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O Mundo Dos Três Planetas
K. H. Scheer

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização & Revisão


Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

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O soberano de Árcon não passa de uma ma-
rionete do grande cérebro positrônico...

A Terra encontra-se no ano de 1984 do


seu calendário. A Ganymed, uma nave espa-
cial capturada aos mercadores galácticos, já
iniciou seu avanço para Árcon.
Com isso, Perry Rhodan cumpriu uma
promessa de treze anos, segundo a qual leva-
ria Crest e Thora, os dois arcônidas, de volta
ao seu mundo. Mas a recepção dispensada a
estes deixa muito a desejar, pois em O MUN-
DO DOS TRÊS PLANETAS houve uma pro-
funda mudança de regime...

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Personagens Principais:

Perry Rhodan — Que se apresenta como


Tan’Ro de Zeklon.
Reginald Bell — Que mostra quanto vale
quando a situação se torna desesperadora.
Thora e Crest — Que depois de tanto tem-
po têm de recorrer a um transmissor fictício
para regressar ao seu mundo.
John Marshall — Comandante do exército
de mutantes da Terceira Potência.
Orcast XXI — Um soberano que não detém
nenhum poder real.
Kenos — Um arcônida dotado de energia
extraordinária.
Gucky — Cujo aparecimento inopinado es-
panta o Imperador.
John Tifflor, apelidado de Tiff — Coman-
dante de uma Gazela.

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1

Caíram dos céus como um bando de mos-


quitos gordos e repugnantes. Seus ferrões eram
pesados canhões energéticos. As vísceras abri-
gadas atrás de blindagens resistentes pulsavam
num ritmo tão preciso que jamais seria atingido
por qualquer combinação orgânica de células vi-
vas.
O canto surdo e enervante dos ciclopes foi
captado pelos microfones externos da nave e
reproduzido fielmente pelos alto-falantes. Ao
que parecia, não havia nada que pudesse inter-
romper a marcha daqueles gigantes.
Apática e indiferente, reagindo apenas aos
berros de comando dos seus oficiais, a massa
de corpos escuros deslocou-se em direção às
naves que pousavam. Parecia uma massa visco-
sa que escorria lentamente, mas não poderia
ser detida.
— Marcha dos ciclopes, quinto ato. A uma
hora como esta, gostaria de ser compositor —
ironizou o homem alto, sem realmente tornar-
se irônico. — Se dependesse de mim, neste ins-
tante faria entrar em cena os tambores e as
trombetas.
Ninguém riu. As cenas que se desenhavam
nas telas impressionavam demais. O fundo sé-
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rio dos acontecimentos era inconfundível.
Os naats, habitantes do planeta Naat, evi-
dentemente foram escolhidos para tripular as
naves espaciais que acabavam de pousar no es-
paçoporto de Naatral. No entanto, era bastante
duvidoso que a maior parte daqueles gigantes
de três metros de altura, com enormes crânios
redondos, seria capaz de compreender o funci-
onamento complicado de uma nave de guerra
arcônida.
Os naats eram seres de três olhos, perten-
centes a uma raça colonial submetida ao domí-
nio direto de Árcon, planeta central do Império.
Estes pareciam ser, para o gigantesco cérebro
robotizado que dirigia os destinos de Árcon, os
representantes para uma solução provisória ide-
al. Bastava que um mecanismo de cálculo intei-
ramente mecanizado fosse capaz de entender o
significado do conceito de ideal. Provavelmente
o cérebro central de Árcon “raciocinava” em
outros termos.
Face à degenerescência incontestável da
raça, os arcônidas propriamente ditos se havi-
am tornado imprestáveis para qualquer tipo de
atividade prática. Por isso, o cérebro recorria a
seres de características estranhas às da raça,
cuja lealdade incondicional evidentemente era
mais importante que os dons espirituais, que
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geralmente constituíam um ingrediente essenci-
al.
— Isso não vai dar certo — afirmou Regi-
nald Bell em tom sombrio. — Suas pernas-colu-
na vão pisotear as instalações. Além disso, pen-
durarão seu aparelho digestivo diretamente nas
despensas, para alimentar-se o melhor possível.
Estou falando em sentido figurado.
— Ah, é? — disse Perry Rhodan, chefe da
expedição de Árcon, com um pigarro.
Bell enrugou a testa.
— Até parece que não se pode falar mais
como uma pessoa civilizada — disse com a voz
furiosa.
Seu olhar ameaçador provocou um sorriso
fugaz no rosto de um ou outro dos circunstan-
tes. Naquele momento, nenhum dos mil tripu-
lantes da Ganymed seria capaz de uma manifes-
tação de alegria mais intensa.
Praguejando, Bell caminhou pesadamente
em direção as telas de visão global.
A sala de comando da segunda maior nave
de guerra de que dispunha a Terceira Potência,
dirigida por Perry Rhodan, ficava uns 760 me-
tros acima do solo. Há poucos dias ainda se
acreditava que não havia nada que pudesse
contrapor-se ao potencial energético daquele gi-
gante do espaço. Acreditava-se nisso até que a
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Ganymed foi capturada por uma nave arcônida
robotizada, que a conduziu ao campo de pouso
do quinto mundo do sistema através de um me-
canismo de tele direção.
Desde então, a mais nova das naves da Hu-
manidade jazia imóvel sobre os gigantescos dis-
cos de suas pernas telescópicas estendidas, cujo
mecanismo hidráulico começara a ceder sob os
efeitos da gravitação de Naat. Naquele mundo
deserto, a força gravitacional era de 2,8g.
De uma hora para outra, o campo de pouso
transformara-se de um local abandonado para
um verdadeiro formigueiro. Ao que tudo indica-
va, o Grande Império pretendia desferir mais
um golpe fulminante contra as raças coloniais
revoltadas.
A utilização de criaturas não-humanas como
os naats indicava claramente que a população
de Árcon, que se contava por bilhões, já não
era capaz de tripular as inúmeras naves espaci-
ais do Império. Isto há alguns milênios teria sido
mais que natural.
Sabia-se perfeitamente que a extraordinária
capacidade de iniciativa não era exercida por
seres vivos orgânicos, mas pelo maior cérebro
robotizado do Universo conhecido.
Perry Rhodan estremeceu por dentro, quan-
do avaliou o potencial da frota através das ima-
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gens projetadas na tela. O que viu de unidades
espaciais, desde as menores até as mais pesa-
das, era uma coisa fabulosa.
Só de couraçados da classe Império contou
mais de cem. Cada um deles tinha o tamanho e
a potência da Stardust-III, que Rhodan deixara
no sistema solar de seu mundo para servir de
espinha dorsal à frota de defesa ali estacionada.
— Se quiserem, eles nos mandam para o
outro mundo com um simples movimento do
dedo — murmurou o coronel Freyt em tom
constrito.
Freyt era oficialmente o comandante da
Ganymed, uma nave de 840 metros de altura
por 220 de diâmetro.
Rhodan virou lentamente a cabeça. Freyt viu
um rosto tenso.
“Ficou magro”, foi a idéia que num instante
acudiu ao coronel. Não sabia por quê, mas o
fato o preocupava. Se os nervos de Rhodan
também começassem a fraquejar, a prisão, até
então tão suave, fatalmente se transformaria no
extremo oposto.
— Eles quem? — indagou Rhodan.
Freyt passou a ponta da língua pelos lábios.
Um tanto inseguro, olhou em torno.
— É claro que me refiro ao cérebro robotiza-
do de Árcon — respondeu.
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— Vejo que o senhor pelo menos se expri-
miu de forma incorreta. Aliás, acredito que ain-
da existam algumas opiniões errôneas a respei-
to da situação em que nos encontramos. Seria
insensato procurarmos identificar os atos de
uma máquina com os conceitos de justiça e in-
justiça. O robô não sabe estabelecer distinção
entre os dois conceitos, pois não tem o menor
interesse nisso. Para ele, só existe uma série de
dados lógicos de interesse exclusivamente práti-
co. Acontece que raramente, e só por acaso,
um efeito final lógico corresponde àquilo que
nós homens costumamos designar como justo.
Compreenderam?
Rhodan olhou em torno. Não o haviam
compreendido muito bem. O que se sabia per-
feitamente era que a Ganymed estava sendo re-
tida no espaçoporto de Naatral por um gigan-
tesco potencial energético. O vôo em direção
ao mundo dos arcônidas Crest e Thora termina-
ra em fracasso. Nem sequer haviam ultrapassa-
do a órbita do quinto planeta.
— Nem por isso quero afirmar que, como
conclusão dos nossos desejos, considero este
mundo desértico — acrescentou Rhodan com
um sorriso sutil. — Olhem ali embaixo. Os na-
ats caminham para o interior das naves que
acabam de pousar, onde serão utilizados pelos
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robôs segundo as qualidades de cada um. Esta-
mos assistindo ao fim de uma raça altamente ci-
vilizada, que é a dos arcônidas. É muito difícil
ganhar guerras por meio de povos estranhos. E
o Grande Império encontra-se numa luta de
vida ou morte. O que é de admirar, é que há
vários milênios os velhos arcônidas previram a
degenerescência de sua raça e tomaram suas
providências. Quem possui os respectivos co-
nhecimentos técnicos pode construir uma
máquina gigante e programá-la de tal maneira
que, num momento de perigo agudo, comece a
agir independentemente. Foi o que aconteceu.
O Conselho Galático de Árcon foi afastado de
suas funções. Aquilo que vimos e as experiên-
cias pelas quais passamos, tudo foi concebido
pela máquina. Nossas experiências com os ar-
cônidas das melhores famílias revelam que essa
gente, quando muito, é capaz de exasperar-se
por um canteiro pisoteado. O cérebro robotiza-
do já não os inclui em seus cálculos.
— Sabe lá o que isso significa? — observou
um membro da equipe matemática.
Rhodan respondeu com um gesto hesitante.
Uma sombra desenhou-se em seu rosto.
— Sem dúvida. Coisas horríveis estão para
acontecer. O robô golpeará sempre que suspei-
tar de qualquer insubordinação às leis do Impé-
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rio. A programação da máquina é antiqüíssima.
Os pressupostos em que se basearam os dados
introduzidos no cérebro já estão superados. O
robô tentará intervir nos destinos da Galáxia em
termos de uma política colonial e expansionista
que pertence ao passado. É bem possível que,
por causa de um fato insignificante, um mundo
seja destruído. A máquina continua com todo o
poderio de antes. A frota imperial, que estava
mofando, despertou de uma hora para outra.
— Que prazer! Até parece que chegamos no
momento exato — ironizou Reginald Bell. —
Será que a esta hora você já nos pode contar
como pretende chegar à sede do mundo de Ár-
con? Se for necessário, essa fera mecanizada
nos fará morrer de fome no meio do espaço.
— Isso é um conceito pouco preciso — res-
mungou Rhodan. — Eu... O que houve?
John Marshall, telepata e chefe do exército
de mutantes a bordo da Ganymed, procurava
ouvir com os olhos fechados os impulsos que só
ele e outros mutantes poderiam compreender.
— Thora está voltando — disse em voz vela-
da. — Está muito exaltada; não, está extrema-
mente abatida.
Marshall voltou a abrir os olhos. Viu diante
de si o olhar chamejante de Rhodan.
— Isso era de prever — disse o comandante
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em tom lacônico. — Está certa. Voltaremos a
agir por conta própria; não temos outra alter-
nativa. Crest...
O arcônida, que se encontrava num ponto
mais afastado, despertou de sua letargia. Cami-
nhou lentamente em direção aos painéis de
controle. Seu cabelo branco emitia um brilho
fluorescente sob o reflexo da luz das telas de
imagem. Nessas telas, continuava a desfilar a
parada deprimente dos ciclopes de três olhos.
Parte dos naats andava de quatro. Só se levan-
tavam e passavam a deslocar-se no seu andar
balouçante quando se encontravam diante das
comportas de ar das naves.
Crest, o cientista arcônida pertencente à an-
tiga dinastia de Zoltral, revelou seu estado de
espírito através do olhar apático e desinteressa-
do.
— É o fim — disse com a voz débil. — No
momento em que uma máquina toma as rédeas
do governo, a vida propriamente dita está per-
dida. Minha família foi destituída de suas fun-
ções há seis anos terranos. Orcast XXI, da fa-
mília de Orcast, foi nomeado Imperador pelo
cérebro robotizado. É claro que exerce suas fun-
ções apenas na aparência, o que também deve
acontecer com os 128 membros do Conselho
Galáctico. Não se iluda, meu amigo. Podere-
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mos dar-nos por felizes se permitirem que volte-
mos para casa.
Rhodan exibiu os dentes num sorriso mor-
daz e contrariado.
— Crest, nunca esperávamos conquistar ou
salvar o Império pelo simples fato da nossa pre-
sença. Não nos consideramos tão grandes, nem
tão importantes.
— A raça humana tem mais força e grande-
za do que se supõe. Os senhores são como
eram meus antepassados há dez mil anos. Pos-
suem uma ânsia enorme de dar um salto arroja-
do para a frente. Receio que, ao perceber o
fato, o cérebro robotizado lhe cause dificuldades
consideráveis. Não tente chegar a Árcon. Aí
vem Thora.
Rhodan olhou para as telas. Um veículo ofi-
cial do administrador arcônida no mundo de
Naat aproximava-se a alta velocidade. O carro
atravessou a área extensa do campo sem a me-
nor consideração pelas massas de nativos que
marchavam em direção às naves.
Thora fez um gesto para Bell. Este desapa-
receu no elevador antigravitacional central. Iria
abrir uma pequena comporta de ar, por onde
pudesse entrar a arcônida.
Nas telas, viram Thora desaparecer nas gi-
gantescas aletas de popa da Ganymed. Após
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dez minutos, a arcônida, entrou na central, de-
solada e exausta.
Seu rosto estreito estava vermelho. Enverga-
va o uniforme elegante de comandante de uma
nave de guerra arcônida. Na ombreira esquerda
do macacão, brilhavam os símbolos da dinastia
de Zoltral. Há seis anos qualquer um faria uma
reverência diante dos mesmos. Hoje ninguém
se curvava diante desse símbolo.
Respirando pesadamente, Thora deixou-se
cair numa poltrona articulada. Quando sentiu a
mão de Rhodan pousada em seu braço, abriu
os olhos.
— Está bem. Não falemos mais a respeito
disso — disse Rhodan em voz baixa. — Esque-
ça. Sei perfeitamente que foi ofendida e repudi-
ada por esse dorminhoco que usa o título de
administrador de Naat. Naturalmente não nos
pode dar permissão de decolar, porque o cére-
bro robotizado acha que não deva fazê-lo. Não
é isso?
Os olhos de Thora umedeceram-se. Até en-
tão, ninguém vira a orgulhosa arcônida chorar.
— O pior não foi isso — disse com uma cal-
ma forçada. — Esse cafajeste atreveu-se a dizer
a mim, uma zoltral, que eu e os tripulantes da
minha nave eventualmente poderíamos ser mui-
to bem recebidos.
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— Ah, é?
— Como ajudantes, comandados por algum
robô! — exclamou. Seu rosto contorceu-se. —
Imagine! Diz que devemos aguardar instruções
nesse sentido, que serão expedidas pelo cére-
bro robotizado. Logo se conclui que nem se-
quer permitem nosso regresso. Perry, por tudo
que me é e sempre me foi sagrado, faça alguma
coisa! O Grande Império deixou de existir. Con-
fesso aquilo que sempre procurei negar: meu
povo está fraco, corrompido, sem moral, pouco
inteligente e dominado por um tremendo cansa-
ço.
— Com algumas exceções, minha jovem se-
nhora — disse Rhodan, esticando as palavras.
— Com algumas exceções muito importantes.
Uma delas está sentada diante de mim. Quer di-
zer que pretendem aprisionar-nos. Provavel-
mente a Ganymed também será bem recebida.
Muito bem. Era o que eu imaginava.
Rhodan virou-se sobre os calcanhares. Os
homens calaram-se sob o efeito de seu sorriso
famoso e temível, que mais uma vez era tão
meigo e amável que não poderia ser tranqüiliza-
dor.
— Tenente Tifflor!
O oficial, ainda um rapaz, recém-saído da
Academia Espacial e distinguido com o cometa
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de prata por sua excelente atuação na operação
contra os saltadores, ficou em posição de senti-
do.
Tiff, que era o nome pelo qual costumavam
chamá-lo, pensou que sua hora havia soado. Já
conhecia essa expressão no rosto do chefe.
Com esse mesmo sorriso, enviara-o a uma ter-
rível missão secreta.
— Sim senhor — disse o jovem de vinte
anos.
— Queira preparar a decolagem de uma
nave de reconhecimento de grande alcance do
tipo Gazela. Equipe-a para uma longa viagem.
A nave deverá conduzir todo o potencial em ar-
mamento. As comportas externas permanece-
rão fechadas. Muito obrigado.
“Mister Marshall. Reúna nove dos seus mu-
tantes. As capacidades deverão completar-se. O
senhor e os outros deverão formar um grupo
bem experimentado a bordo da Gazela.
“Bell, selecione quarenta homens experi-
mentados do antigo comando do setor de
Vega. Só quero voluntários. Tenente Tifflor,
tome todas as providências para abrigar 55 ho-
mens a bordo da Gazela.
“Coronel Freyt, a Ganymed continuará aqui
sob seu comando. Os tripulantes deverão dor-
mir e comer nos seus postos. Quando vier o si-
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nal, deverá estar em condições de decolar den-
tro de dez segundos. Acha que conseguirá?”
Freyt ficou perplexo.
— Em condições de decolar? — perguntou.
— Com a Ganymed? Já tentamos isso. No mo-
mento em que aumentávamos o desempenho
dos propulsores para dois milhões de toneladas,
a potência de absorção dos campos de sucção
aumentava para um valor mínimo de três mi-
lhões. Como poderemos decolar?
— Quando receberem o sinal, poderão —
respondeu Rhodan em tom indiferente. — Ape-
nas se torna necessário que antes disso consiga-
mos pousar em Árcon. Quer saber de uma coi-
sa? Não gosto de dançar pela música de uma
máquina. Pelas experiências que fiz com cére-
bros robotizados arcônidas, os mesmos sempre
dispõem de um setor de segurança que os im-
pede de excederem determinados limites. É bas-
tante provável que aconteça a mesma coisa
com este cérebro.
— O senhor se esquece de que essa máqui-
na acaba de causar um choque paralisante no
administrador Sergh — interveio Crest em tom
exaltado.
— É verdade. Acontece que nós mesmos fo-
mos culpados disso. Penetrei no palácio junta-
mente com Bell e Tako. Seja como for, preten-
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do dar uma olhada no tal Imperador; e eu o fa-
rei, não tenham a menor dúvida.
Thora arregalou os olhos de espanto. Volta-
ra a ter diante de si o homem com que há treze
anos antes se encontrara na lua terrana. Foi en-
tão que o mesmo começou a tutelá-la. Continu-
ava praticamente o mesmo.
Tifflor retirou-se. Um trabalho febril come-
çou a desenvolver-se a bordo da Ganymed.
Finalmente a pergunta zangada irrompeu da
boca de Bell:
— Grande mestre, será que você não pode-
ria contar como espera fugir com a Gazela e de
que forma pretende pousar em Árcon? Pelo
que sei, encontramo-nos bem no meio de uma
porção de projetores de campos energéticos.
— Acontece que estes não reagem a oscila-
ções de energias que se processam na quinta di-
mensão — respondeu Rhodan em tom áspero.
— Basta pegar um transmissor fictício e, com o
auxílio do mesmo, sair pelo espaço. Você sabe
perfeitamente que nem mesmo os arcônidas
dispõem dessa conquista da tecnologia.
Bell cerrou fortemente os olhos. Era o apa-
relho trazido do planeta Peregrino! Como não
se lembrara disso?
— Querem vir comigo?
Estas palavras eram dirigidas a Thora e
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Crest. Os dois trocaram um ligeiro olhar. Nin-
guém deixaria de notar uma ligeira palidez no
rosto dos arcônidas.
Subitamente John Marshall, o telepata, teve
sua atenção despertada por alguma coisa. Em
atitude rija, parou diante da escotilha principal
que se abria diante dele.
Rhodan franziu a sobrancelha. Um certo
nervosismo apossou-se dele. O que teria perce-
bido Marshall?
— Quer pousar diretamente em Árcon? —
perguntou Crest em tom inseguro.
— Onde poderia ser? Tenho que falar com
as pessoas que podem resolver alguma coisa. O
que houve?
Marshall foi se aproximando. Seu impulso
de advertência atingiu o cérebro de Rhodan.
Mas este não conseguiu saber mais nada; sua
capacidade telepática era muito fraca. Foi quan-
do Thora decidiu revelar seu último segredo.
— Não adiantaria continuar a calar os fatos
— disse em voz baixa. — Perry, se o senhor
pretende ir a Árcon, terá que resolver em qual
dos planetas quer realizar esse intento.
A tensão de Rhodan dissipou-se. Marshall
confirmou com um ligeiro sinal de cabeça: era
isso.
— Em qual dos planetas? — repetiu Rhodan
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desorientado. — Não compreendo. Árcon é um
só, não é?
— Pois aí está uma coisa que o senhor ainda
não sabe, apesar do treinamento hipnótico a
que foi submetido — interveio Crest. — Árcon
é formado por três mundos e todos eles trazem
este nome. O mundo número um, denominado
mundo de cristal, é reservado exclusivamente a
fins residenciais. O mundo número dois serve
ao comércio galático, à indústria e ao abasteci-
mento alimentar do sistema. O mundo número
três é o planeta da guerra, da frota, dos estalei-
ros mais gigantescos do Universo e também
serve de sede ao supercérebro robotizado. É o
último segredo de minha raça, que acabo de lhe
expor.
Rhodan sentou devagar; parecia pensativo.
Num gesto pedantesco examinou a posição do
cinto de seu traje espacial. Os pensamentos
atropelavam-se em seu cérebro.
— Três mundos? — disse muito baixo. —
Santo Deus, como pode ser isso? Árcon é o ter-
ceiro planeta de seu sol, não é? Onde se locali-
zam os dois astros restantes?
Um silêncio de chumbo encheu a ampla
sala. A boca de Crest acabara de revelar mais
um milagre. Falando com dificuldade, o arcôni-
da explicou:
21
— É um sistema triplo que descreve exata-
mente a mesma órbita e mantém uma distância
uniforme de seiscentos e vinte milhões de quilô-
metros do sol. A posição dos três mundos sin-
cronizados, que é como costumam ser chama-
dos, corresponde aos vértices de um triângulo
isósceles. As estações do ano nunca mudam
nos três planetas, já que seu eixo não apresenta
nenhuma inclinação e as órbitas são perfeita-
mente circulares. A temperatura média fica em
torno de trinta e quatro graus centígrados da es-
cala terrana. Árcon representa um fenômeno
único na Via Láctea. Poucas semanas atrás ain-
da me sentia muito orgulhoso por isso.
Crest baixou a cabeça. O rosto de Rhodan
empalideceu. Jamais contara com isso.
Seu cérebro executou uma série de cálculos
automáticos. Aquela constelação por demais es-
tranha de três astros sincronizados oferecia uma
série enorme de problemas astronáuticos e ma-
temáticos extremamente difíceis.
Uma idéia surgiu em seu cérebro. Dentro de
poucos segundos, aquilo que não passara de
uma suposição fugaz transformou-se em certe-
za.
— Crest, espero que o senhor não pretenda
que eu acredite que essa incrível coincidência
de três planetas no que diz respeito à órbita, à
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distância do sol, à progressão no espaço e a ou-
tras coisas mais seja um produto da natureza.
O rosto sombrio de Crest iluminou-se. Um
lampejo de orgulho, já extinto, de sua raça vol-
tou a brilhar em seus olhos. E sua postura foi
mais compenetrada. Na situação em que se en-
contravam, aquilo era um quadro digno de
pena. Crest transformara-se num homem desi-
ludido.
— O senhor descobriu — disse em tom sole-
ne. — Há cerca de trinta mil anos de sua conta-
gem de tempo Árcon, o mundo de cristal, era o
terceiro planeta deste sol. Tornou-se muito pe-
queno. A enorme expansão do Império exigiu a
separação entre as áreas de atividades econômi-
cas, as áreas residenciais e as áreas de opera-
ção da frota espacial. Como meus antepassados
tivessem em mente a centralização das instala-
ções mais importantes, os antigos planetas nú-
meros dois e quatro foram equipados com os
propulsores de radiações mais potentes de to-
dos os tempos. No curso de três mil anos, fo-
ram retirados lenta e cuidadosamente de suas
órbitas primitivas e introduzidos na órbita do
planeta de Árcon. Tudo isso foi feito segundo
cálculos muito precisos.
“Foi assim que surgiu a sincronização de três
planetas que continuam a ser chamados de Ár-
23
con. Procure compreender, Perry: isto é Árcon!
Uma vez levada a efeito a conjugação das órbi-
tas, é muito difícil distinguir os planetas pelo as-
pecto exterior. O segredo foi revelado a pou-
quíssimos arcônidas. Agora, o senhor é um dos
que têm conhecimento do fato. As dinastias
mais antigas eram de opinião de que a crença,
segundo a qual a constelação tríplice represen-
tava um fenômeno único e extraordinário,
constituía um fator psicológico favorável. Pro-
curou-se conseguir certa glorificação da raça
para efeitos externos. Seres superiores como
nós teriam que aspirar a um espaço vital superi-
or. Acho que o senhor compreende.”
Rhodan expeliu ruidosamente o ar antes de
responder com a voz comovida:
— Devo confessar que seus antepassados
me inspiram um respeito enorme. E fico-lhe
muito grato por ter-me revelado esses fatos. Se
não dispuséssemos desses dados, nossos cálcu-
los para a transição conduziriam a um resultado
surpreendente. Será que não poderia ter conta-
do isso mais cedo?
Lançou um olhar de repreensão sobre seu
interlocutor. Thora respondeu com um sorriso
fugaz, cuja expressão dizia mais que a discussão
acalorada entre os homens que se encontravam
na sala de comando.
24
Depois de cinco minutos foi iniciada a pro-
gramação da calculadora astronáutica. As es-
treitas fitas de plástico com os símbolos perfura-
dos desapareceram no ventre insaciável da
máquina.
— Árcon I encontra-se justamente do lado
oposto do sol — resmungou Bell. — É um azar.
Será que o transmissor fictício conseguirá proje-
tar-nos através da bola de fogo branco-incan-
descente?
— Se para determinada forma de energia
certo corpo perde a substância, podemos deixar
de considerar esse corpo — respondeu Rhodan
laconicamente. — Crest, preciso de dados so-
bre a inclinação da órbita em relação à elipse, a
velocidade exata com que o planeta percorre a
órbita e as relações gravitacionais.
O cientista arcônida pôs-se a trabalhar. Aci-
ma da sala de comando, no interior da ponta
recém-construída da proa, um oficial muito ner-
voso da Ganymed preparava uma nave de reco-
nhecimento de longa distância do tipo Gazela
para a decolagem.
Essas naves recém-construídas, em forma de
disco, cerca de 35 metros de diâmetro, estavam
equipadas com propulsores na base de impulsos
e geradores de campos de salto de transição.
Eram máquinas eficientes para o combate, des-
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de que o homem certo se encontrasse junto aos
botões certos. Julian Tifflor era um desses ho-
mens.
A escotilha interna da enorme comporta de
ar estava aberta. No momento, Tiff ainda acha-
va muito natural que a escotilha externa perma-
necesse fechada. Mas, quando se punha a refle-
tir sobre a maneira pela qual Rhodan pretende-
ria tirar a Gazela, sempre bastante volumosa,
do hangar de proa, uma ligeira fraqueza apos-
sava-se dele.
Com os olhos semicerrados, contemplava os
homens da equipe técnica, que passavam
apressadamente. Quando desapareceram na
sala em que Rhodan mandara instalar o trans-
missor fictício retirado da Stardust-III, uma
grande luz surgiu em seu espírito.
— Por Júpiter! — cochichou, muito perple-
xo, de si para si. — Então será com isso?

Estavam sentados, deitados ou agachados


grudadinhos uns aos outros. Uma vez que não
regatearam seu humor sinistro, a situação tor-
nara-se suportável.
Os velhos guerreiros das primeiras batalhas
travadas no longínquo setor de Vega estavam
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acostumados a muita coisa. Por isso não haveri-
am de estranhar sua permanência num aloja-
mento que mais parecia uma lata de sardinhas
que uma nave dotada de um envoltório rígido.
Foi ao menos o que disseram.
Rhodan soltou uma gargalhada contagiante,
e os homens também contorceram os lábios.
Os homens que participavam dos comandos da
Terceira Potência eram criaturas inteligentes;
sabiam pensar por si e conheciam perfeitamen-
te que plano audacioso o “velho” acabara de
conceber.
Excepcionalmente em tom bastante acalora-
do e seguindo as inclinações de seu gênio, dis-
cutiram sobre o resultado provável da opera-
ção. Não perderam uma palavra para dizer que
a missão era muito perigosa. Pertenciam a qua-
se todas as nações do planeta Terra. Mas todos
eles eram homens que aqui, a 34.000 anos-luz
da pátria comum, arriscavam o pescoço para
prestar um serviço ao seu mundo.
Praguejando e rindo, enfiaram-se no peque-
no compartimento de carga da Gazela. Só as-
sim se poderia designar a operação pela qual se
alojaram para o interior do compartimento.
A cabina de comando, também muito pe-
quena, mal e mal comportava as cabeças diri-
gentes da operação.
27
O ponteiro de segundos, tal qual o de um
corriqueiro relógio de bordo saltitava por cima
do mostrador. Nas telas da aparelhagem de lo-
calização ótica, aparecia o quadro desinteres-
sante das paredes de uma comporta em tubo.
Embora a Gazela-I estivesse prestes a ser lança-
da, a escotilha externa continuava fechada. E
ninguém pensara em providenciar a realização
do processo de compensação de pressão que se
tornaria necessário.
Em compensação, o cano esquisito de um
aparelho ainda mais esquisito estava dirigido so-
bre a pequena nave. O transmissor fictício vin-
do do planeta Peregrino possuía a capacidade
de criar um campo de desmaterialização que
envolvia corpos materialmente estáveis. O
transmissor irradiava-os sob a forma de unida-
des energéticas da sexta dimensão para um
ponto predeterminado.
Aquilo representava a coroação de um de-
senvolvimento tecnológico cujos princípios fun-
damentais só Perry Rhodan conhecia. O trans-
missor fictício prescindia da polarização de um
receptor de igual tipo. Ele mesmo devolvia ao
objeto a forma corpórea estável no lugar indica-
do.
O olhar de Rhodan estava grudado ao pon-
teiro de segundos. O microfone de bordo, pen-
28
durado diante dos seus lábios.
— Peço a atenção de todos — soou a voz
retumbante dos alto-falantes instalados em to-
dos os cantos. — O lançamento será realizado
dentro de quarenta e cinco segundos. Se tudo
der certo, sairemos do hiperespaço nas cama-
das superiores da atmosfera de Árcon I. Duran-
te a transição não existe o risco de sermos loca-
lizados. Estejam preparados caso, durante as
manobras de aterrissagem, alguns gravos pas-
sem pelos campos de absorção. Teremos que
descer depressa. Peço-lhes que tenham isso em
mente. Fim.
Ouviu-se um ruído grave. O gerador da esta-
ção de força que supria o transmissor começara
a funcionar. Nem mesmo Rhodan saberia dizer
exatamente o que estava acontecendo no interi-
or do aparelho. Aquilo era obra de uma tecno-
logia que ficava muito além da capacidade de
compreensão do homem.
Bell acompanhou a contagem. Não conse-
guiu pronunciar a palavra zero, pois naquele
instante uma força tremenda atingiu os ho-
mens. Só sentiram a tração dolorosa da desma-
terialização.
Nas telas de bordo surgiu, no lugar em que
um instante antes se encontrara a Gazela-I, uma
espiral energética fosforescente, que logo desa-
29
pareceu.
O trovejar dos propulsores da Ganymed tor-
nou-se intermitente, até terminar num ponto
morto. Lá fora, nas estações de controle auto-
mático do espaçoporto de Naatral, teriam a im-
pressão de que mais uma vez o comandante se
esforçara em vão para vencer a sucção mag-
nética dos campos de amarração.
O engenheiro-chefe desligou os reatores. A
Gazela continuava desaparecida.
— Se isso der certo, eu durmo num leito de
pregos — disse o coronel Freyt fora de si. —
Foram embora mesmo? Com aquele caixote?
Olhou em torno, perplexo. Era isso mesmo.
A pequenina Gazela, que naquele instante fora
promovida à categoria de caixote, desaparecera
sem deixar vestígio, como se nunca tivesse en-
trado no hangar de lançamento.
— Está bem — disse Freyt em tom exaltado,
falando entre os dentes. — Preparar a nave
para a batalha. Se conseguirem voltar, recebe-
remos o sinal convencionado. Fiquem de pron-
tidão para a decolagem de urgência.

***

O retorno à materialização corporal foi mais


rápido e abrupto que na transição normal de
30
uma nave. Parecia que nada tinha acontecido.
A dor ligeira e martirizante na região da nuca
não passava de um reflexo nervoso, que não
prejudicava a lucidez do espírito.
Julian Tifflor ouviu no alto-falante de seu ca-
pacete a respiração ofegante dos homens que
recuperavam os sentidos. Ninguém gritou, nin-
guém gemeu. Todos viram a luminosidade
branca e ofuscante nas telas da Gazela-I.
Tiff atirou a mão para a frente. Mas a chave
de engate do projetor de campo de proteção já
estava engastada na posição máxima. Nos últi-
mos instantes antes do lançamento, cuidara
desse detalhe.
O ar ambiente, enfurecido, chamejava em
torno da Gazela, que descia vertiginosamente.
Bem embaixo estendiam-se, bem nítidas, as
paisagens do planeta que até então só conheci-
am por ouvir dizer.
— É o mundo de cristal — disse Crest em
meio ao barulho dos geradores. — Encon-
tramo-nos acima do continente equatorial. So-
brevoe esse mar em forma de meia-lua e pouse
em qualquer lugar nos desfiladeiros do comple-
xo montanhoso litorâneo.
Era surpreendente que o arcônida que final-
mente retornava ao seu mundo encarasse o
fato com tamanha objetividade.
31
Feixes de impulsos violetas saíram dos bo-
cais dianteiros do jato direcional. Dentro de dois
segundos a Gazela-I foi freada e ficou submetida
à força gravitacional do planeta.
— Se eles nos localizarem agora, será o fim
do mundo para nós — disse Bell com a voz fra-
ca. — Não poderão deixar de ver uma coisa
destas. Somos mais luminosos que um meteo-
ro.
— Encontramo-nos do lado do sol — inter-
rompeu-o Rhodan. — Peço silêncio. Estas pa-
lestras não servem para nada. Tiff, coloque a
nave em velocidade normal e faça de conta que
está em casa. Altitude cinco mil metros, nem
um único metro a mais. Velocidade equivalente
a cinco vezes a do som. Um arcônida distinto
não voa mais depressa quando quer contemplar
seu mundo de cima.
— Por aqui devem existir estações de locali-
zação — insistiu Bell.
— Sem dúvida. Acontece que as mesmas já
não nos dizem respeito. Uma vez que nos en-
contramos no interior das camadas atmosféri-
cas, os goniômetros automáticos não devem ter
o menor interesse por nós. Uma estação roboti-
zada sempre age segundo sua programação.
Por isso mesmo, considera inocente qualquer
objeto que se desloque numa altura permitida.
32
Se tivéssemos vindo do espaço num vôo nor-
mal, já teriam atirado contra nós.
Rhodan calou-se. Sabia perfeitamente o que
o esperava em Árcon I. Era impossível que al-
guém ou alguma coisa se espantasse com a ae-
ronave, por mais inesperada que fosse sua apa-
rição.
Conforme sabia, o planeta tríplice conheci-
do pelo nome conjunto de Árcon dispunha de
uma cadeia externa e de uma cadeia interna de
fortificações. A cadeia externa era formada por
cerca de 5.000 fortalezas espaciais montadas
em plataformas, cujo tremendo poder de fogo a
Ganymed já tivera oportunidade de experimen-
tar.
O círculo de defesa interno correspondia aos
planetas 5, 6, 7 e 8 que, face à interdição de
tráfego espacial para Árcon atualmente vigente,
ainda serviam de pontos de transbordo do co-
mércio intergaláctico.
Face a isso, o cérebro robotizado de Árcon
III estaria raciocinando com lógica se chegasse
à conclusão de que qualquer aeronave que se
encontrasse na atmosfera do planeta não era
digna de atenção.
Foram estas, em última análise, as reflexões
que levaram Rhodan a arriscar a operação.
Tifflor concluíra a manobra de desaceleração
33
do vôo de mergulho da Gazela-I. Deslocando-se
em vôo aerodinâmico, passou por cima do lito-
ral do pequeno mar.
O silêncio passou a reinar a bordo da nave
de reconhecimento. Todos os olhares estavam
presos às telas de imagem. Até mesmo no com-
partimento de carga, todos permaneceram cala-
dos.
A rota da nave acompanhava o litoral sul do
mar. Lançaram os olhos em todas as direções,
mas não viram nenhuma casa.
O terreno se parecia com um parque gigan-
tesco, estendido até onde a vista alcançava, e
parecia ter perdido sua configuração natural até
mesmo nos menores detalhes.
Aquilo era um produto da criatividade de al-
guns artistas talentosos e da loucura de outros,
que conquistaram ao antigo terreno agreste
tudo aquilo que era belo, atraente e fascinante.
Rhodan suspirou pela primeira vez quando
surgiu um rio de mais de quatro quilômetros de
largura. Pouco antes da foz as massas de água,
contrariando todas as leis naturais, subiam
numa curva elegante para o céu límpido. Segui-
am uma linha parabólica quase vertical, forman-
do um gigantesco arco de torrentes turbilhonan-
tes e espumejantes, cuja beleza arrebatadora
enchia as telas em miríades de reflexos lumino-
34
sos.
— Dê algumas voltas em torno do arco
aquático — exclamou Thora apressadamente.
— Depressa, Tiff. Nenhum arcônida que esti-
vesse realizando um vôo de passeio deixaria de
render seu tributo de admiração ao arco dos
Zoltral.
Reginald Bell praguejou em tom violento e
com a voz potente. Rhodan limitou-se a enxu-
gar o suor da testa. Tifflor entrou na curva com
um olhar de resignação e reduziu a velocidade.
— A Gazela chamará a atenção pelo seu
formato — queixou-se Marshall. — Thora, será
que estamos procedendo corretamente?
— O disco voador não despertará a atenção
de ninguém. Quando muito, será considerada
uma nova construção, nascida em algum cére-
bro fecundo. Ninguém se exaltará por isso. O
senhor ainda não conhece Árcon, John.
O arco formado pela torrente de quatro qui-
lômetros de largura tinha mais de três mil me-
tros de altura. Bem embaixo dele erguia-se um
palácio-funil com jardins internos que pareciam
um sonho. Ainda havia uma plataforma pano-
râmica suspensa no ar que, enquanto a nave se
aproximava, subiu da área interna do funil
como tivesse sido subtraída à gravitação.
Ao que parecia, alguém se dava ao trabalho
35
de cumprimentar condignamente a nave de re-
conhecimento que voava mais devagar.
Tiff arriscou um mergulho por baixo do arco
aquático. Até Rhodan encolheu a cabeça num
gesto instintivo, quando a luz ofuscante do sol
branco de Árcon subitamente foi dissociada e ir-
radiada em inúmeros reflexos coloridos.
Thora estava muito quieta. Sem dizer uma
palavra, apontou para baixo. Finalmente falou
com a voz embaraçada:
— Este é meu torrão natal, Perry. É ali que
fui criada. É a sede dos Zoltral.
Rhodan havia suposto isso, pois Thora já li-
gara o nome de sua dinastia àquela maravilha
técnica.
Tifflor já estava subindo quando Rhodan dis-
se como que ao acaso:
— Acho que este arco aquático de um cam-
po antigravitacional cuidadosamente orientado.
— Se esse campo gravitacional falhar, as
pessoas que se encontram na casa-funil morre-
rão como ratos — resmungou Bell numa con-
clusão lógica, mas pouco gentil.
— Seu bárbaro — disse Thora, que voltara a
sorrir. — O senhor não compreende que uma
raça de nível cultural elevado vive na busca
constante de novas formas de beleza? A lei da
uniformização e da estilização, que ainda é ob-
36
servada na Terra, aqui foi abandonada há oito
mil anos. Por nada no mundo, queremos ser
comprimidos num esquema aplicável às residên-
cias particulares. Por isso o arco aquático dos
Zoltral nunca será imitado. Se alguém o fizesse,
estaria infringindo uma lei não escrita. Nenhum
parque se parece com o outro e ninguém criará
o mesmo animal doméstico que o vizinho.
A maravilha de uma civilização super-sofisti-
cada ficou para trás. Sem demonstrar a menor
emoção, Tifflor voltou à rota antiga. Um sorriso
matreiro apareceu no rosto de Bell. O olhar de
advertência de Rhodan chegou tarde.
— Se é assim, seus cirurgiões nunca usarão
o mesmo método para realizar uma operação
de apendicite, não é? Se quisesse proceder de
forma absolutamente original, deveria começar
a cortar na sola do pé. É uma loucura!
— Os arcônidas não possuem apêndice. —
disse Crest com um sorriso delicado. — No en-
tanto, é verdade que até as ciências médicas
tendem para a ausência de padronização. Um
operador que tenha personalidade usará ao me-
nos um fundo musical diferente para realizar o
mesmo tipo de intervenção. Senhor Tifflor, faça
o favor de sobrevoar a área da paisagem primi-
tiva. Foi ali que cacei meu primeiro sáurio,
quando ainda era um jovem estudante de sa-
37
piência.
Tiff descreveu uma curva. Viram uma gigan-
tesca península que se parecia com as selvas fu-
megantes de Vênus. Criaturas apavorantes voa-
vam de encontro a um campo energético invisí-
vel, que compelia as criaturas aladas suavemen-
te a retornarem ao seu habitat.
— Isso também deve ser artificial, não é? —
fungou Bell confuso. — Como poderemos sa-
ber quando começamos a ficar loucos?
— Na Terra, não existem parques naturais?
— retrucou Thora com a voz irritada. — Por
que uma raça altamente desenvolvida não pode
transformar o ambiente natural segundo seus
desejos? Em Árcon I, dificilmente haverá uma
pedra que se encontre no mesmo lugar em que
foi deixada pelas forças da natureza.
Bell ficou calado. Desorientado, olhou em
torno, mas só viu uma série de rostos confusos.
As impressões eram imponentes demais. Mas,
o que mais impressionava os homens era o fato
de que ninguém se preocupava com sua pre-
sença. Até parecia que Árcon nunca travara
uma guerra ou conquistara todo um grupo este-
lar. Árcon I, o mundo de cristal, era o sacrário
residencial isolado de um povo que já há deze-
nas de milhares de anos sentira que se colocaria
numa situação deprimente e antinatural caso
38
montasse seus lares nas proximidades das insta-
lações industriais.
Rhodan transmitiu algumas instruções la-
cônicas. Os homens que participavam da ope-
ração ainda contavam com um ataque de sur-
presa.
Mas não aconteceu nada. As aeronaves com
que se encontravam passavam tranqüilamente
por eles. Até parecia que a nave de reconheci-
mento terrana pertencia ao planeta.
A costa oriental do mar em meia-lua surgiu
diante deles. As ilhas que a margeavam serviam
de áreas residenciais completamente autôno-
mas. Em Árcon I, não havia cidades. Rhodan
não compreendia onde poderiam morar os dez
milhões de arcônidas. O vazio aparente só po-
deria ser explicado pelo tamanho do planeta,
cuja superfície servia exclusivamente à residên-
cias e recreação dos seus habitantes.
Sobrevoaram algumas das estranhas cons-
truções, que tinham de fora o aspecto de enor-
mes cálices de champanha, cujos cabos esta-
vam presos ao solo. Imensas e graciosas, numa
demonstração de estática genial, as paredes
abriam-se para o exterior.
Também aqui se notava a tendência para o
isolamento. Geralmente os jardins e terraços es-
tavam voltados para o espaço interior, cercado
39
pelas paredes da construção afunilada. No quin-
to planeta do sistema, Rhodan tivera oportuni-
dade de examinar detidamente um palácio se-
melhante àquele.
No formato exterior, não havia nenhuma di-
ferença digna de nota, o que parecia estar em
contradição com a doutrina da desestilização.
Ao que parecia, as construções erguidas nas
ilhas destinavam-se às massas. A personalização
não podia chegar ao ponto no qual se pudesse
dar uma casa a cada família.
Rhodan abanou lentamente a cabeça. Havia
algo de errado nesse mundo. Aliás, Árcon I
lembrava o planeta Peregrino, cujos habitantes
foram ainda mais longe. Não se contentaram
em remodelar um planeta já existente segundo
seus desejos. Construíram seu próprio mundo.
Mas ao que parecia, os arcônidas não estavam
longe do objetivo final, pois até mesmo as resi-
dências destinadas a famílias de nível menos
elevado demonstravam uma tendência exagera-
da para o isolamento. Os gigantescos palácios
de apartamentos estavam repletos de pequeni-
nos jardins suspensos, que davam mostras das
características individuais dos moradores.
Tifflor adaptou-se ao tráfego aéreo mais in-
tenso. As primeiras vias expressas tornaram-se
visíveis. As faixas cintilantes, lindas como um
40
conto de fadas, passavam sobre a superfície de
água como se tudo aquilo fosse obra da nature-
za. Não se via nenhuma coluna de sustentação,
o que provava que também aqui se recorrera
aos campos energéticos de sustentação.
Bell estava sentado diante do posto de arma-
mentos da nave sem dizer uma palavra. Sempre
que uma aeronave penetrava na área de fogo
de sua mira, o polegar aproximava-se instintiva-
mente dos botões vermelhos.
Sobrevoaram a costa. O complexo monta-
nhoso a que Crest se referira não era uma ca-
deia de montanhas como qualquer outra, pois
os arcônidas o haviam modificado ao seu gosto.
Gigantescas cabeças e estátuas esculpidas na
pedra surgiram diante deles. O remate de tudo
era formado por uma figura abstrata de alguns
quilômetros de comprimento, que enfeitava a
cumeeira da mais alta das cadeias de monta-
nhas.
Ofuscado por tanto brilho, Rhodan fechou
os olhos. A Gazela, que se aproximava lenta-
mente, foi envolvida pela torrente de luzes refle-
tidas.
— Essas figuras simbolizam a conquista da
Galáxia — explicou Crest em tom solene. —
Foram criadas pelos artistas mais famosos da-
quele tempo. Eucolard gastou toda a vida traba-
41
lhando com um radiador energético comum,
com o qual fundiu as diversas cenas. Não utili-
zou bocais de jato, como os outros artistas cos-
tumam fazer. Depois de concluída a obra, re-
correu durante 8,3 horas a todo o volume ener-
gético do planeta Árcon para, num processo
cuidadosamente executado, transformar a ro-
cha. Com isso, a figura passou a ser formada
pelo mais puro diamante. Os cálculos para a la-
pidação adequada foram realizados pelo cére-
bro robotizado. Os canhões de vibração da nos-
sa frota concluíram, sob a orientação de Euco-
lard, a mensagem relativa à nossa história.
— Diamante! — gemeu Tifflor sem querer.
— Aqui não passa de um material corriquei-
ro. Na Terra, essa forma de carbono puro ainda
é considerada uma preciosidade — disse Crest
com a voz entrecortada.
— Não se deixem distrair mais — ordenou
Rhodan em tom áspero. — Crest, onde fica o
local em que deveremos pousar?
Ficava a duzentos quilômetros ao leste. No
momento em que Tifflor pousou o aparelho no
desfiladeiro, ficou sabendo que a sede do gover-
no arcônida não ficava a mais de trezentos qui-
lômetros dali.
Uma estrada de cristal passava por cima do
desfiladeiro estreito. Rhodan foi o primeiro a
42
sair da comporta de ar. A seus pés, rumoreja-
vam as águas cor de coral de um riacho. Uma
rocha saliente proporcionava um abrigo exce-
lente à pequena nave.
Rhodan lançou um olhar perscrutador em
torno de si. Era um lugar solitário; nenhum ar-
cônida se perderia nessa área. Aos poucos, foi
descontraindo os músculos tensos e passou a
aspirar intensamente o ar puro e balsâmico.
Os membros do comando guardaram um es-
tranho silêncio enquanto desciam da nave. O ar
era tépido, mas não era um calor úmido. Os
termômetros de bordo indicavam uma tempera-
tura de 25 graus centígrados no fundo do desfi-
ladeiro naturalmente refrigerado. Cem metros
acima de suas cabeças, brilhava a faixa da rodo-
via que, naquele ponto, era puramente ener-
gética. Thora explicou:
— Gostamos de deslocar-nos vez por outra
em veículos de superfície, nos quais podemos
admirar mais detidamente as belezas de cada lu-
gar. A rede de estradas foi construída exclusiva-
mente para fins de recreação e descanso. Evi-
dentemente nunca será usada por alguém que
tenha pressa.
Perry Rhodan engoliu ruidosa e intensamen-
te. Teve a impressão de que seu cérebro passa-
ra a descrever um movimento de rotação. Tudo
43
aquilo não era novidade para ele. Durante o
treinamento hipnótico, lhe haviam sido transmi-
tidas informações detalhadas sobre o estilo de
vida de Árcon. Acontece que o saber teórico e
a contemplação direta são coisas muito diferen-
tes. Rhodan sentiu-se dominado pela admira-
ção. Lembrou-se dos problemas da Terra.
Lá ainda discutiam sobre a construção de
vias expressas, que representavam uma necessi-
dade premente. Enquanto isso, aqui muitos bi-
lhões foram investidos com a finalidade exclusi-
va de permitir aos habitantes uma ocasional via-
gem de recreio em antiquados veículos de su-
perfície.
A contradição era tamanha que um cérebro
humano normal não poderia absorvê-la de uma
hora para outra. Por isso, Rhodan decidiu se-
guir o único procedimento adequado.
— A sede do governo, situada na chamada
Colina dos Sábios, fica aproximadamente a tre-
zentos quilômetros. O pôr do sol se verificará
daqui a quatro horas. Descansem e procurem li-
bertar-se das impressões que acabam de atingi-
los. Gente dominada por um vazio complexo de
inferioridade não me serve. De qualquer manei-
ra, mantenham as armas de prontidão. Sempre
é possível que alguém nos descubra, embora
seja pouco provável. E é bom que não se esque-
44
çam de que este mundo aparentemente tão pa-
cífico é apenas uma parte de um grande todo.
Numa reduzida distância cósmica, dois planetas
bastante semelhantes a este descrevem suas
órbitas em torno do mesmo sol. E ali, o panora-
ma que se oferece ao visitante é totalmente di-
verso. Lá não poderíamos ter voado à vontade
de um lado para outro. Por isso, peço-lhes pelo
amor de Deus que não acreditem que o perigo
já passou. Só poderemos retornar à Ganymed
quando obtivermos uma licença de decolagem
regular. Daqui a algumas horas, me porei a ca-
minho para falar pessoalmente com o Impera-
dor. Crest e Thora me acompanharão.
“E... — Rhodan hesitou por um instante —
não creiam que uma decolagem não permitida
seria tão bem sucedida como nosso pouso em
Árcon. No momento em que pusermos o nariz
no espaço contra a vontade do cérebro roboti-
zado, centenas de canhões instalados em naves
nos transformarão num montão de cinzas. Se
as negociações que pretendemos realizar não
forem coroadas de êxito, estaremos pratica-
mente perdidos. É só. Durmam, conversem ou
passeiem. Mas concentrem-se sobre suas tare-
fas.”
Rhodan tirou o desajeitado traje espacial.
Sombras profundas desceram pelo desfiladeiro.
45
Muito acima daquele grupo silencioso, um veí-
culo estranho passou pela fita reluzente que re-
presentava a estrada. Seus ocupantes não para-
ram. Com tantas maravilhas, aquela fresta de
rocha não era digna de admiração.

— Sua Eminência dos mil olhos, que tudo vê


e tudo sabe, Senhor de Árcon e dos mundos da
ilha deserta, sua Magnificência Imperial, Orcast,
o Vigésimo-Primeiro, divindade da estirpe dos
decanos do Universo, houve por bem abrir a
dança das águas cantantes.
O Imperador Orcast XXI, um espírito que
gostava de zombar do seu tempo, conhecido
como um espírito cínico, gentil e um parceiro
cativante em qualquer conversação, além de cri-
ador de notáveis obras de arte, resolveu levan-
tar a direita e estender a quina da mão para a
frente. Em conseqüência disso, o robô de ob-
servação individualizada que controlava o jogo
automático das águas perdeu parte de sua com-
postura mecânica.
Numa ironia mesclada de compreensão, o
Imperador franziu as sobrancelhas cuidadosa-
mente tratadas, quando o chefe do cerimonial
disse em tom de desespero:
46
— A palma da mão para a frente, Eminên-
cia. O dispositivo positrônico de observação
precisa de todo o fluxo dos impulsos irradiados
pela mão de Vossa Magnificência.
Orcast desistiu; sempre costumava desistir
quando alguém investia contra ele com palavras
insistentes ou ordens ríspidas. Sua mão direita
girou. O trovejar grave do interior da esfera de
águas flutuantes modulou-se num zumbido rít-
mico, que poucos segundos depois se desfez
numa série imensa de sons harmônicos.
A esfera aquática de mil metros de diâmetro
começou a pulverizar-se sob o influxo das com-
ponentes antigravitacionais. Lindos reflexos co-
loridos surgiram em meio ao elemento flutuante
e ondulante, que começou a formar-se seme-
lhante à obra-prima mais recente no campo das
figuras geométricas.
A massa de convidados teve sua atenção
despertada pela obra de arte. Resolveram mu-
dar de posição, para poderem olhar para cima.
O jogo artístico desenrolava-se pouco acima da
área interna do palácio de cristal.
— É uma coisa deslumbrante — confessou
Orcast diante dos seus hóspedes prediletos. —
Mas gostaria realmente de saber por que a tal
da divindade da estirpe dos decanos do Univer-
so não tem permissão de estender a mão se-
47
gundo seus desejos. Tenho a impressão de que
não há muita coisa atrás de minha tão propala-
da divindade.
As observações do soberano foram brinda-
das com uma série de risos discretos. Com um
sorriso irônico, Orcast demonstrou sua satisfa-
ção com o embaraço do chefe do cerimonial.
— Seja como for — repetiu — seja como
for, meu espírito onisciente não está em condi-
ções de reprimir a bárbara sensação de fome do
seu organismo evidentemente menos espirituo-
so, conforme manda a etiqueta. Meus cumpri-
mentos, Offentur. Sua composição deverá ter
seu lugar na galeria das obras de arte moderna.
Orcast levantou-se do leito pulsante. Passou
os olhos pela amplidão do parque redondo.
Bem acima dele, um sol atômico surgido de re-
pente transformou as massas de águas cativas
numa nuvem de vapores fosforescentes.
A festa já durava três horas. Os presentes
compreenderam que o Imperador gostaria de
tomar sua refeição a sós. De qualquer maneira,
os filósofos da geração mais jovem eram de
opinião que a introdução dos chamados alimen-
tos na boca e sua trituração ofendia a estética e
os bons costumes tanto quanto o processo de
digestão puramente orgânico. Segundo Epfan-
trim, o velho, existe uma ligação tão estreita en-
48
tre as duas formas de atividade que um espírito
verdadeiramente puro não pode deixar de esta-
belecer comparações e extrair suas conclusões
durante o cerimonial da refeição.
Orcast era um dos adeptos da nova corrente
filosófica. Por isso caminhou discretamente em
direção à faixa transportadora do palácio, que o
conduziu até uns oitocentos metros para cima,
sob as aclamações dos convidados.
O sorriso habitual de Orcast desvaneceu-se.
Lançou um olhar preocupado sobre o círculo
de 1.500 metros de seu palácio. A vida ainda
pulsava no mais belo dos parques de Árcon.
Ainda se conversava animadamente sobre as
mais insignificantes das insignificâncias. Por
quanto tempo?
Orcast sentiu-se exausto. Uma festividade
ininterrupta de quatro horas exigia muito do
corpo e do intelecto. Para fazer jus à fama que
desfrutava, tinha de ser espirituoso e engraça-
do.
O escravo pessoal dedicado, um membro da
raça fiel de ciclopes dos naats, acomodou o so-
berano em seus braços robustos.
Um campo energético transparente recuou
diante dos impulsos orgânicos do homem que
se aproximava.
Orcast estava longe de todo aquele movi-
49
mento. Sem dizer uma palavra, deixou que o
titã de três olhos lhe tirasse a roupa e o envol-
vesse em capas macias e perfumadas.
Com uma sensação agradável, abandonou-
se às vibrações ativantes de seu leito.
— Que coisa enfadonha, Tranto! — quei-
xou-se em tom de recriminação. — Você não
sabe que uma das suas tarefas consiste em
manter afastados de mim compositores diletan-
tes do tipo de Offentur? A dádiva pequena que
oferece agride meus sentidos. Aliás, resta saber
se, aquilo que apresentou, pode ser considera-
do uma dádiva. Eu me permitirei algum descan-
so. Isso deve ser uma das poucas coisas que a
Magnificência Imperial ainda tem que permitir.
É um fato lamentável que só o indivíduo, que
sabe adquirir uma visão irônica de si mesmo,
pode superar sem a perda total das energias
que lhe restam.
O ciclope retirou-se, andando de quatro. Sa-
bia que Orcast não esperava nenhuma respos-
ta.
Lá fora, diante da parede panorâmica aberta
do pequeno aposento de repouso, ouviram-se
risos alegres. Robôs que levavam as bebidas
mais deliciosas da Galáxia deslizavam de um
terraço para outro.
Por um instante, Orcast ficou admirado com
50
a estranha atitude de seu escravo pessoal. Des-
de quando o ciclope costumava investir que
nem um louco contra a porta?
Orcast perdeu-se numa série de idéias pre-
guiçosas sobre o sentido ou a falta de sentido
da existência. Só despertou quando o pequeno
ser peludo surgiu diante dele. Gucky um ser vin-
do de um mundo distante, esboçou um sorriso
cordial com seu único dente roedor.
— Olá, meu velho! — chiou o rato-castor
num intercosmo impecável. — Permita que me
apresente. Sou o tenente Guck, membro de um
comando especial da Terceira Potência.
Escorregando sobre o largo traseiro, Gucky
foi-se aproximando. Seu rosto de rato irradiava
felicidade. Orcast possuía bastante autodomínio
para exprimir a sensação de surpresa e de pâni-
co que se apossou dele apenas por um ligeiro
pigarro.
— Que coisa deliciosa! — disse, colocando
no rosto sua costumeira máscara de sorriso. —
Até parece que vejo diante de mim o ser mais
inteligente de um dos meus planetas.
— Infelizmente está enganado — disse o
rato-castor em tom pouco convencional. — Dá
licença?
Por uma fração de segundo, seu olhar caiu
sobre o painel de controle oculto atrás de um
51
canteiro de lindas plantas. Orcast começou a
perceber o perigo que o ameaçava quando a
chave que ativa os campos energéticos de defe-
sa desceu num movimento abrupto.
— OK — disse o ser desconhecido, usando
uma expressão que lhe era totalmente estranha.
Orcast fez menção de levantar-se. Mas uma
força invisível comprimiu seu corpo contra o
leito.
— Sou o tenente Guck do exército de mu-
tantes — voltou a salientar o rato-castor. —
Nunca ouviu falar nisso, não é? Como vim pa-
rar aqui? Não é isto que está pensando? É sim-
ples, meu chapa. Acontece que eu sou... é ver-
dade, não devo repetir nada. Bem, além do
mais também sou um teleportador. Não me
diga que está ficando nervoso! Recebi ordens
para não exasperá-lo.
O sorriso de Gucky tornou-se ainda mais
gentil. O nariz de rato franziu-se bem para o
alto e as delicadas patas dianteiras com suas
mãozinhas balançavam no ar.
Orcast lutou para controlar-se. Os conheci-
mentos que possuía sobre as experiências da
ciência parapsicológica bastavam para que
compreendesse o surgimento repentino daquele
ser. As forças, que estavam atuando aqui, não
podiam ser controladas pela aparelhagem de
52
segurança superaperfeiçoada.
Gucky afrouxou a constrição espiritual. Or-
cast começou a respirar profundamente. Seu
espírito despertou de uma hora para outra, fato
que o rato-castor dotado de capacidades tele-
páticas não deixou de perceber.
— Deixe de tolices, meu velho — pediu
apressadamente. — Esperamos quase quatro
horas para vê-lo a sós. Queremos uma pequena
entrevista: só isto. O chefe não pretende
agarrá-lo pela gola. Bem... será que esses pa-
nos têm gola?
Os grandes olhos de Gucky, aos quais devia
seu nome, inspecionaram a vestimenta perfu-
mada.
— Ao que parece não têm — constatou. —
O senhor pensa demais, meu chapa. Eu lhe ga-
ranto que não conseguirá comprimir o botão
embutido na parede atrás de sua cabeça.
Orcast XXI desistiu. Começou a compreen-
der que se via diante de um poder que ainda
não podia compreender. Face à sua tendência
para o novo, o extravagante e o abstrato, a cu-
riosidade começou a instalar-se em sua mente.
Quem seria o ser que se atrevia a proporcionar
uma surpresa dessas ao Imperador?
Gucky registrou o impulso mental irradiado
pelo homem deitado à sua frente. Orcast voltou
53
a estremecer quando o ar começou a tremular
diante de sua vista e um vulto pequeno e ama-
relo se materializou.
Tako Kakuta, que também era teleportador,
inclinou-se com um sorriso. Em sua mãozinha
delicada balançava uma pesada arma de impul-
sos, que logo desapareceu no interior do estojo
que trazia a tiracolo. Orcast teve oportunidade
de constatar que o desconhecido usava a vesti-
menta dos servos do palácio. Entre outras idéias
que lhe acudiram, o Imperador teve a de que a
festa movimentada representara uma boa opor-
tunidade para penetrar no palácio sem ser per-
cebido. A curiosidade voltou a tomar conta
dele.
— Sua Excelência, o Presidente Perry Rho-
dan, chefe da Terceira Potência, pede um pou-
co de paciência — disse o homem delicado a tí-
tulo de cumprimento. — Sua Excelência tem de
vencer algumas dificuldades, provenientes prin-
cipalmente de eficientíssimo sistema de vigilân-
cia robotizada de Vossa Magnificência. Ainda
recebi instruções para garantir que não se trata
de um assalto. Estamos interessados apenas
numa breve entrevista, que pretendemos condu-
zir segundo às normas de cortesia e de respeito
devidos a Vossa Magnificência. Em nome de
Sua Excelência peço a compreensão de Vossa
54
Magnificência.
Orcast prestou atenção às palavras. Ainda
não sabia quem era essa gente estranha. Não
se enquadrava em qualquer esquema. Tinham
algo de extraordinário, não apenas quanto às
capacidades extra-sensoriais de que pareciam
dotados.
— Os senhores me vêem numa atitude de
expectativa — disse com um sorriso cortês. —
Como é mesmo o nome de seu soberano? Rho-
dan?
Tako Kakuta sentiu-se feliz ao constatar que
o Imperador se dirigia a ele na terceira pessoa,
o que afinal não deixava de ser uma certa for-
ma de cortesia.
Confirmou as palavras de Orcast, cuja posi-
ção ficou mais descontraída.
Estava esperando!
O campo energético tremeluzente diante da
porta de entrada havia desaparecido. Dentro de
poucos minutos, um homem de estatura eleva-
da surgiu na luz difusa da iluminação indireta.
Rhodan tirou do ombro a capa vermelha
que assinalava um servo não-arcônida, pondo à
mostra o uniforme singelo da Terceira Potên-
cia.
André Noir, um francês gordo e bonachão
dotado de intensas capacidades hipnóticas pre-
55
feriu não submeter o Imperador à sua constri-
ção mental, pois o mesmo já estava preso ao
leito pela força irradiada por Gucky. O homem
era mais inofensivo que uma criança, desde que
o equipamento de segurança fosse desligado
em tempo.
— Fique na ante-sala, Noir — cochichou
Rhodan apressadamente. — Mantenha o ciclo-
pe sob controle. Preciso de dez minutos. Onde
está Kitai Ishibashi?
— Está no grande centro de controle, junta-
mente com Marshall e Anne Sloane. Estão con-
trolando os guardas.
Rhodan fez um ligeiro sinal com a cabeça.
Atrás dele, Thora e Crest mantinham-se em an-
siosa expectativa. Fora relativamente fácil pene-
trar no palácio, depois que os teleportadores
haviam verificado a situação. O mecanismo de
portaria fora muito mais fácil de enganar que
aquele instalado no quinto mundo do sistema de
Árcon. No planeta de cristal, não havia conspi-
radores nem seres hostis pertencentes a outras
raças.
Rhodan lançou um olhar perscrutador sobre
o Imperador que estava pousado no leito. Or-
cast era um arcônida não muito velho. Apesar
disso sua postura apresentava sinais de deca-
dência. Ao que tudo indicava, sentia-se exausto,
56
e tal informação foi transmitida através de um
breve impulso telepático de Gucky.
Tako Kakuta ficou em posição de sentido.
Rhodan irradiava certa frieza impessoal, atrás
da qual procurava ocultar o nervosismo que co-
meçou a apossar-se dele. Então era este o sobe-
rano do Grande Império!
Rhodan sentiu que os músculos da face se
contraíam. O fluido do desconhecido e do peri-
go envolvia seu espírito. Apesar da situação um
tanto infeliz em que se encontrava, Orcast XXI
corporificava o apogeu e a decadência de um
povo admirável. Rhodan viu-se obrigado a re-
primir um sentimento de repugnância instintiva
e de conformismo.
Cumprimentou o Imperador em palavras li-
geiras e precisas. Os olhos dos dois homens en-
contraram-se. Com um único olhar, Orcast exa-
minou aquele homem de estatura elevada. Logo
adivinhou que aquele desconhecido possuía
tudo aquilo que nunca chegara a adquirir. Uma
torrente de energia e determinação pessoal
ameaçava subjugar o Imperador. Ergueu-se len-
tamente sobre o cotovelo, com a permissão de
Gucky.
Rhodan foi extremamente lacônico. Seu pe-
dido de desculpas pela entrada não consentida
nos aposentos do Imperador não eliminava a
57
infração cometida, mas ao menos Rhodan dei-
xou claro que estava perfeitamente ciente de ter
praticado um ato inconveniente. Orcast limitou-
se a acenar com a cabeça. Perdera seu sorriso
tão conhecido. Numa atitude cada vez mais
apressada, examinou os traços do rosto do des-
conhecido.
— Lamento incomodá-lo a uma hora destas
— voltou a dizer Rhodan. — Infelizmente não
tive outra alternativa.
— Vocês poderiam ter solicitado uma au-
diência — disse Orcast com um pigarro, lançan-
do um olhar para Gucky.
— Uma das características da minha raça
consiste em não tentar coisas impossíveis, Emi-
nência. Infelizmente não sou nenhum composi-
tor de jogos aquáticos, mas apenas um homem
que precisa tratar de um assunto muito impor-
tante para o bem-estar do Império de Vossa
Magnificência. Nestas condições, teria sido
inútil incomodar os funcionários da corte.
A leve ironia de Rhodan foi entendida. Com
um suspiro, Rhodan deixou-se cair no leito.
— Ainda isso — gemeu. — Não espalhem
sua ironia causticante na sala de repouso de um
soberano que fora destas quatro paredes quase
não manda mais nada. Acredito que já estou
adivinhando a pretensão extraordinária de vo-
58
cês. O Império está sendo administrado por um
autômato. O que pretendem fazer se, mesmo
com toda boa-vontade, não estou em condições
de ajudá-los?
Rhodan estremeceu interiormente. Sentiu a
profunda resignação do Imperador. Gucky irra-
diou um impulso de pavor.
— É como uma partícula de pó num furacão
— foi a informação cochichada em inglês que
chegou ao ouvido de Rhodan.
Perry controlou-se. Seu sorriso exprimia
compaixão. Quando fez um sinal para que os
arcônidas se aproximassem, começou a descon-
fiar de que o arriscado avanço, que os levara à
presença de Orcast XXI, fora totalmente inútil.
Esse homem já não tinha o poder de influenciar
as decisões do cérebro robotizado.
Thora e Crest entraram na sala. A primeira
andava ereta, em atitude orgulhosa, enquanto
Crest arrastava ligeiramente os pés. Orcast vol-
tou a sobressaltar-se. Um verdadeiro espanto
desenhou-se nos traços de seu jovem rosto, que
parecia tão velho.
— Já nos conhecemos, Orcast — disse Tho-
ra com a voz fria. — O palácio da minha famí-
lia passou a pertencer a você. Vim reclamar os
meus direitos. É bem verdade que Crest, cien-
tista-chefe do Conselho, achou que isso seria
59
inútil. Peço que decida imediatamente. Não te-
mos tempo a perder.
Rhodan seguiu atentamente a discussão
apaixonada que se iniciou. Finalmente, sentiu-
se dominado pelo cansaço.
Orcast dizia a verdade, fato que Gucky con-
firmava a toda hora. Esse soberano aparente do
maior dos impérios da história nem sequer sa-
bia que treze anos atrás Thora e Crest haviam
sido mandados ao espaço à procura do planeta
da vida eterna.
Orcast também não sabia que a nave espaci-
al de Rhodan estava sendo retida em Naat. La-
mentou profunda e, ao que parecia, sincera-
mente que não podia prestar qualquer auxílio,
por menor que fosse.
Thora não resistiu. Sem dizer uma palavra,
caiu sobre outro leito.
Orcast parecia confuso. As revelações sobre
o pouso de emergência de Thora na lua terrana
e seu regresso a bordo de uma nave terrana, re-
alizado depois de tanto tempo, representaram
uma surpresa excessiva. Antes, nunca o Impe-
rador sentira com tamanha intensidade sua im-
potência de governo. Era o que se depreendia
de suas palavras:
— Teria muito prazer em autorizar seu pou-
so neste planeta e deixar o tempo de sua per-
60
manência ao seu inteiro arbítrio. Mas, na situa-
ção em que me encontro não posso fazer outra
coisa senão manifestar minha gratidão por te-
rem salvo representantes tão valorosos do meu
povo. Não posso fazer nada por vocês, a não
ser que queiram ver uma ajuda na garantia de
saírem do palácio sem serem molestados. Não
tenho poderes de revogar qualquer decisão do
cérebro robotizado.
— Pois providencie uma programação sen-
sata do robô — interveio Rhodan em tom um
tanto áspero.
Orcast respondeu com um sorriso cansado.
— Vocês são dotados da energia dos seus
antepassados. Provavelmente não serão capa-
zes de imaginar o que está acontecendo em Ár-
con I.
— Convoque o Conselho Galáctico — disse
Thora. — O cérebro não poderá deixar de sub-
meter-se a uma decisão unânime do mesmo.
— Não concordará com a introdução da de-
cisão em sua memória — objetou Orcast.
Rhodan olhou para trás. Gucky confirmou a
veracidade das palavras de Orcast. A situação
parecia irreal. Uma profunda decepção amea-
çou perturbar o raciocínio de Rhodan. Apesar
de tudo acreditara que o Imperador detivesse
certos poderes, ao menos no que dizia respeito
61
à própria existência do Grande Império.
Depois da avaliação fundamental da situa-
ção, realizada a bordo da Ganymed, chegara à
conclusão de que o soberano ao menos devia
ter a possibilidade de receber visitas oficiais e
decidir, no âmbito da corte, questões formais de
política externa que não se revestisse de impor-
tância fundamental. Se não fosse assim, nunca
teria decidido voar para o mundo de cristal e
forçar uma entrevista. Subitamente viu-se diante
de uma muralha alta e intransponível.
— Exijo a convocação do Conselho Supre-
mo — disse Thora em tom enérgico.
— Isso seria inútil e perigoso — observou
Rhodan. — Deixemos de lado esses jogos de
palavras que não conduzem a nada. Assim que
o Conselho souber, que a senhora e Crest se
encontram aqui, o cérebro será informado auto-
maticamente de que saímos da Ganymed con-
tra suas instruções. Se isso acontecer, tudo es-
tará perdido.
Virou-se para Orcast:
— Eminência, realmente não existe nenhu-
ma possibilidade de permitir nosso regresso ao
quinto planeta? Peço que se coloque em nossa
situação.
Orcast abriu os braços, num gesto de impo-
tência.
62
— Quando vocês se retirarem, e terão de re-
tirar-se, levem com vocês a certeza de que fala-
ram com um soberano fictício que não detém
qualquer parcela de poder. Prometo sigilo sobre
a visita. Uma vez que sou de opinião que sua
pretensão não prejudicará o Império, poderei
dar-lhes uma pequena indicação.
Orcast sorriu. O interesse e uma tensão con-
tida brilharam em seus olhos avermelhados.
Procurava encontrar o olhar de Thora.
— Ainda existem homens como você. Pro-
cure lembrar-se do almirante Kenos, membro
do Conselho e vencedor da última batalha do
Império. Kenos não aceitou meu convite de
comparecer à festa de hoje. É importante que
você saiba que os autômatos robotizados fize-
ram de Kenos o coordenador geral do recruta-
mento. Cabe-lhe a tarefa de localizar povos au-
xiliares e arcônidas que ainda são capazes de
certo grau de atividade. E, enfim encaminhá-los
para Árcon III.
Rhodan aproximou-se lentamente. Tateante
e a passos inseguros, chegou perto do sobera-
no. A excitação parecia dominá-lo. Em tom ás-
pero disse:
— Eminência, trata-se de uma dica? De uma
informação real? Peço uma resposta sincera.
— Sempre sou sincero quando ninguém me
63
impede de sê-lo — advertiu Orcast em tom sua-
ve. — Vá a ele e exponha-lhe a situação. Kenos
serviu sob as ordens do Imperador Zoltral. Foi o
melhor comandante de frota que o Império já
teve. É a única coisa que posso fazer por vocês.
Está na hora de irem embora. Meus convidados
me aguardam.
Rhodan não perdeu mais tempo. Afastou as
objeções de Thora e as indagações aflitas de
Crest com um simples gesto. Perplexo, Orcast
observou as reações instantâneas do visitante
que ali entrara sem convite.
Gucky transmitiu as ordens por via telepáti-
ca. Após poucos segundos, os membros do co-
mando foram informados de tudo.
— Retirem-se. Encontrar-nos-emos no local
combinado — foi a instrução transmitida a to-
dos.
Após isso Rhodan sentiu-se obrigado, a in-
formar Orcast sobre as medidas de segurança
que pretendia adotar.
— Peço a compreensão de Vossa Eminência
pela cautela que me vejo obrigado a exercer.
Em nosso interesse, vejo-me obrigado a colocar
um bloqueio hipnótico em sua mente. Qualquer
observação irrefletida poderia pôr tudo a per-
der. Uma permissão oficial de Vossa Eminência
tornaria mais fácil minha decisão a este respei-
64
to.
Orcast XXI lançou um olhar demorado sobre
o rosto estreito e expressivo daquele homem
esbelto. Depois de algum tempo, disse com um
sorriso melancólico:
— Vocês me privam de um prazer singular,
que seria o de refletir sobre sua visita nos dias
vazios da minha vida. Assim mesmo concedo-
lhes a permissão que acabam de solicitar, desde
que se comprometam a permitir que, no caso
de alguma modificação profunda, eu os receba
com todas as honras.
Rhodan inclinou-se ligeiramente. Esse ar-
cônida, que na hora do pouso ainda era consi-
derado um inimigo, passara a ser seu amigo. O
hipno André Noir entrou em ação. Orcast mer-
gulhou no fluido mental superpotente do mu-
tante.
Quando entrou na ante-sala, o Imperador
estava mergulhado num cochilo. Ao despertar,
não se lembraria de já ter recebido um grupo de
estranhos visitantes nos seus aposentos particu-
lares.
Rhodan e seus companheiros chegaram à
sala de controle do gigantesco palácio sem se-
rem molestados. A festa aproximava-se do fim.
Os hóspedes se retiravam daquele ambiente
maravilhoso.
65
Rhodan passou junto a um dos membros da
guarda pessoal dos naats, que estava submetido
a um bloqueio sugestivo. Fora ele que lhes en-
tregara os bilhetes luminosos de entrada. Rho-
dan devolveu-os, pois não havia dúvida de que,
mais tarde, seria realizado um controle.
A enorme porta do pé de 1.500 metros de
diâmetro, que sustentava o maior dos edifícios-
funis de Árcon, estava aberta. Os homens desa-
pareceram na escuridão.
O grande planador do parque público de veí-
culos já os esperava no lugar combinado. Bell e
os outros mutantes já haviam chegado. Com
um chiado, a porta recuou diante do grupo que
se aproximava.
Rhodan encomendara o veículo pelo serviço
público de comunicações. Qualquer arcônida ti-
nha o direito de recorrer gratuitamente a esses
veículos para seu uso, quantas vezes quisesse.
Por um instante Rhodan contemplou a aber-
tura cintilante do cano de um radiador energéti-
co.
— Até que enfim — soou a voz áspera de
Bell vinda do interior do veículo. — Daqui a
pouco, o dia começará a raiar. O que houve?
— Desçam imediatamente — ordenou Rho-
dan. — Vamos logo; saiam desse calhambeque.
A distância que temos de vencer é muito gran-
66
de. Nada de perguntas! Marshall, transmita a
Betty que o comando chefiado pelo tenente Tif-
flor deve permanecer no seu esconderijo.
Transmita também um relato resumido do fra-
casso da nossa entrevista. Desçam! Thora,
mande o carro de volta à sua base.
Nervosa, Thora acionou os controles. Com
um ligeiro zumbido o veículo pôs-se em movi-
mento. Aumentando a velocidade, desapareceu
na escuridão.
— Um fracasso? — perguntou Bell, estican-
do as palavras. — Como?
Crest já caminhava junto aos titânicos muros
externos. As faixas das vias elevadas, que se es-
tendiam em curvas graciosas, estavam profusa-
mente iluminadas.
Rhodan explicou o resultado da visita. Con-
cluiu com estas palavras:
— Crest solicitará uma aeronave de maiores
dimensões. Existem hangares oficiais que forne-
cem naves desse tipo. Não temos outra alterna-
tiva senão procurar o almirante Kenos antes do
raiar do dia. É nosso último trunfo.
Calada, Thora levantou os olhos para o céu
estrelado de Árcon. Numerosos sóis próximos
uns dos outros encobriam a faixa da Via Láctea.
O grupo estelar M-13 parecia ser uma galáxia
distinta.
67
Dali a poucos minutos, Crest chegou com o
planador aéreo. Era um veículo de feitio tipica-
mente arcônida. O grupo de dez pessoas en-
trou. Crest tomou lugar junto ao leme de bo-
tões.
Rhodan orientou-se com um olhar. Desligou
o piloto automático.
— Muito bem, vamos embora. Sabe onde
fica a casa de Kenos.
— É uma viagem bastante longa. Teremos
que dar a volta por metade do planeta. Kenos
leva vida de ermitão. Sua casa fica no cume de
uma montanha muito alta. Quis se instalar o
mais próximo possível das estrelas.
— É um traço simpático do seu caráter.
Peço-lhe que me dê algumas informações sobre
sua personalidade.
As máquinas zumbiram e o planador subiu
ao ar e ganhou velocidade. Mais uma vez pude-
ram lançar um olhar sobre a área das colinas. A
profusão de luzes derramadas pelos palácios da
sede do governo iluminava a noite de Árcon.
Mas, logo penetraram na escuridão. E a noite
se tornaria cada vez mais profunda e impene-
trável à medida que se deslocassem para o oes-
te. Fugiam do sol que se aproximava do hori-
zonte.

68
4

O comando chefiado por Julian Tifflor che-


gara a dez minutos. Não fora fácil realizar a lo-
calização goniométrica do aparelho, já que o
grupo se viu obrigado a desistir dos sinais de rá-
dio convencionais. Foi Gucky quem indicou a
direção com uma exatidão surpreendente.
Depois, que entrara sozinha no palácio de
Kenos, que parecia um velho castelo, Thora de-
saparecera a quase quatro horas.
Seguindo as instruções de Rhodan, os ho-
mens do comando se espalharam pela área.
Com as armas engatilhadas, ficavam com os
olhos grudados na gigantesca casa-funil, cujo
suporte estreito fora acomodado em meio a
uma rocha íngreme por um grupo de arquitetos
arrojados. Era uma visão estranha, tão irreal
como o próprio planeta.
A cadeia de montanhas parecia deserta, de-
solada e entrecortada. Aqui ninguém se dera ao
trabalho de amainar os aspectos selvagens da
natureza. Até fizeram questão de aprofundar
grandiosidade ao conjunto.
A casa de Kenos ficava por perto de 4.000
metros de altura. A atmosfera de Árcon I, um
planeta de tamanho aproximadamente igual ao
da Terra, já era bastante rarefeita.
69
Os telepatas procuraram captar os impulsos
mentais de Thora. No entanto, só vez por outra
um impulso muito débil chegou a eles. Ela se
bloqueava, explicou Marshall muito nervoso.
Depois de quatro horas e meia, surgiu o
alarma. Um dos guardas vira o vulto que se
aproximava pelo ar através de sua mira infra-
vermelha.
— Não atirem! — foi a ordem que Rhodan
mandou transmitir de um homem a outro. —
Aguardem.
O aparelho pousou no platô de rocha em
que terminava a estrada propriamente dita. De-
pois de chegar ali, a pessoa que quisesse fazer
uma visita ao palácio de Kenos teria que reali-
zar uma viagem aérea.
Uma arcônida de certa idade desceu do apa-
relho. Rhodan ouviu a voz grave que perguntou
por ele.
Um instante depois, colocou a mão no boné
a título de cumprimento.
— Sou Perry Rhodan, madame. Podemos
entrar?
— Meu marido pede que o façam. Pelo que
vejo já chamou seus homens.
— Localizou o aparelho? — perguntou Rho-
dan.
— Naturalmente — sorriu a mulher de ida-
70
de. — Queira utilizar minha plataforma. Seja
bem-vindo, meu amigo. Jamais um Zoltral bate-
rá em vão à nossa porta.
Crest inclinou o corpo sem dizer uma pala-
vra. Marshall confirmou com um gesto quase
imperceptível da cabeça: as intenções eram ho-
nestas.
— Tiff, o senhor nos seguirá com a Gazela
— ordenou Rhodan em voz baixa. — Ande de-
pressa. Todos a bordo. Também aqui, o dia
não demorará a clarear.
O pequeno planador da arcônida subiu verti-
calmente junto aos enormes paredões de rocha.
O palácio-funil aproximou-se. Enquanto passa-
vam, Rhodan viu algumas torres de canhões
energéticos escamoteadas. Kenos parecia um
remanescente solitário dos tempos áureos do
Império.
Sobrevoavam as paredes abauladas para
fora e desceram suavemente na grande área in-
terna. Aqui exibia-se o esplendor personalizado
dos arcônidas distintos. Apenas, não se recorre-
ra a qualquer tipo de iluminação.
Tifflor fez a Gazela pousar suavemente
numa plataforma saliente. Os homens precipi-
taram-se para fora do aparelho.
— Tenente Tifflor, mande os homens entra-
rem em forma. Não há nada que possa deleitar
71
o olho de um velho guerreiro como uma tropa
disciplinada. Marshall, seus especialistas se for-
marão em ângulo reto. Tiff, o senhor fará a
apresentação.
— Não averiguou nada? — perguntou Ras
Tschubai, o teleportador, bastante nervoso.
— Nada. A desconfiança é um péssimo pre-
sente para um anfitrião. Bell, venha comigo.
Os homens entraram em forma. Vozes de
comando abafadas fizeram-se ouvir. A arcônida
acompanhara tudo com a maior atenção.
Quando seu olhar encontrou o de Rhodan, ace-
nou com a cabeça.
— Queiram acompanhar-me. Meu marido
os espera. Peço-lhes que dispensem as explica-
ções. Thora já nos informou sobre todos os de-
talhes.
Era o que Rhodan esperava. Suspirando inti-
mamente, seguiu a arcônida. O fato de o almi-
rante ter mandado a esposa ao seu encontro re-
presentava um bom sinal.
Quando se aproximaram do largo portal,
uma luz forte acendeu-se. Rhodan viu um ro-
busto arcônida que usava o uniforme vistoso da
frota imperial. Dificilmente Rhodan já teria visto
um rosto que o impressionasse tão profunda-
mente. Era velho, muito velho, e a pele parecia
resistente. Uma cabeleira branca descia pela
72
testa, sob a qual um par de olhos enormes chis-
pava um fogo incontido.
Perry Rhodan fez continência. Thora encar-
regou-se das apresentações. A esposa do velho
almirante retirou-se discretamente.
Kenos aproximou-se a passos largos. Pare-
cia uma rocha solitária em meio a uma comuni-
dade vazia e decadente.
Rhodan sentiu o ritmo das pulsações aumen-
tar quando o olhar do velho o atingiu. Era um
homem que apesar da idade avançada não
apresentava o menor sinal de decadência. O
exame silencioso durou quase um minuto. De-
pois a voz profunda e retumbante se fez ouvir:
— Eu lhe dou as boas-vindas, Excelência. A
situação em que se encontram não é nada agra-
dável; por isso não vamos perder muitas pala-
vras. Aqui, por enquanto estão em segurança.
Verei o que posso fazer pelos senhores. Gosta-
ria de passar em revista o seu pessoal.
Rhodan suspirou aliviado. Sentiu em si a
energia de antes. Como homem pragmático
que era, compreendia essa fala muito melhor
que as palavras espirituosas do Imperador.
Sem dizer uma palavra, deu um passo para
o lado. Kenos caminhou em direção aos ho-
mens. Rhodan examinou a formação. Era mo-
delar, conforme era de se esperar numa unida-
73
de de elite.
O berro de Tifflor rompeu o silêncio da noi-
te. Mais de cem braços moveram-se. Mais de
cinqüenta radiadores pesados brilharam à luz
artificial. Logo ficaram imóveis como estátuas
diante de um almirante desconhecido, cujo ros-
to enrugado enrijecera numa máscara impene-
trável.
A apresentação de Tifflor foi realizada num
arcônida impecável. Quando Kenos começou a
caminhar diante das fileiras, Rhodan mal conse-
guiu reprimir um sorriso. Esse procedimento
parecia ser usual em qualquer lugar em que
existissem unidades disciplinadas.
Reginald Bell manifestou uma tosse grossei-
ra. Sua postura dizia tudo. Rhodan lançou-lhe
um olhar no qual havia uma terrível ameaça.
Uma observação menos feliz poderia aborrecer
ou mesmo ofender o homem que no momento
era o elemento mais importante em Árcon.
Kenos cumprimentou o grupo com uma
pancada da mão direita sobre o lado esquerdo
do peito. Quando lhes voltou as costas, o berro
de Tiff voltou a soar.
Respirando pesadamente, Kenos parou jun-
to ao delicado corrimão do terraço, lançando
um olhar vazio para a escuridão de seus jardins.
— Com vinte milhões de homens desse tipo,
74
a revolução no espaço mais amplo da ilha
cósmica seria subjugada dentro de três anos —
disse em tom exaltado.
— Isso não é nada, almirante — disse Rho-
dan em tom tranqüilo. — Só o planeta Terra
pode mobilizar cem milhões de homens. Basta
que me entregue parte de sua frota de guerra e
que coloque à minha disposição bases e portos
de suprimento intergalácticos. Assim eu lhe
provo que a boa impressão que acaba de colher
nem chega aos pés da realidade.
Kenos virou-se abruptamente. Seus olhos
chispavam fogo.
— Suas palavras são grandiosas, terrano.
Quem dominaria o Império se isso aconteces-
se? Vocês ou nós?
— Nós, evidentemente — confessou Rho-
dan tranqüilamente.
Seria inútil tentar enganar um tático hábil
como o almirante.
Kenos soltou uma gargalhada que Rhodan
nunca esperaria de um arcônida.
— Será que prometi demais? — interveio
Thora com um olhar irônico para Rhodan. —
Querem deixar a Galáxia de pernas para o ar.
Acho que esses pequenos bárbaros são insolen-
tes e grosseiros.
— Ei, vamos devagar! — disse Bell. — O
75
que acaba de dizer deve ser interpretado como
uma ofensa, ou será que há um certo carinho
nas palavras que acaba de proferir?
— O homem começa a ficar melindroso —
disse Thora em tom de espanto.
Um sorriso fugaz aflorou em seus lábios. O
olhar que lançou sobre Rhodan causou um ter-
rível embaraço no chefe da Terceira Potência.
— Acontece que são honestos — constatou
Kenos em tom pensativo. — Sempre que tive
pela frente inimigos como estes, eu os admirei,
mesmo que me visse obrigado a destruí-los. De
qualquer maneira, acho que já passou a hora de
brincar de esconder. Só mesmo um idiota ainda
se impressionaria com o Grande Império. Qual
é sua opinião sobre aquele homem inteligente e
sem tutano, que vez por outra ainda é chamado
de Imperador?
Rhodan não conseguiu reprimir o riso. Ke-
nos tinha algo de estimulante.
— Diria que é um homem culturalmente de-
vastado. Em hipótese alguma seria capaz de go-
vernar um grande império. A mão pesada, que
às vezes se torna necessária, falta-lhe tanto
quanto o instinto seguro que nos leva a transi-
gir, e que em última instância conduz ao êxito.
Kenos calou-se. Depois de algum tempo dis-
se em tom rancoroso:
76
— Vocês são perigosos, terranos. São tão
perigosos que não devia ajudá-los. Se essa
máquina não tivesse assumido o poder, eu os
eliminaria como um fator de perigo que ameaça
o Império. Mas, na situação em que nos encon-
tramos, espero contar com sua amizade e auxí-
lio. Ainda quero viver para ver os arcônidas
partirem para o espaço.
— Afinal, só tem cento e oitenta e sete anos
de calendário terrano — disse Thora em tom de
recriminação.
Kenos não disse mais nada. Na Terra distan-
te, a contorção de seus lábios poderia ser inter-
pretada como um sorriso condescendente. A
seguir, interessou-se pelos homens do exército
de mutantes. Pediu provas de suas capacidades
singulares.
Gucky apresentou um espetáculo variado.
Entre outros, fez o velho almirante empreender
uma vertiginosa viagem aérea sobre o abismo
da área interna da casa.
No momento em que foi colocado suave-
mente no solo, mais uma vez não disse nada.
Bell exibiu um sorriso largo e benévolo, face ao
qual Kenos finalmente dirigiu seus passos para
a porta.
— Venham comigo — murmurou. — Seus
alojamentos estão preparados. Sabem lidar com
77
um couraçado da classe Império? Conseguem
executar uma transição perfeita?
— Sabemos fazer isso até dormindo — afir-
mou Bell na sua modéstia.
— Ah! Receberam treinamento hipnótico,
não é? Amanhã serão passados em revista. In-
cluirei seu grupo no alistamento na qualidade de
povo auxiliar de primeira categoria. O cérebro
robotizado faz esforços desesperados para con-
seguir tripulações inteligentes e dotadas de vida
real para as grandes unidades da frota. Afinal,
os robôs não sabem fazer tudo.
Um ódio incontido vibrou nas últimas pala-
vras. Rhodan começou a imaginar por que o al-
mirante Kenos aceitava o risco de que, em bre-
ve, a longínqua Terra se tornasse mais podero-
sa do que convinha ao Império.
— Estamos à sua disposição — afirmou
Rhodan.
— Muito bem. Deverão alegar que são des-
cendentes de velhos emigrantes de Árcon. Inte-
ligências de outro tipo não podem ser incluídas
no nível mental número 1. Acredito que prefi-
ram manter em segredo a verdadeira posição
de seu mundo; por isso teremos de escolher um
setor do nosso grupo. Em Zeklon V, existem
pessoas de aspecto semelhante ao de vocês.
Faço de conta que os tirei da guarda pessoal
78
dos Zoltral. Todo mundo sabe que a antiga di-
nastia ainda mantém excelentes combatentes
privados. Estão de acordo, ou acham que meu
pedido representa um absurdo?
Rhodan mediu o velho com um olhar, antes
de estender-lhe a mão segundo os costumes ter-
ranos.
— Ninguém poderá sentir-se ofendido por
ser comparado com um arcônida. Não permi-
tam que a decadência de sua raça os faça es-
quecer seu passado grandioso. Estas palavras
não representam nenhuma bajulação.
Kenos limitou-se a acenar com a cabeça.
— Será que a família Zoltral concordará
com o projeto? É possível que o cérebro roboti-
zado realize uma verificação.
— Deixe isso por minha conta. Quero que
seu pessoal apareça ao raiar do dia para discu-
tirmos a situação. Não podemos perder tempo.
— Até que enfim encontramos alguém em
Árcon que não pode perder tempo — murmu-
rou Bell. — Minhas homenagens, minhas pro-
fundas homenagens. Não gostaria de encontrar-
me com um indivíduo desses durante o apogeu
do Império Arconídico. Você gostaria?
— Evitaria o encontro enquanto pudesse —
confessou Rhodan. — OK. Dê o fora de forma
aos homens. Ainda poderão descansar três ho-
79
ras. Depois as coisas começarão a ficar sérias.

— Transportador número dezoito, em forma


— berrou a voz não modulada saída do alto-
falante embutido na torre de canhões coberta
de aço que encimava o grande autômato regis-
trador.
Cinqüenta e três pares de pernas enfiadas
em botas de canos indo até o joelho. Os calça-
dos eram feitos de couro vermelho-natural
cheio de bordados. O comando começou a des-
locar-se ao ritmo da música monótona.
O controle do registro estava concluído. De-
pois que Kenos lhes entregara os cartões de
identificação, os homens foram levados em pla-
nadores aéreos ao grande espaçoporto militar
do planeta de cristal. Era o único lugar em Ár-
con I que não se destinava à recreação e às be-
las artes. Aqui tudo se inspirava num pragmatis-
mo frio. Por isso a residência mais próxima fi-
cava a mais de trezentos quilômetros.
Kenos e os arcônidas do estado-maior en-
contravam-se atrás da barreira energética. Rho-
dan não teve permissão para entrar no gigan-
tesco espaçoporto. Só Thora e Crest, aos quais
Kenos atribuíra as funções de comandante e
80
engenheiro-chefe, puderam passar pelos con-
troles. Mas o cérebro robotizado nem sequer
achou que deveria incorporá-los ao grupo dos
53 homens recrutados no planeta colonial de
Zeklon V.
Os dois arcônidas, seres distintos infinita-
mente superiores aos zeklons, foram transpor-
tados num pequeno veículo oficial. Com Rho-
dan, Bell e Tifflor eram exatamente 53 seres vi-
vos orgânicos que caminhavam sobre o revesti-
mento metálico do espaçoporto.
Ivã Goratchim, um mutante de pele verde e
cabeça dupla, capaz de desencadear com a for-
ça de sua mente uma mini-reação nuclear nos
compostos do cálcio e do carbono, cambaleava
sobre as pernas disformes atrás da última fila do
grupo. Carregava Gucky nos braços, já que as
curtas patas traseiras do rato-castor não conse-
guiriam acompanhar a velocidade do grupo.
O rato-castor era o único ser que não fora
enfiado no uniforme colorido e espalhafatoso
da guarda pessoal dos Zoltral. Além disso, Ke-
nos julgara preferível não pendurar no ombro
daquela criatura de um metro de altura um radi-
ador energético do mesmo tamanho.
O cérebro registrou Goratchim e Gucky
como seres estranhos dotados de qualidades es-
peciais. Tornara-se necessário ressaltar o dom
81
telepático de Gucky. Goratchim era considera-
do um armazenador de dados, já que as duas
cabeças possuíam uma extraordinária capacida-
de de memorização.
Rhodan marchava à esquerda do grupo.
Usava calças verde-garrafa de tecido fino sobre
as botas vermelhas; uma blusa larga, segura
pelo cinto com o coldre, cujas ombreiras esta-
vam cobertas por símbolos estranhos. As cabe-
ças dos membros do grupo estavam cobertas
por grossos capacetes de fibra artificial com
equipamentos de radio-comunicação embuti-
dos.
Depois de terem dado dez passos, as primei-
ras gotas de suor começaram a porejar em sua
pele. Depois de cinco minutos de marcha sob o
sol causticante de Árcon, estavam completa-
mente molhados.
Ouviram-se duras imprecações. Caminha-
ram cada vez mais zangados e cansados em di-
reção ao pequeno transportador no 18, cuja
comporta inferior de passageiros já estava aber-
ta.
— Silêncio no grupo — soou a voz de Rho-
dan. — Que diabo! Procurem controlar-se. Afi-
nal, não é nenhum prazer andar sobre chapas
de metal aquecidas.
— Estas botas de sola fina até parecem uma
82
torradeira de ondas curtas — esbravejou Bell
com a voz abafada. — Mais cinco minutos, e
começo a dançar.
Um sorriso fugaz surgiu no rosto de Rho-
dan. Sabia perfeitamente que poderia confiar
em seus homens.
Robôs de combate arcônidas surgiram diante
da nave. Tratava-se de um veículo espacial auxi-
liar da classe Good Hope.
A voz de comando de Rhodan soou pela
área deserta. A coluna parou pouco antes de
atingir a comporta.
Elegante e orgulhosa, Thora desceu do car-
ro. Seu olhar era um tanto malicioso, o que fez
Rhodan transpirar ainda mais. Lançou um olhar
furioso atrás dela.
— Assim que tiver uma oportunidade eu a
farei voar pelos ares — prometeu Anne Sloane,
a telecineta. — Será que tudo isso é necessário?
— Silêncio — resmungou Marshall. — Por
enquanto não há problema. Mas o futuro me
parece um tanto misterioso.
Thora expedira seu aviso. Acompanhada de
Crest, desapareceu no interior da nave.
— Entrem um por um, com os cartões de
identificação na mão esquerda — soou a voz
metálica de um robô.
Um atrás do outro passaram pelo segundo
83
controle. Os impulsos dos cartões de identifica-
ção foram apalpados antes que a grade se le-
vantasse para deixar passar um homem de cada
vez.
Os músculos do rosto de Rhodan entesaram-
se quando chegou a vez de Goratchim. Mas o
autômato não hesitou nem um pouco. Para ele
o aspecto exterior do homem era totalmente in-
diferente. Carregava seu cartão, e era quanto
bastava. Rhodan foi o último a passar pelo con-
trole.
Lançou um ligeiro olhar para os arcônidas
que se mantinham à espera. Entre eles, só o al-
mirante Kenos sabia da fraude que acabara de
ser cometida. Provavelmente felicitavam-se por
terem arrancado da família de Zoltral esses ele-
mentos excelentes de Zeklon V.
Rhodan subiu no elevador antigravitacional.
Um robô mandou-os à grande cantina da tripu-
lação, onde teriam que esperar. A decolagem
foi realizada em poucos segundos.
— Onde está Thora? — cochichou Rhodan.
— Dê uma olhada por aí.
Wuriu Sengu, o espia, perdeu o brilho dos
olhos. Fitou rijamente as paredes maciças de
aço, que face à capacidade extraordinária de
que era dotado não representavam nenhum
obstáculo à visão. Quadros nítidos surgiram di-
84
ante de sua visão mental.
— Está na sala de comando. Crest está ao
seu lado. A nave está sendo teleguiada.
— Muito bem. Quero que todos prestem
atenção. Quando estivermos a sós, falaremos
em inglês. A nave está viajando para Árcon III,
o planeta da guerra. Somos ocupantes de pri-
meiro nível de um couraçado. Se conseguirmos
passar ilesos pelos novos controles, não haverá
maior demora. Reconhecemos o treinamento
hipnótico a que fomos submetidos. É a única
maneira de explicar nosso elevado quociente in-
telectual. Provavelmente em parte serão eleva-
dos demais. É bem possível que em alguns ca-
sos o autômato desconfie. Precisamos contor-
nar esse fator de perigo através de uma série de
decisões e respostas individuais.
“Quando estivermos a bordo de uma nave
espacial da classe da Stardust, as coisas estarão
bem melhores. Uma vez que, em Árcon I, não
existem as menores condições para isso, tive-
mos que dar um jeito de chegar ao número
três. Acho que o cérebro está sendo muito gen-
til ao providenciar nosso transporte. Nossa Ga-
zela estará bem guardada nas mãos do almiran-
te. Oportunamente voltaremos para buscar a
nave. Portanto, previnam-se e recapitulem as
instruções. Antes de mais nada, não se esque-
85
çam de seus novos nomes. Constam dos car-
tões de identificação. Exercíamos as funções de
guardas palacianos dos Zoltral. Mais alguma
dúvida?”
Bell cochichou em tom indiferente:
— Mais uma vez você está sendo muito mo-
desto. Tem que ser justamente uma nave da
classe Império? Não podemos guarnecer sequer
um dos postos de combate. Por que não pega-
mos uma nave menor?
Rhodan lançou um olhar aos mutantes. Sen-
gu sacudiu a cabeça. Dali se concluiu que não
estavam sendo vigiados por meio de um circuito
de televisão.
— Tenho a impressão de que você subesti-
ma terrivelmente o planeta Árcon III. Se tiver-
mos uma chance de escapar, isso só poderá ser
feito num gigante superforte. Não vejo por que
iríamos contentar-nos com um barco menor.
— E a Ganymed? — interveio Marshall em
tom objetivo.
Uma expressão sombria surgiu no rosto de
Rhodan. O grande problema acabara de ser for-
mulado.
— Aguardemos — decidiu Perry. — Freyt
recebeu suas instruções. Se conseguirmos che-
gar ao número cinco, isso acontecerá de supe-
tão. Qualquer instalação mecânica é prejudica-
86
da se, nas suas imediações, uma gigantesca
nave sai ruidosamente do hiperespaço. Além
disso, Freyt dispõe de um transmissor fictício.
As reflexões e os planos prematuros têm uma
qualidade desagradável: em noventa e nove por
certo dos casos não dão certo. Veremos o que
nos confiam no planeta três. Se não conseguir-
mos entrar pelo menos num cruzador pesado,
então...
— ...então desistiremos, não é? — interrom-
peu Bell.
Rhodan mordeu o lábio inferior. O arrojo e
a energia de sempre brilhavam no fundo dos
seus olhos.
— ...então veremos o que faremos — com-
pletou. — Certa vez um homem muito inteli-
gente disse que não há nada mais fácil que en-
ganar uma máquina, desde que se conheça a
mentalidade mecânica do respectivo robô. Da-
remos uma olhada naquilo.
Uma tela iluminou-se. Thora surgiu na mes-
ma.
— Pousaremos dentro de quinze minutos —
disse com a voz fria e reservada de uma coman-
dante arcônida. — Tan’Ro, você se encarregará
da saída dos homens pela comporta. Aguardem
novas instruções.
Rhodan, que em seu cartão de identificação
87
constava sob o nome de Tan’Ro, fez continên-
cia à moda terrana. A essa altura, era altamente
provável que estivessem submetidos a alguma
forma de tele-observação.
A tela voltou a apagar-se. O silêncio insta-
lou-se na sala. Os olhos de Rhodan examina-
ram os outros. Viu olhos chamejantes numa
tensão febril.
— Pois bem, vamos adiante — disse o co-
mandante. — Viva o Império a cujo serviço nos
colocamos. Ivã, não se meta em brigas. Enten-
dido?
As duas cabeças do mutante de dois metros
e cinqüenta encararam-se.
— Combinado, irmão — disse Ivanovitch, o
mais jovem dos dois, com a voz aguda.
— Esquecerei que foi você que encontrou
sua mente meio segundo depois que acordei.
— Chegamos a um acordo no sentido de
que foi um terço de segundo — chiou a outra
cabeça. — Acontece que consegui outras pro-
vas de que, quem acordou em primeiro lugar,
fui eu. Está bem, não vamos brigar, mas opor-
tunamente conversaremos a respeito.
O corpo titânico submetido ao controle das
duas cabeças permaneceu calmo.
— Gente, que brincadeirinha não vamos ter!
— rejubilou-se Gucky com a voz abafada. Sua
88
cauda em forma de colher estalou contra o
chão. — Será uma coisa, chefe! Quando chegar
a hora, não se esqueça de dar o sinal.
— Seu convencido — cochichou Bell. —
Não pense que as coisas serão tão fáceis.
Gucky exibiu seu gigantesco dente roedor.
— Silêncio — interveio a voz nervosa de
Rhodan na discussão que se ia formando. —
Wuriu, já consegue ver alguma coisa?
— Um planeta em forma de meia-lua está
crescendo. Daqui a pouco devemos chegar.
Sem dizer uma palavra, Rhodan segurou o
radiador de impulsos. Foram obrigados a deixar
para trás as armas leves que traziam nos col-
dres, já que não pertenciam ao equipamento
padronizado. Em compensação receberam os
últimos modelos dos artefatos guerreiros dos ar-
cônidas.
— Está fazendo muito calor para um comba-
te corpo a corpo — resmungou Rhodan com
um sorriso desagradável. — Ah, está na hora.
O trovejar surdo dos projetores energéticos
sacudiu a nave. Ouviu-se um uivo e um chiado
agudo. A nave penetrava, ao que tudo indicava,
em velocidade bastante elevada, na atmosfera
de algum astro.
Poucos segundos depois todas as telas acen-
deram-se. Os homens viraram-se instintivamen-
89
te.
— Vocês têm permissão de ver Árcon III —
declarou Thora. — Estou em contato com o
Grande Coordenador. Ele lhes dá as boas-vin-
das. Fim.
Só as imagens permaneceram vivas. Os ho-
mens encararam-se perplexos. Já sabiam qual
era o nome que o cérebro robotizado do mundo
da guerra se atribuíra.
— O Grande Coordenador, heim? — repe-
tiu Rhodan em tom seco. — Será que aquilo
possui certa ambição? Silêncio, nada de discus-
sões. Santo Deus, abram os olhos...
Rhodan interrompeu-se. Perplexo, olhou
para as telas. Por baixo da nave auxiliar que se
deslocava em queda livre, deslizavam velozmen-
te as paisagens que não eram verdadeiras paisa-
gens. Uma fábrica encostava-se à outra, as usi-
nas gigantescas sucediam-se em seqüência inin-
terrupta. Não se via uma única planta, uma ele-
vação que pudesse ser considerada um acidente
geográfico.
Era uma superfície totalmente lisa, que pare-
cia ser formada exclusivamente de aço, plástico
e outras substâncias artificiais. Só os mares pri-
mitivos continuavam intocados.
Pelo que se dizia, só em Árcon III havia mais
de 25.000 estaleiros espaciais. Todo esse mun-
90
do estava reservado exclusivamente à constru-
ção de naves. Uma metrópole ligava-se à outra
sem quebra de continuidade.
Os inúmeros espaçoportos com suas gigan-
tescas estações de rádio eram o único fator de
dissociação daquele quadro compacto de tecno-
logia. Além disso, sabia-se que a maior parte de
Árcon III fora escavada sob a superfície. Certas
unidades muito importantes da indústria espaci-
al, inclusive as destinadas à produção de propul-
sores, ficavam 5.000 metros abaixo da super-
fície. Era a indústria militar mais gigantesca da
Galáxia.
De parte em parte erguiam-se as abóbadas
fluorescentes dos enormes campos energéticos.
Árcon III era um pouco maior que a Terra. Sua
gravitação média era de 1,3g.
Os espaçoportos formigavam de naves es-
féricas, desde as pequenas até as grandes gi-
gantes do espaço. Ali estava reunida uma frota
cujo poderio chegava ao infinito.
— Já começo a compreender como surge
um Império — disse Rhodan, esticando as pala-
vras. — Cavalheiros, diante disso não passamos
de miseráveis anões. Será que realmente deco-
lamos com o objetivo de assumir o controle
desse conjunto gigantesco?
Olhou em torno, numa atitude quase desola-
91
da. Não obteve resposta. Bem adiante deles,
surgiu a maior abóbada energética que já havi-
am visto. Na altura reduzida em que se encon-
travam, não era possível abranger com a vista
toda a área coberta pela usina. A extremidade
superior da abóbada protetora avançava até as
camadas superiores da atmosfera.
Rhodan sabia que se encontravam próximos
à sede do cérebro central que se designava
como o Grande Coordenador. Kenos explicara
que as instalações ocupavam uma área de apro-
ximadamente dez mil quilômetros quadrados, e
isso apesar da conhecida micro tecnologia dos
arcônidas.
Pelo que se dizia, as sucessivas gerações de
técnicos haviam trabalhado naquela obra por
mais de 8.000 anos. Os setores foram sendo li-
gados progressivamente, até que não havia
mais nenhum saber ou conhecimento que ainda
pudesse ser armazenado nas células positrôni-
cas. Ninguém saberia dizer até que profundida-
de o cérebro penetrava no solo. Era inteiramen-
te autônomo. Suas usinas energéticas ainda
funcionariam por milhões de anos.
— Não poderemos esperar tanto tempo —
murmurou Rhodan para si mesmo.
A nave auxiliar descreveu uma curva bem
ampla em torno da abóbada energética. Logo
92
depois outro espaçoporto surgiu diante deles.
Dentro de poucos minutos seguiu-se um
pouso exemplar. As máquinas pararam. As es-
cotilhas de segurança da sala da tripulação abri-
ram-se com um chiado.
— Desçam e entrem imediatamente em for-
ma — foi a ordem que o robô transmitiu pelos
alto-falantes.
Os homens saíram apressadamente. Não
houve outro controle. Perfilaram-se junto a uma
das colunas de aterissagem da nave esférica de
sessenta metros de diâmetro e aguardaram até
que Thora e Crest aparecessem.
Mesmo que aqueles homens tivessem vonta-
de e disposição para uma troca de idéias, nesse
ambiente as discussões, os planos e as esperan-
ças perderiam seu sentido.
À frente, ao lado e atrás do lugar em que
haviam pousado, as naves formavam filas inin-
terruptas. Mais adiante, à sua direita, mais de
cinqüenta vultos gigantescos subiam ao céu lím-
pido, onde também brilhava o sol branco de Ár-
con.
Gigantescas esferas de oitocentos metros de
diâmetro, da classe Império, estavam dispostas
em filas ordenadas. Mas não eram elas que dei-
xavam Rhodan sem fala. Embora essas naves
pudessem perfeitamente mergulhar um astro-
93
nauta humano em complexos de inferioridade.
— Não! — gaguejou Rhodan consigo mes-
mo. — Oh, não!
Ouviu a respiração pesada da arcônida, que
também tinha os olhos fitos no milagre.
Logo após as fileiras de naves da classe Im-
pério, mais dois vultos gigantescos, também de
formato esférico, erguiam-se para o céu. Se as
naves da classe Império podiam ser considera-
das muito grandes, essas unidades eram verda-
deiros supergigantes.
Seu imenso cinturão, abrigo dos propulso-
res, e situado exatamente no plano equatorial
do corpo esférico, começavam na altura em
que terminavam as cúpulas polares superiores
das naves da classe Império. Face a isso seu ta-
manho podia ser avaliado com uma precisão ra-
zoável.
Eram duas montanhas, que apesar da distân-
cia não podiam ser vistas em toda a altura.
Rhodan fechou os olhos, para abri-los com
mais força.
— Sempre pensei que os gigantes da classe
Império fossem as naves mais poderosas de sua
frota — observou com a voz gaguejante. —
Pelo amor de Deus, Thora, o que é isso? Esses
gigantes devem ter uns mil e quinhentos metros
de diâmetro. Quem construiu aquilo?
94
A arcônida estava muito pálida. Respondeu
em tom apressado:
— Foi ainda durante o governo de minha di-
nastia que surgiu o plano de construir supercou-
raçados desse tamanho. São as naves da classe
Universo, se não me engano. Nunca chegaram
a construí-las, ao menos até o tempo da minha
partida, treze anos atrás. Mas, nos últimos
anos, aconteceu uma infinidade de coisas.
Rhodan não conseguia tirar os olhos dos
dois supercouraçados. Nem desconfiava de que
seus homens o contemplavam numa terrível
tensão nervosa, até que Bell disse com um ge-
mido:
— Ainda acabo enlouquecendo. Já conheço
este olhar. Meu amigo, não se deixe dominar
pela megalomania. Jamais nos entregarão um
barco desses.
— Pelo menos mil e quinhentos metros —
sussurrou Rhodan imerso em suas reflexões. —
Mil e quinhentos metros, sem contar as colunas
de sustentação. Calculo que tem cem vezes o
poder de fogo da Stardust-III. É inacreditável.
Está bem, não direi mais uma única palavra.
Oportunamente conversaremos a respeito.
Thora estava entrando num carrinho que flu-
tuava pouco acima do solo, sustentado por um
pequeno campo de repulsão.
95
O ritmo de uma música súbita e barulhenta
arrancou Rhodan de suas reflexões. Seu cére-
bro trabalhava febrilmente na elaboração de um
novo plano. Constantemente, voltava os olhos
para as montanhas de aço arcônida. Ao lado
delas, as naves da classe Império eram uns veí-
culos bem delicados.
— Dou as boas-vindas de Árcon III aos de-
fensores do Império — disse uma voz retum-
bante.
A música voltou a soar. Viram o veículo de
grandes dimensões que se aproximava. A ex-
tensa área da plataforma comportava mais de
cinqüenta pessoas.
Desta vez não precisariam marchar sob o sol
causticante.
— Falem, conversem — foi a ordem que
Rhodan mandou transmitir de homem para ho-
mem. — Demonstrem alegria e curiosidade,
riam. Isso faz parte do jogo. Afinal, somos seres
vivos. Vamos logo! Não façam o papel de gente
anestesiada. Afinal, a surpresa não pode durar
para sempre.
Um grupo de homens alegres e conversado-
res subiu à plataforma baixa do veículo. Antes
que o mesmo se pusesse em movimento, Rho-
dan lançou mais um olhar sobre os couraçados
da superclasse. Depois pensou no destino lon-
96
gínquo: “o espaçoporto era gigantesco”.

O Tempo de rotação em torno do eixo do


terceiro planeta sincronizado do sistema interno
de Árcon correspondia a 28,4 horas, segundo
os padrões terranos.
Se em todos os mundos do Universo, a noi-
te ou o crepúsculo descem vez por outra sobre
uma das faces, isso não acontecia nesse astro
extraordinário.
Os robôs não precisavam de sono, nem de
pausas ou férias. O ruído de milhões de máqui-
nas e linhas de montagem inteiramente auto-
matizadas formava o ritmo de um mundo que
não conhecia a escuridão.
No hemisfério em que reinava a noite, os
sóis atômicos substituíam o astro natural. Bi-
lhões de instalações fixas de controle e robôs
móveis trabalhavam ininterruptamente.
Em Árcon III, onde antes da intervenção do
gigantesco cérebro central de controle, reinara
o silêncio cadavérico de um império moribun-
do, hoje havia despertado para uma nova ativi-
dade. Há seis anos terranos o silêncio parara.
A maior das máquinas de guerra da Galáxia
iniciara a produção em série de naves espaciais
97
com tamanho élan, que até parecia que deseja-
va de arrancar, de um dia para outro, os velhos
tempos da política de conquista dos abismos
melancólicos do esquecimento.
Rhodan tentara avaliar apenas o problema
do abastecimento de matérias-primas. O plane-
ta Árcon III estava totalmente explorado. Nele
não seria encontrado nenhum torrão de miné-
rio digno de ser extraído do solo.
Uma frota mercante bem dirigida estava a
caminho ininterruptamente, para trazer as mer-
cadorias que se tornavam necessárias. Nos es-
paçoportos dos planetas 5, 6, 7 e 8, onde era
permitido o transbordo, eram negociadas mer-
cadorias que muitas vezes teriam de ser trans-
portadas através de enormes distâncias galácti-
cas.
Também em Árcon II, o mundo destinado à
produção de artigos industriais úteis ao povo, as
fábricas estavam trabalhando. Árcon produzia
em benefício do Império.
Rhodan logo desistiu de compreender, com
a inteligência, qualquer problema setorial que
fosse daquela gigantesca organização. Era im-
possível!
Todavia, descobrira o motivo lógico para a
construção de um cérebro robotizado de tama-
nhas dimensões. Mesmo os velhos arcônidas,
98
que ainda se mantinham em atividade, já não
seriam capazes de controlar os problemas que
se apresentavam, e que se contariam pelos mi-
lhões. Só mesmo uma máquina seria capaz dis-
so, e essa máquina, face aos inúmeros circuitos
específicos, teria que ocupar um enorme espa-
ço.
Faziam 32 horas que o comando se encon-
trava no mundo da mecanização total. Poucas
vezes, haviam visto um arcônida. Em compen-
sação, os seres vindos de todos os setores da
Galáxia submetidos ao domínio do Império
eram muito numerosos.
O gigante robotizado estava prestes a sub-
meter até mesmo as raças subdesenvolvidas a
um treinamento hipnótico intensivo, pois só as-
sim estaria em condições de tripular suas naves.
Praticamente de hora em hora, enormes es-
quadrilhas rugiam em direção ao espaço. Cada
uma tinha um objetivo bem fixado.
Pelas notícias que circulavam, na área do
grupo estelar M-13 estavam sendo travadas as
batalhas mais terríveis de que se tinha notícia
desde a criação do Império.
Os mundos coloniais revoltados, que há
mais de quinhentos anos começaram a sacudir
o jugo do Império debilitado, subitamente vi-
ram-se colocados diante de uma alternativa: a
99
submissão incondicional ou a destruição total.
Logicamente o cérebro robotizado não estava
interessado em saber quantos seres vivos seriam
eliminados, ou se sua atuação resultaria numa
injustiça gritante.
Rhodan sentiu-se próximo a um colapso
psíquico total sempre que pensava na possibili-
dade de uma descoberta casual do planeta Ter-
ra.
O pavilhão era baixo, amplo e sem qualquer
toque pessoal. Seria para abrigar as tripulações
recém-recrutadas. A cada raça era destinada
uma área específica, da qual só devia sair em
caso de necessidade. Os alimentos e as bebidas
eram fornecidos com uma rapidez extraordiná-
ria sempre que alguém o desejasse.
O local servia principalmente de encontro à
raça ciclópica dos naats. A área por eles ocupa-
da era contígua àquela destinada aos homens
do grupo de Rhodan.
Os mutantes exerceram uma vigilância ex-
traordinária. Um barulho infernal enchia o re-
cinto. As brigas eram corriqueiras. Eram princi-
palmente os naats que procuravam encrenca a
todo instante, já que isso correspondia ao seu
gênio.
Num lugar mais distante, vultos de pele azul
e cabeça grande estavam agachados no solo.
100
Não havia exemplares de raças não-humanas.
Era sabido que mesmo o autômato robotizado
funcionava segundo os princípios adotados pe-
los velhos conquistadores arcônidas.
Os seres não-humanóides, que não respira-
vam oxigênio, sempre foram os inimigos mais
encarniçados do Império. As grandes operações
da frota especial visavam principalmente a es-
ses seres.
A área destinada aos humanos estava guar-
necida de confortáveis poltronas articuladas. O
cérebro fazia tudo que estava ao seu alcance
para deixar satisfeitas as tripulações que conse-
guia recrutar.
Bell lançou um olhar desconfiado para os ci-
clopes de três olhos. Mais uma vez brigaram,
até que os robôs de combate os separassem.
Nessa operação, as máquinas não demonstra-
vam a menor delicadeza.
O berreiro dos gigantes de três metros amai-
nou um pouco, sendo substituído por um mur-
múrio abafado.
— Se há treze anos alguém me dissesse
onde estaria a esta hora, eu teria gritado sem
parar — observou Bell em tom melancólico. —
Já começo a compreender por que fomos rece-
bidos com tamanha gentileza.
Um robusto europeu pertencente ao coman-
101
do soltou um apito estridente. Com um largo
sorriso, contemplou o robô de serviço que se
aproximava, anotando solicitamente o pedido
que lhe era formulado.
— Não vamos exagerar — advertiu Rhodan
em tom nervoso. — Tenho a impressão de que
já estamos com a faca na garganta. Tifflor, já se
recuperou do exame?
Com um sorriso melancólico Tiff, pôs as
mãos no crânio. Nas têmporas, viam-se duas
manchas roxas.
— Não agüentaria isso mais uma vez — ge-
meu. — A máquina quis saber por que todos
nós temos um quociente intelectual tão elevado.
Sinto dizer isto, mas tenho a impressão de que
a máquina está muito desconfiada.
O grupo tornou-se um pouco menos baru-
lhento.
— Vamos chegar mais perto uns dos outros
— resmungou Rhodan. — Quando Kakuta vol-
tar, levantem-se imediatamente para dar um
brinde. Se preferirem podem dançar. O impor-
tante é que ele fique ao abrigo das vistas alhei-
as.
— Chefe, tenho uma forte desconfiança de
que o senhor será enfiado mais uma vez nesse
detector de vibrações cerebrais — disse o sar-
gento Rous em tom preocupado. — Ninguém
102
escapou disso, mas com o senhor foi muito
mais demorado. Perguntaram a cada um de nós
como um habitante de Zeklon V pode ter um
quociente intelectual que equivale ao dobro do
que é encontrado nos cientistas mais importan-
tes de Árcon.
Rhodan apresentava um rosto inexpressivo.
Estava desconfiado de que seria submetido mais
uma vez à prova de vibrações cerebrais. Eviden-
temente, o dispositivo automático recorrera às
suas instalações especializadas para examinar
os dotes mentais dos homens que o almirante
Kenos lhe Havia mandado. Isso aconteceu em
menos de doze horas após a chegada.
Rhodan sentia as palmas das mãos úmidas
quando se lembrava da reluzente sala metálica
com os detectores enfileirados. Os olhos de Bell
eram grandes e indagadores. Também desper-
tara a atenção do mecanismo por seu quociente
intelectual extremamente elevado.
— Vamos aguardar — voltou a dizer Rho-
dan. — Isso leva algum tempo. Thora fará o
que estiver ao seu alcance para que nos confi-
em uma das naves grandes. O cérebro só pensa
em termos lógico-pragmáticos, sem permitir
que qualquer tipo de sensibilidade desvie o cur-
so do seu raciocínio. Por isso deve ser mais que
evidente que entregará as melhores naves às tri-
103
pulações mais bem dotadas. Seiko, mantenha-
se no grupo. Onde está Tako?
Marshall baixou a cabeça e pôs-se a escutar
— Não estou captando nenhum impulso —
disse em voz baixa. — Os inúmeros campos
energéticos perturbam a comunicação.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça. Aos poucos sua calma começava a irritar os
outros. Os homens estavam atentos como nun-
ca. Havia alguma coisa no ar.

***

Tako Kakuta, o teleportador japonês, voltou


com um salto rápido para o luxuoso quarto, no
momento em que o robô de serviço entrava na
sala.
O autocontrole de Thora foi exemplar. Não
dirigiu a palavra à máquina. Sem o menor ruí-
do, aquela imitação sempre sorridente de um
arcônida, dirigida por um dispositivo positrôni-
co, retirou-se do recinto.
— Venha — disse em voz baixa.
Tako espremeu-se pela porta entreaberta. O
pequeno desintegrador do arsenal da Gazela de-
sapareceu sob a vestimenta em forma de blusa.
— Se pegarem o senhor com isso, nosso
jogo estará perdido — disse em tom indiferen-
104
te. — Salte de volta, mas não se esqueça das
instruções. Perry deverá insistir, de qualquer
maneira, na afirmação de que eu lhe dei um
treinamento hipnótico de primeira classe. Mi-
nha qualidade de comandante da dinastia de
Zoltral foi reconhecida. A probabilidade de ser
identificada como Thora é extremamente remo-
ta. Os comprovantes são perfeitos.
Tako despediu-se com um gesto, antes de
desaparecer num fugaz fenômeno luminoso.
Recuaram apressadamente da poltrona arti-
culada vazia, que no mesmo instante passou a
abrigar um vulto. Rhodan levantou-se de um
salto. Sua exclamação fez com que os homens
levantassem os braços. Tako estava perfeita-
mente escondido.
— Você demorou muito — cochichou Rho-
dan apressadamente. — O que aconteceu?
Houve algum problema?
— Thora foi interrogada hoje pela segunda
vez. Não compreende o motivo. Seja como for,
foi investida no comando da Veast Ark. Ama-
nhã deveremos subir a bordo. O treinamento fi-
cará a cargo de Crest, que no momento está
sendo submetido a um processo de aprendiza-
gem hipnótica.
— De que tipo é a nave? — perguntou Rho-
dan ansiosamente. — É um cruzador? Ou será
105
uma nave da classe Império?
Uma expressão de medo e insegurança sur-
giu no rostinho infantil de Tako.
— É pior do que isso, chefe! A Veast Ark é
um dos novos supergigantes. Aconteceu exata-
mente aquilo que o senhor previa. Nossos quo-
cientes intelectuais extremamente elevados e o
treinamento aprimorado que possuímos leva-
ram o cérebro a nos enviar para a nova máqui-
na.
Rhodan cerrou as pálpebras. Então era isso
mesmo!
— Eu sabia! Não poderia ser de outra ma-
neira, a não ser que o cérebro não fosse capaz
de extrair dos fatos conseqüências lógicas e co-
erentes. Só não seríamos colocados a bordo do
gigante caso existisse outra tripulação de igual
categoria. Por que você acha que isso é ruim?
— Thora parecia muito preocupada. Os no-
vos supercouraçados da classe Universo contêm
as conquistas mais recentes da ciência arcônida.
Neles existem máquinas que ainda não conhe-
cemos. Além disso, têm um dispositivo auto-
mático de segurança inteiramente positroniza-
do, que mantém contato direto com o robô
central, seja qual for a distância. Acho que não
será possível provocar a decolagem com uma
tripulação de apenas cinqüenta homens.
106
— Se necessário, eu faço isso com trinta ho-
mens — disse Rhodan em tom frio. — Basta
que haja uma chave direta de emergência como
a da Stardust para que eu controle todos os
propulsores a partir da sala de comando. Não
haverá problema.
Levantou-se abruptamente e pegou o capa-
cete. Os naats lançaram olhares curiosos em
sua direção.
De repente, os homens tornaram-se muito
silenciosos. Seus olhares diziam tudo. Se não
estavam enganados, o “velho” acabara de to-
mar uma decisão que, de uma hora para outra,
traria o êxito ou a destruição.
Andando fora de forma, saíram do pavilhão
e dirigiram-se aos alojamentos. Lá fora senti-
ram-se ofuscados pela luz de um sol atômico
que brilhava nas alturas. Um planador antigravi-
tacional teleguiado levava um gigantesco molda-
dor de impulsos à oficina de reparos que se en-
contrava por perto.
— Descansem e acalmem os nervos! — or-
denou Rhodan. — Permaneceremos a bordo
enquanto for possível. O tempo não significa
coisa alguma, a não ser que surja algum aconte-
cimento que transforme um segundo numa pre-
ciosidade insubstituível. Marshall, mantenha sua
equipe de prontidão. Para sairmos daqui, o se-
107
nhor terá que engajar todas as forças.
Um grupo de monstros barulhentos passou
perto deles. Eram os gigantescos blindados des-
tinados às operações de terra que rolavam em
direção aos couraçados da classe da Stardust.
— As intenções do Grande Coordenador
são as melhores possíveis — disse Bell em tom
irônico. — Só estou curioso para saber quem
ele colocará embaixo de nosso nariz quando es-
tivermos a bordo.
Rhodan lançou um olhar para o quadro gi-
gantesco da abóbada energética. Sob ela ficava
uma entidade mecânica que a inteligência hu-
mana não podia compreender.
A bolha energética emitia um brilho frio e
ameaçador. Nenhum poder da Via Láctea po-
deria rompê-la — com exceção de um único.
— Veremos, Grande Coordenador — cochi-
chou Rhodan. — Veremos!

Um verdadeiro labirinto de milhares de cor-


redores, salas enormes e cubículos apertadíssi-
mos fora instalado pelos engenheiros astronáu-
ticos mais experimentados da Galáxia naquele
vulto esférico de 1.500 metros de diâmetro,
que parecia de fora formar uma massa compac-
108
ta.
Não havia nenhum recanto, nenhuma área,
por menor que fosse, que não preenchesse al-
guma finalidade.
O grande elevador central, que atravessava o
corpo esférico em linha reta, de pólo a pólo,
constituía o único elemento de orientação. Era
um couraçado no qual uma tripulação de mil
pessoas poderia desaparecer por completo. Os
gigantescos salões que abrigavam as usinas ge-
radoras estavam subdivididos em vários planos.
Em seu interior, alguém poderia perder-se.
Rhodan viu-se diante de um problema cuja
solução necessariamente demandaria um certo
tempo. Pela própria natureza das coisas, seria
impossível abrangê-lo num relance.
Fazia quatro dias de Árcon que se encontra-
vam a bordo da Veast Ark. Crest, que ali estava
sendo identificado por outro nome, fez o que
esteve ao seu alcance para instruir os cosmo-
nautas e os técnicos do comando.
As dependências mais importantes já eram
conhecidas. Todos procuravam não se afastar
muito do elevador central, pois se o fizessem se
perderiam irremediavelmente.
O aprendizado hipnótico de Rhodan reve-
lara-se um tanto deficiente. Havia naquela nave
pavilhões e salas cujo formato, determinado
109
pela respectiva finalidade, muitas vezes era tão
estranho que não se poderia pensar em com-
preendê-los num curto espaço de tempo.
A idéia de que o cérebro não se deixaria en-
ganar por muito tempo pesava em sua mente.
Por isso realizou esforços tremendos para iden-
tificar principalmente os postos de controle
mais importantes e inspecionar os aparelhos
instalados nos mesmos.
O mecanismo de pilotagem era quase idênti-
co ao da Stardust-III. A central instalada no cen-
tro geométrico da nave abrigava um mecanismo
sincronizador inteiramente positronizado cuja
perfeição era tamanha, que sem a menor dúvi-
da seria capaz de controlar os propulsores, as
centrais energéticas e a aparelhagem auxiliar,
desde que o aparelho de controle montado no
interior da central concordasse com isso.
Abaulado em semicírculo e enfeitado por al-
gumas telas de imagem, o colosso blindado fica-
va logo atrás das mesas de controle em meia-
lua instaladas diante dos assentos dos pilotos.
Tratava-se de uma estação retransmissora
do grande robô. Um exame cauteloso realizado
pelos mutantes revelara que o pequeno cérebro
robotizado fora programado especialmente
para as tarefas de controle da nave. A qualquer
momento poderia intervir nas operações nor-
110
mais e interromper as mesmas, sendo capaz de
paralisar mecanismos potentes e interromper
séries de cálculos em pleno processamento.
O Grande Coordenador tomara suas provi-
dências para que também aqui o controle não
lhe escapasse das mãos. Rhodan já se conven-
cera de que, enquanto existisse esse posto de
controle de alta potência, uma decolagem for-
çada seria totalmente impossível.
No interior do supercouraçado, os homens e
as mulheres do comando não passavam de par-
tículas de pó num deserto. Perdiam-se na imen-
sidão. Tornava-se necessário recorrer aos apa-
relhos de radiocomunicação para localizar al-
guém que estivesse andando por aí, apontando-
lhe o caminho da sala de comando.
Nesse ponto, a gigantesca nave realmente
representava uma catástrofe, por mais sedutor
que parecesse o poderio que irradiava da mes-
ma.
Há uma hora, Thora solicitara permissão
para realizar um ensaio com os dezoito propul-
sores de gigantescas proporções. A permissão
só foi concedida depois que Crest e Rhodan
confirmaram que também saberiam manipular
os controles.
Naquele momento os dezoito bocais de jato
montados no anel equatorial bramiam e cuspi-
111
am fogo. Como era usual nas naves arcônidas,
toda a aparelhagem de propulsão estava instala-
da nesse anel.
Quando trabalhavam em ponto morto, as
máquinas proporcionavam uma força de empu-
xo que ficava cinco por cento abaixo daquela
que, com a gravitação reinante, elevaria o cor-
po gigantesco da nave acima do solo.
A conseqüência disso foi que os discos de
apoio dos pés de aterissagem, que eram verda-
deiras torres, eram arrastados por vários metros
sobre o revestimento metálico da pista. Vibra-
ções extremamente fortes foram sentidas no in-
terior da nave.
Concentrado ao máximo, Rhodan estava
acomodado no assento do segundo astronauta.
Tinha diante de si os mesmos instrumentos de
controle que se encontravam ao alcance da
mão de Thora.
Tratava-se da ligação de emergência ou de
perigo, que apenas por um curto espaço de
tempo permitia que o controle fosse exercido
por duas pessoas. Era evidente que esse tipo de
pilotagem estava acompanhado de tolerâncias
extremamente elevadas, que não poderiam ser
usadas num vôo de longa distância.
De qualquer maneira, Rhodan descobrira
que dessa forma a Veast Ark poderia ser levada
112
ao espaço. Todavia, as indicações dos inúmeros
autômatos de correção nunca poderiam ser
controlados por duas pessoas. Um vôo realiza-
do com base na ligação de emergência nunca
passaria de um tatear incerto, que conduziria a
situações cujo domínio exigia uma equipe de
comando bem treinada.
Imediatamente após o início do funciona-
mento dos reatores, Rhodan virou-se abrupta-
mente. Assim que a primeira língua de fogo
saiu dos bocais, uma forte luminosidade surgiu
atrás dele. O monstro blindado sob o qual se
abrigava o autômato auxiliar do grande robô,
subitamente se envolvera num campo energéti-
co de elevada potência.
Cinco minutos já se haviam passado, desde
o momento em que os reatores foram ligados.
A chave-mestra do regulador automático sincro-
nizado de potência estava apenas um traço aci-
ma da marca zero.
Apesar disso, o colosso continuava a escor-
regar sob o efeito das vibrações, afastando-se
cada vez mais da sua posição primitiva.
Crest guarnecia a sala principal de máquinas
juntamente com quinze técnicos. Os resultados
das medições fornecidos dali eram impecáveis.
— Um a dezoito em perfeitas condições —
soou a voz retumbante de Bell nos alto-falantes.
113
— Boa coordenação, tolerância de mais ou me-
nos 0,001 por cento. Os reguladores de empu-
xo começam a funcionar com um desvio de
0,002 por cento. Propulsores em boas condi-
ções de funcionamento. Fim.
Ao surgir na tela, o rosto de Bell apresenta-
va uma expressão de nervosismo. Rhodan sacu-
diu a cabeça de forma quase imperceptível.
Ainda era cedo para uma fuga forçada para o
espaço.
Os lábios de Bell estreitaram-se. Sem dizer
uma palavra, desligou.
— Ensaio concluído, posição zero — soou a
voz de Thora pela aparelhagem de intercomuni-
cação.
Rhodan desligou. O rumorejar profundo no
anel equatorial do supercouraçado morreu.
Apesar dos campos de absorção de partículas,
o solo tornara-se incandescente a uma distância
de setecentos metros dos bocais.
O silêncio passou a reinar na sala de coman-
do. Só os instrumentos de controle continua-
vam a funcionar. Thora lançou um olhar para
Rhodan.
Enquanto ela girava a poltrona e se levanta-
va, Rhodan procurou localizar o mutante Wuriu
Sengu, que se encontrava por ali. Ao descobrir
o espia, foi agraciado por um ligeiro aceno de
114
cabeça.
O ensaio das máquinas preenchera sua fina-
lidade. Sengu, cujo dom não era afetado por
camadas de aço arcônida de um palmo de gros-
sura nem por campos energéticos altamente
concentrados, fora encarregado de verificar de
que forma os controles da estação de bordo es-
tavam ligados ao cérebro central.
Tanaka Seiko, o mutante positivo que reagia
a qualquer tipo de ondas, também estava pre-
sente. Ao que parecia, também concluíra suas
investigações.
Rhodan voltou a dirigir o olhar inexpressivo
para os controles. Subitamente, a voz metálica
do Grande Coordenador se fez ouvir:
— Mantenha-se afastada da linha vermelha
de perigo, comandante.
Thora estacou. A coisa semi-esférica, de al-
tura superior à de um homem, instalada no cen-
tro da sala de comando, ainda não desligara o
campo energético. Rhodan notou o impulso di-
agramático tremulante numa tela pequenina,
quase imperceptível. Examinando-o mais deti-
damente, Rhodan percebeu que, em algum lu-
gar, nas entranhas da nave, funcionava uma
usina de força de menos de 80 mil quilowats-
hora. O zumbido delicado era quase imperceptí-
vel. Perdia-se em meio aos outros ruídos.
115
Concluía-se que o aparelho funcionava com
a energia fornecida pelos mecanismos da nave.
Um interesse ansioso surgiu na mente de Rho-
dan. Memorizou cuidadosamente o pequeno al-
garismo surgido na parte inferior da tela diagra-
mática. O mesmo só podia referir-se a uma pe-
quena instalação energética secundária. As usi-
nas maiores produziam um potencial muito
mais elevado.
Tifflor também havia percebido. Empalide-
ceu ao olhar para Rhodan.
— Ensaio concluído — disse Thora, diri-
gindo-se ao receptor invisível do autômato. —
Daqui a dez dias, poderei arriscar a primeira de-
colagem. Até aqui as reações dos meus tripu-
lantes foram excelentes. Aliás, nem era de es-
perar que fosse diferente com zeklons da guar-
da do velho Imperador submetidos a um apren-
dizado hipnótico. Gostaria de realizar um en-
saio das usinas energéticas.
Aguardou a resposta. Um ligeiro zumbido foi
ouvido na cúpula de aço.
— Permissão concedida — decidiu o cérebro
no seu estilo lacônico e indiferente.
Thora voltou. Rhodan estabeleceu o contato
audiovisual com a segunda equipe técnica que,
sob a direção de Rous, guarnecia a central
energética principal.
116
Com isso, os postos mais importantes da
nave estavam guarnecidos. O sargento chamou.
— Reatores um a oito em ordem, iniciado o
processo de aquecimento — transmitiu.
Poucos segundos depois, os reatores nuclea-
res arcônidas iniciaram seu processo de fissão
nuclear, análogo ao do sol, que se realizava
com base na catálise do carbono. Estrelas artifi-
ciais surgiram no monstro de muitos metros de
altura, cuja energia era captada pelos converso-
res acoplados e conduzida diretamente aos cir-
cuitos sem fio, que faziam funcionar as máqui-
nas e instalações da nave.
Os reatores de números um a oito entraram
em funcionamento com intervalos de dez se-
gundos. No fim, o supercouraçado era um ver-
dadeiro monstro prenhe de energia.
Rhodan viu confirmado o relato do telepor-
tador, segundo o qual a Veast Ark estava plena-
mente equipada e pronta para decolar. O que o
incomodava era apenas o poderoso comando
de robôs de combate, que ingressara na nave
juntamente com os tripulantes humanos.
Rhodan trocou um olhar ligeiro com Thora.
Esta empalideceu no momento em que ligou o
compensador de gravitação. Um rugido terrível
penetrou até a sala de comando. Dos instru-
mentos de medição, concluía-se que o supri-
117
mento de energia aos projetores fora regulado
pelo mecanismo automático para o valor de 1,3
g.
No mesmo instante, o ruído dos geradores
cessou. Uma campainha estridente rompeu o
silêncio. Linhas vermelhas surgiram na tela do
autômato.
— Não concedemos permissão de usar os
compensadores — soou a voz retumbante saída
do aparelho.
Não houve outra advertência, e a voz não
parecia muito ameaçadora. Mas o simples fato
da interrupção abrupta do funcionamento dos
geradores demonstrava o grau extraordinário de
vigilância daquele cérebro, ocupado simultanea-
mente numa infinidade de outros problemas.
Thora anunciou o encerramento dos ensaios
programados para aquele dia.
— Permissão para o encerramento concedi-
da — soou a frase estereotipada. — Atenção
para a interpretação de sua atividade. Face ao
excelente desempenho de sua tripulação, con-
vém colocar a bordo as tropas auxiliares já pre-
paradas. Mil e quinhentos naats devidamente
instruídos subirão a bordo dentro de quatro ho-
ras. Ficarão submetidos ao seu comando. Pros-
siga na instrução teórica dos seus zeklons. Fim.
Rhodan não conseguiu reprimir uma vigoro-
118
sa praga. Com o rosto pálido, olhou para o au-
tômato auxiliar que media pelo menos dez me-
tros de diâmetro e executava com tamanha ra-
pidez e precisão as ordens da estação a que es-
tava subordinado.
— Era só o que faltava — cochichou Rho-
dan para a arcônida. — Não tem um meio de
impedir que os naats sejam colocados a bordo?
Thora ergueu os ombros, desolada. Para
uma arcônida o gesto era muito humano.
Os comandos vigorosos de Tifflor suplanta-
ram a palestra. As vinte pessoas que se encon-
travam na sala de comando levantaram-se.
Marshall lançou um olhar saudoso para a sala
de rádio, que estava separada por uma parede
blindada transparente.
Não tinham nada a fazer por lá. Por enquan-
to o treinamento só abrangia os setores mais
importantes.
Thora passou pelos homens que faziam con-
tinência. O reluzente campo energético que cer-
cava a estação retransmissora se desfez. Rho-
dan arriscou um ligeiro olhar para o indicador
de potência do pequeno gerador. A curva já se
apagara.
As escotilhas de segurança de vários metros
de grossura, feitas de aço arcônida, abriram-se
diante deles. O ventre mecânico da gigantesca
119
nave escancarou-se diante dos homens que saí-
am da sala.
Dois guardas robotizados fizeram continên-
cia, atirando os braços armados para cima. Wu-
riu Sengu espremeu-se ao lado de Rhodan. Os
outros logo compreenderam. As discussões em
torno deste ou daquele acontecimento torna-
ram-se mais ruidosas e violentas.
— É uma coisa estranha — disse o robusto
japonês em tom exaltado. — Olhei aquela coisa
de todos os lados e até pelo avesso. Não há ne-
nhum cabo que chegue até lá.
— Não tem nenhuma ligação por cabo? —
disse Rhodan, surpreso e perplexo. Seu cérebro
infatigável começou a funcionar.
— Será possível? Constatei que o robô rece-
be seu suprimento de energia de uma fonte ins-
talada no interior da nave.
— Não há nenhum cabo — insistiu o espia.
— Mas o aparelho dispõe de suprimento de
energia próprio. Vi nitidamente um minigera-
dor.
Rhodan engoliu uma praga. O nervosismo
começou a martirizá-lo.
— Conheço a explicação — cochichou Ta-
naka Seiko, o goniômetro, enquanto se aproxi-
mava. — No momento em que o campo ener-
gético foi ativado, registrei um fluxo energético
120
sem fio. Veio de baixo. A interrupção no funci-
onamento das máquinas foi levada a efeito por
meio de impulsos de rádio transmitidos pelo in-
tercomunicador numa freqüência absolutamente
estranha. Trata-se de ondas hipermoduladas,
que saltam a grandes intervalos sobre a escala
de freqüências. Não é possível esquematizá-las.
Rhodan parou, perplexo. Então era isso!
— E o reator embutido no aparelho? Entrou
em funcionamento? — perguntou com a voz
tensa.
— Não senhor, tenho certeza absoluta.
Acredito que só será usado numa emergência.
Rhodan e seu grupo entraram no grande
corredor circular que contornava a sala de co-
mando numa curva bastante ampla, dali havia
conexões radiais com o convés central, cuja
área bastava para abrigar todos os alojamentos
dos tripulantes.
Passaram pelo poço antigravitacional do ele-
vador central, que emitia uma leve fosforescên-
cia, seguindo os que iam à frente. Rhodan viu-
se novamente em meio aos seus homens.
— Prestem atenção — disse falando apres-
sadamente e em voz baixa. — Não adiantaria
interromper o suprimento de energia. O robô
de controle está equipado com gerador próprio.
Ivã, logo após o jantar você terá que procurar
121
um esconderijo na sala de comando, que não
possa ser captado por qualquer circuito de tele-
visão. Fique por lá. Se alguma coisa não der
certo, essa sala provavelmente será a primeira a
ser trancada. Leve um microrrádio. Assim que
receber a minha ordem, você destruirá aquilo
juntamente com a cúpula de aço, procedendo
de forma a não demolir todas as instalações.
O mutante de duas cabeças levantou as
mãos. Era a única pessoa capaz de destruir o
mecanismo de controle numa ação totalmente
inesperada.
Antes de entrarem na sala da tripulação com
as numerosas telas, os homens estavam devida-
mente informados. Cada um conhecia o lugar
em que devia apresentar-se.
Rhodan penetrou na ampla e confortável
sala de refeições. Gucky, que há quatro dias ar-
cônidas não fazia outra coisa senão saltar de
um recinto para outro, dedicando uma atenção
toda especial aos depósitos de armamentos, es-
tava agachado em atitude melancólica junto a
janelinha pela qual era servida a comida. Sem
dizer uma palavra, Rhodan pegou o sujeitinho
na altura dos quadris e o suspendeu no braço
esquerdo. Gucky chiou de prazer.
Em meio a uma conversa tola, cochichou
suas informações:
122
— Está completamente armada, chefe.
Bombas arcônidas, radiadores de impulsos e de-
sintegradores. Só os depósitos de mantimentos
não estão cheios. Não existe praticamente ne-
nhum lugar ao qual não tenha ido.
— Onde estão os robôs de combate?
— No convés dois, lá embaixo, pouco acima
da comporta inferior. Contei trezentos. Ainda
há uns vinte e cinco que montam guarda aqui
em cima. São máquinas pesadas, chefe!
Rhodan e seus oficiais sentaram em torno
de uma mesa grande. Thora e Crest retiraram-
se para a sala especial que lhes era destinada.
Como arcônidas que eram, não podiam rebai-
xar-se a ponto de comerem na mesma sala dos
zeklons.
Rhodan comia automaticamente. Seus pen-
samentos estavam longe dali.
— Marshall — soprou para dentro do apare-
lho implantado em sua garganta, sem mover os
lábios. O telepata respondeu. — Preste atenção
aos meus pensamentos. Ainda não estou em
condições de transmitir livremente. Compreen-
deu?
Como por acaso, Marshall ergueu a mão.
Rhodan continuou a comer como se nada tives-
se acontecido.
“Mande seus três teleportadores prepararem
123
desintegradores portáteis. Devemos contar com
um ataque dos robôs. Quando a hora tiver che-
gado, os teleportadores e os telecinetas deverão
ser os primeiros a atacar. Reúna seus homens e
mantenha desimpedido o convés central até
que tenhamos chegado à sala. Acha que conse-
guirá?” Mais uma vez o telepata respondeu com
um ligeiro sinal.
A conversa tornou-se cada vez mais forçada
e vazia. Numa e noutra das mesas começaram
a soar gargalhadas pouco autênticas. Ninguém
deixara de perceber a conversa muda, e todos
haviam ouvido que, dentro de quatro horas,
1.500 ciclópicos naats seriam levados a bordo.
Era claro que não poderiam aceitar mais
esse tipo de dificuldade.
— Tan’Ro, acabo de ser informada de que
em breve deverão chegar cinco mil robôs pesa-
dos de combate da última série. O Grande Co-
ordenador julga conveniente avisar os naats,
que chegarão logo após, de que qualquer rixa
será imediatamente punida. Como lugar-tenen-
te do comandante, você deverá colocar os ro-
bôs nos depósitos a eles destinados. Entendido?
— Entendido, Alteza — disse Rhodan com o
rosto pálido e a voz débil.
A expressão de desespero nos olhos de Tho-
ra era inconfundível.
124
— Mais uma coisa — disse com a voz entre-
cortada. — Pedem que, uma vez terminado o
carregamento dos robôs, você compareça ao
pavilhão de exames. Ordenaram nova investiga-
ção no seu cérebro. Não será dolorosa. Você
voltará imediatamente. Pretendo realizar mais
um ensaio de máquinas. Fim.
A imagem na tela empalideceu. Rhodan sen-
tou lentamente. Por alguns segundos, reinou
um silêncio completo no salão, em que cabiam
quinhentas pessoas.
— Quer dizer que os robôs chegarão, o mais
tardar dentro de três horas. Vamos terminar a
refeição e concluir os preparativos.
O sargento Rous foi o primeiro a afastar a
louça de plástico. Pigarreando fortemente, con-
vocou os homens de sua equipe técnica. O ros-
to de Anne Sloane apresentava uma palidez ca-
davérica. Era evidente que, se não poderiam
aguardar a entrada de 1.500 ciclopes, muito
menos poderiam esperar a chegada de 5 mil
máquinas de guerra pesadas. Se necessário, po-
deriam enfrentar os primeiros, mas nunca um
número tão grande de máquinas que cumpriri-
am prontamente qualquer ordem do cérebro
central.
Bell apalpou cuidadosamente o bolso inter-
no de sua blusa colorida. Isso significava que os
125
dados de uma transição ligeira que os levaria ao
quinto planeta já haviam sido programados.
Isso fora feito com o auxílio do microcalculador
que, apesar do perigo que isso representava,
fora trazido dos depósitos da Gazela.
Não se poderia correr o risco de utilizar um
dos inúmeros instrumentos de bordo. Era um
plano desesperado, que se tornava cada vez
mais arriscado, à medida que aumentava a de-
pendência temporal.
— Apresse-se! — insistiu Rhodan. — Vamos
proporcionar-lhes uma recepção condigna.

Mal saíram para o largo corredor que dava


para a sala de comando, aconteceu alguma coi-
sa com que nem Rhodan, nem qualquer dos ou-
tros homens do grupo contavam, principalmen-
te num momento tão crítico.
O aparelho de minicomunicação guardado
sob a blusa de Rhodan emitiu um zumbido estri-
dente. Estava regulado apenas para uma fre-
qüência bem determinada, por isso não poderia
tratar-se de uma transmissão ocasional. Ouvi-
ram-se três zumbidos; depois houve uma ligeira
pausa, seguida de cinco zumbidos.
Os dedos de Rhodan abriram apressadamen-
126
te a vestimenta. O minúsculo instrumento apa-
receu.
— É a Terceira Potência que está falando —
soou uma voz apressada. Somente o coronel
Freyt, comandante da Ganymed, poderia co-
nhecer o sinal convencionado. Recebera instru-
ções para só acionar os potentes transmissores
da nave num caso de extrema emergência ou
perigo.
O rosto de Freyt surgiu na minúscula tela de
imagem.
— Graças a Deus, o senhor ainda está vivo
— soou a voz vinda do microalto-falante. —
Ocorreu a hipótese Crepúsculo. Um comando
de busca chefiado pelo naat Novaal descobriu
que o senhor, Crest e Thora não se encontram
a bordo. Novaal vai denunciar o fato. Orientei
as antenas direcionais exatamente para Árcon I,
II e III. Esperava encontrá-lo em algum lugar.
Corremos um perigo enorme. Se o cérebro ro-
botizado raciocinar logicamente, tudo estará
perdido.
Rhodan contorceu ligeiramente os músculos
da face.
— Obrigado — fungou. — Fim. Aguarde-me
dentro de trinta minutos. É possível que demore
mais um pouco. Chegaremos num super coura-
çado. Prepare o plano Vesúvio. Teremos de ar-
127
riscar tudo.
Os homens ficaram em atitude tensa.
De uma hora para outra, surgiram as armas
que haviam sido guardadas nos alojamentos e
foram passadas de mão em mão.
— Não podemos perder tempo; está na
hora — disse Rhodan apressadamente. — To-
dos a postos. Ivã, saia correndo. Você tem que
dar um jeito de entrar na sala de comando. O
cérebro só levará poucos segundos para desco-
brir quem somos. Os elevados quocientes inte-
lectuais pelo menos o levarão a realizar um con-
trole. O fato de que lá desapareceram vinte e
cinco homens do nosso tipo logo provocará a
desconfiança do robô. Gucky, salte para o de-
pósito de armamentos juntamente com os ou-
tros teleportadores. Bell, entregue a fita de pro-
gramação a Tifflor. Ele se encarregará da tran-
sição. Vamos logo, Ivã!
As últimas palavras terminaram num berro.
Lá adiante o vulto gigantesco do mutante do-
brou por um canto do corredor.
Gucky, Ras Tschubai e Tako Kakuta dissol-
veram-se no mesmo instante. Sabiam perfeita-
mente de que armas precisariam para enfrentar
um ataque de robôs.
Os outros homens saíram em disparada,
num silêncio paradoxal. Era uma corrida contra
128
o tempo. Se o naat já tivesse transmitido seu
aviso, o cérebro robotizado agiria com uma co-
erência implacável. E o estranho ser peludo se-
ria reconhecido imediatamente.
Rhodan correu. Correu com o peito ofegan-
te e as pernas apressadas em direção à sala de
comando. Thora e Crest apareceram, vindos de
um corredor lateral. Foi nesse momento que
soou o alarma. Um apito estridente começou a
soar. Outros juntaram-se a ele.
No momento em que Rhodan passava pelo
elevador central, as escotilhas blindadas da sala
de comando fecharam-se mais à frente. Com
um forte estalo abriram-se os campos proteto-
res energéticos destinados a oferecer proteção
adicional. Sua luminosidade azulada fez empali-
decer as luzes normais.
— Para trás! — gritou Thora apavorada.
No último instante, Rhodan conteve o salto.
— Ivã está lá dentro — gritou Wuriu Sengu,
que se encontrava mais atrás. — Eu o vejo.
Respirando pesadamente, Rhodan empur-
rou os homens para trás, até a altura do eleva-
dor. O berreiro das instalações de alarma ainda
enchia os recintos amplos do supercouraçado.
Ao fecharem-se, as escotilhas haviam atira-
do Ivã Goratchim ao solo. As duas cabeças co-
municaram-se com um grito. Mais adiante, a
129
uns quarenta metros do lugar em que se encon-
travam, o campo energético especial do contro-
lador automático se inflamara. O instrumento
se regulara para o suprimento energético de
emergência.
As cabeças concentravam-se. A expressão
dos grandes olhos tornou-se mais intensa. Os
impulsos mentais invisíveis de nível superior
atravessaram facilmente a estrutura energética
do campo protetor.
O primeiro composto de carbono foi desco-
berto no próprio envoltório blindado. Ivã prefe-
riu não atacar essa concentração de átomos.
Isso levaria a uma explosão devastadora.
Na solda de uma das ligações de energia,
seus olhos descobriram vestígios de cálcio.
— Isso! — gemeu a cabeça da esquerda. —
Não é demais. Tudo preparado?
Um impulso poderoso atravessou a barreira
energética e a abóbada blindada. Apenas uns
poucos átomos de cálcio foram atingidos pelo
processo.
Ivanovitch, o jovem, soltou um grito estri-
dente. Contrariando a vontade do outro cére-
bro, os dois braços do corpo desengonçado co-
briram os olhos ofuscados. O colosso caiu pesa-
damente para a frente.
Uma ofuscante incandescência branca saiu
130
do autômato. A chama subiu até o teto abaula-
do, atingindo o parapeito circular e causando
graves avarias em alguns instrumentos de inter-
pretação astronômica ali instalados.
A abóbada blindada de aço de Árcon não se
desfez nos seus componentes. Mas no centro
da mesma, apareceu uma fenda de um palmo
em cujo interior fervilhava o material derretido.
O campo energético desmanchou-se numa lu-
minescência bruxuleante. O alarma automático
de fogo logo passou a desenvolver sua atividade
febril.
Os estridentes apitos de alarma deixaram de
funcionar. As lâmpadas vermelhas voltaram a
acender-se sobre as portas blindadas da sala de
comando, que continuavam fechadas. As insta-
lações comuns da nave, que já não estavam su-
jeitas à influência do controlador automático,
imediatamente voltaram a desempenhar suas
funções.
Ivanovitch gritou. Seu irmão mal e mal con-
seguiu arrastar o corpo da trajetória da porta in-
terna que se abria.
Rhodan saltou para o recinto, com a arma
engatilhada. Uma vez desaparecida a cortina
energética, o mecanismo que abria a porta fun-
cionou sem problemas.
Os lampejos ainda saltavam da abóbada
131
rompida. Uma terrível onda de calor recebeu os
homens que se aproximavam apressadamente.
O fedor dos isolamentos carbonizados fez com
que também a aparelhagem de condicionamen-
to de ar entrasse em estado de alarma.
Rhodan cobriu o rosto com as mãos e saltou
para dentro do assento de piloto de encosto
alto. Atrás de suas costas, surgiam inofensivos
robôs de reparos, controlados exclusivamente
pelos mecanismos automáticos da própria nave.
Os bocais do equipamento de incêndio chia-
ram ao espalharem os produtos químicos que
pelo simples contato produziam o congelamen-
to dos pontos atingidos pelo incêndio. Momen-
taneamente uma temperatura mais amena co-
meçou a reinar na sala de comando.
— Thora, controle as usinas energéticas —
gritou Rhodan. — Ativar os campos defensivos.
Rápido!
Os dedos trêmulos de Thora manipularam
os controles.
O sargento Rous avisou que a nave estava
pronta para decolar. Fazia algum tempo que
chegara ao posto de controle das máquinas. Os
alto-falantes de bordo transmitiram os primeiros
rugidos dos disparos energéticos de alta potên-
cia.
Marshall e Sengu colocaram sobre as pernas
132
o mutante monstro, que gemia deitado no
chão. Não podiam prescindir de Ivã.
As enormes telas de visão global ilumina-
ram-se diante de Rhodan. No mesmo instante,
os grupos de geradores de números um a qua-
tro começaram a funcionar.
Uivando fortemente, logo desenvolveram a
potência máxima.
Quando os projetores de campo superpesa-
dos começaram a absorver a energia liberada, o
gigantesco espaçoporto transformou-se num
fim de mundo.
Um tremendo fluxo de energia espalhou-se
vertiginosamente pelo corpo esférico do coura-
çado.
As placas de aço de vários metros de grossu-
ra que serviam de pavimento ao campo de pou-
so, transformadas em matéria gaseificada, fo-
ram atingidas pelo campo de defesa hipermag-
nético e atiradas violentamente para fora.
O hipercampo que servia à defesa contra
objetos materialmente estáveis avançou até al-
cançar um raio de cinco quilômetros. As naves
mais próximas foram agarradas por forças invi-
síveis e impelidas com tamanho ímpeto que até
parecia que estavam decolando mediante o uso
de toda a potência dos propulsores.
Uma área de dez quilômetros de diâmetros
133
foi atingida pelos campos defensivos do super-
couraçado. Não deixaram nada nos seus luga-
res. Nos pontos em que as energias tocavam o
solo, descargas quilométricas subiam aos céus
de Árcon. Os destroços incandescentes chovi-
am, transformados em raios. Longe, um peque-
no cruzador explodiu numa incandescência
ofuscante. Era uma explosão nuclear espontâ-
nea, que só poderia ter sido causada pela rea-
ção das armas de bordo.
Um furacão de fogo rugiu sobre a área. Mais
e mais construções e veículos espaciais foram
atingidos pelas labaredas, e os destroços incan-
descentes continuavam a subir às camadas su-
periores da atmosfera.
Os grupos de reatores de números cinco a
oito também estavam funcionando. Rous au-
mentou violentamente o desempenho dos gi-
gantescos geradores. Um mar de lava começou
a ferver em tomo da nave, mas esta não foi
atingida por qualquer onda de compressão.
Rhodan ouviu seu próprio berro. Não sabia
o que estava gritando no seu acesso de entusi-
asmo. Era a excitação dos últimos dias que en-
contrara um meio de expandir-se.
Thora anunciou que o campo antigravitacio-
nal e os neutralizadores de pressão estavam
funcionando. Com isso, poderiam dispor de
134
toda a potência dos reatores.
Os propulsores demoraram muito mais a en-
trar em funcionamento. Bell e Crest, que se en-
contravam no posto de controle dos mesmos,
transmitiam as informações em tom extrema-
mente nervoso. O propulsor número 16 pare-
cia gaguejar. O processo de fusão nuclear fora
iniciado sem que as máquinas estivessem aque-
cidas.
Dentro de poucos segundos também essa
máquina acompanhou o rugido do conjunto que
trabalhava em ponto morto.
Num gesto violento, Rhodan baixou a chave
de decolagem automática e ligou o dispositivo
de emergência destinado à pilotagem manual.
As luzes verdes dos controles de emergência
confirmaram que o autômato central entrara
em funcionamento. Dali em diante, poderiam
contar com o mecanismo de alta potência de
compensação positrônica. Pouco importaria a
forma de decolagem: a aparelhagem auxiliar se-
ria mantida constantemente na regulagem ade-
quada. Isso acontecia principalmente com o
mecanismo destinado à eliminação das forças
de inércia desencadeadas durante o processo de
decolagem.
— Vamos, decole! — gritou Thora. — O
que está esperando? Decole logo!
135
Olhando para as telas de visão global, Rho-
dan só viu um mar de fogo branco e ofuscante.
Fora uma loucura final ativar os gigantescos
campos energéticos no interior de uma atmos-
fera densa. E era ainda mais louco envolver ne-
les um corpo em repouso.
Um terrível furacão de calor, mais violento e
devastador que as ondas de compressão provo-
cadas por uma explosão nuclear, rugiu sobre a
área.
Junto aos campos energéticos, o ar entrou
em incandescência. O vácuo aumentava de in-
tensidade, enquanto perdurava o aquecimento
forçado. Até parecia que Árcon III teria que
submergir num inferno.
“E olhe que apenas ativei os campos defen-
sivos”, pensou Rhodan num instante. Logo co-
locou as chaves conjugadas dos propulsores na
posição de decolagem.
Depois de três segundos as ligações sincroni-
zadas passaram ao verde.
Com um rugido surdo, o gigante esférico
desprendeu-se do mar de fogo que surgira no
lugar em que antes havia chapas de aço.
Liberada do seu peso em virtude do eficien-
tíssimo campo antigravitacional, os propulsores
apenas tiveram que movimentar o gigante e
vencer a resistência do ar.
136
O campo de pouso foi recuado. Dentro de
dois segundos atingiram uma altitude de cinco
mil metros.
— Cuidado! — gritou Tifflor, abrigando-se
imediatamente atrás de um aparelho.
Um raio térmico desprendera-se da abóbada
energética bem visível do robô gigante. No mo-
mento em que a vista o captou, já percorrera a
distância até a nave.
Uma luz ofuscante brilhou nos campos ener-
géticos da Veast Ark. Um rugido surdo inter-
rompeu os ruídos dos propulsores. O supercou-
raçado rechaçara o raio mortal com tamanha
facilidade que o impacto mal chegou a ser regis-
trado.
— Que nave formidável! Que nave formidá-
vel! — gritou Rhodan. — Tifflor, ligue o autô-
mato da transição. Entraremos na rota de salto.
A nova aceleração que Rhodan imprimiu à
nave foi suficiente para transformar esta num
vulto fugaz. Começou com a cifra de cem quilô-
metros por segundo. O intenso deslocamento
de ar provocou novo furacão.
O que ficou para trás foi uma paisagem in-
cendiada. A abóbada energética do cérebro,
que continuou intacta, era o único vestígio das
enormes construções e dos gigantescos estalei-
ros que antes cobriam a área.
137
Depois de menos de dois segundos, o brilho
ofuscante desapareceu repentinamente diante
dos campos defensivos. A Veast Ark acabara de
atravessar as camadas superiores da atmosfera
e ingressara no espaço vazio.
Imediatamente, Rhodan deu o desempenho
máximo aos propulsores. Nunca ouvira um ru-
gido tão violento produzido por uma aparelha-
gem desse tipo.
A irradiação de impulsos expedidos à veloci-
dade da luz fez com que o supercouraçado
avançasse ainda mais rapidamente. Com uma
aceleração de 600 Km/seg2 disparou pelo es-
paço.
Tifflor trabalhou febrilmente na programa-
ção, que só agora se tornou possível.
Ao lado dele, Thora introduziu a rota de
aproximação, também calculada com antecipa-
ção, no dispositivo positrônico de pilotagem au-
tomática. Por enquanto, a nave ainda se deslo-
cava ao acaso pelo espaço vazio.
— Onde estão os dados? — gritou Rhodan.
Uma imagem surgiu na tela. O rastreador
automático, que logo começou a funcionar, in-
dicou dois couraçados da classe Império.
As naves dispararam todas as peças. Cinco
impactos, que teriam significado a destruição
imediata de qualquer outra nave, atingiram si-
138
multaneamente os campos defensivos. Um li-
geiro solavanco do corpo da nave foi o único si-
nal do ataque mal sucedido.
Após isso desapareceram imediatamente. As
naves da classe Império só conseguiram acele-
rar à razão de 500 Km/seg2, enquanto o gi-
gante do espaço dirigido por Rhodan atingia a
marca dos 600 Km/seg2.
Nas telas de imagem, que finalmente come-
çaram a mostrar contornos nítidos, surgiu o ne-
grume infinito do espaço. Só depois de alguns
segundos, os olhos ofuscados conseguiram dis-
tinguir o brilho formidável dos sóis muito próxi-
mos.
— Ligar o piloto automático — gritou Tho-
ra. Estava próxima a um esgotamento total.
Rhodan aguardou o sinal verde do piloto auto-
mático. Quando veio, moveu uma chave que
desligou a direção manual.
Um tremendo rugido fez a Veast Ark estre-
mecer. Num movimento que quase chegava a
ser brusco demais para os compensadores de
pressão, a esfera foi arrancada de sua trajetória.
A manobra de adaptação que foi seguida
por uma força de quase 4g atravessou os com-
pensadores. Thora, atingida pela súbita gravita-
ção, caiu ao solo. Tiff ajoelhou-se abruptamen-
te.
139
— Já passou — gemeu Rhodan com o pri-
meiro riso descontraído de seu rosto. — Já pas-
sou.
Seguiu-se um último empuxo de correção. O
marcador de rota foi entrando no círculo de
programação. Uma vez atingido, parou. O su-
percouraçado da classe Universo estava na rota
correta.
Rhodan ia enxugar a testa quando recebeu a
informação vinda de baixo. Bell havia abando-
nado seu posto.
— Finalmente estamos em cima. Que coisa
linda! Resta saber quanto tempo durará isso.
Nossos amigos de quatro braços, não reagem
bem aos disparos das nossas armas. Atraves-
sam o teto e vêm subindo. A todo instante sur-
ge um deles no lugar em que menos se espera.
Já paralisei os elevadores antigravitacionais. Fi-
car-lhe-ei muito grato se você puder dispensar
alguns dos seus homens.
Rhodan conhecia essa linguagem intencio-
nalmente relaxada. Sempre que Bell se expri-
mia dessa forma, estava prestes a sucumbir.
Rhodan mandou que todos os homens que
pudessem ser dispensados descessem. Os mu-
tantes já travavam uma luta encarniçada contra
os robôs desalmados, que evidentemente não ti-
nham a noção da morte.
140
Postos de comando dos mais importantes
foram desguarnecidos.
— Mande-os vestir trajes espaciais resisten-
tes — acrescentou Bell. — O rosto que apare-
cia atrás do capacete estava enegrecido. — A
temperatura média por aqui, às vezes, chega a
trezentos graus, apesar do sistema de condicio-
namento de ar que está trabalhando a plena
carga.
As ordens de Rhodan precipitavam-se. Falta-
vam uns quatro minutos para o início da transi-
ção. Tiff anunciara que estava tudo preparado.
A programação elaborada por Bell fora introdu-
zida num autômato encarregado do hipersalto.
— Thora, faça o favor de expedir um impul-
so condensado pelo hipercomunicador, dirigido
ao coronel Freyt. Repita, por quatro vezes, a
palavra minhocão. Solicite confirmação.
Depois de ter posto o transmissor a funcio-
nar, repetiu apenas três vezes a palavra conven-
cionada. Freyt confirmou com um pio de um
décimo de segundo.
Já sabia que dentro de três minutos, tempo
standard, Rhodan efetuaria a transição.
Nos conveses inferiores, rugia a batalha de
robôs. Menos de quarenta humanos e um rato-
castor lutavam contra máquinas de guerra dota-
das de reações instantâneas, cuja única ambição
141
parecia consistir em desmanchar em cinzas
qualquer ser orgânico que se encontrasse a bor-
do.
Era duro, para falar a verdade, duro demais.
Até mesmo os velhos combatentes da batalha
de Vega reconheceram isso.
Os teleportadores e telecinetas realizaram
um trabalho imenso. Ivã Goratchim destruía
uma máquina após a outra, fazendo com que se
derretessem de dentro para fora. Sabia perfeita-
mente em que ponto dos cérebros que os dirigi-
am encontraria vestígios mínimos de carbono.
Por sorte cuidara disso em tempo.
— Trinta segundos para a transição — soou
a voz de Rhodan pelos alto-falantes embutidos
nos capacetes. — Doze, sete, um, vamos...
O campo estrutural formado de um instante
para outro envolveu a nave. As naves da frota
robotizada, que seguiam à pequena distância,
registraram os fortes solavancos de uma altera-
ção estrutural que se iniciava. Mais algumas uni-
dades menores foram danificadas.
A Veast Ark, nova em folha, que apenas re-
alizara alguns vôos de experiência, iria realizar a
primeira transição.
Rhodan ainda sentia a dor na nuca. Logo
depois disso, começou o sussurro indefinido do
hiperespaço, que absorveu a unidade energética
142
totalmente desmaterializada. Neste ponto, ces-
savam as leis do espaço normal.
Rhodan viu fenômenos luminosos confusos.
Os combates travados a bordo do supercoura-
çado tiveram que ser suspensos, por alguns se-
gundos.

O rosto anguloso do coronel Freyt passara


por uma estranha transformação. Parecia uma
careta de palhaço de segunda categoria.
— Vem com um supercouraçado — repetiu
a informação do rádio-telefonista. — Com um
supercouraçado?
— Sim senhor! — fungou o homem. Tam-
bém parecia um tanto abalado.
— Que droga! — exclamou Freyt do fundo
da alma, tateando à procura de um lugar para
sentar.
Gastou exatamente oito segundos para dige-
rir a notícia surpreendente. Se o chefe disse
que viria num supercouraçado depois de ter de-
colado numa minúscula Gazela, isso levaria
qualquer psiquiatra, dotado de senso de objetivi-
dade, a comprimir os botões de alarme com os
dedos de ambas as mãos.
Freyt não era psiquiatra, embora fosse um
143
bom psicólogo. E, como conhecesse Rhodan,
há bastante tempo, admitia a possibilidade da-
quilo que parecia impossível.
Quando os oito segundos haviam passados,
virou-se rapidamente na banqueta giratória.
— Será que essa mensagem pelo hiper-
comunicador poderia ser um truque? — per-
guntou apenas por uma questão de forma.
— Não foi nenhum truque. Foi o chefe em
pessoa.
As solas de plástico dos sapatos de Freyt
rangeram quando o mesmo atravessou apressa-
damente a comporta blindada que separava a
sala de rádio da sala de comando. Em poucos
segundos os homens que cochilavam nos pos-
tos de combate ouviram um berreiro. O rosto
febril de Freyt surgiu em todas as telas.
— O comandante para todos — soou a voz
retumbante dos alto-falantes. — Ficaremos em
rigorosa prontidão. Preparar as torres de ca-
nhão para serem escamoteadas. Neste instante,
entra em vigor o plano Vesúvio. Fechar os tra-
jes espaciais e ligar os rádios de capacete. Parti-
da dentro de aproximadamente trinta minutos,
tempo de bordo. Atenção, sala de máquinas:
preparar nave para decolagem de emergência.
Oficial de armas: apontar canhões para os alvos
já identificados. Assim que as torres forem esca-
144
moteadas, os canhões deverão ser disparados.
Se os projetores dos campos de sucção não fo-
rem destruídos no primeiro ataque, nunca con-
seguiremos sair daqui.
“Atenção, tripulação do transmissor: orien-
tar o aparelho para a grande torre de tele dire-
ção situada ao sul do espaçoporto. Uma bomba
de fusão de vinte quilotons será suficiente, des-
de que exploda no interior da torre.
“Central energética: colocar todos os reato-
res em funcionamento. Quando o chefe chegar,
os campos defensivos terão que ser ativados
dentro de um segundo. Sairá do hiperespaço
depois de uma transição a pequena distância;
provavelmente aparecerá a pouca distância do
planeta. Sabem perfeitamente o que nos pode-
rá acontecer se nessa oportunidade estivermos
sem os campos defensivos.
“Para sua informação: o chefe aludiu à sua
chegada num supercouraçado. Face a isso, po-
deremos esperar ao menos uma nave da classe
Império. Portanto, não se assustem se, de re-
pente, avistarem um verdadeiro monstro. Con-
firmem o recebimento.”
Nunca se vira tamanha correria no interior
da Ganymed, desde que a mesma passou a ser
tripulada por seres humanos.
Jogos de baralho foram atirados aos cantos,
145
rações comidas pela metade caíam ao chão.
Face à prontidão simples já reinante, os postos
levaram menos de três minutos para anunciar
que tudo estava preparado.
Os canhões de desintegração giraram no in-
terior das torres. Quando fossem escamotea-
dos, não haveria necessidade de fazer pontaria
antes de atirar.
O primeiro oficial da artilharia passou as
pontas dos dedos pelo “teclado” de fogo. As lu-
zes verdes se acenderam uma atrás da outra.
O funcionamento do transmissor fictício era
autônomo. Na tela, aparentemente simples,
surgiu a torre de mais de quinhentos metros de
altura em que se localizavam as instalações de
comunicação e tele direção. No interior da mes-
ma, havia sido localizada a sala de comando
dos projetores do campo de tração.
Antes da partida de Rhodan, os mutantes
haviam assinalado a localização exata das
máquinas subterrâneas. Em meio ao círculo as-
sim traçado, encontrava-se a Ganymed, apoia-
da sobre as aletas de popa.
Máquinas começaram a zumbir. Dez minu-
tos depois da mensagem de Rhodan, transmiti-
da pelo hipercomunicador, não havia mais nada
que pudesse ser corrigido ou melhorado.
Quase mil homens aguardavam ansiosamen-
146
te o momento decisivo. Os rádios de capacete
garantiam a comunicação radiofônica com to-
dos os tripulantes. Freyt mandou que o receptor
da nave fosse sintonizado para os transmissores
de capacete. Dessa forma, todos ouviriam
quando chegasse a grande notícia.
Freyt sabia que, antes do salto, Rhodan ain-
da forneceria outras indicações. Os segundos
transformaram-se em eternidades, que pareci-
am desdobrar-se. Justamente nesse instante, a
ligação especial com o oficial de comunicações
do planeta Naat começou a funcionar.
Freyt fugiu apressadamente para um canto e
fez um sinal. O tenente Tanner, um tipo more-
no e ágil, colocou-se tranqüilamente diante do
receptor. Na tela, surgiu o rosto redondo do
naat com seus três olhos. Envergava o uniforme
de comandante de couraçado.
— O comandante Perry Rhodan já voltou da
tal da excursão? — perguntou o ser estranho
em tom irônico.
— Deverá voltar daqui a uma hora, aproxi-
madamente — respondeu Tanner com a maior
indiferença. — Pode acreditar que o comandan-
te apenas saiu para andar um pouco. Não
agüentava mais ficar preso na nave.
— Bem, veremos. Onde está o representan-
te de Rhodan?
147
— Está tomando um banho.
— Está fazendo o quê?
— Está se limpando. Raspando a sujeira da
pele. Entre nós isso costuma ser feito com água
e detergentes.
— Que loucura! — exclamou o naat, filho de
um mundo ressequido. — A água serve para
beber. O senhor pôs em funcionamento as
máquinas da nave. Por quê?
— Não queremos que enferrujem. E os tri-
pulantes têm que ficar em movimento. Permite
uma pergunta? Onde está o senhor neste ins-
tante?
— Na sala de controle. Por quê?
— Perguntei apenas por curiosidade — disse
Tanner com um sorriso muito gentil. — Sem-
pre gosto de saber onde se encontra meu inter-
locutor. Quer que peça ao comandante que
procure o senhor?
O naat desligou sem responder.
— Esse sujeito nem desconfia de sua sorte
— murmurou Tanner em tom sombrio.
Decorridos três minutos, surgiu outro impul-
so.
— Três vezes minhocão — berrou o opera-
dor de rádio.
Freyt limitou-se a fazer um gesto. Logo co-
meçou a contar. Depois de três segundos, os
148
rastreadores estruturais registraram um salto.
Meio segundo depois, Freyt comprimiu todos
os botões que se encontravam ao alcance de
suas mãos. Os geradores da Ganymed começa-
ram a rugir. Com um estalo, surgiu um campo
energético muito estreito, mas altamente con-
densado junto ao envoltório externo da nave.
As torres dos canhões saíram dos abrigos.
Antes que o ruído ensurdecedor de uma mano-
bra de imersão realizada nas Imediações da
nave atingisse os rastreadores estruturais, o ofi-
cial de artilharia abriu fogo.
Os raios de impulsos foram expelidos com
um rugido. O solo começou a ferver nos pontos
em que era atingido pelo calor tremendo das ra-
diações. Crateras borbulhentas surgiram nos
pontos exatos em que os projetores do campo
de tração estavam montados no subsolo.
A condensação energética de uma bomba
arcônida propagou-se com a velocidade da luz e
atingiu uma nave da classe Império pousada no
campo. A gigantesca esfera, totalmente despro-
tegida, desmanchou-se numa luminosidade tre-
meluzente.
No mesmo instante, uma enorme coluna de
fogo saiu da imensa torre de controle. O trans-
missor fictício não tivera a menor dificuldade
em romper o campo defensivo e colocar a
149
bomba no interior da construção.
Destroços incandescentes subiram com o co-
gumelo típico das explosões nucleares. A Gany-
med ignorou o furacão escaldante provocado
pela onda de compressão pois, naquela fração
de segundo, entraram em ação forças muito
mais poderosas que as desencadeadas por uma
bomba de vinte quilotons.
Pouco acima do envoltório atmosférico do
quinto planeta de Árcon um verdadeiro mons-
tro retornava ao espaço normal.
— Freyt, está preparado? — berrou uma voz
conhecida, na qual ainda ressoava o choque da
transição. — Decole. Dentro de dez segundos,
estarei acima do espaçoporto.
Freyt empurrou para baixo a chave de enga-
te. O inferno desencadeado nas imediações da
Ganymed preenchera sua finalidade. Os inven-
cíveis campos de tração não existiam mais.
No momento em que flamejantes jatos de
popa ergueram o couraçado e este começou a
subir lentamente, nova desgraça desabou sobre
a base espacial de Naatral.
Uma gigantesca esfera de fogo aproximou-
se velozmente, vinda do leste. A Ganymed, que
subitamente acelerou ao máximo e disparou
para o alto, mal e mal escapou à onda de com-
pressão antes que um terrível furacão começas-
150
se a rugir.
O novo supercouraçado voava a apenas dez
quilômetros de altura, provocando uma terrível
onda de compressão e de sucção.
O quinto mundo jamais conhecera um fura-
cão como este. Pesadas naves foram arranca-
das das suas bases e instalações técnicas caíram
como castelos de cartas.
Após um instante, tudo passou. Bem ao lon-
ge, um ponto luminoso que parecia insignifican-
te corria para o espaço. Uma vez rompida a at-
mosfera, cessou a incandescência que tremulara
em torno da Veast Ark numa extensão várias
vezes superior ao seu diâmetro.
Poucos segundos depois foi localizada a
Ganymed. No mesmo instante, o supergigante
surgiu nas telas dos rastreadores da nave terra-
na.
— Santo Deus! — gemeu o comandante. —
O que é isso?
As telas iluminaram-se e mostraram o rosto
desfigurado de Rhodan.
— Freyt, tenho que pilotar esta nave enor-
me com uns dez homens, porque os outros es-
tão lutando contra os robôs. Nada de pergun-
tas. Thora fornecerá as coordenadas. Ligue o
piloto automático, adapte a rota e acelere ao
máximo. Dentro de onze minutos, aproximada-
151
mente, realizaremos uma transição de aproxi-
madamente três anos-luz para o interior do gru-
po de estrelas. Os dados para o salto lhe serão
fornecidos depois da adaptação da rota.
Apresse-se. Preciso de reforços, não importa
como.
Os tripulantes da Ganymed agiram com uma
segurança de sonâmbulos. Rhodan não teve de
explicar as dificuldades que tinham de ser en-
frentadas para pilotar uma nave dessas com os
controles de emergência.
Os dados chegaram. Os propulsores da
Ganymed rugiram durante a manobra de adap-
tação de rota. Depois de realizada a última cor-
reção, deslocava-se praticamente na esteira dos
jatos da outra unidade.
As coordenadas do salto foram introduzidas
diretamente no dispositivo automático. Não se
realizou nenhuma programação mais precisa.
— Localização no verde trinta e dois graus,
cerca de cem naves — soou a informação vinda
do posto de rastreamento. — Outra localização
no vermelho, cinqüenta unidades pesadas. As
transições sucedem-se ininterruptamente.
Freyt pôs a funcionar os compensadores es-
truturais. Assim que mergulhasse no hiperespa-
ço, não poderia ser localizado. Todavia, a loca-
lização da nave de Rhodan seria perfeitamente
152
possível. Freyt começou a transpirar sangue.
Mais uma vez, o chefe colocava todas as chan-
ces numa única cartada. Provavelmente estaria
contando com a confusão tremenda, reinante
no setor de Árcon.
— Faltam vinte segundos — soou a voz de
Rhodan. Era quase imperceptível. Dez, seis,
um, vamos.
Dois corpos imensos desfizeram-se numa lu-
minosidade ofuscante. No mesmo instante sur-
giu um tremendo rugido na área do quinto pla-
neta. Mais de duzentos couraçados imergiram
quase simultaneamente no espaço normal.
A transição de Rhodan foi muito breve.
Quando sentiu a dor da rematerialização, mal
conseguiu levantar-se.
Bem perto do supercouraçado, a Ganymed
penetrou na dimensão normal à mesma veloci-
dade apenas onze por cento inferior à da luz.
— Depressa, Freyt! — gritou Rhodan no mi-
crofone. — Mais meia hora, e estamos liquida-
dos. Está registrando alguma transição?
— Ininterruptamente — foi a resposta ner-
vosa. — Tivemos sorte. Posso garantir que nes-
ta confusão tremenda não puderam localizar
onde saímos. À nossa frente, está um grande
sol vermelho. Não houve nenhuma localização.
Será que o senhor podia puxar-me com um ralo
153
de tração?
— Não tenho gente para isso — cochichou
Rhodan, exausto. — Vou desligar os campos
energéticos. Procure segurar minha nave.
Rhodan acionou pessoalmente os controles
necessários. Thora estava pendurada no seu as-
sento de piloto; perdera os sentidos.
Um grupo de reatores deixou de funcionar.
Logo depois, outro. Os dezoito propulsores dei-
xaram de trabalhar ao mesmo tempo. Só os ge-
radores pequenos destinados ao suprimento in-
terno da nave continuaram a funcionar.
Indefeso, o supercouraçado deslocava-se
vertiginosamente em queda livre, atravessando
o espaço vazio em direção ao sol vermelho, ain-
da distante.
Cambaleante, Rhodan saiu da poltrona e
ajudou Tifflor a pôr-se de pé.
— Já estou bem — disse Tiff com um sorri-
so débil. — Duas transições seguidas foram de-
mais.
— Fique aqui — ordenou Rhodan com uma
calma estranha. — Abra as comportas polares
superiores assim que os homens de Freyt inicia-
rem a travessia. Darei uma olhada lá embaixo.
— Não faça isso! — gritou o jovem atrás
dele.
Tiff arregalou os olhos de pavor.
154
Rhodan limitou-se a fazer um gesto. Ao en-
trar no corredor circular que começava junto à
sala de comando, ouviu o ruído dos disparos.
As detonações agudas sucederam-se.
“Ivã”, pensou Rhodan, enquanto sentiu suas
energias despertarem de novo.
Dois conveses abaixo, encontrou os primei-
ros combatentes. O sargento Rous se encontra-
va no comando. Um calor abrasador reinava
em toda parte. Rhodan viu-se obrigado a fechar
o capacete.
— Tudo bem. Por enquanto conseguimos
agüentá-los — soou a voz de Rous no alto-
falante do capacete. — Derrubamos uns duzen-
tos e cinqüenta. Na maior parte, devem ser cre-
ditados a Ivã e Gucky. A coisa não seria muito
grave se essas máquinas não disparassem as ar-
mas para abrir furos no teto das salas situadas
abaixo de nós para subir mais um pavimento.
— Defenda o elevador central. Bell, onde
está você?
De repente Rhodan, sentiu-se dominado
pelo medo de que o amigo pudesse estar mor-
to. Soltou um grito mais forte e desesperado
para chamar o companheiro.
— No convés trinta e dois, diante da porta
de uma sala de máquinas — rangeu a voz áspe-
ra de Bell. — Estão atacando que nem uns lou-
155
cos. Trouxe a Ganymed? A única coisa que per-
cebemos foram os dois saltos.
— Dentro de vinte minutos, no máximo,
chegará um reforço de oitocentos homens.
Freyt está realizando a manobra de aproxima-
ção. Agüentem mais um pouco, rapazes. Este
problema também será resolvido.
Rhodan desceu por íngremes escadas de
emergência. À medida que penetrava na parte
inferior da nave, o calor tornava-se mais insu-
portável.
Isso não afetava o material de que era feita a
nave. Não havia por ali nenhuma porta, nenhu-
ma travessa que não fosse de aço arcônida, um
material que suportava perfeitamente tempera-
turas superiores a trinta mil graus.
Descobriu os homens de Bell atrás de uma
coluna de suporte do amplo salão. Eram apenas
seis homens equipados com dois canhões de
desintegração portáteis e alguns radiadores de
impulsos pesados que mantinham a posição-
chave extremamente importante.
— Cuidado! — berrou alguém.
Rhodan saltou para o abrigo mais próximo.
No lugar em que se encontrara um instante an-
tes, surgiu uma mancha incandescente, da qual
o metal derretido pingava ao solo, produzindo
um chiado.
156
Rhodan atirou instintivamente. O feixe de
raios ofuscantes de sua arma de impulsos infla-
mou o campo defensivo do robô. Um segundo
impacto derrubou o vulto repentinamente saído
de um corredor lateral.
A máquina debatia-se furiosamente no chão.
A grande mancha incandescente do peito expe-
lia chamas ofuscantes. Era uma luta irreal e
enervante. Ninguém sabia indicar o lugar exato
em que se encontravam os cem robôs de com-
bate que ainda restavam. Era de esperar que de
repente surgissem pelas costas, desenvolvendo
a rapidez que lhes era peculiar. Quando suas
pesadas armas começassem a disparar, não ha-
veria nada que pudesse detê-los. O homem te-
ria de provar que sabia compensar a enorme
agilidade mecânica das máquinas desalmadas
por meio da sua inteligência.
Até agora, havia sido capaz. Mas Rhodan
não devia lembrar-se dos homens que apesar de
tudo foram surpreendidos.
Gucky apareceu por um instante. Ele e os
dois teleportadores eram praticamente os úni-
cos seres inatingíveis. E o rato-castor ainda ti-
nha a vantagem de, além da teleportação, ainda
dominar a arte da telecinese.
Antes que os homens de Bell pudessem girar
suas armas, o ser peludo descobrira o vulto me-
157
tálico que se aproximava sorrateiramente.
Rhodan ouviu seu próprio sorriso forte e es-
tridente, quando subitamente o robô voou e foi
atirado contra o teto com tamanha força que
seu micro cérebro, sensível aos choques, foi
prontamente inutilizado. Depois, foi jogado ao
solo por duas vezes com um impacto terrível.
Por fim, começou a girar loucamente, agitando
os membros metálicos.
— Gente, que brincadeira! — disse a voz
chilreante de Gucky.
No mesmo instante o rato-castor desapare-
ceu.
Rhodan soltou os últimos sons inarticulados
de seu riso histérico no microfone. Depois de
uma grave dissonância, calou-se.
— Está bem, minha gente, também tenho
nervos — soou sua voz nos alto-falantes dos ca-
pacetes. — Assim que puderem, respondam
um por um. Onde está Crest?
— Na sala de controle de máquinas, Perry
— soou a voz do arcônida. — Estamos num
campo de tração muito potente. Parece que...
O disparo de um desintegrador abafou a voz
de Crest. O homem agachado atrás do canhão
portátil mastigava, automaticamente, um ali-
mento concentrado conduzido à boca.
— Não há nada como as boas maneiras à
158
mesa — disse em tom sarcástico.

10

Ao lado do supercouraçado, a Ganymed


com seus 840 metros de comprimento e 220
metros de diâmetro parecia um barco salva-
vidas de tamanho um tanto exagerado.
Ao saírem das comportas de ar para num
salto vencer a distância de menos de cinqüenta
metros que os separava das escotilhas externas
do gigante, os homens dos grupos de combate
tiveram de usar toda a capacidade de raciocínio
para não se impressionarem profundamente
com a massa enorme que tinham diante de si.
— Grupo Tanner, segunda comporta da es-
querda — disse a voz saída dos alto-falantes de
capacete. — Quando penetrarem na atmosfera
normal, regulem os campos defensivos dos tra-
jes para a potência máxima. Não os abram. Em
alguns setores a temperatura é muito elevada.
Desintegradores superpesados, artefatos
que, muito mal, podiam ser carregados e mane-
jados com as duas mãos, foram trazidos a bor-
do pelos oitocentos homens.
Freyt resolveu utilizar também as comportas
da cúpula polar inferior para penetrar na nave.
Se os robôs ainda intactos reagissem de acordo
159
com as leis da lógica, teriam de lutar em duas
frentes.
Os homens da Ganymed trouxeram equipa-
mentos de que o grupo de Rhodan não dispu-
nha.
Se a bordo da supernave existiam trajes ar-
cônidas com geradores e campos defensivos
próprios, estes ainda não haviam sido encontra-
dos.
Parado diante do grande elevador central,
Tifflor indicava as posições dos grupos que iam
chegando.
Os combatentes, totalmente esgotados, reti-
ravam-se das suas posições, que passavam a ser
ocupadas por elementos descansados.
Só os mutantes continuaram a combater.
Dentro de meia hora, a ordem estabeleceu-se
naquela confusão. Os campos defensivos dos
trajes arcônidas eram capazes de resistir a um
impacto oblíquo. Mas com um disparo de radia-
ções direto de um robô, a coisa mudava de figu-
ra. Nesse caso, os campos defensivos desmoro-
nariam.
Rhodan, Crest e Thora encarregaram-se da
distribuição de tarefas nas áreas inferiores. Os
oitocentos homens foram avançando implaca-
velmente para cima, ou para baixo.
Passada uma hora a ação concentrou-se aos
160
recintos do convés 32, interrompido e dividido
a cada passo pelos elevados pavilhões de
máquinas.
— Atenção, todos os combatentes — soou a
voz de Rhodan pelo rádio. — Os robôs que se
tiverem abrigado atrás de alguma máquina im-
portante não deverão ser atacados pelos senho-
res. Sempre que virem um deles ou o localiza-
rem com os rastreadores energéticos portáteis,
avisem imediatamente o tenente Marshall, que
enviará um mutante. Só atirem quando não
houver risco de destruir alguma instalação vital.
Rhodan virou-se abruptamente quando al-
guns vultos delicados passaram apressadamen-
te. Eram os robôs médicos da Ganymed, cujas
células sensoriais descobriam um ferido com
maior facilidade que o olho humano.
Quando as primeiras vítimas da luta desigual
foram carregadas nas macas, Rhodan mordeu
os lábios. Os Drs. Haggard e Manoli também
estavam por perto.
Na maior parte das vezes, os ferimentos
eram graves.
— Daremos um jeito em tudo isso — gritou
Haggard. — Haverá necessidade de algumas
amputações, mas para a bioplástica arcônida
isso não representa qualquer problema. Preciso
de vinte homens descansados para transportar
161
os feridos.
Rhodan expediu imediatamente as respecti-
vas instruções. Os feridos foram transportados
com o maior cuidado para a Ganymed, onde
poderiam contar com todos os recursos da me-
dicina.
— Foi duro, muito duro! — suspirou Bell.
Seus cabelos ruivos cortados à escovinha esta-
vam chamuscados em cima da testa. — Esses
robôs devem pertencer a um novo modelo. Re-
agem mais depressa que os nossos. Se tivésse-
mos mais cinco mil máquinas desse tipo a bor-
do, seria a morte.
Mal acabou de proferir estas palavras, ador-
meceu sentado. Não despertou quando o braço
mecânico de um robô o ergueu suavemente e o
retirou do lugar.
Demorou mais quatro horas, até que as últi-
mas máquinas de guerra fossem abatidas a tiro
ou destruídas pelos mutantes. Rhodan organi-
zou grupos de busca, aos quais coube a tarefa
desagradável de limpar os diversos setores da
nave.
— Tomem cuidado, mas não se deixem do-
minar pelo pânico. Pela própria estrutura técni-
ca dos robôs de guerra, estes não costumam es-
conder-se à maneira humana. Atacam enquan-
to podem. Por isso, é quase certo que não en-
162
contrarão nenhuma dessas máquinas em ativi-
dade. Se ainda houvesse alguma, ela se teria
precipitado para as linhas de fogo.
Rhodan voltou o rosto cansado. O Dr. Eric
Manoli contemplou um par de olhos apagados
e inflamados, que retratavam todas as canseiras
e preocupações das últimas horas.
— Você precisa descansar imediatamente —
preveniu-o Manoli em tom preocupado. — Seu
corpo não agüenta isso por muito tempo.
— Em primeiro lugar, vem minha nave e mi-
nha gente. Onde está Freyt?
— Lá em cima, na sala de comando. Subi-
ram nos elevadores antigravitacionais que já
funcionavam de novo.
Quando Rhodan entrou na sala de coman-
do, os homens ficaram em posição de sentido.
Thora dormia profundamente no assento de pi-
loto.
Rhodan parou um instante diante dela e
olhou o rosto descontraído. Manoli suspirou ali-
viado quando viu que os lábios tensos de Rho-
dan foram afrouxando.
As telas de observação global estavam em
funcionamento. Especialistas muito bem treina-
dos, familiarizados com a aparelhagem da Star-
dust-III, ocupavam os postos mais importantes.
Julian Tifflor, de repente parecia não saber
163
o que era o cansaço, vez por outra dava suas
explicações.
A sala de rádio estava guarnecida e uma das
grandes unidades energéticas trabalhava com a
potência mínima.
Nas cúpulas polares da nave-gigante, gira-
vam as antenas dos rastreadores. A sala de ob-
servação e de rádio só se distinguia daquela da
Stardust pelo seu tamanho impressionante.
Rhodan ouvia atentamente o trovejar surdo
emitido ininterruptamente por um dos rastrea-
dores estruturais.
— Estão loucos à nossa procura — disse
Freyt em voz baixa. — Ouça este tráfego de hi-
percomunicações! O robô gigante deve estar
fora de si, se é que isso pode acontecer com
um robô.
Rhodan passou pela comporta blindada.
Mais uma transição sacudiu os instrumentos.
Escutou por alguns segundos e lançou um olhar
para as telas vazias dos rastreadores de matéria
de velocidade superior à da luz. Finalmente dei-
xou-se cair numa poltrona articulada.
— Era o que eu imaginava! Só mesmo por
acaso, em meio a tantos hipersaltos, o cérebro
poderia ter fixado justamente a posição do nos-
so. Por pouco, não perdemos a hora de saltar.
Se o fizéssemos agora, dentro de poucos minu-
164
tos toda a frota estaria em cima de nós.
— Onde estamos neste instante? Rhodan fi-
tou a enorme tela de visão global, que se esten-
dia sem a menor solução de continuidade. O
grande sol vermelho destacava-se nitidamente
sobre o cintilar irreal do grupo M-13.
— Não tenho a menor idéia. Só sei que per-
corremos uma distância de três anos-luz. Os cál-
culos da segunda transição foram realizados por
Thora. Deve ter escolhido um lugar relativa-
mente solitário no meio desse entroncamento
de tráfego galático. Freyt...
O coronel aproximou-se.
— Pois não.
— Seu aviso chegou bem na hora. Sem ele,
ainda teria esperado ao menos duas horas.
Qual foi o motivo da investigação?
— De repente, o tal do administrador de
Naat quis falar com o senhor. Ao que parece,
tratava-se de uma tarefa no espaço que devía-
mos realizar por ordem do cérebro.
— Ah! — disse Rhodan, acompanhado por
uma risada sem graça.
— Novaal, o tal do nativo, veio a bordo. Foi
quando começamos a transpirar. Deu pela falta
do senhor, e depois de algum tempo também
de Thora e Crest. Toda a tripulação teve que
entrar em fila fora da nave. Aí a coisa foi desco-
165
berta. Logo expedi a mensagem de emergên-
cia. Deve ter sido uma questão de minutos, vis-
to que Novaal imediatamente expediu uma
mensagem destinada ao cérebro. Nós a capta-
mos.
Rhodan acenou, em atitude pensativa. En-
quanto virava a cabeça, seus olhos voltaram a
brilhar. Era o momento da compreensão cons-
ciente. Naquele momento, deu-se conta de
quanto realizara com aquele pequeno grupo de
homens e mulheres.
Freyt sorriu consigo mesmo, quando notou a
alteração havida no rosto de Rhodan. Essa alte-
ração revelava um traço do caráter de Rhodan,
que, quase nunca, o abandonara.
O doutor começou pelo estraçalhamento in-
terno, observado na expressão de Rhodan.
— Não comece a pensar naquilo — obser-
vou o médico imediatamente. — Um certo tipo
de autodiagnóstico pode ser totalmente aceitá-
vel, mas não para o espírito de um homem que
a rigor devia estar na clínica. Você devia acabar
com esse tipo de autocrítica.
Rhodan dispensou um ligeiro olhar ao amigo
dos primórdios da conquista espacial primitiva.
Manoli acompanhara o primeiro vôo tripulado
à Lua no foguete químico Stardust. Foi naquele
dia, em 19 de junho de 1.972, que tudo come-
166
çou.
— Que dia é hoje? — perguntou Perry com
a voz baixa.
— Três de junho de 1.984 — disse Manoli
em tom compreensivo.
Rhodan deu uma risadinha distraída. Depois
disse:
— Acho que vamos dar a esta nave formidá-
vel o nome Titan. Sabem que a Terra já dispõe
de um couraçado gigante que provavelmente é
o maior e o mais poderoso da Via Láctea?
Lançou os olhos em torno. Os rostos céticos
fizeram aflorar um sorriso em seus lábios. A ve-
lha ironia ressoou em suas palavras:
— Bem, não é o que pensam. Garanto-lhes
que não entregarei esta nave a ninguém. Preci-
sarei de trinta dias para treinar a nova tripula-
ção. Depois veremos como serão embaralhadas
as cartas. Nossa excursão a Árcon foi um fra-
casso moral de primeira ordem. O resultado
prático da mesma consiste apenas no conheci-
mento do que está acontecendo no Grande Im-
pério. Esse conhecimento compensa todos os
sofrimentos. Meus amigos, se hoje a Terra fos-
se descoberta por uma frota robotizada, tería-
mos tempos terríveis diante de nós. Até agora
isso não aconteceu, porque ninguém me con-
vencerá de que os mercadores galácticos entre-
167
gariam a posição de um sistema solar tão valio-
so a um cérebro robotizado. Se o fizessem, já
não teriam nenhuma chance real.
Um novo rugido soou nos rastreadores es-
truturais. Por alguns instantes, viu-se um ponti-
nho luminoso na tela diagramática do aparelho
de observação a longa distância.
O corpo de Rhodan só se descontraiu quan-
do o ponto estranho saiu da tela.
— Estamos num lugar muito movimentado
— observou Freyt em tom nervoso. — O que
vamos fazer?
Rhodan levantou-se tranqüilamente. Mais
uma vez, seus olhos procuraram o sol verme-
lho.
— Mande setecentos homens para cá. Com
trezentos homens, o senhor não terá nenhum
problema em controlar a Ganymed. A Titan
leva quarenta naves auxiliares da classe Good
Hope. Se ainda quisesse tripular as mesmas,
precisaria de cerca de mil e quinhentos homens
treinados. Procuraremos um meio de nos sepa-
rarmos rápida e discretamente do grupo estelar
M-13. Por enquanto é só.
Quando Freyt ia formular outra pergunta,
viu diante de si um homem que dormia com os
olhos entreabertos. Sem dizer uma palavra, saiu
da sala de comando.
168
Lá fora, no grande ponto de entroncamento
e controle da imensa nave, Julian Tifflor conti-
nuava em plena atividade.
— Dirija-se imediatamente à clínica — res-
mungou Freyt em tom mordaz. — Faça o favor!
É uma ordem. Deixe isto aqui por nossa conta.
Saberemos lidar com as máquinas. Vamos logo,
rapaz, o senhor precisa dormir.
Tifflor mergulhou num oceano de embaraço
quando sentiu a mão de Freyt pousada em seu
ombro.
— Rapaz, vocês fizeram um trabalho formi-
dável! — disse alguém.
Naquele momento, também Tiff estava de
folga.
Bem longe da nave que vagava pelo espaço,
o sol desconhecido ocupava seu lugar no firma-
mento.
Parecia uma lágrima de sangue.

***

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Sim, era este o grande segredo que Crest
e Thora guardaram por treze anos: Árcon é
um mundo formado por três planetas, um
mundo de maravilhas técnicas.
Foi só graças ao transmissor fictício vindo
do planeta Peregrino que Perry Rhodan teve
possibilidade de visitar o mundo dos mila-
gres.
Mas, para sair de Árcon teve de recorrer a
um estratagema.
Perry Rhodan e seu grupo conseguiram
escapar ao cérebro positrônico, mas será que
recuperaram a liberdade de ação?
LUTA CONTRA O DESCONHECIDO, o
novo volume da série Perry Rhodan oferece-
rá o relato fascinante das novas aventuras
dos astronautas terranos.

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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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