêntica à das Igrejas de hoje foi compilada
por alguma autoridade eclesiástica,[3] os cristãos dos três primeiros séculos e meio, sem esse
entendimento prévio, não teriam tido os materiais de onde extrair uma compreensão plena da
mensagem cristã.
Assim, dadas as minhas oito premissas, incluindo essas regras para determinar o conteúdo do
ensino cristão, aplico-as agora aos temas que listei, sobre os quais a visão cristã tradicional
afirma que determinada ação é errada (ou obrigatória), ao passo que a moralidade secular o nega.
Começo perguntando se alguma das ações tradicionalmente proibidas é intrinsecamente errada.
Em minha visão, somente adultério, aborto tardio, suicídio e eutanásia são intrinsecamente
errados.
[Adultério]
O adultério é condenado pelo sétimo dos Dez Mandamentos e a condenação foi reforçada pelas
claras implicações do ensino de Jesus.[4] Entendo por “casamento” a união de um homem e uma
mulher que solenemente juraram fidelidade um ao outro por toda a vida; por “adultério”, o
intercurso sexual entre um homem e uma mulher em que ao menos um deles é casado com outra
pessoa, sem a permissão deste outro cônjuge. Trata-se claramente de quebra daquele juramento
solene e, por essa razão, manifestamente errado. Até mesmo muito da moralidade secular
concordará com isso. Pelo mesmo motivo, o divórcio (com recasamento) sem consentimento
mútuo seria errado; a moralidade secular, entretanto, em geral o permite. O recebedor de uma
promessa sempre pode libertar o promissor de sua obrigação de manter a promessa; assim, o
intercurso fora do casamento com consentimento do outro cônjuge não pode ser errado por essa
razão; mas, se o divórcio com recasamento é errado por alguma outra razão, como discutirei no
momento devido, tal intercurso será errado pela mesma razão.
[Aborto]
Volto-me agora para o aborto. Se o aborto é condenado na Bíblia depende de como vários textos
são interpretados. A tradução da Septuaginta de Êxodo 21.22-23 afirma que, se um embrião é
abortado por homens brigando a ponto de causar a perda do bebê numa mulher grávida, então “é
vida por vida” se o embrião está formado; em outras palavras, um aborto tardio constitui um erro
grave e merece a pena capital. Os hebreus, entretanto, não apoiam essa implicação. As
condenações de φαρμακεία (a prática de dar drogas) em Gálatas 5.20, φαρμάκων (drogas) em
Apocalipse 9.21, e φαρμάκοις (aqueles que administram drogas) em Apocalipse 21.8 e 22.15
podem muito bem ter em conta os abortivos. O aborto, em qualquer estágio da gravidez, foi
condenado unanimemente pelo ensino cristão desde os primeiros Pais (Epístola de Barnabé 19.5)
[5]
até o século passado, e assim, com razão, pode-se defender que constitui um ensino cristão
central. Uma vez que um feto é um ser humano particular, então o aborto é um assassinato deste
indivíduo. Assassinar um ser humano, exceto para salvar outra vida humana ou talvez para punir
um assassinato, é também — afirmo — intrinsecamente errado. Este assassinato é errado pela
razão desenvolvida por Don Marquis, segunda a qual priva o feto humano abortado de um
“futuro como o nosso”.[6] O fato de o feto, como qualquer pessoa em coma, não ser, no momento,
mental e fisicamente competente não é relevante. Todavia, tudo agora volta à questão de em que
estágio do desenvolvimento o feto se torna uma pessoa individual particular. O catecismo da
Igreja Católica de 1994 (§2274) defende que o embrião “deve ser tratado como pessoa desde a
concepção”.[7] Contudo, parece-me, como dualista de substância, que uma pessoa é uma
substância mental cuja identidade é determinada por sua alma não física; e que não há
fundamento para postular essa alma até que haja fundamento para postular que o feto está
consciente, e que há tais fundamentos somente no estágio em que o cérebro mostra padrões de
atividade neural típicos de humanos conscientes. Isso deve ocorrer por volta da 22ª semana. Não
há motivo para supor que antes desse tempo esteja determinado que alma está conectada ao feto
e, assim, quem a pessoa é. A alguém que não é um dualista de substância, entretanto, pode
parecer seguir-se que a mera continuidade física é suficiente para determinar quem o feto é; e a
partir daí pareceria seguir-se que o aborto em qualquer estágio de fato priva um indivíduo
particular de um “futuro como o nosso”, e portanto é intrinsecamente errado. Não podemos
discutir neste contexto que teoria da identidade pessoal está correta; portanto, tenho de deixar
essa discussão com a alegação de que, se pessoas humanas só vêm à existência ao mesmo tempo
como consciência humana, o aborto antes deste ponto não é intrinsecamente errado. Pode,
entretanto, ainda ser errado por uma razão diferente, e chegarei a essa questão no momento
oportuno.
[Suicídio e eutanásia]
A obrigação de não cometer suicídio é reconhecida hoje por quase todos os cristãos, mas ela não
pode reivindicar nenhuma autoridade bíblica ou eclesiástica antes do século IV.[8] É, no entanto,
creio, uma obrigação intrínseca, no sentido de que essa obrigação existe independentemente de
Deus ordená-la, mas, neste caso – diferentemente dos dois casos anteriores –, sua aplicação a
todos depende da existência de Deus, e assim de ele ter-nos criado. Se não cometer suicídio é
uma obrigação, deve ser uma obrigação perante alguém. Às vezes, seria uma obrigação perante
outros humanos – aqueles que têm direito a nossa ajuda e amor, como nossos filhos. Aristóteles
pensava que o suicídio constitui um erro perante a comunidade,[9] que tem o direito a nossos
serviços – mas isso me parece exagerar os direitos da comunidade. Decerto, a razão
universalmente aplicável é que, como afirmava Tomás de Aquino,[10] é errado diante de Deus,
que nos deu vida, jogar fora a dádiva quando esta não é tão satisfatória quanto deveria ser. O
dom da vida é uma dádiva tão grande que devemos dar o melhor de nós para fazer de nossa vida
uma vida boa, apesar das circunstâncias difíceis. Jogar a vida fora antes que alcance seu fim
natural seria como o ato de uma criança que joga fora um brinquedo valioso no momento em que
ele deixa de funcionar bem. No entanto, claramente há limites para a obrigação de tentar fazer o
brinquedo funcionar, e assim, por analogia, para a obrigação de tomar medidas extraordinárias
para manter-nos vivos (por exemplo, ao recusar tomar analgésicos) em vez de deixar-nos morrer.
E, se o suicídio é errado, também o é a eutanásia, no sentido de ajudar alguém a cometer suicídio
(pois ajudar alguém a fazer algo errado é errado). Mas não é necessário dizer que a primeira
reação de alguém a um suicídio só pode ser de pesar e compaixão pelo sofrimento (atual ou
previsível) que levou ao suicídio. Sugiro, no entanto, que objetivamente – dado que há um Deus
– o suicídio é errado. Se não houvesse Deus, não acho que o suicídio seria sempre errado.
[Dos mandamentos divinos]
Além do adultério, do aborto tardio, do suicídio e da eutanásia, não consigo ver como
intrinsecamente erradas nenhuma das ações que listei, proibidas pelo ensino cristão tradicional.
A tradição católica da “lei natural” tem procurado mostrar que essas outras ações são
“desordenadas” ou “antinaturais” e por isso são erradas. A melhor afirmação contemporânea que
conheço desta tradição é o livro One body [Um corpo], de Alexander Pruss. Pruss argumenta que
os órgãos do corpo têm “funções” e “esforçam-se” ou “tentam cumprir” essas funções. Por
exemplo, defende Pruss, o pênis, na relação sexual, tem a função de depositar o sêmen numa
vagina e “se esforça” por fazê-lo; e impedi-lo de fazer isso é antinatural e, portanto, errado.[11]
Parece-me que “esforçar-se” ou “tentar” é uma ação intencional que somente agentes
intencionais podem praticar; e ainda que eu esteja equivocado quanto a isso, não se segue que
seja moralmente errado fazer o que é antinatural.
Desse modo, passo a considerar as questões morais sobre as quais, em meu ponto de vista, a
correção da visão tradicional depende de Deus ter ordenado sua observância. Ao considerar cada
problema, devo primeiro considerar em que medida a visão tradicional está bem enraizada na
Bíblia e/ou na tradição cristã, e então passarei a considerar se Deus teria uma razão (do tipo
abordado na premissa 6) para ordenar sua observância. Enquanto é justificável crer que Deus
emitiu uma ordem particular, ainda que não consigamos pensar em nenhuma possível razão por
que Ele pode tê-lo feito, seria irracional acreditar nisso com respeito a muitos dos tais supostos
mandamentos, visto que isso começaria a tornar implausível supor que a Bíblia e a tradição cristã
podem dizer-nos muito acerca dos mandamentos de Deus. Começo com o recasamento depois do
divórcio, que chamarei simplesmente de “divórcio”; e considerá-lo-ei em conjunto com a
proibição do intercurso sexual fora do casamento, uma vez que as mesmas questões surgem com
ambos.

[Divórcio]
Não me parece haver dúvidas de que o próprio Jesus proibiu o divórcio (Mc 10.11-12 e Lc
16.18), possivelmente sujeito à exceção registrada no Evangelho de Mateus (5.31-32 e 19.3-12),
μὴ ἐπὶ πορνείᾳ, que normalmente é traduzido — conquanto talvez incorretamente — como
“exceto pela fornicação”, que é o intercurso sexual extraconjugal, que neste contexto constitui
“adultério”. São Paulo acrescenta uma emenda para lidar com uma situação que Jesus não
encarou em seu ministério entre os judeus, permitir a um marido ou uma esposa cristãos
recasarem-se se o cônjuge não cristão assim o merecer (1Co 7.15). Embora tanto católicos
quanto ortodoxos reconheçam uma forma de “privilégio paulino”, e a Igreja ortodoxa permita o
divórcio com base no adultério, e a aplicação detalhada dessas regras envolva muita casuística,
pode haver pouca dúvida de que, antes de 1700, qualquer um que defendesse o divórcio fora
desses limites (e em particular defendesse o divórcio por consentimento) teria sido considerado
herético.
São Paulo condena a πορνείᾳ e, embora algumas das passagens relevantes em suas cartas sejam
compatíveis com uma tradução desta como denotando um tipo particular de intercurso sexual
fora do casamento (por exemplo, com uma prostituta) em vez de como “fornicação”, nem todas
são assim. 1 Coríntios 7.1-2 condena todo intercurso sexual fora do casamento, e ao longo de
dezenove séculos a tradição cristã foi unânime em ecoar essa condenação.
Que razão Deus teria para proibir o divórcio e o intercurso sexual fora do casamento? Minha
resposta apela, em primeiro lugar, ao fato evidente de que seres humanos influenciam o
comportamento uns dos outros, independentemente de qualquer argumento que ouçam para
comportarem-se de uma maneira ou de outra. “Muita gente normal faz isso. Sou só uma pessoa
comum. É irracional esperar que eu seja um santo completo”, resume o modo como humanos
pensam acerca de muitas questões morais. É necessário um esforço considerável para resistir à
avalanche de exemplos provindos do comportamento dos outros. E minha resposta apela, em
segundo lugar, à compreensão moral que a maioria de nós tem de que a família ideal (um
casamento em que cônjuges dedicam-se um ao outro e aos filhos) é algo bom. É evidentemente
bom para qualquer um ter um parceiro que o ama e a quem ama, quando ambos guardam a
lealdade e apoiam um ao outro como uma obrigação fundamental de toda a vida; e que cooperam
na criação, alimentação e educação dos filhos da maneira certa. Esses dois pontos têm a
consequência de que, se a sociedade normalmente considerasse obrigatório confinar o intercurso
sexual ao casamento por toda a vida e assim o fizesse, isso tornaria muito mais fácil para as
famílias aproximar-se de um estado ideal.
Se o intercurso sexual está confinado ao intercurso dentro do casamento, isso tornará a
intimidade do casamento algo especial e assim fará de marido e mulher parceiros únicos um para
o outro. Alguém que guardou a satisfação do desejo sexual para um cônjuge será capaz de
considerar e ser considerado por aquele cônjuge como unicamente seu. E é plausível supor que,
se as pessoas estão acostumadas a ter relações sexuais casuais antes do casamento, torna-se
muito mais natural cometer adultério quando o casamento fica difícil ou enfadonho; e é
altamente plausível supor que o exemplo de muitas pessoas que se abstêm do intercurso sexual
antes do casamento influenciará outros a levar o casamento muito mais a sério.
A proibição do divórcio obviamente é um ônus considerável sobre aqueles cujo casamento
parece estar-se desfazendo. Por que Deus tornaria o divórcio difícil ou impossível — digamos,
para uma esposa divorciar-se de um marido cruel (embora não incrédulo)? Essas instruções
nunca foram vistas como proibindo uma separação temporária em tais circunstâncias, mas por
que a mulher não deve casar-se novamente? Um aparente rompimento do casamento pode ser
reparável. Entretanto, é muito mais provável que aconteça se os cônjuges considerarem-se
ligados pelo compromisso original de nunca desistir de tentar vencer as dificuldades do
casamento. E mesmo se todas as tentativas de alguns casais de manter o casamento fracassarem,
a persistência desses casais nesta tarefa incentivará outros casais a tentar com mais afinco manter
seus casamentos; e esses outros casais podem ser bem-sucedidos na tarefa. E, ademais, se
cônjuges separados não se casam de novo, isso ajudará os outros a refletir sobre a seriedade do
compromisso do casamento e os impedirá de entrar no casamento de modo demasiado leviano.
Seria um ato plenamente inútil para uma pessoa abster-se do intercurso sexual fora do casamento
ou não divorciar-se do cônjuge uma vez que isso tivesse bem pouca influência. Entretanto, se
Deus torna obrigatório que todos se abstenham do intercurso sexual extraconjugal e do divórcio,
e crentes religiosos reconhecem este mandamento e buscam obedecê-lo, então isso criaria um
clima de prática que teria influência considerável sobre aqueles que pretendem quebrar a
proibição. Consequentemente, Deus tem uma razão do tipo (B) para proibir tais atos. Ao agir
assim, Ele possibilita que aqueles que se encontram numa situação em que é difícil guardar o
mandamento desempenhem um papel especial nos planos de Deus para a humanidade e assim
desenvolvam a santidade por meio do serviço generoso aos outros. A existência de tal clima é
perfeitamente compatível com aqueles que obedecem à proibição mostrando grande simpatia
pelas pessoas em situações conjugais difíceis que quebram a proibição.
[Atos sexuais homossexuais]
Chego em seguida aos atos sexuais homossexuais (entre adultos de comum acordo). É tradicional
presumir que a Bíblia e a tradição cristã subsequente condenam tais atos. Vou presumir – apesar
dos esforços de muitos[12] em mostrar que a Bíblia e vários teólogos querem dizer algo diferente
com (o que parece a muitos de nós) as aparentes condenações de tais atos – que algumas
passagens como 1 Coríntios 6.9-10 e Romanos 1.24-27 e o peso contínuo da tradição
subsequente de fato condenam tais atos. Onde, afinal de contas, encontramos, antes do século
XX, alguma aprovação explícita de tais atos por algum teólogo ortodoxo em outros aspectos?
Então, passo a considerar que motivo Deus teria para proibir tais atos; e imagino que o mesmo
tipo de consideração se aplique à proibição dos atos homossexuais como à proibição do divórcio
ou do intercurso extraconjugal. Ter uma orientação sexual homossexual é uma disfunção – pois
um homossexual não pode gerar filhos por meio de um ato de amor com uma pessoa com quem
tem um compromisso único para toda a vida. Claro, alguns homossexuais não querem gerar
filhos, mas o comportamento de outros homossexuais indica claramente que o querem; e uma
disfunção é uma disfunção, quer a pessoa o perceba quer não. (Se não tivessem a disfunção,
poderiam perceber que seria bom para eles que não a tivessem.) Pode ser que um dia seja
possível com alguma operação complicada combinar o material genético de dois espermas ou
dois óvulos de modo a produzir um ovo fertilizado, embora haja muitas dificuldades
consideráveis por vencer antes que se consiga chegar a isso. Mas, se se pudesse chegar a isso,
então duas lésbicas só poderiam gerar outra fêmea. E dois homens gays precisariam de um ovo
de outra fêmea em que seu material genético pudesse ser inseminado, e um útero de uma mãe
substituta em que o ovo fertilizado pudesse crescer e tornar-se um bebê. Então, todo o processo
significaria que o bebê resultante teria três ou quatro “semipais”, alguns dos quais poderiam não
ter nenhum papel posterior na criação deles. E, como leio as muito discutíveis evidências
disponíveis on line sobre se crianças criadas por pais homossexuais crescem tão bem quanto
outras crianças, o saldo dessa evidência parece-me indicar que filhos cujos pais de criação são
também seus pais biológicos masculino e feminino num casamento feliz crescem melhor que
todas as outras crianças. E este é o tipo de reprodução e o tipo de casamento que devemos
incentivar; aqueles que não podem proporcioná-lo a seus filhos têm uma disfunção. O possível
desenvolvimento desse tipo de engenharia genética não alteraria este fato. Disfunções devem ser
prevenidas.
A evidência parece-me indicar claramente que os genes e o ambiente (natural e educacional)
desempenham um papel na determinação da orientação sexual; e também que essa orientação é
às vezes em grande medida reversível.[13] Deste modo, se houvesse um reconhecimento geral na
sociedade da obrigação de abster-se de atos homossexuais, isso preveniria que o comportamento
homossexual fosse apresentado aos jovens como uma opção de igual valor que o comportamento
heterossexual, que torna possível o casamento procriativo. Isso dissuadiria os jovens da
curiosidade de saber se são de fato homossexuais quando anteriormente isso nem lhes ocorreria,
em consequência de experimentar atos sexuais homossexuais, acostumando-se a tal
comportamento e desenvolvendo assim uma orientação homossexual. Esse clima de opinião
segundo o qual atos homossexuais são errados estimularia aqueles que começaram a desenvolver
essa orientação a não prosseguir nessa direção; e estimularia a pesquisa sobre como a orientação
pode ser curada. A medicina fez grandes avanços nos últimos anos. Doenças da mente e do corpo
que até o momento acreditava-se que fossem incuráveis mostraram-se passíveis de cura. No
entanto, parece como se, para muitos homossexuais, mas provavelmente não todos, sua condição
agora fosse incurável; e simpatia, não censura, deve ser nossa primeira reação – como deve ser
para com todos aqueles que se encontram em qualquer situação que não foi de sua escolha
própria em que seus desejos sexuais não pudessem ser satisfeitos num casamento feliz. Ainda
assim, se homossexuais mais velhos e incuráveis abstivessem-se de atos homossexuais, isso teria
grande influência sobre os homossexuais jovens e curáveis; e os mais velhos estariam prestando
um grande serviço aos outros, e isso ajudaria a fazê-los santos. Mas, evidentemente, se estou
equivocado em supor que o clima de opinião claro, embora simpático, faria alguma diferença à
orientação sexual de alguns humanos que de outra maneira adquiririam uma orientação
homossexual, precisaríamos procurar alguma outra razão por que Deus proibiria os atos sexuais
homossexuais, ou olhar novamente para o significado dos textos bíblicos e a pretensa tradição
autoritativa da Igreja. Enfatizo, porém, que a incapacidade de descobrir uma razão por que Deus
pôde proibir um tipo de ato dificilmente contaria muito contra a confiabilidade da tradição moral
da Igreja segundo a qual Deus proibiu atos deste tipo — embora a incapacidade de descobrir
quaisquer razões por que Deus pode ter proibido qualquer dos tipos de atos que estamos
discutindo contaria, acho, significativamente contra a confiabilidade da tradição moral da Igreja
em geral.
[Contracepção]
Passo agora à questão da contracepção no casamento. Embora, em minha opinião, a Bíblia não
expresse uma visão clara acerca da moralidade do uso temporário de anticoncepcionais dentro do
casamento,[14] toda contracepção foi condenada por unanimidade virtual pelos Pais da Igreja e
pelos escolásticos que expressaram uma visão. A justificativa deles para esta condenação,
portanto, deve residir em sua derivação da “tradição não escrita”.
Se alguém defende, como muitos dos Pais da Igreja e escolásticos parecem ter defendido, que a
procriação era o único propósito determinado para o intercurso sexual, então imediatamente se
segue que a contracepção é errada diante de Deus — pois ela usa o dom divino do sexo para um
propósito contrário aos desejos do doador. Há, entretanto, muita coisa na Bíblia, que compreende
o intercurso sexual como uma argamassa do companheirismo do casamento, que é bom em si
mesmo. Enquanto no relato da criação do homem e da mulher em Gênesis 1, Deus disse a Adão
e Eva “Sede fecundos e multiplicai-vos”, no relato de Gênesis 2, Deus criou a mulher como
“ajudadora” e “parceira” dos homens, em consequência do que “eles se tornam uma só carne”, e
o próprio Jesus citou as palavras de Gênesis 2 “Serão uma só carne”, como o que acontece no
casamento (Marcos 10.7-8). Alguns dos Pais reconheceram a união de casais casados como um
bom propósito para o intercurso sexual, somado ao propósito da procriação. Todavia, uma vez
que se reconhece que o casamento tem ao menos um bom propósito que não a procriação, a
questão que surge é se pode ser legítimo ter um intercurso a fim de cumprir o outro propósito ou
propósitos quando a procriação não seria uma coisa boa. Amiúde se reconhecia que a procriação
às vezes não era uma coisa boa. “Lactâncio fala de um cristão demasiado pobre para cuidar de
uma família numerosa. A única solução para este homem é a absoluta continência”.[15] No
entanto, por que seria errado ter relações enquanto se tomam medidas para evitar a procriação? A
menos que Deus tivesse proibido, ninguém seria prejudicado, então por que Deus o proibiu?
Para responder essa questão, precisamos seguir Agostinho na distinção entre os mandamentos
dirigidos apenas a certo grupo de pessoas e aqueles dirigidos a todas as pessoas em todo o tempo.
Podemos, proponho, reconhecer o primeiro se vemos a intenção de Deus em emitir o
mandamento como sendo constituído pelas circunstâncias em que vivia o grupo ao qual ele
originalmente se dirigia, mas que não faz sentido em outras circunstâncias. Por exemplo, até o
século XIV, os cristãos criam que Deus proibia a usura — isto é, emprestar dinheiro que haveria
de ser devolvido com juros. Até o século XIV, a maior parte do dinheiro emprestado o era pelos
ricos aos pobres — e decerto a pobreza dos devedores era uma boa razão para que Deus
proibisse o credor de cobrar juros. No entanto, desde aquele tempo, o crescimento de arranjos
financeiros complexos teve a consequência de que muito do dinheiro emprestado o é por
abastados a companhias prósperas que usam o dinheiro emprestado para fazer ainda mais
dinheiro, e então é claro que a riqueza do devedor quer dizer que já não há razão para proibir o
empréstimo de dinheiro a juros.
Agora o argumento de Deus proibir a contracepção (se ele o fez) era presumivelmente porque —
como Gênesis 1 relata Deus dizendo a Adão e Eva — ele queria que os humanos fossem
“fecundos, multiplicassem-se e enchessem a terra” (Gênesis 1.28). É plausível supor que, se a
contracepção tivesse sido praticada largamente em séculos anteriores, a raça humana ter-se-ia
extinguido. Mas plausivelmente os humanos estão agora muito mais próximos de “encher a
terra”. Se a contracepção não fosse praticada agora, a terra logo se tornaria muito populosa e, de
fato, populosa demais para produzir alimento suficiente para alimentar todos os humanos. E,
imagino, essa é uma razão por que, como com a usura, as circunstâncias que tornam o
mandamento algo bom que Deus ordene já não se mantêm. Entretanto, mais uma vez, se estou
errado quanto a isso, precisaríamos procurar alguma outra razão por que Deus teria proibido a
contracepção que pode ou não aplicar-se ainda hoje, ou olhar de novo para a tradição, neste caso
(na ausência de passagens bíblicas relevantes) a tradição da doutrina da Igreja.
Isso me traz de volta à questão da moralidade do aborto precoce, que numa visão dualista da
substância, não constituiria homicídio. Ainda assim, apesar do fato de que a maioria dos Pais
Cristãos serem dualistas de substância — o aborto precoce ainda era tradicionalmente
considerado um pecado mortal. Por que pode ser o caso de que a contracepção não seja agora
proibida porque Deus pretendia que o intercurso sexual servisse não meramente ao propósito da
procriação, mas também o propósito de cimentar a união do casal casado. A gravidez, no
entanto, não tem outro propósito concebível para o qual Deus a teria proporcionado, senão a
produção de outro ser humano. Assim, Deus pode com justiça ter-nos ordenado que não
interrompêssemos este processo, assim como nós — se demos a uma criança a semente de uma
flor linda e rara — podemos dizer à criança para plantar e regar até que, enfim, ela floresça.
Proibir o aborto não levará a um mundo superpopulado, já que a contracepção é usada em grau
moderado.
[Liderança familiar]
Por fim, chego à questão da liderança familiar. “Mulheres, submetam-se a vossos maridos”,
escreveu o autor da epístola aos efésios (5.22), uma instrução repetida em outras epístolas do
Novo Testamento.[16] Até os últimos cem anos, os cristãos sempre consideraram o marido o
cabeça da família, centrada no marido e na esposa, que deviam alimentar e educar os filhos.
Contudo, parece-me que não há uma verdade moral necessária que torne a liderança masculina
obrigatória. É necessário um mandamento divino explícito para tanto. Claramente, no entanto,
qualquer instituição precisa de um sistema para resolver diferenças acerca de como uma
instituição deve agir. Algum tipo de sistema de “voto majoritário” é usado por muitas
instituições. Mas, claro, isso seria inútil numa organização de dois membros, como um
casamento. Evidentemente também, os cônjuges hão de buscar concordância em questões
centrais à instituição se puderem — sobre onde viverão, como educarão os filhos e assim por
diante. Se, contudo, não conseguirem chegar a um acordo, um deles há de ter o voto de Minerva.
De outro modo, o casamento só sobreviverá se um dos cônjuges for emocionalmente mais fraco,
menos egoísta ou mais convicto de que o casamento deve sobreviver do que o outro o é. Melhor
ter uma regra legal clara, dependente de diferenças virtualmente inalteráveis na natureza dos
homens e das mulheres e de seu papel no intercurso sexual e na procriação dos filhos. Deus pode
ter tido alguma razão para fazer do marido o cabeça da família, ou pode ter feito assim por uma
decisão arbitrária em virtude de ter uma razão para tomar uma decisão arbitrária de tipo (A).
Assim como dirigir à esquerda ou à direita, não importa que regra é adotada; mas, de fato,
importa que alguma regra seja adotada. E assim como o estado que tem as estradas tem o direito
de estabelecer essa regra, assim também Deus, que instituiu o casamento, tem o direito de
estabelecer quem será o cabeça da família.
O princípio comum em ação em todas essas obrigações e proibições que são criadas pela vontade
de Deus é que se exige de alguns de nós que nos conformemos à obrigação ou proibição por
causa dos demais — o outro cônjuge, os outros em outros casamentos, os outros ainda não
casados, ou outros ainda por nascer. Muitas dessas obrigações e proibições são concebidas para
criar um clima de opinião em que o casamento será considerado uma instituição sagrada, em que
casais amorosos podem dar origem a famílias amorosas, a fim de preservar a instituição contra
influências que a enfraquecem e possibilitar que mais humanos entrem nela. As proibições e
obrigações provavelmente só terão este efeito se muitas pessoas se conformarem a ele. Deus tem
a razão de impô-las como obrigações sobre todos nós, para que possamos ajudar os casamentos
dos outros e assim fazer-nos pessoas naturalmente boas.
[Conclusão]
Devo acrescentar, como conclusão, que, se estou certo em declarar que a maioria das obrigações
morais abordadas são obrigações apenas porque Deus as ordenou, não há sentido em repreender
não cristãos por não se conformarem a essas obrigações; a única maneira de fazê-los
conformarem-se é conseguir que se tornem cristãos, e então podem começar a apreciar os
argumentos para conformarem-se a eles.
[1]
Citado aqui conforme a edição brasileira: Santo Agostinho, A doutrina cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,
2002, p. 174. (Coleção Patrística, vol. 17) [N. T.]
[2]
Ibidem, p. 164, com modificações. [N. T.]
[3]
A respeito deste ponto e dos princípios usados pela Igreja para reconhecer os livros cristãos como inspirados e portanto
adequados à inclusão no cânone bíblico, ver meu livro Revelation. 2ª ed. Oxford University Press, 2007, p. 186-87.
[4]
Êxodo 20.14 e Deuteronômio 5.18 são confirmados por dedução em Mateus 5.27-28 e 19.18-21 e em João 8.11.
[5]
Diz a Epístola de Barnabé: “Não mates a criança no seio da mãe, nem logo que ela tiver nascido. Não te descuides de teu filho
ou de tua filha. Pelo contrário, dá-lhes instrução desde a infância no temor do Senhor”. Disponível em: http://www.e-
cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/pais-apostolicos/epistola-de-barnabe.html. Acessado em 02 de janeiro de 2018. [N.
T.]
[6]
Ver Don Marquis, “An Argument that Abortion is wrong”. In: H. LaFollette (ed.), Ethics in Practice. 3ª ed. Blackwell
Publishing, 2007, atualizando um artigo anterior de Marquis no Journal of Philosophy, 1989.
[7]
Tomás de Aquino (Summa Theologiae 1a:118.2 ad2) seguiu Aristóteles ao sustentar que o feto passa pelos estágios vegetativo
e animal – isto é, tinha alma “nutritiva” e “sensitiva” antes de se tornar humano; do que se segue que o aborto precoce não seria o
assassinato de uma pessoa humana. O catecismo não vai tão longe ao dizer que o embrião é uma pessoa desde a concepção, mas
apenas que assim deve ser tratado; pode-se dizer que, como não sabemos em que estágio do desenvolvimento o feto tem uma
alma humana, devemos desde o início dar-lhe o benefício da dúvida. [Talvez seja conveniente considerar o que o diz o catecismo
da Igreja Católica neste ponto: “Visto que deve ser tratado como uma pessoa humana desde a concepção, o embrião deverá ser
defendido em sua integridade, cuidado e curado, na medida do possível, como qualquer outro ser humano”. Catecismo da Igreja
Católica. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 593. (N. T.)]
[8]
Agostinho apresentou uma condenação do suicídio poderosamente influente em Cidade de Deus 1.16-27. Contudo, embora
escrevesse que não havia razão para admirar aqueles que se matam por não conseguirem suportar a dor ou a desgraça, ele não
tinha uma teoria geral de por que o suicídio era errado.
[9]
Ética a Nicômaco 5.11. [Diz Aristóteles: “[...] a pessoa que se mata voluntariamente num acesso de forte emoção, agindo desta
maneira contraria a reta razão, e isto a lei não permite; ela age portanto injustamente. Mas contra quem? Certamente contra a
cidade e não somente contra si mesma, pois ela mesma sofre voluntariamente, mas ninguém sofre uma injustiça voluntariamente.
É também por esta razão que a cidade aplica uma penalidade em tais casos punindo o suicida com uma perda relativa de direitos
civis, como se ele estivesse agindo injustamente em relação à cidade”. Aristóteles, Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama
Kury. 4ª ed. Brasília: Editora da UNB, 2001, p. 110. (N. T.)]
[10]
Conquanto também apresentando tanto o motivo fraco (para mim) de que “vai contra a inclinação natural e contra a caridade
que todos a si mesmos se devem” quanto a razão dada por Aristóteles, Tomás de Aquino escreveu: “porque a vida é um dom
divino feito ao homem e dependente do poder de Deus. [...] Logo, quem se priva da vida peca contra Deus. [...] Pois só a Deus
pertence julgar da morte e da vida. Summa Theologiae 2a2ae.64.5.
[11]
Portanto “parece condição necessária de algo ser parte do corpo o servir ao corpo como propósito. Deve de fato lutar para
promover este propósito. Alexander Press, One Body. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2013, p. 99.
[12]
Como exemplo desses esforços, ver David Newheiser, “Sexuality and Christian Tradition”, Journal of Religious Ethics 43
(2015) 122-45.
[13]
Ver meu breve resumo desta prova, como avaliada até 2006, em meu Revelation. 2ª ed. Oxford University Press, 2007, nota
adicional F. O estudo Spitzer ao qual me refiro aqui foi posteriormente repudiado pelo autor; mas um detalhado estudo
subsequente de um grupo de homossexuais cristãos que tentaram mudar de orientação sexual parece confirmar a visão de que a
orientação sexual de alguns homossexuais, mas talvez não da maioria, pode ser modificada em grau significativo. Ver Michelle
Wolkomir, Be Not Deceived: The Sacred and Sexual Struggle of Gay and Ex-Gay Christian Men. Rutgers University Press, 2006.
E em caso afirmativo, é provável que muitos mais possam ser prevenidos de se tornarem homossexuais, dado o ambiente correto.
(Ver minhas “Respostas” a várias críticas de minha visão filosófica em N. Mossner (ed.), Richard Swinburne: Christian
Philosophy in a Modern World. Ontos Verlag, 2008, p. 223, n.14.
[14]
Gênesis 38.8-10 às vezes é citado como condenação da contracepção. Onan tinha de “suscitar a descendência” da esposa de
seu irmão morto. “Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher
de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do Senhor,
pelo que também o matou”. No entanto, o que estava sendo condenado aqui não era o derramamento ocasional de sêmen, mas a
total recusa a suscitar a descendência para a qual com efeito ela era sua esposa.
[15]
Divine Institutes 6.20.25, conforme resumido em J. T. Noonan, Contraception. Harvard University Press, 1965, p. 123.
[16]
Colossenses 3.18, 1 Pedro 3.1, Tito 2.5.

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