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1
A Guerra Atômica Que Não Houve
Kurt Mahr

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização
Vitório

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

2
Nenhum exército equipado com armas
terrenas convencionais, por maior que seja,
pode enfrentar os recursos da antiqüíssima
técnica arcônida. Perry Rhodan sabe disso
perfeitamente, e não se preocupa com os re-
manescentes de uma divisão espacial coman-
dada pelo general Tomisenkow, que investira
obstinadamente contra a fortaleza de Vênus.
O que causa muita preocupação ao chefe da
Terceira Potência é a evolução mais recente
da política na Terra.
Com sua permanência no planeta Peregri-
no, Rhodan perdeu mais de quatro anos.
Agora tem de regressar com a maior urgência
ao seu mundo, para que não haja a guerra
atômica...

3
Personagens Principais:

Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potên-


cia.
Coronel Freyt — Representante de Perry
Rhodan na Terra.
Capitão Welinskij — Comandante de um es-
quadrão de caças.
Major Deringhouse — Que dá provas de sua
qualidade de sabotador e agente secreto.
Fedor A. Strelnikov — Um novo ditador.
Marechal Sirov — O braço direito de Strel-
nikov.

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1

Vista da nave capitania Wladislav Kossygin,


a frota se parecia com duas fileiras de pérolas
reluzentes, cuidadosamente enfiadas em bar-
bantes, a distâncias sempre iguais.
A frota se deslocava sob o brilho reluzente
do Sol. Os pontos luminosos que representa-
vam as naves, projetados nas telas da Kossygin,
emitiam uma luz muito mais intensa que a das
estrelas destacadas contra o céu negro.
O major Pjotkin se esforçou para reprimir o
orgulho que essa visão ameaçava provocar em
sua mente.
Era bem verdade que, comparados com ou-
tros veículos que povoavam o espaço, essas na-
ves não passavam de patos desajeitados e de
longas asas. Uma vez fora do âmbito da gravita-
ção terrestre, possuíam apenas uma reserva de
radiações que lhes permitiria realizar uma ma-
nobra de desaceleração antes de atingir a órbita
de Vênus. O resto, o mais difícil do pouso pro-
priamente dito, ficaria a cargo das asas. A ater-
risagem seria aerodinâmica. Tinham que contar
com uma perda de cinco por cento. Como a
frota possuísse duzentas naves, dez jamais che-
gariam ao solo de Vênus; ou atingiriam o mes-
mo sob a forma de um meteorito incandescen-
5
te. Eram estas as previsões dos cientistas.
O resultado também poderia ser diferente,
segundo Pjotkin. Talvez fosse dez por cento.
A frota levava reforços para a expedição do
general Tomisenkow. Os reforços consistiam
principalmente num suprimento de aço, uma
vez que, depois do pouso, as naves não mais
estariam em condições de sair de Vênus. Não
lhes restaria qualquer reserva de radiações. Jun-
tamente com as quinhentas naves de Tomi-
senkow, aguardariam a chegada de outra frota
de reforço com uma carga de combustível, que
voltaria a colocar os patos metálicos em condi-
ções de voar.
Pjotkin procurou calcular se mil naves seri-
am suficientes para reabastecer as quase sete-
centas que se encontrariam em Vênus. E se fos-
sem? Nesse caso, em vez de setecentas naves,
mil ficariam retidas no planeta coberto de selva.
Sessenta por cento da tripulação da frota de
Pjotkin era formada por mulheres. Pjotkin fica-
va se indagando o que os planejadores teriam
tido em mente ao comporem dessa forma o
pessoal conduzido pela frota. As mulheres eram
especialistas: médicas, técnicas, biólogas.
Pretenderiam instalar em Vênus algo pareci-
do com uma base permanente? Uma base que
se tornasse independente da Terra em todos os
6
sentidos, inclusive no campo biológico?
Sem dúvida Pjotkin teria encarado sua mis-
são com maior seriedade se soubesse que, para
Tomisenkow e sua expedição, o êxito da mes-
ma representava a sobrevivência. Na posição
atual dos astros — o Sol se interpunha entre os
dois planetas — não havia qualquer comunica-
ção pelo rádio entre Vênus e a Terra. Em nosso
planeta ninguém sabia que Perry Rhodan, chefe
da Terceira Potência e comandante da superna-
ve Stardust-III, havia dispersado a expedição de
Tomisenkow pelos quatro cantos de Vênus e
privado a mesma de quase todos os recursos
técnicos.

***

Naquele mesmo instante, a Stardust-III se


encontrava em sua viagem de regresso de Vê-
nus à Terra. As componentes motrizes da enor-
me nave esférica funcionavam a plena potência
e, dentro de poucos minutos, aceleraram a
nave a um ponto extremamente elevado. Os
imensos campos protetores e de absorção de
choques fariam com que qualquer quantidade
de matéria, desde a minúscula partícula cósmica
até a rocha interplanetária, se desfizessem sob
o efeito das radiações antes de poderem se tor-
7
nar perigosas à nave.
Rhodan não apreciava esse tipo de vôo,
pois, se utilizando do sistema de microondas,
não teria chances para uma rápida localização
de qualquer objeto que cruzasse seu caminho. E
o rastreamento estrutural, que funcionava com
base em princípios pentadimensionais, tinha
seu campo de detecção situado a partir de uma
unidade astronômica, ou seja, cento e cinqüen-
ta milhões de quilômetros. Era bem verdade
que mesmo dentro desse raio o rastreamento
era possível; mas perdia todo o sentido, já que,
numa distância tão reduzida, o sistema de ob-
servação por microondas funcionaria pratica-
mente com a mesma rapidez.
Por isso a Stardust-III se deslocava numa es-
pécie de vôo cego. Nada poderia lhe acontecer,
já que os campos protetores lhe forneceriam
proteção ininterrupta. Mas ai de quem se puses-
se em seu caminho.

***

Na tela do radar da Kossygin surgiu uma es-


tranha mancha verde. Aparecera naquele ins-
tante, mas, antes que o operador de radar des-
se pela sua presença, já havia percorrido a
quarta parte do diâmetro da tela.
8
Num movimento treinado milhares de vezes,
a mão do homem se deslocou para baixo e
comprimiu a superfície vermelha da chave de
alarma. Sereias uivaram e o telecomunicador
transmitiu o alarma às duzentas naves que com-
punham a frota.
Subitamente a voz de Pjotkin soou no alto-
falante.
— O que houve, radar?
— Objeto desconhecido aproxima-se da fro-
ta. Velocidade... quase igual à da luz!
O operador ouviu a respiração pesada de
Pjotkin.
— Que setor de nossa frota está sendo ame-
açado? Fale logo, homem!
— O centro.
A voz de Pjotkin se tornou mais fraca quan-
do ele se voltou para outro microfone. O opera-
dor de radar ouviu as ordens por ele transmiti-
das:
— Corrigir rota. Toda força para bombordo.
Imediatamente.
O ponto verde quase havia percorrido meta-
de da tela do radar. Aproximava-se inexoravel-
mente do centro marcado em vermelho, que re-
presentava a posição do observador.
O operador de radar conteve a respiração.
Se a correção não fosse completada imediata-
9
mente...
Mais dois segundos!
O homem cerrou os olhos e se agarrou ao
painel, aguardando o choque iminente.
Não houve o choque esperado. A morte sur-
giu em forma de um raio azul e ofuscante, que
transformou a Kossygin num enxame de molé-
culas e átomos que se disseminaram pelo espa-
ço.
O operador de radar não percebeu nada.
Uma morte que surge com a velocidade da luz
nem chega a causar uma impressão dolorosa.

***

Na última fração de segundo, Rhodan fora


avisado sobre a fileira dupla formada pelas du-
zentas naves. Num gesto instantâneo, levantou
o braço para manobrar algum dispositivo de co-
mando que desencadeasse uma manobra salva-
dora.
Mas era apenas um movimento reflexivo.
Ao se dar conta disso, baixou o braço; a Star-
dust-III já deixara para trás a frota inimiga.
Imediatamente a nave executou uma mano-
bra de frenagem, utilizando toda a potência de
suas componentes motrizes. Uma desacelera-
ção máxima — que representava o valor mais
10
elevado que os neutralizadores poderiam absor-
ver — atingiu em poucos minutos, não uma
imobilização absoluta, mas uma redução de ve-
locidade que permitia a observação ótica direta
da frota parcialmente destroçada.
O quadro que se apresentava nas telas da
Stardust-III era consternador. A fileira dupla de
pérolas cintilantes, que o major Pjotkin observa-
ra meia hora antes, estava esfacelada. Impelidas
pelo pânico, as naves se dispersavam em todas
as direções. Apesar disso, ainda se percebia ni-
tidamente a abertura que a Stardust-III fizera na-
quele front.
Rhodan mandou efetuar a sondagem radio-
fônica. Pretendia escutar as mensagens troca-
das entre as naves. Reconhecera seu formato e
por isso sabia que se tratava de uma frota do
Bloco Oriental. Apesar disso, prestaria socorro
imediato àqueles homens, se não conseguissem
se arranjar por si.
Ouviu os informes expedidos das várias na-
ves. O tradutor automático traduziu as mensa-
gens russas para o inglês.
Rhodan ficou sabendo que, no início, a frota
era composta de duzentas naves. Trinta e qua-
tro delas — entre elas a nave capitania, que tra-
zia a bordo o major Pjotkin — haviam sido des-
truídas; evaporaram-se sob o impacto dos cam-
11
pos protetores da gigantesca nave.
Um coronel assumiu o comando. Através de
uma série de manobras complicadas voltou a
unir as naves numa formação ordenada. Essas
manobras consumiram uma quantidade consi-
derável de material radiante. Os remanescentes
da frota teriam dificuldades em reduzir a veloci-
dade a um limite que não oferecesse perigo
quando atingissem a órbita de Vênus.
Todos os observadores de radar da frota ha-
viam percebido a causa do desastre poucos se-
gundos antes da catástrofe, e agora viram o
ponto verde se afastar com velocidade modera-
da.
Rhodan ouviu uma série de conjecturas so-
bre o que seria aquele ponto. Uma única pes-
soa teve a idéia de que poderia se tratar de um
veículo da Terceira Potência, mas essa idéia foi
logo abafada pelo comandante da frota.
Rhodan compreendeu a manobra. O coro-
nel se veria diante de um problema insolúvel se
confessasse que o inimigo dispunha de veículos
capazes de atravessar uma frota compacta de
naves sem sofrer o menor dano.
Percebia-se que as cento e sessenta e seis
naves que restavam estavam em condições de
prosseguir viagem sem auxílio de fora. Face à
escassez de matéria radiante, não lhes restava
12
outra alternativa senão prosseguir pela rota em
que já se encontravam: a de Vênus.
A Stardust-III deixou-as entregues ao seu
destino e reiniciou sua viagem.
Rhodan, no entanto, lamentou a destruição
das trinta e quatro naves espaciais. Ainda mais
que o encontro da Stardust-III com a frota do
Bloco Oriental só podia ser atribuído exclusiva-
mente a um acaso por demais infeliz. Era extre-
mamente improvável que dois ou mais objetos,
que se deslocassem pelo espaço em trajetórias
mais ou menos arbitrárias, viessem se encontrar
no mesmo ponto; muito mais improvável do
que duas pedrinhas atiradas por pessoas dife-
rentes virem a se chocar.

12 de junho.
Moscou.
Dez horas da manhã, tempo local.

O Estado-Maior das forças armadas do Blo-


co Oriental chegara à conclusão de que o ata-
que aos principais centros militares e industriais
dos dois outros blocos de nações e da Terceira
Potência teria de ser marcado para um dos
próximos dias.
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As condições nunca haviam sido tão favorá-
veis. O Bloco Oriental instalara sua base em
Vênus, e uma poderosa frota com reforços es-
tava a caminho desta base — não se desconfia-
va da sorte lamentável de Tomisenkow, tam-
pouco da catástrofe que atingira a frota no
meio do caminho. Tudo indicava que a Terceira
Potência não tomara conhecimento das modifi-
cações políticas determinadas pelo novo curso
de ação do Bloco Oriental, ou não se interessa-
va pelas mesmas. No início temia-se uma inter-
venção dos homens de Galáxia, mas esta não
se verificara.
Provavelmente isso seria devido ao fato de
que Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência,
no momento não se encontrava na Terra, nem
nas proximidades da mesma.
Em Moscou não se sabia nada sobre o para-
deiro de Rhodan.
A grande conferência do Estado-Maior foi
realizada no auditório de uma universidade. To-
dos estavam de acordo sobre os princípios pe-
los quais se orientaria a ação, e a idéia generali-
zada de que só faltava discutir alguns detalhes
da execução do plano encheu os generais de
uma certa euforia.
Um marechal búlgaro apresentou sua tese
do cerco estratégico da Federação Asiática. Foi
14
quando um ordenança entrou no recinto com o
passo tranqüilo, mas com uma expressão de de-
sassossego no rosto. Trazia um papel na mão e
se dirigiu ao marechal Sirov que, sentado numa
poltrona do centro da primeira fileira, dirigia a
conferência.
Sirov passou os olhos pelo papel. Os que se
encontravam mais próximos viram que franziu a
testa, levantou os olhos e encarou o marechal
búlgaro até que o mesmo estacou em sua fala.
Sirov fez um gesto, se levantou e, com o papel
na mão, se dirigiu à tribuna que o professor
costumava usar para fazer suas preleções. Es-
pantado, mas com a maior solicitude, o búlgaro
lhe cedeu o lugar.
Sirov iniciou sua fala sem qualquer intróito:
— Vou ler as notícias vindas de todas as par-
tes do país, que a central recebeu há poucos
minutos.
— Primeiro: Às nove horas e trinta e oito
minutos, tempo de Moscou, um posto de obser-
vações meteorológicas — fez uma pausa signifi-
cativa, para que todos compreendessem que,
sob o disfarce do posto, se ocultava um objeto
muito mais importante — situado em Nowaja
Sumlja, uma ilha da região ártica, foi arrancado
do solo e carregado por um ciclone. O único
sobrevivente encontrou um radiotransmissor in-
15
tacto e enviou a notícia. Informa que, poucos
segundos antes do início do fenômeno súbito e
inesperado, a escuridão desceu sobre a Terra,
como se a noite polar tivesse irrompido com
uma antecedência de quatro meses.
“Segundo: Nowosibirsk, oito horas e cin-
qüenta e um minutos, tempo de Moscou. Um
tipo de eclipse solar cai sobre a Terra. A base
de foguetes situada nas proximidades da cidade
é atacada por uma estranha ausência de gravi-
dade. Os homens saem flutuando pelo ar, as
rampas de disparo se soltam de suas bases, os
foguetes são tangidos pela tormenta que desaba
de repente.
“Terceiro: Molotov, Montes Urais, nove ho-
ras e quarenta e quatro minutos, tempo de
Moscou. Uma coisa inexplicável obscurece o
céu por instantes, provoca um ciclone de vio-
lência inacreditável e deixa atrás de si uma faixa
de terra calcinada com cerca de um quilômetro
de largura. Todas as instalações de mineração e
processamento de minérios das usinas Sergej Il-
juchin situadas acima do solo foram destruídas.”
Sirov fez uma pausa. Sentiu certa satisfação
ao perceber que não era a única pessoa que ti-
nha ficado abalada com essas notícias. O pavor
e o desânimo se desenhavam em todos os ros-
tos.
16
— A explicação destas ocorrências — pros-
seguiu em tom áspero — provavelmente está
na quarta notícia, que vou ler.
“O posto de radar da península de Taimyr,
situada no norte da Sibéria, informa ter localiza-
do um objeto esférico de cerca de oitocentos
metros de diâmetro, que se desloca sobre o ter-
ritório de nossos Estados nas mais variadas dire-
ções e altitudes; ao que tudo indica está sendo
dirigido.
“Todos nós estamos lembrados dos fenôme-
nos ligados à súbita ausência de gravidade, re-
gistrados na época em que a Terceira Potência
começou a se estabelecer no deserto de Gobi.
Portanto, sabemos quem é o inimigo que temos
diante de nós. Não conhecemos todas as armas
de que ele dispõe, mas estamos dispostos a lan-
çar nossas armas contra ele. O tempo das dis-
cussões passou; chegou a hora de agir.”

***

12 de junho.
Karaganda.
Cerca de 14 horas, tempo local.

Há meia hora os aparelhos da 23a esquadri-


lha de caças estão em regime de rigorosa pron-
17
tidão.
Fala-se num “veículo aéreo inimigo muito
grande” que, pelo que se ouve, se diverte em
cruzar os céus do país em todas as direções,
deixando atrás de si a confusão e a destruição.
Os pilotos estão sentados nos seus apare-
lhos, com as carlingas abertas. Pelo que se
ouve, o inimigo desenvolve uma velocidade ex-
traordinária. Uma vez localizado o veículo inimi-
go, os aviões terão que decolar imediatamente.
O objetivo é a destruição do inimigo com to-
dos os meios disponíveis.

***

Reginald Bell, companheiro de Rhodan des-


de os dias do primeiro vôo humano à Lua, diri-
gia a Stardust-III sem recorrer ao piloto auto-
mático. Numa tela fixada acima de sua mesa de
comando via-se o mapa do hemisfério norte da
Terra. As indicações de rota transmitidas por
Rhodan chegavam a ele através de setas e pon-
tos vermelhos projetados nesse mapa.
Rhodan fez o possível para poupar vidas hu-
manas. Sabia que a chamada revolução, que há
algum tempo arrancara o Bloco Oriental do
seio do grupo das superpotências que buscavam
a distensão, só era promovida por umas poucas
18
pessoas ambiciosas. Os quatrocentos milhões
de pessoas que habitavam essa região da Terra
não podiam ser responsabilizados pela revira-
volta.
Mas estavam em guerra, e nem mesmo o
mais humano dos comandantes conseguiria evi-
tar toda e qualquer perda de vida.
Rhodan sabia quais eram os pontos vulnerá-
veis do inimigo. Seus agentes estavam espalha-
dos pelos quatro cantos da Terra, e os prisio-
neiros capturados em Vênus tiveram de lhe dar
as informações que desejava, quer quisessem,
quer não.
Na região de Baku, a Stardust-III acabara de
inutilizar uma usina de reatores que supria de
energia elétrica as instalações técnico-militares
do litoral do Mar Cáspio.
Rhodan introduziu no mapa projetado uma
seta branca que apontava para a Sibéria Oci-
dental e colocou um ponto vermelho sobre a ci-
dade de Karaganda.
Imediatamente Bell mudou de rota.

***

— Localização a duzentos e dez graus! —


berrou a voz nos fones de ouvido. — Altitude:
treze mil metros. Pista livre para a decolagem
19
de todos os aparelhos.
A base aérea de Karaganda era uma das
mais modernas do Bloco Oriental. O dimensio-
namento racional das pistas permitia a decola-
gem simultânea de toda uma esquadrilha de ca-
ças.
O capitão Welinskij, um homem de descen-
dência polonesa, comprimiu o botão que fecha-
va a carlinga e imprimiu a potência máxima ao
motor. Com a ordem de decolar, os calços das
rodas foram afastados automaticamente. A
máquina rolou pela pista, aumentou de veloci-
dade e subiu muito antes de atingir o fim da pis-
ta.
Welinskij assumiu o comando da esquadri-
lha.
— Virar para duzentos e dez graus. Altitude
de dezoito mil metros.
Não era recomendável que um piloto de
caça atacasse da mesma altitude ou mesmo de
baixo um adversário superior em forças. Uma
diferença de altitude de cinco mil metros au-
mentaria consideravelmente as chances que ti-
nham Welinskij e seus companheiros de causar
algum dano ao inimigo.
Os aviões de caça dispunham de dois meca-
nismos propulsores inteiramente independen-
tes: um reator de jato, acionado por ocasião da
20
decolagem, que levaria o aparelho rapidamente
à altitude desejada, e um dos mecanismos con-
vencionais de turboradiações, que permitiria,
em vôo horizontal, uma velocidade de mach 4,
ou seja, uma velocidade equivalente a quatro
vezes a do som.
Os caças estavam equipados com foguetes e
canhões automáticos, rigidamente montados na
estrutura. Não haveria caça mais eficiente na
Terra, se... há alguns anos o primeiro astronau-
ta americano não tivesse encontrado na Lua os
representantes de uma raça estranha, inves-
tindo-se na herança de suas conquistas tecnoló-
gicas.
— Chaminé para todos os limpa-chaminés!
Chaminé para todos os limpa-chaminés! O veí-
culo inimigo desloca-se a uma velocidade de
mach 15, de duzentos e dez em direção a zero
trinta. Dentro de quinze segundos sobrevoará a
cidade. Limpa-chaminés, vocês já podem ver o
inimigo. Não aguardem nova ordem de ataque.
Confirmem!
Logo se ouviu a voz do comandante da es-
quadrilha:
— Limpa-chaminés para chaminé. Vemos o
inimigo e atacaremos imediatamente. Fim.
Dirigindo-se aos pilotos, prosseguiu:
— Preparem-se, rapazes! Ação individual.
21
Fim.
Welinskij observou o inimigo.
Viu uma parede tremeluzente de fogo surgir
acima do horizonte. De início era pequena e
bonita; seu aspecto, visto daquela altura, era
mais ou menos o de um incêndio na estepe.
Mas cresceu numa velocidade espantosa, pa-
recendo se desprender do solo, e se transfor-
mou numa esfera ofuscante. Com um movi-
mento automático, Welinskij colocou os vidros
antiofuscantes diante dos óculos de proteção.
— Meu Deus! — murmurou para si mesmo.
— Falaram em oitocentos metros! Aquilo ali
tem pelo menos dez quilômetros de diâmetro.
Não teve tempo para refletir. Viu a esfera de
fogo se aproximar vertiginosamente. Supôs que
fosse o inimigo, ou que este se escondesse no
seu interior. Disparou todos os foguetes de uma
só vez. Mas, de um instante para outro, teve
dúvidas se os pequenos projéteis com suas car-
gas explosivas nucleares seriam capazes de cau-
sar qualquer dano àquela bola de fogo.
Dirigiu o avião para o alto. Cerrou os olhos,
pois, apesar do vidro antiofuscante, a esfera fez
com que lhe ardessem as conjuntivas.
Welinskij foi mais feliz que qualquer dos ou-
tros pilotos. Conseguiu manobrar seu aparelho
de tal forma que apenas roçou nos gigantescos
22
campos protetores da Stardust-III. O avião se
esfacelou, e a força do impacto fez com que o
ejetor arremessasse Welinskij mais algumas cen-
tenas de metros para o alto. Mas, quando co-
meçou a descer, o pára-quedas se abriu, foi
atingido pelo ar aquecido e fez com que o capi-
tão balouçasse em direção ao solo, são e salvo.
Os demais aparelhos se precipitaram para
cima da bola de fogo. Evaporaram-se nas nu-
vens causadas pela explosão dos foguetes que
eles mesmos haviam disparado poucos segun-
dos antes.
A luta — se é que aquilo podia ser chamado
de luta — durou exatamente cem segundos,
desde o instante em que surgiu a Stardust-III.
Quando chegou ao fim, a 23a esquadrilha de
caças deixara de existir.
Só restava um vestígio insignificante: o capi-
tão Welinskij, que, atingido pelo redemoinho
causado pela Stardust-III, foi atirado a uma dis-
tância tal que pôde se livrar da radiatividade de-
sencadeada pelos foguetes. Inconsciente, conti-
nuava em sua descida.
O destino poupara aquele homem para que
pudesse contar algo aos homens que lhe havi-
am confiado a missão.
Mas às vezes o destino parece bastante mío-
pe. Se Welinskij contasse o que presenciara, se-
23
ria considerado um idiota e encaminhado a um
psiquiatra.
Enquanto isso acontecia, a fatalidade pôde
se abater sobre a Humanidade.
Perry Rhodan observava a aproximação da
esquadrilha de caças com um rosto que parecia
petrificado. Sabia perfeitamente o que aconte-
ceria se os caças não mudassem de rumo imedi-
atamente.
A Stardust-III deslocava-se a uma velocidade
que equivalia a quinze vezes a do som. A uma
velocidade daquelas, o impacto dos campos
protetores, cujo diâmetro correspondia a dez
vezes o da nave, fazia com que as moléculas de
ar entrassem em incandescência ou se ionizas-
sem. O resultado era aquela bola de fogo de
quase dez quilômetros de diâmetro, cuja visão o
capitão Welinskij jamais esqueceria.
Os foguetes disparados pelos caças detona-
ram na periferia do campo protetor; no interior
da nave não chegaram sequer a provocar um
tremor, por mais leve que fosse. Mas os pilotos
de caça voaram atrás dos projéteis por eles dis-
parados, causando sua própria destruição.
A Stardust-III se manteve na rota, em dire-
ção à cidade de Karaganda. Rhodan aproveitou
a oportunidade para, pela primeira vez durante
aquela missão, fazer uso de uma arma psicoló-
24
gica.

***

A alta oficialidade da base aérea de Kara-


ganda-Leste ficou com os rostos cadavéricos ao
tomar conhecimento da destruição total da 23a
esquadrilha de caças.
Que inimigo seria aquele?!
A Stardust-III sobrevoou a cidade com veloci-
dade reduzida, produzindo uma tempestade
que, em comparação às que haviam sido desen-
cadeadas em outros lugares, podia ser chamada
de pouco intensa. As rajadas chegaram à inten-
sidade onze, mas não produziram qualquer
dano à cidade ou à base.
Houve, porém, um fato muito mais interes-
sante. A leste da cidade, a imensa nave inter-
rompeu sua viagem, se imobilizou por um ins-
tante e começou a subir. Numa altitude de qua-
renta mil metros voltou a se imobilizar. Parecia
pendurada no céu, causando pavor aos habitan-
tes de Karaganda, que não viam mais o sol, e
servindo de estímulo aos oficiais da base de Ka-
raganda-Leste.
— Vamos atirar! — sugeriu um deles. — De-
víamos disparar todos os foguetes ao mesmo
tempo.
25
A sugestão não foi aceita. Para causarem al-
gum efeito, os foguetes deveriam ser equipados
com cargas explosivas nucleares. E o coman-
dante da base achou uma temeridade disparar
uma salva de quase cem projéteis desse tipo na
direção de um objetivo a apenas quarenta mil
metros de altura, isto é, praticamente por cima
da cabeça dos habitantes da cidade.
Todavia, o general-de-brigada Chandikarh se
declarou disposto a disparar um único foguete
contra a Stardust-III.
— Quero que a equipe técnica observe a ex-
plosão — disse. — Talvez o fenômeno permita
alguma conclusão sobre a forma pela qual po-
demos atacar o inimigo.
Todos acharam a sugestão bastante razoá-
vel. O disparo do foguete foi preparado como
se fosse uma experiência difícil, e marcado para
as quinze horas e trinta minutos, tempo local, a
fim de que a equipe técnica tivesse tempo para
instalar seus instrumentos de observação.
— Procure verificar a altura da explosão, fo-
tografe o fenômeno, meça a intensidade lumi-
nosa e as emanações radiativas — ordenou
Chandikarh. — Depois diga-me o que acha de
tudo isso.
Quinze horas.
Sentado na cantina com seus oficiais, Chan-
26
dikarh tamborilava nervosamente com os de-
dos, esperando que os últimos minutos passas-
sem. A Stardust-III continuava imóvel. Mas
Chandikarh receava que reiniciasse a viagem
antes que pudessem realizar a experiência pro-
gramada.

***

Às quinze horas e três minutos, hora local,


Perry Rhodan pôs a funcionar o grande proje-
tor mental. Um enorme campo de influência
hipnótica envolveu a cidade de Karaganda e a
base de Karaganda-Leste.

***

Às quinze horas e três minutos, dúvidas co-


meçaram a surgir na mente do general Chan-
dikarh: valeria a pena realizar a experiência?
Ainda às quinze horas e três minutos chegou à
conclusão de que devia ser suspensa.
Às quinze horas e quatro minutos, os mem-
bros da equipe técnica começaram a sacudir a
cabeça, pois já não entendiam as ordens de
Chandikarh. Ao mesmo tempo, porém, se tor-
nou perceptível a sensação generalizada de alí-
vio pelo fato de que não teriam mais de atirar
27
contra o inimigo.
Às quinze horas e cinco minutos, Chan-
dikarh disse aos seus oficiais:
— Sejamos francos, senhores. O que temos
para opor a um inimigo destes? Ele espalhou o
pavor e a devastação em todo o país; e isso, ao
que tudo indica, com uma única nave espacial.
O que será de nós no dia em que o inimigo lan-
çar mão de duas ou três naves dessas, ou mes-
mo de uma esquadrilha?
Um major relativamente jovem o interrom-
peu, falando alto:
— Qualquer um pode adivinhar, general.
Nós mesmos seremos destruídos, junto com
tudo que possuímos, antes que tenhamos tem-
po para dar ordem de abrir fogo.
Outros oficiais manifestaram sua concordân-
cia em altos brados.
Chandikarh acenou a cabeça.
— Vamos redigir uma resolução — sugeriu.
— Toda a oficialidade da base de Karaganda-
Leste propõe ao Conselho Supremo do Bloco
Oriental a cessação imediata da resistência con-
tra este inimigo e o início de negociações. A ex-
periência pela qual acabamos de passar fez com
que constatássemos que seria uma irresponsabi-
lidade continuar a luta e provocar o inimigo. Es-
tamos convencidos de que o Conselho Supre-
28
mo, mesmo a contragosto, também há de reco-
nhecer que nos defrontamos com alguém con-
tra o qual, com os recursos de que atualmente
dispomos, nada podemos.
As palavras de Chandikarh foram recebidas
com aplausos. O texto da resolução era relativa-
mente moderado. As idéias que lhe andavam
pela cabeça eram bem diferentes. “Façam as
pazes com a Terceira Potência, seus cabeças-
de-vento”, assim deveria ser o texto. Mas Chan-
dikarh acreditava que a opinião dos outros ofici-
ais não tivesse sofrido uma transformação tão
radical como a sua; por isso se contentou com
a redação mais suave.
Meia hora depois, o texto foi divulgado na
cidade, onde provocou manifestações entusiásti-
cas de apoio. A reação deixou Chandikarh per-
plexo e fez com que ele vencesse o constrangi-
mento que sentia em transmitir o texto para
Moscou.
Às quatorze horas, tempo de Moscou, o Es-
tado-Maior e o Conselho Supremo, reunidos na
capital do Bloco Oriental, estavam informados
sobre a opinião que subitamente passou a rei-
nar em Karaganda. Palavras duras foram profe-
ridas; chegou-se a falar em motim. Ficou decidi-
do que não se tomaria conhecimento da resolu-
ção, e que alguns homens do serviço secreto se-
29
riam enviados a Karaganda.
Era de admirar, mas, ao que parecia, nin-
guém estava compreendendo toda a gravidade
da situação. Era bem verdade que ninguém con-
testava o fato de que o inimigo contava com re-
cursos técnicos mais avançados. Mas, segundo
se argumentava, um único veículo inimigo só
poderia estar num lugar de cada vez. Se a Ter-
ceira Potência acreditava que bastava fazer cru-
zar uma única nave sobre o território do Bloco
Oriental, provocando as maiores tolices para
obrigar essa superpotência, armada até os den-
tes, a dobrar os joelhos, estava redondamente
enganada.

***

Perry Rhodan acompanhou os acontecimen-


tos que se desenrolavam em Karaganda e Mos-
cou, na medida que seus instrumentos de obser-
vação o permitiram. Não se surpreendeu com
nada. A mudança de opinião em Karaganda era
inevitável, já que o território da cidade se en-
contrava sob os efeitos do projetor mental. Por
outro lado, os homens do Estado-Maior de
Moscou não seriam dignos do posto se, a essa
altura, já entregassem os pontos.
Às dezesseis horas, tempo de Karaganda, o
30
major Deringhouse — um jovem desajeitado e
impetuoso que dominava o russo graças ao trei-
namento hipnótico e era um dos melhores ele-
mentos de que Rhodan dispunha — saiu da
Stardust-III num traje transportador arcônida. O
campo de deflexão do traje fez com que Dering-
house se tornasse invisível, e o poderoso neu-
tralizador gravitacional suavizou sua descida.
Deringhouse venceu os quarenta mil metros
que o separavam do solo em vinte minutos. En-
viou a Rhodan o sinal de OK convencionado
através do hipertransmissor, para não assumir
qualquer risco.
Depois disso, a Stardust-III pôs-se em movi-
mento, permitindo que, depois de uma inter-
rupção de mais de uma hora, o sol voltasse a
brilhar no céu de Karaganda. Antes disso, o
projetor mental fizera com que a mudança de
opinião dos civis e militares de Karaganda fosse
protelada. O condicionamento pós-hipnótico só
exigia um aumento de potência de quarenta por
cento em comparação com a irradiação hip-
nótica instantânea.
A Stardust-III dispôs-se a cumprir seu primei-
ro objetivo: inutilizar o potencial militar do ini-
migo.

***
31
A voz do marechal Sirov não exprimia a me-
nor reverência. Fedor A. Strelnikov, membro e
secretário do Conselho Supremo, a quem essa
reverência seria devida, parecia não sentir falta
dela.
As últimas notícias eram tão estranhas que
ninguém se preocuparia com questões de eti-
queta.
— Karaganda, Chulba, Tchyrgaki, Irkutsk,
Tchita, Blagoviechtchensk — murmurou Strel-
nikov, perturbado. — Está notando alguma coi-
sa?
Em vez de responder, o marechal Sirov pe-
gou uma régua e colocou-a sobre o mapa. Se
as cidades de Karaganda e Blagoviechtchensk
fossem ligadas por uma reta, as de Chulba,
Tchyrgaki, Irkutsk e Tchita ficariam nessa reta
ou a poucos quilômetros da mesma.
— As resoluções são parecidas, até no texto
— prosseguiu Strelnikov. — Pede-se o fim da
atividade armamentista, o início de negociações
com a Terceira Potência, o restabelecimento
das discussões com os governos dos outros blo-
cos com o objetivo de criar um governo único
de toda a Terra.
Levantou os olhos do papel que segurava.
— O que acha disto, marechal?
32
Sirov deu de ombros.
— O senhor deve achar alguma coisa — in-
sistiu Strelnikov.
Sirov abriu a boca para dizer alguma coisa.
Mas logo voltou a fechá-la e fez um gesto de
contrariedade.
— O que é? — indagou Strelnikov.
Sirov apontou para o mapa.
— Parece que alguém voou pelo trajeto Ka-
raganda—Blagoviechtchensk e hipnotizou todo
mundo. É a única explicação que me ocorre. Se
achar que é uma tolice, não se zangue. O se-
nhor fez questão de que eu dissesse.
Strelnikov não se zangou.
— Acredita que o inimigo dispõe de recursos
como este? — prosseguiu nas suas perguntas.
— Acha que lhe basta sobrevoar nosso territó-
rio uma única vez para desencadear, dentro de
poucas horas, uma revolução de que participem
mais de quatrocentos milhões de pessoas?
— Vejo-me forçado a admitir esta possibili-
dade — respondeu Sirov, passando a mão pelo
mapa.
Em sua mente prolongou a linha até o litoral
do estreito dos Tártaros, que separa a Sibéria
da ilha da Sacalina. Qual era a cidade situada
no prolongamento da linha?
Komsomolsk.
33
Strelnikov seguiu seu olhar.
— Está pensando em Komsomolsk? — per-
guntou.
Sirov fez que sim.
Ficaram calados por algum tempo.
O telefone soou. Sirov levantou o fone e o
entregou a Strelnikov. Este deu seu nome e fi-
cou ouvindo. Sirov ouviu uma voz metálica,
mas não entendeu uma única palavra. Mas viu
que Strelnikov empalidecia. Sua mão estava trê-
mula quando recolocou o fone.
— O senhor se enganou, marechal — disse.
— De Komsomolsk não nos enviaram qualquer
resolução que sugira a paz e o início de negoci-
ações.
— Ah, é?
— Não. Em Komsomolsk as tropas se amo-
tinaram juntamente com a população e corta-
ram todas as comunicações com a cidade.

***

Na noite daquele dia, tempo de Moscou, o


Conselho Supremo decidiu enfrentar a ameaça
com todos os meios disponíveis. Isso significava
levar a guerra a toda a Terra.
Só assim poderia se esperar que a gigantes-
ca nave espacial, que traçara estreitas faixas de
34
revolta pelo imenso território do Bloco Orien-
tal, desistisse de seus planos e passasse a cuidar
do bem-estar de toda a Humanidade, em vez de
interferir nos assuntos internos do Bloco Orien-
tal.
Com todos os meios disponíveis... Isso signi-
ficava, ainda, o emprego da arma mais recente
e terrível que a Humanidade jamais criara com
seus próprios recursos: a bomba catalítica de fu-
são.
Todos estavam perfeitamente lembrados de
que Perry Rhodan, quando ainda se encontrava
no primeiro degrau da escada que o conduziria
ao sucesso, evitara a guerra, envolvendo o pla-
neta com um campo de absorção de nêutrons.
Os nêutrons, que deviam provocar a cisão dos
átomos de urânio, foram absorvidos por aquele
campo. Nenhuma das bombas atômicas chegou
a explodir, tampouco as bombas de fusão que
seriam detonadas por uma bomba atômica.
As bombas catalíticas não poderiam ser pre-
judicadas pelo campo de absorção. O processo
de fusão propriamente dito não dependia dos
nêutrons; a detonação não era conseguida por
via indireta, através de uma bomba de fissão.
A decisão de iniciar a guerra foi adotada
pela unanimidade dos membros do conselho. O
ataque foi marcado para a zero hora do dia 14
35
de junho, tempo de Moscou. Os militares dispo-
riam de vinte e seis horas para os preparativos.
A sessão do conselho e principalmente a de-
cisão tomada foram estritamente sigilosas. Sa-
bia-se perfeitamente que nem mesmo no último
segundo do ataque deveria transpirar qualquer
coisa sobre as intenções do conselho.

***

Strelnikov e os outros membros do conselho


não se sentiriam tão seguros se soubessem que
o segredo em torno da sessão e da resolução
não fora nada perfeito.
Todos os discursos, todos os apartes e todas
as indicações foram irradiados no recinto da
sessão por meio de microfones e alto-falantes.
Nada disso chegaria para fora do recinto; mas
as palavras, transformadas em impulsos elétri-
cos, atravessaram os condutores situados no in-
terior da sala.
A corrente alternada produz um campo ele-
tromagnético em torno do respectivo condutor,
e esse campo retrata os impulsos sob a forma
de modulações. Apenas se precisaria de um re-
ceptor bastante sensível para captar o campo
eletromagnético modulado a uma distância de
milhares de quilômetros, onde sua intensidade
36
era centenas de vezes menor que o farfalhar da
atmosfera.
Além disso, precisava-se ter conhecimento
da situação exata da origem do campo eletro-
magnético. Só assim o receptor direcional esta-
ria em condições de reprimir o farfalhar atmos-
férico e, através de um comutador acoplado, se-
lecionar, entre a multiplicidade dos impulsos
captados, aqueles que se revestiam de interesse.
Qualquer técnico terreno teria apostado que
ninguém seria capaz de construir um receptor
desse tipo.
Mas teria perdido a aposta. A bordo da Star-
dust-III havia vários receptores com essas quali-
dades. Rhodan entendeu tudo que foi pronunci-
ado naquela sessão, não com a mesma nitidez
de quem a presenciasse, mas com uma clareza
suficiente para compreender o horror do com-
plô.
Sabia que o Bloco Oriental dispunha de
bombas catalíticas de fusão, contra as quais o
campo de absorção de nêutrons seria impoten-
te. Poderia fazer partir imediatamente a Star-
dust-III, que naquele instante se encontrava cem
mil metros acima da parte sul dos Montes
Urais, e submeter o Conselho Supremo à in-
fluência hipnótica.
Mas acreditava que com uma tática diferente
37
alcançaria um êxito maior e mais persuasivo.

***

No dia 13 de junho todo mundo prestou


atenção.
Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência,
interrompeu os programas de rádio e televisão
e dirigiu uma proclamação ao mundo.
Informou todos aqueles que quisessem ouvi-
lo sobre os planos do Bloco Oriental.
Perry Rhodan se dispôs a defender a Terra
contra qualquer agressor de dentro ou de fora.
Uma surpresa especial para Strelnikov e os de-
mais ouvintes ficou reservada para o fim do co-
municado.
Em seu televisor, Strelnikov viu o rosto de
Rhodan se aproximar dele.
— Preste atenção, Strelnikov — disse Rho-
dan. — Quero preveni-lo sobre o que farei hoje
de noite, se você e seus comparsas não desisti-
rem de seu intento. Para isso farei uma peque-
na demonstração. Hoje ao meio-dia, mais pre-
cisamente, entre as doze e as doze e trinta,
hora de Moscou, toda transmissão de energia
elétrica, com ou sem fio, será suspensa no terri-
tório do Bloco Oriental. Dispõe de uma hora e
meia para tomar suas precauções.
38
“Sabe perfeitamente o que isso significa.
Faça aterrisar todos os aviões que se encontrem
no ar e avise os hospitais. Ou melhor, faça o
que quiser. De qualquer maneira, saberá o que
vai acontecer com seus foguetes hoje de noite.
Sem eletricidade não poderão ser disparados,
nem encontrarão o alvo. E a catalise não funci-
ona sem os processos eletrônicos que a regu-
lam.

***

Strelnikov não fez nada. Não valia a pena


tomar qualquer providência. Todo mundo ouvi-
ra o comunicado ou soubera dele por intermé-
dio de terceiros. Todos sabiam o que teriam de
fazer para evitar um acidente.
Pouco antes do meio-dia os médicos larga-
ram os bisturis, os motoristas encostaram seus
automóveis, os trens pararam por cautela, e
quem tinha de visitar alguém num dos andares
superiores de um arranha-céu preferiu subir as
escadas para não se arriscar a ficar preso no
elevador.
A inteligência de Strelnikov se rebelou con-
tra a possibilidade de que Rhodan pudesse fazer
o que prometera. Examinou a pilha de relató-
rios que tinha diante de si.
39
A revolta de Komsomolsk se alastrava. As
tropas ali estacionadas avançavam terra aden-
tro. Enquanto se mantinham na linha que ligava
Blagoviechtchensk a Komsomolsk, eram recebi-
das de braços abertos. Mas, quando se desvia-
vam dessa linha, avançando na direção norte
ou sul, defrontavam-se com a resistência ofere-
cida pelas tropas não submetidas à influência do
projetor mental. De qualquer maneira Strel-
nikov se sentiu abalado ao perceber que mesmo
nessas áreas os revoltosos venciam prontamen-
te as resistências que se impunham a eles.
Até parecia que se sentiam tomados por um
impulso irresistível, inexistente nos regimentos
que continuavam fiéis ao governo.
“Que impulso será este?”, indagou Strel-
nikov a si mesmo, perplexo. “Um impulso para
quê?”
Manteve o televisor ligado e deixou que o
programa desfilasse diante dele, sem prestar
muita atenção.
Levantou-se, foi à janela e olhou para a rua.
Eram cinco para o meio-dia.
O trânsito parara. Até os pedestres ficaram
junto ao meio-fio, aguardando o milagre.
“Que idiotas”, pensou Strelnikov, contraria-
do. “Mesmo que consiga eliminar a corrente
elétrica, será que ele acha que isso será o fim?”
40
Strelnikov continuou a pensar. Não podia
parar de pensar. Era o homem de quem se es-
perava a iniciativa e as decisões depois da lição
de trinta minutos que Rhodan pretendia minis-
trar ao mundo.
Ouviu-se a voz do locutor:
— Ao meio-dia transmitiremos o toque dos
sinos da torre de Spasski.
Mas ninguém ouviu o toque dos sinos. A tela
escureceu assim que a torre surgiu no fundo da
paisagem formada pelo Kremlim. Parado diante
do aparelho, Strelnikov lhe lançou um olhar
sombrio.
— Apesar de tudo!... — resmungou.

No dia 14 de junho, às nove horas da ma-


nhã, tempo local, a Stardust-III pousou em Ga-
láxia, que até então era a única cidade situada
nos quarenta mil quilômetros quadrados do ter-
ritório da Terceira Potência, situado no deserto
de Gobi.
O Bloco Oriental desistira de seus planos.
Strelnikov divulgou a notícia cerca de uma hora
depois da falta de energia elétrica. Assim mes-
mo a Stardust-III continuou a sobrevoar o terri-
tório inimigo, a fim de verificar se Strelnikov di-
41
zia a verdade.
A noite desceu sobre o continente asiático;
nenhum foguete saíra das rampas de disparo. A
paz fora resguardada. Rhodan tomou providên-
cias para que, mesmo em qualquer momento
posterior, um ataque de surpresa não pudesse
ser coroado de êxito.
A Terra respirou aliviada, primeiro porque
Rhodan voltara no momento exato, e depois
porque cumprira sua promessa de evitar a guer-
ra.
Quando a Stardust-III pousou, o coronel
Freyt, que na ausência de Rhodan exercia as
funções de chefe em Galáxia, estava de pronti-
dão.
Uma multidão de espectadores se compri-
mia nos limites do campo de pouso.
Perry Rhodan saiu da nave em companhia
de seu co-piloto, Reginald Bell, e de dois ar-
cônidas, Crest e Thora.
Freyt parecia aliviado, mas não muito feliz,
quando Rhodan lhe apertou a mão. Entraram
no carro em que Freyt viera e Rhodan pergun-
tou:
— Tem algum problema, coronel?
Freyt hesitou. O carro já havia chegado per-
to do destino quando resolveu falar.
— Sou acusado de negligência — disse. —
42
Afirmam que não percebi nem preveni em tem-
po a evolução da política do Bloco Oriental.
Acreditam que isso ficava dentro do campo das
minhas possibilidades e não compreendem por
que não tomei nenhuma providência.
Rhodan acenou com a cabeça.
— É só isso?
Freyt parecia desolado.
— É quanto basta!
Rhodan conhecera os problemas de Freyt
depois que a Stardust-III concluíra a transição a
partir do planeta Peregrino, e surgira num pon-
to situado além da órbita de Plutão.
— Tenho que lhe dizer alguma coisa — res-
pondeu Rhodan depois de algum tempo. — E
quero que acredite que agi com as melhores in-
tenções.
Freyt o olhou com uma expressão de espan-
to.
— Nunca seria capaz de duvidar disso.
— Pois espere. Tive que tomar precauções
para que, na minha ausência, ninguém abusas-
se dos recursos técnicos da Terceira Potência,
para... bem, para satisfazer suas ambições, ou
para qualquer outro fim. Você compreende?
Freyt fez que sim. Começou a compreender
por que estivera de mãos atadas. Não gostou
muito, mas seu espírito era bastante objetivo
43
para reconhecer que Rhodan tinha razão.
— Você recebeu instruções para interferir
na política terrena somente se a Terceira Po-
tência fosse atacada — prosseguiu Rhodan. —
Eu não poderia confiar que você se limitaria a
estas instruções, acontecesse o que aconteces-
se. As tentações com que o homem se defronta
em nossa cidade são muito grandes. Você ainda
não possui um grau de treinamento arcônida
que me permita confiar unicamente nas instru-
ções que lhe foram ministradas. Por isso foi
submetido a um bloqueio hipnótico, pelo qual
ficou preso às minhas instruções. Estava impe-
dido de tomar qualquer providência contra o
Bloco Oriental, enquanto nosso território não
fosse violado.
Colocou a mão sobre o ombro de Freyt e o
olhou com uma expressão séria.
— Sei perfeitamente que não vai gostar de
mim por causa disso, Freyt. Mas não pude agir
de outra forma. Da próxima vez não será mais
necessário. Quanto aos quatro anos e meio que
se passaram, o bloqueio hipnótico representa
um tipo de álibi para você.
Sorriu, apenas para tentar. Sentiu-se bastan-
te aliviado quando o coronel Freyt retribuiu o
sorriso.

44
***

Uma atividade intensa tomou conta da cida-


de, cuja população crescera nos últimos anos
para oitocentos mil habitantes.
O coronel Freyt estimulara a imigração de
técnicos e cientistas. Tomara providências para
que a General Cosmic Company construísse as
enormes instalações de montagem e iniciasse a
produção de naves e caças espaciais concebidos
segundo os princípios arcônidas.
A Terceira Potência dispunha de dois cruza-
dores pesados da classe Terra; eram naves es-
féricas com duzentos metros de diâmetro. A
construção de mais dois cruzadores se encon-
trava em fase bastante adiantada.
A frota de caças espaciais aumentara para
dez esquadrilhas. Eram mil e oitenta aparelhos
aptos a enfrentar as condições reinantes no es-
paço, e que só por si bastariam para garantir à
Terceira Potência um predomínio absoluto so-
bre a Terra.
O exército era formado por dez mil homens.
Estavam equipados com armamento arcônida e
equivaliam pelo menos a vinte vezes esse núme-
ro de soldados convencionais.
Rhodan passou os olhos pelos relatórios que
Freyt lhe apresentou. Sua inteligência altamente
45
treinada não gastou mais de trinta minutos para
incorporar todos os dados. Tudo se passara
conforme ele previra.
— Não gosto de usar palavras grandiosas —
disse, dirigindo-se ao coronel Freyt. — Mas não
posso deixar de constatar uma coisa. Você foi
um representante extraordinário. Fico-lhe muito
grato.
Freyt não teve tempo para se alegrar com o
elogio. Rhodan tinha ordens a dar.
— Avise os governos dos diversos blocos de
que... bem... — piscou para Freyt — como di-
rei? Avise-os de que ficaria satisfeito em cum-
primentar seus representantes em Galáxia
quanto antes.
Freyt anotou.
— Enfatize o quanto antes — recomendou
Rhodan. — Isso significa amanhã ou depois.
Acrescente que, muito embora a guerra tenha
sido impedida, considero a situação extrema-
mente séria, motivo por que se torna indispen-
sável uma série de consultas.
Freyt também anotou este trecho.
— Além disso, quero que designe uma pes-
soa de confiança para o controle de precisão do
hipertransmissor. Quero revezar o homem que
exercia essas funções a bordo da Stardust-III. Fi-
cou muito tempo com os olhos abertos. Não há
46
hora marcada para as mensagens do major De-
ringhouse. Poderá ser anunciado a qualquer
momento que queira.
— Deringhouse? — perguntou Freyt, perple-
xo.
— Sim, Deringhouse. Larguei-o em Kara-
ganda. Quero que ele me ajude a atingir o se-
gundo objetivo do nosso plano. Sabe que deve-
mos contar com as intenções hostis do Bloco
Oriental enquanto o atual governo estiver no
poder, não sabe?
— Naturalmente.
— Pois bem. Um belo dia prenderemos
aqueles cavalheiros de um golpe. E Deringhou-
se abrirá o caminho para isso.
Em seu subconsciente, o coronel Freyt pro-
curou analisar a impressão que estas palavras
lhe causavam.
Representavam um trecho da história mun-
dial. Subitamente, Freyt compreendeu que abis-
mo imenso o separava de Perry Rhodan. Nos
últimos quatro anos e meio supusera em várias
ocasiões que fazia seu trabalho tão bem feito
como Perry Rhodan, e que, com esse poderio
imenso, qualquer um poderia dominar a Terra.
Acontece que não era tão fácil. Era necessá-
rio conservar em quaisquer circunstâncias a no-
ção do alcance desse poderio. Quem se encon-
47
trasse nessa situação ocuparia uma posição bas-
tante exposta e não poderia se dar ao luxo de
deixar de cumprir qualquer promessa. Em ou-
tras palavras, tornava-se necessário jogar com a
profusão das possibilidades como um malabaris-
ta que brinca com dez bolas ao mesmo tempo.
Um agente pode fazer muita coisa que é
proibida às outras pessoas. Por outro lado, po-
rém, não pode fazer certas coisas que um ho-
mem normal consideraria óbvias.
O major Deringhouse trajava uma vestimen-
ta transportadora arcônida que, quando desejas-
se, o tornaria invisível; mas por outro lado,
quando fosse visível, provocaria suspeitas em
qualquer um. Deringhouse resolveu iniciar seu
trabalho em Karaganda. A cidade com seus ha-
bitantes e soldados submetidos a uma influência
pós-hipnótica lhe parecia o melhor ponto de
partida.
No entanto, não havia dúvida de que mesmo
uma pessoa influenciada por Rhodan logo liga-
ria o aparecimento de uma pessoa em trajes es-
tranhos com o surgimento da Stardust-III nos
céus da cidade. Por isso, Deringhouse preferiu
deixar passar algumas horas antes de entrar em
Karaganda.
Não teria sido difícil a Rhodan influenciar a
cidade de tal forma que, mesmo como agente
48
da Terceira Potência, Deringhouse fosse recebi-
do de braços abertos. Mas esse estado de espíri-
to logo se tornaria conhecido em Moscou, e a
cautela com que o serviço secreto passaria a
agir depois disso teria dificultado desnecessaria-
mente a tarefa de Deringhouse.
Dessa forma, o major resolveu aterrisar, invi-
sível, nas proximidades da aldeia de Pla-
chowskoje, cerca de cento e oitenta quilômetros
de Karaganda. Ainda invisível, deu uma volta
pela aldeia. Foi quando aconteceu um fato que,
posteriormente, provocou nele a idéia de que o
próprio destino se empenhara em prestar auxí-
lio a ele e à Terceira Potência.
Plachowskoje era igual a qualquer outra al-
deia da região. Ficava à beira da estrada e qua-
se não tinha ruas transversais. As casas, baixas,
eram rodeadas de campos imensos, envoltos
numa nuvem de pó alimentada ininterrupta-
mente pelas esteiras dos tratores e das máqui-
nas agrícolas.
Deringhouse supôs que o melhor lugar para
descobrir alguma coisa sobre o ânimo da popu-
lação após o ataque da Stardust-III seria o edifí-
cio da prefeitura, mas teve algumas dificuldades
em descobri-lo em meio às outras casas.
Finalmente o reconheceu por causa de um
pequeno quadro de avisos, ao qual estava afixa-
49
do um único bilhete. No bilhete lia-se o seguin-
te:
O Conselho Municipal reúne-se hoje de noi-
te, às 20 horas.
O aviso estava manuscrito. Deringhouse
acreditava que durante a reunião se falaria nos
acontecimentos daquele dia.
O edifício da prefeitura era formado por
dois pavimentos. Deu uma volta e viu uma am-
bulância estacionada, numa área dos fundos do
prédio. Pelo letreiro, Deringhouse descobriu
que o veículo vinha de Uspenskij.
Isso era de admirar, já que a cidade de Kara-
ganda, muito maior, ficava mais próxima.
Deringhouse entrou no edifício e examinou
o pavimento térreo. Não ouviu nenhuma voz e
por isso abriu uma das portas que havia no hall
de entrada. A porta rangeu. Deringhouse viu
uma sala semi-deserta. Só havia uma mesa;
atrás dela, um homem assustado se levantou de
um salto e com uma expressão de culpa no ros-
to esfregou os olhos para espantar o sono.
Parecia não se perturbar muito com o fato
de não ter visto ninguém que pudesse ter aberto
a porta. Suspirou, voltou a sentar e murmurou
uma expressão de alívio. Deringhouse recuou,
deixando a porta aberta. O homem poderia
acreditar que o vento a tivesse aberto. Mas, se
50
ela se fechasse por si, ficaria espantado.
Nesse instante Deringhouse ouviu vozes vin-
das do andar de cima. Subiu a escada de dois
em dois degraus sem se incomodar com o ran-
ger produzido por seus pés. As vozes eram mui-
to altas.
No andar superior havia um hall igual ao do
térreo; apenas tinha alguns metros quadrados a
menos. As vozes vinham de uma sala cuja porta
estava aberta. Um homem de uniforme e outro
que parecia um camponês estavam conversan-
do.
Deringhouse parou diante da porta.
— O conselho faz questão de interrogar o
homem hoje de noite — anunciou o camponês
— sejam quais forem as condições em que se
encontre. Falou coisas tão estranhas que talvez
tenhamos de avisar o serviço secreto.
O homem de uniforme ergueu os ombros.
— Só posso dizer que o homem está em
péssimas condições físicas e mentais. Se for
submetido a um interrogatório hoje de noite,
provavelmente não resistirá. Mas, se não puder
agir de outra forma, paciência.
“É um médico”, constatou Deringhouse.
“Deve ser a pessoa que veio na ambulância de
Uspenskij.”
— Obrigado — respondeu o camponês. Pa-
51
recia aliviado. — O senhor poderia ter me cau-
sado maiores dificuldades. Mas compreende
que...
O médico o interrompeu com um gesto.
— Compreendo. O senhor pode melhorar
sua fama na cidade se descobrir um inimigo do
Estado e conseguir prendê-lo e entregá-lo ao
serviço secreto. Por que acha que alguma coisa
não está em ordem com esse homem?
O camponês respondeu sem hesitar.
— Algumas pessoas o viram descer lá fora,
de pára-quedas e assento ejetável. Estava in-
consciente. Ao ser colocado na maca, abriu os
olhos. E a primeira coisa que disse foi o seguin-
te: “Parem com essa bobagem. Vocês não po-
dem sair vitoriosos dessa luta; o inimigo é pode-
roso demais.”
— Por certo estava aludindo à nave espacial
inimiga que sobrevoou esta região, não é verda-
de? — disse o médico.
O camponês acenou violentamente com a
cabeça.
— Contou algumas coisas confusas sobre
uma gigantesca bola de fogo e sobre vários avi-
ões de caça que teriam entrado nas bolas de
fogo produzidas por seus próprios foguetes e
explodido. Será que uma coisa dessas pode ser
verdade? Quem afirma uma coisa dessas é um
52
traidor e um sabotador, não é mesmo?
O médico se mostrou cauteloso.
— Depois saberemos — respondeu.
Deringhouse não estava interessado em sa-
ber como prosseguiria a palestra. Provavelmen-
te estariam falando de um dos pilotos de caça
que participaram do ataque à Stardust-III. Ao
que parecia o homem estava extraindo da série
de acontecimentos a única solução aceitável, e
por isso estava prestes a ser imprensado entre
as engrenagens do serviço secreto.
Onde estaria?
Sem ser notado pelos dois homens que con-
versavam numa sala de porta aberta, Dering-
house abriu cautelosamente uma série de outras
portas. Finalmente entrou numa sala escureci-
da, da qual saía o ruído de uma respiração irre-
gular.
Havia cortinas diante das janelas para impe-
dir a entrada da luz ofuscante. Deringhouse fe-
chou a porta e esperou até que os olhos se
acostumassem à penumbra.
Num dos cantos havia uma cama de campa-
nha bastante primitiva. Sobre a cama estava es-
tendido um homem. Dormia e parecia precisar
do sono. O rosto estava arranhado e desfigura-
do. Apesar disso parecia simpático.
Deringhouse gravou o rosto na memória e
53
saiu da sala com a mesma cautela com que ha-
via entrado. Voltou ao pavimento térreo e, de-
pois de espiar por vários buracos de fechadura,
encontrou uma sala um pouco maior, em que
cadeiras e bancos se misturavam desordenada-
mente. Era a sala de reuniões. Por enquanto sa-
bia o suficiente. Saiu do edifício da prefeitura.
Para passar o tempo que faltava até o anoite-
cer, furtou alguns comestíveis da única loja exis-
tente na aldeia, tirou um jarro de água límpida
do poço e matou a fome e a sede com sua pre-
sa de guerra.
Chegou à sala de reuniões muito antes das
oito. Ocupou um lugar seguro em cima de um
dos armários encostados à parede, onde nin-
guém esbarraria nele. Os membros do conselho
não pareciam ser muito pontuais. Às oito horas
só havia dois homens, além de Deringhouse.
Os quatorze restantes foram chegando entre as
oito e as oito e vinte.
O homem ferido que Deringhouse vira de
tarde entrou carregado em sua cama de campa-
nha. Não se percebia qualquer melhora consi-
derável de seu estado. Mas estava acordado e
se mostrava bastante interessado.
Os homens o fitaram com uma curiosidade
indisfarçada. Finalmente o homem que de tarde
conversara com o médico militar abriu a reuni-
54
ão.
E logo passou à ordem do dia.
— Este homem — disse, apontando para o
ferido — é, ao que lhe consta, o único sobrevi-
vente do ataque que a 23a esquadrilha de caças
de Karaganda desfechou contra a nave espacial
inimiga que hoje sobrevoou esta região. As de-
clarações que prestou a respeito do ataque são
tão estranhas que achei conveniente que ele as
repetisse diante de vocês. Depois deliberaremos
sobre o que devemos fazer face às suas declara-
ções.
“Que idiota”, pensou Deringhouse. “Depois
de ter ouvido isso, o homem não voltará a ma-
nifestar sua opinião.”
O camponês, que devia ser o prefeito da al-
deia, se voltou para o ferido.
— Comece a falar! — ordenou. — Indique
seu nome e posto e informe tudo que julgar im-
portante. O senhor se encontra diante do Con-
selho Municipal da aldeia de Plachowskoje que,
conforme sabe, terá que deliberar a seu respei-
to, já que desceu no território desta aldeia.
O ferido se apoiou sobre os cotovelos. Via-
se que isso lhe exigia um grande esforço.
— Meu nome é Jaroslav Afimovitch We-
linskij — principiou com a voz fraca. — Sou ca-
pitão e comandante do 5o esquadrão da 23a
55
esquadrilha de caças, estacionados em Kara-
ganda-Leste. Pelas quatorze e quinze decolei da
base, em companhia dos meus companheiros
de esquadrilha, a fim de atacar e destruir a nave
inimiga que se aproximava da cidade de Kara-
ganda. Nossa missão foi um fracasso. A maior
parte, ou melhor, todos os nossos aviões foram
destruídos.
Forneceu uma descrição minuciosa da bola
de fogo que havia observado, e relatou como os
caças se tornaram vítimas dos foguetes por eles
mesmos disparados. Concluiu com estas pala-
vras:
— Parecia que para o inimigo isso não pas-
sava de uma brincadeira. Não teve de fazer o
menor esforço para destruir nossa esquadrilha.
Não precisou mexer um dedo. A parede de
fogo que espalhou em torno de si provocou a
explosão dos foguetes e, com eles, dos nossos
caças. Na minha opinião seria uma irresponsa-
bilidade lutar contra um inimigo destes. Não dis-
pomos de nada comparável com os recursos de
que ele dispõe. Quem quisesse resistir estaria
agindo com o mesmo senso de um menino que
pretendesse deter um tanque pesado com as
mãos.
O protesto foi súbito e violento, como se vi-
esse por encomenda. Welinskij ouviu os piores
56
insultos; as palavras traidor e sabotador foram
as mais suaves.
Deringhouse admirou a coragem daquele
homem. Tudo seria muito mais fácil para ele se
tivesse relatado a ocorrência em termos menos
fortes. Face ao intenso treinamento hipnótico a
que fora submetido, Deringhouse sabia o que
esperava o capitão: seria denunciado aos servi-
ços de segurança e encaminhado a um dos pos-
tos para ser submetido a um interrogatório bas-
tante minucioso.
A decisão de Deringhouse estava tomada.
Mas antes de executá-la queria saber o que
aconteceria em seguida.
O chefe do conselho formulou a proposta
que todos esperavam: a transmissão de um avi-
so imediato aos serviços de segurança.
Welinskij não manifestou qualquer oposição.
Até o fim respondeu a todas as perguntas com
a maior tranqüilidade e objetividade. Depois de
hora e meia de interrogatório, as forças o aban-
donaram. Desmaiou e deixou-se cair na cama.
Foi levado para fora. O chefe do conselho
usou o telefone para transmitir o aviso. Das pa-
lavras que foram proferidas Deringhouse con-
cluiu que o aviso foi encaminhado ao posto do
serviço de segurança sediado em Akmolinsk,
não ao de Karaganda.
57
Ao que parecia, conheciam a notícia de que
naquela cidade remava um espírito revolucioná-
rio depois que a Stardust-III ali permaneceu por
uma hora. Via-se que os camponeses de Pla-
chowskoje continuavam fiéis ao governo.

***

Pela meia-noite o silêncio da grande planície


foi interrompido pelos estalos e chiados produ-
zidos pelos rotores de um helicóptero. Um veí-
culo fracamente iluminado desceu do céu nubla-
do e aterrizou na estrada, junto às primeiras ca-
sas da aldeia.
O prefeito, mais dois membros do conselho
e dois camponeses que carregavam a maca em
que se encontrava Welinskij estavam à espera.
Welinskij havia acordado.
Deringhouse estava invisível, parado à beira
da estrada. Observou o jovem capitão e procu-
rou descobrir como o mesmo se sentia. Mas
Welinskij não revelava a menor emoção.
O helicóptero dispunha de um amplo com-
partimento de carga. Deringhouse não teve a
menor dificuldade em entrar sem ser notado e
se acocorar junto à cama de campanha de We-
linskij.
Ouviu as pessoas conversarem por algum
58
tempo do lado de fora. Mas logo o motor vol-
tou a chiar, os rotores bateram e o aparelho se
levantou com um forte solavanco.
“Até aqui tudo bem”, pensou Deringhouse.
É verdade que pretendia ir a Karaganda,
mas parece que os acontecimentos tomaram
outra direção. Será que a modificação se revela-
ria útil à sua missão?
Ficou quebrando a cabeça a respeito e che-
gou à conclusão de que pouco importava o
ponto em que iniciaria sua marcha propriamen-
te dita.
De qualquer maneira teria de ir a Moscou, e
tanto fazia que partisse de Akmolinsk ou de Ka-
raganda.
O vôo para Akmolinsk não durou mais de
trinta minutos. Apesar do barulho causado pelo
helicóptero Welinskij adormecera. Só despertou
quando sua maca foi retirada do compartimento
de carga.
Deringhouse saiu atrás dela, e foi então que
aconteceu o primeiro incidente.
A porta do compartimento ficava cerca de
metro e meio acima do solo. Os homens que
aguardavam o helicóptero conversavam em al-
tas vozes; por isso Deringhouse acreditava que
não haveria o menor risco em saltar para fora.
Mas não percebeu que, próximo à porta, havia
59
um tipo de encaixe. Ao saltar, ficou com o pé
direito preso ali. Tombou para a frente e caiu
sobre o ombro do homem que se encontrava
mais próximo ao helicóptero.
De início houve uma tremenda confusão. O
homem foi atirado para a frente pela força do
impacto e arrastou mais algumas pessoas.
Mas logo todos se viraram, de pistola na
mão. À luz das lâmpadas que iluminavam o
campo de pouso, Deringhouse viu seus rostos
decididos e perplexos.
— O que foi isso? — perguntou um deles.
— Alguém saltou sobre as minhas costas —
disse o homem sobre o qual Deringhouse havia
caído.
— Deixe de bobagens — disse outro. —
Não há ninguém aqui além de nós!
— Pois eu lhe digo...
O homem se aproximou cautelosamente da
porta e olhou para dentro. O compartimento
de carga estava escuro.
— Há alguém aí dentro? — perguntou em
voz alta. — Saia!
Não houve resposta. Deringhouse já se le-
vantara e se colocara de pé junto à cabina do
piloto. Viu que Welinskij observava tudo com o
maior interesse.
— Eu lhe disse que não há ninguém — disse
60
um dos homens que permaneceram de pé.
Mas seu companheiro não se perturbou. De-
ringhouse não pôde deixar de reconhecer que
era um rapaz corajoso. Entrou imediatamente
no compartimento de carga e revistou-o. Quan-
do voltou, tinha o rosto ainda mais perplexo.
— É verdade, não há ninguém — disse com
a voz baixa.
Os outros riram.
Pegaram a maca de Welinskij e saíram com
ela. O homem sobre cujos ombros Deringhouse
caíra voltou a cabeça mais de uma vez, lançan-
do olhares desconfiados para o helicóptero.

***

Welinskij passou uma noite desassossegada.


Sua cama fora colocada num cubículo com
cheiro de mofo que ficava num galpão do cam-
po de pouso. Ninguém se incomodou com ele.
Aproveitou o tempo para dormir um pouco.
Pelas sete da manhã serviram-lhe um café
reforçado e perguntaram se já estava em condi-
ções de levantar.
Experimentou e conseguiu, embora dali a
cinco minutos já visse manchas coloridas diante
dos olhos.
Foi levado por um longo corredor que dava
61
para outra sala do mesmo galpão. Um major
estava sentado atrás de uma escrivaninha.
Welinskij fez continência. O major retribuiu.
Os dois homens que haviam acompanhado We-
linskij se retiraram.
— Sente-se — disse o major. — Acho que
ainda não está muito bom das pernas.
Welinskij sentou; estava surpreso com tama-
nha gentileza.
— O senhor vai contar a história mais uma
vez — disse o major com um sorriso. — Tenho
diante de mim o relatório vindo de Plachowsko-
je, mas não estou entendendo bem.
Welinskij voltou a relatar tudo. Pela terceira
vez contou a história por ele vivida.
O major o escutou com muita atenção. As-
sim que Welinskij terminou, perguntou:
— E daí?
Welinskij estava perplexo.
— Por causa destas declarações — explicou
— aquela gente de Plachowskoje fez de mim
um traidor e sabotador e me encaminhou ao
serviço de segurança.
O major pareceu se divertir com esse fato.
— Meu Deus! — disse, rindo. — Se eu tives-
se passado pelo que o senhor passou, teria con-
tado exatamente a mesma coisa. Não vejo onde
está a sabotagem ou a traição.
62
Welinskij não acreditou no que estava ouvin-
do.
— Está falando sério? — perguntou em tom
hesitante, se inclinando para a frente.
O major fez que sim.
— Sem dúvida.
— Quer dizer que posso voltar para Kara-
ganda?
— Não pode, não.
Welinskij se assustou. Não permitiam que
voltasse. Quer dizer que havia alguma coisa.
— Seu caso foi muito comentado — prosse-
guiu o major. — O Conselho Supremo nos en-
viou um homem de confiança, que vai levar o
senhor a Moscou. O conselho pede que relate
os acontecimentos em sessão secreta. Evidente-
mente fará isso como homem livre. Não há mo-
tivo para acusá-lo de traição, sabotagem ou der-
rotismo.
Os ouvidos de Welinskij começaram a zum-
bir. Mal ouviu a pergunta:
— O senhor concorda?
— Sim... sim, naturalmente.
O major preencheu um formulário. Entre-
gou-o a Welinskij e disse:
— Vá até o galpão C e bata à porta da sala
número vinte e cinco. Ali encontrará o homem
que deverá levá-lo a Moscou. Mostre-lhe este bi-
63
lhete. Boa viagem!
Welinskij se sentia confuso. Agradeceu e se
retirou. Subitamente esquecera a fraqueza que
sentia; estava curioso para ver o homem que o
levaria a Moscou.
Viajariam por terra? Por que não iriam...
Quando encontrou o galpão C esqueceu a
pergunta. Atravessou o corredor e encontrou a
porta com o número vinte e cinco. Bateu.
— Entre! — disse alguém.
Welinskij entrou.
Na sala havia uma mesa e uma cadeira. So-
bre a mesa, Welinskij viu um par de solas de
bota bem frisadas. Deu um passo para o lado e
viu as pernas em que as botas estavam enfiadas
e o homem ao qual pertenciam essas pernas.
Seu aspecto não tinha nada daquilo que We-
linskij imaginara num elemento de comunicação
do Conselho Supremo. Não havia dúvida de
que tinha menos de trinta anos. Os cabelos es-
tavam cortados à escovinha, e os olhos emitiam
um brilho azulado.
O mais estranho naquele homem era seu
equipamento. Usava um traje que parecia uma
combinação de vestimenta de mergulhador, al-
pinista e mecânico. Welinskij nunca vira coisa
parecida. Com um certo respeito contemplou
as coronhas das armas, que sobressaíam dos
64
coldres existentes na altura do quadril ou na
parte superior da coxa.
— Terminou a inspeção? — perguntou o
homem, tirando as pernas de cima da mesa.
Welinskij se lembrou do que tinha a fazer.
Ficou em posição de sentido e fez continência:
O louro — Welinskij notou que tinha perto
de dois metros de altura — fez um gesto displi-
cente.
— Sim, já sei. O prenome é Jaroslav Afimo-
vitch. Capitão-comandante do 5o esquadrão da
23a esquadrilha de caças, estacionada em Kara-
ganda-Leste. Correto?
— Perfeitamente — respondeu Welinskij,
perplexo.
— Sou Lub — disse o louro. — Veja bem:
não digo que meu nome é Lub. Esqueci meu
verdadeiro nome. Os homens que importam
me conhecem como Lub. O senhor também
me chamará assim.
— Está bem — respondeu Welinskij.
— Iremos juntos a Moscou — prosseguiu
Lub.
— Perfeitamente. Permita que lhe faça uma
pergunta?
— Naturalmente.
— Por que não vamos de avião? Chegaría-
mos mais cedo.
65
Lub deu um sorriso de escárnio.
— É um rapaz esperto, não é? Acontece
que iremos por terra.
Welinskij logo formou sua opinião. Nunca
vira um homem mais descontraído e lacônico
que Lub. Não seria fácil tirar dele alguma coisa
que não quisesse revelar.
Apesar disso Welinskij o achou simpático,
até muito simpático.
Lub não se demorou muito no aeroporto.
Todos pareciam conhecê-lo, pois ninguém lhe
pedia que se identificasse. Welinskij o seguiu.
Às dez horas embarcaram num dos moder-
nos trens elétricos da Estrada de Ferro Transi-
beriana, que os levaria a Moscou, passando por
Magnitogorsk e Kufbychev.
— É mais confortável — explicou Lub em
termos lacônicos. — Mandei reservar um com-
partimento só para nós. Até pode dormir.
No momento Welinskij não tinha disposição
para isso. Enquanto o trem atravessava a paisa-
gem numa velocidade de trezentos quilômetros
por hora, voltou a examinar Lub. Viu que este
o percebia e formulou uma pergunta, para se
antecipar a uma observação irônica:
— Que terno é esse?
Lub sorriu.
— É um traje especial — respondeu. — Não
66
deixa passar balas ou outras coisas desagradá-
veis. Além disso, pode executar uma série de
truques. Oportunamente lhe mostrarei.
Ao que parecia quis fugir a outras perguntas,
pois ligou o televisor que se achava instalado
neste como em todos os demais compartimen-
tos do trem sumamente confortável. Um pro-
grama insosso se desenrolou diante deles... até
o momento em que Perry Rhodan interferiu na
rede terrena de televisão e transmitiu sua adver-
tência dirigida ao governo do Bloco Oriental.
Welinskij acompanhou a alocução com os
olhos atentos. Mas Lub se reclinou num canto e
fez como se achasse aquilo muito tedioso.
Quando Rhodan terminou e o programa anteri-
or voltou ao ar, Welinskij disse:
— Será que Strelnikov concordará? Será
que tomará em consideração os ensinamentos
dos últimos dias?
Lub deu de ombros.
— Como vou saber?
Welinskij se exaltou.
— Será que isso não o comove? Todo mun-
do deve refletir se vale a pena se engalfinhar
com um inimigo destes, ou se é preferível en-
trar em negociações para salvar a pátria.
Lub sacudiu a cabeça.
— Pois eu, por princípio, não quebro a ca-
67
beça sobre estas coisas.
Welinskij achou que a atitude de Lub era re-
pugnante, mas não disse mais uma palavra a
este respeito.
Às onze e meia o trem parou em Atbassar,
uma pequena localidade onde a parada do trem
não era prevista. Lub sorriu.
— Sabe por que o trem parou? — pergun-
tou a Welinskij.
— Para não se encontrar em qualquer lugar
no meio da linha quando faltar energia — disse
o capitão com toda franqueza.
Lub fez que sim. Depois disse:
— Venha comigo; vamos descer. Welinskij
se assustou.
— Por quê?
— Depois explico.
Welinskij obedeceu. Quando desceram fo-
ram abordados pelo condutor.
— Aqui a descida não é permitida. Fiquem
no trem.
— Não vou ficar coisa alguma — resmungou
Lub. — Quero esticar as pernas.
O condutor não tinha qualquer objeção. Lub
marchou em companhia de Welinskij pela pla-
taforma arenosa. Examinaram a cabana do
guarda-trilhos e contornaram-na.
— Fique aqui mesmo! — ordenou Lub de re-
68
pente. — Voltarei logo.
Welinskij obedeceu. Lub voltou a contornar
a cabana e retornou dali a dois minutos.
— Tudo em ordem — disse com um sorriso.
— Vamos andando.
— Para onde? — perguntou Welinskij per-
plexo.
Lub apontou para os telhados achatados da
pequena localidade, que sobressaíam em meio
à névoa que cobria a planície.
— Para lá. Gosto de aproveitar os intervalos
que me são impostos. Conheço pouca coisa
desta terra imensa. Gostaria de ver Atbassar.
— Vamos voltar em tempo? — perguntou
Welinskij, preocupado.
Lub deu de ombros.
— Não sei — respondeu.
Foram andando, e fizeram-no sem rebuços.
Todo mundo os via, inclusive o solícito condu-
tor, mas ninguém procurou detê-los. Foi outra
coisa que deixou Welinskij admirado.
Atbassar ficava cerca de seis quilômetros da
estação. Ainda não haviam percorrido a metade
da estrada poeirenta e esburacada, quando o
chiado dos jatos de um avião se fez ouvir, vindo
do leste. Lub levantou o braço e olhou para o
relógio. Welinskij o viu estremecer.
— Que idiota! — disse por entre os dentes.
69
— Por que não aterrizou?
Pararam.
Welinskij não saberia dizer o que havia de
errado naquele avião. Mas percebeu-o assim
que o ponteiro de segundos do relógio de Lub
saltou para o número doze.
De um instante para outro o ruído vigoroso
dos jatos cessou, já que o suprimento de ener-
gia das bombas de combustível, compressores,
ativadores e outros componentes importantes
do mecanismo foi interrompido. O chiado se
transformou num uivo, e este acabou num mi-
serável apito. Um minuto depois das doze, a
máquina, que antes era um ponto brilhante no
azul do céu, estava transformada numa grande
mancha cinzenta.
Lub não respondeu.
O avião passou em disparada por cima da
aldeia de Atbassar.
As asas estreitas, concebidas para um deslo-
camento em alta velocidade, não davam susten-
tação ao avião. Sua queda foi semelhante à de
uma pedra achatada.
Tudo terminou numa labareda ofuscante que
surgiu bem além da aldeia de Atbassar, e num
estrondo abafado que segundos depois percor-
reu a planície.
— Que Deus tenha compaixão deles! — dis-
70
se Lub e voltou a se descontrair.
Quando reiniciaram a marcha, os joelhos de
Welinskij estavam trêmulos.
Pela uma e meia chegaram à aldeia. Lub or-
denou:
— É preferível que espere aqui. Quero dar
uma olhada.
Welinskij estava tão deprimido que não se
encontrava em condições de formular qualquer
objeção. Sentou na beira da estrada e esperou.
Lub foi andando.
Só se sobressaltou uma vez em sua atitude
cismarenta. Foi quando, ao meio-dia e meia em
ponto, os motores dos tratores entraram em
funcionamento com um rugido e transportou
uma caravana de enfermeiros e voluntários —
mas também de curiosos — em direção ao local
em que o avião havia caído.
“Provavelmente Lub não vai encontrar nin-
guém na aldeia”, pensou Welinskij; mas em
face do desastre que testemunhara isso não o
preocupou.
Meia hora depois se aproximou aos solavan-
cos uma daquelas carroças motorizadas que,
nos últimos anos, vinham sendo usadas pelos
camponeses. Lub estava à direção e, quando
parou diante de Welinskij, sorriu alegremente
como se acabasse de fazer um bom negócio.
71
— Suba! — disse.
Welinskij subiu e sentou perto de Lub.
— Onde arranjou isso? — perguntou.
— Comprei — foi a resposta.
— Onde pretende ir?
— A Kosgorodok.
Welinskij quase ficou sem fôlego.
— O que vamos fazer em Kosgorodok? Não
pretendia me levar a Moscou?
Lub fez que sim.
— Sei que estou pedindo muito — disse. —
Mas vamos fazer um acordo. Em Kosgorodok
eu lhe digo exatamente o que está havendo. Em
compensação você promete que não fará mais
perguntas. Combinado?
Welinskij refletiu.
— De acordo — disse depois de algum tem-
po.
Pelo que dizia Lub, Kosgorodok ficava a
pouco mais de duzentos quilômetros de Atbas-
sar. Só chegariam no fim da tarde, isso se não
houvesse nenhum enguiço no veículo.

O coronel Freyt fez-se anunciar. Rhodan fez


com que entrasse imediatamente.
— Já temos a concordância dos governos da
72
Federação Asiática e do bloco da OTAN — dis-
se Freyt. — O Bloco Oriental ainda não acusou
o recebimento de nossa nota, nem deu qualquer
resposta.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Isso era de esperar. Estaremos em três,
Freyt. Conseguiu combinar dia e hora?
— Sim senhor. Amanhã, dia 16 de junho,
se possível às quatorze horas, tempo local.
— Ótimo. Já confirmou?
— Sim senhor. Fui eu que sugeri esse dia e
hora.
Rhodan levantou as sobrancelhas, num ges-
to zombeteiro.
— Houve alguma objeção?
— Nenhuma — respondeu Freyt com um
sorriso.
— Isso representa um bom atestado da nos-
sa reputação.
Freyt se retirou e Rhodan voltou a mergu-
lhar nas suas meditações.
O que realmente o incomodava na situação
atual da política terrena não eram os desvios de
que o Bloco Oriental se fizera culpado. Os re-
cursos técnicos e psicológicos da Terceira Po-
tência poderiam vencer qualquer atitude deste
tipo dentro de poucas horas.
O principal motivo de suas preocupações
73
era a imaturidade humana que se revelava na
conduta dos Estados do Bloco Oriental.
Rhodan não era o tipo de homem que se
entregava a ilusões. Estava firmemente conven-
cido de que conseguiria abrir os olhos da Hu-
manidade não só através da instalação da Ter-
ceira Potência, levada a efeito apesar de todos
os obstáculos e hostilidade, mas também atra-
vés de uma abundância de informações sobre
os acontecimentos desenrolados na cidade de
Galáxia, que fez fluir para todos os países da
Terra através de numerosos canais. Conven-
cera-se de que, recorrendo a um material ilus-
trativo adequado, conseguiria dentro de um
tempo muito reduzido transformar o homem
num terreno, isto é, num ser com uma visão re-
alista de sua verdadeira terra natal; o homem se
transformaria numa partícula de pó tão impreg-
nada do pensamento galático que consideraria
ridículas quaisquer disputas particularistas em
sua minúscula pátria, e não perderia tempo
com elas.
Mas, qual a realidade atual?
Por ocasião do primeiro vôo tripulado à Lua
realizada pelo homem, Rhodan encontrou no
satélite de nosso planeta os representantes de
uma raça humanóide desconhecida. Vinham de
um mundo que eles chamavam de Árcon, e que
74
ficava a trinta e quatro mil anos-luz da Terra.
Haviam pousado na Lua com uma nave explo-
radora e Crest, o chefe científico da expedição,
sofria de leucemia.
Rhodan aproveitou a oportunidade. Retor-
nou à Terra em companhia de Crest, a quem
prometera a cura, e fez de sua nave, pousada
no deserto de Gobi, o centro da Terceira Po-
tência.
Crest foi curado e manifestou sua gratidão,
colocando à disposição de Rhodan os recursos
criados pela tecnologia arcônida. Rhodan se de-
fendeu dos ataques desfechados pelos blocos de
potências terrenas e consolidou seu pequeno
Estado. Recorreu ao campo de absorção de
nêutrons, uma invenção dos arcônidas, para im-
pedir uma guerra que teria significado o fim da
Humanidade.
A nave exploradora arcônida era comanda-
da por uma mulher chamada Thora. Era a mu-
lher mais bela e fascinante que Rhodan já vira.
Mas, na opinião da comandante, os homens
não passavam de um bando de criaturas semi-
selvagens, e foi assim que ela os tratou. No en-
tanto essa humanidade miserável conseguiu,
num esforço inaudito e sem que Rhodan o sou-
besse, destruir a nave arcônida. Quando isso
aconteceu, Thora não se encontrava a bordo, e
75
Crest já se radicara na Terra. Thora e Crest so-
breviveram à catástrofe, e o produto mais im-
portante de sua civilização que conseguiram sal-
var foi uma nave auxiliar esférica de sessenta
metros de diâmetro, que não poderia realizar a
viagem de volta ao seu mundo natal.
Os arcônidas não tiveram outra alternativa
senão colaborar com a Humanidade. Precisa-
vam de um veículo apto a enfrentar as condi-
ções reinantes no espaço. Para obtê-lo foi cria-
da a General Cosmic Company, dirigida pelo
mutante Homer G. Adams.
Surgiram muitos perigos. Alguns deles ame-
açavam a Terceira Potência, vindos de um ou
de alguns dos blocos de potências roídos pela
inveja; outros punham em risco toda a Terra,
provocados por inteligências extraterrenas, que
haviam encontrado a pista do cruzador destruí-
do e esperavam encontrar em nosso planeta
uma presa fácil e abundante.
Sobreviveram a tudo. No sistema Vega, situ-
ado a uma distância de vinte e sete anos-luz,
ajudaram uma raça desesperada na sua luta
contra um grupo de invasores reptilóides. De-
pois da vitória, encontraram indicações que lhes
revelaram pistas do mundo em cuja busca a
nave exploradora dos arcônidas se lançara ao
espaço: o planeta da vida eterna.
76
Um poderoso desconhecido fez seu jogo
com eles. Conduziu-os a armadilhas e os liber-
tou das mesmas, para que provassem que eram
dignos de se tornarem seus herdeiros.
Encontraram o mundo do desconhecido. Era
um planeta artificial, que percorria uma trajetó-
ria também artificial, realizando no curso de vá-
rios séculos um movimento de translação em
torno de mais de uma dezena de sistemas sola-
res. Deram a esse planeta o nome de Peregri-
no. Encontraram o desconhecido e com ele o
segredo da vida eterna. Mas ficaram sabendo
que a vida eterna só caberia a Rhodan e aos
homens que o mesmo julgasse dignos de rece-
berem essa dádiva.
O grande relógio da história galáctica assina-
lava o fim do tempo dos arcônidas. A vida eter-
na não seria para eles. Crest e Thora encontra-
ram o mundo que procuravam, mas essa desco-
berta não lhes trouxe qualquer vantagem.
Rhodan e os terranos seriam os homens do
futuro.
Retornaram do planeta Peregrino, depois de
terem ficado longe da Terra por alguns meses,
segundo sua contagem de tempo.
Mas durante a permanência no planeta Pe-
regrino, onde prevalecia um tempo diferente, a
Terra vivera quatro anos e meio. Nesses quatro
77
anos e meio as pessoas ambiciosas haviam se
acostumado à idéia de que Rhodan nunca mais
regressaria para intervir na política terrena.
A Federação Asiática e o bloco da OTAN se
mantiveram na linha de cooperação interestatal
já adotada. Mas no Bloco Oriental houvera uma
revolução que fez vir à tona os elementos me-
nos recomendáveis.
Dali em diante a discórdia voltou a reinar e,
por um triz, teria causado a guerra.
Rhodan se levantou e olhou pela janela.
Contemplou a área verde da cidade. A chu-
va artificial criara um grande jardim em meio ao
deserto.
Era preciso que fizesse os homens com-
preenderem que teriam de obedecer até que
sua inteligência estivesse madura para a missão
que a Humanidade tinha que cumprir.

***

Ao chegarem perto de Kosgorodok, que não


passava de uma aldeia à margem de um relu-
zente lago salgado, Welinskij e Lub se instala-
ram numa cabana desabitada. Ao que parecia
ninguém notou sua presença. Ninguém se inte-
ressou por eles.
Mais uma vez Welinskij recebeu ordem para
78
esperar enquanto Lub foi à aldeia. Demorou
mais que das outras vezes, só voltando ao escu-
recer.
Welinskij se assustou quando viu na clarida-
de da porta que outro homem acompanhava
Lub. Não saberia dizer por que se assustou. Afi-
nal, estava com a consciência tranqüila!
Na cabana não havia luz elétrica, mas Lub
trouxera uma vela. Acendeu-a e colocou-a no
chão de terra batida. Welinskij viu que o recém-
chegado envergava um uniforme de policial e
voltou a se assustar.
Além do policial, Lub trouxera outras coisas:
um pão achatado e aromático e vários tipos de
lingüiça. Colocou tudo isso no chão e disse:
— Daqui a pouco vamos comer. Mas antes
disso este homem nos contará uma coisa.
Sentaram em torno da vela. O policial não
se fez de rogado. Pôs-se a falar:
— O povo de Plachowskoje entregou um
derrotista e sabotador ao serviço de segurança
de Akmolinsk. Realmente o homem chegou a
Akmolinsk, mas desapareceu de forma misterio-
sa. Apareceu um homem que, não se sabe
como, conseguiu convencer o chefe do serviço
de segurança, um major, de que vinha de Mos-
cou e fora incumbido de levar o preso para lá.
O major entregou o preso. Quando foi interro-
79
gado a este respeito, não soube dar qualquer
explicação satisfatória. Além disso, se recusou a
admitir que o preso realmente fosse um derro-
tista. Também não soube explicar essa opinião.
Há um detalhe muito importante. O preso foi
transportado de helicóptero de Plachowskoje
para Akmolinsk. Estava ferido e foi carregado
em maca. Quando foi descarregado em Akmo-
linsk, um dos homens que carregavam a maca
recebeu um esbarrão por trás e caiu ao chão.
Acontece que ninguém viu o homem que fez
isso, e o mesmo nunca foi encontrado.
“Outros elementos do serviço secreto segui-
ram a pista do desconhecido e do sabotador.
Em Akmolinsk os dois tomaram o Expresso
Transiberiano com destino a Moscou. Em At-
bassar o trem fez uma parada em virtude da ad-
vertência sobre a interrupção do fornecimento
de energia proferida por Rhodan. O condutor
do trem e o guarda-linha são unânimes em afir-
mar que ninguém saiu do trem durante a para-
da. Mas alguns passageiros declaram que viram
dois homens caminharem em direção à aldeia
de Atbassar. Um deles usava trajes esquisitíssi-
mos. É a última notícia que se teve dos dois.
Não apareceram em Atbassar. Estão sendo pro-
curados em toda a região.”
O policial se levantou sem que ninguém
80
mandasse. Virou-se, abriu a porta e desapare-
ceu na escuridão. A porta foi fechada atrás
dele.
Welinskij notou perfeitamente que o homem
se movia como um boneco.
Sentiu que Lub o olhava e virou a cabeça.
— Então? — perguntou Lub.
— Isto é uma... uma... — gaguejou We-
linskij.
— É o quê? — perguntou Lub com a voz
tranqüila.
— Faz isso para me intimidar — explodiu
Welinskij. — Logo percebi que não é o homem
pelo qual quer passar. Pretende me impedir de
fazer aquilo que é meu dever. O sabotador é o
senhor, não eu. É um traidor da...
Lub o interrompeu com um gesto. Nem che-
gou a se aborrecer.
— Deixe de conversa — disse com toda cal-
ma. — Quer insinuar que subornei o policial
para que o mesmo imaginasse uma história?
— Isso mesmo. E...
— Pois vá até a aldeia. Kosgorodok conta
com dois policiais. Procure o outro e diga quem
é. Talvez ele seja bastante inteligente para reco-
nhecê-lo sem uma apresentação. Espere para
ver o que fará com você.
Welinskij se levantou.
81
— É isso mesmo que vou fazer — asseverou
em tom áspero. — Depois disso mandarei o
policial até aqui, para que tome conta do se-
nhor.
Lub soltou uma gargalhada.
— Seu idiota!
Welinskij saiu.
Mas só deu alguns passos na escuridão. Afi-
nal, por que estava desconfiando de Lub? E se
o policial tivesse dito a verdade? Pois ele mes-
mo não se surpreendera com o curso inespera-
do que os acontecimentos tomaram em Akmo-
linsk?
“E se tudo que o policial dissera fosse verda-
de?...”
Outras indagações surgiram na mente de
Welinskij. Só Lub poderia dar a resposta.
Teria subornado o major em Akmolinsk?
Que tolice! Nenhum major se deixaria subornar
com tanta facilidade.
Mas...
Welinskij deu meia-volta. Voltou a entrar na
cabana e, antes que Lub pudesse fazer uma ob-
servação sarcástica, disse:
— Está bem... voltei. Deve ser um grande
triunfo para o senhor. Mas lhe prometo que irei
imediatamente à polícia sem me importar com
o que poderá acontecer depois, a não ser que
82
forneça uma explicação plausível sobre tudo
que aconteceu desde hoje de manhã.
Lub o encarou.
— Belas palavras, patriota! — respondeu. —
Eu lhe prometi que em Kosgorodok saberia
tudo, não prometi? Talvez não goste do que vai
ouvir. Mas ao pensar a respeito use a cabeça e
não o sentimento. Sente-se!
Welinskij obedeceu prontamente.
— Para começar do princípio — iniciou Lub
— meu verdadeiro nome é Conrad Ezechiel De-
ringhouse. A responsabilidade pelo segundo
nome, e também pelos outros, cabe a meus
pais...

***

Se Strelnikov não demonstrou muita sabedo-


ria política, ao menos deu provas de sua capaci-
dade de reconhecer uma nova situação e reagir
à mesma, quando nas primeiras horas da ma-
nhã do dia 15 de junho transmitiu suas instru-
ções ao Conselho Supremo.
Já se conformara com a idéia de que não
convinha subestimar as forças do inimigo, e se
conduziu de acordo com a mesma. Determinou
que de nenhuma reunião do conselho deviam
participar mais de cem membros. Era pouco
83
menos de um terço da totalidade dos seus com-
ponentes.
Dessa forma evitaria que Rhodan conseguis-
se dominar todo o conselho de uma só vez,
através de seus inexplicáveis recursos hipnóti-
cos. O voto de um terço dos membros era ne-
cessário para instaurar o debate sobre qualquer
problema, e nem isso Rhodan poderia fazer de
um golpe.
Strelnikov adotou, sem qualquer subterfúgio,
métodos de governo ditatoriais. Dava as ordens
e, aos demais membros do conselho, só cabia
cumpri-las.
Enviou três divisões a Komsomolsk para re-
primir a revolta que eclodira naquela cidade.
E fez outra coisa. Interessou-se pelas estra-
nhas notícias que falavam de um capitão da for-
ça aérea que desaparecera de Akmolinsk. Havia
a participação de um desconhecido ainda mais
suspeito; ninguém sabia quem era ou de onde
vinha.
Strelnikov tinha certeza quase absoluta de
que se tratava de um dos agentes de Rhodan.
Por isso mobilizou todos os recursos para
prendê-lo. Sabia que Rhodan fazia muita ques-
tão do bem-estar das pessoas que com ele cola-
boravam, motivo por que o prisioneiro teria um
valor inestimável como refém.
84
Era bem verdade que, pelas informações re-
cebidas até então, era de supor que aquele ho-
mem dispunha de duas faculdades: impor sua
vontade aos outros e se tornar invisível.
Das primeiras vezes que essa afirmativa foi
formulada diante dele, Strelnikov disse que era
tolice. Mas, quando os mesmos acontecimentos
foram relatados pelas mais diversas pessoas
com que os dois se encontravam no caminho, a
conclusão que se impunha era exatamente essa,
e Strelnikov se conformou com ela.
Dali em diante a polícia e os serviços de se-
gurança receberam instruções de procurarem
localizar o capitão Welinskij, vigiá-lo e aguardar
até que o estranho aparecesse em sua compa-
nhia. Todos foram avisados de que não deveri-
am atacar o desconhecido pela frente.
Strelnikov nem imaginava que com todas es-
sas instruções — desde a proibição das reuniões
do Conselho Supremo em sua totalidade até a
ordem de perseguir Welinskij — fez exatamente
aquilo que Rhodan e Deringhouse esperavam
dele.
Era esta a guerra psicológica num sentido
mais elevado.

***

85
Depois das explanações de Deringhouse, a
discussão teve um fim tranqüilo. Deringhouse
disse:
— Se tiver vontade de sair correndo para fa-
zer minha caveira em qualquer delegacia de po-
lícia, não demorarei em agarrá-lo. Estamos en-
tendidos?
A ameaça era desnecessária. Deringhouse
expusera sua missão e suas idéias com a maior
franqueza, sem recorrer a qualquer meio para
converter Welinskij à sua opinião.
Este acreditou na sinceridade de Deringhou-
se e foi de opinião que o plano por ele exposto
só poderia ser considerado justo e razoável, até
mesmo por um patriota.
Saíram de Kosgorodok e prosseguiram na
direção oeste. Viajaram de trem, roubaram heli-
cópteros, andaram alguns quilômetros a pé e
percorreram algumas centenas de quilômetros
de automóvel.
Nesse meio tempo, já no dia 17 de junho,
haviam chegado a Magnitogorsk. Haviam per-
corrido quase metade do trecho de Akmolinsk
para Moscou.
Deringhouse se dirigira a Magnitogorsk com
uma intenção bem definida. Tinha certeza de
que os setores responsáveis sabiam, ou descon-
fiavam, de que ele e Welinskij se encontravam
86
naquela cidade, e pretendia lhes dar um osso
duro de roer.
De Magnitogorsk saía uma pequena estrada
de ferro em direção a Bajmak, que ficava cerca
de cem quilômetros ao sul. Qualquer um diria
que Bajmak era um lugarejo insignificante, e
ninguém saberia dizer por que se deram ao tra-
balho de construir uma estrada de ferro para lá.
Só Deringhouse e mais umas poucas pesso-
as sabiam. Em Bajmak era extraído o minério
de urânio mais rico que existia na Terra. Até se
falava em veios de urânio puro que afloravam
nas galerias da mina. Era evidente que o gover-
no se esforçava para guardar o maior sigilo so-
bre a jazida. Oficialmente dizia-se que em Baj-
mak haviam sido localizadas jazidas de estanho
de proporções reduzidas.
Deringhouse e Welinskij compraram passa-
gem e tomaram o trem para Bajmak. Mais ou
menos a meio caminho o trem parou num des-
vio e deixou passar um comboio carregado de
minério. Deringhouse fitou atentamente os car-
ros cobertos de lona. Subitamente, Welinskij
puxou-o pelo braço.
— Olhe! — chiou, apontando para a frente
do carro.
Olhando pelas portas envidraçadas, que per-
mitiam a visão de todos os carros, Deringhouse
87
viu, dois carros adiante, um homem uniformiza-
do que examinava os documentos dos passagei-
ros. Virou a cabeça e, do lado oposto, a uma
distância igual, viu outro policial.
Abriu a janela e olhou para fora. Perto da lo-
comotiva e no fim da composição havia um ter-
ceiro e um quarto policial.
— É o fim — disse Welinskij.
Não poderiam sair dessa. O traje de Dering-
house chamaria a atenção de qualquer um e,
mesmo que ele se tornasse invisível, Welinskij
não dispunha de qualquer documento que o ha-
bilitasse a viajar para Bajmak. Além disso, todos
os policiais deviam conhecer seu rosto de cor.
Mas Deringhouse não perdeu a calma.
Encontravam-se no terceiro carro a partir da
locomotiva. Welinskij viu que seu companheiro
enfiou a mão no bolso e passou a mexer numa
arma que chamava de projetor mental.
No vagão em que viajavam havia poucos
passageiros; apenas três operários sonolentos
sentados num banco próximo à porta traseira.
O policial os despertou e pediu seus docu-
mentos. Depois de examiná-los, se dirigiu a De-
ringhouse e Welinskij.
— Não temos documentos — respondeu
Deringhouse.
O policial ficou perplexo. Depois de algum
88
tempo disse:
— Vocês não podem estar sem documentos.
Vamos logo, mostrem!
Deringhouse deu de ombros.
— Não tenho documentos, e meu amigo
também não.
O policial ficou de olhos semicerrados e
franziu a testa.
— Escute aqui! — disse, esticando as pala-
vras. — Que traje é esse?
Deringhouse passou os olhos pela sua roupa
e respondeu:
— É um traje de alpinista. Acabo de com-
prar.
— Como é seu nome?
— Lub.
— Só isso?
— Só.
— Como se chama seu amigo?
Deringhouse deixou a resposta a cargo de
Welinskij. Este fez o que se esperava dele, em-
bora a contragosto: se assustou e só depois de
uma demora altamente suspeita se lembrou de
um nome. E por cima de tudo o nome foi este:
— Popoff!
Na Rússia este nome é tão freqüente como
Silva entre nós.
O policial logo percebeu a situação com que
89
se defrontava.
— Ah! — exclamou. — Esperem aí! Fiquem
sentadinhos!
Com um passo rápido se dirigiu à janela e
abriu-a. O apito soou. Os policiais postados de
ambos os lados do trem responderam.
O policial que realizara o controle de docu-
mentos a partir do carro da frente descera de-
pois de ter concluído o trabalho no segundo
carro.
Deringhouse endireitou o corpo e compri-
miu o acionador do projetor mental contra o
metal plastificado do vagão. Transmitiu a or-
dem com o máximo de concentração. Só se
descontraiu quando o trem se pôs em movi-
mento com um solavanco.
O policial gritou alguma coisa para seu cole-
ga. Ao que parecia ainda não percebera que o
trem se pusera em movimento. Deringhouse se
colocou atrás dele, enlaçou-o pelos joelhos, le-
vantou-o e empurrou-o pela janela. A velocida-
de do trem ainda era muito reduzida. O policial
não se machucaria na queda.
Os outros policiais demoraram em com-
preender o que estava acontecendo. O trem ga-
nhou velocidade. Nada lhes restou senão gritar
e sacudir os punhos.
Deringhouse soltou uma gostosa gargalhada.
90
Não teve a menor dificuldade em tranqüilizar os
três trabalhadores por meio do projetor mental.
Depois se dirigiu a Welinskij.
— Da próxima vez avise o que pretende fa-
zer — queixou-se este. — Assim poderei me
preparar.
Deringhouse continuou a rir.
— Você foi formidável! Agiu exatamente
como alguém que tem a impressão de que foi
descoberto.
— Dentro de dois minutos o pessoal de Baj-
mak saberá que estamos para chegar. E então?
— Que saibam! — respondeu Deringhouse.
— Era isso mesmo que eu queria.
Welinskij o olhou com uma expressão de
perplexidade, mas Deringhouse não lhe forne-
ceu qualquer explicação.
— Assumi um único risco neste jogo — dis-
se. — Não sabia se conseguiria influenciar o
maquinista sem poder vê-lo. Mas você viu, con-
segui.

***

Thora nunca julgara necessário se fazer


anunciar a Rhodan; mas desta vez ela agira as-
sim. Durante os trinta segundos que se passa-
ram, desde o anúncio até o momento em que
91
Thora entrou em seu gabinete, Rhodan procu-
rou imaginar que conseqüência o choque sofri-
do no planeta Peregrino devia ter provocado no
espírito da arcônida, pois de repente soube se
adaptar aos modos terrenos.
A figura ereta surgiu na porta. Era bela, de
uma beleza desconcertante, com seu cabelo
muito claro, quase branco, e o brilho vermelho
irradiado por seus olhos. Mas ainda se notavam
os vestígios da decepção e das provocações que
experimentara no planeta Peregrino.
Rhodan convidou-a a sentar.
— Fico satisfeito em vê-la — disse em tom
amável. — Faz bastante tempo que não me visi-
ta.
Thora ergueu as sobrancelhas.
— Sempre se leva algum tempo para vencer
um choque deste — respondeu. Aliviado, Rho-
dan percebeu que ela zombava de si mesma.
A arcônida tomou lugar à frente de seu in-
terlocutor.
— Vim por um motivo egoísta — confessou.
— Gostaria de saber, para me distrair um pou-
co, o que faz o mundo.
Rhodan relatou os fatos minuciosamente e
em tom de conversa.
— Não o compreendo — disse Thora em
tom de espanto, assim que Rhodan concluiu
92
seu relato. — No início usa vassoura de ferro e
agora prefere enfrentar o Bloco Oriental com
um único agente, quando um ataque concentra-
do resolveria tudo em poucas horas. E a solu-
ção seria muito mais convincente.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Thora, não entende a psicologia terrena
— disse em tom professoral. — Na minha opi-
nião, Deringhouse não corre o menor perigo.
Nada pode lhe acontecer, a não ser que faça
uma tolice. Por outro lado posso mostrar à Hu-
manidade em geral, e ao povo do Bloco Orien-
tal em particular, que, para a Terceira Potência,
uma revolução desse tipo nem chega a repre-
sentar um acontecimento que justifique o uso
de armas pesadas ou o lançamento de bombas.
Lançou um olhar indagador para Thora.
— Compreende o que quero dizer? Inclinou
o corpo para a frente. — A Humanidade deve
compreender que Rhodan só precisa fazer isto
— passou a mão por cima da mesa — para re-
mover quaisquer dificuldades. Espere aí! — dis-
se, adiantando-se a uma objeção de Thora. —
Não quero brilhar à custa dos outros. Apenas
quero obrigar a Humanidade a se unir. É este o
meu objetivo. Mas não pretendo usar a força;
prefiro recorrer a um método especial, para fa-
zer com que a própria Humanidade acabe com-
93
preendendo. Se aceitasse suas sugestões, a lem-
brança que ficaria dos acontecimentos seria a
de que os homens foram obrigados pela força
bruta a unir-se. E é isso que eu quero evitar.
Thora não soube o que responder. Depois
de algum tempo voltou a falar:
— Tem razão, como sempre.
Depois de mais alguns minutos de silêncio
perguntou:
— Quais são as perspectivas de voltarmos a
Árcon?
A pergunta representou uma surpresa para
Rhodan; mas sua mente reagiu instantanea-
mente. Desde os primeiros dias de sua coopera-
ção com a Terra, Crest e Thora só estavam em-
penhados em sua volta para Árcon. E, mesmo
quando já existiam recursos para isso, Rhodan
ficou adiando a realização desse desejo de uma
oportunidade para outra, por motivos de segu-
rança terrena. Sentiu que não poderia continuar
assim por muito tempo.
— Eu lhe prometi que viajaríamos para Ár-
con assim que a Terra estivesse em segurança
— respondeu.
Conforme era de esperar, Thora não demo-
rou a formular outra pergunta:
— Quando será isso?
— Aguardemos a conferência que se realiza-
94
rá hoje — consolou-a Rhodan. — Se conseguir-
mos uma união, mesmo imperfeita, poderemos
decolar dentro de algumas semanas.
Sabia que não era nada disso. A Terra esta-
ria longe de ser um lugar seguro, mesmo que a
conferência que se iniciava fosse coroada de
êxito. Mas, consolando Thora, evitou uma dis-
cussão acalorada.
— Está bem — suspirou Thora. — Depois
de tamanha espera agüentaremos mais algumas
semanas.

***

Deringhouse fez o trem parar poucos quilô-


metros antes de Bajmak e desceu juntamente
com Welinskij. Os que pretenderam impedi-lo
foram influenciados hipnoticamente para adota-
rem uma atitude mais razoável.
Afastaram-se dos trilhos cerca de duzentos
metros e, andando paralelamente aos mesmos,
se aproximaram de Bajmak, ocultos pela vege-
tação. De um lugar elevado viram que o trem
no qual haviam viajado, ao chegar a Bajmak,
foi recebido por metade de um batalhão de po-
liciais. Por cerca de quinze minutos reinou uma
terrível confusão. Depois disso a tropa policial
se dividiu em vários grupos, que se deslocaram
95
para o norte, avançando de ambos os lados da
linha férrea.
— Estão à nossa procura — disse Dering-
house.
Prosseguiram em sua marcha. Por um moti-
vo que de início lhes parecia inexplicável os po-
liciais nunca se afastavam mais de cinqüenta
metros dos trilhos. Dessa forma nunca encon-
trariam os sabotadores. Posteriormente Dering-
house veio a saber que, em virtude de suas ar-
mas superiores, os policiais receberam ordem
para não penetrarem em qualquer área onde a
visão não fosse perfeita. O comandante do des-
tacamento policial de Bajmak não estava inte-
ressado em enviar duzentos policiais para o in-
terior do matagal, e meia hora depois ver du-
zentos sabotadores saírem de lá.
Welinskij e Deringhouse atingiram o lugarejo
meia hora depois, vindos do sul. Como nin-
guém os esperasse de lá, conseguiram se apro-
ximar a cem metros do edifício em que funcio-
nava a administração da pretensa mina de esta-
nho sem serem notados. Passaram o tempo
que faltava até o escurecer num matagal grande
e denso, sem que qualquer dos grupos de polici-
ais que patrulhavam a área os descobrisse.
Só depois das dez horas puseram mãos ao
trabalho, do qual por enquanto só Deringhouse
96
tinha uma idéia clara. Welinskij só sabia que no
momento adequado devia ser visto por alguém.
E Deringhouse não ocultou o fato de que isso
representaria a parte mais difícil do trabalho.
— Não se esqueça — avisou ao companhei-
ro. — Eu estou protegido contra as balas, mas
você não. Não assuma qualquer risco.
Aproximaram-se cautelosamente do comple-
xo de edifícios. Atrás da maior parte das janelas
a luz já se apagara. Só um dos barracos conti-
nuava iluminado por uma desagradável luz fluo-
rescente branco-azulada. Deringhouse indicou o
lugar em que Welinskij deveria ficar.
— Aqui estará protegido — cochichou. —
Voltarei em tempo. Só se mostre o suficiente
para que um policial medianamente competen-
te consiga gravar seu rosto.
Welinskij ficou nervoso.
— A quem vou me mostrar? Que diabo!
— A qualquer pessoa. Daqui a pouco haverá
gente de sobra nesta área.

***

Frunse, um georgiano, naquela noite de


plantão no barraco de vigilância, estava tranqüi-
lamente sentado à mesa que ficava perto da ja-
nelinha com o pequeno guichê. Para vencer o
97
sono procurou afundar na leitura de um jornal.
Frunse não era um homem muito instruído,
mas possuía uma vontade de ferro. Não falava
o russo muito bem, e a leitura do jornal se tor-
nava ainda mais difícil. Mas foi atravessando te-
nazmente os textos e desviou a idéia de sono de
sua mente até vencê-la definitivamente.
Estava entretido na leitura de uma notícia
sobre uma estranha mortandade do gado verifi-
cada na Sibéria ocidental quando a porta se
abriu. Frunse atirou o jornal sobre a mesa e fi-
tou a porta. Estava absolutamente certo de que
ninguém se aproximara do barraco. Havia um
único caminho que conduzia à porta, e apesar
do esforço exigido pela leitura teria percebido
se alguém o utilizasse.
A porta tinha fecho automático; não poderia
se abrir por si, nem permanecer aberta por tan-
to tempo.
Frunse se levantou. Sentia um pouco de
medo, mas precisava ver o que havia com a
porta. Nesse instante ela voltou a se fechar. De-
pois de hesitar um instante, Frunse voltou à sua
cadeira. Uma porta fechada não o preocupava,
e o que passou já pertencia ao passado. Mas es-
tava tão irritado que levou alguns minutos fitan-
do os espaços vazios do recinto, como se algu-
ma coisa pudesse estar escondida por ali.
98
Depois voltou a pegar o jornal.
Pouco depois voltou a se sobressaltar. Ouvi-
ra um ruído. Olhou por cima do jornal, mas
não viu nada. Só quando voltou a ouvir o mes-
mo ruído percebeu a direção de onde vinha.
O vigia se ergueu lentamente. Alguns segun-
dos preciosos se passaram antes que com-
preendesse que aquilo não era obra de um fan-
tasma, mas de alguém que sabia perfeitamente
o que queria. Atrás das duas chapas que acaba-
vam de ser retiradas ficava o labirinto de fios do
equipamento de segurança, cujo painel central
fora instalado na mesa de Frunse. Não entendia
nada dos detalhes técnicos da instalação; mas
sabia que qualquer invasor, inclusive um sabota-
dor, poderia penetrar nos edifícios da adminis-
tração e nas galerias sem ser impedido ou mes-
mo notado se a instalação fosse destruída ou
danificada.
Isso não podia acontecer!
Com dois saltos enormes se colocou diante
da parede. Estendeu a mão para agarrar o invi-
sível. Mas em vez de agarrá-lo sentiu uma pan-
cada violenta, que o atirou para o lado oposto
da sala. Por algum tempo ficou estendido no
chão, ofegante.
O medo e a raiva lutaram em sua mente.
Olhando para cima, viu que as pontas dos fios
99
embutidos na parede se moviam, ligações eram
desfeitas e outras estabelecidas. Não compreen-
dia, mas tinha certeza de que o invisível arruina-
ria as instalações de tal forma que alguns dias se
passariam antes que pudessem ser reparadas.
Frunse rastejou cautelosamente em direção
à sua mesa. Apoiando-se em um dos pés, er-
gueu o corpo, abriu a gaveta e retirou a pistola.
Por baixo da mesa fez pontaria em direção ao
lugar em que supunha estar o invisível e, num
acesso de raiva e coragem, apertou o gatilho.
A descarga provocou um estrondo naquele
recinto pequeno. Mas o efeito foi totalmente di-
ferente do que esperava: o estrondo da explo-
são foi superado pelo ruído metálico do impac-
to do projétil contra a parede. Seguiu-se um
uivo cortante e o estilhaçar do vidro. Ao se vol-
tar, apavorado, percebeu que o tiro disparado
para a frente quebrara a vidraça atrás dele.
Mas Frunse era um homem duro, e o fato
tranqüilizador de que o estranho nem tomava
conhecimento dos seus esforços, mas continua-
va a trabalhar calmamente, diminuiu o medo de
que se sentia possuído. Inclinou-se sobre a
mesa e levantou o fone. Discou apressadamen-
te os três algarismos da polícia e gritou:
— Aqui entrou um invisível que está destru-
indo as instalações do equipamento de seguran-
100
ça.
Deixou cair o fone e voltou a se abrigar atrás
da mesa.
O telefonema também não perturbou o invi-
sível. Pelo estalo dos fios partidos e pelo crepi-
tar das faíscas, Frunse percebeu que continuava
a trabalhar.
“Você não perde por esperar”, pensou com
o ânimo furioso. “Logo será agarrado.”
Mas não tinha nenhuma idéia clara sobre a
maneira pela qual a polícia poderia ser mais
bem sucedida contra o inimigo invisível do que
ele o fora.
Soltou um grito quando, pouco antes do
momento em que, pelos seus cálculos, a polícia
devia aparecer, os estalos e o crepitar cessaram
subitamente e no mesmo instante a porta vol-
tou a se abrir.
— Nãããoo! — gritou Frunse. — Está esca-
pando!
Passou por baixo da mesa e correu à porta.
Mas era evidente que na escuridão não via mais
do invisível do que vira na sala bem iluminada.

***

Welinskij ouviu as pisadas de muitos pés.


Poucos minutos antes ouvira o tiro disparado
101
no barraco e o uivo da bala que ricocheteava.
As pisadas se aproximaram. Vinham da es-
trada e entraram no caminho que dava para o
barraco. Pouco depois os vultos dos policiais
em desabalada carreira surgiram na escuridão.
— Nãããoo! — gritou alguém do interior do
barraco, no mesmo instante em que Welinskij
saía do seu esconderijo. — Está escapando!
Os policiais se aproximaram. Num rápido
exame, Welinskij contou oito deles. A escuridão
era quase completa, mas viram-no. O grupo es-
tacou. Depois que pelos seus cálculos fora visto
o suficiente, Welinskij desapareceu no matagal.
Alguém gritou:
— Sigam-no! Vamos! É ele!
Mas do lado do barraco ouviu-se a voz lamu-
rienta de alguém que falava um péssimo russo:
— É aqui, seus idiotas! Foi daqui que ele de-
sapareceu!
Welinskij correu pelo matagal. Estava a qua-
se cinqüenta metros dos policiais quando estes
se refizeram da confusão. Dois deles continua-
ram a persegui-lo. Os outros correram em dire-
ção ao barraco.
Subitamente Welinskij percebeu que alguém
o segurava pela mão. Assustou-se. Mas Dering-
house ainda pretendia tomar outras iniciativas.
— Abrace-me por trás — ordenou a We-
102
linskij.
Este obedeceu.
— Agora realizaremos um pequeno vôo,
para nos afastarmos daqui o mais rápido e o
mais longe possível. Neste traje está embutido
um gerador que, ligado à potência máxima,
produz um campo antigravitacional capaz de
suportar nós dois. Para isso devemos dispensar
a invisibilidade. Mas de noite isso não será tão
perigoso.
Antes que pudesse proferir uma palavra,
Welinskij teve a sensação de quem se encontra
num elevador que desce em alta velocidade.
Seu estômago parecia se levantar um pouco.
Assim que se recuperou do susto, viu as luzes
da mina bem abaixo do lugar em que estava.
— Não tenha medo — tranqüilizou-o De-
ringhouse. — Não é muito confortável, mas é
melhor que fugir a pé.
— Mas se eu o soltar... — disse Welinskij,
falando com dificuldade.
— Nesse caso não acontecerá nada — expli-
cou Deringhouse. — Continuará a voar comi-
go. Só se der socos ou pontapés em mim será
desviado, e assim que abandonar a gravisfera
artificial cairá. Portanto, é preferível que conti-
nue comigo.
Riu. Mas Welinskij não estava com vontade
103
de rir. Em seu interior o medo do desconheci-
do, do nunca visto, lutava contra a admiração
provocada por esse produto de uma tecnologia
incrivelmente desenvolvida.
Depois de algum tempo se acostumou à sen-
sação estranha da ausência parcial de gravidade
e começou a se interessar pelo que se passava
em torno dele. Pelos contornos pouco nítidos
das colinas do sul da cadeia dos Urais, que des-
filavam abaixo deles, calculou em duzentos me-
tros a altitude em que voavam e em cem quilô-
metros por hora a velocidade. A força do deslo-
camento do ar fora reduzida bastante pelo cam-
po de gravitação artificial. Welinskij não sentia
qualquer incômodo, mesmo quando olhava por
cima do ombro de Deringhouse.
Pelo que notava, se deslocavam na direção
oeste.

Embora, na qualidade de perito-militar, o


marechal Sirov participasse do Conselho Supre-
mo apenas como um adido, viu-se diminuído
como os demais quatrocentos e quinze mem-
bros com direito de voto: foi reduzido à simples
condição de um receptor de ordens.
Mantinha-se escondido e mudava diariamen-
104
te de esconderijo.
Todos os dias, sempre numa hora diferente,
entre as oito da manhã e o meio-dia, Sirov re-
cebia um chamado telefônico e uma voz desco-
nhecida lhe transmitia as notícias mais recentes.
Sempre que fossem importantes ele as transmi-
tia através de mais de vinte canais diferentes,
cujo emaranhado geralmente lhe era desconhe-
cido, fazendo-as chegar aos seus subordinados,
a fim de que estes tomassem as providências
que se fizessem necessárias.
Pelo menos três vezes por dia Sirov recebia
um telefonema de um homem que, segundo su-
punha, era o secretário-geral Strelnikov. Este
formulava sugestões de como se devia reagir a
esta ou aquela situação e esperava que Sirov
considerasse essas sugestões como ordens; o
que o marechal fazia com a melhor boa vonta-
de.
Naquele dia, em 18 de junho, Sirov recebeu,
logo depois da transmissão das últimas notícias,
um chamado de alguém que falava com a voz
disfarçada.
— Grande vitória — disse a voz.
— Grande êxito — respondeu Sirov. Eram
as senhas combinadas para que Sirov recebesse
como ordens tudo que lhe fosse dito em forma
de sugestão.
105
— Temos novidades a respeito do agente de
Rhodan — prosseguiu a voz. — Ontem de noi-
te apareceu em Bajmak, na área de Magnito-
gorsk, pela forma usual e incompreensível. De-
monstrou muita autoconfiança. O capitão We-
linskij estava com ele. Safou-se mal e mal de
um controle realizado num trem. Na noite do
mesmo dia o sistema de segurança da mina de
urânio foi danificado de tal forma que o pessoal
terá que trabalhar pelo menos dois ou três dias
para repará-lo.
Naquela voz notava-se um tom de triunfo.
De início Sirov ficou admirado com isso; mas
logo compreendeu.
— Daí se pode concluir sem a menor dúvida
— prosseguiu a voz — que Welinskij e aquele
agente tentarão atacar a mina, e isso antes que
as instalações de segurança tenham sido repara-
das. Portanto, sabemos que nas próximas vinte
e quatro horas, ou ainda nas próximas quarenta
e oito horas, os dois permanecerão em Bajmak.
Sirov compreendeu.
— Quero que mande seus melhores elemen-
tos para lá — disse a voz. — Os dois não de-
vem escapar!
— Entendido — respondeu Sirov. — Provi-
denciarei imediatamente.
— Muito bem. Por enquanto só tivemos co-
106
nhecimento de um agente que Rhodan introdu-
ziu em nosso território. Tudo indica que real-
mente não haja outro. Logo, parece que no
momento não há nenhum perigo para Moscou.
Isso representava certo alívio, não só para
Strelnikov.
A palestra terminou com o estalo do fone.
Sirov baixou o gancho e discou rapidamente
uma seqüência de algarismos que sabia de cor.
Transmitiu as instruções de Strelnikov e todas
as informações adicionais, e insistiu na necessi-
dade de que Welinskij e o agente fossem captu-
rados de qualquer maneira.
No curso do telefonema Sirov ouviu um li-
geiro chiado no pequeno apartamento que ocu-
pava naquele dia. Interrompeu a palestra e se
virou. Podia ver a área fronteira à porta; não
havia ninguém. Disse para si mesmo que algum
ruído da rua devia ter chegado até lá e conti-
nuou a falar ao telefone.
Quando terminou o telefonema, ficou senta-
do mais algum tempo diante do telefone, mer-
gulhado em pensamentos e olhando para a ja-
nela encortinada. Depois se levantou para pe-
gar o maço de cigarros que se encontrava no
bolso do paletó.
Quando ia se afastando da escrivaninha, ele
os viu, os dois.
107
Um deles era Welinskij. Sirov vira muitos re-
tratos dele e o reconheceu imediatamente. O
outro devia ser o agente da Terceira Potência.
Era alto e magro, tinha o cabelo louro cortado
à escovinha e seu rosto exibia um sorriso irri-
tante.
— Bom dia! — disse o louro com a voz
amável. — Entramos de forma um tanto estra-
nha; queira desculpar. Não tivemos outra alter-
nativa. Pensávamos que...
Deu um salto enorme para o meio da sala.
Era um salto muito maior que o que Sirov pre-
tendia dar para alcançar a gaveta da escrivani-
nha.
O marechal teve a sensação de ter sido en-
volvido num furacão. Numa raiva surda perce-
beu que o louro alto nem quis recorrer às suas
armas, sem dúvida muito superiores; confiava
apenas na força dos punhos e na agilidade físi-
ca.
Mas a raiva de Sirov não adiantou de nada.
Levou uma porção de socos doloridos antes que
pudesse levantar os braços para se proteger.
Quando tentou escapar, Deringhouse lhe bateu
com ambos os punhos em cima da cabeça. Si-
rov tonteou, dobrou os joelhos, não conseguiu
se manter de pé e caiu ao chão com um baque.
A respiração de Deringhouse nem chegava a
108
ser mais rápida. Apenas a amabilidade havia
desaparecido de seu rosto.
— Não tente isso uma segunda vez! — avi-
sou ao marechal. — Dispomos de outros meios;
da próxima vez será um homem morto.
Sirov procurou se levantar. Deringhouse fez
um gesto e Welinskij veio em auxílio do mare-
chal, arrastando-o para uma cadeira e segu-
rando-o. Deringhouse saiu da sala. Voltou com
um monte de fitas de plástico e as atirou a We-
linskij.
— Amarre-o! — ordenou. — Tenha cuida-
do. Sua segurança depende disso.
Depois, perguntou a Sirov.
— Sabe por que estou aqui?
O marechal não respondeu. Deringhouse es-
boçou um sorriso zombeteiro.
— Não venha me dizer que seu serviço de
informações é tão ineficiente. A conferência
dos governos legais das potências terrenas deci-
diu na tarde de anteontem, em Galáxia, que os
objetivos e métodos do atual governo do Bloco
Oriental deviam ser condenados e exigiu a puni-
ção dos culpados por uma corte mundial. Já
deve ter ouvido falar nisso.
A essa altura Sirov já não conseguiu domi-
nar a raiva.
— Não seja ridículo! — fungou. — Em Galá-
109
xia podem decidir e exigir o que quiserem.
Quem vai se interessar por isso?
— Você — respondeu Deringhouse. — Está
em minhas mãos, e delas só sairá para ser en-
tregue ao carcereiro de Galáxia.
Sirov se esforçou para soltar uma risada de
escárnio, mas não conseguiu.
— Aliás, você não será o único — prosse-
guiu Deringhouse em tom indiferente. — Da
mesma forma que o encontrei, ainda vou pôr as
mãos em algumas outras pessoas. Assim não
sentirá tanta solidão.
Sirov lhe lançou um olhar indagador. De-
ringhouse percebeu que estava interessado em
saber como pudera localizar seu esconderijo.
Mas não lhe explicou.
— Afinal, você só é um dos pequenos pati-
fes — disse Deringhouse.
Com isso a raiva de Sirov voltou a crescer;
mas por mais que forçasse as fitas de plástico,
elas não cediam.
À saída do apartamento, Deringhouse trans-
mitiu suas instruções a Welinskij.
— Tenha cuidado! — preveniu-o. — Não
caia em qualquer truque. É preferível nem falar
com ele. Não devo demorar. Se houver um im-
previsto, use o radiador térmico. Infelizmente
não posso lhe dar coisa melhor.
110
Welinskij voltou ao interior da residência e
Deringhouse se retirou. Examinou o lugar da
porta onde a fechadura fora retirada cuidadosa-
mente com o radiador térmico. Estava oculto
sob a maçaneta e só mesmo alguém que olhas-
se cuidadosamente e de perto notaria alguma
coisa.
Ali não haveria qualquer perigo. Mas, se Si-
rov estivesse sendo vigiado, a coisa seria dife-
rente. Nesse caso...
Que nada! Welinskij possuía uma arma su-
perior e saberia se cuidar. Desde que dispusesse
de mantimentos, poderia resistir com o radiador
térmico a um exército inteiro enquanto conse-
guisse manter os olhos abertos.
Até então ele, Deringhouse, já estaria de
volta.
Antes de tomar o elevador para descer ao
térreo, ativou o campo de deflexão luminosa.
Assim que chegou à calçada se elevou a uma al-
titude de dez metros e voou acima do trânsito.
Seu destino era a central de telecomunica-
ções. Por ali passavam todos os condutos tele-
fônicos de Moscou, inclusive os dos dez ou
quinze videofones de que a cidade já dispunha.
Deringhouse tivera a idéia de penetrar na
central de telecomunicações enquanto, em
companhia de Welinskij, viajava de Magnito-
111
gorsk a Moscou, parte de avião, parte de trem
ou de carro. Chegando a Moscou, logo trans-
formou a idéia em realidade. Recorreu ao proje-
tor mental para penetrar no edifício e pelo mes-
mo meio obteve permissão de acompanhar tre-
chos das mensagens do setor oficial F. Recorre-
ra à compulsão hipnótica para obter do diretor
a informação de que as mensagens internas do
governo eram transmitidas por esse setor.
A tentativa foi coroada de êxito. Depois de
dez minutos, descobriu o esconderijo do mare-
chal Sirov. Acompanhara a transmissão das no-
tícias.
Por simples acaso Sirov foi o primeiro a ser
descoberto. Poderia ter sido qualquer outro
membro do Conselho Supremo.
Deringhouse sabia que, no momento, era
mais importante descobrir o esconderijo de
Strelnikov, secretário-geral do conselho.
Se conseguisse pôr as mãos nele, o êxito do
plano de Rhodan estaria garantido.
Deringhouse não subestimou o risco que
correria numa busca a Strelnikov. Para uma
pessoa isolada, o exponencial de perigo que en-
volvia o projeto cresceria com o tempo, por
melhor que fosse seu equipamento. Além disso,
Deringhouse percebeu pela primeira vez que,
ao se unir a Welinskij, arranjara antes um peso
112
que um auxílio.
Aumentou a velocidade e, dez minutos de-
pois que deixara Welinskij, chegou ao edifício
da central de telecomunicações.

***

Rhodan procedeu metodicamente. Confiava


antes de tudo na força dos seus argumentos.
Não havia nenhum problema que o preocupas-
se tanto como o da união da Humanidade, e fa-
cilmente poderia influenciar os membros e re-
presentantes dos governos no sentido de con-
cordarem com suas sugestões. No entanto,
nada fez para que isso acontecesse.
Agiu de igual para igual. Inscreveu-se na lista
dos oradores e a palavra lhe foi concedida em
primeiro lugar. Nenhum dos presentes acredita-
va que aquilo que teria para dizer fosse mais im-
portante que a mensagem que solicitara a con-
ferência.
Quem esperava que Rhodan iniciasse seu
discurso com um relato do que fizera nos últi-
mos quatro anos e meio — e houve algumas
pessoas que acreditavam que ele utilizaria a
conferência como plataforma publicitária —
logo viu que estava enganado. Rhodan falou so-
bre aquilo que, nesse meio tempo, havia acon-
113
tecido na Terra.
Leu o relatório sobre a revolução no Bloco
Oriental, redigido por seus agentes. Vários de-
talhes chegaram ao conhecimento público pela
primeira vez. Tratava-se de fatos que os novos
detentores do poder julgavam acobertados pelo
segredo.
Rhodan estava consciente dos efeitos que
suas revelações produziriam. Por sugestão sua e
sem que os delegados se opusessem, a confe-
rência foi irradiada pelas potentes emissoras de
televisão da Terceira Potência e retransmitida
por todas as emissoras terrenas, com exceção
das situadas no território dos Estados que com-
punham o Bloco Oriental.
Rhodan repetiu as recomendações formula-
das aos governos dos blocos de potências du-
rante as conferências panterrenas realizadas al-
guns anos atrás. Provou que o novo governo do
Bloco Oriental nada fizera para cumprir essas
recomendações e, mais do que isso, infringira e
continuava a infringir as mesmas.
Mas a acusação de maior peso formulada
contra os governos do Bloco Oriental foi a de
que pretenderam desencadear uma guerra que
teria significado o fim da Humanidade, se a
Terceira Potência não tivesse interferido a tem-
po.
114
As explanações de Rhodan não duraram
mais que uma hora. Assim mesmo abrangeram
toda a problemática em formulações sucintas e
precisas. Ao concluir disse:
— Senhores, sem dúvida temos o direito de
levantar a voz em nome daquele grupo de mais
de quatrocentos milhões de pessoas, que já ha-
viam começado a acreditar que dentro de pou-
cos anos a Terra seria um mundo da união, e
que sofreram uma decepção tão cruel em virtu-
de de uma revolução que não merece esse
nome. Quero formular a seguinte proposta: a
conferência tomará uma resolução pela qual de-
clarará que os objetivos e métodos do Conselho
Supremo do Bloco Oriental são um procedi-
mento criminoso e contrário aos direitos huma-
nos.
A proposta obteve aprovação unânime em
primeira votação.
Rhodan desceu da tribuna e deixou que ou-
tros tomassem a palavra. Ficou satisfeito ao
constatar que os oradores seguintes, sem que o
soubessem, se esforçavam para aplainar o ca-
minho para a outra proposta que pretendia for-
mular. Não interferiu nas discussões até que jul-
gou chegado o momento. Foi ao anoitecer da-
quele dia, quando a conferência ameaçou trans-
bordar da indignação causada pelos métodos
115
desumanos do regime que se instalara no Bloco
Oriental, métodos estes que foram examinados
sob os ângulos mais variados.
Levantou-se e propôs a criação de uma cor-
te mundial que teria a seu cargo o resguardo
dos direitos humanos em todos os pontos do
globo. Ainda sugeriu que os homens que deti-
nham o poder no Bloco Oriental fossem denun-
ciados perante essa corte, trazidos à presença
do juiz e condenados.
Quando a proposta foi aceita, a grande mai-
oria das pessoas que se encontravam no enor-
me auditório de Galáxia acreditou que a delibe-
ração não passava de um ato simbólico. Nin-
guém concebeu a idéia, e muito menos acredi-
tou que Rhodan conseguiria transformar a reso-
lução em realidade, nos seus mínimos porme-
nores.
Os trabalhos da conferência foram suspen-
sos até a manhã do dia seguinte. Nesse dia fo-
ram eleitos os juizes da recém-criada corte mun-
dial. A presidência foi oferecida a Rhodan, mas
este não a aceitou. O posto de juiz supremo foi
confiado a Frederick Donnifer, um australiano
que desempenhava as funções de ministro da
justiça do governo de Camberra. E logo se che-
gou a acordo sobre o preenchimento dos de-
mais cargos, ainda mais que Donnifer formula-
116
va propostas que todos julgavam aceitáveis.
Um orador indiano se queixou de que havia
um tribunal e um acusado, mas faltava a lei pela
qual os juizes poderiam se guiar ao proferir a
condenação.
A objeção tinha fundamento. Mas logo se
verificou que o código a ser adotado poderia ser
a Declaração dos Direitos Humanos promulga-
da pelas Nações Unidas, que não precisaria ser
submetida a qualquer alteração.
Na noite daquele dia o tribunal foi constituí-
do. Num breve discurso, Rhodan ressaltou que
em sua opinião o ato representava a criação de
mais uma instituição panterrena, que oportuna-
mente seria seguida de outras. A mais impor-
tante e provavelmente a última seria o governo
panterreno.
A primeira iniciativa, a criação da Federação
de Defesa da Terra, não fora bem sucedida,
mas valera como primeiro passo.
Decidiu-se que, no dia seguinte, seria discuti-
da a forma de uma cooperação que precederia
a constituição da confederação terrena e poste-
riormente de um Estado federado terreno. Os
participantes da conferência se separaram na
convicção de terem feito o possível para pro-
mover o progresso da Humanidade.
Rhodan providenciara para que seus hóspe-
117
des recebessem um tratamento condigno em
Galáxia. Tinha certeza de que a profunda im-
pressão que a cidade causava nos visitantes e a
hospitalidade que lhes estava sendo dispensada
representaria fatores positivos no encaminha-
mento das negociações.

***

Meia hora se passou sem que Sirov dissesse


uma palavra. Welinskij estava sentado atrás dele
e descansara a arma de radiações no colo. Si-
rov não podia vê-lo. De vez em quando, o capi-
tão fumava um cigarro, para matar o tempo e
vencer o nervosismo.
Depois de algum tempo Sirov disse:
— Não poderia ao menos explicar o que
esse homem e a Terceira Potência pretendem
fazer?
Welinskij não achou nada demais em res-
ponder à pergunta. Deringhouse o esclarecera
a este respeito, mas Welinskij cometeu o erro
de se julgar uma espécie de missionário, a
quem cabia levar a luz da verdade até mesmo
aos corações mais sombrios.
Subitamente Sirov interrompeu seu interlo-
cutor. Inclinou a cabeça para a frente o mais
que as fitas de plástico que lhe prendiam os om-
118
bros o permitiram.
— Está ouvindo? — cochichou.
Welinskij não ouviu nada.
— Alguém está subindo a escada — disse Si-
rov. — Quem será? Seu companheiro?
Welinskij se levantou e segurou o radiador
térmico.
— Vou dar uma olhada — disse.
Foi na ponta dos pés até a porta e saiu para
a área fronteira. Parou junto à entrada da resi-
dência e aguçou o ouvido. Percebeu uma série
de passos, mas talvez isso não significasse nada.
O edifício era grande, e seria de estranhar se
naquele instante não houvesse ninguém pelas
escadas.
Os passos não se fizeram ouvir nas imedia-
ções da porta. Assim que se convenceu disso,
Welinskij abriu a porta o suficiente para enfiar a
cabeça na fresta. Olhou para a direita e para a
esquerda; não havia ninguém. Tranqüilizado, fe-
chou a porta.
No mesmo instante, ouviu um estalo surdo
vindo da sala em que Sirov se encontrava. As-
sustado, deu dois passos largos, se colocou na
porta de entrada e olhou para a sala.
Sirov continuava sentado na sua cadeira...
mas onde ela estava! O marechal devia ter con-
seguido movê-la por meio de vários solavancos.
119
Naquele momento a cadeira se encontrava ao
lado esquerdo da escrivaninha e caíra para a
frente. Sirov estava com o peito encostado ao
canto do móvel e teve que desenvolver um es-
forço tão intenso para manter a cabeça ereta
que as veias do pescoço se incharam.
Welinskij levantou o radiador térmico.
— Não faça isso, seu idiota! — fungou Si-
rov. — Pelo amor de Deus, fique onde está.
Welinskij hesitou. Estava perplexo. Só quan-
do Sirov deixou a cabeça pender para a frente e
seu rosto se desfigurou numa careta de deboche
percebeu o que realmente estava acontecendo.
Numa espécie de movimento reflexo levan-
tou a pesada arma térmica. O dedo se entortou
junto ao gatilho. Mas no mesmo instante foi
agarrado por um turbilhão ensurdecedor e seus
pensamentos se apagaram.

***

A paciência de Deringhouse foi submetida a


uma prova dura. Strelnikov não parecia ser um
dos usuários mais assíduos do telefone. No cur-
so de uma hora não chegou a dar sinal de vida.
A não ser que o homem que, no início de
cada telefonema, dizia “grande vitória” e obti-
nha a resposta “grande êxito” fosse Strelnikov.
120
A possibilidade não podia ser desprezada.
Depois de duas horas Deringhouse abando-
nou seu posto de escuta. Anotara a posição do
aparelho que costumava ser usado pela “grande
vitória”. Daria uma olhada no local. Se não
conseguisse nada, poderia voltar.
Saiu da central de telecomunicações às onze
horas e trinta e cinco minutos; dez minutos de-
pois chegou à Rua Vinte e Oito de Outubro,
onde ficava o esconderijo de Sirov. Logo viu a
aglomeração que se formara diante do prédio e
não duvidou um instante que alguma coisa
acontecera com o marechal. Estava invisível;
entrou cautelosamente pelo largo portal, para
não esbarrar em ninguém, e voou pela escada-
ria em direção ao oitavo andar, onde ficava a
residência de Sirov.
Diante da residência notou um grupo de ho-
mens uniformizados. Ainda percebeu uma fen-
da de uns dez centímetros de largura, que des-
cia pela parede do corredor.
Parou no corredor, esperando que os polici-
ais deixassem a porta livre. Ouviu que, no apar-
tamento, houvera uma explosão cercada de cir-
cunstâncias bastante estranhas. Ao que parecia,
ninguém sabia dizer quem era o ocupante da
residência, e ninguém tinha a menor idéia sobre
a causa da explosão.
121
Depois de ter esperado quinze minutos, De-
ringhouse chegou ã conclusão de que qualquer
perda de tempo representaria um risco. Lançou
mão do projetor mental. Os policiais obedece-
ram à ordem que lhes foi transmitida: afasta-
ram-se para o lado, liberando a porta.
No interior do apartamento pelo menos seis
policiais se mantinham ativos. Deringhouse
obrigou um por um a se submeter à sua vonta-
de e entrou no escritório de Sirov.
No lugar em que antes existia a porta, abria-
se um enorme buraco. O soalho estava quebra-
do e parte do teto desabara por cima da porta.
Pelo buraco, via-se o apartamento do nono an-
dar.
Era estranho que a explosão quase não cau-
sara nenhum dano no interior da sala. Uma
prateleira de livros caíra e seu conteúdo se es-
palhara pelo chão. Era só.
O livro que fora atirado mais longe estava
perto da mão de um homem que a explosão er-
guera no ar e atirara ao chão.
Era Welinskij.
Deringhouse se abaixou sobre ele, enquanto
os policiais, obedecendo ao seu comando hip-
nótico, se enfileiravam junto à parede. Welinskij
estava deitado de bruços. Deringhouse o virou
de costas e percebeu à primeira vista que estava
122
morto.
Welinskij!
Deringhouse cerrou o punho. Fora um jo-
vem tão entusiasta e tolo! Não deveria tê-lo dei-
xado a sós com Sirov, a raposa velha.
Mas ia lhes mostrar o que receberiam em
troca desse assassinato.

***

Dali a quinze minutos se encontrava nova-


mente na rua. Percebeu o risco que corria. Si-
rov fugira e era mais que natural que acreditas-
se que ele, Deringhouse, voltasse nas próximas
horas para revezar Welinskij.
Mesmo um homem invisível equipado com
uma arma psicológica poderia ser capturado,
desde que o número de perseguidores fosse su-
ficiente e estes agissem com bastante habilida-
de.
No curso dos quinze minutos examinara o
buraco aberto pela explosão. Mesmo quem não
fosse perito em explosivos perceberia que a car-
ga fora colocada de tal maneira que mais de no-
venta e cinco por cento do efeito explosivo se
desenvolveria verticalmente para cima, a partir
da soleira da porta. Welinskij devia estar ali
quando a bomba foi detonada ou provavelmen-
123
te ainda estaria no hall, com a porta entreaber-
ta.
Deringhouse também encontrou o detona-
dor. Era um botão de aparência inofensiva que
se encontrava sobre o tampo da escrivaninha.
Perto desta se encontrava a cadeira em que Si-
rov estivera sentado, ainda com os restos das fi-
tas de plástico.
Deringhouse pôde fazer a reconstituição
mental dos acontecimentos. Por algum motivo,
Welinskij saíra da sala. Pobre-diabo! Nunca de-
veria ter feito uma coisa dessas. Sirov aprovei-
tou o tempo para escorregar com a cadeira
para junto da escrivaninha e, no momento em
que Welinskij abriu a porta para entrar, se incli-
nou para a frente e comprimiu o botão com a
testa.
Aquele apartamento devia pertencer ao go-
verno. A bomba fora colocada ali quando foi
comprado ou construído pelo governo. Quem
colocou a bomba naquele local demonstrou
muita habilidade. Qualquer um que se encon-
trasse num aperto conseguiria fazer com que
seu inimigo fosse à porta sob qualquer pretexto.
Desde que nesse preciso instante conseguisse
colocar a mão, ou qualquer coisa que se moves-
se, em cima do botão, o caso estaria liquidado.
Para Sirov estava liquidado; e além de tudo
124
o marechal se apossara do radiador térmico de
Welinskij.
Deringhouse compreendeu que o incidente
exigia uma modificação dos seus planos. A esta
hora Strelnikov já devia ter sido prevenido e na-
turalmente abandonara seu esconderijo; se real-
mente era a “grande vitória”.
De qualquer maneira Deringhouse resolveu
dar uma olhada no esconderijo. Muitas vezes
uma pessoa que se vê obrigada a sair às pressas
deixa uma pista. Tirou o bilhete com a anota-
ção do bolso e o leu de maneira que ficasse
dentro do campo de deflexão.
Era na Rua Kujbyschev. Deringhouse se lem-
brou de que a rua ficava num bairro da zona
leste. Dispôs-se a subir quando notou um movi-
mento acima de sua cabeça. Olhou e viu um
trançado fino de fios metálicos, que uma turma
de trabalhadores procurava firmar nos telhados
de ambos os lados da rua.
Assustou-se. Virou a cabeça e viu que o
mesmo trançado cobria a rua em todos os la-
dos. Além disso, em cada esquina, o mesmo
descia dos telhados até a rua. E subitamente de-
zenas de policiais surgiram de ambos os lados
daquele trecho de rua.
Era a armadilha perfeita!
Deringhouse não teve ilusões. O alcance de
125
seu projetor mental não ultrapassava cinqüenta
metros. A essa distância poderia, quando mui-
to, submeter dez homens à sua vontade, desde
que eles estivessem bem juntos.
Imaginou quais seriam as ordens transmiti-
das a estes policiais. Não deviam sair do lugar.
E estavam tão encostados um ao outro que
nem mesmo um cachorro de tamanho médio
conseguiria passar entre eles. Provavelmente
estavam preparados para mobilizar reservas as-
sim que um deles saísse do lugar, deixando uma
passagem. Naturalmente nas ruas laterais várias
companhias de polícia estariam de prontidão,
preparadas para acudir ao primeiro chamado e
ajudar a encurralar o homem invisível.
A esse homem invisível seria impossível
exercer um domínio mental simultâneo sobre
todos os policiais.
E a tela de arame?
Não havia a menor dúvida de que era manti-
do sob observação. Telas de arame deste tipo
costumavam ser fabricadas para as mais varia-
das finalidades. Submetidas a uma corrente
elétrica de reduzida intensidade, indicavam,
através de um instrumento não muito complica-
do, em que ponto eram tocadas. Na altura dos
telhados aconteceria a mesma coisa que nas
ruas transversais, se procurasse sair da armadi-
126
lha por lá.
No entanto, não podiam saber se ele se en-
contrava na armadilha. Portanto, só precisava
esperar alguns dias até que os policiais fossem
embora e retirassem as telas.
Alguns dias!...
Não podia esperar nem mesmo algumas ho-
ras. Cada minuto perdido na atividade dava a
Strelnikov novas oportunidades de apagar sua
pista.
Também poderia se libertar à força. Ainda
possuía o radiador de nêutrons. Poderia abrir
uma brecha e escapar.
Mas se lembrou do que acontecera em Vê-
nus. O fogo concentrado das armas automáti-
cas seria dirigido sobre a brecha. Se o campo
defensivo do traje recebesse uma solicitação
energética muito intensa, tanto o campo de de-
flexão como o campo de neutralização gravita-
cional seriam eliminados. Se tornaria visível e
teria que se mover no solo.
Sentiu-se tomado pelo nervosismo quando
viu que a polícia se preparava para uma opera-
ção de grande envergadura. Viu caminhões que
evacuavam os moradores das vizinhanças e
equipes de operários ocupadas em pregar as ja-
nelas desse trecho da Rua Vinte e Oito de Ou-
tubro.
127
Dessa forma, quando se pusessem a revistar
as casas, não poderia usar qualquer janela para
fugir, sem ser percebido.
O homem que preparara a operação com
tamanha rapidez devia ser dotado de uma inteli-
gência extraordinária. Não se esquecera de ne-
nhum detalhe que pudesse representar uma es-
capatória para o homem invisível dotado de
energias hipnóticas.
Não teria mesmo escapatória?
Deringhouse teve uma idéia. De início foi
vaga e fugaz; antes que compreendesse, saiu de
sua mente. Mas ele a trouxe de volta e fez pas-
sar várias vezes pela cabeça. Seria uma possibi-
lidade?
O risco era enorme. Mas antes assumir um
risco que perder uma oportunidade.
Afinal, o que poderia lhe acontecer?

— O que fizeram em Bajmak foi um truque


e nós caímos nele — declarou Sirov.
Seu aspecto não melhorara muito desde o
instante em que Deringhouse lhe dera a sova.
Não tivera tempo para mudar de roupa. Atra-
vés de um chamado de emergência, descobriu o
esconderijo de Strelnikov e para lá se dirigiu
128
pelo caminho mais rápido.
Quando soube o que havia acontecido, Strel-
nikov logo procurou retribuir o golpe. Incumbiu
um jovem coronel do serviço de segurança de
capturar o agente de Rhodan se este, conforme
era esperado, voltasse à Rua Vinte e Oito de
Outubro.
— É claro que foi um truque — resmungou
para Sirov. — Queriam que acreditássemos que
a mina de urânio os manteria ocupados por
mais alguns dias, quando na verdade já se en-
contravam em Moscou.
Os olhos de Sirov brilharam.
— Mas conseguimos enganá-los!... — ga-
bou-se.
Strelnikov deu uma ducha fria no seu otimis-
mo.
— Por enquanto — disse. — Só por en-
quanto.
Sirov se acalmou.
— O que pretende fazer? — perguntou.
— Mandar levá-lo a um lugar seguro — foi a
resposta lacônica de Strelnikov.
Sentou atrás da escrivaninha e preencheu
um formulário. Sirov viu que colocou sua assi-
natura embaixo do mesmo.
— Tome isto — ordenou. — Dirija-se ao en-
dereço indicado. De lá será devidamente enca-
129
minhado. Depois aguarde minhas instruções.
Sirov fez continência.
— Pegue meu carro — prosseguiu Strel-
nikov. — Está estacionado na frente da porta.
Aí — apontou para o bilhete que Sirov segura-
va na mão — receberá o tratamento de que
precisa. Além disso, lhe darão um uniforme
novo, ou então um jogo de trajes civis.
Sirov executou uma meia-volta impecável e
se retirou da sala. Strelnikov aguardou até que
o ruído dos passos sumiu e deu um telefonema.
Ao terminar se reclinou na poltrona e sorriu.
Parecia satisfeito.

***

Deringhouse voltou ao prédio em que residi-


ra o marechal Sirov.
“Se alguém tiver que morrer”, pensou amar-
gamente, “que seja um deles, não um inocen-
te.”
Os policiais ainda se mantinham ocupados
na residência de Sirov. Fez com que o projetor
mental exercesse sua influência sobre eles. Dei-
xou para trás sete homens e levou três ao sótão
da casa. O elevador fora desligado, provavel-
mente porque poderia proporcionar ao homem
que procuravam uma oportunidade de sair rapi-
130
damente e sem ser notado.
No sótão havia várias clarabóias. Deringhou-
se colocou cada policial junto a uma delas. Ain-
da estava escondido atrás do campo de defle-
xão, mas ouviam sua voz e obedeciam às suas
ordens.
— Acertem os relógios! — ordenou.
A resposta veio logo. Ao que parecia a polí-
cia moscovita dispunha de excelentes relógios.
Não foi necessário corrigir nenhum deles.
— Às doze e quarenta em ponto — prosse-
guiu Deringhouse — os senhores abrirão as cla-
rabóias e sairão para o telhado. Subam à cu-
meeira e não deixem que nada os perturbe. Re-
pitam!
A ordem foi repetida. Deringhouse estava
satisfeito. Saiu do sótão e flutuou escada abaixo
até atingir o térreo.
Não sabia se numa das outras casas havia
uma clarabóia que não tivesse sido trancada.
Mas acabou vendo uma; no telhado da última
casa antes da transversal que se dirigia para o
sul. Provavelmente serviria de passagem aos
policiais escondidos atrás das cumeeiras dos te-
lhados, com as pistolas automáticas engatilha-
das.
Deringhouse não teve a menor dificuldade
em penetrar na casa. Sua suposição se confir-
131
mou: teve que passar o tempo de espera num
canto daquele sótão poeirento, para não esbar-
rar em qualquer dos policiais que entravam e
saíam pela clarabóia.
Uma única vez, quando houve uma pausa,
se arriscou a enfiar a cabeça pela abertura para
sondar o terreno. Conforme esperava, naquele
telhado, ao contrário dos outros, a tela de ara-
me fora estendida ao menos dois metros acima
da cumeeira, a fim de que os policiais pudessem
se mover livremente por baixo dela. Provavel-
mente fora presa ao outro lado do telhado por
meio de isoladores.
Doze e trinta e cinco.
Muita coisa poderia acontecer. Era possível
que algum superior notasse a falta dos três poli-
ciais na residência de Sirov e os descobrisse no
sótão. Não os deixaria lá, isso era certo.
E então?
Então poderia voltar a quebrar a cabeça, e
enquanto fizesse isso Strelnikov se afastaria
cada vez mais.
É agora!
Alguns segundos se passaram sem que acon-
tecesse nada. Um policial enfiou as pernas pela
clarabóia e saltou para dentro.
O que teria saído errado?
Outro policial entrou pela porta e subiu ao
132
telhado pela clarabóia.
O plano falhara.
Nesse instante começou a gritaria.
— Saiam daí! Desçam do telhado! Ficaram
malucos?
Num instante, Deringhouse se aproximou da
clarabóia e flutuou suavemente através da mes-
ma. Agachou-se no telhado e olhou para a casa
de Sirov. Os três policiais obedeceram às suas
ordens. Sem se preocuparem com os gritos de
advertência subiram pelo telhado, cuja inclina-
ção não era muito acentuada. Cada um se diri-
gia diretamente da respectiva clarabóia para a
cumeeira. Os outros, que lhes apontavam as
pistolas automáticas, pareciam quebrar a cabe-
ça para descobrir atrás de qual deles o agente
de Rhodan se escondera.
O plano de Deringhouse era este. Era prová-
vel que ninguém soubesse que o pequeno proje-
tor mental, que cabia perfeitamente no bolso,
lhe permitia transmitir ordens pós-hipnóticas.
Se suas suposições fossem corretas, os outros
policiais acreditariam que sempre se encontrava
perto dos três colegas que andavam como so-
nâmbulos. Pensariam que se encontrava no te-
lhado da casa de Sirov, não naquele em que
eles mesmos estavam postados.
Às doze horas e quarenta e um minutos, o
133
mais ágil dos três policiais chegou à cumeeira
do telhado e tocou na tela metálica. Em algum
lugar bem próximo, um instrumento de medida
reagiria e desencadearia um alarma, uma sereia
ou uma campainha.
E depois...
Deringhouse viu com seus próprios olhos o
que aconteceu depois. Ouviu o zumbido e as
batidas características dos helicópteros, antes
de vê-los subir das ruas próximas. Não pôde
deixar de admirar aquela organização, que per-
mitia uma ação tão rápida.
Os pilotos dos helicópteros sabiam perfeita-
mente em que lugar deviam se postar. Forma-
ram um círculo estreito, poucos metros acima
da cumeeira da casa de Sirov. Menos de um mi-
nuto se passara desde o momento em que o
primeiro policial tocara a tela, e todas as peças
começaram a disparar.
Nesse meio tempo, os outros dois policiais
também haviam atingido a cumeeira. Caíram
sob a primeira salva, escorregaram ruidosamen-
te telhado abaixo e desapareceram atrás da bor-
da.
Os helicópteros continuaram a disparar.
Não se interessaram pelos três policiais, mas
pelo homem invisível. Posteriormente Dering-
house soube que acreditavam que, apesar de
134
sua invisibilidade, ele seria vulnerável ou, o que
muito se aproximava da verdade, que o campo
de deflexão poderia ser desativado pela solicita-
ção energética excessiva dirigida ao campo pro-
tetor, com o que o homem se tornaria visível.
De qualquer forma sua hora havia chegado.
Flutuou para a cumeeira, contornou cuidadosa-
mente um grupo de policiais que olhavam ner-
vosamente para os helicópteros e desceu pelo
outro lado do telhado. Chegou ao ponto em
que a tela estava presa ao telhado e a arrancou.
Acreditava que não haveria qualquer risco. Sem
dúvida o dispositivo de alarma, que devia ter
sido instalado num posto policial não muito dis-
tante, teria sido colocado em atividade perma-
nente em virtude da ação dos três policiais.
Levou um minuto para abrir na tela, muito
resistente, uma brecha que permitisse sua pas-
sagem. Ninguém se interessou por ele. O últi-
mo perigo, o da observação direta, foi afastado
pela curiosidade que a ação dos helicópteros
provocou entre os policiais.
Às doze horas e quarenta e quatro minutos,
Deringhouse estava livre. Para fugir a todo ris-
co, desceu a meia altura numa das ruas vizinhas
e se dirigiu para os bairros do leste, onde ficava
a Rua Kujbyschev.

135
***

— E agora — disse Strelnikov ao homem de


teatro — mande o major entrar. Quero conver-
sar com ele.
O homem obedeceu. Retirou-se; dali a trinta
segundos o major Kalenkim entrou. Nunca vira
o homem que o chamara; mas sabia que devia
executar fiel e prontamente qualquer ordem
partida do mesmo.
Fez uma continência impecável.
— Preste atenção — disse Strelnikov. —
Quero lhe explicar uma coisa. Pode parecer
muito confuso e complicado, mas com sua inte-
ligência...

***

Doze e cinqüenta e nove. Deringhouse pe-


netrou no prédio da Rua Kujbyschev sem ser
visto. Tratava-se de um daqueles feios prédios
de apartamentos de quinze andares.
O aparelho de que a “grande vitória” se ser-
vira nos seus telefonemas ficava no apartamen-
to 13 C.
Deringhouse flutuou para cima. A porta do
apartamento estava fechada, e no corredor ha-
via algumas pessoas. Deringhouse esperou até
136
que entrassem em seus apartamentos ou no
elevador. Depois abriu a porta, dirigindo o radi-
ador por alguns segundos contra a fechadura.
O fluxo neutrônico extremamente intenso pro-
vocou uma série de reações nucleares que
transformou os materiais da fechadura em ou-
tras substâncias que não eram dotadas de qual-
quer coesão. Quando abriu a porta, uma relu-
zente poeira metálica radiativa caiu da fechadu-
ra.
Deringhouse entrou. Pensara que o aparta-
mento estivesse vazio. Strelnikov tivera tempo
de sobra para dar o fora.
Mas, para surpresa sua, viu um homem sen-
tado no chão do hall. Mantinha a cabeça incli-
nada para a frente e tinha os olhos semicerra-
dos. Uma faixa vermelha se estendia pelo lado
direito do rosto.
Era um homem velho, de cabelos brancos.
Ao que parecia não notou que a porta se abri-
ra; não se mexia. Sobre seus joelhos havia um
bilhete. Deringhouse conseguiu decifrar as le-
tras desajeitadas:
Agente da Terceira Potência! Strelnikov fu-
giu. Posso dizer onde está. Ele me bateu.
A primeira idéia que acudiu a Deringhouse
foi a de que caíra numa armadilha. Quem seria
aquele homem?
137
Procurou avaliar a situação. Pelo aspecto,
aquele velho devia ter sido o criado ou o secre-
tário de Strelnikov. Como secretário poderia ter
ouvido algumas coisas faladas diante de Strel-
nikov. Era perfeitamente possível que soubesse
da existência de um agente da Terceira Potên-
cia e estivesse informado sobre as capacidades
extraordinárias de que o mesmo era dotado. Es-
crevera o bilhete na suposição de que o agente
entraria no apartamento como um homem invi-
sível.
Strelnikov batera nele; a cicatriz estava ali.
Para se vingar oferecia informações sobre o pa-
radeiro de Strelnikov.
— Levante-se! — disse Deringhouse.
O velho estremeceu; provavelmente estava
dormindo.
— Onde... quem...? — gaguejou.
— Estou à sua frente — disse Deringhouse.
— Sou o agente da Terceira Potência. Parece
que está disposto a me levar ao lugar em que
posso achar Strelnikov.
Por um momento teve a impressão de que o
velho superestimara sua própria coragem. Tre-
meu de medo e só se levantou com muito esfor-
ço.
— Eu... eu... — gaguejou. Deringhouse veio
em seu auxílio.
138
— Não tenha medo de mim. Como é seu
nome?
— Nikolaj.
— Pois bem, Nikolaj. Sabe para onde Strel-
nikov fugiu?
Nikolaj fez que sim.
— Como ficou sabendo?
— Ouvi a conversa que teve com um jovem
oficial que veio a este apartamento.
— Quer me levar para lá? — perguntou De-
ringhouse.
Nikolaj confirmou com um forte aceno de
cabeça.
— Por que lhe bateu? — indagou Dering-
house.
Nikolaj deu de ombros.
— Ao sair disse: “Tome isto por andar me
espiando!”, e bateu no meu rosto com um chi-
cote.
Com os olhos chamejantes, Nikolaj fez um
movimento distraído da mão em direção ao
lado direito do rosto.
Deringhouse respondeu com um aceno de
cabeça.
— Esse tipo de gente nunca escapa ao seu
destino — murmurou. — Podemos sair logo?
Enquanto desciam no elevador, Nikolaj disse
que o esconderijo de Strelnikov ficava em lugar
139
bem próximo. Seria mais prático andarem a pé.

***

O major Kalenkim estava à paisana. Encos-


tado a uma casa de esquina, assumiu a atitude
de quem aproveita o último dia de férias para
ver a fábrica do lado de fora e ter pena dos po-
bres-diabos que têm de trabalhar a uma hora
daquelas.
Trazia na boca um cigarro que já se apagara
há muito tempo. Não era fumante e só usara o
cigarro para oferecer uma imagem mais au-
têntica.
Não precisou de muita paciência. Cerca de
quarenta e cinco minutos depois de assumir seu
posto, o homem que teria que vigiar desceu a
rua e passou a mão direita atrás da cabeça.
O sinal convencionado! O homem era este.
Antes de chegar ao portão da fábrica, do-
brou para o lado e seguiu o caminho estreito
que ladeava o muro de cerca de três metros de
altura que cercava toda a área da fábrica. O ma-
jor Kalenkim tocou no relógio de pulso que, na
verdade, não era nenhum relógio. Com isso es-
tabeleceu um contato que desencadeou o sinal
de alarma para os homens que, num ponto
mais distante, aguardavam o momento de en-
140
trarem em ação.
Abandonou a esquina em que se instalara
tão confortavelmente e seguiu o homem que, a
intervalos regulares, repetia o sinal convencio-
nado, para assegurar a Kalenkim que tudo con-
tinuava bem com ele.
O caminho estreito parecia feito especial-
mente para acompanhar alguém às escondidas.
Pequenos tratores com fileiras de reboques car-
regados ou vazios passavam sem cessar, e entre
eles marchavam os trabalhadores. Três equipes
de trabalhadores de construção estavam ocupa-
dos em reparar o muro em vários pontos.
Kalenkim tinha boas chances de passar des-
percebido em meio a tamanha confusão.
O homem que, de tempos em tempos, pas-
sava a mão atrás da cabeça passou por um por-
tão lateral e entrou na área da fábrica. Ka-
lenkim o seguiu a uma distância segura. Estava
convencido de que dali em diante tudo daria
certo.
A enorme caldeira de eliminação de vapor
dos reatores da fábrica, que garantiam a esta
um suprimento de energia que não dependia da
rede urbana, não ficava a mais de cem metros.

***

141
Enquanto caminhavam, Nikolaj e Dering-
house não trocaram uma palavra. Nikolaj ia à
frente, confiante de que o agente o seguia.
Levou-o até o portão de uma fábrica estatal
e ao chegar lá dobrou para a esquerda. Ao lado
do muro o caminho conduzia a um portão late-
ral, por onde Nikolaj entrou, em meio à confu-
são formada pelos veículos e trabalhadores, pe-
netrando no terreno pertencente à fábrica, ao
que tudo indicava sem ser percebido.
Dirigiu-se diretamente a uma enorme caldei-
ra metálica que, em local um pouco distante da
fábrica propriamente dita, se erguia a uma altu-
ra de oitenta metros.
Depois de ter deixado para trás a massa de
trabalhadores que poderiam ter ouvido a estra-
nha conversa de Nikolaj com um homem invisí-
vel, este disse:
— Strelnikov não está escondido muito no
alto, mas na sala de vigilância, situada a meia
altura. O elevador externo vai para lá. Está ven-
do?
Deringhouse viu o elevador e a pequena fi-
leira de janelas que interrompia a lisura da pare-
de metálica a uma altura de cerca de quarenta
metros.
— Vamos adiante! — ordenou. Ninguém os
deteve quando tomaram o elevador e subiram.
142
Abandonaram o elevador e entraram, com De-
ringhouse à frente, na primeira das salas de vi-
gilantes.
Nikolaj parecia sentir medo de novo.
— Se ele me vê — cochichou — vai...
— Não tenha medo — disse Deringhouse.
— Venha!
Ultrapassada a porta pela qual haviam entra-
do, havia mais duas portas.
— Para onde devo ir? — perguntou Dering-
house.
Nikolaj não sabia.
— Tentarei aqui — disse Deringhouse e se
dirigiu à porta que ficava na parede lateral da
sala.
Nikolaj não o viu, mas viu a impressão dei-
xada pelo impacto das botas no plástico macio
do soalho. E parou perto da porta.
— Está aberta — disse Deringhouse e a em-
purrou.
Nikolaj levantou a mão. Parecia ser um ges-
to inofensivo, como se quisesse se segurar na
parede.
Mas, antes que sua mão a alcançasse, o
cano de uma arma surgiu diante dele e a voz
enérgica de Deringhouse disse:
— Basta, meu velho! Se levantar a mão
mais um centímetro, não assistirá ao seu triun-
143
fo.
Nikolaj empalideceu. Sua mão começou a
tremer, hesitou um pouco e foi baixada. As pi-
sadas de Deringhouse se aproximaram pelo so-
alho de plástico. O cano da arma atravessou o
ar em sua direção.
— Tire a peruca! — ordenou Deringhouse.
Nikolaj hesitou um pouco, mas obedeceu.
Contorceu o rosto quando a cabeleira branca
saiu.
Por baixo da cabeleira surgiu uma calva relu-
zente, a calva do secretário-geral Strelnikov.

***

— Respeito sua coragem — disse Dering-


house, depois de ter abandonado a invisibilida-
de. — Mas devia ter imaginado que o plano
não tinha a menor possibilidade de êxito. Dessa
forma nunca conseguiria pôr a mão em mim.
Strelnikov recuperara boa parte de seu auto-
controle. E sabia que o jogo estava definitiva-
mente perdido.
— Como descobriu? — perguntou.
— Foi de uma forma muito estranha. Você
me disse que Strelnikov o havia batido e fez um
movimento de mão em direção ao lado direito
do rosto. Acontece que o maquilador colocou a
144
cicatriz do lado esquerdo. Isso já me deixou des-
confiado. Quando nos dirigíamos para cá notei
seu gesto, a mão que passava atrás da cabeça,
e descobri o homem ao qual o sinal se dirigia.
O que está fazendo agora?
— Está esperando que eu apareça e lhe diga
que você está preso no interior da caldeira.
— Para que os gestos?
— Tínhamos de contar com a possibilidade
de que você me submetesse a uma influência
hipnótica. Só faria aqueles gestos enquanto fos-
se dono da minha vontade. O major Kalenkim
tinha instruções de executar outro plano assim
que eu deixasse de fazer os gestos, dando a en-
tender que você havia conseguido dominar meu
espírito.
— Os trabalhadores com os tratores e os
carros na verdade são policiais, não são?
— São. Iriam trancar a caldeira assim que se
encontrasse lá dentro.
— E como eu teria entrado lá? Por um alça-
pão que fica junto à porta?
Strelnikov fez que sim.
— A chave está aqui — apontou para um
botão quase invisível que ficava perto da porta.
— Esta porta foi colocada há duas horas. Você
teria caído diretamente na caldeira.
Deringhouse acenou com a cabeça.
145
— Nesse caso eu não teria conseguido ativar
o campo de neutralização gravitacional em tem-
po, ou você teria enchido a caldeira de vapor.
— Era esta a minha intenção. Será que você
ainda teria uma chance?
Deringhouse ergueu os ombros.
— Não sei. Provavelmente não. Comprimiu
um botão e viu que, diante da porta, uma parte
do soalho desapareceu.
— O que pretende fazer? — perguntou
Strelnikov.
— O que pretendo fazer é o seguinte —
apressou-se Deringhouse a dizer — você encon-
trará um pretexto plausível para fazer com que
os membros do conselho compareçam amanhã,
às nove horas da manhã, à Praça das Nações.
Há dois dias foi constituída uma corte mundial e
decidiu-se a condenação dos homens que de-
têm o poder no Bloco Oriental. Você e seus
comparsas serão julgados.
Strelnikov estava muito sério.
— Só se me hipnotizar.
Deringhouse sacudiu a cabeça.
— Um chefe de Estado hipnotizado não me
serve. Você comparecerá a juízo, não voluntari-
amente, mas na posse plena de suas faculdades
mentais; você, os outros quatrocentos e quator-
ze membros do conselho com direito de voto e
146
os adidos. E principalmente o marechal Sirov.
Deste eu faço questão.
Deringhouse lançou um olhar demorado
para seu radiador de nêutrons.
— Sabe perfeitamente o que o espera se
não cumprir minhas ordens.
Strelnikov baixou a cabeça.
— Para começar — prosseguiu Deringhouse
— diga àquele major que está lá embaixo que
dê o fora, e isso pelo meio mais rápido possí-
vel. E não se esqueça de passar a mão atrás da
cabeça quando der a ordem.

***

No dia 18 de junho, Perry Rhodan propôs à


conferência que a recém-criada corte mundial
fizesse alguma coisa para cumprir a resolução
do dia 16: os homens do regime que detinha o
poder no Bloco Oriental deviam ser acusados e
julgados.
A proposta provocou uma discussão acalora-
da. Os representantes da Federação Asiática
duvidaram da exeqüibilidade do projeto. Os re-
presentantes dos Estados da OTAN manifesta-
ram dúvidas de outra espécie.
O motivo verdadeiro foi a sensação desagra-
dável que se apossou da maioria dos represen-
147
tantes ao pensarem que um governo ainda no
poder seria convocado a juízo.
De repente se assustaram com a coragem
demonstrada dois dias antes, por ocasião da re-
solução simbólica.
Mas Perry Rhodan demonstrou cabalmente
e com certo sarcasmo que uma assembléia
como esta se desprestigiaria se tomasse uma re-
solução e frustrasse sua execução. Prontificou-
se a colocar à disposição da corte mundial os
recursos técnicos que se tornassem necessários
à execução do plano. De noite declarou com
uma franqueza contundente:
— Não terão qualquer dificuldade. Já toma-
mos todas as medidas para realizar a prisão dos
membros do Conselho Supremo do Bloco Ori-
ental.
Na manhã do dia 19 de junho, a Stardust-III
decolou de Galáxia com sua preciosa carga de
membros dos governos de todos os países do
mundo. Desenvolvendo grande velocidade, pe-
netrou no território do Bloco Oriental, sem ser
atacada, às oito e cinqüenta, tempo de Moscou,
desceu cuidadosamente na área imensa da Pra-
ça das Nações. Uma rampa energética foi des-
cida, e o presidente da corte mundial, Frederick
Donnifer, saiu da enorme nave em companhia
de seus aliados e de Perry Rhodan, chefe da
148
Terceira Potência.
Ao que parecia, alguém tomara providências
para evitar que algum curioso entrasse na Praça
das Nações. A área estava completamente va-
zia, com exceção de um pequeno grupo de pes-
soas.
Frederick Donnifer, que ainda não se acostu-
mara à sua elevada posição, lançou os olhos em
torno quando pôs os pés no solo; parecia inse-
guro.
— Um momento! — pediu Rhodan. — Aí
vem Deringhouse; quer apresentar seu relató-
rio.
Um homem se destacou do pequeno grupo.
Caminhou para o lugar em que se encontrava a
delegação.
Deringhouse não deu a menor atenção ao
juiz. Dirigindo-se a Rhodan, anunciou:
— Deringhouse relatando. As ordens foram
cumpridas. Os membros do Conselho Supremo
devem chegar dentro de poucos minutos.
Rhodan deu um sorriso e ordenou:
— Major, repita esta informação perante o
senhor Donnifer, presidente da corte mundial.
Donnifer se adiantou. Deringhouse deu
meia-volta e, fazendo continência, repetiu seu
breve relato. De olhos semicerrados, Donnifer
disse:
149
— Major, tem certeza de que todos virão
para cá?
— Certeza absoluta — respondeu Dering-
house.
Voltando-se ligeiramente em direção a Rho-
dan, prosseguiu:
— Não confiei muito que executassem a or-
dem de Strelnikov, ainda mais que, de vários
quilômetros de distância, perceberão que a
Stardust-III pousou na praça. Cada um dos
membros do conselho será acompanhado por
uma escolta de oficiais devidamente influencia-
dos. Esses oficiais cumprem minhas ordens: tra-
rão seu homem, quer ele queira, quer não.
Nesse instante a primeira limusine preta
atravessou o cordão de policiais que isolavam a
Praça das Nações. Logo foi seguida de outras.
Todas elas descreviam uma curva, se dirigiam à
área de estacionamento e deixavam sua carga.
Parecia que a gigantesca esfera da Stardust-III
não impressionava os homens que se encontra-
vam nos veículos. Notava-se perfeitamente que
muitos dos membros do conselho vieram por-
que sua escolta não lhes deixara outra alternati-
va.
Deringhouse fez com que os membros do
conselho fossem reunidos num lugar. O grupo
foi cercado pelos membros das escoltas, para
150
impedir qualquer fuga.
Deringhouse pôs-se a contar. O conselho
era formado de quatrocentos e quinze membros
com direito de voto e oitenta e nove adidos. Si-
rov foi um dos últimos que compareceu ao pon-
to de reunião.
Às nove e quinze, Deringhouse voltou a se
aproximar de Frederick Donnifer e anunciou:
— O Conselho Supremo está pronto para
receber suas ordens.
Donnifer assumiu posição e, valendo-se de
um pequeno microfone ligado a um alto-falante
existente nos fundos da praça, disse:
— Os representantes dos Estados perten-
centes à Federação Asiática e à OTAN, que em
conjunto representam cerca de seis sétimos da
Humanidade, decidiram formar uma corte mun-
dial, que já foi constituída. A essa corte cabe
resguardar os direitos humanos em todo o mun-
do.
“Os senhores — num gesto pouco autoritá-
rio, apontou o dedo para o grupo dos membros
do conselho — são acusados de terem cometi-
do uma violação grosseira e contínua dos direi-
tos humanos das pessoas que habitam o territó-
rio sob sua autoridade. Intimo-os a se submete-
rem a esta corte, que deliberará sobre as medi-
das a serem adotadas em virtude dos delitos que
151
cometeram.
“A conferência dos representantes dos go-
vernos fará com que os cidadãos de seu país
possam eleger livremente os homens que deve-
rão governá-los. Um governo provisório tomará
todos os preparativos para as eleições.”
Nesse instante a porta de saída da Stardust-
III se alargou, e o passadiço brilhante cresceu
igualmente. Um grupo de cinqüenta robôs de
combate arcônidas saiu da nave. De início seus
passos foram silenciosos. Mas, ao atingirem o
solo, seus pés bateram ruidosamente. Forma-
ram um segundo círculo, mais estreito, em tor-
no dos membros amedrontados do Conselho
Supremo.
— Aqui está a prova de que a corte mundial
dispõe dos recursos necessários para executar
suas decisões — prosseguiu Donnifer.
Não houve a menor hesitação. Diante dos
poderosos robôs, a massa compacta dos mem-
bros do Conselho Supremo subiu pelo passadi-
ço e desapareceu no interior da Stardust-III.

***

Donnifer tomou as providências necessárias


para que o Bloco Oriental não ficasse sem go-
verno na época de transição. Perry Rhodan lhe
152
deu alguns conselhos. No entanto, nem ele
nem qualquer outro membro da Terceira Potên-
cia participou da escolha dos membros da ad-
ministração provisória.
A Stardust-III saiu de Moscou às treze horas,
tempo local, e chegou a Galáxia no fim da tar-
de.
Rhodan anunciou que, em comemoração ao
êxito notável alcançado pela corte mundial, e
ainda em lembrança ao dia em que a primeira
nave construída pelo homem — a velha Star-
dust — se libertou da influência da Terra e voou
à Lua, ofereceria um banquete para fazer aquilo
que os membros da conferência esperavam des-
de o primeiro dia.
Preparou um relatório sobre a evolução da
Terceira Potência desde o dia de sua formação.
Providenciou a apresentação de filmes que pro-
porcionariam aos delegados informações deta-
lhadas sobre os acontecimentos que se desenro-
laram nos setores do espaço mais próximos da
Terra e nos mais afastados.
A impressão causada pelo relatório foi tama-
nha que ninguém notou quando, durante a
apresentação, um ordenança se dirigiu a Rho-
dan. Pediu a seu ajudante que lhe desse um pe-
daço de papel e rabiscou apressadamente algu-
mas palavras. O ordenança pegou o papel e de-
153
sapareceu.
Pelas onze horas o relatório estava concluí-
do. A onda de aplausos foi dirigida à Terceira
Potência com seu imenso acervo de realizações,
e especialmente a Perry Rhodan, que em pas-
sos comedidos caminhou em direção a uma pe-
quena tribuna.
Quando os aplausos cessaram, começou a
falar. Sua voz tinha um tom solene, que dificil-
mente alguém teria ouvido antes.
— Senhores, não quero abusar de sua aten-
ção — iniciou. Por um instante prestou atenção
à confusão desconcertante que os tradutores si-
multâneos, cada qual agindo numa direção di-
versa, faziam de suas palavras. — Mas, antes
que termine este dia memorável, quero assina-
lar dois fatos.
“O dia 19 de junho será feriado legal no ter-
ritório da Terceira Potência, em comemoração
aos acontecimentos desenrolados hoje e em
lembrança ao primeiro vôo do homem à Lua.
E, para exprimir sua confiança na breve união
de todos os povos da Terra, a Terceira Potência
modifica o nome de Galáxia que passa a ser
Terrânia.”
Fez uma pausa. Aplausos começaram a ir-
romper, mas Rhodan interrompeu-os com um
gesto.
154
— O segundo acontecimento não é tão
agradável — disse em tom áspero. — Como sa-
bem, na Lua existem duas bases. Uma delas
está submetida à jurisdição do Bloco Oriental e
a outra pertence aos Estados da OTAN.
“Às vinte e duas horas e dez minutos, duzen-
tos foguetes de grande alcance dotados de car-
gas explosivas de fusão catalítica foram lança-
dos da base do Bloco Oriental em direção à
Terra. Sabem perfeitamente que pouquíssimos
homens continuarão vivos se os foguetes atingi-
rem o alvo. Pouco importa qual seja o ponto da
superfície terrestre em que fica esse alvo.
“Os foguetes deveriam chegar à Terra ama-
nhã, às cinco horas da manhã aproximadamen-
te, tempo local. Mas sinto-me feliz em poder
lhes comunicar que uma esquadrilha de caças
espaciais, comandada pelo major Nyssen, aca-
ba de chegar ao setor do espaço em que se en-
contram os foguetes e dentro de poucos minu-
tos provocará sua detonação.”
No mesmo instante a luz se apagou. Na tela
gigantesca que permitia a reprodução tridimen-
sional de qualquer filme, surgiu a imagem do es-
paço com seus bilhões de pontos luminosos.
Perplexos, os membros da conferência se
mantiveram em silêncio. Rhodan voltou-se para
contemplar a imagem. A cena era filmada por
155
um caça espacial que se encontrava a algumas
dezenas de milhares de quilômetros da esquadri-
lha comandada por Nyssen.
As bombas começaram a detonar. Até então
invisíveis, foram se transformando em manchas
brancas e luminosas, que logo cresceram de ta-
manho e ocuparam seu lugar no espaço com a
luminosidade de um novo sol. A luz dos duzen-
tos foguetes iluminou o imenso salão com mai-
or intensidade do que as lâmpadas poderiam
fazê-lo. Os espectadores cerraram os olhos para
suportar a luminosidade.
Rhodan deixou que a imagem agisse no es-
pírito dos espectadores até que a luminosidade
começou a se desvanecer. Lentamente desligou
o projetor e, com a mesma lentidão, voltou a
acender as lâmpadas.
Viu diante de si uma massa de rostos apavo-
rados. Rostos de gente que, em última análise,
devia sua salvação ao homem que se encontra-
va diante deles.
— Acredito — disse Rhodan com a voz tão
baixa que mal conseguia ser entendido — que
esta projeção provou a todos que a união defi-
nitiva da Humanidade constitui uma necessida-
de premente.

***
156
Um único agente da Terceira Potência,
equipado com algumas das surpresas da tec-
nologia arcônida, fora suficiente para instalar
a confusão num país inteiro e prender o prin-
cipal instigador da discórdia.
Mas nem por isso conseguiu a união defi-
nitiva da Humanidade. Enquanto essa união
não se realiza, Perry Rhodan não pode esta-
belecer contato com o mundo de Árcon.
Thora, um dos últimos representantes da
dinastia reinante de Árcon, começa a se im-
pacientar e foge.
A FUGA DE THORA é o título do próxi-
mo volume da série Perry Rhodan.

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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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