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O ALMIRANTE GECO
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
A situação de Rhodan se complica — os
blues estão à sua procura!...
— Não podemos passar o resto da vida nesta caverna. — Bell olhou em torno, como
se estivesse à procura de alguém que apoiasse seu plano. Esperou em vão. — Vocês
realmente acreditam que a Tramp conseguirá passar? As últimas notícias aludem a
aproximadamente mil naves dos blues. Nestas condições até mesmo um comandante
melhor que Geco quase não teria nenhuma chance.
Rhodan levantou os olhos.
— Quem afirma que Geco não é um bom comandante é só você; mais ninguém.
— Não foi o que eu quis dizer, mas o fato é que ele não tem experiência. Afinal,
não é nada fácil escapar aos hiperrastreadores de mil naves inimigas. Acho que
deveríamos fazer alguma coisa.
— Seria suicídio revelar nossa presença. Um único tiro energético pode liquidar-
nos. Não, Bell. Só temos uma chance. Temos de ficar aqui e esperar que chegue auxílio
— ou que os blues nos encontrem.
Bell resignou-se. Talvez até reconhecesse que realmente não tinham alternativa.
Mas para ele era pior permanecer inativo do que precipitar-se numa luta sem esperança.
— Vamos comer alguma coisa — sugeriu Kasom, mas calou-se, atarantado, ao
defrontar-se com os olhares indignados dos outros. Atlan disse o que todos estavam
pensando:
— Se permitirmos que o senhor continue a sacar as provisões, amanhã já
passaremos fome.
— Pois eu já estou passando fome hoje — resmungou Kasom, ofendido. — Um
homem com a minha estatura...
— Pare com isso — exclamou Bell, furioso. — Procure dormir um pouco.
— Por que iria dormir? Não estou com sono.
— Quem dorme não cha... não peca — apressou-se Bell a corrigir quando seu olhar
caiu por acaso nos punhos enormes de Kasom. Voltou para junto de Rhodan. — Quer que
acorde os dois ratos-castores? Acho que já dormiram bastante.
Bokom e Hemi estavam enrolados bem juntinhos no banco dos fundos e
ronronavam baixinho. Bell contemplou-os um instante e sacudiu a cabeça.
— Não consigo — disse e foi para perto dos controles, onde estava sentado Rhodan.
— Não posso despertá-los. Por que faria isso? No momento não precisamos deles.
— A idéia foi sua — lembrou Rhodan em tom delicado. — Mas está bem. Vamos
deixá-los dormir. Se necessário poderemos arranjar-nos sem eles, caso tenhamos de
mudar nossa posição.
— E a Tramp? — perguntou Noir. — Ainda está em contato?
Rhodan sacudiu a cabeça.
— O contato foi interrompido de repente. Tomara que Geco tenha conseguido.
Antes que alguém pudesse responder, uma nave apareceu junto à encosta do
planalto.
Sem dúvida pertencia à frota dos blues. Tinha formato cilíndrico e não era muito
grande. Quase se podia ser levado a acreditar que fosse um veículo de salvamento, mas o
canhão de proa logo apagou essa impressão. Devia ser uma nave de reconhecimento dos
blues, incumbida de vasculhar a superfície do planeta.
Não havia duvida de que ó comandante da nave estava levando a tarefa muito a
sério.
A nave descia cada vez mais, acompanhando o declive do terreno. Aproximou-se do
esconderijo dos fugitivos numa altura de trinta ou quarenta metros. O planador tinha
entrado na caverna, mas como tinha dez metros de comprimento, um canto continuava
visível. Não se tinham lembrado de camuflar esse canto. E as árvores mais próximas
ficavam a centenas de metros de distância.
— O canhão de proa! — exclamou Rhodan assim que percebeu o perigo. —
Vamos, Bell, você precisa sair. Acompanhe todos os movimentos dessa nave. Leve um
telecomunicador. Kasom, guarneça o canhão. Se ela chegar mais perto, abra fogo. Mas só
quando tiver certeza de que fomos vistos. Talvez sejamos obrigados a sair de surpresa...
Bell, que estava junto à porta, virou a cabeça.
— Como poderei voltar ao planador antes que seja tarde?
— Você será avisado em tempo. Vá andando!
Bell saiu correndo.
Os dois ratos-castores também já tinham acordado. Sem dizer uma palavra, Bokom
escorregou para dentro da poltrona que ficava perto de Rhodan. Hemi ficou perto de
Mory Abro. Kasom ocupou seu lugar junto aos controles do canhão de proa. Tratava-se
de um canhão energético pequeno, mas muito eficiente, que era perfeitamente capaz de
perfurar um campo defensivo de reduzida potência. Rhodan ainda via a nave dos blues. O
cilindro deslocava-se muito devagar. O comandante devia ter muito tempo, ou então
sabia que as pessoas que estava procurando se encontravam nesta área. Todavia, era
bastante duvidoso que soubesse quem eram essas pessoas. Provavelmente os blues só
podiam formular conjecturas sobre isso.
Bell colocou-se junto à entrada da caverna.
— Estão dobrando para a esquerda, isto é, seguem para leste. A distância está
aumentando. Talvez nem nos vejam. Agora — droga!
— O que houve, Bell? — perguntou Rhodan, que não enxergava mais a nave dos
blues, porque uma rocha saliente impedia sua visão.
— Estão pousando! Acabam de pousar a menos de duzentos metros daqui. E agora?
— Fique de olho neles. Não deixe que eles o vejam. Entendido?
— Você acha que minha vida não vale nada para mim?
Kasom continuava sentado junto aos controles do canhão. Seu rosto parecia, tenso.
Via-se que gostaria de comprimir desde logo o botão do acionador, embora não houvesse
nenhum alvo à vista. Bokom não fez o menor movimento. Olhava para Rhodan, e havia
tanta fé e confiança em seu olhar que Rhodan fez um gesto amistoso para ele e acariciou
o pêlo castanho.
Bell espiou cautelosamente pela entrada da caverna.
Uma escotilha da nave abriu-se e várias figuras apareceram. Eram blues.
Carregavam armas e pareciam mais nervosos, mas ficaram esperando. Dali a alguns
segundos viu-se por que faziam isso.
Quatro criaturas de seis pernas passaram por eles e saltaram para o chão. Bell nunca
vira um ser desse tipo. Logo imaginou que deviam ser membros de um povo oprimido,
que eram utilizados em tarefas especiais.
As criaturas pareciam muito perigosas. Não carregavam armas e talvez pudessem
ser designados como animais. Certamente desempenhavam uma tarefa semelhante à dos
cães de fila terranos.
— Uma espécie de cães — constatou Bell e relatou suas observações. — Se
ninguém mais nos encontrar, eles nos descobrirão. E agora? Acabam de espalhar-se. Um
deles vem exatamente na nossa direção.
— Dificilmente podemos impedi-lo. Se atirarmos, revelaremos nossa presença.
Volte para a cabine, Bell; depressa! Vamos sair daqui.
— Talvez isso não seja necessário — piou Bokom.
Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto.
— Por quê?
— Procurarei deter o animal. Telecineticamente. Os blues nem saberão o que
aconteceu. Serão incapazes de determinar a direção da qual veio a influência telecinética,
se é que sabem o que vem a ser isso.
— Está bem, Bokom. Pode tentar a sorte. Você enxerga bastante?
Bell já tinha entrado na cabine. A porta fechara-se atrás dele. Kasom ainda estava à
espera da ordem de abrir fogo.
O animal de seis pernas atingiu a entrada da caverna e ficou parado. Bokom olhou
fixamente para ele e concentrou-se. De repente o animal parecia estar seguro por mãos
invisíveis e foi levantado. As pernas finas debatiam-se desesperadamente e em vão. Não
encontravam apoio. Bokom ainda não soltou a presa. Transportou-a a alguns metros de
distância, fazendo-a descer até a mata que quase não podia ser vista. Colocou o animal
cuidadosamente no chão, para não feri-lo.
Os blues acompanharam o fenômeno inacreditável, mas não esboçaram a menor
reação. Provavelmente estavam ocupados em encontrar uma explicação racional para
aquilo que acabavam de ver.
Mas dali a dois ou três minutos desceram da nave e marcharam em direção à
caverna, com as armas apontadas para a frente.
— Eles não se assustam à toa — constatou Rhodan e ligou o motor do planador. —
Quando estiverem bem perto, sairemos daqui. A nave não pode atirar sem colocar em
risco seus tripulantes. Quando tiverem voltado para bordo, já deveremos ter atingido a
floresta. Quando eu der a partida, segurem-se.
— Quer que dê um tiro na nave, de passagem? — perguntou Kasom em tom
ansioso.
— Não seria nada mau — respondeu Rhodan.
Quatro ou cinco blues aproximaram-se a vinte metros antes de ver a proa do
planador. Estacaram, com as armas apontadas e logo começaram a atirar.
O planador possuía um campo defensivo bem fraco, que Rhodan ligara em tempo.
Esse campo absorveu facilmente a energia concentrada das armas leves. Era bem verdade
que o campo não seria capaz de resistir ao impacto direto de um tiro de canhão.
— Pronto! — disse Rhodan. — Partiremos dentro de cinco segundos.
Todos se prepararam para a decolagem instantânea. Alguns tinham atado os cintos
de segurança. Bokom cravou as unhas na almofada de sua poltrona. Bell agarrou-se às
costas de Kasom, na esperança plenamente justificada de que dificilmente alguma coisa
aconteceria ao gigante.
De repente Rhodan moveu várias alavancas ao mesmo tempo.
O planador saiu do abrigo que nem um projétil, passou velozmente pelos blues
tomados de surpresa e subiu rapidamente. Quando se encontrava na posição mais
favorável, Kasom disparou contra a nave e conseguiu um impacto direto. Rhodan fez o
veiculo aéreo descrever uma curva para a direita, desceu e seguiu em direção às matas
impenetráveis do sul. Atrás deles o planalto, as rochas, as cavernas e os blues
desapareceram em meio ao súbito clarão dos tiros energéticos, que não atingiram o alvo.
Rhodan continuava sentado junto aos controles. Parecia tenso.
Sabia perfeitamente o risco que estavam correndo. Bastava uma única mensagem de
rádio dos blues para colocar a matilha em seu encalço. E a nave deles não poderia ter sido
destruída tão depressa que não tivesse tempo para transmitir um pedido de socorro. Seria
preferível dar o fora quanto antes e procurar um esconderijo melhor.
A floresta aproximou-se. Junto a ela brilhavam as superfícies de água. O chão
rochoso desapareceu, cedendo lugar a um solo úmido e batido pelo calor.
Mais uma vez Rhodan mudou de direção, para desviar os blues da pista certa. O
planador corria para leste. Embaixo deles era tudo mata. As copas das árvores
enfileiravam-se uma ao lado da outra. Só de vez em quando havia uma brecha pela qual a
vista alcançava o solo.
Kasom ligou os rastreadores, para livrar Rhodan de parte do trabalho. Numa altura
tão baixa a recepção só poderia ser deficiente e imprecisa. Os raios rastreadores só
funcionavam na base da visão direta. No espaço cósmico esta era praticamente ilimitada,
enquanto no lugar em que se encontravam ficava limitada a distâncias bastante reduzidas.
Uma das telas mostrava cinco naves, que se aproximavam em alta velocidade.
Kasom abandonou os rastreadores e voltou para junto do canhão.
— Atenção, vamos descer mais — disse Rhodan. — Vou reduzir a velocidade, mas
não posso evitar as mudanças abruptas da rota. Seremos sacudidos um pouco, mas só
assim talvez conseguirei livrar-nos dos perseguidores. Kasom, só dispare quando eu
mandar. Entendido?
— Tudo bem, Chefe.
A manobra que Rhodan passou a desenvolver beirava à loucura. Na altura das copas
das árvores a mata parecia impenetrável, mas no lugar em que se supunha estivesse a
vegetação rasteira havia espaço suficiente para o planador. Mas não seria nada fácil
encontrar uma clareira que abrisse uma brecha na cobertura verde.
Quando Rhodan a encontrou, os blues só estavam a alguns quilômetros de distância.
Rhodan deixou cair o planador e só deteve a queda poucos metros acima do solo.
Deixou ligado o propulsor aéreo e fez o veículo deslizar poucos centímetros acima do
solo, para não deixar rastros, fazendo-o passar entre os troncos enormes. Penetrou cada
vez mais profundamente na mata.
Os blues aproximaram-se, mas a única coisa que viram foi um mar de folhas verdes
no qual de vez em quando se abria uma ilha. Não viram o menor sinal do veículo que
estavam perseguindo. As cinco naves ficaram circulando por algum tempo um tanto
indecisas sobre o lugar em que Rhodan tinha desaparecido e começaram a disparar
furiosamente contra a floresta.
Dali a dez minutos desapareceram tão depressa como tinham aparecido.
Cem metros abaixo deles Rhodan fez descer o planador junto a um riacho estreito e
desligou o motor. Espreguiçou-se.
— Aqui estamos seguros. Para cima estamos protegidos contra a localização visual.
Se quiserem encontrar-nos, os blues terão de vasculhar a floresta a pé ou incendiá-la. Isso
não será muito fácil, porque a madeira é fresca e úmida. Além disso teriam que destruir
mais de metade da superfície do planeta. Tomara que não soltem sua raiva em cima dos
inocentes nativos.
— Quer dizer que vamos ficar aqui? — perguntou Kasom e saiu a custo da
poltrona, que era muito apertada para ele.
— Por enquanto sim. Vamos esperar que a Tramp ou outra de nossas naves entre
em contato conosco.
— Muito bem. Nesse caso vou comer alguma coisa e depois tomar um banho
refrescante no riacho...
— O senhor pode tomar banho à vontade, Kasom. Mas aqui só se come quando eu
mandar. Precisamos racionar imediatamente nossos alimentos, senão dentro de dois ou
três dias teremos de comer a casca das árvores.
— Assim Kasom finalmente poderia comer até ficar satisfeito — escarneceu Bell
em tom malicioso.
Rhodan sorriu.
— Você também. Quem sabe... é possível que a casca das árvores até seja uma
comida bem gostosa. De qualquer maneira é um produto vegetal que combina com o
nosso metabolismo.
Na planície fazia muito mais calor que no planalto rochoso. Os raios do sol
dardejavam sobre as copas das árvores e eram detidos somente pelas inúmeras folhas.
Ninguém suportaria uma exposição direta ao sol num lugar como este sem sofrer uma
insolação. O sistema de condicionamento de ar do planador trabalhava a toda força para
conservar a temperatura da cabine num nível suportável.
A água do riacho era fresca e potável. Vinha do planalto ou da cadeia de montanhas
mais próxima. Certamente desembocava em algum pântano, onde a água límpida logo se
transformava num caldo morno e malcheiroso. Era quase meio-dia, mas no solo da
floresta tudo continuava envolto numa penumbra. Era uma espécie de crepúsculo verde e
benfazejo, que prometia segurança. Quando saiu da cabine para investigar a área, Rhodan
levou o rato-castor Bokom.
O riacho podia ser transposto num só passo, mas mais abaixo formava algumas
bacias extensas, que convidavam para tomar um banho. Rhodan notou algumas sombras
ligeiras em meio à água clara e resolveu chamar a atenção de Kasom. Se nessa água
houvesse peixe, o problema da alimentação estaria resolvido. As conservas seriam
guardadas para uma emergência. No planador havia um pequeno- nicho para cozinhar,
motivo por que ninguém seria obrigado a comer peixe ou caça crua. Havia água em
abundância. Poderiam ficar algumas semanas no lugar em que se encontravam, se os
blues deixassem.
— Não acredito que façam uma coisa dessas — disse com um sorriso embaraçado,
porque suas palavras revelavam que acabara de ler em segredo os pensamentos de
Rhodan. Ao sorrir mostrou o dente roedor e ficou igualzinho a Gucky numa situação
dessa. — Não descansarão enquanto não nos encontrarem.
— De qualquer maneira ficaremos aqui enquanto estivermos seguros, baixinho. Não
poderíamos ter encontrado lugar melhor. Aliás, fico admirado de que nesta mata não
existe vegetação rasteira. A gente passeia por ela como num parque bem tratado.
Bokom não respondeu. Teve a impressão de que acabara de captar impulsos mentais
confusos, cujo sentido não era claro. Procurou determinar a direção da qual vinham os
impulsos e ficou parado.
— Há alguém lá na frente — disse. Rhodan também parou. — Não sei quem é, mas
não se trata de uma criatura muito inteligente. São modelos primários; talvez sejam de
um animal.
— Talvez seja mesmo um animal — conjecturou Rhodan, enquanto pôs a mão na
arma. — Desta forma conseguiremos carne. Será uma festa para Kasom.
Continuaram a andar devagar.
O terreno tornou-se mais plano e o riacho corria mais devagar. Seria o melhor
indicador do caminho de volta para o planador e os outros membros de seu grupo. De
repente depararam-se com a margem pantanosa de um pequeno lago. A primeira coisa
que Rhodan fez foi olhar para a folhagem das árvores. Viu um pedaço de céu. Se surgisse
uma situação em que tivessem de fugir às pressas com o planador, bastaria seguir o
riacho até o lugar em que se encontravam. Dali poderiam sair da floresta sem ter de
procurar uma clareira.
— Ali estão — disse Bokom. Rhodan seguiu a direção de seu braço. — Sáurios!
Realmente alguns sáurios tinham marcado um encontro no lago. Eram pequenos e
seu aspecto não era perigoso, mas provavelmente deviam sê-lo se alguém os irritasse.
— Não sei se a carne destes animais será do agrado de nosso insaciável Kasom —
cochichou Rhodan para não perturbar os sáurios.
— Se estiver com fome de verdade, ele come — respondeu Bokom em tom alegre.
— Pode caçar seu próprio sáurio, se tiver vontade. Quanto a mim, prefiro os brotos das
árvores da floresta. Levarei alguns para Hemi.
Sem dar atenção aos sáurios, Bokom começou a colher brotos de árvores. Rhodan
deixou-o à vontade, mas ficou de olho nas estranhas criaturas que brincavam na água
suja. Eram quadrúpedes e possuíam um pescoço longo e ágil, em cuja extremidade se via
uma cabeça pequena e estreita. Os corpos eram negros e desajeitados, as caudas
compridas e achatadas. Costumavam ficar com a cabeça sob a água, à procura de
alimento. Rhodan constatou que podiam ficar muito tempo sem respirar.
Como os animais não eram perigosos, Rhodan teve pena de matar um deles. Kasom
poderia cuidar disso, se quisesse. Bokom tinha razão.
De repente Rhodan ouviu um ruído.
Não tinha sido produzido pelos animais, mas vinha de cima. Rhodan levantou os
olhos e viu uma sombra achatada que passava rente às copas das árvores, tornando-se
perfeitamente visível quando chegou em cima do lago. Rhodan deu um salto para baixo
da cobertura verde e arrastou Bokom consigo. Deitaram lado a lado no chão pantanoso.
— Uma nave — disse Rhodan e acompanhou a sombra com os olhos, até que a
mesma desaparecesse atrás das copas das árvores que ficavam do outro lado do lago. —
Quer dizer que continuam a acreditar que estamos nesta área, mas não sabem. Acho que
por enquanto estaremos seguros aqui. Se realmente resolverem realizar uma busca mais
cuidadosa, inventaremos alguma coisa.
Bokom levantou-se devagar e contemplou os sáurios.
— Já inventei. Rhodan não fez perguntas.
Quando chegasse a hora, Bokom falaria.
Os dois companheiros tão pouco parecidos voltaram em silêncio para o planador,
onde já estavam sendo ansiosamente esperados.
O rosto de Kasom poderia ficar num quadro quando viu Bokom e Hemi sentarem
junto ao riacho para se deleitarem com os jovens e delicados brotos de árvores como se
fossem aspargos de boa qualidade ou as cenouras que os ratos-castores tanto apreciavam.
— Que vida boa eles têm! — foi a única coisa que conseguiu dizer depois de algum
tempo.
***
Geco e os outros ratos-castores não tiveram vida tão boa.
Depois que cinco naves dos blues tinham sido destruídas, os cabeças-de-prato
atacaram sem contemplação. De repente não pareciam importar-se que a destruição da
nave inimiga pudesse representar a perda de uma grande vantagem. Perceberam que a
nave era muito perigosa e resolveram eliminar o perigo.
Zbron e Brcl não tiveram mãos nem trombas a medir.
A Tramp corria vertiginosamente junto à superfície do planeta Roost. Estava sendo
perseguida por oito ou nove cruzadores ligeiros dos blues. Montanhas, florestas
pantanosas, planícies e cidades passavam lá embaixo. Nem os ocupantes da Tramp, nem
seus perseguidores deram a menor atenção a tudo isso. Ofuscantes feixes energéticos
passavam constantemente perto deles ou eram absorvidos pelos campos defensivos da
nave. Enquanto não fosse disparado um fogo concêntrico, não haveria nada a recear.
Mais uma vez foi Geco que guarneceu o canhão conversor.
Muito enraivado, estava sentado junto aos controles e transmitia os dados para a
sala de artilharia. Quando o primeiro perseguidor foi transformado numa nuvem atômica
de gases incandescentes, um assobio agudo saiu de seu peito. Nunca pensara em destruir
outras inteligências, mas aqui a situação era diferente, Não tinham feito nada aos blues.
Vieram em paz, para salvar Rhodan e seus companheiros. Os blues impediam-nos de
fazer isso e os atacavam. A lei da autodefesa mandava que devolvessem os golpes com
todas as forças de que dispunham.
Quando só restavam cinco perseguidores, Geco gritou:
— Vamos seguir em direção ao espaço, Zbron! Devemos colocar-nos em segurança
e providenciar auxílio. Foi o que Rhodan quis e ordenou. Voltaremos com uma frota e
esquentaremos o inferno para os blues.
— Fugir? — Zbron balançou a tromba de um lado para outro. — Já fui a favor
disso, mas será que realmente é necessário? Não poderíamos enviar outras mensagens e
ficar à espera? Podemos abandonar o sistema, mas não devemos afastar-nos a mais de um
ano-luz.
— Isso veremos depois, Zbron. Primeiro temos que dar o fora daqui. Quando as
duas frotas dos blues chegarem, o canhão conversor não adiantará mais nada.
De repente Zbron levantou os olhos.
— Já sei o que os blues querem de nós. O canhão! Pretendem usá-lo como modelo
para construir outro. Provavelmente não sabem que existe um comando secreto que
destrói o canhão no momento em que a Tramp é derrubada ou obrigada a pousar. Já ativei
este comando.
— Não colocarão as mãos em nós, em Rhodan ou no canhão — exclamou Geco e
agitou furiosamente os braços. — É agora, Zbron. Atravesse o centro, senão eles ainda
nos comprimem contra estes lagos pantanosos.
Zbron não respondeu.
Estava totalmente exausto. Já deveria ter sido revezado há tempo, mas Brcl ficara
acordado e trabalhando tanto tempo quanto ele. A nave não possuía o terceiro piloto,
embora quase todos os uniters possuíssem carteira de piloto. Mas não possuíam
experiência. E numa situação como esta ela valia ouro.
Os blues compreenderam imediatamente as intenções da Tramp. Subiram atrás dela
e ficaram grudados em seus calcanhares. De repente as cinco naves passaram a dez, a
duas dezenas. As duas frotas tinham chegado. A batalha continuou rugir fora da
atmosfera, mas um número cada vez maior de naves desgarradas ou avariadas desceu
para Roost e participou da busca dos sobreviventes da misteriosa estação das pirâmides e
da Tramp.
— Estão chamando pelo rádio — disse Stozi, que não se afastara um instante dos
aparelhos de rádio que continuavam ligados ininterruptamente. — Usam o intercosmo.
Devo responder?
Geco logo se pôs de pé. Correu o mais depressa que pôde para a cabine de rádio,
que ficava ao lado da sala de comando.
— O que querem?
Stozi entregou-lhe um bilhete.
— Comandante dos gatasianos chamando comandante da nave terrana — leu Geco.
— Pouse imediatamente! Queremos estabelecer contato para entendimentos.
Geco atirou o bilhete na mesa.
— O que é que eles estão pensando? Que entendimento que nada! Será que
devemos responder?
— Você pode falar diretamente com os blues. Estabeleci contato audiovisual.
A tela iluminou-se. Um cabeça-de-prato apareceu. Os dois olhos dianteiros fitaram
Geco. Eram totalmente inexpressivos, mas entre os blues isso era perfeitamente natural.
A boca não ficava no rosto. O blue falava de uma abertura da laringe. As palavras eram
ásperas e guturais, mas perfeitamente compreensíveis.
— Quero falar com o comandante. Geco apoiou as mãos nos quadris.
— Sou o comandante! Que houve? O outro fez um gesto impaciente.
— Quero falar com um terrano, não com um representante de uma raça inferior.
Geco quase estourou de raiva. Teve de fazer um grande esforço para controlar-se.
Só o fez porque perto dele as telas da sala de comando mostravam pelo menos cinqüenta
naves dos blues, que se aproximavam cada vez mais da Tramp. Se estas naves abrissem
fogo...
— Sou o Almirante-Geral Geco, comandante-chefe da frota espacial dos ilts. Não
há nenhum terrano a bordo.
— Sabemos que há terranos a bordo — respondeu o blue. — Nossos comandos não
conseguiram localizar os fugitivos no segundo planeta. Logo, vocês os recolheram.
Geco fingiu-se de bobo.
— Que fugitivos? Não sei do que está falando.
O outro mudou de tática.
— Quer dizer que não estão a bordo dessa nave. Muito bem. Neste caso
intensificaremos as operações de busca na superfície do planeta.
Geco reconheceu que acabara de cometer um erro. O que queria era justamente
evitar que procurassem muito lá embaixo. Talvez fosse bem bom que eles acreditassem
que Rhodan e seus companheiros estivessem a bordo da Tramp. Desta forma colocaria as
naves em seu encalço, mas a situação de Rhodan seria aliviada. Fez um gesto embaraçado
e disse:
— Está bem. Já que vocês sabem — o que desejam?
— Falar com vocês e os terranos. Queremos saber o que há com a estação das três
pirâmides que acabamos de destruir.
Geco sabia menos que o blue a respeito da estação. Nem sabia que esta existia.
— Por que destruíram a estação se estão interessados em saber o que há com ela?
— Isso é nosso problema. Então, que diz? Vai pousar espontaneamente, ou teremos
de obrigá-lo?
Geco compreendeu que seria impossível prolongar a conversa. Devia tomar uma
decisão. Os blues não tinham certeza se Rhodan e seus companheiros estavam a bordo da
Tramp, ou se continuavam em Roost. Era uma vantagem que tinha de ser aproveitada.
— Obrigar-nos? Tentem se são capazes!
Fez um sinal para Stozi e correu de volta para a sala de comando. O contato
certamente fora estabelecido pela nave mais próxima. Num instante os dados foram
apurados e transmitidos para a sala de artilharia. Geco virou a cabeça, mas colocou a pata
sobre o botão do acionador.
— Stozi, diga ao cabeça de prato que deve desaparecer com sua frota. Dou-lhe dez
segundos.
Stozi transmitiu a mensagem.
Geco não tirava os olhos da nave. No momento em que o primeiro tiro energético
foi disparado e absorvido pelos campos defensivos da Tramp, comprimiu o botão. Zbron
entrou em ação no mesmo instante, acelerando a Tramp ao máximo. Cinqüenta naves dos
blues, com um sol em miniatura no centro, ficaram para trás.
— Destes nós nos livramos! — gritou Geco em tom exultante. — Gostaria de saber
por que eles imaginam que Rhodan deve estar em Roost. Será que alguém lhes disse?
Zbron sacudiu a tromba.
— Uma mensagem de rádio imprudente... quem sabe...
— Não fomos nós! — Geco olhou para as telas. — Estão nos seguindo. Vamos
mostrar-lhes do que a Tramp é capaz. Voltar para Roost!
— Você ficou louco?
Geco bateu com ambos os punhos na mesa de controle.
— Quem manda aqui sou eu! Você obedece. Entendido? Eu sou o chefe.
Zbron soltou um gemido e fez o que Geco estava mandando.
O planeta voltou a crescer enquanto a Tramp o contornava numa curva ampla,
voltando a aproximar-se de Simban.
Estava voando bem para dentro da armadilha preparada pelo inimigo.
6
A conversa entre Geco e os blues fora ouvida por acaso no planador. Bell ligara o
receptor, numa tentativa de captar uma notícia da Tramp. De repente ouviu algumas
palavras proferidas em intercosmo, que era a língua universal do Império.
Muito tensos, acompanharam a palestra, até que foi interrompida abruptamente.
Dali a pouco também cessaram os sinais que os blues transmitiam pelo rádio.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Receio que tenha sido injusto para com Geco. É um sujeito valente e arrojado.
Terei muito prazer em conhecê-lo.
— Ele está louco — disse Bell. — É uma loucura envolver-se numa luta com um
inimigo que goza de tamanha superioridade.
— Vamos aguardar. Os blues não estão transmitindo mais pelo rádio. Está ouvindo?
A Tramp continua a transmitir. Se não me engano está expedindo o pedido de socorro em
código. Se o diabo não tiver as mãos no jogo, uma de nossas naves terá de captar a
mensagem.
— Tomara que a Tramp escape.
— É o que eu também espero.
Nem desconfiavam de que, em vez de aproveitar a última chance de fugir, Geco
estava voltando para o inferno. Mais tarde ele mesmo não saberia dizer o que o levara a
agir assim. Insistia em afirmar que se sentira dominado pela raiva. Confessou que não se
guiara por qualquer tipo de reflexão. Mas nunca chegou a confessar que tivesse sentido
medo ao ver-se de repente diante de uma força composta por quinhentas naves.
Rhodan e seus amigos ainda não sabiam disso. Sentiam-se relativamente seguros
em seu esconderijo na selva e faziam votos de que ninguém os descobrisse.
Constantemente havia alguém perto do receptor. Kasom fora com Noir para o lago que
ficava nas proximidades e abatera um dos pequenos sáurios. Frita, sua carne era saborosa,
embora fosse dura e cheia de fibras.
Pouco depois do meio-dia Rhodan e Bell foram tomar um banho, juntamente com
os dois ratos-castores. Mory Abro também os acompanhou. Deixaram que ficasse sozinha
numa bacia de pedra cercada por brotos de árvores, na qual ninguém a observaria.
Cinqüenta metros abaixo Rhodan e Bell encontraram uma bacia maior com água muito
limpa.
Esta bacia tinha dois metros de profundidade e a correnteza era muito fraca.
Tiraram as roupas sujas e esfarrapadas e caíram na água refrescante. Os dois ratos-
castores olharam-nos por algum tempo, mas também acabaram por saltar resolutamente
para dentro da água.
Bell nunca vira um rato-castor nadar, salvo por ocasião das frustradas tentativas de
mergulho realizadas por Gucky no lago salgado de Goshun. No lugar em que se
encontravam a água não era salgada e seu poder de sustentação era menor. Além disso a
gravitação era semelhante à da Terra, ao contrário de Marte, onde a natação se resumia
em ficar deitado sobre a água.
Bokom e Hemi mergulharam imediatamente. Até parecia que eram de pedra.
Se Bell tinha uma esperança de finalmente ver realizado o desejo de defrontar-se
com um rato-castor que perdesse a calma, ele teve uma decepção amarga. A única coisa
que aconteceu foi que Hemi rastejou às pressas para a margem baixa, voltando à
superfície para inalar o ar.
Com Bokom as coisas foram diferentes. Não demorou nem um pouco a
compreender que deixara de observar certas leis naturais que prevaleciam neste planeta.
Mas isso não podia abalá-lo. Prendeu a respiração até sentir novamente chão firme sob os
pés. A poça de água não era muito grande. Com a maior calma atravessou-a várias vezes,
fez de conta que estava contemplando o fundo pedregoso e sacudiu a cabeça,
decepcionado. Finalmente caminhou em direção à margem e colocou a cabeça fora da
água.
— Lá embaixo é bem fresco — comunicou a Bell. — E bastante úmido.
Todos riram, o que deixou Rhodan muito satisfeito. Percebeu que a tensão que os
dominava há vários meses estava cedendo aos poucos. A salvação parecia estar ao
alcance das mãos, embora ainda faltasse muito para que ela se concretizasse. Já não
estavam sós. Os outros sabiam onde encontrá-los.
Rhodan teve de confessar que estavam se consolando apenas com uma fraca
centelha de esperança, mas pelo menos não enfrentavam mais um risco de vida imediato.
Era claro que isso poderia mudar de um instante para outro.
Ninguém sabia a que distância ficava esse segundo.
Ou o quanto estava próximo...
As roupas de Rhodan estavam jogadas na margem da bacia. O rádio muito pequeno
emitiu um zumbido.
Rhodan saiu da água num salto.
— Sim, o que houve, Noir?
— Antes da operação contra os blues Kasom recebeu um hipnotreinamento em sua
língua principal, senhor. Ficamos na escuta. Estão planejando uma operação de vasculha-
mento em grande escala. Mais de trezentas naves já pousaram no planalto, perto da
estação destruída. As patrulhas avançarão para o sul. Daqui a pouco não estaremos mais
seguros aqui.
— Voltaremos imediatamente, André. Não saia de perto do receptor.
— Traga tudo. Tenho a impressão de que possivelmente teremos de partir às
pressas.
— Isso pode acontecer. Mas Bokom tem uma idéia.
O ar quente já enxugara os dois ratos-castores. Ao ouvir seu nome, Bokom limitou-
se a acenar com a cabeça. Rhodan e Bell puseram as roupas e chamaram Mory Abro,
dizendo-lhe que devia interromper seu banho. Dali a dez minutos chegaram ao planador.
Kasom cortara o sáurio em pedaços manipuláveis e os guardara no refrigerador.
Acontecesse o que acontecesse, não tinha a menor vontade de depender mais uma vez das
minúsculas rações que os outros costumavam designar como conservas.
— Alguma novidade, André?
— Pouca coisa. Kasom não entende tudo, e muitas vezes transmitem em código.
Uma coisa é certa: os blues estão pousando. Nas proximidades do sol Simban está sendo
travada uma enorme batalha entre grupos de naves de povos inimigos pertencentes à raça
dos blues. Uma divisão, que provavelmente é formada por naves de ambas as partes em
luta, está caçando a Tramp. Se as indicações do goniômetro são corretas, as patrulhas
terrestres já estão a caminho. Avançam em nossa direção. Não sei se é por acaso. Não sei
como poderiam ter dado com a nossa pista.
— Nem eu. — Rhodan pôs-se a refletir. O alto-falante do rádio-receptor transmitia
ininterruptamente sinais estranhos e fragmentos de frases. Era quase impossível distingui-
los uns dos outros. — Acho que devemos tomar preparativos para abandonar nosso
esconderijo assim que isso se torne necessário. Kasom servirá de tradutor. Precisamos
ficar a par dos acontecimentos. Bokom e Hemi prestarão atenção a eventuais impulsos
mentais. — De repente dirigiu-se a Bokom: — Você não pretendia dar uma sugestão?
Acha que já está na hora?
— Então ainda não sabe?
Rhodan sorriu e acenou com a cabeça.
— Sei, sim. Sou um telepata muito fraco, mas consegui adivinhar suas intenções. —
Passou a dirigir-se aos outros. — Bokom acha aconselhável que o planador fique parado
no fundo do lago pantanoso, para aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Acho que
ninguém desconfiará de que estamos lá.
— E os sáurios? — Kasom lançou um olhar apavorado para Rhodan. — Devo dizer
que são uma boa companhia. Será que não nos devorarão?
— A sua boca não é tão grande como a de certo especialista da USO — observou
Bell.
Kasom levantou o punho num gesto ameaçador e enfiou o último pedaço de carne
na gaveta do refrigerador. Rhodan sentou junto aos controles. Ao lado dele Noir mexia
nos botões do rádio.
— O planador possui um periscópio que pode ser levantado — explicou. — Dessa
forma poderemos ficar embaixo da água e observar o que está acontecendo na superfície.
— É isso — disse Bokom com a voz tranqüila e apontou para uma rodinha. — Pode
ser levantado até dez metros.
Noir fez um gesto de agradecimento. As notícias transmitidas pelo rádio tornavam-
se cada vez mais interessantes.
— Certamente desconfiam de que estamos aqui — disse Kasom, que se encontrava
atrás de Noir, prestando atenção à conversa. Não entendia tudo, mas os fragmentos
bastaram para que formasse um quadro aproximado da situação. — Os blues continuam a
lutar entre si, mas celebraram um tratado. Metade da frota de cada lado prossegue na luta,
enquanto o resto persegue a Tramp e procura localizar-nos. Não têm certeza se já fomos
recolhidos ou não. Isso representa mais uma divisão das forças empenhadas na busca.
Este Geco foi muito hábil. Mas ainda há trezentas naves no nosso encalço. Um grupo
numeroso está a caminho daqui. Dispõe de veículos blindados. Estão a cerca de três
quilômetros. Rhodan ligou o motor. — Pronto? — Não aguardou resposta. — Acho que
vamos dar o fora. Mesmo que encontrem alguma pista por aqui, ficarão sem saber onde
fomos parar. Daqui em diante não tocaremos mais o chão.
O planador levantou-se do chão. Desceu riacho abaixo a poucos centímetros de
altura, em direção ao lago. A cobertura vegetal quase não se abriu, pois as árvores
cresciam junto ao riacho. O veículo seguia através de um túnel natural.
Em certo ponto uma árvore tombada fechou-lhes o caminho. Bokom e Hemi
afastaram-na telecineticamente. Foi uma visão medonha: a árvore movimentou-se de
repente, subiu balançando, deslizou para o lado e caiu. O caminho estava livre, e o
planador prosseguiu no seu vôo.
Finalmente avistaram o lago.
Os sáurios continuavam a movimentar-se em sua superfície, sem tomar
conhecimento do planador. Pareciam considerá-lo uma coisa inocente.
Rhodan contornou-os, até chegar ao centro do lago.
A água era lodosa e esverdeada. Não se enxergava a três centímetros de
profundidade. Não era muito profunda. Rhodan fazia votos de que a profundidade fosse
suficiente para esconder o veículo.
O planador foi afundando devagar, enquanto Rhodan reduzia a potência dos campos
energéticos. A gravitação natural de Roost foi puxando o veículo para baixo. O sistema
de renovação de ar da cabine entrou em funcionamento, enquanto as águas se fechavam
sobre a cobertura transparente. Escureceu imediatamente. A iluminação de emergência
entrou em ação, espalhando uma luz mortiça.
O planador afundou oito metros e descansou no fundo do lago.
Os motores foram desligados e um silêncio medonho espalhou-se pela cabine.
Rhodan fez um sinal para Noir. O hipno levantou o periscópio. Depois de subir
cinco metros, chegou à superfície. A tela panorâmica mostrava toda a área adjacente —
as margens pantanosas, a mata, o céu azul que se estendia sobre ela e os sáurios que
continuavam na água. Não se via o menor sinal dos blues.
Bell olhou para o teto. Viu que a lama levantada começava a assentar, depositando-
se na cobertura da cabine. Para os lados a visão era um pouco melhor. Enxergava-se
alguns metros. Provavelmente mais embaixo não havia a camada verde formada pelas
plantas aquáticas. Mas a luz do sol estava bastante amortecida.
— Os sáurios! — exclamou Bell, surpreso, e apontou para a penumbra verde. —
Estas feras estão mergulhando!
Quatro ou cinco dos animais pré-históricos desceram para o fundo do lago, para
contemplar aquilo que acreditavam ser uma presa. Aproximaram-se, balançando o corpo
de forma estranha, e contornaram o planador em distâncias cada vez menores. Depois de
algum tempo certificaram-se de que o estranho objeto, que se juntara a eles de forma tão
surpreendente, não representava nenhum perigo nem era comestível. Tranqüilizados,
voltaram a afastar-se e subiram à superfície.
— Com estes eu não queria encontrar-me de maio — disse Bell e recostou-se no
banco. — Mas do jeito que estão as coisas não tenho medo deles. Aqui a paisagem não é
tão bonita como lá em cima, junto ao riacho, mas pelo menos teremos tempo para dormir
à vontade. Alguma objeção?
Não houve nenhuma.
— Um de nós tem de ficar constantemente junto ao periscópio — ordenou Rhodan.
— Assumirei o primeiro turno. Dentro de três horas Kasom me revezará. Se tivermos de
fugir de novo, não haverá mais tempo para dormir.
O silêncio voltou a reinar na cabine.
Rhodan ficou sozinho junto aos controles e olhava ininterruptamente para a tela
panorâmica. Dentro de algum tempo tinha registrado em sua memória as características
de cada centímetro da margem do lago. Notaria imediatamente qualquer modificação, por
menor que fosse. A ponta do periscópio não saía mais de um centímetro da água.
Ninguém os descobriria. No entanto, Rhodan teve de encolhê-la várias vezes, quando os
sáurios se aproximavam.
As horas foram passando, e o sol caminhava para oeste.
De repente os primeiros blues apareceram na margem do lago.
***
Nem Zbron nem Geco perceberam que nenhum blue lhes fechava o caminho de
volta para Roost. A passagem ficou completamente livre, mas atrás da Tramp reuniam-se
dezenas de naves dos mais diversos tipos, comboiando o veículo espacial terrano. Depois
de algum tempo as naves eram tão numerosas que não se reconheciam mais as estrelas
nas telas dos rastreadores. Os blues bloquearam o planeta Roost do espaço cósmico.
E a Tramp estava na armadilha.
Quando Zbron e Geco perceberam, já era tarde.
— Então foi por isso que eles nos deixaram passar! — Zbron colocou a Tramp em
órbita. — Ainda querem obrigar-nos a pousar, para que possam pegar-nos intactos. Não
podemos permitir que isso aconteça. Se revistarem a nave e não encontrarem Rhodan e
seus companheiros, intensificarão ainda mais as buscas no planeta. Então, Geco, o que
acha?
O rato-castor via-se diante de uma decisão difícil.
— Capitular...? Você não pode acreditar seriamente que eu tenha dedicado um
único pensamento a essa possibilidade. Vamos romper as linhas inimigas.
— Cerca de quinhentas naves estão em nosso encalço.
— Nem que fossem cinco mil! A brecha sempre será do mesmo tamanho, Zbron.
Nós a abriremos com o canhão conversor. Aos poucos estou me treinando com ele. Mas
antes de fazermos qualquer coisa quero voltar a falar com Rhodan.
— Está bem. Mas não demore. Você coloca o planador em perigo de ser localizado
pelos goniômetros do inimigo.
Geco arrastou os pés em direção à cabine de rádio, enquanto Zbron tentava não
aproximar a Tramp mais da superfície de Roost sem provocar suspeitas. Deslocaram-se
horizontalmente a dez quilômetros da superfície e aproximaram-se do planalto.
Enquanto isso Geco chamava o planador pelo rádio.
— Alô, Bokom! Favor responder! Tramp em perfeitas condições.
Depois de algumas tentativas sem resultado veio a resposta:
— Alô, aqui fala planador. Tudo bem a bordo. O que houve?
Geco relatou em palavras ligeiras, ressaltando que realmente não via outra
alternativa senão desaparecer dali o mais depressa possível.
— Era o que você deveria ter feito há algumas horas — respondeu Rhodan. — Se
demorar mais, colocará todo mundo em perigo. Se a Tramp não tiver oportunidade de
entrar em contato com as naves terranas, estaremos perdidos. Por isso quero que a Tramp
fuja imediatamente. Isto é uma ordem. Entendido?
— Entendido — respondeu Geco. — Voltaremos em breve com reforços. Os blues
terão uma surpresa. Onde estão vocês?
— Estamos em segurança. É só o que posso dizer. É possível que dentro em breve
tenhamos que transferir nosso esconderijo, mas não faz mal. Tratem de colocar-se em
segurança. Boa sorte.
Geco voltou para junto de Zbron.
— Acho que devemos dar o fora — disse.
— Foi o que Rhodan disse há algumas horas, mas você não quis. Gostaria de saber
por que faz questão de bancar o herói quando isso não pode adiantar nada. No presente
caso a fuga é o melhor aspecto da coragem.
— Não estou bancando o herói — protestou Geco. — Sou um herói.
Zbron suspirou, deu um ligeiro olhar para as telas a fim de orientar-se e respondeu:
— Avançaremos exatamente na direção do sol. Afaste do caminho tudo que tentar
impedir nossa passagem. Eles nos atraíram para uma armadilha; quanto a isso não há
dúvida. Mas se você souber usar corretamente o canhão conversor e a sala de artilharia
tiver permissão de atirar com os outros canhões, devemos conseguir.
As naves dos blues agruparam-se numa gigantesca semi-esfera que se deslocava
com a mesma velocidade da Tramp, concentrando-se num espaço cada vez mais
reduzido. A nave-comando ficava num ponto um pouco mais afastado e dirigia a
operação. Zbron percebeu isso quando Stozi captou as respectivas mensagens. Era
impossível decifrá-las, mas a forma pela qual eram emitidas deixava claro quem dava as
ordens.
— Precisamos liquidar esta nave — disse, dirigindo-se a Geco. — Coloque-a na
mira antes das outras.
Um plano arrojado amadureceu na cabeça de Geco. Destruir a nave-capitânia
inimiga não bastava. Deviam meter um tremendo susto nos blues para deixá-los confusos.
O caos que se estabeleceria depois disso poderia ser aproveitado para tentar a fuga.
— Mantenha a rota — disse, dirigindo-se a Zbron. — Voltarei dentro de alguns
minutos.
— O que pretende fazer?
— Não há tempo para explicações. Faça o que estou dizendo.
Antes que Zbron tivesse tempo de protestar, Geco desmaterializou-se. Saltou para a
sala de artilharia e dali para o depósito de munições da Tramp. Com um movimento
rápido pegou uma bomba atômica portátil, examinou-a e ligou o mecanismo do relógio.
O artefato explosivo do tamanho de um punho humano detonaria exatamente dentro de
cinco minutos.
A partir das telas da sala de artilharia Geco fixou a nave-capitânia do inimigo,
concentrou-se e teleportou-se.
Rematerializou-se num depósito, quase no centro da nave inimiga, colocou a bomba
num canto, entre algumas caixas e ferramentas, voltou a teleportar-se e depois de três
tentativas frustradas chegou à sala de comando.
Havia sete ou oito blues, sentados ou em pé, à frente dos controles. Uma tela oval
mostrava a imagem ampla e nítida da Tramp. Encontrava-se exatamente no ponto de
interseção do dispositivo de mira das armas energéticas.
— Ei! — disse Geco em intercosmo e deu uma pancadinha no ombro estreito do
blue que se encontrava mais próximo. — Você é o comandante?
Todos os blues viraram-se abruptamente ao ouvir a voz que falava aos pios.
Ficaram estupefatos ao notar a presença de Geco. Ninguém fez o menor movimento.
Parecia que o susto os paralisara. Não compreendiam como aquele ser pequeno e peludo
poderia ter entrado na nave.
— Fiz uma pergunta — esbravejou Geco e deu um soco no blue. — Faça o favor de
responder.
Nenhum dos blues disse uma palavra que fosse. Procuraram desvendar o mistério,
mas não conseguiram. Compreenderam que a criatura que se encontrava à sua frente não
era um terrano, mas isso não facilitava a solução do mistério. Geco sentiu certa satisfação
ao notar que desta vez não estava sendo confundido com Gucky, mas nem por isso sua
raiva diminuiu. Os blues tinham-no impedido de praticar um ato de heroísmo e salvar
Rhodan. Deviam ser castigados por isso.
— Bem, já que não querem — ao menos rezem. Daqui a dois minutos vocês irão
para os ares — ou melhor, para o vácuo, para não ofender a precisão científica. Procurem
colocar-se em segurança. Estão avisados.
Um dos blues conseguiu chegar a uma decisão. Tirou uma arma pequena do cinto e
apontou-a para Geco, que notou imediatamente o movimento. Realizou uma operação
telecinética, tirando a pistola do cabeça de prato e atirando-a para dentro de uma das
telas. A confusão tornou-se ainda maior.
— Boa viagem — disse Geco e teleportou-se de volta para a Tramp. Foi parar no
colo de Zbron, mas logo se colocou em segurança, pois o uniter assustou-se tanto que
instintivamente tentou golpeá-lo com a tromba.
— Que é isso? Onde já se viu alguém atacar seu comandante? — chiou o rato-castor
e saltou para dentro da poltrona mais próxima. — Daqui a um minuto os blues ficarão
sem seu comando supremo. Neste exato momento tentaremos atravessar suas linhas.
Entendido?
Stozi, que continuava na sala de rádio, ligou o transmissor automático, que repetia
constantemente a mesma mensagem:
RhAtBu-QQYR-12-l5-888430-NoTri.
A mensagem continuaria a ser expedida quando a Tramp tivesse sido reduzida a
destroços e os tripulantes estivessem mortos. Certamente chegaria a hora em que alguém
iria captar a mensagem.
Exatamente no momento indicado a nave dos blues transformou-se num sol
chamejante. As ordens deixaram de ser transmitidas. Os pêlos azuis ficaram perplexos, à
espera de ordens dos seus oficiais.
— Vamos! É agora! — ordenou Geco, que estava sentado atrás dos controles do
canhão de conversão. — Conseguiremos!
A Tramp saiu em disparada na direção em que se encontrava a frota dos blues.
O inimigo estava tão confuso que levou algum tempo para compreender a intenção
da nave terrana e coordenar suas reações. Mais uma vez a sorte favoreceu Geco e sua
tripulação. Enquanto os ratos-castores estavam no seu alojamento, entretendo-se em
brincadeiras inocentes para fazer passar o tempo, enquanto os Willys permaneciam sob a
forma preferida de placas, à espera de que alguma coisa acontecesse, a Tramp rompeu o
cinturão formado pelas naves dos blues, deixando atrás de si a morte e a destruição e
precipitando-se espaço afora.
Inúmeros feixes energéticos disparados pelos canhões inimigos correram atrás dela
e alcançaram-na. O campo defensivo entrou em colapso. A Tramp sofreu impactos
graves, mas agüentou. A aceleração era tão elevada que a nave não demorou a ultrapassar
a velocidade da luz, quando então os tiros energéticos não podiam alcançá-la mais.
Luzes vermelhas acenderam-se nos painéis do controle. A rota tornou-se insegura e
inconstante. Alguns propulsores falharam. As luzes apagaram-se. As luzes de emergência
acenderam-se imediatamente.
Geco levantou do chão.
— O que aconteceu? — perguntou, assustado.
— Sofremos alguns impactos fortes na área da popa. Por enquanto não estamos em
condições de avaliar os danos. Isso pode ficar para depois. Agora o mais importante é sair
daqui. Se os blues nos pegarem neste estado, estaremos perdidos.
— Quer dizer que a Tramp está reduzida a destroços — disse Geco para certificar-
se.
— Ainda resta um pouco mais que isso — retificou Zbron. — Por enquanto ainda
podemos executar algumas manobras e temos meios de nos defender. Mas não se pode
dizer que a nave esteja em plena forma. Sugiro que nos afastemos do sistema, talvez a
algumas horas-luz, e fiquemos à espera.
— Concordo. — Geco surpreendeu-se de ter aceito sem a menor objeção o conselho
de um “subordinado”. — Enquanto isso providenciarei para que os danos sejam
apurados. Além disso preciso verificar o que estão fazendo os tripulantes.
— Todos os uniters estão a postos — observou Zbron, numa evidente alusão aos
ratos-castores.
Geco acenou pacatamente com a cabeça.
— Já sei, já sei. Este fato será considerado na distribuição das condecorações.
Quanto aos meus ratos-castores... — Soltou um suspiro e exibiu um sorriso embaraçado.
Zbron retribuiu o sorriso e enrolou a tromba.
Do outro lado do sol não encontraram mais nenhum blue. O espaço estava vazio;
não havia naves. Era a primeira vez em algumas horas que não havia um perigo imediato
para a Tramp.
Geco percorreu a nave e examinou as avarias. Distribuiu elogios entre os uniters e
dirigiu-se ao lugar em que estavam os Willys, para certificar-se de que por lá também
estava tudo em ordem.
Finalmente abriu a porta que dava para o alojamento dos ratos-castores.
Ouviu uma algazarra alegre e caiu ao chão antes de compreender o que significava.
Acabara de ser atingido na cabeça por um travesseiro.
Naturalmente por ali também estava tudo em ordem.
***
Havia um silêncio apavorante.
Rhodan contemplava as telas panorâmicas. Novos blues continuavam a chegar à
margem do lago. Dois veículos blindados entraram em posição. Seus canhões estavam
apontados para o lago.
Rhodan estava ansioso atrás dos controles.
Era perfeitamente possível que os blues possuíssem aparelhos que permitissem a
localização de uma grande massa metálica escondida embaixo da água. Ficou com as
mãos no botão de partida. Uma leve pressão, e o planador poderia entrar em ação.
Poderia vir à superfície, erguer-se no ar e desaparecer. Ficaria fora do alcance dos
canhões dos veículos blindados, mas uma verdadeira caçada teria início.
Rhodan resolveu não assumir este risco. Seria preferível permanecer no esconderijo
enquanto isso fosse possível e aguardar os acontecimentos.
Os blues observavam os sáurios.
Rhodan ficou mais aliviado. Descontraiu-se. Talvez fossem realmente os sáurios
que tinham despertado a atenção dos pêlos azuis e cabeças de prato. Era possível que
nunca tivessem visto um sáurio.
Os inocentes animais pré-históricos não tomaram conhecimento da presença dos
recém-chegados. Continuaram a mergulhar à procura de alimento e revolviam o lodo.
Rhodan sentiu-se grato por isso.
Kasom e Bell acordaram. Vieram para perto de Rhodan.
— Aqui estamos bem — disse Bell. — Tão depressa não nos encontram.
— Se não nos encontrarem, será por puro acaso. Se tiverem a idéia de vasculhar o
lago estamos liquidados. Cuide do rádio, Kasom. Talvez consiga, captar algumas
mensagens interessantes. Gostaria de saber o que aconteceu com a Tramp.
— A nave continua a transmitir a mensagem secreta. Mas as indicações do
goniômetro mudaram. Parece que estão se afastando de nós.
— É o que devem fazer. Neste caso devem ter rompido o cerco.
— Provavelmente. — Kasom mexeu nos controles do receptor. Outros sinais
tornaram-se mais fortes e nítidos. Pôs-se a. escutar atentamente. Finalmente acenou com
a cabeça. — É verdade! A Tramp conseguiu surpreendê-los. Uma nave-capitânea dos
blues foi destruída — de uma maneira inexplicável, conforme dizem os blues. Este Geco
aprendeu bastante com Gucky.
Rhodan acenou com a cabeça, mas não respondeu. Estava de olho nas margens do
lago. Para seu gosto os blues estavam demorando demais. Não podiam estar enlevados
com o panorama do lago que se abria na floresta a ponto de esquecer a tarefa que os tinha
trazido para lá.
— Os blues estão transmitindo ordens —-disse Kasom em meio às suas reflexões.
— As buscas na superfície de Roost prosseguem com esforços redobrados. Estão
convencidos de que deve haver alguma coisa por aqui, já que a Tramp não foge. Se não
estivesse à procura de alguma coisa, afastar-se-ia o mais depressa possível para escapar à
destruição. Como a nave permanece obstinadamente nas proximidades do sistema, deve
haver uma coisa muito valiosa em Roost. Os blues estão decididos a encontrar esta coisa.
— Quer dizer que nem sabem de que se trata? Não sabem o que estão procurando?
— Parece que não. De qualquer maneira, devemos preparar-nos para o pior.
— Ficaremos no lago enquanto for possível. Se necessário fugiremos para as
montanhas, onde existem muitos esconderijos.
Bell olhou para a tela panorâmica.
— Olhem! Estão tirando barcos dos veículos. Droga! Quem lhes disse que estamos
neste lago?
Rhodan acompanhou o desenrolar dos acontecimentos com uma expressão
preocupada. Os blues realmente haviam tirado pequenos barcos infláveis dos veículos e
estavam preparando os mesmos na margem do lago. Pelas características dos
instrumentos que estavam colocando nos barcos concluía-se que pretendiam vasculhar o
fundo da lagoa com rastreadores.
— Bell, acorde os ratos-castores. Peça-lhes que venham imediatamente.
— O que quer...?
— Vá buscá-los, Bell. Não temos tempo para explicações.
Os blues entraram nos barcos e saíram cautelosamente para o lago. Distribuiram-se
e colocaram em funcionamento os rastreadores de matéria. Levariam meia hora para
chegar ao centro do lago.
Bell voltou com Bokom e Hemi. Pareciam estar menos curiosos que o primeiro,
pois não formularam nenhuma pergunta. Rhodan apontou para a tela.
— Vejam o que está acontecendo. Temos de fugir. Quanto a isso não existe dúvida.
Se nos encontrarem, ficaremos indefesos. Nossos canhões não funcionam embaixo da
água. Teríamos de voltar à superfície, mas os blues já estariam preparados. Quero dizer
que vamos emergir antes disso, mas primeiro temos de evitar que os blues possam
transmitir alguma mensagem. Os transmissores devem estar nos dois veículos blindados.
Será que vocês têm força para empurrá-los para dentro da água? Vocês têm de fazer com
que afundem.
Bokom teve suas dúvidas.
— É possível que juntos consigamos, mas o difícil será fazer com que tudo aconteça
com a necessária rapidez. Se desconfiarem antes da hora, será tudo em vão. Hemi e eu
tentaremos movimentar os dois veículos ao mesmo tempo.
Rhodan confirmou com um gesto. Não tinha vontade de dar palpites. Em matéria de
telecinesia os ratos-castores entendiam mais que ele. Deviam saber do que eram capazes.
Concentrou-se na imagem projetada na tela panorâmica.
Os barcos iniciaram seu trabalho. Sondas foram colocadas na água. Rhodan tinha
certeza de que também havia câmaras de televisão para revistar o fundo do lago. Outro
grupo de blues apareceu na margem oposta do lago, mas logo seguiu caminho.
Rhodan passou a dedicar sua atenção aos dois veículos blindados.
Seus ocupantes estavam espalhados ã frente dos mesmos, de pé ou sentados,
observando os companheiros que trabalhavam sobre a água. Isso não deixava de ser
interessante, porque os sáurios não gostaram de ser incomodados. Atacaram os barcos.
Um deles virou e os blues fizeram esforços desesperados para alcançar a margem, que
não estava muito distante. Como os sáurios não os perseguiram, conseguiram. Era bem
verdade que a operação de busca sofreu um atraso considerável.
De repente os dois veículos blindados começaram a movimentar-se, embora os
motores estivessem desligados. Um dos blues foi apanhado pelas sapatas e desapareceu
sob a carroçaria do veículo. Os outros conseguiram saltar para o lado antes que fosse
tarde, sem compreender o espetáculo que se desenrolava diante de seus olhos.
Os controles dos blindados deviam ter sido manipulados por fantasmas. Era a única
explicação.
Bokom e Hemi estavam sentados, completamente imóveis. Ficaram de olho nos
dois veículos, que rolavam lentamente em direção ao lago e não se detiveram entre os
juncos.
Foram afundando, e dali a pouco só as cúpulas blindadas saíam da água.
Finalmente desapareceram de vez.
Os blues que se encontravam nos barcos suspenderam suas atividades. Olharam
espantados para o lugar em que seus veículos tinham afundado. Depois voltaram à
margem e reuniram-se em conselho de guerra. Apontavam constantemente para o lago.
Tornava-se cada vez mais evidente que acreditavam que aquilo que estavam procurando
estava lá.
— Foi um trabalho bem-feito — elogiou Rhodan, mas ainda não tinha certeza se
realmente já estava na hora de abandonarem o esconderijo. — Parece que conseguimos
detê-los. Tão depressa não conseguirão pôr as mãos nos blindados que afundaram no
lago. Se não tiverem rádios portáteis, poderão esperar muito até que apareça alguém para
levá-los.
— A floresta está cheia de blues — disse Kasom, — De qualquer maneira
acabaremos sendo descobertos — constatou Rhodan. — Acho que devemos dar o fora.
Diria que o mais recomendável é irmos para o norte. Para as montanhas. Fora da água
poderemos defender-nos melhor.
Dali a meia hora os blues reiniciaram as buscas. Havia poucos deles junto ao lago.
Um grupo devia ter ido a pé até a base situada no planalto, para relatar o estranho
acontecimento.
— Daqui a pouco vai escurecer — disse Bell.
Rhodan olhou para o relógio. Em Roost os dias eram mais compridos, mas dentro
de três horas escureceria. Se até lá não fossem encontrados...
— Quer dizer que vamos esperar mais um pouco...
Os minutos foram-se arrastando. O trabalho dos blues progredia muito devagar.
Vasculharam as margens metro por metro antes de avançarem cautelosamente em direção
ao centro. O sol ia baixando; já tinha desaparecido atrás das copas das árvores.
Desapareceria dentro de meia hora.
A tensão cresceu, quando mais uma vez um incidente interrompeu o trabalho dos
blues. Os sáurios ficaram cada vez mais inquietos. Pareciam decididos a expulsar os
intrusos. Precipitaram-se em formação compacta sobre os barcos relativamente fracos e
pequenos e viraram três deles. Imediatamente os ocupantes dos outros barcos abriram
fogo contra os monstros e mataram a metade deles.
— Bárbaros! — disse Bokom, enojado. Rhodan não fez nenhum comentário. Os
blues apenas estavam defendendo sua pele. E esqueceram a tarefa que estavam
desempenhando.
Começou a escuridão.
Duas horas depois do pôr-do-sol Rhodan ligou o propulsor do planador. O motor
emitiu um zumbido leve. Os campos energéticos entraram em ação, e o veículo foi
subindo lentamente.
Estava completamente escuro. Nas margens do lago estava tudo em silêncio. Mas os
blues ainda estavam lá. Os ruídos fracos que se faziam ouvir de vez em quando eram a
melhor prova. Provavelmente estavam à espera de reforços e de outros veículos.
O planador rompeu a superfície da água — e continuou a subir até ficar suspenso no
ar, bem acima das copas das árvores. A fuga ainda não tinha sido notada. Rhodan
acelerou e seguiu para o norte.
O lago foi ficando para trás, enquanto o planador se deslocava pouco acima das
copas das árvores e ia subindo para acompanhar o terreno em aclive. A floresta terminou
no lugar em que começava o planalto. Ainda havia algumas crateras incandescentes no
lugar em que ficara a estação. As correntes ascendentes de ar quente tentaram levantar o
veículo, mas Rhodan soube compensar todos os fatores que perturbavam a rota.
— Estão procurando na face diurna — disse Kasom, interrompendo o silêncio.
Continuava sentado à frente do rádio. — Podem procurar à vontade.
— Que nem o homem da chave — observou Bell em tom distraído.
— Que história é essa? — perguntou Kasom, curioso.
— O homem perdeu a chave e procurou embaixo da lanterna, porque lá era mais
claro. Mas ele a deixara cair no escuro, a cem metros dali.
— Que piada estúpida! — exclamou Kasom, decepcionado.
Bokom piou de alegria, bateu nas costas de Bell e retirou-se juntamente com Hemi
para os fundos da cabine principal. Bell seguiu-os com os olhos. Parecia satisfeito.
— São dois caras inteligentes — constatou.
Rhodan não tirava os olhos das telas.
— Acontece que um dos caras é uma moça — disse como que ao acaso.
Bell confirmou com um gesto.
— Não dá para notar, Perry. Ninguém consegue distinguir um rato-castor do outro.
Para mim são todos uns caras alegres e inteligentes.
— Oportunamente você poderia dizer isso a Gucky — recomendou Rhodan e
modificou a rota um pouco para a esquerda. Mal distinguia o planalto. A lua não tinha
saído e havia poucas estrelas. Só podia imaginar o que havia na superfície. — Daqui a
pouco atingiremos as montanhas. Precisamos ter cuidado para não colidir com uma
rocha.
Seus olhos já se tinham acostumado à escuridão. Pelo menos o suficiente para
enxergar as montanhas que se destacavam contra o céu escuro. Havia um vale largo que
deixava livre o caminho para o norte. Rhodan acompanhou a depressão pouco profunda.
O planalto ficou para trás.
Depois de terem percorrido cerca de trinta quilômetros, o vale terminou numa bacia
quase redonda, cercada por encostas íngremes. Como não se via muita coisa na escuridão
e Rhodan não quis arriscar-se a ligar os holofotes, fez o planador pousar junto à encosta
rochosa e desligou o motor e os campos energéticos. Ligou o campo defensivo que
envolvia o veículo, para estar protegido contra eventuais surpresas.
— Amanhã de manhã veremos o resto — disse. — Kasom, é sua vez de ficar de
sentinela. Preste atenção à troca de mensagens pelo inimigo. Acorde-me se houver algo
de extraordinário.
Kasom ficou atrás dos controles, enquanto os outros foram dormir.
Finalmente o dia começou a raiar.
O vale era mais estreito do que supunham. Na encosta leste havia algumas cavernas
largas e profundas. Uma delas, cuja entrada ficava vinte metros acima do fundo do vale,
parecia muito apropriada. Rhodan manobrou o planador para o seu interior e o fez pousar
bem nos fundos. Era uma caverna grande: poderia acolher dez planadores. No lugar em
que se encontravam estavam totalmente protegidos contra a visão de cima e de baixo. Se
necessário, poderiam defender-se contra uma grande superioridade de forças.
— Ficaremos aqui — decidiu Rhodan. — Nada de experiências daqui em diante.
Noir, quais são as notícias?
Noir sorriu e apontou para Kasom.
Este, que durante a última hora não saíra de perto dos instrumentos, mantinha-se em
silêncio. Lançou um olhar para o nicho da cozinha, onde um pedaço de sáurio estava
sendo assado. Um cheiro delicioso espalhou-se pela cabine.
— Suspeitam de que haja alguma coisa no lago da floresta. Hoje mesmo darão
início a uma operação de busca. O nome Rhodan chegou a ser mencionado, senhor, mas
perdi o contexto. Parece que sabem que nós estamos aqui. Querem pegar-nos vivos.
— Gostaria de saber como descobriram. Talvez tenha sido através de nossas
mensagens de rádio. — Rhodan também olhou para o nicho que servia de cozinha. Era
possível que à carne de sáurio não fosse tão má assim. — E a Tramp? Continua a
transmitir?
— Transmite ininterruptamente o pedido de socorro, além de algumas notícias para
nós. O comandante pede que não respondamos. Provavelmente receia que possamos ser
localizados por meio de algum goniômetro. Ao romper as linhas inimigas, a Tramp foi
atingida várias vezes e está bastante avariada, mas ainda pode ser manobrada. Permanece
no interior do sistema e não se afastará a mais de um mês-luz. Os receptores ficam
ligados ininterruptamente. O pedido de socorro continua a ser transmitido.
Rhodan não respondeu.
Lançou os olhos através da parede transparente da cabine, pela caverna, até a saída.
Olhou para o vale baixo e solitário onde se via um pequeno riacho e alguns prados
verdes. Do lado oposto a rocha nua subia na vertical. Não se ouvia o menor ruído. Aquele
lugar nas montanhas era ainda mais seguro e solitário que o fundo do lago na floresta.
— Um dia alguém há de captar o pedido de socorro — disse Bell em meio ao
silêncio. — Ninguém venha me dizer que não há uma única nave terrana neste setor da
Via Láctea.
Rhodan levantou-se e abriu a porta da cabine. Foi à entrada da caverna. A seus pés
o paredão de rocha caía na vertical. A visibilidade era boa e por isso poderiam frustrar
um eventual ataque de surpresa dos blues.
— O que acha, Perry? — perguntou Bell. — Também acredita que alguém ouvirá a
mensagem?
Rhodan deu-lhe razão.
— Naturalmente acredito. Até é possível que isso já tenha acontecido e que estejam
a caminho, enquanto nós nos preocupamos por aqui. Hoje ou amanhã — um dia virão
buscar-nos. E neste dia os blues voltarão a aprender o que significa ter medo. O Império
desmoronou, mas a Terra ficou mais forte que nunca.
Atlan, que fizera questão de permanecer nos fundos da cabine, juntou-se aos outros.
Olhou para o vale.
— Talvez o sentido do Império tenha sido este — disse em voz baixa e com uma
ligeira tristeza. — Nenhuma vitória é alcançada sem sacrifícios.
Ficou parado entre os outros — um arcônida e um imortal — mas apesar de tudo
um homem. Era mais terrano que arcônida.
Rhodan colocou a mão em seu ombro.
— Quando vierem buscar-nos, teremos de recomeçar — disse.
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