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1
Avanço Para Árcon
Kurt Mahr

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização
Pescado Na Net

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

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Esperavam uma recepção amistosa, mas fo-
ram tratados como mendigos...

História da Terceira Potência em poucas


palavras:

1971 — O foguete Stardust chega à Lua,


e Perry Rhodan encontra o cruzador dos ar-
cônidas que realizou um pouso de emergên-
cia.
1972 — Instalação da Terceira Potência,
que enfrenta a resistência das potências ter-
renas unidas e a invasão de seres extraterre-
nos.
1975 — Primeira intervenção da Terceira
Potência nos acontecimentos galácticos.
Perry Rhodan encontra os tópsidas no siste-
ma de Vega e procura solucionar o mistério
galáctico.
1976 — Perry Rhodan atinge, a bordo da
Stardust-III, o planeta Peregrino, e juntamen-
te com Bell consegue a imortalidade relativa,
mas perde mais de quatro anos.
1980 — Perry Rhodan regressa à Terra e
luta por Vênus.
1981 — O Supercrânio ataca, e a Terceira
Potência defronta-se com a mais dura das
provas a que já foi submetida.
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1982/1983 — Os mercadores galácticos
procuram transformar a Terra num mundo
colonial, mas o feitiço vira contra o feiticeiro
e Perry Rhodan conquista uma das bases
mais importantes dos mercadores.
Agora a Terra se encontra no ano de
1984, e a Ganymed é preparada para o
AVANÇO PARA ÁRCON...

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Personagens Principais:

Perry Rhodan — Que acredita que não con-


vém vestir um terno roubado quando se preten-
de visitar o antigo dono desse terno.
Reginald Bell — Amigo íntimo e confidente
de Perry Rhodan.
Crest e Thora — Que revêem seu mundo
depois de uma ausência de treze anos.
Tako Kakuta — Que estraga um canteiro de
flores.
Novaal — Um ser do planeta Naat.
Sergh — O administrador arcônida de Naat.
Ghorn — Representante de Sergh.

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1

— Esta nave até parece um pesadelo — dis-


se Reginald Bell em tom compenetrado, en-
quanto seus cabelos ruivos se arrepiavam numa
atitude combativa, contrastante com a solenida-
de do olhar que lançou pelo corpo esguio da
nave acima.
A Ganymed era a mais nova das naves gi-
gantes da Terceira Potência. Só parecia esguia
para quem a olhasse de baixo e não a pudesse
apreciar na perspectiva correta. Na verdade era
um gigantesco cilindro de oitocentos e quarenta
metros de altura por duzentos metros de diâme-
tro. A proa fora reta, havia sido alongada em
sessenta metros por meio de um acréscimo ar-
redondado, montado nos estaleiros de Terrânia.
Antes disso o comprimento total da nave che-
gava a setecentos e oitenta metros. Pousada so-
bre quatro imensos suportes que saíam da
popa, dava a impressão de ser um colosso pre-
so ao solo, que ninguém julgaria capaz de ja-
mais sair do lugar.
— A não ser que a comparemos com a Star-
dust — acrescentou.
Acontece que a Stardust se encontrava a dez
quilômetros dali, e seu corpo esférico desenha-
va um círculo relativamente insignificante con-
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tra o céu violeta da noite.
— Quer dizer que vamos à Árcon — disse
Bell, mudando de assunto, sem tirar os olhos da
Ganymed. — E vamos nesta nave.
— Iremos nesta nave — confirmou Rhodan.
— Por que não vamos na Stardust?
— Porque a Stardust é uma nave de tipo ar-
conídico. Se resolvo fazer uma visita a certo
Mr. Thomson, que nunca vi, não usarei um ter-
no que já foi dele, dizendo simplesmente que
posso ficar com ele, por tê-lo tirado de outra
pessoa. Isso seria contrário às regras da diplo-
macia, não acha?
O olhar de Bell foi descendo pela Ganymed
até chegar ao solo.
— É claro que sim! — disse em tom enfáti-
co. — Muito bem. Então iremos à Árcon na
Ganymed. Quando pousarmos lá, diremos: vie-
mos da Terra e estamos trazendo dois dos seus
náufragos. Façam o favor de ajudar-nos para
que a Terra não caia nas mãos dos saltadores.
É isso?
Rhodan riu.
— Bem que gostaria de saber como sairão
as coisas. Se não houver maiores complicações,
eu me lembrarei da sugestão que você acaba de
fazer.
A partida foi marcada para o dia 10 de maio
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de 1.984.
Thora e Crest, os arcônidas, foram as pri-
meiras pessoas a ocuparem seus aposentos a
bordo da Ganymed. Até parecia que a mudança
prematura serviria para forçar o destino e impe-
dir que a partida fosse adiada mais uma vez.
Naqueles dias Perry Rhodan viu uma nova
Thora. Transbordando de vitalidade, seus olhos
vermelhos chamejantes transformavam-na
numa deusa estranha.
A obstinação, que nos últimos treze anos
fora o traço mais marcante de seu caráter, não
deixara Rhodan perceber que amava a arcôni-
da. Agora o fato saltava aos seus olhos com
uma clareza penetrante.
Os preparativos técnicos estavam a cargo de
Reginald Bell. Este cuidava deles com a ânsia
do homem que não pode esperar a próxima, a
grande aventura.
Bell providenciou para que um dos transmis-
sores fictícios, a mais importante das armas de
que dispunham, fosse retirado da Stardust e
montado na Ganymed. Certificou-se de que o
compensador estrutural, um aparelho que já se
encontrava a bordo da Ganymed no momento
em que a capturaram das mãos dos saltadores,
realmente cumpria aquilo que estava prometen-
do. Criava um campo protetor absorvente dos
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abalos da estrutura espaço-temporal causados
pela transição da nave. Enquanto o compensa-
dor estivesse funcionando, ninguém conseguiria
localizar a Ganymed em virtude dos abalos es-
truturais.
Bell mandou colocar a bordo os 27 destróie-
res de três tripulantes, que foram guardados na
proa recém-construída da gigantesca nave.
Também providenciou a colocação das duas na-
ves de reconhecimento de grande alcance, tipo
gazela. Tratava-se de aparelhos achatados em
forma de disco, de corte elíptico, que mediam
trinta metros de comprimento e dezoito de lar-
gura.
O coronel Freyt, que figurava como coman-
dante da Ganymed, acompanhou a entrada dos
mil tripulantes, cuidando para que cada um sou-
besse onde era seu lugar a bordo.Os preparati-
vos da decolagem demoraram uma semana.
Face ao vulto e à importância da tarefa, era um
curto espaço. Mas Rhodan teve que conciliar a
pressa resultante da ameaça que a raça mercan-
til dos saltadores representava para a Terra
com a cautela que qualquer homem de respon-
sabilidade deve ter no preparo de um empreen-
dimento desse tipo.
O dia da partida foi mantido. Apesar da ra-
pidez com que foram realizados os preparati-
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vos, um controle geral levado a efeito cinco ho-
ras antes da decolagem revelou que a bordo da
nave tudo estava em boa ordem e em perfeitas
condições de funcionamento.
Árcon ficava no grupo estelar M-13, situado
a cerca de 34 mil anos-luz da Terra.
A Ganymed não estava em condições de
vencer essa distância enorme num único hiper-
salto. Rhodan programou um total de cinco sal-
tos; o último devia levá-los à periferia do grupo
estelar. Os primeiros quatro saltos seriam reali-
zados sob a proteção do compensador estrutu-
ral, mas o quinto não. Em Árcon ninguém devia
ter a impressão de que algum inimigo procura-
va aproximar-se sorrateiramente do centro do
Grande Império. O último salto devia ser cons-
tatado pelos arcônidas.

***

Quatro transições foram realizadas sem qual-


quer incidente. As distâncias entre um ponto de
transição e outro eram uniformes. Cada salto
aumentava em 6.800 anos-luz a distância entre
a Ganymed e a Terra.
Pela hora terrena do meridiano de Terrânia
eram 22:15 h do dia 10 de maio de 1.984
quando a Ganymed iniciou a última transição.
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Rhodan ordenou um estado de prontidão rigo-
rosíssima.
A dor foi diminuindo.
Os apitos agudos de alarma despertaram os
homens de seu estado de inconsciência. Um
grito soou. Ninguém sabia quem soltara o mes-
mo. Era um grito de admiração.
— Olhem as telas!
A grande tela panorâmica captava todos os
ângulos do espaço. Na direção correspondente
ao eixo longitudinal da nave, via-se um conglo-
merado de claridade reluzente. Era um tapete
de luminosidade no qual não se distinguiam as
fontes de luz, uma nuvem de estrelas maior e
mais bela do que qualquer constelação jamais
vista por um olho humano.
Era M-13!
Ali estava o núcleo do Grande Império for-
mado por centenas de milhares de sóis que pro-
tegiam o coração do grande complexo: Árcon.
Face a esse esplendor, os outros segmentos
da tela pareciam vazios e desolados. A concen-
tração estelar da Galáxia empalideceu, transfor-
mada em escuridão diante da luminosidade da-
quele grupo.
Alguns minutos se passaram. Os tripulantes
da nave contemplaram sem pressa o grande mi-
lagre que se descortinava diante deles. Quase
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chegaram a esquecer a finalidade da viagem.
Subitamente um forte estalido rompeu o si-
lêncio e uma voz arrastada saiu do tele comuni-
cador:
— Alguma coisa não está em ordem!
A reação de Perry Rhodan foi imediata.
Logo se esqueceu do milagre que se desenhava
na tela.
— O que não está em ordem?
— Os receptores de hipercomunicação es-
tão dando sinal ininterruptamente. Com perdão
da palavra, temos uma verdadeira salada de on-
das no instrumento.
— Conseguiu a localização?
— Não, senhor. A goniometria conjugada à
medição de intensidade é impossível porque as
transmissões se superpõem. E para a goniome-
tria de triangulação precisaríamos dum terceiro
ponto de referência.
Rhodan confirmou com um gesto de cabeça.
— Prossiga nas observações — ordenou ao
homem do rádio.
E logo emitiu as ordens dirigidas ao coman-
do da nave. Eram precisas e lacônicas.
— Parar a nave! Campos protetores a toda
potência! Postos de combate continuarão de
prontidão!
A Ganymed imobilizou-se.
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A cinqüenta minutos-luz, quase exatamente
na direção do eixo longitudinal da nave, ficava
o último dos sóis da periferia externa do grupo.
Era um gigante vermelho sem planetas.
O silêncio tomou conta da sala de comando.
Os olhos fitos na grande tela panorâmica pro-
curaram compreender o que se passava lá fora.
Lá fora, num setor estranho e pavoroso do
espaço.
— O fotômetro registra reflexos débeis em
Pi cento e oitenta e dois e Teta vinte e um do
espectro estelar, com ligeiro deslocamento na
faixa do azul. O reflexo aproxima-se do ponto
em que nos encontramos.
Os olhares fixaram-se no ponto indicado. Fi-
cava “atrás” da Ganymed, se a direção em que
ficava o grupo estelar fosse considerada a fren-
te.Os olhos não encontraram nada. Um olho
humano não é nenhum fotômetro.
Rhodan instruiu a sala de rádio para que to-
das as transmissões recebidas fossem conduzi-
das para um dos receptores da sala de coman-
do. Dali a um instante, uma confusão de ruídos
encheu o recinto. Toda a escala dos barulhos
estava presente, desde o zumbido grave e mo-
nótono até o chiado agudo e histérico, que qua-
se não podia ser captado pelo ouvido humano.
Eram hiper transmissões, codificadas e con-
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densadas. Quem não possuísse o código e não
conhecesse o fator de condensação nunca con-
seguiria decifrá-las.
A antena direcional revelou que parte das
transmissões vinha da área em que o fotômetro
acabara de registrar o reflexo débil.
Alguma coisa aproximava-se do grupo este-
lar a uma velocidade considerável.
O que seria?
Rhodan pediu que Crest comparecesse à
sala de comando. Mas o arcônida não conse-
guiu descobrir o que andava lá por fora.
Uma hora passou-se. O reflexo luminoso
aproximou-se a uma distância de vinte minutos-
luz. Constatou-se que, se não modificasse a di-
reção de deslocamento, passaria a grande dis-
tância da Ganymed.
Rhodan suspirou aliviado. A representação
não se destinava a eles.
Subitamente um relampejo surgiu na parte
superior da tela. Foi um raio de luz que só du-
rou uma fração de segundo, mas era tão inten-
so que atraiu todos os olhares. Do lugar do re-
lampejo, saiu um fio esverdeado que atravessou
a tela a grande velocidade, desapareceu diante
da claridade das estrelas, voltou a surgir e final-
mente provocou outro relampejo.
Nas proximidades do local do segundo re-
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lampejo, surgiu outro fio luminoso e percorreu
o caminho de onde viera o primeiro. Os ho-
mens prenderam a respiração, aguardando a
detonação; mas esta não veio. O fio de luz per-
correu o espaço numa extensão de milhões de
quilômetros e desapareceu diante da claridade
do grupo estelar.
— Erraram o alvo! — resmungou Reginald
Bell.
Essa observação descontraiu os homens.
Não havia a menor dúvida: a quinta transi-
ção da Ganymed terminara em meio a uma ba-
talha espacial.

***

— Vamos ficar quietos — ordenou Rhodan.


— Não sabemos quem está brigando com
quem; o que sabemos é que aquilo não nos diz
respeito.
Era uma situação fantasmagórica. Fios lumi-
nosos coloridos passavam pela tela e as explo-
sões ofuscantes se sucediam. Crest não sabia o
que fazer.
— É claro que existem muitas raças que não
concordam com a existência do império dos ar-
cônidas — admitiu. — Quem é poderoso têm
inimigos, e nunca neguei que nestes últimos sé-
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culos os arcônidas não trataram os rebeldes
com o necessário rigor. Mas não tenho meios
para saber o que está acontecendo lá fora. Nem
posso dizer se há naves arcônidas envolvidas na
batalha.
À medida que perdurava a incerteza, crescia
o desejo de obter informações. Rhodan sentiu o
nervosismo que tomava conta dele, e sabia que
a mesma coisa acontecia aos outros.
— Bell!
Reginald Bell levantou a cabeça num gesto
abrupto. Um brilho arrojado surgiu em seus
olhos.
— Sim. Quer que eu...
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Não podemos ficar parados toda vida.
Pegue a Gazela-I e procure descobrir o que está
acontecendo.
As mãos ágeis de Bell manipularam o inter-
comunicador. O tenente Tifflor, que comandava
a nave auxiliar Gazela-I, foi informado de que
dentro de quinze minutos o aparelho devida-
mente tripulado deveria estar pronto para sair
pelas comportas da nave.
— Nada de arbitrariedades! — advertiu Rho-
dan. — Apenas queremos saber o que está
acontecendo. Não queremos que atire.
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— Não se preocupe. Sou o homem mais
cauteloso do mundo.
Essas palavras provocaram um sorriso nos
homens reunidos na sala de comando, que co-
nheciam bem o gênio esquentado de Bell.
A Gazela-I com seus dez tripulantes possuía
todas as características de uma pequena nave
espacial. Estava equipada com hiperpropulso-
res, podia realizar transições de extensão limita-
da e suas reservas energéticas lhe garantiam
uma autonomia de cerca de quinhentos anos-
luz.
A potência de seu armamento era tamanha
que poderia travar sozinha uma guerra contra o
planeta Terra. Era bem verdade que na opinião
de Bell era duvidoso que os acontecimentos de-
senrolados na periferia do grupo estelar M-13
pudessem ser medidos pelos padrões terranos.
Há poucos minutos a Gazela-I saíra do cor-
po gigantesco da Ganymed. Acelerando ao
máximo, atingira 0,8 vezes a velocidade da luz.
Percorria o espaço na direção dos débeis refle-
xos luminosos que os fotômetros da Ganymed
continuavam a acusar, e que se deslocavam em
direção ao grupo de estrelas.
Bell estava sentado ao lado do jovem tenen-
te Tifflor. Este pilotava a nave, enquanto Bell se
encarregava do controle dos goniômetros.
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Quando se encontravam a uma distância de
cinco minutos-luz, o localizador de microondas
começou a reagir. No início, abrangeu um obje-
to de contornos indefiníveis. Quando se aproxi-
maram mais, viram que se tratava duma nuvem
de espaçonaves que se deslocava a alta veloci-
dade.
— A distância é de cem segundos-luz — in-
formou Tifflor.
— Chegue mais perto — resmungou Bell.
— Quero vê-los na tela. Reduza a velocidade.
Tifflor olhou-o de lado.
— Atirarão contra nós — ponderou.
— Será? — resmungou Bell. — Está com
medo?
Tifflor levantou-se com um gesto tão abrup-
to que os cintos lhe cortaram os ombros.
— Senhor...
Bell fez um gesto apaziguador.
— Está bem, desculpe. Não tive a intenção
de ofendê-lo. Sei perfeitamente que não está
com medo. Reduza a velocidade.
Tifflor obedeceu.
Na tela surgiram sombras apagadas. Eram
as naves que refletiam a luz do grupo de estre-
las. Bell inclinou-se para a frente.
— Meu Deus! — murmurou. — O que é
isso?
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Graças a um treinamento intensivo, Regi-
nald Bell possuía todo o saber arcônida. Conhe-
cia os tipos de naves do Império tão bem quan-
to um arcônida, talvez melhor, já que a memó-
ria humana é mais eficiente que a arcônida.
Aquilo que tinha diante de si ultrapassava o
volume de dados que podia assimilar em alguns
segundos. Calculou que o grupo era formado
por umas trezentas naves. A maior delas devia
ter aproximadamente metade do tamanho da
Ganymed, enquanto a menor não passava dum
ponto luminoso. Tinha certeza de que seu ta-
manho não ultrapassava o da Gazela-I.
Havia naves de um tipo que há milênios de-
via ter sido moderno na galatonáutica arcônida,
e outras que Bell não conhecia, naturalmente
por não serem de construção arcônida. Não
existia a menor dúvida: as naves que se encon-
travam diante da Gazela-I não eram arcônidas.

***

Depois da ligeira manobra de frenagem de-


senvolvida por Tifflor, a nave apenas desenvol-
via 0,07 da velocidade da luz. Levou alguns se-
gundos para passar longe da formação. Os des-
conhecidos procediam com muita cautela. Difi-
cultavam a pontaria do inimigo, guardando
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grande intervalo entre as naves.
Não atiraram contra a Gazela-I. Tifflor suspi-
rou silenciosamente ao ver que os pontos lumi-
nosos que representavam as trezentas naves se
haviam deslocado para a tela de popa. Bell
olhou-o com um sorriso de escárnio.
— Infelizmente tenho que incomodá-lo mais
uma vez — disse. — Vamos voltar.
A resposta de Tifflor foi lacônica:
— Sim senhor.
Iniciou as manobras. Depois de cinco minu-
tos inverteu a rota da Gazela-I. A uma velocida-
de ainda mais reduzida que da primeira vez,
passou junto à formação bem espalhada.
Subitamente um dos homens sentados junto
a um dos nichos de artilharia gritou:
— Estão abrindo fogo contra nós! Uma faixa
larga e ofuscante atravessou a tela. Tifflor atirou
a mão para a frente, a fim de executar a mano-
bra desviacionista. Mas o feixe energético pas-
sou a uma distância segura. Produziu apenas
uma ligeira reação dos campos energéticos,
indo atingir em cheio uma das naves estranhas,
que se encontrava a milhares de quilômetros de
distância.
O efeito do impacto foi tremendo. Por uma
fração de segundos, a nave inchou como um
balão de brinquedo inflado às pressas. Suas pa-
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redes entraram em incandescência e o feixe de
fogo explodiu, espalhando uma chuva de frag-
mentos luminosos e deixando vazio o lugar em
que pouco antes se encontrara.
— Vamos embora! — fungou Bell.
A reação de Tifflor foi instantânea. Acele-
rando ao máximo e descrevendo uma curva fe-
chada, a Gazela-I afastou-se da área perigosa
que circundava as naves estranhas.
Novos feixes energéticos atravessaram o es-
paço, cruzaram as telas e atingiram suas vítimas
entre as naves desconhecidas. Uma chuva in-
cessante de fagulhas espalhava-se para todos os
lados, mudando de cor, enquanto a Gazela-I,
cada vez mais veloz, penetrava no campo do
efeito de duplicação.
— Pare! — ordenou Bell.
A Gazela-I encontrava-se a dois e meio mi-
nutos-luz da formação que estava sendo bom-
bardeada. O localizador de microondas revelou
que os desconhecidos começavam a mexer-se.
O que restava de suas naves modificou a veloci-
dade e a direção, para escapar ao fogo violen-
to. A formação espalhou-se para todos os la-
dos. Os feixes energéticos reluzentes atingiam o
vazio e desapareciam em meio ao negrume do
espaço. O inimigo invisível suspendeu o fogo.
— Quais são suas ordens? — perguntou Tif-
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flor.
— Vamos esperar — respondeu Bell laconi-
camente. — Ligue o receptor para a freqüência
integral.
Tifflor confirmou com um gesto de cabeça.
As intenções de Bell eram claras. Em toda luta
há sobreviventes, mesmo numa batalha espaci-
al. Se algum tripulante de uma das naves des-
truídas tivesse sobrevivido ao impacto e vagasse
pelo espaço, indefeso, transmitiria seu pedido
de socorro pelo rádio embutido no traje espaci-
al.
Dali a quatro minutos a Gazela-I captou o
primeiro pedido de socorro. Eram palavras bal-
buciadas numa língua incompreensível, de mis-
tura com os chiados das interferências. O goni-
ometrista só levou alguns segundos para deter-
minar o local do emissor por meio da antena
automática. A Gazela-I voltou a dar partida.
Lenta e cautelosamente, foi-se aproximando
do local da batalha recém-terminada. Metade
das guarnições de artilharia tiveram que vigiar
eventuais feixes energéticos. A grande agilidade
da Gazela-I dava-lhe boas chances de desviar-se
de um bombardeio energético, já que a maioria
das radiações não ultrapassa noventa e nove
por cento da velocidade da luz.
Bell ficou de olhos fixos na tela reflexiva do
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localizador de microondas. A antena de radia-
ções descrevia sem cessar seu movimento pen-
dular, desenhando faixas verdes sobre a tela.
— Ali!
Um ponto iluminou-se na faixa verde, apa-
gou-se quando a antena se deslocou e voltou a
iluminar-se no próximo movimento.
Tifflor alterou a rota. Desenvolvendo a velo-
cidade de um automóvel terreno, a nave aproxi-
mou-se do ponto. Um débil reflexo surgiu na
tela de imagem. Tifflor, um oficial submetido a
treinamento intenso na Academia Espacial de
Terrânia, dele se aproximou com a rapidez e a
segurança de um comandante experimentado.
Agora era com ele. Bell fornecera as direti-
vas gerais e agora ele daria as ordens.
— Dois homens sairão da nave. Tragam
aquela criatura.
Os tripulantes que se encontravam mais
próximos à comporta saíram do lugar, fecha-
ram os trajes espaciais e desapareceram no cu-
bículo da comporta. Dali a um minuto surgiram
na tela, transformados em vultos disformes e in-
chados, que voavam tranqüilamente em direção
ao reflexo.
Tifflor manteve contato pelo rádio. Os dois
soldados colocados no espaço chamavam a in-
tervalos regulares.
23
— A distância é de duzentos metros. Já dis-
tinguimos perfeitamente o homem.— Andem
depressa! — ordenou Tifflor. Lançou um olhar
preocupado pela tela de imagem. A área era
perigosa. A qualquer momento o desconhecido
distante poderia localizar a nave e abrir fogo de
novo.
— Atingimos o local — anunciou a voz de
um dos soldados.
— Tragam o homem.
— Sim senhor, mas...
— Mas o quê?
Ouviu-se uma respiração ofegante, uma tos-
se.
— Não... não é nenhum homem.
— O que é?
— É... bem, é uma coisa.
Tifflor enfureceu-se.
— É um ser inteligente ou não é?
— Parece que sim... mas é tão esquisito!
Tifflor tinha algumas palavras violentas na
ponta da língua. Mas preferiu guardá-las para si
e ordenou:
— Tragam-no. Depressa!
A luminosidade dos três pontos projetados
na tela voltou a crescer. Os contornos começa-
ram a tornar-se perceptíveis. Eram dois vultos
grosseiros e disformes, mas humanos, e uma
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terceira figura em forma de caixa.
O silêncio tomou conta da nave, até que o
ruído provocado pelos homens que vinham do
espaço soou na comporta. Bell observou as lu-
zes de controle da escotilha interna e fez um si-
nal para Tifflor quando viu surgir uma série de
luzes verdes.
— Vamos voltar pelo caminho mais rápido!
Tifflor começou a manipular os controles.
No momento em que a Gazela-I começou a
pôr-se em movimento, os dois soldados vindos
da comporta entraram e descansaram cautelo-
samente o grande volume cujo peso os fizera
ofegar.
Bell soltou os cintos de segurança, contor-
nou a mesa de controle e contemplou a coisa
de todos os lados. Pelo que constatou, o envol-
tório cinza-claro, que imitava o couro, não de-
via pertencer àquele ser; era provável que fosse
uma peça de algum traje espacial. Contudo,
não descobriu nenhum fecho. Prosseguindo no
exame, deu com o lugar em que o envoltório
era substituído por uma lâmpada quadrada de
vidro flexível que media cerca de vinte e cinco
centímetros, permitindo a visão do interior.
Por baixo dela Bell viu um vulto coberto por
listras cinza-claras e cinza-escuras. Era aquilo
que os dois soldados não quiseram chamar de
25
homem.
Bell bateu na lâmina, mas nada se moveu
atrás dela, O ser devia estar inconsciente ou
morto.
— Ande depressa! — disse Bell em voz bai-
xa, dirigindo-se a Tifflor.
Este confirmou com uma expressão obstina-
da no rosto.

***

Rhodan já estava informado quando a Ga-


zela-I entrou pela comporta. Ao seu lado, Crest
acompanhava a manobra. Parecia curioso. Tif-
flor deu prova de suas qualidades de piloto es-
pacial. A manobra foi rápida e segura.
Em torno da Ganymed a batalha espacial
continuava a rugir. A dispersão da frota desco-
nhecida, evidentemente, não passara duma
ação isolada em meio ao grande combate.
Rhodan dirigiu-se a Crest.
— Quer encarregar-se da investigação?
Acho que estará em boas mãos.
Crest concordou com um gesto.
— Avise assim que descobrir alguma coisa
— pediu Rhodan.
Crest saiu e aguardou no corredor até que
dois dos tripulantes levassem o ser disforme
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pelo elevador antigravitacional.
— Façam o favor de deixá-lo no laboratório
— pediu.
Enquanto o volume era introduzido no labo-
ratório, Crest preparou os aparelhos de que
precisaria para a pesquisa.
Sua providência principal consistiu em en-
cher uma das pequenas câmaras de exame, ins-
taladas nos fundos do laboratório, com uma at-
mosfera de metano submetida a uma pressão
considerável.
Conhecia a raça a que pertencia aquele ser
indefeso, coberto de listras cinza-claras e cinza-
escuras.
Abriu o traje espacial de couro junto à câma-
ra de exames, introduziu o corpo flácido e dis-
forme na pequena comporta o mais depressa
que pôde, retirou o ar da mesma e fez com que
uma lufada fresca de metano envolvesse o ser
estranho.
Na câmara havia uma série de instrumentos
que captavam e registravam as funções do cor-
po. Crest leu nos indicadores que de todos os
órgãos somente aquele que correspondia ao co-
ração humano desempenhava uma atividade
significativa.
O ser estranho estava morrendo. A tempe-
ratura de seu corpo estava abaixo do normal.
27
Provavelmente o aquecimento do traje espacial
falhara.
Os controles seguintes foram manipulados
com um máximo de rapidez e segurança. Um
zumbido grave encheu o recinto no momento
em que começou a funcionar o aparelho de en-
cefalografia. Este aparelho registraria as últimas
vibrações cerebrais daquele ser que vivia no mo-
mento e as traduziria numa programação posi-
trônica.O rumo que tomava a batalha espacial
era inconfundível. As formações de naves se
agrupavam; mais uma dezena de reflexos foi re-
gistrada pelos fotômetros.
No centro de todas as formações encon-
trava-se a Ganymed.
Ainda estava condenada à espera. A única
coisa que podia fazer era ativar os campos
energéticos ao máximo de sua potência, para
que um impacto casual de um dos potentes ca-
nhões energéticos não pudesse causar-lhe qual-
quer dano.
Dali a uma hora Crest voltou. Rhodan notou
que estava mais sério que de costume. Segurava
algumas fitas de plástico coloridas, utilizadas
como portador de impulsos da calculadora posi-
trônica, e colocou-as diante de Rhodan.
— O que foi? — perguntou Rhodan laconi-
camente.
28
— Foi um motunês — respondeu Crest.
— Foi?
— Isso mesmo — confirmou Crest. — Mor-
reu de subesfriamento. Não pude fazer mais
nada por ele.
Rhodan refletiu, procurando localizar na
profusão de memórias armazenadas durante o
treinamento hipnótico tudo que sabia sobre os
motuneses.
Era uma raça não-humanóide que respirava
metano e habitava os planetas de um extenso
sistema solar situado na periferia do grupo este-
lar. Quando foram subjugados pelo Grande Im-
pério já possuíam uma tecnologia desenvolvida
e em toda a história nunca foram membros
muito submissos do Grande Império. O nível
elevado de sua civilização e a repugnância natu-
ral dos não-humanóides pelos humanóides fize-
ram com que de tempos em tempos os motune-
ses lutassem pela independência de seu sub im-
pério.
— Com quem estão brigando? — perguntou
Rhodan.
— Com uma grande frota de Árcon — res-
pondeu Crest. — Este motunês informou que,
mal a rebelião havia começado, uma enorme
frota arcônida surgiu diante do mundo principal
de Motun e transformou sua superfície num
29
oceano de rocha derretida.
As unidades estacionadas nos outros plane-
tas passaram à luta. É o que estamos vendo na
tela. Não existe a menor dúvida de que a rebeli-
ão terminará com a destruição final dos motu-
neses.
Rhodan ergueu os olhos, espantado.
— Parece que Árcon está ficando enérgico.
Crest deixou-se cair numa poltrona. Parecia
um gesto de desânimo e resignação.
— O senhor não entende isso tão bem
como eu entendo — disse em voz baixa. — É
bem verdade que dispõe do saber arcônida.
Mas não possui as impressões emocionais que
carreguei comigo ao partir de Árcon. Se no dia
em que Thora e eu partimos de Árcon na nave
exploradora os motuneses se tivessem revolta-
do, nenhum arcônida se teria preocupado por
isso. Motun fica a quarenta e seis anos-luz de
Árcon. Os arcônidas sabiam que pouco impor-
taria o que os motuneses fizessem. De qualquer
maneira não conseguiriam chegar aos mundos
coloniais mais importantes, quanto mais Árcon,
em virtude dos dispositivos automáticos de se-
gurança. Teriam ficado diante das telas de ima-
gens fictícias, esperando que o entusiasmo dos
motuneses acabasse por si.
— E agora... isto aqui... essa atividade imen-
30
sa...
Rhodan deixou passar algum tempo.
— Afinal, treze anos se passaram desde sua
partida, Crest — ponderou. — Não acredita...
— Treze anos! — exaltou-se Crest. — Será
que treze anos bastariam para produzir uma
mudança tão radical no gênio de um povo anti-
qüíssimo?
Rhodan refletiu.
— Uma evolução natural não poderia produ-
zir esse resultado — confessou. — Talvez tenha
havido um golpe de força na história arconídi-
ca. Quem sabe se o próprio Árcon não sofreu
um ataque, e a situação criada com isso não
deixou outra alternativa aos arcônidas senão
despertar de sua letargia?
Crest mostrou um sorriso triste e fez um ges-
to. Estava com a resposta na ponta da língua.
Pretendia dizer que um povo condenado ao de-
saparecimento não se desvia do caminho traça-
do pelo destino, e prefere sucumbir a defender-
se. Mas antes que pudesse dizer uma palavra, o
inferno parecia estar às soltas.
As sereias de alarma elevaram sua voz desa-
gradável e irritante, enchendo a nave por al-
guns segundos com um ruído martirizante. Mal
as sereias silenciaram, uma voz gritou no inter-
comunicador:
31
— Uma grande formação de naves apro-
xima-se na direção exata da Ganymed. Distân-
cia de três segundos-luz, velocidade 0,05 da luz.
Contato dentro de sessenta segundos.

Antes de mais nada, Rhodan lançou um


olhar sobre o indicador de desempenho do
campo protetor. O sinal luminoso tremulava na
mancha vermelha: não havia possibilidade de
conduzir maior suprimento energético ao cam-
po.
A Ganymed estaria protegida contra qual-
quer carga concebível. Mas a frota que do nada
se aproximava era formada de mais de três mil
naves, e nem mesmo o mais potente dos cam-
pos energéticos resistiria ao bombardeio de três
mil canhões.
Crest levantou-se e recuou para os fundos
da sala. Sabia que numa situação como esta de-
veria deixar a iniciativa por conta dos outros.
Numa questão de segundos, a tripulação da
sala de comando se amalgamou naquela comu-
nhão de luta que sempre formara nos momen-
tos de maior perigo. Todos os oficiais estavam
nos seus lugares, aguardando as ordens de Rho-
dan, com um nervosismo reprimido a custo.
32
Apesar da pressa, Rhodan não perdeu o
sentido de coerência. O localizador de microon-
das gastou dez segundos para apalpar o forma-
to das naves que se aproximavam vertiginosa-
mente e constatar que a frota era de origem ar-
cônida.
Rhodan consumiu mais dez segundos em ex-
pedir a mensagem codificada que na opinião de
Crest e Thora convenceria qualquer tripulação
arcônida de que tinha um irmão de raça diante
de si.
Mais dois segundos se passaram até que per-
cebesse que as naves arcônidas não registraram
a emissão. E, menos ainda, cogitavam de des-
viar-se da perigosa rota que estavam seguindo.
Vinte segundos depois do primeiro aviso a
frota arcônida abriu fogo contra a Ganymed.
Centenas de feixes energéticos concentrados
correram pelo espaço. Em parte erraram o
alvo, em parte levaram os campos energéticos
à incandescência.
— Posto de combate número um, preparar
para abrir fogo! — ordenou Rhodan.
O posto de combate número um correspon-
dia ao transmissor fictício, que era a arma mais
eficiente da nave.
A confirmação não demorou mais que um
segundo.
33
— Abrir fogo na direção Pi zero com potên-
cia média — ordenou Rhodan. — Fogo!
Com a mão direita empurrou o regulador de
velocidade para a posição máxima. A Ganymed
pôs-se em movimento. Acelerada ao máximo,
correu em direção à gigantesca frota do inimi-
go, abrindo caminho por entre as linhas inimi-
gas por meio do misterioso transmissor fictício.
O aparelho registrava o alvo, arremessava-o
pelo hiperespaço e fazia-o ressurgir num ponto
cuja distância e posição eram escolhidos em
função da quantidade e da polarização da ener-
gia empregada.
Uma passagem larga abriu-se diante da
Ganymed, enquanto os campos energéticos
continuavam a iluminar-se sob o fogo das naves
arcônidas.
Os arcônidas logo reconheceram o perigo
que se aproximava deles. A formação desagre-
gou-se e as naves se afastavam em todas as di-
reções, para dificultar a pontaria do inimigo. Os
impactos sobre o campo protetor da Ganymed
tornaram-se cada vez mais raros. Desenvolven-
do o máximo de aceleração, a nave terrena pre-
cipitou-se pela abertura. Confundiu a pontaria
arcônida quando a mesma teve que girar além
do ângulo de zero graus. Menos de dois minu-
tos depois do primeiro alarma, encontrava-se
34
em segurança, bem além das linhas inimigas.
A frota arcônida reagrupou-se e prosseguiu
no seu vôo, mantendo a rota primitiva. Poucos
segundos depois observaram-se os primeiros ti-
ros de radiações, que provocaram explosões re-
fulgentes nas profundezas do espaço. O fogo
dos arcônidas foi respondido. Mas a proporção
dos tiros disparados de lado a lado revelava cla-
ramente a situação desesperadora de inferiori-
dade em que se encontravam os motuneses.
Os três mil couraçados, diminuídos de três,
que o transmissor fictício transferira para outro
setor do espaço, passaram que nem um rolo de
fogo sobre os destroços das naves motunesas,
deixando atrás de si uma chuva incandescente
de destroços, que se reuniam na tela sob a for-
ma de nuvens luminosas amarelo-avermelhadas.
Dali a meia hora Rhodan decidiu prosseguir
viagem. Face à rebelião que se manifestara nas
áreas exteriores do grupo estelar, achou preferí-
vel não expor a Ganymed a outro perigo. Re-
solveu executar mais um hiper-salto para vencer
a distância restante de cerca de quarenta e cin-
co anos-luz.
A elevada concentração de matéria reinante
na área, especialmente no centro do grupo M-
13, exigiu maior número de dados para o cálcu-
lo das coordenadas do salto. Isto acarretou mai-
35
or dispêndio de tempo.
Nesse meio tempo a nave ficou de pronti-
dão. Ninguém saberia prever se, depois de ter
feito uma limpeza tão rigorosa entre os motu-
neses, a frota arcônida não se lembraria do ini-
migo anterior e procuraria localizá-lo.

***

Thora irrompeu em meio aos preparativos


da transição e aos pensamentos graves que pas-
savam pela mente de Rhodan. Alguma coisa
parecia tê-la excitado além da medida. Seu lon-
go cabelo branco esvoaçava enquanto atraves-
sava a sala de comando a passos rápidos.
Rhodan recebeu-a com um sorriso.
— Foram naves arcônidas, não foram? —
perguntou Thora.
“É isso”, pensou Rhodan. “Acompanhou os
acontecimentos na tela e agora vem me dizer o
que eu deveria ter feito.”
— Foram — admitiu.
— Por que não se identificou?
— Foi exatamente o que fiz. Usei a mensa-
gem codificada. Thora ficou perplexa. Seus
olhos chamejantes, assumiram uma expressão
um pouco mais suave.
— E não...
36
— ...não responderam? Não. Pelo contrário:
começaram a atirar.
Os braços de Thora caíram molemente junto
ao corpo. Sua cólera e seu entusiasmo haviam
passado. Só ficou o desamparo.
Crest saiu do canto em que passara os últi-
mos trinta minutos, acompanhando os aconte-
cimentos que se desenrolaram lá fora. Estava
pasmo e silencioso. Thora virou-se para ele,
com a grande pergunta inexprimível nos olhos.
Crest parou perto dela e fez um gesto grave.
— Nossa situação não é melhor que a sua
— disse em arcônida. — Não temos a menor
idéia do que pode ter acontecido.
— Mas...
— Durante sua ausência deve ter havido
uma modificação profunda no império de Ár-
con — interveio Rhodan. — Ao que parece, de
certo tempo para cá, os comandantes das naves
arcônidas foram instruídos a ver um inimigo em
qualquer coisa que se interponha no seu cami-
nho. Até os sinais codificados perderam seu va-
lor.
— E agora? O que pretende fazer?
O rosto apavorado de Thora antecipou a
resposta: deviam voltar, fugir, ir para casa.
Rhodan riu baixinho.
— Não tenha medo. Pretendíamos ir a Ár-
37
con, e ainda pretendemos. Vamos realizar a
sexta transição, que nos levará ao centro do
grupo estelar. Uma coisa eu lhes digo. Ao que
tudo indica, é muito mais provável que sejamos
destruídos por seus patrícios em vez de atingir-
mos Árcon sãos e salvos.
— Passo por passo, jornada após jornada o
rei Salomão penetra na terra misteriosa de Ofir
e se aproxima do palácio dourado da rainha de
Sabá.
Com um sorriso, Rhodan olhou para o lado
e contemplou seu co-piloto e amigo, que acaba-
ra de recitar pela terceira vez o verso que falava
no rei Salomão e na rainha de Sabá.
— Está com uma veia romântica, não é? —
escarneceu.
Bell não tirou os olhos da tela.
— Isso mesmo — respondeu em tom sério.
— Até parece que estou no cinema. Olhe isso
— fez um gesto amplo, que abrangeu toda a su-
perfície da tela panorâmica — e ouça isso —
apontou para o receptor de telecomunicação
montado diante dele que, ligado na freqüência
integral, captava a cada segundo as emissões ir-
radiadas por tudo quanto era emissor localizado
nesse setor do espaço.
Realmente, a visão oferecida pela tela era fa-
bulosa. As estrelas agrupavam-se tão densa-
38
mente que em certos pontos pareciam formar
paredes luminosas compactas. Em outros luga-
res, formavam pontos de cruzamento duma
rede estreita cuja luminosidade era inconcebí-
vel.
Jamais um ser terrano havia visto um céu
desses.
O que saía do hipercomunicador era a su-
perposição de pelo menos cem mil palestras
conduzidas ao mesmo tempo. Era de supor que
a maior parte dessas palestras se realizava num
raio de quinze anos-luz em torno da Ganymed,
já que é este o alcance para o qual geralmente
são regulados os emissores de hipercomunica-
ção. E, se considerarmos que no máximo dez
por cento das naves que se encontram em via-
gem estariam transmitindo ao mesmo tempo,
chegaremos à conclusão de que a esfera espaci-
al de trinta anos-luz de diâmetro que tinha a
Ganymed por centro devia ter um “conteúdo”
de pelo menos um milhão de naves.
Era um número impressionante.
Reginald Bell começou a compreender o
que Rhodan queria dizer quando afirmava que,
apesar da decadência e do refinamento excessi-
vo, o Império Arcônida era uma coisa tão pode-
rosa e formidável que o espírito humano não
conseguiria imaginar.
39
Mas uma impressão forte como esta sempre
irritava Bell. Afastando violentamente a sensa-
ção de pequenez e insignificância que começa-
va a surgir em sua mente, formulou uma afir-
mativa arrojada sobre o verso do rei Salomão
que acabara recitar:
— Ao aproximar-se, viu que o outro não
passava de latão; recuperou a coragem, e sua
vanguarda sozinha derrotou o exército gigantes-
co da rainha de Sabá.
Voltando-se para o lado, olhou Rhodan com
um sorriso mordaz:
— Agora que satisfizemos nossas necessida-
des mitológicas, o que vamos fazer?
Rhodan apontou para a tela.
— Vamos aguardar a interpretação. Pelos
nossos cálculos, saímos da transição a trinta ho-
ras-luz do sol de Árcon. O que vemos diante de
nós corresponde aos dados constantes dos ve-
lhos mapas de Crest. Mas muita coisa mudou
neste meio tempo.
Por isso prefiro não assumir nenhum risco;
mandarei conferir os mapas. Quem sabe se os
arcônidas não construíram outra fortaleza espa-
cial? Poderemos esbarrar com o nariz na mes-
ma, se não nos cuidarmos.
Bell franziu a testa.
— Aliás, já sabemos da existência do chama-
40
do anel exterior de fortificações, não é?
— É verdade. Acontece que não fica aqui,
mas na órbita planetária mais distante do siste-
ma, ou seja, perto de quinze ou vinte horas-luz
da estrela central.
Bell examinou uma série de instrumentos.
— Estamos desenvolvendo a velocidade de
0,2 luz — constatou. — O anel exterior está
dentro do raio de alcance de nossos transmisso-
res. Vamos enviar uma mensagem?
Rhodan confirmou com um gesto.
— É claro que vamos. Vamos enviar qual-
quer mensagem que os faça compreender que
nossas intenções são amistosas.
— Muito bem. Tomara que adiante alguma
coisa.
A conferência dos mapas não revelou nada
de novo. Os arcônidas não haviam acrescenta-
do qualquer estação espacial às já existentes.
Reconheceram parte das cinco mil platafor-
mas equipadas com canhões pesadíssimos, que
formavam o anel exterior de fortificações. A
Ganymed aproximava-se do círculo a sessenta
por cento da velocidade da luz. As antenas da
nave expeliam incessantemente sinais codifica-
dos e mensagens destinadas aos receptores ins-
talados nessas plataformas.
As plataformas deveriam responder. Ao me-
41
nos, segundo afirmava Crest, elas o fariam em
condições normais. Acontece que não respondi-
am.
Silenciosas, continuavam a percorrer suas
órbitas, e ninguém poderia prever o que fariam
se a Ganymed procurasse romper o círculo sem
o sinal liberatório do grande emissor, buscando
penetrar no coração do Grande Império.
Uma das gigantescas plataformas de guerra
foi crescendo lentamente na tela. Na estranha
perspectiva do espaço livre, que não permitia a
avaliação de distâncias sem instrumentos, pare-
cia que dentro de poucos segundos a mesma se
transformava de um pequeno ponto brilhante
para um monstro perto do qual a Ganymed não
passava dum naviozinho insignificante.
Por uma fração de segundo os olhos viram
as aberturas ameaçadoras das torres de radia-
ções.
Subitamente o furacão de fogo irrompeu de
todas as peças. Uma parede fulgurante formada
por uma massa imensa de energia concentrada
precipitou-se sobre a Ganymed. Os geradores
do campo protetor uivaram, solicitados ao
máximo sob o impacto das forças terríveis, e a
nave foi atirada de um lado para outro que nem
uma canoa em mar tempestuoso.
O pavor tomou conta das mentes.
42
As últimas energias que restavam nos pro-
pulsores impeliram a nave para a frente. Um
repentino golpe de aceleração fez com que os
disparos energéticos ininterruptos das torres se
perdessem no vácuo por alguns segundos, pas-
sando atrás da Ganymed. Quando o dispositivo
de pontaria automática percebeu o erro e corri-
giu a posição dos canhões de radiação, a nave
terrana já se encontrava a mais de duzentos mil
quilômetros. Os campos energéticos, que mal e
mal resistiram ao primeiro impacto dos tiros
disparados a pequena distância, absorviam com
a maior facilidade os tiros que agora os perse-
guiam.
O balanço cessou. Com o campo energético
luminoso a Ganymed foi penetrando no estra-
nho sistema deixando para trás o anel mortífero
de plataformas.
— Continuaremos em prontidão rigorosa.
Devemos contar com novos ataques. Qualquer
baixa deve ser avisada imediatamente à sala de
comando.
Não houvera nenhuma baixa.
Pálido de susto, Crest estava encolhido na
sua poltrona, junto à parede lateral da sala de
comando. Rhodan virou-se para ele e exibiu um
ligeiro sorriso, para acalmar o arcônida. Crest
não retribuiu. O medo estava escrito em seu
43
rosto.
O espaço que se abria diante da Ganymed
parecia livre. O poderoso Império concedia
uma ligeira pausa de respiração aos invasores.
Rhodan levantou-se, passou pelos postos
dos oficiais e dispensou a cada um deles uma
palavra animadora e tranqüilizadora. Parou di-
ante de Crest até que este, dominado pelo pa-
vor, notasse sua presença:
— A sala de rádio fica à disposição do se-
nhor e de Thora. O senhor sabe como lidar
com os instrumentos. Procure falar com Árcon.
Explique àquela gente que não viemos como
inimigos.
— Faça o possível para convencê-los. Senão
estaremos todos perdidos.
Crest confirmou com um gesto. Parecia mui-
to perturbado. Levantou-se e saiu. Rhodan se-
guiu-o com os olhos. Depois chamou Thora e
pediu-lhe que ajudasse Crest.
Ao que parecia, era Thora que mais precisa-
va de auxílio.
Rhodan reduziu a velocidade da nave depois
que a Ganymed deixou para trás os últimos ti-
ros disparados a distância. Seria uma loucura
penetrar no sistema a noventa por cento da ve-
locidade da luz.
Era necessário agir com cautela, mesmo que
44
esta consumisse tempo e aumentasse o risco de
novo ataque antes que a Ganymed atingisse a
órbita de Árcon.
Há vários minutos Thora e Crest procura-
vam comunicar-se com seu mundo através do
hipertransmissor.
Ainda não haviam conseguido nada. Árcon
não respondia.
Rhodan começou a suspeitar de alguma coi-
sa. Árcon não respondia! Teria o mundo dos
arcônidas sucumbido a alguma catástrofe? Será
que uma guerra eliminara a humanidade arcôni-
da?
“É tolice”, disse Rhodan de si para si, espan-
tando seus temores. “Se fosse assim, como se
explicariam as frotas gigantescas que fizeram
uma limpeza tão radical entre os motuneses?”
E se não fosse tolice?
Era perfeitamente possível que as naves diri-
gidas por robôs tivessem escapado à destruição,
e prosseguissem com a obstinação de máquinas
insensíveis na execução das tarefas que lhes ha-
viam sido atribuídas, mesmo que seus senhores
já não vivessem.
Será que a Ganymed estava chegando tar-
de?
Rhodan quis ter certeza. Recorreu ao peque-
no programador que encontrou junto à sua
45
mesa para codificar a pergunta:
— As naves de tipo arcônida que a Gany-
med enfrentou nas últimas dez horas são unida-
des dirigidas por robôs?
A pergunta foi transmitida ao centro de cál-
culos. Rhodan pediu a resposta ao menor prazo
possível. Acreditava que o cérebro positrônico
levaria ao menos quinze minutos para chegar a
um resultado inequívoco.
E nesses quinze minutos...

***

Rhodan foi espantado de suas reflexões pelo


estalo do intercomunicador. A voz exaltada do
oficial do posto de localização encheu a sala:
— Constatamos uma transição nas imedia-
ções. Trata-se de um couraçado da classe da
Stardust. Pode ser alcançada pela visão ótica di-
reta.
Uma sombra negra e ameaçadora cobrira
parte do tapete de estrelas. No início parecia
um pequeno furo, depois uma bola, e por fim
um enorme disco redondo, que impedia total-
mente a visão da Ganymed para um dos lados.
Rhodan enrijeceu os músculos, como se ti-
vesse que suportar pessoalmente o primeiro im-
pacto. E logo veio o feixe luminoso verde do
46
desintegrador. Atingiu o campo energético da
Ganymed pouco acima do leme e produziu uma
luminosidade ofuscante nos campos energéti-
cos.
Rhodan desviou a Ganymed. Numa mano-
bra instantânea saiu para o lado, deixando para
trás a próxima salva de desintegradores.
Mas a gigantesca nave acompanhou a ma-
nobra. Num movimento ágil, que quase parecia
uma brincadeira, grudou-se nos calcanhares da
Ganymed, aproximou-se a uma distância de
vinte quilômetros e bombardeou a nave terrana
com uma seqüência ininterrupta de salvas de to-
dos os canhões possíveis.
O uivo infernal dos geradores do campo
energético voltou a ser ouvido. A Ganymed vol-
tou a ser sacudida por fortes golpes, já que os
neutralizadores antigravitacionais não consegui-
am mais absorver os choques provocados pelos
impactos. Alguns homens foram arrancados
dos assentos e atirados contra as paredes.
Rhodan executou uma manobra após outra.
Por vezes, a pressão sobre seu braço era tama-
nha que movia uma chave sem que o quisesse,
imprimindo uma direção nova e totalmente
inesperada à Ganymed.
Dessa forma a nave escapou da quarta parte
dos disparos. Mas os três quartos restantes bas-
47
tariam para vencer dentro de poucos minutos a
resistência dos campos energéticos.
Finalmente Rhodan tomou uma decisão.
— Todos os postos de combate prontos
para disparar. Posto número um: cuidado com
a determinação de distâncias.
Os homens respiraram aliviados.
Finalmente! Finalmente estava acontecendo
alguma coisa.
Finalmente poderiam mostrar àquele colosso
arcônida com quem ele se metera.
— O que era aquilo? Uma nave-gigante?
— Bem, para naves gigantes possuímos ar-
mas especiais. Este transmissor, por exemplo,
pode arremessar um planeta inteiro...
— O que foi isso? Ordem revogada? Não
abriremos fogo?
— Por que será?
Foi porque, no momento mais crítico, a voz
desesperada de Thora surgira no intercomuni-
cador. Soava fina face ao barulho que rugia na
nave, mas era perfeitamente audível:
— Não atirem, pelo amor de Deus! Revogue
a ordem. Conseguimos estabelecer contato com
Árcon.
Um último impacto imprimiu um movimento
de rotação à Ganymed. As imagens das estrelas
desfizeram-se em faixas alongadas.
48
Rhodan freou o movimento por meio de um
ligeiro empuxo contrário, colocou em ordem a
imagem na tela e examinou os arredores.
Onde estava o couraçado?
Tinha ido embora. Desaparecera. A massa-
estrela do grupo brilhava tranqüilamente em
todo esplendor. O colosso não estava mais por
perto. A visão abria-se livremente para todos os
lados da Ganymed.
— Eu sabia! — resmungou Reginald Bell. —
Foi apenas um sonho.
Os homens riram. O riso era um tanto his-
térico, mas era um riso de alívio.
Para a Ganymed, começou outro período de
espera. Rhodan realizou uma ligeira correção
de rumo. A série de manobras desviacionistas
voltara a aproximar a nave do anel de fortifica-
ções.
Na tela, o sol de Árcon brilhava num esplen-
dor fulgurante. Tornou-se necessário cobrir os
aparelhos de filtros negros, para que os olhos
pudessem suportar aquela visão.
A Ganymed encontrava-se a nove horas-luz
da órbita do planeta Árcon. Já deixara para trás
a órbita do planeta exterior do sistema.
Embora se encontrasse próxima ao destino,
ninguém sabia responder a estas perguntas: o
que acontecera em Árcon? Que tipo de influên-
49
cia transformava os arcônidas duma raça deca-
dente e apática em seres sanguinolentos, que
atiravam sem aviso contra um visitante que se
aproximava?
Thora e Crest haviam realizado uma palestra
direta com Árcon, gravando-a em fita. Levaram
o pedaço de fita da sala de rádio para a sala de
comando, para reproduzi-lo diante de Perry
Rhodan.
Rhodan contemplou-os enquanto manipula-
vam o aparelho de som. Crest parecia tão con-
fuso e apavorado como estivera meia hora an-
tes, ao sair da sala de comando. E as mãos de
Thora tremiam. Ligou o aparelho com um ges-
to furioso, que quase chegou a quebrar a chave.
Rhodan ficou admirado.
Um silêncio profundo reinava na sala de co-
mando no momento em que começaram a soar
as vozes gravadas na fita. Graças ao treinamen-
to hipnótico, os oficiais dominavam a língua ar-
cônida como se fosse sua própria.
Crest:

— Aqui fala Crest, da família de Zoltral. Sou


um membro da expedição Aetron, que partiu
de Árcon há onze anos — tempo arcônida —
juntamente com Thora, outra sobrevivente da
expedição e membro da mesma família. Encon-
50
tro-me a bordo de uma nave pertencente a uma
potência estranha, que quer levar-nos de volta
para Árcon. Solicitamos permissão para pou-
sar.

“É uma fala bastante cautelosa”, pensou


Rhodan. “Se Crest acreditasse que em Árcon as
coisas ainda eram como no tempo em que par-
tira, não teria solicitado, mas exigido permissão
para pousar.” Os Zoltral eram a família reinan-
te.
A mensagem de Crest foi repetida várias ve-
zes. Depois da segunda repetição a fita repro-
duziu o rugido da manobra que os desviou do
couraçado arcônida. Ouviu-se o uivo dos gera-
dores e, outra vez, a voz de comando de Rho-
dan vinda pelo intercomunicador que devia per-
manecer ligado em todas as dependências da
nave enquanto durasse o estado de prontidão.
Crest repetiu a mensagem cinco vezes antes
que viesse o primeiro sinal de resposta. Pela
sua voz notava-se que quase chegara a perder
as esperanças.
Uma voz estranha e indiferente falou:
— Árcon para Crest da família Zoltral. O se-
nhor não consta mais das listas de busca.
Aguarde uma nave de escolta.

51
Nesse instante, Thora interveio na palestra.
Pelo tom de sua voz, as reservas de energia de
que dispunha eram muito maiores que as de
Crest.

— Uma nave de escolta! — chiou furiosa. —


O senhor nos mandou uma nave de guerra. Se
a mesma não for retirada imediatamente, nosso
comandante não terá outra alternativa senão
destruí-la.

Espantado, Rhodan levantou a cabeça. Seus


olhos procuraram os de Thora, mas esta fitava
o chão.
A voz indiferente voltou a soar no alto-falan-
te:

— É impossível. Ninguém pode destruir um


couraçado arcônida.
— Pois espere para ver, seu idiota. — Nesse
instante ouviu-se ao fundo a voz de comando de
Rhodan, dirigida aos postos de combate. — De
qualquer maneira retiraremos o couraçado —
prosseguiu a voz estranha. — Não faça nada
enquanto a nave de escolta não chegar. Fim.

O resto Rhodan já sabia. Thora pedira-lhe


que revogasse a ordem de abrir fogo. E o cou-
52
raçado desapareceu.
Rhodan olhou os arcônidas.
— Não era o que esperavam, não é verda-
de? — perguntou em arcônida.
Crest não se moveu, mas Thora levantou a
cabeça, exaltada.
— Sabe disso tão bem quanto nós — chiou
indignada.
Rhodan confirmou com um gesto de cabeça.
— Sei, sim. Mas talvez a falta de respeito
pela sua ascendência seja um bom sinal, para
toda a raça dos arcônidas. O simples fato de
que alguém nos recusa o tratamento de Vossa
Alteza ou Vossa Eminência não deve levar nin-
guém a conclusões sombrias.
Thora fez um gesto de desprezo.
— O senhor diz isso para consolar-nos —
disse. — Sabe perfeitamente que um mundo te-
ria que desmoronar antes que um arcônida su-
balterno recusasse a um membro das famílias
reinantes o título que lhe compete.
Rhodan olhou-a pensativo.
— É possível que um mundo tenha desmo-
ronado — disse baixinho.
Provavelmente essas palavras teriam provo-
cado outra discussão, se o oficial de observa-
ção, que não sabia nada sobre a palestra com
Árcon, não anunciasse com a voz rouca mais
53
uma transição nas imediações da Ganymed.
Bell interrompeu o homem exaltado:
— Acalme-se! — gritou. — A chegada dessa
nave estava prevista.
Rhodan afastou os homens das posições de
combate. Apenas o posto número 1, que abri-
gava o transmissor fictício, continuou guarneci-
do. Rhodan não quis arriscar-se a que nesse
momento importante, talvez fosse o mais im-
portante da história da humanidade, um dos
homens perdesse os nervos. Porém, devia man-
ter guarnecida ao menos uma das armas, para
não ficar inteiramente à mercê da nave estra-
nha.
A gigantesca esfera aproximou-se rapida-
mente. Rhodan acompanhou a manobra. O pi-
loto arcônida era um mestre na sua arte. Foi se
aproximando quase metro por metro, até que
entre a linha equatorial de sua nave e o envoltó-
rio externo da Ganymed só restou uma abertura
de oitocentos metros. Os campos energéticos
tocaram-se, iluminando-se nos pontos de conta-
to.
Reginald Bell não conseguiu dominar a im-
paciência.
— Nunca vi um sujeito tão sem-vergonha —
resmungou zangado. — Por que será que chega
tão perto de nós?
54
Rhodan sorriu e deu de ombros.
— Pergunte a ele.
Bell não perdeu tempo. Furioso, bateu na
tecla de emissão do tele comunicador, fez a an-
tena girar na direção da nave e expediu o sinal
arcônida de emissão.
A tela iluminou-se, fios tremeluzentes come-
çaram a reunir-se num quadro. Bell começou a
falar em arcônida antes que visse quem se en-
contrava diante dele:
— Cruzador espacial Ganymed para a nave
de Árcon. Que manobra idiota é... ooooh!
O quadro na tela assumira contornos níti-
dos. Apavorado, Bell recuou um passo e con-
templou-o. Seus olhos semicerrados viram um
ser que, pelos instrumentos que se encontravam
ao seu lado, devia medir pelo menos três me-
tros de altura. Encontrava-se a boa distância do
receptor, por isso foi projetado na tela em todo
o tamanho.
Não havia dúvida de que pertencia a uma
raça humanóide. Tinha duas pernas da grossura
de colunas de templo egípcio e dois braços que
pendiam molemente à frente do corpo. A cabe-
ça... bem, era realmente uma cabeça, embora
consistisse na figura geométrica exata de uma
esfera sem cabelos, tinha na frente três abertu-
ras que serviam de olhos e por baixo delas uma
55
boca larga, cujos lábios pareciam ridículos de
tão estreitos. Não possuía nariz. Enquanto Bell
ainda estava rígido de pavor, Thora disse com
um gemido:
— Meu Deus! São naats! Permitiram que os
naats subissem a bordo das naves arcônidas.
No mesmo instante Rhodan lembrou-se da
suspeita que lhe ocorrera uma hora antes. Teri-
am sido os naats, um povo colonial que habita-
va o quinto planeta do sistema, que desferira o
golpe de morte no Império? Será que os naats
assumiram o governo, os naats, esses seres si-
miescos que, sempre que não tinham sob os
pés as placas de metal plastificado de uma
nave, andavam de quatro, embora fossem dota-
dos de maior grau de inteligência do que seu as-
pecto dava a entender? Seria por causa dos na-
ats que os sinais codificados deixaram de ser
observados?
Reginald Bell recuperou-se do susto.
— Gostaria de saber — voltou a falar —
para que serve essa manobra idiota. Isso repre-
senta um perigo para as duas naves.
O gigantesco naat observara com uma ex-
pressão um tanto estúpida a cena que se apre-
sentava na tela. Respondeu à pergunta de Bell
com a indiferença de quem diariamente trava
vários diálogos com homens terranos:
56
— Só assim poderei rebocá-los. Falava o ar-
cônida grosseiro usado em seu mundo natal.
— Rebocar-nos? — esbravejou Bell. — Esta-
mos em condições de mover-nos sem auxílio.
Não precisamos de reboque.
— Sabe onde deve pousar? — perguntou o
naat.
— Queremos pousar em Árcon, e é o que
vamos fazer.
Rhodan fez um sinal para Bell. Este recuou,
trêmulo de raiva, cedendo o lugar ao seu co-
mandante.
— Sou Rhodan, comandante da Ganymed
— disse este em arcônida. — Quem é o senhor,
e quais são suas instruções?
O naat parecia menos indiferente quando
viu a figura de Rhodan, mais alta que a de Bell,
e ouviu a pergunta lacônica e tranqüila.
— Sou Novaal — respondeu prontamente.
— Comando esta nave imperial. Recebi instru-
ções para levar a sua para Naat, colocando-a
no espaçoporto de Naatral.
Rhodan lembrou-se do ensino recebido.
Naat era um mundo do tamanho de Júpiter,
que tinha uma gravitação mortal, é um clima se-
melhante ao de Marte. Era um mundo de poei-
ra. Os arcônidas admiravam-se de que o mes-
mo pudera produzir alguma forma de vida e,
57
ainda por cima, de vida inteligente.
— Tenho dois passageiros arcônidas a bor-
do — objetou Rhodan e colocou-se numa posi-
ção tal que Thora e Crest entraram no campo
de visão. — Acredito que o senhor terá proble-
mas, Novaal, se não der a estes dois a oportuni-
dade de irem a Árcon pelo caminho mais rápi-
do. Não sei se o nome Zoltral significa alguma
coisa para o senhor.
Novaal fez menção de executar um movi-
mento que poderia ser uma mesura. Realmen-
te, a cultura arcônida conhecia um gesto de re-
verência que muito se assemelhava à mesura
terrena.
Mas a voz do Naat continuava indiferente e
até um pouco preguiçosa quando respondeu:
— Sinto não poder atender ao seu pedido.
Recebi instruções de levá-los para Naat. As au-
toridades competentes de Árcon estão informa-
das sobre a presença de dois arcônidas a bordo
dessa nave.
— Como fará para levar-nos a Naat?
— Com o raio de tração — respondeu No-
vaal em tom singelo.
Rhodan refletiu apenas por uma fração de
segundo. Depois fez um gesto de concordância.
— Muito bem. Por enquanto não tenho
qualquer objeção. Acredito que aquilo que o se-
58
nhor deve fazer seja necessário. Mas previno-o
de uma coisa: se constatarmos que tem alguma
intenção má, eu o farei desaparecer juntamente
com sua nave.
Não se notou que a ameaça impressionasse
Novaal. Este disse:
— De acordo — e a palestra foi interrompi-
da.
Thora nem esperou que Rhodan tivesse
tempo de virar-se.
— Por que não exigiu que nos levasse imedi-
atamente para Árcon? Por que teve tanta pres-
sa em concordar com suas exigências? Por que
não o ameaçou? Por que...
— Por que faria uma coisa dessas? — inter-
rompeu-a Rhodan laconicamente. — Queria
que arriscasse nossas vidas inutilmente?
— Inutilmente? Quero ir para Árcon, não
para Naat.
— É o que todos queremos. Acontece que,
segundo tudo indica, no momento não desejam
nossa presença em Árcon.
— O que é que eu tenho com isso? — conti-
nuou a esbravejar Thora. — Afinal, sou uma
Khasurn, e nenhum naat preto e ridículo me
dirá o que devo fazer. Chame-o e diga-lhe...
Mas o olhar de Rhodan foi tão insistente que
a fez perder o ânimo em meio à fala. Fitou o
59
homem alto que tinha diante de si com uma ex-
pressão de pavor.
— Por que não quer compreender? — disse
baixinho, em tom enfático e. apaziguador. —
Treze anos terranos se passaram desde que viu
Árcon pela última vez. Não compreende que
muita coisa pode acontecer em treze anos? E,
em relação a Árcon realmente aconteceu. Não
estou interessado em ferir seu orgulho, mas é
bem possível que os Zoltral já não gozem do
mesmo prestígio que desfrutavam no tempo de
sua partida.
Thora baixou os olhos. Por um instante per-
maneceu rígida. Depois de algum tempo Rho-
dan fez um gesto para Crest, e este levou a mu-
lher a uma poltrona.
Rhodan voltou ao seu lugar e, em palavras
lacônicas, informou a tripulação sobre o que
acabara de acontecer. O posto de combate nú-
mero 1 continuou a ser o único que permane-
ceu com sua guarnição. Rhodan recomendou o
máximo de atenção aos homens.
Ao que parecia, Novaal conseguira aplicar o
raio de tração na posição e com a potência
adequada. Os instrumentos indicaram um deslo-
camento a pequena velocidade, sem que o de-
sempenho dos propulsores da Ganymed se ti-
vesse alterado.
60
Rhodan acompanhou a manobra com a
maior atenção. Depois de alguns minutos, con-
venceu-se de que o grande Novaal era um ho-
mem cauteloso. Nada aconteceria à Ganymed
aprisionada pelo raio de tração, se continuasse
a agir com o mesmo cuidado.
No entanto, Rhodan parecia ser o único que
se conformara com a situação. Os oficiais da
sala de comando deixavam perceber pelo rosto
a contrariedade que lhes causava a tática de
apaziguamento de seu comando. O único que
poderia arriscar uma palavra era Reginald Bell.
Com um suspiro disse:
— Quem imaginaria uma coisa destas! So-
nhávamos com uma marcha triunfal e estamos
sendo rebocados que nem um calhambeque.

Demorou algumas horas em acelerar as duas


naves interligadas, a tal ponto que poderiam
contar com a chegada a Naat dentro de mais
dez horas.
Thora saíra da sala de comando e se reco-
lhera ao camarote. Crest voltara depois de
acalmá-la o suficiente para fazê-lo acreditar que
poderia deixá-la só.
Depois da palestra que Rhodan tivera com
61
Novaal, o arcônida parecia mais loquaz e me-
nos abatido que antes. Ao que tudo indicava, a
massa de segredos envolvente do planeta de
Árcon ultrapassara a medida em que apenas
poderia deprimi-lo, passando a despertar seu
interesse científico.
— Quer saber de uma coisa? — perguntou,
dirigindo-se a Rhodan que, sentado diante da
mesa de controle, acompanhava atentamente
as indicações dos instrumentos. — Houve um
detalhe que me chamou a atenção mais que
qualquer outro fato.
Falava em inglês. Rhodan fez uma leitura in-
termediária, anotou-a apressadamente num pa-
pel qualquer e virou-se.
— O que foi?
— Para indicar sua graduação, Novaal usou
a palavra “reekha”, que na língua deles significa
dirigente. No meu tempo esse título não existia.
Quem realmente chefiava uma nave de guerra
era um “has’athor”, isto é, um almirante, ou
simplesmente o “verc’athor”, que vem a ser o
comandante. Um dirigente pode mandar numa
estação de terra, mas numa nave...
Crest sacudiu a cabeça.
— O que se conclui daí? — perguntou Rho-
dan.
Crest abriu as mãos.
62
— Não tenho certeza. Talvez Novaal, que se
chama de dirigente, esteja subordinado a um
oficial de patente mais alta que se encontra a
bordo do couraçado, e que ainda não apareceu.
Rhodan parecia incrédulo.
— Será que a conclusão é esta? Talvez te-
nha havido uma mudança de governo em Ár-
con. Neste caso os novos governantes poderão
dar outros nomes às coisas antigas. Crest assus-
tou-se.
— Pelo amor de Deus! Suas suposições já
vão tão longe? Uma mudança de governo em...
Foi interrompido. O intercomunicador cha-
mou. Uma voz macabra disse:
— Seção positrônica ao comandante. A res-
posta à sua pergunta é sim senhor, e isto com
uma probabilidade de 89,5 por cento.
Rhodan franziu a testa.
— A resposta à minha... — murmurou pen-
sativo. — Ah, sim! Perguntei se as unidades da
frota arcônida eram dirigidas por robôs. Quase
que me esqueço. Obrigado.
Interrompeu-se e olhou para Crest.
— O que acha disso? — perguntou. — O
cérebro positrônico está convencido de que as
naves arcônidas que exterminaram a frota dos
motuneses são robôs.
A simples menção da expressão “cérebro
63
positrônico” fez com que Crest aguçasse o ouvi-
do.
— Robôs? — perguntou espantado. — É
claro que existem naves robotizadas. Sua cons-
trução não é difícil. Acontece que a batalha
contra os motuneses foi travada a quarenta e
seis anos-luz de Árcon. Para dirigir com segu-
rança uma nave teleguiada a essa distância pre-
cisa-se de mecanismos muito mais aperfeiçoa-
dos que aqueles que conheço — sacudiu a cabe-
ça. — Acredito que o cérebro positrônico esteja
enganado.
Rhodan deu de ombros.
— Afinal, ele deixou uma probabilidade de
10,5 por cento para qualquer outro tipo de ex-
plicação — disse com um sorriso significativo.
Levantou-se.
— Vamos fazer um teste — disse com a voz
tão alta que todas as pessoas que se encontra-
vam na sala de comando podiam ouvi-lo. — É a
respeito da nave imperial que nos está rebocan-
do e de seu comandante.
Rostos estupefatos fitaram-no.
— Qual é a potência do raio de tração? —
perguntou Rhodan.
Bell tinha as indicações dos instrumentos di-
ante dos olhos.
— Vinte milhões de megawats.
64
Rhodan voltou ao seu lugar.
— Por um milésimo de segundo imprimire-
mos à nossa nave uma aceleração de aproxima-
damente trinta milhões de megawats em senti-
do oposto — anunciou. — Queremos conhecer
a reação da nave imperial. As reações devem
ser registradas com referência ao tempo. Bem
entendido: não queremos fugir daquele sujeito.
Sentou e atou os cintos em torno dos om-
bros.
— X menos cinco minutos — disse em tom
áspero.
Ninguém sabia qual era a finalidade daquilo.
O nervosismo tomou conta da sala de co-
mando.
Um período de aceleração de um milésimo
de segundo não poderia ser controlado pela
mão de Rhodan. Programou o impulso acelera-
dor mais breve possível e introduziu-o no apare-
lho de pilotagem automática. Depois de decor-
rido o tempo previsto, fez cumprir a programa-
ção.
Na sala de comando reinava um silêncio
mortal. Todos os olhares estavam presos no
rosto duro, mas tranqüilo de Rhodan.
A experiência não trouxe nenhuma revela-
ção. A única coisa que aconteceu foi que as lu-
zes de controle dos propulsores se iluminaram e
65
se apagaram tão depressa que o olho humano
mal conseguia percebê-lo. A pressão causada
pela aceleração foi absorvida pelo neutralizador
e a distância entre as duas naves continuou inal-
terada.
Rhodan desatou os cintos.
— Vejamos o que os instrumentos registra-
ram — ordenou com um nervosismo mal disfar-
çado.
Os grampos dos instrumentos estalaram e
folhas de plástico eram rasgadas por mãos for-
tes, produzindo um ruído arranhento. As folhas
cobertas com as linhas coloridas desenhadas
pelos instrumentos de registro acumularam-se
na mesa de Rhodan.
Rhodan classificou o material.
— Qual é a distância entre as naves? — per-
guntou enquanto executava o trabalho.
— Mil e trezentos metros de um centro de
gravidade a outro.
Rhodan assinalou algumas das folhas, afas-
tando as outras. Crest e Bell estavam de pé
atrás dele, olhando por cima de seu ombro.
— Aqui está o impulso de aceleração que
emitimos — disse Rhodan, apontando para
uma das folhas. — A escala de tempo foi gran-
demente ampliada. Vinte centímetros corres-
pondem a um milésimo de segundo. Quer dizer
66
que esta faixa de vinte centímetros representa
nosso impulso. Vejamos o que fez o raio de tra-
ção. Estava funcionando com uma potência de
vinte milhões de megawats. Neste ponto, que
corresponde a nove microssegundos, ou seja,
nove milionésimos de segundo depois de nosso
impulso, o desempenho cresce repentinamente
para cinqüenta milhões de megawats. Está per-
cebendo alguma coisa? São os vinte milhões de
antes, e mais trinta milhões para compensar os
trinta milhões de nosso impulso. Aqui o desem-
penho do raio de tração volta a baixar ao valor
antigo; mais uma vez nove microssegundos de-
pois do fim de nosso impulso. Compreende-
ram?
Reginald Bell não parecia muito impressio-
nado. Enquanto Crest levou apenas um instante
para interpretar o resultado da experiência, Bell
atirou os lábios para frente e resmungou:
— Compreendi, sim. Mas será que isso tem
alguma importância?
Rhodan lançou-lhe um olhar sério e bateu
na fita de plástico.
— Nove microssegundos correspondem exa-
tamente ao tempo que um raio de luz gastaria
para ir da Ganymed à nave rebocadora e voltar.
O tempo que a outra nave gastou para reagir à
nossa manobra nem pode ser determinado.
67
Dali se deduz que ao menos a direção técnica
da nave arcônida está em mãos dum robô.
Bell respirava com dificuldade e fitou Rho-
dan com os olhos arregalados.
— Quer dizer que esse... esse monstro é
um... — gaguejou.
— Novaal não — retificou Rhodan. — Mas
quem realmente manda a bordo da nave de tra-
ção é um robô.
Deixou Bell de boca aberta e com um sorri-
so dirigiu-se a Crest.
— Talvez a esta hora, o senhor já encare a
opinião do cérebro positrônico com menos ceti-
cismo. Parece que alguém em Árcon se cansou
com seus patrícios decadentes e insolentes e
preferiu tripular as naves com robôs e soldados
recrutados nas colônias.
Novaal nem parecia ter notado o incidente;
ao menos não chamou a Ganymed. Era mais
um indício de que a opinião de Rhodan era cor-
reta.
Nas dez horas seguintes, o comboio de na-
ves aproximou-se do quinto mundo do sistema
de Naat. Na tela de imagem da Ganymed, o
planeta foi se transformando de um ponto num
disco luminoso, e de um disco num globo ama-
relo-sujo, no qual as duas naves pareciam preci-
pitar-se.
68
Rhodan sentia-se dominado por certo nervo-
sismo, que procurou ocultar aos outros, já que
o mesmo lhe parecia infantil e super-romântico.
Ansiava febrilmente pelo momento em que pela
primeira vez pusesse o pé num mundo perten-
cente ao próprio sistema estelar arcônida.

***

Ali se estendia diante dele, o coração do


Grande Império, a organização mais poderosa
da história galáctica conservada na memória
dos seres inteligentes.
Era verdade que tinha diante de si apenas o
quinto planeta, um mundo de poeira habitado
por ciclópicos seres simiescos, que poderiam
ser tudo, menos verdadeiros arcônidas. Mas
Naat distava apenas algumas unidades astronô-
micas de Árcon, o verdadeiro núcleo do cora-
ção do Grande Império.
Rhodan teve a sensação de quem penetra
no átrio de um palácio cercado de mistérios. E
justamente essa sensação lhe parecia represen-
tar um acesso de sentimentalismo e de infantili-
dade. Por isso preferiu guardá-la para si.
Viu que com seus companheiros não acon-
tecia a mesma coisa. Com a testa enrugada e
uma repugnância indisfarçada, contemplava o
69
deserto de poeira que se estendia a seus pés,
fustigada por uma tormenta que levantava nu-
vens de pó vermelho-amarelento.
Mal se distinguiam edifícios. A nave de tra-
ção teve que realizar uma manobra antes que
os primeiros sinais da presença de seres inteli-
gentes surgissem nas telas da Ganymed.
Viu-se uma cidade, amarela e cinzenta como
o resto do planeta. Casas em forma de abóba-
da, algumas com excrescências em forma de
torre na cumiada. Outras sem, enfileiravam-se
em linha reta, abrindo alas para ruas. Eram si-
nais de uma civilização que crescera depressa
demais.
Um imenso campo de pouso cercado pelos
edifícios que costumam abrigar as instalações
técnicas específicas da Astronáutica estendia-se
além dos limites da cidade.
Do outro lado parecia haver áreas verdes,
das quais só se via uma ponta. As cores vivas
de um parque, não afetadas pelo pó e pela tor-
menta, brilharam nas telas. Rhodan acreditava
que era lá que viviam os arcônidas incumbidos
de representar o poderio do Império no Planeta
Naat.
Novaal, ou melhor, o robô que o mesmo tra-
zia a bordo, manobrou com segurança, colo-
cando a Ganymed no campo de pouso. Os apa-
70
relhos ultra-sensíveis da nave não registraram a
menor irregularidade quando o imenso torpedo
apoiou as enormes pernas-coluna de popa fir-
memente no solo do planeta, mantendo o arte-
fato na vertical.
Os neutralizadores venceram facilmente a
terrível gravitação do planeta. Em todos os
compartimentos da nave, os objetos tinham o
mesmo peso da superfície da Terra.
A imensa nave de tração de Novaal perma-
neceu imóvel por algum tempo. De repente
afastou-se e foi pousar a vários quilômetros da
Ganymed.
Rhodan tirou os olhos da tela.
— Chegamos! — disse em tom resignado.
Algumas horas passaram-se sem que aconte-
cesse qualquer coisa. No início Rhodan perma-
necera ininterruptamente diante da tela panorâ-
mica, esperando que alguém se interessasse
pela nave estranha. Os aparelhos de telecomu-
nicação e hipercomunicação foram mantidos
constantemente em recepção.
Mas ninguém apareceu. O tele comunicador
permaneceu em silêncio, com exceção de algu-
mas palestras distantes, que não tinham nada
que ver com a Ganymed.
Depois de algum tempo, Rhodan colocou
sentinelas regulares diante das telas e dos re-
71
ceptores e foi dormir. Antes instruiu seu repre-
sentante a acordá-lo sem falta assim que hou-
vesse alguma novidade.
Rhodan não dormiu muito bem, mas nin-
guém o perturbou. Dali a seis horas, quando se
levantou, encontrou tudo conforme havia deixa-
do. As telas continuavam apagadas e os recep-
tores mudos. Ao que tudo indicava, a pessoa,
que havia colocado a Ganymed no campo espa-
cial praticamente deserto, se esquecera da mes-
ma.
O fato apenas provocou uma ligeira impa-
ciência em Rhodan. Mas havia a bordo da nave
terrana uma pessoa que de forma alguma con-
cordava com a situação atual. Ela levara horas
procurando um responsável diante do qual pu-
desse lamentar-se.
Era Thora. Quando encontrou Rhodan, es-
tava quase chorando.
— Por que não faz nada? — disse com os
olhos suplicantes, engolindo em seco.
— O que podemos fazer? — perguntou
Rhodan em tom delicado.
— Decolar, irradiar uma mensagem, dispa-
rar um tiro de advertência... sei lá.
Rhodan virou-se. Seu assento de piloto esta-
va ocupado pelo coronel Freyt, comandante da
Ganymed.
72
— Procure entrar em contato com a nave de
tração através do tele comunicador — pediu.
Freyt regulou a antena direcional e emitiu
um chamado em freqüência integral. O chama-
do teve de ser repetido cinco vezes antes que a
nave respondesse.
O rosto de Novaal surgiu na tela.
Freyt levantou-se, cedendo o lugar a Rho-
dan.
— Por que ninguém se interessa por nós? —
perguntou Rhodan.
— Não sei — respondeu Novaal. — Acha
que alguém devia interessar-se pelos senhores?
A pergunta provocou risos em Rhodan.
— É claro que sim. Quero saber por que es-
tou parado aqui e quanto tempo durará isso.
— O senhor está parado aqui porque a ad-
ministração arcônida assim ordenou — disse
Novaal.
— Isso não é nenhum motivo — retrucou
Rhodan em tom áspero. — Ao menos para
mim não é.
— Pois chame Sergh! — recomendou Nova-
al.
— Quem é Sergh?
— O administrador de Naat, um arcônida.
— Será que atende pela freqüência integral?
— Se não atender, o azar é seu. Não conhe-
73
ço sua freqüência oficial.
— Muito bem — murmurou Rhodan. —
Obrigado.
Terminou a palestra e voltou-se para Thora.
— Conhece alguém cujo nome seja Sergh?
Thora sacudiu a cabeça. Rhodan modificou
a posição da antena direcional. Orientou-a
aproximadamente na direção da mancha verde
que descobrira pouco antes do pouso junto ao
campo espacial e ampliou a potência de saída,
para não assumir qualquer risco quanto à recep-
ção. Finalmente falou ao microfone:
— O comandante da nave Ganymed deseja
falar com o administrador Sergh.
Repetiu o chamado a intervalos regulares.
Depois de tê-lo feito trinta vezes sem que o
destinatário se dignasse sequer a dar um pio,
gritou furioso:
— O comandante da nave Ganymed deseja
falar com o administrador Sergh. Se esse idiota
não responder imediatamente, a Ganymed pre-
ferirá abandonar este planeta para não esperar
pelos arcônidas, que são uns chatos.

***

Ao que tudo indicava, o administrador esta-


va muito ocupado, pois nem mesmo a pesada
74
ofensa que acabara de lhe ser atirada conseguiu
arrancar-lhe qualquer resposta.
Rhodan desligou o tele comunicador e virou-
se para seus oficiais.
— Prepare a decolagem, Freyt. Informe a
tripulação. Introduzirei o programa.
A nave adquiriu vida. Os tripulantes corre-
ram para seus lugares. Dali a dez minutos a
Ganymed estava pronta para decolar, e naquele
mesmo instante o programa de decolagem de
Rhodan estava pronto.
A tentativa infrutífera de entrar em contato
com o administrador e o tratamento insolente
dispensado à Ganymed, que teve que esperar
horas a fio num campo em que nem pretendia
pousar, provocaram a ira de Rhodan. Naquele
momento agia por impulso, sem preocupar-se
com as conseqüências da tentativa de decolar,
ao que tudo indicava contra a vontade dos ar-
cônidas.
Os canhões estavam guarnecidos. Enquanto
o porto espacial continuasse vazio como estava,
a Ganymed teria boas chances de deixar para
trás o planeta inóspito.
— Atenção! Decolar! — gritou Rhodan.
Luzes de controle acenderam-se. O zumbido
dos reatores foi ouvido em todos os cantos da
nave. Um instrumento de alarma começou a
75
apitar. Rhodan aumentou o suprimento de
energia dos propulsores. Outro instrumento de
alarma fez-se ouvir. O ruído dos reatores modi-
ficou-se, crescendo num chiado agudo e furio-
so, cessou por uma fração de segundo e retor-
nou sob a forma dum uivado quando Rhodan
regulou o mecanismo para a potência máxima.
Rhodan deixou os reatores em funciona-
mento por um minuto. Por um minuto uivaram
e rugiram, como se tivessem que movimentar
um mundo.
A Ganymed não saiu do lugar.
Com uma pancada furiosa Rhodan colocou
as chaves de controle na posição zero.
— Terminou! — disse com um grito. — Não
haverá nenhuma decolagem. Quero os dados
sobre o campo de sucção que nos reteve.
O oficial do plantão de decolagem respon-
deu prontamente:
— Potência variável. A cada momento exce-
de em cinqüenta por cento a força de empuxo
dos nossos propulsores.
Rhodan deixou a cabeça pender para a fren-
te.
“Que idiota que eu sou”, pensou desanima-
do. “Os arcônidas não o trouxeram para cá na
intenção de deixá-lo ir embora dentro de pou-
cas horas. Como pôde acreditar que não dispu-
76
nham de nenhum meio de segurá-lo? Seguram
você e toda a nave”.
Levantou a cabeça e fitou a tela. O campo
de pouso estendido em torno da Ganymed era
plano e não apresentava quaisquer contornos
nítidos. Todavia, devia haver no subsolo do
campo uma série de poderosos aparelhos capa-
zes de produzir e projetar campos de sucção de
potência inconcebível.
E agora?
Devia usar as armas? Bombardear o campo
de pouso até destruir os projetores?
Não, nada disso. Ainda havia outros recur-
sos.
O desânimo de Rhodan cedeu na medida
em que um novo plano surgiu em sua mente e
assumiu contornos definidos.
A noite desceu sobre Naat.
Anunciou sua chegada por meio de uma fu-
riosa tempestade com ventos até quatrocentos
quilômetros por hora, que uivavam terrivelmen-
te nos microfones externos da nave. A tempes-
tade foi acompanhada de quedas de temperatu-
ra até oitenta graus centígrados abaixo de zero.
A escuridão da noite só foi completa por
causa da nuvem impenetrável de poeira que a
tempestade tangia como se fossem densas nu-
vens de neblina. Segundo acreditava Rhodan,
77
em outras circunstâncias as noites naquela área
da Galáxia seriam luminosas, como uma noite
de verão da Suécia, face à enorme profusão de
estrelas.
O projeto de Rhodan fora cuidadosamente
preparado. Crest e Thora o haviam informado
objetivamente sobre a disposição geral da cida-
de de Naat e as características da área coberta
de parques em que viviam os raros arcônidas
encontráveis no planeta.
O coronel Freyt foi informado sobre a mis-
são que lhe cabia. Sabia que por algumas ho-
ras, talvez mesmo por alguns dias, teria que car-
regar todo o peso da responsabilidade pelo
bem-estar dos ocupantes da nave. Além disso,
era responsável pelas três pessoas que se dispu-
nham a deixar a nave.
Eram Perry Rhodan, Reginald Bell e Tako
Kakuta.
Rhodan não quis que essa caminhada fosse
executada por outra pessoa: apenas ele mesmo
e aqueles que lhe eram mais chegados. Era a
caminhada que o levaria a Sergh, o administra-
dor arcônida.
O plano de Rhodan provocara discussões vi-
olentas. Thora e Crest foram de opinião de que
sua execução representaria um perigo de vida.
Ao que tudo indicava para os arcônidas, a
78
Ganymed e seus ocupantes eram prisioneiros.
Teriam algumas objeções, os prisioneiros resol-
vessem agir por conta própria, mesmo que fos-
se apenas para fazer uma visita ao carcereiro.
Era esta a opinião dos dois arcônidas. Rho-
dan reconheceu que provavelmente estavam
com a razão, mas explicou que assim mesmo
pretendia empreender a caminhada. E, em Re-
ginald Bell, encontrou uma pessoa que apoiou
seu plano em cheio.
Tako Kakuta, o japonesinho de rosto infan-
til, concordara com um sorriso de confiança e
não participara mais das discussões.
Três horas após o escurecer Rhodan e seus
companheiros estavam prontos para partir.
Usavam trajes transportadores arcônidas, verda-
deiros milagres técnicos que envolviam seu por-
tador, como uma vestimenta. Traziam um po-
tente microrreator que gerava um campo gravi-
tacional próprio, um campo de deflexão que
desviava os raios luminosos e um campo prote-
tor que absorvia os impactos de projéteis e ar-
mas de radiação.
Saíram pela comporta de popa. Por motivos
facilmente compreensíveis, preferiram não abrir
a larga escada de enrolar para chegar ao solo
pelo caminho mais confortável. Confiaram seu
peso, que a força gravitacional do planeta au-
79
mentara pelo fator 2.8, aos campos gravitacio-
nais artificiais de seus trajes.
A capacidade dos neutralizadores era limita-
da. Os trajes eram capazes de neutralizar uma
gravitação que chegava a 3 G. A solicitação
energética que o planeta Naat representaria
para os micro geradores representava o máxi-
mo de que eram capazes.
Rhodan calculara isso. Teriam que desistir
da forma de locomoção confortável e segura
que era o vôo, ainda mais que, sempre que ha-
via sobrecarga de um dos campos, o mesmo re-
corria às reservas energéticas do outro. Se, por
exemplo, os tiros absorvidos pelo campo defen-
sivo excediam a medida de sua própria capaci-
dade, o mesmo recorria à energia destinada ao
campo de deflexão e ao de gravitação artificial.
Uma pessoa, que fosse alvejada enquanto esti-
vesse voando, poderia cair subitamente ou tor-
nar-se visível.
Mas houve uma coisa enfatizada por Rho-
dan com mais força que a ordem de percorrer a
pé os trinta quilômetros que separavam a Gany-
med da sede da administração:
— Até agora estávamos acostumados a lidar
com seres que consideravam nossos trajes
transportadores uma arma milagrosa. Nenhum
dos inimigos com que nos defrontamos conhe-
80
cia coisa igual, com exceção dos saltadores.
“Acontece que são aparelhos arcônidas, e é
com os arcônidas que estamos lidando. Para
eles, os trajes transportadores de sua própria fa-
bricação não representam nenhum milagre.
Não acreditem que a invisibilidade ou o campo
defensivo os livrará de todo e qualquer perigo.”
Por isso mesmo, Rhodan acreditava que o
primeiro momento crítico de sua carreira pode-
ria surgir no instante em que o grupo se afastas-
se da Ganymed, penetrando no campo de visão
dos arcônidas.
Afastaram-se uns trinta metros da nave, se-
gurando as armas na curva do cotovelo, prontas
para disparar, e esperaram.
Os microfones externos dos capacetes regis-
traram o uivo da tempestade e o crepitar do pó.
O ruído deixou-os nervoso, pois sufocava qual-
quer outro. Mas Rhodan mandou que ficassem
parados durante dez minutos, para acostuma-
rem-se ao mesmo.
Nada aconteceu nesses dez minutos. Nin-
guém os havia observado, ou então não julga-
vam necessário barrar-lhes o caminho.
Em algum lugar o trajeto seria barrado. Rho-
dan não tinha a menor dúvida.
Rhodan comunicou a Freyt:
— Fase B.
81
Era o código convencional. A fase A estaria
concluída no momento em que se constatasse
que nada se opunha ao início da marcha do
grupo. O código e a ordem generalizada de ex-
primir-se com o maior laconismo inspirava-se
numa reflexão. Os arcônidas, e também os na-
ats, poderiam captar as mensagens de teleco-
municação, desde que descobrissem a freqüên-
cia em que funcionavam os aparelhos terrenos.
Mas não conheciam a língua usada por Rho-
dan, e mesmo os instrumentos mais eficientes
só seriam capazes de reconstituir a língua ingle-
sa com base nos fragmentos captados quando
dispusessem dum volume suficiente de dados
léxicos. Isso seria impedido através da lingua-
gem codificada e da redução das mensagens ao
mínimo.
Tudo isso não atingia as comunicações entre
os três homens arrojados. As mesmas eram re-
alizadas por meio de emissores e receptores
eletromagnéticos convencionais, que ficariam
regulados para um alcance mínimo, a não ser
que surgisse uma situação toda especial.
Rhodan conduziu o grupo através do amplo
campo de pouso. Para orientar sua conduta,
dispunha apenas dos dados armazenados em
sua memória durante o treinamento hipnótico,
segundo os quais os arcônidas, que exercem
82
funções administrativas em mundos coloniais,
costumam levar a vida bastante despreocupa-
dos. Viviam segregados da população nativa,
dentro de parques artificiais dotados de todos os
requisitos imagináveis. Em meio a essas áreas
verdes, erguiam-se as criações da arquitetura ar-
cônida.
Rhodan sabia que na periferia dos parques
havia um sistema eletrônico de vigilância que
registrava a penetração de qualquer pessoa
numa aparelhagem central. Seria necessário en-
ganar ou contornar esse sistema de vigilância.
Na opinião de Rhodan, isso não seria muito di-
fícil.
O que mais o preocupava eram as instala-
ções de segurança das casas. Se é que pudesse
chamar de casas essas construções que de fora
se pareciam com um funil equilibrado sobre a
ponta. Era de imaginar que o dispositivo de se-
gurança da casa ocupada pelo administrador
devia ser de uma eficiência extraordinária. Pro-
vavelmente só Tako Kakuta, o teleportador,
conseguiria penetrar na mesma sem enfrentar
qualquer obstáculo. Justamente por isso, Rho-
dan resolvera levá-lo.
Depois de duas horas e meia de marcha,
Rhodan examinou o terreno pelo dispositivo de
pontaria infravermelho de sua arma. Era o úni-
83
co aparelho de busca que haviam levado pois,
de outra forma, sua mobilidade ficaria prejudi-
cada. Viu as construções redondas e achatadas
que assinalavam a periferia do campo de pouso
e atrás delas a muralha robusta de árvores e ar-
bustos que limitava a zona residencial dos ar-
cônidas.
As construções, ao que tudo indicava, não
estavam sendo vigiadas, e não havia ninguém
no interior delas. Reforçavam a impressão im-
posta a qualquer pessoa que visse o campo de
pouso: o tempo em que o enorme porto espaci-
al fora construído para preencher as grandes fi-
nalidades já pertencia ao passado.
O grupo passou entre duas das construções
redondas sem encontrar o menor obstáculo e
deteve-se a uns trinta metros do parque.
— Fase B, segunda parte — disse Rhodan.
A título de resposta, o coronel Freyt trans-
mitiu o sinal convencionado: três apitos, dois
longos e um breve.
Rhodan dirigiu-se ao japonês.
— Tako, está na sua hora.
— Sim senhor.
A vegetação alta e robusta quebrava a força
da tempestade. Rhodan viu que o japonês fitava
a folhagem como se procurasse alguma coisa.
De repente seu corpo dissolveu-se no nada.
84
Tako “saltara”. O dom parapsicológico da
teleportação permitira-lhe ultrapassar sem qual-
quer problema o limite do sistema de vigilância
arcônida. Se não tivesse acontecido algum im-
previsto, a essa hora devia encontrar-se no inte-
rior do parque.
Rhodan esperou três minutos. No fim desse
prazo, Tako Kakuta comunicou-se através do
rádio de capacete, por meio dum pigarro quase
imperceptível. Rhodan enviou nova mensagem
ao coronel Freyt:
— Fase C imediatamente.
O japonês caminhou a passos largos do lu-
gar em que fora parar depois do salto até o lo-
cal que Rhodan e Bell o aguardavam. Vinte mi-
nutos depois de ter aparecido surgiu entre a fo-
lhagem. Rhodan foi ao seu encontro, até che-
gar perto da linha em que costumava funcionar
o sistema de vigilância.
Tako Kakuta aproximou-se dele e, no mo-
mento em que quase chegou a tocá-lo, execu-
tou outro salto. Rhodan deu um passo rápido,
cruzando a linha crítica. Tinha certeza de que o
sistema de vigilância, que continuaria a registrar
a presença de uma única pessoa no seu campo
de atividade, não suspeitaria de nada.
O japonês, que saiu do interior do parque,
evidentemente não representava nada de anor-
85
mal para a vigilância. O instrumento registrou
sua presença quando se aproximou do limite,
mas não expediu qualquer aviso. E agora que
Tako executou outro salto para o interior do
parque, não saberia distinguir entre Rhodan e o
japonês. Rhodan desejava que o instrumento
não se preocuparia pelo fato de que uma pes-
soa que se deu ao trabalho de atravessar meta-
de do parque para chegar ao limite da zona
crítica subitamente teria mudado de idéia, vol-
tando ao cruzar a mesma.
Uma vez que ainda seria necessário propor-
cionar a Bell a oportunidade de penetrar na
área do parque, Rhodan esforçou-se para dei-
xar o limite para trás o mais depressa possível.
Caminhou cerca de um quilômetro em linha
reta, em sentido perpendicular ao limite do par-
que. Tinha certeza de que os sensores do siste-
ma de vigilância não chegavam até lá.
Enquanto isso, Tako Kakuta voltou a pôr-se
a caminho da fronteira. Vindo de uma área que
o sistema de vigilância não poderia considerar
crítico, repetiu a manobra, desaparecendo no
mesmo instante em que Reginald Bell transpôs
a linha fronteiriça.
Para o sistema de vigilância tudo continuava
como antes: era um único homem que se en-
contrava no interior de seu campo de atividade.
86
Reginald Bell seguiu a pista de Rhodan, que
se desenhava nitidamente em meio ao capim.
Por algum tempo sentiu-se perturbado por algu-
ma coisa: era um ruído cuja origem não conse-
guia identificar.
Levou algum tempo para descobrir que não
era nenhum ruído, mas a ausência dum ruído.
A tempestade acabara.
Bell não acreditava que realmente tivesse
acabado. Os arcônidas deviam possuir alguma
instalação que isolava suas áreas residenciais
das condições climáticas adversas do planeta
em que se haviam instalado.
Bell sentiu certa admiração pela habilidade
dos arcônidas em satisfazer suas exigências de
conforto pessoal até o extremo limite.
Levou quinze minutos para encontrar Rho-
dan. Estava sentado na grama, ao pé de uma
árvore gigantesca e estranha, olhando através
do dispositivo de pontaria ótica de sua arma.
Por pouco, Bell não tropeça por cima dele. Os
arcônidas não haviam feito nada para afastar a
escuridão reinante no parque.
— Que quadro fantástico! — murmurou
Rhodan.
Bell olhou para trás. Tako ainda não havia
chegado. Deitou no solo, colocou o pesado de-
sintegrador automático na posição mais cômo-
87
da que as circunstâncias permitiam e ligou o
dispositivo ótico infravermelho.
O quadro que se lhe ofereceu não retratava
as cores genuínas. O raio refletido desenhava-
se num branco ofuscante enquanto o resto do
campo permanecia negro. Com isso, a visão
tornou-se ainda mais estranha.
Bell não ignorava o que se ofereceria à sua
vista, pois possuía o saber arcônida. Sabia que
as casas dos arcônidas eram construídas sob a
forma de enormes funis, porque sua arquitetu-
ra, fortemente impregnada de psicologia, consi-
derava esse formato como aquele que proporci-
onava ao morador o máximo de individualidade
e privacidade.
Mas saber uma coisa e vê-la, são duas coisas
completamente diferentes. Bell conteve a respi-
ração diante da visão fabulosa e fantástica. Viu,
desenhadas num branco-pálido e brilhante, os
contornos estranhos das árvores e dos arbustos
que cresciam num chão coberto de grama. De
espaço a espaço, como que espalhadas ao aca-
so, as construções afuniladas banhavam-se em
luz. O tamanho das mesmas variava como o
das pedras espalhadas pela areia. Havia casas
pequenas, em forma de pavilhão que ofereciam
um quadro gracioso, semi-ocultas pelas árvores.
Eram funis residenciais que deviam ter de dez a
88
trinta metros de altura, e edifícios gigantescos
cujo ponto mais alto devia distar mais de cem
metros do solo.
Apoiados sobre cabos relativamente finos,
às vezes bastante compridos, os funis eram ver-
dadeiros milagres da estática e resistência de
materiais. E constituíam mais uma indicação de
que a civilização arcônida passara, especialmen-
te no terreno privado, a não se conformar com
aquilo que a tecnologia oferecia, preferindo
moldar esta por seus próprios desejos.
De repente o japonês surgiu diante de Rho-
dan e Bell.
— Está pronto? — perguntou Rhodan.
— Sim senhor — respondeu Tako. — Exa-
minei a maior parte dos edifícios de perto. Se,
conforme supomos, Sergh ocupa o maior deles,
devemos seguir pela direita.
— Qual é a distância?
— Cerca de seis quilômetros.
— Que maldição! — praguejou Bell. — An-
dar seis quilômetros na bandeja do diabo!
— Façamos votos de que os arcônidas este-
jam dormindo — tranqüilizou-o Rhodan. — O
sistema de vigilância não reagiu, e assim estão
despreocupados. A situação só se tornará críti-
ca quando penetrarmos na casa de Sergh.

89
4

No palácio de Sergh, se é que podia ser cha-


mado assim, era capaz de provocar um acesso
de agorafobia numa pessoa que se mantivesse
nas proximidades do cabo do funil e levantasse
os olhos, contemplando as paredes inclinadas
para fora.
Era o único edifício cujas paredes brilhavam
sob uma luz opalescente, que já a uma distância
de três quilômetros indicara o caminho ao gru-
po. O funil de Sergh era um dos poucos de cu-
jas paredes inclinadas saíam, de parte em parte,
vias descaídas apoiadas sobre a coluna que,
atravessando o parque, levavam a outros edifí-
cios ou à cidade de Naatral.
Pelos cálculos de Rhodan, o funil devia ter
cerca de cento e oitenta metros de altura. Por
certo, não abrigava apenas a residência de
Sergh, mas algumas repartições importantes da
administração.
A marcha de Rhodan correu sem incidentes.
Vez por outra os microfones externos dos capa-
cetes transmitiram ruídos que, segundo parecia,
provinham de veículos arcônidas. Mas os intru-
sos não chegaram a ver nenhum desses veícu-
los, muito menos se encontraram com qualquer
arcônida.
90
Da Ganymed não veio nenhuma novidade.
Além das vias elevadas que ligavam o funil
de Sergh com o mundo exterior, o mesmo ain-
da possuía a entrada usual nesse tipo de arqui-
tetura, situada no cabo do funil. Era um portal
largo, cuja soleira ficava a dois metros acima do
solo.
Provavelmente teria que ser atingido por
meio da fita transportadora dobrável.
Por um instante, Rhodan brincou com a
idéia de se aproximar do portal até que o aviso
automático reagisse, e esperar que o dono da
casa fosse bastante ingênuo para descer a fita e
abrir a porta.
Mas logo abandonou a idéia.
“Nada de brincadeiras”, pensou.
Encontravam-se a trinta metros da parede
externa do cabo. Rhodan sabia que o aviso au-
tomático só reagiria quando o visitante se apro-
ximasse a uma distância de doze metros.
Durante quinze minutos mantiveram-se em
silêncio, observando a gigantesca construção.
Mas não havia nenhum indício que pudesse re-
velar se os homens, que se encontravam no in-
terior do prédio, estavam acordados ou não. As
paredes do funil afastavam o mundo exterior e
faziam com que nada do que acontecesse no
seu interior pudesse ser percebido do lado de
91
fora.
— O que estamos esperando? — perguntou
Bell impaciente. — Não temos tempo a perder.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Tako!
— Estou pronto.
— Preste atenção, Tako. Dar-lhe-ei mais
uma vez um resumo das indicações mais impor-
tantes. O funil é oco. As paredes internas são
dispostas em forma de terraço. Nos terraços in-
feriores, geralmente há jardins. Acima deles fi-
cam as peças usadas para residência e escritó-
rio. Algumas se abrem para o lado de dentro,
outras são isoladas por meio de paredes. Não
entre ali com a idéia de que verá uma residência
de feitio terreno. O funil forma um mundo por
si. Por dentro, provavelmente parece maior que
de fora. O mais importante de tudo: só faça uso
de sua arma quando sua vida estiver em jogo e
o senhor não puder colocar-se em segurança
por meio de um salto. Entendido?
— Entendido.
— Muito bem. Aguardo seu regresso dentro
de quinze minutos, para apresentar o primeiro
relatório.
— Sim senhor.
Quando a última sílaba ainda soava nos ou-
92
vidos dos companheiros, Tako já havia desapa-
recido.
A primeira impressão que se apossou de
Tako Kakuta no interior do funil foi a de que
uma força turbulenta o impelia para cima. Isto
o fez bater, com um ruído surdo, contra um dos
pavimentos de terraço presos à parede.
Um tanto confuso, deu-se conta de que os
arcônidas haviam providenciado para que a gra-
vitação no interior de suas residências corres-
pondesse à de Árcon. Portanto, equivalia apro-
ximadamente à da Terra. Acontece que o traje
transportador estava regulado para a gravitação
de 2,8 g, reinante do lado de fora.
Corrigiu o erro e desceu suavemente sobre
um canteiro de flores macio.
Rastejou para trás de um arbusto e exami-
nou os arredores.
O interior do funil estava profusamente ilu-
minado. Tako aterrizara no pavimento inferior,
isto é, no lugar em que terminava o cabo do fu-
nil. O primeiro pavimento formava, por assim
dizer, a base dos pavimentos em forma de ter-
raço situados mais acima. Era circular e tinha o
diâmetro do cabo do funil, fechando-o como se
fosse uma tampa.
O círculo de aproximadamente trinta metros
de diâmetro era ocupado por um jardim. Tako
93
abriu o capacete, para completar as impressões
que estava recebendo. Sentiu-se atordoado por
uma miríade de perfumes diferentes, que o fazi-
am prender a respiração, provocando ânsias de
espirrar.
Estreitas veredas cortavam a profusão de flo-
res, árvores e arbustos. Tako ouviu o ruído de
água. Provavelmente haviam construído um ria-
cho artificial.
Depois de se ter saciado nas belezas do jar-
dim, Tako dirigiu o olhar para cima. Imponen-
tes e graciosas, as paredes do funil abriam-se;
atingiam uma altura em que os olhos mal podi-
am segui-las face à iluminação sempre igual,
perdendo-se na periferia de um círculo negro.
Era o céu! O céu noturno de Naat. De certa
forma, o japonês sentiu-se tranqüilizado ao no-
tar que mesmo em meio a esse esplendor artifi-
cial não estava totalmente isolado do ambiente
natural. A visão do céu, mesmo reduzido a uma
mancha negra, espantou parte da depressão
que Tako sentira no início.
Examinou cuidadosamente a disposição dos
terraços. Pelos seus cálculos, a altura de cada
um deles devia ser de quatro ou cinco metros.
Dessa forma o funil estaria dividido em quaren-
ta ou cinqüenta terraços superpostos.
O aspecto dos diversos pavimentos era ex-
94
tremamente variável. Nichos abertos alterna-
vam numa seqüência variável com paredes de
vidro ou janelas. Vez por outra, havia platafor-
mas que sobressaíam da estrutura dos terraços.
Eram lugares destinados à apreciação do pano-
rama ou ao pouso de veículos aéreos.
O parque em que Tako pousara também co-
bria os três pavimentos seguintes, em parte sob
a forma de jardins suspensos, fazendo com que
os contornos dos terraços ficassem ocultos pela
vegetação profusa que descia dos mesmos. Em
alguns lugares, estranhas construções de plásti-
co sobressaíam entre o verde. Tako não teve a
menor dúvida de que se tratava de pedaços de
pontes pendurados em meio ao verde, para que
os arcônidas tivessem oportunidade de passear
ao ar livre.
Procurou descobrir escadas ou corredores
verticais que ligassem os terraços, mas não en-
controu nada. Provavelmente teriam sido insta-
lados nos fundos das salas, junto à parede ex-
terna do funil, portanto não podiam ser vistos
do lugar em que Tako se encontrava.
O japonês olhou o relógio. Gastara pouco
menos de dez minutos para orientar-se. Já sa-
bia como era o interior do funil, ao menos em
suas linhas gerais. Mas ainda não havia visto
nenhum arcônida.
95
Estariam todos dormindo?
Tako arriscou mais um salto reduzido, que o
deixou no corredor circular do quinto terraço,
contado de baixo. O parque e os jardins sus-
pensos ficaram sob ele. Lá de cima viu o riacho
e o pequeno lago cuja água provocava o ruído
escutado lá embaixo.
Encontrava-se num trecho do corredor aber-
to para o interior do funil, onde apenas estava
protegido por um corrimão, talvez de um metro
de altura. À direita e à esquerda abriam-se pare-
des altas, que se ligavam ao terraço imediata-
mente superior. E o corredor aberto estava se-
parado das peças contíguas por meio de portas.
Tako voltou-se para a direita e ficou satisfei-
to ao notar que a porta, que tinha diante de si,
se abriu quando se encontrava a três passos da
mesma, conforme era usual entre os arcônidas.
A sala que ficava atrás da porta estava ilumi-
nada. Junto à parede havia algumas mesas, e as
chaves e escalas nelas existentes indicavam que
se tratava de emissores de telecomunicação. Al-
gumas poltronas articuladas de modelo arcônida
pareciam perdidas no meio da sala. A parede
oposta estava coberta por várias telas. Ainda
junto da parede oposta às janelas, havia uma
abertura circular no teto. Tako caminhou rapi-
damente em direção à parede, colocou-se em-
96
baixo da abertura e, conforme esperava, sentiu
imediatamente a tração suave do campo de an-
tigravidade. Bastaria que se empurrasse ligeira-
mente para que o campo o conduzisse rápida e
seguramente ao pavimento superior. Era um
elevador antigravitacional, do mesmo modelo
usado nas naves espaciais terranas.
Um olhar para o relógio o fez perceber que
estava na hora de voltar. Quatorze minutos já
se haviam passado desde o momento em que
deixara Rhodan e Bell.
Fechando os olhos, memorizou o lugar em
que os dois o aguardavam.
Saltou.

***

Sergh de Teffron, da estirpe dos Hugral, ra-


dicado em Naat pela decisão sábia do Impera-
dor, geralmente não fazia a menor idéia de qual
era a fase do dia fora das paredes de seu funil.
Como arcônida e, mais que isso, membro de
uma família muito conceituada, teria uma im-
pressão de ridículo ou de repugnância, confor-
me sua disposição momentânea, se alguém ma-
nifestasse a idéia de que ele, Sergh, deveria re-
gular seu dia segundo a divisão arbitrária entre
as horas de luz e escuridão, criada pela nature-
97
za.
Sergh orientava-se pelos seus desejos e ne-
cessidades. Não tinha a menor idéia da situação
vantajosa que ocupava em comparação com os
naats, e mesmo em comparação com muitos
arcônidas que ocupavam posições inferiores.
Era detentor de um cargo cujas atribuições
eram exercidas por uma série de máquinas mui-
to eficientes e um grande contingente de subor-
dinados. Morava num funil que mesmo em Ár-
con raras vezes encontrava um igual. E isso,
não apenas quanto ao tamanho, mas também
quanto às instalações da máquina de morar.
Quanto ao cargo que ocupava, nada tinha que
fazer senão estar presente. De resto, gastava o
tempo seguindo suas inclinações.
Aliás, o verbo seguir pode levar a erro. Seria
preferível se disséssemos que as esperava deita-
do. A ocupação principal dos arcônidas daque-
les tempos, que era o jogo simultâneo, era
exercida nessa posição. Não havia outra postu-
ra que melhor correspondesse à decadência e à
apatia daqueles seres.
Contudo, Sergh costumava passar algumas
horas do dia nos jardins maravilhosos dos pavi-
mentos inferiores. Deitado na grama ou balan-
çando-se na parte suspensa, costumava conver-
sar com um dos seus subordinados ou com al-
98
gum hóspede.
Foi o que aconteceu naquele dia. Desta vez
o parceiro escolhido fora Ghorn, seu jovem re-
presentante. Este não se sentiu nada feliz em
ter que abandonar a cômoda posição de repou-
so e ver-se obrigado a afastar-se da tela fictícia,
onde surgiram as figuras geométricas abstratas
criadas por seus pensamentos. Figuras que des-
lizavam, dançavam, e iam-se colorindo de acor-
do com as regras do jogo simultâneo. Mas
Sergh era o único homem que realmente man-
dava naquele palácio, e apesar de toda apatia
de Ghorn, este não se atreveria a deixar de
cumprir qualquer de seus desejos.
Foram descendo juntos por uma série de po-
ços antigravitacionais, até atingir o pavimento
inferior. Deitaram na beira da lagoa em que de-
sembocava o riacho. Sergh perguntou:
— Por que será que no jogo simultâneo é
fácil produzir uma figura azul de treze faces,
mas nunca uma figura vermelha desse tipo?
Ghorn respirou aliviado. Receava que o
tema fosse mais enfadonho.
— Naturalmente não sei, Senhor — respon-
deu prontamente. — Mas suponho que nosso
cérebro não é capaz de formular o pensamento
correspondente. Uma figura vermelha de treze
faces corresponde a uma configuração de pen-
99
samento que se torna impossível num cérebro
arcônida.
Sergh entusiasmou-se.
— Interessante, muito interessante — excla-
mou. — Sou praticamente da mesma opinião.
Estou convicto — ergueu-se alguns centímetros
sobre os braços e olhou para um canteiro co-
berto de flores fareh de caule longo — de que
poderíamos ganhar uma série de aspectos no-
vos, se pudéssemos convencer certas inteligên-
cias estranhas a participar dum jogo simultâ-
neo. Ou então — voltou a erguer-se — devía-
mos obrigar seres estranhos a colocar-se à nos-
sa disposição para os jogos simultâneos. Os na-
ats, por exemplo...
Seguiu suas idéias. Depois de deixar passar
o tempo exigido pelo respeito, Ghorn obser-
vou:
— Também se poderia cogitar da possibili-
dade de condicionar seres não inteligentes de
tal forma que seus impulsos cerebrais primitivos
possam ser captados pelo simulador.
No seu íntimo, Sergh felicitou-se pela habili-
dade que demonstrara em escolher Ghorn
como companheiro. Sem dúvida, este estava no
seu dia feliz. As idéias que oferecia eram fasci-
nantes.
“Que profusão estupenda de cores e formas
100
surgiria”, pensou Sergh num instante, “se as
idéias que naquele instante passavam pelo cére-
bro de Ghorn pudessem ser transmitidas ao si-
mulador.”
— Parece que a idéia não é má — respon-
deu Sergh. — Resta saber se é praticável. Real-
mente, seria impressionante...
Era a única demonstração de entusiasmo
que estava disposto a oferecer.
Ghorn pensou:
“Você vai descobrir, sua raposa velha. Se
der certo, ninguém poderá duvidar de que a
idéia surgiu em seu cérebro.”
— O modelo do instinto de um peixe-cobra
vnatólico seria uma sensação na tela... — mur-
murou Sergh.
Ghorn, que estava disposto a revelar suas
melhores idéias, obtemperou:
— Quanto a mim, seria muito inteligente, ou
talvez mais, conforme se queira. Estaria interes-
sado em ver projetada na tela a atividade nervo-
sa de uma flor. Que quadro maravilhoso não
deve surgir se o jogo das células sensoriais de
um ser tão harmonioso como uma flor for cap-
tado e registrado pelo simulador.
Se Ghorn esperava que a sugestão provo-
casse um entusiasmo ainda maior em Sergh,
logo se veria decepcionado. Pela terceira vez,
101
Sergh ergueu-se sobre os braços, olhou para o
canteiro e, com uma rispidez surpreendente na
voz, afirmou:
— Alguém pisou no meu canteiro de fareh.
Se soubesse quem fez isso, eu o obrigaria a tra-
var uma luta livre com um naat.
Ghorn estremeceu. Uma luta livre com um
naat significava a morte, se o outro parceiro
fosse um arcônida que por qualquer crime tives-
se perdido sua imunidade. Para os naats, a luta
livre era um esporte sagrado. Apesar de todas
as tentativas civilizatórias dos arcônidas, há mui-
to abandonadas, não puderam alterar o fato de
que os naats matavam invariavelmente o luta-
dor derrotado.
Ghorn levantou-se para dar uma olhada no
canteiro. Caminhou até lá, enquanto Sergh,
apoiado nos cotovelos, o seguia com os olhos
curiosos.
Realmente o canteiro havia sido devastado.
Parecia que alguém caíra nele de uma boa altu-
ra e de costas. Ghorn compreendeu a indigna-
ção de Sergh, ainda mais que as flores fareh se
contavam entre as plantas ornamentais mais ca-
ras. Vinham da superfície de um planeta panta-
noso envenenado que ficava a mais de dez mil
anos-luz, e os homens que viajavam até lá espe-
cialmente para trazer as flores tão cobiçadas
102
exigiam uma retribuição adequada.Ghorn foi ao
lugar em que os pés do desconhecido tocaram
o chão no momento da queda. Ali os arbustos
impediam que visse Sergh. Apenas ouviu o
murmúrio do riacho que desembocava na lagoa.
Viu marcas de pé no chão macio do cantei-
ro, e o formato das mesmas era tão estranho
que Ghorn sentiu um nervosismo que há anos
não conhecia mais.
A marca de pé media cerca de um palmo e
meio. Era muito menos que o comprimento de
um pé arcônida. Além de ser muito curta, a
grande largura fazia a marca muito feia.
“Talvez seja por causa dos sapatos que o ho-
mem usava”, pensou Ghorn.
Mas o argumento contrário logo surgiu em
sua mente:
“Quem usaria sapatos tão feios?”
“Nenhum arcônida o faria”, concluiu Ghorn.
E a entrada no funil era proibida a qualquer
ser que não fosse um arcônida. Logo, alguém
penetrara ali sem permissão.
Os aparelhos de aviso sempre funcionam. E
não há nenhuma possibilidade de destruí-los do
lado de fora, a não ser que se destrua toda a
casa.
Desenvolvendo uma velocidade que assustou
Sergh, Ghorn correu em volta dos arbustos e
103
informou o administrador sobre a descoberta
que acabara de fazer. Sergh levantou-se, ge-
mendo e resmungando. A passos lentos, con-
forme lhe convinha, foi até o canteiro para exa-
minar o prejuízo e as marcas de pé.
Estas pareciam diverti-lo. Seguiu-as até o lu-
gar, não muito distante do canteiro estragado,
em que desapareceram de repente. Voltando-
se, disse com um sorriso malicioso:
— Um estranho penetrou em nossa casa. E
é um estranho inteligente, meu caro. Será um
prazer observá-lo durante sua atividade. É uma
pena que parece ter um corpo arcônida ou ao
menos arconóide. Como já disse, preferiria um
peixe-cobra vnatólico. Mas é claro que não se
pode exigir de um animal desses que possua in-
teligência e ainda por cima seja esperto. Venha
comigo, meu caro. Vejamos onde nosso desco-
nhecido se encontra no momento.

***

Perry Rhodan já sabia que ao menos naque-


le momento não existia nenhuma vida ou ativi-
dade no interior da casa-funil. Por isso resolveu
utilizar os conhecimentos adquiridos através do
treinamento hipnótico arcônida.
Sabia que a portaria automática do edifício
104
ficava na parte superior do cabo do funil, logo
embaixo do jardim que Tako inspecionara em
primeiro lugar.
— No fundo é uma sala de máquinas — dis-
se Rhodan ao japonês. — Há muito tempo, os
arcônidas constroem suas máquinas com tama-
nha perfeição que nunca precisam de reparos.
Por isso não é de se supor que haja alguém na
sala. Se aparecer por lá e notar que se encontra
numa posição muito incômoda, imprensado
por máquinas de um lado e de outro, não se in-
comode. Basta localizar o contacto que acabo
de descrever e ativá-lo ao menos por trinta se-
gundos.
Tako repetiu as instruções, quase palavra
por palavra, e desapareceu. Rhodan comunicou
à Ganymed:
— Fase D.
Dirigindo-se a Bell, disse:
— No momento em que Tako acionar o
contato, o portal se abrirá. Enquanto estiver
aberto, o aparelho de alarma está fora de ação.
Portanto, não perca tempo. Saia correndo.
Procure entrar enquanto os dedos de Tako esti-
verem sobre a máquina.
Bell confirmou com um resmungo.
— Estou tão nervoso que sairei que nem um
foguete quando aquilo se mexer, por um centí-
105
metro que seja — disse em tom mordaz.
Os segundos foram-se arrastando. Rhodan
ouviu uma voz no receptor de capacete.
Era Bell que se dispunha a proferir uma ob-
servação, provavelmente de impaciência. Mas
antes que pudesse falar a primeira palavra, viu-
se na luz fluorescente das paredes do funil que
um traço negro se abria junto à porta.
Bell cumpriu o que havia prometido. Saiu
em disparada e chegou tão depressa que por
um instante Rhodan teve medo de que o alarma
ainda pudesse captar a fase inicial de sua corri-
da.
O portal ainda não estava aberto. Um portal
arcônida nunca tem pressa. Mas Bell, carregan-
do o pesado desintegrador automático, espre-
meu-se pela fresta, com um movimento rápido
regulou o neutralizador para a gravitação me-
nos intensa e, uma vez do lado de dentro, disse
fungando:
— Ande depressa, senão é tarde!
Rhodan não se apressou. Sabia quanto tem-
po duravam trinta segundos para alguém que
receasse perder a hora. Passou tranqüilamente
pelo portal, agora totalmente aberto, postou-se
ao lado de Bell e, sem dar o menor sinal de im-
paciência, esperou até que Tako, que se encon-
trava acima deles, no compartimento de máqui-
106
nas, providenciasse para que as alas do portal
voltassem a deslizar, encostando uma na outra.
Olhou em torno.
O interior do cabo do funil, que sempre era
um salão redondo de trinta metros de diâmetro,
correspondia a imagem que o treinamento dei-
xara em sua memória. Havia gobelins precio-
sos, uma profusão de luzes das cores mais vari-
adas, produzidas por fontes invisíveis, pinturas
que simulavam a realidade aplicadas no teto de
dez metros de altura. O salão demonstrava a
opulência do proprietário antes que o visitante
tivesse oportunidade de olhar qualquer das pe-
ças residenciais propriamente ditas.
Havia, porém, um furo no teto, que pertur-
bava a simetria do conjunto. Ficava fora do cen-
tro, era redondo e tinha três metros de diâme-
tro.
“É bastante amplo para permitir a passagem
duma companhia inteira numa questão de se-
gundos”, pensou Rhodan com um modo irôni-
co.
Bell lançou um olhar indagador para a aber-
tura.
— Apenas estou esperando que você diga
alguma coisa.
Com quatro ou cinco passos, colocou-se
abaixo da abertura, olhou para cima, como
107
quem faz pontaria, e impulsionou-se suavemen-
te com o pé direito. A sucção do campo anti-
gravitacional envolveu-o e arrastou-o para cima.
Dali a quatro segundos, tinha desaparecido pela
abertura.
Rhodan seguiu-o imediatamente. A luz colo-
rida do hall de entrada apagou-se assim que
passou pela abertura no teto.
Bell esperava por ele. A seu lado estava
Tako, que se apresentara, segundo as instru-
ções recebidas. Rhodan teve tempo para elogiá-
lo por seu trabalho impecável. Tako agradeceu
com seu típico rosto sorridente e infantil.
A sala em que se encontravam representava
o segundo estágio, bem mais avançado, do con-
tato do visitante com as condições financeiras e
sociais do dono da casa. Havia móveis, que não
existiam no pavimento de baixo. Algumas pol-
tronas articuladas, espalhadas ao acaso, segun-
do a moda arcônida, convidavam o visitante a
uma pausa de descanso. Sulcos dispostos em
círculo, quase invisíveis, que se abriam no soa-
lho, revelavam a existência de mesas de serviço
automáticas. Bastava um desejo apenas insinua-
do para que, providas daquilo que se desejava,
subissem a uma altura cômoda, regulada pela
posição da poltrona articulada.
A sala era triangular. Ocupava apenas pe-
108
quena parte da área do pavimento e o teto fica-
va a apenas três metros e meio acima do soa-
lho. Isto representava que atrás das paredes es-
tavam instaladas as numerosas máquinas de ser-
vir, que permitiam aos arcônidas o estilo de
vida desejado.A abertura do elevador antigravi-
tacional desta vez não ficava no centro, nem di-
retamente acima da abertura pela qual haviam
subido.
Seguiu-se uma série de salas, cada qual me-
nor, mais íntima e montada com maior requinte
que a anterior. A intenção de preparar o visi-
tante gradualmente para o esplendor daquela
casa era inconfundível.
Atravessaram um total de seis halls, salas e
saletas. Finalmente passaram pelo teto de um
recinto de pequenas dimensões e penetraram
no primeiro pavimento do funil propriamente
dito. Aí o perfume das flores, entre as quais
emergiram, atravessou os filtros e penetrou nos
capacetes.
— Como sabemos, os arcônidas preferem
instalar sua residência nos andares superiores
— disse Rhodan, depois de terem concluído a
inspeção. — Também o administrador deverá
encontrar-se lá em cima. Procuraremos subir o
mais rápido possível acima do trigésimo pavi-
mento. Para ganhar tempo, teremos de operar
109
separadamente, ao menos até encontrarmos o
administrador. Não se impressionem com o es-
plendor e a riqueza do prédio. Procurem locali-
zar Sergh e não parem em qualquer lugar quan-
do sentirem que ali não poderão encontrá-lo.
Sabem perfeitamente que temos que fazer coisa
muito mais importante que estudar o interior de
uma casa-funil arcônida. A Ganymed está pre-
sa. Precisamos libertá-la e voar para Árcon,
pois a Terra precisa de auxílio. Sempre tenham
isto em mente!
A advertência foi tão enfática que nem mes-
mo o irreverente Bell deu qualquer resposta.

***

A idéia de Sergh trouxe um desassossego


considerável àquela casa, geralmente tão tran-
qüila. Ghorn, que tinha a seu cargo a vigilância
do interior do funil, teve um volume de trabalho
que não condizia com seu gênio.
Quando procurou Sergh para transmitir-lhe
uma notícia indispensável, este se encontrava
em meio a uma palestra de hipercomunicação
que parecia ainda mais importante e excitante.
Mal Ghorn abriu a boca para dizer:
— Eles se separaram, Senhor! Vamos...
Sergh interrompeu-o com um gesto violento
110
e chiou:
— Silêncio! Estou falando com Árcon.
Ghorn retirou-se. Não sabia o que deveria
fazer. Um contato de hipercomunicação com
Árcon era tão raro como uma flor verde. Era
bem possível que, depois da palestra, a obser-
vação dos estranhos não proporcionasse o me-
nor prazer a Sergh. Ghorn, que carregava so-
bre os ombros todo o peso do trabalho, estava
mais que disposto a suspender as observações e
deixar os estranhos por conta das armadilhas
automáticas que, preparadas em virtude das ob-
servações de Ghorn, funcionariam sem o me-
nor problema.
Mas Sergh era um homem imprevisível.
Enquanto Ghorn voltava ao seu posto de ob-
servação situado no quadragésimo pavimento,
pensou com certa tristeza como lhe ficaria bem
se ele mesmo fosse o administrador. Não seria
necessário que ficasse num mundo tão impor-
tante como Naat. Ghorn compreendia perfeita-
mente que os postos de administrador de plane-
tas, como este, teriam de ficar reservados aos
membros das famílias mais importantes. Con-
tentar-se-ia com Vnatol. Dali, poderia suprir
Sergh com os apreciados peixes-cobra. De res-
to, seria dono do seu nariz.
Mas os tempos de expansão do Império, em
111
que a cada dia se procurava um novo adminis-
trador, já pertenciam ao passado. Raras vezes
ficava vago um posto como o que Ghorn cobi-
çava.
Ghorn estava tão entretido com seus pensa-
mentos melancólicos que, ao retornar à sala de
controle, levou algum tempo para dar-se conta
de que uma larga faixa de luzes se apagara no
painel que registrava o funcionamento dos ins-
trumentos.
Sentou diante da mesa, constatou que nesse
meio tempo os instrumentos automáticos havi-
am perdido de vista os estranhos e procurou
encontrar sua pista.
Por um simples acaso, olhou para o painel
luminoso, enquanto girava os botões, deixando
desfilar na tela pavimento por pavimento, recin-
to por recinto. A quantidade de luzes apagadas
deixou-o perplexo. Inclinou-se sobre os instru-
mentos e, bastante admirado, constatou que to-
dos funcionavam perfeitamente, embora em re-
lação a alguns deles o painel luminoso indicasse
o contrário.
Ligeiramente confuso e desorientado, levan-
tou-se para examinar o tal painel. Quando se
encontrava a dois passos do mesmo, as luzes
voltaram a iluminar-se.
Passou a mão pela testa. Recuou um passo
112
e as luzes apagaram-se. Avançou um passo e
voltaram a acender-se.
A regularidade do fenômeno era inegável. A
confusão de Ghorn cedeu lugar a uma ligeira
sensação de pavor. Todavia, continuou tranqüi-
lo, como se não tivesse acontecido nada. Retor-
nou para junto da mesa e prosseguiu no traba-
lho. Não se deixou perturbar pelo fato de que,
acesas, as luzes de controle agora podiam ser
vistas do lugar em que se encontrava.Ficou ma-
nipulando os botões e as chaves até que subita-
mente a luz se apagou no recinto, uma pesada
persiana fechou a janela que dava para o interi-
or do funil e uma escuridão impenetrável en-
cheu o recinto.
Ghorn teve uma idéia pouco nítida do peri-
go em que se encontrava. Sabia que os apare-
lhos automáticos de salvamento instalados em
todas as peças da casa talvez funcionassem com
demasiada lentidão, se o quadro que tinha da si-
tuação era correto.
Mas, tal qual todos os arcônidas, e neste
ponto não se distinguia de Sergh, seu mestre e
senhor, amava tanto a excitação nervosa que
deixara o perigo em segundo plano.
É bem verdade que, sob os padrões terra-
nos, tal fenômeno representa antes um sintoma
de histeria que um sinal de coragem.
113
Ghorn continuou a manipular os controles.
Conhecia as instalações da pequena cabina e
não tinha a menor dificuldade em orientar-se
no escuro. As telas de imagem e as luzes indica-
doras se haviam apagado juntamente com a luz
do recinto.
Subitamente uma pálida luminosidade rom-
peu a escuridão. Vinha do nada e no primeiro
instante parecia dirigir-se ao nada. Mas de re-
pente um círculo de luz fosforescente de três
metros de diâmetro surgiu na parede fronteira a
Ghorn, cobrindo toda a extensão, do soalho ao
teto.
Em meio ao círculo de luz, surgiram os con-
tornos de uma figura bizarra. Era tão pequena
que não poderia pertencer a um arcônida, em-
bora tivesse duas pernas, dois braços e uma ca-
beça, tudo implantado nos seus devidos lugares;
era tão gorda, que ninguém a acharia atraente,
e tão disforme que Ghorn chegou à conclusão
de que o contorno visto por ele não podia ser o
vulto de alguém. Seria apenas o formato duma
peça de vestimenta.
Ghorn viu que o estranho carregava alguma
coisa no braço. Parecia um cabo curto e grosso.
Acreditou que devia ser uma arma. Quase toda
a coragem imaginária abandonou-o.
Quis dizer alguma coisa, algo que tranqüili-
114
zasse o desconhecido, para que o mesmo não
começasse a atirar. Mas naquele instante, o vul-
to fez um rápido movimento com o braço. O
objeto disforme que Ghorn acreditara ser a ca-
beça caiu para o lado e, abaixo dele surgiu um
crânio redondo que, segundo Ghorn percebeu
apesar do medo e do espanto de que se sentia
tomado, estava coberto de cerdas curtas e du-
ras, em vez dos longos cabelos que estava acos-
tumado a ver.
Ghorn fez uma nova tentativa para falar.
Mas, nesse instante, o desconhecido disse:
— Está bem. Pode acender a luz.
Ghorn notou que o desconhecido falava um
arcônida grosseiro mas correto. Obedecendo às
palavras que acabara de ouvir, ligou algumas
chaves. A persiana, que fechava a janela, desa-
pareceu e a luz voltou a espalhar-se pelo recin-
to.
Ghorn lançou os olhos em torno. O desco-
nhecido que, ao colocar-se muito perto do pai-
nel luminoso, fizera com que as luzes se apagas-
sem, afastou-se para o lado quando viu que o
arcônida começava a desconfiar de alguma coi-
sa. Agora encontrava-se atrás dele.
Ghorn viu um rosto redondo que exibia um
sorriso irado. Por cima da testa, as cerdas ver-
melho sujas se levantavam em atitude combati-
115
va. Ghorn notou que o desconhecido não lhe
apontara a arma. Parecia sentir-se seguro.
— O... o que deseja? — gaguejou.
O desconhecido continuava a sorrir.
— Quero falar com o administrador. É o se-
nhor?
Ghorn respondeu com um gesto desolado
de negativa.
— Meu nome é Ghorn — disse com a voz tí-
mida.
O desconhecido baixou a cabeça numa me-
sura leve e irônica.
— Meu nome é Bell — respondeu. — Regi-
nald Bell.
Pronunciou com tamanha facilidade os sons
estranhos de seu nome, que Ghorn abandonou
definitivamente a idéia de que, apesar de sua
vestimenta, de origem arcônida — poderia ser
algum arcônida deformado.
Aquele homem vinha de longe. Mas de
onde?
O desconhecido, que se apresentara como
Bell, acomodou-se numa poltrona.
— Quer saber de uma coisa? — voltou a fa-
lar Bell. — O senhor vai chamar o administra-
dor e pedir-lhe que venha até aqui. Eu e mais
duas pessoas que aparecerão daqui a pouco va-
mos conversar com ele. Combinado?
116
Ghorn recusou desesperadamente.
— Se o senhor tivesse uma pequena idéia
do nosso estilo de vida — suplicou — poderia
imaginar o que aconteceria comigo se eu...
Bell interrompeu-o com um gesto.
— Está certo — disse com um ligeiro des-
prezo na voz. — Quase que me esqueço. Sergh
o condenaria a viver no deserto. Já que é as-
sim, anuncie-se a ele. Meus amigos e eu iremos
com o senhor.
Ghorn agarrou a sugestão como um náufra-
go que segura a corda salvadora.
O desconhecido parecia perigoso, e Ghorn
não tinha a menor dúvida de que Sergh teria a
mesma opinião assim que o visse. O administra-
dor cometera um erro ao restringir a ação à
simples observação. Uma criatura desse tipo
sempre é perigosa. Num minuto, concebiam
mais idéias que um arcônida num dia, e até res-
cendiam a uma atividade sobrenatural.
Mas, nos aposentos privados de Sergh, ha-
via um sem-número de instalações automáticas
de segurança. E se o desconhecido e seus ami-
gos cometessem a tolice de insistir numa entre-
vista com o administrador, estariam perdidos
assim que transpusessem o limiar da porta.
Ghorn procurou entrar em contato com o
administrador. Ansiava de impaciência e fazia
117
votos de que Sergh não se encontrasse nos seus
aposentos privados, onde estaria fora do alcan-
ce de qualquer instrumento de busca.
Pelo canto dos olhos Ghorn notou que Bell
voltara a colocar o capacete. Ouviu-o murmurar
algumas palavras numa língua estranha. Supôs
que se comunicava com os dois amigos.
Mas logo o rosto de Sergh passou a ocupar
a atenção de Ghorn. Ao surgir na tela, parecia
cansado e entediado. Ghorn ouviu um rápido
movimento atrás de si e sabia que sua vida cor-
reria perigo se colocasse o receptor numa posi-
ção em que Sergh visse o desconhecido.
Este só viu seu representante.
— O que houve? — perguntou, esticando as
palavras.
Ghorn viu que continuava sentado diante do
mesmo aparelho de hipercomunicação em que
pouco antes falara com ele.
As palavras de Ghorn foram cautelosas:
— Caso o senhor disponha de tempo, eu
gostaria de submeter-lhe um problema impor-
tante.
O cansaço de Sergh não parecia ser tanto
que a visita em perspectiva o deixasse contraria-
do. Lembrou-se das boas idéias que Ghorn tive-
ra duas horas antes e demonstrou certo interes-
se.
118
— Concordo — respondeu, reprimindo um
bocejo. — Poderemos conversar na minha sala-
refúgio. Você vem logo?
— Naturalmente, Senhor — apressou-se
Ghorn em responder. — Não seria capaz de
deixá-lo esperar.
Sergh desligou. Bell resmungou atrás de
Ghorn:
— Não tenha tanta pressa, meu chapa. Te-
mos de esperar meus amigos.
Ghorn não respondeu, permanecendo imó-
vel.
Pouco depois, a porta de enrolar abriu-se, e
ninguém entrou. Voltou a fechar-se, e dois vul-
tos estranhos surgiram do nada.
Ghorn virou-se e fitou-os estupefato.
Viu um homem pequeno de pele marrom-
amarelada, olhos oblíquos e um sorriso cons-
tante no rosto. Viu outro homem que quase
chegava a ter o tamanho de um arcônida. Seu
rosto era sério e a expressão dos olhos cor de
gelo deixou Ghorn apavorado.
No mesmo instante Ghorn percebeu que
este último era o mais perigoso dos três.
O homem de olhos cor de gelo fitou Ghorn
e disse num arcônida sem sotaque:
— Vamos indo. O que estamos esperando?

119
5

Desde O início da fase D o coronel Freyt


não recebera qualquer notícia de Rhodan. Isso
não o deixou preocupado. Um sinal de emer-
gência havia sido combinado em caso de Rho-
dan se ver numa situação realmente difícil. E só
em circunstâncias, que Freyt considerava alta-
mente improváveis, a situação se tornaria tão
crítica que Rhodan nem tivesse tempo de trans-
mitir esse sinal.
De qualquer maneira, Freyt mantinha-se
constantemente preparado para providenciar
tudo que se tornasse necessário caso surgisse
algum perigo que representasse uma ameaça
real para Rhodan.
Seus olhos ardiam de cansaço e muitas ve-
zes a cabeça caía para a frente, mas agüentou
no seu lugar.
Quando o tele comunicador emitiu o sinal de
chamado, atirou a mão para a frente e num
movimento seguro comprimiu o botão que liga-
va o aparelho. Os olhos avermelhados fitaram
com uma expressão preocupada o quadro que
se formava na tela.
Mas o que surgiu não foi o sinal de ausência
de imagem que seria de esperar, já que Rhodan
não levava nenhum receptor. Viu um crânio re-
120
dondo e calvo coberto de pele negra e áspera;
os três olhos lançaram um olhar indiferente
para Freyt.
Este dissimulou a repugnância que o gigan-
tesco naat lhe causava.
— Aqui fala Novaal — disse a voz monótona
do naat. — Tenho uma notícia para o senhor.
Freyt confirmou com um aceno de cabeça.
— Estou ouvindo.
— O eminente administrador incumbiu-me
de dizer ao senhor que apreciaria uma visita dos
dois arcônidas que traz a bordo. Queira trans-
mitir a mensagem aos mesmos.
Freyt sabia qual era a conduta que lhe impu-
nha seu posto.
— Transmitirei o recado — respondeu. —
Eles mesmos decidirão se apreciam a visita tan-
to quanto o administrador.
O rosto escuro de Novaal contorceu-se
numa careta. Freyt não sabia se essa careta re-
presentava um sorriso. De qualquer maneira,
naquele instante achou o naat mais simpático
que em qualquer oportunidade anterior.
Sem dizer uma palavra, Novaal interrompeu
o contacto.
Freyt transmitiu o teor da palestra a Thora e
Crest, que se encontravam nos seus aposentos
particulares. Crest recebeu a notícia numa atitu-
121
de calma e pensativa, enquanto os olhos de
Thora começaram a chamejar, conforme Freyt
esperara.
Freyt sentiu-se surpreso quando dali a meia
hora os dois arcônidas entraram em contato
com ele e lhe disseram que aceitavam o convi-
te.
Com o rosto sombrio, Freyt respondeu:
— Pelo que ouvi, não houve nenhum convi-
te. Mas terei muito prazer em transmitir suas
decisões.

***

Deitado numa espécie de sofá forrado com


preciosas peles de sevelot de Uthalla, cujas vi-
brações de freqüência e intensidade sempre va-
riáveis proporcionavam um máximo de bem-
estar ao corpo, Sergh estava projetando alguns
pensamentos enfadonhos sobre a tela do simu-
lador.
O resultado foi muito pobre. O tédio aliado
à falta de concentração produziu um verde-apa-
gado, que deslizava sobre a tela com uma sono-
lenta falta de configurações.
Sergh não estava satisfeito consigo mesmo.
O trabalho das últimas horas fora demais.
O sinalizador da porta emitiu um zumbido. A
122
mão esquerda de Sergh desceu ao lado do sofá
e comprimiu um botão. O rosto de Ghorn sur-
giu na pequena tela existente ao lado do simula-
dor. Desenvolvendo uma atividade totalmente
supérflua, o aparelho de controle montado do
outro lado da porta indicou que não portava ne-
nhuma arma.
— Ah, é você — suspirou Sergh com uma
acintosa falta de interesse. — Avisou que che-
garia?
Com um entusiasmo surpreendente, Ghorn
acenou com a cabeça.
— Sim, Senhor.
— Entre.
O quadro apagou-se. Com os impulsos ver-
bais de Sergh, a porta abriu-se automaticamen-
te. Sergh ouviu que Ghorn entrava na ante-sala.
Seria apenas Ghorn? Pois parecia...
Sergh levantou-se sobre os cotovelos e
olhou para a porta. O jogo do simulador termi-
nou numa desarmonia de cores e formas.
A porta interna abriu-se. Ghorn entrou. Seu
rosto exprimia uma mistura de esperteza e do-
res de consciência.
Atrás dele...!
Com um grito indignado, Sergh ergueu-se.
Desde a infância era o primeiro grito que al-
guém ouvia de sua boca. Mas naquele instante,
123
Sergh não se deu conta da singularidade do fe-
nômeno.
Depois do grito, o administrador por algum
tempo não teve força para outras exterioriza-
ções. De queixo caído, fitou os três homens que
haviam entrado em companhia de Ghorn.
Depois de algum tempo, lembrou-se de que
pedira a Ghorn que vigiasse o desconhecido
que tratara as flores Fareh de maneira tão ver-
gonhosa. Também se lembrou que em certa
oportunidade Ghorn o avisara de que os desco-
nhecidos eram três.
No meio tempo fora completada a ligação
com Árcon, e Sergh teve de preocupar-se com
outras coisas.
Mas agora, que tinha se lembrado de tudo
isso, recuperou o equilíbrio psicológico.
Sorriu para os desconhecidos e disse:
— Tenho muito prazer em conhecê-los de
perto. Foi muito divertido observá-los enquanto
avançavam pela casa às apalpadelas.
Um dos três, gordo e de estatura mediana,
estava tirando o capacete. Sergh ouviu que as-
pirava o ar com chiado e achou que isso era si-
nal de que conseguira surpreender o homem.
Mas os outros não deram nenhum sinal de
surpresa. O menor deles, um homem de pele
amarela, continuava a sorrir. Nos olhos do mai-
124
or, havia a mesma dureza apavorante que
Sergh observara no momento em que o viu
pela primeira vez.
— Então o senhor nos observou? — pergun-
tou numa aparente indiferença.
Sergh aborreceu-se ao notar que o desco-
nhecido lhe negava o título que de direito lhe
cabia. Mas o prazer e a excitação nervosa que
sentia naquele momento fizeram com que
Sergh não se importasse com a falha.
— Isso mesmo — confessou. — Nós os ob-
servamos a partir do momento em que um dos
senhores estragou meu canteiro de fareh.
Rhodan olhou para Bell e o japonês. Tako
inclinou ligeiramente o corpo e disse em inglês,
em tom abatido:
— Devo ter sido eu. Caí no canteiro quando
entrei da primeira vez.
Rhodan limitou-se a fazer um gesto.
— Pois bem — disse ao administrador. —
Se é assim, já deve saber quem somos e prova-
velmente imagina por que viemos.
Sergh estava realmente perplexo.
— Não — respondeu. — Não faço a menor
idéia de quem sejam os senhores, nem do que
vieram fazer aqui. Nós, Ghorn, e eu, sentimos
um prazer imenso ao observá-los...
— O senhor está se repetindo — interrom-
125
peu-o Rhodan em tom tão áspero que Sergh se
encolheu. — Sou o comandante da nave que o
senhor está retendo em seu espaçoporto contra
todas as normas de direito. Exijo a liberação
imediata da nave.
Sergh teve medo. Nunca ouvira ninguém fa-
lar perto dele com tamanha rispidez, energia e
arrojo. O homem de olhos cor de gelo arrojava
uma capacidade de ação que Sergh quase che-
gava a sentir fisicamente e que o deixava assus-
tado.
— Quem está retendo a nave não sou eu —
respondeu Sergh, e praticamente não se deu
conta de que estava a ponto de arrumar uma
desculpa. — Recebi instruções para deter sua
nave. E contra-instruções não há...
Bell avançou um passo. Rhodan não o de-
moveu do seu intento. Bell postou-se tão perto
de Sergh que este recuou a cabeça.
— Escute aí, meu chapa! — gritou Bell no
seu arcônida grosseiro. — Não temos o menor
interesse em saber quem deu ordem para gru-
dar a Ganymed ao solo. Só queremos saber
quem tem a possibilidade de soltá-la. E este al-
guém é o senhor. Por isso esperaremos aqui
até que nossa nave nos avise de que está nova-
mente em condições de viagem e que virá em
seguida para buscar-nos.
126
Sergh sentiu o hálito do desconhecido no
rosto, e isso lhe causou certa repugnância. Mas,
ao mesmo tempo, ouviu a voz forte e potente,
que lhe inspirou medo. Mal se deu conta de que
Ghorn, pelo qual ninguém parecia interessar-se,
afastou-se para o lado.
Sentiu certo alívio. Sem dúvida, Ghorn ativa-
ria o dispositivo de emergência.
Ao ver que, por um instante, o olhar de
Sergh passou ao lado dele, Bell girou sobre os
calcanhares.
— Ei, pare aí! — gritou furioso. — Ghorn já
levantara a mão para comprimir um botão. —
Sei o que tem em mente. Se o deixássemos à
vontade, esse botão faria com que isto aqui se
enchesse de gás, enquanto em algum lugar so-
asse um alarma.
Ghorn empalideceu. Deixou cair a mão,
como se esta lhe pesasse demais.
Sergh sentiu-se tão fraco que resvalou para
o sofá. O vibrador começou a funcionar auto-
maticamente, mas numa hora como esta a tre-
pidação irritava os nervos do administrador.
— Uma vez que já sabe o que queremos,
siga as nossas ordens — disse Rhodan em tom
áspero. — O que está em jogo para nós é mui-
to mais do que o senhor imagina. Não nos im-
portaremos nem um pouco em pisar nos calos
127
do eminente administrador até conseguirmos o
que pretendemos.
Sergh fez vários gestos apaziguadores.
— Aguarde um momento — fungou. — Es-
tou esperando alguns visitantes e, na presença
dos mesmos, terei muito prazer em explicar-
lhes o que está acontecendo. Permita que um
velho tenha uma pequena pausa de descanso.
Rhodan confirmou com um gesto da cabeça.
— Está bem — disse. — Esperaremos. Mas
é bom que fique ciente de uma coisa: no mo-
mento em que um de vocês tentar enganar-nos,
ambos estarão mortos.
Não era a situação atual que atemorizava
Sergh. Como arcônida que era, dispunha de re-
cursos que lhe permitiam dominar qualquer situ-
ação.
Aquilo que o fez capitular no momento foi o
fato de que nunca antes se defrontara com se-
res que perseguissem seu objetivo com tamanha
energia e se mostrassem tão pouco dispostos a
deixar desviar-se do caminho que haviam traça-
do para si mesmos.
Não que acreditasse não poder subjugar os
intrusos.
Mas precisava de um momento de descanso.
Os séculos de decadência progressiva fatalmen-
te teriam que deixar suas marcas no cérebro ar-
128
cônida. O raciocínio tornara-se mais lento.
Sergh precisava de uma pausa para recordar os
meios de que dispunha para livrar-se dos desco-
nhecidos.
Mas a convicção de que acabaria por do-
miná-los nunca o abandonara.
Era verdadeira a afirmativa de que aguarda-
va visitantes e que pretendia explicar aos mes-
mos alguma coisa relacionada com os proble-
mas dos desconhecidos.
Sergh estendeu-se no sofá, descansou os
braços molemente ao lado do corpo, fechou os
olhos e pôs-se a refletir.
Ghorn e os desconhecidos acomodaram-se
em poltronas. Um silêncio constrangedor en-
cheu a sala do simulador de Sergh.
Depois do que tinham visto nas últimas ho-
ras e dias, Thora e Crest não penetraram no
palácio-funil de Sergh na expectativa de que
lhes seria dispensada a recepção a que faziam
jus como membros da estirpe dos Zoltral.
Quando penetraram no hall de entrada, uma
voz mecânica lhes ordenou em tom áspero que
se transportassem pelo caminho mais rápido ao
trigésimo quinto pavimento. Assim viram que
suas esperanças ainda eram otimistas demais.
Até mesmo a bebida oferecida a título de
boas-vindas, que costumava ser dada ao mais
129
ínfimo dos visitantes, lhes foi recusada. Enquan-
to subiam pelos elevadores antigravitacionais
apenas sentiram, diante do esplendor de seu
mundo, que a melancolia da saudade passou a
envolvê-los no interior do funil. Ao atingirem o
trigésimo quinto pavimento, o desânimo que se
apossou deles foi quase tão intenso como o que
sentiram quando o ser coletivo do planeta Pere-
grino lhes recusou a ducha celular e, com isso,
o dom da vida eterna.
As portas abriram-se automaticamente dian-
te deles, apontando-lhes o caminho. Não viram
nenhum dos ocupantes da casa.
Passaram pelo pequeno compartimento que
dava para a sala do simulador de Sergh. Thora
estacou, surpresa, quando a porta se abriu e ela
pôde lançar o primeiro olhar para o interior da
sala.
Rhodan levantara-se ao ouvir os passos e
colocara-se junto à porta. Receava que Ghorn
aproveitasse a confusão momentânea que se es-
tabeleceria com a entrada dos visitantes para
acionar algum tipo de alarma.
Mas Ghorn estava tão assustado que nem se
mexeu.
— Rhodan... o senhor por aqui? — espan-
tou-se Thora.
Rhodan cumprimentou-a com um aceno de
130
cabeça e apontou para uma poltrona.
— Sente! — disse em arcônida. — O ho-
mem que está deitado no sofá tem algo a nos
dizer e suponho que neste meio tempo já tenha
reunido forças para isso.
Sergh não se mexeu. Virou-se de lado e fi-
tou os dois arcônidas.
— Levante-se quando estiver falando com
uma zoltral — disse Thora com a voz enérgica.
— Esta é uma das coisas que pretendia con-
tar-lhe — disse em tom diferente. — Os zoltrals
não são mais ninguém em Árcon.
Provavelmente Thora e Crest não espera-
vam outra coisa. Thora caiu numa poltrona.
— Relate tudo na devida ordem — pediu
Thora.
— E coloque ao menos os pés no chão —
resmungou Bell. — Fico nervoso quando al-
guém fala comigo deitado.
Por estranho que fosse, Sergh obedeceu.
Rhodan lançou um ligeiro olhar de advertência
para Bell. Não valia a pena tornar a situação
mais crítica do que já era.
— Nem mesmo os zoltrals sabiam — princi-
piou Sergh com a voz cansada — que há muito
tempo alguns sábios instalaram em Árcon e em
todo o Império um mecanismo que entraria em
ação no momento em que a decadência das
131
energias vitais da nação e a apatia de seu povo
atingisse um grau tal que a existência do Impé-
rio corresse perigo.
“Esse momento — prosseguiu Sergh, pigar-
reando e fazendo uma ligeira pausa — chegou
há cerca de seis anos. Em virtude de certos da-
dos e formas de interpretação que ninguém se
deu ao trabalho de investigar há seis anos o
maior de todos os cérebros positrônicos, já
construídos na Galáxia, incumbiu-se da direção
dos destinos de Árcon e seu Império.
“Uma das conseqüências da execução das
principais tarefas governamentais por uma
máquina foi a substituição da família governan-
te. Os zoltrals abdicaram, outro governante su-
biu ao trono. Uma vez que foi justamente no
reinado de sua dinastia que o cérebro positrôni-
co entrou em ação, os zoltrals estão bastante
desacreditados. Atualmente todos eles, inclusive
os senhores, apenas são tolerados.
“É bom que não se esqueçam disso, para
que não voltem a exigir que um velho se levante
só porque pertencem à estirpe dos zoltral.
“Apesar de tudo, acabo de receber informa-
ções de Árcon, segundo as quais permitem que
os senhores façam uma visita ao seu mundo na-
tal. Dentro de poucos segundos pousará no es-
paço porto de Naatral uma nave que os levará a
132
Árcon. Lá lhes dirão quanto tempo poderão fi-
car e o que farão.”
Esgotado, Sergh deixou-se cair de lado e fe-
chou os olhos. Thora manteve-se rija e ereta na
sua poltrona, enquanto Crest, de pé ao seu
lado, segurava-se no encosto.
— Uma máquina...! — gemeu.
— Isso mesmo. E executa suas tarefas me-
lhor que qualquer governante da família dos zol-
tral. Equipou todas as naves com robôs e não
precisa preocupar-se com os tripulantes, pois
os olhos vigilantes dos robôs permitem que co-
loquem a bordo não só os arcônidas, mas tam-
bém os naats ou outra gente desse tipo.
A velha cólera voltou a apossar-se de Thora.
— Sabemos perfeitamente que a maior par-
te dos governantes não prestou — chiou. —
Mas não podemos admitir que a modificação
desse estado de coisas fique por conta de uma
máquina. O cérebro positrônico representa o
começo do fim. Um império governado por
uma máquina cavará sua própria sepultura. Se
os governantes tivessem continuado no poder,
levaria alguns milênios para morrer de velhice.
Sergh não estava interessado nesse aspecto.
— É preferível que se apressem — advertiu
em tom cansado — senão perderão a nave
para Árcon. O cérebro positrônico não espera.
133
E, uma vez perdida esta oportunidade, nunca
mais terá uma possibilidade de ir a Árcon.
— O que será feito da nave em que viemos?
— perguntou Thora indignada.
— Será que este problema lhe diz respeito?
— retrucou Sergh.
Thora lançou um olhar para Rhodan. Este
tranqüilizou-a, falando em inglês:
— Não se preocupe conosco. Procure viajar
para Árcon. Talvez até lá consigamos resolver a
situação. Se isso não acontecer, faça o que pu-
der por nós.
Thora confirmou com um ligeiro movimento
de cabeça e levantou-se.
— Está bem, vamos — disse, dirigindo-se a
Sergh.
Pelo tom de sua voz Rhodan percebeu que
estava prestes a chorar.
— Vá, sim — murmurou Sergh sem virar a
cabeça.
Rhodan procurou animar Thora com um
gesto enquanto ela saía em companhia de
Crest. Mas Thora não se voltou mais. O gesto
ficou no ar.
Voltaram a ficar a sós com o administrador
cansado e com seu representante assustado.
Gemendo, Sergh virou-se de lado.
— Pensei que tivessem saído com os dois —
134
disse, lançando um olhar para Rhodan e seus
companheiros.
Não se poderia dizer se estava falando sério.
Sua voz era enfadonha como sempre.
Rhodan levantou-se.
— Pois aí é que o senhor se engana — disse
em tom áspero. — Já sabe por que viemos, e
também sabe que não sairemos antes que nos-
sas exigências tenham sido cumpridas.
Sentado em sua poltrona, Bell disse em tom
indiferente:
— Perry, talvez umas bofetadas o ajudem a
compreender. Sem isso acabará levando mais
cinco horas para acordar de vez.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça
e examinou atentamente o rosto de Sergh,
como se quisesse escolher o lugar mais adequa-
do para aplicar as bofetadas.
— A idéia não é má — respondeu.
De repente Sergh passou a desenvolver uma
atividade espantosa. Levantou-se com uma ra-
pidez que ninguém o julgaria capaz.
— Não, não, minha intenção não foi esta —
protestou com um sorriso embaraçado. — Sem
dúvida seria interessante saber como se sente
uma pessoa que leva pancadas. Quem recorre a
bofetadas usa um método atávico. Mas receio
que o processo seja acompanhado por dores.
135
Por isso prefiro...
— Pois vamos, vamos logo — animou-o
Rhodan. — Quando sairmos desta sala, o se-
nhor e seu representante irão conosco. Tenho
certeza de que ninguém porá as mãos em nós
enquanto o eminente administrador estiver di-
ante do cano de minha arma.
Sergh concordou.
— A estação de controle dos geradores que
alimentam o campo de sucção fica embaixo do
cabo do funil. Vamos descer até lá.
Rhodan espalhou os homens de seu grupo.
Reginald Bell caminhava à frente, seguido pelo
administrador e por Ghorn. O japonês ia no fim
da fila. Perry Rhodan esforçou-se para estar em
todos os lugares ao mesmo tempo.
O interior do funil continuava deserto. De
repente, Rhodan lamentou não ter trazido um
telepata que pudesse informá-lo a qualquer mo-
mento sobre os pensamentos de Sergh.
Mas, no início da operação, não se poderia
prever que quatro homens teriam a mesma faci-
lidade de locomover-se no interior do gigantes-
co funil de Sergh.
Passando por uma série de poços de eleva-
dores antigravitacionais, desceram de um terra-
ço para outro. Rhodan começou a acreditar que
realmente conseguira intimidar Sergh, e que
136
este não tinha em mente qualquer ação traiçoei-
ra. Por esse motivo, a cautela de Rhodan pro-
vavelmente desceu a um nível perigosamente
baixo. Além disso, a surpresa surgiu num lugar
em que ninguém a esperaria: no meio dum
poço anti-gravitacional.
O próprio Sergh submeteu-se a um trata-
mento bastante desagradável para livrar-se dos
incômodos visitantes. Afinal, tanto ele como
Ghorn e os três terranos encontravam-se no
meio do comprido poço quando subitamente o
campo antigravitacional deixou de funcionar.
Inverteu a polarização e com uma violência irre-
sistível atirou tudo que se encontrava no poço
contra o soalho do próximo pavimento.
Um dos poucos monitores mentais instala-
dos na casa captara os pensamentos aflitos de
Sergh e reagira em conformidade com os mes-
mos. Sergh passara propositadamente pelo
poço em que estava instalado o monitor.
Sergh e Ghorn logo perderam os sentidos,
da mesma forma que o delicado japonês. Rho-
dan e Bell apenas sentiram-se ligeiramente con-
fusos; mas antes que tivessem tempo de levan-
tar-se uma série de tubos capilares expeliu uma
carga de gás paralisante do teto, do soalho e
das paredes. Os dois, ainda não restabelecidos
do choque, aspiraram o gás em grandes lufa-
137
das. Mantinham os capacetes abertos para falar
com os arcônidas, e o funcionamento da tubula-
ção de gás era silencioso.
Dali a alguns segundos, também Rhodan e
Bell estavam reduzidos à imobilidade. Não per-
deram os sentidos por completo. Como que
numa névoa, perceberam o que acontecia em
torno deles. Mas o raciocínio consciente e os
nervos que moviam o corpo estavam bloquea-
dos.
Alguns minutos se passaram. Subitamente
uma dezena de vultos com capacetes saiu dos
quatro elevadores antigravitacionais que davam
para a sala. Rhodan teve uma percepção confu-
sa de que os capacetes na verdade eram másca-
ras que impediam a entrada do gás nos órgãos
respiratórios.
Os cinco corpos imóveis foram levantados e
transportados para cima. Rhodan não conse-
guiu identificar o lugar em que os quatro ho-
mens que carregavam Sergh e Ghorn se sepa-
raram dos demais. Mas percebeu nitidamente
que o recinto em que foi depositado juntamente
com os companheiros inconscientes era escuro
e isolado do mundo exterior.
O cansaço começou a apossar-se dele. Era
um dos efeitos do gás paralisante. Por mais que
resistisse, adormeceu em poucos segundos. Ao
138
despertar, não teve a menor idéia de quanto
tempo se passara. Mas ficou satisfeito por saber
que o sono o robustecera.

***

Ainda se via obrigado a realizar um grande


esforço para mover os braços e as pernas, e
seus movimentos não eram mais rápidos que os
de um velho enfermo. Mas, de qualquer manei-
ra, um movimento lento e penoso sempre é
melhor que a imobilidade total.
O recinto em que se encontrava continuava
escuro como breu. Não havia o menor raio de
luz ao qual a vista pudesse acostumar-se. Os
movimentos de ginástica de Rhodan produzi-
ram um forte farfalhar no soalho. Dali se con-
cluía que os prisioneiros dos arcônidas haviam
sido depositados no revestimento de plástico.
Uma voz resmunguenta falou pesadamente
em meio à escuridão:
— Quem dera que esse administrador desen-
gonçado estivesse por aqui. Eu lhe... Perry, é
você?
— Sim, sou eu.
O riso sacudiu Rhodan e lhe fez doer o cor-
po cansado. Se Bell já entretinha idéias de vin-
gança, as coisas não podiam estar tão más as-
139
sim.
— Como está Tako?
— Não sei. Também está aqui?
— Está. Já consegue mexer-se?
— Vou experimentar. Já mexo o corpo um
pouco.
— Pois procure Tako. Preciso pensar.
— Não é necessário — piou uma voz débil
vinda da escuridão. — Já acordei.
— Já! — esbravejou Bell. — O homem dor-
me até altas horas da tarde e...
— Silêncio! — ordenou Rhodan. — Temos
coisa mais importante a tratar. Tako, o senhor
consegue mover-se?
— Consigo.
— Muito bem. Preste atenção. Experimenta-
mos na própria carne como é difícil impor nos-
sa vontade a um arcônida. Por mais decadentes
que pareçam, eles têm uma porção de truques
de que nem fazemos idéia. Não sabemos o que
Sergh pretende fazer conosco. Pode deixar-nos
morrer de fome neste buraco, pode colocar-nos
em liberdade de uma hora para outra, ou pode
adotar qualquer atitude intermediária entre os
dois extremos. Seja como for, tenho certeza de
que tomará todas as precauções para que não
escapemos antes que tenha tomado sua deci-
são. E, para ter certeza absoluta de que isso
140
não acontecerá, terá que repetir a intervalos re-
gulares o processo paralisante.
“Não tenho a menor dúvida de que no teto
deste recinto existe uma tubulação igual àquela
da sala em que caímos na armadilha. E a qual-
quer momento pode ser realizada nova gaseifi-
cação. Portanto, temos que apressar-nos se qui-
sermos fugir. Tako.”
Sim senhor.
— Procure descobrir onde estamos e como
podemos sair daqui.
— Perfeitamente.
— Não assuma o menor risco. Lembre-se de
que por enquanto os arcônidas nem desconfiam
de que em nosso grupo existe um teleportador.
Por isso seu dom é uma boa arma. Deixe o ra-
diador térmico aqui. E ande depressa.
Tako desapareceu.
— O que vamos fazer depois? — indagou
Bell.
— Queremos libertar a Ganymed. Será que
você já se esqueceu?
— Depois de tudo isso?
— Agora mais que nunca. Não sei se Sergh
mentiu ao dizer que os controles dos geradores
do campo de sucção ficam embaixo do cabo do
funil. Acredito que se sentia tão seguro que não
se daria ao trabalho de inventar uma mentira.
141
Ainda mais que essas instalações geralmente fi-
cam no interior dos cabos.
— Ah, já sei. Desceremos para lá e demoli-
remos os quadros de chaves de Sergh de tal
maneira que nunca mais possa prender uma
nave de gente honesta.
— É mais ou menos isso. Acontece que sua
tarefa será outra.
— Qual será?
— Um de nós terá que permanecer nos apo-
sentos privados de Sergh, enquanto os outros
estiverem trabalhando com os controles. Sergh
dispõe de uma sala da qual pode observar todo
o funil. Tako descobrirá essa sala e você se ins-
talará na mesma e cuidará para que ninguém
nos ataque pelas costas. Entendido?
— Hum. Não estou gostando disso. Em
qualquer funil destes, existem aparelhos de ob-
servação. Sempre que alguém queira falar com
o administrador, um negócio destes é posto a
funcionar para dar busca em uma sala após a
outra. Se chegar a um desses locais de observa-
ção, o balão estourará.
— Você já devia saber que nenhum desses
instrumentos de observação chega aos aposen-
tos privados do dono da casa. Um homem
como Sergh estará menos disposto que qual-
quer outro para permitir que alguém ande foci-
142
nhando sua vida privada.
— Está bem — suspirou Bell.
Tako voltou depois de poucos segundos.
— Encontramo-nos no quadragésimo tercei-
ro andar. O respectivo terraço é mais profundo
que os outros. Para o lado interno do funil, há
um corredor circular protegido por um corri-
mão. Do outro lado, há duas fileiras de salas. A
primeira delas tem janelas que dão para o cor-
redor. A fila externa não tem janelas. Estamos
presos numa das salas dessa fila.
— Ah. É uma coisa parecida com uma ca-
deia. Há portas?
— As de costume. As portas estão tranca-
das. As fechaduras não abrem.
— Viu algum guarda?
— Nenhum. A casa continua vazia.
— Que horas são?
— O céu ainda está escuro.
Rhodan levantou-se. Os movimentos causa-
vam-lhe dores. Os efeitos do gás paralisante
ainda não haviam cessado. Rhodan teria dado
um bom dinheiro se pudesse aguardar tranqüila-
mente até que estivesse restabelecido de todo.
Mas naquele momento tinha que apressar-
se.
— Pegue seu radiador, Tako. Salte para fora
e abra a fechadura a tiro. Faça uma boa ponta-
143
ria, pois no instante em que a fechadura for da-
nificada, um alarma deverá soar em algum lu-
gar.
Tako voltou a desaparecer. Dali a um instan-
te um chiado feio encheu o recinto, um ponti-
nho luminoso surgiu na escuridão, transformou-
se num buraco e acabou substituído pela abertu-
ra larga da porta.
Rhodan e Bell saíram correndo. Pararam
junto a uma das janelas da parede que dava
para o corredor. Não viram nenhum arcônida.
— O mais importante é sair daqui quanto
antes — disse Rhodan. — Neste instante al-
guém já está sabendo que aqui em cima as coi-
sas não estão como deveriam estar. Virão dar
uma olhada. Quando isso acontecer, não deve-
remos estar mais por aqui. Bell, vá com Tako.
Ele localizará a sala de observação para você.
Tako, o senhor me seguirá assim que tiver for-
necido as necessárias indicações a Bell. Encon-
tramo-nos no hall superior do cabo do funil, na-
quela peça pequena. Está lembrado?
— Sim senhor.
— Muito bem. Vão embora.
Rhodan esperou que os dois desapareces-
sem pelo elevador antigravitacional dos fundos
da sala. Só depois disso pôs-se a caminho.
Para enganar o inimigo, não usou o mesmo
144
elevador. Abriu a tiro uma das janelas, o que
sem dúvida provocaria outro alarma, percorreu
metade da circunferência do funil no peitoril
que circundava as janelas e penetrou em outra
sala pela mesma forma violenta que havia usa-
do para sair da primeira. Isto provocaria um
terceiro alarma. Após este lance desceu pelo
elevador antigravitacional.
Esperava que os freqüentes desvios de rota e
os avisos de avaria, acarretados pela destruição
de portas, janelas e fechaduras, provocasse um
quadro tão confuso que os arcônidas ficariam
desorientados. Ao menos, chegariam à conclu-
são de que não havia três intrusos, mas ao me-
nos uma dezena.
Rhodan chegou ao décimo andar sem en-
contrar qualquer habitante do funil. Mas, dali
em diante, o destino parecia conspirar contra
ele.
Enquanto caminhava de um elevador anti-
gravitacional para outro, um homem saiu do in-
ferior com uma rapidez espantosa. Sua vesti-
menta parecia um uniforme. Devia ser um dos
membros da guarda palaciana de Sergh. Rho-
dan viu-o abrir a boca de pavor.
Também viu o movimento rápido em dire-
ção ao bolso lateral, onde devia estar guardada
uma arma ou um aparelho de comunicação.
145
Rhodan precipitou-se para a frente, se é que
isso podia ser chamado de precipitar-se. Ainda
havia certa quantidade de gás paralisante em
seu corpo. Por pouco o arcônida, um ser lento
por natureza e por índole, não consegue pegar
o aparelho antes que Rhodan se aproximasse
dele. Praguejando por sua própria lentidão,
Rhodan desferiu um tremendo soco, que fez o
homem levantar-se na ponta dos pés, bater na
parede e cair ao chão, inconsciente.
No andar seguinte, encontrou-se com uma
mulher. Com a rapidez que é peculiar às mulhe-
res numa situação como esta, esta começou a
gritar. Os gritos atraíram outro arcônida.
Rhodan cuidou primeiro do homem. Ainda
bem que os arcônidas eram ainda menos ágeis
que ele mesmo na situação em que se encontra-
va. Depois, esquecendo tudo que já aprendera
sobre os deveres de um cavalheiro, deu uma vi-
gorosa bofetada na mulher, que logo desmaiou,
provavelmente antes de indignação que em
conseqüência dos efeitos físicos do ato.
Um pouco mais rápido que antes, mas mui-
to menos rápido do que desejaria, continuou na
sua corrida. Em cada um dos andares teve de
brigar ao menos com um arcônida e finalmente
atingiu o elevador antigravitacional que condu-
zia ao cabo do funil.
146
Com um último olhar, quase melancólico,
para o lindo jardim perfumado, confiou-se ao
campo antigravitacional. Empurrando-se com
as mãos nas paredes do poço, desceu veloz-
mente à sala em que se encontraria com Tako
Kakuta.
O japonês ainda não havia chegado. Teria
de esperar.
Tako levou apenas alguns minutos para en-
contrar a sala sobre a qual Rhodan lhe havia fa-
lado. Ficava no mesmo pavimento da sala do si-
mulador de Sergh. Tako descreveu o caminho,
e Bell disse que saberia chegar lá, fosse o que
fosse que se interpusesse no seu caminho.
Tako desapareceu.
Bell atravessou alguns dos aposentos priva-
dos de Sergh e acabou encontrando a sala des-
crita por Tako. Pôs os aparelhos a funcionar.
Entre eles havia alguns que não conhecia. Sen-
tiu-se aliviado quando as telas se foram ilumi-
nando.
Colocou o observador para trabalhar no pa-
vimento superior do cabo do funil, e após pou-
cos segundos encontrou Rhodan e o japonês.
Não sabia se havia algum instrumento acústi-
co acoplado ao observador. Por isso fechou o
capacete e disse ao microfone:
— Eu os vejo perfeitamente.
147
Rhodan ouviu estas palavras em seu recep-
tor e também fechou o capacete.
— Está bem — respondeu. — Fique de olho
em nós.
— Não se preocupe — exclamou Bell.
No cabo do funil, havia cerca de cinqüenta
salas de máquinas. Rhodan tinha certeza de que
a que procuravam devia ser a maior de todas.
Mandou que Tako saísse por ali e, em cada lu-
gar que surgisse, lhe desse uma descrição minu-
ciosa das máquinas vistas.
Rhodan sabia o que estava procurando. Era
uma série de instrumentos que permitisse o
controle ou, mais precisamente, o telecontrole,
de um ou alguns geradores de campo de suc-
ção. O equipamento teria que incluir antes de
mais nada um estojo de telecomunicação que
permitisse a emissão dos sinais de comando.
Além disso, seria necessário um gerador desti-
nado a fornecer a energia indispensável às
transmissões em alta potência. É que os gera-
dores do campo de sucção do espaçoporto de
Naatral deviam gerar campos marginais tão for-
tes que uma transmissão comum não chegaria
até as máquinas, já que seria absorvida ou supe-
rada pelos campos marginais.
Face a esses conhecimentos, não teria difi-
culdade em encontrar aquilo que estava procu-
148
rando. Depois do sexto salto, Tako Kakuta for-
neceu uma descrição do grande pavilhão onde
se encontrava. O relato coincidia tão perfeita-
mente com aquilo que Rhodan tinha em mente
que já não podia haver a menor dúvida.
Face ao volume de interferências que a mas-
sa de máquinas produzia nas comunicações de
rádio, a voz de Tako saiu tão distorcida que
Rhodan mal conseguiu entendê-la.
Rhodan gritou:
— Nessa sala deve haver um aparelho de te-
lecomunicação de elevada potência. Procure lo-
calizá-lo.
A resposta de Tako foi incompreensível.
Mas dali a pouco sua voz saiu bastante nítida do
alto-falante:
— Estou diante do aparelho. O que devo fa-
zer?
— Recue três passos, aponte o radiador
térmico e arrebente o negócio.
Reginald Bell acompanhava os dois na tela
de imagem: Perry Rhodan e o japonês. Com o
espírito tenso, viu os movimentos do japonês
quando este levantou a arma e a apontou para
a face larga da caixa do tele comunicador...
Ouviu o chiado produzido por seus recepto-
res audiovisuais no momento em que o teleco-
municador ativou suas reservas de energia. Viu
149
que as imagens assumiram um tom violeta. Gri-
tou:
— Perry! Tako! Parem! Aquilo tem uma
proteção mental. Não...
Era tarde. As reações de Rhodan e do japo-
nês foram muito lentas. Não dispunham da
energia provocada pelo pavor súbito, que ajuda-
ra Bell a superar os efeitos do gás paralisante.
Tako Kakuta já estava com o dedo no gatilho e
a arma disparou antes que tivesse tempo de re-
agir ao grito de Bell.
Alguma coisa explodiu no cérebro de Tako
com a violência duma bomba.
Alguma coisa ofuscou Perry Rhodan, fê-lo
gritar de dor e o atirou ao solo, inconsciente.
Alguma coisa atravessou o crânio de Regi-
nald Bell, deixando um rastro de fogo e ati-
rando-o para fora da poltrona, inconsciente.
Alguma coisa fez com que, naquele instante,
toda vida consciente se apagasse na casa do
eminente administrador Sergh.

Fosse o que fosse, os efeitos não foram tão


desagradáveis como os do gás paralisante que
Perry Rhodan respirara horas antes.
Abriu os olhos e, surpreso, percebeu que se
150
encontrava num dos camarotes do hospital da
Ganymed.
Dois rostos inclinaram-se sobre ele: o do Dr.
Manoli, o velho Eric, amigo e companheiro de
lutas de antes da primeira viagem da nave lunar
Stardust, e o de Thora.
Manoli disse com um sorriso:
— Não faça drama, chefe! Nada lhe aconte-
ceu.
Rhodan protestou:
— Pois eu não disse nada.
Thora perguntou em tom preocupado:
— Como vai o senhor, Perry?
— Bem, obrigado. O que houve? Onde es-
tão Bell e Tako? Como viemos parar aqui?
Manoli interrompeu-o com um gesto.
— Devagar. Vamos por partes. Primeiro:
gostaríamos que o senhor nos contasse o que
houve. Segundo: Bell e Tako estão nas cabines
ao lado. Pelo que conheço de Bell, ele não de-
morará em recuperar os sentidos. No japonês
pode demorar mais um pouco. Terceiro: vocês
vieram para cá por assim dizer nos braços de
robôs. Planadores não tripulados largaram-nos
junto à Ganymed. Só tivemos que recolhê-los.
Até regularam os neutralizadores de seus trajes
de tal maneira que a gravitação de Naat não
lhes causou o menor dano.
151
— Hum. O quê...?
Passou a mão pela testa, pois lembrou-se de
que a dor que lhe roubara a consciência viera
da cabeça. Manoli compreendeu o gesto.
— Ao que tudo indica, vocês foram derruba-
dos por um choque mental. Provavelmente é de
origem artificial. Devia ter a força dos impulsos
de mil sugestores odientos.
Rhodan olhou para a frente, pensativo.
— Isso lhe diz alguma coisa? — perguntou
Manoli.
— Acho que sim — respondeu Rhodan. —
Como é? Posso levantar? Sinto-me...
— Sim, já sei. Você se sente com a força de
dois ursos. Se quiser pode sair da cama.
— Excelente. Como vai a Ganymed? Conti-
nua presa?
— O que você pensava?
— Está certo, o que é que eu poderia pen-
sar? Pode fazer o favor de convocar a oficialida-
de para uma reunião na cantina, daqui a meia
hora?
Manoli confirmou com um aceno de cabeça.
— Posso. Aliás, há outra coisa.
— O que é?
— A permissão para que Thora e Crest via-
jassem para Árcon foi revogada.
Rhodan ficou perplexo.
152
— Como foi isso?
— Foi muito simples. Freyt recebeu um cha-
mado acompanhado dum sinal de falta de ima-
gem. Uma voz meia arrogante disse que a per-
missão havia sido revogada e que não chegaria
nenhuma nave para levar os dois. Foi só. Não
foi indicado qualquer motivo, e não houve ne-
nhuma oportunidade de formular uma pergun-
ta.
Rhodan olhou para Thora.
— Receio que a culpa seja minha — disse
em voz baixa. — Tentamos inutilizar os gerado-
res do campo de sucção, e a senhora ficou liga-
da à operação. Sinto muito.
Thora tranqüilizou-o com um gesto. Falando
em inglês, disse:
— Esqueça isso! Talvez nem teria sido bom
se tivéssemos voltado a Árcon em condições
tão humilhantes.
Rhodan ergueu as sobrancelhas.
— Acredita que ainda conseguirá ir a Árcon
em outras condições?
Thora sorriu. Rhodan teve a impressão de
que foi um sorriso um tanto matreiro.
— Acredito, sim — respondeu.
— Ah, é? Como pretende fazer isso?
Thora deu um passo em direção a Rhodan.
— O senhor encontrará um meio, não é
153
mesmo?

***

Perry Rhodan nunca tivera um auditório em


cujos rostos a tensão se desenhasse com tama-
nha nitidez. A oficialidade da Ganymed atingia,
além dos mutantes, um total de oitenta e oito
homens. O cassino, no qual caberiam conforta-
velmente cem pessoas, parecia vazio, com ex-
ceção do semicírculo de homens que se compri-
miam em torno do orador.
Bell estava presente. Afirmava que sua cabe-
ça parecia um tambor em que alguém batesse
com dois martelos, mas não queria perder a pa-
lestra de Rhodan.
É claro que Thora e Crest também estavam
presentes. Thora exibia um sorriso que para
Rhodan era otimista demais face à situação em
que se encontravam.
Rhodan principiou:
— Treze anos depois da decolagem do pri-
meiro foguetezinho que levaria quatro homens
à lua terrena, outros homens, ou, mais precisa-
mente, terranos, favorecidos pelas circunstân-
cias, procuraram avançar até o coração do im-
pério mais poderoso de toda a história galácti-
ca.
154
“Há treze anos a humanidade ainda tinha
certeza de que o primeiro encontro com uma
inteligência irmã só lhe seria concedido num fu-
turo distante, se é que isso se tornasse possível
um dia.
“A humanidade estava enganada. A primei-
ra viagem espacial proporcionou o encontro.
Os acontecimentos tiveram seu curso. Com a
fanfarronice e a despreocupação típica do terra-
no, este se viu consagrado numa série de im-
portantes decisões, avançou muitos anos-luz,
até mesmo milhares de anos-luz pela Galáxia.
Derrotou outros seres e um belo dia, mais uma
vez sob a força das circunstâncias, acreditou ter
chegado a hora em que pudesse avançar até o
coração do Império Galáctico, onde seria rece-
bido como um amigo há muito esperado.
“É claro que isso foi pura tolice ou, se prefe-
rirmos, um raciocínio inspirado no desejo. Os
padrões aplicados revelaram-se falhos. O terra-
no imaginava que o Grande Império fosse algo
semelhante ao império de Alexandre, o Gran-
de, ou de Dchengiscan.
Veio com a idéia de que as coisas não pode-
riam ser tão más assim.
“Foi quando recebeu a primeira lição. Teve
de aprender que uma raça que, quando se en-
contrava no auge, conseguiu criar um império
155
que abrangeu todo o grupo M-13, chegou mes-
mo a estender-se à parte da Galáxia propria-
mente dita. Esta raça será extremamente pode-
rosa mesmo quando pelas veias de seu habitan-
te já não circular o sangue vermelho, mas uma
mistura de vapores tépidos, e os homens se ti-
verem tornado tão apáticos que raramente
saem das camas.
“A tecnologia arcônida garante a conserva-
ção da raça. Essa tecnologia chegou mesmo a
governar os arcônidas. No momento crítico,
uma máquina passou a dirigir os destinos do
Império, transformando seus imperadores e ad-
ministradores em simples marionetes.
“Devíamos saber, meus caros, que um mun-
do destes não pode ser conquistado na primeira
investida. Mas nossa imaginação não foi capaz
de conceber as coisas que encontramos por
aqui. Avançamos sem maiores cautelas e quase
quebramos a cara.
“Pretendíamos ir a Árcon, mas estamos pre-
sos em Naat. Mais do que isso, em virtude de
nossa atuação precipitada, Thora e Crest, os
amigos arcônidas que estão conosco, foram im-
pedidos de viajar para Árcon. Tentamos libertar
nossa nave, mas a única coisa que conseguimos
foi um choque mental sob cujos efeitos Tako
Kakuta ainda se acha inconsciente.
156
“Quem fez tudo isso não foi o arcônida que
exerce um simulacro de governo em Naat. Ele
não nos poderia impedir realmente de libertar a
Ganymed. Quem trabalhou por ele foi a máqui-
na instalada em Árcon. Naatral é um campo de
pouso da frota de guerra arcônida e está sub-
metido ao cérebro positrônico que assumiu o
poder em Árcon. Os aparelhos de comando da
aparelhagem do espaçoporto estão instalados
no funil de Sergh, mas não controlados pelo cé-
rebro positrônico. Não tenho a menor dúvida
de que no instante em que o cérebro positrôni-
co constatasse que um aparelho importante es-
tivesse ameaçado, não só nós, mas todos os
ocupantes do funil seriam postos fora de ação.
Foram robôs que nos trouxeram até aqui. Pro-
vavelmente serão também robôs que voltarão a
despertar Sergh e seus homens para a vida. A
máquina sabe como proteger-se. E, para fazer
isso em benefício do Império, não tem a menor
consideração, nem por um inimigo, nem por
um arcônida.”
Rhodan fez uma pausa. Viu que suas pala-
vras deviam ter causado uma impressão profun-
da nos ouvintes. Prosseguiu:
— Estamos presos aqui porque, se avalia-
mos corretamente o arcônida individual como
um ser indolente e decadente, cometemos um
157
erro de avaliação quanto à tecnologia arcônida.
Nem por isso vamos perder a esperança. Não
nos esqueçamos do pronunciamento do ser co-
letivo do planeta Peregrino, que prometeu à hu-
manidade o domínio da Galáxia. Temos certeza
de que essa promessa se cumprirá ainda no
nosso tempo.
“Não esperemos que isso aconteça. Faça-
mos o que depender de nós.”
Rhodan interrompeu-se, passou a mão pelo
cabelo, olhou seus oficiais e concluiu:
— Era o que eu lhes queria dizer. Não acre-
ditem que estamos à mercê dessa supermáquina
instalada em Árcon. Afinal, somo terranos.
Sem querermos enganar nossos amigos, que
afinal os arcônidas deveriam ser, ainda dispo-
mos ao menos de um trunfo.
— Gostei muito — confessou Bell. — Foi
patético e impressionante. Até cheguei a levan-
tar a crista. Bem que gostaria de saber por
quê...
— O que quer dizer? — perguntou Rhodan
em tom inocente.
— Gostaria de saber qual é o trunfo que ain-
da temos.
Rhodan fez uma careta.
— Ainda não descobriu?
Bell sacudiu a cabeça. Rhodan deu uma risa-
158
da e bateu no ombro do amigo.
— Procure refletir, Bell. E prepare-se para
um trabalho muito perigoso.

***

159
A Ganymed está no espaço porto de Naat,
onde campos energéticos invencíveis á man-
têm cativa ao solo.
Mas Perry Rhodan ainda dispõe de um
trunfo que ainda não lançou no jogo...
Conseguirá sair de Naat com seus homens
sem que seu captor o perceba e visitar o Im-
perador de Árcon?
Procure a resposta em O MUNDO DOS
TRÊS PLANETAS, próximo volume da série
Perry Rhodan.

*
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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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