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Aralon, O Centro De Epidemias
Clark Darlton

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização & Revisão


Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

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As frotas de guerra estão prontas para en-
trar em ação. Mas os médicos galácticos não lu-
tam com armas convencionais.

Curar e ajudar! É esta a idéia pela qual se


guia a ação de Perry Rhodan, pois não é de
seu feitio manter-se inativo enquanto sete-
centos dos seus melhores homens, apesar do
sono profundo e da alimentação artificial, ca-
minham para o definhamento lento, mas ine-
xorável.
Acontece que só os causadores da doença
podem ajudar os homens atacados de hipe-
reuforia. E, se não querem ajudar voluntaria-
mente, deverão ser obrigados a fazê-lo. ARA-
LON, O CENTRO DE EPIDEMIAS, é este o
destino da Titan.

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Personagens Principais:

Perry Rhodan — Que tem à sua disposição


uma frota de guerra fornecida pelo cérebro ro-
botizado que governa Árcon.
Julian Tifflor — Que alguém deseja colocar
no álcool.
Wuriu Sengu — O espia do exército de mu-
tantes da Terceira Potência.
Thora — A bela arcônida que ignora o pró-
prio noivado.
Gucky — O rato-castor que se recusa a exe-
cutar uma ordem.
Themos — Autor da epidemia dos nonus.
Talamon — Comandante de uma frota dos
superpesados.

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1

No interior do grupo estelar M-13, a aproxi-


madamente 34 mil anos-luz da Terra, um gi-
gantesco planeta gravitava em torno de seu sol
amarelento. Nos catálogos dos arcônidas, esse
sol estava registrado com o nome de Moof e,
em conformidade com as normas vigentes, o
planeta era chamado de Moof VI.
Era um mundo terrível, que não oferecia
nada de agradável.
Quando Perry Rhodan pousou no mesmo,
em fins de setembro de 1984, lembrou-se de
Júpiter, muito embora, ao contrário do planeta-
gigante do sistema solar, Moof VI abrigasse se-
res inteligentes.
Mas que vida era essa...?
Os moofs eram seres achatados, mas que
mediam alguns metros de altura. Lembravam
medusas superdimensionadas. Eram inofensivos
e pacíficos, comunicavam-se por meio da tele-
patia, não estavam interessados em criar uma
civilização digna de nota e sentiam-se felizes
quando eram deixados em paz.
Foi o que Rhodan fez quando constatou que
os moofs nada tinham que ver com a terrível
moléstia que atacara sua tripulação. Recolheu
cinqüenta desses seres a bordo da nave, insta-
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lou especialmente para eles um recinto com a
atmosfera de metano. No mais, esperava que a
capacidade sugestiva pouco desenvolvida desses
seres pudesse substituir, se necessário, a de
seus mutantes, colocados fora de ação.
Antes da decolagem Rhodan reuniu os tripu-
lantes sadios na sala de comando. Crest, o cien-
tista arcônida, alto e de cabelos brancos, aco-
modou-se numa poltrona. Seus olhos averme-
lhados já não exprimiam muita confiança. O
destino golpeara com muita força, colocando
Rhodan numa situação quase desesperadora.
O tenente Tifflor não parecia levar as coisas
tão a sério. Sentado diante do robô de pilota-
gem, aguardava calmamente as decisões de
Rhodan. Muito se assemelhava ao chefe pelo
aspecto exterior, embora fosse muito mais jo-
vem.
Wuriu Sengu, o espia japonês, manteve-se
de pé, humilde e quieto, conforme correspon-
dia ao seu gênio.
Com Gucky não acontecia a mesma coisa.
O rato-castor, que era o mutante mais compe-
tente de Rhodan, refestelou-se num sofá. Pare-
cia um rato de desenho animado, grandemente
amplificado com uma cauda larga que lhe servia
de apoio. Possuía pêlo cor de ferrugem e um
par de bondosos olhos caninos de cor castanha.
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As enormes orelhas e o focinho pontudo da-
vam-lhe um aspecto engraçado, que iludiria
qualquer estranho sobre a verdadeira natureza
do rato-castor. Gucky era telepata, telecineta e
teleportador ao mesmo tempo. Falava corrente-
mente o intercosmo, o arcônida e o inglês.
Sua voz aguda quase chegava a chilrear na
grande sala de comando da Titan, uma super-
nave de um quilômetro e meio de diâmetro.
— Estamos prontos para decolar, Rhodan.
Quer dizer que iremos mesmo a Árcon?
— Não vejo outra possibilidade. Sabemos
que os aras são os causadores da hipereuforia.
Setecentos dos nossos homens contraíram a
doença, entre eles os membros do exército de
mutantes e Thora, sem esquecer Bell. Se al-
guém puder curá-los, só poderão ser os aras.
Quer dizer que precisaremos colher outras in-
formações em Árcon. Ninguém sabe onde fica
o mundo central dos aras.
— O cérebro robotizado de Árcon sabe —
disse Crest. Subitamente parecia muito interes-
sado na conversa. — Ele nos ajudará.
— Ajudará porque é do seu interesse —
concordou Rhodan. — Desde o momento em
que o gigantesco cérebro positrônico substituiu
os arcônidas no governo do Império, as coisas
melhoraram. Por quê? Porque o cérebro possui
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iniciativa. Tenho certeza de que reconhecerá a
ameaça que os aras representam e continuará a
nos ajudar. Mais alguma pergunta? Em caso ne-
gativo, vamos decolar.
O tenente Tifflor levantou a mão como um
aluno bem comportado.
— Não temos prisioneiros a bordo? São
aras. Eles não revelaram a posição de seu mun-
do?
— Revelaram — confessou Rhodan. — Mas
precisamos da confirmação de Árcon, pois do
contrario poderemos cair numa armadilha. Só o
cérebro robotizado sabe se as indicações forne-
cidas pelos prisioneiros são corretas. Quer dizer
que não podemos deixar de percorrer o cami-
nho que leva a Árcon.
— O que estamos esperando? — chiou
Gucky com uma seriedade fora do comum. —
Vamos decolar. Até Árcon é só um pulo de
gato.
— Deve ser um pulo de rato-castor — disse
Tifflor, aludindo à capacidade de teleportação
de que Gucky era dotado. — São algumas deze-
nas de anos-luz, se não me engano.
— Conseguiremos fazê-lo com a tripulação
reduzida à metade — prosseguiu Rhodan em
tom confiante. — Muito bem. Vamos preparar
a decolagem. A Ganymed receberá as mesmas
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coordenadas. Voaremos juntos a Árcon.
Árcon era o centro do império estelar que
abrangia o grupo estelar M-13, cujo diâmetro
era superior a duzentos anos-luz. Num dos três
planetas principais do sistema estava instalado
o cérebro positrônico, do qual Perry Rhodan se
tornara aliado.
Sua nave, a Titan, já pertencera aos arcôni-
das. Ele a roubara, mas num gesto de generosi-
dade o cérebro permitiu que Rhodan ficasse
com a nave, mas sob uma condição. Rhodan
teria de prometer que só a utilizaria a favor do
Império.
A luta contra os aras foi travada a favor do
Império.
A Titan era uma esfera de 1.500 metros de
diâmetro. Segundo a vontade do comando es-
pacial arcônida, sua tripulação seria de 1.500
homens. Com uma aceleração de 600 quilôme-
tros por segundo ao quadrado, levava menos de
dez minutos para atingir a velocidade da luz.
Depois disso poderia realizar a transição que a
transportaria para o hiperespaço. Com um úni-
co salto através da quinta dimensão, podia ven-
cer dezenas de milhares de anos-luz.
Antigamente a Ganymed fora a nave capita-
nia de Rhodan. Foi com ela que viajou da Terra
para Árcon. Também a Ganymed vencia as dis-
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tâncias por meio da transição pelo hiperespaço.
Contava com dois tipos de instalação que eram
desconhecidos até mesmo ao cérebro oniscien-
te de Árcon. O transmissor fictício era capaz de
desmaterializar qualquer objeto, e fazer com
que voltasse a transformar-se em matéria no
ponto escolhido. Por exemplo: no interior de
outra nave. Isso representava uma arma de po-
tência incomensurável. A segunda conquista
tecnológica obtida da raça dos saltadores era o
compensador estrutural. Uma vez ligado, tor-
nava-se impossível que as estações goniométri-
cas registrassem as transições da nave. Há algu-
mas semanas também a Titan dispunha de um
compensador desse tipo.
Nas telas surgiu uma paisagem primitiva.
Montanhas desnudas, cobertas de neve, subiam
ao céu nevoento. Oceanos de amoníaco brilha-
vam sob os raios débeis do sol. Não se via ne-
nhum sinal de vida. Depois de se despedirem,
os moofs se haviam retirado. O grave perigo
que os ameaçava fora removido. Não eram
eles, mas os aras que deviam ser apontados
como autores dos atos condenáveis. Os aras
haviam tentado conquistar o Império de Árcon,
e isso por meios baixos e traiçoeiros. No curso
da luta travada contra os aras, setecentos ho-
mens de Rhodan contraíram a moléstia que
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costumava ser designada como hipereuforia. As
pessoas atingidas por ela sentiam-se leves e
despreocupadas, dançavam e cantavam. Mas
não mais se alimentavam. Morriam de fome
sem que o soubessem. A bem-aventurança era
tamanha que os fazia esquecer tudo, inclusive a
comida.
Para mantê-los vivos, Rhodan mandou que
fossem colocados num estado de sonolência
profunda e ininterrupta. Foram alimentados ar-
tificialmente. Mas isso não os poderia salvar, se
o auxílio não viesse logo. E esse auxílio só po-
deria vir dos aras, pois foram eles que inventa-
ram a toxina.
— Decolaremos dentro de dez minutos —
decidiu Rhodan. — As coordenadas são conhe-
cidas, Tiff. Mantenha contato audiovisual com o
coronel Freyt.
Freyt era o comandante da Ganymed.
Gucky escorregou para baixo do sofá e foi
em direção à porta.
— Prefiro estar no meu camarote quando
começar a transição. Aqui vivem incomodando
a gente.
Olharam-no com um sorriso. Só Crest conti-
nuou sério.
— Perry, quero estar presente quando o se-
nhor estiver falando com o cérebro robotizado.
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— Todos participarão da palestra — prome-
teu Rhodan. — Só faço um pedido. Ninguém
deve mencionar o fato de que temos setecentos
doentes a bordo. Só confirmarei a doença de
Thora e mais algumas pessoas. O cérebro raci-
ocina logicamente. Se achar que não estamos
em boas condições de combate, poderá recu-
sar-nos seu auxílio. E no momento precisamos
desse auxílio, infelizmente.
Discutiram outros detalhes. Os ponteiros do
relógio foram avançando.
— Decolar!
Os dois gigantes levantaram-se como se não
tivessem peso, graças aos campos gravitacio-
nais. A Ganymed era um cilindro de 840 me-
tros de comprimento. Os campos de propulsão
só entraram em funcionamento quando as na-
ves já se encontravam a alguma distância do
solo. O mundo gigantesco dos moofs mergu-
lhou nas profundezas do cosmo. Quando as na-
ves atingiram a velocidade da luz, estava reduzi-
do a uma estrela.
A seguir, as duas naves desapareceram do
espaço normal. Tremeluziram ligeiramente,
seus contornos apagaram-se — e repentina-
mente não estavam mais lá.
Haviam sido engolidas pela quinta dimen-
são, na qual o tempo e o espaço perdiam toda
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importância.
Voltaram a materializar-se num lugar total-
mente diferente, e isso muito rápido, quase no
mesmo segundo.
E com elas, se materializou tudo aquilo que
se encontrava a bordo no momento da transi-
ção.

***

Árcon ficava quase no centro do grupo este-


lar.
As duas naves emergiram do hiperespaço a
três meses-luz de seu sol flamejante. Mantive-
ram-se numa relativa imobilidade, preparando a
nova fase de sua ação.
Nas enfermarias da Titan, os doentes des-
cansavam em suas camas. Dormiam profunda-
mente e não sabiam nada do que se passava
em torno deles. Os reforços chegados da Terra
há pouco tempo já se haviam familiarizado ra-
zoavelmente com as instalações da nave, ocu-
pando o lugar dos incapacitados. Para Rhodan
isso representou um processo de adaptação
bastante desagradável. Normalmente levaria se-
manas para treinar a equipe da Titan, mas nas
circunstâncias em que se encontrava teve que
fazê-lo em poucos dias.
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Os médicos e cientistas cuidavam dos doen-
tes. Embora conseguissem manter vivas as po-
bres criaturas, não descobriram o causador da
moléstia nem puderam obter o antídoto.
Rhodan pediu que Crest, Tiff, Sengu e
Gucky comparecessem à sala de rádio, onde o
hipercomunicador já estava ligado. Na sala de
controle contígua, dois médicos aguardavam,
para levarem Thora, que estava apenas semi-
adormecida, à presença de Rhodan quando este
avisasse.
Nas grandes telas, tremeluziam as transmis-
sões simuladas e codificadas do cérebro. Pa-
drões coloridos mudavam de forma sem cessar,
formando uma confusão ininteligível. Só um
aparelho de decodificação devidamente regula-
do conseguiria interpretar essas imagens. Em
sintonia com as imagens óticas, os alto-falantes
emitiam sons incompreensíveis, que lembravam
uma peça de música eletrônica.
Rhodan cumprimentou os companheiros
com um aceno de cabeça e ligou o transmissor.
— Aqui fala a Titan. Comandante Thora da
família de Zoltral. Perry Rhodan é o imediato.
Peço confirmar a comunicação.
A antena lançou as palavras de Rhodan no
hiperespaço. No mesmo instante, o receptor si-
tuado a três meses-luz de distância retransferiu-
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as para o espaço normal. No momento em que
falava, Rhodan poderia ser ouvido a uma dis-
tância de vários meses-luz, ou mesmo de várias
dezenas de milhares de anos-luz. O alcance do
hiper-transmissor da Titan era inconcebível.
As imagens da tela consolidaram-se numa fi-
gura abstrata, mas esta logo se modificou. Aos
poucos, foi surgindo o gigantesco pavilhão com
a abóbada de metal cintilante.
Era o cérebro robotizado de Árcon, sobera-
no de um império estelar de dimensões inimagi-
náveis.
Uma voz fria, mecânica e impessoal saiu do
alto-falante:
— Identificação aceita. Faixa de onda exclu-
siva está ativada. Fale.
Mais uma vez o cérebro providenciara para
que ninguém pudesse ouvir a palestra, que não
foi codificada. Rhodan fitou a abóbada de aço
que abrigava o maior cérebro positrônico do
Universo. Sentia uma espécie de simpatia pelo
mesmo, muito embora essa palavra nunca po-
deria exprimir corretamente o que sentia. De
qualquer maneira, eram aliados — a máquina
infalível e ele, Rhodan.
— A Titan retorna de sua missão. Infeliz-
mente não tivemos êxito. Impedimos que o pla-
neta Moof VI fosse destruído pela frota arcôni-
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da, mas apenas conseguimos dar um passo em
direção ao objetivo. Já sabemos que os moofs
não são culpados da revolução de Zalit nem po-
dem ser responsabilizados pela hipereuforia.
Não têm nada com isso, tal qual os habitantes
do planeta Honur. Os únicos culpados são os
aras. Estão atrás de tudo.
— Os aras são um clã dos saltadores, que
também costumam ser chamados de mercado-
res galácticos. Não existem relações amistosas
entre os dois ramos. Os aras praticamente são
os médicos e biólogos do Império.
— De qualquer maneira são descendentes
dos mercadores — disse Rhodan com uma es-
tranha ênfase. — Não vivem apenas da ciência,
mas também do comércio. Não conseguem li-
vrar-se dessa herança racial. Infelizmente não
negociam apenas com medicamentos, mas
também com a morte.
— Apresente provas!
Rhodan suspirou.
— Encontramos provas bastantes em Honur
e em Moof VI. Sabemos que os aras costumam
infestar planetas inteiros para poderem forne-
cer o respectivo antídoto em troca de bom di-
nheiro. O senhor acha que esse método é cor-
reto, Regente?
O cérebro robotizado levou um segundo
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para formular a resposta:
— É um crime contra as leis do Império.
Acontece que precisamos dos aras; se não fosse
assim, ordenaria a destruição imediata de seus
mundos.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Concordo com o senhor. Mas deve haver
um meio de obrigá-los a cumprir as leis sem dis-
pensar seu auxílio. Tenho necessidade urgente
de um remédio contra a hipereuforia. Thora de
Zoltral está doente.
Rhodan teve a impressão de perceber certo
nervosismo na voz impessoal, mas era perfeita-
mente possível que fosse um engano.
— Thora está doente? Foi infeccionada pe-
los aras? Sim, já sei. O senhor já me informou.
Ainda não houve nenhuma cura?
— A cura só pode ser proporcionada pelos
aras.
— Eles não possuem um mundo nativo pro-
priamente dito; apenas dispõem de uma série
de bases planetárias.
— Por exemplo, o planeta Aralon — disse
Rhodan para atirar a isca.
Quase cinco segundos se passaram antes
que o cérebro robotizado respondesse:
— Aralon costuma ser considerado o mundo
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central dos aras. Como foi que o senhor soube
disso, Perry Rhodan do planeta Terra?
— Alguns prisioneiros me deram a informa-
ção. Não sabia se estavam falando a verdade.
Quer dizer que é correta? Aralon realmente é o
mundo central dos médicos galácticos?
— Sim. Aralon é o quarto dos sete planetas
que gravitam em torno do pequeno sol amarelo
de Kesnar, cuja posição ainda lhe será forneci-
da. Há outros detalhes importantes. Aralon não
tem armas, nem possui uma frota espacial pro-
priamente dita. Os aras acham que não têm ne-
cessidade de defender-se contra inimigos. Há
milênios cuidam para que as doenças infeccio-
sas nunca terminem. Toda a Galáxia precisa
dos aras e de seus medicamentos, motivo por
que mantém com eles boas relações. Dessa for-
ma, os aras podem ser considerados o povo
mais poderoso do Império, embora não possu-
am armas ou naves de guerra. Ninguém pode
obrigá-los a produzir ou entregar um medica-
mento contra sua vontade.
— Acontece que existe um meio de impedir
a atuação daninha dos aras. Para o bem do Im-
pério e de todas as raças inteligentes da Galáxia
esse meio deve ser empregado.
— Que meio é esse? — perguntou o cére-
bro.
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— A astúcia.
— Queira explicar melhor o que quer dizer
— pediu o Regente sem demonstrar a menor
emoção.
— Antes de mais nada, quero mostrar-lhe o
que será dos arcônidas se os aras tiverem a
idéia de levar a epidemia para Árcon — disse
Rhodan e fez um sinal para Crest. O cientista
grisalho desapareceu e pouco depois voltou
com uma cama de rodas, na qual jazia Thora.
Tinha os olhos abertos e um sorriso radiante
brincava nos seus lábios. O rosto parecia total-
mente despreocupado, mas estava magro e
flácido. Nem mesmo a alimentação artificial po-
deria impedir que os doentes morressem de
fome aos poucos.
— Esta é Thora de Zoltral, comandante des-
ta nave. Não sabe que está doente, mas a mor-
te já estende as mãos em sua direção, Regente
— falou Rhodan. — Ainda sorrirá no momento
em que estiver morrendo. Os aras a infecciona-
ram, e só eles poderão curá-la.
O cérebro robotizado permaneceu calado
durante quase um minuto.
— Explique a astúcia que pretende empre-
gar, Rhodan. Se conseguir convencer-me de
que um ataque a Aralon não representará qual-
quer perigo para o Império, colocarei à sua dis-
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posição todos os recursos que estão ao meu al-
cance.
Rhodan suspirou aliviado. Mandou que Tho-
ra fosse levada de volta à enfermaria, apontou
para o tenente Tifflor, que se mantinha nos fun-
dos da sala, junto ao japonês Sengu, e disse:
— Minha astúcia chama-se tenente Tifflor,
Regente. Em certa oportunidade esse terrano já
evitou que um mundo habitado caísse nas mãos
dos mercadores galácticos. Para isso ofereceu-
se para servir de chamariz cósmico.
— Chamariz cósmico?
— Em seu corpo foi implantado um minús-
culo transmissor, que ininterruptamente emite
seus impulsos. O fator decisivo é que esses im-
pulsos são propagados instantaneamente, po-
dendo ser captados até uma distância de dois
anos-luz. E são captados telepaticamente, não
por meio de receptores mecânicos. Quer dizer
que o tenente Tifflor é um telepata artificial,
que pode transmitir seus pensamentos a uma
distância de dois anos-luz. E, como já ressaltei,
a transmissão é instantânea.
— Para mim essa técnica ainda é desconhe-
cida. Perry Rhodan, o senhor dispõe de certas
coisas que ainda poderão ser muito úteis ao Im-
pério.
— Foi por isso que nos tornamos aliados —
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lembrou Rhodan e prosseguiu em tom indife-
rente: — Soltarei Tifflor em Aralon. Um único
homem não despertará a atenção de ninguém e
dificilmente será considerado o arauto de uma
potência galáctica. E ele nos manterá continua-
mente informados sobre aquilo que acontecer
em Aralon. Dessa forma teremos condições de
intervir no momento adequado.
— É uma missão muito arriscada — ponde-
rou o cérebro.
— Thora precisa ser curada. E, para que
isso aconteça, temos de assumir um risco. Mas,
se considerarmos que além de Thora todo o
planeta de Árcon poderá ser contaminado pela
moléstia, o risco não poderá ser considerado
muito grande. Os aras têm de convencer-se de
que poderão servir melhor ao Império se traba-
lharem honestamente. A fraude que cometem
contra a saúde do Império equivale a um crime
de alta traição.
— Aguarde até que consiga interpretar os
dados disponíveis — pediu o Regente.
O estalido do alto-falante mostrava que a co-
municação acústica acabara de ser interrompi-
da. O quadro permaneceu na tela.
Rhodan desligou o transmissor e dirigiu-se a
Tifflor:
— Como vê, Tiff, muita coisa o aguarda.
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Ainda não tenho certeza sobre todos os deta-
lhes de meu plano, mas já sei mais ou menos
de que forma poderemos agarrar os aras. Wuriu
Sengu e Thora o acompanharão para Aralon.
Crest deu instintivamente um passo para a
frente. Arregalou os olhos para Rhodan.
— Quer expor Thora a um risco?
Um sorriso ligeiro aflorou aos lábios de Rho-
dan.
— Pelo contrário, Crest. Thora será a pri-
meira pessoa a ser tratada com o soro. E o tra-
tamento ficará a cargo dos médicos de Aralon.
Quando isso acontecer, teremos a prova de que
a epidemia foi causada por eles, e ainda sabere-
mos que é curável.
— Como pretende levar os aras a agir dessa
forma?
— Ainda não tenho muita certeza sobre este
ponto. Porém pensarei nisso e já deverei ter a
solução quando nos encontrarmos perto de
Aralon. Este mundo que tem as costas protegi-
das por uma potência militar capaz de fazer
frente a qualquer inimigo.
— Pelo que acabamos de ouvir, Aralon não
dispõe de qualquer armamento...
— ...mas nem por isso estará indefeso,
Crest. Acredito que os aras tenham amigos po-
derosos, que intervirão na hora adequada.
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— Os aras têm amigos? Quem seriam?
— Afinal, eles pertencem à raça dos saltado-
res — lembrou Rhodan, mas interrompeu-se
com um gesto apressado. O alto-falante emitiu
um estalido. Ligou o receptor. Poucos segundos
depois, a voz fria do Regente fez-se ouvir:
— O sol Kesnar fica a trinta e oito dos seus
anos-luz de Árcon. Os outros dados conferem
com aqueles que lhes foram fornecidos pelos
prisioneiros. Concedo-lhe plenos poderes para
agir conforme julgar acertado. Além disso, colo-
co à sua disposição uma frota de guerra dirigida
por robôs, que por ora obedecerá exclusiva-
mente às suas ordens. A identificação será reali-
zada pela mesma freqüência que estou usando
para falar com o senhor. Dentro de dez minu-
tos, as respectivas unidades estarão à sua dispo-
sição. Informe-me sobre sua atuação assim que
a mesma seja iniciada. Atenção, uma advertên-
cia. Não ataque Aralon enquanto não houver
um motivo muito sério. Por agora não pode-
mos dispensar os aras. Ainda existem doenças
nos mundos do Império.
— É verdade, Regente. E as doenças conti-
nuarão a existir enquanto os aras puderem de-
senvolver sua ação nefasta.
— O senhor acaba de receber minhas instru-
ções — disse o Regente sem demonstrar a me-
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nor emoção. — Siga-as, se quiser que continue-
mos como sócios. De resto, desejo-lhe êxito e
muitas felicidades, Perry Rhodan. Se precisar
de auxílio, entre em contato comigo. Fim.
Rhodan esperou até que a imagem se apa-
gasse. Depois desligou o transmissor e o recep-
tor. Com um suspiro de alívio, caiu na poltrona
mais próxima. Ficou sentado por longos segun-
dos, com a cabeça apoiada nas mãos. Ninguém
se atrevia a perturbar seu descanso. Até Gucky
manteve-se quieto.
Crest parecia impaciente.
Finalmente Rhodan levantou a cabeça, esbo-
çou um ligeiro sorriso e disse:
— Quase chego a ter a impressão de que o
cérebro robotizado me transformou numa es-
pécie de policial. Imponha a ordem e eu paga-
rei. Bem, enquanto os interesses dele coincidi-
rem com os meus, não há nada a objetar. Mas
ai de nós, no instante em que os nossos interes-
ses entrarem em conflito. Não sei dizer o que
acontecerá quando surgir essa situação.
— Nesse caso depomos o Regente e assumi-
mos o governo — chilreou Gucky em tom con-
fiante e escorregou do sofá para o chão. Er-
gueu-se e bateu no peito, onde o pêlo era mais
claro. Nessa pose seu aspecto lembrava o dos
velhos ditadores da Terra. — Serei um excelen-
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te ministro do exterior.
Tiff sorriu.
— Acho que seria melhor fazer de você o
ministro do prazer — sugeriu, prosseguindo em
tom sério. — Quer dizer que o senhor pretende
largar-me em Aralon, senhor Rhodan? O que
devo fazer por lá? Afinal, não conheço aquele
mundo.
— Ninguém conhece o mundo em que fi-
cam os laboratórios médicos e bioquímicos des-
ses seres. Aposto que saberemos muito mais a
seu respeito depois que o senhor tiver passado
alguns dias por lá.
— Thora irá comigo?
— Terá de ir com o senhor — confirmou
Rhodan. — Sem isso a missão seria inútil. O
que houve, tenente Fuchs?
O oficial de meia-idade fora incumbido de
observar as telas enquanto Rhodan estivesse en-
tretido na palestra com o cérebro robotizado,
informando-o imediatamente sobre eventuais
modificações. Havia ocasiões em que Rhodan
preferia não confiar apenas nos instrumentos.
Normalmente Fuchs exercia as funções de ofici-
al de plantão da sala de rádio.
— Uma frota está saindo da transição. Esta-
mos totalmente cercados. São naves arcônidas.
— Devem ser os reforços anunciados pelo
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cérebro — disse Rhodan com a voz tranqüila e
levantou-se. Acompanhado pelos outros, foi à
sala de comando e contemplou as telas panorâ-
micas coloridas, que ofereciam um retrato fiel
do espaço que os cercava.
A visão era apavorante.
Os maciços couraçados da classe da Stardust
— formados por esferas de oitocentos metros
de diâmetro — mantinham-se a certa distância.
Os cruzadores e destróieres estavam formados
para oferecer-lhes proteção, com as bocas dos
canhões apontadas para a frente. A frota era
comboiada por ágeis caças.
Rhodan sabia que naquelas naves não havia
um único ser humano. Os comandantes eram
robôs positronizados, cujo saber programado
excedia o dos cientistas terranos mais compe-
tentes. A manipulação dos controles das naves
seria inteiramente automática, obedecendo a
uma orientação positrônica.
A formação que se apresentava no espaço
era o poder militar mais formidável que os
olhos de Rhodan já haviam visto. E esse poder
estava à sua disposição.
Não se sentiu tomado apenas pelo orgulho,
mas principalmente pela satisfação. O homem
do planeta Terra vencera. Provara que era dig-
no das tradições de Árcon. O cérebro robotiza-
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do tratava o terrano de igual para igual, chegan-
do mesmo a dar-lhes preferência sobre os ar-
cônidas, que eram os fundadores do Grande Im-
pério.
O homem provara que compreendera o or-
denamento divino que reina no Universo vivo.
Falando como quem desperta de um sonho,
Rhodan disse com a voz embargada:
— Fuchs, estabeleça contato direto pela fre-
qüência de Árcon com a nave capitania da frota
arcônida e passe a ligação para a sala de co-
mando. Quero falar com o comandante da fro-
ta.
O tenente Fuchs dirigiu-se à sala de rádio.
Crest perguntou:
— O que quer com ele, Perry? Deve ter re-
cebido suas instruções do Regente.
— A única instrução que recebeu foi a de
obedecer às minhas ordens — respondeu Rho-
dan.
Após um minuto, o rosto rígido de um robô
arcônida contemplava a sala de comando da Ti-
tan pela tela do aparelho de comunicação audi-
ovisual. As lentes cristálicas refletiam as luzes de
controle.
— Minha frota está à sua disposição, Rho-
dan da Terra — disse, iniciando a palestra. —
Quais são suas instruções?
27
Rhodan procurou disfarçar a satisfação que
sentia.
— Voaremos em direção ao sistema de Kes-
nar. A manobra de imersão será realizada a três
meses-luz de Kesnar. Sua frota permanecerá
imóvel, enquanto minhas naves prosseguirão à
velocidade da luz. A partir deste momento per-
maneceremos ininterruptamente em contato
audiovisual. Novas Instruções serão transmitidas
quando necessário.
— Entendido. Dispomos de bombas gravita-
cionais. A qualquer momento...
— Não desejo que essas bombas sejam utili-
zadas. Qual é sua denominação?
— Meu nome é OR-775, Rhodan da Terra.
— Muito bem, OR-775. Siga minhas Instru-
ções e aguarde as coordenadas de salto, que lhe
serão fornecidas por meu oficial de rádio. A
transição será realizada dentro de uma hora.
— Entendido. Ficarei na recepção.
A tela apagou-se.
Crest, que estava de pé junto a Rhodan, sol-
tou um suspiro. Rhodan fitou-o com um ligeiro
espanto.
— O que houve, Crest? Alguma coisa o pre-
ocupa? As coisas não estão correndo muito me-
lhor do que jamais ousaríamos esperar?
O arcônida confirmou com um aceno de ca-
28
beça.
— As coisas estão correndo bem demais —
ponderou. — Sabe lá o que significa ser coman-
dante de uma frota de guerra arcônida? Há tre-
ze anos me confiaram o comando de uma única
nave, embora fosse um membro da família go-
vernante. E o senhor, Perry, é praticamente um
estranho, membro de uma raça subdesenvolvi-
da. Pelo menos, há uma década e meia não
passava disso. E hoje já está agindo como man-
datário do maior império que já existiu no Uni-
verso. Perry, para todos os efeitos o senhor já
está de posse de sua herança.
Rhodan sacudiu lentamente a cabeça.
— Não vamos precipitar as coisas, Crest.
Ninguém tem uma herança para transmitir a
mim. Mas sinto-me orgulhoso porque o cérebro
robotizado me confiou a frota mais poderosa
que já vi. Pode crer em mim; as unidades estão
em boas mãos.
O tenente Fuchs enfiou a cabeça na sala de
comando.
— As coordenadas foram confirmadas. Quer
que as transmita ao comandante da frota?
— Quero, Fuchs. A transição será realizada
exatamente dentro de cinqüenta minutos. Até lá
atingiremos a velocidade da luz. Está na hora de
elaborarmos nossos planos de guerra. Tiff, para
29
isso não posso dispensar sua colaboração.
Também preciso de Sengu. Crest, gostaria que
o senhor também estivesse presente.
— E eu? — soou a voz queixosa vinda do
canto em que Gucky estava deitado em sua
cama, escutando a conversa. Mantinha as gran-
des orelhas de pé, e os olhos castanhos con-
templavam o mundo metálico da nave com
uma expressão de lealdade. — É estranho, mas
tenho a impressão de que desta vez não terei
nada a fazer.
— Pois está muito enganado, Gucky — ob-
jetou Rhodan. — Sob o ponto de vista passivo,
você até vai desempenhar o papel principal.
Você é o único que pode captar os impulsos
mentais expedidos por Tiff. Não dispomos mais
de nenhum outro telepata. É bem verdade que
não poderá ir a Aralon. Mas muitas vezes a coi-
sa mais importante não é a aventura propria-
mente dita. De qualquer maneira sei que posso
confiar em você. Está satisfeito?
Gucky soltou um assobio estridente e pouco
melódico.
— O que posso fazer? Pois bem, explique
seu plano de guerra. Estou ardendo de curiosi-
dade.
— Está o quê? Aprendeu isso com Bell?
Acho que mais uma vez você está confundindo
30
os conceitos — Rhodan esboçou um ligeiro sor-
riso, mas seu rosto logo voltou a tornar-se sé-
rio. — Pois bem, prestem atenção. Vou expli-
car meu plano em ligeiras palavras. Entraremos
em transição daqui a quarenta e cinco minutos
e voltaremos a nos materializar a três meses-luz
de Kesnar. Depois vamos...
Rhodan falou durante meia hora. As pessoas
que o ouviam não o interromperam uma única
vez.
O plano por ele desenvolvido era excitante
como um romance fantástico...

O sol Kesnar surgiu nas telas do aparelho de


mira da Titan sob a forma de uma pequena es-
trela amarela. Uma distância de três meses-luz
transformaria qualquer gigante num anão, e
Kesnar poderia ser tudo, menos um gigante.
A imensa frota arcônida manteve-se Imóvel
em meio ao espaço. Rhodan mandou fornecer
as últimas coordenadas a OR-775. Se a frota
de guerra entrasse em transição, voltaria a ma-
terializar-se a poucos segundos-luz de Aralon.
A Titan e a Ganymed deslocavam-se à velo-
cidade da luz, aproximando-se do sistema. A
essa velocidade as naves levariam três meses
31
para chegar a Aralon.
Mais uma vez chegara a hora decisiva de
Tiff.
Thora voltara a ser mergulhada num sono
profundo. A arcônida estava imobilizada na
cama de rodas, presa por cintos de couro, para
que não caísse caso houvesse um movimento
inesperado.
Wuriu Sengu, o espia, um homem que pela
simples força de sua vontade sabia enxergar
através da matéria compacta, era, além de
Gucky, o único membro do exército de mutan-
tes que não havia contraído a doença. Naquele
momento, usava o uniforme simples que o
identificava como membro do exército de mu-
tantes da Terceira Potência de Rhodan. Tiff
também estava uniformizado. Não tinham a
menor intenção de ocultar sua identidade.
No pequeno hangar da Titan em que a Ga-
zela havia sido abrigada, foram discutidos os úl-
timos detalhes. A Gazela era uma nave de reco-
nhecimento de longa distância que tinha o for-
mato de um disco. Seu diâmetro era de apenas
trinta metros. No ponto em que ficava a nodosi-
dade central, a altura chegava a dezoito metros.
Todavia, essa pequena nave podia vencer três
anos-luz com um único hipersalto e tinha um
raio de ação relativo de quinhentos anos-luz.
32
Rhodan puxou Tiff para o lado.
— Compreendeu o seu papel, Tiff?
— Muitas vezes será difícil trair o senhor.
— Acontece que sua tarefa será precisamen-
te esta. Nunca se esqueça deste detalhe. Acom-
panhe todas as palestras com o pensamento, a
fim de manter Gucky informado sobre o que es-
tiver acontecendo. Especialmente quando os
aras estiverem falando, repita mentalmente suas
palavras. Só assim Gucky estará em condições
de acompanhar as palestras.
— Faço votos de que nada aconteça a Tho-
ra.
— Não se preocupe, Tiff. Os aras conhecem
perfeitamente o valor do refém que acreditarão
ter em mãos. Por outro lado, farão questão de
provar ao senhor que possuem excelente capa-
cidade no terreno da medicina. O senhor vai
ver, tudo acabará bem, conforme planejamos.
Sim, está na hora. Boa sorte, Tiff. Até a vista.
— Até a vista. E que seja quanto antes —
respondeu Tiff e empertigou o corpo magro.
Um brilho resoluto surgiu em seus olhos cin-
zentos. Abaixou-se e acariciou o pêlo de Gucky:
— Faça um trabalho bem feito, meu chapa.
Quando eu voltar, apareça. Cocarei sua nuca
durante meia hora.
— Bell já me cocou durante cinco horas —
33
disse o rato-castor em tom de desprezo.
— De qualquer maneira, meia hora é me-
lhor que nada.
Crest deu uma pancada no ombro de Tiff.
— Boa sorte, tenente. Cuide bem de Thora.
— Serei seu anjo da guarda — prometeu
Tiff e subiu no passadiço. Sengu já o aguarda-
va. Acenou com a mão e a escotilha se fechou.
A Gazela estava pronta para decolar. Rho-
dan, Crest e Gucky saíram do hangar e volta-
ram à sala de comando. Acompanharam os
acontecimentos pela tela de imagem. Durante
trinta segundos não aconteceu nada. De súbito
a Gazela penetrou rapidamente no campo de
visão, vinda do lado direito. Com uma acelera-
ção tremenda aproximava-se do sol distante. De
um instante para outro desmaterializou-se. E, si-
multaneamente, sairia do hiperespaço a três
meses-luz. Depois pousaria em Aralon.
O resto não passava da mais pura especula-
ção.
E de uma sorte imensa, se tudo corresse de
acordo com os planos.

***

Tiff não se sentia nada bem.


Ninguém sabia qual seria a reação dos aras
34
quando uma nave estranha pousasse em seu
mundo central. Sem dúvida, eram considerados
um povo pacato. Isso não significava que não
saberiam defender-se, especialmente quando
seus interesses estavam em jogo. De qualquer
maneira, fizeram uma tentativa de submeter os
habitantes do planeta Zalit ao seu controle, por
intermédio dos moofs, que eram seres dotados
de poderes sugestivos, a fim de destruir o cére-
bro robotizado instalado em Árcon e dominar o
Império. Dali se concluía que os aras não eram
tão inofensivos e livres de ambição como fingi-
am ser.
Quando a Gazela voltou a materializar-se,
encontrava-se a vinte minutos-luz de Aralon.
Desenvolvendo a velocidade da luz, dirigiu-se ao
planeta e começou a desacelerar.
Tiff teve tempo para orientar-se através da
visão ótica. Aralon estava bem na sua trajetória.
Era uma estrela cintilante que crescia a cada se-
gundo que passava.
Sengu ergueu-se do leito. Aproximou-se de
Tiff e olhou para a tela.
— Quando descobrirão nossa presença? —
perguntou em tom preocupado.
Tiff deu de ombros.
— Não faço a menor idéia. Isso depende do
seu sistema de comunicações. É bem possível
35
que nossa imagem já esteja em suas telas.
— Quer que coloque o aparelho de rádio na
recepção?
— Isto nunca seria um erro. Talvez consiga
estabelecer algum contato. Se isso acontecer,
não responda; deixe por minha conta.
O japonês confirmou com um aceno de ca-
beça e passou a lidar com os aparelhos de rá-
dio.
Os minutos foram passando; transformaram-
se em meia hora.
A velocidade já fora reduzida bastante. A
Gazela deslocava-se a pouco menos de mil qui-
lômetros por segundo. Aralon era um planeta
verde formado por continentes e oceanos.
Lembrava a Terra distante.
No receptor de ondas normais, havia uma
confusão de centenas de vozes. Sengu não en-
tendeu uma palavra. A língua usada geralmente
era o intercosmo, o idioma do Império Arcôni-
da. Todas as mensagens estavam codificadas.
Tiff lançou um olhar para as telas laterais, e
viu duas naves cilíndricas que se aproximavam
velozmente da Gazela. Antes que tivesse tempo
de refletir sobre o que devia fazer, já tinham
passado. Descreveram uma curva para a es-
querda e, tal qual a Gazela, tomaram a direção
de Aralon.
36
Tiff nunca vira uma coisa dessas.
Aproximavam-se do planeta desconhecido,
altamente civilizado, e ninguém lhes dava a me-
nor atenção.
Não teve tempo para refletir sobre o fenô-
meno, sobre o qual Gucky já devia estar infor-
mado, se não estivesse dormindo naquele mo-
mento. Infelizmente não havia possibilidade de
receber mensagens por meio do transmissor
implantado em seu corpo. Este só permitia co-
municações em sentido único.
Mais três naves se aproximaram, vindas da
direita. Também tinham o formato de cilindro.
Passaram pela Gazela e, desenvolvendo uma
velocidade tremenda, precipitavam-se em dire-
ção a Aralon. Pela tela amplificadora, Tiff cons-
tatou que se acercavam do continente principal
e se preparavam para pousar.
— O tráfego por aqui é muito intenso — dis-
se em tom indiferente, dirigindo-se a Sengu,
que acompanhara a passagem das naves com o
queixo caído. — Se isso não é uma camufla-
gem, não nos darão muita atenção.
Ainda não desconfiava quanto essa suposi-
ção se aproximava da verdade.
Um vôo em torno do planeta bastou para lo-
calizar o porto espacial. Era uma área livre co-
berta de plástico. Seu formato era quase circu-
37
lar e o diâmetro devia ser superior a trinta qui-
lômetros.
Tiff nunca vira nada parecido fora de Árcon.
As naves enfileiravam-se no campo de pou-
so. Eram esferas enormes do tipo arcônida, gi-
gantes cilíndricos e torpedos que subiam em di-
reção ao céu. Mais de dez mil naves de cente-
nas de tipos diferentes! As idas e vindas ininter-
ruptas eram tão perturbadoras que Tiff teve a
impressão de estar sonhando. Era mais ou me-
nos assim que os autores fantasiosos imagina-
vam um espaçoporto do futuro. E todos haviam
zombado deles. E agora viu que a fantasia des-
ses autores nem sequer se aproximava da reali-
dade.
À medida que baixava, a impressão se torna-
va mais intensa. As fileiras de naves se estendi-
am junto a verdadeiras ruas. Carros velozes cor-
riam de um lado para outro, estabelecendo a
comunicação com os edifícios que cercavam o
campo de pouso em forma de anel.
Tiff continuou a descer. Descobriu um lugar
livre, em que havia espaço para sua Gazela.
Teve a impressão de ser um anão no meio de
gigantes quando tocou suavemente o solo e
desligou os propulsores.
Nenhum dos gigantes parecia ter notado sua
presença. Ninguém se preocupou com ele. Era
38
como se na Terra tivesse estacionado seu carro
numa vaga, em meio a milhares de veículos.
Seu vizinho era uma nave cilíndrica com
mais de trezentos metros de altura. Tiff viu al-
guns tripulantes descerem de elevador e entra-
rem num carro que os esperava. Nem sequer se
dignaram a olhar para o disco.
Não conseguiu orientar-se naquela floresta
de monstros metálicos. Recorreu aos instru-
mentos de bordo para calcular a posição apro-
ximada dos edifícios compridos e embandeira-
dos que vira pouco antes do pouso. Acreditava
que deviam ser uma espécie de recepção.
Sengu não tirava os olhos espantados das
inúmeras naves espaciais. Naquele instante, es-
taria calculando que o número dos pousos e de-
colagens chegaria, em média, a cinqüenta por
minuto. Não se percebia a existência de qual-
quer tipo de controle. Talvez os aras julgassem
isso tão ridículo como se na Terra alguém pro-
curasse orientar pelo radar os automóveis que
quisessem estacionar.
— Isto é uma coisa inconcebível! — gemeu
Tiff e não compreendeu mais nada. — Então é
assim que as coisas se passam num mundo real-
mente civilizado. Se me lembro que ainda há
vinte anos, a simples decolagem de um foguete
causava uma sensação bem maior...
39
— Os tempos mudam. E mudam muito de-
pressa — disse Sengu, resumindo as idéias que
lhe iam pela mente. — Aliás, o carro que deve-
rá levar-nos já está chegando — enxergava
através das paredes da Gazela. — Quer dizer
que isto não é tão desorganizado como se po-
deria pensar.
— Um carro?
— Isso mesmo. Vem sem motorista. Está
sendo teleguiado.
Tiff sacudiu a cabeça, mas logo se controlou.
— Deixaremos Thora no camarote. Fecha-
remos a escotilha de entrada, para que nin-
guém possa entrar. Se bem que não acredito
que por aqui alguém esteja ansioso para roubar
uma nave. Embora o furto talvez não fosse no-
tado. Não levaremos armas. Afinal, a raça com
que devemos entrar em contato é pacata.
Proferiu estas palavras com certa amargura
na voz, enquanto bloqueava todos os controles.
O camarote de Thora foi trancado. Fazia pouco
tempo que a arcônida havia recebido uma inje-
ção nutritiva. Estava dormindo. Saíram da Ga-
zela, trancaram a escotilha e saltaram para o
solo duro e liso.
O carro estava parado a alguns metros,
aguardando-os com a porta aberta. O lugar do
motorista estava ocupado por um painel auto-
40
mático. No assento de trás, havia lugar para
seis pessoas.
Mal estavam sentados, a porta fechou-se si-
lenciosamente. O veículo pôs-se em movimen-
to, correu pela estrada espacial, dobrou para a
esquerda e aumentou de velocidade.
A distância até a extremidade do campo es-
pacial devia ser de vinte quilômetros, se fosse
mantida a mesma direção. Tiff teve trabalho de
sobra para transmitir a Gucky as impressões
que desabavam sobre ele. Naquele instante,
gostaria de ver o rosto do rato-castor.
Durante a viagem vertiginosa, Tiff não pôde
fornecer uma descrição detalhada dos diversos
tipos de nave. Contentou-se com um relato ge-
ral, e com o tempo adquiriu uma certa prática
em constatar e transmitir as principais diferen-
ças.
Sengu logo se cansou da visão monótona.
Recostou-se no assento e fechou os olhos.
Depois de dez minutos de viagem, o espaço
entre as naves foi aumentando, até que o resto
do campo de pouso se estendeu diante dos
olhos dos terranos. O carro seguiu diretamente
para o edifício alongado com as bandeiras, que
Tiff já havia observado do alto.
Atravessaram uma barreira. Surgiu Uma lon-
ga fila de carros parados numa espécie de área
41
de estacionamento. Encontraram uma vaga. O
veículo, que parecia ser dirigido por uma mão
invisível, a ocupou. As portas abriram-se. Tiff
fez um sinal para Sengu. Desceram. Ninguém
exigiu qualquer pagamento. Aliás, Tiff não ti-
nha certeza se o autômato se contentaria com a
moeda arcônida, que Crest Ilhes entregara por
precaução.
— E agora? — perguntou Sengu perplexo.
A profusão de naves fora substituída por uma
quantidade enorme de veículos estacionados. —
Para onde vamos?
Tiff ajeitou o uniforme. Conseguiu esboçar
um sorriso débil e apontou para o edifício mais
próximo.
— Para lá.
Diante do edifício havia um grande movi-
mento. Humanóides entravam e saíam. Por
mais de uma vez, Tiff reconheceu figuras não-
humanas, mas em virtude da distância não lhe
foi possível identificá-las. Um moof guardado
num recipiente pressurizado passou por eles e
foi introduzido no edifício que tinha o aspecto
de repartição oficial. Alguns degraus largos e
coloridos levavam a um portal, atrás do qual se
viam certa instalações que tinham o aspecto de
guichês.
Tiff retribuiu o cumprimento de cabeça de
42
um homem alto, que parecia ter mais pressa do
que eles. Quem seria? Um saltador? Ou perten-
ceria a outra raça aparentada com os arcôni-
das?
Caminhando lentamente e com um sinal
cada vez maior de insegurança relativa os dois
terranos aproximaram-se do edifício. Ali saberi-
am se a teoria de Rhodan combinava com a
prática.
Um homem robusto de menos de um metro
de altura, que envergava um traje espacial fe-
chado, aproximou-se, lançou-lhes um olhar
perscrutador. Depois prosseguiu no seu cami-
nho. Tiff teve a impressão de ter visto atrás da
lâmina do visor um rosto um formato de sapo,
envolto por uma atmosfera verdecenta.
— Aqui é o ponto de encontro de todas as
raças da Galáxia — cochichou para Sengu, que
observava os arredores com os olhos semicerra-
dos. — Nunca imaginaria que uma coisa destas
realmente pudesse existir.
— Aqui o movimento é bem maior que em
Árcon — disse o japonês. — Isto se parece
mais com a capital de um império.
Era uma observação amarga e objetiva, cuja
justeza não poderia ser contestada. Tiff reco-
nheceu o fato em seu íntimo. Finalmente viu os
primeiros aras.
43
Eram descendentes de colonos arcônidas, tal
qual os saltadores ou mercadores galácticos. Ti-
nham mais de dois metros de altura e eram albi-
nos. A pele despigmentada, os cabelos brancos
e os olhos vermelhos provavam esse fato. Eram
de uma magreza inimaginável; pareciam feitos
exclusivamente de pele e ossos.
Três dos aras lançaram olhares curiosos
para os terranos, mas não demonstraram maior
interesse. Usavam capas brancas com sinais
dourados na altura do peito. Seu andar grave e
altivo dava mostras de uma sensação de auto-
confiança e superioridade.
— Eles não são nem um pouco convencidos
— murmurou Sengu quando os três estavam
fora do alcance de sua voz. — Para que servem
essas capas brancas?
— Talvez sejam médicos — conjecturou Tiff
em tom pensativo. — A presença deles num
porto espacial não seria nenhuma surpresa.
Chegaram aos degraus que davam para o
portal e entraram com mais alguns humanói-
des. Alguém teria de interessar-se por eles.
À direita e à esquerda enfileiravam-se os gui-
chês, atrás dos quais estavam sentados aras fe-
mininos que pareciam responder a perguntas
que lhes eram formuladas. Pareciam conversar
com os fregueses que se encontravam diante
44
dos guichês. Empurravam os papéis de um lado
para outro e preenchiam formulários.
Os três aras de capa branca passavam pela
multidão, olhando atentamente para todos os
lados. Parecia que procuravam alguma coisa.
Finalmente retiraram-se por uma porta situada
na parte dos fundos.
Tiff deu uma pancadinha em Sengu e diri-
giu-se ao guichê mais próximo.
Uma bela ara lançou-lhes um olhar bastante
interessado.
Tiff pigarreou. Antes que tivesse tempo para
abrir a boca e formular uma pergunta, a moça
disse em intercosmo:
— Aqui está seu formulário. Faça o favor de
preenchê-lo.
Tiff pegou a folha de papel dobrada e por
alguns segundos ficou perplexo, examinando os
caracteres que já lhe eram conhecidos. Apren-
dera a língua dos arcônidas através do processo
hipnótico. Não teria a menor dificuldade em
responder às perguntas constantes do formulá-
rio.
“Resta saber se devo responder a todas as
perguntas”, pensou.
Fez um sinal para a moça e juntamente com
Sengu dirigiu-se a uma das inúmeras mesas es-
palhadas pela sala. Um instrumento de escrita
45
protegido por um dispositivo magnético estava
à disposição do visitante.
“Quer dizer que aqui fizeram a mesma expe-
riência que na Terra”, pensou Tiff com certa
alegria. Colocou o formulário sobre a mesa, se-
gurou a caneta e ficou perplexo com a primeira
pergunta, colocada logo após o espaço reserva-
do aos dados relativos ao nome, planeta de ori-
gem e o motivo da vinda:

1) De que tipo é a doença que o trouxe a


Aralon? (Indicar a designação local ou descrever
os sintomas.)

Sengu olhou por cima do ombro de Tiff e


fez uma careta.
— Será que essa gente acredita que todo as-
tronauta é um doente?
Tiff não respondeu. Continuou a ler:

2) Deseja obter tratamento direto seguido de


alta imediata, ou planejou um tratamento mais
prolongado?
3) Indique o tipo de tratamento desejado.
4) Está vinculado ao seguro-saúde Arakos ou
a qualquer outro seguro? (Favor fornecer indica-
ções precisas.)

46
Tiff levantou a cabeça e seu olhar encontrou
o de Sengu.
— Acho que fui ao guichê errado — murmu-
rou com a voz insegura. — Talvez aquilo seja
uma seção especial para astronautas doentes.
— Pois vamos tentar em outro guichê — su-
geriu o japonês.
Tiff dobrou o formulário, o enfiou no bolso
e, com uma expressão de indiferença no rosto,
dirigiu-se a um guichê que acabara de ficar livre.
Sem olhá-lo, a ara, bela mas muito magra, em-
purrou-lhe outra ficha. Tiff pegou-a, embora já
soubesse que era absolutamente igual à que re-
cebera antes.
Começou a desconfiar da verdade.
Voltaram à escrivaninha. Tiff pegou a cane-
ta e começou a preencher o formulário.

Nome: Thora da família Zoltral. Sistema de


Árcon.
Espécie de doença: hipereuforia.
Local do adoecimento: Planeta Honur, siste-
ma de Thatrel.
Classe: Primeira.
Seguro: Paciente particular.
Espécie de tratamento: Direto, com alta ime-
diata.

47
Sengu ficou sacudindo a cabeça e olhou cau-
telosamente para todos os lados. Aquilo come-
çava a deixá-lo apavorado. Ninguém se interes-
sava por eles. Naquele recinto, as pessoas se
comprimiam como numa feira. O japonês viu
aras em capas brancas, que passavam devagar
e em atitude altiva por entre os recém-chega-
dos, examinando-os. Por vezes, dirigiam-se a
eles, conversavam um pouco e seguiam seu ca-
minho.
— Tiff, não estou compreendendo. Onde es-
tamos? O que está acontecendo por aqui? Será
que enlouquecemos?
Tiff colocou sua assinatura embaixo do for-
mulário e piscou para Sengu.
— Não enlouquecemos coisa alguma, meu
caro. Quer saber o que está acontecendo aqui?
Pois é muito simples. Acabamos de pousar em
Aralon, mundo central dos aras, que são uma
raça formada exclusivamente por médicos e o
respectivo pessoal auxiliar. Por isso, seria mais
que natural que transformassem o planeta num
único hospital. É isso mesmo, Sengu. Este pavi-
lhão é a recepção do hospital. Qualquer pessoa
que venha para Aralon está doente, quer ser cu-
rada. Acontece que a cura só pode ser encon-
trada neste lugar, que é a fonte de todas as do-
enças. Os aras querem viver, e vivem das doen-
48
ças dos outros.
Parecia que uma venda caía dos olhos de
Sengu. Os aras de capa branca eram médicos
que caminhavam à toa, olhando os novos paci-
entes. Os numerosos guichês faziam a triagem
dos recém-chegados segundo a espécie da do-
ença e o poder aquisitivo do paciente.
Um planeta-hospital.
— Isso... isso é uma coisa inconcebível.
— Será mesmo? Pois eu acho isto mais que
natural. Deveríamos ter sabido antes de pousar-
mos. Bem, preenchi o formulário para Thora.
Vamos entregá-lo e aguardar os acontecimen-
tos.
— E nós? Será que não precisamos fazer al-
gum registro?
— Ao que parece não existe nenhuma obri-
gatoriedade de registro para as pessoas sadias.
É bem provável que uma pessoa sadia não per-
maneça em Aralon mais tempo que o absoluta-
mente necessário. Trazem os amigos ou paren-
tes doentes e dão o fora. Mais tarde vêm buscar
o paciente curado. É um sistema muito simples,
e provavelmente também muito lucrativo. Todo
um planeta vive disto.
Um sorriso ligeiro e frio surgiu em seu rosto.
Segurou o formulário, e caminhou em direção
ao guichê mais próximo. Sengu seguiu-o. Tinha
49
uma sensação estranha na região do estômago.
A ara pegou o formulário, passou os olhos e
dirigiu-se a Tiff com um sorriso amável.
— Essa Thora da família Zoltral é sua paren-
ta?
A voz revelava certa dúvida. Qualquer um
perceberia imediatamente que Tiff e Sengu não
eram arcônidas. No Império de Árcon havia
tantas raças que a ara não poderia ter a menor
idéia sobre a raça a que pertenciam os visitan-
tes.
— É claro que não. Apenas a trouxemos a
pedido da família.
A moça confirmou com um aceno de cabeça
e lançou uma observação no formulário, antes
de colocá-lo na mesma. Ainda não se deu por
satisfeita. Sorriu mais uma vez, inclinou-se para
a frente e fitou os olhos de Tiff, como se procu-
rasse uma resposta.
— Não tenho nada com isso, mas gostaria
de saber de que sistema é o senhor. Não deve
ser de Heroinka.
Tiff sacudiu a cabeça com tamanha Torça
que qualquer um acreditaria que para ele He-
roinka era o inferno.
— Venho do planeta Terra, sistema Sol! —
disse em tom indiferente. — A senhora o co-
nhece?
50
Igual a Tiff, a moça sacudiu a cabeça violen-
tamente.
— Nunca ouvi falar. Ainda não tivemos ne-
nhum paciente de lá. Onde fica?
Tiff deu de ombros.
— Fica muito longe, a milhares de anos-luz.
A moça fitou Tiff com os olhos arregalados.
Depois soltou uma risada melódica. Naquele
instante, era bela e engraçadinha.
— O senhor está brincando. Não existe ne-
nhum sistema que fique a mais de cento e quin-
ze anos-luz daqui.
Tiff sabia que o conceito de ano-luz era qua-
se idêntico ao da Terra. O planeta completava
sua órbita em torno do astro central num perío-
do de trezentos e oitenta dias.
— Ao menos não existe nenhum sistema
pertencente ao Império.
— A Terra — disse Tiff, falando devagar e
com certa ênfase — não pertence ao Império.
A ara parou de rir. Escreveu algumas obser-
vações no formulário e atirou-o numa caixa me-
tálica. Ouviu-se um chiado, e formulário desa-
pareceu.
Abriu uma gaveta, tirou um disco metálico e
entregou-o a Tiff.
— Com isto o senhor pode pagar a uma
ambulância que tirará Thora de sua nave. Será
51
levada automaticamente ao local indicado. En-
tregue a paciente e volte à sua nave. Desejo-lhe
uma longa vida.
Dirigiu-se ao próximo visitante, que era uma
coisa disforme com um traje pressurizado e
uma máscara.
Tiff arrastou Sengu consigo. O disco metáli-
co desaparecera no seu bolso. Quando se viram
do lado de fora, respiraram aliviados. O ar era
puro e tépido. Lembrava um dia de primavera
na Terra.
— Como é difícil chamar a atenção de al-
guém num lugar como este — disse Tiff em
tom preocupado. — Até parece um hospital da
Terra. Ali também se pode entrar sem que nin-
guém lhe pergunte quem é e o que deseja. Isso
num grande hospital, naturalmente. Mas experi-
mente entrar num edifício de apartamentos.
Todo mundo o olhará e perguntará quem é
você e com quem quer falar. E o planeta em
que nos encontramos forma um hospital. Não é
de admirar que nem queiram saber quem so-
mos. O que lhes interessa é que tragamos um
paciente e o respectivo dinheiro...
— O que vamos fazer? Não podemos entre-
gar Thora e voltar sozinhos.
— Não tenho a menor intenção de fazer
isso. A moça já colocou algumas informações
52
no formulário. Na central, que reúne todas as
informações, começarão a desconfiar. Especial-
mente quando lerem a referência à Terra.
— Acredita que já ouviram falar no planeta
Terra?
Tiff acenou com a cabeça.
— De qualquer maneira desconfiarão. Tanto
faz que nunca tenham ouvido falar em nosso
planeta, ou que disponham de informações que
não poderão ser nada tranqüilizadoras. Estarão
muito interessados em travar conhecimento co-
nosco. Aposto que já nos estão esperando no
lugar para onde Thora será levada.
Perto do parque de estacionamento que já
haviam visto encontraram outro. Havia por ali
veículos dos mais variados tipos, capazes de
abrigar pacientes de todas as espécies. Um de-
les tinha o formato de grande aquário e estava
cheio de água. Tiff tinha uma fantasia bastante
ativa para imaginar como seria o paciente
transportado nesse veículo.
Tirou o disco metálico do bolso e examinou-
o mais detidamente. Possuía uma marcação. A
marcação, também redonda, que se via nas pa-
redes laterais do aquário transportável, não era
idêntica à de sua ficha.
Não demoraram em encontrar o carro desti-
nado a eles. Lembrava uma ambulância como
53
qualquer outra. No lugar da maçaneta, havia
uma fenda. Embaixo, o desenho da moeda.
— É uma coisa bem bolada — murmurou
Tiff. — Até mesmo um analfabeto não teria a
menor dificuldade em orientar-se num lugar
como este.
Enfiou tranqüilamente a ficha na fenda.
A porta abriu-se silenciosamente, como se
uma mão de fantasma a movesse. Entraram. A
porta fechou-se, e o carro foi posto em movi-
mento. Saiu para o campo espacial e dirigiu-se
para a rua larga que passava entre as naves es-
tacionadas.
— Como é que o condutor automático vai
saber onde fica nossa nave? — perguntou Sen-
gu com certo ar de triunfo. — Não existe a me-
nor indicação sobre o lugar em que a Gazela se
acha estacionada. Será que existe uma explica-
ção lógica?
— Acho que existe — respondeu Tiff e viu
as naves gigantescas aproximarem-se com uma
rapidez vertiginosa. Não se sentia o menor aba-
lo. — Afinal, fomos apanhados por um carro.
O cérebro positrônico registrou a rota percorri-
da. Basta solicitá-la, e o minúsculo cérebro ro-
botizado do automóvel fornece os dados, que
são introduzidos na programação da ambulân-
cia. Como vê, é muito simples.
54
O japonês desistiu. Sem dizer uma palavra,
resolveu aguardar os acontecimentos. Quando
o carro parou suavemente bem embaixo da es-
cotilha de entrada da Gazela, limitou-se a soltar
um ronronar de aprovação.
Thora estava acordada. Sorriu para os dois
homens, sem compreender o que estava acon-
tecendo. Como as correias a prendessem à
cama, Tiff não achou necessário pô-la a dormir
de novo. Por meio do antígravo portátil tiraram
a cama do camarote, levaram-na pelo estreito
corredor e finalmente a colocaram no automó-
vel que os esperava. A escotilha de entrada vol-
tou a ser fechada. Quando os dois homens ha-
viam entrado, as portas do veículo se fecharam
e este voltou a colocar-se em movimento.
Desta vez seguiu uma rota diferente.

***

Saíram do campo de pouso. Após quinze


minutos, chegaram a uma estrada larga que co-
meçou a descer lentamente, penetrando num
túnel que mergulhava sob a superfície de Ara-
lon.
A modificação provocou sentimentos um
tanto ambíguos na mente de Sengu.
— Será que isso não é uma armadilha, Tiff?
55
Por que iriam construir o hospital embaixo do
solo?
Tiff estava com os olhos semicerrados.
— Não sei mas posso imaginar. Os aras não
apreciam a luz do sol. Não se esqueça de que
são albinos. Conforme o tipo do paciente, pre-
ferirão que o hospital fique no subsolo. Acredito
que seremos levados em primeiro lugar a um
posto de triagem.
Nenhum carro os ultrapassou, mas alguns vi-
eram ao seu encontro. A cada quinhentos me-
tros, estradas mais estreitas saíam para a es-
querda e para a direita. As lâmpadas redondas
presas ao teto a intervalos regulares espalha-
vam uma luz mortiça.
Subitamente o veículo reduziu a velocidade.
Dobrou para a direita e desenvolveu maior velo-
cidade.
— Não demorará muito para sabermos a
quantas andamos — conjecturou Tiff. — Ficarei
satisfeito quando esta incerteza tiver chegado
ao fim.
— Eu também — murmurou Sengu, mas o
tom de sua voz não parecia muito convincente.
Mais adiante, viu-se uma luz mais intensa. O
veículo saiu do túnel, passou por uma grande
praça, subiu numa rampa estreita e parou dian-
te de uma porta. Depois de alguns segundos,
56
esta se abriu como se estivesse sendo controla-
da pelos espíritos. O carro voltou a deslocar-se
e estacou num pavilhão profusamente ilumina-
do, no qual desembocavam vários corredores.
Tudo reluzia de limpeza. Aras em capas
brancas andavam apressadamente de um lado
para outro, conversavam animados, lançavam
olhares rápidos para o centro e tornavam a de-
saparecer.
Cinco aras se aproximaram, vindos de outra
direção. Ficaram parados junto ao carro. Seus
rostos sérios pareciam um prenúncio do que os
esperava, mas talvez fosse apenas uma ilusão
de Tiff.
Um deles atirou uma ficha no registro auto-
mático, e a porta da ambulância! abriu-se.
— Os senhores estão trazendo a paciente
Thora de Árcon? — perguntou um dos aras e
lançou um olhar indagador para Tiff.
Este confirmou com um aceno de cabeça.
— Correto — reconheceu e desceu do carro
com as pernas duras, procurando movimentar
os pés. — Esta é a seção destinada aos doentes
que sofrem de hipereuforia?
O ara não reagiu à pergunta.
— Quem é o senhor?
— Sou o tenente Tifflor, do planeta Terra,
sistema Sol. Não sei se isto lhe diz alguma coi-
57
sa.
— E aquele ali?
— É Wuriu Sengu; também vem da Terra —
informou Tiff.
O ara acenou com a cabeça, como se esti-
vesse ouvindo alguma coisa que já sabia há mui-
to tempo.
— Então é o planeta Terra — murmurou sa-
tisfeito. — Bem que nós desconfiávamos.
Tiff não conseguiu reprimir mais a curiosida-
de.
— Já ouviu falar no planeta Terra? Será que
poderia me dizer quando foi isso?
— O senhor ainda terá oportunidade para
conversar conosco. Siga-nos.
Tiff apontou para o carro.
— E Thora? Está doente e precisa de assis-
tência imediata.
— Cuidaremos dela; não se preocupe. A
peste de nonus é uma doença infecciosa relati-
vamente simples. Amanhã sua paciente nem se
lembrará mais de que já esteve doente. Mas não
vamos perder mais tempo. Acompanhe-nos;
precisamos conversar com o senhor.
Tiff ainda estava hesitando. Não gostou nem
um pouco da idéia de deixar Thora só. Mas não
lhe deram oportunidade de empregar outras
táticas de retardamento. A um sinal do ara,
58
quatro homens robustos aproximaram-se. Em
comparação com os outros nativos do planeta
Aralon, eram verdadeiros atletas. Tiff e Sengu
foram agarrados por dois deles. Sem a menor
consideração, torceram os braços dos homens
surpresos e empurraram-nos rapidamente em
direção a uma porta.
O japonês fez menção de defender-se, mas
Tiff lhe disse:
— Não faça isso, Sengu. Em primeiro lugar,
precisamos saber o que desejam de nós. Não se
defenda.
Uma porta foi aberta. Os quatro indivíduos
robustos empurraram suas vítimas para o interi-
or da sala, e continuaram segurando-os.
Três dos cinco médicos os seguiram.
Atrás de uma mesa larga estavam sentados
mais três aras com as costumeiras capas bran-
cas. Olharam Tiff e Sengu com uma enorme
curiosidade.
— Poderiam fazer o favor de explicar o que
significa isso? — disse Tiff em tom enérgico. —
Nós lhes trazemos uma paciente e os senhores
nos tratam como se fôssemos criminosos.
O mais velho dentre os aras acenou lenta-
mente com a cabeça e lançou um olhar para a
pilha de documentos que se encontrava diante
dele. Voltou a levantar a cabeça e seus olhos
59
vermelhos e inexpressivos fitaram Tiff.
— Pois é justamente isso. Os senhores só
nos trazem uma paciente. Pelas informações
que recebemos, deve haver algumas centenas.
O que houve com os outros?
É claro que Tiff não estava preparado para
esta pergunta. Levou alguns segundos para res-
ponder:
— Talvez eu tenha um interesse pessoal
apenas na cura de Thora.
O velho inclinou-se para a frente.
— Será? — voltou a folhear os documentos.
— Os senhores vêm da Terra, um planeta que
fica a mais de trinta mil anos-luz e que ainda
não teve qualquer contato com o Império. Seu
comandante é Perry Rhodan, que por várias ve-
zes entrou em choque com os mercadores ga-
lácticos. Por que acha que devíamos ter interes-
se em ajudar os inimigos de nossos amigos?
Por pouco Tiff não responde: Porque vocês
os fizeram adoecer. Mas conseguiu controlar-se.
— Quem lhe disse que Thora é amiga de
Rhodan? — perguntou. — O que dizem suas in-
formações, além disso?
— Bastante coisa — resmungou o velho. —
O senhor deve estar lembrado de que em certo
planeta que os saltadores costumam chamar de
Goszul, Rhodan provocou artificialmente uma
60
epidemia a fim de apoderar-se do mesmo. Será
que já está esquecido disso? Não deixará de
confessar que é um método bastante condená-
vel. Os saltadores doentes vieram para Aralon,
em busca de auxílio. Foi assim que descobri-
mos. Felizmente tratava-se de doença infecciosa
auto-curável. De qualquer maneira, essa história
granjeou uma fama triste para Perry Rhodan.
Já sabemos quem são os terranos.
Tiff não estava disposto a ficar calado por
mais tempo.
— Então já sabem quem somos? — fungou
e de um golpe livrou-se das mãos dos dois guar-
das. — Não preciso de vigia, seus fracalhões.
Dirigindo-se novamente ao velho sentado
atrás da mesa, prosseguiu:
— Rhodan aplicou o mesmo método que re-
presenta o fundamento da existência dos aras,
não é? Por isso ficaram tão aborrecidos. Ou
será que vocês pretendem negar que costumam
espalhar pela Galáxia os germes mais perigo-
sos, para lucrar na cura dos seres atacados pe-
las epidemias? Se não fossem os aras, já não
haveria doenças, e vocês teriam que trabalhar
de verdade para poderem viver. É assim que se
pensa por aqui. No entanto, uma raça inteligen-
te sempre teria um campo bastante amplo para
o trabalho e a pesquisa. A vida artificial, a vida
61
eterna, a eliminação da morte física... a lista
não tem fim. Em vez disso, o que é que vocês
preferem fazer? Fomentam as doenças para
que este hospital nunca fique vazio. Então, o
que me diz, meu velho?
O albino sentado atrás da mesa ouvira-o
atentamente sem demonstrar a menor emoção.
Confabulou em voz baixa com os colegas. De-
pois olhou para Tiff.
— Por que procura irritar-me? Quer desco-
brir alguma coisa? Rhodan quer descobrir algu-
ma coisa que ainda não sabe?
— Rhodan! — Tiff proferiu este nome com
tamanho desprezo que ele mesmo se assustou.
— O que tenho que ver com Rhodan? Pois é
ele que quer conservar Thora para si. Para ele,
a doença veio muito a propósito. Os senhores
conhecem os sintomas da hipereuforia, que é o
nome que costumamos dar ao sorriso eterno.
Serei franco com os senhores...
— Meu nome é Themos. Sou chefe deste
setor e diretor científico dos laboratórios ligados
ao mesmo. Prossiga.
— Era o que eu pretendia fazer, Themos.
Vim contra a vontade de Rhodan. O senhor
acredita que ele me teria mandado para cá não
trazendo mais ninguém senão Thora? O senhor
já percebeu, não é?
62
— Por que resolveu trazer-nos Thora contra
a vontade de Rhodan?
— Eu... bem, quis prestar-lhe um serviço,
Themos. Tenho vários motivos para isso. Thora
é muito poderosa e poderá ajudar-me a progre-
dir na vida, caso se sinta obrigada para comigo.
Além disso, poderia convencê-la de que, para
mim, sua vida é mais preciosa que para Rho-
dan.
Themos inclinou-se para a frente e lançou
um olhar perscrutador para Tiff.
— Pretende trair Rhodan? Como posso sa-
ber que não está mentindo?
— Acredite ou deixe de acreditar. A decisão
depende exclusivamente do senhor. Cure Tho-
ra, se puder, e eu lhe demonstrarei minha grati-
dão.
O velho contemplou Tiff por algum tempo.
Depois olhou para Sengu, que demonstrou um
interesse surpreendente pelo solo em que esta-
va pisando. Depois voltou a conversar em voz
baixa com os outros aras.
Tiff teve tempo para enviar uma mensagem
telepática a Gucky.
A conferência inaudível demorou quase dez
minutos. Finalmente Themos tornou a falar:
— Curaremos de Thora, mas por enquanto
não podemos permitir que voltem à sua nave.
63
Serão nossos hóspedes. Dar-lhes-emos um
quarto que não poderão deixar sem licença es-
pecial. Acreditamos que não se oporão a uma
revista pessoal; queremos verificar se estão por-
tando armas ou qualquer aparelho de comuni-
cação.
No seu íntimo Tiff aborreceu-se com a medi-
da; todavia, não havia meio mais eficiente para
convencer os aras de que ele e Sengu eram cri-
aturas inofensivas. Na verdade, não possuíam
qualquer arma ou aparelho de comunicação vi-
sível. Depois de se convencerem disso, os aras
relaxariam sua vigilância.
— É claro que não temos a menor objeção
— disse Tiff com a maior tranqüilidade. — Fa-
çam o que quiserem, se isso os deixa mais cal-
mos. Mas não gosto de ficar trancado num
quarto. Quero saber o que está acontecendo
com Thora. Será que realmente estão em con-
dições de curá-la?
— Empenho minha palavra de cientista para
garantir a cura — asseverou Themos com certo
orgulho. — Afinal de contas a peste de nonus é
uma doença bacilar criada por mim, e é claro
que o respectivo antídoto também foi descober-
to por mim. Amanhã Thora já estará boa —
lançou um olhar penetrante para Tiff. — Aliás,
ela sabe onde e por que foi infectada?
64
— Como poderia saber disso? Só quando
estiver curada será capaz de compreender ou
de se lembrar de alguma coisa. Árcon não fica-
rá muito satisfeito com seus métodos de causar
doenças.
Themos esboçou um sorriso frio.
— Providenciaremos para que Árcon nunca
saiba disso. Uma vez que, segundo afirma, o se-
nhor é contra Rhodan, o senhor não contará
nada a Thora e aos demais arcônidas, não é
verdade?
Tiff não respondeu. De repente Sengu disse:
— Seus laboratórios ficam bem embaixo da
superfície, abaixo deste setor do hospital, não é
verdade?
Themos acenou com a cabeça; parecia per-
plexo.
— Como é que o senhor sabe disso? Todas
as nossas instalações ficam abaixo do solo, por-
que com o tempo o sol produz efeitos bastante
desagradáveis.
— Ao menos para os albinos — disse Tiff
com certa ênfase.
Themos não parecia ofender-se com isso.
— Sim, é isso — confirmou em tom indife-
rente. — É por esse motivo que permanecemos
na superfície o menos possível. Sendo assim,
não é por maldade que insistimos em que por
65
enquanto fiquem aqui embaixo. Terão de aguar-
dar nossa decisão. O grande conselho médico
de Aralon cuidará do assunto nas próximas se-
manas. Tiff inclinou-se para a frente.
— O senhor falou em semanas? Acha que
tenho tanto tempo?
— Será que não tem tempo? — perguntou
Themos em tom desconfiado. — Quem poderia
estar esperando pelo senhor, já que não tem a
intenção de voltar para junto de Rhodan?
Tiff mordeu o lábio.
— Quero levar Thora e meu amigo a um sis-
tema isolado, que possua um planeta bastante
idílico. É lá que Thora e eu vamos nos casar.
— Será? — Themos parecia surpreso. —
Um certo Etztak me disse que entre Rhodan e a
tal da Thora existe um certo relacionamento...
Bem, digamos, que existe um relacionamento
amistoso. O que dirá Rhodan quando souber
dos seus planos?
— O problema não é meu — respondeu Tiff
em tom indiferente. Naquele momento, gostaria
de ver o rosto de Rhodan, se Gucky o estivesse
informando sobre o curso da palestra. Os pla-
nos não previam uma troca de idéias tão cho-
cante. — Não veremos Rhodan nunca mais.
— Tenho certeza absoluta de que não o re-
verão, quer o estejam traindo, quer não — disse
66
Themos com a voz fria e levantou-se. — Mas
chega de conversa. Vamos agir. Serão levados
aos seus quartos e revistados lá mesmo. Não
ofereçam resistência e não terão problemas.
Amanhã realizaremos um exame médico. Não
se preocupem; é apenas uma questão de rotina.
Depois disso, poderão cumprimentar uma Tho-
ra restabelecida. Então veremos o que ela acha
dos seus projetos de casamento. Para o bem do
senhor, faço votos de que se sinta muito feliz...
Tiff percebeu a ameaça que havia nessas pa-
lavras. Porém não teve tempo para imaginar
com clareza os mal-entendidos que certamente
surgiriam. Quatro braços robustos agarraram-
no por trás e carregaram-no para fora da sala.
Sengu teve o mesmo destino.
— A viagem nos levará para as profundezas
do planeta — gritou para Tiff e sorriu, fazendo
uma careta. — Receio que seremos levados a
um setor muito profundo.
— Silêncio! — trovejou a voz de um dos
guardas.
— Isso não me preocupa nem um pouco —
respondeu Tiff, sem dar a menor atenção à or-
dem do ara. — O que me deixa mais preocupa-
do é a idéia do que dirá Thora quando souber
que é minha noiva...

67
3

A Titan e a Ganymed realizaram um peque-


no hipersalto, que as deixou mais próximas do
sistema de Kesnar. Continuando a deslocar-se à
velocidade da luz, ainda se encontravam a um
dia-luz de Aralon.
O período de descanso decorrera sem qual-
quer acontecimento importante. Tiff informara-
os de que ele e Sengu haviam sido colocados
num quarto bem confortável, acrescentando
que pretendiam dormir algumas horas. Na su-
perfície de Aralon, começara a noite, e, naque-
le submundo, também havia uma espécie de
pausa.
Gucky acordou e a primeira coisa que fez foi
prestar atenção aos impulsos emitidos pelo
transmissor implantado no corpo de Tiff. Os
impulsos vinham a intervalos regulares, mas
não traziam qualquer mensagem telepática.
Concluiu que Tiff ainda estava dormindo.
O rato-castor espreguiçou-se, escorregou da
cama para o chão e dirigiu-se ao compartimen-
to contíguo, onde ficava o chuveiro. Com um
pavor íntimo saltitou sob o jato de água fria, in-
sistindo para consigo mesmo em que esse pro-
cesso não só limpava seu couro, mas também
era bom para a saúde. Enxugou-se sob o jato
68
de ar quente e caminhou em direção à sala dos
tripulantes.
Além de Crest e alguns conhecidos, encon-
trou-se também com Rhodan, que perguntou
imediatamente se nesse meio tempo havia
acontecido algo de novo. Gucky tranqüilizou-o e
passou a dedicar-se à refeição matutina. Ficou
satisfeito ao ver que em seu prato havia uma ra-
ção especial das deliciosas cenouras enviadas da
Ganymed. Eram seu alimento predileto, e nem
mesmo Bell conseguia fazer com que desistisse
dele.
— Se os aras cumprirem a palavra, Thora
estará restabelecida ainda hoje — disse Rhodan
e sorveu um gole de café quente, que preferia a
qualquer das bebidas concentradas. — Quando
isso acontecer, saberemos que possuem o antí-
doto. Não haverá mais nenhum motivo para es-
perar.
— O que pretende fazer? — perguntou
Gucky enquanto mastigava, o que não era nada
fácil para o solitário dente-roedor. — Atacar?
— É claro que só pode ser isso — afirmou
Rhodan.
Crest baixou a mão que segurava a xícara.
Seu olhar parecia preocupado.
— Sabemos que Aralon é o hospital galácti-
co. Se o atacarmos, agiremos contra o direito.
69
— Um depósito de armas protegido pela
cruz vermelha. Isto é uma velha história. E aqui
nos encontramos numa situação semelhante.
Afinal, Tiff representa a prova de que os aras
abusam do seu saber — retrucou Perry.
— Tiff está nas mãos deles — lembrou Crest
em tom tranqüilo.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Mas não estará por muito tempo, Crest.
Gucky sabe dizer a qualquer momento onde
está Tiff, e quando nos tivermos aproximado o
suficiente para que possa realizar a localização
goniométrica, não haverá mais nenhum meio
de esconde-lo de nós. Não pretendo tratar os
aras com luvas de seda. São mais perigosos e
inescrupulosos que qualquer dos inimigos do
Império.
Crest ainda tinha suas dúvidas.
— De qualquer maneira, cometerá uma in-
justiça aos olhos das outras raças se atacar um
grupo de médicos indefesos. Não se esqueça de
que muita gente vai a Aralon em busca de auxí-
lio contra a doença e a morte. E o senhor está
impedindo aqueles seres de curar os outros. Se
ainda os matar...
— Nem cheguei a insinuar que pretendo
matar um ara que seja — disse Rhodan em tom
70
indiferente.
Crest suspirou aliviado.
— Nesse caso está tudo em ordem, se bem
que eu gostaria de saber como pretende obrigá-
los a ceder por meio de ameaças.
— Veremos — disse Rhodan. — Para falar a
verdade, eu mesmo ainda não sei exatamente.
De repente Gucky levantou a cabeça. O res-
to da cenoura caiu das suas patas e foi parar no
prato. Os olhos começaram a brilhar. Com a
voz nervosa pôs-se a cochichar:
— Tiff foi acordado. Vieram buscá-lo para
submetê-lo a novo interrogatório...

***

A porta foi aberta do lado de fora e dois


aras robustos entraram no quarto.
Tiff e Sengu acordaram imediatamente. O
processo mental normal foi reiniciado. A vinte e
quatro horas-luz de distância Gucky captava os
impulsos.
— Vamos, levantem. Themos quer falar
com vocês.
Tiff saiu da cama de lado. Não se apressou.
Também Sengu lavou-se calmamente antes de
vestir o uniforme. Os dois aras saltitavam ner-
vosamente de um pé para outro, mas deviam
71
ter recebido instruções terminantes para não
maltratar os prisioneiros.
Finalmente a limpeza matutina foi concluída.
— Quando ganharemos o café? — pergun-
tou Tiff. — Será que isto aqui não é um hospi-
tal de verdade?
— Themos responderá as suas perguntas —
disse um dos guardas enquanto abria a porta.
— Virão espontaneamente?
Nem Tiff nem Sengu julgaram necessário
dar qualquer resposta a esta pergunta.
Enfiado na capa branca, Themos estava no-
vamente sentado atrás da mesa já conhecida
com a tampa semicircular feita de plástico. Ou-
tros aras se encontravam em sua companhia.
Fitaram os dois homens com os rostos sombri-
os. O olhar do diretor científico não prenuncia-
va nada de bom. Tiff esqueceu-se do café. Des-
confiava do que tinha acontecido. A primeira
frase dita por Themos confirmou seus temores:
— Thora está curada, terrano. Não se lem-
bra de jamais lhe ter dado esperança de casar
com, ela. Continua a dedicar toda a simpatia a
Perry Rhodan. Então, o que me diz, tenente
Tifflor, ou seja lá qual for seu nome?
Tiff não se apressou para responder. Repe-
tiu mentalmente palavra por palavra da breve
fala do ara, para orientar Gucky. Depois, deu
72
de ombros e disse em tom de lástima:
— Que pena. A doença deve ter apagado
parte da memória. Já não se lembra das últimas
horas que passamos juntos. Posso vê-la?
— O que deseja dela? Thora é uma arcôni-
da. Não se ligará ao senhor nem a Rhodan.
Cuidaremos disso. Resolveu ficar para sempre
em Aralon a fim de empenhar suas forças na
cura dos doentes. Não acha que é uma bela
perspectiva? De qualquer maneira, é bem me-
lhor que a de casar com um terrano.
Tiff começou a ferver no seu íntimo. Pensou
intensamente, concentrando-se totalmente em
Gucky:
— Diga a Rhodan que está na hora de agir.
Ataquem. Transmitirei ininterruptamente para
que você possa localizar-me. Thora será...
— Por que não responde? — interrompeu-o
Themos, que não tinha mais nada do velho
gentil com que falara no dia anterior.
Tiff fitou os olhos vermelhos.
— Porque estou admirado com o senhor,
Themos. Não trouxe Thora para cá? Só pode-
ria ter feito isso para afastá-la de Rhodan. E
não traí Rhodan? Qual é a paga que me dão?
Pretendem enganar-me.
— O senhor trouxe Thora para Aralon para
conseguir medicá-la, pois somos os únicos que
73
podem curá-la. Só nós possuímos o soro contra
a peste dos nonus. E não o entregaremos a nin-
guém. Caso esse seu Rhodan ainda tiver doen-
tes a bordo, terá que vir para cá se quiser curá-
los. E quando isso acontecer talvez lhe entre-
guemos dois traidores.
Tiff não respondeu. Era mais ou menos o
que esperara. Os aras só estavam interessados
em Thora. A arcônida devia representar um
trunfo muito forte em suas mãos. Não era de
admirar, já que contara que Perry Rhodan signi-
ficava alguma coisa para ela.
Themos fez um sinal para os guardas.
— Levem-nos para baixo, para a estação ex-
perimental de raças extra-imperiais. Precisamos
descobrir a constituição orgânica dos terranos.
Talvez consigamos verificar se descendem de
antigos emigrantes arcônidas, ou se são uma
espécie distinta.
Tiff e Sengu poderiam defender-se, mas se-
ria uma luta sem esperança contra forças muito
superiores. Para que enfrentar um risco desne-
cessário? Rhodan já captara a mensagem de so-
corro e não demoraria em atacar Aralon. Teria
que libertar Tiff e Sengu, e principalmente Tho-
ra.
E precisava conseguir o soro.
Foram empurrados para dentro de um eleva-
74
dor que caía com velocidade cada vez maior
para as profundezas do planeta. Os dois guar-
das não participaram da viagem vertiginosa.
Era uma pequena cabine quadrada de apro-
ximadamente oito metros cúbicos. Nas paredes,
ouvia-se um assobio cada vez mais agudo. Tiff
percebeu que o peso de seu corpo estava redu-
zido à metade. A gravitação de Aralon era igual
à da Terra. Isso significava que desenvolviam
metade da velocidade que atingiriam numa que-
da livre.
— Está vendo alguma coisa?
O japonês, que olhava para todos os lados,
com uma expressão bastante rígida, confirmou
com um aceno de cabeça.
— Passamos a uma velocidade cada vez
maior por inúmeras instalações. São instalações
destinadas aos doentes. Todo o planeta deve
ter sido escavado por dentro. Embaixo de mim
vejo um poço cujo fim não consigo enxergar. É
só o que vejo.
— Como será que conseguiram penetrar tão
profundamente no solo?
— Há milênios são uma raça altamente civi-
lizada e apesar de toda a arte médica não su-
portam o sol. Não tiveram outra alternativa se-
não viver nas camadas interiores de seu plane-
ta. Pelos meus cálculos, já devemos estar três
75
quilômetros abaixo da superfície.
Os segundos transformaram-se em minutos.
Subitamente Tiff sentiu que estava ficando mais
pesado. Tinha o dobro de seu peso normal. A
desaceleração chegava a dez metros por segun-
do ao quadrado.
O elevador parou com um forte solavanco.
Demorou quase três minutos até que a porta
estreita se abrisse. Uma luz ofuscante inundou a
cabine. Os olhos de Tiff logo se acostumaram à
diferença de luminosidade. Viu os rostos resolu-
tos de uma dezena de aras que os aguardavam.
— O que estão esperando? — perguntou
um deles em tom áspero.
Tiff fez um sinal para Sengu e saiu do eleva-
dor. Os aras recuaram um pouco, como se re-
ceassem a existência de doença infecciosa. Nin-
guém pensou na possibilidade de que os presos
pudessem fugir. Aqui, dez quilômetros abaixo
da superfície, dificilmente teriam oportunidade
para isso. As paredes do grande pavilhão em
nada se distinguiam das situadas mais próximas
da superfície. Era a mesma limpeza, a mesma
claridade, a mesma desesperança para aquele
que ali se encontrasse contra sua vontade.
— Sigam-nos — disseram aos terranos.
Os aras caminhavam à frente. Ao que pare-
cia, não tinham a menor dúvida de que Tiff e
76
Sengu os seguiam.
Tiff apressou-se em enviar informações a
Gucky. Descreveu a posição. Pelos seus cálcu-
los, deviam encontrar-se a dez quilômetros de
profundidade, bem embaixo da extremidade do
campo de pouso, quase exatamente do lado
oposto do edifício embandeirado da administra-
ção.
Atravessaram um corredor e chegaram a
uma sala ampla, na qual os cientistas aras vesti-
dos de branco trabalhavam nas mesas e numa
série de aparelhos desconhecidos. Devia ser um
dos laboratórios a que Themos se referira, e
que se esperava encontrar em Aralon. O cora-
ção de Tiff quase parou de bater quando viu
enormes recipientes nos quais seres vivos, imó-
veis, boiavam num líquido conservador. As pla-
cas colocadas nos recipientes provavam que se
tratava de exemplares das diversas raças que vi-
viam fora do Império.
“Terranos conservados em álcool”, pensou
Tiff enojado e já se via boiando num recipiente
de vidro, onde seria conservado para as futuras
gerações de cientistas de Aralon.
Mais uma vez expediu uma mensagem de
socorro para Gucky:
— Apressem-se, pelo amor de Deus! Preten-
dem fazer uma coisa horrível conosco.
77
Tiff e Sengu não notaram que atrás deles as
portas se fechavam silenciosamente. Estavam
presos na armadilha mais perfeita existente. Só
tinham diante de si o caminho para a frente, e
este poderia ser tudo, menos tentador.
Os aras pararam. Um deles abriu uma porta
e deixou livre a passagem.
— Seu quarto é este, terranos. Logo recebe-
rão comida. Não deixem que o ambiente os
perturbe. Nada lhes acontecerá, ao menos por
enquanto.
Em silêncio, Tiff passou por ele e entrou.
Viu que realmente se tratava de um quarto e
não de câmara de tortura. Duas camas, uma
instalação sanitária e uma mesa com quatro ca-
deiras chegavam a dar um aspecto acolhedor
ao quarto, desde que se esquecesse a proximi-
dade do laboratório. Sengu seguiu-o. A porta
fechou-se com um ruído surdo.
Tiff teve a impressão de que com isso a últi-
ma retirada estava sendo cortada.
Suspirou e sentou numa das camas, olhando
para Sengu.
— Dez mil metros abaixo da superfície.
Você poderia fazer o favor de dizer como é que
poderemos sair daqui?
Sengu olhou para o chão. Sacudiu a cabeça.
Também usou o tratamento familiar você.
78
— Não; é claro que não sei. Mas acho que
você deve estar interessado em saber que abai-
xo de nós existe outro laboratório. Aliás, parece
antes um setor de embalagem. Ao lado dele, há
um depósito com milhares de caixas e recipien-
tes. Será que é lá que são embalados e armaze-
nados os medicamentos?
— Qual é a profundidade a partir do lugar
em que nos encontramos?
— Não passa de dez metros — o olhar do
japonês subiu pela parede e passou ao teto,
como se acompanhasse uma mosca. — Estou
vendo Thora. Está sendo levada para cima no
elevador.
Quando o japonês olhava através das pare-
des compactas, Tiff reprimiu uma sensação es-
tranha.
— O que veio fazer aqui?
— Talvez — conjecturou Tiff — mostraram-
lhe o estoque de soro, pois acreditam que Rho-
dan esteja interessado. Será usada como cha-
mariz. Ou seja, será usada para fazer chanta-
gem contra Rhodan. Que diabo, acho que mais
uma vez nossos pensamentos foram humanos
demais. Estes aras não são médicos, são diabos.
Sengu continuava a olhar para o teto.
— Bell me disse em certa oportunidade que
saberemos enfrentar até o diabo. Acredito pia-
79
mente no que disse, Tiff. A menos de dez me-
tros abaixo de nós está a substância de que pre-
cisamos. Eu a vejo, mas isso não basta. Mas te-
nho certeza de que amanhã já estará em nossas
mãos. Tenho certeza absoluta...
— Você é um espia — respondeu Tiff em
tom tranqüilo — mas não é nenhum profeta.

***

Já fazia algumas horas que Thora recupera-


ra a consciência, no meio da noite.
Tinha a impressão de que despertava de um
sonho. Dirigiu os olhos para as luzes ofuscantes
embutidas no teto, bem acima de sua cama.
Não sabia o que tinha acontecido.
Quando o olhar se acostumou à luz, viu o
rosto de um homem idoso, que a examinava
atentamente. Nós olhos dele, vermelhos de albi-
no, havia uma pergunta muda e um interesse
frio.
Sua memória começou a funcionar.
Era um ara.
Onde estava? O que acontecera com Rho-
dan?
— Quem é o senhor? — ergueu-se, mas vol-
tou a cair no travesseiro. Sentia-se muito fraca.
— Onde estou?
80
— Está curada e em segurança — respon-
deu o desconhecido. Sua voz era tranqüilizado-
ra, mas irradiava uma frieza e uma impessoali-
dade que se parecia com a do quarto em que
estava. — Conhece um certo tenente Tifflor do
sistema Sol? Seu planeta de origem é a Terra.
Ainda confusa, Thora confirmou com um
aceno de cabeça.
— Eu me lembro...
— Também se lembra de que pretende casar
com ele?
— O senhor está louco? O que deseja de
mim? Onde estou e como vim parar aqui? O
que aconteceu com Perry Rho...?
Entreparou de repente. O ara sorria como
quem sabe de tudo.
— Pode continuar. Quer saber onde está
Perry Rhodan? Eu lhe contarei assim que me
disser por que não quer casair com Tifflor.
— Quem lhe deu essa idéia maluca? Tifflor é
um ótimo amigo, mas não o amo. Se é que eu
amo algum homem, será...
Mais uma vez interrompeu-se.
— Quem sabe se é Rhodan? — perguntou o
ara.
Thora não respondeu, mas a verdade estava
escrita em seu rosto. O ara acenou com a cabe-
ça e inclinou-se sobre ela; parecia satisfeito.
81
— Então é mesmo Rhodan. Fico satisfeito
em saber disso. E Perry retribui seus sentimen-
tos. É excelente. Nesse caso deve estar muito
interessado em recuperá-la com vida.
Thora ergueu-se. O ódio chamejou em seus
olhos dourados.
— Pouco importa quem seja o senhor. O
braço vingador do Império o alcançará. Seu
monstro!
— Então esta é a gratidão por termos cura-
do a senhora. A senhora esteve doente, Thora
de Zoltral, muito doente. No momento, está em
Aralon, o hospital galáctico dos aras. E só será
livre quando Rhodan for nosso prisioneiro. Não
se iluda quanto à gravidade da situação. Mais
um detalhe. A senhora acaba de pronunciar a
sentença de morte do tal Tifflor. Ele deixou de
ter qualquer valor para nós.
— Como é seu nome? — perguntou a ar-
cônida com a voz controlada.
— Meu nome é Themos. Por que está inte-
ressada nisso?
Thora respondeu sem pestanejar:
— Porque neste instante acaba de ser pro-
nunciada outra sentença de morte. Contra certo
ara chamado Themos. Asseguro-lhe que será
executada dentro de vinte e quatro horas.
O rosto de Themos tornou-se ainda mais
82
pálido do que era por natureza.
Sem dizer uma palavra, fitou o rosto impla-
cável da arcônida. Subitamente reconheceu
como essa mulher era bela... e como era peri-
gosa.

A sala de comando da Titan era grande, mas


em comparação com a esfera espacial de um
quilômetro e meio de diâmetro só poderia ser
considerada pequeníssima. Apesar disso, era
perfeitamente possível que a presença de
Gucky deixasse de ser notada por alguém que
não prestasse muita atenção.
O rato-castor encontrava-se no seu lugar
predileto, sobre um sofá que ficava perto do
robô de navegação, que geralmente era contro-
lado por Bell. No momento, o coronel estava
sendo substituído por um jovem oficial, o tenen-
te Bristal. O coronel Freyt tirara-o diretamente
da Academia Espacial, quando veio à Terra em
busca de reforços.
Rhodan estava sentado atrás dos controles
por meio dos quais era dirigida a grande nave.
Parecia tenso. A porta, que dava para a sala de
rádio, estava aberta. Crest estava parado junto
à mesma, esperando nervosamente pelas deci-
83
sões que estavam para ser tomadas. Não se
sentia bem com a idéia de que não havia outro
meio senão a violência para libertar Thora e
seus acompanhantes e conseguir o soro contra
a doença que atacara setecentos homens.
Rhodan dirigiu-se a Gucky.
— Então, o que houve? Nenhuma notícia de
Thora?
— Deve estar restabelecida. Do contrário
Themos não teria descoberto a mentira. A mor-
te de Tiff está decidida.
— Mas ainda não é um fato consumado —
respondeu Rhodan com a voz zangada. — O
que diz Tiff?
— Ainda estão no quarto junto ao laborató-
rio. Acredita que a vivissecção já está sendo
preparada.
— Você consegue localizá-lo?
— Consigo — chilreou Gucky em tom confi-
ante. — Tiff descreveu o aspecto da superfície.
Acredito que conseguirei encontrá-lo. É bem
verdade que teremos que descer dez quilôme-
tros. Como pretende fazer isso com a Titan?
Por que não permite que eu salte sozinho?
— Para que servem os robôs arcônidas? —
lembrou Rhodan. — Saberão abrir caminho
embaixo da superfície. E quando esse Themos
estiver nas minhas mãos, ele se sentirá muito
84
satisfeito por não ter realizado seu intento.
Gucky não respondeu. Ergueu-se e, encos-
tando-se à parede, ficou sentado no sofá. Escu-
tava atentamente, de olhos fechados. Ninguém
o perturbava. Na sala de comando, reinava um
silêncio total. A espera durou quase três minu-
tos.
— Está na hora — cochichou finalmente o
rato-castor. — Tiff está sendo levado em pri-
meiro lugar. Ele se defende desesperadamente,
mas a superioridade dos outros é muito grande.
Está descrevendo uma sala profusamente ilumi-
nada cheia de aparelhos medonhos e de instru-
mentos reluzentes. Tiff diz que querem operá-lo
embora tenha uma saúde de ferro.
— Numa situação dessas ainda lhe resta sen-
so de humor! — disse Rhodan surpreso. — De-
pressa, Gucky. Preciso dos últimos dados sobre
a localização.
— Não há nenhuma alteração. Vamos agir.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça. Estava tudo preparado. O cérebro de nave-
gação já realizara os cálculos necessários à tran-
sição de pequena distância. A Titan só voltaria
a materializar-se na atmosfera de Aralon. A
Ganymed a seguiria com um intervalo de pou-
cos minutos, fornecendo cobertura para o lado
do Universo. Embora a velocidade já fosse bem
85
reduzida, era uma empresa arriscada. Apenas
metade da tripulação estava em condições de
entrar em ação, e seu treinamento era um tanto
precário. O fator decisivo do sucesso ou fracas-
so do plano de Rhodan não seria apenas a ca-
pacidade humana, mas também uma boa por-
ção de sorte. Estava na hora.
A imensa nave desapareceu do espaço nor-
mal e voltou a materializar-se menos de três
quilômetros sobre o campo de pouso de Ara-
lon.
Quando a gigantesca esfera surgiu acima da
massa de naves estacionadas, muitos dos visi-
tantes galácticos ficaram sem fôlego. Ao primei-
ro relance de vista perceberam do que se trata-
va. O que é que um couraçado arcônida desse
tamanho estaria procurando no planeta da be-
nevolência e da cura?
Rhodan não se preocupou com a opinião
das raças que lhe eram estranhas. Não teve
mais a menor contemplação. Deixou que a Ti-
tan descesse e pousou numa das extremidades
do campo espacial. Três segundos depois, as
escotilhas inferiores se abriram, rampas foram
descidas e os robôs começaram a marchar.
Eram gigantes de aço de quase dois metros
e meio de altura, equipados com quatro braços.
Os braços inferiores eram apenas radiadores de
86
impulsos móveis, que poderiam sufocar no nas-
cedouro qualquer resistência que se lhes opu-
sesse. A energia desprendida por esses radiado-
res, devidamente enfeixada, volatilizaria qual-
quer tipo de matéria e a faria desaparecer. Num
compasso rítmico, as pernas metálicas desce-
ram pelas rampas, tocaram o solo de Aralon e
prosseguiram em sua marcha. Os robôs forma-
ram colunas, cuja ponta se dirigia para o gran-
de edifício periferial sob o qual ficavam os labo-
ratórios.
Rhodan transmitiu o último comando pelo
rádio.
O exército de robôs pôs-se em movimento.
Paralisados de susto, alguns aras que se en-
contravam diante dos portais do centro admi-
nistrativo, contemplavam o espetáculo. Os cére-
bros recusavam-se a compreender o que os
olhos viam. Mas quando a frente reluzente se
aproximou, a paralisia cessou como que por en-
canto. Com as capas esvoaçantes, correram
para dentro do edifício, fechando as portas
atrás de si.
Rhodan, Crest e Gucky saíram da Titan sem
carregar qualquer arma. Compenetrados e indi-
ferentes, os dois homens caminhavam atrás dos
seus robôs, sem se dignarem a olhar para as
naves estacionadas por ali ou suas tripulações.
87
Gucky, que andava com dificuldade e cujos pas-
sos arrastados poderiam ser tudo menos com-
penetrados, lembrou-se de sua faculdade sobre-
natural. Usou sua energia telecinética para ele-
var-se uns dez centímetros acima do solo e pla-
nou sobre o pavimento de plástico. A visão não
era apenas edificante, mas de certa forma che-
gava a ser apavorante.
Uns dez robôs prosseguiram tranqüilamente
em sua marcha e atingiram as entradas princi-
pais do edifício da administração. Na frente dos
prédios estavam estacionadas algumas ambulân-
cias. Rhodan viu a luminosidade de alguns fei-
xes energéticos, e as portas deixaram de existir.
Sem que ninguém os detivesse, os robôs cum-
priram as instruções que lhes haviam sido mi-
nistradas, ocupando todas as saídas e os eleva-
dores que levavam para o subsolo. A ordem ex-
pressa de não matar ninguém continuava em vi-
gor.
Rhodan ligou o minúsculo transmissor de
pulso.
— Tenente Bristal? Está tudo em ordem?
A resposta foi imediata.
— Tudo bem. Ninguém se atreve a nos inco-
modar. Nas outras naves, não houve nenhuma
modificação. Nossas peças de artilharia estão
guarnecidas e prontas para entrar em ação.
88
Aguardamos novas instruções.
— Por enquanto não há outras instruções —
disse Rhodan com a voz zangada e desligou.
A uns três quilômetros de distância um cilin-
dro de oitocentos metros de comprimento des-
ceu lentamente sobre o campo praticamente
vazio e parou. Era a Ganymed que acabara de
pousar. Conforme o combinado, desembarcaria
um contingente de duzentos robôs, que formari-
am um cordão espesso em torno da nave. Essa
medida foi ordenada por Rhodan principalmen-
te a título de demonstração de força. Os outros
deviam convencer-se de que detinha um grande
poder. A eventual utilização dos robôs depende-
ria exclusivamente do comportamento dos aras.
Crest cochichou:
— Olhe! Uma nave dos saltadores. Acredito
que tenha trazido doentes. Vê-se que os aras
nem sequer poupam seus próprios parentes.
Rhodan olhou a nave mais detidamente. Era
um dos cilindros que já conhecia. Tinha trezen-
tos metros de comprimento e estava apoiada
sobre as aletas de popa. Seus olhos perceberam
um movimento na proa. Um anel girou e dei-
xou livre uma abertura, da qual saiu o cano em
espiral de um canhão energético apontado para
as colunas de robôs.
Rhodan reagiu instantaneamente.
89
— Tenente Bristal! Dê o alarma. Há uma
nave dos saltadores a duzentos metros de dis-
tância. Na proa existe um canhão de radiações.
Inutilize-o imediatamente. Destrua unicamente a
proa.
Antes que o saltador pudesse disparar, viu-se
um breve relampejo na Titan. Rhodan viu que a
proa da atrevida nave cilíndrica entrou em in-
candescência e se fundiu. O perigoso canhão
desapareceu. Da proa não sobrara quase nada.
— Basta, Bristal. Ajuste seu telecomunicador
para a freqüência normal de Aralon e ligue um
amplificador. Quero transmitir um aviso aos co-
mandantes das naves:
Depois de alguns segundos veio a confirma-
ção.
Sem deter-se em sua marcha atrás dos ro-
bôs, Rhodan falou para dentro do microfone:
— Atenção, todas as naves estacionadas em
Aralon! Aqui fala Perry Rhodan da Terra, em
nome do Regente de Árcon. Recomendo enca-
recidamente a todos os visitantes de Aralon que
não se intrometam na ação que está em curso.
Daqui em diante não terei mais a menor con-
templação. Destruirei todo aquele que tentar
atacar-nos ou ajudar os aras. Trata-se de uma
operação policial realizada por ordem de Ár-
con. Repito: quem se intrometer terá que su-
90
portar as conseqüências.
Rhodan sabia que suas palavras estavam
sendo ouvidas por todas, pois nenhuma das na-
ves deixaria suas estações de rádio desguarneci-
das. Todos sabiam quem se encontrava diante
deles e refletiriam sobre quem poderia ser esse
Rhodan da Terra. Era um nome que nunca ha-
viam ouvido.
— Tiff está sendo amarrado à mesa — gri-
tou subitamente Gucky em tom de pânico. —
Suas mensagens estão ficando mais insistentes.
Não sabe onde estamos; nem sequer tem certe-
za de que conseguimos ouvi-lo.
— Coitado! — murmurou Rhodan e apres-
sou o passo. — Se fizerem alguma coisa a ele,
eu mato toda esta canalhada.
A ameaça talvez não fosse tão séria assim,
mas fez Crest empalidecer. A boa fama de Ár-
con valia mais que qualquer outra coisa.
— Tenente Bristal. Mande a coluna de robôs
da esquerda encarregar-se da vigilância do cam-
po de pouso. A coluna da direita ficará à minha
disposição. Quero falar com o comandante.
A Titan imediatamente transmitiu a ordem
pelo rádio aos robôs. A ala esquerda dobrou
para o lado e assumiu posição diante dos edifí-
cios alongados. Suas armas estavam apontadas
para a floresta de naves espaciais. Enquanto
91
isso a ala direita parou. Um dos maciços robôs
voltou e parou diante de Rhodan.
— Quais são as instruções? — perguntou
em tom impessoal.
Sua voz lembrava ligeiramente a do cérebro
robotizado de Árcon.
— Quero que três robôs me acompanhem.
Os outros darão cobertura ao nosso avanço
para os laboratórios subterrâneos. Crest e
Gucky irão comigo. — Dirigindo-se ao rato-cas-
tor, disse: — Qual é a direção? Peço uma indi-
cação precisa.
Gucky apontou obliquamente para o solo.
— Ali; numa distância de dez mil e vinte e
três metros — voltou a erguer a cabeça e dirigiu
os olhos para o edifício lateral, onde se via a
rampa e a porta aberta. — Ali ficam os eleva-
dores que descem para o subsolo.
Quando os três robôs se apresentaram, Rho-
dan não perdeu mais tempo. As respectivas
séries e números estavam gravadas em peque-
nas placas metálicas presas aos peitos reluzen-
tes. Também serviam de código de comunica-
ção.
— RK-935. Você irá à frente e eliminará
qualquer obstáculo material. Não mate nenhum
ser vivo; se necessário, apenas paralise-o. RK-
940 e RK-999, vocês nos darão cobertura pe-
92
las costas. Avante!
A área fronteira ao edifício parecia deserta.
Alguns veículos vazios e abandonados estavam
por ali. A porta aberta parecia uma boca famin-
ta. De repente Gucky chiou:
— Lá adiante alguém nos espera; também
está desarmado. Querem falar conosco. Sim,
um deles é Themos. Consegui identificar seus
pensamentos. Quer fazer uma proposta a você,
Rhodan, uma proposta traiçoeira, acredito.
Sim, é um tipo de negócio que vai propor.
— Um saltador sempre é um saltador —
murmurou Crest e apressou o passo para
acompanhar Rhodan. Gucky correra à frente e
aguardava o grupo junto à porta.
Atrás da porta, começava um corredor bem
iluminado. RK-935 continuava a avançar a pas-
sos vigorosos, com os braços de armas estendi-
dos para a frente, prontos para disparar. Seu
campo energético não havia sido ativado, pois
não se esperava qualquer tipo de resistência.
Entraram num pavilhão branco, que parece-
ria familiar a Gucky. Duas ambulâncias estavam
estacionadas em nichos das paredes laterais.
Havia corredores e portas que iam em todas as
direções possíveis.
Um grupo de aras vestidos de branco apro-
ximou-se de Rhodan e parou a alguma distân-
93
cia. Um deles, um velho albino, levantou os bra-
ços e perguntou num tom de altiva recrimina-
ção:
— Qual é a finalidade desta invasão armada
no planeta da arte de curar? Pelo que vejo, esta
monstruosidade está sendo praticada com o co-
nhecimento de Árcon. Os senhores hão de per-
mitir que peça um esclarecimento. Pergunto...
— Se alguém pode fazer perguntas por aqui,
sou eu — disse Rhodan com a voz fria. — Se
não me engano o senhor é Themos.
O velho ficou perplexo. Como esse desco-
nhecido poderia saber seu nome? Não poderia
imaginar que Rhodan compareceria em pessoa,
ainda mais desarmado, embora acompanhado
por alguns robôs.
— Sim, sou Themos, diretor da divisão de
pesquisa do setor extra-imperial. O que deseja?
E quem é o senhor?
— Antes de responder a essas perguntas,
quero recomendar-lhe que liberte meus homens
sem demora. Faça suas experiências com quem
quiser, menos com o tenente Tifflor e com Sen-
gu.
Um sorriso fugaz passou pelo rosto do ara.
— Que interesse tem o senhor por homens
que quiseram traí-lo? Pouco lhe deve importar
quem os castiga...
94
— Faça o que estou dizendo, se não quiser
suportar as conseqüências.
Themos hesitou. Lançou um olhar ligeiro
para RK-935 e sabia perfeitamente que dificil-
mente conseguiria alguma coisa pela força.
— Será que Thora não vale nada para o se-
nhor? — perguntou em tom tranqüilo. — Nós a
curamos. O senhor pode avisar Rhodan de
que...
— Eu sou Rhodan!
Themos já o adivinhara. Não demonstrou a
menor surpresa. Mas seus companheiros pare-
ciam encolher alguns centímetros. Gucky adian-
tou-se a Rhodan. Arrastou-se alguns passos
para a frente, avaliou Themos com os olhos, e
pôs em ação suas faculdades telecinéticas.
De repente, os pés do velho ara perderam o
apoio. Ele começou a subir para o teto, sem
peso e esperneando agitadamente. Quando a
cabeça bateu contra a lâmpada redonda, ouviu-
se um baque surdo. Para os outros aras, o espe-
táculo não era nada animador. Acompanharam
os acontecimentos com os olhos arregalados e
uma expressão de incredulidade no rosto. The-
mos perdeu a fala e lançou olhares assustados
para o chão.
Rhodan formulou a pergunta:
— Qual é o elevador que leva ao depósito de
95
medicamentos?
Quando percebeu que Themos não respon-
dia, dirigiu-se a Gucky:
— Abaixe-o. Mas não deixe que a queda
seja rápida demais.
De repente, Themos recuperou o peso nor-
mal e desceu os cinco metros em queda livre.
No último instante, o rato-castor freou. Mas
não o bastante para evitar totalmente o forte
impacto no solo.
Themos amoleceu o corpo e, soltando um
grito, ficou deitado no chão.
— Então, qual é o elevador? — repetiu Rho-
dan.
Um dos aras adiantou-se.
— É aquela porta — informou prontamente.
Ao que parecia, compreendera que não havia
nada que se pudesse fazer contra os robôs e as
forças sobrenaturais. — Mas previno-os de que
é proibido...
— Raptar gente também é proibido — inter-
rompeu Rhodan. — Ande à nossa frente e
mostre o caminho. RK-940, fique aqui e cuide
para que estes aras não saiam do lugar — deu
uma palmadinha nas costas de Gucky. — O que
está acontecendo com Tiff?
— Sengu está sendo levado em primeiro lu-
gar. Por enquanto não existe um perigo imedia-
96
to. Consegui captar os pensamentos de Thora.
Está num lugar seguro. Foi trancada numa peça
que fica menos de cem metros abaixo do lugar
em que nos encontramos. Poderei localizá-la a
qualquer momento.
O ara que devia mostrar-lhes o caminho pa-
rou diante de uma porta. Apertou um botão.
Esta abriu-se para o lado. Surgiu uma cabine
minúscula. Rhodan sacudiu a cabeça.
— Deve haver elevadores de carga. Este é
muito pequeno.
O ara deu de ombros e caminhou em dire-
ção a uma porta mais larga, atrás da qual apa-
receu uma peça quadrada, que tinha o quádru-
plo do tamanho da outra.
— O senhor irá conosco — ordenou Rho-
dan, empurrando o ara à sua frente. — E não
tente outras manobras de retardamento, meu
caro. O senhor sabe onde podem ser encontra-
dos nossos homens. Se chegarmos tarde, ne-
nhum dos senhores terá oportunidade para
aproveitar a aposentadoria.
— Estou disposto a ajudar — murmurou o
ara, que parecia amargurado porque não queri-
am reconhecer sua boa vontade. — Não acredi-
te que por aqui todo mundo concorda com os
métodos de Themos.
Rhodan olhou para Gucky. O rato-castor
97
pesquisou o subconsciente do ara e sacudiu a
cabeça. Com a voz estridente, anunciou o resul-
tado de sua sondagem telepática.
— Está mentindo, porque não tem outra al-
ternativa. Os aras vivem desses métodos e os
consideram legais; legais no sentido que eles
atribuem ao termo, evidentemente. Ninguém se
revolta contra Themos. Este sujeito pretende
enganar-nos. Cuidado!
O ara não conseguiu disfarçar o pavor que
se apoderou dele ao ver expostos seus pensa-
mentos mais recônditos. Que ser monstruoso
era este, que sabia ler pensamentos? Não have-
ria nada que pudesse deter Rhodan no seu pro-
pósito de destruir os fundamentos da vida de
Aralon?
O ara tomou uma decisão heróica. Se não
houvesse outro meio, teria de sacrificar-se por
seu povo. Se morresse, e se Rhodan morresse
com ele, nunca ninguém descobriria a fonte da
riqueza inesgotável que a raça dos aras desfruta-
va.
Teve uma vantagem. Justamente naquele
instante Gucky estava com a mente ocupada,
procurando captar os gritos de socorro de Tiff.
Sengu havia sido trazido para junto dele; sentia-
se esperançoso, pois assistira à chegada de
Rhodan ao edifício da administração. Seu olhar
98
atravessou mais de dez mil metros de matéria
compacta. Sabia que o auxílio não tardaria. E
chegaria em cima da hora.
— Já estão no elevador — cochichou para
Tiff, que estava firmemente amarrado à mesa
branca. A luz ofuscante obrigou-o a manter os
olhos fechados. — Dentro de poucos minutos,
estarão aqui.
Gucky captou os pensamentos de Tiff e es-
tava a ponto de informar Rhodan sobre os mes-
mos. De repente, o ara executou um movimen-
to rápido com a mão, segurou a chave do ele-
vador e, de um golpe, empurrou-a para além da
marca-limite, forçando-a até quebrá-la.
No mesmo instante, os ocupantes da cabine
perderam o peso.
RK-999 adiantara-se para impedir que o ara
tocasse na chave, já que Rhodan não havia
dado ordem para isso. Seus pés levantaram-se
do chão, não encontraram a menor resistência.
Libertado de seu peso, deslocou-se em direção
ao ara, que o contemplava com os olhos arre-
galados de pavor. Gucky não teve tempo para
frear o vôo involuntário da pesada máquina de
guerra, que se chocou lentamente, mas com
toda força, contra o ara indefeso, quebrando to-
dos os ossos do débil descendente dos arcôni-
das e dos saltadores.
99
O traidor teve morte instantânea e indolor.
Desenvolvendo uma velocidade cada vez
maior, o elevador precipitava-se em direção ao
centro do planeta.

***

— Dentro de poucos minutos...


Sengu interrompeu-se. Ninguém o impedia
de falar, mas assim mesmo calou-se, apavora-
do. Vira que o ara havia morrido, porém provo-
cara a queda do elevador.
— O que houve? — perguntou Tiff, forçan-
do as correias que o prendiam à mesa. — Por
que parou de falar?
Sengu continuava a fitar o teto. Não ofere-
ceu a menor resistência quando o amarraram à
mesa. Os aras corriam apressadamente de um
lado para outro, preparando instrumentos relu-
zentes e conversando em voz baixa.
— O que houve? — repetiu Tiff.
Um dos cientistas lançou-lhe um olhar, mas
não se interessou pelos dois terranos, que para
ele já deviam estar praticamente mortos.
— O elevador...! — gemeu Sengu em tom
apavorado. — Está caindo. O ara quebrou a
chave de controle de velocidade. Ninguém po-
derá deter a queda da cabine.
100
Tiff teve a impressão de que o pavor lhe
trancava a respiração. Enquanto sabia que Rho-
dan se encontrava a caminho, tinha motivo
para sentir-se confiante. Mas agora, que tam-
bém seu salvador caíra numa armadilha, não
haveria nenhuma saída. Os aras poderiam exe-
cutar seus planos diabólicos. Um belo dia tam-
bém na Terra irromperiam epidemias desco-
nhecidas, que só poderiam ser curadas com os
medicamentos incrivelmente caros dos aras. O
círculo se fecharia.
Entesou o corpo e, reunindo toda a força de
que dispunha, conseguiu rasgar a correia que
prendia seu braço esquerdo.
Imediatamente alguns aras pularam sobre
ele e comprimiram seu corpo contra a mesa.
Mas, mesmo dispondo apenas de um braço,
Tiff era um inimigo perigoso. Sua mão tateante
descobriu um objeto duro. Segurou-o e empur-
rou o instrumento em forma de tesoura para
dentro do corpo do ara que se encontrava mais
próximo. O indivíduo atingido recuou com um
grito de dor e, procurando algum lugar para
apoiar-se, cambaleou e caiu lentamente ao
chão.
Antes que Tiff pudesse localizar outro ata-
cante, sentiu uma dor aguda na nuca. Virou-se
instantaneamente, mas a mão que segurava a
101
seringa recuou apressadamente.
A paralisia foi imediata. Começou no cére-
bro e correu para os braços e as pernas. A te-
soura caiu ao chão. Não ofereceu a menor re-
sistência quando voltaram a amarrar seus bra-
ços à mesa.
Sengu não parecia ter notado o incidente.
Seus olhos arregalados de pavor fitavam o teto
em direção oblíqua. O olhar caminhou em dire-
ção à parede, desceu por ela e terminou no so-
alho.
Finalmente fechou os olhos.
Ao que parecia, já não estava interessado
em ver o que aconteceria dali em diante.
Totalmente indiferente, deixou que um ara
se aproximasse e lhe aplicasse a injeção parali-
sante.

Dez segundos preciosos passaram em vão.


Nesses dez segundos, a cabine caíra quase
quinhentos metros, e a velocidade da queda au-
mentava na razão do quadrado do tempo. A re-
sistência do ar freava ligeiramente a cabine,
mas lá embaixo devia haver uma galeria de es-
capamento, pois do contrário o ar comprimido
se teria transformado num colchão.
102
Rhodan flutuava no centro da cabine. Seu
rosto exprimia pavor e uma momentânea deso-
rientação, mas logo voltou a raciocinar.
— Gucky! Pare o elevador. Depressa! Mes-
mo quando estava levitando, o rato-castor sabia
mover-se com segurança. Apesar da situação
crítica, não se esqueceu da finalidade de sua
presença.
— O transmissor de Tiff deixou de funcio-
nar; não está emitindo mais nenhum impulso
telepático. Apenas estou ouvindo os sinais nor-
mais. Deve estar dormindo, ou então desmaiou.
Não percebo mais nada de Sengu.
— É a anestesia! — exclamou Rhodan, apa-
vorado. — Depressa, Gucky! Uma queda de
dez mil metros durará menos de um minuto.
Meio minuto já se passou.
O rato-castor confirmou tranqüilamente com
um gesto da cabeça e afastou RK-999, que flu-
tuava como um balão.
O cadáver do ascensorista seguiu-o.
Trinta e cinco segundos... seis mil metros de
profundidade.
Foi então que Gucky mostrou do que um te-
lecineta é capaz.
Seu olhar caiu sobre a chave metálica de
controle, cuja ponta quebrada emitia um brilho
prateado. Concentrou-se e dirigiu os fluxos de
103
energia telecinética sobre o pino, que não po-
deria atingir com a pata.
— Quarenta segundos — disse Rhodan com
a voz monótona. — Quase oito mil metros.
Gucky não o ouvia. Seus olhos adquiriram
uma estranha rigidez.
A chave quebrada moveu-se milímetro por
milímetro em direção à posição zero, para além
da qual havia sido empurrada. Ao chegar lá,
não parou; prosseguiu no seu movimento.
Rhodan desceu ao chão da cabine, seguido
pelos dois robôs. Sentiu que seu corpo recupe-
rava o peso normal, que logo duplicou. A pres-
são crescia. Rhodan dobrou os joelhos e fez
aquilo que é mais sensato numa situação como
esta. Deitou de costas, com os braços e as per-
nas bem estendidos. Crest seguiu o exemplo.
Um minuto!
Já deviam ter ultrapassado a marca dos dez
mil metros, mas ainda não haviam atingido o
fim do poço do elevador. Ninguém sabia a que
profundidade penetrava nas entranhas do pla-
neta.
Gucky parecia ouvir atentamente. Não olha-
va mais para a chave; seu olhar caiu obliqua-
mente sobre o teto do elevador.
— Já descemos além do lugar em que estão
Tiff e Sengu, mas o elevador já está subindo de
104
novo. Conseguimos.
— Pare assim que atingirmos a altura em
que Tiff está — pediu Rhodan com a voz arque-
jante.
Respirava com dificuldade.
Gucky voltou a concentrar-se. A chave arras-
tou-se na direção oposta. O corpo recuperou o
peso normal e o elevador parou.
— Chegamos — chiou Gucky. Bastante sa-
tisfeito com o resultado de sua intervenção —
Tiff não pode estar longe. De qualquer manei-
ra, está na mesma altura em que nos encontra-
mos.
Rhodan procurou o dispositivo que abriria a
porta do elevador, mas não o encontrou. Gucky
leu seus pensamentos, soltou um assobio estri-
dente e, como sempre, pouco melódico, en-
quanto os cabelos da nuca se arrepiavam. Re-
solveu o problema à sua maneira, antes que
Rhodan tivesse tempo para formular qualquer
objeção.
— Cuidado, RK-999. Não se assuste! Antes
que o pesado robô de guerra compreendesse o
que estava acontecendo, sentiu que estava sen-
do levantado, deslocou-se em direção à parede
dos fundos da cabine e, como uma flecha impe-
lida pela corda do arco, precipitou-se na dire-
ção oposta. Ouviu-se um ruído de matéria sóli-
105
da esfacelada, e o robô viu-se num pavilhão
profusamente iluminado. Sem perder tempo,
Rhodan saltou atrás dele, seguido por Crest,
RK-935 e Gucky, cujo olhar radiante corria
para todos os lados, como os de um vencedor
que aguarda os aplausos do auditório.
Os aras que se encontravam no pavilhão
não pensaram em aplaudir. O susto deixou-os
gelados até a medula dos ossos. Quando viram
o inconcebível, ficaram paralisados. Dois mons-
tros metálicos, dois humanos — um deles, ao
que tudo indicava, um arcônida — e um estra-
nho ser de pequenas dimensões haviam atra-
vessado a parede.
— Rhodan! — gritou Gucky com a voz estri-
dente. — Os impulsos de Tiff se afastam. Não
estão ficando mais fracos, mas vêm de mais
longe.
— Os aras foram prevenidos — conjecturou
Crest. — Os reféns estão sendo transportados
para um lugar seguro.
— Gucky, siga os impulsos; rápido! — orde-
nou Rhodan. — Ficaremos grudados aos seus
calcanhares. Não precisamos preocupar-nos
com os aras que estão por aqui.
Gucky correu à frente. As portas abriram-se
à sua frente como que por encanto. Quando o
grupo medonho passava correndo por eles, os
106
aras levantavam os olhos do seu trabalho e dei-
xavam cair o queixo de pavor. Um deles, que se
encontrava no segundo laboratório, fez um mo-
vimento apressado, foi atingido imediatamente
pelo raio paralisante disparado por um dos ro-
bôs. Soltou um grito e tombou.
Depois de terem percorrido uns cinqüenta
metros e atravessado vários laboratórios, Gucky
parou de repente. Rhodan fitou as correias de
couro presas nas duas mesas. Um único ara se
encontrava nos fundos da sala, e estava usando
o videofone.
Virou-se tranqüilamente e contemplou os in-
trusos com uma expressão impávida. Em seus
olhos havia um brilho frio.
— O senhor chegou tarde, Rhodan. Seus
amigos já foram levados a um lugar seguro.
Rhodan dirigiu-se a Gucky:
— Onde está Tiff?
— Está sendo levado para baixo. O lugar em
que se encontra não fica longe daqui. Neste
momento, o elevador está parando. Sim, Tiff
está bem embaixo de nós. São dez metros no
máximo. Sua posição continua inalterada.
O ara acompanhou as palavras de Gucky
com uma expressão de incredulidade. Era pos-
sível que naquele instante começasse a acreditar
em bruxaria e considerasse Rhodan um super-
107
homem. De qualquer maneira, compreendera
que a medida apressada, determinada pelo co-
mando central, fora inútil. Não saberia dizer
como os desconhecidos descobriram o lugar em
que se encontravam os prisioneiros. Sua liberta-
ção teria que ser impedida de qualquer maneira.
Antes que alguém pudesse desconfiar de
qualquer coisa, empurrou para baixo um peque-
no botão do videofone.
— Ordem de Themos. Os prisioneiros de-
vem ser mortos imediatamente — gritou e cor-
reu em direção à porta aberta. Penetrou rápido
no feixe de energia paralisante disparado por
RK-999. Caiu ao chão como se tivesse sido
atingido por um raio.
Rhodan estava prestes a sair correndo à pro-
cura do elevador quando se lembrou de uma so-
lução melhor.
— Gucky, dez metros não são muita coisa.
Tiff está bem embaixo de nós? Bem, neste caso
vá buscá-lo. E Sengu também. Rápido! Só dis-
pomos de alguns segundos.
O rato-castor não perdeu tempo para confir-
mar a ordem.
O ar começou a tremeluzir, os contornos de
seu corpo desmancharam-se como se estivesse
mergulhado na água. Gucky desapareceu.

108
***

Os efeitos da anestesia só duraram alguns


minutos.
Quando Tiff abriu os olhos, Sengu estava re-
cuperando os sentidos. Estavam deitados sobre
a tampa de uma grande caixa, num recinto
pouco iluminado. Aqui não se via nada da lim-
peza reluzente do laboratório. As paredes escu-
ras irradiavam um frio gélido. Caixas e pilhas de
pacotes enchiam o recinto. Uma fita rolante
movia-se lentamente por um corredor e termi-
nava num poço vertical, que subia à superfície.
Era um depósito.
Um depósito de medicamentos.
Tiff não tinha a menor idéia sobre o motivo
da mudança. Há poucos segundos estivera dei-
tado sobre a mesa de operações e recebera a
injeção paralisante. Agora via-se num depósito.
Três aras vestidos de branco corriam apressada-
mente de um lado para outro. Empilhavam cai-
xas diante da porta que conduzia ao exterior,
como se quisessem erguer uma barreira que im-
pedisse a entrada. Trabalhadores acorreram e
ajudaram-nos no trabalho.
De repente, soou uma campainha. Uma voz
forte e exaltada fez-se ouvir. Tiff entendeu tudo:
— Ordem de Themos. Os prisioneiros de-
109
vem ser mortos imediatamente.
Os três médicos interromperam sua ativida-
de e trocaram olhares de espanto. Um deles,
com um movimento cansado, enxugou o suor
da testa, lançou um ligeiro olhar para Tiff e
Sengu e, dirigindo-se aos colegas, disse:
— De que nos servirão mortos? Como po-
demos estudar um organismo que não está fun-
cionando? Já não consigo compreender as or-
dens de Themos. Primeiro temos de trazer os
prisioneiros a este depósito, depois querem que
nós os matemos...
— Themos deve saber o que está fazendo —
interrompeu-o um outro, pegando uma barra
de ferro que estava encostada a uma caixa. —
Farei o serviço de forma que os corpos não se-
jam danificados.
— Sou cientista — disse o ara que falara em
primeiro lugar — mas não sou nenhum assassi-
no. Não quero ter nada com isso.
Sem dar atenção aos colegas, virou-se altiva-
mente e caminhou em direção à parte mais es-
cura do depósito.
O ara que segurava a barra de ferro seguiu-o
com os olhos por alguns segundos. Depois sol-
tou uma risada cruel e lançou um olhar frio
para os prisioneiros.
— Bem que preferiria que continuassem...
110
Não pôde prosseguir. O ar começou a tre-
meluzir entre ele e os terranos. Um pequeno
vulto se materializou. Sentado sobre o traseiro,
Gucky apoiava-se sobre o rabo, que parecia
uma enorme colher. Com um simples relance
de olhos, avaliou a situação e reconheceu o úni-
co inimigo que oferecia algum perigo.
O ara recuperou-se da surpresa. Não perdeu
tempo em procurar a explicação do fenômeno,
mas levantou a barra de ferro.
Gucky não estava disposto a permitir que
lhe arrebentassem o crânio.
— Sou um gnomo — chilreou com a voz
doce e estendeu os braços em direção ao ara,
que estacou em meio ao movimento.
Não contara com a presença do espírito fa-
lante que tivesse o aspecto de animal. Mas logo
venceu os escrúpulos. A pesada barra foi levan-
tada. Porém ficou presa no ar, como se alguém
a segurasse. E esse alguém não era ele.
A barra conquistou sua independência, turbi-
lhonou pelo ar que nem uma hélice, executou
um mergulho completo, deu uma volta pelo de-
pósito e, atingida por forças invisíveis e incon-
cebíveis, assumiu a forma de um R. Que nem
uma espada de Dâmocles, o R ficou pendurado
acima da cabeça do ara apavorado.
Tiff viu o R metálico cair ao chão, cobrindo
111
o ara.
— Gucky! — exclamou. — Você chegou em
cima da hora.
— Sempre apreciei a pontualidade — disse
o rato-castor com um gesto tranqüilo e olhou
em torno, à procura de um objeto com que pu-
desse cortar as correias. Não encontrou nada.
Aproximou-se de Tiff e, dirigindo-se a Sengu,
que estava deitado ao lado do jovem tenente,
disse: — Não se preocupe, Wuriu. Vou levar
Tiff lá para cima e daqui a um segundo estarei
de volta. Estas toupeiras não se atreverão a pôr
as mãos em você, senão farei chover o alfabeto
inteiro em cima de suas cabeças.
Enlaçou o corpo de Tiff com os braços e de-
sapareceu numa questão de segundos.
Sengu ficou só.
A demora foi maior que um segundo. Não
se sentia muito à vontade. Olhou para a porta,
onde um dos cientistas continuava imóvel,
como que pregado ao chão. Os trabalhadores
acompanharam os acontecimentos sem com-
preender nada; ao que parecia, não estavam
acostumados a que alguém os esclarecesse.
Gucky voltou.
— Então? — chiou em tom de expectativa.
— Alguém está precisando de uma lição?
— Eles se comportaram muito bem — disse
112
o japonês em tom de alívio. — Vamos embora.
Já não suporto estas caixas.
Gucky sorriu e teleportou-se juntamente
com o prisioneiro, um andar para cima. Tiff já
estava esfregando os pulsos para ativar a circu-
lação. Mas o rato-castor ainda não parecia sa-
tisfeito.
— Você pretende chamar Themos pelo vi-
deofone? — perguntou, dirigindo-se a Rhodan.
Mais uma vez, andara espionando os pensa-
mentos do chefe. Rhodan confirmou com um
aceno de cabeça. — Muito bem. Enquanto isso
vou dar mais uma olhada lá embaixo. Esqueci
uma coisa.
— Esqueceu? — perguntou Crest espanta-
do.
— Isso mesmo, esqueci — confirmou
Gucky.
Ninguém pôde detê-lo, pois já havia desapa-
recido.
Rhodan deu de ombros e aproximou-se do
videofone. Não teve maiores dificuldades em li-
dar com o aparelho. Comprimiu um botão e es-
tabeleceu contato com a estação central situada
na superfície. Na tela apareceu o rosto do velho
ara, que logo recuou surpreso e apavorado. Ti-
nha um calombo reluzente na testa, mas de res-
to a queda da altura do teto não o parecia ter
113
afetado.
— O senhor...? — gaguejou incrédulo.
— Sim, o senhor está vendo, Themos —
respondeu Rhodan. — Libertamos o tenente
Tifflor e Sengu. O sacrifício de seu ascensorista
foi em vão. E agora o senhor vai libertar Thora,
senão passará por um mau bocado. Se alguma
coisa lhe acontecer, transformaremos este pla-
neta num inferno.
— O senhor não se atreverá a fazer uma
coisa dessas, Rhodan. Toda a Galáxia se volta-
ria contra o senhor.
— Dificilmente, se a Galáxia souber da ver-
dade. O senhor entende muito bem o que que-
ro dizer, Themos. Só tenho um motivo para
poupá-lo. Sua raça é inteligente e acumulou ex-
periências extraordinárias na área da medicina.
Os aras podem prestar serviços inestimáveis ao
Império, sem que tenham de recorrer à fraude.
Mas, se não quiserem aceitar a lição, só nos
restará uma alternativa. Teremos que destruir
Aralon, a incubadora de inúmeras doenças.
Será que me fiz entendido?
Themos lançou um olhar odiento para Rho-
dan.
— Afinal, quem é o senhor?
Rhodan exibiu um sorriso frio.
— Sou Perry Rhodan do planeta Terra, ple-
114
nipotenciário do cérebro robotizado de Árcon.
Meus poderes são ilimitados, Themos. Com-
preendem inclusive a destruição total de Aralon.
Decida logo, senão ver-me-ei obrigado a libertar
Thora por minha conta. E, a esta hora, o se-
nhor já não deve ter a menor dúvida de que eu
o conseguirei.
Após isso aconteceu uma coisa muito estra-
nha.
A expressão do rosto de Themos modificou-
se de uma hora para outra. Sorriu, mas o sorri-
so exprimia satisfação e triunfo, o que deixou
Rhodan bastante desconfiado.
— Pois bem, Rhodan do planeta Terra. Li-
bertarei Thora. Incondicionalmente. Darei a
respectiva ordem assim que concluirmos nossa
palestra. Aonde devo levá-la?
— Meu robô RK-940 está esperando no pa-
vilhão. Chame-o.
Após vinte segundos, Rhodan fitou os olhos
cristalinos e cintilantes do robô de guerra.
— RK-940! Aqui fala Perry Rhodan. Dentro
de cinco minutos Thora estará diante de você.
Leve-a imediatamente à Titan. Se dentro de
cinco minutos Thora não estiver no lugar em
que você se encontra, mate Themos e destrua
todos os aparelhos de comunicação.
— Entendido — rangeu a voz de RK-940.
115
Seu complicado organismo começou a tique-
taquear. O tempo estava correndo.
O rosto do ara voltou a surgir na tela do vi-
deofone.
— Apresse-se — recomendou Rhodan. —
Cada segundo é precioso. Não acredite que o
robô lhe concederá um segundo que seja de
prorrogação.
Rhodan desligou abruptamente. Deixou
Themos entregue ao seu conflito íntimo. RK-
940 cumpriria suas instruções com a exatidão
de um mecanismo de precisão.
— Onde estará Gucky? — perguntou Tiff
em tom preocupado. — Gostaria de saber o
que está fazendo no porão.
— Porão? Esta é boa! — disse Rhodan, lem-
brando-o de que se encontravam dez quilôme-
tros sob a superfície. — Posso imaginar o que
está fazendo lá embaixo. Pelo que diz, um dos
médicos ainda está em perfeitas condições.
— Sim senhor. Será que...
— É claro que sim, Tiff. Se não estou enga-
nado, daqui a pouco Gucky aparecerá com uma
caixa muito preciosa. É a caixa pela qual nos
lançamos nesta missão. Sem falar, naturalmen-
te, da necessidade de desmascarar os aras e
seus métodos criminosos perante todos os po-
vos do Império. Acredita que não tive nenhum
116
motivo para dar à nossa ação um caráter tão
amplo e complicado?
Atrás deles alguma coisa caiu ruidosamente
ao chão.
Viraram-se ligeiros e viram Gucky que se
materializava. A caixa alongada caíra de uma
altura de cinqüenta centímetros, mas continua-
va intacta.
Gucky ergueu-se e, com o orgulho de um
general vitorioso, anunciou:
— É o soro contra a doença do riso. Usou o
eufemismo para designar a hipereuforia, que
poderia ser tudo, menos risível.
— Muito bem! — elogiou Rhodan. — Tem
certeza de que o medicamento realmente é
este?
— Não se preocupe — tranqüilizou-o o rato-
castor e exibiu o dente-roedor, o que era um si-
nal de disposição alegre. — O ara de capa
branca sentiu-se feliz por poder conversar comi-
go. Em seus pensamentos, li a verdade. O soro
que está nesta caixa é suficiente para curar mil
pessoas. Basta injetá-lo nos doentes. Age den-
tro de uma hora.
Tiff respirou aliviado e olhou em direção à
porta que dava para o outro laboratório, atrás
da qual havia um silêncio suspeito.
— Pois vamos para a Titan. Resta saber
117
como faremos para voltar à superfície. Ao que
parece, o elevador precisa de reparos.
— Levarão muito tempo para reparar esse
elevador — disse Gucky em tom distraído. Esta-
va escutando. Provavelmente captava impulsos
telepáticos. A suposição foi confirmada. — RK-
940 acaba de receber Thora. Está bem dispos-
ta, mas preocupada, muito preocupada.
— Preocupada? — perguntou Rhodan es-
pantado. — Por quê?
— Não sei por quê. Apenas sei por quem.
— Ah, é? — disse Rhodan.
— É por você — disse Gucky, exibindo o
dente-roedor. — Isso permite algumas conclu-
sões bem interessantes.
Crest acenou com a cabeça e sorriu como
quem compreende. Mas foi interrompido nessa
atividade, pois Gucky não perdeu a oportunida-
de para uma observação mordaz.
— Acho que Tiff terá que procurar outra
noiva.
Tiff enrubesceu como um colegial.
— Eu... não me lembrei de nada melhor —
gaguejou muito embaraçado. — Infelizmente.
Thora não sabia disso e só poderia ficar indig-
nada quando despertou e ficou sabendo que eu
pretendia viver em sua companhia num planeta
romântico.
118
Desta vez foi Rhodan que sorriu.
— Foi uma idéia muito engraçada — confes-
sou, mas logo se tornou sério. — Acho que está
na hora de levarmos os medicamentos a um lu-
gar seguro. Ainda estou um pouco desconfiado
dos aras.
Naquele instante ouviu-se um leve zumbido
na sala.
Rhodan levantou o braço e comprimiu o bo-
tão do minúsculo aparelho de rádio embutido
em sua pulseira.
A voz do tenente Bristal repetia constante-
mente em tom exaltado:
— Perry Rhodan, responda. Perry Rhodan,
responda. É muito urgente. Perry Rhodan, res-
ponda...
Rhodan apertou outro botão.
— Aqui é Rhodan. O que houve?
Um momento de silêncio. Depois a voz de
Bristal voltou a falar:
— Alarma total! Estamos sendo atacados
por uma frota. Mais de cem naves de guerra
dos saltadores cercaram Aralon. Aguardamos
suas instruções.
Rhodan empalideceu. Lançou um olhar
apressado para Crest e respondeu:
— Ativar os campos defensivos da Titan e
da Ganymed. Evitar o combate enquanto for
119
possível. Dentro de dez minutos, estaremos aí.
Agüentem.
Bristal confirmou. O receptor silenciou.
Rhodan virou-se lentamente e olhou para os
dois robôs. Sua voz grave revelava uma estra-
nha frieza:
— RK-999. Revogo a ordem de poupar o
inimigo. Vá à frente e abra o caminho para os
elevadores. Qualquer resistência deverá ser eli-
minada — dirigiu-se ao outro robô. — RK-935.
Para você a ordem de não matar também não
vale mais. Mantenha nossas costas livres. Quem
quer que nos ataque deverá ser destruído.
Depois disso falou para Crest, Tiff e Sengu:
— Vocês se revezarão no transporte da cai-
xa com os medicamentos. Gucky, teleporte-se
para a superfície e providencie para que Thora
seja levada a um lugar seguro. Caso o ataque da
frota inimiga já tenha sido iniciado, aguarde jun-
tamente com ela e os robôs no edifício da ad-
ministração. Será preferível ficar no pavilhão,
onde terminam os poços dos elevadores.
Falando indistintamente aos circunstantes,
disse:
— Vamos. Não podemos perder tempo.
No momento em que RK-999 arrebentou vi-
olentamente a porta, Gucky desmaterializou-se.
Dez quilômetros abaixo da superfície de Ara-
120
lon, Rhodan iniciava seu avanço para a liberda-
de.

Quando Themos foi carregado ao seu gabi-


nete — e os robôs de Rhodan não impediram
que seus companheiros o fizessem — só teve
uma idéia: vingança!
Mas sofreu um revés após o outro.
Centenas de pacientes recém-chegados pre-
feriram voltar para as suas naves, a fim de pro-
curar curarem-se em outro lugar. As condições
reinantes em Aralon não ofereciam muita segu-
rança.
Seguiu-se a tentativa malograda de um de
seus assistentes, que tentou matar Rhodan no
elevador.
Finalmente os dois prisioneiros foram liber-
tados.
Neste ponto Themos não hesitou mais. Esta-
beleceu contato direto com o edifício da admi-
nistração situado na extremidade oposta do
campo de pouso e pediu que o ligassem com o
médico-chefe que comandava todo o setor. Em
breves palavras, descreveu a gravidade da situa-
ção e ressaltou que Rhodan descobrira segredos
que representavam uma ameaça à existência de
121
Aralon.
— Diz que está agindo por ordem do Impé-
rio, mas tenho minhas dúvidas. O cérebro robo-
tizado desconfia até de nós; como é que pode-
ria confiar numa criatura estranha, que nem se-
quer é súdito do Império? Chame uma frota de
guerra dos saltadores. Peça o apoio dos super-
pesados.
Estava pedindo muita coisa.
Os chamados superpesados eram a força
policial dos mercadores galácticos. Viviam da
guerra. Às vezes comboiavam naves que trans-
portavam mercadorias valiosas, mas outras ve-
zes entravam em guerra contra mundos que ti-
nham o atrevimento de revoltar-se contra os
métodos implacáveis dos saltadores. Segrega-
dos há muito tempo de sua raça, os superpesa-
dos viviam num planeta em que a gravitação
era enorme. Sua altura atingia dois metros e o
diâmetro de seu corpo chegava, em média, a
um metro e meio. E seu poderio bélico era tão
imponente como o aspecto de seu corpo. Suas
frotas eram mantidas de prontidão em todos os
recantos do Império. O médico-chefe hesitou.
— O senhor sabe que os superpesados são
muito caros. Seu preços não são nada módicos.
Não sei se sua preocupação se justifica. Talvez
possamos enganar o tal do Rhodan.
122
— É impossível — chiou a voz zangada de
Themos, que se sentiu muito contrariado por
ter de admitir a derrota. — Se esperarmos mais
trinta minutos, estaremos liquidados. Podere-
mos fechar nosso hospital. Os pacientes já não
se sentem seguros em nosso mundo.
A decisão veio com uma rapidez impressio-
nante.
— Muito bem, Themos. Chamarei os super-
pesados pelo hiperemissor e lhes pedirei que
nos mandem imediatamente um contingente
poderoso. Mas a responsabilidade será sua,
Themos. Não posso isentá-lo dessa obrigação.
— Ande logo! Não temos um minuto a per-
der.
Themos desligou o videofone. Foi desperta-
do de suas reflexões quando ouviu o zumbido.
Quando voltou a comprimir o botão, o rosto
de Rhodan surgiu na tela.
— O senhor? — gaguejou espantado.
— O senhor está vendo — respondeu Rho-
dan e exigiu que Thora, que representava o últi-
mo trunfo que os aras tinham em mãos, fosse
libertada imediatamente.
Ao concordar, sentiu uma satisfação íntima.

***

123
Os seiscentos e cinqüenta quilos do superpe-
sado Talamon acomodavam-se junto aos con-
troles da nave Tal VI. Estava estacionado no se-
tor de Dragolan, a uns 47 anos-luz de Árcon,
quando o receptor de hipercomunicação captou
uma mensagem dirigida a ele.
Vinha do quartel-general dos superpesados.
Talamon acenou com a cabeça; parecia sa-
tisfeito.
— O tédio da espera chegou ao fim. Está na
hora de acontecer alguma coisa, senão serei re-
tirado da circulação antes da hora.
Seu humor era um tanto mordaz.
O oficial de rádio anunciou que a ligação ha-
via sido completada.
Poucos segundos depois, respondeu o quar-
tel-general, que não estava instalado em algum
planeta, mas numa gigantesca nave cilíndrica.
— Talamon! Os aras estão solicitando ajuda
militar. Planeta de Aralon, sistema de Kesnar.
As coordenadas já são conhecidas. Duas naves,
uma delas de origem arcônida, devem ser des-
truídas. O comandante é um certo Perry Rho-
dan do planeta Terra. Não o conhecemos. De
quantas unidades dispõe?
— Cento e oito.
— Isso basta. Entre imediatamente na transi-
ção.
124
Antes que Talamon tivesse tempo para con-
firmar, o quartel-general interrompeu o contato.
Talamon transmitiu as respectivas instruções
aos comandantes das naves e agiu sem demora.
Enquanto a frota acelerava, ficou refletindo
constantemente sobre o nome Perry Rhodan.
Era desconhecido?
Não, esse nome não era tão desconhecido
assim. Já o ouvira.
Seria Topthor que lhe havia falado nele...?
Naturalmente, foi Topthor! Em algum lugar,
a mais de trinta mil anos-luz do lugar em que se
encontrava, Topthor tivera um encontro com o
tal do Rhodan e levara a pior. Bem, isso não
aconteceria com ele, Talamon. Esse Rhodan
que tentasse enfrentar cem naves bem arma-
das... Pouco importava que viesse da Terra ou
do inferno.
Dez minutos depois da mensagem de socor-
ro de Themos, a frota de Talamon se materiali-
zou no sistema de Kesnar, a menos de três se-
gundos-luz de Aralon. Espalhou-se e entrou em
posição. Cinqüenta unidades pesadas bloquea-
ram o porto espacial. Mantendo-se numa altitu-
de de dois quilômetros, estenderam uma rede
impenetrável sobre o gigantesco campo de pou-
so, em cuja extremidade estava pousada a gi-
gantesca Titan.
125
Talamon sentiu uma pressão no estômago
quando viu a gigantesca esfera. Nunca vira uma
nave desse tamanho. Devia ser o produto mais
recente dos estaleiros de Árcon. Bem, talvez o
monstro nem fosse tão perigoso como parecia
ser.
Bem, era só experimentar.
Ligou o telecomunicador.
— Regul, pegue dez naves e lance um ata-
que contra a esfera. Acione simultaneamente
todos os canhões de radiação de que dispõe
para romper o campo defensivo. Destrua a es-
fera, se puder. Ataque daqui a um minuto. Fim.
Regul confirmou e formou suas unidades
para o ataque.
Talamon continuava sentado atrás dos con-
troles da Tal VI. Estava esperando.

***

Gucky se materializou.
Três ou quatro aras espalharam-se apavora-
dos, quando viram o rato-castor formar-se re-
pentinamente diante deles. Um deles correu
com a capa esvoaçante em direção à porta.
Mas só conseguiu dar alguns passos. Sentiu-se
levantado e, deslocando-se que nem um torpe-
do, descreveu uma curva ampla pelo pavilhão,
126
pousando com uma longa escorregadela diante
da parede. Confuso, mas sem ter sofrido feri-
mentos visíveis, ficou deitado.
— Onde está Themos? — perguntou Gucky
com a voz estridente, apontando para os dois
aras que tentavam desaparecer às escondidas.
— Levem-me ao lugar em que está. Rápido, se-
não eu os transformo em foguetes espaciais.
Até que o formato de vocês ajuda.
Os dois hesitaram, mas quando suas capas
conquistaram a independência e procuraram
ganhar a liberdade com tamanha força que se
rasgaram e, transformadas em panos de chão,
executaram algumas manobras e caíram lenta-
mente ao chão, desistiram. Resolveram obede-
cer. Viraram-se e marcharam por um corredor,
em cuja extremidade se via uma porta de vidro
opaco. O letreiro dizia que atrás dela o chefe
desempenhava suas funções.
Gucky expulsou os dois aras com um movi-
mento da mão e abriu a porta através da teleci-
nese. A porta se abriu, como se a mão de al-
gum espírito a tocasse. Themos estava sentado
atrás de sua mesa, exausto com as medidas es-
tratégicas que acabara de ordenar. E o calombo
da testa não diminuíra.
Gucky fechou a porta atrás de si. Aliás, pa-
recia fechar-se por si. Themos apavorou-se e
127
chegou à conclusão de que a fase dos milagres
ainda não havia chegado ao fim. Mas nem des-
confiou de que os milagres mais grossos ainda
estavam por vir.
— Seu monstro de ara, será que você cha-
mou a frota dos saltadores? Fale logo, senão eu
o transformarei numa espiral giratória e o farei
descer ao centro de Aralon.
— Eu... eu...
— Obrigado — disse Gucky. — Já basta.
Sou telepata e posso ler os pensamentos imun-
dos que você traz na cabeça. Quer dizer que
você nos traiu. E foram logo os superpesados
que você mandou chamar. Rapaz, você come-
teu um erro imperdoável. Já sabíamos que você
estava fulo, mas nunca poderíamos imaginar
que, de tanta estupidez, você não consegue en-
xergar mais nada. Vamos! Você virá comigo.
— Os superpesados irão...
— Os superpesados podem dar-se por satis-
feitos se não os despacharmos para o inferno
— interrompeu Gucky, que mal conseguia con-
trolar-se. — Quero que você venha comigo.
Preciso mostrar-lhe uma coisa. Como é, ainda
não se decidiu?
Themos ergueu-se lentamente. Seus senti-
mentos não prenunciavam nada de bom, e não
tinha a menor curiosidade de ver o que esse pe-
128
quenote queria mostrar-lhe.
De repente, Gucky captou os pensamentos
de Thora. Estavam carregados de medo cheio
de pânico. Lá fora, no campo de pouso, estava
sendo travada uma batalha encarniçada. Gucky
conseguiu descobrir isso em meio à confusão. A
Titan estava sendo atacada. Numa fuga desaba-
lada Thora conseguira colocar-se em segurança
no interior do edifício, depois de ter percorrido
metade do trajeto que a separava da nave.
A raiva de Gucky cresceu.
Não teve mais a menor contemplação. Sub-
meteu Themos ao seu controle telecinético e o
fez planar à sua frente, dois metros acima do
chão. Quando chegou ao pavilhão, viu que
Thora entrava e, exausta, se deixava cair numa
poltrona. Parecia ter chegado ao fim das suas
forças. Poucos segundos depois, foi seguida por
RK-940, cujos braços armados ainda estavam
incandescentes.
Themos aterrissou de forma nada suave aos
pés de Thora.
A arcônida levantou os olhos, viu Gucky e
depois o ara. Seu rosto contorceu-se. Themos
levou um soco do lado, que voltou a despertar
as dores já esquecidas da primeira queda. Cho-
ramingava tristemente. O robô levantou o braço
armado do lado direito e apontou-o para o trai-
129
dor.
— Pare! — gritou Gucky. — Rhodan deu or-
dem para que não matássemos ninguém.
— Themos merece a morte — disse Thora,
vindo em apoio do robô. Sua raiva era ainda
maior que a de Gucky, e isso significava alguma
coisa. — Por que vamos poupá-lo?
— Quem vai decidir isso é Rhodan — chiou
o rato-castor em tom apaziguador. — Este su-
jeito não nos escapará.
— Onde está Rhodan? — perguntou Thora.
Só agora parecia lembrar-se dele.
Gucky olhou para as entradas dos elevado-
res.
— Deve chegar a qualquer momento. Já
está a caminho com Crest, Tiff e Sengu. Os
dois robôs virão atrás deles. Vão usar o peque-
no elevador de passageiros, porque o outro está
estragado.
Thora levantou-se devagar e foi caminhando
em direção ao elevador. Duas portas fechavam
as entradas para os poços dos elevadores: uma
larga, outra estreita.
— Não é essa porta — gritou Gucky, quan-
do comprimiu um botão e a porta larga se
abriu. Não se via nenhuma cabine de elevador,
apenas uma abertura grande e escura. Era o
poço, que descia mais de dez mil metros. — Já
130
disse que é o elevador pequeno.
Thora deixou aberta a porta maior e dirigiu-
se ao elevador de passageiros. Mais uma vez viu
o poço, mas dele saiu um zumbido monótono.
Era a cabine do elevador que estava subindo.
Demorou mais dois minutos até que parou.
Rhodan entrou no pavilhão, seguido dos três
acompanhantes. O rosto de Thora cobriu-se
com um brilho de alegria e alívio. Correu para
Rhodan e segurou-lhe as mãos.
— Perry, sinto-me tão satisfeita, eu... eu...
Rhodan retribuiu a pressão das mãos de
Thora.
— Obrigado, Thora. A senhora acaba de me
dar uma grande alegria. Mais uma vez, muito
obrigado, Thora. Mas não temos tempo para
tratar de assuntos particulares. Sengu, a caixa
com os medicamentos. Entregue-a ao RK-940.
Gucky ergueu-se à frente de Rhodan. Pre-
tendia dizer alguma coisa, quando Thora soltou
um grito. Quando se virou a fim de voltar para
sua poltrona, lembrou-se de Themos.
O ara ficara apavorado ao ver que seu inimi-
go saíra são e salvo do elevador, seguido pelos
prisioneiros e o arcônida. Reunindo as forças
que ainda lhe restavam, levantou-se de um salto
e, passando por Thora, correu em direção ao
elevador. Acreditava que a fuga para o labirinto
131
subterrâneo seria a única possibilidade de esca-
par à vingança de Rhodan.
No seu nervosismo, confundiu as portas. De-
morou um segundo para perceber o engano.
Com um grito apavorante caiu no poço.
Rhodan correu para o elevador e contem-
plou a profundidade abismal, como se pudesse
fazer alguma coisa pelo traidor. Mas logo viu
que só havia uma pessoa que poderia ajudá-lo.
— Gucky! — gritou apressadamente. —
Traga-o de volta. Depressa!
O rato-castor lançou um olhar rápido para
Thora. O rosto da arcônida, que ainda há pou-
co estava marcado pela surpresa, voltara a ficar
liso e indiferente.
— Gucky! — gritou Rhodan em tom mais
insistente. — Será que você não ouviu?
O rato-castor arrastou-se em direção a Tho-
ra e olhou para o relógio da arcônida.
— Themos já está caindo há trinta segundos
— constatou em tom objetivo. — São quase
cinco mil metros. Não é de supor que a queda
tenha sido perfeitamente vertical. Já está mor-
to.
— Gucky! — a voz de Rhodan assumiu um
tom mais enérgico. — Faça imediatamente o
que eu lhe disse.
— Quarenta segundos! — disse o rato-castor
132
com a maior indiferença. — São oito quilôme-
tros. Rhodan, recuso-me a cumprir a ordem.
Themos é um traidor miserável, que está sendo
castigado pelo destino. Ninguém tem o direito
de interferir no destino. Cinqüenta segundos.
Themos está morto; não existe a menor dúvida.
O rosto de Rhodan estava pálido. Em seus
olhos chamejava a raiva e o aborrecimento.
— Gucky, você acaba de cometer uma insu-
bordinação. Ainda falaremos sobre isso — in-
terrompeu-se ao ouvir um ruído atrás das suas
costas. Era apenas a cabine do elevador, que
descia para trazer os robôs. Ao que parecia, o
incidente estava esquecido. Apertou um botão e
entrou em contato com a Titan. — Tenente
Bristal? Quero um relato da situação. Rápido!
— Dez naves inimigas estão atacando. Nos-
sos campos defensivos resistem. O que deve-
mos fazer?
— Aguarde. Dentro de dez segundos estarei
aí. Ligue o hipertransmissor.
Dirigindo-se a Gucky, prosseguiu:
— Leve-nos à sala de comando da Titan.
Thora e Crest, daqui a pouco serão apanhados;
Tiff e Sengu também. Até já.
Gucky enlaçou Rhodan com os braços cur-
tos e desapareceu numa fração de segundo. Os
que ficaram para trás ainda chegaram a ver o
133
brilho triunfante nos olhos do rato-castor.

***

Talamon se dirigiu a uma região mais eleva-


da, para ter uma visão mais ampla. Face ao seu
caráter, o espetáculo das dez naves, que ataca-
vam em vão a supernave Titan, não lhe trazia
raiva nem ódio. Pelo contrário: sentiu certa ad-
miração pelo tal do Rhodan.
“Deve haver alguma coisa nesse sujeito”,
pensou “e nem é bom imaginar o que se pode-
ria fazer se este Perry fosse amigo da gente.”
Mas logo se lembrou da sua missão.
Devia destruir Rhodan.
— Regul! — berrou para dentro do microfo-
ne. — Retire-se. É inútil atacar a esfera com
apenas dez naves. Não abriram fogo contra o
senhor?
— Não dispararam um único tiro! — foi a
resposta um tanto incrédula. — Limitaram-se a
ativar os campos defensivos, e não consegui-
mos rompê-los.
— Atacaremos com as cinqüenta naves —
decidiu Talamon. — Nenhum campo defensivo,
por mais potente que seja, poderá resistir ao
fogo concentrado de cinqüenta couraçados. A
operação será iniciada exatamente daqui a dois
134
minutos.

***

Rhodan, que se encontrava na sala de co-


mando da Titan, não conseguiu disfarçar o es-
panto quando viu que de repente os atacantes
batiam em retirada. Gucky materializava-se com
Sengu, o último a ser retirado do pavilhão bran-
co. Exausto, sentou em cima da caixa de medi-
camentos e resmungou:
— E agora?
— Agora vamos fazer três coisas — respon-
deu Rhodan laconicamente. — Sengu, acompa-
nhe Crest à enfermaria e leve a caixa com os
medicamentos. O Dr. Haggard será o primeiro
a receber a injeção. O antídoto será injetado
em todos os doentes. Em segundo lugar você,
Gucky, saltará imediatamente para o edifício da
administração central, situado do outro lado do
campo de pouso, e fará o possível para trazer o
chefe. Deve ter sido ele quem falou com The-
mos e alarmou os saltadores. A terceira tarefa
só diz respeito a mim. Bristal, o hipercomunica-
dor está preparado?
Gucky suspirou e desmaterializou-se sem le-
vantar-se.
Sengu segurou a caixa embaixo do braço e
135
saiu da sala de comando, acompanhado por
Crest. Tiff e Bristal assumiram o comando da
Titan. Rhodan e Thora dirigiram-se à sala de rá-
dio.
A grande tela do hipercomunicador mostra-
va o espetáculo majestoso da frota robotizada
do Império, que se mantinha de prontidão.
Com um ligeiro movimento da chave, o quadro
foi substituído pela imagem de um único robô.
Rhodan reconheceu-o através da placa que tra-
zia presa ao peito.
— OR-775! Aqui fala Rhodan do planeta
Terra. Entre já em transição com toda a frota e
feche hermeticamente o sistema de Kesnar. Al-
gumas unidades vigiarão o campo de pouso;
deverão destruir qualquer nave que procure de-
colar. Nada de ataques. Apenas deverão defen-
der-se. Confirme.
— A transição será realizada dentro de dez
segundos. Apenas nos defenderemos, nada de
ataques.
Rhodan confirmou. A imagem foi substituí-
da. Mais uma vez, o conjunto da frota surgiu na
tela. Uma nave especial de rádio teve que trans-
mitir a imagem. De repente, a tela só mostrou
os inúmeros sóis do grupo estelar M-13, que
emitiam um brilho frio e indiferente.

136
***

Foi nesse instante que Talamon viu destruí-


das todas as esperanças de um bom lucro.
O alarma correu pela nave. Os campos de-
fensivos envolveram automaticamente todas as
unidades que se encontravam em formação de
ataque, aguardando apenas as respectivas ins-
truções. As mensagens de rádio corriam de um
lado para outro à velocidade da luz, atingindo
também as naves que se encontravam na face
oposta do planeta e na periferia do sistema.
O pressentimento transformou-se em certe-
za.
Uma poderosa frota de guerra dos arcônidas
acabara de aparecer. Era tão potente que den-
tro de poucos minutos poderia transformar a
frota dos saltadores num montão turbilhonante
de destroços incendiados.
Talamon avaliou a situação com uma preci-
são espantosa e reagiu imediatamente. Sua tre-
menda capacidade de reação já lhe salvara a
vida mais de uma vez. Com toda certeza, isso
acontecera desta vez.
— Mantenham-se em atitude passiva — ber-
rou para dentro do microfone. — Nada de ata-
ques. Aguardem. Procurarei negociar.
Alguém gritou na sala de rádio:
137
— Estão nos chamando. Um certo Rhodan
do...
— Passe a ligação para mim — gritou Tala-
mon espantado. — Rápido!
Demorou alguns segundos até que a tela, à
sua frente, se iluminasse. Surgiu um rosto. O
superpesado fitou os olhos frios e cinzentos do
ser que tinha o formato de um arcônida, mas
não deveria pertencer a essa raça.
— O senhor é o comandante dos superpesa-
dos? — perguntou o homem num intercosmo
impecável. — Responda!
— Sou Talamon — respondeu o superpesa-
do com um sorriso azedo. — Acho que o se-
nhor está interpretando mal as minhas inten-
ções...
— Se acredita que posso interpretá-las mal,
terá que tornar-se mais explícito — respondeu
Rhodan. — Sabe quem eu sou?
— Perry Rhodan do planeta Terra — disse o
superpesado sem muito entusiasmo. — Tive co-
nhecimento do seu encontro com Topthor.
— Pois é tanto mais surpreendente que as-
sim mesmo tenha tentado atacar-me. Quem foi
que o chamou?
— Foram os aras. Estavam em situação di-
fícil, e era nosso dever atender ao seu chama-
do.
138
— O primeiro dever de qualquer súdito de
Árcon consiste em servir ao Império. O senhor
devia saber disso.
— Os aras servem ao Império. Todo mundo
sabe disso. Quando solicitam auxílio, eles o fa-
zem a bem do Império.
— Como é o nome do ara que o chamou?
— Foi o médico-chefe Borat. Dirige o setor
do campo espacial e...
— Então foi Borat? — Talamon viu Rhodan
olhar para o lado e dizer a alguém: — O senhor
é Borat? Está certo, depois conversaremos.
Voltando a dirigir-se a Talamon, prosseguiu:
— Sabe alguma coisa a respeito dos aras e
dos métodos que usam, Talamon?
O rosto do superpesado não parecia muito
inteligente. Ao que parecia não sabia o que sig-
nificava a pergunta. Encolheu os enormes om-
bros.
— Sei aquilo que todo mundo sabe. Curam
os doentes e produzem os melhores remédios.
Não possuem armas de qualquer espécie e são
considerados os mais pacatos dentre os mora-
dores da Galáxia. É justamente por isso que
não compreendo por que o senhor...
— Quer dizer que não sabe mais nada?
Gucky, está dizendo a verdade?
Talamon ficou espantado ao ver que um es-
139
tranho ser peludo empurrou Rhodan para o
lado e apareceu na tela. Fitou um par de olhos
castanhos e bondosos, que o examinavam aten-
tamente. Depois disso, o ser peludo acenou
com a cabeça e desapareceu. O rosto de Rho-
dan voltou à tela.
— O senhor está com sorte, Talamon. Real-
mente não está informado sobre as verdadeiras
atividades dos aras. Isso explica seu procedi-
mento. Pois eu lhe contarei tudo, a fim de que
o senhor possa informar todas as raças do Im-
pério a respeito do que está acontecendo em
Aralon.
Os dez minutos que se seguiram representa-
ram a maior surpresa por que Talamon jamais
passou. Ouviu em silêncio o que Rhodan lhe di-
zia. O sorriso desapareceu de seu rosto, dando
lugar a uma expressão de raiva.
Quando Rhodan terminou, ficou calado por
algum tempo. Depois perguntou:
— Por que não destrói Aralon?
O ligeiro sorriso de Rhodan não poderia ser
considerado muito amável.
— Será que eu destruí sua frota quando fui
atacado por ela? Não. Nem sempre a morte e a
destruição são as soluções finais ou, de modo
singular, a melhor solução de um problema. A
Galáxia saberá como a raça dos aras adquiriu
140
sua riqueza. O segredo deste planeta deixou de
existir. Se os aras não quiserem desaparecer,
terão que adaptar-se utilizando seu saber para o
bem geral. No entanto, se acontecer mais uma
única vez que um habitante de qualquer mundo
do Império contraia uma doença cuja origem
deve ser procurada em Aralon, este planeta dei-
xará de existir.
Talamon acenou lentamente com a cabeça.
— Os aras descendem dos saltadores. Têm
o comércio no sangue, tal qual nós, os superpe-
sados. É verdade que vivemos da luta, mas não
da baixeza. Perry Rhodan, conte comigo sem-
pre que a justiça não tiver forças para defender-
se.
Uma expressão calorosa surgiu no rosto de
Rhodan.
— Obrigado, Talamon. Não me esquecerei.
Reúna sua frota e lembre-se do que acaba de
prometer. Também os saltadores nem sempre
têm o direito de seu lado. Receio que dentro de
pouco tempo o senhor se verá diante de tarefas
que representarão um pesado encargo para sua
consciência.
— Eu lhe dou minha palavra, Rhodan. Sou
bastante rico para recusar qualquer oferta dos
meus comandantes que não me agrade. Permi-
te que lhe dê minha freqüência de hipercomuni-
141
cação? Por ela poderá atingir-me a qualquer
momento.
— Terei muito prazer em fazer uso de sua
oferta se um dia isso se tornar necessário.
— Mais uma pergunta — acrescentou Tala-
mon. Em seus olhos havia uma certa timidez,
que de forma alguma combinava com aquela
montanha de carne. — Como se explica que de
repente os arcônidas se tenham tornado tão ati-
vos? Há milênios não se vê uma frota de guerra
oficial do Império.
— Os tempos estão mudando — disse Rho-
dan com um sorriso significativo. — O Império
encontra-se no limiar de uma nova época de
sua história. Procure acompanhar essa evolu-
ção, Talamon, e o senhor ainda terá muita
oportunidade de mostrar seu gênio combativo a
favor da causa do Direito.
Talamon confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Conte comigo, Rhodan. Se algum dia seu
planeta, a Terra, estiver em perigo, chame-me.
Muitas felicidades, Rhodan.
Desligou sem aguardar resposta. Seus olhos
pareciam pensativos.
Voltou a mover a chave com um movimento
vigoroso, colocando-a na posição de transmis-
são.
142
— Frota preparada para a transição — disse
com a voz um tanto trêmula, que exprimia alí-
vio e decisão. — Coordenadas inalteradas...
Depois de alguns segundos, acrescentou:
— Missão cumprida!
Após dez segundos a frota de Talamon desa-
pareceu dos céus do planeta Aralon.

Rhodan levou mais trinta segundos fitando a


tela vazia, antes de virar-se e fitar Gucky.
— Então, meu chapa, o que é que ele estava
pensando?
O rato-castor sorriu. O dente-roedor escor-
regou para a frente, dando uma expressão ma-
treira ao seu rosto. O pêlo da nuca voltou a ali-
sar-se.
— Está muito impressionado. De início, ape-
nas havia o espanto enorme provocado pelo
surgimento da frota robotizada. Não havia con-
tado com essa possibilidade. Para ele os arcôni-
das são dorminhocos incapazes de qualquer ini-
ciativa. Mas quando soube da verdade sobre os
aras, suas idéias mudaram com uma rapidez es-
pantosa. A modificação foi verdadeira e convin-
cente. Talamon passou a ser nosso amigo.
Uma coisa que também o impressionou foi o
143
fato de não termos aproveitado nossa superiori-
dade para castigá-lo. Não perdeu uma única
nave. Rhodan, ele admira você.
— Obrigado, Gucky — respondeu Rhodan.
Parecia bastante comovido. Mas só por um ins-
tante. Seu olhar logo voltou a assumir a expres-
são de dureza. Com a voz fria, dirigia-se a um
trêmulo ara, que se encontrava entre Tiff e Sen-
gu. Ao que tudo indicava, ainda não conseguira
digerir aquela estranha forma de transporte ul-
tra-rápido. — Borat, o senhor ouviu o que aca-
bo de dizer ao superpesado. Não foi nenhuma
ameaça. A produção de Aralon terá de ser re-
duzida à metade.
“No futuro, não serão produzidos mais ger-
mes causadores de doenças; apenas remédios.
Todas as raças que adoeceram por causa dos
preparados dos senhores receberão tratamento
gratuito. Para vigiá-los e controlar a execução
destas medidas, deixarei duzentos robôs de
guerra em Aralon. Serão programados de tal
forma que qualquer falta será castigada com a
imediata destruição do culpado. Não pense que
conseguirá enganar um robô equipado com um
cérebro positrônico. Mesmo que estivesse em
condições de destruir um dos robôs, isso não
adiantaria nada. Toda a reserva energética do
mesmo seria utilizada para transmitir uma men-
144
sagem de hipercomunicação dirigida ao cérebro
robotizado de Árcon. A conseqüência seria o
envio de uma expedição punitiva, que destruiria
o planeta depois de evacuados os doentes. Será
que me fiz entendido?”
O médico-chefe Borat confirmou com um
forte aceno da cabeça. Em seus olhos brilhava
uma expressão de pavor e de disposição irres-
trita de fazer qualquer coisa que exigissem dele.
No entanto, disse:
— Não posso decidir sozinho. O conselho
de médicos terá que dar seu consentimento e...
— Conhece alguém que consentiria com a
destruição de Aralon?
— Não, é claro que não conheço, mas...
— Nada de mas, Borat. Não existe outra al-
ternativa. A possibilidade de qualquer solução
conciliatória está excluída. O erro dos senhores
foi que não se deram por satisfeitos com aquilo
que haviam conseguido. E outro erro foi o de
me terem atacado. Mas está tudo bem. Pode
sair da nave e voltar ao seu gabinete. Aguardo
sua decisão pelo prazo de três horas. É mais
que suficiente. Passe bem, e conserve a saúde,
Borat. Tiff, leve-o até a escotilha.
Acompanhou a saída do ara com um olhar
frio. Depois dirigiu-se a Gucky:
— E agora terei uma conversa com você,
145
meu caro. Você se recusou a cumprir uma or-
dem minha. Pode oferecer qualquer desculpa
para esse procedimento?
O rato-castor encolheu uns vinte centíme-
tros. Escorregou para dentro de seu próprio
corpo. Lançou um olhar de súplica para Thora,
que fitou Rhodan com uma expressão de de-
sembaraço. Suas faces tingiram-se de vermelho.
— A culpa foi minha, Perry. Fui eu quem
pediu a Gucky que matasse Themos.
O olhar de Rhodan passou além de Thora.
— Thora, uma vida humana pesa em sua
consciência.
— Foi um traidor, Perry. Merecia a morte.
— Será que um ser humano pode tomar
uma decisão desse tipo? Se quiséssemos racio-
cinar dessa maneira, também Borat mereceria a
morte. E com ele mais alguns milhares de pes-
soas. Mas, como vê, poderão ser muito mais
úteis se continuarem vivos. Também Themos
poderia ter oportunidade de pagar pelos seus
erros.
— Fomos nós que o matamos? — disse
Thora em sua defesa. — Foi ele quem saltou
para dentro do poço que seria nossa armadilha
mortal. Ele se suicidou. Se Gucky não o ajudou,
isso pode ter sido uma omissão, mas nunca um
assassinato.
146
— Quer dizer que existem circunstâncias
atenuantes? — perguntou Rhodan em tom sar-
cástico, sacudindo a cabeça. — Por favor, Tho-
ra, nunca mais procure interferir nas minhas
decisões. De certa forma, compreendo sua có-
lera. Não falemos mais sobre isto.
Inclinou-se para Gucky.
— E você, meu caro, aceite isto como uma
lição. É bem verdade que Thora tem tempo
para cocar seu pêlo e ir à cozinha de bordo
para pedir algumas cenouras para você, mas
nem por isso se justifica que minhas ordens se-
jam ignoradas. Entendido?
Os olhos fiéis de Gucky pareciam ainda mais
fiéis. O dente-roedor arriscou o primeiro avan-
ço para esboçar um sorriso. Acenou fortemente
com a cabeça.
— Entendido, chefe!
Aguçou o ouvido em direção à porta. O
dente-roedor já se esquecera da repreensão.
Gucky sorria cheio de expectativa enquanto
atravessava a sala de comando em passo arras-
tado, fazendo com que a porta se abrisse.
Um tanto espantado com a medida inespe-
rada, Bell tropeçou no limiar da porta e olhou
para Gucky, que era considerado seu amigo do
peito. Os cabelos ruivos de Bell estavam tran-
qüilamente encostados ao crânio redondo, en-
147
quanto o rosto irradiava alegria e satisfação.
Nos olhos azuis-claros, brilhava uma espécie de
tristeza contida, que parecia estar em contradi-
ção com essa satisfação. Bell devia estar atra-
vessando um agudo conflito de personalidade.
— Olá — disse, cortando o ar com um gesto
da mão. — Aqui estou. Aconteceu alguma coi-
sa?
Gucky fungou de desprezo.
— Enquanto nós salvamos a Via Láctea,
você ficou refestelado na cama, dormindo e sor-
rindo sem dizer nada. Devemos ser gratos aos
aras, que nos livraram por algum tempo da sua
cara, que já estávamos enjoados de ver. E fui
logo eu quem tive de arranjar o remédio que
acordou você. Mas acabo voltando para lá a fim
de buscar o germe da doença.
Aconteceu uma coisa totalmente inesperada.
Bell agachou-se e fitou os olhos do rato-castor,
que emitiam um brilho matreiro.
— Gucky, meu amiguinho e velho compa-
nheiro de lutas, você não me fará uma coisa
dessas. Eu lhe garanto que já dormi bastante;
estou me sentindo quase em forma. E, pelo que
diz o tio, doutor Haggard, tenho muito tempo.
São quinze dias de descanso. Imagine só, quin-
ze dias! Terei tempo para, vez por outra, fazer-
lhe o favor de...
148
— De coçar meu pêlo? — perguntou Gucky
em tom de espanto, com o rosto radiante.—
Você vai coçar meu pêlo? Combinado! Duas
horas por dia...
Bell fez uma cara de quem acabara de ser
condenado três vezes à morte. Mas um simples
olhar para o rosto feliz do rato-castor amoleceu
seu coração. Parecia conformado.
— Combinado, Gucky! Levantou-se devagar
e caminhou para a poltrona mais próxima.
Afundou nela com um gemido e fechou os
olhos. O mundo exterior parecia não existir
mais para ele.
Gucky pôs as patas superiores nos quadris.
Os pêlos da nuca arrepiaram-se. Sacudiu a ca-
beça num gesto de perplexidade.
— O que ele acaba de dizer é muito bonito,
mas o que está pensando neste momento reve-
la tamanha baixeza e falta de caráter que é im-
publicável. Bem, o que importa é o que ele vai
fazer. E ele vai cumprir sua promessa.
Empertigou-se e caminhou para junto de
Thora, que colocou a mão sobre a cabeça dele
e sorriu.
— Acontece que tem um medo terrível de
mim.
Um gemido comovedor veio da poltrona em
que Bell estava deitado. Parecia que o homem
149
que acabara de sofrer uma provocação tão de-
savergonhada acabara de adormecer.
Provavelmente era a solução que mais lhe
convinha.
Rhodan sorriu e fez um gesto para que o te-
nente Bristal se aproximasse.
— Estamos aguardando notícias de Borat.
Assim que chegarem, decolaremos. Mande que
a frota robotizada volte para Árcon, onde deve-
rá continuar à nossa disposição. Fizemos dos
aras nossos inimigos mortais, e ainda não sabe-
mos qual será o resultado. É possível que o Re-
gente conheça a resposta. Afinal, fomos os pri-
meiros que se revoltaram contra duas raças po-
derosas: contra os saltadores e contra os médi-
cos de Aralon, que se propunham a curar pes-
soas sadias.
Crest e Thora trocaram um olhar. Depois de
Bristal se ter retirado da sala de comando, o ar-
cônida disse:
— Os atos que o senhor praticou terão con-
seqüências, isso é tão claro como a água límpi-
da de uma fonte do planeta Terra. Muita gente
começará a refletir sobre quem será Perry Rho-
dan do planeta Terra. O senhor representa um
fator adicional nos cálculos de todos os mem-
bros do Império Arcônida. Terão que aprender
a incluí-lo nesses cálculos. E, uma vez que está
150
agindo por ordem do Regente, daqui por diante
também os arcônidas serão incluídos nesses cál-
culos. Por isso, o senhor merece nossa grati-
dão, Perry. Está restituindo ao meu povo a
fama do poder de iniciativa, que perdemos há
milênios.
Thora confirmou com um movimento reso-
luto da cabeça.
— Se continuarmos a agir em conjunto e re-
conhecermos por enquanto o cérebro robotiza-
do como Regente, o Império de Árcon terá
uma nova época de prosperidade. Também eu
tenho que agradecer-lhe, Perry, por tudo que
tem feito.
Mas Perry Rhodan não iria esquecer sua ori-
gem, fosse qual fosse o lugar em que o destino
o colocasse. Mesmo depois daquele momento
em que, treze anos atrás, pousara na Lua com
um frágil foguete de combustível líquido e des-
cobrira os arcônidas, que enfrentavam uma gra-
ve emergência. O que seria ele hoje, se não fos-
sem esses arcônidas? O que teria sido feito da
Terra? Será que alguém saberia que no Univer-
so existem outros seres inteligentes além dos
homens? Mais do que isso. Se não fosse esse o
capricho, a Humanidade não se teria destruído
nas chamas de uma guerra nuclear?
Sacudiu a cabeça, aproximou-se de Crest e
151
Thora. Estendeu-lhes as mãos.
— Não, meus amigos, não é a mim que vo-
cês devem agradecer. Tudo que sou e que con-
segui fazer é devido única e exclusivamente a
vocês. Serão vocês que vão salvar. Afinal, quem
seria eu se não me tivessem prestado auxílio há
treze anos? Não passaria de um pioneiro espa-
cial terrano que, se não tivesse havido uma
guerra nuclear, a esta hora talvez estaria pou-
sando em Vênus ou Marte. Não, Thora e Crest,
só nós três juntos representamos um fator que
deve ser considerado. Se não fosse eu, vocês
teriam perecido na Lua; se não fossem vocês,
eu apenas seria um membro de uma raça sub-
desenvolvida que estaria dando os primeiros
passos em direção ao cosmos. E talvez fosse até
tropeçar nos astros. Reunidos, somos uma equi-
pe que não pode ser desprezada. Formamos
uma união de amigos que manterá e fortalecerá
o Império.
Seus olhos encontraram os da arcônida; sen-
tiu o sangue pulsar mais rápido. Em seu olhar
não havia apenas admiração e amizade; nele
também brilhava a expressão do amor genuíno,
profundo. Naquele momento, compreendeu
que suas esperanças secretas não seriam vãs...
O tenente Bristal entrou e arrancou Rhodan
das suas reflexões.
152
— Recebemos um chamado de Borat. O
conselho dos médicos de Aralon aceitou o ulti-
mato. Os duzentos robôs já foram colocados
em terra. A Titan e a Ganymed estão prontas
para decolar. Quais são as instruções?
Rhodan olhou-o com a expressão de quem
desperta de um sonho.
— Minhas instruções? Transição para Ár-
con, evidentemente. Tiff assumirá o comando.
Tenho outra coisa para fazer.
Bristal retirou-se. Alguns segundos depois,
Tiff entrou e acomodou-se na poltrona de Rho-
dan. Seus comandos foram firmes e tranqüilos.
O tempo começou a correr. Dentro de dois mi-
nutos, as duas naves se precipitariam para o fir-
mamento claro, deixando para trás dez mil se-
res pensativos e perplexos, vindos de todos os
mundos do Império. Eram inteligências acostu-
madas a verem Árcon dormir, passivo. Porém,
haviam visto com seus próprios olhos que um
certo Perry Rhodan do planeta Terra tirara Ár-
con daquela calma aparente. Calma esta que re-
presentava uma oportunidade excelente para
todos os inimigos do Império que desejassem le-
var avante seus projetos de domínio.
Todos eles começariam a perguntar: quem é
esse Perry Rhodan? Onde fica seu mundo, o
planeta Terra?
153
— Um minuto até a decolagem! — disse Tiff
em tom indiferente.
Os olhos de Thora voltaram a procurar o
olhar de Rhodan.
Foi quando Gucky, que até então se manti-
vera num estranho silêncio, deitado em seu
sofá, resolveu levantar-se. Escorregou para o
chão e arrastou-se desajeitadamente para a por-
ta, que se abriu automaticamente diante dele.
— Não tenho mais nada a fazer por aqui —
chilreou e soltou um assobio agudo, que expri-
mia insatisfação. — Gostaria de saber quem vai
coçar meu pêlo, quando o tempo de Bell tiver
passado.
Depois de dizer estas palavras, lançou um
olhar de recriminação para Thora, saltitou para
o corredor e desapareceu.
— Decolagem dentro de dez segundos —
disse Tiff sem revelar a menor emoção. Sua
mão estava pousada sobre os controles.
Rhodan fez um sinal para Crest e Thora.
— Vamos andando. Acho que ainda deve-
mos refletir sobre os termos do relatório a ser
fornecido ao cérebro robotizado.
Caminhou à frente dos outros. Thora lançou
um olhar de súplica para Crest, antes de seguir
Perry.
Crest foi o último a deixar a sala de coman-
154
do.
Seu sorriso silencioso revelava uma alegria
sincera.

***

155
Havia muitos observadores que acompa-
nhavam a ação de Rhodan com uma tremen-
da atenção. Era a primeira vez na história do
Grande Império que alguém se levantava, in-
tervinha com mão de ferro nos acontecimen-
tos de Aralon e dava uma lição amarga aos
médicos galácticos.
Será que os aras tomarão essa lição a pei-
to e passarão a agir exclusivamente em bene-
fício da Galáxia?
Em PROJETO AÇO ARCÔNIDA, próxi-
mo volume da série, uma estranha ameaça
surge.

*
* *

ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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