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A Fuga De Thora
Clark Darlton

Tradução
A. F. Immergut

Digitalização
Vitório

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

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A Terceira Potência entrou na posse de
um fabuloso legado — a tecnologia dos ar-
cônidas. Dispõe, portanto, dos meios para
exercer uma pressão irresistível e conseguir,
em curto prazo, a almejada unificação políti-
ca da Terra. Mas Perry Rhodan julga impru-
dente seguir o caminho da coação, pois ele
— que a essa altura já se tornou imortal —
encara as coisas agora sob um ângulo de vi-
são bem diferente que muitos outros — Tho-
ra, por exemplo.
Ela, a arcônida, chegou ao fim da paciên-
cia e quer retornar a Árcon, custe o que cus-
tar. Perry Rhodan, porém, não lhe concede
permissão para partir, já que só tenciona es-
tabelecer contato com Árcon à frente de uma
Terra unida. E então Thora empreende a
fuga…

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Personagens Principais:

Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potên-


cia.
Reginald Bell — Ministro da segurança da
Terceira Potência.
Coronel Freyt — Substituto de Rhodan na
Terra.
Son Okura, John Marshall e Tanaka Seiko
— Membros do Exército de Mutantes da Tercei-
ra Potência.
Thora — Arcônida que foge em direção a
Vênus.
General Tomisenkow — Comandante de
uma expedição do Bloco Oriental perdida em
Vênus.
Sargento Rabov — Um sobrevivente da ex-
pedição do general Tomisenkow.
Wallerinski — Líder dos pacifistas.

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1

Três monstros metálicos, prateados e relu-


zentes, esticavam as proas cônicas ameaçadora-
mente no céu perenemente azul do continente
asiático. No seu aspecto externo assemelha-
vam-se àquelas naves espaciais que tinham
rompido uma nova era ao realizarem os primei-
ros vôos entre a Terra e a Lua.
Mas a semelhança era apenas externa.
Produzidas pelo estaleiro espaçonáutico da
Terceira Potência, as três naves representavam
um novo tipo de destróier: maiores do que os
caças espaciais comuns, contavam com uma tri-
pulação de três homens e eram capazes de atin-
gir a velocidade da luz. Seu armamento consis-
tia em canhões de radiação de longo alcance e
podiam se envolver em anteparos energéticos
que nenhuma potência da Terra tinha condi-
ções de despedaçar.
Os três destróieres eram os primeiros exem-
plares de sua classe e até agora só tinham reali-
zado um único vôo experimental. E como ne-
nhuma deficiência havia sido constatada duran-
te este teste, o maior estaleiro da Terra inicia-
ria, em breve, a produção em série deste novo
modelo.
O extenso campo de provas da Terceira Po-
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tência estava deserto sob o calor inclemente do
sol da tarde. Na distância cintilavam os arranha-
céus de Terrânia, inicialmente chamada de Ga-
láxia, a futura capital da Terra unida. À esquer-
da, localizava-se o estaleiro, um complexo
imenso e aparentemente desordenado, onde
extensos galpões se alternavam com constru-
ções cupulares.
Com passos mecânicos e regulares, as senti-
nelas marchavam em torno dos três destróieres.
Não olhavam nem para a direita nem para a es-
querda, como se soubessem que o seu serviço
de patrulha não fazia sentido algum, pois era
impossível que alguém chegasse tão perto das
naves sem a devida autorização. E não havia in-
trusos ou estranhos na área deste estaleiro; dis-
so se encarregavam as barreiras eletrônicas.
As sentinelas não trajavam uniformes. Sua
vestimenta consistia num tecido metálico curio-
so, que emitia um brilho prateado à luz do sol.
E seus olhos não eram olhos orgânicos e sim
lentes de cristal. Não eram homens. Eram ro-
bôs.
Com reações desprovidas de qualquer senti-
mento, obedeciam à ordem de vigiar aquelas
três naves espaciais, novinhas em folha. Ti-
nham que ficar de olho em alguém que jamais
conseguiria se aproximar. Mas, se os seus cére-
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bros positrônicos registravam este absurdo com
espanto ou não, ninguém poderia dizer.
O lago salgado de Goshun ficava à direita,
estendendo sua superfície lisa como um espelho
até o horizonte. Deste lado, o perigo de uma
aproximação indébita era menor ainda, pois o
lago se situava inteiramente dentro da zona de
bloqueio.
E mesmo assim esta calma era ilusória.
Enquanto a Humanidade em peso se prepa-
rava para comemorar o décimo aniversário do
primeiro vôo lunar, e os homens, num clima de
expectativa crescente, não desviavam o olhar
dos televisores, alguém tomou uma resolução.
Estava farto de esperar que certas promessas
fossem cumpridas, e decidiu agir.
Vindo do sul, um carro se aproximou do
campo de provas, deslizando a cem quilômetros
por hora pela pista lisa de concreto, limpa e
isenta de poeira. Não reduziu a velocidade
quando chegou perto da primeira barreira. Os
tateadores eletrônicos examinaram o veículo e
os ocupantes... e liberaram a passagem.
As duas barreiras seguintes reagiram da
mesma forma.
O carro, um elegante modelo esportivo, se
dirigiu em linha reta aos três foguetes, reduzin-
do gradualmente a velocidade. Duas das senti-
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nelas-robô tinham alterado o trajeto da sua ron-
da mecânica e se aproximaram do carro. Os
braços esquerdos, dobrados num ângulo curio-
so, ocultavam armas energéticas que ninguém
conseguia ver. Bastaria o menor impulso para
transformar essas criaturas metálicas, aparente-
mente inofensivas, em máquinas mortíferas, ca-
pazes de cuspir energia letal.
Mas este impulso não veio.
Os tateadores eletrônicos examinaram o pa-
drão encefálico daquele ser humano, que tinha
descido do carro, e deram-no como “aprova-
do”. Apresentava as características exigidas. Os
dois robôs baixaram os braços e franquearam o
caminho. Com um sorriso irônico — ao menos
assim parecia — o desconhecido passou pelos
robôs e parou a poucos metros deles.
E lá estavam elas, as três naves espaciais.
Prontas para partir. Com trinta metros de altu-
ra, ainda podiam ser consideradas gigantes —
limitada a comparação a outras naves terrenas.
O seu interior abrigava tremendas reservas de
energia e agregava propulsores fantásticos, que
nenhum cérebro humano havia concebido.
Com essas naves podia-se atravessar o sistema
solar em questão de horas e, se assim se dese-
jasse, alcançar a estrela mais próxima dentro de
quatro anos e meio.
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Os robôs retomaram o trajeto da sua ronda
interrompida. O desconhecido, ou melhor, o
seu padrão encefálico não significava qualquer
perigo no sentido da programação. O estranho
podia passar. Sim, podia fazer até mais do que
isso, sem disparar o impulso específico que sig-
nificava “perigo” para aqueles cérebros posi-
trônicos.
Durante longos minutos, aquele vulto alto fi-
cou parado na solidão do deserto, observando,
pensativo, as três naves. O uniforme justo acen-
tuava a esbeltez do corpo e, com um pouco
mais de acuidade, podia-se reconhecer que o
desconhecido... era uma mulher. Um boné
ocultava o cabelo longo e claro, que o sol fazia
cintilar em tom quase branco. Os olhos averme-
lhados revelavam determinação. Mas também
uma tristeza mal velada.
Com um último olhar, a mulher contemplou
o lago salgado, o enorme estaleiro e a distante
cidade de Terrânia. Depois, se dirigiu lentamen-
te à mais próxima das três naves espaciais.
Era o destróier C, designado abreviadamen-
te por D.C.
A escotilha de entrada de D.C. estava fecha-
da, mas uma estreita escada metálica a ligava
ao solo. Ao pé dessa escada estava um dos ro-
bôs, que nem se mexeu quando a mulher se
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aproximou e parou diante dele. O braço esquer-
do pendia frouxo e imóvel ao lado do corpo.
Um brilho morto emanava daquelas lentes de
cristal.
A mulher leu a designação na pequena pla-
queta que o robô ostentava no peito.
— Ocupe o seu lugar, R.17 — disse ela,
num idioma duro e desconhecido. — Vamos
decolar para um vôo experimental.
Em vez de se mexer, o robô respondeu, na
mesma língua:
— Não recebi nenhuma ordem para realizar
um vôo desses.
A mulher fez um gesto impaciente.
— Eu, Thora de Árcon, estou lhe dando esta
ordem agora!
R. 17 não reagiu da maneira esperada.
— A ordem de Perry Rhodan prevalece,
Thora.
Os olhos da mulher brilharam de raiva. Era
como se lançasse chispas de fogo contra o robô
renitente.
— Perry Rhodan é um homem, R.17, e eu
sou uma arcônida. Portanto a minha ordem
vale mais que a de Rhodan.
— Vale mais também que uma ordem de
Crest?
Por um instante a mulher vacilou, depois
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lançou a cabeça na nuca, num gesto de irrita-
ção.
— Crest está sob a influência de Rhodan,
portanto ele não conta. Por que você pergunta?
— Porque, de acordo com as disposições de
Crest, temos que obedecer a todas as ordens de
Rhodan, seja qual for o seu teor. Por isso, não
podemos agir contra as ordens de Rhodan. Isto
é lógico, ou não?
A mulher refletiu durante alguns segundos,
depois acenou lentamente.
— Sim, isto soa lógico; você sempre age lo-
gicamente, R.17?
— A lógica é a base da minha existência.
— Muito bem — disse a mulher e olhou,
pensativa, para os traços quase humanos do
robô. — Então responda-me algumas pergun-
tas.
— Com prazer, Thora de Árcon.
— Perry Rhodan chegou a proibir expressa-
mente um novo vôo experimental de D.C.?
— Não.
— Ele, além disso, proibiu que eu participe
de tal vôo experimental?
— Não.
Ela acenou, satisfeita.
— Portanto, você agiria contra uma proibi-
ção, se levasse essa nave para Vênus, por
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exemplo?
— Dentro dessas limitações, não.
— Está vendo? — disse Thora e soltou um
suspiro de alívio — então você também não vai
infringir qualquer regulamento se fizer o que eu
estou lhe pedindo.
Parecia que uma expressão de dúvida tinha
aparecido no rosto de R.17.
— Mas eu não recebi nenhuma ordem de
Rhodan para esse vôo.
— E isso era necessário? — Thora mostrou-
se surpresa. — Você está recebendo esta or-
dem agora, e de mim. Você não está proibido
de receber ordens minhas, ou está?
— Não estou, não.
Thora sorriu. O sorriso não teve qualquer in-
fluência sobre as regiões psíquicas do robô. Mas
a lógica irrefutável daquela pergunta, sim.
— Não, não estou proibido de aceitar or-
dens suas — repetiu R.17.
— Então podemos partir?
R.17 ainda estava vacilante. Desde que isso
fosse possível, não devia se sentir muito bem
dentro da sua pele metálica. Mas também não
encontrou qualquer argumento lógico que lhe
permitisse recusar taxativamente o cumprimen-
to das exigências de Thora. A mulher pertencia
àquela raça que o tinha construído. Rhodan era
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apenas um habitante desse planeta, que se cha-
mava Terra, se bem que era um espécime sin-
gular desses habitantes. Por assim dizer, R.17
sentia-se mais chegado a Thora do que a Rho-
dan, muito embora tivesse que obedecer às or-
dens deste, em virtude do condicionamento a
que Crest o havia submetido. E R.17 jamais
deixaria de cumprir essa ordem que o obrigava
a prestar obediência. Aliás, nem poderia fazê-lo
sem provocar um curto-circuito, que o destruiria
totalmente.
Por outro lado, se obedecesse a Thora, não
estaria agindo diretamente contra ordens de
Rhodan. E, portanto, não estaria correndo peri-
go.
R.17 acenou.
— Sim, podemos partir. A disposição reza
que nenhum estranho deve se aproximar desta
nave. Thora de Árcon não é uma estranha.
— Muito bem, então não vamos perder mais
tempo. Programe o curso para o planeta Vênus
e decole o mais depressa que puder. Quero ve-
rificar em quanto tempo podemos alcançar a
nossa base no segundo planeta deste sistema.
Saber disso pode ser muito útil num caso de
emergência.
Meio pesadão, o robô galgou lentamente a
escada e abriu a escotilha. Thora esperou, im-
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paciente, que desaparecesse no interior da nave
para depois segui-lo apressadamente. Um aper-
to de botão, e a pesada comporta externa se fe-
chou. O elevador antigravitacional levou Thora
e R.17 em poucos segundos para a central de
comando, que se situava na proa do destróier.
Sentaram-se nos assentos giratórios.
Enquanto o robô estava calculando o curso,
os propulsores começaram a zumbir em regime
de aquecimento. E, em algum lugar no interior
do destróier, o possante reator iniciou a produ-
ção das inconcebíveis quantidades de energia,
necessárias para liberar a nave da força de atra-
ção da Terra e, mais tarde, projetá-la através do
espaço com a velocidade da luz. O automático
gerou os campos de gravitação artificiais, que
neutralizariam qualquer empuxo devido à acele-
ração majorada. Aos poucos, todo o complica-
do mecanismo de uma tecnologia inimaginável
entrou em serviço.
Thora pôs-se a esperar. Sabia que seu inten-
to tinha dado certo. Somente mais alguns minu-
tos e esse planeta odiado desapareceria como
uma bola azul no mar do infinito. Vênus não
passava de uma escala, porque seria loucura re-
matada querer alcançar a pátria, a mais de trin-
ta mil anos-luz de distância, com uma nave que
mal alcançava a velocidade da luz. Mas em Vê-
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nus existia uma hiperestação radiofônica e, com
auxílio dela, seria possível requisitar de Árcon o
envio de uma nave de resgate. R.17 acenou
para Thora.
— Está tudo pronto, vamos decolar. Obser-
ve a tela de imagem para se inteirar do desem-
penho de D.C. Rhodan proibiu expressamente
voar à velocidade máxima. Autorizou-a apenas
para um caso de emergência. Mesmo assim,
devemos chegar em Vênus dentro de hora e
meia. No momento, o planeta se encontra do
outro lado do Sol.
— E qual é a distância?
— Duzentos e trinta e oito milhões de quilô-
metros.
— E a que velocidade podemos voar?
— A setenta e cinco por cento da velocidade
da luz.
Thora não respondeu e continuou a esperar.
R.17 agarrou uma alavanca e puxou-a para a
frente. Nada parecia acontecer, mas a imagem
na tela se modificou rapidamente.
D.C. decolou sem recorrer aos pulso-propul-
sores. Os projetores antigravitacionais neutrali-
zaram a atração da Terra e os campos repulso-
res locomoveram a massa da nave espacial,
agora desprovida de peso.
O chão embaixo da nave se afastou repenti-
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namente e caiu no infinito. Em velocidade aluci-
nante, edifícios, estradas, rios, cordilheiras e de-
sertos lançavam-se, de todos os lados, em dire-
ção ao centro do campo de pouso. O campo de
visão se ampliou até que, de repente, o terreno
desapareceu, cedendo lugar a uma superfície
roxa e escura.
O universo!
Em menos de dez segundos, o destróier ha-
via atravessado a atmosfera da Terra e agora se
lançava vertiginosamente espaço adentro.
Por um instante Thora acreditou ter vislum-
brado um ponto brilhante no canto direito da
tela. Mas sumiu tão fugaz quanto havia apareci-
do, de maneira que ela não se preocupou mais
com essa aparição. Depois, praticamente na di-
reção do vôo, avistou o Sol, cujo brilho intenso
estava sendo absorvido por possantes jogos de
filtro.
A esta altura, a Terra já tinha se reduzido a
um globo, que rodava pacificamente através do
céu estrelado. Ficou cada vez menor até que se
tornou apenas uma estrela bastante luminosa.
Thora soltou um suspiro. Olhou para o pi-
loto-robô.
R.17 retribuiu o olhar.
— Parece ser uma nave muito boa — cons-
tatou.
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— Sim, é uma nave muito boa, mas não su-
ficientemente boa para aquilo que eu tenho em
mente, R.17.
O robô não fez perguntas. Manteve-se em
silêncio e controlou o curso, calculando e corri-
gindo.
Estavam perigosamente perto do Sol...

***

Já fazia alguns anos que esta estação orbital


tripulada girava em torno da Terra.
A tarefa que lhe cabia realizar, em conjunto
com duas outras estações, era a de garantir a
recepção dos programas da televisão terrena
em qualquer parte do mundo. As três estações
pairavam a uma altura em que sua velocidade
orbital correspondia exatamente à da rotação
da Terra. Assim, permaneciam constantemente
acima do mesmo ponto da superfície terrestre.
O telegrafista Adams tinha plena consciência
da sua responsabilidade quando estabeleceu a li-
gação com as duas outras estações, a fim de
preparar a transmissão do programa de Terra
Television.
Hoje fazia mais um ano que a primeira ex-
pedição espaçonáutica tripulada havia decolado
da América sob o comando do major Perry
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Rhodan — um homem inteiramente desconhe-
cido até aquela data. A Stardust — era este o
nome daquela nave espacial pioneira — pousou
na Lua, descobriu a nave naufragada da expedi-
ção espacial dos arcônidas e retornou à Terra
com Crest, o chefe dessa malograda expedição.
E foi assim — o próprio Adams sabia disso —
que toda essa história tinha começado.
Mas Adams sabia também que essa história
não terminaria tão cedo.
Com um intervalo de segundos, as estações
II e I confirmaram o estabelecimento do conta-
to. Adams chamou a Terra. A grande estação
transmissora em Terrânia acusou o recebimen-
to da mensagem. Estava tudo pronto para a
transmissão, que o mundo inteiro iria ver e ou-
vir.
O telegrafista Adams recostou-se conforta-
velmente na sua poltrona. Não tinha mais mui-
to o que fazer, pois, desse momento em diante,
tudo se processaria automaticamente. Mas nem
por isso Adams deixaria de assistir a essa trans-
missão. Pois era o próprio Perry Rhodan que,
dentro de instantes, iria dirigir a palavra à Hu-
manidade.
Um turbilhão de estrelas apareceu no moni-
tor, transformando-se gradativamente na ima-
gem familiar da Via Láctea, que rodava lenta-
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mente através do nada.
Era o símbolo de Terrânia, a capital da Ter-
ceira Potência.
Em seguida, a tela apresentou as feições
marcantes de um homem. As profundas rugas
no rosto e em torno da boca faziam-no parecer
mais velho do que devia ser.
— Aqui fala o coronel Michael Freyt, de Ter-
rânia. Ao ensejo de mais um aniversário do pri-
meiro vôo tripulado à Lua, vai lhes dirigir a pa-
lavra Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência
e amigo dos arcônidas. Peço a sua atenção
para este importante pronunciamento.
O rosto de Freyt desapareceu e foi substituí-
do por um outro. Ouviu-se o ligeiro estalo que
acompanhava a ligação das instalações de tra-
dução simultânea. Assim que fossem pronuncia-
das as palavras de Perry Rhodan já estariam
sendo traduzidas para todos os idiomas do mun-
do.
“É até curioso”, constatou o telegrafista
Adams, pensativo, “como esse Freyt e Rhodan
são parecidos. Bem que podiam passar por ir-
mãos. O mesmo vulto esguio, os mesmos olhos
cinzentos, as mesmas rugas em torno da boca e
do nariz. Até mesmo o olhar é igual, penetrante
e objetivo! Mas Rhodan é o mais moço dos
dois, ou será que me engano? Já não deve ser
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tão jovem, mas não aparenta. Gostaria de sa-
ber, como ele consegue. E o uniforme lhe as-
senta muito bem. Faz anos que ele despiu a far-
da de um piloto de provas americano e passou
a envergar esse uniforme aí. Um rebuliço e tan-
to, aquele, na época...”
Mas infelizmente Adams perdeu as palavras
introdutórias de Perry Rhodan, pois uma cam-
painha de alarma ressoou através da central da
estação radiofônica e o arrancou das suas re-
cordações. Levantou-se de um pulo da poltrona
e saiu correndo em direção à porta.
Alarma na estação sempre significava peri-
go.
Mas o caso parecia não ser tão grave assim.
O telegrafista de serviço havia captado o eco de
um objeto na sua tela de radar. Porém, esse ob-
jeto não se identificou e passou com incrível ve-
locidade quase rente à estação, desaparecendo
na direção da Lua. E só podia ter vindo da Ter-
ra.
— Não se identificou, não foi? — disse
Adams, algo surpreso. — Já consultou Terrâ-
nia?
— Ainda não.
— Então faça isso ligeirinho! — recomendou
Adams. Consolou-se com o fato de que mesmo
os discursos mais interessantes invariavelmente
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começavam com introduções enfadonhas. Cer-
tamente não perderia grande coisa, se aguar-
dasse mais um pouco.
A resposta de Terrânia veio imediatamente.
— Daqui nenhuma nave decolou. Forneça
dados.
Fornecer dados! Essa era boa. A nave — se
é que era uma nave — tinha passado com ta-
manha velocidade que nada, ou quase nada,
pôde ser constatado. Talvez a filmagem auto-
mática pudesse jogar luz nesse mistério. O filme
estava acabando de sair do revelador.
Mostrou uma nave de uns trinta metros de
comprimento e diâmetro reduzido. Asseme-
lhava-se a um torpedo. Velocidade: impossível
de ser determinada, mas certamente não inferi-
or a cem quilômetros por segundo.
Adams sacudiu a cabeça, enquanto o seu co-
lega transmitia os dados. Se realmente existisse
uma nave dessas, só podia ter sido produzida
nos estaleiros misteriosos de Perry Rhodan. E
desses se sabia muito pouco. Sabia-se apenas
que...
A resposta de Terrânia foi surpreendente:
— Procurem imediatamente obter novos da-
dos da estação lunar. Principalmente quanto ao
curso presumível da nave. Estamos também in-
teressados em saber a velocidade com que pas-
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sou nas proximidades da Lua. Obrigado pela
sua ajuda. Aguardamos novas comunicações.
De nossa parte, já começamos a investigar o
caso.
Isso foi tudo.
O operador de radar olhou para Adams.
— Bem, que acha disso? História estranha,
não é?
Adams acenou lentamente com a cabeça.
— Tudo que se relaciona com esse Rhodan
é estranho. Só gostaria de saber se essa nave
partiu contrariando ordens.
Virou-se e voltou à sua sala, sem tomar co-
nhecimento da expressão espantada do seu co-
lega.
Chegou a tempo de ouvir Perry Rhodan di-
zer da tela do televisor:
— ...e assim, com o auxílio dos arcônidas,
criamos a Terceira Potência que até agora con-
seguiu apaziguar todos os conflitos entre os dois
blocos de poder remanescentes da Terra. Sim,
porque após os últimos acontecimentos, não
podemos mais considerar o Bloco Oriental
como uma potência mundial; temos como certo
que, mais dia, menos dia, será anexada pela Fe-
deração Asiática. Mas, como as relações políti-
cas entre a Federação Asiática e a OTAN são
bastante harmoniosas, não está mais tão longe
22
o dia em que a idéia de um governo mundial
possa se transformar em realidade.
“Os senhores todos sabem que o estabeleci-
mento de um governo mundial ocupa lugar de
destaque entre os meus objetivos políticos. Os
arcônidas, que naufragaram na Lua, tornaram-
se nossos aliados. E isto porque, apesar do seu
tremendo potencial tecnológico, se viram obri-
gados a aceitar o auxílio da Terra. Como con-
seqüência imediata dessa aliança, vi colocado
em minhas mãos um poder que me permitiria
facilmente implantar o governo mundial pela
força. Mas continuo convicto que este seria o
caminho errado. O governo mundial, como eu
o imagino, deve nascer espontaneamente e ter
as condições para uma evolução natural, como
qualquer organismo em crescimento; e, podem
acreditar, isso vai acontecer dentro de bem
pouco tempo. Assim como as diversas nações
tiveram que renunciar ao seu orgulho mesqui-
nho para poder se aliar às organizações orien-
tais ou ocidentais, algum dia os dois grandes
blocos de poder vão reconhecer que somente
uma Terra unida poderá exercer um papel his-
tórico na galáxia.
“Muita coisa foi realizada nesses últimos
anos. Graças ao apoio tecnológico dos arcôni-
das, eles mesmos soberanos de um imenso im-
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pério estelar a mais de trinta mil anos-luz de dis-
tância, a Terceira Potência conseguiu construir
uma frota espacial capaz de proteger nosso pla-
neta contra qualquer agressão externa. Já man-
temos um vivo intercâmbio comercial com uma
raça extraterrena. Há alguns anos, conseguimos
repelir uma invasão procedente do universo. No
deserto de Gobi, foi erguida a mais moderna
metrópole do mundo: Terrânia, a antiga Galá-
xia. A Terra abandonou, portanto, o seu tradici-
onal isolacionismo e se tornou um fator que os
próprios arcônidas não vão poder desprezar...
no dia em que descobrirem a Terra.
“Acabo de abordar um assunto que, pela sua
importância, precisa ser esclarecido com toda
franqueza. Só há dois arcônidas que sabem da
existência da Terra: Crest, o cientista-chefe da
malograda expedição que encontramos na Lua,
e Thora, a comandante daquela expedição. Até
hoje, fui bem sucedido nos meus esforços de
impedir que esses dois arcônidas estabeleces-
sem contato com Árcon, seu planeta de ori-
gem. O meu empenho nesse sentido tem uma
explicação muito simples: se os arcônidas, em
Árcon, soubessem da existência da Terra, con-
siderariam da maior importância incorporar o
nosso planeta ao seu império, porque, aos seus
olhos, somos subdesenvolvidos e carentes de
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apoio político e tecnológico.
“Crest e Thora prometeram adiar o seu re-
torno a Árcon até que a Terra estivesse pronta
para receber os arcônidas. Mas a Terra só esta-
rá pronta para este encontro no dia em que pu-
der recepcionar a delegação do Grande Império
arcônida como um planeta forte e unido. Mas
não haverá uma Terra unida se não houver um
governo mundial. Creio que todos compreende-
ram por que venho dedicando uma atenção
toda especial a este problema.
“Há anos que a Terceira Potência está em-
penhada nos preparativos para a implantação
de um governo mundial. E vai chegar o dia em
que todas as nações da Terra terão à sua dispo-
sição a inconcebível tecnologia arcônida, atual-
mente em nossas mãos. A General Cosmic
Company, fundada por mim, tornou-se sem
dúvida alguma o maior fator de poder político-
econômico do nosso mundo. Não constitui exa-
gero afirmar que a G.C.C. controla a produção
da Terra. Nós determinamos o valor monetário
e de câmbio. E posso relevar que a G.C.C. um
dia vai introduzir uma nova moeda mundial;
dispõe dos meios para isto.
“Depende apenas de vocês e de seus gover-
nos para que tudo isso se torne realidade o
mais breve possível. Pois o dia X não pode con-
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tinuar a ser uma data imprevisível do futuro.
Entretanto, não pretendo recorrer à força, faço
questão de reiterar isto mais uma vez, se bem
que não teria a menor dificuldade em implantar
o governo mundial por coação.
“Porém não posso mais esperar muito tem-
po por uma razão bem simples: a cada dia que
passa, Crest e Thora pedem com mais insistên-
cia que lhes conceda permissão para reverem a
pátria. E não posso continuar a me opor a esse
justo anseio porque, em nome da Humanidade,
eu assumi uma dívida de gratidão com os ar-
cônidas. Sem o fabuloso auxílio tecnológico que
recebemos deles, hoje ainda nos encontraría-
mos nos umbrais da navegação espacial e deve-
ríamos nos dar por felizes se, anos após o vôo
pioneiro à Lua, conseguíssemos enviar os pri-
meiros foguetes a Vênus. Portanto, como vi-
ram, é bastante exíguo o prazo de que os se-
nhores dispõem para chegar a um acordo po-
lítico. Mas, assim que o governo mundial tiver
sido empossado, vamos poder enfrentar Ár-
con... e também o desafio representado por
uma galáxia inteira.
“Agora passo a esboçar, em linhas gerais,
como imagino a constituição de um governo
mundial...”
O telegrafista Adams esticou as pernas um
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pouco mais. Honestamente, não estava muito
interessado nos pormenores da organização
desse projetado governo mundial. Certo, a idéia
em si não era ruim, mas, se os políticos dos
dois blocos de poder a topariam, era outra
questão. Afinal a rebelião do Bloco Oriental
contra Rhodan havia revelado sobejamente
quão pouco conformados os políticos do mun-
do estavam em ter que aceitarem a supremacia
tecnológica da Terceira Potência. Seja como
for, os militares do Bloco Oriental haviam sofri-
do uma derrota decisiva em Vênus. Os exérci-
tos desembarcados tinham se perdido nos pân-
tanos e selvas do planeta virginal e foram dados
como desaparecidos. E a base de Rhodan havia
repelido todo agressor automaticamente, em-
pregando as armas de comando positrônico.
Adams deu um suspiro. Talvez seu colega já
soubesse algo de novo a respeito daquela nave
misteriosa. Por uns instantes, Adams voltou a
prestar atenção no discurso, e ouviu Rhodan di-
zer que cogitava colocar a frota de caças espaci-
ais existente sob o comando do governo mundi-
al. Adams levantou-se e dirigiu-se à central de
radar.
Chegou na hora certa.
Na tela do aparelho que ligava a estação
com Terrânia, via-se o rosto excitado de um ho-
27
mem um pouco corpulento, que lutava para re-
cuperar o fôlego. Como um peixe fora d’água,
constatou Adams. Depois tentou se lembrar
quem era aquele homem. Não lhe era estranho,
já o tinha visto alguma vez. Ora, com mil dia-
bos, esse não era Reginald Bell, o amigo de
Rhodan? Membro da tripulação do primeiro
vôo à Lua e atual ministro da segurança da Ter-
ceira Potência?!
Enquanto fechava a porta atrás de si, exami-
nou aquele rosto com mais atenção.
A imagem na tela tridimensional e colorida
reproduzia as feições de Bell com fidelidade im-
pressionante.
— Ande ligeiro, sua pata choca! — ofegou
Bell, irado. — Eu preciso saber o curso dessa
nave que você observou. Será que o raio daque-
la estação lunar ainda não enviou resposta?
— Acabou de chegar — disse o colega de
Adams, tranqüilamente, e consultou um bloco
de apontamentos. — Mas por que este rebuliço
todo? Será que a nave não teve autorização
para decolar?
— Vá a...
Reginald Bell quase que se engasgou ao cor-
tar bruscamente a sua observação que tanto
prometia. Mais calmo e objetivo, prosseguiu:
— Logo vai saber se teve ou não autoriza-
28
ção. Agora as informações, se não for pedir de-
mais.
— A nave foi localizada e examinada pelos
raios tateadores das instalações da Lua, apesar
da enorme velocidade que estava desenvolven-
do. O curso não sofreu qualquer alteração.
Continua orientado mais ou menos em direção
ao Sol.
— Em direção ao Sol? — gemeu o homem
na tela de imagem. — O que será que essa mu-
lher biruta pretende fazer no Sol?
— Quem? — perguntou o operador de ra-
dar, todo ouvidos.
Bell ignorou a pergunta e comentou:
— Por mim pode ficar lá, assando até se tor-
nar digerível! Bloco de gelo de uma figa! Sol!
O telegrafista arreganhou os dentes.
— Posso chamar sua atenção para o fato —
disse ele — de que na direção do Sol não existe
apenas o Sol.
— O que quer dizer com isso? — berrou
Bell, enfurecido, para uma fração de segundos
depois se tornar lívido. Como por encanto, o
rubor da sua face se transformou num cinza-
pálido. — Não apenas o Sol... Caramba! Você
tem razão! Por que não disse isso logo? Obriga-
do pela informação, oportunamente vou lhe
mostrar minha gratidão.
29
— Então diga-me o que está se passando —
implorou o operador de radar, exasperado; mas
a tela já estava escura.
Bell tinha se despedido à sua maneira.
Adams encolheu os ombros.
— Não leve isso tão a sério, John. Dizem
por aí que esse Reginald Bell é esquisito como
quê.
O telegrafista ainda não se conformou.
— Que diabo de nave terá sido essa? Parece
que a sua decolagem levantou um bocado de
poeira!
— A nave nem tanto — vaticinou Adams. —
Creio que quem levantou mesmo a poeira foi
aquela mulher que Bell citou. Também não é
vantagem levantar tanta poeira. Afinal, a nave
partiu do deserto de Gobi!
— Piada infame! — comentou o operador
de radar, furioso. — Se eu tivesse a menor no-
ção da realidade, poderia ganhar um montão de
dinheiro. Eu conheço um pasquim...
Adams franziu a testa e voltou para sua pró-
pria central. A transmissão continuava perfeita
e Adams se sentou aliviado na poltrona.
Perry Rhodan ainda estava falando.
— ...e hoje, nesta data, não vivemos mais
na ilusão de sermos as únicas inteligências no
universo. Não estamos sozinhos, muito pelo
30
contrário. Estamos na mesma situação dos ha-
bitantes de uma ilha isolada no Pacífico, que até
agora se julgaram os únicos homens sobre a
face da Terra, e de repente são obrigados a
constatar que estão circundados ou mesmo cer-
cados por enormes continentes, povoados por
milhões e milhões de pessoas. Haveria algo
mais natural para esses homens do que esque-
cerem suas desavenças mesquinhas e se unirem
para enfrentar o desconhecido?
Perry Rhodan fez uma pausa.
No mundo inteiro não houve um único teles-
pectador que tivesse estranhado essa pausa,
porque não existe homem que consiga falar
ininterruptamente. Mas Adams não se encon-
trava na Terra e sim na estação orbital III. Além
disso, ele sabia daquela nave misteriosa que ti-
nha causado um rebuliço tão grande no ministé-
rio da segurança da Terceira Potência. E mais
ainda. Adams também sabia que Rhodan dispu-
nha de um exército de mutantes, em cujas filei-
ras militavam, entre outros, excelentes telepa-
tas.
E Adams não possuía apenas essas informa-
ções, possuía também uma rara facilidade de
combinar fatos...
Não era possível retirar Rhodan sem mais
nem menos de frente das câmaras de televisão;
31
afinal de contas, estava se dirigindo ao mundo.
Mas era preciso colocá-lo a par do ocorrido, se
fosse importante. E era importante; o compor-
tamento de Bell tinha demonstrado.
Portanto...
Não, realmente não foi difícil para o telegra-
fista Adams concatenar corretamente os acon-
tecimentos que se desenrolavam na tela.
Perry Rhodan silenciava e parecia estar re-
fletindo. Olhava para um ponto imaginário à
sua frente com os olhos ligeiramente cerrados.
Era como se estivesse ouvindo uma voz que es-
tava se dirigindo a ele do invisível. Uma ruga
profunda apareceu na sua testa. Por um mo-
mento, uma expressão de mau humor brilhou
nos seus lábios. Dirigiu o olhar novamente para
as lentes das câmaras e o tom da sua voz se
manteve inalterado quando disse:
— Mas ainda há muitos problemas a resol-
ver, e eu só posso pedir a todos que confiem
em mim. Confiem também nos arcônidas,
aconteça o que acontecer. Basta que um deles
resolva entrar em contato com Árcon para que
o perigo de sermos descobertos aumente tre-
mendamente. Pois esta mensagem poderia, por
um acaso, revelar a nossa existência a uma das
numerosas raças belicosas do universo. E des-
necessário salientar o que isso significaria para
32
uma Terra desunida.
“Finalizando, desejo lembrar mais uma vez a
todos que hoje não comemoramos apenas mais
um aniversário do início da verdadeira navega-
ção espacial, mas também a consolidação defi-
nitiva da paz. A Terceira Potência ama a paz.
Mas ao mesmo tempo é a sua defensora mais
intransigente e, como tal, não hesitará um ins-
tante sequer, em empregar, sem a menor con-
templação, todo seu poderio para defendê-la,
toda vez que se veja ameaçada em qualquer
parte do mundo.”
Após esse final um pouco abrupto, Rhodan
se inclinou ligeiramente perante o seu auditório
invisível e depois se dirigiu rapidamente para
uma porta nos fundos, pela qual desapareceu.
Esta porta permaneceu nas telas de imagem
ainda durante algum tempo, antes que o coro-
nel Freyt aparecesse para anunciar que em bre-
ve o ministro da segurança da Terceira Potên-
cia, Reginald Bell, ia dirigir a palavra ao mundo,
abordando questões de defesa no caso de uma
invasão.
Freyt ainda pediu que os telespectadores
desculpassem um pequeno intervalo, uma vez
que Bell estava sendo retido por alguns assun-
tos internos.
O telegrafista Adams efetuou as ligações ne-
33
cessárias e depois pôs-se a esperar.
Tinha a impressão de ter se tornado teste-
munha de acontecimentos sumamente impor-
tantes e de conseqüências ainda imprevisíveis.

***

A esta altura, o Sol já era uma imensa bola


de gás incandescente, que passava rapidamente
à esquerda da nave espacial. As enormes protu-
berâncias que projetava no universo pareciam
querer agarrar o destróier C, mas este era rápi-
do demais para poder ser alcançado pelas tur-
bulentas massas gasosas. Deslocava-se a uma
velocidade próxima à da luz.
O robô R.17 ocupava, praticamente imóvel,
o assento diante dos controles, a maioria dos
quais havia transferido para o comando auto-
mático. Só vez por outra procedia a uma ligeira
correção do curso, que era influenciado pela
tremenda força gravitacional do Sol. R.17 man-
teve-se em silenciosa expectativa.
Ao passarem pela estação lunar, R.17 havia
cumprido a ordem recebida, e anunciado o
nome de Thora como comandante do destróier.
Mas antes que a estação pudesse responder, já
tinha desaparecido no negrume do vazio total.
Desta vez, Thora não admitiria que ninguém
34
a impedisse de realizar o seu intento. Durante
dez anos — se computado o curioso lapso de
tempo em Peregrino, o planeta da vida eterna
— tinha se submetido à vontade férrea de Rho-
dan. Mas acabou chegando à conclusão que
Rhodan nem pensava em permitir que ela e
Crest retornassem a Árcon.
Antes de mais nada, Rhodan queria ver im-
plantado o seu ambicionado governo mundial, a
fim de não passar por vexame diante dos ar-
cônidas. É claro que perseguia esse objetivo sob
o pretexto barato da eterna ameaça de uma in-
vasão.
Bem, se Rhodan não estava disposto a lhe
conceder a permissão, paciência, agiria por
conta própria para exercer o seu direito inalie-
nável de rever a pátria. Chegar a Vênus já era
meio caminho andado, pois lá existia um meio
pelo qual poderia se comunicar com o distante
planeta Árcon. Era o emissor hiperespacial, que
levaria as suas palavras através do universo com
velocidade superior à da luz.
E Árcon enviaria uma nave para resgatá-la.
E o seu cativeiro chegaria ao fim...
Neste ponto, algumas dúvidas se infiltraram
nos pensamentos de Thora. Não tinha segreda-
do o seu plano a Crest, e ele tinha todo o direi-
to de conhecê-lo. Mas Crest estava do lado de
35
Rhodan. Portanto, teve que agir sozinha.
Todavia...
Segundos transformaram-se em minutos. O
Sol diminuía cada vez mais na esteira da nave,
enquanto que à frente, em meio às miríades de
estrelas, Vênus despontava como um ponto ful-
gurante que crescia vertiginosamente, transfor-
mando-se num disco e, finalmente, num globo
branco.
Com olhos ardentes, Thora fitou o planeta
que se aproximava. Lá se encontrava o objeto
dos seus anseios: a gigantesca estação radio-
fônica estelar dos colonos arcônidas desapareci-
dos dez mil anos atrás. No entanto, o fabuloso
automatismo da base que haviam construído
ainda hoje se encontrava em perfeitas condi-
ções de funcionamento.
E isto incluía as terríveis armas defensivas,
criadas por uma tecnologia inconcebível, e que
protegiam a estação radiofônica e o cérebro
positrônico.
Thora conhecia a localização exata da base.
Construído de acordo com um projeto arcôni-
da, o destróier apresentava todos os requisitos
para ser identificado como nave dos arcônidas
pelos raios tateadores da instalação de bloqueio
da fortaleza. Não encontraria qualquer obstácu-
lo para pousar. Thora sabia quão estarrecedor
36
era o armamento desta fortaleza, e de que mei-
os o gigantesco cérebro positrônico dispunha
para se defender.
Afastou todas as dúvidas e receios do pensa-
mento e disse a R.17:
— Precisamos desacelerar.
— Já estamos desacelerando — respondeu
o robô. — Só que não reparou nisso. É que os
campos de força neutralizam qualquer altera-
ção. Mas veja, a imagem de Vênus está aumen-
tando apenas lentamente.
Tinha razão.
Aquela esfera luminosa já estava bem próxi-
ma, mas na realidade só crescia vagarosamen-
te. A densa camada de nuvens ocultava a super-
fície, mas Thora se lembrava muito bem que
aquilo que no momento não podia ver era um
mundo primitivo. Enormes superfícies de água
e mares pré-históricos cobriam uma grande par-
te do planeta Vênus e, assim, se constituía para
os homens num imenso labirinto de água, pân-
tanos e selvas gigantescas. E nesses pântanos
sem fim viviam enormes sáurios, que somente
há poucos séculos tinham conquistado a terra
firme.
A selva era praticamente impenetrável. Mes-
mo com o auxílio dos meios da técnica mais
moderna, ali era praticamente impossível per-
37
correr trechos maiores a pé. Quem caísse nessa
selva estava perdido. Sucumbiria em breve, víti-
ma dos sáurios, dos pântanos ou das plantas
carnívoras.
Para seres humanos a atmosfera venusiana
era respirável. Apesar do alto teor de dióxido
de carbono, continha oxigênio suficiente para
alimentar a corrente sangüínea. Nas camadas
superiores a percentagem de impurezas de ori-
gem vulcânica e de gases nobres aumentava
consideravelmente. E a camada de nuvens, que
quase sempre pairava a grande altura, transfor-
mava Vênus numa estufa enorme, na qual a ve-
getação proliferava exuberantemente.
Um dia completo em Vênus tinha a duração
de dez dias terrestres. Isto equivalia, portanto, a
cento e vinte horas de claridade, seguida de
igual período de noite escura. O ano planetário
durava 224,7 dias terrestres.
A força gravitacional e a velocidade de libe-
ração eram ligeiramente inferiores às verificadas
na Terra. O Sol estava a cento e oito milhões
de quilômetros, e fornecia energia calorífica su-
perabundante.
Não era um mundo muito hospitaleiro mas,
há milhões de anos, não tinha sido outro o as-
pecto da Terra. Algum dia, Vênus seria habita-
do; talvez fossem até os descendentes dos ho-
38
mens que, num futuro remoto, transformariam
este planeta fértil num paraíso.
Mas, no momento, Vênus era tudo, menos
um paraíso. “O planeta do inferno”, assim Bell
o tinha chamado certa vez numa conversa com
Thora. Casualmente, a arcônida se lembrou
dessa denominação, quando o destróier pene-
trou nas camadas superiores da atmosfera e co-
meçou a baixar lentamente.
A velocidade já era bem reduzida. Vagarosa-
mente as nuvens claras e esfarrapadas desliza-
vam diante das vigias. Parecia que se desloca-
vam para cima.
Na tela de radar se delineavam os contornos
de enormes e altas cordilheiras. E no planalto
de uma dessas cordilheiras localizava-se a base
dos antigos arcônidas; e esta base abrigava o
cérebro positrônico e a hiperestação radiofôni-
ca.
O robô R.17 reassumiu o controle da nave.
Orientou-se pelos instrumentos e determinou a
posição do alvo. Nenhuma instrução havia sido
gravada no seu cérebro que o proibisse de pou-
sar nas proximidades da base venusiana.
De repente, não havia mais nuvens embaixo
do destróier. Era como se D.C. tivesse mergu-
lhado num mar de gás e agora estivesse flutuan-
do no fundo. O sol ficou reduzido a uma man-
39
cha clara que brilhava através das massas gaso-
sas, nas quais originava violentos turbilhões,
mas que só raramente atingiam a superfície do
planeta.
Thora olhou para baixo e se arrepiou.
Tinham atravessado um oceano e estavam
se aproximando da costa. A visão era surpreen-
dentemente clara e lá longe, no horizonte,
amontoavam-se altas cordilheiras, encimadas
por cumes achatados. Do sopé até a metade da
altura ainda havia vegetação. Daí para cima, só
se via a rocha desnuda. De frestas escuras
emergia uma cintilação branca. Thora sabia que
eram imensas quedas d’água, que alimentavam
sem cessar os pantanais nas selvas.
As selvas...
Além das cordilheiras e dos mares, não se
via outra coisa senão selvas. Estendiam-se em
todas as direções por baixo do destróier... um
tapete verde, do qual despontavam algumas ro-
chas isoladas, e rasgado em alguns trechos por
vastas superfícies de água, que brilhavam num
tom esverdeado e traiçoeiro. Aqui e ali, esta su-
perfície de aspecto tóxico era agitada e uma
enorme cabeça aparecia, oscilando indecisa na
extremidade de um pescoço longo e esbelto,
para, em seguida, desaparecer novamente den-
tro d’água.
40
A nave continuou a baixar.
— O alvo está a oitocentos quilômetros de
distância — disse R.17 calmamente e sem qual-
quer emoção. — Vamos pousar ou voltar?
— Vamos pousar... é claro! — respondeu
Thora. A sua voz também soava calma, se bem
que no seu íntimo rugia uma tempestade difícil
de ser amainada. Dentro de poucas horas sabe-
ria ao certo se era mais forte e inteligente que
Rhodan... ou não.
— Algum sinal dos raios tateadores da esta-
ção?
R.17 lançou um olhar aos instrumentos.
— Por enquanto, não.
“Ainda estamos muito longe”, pensou Tho-
ra.
Lembrou-se que a zona de bloqueio se es-
tendia num raio de quinhentos quilômetros em
torno da fortaleza, incessantemente controlada
pelo cérebro positrônico, que examinava todo
objeto que se aproximava. Quem fosse reco-
nhecido, mas não tivesse a devida autorização,
ficava apenas proibido de tentar o pouso dentro
da zona de bloqueio. Mas, se o intruso revelasse
ser um estranho, era imediatamente abatido,
sem qualquer aviso prévio. Thora sabia que não
corria esse perigo, porque o padrão das suas
ondas encefálicas a identificaria como arcônida.
41
Mais importante, porém, era o fato de que o
destróier era uma nave de características intei-
ramente arcônidas. O emissor de códigos, que
fazia parte do seu sofisticado equipamento, se
encarregaria de responder corretamente às per-
guntas do cérebro positrônico.
— Faltam seiscentos quilômetros — disse
R.17, mecanicamente.
Thora olhou de relance para o armário em-
butido da central. Continha todas as armas de
fogo necessárias para o caso de um pouso de
emergência em território desconhecido. Enco-
lheu os ombros num gesto displicente. Não pre-
cisaria de uma arma. Também, para quê?
— Estamos chegando perto da zona de blo-
queio — comentou R.17.
Thora empertigou-se na poltrona e olhou,
fascinada, através da vigia para a superfície do
fumegante inferno de Vênus. Nada havia se
modificado desde a última vez que tinha estado
aqui. A nave deslizou por cima de um lago cir-
cundado por rochas íngremes, cobertas até o
cume por uma vegetação rala.
Atrás dessas rochas se encontrava um da-
queles numerosos platôs elevados; eram imen-
sos planaltos que se estendiam bem acima do
nível dos pântanos. Nesses platôs, as condições
de vida eram razoavelmente suportáveis.
42
— Desça mais um pouco! — ordenou Tho-
ra, mas não sabia por que o disse.
O robô obedeceu sem proferir palavra. Mas
a altura não tinha menor influência sobre os rai-
os tateadores da fortaleza. Agarraram aquela
nave que, para eles, era estranha e exigiram o
código de identificação... mas não receberam
nenhuma resposta. E tudo isso se processou de
forma inteiramente automática e sem qualquer
indício visível. Os instrumentos de D.C. apenas
indicaram que a nave havia sido localizada.
Mais nada.
Por isso, o que aconteceu em seguida, se
constituiu numa surpresa completa.
Na borda do platô, um trecho de rocha desli-
zou para o lado. Da fresta negra emergiu um
cano reluzente, que parecia envolto em espirais
coruscantes. Ergueu-se devagar até apontar
ameaçadoramente para aquela nave que voava
a baixa altitude. A quinhentos quilômetros de
distância, correntes de impulsos percorriam
complicados aparelhos, abriam e fechavam
contatos; ativaram relês e originaram, finalmen-
te, um comando positrônico. Um emissor radio-
fônico se encarregou de transmitir este coman-
do imediatamente para o canhão desintegrador
na zona de bloqueio.
Nem de longe R.17 e Thora tinham contado
43
com a possibilidade de serem derrubados por
meio de um tiro direto. O raio energético ani-
quilador dissolveu o campo estrutural cristalino
da nave e sublimou toda a matéria.
Automaticamente, R.17 apertou o botão do
dispositivo de ejeção.
A proa do destróier tinha sido decepada
como que por um corte de navalha, de modo
que praticamente toda a central de comando fi-
cou exposta. Como por um milagre, o abasteci-
mento de energia ainda funcionava. Mas o me-
canismo estava emperrado.
Desesperada, Thora agarrou-se aos encostos
da poltrona. A nave estava ligeiramente aderna-
da e cambaleava em direção àquele inferno ver-
de. Através da vigia, que se encontrava abaixo
dela, Thora vislumbrou que ainda iriam pousar
naquele platô... se é que essa queda brusca pu-
desse ser chamada de pouso.
Talvez as copas das árvores pudessem amor-
tecer o impacto.
“Por quê?”, perguntou Thora a si mesma
nos últimos segundos de lucidez, “por que este
cérebro-robô mandou nos abater, por quê?”
Depois, o choque violento parecia lhe cravar
as pernas no corpo. A dor lancinante ainda lhe
atravessou o cérebro antes que perdesse os sen-
tidos de vez. R.17 bateu com a testa nos instru-
44
mentos de controle…

Reginald Bell se encontrava no centro de


operações do Ministério da Segurança da Ter-
ceira Potência. Todos os fios da vasta rede de
comunicações convergiam para as suas mãos.
Em toda a volta da sua mesa cintilavam as lâm-
padas de aviso, brilhavam as telas de imagem,
zumbiam os videofones. E os comunicados se
sucediam sem cessar.
Todos se referiam à inesperada fuga de Tho-
ra.
John Marshall, o telepata do Exército de
Mutantes, estava em pé ao lado de Bell.
A poucos instantes, havia enviado a sua
mensagem mental para Rhodan e agora acaba-
va de receber a confirmação. Com um gesto
distraído, enxugou o suor da testa.
John Marshall era australiano e tinha desco-
berto relativamente tarde que possuía o dom de
poder ler os pensamentos de terceiros. Por uma
compulsão automática, havia se aliado a Perry
Rhodan, tornando-se um dos seus mais impor-
tantes colaboradores. A causa da sua faculdade
extra-sensorial residia no efeito produzido pela
radiatividade cada vez mais intensa da atmosfe-
45
ra da Terra. O número de mutantes já era bas-
tante grande, mas poucas pessoas sabiam disso.
Mesmo entre os próprios mutantes, havia mui-
tos que levaram anos até descobrirem as suas
capacidades excepcionais.
— Daqui a pouco ele está aí — disse John
Marshall a Bell.
Crest, o arcônida, preferiu se manter um
pouco afastado nos fundos da sala. Seu vulto
alto erguia-se acima das telas de imagem. O ca-
belo branco destacava-se das paredes escuras,
enquanto os olhos albinos emitiam um brilho
avermelhado.
Para ele, o incidente com Thora era mais do
que embaraçoso. É claro que, no íntimo, podia
compreender os motivos que a levaram a fugir.
Mas considerava imperdoável que ela tivesse
agido de maneira tão leviana. Sua atitude irres-
ponsável ameaçava o sucesso do Projeto Terra.
A raça dos arcônidas tinha atingido — e até
atravessado — o ponto culminante da sua evo-
lução. A continuar essa estagnação, essa passi-
vidade, o império dos arcônidas, erigido duran-
te milênios, estaria fadado a desmoronar. Deca-
dentes e prepotentes por natureza, os arcônidas
algum dia se tornariam vítimas do seu próprio
poderio.
Crest havia compreendido isso claramente.
46
Via nos habitantes da Terra os futuros herdeiros
do Grande Império arcônida. Estava plenamen-
te convicto que, se algum dia o império fosse
entregue a esses homens decididos e que não
recuavam diante de nada, estaria em boas
mãos. Ao menos melhor do que nas mãos da-
queles seres que também pertenciam ao impé-
rio colonial dos arcônidas, mas que, apesar da
sua inteligência, não tinham nada em comum
com o homem. Sem dúvida o império estaria
mais bem cuidado nas mãos dos terranos do
que, por exemplo, nas nadadeiras dos habitan-
tes das Plêiades ou nas asas dos pterodátilos do
sistema Rígel. Sem falar, evidentemente, nos
tópsidas.
Crest estava procurando sucessores para os
arcônidas e acreditava tê-los encontrado nos
terranos. Havia submetido Perry Rhodan e Re-
ginald Bell a um treinamento hipnopédico,
transmitindo-lhes todo o saber do universo. Sis-
tematicamente, Crest preparava Rhodan para a
tarefa que teria de cumprir. No fundo do seu
coração, o arcônida denominava o seu plano de
Projeto Terra.
E agora a concretização desse plano corria
perigo por causa da atitude de Thora.
A porta se abriu e Perry Rhodan entrou na
central. Deu um aceno ligeiro a Crest e
47
Marshall, e dirigiu-se a Bell:
— Algo de novo?
— Uma porção de coisas, Rhodan; nem sei
por onde começar.
— Sugiro que comece do início. Mas seja
breve, não temos muito tempo.
— Thora partiu uma hora atrás com o des-
tróier C. Passou pela Lua na direção de Vênus,
sempre emitindo o sinal de identificação. Deve
ter levado o piloto-robô a bordo. Não foi detida.
Se aumentou a velocidade suficientemente, já
deve ter pousado em Vênus.
Rhodan cerrou os olhos.
— Não é difícil entendê-la, Bell. Esperamos
demais para cumprir a nossa promessa. Foi
apenas a ânsia de rever Árcon, que a levou a
fugir.
Crest pigarreou.
— É muito nobre de sua parte, Rhodan,
querer desculpar Thora, mas precisamos enca-
rar a realidade. Sejam quais forem os seus moti-
vos, ela não agiu corretamente; cometeu uma
injustiça. Se ela conseguir penetrar naquela for-
taleza, vai pôr em funcionamento a hiperesta-
ção radiofônica. Como ex-comandante da nos-
sa expedição, pode fazê-lo. Agora, pense o se-
nhor mesmo nas conseqüências que isso pode-
rá acarretar.
48
Rhodan se lembrou, com um arrepio, da in-
vasão dos Deformadores Individuais que havia
conseguido rechaçar. A mensagem radiofônica
que Thora tencionava enviar de Vênus se irradi-
aria sem perda de tempo por todo o universo.
E bastava que fosse captada por alguma raça
estranha e belicosa para que a situação se tor-
nasse extremamente grave. Os seres inteligen-
tes, que casualmente interceptassem essa men-
sagem, tratariam logo de determinar a direção
da sua origem. E qual não seria a sua surpresa
ao constatar que existia um sistema habitado
neste trecho remoto da Via Láctea! E Inevitavel-
mente, a Terra seria descoberta. Uma Terra
despreparada e desunida, pronta para ser colo-
nizada, no sentido interestelar.
As conseqüências eram imprevisíveis.
— Gostaria de saber o que ela fez para en-
ganar as sentinelas-robô — murmurou Rhodan,
pensativo — já tem algum relatório?
— Já! — esbravejou Bell e bateu numa pilha
de anotações. — As sentinelas declararam que
tudo se passou de maneira inteiramente oficial.
Thora se aproximou, falou com o piloto do des-
tróier e depois partiu com ele. Declararam, ain-
da, que não a impediram de decolar porque
não tinham recebido qualquer ordem nesse sen-
tido.
49
— Claro que não tinham essa ordem! —
rosnou Rhodan. — Também, quem teria imagi-
nado que Thora fosse quebrar sua palavra!
Desta vez foi Crest quem a defendeu.
— Ela devia estar supondo que jamais retor-
naria a Árcon, se não agisse dessa maneira.
— Quer me parecer — respondeu Rhodan,
com um ligeiro sorriso — que este não tenha
sido o único motivo da fuga de Thora. Lembre-
se apenas do planeta da vida eterna. O imortal
me concedeu a permissão e me proporcionou
os meios para obter uma prolongação da vida.
Autorizou-me, ainda, a concedê-la a qualquer
terrano que eu julgasse digno. Essa permissão
não incluía os arcônidas, porque essa raça já ti-
nha atingido e ultrapassado o ápice da sua evo-
lução. Isso significa que os terranos ainda se en-
contram no ramo ascendente do desenvolvi-
mento. Thora é orgulhosa e prepotente, Crest.
Não conseguiu suportar essa humilhação e quis
se vingar à maneira dela. Queria me mostrar
que era mais forte do que eu. Só que não tem a
menor noção do que está causando com isto. O
seu desejo de voltar para Árcon é perfeitamente
compreensível, mas a sua estupidez é imperdo-
ável.
— O que vai fazer agora, Rhodan?
Bell ergueu a cabeça; estava interessado na
50
resposta. No mínimo tão interessado quanto
Crest. Rhodan disse, com vagar:
— Vou seguir Thora com o destróier A.
Agora mesmo. Vou levar John Marshall e Son
Okura comigo. Bell, chame um carro. Não pre-
ciso de mais nada. Afinal, o equipamento ne-
cessário encontra-se a bordo.
Crest fez um gesto de desaprovação, mas
depois baixou a mão lentamente e sacudiu a ca-
beça, resignado. Na convivência com Rhodan já
se havia habituado a muita coisa. Esses homens
tomavam as suas decisões com uma rapidez...
inacreditável!
Bell encarou Rhodan.
— E eu? — perguntou, com a cara de uma
criança que não tinha recebido o seu presente
de Natal. — Por acaso vou ficar aqui, chupando
o dedo?
— Não é uma má idéia — respondeu Rho-
dan, como que aceitando a sugestão. — Mas fi-
que tranqüilo; você vai nos seguir com o des-
tróier B, assim que for possível. Infelizmente
não podemos cancelar as solenidades progra-
madas sem mais nem menos; por isso você vai
ter que me substituir. Se não me engano, o co-
ronel Freyt já anunciou o seu discurso na televi-
são. Espero que você esteja suficientemente
preparado.
51
— Eu? Fazer um discurso na televisão?! —
indignou-se Bell, o sangue lhe afluindo ao rosto.
— Para falar sobre quê?
— Ora, sobre o que poderia ser? Questões
de defesa, evidentemente. Você vai falar sobre
as possibilidades de defesa da Terra no caso de
uma invasão interestelar. Um tema bastante
atual. Assim que as solenidades estiverem en-
cerradas, você parte. Está claro, Bell?
Bell acenou sombriamente.
— Está claro, sim.
Empertigou-se na poltrona e fitou firmemen-
te os olhos cor de aço de Rhodan.
— Mas uma coisa eu lhe digo. Se por causa
desse discurso eu chegar tarde para tomar parte
naquela algazarra lá em Vênus, você vai ver o
que é bom!
— Avise Son Okura — disse Rhodan, sem
tomar conhecimento da ameaça de Bell.
— Por que logo Okura? — perguntou Bell,
enquanto estabelecia a ligação com o posto de
comando do Exército de Mutantes. — Qual a
utilidade dele nessa missão?
— Ele é o nosso perceptor de freqüências,
como você sabe. Os olhos dele são capazes de
reparar todas as ondas invisíveis e, em especial,
os raios infravermelhos. Esta faculdade torna
Okura um auxiliar indispensável na escuridão.
52
Lembre-se que a noite em Vênus dura cinco
dias terrestres. Além disso, Okura tem o raro
dom de poder ver radiação de calor. Com isso,
consegue reconhecer a impressão calorífica de
um objeto que já foi removido há horas. Não há
melhor colaborador nessa aventura que Son
Okura.
Bell transmitiu suas instruções pelo rádio e
depois acenou.
— Sim, é verdade. Mas o fraco dele são as
pernas. É uma negação para andar, quanto
mais para correr. Aí, um teleportador seria me-
lhor.
— Esse vai com você. Nos destróieres só há
lugar para três homens. Até o piloto-robô eu
não vou poder levar.
— Por que você não pega uma nave maior?
Rhodan refletiu durante um instante.
— Você está me dando uma boa idéia. Não
vai me seguir com o outro destróier e, sim, com
uma nave auxiliar. Pode enchê-la de mutantes.
Mas estou quase certo que não serão necessá-
rios — Rhodan sorriu. — Até que você chegue,
já acabou tudo.
Bell respirou com dificuldade, à cata de uma
resposta apropriada. Mas ao olhar para Crest
pensou duas vezes. Lembrou-se, que o arcônida
nunca tinha achado muita graça nas suas pilhé-
53
rias meio esquisitas.
Portanto, desistiu de dar uma resposta. Limi-
tou-se a encolher os ombros e a dizer, sarcasti-
camente: — Vamos ver.
***

Enquanto Bell discursava diante das câmaras


de televisão, o destróier A estava se projetando
espaço adentro. O curso tinha sido programa-
do. Comandada pelo piloto automático, a nave
atingiria em breve a velocidade da luz e depois
seria novamente desacelerada.
Rhodan estava sentado na poltrona do pilo-
to. O assento à sua direita era ocupado por
Marshall, enquanto Okura, o japonês franzino,
se encolhia na poltrona à esquerda. Ignorando
a existência de lentes de contato e causando sé-
rio desgosto aos inovadores fanáticos, o japo-
nês usava óculos, lentes grossas montadas
numa armação fina. Era uma verdadeira ironia
do destino: justamente o homem que conseguia
ver todas as ondas luminosas invisíveis tinha
que recorrer a óculos para poder reconhecer os
objetos iluminados pela luz normal. Mas a visão
de Okura realmente não era das melhores. Es-
tava trabalhando como opticista numa fábrica
de máquinas fotográficas, quando os caçadores
de talentos de Bell o descobriram, convidando-o
54
a se incorporar ao Exército de Mutantes de
Rhodan.
— Será que Thora vai pousar junto à esta-
ção? — perguntou Marshall.
— Suponho que sim — respondeu Rhodan,
sério. — O objetivo dela é inteirar Árcon da
existência da Terra, para que venham apanhá-
la. O transmissor se encontra na estação; por-
tanto, ela vai tentar pousar lá.
— Quando me tornei mutante, fui treinado
aqui em Vênus — disse Okura, com aquele seu
jeito tranqüilo e discreto. — É uma droga de lu-
gar, se me permitem a expressão.
— Não temos opção, Okura — disse Rho-
dan, acenando. — Por outro lado, creio que
não vamos ter muita ocasião de nos expor aos
perigos dessa selva. Assim que pousarmos junto
da estação, vou dar a minha contra-ordem ao
cérebro positrônico. Se Thora ainda não che-
gou ao transmissor, pode ser detida.
— Só faço votos que não cheguemos tarde
demais — murmurou Marshall e cerrou os den-
tes. — Nem é bom pensar no que poderia
acontecer.
Rhodan manteve o olhar fixo em frente,
onde Vênus começava a se delinear como um
disco luminoso.
— Tem razão — concordou — é inimaginá-
55
vel o que poderia acontecer.
Depois silenciaram.
E tudo transcorreu rapidamente. Vênus tor-
nou-se cada vez maior e depois o destróier pe-
netrou na atmosfera. Determinaram a posição
da estação e constataram que a noite venusiana
estava para cair. Em breve ficaria escuro... du-
rante cinco longos dias.
No momento, isso não causava maiores pre-
ocupações, mas, mesmo assim, Rhodan se sen-
tiu aliviado por ter trazido Okura. Tinha sido
uma decisão previdente, que mais tarde pagaria
juros.
Rhodan consultou a marcação dos instru-
mentos.
— Mil e quinhentos quilômetros a oeste. Va-
mos baixar mais para poder ver alguma coisa.
Se ao menos eu soubesse onde Thora se en-
contra nesse momento!
A selva deslizou rapidamente por baixo da
nave em direção a leste, onde já estava escure-
cendo. Sobrevoaram um pequeno mar pré-his-
tórico, depois uma cordilheira bastante alta e
novamente selvas e pântanos. Aos poucos, tor-
nava-se cada vez mais difícil distinguir a paisa-
gem que passava por baixo deles.
— Faltam oitocentos quilômetros. Bem lon-
ge, à sua frente, o horizonte ficou difuso e se
56
mesclou à camada de nuvens. Por trás dessa
massa leitosa pairava uma mancha vermelha, o
sol poente. Somente daqui a cinco dias voltaria
a nascer.
— Só mais seiscentos quilômetros — disse
Rhodan. — Dentro de cinco minutos atingimos
a zona de bloqueio.
Marshall acenou, automaticamente.
— Também não temos o que recear.
Foi nisso que Marshall se enganou. Tanto,
quanto Thora antes dele.
Mais uma vez a instalação eletrônica de vigi-
lância da estação dos arcônidas entrou em silen-
cioso funcionamento. Mais uma vez os raios ta-
teadores se lançaram sob o recém-chegado e o
examinaram. A ultimação de fornecer o sinal de
identificação foi ignorada. A intimação foi repe-
tida, mas o destróier A não respondeu.
Rhodan tinha esquecido que as instalações
codificadoras dos três destróieres ainda não ha-
viam sido preparadas positronicamente. Que
isso lhe tivesse escapado na pressa de seguir
Thora, era compreensível; mas era totalmente
imperdoável, se consideradas as conseqüências,
mesmo levando em conta que tinha sido o mes-
mo fato que impedira Thora de alcançar o seu
alvo.
Rhodan não conseguiu realizar uma única
57
manobra de esquiva, pois ficou ofuscado pelo
raio desintegrador que, subitamente, rompeu a
escuridão. Um forte abalo fez estremecer o cor-
po metálico e arrancou Rhodan do assento. O
horizonte girou diante da vigia e a nave come-
çou a tombar.
Felizmente o raio só tinha atingido a popa,
destruindo o sistema propulsor. A proa e a cen-
tral de comando continuavam intactas.
Num gesto automático, o punho de Rhodan
golpeou o botão de dispositivo de ejeção.
Ao contrário do que havia ocorrido com o
destróier de Thora, o dispositivo funcionou e
lançou a central de comando completa para
fora da nave. Graças aos protetores antigravita-
cionais embutidos, a cabina se manteve em po-
sição horizontal. Os jatos de emergência entra-
ram imediatamente em ação, fazendo-a deslizar
para o lado, afastando-a da zona de bloqueio.
Por isso não foi alvo de novo disparo.
Muito lentamente o teto verde da selva se
aproximou.
Vislumbraram a cintilação traiçoeira das po-
ças pantanosas. Um rasgo na parede traseira
permitiu que o repentino silêncio na cabina fos-
se rompido pelo bramido abafado de um sáurio.
Lá embaixo, no pântano, divisaram indistinta-
mente algo que se movia, lerdo e pesadão.
58
Okura estremeceu.
— Essas bestas — gemeu — já farejaram a
sua presa.
— Suponho — objetou Marshall — que só
está falando simbolicamente!
O japonês não deu resposta. Conhecia o
planeta Vênus.
O agregado de emergência da central de co-
mando, agora separada da nave, fez os peque-
nos reatores arcônidas trabalharem sem cessar.
As torrentes de corpúsculos que produziam
eram suficientes para reduzir drasticamente a
velocidade da queda. A cabina baixava muito
mais devagar do que se estivesse presa a um
pára-quedas.
Olhando para o lado, Rhodan viu algo que
despencava, cambaleante. Era o resto do seu
destróier, que não teve a mesma boa sorte de
cair para fora da zona de bloqueio. Por isso, re-
cebeu um novo disparo, que o atingiu no meio.
Num abrir e fechar de olhos a matéria foi trans-
formada em gás.
A cabina continuou a descer lentamente.
— Tomara que a gente não caia no meio de
um desses lagos! — murmurou Okura preocu-
pado. Devia ter um verdadeiro pavor dos sáu-
rios.
— Essa cabina foi feita para flutuar — tran-
59
qüilizou Rhodan e lançou um olhar crítico ao
redor. — Só espero que não falte alguma arma
naquele armário. O destróier ainda não estava
pronto para entrar em operação. A prova disso
é que fomos derrubados. A instalação codifica-
dora estava incompleta. Se o nosso arsenal
também não estiver completo...
— E também não dispomos de um transmis-
sor.
— Só temos os rádios nas pulseiras de múlti-
pla utilidade. Mas são fracos demais para po-
dermos alcançar a Terra.
Encontravam-se agora a uns cem metros de
altura e já conseguiam divisar o presumível local
do pouso. A paisagem não apresentava aspec-
tos muito contrastantes. Não viam nenhum da-
queles traiçoeiros lagos pantanosos, somente o
teto alto e irregular daquela floresta virginal.
— Não pode nos acontecer grande coisa, ao
menos durante o pouso — constatou Rhodan,
tranqüilizando os companheiros. — Agora, o
que vai acontecer depois...
Deixou em aberto as diversas possibilidades.
As copas mais altas estavam chegando cada
vez mais perto. Rhodan sabia muito bem que,
quando as atingissem, ainda poderiam estar
bem longe do chão propriamente dito. Os tron-
cos dessas enormes árvores primitivas não raro
60
apresentavam um diâmetro de quinze metros e
alturas até cento e cinqüenta metros, eram ver-
dadeiros gigantes. Entre elas proliferavam os
parasitas da selva tropical, também sensivel-
mente maiores que seus congêneres na Terra.
O chão da cabina tocou os primeiros galhos
e afundou lentamente no leito relativamente
fofo das copas. Os reatores ainda estavam fun-
cionando, reduzindo a velocidade da queda.
E depois a cabina parou de baixar.
Jazia, um pouco adernada, no meio daquele
mar verde onde havia afundado. O crepúsculo
começou a baixar, tingindo as nuvens eternas
de negro. O crepúsculo no oeste reluzia como
se um imenso incêndio estivesse consumindo
este mundo.
Rhodan resolveu não esperar mais e desli-
gou os agregados.
Bruscamente, a cabina recobrou o seu peso
normal, carregando os galhos nos quais se
apoiava. Alguns não resistiram à súbita sobre-
carga, e quebraram. Os outros cederam e a ca-
bina começou a escorregar.
Antes que Rhodan pudesse tomar qualquer
contramedida, a cabina inteira tombou para o
fundo, capotando e se chocando violentamente
por várias vezes contra troncos e galhos. Final-
mente, após longos segundos, a queda foi sus-
61
tada por alguns galhos bem mais grossos que
resistiram ao impacto. Surpreendentemente, a
central de comando havia chegado ao repouso
em posição quase normal.
Somente agora tinham pousado, de fato, em
Vênus.
Quando, minutos mais tarde, John Marshall
voltou a si e sentiu a forte dor na testa, come-
çou a desconfiar que o fim da perseguição a
Thora estava mais longe do que nunca. Ergueu-
se e viu que Okura estava inclinado sobre Rho-
dan, examinando a sua cabeça. Captou os pen-
samentos do japonês e ficou sabendo, o que se
havia passado.
Okura se virou.
— Pelo visto se machucou bastante.
Bateu em cheio com o rosto. Está todo en-
sangüentado. Só espero que não seja grave...
Marshall se recuperou rapidamente. Ainda li-
geiramente zonzo, dirigiu-se a Okura, apoi-
ando-se na parede. Rhodan estava esticado no
chão da cabina, respirando fracamente. A pan-
cada devia ter sido violenta.
O japonês cambaleou ligeiramente quando
se levantou. O chão estava inclinado e era pre-
ciso se habituar a este fato. Okura encontrou li-
gaduras e medicamentos no pequeno armário
embutido da farmácia de bordo. Aplicaram uma
62
injeção revigorante a Rhodan e conseguiram
fazê-lo ingerir um remédio contra febre. Quan-
do começou a respirar mais profundamente, os
dois homens juntaram as poltronas e colocaram
Rhodan sobre esta cama improvisada, entre-
gando-o ao sono benéfico.
Okura ainda medicou o ferimento de
Marshall, e só depois tratou de si mesmo.
— É claro que eu fui atingido nas pernas —
disse ele, com resignação — é de amargar.
Logo no meu ponto fraco. Sempre caminhei
com dificuldade, quanto mais agora. Receio que
vou ser um fardo durante uma marcha através
da selva.
Marshall empalideceu.
— Não pode estar falando sério! Acredita
mesmo que precisamos descer naquele inferno
lá embaixo? Cheio de sáurios e aranhas gigan-
tes e sei lá o que mais vive nessa mata? Não,
nem dez cavalos vão me arrancar desta árvore.
Aqui estamos relativamente seguros.
— Concordo — disse o japonês com um
sorriso afável. — Na penitenciária também se
encontra uma segurança relativa; só que lá ao
menos não se perde tempo e nem se morre de
fome.
John Marshall não soube o que responder.
Desviou o olhar de Rhodan e olhou através
63
da vigia para aquele crepúsculo difuso e esver-
deado.
Podia jurar que uma sombra enorme estava
se deslocando lá embaixo. Um bramido prolon-
gado rompeu o silêncio da selva.
Apesar do calor Marshall começou a sentir
um frio gélido.

***

Quando, horas mais tarde, Perry Rhodan se


mirou no espelho, levou um susto.
Um corte profundo, que ainda sangrava,
atravessava-lhe a fronte de lado a lado. Sem
aquele organoplasma especial dos arcônidas le-
varia semanas para cicatrizar. O olho direito,
fortemente inchado, desfigurava-lhe as feições,
a ponto de torná-lo quase irreconhecível.
Recostou-se com um suspiro e deixou que o
japonês lhe enfaixasse novamente a testa.
— Meus melhores amigos não me reconhe-
ceriam — murmurou. — Sei que Bell vai ter um
motivo para ficar me gozando.
— Vou quebrar os ossos dele todinhos se ele
se atrever a fazer isso! — ameaçou Marshall.
Rhodan deu um sorriso fraco.
— Duvido que o consiga, pois estão por de-
mais protegidos por aquelas grossas camadas
64
de banha.
Rhodan esperou que a bandagem fosse
completada e depois acrescentou: — Qual é a
nossa situação, e o que vamos fazer?
Son Okura retrocedeu meio passo e subme-
teu sua obra a um exame crítico.
— O seu ferimento não é grave. Mas o fato
é que estamos presos no meio desta selva, sem
qualquer possibilidade de comunicação com a
Terra. Perdemos a nave espacial e, com isso,
qualquer meio de estabelecer contato com a cú-
pula energética da fortaleza venusiana. Portan-
to, não podemos contar com o auxílio de nin-
guém. Nossa única chance consiste em alcan-
çarmos a base, ou esperar que Bell nos encon-
tre por uma mera casualidade.
— Mas temos os minitransmissores — ob-
servou Marshall.
— Não vão nos adiantar grande coisa, por-
que seu alcance é muito limitado. Quando a
central foi ejetada da nave, ficamos separados
dos aparelhos radiofônicos. Que isso nos sirva
de lição. Daqui por diante um transmissor vai
fazer parte do equipamento obrigatório de to-
das as cabinas de salvamento ejetáveis. Quanto
a Bell, é claro que só podemos entrar em con-
tato com ele se a sua nave passar ao alcance
dos nossos minitransmissores. Mas, esperar que
65
isso aconteça, é confiar demais no acaso. Não
seria uma temeridade ficar aguardando que
ocorra o improvável, enquanto Thora mobiliza
todos os horrores do universo? Rhodan acenou,
concordando.
— Okura tem razão, Marshall. Só há uma al-
ternativa: é preciso chegar antes de Thora e im-
pedi-la de penetrar na fortaleza. Mas não vejo
motivo algum para crer que ela tenha tido mais
sorte que nós. Afinal, o codificador da nave
dela também não estava ajustado. Resta-nos es-
perar que ela tenha sobrevivido à queda.
Marshall rosnou, irado:
— Por mim, ela pode ter quebrado o pesco-
ço.
— Eu não diria uma coisa dessas — respon-
deu Rhodan, num ligeiro tom de censura. —
Não se deve desejar mal a ninguém, apenas im-
pedi-lo de cometer algum mal. É uma ilusão
pensar que a violência possa ser combatida. E
tem mais: Thora pode quebrar o pescoço que
isso não nos ajuda em nada. Continuamos pre-
sos aqui do mesmo jeito.
— O sentido das minhas palavras não era
bem esse — disse Marshall, tentando atenuar
sua expressão irrefletida. — O que eu quis dizer
é que eu tenho uma raiva dos diabos dessa mu-
lher extraterrena.
66
Com um sorriso suave, Okura observou:
— Mas só da extraterrena, não é?
Rhodan se levantou algo vacilante e se apoi-
ou na parede. Ainda estava meio tonto daquele
longo desmaio. Sob o olhar atento dos dois
companheiros, ensaiou os primeiros passos
cautelosos e se dirigiu à vigia. Lá fora reinava o
negrume da noite venusiana. Mas, mesmo se
fosse dia claro, Rhodan não poderia agora ter
pensado em sair da cabina. Ainda se sentia fra-
co demais para enfrentar a estafante marcha
através desse mundo primitivo, sem falar nas
ameaças desconhecidas que ocultava.
Por outro lado, quanto mais tempo perdesse
em esperar, tanto maior se tornava o perigo de
um colapso total de tudo o que havia criado até
agora. Poderia ser substituído pelo coronel
Freyt, certo; mas bastava que se tornasse do
domínio público que Rhodan, o chefe da Ter-
ceira Potência, não tinha regressado de um vôo
a Vênus e que era muito provável que os sáu-
rios o haviam devorado, para que... bem as
conseqüências eram inimagináveis. O naciona-
lismo latente de alguns políticos ambiciosos vol-
taria à tona e salvaria as pátrias, transformando
os futuros terranos novamente em homens. E
isto era exatamente o pior que lhes poderia
acontecer. Recairiam no estágio das concep-
67
ções nacionalistas bitoladas, tornando-se presa
fácil para qualquer invasor do universo.
Essa conclusão só admitia uma única deci-
são.
E Rhodan a externou:
— Precisamos procurar chegar à base. Pri-
meiro, vamos dormir durante mais algumas ho-
ras, para recuperar as forças, depois partimos.
Trajes de exploradores nós não temos, tampou-
co mantimentos suficientes. Quer verificar o ar-
mamento?
Okura abriu o armário embutido. Bem arru-
madinhos nos suportes, lá estavam três jeitosos
irradiadores de impulsos. E mais nada.
— Ao menos alguma coisa — rosnou
Marshall. — Matar sáurios com essas armas é
até covardia.
Para Rhodan isto não parecia ser o proble-
ma principal.
— Só dispomos disso? Nada de pistolas au-
tomáticas ou espingardas?
Olhou ao redor.
— E os víveres e a água?
A expressão de Okura era de pura lamenta-
ção.
— Temos alguns concentrados e uns poucos
litros de água. Talvez o suficiente para dois ou
três dias. Mas podemos viver da caça.
68
— Engano seu! — Rhodan sacudiu a arma.
— O raio energético de uma pistola de impul-
sos positrônicos queima e gaseifica instantanea-
mente toda e qualquer matéria. Mesmo de um
sáurio não sobraria praticamente nada se o dis-
paro for um pouco excessivo.
— Então — disse Marshall — basta prestar
atenção no disparo. É só matar o bicho e sus-
pender fogo. Além disso, como sabem, nunca
deixo de andar sem o meu velho e fiel revólver
— apontou para o bolso. — Pode ser obsoleto,
mas não me desfaço dele, por mais que Bell me
goze.
— É o que eu vou fazer agora — resmungou
Rhodan. — Não vai me dizer que pretende der-
rubar um sáurio com este brinquedo?
— Não estou pensando em sáurios. Afinal,
existem também animais menores em Vênus.
Talvez sejam até mais saborosos.
Okura acenou, satisfeito.
— Marshall não deixa de ter razão. Eu tam-
bém acredito que vamos conseguir carne. Tal-
vez encontremos até frutas. Lembro-me que,
durante o nosso período de instruções aqui em
Vênus, serviram-nos frutas em quantidade. Te-
nho certeza de que vou reconhecê-las, se existi-
rem por aí. Mas eu estou mais preocupado com
a água. Afinal, não podemos beber essa porca-
69
ria dos pântanos. Faço idéia de como deve es-
tar pululando de bactérias!
— Existe uma substância na farmácia de
bordo — disse Rhodan — que substitui a fervu-
ra. É só jogar o pozinho na água e as bactérias
desaparecem. Depois, é só filtrá-la para retirar
as eventuais impurezas tóxicas. Esse processo
substitui até a destilação. Agora, se for preciso,
nada nos impede de ferver a água. Lenha existe
aos montes no chão da floresta.
— É, lenha molhada ou úmida! Não vai nos
adiantar grande coisa.
Okura meteu a mão no armário da despensa
e exibiu um pequeno pacote.
— Quem é que está falando o tempo todo
em lenha? Veja aqui, Marshall. Sabe o que é
isso? Argila energética! Rende cem vezes mais
que álcool. Com esse negócio aqui podemos
preparar três refeições diárias durante três me-
ses. Faltam somente os bifes de sáurios.
Marshall torceu o nariz.
— Nunca na vida comi carne de sáurio! —
lamentou-se.
— Então está mais do que na hora de come-
çar — constatou Rhodan e sentou-se novamen-
te no leito improvisado. — Arrumem tudo que
possa ser de utilidade e depois vão dormir. Não
sei quando vamos ter nova oportunidade para
70
dormir em paz.
Fechou os olhos e, pouco depois, a respira-
ção regular mostrou que Perry Rhodan estava
decidido a recuperar as forças para enfrentar a
aventura que se avizinhava.
Uma aventura que, de um segundo para o
outro, o havia feito regredir da era da mais mo-
derna tecnologia para a pré-história.

***

E lá estavam eles, escorados nos galhos


grossos de uma enorme árvore, cinqüenta me-
tros acima do solo traiçoeiro da selva. Cipós da
grossura de um braço pendiam de todos os la-
dos, e facilitariam a descida.
Rhodan lançou um último olhar para a segu-
rança da cabina, que agora abandonariam para
sempre. Segundo sua estimativa, a base arcôni-
da com a guarnição de robôs devia se situar uns
quinhentos quilômetros para oeste. Uma distân-
cia que, devido à fauna e flora pré-históricas, se
constituía num obstáculo praticamente intrans-
ponível.
Verificou se o irradiador de impulsos estava
bem preso ao cinto e pendurou no espaço o sa-
quinho que continha a sua ração de água e ví-
veres concentrados. Depois, escolheu o galho
71
mais apropriado para seguir Marshall, que já
havia iniciado a descida. Okura forçava a vista,
olhando para baixo.
— Estamos com sorte. Há uma pequena cla-
reira. Nenhum sinal de animais.
O próprio Rhodan sempre voltava a ficar
fascinado quando tinha ensejo de constatar a
facilidade com que esse mutante conseguia en-
xergar na mais completa escuridão. E agora
mal se via um palmo diante do nariz! Em algum
lugar, longe daqui, um vulcão devia ter entrado
em erupção; talvez na cordilheira mais próxima.
Uma débil luminosidade avermelhada penetrava
na floresta, emprestando um ligeiro tom rosado
a tudo que se via. E isto, na realidade, era prati-
camente nada.
— Podemos prosseguir daqui — gritou
Marshall, lá de baixo. — Esses cipós formam
uma verdadeira escada de cordas.
Rhodan tateou com os pés, à procura de um
apoio. Encontrou-o e desceu lentamente. Teve
a impressão que aqui em cima, nas árvores, tal-
vez pudessem avançar mais rapidamente que
no chão enganoso da selva. Mas somente a
prática confirmaria isto. Talvez pudessem mu-
dar de método à luz do dia.
Levaram três horas para atingir o chão fir-
me.
72
Okura consultou a bússola de pulso.
— Temos que prosseguir nessa direção, se
não houver algum obstáculo. Pelo que eu consi-
go ver, não há pântanos por aqui. E o chão
está relativamente seco.
Rhodan sentia uma forte dor de cabeça,
conseqüência do seu ferimento.
“Mesmo um imortal”, pensou amargurado,
“não está livre de sofrer de enxaqueca.”
Enquanto caminhava atrás de Okura, os
acontecimentos no planeta da vida eterna se
desenrolavam mais uma vez em sua mente. Ha-
viam seguido o rastro que os conduziu, através
da galáxia e do tempo, até Peregrino, o planeta
solitário. E lá vivia aquele ser imortal do passa-
do, que revelou a ele, Rhodan, parte do segre-
do da conservação permanente das células. E
ainda lhe proporcionou a oportunidade de se
submeter ao fisiotron, a ducha celular, que sus-
tava o processo de envelhecimento por um cer-
to período — para ser mais preciso, durante
sessenta e dois anos, na contagem de tempo
terrestre. E aquele ser determinou que apenas
os terranos poderiam se utilizar da ducha celu-
lar, se Rhodan assim o permitisse.
Além de Rhodan, somente Bell havia sido
contemplado com uma prolongação da vida.
Daqui a sessenta e dois anos Rhodan procu-
73
raria de novo aquele ser. Com o auxílio do
grande cérebro positrônico, calcularia as coor-
denadas espaciais exatas daquele planeta erran-
te e o revisitaria. Mas seis decênios constituíam
um período de tempo bastante longo. E quanta
coisa poderia acontecer até lá...
De repente Okura parou. Forçou a vista
como se perfurasse a escuridão ambiente, e es-
ticou a mão para trás, à procura de Rhodan.
Marshall havia se chocado contra Rhodan e su-
focou uma imprecação.
— O que houve? — Okura sussurrou:
— Algo está se locomovendo lá em frente.
Uma sombra grande. Não consigo distinguir
exatamente o que é. Ouvir, não se ouve nada.
— Então também não é um sáurio, porque
esses a gente ouve a quilômetros de distância.
Rhodan silenciava, os ouvidos aguçados. Ins-
tintivamente sua mão se fechou sobre a coro-
nha do irradiador.
O japonês suspirou aliviado.
— Talvez seja um outro animal qualquer. De
qualquer maneira, não enxerga tão bem como
eu, porque ainda não nos reparou. Está se des-
viando para a direita, penetrando na floresta. A
julgar pelos contornos, tem o tamanho e o as-
pecto de um gorila. Talvez já existam macacos
em Vênus.
74
— Pelo amor de Deus! — gemeu Marshall.
Rhodan se dirigiu a ele.
— Por quê? Tem algo contra os macacos?
— Não é bem isso, mas, se realmente existi-
rem macacos em Vênus, daqui a cem mil anos
nossos colonos vão ter aborrecimentos sem fim
com os venusianos... ao menos na minha opini-
ão
Rhodan deu uma risada quase inaudível.
— Queria ter as suas preocupações,
Marshall! Não tem outras, por acaso?
Marshall rosnou algo ininteligível, mas não
deu resposta. Okura reiniciou a caminhada, se-
guido de perto por Rhodan, que protegia nova-
mente o rosto com as mãos.
A noite ainda duraria quatro dias terrestres
e, se não sofressem atraso por algum motivo
inesperado, talvez pudessem percorrer uns cem
quilômetros até o nascer do sol.
Uma perspectiva deveras auspiciosa.
Cinco horas mais tarde Rhodan esticou a
mão e agarrou o japonês pelo ombro.
— Precisamos descansar, Okura. Se conti-
nuarmos a esbanjar nossas forças desse jeito,
nunca vamos chegar à base. Assim que desco-
brir um lugar apropriado, vamos repousar por
algumas horas. Talvez encontremos uma clarei-
ra.
75
— Posso fazer uma sugestão? — o japonês
parou. — Que tal se subíssemos novamente
numa árvore? Tenho certeza que, alguns me-
tros acima do solo, encontramos um galho sufi-
cientemente largo para nos acomodar a todos.
Aqui embaixo eu teria que ficar de olhos bem
abertos o tempo todo, pois a selva deve estar
cheia de perigos ocultos. A meu ver, as árvores
oferecem uma segurança relativamente maior.
— O que me causa espanto — admirou-se
Marshall — é que ainda não encontramos terre-
no pantanoso pela frente. Tivemos uma sorte
incrível.
— Também só percorremos cinco quilôme-
tros — observou Rhodan.
Okura encontrou uma árvore que lhe pare-
cia adequada e foi o primeiro a subir. Dez me-
tros acima do solo encontraram um galho largo,
que se estendia horizontalmente através de um
emaranhado de cipós. O conjunto formava uma
espécie de caverna, na qual os homens se senti-
ram imediatamente seguros.
Marshall assumiu a função de cozinheiro.
Quando os concentrados começaram a se
dissolver na água e o fogo incolor flamejou de-
baixo da panela, os três homens até que se sen-
tiram bastante confortáveis.
— Estou chegando à conclusão, de que a
76
coisa não está tão ruim assim — observou o
australiano alegremente, mexendo a sopa. —
Já pensaram como vai ser quando for dia claro?
Aí mesmo é que vamos marchar que nem uns
andarilhos!
Ninguém viu a expressão cética de Rho-
dan... Okura talvez, mas Marshall nunca. Rom-
pendo o silêncio que se seguiu, Okura disse:
— Só que ainda vai passar um bocado de
tempo até o dia claro chegar!
Sem proferir palavra, Marshall continuou a
mexer na sua panela.

Meio oculto por véus de nuvens, o sol de


Vênus preparava o seu ocaso. Aquela mancha
difusa atrás da camada de bruma parecia perder
o poder luminoso e por isso tornou-se mais co-
lorida. Os raios de luz, refratados pelas nuvens
e névoas, produziram no céu monótono de Vê-
nus um espetáculo que brilhava em todas as co-
res do espectro. Aos poucos, o vermelho come-
çou a predominar, mergulhando este mundo
primitivo num tom rosado, e o inferno verde
parecia querer se transformar num paraíso de
cores estonteantes. Até mesmo as superfícies
pantanosas, de brilho tão traiçoeiro, se apre-
77
sentavam agora como a palheta furta-cor de um
pintor divino que, invisível, zelava pela sua obra
em constante modificação.
O mundo de Vênus suspendia a respiração
quando a longa noite se iniciava. Era como a
rendição da guarda. Os enormes sáurios regres-
savam das florestas e se ocultavam na seguran-
ça do seu antigo elemento. Às dezenas, rola-
vam por cima dos colmos altos do junco, trans-
formando as cores variadas do pântano num
turbulento espectro gigante, que fazia lembrar
galáxias coloridas, percorrendo trajetórias infin-
dáveis através do nada, rodando eternamente e
procurando em vão por um destino.
À distância, reluziam as rochas desnudas das
cordilheiras. Pareciam cobertas por fogo líqui-
do. Entre as rochas cintilavam, prateadas, as
quedas d’água. Quando se pulverizavam lá em-
baixo, no teto da mata virgem, era como se um
arco-íris enorme estivesse se alastrando, na ten-
tativa de encobrir o mundo com suas cores
transparentes.
Enquanto os sáurios iniciavam o longo re-
pouso noturno, os seres vivos da escuridão co-
meçaram a acordar. O curto intervalo da transi-
ção chegou bruscamente ao fim, quando o sol
desapareceu no horizonte mormacento e can-
dente.
78
Em vôo silencioso, mas grasnando estriden-
temente, enormes aves lançavam-se através do
crepúsculo, sobre pântanos e florestas, à cata
de presa. Gigantescas borboletas noturnas cam-
baleavam em direção ao sol poente, tentando
em vão alcançá-lo.
Na borda do platô, no alto daquelas rochas
que se erguiam como uma ilha do mar verde da
floresta, alguns homens observavam, emociona-
dos, o soberbo espetáculo da natureza. Não
constituía novidade para eles, mas invariavel-
mente ficavam enfeitiçados toda vez que o con-
templavam.
Tempos atrás, haviam trajado uma farda.
Mas agora esses uniformes estavam tão esfarra-
pados que ninguém mais os podia reconhecer.
Parecia que apenas os cintos evitavam que es-
ses farrapos despencassem de vez. As calças es-
tavam enfiadas em botas dilaceradas, e alguns
dos homens tinham os ombros envoltos em pe-
les grosseiramente trabalhadas. Porque, com o
sol poente, a temperatura caía sensivelmente.
Os cabelos eram longos, assim como as bar-
bas emaranhadas. Mas, apesar do aspecto es-
tranho, eram indiscutivelmente homens da Ter-
ra longínqua.
Um deles, um sujeito troncudo e forte, de
cara larga, protegia a vista com a mão.
79
— É mais bonito que na Terra — disse, num
idioma que soava como russo. — Talvez foi isso
que levou os outros a resolverem ficar aqui para
sempre.
— E bem provável, general Tomisenkow.
Não há outra explicação. Perderam o juízo.
O ex-comandante da expedição do Bloco
Oriental, que Rhodan havia desbaratado, sacu-
diu a cabeça com veemência.
— Não creio que a atitude deles possa ser
explicada de maneira tão simples. Deve haver
outras razões mais complicadas. Vênus é um
mundo selvagem, mas é um mundo livre...
— Por acaso nós não somos livres também?
— perguntou um dos homens, meio na esprei-
ta.
— Liberdade, e liberdade... será que não
existem diferenças? A liberdade não é um con-
ceito da relatividade e do dogma político? A li-
berdade pode ser imposta, mas também se
pode conquistá-la.
— Coisas estranhas, essas que o senhor dis-
se, general! — comentou um outro homem,
pensativo, e olhou para a vasta planície que se
estendia em direção ao oeste. Lá também se er-
guiam pequenas ilhas rochosas, e na luz crepus-
cular via-se que de uma delas subia uma coluna
de fumaça. — Não foram justamente os rebel-
80
des que disseram a mesma coisa?
— Foram eles, sim. Mas não se limitaram a
palavras; agiram. Tanto assim que se separa-
ram de nós, porque não queriam regressar à
pátria depois do fracasso da nossa invasão. Tí-
nhamos ordens de conquistar a base venusiana
de Rhodan. Não conseguimos. Rhodan destruiu
nossas naves e nos abandonou indefesos nesta
selva. Mas ele sabia que o homem pode sobre-
viver aqui. Os rebeldes também sabem disso.
Todo seu plano está baseado nesse fato. E é
nesse ponto que reside a diferença entre nós e
eles. Nós queremos retornar à Terra com um
único intuito: preparar uma nova invasão. Mas
os rebeldes decidiram permanecer em Vênus
para colonizá-lo. Só que, com os meios escas-
sos de que dispõem, estão fadados a um fracas-
so. Mas parece que isso eles não entendem.
— Pode ser, mas o fato é que já destacaram
a sua gleba e iniciaram o cultivo do solo. Vênus
é muito fértil. Tipo da terra ideal para colonos.
— O ponto de vista dos rebeldes é tão válido
como qualquer outro — admitiu o general,
meio a contragosto. — Mas, apesar disso, con-
tinuam sendo amotinados que se recusam a
cumprir ordens. E amotinados, a gente costuma
enforcar!
O soldado maltrapilho e embrutecido ao
81
lado de Tomisenkow levou a mão instintiva-
mente ao pescoço e se certificou que sua cabe-
ça ainda estava firmemente no lugar previsto
pela natureza. Sua mão direita estava fechada
em torno da coronha da arma energética que
trazia no cinto. Cerrou os olhos ligeiramente e
olhou na direção do acampamento dos rebel-
des. Ainda havia claridade suficiente para poder
reconhecer todos os detalhes através de um
bom binóculo. E lá também havia sentinelas,
que, por sua vez, estavam olhando para o cam-
po oposto. Eram os únicos homens em Vênus,
pertenciam ao mesmo bloco de potências... e
apesar disso eram inimigos mortais, e se com-
batiam com todos os meios de que dispunham.
O general Tomisenkow estava se virando
para voltar à sua cabana quando um ofuscante
raio luminoso rompeu o crepúsculo. Era como
se um relâmpago tivesse atingido o meio do
platô, no qual as tropas de invasão, derrotadas
e náufragas, haviam se estabelecido. Trovoadas
não eram nenhuma raridade em Vênus. Mas a
época não era essa.
Com um estrondo avassalador, a onda de
choques varreu por cima dos homens derruban-
do alguns deles. Tomisenkow conseguiu se
agarrar a uma árvore. Com olhos arregalados
fitou o céu pálido, tentando reconhecer o ponto
82
incandescente que caía lentamente, como um
meteoro gigante.
Por todos os fantasmas do inferno... aquilo
era uma nave espacial!
Mas não podia ser uma nave de Rhodan.
Pois aquelas diabólicas armas defensivas da
fortaleza extraterrena tinham-na atacado e der-
rubado.
Seria uma nave de suprimentos da pátria?
Claro que era! Não havia outra explicação.
Antes que conseguisse tomar uma resolução,
um novo raio rompeu a escuridão. Porém,
aquela nave que estava caindo não foi mais
atingida; desapareceu atrás das copas das árvo-
res altas.
Quando a nova onda de choques tinha pas-
sado por cima dele, Tomisenkow voltou corren-
do.
— Sargento Rabov, pegue alguns dos seus
homens e tente encontrar aquela nave derruba-
da. Pode ser que não haja sobreviventes, mas
mantimentos e armas são sempre bem-vindos.
Ande ligeiro, antes que escureça de vez.
O sargento, um sujeito pequeno, de cabelos
escuros e olhos ágeis, acenou vivamente.
— Vou levar o holofote, general. Vamos en-
contrar essa nave, pode contar com isso. Não
quer vir conosco?
83
Tomisenkow franziu as sobrancelhas. O que
restava da antiga disciplina?! Estava na hora de
coibir esses abusos de confiança.
— Tenho coisa mais importante para fazer!
— rosnou, irado, e se afastou em direção às ca-
banas ao pé do pequeno cone rochoso.
Começou a se sentir um solitário no meio de
seus homens.
O sargento Rabov acompanhou a retirada
brusca do seu comandante com uma expressão
impassível. Tinha estreitado os olhos, o que lhe
emprestava um aspecto nitidamente mongol.
Mas ele não era mongol, e sim um musculoso
ucraniano. E muitos dos seus camaradas encon-
travam-se no acampamento dos rebeldes. Na
próxima oportunidade...
Afastou esses pensamentos desagradáveis e
seguiu o general a uma grande distância. As
sentinelas permaneceram na beira do platô,
aguardando o próximo disparo ofuscante.
Mas esperaram em vão.

***

Quando Thora acordou já era noite cerrada.


Suas pernas ainda estavam doloridas e só
conseguia mexê-las com dificuldade. Ainda bem
que as pontadas agudas que lhe atravessavam
84
os quadris eram suportáveis.
Cautelosamente, Thora apoiou os braços no
encosto da poltrona, fez um esforço e conse-
guiu se levantar. O chão embaixo dos seus pés
estava levemente inclinado e tinha que tomar
cuidado para não escorregar.
Ligou a iluminação, mas tudo permaneceu
escuro. Com um golpe brusco, puxou a alavan-
ca da bateria de emergência para baixo. Imedia-
tamente as lâmpadas se acenderam. E Thora
viu o robô R.17.
Não havia mudado de posição, a testa ainda
encostada no painel dos instrumentos. O braço
direito, dobrado, repousava sobre a mesa estrei-
ta em frente aos controles, enquanto o esquer-
do pendia, frouxo, dos ombros.
Quando lhe ocorreu que R.17 talvez estives-
se morto, Thora se sentiu acometida de uma
angustiante solidão. Consertos de pequena
monta não constituíam problema para ela. Mas,
se uma das complicadas peças positrônicas in-
ternas estivesse danificada, R.17 permaneceria
para sempre na selva venusiana, se não fosse
encontrado antes disso.
Diante da vigia reinava a escuridão. Só lá
longe, no horizonte, ainda havia o fraco brilho
avermelhado do sol poente. A nave destruída
jazia sobre uma clareira. As copas das árvores
85
haviam amortecido o primeiro impacto mas,
mesmo assim, era um verdadeiro milagre que a
nave tivesse resvalado sem maiores choques até
o chão. Somente o último trecho da queda ti-
nha resultado num baque mais violento, que lu-
xou ligeiramente as pernas de Thora e conde-
nou R.17 à imobilidade.
Thora esticou os membros e constatou, sa-
tisfeita, que não havia sofrido qualquer fratura.
Sua preocupação imediata era o robô. Com
movimentos habilidosos, que denotavam uma
longa prática, abriu a caixa torácica de R.17 e,
com uma lanterna, iluminou aquela confusão de
transistores, conexões e outras pecinhas ele-
trônicas. Até onde pôde constatar nada havia
sido inutilizado. Pensativa, Thora recolocou a
placa no peito do robô, prendendo-a com os
grampos magnéticos. Não havia mais dúvida; já
sabia onde estava o defeito. A fronte de R. 17
havia se chocado com violência demasiada con-
tra o painel dos instrumentos.
Thora retirou a tampa de vedação do crânio
do robô e mal conseguiu acreditar no que viu.
Um dos cabos principais tinha se soltado e ago-
ra pendia, inútil, em meio aos minúsculos tubos
de arconita.
Thora encontrou material de solda na caixa
de ferramentas e, poucos minutos depois, já ti-
86
nha consertado o defeito. R.17 acordou. Er-
gueu a cabeça, olhou para Thora e perguntou:
— O que se passou? Eu fiquei desativado.
— Foi um cabo que se soltou, só isso. Fo-
mos derrubados pelos canhões-sentinelas da
base. Parece que o codificador não funcionou
direito. A base deve ficar a uns quinhentos qui-
lômetros daqui. E agora?
— Vamos esperar — respondeu R.17. Para
ele, esta conclusão era evidente. Dispunha de
tempo.
— Esperar? Esperar o quê? Esperar que nos
encontrem? Vênus é desabitada. Se Rhodan es-
tiver à minha procura, vai voar para a base. Du-
vido que lhe ocorra a idéia de que eu possa ter
sido abatida. Como é que estão os nossos apa-
relhos radiofônicos?
R.17 se levantou e caminhou, curiosamente
inclinado para a frente, em direção a porta da
cabina de rádio. Sua postura meio adernada era
o efeito do giroscópio de estabilização, nova-
mente em funcionamento. R.17 não precisava
se adaptar ao plano inclinado do chão, nem de-
pendia da posição do centro de gravidade.
Thora permaneceu na central e olhou pela
vigia, tentando reconhecer os objetos lá fora.
Sorte sua que o crepúsculo em Vênus durava
cinco vezes mais tempo que na Terra pois, as-
87
sim, pôde habituar a vista aos aspectos da vizi-
nhança.
A nave jazia, levemente inclinada, numa cla-
reira coberta de pedregulhos. Apenas algumas
árvores isoladas formavam a orla de uma flores-
ta, que não era típica das selvas pantanosas das
regiões baixas. Só isto já constituía um fato aus-
picioso, que Thora aceitou com satisfação.
R.17 voltou à central de comando.
— Os aparelhos radiofônicos não funcionam
e também não podem ser consertados — cons-
tatou, com objetividade. — Assim, não pode-
mos contar com auxílio, a não ser que dêem
por nossa falta. Afinal, Rhodan está a par do
nosso vôo experimental, suponho eu.
— Não, Rhodan ignorava isso; ao menos
até a hora da nossa decolagem. Parti sem per-
missão, para estabelecer contato com Árcon
através da hiperestação em Vênus. Rhodan não
queria que Crest e eu regressássemos a Árcon.
O robô estacou no meio da cabina. Cravou
os olhos de cristal naquela mulher.
— Infringiu ordens de Rhodan? Sabe que fui
condicionado a obedecer apenas Rhodan. Pelo
que fez, tornou-se minha adversária.
— Nos encontramos na mesma situação.
— Apesar disso, deve ser punida.
O orgulho de Thora foi duramente atingido.
88
Ela, a arcônida, pertencia à raça dominadora
que havia criado esse robô. E agora esse enge-
nho, sua própria criação, lhe dizia que ela me-
recia ser castigada. Até o poder sobre os robôs
Rhodan havia retirado das mãos dos arcônidas!
— Está certo; Rhodan deveria me punir —
admitiu ela, evitando soar ilógica. — Mas ele só
vai poder fazer isso quando eu chegar à presen-
ça dele viva. Portanto, é sua obrigação me levar
a Rhodan... para a base venusiana. Porque só
lá vamos encontrá-lo.
O robô R.17 reconheceu que a arcônida ti-
nha razão. Acenou com a cabeça — coisa que
ele fazia muito bem, pois os engenheiros ar-
cônidas não haviam deixado de dotar os seus
robôs com essas reações.
— Muito bem, vamos à base venusiana para
esperar por Rhodan.
Isso, é claro, era fácil de dizer e difícil de re-
alizar.
— A partir desse momento, sou responsável
pela sua segurança, pela sua vida — constatou
R.17, secamente. — A senhora transgrediu a
lei de Rhodan e, portanto, é minha prisioneira.
A nave está inutilizada, por isso vamos partir o
mais depressa possível para não perder tempo.
— E víveres para mim? — lembrou-se Tho-
ra, quase perdendo o fôlego de susto.
89
O robô apontou para os armários embutidos
na parede.
— Lá se encontram armas, medicamentos,
água e concentrados previstos para uma tripula-
ção de três homens. No caso, dá folgadamente
para duas semanas. Vou lhe permitir o uso de
uma arma, porque isso serve ao meu propósito.
Thora teve que engolir mais essa. Um robô
permitir a ela, a arcônida, o porte de uma
arma! Decidiu, no íntimo, que assim que pudes-
se mandaria transformar R.17 em sucata.
Pegou o irradiador de impulsos e o afixou ao
cinto. Depois enfiou os concentrados num pe-
queno saco, que entregou ao robô, encarre-
gando-se ela mesma de levar os medicamentos.
R.17 se ofereceu para carregar o vasilhame de
água.
— Vou levar também o holofote — decidiu
Thora; estremeceu quando se lembrou daquela
selva mergulhada na escuridão que a esperava
lá fora. Em outras circunstâncias, Thora teria
aguardado o raiar do dia venusiano. Mas tanto
o seu procedimento
quanto seu pensamento eram exclusivamen-
te norteados pela obsessão de alcançar a base,
custasse o que custasse. E assim resolveu partir
em plena escuridão, pois sabia que, a cada mi-
nuto que se passava, diminuíam as suas chan-
90
ces de poder entrar em contato com Árcon.
Rhodan não ficaria de braços cruzados na Ter-
ra, esperando que ela realizasse com sucesso o
seu desígnio.
— A escuridão não é problema — tranqüili-
zou-a R.17. — Consigo ver muito bem no escu-
ro se ligar minha instalação infravermelha. E
para enfrentar seres hostis, disponho do meu ir-
radiador de neutrônios — ergueu seu braço es-
querdo. — Vou levá-la em segurança para a
fortaleza.
Somente agora Thora se recordou, que Vê-
nus era habitado principalmente por sáurios
enormes. Estava começando a perder a cora-
gem, mas o desânimo foi logo vencido pela
vontade fanática de realizar o seu intento e de
se defrontar com Rhodan. Monstro algum con-
seguiria detê-la.
Lançou um último olhar pela vigia e depois
abriu a porta de emergência. Estava ligeiramen-
te emperrada, mas, quando R.17 a forçou com
o seu corpo possante, abriu-se com um estri-
dente rangido. A atmosfera venusiana, ainda
quente e úmida, penetrou na cabina e, com ela,
os odores da natureza.
R.17 foi o primeiro a sair. Desceu a escada
estreita e se postou no solo duro e seco, espe-
rando por Thora. Seus olhos artificiais vararam
91
a escuridão e viram tudo como se o sol estives-
se pairando no céu escuro, mergulhando a pai-
sagem em luminosa claridade.
É claro que isso Rabov e seu pessoal não
podiam saber.
Encobertos pelo manto da escuridão, os ho-
mens do Bloco Oriental aproximaram-se caute-
losamente daquela nave espacial derrubada.
Não sabiam ao certo quem a havia conduzido a
Vênus. Essa gente podia pertencer tanto à
OTAN quanto à Federação Asiática. Uma luz
emanava da vigia de observação. E nessa luz se
moviam as sombras de duas pessoas. Era só o
que se podia distinguir. Depois, a porta se abriu
e dois vultos deixaram a nave, ou aquilo que ti-
nha sobrado dela.
A luz na central permaneceu acesa.
O sargento Rabov fez um sinal aos seus ho-
mens. Agarraram as armas e tentaram varar a
escuridão com seus olhos. A luz na nave espaci-
al lhes fornecia um ponto de referência, mas
nada viam daqueles dois homens que tinham
acabado de descer. Deviam ter parado debaixo
da nave, pois não se mexiam mais.
Com sua voz desprovida de qualquer emo-
ção, R.17 se dirigiu a Thora:
— Tivemos uma sorte inacreditável. Lá na
frente há seres humanos. Consigo vê-los nitida-
92
mente. São quatro homens armados. Estão se
aproximando de nós. Se eu quiser, posso matá-
los.
Thora se refez rapidamente do impacto da
surpresa.
— Não, não faça isso! Por que quer matá-
los? São inimigos?
— A atitude deles não denota intenções pa-
cíficas. Observaram a queda da nave e agora vi-
eram para saquear. Talvez foram até eles que
nos derrubaram.
— Você sabe muito bem que fomos derruba-
dos pela sentinela eletrônica da base — disse
Thora, sacudindo a cabeça. — Quem são esses
quatro homens? Você consegue reconhecer al-
gum deles?
— Têm o aspecto de quem vive nesta selva
há anos.
Como um raio, a intuição invadiu a mente
de Thora: eram as tropas de desembarque do
Bloco Oriental! E isso significava inimigos po-
tenciais.
Mas seriam inimigos também aqui, nas sel-
vas de Vênus, onde um dependia do outro?
Thora sacudiu os ombros.
— Pode ser que não caiamos no seu agrado,
R.17, mas primeiro vamos tratar de saber o
que querem de nós. Mantenha-se pronto para
93
intervir, se for preciso. Quero falar com eles.
Vamos deixar que se aproximem; afinal de con-
tas, eles não sabem que você os vê.
Thora e o robô observaram em silencio a
cautelosa aproximação de Rabov e seus ho-
mens. Menos de três passos os separavam,
quando Thora disse em inglês, a língua na qual
era mais fluente:
— Desejam alguma coisa de nós?
O susto que o sargento levou foi tamanho
que ficou inteiramente desnorteado. Podia es-
perar tudo, menos ser interpelado por uma voz
feminina, vinda da escuridão. Tropeçou e se es-
parramou no chão. Sua arma se chocou estron-
dosamente contra a rocha. Soltou uma florida
imprecação em russo.
Ainda esticado no chão, disse:
— Só viemos para oferecer ajuda. Posso sa-
ber quem são?
R.17, que podia ver o sargento perfeitamen-
te bem, respondeu:
— Agradecemos toda ajuda que nos possa
prestar. Suponho que os senhores pertençam
às tropas do general Tomisenkow.
A esta altura, Rabov já se havia refeito do
susto e se levantou. A voz daquele homem na
escuridão soava curiosamente dura e mecânica,
se bem que o inglês que falava era perfeito. E o
94
sargento entendia inglês muito bem. Portanto,
esse pessoal que tinha sido derrubado era da
OTAN.
— Sim, somos gente de Tomisenkow.
— Eu não entendi, o que o senhor disse. —
constatou R.17, sem qualquer acanhamento.
Não tinha competência para interpretar corre-
tamente expressões idiomáticas.
Thora disse rapidamente:
— É claro que precisamos juntar forças, se
quisermos sobreviver. Aliás, como é que foi que
nos encontrou tão depressa?
Rabov tinha se aproximado lentamente e foi
apanhado pelo feixe de luz, que vinha da cabi-
na. Seu aspecto maltrapilho, embrutecido, não
era de molde a causar a melhor das impressões,
quanto mais despertar confiança. Thora sentiu
calafrios ao imaginar o que poderia acontecer
se caísse nas mãos de sujeitos tão rudes. Ainda
bem que estava acompanhada por R.17; certa-
mente saberia como protegê-la.
Durante os primeiros instantes, Rabov nem
prestou atenção no detalhe dos cabelos brancos
e dos olhos albinos, avermelhados. Só via a mu-
lher. Fazia muitos meses que ele e seus camara-
das não viam uma mulher. Rabov era um sujei-
to tenaz e valente, mas aquela visão insólita o
fez ficar encabulado. Inseguro, trocava constan-
95
temente de pé, e finalmente balbuciou:
— Vimos sua nave ser derrubada. Nosso
acampamento não é longe daqui. Fomos envia-
dos pelo general Tomisenkow.
— Ótimo! — disse Thora, que instintivamen-
te agarrou a chance que vislumbrou.
— Então nos leve ao seu general. Temos
muito o que falar com ele.
Rabov acenou. Depois lembrou-se que ainda
havia outras perguntas importantes a fazer.
— Foram os únicos que sobreviveram à que-
da?
— Fomos os únicos passageiros — respon-
deu Thora, sem se importar com a surpresa de
Rabov. — Vamos logo! Não tenho nenhuma
vontade de passar a noite inteira em pé aqui.
O sargento Rabov começou a desconfiar que
os papéis haviam sido trocados, mas seu instin-
to o impedia de se indispor com essa mulher.
Por isso ordenou aos seus três companheiros
que guardassem as armas e iniciassem a cami-
nhada de volta ao acampamento. Ele mesmo
resolveu andar ao lado de Thora, sem dar muita
atenção ao outro sobrevivente. Na sua opinião,
devia ser o comandante da nave derrubada. Por
uma questão de gentileza, Rabov se virou para
R.17, que até agora tinha se mantido na escuri-
dão, e disse:
96
— Espero que não tenha se ferido.
O robô respondeu, com toda objetividade:
— Apenas um cabo se soltou, mas esse de-
feito conseguimos consertar. Agora, quanto à
nave, essa está perdida.
O sargento Rabov necessitou de vários se-
gundos para reparar no aparente absurdo da
resposta.
— Um cabo?! — murmurou. Não estava en-
tendendo. — Onde é que esse cabo se soltou?
— Dentro de mim; eu não lhe disse?
Rabov estancou. R.17 que não reagiu com
suficiente rapidez, esbarrou contra o sargento.
Por pouco Rabov não se esparramou mais uma
vez no chão. Tinha a impressão de ter sido
abalroado por um tanque ligeiro. Aturdido pela
surpresa, se agarrou a Thora que, felizmente,
conseguiu se escorar numa árvore.
O braço esquerdo de R.17 se ergueu amea-
çadoramente.
— Quem... O quê? — gaguejou Rabov, des-
concertado.
Thora se livrou do sargento e sacudiu a ca-
beça, indignada.
— Não seja tão impetuoso, meu amigo. Meu
companheiro é um robô. O que tem isso de tão
espantoso?
É claro que o sargento Rabov não conhecia
97
nenhum robô arcônida, mas ele sabia que, na
Terra, somente a Terceira Potência possuía ro-
bôs. Como é que esse pessoal da OTAN havia
conseguido botar as mãos nesses robôs? Ou en-
tão, um novo pensamento lhe varou o cérebro,
será que esses dois não eram da OTAN? Mas
então por que tinham sido derrubados?
Havia algo de podre nessa história, e Rabov
resolveu ir direto ao assunto.
— Pertencem à Terceira Potência?
— Duvidou disso? — retrucou Thora e fez
um gesto impaciente com a mão que, além de
R.17, ninguém mais viu. — Vamos ficar para-
dos aqui eternamente?
Rabov lançou um olhar furtivo na direção
onde supunha que estivesse o robô, e pôs-se
novamente em movimento.
Uma mulher e um robô... nunca na vida,
nem ele nem o general Tomisenkow haviam
capturado uma dupla tão estranha.

O ruído estranho fez Son Okura acordar.


No primeiro instante, ainda tonto de sono,
foi incapaz de se lembrar que tipo de barulho ti-
nha sido esse, e muito menos de imaginar o
que o teria produzido. Levou até vários segun-
98
dos para se lembrar onde estava.
Depois, sua mente se desanuviou. Sim...
junto com John Marshall e Perry Rhodan, en-
contrava-se num galho largo, dez metros acima
do solo de Vênus, em meio à selva daquele pla-
neta virginal. A escuridão era total. Em algum
ponto no oeste, situava-se a base arcônida, im-
plantada no alto de uma cordilheira. E atrás de-
les, no leste, jaziam os escombros calcinados da
sua nave espacial.
E ouviu novamente aquele barulho.
As pernas lhe doíam bastante, mas isso não
preocupava Okura no momento. Ativou a parte
mutada de seu cérebro... e, de repente, a noite
se tornou dia claro para ele. Podia ver.
A menos de dois metros, encontrava-se
Rhodan, meio deitado, as costas recostadas
contra um galho não muito grosso. Ao lado
dele, numa posição encolhida, estava Marshall,
que dormia de boca aberta e roncava. Sua mão
direita estava enfiada no bolso e Okura teria
apostado a sua ração de água que, mesmo no
sono, não largava o coldre daquele revólver ob-
soleto.
Era um ruído arrastante e vinha da esquer-
da, onde o enorme tronco da árvore gigante se
erguia em direção ao teto da floresta, a mais de
cem metros de altura.
99
Okura manteve-se imóvel, tentando desco-
brir a origem daquele ruído. Quando a desco-
briu, ficou mais imóvel do que antes. Por um
instante seu coração parou de bater, mas de-
pois o sangue lhe afluiu à cabeça com tal vio-
lência que Okura teve a impressão que fosse es-
tourar.
Lentamente, aquela coisa amarela se deslo-
cou sobre a bifurcação do galho e se arrastou,
em ondas regulares, em direção aos três ho-
mens.
Nunca antes em sua vida Okura tinha visto
um verme-lesma venusiano. Era até provável
que homem algum antes dele tivesse posto os
olhos nesse animal. Vivia oculto nas profunde-
zas das incomensuráveis florestas. De dia, refu-
giava-se nas cavidades de troncos gigantes apo-
drecidos, e só abandonava o seu esconderijo à
noite. Sua alimentação consistia em todas as
matérias orgânicas: plantas, madeira mole... e
carne. Tudo que também fosse lento ou, me-
lhor ainda, imóvel, constituía a sua presa.
No entanto, não se podia considerar o
verme-lesma como uma fera, ou um animal
predador, na acepção costumeira da palavra.
De qualquer maneira bastou o aspecto deste
bicho para que o medo estarrecesse Okura, in-
capaz de realizar o menor movimento. Com
100
olhos arregalados fitou aquele ser horripilante,
que se aproximava lentamente dele.
Realmente fazia lembrar uma lesma, ao me-
nos no que dizia respeito à cabeça. Longas an-
tenas, que oscilavam constantemente, esten-
diam-se para a frente, à procura de algum obs-
táculo. Na extremidade dessas antenas, consta-
tou Okura, localizavam-se os pequenos olhos. A
outra parte do animal era o verme propriamen-
te dito. Um corpo alongado e flexível, sem per-
nas visíveis. Os movimentos dos diversos seg-
mentos anulares eram responsáveis pela loco-
moção do verme-lesma.
O que mais infundia pavor era aquela bocar-
ra voraz. Possuía três fileiras de dentes afiadíssi-
mos, capazes de triturar praticamente tudo que
conseguissem agarrar. Isso incluía ossos, sem a
menor dúvida.
Okura interrompeu suas reflexões, quando
viu que o animal parou de avançar. Os olhos
nas pontas das longas antenas dirigiam-se ao ja-
ponês, como se também fossem capazes de en-
xergar na escuridão. Talvez até o pudessem.
Seja como for, o animal devia ter farejado a sua
presa e agora estava tentando descobrir, se esta
era suficientemente lenta, para não mais lhe
poder escapar.
Okura viu que o verme media, no mínimo,
101
cinco metros de comprimento. Chegou à con-
clusão que ele e mais um de seus companheiros
caberiam folgadamente no interior desse cor-
panzil, principalmente se a deglutição fosse pre-
cedida do devido processo de redução. O pen-
samento sumamente desagradável de eventual-
mente ser devorado com toda calma ali no alto
daquele galho, restituiu a Okura o raciocínio e a
capacidade de ação.
Com um movimento rápido, arrancou o irra-
diador do cinto e abriu o fecho de segurança;
certificou-se que a lâmpada de controle estava
acesa e constatou que a energia disponível era
suficiente para liquidar dez desses horripilantes
animais. A arma na mão devolveu a coragem a
Okura, e desalojou o resto do medo angustiante
que se tinha aninhado no seu coração. Nenhum
ser vivo em Vênus conseguiria resistir a um mo-
derno irradiador de impulsos dos arcônidas.
O verme-lesma parecia ter chegado à con-
vicção que uma tentativa poderia trazer resulta-
dos satisfatórios. Os segmentos anulares do cor-
po voltaram a se locomover, e mais uma vez se
fez ouvir aquele ruído arrastante, que havia ar-
rancado Okura do sono. O japonês lançou um
olhar preocupado aos dois companheiros, que
dormiam profundamente; depois encolheu os
ombros. Talvez não se assustassem tanto a
102
ponto de cair da árvore, quando o chiado da
descarga os despertasse do sono merecido.
A pequena distância permitiu fazer pontaria
precisa e Okura apertou o botão disparador. O
fino raio energético acertou em cheio a cabeça
daquela criatura estranha, mas perigosa. As an-
tenas, os olhos, aquela boca voraz, e a parte su-
perior do corpo amarelo desapareceram no cla-
rão da chama energética, instantaneamente su-
blimados. O resto do corpo do verme-lesma se
contorceu violentamente, e resvalou do galho,
precipitando-se com um estalo de encontro ao
solo.
Rhodan acordou numa fração de segundos.
Ergueu-se e viu que Okura estava tentando apa-
gar as chamas com o pé, antes que se alastras-
sem para as folhas secas e os cipós.
— Que foi que houve, Okura?
— Uma espécie de serpente. Rastejou em
nossa direção, mas acordei a tempo. Aliás,
acho que é boa hora de reiniciarmos a marcha.
Marshall virou o corpo pesadamente para o
outro lado.
— Que barulheira é essa? — reclamou, so-
nolento. — Ainda é noite escura. Será que nun-
ca se consegue dormir em paz?
— Escapou por pouco de dormir em paz
para todo o sempre! — explicou Rhodan, com
103
toda calma, e se levantou de vez. — Ainda bem
que Okura acordou na hora exata para impedir
que o dragão nos devorasse.
— Como é que é?
Marshall ainda estava cansado demais para
se inteirar da realidade dos fatos nos pensamen-
tos de Okura.
— É mesmo. Algum monstro. Uma espécie
de serpente, se quiser. Okura descobriu o bicho
no último segundo e o matou. Será que não ou-
viu nada?
Marshall se sentou ao lado de Rhodan. Sa-
cudiu a cabeça.
— Como é que eu posso ter ouvido alguma
coisa, se eu estava dormindo?
Após essa constatação bastante lógica, tra-
tou de preparar o almoço. Aquele trecho do ga-
lho, onde o verme-lesma havia exalado o último
alento, ainda estava em brasas e fornecia ilumi-
nação suficiente. Meia hora depois, já estavam
novamente marchando através da floresta. Oku-
ra, de arma na mão, ia na frente e sondava a vi-
zinhança. O chão ainda se apresentava seco.
Mas, como o terreno caía constantemente num
declive quase imperceptível, era inevitável que
dentro em pouco chegassem à região pantano-
sa. Os três homens aguardavam esse momento
com os mesmos receios.
104
Algo rumorejava na mata, à direita.
Marshall, que formava a retaguarda, ergueu a
arma mas não encontrou alvo algum naquela
escuridão. Algo os acompanhava, a menos de
dez metros de distância, atravessando a vegeta-
ção densa com passos pesados. Marshall come-
çou a sentir uma ligeira pressão em seu cére-
bro. Sem muita esperança de obter um resulta-
do positivo, Marshall ativou a sua capacidade
telepática... e teve uma surpresa.
Era incrível, mas estava realmente captando
os pensamentos de um desconhecido. Eram
pensamentos bastante primitivos e superficiais,
que se ocupavam principalmente com presa e
comida, mas não deixavam de ser pensamen-
tos.
— Tem alguém à direita! — sussurrou, sufi-
cientemente alto para que Okura e Rhodan o
pudessem ouvir. — Consegue vê-lo?
O japonês olhou na direção indicada e ace-
nou.
— É a mesma sombra que observamos on-
tem. Aquela silhueta de um gorila. Garanto que
é um macaco. Enquanto não nos atacar, não
precisamos nos preocupar com ele. Só estou
admirado que ele não toma conhecimento de
nós. E é impossível que ele não tenha nos repa-
rado.
105
— Talvez pensa que também somos maca-
cos — murmurou Rhodan e lembrou-se dos qui-
nhentos quilômetros que ainda tinham de per-
correr. Aos poucos, começou a se amaldiçoar
por ter partido no encalço de Thora tão despre-
parado e sem qualquer medida de segurança.
Por que não havia escolhido uma nave já testa-
da e perfeitamente equipada?
Continuaram a caminhar com disposição,
sem se importar com seu acompanhante invisí-
vel. Finalmente chegaram às margens de um
pequeno lago e acharam o lugar apropriado
para passar um novo período de descanso. Um
murmúrio distante e abafado vinha da escuridão
em frente.
Rhodan perguntou a Okura se conseguia re-
conhecer alguma coisa.
— Não estou muito certo — respondeu o ja-
ponês, vacilante — mas, se os meus olhos não
me enganam, lá adiante há uma depressão com
alguns pântanos e um curso d’água. Atrás dela,
ergue-se uma cordilheira. Consigo ver algumas
quedas d’água bastante grandes. E lá em cima,
no platô, a floresta é menos densa. Lá vamos
poder avançar com maior rapidez.
Resolveram acender uma fogueira. O solo já
se apresentava úmido mas, poucos metros aci-
ma do solo, encontraram lenha suficientemente
106
seca. As chamas espalharam claridade e lança-
ram sombras grotescas contra a cortina da noi-
te. Okura mantinha-se vigilante e vasculhava a
redondeza sem cessar; mas sua preocupação
era infundada. Os animais de Vênus conheciam
o fogo apenas sob a forma de vulcões em erup-
ção, e tinham razão para temê-lo.
A água do lago era impotável. Marshall, que
preparava a refeição, observou meio desalenta-
do que daqui a pouco teriam que começar a ca-
çar, se não quisessem morrer de fome. Alertou,
ainda, que a água estava escasseando. Rhodan
tranqüilizou-o, lembrando que o dia venusiano
já não estava longe e que lá em frente havia
aquelas quedas d’água.
Desta vez não dormiram todos ao mesmo
tempo. Revezaram-se e, assim, sempre havia
um a vigiar o sono tranqüilo dos outros.

***

Lá pela meia-noite chegaram ao pé daquele


paredão quase vertical.
O sol só nasceria daqui a sessenta horas;
não era possível esperar tanto tempo. Durante
a marcha através da baixada pantanosa Okura
havia conseguido abater um pequeno animal
com o revólver de Marshall. Com isso, dispu-
107
nham de carne suficiente para as próximas re-
feições. E agora, quando se encontravam diante
daquele paredão, ouviram ao lado o estrondo
de uma enorme queda d’água.
— Um bom lugar para ficar e descansar de
verdade — decidiu Rhodan. — Podemos acen-
der outra fogueira e improvisar um muro com
alguns desses blocos de pedra. Isso vai nos pro-
porcionar segurança suficiente para uma pausa.
E depois vamos subir até aquele platô
Okura olhou para cima. Seus olhos privilegi-
ados vararam a escuridão perene da noite venu-
siana. Embora a temperatura houvesse baixado
sensivelmente, ainda fazia muito mais calor do
que numa noite de verão na Terra.
— Não consigo determinar isso com muita
precisão — disse Okura mas aquele platô está a
trezentos metros acima da baixada, no mínimo.
— E também não temos cordas! — comen-
tou Marshall.
Rhodan liquidou as duas objeções.
— Não temos outra escolha. Além disso, é
bom considerar que uma marcha através do
platô é bem menos fatigante e perigosa que
qualquer caminhada através da selva ou dos
pântanos. Se algum dia Vênus for colonizada,
os homens só vão poder viver no alto dessas
ilhas rochosas. Bem, visto isso, vamos tratar do
108
nosso assado. Marshall, acenda uma fogueira!
Okura, desembrulhe sua caça!
Quando as chamas da fogueira se ergueram,
constataram que o animal abatido apresentava
muito pouca semelhança com uma caça terres-
tre. Era quadrúpede, mas as quatro pernas
eram tão curtas que Okura acabou tendo a im-
pressão de ter caçado um bassê avantajado. E
aquele focinho estreito e afilado, fazia lembrar
também um cachorro, enquanto que as orelhas,
em pé, não tinham muito que ver com um bas-
sê de raça pura. De um rabo, não havia nem si-
nal. E em lugar de pêlo, o animal possuía ape-
nas pele lisa e escorregadia.
— Parece um porco-espinho de barba feita!
— rosnou Marshall, lambendo os beiços furtiva-
mente. — Ninguém gosta mais de animais que
eu, mas, um bicho gozado desses, eu não que-
ria ter em casa nem de graça. Vamos tratar de
comê-lo!
— Tenho certeza que é bem mais saboroso
que aqueles concentrados — comentou Rhodan
e pôs-se a observar, interessado, com que habi-
lidade Marshall estava preparando o assado.
Duas horas mais tarde estavam saciados e se
recostaram no paredão ligeiramente aquecido,
as mãos entrelaçadas sobre os estômagos reple-
tos.
109
— Excelente! — elogiou Marshall sua pró-
pria arte culinária. — Precisamos nos lembrar
dessa receita!
— Faltou o sal — murmurou Rhodan e sen-
tiu que estava ficando com sono.
— Podemos chamar esse bicho de porqui-
nho-bassê — sugeriu Okura, não menos sono-
lento.
Silenciaram. E, de repente, esse silêncio foi
interrompido por um tiro.
Ouvir um tiro num planeta não habitado por
homens era algo tão surpreendente e fora de
propósito que as mentes não registraram esse
fato incomum de imediato. Marshall fitava as
chamas, perdido em pensamentos. E, para um
observador neutro, deveria ter sido interessante
acompanhar suas reações.
Marshall apurou os ouvidos, acenou várias
vezes com a cabeça, e finalmente disse:
— Alguém devia estar caçando um porqui-
nho-bassê, e acertou logo no primeiro tiro.
Resolveu atiçar o fogo e depois viu os olhos
arregalados dos dois companheiros. De repen-
te, ficou lívido:
— Deus do céu, alguém deu um tiro!
De um só salto, Okura estava de pé.
— Impossível! Quem poderia ter sido? Rho-
dan estava tão perplexo quanto os outros, mas
110
a sua mente funcionava com maior rapidez e
com raciocínio mais lógico. Numa fração de se-
gundos, registrou o fato do tiro; concluiu que só
poderia ter sido disparado por um homem e
que, portanto, havia homens em Vênus; e no
mesmo instante descobriu de que tipo de ho-
mens se tratava. Ao mesmo tempo, se recordou
do aspecto geográfico do local onde as tropas
de Tomisenkow haviam desembarcado, e logo
em seguida desbaratadas; chamou à memória a
sua própria posição, e chegou à mesma conclu-
são. Lá em cima, naquele platô, viviam os nave-
gantes espaciais, dados como desaparecidos.
Acenou para Okura.
— Por que acha que é impossível? Não so-
mos os únicos homens em Vênus. Além disso,
também poderia ter sido Thora.
— A arcônida jamais vai lidar com armas de
fogo terrestres — disse o japonês, sacudindo a
cabeça.
— Então, por exclusão, só restam os ho-
mens de Tomisenkow — disse Rhodan.
— O pessoal do Bloco Oriental? — Marshall
ainda mantinha a cabeça inclinada. — O que
esses caras querem aqui?
— Caçar...
Rhodan foi interrompido por um novo tiro,
seguido dos estampidos de uma salva inteira. A
111
resposta não se fez tardar; uma fuzilaria irregu-
lar veio de uma outra direção. Aquilo não era
uma caçada. Era um combate entre dois grupos
que se defrontavam na região. E isso alterava a
situação. Rhodan olhou pensativo para aquele
paredão, que se erguia quase a pique.
— Não vejo mais sentido em subir ao platô.
Se me reconhecem, acabam comigo em três
tempos. Pois é a mim que devem sua sorte atu-
al; ao menos, é o que eles pensam. Por outro
lado, eles possuem fuzis, e com esses a gente
pode caçar. Seu revólver foi útil, Marshall, mas
também não vai nos salvar por muito tempo.
Portanto, um de nós vai ter que tentar estabele-
cer contato com eles.
— Uma tarefa arriscada como quê! — mur-
murou Okura. — Mas eu poderia tentar, por-
que eu consigo enxergá-los mais cedo do que
eles a mim.
— De noite, sim. Eu acho que devemos su-
bir juntos ao platô. Depois, resolvemos o que
vamos fazer.
Enquanto arrumavam os seus pertences, ain-
da ouviram alguns tiros esparsos. Embrulharam
o resto da carne em folhas secas, abasteceram-
se de água e, finalmente, reduziram a fogueira
sem, porém, extingui-la.
— Será que não podíamos dormir mais algu-
112
mas horas? — quis saber Marshall. — Sei que
estamos com pressa, mas também não com
tanta assim.
Rhodan inclinou a cabeça e aguçou os ouvi-
dos. Nenhum som veio do alto. O silêncio rei-
nava novamente naquele platô. Rhodan ace-
nou.
— De acordo. Mais cinco horas de sono e
depois partimos. Eu só não entendo por que é
que estão se batendo. Gostaria de saber qual é
o pomo da discórdia.
Okura se estendeu embaixo de uma saliência
de rocha e disse:
— O pomo da discórdia é Vênus, ora essa!
Como os conheço, eles se engalfinharam por-
que não chegaram a um acordo quanto ao tipo
de sociedade mais adequado para os futuros ve-
nusianos.
Rhodan acenou, com uma expressão séria
no rosto.
— Pode ser que tenha razão, Okura. Mas,
se esse for o caso, estão brigando à toa, porque
jamais vai caber a eles resolver este assunto.
— E quem é que não briga por uma coisa
dessas? — murmurou Marshall e fechou os
olhos. A julgar pela sua expressão, desejava so-
nhar com bifes de porquinhos-bassê, mas não
pensar a respeito de absurdos.
113
A fogueira se extinguiu lentamente. Escure-
ceu.
E tudo continuou escuro, até que um súbito
clarão rompeu as trevas. Mas isso só aconteceu
horas mais tarde.

***

Quando o sargento Rabov entregou Thora e


o robô no quartel-general de Tomisenkow, fi-
cou admirado com a indisfarçada satisfação de-
monstrada pelo seu comandante supremo. De-
pois, em cumprimento às ordens recebidas, se
embrenhou na mata à frente de uma patrulha
de vinte homens, numa operação de reconheci-
mento da ilha rochosa dos rebeldes. Se possível
devia fazer alguns prisioneiros, pois Tomi-
senkow queria saber se estavam planejando um
ataque contra ele.
O caminho era longo e conduzia através de
pântanos, baixadas e florestas, mas Rabov não
o estava percorrendo pela primeira vez. Conhe-
cia as marcações que levavam ao platô do ini-
migo; por isso não tinha dúvidas que encontra-
ria esse caminho sozinho... no momento opor-
tuno.
Mas esse dia ainda não havia chegado.
A patrulha de Rabov não era a única em
114
operação nesta noite. Do lado oposto, um pe-
queno exército de uns duzentos homens aproxi-
mava-se do platô no qual se haviam instalado
os rebeldes. Esses homens faziam parte de um
outro bando sedicioso das tropas de Tomi-
senkow. Por razões puramente ideológicas, este
bando não era partidário de nenhuma das duas
facções, mas representava o pacifismo absolu-
to. E agora estava empenhado em impingir
esse pacifismo aos rebeldes; se preciso, com o
emprego da violência.
Um tenente de nome Wallerinski comandava
o destacamento.
Wallerinski e seus homens chegaram primei-
ro. Escalaram a ilha rochosa dos rebeldes e pe-
garam as sentinelas de surpresa. Fiel aos seus
princípios pacifistas, Wallerinski não matou as
sentinelas, apenas as aprisionou. Mas isto não
o impediu de interrogá-las com todos os requin-
tes da arte de arrancar informações, a fim de
que revelassem o esconderijo dos rebeldes.
Uma hora mais tarde, o destacamento de
Wallerinski topou com o posto avançado dos
rebeldes. Mas o homem não estava dormindo,
e conseguiu soltar um tiro de alerta, que acor-
dou o acampamento. Dez minutos depois, o ti-
roteio começou.
Rabov e seus vinte homens ainda se encon-
115
travam a alguns quilômetros do platô dos rebel-
des quando ouviram os tiros. Discutiram o fato
e chegaram à conclusão que, nas redondezas,
deviam existir outros grupos daquele exército
desbaratado, e que se combatiam mutuamente.
E essa triste verdade só tinha uma explica-
ção: a culpa era daquela natureza inóspita, que
transformava conhecidos em estranhos e impe-
dia que se mantivessem as relações de amizade.
Rabov ia dar a ordem para prosseguir a
marcha, quando um dos seus homens veio cor-
rendo em sua direção.
Agitado, e quase sem fôlego, o homem bal-
buciou:
— Luz! Lá na frente há uma fogueira. Pode-
se vê-la com toda a nitidez!
— Lá embaixo? — quis saber Rabov.
— Sim, no pé do paredão. Talvez os rebel-
des instalaram um posto avançado lá.
— É, um posto avançado com uma fogueira,
para que possam ser vistos a quilômetros de
distância — disse Rabov com ironia. Tinha cer-
teza que a verdade era bem outra, mas qual se-
ria, não podia imaginar. Senão teria refletido
um pouco mais, antes de emitir sua ordem: —
Vamos descer, para ver quem são!
E assim, duas horas mais tarde, Rabov olhou
para três homens adormecidos, que acordaram
116
imediatamente quando os feixes dos holofotes
incidiram nos seus rostos.
Como tinham aspecto bem tratado e não
trajavam o uniforme daquele exército desbarata-
do, Rabov se dirigiu a eles em inglês. Tinha o
vago pressentimento que aquela mulher havia
mentido ao afirmar que somente ela e o robô se
encontravam naquela nave espacial derrubada.
— Estão sob a mira de vinte fuzis! — adver-
tiu — portanto, não tentem agarrar as pistolas.
Um dos meus homens vai agora recolher suas
armas. Se estiverem de acordo, acenem.
Perry Rhodan reconheceu que tinha cometi-
do um erro fatal. Era realmente um contra-sen-
so querer dormir tranqüilamente num terreno
onde se realizava um tiroteio. Agora teria que
arcar com as conseqüências. Baixinho, sussur-
rou para Okura:
— Consegue reconhecer alguma coisa?
— O sujeito não está mentindo, não — co-
chichou o japonês em resposta. — Estamos
cercados, e vejo os fuzis apontados para nós.
Podíamos liquidar alguns deles...
— E qual é a nossa chance?
— Bem, eu diria um para dez.
— É muito pouco — sussurrou Rhodan e,
depois, disse em voz alta: — Mande vir o seu
homem para apanhar as armas. Quem são vo-
117
cês?
— Vai ficar sabendo disso quando chegar a
hora. Foram os senhores que atiraram ainda há
pouco?
— Se está se referindo àquele tiroteio, sinto
ter que desapontá-lo. Foi realizado lá em cima,
no platô.
Sem oferecer resistência, Rhodan deixou
que lhe tirassem o irradiador de impulsos do
cinto e constatou, com satisfação, que Marshall
conseguiu ficar com o revólver oculto no fundo
do bolso. Okura não fez uma cara muito feliz,
quando lhe retiraram a arma. Pela primeira vez
não sorriu.
— Muito bem — disse o homem atrás do
holofote — agora vamos conversar um pouco.
Quando emergiu da escuridão, Rhodan con-
seguiu finalmente vê-lo. Um aspecto pouco
alentador, constatou no íntimo, fazendo votos
para que outro não o reconhecesse; Não era re-
almente uma perspectiva muito agradável cair
nas mãos daqueles homens que ele, por assim
dizer, havia entregue a um destino incerto em
Vênus.
— Eu sou o sargento Rabov, do exército do
general Tomisenkow — apresentou-se Rabov.
— E quem são os senhores?
Essa pergunta exigia uma resposta clara. Ou
118
ao menos uma resposta, pensou Rhodan, que
não soasse suspeita.
— Faço parte de uma expedição — disse
ele, cauteloso — que recebeu a missão de testar
a vigilância da fortaleza venusiana de Rhodan.
— Quem o enviou?
— Ora, quem havia de ser?
— Os americanos?
— É possível.
Rabov considerou isto como uma resposta
positiva. Só não conseguia explicar por que
aquela moça, lá em cima no platô, havia menti-
do, e por que esses três se tinham separado
dela e do robô.
— Suponho que vieram sozinhos. Foram
derrubados?
— Adivinhou.
Rabov refletiu. Ainda não era hora de exibir
todos os trunfos. O prisioneiro não precisava
saber que ele já havia encontrado os outros so-
breviventes. Era sempre bom deixar o adversá-
rio na incerteza a respeito da sua situação. Isso
era um princípio básico antiqüíssimo e de uma
eficiência mais que comprovada. Todavia, era
bem interessante ouvir que esse homem admitia
pertencer à OTAN, enquanto a mulher afirma-
va representar a Terceira Potência.
— E onde foi derrubado? Rhodan apontou
119
para leste.
— Lá, em cima da selva. Os canhões nos
apanharam.
— Ah! — fez Rabov, sem estar convencido.
— Quer dizer que não foram derrubados sobre
um platô e sim sobre a selva? E depois vieram
para cá a pé?
— Isso mesmo. Há algo de estranho nisso?
Rabov não deu resposta. Estava diante de
uma encruzilhada. O que seria mais acertado:
levar os prisioneiros ao acampamento de Tomi-
senkow ou entregá-los, como presente introdu-
tório, nas mãos dos rebeldes, aos quais preten-
dia se aliar? Além disso, ainda era preciso des-
cobrir quem era aquele terceiro grupo que havia
atacado os rebeldes de surpresa. Talvez fosse
melhor esperar até que não houvesse mais dúvi-
da quem seria o vitorioso.
A prudência venceu e Rabov tomou sua de-
cisão.
— Vamos levá-los conosco — disse ele a
Rhodan. — Vamos andando, homens! Quero
ver o que se passou lá em cima. Talvez aboca-
nhemos a parte do leão!
A escalada se revelou demorada e não isenta
de perigos.
Alguns dos homens de Rabov serviram de
guia, pois conheciam a trilha secreta suficiente-
120
mente bem para encontrá-la também na escuri-
dão. Rhodan, Marshall e Okura iam no meio,
seguidos de Rabov. Os demais soldados da pa-
trulha formavam a retaguarda.
Após sete horas, houve um período de des-
canso e Rabov avisou que agora não faltava
muito para atingirem o platô. Rhodan estava
admirado com o comportamento inesperado do
sargento. Tinha como certo ser tratado com as-
pereza e severidade e, no entanto, Rabov mos-
trava-se reservado e, às vezes, até mesmo gen-
til. Bem, esse pessoal não sabia quem eram
seus prisioneiros mas, mesmo assim, a conside-
ração que lhes dispensavam era surpreendente.
Rhodan resolveu não se esquecer desse detalhe.
Notava-se que Marshall queria segredar algo
a Rhodan, sentado ao seu lado. Mas a presença
constante de Rabov impediu que o fizesse e, as-
sim, Marshall resolveu aguardar uma ocasião
mais propícia.
Dez minutos depois, reiniciaram a escalada e
meia hora mais tarde alcançaram o platô. Na
distância, ouviu-se novamente o pipoquear de
tiros. Okura caminhava, agora, ao lado de Rho-
dan e, na primeira oportunidade, sussurrou ra-
pidamente:
— Quer que eu fuja? Para mim é fácil!
Disso Rhodan não tinha dúvida. O japonês
121
podia enxergar no escuro, e, além disso, ne-
nhum dos três prisioneiros tinha sido manieta-
do. Se Okura permanecesse nas proximidades,
poderia intervir a qualquer momento, caso a si-
tuação viesse a se tornar crítica.
Rabov havia percebido o cochicho e se
aproximou, curioso.
— Preferia que se mantivessem em silêncio
— disse em tom cortês, porém firme.
Rhodan deu um aceno afirmativo para Oku-
ra e depois se dirigiu a Rabov:
— Não se preocupe, eu o acompanharia
também de livre e espontânea vontade. Acha
que gostaria de ficar sozinho na selva? Não, se
alguém pode me ajudar, é o senhor.
Rabov parecia estar mais tranqüilo.
E de repente Okura desapareceu. Além de
Rhodan, ninguém mais percebeu a fuga do ja-
ponês, pois cada qual estava cuidando de si,
procurando não tropeçar em pedras soltas ou
troncos de árvores tombados. Aquele tiroteio
distante tinha chegado mais perto. Portanto, os
combates prosseguiam.
O terreno em frente já era bem menos aci-
dentado. Na distância havia claridade, como se
a floresta estivesse em chamas. Provavelmente
o acampamento dos rebeldes havia sido incen-
diado. A fuzilaria era intensa, entremeada pelas
122
detonações de pequenas granadas. Mais além
ouviu-se o ribombar de um canhão.
Rhodan constatou, satisfeito, que não esta-
vam empregando armas atômicas. Era um sinal
de que os futuros colonos de Vênus ainda não
eram tão civilizados a ponto de recorrerem às
últimas conquistas da tecnologia humana.
As primeiras balas passaram, sibilantes, so-
bre as cabeças dos homens. Sem perda de tem-
po, todos se jogaram no chão. Rabov estava
deitado ao lado de Rhodan, a quem não perdia
de vista um instante sequer. O incêndio, que de-
vorava a aldeia dos colonos situada atrás do pe-
queno bosque, fornecia luz suficiente. As pou-
cas árvores, espalhadas na vizinhança imediata,
não ofereciam qualquer possibilidade de abrigo.
— Onde é que está seu japonês? — ofegou
Rabov, mexendo nervosamente na pistola. —
Não vai me dizer que ele...
— Não está longe daqui — explicou Rho-
dan, sem mentir. — Talvez resolveu examinar a
situação mais de perto. Para ser honesto, eu
também não me considero propriamente um
prisioneiro seu. Seja sensato, Rabov; é esse o
seu nome, não é? Pode ser que estejamos de-
frontando com um inimigo comum. Devíamos
nos unir antes que ele nos obrigue a isso.
— As ordens que recebi não foram no senti-
123
do de entrar em combate com o inimigo e, sim,
para fazer um reconhecimento geral da situa-
ção. Preciso saber quem realizou esse ataque de
surpresa ao acampamento dos rebeldes.
— Rebeldes, por quê? — admirou-se Rho-
dan.
— Amotinaram-se contra Tomisenkow e re-
solveram permanecer em Vênus, de livre e es-
pontânea vontade, para se tornarem colonos.
— Que mais poderiam fazer? Tomisenkow
não está de acordo com essa decisão?
— O general só quer realizar a tarefa de que
foi incumbido: conquistar a base venusiana de
Rhodan.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Isto é tão absurdo quanto inútil. Na Ter-
ra, Rhodan e o Bloco Oriental já selaram a paz.
O exército de Tomisenkow foi dado como desa-
parecido.
Rabov silenciou. Então os rebeldes estavam
certos quando resolveram iniciar uma vida nova
em Vênus. Mas então quem era esse pessoal
que havia assaltado os rebeldes? Um outro gru-
po do qual nada se sabia?
Rabov decidiu botar as cartas na mesa.
— Não sei quem você é, mas vou lhe dizer
uma coisa: você mentiu para mim. Você não
pertence à OTAN e sim à Terceira Potência de
124
Rhodan. Por que me ocultou isso?
— O que lhe faz pensar isso?
— Apenas sei que é verdade. Não obstante,
você foi derrubado pelos canhões de Rhodan. E
isso eu não entendo. Tem alguma coisa contra
Rhodan?
— Não contra a pessoa dele — disse Rho-
dan, numa autocrítica cheia de ironia — apenas
contra sua leviandade.
— Essa também não entendi! — Rabov sa-
cudiu a cabeça e olhou para a frente, onde o
clarão de uma explosão rasgou o crepúsculo.
Alguns tiros pipocaram perigosamente perto.
Passos apressados arrastavam-se sobre o pedre-
gal. Contra o horizonte em chamas destaca-
vam-se as silhuetas de homens que corriam em
todas as direções. A agitação estava aumentan-
do.
— Como sabe que eu pertenço à Terceira
Potência? — perguntou Rhodan e olhou para
Marshall. Antes que Rabov pudesse responder,
o telepata disse:
— Uma nave foi derrubada sobre outro pla-
tô. Rabov foi até lá e encontrou uma mulher e
um robô. Os dois se encontram agora nas mãos
do general Tomisenkow.
Deliberadamente Marshall não citou nomes,
mas Rhodan compreendeu imediatamente que
125
Thora não tinha chegado à fortaleza venusiana.
Também tinha fracassado no seu intento. A
essa altura, já devia ter revelado a sua identida-
de e isso tornava a situação mais crítica, porque
o general Tomisenkow jamais entregaria volun-
tariamente um trunfo tão alto.
— Isso é verdade? — perguntou Rhodan, di-
rigindo-se a Rabov.
O sargento acenou, perplexo.
— Como é que ele sabe disso?
Rhodan ignorou a pergunta.
— Quem é essa mulher?
— Não disse o seu nome, porém admitiu
pertencer à Terceira Potência. Mas ela mentiu
quando disse que veio apenas na companhia do
robô. O senhor estava com ela, e depois se se-
pararam. Por quê?
Rhodan vislumbrou sua chance. Se não des-
cobrissem um elo entre ele e a fuga de Thora,
era bem provável que também não fosse reco-
nhecido. Por outro lado, Tomisenkow não sabia
que Thora tinha fugido e estava sendo persegui-
da. E imediatamente reconheceria nela a ar-
cônida.
Uma situação confusa.
Mas, no próximo instante, Rhodan se veria
obrigado a interromper seus pensamentos.
Subitamente um fulgor relampejou rente ao
126
seu rosto e o estampido de um tiro quase lhe
estourou os tímpanos. Alguém soltou um grito
e tombou pesadamente. De toda parte, surgi-
ram vultos indistintos e se lançaram sobre os
homens calmamente deitados no chão.
Rhodan viu que Marshall se levantou de um
só salto e mergulhou entre os arbustos ao lado.
Durante algum tempo, ouviu os passos que se
afastaram apressadamente, mas decidiu não se-
guir o exemplo de Marshall, embora soubesse
que dificilmente teria outra oportunidade tão
propícia para fugir.
Mas a nova situação exigia que permaneces-
se junto a Rabov para o que desse e viesse.
Aos gritos selvagens da luta corpo a corpo
misturaram-se de repente, exclamações de sur-
presa. Tornou-se evidente que os atacantes ti-
nham cometido um engano, tomando os adver-
sários por rebeldes. Em voz alta alguém intimou
Rabov e seus homens a se renderem. Disse que
poderiam ficar de posse das armas, mas que
era preciso negociar, antes de continuar com
essa carnificina inútil.
Essa proposta pareceu bastante sensata a
Rabov. Ordenou a seus homens que cessassem
o fogo. Todos obedeceram, menos quatro; mas
esses quatro nunca mais poderiam obedecer a
ninguém, pois estavam mortos.
127
O adversário inesperado também havia sofri-
do baixas mas, nessa confusão generalizada,
não era possível determinar prontamente o nú-
mero exato. Rabov estava novamente do lado
de Rhodan, a mão sobre a coronha da pistola
automática. Parecia não ter percebido que
Marshall havia fugido. Mas também podia ser
que soubesse do fato, e só não achava o mo-
mento propício para discutir o assunto.
Alguém acendeu um archote primitivo. Um
homem alto, de barba negra, atravessou o cír-
culo de luz e parou diante do sargento, no qual
devia ter reconhecido o comandante daquele
destacamento.
— Quem são vocês? — perguntou, em tom
arrogante. — Pertencem aos rebeldes?
— Podia fazer a mesma pergunta ao senhor!
— retrucou Rabov. A arma na sua direita apon-
tava para o chão. — O senhor matou quatro
dos meus homens!
— Quer dizer que não são rebeldes? É curio-
so. Então são homens do general Tomisenkow?
— E se for o caso?
— Não melhora em nada a situação... a sua,
bem entendido. Não queremos ter nada com
ninguém; nem com Tomisenkow, nem com
seus adversários!
— Se é assim, por que atacaram os rebel-
128
des?
O outro não deu resposta a esta pergunta.
Disse:
— Vamos continuar a conversar na aldeia.
Sigam-me até lá. Se forem sensatos, vai ser
fácil encontrar uma solução. Os sobreviventes
da aldeia já se aliaram a nós.
— A vocês; afinal de contas quem são vo-
cês?
O desconhecido estufou o peito.
— Eu sou Wallerinski, o presidente dos paci-
fistas.
Rabov acenou lentamente e lançou um rápi-
do olhar para Rhodan. Depois seus olhos fita-
ram os quatro soldados mortos, vítimas daquele
ataque de surpresa.
— Ah! Agora estou entendendo — disse ele,
e deu um suspiro. — Quer dizer que vocês são
pacifistas? Parece inacreditável, mas até em Vê-
nus já estão realizando um baile de máscaras de
dogmas humanos. Todo mundo trocou de pa-
pel e se disfarça com mantos alheios. Pacifistas
transformaram-se em assassinos e incendeiam
uma aldeia. Rebeldes tornam-se colonos pacífi-
cos e são escorraçados da sua gleba. Tropas re-
gulares levam uma vida de bandidos. Realmente
é uma situação muito clara e inequívoca!
— O que quer dizer com isso? — vociferou
129
Wallerinski furioso.
Rabov encolheu os ombros.
— Entendeu muito bem o que eu quis dizer!
— retorquiu e acrescentou: — Vá lá; vamos
acompanhá-lo. Mas vou avisando logo: não va-
mos permitir que nos trate como prisioneiros!
No íntimo, Rhodan teve de admitir que esta-
va simpatizando com o sargento Rabov.

***

Favorecido pela escuridão, Okura conseguiu


se manter perto da patrulha desde o momento
de sua fuga. Testemunhou o assalto e o sur-
preendente armistício e, quando viu Marshall
fugir, fez com que o australiano o encontrasse.
Juntos, começaram a seguir os dois grupos que
marchavam para a aldeia e se vigiavam mutua-
mente, abertamente desconfiados.
— Devíamos tirar Rhodan do meio daquele
pessoal — murmurou Okura, que não conse-
guiu se livrar de um certo sentimento de culpa.
Mas Marshall sacudiu a cabeça.
— Não é o que ele quer. Eu agora consigo
captar bem os seus pensamentos, e há mensa-
gens para nós no meio deles. Ele quer ficar jun-
to desse Rabov, porque só esse sabe onde Tho-
ra se encontra. No momento, ele não corre pe-
130
rigo. Se a situação se tornar crítica, quer que o
libertemos junto com Rabov. Mas, se possível,
sem derramamento de sangue.
— E como é que vamos saber se a situação
ficou crítica ou não? — objetou o japonês, ain-
da céptico. — Não gostei nem um pouco desse
cara que apareceu por último.
— Wallerinski? É um fanático inofensivo.
— Será que existem fanáticos inofensivos?
— observou Okura, que tinha suas dúvidas. —
Mesmo o fanático mais burro pode ser perigo-
so. Por falar nisso, gostaria de saber que causa
esse Wallerinski defende tão fanaticamente!
— O pacifismo! — respondeu Marshall som-
briamente. — Consegue ver bem agora?
— Lá na frente está a aldeia. Metade foi des-
truída pelo incêndio e os escombros ainda estão
fumegando. Os habitantes fugiram. Se a sua
afirmação foi correta, estamos diante da obra
de um pacifista.
Havia amargura nas palavras do japonês.
Sabia quantos abusos já tinham sido cometidos
em nome do pretenso pacifismo. E sabia isso
de experiência própria. Hoje, qualquer um en-
cobria as intenções agressivas sob o manto do
pacifismo e afirmava que suas ações serviam
unicamente à causa da paz. Graças a Deus, as
coisas haviam mudado desde que existia a Ter-
131
ceira Potência. Mas, em Vênus, a história da
Humanidade ainda se encontrava no limiar.
Okura e Marshall pararam na orla da clarei-
ra. Se avançassem mais, corriam o risco de se-
rem descobertos. Mas, mesmo que o japonês
perdesse agora Rhodan de vista, Marshall conti-
nuaria em comunicação com ele, se bem que
essa comunicação era apenas unidirecional. In-
felizmente o dom telepático de Rhodan era
muito limitado, porém ele sabia que Marshall
conseguia captar seus pensamentos. E foi desta
maneira que o australiano ficou sabendo de
tudo que se passava naquela aldeia, apesar de
não poder utilizar o rádio de pulso.
A ampla sala de reuniões estava repleta de
homens e também algumas mulheres, que per-
tenciam ao grupo rebelde. Wallerinski galgou
uma mesa, ergueu as duas mãos e pediu silên-
cio. Lançou um olhar ligeiro para um punhado
de prisioneiros no fundo da sala, certificou-se
que as saídas estavam devidamente guarnecidas
por sentinelas, e depois começou a falar.
— Homens e mulheres! — gritou com uma
voz autoritária e nada agradável. — A luta entre
nós terminou. Tomamos a resolução acertada
de nos unir. De agora em diante, vamos trilhar
juntos o caminho do futuro. Queremos que a
paz reine em Vênus, mas para que isso se torne
132
realidade é preciso eliminar uma última amea-
ça, a maior de todas. E essa ameaça é o gene-
ral Tomisenkow. Insiste em realizar o intento
suicida de atacar a base de Rhodan. Foi motivo
bastante para nos separarmos dele. Vocês fize-
ram o mesmo, se bem que por uma razão dife-
rente: querem se tornar colonos pacíficos e me-
lhorar suas condições de vida. Mas antes que
possamos nos dedicar ao nosso trabalho, Tomi-
senkow tem que ser eliminado, e é preciso in-
culcar nos seus homens a convicção de que
nossos objetivos são melhores. E para isso, pre-
cisamos de um líder.
Lá da porta alguém gritou:
— Wallerinski é o nosso líder! Vai nos trazer
a liberdade!
Rhodan acenou lentamente.
— É assim que começam todas as guerras!
— sussurrou, tão baixinho que só Rabov, que
estava ao seu lado, pôde ouvi-lo.
O sargento não respondeu. Pressentia que,
fatalmente teria que tomar mais uma decisão
portentosa. Só não podia imaginar o que essa
decisão envolvia.

Até nova ordem, o Exército de Mutantes de


133
Perry Rhodan ficou sob o comando de Reginald
Bell, ministro da segurança da Terceira Potên-
cia. Um dos efeitos da radiação liberada pela
bomba atômica de Hiroshima foi uma certa al-
teração no sangue das vítimas, e, pouco menos
de vinte anos após aquele terrível evento, apa-
receram os primeiros mutantes. Entre eles ha-
via telepatas, aos quais nenhum pensamento
dos seus semelhantes ficava oculto. Havia locali-
zadores, que captavam ondas encefálicas e po-
diam reconhecer o estado de ânimo de tercei-
ros. Havia ainda os telecinetas que, graças à
energia da mente, conseguiam locomover maté-
ria através de grandes distâncias. Já os telepor-
tadores empregavam a força do pensamento
para se desmaterializarem, o que lhes permitia
transportar a si mesmos através de longos per-
cursos.
O único membro extraterreno do exército
secreto dos mutantes era Gucky, o rato-castor
do planeta Vagabundo. Durante uma escala,
esse ser — que não chegava a ter um metro de
altura — havia se escondido sorrateiramente a
bordo da nave espacial e, a partir desse mo-
mento, pertencia ao reduzido círculo dos ami-
gos mais íntimos de Rhodan.
Isso podia parecer estranho mas, apesar do
seu aspecto, Gucky não era um animal. Era um
134
ser inteligente, capaz de pensar e raciocinar.
Sob a orientação de John Marshall, havia
aprendido inglês e até intercosmo: e agora esta-
va apto a se comunicar perfeitamente nesses
idiomas. Gucky costumava se sentar diante dos
visitantes de Rhodan, apoiando-se na cauda de
castor. E todos achavam aquela criatura “muito
engraçadinha”. Mas, invariavelmente, levavam
um susto tremendo quando de repente, dizia:
— Bem, e o senhor como tem passado, ca-
valheiro?
E ainda por cima era o melhor telecineta de
todo o corpo de mutantes! Foi um custo fazê-lo
perder o hábito de brincar voluntariamente com
essa faculdade; porém agora já não havia naves
espaciais que decolavam sem razão ou canhões
de radiação que disparavam sozinhos. Mas não
era só isso. Gucky possuía ainda vários outros
talentos, entre os quais se destacava uma extra-
ordinária capacidade telepática, ainda mal ex-
plorada. Tratava-se, enfim, de um verdadeiro
gênio universal.
Entre ele e Bell reinava uma espécie de an-
tagonismo amistoso, fato que se revelava toda
vez que se encontravam. Como hoje, quando
Bell convocou o Exército de Mutantes para ex-
plicar os detalhes da nova missão.
As solenidades foram encerradas com o dis-
135
curso de Bell e o mundo voltou ao dia-a-dia.
Bell se lançou ao trabalho. Estava preocupado.
O destróier de Rhodan tinha sido avistado pela
estação lunar para, em seguida, desaparecer na
direção de Vênus.
E, a partir daquele momento, não havia
mais notícias dele ou de Thora. As hiperesta-
ções radiofônicas mantinham os receptores li-
gados noite e dia, porém, nenhum comunicado
veio de Vênus. Isso foi o suficiente para que
Bell se lembrasse da ordem de Rhodan. Convo-
cou os mutantes, expôs a situação e lhes orde-
nou que se apresentassem a bordo do girino
número cinco, dentro de meia hora.
Aquela nave esférica, designada no código
das comunicações pela palavra girino, tinha um
diâmetro de sessenta metros, e era capaz de
voar com velocidade superior à da luz. Do pon-
to de vista terrestre, podia ser considerada
como a nave espacial perfeita; entretanto, ar-
cônidas a utilizavam apenas como nave auxiliar
dos seus couraçados espaciais da classe impé-
rio.
Bell finalizou sua exposição sucinta, dizendo:
— ...portanto, algo pode ter acontecido a
Rhodan. Exijo o máximo empenho de todos e
que ajam com rapidez e decisão. Vamos levar
cinqüenta soldados-robôs, além de dez caças es-
136
paciais com os respectivos pilotos. Alguma per-
gunta?
Bell olhou ao redor.
— Muito bem, então dentro de trinta minu-
tos; podem se retirar!
Ia sair rapidamente da sala, mas quase es-
barrou em Gucky, que estava ocupando o vão
da porta.
— Só uma perguntinha — disse o rato-cas-
tor, exibindo seu único dente roedor, o que sig-
nificava que estava rindo.
Mas isto não implicava que também estives-
se de bom humor. Bell sabia disso, ao menos
devia ter sabido.
— Fale logo, estou com pressa!
— Eu sou membro do Exército de Mutantes
e, portanto, vou participar dessa missão. Ou
não?
— Você? Quer ir a Vê nus para cometer
uma das suas travessuras? E causar confusão
geral? Nem pense nisso!
Bell ia forçar a passagem, porém Gucky blo-
queou o caminho.
— Vou contar isso a Rhodan! — ameaçou,
mudando de tática.
— Por mim, pode contar a ele o que você
quiser — grunhiu Bell e tentou em vão levantar
o pé. Era como se estivesse pregado ao chão.
137
— Pare com essa brincadeira, seu anão! Pren-
der o meu pé! Isto é insubordinação!
— Posso ir com vocês ou não?
Bell sentiu que o sangue lhe afluía à cabeça.
Alguns dos mutantes tinham se aproximado e
estavam começando a rir.
— Não pode, não! — decidiu Bell, se bem
que agora ainda poderia ter evitado uma derro-
ta ignóbil. — Não mesmo! Essa missão requer
homens, não um Mickey Mouse!
Não deveria ter dito isso. Gucky sentia-se
mortalmente ofendido toda vez que alguém o
apelidava de Mickey Mouse.
Bell sentiu que a pressão no seu pé estava
cedendo, mas isto pouco lhe adiantou.
De repente, se tornou leve como uma plu-
ma. Apoiado na cauda de castor, Gucky estava
sentado diante dele e o observava fascinado.
Exibia o dente solitário num riso manhoso. O
pêlo castanho da nuca se eriçou, formando uma
gola lanosa.
— É sua palavra definitiva? — estridulou,
tremendo de excitação.
A voz de Gucky já era esganiçada por natu-
reza, mas adquiria uma estridência fora do co-
mum quando o seu dono estava emocionado.
— É definitiva, sim! — berrou Bell, a plenos
pulmões, apesar de saber que não adiantaria
138
nada e quais seriam as conseqüências. Queixar-
se a Rhodan também seria totalmente inútil,
pois esse só iria rir dele a valer. Fato é que
Gucky tinha umas tantas regalias; e sabia tirar o
máximo proveito delas.
Uma ligeira rigidez apareceu no olhar meigo
de Gucky, sinal que estava se concentrando. E
Bell ficou definitivamente liberto da gravidade...
e começou a subir como um balão. Mãos invisí-
veis abriram a janela, e Bell flutuou para fora.
E lá ficou pairando, trinta metros acima do
piso de concreto, sustentado apenas pelas for-
mas telecinéticas de Gucky.
Exibindo um riso triunfante, Gucky bambole-
ou até a janela, galgou o parapeito com um sal-
to elegante, e pôs-se a observar o amigo, que
devolveu o olhar com uma expressão de raiva
impotente.
— Como é? — piou Gucky, alegremente. —
não vai mudar a sua decisão? Afinal, você tem
que admitir que eu sou um aliado bastante ca-
paz.
— É, mas duvido que consiga fazer flutuar
um sáurio — resmungou Bell e olhou para bai-
xo, apavorado. Seus pés estavam apoiados em
nada. — Além do mais, isso não passa de pura
extorsão!
— Que palavra mais feia! — indignou-se
139
Gucky e fez com que Bell caísse dois metros. —
Um homem educado não usa um termo desses!
— Não faz idéia dos termos que tenho em
mente em relação a você! Está bem; vou pensar
no caso. Mas agora me faça entrar!
— Quero saber se vou participar dessa mis-
são, ou não! — insistiu Gucky.
Parecia não tomar conhecimento da presen-
ça dos outros mutantes, que acompanhavam o
espetáculo com vivo interesse. Nenhum deles
ousou interferir, porque Bell poderia se estate-
lar no fundo. Mas Gucky não via perigo algum;
confiava nas suas forças.
Bell deu um aceno convulsivo e tentou en-
costar as mãos na parede do prédio.
— Está bem; você vem conosco, mas sob
uma condição.
— Qual é? — quis saber Gucky, desconfia-
do, e fez desaparecer o dente.
— Você tem que me prometer que vai se
comportar direitinho, e fazer tudo que eu lhe
mandar. E nada de travessuras em Vênus! En-
tendido?
O rato-castor fez Bell pousar suavemente no
peitoril e acenou vivamente com a cabeça.
— De acordo. Mas se você não cumprir sua
palavra, deixando-me aqui, vou fazê-lo voar
para a Lua sem traje espacial!
140
Sem uma palavra, Bell pulou do peitoril e se
dirigiu à porta.
A telepata Betty Toufry corou subitamente e
fixou um olhar estarrecido nas costas de Bell.
O ministro da segurança da Terceira Potên-
cia devia ter pensado uma imprecação terrível
e, ao mesmo tempo, bastante obscena.

***

O general Tomisenkow observou sua visita


inesperada com indisfarçada satisfação. Real-
mente, a sorte o havia bafejado além de qual-
quer expectativa. Thora havia caído nas suas
mãos! Logo Thora, a colaboradora íntima de
Rhodan! Logo ela, a arcônida, a quem Rhodan
devia todo o seu poder!
Tomisenkow pôs-se a matutar no que tinha
acabado de ouvir. Era preciso aprender a lidar
Com Thora, a não contrariá-la. Talvez assim
pudesse ser levada a revelar, um dia, alguns dos
segredos dos arcônidas. Seria tão absurdo ima-
ginar que isso pudesse acontecer? Tomisenkow
achava que não. Afinal, a nave de Thora não ti-
nha sido derrubada pelas armas do próprio
Rhodan?
— É lastimável, realmente lastimável! — dis-
se o general, cheio de simpatia. — E estão
141
achando que tudo não passou de um engano la-
mentável?
— Absolutamente não foi um engano — dis-
se R.17, com voz rangente. Parecia que tinha
chegado a época da sua revisão anual. Era pre-
ciso lubrificar, com urgência, alguns dos man-
cais da sua laringe artificial. — A instalação ele-
trônica de vigilância não nos reconheceu.
— Não acha possível que Rhodan mandou
derrubá-los de propósito para que não pudes-
sem penetrar na base de Vênus? — perguntou
Tomisenkow, ardiloso.
— Isto é absurdo! — objetou Thora. — Rho-
dan ainda não podia ter chegado aqui!
— Ah! Quer dizer, que ele ainda vem?
Thora mordeu os lábios. Volta e meia come-
tia o erro de subestimar os homens. Por pouco
não se traiu. Agora era tarde demais para tirar
Rhodan da jogada.
— É possível — disse ela, procurando uma
evasiva. — Tudo é possível. Talvez seja até pos-
sível ao senhor explicar por que pretende me
deter aqui. Sabe tão bem quanto eu que o meu
robô pode destruir todo seu acampamento. Vai
me fornecer agora as provisões pedidas e os
soldados? Ou quer que eu tente chegar lá sozi-
nha?
— Vai pensar duas vezes antes de empreen-
142
der algo contra mim, pois sozinha está pratica-
mente indefesa! Só com esse robô, nunca vai
chegar à base a mais de quinhentos quilômetros
daqui. Portanto, a senhora depende de mim.
Bem, quero me aproveitar da sua situação pre-
cária. Vou ajudá-la. Vou levá-la à base, caso as
barreiras não nos detenham.
— Essas reagem ao padrão dos cérebros ar-
cônidas, portanto, não constituem perigo.
— Ótimo! E, quando estiver diante da base,
o que vai fazer, e o que vai acontecer comigo?
— Pode regressar, são e salvo.
O general Tomisenkow deu um sorriso ma-
nhoso.
— Quanta generosidade de sua parte, nobre
arcônida! Quando Rhodan a salvou na Lua a
senhora o recompensou, dando-lhe o poder so-
bre a Terra. Agora eu a salvo aqui, e está que-
rendo me despachar com uma mera esmola.
Aliás, esmola coisa nenhuma! O que pretende
me dar já possuo há muito tempo. Segurança?
Essa eu tenho! Não, minha cara, se quiser che-
gar à fortaleza vai ter que pagar um preço con-
dizente... ou pode tentar ir sozinha!
Tomisenkow sabia que Thora jamais chega-
ria à base sem ajuda, um fato que ele pretendia
explorar. Além disso, era seu propósito, sepa-
rar Thora do robô na primeira oportunidade,
143
para aprisioná-la. Não existia refém melhor do
que Thora.
Principalmente se era verdade que Rhodan
estava se dirigindo para cá.
Nem por um instante Thora acreditou na
sinceridade desse homem. Agora mesmo pode-
ria ter dado uma ordem de aniquilamento total
a R.17. Mas, de que lhe valeria isso? Além dis-
so, ela não sabia com que armas os homens de
Tomisenkow estavam equipados. Talvez até
conseguissem eliminar o robô, e nesse caso ela
estaria perdida de fato. Pesou bem as palavras,
antes de pronunciá-las:
— Não tenho saída. Vou precisar do seu au-
xílio. Reconheço, também, que vou ter que pa-
gar por ele. Vamos aguardar o romper do dia.
Aí podemos discutir os detalhes. Até lá, peço
que me dê um alojamento para mim e o robô.
— Esse também precisa dormir? — pergun-
tou Tomisenkow, com ironia.
Thora sacudiu a cabeça e disse, reservada:
— Ele não. Mas eu preciso.

***

Rhodan, Rabov e seus homens não podiam


ser considerados como prisioneiros, na acepção
normal do termo. A começar pelo fato de que
144
puderam ficar de posse das armas. Foram aloja-
dos numa grande choupana, diante da qual
Wallerinski postou imediatamente algumas sen-
tinelas; não para vigiá-los, como afirmou, e sim
para protegê-los.
Rhodan pediu a Rabov que lhe devolvesse a
arma bem como a dos seus dois companheiros.
O sargento anuiu prontamente ao pedido. Tal-
vez pressentia que, num futuro próximo, neces-
sitaria do auxílio desse estranho misterioso.
— O que vai acontecer agora? — perguntou
Rhodan. Achava que Rabov devia conhecer me-
lhor a mentalidade dos seus patrícios. — Acre-
dita que o grupo de Wallerinski vai atacar as
tropas do general?
— É mais do que certo!
— E não acha que, na posição que ocupa,
tem o dever de alertar Tomisenkow?
Rabov vacilou. Aquele grupo de colonos re-
beldes, aos quais ele quis se unir, praticamente
não existia mais. Detestava Wallerinski por cau-
sa das suas frases empoladas. Nesse caso, seria
melhor ficar ao lado do general Tomisenkow.
Rabov acenou.
— Sei que é meu dever avisá-lo; mas como
vou sair daqui sem despertar suspeita?
— Não se preocupe com isso; eu só queria
saber de que lado o senhor está. Meus dois ami-
145
gos vêm nos buscar. Um deles consegue ver
mesmo de noite, e vai poder nos conduzir em
segurança através da escuridão. E eu recuperei
as minhas armas, com as quais eu poderia liqui-
dar essa bagunça toda em questão de segun-
dos... mas para que...
Rhodan se concentrou, esperançoso de que
Marshall pudesse captar seus pensamentos ago-
ra. Se o conseguisse, então ele e Okura já devi-
am estar a caminho da aldeia para libertá-lo.
Talvez não fosse também má idéia ir ao encon-
tro deles.
Virou-se para Rabov:
— Que sabe daquela mulher e do robô, cuja
nave foi destruída sobre o planeta? Ela está em
segurança?
— Está sim — Rabov arreganhou os dentes
— mas é uma segurança relativa. Faz muito
tempo que os nossos homens não vêem uma
mulher!
— Então não vão ficar muito contentes com
a sua prisioneira! — vaticinou Rhodan, irado.
Sabia que, se fosse preciso, o robô poderia
transformar Tomisenkow e sua força armada
em cinza radiativa; entretanto, violência não re-
solve problemas. — Diga a seus homens que
vamos apanhá-los mais tarde. Não temos mais
tempo a perder. Meus amigos já estão nos es-
146
perando. Lá na orla da floresta, em direção les-
te se não me engano.
Rabov deu suas instruções. Depois o sargen-
to e Rhodan saíram da choupana.
Quase no fim da rua ardia uma fogueira, ro-
deada por alguns homens, cujas silhuetas as
chamas revelavam. Provavelmente estavam
cansados e preferiam mil vezes estar dormindo.
Perto da choupana não havia ninguém.
Rhodan agarrou a mão de Rabov e confiou
mais na sua intuição do que nos seus olhos. En-
quanto caminhava, com passos seguros em di-
reção leste, pensava constantemente na sua po-
sição, para que Marshall tivesse mais facilidade
em encontrá-lo.
Se Marshall não estivesse dormindo agora.
Aquela aldeia semicalcinada ficou para trás.
Lá na frente, em direção ao bosque, estava fi-
cando mais escuro. Uma luz relampejou por al-
guns segundos. Depois Rhodan ouviu que al-
guém atravessava os arbustos com passos segu-
ros. Ninguém caminhava assim de noite, a não
ser que portasse uma lâmpada e pudesse ver.
— Okura?
— Sim!
Era como se o sopro de uma brisa alcanças-
se o ouvido de Rhodan através do silêncio da
escuridão. Claro, Okura não sabia quem estava
147
com ele. Um descuido de Marshall, não contar
esse detalhe ao japonês.
— Sou eu — sussurrou Rhodan. — Rabov
está comigo. Vai nos levar ao general Tomi-
senkow... e a Thora.
Rhodan sentiu que o sargento estremeceu.
— Vou levá-los a quem? — e, como não re-
cebeu resposta, acrescentou: — Thora! Não é a
arcônida?
E após mais uma pequena pausa perguntou:
— Quem é o senhor?
— Está tudo em ordem? — perguntou Rho-
dan e depois se dirigiu ao sargento: — Não se
preocupe inutilmente, meu caro Rabov. Apos-
tou no cavalo vencedor do páreo... mas ainda
pode escolher outro, se quiser. Leve-nos a To-
misenkow e deixe todo o resto comigo!
E assim aconteceu que três grupos diferentes
tencionavam fazer uma visita ao general desa-
parecido; claro que cada qual por razões pró-
prias... igualmente diferentes.
Bell vinha para procurar Rhodan, cujo para-
deiro ele desconhecia.
Wallerinski armou-se de violência para im-
plantar a paz onde não havia guerra.
E Rhodan queria libertar Thora que, por seu
lado, não fazia a menor questão de ser libertada
por Rhodan. Ao menos não agora.
148
6

A distância era relativamente pequena; por


isso Bell dispensou o salto através do hiperespa-
ço, não acelerando o girino número cinco até a
velocidade da luz. A Terra se tornou rapida-
mente uma estrela brilhante, o Sol passou pela
esquerda, e depois Vênus, radioso, dominou o
setor do céu diante da proa.
Um estalo acompanhou o desligamento do
piloto automático. Bell voltou a assumir o co-
mando da grande nave esférica. Conhecia per-
feitamente a localização da base em Vênus e,
pelos seus cálculos, havia constatado que ela
ainda se encontrava mergulhada na noite venu-
siana. O sol nasceria somente daqui a quarenta
horas.
Aos poucos, Bell começou a ficar intranqüi-
lo.
Se tudo tivesse decorrido normalmente, há
muito tempo Rhodan teria enviado alguma notí-
cia. Será que não tinha encontrado Thora na
base? E, se não, o que teria acontecido a Tho-
ra? Talvez ela nem tivesse se dirigido a Vênus,
ousando realizar um vôo interestelar com aque-
le destróier.
Bell virou a alavanca do intercomunicador e
149
estabeleceu a comunicação visual com a sala ra-
diofônica. Lá, Tanaka Seiko estava de serviço.
Seiko era japonês, técnico de altas freqüências,
e o rastreador do Exército de Mutantes. Sem o
auxílio de qualquer aparelho, conseguia captar
as ondas eletromagnéticas e, o que era mais
surpreendente, conseguia ouvir as emissões ir-
radiadas por homens, em todas as freqüências
de ondas. Não havia homem mais indicado
para a estação-receptora da nave.
Seu rosto apareceu na tela de visão.
— Chefe?
Bell gostava de ser chamado assim. Era um
sinal de respeito e admiração. Também não era
ele o substituto direto de Rhodan? Era algo que
encheria qualquer um de justo orgulho.
— Nada, ainda?
— Não captei um pio de Vênus até agora!
— Seiko sacudiu a cabeça. — E como se lá não
houvesse homem algum.
— O que provavelmente não está certo, por-
que, se eu me recordo direito, também as tro-
pas desaparecidas do Bloco Oriental possuem
aparelhos radiofônicos. Mas, o que me intriga
demais, é que nem Rhodan, nem Thora deram
sinal de vida até agora; isto é um bocado inquie-
tante!
— Os minitransmissores são fracos demais
150
para essa distância.
— Mas não os aparelhos do destróier!
— Talvez apresentaram algum defeito.
— O quê?! Os aparelhos radiofônicos dos
destróieres?
— Quem sabe...
Bell refletia febrilmente, mas não encontrou
qualquer explicação. Seria possível?... Não, era
melhor nem pensar nisso! Aliás, não havia ra-
zão para isso. Pois, quem poderia ter impedido
Rhodan de pousar em Vênus? A instalação de
vigilância positrônica da hiperestação o reco-
nheceria, evidentemente.
— Está bem, Seiko, mantenha o receptor li-
gado. E comunique imediatamente qualquer no-
vidade. Vou agora iniciar as manobras de pou-
so.
Vênus, uma bola brilhante, já tinha se apro-
ximado bastante. O lado direito ainda estava na
escuridão. Mediante uma pequena evolução,
Bell colocou a nave exatamente sobre a zona
da meia luz. Depois, começou a baixar.
Quando o casco da nave entrou em contato
com as camadas superiores da densa atmosfera,
o girino número cinco foi sacudido por um vio-
lento abalo que arrancou Bell da poltrona. En-
quanto se levantava, meio aturdido, perscrutan-
do rapidamente os controles, a porta da central
151
se abriu e vários dos mutantes entraram corren-
do.
Ralf Marten segurou-se na parede.
— O que está se passando com você, Bell?
Está querendo nos matar a todos?
Bell lançou um olhar de desprezo para aque-
le teuto-japonês, esguio e de cabelos escuros.
— Está com medo? Mas, honestamente, eu
mesmo não sei o que aconteceu. Espere um
momento, Seiko está me chamando.
O rosto do telegrafista estava lívido quando
apareceu na tela de imagem. Mexia nos seus
aparelhos.
— Mensagens radiofônicas — disse ele, sem
interromper os manejos. — Da hiperestação.
Deve ser o cérebro positrônico. Recusa a per-
missão para o pouso.
— O quê? — berrou Bell. Seus cabelos cur-
tos e ruivos se ouriçaram ameaçadoramente e
transformaram-se numa verdadeira escova de
aço. Uma ira repentina brilhava nos seus olhos.
— Que idéia maluca é essa? Pergunte a esse
robô idiota qual a razão da sua recusa!
Bem que Seiko tentou, mas seus esforços fo-
ram em vão. Com uma obstinação irritante, a
instalação do cérebro positrônico enviava cons-
tantemente a mesma mensagem, sem tomar
conhecimento das tentativas desesperadas do
152
japonês.
— A chave secreta X foi ativada. Qualquer
aproximação na atmosfera de Vênus será impe-
dida com o campo repulsor hiper-gravitacional.
Repito: a chave secreta X foi ativada...
Repetia essa mensagem incessantemente,
como se estivesse gravada numa fita sem fim.
Finalmente Bell desistiu, e ordenou a Seiko
que vasculhasse toda gama de freqüências, à
procura de algum outro sinal radiofônico. Desli-
gou o intercomunicador e se dirigiu a Marten:
— Nessas condições, Rhodan também não
conseguiu pousar. O cérebro positrônico deve
ter enlouquecido.
Bell não podia saber que esse procedimento
estranho nada mais era do que uma conseqüên-
cia lógica dos acontecimentos precedentes. O
próprio Rhodan havia programado a chave se-
creta X no cérebro positrônico durante a sua úl-
tima visita à base venusiana.
O cérebro tinha recebido a ordem de erigir o
campo repulsor indistintamente diante de qual-
quer um, conhecesse ele o código ou não, se
antes tivesse registrado alguma ocorrência que
pudesse ser considerada suspeita.
E esse estado de programação havia sido
atingido naquele instante em que o cérebro der-
rubou os dois destróieres. Eram naves da frota
153
de Rhodan, sem dúvida, mas não conheciam o
código secreto.
O girino número cinco também era uma
nave de Rhodan, e essa conhecia o sinal. Mas
agora já era tarde demais. O campo repulsor
havia sido erigido e só podia ser novamente eli-
minado por uma chave especial dentro da forta-
leza.
Somente um arcônida, ou o próprio Rho-
dan, podiam penetrar na base, graças ao pa-
drão característico das suas ondas encefálicas.
E com isto tinha se chegado a um ponto
morto, que só poderia ser superado por Thora
ou Rhodan, mas nunca por Bell.
No momento talvez fosse até bom que Bell
não soubesse disso. Sua raiva daquele cérebro
positrônico teria atingido proporções incomen-
suráveis.
A nave esférica girava em torno de Vênus a
uma altura constante. Não podia baixar mais,
porque aquele anteparo energético a impedia
de fazê-lo. Ver, também não se via nada, já que
os aparelhos eram incapazes de perfurar a den-
sa camada de nuvens. Apenas Wuriu Sengu,
com sua visão raio-X, conseguia enxergar a su-
perfície do planeta. A sua faculdade de poder
trespassar a matéria sólida com o olhar propor-
cionou-lhe a oportunidade de ver selvas, pânta-
154
nos, mares e cordilheiras, mas isso em nada
contribuía para sair do impasse.
— Agora eu tenho certeza — murmurou
Bell, desesperado — que algo aconteceu a Rho-
dan. Se a culpa for daquele cérebro positrônico,
vou transformá-lo em sucata com estas minhas
mãos!
Ralf Marten sacudiu a cabeça.
— É um propósito meio difícil de realizar,
porque ninguém, repito, ninguém pode pousar
em Vênus no momento. O planeta encontra-se
totalmente isolado. Não sei o que aconteceu,
mas sei que as instalações automáticas da base
são de uma confiabilidade a toda prova. Não há
poder no mundo que possa impedi-las de cum-
prir rigorosamente com o seu dever.
— Dever! — gemeu Bell, nervoso. — O que
esse monturo idiota de lata entende de deveres?
Era sua maldita obrigação ajudar a nós e a Rho-
dan. Em vez disso... bolas!
Chamou Seiko na central radiofônica.
— Precisa emitir constantemente e procurar
estabelecer uma ligação com Rhodan. Deve es-
tar lá embaixo, entre selvas, pântanos e sáurios.
Com um suspiro, que denotava sua profun-
da aflição, recostou-se na poltrona do piloto e
se entregou aos seus pensamentos sombrios.
E por baixo da nave rodava, com infinita
155
lentidão, o planeta encoberto, que se recusou a
revelar os seus segredos.

***

Durante a descida do platô notaram os pri-


meiros indícios da aurora.
Longe, no leste, Rhodan vislumbrou um tê-
nue brilho na escuridão impenetrável. Os pri-
meiros raios lançaram-se do horizonte para as
camadas superiores das nuvens, tingindo-as
num tom róseo. Mas a luminosidade se alastra-
va muito lentamente e, no momento, era im-
possível definir a posição do sol atrás daquela
faixa de claridade incipiente.
Isto ainda levaria horas.
Durante a marcha através da escuridão da
noite venusiana, Okura os havia alertado cons-
tantemente contra todos os obstáculos que en-
contrava e, assim, conseguiram chegar até aqui
em segurança. Não havia sinal de possíveis per-
seguidores, e era mais do que provável que só
daqui a algumas horas a sua fuga seria desco-
berta.
Isso servia aos propósitos de Rhodan. Não
tinha a menor intenção de se intrometer na bri-
ga daquelas tropas de invasão desbaratadas, as
quais, no íntimo, já considerava como os pri-
156
meiros colonos venusianos. Mas não deixaria
de alertar Tomisenkow; se conseguisse chegar
até ele. E isto, pensou Rhodan, ainda era meio
incerto.
Entre os dois platôs, estendia-se a baixada
com seus pântanos traiçoeiros. Rabov disse que
a travessia era menos perigosa à noite, porque
assim que o dia raiasse os sáurios despertavam
e saíam do seu esconderijo à procura de ali-
mento. Disse, ainda, que na grande maioria
eram herbívoros, o que, porém, não os impedia
de atacarem outros seres vivos, se neles vissem
concorrentes ou intrusos indesejáveis.
Rhodan e seus companheiros confiavam ple-
namente nas suas infalíveis armas energéticas e
tranqüilizaram Rabov, que portava apenas a pis-
tola de serviço, com a qual, realmente, não po-
deria enfrentar aqueles gigantes pré-históricos.
Víveres não constituíam preocupação, porque
ainda possuíam algumas provisões e alcançari-
am o acampamento de Tomisenkow dentro de
vinte horas, na pior das hipóteses. E, se a água
escasseasse, poderiam se reabastecer no rio
que atravessava a baixada.
Quando chegaram ao local, onde Rabov os
havia capturado de surpresa, já havia claridade
suficiente para poder reconhecer a vizinhança
imediata. E não ficaram muito satisfeitos com o
157
que viram.
A queda d’água precipitava-se num rio, que
corria velozmente e desembocava num imenso
lago. Ao longo das margens desse lago, expli-
cou Rabov, serpenteava o caminho através da
baixada. A margem era constituída por mata
cerrada, da qual se levantava um denso nevoei-
ro que se mesclava com as nuvens baixas. A
leste, uma mancha difusa pairava na neblina
mormacenta — o sol.
Havia movimento no lago. Aqui e acolá, via-
se um remoinho e depois apareciam os enor-
mes corpos de sáurios dos mais diversos tipos
que, de uma maneira geral, apresentavam gran-
de semelhança com aqueles que, em priscas
eras, tinham povoado a Terra. Alguns perma-
neciam na água rasa e começavam a pastar em-
baixo da superfície. Estes eram os menos peri-
gosos.
Outros, porém, nadavam ou caminhavam
pesadamente até a margem, galgavam a terra
firme e, bamboleantes, desapareciam na flores-
ta, onde se dedicavam a devorar pequenas ár-
vores sem a menor dificuldade.
Rhodan havia assistido àquela movimenta-
ção com olhos semicerrados. Soltou um suspiro
e disse a Marshall:
— Até que enfim vai poder verificar se sáu-
158
rios pensam, e o que eles pensam. Acredita que
os cérebros deles são capazes de emitir corren-
tes de pensamentos?
— E por que não? — respondeu o telepata,
pensativo. — Tenho para mim que os pensa-
mentos deles não devem lá ser coisa muito sen-
sata ou lógica, mas seria muita presunção ne-
gar-lhes qualquer capacidade de pensar. Todo
ser vivo pensa, até a formiga. Só o homem tem
a pretensão de achar que é o único ser racional.
Isto o distingue do animal, mas de forma algu-
ma no sentido positivo. Bem, nós astronautas
somos diferentes daqueles que nunca tiraram o
pé da Terra. Se tínhamos algum preconceito, o
perdemos pelo contato com o universo. Sabe-
mos que a raça dominante de um planeta pode
ter o aspecto de um réptil, e isto fez nascer em
nós o respeito pelo animal terrestre. Involuntari-
amente, não vemos num cachorro apenas o
animal mas, sim, um verdadeiro ser vivo, que só
se distingue de nós, pelo fato de pensar de ma-
neira diferente.
— Quer dizer que vê um parentesco entre a
nossa capacidade de aceitar raças estranhas e
extraterrenas e o amor que dedicamos ao ani-
mal da Terra? — espantou-se Rhodan, apesar
de estar começando a imaginar qual seria a co-
nexão.
159
— Perfeitamente — disse Marshall, em tom
convicto. — Pode ser atrevimento de minha
parte, mas vou mais longe ainda. Na minha
opinião, apenas quem ama verdadeiramente os
animais está em condições de avançar universo
adentro e estabelecer contato com os habitan-
tes de planetas estranhos. Somente um homem
desses possui a compreensão necessária para
não recuar horrorizado diante de formas de vida
as mais impossíveis. Ao contrário, vai aceitá-las
como são e reconhecer que têm os mesmos di-
reitos; fato que, algum dia, poderá ser decisivo
no estabelecimento da paz em todo o universo.
Rhodan não deu resposta. Olhou para a sel-
va mormacenta lá embaixo; sabia que outro
não tinha sido o aspecto das planícies na Terra,
milhões de anos atrás. Naquela era, o animal
havia sido o soberano do planeta, porque o ho-
mem só apareceu muito mais tarde. Devia a sua
existência ao animal, assim como o animal à
planta. Sucedendo-se, um substituía o outro, e
todos eram interdependentes. Um não existiria
se não tivesse havido o outro. E nem um podia
passar sem o outro.
E apesar disso, todos viviam da luta entre
si...
Rhodan arrancou-se dos pensamentos.
— Não vai haver problemas; não há sáurio
160
que resista aos nossos irradiadores de impulsos.
Só espero não ter que matar muitos. Eles per-
tencem a esse mundo, e esse mundo é deles.
Vamos indo.
Rabov ia na frente, seguido de Rhodan, en-
quanto Marshall e Okura formavam a retaguar-
da. Alcançaram rapidamente a margem do ex-
tenso lago pantanoso, mas Rabov se manteve
suficientemente afastado para não terem que
atravessar terreno molhado demais. Debaixo
das gigantescas árvores, o chão ainda se apre-
sentava relativamente seco, era praticamente
impossível que aqui topassem com algum sáu-
rio.
Tudo estava correndo satisfatoriamente, até
que contornaram a última enseada, deixando o
lago para trás. Não tinham escolha. Teriam que
atravessar um capinzal de uns cinco quilômetros
de largura, onde só em alguns pontos espalha-
dos se erguia uma árvore solitária. Aqui, o ca-
pim atingia uma altura de cinco metros, o que
lhes tolhia inteiramente a visão. O chão era
úmido e cedia. Caminhavam como que por
cima de uma esponja gigantesca, e nem de lon-
ge se sentiam tão seguros quanto na selva.
Rabov apontou em direção ao alvo, que se
destacava das névoas arroxeadas como um blo-
co de cor escura.
161
— Esta é a trilha que costumávamos percor-
rer; mas só à noite. Daqui a pouco voltamos a
pisar em terreno seco.
Apressou os passos para sair o mais depres-
sa possível da zona perigosa. Rhodan o seguiu,
vigilante, de arma na mão.
De repente, Rabov emitiu um grito agudo,
arrancou a pistola do cinto e disparou o pente
inteiro na floresta de capim à sua frente. Depois
recuou e esbarrou contra Rhodan, que teve difi-
culdade para se manter em pé.
Okura esticou o braço e apontou para a
frente, onde os colmos do capim subitamente
se separaram. Rhodan pensou que o sangue
fosse lhe congelar nas veias quando viu o mons-
tro que se arrastava em direção a eles, sem se
importar com os projéteis de Rabov, que havi-
am ricocheteado em sua pele. Devia ter uns dez
metros de comprimento e se assemelhava a um
dragão pré-histórico. Deslocava-se sobre quatro
patas e nas costas ostentava uma crista, consti-
tuída por placas ósseas. Os olhos na pequena
cabeça brilhavam com uma expressão traiçoei-
ra. Da boca larga do réptil, pendiam tufos de
capim e raízes de árvores.
— Um estegossauro — murmurou Rhodan,
indeciso. — A rigor, é um herbívoro inofensivo.
Se não estivéssemos exatamente no seu cami-
162
nho...
— Atire logo — implorou Rabov, tremendo
como vara verde. — Vai nos esmagar! Eles ata-
cam os homens, eu já vi isso mais de uma vez!
Marshall se afastou um pouco para o lado e
ergueu a arma. Rhodan olhou para ele e sacu-
diu a cabeça.
— Aguarde, Marshall.
Okura parecia compreender que, apesar da
situação, Rhodan queria ganhar tempo para fa-
zer uma experiência. Por isso, também se afas-
tou da trilha, mantendo-se quase oculto no ca-
pim que a margeava. Rhodan acenou quase im-
perceptivelmente, nas não desviou o olhar do
estegossauro.
O enorme animal arrastava o corpo pesado
através do capim, aproximando-se cada vez
mais. Seguia os movimentos dos homens com
olhos ágeis, porém não fez qualquer menção de
atacá-los. Rhodan havia agarrado Rabov pela
mão, puxando-o para perto de si. A poucos
metros de distância, o sáurio passou pelos ho-
mens, sem lhes dedicar maior atenção. Esma-
gou o capim à sua frente como um rolo com-
pressor, deixando atrás de si uma verdadeira es-
trada de uns quatro ou cinco metros de largura,
pela qual arrastava a cauda couraçada. Segun-
dos depois, voltou a pastar pacificamente.
163
Quando Rhodan se virou com um sorriso
triunfante para Marshall, viu a expressão de es-
panto no rosto deste.
— Pensou! — murmurou Marshall, ainda
aturdido. — Esse bicho pensou!
— E o que foi que pensou?
Marshall sacudiu a cabeça.
— Pensou com tanta clareza que cheguei a
acreditar que um homem estivesse diante de
mim!
— Diga logo o que o bicho pensou,
Marshall! Será que o monstro o desnorteou?
— O que pensou foi o seguinte: “Será que
vale a pena esmagar estas pragas nocivas?”
— Pragas nocivas?
Marshall acenou.
— Sim, foi isso que ele pensou; e se referiu
a nós!
Rhodan deu um sorriso fraco.
— Não é muito lisonjeiro, mas reforça a teo-
ria a respeito da qual estávamos filosofando ain-
da há pouco. Que é impressionante, é. Mas va-
mos embora; não temos tempo a perder. De
qualquer maneira, estou satisfeito que não foi
preciso matá-lo. O bicho pensou, e por isso
merece viver.
Percorreram alguns metros da estrada aberta
pelo estegossauro; depois Rabov enveredou
164
pela direita. Não tinha entendido uma única pa-
lavra da conversa e devia achar que os seus três
companheiros haviam ficado birutas. Mas não
se atreveu a fazer perguntas.
Pouco depois, chegaram àquele paredão
quase a pique, e iniciaram a escalada. Seguiram
por uma trilha bastante batida e duas horas de-
pois alcançaram a beira do platô.
Rabov olhou cuidadosamente ao redor, mas
parecia não encontrar o que estava procurando.
Um pouco perplexo, virou-se para Rhodan.
— Não vejo as sentinelas. Isto é estranho.
Normalmente havia dois homens postados aqui.
— O acampamento de Tomisenkow fica
longe? — perguntou Rhodan; já havia recoloca-
do a arma no cinto.
— Uns dez minutos, não mais do que isso.
— Então vamos.
O fato de não ter encontrado sentinelas pa-
recia preocupar Rabov sobremaneira. Simples-
mente não lhe entrava na cabeça que Tomi-
senkow tivesse relaxado de tal maneira sua ha-
bitual vigilância. Logo ele, que era a desconfian-
ça personificada.
— Atrás daquelas rochas se encontram as
primeiras cabanas — murmurou Rabov, e ia
acrescentar mais alguma coisa, porém os acon-
tecimentos que se precipitariam nos próximos
165
segundos impediram que o fizesse.
Era como se o inferno tivesse explodido.
Um silvo agudo fez com que Rhodan e seus
dois companheiros se jogassem ao solo, numa
fração de segundo. Rabov, porém, não reagiu
com a mesma rapidez. Onde estava, foi atingi-
do pela saraivada de uma metralhadora, oculta
entre os arbustos. Cambaleou durante uns dois
ou três segundos, depois tombou pesadamente
ao chão.
Agora estavam sem guia, e teriam que achar
sozinhos o caminho que levava a Thora. Rho-
dan sabia disso. E não precisava se certificar. E
sabia também que...
Uma dor lancinante varou-lhe o ombro direi-
to. Era como se alguém o tivesse trespassado
com um ferro em brasa. Também tinha recebi-
do um tiro.
O general Tomisenkow devia ter concentra-
do suas tropas na aldeia, substituindo as senti-
nelas e postos avançados por uma instalação de
defesa automática. E isto significava morte certa
para quem tentasse se aproximar da aldeia.
Marshall já sabia o que tinha acontecido.
Apesar das balas sibilantes, ergueu-se de um
pulo e se aproximou de Rhodan para examiná-
lo.
— Felizmente o tiro não afetou nenhum
166
osso. Mas temos que sair daqui. Okura, ajude-
me.
Rhodan gemia de dor, contudo tentou auxili-
ar Marshall e o japonês, quando o arrastaram
alguns metros para trás. E, como por encanto,
cessou de repente o matraquear das metralha-
doras ocultas por toda parte. Rhodan e os com-
panheiros já se encontravam fora da zona de
bloqueio.
Rabov estava morto. Nunca mais necessita-
ria de ajuda. Ao menos, não precisava mais se
decidir a favor de Wallerinski ou de Tomi-
senkow.
Marshall e Okura sentiram-se aliviados quan-
do Rhodan declarou que estava em condições
de caminhar sozinho. Por via das dúvidas am-
pararam-no, um de cada lado, e trataram de co-
locar distância entre eles e aquela traiçoeira ar-
madilha mortal. Contra esta, nem mesmo os ir-
radiadores de impulsos seriam eficazes, porque
não se conseguia discernir alvo algum.
Longe, atrás deles, ouviram uma voz de co-
mando e um tiro solitário. Alguns homens grita-
ram e depois fez-se novamente silêncio.
— Vamos ficar no platô? — quis saber
Marshall.
Rhodan reprimiu suas dores.
— Por enquanto, podemos nos abrigar na-
167
quela floresta, à direita. Não consegue descobrir
o que esses homens pretendem? Afinal, a dis-
tância não é tão grande assim.
— Vou deixar isso para mais tarde, quando
tiver sossego suficiente para me concentrar —
observou Marshall. — Primeiro, precisamos
levá-lo a um lugar seguro e tratar do seu feri-
mento.
Rhodan resolveu não dar resposta. Sabia
que podia confiar nos companheiros; além dis-
so, precisava poupar suas forças.
Penetraram profundamente na floresta que,
aqui, não era muito densa e finalmente encon-
traram uma gigantesca árvore, de tal maneira
enleada por trepadeiras que seria fácil galgá-la.
Rhodan praticamente dispensou auxílio, pois só
precisou da mão esquerda para se alçar pouco
a pouco. Vinte metros acima do solo da flores-
ta, encontraram um galho bastante largo e.
achatado, que se estendia quase na horizontal,
perdendo-se no emaranhado dos galhos vizi-
nhos. Uma verdadeira cortina de cipós pré-his-
tóricos oferecia proteção para todos os lados.
Haviam encontrado uma cabana natural no alto
da árvore e que, mais tarde, ainda poderiam re-
forçar por meio de galhos flexíveis.
O ferimento de Rhodan não era grave; a
bala havia atravessado o ombro de lado a lado.
168
Marshall aplicou um curativo e fez Rhodan to-
mar um remédio contra febre. Dez minutos de-
pois, a respiração regular do ferido mostrou que
tinha caído no profundo sono da convalescen-
ça. Mas Okura e Marshall continuavam intran-
qüilos.
— Bem, cá estamos — disse Okura, sussur-
rando, a fim de não acordar Rhodan. — Thora
caiu nas mãos desse Tomisenkow, e nós esta-
mos trepados nessa árvore como macacos inde-
fesos, e esperamos que aconteça um milagre. E
Bell? Deus sabe onde se encontra. Não deve es-
tar se precipitando; também não tem noção
que tudo saiu ao contrário. Mas, a essa altura,
devia começar a se preocupar um pouco.
É claro que Okura não podia saber que Bell
estava bem acima deles, girando em torno de
Vênus no girino número cinco, igualmente à es-
pera de um milagre que lhe permitisse o pouso
nesse maldito planeta. O aparelho radiofônico
estava em funcionamento ininterrupto, tentan-
do estabelecer comunicação com alguém. O re-
ceptor permanecia mudo.
Com uma expressão melancólica, Marshall
checou as provisões.
Constatou que eram bastante minguadas.
— Não dá para agüentar muito tempo —
disse ele — a não ser que voltemos a caçar.
169
— Só daqui a três ou quatro dias Rhodan vai
poder mexer novamente o braço — constatou
Okura. — Ao menos até lá devíamos ficar na
proteção dessa cabana.
— Ah! — resmungou Marshall e se acomo-
dou. — Eu vou dormir. Vai ficar acordado?
— Se eu não ficar, quem fica? — respondeu
Okura, com um sorriso cansado. Ajeitou-se da
melhor maneira que pôde, com as costas apoia-
das no tronco da árvore, e colocou o irradiador
de impulsos sobre os joelhos.

***

Após algumas horas de sono e uma refeição


reforçada, Rhodan recuperou a costumeira
energia. Graças aos excelentes medicamentos,
a ferida sarou, e já começara a cicatrizar. Em
instante algum chegou a estar com febre.
Analisaram a situação.
Depois de terem considerado todos os pon-
tos, Rhodan fez um resumo:
— ...portanto, é uma ilusão pensar que po-
demos estabelecer contato com Tomisenkow.
Guarda Thora como a menina dos olhos, e não
vai perder a oportunidade de fazer umas tantas
exigências para libertá-la. De Bell, não temos
notícia alguma. Já deve ter pousado na base há
170
muito tempo; a não ser que o cérebro posi-
trônico ativou a chave secreta X programada
por mim. Nesse caso, é claro que não vai poder
pousar; aliás, ninguém mais pode pousar em
Vênus.
— Se for assim, como vão poder nos resga-
tar? — perguntou Okura, preocupado.
— Só resta uma única possibilidade: vou ter
que alcançar a base a pé, para poder reprogra-
mar o cérebro positrônico. Mas isso fica para
depois. Antes, quero libertar Thora.
— Mas o senhor acabou de dizer... — come-
çou Marshall, porém logo emudeceu. Devia ter
vasculhado indiscretamente os pensamentos de
Rhodan. — Tinha me esquecido dela! — mur-
murou, concluindo sua observação.
Okura olhou de um para o outro sem enten-
der nada. Não sabia ler pensamentos e, assim,
também não sabia a que Marshall estava se re-
ferindo. Rhodan notou a perplexidade do japo-
nês e pôs-se a explicar do que se tratava.
— Quando, muitos anos atrás, pousamos
pela primeira vez em Vênus, topamos com
aquelas focas semi-inteligentes nas margens do
mar pré-histórico. Nossos telepatas consegui-
ram se comunicar com elas, e acabamos por
nos dar muito bem com esses seres. Houve até
uma ocasião, em que pude auxiliá-los, pres-
171
tando-lhes um grande favor. Talvez não tenham
esquecido isto e estejam prontos a saldar sua
dívida de gratidão. Seria um absurdo se quisés-
semos todos os três empreender a longa mar-
cha para aquele mar, que se situa no leste. E só
um telepata pode se comunicar com estas focas
e lhes explicar o que desejamos delas. Vamos
discutir os detalhes mais tarde, mas acho difícil
que encontremos uma solução melhor.
— Um telepata?! — gemeu Marshall e em-
palideceu um pouco. — Portanto, está se refe-
rindo a mim! Eu... marchar sozinho através des-
sa floresta?
Brincou nervosamente com a larga pulseira,
que abrigava uma série de instrumentos minús-
culos.
— Não acha melhor tentar estabelecer co-
municação com Bell?
— Isso também, mas se a chave secreta X
foi ativada, a tentativa não vai nos ajudar em
nada. As focas conhecem o caminho para a
base e, portanto, podem nos guiar. Não adianta
estrebuchar, Marshall, não vai poder escapar ao
seu destino. Okura e eu vamos permanecer
aqui, aguardando o seu regresso. Se ocorrer
algo de novo em relação a Tomisenkow, vamos
deixar uma mensagem para você neste local.
— E as provisões? Vamos viver de quê?
172
— Tem a sua pistola e pode caçar — tran-
qüilizou-o Rhodan. — Nós vamos tentar fazer o
mesmo com os irradiadores de impulsos.
— Não é necessário — asseverou Okura e
puxou uma pesada pistola do bolso. — Não vi
razão alguma — acrescentou, como que a se
desculpar — para deixar a arma de Rabov cair
nas mãos dos homens de Tomisenkow. Essa
pistola nos garante mais carne do que podemos
comer.
Rhodan acenou, satisfeito.
— Ótimo! Então está tudo decidido,
Marshall. Sugiro que agora durma mais algumas
horas. Depois vamos discutir os detalhes finais.

***

Já era dia em Vênus. A claridade havia atra-


vessado o teto da floresta, removendo todos os
véus ocultantes da noite. A cabana na árvore
flutuava num mar de orquídeas multicoloridas,
que pareciam enormes águas-vivas boiando
num lago verde. Escaravelhos coloridos rasteja-
vam, apressados, sobre os galhos e troncos.
Mais acima, ouviam-se os grasnidos e gorjeios
dos habitantes alados da selva.
Com certo desânimo, Marshall se despediu
de Rhodan e Okura, e desceu do esconderijo.
173
Lá embaixo, ainda parou por um instante, e
acenou para os companheiros. Depois se virou
e iniciou a longa marcha para leste, em direção
àquele mar pré-histórico. Viram-no desaparecer
na vegetação cerrada e, pouco depois, já não
ouviam mais os passos cautelosos.
Agora Rhodan e Okura estavam sozinhos
naquela cabana no alto da árvore.
Por enquanto, estavam condenados à inativi-
dade. Teriam que aguardar o regresso de
Marshall. Mas isso poderia levar vários dias. Se-
ria dia claro por mais cento e vinte horas. Se
Marshall conseguisse realizar sua tarefa dentro
desse prazo, teriam dado um grande passo para
a frente. Se não...
Okura brincava distraidamente com a pulsei-
ra de utilidade múltipla quando, de repente, ou-
viu uma voz baixa que emanava do alto-falante
do minitransmissor:
— ...chamando Perry Rhodan; atenção, es-
tamos chamando Perry Rhodan; responda
Perry Rhodan!
Aquela voz estava se tornando cada vez mais
alta, como se o emissor estivesse se aproximan-
do a grande velocidade. Repetia essa mensa-
gem sem cessar.
Rapidamente Okura ligou o rastreador e
olhou quase verticalmente para cima. Uma ex-
174
pressão de dúvida se delineou no seu rosto.
Rhodan deu um sorriso, que era um misto de
contentamento e resignação.
— É a voz de Bell, Okura. Acuse o recebi-
mento da mensagem!
Segundos depois, ouviram Bell soltar um gri-
to alto, que denotava surpresa ao mesmo tem-
po que alívio.
— Com mil diabos, Rhodan, onde é que
você está? Estou procurando você como uma
agulha no palheiro. Por que você não entrou
em contato antes?
— Calma Bell, uma coisa depois da outra.
Onde você se encontra?
— A bordo do girino número cinco e não
posso pousar. Aquele maldito cérebro positrôni-
co...
— Bem que desconfiei que fosse isso! — in-
terrompeu Rhodan e suspirou. — Aquela chave
secreta foi ativada e ninguém pode pousar em
Vênus. É, Bell, não tem remédio; você vai ter
que voltar à Terra e aguardar o meu chamado.
Vou tentar chegar à base. No momento, você
não pode me ajudar!
— E Thora?
— Está em boas mãos — respondeu Rho-
dan, com um ligeiro traço de ironia.
— Não vou voltar para a Terra! — disse
175
Bell, de repente. Sua voz já soava novamente
mais baixa, porque a distância estava aumen-
tando. — Vou circular por aí, até poder pousar.
E fim do papo!
Quando Bell dizia fim do papo, nada mais
podia alterar o seu ponto de vista. Rhodan sa-
bia disso.
— Muito bem, por mim pode ficar orbitando
em torno de Vênus o tempo que quiser. Okura
e eu vamos brincar de Tarzan aqui na floresta,
enquanto Marshall negocia com as focas venusi-
anas. No momento, está tudo na mais perfeita
ordem. Recomendações minhas aos mutantes!
A resposta de Bell veio tão débil que se tor-
nou ininteligível; mas Okura estava pronto a ju-
rar que tinha sido um palavrão.
Rhodan deu um sorriso meio forçado. Vol-
tou a sentir dores. Recostou-se contra aquela
cortina de cipós gigantes. Acima da sua cabeça
pendia uma orquídea cor de sangue, do tama-
nho da cabeça de um homem.
— Vai ficar xingando o tempo todo ou eu
não o conheço. Não há coisa que ele deteste
mais do que ficar de mãos atadas, enquanto os
outros estão mergulhados até o pescoço nas
aventuras mais malucas.
— E nem pode assistir ao espetáculo! — dis-
se Okura, sorrindo, e apontou para o alto, onde
176
a eterna camada mormacenta pairava acima do
teto da floresta.
Rhodan fechou os olhos e acenou.
Pensou no quanto tinha que realizar. Tarefas
gigantescas o aguardavam. Havia iniciado a
obra da sua vida ainda outro dia, mal tinha lan-
çado a pedra fundamental. Em algum lugar da
Via Láctea, o Grande Império estelar dos ar-
cônidas estava começando a desmoronar. Tal-
vez, neste preciso instante, a anos-luz de distân-
cia, novas frotas de invasão estivessem decolan-
do, a fim de fazerem uma visita de surpresa à
Terra.
No momento não podia agir. O destino ti-
nha lhe tirado a responsabilidade das mãos.
Mas Rhodan sabia que, algum dia, essa respon-
sabilidade lhe seria restituída mil vezes mais pe-
sada.
E enquanto os sáurios pastavam nas baixa-
das, enquanto Thora com mal reprimida raiva
negociava o seu preço com Tomisenkow, en-
quanto Marshall percorria sozinho a solidão da
selva e Bell orbitava em torno de Vênus com ira
impotente, enquanto tudo isso acontecia, Perry
Rhodan dormia o sono da convalescença defini-
tiva; e lá estava Son Okura, atento e vigilante,
para que ninguém perturbasse os sonhos do seu
amo e senhor.
177
A hora da decisão, que parecia tão próxima,
estava agora mais longe do que nunca, oculta
nas brumas de um futuro remoto...

***

178
Também os imortais podem cometer toli-
ces!
Quando Thora fugiu, Perry Rhodan come-
teu a tolice de segui-la com uma nave espaci-
al que ainda não estava em condições de emi-
tir o código de identificação exigido pela base
de Vênus.
A conseqüência disso foi a imediata ativa-
ção da CHAVE SECRETA X, que fez de
Perry Rhodan um prisioneiro de Vênus.
CHAVE SECRETA X é o título do próxi-
mo volume da série Perry Rhodan.

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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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