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Chave Secreta X
W. W. Shols

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização
Vitório

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

2
Para impedir Thora de penetrar na forta-
leza de Vênus e estabelecer contato com Ár-
con, Perry Rhodan seguiu a arcônida, mas
não se lembrou de que os novos destróieres
espaciais ainda não estavam em condições de
irradiar mensagens em código que pudessem
atingir o cérebro positrônico da fortaleza.
Acontece que um robô nunca age irrefleti-
damente, guia-se apenas pela lógica; e é as-
sim que, face à aproximação não anunciada
de Thora e Rhodan, o comandante dos robôs
da fortaleza de Vênus manipula a CHAVE
SECRETA X, que fecha hermeticamente o
planeta...

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Personagens Principais:

Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potên-


cia; transformou-se em prisioneiro de Vênus.
John Marshall e Son Okura — Companhei-
ros de Rhodan na prisão.
Reginald Bell — Que não consegue estabele-
cer contato com o chefe.
Thora — Cuja fuga precipitada da Terra ter-
mina em fracasso.
Tako Kakuta — Cujas capacidades teleporta-
tivas são a última esperança de Bell.
General Tomisenkow — Um comandante de
divisão sem divisão.
Coronel Raskujan — Que a atmosfera de
Vênus transforma num elemento amotinado.

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— Nem que os senhores se arrebentem —


disse Reginald Bell depois de uma discussão
cansativa — não voltaremos à Terra. Continua-
remos na órbita de Vênus que estamos percor-
rendo. Entendido?
O pequeno grupo de pessoas que se encon-
trava na sala de comando acenou com a cabe-
ça. Nenhum deles demonstrou qualquer entusi-
asmo com a decisão aparentemente tresloucada
de seu comandante. Conformaram-se, porque
era Bell que dava as ordens. E todos os mem-
bros do Exército de Mutantes estavam conscien-
tes de que mesmo uma ordem aparentemente
absurda devia ser executada.
Bell desempenhava as funções de coman-
dante interino do Exército de Mutantes de Perry
Rhodan. Nesta posição não podia se dar ao
luxo de cometer enganos.
E aqui tudo indicava que um engano fora co-
metido.
— Parece que alguma coisa não está certa
— prosseguiu Bell em tom irritado. Seu indica-
dor estendido fez alguns movimentos ameaça-
dores para baixo. — Quem serve ao chefe da
Terceira Potência, quem prestou juramento pe-
rante Perry Rhodan, não pode abandoná-lo,
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por piores que estejam as coisas. Os senhores
querem voltar para a Terra. E depois? Sabem
perfeitamente que nosso chefe está praticamen-
te só ali embaixo, na selva de Vênus...
Wuriu Sengu, um mutante baixote, mas lar-
go e robusto, arriscou uma objeção:
— Okura deve estar com ele: provavelmente
Marshall e Thora também estão.
— Thora saiu sozinha numa nave — inter-
rompeu Bell. — Se é que teve alguma compa-
nhia, foi a de um robô. Rhodan, Marshall e
Okura seguiram-na em outra nave. Desde que
sabemos que aquele cérebro positrônico da for-
taleza de Vênus ficou maluco e, com base na
chave secreta X, programada por Rhodan, subi-
tamente não mais reconhece seu mestre e se-
nhor e o repele com todos os recursos técnicos
de que dispõe, não estou convencido de que
Perry e Thora estejam juntos. Tudo indica que
as naves deles caíram, e os dois estão expostos
aos perigos da selva de Vênus.
Sengu tentou dissipar o pessimismo de Bell:
— O chefe aludiu ao fato de que Thora, a
arcônida, está bem.
— Para sermos exatos — insistiu Bell — o
chefe disse muito pouco. Não teve tempo para
maiores explicações. O contato pelo rádio foi
interrompido em dois minutos, e até agora esta-
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mos tentando em vão estabelecer novo contato.
O cérebro positrônico da fortaleza de Vênus,
além de erigir uma barreira de quinhentos quilô-
metros, impede nosso pouso e não permite
qualquer comunicação com as estações de rádio
situadas na superfície do solo. De qualquer ma-
neira, os pequenos emissores e receptores de
pulso com que Rhodan se acha equipado estão
fadados ao fracasso. Acredito que nem mesmo
nosso potente emissor de bordo consiga rom-
per a barreira. Uma vez ajustado para uma situ-
ação de defesa, o cérebro positrônico dá cum-
primento cabal à sua tarefa. É um produto da
técnica arcônida. Não esqueçam este detalhe.
O mutante Tanaka Seiko fez um gesto res-
peitoso com a cabeça.
— Já falamos sobre isto. E agora o senhor
mesmo reconhece que somos impotentes. Por
que vamos ficar nesta órbita se não podemos
fazer nada por Rhodan?
Bell fez uma pausa. Seu olhar duro passou
de um para outro dos interlocutores mas, por
causa da cor dos seus olhos, não conseguia ser
tão penetrante como ele desejaria para se dar
um aspecto autoritário.
Ali estavam os melhores homens do seu gru-
po de elite. Eram mutantes selecionados entre
os membros do exército secreto de Rhodan, to-
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dos eles nascidos nos primeiros anos que se se-
guiram à Segunda Guerra Mundial. Vinham das
regiões de Hiroshima e Nagasaki, onde as pri-
meiras bombas atômicas da história da Humani-
dade haviam causado muita desgraça. Mais uma
vez, porém, a artimanha da seqüência grandio-
sa dos acontecimentos históricos fez com que
também ali surgissem as exceções que confir-
mariam a regra. Depois de vários decênios,
constatou-se que o inferno desencadeado com
o lançamento das primeiras bombas atômicas
sobre o Japão não trouxe apenas a desolação,
a morte e a doença. Em alguns casos, explicá-
veis certamente com base nas leis da genética,
houve pequenas modificações nas característi-
cas hereditárias, que se processaram segundo
as leis causais da evolução. Os filhos das pesso-
as que sofreram esse tipo de influência vieram
ao mundo com dons parapsicológicos.
Havia, por exemplo, Tanaka Seiko, que pos-
suía um sexto sentido que lhe permitia a recep-
ção de ondas de rádio: e ainda o espia, que era
Wuriu Sengu, um homem que não tinha a me-
nor dificuldade em enxergar através da matéria
compacta.
O olhar de Bell se fixou em Tako Kakuta.
— Estou me referindo a você, Tako. Não
acha que o cérebro positrônico deixou de consi-
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derar um fato?
— Está aludindo à minha capacidade de tele-
portação?
— Isso mesmo. O cérebro positrônico da
fortaleza de Vênus tem dez mil anos. Nem por
isso vou afirmar que seja pré-histórico. Afinal,
foi montado pelos membros de uma expedição
arcônida cujos conhecimentos técnicos naquela
época já eram muito mais avançados que os da
Humanidade dos nossos dias. Acontece que há
dez mil anos ainda não existiam no planeta Ter-
ra os mutantes dotados de capacidade parapsi-
cológicas. Logo, a conclusão que se impõe é a
de que este cérebro não tem capacidade de ser
programado para a defesa contra um teleporta-
dor.
— Então quer que eu...
Tako Kakuta se interrompeu. Lançou um
olhar assustado para a tela de imagem, regulada
para captar a superfície de Vênus. Sob a esfera
de sessenta metros de diâmetro formada pela
nave Good Hope-V — conhecida no código de
comunicações como girino número cinco —
deslizava, como que em câmara lenta, a paisa-
gem virgem e selvagem do planeta Vênus. Não
se percebiam os detalhes. Só vez por outra a
espessa camada de nuvens permitia a visão da
superfície do planeta. Eram florestas verde-
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escuras, um mar azul-escuro, que por vezes
chegava a jogar reflexos, e uma rocha marrom-
acinzentada, que na região da calota polar era
coberta de grossas camadas de neve. A imagem
apresentada pela tela mostrava muito menos do
que o teleportador via com os olhos da lem-
brança e da fantasia. Tako permanecera em
Vênus por longas semanas. Sabia que ali um la-
birinto o aguardava.
— Isso mesmo — disse Bell em tom sério.
— Quero que desça e entre em contato com
Rhodan. Se conseguir encontrá-lo, o resto será
brincadeira. Juntamente com o chefe somos
uma equipe invencível. Além do mais, vamos
conseguir o que pretendemos. Levaremos Rho-
dan à fortaleza pelo caminho mais rápido, para
que possa dar novas instruções ao cérebro.
— Naturalmente — disse Sengu com um
tom de otimismo na voz. — Por que a idéia não
nos acudiu antes?
— Foi porque muitas vezes somos inclinados
a considerar uma barreira energética arcônida
como algo de perfeito e absoluto. O contato
com a tecnologia arcônida nos transformou em
animais guiados pelo instinto, que no subconsci-
ente chegam a acreditar na perfeição. Prepare-
se, Tako! É apenas um pulo: você conseguirá.
— A distância chega a ser ridícula. Há tem-
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po vivo pensando num salto e já teria descido
por conta própria se...
— Se?
— Se não fosse a selva. Já a conheço. Mes-
mo um teleportador pode se perder nela, se fi-
car desorientado. Além disso, a gente está sujei-
ta a se encontrar com vermes antropófagos de
todos os tipos, diante dos quais até mesmo a re-
ação instantânea de fuga de um teleportador
será inútil.
— Está com medo?
— Sempre sinto um pouco de medo quando
tenho que descer diretamente para o inferno.
Mas não é isto que importa. Lá embaixo deve
haver vários homens que, a qualquer momento,
têm de estar preparados para defender sua
vida. Acontece que preciso de um objetivo defi-
nido. Enquanto não o tenho, posso me telepor-
tar uma infinidade de vezes sem encontrar Rho-
dan.
— Deixe isso por minha conta. O cérebro
positrônico de bordo armazenou todos os dados
relativos à manobra. Também dispomos da lo-
calização goniométrica da última mensagem
transmitida por Rhodan. Encontra-se exatamen-
te a cento e vinte quilômetros a oeste do grande
mar primitivo, situado na região norte do plane-
ta. Mais exatamente, está a oeste do braço de
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mar de quase trezentos e cinqüenta quilômetros
de largura que penetra profundamente no con-
tinente norte.
— Os dados ainda são muito vagos.
— Sei disso. Acontece que não disse que
você vai saltar neste minuto.
Bell afastou o teleportador com um gesto vi-
olento e se aproximou do cérebro positrônico
de bordo.
— Venham todos! Prestem atenção para
que Tako e eu não cometamos qualquer enga-
no. Ponho a mão no fogo se não conseguirmos
determinar a posição de Rhodan com uma mar-
gem de erro não superior a quinhentos metros.
Se não aterrisar nos braços do chefe, Tako,
você terá que se dar ao incômodo de chamá-lo.
— Naturalmente.
A interpretação dos dados armazenados foi
mais rápida do que se esperava. Os círculos
gravados no cérebro reagiram prontamente. Na
lâmina milimetrada do último estágio da inter-
pretação ótica, surgiu a projeção de uma repro-
dução fotográfica da superfície de Vênus, base-
ada em medições anteriores.
O mais difícil foi a sintonização individual de
Tako Kakuta diante do problema.
Sua mente tinha de realizar uma pontaria
muito exata, e para isso precisava de uma con-
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cepção concreta do lugar que desejava atingir
através da teleportação.
Em Vênus só podia contar com esse recurso
em escala bastante limitada. Vista de cima, a
selva parecia um tapete infinito, que numa con-
cepção ligeira oferecia um milhão de pontos ge-
ográficos equivalentes.
— Enxugue o suor, rapaz. Eu lhe dou uma
ajuda.
Poucos segundos depois a rede cartográfica
foi introduzida no aparelho. Muito embora ela
só representasse um recurso criado na mente,
que não retratava qualquer realidade na super-
fície do planeta, ela se revelou de alguma utili-
dade.
— A orientação está excelente — disse Tako
Kakuta depois de algum tempo. — Faça o favor
de não modificar a regulagem dos graus geo-
gráficos. O curso da nave também parece cor-
reto. Dentro de uns dez minutos deveremos
atingir o ponto mais favorável para o salto.
Todos lançaram um olhar automático para
seus relógios. Além dos cronômetros de bordo,
que registravam o tempo segundo o calendário
terrestre, os membros da tripulação traziam
consigo os chamados relógios de Vênus. A ro-
tação de Vênus é cerca de dez vezes mais lenta
que a da Terra. Por isso a duração do dia de
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Vênus é dez vezes maior.
Naquele instante, o ponto que, segundo o
cérebro positrônico da Good Hope-V, corres-
pondia à posição atual de Rhodan, ficava na
zona crepuscular móvel. Isso significava que
para os amigos que se encontravam na super-
fície de Vênus um novo amanhecer começara a
raiar há pouco tempo.
Os que se orientavam pelo tempo de Vênus
encontravam-se pouco antes das setenta e oito
horas.
Faltavam cinco minutos para alcançar a po-
sição de salto mais favorável.
Enquanto os homens esperavam em silên-
cio, a tensão crescia. Mas se alguém que se en-
contrava a bordo acreditava que a intenção de
Tako Kakuta era impossível, não o dizia. De-
pois que o cérebro da fortaleza de Vênus insta-
lara todas as barreiras concebíveis, a teleporta-
ção de um mutante poderia representar a últi-
ma possibilidade de transpor essas barreiras.
Faltavam três minutos.
Wuriu Sengu, o espia, soltou um gemido de
contrariedade. Depois de vários segundos de
extrema concentração, durante os quais apa-
rentemente mantinha os olhos fitos no nada,
descontraiu o corpo e, num gesto de desânimo,
se atirou numa poltrona.
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Essa demonstração de pessimismo, que facil-
mente poderia se transmitir aos outros, deixou
Bell bastante aborrecido.
— O que houve, Wuriu?
— Procurei reconhecer alguma coisa embai-
xo da camada de nuvens. É claro que consigo
ver mais que vocês. Para os outros a superfície
de Vênus não passa de uma triste camada de
nuvens e neblina, enquanto eu vejo nela um pa-
raíso luminoso e colorido. Mas o que importa
no momento são os detalhes; é claro que a uma
distância destas não consigo reconhecê-los.
Apenas sei que, a aproximadamente trinta qui-
lômetros ao sul do ponto determinado pelo cé-
rebro, existe um planalto quase totalmente livre
de vegetação. Mas supõe-se que o chefe se en-
contre em meio à selva mais densa.
— Você quer dizer que, se foi inteligente,
tentou atingir o planalto?
— Naturalmente. Para um náufrago repre-
senta a melhor proteção contra a fauna impre-
visível do planeta.
— Talvez tenha razão. Mas lá embaixo os
problemas devem parecer um pouco mais difí-
ceis do que se apresentam quando vistos atra-
vés de nosso cérebro positrônico. Seja como
for, podemos confiar irrestritamente no resulta-
do da localização goniométrica. Tenho certeza
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de que dentro de quinze minutos saberemos
mais alguma coisa. Está preparado, Tako?
Faltava um minuto para atingir a posição de
salto.
O teleportador confirmou com um aceno de
cabeça.
Além do equipamento usual, trazia um traje
arcônida especial afivelado às costas. Todos sa-
biam o que significava isso. Assim que tivesse
encontrado Rhodan, esse traje os ajudaria a al-
cançar a fortaleza de Vênus no mais curto espa-
ço de tempo. Uma vez lá, Rhodan poderia mo-
dificar a programação do cérebro positrônico.
Com isso o domínio da Terceira Potência sobre
o planeta seria imediatamente restabelecido. O
traje especial arcônida representava um recurso
técnico extraordinário. Relativamente leve, era
facilmente adaptável acima da vestimenta co-
mum e transformava seu portador num verda-
deiro Ícaro, num homem voador, já que o neu-
tralizador gravitacional nele embutido eliminava
a gravidade de um planeta de média força de
atração. O defletor de ondas luminosas e o
campo protetor energético faziam com que o
homem que o envergasse se tornasse invisível e
invulnerável.
Ainda bem que esse tipo de pensamento
restituía o otimismo aos homens. Assim que
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Tako Kakuta entregasse o traje a Perry Rho-
dan, o episódio do naufrágio teria chegado ao
fim.
— Faltam dez segundos — disse Reginald
Bell. — Prepare-se, Tako!
— Já vou saltar.
Para os membros do Exército de Mutantes o
desaparecimento de um teleportador era um
acontecimento a que estavam acostumados há
anos. Apesar disso, na situação especial em que
se encontravam, representava algo de extraor-
dinário e misterioso. Um homem normal sai
pela porta. Ou atira-se num poço antigravitacio-
nal. Mas um teleportador permanece no mes-
mo lugar. Através de um processo puramente
mental de concentração, transfere-se para o
chamado hiperespaço, desmaterializando-se da
mesma forma que uma nave espacial no início
do processo de transição. Volta a se materiali-
zar com a mesma rapidez no lugar de destino.
O corpo de Kakuta não se desvaneceu aos
poucos: de repente tinha desaparecido. Um li-
geiro ruído foi produzido pelo ar que preencheu
o súbito vácuo.
Antes que alguém pudesse respirar, o lugar
em que se encontrara Kakuta estava completa-
mente vazio.
— Agora precisamos ter um pouco de pa-
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ciência — disse Bell em tom professoral. Fez
menção de imitar Wuriu Sengu, que se inclinara
numa poltrona para aguardar confortavelmente.
Mas antes que atingisse o lugar um grito fez
com que voltasse a cabeça.
O espia, que se levantara de um salto, olha-
va perplexo para o corpo que se contorcia no
chão da sala de comando.
Tako Kakuta se debatia num sofrimento in-
dizível. Seu grito transformara-se num choro
convulsivo, que logo foi. interrompido por for-
tes acessos de tosse.
Ralf Marten, o teleótico do Exército de Mu-
tantes, deu um salto para trás quando Kakuta,
de olhos fechados, segurou sua perna e procu-
rou enlaçá-la num gesto de fúria e de súplica.
— Ficou louco! — exclamou Tanaka Seiko.
— Vamos todos agarrá-lo de vez e amarrá-lo.
Não sabe o que está fazendo.
Era verdade que o teleportador parecia não
saber o que estava fazendo. Em compensação,
os outros não sabiam o que deviam fazer. Kaku-
ta sentia os efeitos de uma estranha experiên-
cia. Não poderiam tratá-lo ao mesmo tempo
como doente e como malfeitor. E tudo indicava
que estava antes doente que louco.
— Devemos ajudá-lo! — declarou Marten.
Sua atitude era de compaixão e desconfian-
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ça.
Também os outros homens alargaram o cír-
culo em torno de Tako Kakuta. Procederam as-
sim por puro instinto. Mas a razão teria de in-
tervir.
— Ralf, concentre-se sobre seu cérebro —
ordenou Bell. — Diga o que está vendo e ouvin-
do.
A mutação espiritual de Ralf Marten permi-
tia-lhe desligar temporariamente seu próprio eu
para receber determinadas impressões sensori-
ais através dos olhos e dos ouvidos, sem que a
pessoa apossada por essa forma percebesse
qualquer coisa.
Marten se concentrou. Foi acometido pela
rigidez típica do mutante que está trabalhando.
Logo voltou a se descontrair e sacudiu a cabe-
ça.
— Tako não me diz nada. O que está vendo
e ouvindo é indefinível. Não nos reconhece.
Sua percepção está confusa como se fosse
um...
Marten hesitou.
— Fale logo — insistiu Bell. — Acha que
Tako está louco?
O teleótico acenou com a cabeça, numa ati-
tude pouco convincente.
— Era exatamente isto que eu pretendia di-
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zer. Acontece que não sou nenhum médico.
Não atribua muita importância às minhas im-
pressões.
— Ora, Tako, vá para o inferno! Você está
nos confundindo ainda mais. O cérebro de
Tako não pode deixar de retratar certos refle-
xos. Passou cinco segundos fora da nave. Não
pode ter se transformado num idiota dentro de
um espaço de tempo tão curto.
O teleótico deu de ombros; parecia perple-
xo.
— Não posso dizer mais nada que possa es-
clarecer o assunto. Se o cérebro dele reflete a
breve experiência pela qual acaba de passar, no
que diz respeito às impressões óticas e acústi-
cas, só posso afirmar que essa experiência deve
ter sido indefinível e maluca.
— Não o maltrate — recomendou Wuriu
Sengu. — Afinal, não é nenhum telepata.
— Obrigado pela lição — retrucou Bell bas-
tante contrariado. — Quer dizer que não temos
outra alternativa senão aceitar a sugestão de
Tanaka. Caímos todos ao mesmo tempo em
cima... Um momento, está se acalmando.
De repente Tako Kakuta ficou quieto. Só a
respiração rápida e forte traía sua excitação.
Depois de algum tempo abriu os olhos e enca-
rou os amigos, sem que neles se refletisse qual-
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quer conhecimento.
— Tenham paciência! — pediu Bell. — Ao
que parece o nervosismo está diminuindo. Não
podemos livrá-lo das dores enquanto não sou-
bermos qual é sua origem.
Bell se aproximou do teleportador.
— O que houve, Tako? Diga alguma coisa!
Demorou mais alguns minutos até que o ja-
ponês reagisse ao ambiente que o cercava. Os
traços de seu rosto pareciam se tornar menos
confusos.
— Meu Deus, Bell, por que não me ajuda?
— Ajudarei assim que me explicar o que há
com você.
— Sinto dores.
— Onde?
— Em toda parte. Nas costas, na cabeça...
Ninguém agüenta três horas naquele inferno.
Seus companheiros lançaram olhares inda-
gadores. “Realmente está doido”, pareciam di-
zer seus rostos.
— Ficou fora de três a cinco segundos —
constatou Tanaka Seiko. — Não é possível que,
num espaço de tempo tão curto, tenha pousado
em Vênus e retomado à nave.
— De qualquer maneira passou por uma ex-
periência, e por uma experiência muito intensa
— observou o comandante. — Dêem uma
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mão. Vamos colocá-lo no sofá do camarote ao
lado.
Bell ajoelhou perto dele e abriu o fecho
éclair do colarinho. Isso devia representar um
alívio para Tako, pois ele disse com a voz bem
perceptível:
— Obrigado!
Levaram-no ao camarote vizinho sem que
ele se opusesse. Kakuta mantinha uma atitude
totalmente passiva e inofensiva. Engoliu um
comprimido de analgésico, conforme haviam
mandado.
— Sente-se melhor? — perguntou Bell.
— Obrigado, estou um pouco melhor.
— Graças a Deus! Você se comportou de tal
maneira que seus companheiros pensaram que
estivesse louco. Já se sente em condições de re-
latar o que houve?
— Não há muita coisa a relatar. Não che-
guei a descer. É impossível chegar à superfície
do planeta.
— Ninguém esperava que nos poucos se-
gundos em que esteve ausente pudesse ter che-
gado a Vênus. Além disso...
— Por que vive falando em alguns segun-
dos? — perguntou Kakuta desconfiado. — O
inferno me segurou por várias horas, antes con-
seguir me livrar dele.
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— Está bem — interrompeu-o Bell. — Não
vamos discutir ninharias. O que importa é saber
qual foi o erro que cometeu.
— Como é que um teleportador pode come-
ter um erro? Você não está em condições de di-
zer aos seus olhos e ao seu cérebro como deve
se processar o fenômeno da visão: da mesma
forma eu não posso exercer qualquer influência
sobre o fenômeno da teleportação. É um dom
natural que funciona segundo suas próprias leis.
— Hum! — refletiu Bell em voz alta. — Se
não cometeu nenhum erro, não adiantará repe-
tir a experiência.
— Nem penso em repetir este tipo de expe-
riência! Desculpe. Não interprete minhas pala-
vras como uma manifestação de rebeldia às
suas ordens. Não sei explicar.
— Você aludiu ao inferno.
— É o único nome que posso dar àquilo.
Encontrava-me no nada. Apesar disso tudo
eram martírio e dores. Só consigo encontrar
uma explicação.
— Qual é essa explicação?
— O cérebro me repeliu. A chave secreta X
repudia tudo que, de qualquer maneira, assume
uma forma existencial. A energia de ordem su-
perior inclui-se nessa classe. Depois que nosso
pouso se tornou impossível, tivemos de nos
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conformar com uma interrupção total das co-
municações radiofônicas. E agora temos de nos
conformar com o fato de que os fluxos ener-
géticos do espaço de cinco dimensões também
são repelidos. Durante o estado de desmateriali-
zação devo ter me encontrado num campo tem-
poral de ordem superior.
— O que vem a ser isso?
— Veja a divergência sobre o tempo durante
o qual estive ausente. Todos dizem que não es-
tive fora da nave mais que cinco segundos. Na
verdade estive a caminho muito mais que isso...
Para provar sua afirmativa Tako Kakuta er-
gueu o braço esquerdo onde, ao lado da pulsei-
ra de finalidade múltipla, surgiu o mostrador do
cronômetro.
— Meu relógio está adiantado duas horas e
meia. Esta prova é suficiente?
Foi suficiente. A tripulação da Good Hope-V
refugiou-se numa atitude resignada. Nesse ins-
tante compreendeu de vez que não mais pode-
ria prestar auxílio a Perry Rhodan, que se en-
contrava na selva de Vênus. Rhodan e o peque-
no grupo de homens que o acompanhava de-
pendiam exclusivamente de seus próprios recur-
sos. Teriam de encontrar a solução.

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John Marshall corria para salvar a vida.
Correr era sua principal ocupação nos últi-
mos dias. Fugia dos homens do planeta Terra e
dos animais de Vênus. Todo o planeta parecia
conspirar contra sua pessoa.
Fungando caiu por cima de uma raiz que
atingia a altura de seu joelho. Rolou por cima
do ombro como um pára-quedista que toca o
solo e se voltou para ver o bicho. A raiz ofere-
cia bastante proteção, enquanto a ameaça só
viesse da frente.
Olhou para cima. O tronco era liso. Os pri-
meiros galhos ficavam a dez metros de altura.
Era impossível subir. O bicho chegaria antes. E
contra seus cem metros de comprimento prova-
velmente a mais alta das árvores de Vênus não
representaria uma proteção segura.
A cabeça comprida e pontuda do verme
branco e gosmento surgiu por entre a vegeta-
ção. A dois metros acima do solo, executou um
movimento ligeiro para a direita e para a es-
querda e arriscou mais um salto para a frente.
Marshall encontrara o bicho há cerca de
uma hora. Desesperado, pegou a carabina au-
tomática de fabricação russa que trazia consigo.
O susto pelo fato de que poderia revelar sua
posição aos perseguidores humanos sobrepujou
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o medo que o monstro venusiano lhe causava.
Há muito tempo o gigantesco verme gosmento
era conhecido como uma subinteligência abso-
luta: suas perigosas reações eram atos pura-
mente instintivos. Mas quem fosse enlaçado por
ele não teria tempo para fazer o testamento.
Uma arma automática convencional era pra-
ticamente ineficaz contra a massa de carne no-
jenta daquele monstro, cujas dimensões pareci-
am infinitas. Por isso mesmo, passado o primei-
ro susto, Marshall pegara o radiador de impul-
sos e abrira um fogo ininterrupto de vinte se-
gundos sobre aquela massa branca. O resultado
foi apenas uma divisão do bicho que, transfor-
mado em dois, reiniciou a perseguição. A fuga
consumiu as últimas energias de Marshall.
Naquele instante, estava deitado atrás da
raiz, que se erguia diante dele como uma mura-
lha protetora.
Que tal se atirasse bem de frente?
Era apenas uma idéia, e ao que tudo indica-
va até então ninguém a havia experimentado.
Um ataque lateral resultava na divisão daquele
corpo de cobra. E um ataque de frente? Pene-
traria por todo o corpo.
Era este o cálculo. Já não tinha forças para
correr. Mas ainda lhe restavam forças para fa-
zer pontaria e apertar o gatilho.
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O telepata John Marshall ergueu a arma. A
parte superior da raiz proporcionava um bom
apoio, que permitiria uma pontaria segura.
A conta tinha que dar certo. Tinha que dar
porque sua mente não podia conceber a idéia
de que pudesse morrer longe de toda a civiliza-
ção humana e sem qualquer pessoa que teste-
munhasse sua morte.
A cabeça do monstro balançava por cima da
alça de mira. Mas ainda não se encontrava
numa posição adequada para o tiro, já que o
corpo estendido ainda formava um ângulo obtu-
so com o eixo do radiador de impulsos.
Quando o animal se encontrava a menos de
vinte metros de distância, Marshall percebeu
que, de repente, aquele ser mudara de inten-
ções. Na verdade, falar de intenções em relação
a um bicho dotado de tão reduzida capacidade
cerebral já representava uma concessão. Não
possuía qualquer inteligência digna de nota. Só
agia através de reflexos condicionados. E isso
fornecia a explicação do comportamento irraci-
onal do verme.
Deslizou em direção à árvore, passou do
lado oposto do tronco de seis metros de diâme-
tro e, numa grotesca estupidez, prosseguiu seu
caminho em direção à vegetação rasteira não
muito distante.
27
John Marshall conteve a respiração. O que o
obrigou a tanto não foi apenas a ansiedade,
mas também o cheiro penetrante e inexplicável
para um homem vindo do planeta Terra. O ver-
me levou mais de quinze minutos para passar.
Enojado, perplexo e aliviado, Marshall seguiu a
extremidade posterior do monstro, que num
movimento aparentemente inofensivo mergu-
lhou na selva.
Em algum lugar o verme encontraria um bu-
raco profundo repleto de pólipos. Mergulharia
ali e viveria numa simbiose harmoniosa com
aquelas criaturas.
Marshall enxugou o suor da testa. Mas a
lembrança da ponta branca da cauda do verme
logo o fez despertar. Há uma hora, quando cor-
tara aquele animal com o radiador de impulsos,
as duas extremidades pareciam enegrecidas e
carbonizadas. Pouco depois a crosta devia ter
caído, da mesma forma que na outra metade do
verme logo voltara a crescer uma cabeça.
As peculiaridades incríveis da fauna de Vê-
nus eram conhecidas há anos, e por isso
Marshall sabia perfeitamente que ainda não se
livrara do perigo.
Se aquele verme se transformara em dois, a
culpa era dele mesmo. E o segundo verme sur-
giu no momento exato em que voltou a olhar
28
para a frente.
O que teria levado o primeiro a ignorá-lo de
repente? E isso depois de uma hora de perse-
guição intensa e metódica!
Uma única explicação acudiu a Marshall. Os
movimentos do fugitivo irritaram a fera e sem-
pre voltaram a despertar sua atenção sobre ele.
Assim que se abrigou atrás da raiz e se manteve
imóvel, o cérebro primitivo daquele ser deixou
de reconhecer o objetivo. A tática de se fingir
de morto tinha validade em qualquer mundo
onde a luta da vida se desenvolvia segundo leis
eternas.
Mas a nova esperança de Marshall logo se
revelou enganosa.
O segundo verme não era mais inteligente
que o primeiro. Apenas o acaso quis que raste-
jasse na direção, exata da raiz atrás da qual
Marshall se abrigara.
Desta vez teria que se defender. No último
instante, percebeu que não poderia participar
do espetáculo apenas como espectador. O mo-
vimento rápido com que levantou o radiador de
impulsos bastou para despertar a atenção do
animal.
A cabeça branca e pontuda disparou para a
frente. Os primeiros cinco ou seis metros do
corpo formavam uma reta perfeita.
29
A conta estava dando certo.
No sentido longitudinal daquele corpo não
havia qualquer divisão ou qualquer encapsula-
mento. Cada um dos anéis transversais do cor-
po poderia formar um novo organismo. Assim
que fosse atingido pela energia mortal, morre-
ria.
A certeza do êxito incutiu nova coragem na-
quele homem. Reunindo as últimas forças, sal-
tou para fora do seu esconderijo e atacou.
Como que tomado de uma sede de sangue, per-
correu os quarenta e tantos metros do corpo do
animal e, disparando ininterruptamente, traçou
uma linha de fogo contínua sobre o corpo bran-
co e descorado.
Perto da trilha gosmenta, que prosseguia
por mais alguns quilômetros, as forças o aban-
donaram e ele caiu ao solo. Vencera. O que lhe
restava era um desamparo total. Nem mesmo o
cheiro nojento e penetrante evitou que adorme-
cesse instantaneamente.
Quando despertou, o sol ainda se encontra-
va bem no oriente, atrás de um véu de neblina
branquicenta. Seu primeiro olhar foi para o cro-
nômetro. Dormira nada menos de seis horas do
tempo terrestre. E continuava vivo.
Os nervos estavam um pouco mais calmos.
E os membros obedeciam novamente à sua
30
vontade.
Naquelas seis horas parecia ter dormido o
sono inocente de uma criança. E toda criança
tem um anjo de guarda. Mas, no futuro,
Marshall não deveria confiar nesse anjo de
guarda.
Olhou para o sol que se levantava a leste.
Para uma orientação mais precisa, servia-se da
bússola giratória embutida na pulseira de múlti-
pla finalidade. A fuga do verme fez com que
desse uma volta, desviando-se alguns quilôme-
tros de sua rota. Bem, isso não lhe causava
maiores preocupações. Apenas faria com que
atingisse a costa um pouco mais ao norte. O
que importava era que atingisse o mar. Não de-
via ficar a mais de trinta quilômetros. Face às
suas forças minguadas, ainda era uma distância
muito grande. Poderia significar que teria de
marchar mais uns três ou quatro dias terrestres.
Ou uma semana, talvez mais.
Preferiu não fazer cálculos mais exatos quan-
to ao futuro. A marcha pela selva privara-o de
grande parte do seu otimismo.
A fome e a sede constituíam os fenômenos
mais regulares. Sorveu um gole de água da gar-
rafa que trazia de reserva; melhorara o sabor do
líquido com alguns restos de chá concentrado.
Sua refeição consistiu em duzentas e cinqüenta
31
gramas de carne fria. Quando a carne acabasse,
teria que se lançar novamente à caça. Mas isso
teria tempo. Até que a fome voltasse a atacar.
Lambeu os restos da gordura dos dedos e
pôs-se em marcha na direção leste. O mar de-
via ficar nessa direção. E no oeste as patrulhas
do general Tomisenkow deviam estar à sua pro-
cura. Proteger-se dele parecia mais importante
para essa gente do que se defender dos mons-
tros venusianos.
Naquela área a vegetação rasteira era bas-
tante escassa. O solo era menos úmido que nas
baixadas. Nos primeiros quilômetros a marcha
não foi cercada de maiores dificuldades. A visi-
bilidade era boa. O dia venusiano que rompia,
trazendo consigo um futuro incerto, constituía
um desafio para uma espécie de balanço inter-
mediário. Quem não sabe muito bem o que fa-
zer dali por diante e formula indagações sobre o
sentido que possam ter seus esforços, faz bem
em procurar se lembrar de como tudo come-
çou.
Fazia alguns anos que John Marshall, o tele-
pata do Exército de Mutantes de Perry Rhodan,
pisou pela primeira vez no solo de Vênus. Na-
quela oportunidade foi descoberta no hemisfé-
rio norte uma fortaleza misteriosa, construída
por uma raça extraterrena, os arcônidas. A for-
32
taleza datava da época em que os homens do
planeta Terra começavam a aproveitar o inven-
to da roda, a se arriscar cautelosamente mar
afora em embarcações primitivas e a lançar as
bases da geometria euclidiana.
Pelo que se dizia, naquela época os arcôni-
das de Vênus, cujo planeta natal ficava a milha-
res de anos-luz do sistema solar, chegaram a
fundar uma colônia na Terra. Mas esta submer-
giu com a lendária Atlântida.
Muitos séculos depois, se verificou o segun-
do encontro entre os homens e os arcônidas. A
primeira nave lunar americana, comandada
pelo então major Perry Rhodan, descobriu na
face oculta da Lua uma nave espacial arcônida
que realizara um pouso de emergência. Os úni-
cos sobreviventes entre os tripulantes da nave
eram o chefe científico da expedição, chamado
Crest, e Thora, a comandante da nave. Auxilia-
do pela supertecnologia arcônida, Rhodan ins-
talou no deserto de Gobi um novo poder políti-
co neutro. Após isso, comandou a primeira ex-
pedição a Vênus, que descobriu a fortaleza situ-
ada no norte. As instalações inteiramente auto-
matizadas e positronizadas levavam uma vida
autônoma. O grande cérebro robotizado dirigia
a defesa das fortificações segundo uma progra-
mação antiqüíssima. Rhodan foi o único que
33
conseguiu regular sua freqüência cerebral de tal
maneira que o cérebro reagisse melhor aos seus
comandos que aos de um arcônida.
Vários anos de evolução terrena e de expe-
dições importantes nas áreas interestelares fize-
ram com que o planeta Vênus, com sua fortale-
za, recuasse para o segundo plano do interesse
público.
Mas no Bloco Oriental surgiu um grupo de
conspiradores que resolveu ignorar os acordos
celebrados com Rhodan, dando causa a novas
complicações.
Grande número de naves espaciais russas
decolou em direção a Vênus, para transformar
o planeta numa colônia do Bloco Oriental.
O empreendimento não foi bem sucedido.
Enquanto na Terra as divergências políticas pu-
deram ser reduzidas a uma medida tolerável, a
expedição de conquista comandada pelo gene-
ral Tomisenkow foi se transformando numa far-
sa. Não conseguiu se aproximar do cérebro po-
sitrônico instalado em Vênus. O combustível
das naves espaciais fora suficiente apenas para
a viagem de ida. Uma frota de abastecimento
foi dizimada em virtude de um choque casual
com a nave de Rhodan; quando atingiu Vênus,
perdera grande parte de suas naves.
Os russos transformaram-se em prisioneiros
34
de Vênus. Levaram uma vida selvagem. A ex-
pedição desagregou-se. Grupos de rebeldes se-
pararam-se do grosso da tropa que se mantinha
fiel ao comando de Tomisenkow. Alguns fanáti-
cos paranóicos, como o tenente Wallerinski,
acreditavam chegada a hora de implantar um
novo tipo de pacifismo, que teria que ser im-
posto pela força das armas.
Muitas vezes Marshall refletira sobre a pro-
vável situação estratégica no planeta Vênus.
Mas tudo não passava de suposições. Só de
uma coisa tinha certeza: o general Tomisenkow
conseguira reunir os remanescentes de suas tro-
pas numa poderosa unidade. Era só a ele que
devia temer, pois suas patrulhas grudavam-se
nos seus calcanhares. Por duas vezes nos últi-
mos dias mal e mal conseguira escapar aos seus
perseguidores.
As forças desagregadas, como as dos pacifis-
tas comandados pelo tenente Wallerinski, tam-
bém poderiam se tornar perigosas. Mas só por
acaso poderia haver um encontro com elas em
meio à amplidão daquelas florestas e estepes.
Mas as preocupações da equipe de Perry
Rhodan não eram apenas estas.
Foi só pela obstinação da arcônida Thora
que se viram nessa situação complicada. Há
anos Thora empenhava-se pelo regresso ao
35
mundo distante de Árcon. Diante da falta de
compreensão de Rhodan, apoderou-se de uma
nave espacial terrestre e, acompanhada unica-
mente de um robô, decolou em direção a Vê-
nus. Na pressa se esqueceu do sinal codificado
de identificação, motivo por que a barreira ins-
talada pelo cérebro positrônico frustrou seus
planos. Perry Rhodan, que não pensara em ou-
tra coisa senão na imediata perseguição de
Thora, teve destino igual ao dela.
Ambas as naves viram-se detidas pelo cam-
po energético, que protegia a fortaleza num
raio de quinhentos quilômetros. Suas naves caí-
ram e, de uma hora para outra, viram-se numa
situação igual à do corpo expedicionário russo.
Thora logo fora aprisionada por Tomisenkow,
e Rhodan ainda não conseguira libertá-la. Mais
do que isso, durante um combate noturno foi
atingido no ombro, o que o pôs fora de ação
por algum tempo. Não estava em condições de
realizar marchas prolongadas. Por isso só o mu-
tante Son Okura, que tinha problemas de loco-
moção, permanecera em sua companhia.
Marshall recebera uma missão especial, que
o levara à selva inteiramente só, e o obrigava a
atingir o litoral do mar do norte.
Estacou. A debilidade física acelerava a
transpiração, obrigando-o a recorrer, com fre-
36
qüência cada vez maior, ao lenço para enxugar
o suor.
Valeria a pena?
Lançou um olhar aflito para a pulseira de
múltipla finalidade, que entre outros equipa-
mentos incluía um potente mini-transmissor.
Mas Perry Rhodan havia proibido expressamen-
te o uso do rádio quando houvesse possibilidade
de ser ouvido e localizado pelo goniômetro.
A missão especial também se ligava a um
encontro havido há vários anos. Naquela opor-
tunidade, a equipe de Rhodan encontrara na
costa oriental do braço de mar de trezentos e
cinqüenta quilômetros de largura uma espécie
de focas semi-inteligentes, cuja mentalidade ins-
pirava bastante confiança.
Depois que Rhodan fora ferido no ombro,
os quinhentos quilômetros de marcha que o se-
paravam da fortaleza de Vênus transformaram-
se num infinito. Mesmo que a cura fosse rápida,
era provável que, por mais algumas semanas, a
ferida constituísse um sério fator negativo para
o chefe da Terceira Potência. Para sobreviver a
esse tipo de provação, o homem deve gozar de
boa saúde.
Nessa situação, a melhor idéia que poderia
ter acudido àqueles homens era a das focas. Se
é que alguém poderia prestar um auxílio, seri-
37
am elas. E se havia alguém que pudesse entrar
em contato com elas, era o telepata John
Marshall, que atingiu o mar pelas noventa e
quatro horas.
Quando saiu da vegetação, estacou subita-
mente. À súbita visão do mar, ficou desconfia-
do, pois o subconsciente já lhe incutira a idéia
de que nunca atingiria seu destino. Mas pôs-se
a correr. A praia estava coberta de juncos que
iam até a altura dos joelhos. Seguia-se uma fai-
xa de areia amarelenta e limpa. E depois vinha
a água. Marshall só parou quando sentiu a mes-
ma tocar seus tornozelos.
As focas!
Procurou se concentrar. Colocou todo o de-
sespero de sua situação no grito telepático de
socorro. Depois de dois minutos se descontraiu.
Seu cérebro assumiu uma atitude passiva, sinto-
nizando-se para a recepção.
As impressões que penetraram nele eram
mais que assustadoras.
O ambiente aparentemente morto estava
cheio de vida. Essa vida ocultava-se nos juncos
e na água. E pensava. Eram pensamentos inu-
manos. Situavam-se muito abaixo do nível de
inteligência compreensível. Não passavam de
uma série de emoções, de reações instintivas si-
tuadas num primitivo nível animalesco. Não ti-
38
nham a clareza de uma fórmula matemática;
antes, deixavam o campo livre para as interpre-
tações, como uma pintura abstrata. Apesar dis-
so Marshall acreditou poder extrair de tudo isso
uma interpretação inteligível.
Teve de compor essa interpretação com um
misto de ganância, inveja, fome e agressividade.
Era o concerto oferecido pelas almas das criatu-
ras mais baixas. Os tons provenientes das cria-
turas mais desenvolvidas, das focas, achavam-se
ausentes.
Decepcionado, Marshall esteve a ponto de
abandonar o exercício cansativo da concentra-
ção. Subitamente, porém, um sinal de alarma
soou em seu cérebro. Um pensamento concebi-
do numa mente humana surgiu dentro de seu
círculo de alcance. Era um pensamento mortífe-
ro, vindo da costa.
Por pouco não deu um salto e saiu corren-
do. Mas lembrou-se em tempo que naquela situ-
ação sua vida dependia de sangue-frio. O pen-
samento girava em torno do ato de matar. E a
intenção era tão nítida que até mesmo a vítima,
John Marshall, estava perfeitamente fixada.
“É o espião da Terceira Potência, o lacaio
de Rhodan. Há dias você anda fugindo de nós.
Mas agora chegamos ao mar e você não pode-
rá prosseguir. Você tombará morto. Não mere-
39
ce nossa compaixão. Devia chamá-lo. Devia
mostrar-lhe o cano da arma e o fogo, mas
acontece que você é um dos homens de Rho-
dan. E com estes não se deve assumir o menor
risco.”
Marshall sabia que atrás dele, na orla da flo-
resta, existia uma mira, e que naquele instante
sua omoplata esquerda dançava diante da mes-
ma. O homem apontava a arma para seu cora-
ção... Assim que se virasse, o tiro seria dispara-
do.
Não se virou: atirou-se na água.
Naquele lugar a água era tão rasa que não
cobria seu corpo. Mas os juncos que cresciam
na praia ofereciam certa proteção.
No momento em que se deixou cair o tiro
foi disparado, mas o projétil passou por cima
dele.
O pensamento que surgiu a seguir na orla da
floresta foi uma idéia de pânico.
O assassino já não via sua vítima e pensou
em fugir. A reação de Marshall despertou rea-
ções supersticiosas em sua mente. Mas logo o
temor dos superiores e o medo da selva venusi-
ana interpuseram-se nestes fragmentos de idéi-
as.
“Preciso matá-lo! Preciso matá-lo, senão
nunca mais conseguirei viver tranqüilo perto de
40
Tomisenkow.”
John Marshall rastejou pela água rasa, rolou
até a margem e se escondeu entre os juncos,
onde permaneceu imóvel.
“Os Rhodan são feiticeiros! O medo é de
enlouquecer. Só quando todos os Rhodan esti-
verem mortos teremos sossego e poderemos
dormir sem pesadelos. Preciso matá-lo!”
A idéia foi se aproximando, e com ela o as-
sassino. Também se atirara ao solo, abrigando-
se nos juncos para lançar seu ataque. Mas a ati-
vidade de seu cérebro traiu sua posição. Ergueu
a cabeça por cima dos juncos. Marshall conhe-
cia a direção. Bastou-lhe girar sua arma por um
centímetro para a esquerda e apertar o gatilho.
Quando se levantou e foi para junto do ini-
migo, só encontrou um morto.
— É estranho! Dizem que somos os Rho-
dan, quando só existe um homem que usa este
nome.
Marshall sabia que estava só. Caminhando
ereto, dirigiu-se para a vegetação protetora da
selva. Um sorriso brincava em torno de seus lá-
bios. Era um sorriso de orgulho. Na terminolo-
gia do inimigo, também ele era um Rhodan.

41
O General Tomisenkow transferira seu quar-
tel-general para um ponto situado cinqüenta
quilômetros a leste. Estava situado num planalto
que se erguia em meio à selva com uma vegeta-
ção escassa. Isso facilitava sua defesa no caso
de um ataque lançado por um dos grupos rebel-
des. Era bem verdade que na selva encontraria
um esconderijo melhor. Mas não estava muito
interessado em ficar sem ser reconhecido. To-
dos sabiam que se instalara nessa área. E todos
sabiam que a tropa que se mantinha fiel a ele
era numericamente superior a todas as outras.
E essa superioridade colocava-o numa posição
em que não precisava temer um confronto
aberto.
As barraquinhas e cabanas de plástico emer-
giam em meio à vegetação de pouco menos de
dois metros de altura. Todo o perímetro do
acampamento estava protegido por uma linha
compacta de sentinelas.
De seis em seis horas a senha era modifica-
da, o que dificultava bastante a infiltração de re-
beldes. A patrulha que fora mandada no encal-
ço do telepata John Marshall era composta de
apenas doze homens e não dependia da senha.
Tomisenkow conhecia pessoalmente cada um
desses homens.
Subitamente o sargento Kolzov viu um pano
42
branco que se erguia em meio à vegetação.
— Senha!
— Sou o tenente Tanjev do comando avan-
çado. Preciso falar com o general.
— Levante os braços! Pode passar.
Um homem se levantou de um salto e se
aproximou com os braços erguidos.
— Está bem, tenente. Vá na direção daquele
arbusto redondo. O general mora à esquerda.
Há alguma novidade?
— Não ouvi sua pergunta, Kolzov. Preciso
falar com o general, não com o senhor.
O tenente Tanjev tinha o aspecto de um sol-
dado sadio que há vários dias se mantinha
numa atividade ininterrupta. E isso correspon-
dia aos fatos. Tomisenkow recebeu-o sem de-
mora. Ao entrar fez uma continência impecá-
vel.
“Os homens ainda estão em boas condi-
ções”, pensou Tomisenkow satisfeito. Recebeu
Tanjev com um sorriso benévolo, atrás do qual
se ocultava a curiosidade.
— Vejo que ainda está vivo, tenente. Quais
são as novidades?
— Aquele homem chegou ao mar, general.
— Que homem?
— Como sabe, há quatro dias houve uma
batalha de rebeldes ao sul do planalto. Confor-
43
me constatamos, pelo menos três elementos da
Terceira Potência participaram.
— Isto são fatos conhecidos, tenente — in-
terrompeu o general. — Acho que veio trazer
alguma novidade.
— Pois um desses homens foi sozinho em
direção ao leste, e saímos em sua perseguição
conforme nos foi ordenado.
— Foram instruídos para matá-lo ou trazê-lo
para cá. Já conseguiram?
O tenente Tanjev hesitou.
— Ainda não conseguimos capturá-lo, gene-
ral. Não é fácil agarrar um homem só, quando
o mesmo esteja prevenido.
— Quem poderia tê-lo prevenido? Em Vê-
nus quase não há gente.
— O soldado Lvov cometeu um erro. Cor-
reu à frente do grupo por conta própria. Não
gosto de pôr a culpa nos mortos.
— Quer dizer que Lvov está morto?
— Sim, general. Encontramos seu cadáver
na praia.
— Quer dizer que aquele homem solitário do
grupo de Rhodan foi o elemento mais capaz.
Será que nem com uma superioridade de doze
para um e com todas as vantagens estratégicas
o senhor está em condições de cumprir uma
missão destas?
44
A benevolência desapareceu por completo
do rosto de Tomisenkow.
— Por que veio até aqui, tenente? Para
anunciar seu fracasso?
— Vim pedir reforços, general. Atingimos o
mar e, para estarmos seguros, devemos contro-
lar pelo menos dez quilômetros de costa. Além
disso, julgo necessário que cada grupo seja
composto ao menos de três homens. Precisa-
mos dessa superioridade, que na verdade nunca
passará de uma inferioridade.
— O que quer dizer com essa frase contradi-
tória, tenente?
Tanjev voltou a hesitar.
— General, o senhor sabe perfeitamente o
que andam contando por aí...
— É aquela história do gigante e do feiticei-
ro, não é? — disse Tomisenkow em tom áspe-
ro. — Não venha me dizer que vai falar seria-
mente nos termos das fantasias propagadas pe-
las revistas de fim-de-semana. Se o grupo co-
mandado pelo senhor é composto de gente in-
gênua, mandarei recolhê-lo ao acampamento e
o substituirei por uma tropa composta de gente
adulta.
— Às ordens, general! Cumpriremos nosso
dever. Mas acho que os reforços são indispen-
sáveis.
45
— Por causa dos dez quilômetros de costa?
— Sim, general — respondeu Tanjev em
tom submisso.
— Muito bem; o senhor os receberá. Tomi-
senkow escreveu um bilhete.
— Apresente isto ao coronel Popolzak e es-
colha os melhores elementos. Espero que da
próxima vez que se apresente possa comunicar
uma ação bem sucedida. Obrigado.
— Obrigado, general. Mais uma pergunta. A
suspensão das comunicações pelo rádio conti-
nua de pé? Num caso urgente uma mensagem
radiofônica será mais apropriada...
— Pode retirar-se, tenente — interrompeu
Tomisenkow. — Darei novas instruções quando
julgar conveniente. A suspensão continua de
pé. Tenho motivos para isto.
Dali a uma hora o tenente Tanjev saiu do
quartel-general, acompanhado de vinte e cinco
soldados.
Durante essa hora o general não quis falar
com ninguém. As informações de Tanjev leva-
ram-no a refletir, embora não o reconhecesse
perante os outros. Ele mesmo achara instintiva-
mente que havia algo de verdadeiro naqueles
boatos que nunca silenciavam. Mas não havia
nada de tangível. Era apenas o milagre dos êxi-
tos de Perry Rhodan e da Terceira Potência,
46
que já se prolongavam por dez anos. Devia ha-
ver alguma explicação para o fato.
Pensou em Thora, a arcônida aprisionada. E
no robô R.17, que nunca saía de seu lado.
Sua mão se fechou. Deu uma pancada na
mesa de lona e despedaçou-a. Nem por isso sua
exaltação diminuiu.
Dirigiu-se à saída da barraca.
— Coronel Popolzak — gritou em meio ao
amanhecer de Vênus.
O coronel engatinhou para fora da barraca
vizinha.
— Às ordens, general.
— Venha cá! Preciso de cinco homens de
absoluta confiança.
— Pois não. Logo os mandarei.
— Deixe-me terminar! Não quero ver estes
homens. Ninguém deve vê-los. Daqui a pouco
darei um passeio com a prisioneira, fora do
acampamento.
Tomisenkow explicou mais alguns detalhes e
dirigiu-se à cabana que abrigava Thora e seu
robô.
— Olá, miss Thora. Posso entrar?
— Ah, é o general. Desde quando resolveu
praticar a cortesia?
Saiu da cabana e, num gesto de desafio, ati-
rou seu longo cabelo branco para a nuca. Tomi-
47
senkow evitou o olhar zombeteiro de suas pupi-
las avermelhadas. Esse tipo de duelo com aque-
la mulher sempre o deixara irritado.
— Quero convidar a distinta senhora para
um passeio. Acho que concordará em desfrutar-
mos juntos esta linda manhã de Vênus.
— Vamos — respondeu Thora numa sur-
preendente concordância. — Deve ter um esto-
que daqueles assuntos com que costuma me en-
treter de forma tão agradável.
Tomisenkow sabia perfeitamente que até en-
tão nenhum dos assuntos por ele abordados ha-
via sido do agrado da arcônida. E o assunto a
ser tratado hoje seria ainda mais desagradável.
A malícia voltou a animá-lo.
— Aguarde a surpresa, madame.
— Estou certa de que conseguirá surpreen-
der-me, general. Por exemplo, esse canhão que
traz nas costas...
Tomisenkow trazia um fuzil a tiracolo.
— Talvez tenhamos que penetrar em terre-
no difícil. Não preciso explicar à senhora, que
conhece perfeitamente as condições reinantes
em Vênus, que certos animais podem se tornar
bastante perigosos.
— Na minha opinião o R.17 será suficiente.
— Talvez seja suficiente para proteger a se-
nhora. Mas estou convencido de que não move-
48
rá um dedo se alguma coisa acontecer a mim.
Por isso, peço-lhe que deixe por minha conta a
escolha da maneira pela qual vou proteger mi-
nha pessoa.
As sentinelas postadas na saída do acampa-
mento fizeram continência quando Thora, o ge-
neral e R.17 passaram diante deles.
— Por que vamos nos afastar tanto? — per-
guntou a arcônida de repente. Estaria desconfi-
ando de alguma coisa?
Tomisenkow conseguiu esboçar um sorriso.
— Não se preocupe, madame. Não nos
afastaremos do acampamento mais que a dis-
tância de um tiro. Se estiver entrevendo a idéia
de fugir com o auxílio de seu amigo artificial, ou
mesmo de fazer algum mal à minha pessoa,
deixe que eu a previna em tempo. Quero lhe fa-
lar a sós.
— Isso poderia ser feito na barraca do se-
nhor.
— Deixe a decisão por minha conta. E pro-
cure se concentrar para dizer a verdade, no seu
próprio interesse.
— Devo interpretar isso como uma ameaça?
— Sinta-se ameaçada enquanto não obede-
cer às minhas ordens. Conte alguma coisa so-
bre seus mutantes.
— Sobre quem?
49
— Sobre seus mutantes. Refiro-me àquelas
pessoas misteriosas, sobre as quais a imprensa
mundial andou publicando uma porção de toli-
ces. Acontece que deve haver algo de verdadei-
ro em tudo aquilo. Sabe perfeitamente que de-
pendemos um do outro. O próprio Rhodan difi-
cilmente terá uma chance na selva de Vênus.
Deixou sua superioridade técnica em casa. E
antes que atinja a fortaleza do norte seu corpo
apodrecerá nos pântanos.
— No entanto, o senhor acredita nos mu-
tantes. Admitamos a hipótese de que estes real-
mente existem. Neste caso a superioridade de
Rhodan não seria imensa? Mesmo sem os re-
cursos tecnológicos? Ainda acontece que o se-
nhor se engana ao acreditar que Rhodan veio a
este planeta em minha companhia.
— Rhodan está aqui! — disse Tomisenkow
em tom áspero. — Não adianta negar.
— O que acabo de lhe dizer é a verdade, ge-
neral. O que adiantaria ratificar a mesma? Ao
que parece está mais bem informado sobre o
paradeiro de Rhodan do que eu. Se ainda se
encontra na Terra, ele me tirará daqui antes
que se passe mais um dia de Vênus.
— Pois antes que esse dia de Vênus chegue
ao fim, teremos atingido as montanhas do nor-
te. E assim que estivermos de posse da fortale-
50
za, tenho todo o planeta sob meu controle. Se
os planos secretos da senhora prevêem outra
coisa, só posso ter pena, madame. Se unir-se a
mim, levará o tipo de vida que lhe agrada. A
outra alternativa seria continuar a ser minha
prisioneira para sempre. E posso lhe assegurar
que disponho de meios para tornar sua vida
bastante desagradável.
— Não tenho a menor dúvida. Toda vez que
me diz uma coisa desagradável, suas palavras
correspondem à verdade. Acho que devemos
voltar, general. Nossa palestra é inútil.
— E os mutantes?
— Conheço os mutantes da Terceira Potên-
cia — disse Thora. — Alguns deles sabem ler
pensamentos. Outros podem influenciar os
pensamentos de alguém. Os chamados telepor-
tadores transferem-se de um lugar para outro
por força do pensamento. A qualquer momento
encontram-se no lugar em que querem estar. Se
eu fosse uma teleportadora, poderia chegar à
fortaleza de Vênus dentro de dois segundos.
— Rhodan é um mutante?
— Isso seria novidade para mim. Por que diz
isso?
— Enviei uma patrulha que o vem perse-
guindo há dias. Rhodan já atingiu a grande baía
do mar do norte. Está numa armadilha. Admita-
51
mos que não seja um mutante. Neste caso pos-
so ter certeza de pôr as mãos nele dentro de
dois dias terrestres.
Thora não deixou perceber quão profunda-
mente a notícia que Tomisenkow acabara de
dar-lhe a comovia. Embora ao sair da Terra
praticamente tivesse fugido de Rhodan, acredi-
tava que este seria o homem mais indicado
para libertá-la. Depois que seus planos se frus-
traram com a queda sobre a selva de Vênus, já
estava arrependida no seu íntimo da sua ação
precipitada.
— Se acredita que ele se instalou em algum
lugar da costa do mar do norte, vá buscá-lo.
Não posso impedi-lo.
Naquele instante um tiro foi disparado nas
proximidades. Uma bala ricocheteou e, assobi-
ando, foi bater contra a rocha.
— Proteja-se! — gritou o general, mas cor-
reu mais uns vinte metros antes de se atirar ao
solo.
Thora desapareceu imediatamente. Mas o
robô continuava de pé e enviou um breve raio
energético para a floresta, que logo começou a
arder.
Seguiu-se uma salva de tiros de armas manu-
ais.
Era evidente que o ataque se dirigia exclusi-
52
vamente contra a arcônida, pois o fogo se con-
centrou sobre o lugar em que se abrigara.
No mesmo instante o robô saltou para a
frente.
Ninguém acreditaria que pudesse ser tão
ágil. Seu corpo foi cercado por uma camada
tremeluzente, que parecia de ar quente.
“Será um campo energético?”, foi a pergun-
ta que acudiu a Tomisenkow.
Pouco importava! Segurou o fuzil por baixo
do braço e colocou um projétil superdimensio-
nal no cano; parecia uma granada de fuzil.
R.17 havia procurado um abrigo. A floresta
foi coberta por um fogo energético ininterrup-
to. Logo depois os tiros das armas convencio-
nais cessaram. O general completou a pontaria.
Puxou o gatilho. O campo energético do robô
revelou-se impotente contra a granada atômica.
R.17 volatilizou-se numa ligeira nuvem in-
candescente.
Poucos segundos depois Tomisenkow en-
contrava-se ao lado de Thora.
— Paço votos de que a senhora tenha pas-
sado sã e salva por tudo isso, madame. Posso
ajudar?
O tom de voz e as palavras do general deixa-
ram a arcônida ainda mais confusa. Não conse-
guiu dissimular o choque. R.17 ainda represen-
53
tava um certo apoio moral para ela, mesmo
como prisioneira. O ataque parecera verdadei-
ro. Mas quando ouviu as palavras de Tomi-
senkow percebeu que se deixara cair numa ar-
madilha.
Ignorou a mão que se estendia em seu auxí-
lio e levantou-se sozinha.
— O senhor é um homem ordinário! Thora
estava furiosa.
Isso fez com que Tomisenkow gozasse seu
triunfo com mais intensidade. E nem desconfia-
va de que na boca daquela mulher a palavra ho-
mem representava uma ofensa muito grave.
— Vamos voltar, madame. Imagino que a
perda de seu protetor metálico deve tê-la atingi-
do profundamente e que a continuação do pas-
seio não constituirá um bom descanso. Vá para
a cama e descanse um pouco.
— Isso o senhor me paga, general.
— Por que justamente eu?
— O senhor não vai querer negar que essa
manobra infame foi tramada pelo senhor.
— É claro que não. A senhora dá provas de
sua elevada inteligência por ter descoberto isso
tão depressa. Saiba perder esportivamente, ma-
dame.
Thora cuspiu diante dele. Vira algum ho-
mem fazer isso e pouco se importou com o fato
54
de que um gesto desse tipo não ficava muito
bem para uma dama. Aliás, não tinha o menor
interesse em guardar as formalidades terrenas.
Quando se enfurecia, perdia toda inibição.
Tomisenkow já conhecia sua prisioneira há
bastante tempo; sabia que, enquanto ela se en-
contrasse nesse estado, não seria fácil conver-
sar com ela. Sem dizer uma palavra deu-lhe as
costas e se dirigiu ao acampamento. Cem me-
tros atrás dele Thora passou pela sentinela. Um
soldado seguiu-a a certa distância para verificar
se realmente se recolhia à sua cabana.
O general mobilizou um grupo que se pôs a
controlar o incêndio da floresta. O estoque de
extintores a seco era muito reduzido, mas foi
suficiente para manter o fogo sob controle. A
flora suculenta de Vênus não era um combustí-
vel muito eficiente. Naquele planeta não se co-
nheciam secas prolongadas que permitissem o
resseca-mento das florestas e das estepes.
Tomisenkow era de uma obstinação prover-
bial. Voltou a se dirigir a Thora para perguntar
sobre os mutantes.
— Fora, seu bárbaro! — gritou Thora e res-
pirou profundamente para amontoar novos in-
sultos sobre o russo. Mas o sorriso zombeteiro
que seu rosto exibia tirou-lhe a fala. Deu-lhe as
costas e não disse mais uma palavra.
55
O general usou uma linguagem mais gentil.
— Em certa oportunidade a senhora me
ameaçou, dizendo que o R.17 poderia destruir
toda a tropa sob meu comando. Levei suas pa-
lavras a sério. Será que vai me dizer que tudo
não passava de um blefe inocente?
Thora não respondeu.
— Pois bem, seja o que quiser! — resmun-
gou Tomisenkow. — Não acredite que continu-
arei disposto por toda vida a prestar contas à
senhora. A senhora me ameaçou, e eu nunca
ocultei o fato de que para mim o robô represen-
tava um obstáculo. Fui mais rápido, e a senhora
se encontra sob meu poder, mais que antes.
Ainda dispõe de duas horas para descansar. De-
pois levantaremos o acampamento e marchare-
mos na direção nordeste. A fortaleza de Vênus
cairá. Não tenha a menor dúvida. E quem assu-
mirá a herança de seus antepassados arcônidas
serei eu, só eu. Com a senhora ou sem a se-
nhora, pouco importa.
Não obteve resposta. Depois de algum tem-
po saiu, dando de ombros.
Ao passar pela praça central do acampa-
mento, viu a tábua negra colocada junto aos
alojamentos da companhia de prontidão. Po-
polzak mandara afixar outro papel em que esta-
vam escritos os nomes dos cinco homens tom-
56
bados no combate contra o R.17.
Tomisenkow procurou reprimir a indagação
sobre a finalidade dessa ação. Quando entrou
em sua barraca sentia dor de cabeça.

***

Dali a cinco horas terrestres seu pequeno


exército se encontrava em marcha. A gravita-
ção pouco intensa de Vênus tornava mais fácil
aos homens carregar os preciosos equipamen-
tos e os mantimentos que conseguiram salvar
do pouso malogrado. Não era muito, se compa-
rado com aquilo de que precisariam nos próxi-
mos meses. Tanto mais avarentos seriam no
trato do que lhes restava. Quem deixasse para
trás qualquer coisa, por desleixo ou comodida-
de, era chamado a prestar contas. Neste ponto
as ordens de Tomisenkow eram inequívocas.
Há meses fora realizado um levantamento
da situação. Dali em diante as vistorias e os
controles eram realizados a curtos intervalos.
Todo fósforo, todo pacote de alimento desidra-
tado, todo cartucho era registrado. Quem dispa-
rasse um tiro tinha que dar contas e apresentar
um relatório.
As unidades de vanguarda e de retaguarda
eram as que conduziam menos carga. Deviam
57
ser dotadas de maior grau de mobilidade. De
cada vez que Tomisenkow fazia sua tropa em-
preender uma marcha mais prolongada, para
transferir seu quartel-general mais um pedaço
para o nordeste, voltava a surgir a indagação se
sua disposição otimista se justificava face à for-
ça de combate de seu exército.
Nas baixadas pantanosas da selva não havia
possibilidade de manter a coluna bem unida. Às
vezes a vegetação era tão espessa que tinha de
ser removida por meio de granadas atômicas.
Tratava-se de armas limpas, cujo processo de
fusão nuclear não causava qualquer radiação
perigosa. Mas sempre havia o perigo de um in-
cêndio na floresta. Assim a utilização das grana-
das atômicas tinha de ser reduzida a um míni-
mo, face à pequena reserva de substâncias ex-
tintoras de que dispunham.
O caminho aberto pelas primeiras unidades
tinha que ser utilizado pelo restante da tropa.
Por isso muitas vezes a coluna se estendia por
vários quilômetros.
Vista a situação sob esse ângulo, Tomi-
senkow não tinha por que se orgulhar com o
fato de que ainda dispunha de cerca de meio re-
gimento. Durante a marcha sempre deixava um
flanco exposto ao ataque até mesmo de um ini-
migo mais fraco. E seria uma arrogância dizer
58
que um inimigo como Perry Rhodan era fraco.
Por isso Tomisenkow sempre se mantinha
nas proximidades de Thora. E ele o fez com ta-
manha pertinácia que esta recuperou a fala.
Deu a entender sem rebuços que não gostava
de sua companhia.
— Infelizmente não posso considerar seus
sentimentos. Preciso de um refém de que possa
lançar mão se Rhodan atacar. E se tiver a idéia
de tirá-la à força, devo ter a possibilidade de
matá-la antes que isso aconteça.
Tamanha franqueza chocou Thora, que se
refugiou na altivez que lhe era peculiar.
Eram cento e treze horas quando uma patru-
lha comunicou ter achado uma carabina auto-
mática russa. Um cabo apresentou a arma ao
general.
— Descobrimos uma fogueira a cerca de
três quilômetros ao sul, general.
— Uma fogueira?
— Sim, general, uma fogueira apagada. A
lenha carbonizada já estava fria. Esta carabina
estava oculta sob o capim, embaixo de uma ár-
vore. O pessoal deve tê-la esquecido.
— E são nossos patrícios. É uma vergonha
ver como essa gente se perde quando não é
mantida sob controle. É o senhor que comanda
a patrulha?
59
— Sim, general.
Antes que o cabo pudesse se dirigir ao coro-
nel que marchava a cinqüenta metros dali, uma
salva abafada de armas de infantaria soou na
selva próxima.
— Procurem uma cobertura! — gritou al-
guém. A ordem era desnecessária. Num reflexo
instintivo os homens atiraram-se ao chão e vira-
ram-se para a direita. Enquanto caíam os fuzis
foram empunhados automaticamente.
Depois do primeiro ataque, o silêncio pas-
sou a reinar. Até mesmo os pássaros de Vênus,
que cantavam nas copas das árvores, suspende-
ram seu concerto. Alguns se afastavam, baten-
do ruidosamente as asas.
Outros estariam enfiando as cabeças sob as
penas.
Alguns tiros foram disparados nas fileiras do
grupo.
— Que diabo! — gritou Popolzak. — Só ati-
rem quando virem alguma coisa. Todo tiro deve
acertar o alvo.
A resposta veio em forma de uma rajada de
metralhadora disparada pelo inimigo desconhe-
cido.
— São uns idiotas — resmungou Tomi-
senkow, com o nariz dois centímetros acima do
solo. — Com esta vegetação não conseguem
60
atingir um homem por um tiro direto a uma dis-
tância de vinte metros. E esta folhagem gos-
menta come as balas como o mata-borrão
come a tinta. Oh, desculpe, madame!
Só agora o general percebeu que mantinha
Thora apertada contra o chão. Enquanto a mão
direita segurava a coronha da carabina auto-
mática, o braço esquerdo enleava a nuca da ar-
cônida como se fosse uma tenaz.
— Se machuquei a senhora não foi por que-
rer. A senhora é muito preciosa para que possa
me arriscar a perdê-la dessa forma. Aqueles re-
beldes são os que menos estão em condições de
dizer quando a senhora deve morrer. São pio-
res que assaltantes. Posso ajudar em alguma
coisa?
— Solte-me e dê-me uma arma. Sei lidar
com ela.
— Não tenho a menor dúvida — disse To-
misenkow, esticando as palavras. Num gesto
hesitante pôs a mão para trás. Subitamente se-
gurou uma pistola de seis tiros e passou-a a
Thora.
— Tenha cuidado, madame. Está carregada
e só se presta a uma luta corpo a corpo.
— Para mim basta — disse com uma ex-
pressão indefinível no rosto.

61
4

Son Okura, o visor de freqüências que tinha


dificuldades de andar, e Perry Rhodan, chefe da
Terceira Potência, não formavam a equipe mais
adequada para uma marcha a pé em Vênus.
Ainda mais quando o objetivo ficava a nada me-
nos de quinhentos quilômetros em linha reta, e
havia como obstáculo um braço de mar de tre-
zentos e cinqüenta quilômetros de largura, que
um belo dia também teria de ser vencido.
Desde o início a dificuldade de andar de que
padecia Son Okura teve que ser incluída nos
cálculos. A ferida no ombro de Rhodan só sur-
gira posteriormente, quando os dois homens e
John Marshall se viram envolvidos num comba-
te entre os rebeldes e os pacifistas do tenente
Wallerinski. Nem por isso Rhodan perdeu o
bom humor. Tratava-se de uma perfuração dire-
ta na altura da axila. Nenhum osso e nenhum
músculo importante havia sido atingido. Os me-
dicamentos arcônidas apressaram a cura, mas
apesar de tudo as pontadas e as coceiras que
sentia a toda hora convenceram Rhodan de que
ainda não se encontrava em plena forma.
— Deve se tratar!
As advertências de Okura eram obstinadas.
Voltara a construir uma cabana numa árvore,
62
fechando o chão e as paredes com trepadeiras
e folhas largas. Para baixo a camuflagem era
completa.
— Estas cabanas montadas em árvores ser-
vem para gente que saiba viver, mas não para
pessoas que querem ir para a frente — resmun-
gou Rhodan, contrariado.
— Acho que estamos de acordo: resolvemos
andar seguros. Aliás, na situação desvantajosa
em que nos encontramos, não temos outra al-
ternativa.
— Tenho minhas dúvidas; é bem possível
que estejamos participando de uma corrida. Se
Tomisenkow e Thora chegarem antes de nós à
fortaleza escavada na rocha, ninguém nos ga-
rante que não entrarão. Como arcônida, Thora
é portadora de um cérebro reconhecido.
— Acredita que ela nos trairia?
— Tanto faz que haja traição ou não. Os ho-
mens do Bloco Oriental a têm nas mãos. Po-
dem forçá-la.
— OK — disse Okura com um sorriso. —
Estou convencido de que ganharemos a corrida.
Com toda lentidão, ainda somos mais rápidos
que o general Tomisenkow. Não conseguirá ar-
rastar seu exército pela selva com a mesma ra-
pidez dos corpos inválidos. Depois do patrulha-
mento que realizei ontem, tenho certeza de que
63
os remanescentes do exército de Tomisenkow
estão bem próximos. Isso significa que já recu-
peramos algum terreno e tenho certeza de que
chegaremos à costa antes dele. Quanto a
Marshall, não há dúvida de que não precisamos
nos preocupar com ele.
— Gostaria de ter seu otimismo — disse
Perry Rhodan. — Acontece que não devemos
pensar apenas em termos táticos, mas também
em termos estratégicos. Você se esquece das
relações mais importantes entre os fatos.
— Não compreendo.
— Até aqui pensamos apenas nos homens
com que nos encontramos diretamente. Mas va-
mos começar do início para descobrir as causas
e o sentido de tudo aquilo.
— A causa de nossa presença neste planeta
é a fuga de Thora.
— Muito bem. Agora pense nos russos.
— O Bloco Oriental invadiu o planeta Vênus
sob o comando do general Tomisenkow. E nós
lhes atrapalhamos os planos. A divisão de To-
misenkow está praticamente aniquilada. Ao que
tudo indica só um pequeno grupo de homens
continua a obedecer suas ordens.
— Continue. Mas não pense apenas nos de-
sertores. Deve haver mais gente na superfície
de Vênus.
64
Son Okura refletiu.
— Gente do Bloco Oriental?
Perry Rhodan fez que sim.
— É claro que sim, meu caro.
— Está aludindo à frota de abastecimento?
Bem, já me lembrei disso. Deve estar lembrado
de nosso encontro com o sargento Rabov, que
foi morto durante um combate. Contou muita
coisa, mas nunca aludiu ao pouso da frota de
abastecimento.
— Pois é justamente isso! Provavelmente o
próprio Tomisenkow não sabe nada a respeito
disso. Mas tenho para mim que essa frota deve
ter pousado. O Bloco Oriental mandou duzen-
tas unidades. Destruímos trinta e quatro quando
o campo energético de nossa nave atravessou,
por coincidência, o centro da frota. É possível
que outras naves tenham sido destruídas duran-
te o pouso. Mas aposto que mais de cem veícu-
los espaciais conseguiram descer em Vênus.
Son Okura empalideceu.
— Santo Deus! Isso significaria...
Não foi necessário terminar a frase. Ambos
sabiam o que isso significava. Em algum ponto
de Vênus devia haver outra tropa, que dispunha
de um equipamento muito melhor.
— Não há dúvida de que a frota de abasteci-
mento se destinava ao general. O fato de que
65
até hoje não se apresentou a ele — prosseguiu
Rhodan em tom indiferente — apenas prova
que também este clube declarou sua indepen-
dência. A independência parece grassar em Vê-
nus como uma epidemia.
Não falaram mais no assunto, embora fosse
muito interessante. Seus planos previam um re-
pouso de seis horas. E no momento a restaura-
ção das forças era mais importante que todas as
especulações estratégicas. Durante a marcha te-
riam tempo para as mesmas.

***

Dormiram o tempo previsto e puseram-se a


caminho. Okura já não saberia dizer quantas ca-
banas construíra nas árvores de Vênus. Tor-
nara-se mestre nessa arte. As construções iam
ficando cada vez melhores e mais belas. Apesar
disso tinham de ser abandonadas para sempre.
Falavam nesses pequenos aspectos senti-
mentais quando enjoavam de conversar sobre
os grandes problemas. Geralmente calavam-se
de vez depois que os primeiros quilômetros de
marcha chamavam à sua lembrança o fato de
que o planeta Vênus com suas selvas represen-
tava uma provação interminável.
No dia seguinte — por uma questão de hábi-
66
to costumavam contar o tempo pelo calendário
terrestre — ouviram tiros. Rhodan, que ia à
frente, parou imediatamente. Antes que pudes-
se dizer qualquer coisa, ouviu-se outra salva.
— É uma batalha. Pelos meus cálculos é
bem ao norte.
— Só pode ser no norte, pois é lá que To-
misenkow se encontra.
Seguiu-se a detonação de uma bomba ou de
uma granada. Depois disso o silêncio voltou a
reinar. Esperaram mais quinze minutos. Mas o
tiroteio não se repetiu.
— O que acha, Son?
— Devem ter montado acampamento.
Numa posição defensiva vai ser fácil para eles
repelir os ataques de Wallerinski.
— Quem sabe se foi Wallerinski.
Formularam outras suposições, que não se
aproximavam da verdade. Não sabiam que o
general Tomisenkow acabara de destruir o robô
R.17.
— Vamos ficar mais à esquerda — decidiu
Rhodan. — Estamos a uma distância muito
grande do pessoal do Bloco Oriental. A prudên-
cia não deve ser exagerada.
— A prudência nunca pode ser exagerada
— declarou Okura.
A lição fez o chefe sorrir.
67
— É claro que não. Ainda existe a possibili-
dade de que alguém possa precisar de nós.
Thora, por exemplo.
O plano de Rhodan foi executado. Depois
de percorridos outros dez quilômetros, uma ca-
bana foi construída numa árvore e ocupada
imediatamente. Antes de dormir fizeram as ten-
tativas rotineiras de estabelecer contato pelo rá-
dio com Bell. Operavam obstinadamente as an-
tenas escamoteáveis do tamanho de uma agu-
lha. Mas tal qual nos dias anteriores, a Good
Hope-V não respondeu.
— A chave secreta X — resmungou Rho-
dan. — Parece que é muito eficiente.
— Ou então Bell já regressou à Terra.
— Prometeu exatamente o contrário. Seja
como for, dependemos exclusivamente de nós
mesmos. Boa noite, Son.
— Boa noite, chefe.

***

Desta vez o tiroteio os despertou. Okura


logo sentiu a mão de Rhodan, que se colocara
em seu braço num gesto de advertência.
— Fique quietinho, rapaz! Estão bem à fren-
te da nossa porta.
Realmente parecia que os tiros estavam sen-
68
do disparados bem embaixo da árvore. Mas era
uma ilusão. A abóbada de folhas, formada pelas
árvores de cerca de cinqüenta metros de altura,
produzia efeitos acústicos perturbadores.
Espiaram pelas folhas da cabana.
— Não vejo nada — disse Okura.
— Com a visibilidade de que dispomos isso
seria muito difícil — resmungou Rhodan em
tom nervoso. — Gostaria de saber... ora, é lá!
Apontou com o dedo. Seu companheiro já
havia visto o movimento. Eram homens que se
deslocavam entre a vegetação rasteira, a uns
cem metros de distância.
Mais alguns tiros foram disparados. De iní-
cio eram isolados. Mas logo se seguiu uma sal-
va.
— A batalha está sendo travada mais à es-
querda, pelo menos a quinhentos metros daqui.
Mas aquilo que se mexeu lá embaixo foi um ho-
mem.
— É claro que foi. Vi uma cabeça.
— Muito bem. Vou dar uma espiada.
— Fique aqui, chefe; será...
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Não farão coisa alguma comigo. Sei me
cuidar. Fique aqui e mantenha nossa posição.
Aconteça o que acontecer, não se traia com um
tiro. Aquilo que fica por ali quando muito é o
69
alojamento de um grupo de rebeldes. Mas quem
sabe se essa gente não tem alguma comida
para nós. Temos necessidade premente de um
reabastecimento de munições e mantimentos.
Son Okura estava acostumado a obedecer.
Limitou-se a confirmar com um aceno de cabe-
ça.
Perry Rhodan desceu pela borda da platafor-
ma. Se não descesse muito depressa, o risco de
ser descoberto não seria grande. A folhagem
densa das trepadeiras que parasitavam as árvo-
res fornecia-lhe uma excelente cobertura, que
descia até o solo.
Teve que descer uns vinte metros. Para alivi-
ar o ombro direito, colocou quase todo o peso
do corpo sobre a mão esquerda.
Chegou ao solo sem ser visto, e aqui a visibi-
lidade ainda era menor. Mas lembrava-se da di-
reção que devia seguir e foi avançando. A bata-
lha certamente desviaria a atenção daquela gen-
te. Nos alojamentos dos rebeldes ninguém con-
sideraria a possibilidade de que alguém pudesse
se encontrar nas suas costas. Um perigo maior
que o dos soldados desertores poderia provir
dos animais de Vênus, e Rhodan teve bastante
juízo para dedicar sua atenção também à vizi-
nhança imediata.
Ao que parecia o destino resolvera ajudá-lo.
70
Conseguiu se desviar das lagartas, dos besouros
e das borboletas que dançavam no ar. Poderiam
ser venenosas, mas não se interessavam por
ele. Um ataque partido dali seria pura coinci-
dência.
As trepadeiras representavam um obstáculo
mais difícil. Às vezes formavam uma verdadeira
cerca viva. Teve que se espremer entre elas, e
por vezes via-se obrigado a dar ao seu corpo a
configuração de uma cobra. Se quisesse cortar
aquela vegetação resistente, gastaria muito tem-
po. Além disso, as plantas poderiam estar sub-
metidas a uma espécie de tensão estática. Nos
dias anteriores Rhodan via várias vezes uma tre-
padeira cortada chicotear o ar com um silvo,
como a corda retesada de um arco de atirar. O
barulho poderia traí-lo. E se um homem rece-
besse um impacto pouco feliz, isso poderia sig-
nificar a morte.
Quando se encontrava a uns trinta metros
do acampamento, fez uma pausa prolongada.
As mãos e o rosto estavam arranhados. Pegou
o lenço e enxugou o suor que lhe penetrava nos
olhos; viu que havia sangue misturado ao mes-
mo.
Apenas uns arranhões e alguns pedaços de
pele esfolada, foi o comentário silencioso que a
descoberta provocou nele. Mas atrás desse co-
71
mentário ocultava-se uma pergunta menos ani-
madora. A selva misteriosa de Vênus poderia
ser tratada com tamanho desdém? Era bem ver-
dade que nos últimos anos, os botânicos haviam
esclarecido muita coisa a respeito da flora de
Vênus. Mas só uma fração reduzida das espéci-
es existentes pôde ser classificada e determina-
da segundo seus componentes químicos. Qual-
quer espinho aparentemente inofensivo podia
trazer em si o germe da morte.
Rhodan fez um esforço para se libertar des-
sas idéias. Concentrou-se sobre os homens que
se encontravam à sua frente.
Há anos falava um russo excelente; por isso
não teve a menor dificuldade em acompanhar a
conversa daqueles homens. Era verdade que se
mostravam bastante lacônicos. Apenas mencio-
naram que estavam cansados e achavam que o
ataque de Wallerinski contra a tropa de Tomi-
senkow era muito arriscado. O resto da conver-
sa foi conduzido em voz tão baixa que Rhodan
não compreendeu nada.
Teria que chegar mais perto.
Seus movimentos tornaram-se mais cautelo-
sos e já não avançava tão depressa. A intensi-
dade do combate que se travava à distância au-
mentara ainda mais e dificilmente os rebeldes
voltariam num breve espaço de tempo, a não
72
ser que Wallerinski sofresse uma derrota grave
e fosse levado de roldão pelas tropas de Tomi-
senkow.
Finalmente Rhodan viu uma pequena clarei-
ra. Ou melhor, um lugar em que o capim havia
sido pisado. Não tinha mais de vinte metros de
diâmetro. Mas acima desse lugar as copas das
árvores fechavam-se numa cobertura espessa,
não deixando penetrar mais luz que em qual-
quer outro lugar. As flores coloridas em forma
de orquídeas que as trepadeiras ostentavam pa-
reciam abandonadas naquela semi-escuridão.
Rhodan viu cinco homens.
Quatro deles dormiam, ou ao menos esta-
vam estendidos no capim. O quinto, sentado,
recostara-se a uma árvore e fumava um cachim-
bo.
O equipamento que aqueles homens vigia-
vam provocou a inveja de Rhodan. Pareciam
dispor de uma grande profusão de armas manu-
ais; além de algumas caixas, cujas inscrições
eram bastante reveladoras, havia ao menos
umas quarenta ou cinqüenta carabinas auto-
máticas jogadas embaixo de uma árvore, bem
perto do lugar em que Rhodan se encontrava.
— O presidente não devia ter tanta pressa
com suas concepções — disse um dos homens
deitados no capim. — Afinal, a idéia de impor a
73
paz pela força nada tem de original.
— Você tem umas idéias esquisitas — disse
outro. — Enquanto Tomisenkow não quiser a
paz, nós temos que lhe dar uma lição.
— Quer dizer que só poderemos ser verda-
deiros pacifistas quando todo mundo for?
— Que bobagem! Já somos verdadeiros pa-
cifistas. Até parece que você andou dormindo
durante as aulas.
O homem que fumava cachimbo fez um ges-
to aborrecido.
— Parem com essa conversa de adolescen-
tes. No momento só importa o que o presiden-
te consegue fazer. Esse tiroteio já está demo-
rando demais. Quando um ataque não dá certo
no primeiro instante, vejo as coisas pretas.
— Igor, você ainda vai se dar mal com esse
tipo de conversa. O presidente sabe o que quer.
Deposito toda confiança nele.
— O presidente se sentirá muito orgulhoso
com isso, Mitja. Mas sei perfeitamente que para
ele você não passa de um sabe-tudo. E o presi-
dente não gosta desse tipo de gente.
— Pense o que quiser. Ele gosta de mim
conforme desejo. Se está aludindo aos bons
conselhos que lhe dei, posso lhe assegurar que
Wallerinski ficou muito grato. O projeto da ar-
madilha nas árvores será executado assim que
74
chegarmos ao rio.
— Não diga! Você conseguiu convencê-lo?
Por que resolveu atacar o general hoje?
— Pergunte a ele! De qualquer maneira
meus conhecimentos táticos bastam para que
eu saiba que, por aqui, uma armadilha nas árvo-
res seria um jogo de loteria. Mas no rio o gene-
ral não poderá deixar de usar a passagem situa-
da acima das cataratas. Conforme deve estar
lembrado, do lado oposto existe um desfiladeiro
bem profundo. Terá que passar por lá. Basta
que no momento exato nos encontremos em
cima das árvores e...
— Calem a boca! — queixou-se outro dos
homens. — Se cada um de vocês quiser gritar
mais que o outro, o barulho fará com que as
patrulhas de Tomisenkow estejam aqui antes
dos nossos companheiros. Mitja, você está de
sentinela. Abra os olhos e os ouvidos. E os ou-
tros vão ficar deitados. Se não estiverem gos-
tando, contem ao presidente. Mas não me cau-
sem problemas.
O último dos interlocutores parecia ser um
oficial subalterno. De qualquer maneira possuía
certa autoridade. Perry Rhodan não gostou
nem um pouco. Enquanto os homens conversa-
vam, se distraíam. Mas agora o menor ruído
poderia revelar sua presença.
75
De outro lado, porém, o barulho produzido
pelas criaturas que habitavam a floresta ainda
poderia ser usado como cortina sonora. Basta-
va aguardar o bater das asas de um pássaro ou
o chamado de algum bicho que se encontrasse
numa árvore para que Rhodan pudesse se mo-
ver sem ser ouvido. Apenas, a operação pro-
gredia mais lentamente do que fora planejada.
Com uma trepadeira da grossura de um
dedo fez uma espécie de laço. Havia uma alça
na ponta. Fez o artefato avançar centímetro
por centímetro, até enfiar a alça por cima do
cano de uma carabina. Com um puxão fechou
a alça, que encontrou apoio no dispositivo de
mira. Demorou uma infinidade até que conse-
guisse se apossar da arma. E ainda lhe faltava
um suprimento suficiente de munições e manti-
mentos.
A presa seguinte que escolheu foi uma caixi-
nha com a inscrição “extrato de carne”. O laço
teria que ser um pouco maior. Conseguiu apro-
ximá-lo do objetivo. Mas quando deu o puxão
final, a caixa tombou ruidosamente.
A sentinela se levantou imediatamente.
— Stoj! — soou seu comando, embora não
pudesse ver Rhodan. No mesmo instante os ou-
tros soldados puseram-se de pé e num gesto au-
tomático pegaram as armas.
76
Rhodan percebeu imediatamente que diante
dessa bateria de carabinas prontas para disparar
não teria a menor chance de fugir. Para com-
pensar a inferioridade de forças teria que recor-
rer à inteligência e ao blefe.
Levantou-se calmamente, apontando o cano
da carabina recém-capturada para o chão.
— Levante as mãos! — foi a ordem que re-
cebeu.
Evidentemente não tomou conhecimento
dessa ordem. Aparentemente contrariado, pas-
sou por cima de uma raiz e chegou mais perto
das cinco sentinelas.
— Pare imediatamente!
Rhodan fez exatamente isso. Seu rosto exi-
biu um sorriso matreiro e a expressão de um
superior insatisfeito.
— Quem está no comando? — indagou em
tom autoritário, num russo impecável.
Sua atitude autoconfiante deixou os cinco
perplexos. Nenhum deles se lembrou de repetir
a ordem de levantar as mãos.
— Que diabo! Será que todo mundo perdeu
a fala? — esbravejou Rhodan, prosseguindo na
aplicação da mesma receita. — Que tiroteio é
esse? Será que estes guerreiros de salão perten-
cem ao seu grupo?
Finalmente um dos homens do Bloco Orien-
77
tal pôs-se a falar.
— Meu nome é Ilja Iljuchin, senhor.
— Não tem nenhuma graduação?
— As graduações foram abolidas desde que
o presidente Wallerinski...
— Cale a boca!
Perry usou um tom cada vez mais arrogante,
pois esperava que uma voz de comando retum-
bante não deixaria de produzir algum efeito.
— Fiquem sabendo que sou o comissário
Danov, R. O. Danov. O governo do Bloco Ori-
ental, formado há trinta dias, desembarcou uni-
dades pesadas em Vênus, para restabelecer a
paz e a ordem. A breve palestra que mantive
com os senhores me deu a impressão de que na
divisão de Tomisenkow surgiram costumes bas-
tante estranhos, que dificilmente contarão com
a boa compreensão do governo. Recomendo-
lhes que procurem se lembrar imediatamente
do seu juramento e dos seus deveres.
— Não pertencemos à divisão de Tomi-
senkow, comissário.
Rhodan viu Mitja dar um soco nas costelas
do interlocutor. Mas nem por isso a confissão
de amotinamento poderia ser retirada.
— Mais tarde falaremos sobre os detalhes.
Por enquanto façam parar esse tiroteio estúpi-
do. Qual foi o nome que disse há pouco? Walle-
78
rinski?
— Tenente Wallerinski, comissário.
— Muito bem! Esses dois aí seguirão imedia-
tamente para informá-lo sobre a nova situação.
A partir de hoje os comissários detêm todo po-
der de comando em Vênus. Quero que o tenen-
te e seus companheiros estejam aqui o mais tar-
dar dentro de trinta minutos. O que estão espe-
rando?!
Rhodan olhara instintivamente para os dois
pacifistas que lhe pareciam ter um caráter mais
independente. Precisava se livrar deles por al-
gum tempo. Obedeceram.
Sem esboçar o menor protesto, puseram-se
a caminho em direção ao norte. Quando desa-
pareceram entre a vegetação, Rhodan ainda ti-
nha três inimigos diante de si. Essa alteração fa-
vorável da relação de forças deixou-o mais oti-
mista.
— Soltem as carabinas. Enquanto não tive-
rem renovado seu juramento, não posso con-
cordar que usem armas.
Por alguns segundos parecia que Rhodan es-
tava forçando a situação, que os três pacifistas
estavam percebendo o blefe. Os homens hesita-
ram. Mas logo teve início um jogo de que mal
chegou a ter consciência.
Rhodan ainda mantinha o cano da arma
79
abaixado. O aspecto que oferecia aos pacifistas
não se tornaria mais convincente se, ao erguer
a pesada carabina, esta lhe caísse da mão. O
ombro ferido ainda não suportaria tamanho es-
forço.
Mas seus olhos não haviam sido afetados. A
potência daquele olhar, que não podia ser con-
fundida com a hipnose corriqueira, mas antes
representava o resultado de um treinamento
hipnótico arcônida, continuava intacta.
A hesitação daqueles homens poderia se tor-
nar perigosa.
— Larguem as armas! — voltou a ordenar.
Proferiu estas palavras sem deixar se arras-
tar ao tom de berreiro de um oficial subalterno.
Mal chegou a levantar a voz, mas esta não dei-
xou de produzir o efeito desejado.
Os pacifistas obedeceram.
— Meia-volta volver!
Estas palavras foram proferidas no tom inci-
sivo de um comando de pátio de quartel.
Mais uma vez os pacifistas, perplexos, obe-
deceram.
Rhodan abaixou-se, apanhou as armas e ati-
rou-as para trás de si. Todas, com exceção de
uma. Tratava-se de uma pistola leve, que conse-
guia manter erguida apesar das dores que sentia
no ombro.
80
— Meia-volta volver! — foi o comando que
soou a seguir. Mais uma vez fitou os três ho-
mens de frente. Desta vez a pistola conferia-lhe
uma superioridade total. Até a experiência se-
guinte foi coroada de êxito, muito embora uma
pessoa menos treinada para uma obediência ca-
davérica naquela oportunidade já lhe estaria
causando problemas. Mas para aqueles homens
Rhodan era o comissário R. O. Danov. Fize-
ram-lhe o favor de se amarrar uns aos outros
com cipós finos, mas muito resistentes. Perry
cuidou do resto. Amarrou-os a três árvores dife-
rentes, com o rosto voltado para o norte, e ain-
da lhes colocou uma mordaça.
Depois de terem sido submetidos a esse tra-
tamento, os três pacifistas poderiam chegar à
conclusão de terem caído num golpe atrevido.
Mas essa conclusão chegou cinco minutos de-
pois da hora.
Por mais algum tempo ouviram ruídos atrás
de si, e esses ruídos davam a entender que o es-
tranho inimigo se mantinha ocupado com seus
pertences. Depois de algum tempo o ruído dos
passos e das trepadeiras tiradas do caminho às
pressas se afastou.
Se não fossem as mordaças, a essa hora
uma praga dramática sairia dos lábios dos três
homens logrados.
81
***

Ao chegar à sua árvore, Perry Rhodan dis-


pôs-se a transmitir o sinal convencionado para
cima. Mas Son Okura já se encontrava a seu
lado.
— Quando ouvi que você falava em voz alta,
percebi que tinha sido descoberto. Foi por isso
que desci.
— Pois terá que subir de novo para apanhar
nossa bagagem. Temos que desaparecer o mais
rápido possível. Deixe para lá; mais tarde expli-
co.
O visor de freqüências arregalou os olhos
para as duas carabinas pesadas, as pistolas e a
sacola com conservas. Mas logo se pôs em mo-
vimento e foi buscar as bugigangas que se en-
contravam na cabana.
— Temos que levar tudo isto — disse Rho-
dan em tom indiferente. — Quanto antes. Den-
tro de vinte minutos Wallerinski encontrará três
homens amarrados em seu acampamento, e se
a essa hora não nos encontrarmos a uma dis-
tância razoável, nossa situação poderá se tornar
bem difícil.
— Agüentarei alguns quilômetros — disse o
pequeno Okura em tom confiante e pegou mais
82
de metade da bagagem.
Encontravam-se numa baixada. Às vezes a
floresta era tão densa que até parecia que fora
montada por um gigante, segundo um modelo
sofisticado. Por maiores que fossem os esfor-
ços, o deslocamento não poderia ser muito
rápido. Apesar disso, cada passo que consegui-
am dar representava mais um pedaço de segu-
rança reconquistada. A selva venusiana tinha
muita vitalidade e, segundo as concepções hu-
manas, corria à frente do tempo.
Certa vez Reginald Bell afirmara que bastava
olhar atentamente durante dois minutos para
ver o crescimento das plantas. Isso correspon-
dia à verdade. Dali a meia hora terrestre os per-
seguidores dificilmente reconheceriam o cami-
nho aberto por Rhodan e Okura.

***

— Minha munição acabou — fungou Thora


perto do general. Este passou-lhe dois pentes
de balas.
— São os únicos que ainda tenho comigo.
Quando tiverem acabado terá de rastejar duzen-
tos metros para atingir nosso grupo de abasteci-
mento, se é que este ainda se encontra em nos-
so poder. Só atire quando o inimigo estiver per-
83
feitamente visível.
— Como queira, general.
A batalha já se prolongava por quinze minu-
tos. Mais de trinta homens estavam reunidos
em torno do general, assumindo uma formação
defensiva.
Nenhum dos pacifistas de Wallerinski se ar-
riscara a se aproximar dessa fortaleza em minia-
tura a menos de cinqüenta metros.
A ordem de economizar a munição não se
dirigia apenas a Thora. Tomisenkow mandou
que a mesma fosse transmitida de homem para
homem.
— Só atirem quando tiverem certeza absolu-
ta de que vão acertar. Não poderei arrancar
munição do ar.
Ninguém pensou em levantar ou abandonar
a posição defensiva. O contato com o restante
da tropa havia sido interrompido. Mas o tiroteio
ininterrupto que vinha de várias direções prova-
va que, em outros pontos, posições semelhan-
tes haviam sido instaladas. Tomisenkow estava
convencido de que Wallerinski já não mantinha
um controle exato da situação. Por duas vezes
ouvira a voz do tenente ambicioso, que afinava
de raiva, dar suas ordens ao longe.
— Ouça, madame. O presidente está fican-
do rouco de tanto gritar. É um presidente. Ou-
84
viu bem? Um rapazola desses quer ser presiden-
te! Vênus está transformado num hospício.
Olhe! É assim que se faz. Aposto como nem es-
tava prestando atenção. Ali à esquerda, perto
das três orquídeas roxas, está um morto. É um
pacifista que resolveu brincar de guerra...
Tomisenkow encerrou suas palavras com
uma risada áspera.
Dali a uma hora estava rouco como seu ini-
migo. Só cochichava quando transmitia suas or-
dens nervosas.
De repente Wallerinski suspendeu o comba-
te. Suas ordens foram ouvidas nas posições de
Tomisenkow.
— Pode ser uma armadilha — disse Thora.
Os outros partilharam a suspeita manifesta-
da por ela e aguardaram mais algum tempo.
Depois disso, o general despachou mensageiros
para a frente e para trás e ordenou à tropa que
se mantivesse bem unida. Os oficiais foram
convocados para uma conferência. Os soldados
e sargentos tiveram que recolher os mortos.
Era uma atividade cansativa, que atrasou a
marcha por algumas horas. Mas não era a úni-
ca desvantagem que sofriam.
— O senhor ainda passará por muitas de-
cepções neste planeta — dissera Thora há pou-
co tempo. E agora lembrou-se dessas palavras.
85
Encontraram mais de cinqüenta mortos.
Mais da metade pertencia ao grupo de Walle-
rinski. Mas nem por isso a tropa de Tomi-
senkow ficou completa.
— Estão faltando vinte e sete homens — de-
clarou Tomisenkow durante a conferência de
oficiais. — Pode dar alguma explicação, coro-
nel?
Popolzak deu de ombros.
— Provavelmente alguns mortos não foram
encontrados.
— Mas não podem ter sido vinte e sete.
— Talvez o resto se tenha unido a Walle-
rinski. O senhor estaria em condições de dizer
com quem cada um dos seus homens simpati-
za?
— Ora essa, coronel! Que falas heréticas
são estas? Parece que até o senhor já foi infec-
tado por este planeta.
— Todos estamos infectados, senhor gene-
ral. Cada um segundo sua predisposição indivi-
dual. O senhor também não escapou.
— Queira se explicar melhor!
— O senhor vive na ilusão de que ainda co-
manda uma tropa disciplinada. Carrega pela
selva uma burocracia que mesmo em condições
normais seria considerada uma superorganiza-
ção. O que há atrás disso? Tudo está apenas no
86
papel. E é com esses papéis cobertos de relató-
rios, prestações de contas e relações de objetos
que o senhor se diverte na sua barraca de co-
mando. Mas do lado de fora as coisas são bem
diferentes. Os homens estão esfarrapados, não
ligam para qualquer disciplina assim que se en-
contram fora das suas vistas e maldizem seu
modo irrealístico de ver as coisas. Se este resto
miserável de uma divisão aero-transportada ain-
da se encontra com o senhor, isso é devido so-
mente ao instinto gregário dos homens. Se pu-
dessem, já teriam fugido há tempo. Mas para
onde quer que corram, o inferno se abrirá dian-
te deles. Só ficam por medo e pelo instinto de
auto-conservação. Mas não acredite que ainda
pensam que o senhor é capaz de nos levar a
um paraíso. Mesmo seus planos com a fortaleza
de Vênus soam como uma fala impregnada de
sonho e de lenda.
Depois da longa fala de Popolzak reinou um
silêncio total.
O general empalidecera até a raiz dos cabe-
los. Sua resposta aniquiladora não veio.
— É verdade? — perguntou depois de algum
tempo.
Falava muito baixo e, todos sabiam, ele não
o fazia apenas para poupar suas cordas vocais
cansadas.
87
Suas palavras não despertaram qualquer
eco. Ninguém se atreveu a comentar o proble-
ma.
— Está bem — disse Tomisenkow depois de
algum tempo. — Refletirei sobre suas palavras,
coronel. Acho que a esta hora todos estamos
tão nervosos que não podemos dar um trata-
mento objetivo ao tema.
A tropa prosseguiu em sua marcha.
Às cento e quarenta e três horas atingiram o
rio e usaram a passagem que ficava acima das
cataratas. O amplo desfiladeiro representava
um convite para prosseguir na marcha.
De repente um cabo trouxe um bilhete que
um soldado encontrara pregado a uma árvore.
— Não passe pelo desfiladeiro. general —
leu Tomisenkow. — Os pacifistas instalaram-se
nas árvores e planejaram um ataque maciço.
— Que diabo! Quem iria me escrever uma
careta dessas?
Thora foi a única que poderia responder à
pergunta, pois conhecia a letra. Mas preferiu
não fazê-lo.

John Marshall sentia que havia chegado ao


fim das suas forças.
88
Metade de uma manhã em Vênus represen-
ta muito mais que um dia inteiro na Terra. E
durante todo esse tempo Marshall sempre volta-
ra a se esforçar para despertar a atenção das
focas.
Sabia que residiam na margem oposta do
braço de mar. Essa distância, que era superior a
trezentos e cinqüenta quilômetros, poderia in-
duzir dúvidas até mesmo no otimista mais inve-
terado. Mas, de outro lado, o mar era o habitat
natural dessas semi-inteligências animais. Não
era de supor que nadassem muito longe e se
aproximassem da margem em que Marshall se
encontrava?
Por que não o ouviam?
Teriam seguido um instinto nômade e pro-
curado outra região? Mas quando um bando de
focas desse tipo abandona certa área, esta pas-
sa a ser ocupada por outro bando da mesma es-
pécie. Em meio à vitalidade de Vênus não po-
deria existir um vácuo biológico.
John Marshall se afastara bastante. A dois
quilômetros a oeste do ponto em que havia
atingido o mar, uma península rasa penetrava
profundamente na água. Não passava de um
banco de areia. A vegetação cessava depois de
cem metros. As pegadas das botas de Marshall
formavam um rastro de um quilômetro, que pa-
89
recia conduzir a uma solidão sem esperança, a
um beco sem saída.
Encontrava-se na ponta da península. Estava
cercado de água de três lados. O mar estendia-
se até o horizonte. A cadeia montanhosa do
norte escondia-se atrás da curvatura da terra.
Por que as focas não o ouviam?
A intensidade de seus chamados telepáticos
foi se tornando cada vez menor. Intercalou pau-
sas cada vez mais longas, para recuperar as for-
ças. Mas não era apenas a debilidade física que
reduzia seu poder de concentração: a depressão
psíquica o afetava muito mais profundamente.
Por que não o ouviam?
A pergunta incessantemente repetida levou
a novo choque, quando subitamente acreditou
ter encontrado uma resposta. As freqüências
não combinam! O emissor e o receptor devem
estar sintonizados segundo os princípios mais
elementares da física. Marshall se lembrou do
primeiro encontro com as focas. Naquela opor-
tunidade precisaram de uma bateria completa
de instrumentos para possibilitar o contato en-
tre os animais e os homens. A linguagem das
focas era transmitida pela faixa do ultra-som e
por isso mesmo não era perceptível ao ouvido
humano. Tornava-se necessário transformar o
ultra-som através de um conversor de freqüên-
90
cias: após isso a linguagem das focas tornava-se
inteligível através de um analisador cerebral e
de um codificador positrônico.
Por alguns segundos, Marshall parecia per-
plexo. Logo se deu conta de que não concluíra
seu raciocínio sobre o problema. Afinal, não
era possível que Perry Rhodan fosse um idiota
para mandá-lo sozinho para a selva a fim de
executar uma tarefa que não tinha as menores
perspectivas de êxito.
“Sou um ótimo telepata”, foi esta a idéia
que Rhodan impôs à sua mente. “Por isso pos-
so dispensar esses recursos tecnológicos. As on-
das de pensamento sempre são ondas de pen-
samento, a freqüência não muda. Isso aplica-se
às focas e a mim. Têm de me ouvir. A não ser
que sejam tão fleumáticas que resolveram igno-
rar meu pedido de socorro.”
Estendera-se na areia para ter um descanso
total de pelo menos trinta minutos. Não mexe-
ria um dedo. Não pensaria em nada.
Quando os trinta minutos haviam passado,
cavou um buraco com a mão e enterrou os ob-
jetos que trazia consigo. O buraco se encheu de
água. Mas as conservas e a carabina pesada
eram imunes à umidade.
Aliviado da bagagem foi entrando mar aden-
tro, até que conseguiu mergulhar completamen-
91
te. Sabia do perigo que corria. A água gosmen-
ta e viscosa, totalmente diferente da que conhe-
cemos na Terra, corria quase como o óleo. Es-
tava muito mais impregnada de algas e microor-
ganismos que o nosso mar e poderia lhe reser-
var surpresas de que a ciência humana não des-
confiava. Mas Marshall não tinha outra alterna-
tiva.
A água transmite as ondas sonoras com mai-
or rapidez e intensidade que o ar. Por que a
mesma coisa não poderia acontecer com as on-
das emitidas por um cérebro telepático?
Mergulhou completamente e se concentrou.
Procurou usar um vocabulário bem simples,
para que as focas não tivessem dificuldade em
compreendê-lo.
Durante as pausas que fazia punha a cabeça
fora da água para respirar.
Repetiu o jogo cinco vezes. Da última vez,
os projéteis disparados por uma carabina auto-
mática atingiram a água perto dele, obrigando-
o a voltar a mergulhar imediatamente.
No mesmo instante esqueceu as focas. Atrás
dele havia homens que eram muito mais perigo-
sos que o mundo selvagem de Vênus com seus
mistérios.
Uma vez embaixo da água, avançou para a
direita até que os pulmões vazios o forçaram a
92
vir à tona. Deitou de costas, para poder respirar
sem pôr a cabeça toda fora da água. Seus olhos
revirados captaram um grupo de seis homens,
que se aproximavam pela península sem de-
monstrar a menor preocupação de se abrigar.
Tinham consciência de sua superioridade. Ao
que tudo indicava, já vinham observando
Marshall há bastante tempo: provavelmente te-
riam percebido que deixou suas armas na ponta
da península. Talvez acreditassem mesmo que
já o haviam liquidado. Não atiravam mais e não
corriam, apenas andavam apressadamente.
A altura do banco de areia ainda oferecia al-
guma proteção: desde que Marshall se compri-
misse bem ao solo, não seria visto. Era evidente
que não poderia permanecer na água nem mais
um segundo. Se os homens do Bloco Oriental
chegassem antes dele ao lugar em que se en-
contrava sua bagagem, não teria a menor chan-
ce.
Enquanto se encontrava na água, deslocou-
se por meio de movimentos rítmicos dos pés
até sentir chão firme embaixo das costas. De-
pois disso, girou o corpo para ficar de barriga
para baixo e rastejou para a frente.
Ao abrir o buraco em que enterrara sua ba-
gagem, formara involuntariamente um monte
de areia, que agora poderia salvar sua vida.
93
Rastejou um pouco para a esquerda, até que
o monte de areia ficasse exatamente na linha
de visão dos seis homens. Depois voltou a ras-
tejar para a frente e atingiu suas armas e sua
bagagem sem ser visto.
Os seis homens se encontravam a pouco
mais de duzentos metros.
Enterrou-se mais um pouco no chão molha-
do e segurou as duas armas que trazia consigo:
a pesada carabina automática que havia apresa-
do e o radiador de impulsos facilmente manejá-
vel. Quando sentiu a coronha encostada ao seu
ombro teve uma sensação de alívio.
Respirar três vezes... apontar.
O cano descansava sobre o monte de areia.
A pontaria era fácil.
Puxou o gatilho. No último instante atirou o
cano para cima: não queria atingir ninguém.
Seria um tiro de advertência. A decência exigia
que ele o desse.
Será que a decência compensaria nessa luta
implacável?
Marshall não sabia. Nem por isso estava ar-
rependido do que havia feito.
Seus inimigos se assustaram. Se eles tives-
sem se virado e corrido, Marshall nunca teria
concebido a idéia de fazer pontaria sobre suas
costas. Mas a opinião daqueles seis homens era
94
diferente. Jogaram-se ao chão e iniciaram o
ataque.
A série de impactos produzidos pelas armas
de infantaria atirou a sujeira para o alto.
Marshall logo percebeu que o pequeno monte
de areia que tinha diante de si não poderia
substituir um abrigo subterrâneo. Não devia ter
mais nenhuma consideração, se estivesse inte-
ressado em sair vivo daquela armadilha.
Os homens queriam matá-lo. Seus pensa-
mentos eram idênticos aos do homem que teve
que matar poucas horas antes.
Marshall largou a carabina e pegou o radia-
dor de impulsos. Não via os inimigos.
Abriu um fogo ininterrupto de dez segundos,
formado exclusivamente por energia térmica. A
energia desprendida pela arma bastaria para in-
cendiar uma parede de aço. E as chances do
homem seriam muito menores num inferno
desses.
Os seis homens deviam estar mortos. Ape-
sar disso Marshall esperou mais uma hora antes
de fazer qualquer movimento.
Já eram sete os homens que tivera que eli-
minar. Era evidente que com isso não liquidara
o grupo inimigo. Ao que parecia haviam colo-
cado toda uma tropa de choque no seu encalço.
A floresta poderia ocultar uma companhia intei-
95
ra.
Suas suspeitas logo se confirmaram. Um tiro
isolado soou ao longe. Na costa surgiram dois
homens que corriam apressadamente por um
desfiladeiro.
A demonstração feita com a arma de impul-
sos térmicos tornara o inimigo mais cauteloso.
Mas este não tinha necessidade de assumir
qualquer risco. Marshall estava preso na arma-
dilha. A península de cerca de oitocentos me-
tros de comprimento só se ligava à terra firme
por uma estreita faixa de terra. Se tentasse es-
capar por ali, se transformaria no alvo de atira-
dores de elite escondidos na floresta. E se ati-
rasse às cegas para a floresta estaria fazendo a
maior tolice que se poderia imaginar. Diante da
selva de Vênus, até um radiador arcônida de
impulsos térmicos não passava de um brinque-
do ridículo.
John Marshall não teve outra alternativa se-
não melhorar sua posição atual. Deitado de
lado, abriu com a carabina sulcos profundos na
areia. Aos poucos foi se formando uma cavida-
de achatada, na qual se abrigaria deitado. A
água que foi se infiltrando não deveria inco-
modá-lo.
Também o monte de areia foi reforçado,
não tanto em altura, mas principalmente em
96
largura. Sua massa devia ser suficiente para re-
sistir ao projétil disparado por uma arma pesa-
da de infantaria. Nem poderia pensar na possi-
bilidade do inimigo se equipar com lança-grana-
das ou canhões leves.
Quem dera que as focas chegassem! Bem
que estava precisando de um aliado. Mas será
que ajudariam um homem a lutar contra outros
homens? Sem dúvida, se este homem fosse um
telepata.
O que lhe inspirava maiores esperanças era
a lembrança de Perry Rhodan, que pretendia
segui-lo lentamente em companhia de Son
Okura. Onde estariam a esta hora?
Marshall apalpou a pulseira, que além de ou-
tros equipamentos continha um mini-transmis-
sor. As comunicações pelo rádio haviam sido
proibidas. Mas Rhodan permitira o uso do
emissor em caso de emergência. Portanto, a
decisão caberia ao próprio Marshall.
Será que o considerariam um covarde se ex-
pedisse um pedido de socorro? Hesitou alguns
minutos. Por fim, num gesto decidido, puxou a
rodinha que ativava o mini-transmissor. Com a
unha puxou a antena. O aparelho já estava re-
gulado para a freqüência combinada.
— Alô, Perry Rhodan! Aqui fala John
Marshall. Estou chamando Perry Rhodan. En-
97
contro-me numa situação de emergência.
Esperou.
Passaram-se dez segundos. O impulso trans-
mitido pelo emissor causaria a ativação auto-
mática do receptor. Finalmente veio a resposta.
— Rhodan falando! O que houve, Marshall?
Conseguiu alguma coisa?
— Não. As focas não dão sinal de vida. Ten-
tei durante várias horas. Há gente do Bloco
Oriental que está no meu encalço. Consegui-
ram me cercar. Encontro-me numa península
em que não existe qualquer vegetação. Minha
única proteção consiste num monte de areia. O
inimigo está protegido na floresta. Tenho uma
segurança relativa diante de armas leves de in-
fantaria. Mas tenho de contar com a possibilida-
de de que a patrulha inimiga consiga trazer ou
já disponha de morteiros. Não há dúvida de que
estão atrás de mim. Pode fazer alguma coisa
para me ajudar?
— Que diabo, John! Você está mesmo em
maus lençóis. Ainda bem que me avisou. Neste
momento reina a maior confusão nas fileiras de
Tomisenkow e dos rebeldes. Por enquanto não
nos preocuparemos com os goniômetros dos
mesmos. Okura e eu conseguimos passar na
frente das tropas do general. Já temos uma boa
vantagem. Calculo que dentro de quatro horas
98
poderemos chegar ao lugar em que se encon-
tra. Agüente até lá. A partir das cento e cin-
qüenta horas transmita um vetor de rádio de
dez em dez minutos, para que possamos tomar
logo a direção correta. Não desanime, Marshall!
Nós o tiraremos daí.
Pouco depois do fim da palestra radiofônica,
os soldados que se encontravam na praia volta-
ram a atirar. Em três pontos, Marshall reconhe-
ceu o fogo dos canos das armas e respondeu
prontamente com o radiador de impulsos térmi-
cos.
A mil metros de distância a arma de radia-
ções ainda atingia o alvo com mais de dois ter-
ços de sua energia. Na beira da floresta surgiu
uma incandescência azulada que produziu uma
forte condensação da suculenta vegetação.
Num instante um pequeno trecho da linha cos-
teira se cobriu de uma densa camada de nebli-
na.
— Hum — fez Marshall, satisfeito. — Nem
contava com este efeito da minha arma. Abrirei
um pequeno fogo de barragem e envolverei
essa gente na neblina. Isso os irritará e os man-
terá ocupados por algum tempo.

***

99
— Vamos, Okura! Somos dois inválidos,
mas temos de aumentar nossa velocidade mais
um pouco. Será que você consegue?
O mutante tentou esboçar um sorriso confi-
ante, mas não conseguiu. Rhodan viu que o ra-
paz estava realizando um esforço que ultrapas-
sava sua capacidade.
— Venha cá, Son. Passe as três carabinas,
espingardas e o saco de mantimentos. É minha
vez de fazer o papel de burro de carga.
— Não fale como se eu até aqui tivesse leva-
do a carga sozinho. E não se esqueça do seu
ombro.
— Bobagem! Meu ombro está em vias de se
curar. Passe para cá essas bugigangas e pegue
o facão. Nos quilômetros que se seguem você
irá à frente. Terá bastante para fazer.
O gracioso japonês obedeceu. Continuaram
a avançar pela selva.
Há muito haviam deixado para trás a passa-
gem pelo rio.
Rhodan, que havia recebido o pedido de so-
corro de Marshall, não pôde permanecer por
mais tempo nas proximidades de Thora. Tinha
de chegar ao mar quanto antes. Só lhe restava
fazer votos de que alguém da tropa de Tomi-
senkow tivesse encontrado o bilhete que conti-
nha a advertência sobre a armadilha montada
100
por Wallerinski.
A hora já passara e não se ouvira nenhum
tiro.
— É claro que encontraram o bilhete — as-
severou Okura. — Se Tomisenkow tivesse pas-
seado embaixo daquelas árvores em que Walle-
rinski se mantinha à espreita, já teríamos ouvi-
do o barulho de outra batalha.
— Se for assim, por enquanto Thora está
em segurança. Não demorará muito e nós a ti-
raremos de lá. Assim que a noite descer sobre o
planeta, você será nossa arma mais potente,
Okura...
Perry Rhodan estava aludindo à capacidade
de ver as freqüências, de que Okura era dotado.
Embora para enxergar normalmente Okura
precisasse de óculos, ele possuía olhos que difi-
cilmente outro homem conhecia. Sua visão pe-
netrava profundamente nas faixas do ultraviole-
ta e do infravermelho. Isso significava que en-
xergava muito bem de noite.
— Quando a noite descer sobre o planeta...
— repetiu Okura. Pelo tom em que pronuncia-
va as palavras, até parecia que ansiava pela noi-
te. — Não sei por que, mas acho a divisão do
tempo na Terra muito mais simpática que a que
temos aqui. Até o anoitecer faltam mais de três
dias. E até lá temos de libertar Marshall da situ-
101
ação crítica em que se encontra.
— Não é até lá — asseverou Rhodan em
tom áspero. — Acho que o tempo de que dis-
pomos é muito menor.
Os últimos quilômetros foram percorridos
com uma relativa facilidade. Isso não dependia
tanto da natureza do terreno, mas antes da roti-
na que adquiriram ao lidar com a selva.
Captaram regularmente o vetor transmitido
por Marshall e isso lhes permitiu seguir pelo ca-
minho mais curto.
Pelas cento e cinqüenta e duas horas, Rho-
dan afirmou que estava cheirando o mar.
— Muito cuidado, Son! — advertiu. — Esta
floresta está cheia de combatentes sem escrúpu-
los.
Subitamente viram o mar junto de si. A vi-
são os surpreendeu um pouco. Poucos minutos
antes ainda se viram diante de uma vegetação
densa e rebelde.
— Hum — resmungou Rhodan. — Não se
vê muita coisa. Que neblina!
Okura sorriu.
— É uma neblina muito estranha, mas não
me incomoda nem um pouco. Se não me enga-
no ela vai se tornando cada vez mais densa
para o lado esquerdo.
— Você não está enganado, Son. Consegue
102
enxergar alguma coisa?
— Enxergo muito bem. A menos de trezen-
tos metros daqui pelo menos vinte homens es-
tão deitados na orla da floresta.
Estão simplesmente deitados no capim, por-
que acreditam que a neblina os protege contra
a visão.
— E Marshall?
— A península fica pouco adiante.
— Ah, sim. Vejo a ponta lá fora. E vejo um
ponto negro. Deve ser John. Não compreendo
como a neblina pode se concentrar num espaço
tão reduzido. No resto da área a visão é perfei-
ta.
Okura não soube responder.
— Quer que avance sozinho? — perguntou.
— Será fácil achar o meu caminho.
— Um momento: isso tem tempo. Rhodan
enfiou as mãos numa sacola que tirara dos paci-
fistas. Retirou duas cargas explosivas.
— Acho que isso os despertará. Voltaram à
floresta e aproximaram-se do grupo inimigo por
trás. Colocaram as duas cargas explosivas num
flanco do grupo e regularam os detonadores
para uma diferença de trinta segundos. Depois
retiraram-se apressadamente. Muito bem abri-
gados, acompanharam o desenrolar dos aconte-
cimentos.
103
— Falta um minuto — murmurou Rhodan.
Okura confirmou com um aceno de cabeça.
A primeira carga explodiu.
— Levantaram-se e estão correndo confusa-
mente de um lado para o outro. Gritam alguma
coisa...
— Estou ouvindo.
— A maioria deles procurou uma cobertura
no próprio local.
— E os outros?
— Três estão fugindo, para o oeste. Vão
correndo pela praia. Um deles parece ser cora-
joso: caminha em direção à floresta. Está com a
carabina em posição de atirar.
— Diz que isso é coragem? Esse sujeito ficou
maluco.
Os trinta segundos passaram.
A segunda carga explosiva detonou. A con-
fusão nas fileiras inimigas foi total. Todos espe-
ravam novas detonações, cuja origem por en-
quanto era desconhecida. Face a isso teve início
uma retirada geral para o oeste, que degenerou
até que cada um corria o mais que podia. Corri-
am pela costa, pois na praia o deslocamento
era mais fácil.
— O acesso à península está livre — disse
Okura em tom exaltado.
— Vamos, meu filho — decidiu Rhodan. As-
104
sumiram suas posições no início da península.
— Verifique o terreno a oeste — ordenou
Perry, mantendo-se ocupado com o rádio. —
Venha, John. Libertamos a passagem. Você
nos encontrará no ponto exato em que a pe-
nínsula se liga à terra firme.
— Pelo sagrado Universo, chefe! Isso foi um
trabalho bem feito. Já dispõe de peças de arti-
lharia?
— As explicações ficam para depois. Antes
de mais nada quero ver se ainda está inteiro.
Quando o vulto de John Marshall surgiu na
neblina, novas detonações rugiram ao longe.
Pela sua intensidade concluía-se que eram car-
gas de grosso calibre.
— O que foi isso? — gemeu Son Okura.
— Acho que foi um bombardeio — disse
Rhodan em voz baixa, falando entre os dentes.
— Vivo dizendo que alguns cavalheiros que se
encontram em Vênus erraram nos seus cálcu-
los.

Haviam escapado da armadilha de Walle-


rinski. Mas, quando o general Tomisenkow viu
os quatro helicópteros que se lançavam ao ata-
que, soube que fugira da chuva para entrar no
105
chuveiro.
A primeira salva de bombas caiu quase toda
na selva. Apenas as últimas três detonações vi-
nham da área em que Tomisenkow supunha
sua vanguarda.
— Isso é traição. Chamarei essa gente a
prestar contas...
— Procure se abrigar — interrompeu-o uma
voz. Era o coronel Popolzak. — Espalhem-se
pela floresta de ambos os lados do caminho.
Num instante o desfiladeiro bem visível pare-
cia varrido. Apenas algum material deixou de
ser retirado.
Mais uma vez as cargas de TNT foram lan-
çadas em meio à confusão da selva, atirando
para o ar uma mistura de galhos, árvores intei-
ras e cipós.
Dentro de dois minutos tudo chegou ao fim.
— Voltarão — afirmou Thora, que com uma
repugnância indisfarçável removeu a sujeira de
sua roupa.
— O que é que a senhora sabe? — berrou
Tomisenkow.
Thora deu de ombros.
— Não sei nada, general. O ataque não foi
desfechado pelo meu exército. Mas procure re-
fletir intensamente. Deve ter reconhecido as in-
sígnias dos aparelhos.
106
— Os helicópteros são do Bloco Oriental,
madame. Conheço-os pelo tipo. São os maio-
res, os mais rápidos...
— Já sei. Os maiores, os mais rápidos e
provavelmente os primeiros do mundo — res-
pondeu Thora em tom zombeteiro.
— Cale-se! Eu lhe...
De tanto nervosismo ninguém deixava que o
outro terminasse. O general interrompeu Tho-
ra. E o coronel Popolzak interrompeu o gene-
ral.
— Deve haver mortos, general. Tem alguma
ordem para mim?
— Não está em condições de decidir a res-
peito disso, coronel? Mande recolher os mortos
e reúna a divisão. Preciso falar com todo mun-
do.
Tomisenkow olhou para a arcônida. Subita-
mente segurou-a pela mão.
— A senhora virá comigo.
Thora foi obrigada a segui-lo para a coluna
de comunicações, que há vários meses só exis-
tia pelo nome. Os telegrafistas eram soldados
de infantaria esfarrapados como os demais.
— Kossygin! — berrou Tomisenkow.
Um cabo surgiu entre um montão de apare-
lhos.
— Às ordens, general.
107
— A proibição das comunicações radiofôni-
cas está suspensa. Ligue um microfone e um
rolo de fio magnético para gravar o som.
— Não quer se comunicar em código?
— Que diabo! Não faça perguntas, cabo.
— Desculpe, general, que freqüência devo li-
gar?
— Ora essa! A freqüência normal! Acha que
quero ter uma conversa particular? Fique aqui
mesmo, madame. Não vai fugir para a selva jus-
tamente agora!
Thora só recuara alguns passos para sentar
num tronco tombado. Para surpresa de todos,
sorriu.
— Não se perturbe, general. Não vou fugir.
Kossygin fez uma prova, gravando e repro-
duzindo sua própria conversa.
— O emissor está preparado, general.
— Aqui fala o general Tomisenkow, coman-
dante da divisão aerotransportada Vênus. Or-
dem destinada aos quatro helicópteros. Pousem
imediatamente em minha área e se apresen-
tem. Acusem o recebimento e declinem o nome
do oficial que se encontra no comando.
Para surpresa geral a resposta foi imediata.
— Aqui fala o coronel Raskujan. Quero
cumprimentá-lo, general. Infelizmente vejo-me
forçado a decepcioná-lo se acredita que pode
108
me dar ordens. Na verdade, sugiro que capitule.
Incondicionalmente, compreendeu? Depois po-
deremos conversar tranqüilamente sobre os de-
talhes.
— Será que ficou louco, coronel? De onde
veio a esta hora? Há um ano seu nome me foi
indicado como o do subcomandante de uma
frota de reforços. Será que levou doze meses
terrestres para percorrer a distância da Terra
até aqui?
— A viagem foi um pouco mais rápida. —
disse Raskujan com uma risada irônica. — Per-
mita que lhe dê alguns esclarecimentos sobre a
situação atual. A frota de reforços pousou há
onze meses na superfície de Vênus. Acontece
que não havia mais qualquer divisão que mere-
cesse o apoio trazido pela mesma. General,
quero que fique sabendo que sou a única pes-
soa que dá ordens em Vênus.
— Isso é um ato de insubordinação! — fun-
gou Tomisenkow para dentro do microfone
que, de tanta exaltação, mal conseguia segurar.
— O senhor foi destacado para o meu serviço
pela autoridade espacial e tem o dever de se
apresentar a mim.
— É o que acabo de fazer. Espero que não
se incomode com a demora.
A voz de Raskujan porejava de ironia, o que
109
fez com que o general perdesse o resto de auto-
controle que ainda lhe sobrava.
— Repito pela última vez, coronel Raskujan.
Apresente-se imediatamente. Não vou discutir
os detalhes pelo rádio. Se não obedecer a esta
ordem, será chamado a prestar contas perante
a instância mais elevada.
— O senhor não está avaliando corretamen-
te a situação — respondeu Raskujan, passando
a usar um tom mais amável e objetivo. — A ins-
tância mais elevada sou eu. Veja no ano passa-
do um trecho de história. É um pedaço de pas-
sado que devia lhe ensinar alguma coisa. Quem
dispõe de todo poder em Vênus sou eu, o coro-
nel Raskujan. O planeta está submetido às mi-
nhas ordens. Pode acreditar que disponho dos
meios para impor minhas ordens a quem se
opuser. Não confunda seu bando de assaltantes
com a divisão que já foi, general. Repito minha
oferta. Recomende aos seus soldados embrute-
cidos que se entreguem incondicionalmente. Es-
tou disposto a transformar todos eles em pesso-
as decentes e civilizadas. Tratarei cada um, se-
gundo sua capacidade e boa vontade. Com isto
eu me despeço, senhor Tomisenkow. O senhor
sabe como me encontrar.
O general ainda berrou para dentro do mi-
crofone alguma coisa que soava como traidor.
110
Mas era evidente que o interlocutor já não esta-
va recebendo a mensagem.
Subitamente aquele homem, submetido a
uma série de provações que atingiam o limite
de sua capacidade psíquica, mergulhou no silên-
cio. Pôs a mão no pescoço.
— Não force sua voz — aconselhou Thora
com a frieza que lhe era peculiar.
Seu sorriso não dissimulava o fato de que a
derrota daquele homem a alegrava.
— Como é que uma coisa dessas podia
acontecer, madame? Esse sujeito, o tal do
Raskujan, já serviu numa companhia comanda-
da por mim. Conheço-o como a mim mesmo.
Era um ótimo soldado, e nada fazia desconfiar
de que um dia enlouqueceria.
— Em Vênus todo mundo enlouquece. Será
que o senhor acha que ainda é normal?
— Acontece que eu sou general e ele é co-
ronel. Isso devia bastar.
— Parece que em Vênus não basta, general.
Já ouvi falar num ditado que corre pela Sibéria.
“Moscou é longe”, costumam dizer. E nunca
essa frase se aplicou melhor a qualquer pessoa
que ao senhor e a seu rival. Aqui Raskujan co-
meçou tudo de novo. É outro planeta, outra
vida. Os fatos são estes.
— Acontece que ele usa o mesmo uniforme
111
que eu. Isto também é um fato.
— É possível que já tenha tirado o uniforme.
Além disso, os termos que usou durante a pa-
lestra e os helicópteros que comanda causaram
a impressão de que o senhor se encontra diante
de um poderio militar perfeitamente organiza-
do. Não há dúvida de que é o mais forte. Mas
por que digo estas coisas? O senhor tem olhos
que enxergam e sabe perfeitamente que os des-
troços de sua divisão não passam de um grupo
embrutecido.
— Madame! — indignou-se Tomisenkow,
mas interrompeu-se quando viu seu olhar gela-
do.
Parecia que entre os dois fora erguido um
muro invisível que não permitia qualquer conta-
to. As palestras ligeiras que mantinham vez por
outra não podiam alterar esse fato.
O coronel Popolzak anunciou que a divisão
se encontrava em forma.
Haviam encontrado trinta e oito mortos, que
foram amontoados num lugar um pouco afasta-
do.
— Tiramos suas armas e seus papéis e de-
positamos tudo no estado-maior.
— Está em ordem — disse Tomisenkow
com um aceno de cabeça, como se aquele ins-
tante o mais importante fosse a exata contabili-
112
zação.
— Está tudo em ordem, com exceção dos
feridos — observou Popolzak.
Tomisenkow lançou-lhe um olhar irritado,
como se nem tivesse pensado nessa possibilida-
de.
— Há quinze feridos — prosseguiu o coro-
nel.
— O Dr. Militch não está cuidando deles?
— Está cuidando conforme pode. Mas como
sabe quase não dispomos mais de medicamen-
tos e ataduras.
— Tem de se arranjar conforme pode. Para
isso é médico.
Popolzak nunca vira o rosto de Tomisenkow
tão estreito e decaído como estava hoje. E nun-
ca ouvira o chefe falar com tamanha indiferen-
ça nos mortos e nos feridos. O surgimento de
Raskujan devia tê-lo excitado e deprimido terri-
velmente.
O general revistou a tropa. Não se podia fa-
lar numa divisão formada diante de seu superi-
or. Nem em número, nem pela apresentação
dos homens. Os grupos estavam reunidos o
mais próximo que a vegetação intensa permitia.
Dirigiu um discurso aos homens, no qual ex-
primiu sem rebuços tudo aquilo que já transmiti-
ra pessoalmente a Raskujan pelo microfone.
113
— Tivemos perdas — concluiu. — Mas não
porque o coronel Raskujan, o desertor, seja o
mais forte, mas apenas porque nos atacou à
traição. Há um ano o governo do Bloco Orien-
tal mandou que seguisse para Vênus a fim de
nos apoiar. Empregaremos todos os meios de
que dispomos para obrigá-lo a prestar a obe-
diência que nos deve. Estamos prevenidos e sa-
beremos nos adaptar à situação. Mais alguns
quilômetros, e chegaremos ao mar. Nossa mar-
cha prossegue pelas baixadas da selva, onde a
visibilidade é nula. Os grupos de observação do
inimigo não nos encontrarão antes de atingir-
mos nosso objetivo. A prisioneira arcônida ga-
rantirá nosso acesso à fortaleza de Vênus. No
mesmo instante em que chegarmos lá, ajustare-
mos nossas contas com Raskujan. Nem que lan-
ce cem helicópteros contra nós. Não poderá re-
sistir ao nosso poder e será obrigado a se sub-
meter. Os destacamentos devem se preparar
para iniciar a marcha. Os chefes de companhia
devem se apresentar ao Dr. Militch. O transpor-
te de todos os feridos que não podem se loco-
mover deve ser garantido. Muito obrigado.

***

A neblina artificial já se desvanecera.


114
Rhodan, Marshall e Okura penetraram um
trecho na floresta. Não se via mais nada dos
homens do Bloco Oriental, que se retiraram em
direção ao oeste. Mas havia o risco de que tam-
bém penetrassem no mato e procurassem se
aproximar sorrateiramente. Uma vez que, de-
pois da detonação das duas cargas, não houve
outras explosões no local, poderiam se reani-
mar.
Rhodan era de outra opinião.
— As duas cargas que detonamos aqui não
passam de brincadeira em comparação com
aquilo que acaba de acontecer ali na selva. Não
há dúvida de que foram bombas. Não me cons-
ta que qualquer dos grupos que conhecemos
disponha de armas de calibre tão grosso. Só há
uma explicação, que já me ocorreu há bastante
tempo.
— Está pensando na frota de reforço dos
russos, não é?
— Isso mesmo. Conforme sabem, há tempo
vivo quebrando a cabeça para descobrir onde
pode ter ficado a frota que há cerca de um ano
surpreendentemente lançamos numa confusão
completa pouco antes de sua chegada a Vênus.
Eram duzentas naves, e destruímos apenas trin-
ta e quatro. Uma parte deve ter pousado em
Vênus. Mesmo que grande parte das máquinas
115
restantes tenha sido destruída no planeta, um
cálculo grosseiro nos leva à conclusão de que al-
gumas devem ter chegado.
— Acredita que elas se mantiveram escondi-
das por um ano? — perguntou Marshall em
tom incrédulo.
— Por que não? Talvez isso se tornasse ne-
cessário por razões de ordem tática.
Naquele instante o ribombar de outra série
de explosões atravessou a paisagem.
— Trata-se de bombas explosivas comuns —
constatou Marshall. — Devem ser os russos. De
qualquer maneira não se trata de uma expedi-
ção da Terceira Potência.
— Desista dessa esperança, John. Se Bell
não consegue descer, nenhuma outra nave con-
seguirá. A barreira erguida pelo cérebro posi-
trônico é intransponível. Por isso também se
torna evidente que essa gente que agora está
lançando as bombas já se encontrava aqui
quando nós chegamos. E devem dispor de avi-
ões.
Os dois mutantes não sabiam o que dizer.
— De qualquer maneira há um certo para-
doxo naquilo.
— Só para quem não sabe o que há atrás
disso — asseverou Perry Rhodan.
Subitamente estacou. Okura e Marshall tam-
116
bém inclinaram a cabeça para o lado, como se
prestassem atenção a um ruído distante.
Um rugido leve e abafado enchia o ar. Não
era o ribombar do bombardeio.
— Olhem! — disse Okura de repente e
apontou para o sudeste. Rhodan e Marshall não
viram nada.
— São helicópteros. Santo Deus, não os re-
conhece mais?
— Pelo ruído parece que tem razão, Son.
Mas devem estar voando naquelas nuvens bai-
xas.
— Naturalmente. Desculpe, não me lembra-
va.
— Continue a observá-los. Estou interessado
em saber que direção vão tomar.
Num gesto instintivo manipulou seu recep-
tor. Fez o seletor de freqüências percorrer a fai-
xa usual das ondas ultracurtas. O condensador
seletivo pôs-se a funcionar automaticamente
quando houve uma recepção.
Rhodan encostou a pulseira ao ouvido e tes-
temunhou a palestra travada entre o general
Tomisenkow e o coronel Raskujan. Marshall e
Okura seguiram seu exemplo, pois ambos usa-
vam uma pulseira igual à de Rhodan.
O diálogo breve e exaltado foi bastante ins-
trutivo. Rhodan esboçou um sorriso de satisfa-
117
ção, mas logo se tornou sério.
— Tive razão. Seguiremos essa gente, desde
que nos façam o favor de prosseguir por mais
algum tempo nas suas transmissões pelo rádio.
Uma das feições características de grande parte
da Humanidade consiste no fato de sempre ter
que viver na discórdia, esteja onde estiver. Aqui
em Vênus temos alguns cidadãos comuns do
planeta Terra, e já vivem quebrando a cabeça
uns dos outros. Acontece que o cosmos está à
nossa porta, e temos de aprender a lidar com
essas coisas. Parece que a palestra chegou ao
fim. Que pena!
— Não acha que devíamos escutar mais um
pouco? — sugeriu Okura.
— É claro que sim. No momento não temos
coisa melhor para fazer. Mas basta que um de
nós cuide disso.
Penetraram mais um pedaço na floresta.
Marshall e Okura, que tinham os melhores dons
de observação natural, cuidaram da retaguarda.
Rhodan observou o terreno em direção ao lito-
ral e manteve seu receptor em atividade.
Os helicópteros já haviam desaparecido so-
bre o mar, atrás da linha do horizonte. Final-
mente, depois de passados mais de noventa mi-
nutos, palavras voltaram a soar no éter. Tra-
tava-se de uma ligeira palestra entre um dos pi-
118
lotos e a base. Mas isso bastou para que Rho-
dan realizasse a localização goniométrica. O re-
sultado foi registrado imediatamente na peque-
na bússola giratória que também se encontrava
na pulseira, para que pudesse ser interpretado
posteriormente.
— Já localizamos o quartel-general de
Raskujan.
A exclamação despertou a atenção dos dois
companheiros.
— Onde fica? É muito longe?
— Um momento! Não sou nenhum mágico!
Com a antena goniométrica só posso determi-
nar a coordenada. Temos a direção, e isso já
vale muito.
Rhodan tirou o livro de anotações do bolso e
desenhou um croqui da parte norte do planeta.
Registrou o mar primitivo com o braço de tre-
zentos e cinqüenta quilômetros que se estendia
terra adentro, os acidentes da área em que se
encontravam e o bloco continental com a tão
cobiçada base de Vênus.
— No momento estamos aqui. Aqui, mais
ao sul, foram lançadas as bombas, e os helicóp-
teros voltaram por esta rota.
Traçou uma linha para o nordeste, que atra-
vessava a enseada e prosseguia terra adentro
no lado oposto.
119
— A segunda coordenada deve ser estimada
— prosseguiu. — Mas como dispomos de uma
série de dados, poderemos calcular a distância
com um grau de precisão bastante satisfatório.
Conhecemos o tempo de vôo dos helicópteros.
Além disso, sabemos que seu percurso toca um
ponto geográfico bastante crítico. Fica aqui...
Fez uma cruz na folha de papel e os dois
amigos compreenderam imediatamente de que
se tratava. A cruz ficava na periferia da abóbada
energética de cinqüenta quilômetros de diâme-
tro que cercava a base de Vênus. E ficava no
ponto exato em que doze meses antes Rhodan
lançara um ataque contra as forças de Tomi-
senkow. Numa faixa de vários quilômetros, a
paisagem fora transformada em terra morta.
Toda a vegetação fora extinta.
— É a picada gigante — disse John Marshall
em tom pensativo.
— É claro — confirmou Rhodan. — Para
qualquer um que ande vagando por Vênus, o
Eldorado só pode ser nossa base. Raskujan quer
entrar na fortaleza, da mesma forma que nós e
Tomisenkow. E foi por isso que durante um
ano não se preocupou com os grupos esparsos.
Está alojado nessa grota que transformamos em
terra queimada. É o campo de pouso ideal para
as naves espaciais e fica a poucos quilômetros
120
da abóbada energética. Cavalheiros, tenho a
impressão de que devemos cuidar de Thora.
Thora e eu somos as pessoas-chaves para o
acesso à fortaleza! Raskujan deve estar de olho
em Thora.
— Mas nesse caso não poderia se lançar
sem mais nem menos a um ataque contra To-
misenkow — objetou Okura. — Precisa de Tho-
ra viva.
— Naturalmente. Provavelmente soube atra-
vés de outros grupos esparsos como anda a si-
tuação. Os colonos ou alguns desertores do gru-
po de pacifistas terão contado tudo. Por certo o
bombardeio não passa de uma demonstração,
através da qual pretende mostrar seu poder a
Tomisenkow. Um helicóptero permite uma
pontaria tão exata que até se pode errar o alvo
de propósito. Se minhas suposições forem cor-
retas, dentro em breve Raskujan tentará raptar
Thora. Devemos nos antecipar a ele.
Fazia horas que não se via nem se ouvia
nada da patrulha formada pelos homens do
Bloco Oriental. Provavelmente se juntaram à
sua tropa. O bombardeio seria um motivo mais
que suficiente para isso.
Rhodan voltou a olhar para o relógio. O en-
tardecer de Vênus já ia bem adiantado. Eram
cento e sessenta e seis horas, e aqui no norte
121
os dias eram mais curtos que as noites.
— Não temos muito tempo. Vamos embora,
minha gente.
Voltaram a entrar na floresta. A direção em
que encontrariam Tomisenkow e Thora era
fácil de determinar. Avançaram com bastante
rapidez.
Até que o lagarto das árvores atacou.
Rhodan já advertira os companheiros de que
nas horas de crepúsculo deveriam dedicar uma
atenção especial ao imprevisível mundo animal
do planeta. Naquela hora do dia quase tudo es-
tava de pé. Os animais diurnos preparavam-se
para voltar aos seus ninhos ou cavernas. E os
animais notívagos iam começando suas excur-
sões.
Dez minutos depois de iniciada a marcha,
Marshall teve que matar uma barata gigante de
três pernas. O animal correu para cima deles
com um terrível chiado. Só esse barulho nojen-
to fizera com que fosse notado em tempo.
— Por que será que esse bicho faz um baru-
lho desses ao atacar? — perguntou Marshall de-
pois de tê-lo liquidado silenciosamente com o
radiador de impulsos térmicos. — Assim ele só
se trai.
— Certos animais assustam suas vítimas de
tal maneira que as mesmas ficam rígidas de pa-
122
vor. Uma tática dessas também serve para fazer
presas. Se não fosse assim, essa espécie não se
teria mantido até os dias atuais.
A explicação era convincente.
Trinta minutos depois começou o verdadeiro
desastre.
Marchavam em fila indiana: Okura, Rhodan,
Marshall.
O lagarto das árvores deixou que Okura pas-
sasse. Por algum motivo desconhecido o animal
atacou o chefe.
Estendeu sua cauda preênsil de uma altura
indefinível e numa fração de segundos deu vá-
rias voltas em torno do tórax de Rhodan. Este
ainda conseguiu soltar um grito. Mas logo o ani-
mal lhe apertou o peito de tal maneira que nem
conseguia respirar.
Num gesto instintivo Rhodan pôs ambas as
mãos naquela cauda coberta de cabelos lisos.
Deixara cair o fuzil no primeiro contato. Acon-
tece que suas mãos representavam um instru-
mento ridículo em comparação com a força de-
senvolvida nos vários metros dessa parte do
corpo do lagarto. Rhodan não pôde fazer nada.
Depois de dois segundos já se encontrava na
altura da cabeça de Marshall.
Num gesto instintivo o mutante levantou o
radiador de impulsos, mas não se atreveu a ati-
123
rar. O crepúsculo que caía, e que sob a densa
folhagem ainda espalhava uma escuridão muito
maior, não permitia uma visibilidade adequada.
E aquela cauda executava movimentos pendula-
res tão intensos que Marshall não podia se ar-
riscar a atirar. A vítima foi arrastada para o alto
aos solavancos.
— Okura! — gritou Marshall.
O japonesinho já se virara.
— Está bem, John. Largue a arma. Isto é
para mim.
O visor de freqüência não experimentava
tantas dificuldades de visão. Viu o laço tríplice
daquele rabo de cobra. Viu o tronco do lagarto
que ia engrossando progressivamente e que,
vinte metros adiante, se perdia em meio à fo-
lhagem.
Até então só conheciam esse animal através
de descrições. Pelo que se dizia seu aspecto era
semelhante ao de um jacaré. Dali provinha o
nome, tirado da biologia terrestre. Porém um
exame mais detido logo revelara as diferenças.
A cauda preênsil tinha cerca de quatro vezes
o comprimento do resto do corpo. Desempe-
nhava uma função tão importante como o rabo
dos macacos. O lagarto propriamente dito tinha
o corpo curto e coberto de pêlos lisos como um
castor. Vivia principalmente nas árvores. Até
124
chegava a construir ninhos.
O lagarto simplesmente tirara Perry Rhodan
do caminho. Este já se encontrava a uns sete ou
oito metros acima do solo quando Okura conse-
guiu levantar seu radiador de impulsos térmicos.
O laço com o ser humano surgiu diante da
alça de mira. Mas logo Okura viu a parte mais
espessa da cauda. Puxou o gatilho. Um raio
contínuo de cinco segundos fez com que execu-
tasse dois movimentos pendulares. A ponta da
cauda se destacou do tronco e caiu ao chão.
Okura e Marshall saltaram para o lugar em
que Rhodan se encontrava, para libertá-lo quan-
to antes. De início procuraram fazê-lo da mes-
ma maneira pela qual se desata um cordão de
sapato. Mas logo perceberam que aqui teriam
de lançar mão de energias de outra espécie.
Ainda perceberam que um êxito inicial não
deve tornar a pessoa despreocupada. Só pensa-
vam em tirar o chefe do laço.
— Cuidado! — gritou Okura de repente e
empurrou Marshall para o lado.
O animal furioso saltou de cima da árvore.
Chegou ao solo perto de Rhodan. Apesar da
pequena distância não se via se este fora atingi-
do mais uma vez.
Agora o alvo era bem grande. Nem mesmo
Marshall hesitou em atirar. A uma distância re-
125
duzidíssima levantou o radiador de impulsos
térmicos e puxou o gatilho. O corpo se esten-
deu, empinou uma última vez e se imobilizou de
vez.
— Está morto — disse Okura e voltou a sal-
tar para a frente.
Com todo azar Rhodan ainda tivera muita
sorte. Por poucos centímetros não fora esma-
gado pelo corpo daquele gigante.
— Chefe! — gritou Marshall e procurou
apalpar a cabeça de Rhodan.
— Está inconsciente — disse Okura. — Va-
mos, John, ajude-me. Não poderemos abrir o
laço com as nossas forças. Além de tudo a pon-
ta do rabo está presa sob o corpo do animal.
— Estou vendo. Como poderei ajudar?
— Temos de nos arriscar a dar dois cortes
térmicos para seccionar a cauda o mais perto
possível do corpo de Rhodan. Só assim podere-
mos libertá-lo.
Marshall deu um aceno automático com a
cabeça. Não se sentiu muito bem quando se
pôs a executar essa tarefa. Mas não havia outra
alternativa. Teve que reunir todo o sangue-frio
e reduzir a abertura do foco ao mínimo.
— OK — disse depois de algum tempo. —
Estou pronto.
— Pois atire — pediu Okura sem fazer o
126
mesmo. — Aqui embaixo enxergo um pouco
melhor, mas minha mão não está disposta a
uma tarefa destas. Não quero ter meu chefe na
consciência.
— Ah, então você não quer. Mas os ou-
tros...
— Não enlouqueça agora, Marshall. Se al-
guém de nós tem os nervos em bom estado, é
você. Se acredita que sou um covarde, podere-
mos tirar a prova em outra oportunidade. Hoje
não. Este seria o momento mais inadequado.
— Está bem — interrompeu Marshall e fez
pontaria.
Ambos os tiros foram bem sucedidos.
— Então! — disse Okura, enquanto o atira-
dor enxugava o suor da testa.
A libertação de Perry Rhodan foi uma ques-
tão de segundos. Com um gemido rolou para o
lado e ficou deitado de costas. Sua respiração
era regular.
— Será que quebrou alguma coisa na que-
da?
— Não acredito. Em Vênus uma queda de
oito metros é muito menos perigoso que na
Terra. Além disso, a ponta da cauda foi uma es-
pécie de mola. Só o aperto no tórax...
Marshall interrompeu-se. Rhodan abrira os
olhos e pusera a mão no ombro. Os amigos
127
compreenderam imediatamente. Arrancaram
sua camisa e viram que a ferida causada pelo
tiro voltara a se abrir.
Um dos três pôs-se a praguejar. Lembraram-
se dos remédios que já haviam se acabado há
tempo.
— Sente dores? — perguntou Okura. Rho-
dan conseguiu esboçar um sorriso.
— Acho que conseguirei andar, meus caros.
Apenas esta velha ferida... — interrompeu-se
para cerrar os dentes por algum motivo desco-
nhecido. — Ajudem-me a levantar. Quero ex-
perimentar as pernas.
As pernas estavam em ordem. Mas o braço
direito estava insensível e imóvel. Rhodan só
poderia usar a mão esquerda.
— Sinto muito. Vocês não poderão carregar
a bagagem sozinhos. E nem devemos pensar
em nos separar mais uma vez. Teríamos que
caminhar pelo menos cinco horas para chegar
ao lugar em que Tomisenkow se encontra. Va-
mos voltar ao mar.
— E Thora?
— Esperaremos por ela. É bem verdade que
será um jogo arriscado. Raskujan pode ser mais
rápido.
— Não há dúvida de que Raskujan será mais
rápido. Possui helicópteros. Quanto a nós, nem
128
sabemos se Tomisenkow passará por aqui com
sua preciosa prisioneira.
— Sabemos, sim — afirmou Rhodan. — O
objetivo de todos os grupos é a base de Vênus.
Tomisenkow terá de passar por aqui. É claro
que não sabemos se passará alguns quilômetros
mais a leste ou a oeste. Mas a praia é visível
por um longo trecho. Se tivermos de esperar
até o escurecer, Okura nos garantirá uma van-
tagem ainda maior.
A decisão de Perry Rhodan foi acatada. Pu-
seram-se a caminho para voltar à costa, onde
se manteriam na expectativa.
— Talvez volte a chamar as focas — disse
Marshall. — Quem sabe se a hora não é mais
propícia.
Quando se encontravam a algumas centenas
de metros da orla da floresta, voltaram a ouvir
ruído de motores.
— Os helicópteros estão voltando! — excla-
mou Okura bastante exaltado. — Quem dera
que já estivéssemos fora da floresta.
— Quer bancar o guarda de trânsito? — dis-
se Rhodan com um sorriso. — Aliás, é bom que
abra os ouvidos. Por enquanto só ouço um.
— Um único? Deve ser a patrulha de Rasku-
jan, não é?
O ruído se tornou mais forte e mais abafado.
129
O rangido mais lento das paletas horizontais
deu a entender que o aparelho se dispunha a
pousar.
— Se for um helicóptero de transporte que
vai largar algumas centenas de soldados por
aqui estaremos perdidos — observou Rhodan.
Apesar disso prosseguiu na sua marcha. Queria
lançar quanto antes um olhar sobre a faixa cos-
teira.

Fazia várias horas que a divisão espacial dizi-


mada, comandada pelo general Tomisenkow,
se pusera a caminho. Com o discurso que, além
do apelo a uma obediência determinada pelo ju-
ramento e da promessa de um futuro tranqüilo
e poderoso, continha tudo que pode ser exigido
de um bom propagandista, o general consegui-
ra mais uma vez reunir a tropa desmoralizada
em torno de si.
Depois que o coronel Popolzak e Thora não
admitiram a menor dúvida quanto aos planos
de Raskujan, Tomisenkow parecia ter se con-
formado com a idéia de que o coronel desertor
não se apresentaria a ele. Deixara de fazê-lo du-
rante um ano e também deixaria de fazê-lo no
futuro. Thora permitiu-se mais uma de suas ob-
130
servações cínicas.
— Bem, acredito que dentro em breve
Raskujan se apresentará ao senhor. No entan-
to, não o fará para capitular, mas para apontar
a pistola contra seu peito.
Pouco depois se encontraram com a patru-
lha do tenente Tanjev, que se retirara do mar
primitivo. Tanjev apresentou um relato minuci-
oso dos acontecimentos. A detonação das duas
cargas explosivas foi interpretada como um in-
dício de que as tropas de Raskujan já deviam ter
se fixado nos trechos da floresta que ladeiam a
costa. Essa circunstância exigia um cuidado re-
dobrado.
Também os homens do Bloco Oriental olha-
vam para o relógio com uma freqüência cada
vez maior.
As pausas intercaladas na marcha se torna-
ram cada vez raras e mais breves.
Para a frente!, foi a única divisa. Deviam
atingir a costa antes do anoitecer.
Thora, que ultimamente dera para desenvol-
ver uma estranha predileção pelos provérbios
humanos, veio a dizer posteriormente, face a
um acontecimento inesperado, que nunca se
deve fazer a conta sem o dono do restaurante.
Na ponta da coluna, que marchava a uns
cem metros de distância, subitamente surgiu ba-
131
rulho. Logo depois ouviram-se vários tiros dis-
parados por pistolas e carabinas automáticas.
— É Raskujan! — disse Tomisenkow em
tom aflito, revelando o quanto esse problema o
preocupava.
Acontece que não era o coronel.
Era a própria hostilidade de Vênus.
Popolzak ia à frente com um grupo de dez
homens bem equipados. Marchavam bem jun-
tos. Os três homens que iam à frente traziam
facões largos e abriam o caminho. Seus golpes
eram decididos e rotineiros. Os galhos e as tre-
padeiras saltavam para o lado no ritmo de suas
batidas. As plantas costumam agir assim em si-
lêncio, numa atitude fatalista.
Acontece que uma das plantas deu um grito
e assumiu uma atitude defensiva. À primeira
vista parecia ser uma árvore como qualquer ou-
tra. Só quando esboçou uma reação ruidosa e
saltou para o lado, os homens perceberam que
se encontravam diante de um vampiro-carata.
Tudo se passou num espaço de poucos se-
gundos. O vampiro-carata costuma permanecer
imóvel por dias, camuflando-se sob a forma de
uma árvore. Esse disfarce constitui sua proteção
mais segura contra os inimigos naturais. Mas
quando é atacado reage com uma rapidez sur-
preendente. Possui outra arma, muito mais pe-
132
rigosa que seu disfarce. Suas folhas, que lem-
bram as da palmeira carata, natural da América
do Sul, estão semeadas no lado inferior com
milhares de pequeninas glândulas venenosas. E
o animal sabe agarrar sua vítima.
Cerca de uma dezena dessas folhas se esten-
deu enquanto o grito de dor ainda estava soan-
do. A maior parte do grupo encontrava-se ao
alcance daqueles braços venenosos. Os gritos
de pavor dos homens misturaram-se aos sons
aflitos emitidos pela árvore. Os corpos eram se-
gurados com a força de tenazes de aço. Foram
atirados para o alto e as glândulas venenosas
procuravam instintivamente qualquer trecho de
pele desprotegida. Assim que a encontravam,
começavam a agir. Pequenos ganchos prepara-
vam o processo destrutivo, riscando a carne até
que sangrasse. Uma vez aberta uma veia da víti-
ma, por minúscula que fosse, o veneno mortal
penetrava no organismo.
Alicarim, o quirguiz, foi o último homem do
grupo de vanguarda.
Era um talento natural, mesmo antes de ter
freqüentado a escola dura de Vênus. Num gesto
instintivo segurou o homem que ia à sua frente
pela gola do uniforme e puxou-o para trás. No
mesmo instante levantou a carabina e pôs o
dedo no gatilho.
133
— Afaste-se, Boris, afaste-se.
Alicarim reforçou o apelo com um desespe-
rado pontapé. Depois esvaziou o pente de balas
para dentro da massa disforme. Pouco depois
Boris participou do tiroteio. Só pararam quan-
do o vampiro-carata e suas vítimas jaziam imó-
veis.
Tomisenkow correu para a frente.
— Alicarim! Será que ficou louco? Dê-me
sua carabina.
O quirguiz obedeceu.
— Cuide bem dela, general. Ainda precisa-
remos.
— Seu assassino! — esbravejou Tomi-
senkow. — Acaba de matar oito dos meus me-
lhores homens. Inclusive o coronel Popolzak...
— Se acredita que fiz isso porque gosto, está
enganado. Ainda não viu que isto é um vam-
piro-carata?
O general estacou e olhou com mais aten-
ção.
— É isso mesmo — confirmou Boris. —
Não tivemos outra alternativa, general. Nin-
guém poderia fazer mais nada por esses ho-
mens.
O Dr. Militch realizou um breve exame, con-
forme mandava o regulamento, e confirmou as
palavras de Boris.
134
Tomisenkow devolveu a carabina de Alica-
rim.
— Desculpe, Ali. Devemos muito ao senhor.
Está disposto a assumir o comando na ponta?
Eu lhe darei alguns elementos de primeira cate-
goria.
— Obrigado, general. Pode confiar em mim.
A marcha prosseguiu. Não havia tempo
para enterrar os mortos. Dentro de quatro ho-
ras teriam que chegar ao mar.

***

Son Okura inclinou a cabeça para trás.


— Você pode atingi-lo com uma pedrada —
cochichou. — É um helicóptero pequeno. Ape-
nas cinco homens desceram.
— Alguém ficou dentro do aparelho?
— Não: todos desceram.
— Está bem. Vamos até lá: eu mesmo vou
avaliar a situação.
Rhodan viu que os soldados de Raskujan
marchavam em direção ao mato. No mesmo
instante concebeu seu plano.
— Vamos, Marshall, Okura. Nós lhes prepa-
raremos uma recepção condigna.
— Eles não nos verão, chefe. Não vão pene-
trar na floresta no lugar em que estamos.
135
— Mas pretendem se instalar por aqui. Não
me envergonhem. São nossos inimigos, e tere-
mos que nos defrontar com eles. Além disso,
precisamos do helicóptero.
Os outros compreenderam.
— Vamos voar naquilo até a base?
— Por que não? Dentro de três horas a or-
dem voltará a reinar em Vênus, se vocês não
cometerem nenhum engano.
Rhodan pôs a mão em forma de concha na
frente dos lábios.
— Fiquem onde estão e larguem as armas.
A reação dos homens do Bloco Oriental foi
totalmente diferente. E totalmente confusa.
Os cinco homens se atiraram ao chão e dis-
pararam cegamente. Como não vissem nin-
guém e só pudessem determinar a direção
aproximadamente pelo ouvido, os tiros passa-
ram longe do alvo.
— Não se pode conversar com essa gente
— disse Rhodan num tom de desespero. — Te-
mos de atirar todos ao mesmo tempo, John.
Dentro de poucos segundos tudo deve chegar
ao fim. Já localizou o alvo?
— Sim — cochichou Marshall com a voz
rouca.
— Fogo! — comandou Rhodan.
Levantaram-se e saíram da floresta.
136
Okura seguiu-os sem que ninguém tivesse
pedido. Sabia que os cinco soldados estavam
mortos. Um furor cego contra uma arma ar-
cônida de impulsos nunca poderia produzir
bons resultados.
Correram em direção ao helicóptero e en-
traram.
— Um helicóptero! — regozijou-se Marshall.
— Uma máquina em perfeito estado. Quase
não consigo acreditar.
— Devemos aproveitar as oportunidades
quando se oferecem. Tudo pronto para deco-
lar? Os vidros estão fechados?
— Tudo em ordem. Mas será que com esse
ombro vai conseguir?
— Não se preocupe com isso. Procure ob-
servar o que vai acontecer lá fora. Ainda falta
muito para atingirmos nosso objetivo. E, se
Raskujan manda um helicóptero a algum lugar,
vocês podem ter certeza de que ali mesmo logo
surgirão outros.
— Quer dizer...
— É isso mesmo. É impossível, por exem-
plo, que voemos por cima da enseada. Não te-
mos coletes salva-vidas. E nesta situação não
gostaria de ser derrubado por cima do mar pri-
mitivo. Logo, devemos seguir a linha do litoral.
Isso representa uma volta de mais cem quilôme-
137
tros. Mas a segurança deve vir antes de tudo...
Perry Rhodan controlou a reserva de com-
bustível. Balançou a cabeça. Talvez desse mal e
mal. Mas Okura encontrou um tanque de reser-
va, e o cálculo já parecia muito mais favorável.
Rhodan tinha algum conhecimento dos mo-
delos russos; dentro de poucos instantes conse-
guiu controlar a máquina. O treinamento hip-
nótico arcônida e um bom treinamento básico
terrestre fizeram dele um homem com uma ca-
pacidade de percepção instantânea. Decolou.
A máquina ergueu-se rapidamente e seguiu
na direção norte-noroeste. As ondas do mar vis-
coso espumavam embaixo deles.
Ainda não tinham percorrido mais de dez
quilômetros quando Marshall, em tom exaltado,
anunciou a presença de outro helicóptero. Oku-
ra logo lançou os olhos pela lâmina de vidro in-
quebrável e confirmou a observação de seu
companheiro.
— Isso pode se tornar bastante desagradá-
vel, se eles reconhecerem o curso estranho que
estamos seguindo. Mas por enquanto não va-
mos nos preocupar com isso — disse Rhodan
com uma confiança fingida. — Coloquem os rá-
dios em posição de recepção. Talvez tenhamos
de reagir pelo rádio.
Isso aconteceu dali a dois minutos. O outro
138
helicóptero pediu a senha. Uma voz grossa afir-
mou que ele, Rhodan, falava com a voz muito
estranha. Evidentemente o interlocutor estava
aludindo ao seu companheiro, morto há quinze
minutos.
Rhodan arranhou o microfone com a unha e
numa voz furiosa e disfarçada se lamentou de
que seu aparelho não devia estar em ordem.
Logo interrompeu o contato.
— Agora podem pensar o que quiserem.
Não lhes pudemos dar a senha. Em compensa-
ção simulamos um defeito. Só nos resta prosse-
guir no vôo e aguardar. De qualquer maneira
devemos ficar em rigorosa prontidão. Mante-
nham-me informado sobre os movimentos do
inimigo.
— Já posso lhe dar uma informação — disse
Okura, pouco satisfeito. — Alteraram seu curso
e vêm em nossa direção. Até voam em ângulo
para ganhar tempo.
— Nesse caso também alteraremos nosso
curso — disse Rhodan em tom irritado e girou
para bombordo. O mar deslizou embaixo deles.
Dali a pouco se encontravam em cima da selva.
Mas isso não adiantou muito. O inimigo tam-
bém retificou seu curso.
— Que diabo! Estão nos desviando. Rhodan
resolveu voar ao encontro do outro helicóptero.
139
Dessa forma se encontraria numa posição mais
favorável e não despertaria tantas suspeitas. Era
bem verdade que qualquer um perceberia que
os homens da Terceira Potência já haviam des-
pertado muitas suspeitas. O inimigo não abriu
margem a dúvida quanto a isso. Na altura do li-
toral recebeu-os com uma rajada das armas de
bordo. Rhodan conseguiu se desviar para baixo,
mas não conseguiu evitar um impacto na cabi-
na. Ninguém foi ferido, mas havia algo de erra-
do no painel.
— O medidor de pressão do óleo! — excla-
mou Marshall. Todos viram que não funcionava
mais. Mas não saberiam dizer se o dano atingia
apenas o indicador ou a tubulagem de óleo.
Antes que pudessem refletir a este respeito,
tiveram que se desviar diante de outro ataque.
— Por que não respondemos ao fogo? —
perguntou Marshall em tom obstinado.
— Com quê? — respondeu Rhodan, tam-
bém zangado. — Essa gente tem um canhão de
bordo, nós não.
— Devemos abrir a cabina e usar o radiador
de impulsos térmicos.
— Pois tente!
Marshall mexeu no fecho. Mas nesse instan-
te o inimigo se aproximou do lado e de cima.
Atirou uma bomba que errou o alvo. Mas o de-
140
tonador foi ativado na superfície da água. Um
estilhaço ou mais atingiram o helicóptero.
— Fomos atingidos! — gritou Okura. — A
cauda pegou fogo.
Rhodan se virou. Poucas vezes os amigos o
haviam visto tão exaltado.
— Vamos! Desçam! Não adianta insistir.
Com esta geringonça só poderemos aterrizar
no inferno, se o tanque de gasolina pegar fogo.
Um momento! Levem suas armas. A água não
afetará o radiador de impulsos.
Marshall abriu a cabina. Rhodan baixou até
chegar perto da superfície da água. A posição
era favorável.
— Saltem agora!
Perry foi o último a abandonar o aparelho.
Normalmente não haveria qualquer risco a uma
altura de vinte metros. Mas o ombro ferido
transformou o salto numa tortura.
A água se fechou por cima dele. A uma pro-
fundidade de dois metros encontrou solo firme.
Empurrou-se com o pé. As roupas dificultavam
a natação. Mas a gravitação reduzida, que ape-
nas atingia 0,85g, compensava a desvantagem.
Ao emergir, Rhodan viu que Marshall se en-
contrava nas proximidades. Okura nadava mais
ao longe. O helicóptero balançou pouco acima
das ondas e chegou à praia. Antes de atingir a
141
floresta bateu no solo e explodiu.
Os homens do Bloco Oriental sabiam que os
três homens haviam saltado antes. Voltaram ao
ataque; pareciam perfeitamente tranqüilos. O
grito de advertência de Okura foi desnecessário.
Quando o helicóptero se encontrava a uma dis-
tância de cem metros, Marshall abriu fogo.
Dentro de poucos segundos o aparelho se des-
manchou numa incandescência rubra e branqui-
centa. A profunda alteração estrutural foi acom-
panhada somente por um ruído surdo. Algumas
peças se desprenderam e pingaram na água
como tochas incendiadas, extinguindo-se com
um chiado. O resto caiu na praia e esfriou len-
tamente. Os três homens nadaram em direção
à praia.
Okura, que se encontrava mais longe da ter-
ra firme, alcançou Rhodan dentro de poucos
minutos.
— Posso ajudar, chefe? Não devia usar tanto
o braço direito.
— Deixe isso para lá. Estou bem. Já temos
chão sob os pés; podemos caminhar.
— Eu ainda não tenho — fungou o japonês,
que quis imitar Rhodan. Este riu.
— Com seu tamanho você ainda tem um
pouco de tempo.
Pouco depois, também o mutante sentiu
142
chão firme embaixo dos pés. Dali a dez minutos
chegaram à praia, onde Marshall já os aguarda-
va. Com as roupas gotejantes, os três homens
conferenciaram sobre seus planos.
— Por enquanto devemos pôr a roupa no
varal. Senão acabamos pegando um resfriado.
Tiraram a roupa e estenderam-na sobre a
areia. Se considerarmos que a temperatura mé-
dia em Vênus é de cinqüenta graus centígrados,
compreenderemos facilmente que, mesmo no
fim da tarde e nas latitudes situadas bem ao
norte, a areia ainda era bastante quente para
fazer com que a roupa secasse dentro de pou-
cos minutos.
Marshall aproveitou a oportunidade para re-
alizar um exame minucioso da ferida de Rho-
dan.
— Perdeu mais um pouco de sangue, chefe.
Enquanto fazia essa observação, arrancou
uma faixa de sua camisa e tirou uma embala-
gem colorida do bolso. Espalhou o resto do
conteúdo sobre a faixa de pano.
— É a última atadura impregnada que lhe
posso oferecer. E ai de você se não deixar que
eu a coloque. Son, dê uma ajuda.
Rhodan não se opôs ao tratamento. Conclu-
ído este, voltaram a pôr as roupas.
— Quando o crepúsculo chegar, voltarei a
143
chamar as focas — disse Marshall. — Até lá de-
víamos nos esconder um pouco. Tenho a im-
pressão de que Tomisenkow não demorará a
aparecer por aqui.
— Esse sujeito devia criar juízo e se aliar a
nós — refletiu Okura.
— Podemos lhe fazer esta oferta. Ele nos
entrega Thora e nós o ajudamos na luta contra
Raskujan — disse Rhodan.
— Quer se colocar ao seu lado? — pergun-
tou Marshall. — Raskujan não seria um aliado
melhor para nós? Ele tem meios de nos levar à
base dentro de poucas horas.
— Tem os meios, mas não tem vontade,
meu caro. Não podemos cogitar de Raskujan
como nosso aliado. Então deixaremos que ele
nos blefe com o fato de que dispõe de um equi-
pamento melhor e de uma tropa praticamente
intacta. Mesmo depois de um ano de perma-
nência em Vênus, Raskujan ainda nada em
abundância. Praticamente ainda não se subme-
teu a nenhuma prova em Vênus. Com Tomi-
senkow a coisa é diferente. Dispondo apenas
de recursos primários, conseguiu se manter na
selva inóspita de Vênus. Além disso, a posição
de Raskujan é injusta.
— Quer dizer que você também faz restri-
ções morais contra ele? — perguntou Marshall.
144
— Naturalmente. Não passa de um desertor.
As ordens que recebeu determinam que se colo-
que à disposição do general. Em vez disso, quer
fazer o papel de comandante.
Conversaram mais algum tempo sobre o
tema, enquanto os seletores de freqüência dos
receptores embutidos em suas pulseiras desliza-
vam de um lado para outro. Suas suspeitas ínti-
mas logo se confirmaram. Além dos dois heli-
cópteros destruídos, muitos outros se encontra-
vam no ar. As mensagens trocadas entre eles
iam crescendo constantemente.
— Até parece que vão lançar uma ofensiva
em grande escala.
Rhodan confirmou com um aceno de cabe-
ça.
— Concordo com você, Son. Mas faremos o
possível para ficarmos fora disso.

— ALARMA!
A mensagem percorreu a coluna de Tomi-
senkow de ponta a ponta.
Depois que Raskujan apareceu, trazendo cla-
reza sobre a situação reinante em Vênus, ne-
nhum dos grupos em luta achou mais necessá-
rio brincar de esconder por meio de uma sus-
145
pensão das comunicações pelo rádio. Há mui-
tas horas reinava vida nas faixas de ondas cur-
tas e ultracurtas. Podiam correr livremente nas
imediações do planeta, pois a barreira levanta-
da pelo cérebro positrônico só impedia qual-
quer contato para fora. No interior da barreira
toda e qualquer forma de comunicação se tor-
nava possível.
O sargento Kossygin mantivera o aparelho
portátil ligado o tempo todo para a recepção.
Por isso pôde transmitir logo a advertência ao
general.
A mensagem de alarma foi seguida imediata-
mente de instruções mais precisas. Tomisenkow
explicou que era do interesse de cada um segui-
las. Os homens se dividiram em grupos e pro-
curaram se abrigar atrás de árvores espessas.
As armas leves e semipesadas de infantaria fo-
ram colocadas em posição. As metralhadoras
foram montadas em tripés e posicionadas para
atirar em aviões.
Tomisenkow vigiou Thora com olhos de lin-
ce.
— Não me cause problemas a esta hora,
madame — disse em tom áspero. — Nos próxi-
mos minutos não terei muito tempo. Não pode-
rei lhe indicar cada passo que deve dar. Mante-
nha-se sempre perto de mim.
146
A linguagem lacônica e enérgica parecia
produzir o efeito desejado. Aborrecida, confir-
mou com um aceno de cabeça e não esperou
que Tomisenkow a segurasse brutalmente pela
mão e a arrastasse por entre a vegetação. Se-
guiu-o espontaneamente.
O general se dirigiu ao posto de rádio.
— Dê-me um fone, cabo.
— As ordens!
Tomisenkow ouviu um chiado que subia e
descia pela escala acústica, enquanto Kossygin
procurava sintonizar o aparelho. Subitamente
ouviu os sons familiares de sua língua materna.
— César para Lúculo. Espalhem-se de acor-
do com o plano A. Repito. Nada de bombardei-
os enquanto a posição do inimigo não tiver sido
perfeitamente determinada. O estado-maior de
Tomisenkow e principalmente essa arcônida
devem cair em nossas mãos intactos. César
aguarda resultados da exploração do terreno.
Fim!
— César e Lúculo! — gemeu Tomisenkow.
— Ouçam só o vocabulário usado por esse ban-
do de desertores. Mantenha o receptor ligado,
cabo.
Kossygin confirmou com um aceno de cabe-
ça.
Conforme se depreendia das indicações de
147
posição não codificadas, os primeiros helicópte-
ros haviam atingido a costa ao sul. Pouco de-
pois o ruído dos motores se tornou perceptível.
O ninho de metralhadora que ficava mais
perto do posto de rádio era comandado pelo
pequeno e atarracado Alicarim.
— Olá, Ali! Aguarde minhas ordens. Não
atire antes.
— Às ordens, general.
Uma voz voltou a soar nos fones de ouvido.
— Lúculo para César. Tomisenkow abando-
nou o acampamento anterior. Sentido provável
de seu deslocamento aproximadamente para o
norte. A distância é de cinco a dez quilômetros
da costa.
— César para Lúculo. Utilizar visores infra-
vermelhos para a observação no solo. Concen-
trar-se numa faixa de dez quilômetros ao sul da
costa sul.
Nesse momento o primeiro helicóptero tro-
vejou exatamente sobre o lugar em que a tropa
de Tomisenkow se encontrava. Os homens iam
respirar aliviados quando o ruído se perdeu por
cima da selva. Mas logo se ouviu a mensagem
seguinte.
— Lúculo para César. Localizamos o inimi-
go. Tomisenkow suspendeu a marcha. É prová-
vel que tenha assumido uma posição defensiva.
148
Transmitirei as coordenadas.
— César para todos. Orientem-se por Lúcu-
lo II. Realizem um vôo visual. O grupo de de-
sembarque Otávio desembarcará na faixa cos-
teira e se espalhará em direção ao sul. O grupo
de desembarque Cícero saltará conforme o pla-
no AB. Ainda não abram fogo.
Furioso, Tomisenkow arrancou o fone do
ouvido.
— Quem foi o idiota que andou livremente
por aí? Quero que ele se apresente imediata-
mente.
É claro que ninguém se apresentou.
— Quando os helicópteros se aproximarem
de novo, abram fogo — ordenou Tomisenkow.
Fechou os olhos por alguns segundos. Thora
percebeu que se esforçava desesperadamente
para recuperar o autocontrole. Numa situação
dessas não convém que o comando esteja nas
mãos de um louco furioso.
As tropas de Raskujan se concentraram cada
vez mais em torno do ponto que correspondia
às coordenadas fornecidas pelo observador Lú-
culo II. Alguns minutos depois, seis helicópteros
passaram em vôo rasante sobre as posições de
Tomisenkow.
— Fogo! — berrou o general em meio ao
barulho infernal produzido pelos rotores.
149
Alicarim leu o comando nos seus lábios mais
do que o ouviu. No mesmo instante a primeira
rajada saiu do cano refrigerado a ar. Poucos se-
gundos depois as metralhadoras que se encon-
travam em pontos mais afastados também co-
meçaram a atirar. O som entrecortado das mes-
mas se misturou ao barulho dos helicópteros.
Era evidente que o coronel Raskujan subesti-
mara em muito o poder de fogo do inimigo. De
outra forma nunca teria dado ordem para um
vôo rasante tão despreocupado. Alguns ho-
mens de Wallerinski que vagabundeavam pela
selva deviam ter fornecido um relato distorcido
sobre os remanescentes da divisão espacial. E,
ao que tudo indicava, esqueceram-se de menci-
onar que, apesar de todo embrutecimento, os
homens de Tomisenkow ainda não haviam de-
saprendido a arte de atirar.
Para os helicópteros, sujeitos à já conhecida
proibição de atirar, o fogo de metralhadora re-
presentou uma surpresa total. Era o oposto
exato do primeiro ataque.
— Atingi um! — berrou Alicarim depois das
primeiras três rajadas.
O rotor do primeiro helicóptero se desinte-
grou. Devia ter atingido a junta. O helicóptero
caiu imediatamente e com um grande estrondo
atingiu uma árvore de uns sessenta metros de
150
altura. Os destroços caíram ao chão.
Alicarim visou outro alvo, quando a derruba-
da de um segundo aparelho foi anunciado pelos
ocupantes de um ninho de metralhadora situa-
do mais adiante.
— Tudo está correndo segundo o programa.
Continue a atirar, Ali! Atire! Aquele gorducho
que está bem em cima de nós...
Os êxitos alcançados entusiasmaram Tomi-
senkow. Apesar disso manteve-se abrigado,
pois a todo instante contava com uma reação
do inimigo.
Pouco depois uma forte detonação superou
todo o ruído da batalha. Alicarim derrubara
mais um inimigo. Atingira-o no tanque de com-
bustível. A máquina explodiu no ar e os ho-
mens que se encontravam no solo encolheram
a cabeça. Uma chuva de destroços aquecidos e
incendiados despencava em todos os cantos.
Nuvens de fumaça subiram em meio à selva.
O general levantou a cabeça.
— Tudo bem por aí?
— Aqui não aconteceu nada, general. Ali
vem o número quatro. Os Raskujan estão cho-
vendo de todos os quadrantes do céu. Esse su-
jeito não vai esquecer a lição que recebeu.
O quirguiz só teria razão em parte. Raskujan
extraiu as conclusões cabíveis dos resultados da-
151
quele combate; mas essas conclusões não deter-
minavam a cessação completa dos ataques.
Os helicópteros que vinham depois deram
meia-volta assim que viram o que estava acon-
tecendo com os que iam à frente. O céu estava
limpo. Desta vez a divisão espacial escapara
sem perdas.
— Procure entrar em contato com Raskujan
— disse Tomisenkow ao sargento-telegrafista.
— E dê-me o microfone e o fone de ouvido.
— O coronel já está na onda, general —
anunciou Kossygin. — Quer falar pessoalmente
com o senhor.
— Passe para cá! Esta o senhor não espera-
va, não é, Raskujan? Recomendo-lhe que se
submeta às minhas ordens. Se comparecer pes-
soalmente dentro de duas horas, esquecerei
tudo que aconteceu até aqui. Dou-lhe minha pa-
lavra de oficial.
— Muito obrigado, general! Não posso pro-
meter que o encontro seja possível dentro de
duas horas. Mas irei até aí. Não tenha a menor
dúvida. Mas recomendo-lhe que antes de nosso
encontro largue toda e qualquer arma que te-
nha em seu poder. Eu lhe garanto que não so-
frerá nenhum dano pessoal.
— Raskujan! Será que o senhor não com-
preende que está precipitando sua própria des-
152
graça? Não haverá nenhuma visita como o se-
nhor imagina. Temos armas e munições para
rechaçá-lo mais cem vezes...
— Ora, Tomisenkow! Quando eu o ouço fa-
lar chego a ter vergonha de saber que já foi
meu professor de estratégia. Não me importarei
nem um pouco de lançar meu próximo ataque
com bombas de todos os calibres. Estou em
condições de destruir o senhor e seus homens
dentro de poucos minutos. E o trecho de selva
em que se encontra está cercado por todos os
lados pelas minhas tropas. Reflita à vontade. O
senhor pode morrer de fome e se desgastar aos
poucos numa série de combates, ou então será
razoável e permitirá que eu lhe indique uma ha-
bitação condigna numa das nossas naves espa-
ciais.
— Muito obrigado pela oferta. Sua comodi-
dade é um sinal de decadência que não me atrai
nem um pouco. Meus homens e eu estamos
praticamente casados com Vênus. Mas seus he-
róis de salão quebrarão os ossos na selva. Não
deixe de aparecer, coronel! Será tratado segun-
do seu comportamento, como um oficial ou
como um criminoso. Pense no assunto. Fim.
Tomisenkow largou o microfone e o fone de
ouvido.
— Continue com o receptor ligado, Kossy-
153
gin. Mas não responda mais. Quando surgir
uma palestra interessante grave-a até o fim,
para que eu possa ouvi-la depois. Continuare-
mos a marchar em direção ao litoral.

***

Dali a pouco começou a cair uma chuva li-


geira, que logo se transformou num furacão.
Isso perturbava a atividade de ambos os lados.
Quando as nuvens começaram a se dissipar, o
crepúsculo já começara a cair sobre o planeta.
Os homens praguejaram. Faltavam quatro qui-
lômetros para atingir o mar. E, de um instante
para o outro, tinha-se de contar com a presen-
ça de uma patrulha de Raskujan. Daqui em di-
ante teriam uma vantagem ainda maior, pois
dispunham de todos os equipamentos que a tec-
nologia humana conseguira criar até aquela
data.
A marcha pela selva prosseguiu. Alicarim
manteve-se mais próximo do estado-maior. O
grupo de vanguarda passara a ser comandado
pelo tenente Tanjev, que conhecia a região por
causa das atividades de patrulhamento que já
exercera.
Ainda faltavam três quilômetros para atingir
o mar.
154
Os uniformes estavam molhados e pesavam
no corpo. O calor já diminuíra e o frio da noite
começou a se fazer sentir. Os homens tremiam.
A escuridão já reinava sob a folhagem espessa
das árvores.
De repente ouviu-se um tiro. Seguiram-se
mais dois, mais três. Exclamações e gritos. A
seguir veio uma rajada de metralhadora, que
cessou de repente após a detonação de algu-
mas granadas de mão.
Novo fogo de infantaria à esquerda. Metra-
lhadoras, carabinas e pistolas.
O eco ressoou nas copas das gigantescas ár-
vores. A gritaria dos habitantes de Vênus em
fuga se misturou ao ruído e desapareceu ao lon-
ge. O ruído da batalha aumentou. Os homens
de Raskujan pareciam estar em toda parte.
Também no flanco direito ouviram-se tiros. A
retaguarda lançou mão dos morteiros para se
defender; atirou as granadas a esmo em meio à
vegetação imperscrutável.
O estado-maior de Tomisenkow, deitado no
capim, comprimiu-se junto a um enorme cedro
de Vênus. Naquela escuridão os homens se sen-
tiam totalmente desorientados.
— O cerco é perfeito — constatou Alicarim,
sem que pretendesse se salientar. — Para esca-
parmos sãos e salvos teremos de manter um si-
155
lêncio profundo. Assim que atirarmos seremos
descobertos.
— Já foram descobertos — disse subitamen-
te uma voz vinda da escuridão. — Levantem as
mãos e deixem as armas no chão. Estão sendo
observados pelo visor infravermelho. Quem fi-
zer um movimento equívoco ou proibido será
morto imediatamente. Também estou me refe-
rindo à senhora, madame. Venha até aqui.
Quase chego a acreditar que é a criatura sobre
cuja cabeça nosso comandante colocou um prê-
mio bem apreciável.

Dez helicópteros pesados de transporte esta-


vam enfileirados na praia, como se estivessem
preparados para um desfile.
Perry Rhodan, Marshall e Okura puseram-se
em marcha a partir do lugar em que seu heli-
cóptero havia caído. Seguiram em direção ao
sudeste, onde se anunciavam operações milita-
res de grande envergadura. Venceram os dez
quilômetros em menos de duas horas, pois na
praia não havia praticamente nenhum obstácu-
lo.
O sol desapareceu no ocidente atrás da mu-
ralha formada pela selva. A chuva cessou.
156
Okura foi o primeiro que percebeu a presen-
ça dos helicópteros.
— São dez máquinas, chefe. Tudo coisa pe-
sada. Diria que são helicópteros de transporte
de tropas. Em cada um deles cabem dois tan-
ques de cinqüenta toneladas.
— Isso significa que o tiroteio que estamos
ouvindo ali na selva já representa a esperada
ofensiva de Raskujan. Façamos votos para que
nada aconteça a Thora.
Pouco depois Rhodan deu ordem de parar.
Agora ele mesmo e Marshall já reconheciam os
contornos dos aparelhos.
— Naturalmente estão sendo vigiados...
— Chefe, o senhor tem coragem! Quer ar-
riscar mais uma vez?
— O que vou arriscar?
— Bem, você está cogitando de nova tenta-
tiva de fugir num desses aparelhos. Devo con-
fessar que o plano não deixa de ser tentador.
Afinal, eles não poderão nos derrubar a toda
hora. Um belo dia conseguiremos passar.
— Ou então cairemos para sempre na água
ou na selva.
— Bem, então você acha que não devemos?
— Um helicóptero faz muito barulho, Son.
Além disso, o pessoal logo notaria a falta de um
deles. Teriam um cuidado danado. Não haveria
157
a menor chance de passarmos.
— Se é assim, qual é a razão do seu otimis-
mo? — perguntou Marshall sem disfarçar sua
contrariedade.
— Vamos refletir, minha gente. O que se
pode fazer com um helicóptero de transporte?
— Pode-se voar com ele ou deixá-lo no han-
gar. Até hoje não tive conhecimento de outra
possibilidade de utilização.
— O que acha, Okura?
O japonês deu de ombros.
— Sei tanto quanto John. Um veículo aéreo
decola, voa e pousa. Fora disso é inútil.
Rhodan esboçou um sorriso condescenden-
te.
— Então isso vem a ser o Exército de Mu-
tantes, a unidade de elite da Terceira Potência!
Muito obrigado, cavalheiros.
— Um momento, chefe. Sua pergunta se re-
feriu a um helicóptero. Até aí nossa resposta
evidentemente é correta. Se cogitarmos das pe-
ças avulsas, o caso muda de figura. Pode-se,
por exemplo, retirar alguns canhões ou uma
instalação de rádio. Também deve haver muni-
ções e mantimentos.
— Já está melhor, Marshall. O que faz o pi-
loto de um helicóptero quando cai sobre o mar?
— Desce os barcos infláveis pelo pára-que-
158
das. É isso mesmo! Precisamos de um barco in-
flável.
— Já estava na hora, John. Então precisa-
mos de um barco inflável. E vamos arranjá-lo...
Elaboraram seu plano de guerra e se aproxi-
maram dos veículos estacionados.
— Vejo sentinelas — disse Okura depois de
algum tempo.
— Quantos são?
— Vejo um grupo de três. Não descobri ne-
nhum outro. Ao que parece se sentem seguros.
Naturalmente tiveram conhecimento do duelo
travado entre nós e seus colegas. Mas tenho
certeza de que acreditam que estamos mortos
tal qual seus companheiros. E nada têm a temer
da parte de Tomisenkow.
— De qualquer maneira nós os observare-
mos por algum tempo — decidiu Rhodan.
O momento durou uma hora inteira. Depois
disso tiveram certeza de que não havia outras
sentinelas. A ação programada poderia ter iní-
cio.
Rhodan teve de prometer que se manteria
em segundo plano. A ferida no ombro era um
motivo mais que suficiente para isso. Além dis-
so, pretendiam fazer o possível para não matar
os três homens. E os dois mutantes eram os
mais indicados para uma observação bem dis-
159
creta. Apesar da escuridão, Okura enxergava
muito bem. E Marshall eventualmente conse-
guia ouvir pensamentos que não se traduzissem
em palavras.
— Vamos, Son.
— Um momento.
O japonês voltou a limpar os óculos. Depois
pegou sua arma de impulsos e os dois se puse-
ram em marcha.
— Será que essa gente dispõe de um visor
infravermelho? Se for assim, poderão nos ver a
vários quilômetros de distância.
— Poderiam, mas não o fazem. Como vê
estão fumando e conversando com as mãos nos
bolsos.
Okura e Marshall deitaram e se arrastaram o
que ainda faltava. As rodas de dois metros do
primeiro helicóptero proporcionaram-lhes uma
cobertura provisória.
As sentinelas encontravam-se embaixo do
quarto helicóptero.
— Atire! — cochichou Okura. Marshall fez
pontaria para a aleta do terceiro helicóptero e
puxou o gatilho. O alvo entrou em incandes-
cência e desvaneceu-se em pura energia. As
sentinelas puseram-se a correr aos gritos e abri-
garam-se atrás do último helicóptero.
— Vamos adiante. Cuidado!
160
Engatinharam embaixo dos helicópteros.
Depois seguiram pela direita, onde o capim lhes
fornecia um abrigo mais perfeito.
— Pare! — disse Marshall com a voz baixa.
— Já basta.
— Alô. Vocês aí. Levantem-se e ponham os
braços para cima.
Okura encolheu a cabeça, pois sua mensa-
gem foi respondida com um tiro. Se o russo fez
sua pontaria apenas de ouvido, aquele tiro era
uma verdadeira obra de mestre.
— Não desista — insistiu Marshall.
— Se dentro de dez segundos vocês não se
levantarem e vierem até aqui sem armas, trans-
formaremos um dos helicópteros em ar. Vou
contar...
Os homens do Bloco Oriental ainda não es-
tavam convencidos. Voltaram a atirar. Depois
de alguns segundos Okura atingiu um dos heli-
cópteros que caiu aos pedaços e deixou de exis-
tir.
— Isto foi o segundo ato, cavalheiros.
Marshall estava com o rosto grudado na areia.
Infelizmente tinha que ler os pensamentos de
três homens ao mesmo tempo, o que dificultava
sua tarefa. De qualquer maneira identificou al-
gumas idéias que traziam consigo ares de capi-
tulação.
161
— Converse mais um pouco, Son. Daqui a
pouco vão cair.
— Repito pela última vez. Levantem-se e ve-
nham para cá. Sem armas e com os braços le-
vantados. Se agirem em conformidade com as
minhas ordens, nada lhes acontecerá. Se qui-
séssemos matá-los, já o teríamos feito. Dentro
de dez segundos mais um helicóptero vai desa-
parecer...
Okura contou em voz alta.
Quando chegou ao seis, um dos homens se
levantou. No oito foi seguido pelos outros.
Aproximaram-se conforme lhes fora ordenado:
sem armas e com os braços levantados.
Foram amarrados e colocados em helicópte-
ros.
Marshall disparou um tiro de sinalização
com o radiador térmico. Breve-longo-breve. Era
o sinal convencionado com Rhodan, que che-
gou pouco depois.
— Isto está liquidado, chefe. Os três estão
amarrados no interior dos primeiros três heli-
cópteros. Podemos examinar o conteúdo dos
outros.
— Foi um serviço bem feito.
Conforme era de esperar, os helicópteros
dispunham de um equipamento completo para
a guerra. O barco inflável trazido pelos russos
162
era uma maravilha de conforto. Tratava-se de
um barco de plástico capaz de enfrentar o alto-
mar, e que cabia num armário embutido. Uma
vez inflado, pelo menos quinze pessoas cabiam
nele. Os tubos de ar comprimido estavam ao
lado do mesmo. Até havia um veículo de duas
rodas para o transporte terrestre.
— Levem tudo para fora — disse Rhodan
apressadamente, quando Marshall anunciava
entusiasticamente suas descobertas.
— Encontrei remédios — exclamou Okura.
— Vamos levar — disse Rhodan laconica-
mente.
Depois de quinze minutos haviam levado
para fora do helicóptero, além do barco e do
motor de popa, uma caixa com mantimentos,
vários tanques de combustível e a farmácia de
bordo. Tudo foi colocado no carro de duas ro-
das.
Foram até a água pelo caminho mais curto.
Depois seguiram paralelamente à costa.
Marshall voltou para apagar a pista. Depois
destruiu o helicóptero saqueado. Dessa forma
os homens do Bloco Oriental nunca se lembra-
riam da possibilidade de que alguém lhes hou-
vesse roubado um precioso barco de plástico.
O rastro de vários quilômetros que as rodas
produziram na areia logo foi apagado pela
163
água.
Quando Rhodan, Marshall e Okura desem-
barcaram numa pequena baía, podiam se sentir
seguros de que ninguém havia adivinhado a fi-
nalidade de sua operação.

***

O crepúsculo que durara várias horas foi


substituído pela noite.
Voltaram a ouvir as transmissões dos ho-
mens do Bloco Oriental e souberam que Tomi-
senkow e Thora haviam sido capturados vivos.
Os cumprimentos triunfais que Raskujan e seus
oficiais trocavam pelo rádio Fizeram com que
um sorriso condescendente surgisse nos lábios
de Rhodan.
— Esse homem nem imagina quanto seu
triunfo passageiro me deixa satisfeito. Pelo me-
nos podemos ter certeza de que nos próximos
dias não se matarão com bombas. E esse coro-
nel com toda sua arrogância bem que precisaria
de um encontro com Thora. O orgulho dela lhe
quebrará os dentes.
— Não me lembro de o ter visto tão malicio-
so — constatou Okura.
— Ora, Raskujan é meu inimigo. Portanto,
meus desejos devem ser bem compreensíveis...
164
Além disso, o novo aprisionamento de Thora
poderá nos trazer vantagens de ordem tática.
Aquela arcônida orgulhosa talvez distraia Rasku-
jan um pouco, se conseguir se transformar num
problema para ele. Até agora a fortaleza de Vê-
nus tem sido seu único problema.

***

Inflaram o barco. Era imponente, e estavam


satisfeitos com sua presa.
O exército invasor de Raskujan já se retirara
há algumas horas. Só deixara atrás de si destro-
ços e solidão.
Marshall e Okura trocaram a atadura da feri-
da de Rhodan.
— Como se sente, chefe?
— Obrigado, já estou melhor. Com este
equipamento não tenho outra alternativa senão
ficar logo curado, para que alcancemos a forta-
leza de Vênus dentro de algumas horas. Acho
que já passamos pelo pior. Vamos dormir um
pouco. Daqui a duas horas colocaremos o bar-
co na água.
Rhodan deitou de costas e fitou a espessa
camada de nuvens. O vento abriu uma brecha e
deixou entrever uma estrela.
— Veja só! — disse Rhodan. — O Universo
165
ainda existe. Quase que me esqueço.

***

166
Reginald Bell, que pretendia vir em auxí-
lio de seu chefe e amigo, teve que admitir
que a CHAVE SECRETA X também impedia
qualquer penetração através da quinta di-
mensão.
Por isso, Perry Rhodan não pode contar
com qualquer auxílio vindo de fora. Tem de
se libertar com suas próprias forças para não
perecer na selva do mundo primitivo.
NA SELVA DO MUNDO PRIMITIVO é o
título do próximo volume da série Perry Rho-
dan.

*
* *

ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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