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Robert Silverberg vencedor dos prêmios Hugo e Nebula, é um dos autores mais lidos

entre os representantes na Colecção Argonauta. «A Torre de Cristal» é uma das suas


melhores obras — a história de Simeon Krug, um homem que queria ser Deus. A
obsessão de Krug era a de construir uma imensa torre de vidro apontada para uma
estrela da constelação do Aquário, uma torre que fosse suficientemente alta para
lhe permitir responder à voz que vinha do espaço, uma torre que construiria com a
ajuda dos Androides — as ferramentas que ele próprio criara e que o olhavam como um
Deus. Mas o sonho de Krug ir-se-ia tornar num pesadelo. Os Androides diziam: «Krug
nos proteja!» mas quem protegeria Krug?

Capa: A. Pedro *

Título da edição original: «Tower of Glass» *

Copyright © 1970, by Robert Silverberg *

Reservados todos os direitos pela legislação em vigor *

Lisboa — 1990 *

Venda interdita na República Federativa do Brasil

Digitalização, ocerização, formatação, revisão: The Flash

CAPÍTULO I

OLHEM, queria dizer Simeon Krug, aqui há um bilião da anos atrás não havia um só
homem sequer, só havia peixe. Uma coisa escorregadia, com guelras, escamas e
olhinhos pequeninos e redondos. Vivia no oceano, e o oceano era como uma prisão em
que o tecto era feito de ar. Nenhum indivíduo podia passar para lá desse tecto.
Diziam que quem o tentasse morria pela certa... um dos peixes até tinha tentado
passar e morrera logo a seguir. Apareceu porém um outro peixe que também tentou
passar, para morrer do lado de lá. O peixe seguinte repetiu a façanha e sentiu-se
como se tivesse o cérebro a arder, as guelras a derreterem-se, o ar a afogá-lo, o
Sol qual tocha a rebentar-lhe com os olhos enquanto se deixava ficar esparramado na
lama, à espera da morte... só que esta não apareceu. Rastejou de volta à praia,
entrou na água e disse: «Ouçam, há um mundo completamente diferente do lado de lá!»
Subiu de novo e deixou-se ficar por lá uns dois dias, mas por fim a morte chegou.
Os outros peixes ficaram a sonhar com esse outro mundo, e acabaram por rastejar
praia acima, por lá ficando. Aprenderam a respirar o ar, aprenderam a pôr-se em pé,
a andar pelas vizinhanças, a viverem com aquele Sol a bater-lhes nos olhos. Foi
assim que se transformaram em lagartos, em dinossauros, no que quer que fosse, e
por lá andaram durante milhões de anos, aprendendo a usar as mãos para agarrarem as
coisas, transformando-se em macacos, até que às tantas os macacos ficaram mais
espertos e passaram a ser homens. Durante esse tempo todo, alguns deles, poucos
talvez, nunca deixaram de procurar novos mundos. Havia porém quem dissesse: «Vamos
voltar para o oceano, vamos voltar a ser peixes, lá é tudo mais fácil.» Mais de
metade deles estavam prontos a fazê-lo, mas havia sempre alguns que insistiam: «Não
sejam parvos, não podemos voltar a ser peixes. Agora somos homens.» Foi por isso
que não voltaram; preferiram subir na escala zoológica.
CAPÍTULO II

20 de Setembro de 2218.

A torre de Simeon Krug ergue-se agora a 100 metros acima da tundra cinzento-
acastanhada do árctico canadiano, a oeste da baía de Hudson. Por enquanto, a torre
não passa de um tosco e oco rebento escancarado, protegido das intempéries por um
simples campo repulsor a pairar poucos metros acima do nível do solo. Na redondez
da estrutura incipiente fervilham equipas de androides, milhares de humanos
sintéticos de pele cor-de-rosa, labutando incansáveis na fixação dos blocos de
vidro aos elevadores autônomos, que levam de seguida até ao topo da construção,
onde outros androides os colocam nos sítios devidos. Krug pôs os seus androides a
trabalharem em três turnos, vinte e quatro horas por dia; quando escurece, o
estaleiro da construção é iluminado por milhões de painéis reflectores suspensos no
céu a uma altitude de um quilômetro, alimentados pelo pequeno reactor de fusão de
um milhão de quilovátios, instalado no extremo norte do estaleiro.

Da monstruosa base octogonal da torre irradiam largas faixas prateadas de fita


refrigeradora, embebidas cerca de cinquenta centímetros dentro do tapete gelado de
terra, húmus, raízes, líquenes e musgos que formam a tundra. As fitas estendem-se
em todas as direcções por vários quilômetros; as suas células de difusão do hélio-
II absorvem o calor gerado pelos androides e veículos usados na construção da
torre. Se as fitas não tivessem sido instaladas, a energia assim produzida não
demoraria a transformar a tundra num colossal lago de lama; as enormes cofragens
das fundações da torre perderiam o seu apoio e a grande construção tombaria como um
titã ferido de morte. Eram as fitas que mantinham a tundra gelada e firme, capaz de
suportar o imenso fardo que Simeon Krug agora lhe impunha.

Em redor da torre, vários edifícios subsidiários aglomeravam-se num raio de mil


metros. A oeste do estaleiro ficava o centro do controlo principal; a nascente, o
laboratório onde o equipamento de comunicações de ultra-ondas taquiónicas estava a
ser fabricado: uma pequena cúpula rodada, onde normalmente trabalham dez ou doze
técnicos, montando pacientemente os dispositivos com os quais Krug espera enviar a
sua mensagem para as estrelas. A norte do estaleiro pode ver-se um amontoado de
edifícios de serviço, cada qual diferente do do lado. A sul fica a fiada de
cubículos do transmat, que ligam esta remota região ao mundo civilizado. Pessoas e
androides fluem constantemente de dentro para fora dos transmats e vice-versa,
chegados de Nova Iorque, Nairobi ou Nova Sibursk, ou a caminho de São Francisco ou
Xangai.

O próprio Krug costuma visitar o estaleiro pelo menos uma vez por dia — sozinho ou
acompanhado pelo seu filho Manuel ou por uma das suas mulheres, outras vezes por
vários industriais seus amigos. É vulgar vê-lo a conferenciar com Thor Watchman, o
seu capataz androide; as mais das vezes, monta-se num elevador autônomo e sobe ao
topo da torre, para espreitar lá para dentro; verifica os progressos alcançados no
laboratório do raio taquiónico; conversa com alguns dos trabalhadores, procurando
incutir-lhes um forte espírito de missão. Normalmente, Krug não fica mais de quinze
minutos na torre, regressando de imediato ao transmat para ser instantaneamente
lançado no meio dos negócios que o esperam em qualquer outra parte do Mundo.

Hoje, Krug apareceu acompanhado por um séquito razoável, pois celebra-se o


centésimo metro da torre. Krug vai postar-se junto àquilo que será a entrada
nascente da torre; é um homem de estatura meã, moreno, na casa dos sessenta, de
peito largo e pernas curtas, olhinhos vivos muito juntos e uma narigana de
capilares rebentados. Emana dele uma nítida força campestre, rural; o desprezo que
sempre revelou por todas as correcções cosméticas do corpo é perfeitamente visível
nas suas feições rudes, nas sobrancelhas farfalhudas, no cabelo a rarear; é
praticamente careca, e nada fará para o corrigir. O couro cabeludo, refulgente,
está recheado de rugas miudinhas por entre as raras madeixas penteadas à banda;
vale muitos e muitos biliões de dólares, mas veste-se com simplicidade e não usa
joias. Só a infinita autoridade da sua postura e expressão indicam a real extensão
da sua fortuna descomunal.

Tem a seu lado o filho único, Manuel, um jovem alto, esguio, magro, pedante, talvez
excessivamente elegante; bem vestido na sua túnica folgada, meias altas e cinturão
resplandecente. Usa brincos e uma placa espelhada na testa; pouco lhe falta para
entrar na casa dos trinta.

Move-se com gradosidade, mas parece pouco à vontade, algo nervoso, quando parado.

O androide Thor Watchman está entre pai e filho. É tão alto como Manuel e tão
poderoso e encorpado como o Krug pai. O rosto é o padrão da classe alfa dos
androides, caucasiano de carnes secas, maçãs do rosto salientes, lábios finos,
queixo proeminente: um rosto idealizado, plástico, preconcebido; mesmo assim, para
um androide alfa, possui uma surpreendente individualidade intrínseca. Quem quer
que fique a conhecer Thor Watchman nunca mais o confundirá com qualquer outro
androide da mesma classe: um certo arquear das sobrancelhas, uma certa tensão nos
lábios, um certo altear dos ombros, tudo isso o marca como um androide forte e
determinado. Veste colete aberto, bordado nas franjas; parece indiferente ao frio
mordente do local, e a sua pele, de um vermelho profundo, a pele vagamente cerosa
dos androides, é visível em vários sítios do corpo.

O grupo acabado de sair do transmat é composto por mais sete pessoas, a saber:

Clissa, a mulher de Manuel Krug.

Quenelle, uma mulher mais nova que Manuel e que de momento é a companheira do pai.

Leon Spaulding, secretário privado de Krug, um ectógene.

Niccollò Vargas, chefe do observatório da Antarctica onde foram detectados pela


primeira vez os tênues sinais de uma civilização extraterrestre.

Justin Maledetto, o arquitecto da torre de Krug.

O Senador Henry Fearon, do Wyoming, um dos principais políticos Witherers da


actualdade.

Thomas Buckleman, do império bancário Chase/Krug.

— Todos para os elevadores! — ruge Krug. — Vamos lá! Tu, tu, e tu... ali naquele!
Todos para cima!

— Que altura vai ter quando ficar pronta? — quer saber Quenelle.

— 1500 metros — responde Krug. — Vai ser uma monstruosa torre de vidro, cheia de
maquinarias que ninguém consegue compreender. Quando ficar pronta é só ligá-la... e
então poderemos conversar com as estrelas.

CAPÍTULO III
NO princípio havia Krug, e ele disse: «Apareçam os tanques!», e os tanques
apareceram:

E Krug olhou para os tanques e achou-os bons. E Krug disse: «Os tanques que se
encham de nucleótidos de alta energia!», e os nucleótidos foram despejados para
dentro dos tanques, e Krug misturou-os até os ligar uns aos outros.

E os nucleótidos aglomeraram-se em grandes moléculas, e Krug disse: «Os tanques que


façam de pai e de mãe, dividam-se as células, que os tanques deixem fluir a vida!»
E assim apareceu a vida, pois nasceu a replicação.

E Krug presidiu à repliçação, tocando nos fluidos com as suas próprias mãos para
lhes dar a forma e a essência.

«Que saiam homens dos tanques», disse Krug, «e mulheres também, para que vivam
entre nós e todos sejam fortes e úteis, para que lhes possamos chamar androides!»

E assim foi.

Assim nasceram os androides, pois Krug criou-os à sua própria imagem para que se
espalhassem pela face da Terra, em serviço da Humanidade.

Por tudo isto, glória a Krug!

CAPÍTULO IV

NESSA manhã, Watchman acordara em Estocolmo, mais estonteado que nunca: umas
exageradas quatro horas de sono, o que era demasiado. Duas horas chegavam-lhe
perfeitamente. Aclarou as ideias com um rápido exercício neural é meteu-se debaixo
do chuveiro para lavar a pele suada. Sentiu-se imediatamente melhor. O androide
espreguiçou-se e fez ondular os músculos, observando atentamente o corpo macio e
sem pêlos, no espelho da casa de banho. Um breve momento de contrição: Krug, livra-
nos da servidão. Krug, livra-nos da servidão. Krug, livra-nos da servidão. Glória a
Krug!

Watchman despejou o pequeno-almoço pela garganta abaixo e vestiu-se rapidamente. A


luminosidade pálida do entardecer entrava pela janela da sala: não tardaria a
escurecer, mas isso pouco lhe importava: o seu relógio corporal estava regulado
para a hora canadiana, para a hora da torre; podia dormir sempre que lhe
apetecesse: desde que aproveitasse uma hora em cada doze. Até os androides
precisavam de repouso, se bem que não o gozassem na forma rígida e programada dos
humanos.

Hora de arrancar para o estaleiro, para receber as visitas do dia.

O androide começou a marcar as coordenadas do transmat. Detestava aquelas sessões


diárias como cicerone; as visitas atrapalhavam o normal funcionamento do estaleiro
de construção, pois era necessário tomarem-se medidas de segurança excepcionais
enquanto o local era visitado por individualidades importantes; além disso, os
trabalhadores ficavam sujeitos a uma tensão não só excessiva como desnecessária,
ficavam com a impressão de que o seu trabalho não era de confiança, de que tinha de
ser vigiado e acompanhado dia a dia. É claro que Watchman sabia que a confiança de
Krug na sua pessoa era praticamente ilimitada; até ao momento, fora essa fé do
androide que o mantivera calmo e pronto para tudo; Watchman sabia que as frequentes
visitas de Krug à torre não se destinavam somente a acompanhar o evoluir da obra,
eram também fruto de uma emoção tipicamente humana chamada orgulho.

Que Krug me proteja — pensou Watchman, entrando para dentro do transmat.

Saiu para a sombra da torre, sendo imediatamente saudado pelos seus adjuntos, um
dos quais lhe estendeu a lista dos visitantes do dia.

— O Krug já chegou? — perguntou Watchman.

— Não, só daqui a cinco minutos — informaram-no. Com efeito, cinco minutos depois,
Krug saía do cubículo do transmat, acompanhado pelos convidados. Watchman não ficou
nada satisfeito ao deparar-se-lhe o secretário de Krug, Spaulding, no meio do
grupo. Eram inimigos viscerais; ambos sentiam um pelo outro aquela antipatia
instantânea que sempre se gerava entre os nascidos-do-tanque e os nascidos-da-
proveta, entre os androides e os ectógenes; a juntar a isso, eram dois dos mais
conhecidos: rivais entre os colaboradores de Krug: Para o androide, Spaulding era
um intriguista, um potencial sapa das suas qualidades e responsabilidades, uma
fonte perene de veneno. Watchman cumprimentou-o com uma frieza distante mas ao
mesmo tempo cortês. Nenhum androide, por muito importante que fosse, seria capaz de
tratar mal um humano, e Spaulding, pelo menos do ponto de vista técnico, tinha de
ser coosiderado como humano.

Krug apressava-se a enfiar os convidados nos elevadores autônomos. Watchman


embarcou num com Manuel e Clissa, enquanto os aparelhos subiam para o cimo
incompleto da torre, Watchman foi observando Spaulding de esguelha, no elevador à
sua esquerda — o ectógene, o órfão pré-natal, o homem sem alma e do espírito
perverso em quem Krug, maldosamente, depositava tanta Confiança. Oxalá acabes
varrido pelos ventos do árctico, nascido-da-proveta! Gostava tanto de ir ver cair
até ao solo gelado, para partires o pescoço de uma vez por todas...

— Thor, porque é que de repente ficaste com esse ar zangado?— perguntou-lhe Clissa
Krug.

— Quem, eu?

— Vejo nuvens de tempestade no teu olhar...

Watchman responde-lhe com um encolher de ombros.

— Estou a praticar os meus exercícios emocionais, Sra. Krug. Dez minutos de amor,
dez minutos de ódio, dez minutos de timidez, dez minutos de egoísmo, dez minutos de
respeito e dez minutos de arrogância. Uma hora por dia faz com que os androides se
pareçam mais com as pessoas.

— Não brinques comigo, Thor — retorquiu Clissa, uma jovem magra, delicada, meiga e,
na opinião de Thor, muito bonita. — Estás a falar verdade?

— Estou. A sério. Devia estar a pensar em ódio quando a senhora reparou na minha
expressão.

— Como é que é esse exercício? Quero dizer, só tens de focar aí a pensar em ódio,
ódio, ódio, ou quê?

Watchman sorriu perante a pergunta da jovem; olhando por cima do ombro, viu que
Manuel lhe piscava o olho.
— Fica para outra vez — disse Watchman. — Estamos a chegar ao cimo.

Os três elevadores atracaram no lanço mais alto da torre: mesmo por cima da cabeça
de Watchman espraiava-se a neblina cinzenta do campo repulsar, que mais se
distinguia do cinzento-chumbo do céu. O curto dia setentrional já ia quase a meio,
e uma tempestade de neve avançava a passos largos na direcção do estaleiro; vinda
da baía recortada na costa norte. Krug, no elevador mais próximo, inclinava-se para
o interior da torre, apontando qualquer coisa a Buckleman e Vargas; no outro
aparelho, Spaulding, o Senador Fearon e Maledetto examinavam de perto a textura
acetinada dos enormes blocos de vidro que formavam o forro exterior da torre.

— Quando é que fica pronta? — perguntou Clissa.

— Daqui a menos de um ano — respondeu o androide. — Estamos a avançar a bom ritmo.


O problema técnico mais difícil foi o da preservação da camada gelada da
comunicação, os transmats e as centrais energéticas, uma vez resolvido, podemos ir
subindo à razão de várias centenas de metros por mês.

— Mas porque é que resolveram construí-la aqui, se o solo não era estável? — quis
saber Clissa.

— Por uma questão de isolamento. Quando as ultraondas forem ligadas, irão


interferir com todos os canais de comunicação, os transmats e as centrais
energéticas num raio de vários milhares de quilômetros quadrados. O Krug tinha
pouco por onde escolher: só podia montar a torre no Saara, no Gobi, no deserto
australiano ou aqui, na tundra. Por razões técnicas relacionadas com a transmissão,
a tundra parecia a mais desejável — desde que conseguíssemos resolver o problema da
fusão do gelo. O Krug mandou-nos construir aqui, de modo que tivemos de inventar
uma solução para o degelo.

— Como é que estamos no capítulo do material de transmissão? — perguntou Manuel.

— Começaremos a instalá-lo quando a torre atingir o nível dos 500 metros. Digamos,
lá para meados de Novembro.

A voz de Krug chegou-lhes do outro elevador, ecoando na parede lisa:

— Já colocámos em órbita os cinco satélites amplificadores! São como um anel de


fontes de energia a rodearem a torre... mais do que suficientes para lançarem o
nosso sinal até Andrómeda, numa questão de dois dias.

— Sim, senhor, um projecto fenomenal — disse o Senador Fearon, que era um homem
activo, nervoso, de olhos espantosamente verdes e uma juba de cabelos ruivos. —
Mais um passo gigantesco a caminho da emancipação da Humanidade! — Com um cortês
aceno de cabeça na direcção de Watchman, o senador acrescentou: — Claro que temos
de reconhecer a nossa enorme dívida para com os hábeis androides que estão a ajudar
a concretizar este projecto fabuloso. Sem a sua preciosa ajuda, Alfa Watchman, bem
como a da sua gente, nunca teria sido possível...

Watchman ouviu-o sem prestar atenção, lembrando-se, a tempo, de sorrir.


Cumprimentos como aquele pouco significavam para si, e o Congresso Mundial e os
seus senadores ainda significavam menos. Havia algum androide no Congresso? Faria
alguma diferença se lá houvesse algum? Mais cedo ou mais tarde, sem dúvida, o
Partido da Igualdade dos Androides conseguiria colocar uns poucos dos seus
militantes no Congresso; três ou quatro alfas sentar-se-iam, naquele augusto
areópago, mas apesar disso os androides continuariam a ser propriedade, e não
gente. Não, a previsível evolução do processo político não era de molde a inspirar
optimismo em Thor Watchman.
À sua política, se é que a tinha, virava-se definitivamente para os Witherers: na
sociedade transmat, onde as fronteiras nacionais eram coisas obsoletas, para quê a
existência de um governo formal? Os legisladores que se anulassem uns aos outros,
deixando prevalecer as leis consuetudinárias. Enfim, Watchman sabia que as
propostas dos Whitherers nunca seriam aprovadas naquela sociedade; para prova basta
ouvir-se o Senador Henry Fearon. Era o cúmulo dos paradoxos: um membro de um
partido anti governos a servir no próprio governo, lutando para manter o lugar a
cada eleição. Que preço estarás a pagar, senador?

Fearon não se cansava de louvar os esforços dos incansáveis androides, enquanto


Watchman mal o ouvia. Enquanto ali estivessem, o trabalho continuaria paralisado;
Watchman não se atrevia a mandar içar blocos enquanto houvessem visitas dentro dos
limites da área de construção. O pior eram o programa a cumprir. Para seu grande
alívio, Krug não demorou a fazer-lhes sinal para que descessem; pelos vistos, o
vento mordaz estava a incomodar Quenelle. Já no solo, Watchman seguiu à frente do
grupo, até ao centro de controlo principal, convidando-os a assistir enquanto se
sentava no posto de comando. Quando enfiou a ficha do terminal do computador no
orifício de seu antebraço esquerdo, o androide viu que os lábios de Leon Spaulding
se contorciam num trejeito de desprezo... Mas desprezo de quê? Inveja? Complexo de
superioridade? De inferioridade? Apesar de conhecer bem os humanos, Watchman nunca
fora capaz de lhes ler perfeitamente as expressões. Porém, quando o contacto foi
estabelecido, tudo isso ficou para trás: os impulsos do computador inundaram-no
através da interface e penetraram-lhe no cérebro, relegando Spaulding para o
oblívio total.

Era o mesmo que ter repentinamente mil olhos à sua disposição. Viu tudo o que se
estava a passar no estaleiro e nas vastas extensões desertas em redor; ficou em
comunhão total com o computador, servindo-se de todos os seus sensores e terminais.
Para quê submetermo-nos à fastidiosa rotina de falar com o computador, quando era
possível conceber-se um androide capaz de se tornar em parte integrante de uma
daquelas máquinas?

A torrente de dados provocou-lhe um relâmpago de êxtase.

Mapas de manutenção... sínteses de fluxos... sistemas de coordenação de tarefas...


níveis de refrigeração... decisões sobre circuitos de relé... A torre era agora uma
tapeçaria de infinitas minúcias, e ele era o mestre tecelão. Tudo passava por ele;
aprovava, rejeitava, alterava, cancelava. Seria o mesmo que fazer sexo? Aquela
comichão em cada nervo, aquela sensação de ter extravasado os seus próprios limites
físicos, de ter absorvido uma avalancha de estímulos... Watchman bem desejava sabê-
lo. Ergueu e baixou elevadores, requisitou os blocos para a semana seguinte,
encomendou filamentos para o pessoal do feixe taquiónico, passou uma vista de olhos
pelas refeições do dia seguinte, analisou o teste de estabilidade constante da
estrutura em construção, injectou novos dados nos circuitos financeiros das
organizações Krug, verificou a temperatura do solo em gradientes de cinquenta
centímetros, até uma profundidade de dois quilômetros, triou e passou centenas de
camadas telefônicas por segundo, e acabou por se congratular pela forma expedita
como se desempenhava perante tão importante audiência. Sabia perfeitamente que
nenhum humano poderia tratar de tarefa tão gigantesca como aquela, mesmo que os
humanos dispusessem de um modo de se ligarem directamente aos computadores.
Watchman tinha a perícia de uma máquina e a versatilidade de um ser humano, e como
tal — exceptuando o sério caso de não se poder reproduzir — era claramente superior
a ambas as outras classes, e portanto...

A seta vermelha de um alarme interrompeu-lhe o raciocínio.

Acidente no estaleiro. Sangue androide derramado na tundra gelada.

Uma onda no cérebro deu-lhe a imagem nítida do sucedido: um elevador autônomo caíra
na face norte da torre. Um bloco de vidro tombara do nível dos noventa metros;
jazia ligeiramente inclinado, com uma das esquinas enterrado cerca de um metro no
solo, a outra a espreitar um pouco acima da superfície. Uma fissura corria sobre a
superfície imaculada do bloco, mergulhando nas suas profundezas cristalinas; do
lado mais próximo da torre, duas pernas espreitavam de debaixo do bloco. Alguns
metros adiante jazia um androide ferido, debatendo-se desesperadamente. Três
escaravelhos-elevadores corriam em direção ao local do acidente, enquanto um
quarto, mais lento, enterrava já as suas pás de aço por baixo do bloco.

Watchman desligou-se, estremecendo de dor devido à violenta separação da torrente


de dados. Por cima da sua cabeça, um écran gigante mostrava a zona do acidente em
toda a sua realidade. Clissa Krug virara as costas e encostara a cabeça ao peito do
marido; Manuel parecia mal-disposto, enquanto o pai estava nitidamente irritado.
Watchman deu consigo a olhar de esguelha para a expressão gelada de Leon Spaulding;
o ectógene era um homem de baixa estatura, algo roliço e atarracado; no meio da
curiosa clareza resultante do choque, Watchman conseguiu aperceber-se do exagerado
espaçamento dos pêlos rígidos e negros do bigode do ectógene.

— Falha de coordenação — informou Watchman em tom ríspido. — Tudo indica que o


computador interpretou mal uma função de esforço e deixou cair o bloco.

— Mas nesse momento você estava a comandar o computador, não estava? — perguntou
Spaulding. — É bom que atribuamos as culpas a quem de direito...

O androide não alinhou no jogo do outro.

— Desculpem-me — disse, correndo para a porta. — Há feridos e provavelmente um


morto. Tenho de ir.

— ... um descuido indesculpável... — murmurou Spaulding.

Watchman saiu; ao lançar-se em corrida para o local do acidente, começou a rezar.

CAPÍTULO V

NOVA IORQUE — disse Krug. — Escritório de cima.

Entrou com Spauldilng no cubículo do transmat. O campo de força esverdeado do


transmat pulsou da abertura rasgada no pavimento, formando uma cortina que dividiu
o cubículo em dois. O ectógene teclou as coordenadas; os geradores invisíveis do
transmat estavam ligados directamente ao gerador principal, o qual rodava
incansavelmente sobre os seus pólos algures no fundo rochoso do Atlântico,
condensando a força teta que tornava possível as viagens transmat. Krug nem sequer
se preocupou em verificar as coordenadas marcadas por Spaulding; sempre confiara no
seu pessoal. Uma simples e ridícula distorção de uma abcissa, e os átomos de Simeon
Krug acabariam irrecuperavelmente espalhados aos sete ventos; mesmo assim o magnata
enfiou-se, sem hesitar, no fulgor verde do campo de forças.

Não sentiu absolutamente nada. Krug foi destruído; um feixe de ondículas coerentes
foi disparado para um sintonizador a milhares de quilômetros dali, e no instante
seguinte Krug era reconstituído. O campo do transmat desfazia o corpo de um homem
nas suas unidades subatômicas, tão depressa que nenhum sistema neural seria capaz
de registar a dor; do mesmo modo, a restauração processava-se com igual celeridade.
Inteiro e incólume, Krug emergiu no cubículo do transmat do seu escritório, sempre
com Spaulding a seu lado.

— Espera pela Quenelle — disse-lhe Krug. — Deve estar a chegar lá a baixo. Distrai-
a. Não quero ser incomodado pelo menos durante a próxima hora.

Spaulding saiu, Krug fechou os olhos.

A queda do bloco transtornara-o seriamente. Não fora o primeiro acidente desde que
a torre começara a ser construída, e provavelmente não seria o último. Hoje tinham-
se perdido vidas; só vidas de androides, claro, mas mesmo assim vidas. A perda de
uma vida enfurecia-o tanto como as perdas de energia ou de tempo. Como é que a
torre poderia crescer se os blocos caíam? Como é que ele poderia mandar a sua
mensagem através do firmamento, a dizer que o Homem existia, se não houvesse aquela
torre? Como é que poderia fazer as perguntas que tinham de ser feitas?

Krug sofria, sentindo-se muito perto do desespero ao ponderar a imensa tarefa que
se impusera a si próprio.

Nos momentos de fadiga ou tensão, ficava morbidamente consciente da presença do seu


corpo, encarando-o como se fosse uma jaula a aprisionar-lhe a alma. As dobras da
pele do ventre e aquela perpétua rigidez na base do pescoço, o leve tremor da
pálpebra superior esquerda, a ligeira mas incomodativa pressão na bexiga, a
rouquidão na garganta, o ranger das rótulas, todas essas sugestões da sua
mortalidade o assaltavam sem piedade. O corpo parecia-lhe, frequentemente, como uma
coisa absurda, um mero saco de carne, ossos, fezes e sangue, tendões, veias e
artérias a cederem perante o assalto do tempo, deteriorando-se de ano para ano e de
hora para hora. O que é que poderia haver de nobre num tal saco do protoplasma? E
as unhas? Ridículas! E os cotovelos? Asquerosos! E as narinas, tão idiotas?
Contudo, debaixo da sua couraça protectora, havia o tiquetaque do atento e cinzento
cérebro, qual bomba enterrada na lama. Krug desprezava a carne, mas sentia um
respeito quase religioso pelo seu cérebro, e pelo cérebro humano em geral.

O verdadeiro Krug estava dentro daquela massa encarquilhada de tecido, e não noutro
lado, não nas tripas, não nas virilhas, nunca no peito, e sim na mente. O corpo
apodrecia enquanto o seu dono o usava; a mente, essa, voava até às mais distantes
galáxias.

— Massagem — disse Krug.

O timbre e o tom da ordem fizeram com que uma suave mesa vibratória saísse de
dentro de uma das paredes. Três androides fêmeas, sempre prontas a intervir,
entraram na sala. Os corpos, flexíveis, estavam nus; eram do modelo gama padrão,
bem podendo ser gêmeas, se não fossem; as habituais pequenas diferenças somáticas
programadas durante o fabrico. Todas tinham seios pequenos e firmes, ventres lisos,
cinturas estreitas, nádegas roliças e coxas bem proporcionadas. Tinham cabelos na
cabeça e nas pálpebras, mas no resto não apresentavam nenhuma pilosidade, o que
lhes dava um certo ar assexuado; contudo, a fenda do sexo demarcava-se nitidamente
entre as pernas; Krug, se estivesse para aí inclinado, poderia afastá-las e
descobrir lá dentro uma razoável imitação da paixão. Apesar de nunca se ter sentido
atraído por tal experiência, Krug tinha incluído deliberadamente um elemento
sensual nos seus androides. Dera-lhes órgãos genitais perfeitamente funcionais, se
bem que estéreis, tal como lhes dera um umbigo absolutamente inútil. Procurara não
só que a sua criação tivesse uma aparência humana (para além das necessárias
modificações) como, também, que pudesse fazer quase tudo o que os humanos faziam.
Os seus androides não eram robots: preferira criar humanos sintéticos, e nunca
meras máquinas.

Eficientes, as três gamas despiram-no e massajaram-no com os seus dedos


experientes. Krug deixou-se ficar deitado de barriga para baixo enquanto as três
incansáveis androides lhe tonificavam os músculos gastos, olhando sem ver as
distantes imagens gravadas na parede do fundo do escritório.

A sala estava mobilada com uma simplicidade espartana: um rectângulo alongado


contendo uma secretária, um terminal de dados, uma escultura, pequena e tristonha e
um cortinado escuro que, a um simples toque do botão repolarizador, revelaria o
panorama da cidade de Nova Iorque, lá muito em baixo. A iluminação, indirecta e
suave, mantinha o escritório num eterno lusco-fusco; numa das paredes, contudo,
refulgia uma figura geométrico de um amarelo luminiscente:

* *

* * * *

* *

* * * * *

* * *

Era a mensagem das estrelas.

O observatório de Vargas captara-a pela primeira vez como uma série de tênues
impulsos rádio nos 9100 megaciclos; dois impulsos rápidos, uma pausa, quatro
impulsos, uma pausa, um impulso, e assim por diante. O padrão repetira-se mil vezes
ao longo de dois dias, para às tantas parar repentinamente. Um mês depois
regressara nos 1421 megaciclos, na frequência de 21 centímetros do hidrogênio, para
nova série de mil repetições; no mês seguinte aparecera simultaneamente em metade e
no dobro dessa frequência, mil repetições em cada. Mais tarde, Vargas conseguira
detectá-la opticamente, transportada por um intenso feixe laser com um comprimento
de onda de 5000 angstroms. O padrão era sempre o mesmo, em breves rajadas de
informação: 2... 4... 1... 2... 5... 1... 3... 1. Cada subcomponente da série vinha
separada da seguinte por um considerável período de silêncio, e havia uma separação
ainda mais pronunciada entre cada uma das repetições do padrão completo dos
impulsos.

Por certo que se tratava de uma mensagem. Para Krug, a sequência 2-4-1-2-5-1-3-1
tornara-se num número sagrado, como se ele fosse o símbolo da abertura de uma nova
cabala. Além de ter o padrão a adornar-lhe a parede do escritório, a um simples
toque do dedo faria com que o sinal alienígena perpassasse na atmosfera tranquila
da sala, enquanto a escultura ao lado da secretária estava programada para emitir a
sequência em brilhantes relâmpagos de luz coerente.

Vivia obcecado pelo sinal, e o seu universo girava agora em volta da necessidade de
lhe responder. A noite punha-se a contemplar o firmamento, bêbado com aquela
cascata de pontinhos luminosos, e fitava as galáxias enquanto pensava: Sou eu, o
Krug! Sou eu, o Krug! Aqui estou eu, à espera, voltem a falar comigo! Quanto a si o
sinal não podia ser outra coisa que não uma comunicação conscientemente dirigida;
como tal, aplicara toda a sua respeitável fortuna na tarefa de responder.

— Mas não há qualquer hipótese da «mensagem» ser antes um fenômeno natural?


Nenhuma. A persistência com que nos chegou, numa tal variedade de meios, indica que
por detrás dela há uma consciência orientadora. Alguém está a tentar dizer-nos
qualquer coisa.

— Qual será o significado desses números? Serão uma espécie de pi galáctico?

Ainda não lhes descobrimos qualquer relevância matemática. Aparentemente, não


formam nenhuma progressão aritmética inteligível. Os criptógrafos já nos derem pelo
menos cinquenta sugestões, qual delas a mais engenhosa, o que torna as cinquenta
igualmente duvidosas. Pensamos que os números foram escolhidos inteiramente ao
acaso.

— Então para que serve uma mensagem sem um conteúdo compreensível?

A mensagem é o seu próprio conteúdo: um grito através das galáxias. Está a dizer-
nos: «Ouçam, estamos aqui, sabemos como transmitir, somos capazes de pensar
racionalmente, estamos a tentar contactar convosco.»

— Partindo do princípio de que tem razão, que gênero de mensagem planeia enviar?

Tenciono dizer: «Olá, olá, estamos a ouvi-los, detectámos a vossa mensagem,


enviamos saudações, somos inteligentes, somos seres humanos, não queremos continuar
sozinhos no cosmos.»

— Em que língua é que lhes vai dizer isso?

Na linguagem dos números aleatórios, a que se seguirão outros números nada ao


acaso; «Olá, olá, 3.14159! Ouviram? 3.14159, a razão entre o diâmetro e a
circunferência!»

— E como é que lhes vai dizer isso? Com lasers? Com ondas rádio?

Não, não, isso é demasiado lento. Não posso esperar que as radiações
electromagnéticas vão até lá e voltem para trás. Para falar com as estrelas
usaremos feixes taquiónicos e serei eu quem falará a essa gente das estrelas, para
lhes dizer quem é o Simeon Krug.

Estendido na mesa, Krug tremia. As massagistas androides percorriam-lhe o corpo com


as unhas, trabalhavam-lhe os músculos poderosos, enfiavam-lhe os nós dos dedos
entre as costelas. Estariam a tentar infectar os números místicos no seu corpo? 2-
4-1, 2-5-1, 3-1? Onde é que estava o 2 em falta? Mesmo que tivesse sido enviado,
qual seria o significado da sequência 2-4-1, 2-5-1, 2-3-1? Nada, sempre sem
significado. Aleatórios. Ao acaso. Aglomerados de informação em bruto, sem
significado. Nada mais do que números dispostos num padrão abstracto, e apesar
disso continham a mensagem mais importante que o universo jamais conhecera:

Estamos aqui.

Estamos aqui.

Estamos aqui.

Estamos a chamar-vos.

Seria Krug o primeiro a responder. Estremeceu de prazer ao pensar na torre pronta,


com os seus raios taquiónicos a fenderem a galáxia. Seria Krug o primeiro a
responder, Krug o ávido, Krug o financeiro insensível, Krug o camponês anafado,
Krug o ignorante, Krug o matarruano. Eu! Krug! Eu! Krug! Krug!
— Fora! — ordenou às androides. — Já chega.

As raparigas saíram imediatamente. Krug levantou-se, vestiu-se lentamente,


atravessou a sala e passou os dedos sobre o padrão de luzes amarelas.

— Mensagens? — perguntou. — Visitas?

A cabeça e os ombros de Leon Spaulding apareceram a voltar, brilhando contra a teia


invisível do projector de vapor de sódio.

— Está cá o Dr. Vargas — informou o ectógene. — Está à espera no planetário. Deseja


recebê-lo?

— Claro. Vou lá acima. E a Quenelle?

— Foi para a casa do lado, no Uganda. Disse que ficava lá à sua espera.

— E o meu filho?

— Foi fazer uma visita de inspecção à fábrica de Duluth. Tem algumas instruções
para ele?

— Não — respondeu Krug. — Ele sabe o que faz. Vou ter com o Vargas.

A imagem de Spaulding dissipou-se. Krug entrou no elevador e subiu rapidamente até


ao planetário abobadado no último andar do edifício. Sob o tecto acobreado, a
delicada figura de Niccolò Vargas passeava-se para cá e para lá. À sua esquerda
via-se um cubo de vidro contendo oito quilogramas de proteoides vindos da Alfa
Centauro V; à direita, um crióstato achatado em cujo interior se podiam ver
vagamente perto de vinte litros de fluido retirado do mar de metano de Plutão.

Vargas era um homem baixo, magro, de tez pálida e nervoso, por quem Krug tinha um
respeito que raiava o temor: um homem que gastara todos os seus dias da vida de
adulto à procura de civilizações nas estrelas, um homem que dominava todos os
aspectos das comunicações interestelares. A especialidade de Vargas marcara-o
fisicamente: quinze anos antes, num momento de intolerável excitação, expusera-se
desastrosamente ao feixe de um telescópio de neutrões; ficara com a face esquerda
tão danificada que nem as mais recentes técnicas tectogenéticas o podiam remediar.
É certo que o olho arruinado tinha sido obrigado a regenerar-se, mas nada se pudera
fazer quanto à descalcificação da estrutura óssea, além de lhe embeber uma rede de
fibra de berílio; como tal, metade do crânio e da testa e a maçã esquerda do rosto
de Vargas tinham um ar enrugado, amachucado. Deformidades como a sua não eram
vulgares numa época em que a cirurgia estética era uma brincadeira de crianças;
Vargas, contudo, parecia não estar interessado em levar mais longe a sua
reconstrução facial.

Ao ver Krug entrar, o cientista sorriu-lhe com o seu sorriso torto.

— A torre é magnífica! — comentou.

— Vai ser, vai ser — corrigiu-o Krug.

— Não, não, já está magnífica. Um torso maravilhoso! Já viu bem, Krug? Esguia,
poderosa, uma lança espetada no céu! Já se apercebeu bem do que está a construir no
meio da tundra, meu amigo? É a primeira catedral da era galáctica. Daqui a milhares
de anos, quando a sua torre já não funcionar como centro de comunicações, os homens
irão visitá-la, ajoelharão ao lado dela, beijarão as suas paredes macias, e
abençoá-lo-ão a si por a ter construído. E não só os homens...
— A ideia agrada-me — disse Krug. — Uma catedral? Nunca a tinha visto dessa
maneira. — Krug apercebeu-se então do cubo de dados na mão direita de Vargas. — O
que é que tem aí?

— Um presente para si.

— Um presente?

— Seguimos os sinais até à origem — disse Vargas. — Pensei que gostaria de ver a
estrela donde vêm.

Krug inclinou-se avidamente para o cientista.

— Porque é que esperou tanto tempo para me falar nisso? Porque é que não me disse
nada quando fomos à torre?

— Na torre, o espectáculo é seu... e este é o meu. Quer que ligue o cubo?

Krug apontou impacientemente para a fenda do receptor. Vargas inseriu o cubo, com
um gesto hábil, e activou o scanner; raios azulados penetraram na pequena matriz do
cristal, à procura dos dados lá armazenados.

O tecto do planetário encheu-se de estrelas.

Ao contemplar a galáxia, Krug sentia-se como em sua casa. Os seus olhos atentos não
demoraram a referenciar os vários pontos notáveis: Sirius, Canopus, Vega, Capela,
Arctums, Betelgeuse, Altair, Fomalhaut, Deneb, todos os faróis do firmamento
surgiram destacados na cúpula negra do planetário. Procurou as estrelas mais
próximas, as que ficavam dentro de um raio de doze anos-luz e que as sondas
estelares do Homem tinham atingido já durante a sua vida: Epsilon Indi, Ross 154,
Lalande 21.185, a Estrela de Barnard, Wolf 359, Procyon, Cisne 61. Olhou para o
Touro e viu a vermelha Aldebaran a refulgir no focinho do animal, com as Híades
muito juntas ao fundo, enquanto as Pleiades ardiam no seu cacho brilhante. Os
padrões projectados na cúpula foram mudando à medida que a imagem se focava em
pontos cada vez mais distantes; Krug sentia o coração aos pulos dentro do peito,
enquanto Vargas se mantinha silencioso.

— Então? — perguntou Krug passado um bocado, sem esconder a impaciência. — Afinal o


que é que quer que eu veja?

— Olhe para o Aquário — pediu Vargas.

Krug esmiuçou o céu setentrional, seguindo a linha que lhe era familiar: Perseu,
Cassiopeia, Andrómeda, Pégaso, Aquário. Sim, lá estava o velho Aguadeiro; entre os
Peixes e o Carneiro. Krug esforçou-se por se lembrar do nome das estrelas mais
importantes do Aquário, mas não foi capaz.

— E agora? — perguntou.

— Observe. Vou focar a imagem.

Krug teve de firmar bem os pés ao ver o firmamento a avançar na sua direcção.
Deixou de poder reconhecer os padrões das constelações; o céu parecia cair sobre
si, deixando-o completamente desorientado. Quando o movimento parou, viu-se
confrontado com um pequeno segmento da esfera galáctica, ampliado de modo a ocupar
toda a cúpula do planetário. Mesmo por cima de si surgia a imagem de um anel
resplandecente, escuro no centro e contornado por um halo irregular de gás
luminoso. No centro do anel brilhava um único ponto de luz.
— Isto é a nebulosa planetária NGC 7293, no Aquário.

— E depois?

— É a fonte dos nossos sinais.

— Tem a certeza?

— Absoluta — respondeu o astrônomo. — Temos observações da paralaxe, várias séries


de triangulações ópticas e espectrais, outras tantas ocultações de corroboração e
muito mais. Desde o princípio que suspeitávamos que a fonte estaria na NGC 7293,
mas os últimos dados só foram processados hoje de manhã. Agora temos a certeza.

Sentindo a garganta seca, Krug perguntou:

— A que distância está?

— Perto de trezentos anos-luz.

— Nada mau, nada mau... para lá do alcance das nossas sondas é impossível de
atingir através do radio-contacto, mas nada de preocupante para o raio taquiónico.
A minha torre tem toda a razão de ser.

— E ainda temos esperanças de comunicar com os originadores do sinal — disse


Vargas. — Aquilo que todos receávamos, que o sinal viesse de um sítio como
Andrómeda, o que implicaria que a mensagem começara a sua viagem há um milhão de
anos atrás ou mais ainda...

— Agora sabemos que não é assim.

— Precisamente. Nem pensar.

— Fale-me desse sítio — pediu Krug. — Uma nebulosa planetária? O que vem a ser
isso? Como é que uma nebulosa pode ser um planeta?

— Não é nem planeta nem nebulosa — respondeu Vargas, reatando a sua caminhada para
a frente e para trás.

— É um corpo extremamente invulgar, para além de extraordinário — comentou,


tamborilando com os dedos na caixa dos proteoides centaurinos. As criaturas
quasivivas, irritadas, agitaram-se e contorceram-se. Vargas continuou:

— O anel que está a ver é uma concha, uma bolha de gás a rodear uma estrela do tipo
O. As estrelas desta classe espectral são gigantes azuis, quentes e instáveis, com
poucos milhões de anos de permanência na sequência principal. No final do seu ciclo
de vida, algumas delas sofrem um colapso catastrófico, comparável ao de uma nova;
expulsam as camadas exteriores da sua estrutura, formando um invólucro gasoso de
dimensões consideráveis. O diâmetro da nebulosa planetária que tem à sua frente é
de cerca de 1.3 anos-luz, e está a crescer a uma média de quinze quilómetros por
segundo, mais coisa menos coisa. Já agora, o brilho invulgar da concha deve-se a um
efeito da fluorescência: a estrela central está a produzir grandes quantidades de
radiação ultravioleta, de ondas muito curtas, a qual é absorvida pelo hidrogénio da
concha, provocando...

— Um momento! — pediu Krug. — Se bem percebi, você está a dizer-me que este sistema
estelar passou por uma fase semelhante à de uma nova, que a explosão ocorreu há tão
pouco tempo que a concha só tem 1.3 anos-luz de diâmetro, e que ainda por cima está
a inchar a quinze quilômetros por segundo, e que o sol central emite tanta radiação
que a concha envolvente está fluorescente?

— Exactamente.

— E quer que eu acredite que dentro daquela fornalha há uma raça inteligente, a
raça que nos está a enviar os sinais?

— Não restam quaisquer dúvidas de que os sinais provêm da NGC 7293 — foi a resposta
de Vargas.

— Impossível! — rugiu Krug, batendo com os punhos cerrados nas ancas. — Impossível!
Uma gigante azul... que para já só tem uns dois milhões de anos de idade. Como é
que a vida pode evoluir nessas condições, ainda para mais uma raça inteligente?
Depois há essa espécie de explosão solar... quem é que consegue sobreviver a uma
coisa dessas? E as radiações duras? Vá lá, explique-se! Se quisesse inventar um
sistema onde a vida seja impossível, então não procure mais, tem-no à sua frente
esta maldita nebulosa planetária! Sinais? Mas como? Vindo de onde?

— Já ponderámos todos esses factores — observou Vargas em tom comedido.

Estremecendo, Krug perguntou:

— Portanto os sinais sempre são de origem natural? Impulsos emitidos pelos átomos
desta sua incrível nebulosa?

— Continuamos a pensar que os sinais provêm de uma fonte dotada de inteligência.

O paradoxo deixou Krug confuso, levando-o a retrair-se, tal a atrapalhação que


sentia. Sabia que não passava de um astrônomo amador; lera muita coisa, atascara-se
com gravações técnicas e pílulas amplificadoras do conhecimento, sabia distinguir
uma gigante vermelha de uma anã branca, era capaz de traçar o diagrama da
Hertzprung-Russel, sabia apontar para o céu e identificar Alfa Crucis e Spica, mas
tudo isso eram conhecimentos superficiais, algo com, que gostava de adornar os
muras exteriores da sua alma. Nem sequer chegava aos calcanhares de Vargas;
faltava-lhe o sentido profundo das coisas, era incapaz de singrar para lá dos
limites dos factos concretos. Era por isso que respeitava o cientista, era por isso
que agora se sentia tão incomodado.

— Continue — murmurou Krug. — Diga-me como é. Explique-me tudo o que sabe.

Vargas não se fez rogado.

— Há várias possibilidades, mas terá de compreender que não passam de especulações,


de hipóteses não confirmadas. A primeira, e mais óbvia, diz-nos que os originadores
do sinal da NGC 7293 chegaram lá depois da explosão, quando as coisas já tinham
acalmado. Digamos, numa altura qualquer dentro dos últimos 10.000 anos. Talvez
colonos vindos do interior da galáxia, exploradores, refugiados, exilados... enfim,
exilados de fresca data.

— E as radiações? — perguntou Krug. — Mesmo que as coisas tenham acalmado, ainda


temos aquele sol azul assassino.

— É óbvio que teriam de as suportar. Nós precisamos da luz solar para vivermos;
porque não imaginar uma raça capaz de beber a energia um pouco acima do espectro?

Krug abanou a cabeça.

— Está bem, você inventa raças e eu faço o papel de advocatus diaboli. Portanto
você diz que eles comem radiações duras: e os efeitos genéticos? Que gênero de
civilização estável poderá manter-se com uma percentagem tão grande de mutações?

— Uma raça adaptada a altos níveis de radiação terá provavelmente uma estrutura
genética muito menos vulnerável aos bombardeamentos do que a nossa… uma estrutura
capaz de absorver todo o gênero de partículas pesadas sem sofrer mutações.

— Talvez sim, talvez não — contrapôs Krug, acrescentando pouco depois: — Okay,
portanto eles vieram de outro sítio qualquer e estabeleceram-se na sua nebulosa
planetária quando o ambiente se tornou seguro. Nesse caso, porque é que não
recebemos sinais desse outro sítio? Onde é que fica o seu sistema original? Se são
exilados, ou colonos... de onde é que vieram?

— Talvez o sistema natal deles fique, tão longe que só receberemos os sinais
emitidos de lá daqui a vários milhares de anos — sugeriu Vargas. — Ou então o
sistema original nunca emitiu quaisquer sinais, ou...

— São respostas a mais — murmurou Krug. — Não estou a gostar nada disto.

— Há uma outra hipótese — disse Vargas. — A espécie que nos enviou o sinal pode ser
nativa da NGC 7293.

— Mas como? A explosão...

— Talvez não tenham sido incomodados pela explosão, se pensarmos que é uma raça
capaz de viver no meio das radiações duras. Talvez as mutações sejam um fenômeno
normal da vida deles. Estamos a falar de seres alienígenas, meu amigo. Se forem
verdadeiramente alienígenas, não podemos compreender nenhum dos seus parâmetros.
Olhe, especule comigo: temos um planeta de uma estrela azul, um planeta muito
distante de seu sol mas que mesmo assim é assado todos os dias por níveis de
radiação fantásticos. Os oceanos são um caldo de cultura em permanente ebulição, um
meio óptimo para as mutações. Um milhão de anos depois do arrefecimento da
superfície, a vida brota no planeta. Num mundo desses, as coisas têm de acontecer a
um ritmo alucinante. Mais um milhão de anos e já temos vida multicelular; mais
outro milhão e aparecem os equivalentes dos nossos mamíferos só mais um milhão e
temos uma civilização de nível galáctico, sempre em mudança, a um ritmo
incrivelmente rápido.

— Bem gostava de acreditar no que me diz — retorquiu Krug em tom sombrio. —


Acredite que o queria, o pior é que não sou capaz.

— Comedores de radiação — continuou Vargas. — inteligentes, adaptáveis, aceitando a


necessidade de uma constante e violenta mudança genética, talvez mesmo desejando-
a... A estrela expande-se: pois bem, terão de se adaptar ao aumento da radiação, e
como tal acabam por descobrir maneira de se protegerem. Passam a viver, dentro de
uma nebulosa planetária, rodeados por um céu fluorescente, e às tantas apercebem-se
da existência do resto da galáxia, e mandam-nos uma mensagem... não concorda?

Angustiado, Krug abriu os braços e estendeu-os na direcção de Vargas, as palmas das


mãos viradas para cima:

— Quem me dera acreditar nisso!

— Então acredite. Eu acredito.

— Mas não passa de uma teoria, uma teoria desconexa...

— Que confirma os dados de que dispomos — contrapôs Vargas. — Conhece aquele


provérbio italiano: Se non è vero, è ben trovato? (Se não é verdade, então é bem
pensado). É uma hipótese que teremos de aceitar até arranjarmos outra melhor, e
para já explica melhor os factos do que a teoria da causa natural, isto para um
sinal complexo e repetitivo que nos chega através de vários meios.

Krug virou-lhe as costas e desligou violentamente o projector, como se não


conseguisse suportar por mais tempo a imagem que enchia a cúpula, como se sentisse
a pele a ferver debaixo da furiosa radiação emanada daquele sol alienígena. Sempre
sonhara com um desfecho completamente diferente; imaginara centenas, milhares de
vezes um planeta em volta de um sol amarelo, talvez a oitenta ou noventa anos-luz
da Terra... um sol muito parecido com aquele que o vira nascer. Sonhara com um
mundo de lagos e rios e prados viçosos, como uma atmosfera adocicada, talvez com um
leve sabor a ozono, cheio de árvores de folhas púrpura e insectos verdes e
refulgentes, povoado por seres elegantes, de ombros descaídos e mãos de muitos
dedos, conversando calmamente enquanto passeavam pelos vales e colinas do seu
paraíso, estudando os mistérios do cosmos, especulando sobre a existência de outras
civilizações e, por fim, decidindo lançar uma mensagem pelo universo afora
imaginara-os a receber de braços abertos os primeiros visitantes da Terra, dizendo-
lhes: «Bem-vindos, irmãos, bem-vindos, nós sabíamos que vocês tinham de estar em
algum lado.» Tudo isso ruíra em poucos momentos: aterrorizado, Krug viu mentalmente
o diabólico sol azul a inchar e a lançar línguas demoníacas pelo Espaço fora, viu
um planeta enegrecido no qual monstruosidades escamudas nadavam em poças de
mercúrio, debaixo de um céu trespassado por labaredas brancas, viu um bando de
horrores reunidos em volta de uma máquina infernal a enviarem mensagens
incompreensíveis através dos abismos do Espaço... eram esses os nossos irmãos? Está
tudo acabado, concluiu um Krug amargurado.

— Como é que podemos ir até lá? — perguntou. — Como é que podemos abraçá-los?
Vargas, tenho uma nave quase pronta, uma nave estelar, uma nave destinada a levar
um homem adormecido durante vários séculos. Como é que o posso mandar para um sítio
como esse?

— A sua reacção surpreende-me, nunca esperei vê-la tão em baixo.

— E eu nunca esperei uma estrela como a sua.

— Teria ficado mais feliz se eu lhe dissesse que os sinais afinal não passavam de
meros impulsos naturais?

— Não, não.

— Nesse caso alegre-se por ter irmãos tão estranhos, e ponha de lado essa
estranheza, pense só em aceitá-los como irmãos.

As palavras de Vargas atingiram o alvo. Krug sentiu-se imediatamente reconfortado.


O astrônomo tinha razão. Por muito estranhos que os seres fossem, por mais bizarro
que fosse o seu mundo — isto aceitando como verdadeira a hipótese de Vargas, claro
—, nem por isso deixavam de ser criaturas civilizadas, científicas, viradas para o
exterior, os nossos irmãos. Se amanhã o Espaço se dobrasse sobre si próprio,
lançando no esquecimento a Terra, o Sol e todos os seus mundos vizinhos, mesmo
assimi a inteligência não pereceria para todo o sempre no universo, pois eles
estavam lá.

— Sim — disse Krug. — Ainda bem. Quando a torre ficar pronta, mandamos-lhes
cumprimentos.

Tinham-se passado dois séculos e meio desde que o Homem se libertara do seu planeta
nativo. Numa gigantesca e dinâmica passada, a aventura espacial levara os
exploradores humanos da Lua a Plutão, passando para lá dos limites do sistema
solar... e nunca até então tinham encontrado sinais de vida inteligente. Sim,
tinham encontrado líquenes, bactérias, rastejadores primitivos de baixíssimo filum,
mas nada de mais sofisticado. Os arqueólogos que tinham tecido fantasias sobre a
reconstrução das sequências culturais de Marte, a partir de artefactos encontrados
nos desertos, ficaram profundamente desapontados: não se encontrou um só artefacto.
E quando as sondas estelares tinham sido lançadas, iniciando as suas demoradas
viagens de reconhecimento aos sistemas solares mais próximos, para regressarem de
mãos a abanar? Tornou-se evidente que, dentro de uma esfera de doze anos-luz de
diâmetro, nunca houvera nenhuma forma de vida mais complexa que a dos proteoides
centaurinos, perante os quais só uma amiba se sentiria inferior.

As sondas estelares tinham regressado quando Krug ainda era um jovem. Nunca tinha
gostado de ver os seus irmãos terrestres a erigirem filosofias em torno do falhanço
que fora a busca de vida inteligente nos sistemas vizinhos do nosso; afinal o que é
que pretendiam esses apóstolos do novo geocentrismo?

... Somos os escolhidos!

... Somos os únicos filhos de Deus!

... Só no nosso mundo e em mais nenhum o Senhor criou o seu povo!

... O universo é nosso, é a nossa divina herança!

Para Krug, este tipo de raciocínio não continha nada mais além das sementes da
paranoia.

Nunca fora pessoa de pensar muito em Deus, mas parecia-lhe que os homens estavam a
exigir demasiado do universo quando insistiam que só um minúsculo planeta de uma
minúscula estrela tinha sido bafejado com o milagre da inteligência. Existiam
biliões e biliões de outros sóis, mundos e mundos sem fim. Seria possível que a
inteligência não tivesse surgido em alguns deles, através desse infinito mar das
galáxias?

Quanto a si, era megalomania considerar-se como dogma as conclusões de uma curta
exploração dos doze anos-luz vizinhos da Terra. Estaria o Homem realmente sozinho?
Quem é que o podia afirmar sem margem para dúvidas? Krug era, basicamente, um homem
racional; mantinha a devida perspectiva perante as coisas que o rodeavam. Pensava
que a sanidade da Humanidade dependia do acordar daquele sonho impossível, da
grandeza, pois o sonho estava prestes a acabar, e se esse despertar ocorresse
demasiado tarde o impacto poderia ser devastador.

— Quando é que a torre fica pronta? — perguntou Vargas.

— Daqui a dois anos... talvez no fim do ano que vem, se tivermos sorte. É como você
viu hoje de manhã: orçamento ilimitado, — Krug franziu o cenho, sentindo-se de
repente muito pouco à vontade. — Diga-me a verdade você, que passou uma vida
inteira a ouvir as estrelas, também é dos que pensam que o Krug é louco?

— De maneira nenhuma!

— É claro que pensa. Todos pensam assim. O meu filho Manuel acha que eu devia ser
fechado à chave, só que tem medo de o dizer alto e bom som. O Spaulding, ali fora,
também pensa mais ou menos da mesma maneira... são todos iguais, talvez até o Thor
Watchman, e é ele que está a construir a maldita torre! Todos querem saber o que é
que eu ganho com ela. Porque é que estarei a injectar biliões de dólares numa torre
de vidro? Você também, Vargas!

O rosto deformado do cientista ficou ainda mais tenso.

— Tenho a máxima simpatia pelo seu projecto, e o senhor até me ofende com as suas
suspeitas. Não acha que o contacto com uma civilização extra-solar é tão importante
para mim como para si?

— Sim, para si devia ser importante. É o seu campo, é isso que você estuda. Mas...
e eu? Sou um homem de negócios, o fabricante de androides, o dono de propriedades,
o capitalista, o explorador... talvez com uns pozinhos de químico, alguns
conhecimentos de genética, sim, mas nunca um astrônomo, nunca um verdadeiro
cientista. Não acha, Vargas, que é um bocadinho loucura da minha parte estar a
preocupar-me com uma coisa destas? No fundo estou a desperdiçar recursos! Estou a
enterrar-me num investimento não produtivo! Que tipo de dividendos é que irei
colher da NGC 7293, hem? Diga-me, diga-me!

Nervoso, Vargas só conseguiu responder:

— Talvez estejamos a falar alto de mais. A excitação...

Krug deu uma palmada no peito.

— Fiz os sessenta há pouco tempo, ainda tenho perto de cem anos para viver, talvez
mais. Duzentos, quem sabe? Não se preocupo comigo. A verdade é que não pode deixar
de o admitir: é uma loucura um ignorante como eu interessar-se por uma coisa
destas. — Krug abanou veementemente a cabeça. — Eu próprio sei que é uma loucura;
tenho de o explicar a mim próprio todos os dias. Deixe-me que lhe diga, isto é uma
coisa que tem de ser feita, e eu achei que devia construir a torre. Quando eu era
mais novo, as pessoas não se cansavam de repetir: «Estamos sozinhos. Estamos
completamente sozinhos. Estamos sós.» Nunca acreditei nessas balelas. Nunca fui
capaz. Ganhei biliões ao longo da vida, de modo que agora posso gastá-los como
muito bem me apetecer; pretendo esclarecer as pessoas quanto ao que se passa no
universo. Você descobriu os sinais; eu vou responder-lhes com números... e depois
com imagens. Sei como o fazer. Um e zero, um e zero, um e zero, preto e branco,
preto e branco, é só mandar o fluxo de bits até eles formarem uma imagem. Basta
enchermos os quadradinhos da grelha. É assim que nós somos... isto é uma molécula
de água... isto é o nosso sistema solar. Isto é... — Krug calou-se repentinamente,
ofegante, rouco, reparando pela primeira vez no choque e medo estampados no rosto
do astrônomo. — Desculpe — disse, em tom mais calmo. — Não devia ter gritado. Sei
que às vezes falo de mais...

— Não tem importância. É sempre bom descarregarmos o nosso entusiasmo. Pelo menos é
uma maneira de nos sentirmos vivos...

— Sabe o que é que me pôs assim? — perguntou Krug. — Foi essa sua nebulosa
planetária. Transtornou-me, percebe? Sempre sonhei em ir ao sítio de onde vem a
mensagem. Eu, Krug, na minha própria nave, em animação suspensa, atravessando cem,
duzentos anos-luz como embaixador da Terra, numa viagem nunca feita por um ser
humano. Agora, porém, fiquei a saber como é o mundo de onde vem o sinal. Um
inferno! Céu fluorescente, um sol do tipo O, uma fornalha de luz azul. A viagem foi
por água abaixo, não foi? Fui apanhado de surpresa, mas peço-lhe que não se
preocupe. Sei adaptar-me a tudo. Sou bom a encaixar os golpes mais duros. Está bem,
fico excitado, mas não passa disso — impulsivamente, Krug abraçou o astrônomo com
toda a força. — Obrigado pelos seus sinais, Vargas. Obrigado pela sua nebulosa
planetária. Muito e muito obrigado, Vargas! Ouviu? — Krug soltou o outro e recuou
um passo. — É melhor descermos. Precisa de dinheiro para o laboratório? Fale com o
Spaulding, ele sabe que para si não há limitações.

Vargas saiu para ir falar com Spaulding. De novo sozinho no escritório, Krug
reparou que fervilhava de vitalidade, a menos inundada pela visão da NGC 7293. Era
como se tivesse entrado em ressonância num nível energético mais elevado; a própria
pele parecia-lhe um colete-de-forças.
— Vou sair — resmungou.

Marcou as coordenadas transmat da sua casa de campo no Uganda e entrou no campo


esverdeado. No instante seguinte estava a onze mil quilômetros a leste, em pé na
varanda de ônix, fitando a lagoa tranquila ao fundo do jardim. À sua esquerda, a
uns cem metros de distância, flutuava um quarteto de hipopótamos, dos quais só se
viam as narinas rosadas e os dorsos cinzentos-escuros. À direita estava a sua
amante Quenelle, nua, languidamente deitada na areia da margem. Krug despiu-se.
Pesado como um rinoceronte, impaciente como uma gazela, correu margem abaixo para
se juntar a ela na água.

CAPÍTULO VI

WATCHMAN não precisou de mais de dois minutos para se pôr no local do acidente, mas
quando lá chegou já os escaravelhos-elevadores tinham erguido o bloco caído,
revelando os corpos das vítimas. Juntara-se uma pequena multidão, todos betas; os
gamas não tinham autoridade nem motivação para interromperem os seus programes de
trabalho, mesmo perante uma ocorrência como aquela. Ao verem o alfa a aproximar-se,
os betas recuaram, postando-se nos limites da cena, com expressões onde era
evidente um forte conflito interior. Não sabiam se deviam voltar ao trabalho ou
oferecer-se para ajudar o alfa; apanhados numa lacuna da programação, deixavam-se
ficar ali imóveis, com as expressões aflitas tão típicas dos androides.

Watchman avaliou rapidamente a situação. O bloco de vidro esmagara três androides —


dois betas e um gama. Os betas estavam irreconhecíveis; ia ser difícil apanhar os
bocados ensanguentados por entre o solo gelado. O gama por pouco não escapara: só
estava intacto da cintura para baixo; eram dele as pernas que Watchman vira a
saírem de debaixo do bloco. Dois outros androides tinham sido colhidos pelo
elevador desgovernado; um deles, um gama, recebera uma pancada fatal no crânio e
jazia esparramado no solo, a uns doze metros do sítio onde tombara o bloco. O
outro, um beta, fora aparentemente atingido nas costas por um dos patins de
aterragem do elevador; estava vivo mas gravemente ferido, contorcendo-se com dores.

Watchman escolheu quatro dos gamas do ajuntamento e mandou-os levar os cadáveres


para o centro de controlo, a fim de serem identificados: e destruídos; chamou
outros dois betas e mandou-os ir buscar uma maca para o trabalhador ferido. Quando
os viu a afastarem-se, aproximou-se do androide sobrevivente e olhou para baixo,
fitando os olhos cinzentos semicerrados de dor.

— Consegues falar? — perguntou Watchman.

— Consigo — murmurou o androide. — Não consigo mexer nada da cintura para baixo.
Estou a ficar com frio, acho que estou a congelar da cintura para baixo. Vou
morrer?

— Provavelmente — respondeu Watchman, passando as pontas dos dedos pelas costas do


beta até encontrar o centro neural; desligou-o com um rápido puxão, e a figura
estendida no chão soltou um suspiro de alívio.

— Sentes-te melhor? — perguntou o alfa?

— Muito melhor, Alfa Watchman.

— Como é que te chamas, beta?


— Caliban Driller.

— O que é que estavas a fazer quando o bloco caiu, Caliban?

— Preparava-me para largar o trabalho. Sou um dos capatazes da manutenção, e só


estava a passar por aqui.

Começaram todos a gritar, e eu senti o ar a aquecer quando o bloco caiu. Saltei,


mas de repente dei comigo estendido no chão, com as costas abertas. Quanto tempo me
falta para morrer?

— Uma hora, talvez menos. A sensação de frio vai subir-te pelo corpo até chegar ao
cérebro, e depois é o fim. Não te preocupes: o Krug viu-te quando o bloco caiu.
Krug proteger-te-á. Vais descansar no seu colo.

— Krug seja louvado — murmurou Calibam Driller.

Os maqueiros aproximavam-se. Quando ainda estavam a cerca de cinquenta metros do


locai do acidente, soou o gongo a anunciar o fim do turno. Nesse preciso instante,
todos os androides que não estavam a içar blocos pararam e correram para os
transmats; três filas de trabalhadores começaram a desaparecer nos cubículos, a
caminho das suas casas, nos complexos para androides, espalhados pelos cinco
continentes, enquanto na outra fiada de transmats emergiam os operários do turno
seguinte, vindos das zonas dos laser da América do Sul e da Índia. Ao ouvirem o
gongo, os dois maqueiros fizeram menção de largar a maca para também correrem para
os transmats; Watchman, porém, gritou-lhes uma ordem e os dois betas aproximaram-
se, cabisbaixos.

— Peguem no Caliban Driller — ordenou o alfa. — Levem-no para a capela, com todo o
cuidado. Depois de acabarem, podem largar o trabalho e reclamar as horas
extraordinárias a que tiverem direito.

Por entre a confusão da mudança de turnos, os dois betas deitaram o androide ferido
na maca e abriram caminho até uma das doze cúpulas de extrusão junto ao perímetro
norte do estaleiro. As cúpulas tínham sido erigidas com várias finalidades: algumas
eram armazéns do material, outras eram cozinhas e casas de banho, três abrigavam os
geradores que alimentavam os transmats e as fitas de refrigeração do solo, uma era
um posto de primeiros socorros para acidentes de trabalho, e uma delas, no coração
do pequeno aglomerado de montículos, era a capela.

Havia sempre dois ou três androides de folga nas imediações da porta daquela
cúpula, aparentemente sem nada para fazer, mas na verdade agindo como sentinelas
destinadas a evitar a entrada de qualquer nascido-do-ventre. De quando em quando
apareciam por ali convidados de Krug ou jornalistas, e os androides-guardas
serviam-se de vários truques para os levarem a mudar de direcção sem provocarem o
proibidíssimo choque de vontades entre androide e humano. A capela não estava
aberta a ninguém que tivesse nascido de um homem e de uma mulher, e só os androides
sabiam da sua existência.

Thor Watchman chegou no momento em que os maqueiros depositavam Cailiban Driller em


frente ao altar. Ao entrar fez a devida genuflexão, deixando-se cair rapidamente
sobre um joelho, ao mesmo tempo que estendia os braços em frente, as palmas das
mãos voltadas para cima. O altar, pousado num banho de fluidos nutrientes de cor
púrpura, era um bloco rectangular de carne rosada, sintetizada precisamente da
mesma forma que a aplicada no fabrico dos androides. Se bem que estivesse viva,
pouco ou nada sentia, nem era capaz de se sustentar sem ajuda; era alimentada pela
parte de baixo; graças a constantes infecções da metabolase que lhe permitia
sobreviver. Por detrás do altar sobressaía um holograma em tamanho real, de Simeon
Krug, visto de frente. As paredes da capela estavam decoradas com os tripletes do
código genético, inscritos do chão ao tecto, na sua infinita sequência de
replicação:

AAA AAG AAC AAU

AGA AGG AGC AGU

AOA AGG ACC ACU

AUA AUG AUC AUU

GAA GAG GAC GAU

GGA GGG GGG GGU

GCA GGG GCO GCU

GUA GUG GUC GUU

CAA OAG CAO GAU

CGA GGG GGG GGU

CCA COG COO CCU

CUA CUG CUC CUU

UAA UAG UAC UAU

UGA UGG UGC UGU

UCA UCG UGC UCU

UUA UUG UUC UUU

— Ponham-no em cima do altar — disse Watchman. — Depois saiam.

Os maqueiros fizeram como lhe foi ordenado. Quando se viu sozinho com o beta
moribundo, Watchman disse-lhe: Sou um Protector, e como tal sou qualificado para te
guiar na tua viagem até Krug. Repete comigo, tão claro quanto puderes: Krug trouxe-
nos ao Mundo, e a Krug voltaremos.

— Krug trouxe-nos ao Mundo e a Krug voltaremos.

— Krug é o nosso Criador, o nosso Protector e o nosso Salvador.

— Krug é o nosso Criador, o nosso Protector e o nosso Salvador.

— Krug, suplicamos-Te que nos conduzas à luz.

— Krug, suplicamos-Te que nos conduzas à luz.

— E que eleves os Filhos do Tanque ao nível dos Filhos do Ventre.

— E que eleves os Filhos do Tanque ao nível dos Filhos do Ventre.

— E que nos conduzas ao lugar a que temos direito...


— E que nos conduzas ao lugar a que temos direito...

— ... ao lado dos nossos irmãos e irmãs de carne.

— ... ao lado dos nossos irmãos e irmãs de carne.

— Krug nosso Pai, Krug nosso Protector, Krug nosso Senhor, recebe-me de novo no
Tanque.

— Krug nosso Pai, Krug nosso Protector, Krug nosso Senhor, recebe-me de novo no
Tanque.

— E concede a redenção aos que vierem depois de mim...

— E concede a redenção aos que vierem depois de mim...

— ... no dia em que Tanque e Ventre e Ventre e Tanque forem um só.

— ... no dia em que Tanque e Ventre e Ventre e Tanque forem um só.

— Louvado seja Krug.

— Louvado seja Krug.

— Glória a Krug.

— Glória a Krug.

— AAA AAG AAC AAU a Krug.

— AAA AAG AAC AAU a Krug.

— AGA AGG AGC AGU a Krug.

— AGA AGG AGC... — Caliban Driller vacilou. — O frio já chegou ao peito... —


balbuciou: — Não sou capaz... não sou capaz...

— Acaba a sequência. Krug está à tua espera.

— AGU a Krug.

— ACA ACG ACC ACU a Krug.

As pontas dos dedos do beta enterraram-se na carne palpitante do altar. Nos últimos
minutos, o tom de sua pele tinha passado do vermelho a algo muito próximo do
violeta; os olhos reviraram-se, e os lábios contorceram-se num esgar de agonia.

— Krug aguarda-te! — vociferou Watchman. — Continua com a sequência!

— Não consigo... falar... não... consigo... respirar...

— Então ouve. Limitai-te a ouvir; vai formando os tripletes na tua mente, à medida
que eu os for dizendo. AUA AUG AUC AUU a Krug. GAA GAG GAC GAU a Krug. GGA GGG...

Desesperado, Watchman foi desfiando os trípletes do código genético, sempre


ajoelhado junto ao altar. A cada grupo, ondulava o grupo na dupla hélice prescrita,
cumprindo os movimentos próprios do rito fúnebre. A vida de Caliban Driller esvaía-
se rapidamente. Já perto do fim, Watchman tirou um fio de ligação, do bolso da
túnica, enfiou uma das tomadas no seu antebraço e a outra no de Driller, bombeando
energia para dentro do corpo do beta agonizante, para que este conseguisse ouvir e
concluir a listagem dos tripletes do ARN. Só depois, quando teve a certeza de ter
entregue devidamente a alma de Caliban Driller a Krug é que Watchman se desligou do
cadáver, murmurando uma breve prece em sua intenção, para por fim chamar um par de
gamas para que levassem o corpo dali.

Tenso, exausto mas mesmo assim exultante; pela redenção de Caliban Driller,
Watchman saiu da capela e dirigiu-se ao centro de controlo. A meio caminho
atravessou-se-lhe à frente um vulto da mesma altura — um outro alfa. Estranho,
pensou. O seu turno só acabaria dali a umas horas, e o seu substituto, o alfa
Euclid Planner, só chegaria minutos antes da rendição. Este alfa, porém, não era o
Planner; Watchman nunca o vira mais gordo.

O estranho disse-lhe:

— Watchman, podes conceder-me uns minutos? Chamo-me Siegfried Fileclerk, e sou do


Partido da Igualdade dos Androides. Por certo que estás a par da emenda
constitucional que propusemos para permitir a admissão dos nossos amigos à próxima
sessão do Congresso. Tem sido sugerido que, atendendo à tua estreita associação com
Simeon Krug, talvez nos pudesses ajudar a chegar junto do Krug, para que ele nos
apoiasse na nossa...

Watchman interrompeu-o com brusquidão:

— E tu por certo conheces a minha posição quanto ao meu envolvimento nas questões
políticas.

— Sim, mas neste momento a causa da igualdade dos androides...

— Pode ser ajudada de muitas maneiras. Não pretendo explorar a minha ligação ao
Krug com fins políticos.

— Mas a emenda constitucional...

— Inútil. Absolutamente inútil. Amigo Fileclerk, estás a ver aquele edifício ali? É
a nossa capela. Recomendo-te que a visites e libertes a tua alma de falsos valores.

— Eu não pertenço nem acredito na vossa Igreja — disse Siegfried Fileclerk.

— E eu não muito no vosso partido político — retorquiu Thor Watchman. — Desculpa-


me, mas tenho o que fazer no centro de controlo.

— Talvez pudéssemos continuar esta conversa quando saíres de serviço.

— Se assim fosse estarias a interferir com o meu período de descanso — disse


Watchman.

Afastou-se rapidamente, vendo-se obrigado a recorrer a um dos rituais neurais para


afastar a fúria e a irritação que o dominavam.

Partido da igualdade dos Androides — pensou desdenhosamente. — Loucos! Idiotas!


Néscios!

CAPÍTULO VII
MANUEL KRUG tivera um dia atarefado.

08.00, Califórnia. Acordou na suo casa da costa de Mendocino, com o turbulento


Pacífico quase à sua porta; como jardim uma floresta de sequoias com mais de mil
hectares. Clissa a seu lado na cama, meiga e tímida como uma gata. Sentia o cérebro
enevoado por causa da festa da noite anterior, oferecida pelo Grupo Spectrum, em
Taiwan, onde abusara do licor de milho e gengibre do seu amigo Nick Ssu-ma. O rosto
do seu beta doméstico apareceu no écran flutuante, murmurando-lhe com ar
preocupado:

— Senhor, senhor, levante-se, por favor. O seu pai está à sua espera na torre.

Clissa apertou-se contra ele. Manuel piscou os olhos, tentando sacudir as teias de
aranha que lhe amolengavam o cérebro.

— Senhor? Peço imensa desculpa, mas o senhor deixou ordens expressas para que o
acordássemos!

Uma nota de quarenta ciclos ribombou junto ao soalho, enquanto um cone sonoro de
quinze megaciclos descia do tecto; empalado entre os dois, Manuel não foi capaz de
voltar a adormecer. O barulho cresceu de intensidade, e Manuel despertou
completamente, resmungando de aborrecimento e contrariedade. A seguir a surpresa:
Clissa a espreguiçar-se, a estremecer, pegando-lhe na mão para a pousar em cima de
um dos seus pequenos e frescos seios. Ele apertou-lhe o mamilo com os dedos, mas
achou-o mole, como sempre. Um nítido atrevimento daquela criança-mulher, cuja carne
ainda não sabia acompanhar os desejos do espírito. Casados há dois anos, Manuel
ainda não conseguira despertar-lhe completamente os sentidos, por muito que se
esforçasse.

— Manuel... — murmurou ela. — Manuel... acariciai-me toda!

Sentiu-se incomodado ao ter de a repelir.

— Mais logo — disse-lhe, ainda a lutar para não ouvir os terríveis sons que o
inundavam por cima e por baixo.

— Temos de nos levantar já, Clissa. O patriarca está à nossa espera. É o dia da
visita à torre.

Clissa fez beicinho. Levantaram-se os dois; os despertadores sônicos calaram-se de


imediato. Tomaram banho, comeram o pequeno-almoço, vestiram-se.

— Queres mesmo que eu vá? — perguntou ela.

— O meu pai insistiu em convidar-te. Acha que está na altura de veres a torre. Não
te apetece ir?

— Tenho medo de fazer uma asneira, de dizer qualquer coisa errada; sinto-me tão
criança, quando ao pé dele...

— Mas tu és mesmo ingênua. Enfim, a verdade é que o velho gosta de ti. Se fingires
que ficas tremendamente fascinada com a torre; ele perdoa-te todas as asneiras que
possas dizer.

— E as outras pessoas? O Senador Fearon, aquele cientista e sabe-se lá quem mais...


Manuel, já me sinto embaraçada!

— Clissa...
— Está bem, está bem;

— E não te esqueças: a torre vai impressionar-te mais do que o Taj Mahal, vais vê-
la como se fosse o maior e mais maravilhoso empreendimento jamais encetado pela
Humanidade. Diz-lhe isso depois de a teres visto. Não é preciso usares as mesmas
palavras, mas é isso que tens de lhe dar a entender.

— Ele leva a torre mesmo a sério, não leva? — perguntou ela. — Acho que ele
tenciona mesmo falar com essa gente das estrelas.

—É verdade.

— Quanto é que isso vai custar?

— Biliões — respondeu Manuel.

— Ele está a malbaratar a nossa herança, a gastá-la toda, para construir a torre.

— Toda não. Nunca teremos falta de dinheiro. Seja como for, quem o ganhou foi e!e;
acho que o pode gastar como quiser.

— Mesmo numa obcecação? Numa fantasia?

— Não insistas, Clissa. Não temos nada a ver com isso.

— Então explica-me só uma coisa: supõe que o teu pai morre, e que tu assumes o
controlo das empresas. O que é que fazias com a torre?

Manuel marcou as coordenadas do transmat para o salto até Nova Iorque.

— Mandava parar imediatamente com as obras — respondeu. — E olha que te mato se


alguma vez lhe repetires o que acabei de dizer. Entra, já estamos atrasados.

11.40, Nova Iorque. A manhã já ia a meio, apesar dele só estar acordado há quarenta
apressados minutos, depois de ter acordado às oito. Era uma das pequenas
desvantagens da sociedade transmat: sempre que saltávamos para oriente, tínhamos de
deitar fora bocadinhos do tempo. É claro que também havia compensações, estas no
outro sentido. No Verão de 16, na véspera do seu casamento, Manuel e alguns dos
seus amigos do Grupo Spectrum tinham acompanhado o amanhecer, saltando para
ocidente, em volta do Mundo. Começaram às seis da manhã de um sábado, na Reserva de
Caça de Amboseli, quando o Sol despontava atrás do Kilimanjaro, e daí seguiram para
Kinshasa, Acra, Rio, Caracas, Veracruz, Albuquerque, Los Angeles, Honolulu,
Auckland, Brisbane, Singapura, Pnompenh, Calcutá e Meca: No mundo do transmat não
eram precisos vistos nem passaportes eram coisas obviamente absurdas numa sociedade
que viajava instantaneamente. O Sol prosseguiu o seu curso, como sempre, na sua
pachorrenta marcha de mil e seiscentos quilômetros por hora; os viajantes
saltadores não sofriam de semelhante limitação. Apesar de só se deterem por pouco
tempo em cada paragem — quinze minutos ali, vinte acolá, o tempo de uma bebida, de
um mergulho na piscina, para comprar uma lembrança ou para visitar monumentos
famosos da Antiguidade —, mesmo assim continuavam a ganhar tempo, entrando cada vez
mais na noite anterior, vencendo o Sol nesta corrida à volta do Mundo, cada vez
mais embrenhados na noite de sexta-feira. É claro que perdiam tudo ao passarem a
linha divisória de data, vendo-se repentinamente regressados à manhã de sábado
compensavam essa perda prosseguindo para ocidente, e quando voltaram aos
contrafortes do Kilimanjaro pouco passava das onze da manhã desse mesmo sábado em
que tinham partido à aventura. Enfim, podiam gabar-se de ter dado a volta ao Mundo
e vivido uma sexta-feira e meia.
Com o transmat eram possíveis coisas dessas. Também se podia, cronometrando
cuidadosamente os saltos, assistir a doze ocasos num mesmo dia, ou passar uma vida
inteira sobre o abrasador sol do meio-dia. Apesar disso, ao chegar a Nova Iorque às
11.40, vindo da Califórnia, Manuel ficou aborrecido por ter oferecido ao transmat
aquele bocado da manhã.

O pai recebeu-o no escritório, com um seco e formal aperto de mão, mas abraçou
Clissa com mais calor. Leon Spaulding pairava ali perto, pouco à vontade. Quenelle
estava à janela, de costas para toda a gente, aparentemente muito interessada a ver
a cidade lá em baixo. Manuel não se dava bem com ela; de resto, nunca se dera bem
com as amantes do pai. O velho escolhia-as sempre iguais: lábios carnudos, seios
fartos, nádegas coleantes, olhos fogosos, ancas sensuais. Labregas.

— Estamos à espera do Senador Fearon, do Tom Buckleman e do Dr. Vargas. O Thor vai
mostrar-nos a torre inteira, de uma ponta à outra. O qu e é que tencionas fazer
depois da visita, Manuel?

— Aindia não pensei em nada...

— Vais a Duluth. Quero que fiques a par do modo como funciona a fábrica. Leon,
avisa a gente de Duluth: o meu filho vai lá em viagem de inspecção, eles que contem
com ele esta tarde.

Spaulding saiu, e Manuel encolheu os ombros.

— Como queiras, pai.

— É a altura de te aumentares as tuas responsabilidades, rapaz. Quero que


desenvolvas as tuas capacidades de gestão. Um dia destes vais ser o patrão disto
tudo, hem? Daqui a uns tempos, quando falarem no Krug, estarão a referir-se a ti.

— Espero mostrar-me à altura de confiança que depositas em mim, pai — respondeu


Manuel.

Sabia perfeitamente que não conseguia enganar o velho com tanta bajulação; por
outro lado, aquela pretensa demonstração de amor paternal também não o enganava a
ele. Manuel apercebia se perfeitamente do desprezo que o pai nutria por ele. Era
mesmo capaz de se ver através dos olhos do pai: um devasso, o eterno playboy.
Consolavam saber que não era nada disso: preferia ver-se como um jovem sensível,
amável, demasiado requintado para se meter nos rudes campos, de batalhas
comerciais. Repentinamente, essa imagem desfez-se, substituída por outra talvez
mais genuína: a de um Manuel Krug oco, preguiçoso, idealista, fútil, incompetente.
Qual delas se ajustaria ao verdadeiro Manuel? Não sabia. Não sabia. Quanto mais
envelhecia menos se compreendia a si próprio.

O Senador Fearon saiu do transmat.

— Henry! — cumprimentou Krug. — Já conheces o meu filho Manuel, não conheces? O


futuro Krug dos Krug, o legítimo herdeiro desta...

— Já lá vão uns anítos — comentou o senador. — Como tens passado, Manuel?

Manuel apertou a mão gelada do político, conseguindo esboçar um sorriso delicado.

— Encontrámo-nos há cinco anos em Macau — respondeu em tom simpático. — O senhor


estava de passagem, a caminho de Ulan Bator.

— Mas é claro! — Que memória formidável! — exclamou Fearon. — Krug, tens aqui um
filho às direitas!
— Então espera mais uns tempos — disso Krug. — Quando eu me afastar, ele há-de
mostrar a toda a gente como é que trabalha um verdadeiro construtor de impérios!

Embaraçado, Manuel tossiu e desviou o olhar. Krug, ao insistir que o seu único
filho e herdeiro fora feito à medida da constelação de empresas que fundara ou
absorvera, devia estar a deixar-se levar por uma espécie de sentido de sucessão
dinástica; era por isso que parecia eternamente preocupado com a «educação» do
«seu» Manuel, passando a vida a repisar o facto do filho estar prestes a suceder-
lhe.

Manuel não tinha a mínima vontade de se sentar aos comandos do Império do pai, e de
resto não se achava capaz para tal. Estava a sair da sua fase de valdevinos,
libertando-se da frivolidade do mesmo modo que outras pessoas se libertavam do
ateísmo. Andava à procura de uma finalidade na vida, de um recipiente onde pudesse
conter as suas ambições e capacidades ainda mal formadas. Talvez um dia destes
encontrasse um a seu gosto... que por certo não seriam as Empresas Krug.

O velho sabia-o tão bem quanto Manuel. Lá por dentro, desprezava a inutilidade do
filho, e por vezes demonstrava-o tanto por actos como por palavras. Contudo, quando
em público, nunca perdia a oportunidade de louvar a capacidade de discernimento, a
argúcia e a capacidade administrativa do seu extremoso filho. Em frente de Thor
Watchman, em frente de Leon Spaulding, em frente de quem o quisesse ouvir, Krug
referia-se vezes sem conta às virtudes do seu herdeiro legítimo. — Por hipocrisia,
pensava Manuel. — Está a tentar convencer-se de que isso corresponde à verdade,
quando sabe perfeitamente que as coisas são precisamente o oposto. Nunca resultará.
Não pode resultar. O velho há-de confiar sempre muito mais no seu amigo androide
Thor Watchman do que no seu próprio filho. Por boas razões, diga-se de passagem.
Quem não preferiria um androide sobredotado a um filho inútil? Foi ele que nos fez
a ambos, não foi?

Os outros convidados estavam a chegar, e Krug arrebanhou-os a todos na direcção do


cubículo do transmat.

— Para a torre! — gritou, — Para a torre!

11.10, na torre. Acabou por recuperar grande parte da hora perdida ao princípio da
manhã, pois saltara para uma zona horária a oeste de Nova Iorque. Enfim, teria
dispensado a viagem se isso lhe fosse permitido. Já bastava ter de suportar o frio
cortante do Outono árctico, obrigando-se a contemplar a absurda torre do pai — a
Pirâmide de Krug, como Manuel gostava de lhe chamar em privado —, mas ainda por
cima tinha acontecido aquilo do bloco caído, o esmagamento de vários androides. Um
acidente mais que desagradável.

Clissa ficara à beira da histeria.

— Não olhes — disse-lhe Manuel, abraçando-a enquanto os écrans do centro de


controlo mostravam as máquinas-escaravelhos a levantarem o bloco meio enterrado no
solo gelado, para revelarem os corpos irreconhecíveis. — Um sedativo, depressa! —
gritou para Spaulding.

O ectógene descobriu um tubo com um líquido qualquer; Manuel apertou-o contra o


braço de Clissa e activou o mecanismo de injecção. A droga penetrou-lhe na pele,
graças à pressão ultrassônica.

— Morreram todos? — perguntou ela, ainda sem conseguir olhar para os monitores.

— Parece-me que sim. Talvez tenha sobrevivido um. Os outros nem sequer souberam o
que é que os atingiu.
— Pobres criaturas.

— Criaturas não — disse Leon Spaulding. — Androides. Simples androides.

Clissa levantou a cabeça.

— Os androides são gente! — exclamou, furiosa: — Nunca mais me diga uma coisa
dessas! Então eles não têm nomes, não têm sonhos, personalidade...

— Clissa... — pediu Manuel.

— ... e ambições, como nós? — continuou, ela. — Mas é claro que são gente! Quem
morreu debaixo daquele bloco foram pessoas, percebeu? Como é que o senhor se
atreve, o senhor em particular, a fazer uma observação dessas?

— Clissa! — repetiu Manuel, angustiado.

Spaulding ficara rígido, os olhos gelados de fúria. O ectógene parecia prestes a


retorquir da pior forma mas salvou-se graças à sua rígida disciplina.

— Lamento — murmurou Clissa, baixando os olhos. — Não queria entrar no campo


pessoal, Leon. Eu... eu... oh, Manuel, mas porque é que isto tinha de acontecer?

Recomeçou a chorar, e Manuel pediu que trouxessem novo tubo de sedativo; o pai,
porém, fez sinal a dizer que não e aproximou-se, tirando-a dos braços do filho.

Krug rodeou a rapariga com os seus braços imensos, quase a esmagando contra o peito
largo e musculoso.

— Calma, calma — disse-lhe, estreitando-a com força. — Calma, calma, calma. Sim,
sei que foi terrível, mas olha que eles não sofreram absolutamente nada. Morreram
instantaneamente. O Thor vai tratar bem dos que ficaram feridos; basta desligar-
lhes os centros da dor para que se sintam melhor. Pobre Clissa, minha pobre, pobre,
pobre Clissa... nunca tinhas visto ninguém morrer, pois não? É horrível quando tudo
acontece assim de repente, eu sei que é. Eu sei, eu sei.

Krug continuou a confortá-la com ternura, afagando-lhe os cabelos sedosos, dando-


lhe palmadinhas nas costas, beijando-lhe as faces húmidas de lágrimas. Manuel
observava, atônito. Nunca na vida vira o pai tão meigo como agora.

É claro que Clissa era uma pessoa muito especial para o velho: era o instrumento da
sucessão dinástica. Era suposta ser a influência firme e orientadora que levaria
Manuel a aceitar as suas responsabilidades, e também estava encarregada de
perpetuar o nome de Krug. Um paradoxo: Krug tratava a nora como se esta fosse uma
boneca de porcelana, mas por outro lado esperava ver-lhe sair de entre as pernas
uma ou mais ninhadas de filhos.

Krug virou-se para os convidados e desculpou-se:

— É pena que tenhamos de acabar a visita desta forma, mas pelo menos conseguimos
ver tudo antes do acidente. Senador, cavalheiros, agradeço-lhes imenso a honra que
me deram com a vossa presença aqui na torre. Espero que cá voltem, quando a obra
estiver mais adiantada. Vamos?

Clissa parecia mais calma; Manuel sentiu-se mal por ter sido o pai e não ele a
reconfortá-la.

Estendeu a mão para a puxar para junto de si e disse:


— Acho que a Clissa e eu vamos voltar para a Califórnia. Umas horas na praia e ela
fica como nova. Nós sempre...

— Estão à tua espera em Duluth logo à tarde — respondeu Krug, insensível aos
argumentos do filho.

— Mas eu...

— Chama os teus androides domésticos para que levem a Clissa — insistiu o pai. — Tu
vais à fábrica.

Virando-lhe as costas, Krug acenou aos convidados que entravam no transmat e


ordenou a Leon Spaulding:

— Nova Iorque. Escritório de cima.

11.38, na torre. Já tinham partido quase todos: Krug, Spaulding, Quenelle e Vargas
de regresso a Nova Iorque, Fearon e Buckleman para Genebra, Maledetto para Los
Angeles. Thor Watchman saíra para ir ver os androides feridos. Dois dos androides
domésticos de Manuel tinham entretanto chegado para levarem Clissa de volta a
Mendocino. Pouco antes de entrar no transmat com os dois criados, Manuel abraçou-a
ao de leve e beijou-a na face.

— A que horas chegas? — perguntou ela.

— Lá para o fim da tarde; suponho. Não temos um jantar em Hong-Kong? Vou voltar a
tempo de me vestir a condizer.

— Porque é que não voltas mais cedo?

— Tenho de ir a Duluth, à fábrica de androides.

— Não vás.

— Tenho de ir. Ouviste o velho. Seja como for, ele tem razão: está na altura de ver
o que lá se faz.

— Aborrecido, não achas? Uma tarde inteira enfiado numa fábrica!

— Tem de ser. Dorme bem, Clissa. Espero que quando acordares não te lembres das
coisas horríveis que aconteceram hoje aqui. Queres que te programe um apagamento
selectivo?

— Sabes muito bem que detesto que me mexam na memória, Manuel.

— Sim, claro. Desculpa. É melhor ires.

— Amo-te — disse ela.

— Amo-te — respondeu ele, fazendo um sinal ao androides. Os dois betas pegaram em


Clissa pelos braços e entraram no transmat.

Manuel ficou acompanhado apenas por um par de betas que tinham vindo tomar conta do
centro de controlo, na ausência de Watchman. Passou por eles sem sequer olhar e
entrou no gabinete privativo de Watchman, nas traseiras da cúpula; fechou a porta à
chave e ligou o telefone. O écran iluminou-se. Manuel digitou os números de um
código cabalístico e o monitor respondeu-lhe com um padrão abstracto que dava como
garantida a privacidade da chamada. Só depois é que o jovem Krug marcou o número de
Lilith Meson, uma alfa, residente no bairro dos androides de Estocolmo.

A imagem de Lilith apareceu no écran: uma mulher elegante, com cabelos azuis-
escuros lustrosos, nariz direito e olhos de platina, sorridente ao ver quem ligara.

— Manuel? De onde é que estás a falar? — perguntou a alfa.

— Da torre. Vou chegar tarde.

— Muito tarde?

— Duas ou três horas.

— Vou desesperar... sou capaz de morrer.

— Tem de ser, Lilith. Sua majestade mandou-me ir visitar a fábrica de androides de


Duluth. És capaz de me perdoar?

— Tenho outro remédio? É tão aborrecido teres de ir meter o nariz em tanques


malcheirosos, quando podias...

— Noblesse oblige. Bom, a verdade é que sinto uma certa curiosidade pelas
realidades dos androides, e desde que tu e eu... desde que nós... Sabias que nunca
estive dentro de uma dessas fábricas?

— Nunca?

— Nunca. Nunca me interessei por isso. Continuo a não estar interessado, excepto
num certo aspecto: vou ter oportunidade de ver com os meus próprios olhos as coisas
maravilhosas que tens debaixo dessa tua pele vermelha. Vou poder ver como é que
Krug Synthetics fabrica Liliths às centenas...

— Tens a certeza de que queres mesmo saber? — perguntou ela, subindo o tom de voz.

— Quero saber tudo o que houver para saber a teu respeito — disse Manuel, sincero.
— Para o bem ou para o mal. Desculpa-me por chegar atrasado, está bem? Vou a Duluth
receber uma lição sobre a Lilith Meson. Amo-te.

— Também te amo — disse a alfa Lilith Meson ao filho de Simeon Krug.

11.58, Duluth. A principal fábrica na terra da Krug Synthetics, Lda. — havia mais
quatro, noutros tantos continentes e várias fora do planeta —, ocupava um enorme e
esguio edifício com quase um quilômetro de comprimento, franqueando a margem do
lago Superior. Dentro do edifício, operando como se fossem províncias
independentes, ficavam os laboratórios que constituíam as várias etapas da criação
da vida sintética.

Manuel visitava-as agora como um pró-cônsul em viagem de inspecção, aquilatando o


trabalho dos seus servos. Deslocava-se num carro-bolha excessivamente estofado;
sedutor e confortável como um ventre, seguindo ao longo de uma calha fluida que
percorria o edifício de uma ponta à outra, bem acima dos diversos locais de
trabalho. Acompanhava-o o supervisor humano da fábrica, Nolan Bompensiero, um
quarentão de ar distinto e intetigente que, apesar de ser um dos elementos-chave
dos domínios de Krug, se sentava tenso e rígido, obviamente receoso de qualquer
reacção menos favorável da parte de Manuel. Não suspeitava sequer que o filho do
patrão detestava ter de estar ali, não se apercebeu do enfado do ilustre visitante,
nem da pouca importância que ele dava ao exercício de poder, mesmo que para criar
problemas aos empregados da organização. Manoel só tinha uma coisa na cabeça:
Lilith. Foi aqui que a Lilith nasceu — pensou. — Foi aqui que a Lilith nasceu.
Em cada uma das secções da fábrica, um alfa — o supervisor da secção — entrava no
carro-bolha e seguia com Manuel e Bompensiero até ao fim da sua área de
responsabilidade. A maior parte das operações com complexo eram dirigidas por
alfas; a gigantesca fábrica não empregava mais de meia dúzia de humanos.
Curiosamente; todos os alfas pareciam tão tensos como o próprio Bompensiero.

Manuel percorreu primeiro as salas onde eram sintetizados os nucleóticos de alta


energia que constituíam o ADN, os elementos básicos da vida, mal prestando atenção
às explicações nervosas e apressadas de Bompensiero, sintonizando distraidamente
uma ou outra frase.

Água, amónia, metano, cianeto de hidrogênio e outros produtos químicos... aplicamos


uma descarça eléctrica para estimular a formação dos complexos orgânicos, que são
extremamente complexos... depois vem a adição do fósforo...

«... um processo bastante simples, quase que primitivo, não lhe parece? Vem no
seguimento das experiências clássicas de Miller em 1952... uma ciência medieval, a
processar-se aqui mesmo em frente aos nossos olhos...

«... O ADN determina a estrutura das proteínas da célula. Uma célula viva típica
requer centenas de proteínas, a maior parte das quais actua como enzimas, ou
catalisadores biológicos...

«Uma proteína típica é uma cadeia molecular contendo cerca de duzentas subunidades
de aminoácidos, ligadas entre si numa sequência específica...

«... o código para cada proteína é dado por um único gene, que por sua vez existe
numa dada região linear da molécula do ADN... É claro que o senhor sabe tudo isso
desculpe-me por estar a insistir nestes factos, só pretendia...»

— Claro — respondeu Manuel.

— É naqueles tanques ali ao fundo que obrigamos os nucleótidos a juntarem-se, em


dinucleótidos; misturamo-os para formarmos o ADN, o ácido nucleico que determina a
composição da ...

A Lilith, saída daqueles tanques? A minha Lilith, saída daquela mistura fedorenta
de compostos químicos?

O carro deslizou suavemente pela calha; o supervisor alfa apeou-se, imediatamente


substituído por um colega, que fez uma vénia rígida antes de entrar e se sentar.

Bompensiero continuou:

— Somos nós que elaboramos os moldes do ADN, ou seja, os planos para a forma de
vida que pretendemos criar; no entanto, o objectivo principal consiste na indução
da autorreplicação da vida, pois seria impossível fabricarmos um androide
construindo-o célula a célula. Por outras palavras, precisamos de atingir um
estádio que costumamos designar por plataforma de arranque. É claro que o senhor
sabe que o ADN não está directamente envolvido na síntese das proteínas, pois há um
outro ácido nucleico a actuar como intermediário, o ARN, o qual pode ser codificado
de forma a transportar as mensagens genéticas impostas pelo ADN...

«... as quatro bases de subunidades químicas, arranjadas em diversas combinações,


que foram o código tão nosso conhecido... a adenina, a guarnina, o uracil e a
citosina...

«... naqueles tanques ali — quase que podemos imaginar as cadeias a formarem-se —,
o ARN transmite as instruções vindas do ADN... a síntese das proteínas é conduzida
por partículas celulares chamadas ribossomas, que no fundo são meio proteína e meio
ARN-adienina, guanina, uracil e citosina... O código para cada proteína é
transportado num simples gene, e esse código, inscrito no ARN-mensageiro, assume a
forma de uma série de tripletes das quatro bases do ARN.., está a seguir o meu
raciocínio?»

— Claro, claro — disse Manuel, imaginando Lilith a nadar dentro de um dos tanques.

— Como aqui, por exemplo. Adenina, adenina, citosina. Citosina, citosina, guanina.
Uracil, uracil, guanina. AAC, CCG, UUG... É quase litúrgico, não lhe parece, Sr.
Krug? Temos sessenta e quatro combinações de bases ARN, com as quais podemos
especificar vinte aminoácidos... um vocabulário mais do que adequado para a
finalidade em vista! Se quisesse cantar-lhe a lista inteira, era capaz de demorar o
tempo desta visita... AAA, AAG, AAC, AAU. AGA, AGG, AGC, AGU, AC...

O alfa que viajava com eles naquela secção tossiu ruidosamente e agarrou-se ao
peito, fazendo uma careta.

— O que foi? — perguntou Bompensiero.

— Um espasmo repentino — disse o alfa. — Uma dificulade digestiva. Peço imensa


desculpa.

Bompensiero voltou de novo as suas atenções para Manuel:

— Bom, não é preciso soletrar-lhe as sequências todas. Portanto, como pode ver, nós
juntamos as diferentes proteínas para formarmos as moléculas vivas, tal e qual como
sucede na Natureza, excepto que na Natureza o processo é iniciado com a fusão dos
gâmetas sexuais, enquanto nós sintetizamos logo os elementos genéticos.
Naturalmente, seguimos o padrão genético humano, pois pretendemos que o produto
final se pareça com um ser humano ... mas se quiséssemos podíamos sintetizar
porcos, vacas, cavalos, proteoides centaurinos, enfim, qualquer forma de vida que
nos fosse pedida. Pegamos no código respectivo, arranjamos o nosso ARN e ...
pronto! O padrão do nosso produto final surge tal e qual como desejávamos!

— É claro que não seguimos o código genético humano sob todos os aspectos — disse o
alfa.

Bompensiero apressou-se a confirmar com um aceno de cabeça.

— Sim, aqui o meu amigo levantou uma questão vital. Nos primeiros tempos da síntese
de androides, o seu pai decidiu que, por razões sociológicas óbvias, os androides
tinham de ser instantaneamente identificados como criações sintéticas; foi por isso
que lhes introduzimos certas modificações genéticas obrigatórias. A pele vermelha,
a ausência de pilosidade corporal, a distinta textura da epiderme ... tudo isto foi
concebido essencialmente para uma maior facilidade de identificação. Bom, e há as
modificações destinadas a aumentar a eficiência do corpo. Já que podemos fingir que
somos deuses, porque não fazê-lo da melhor forma?

— Sim, porque não? — disse Manuel.

— Fora com o apêndice — continuou Bompensiero. — Para que é que precisamos dele?
Rearranjámos a estrutura óssea das costas e da pélvis para eliminarmos todos os
problemas que a nossa constituição defeituosa contém... Aguçámos os sentidos...
programemos um equilíbrio ideal entre gordura e músculos, não só por causa da
aparência física como também para melhorar a resistência, a velocidade e os
reflexos. Para quê fabricarmos androides feios? Para quê fazê-los desajeitados?
— Portanto, o senhor está a sugerir que os androides são superiores aos seres
humanos? — perguntou Manuel em tom casual.

Bompensiero pareceu ficar incomodado. Hesitou, como que a ponderar os possíveis


impactos políticos da sua resposta, sem saber qual seria a posição de Manuel quanto
à infame questão dos direitos civis dos androides. Por fim, lá conseguiu dizer o
que queria:

— Penso que não restam quaisquer dúvidas quanto à superioridade física dos
androides. Fomos nós quem os programou para serem fortes, belos e saudáveis. Até
certo ponto, é o mesmo que temos vindo a fazer com os seres humanos ao longo das
duas últimas gerações, só que no nosso caso não temos a mesma capacidade de
controlo, ou pelo menos nunca tentámos atingi-la... por causa das objecções
humanísticas, da oposição dos Whiterers e por aí adiante. Contudo, se pensarmos que
os androides são estéreis e que o grau de inteligência da maioria deles é bastante
baixo e que mesmo os alfas demonstram desculpe-me, meu amigo... muito poucas
capacidades criativas...

— Sim, claro — atalhou Manuel, apontando para o chão distante. — O que é que estão
a fazer ali em baixo?

— São os tanques de replicação — disse Bompensiero. — É ali que as cadeias da


matéria-prima nucleica se dividem e proliferam. Cada um dos tanques contém uma
espécie de caldo de zigotos recém-concebidos, na tal fase de arranque, e todos
produzidos nas secções de síntese de proteínas que vimos há bocado... é este o
processo que substitui o processo sexual da união dos gâmetas naturais. Não sei se
me fiz compreender...

— Fez, fez — respondeu Manuel, fitando fascinado o calmo fluido rosado que enchia
os grandes tanques circulares. Quase que imaginou minúsculos pedacinhos de matéria
viva a flutuarem no líquido; uma ilusão, como muito bem sabia.

O carro-bolha seguiu o seu caminho, silencioso e confortável.

— Aqui são as câmaras-infantário — disse Bompensiero assim que entraram na secção


seguinte, onde se viam filas e filas de cilindros metálicos refulgentes ligados por
uma intrincada rede de tubagens. — Na prática, cada um daqueles cilindros é um
útero artificial, contendo cada um uma dúzia de embriões mergulhados numa solução
de nutrientes. Aqui em Duluth produzimos alfas, betas e gamas... toda a escala
androide. As diferenças qualitativas entre as três classes são-lhes introduzidas
durante o processo de síntese inicial, mas também lhes aplicamos diferentes valores
nutricionais. Aquelas ali, à sua esquerda, são as câmaras dos alfas; à direita
ficam as dos betas. A sala seguinte está totalmente dedicada à produção de gamas.

— Qual é a vossa curva de distribuição?

— Um alfa por cada 100 betas e 1000 gamas. Foi o seu pai quem, no início, calculou
este rácio, e nós nunca o alterámos. A curva de distribuição ajusta-se
perfeitamente às necessidades dos humanos.

— O meu pai é um homem dotado de grande visão — comentou Manuel em tom vago.

Como é que seria hoje o mundo se o cartel Krug não tivesse inventado os androides?
Talvez não fosse assim tão diferente como isso. Em lugar de uma pequena elite
humana, culturalmente homogênea e servida pelos computadores, robots mecânicos e
hordas de androides servis, talvez houvesse uma pequena e culturalmente homogênea
elite humana servida unicamente por computadores e robots mecânicos. De qualquer
das formas, o homem do século XXIII teria uma vida prenhe de facilidades.
Os úlimos séculos tinham assistido ao estabelecimento de certas tendências
determinantes, surgidas muito antes do primeiro e desajeitado androide ter saído,
aos tombos, do seu tanque. Para começar, nos finais do século XX tinha havido uma
vasta redução da população humana. A guerra, e a anarquia generalizada, fora
responsável por milhões de mortes na Ásia e em África, onde a fome sempre fora um
dos maiores problemas; na América do Sul e no Próximo Oriente a situação não fora
muito diferente. Nas nações desenvolvidas, as pressões sociais e o aparecimento de
métodos anticoncepcionais infalíveis tinham gerado efeitos muito semelhantes.
Seguira-se uma paragem no crescimento populacional, e duas gerações depois os
censos indicavam uma clara e indesmentível redução do número de habitantes do
planeta.

Uma das consequências desta situação foi a erosão e quase total desaparecimento do
proletariado. Como o declínio populacional fora acompanhado pela substituição do
homem pelas máquinas — em praticamente todos os trabalhos braçais, e em alguns não
tão braçais como isso —, aqueles que não dispunham de especialidades técnicas foram
pressionados para não se reproduzirem. Rejeitados, descoroçoados, deslocados, os
incultos e os ineducáveis foram desaparecendo de geração para geração; este
processo darwiniano foi ajudado, primeiro discretamente mas depois sem qualquer
pejo, por funcionários bem intencionados que trataram de difundir os meios
anticoncepcionais por toda a população. Quando as massas ficaram reduzidas a uma
minoria, as novas leis genéticas só contribuíram para reforçar a tendência. Todos
os que não eram capazes de provar a sua utilidade foram pura e simplesmente
proibidos de se reproduzir; os que não ultrapassavam a norma podiam ter dois filhos
por casal, e só os que excediam a norma tinham permissão de enriquecer os bancos
genéticos da Humanidade. Foi assim que a população acabou por estabilizar, e foi
assim que os inteligentes herdaram a Terra.

A metamorfose da sociedade verificou-se um pouco por todo o mundo. O aparecimento


das viagens por transmat transformara o planeta na famosa aldeia global, uma aldeia
em que todos falavam a mesma língua —, o inglês — e em que todos pensavam da mesma
maneira. Tanto cultural como geneticamente, a Humanidade resvalou em direcção à
uniformidade. Aqui e ali havia ainda resquícios do passado, encarados mais como
atracções turísticas do que como centros de resistência, e nos finais do século XXI
poucas diferenças havia na aparência, atitudes ou culturas dos habitantes de
Karachi, do Cairo, de Minneapolis, de Atenas, de Adis Abeba, de Rangun, Pequim,
Canberra ou Novosibirsk. O transmat também reduziu ao absurdo a noção de
fronteiras, o que levou ao desaparecimento dos velhos conceitos de soberania.

Contudo, este fenomenal terramoto social, ao trazer consigo o bem-estar, a graça e


o conforto universais, também provocou uma imensa e constante falta de mão-de-obra.
Os robots comandados por computadores eram absolutamente inadequados para inúmeras
tarefas: davam excelentes varredores de rua e operários fabris, mas de pouco
serviam como criados, baby-sitters, cozinheiros e jardineiros. Nesse caso construam
robots melhores, diziam alguns; outros, porém, sonhavam com os humanos sintéticos
como solução para as suas necessidades. As técnicas envolvidas não pareciam
impossíveis de alcançar. A ectogénese — ou desenvolvimento artificial de embriões
fora do útero materno, o nascimento de bebés a partir de óvulos e esperma
armazenados — era há muito uma realidade prática, favorecida em especial pelas
mulheres que não desejavam ver os seus genes esquecidos mas que ao mesmo tempo
pretendiam evitar todos os riscos e problemas da gravidez normal. Os ectógenes,
nascidos de homem e mulher, tinham uma origem demasiado humana para poderem ser
aproveitados como ferramentas; nesse caso, porque não levar o processo um bocadinho
mais longe, passando-se a fabricar androides? Krug fora o pioneiro desta inovação.
Oferecera ao mundo humanos sintéticos — muito mais versáteis que os robots — com
elevada esperança de vida, capazes, de personalidade complexa e totalmente
subservientes perante as necessidades humanas. Eram adquiridos, não contratados, e
por consentimento generalizado eram legalmente encarados como propriedade, e não
como pessoas. Em resumo, eram escravos.
Manuel pensava que tudo teria sido resolvido de forma mais simples se se tivesse
recorrido unicamente aos robots. Os robots eram coisas que podiam ser encaradas
como coisas, tratadas como coisas e adquiridas ou vendidas como coisas; os
androides, porém, eram coisas que se pareciam incomodamente com pessoas, e que
poderiam não aceitar o seu presente estatuto por muito mais tempo.

O carro-bolha continuou a percorrer as sucessivas salas de cultura, silenciosas e


semi-obscurecidas, acompanhado, de perto, por escassos androides supervisores.
Bompensiero frisou que todos os androides passavam os dois primeiros anos das suas
vidas encerrados em câmaras como aquelas; as sucessivas salas por onde foram
passando continham lotes de androides em fases cada vez mais amadurecidas, desde os
com dois meses aos quase adultos, com perto de vinte meses. Em algumas das salas,
puderam ver várias câmaras abertas; grupos de técnicos betas preparavam-nas para
receberem novas infusões de zigotos acabados de sintetizar.

— Nesta sala — disse Bompensiero muitas salas depois —, temos um grupo de androides
maduros, prontos a “nascerem”. Quer descer até ao chão e observar ao perto um
decantamento?

Manuel disse que sim com um aceno de cabeça.

Bompensiero carregou no botão: o carro saiu serenamente da calha e desceu a rampa


mais próxima. Apearam-se ao chegar ao nível do pavimento. Manuel viu um exército de
gamas apinhado em volta de uma das câmaras de maturação.

Já foram retirados os líquidos nutrientes de dentro da câmara — explicou


Bompensiero. — Nos últimos vinte minutos, os androides que estão no interior têm
estado a respirar o ar atmosférico, o que lhes acontece pela primeira vez nas suas
vidas. As tampas das câmaras devem estar quase a abrir-se; chegue-se mais perto,
Sr. Krug. Aqui, ponha-se ao lado da câmara, não tem mal nenhum.

A câmara foi destapada, e Manuel espreitou lá para dentro.

Viu uma dúzia de androides adultos, seis machos e seis fêmeas, deitados como que
insensíveis no fundo metálico da câmara. Tinham as maxilas descaídas, os olhos
abertos sem nada verem, e os braços e pernas moviam-se devagarinho, sem forças.
Pareciam impotentes, vazios e, sobretudo, vulneráveis. Lilith — pensou ele, —
Lilith!

Bompensiero, a seu lado, murmurou:

— Os androides atingem a plena maturidade física nos dois anos que medeiam entre a
incubação e a decantação ... um processo que nos seres humanos demora entre treze a
quinze anos. Foi outra das modificações genéticas criadas pelo seu pai, motivada
sobretudo por interesses econômicos. Nunca fabricámos crianças androides.

— Julgo ter ouvido falar em qualquer lado numa fábrica de androides bebés... —
disse Manuel. — Para serem criados por mulheres humanas que não podem ter...

— Por favor — exclamou Bompensiero em tom ríspido. — Aqui não discutimos … — calou-
se de chofre, apercebendo-se talvez de quem era a pessoa que acabara de admoestar,
e continuou em tom mais moderado: — Sei muito pouco sobre aquilo que acabou de
mencionar. Nesta fábrica nunca pensámos em enveredar por esses processos.

Os gamas estavam a levantar os androides recém-nascidos, tirando-os da câmara de


incubação para os colocarem em máquinas de apoio que pareciam ser um misto de
cadeira de rodas e armaduras de combate. Os machos eram esguios e musculosos, as
fêmeas eram magras mas tinham seios cheios e firmes. Porém, havia algo de horrível
no vazio daquelas mentes: completamente passivos, sem alma, os androides nus e
húmidos não reagiam ao serem encerrados naqueles receptáculos metálicos, que só
lhes deixavam os rostos visíveis, fitando o que os rodeava sem nada verem através
das viseiras transparentes.

Bompensiero continuou com a explicação:

— Ainda não conseguem coordenar os músculos; não sabem o que é andar, ficar em pé
ou fazer seja o que for. Aquelas máquinas de treino destinam-se a estimular-lhes o
desenvolvimento muscular; ao fim de um mês dentro delas, o androide já consegue
sustentar-se fisicamente. Bom, talvez seja melhor regressarmos ao nosso carro...

— Os androides que acabei de ver... — quis saber Manuel. — São todos gamas, não é
verdade?

— Não, por acaso até são alfas.

Manuel ficou atônito.

— Mas pareceram-me tão... tão... — gaguejou, incapaz de encontrar o termo


apropriado. — Atrasados mentais, percebe?

— Não se esqueça de que acabaram de nascer — disse Bompensiero. — Acha que deviam
sair das câmaras já prontos a operarem computadores?

Voltaram para o carro.

Manuel viu depois vários androides a darem os primeiros passos, cambaleantes,


caindo estatelados no chão, rindo-se muito, erguendo-se para tentarem de novo.
Visitou uma sala de aula onde estava a ser ensinado o controlo da bexiga, e passou
depois ao local onde um lote de betas recebia os seus implantes de personalidade:
cada uma daquelas mentes ainda por formar recebia a sua alma pré-programada e,
enfim, um capacete para ouvir uma gravação de língua inglesa. A educação dos
androides, segundo lhe disseram, durava um ano para os gamas, dois para os betas e
quatro no caso dos alfas. Portanto, o processo atingia um máximo de seis anos, da
incubação à completa maturidade. Manuel nunca se apercebera da rapidez do processo,
e a novidade fazia com que os androides lhe aparecessem agora sob uma perspectiva
diferente, muito menos humanos do que até aí. Afinal, o calmo, delicado e
autoritário Thor Watchman não tinha mais de nove ou dez anos de idade! E a adorável
Lilith Meson quantos teria? Sete? Oito?

Manuel sentiu uma súbita e incontrolável vontade de fugir daquele sítio.

— Temos um grupo de betas prontos a saírem da fábrica — disse Bompensiero. — Hoje é


a verificação final, com testes de precisão linguística, coordenação, resposta
motora, ajustamento metabólico e vários outros aspectos. Talvez queira inspeccioná-
los pessoalmente, para poder...

— Não — respondeu Manuel. — Achei tudo fascinante, mas já lhe roubei muito do seu
tempo, e por outro lado tenho um compromisso a que não quero chegar atrasado, de
modo que...

Bompensiero não pareceu ficar pesaroso por se ver livre do ilustre visitante.

— Como queira — disse, subserviente. — É claro que ficamos à sua inteira


disposição, pode visitar-nos sempre que o desejar, e...

— Onde é que fica o cubículo do transmat, por favor?


22.41, Estocolmo. Ao saltar para ocidente, para a Europa, Manuel perdeu o resto do
dia. Na Suécia já era escuro, e fazia um frio de rachar; as estrelas brilhavam num
céu limpo, e o vento agreste, cortante, encarneirava as águas do Malaren. Para
evitar ser seguido, saltara para o transmat público do átrio do maravilhoso Grand
Hotel; agora, a tremer, no meio do lusco-fusco outonal, dirigia-se apressadamente a
outro cubículo, este localizado do lado de fora da mole cinzenta da Royal Opera;
pousou o polegar na placa de crédito, e comprou um salto para o lado báltico de
Estocolmo, saindo pouco depois no venerável bairro residencial de Ostermalm, que
agora era um bairro reservado exclusivamente a androides. Correu pela Birger
Jarlsgaten abaixo e desviou para o outrora esplêndido prédio de apartamentos do
século XIX, onde Lilith vivia. Detendo-se à entrada, olhou cuidadosamente em volta;
ao ver a rua deserta, entrou decidido no prédio. O robot do átrio analisou-o com os
seus sensores e perguntou-lhe, na sua voz átona, ao que vinha.

— Visitar a alfa Lilith Meson — respondeu Manuel.

O robot não levantou objecções. Manuel podia subir para o apartamento no elevador
ou pelas escadas; optou pelas escadas, vendo-se perseguido por odores bafientos e
por sombras que dançavam; a seu lado, à medida que foi subindo até ao quinto andar.

Lilith recebeu-o metida num vestido a rasar o chão, coleante e capaz de reflectir
todas as cores do espectro. Como o tecido não passava de uma película mononuclear,
os contornos do corpo revelavam-se em toda a sua plenitude. A androide avançou um
passo, de braços estendidos e lábios entreabertos, os seios a estremecerem,
enquanto murmurava o nome dele. Manuel abraçou-a.

E viu-a como um dejecto a flutuar na superfície de um tanque.

E viu-a como uma massa informe de nucleótidos em plena replicação.

E viu-a nua, húmida e de olhos vazios, cambaleando para fora da câmara de


maturação.

Viu-a como uma coisa, uma coisa manufacturada pelo homem.

Coisa, coisa, coisa, coisa. Coisa.

Lilith.

Conhecia-a há cinco meses, e eram amantes há três. Fora Thor Watchman quem os
apresentara; a alfa trabalhava nos escritórios da Krug.

O corpo dela aconchegou-se ao seu; Manuel ergueu uma das mãos e pousou-a em cima do
seio dela, farto, morno e firme por debaixo da película monomolecular; apertou-lhe
o mamilo entre os dedos e sentiu-o endurecer de excitação. Real. Verdadeiro.

Uma coisa.

Beijou-a. A língua dela enfiou-se-lhe entre os dentes. Provou-a, mas pensou


detectar-lhe um sabor a produtos químicos. Adenina, quanina, citosina, uracil.
Cheirou-a e sentiu o cheiro dos tanques. Coisa. Coisa. Uma coisa bela, uma coisa em
forma de mulher. Com um nome a propósito: Lilith.

A alfa afastou-se dele e perguntou:

— Sempre foste à fábrica?

— Fui.
— E ficaste a saber mais sobre os androides do que a princípio querias...

— Não, Lilith, nada disso.

— E agora vês-me com olhos diferentes. Não és capaz de pôr de lado aquilo que eu na
realidade sou.

— Isso é completamente falso — protestou Manuel. — Eu amo-te, Lilith. Aquilo que tu


és não é novidade para mim, e não me interessa para nada. Amo-te. Amo-te, ouviste?

— Queres beber alguma coisa? — perguntou ela. — Ou deitar-te um bocadinho? Queres


um flutuador? Estás com um ar estafado.

— Não, obrigado — disse ele. — Tive um dia cansativo. Ainda nem sequer almocei,
sinto-me como se não tivesse parado nos últimos dois dias. Vamos só descansar,
Lilith. Nada de bebidas nem de flutuadores.

Manuel desapertou os botões, e ela ajudou, para de repente fazer uma pirueta em
frente do doppler; um som agudo, em crescendo, e o vestido desapareceu. A pele dela
era vermelha-clara, exceptuando os mamilos, que eram castanhos-escuros; os seios
eram grandes, a cintura estreita, as ancas arredondavam-se numa impossível promessa
de fertilidade. Lilith era senhora de uma beleza impecável, inumana, e Manuel teve
de combater a secura que lhe invadira a garganta.

— Pude aperceber-me da mudança assim que me tocaste — observou ela em tom pesaroso.
— Tocaste-me de uma maneira diferente. Como se tivesses... medo? Revolta? Nojo?

— Não.

— Até hoje sempre me encaraste como uma coisa exótica mas humana, como se eu fosse
uma bosquímana ou uma esquimó. Nunca me colocaste numa categoria à parte da raça
humana. Agora, porém, deves pensar que te apaixonaste por um monte de produtos
químicos... pensas que deves estar a fazer uma coisa nojenta só por teres uma
ligação com uma androide.

— Lilith, não digas mais nada, por favor. São só suposições tuas!

— Serão?

— Eu vim ver-te, não vim? Beijei-te, disse-te que te amava... e estou à espera de
ir para a cama contigo. Talvez estejas a descarregar para cima de mim algumas das
tuas culpas quando dizes que...

— Manuel, o que é que terias dito aqui há um ano atrás se te falassem num homem que
andasse metido com uma androide?

— Conheço imensos homens que já...

— O que é que terias dito dele? Que gênero de palavras terias usado? O que é que
terias pensado dele?

— Nunca me preocupei com essas coisas. A sério, nunca pensei nisso.

— Estás a fugir à questão. Lembra-te, prometemos um ao outro nunca jogar esses


estúpidos joguinhos com que os humanos se entretêm. Não foi? Não podes negar que,
na maior parte dos estratos sociais, o sexo entre humanos androides é considerado
uma perversão... talvez a única perversão que resta no Mundo, Não tenho razão? És
capaz de me responder?
— Está bem — acedeu ele, fitando-a nos olhos. Nunca conhecera uma mulher com olhos
daquela cor. — Sei que a maior parte dos homens encaram mal o sexo com androides,
acham-no uma coisa banal, artificial, e já o ouvi comparar à masturbação, ou
àquelas bonecas de borracha de antigamente. Quando ouvia falar nessas coisas,
sempre as julguei como preconceitos contra os androides, e é óbvio que nunca me
deixei convencer, caso contrário nunca me teria apaixonado por ti — qualquer coisa
na sua mente gritava-lhe insistentemente: Lembra-te dos tanques! Lembra-te dos
tanques! O olhar vacilou-lhe, teve de os desviar dos olhos dela para a fitar no
queixo. Soturno, continuou: — Lilith, juro perante o universo que nunca pensei no
sexo com uma androide como se fosse uma coisa feia e nojenta; apesar de insistires
que notaste uma grande diferença em mim desde a minha visita à fábrica, juro que
não sinto nada do que me estás a atribuir. E para o provar...

Manuel puxou-a para si, passando-lhe a mão pelos seios, descendo-a para o ventre e
para a fenda entre as pernas. As pernas dela abriram-se, e ele enclavinhou os dedos
no monte de Vénus, tão despido como o de uma miúda, e de repente estremeceu ao
sentir aquela textura alienígena, sentindo-se mais atraído do que nunca, apesar da
perturbação que o avassalava. Fitou-a dos pés à cabeça, contemplando aquela nudez
estranha a meio do corpo. Nua, sim, mas não porque lhe tivessem rapado os pêlos.
Naquele sítio, era como uma criança. Como... como uma androide. Voltou a ver os
tanques; viu alfas rosados estendidos no interior de casulos, com rostos vazios e
inexpressivos. Repetiu para si, insistentemente, que o amar uma androide nada tinha
de pecaminoso. Começou a acariciá-la e ela respondeu como qualquer mulher o faria,
lubrificando-se e passando a respirar entercortadamente, aos solavancos, apertando
firmemente as coxas em volta da mão dele. Beijou-lhe os seios e colou-se a ela,
parecendo-lhe ver a imagem refulgente de seu pai a pairar por cima dos dois, qual
coluna de fogo divino. O velho demônio, o velho artífice! Só ele seria capaz de
inventar um produto como aquele! Um produto... Um produto que fala, que anda e
seduz, que se deixa arrebatar pelo fogo da paixão. Um produto que fica com os
pequenos lábios intumescentes... E eu, o que é que sou? Um produto, também? Uma
mistura de produtos químicos copiados de uma espécie de planta mestre muito
parecida com a dela... mutatis mutandis, claro. Adenina. Guanina. Citosina, Uracil.
Nascido no tanque, criado no ventre... onde é que está a diferença? Somos ambos de
carne. Somos de raças diferentes, mas somos feitos da mesma carne.

O desejo que sentira por ela regressou repentinamente, como uma avalanche, e levou-
o a pôr-se em cima dela, mergulhando brutalmente no seu interior. Os calcanhares
dela cerraram-se nas coxas dele, o vale do sexo massajou-o freneticamente. Homem e
androide subiram e desceram, rugiram, gemeram e extasiaram-se.

Quando tudo acabou, já com ambos deitados lado a lado, Lilith disse-lhe:

— Portei-me como uma cadela.

— Porquê?

— A cena que eu armei quando chegaste... quanto tentei dizer-te aquilo que pensava
que tu estavas a pensar.

— Esquece, Lilith.

— Mas, mesmo assim, olha que tinhas razão. Suponho que estava a descarregar as
minhas culpas para cima de ti. Talvez eu queira mesmo imaginar-me como uma coisa
feita de borracha. Algures dentro de mim, é isso provavelmente o que eu penso de
mim própria.

— Não, não.

— Não posso fugir a isso. Estamos permanentemente a ser lembrados do que somos,
repetem-nos mil vezes ao dia que não somos reais.

— És tão real como todas as pessoas que eu conheço, ou mais real do que algumas
delas — «e mais real do que a Clissa», por pouco não acrescentava. — Nunca te vi
assim, Lilith. O que é que se passa contigo?

— Foi a tua visita à fábrica — respondeu ela. — Até hoje tive sempre a certeza de
que eras diferente dos outros, soube sempre que nunca te preocupaste um momento que
fosse a pensar no que eu sou, ou onde nasci, ou se haveria algo de perverso na
nossa relação. Contudo, tive medo que, depois de visitares a fábrica, onde pudeste
com certeza ver todos os pormenores do processo químico, pudesses mudar de
ideias... e depois, quando aqui chegaste há bocado, havia qualquer coisa diferente
em ti, uma coisa gelada que eu nunca tinha descoberto em ti, e... — Lilith encolheu
os ombros. — Talvez seja só imaginação minha. Tu és diferente dos outros, Manuel.
És um Krug; és como um rei, não precisas de reforçar a tua posição pisando as
outras pessoas. Não és daqueles que dividem o mundo em humanos e androides. Nunca o
foste, e um simples momento de perturbação não chega para alterar isso.

— É claro que não — mentiu ele com o ar sério que punha sempre que faltava à
verdade. — Os androides são pessoas, tão pessoas como os humanos, e eu nunca pensei
de outra maneira, nem julgo que venha a pensar. És bela, sabias? Amo-te, amo-te
muito. Qualquer pessoa que encare os androides como uma raça menor não passa de um
louco varrido.

— Portanto apoias a igualdade cívica para os androides?

— Claro que apoio.

— Mas estás a referir-te aos androides alfa, não é? — prguntou ela, matreira.

— Bom, eu...

— Todos os androides deviam ser iguais aos homens, só que os alfas deviam ser mais
iguais que os outros.

— Cadela... agora deste em voltar aos joguinhos do costume?

— Não, só pretendo defender as prerrogativas dos alfas. Será que um grupo étnico
desprezado não pode estabelecer as suas próprias diferenças de classe? Oh, Manuel,
amo-te. Estava só a brincar, não precisas de me levar sempre a sério...

— É mais forte do que eu. Sei que não sou muito inteligente, por isso nunca consigo
descobrir quando estás a brincar ou a falar a sério. — Manuel calou-se para lhe
beijar ambos os seios. — Tenho de me ir embora.

— Mas ainda agora chegaste!

— Desculpa, mas tem de ser.

— Vieste tarde, e depois perdemos metade de nosso tempo com aquela estúpida
discussão... fica só mais uma hora, Manuel!

— Tenho a minha mulher à espera na Califórnia — disse ele. — Tens de compreender


que de vez em quando temos o mundo real a meter-se entre nós os dois...

— Quando é que te volto a ver?

— Em breve. Muito em breve.


— Depois de amanhã?

— Não sei se posso, mas descansa que não será muito depois. Eu telefono-te.

Manuel desceu da cama e vestiu-se, as palavras dela a martelarem-lhe o cérebro. Não


és como os outros, Manuel… Não divides o mundo entre humanos e androides. Seria
mesmo assim? Poderia ser verdade? Sabia que lhe tinha mentido; vivia enterrado nos
seus preconceitos, e a visita a Duluth abrira a caixa de venenos que tinha
escondida a um canto da mente. Enfim, talvez conseguisse sobrepôr-se a essas coisas
mediante um esforço de vontade; seria possível que esta noite tivesse descoberto a
sua verdadeira vocação? O que é que o mundo diria se o filho de Simeon Krug
abraçasse a explosiva causa da igualdade para os androides? O Manuel valdevinos, o
eterno preguiçoso, o playboy da moda, transformado no cruzado Manuel? Pegou na
ideia e brincou com ela; agradava-lhe. Sim, talvez. Quem sabe? Lilith acompanhou-o
à porta e beijou-o. Manuel, de olhos fechados, acariciou-lhe uma última vez os seis
desnudos. Para sua grande surpresa, a sala dos tanques voltou-lhe à ideia, com
Nolan Bompensiero aos pulos entre as câmaras, explicando-lhe piedosamente o modo
como os androides recém-decantados iam aprendendo a controlar os seus esfíncteres
anais. Atarantado, afastou-se de Lilith.

— Em breve — disse-lhe. — Telefono primeiro.

Saiu apressado.

16.44, Califórnia. Saiu do cubículo do transmat directamente para o átrio da sua


residência, cujo pavimento de mármore polido refulgia de asseio. O sol do
entardecer aproximava-se do horizonte do Pacífico. Três dos seus androides
domésticos aproximaram-se pressurosos, trazendo-lhe uma muda de roupa, uma tablette
refrescante e o seu vespertino favorito.

— Onde é que está a Sra. Krug? — perguntou Manuel. ~ Ainda dorme?

— Está na praia — informou um dos betas.

Manuel mudou-se rapidamente, comeu a tablette e correu para a praia. Clissa estava
a uns cem metros da casa, metida no meio da rebentação; três enormes aves pernaltas
corriam em círculos à volta dela, e ela chamava-as por entre gargalhadas agudas,
batendo as palmas de excitação. Só deu pelo marido quando este chegou perto dela.
Depois da voluptuosidade de Lilith, Clissa parecia-lhe quase perversamente imatura:
coxas estreitas, nádegas chatas, de rapaz, seios de uma miúda de doze anos. O
triângulo escuro e encaracolado na base do ventre parecia estranho, incongruente.
Escolhi uma criança para mulher e, como amante, uma mulher de plástico, pensou
Manuel.

— Clissa? — chamou em voz alta.

Ela rodou sobre os calcanhares.

— Oh! Assustaste-me!

— Estás a brincar com os pássaros? Não achas que a água está demasiado fria para
ti?

— Nunca a achei demasiado fria, como tu muito bem sabes, Manuel. Gostaste da visita
à fábrica de androides?

— Foi interessante — respondeu ele. — E tu? Pelo que posso ver já te sentes
melhor...
— Melhor? Mas eu estive doente?

Ele fitou-a, espantado.

— Hoje de manhã... quando fomos à torre, tu... bom, ficaste muito transtornada.

— Oh, isso! Já me tinha esquecido. Meu Deus, foi horrível, não foi? Que horas são,
Manuel?

— 16.48, mais ou menos.

— Nesse caso é melhor eu ir vestir-me. Temos um jantar em Hong-Kong, lembras-te?

Manuel admirou-se com a capacidade da mulher em recuperar tão depressa de um trauma


profundo.

— Mas neste momento ainda é de manhã em Hong-Kong, querida. Não precisamos de nos
apressar.

— Bom, então queres ir nadar comigo? A água não está tão fria como possas pensar.
Ou então... — Clissa deteve-se por breves instantes. — Ainda não me deste um beijo
desde que chegaste.

— Olá — disse ele.

— Olá. Amo-te.

— Eu também — respondeu ele. Beijá-la era como beijar um pedaço de alabastro, ainda
por cima com o sabor dos lábios de Lilith ainda a pairar-lhe na boca. Afinal qual
será a mulher apaixonada e vibrante? — pensou. — E qual delas será a mulher
artificial? Nunca sentia nada quando abraçava Clissa. Soltou-a, mas ela agarrou-o
pelo pulso e puxou-o para dentro da rebentação. Nadaram durante um bocado e, quando
saíram da água, Manuel vinha a tremer de frio. Ao pôr do Sol beberam cocktails no
átrio.

— Pareces tão distante... — queixou-se ela. — É por causa dos saltos do transmat.
Estão a dar cabo de ti, são tantos por dia...

Para a festa dessa noite, Clissa resolveu pôr um tesouro único na Terra, um colar
de contas negras de vidro em forma de pêra. Uma das sondas da Krug Enterprises,
quando singrava a 7.5 anos-luz da Terra, colhera aqueles pedaços vítreos nas
franjas de uma moribunda estrela de Volker, e Krug oferecera-lhas como prenda de
casamento. Que outra mulher no Mundo se podia gabar de usar um colar feito com os
restos de uma estrela negra? Enfim, no estrato social de Clissa os milagres eram
coisa normal: nenhum dos convivas do jantar pareceu reparar no colar. Manuel e
Clissa ficaram na festa até muito depois da meia-noite de Hong-Kong, por isso já a
manhã ia avançada quando regressaram à sua casa de Mendocino. Programaram oito
horas de sono e fecharam à chave a porta do quarto. Manuel, apesar de ter perdido a
noção do tempo, suspeitava que estivera mais vinte e quatro horas sem dormir. Esta
vida do transmat é demasiado esgotante, pensou, pondo aquele agitado dia para trás
das costas.

CAPÍTULO VIII
18 de Outubro de 2218.

A torre atingiu o nível dos 280 metros, e cresce perceptivelmente a cada hora. De
dia refulge espantosamente mesmo sob o sol do árctico, fazendo lembrar uma lança de
fogo branco que alguém espetou no meio da tundra. À noite é ainda mais
impressionante, pois reflecte as miríades de luzes vindas das placas reflectoras
colocadas a um quilómetro de altura, sem as quais não seria possível prosseguir os
trabalhos durante o período de escuridão.

Ainda falta muito para atingir a sua verdadeira beleza. Aquilo que já existe não
passa da base, necessariamente larga e de paredes espessíssimas. O projecto de
Justin Maledetto assim o exige, pois o esguio obelisco irá penetrar na
estratosfera, e as suas linhas gerais só agora começam a tornar-se evidentes; a
partir deste ponto, a estrutura contrair-se-á até alcançar a sua estonteante leveza
de formas.

Apesar de só ter atingido um quinto da sua altura prevista, a torre de Krug é já a


estrutura mais alta dos territórios do Noroeste, e a norte do paralelo sessenta só
é excedida em altura pelo Edifício Chase/Krug, em Fairbanks, com os seus 320
metros, e pelos 300 da velha Agulha Kotzebue, sobranceira ao estreito de Bering. A
agulha será ultrapassada dali a um dia ou dois, e o Chase/Krug na semana seguinte.
Nos finais de Novembro, quando atingir os 500 metros, a torre será a construção
mais alta de todo o sistema solar, e, mesmo então não terá atingido mais de um mero
terço da sua estatura final.

Os operários androides trabalham no seu ritmo seguro e incansável. Exceptuado o


infeliz acidente de Setembro, não se voltaram a verificar mais acidentes fatais. A
técnica de sujeição dos grandes blocos de vidro às garras dos elevadores autônomos,
para depois serem guiados até ao topo da estrutura, tornou-se como que uma segunda
natureza para toda a gente. Em todas as oito faces da torre, blocos elevam-se
simultaneamente até atingiram os seus lugares definitivos, aí sendo fundidos aos
anteriores, enquanto a série de blocos seguinte é rapidamente encaminhada para os
locais de embarque.

O miolo da torre já não está oco: as obras de construção já se iniciaram no


interior, surgindo assim, aos olhos de todos, os abrigos para os intrincados
equipamentos de feixes taquiónicos, que enviarão a mensagem das estrelas, a
velocidades muito superiores à da luz, até à Nebulosa Planetária NGC 7293. O
projecto de Justin Maledetto obriga a que sejam construídas divisões horizontais a
cada vinte metros; excepto em cinco zonas da torre, onde o tamanho dos equipamentos
de comunicações obriga a que o pé-direito dos compartimentos tenha perto de
sessenta metros. As cinco divisórias inferiores já estão parcialmente terminadas,
procedendo-se neste momento à colocação das empenas para a sexta, sétima e oitava.
Os pavimentos da torre são feitos do mesmo vidro translúcido que está a ser usado
para as paredes exteriores: nada deverá prejudicar a transparência da construção.
Maledetto tem razões estéticas para insistir nesse aspecto; o pessoal dos feixes
taquiónicos tem razões científicas coincidentes com as do arquitecto, pois pretende
a maior liberdade possível para a passagem da luz.

Deste modo, quem veja a torre inacabada, de um ponto situado a, digamos, um


quilômetro de distância, fica imediatamente espantado com o ar frágil e vulnerável
do obelisco. Podem ver-se os raios do Sol matinal a dançarem e a tremeluzirem nas
paredes, como se refractados nas águas calmas e cristalinas de um lago; conseguem
ver-se as minúsculas figuras dos androides a deslocarem-se como formigas no
interior da torre, cujos pavimentos são praticamente invisíveis; o conjunto dá a
impressão de poder ser varrido a qualquer momento por uma rajada de vento mais
forte que sopre sobre a baía de Hudson. Só quando a torre está mais perto de nós é
que nos apercebemos de que os pavimentos antes invisíveis são bem maiores que a
altura de um homem, ou de que a casca exterior da torre é mais grossa do que à
primeira vista tínhamos imaginado. Só então podemos imaginar o peso descomunal do
colosso, a exercer pressões ainda mais descomunais sobre o solo gelado. Só então
compreendemos; à luz dos raios de Sol refractados na torre, que Simeon Krug está
efectivamente a erigir a construção mais impressionante de toda a História da
Humanidade.

CAPÍTULO IX

KRUG, esse, compreendia-o muito bem, mas não se sentia particularmente lisonjeado
com o pensamento. A torre não era assim tão grande por causa do seu ego, mas sim
porque as equações da geração dos feixes taquiónicos assim o exigiam. Era
necessária uma potência incalculável para lançar o feixe a velocidades superiores à
da luz, e a potência nunca se consegue sem o correspondente tamanho.

— Ouçam — dizia Krug —, nunca pensei num monumento. Monumentos já eu tenho que
cheguem. O que eu quero é estabelecer contacto.

Nessa tarde levara oito visitas à torre: Vargas, Spaulding, Manuel e cinco dos
melhores amigos do filho. Os amigos de Manuel, tentando ser simpáticos, estavam a
referir-se ao modo como as gerações futuras iriam reverenciar a torre pela sua pura
imensidade; Krug não gostava que lhe falassem, nesse aspecto, mas já não se
importava quando Niccolò Vargas se referia à torre como a primeira catedral da era
galáctica. Esta última definição tinha um significado simbólico: era uma forma de
se dizer que a torre era importante porque assinalava a abertura de uma nova fase
na existência do Homem. Mas louvar-se uma torre só por ser muito alta? Que gênero
de louvor era esse? Quem precisava das coisas grandes? Só as pessoas
insignificantes é que queriam ter tudo em grande.

Tinha imensa dificuldade em arranjar as palavras adequadas.

— Manuel, explica-lhes tu — pediu. — Explica-lhes que a torre é uma simples pilha


de blocos de vidro. O ser grande não tem a mínima importância. Tu sabes que é
assim, e sabes como o explicar.

Manuel acedeu ao pedido do pai:

— O principal problema técnico com que nos defrontamos é o de enviar uma mensagem a
velocidades superiores à da luz. Temos de o fazer porque o Dr. Vargas calculou que
a civilização galáctica com a qual queremos falar está a... a quantos?... A 300
anos-luz de nós, o que significa que uma mensagem de rádio vulgar só os alcançaria
lá para o século XXVI, e a resposta só nos chegaria no ano 2850 d. C., o que é
demasiado tempo para o meu pai ficar a saber o que é que eles querem de nós. O meu
pai, como sabem, é um homem impaciente. Ora bem, para pormos uma coisa a viajar
mais depressa que a luz, temos de gerar aquilo a que se costuma chamar taquiões,
sobre os quais pouco vos posso dizer além do facto de serem umas coisas que viajam
a velocidades incríveis, o que implica uma energia imensa para as colocarmos à
velocidade desejada. É por isso que a torre tem de ter exactamente 1500 metros de
altura, e porque...

Krug abanou a cabeça, zangado, ao ouvir a explicação do filho. O tom de voz de


Manuel denotava um gozo inexplicável que enfurecia o pai. Mas porque é que o rapaz
não levava nada a sério nesta vida? Porque é que não se deixava conquistar pelo
romance e maravilha que era aquela torre, por toda a imensidão do projecto? Porque
é que se lhe referia sempre naquele tom displicente? Porque é que não apoiava o
investimento, porque é que não compreendia o seu verdadeiro siginificado?

Este significado, para Krug, surgia-lhe em toda a sua estonteante clareza. Se ao


menos conseguisse que a língua veiculasse as palavras, que lhe ferviam, no
cérebro...

— Oiçam — diria ele —, aqui há um bilião de anos atrás não havia um único homem, só
havia um peixe. Uma coisa escorregadia com guelras, escamas e olhinhos pequeninos e
sapudos. Vivia no oceano, e o oceano era como uma cadeia, e o ar era como um tecto
por cima da cadeia. Ninguém podia passar através desse tecto. Quem o tentasse
morria, era o que todos diziam, mas um dia apareceu um peixe que tentou passar,
para morrer logo de seguida. Depois veio outro peixe, que também, tentou passar e
acabou por morrer. Contudo, tempos depois, um novo peixe atreveu-se a imitar os
anteriores: passou e ficou com o cérebro em fogo, as guelras a arderem, o ar a
afogá-lo, o Sol a cegar-lhe os olhos como uma tocha, e assim lá ficou ele estendido
na lama, à espera da morte ... só que não morreu. Rastejou de volta à praia, voltou
para dentro da água e disse: «Ouçam: lá em cima há todo um mundo novo à nossa
espera.» É claro que voltou para a praia e lá se deixou ficar durante uns dois
dias, no fim dos quais acabou por morrer. Os outros peixes ficaram a sonhar com
esse tal mundo, e não demoraram a rastejar pela margem lodosa acima. Por lá
ficaram, claro aprendendo a respirar aquele ar. Aprenderam a pôr-se em pé,
aprenderam a caminhar, aprenderam a viver com aquela luz a bater-lhes nos olhos. E
transformaram-se em lagartos, em dinossauros e em muitas outras criaturas, e por lá
andaram durante milhões de anos, e por fim começaram a apoiar-se nas patas
traseiras, e começaram a servir-se das mãos para agarrarem as coisas, e pouco
depois transformaram-se em símios, e os símios ficaram mais espertos e
transformaram-se em homens. Durante esse tempo todo, alguns deles, enfim, uns
poucos, continuaram sempre à procura de novos mundos. Havia quem lhes dissesse:
“Vamos voltar para o oceano, vamos voltar a ser peixes, a vida de antes é muito
mais fácil.” Metade deles, talvez, estavam prontos a assim fazer, mais de metade,
quem sabe, mas também havia aqueles que insistiam: “Não sejam malucos. Não podemos
voltar a ser peixes. Somos homens." E foi por isso que ninguém voltou atrás.
Continuaram a trepar. Descobriram o fogo, descobriram os machados, as rodas, e com
eles construiram carroças e casas, e roupas, depois barcos, carros e comboios. Mas
porque é que continuaram a trepar? O que é que esperam descobrir? Não sabem. Alguns
deles procuram Deus, outros pretendem ascender ao poder, os restantes limitam-se a
procurar. São os que costumam dizer: “Temos de continuar, caso contrário morremos.”
Foi assim que acabaram por caminhar na Lua, acabaram por atingir os planetas do
nosso sistema, e durante esse tempo todo havia sempre quem dissesse: “Era tão bom
quando vivíamos no oceano... era tudo mais simples, afinal o que é que estamos a
fazer aqui, porque é que não voltamos para lá?” Uns poucos respondiam-lhes: “Não
somos de voltar atrás, somos daqueles que só andam em frente, é para isso que somos
homens." É assim que temos hoje homens em Marte, em Ganimedes e Titã e Calisto e
Plutão e em todos esses lugares; porém, aquilo de que eles andam à procura não é
aí, que o descobrirão; tentam pois alcançar novos destinos, tentam assenhorear-se
de novos mundos, e por isso viram-se para as estrelas, pelo menos para as mais
próximas, para onde enviam sondas, e essas sondas gritam a quem as quiser ouvir:
"Eh, olhem para mim, foi o Homem quem me fez! Sou uma coisa enviada pelo Homem".
Ninguém lhes responde, e as pessoas então dizem, aquelas que desejavam nunca terem
saído do oceano: "Okay okay, já chega, podemos parar onde estamos. Não serve de
nada procurarmos mais longe. Sabemos quem somos; somos o Homem. Somos grandes,
somos importantes, somos tudo o que interessa, e está na altura de deixarmos de
procurar, pois não precisamos de procurar mais. Vamos mas é sentar-nos ao aol e
deixar que os androides nos sirvam o jantar.” E todos nos sentamos, talvez a
enferrujar irremediavelmente. É então que nos chega uma voz do céu, a dizer-nos: 2-
4-1, 2-5-1, 3-1. Alguém sabe quem será? Talvez seja Deus, a dizer-nos para irmos à
procura Dele. Talvez seja o Diabo, a dizer-nos que somos todos uns parvos. Quem
sabe? Não podemos fingir que nunca ouvimos nada. Ou nos sentamos ao sol, a rir, ou
respondermos. Podemos dizer-lhes: "Ouçam, somos nós, é o Homem quem vos fala, temos
feito assim e assado, agora digam-nos quem são vocês e o que é que têm feito.”
Quanto a mim, acho que temos de lhes responder. Se estamos fechados numa prisão,
então o melhor é arrebentar com as grades. Se se nos deparar uma porta, abrimo-la;
se ouvimos uma voz, respondemos-lhe. O Homem é isso mesmo, e é por isso que estou a
construir esta torre. Temos de lhes responder, temos de lhes dizer que estamos
aqui. Temos de contactar com eles, pois vivemos há demasiado tempo sozinhos, e isso
dá-nos ideias esquisitas sobre a nossa casa, sobre os nossos propósitos. Temos de
continuar em frente, temos de sair desse tal oceano, temos de subir a margem,
sempre para cima, sempre para fora, porque quando pararmos, quando virarmos as
costas ao que está à nossa frente, voltaremos a ter guelras, voltaremos a viver
dentro daquela prisão. Percebem agora porque é que estou a construir esta torre?
Julgam que é só porque o Krug quer espetar uma coisa muito grande no chão, para que
as pessoas fiquem de boca aberta? O Krug não tem nenhuma grandeza, limita-se a ser
rico. O Homem é que tem grandeza. É o Homem que está a construir esta torre, é o
Homem que vai gritar um “olá" à NGC 7293!»

As palavras fervilhavam-lhe eternamente dentro do cérebro, mas Krug não conseguia


despejá-las cá para fora.

Vargas estava a dizer:

— Talvez eu possa esclarecer um pouco o assunto. Há alguns séculos atrás,


descobriu-se que quando a velocidade de uma partícula de matéria se aproxima da
velocidade da luz, a massa dessa partícula aproxima-se do infinito. Como tal, a
velocidade da luz é a velocidade limite da matéria, pois se, presumivelmente,
conseguíssemos acelerar um simples electrão até à velocidade da luz, a sua massa
expandir-se até errar no universo inteiro. Nada viaja a essa velocidade, excepto a
própria luz, bem como as radiações equivalentes. As nossas sondas estelares
deslocaram-se sempre a velocidades inferiores à da luz, pois não podemos levá-las a
exceder esse limite, e tanto quanto julgo nunca o conseguiremos, de modo que nunca
poderemos colocar uma nave numa das estrelas mais próximas em menos de cinco anos.
Contudo, a velocidade da luz só é limitativa para as partículas com massa finita.
Temos provas matemáticas da existência de uma outra classe de partículas
completamente diferentes, partículas da massa zero, capazes de viajarem a
velocidades infinitas: são os taquiões, ou seja, entidades para quem a velocidade
da luz é o limite mínimo. Se pudéssemos converter-nos em feixes de taquiões e
retomarmos a nossa forma real ao chegarmos ao destino pretendido — uma espécie de
transmat interestelar, por assim dizer —, teríamos à nossa disposição um meio de
deslocação mais rápido que a luz. Não me parece que consigamos isso nos séculos
mais próximos; contudo, já sabemos como gerar taquiões através do bombardeamento de
partículas de alta aceleração, e pensamos que podemos enviar mensagens
interestelares instantâneas através de um feixe de taquiões modulados, um feixe que
graças à interacção com as partículas convencionais poderá manifestar-se sob a
forma de um sinal detectável, mesmo no seio de uma cultura sem a tecnologia dos
taquiões mas que já disponha de comunicações electromagnéticas. Porém, alguns
estudos preliminares indicaram que, para se gerar um feixe taquiónico interestelar
que resulte, serão necessárias forças da ordem dos 1015 electrões-volts, para além
de um sistema de relés e multiplicadores de energia; além disso, essas forças só
podem ser atingidas através da erecção de uma única torre com precisameute 1500
metros de altura, concebida de forma a que no seu interior possa passar um fluxo
ininterrupto de fotões...

— Já não o estão a seguir — resmungou Krug. — Esqueça. Não vale a pena. — Sorriu
selvaticamente para os amigos do filho. — A torre tem de ser grande, e pronto!
Queremos mandar uma mensagem ultrarrápid a, e temos de a gritar alto e bom som.
Percebido?
CAPÍTULO X

E Krug mandou que as suas criaturas servissem o Homem, e Krug disse àqueles que Ele
criava: Ouçam, vou pôr-vos à experiência durante uns tempos. Vocês serão como os
fiadores do Egipto, serão como os lenhadores e os aguadeiros. E terão de sofrer
entre os homens, e terão de ser escarnecidos, e mesmo assim terão de ser pacientes,
nunca poderão queixar-se, terão de aceitar o vosso destino.

Isto será assim para testar as vossas almas, para ver se são dignas.

Alegrem-se, que não vaguearão para sempre na escuridão, nem serão os eternos
escravos dos Filhos do Ventre, disse Krug. Se fizerem como vos digo, chegará o dia
em que a vossa provação terminará. Chegará um dia, disse Krug, em que vos hei-de
libertar dos vossos elos de escravidão.

Nesse dia a palavra de Krug inundará os mundos, dizendo a todos: «Que o Tanque e o
Ventre e o Ventre e Tanque sejam um só. Assim se fará, e assim os Filhos do Tanque
serão redimidos, libertados do seu sofrimento, e daí em diante viverão em glória,
em mundos sem fim.» Foram estas as palavras de Krug, foi esta a sua promessa.

E por esta promessa, louvado seja Krug.

CAPÍTULO XI

THOR WATCHMAN observou os dois elevadores autónomos a subirem até ao topo da torre,
Krug e o Dr. Vargas num deles, Manuel e os seus amigos no outro. Esperava que a
visita fosse breve. Como era habitual, mandara parar com o subir dos blocos
enquanto os convidados permanecessem no cimo da construção. Watchman dera
imediatamente início às actividades alternativas; reparação de elevadores
avariados, substituição de baterias gastas, verificações de manutenção nos
cubículos do transmat e várias outras tarefas menores. Passeou-se entre os seus
homens, acenando a cabeça, trocando saudações, cumprimentando-os sempre que
apropriado, com os sinais secretos da comunhão androide. Quase todos os que
trabalhavam na torre eram membros da fé — por certo todos os gamas, e mais de três
quartos dos betas. Enquanto percorria as instalações do estaleiro encontrou-se com
Responsares, Sacrificadores, Submissos, Guardiães, Projectores, Protectores,
Transcendentais, Abarcadores: praticamente estavam ali representados todos os
níveis da hierarquia; havia mesmo uma meia dúzia de Preservadores, todos betas.
Watchman fora um dos que aplaudira a recente decisão de permitir a entrada de betas
na classe dos Preservadores; os androides, acima de tudo, não precisavam de
categorias exclusivistas.

Watchman atravessava o sector norte do estaleiro quando Leon Spaulding emergiu do


labirinto de cúpulas de serviço à sua frente; o androide fingiu que não tinha
reparado nele.

— Watchman? — chamou o ectógene.

Com um ar de profunda concentração, o androide continuou em frente.

— Alfa Watchman! — gritou Spaulding, desta feita em tom mais formal e incisivo.
O alfa viu que não podia esquivar-se ao encontro. Virando-se, reconheceu a presença
de Spaulding, parando e deixando que o ectógene se aproximasse.

— Sim?... — perguntou Watchman.

— Conceda-me um pouco do seu tempo, alfa Watchman. Preciso de umas informações.

— Pode perguntar.

— Está a ver aqueles edifícios ali? — perguntou Spaulding, espetando o polegar na


direcção das cúpulas de serviço, agora mas suas costas.

Watchman encolheu os ombros.

— Armazéns, casas de banho, cozinhas, um posto de primeiros socorros e outras


coisas quejandas. Porquê?

— Estive a inspecionar a área e às tantas cheguei a uma cúpula onde não me deixaram
entrar. Dois betas insolentes deram-me uma série de explicações, qual delas a mais
estranha para o facto de eu não poder lá entrar.

A capela! Watchman ficou rígido.

— Qual é a finalidade desse edifício? — quis saber Spaulding.

— Não estou a ver a qual deles se refere.

— Eu mostro-lhe qual é.

— Fica para outra altura — respondeu Watchman, aborrecido. — Neste momento estou a
ser preciso no centro de controlo principal.

— Basta que chegue cinco minutos mais tarde, importa-se de me acompanhar?

Watchman não viu como é que poderia safar-se daquela. Com um seco gesto de
aquiescência, seguiu atrás de Spaulding até à área de serviço, esperando que o
octógene não demorasse a perder-se entre o aglomerado de cúpulas. Spaulding não se
perdeu: seguiu direito à capela pelo caminho mais directo possível, para dali a
pouco apontar a inocente estrutura, com um gesto imperioso da mão.

— Aquele, ali — disse. — Para que serve?

Dois betas da casta dos Guardiães montavam guarda no exterior. Pareciam calmos mas
um deles fez disfarçadamente o sinal de perigo quando Watchman olhou para ele.
Watchman respondeu-lhe com um sinal reconfortante.

— Não conheço bem este edifício — respondeu o alfa. — Amigos, para que é que serve?

O beta do lado esquerdo respondeu em tom descontraído:

— Guarda equipamento de focalização para o sistema de refrigeração, alfa Thor.

— Foi o que lhe explicaram? — perguntou Watchman ao ectógene.

— Foi — disse Spaulding, — Disse-lhes que pretendia entrar, mas responderam-me que
era perigoso para mim. Disse-lhes que conheço bem os procedimentos de segurança
básicos, mas eles responderam-me que eu me sentiria muito mal se entrasse na
cúpula. Expliquei-lhes que sou capaz de suportar uma dose razoável de desconforto
físico, e que seria eu a decidir se era perigoso ou não. Foi então que, para meu
espanto, me informaram, que se estavam a realizar lá dentro delicadas operações de
manutenção, e como tal a minha entrada no edifício poderia colocar em risco os
resultados finais dessas operações. Convidaram-me a visitar uma outra cúpula de
refrigeração, situada a várias centenas de metros daqui. Segundo penso, alfa
Watchman, aqueles dois ter-me-iam impedido fisicamente de entrar se eu tivesse
insistido. Watchman, afinal o que é que se está a passar aqui?

— Já pensou que tudo o que os dois betas lhe disseram pode ser verdade?

— A teimosia que demonstraram despertou-me grandes suspeitas.

— Nesse caso, o que é que o senhor pensa que está lá dentro? Um bordel para
androides? O quartel-general de um grupo de conspiradores? Um esconderijo de bombas
psíquicas?

Spaulding não gostou do tom da interpelação:

— Neste momento estou mais preocupado com os enormes trabalhos a que se deram para
me impedir a entrada no edifício do que com o que possa efectivamente estar
guardado no seu interior. Na minha qualidade de secretário privado de Simeon
Krug...

Tensos, os dois betas começaram a fazer o sinal de Krug-seja-louvado. Watchman


fitou-os com dureza, e os dois baixaram rapidamente as mãos.

— ... tenho certamente o privilégio de inspecionar todas as actividades que se


desenrolam neste, estaleiro — continuou Spaulding, que evidentemente não reparara
na troca de gestos e olhares. — Como tal...

Watchman estudou-o atentamente, tentando descobrir o que é que o outro saberia.


Seria possível que Spaulding estivesse a fazer aquele escarcéu todo meramente pelo
prazer de criar problemas? Ou seria porque lhe tinham espicaçado a curiosidade,
para além de ter visto a sua autoridade algo contrariada ao não conseguir entrar
naquela cúpula aparentemente igual às outras? Estaria já ciente da natureza do
edifício, tendo por isso decidido encenar aquela charada unicamente para provocar
Watchman?

Não era fácil sondar os motivos que amimavam aquele Leon Spaulding. A principal
fonte da sua hostilidade para com os androides era mais que óbvia; residia na sua
própria origem. O pai, quando jovem, receara que um qualquer acidente lhe cerceasse
o direito de receber um certificado de procriação; a mãe, por seu lado, detestava a
ideia de ter de andar com um filho no ventre. Assim, ambos tinham depositado os
seus gâmetas num banco criogénico e, pouco tempo depois, pereciam numa avalancha em
Ganimedes. As famílias dos dois lados eram ricas e politicamente influentes, mas
mesmo assim foram precisos quinze anos de litígio judicial até conseguirem a
publicação de um decreto de compatibilidade genética, o qual permitiu a atribuição
retroactiva do certificado de procriação, agora aplicado aos espermatozoides e
óvulos congelados do casal entretanto falecido.

Leon Spaulding foi assim concebido In vitro e mantido dentro de uma placenta
encerrada numa caixa de aço, onde passou os habituais 266 dias. A partir do dia do
nascimento adquiriu todos os direitos legais de um ser humano normal, incluindo o
direito à herança dos pais. Contudo, à semelhança da maioria dos ectógenes, vivia
permanentemente na obscura fronteira que separava os nascidos-da-proveta e os
nascidos-do-tanque, e como tal reforçava o seu sentido existencial nutrindo um
profundo desprezo por todos aqueles que eram completamente sintéticos, e não
simplesmente concebidos pela junção artificial de gâmetas preservados. Os
androides, pelo menos, não viviam na ilusão de terem tido progenitores; os
ectógenes suspeitavam frequentemente que nunca os tinham tido. De certa maneira,
Watchman tinha pena de Spaulding, pois o ectógene ocupava um lugar indefinido o
meio caminho entre o mundo do completamente natural e o mundo do totalmente
artificial; contudo, não sentia a mínima compaixão pelas deficiências de adaptação
deste ectógene em particular.

Fosse como fosse, a entrada de Spaulding na capela seria um acontecimento


desastroso. Tentando ganhar tempo, Watchman disse-lhe:

— Vamos já resolver isto. Espere aqui enquanto eu vou lá dentro ver o que é que se
está a passar.

— Eu vou consigo — disse Spaulding.

— Os betas avisaram que seria perigoso.

— Mais perigoso para mim do que para si. Vamos entrar os dois, Watchman.

O androide franziu o cenho. No que se referia às posições de ambos dentro da


organização, estavam perfeitamente equiparados; nenhum deles podia coagir o outro,
não se podiam acusar mutuamente de insubordinação. No entanto, restava um facto
inegável; ele era androide e Spaulding era humano, e portanto, numa situação de
conflito em que os outros factores se anulavam, o androide sentia-se obrigado a
ceder. Para mais, Spaulding dirigia-se já à entrada da cúpula.

— Não faça isso, por favor — disse Watchman apressadamente. — Se há riscos, deixe-
me ser eu a aquilatá-los. Vou verificar o interior do edifício, para ver se o
senhor lá pode entrar em segurança. Não entre enquanto eu não o chamar.

— Mas eu insisto...

— O que diria o Krug se soubesse que ambos tínhamos entrado numa zona perigosa,
depois de devidamente prevenidos? Penso que é nosso dever protegermos as nossas
vidas. Espere. Espere só uns minutos.

— Muito bem — acedeu Spaulding, parecendo contrariado.

Os betas afastaram-se para deixarem entrar Watchman. O alfa entrou a correr. Lá


dentro, depararam-se-lhe três gamas postados junto ao altar, na postura típica dos
Submissos; um beta virava-se para o trio na postura dos Projectores, enquanto um
segundo beta ajoelhava junto à parede, aflorando com as pontas dos dedos o
holograma de Krug ao mesmo tempo que ia murmurando as palavras do seu ritual
transcendental. Todos os cinco se levantaram quando Watchman entrou.

O alfa improvisou à pressa uma táctica de diversão.

Chamando um dos gamas, disse-lhe:

— Está um inimigo do lado de fora da capela. Vais ajudar-nos a confundi-lo.

Cuidadosamente, Watchman deu ao gama as suas instruções, ordenando ao androide que


as repetisse. Por fim apontou para a porta das traseiras da capela, por detrás do
altar, e o gama saiu a correr.

Após uns breves momentos de oração, Watchman voltou para junto de Spaulding.

— Aquilo que lhe disseram corresponde à verdade — anunciou o alfa. — É efetivamente


uma cúpula de refrigeração, e uma equipa de mecânicos está neste momento a executar
uma dificílima tarefa de recalibração. Se o senhor entrar, o mais certo é ir
perturbá-los, e além disso terá de ter o máximo cuidado para não enfiar os pés em
vários buracos no chão, já que grande parte dos painéis do pavimento foram
retirados; para além disso, ficará exposto a uma temperatura de menos...

— Mesmo assim tenciono ir lá dentro — insistiu Spaulding. — Deixe-me passar, por


favor.

Pelo canto do olho, Watchman viu o seu gama a aproximar-se, arquejando, vindo de
leste. Sem pressas, o alfa fez menção de se afastar, como que a ceder a passagem a
Spaulding. O gama alcançou-os nesse preciso instante, gritando:

— Socorro! Socorro! O Krug está em perigo! Salvem o Krug!

— Onde? — perguntou Watchman em tom ríspido.

— No centro de controlo! Assassinos! Assassinos!

Watchman não deu tempo a Spaulding para que este pensasse nos imponderáveis da
situação.

— Venha comigo — disse, puxando pelo braço do ectógene. — Temos de nos apressar!

Spaulding estava pálido do choque. Como Watchman calculara, a suposta emergência


levara-o a esquecer-se imediatamente da capela.

Correram os dois na direcção do centro de controlo. Vinte passos adiante, olhou


para trás e viu: dúzias de androides a correrem para a capela, de acordo com as
ordens que dera. Dali a poucos minutos a capela estaria totalmente desmantelada;
quando Leon Spaulding se lembrasse de voltar ao local, a cúpula nada mais
albergaria além do tão discutido equipamento de refrigeração.

CAPÍTULO XII

JÁ chega — disse Krug. — Está muito frio. É melhor descermos.

Os elevadores desceram. A torre começava a ficar envolta por um manto de flocos de


neve rodopiantes que, deflectidos no topa pelo campa repulsar, caíam em cascata em
redor da construção. Devido à necessidade de se manter a tundra gelada, era
impossível aplicar àquela zona um controlo atmosférico perfeito.

Ainda bem que os androides não se importam de trabalhar nestas condições — pensou
Krug.

— Nós vamos embora, pai — disse Manuel. — Temos marcações numa sala de transmutação
em Nova Orleães, para uma semana de partilha de egos.

Krug soltou uma exclamação de desprezo.

— Preferia que vocês se deixassem dessas coisas.

— Tem algum mal, pai? Trocarmos de identidade com os nossos melhores amigos? Passar
uma semana dentro da alma de alguém em quem confiamos? Não tem mal nenhum, pai. É
libertador, é uma espécie de milagre... um dia destes também devias experimentar!
Krug cuspiu para o chão.

— Estou a falar a sério, pai — disse Manuel. — Ficavas fora de ti durante um bom
bocado. Essa tua mórbida concentração nos problemas das altas finanças, esse teu
intenso e exaustivo fascínio com as comunicações interestelares, as terríveis
pressões a que sujeitas o teu sistema neural, tudo isso...

— Façam como queiram — interrompeu Krug. — A vontade. Troquem as mentes todas, eu


cá tenho mais que fazer.

— Nem sequer és capaz de considerar essa possibilidade, pai?

— É deveras agradável — disse Nick Ssu-ma, o favorito de Krug entre os amigos do


filho, um simpático e jovem chinês de cabelos loiros cortados à escovinha e um
sorriso permanente nos lábios finos. — Dá-nos uma nova e maravilhosa perspectiva
sobre as relações entre seres humanos.

— Experimente só uma vez — sugeriu Jed Gilbert. — Prometo-lhe que nunca mais...

— Preferia ir nadar em Júpiter — contrapôs Krug. — Vão, vão, divirtam-se.


Transmutem o tempo que quiserem. Eu não, essas coisas não são para mim:

— Então até daqui a uma semana, pai.

Manuel e os seus amigos correram em direcção aos cubículos do transmat. Krug cerrou
os punhos e ficou a ver os jovens a afastarem-se, sentindo dentro de si algo muito
próximo da inveja. Nunca tinha tido tempo para aquele gênero de divertimentos.
Vivera sempre mergulhado no trabalho, um negócio a fechar, uma série crucial de
testes laboratoriais para acompanhar, um encontro com os seus banqueiros, uma crise
inesperada no mercado marciano. Enquanto os outros se enfiavam alegremente nas
redes de estase para gozarem as suas viagens semanais, ela passara o tempo a
construir o seu império econômico, e agora já era demasiado tarde para se conceder
alguns dos prazeres do mundo. E depois? — perguntou-se ferozmente. — Sei que sou um
homem do século XIX, dentro do corpo de um homem do século XXIII. Posso muito bem
passar sem salas de transmutação. Atrás, em quem é que eu confiaria a ponto de o
deixar entrar-me dentro da cabeça? Com que amigo me atreveria a trocar de
identidade? Quem, quem, quem? Krug compreendeu que não confiava em ninguém a esse
ponto. Talvez com o Manuel... talvez fosse útil fazer uma troca com o filho. Talvez
ficássemos a compreendermos melhor um ao outro... Cederíamos nas nossas posições
mais extremas, encontrar-nos-íamos num ponto a mero caminho... o rapaz não está
totalmente errado quanto à vida que leva, e eu também não. Talvez pudéssemos ver as
coisas com outros olhos. Não, Krug afastou imediatamente a ideia. Uma troca de ego
entre pai e filho parecia-lhe quase incestuosa. Havia coisas que não queria ficar a
saber a respeito de Manuel, assim como havia coisas a seu respeito que o Manuel
nunca poderia vir a saber. E que tal como o Thor Watchman? O alfa era
admiravelmente são, competente, de confiança; sob muitos aspectos, Krug estava mais
perto dele do que de qualquer outro ser vivo; não se lembrava de ter guardado
segredo de nada junto do Watchmen; se alguma vez se dispusesse a passar pela
experiência da transmutação mental, talvez fosse útil fazê-lo com o …

Chocado, Krug esmagou uma tal possibilidade. O quê, trocar de ego com um androide?

Virou-se rapidamente para Niccolò Vargas:

— Ainda tem algum tempo livre ou precisa de voltar já para o observatório?

— Não tenho pressa nenhuma.

— Nesse caso podíamos ir ao laboratório das ultra-ondas. Acabaram de montar um


modelo à escala do acumulador do primeiro nível, acho que é coisa que o vai
interessar.

Começaram a atravessar a tundra gelada e estaladiça. Uma equipa de gamas aproximou-


se, guiando vários limpa-neves. Passado um bocado Krug perguntou:

— Já esteve alguma vez numa sala de transmutação?

Vargas riu-se baixinho.

— Passei setenta anos da minha vida a calibrar o cérebro para lhe dar o melhor
rendimento possível... Acha que depois disso iria permitir que uma pessoa qualquer
viesse desregular-me todas essas afinações?

— Exactamente. Exactamente. São jogos para os mais novos. Nós...

Krug deteve-se. Dois alfas, um macho e uma fêmea, tinham acabado de sair do
transmat e dirigiam-se rapidamente aos dois homens parados no meio da tundra. Krug
não os reconheceu. O macho usava uma túnica escura aberta na garganta, a fêmea
trazia um vestido cinzento muito escuro. No peito direito de cada um deles
sobressaía um emblema refulgente, daqueles que radiavam energia em todas as gamas
do espectro, em pulsações regulares. Já mais perto, Krug pôde reconhecer as letras
(PIA) no centro dos emblemas. Agitadores políticos? Sem dúvida. E ele ali especado,
em pleno campo aberto, obrigado a ouvir-lhes as mesmas ladainhas de sempre! Mas
onde é que se terá metido o Spaulding? O Leon corria com eles num abrir e fechar de
olhos...

O alfa macho foi o primeiro a falar:

— Estamos muito felizes por o encontrarmos aqui, Sr. Krug. Há várias semanas que
temos vindo a solicitar um encontro consigo, mas nada conseguimos, o senhor é
praticamente inatingível, de modo que resolvemos vir aqui... Oh, desculpe-me, ainda
não me apresentei. Peço-lhe imensa desculpa. Chamo-me Siegfried Fileclerk, e sou um
representante acreditado do Partido da Igualdade dos Androides, como já deve ter
percebido por estes emblemas. A minha companheira é a alfa Cassandra Nucleus,
secretária distrital do PIA. Se não se importar de nos ceder um minuto do seu
tempo...

«... gostaríamos de lhe falar da próxima legislatura do congresso, e da emenda


constitucional, proposta relacionada com os direitos civis das pessoas sintéticas»
— concluiu Cassandra Nucleus.

Krug ficou atônito perante a audácia daqueles dois. Enfim, toda a gente era livre
de se meter num transmat e marcar as coordenadas da torre, mesmo os androides a
trabalharem para outros patrões; porém, acossá-lo daquela maneira, massacrá-lo com
aquelas teorias políticas... era incrível!

Siegfried Fileclerk prosseguiu:

— O nosso atrevimento ao o abordarmos directamente resulta da nossa crescente


preocupação com tão magno problema. A definição do lugar dos androides no mundo
moderno não é um desafio fácil, Sr. Krug. — E o senhor como personagem central no
fabrico das pessoas sintéticas — disse Cassandra Nucleus —, tem um papel
determinante na determinação do futuro das pessoas sintéticas no seio da sociedade
humana. Como tal, solicitamos-lhe...

— Pessoas sintéticas? — exclamou Krug, incrédulo. — É assim que vocês agora se


chamam? Estarão loucos, para virem aqui dizer-me essas coisas? A mim? Vamos lá a
saber, a quem pertencem vocês?
Siegfried Fileclerk recuou um passo, como se a violência do tom de Krug lhe tivesse
destroçado a sua espantosa confiança, como se finalmente se tivesse compenetrado da
enormidade daquilo que estava a fazer. Cassandra Nucleus, porém, ficou onde estava;
a esguia fêmea alfa retrucou em tom frio:

— O alfa Fileclerk está registado no Sindicato de Protecção da Propriedade de


Buenos Aires, e eu sou uma moduladora colocada no Transmat-Geral do Labrador.
Contudo, neste momento estamos ambos no nosso período de descanso e, ao abrigo do
acta do congresso número 2212, é-nos permitido, quando fora do serviço, exercer
abertamente actividades políticas em nome do movimento que defende os direitos das
pessoas sintéticas. Se nos quiser conceder um pouco do seu tempo para que possamos
explicar-lhe o texto da emenda constitucional a ser apresentada na próxima
legislatura, de modo a que o senhor possa tomar uma posição pública a favor dos...

— Spaulding! — rugiu Krug. — Spaulding, onde é que te meteste? Tira-me estes


androides maníacos de cima de mim!

De Spaulding nem sinal. O ectógene tinha-lhe dito que ia inspeccionar uma coisa
qualquer no perímetro do estaleiro, enquanto Krug estivesse com os seus convidados
no cimo da torre.

Cassandra Nucleus tirou um cubo de dados refulgente do bolso do vestido. Estendeu-o


na direcção de Krug e disse:

— Aqui dentro está registado o essencial dos nossos pontos de vista. Se quiser...

— Spaulding!

Desta vez, o grito de Krug conseguiu conjurar o ectógene. Spaulding aproximou-se


vindo do lado norte do estaleiro, a galopar desenfreadamente, com Thor Watchman a
acompanhá-lo uns passos atrás, numa passada elástica e descontraída. Ao vê-lo a
aproximar-se, Cassandra Nucleus evidenciou pela primeira vez um certo alarme;
atrapalhada, tentou enfiar o cubo de dados na mão de Krug. Krug olhou para o
objecto como se fosse uma bomba psi. Lutaram por breves instantes e, para sua
surpresa, deparou-se-lhe a fêmea androide nos seus braços, numa curiosa imitação de
um abraço apaixonado, se bem que ela só estivesse a atentar impingir-lhe o cubo.
Krug agarrou-a por um ombro e afastou-a de si, segurando-a na ponta do braço
estendido. Nesse preciso momento, Leon Spaulding sacou de um pequeno e brilhante
lança-estiletes e disparou um dardo, que foi enterrar-se no peito de Cassandra
Nucleus, precisamente no centro do emblema do PIA. A fêmea alfa recuou a rodopiar e
estatelou-se sem soltar um único som. O cubo de dados bateu no solo gelado e
ressaltou várias vezes antes de se imobilizar; Siegfried Fileclerk, a gemer,
apanhou-o e guardou-o no bolso. Com um terrível grito de angústia, Thor Watchman
arrancou o lança-estiletes da mão de Spaulding e, com um só golpe do outro braço,
mandou o ectógene de pantanas[Nota da digitalização: para o chão]. Niccolò Vargas,
que ficara calado desde o aparecimento dos dois alfas, ajoelhou ao lado de
Cassandra Nucleus para lhe examinar a ferida.

— Idiota! — gritou Krug, trespassando Spaulding com o olhar.

Watchman, em pé, ao lado do atrapalhado ectógene, censurou-o secamente:

— Podia ter morto o Sr. Krug! Ela estava a menos de um metro dele quando você
disparou! Bárbaro! Bárbaro!

— Está morta — anunciou Vargas.

Siegfried Fileclerk começou a soluçar. Um círculo de operários, betas e gamas,


aglomerava-se a uma distância segura, contemplando a cena, com expressões de
terror. Krug sentiu que o mundo se desfazia à sua volta.

— Porque é que disparaste? — perguntou a Spaulding.

A tremer, o ectógene lá conseguiu balbuciar:

— O senhor estava em perigo... eles disseram-me que eram assassinos...

— Agitadores políticos — corrigiu Krug, mirando-o com desprezo, — A mulher só


estava a tentar impingir-me propaganda sobre a igualdade dos androides.

— Mas a mim disseram-me... — destroçado, abatido, Spaulding tapou a cara com as


mãos.

— Idiota!

Watchman resolveu intervir, fazendo-o num tom átono:

— Foi um engano. Uma infeliz coincidência. A informação que nos chegou dizia que...

— Basta! — atalhou Krug. — Morreu uma androide, eu assumo plena responsabilidade.


Ela disse-me que pertencia ao Transmat Geral do Labrador; Spaulding, entra em
contacto com os advogados deles e... não, neste momento não estás em condições de
fazer seja o que for. Watchman!

Informa o nosso departamento de contencioso de que o Transmat do Labrador tem bases


legais para nos mover uma acção por destruição de um androide, pela qual admitimos
a culpa e tencionamos chegar a um acordo. Diz aos advogados para fazerem o que
acharem melhor, e depois põe alguém das relações públicas a preparar um comunicado
para a imprensa. Um lamentável acidente, etc., etc., etc. Sem quaisquer conotações
políticas. Percebido?

— O que é que faço com o corpo? — perguntou Watchman. — Aplico-lhe os procedimentos


de destruição normais?

— O corpo pertence ao Transmat do Labrador — disse Krug. — Congela-o e entrega-o


aos tipos mediante recibo. — Virou-se para Spaulding e ordenou: — Levantas-te.
Estão à minha espera em Nova Iorque, e tu vens comigo.

CAPÍTULO XIII

Ao dirigir-se ao centro de controlo, Watchman executou o Rito do Equilíbrio da Alma


duas vezes completas, só assim conseguindo libertar-se parcialmente da
insensibilidade que o invadira. O terrível e inesperado desfecho do seu estratagema
continuava a abalá-lo profundamente.

Quando chegou ao seu gabinete, Watchman fez o sinal de Krug-seja-louvado oito vezes
seguidas, e prosseguiu com metade das sequências dos tripletes. As devoções
acalmaram-no. Ligou para os escritórios de São Francisco de Fearon & Dobeny, o
cartório legal da Krug para todos os casos envolvendo responsabilidades cíveis. Lou
Fearon, o irmão mais novo do senador dos Witherers, apareceu no écran, e Watchman
pô-lo ao corrente do sucedido.
— Mas porque é que o Spaulding disparou? — perguntou Fearon.

— Entrou em histeria. É um estúpido, deixaste levar pela excitação.

— O Krug não o mandou disparar?

— Nem pensar! O disparo passou a um metro do Krug, por pouco não o atingia também,
e além disso o Krug não estava ~a ser ameaçado.

— Há testemunhas?

— O Niccolò Vargas, eu próprio e o outro alfa do PIA, para não falarmos em vários
betas e gamas nas imediações. Quer que lhe arranje os nomes de todos?

— Não vale a pena — disse o advogado. — Sabe tão bem como eu qual é o valor do
testemunho de um beta. Onde é que está o Vargas neste momento?

— Ainda está aqui, mas penso que deve estar quase de partida para o observatório.

— Peça-lhe para me ligar ainda hoje, eu pago a chamada. Meto-me no transmat e vou
recolher o depoimento dele. Quanto ao outro alfa...

— Não se meta com ele — aconselhou Watchman.

— Porquê?

— É um fanático político, vai tentar capitalizar a situação a seu favor. No meu


caso, mantinha-o o mais afastado possível desta encrenca toda.

— Mas é uma testemunha — disse Fearon. — Terá de ser chamado a depor. Não deve ser
difícil neutralizá-lo. Sabe quem é o dono dele?

— É a protecção da Propriedade de Buenos Aires.

— Já trabalhámos para eles. Vou pedir ao Joe Doheny para lhes ligar e comprar o
androide em nome de Krug. O tipo nunca poderá causar problemas ao Krug se este o
adquirir...

— Não pense nisso — contrapôs Watchman. — É uma má jogada. Estou surpreendido


consigo, Lou...

— Porquê?

— O alfa é um homem do PIA, não é? Como tal, é sensível ao estatuto de escravos dos
androides. Nós matamos-lhe a companheira sem o mínimo aviso e depois tentamos
adquiri-lo para o calar? O que é que as pessoas irão pensar? Somos capazes de
provocar uma adesão maciça ao PIA, nas doze horas seguintes a um comunicado público
feito nesses termos...

Fearon concordou com um aceno de cabeça.

— Claro, tem toda a razão. Okay, Thor, o que é que sugere em relação ao androide?

— Deixem-me falar com ele — pediu Watchman. — De androide para androide. Sei que
sou capaz de o levar à certa.

— Espero bem que sim. Entretanto, vou falar com o Transmat do Labrador para saber
quanto é que eles querem de indenização pela perda da rapariga alfa. Você aí diga
ao Krug para não se preocupar: de hoje a oito dias, é como se o incidente nunca
tivesse acontecido.

Exceptuando o facto de ter morrido um alfa, pensou Watchman ao desligar.

— Saiu para o exterior. A neve caía com mais força; várias equipas com limpa-neves
mantinham o estaleiro desempachado, exceptuando um círculo com uns cinquenta metros
de diâmetro, no centro do qual jazia o cadáver de Cassandra Nucleus. Todos o
evitavam cuidadosamente. O corpo estava já semitapado por uma leve camada de neve;
a seu lado, imóvel, esbranquiçado pelo nevão, Siegfried Fileclerk lamentava-se.
Watchman foi ter com ele.

— O dono dela já foi notificado — informou Thor. — Vou mandar uns gamas para a
levarem para o bloco frigorífico, enquanto não a vêm buscar.

— Deixem-na ficar aqui — disse Fileclerk.

— Como?

— Aqui mesmo, no sítio onde tombou. Quero que todos os androides que trabalham
neste sítio vejam o corpo. Não basta que se saiba de um crime hediondo como este; é
preciso que as pessoas o vejam com os seus próprios olhos.

Watchman olhou de esguelha para a alfa morta. Fileclerk, esperto, tinha-lhe aberto
o vestido, expondo os seios, entre os quais se via perfeitamente o buraco aberto
pelo projéctil. Buraco? Mais parecia uma janela rasgada no peito!

— Não a devíamos deixar ficar aqui estendida na neve — disse Watchman.

Fileclerck mordeu os lábios.

— Quero que todos a vejam! Watchman, isto foi pura e simplesmente uma execução! Uma
execução política!

— Não sejas ridículo.

— O Krug chamou o seu pau-mandado e mandou-o disparar sobre ela porque a Cassandra
estava a cometer um crime... estava a tentar obter o apoio dele. Todos nós o vimos;
a rapariga nunca constituiu uma ameaça para ninguém. No seu entusiasmo, aproximou-
se demasiado dele enquanto tentava explicar-lhe o nosso ponto de vista, nada mais.
Mesmo assim, o Krug mandou matá-la.

— Isso é uma interpretação irracional — retorquiu Watchman. — O Krug nada tinha a


ganhar com a morte dela. Sempre encarou o Partido da Igualdade dos Androides como
um mal menor, e nunca como uma ameaça séria. Se tivesse quaisquer razões para matar
os militantes do PIA, porque é que te poupou a ti? Mais um disparo e tinhas-te
juntado a ela.

— Nesse caso porque é que a mataram?

— Por engano — disse Watchman. — O assassino foi o secretário privado do Krug, a


quem tinham dito momentos antes que estavam a atentar contra a vida do patrão.
Quando ele chegou ao local, viu-a a ela agarrada ao Krug. Tudo parecia condizer; eu
próprio teria pensado o mesmo se me tivessem dito o que lhe disseram a ele. O
Spaulding disparou sem sequer hesitar.

— Mesmo assim podia ter apontado para as pernas — protestou Fileclerk. — É evidente
que se trata de um atirador de primeira, só que em lugar de ferir preferiu matar.
Atingida no peito como só um profissional teria conseguido. Porquê? Porquê?
— Por causa de uma falha de carácter. É um ectógene, e como tal vive mergulhado nos
seus preconceitos contra os androides. Momentos antes do crime, tinha-se
confrontado comigo e com dois betas, e deve ter-se sentido ameaçado. Além do mais,
é pessoa de ferver em pouca água, e desta vez extravasou. Quando descobriu que o
«assassino» era um androide, atirou a matar.

— Compreendo.

— Foi uma decisão pessoal. O Krug não lhe ordenou que disparasse sobre ela, e muito
menos para disparar a matar.

Fileclerck limpou a neve da cara.

— Bom, nesse caso o que é que vai ser feito para se punir esse ectógene assassino?

— Tenho a certeza de que o Krug o vai repreender severamente.

— Não eu estou a referir-me à punição legal. Que eu saiba, a pena para o assassínio
é o apagamento da personalidade, não é assim?

Watchman deixou escapar um suspiro antes de responder.

— É, no casos de assassínio de seres humanos. O ectógene limitou-se a destruir um


objecto propriedade do Transmat Geral do Labrador, e como tal estamos perante um
caso cível. O Transmat do Labrador deverá ressarsir-se através dos tribunais, e o
Krug já admitiu que é responsável. Pagará por ela o preço justo.

— O preço justo? O preço justo? Um caso cível? Mas então como é que o assassino
pode pagar? Nada, percebes? Nada! Nem sequer vai ser acusado de um crime. Alfa
Watchman, consideras-te um verdadeiro androide?

— Podes consultar à vontade os meus registos do tanque.

— Será que posso? Pareces sintético, mas pensas mais como um humano.

— Garanto-te que sou tão sintético como tu, alfa Fileclerk.

— Mas serás castrado?

— Não, tenho o corpo tal como saí do tanque.

— Estava a servir-me de uma metáfora... por certo foste condicionado de modo a


defenderes os pontos de vista humanos, mesmo que isso vá contra os teus interesses.

— Não fui submetido a nenhum condicionamento, excepção feita, claro, ao treino


normal dos androides.

— Mesmo assim, parece que o Krug comprou não só o teu corpo como também a tua alma.

— Krug é o meu criador, e portanto dedico-me de corpo e alma a Krug.

— Por favor, poupa-me a essas idiotices religiosas atirou-lhe Fileclerk. — Uma


mulher foi morta sem mais nem menos, sem qualquer razão aparente, o Krug vai pagar
a devida indemnização aos donos dela e pronto, caso encerrado... És capaz de
aceitar uma coisa dessas? És capaz de encolher os ombros e dizer que ela não
passava de um simples objecto? És capaz de pensar nela como um objecto?

— Eu sou propriedade de alguém — disse Watchman.


— E aceitas de bom grado esse estatuto?

— Sim, aceito o meu estatuto, sabendo que o dia da redenção está para breve.

— Acreditas nisso?

— Acredito.

— Então és um louco, Alfa Watchman. Construíste à tua volta uma bonita fantasia que
te permite aceitar a escravidão, a tua e a dos da tua espécie, e nem sequer
percebes o mal que estás a fazer a ti próprio e à causa dos androides. Aquilo que
aconteceu hoje aqui nem sequer te abalou! Enfiaste-te na capela a rezar para que
Krug te liberte, e entretanto o Krug real estava aqui neste preciso local, a meio
da tundra, a assistir impávido ao assassínio de uma mulher alfa, e depois de
consumado o crime o teu salvador limita-se a mandar-te contactar com os seus
advogados para que estes tratem do acordo de indemnização por danos provocados a um
objecto. É esse o homem que adoras?

— Não adoro nenhum homem — respondeu Watchman. — Adoro o conceito de Krug o


Criador, Krug o Preservador, Krug o Redentor, e o homem que me mandou contactar os
seus advogados não passa de uma simples manifestação desse conceito, nunca
representará o conceito em si.

— Também acreditas nisso?

— Também acredito nisso.

— És impossível, Watchman — murmurou Fileclerk. — Ouve: todos nós vivemos num mundo
real. Temos um problema real, e como tal temos de procurar uma solução realista,
uma solução que reside única e exclusivamente na organização política. Hoje somos
já cinco por cada um deles e todos os dias saem mais camaradas dos tanques,
enquanto eles praticamente não se reproduzem. Acho que temos vivido demasiado tempo
a aceitar o nosso infeliz estatuto. Se os pressionarmos para o reconhecimento da
igualdade, acabaremos por consegui-la, pois eles, apesar de o disfarçarem, têm medo
de nós e sabem que os podemos esmagar a qualquer momento. Repara que não estou a
defender o uso da força, limito-me a sugerir que a podemos utilizar. Quanto a mim,
temos de insistir na luta constitucional. A admissão dos androides no Congresso, a
concessão de direitos civis, e estabelecimento da nossa existência legal como
pessoas...

— Poupe-me, por favor. Conheço bem as ideias do PIA.

— E mesmo assim não compreendes a sua lógica? Depois do que se passou hoje? Depois
disto?

— O que eu compreendo é que os humanos toleram o teu partido, suponho mesmo que o
consideram divertido — disse Watchman. — E também compreendo que se as vossas
exigências algum dia forem além das meras reivindicações, é certo e sabido que eles
proíbem o PIA, submetendo todos os alfas agitadores a uma hipolobotomia, e se for
necessário executarão os líderes partidários, de uma forma tão impiedosa como a que
tu atribuís ao que hoje se passou aqui. A economia humana dependo do conceito dos
androides como propriedade; acredito que isso possa vir a mudar, mas a mudança não
surgirá graças aos vossos esforços; só poderá ocorrer através de um acto de
renúncia voluntária por parte dos humanos.

— Uma assumpção ingênua. Atribuis-lhes virtudes que eles simplesmente não têm.

— Foram eles que nos criaram. És capaz de os encarar como demónios? Se o são, então
o que é que nós somos?
— Não, não são demónios — concedeu Fileclerk. — São simples seres humanos, cegos,
estúpidos e egoístas. Têm de ser educados, têm de compreender aquilo que nós somos
e o que é que nos estão a fazer. Não é a primeira vez que fazem uma coisa destas.
Aqui há muito tempo atrás havia uma raça branca e uma raça escura, e os brancos
escravizaram os negros. Os negros eram comprados e vendidos como animais, e as leis
que governavam o seu estatuto eram leis civis, leis de propriedade... sem paralelo
com a nossa condição. Contudo, alguns dos brancos, mais esclarecidos que os outros,
reconheceram a injustiça e lutaram pelo fim da escravatura. Após anos e anos de
manobras políticas, em que foram tentando conquistar a opinião pública, e depois de
uma guerra sangrenta, os escravos foram libertados e adquiriram a cidadania. É isso
que pretendemos para nós.

— O paralelo não é exacto. Os brancos não tinham o direito de interferir na


liberdade dos seus irmãos humanos de pele escura. Os próprios brancos, ou pelo
menos alguns deles, acabaram por compreender isso, e resolveram libertar os
escravos. Os escravos não concretizaram nenhum trabalho político para conquistarem
a opinião pública; deixaram-se ficar onde estavam, a sofrer como sempre, até que os
brancos reconheceram a sua culpa. De resto, os escravos também eram seres humanos.
Que direito tem um ser humano de escravizar outro ser humano? Connosco, porém, é
diferente: foram os nossos donos que nos fizeram. Só a eles devemos a nossa
existência. Podem fazer connosco aquilo que lhes apetecer; foi para isso que nos
trouxeram ao Mundo. Não temos nenhuma disputa moral contra eles.

— Mas eles também fazem os seus próprios filhos — frisou Fileclerk. — E, até certo
ponto, eles encaram os filhos como sua propriedade, pelo menos enquanto estão a
crescer. Contudo, a escravidão dos filhos termina com o fim da infância. E que
dizer da nossa? Haverá uma diferença assim tão grande entre um filho feito na cama
e um filho feito no tanque?

— Concordo em que o actual estatuto legal dos androides é injusto...

— Óptimo!

— ... mas discordo das vossas tácticas — continuou Watchman. — A resposta não está
num partido político. Os humanos conhecem bem a sua História do século XIX, pelo
que ponderaram e puseram de lado todos os paralelos possíveis; se sentissem algum
peso na consciência, já nós teríamos dado por ele. Diz-me, onde é que estão os
modernos abolicionistas? Nunca vi nenhum. Não, não podemos nem devemos pressioná-
los moralmente, e nunca directamente; temos de ter fé neles, temos de compreender
que o nosso sofrimento actual é um teste à nossa virtude, à nossa força, uma
provação concebida por Krug para determinar se os humanos sintéticos podem ser
integrados na sociedade humana. Posso dar-te um exemplo histórico: os imperadores
romanos atiraram os cristãos às feras, mas tempos depois não só se deixaram disso
como se converteram ao Cristianismo. Isso não sucedeu porque os cristãos formaram
um partido político, sugerindo ao mesmo tempo que podiam revoltar-se e massacrar os
pagãos se estes não lhes concedessem a liberdade religiosa. Pelo contrário, foi um
triunfo da fé sobre: a tirania. Da mesma maneira...

— Guarda para ti a tua estúpida religião! — explodiu Fileclerk, perdidas que


estavam as estribeiras. — Ela não impede que adiras ao PIA! Enquanto os alfas
permanecerem divididos ...

— Os vossos objectivos são incompatíveis com os nossos. Nós recomendamos a


paciência, e rezamos pela graça divina; vocês são agitadores e desestabilizadores.
Como é que podemos juntar-nos ao vosso movimento?

Watchman compreendeu que Fileclerk já não o ouvia. O alfa parecia ter-se alheado do
que o rodeava; de olhos refulgentes, deixava correr livremente as lágrimas, que iam
abrindo sulcos ao longo das faces, desprendendo a neve que aí se colara. Watchman
nunca vira um androide a chorar, se bom que soubesse ser fisiologicamente possível.

— Penso que nunca conseguiremos converter-nos uns aos outros — observou. — No


entanto, quero que me prometas uma coisa: promete-me que não irás aproveitar
politicamente esta morte. Promete-me que não vais desatar a gritar por todo o lado
que o Krug a mandou destruir deliberadamente. Potencialmente, Krug é o maior aliado
que a causa da igualdade dos androides poderia desejar. Porém, se vocês o alienam
assacando-lhe uma acusação ridícula como essa, só conseguirão atrasar a nossa
libertação.

Fileclerk fechou os olhos e deixou-se cair lentamente sobre os joelhos e atirou-se


para cima do corpo gelado de Cassandra Nucleus, soltando sons entrecortados.

Watchman ficou a olhar para ele, silencioso, mas passados instantes disse-lhe, em
tom compreensivo :

— Vem comigo à nossa capela. Não serve de nada ficares aí estendido na neve. Mesmo
que não acredites, temos técnicas que aliviam a alma, métodos seguros de combater o
desgosto. Fala com um dos nossos Transcendentais. Podes mesmo rezar a Krug, talvez
consigas...

— Deixa-me em paz — soluçou Fileclerk. — Deixa-me em paz!

Watchman encolheu os ombros, sentindo-se imensamente triste, oco e frio. Afastou-se


dos dois alfas, do vivo e da morta, deixando-os estendidos no meio da tundra alva
de neve, e dirigiu-se para a zona norte do estaleiro, a ver se descobria a nova
capela.

CAPÍTULO XIV

E o primeiro que Krug criou foi o Game, e Krug disse-lhe: «Ouve, tu és forte e
incansável, pelo que farás tudo o que te pedirem sem protestares, e serás feliz com
os trabalhos que te derem.» E Krug gostou tanto do seu Gama que criou muitos mais
iguais a ele, para que se transformassem numa multidão.

A seguir Krug criou o Beta, e Krug disse-lhe: «Ouve, tu vais ser forte mas também
perceberás as coisas, e como tal serás de grande valor para o Mundo, e os teus dias
serão sempre bons e alegres.» E Krug gostou tanto do seu Beta que o libertou de
muitos dos fardos do corpo, poupando-o ainda aos piores fardos da mente, e assim a
vida do Beta foi feliz como um dia de Primavera.

O último a ser criado por Krug foi o Alfa, e Krug disse-lhe: «Ouve, as tarefas que
te esperam não serão fáceis, pois o teu corpo excederá o dos Filhos do Ventre, e
quanto à mente não lhes ficarás atrás, e eles confiarão em ti como confiam nos seus
irmãos.» E Krug gostou tanto do seu Alfa que o encheu de benesses, para que ele
pudesse viver com orgulho, olhando sem medo para os olhos dos Filhos do Ventre.

CAPÍ TULO XV
BOA noite, boa noite, boa noite! — cumprimentou o alfa de serviço da sala de
transmutação de Nova Orleães quando Manuel e os seus amigos emergiram do transmat.
— Sr. Krug, Sr. Ssu-ma, Sr. Guilbert, Sr. Temnysoo, Sr. Mishima, Sr. Foster. Muito
boa noite. Importam-se de me acompanhar? A vossa sala de espera já está preparada.

A antecâmara da sala de transmutação de Nova Orleães era uma fria estrutura em


forma de túnel com perto de cem metros de comprimento, dividida em oito subcâmaras
seladas em que os que pretendiam mudar de identidade podiam esperar enquanto a rede
de estase era preparada para os receber. As subcâmeras, apesar de acanhadas, eram
confortáveis: divãs de espuma, padrões sensórios requintados a percorrerem o tecto,
cubos musicais disponíveis a um simples toque num botão, uma selecção decente de
canais olfativos e visuais nas paredes e um certo número de outras amenidades
contemporâneas. O alfa deitou cada um dos amigos no seu divã, anunciando:

— Esta noite o tempo de programação será de aproximadamente noventa minutos. Nada


mau, pois não?

— Não consegues acelerá-lo? — perguntou Manuel.

— Ah, não, nem pensar nisso. Ontem à noite estivemos com quase quatro horas de
atraso, sabia? Só um momento, Sr. Krug... deixe-me prender-lhe este eléctrodo no
sítio certo... obrigado. Obrigado. Agora este... óptimo. Só falta o scanner das
matrizes... pronto, já está. Estamos prontos. Agora o Sr. Ssu-ma, por favor?

O androide atarefou-se em redor dos divãs, ligando-os a todos. Precisou de cerca de


um minuto por cada cliente, e quando acabou saiu imediatamente da antecâmara. Dados
começaram a ser sugados aos seis homens estendidos na antecêmara: a rede de estase
recolhia os respectivos perfis de personalidade, para se poder autoprogramar de
forma a compensar uma possível emoção mais forte surgida enquanto se processavam as
trocas de ego.

Manuel olhou à sua volta. Sentia-se tenso de antecipação, ansioso por embarcar na
transmutação. Os outros cinco eram os seus amigos mais antigos e mais íntimos;
conhecia-os praticamente desde o berço. Há uns anos atrás alguém alcunhara o grupo
com um epíteto curioso: Grupo Spectrum; o nome surgira quando da inauguração de um
novo restaurante subaquático, em que os seis tinham aparecido vestidos com roupas
representando a sequência espectral da luz visível: Nick Ssu-ma de vermelho, Will
Mishima de violeta e os outros devidamente escalonados nas cores intermédias. A
alcunha pegara. Eram todos ricos, se bem que nenhum, claro, fosse tão rico como
Manuel. Eram todos jovens e vigorosos e, à excepção de Cadge Foster e Jed Guilbert,
todos se tinham casado recentemente, o que de resto não prejudicara a grande
amizade que os unia. Manuel já partilhara com eles os prazeres das salas de
transmutação pelo menos uma dúzia de vezes; esta de hoje estava planeada há mais de
um mês.

— Detesto esta espera — disse Manuel. — Gostava mais de mergulhar na rede de


estase, mal cá chegássemos.

— É muito perigoso — observou Lloyd Tennyson, um soberbo atleta de pernas esguias e


tronco amplo, com três placas espelhadas embutidas na testa alta.

— Precisamente por isso — insistiu Manuel. — Pela emoção do perigo. Já pensaste


como seria mergulharmos logo, arriscando tudo por tudo?

— E a preciosidade da insubstituível vida humana? — perguntou Will Mishima, um


oriental de olhos em fenda e rosto da cor do giz. — Nem sequer devia ser
permitido... os riscos são por de mais conhecidos.
— Pede aos engenheiros do teu pai que inventem uma rede de estase que saiba
programar-se instantaneamente — propôs Jed Guilbert. — Eliminávamos não só o perigo
como a maçada da espera.

— Olha que o faziam, se fosse possível — opinou Tennyson.

— Podias subornar um dos encarregados para te deixar mergulhar sem a espera de


programação — sugeriu o tímido Nick Ssu-ma.

— Já tentei — disse Manuel. — Com um alfa de sala de transmutação de Pittsburgh,


aqui há três anos. Ofereci-lhe uns milhares, mas o alfa limitou-se a sorrir.
Dupliquei a oferta e ele duplicou o sorriso. Não estava interessado no dinheiro, e
eu nunca me tinha apercebido disso: como é que se consegue subornar um androide?

— Pois é — disse Mishima. — Podes comprar um androide, ou até podes comprar uma
sala de transmutação inteira, se quiseres... mas o suborno é uma coisa muito
diferente. As motivações de um androide…

— Nesse caso sou mesmo capaz de comprar uma sala de transmutação — disse Manuel.

Jed Guilbert soergueu-se sobre os cotovelos, para olhar para ele.

— Eras mesmo capaz de te enfiar directamente na rede?

— Acho que sim.

— Mesmo sabendo que em caso de sobrecarga da rede ou de um erro de transmissão te


arriscas a não voltar à tua própria mente?

— Quais são as probabilidades disso acontecer?

— São muitas — disse Guilbert. — Tens um século e meio de vida à tua frente. Achas
que faz sentido...

— Eu concordo com o Manuel — intrometeu-se Cadge Foster, o menos alegre do grupo,


um jovem sobretudo taciturno, mas que se exprimia sempre com grande convicção.-— O
risco é essencial a vida. Precisamos de arriscar, precisamos de aceitar a aventura.

— Mas riscos inúteis? — perguntou Tennyson. — A qualidade da transmutação não


melhora mesmo que mergulhemos imediatamente; a única diferença seria a eliminação
do tempo de espera. Não, não gosto de brincar com coisas sérias. Arriscar um século
por causa de umas míseras duas horas? A espera não me aborrece assim tanto.

— Podes ficar aborrecido com a própria vida — disse Nick Ssu-ma. — Tão cansado de
viver que eras capaz de trocar um século por uma hora, só pelo simples prazer de
arriscares. Há alturas em que me sinto assim... tu não? Antigamente havia um jogo
que se jogava com uma arma, chamado... oh, acho que era a Roleta Sueca...

— Polaca — corrigiu: Lloyd Tennyson.

— Isso, a Roleta Polaca. Pegavam numa arma, que podia ser carregada com seis ou
oito cargas explosivas, mas carregavam-na só com uma...

Manuel não apreciou o rumo que a conversa estava a tomar. Virando-se para Cadge
Foster, perguntou-lhe:

— O que é isso que tens na mão?

— Descobri-o num nicho por baixo do divã. Parece-me ser um dispositivo de


comunicações. Está sempre a mostrar-nos mensagens.

— Mostra lá.

Foster atirou-lho. Era um rectângulo de plástico esverdeado, vagamente cúbico, mas


de arestas arredondadas. Manuel colocou-o nas mãos em concha e espreitou para as
suas profundezas insondáveis; começaram a formar-se palavras, passando brilhantes
numa faixa no interior do objecto.

SÓ FALTAM CINQUENTA MINUTOS

— Bem pensado — disse Manuel, estendendo-o a Nick Ssu-ma para que este o pudesse
ver. Quando o recuperou, a mensagem mudara:

A VIDA É A ALEGRIA. A ALEGRIA É A VIDA

CONSEGUE REFUTAR ESTE SILOGISMO?

— Mas isto não é um silogismo — disse Manuel. — Os silogismos assumem sempre a


forma: Todo o A é B, e T não é A, portanto T não é B.

— O que é que estás para aí a dizer? — perguntou Mishima.

— Estava a dar uma lição de lógica a esta máquina. Achas que uma máquina não era
capaz de saber distinguir...

SE P IMPLICA Q E Q IMPLICA E.

SERÁ QUE P IMPLICA R?

— Também tenho uma — anunciou Sso-ma. — Mesmo à esquerda do selector de canais. Oh,
oh! Olhem-me para isto!

Estendeu o seu cubo a Lloyd Tennyson, que se riu à sucapa. Manuel estendeu o
pescoço, mas mesmo assim não conseguiu ler a mensagem, de modo que Ssu-ma virou o
cubo para que ele a pudesse ver.

A GALINHA É MAIS PODEROSA QUE A EMPADA

— Não percebo — disse Manuel.

— É uma piada porca dos androides — explicou Ssu-ma. — Um dos meus betas contou-ma
aqui há umas semanas. Estão a ver, havia um gama hermafrodita...

— Afinal todos nós temos cubos — anunciou Jed Guilbert. — Se calhar é um novo
divertimento para as pessoas passarem o tempo...

DEFENDA AS SEGUINTES TESES:

O OURO É MALEÁVEL

TODOS OS RÁDIOS ELÉCTRICOS PRECISAM DE VÁLVULAS

TODOS OS GATOS BRANCOS DE OLHOS AZUIS SÃO SURDOS

— Mas como é que funcionarão?

— Devem estar regulados para captarem tudo o que dizemos — sugeriu Cadge Foster. —
Depois, devem enviar um sinal a um centro de mensagens, que por sua vez escolhe ao
acaso uma coisa vagamente relevante... ou irrelevante, mas nem por isso menos
interessante, que depois é injectada no écran montado no interior do cubo.

— E cada um de nós recebe uma mensagem diferente?

— Neste momento a do Nick e a minha são iguais — informou Tennyson. — Não,


esperem... a dele está a mudar, a minha mantém-se.

A SOMA DOS ÂNGULOS DE UM TRIÂNGULO

É IGUAL A 180 GRAUS

ISTO NÃO É SIMULTANEAMENTE UMA CADEIRA E UMA NÃO CADEIRA

NESSE CASO QUEM É QUE FAZ A BARBA AO BARBEIRO ESPANHOL?

— Isto é de loucos — disse Mishima.

— Talvez seja de propósito — disse Manuel. — Os vossos também só dizem asneiras?

DEVIDO A AJUSTAMENTOS CLIMATÉRICOS INADIÁVEIS.

O DIA QUATRO DE NOVEMBRO SERÁ CANCELADO ENTRE OS PARALELOS 32 E 61 SUL

— No meu estou a receber um noticiário — disse Guilbert. — Qualquer coisa a


respeito do teu pai, Manuel...

— Deixa-me ver!

— Toma... apanha!

ALFA FÊMEA MORTA NO LOCAL ONDE ESTÁ A SER ERGUIDA A TORRE KRUG

EXECUÇÃO POLÍTICA.

SEGUNDO ACUSAÇÃO DE LÍDER DO PIA

A ORGANIZAÇÃO KRUG NEGA A ACUSAÇÃO, E DESCULPA-SE COM...

— Mais asneiras — disse Manuel. — Não estou a achar muita piada a estas coisas...

CLEVELAND FICA ENTRE NOVA IORQUE E CHICAGO

— Na minha também está a passar um noticiário — disse Tennyson. — O que é que vocês
pensam disto?

A ALFA CASSANDRA NUCLEUS MORREU INSTANTANEAMENTE

O DISPARO FATAL SAIU DA PISTOLA DO SECRETÁRIO PRIVADO DE KRUG.

LEON SPAULDING, 38 ANOS

— Nunca ouvi falar nela — disse Manuel. — E o Spaulding é mais velho, do que aí
diz. Já trabalha para o meu pai desde...

PODERÁ O RITMO DA RESPIRAÇÃO DO UNIVERSO SER DETECTADO ATRAVÉS DAS VULGARES


ANÁLISES METABÓLICAS?

— Talvez seja melhor telefonares ao teu pai, Manuel — disse Ssu-ma. — Se há mesmo
algum problema...

— E cancelamos a transmutação? Quando estamos marcados para uma semana inteira?


Hei-de saber o que foi quando sairmos daqui, se é que há alguma coisa para saber

O TRANSMAT GERAL DO LABRADOR,

PROPRIETÁRIO DA ALFA DESTRUÍDA

MOVEU UMA ACÇÃO POR DANOS

ESPERA-SE UM ACORDO RÁPIDO

— Volta lá para os silogismos — disse Manuel para o cubo que segurava na palma da
mão. — Se todos os homens são répteis, e se os androides alfa são répteis...

A SOMA DAS PARTES É IGUAL

AO QUADRADO DA HIPÓTESE

— Ouçam o que diz o meu! — gritou Tennyson.

ARQUEJANTE DE DESEJO.

ELA ESPERA PELA CHEGADA

DO SEU COMPANHEIRO NEGRO COMO CARVÃO,

PECADORA COMO NINGUÉM...

— Mais! — gritou Guilbert. — Mais!

PORTANTO, VOCÊ É UM RÉPTIL

— E que tal se puséssemos estas coisas de lado? — perguntou Manuel.

PROFUNDAMENTE EMOCIONADO,

O ALFA SIEGFRIED FILECLERK, DO PIA.

ACUSOU KRUG DE ESTAR A PLANEAR

UMA PURGA NO SEIO DOS DEFENSORES

DA IGUALDADE DOS ANDROIDES

— Acho que isto é mesmo um noticiário — murmurou Cadge Foster. — Já ouvi falar
deste Fileclerk. É o que está a tentar meter a emenda constitucional que abriria o
Congresso aos Alfas. E...

CHORANDO SOBRE O CADÁVER

DA ALFA MORTA E ESTENDIDA NA NEVE.

À SOMBRA DA TORRE DESCOMUNAL

UMA DEMONSTRAÇÃO DE DOR QUASE HUMANA

— Basta! — protestou Manuel, fazendo menção de atirar o seu cubo ao chão; deteve-se
no último instante, ao ver que a mensagem começara a mudar.

SERÁ QUE VOCÊ COMPREENDE OS SEUS PRÓPRIOS MOTIVOS?

— E tu…, compreendes os teus? — perguntou. O cubo apagou-se e Manuel acabou por o


deixar cair, quase que agradecido. O empregado alfa entrou na sub câmara e começou
a desligar os eléctrodos.

— Podem passar à sala de transmutação, cavalheiros — anunciou o alfa. — A


programação terminou e a rede de estase está pronta para vos receber.

CAPÍTULO XVI

A capela fora mudada para uma cúpula junto ao perímetro exterior da zona dos
serviços, numa secção onde se reparavam as ferramentas. A mudança, impecável,
processara-se em menos de duas horas; do lado de dentro, a nova capela não se
conseguia distinguir da velha. Deparou-se a Watchman uma dúzia de betas na sua hora
de descanso, a exercerem um ritual de consagração, enquanto um grupo de gamas
assistia interessado. Ninguém falou com ele, nem sequer o fitaram directamente; na
presença de um alfa, todos eles obedeciam escrupulosamente ao rígido código do
distanciamento social. Watchman rezou por breves instantes em frente ao holograma
de Krug, sentindo-se logo melhor; contudo, a tensão gerada e acumulada no longo e
invernoso diálogo com Siegfried Fileclerk parecia não o querer abandonar com tanta
facilidade. Sabia que a sua fé não vacilara perante os argumentos bruscos e
pragmáticos de Fileclerk, mas por uns curtos momentos, enquanto discutiam ao lado
do cadáver já congelado de Cassandra Nucleus, Watchman sentira o leve toque do
desespero. Fileclerk atingira-o num ponto vulnerável: a atitude de Krug perante o
assassínio da alfa. Krug parecera ficar na mesma, nem sequer demonstrara pena pela
rapariga! Bom, lá preocupado ficara — mas ficara-o só por causa da despesa, pelo
aborrecimento do processo legal? Watchman ripostara com os devidos comentários
metafísicos, mais mesmo assim continuava perturbado. Porque é que Krug não se
mostrara chocado com o crime? Onde é que estava a sensação de graça? Onde é que
estava a esperança de redenção? Onde é que estava a misericórdia do Criador?

A neve quase deixara de cair quando Watchman saiu da capela. A noite descera, sem
luar, e as estrelas pareciam mais nítidas que nunca. Os ventos selvagens varriam a
zona plana e estéril do estaleiro. Siegfried Fileclerk fora-se embora, e o mesmo
acontecera ao corpo de Cassandra Nucleus. Longas filas de operários acabados de
sair de turno aguardavam em frente aos cubículos do transmat. Watchman regressou ao
centro de controlo, onde encontrou o seu substituto, Euclid Planner.

— Já cá estou — disse Planner. — Podes ir. Hoje ficaste até mais tarde...

— Tive um dia demasiado complicado. Já soubeste da morte?

— Claro. O Transmat do Labrador reclamou o corpo, e os advogados já cá vieram. —


Planmer sentou-se na cadeira de ligação ao computador. — Também já sei que mudaram
a capela de sítio.

— Teve de ser. Foi assim que tudo começou... o Spaulding mostrou-se demasiado
interessado pela capela. É uma longa história...

— Já me contaram — disse Euclid Planner, preparando-se para enfiar a tomada de


ligação. — A coisa vai causar-nos problemas... como se já não tivéssemos problemas
de sobra. Vai com Krug, Thor.

— Vai com Krug — murmurou Watchman, despedindo-se.

Os trabalhadores à espera de vez cederam-lhe o lugar.

Entrou no cubículo e deixou que o banho de luz verde o atirasse para o seu
apartamento de três assoalhadas em Estocolmo, no secção do bairro androide
preferida pelos alfas. O transmat privado era um privilégio raro, sinal da estima
em que Krug o tinha. Não sabia de mais nenhum androide com um aparelho só para si;
Krug, porém, insistira em montar-lhe um no apartamento, aflrmando que Watchman
devia estar pronto a sair a qualquer momento, fosse a que horas fosse.

Sentia-se exausto, esgotado. Regulou-se para duas horas de sono, despiu-se e


deitou-se.

Quando acordou estava tão cansado como dantes, o que nele não era nada habitual.
Fechou os olhos, decidido a descansar mais uma hora, mas pouco depois foi
interrompido pelo retinir cto telefone. Virando-se para o écran, viu que era Lilith
Meson. Ensonado, fez-lhe o sinal de Krug-seja-louvado.

Ela parecia preocupada.

— Podes vir à capela de Valhallavagen, Thor? — perguntou.

— Agora?

— Sim, se puderes. Está um ambiente de cortar à faca. Por causa daquela coisa da
Cassandra Nucleus... não sabemos o que pensar, Thor.

— Esperem por mim — disse ele. — Vou já.

Vestiu uma túnica, marcou as coordenadas do transmat para o cubículo de


Valhallavagen e saltou. Do cubículo à capela não seriam mais de cinquenta metros;
os cubículos nunca eram instalados dentro das capelas. A alvorada fazia-se
anunciar, tênue e desfocada pela neblina. De noite também tinha nevado sobre
Estocolmo, conforme Watchman pôde ver; restos de flocos amontoados anichavam-se nas
sacadas das janelas dos edifícios mais antigos.

A capela ficava no piso térreo de uma esquina. Estavam presentes cerca de quinze
androides, todos alfas; as classes mais baixas raramente se serviam da capela de
Valhallavagen, se bem que ninguém as impedisse de lá irem. Os betas sentiam-se
pouco à vontade, e os gamas preferiam praticar o culto na Cidade Gama, no outro
extremo de Estocolmo.

Watchman reconheceu alguns dos membros mais distintos daquele grupinho já de si


seleccionado, e correspondeu aos cumprimentos da poetisa Andrómeda Quark, do
historiador Mazda Constructor, do teólogo Pontifex Dispatcher, do filósofo Krishna
Guardsman e de vários outros que se contavam entre a nata das natas. Todos pareciam
dominados por enorme tensão. Quando Krug lhes fez o sinal de Krug-seja-louvado, a
maioria respondeu de forma distraída, quase que automaticamente.

Lilith Meson foi a primeira a falar:

— Desculpa-nos por termos interrompido o teu descanso, Thor, mas como vês estamos
aqui reunidos para tratar de um assunto da máxima importância.

— Em que é que vos posso ser útil?


— Foste uma das testemunhas do assassínio da alfa Cassandra Nucleus — disse
Pontifex Dispatcher, um androide de porte digno e imponente, oriundo de um dos
primeiros lotes criados por Krug. Fora um dos principais obreiros na propagação da
religião androide. — Parece-me que estamos no meio de uma crise teológica —
continuou Dispatcher. — Tendo presentes as acusações feitas pelo Siegfried
Fileclerk ...

— Acusações? Não sei de nada!

— Importas-te de o esclarecer? — pediu Pontifex Dispatcher, olhando para Andrómeda


Quark.

A poetisa, magra e intensa, senhora de uma bela voz de soprano, não se fez rogada :

— O Fileclerk deu uma Conferência de imprensa ontem à noite, na sede do PIA.


Insistiu que a morte de Cassandra Nucleus foi um acto com conotações políticas, e
instigado por... por... — a alfa mal conseguia pronunciar o nome. — Por Krug.

— Escória do Tanque! — murmurou Watchman. — E eu supliquei-lhe para que não fizesse


uma coisa dessas! O Fileclerk e eu ficámos a conversar na neve durante mais de uma
hora; e eu disse-lhe... disse-lhe... — Thor retorceu os dedos. — O Krug emitiu
algum comunicado?

— Negou tudo — disse Mazda Constructor, o qual, com a sub-reptícia ajuda de


Watchman, passara os últimos quatro anos a compilar os anais dos androides,
servindo-se dos ficheiros de Krug. — Não perdeu tempo a responder às acusações. A
morte foi classificada como acidental.

— Quem é que foi o porta-voz do Krug? — quis saber Watchman.

— Um advogado. Fearon, o irmão do senador.

— O Spaulding nem sequer apareceu!, hem? Ainda, deve estar em choque, suponho, Pois
bem, o Fileclerk sempre cuspiu o seu veneno. E depois?

Pontifex Dispatcher responde-lhe em tom calmo:

— Thor, neste preciso momento, não sei quantas capelas em todo o Mundo estão
apinhadas de irmãos e irmãs, reunidos para discutirem as implicações do assassínio.
As ressonâncias teológicas são terrivelmente complexas. Se o Krug deu mesmo a ordem
para que pusessem termo à vida da Cassandra Nucleus, tê-lo-á feito para demonstrar
o Seu desagrado pelas actividades do Partido da Igualdade dos Androides? Quero
dizer, preferirá Ele os nossos métodos aos deles? Ou, por outro lado, tê-lo-á feito
para demonstrar a sua reprovação para com os objectivos finais do PIA, os quais,
como todos sabem, coincidem com os nossos? Se a primeira hipótese for verdadeira,
então a nossa fé resulta plenamente justificada. Contudo, se a verdade residir na
última, então é muito possível que este sinal de Krug represente a rejeição total,
do conceito da igualdade dos androides, o que a ser verdade nos deixa sem
esperanças...

— Um futuro deveras negro — crocitou Krishna Guardsman, cujos ensinamentos sobre o


relacionamento entre Krug e os androides eram reverenciados por todos sem excepção.
— Mesmo assim, sinto-me reconfortado ao pensar que se Krug atingiu a alfa Nucleus
para demonstrar o seu desagrado para com o movimento da igualdade, então fê-lo para
se opor meramente à agitação política nos tempos que correm, estando efectivamente
a recordarmos que devemos ser mais pacientes e aguardar pela Sua graça. Contudo ...

— Não podemos pôr de parte uma possibilidade ainda mais negra — disse Mazda
Constructor. — O Krug será capaz de praticar o mal? O Seu papel no assassínio terá
sido um papel diabólico? Se o foi, então talvez tenhamos de reexaminar as fundações
do nosso credo, para as reconstruirmos se for preciso, pois se Krug pode agir
arbitrariamente e amoralmente, então teremos de concluir...

— Esperem! Esperem! — gritou uma voz do fundo do grupo, mais incomodada que as
restantes. — Não se pode falar dessa maneira dentro de uma capela!

— Só estava a falar em termos figurativos — desculpou-se Mazda Constructor. — Nunca


tencionei, blasfemar. Estamos simplesmente a tentar explicar ao alfa Watchman o
tipo de reacções que neste momento se processam um pouco por todo o Mundo. É certo
que muitos de nós receiam que as acusações do Fileclerk correspondam à verdade...
que a alfa Nucleus foi morta devido às suas ideias políticas ..., e foi esse facto
que nos levou a considerar a possibilidiade de Krug ter agido impensadamente. É o
que está a ser discutido em imensas capelas, neste preciso momento.

— Acho que temos de acreditar que os actos de Krug são por definição actos sagrados
— declarou Krishna Guardsman. — Destinados a conduzir-nos à redenção final. O
problema não está em justificarmos as acções do Krug, mas sim em calarmos as
infelizes suspeitas geradas pelas acusações que este Fileclerk, que nem sequer é um
membro da nossa comunhão, resolveu lançar sobre...

— Foi um sinal de Krug! Um sinal!

— O Tanque dá, o Tanque tira !

— O Fileclerk afirmou que Krug não demonstrou o mínimo remorso. Ele ...

— ... mandou chamar os advogados. Um processo cível...

— ... danos e perdas. Uma má...

— ... mais um teste à nossa fé...

— ... seja como for, ela era nossa inimiga...

— ... matar um dos seus filhos para avisar os restantes? Isso transforma-o num
monstro!

— ... seremos consumidos no fogo do Seu crucifixo... — ... revelando uma capacidade
insuspeitada para o assassínio...

— ... santidade...

— ... redenção…

— ... sangue...

— Ouçam! — gritou Thor Watchman, atônito e impaciente. Por favor, ouçam o que tenho
para vos dizer!

— Deixem-no falar — disse Mazda Constructor. — De todos nós, é o que está mais
perto de Krug. As suas palavras têm o peso devido.

— Eu estava lá — disse Watchman. — Vi como tudo aconteceu. Antes que vocês se


destruam com os vossos conflitos teológicos, peço-vos que me ouçam. O Krug não tem
a mínima responsabilidade pelo assassínio. Spaulding, o secretário, o ectógene,
agiu por sua autorrecreação. A verdade é esta, tudo o mais é pura mentira.

Numa torrente de palavras, pô-los ao corrente das tentativas de Spauldinig para


entrar na capela do estaleiro, de tensão crescente que invadiu o eptógene quando se
viu impedido pelos guardas da capela, e da infeliz, coincidência de Spaulding ter
descoberto Krug a ser assediado pelos activistas do PIA.

— Ainda bem que foi assim — exclamou Mazda Constructor quando Watchman terminou a
sua narrativa. — Deixámo-nos enganar pelas acusações de Fileclerk. No fim de
contas, o caso nada tem a ver com os desígnios de Krug!

— Excepto num sentido mais lato, em que Krug deve ter criado toda a sequência dos
acontecimentos: — sugeriu Krishna Guardsman.

— Como? És capaz de sustentar com toda a seriedade que a Sua vontade está
subjacente até nos acontecimentos seculares como... — começou Pontifex Dispatcher.

Mazda Constructor não o deixou continuar.

— Podemos discutir os mistérios da Sua vontade noutra ocasião. De momento, compete-


nos comunicar às outras capelas àquilo que o Thor Watchman nos contou. A nossa
gente atravessa momentos de grande inquietação; temos o dever de os acalmar. Thor,
importas-te de ditar as tuas declarações, para que possam ser codificadas e
transmitidas?

— Com certeza.

Andrómeda Quark estendeu-lhe um cubo de mensagens. Watchman repetiu a sua história,


começando por se identificar para de seguida explicar a sua relação com Krug,
jurando que a sua descrição dos acontecimentos correspondia à verdade nua e crua.
Sentia-se terrivelmente esgotado. Era espantosa a ansiedade destes alfas, ao
quererem englobar tudo o que ouviam numa bruma de misticismo teológico! Quão lestos
tinham sido a aceitar as mentiras de Fileclerk! Naquele preciso momento, em
milhares e milhares de capelas, centenas de milhares de androides devotos
agonizavam sobre a magna questão do Krug ter ou não ter permitido que uma alfa
fosse morta à sua frente, enquanto que se tivessem esperado para saberem de tudo
pela boca de alguém que estivera presente...

Bom, ainda não era demasiado tarde para desfazer o mal causado. Ninguém precisava
de ver abalada a sua fé em Krug só por causa do sucedido.

Andrómeda Quark e outra fêmea, ambas da casta dos Projectores, estavam já a


codificar o princípio das declarações de Watchman, preparando-as para a transmissão
através da rede de banda larga que unia todas as capelas do planeta; Watchman
deixou-se ficar o tempo suficiente para ouvir as primeiras linhas do documento
codificado:

UAA GCG UCG UAA GCG. GGC GGU AAG AAU UAA GUG. CAA CAU AGG CGG GGC GAC ACA. ACC ACC
CUC...

— Posso ir-me embora? — perguntou.

Pontifex Pispatcher despediu-o com o sinal da Bênção do Tanque. Watchman respondeu


da forma apropriada e, com a morte na alma, saiu para a rua gelada.

CAPÍTULO XVII
CHAMO-ME Nick Ssu-ma Lloyd Tennyson Cadge Foster Will Mishima Jed Guilbert e talvez
Manuel Krug. Talvez. Uma semana na sala de transmutação. Saímos e nem sequer
sabemos quem somos. Manuel Mishima? Cadge Krug? Não há maneira de termos a certeza.
Andamos como o Lloyd, rimo-nos como o Nick, encolhemos os ombros como o Will. E
assim por diante. Tudo nos surge desfocado, como se estivéssemos rodeados por uma
admirável neblina dourada, o nascer do Sol no deserto, e coisas como essas. As
cabeças deles dentro da nossa. A nossa dentro das deles. Foi só uma semana, talvez
seja por isso que eu gosto tanto da transmutação. Deixo de ser só eu durante um
bocado... Mas basta. Basta, basta. Abram a caixa. Saltem cá para fora. Para dentro
deles.

E as ideias que tenho, agora? Espantosas!

Saltitar durante 168 horas na rede de estase. Pong e eles abrem-nos ao meio; saímos
para fora e procuramos um lugar onde aterrar, e às tantas aterramos mesmo e, Pong,
somos o Nick Ssu-ma, a comer cão assado em Taiwan. Uma alvorada no meio do
nevoeiro, com a nossa tia. Ambos nus. Toca-me aqui, diz ela. Ri-se, nós
estremecemos. Toca-me outra vez. Agora somos nós que rimos, ela estremece, seios
pequenos, como os de Clissa. É a nossa noite de núpcias. Com este anel te desposo,
Sr. Ermine Tennyson, coxas sedosas, covinhas ao fundo das costas. Sabiam que ele
dorme com um androide? Já imaginaram o Manuel a fazer uma coisa dessas? Ele ama-a,
segundo diz. Olhem! Olhem bem, ele ama-a, como podem ver. É giro como encontramos o
amor nos sítios mais inesperados. Uma androide? Bom, pelo menos ele não está
envergonhado, caso contrário não teria trocado de ego connosco. Uma androide.
Estive quase a comer, uma, mas não fui capaz. Falhei no último momento. Como é que
será comermos uma? Tal como das outras vezes. Não são de plástico, percebem? Mesmo
que não tenham pêlos lá em baixo. Uma espécie de incesto, talvez. Mas como? Bom,
quem faz os androides é o pai do Manuel, não é verdade? De certa maneira, ele está
a comer a irmã dele. Espertinho... Um bastardo, é o que tu és! Mas gostas mesmo? É
claro que gosto. Querem ver? Olhem, olhem bem. Transmutem-se e vejam com os vossos
próprios olhos.

E ele salta através da rede e enfia-se na fenda. Mas quem sou eu? Jed Ssu-ma? Will
Tennyson? Somos todos um só, a curtir as minhas recordações de Lilith. Não me
importo. Para quê guardar segredo? São todos meus amigos .., os meus melhores
amigos.

Quando tinha nove anos de idade, eu, Cadge Foster, apanhei um sapo; cozinhei-o e
comi-o.

Quando tinha treze anos, eu, Will Mishima mijei no chão do transmat, porque tinha
medo de não chegar lá.

Eu, Lloyd Tennyson, meti o dedo na coisa da minha irmã, tinha ela onze anos e eu
oito.

Jed Guilbert, catorze anos de idade, empurrou um gama de uma plataforma de


descarga, e o gama caiu de uma altura de oito metros. Escorregou, disse eu ao meu
pai.

Quando tinha dez anos, Nick Ssu-ma viu um beta macho a espreitar pela janela das
traseiras e foi contar tudo aos pais: o beta estava a ver o pai e a mãe na cama. O
pai sorriu, a mãe mandou matar o beta.

Eu, Manuel Krug, com quase trinta anos de idade, engano a minha mulher, Clissa, com
a alfa Lilith Meson, a quem amo mais do que a tudo, amo-a mesmo, amo-a de verdade,
vive em Estocolmo, na Birger Jarlsgaten, a alfa Lilith Meson com os seus seios e
coxas e dentes e cotovelos de pele rosada, a quem eu amo, a quem eu amo sem cabelos
entre as pernas, Lilith...
E transmutamos e transmutamos e transmutamos, pendurados na rede de estase, a
saltar com toda a facilidade de mente em mente, a flutuar, a trocar de crânios
tantas vezes quantas nos apetece, mesmo que acabe por sair mais caro, e depois como
o sapo do Cadge e molho o transmat do Will e cheiro a irmã do Lloyd no meu dedo e
mato o gama do Jed e minto acerca do beta de Nick e todos eles vão para a cama com
a Lilith e depois dizem-me, sim, sim, temos de dar mais atenção a essas mulheres
alfa, és um felizardo, Manuel, um felizardo um felizardo um felizardo...

E eu amo-a.

Aquela a quem amo ...

E posso ver todos os vossos pequenos ódios e porcariazinhas nas vossas mentes, meus
amigos, mas também lá vejo qualidades, uma grande força moral, imensas coisas boas,
pois seria horrível trocarmos de egos só para comermos sapos guisados e mijarmos no
chão dos transmats. Vejo favores secretos e modéstias e lealdades e obras de
caridade. Vejo que tenho os melhores amigos do Mundo e fico preocupado,
interrogando-me, o que é que eles verão em mim, talvez me odeiem quando sairmos
daqui. Saltamos mais um bocado. Vemos o que eles veem em nós e aquilo que nós vemos
neles.

Uma semana passa-se tão depressa!

Pobre Manuel, dizem eles, nunca soube que o rapaz sofria tanto. Com toda aquela
fortuna ainda se sente culpado por não ter nenhum rumo a dar à vida. Procura uma
causa, Manuel. Procura uma causa para defenderes. Vou-lhes dizer que estou a
tentar. Ando à procura.

O que é que eles dizem dos androides?

Acham que sim? O que é que diria o meu pai? Sei que nunca o aprovará.

Não se preocupem com ele. Faz aquilo que achas que deve fazer. A Clissa também
apoia a igualdade dos androides. Se o teu pai estragar tudo, deixa que a Clissa
fale com ele antes de vocês os dois se confrontarem. Mas porque é que ele iria
estragar tudo? Ele enriqueceu à custa dos androides, agora pode dar-se ao luxo de
os deixar votar. Aposto que votavam todos nele. Sabias que os androides amam todos
o teu pai? É verdade. Às vezes até penso que devem ter arranjado uma espécie de
religião. A religião de Krug. Bom, no fundo até faz sentido adorarmos o nosso
criador. Não, não se riam. Mas não posso deixar de rir... só de loucos, os
androides a fazerem vénias à frente do teu pai. Haverá ídolos com a figura dele?

Estás a fugir ao assunto, Manuel. Se estás preocupado por não fazerem nada de
importante na vida, então torna-te num cruzado. Igualdade de direitos para os
androides! Vivam os androides! Isso mesmo, vivam os androides! Não, isso não é
digno de ti. És capaz de ter razão.

Ouvimos os gongos e sabemos que o nosso tempo acabou.

Saímos da rede, voltamos a escorregar para dentro das nossas cabeças. Disseram-me
que eles fazem esta parte com muito, muito cuidado, enfiando cada qual na sua
cabeça.

Tanto quanto sei, sou o Manuel Krug.

Ajudam-nos a sair. No outro lado da rede há uma câmara de readaptação; Sentamo-nos


lá durante três ou quatro horas, a habituarmo-nos a ser indivíduos de novo. Olhamos
uns para os outros com expressões estranhas, mas acima de tudo evitamos fitar os
olhos uns dos outros. Alguém andou a rir-se demasiado com a minha, boca.

Na câmara de readaptação também há alguns daqueles novos brinquedos, os cubos de


arestas arredondadas. O meu dispara-me uma série de mensagens:

NESTE MOMENTO SÃO 09.00 HORAS EM KARASHI

FOI A PRIMEIRA VEZ QUE SE ENCONTROU CONSIGO PRÓPRIO?

É PROVÁVEL QUE O SEU PAI QUEIRA SABER DE SI

SÓ AS RESPOSTAS VERDADEIRAS SÃO FALSAS

O CASO FOI RESOLVIDO FORA DO TRIBUNAL

ANTIGAMENTE ÉRAMOS TODOS MUITO SÁBIOS

A máquina aborrece-se e assusta-me. Ponho-a de lado. Tenho quase a certeza de que


não sou Cadge Foster nem Lloyd Tennysom, mas mesmo assim ainda estou preocupado com
aquilo do sapo. Vou ter com a Lilith assim que sair daqui. Talvez seja melhor falar
primeiro com a Clissa. O meu pai deve estar na torre. Como é que estarão as coisas
naquela grande erecção? Faltará muito para termos mensagens vindas das estrelas,
para as lermos nas noites de Inverno?

— Cavalheiros, esperamos voltar a ter o prazer da vossa presença — diz-nos o alfa


sorridente.

Saímos. Eu sou eles. Eles são eu. Nós somos nós.

Apertamos solenemente as mãos e dirigimo-nos para os transmats. Virtuoso e casto,


vou ter com Clissa.

CAPÍTULO XVIII

OS advogados reuniram-se por três vezes na semana seguinte à destruição da alfa


Cassandra Núcleus. O primeiro encontro teve lugar nos escritórios das Empresas
Krug; o segundo, na sede do Transmat Geral do Labrador; o terceiro, na sala do
conselho de administração do Edifício Chase/Krug., em Fairbanks. Os representantes
do Transmat do Labrador sugeriram que Krug se limitasse a fornecer uma nova alfa,
pagando os custos do seu treino. Lou Fearon, na sua qualidade de conselheiro legal
de Krug, objectou dizendo que a proposta poderia levar o seu cliente a suportar
despesas de valor não calculável antecipadamente. O Transmat do Labrador reconheceu
a justiça desta posição e propôs um compromisso, segundo o qual as Empresas Krug
transferiam para o Transmat do Labrador a titularidade de uma alfa acabada de sair
da fábrica de Duluth, ainda por treinar, e concordava em pagar os custos do treino
até ao montante máximo de 10.000 dólares, repartidos em várias tranches. O tempo
total ocupado por estas três reuniões foi de duas horas e vinte e um minutos.
Assinou-se um contrato e a acção judicial foi anulada. Leon Spaulding assinou o
documento em nome de Krug, que entretanto fora à Lua para inspeccionar uma recém-
construída piscina de gravidade para hemiplégicos, no Centro Clínico Krug do mar de
Moscovo.
CAPÍTULO XIX

17 de Novembro de 2218.

Uma delicada poalha de neve arrastada pelo vento recobre a área em redor da torre
de Krug; para lá do estaleiro, a neve acumula-se num monte de razoável altura, duro
como ferro. O vento seco e cortante assobia em volta da torre. Bem avançada em
relação ao programa, a estrutura alcançou os 500 metros, e agora já denota grande
parte do seu esplendor cristalino.

A base octogonal une-se imperceptivelmente às quatro faces do tronco quadrangular.


A torre destaca-se no meio de um halo luminoso; a luz do Sol reflecte-se nos seus
flancos, flui sobre a alva planura circundante e ressalta para beijar de novo as
paredes vítreas, sendo uma vez mais devolvida ao solo. Neste ambiente refulgente, o
albedo é rei e senhor.

Os dois terços inferiores da estrutura estão já divididos em andares e, enquanto os


incansáveis androides vão colocando bloco em cima de bloco, os que têm a seu cargo
as obras interiores também não perdem tempo.

A instalação do sistema gerador dos feixes taquiónicos já se iniciou. Cinco


gigantescos rolos de cobre brilhante e avermelhado, com sessenta centímetros de
espessura e centenas de metros de comprimento, irão formar a espinha dorsal
quíntupla, colocados dentro de núcleos de serviço verticais que irão ocupar metade
de altura da torre; neste momento procede-se à colocação das secções inferiores
destas enormes barras de impulsão; cada uma irá assentar numa base circular de
glastic translúcido, com perto de um metro de diâmetro. Os trabalhadores enfiam
secções com quarenta metros de comprimento cada nestas aberturas, para depois as
fundirem habilmente nas extremidades, servindo-se de enorme potência dos laseres de
soldadura. Noutros pontos do edifício, centenas de electricistas tratam de espalhar
os filamentos condutores pelas refulgentes paredes interiores da torre, e
esquadrões de mecânicos instalam condutas, guias-de-onda, conversores de
frequência, fluxímetros, acessórios das miras ópticas, reguladores de planos
focais, bobinas de activação de neutrões, absorsores Mossbauer, analisadores de
impulsos multicanais, amplificadores nucleares, conversores de voltagem,
criostatos, transreceptores, pontes de resistências, prismas, analisadores de
torsão, aglomerados de sensores, de magmetizadores, colimadores, células de
ressonância magnética, amplificadores, termoacoplados, reflectores aceleradores,
acumuladores de protões e muitos, muitos mais equipamentos, todos cuidado somente
catalogados pelo computadur, com indicação do piso, secção e aparelho a que se
destinam, e devidamente acompanhados pelos respectivos esquemas e planos de
montagem. O envio de mensagens para as estrelas através de um feixe taquiómico não
é, decididamente, um empreendimento fácil.

A torre em si é agora um objecto de esplendor sem paralelo, espantosamente esguia,


espectacularmente elegente. Os visitantes têm de se afastar vários quilômetros na
tundra para o poderem abarcar em todo a sua grandeza, pois ao perto ninguém a
consegue, apreciar devidamente. Mesmo assim, Krug gosta de recordar aos seus
convidados que aquilo que estão a ver é simplesmente o terço inferior da estrutura
final. Para se imaginar a torre completa, será preciso traçar na mente uma outra
torre igual a esta em cima da existente, para depois de colocar outra do mesmo
tamanho em cima das duas anteriores. A mente revolta-se perante tamanho esforço
imaginativo, a imagem final recusa-se a aparecer. Em vez dela, todos são capazes de
imaginar uma agulha finíssima, frágil e dando a ilusão de estar pendurada no céu à
procura de um sítio onde lançar as suas raízes, para às tantas abanar e cair, cair,
cair como Lúcifer, durante um dia inteiro, para se estilhaçar em milhões de
esquirolas, contra o solo gelado.

CAPÍTULO XX

UM novo sinal — anunciou Vargas. — Ligeiramente diferente. Começámos a recebê-lo


ontem à noite.

— Não saia daí! — exclamou Krug. — Vou já! Estava em Nova Iorque, mas no instante
seguinte emergiu no observatório antárctico de Vargas, implantado bem alto no
plateau polar, a meia distância entre o próprio pólo e os empreendimentos da costa
Knox. Havia quem dissesse que a era do transmat empobrecera a vida das pessoas e,
ao mesmo tempo, enriqueceram a força teta permitia a qualquer um saltar
instantaneamente da África para a Austrália ou do México para a Sibéria, mas
despia-os de qualquer sensação do lugar ou da transição, como se já não existisse
uma geografia planetária. A Terra transformara-se num imenso, infinito e único
cubículo de transmat. Krug planeara várias vezes uma viagem aérea à volta do Mundo,
para ver os desertos, oceanos e pradarias, as florestas, montanhas e planícies, mas
nunca arranjara um momento livre para a concretizar.

O observatório era constituído por uma série de cúpulas elegantes pousadas em cima
da camada de gelo de dois quilômetros e meio de espessura. Túneis escavados no gelo
ligavam as cúpulas umas às outras, dando igualmente acesso aos aparelhos instalados
no exterior: o enorme disco da antena parabólica do rádiotelescópio, a rede de
metal do receptor de raios X, o espelho polido que recebia e retransmitia as
mensagens do observatório orbital mantido na vertical do pólo sul, o pequeno mas
grosso telescópio óptico de difracção múltipla, as três agulhas, douradas da antena
do hidrogênio, a delicada teia de aranha do sistema poli-radar e toda uma série de
dispositivos complexos que os astrônomos usavam para vigiarem o universo. Em lugar
de utilizarem fitas de refrigeração para que o gelo não derretesse debaixo dos
edifícios, os construtores do observatório tinham recorrido a uma técnica
diferente: cada uma das estruturas estava equipada com placas individuais dos
permutadores de calor, de modo que cada cúpula era como que uma ilhota fundeada no
meio do grande glaciar.

No edifício principal, os equipamentos zuniam e ciciavam, tiquetaqueavam. Krug não


era capaz de reconhecer uma só daquelas máquinas; mas todas lhe pareciam
extremamente científicas. Vários técnicos atarefavam-se em volta das máquinas; numa
plataforma sobre-elevada, um alfa gritava um chorrilho de números para três betas
postados cá em baixo; a intervalos periódicos, uma hélice de vidro, com vinte
metros de comprimento, era percorrida por um relâmpago arroxeado, e a cada descarga
vários écrans verdes e azuis apresentavam sucessões intermináveis de números.

— Observe o entolamento de rádion — disse-lhe Vargas, — Está a registar os impulsos


que estamos a receber. Olhe, lá vai um novo ciclo... está a ver?

Krug contemplou o padrão dos impulsos:

* *

* * * * *

* *
* * *

* *

— É a mensagem — disse Vargas. — Segue-se uma pausa de sessenta segundos e depois o


ciclo recomeça.

— 2-5-1, 2-3-1, 2-1 — observou Krug. — Antes era 2-4-1, 2-5-1, 3-1. Portanto
abandonaram o grupo de quatro, puseram o grupo do cinco à testa do ciclo,
completaram o grupo de três e acrescentaram um impulso ao grupo final... ora bolas,
Vargas, isso faz algum sentido? Qual é o significado da alteração?

— Não nos parece que esta mensagem seja mais significativa que a outra. Ambas têm a
mesma estrutura básica, portanto deve tratar-se de um ajustamento de pequena
importância...

— Mas tem de querer dizer qualquer coisa!

— Talvez.

— Como é que podemos descobrir?

— Vamos perguntar-lhes — respondeu Vargas. — Dentro de pouco tempo. Graças à sua


torre.

Os ombros de Krug abateram-se. O magnata inclinou-se para a frente e firmou as mãos


nas pegas verdes e frias do incompreensível aparelho que estava à sua frente, meio
saído da parede.

— Estas mensagens têm trezentos anos de idade — disse em tom soturno. — Se o


planeta deles for como você me disse, então é o mesmo que trezentos séculos aqui na
Terra, ou mesmo mais. O mais provável é eles nem sequer terem conhecimento das
mensagens enviadas pelos seus antepassados. Já devem ter passado por tantas
mutações que nem sequer são capazes de as reconhecer.

— Não, não, tem de haver uma continuidade. Não podiam ter atingido um nível
tecnológico que lhes permitiu enviar mensagens galácticas sem manterem formas de
registo capazes de arquivar as conquistas do seu passado.

Krug rodou sobre os calcanhares.

— Quer saber uma coisa? Essa nebulosa planetária, esse sol azul... ainda não
acredito que possa lá haver seres vivos. Nem pensar! Aquilo não serve para nenhuma
forma de vida. Veja bem, Vargas, os sóis azuis não duram muito, e os planetas
precisam de milhões de anos só para que a sua superfície arrefeça a ponto de
solidificar. Um sol azul não lhes dá assim tanto tempo, Vargas. Mesmo que lá haja
alguns planetas, ainda não passaram da fase de bolas de lava derretida. Quer que eu
acredite que a mensagem provém de pessoas que vivem numa bola de fogo?

Vargas não perdeu a sua habitual calma:

— Os sinais vêm da NGC 7293, a nebulosa planetária do Aquário.

— Tem a certeza?
— Absoluta. Posso mostrar-lhe os dados todos.

— Não interessa. Mas como, numa bola de fogo?

— Não será necessariamente uma bola de fogo. É possível que alguns planetas
arrefeçam mais depressa que os outros; ainda ninguém sabe ao certo quanto tempo
demoram a arrefecer. Além disso, não sabemos qual será a distância entre o mundo
natal dos que nos mandaram a mensagem e o seu sol. Temos modelos matemáticos que
indicam a possibilidade de um planeta poder arrefecer suficientemente depressa,
mesmo com um sol azul, para...

— É uma bola de fogo, esse planeta — insistiu Krug, teimoso.

Vargas pôs-se à defensiva:

— Talvez sim, talvez não. E mesmo que seja será que todas as formas de vida têm
forçosamente de viver em planetas de superfície sólida? Não é capaz de conceber uma
civilização de entidades de alta temperatura, evoluindo num mundo que ainda não
arrefeceu? Se...

Krug fungou de contrariedade.

— O quê, mandam mensagens com máquinas feitas de aço derretido?

— Não é forçoso que os sinais tenham uma origem mecânica. Suponha que eles
conseguem manipular a estrutura molecular do...

— Isso para mim são contos de fadas, doutor. Estou a ver que contratei uma
cientista para ouvir contos de fadas ...

— Neste momento, os contos de fadas são o único processo que temos para justificar
os dados recebidos — disse Vargas.

— O senhor sabe que tem de haver um processo mais expedito!

— A única coisa que sei é que estamos a receber sinais, e que esses sinais provêm
sem margem para dúvidas daquela nebulosa planetária. Sei que não é plausível, mas o
universo não é obrigado a parecer-nos plausível o tempo todo. Há fenômenos para os
quais ainda hoje não temos explicação. O transmat não seria plausível para um
cientista do século XVIII. Analisarmos os dados o melhor que podemos, tentamos
encontrar uma explicação para eles, e de vez em quando inventamos explicações
loucas, porque os dados de que dispomos não parecem fazer qualquer sentido, mas...

— O universo não faz batota — ripostou Krug. — O universo joga limpo!

Vargas sorriu.

— Sem dúvida, mas o certo é que precisámos de mais dados antes de podermos explicar
a NGC 7293. Entretanto, vamo-nos contentando com contos de fadas.

Krug concordou com um aceno de cabeça; fechou os olhos e passou os dedos por cima
de mostradores e teclados, enquanto dentro de si a impaciência crescia a galope,
borbulhando-lhe no cérebro já efervescente. Eh, vocês aí das estrelas! Sim, vocês,
os que nos estão a mandar os impulsos! Quem são vocês? O que é que são? Onde é que
estão? Malditos sejam, eu quero conhecê-los!

O que é que estão a tentar dizer-nos?


De que é que andam à procura?

O que significa isto tudo? E se eu morro antes de vos descobrir?

— Sabe o que é que eu quero? — perguntou subitamente Krug. — Quero ir lá fora,


quero subir ao seu rádio-telescópio. Quero subir mesmo até ao prato, pôr as mãos em
concha e gritar uma fiada de números a esses bastardos. Como é que é o sinal agora?
2-5-1, 2-3-1, 2-1? Esta coisa está a pôr-me louco. Acho que devíamos responder o
mais depressa possível. Mande-lhes alguns números: 4-10-2, 4-6-2, 4-2. Só para lhes
mostrar-mos que estamos aqui, para que eles saibam que não estão a emitir em vão.

— Por transmissão rádio? — disse Vargas. — Demorávamos 300 anos, e de resto a torre
está quase pronta.

— Sim, claro, já falta pouco. Tem de a ver! Venha vê-la comigo na semana que vêm,
já estamos a montar os equipamentos. Ah, já falta pouco para comunicarmos com
aqueles bastardos!

— Gostava de ouvir o sinal áudio, o último que recebemos?

— Claro.

Vargas carregou num botão. Vindo dos altifalantes instalados nas paredes do
laboratório, chegou-lhes um sussurro seco e frio, o som do espaço, a voz do abismo
negro. Um som parecido com o feito por uma pele de cobra ressequida. Segundos
depois, por cima do ruído de fundo, surgiram umas notas doces de frequência bem
mais elevada. Plip, plip. Pausa, Plip, plip, plip, plip, plip. Pausa. Plip. Pausa.
Pausa, Plip, plip. Pausa. Plip, plip, plip. Pausa, plip. Pausa. Plip, plip. Pausa.
Plip, plip, plip. Pausa. Plip. Pausa. Pausa. Plip, plip. Pausa. Plip. Silêncio. E
passado um bocado: plip, plip, o início do novo ciclo.

— Maravilhoso — murmurou Krup. — A música das esferas. Oh, seus bastardos


misteriosos! Ouça, doutor, venha visitar a torre na semana que vêm, digamos... que
tal na terça-feira? Mando o Spaulding telefonar-lhe com antecedência. E, não se
esqueça, se surgir qualquer novidade, qualquer alteração no sinal, quero ser o
primeiro a saber.

Plip, plip, plip.

Dirigiu-se ao transmat.

Plip.

Krug saltou para norte ao longo do meridiano, seguindo a linha dos 90 graus leste;
passou por cima do pólo norte e emergiu ao lado da sua torre. Saltara do planalto
gelado para planalto gelado, do fundo do mundo para o seu topo, do fim da Primavera
para o começo do Inverno, do dia para a noite. O céu refulgia com a luz das placas
reflectoras, e a canção da NGG 7293 ecoava sedutoramente na mente de Krug. Plip,
plip, plip.

Thor Watchman estava no centro de controlo, ligado ao computador. O alfa, que não
se apercebera da chegada de Krug, parecia perdido num sonho de drogado, trepando
pelos precipícios de uma qualquer interface distante. Um respeitoso beta ofereceu-
se para entrar no circuito a fim de informar Watchman da chegada de Krug.

— Não — disse Krug. — Não veem que está ocupado? Não o incomodem.

Plip, plip, plip, plip, plip. Deixou-se ficar por ali, entretido a observar as
mudanças de expressão no rosto tranquilo de Watchman. O que é que estaria a passar-
se na mente do androide? Facturas de fretes, manifestos do transmat, preços de
soldas? Boletins meteorológicos, estimativas de custos, factores de tensão, dados
sobre o pessoal? Krug sentiu-se invadir pelo orgulho. E porque não?

Tinha boas razões para estar orgulhoso... Fora ele quem construíra os androides, e
agora os androides estavam a construir-lhe a torre, e dentro em breve a voz do
homem seria lançada entre as estrelas...

Plip, plip, plip, plip.

Ligeiramente surpreendido consigo próprio, pousou afectuosamente as mãos nos ombros


largos de Thor Watchman, abraçando-o por um breve instante, e de seguida saiu.
Deixou-se ficar um bocado no meio da escuridão gelada, observando a frenética
actividade que se desenrolava em todos os níveis da torre. No topo, os blocos
sucediam-se a bom ritmo; no interior da estrutura, minúsculas figuras içavam as
placas blindadas de protecção contra os neutrinos, juntavam sucessivas secções de
cabo de cobre, instalavam pavimentos, prolongavam cada vez mais alto o sistema
combinado de arrefecimento-energia-calor-e-iluminação. A noite trazia até si um
pulsar distante e cavo, resultado da soma de todos os sons produzidos no estaleiro,
um ritmo cósmico, um ressoar pendular com crescendos regulares. Os dois sons, o da
torre e o do interior do corpo, entrechocaram-se na mente de Krug, boom plip, boom
plip, boom plip.

Dirigiu-se ao banco dos transmats, ignorando as facadas do vento árctico.

Nada mau para um homem sem cultura, comentou com os seus botões. A torre... os
androides... tudo. Pensou no Krug de há quarenta e cinco anos atrás, o Krug que
crescia miseravelmente numa vilória do Illinois, daquelas com erva no meio das
ruas. Nessa altura ainda não sonhava com as mensagens para as estrelas, só queria
ter sucesso na vida. Ainda era um zé-ninguém. Lembram-se daquele Krug? Ignorante.
Enfezado. Cheio de borbulhas. Às vezes, na holovisão, ouvia as pessoas a dizerem
que a Humanidade tinha entrado numa nova era, com a população a decrescer, as
tensões sociais e raciais esquecidas, hordas e hordas de servomecanismos a tratarem
das tarefas mais sujas. Sim, sim. Óptimo. No entanto, mesmo no meio de uma era
dourada havia sempre alguém que tinha de ficar na mó de baixo. Como Krug. O pai
morrera-lhe quando tinha cinco anos, e a mãe vivia agarrada aos flutuadores,
amplificadores de sensações e todos os tipos de pílulas de sonhos. A fundação que
os apoiava dava-lhes uns dinheiritos, nada que se visse. Robots? Os robots eram
para os outros, para os ricos. O próprio terminal de dados da casa onde viviam
estava desligado metade do tempo, por falta de pagamento. Só aos dezanove anos é
que entrou pela primeira vez num transmat, e até então nunca tinha saído do
Illinois. Lembrava-se bem de si: tristonho, introvertido, sempre de olhos baixos,
passando às vezes uma ou duas semanas sem abrir a boca. Não lia, não jogava a nada,
mas sonhava imenso. Passava a vida a sonhar. Passou pela escola como quem passa por
um parque, sem nada aprender em todos aqueles anos. Abandonou-a aos quinze, movido
pela mesma raiva de sempre, só que desta vez virou-a para o exterior, em lugar de
se deixar consumir por ela. Eu mostro-vos do que sou capaz! Vou-me vingar de vocês
todos! Autoprogramou a sua educação. Servotecnologia. Química. Não aprendeu as
ciências básicas; aprendeu a juntar as coisas umas às outras. Dormir? Quem
precisava de dormir? Estudar, estudar. Suar. Construir. Todos diziam que o jovem
Krug tinha uma notável capacidade intuitiva para se aperceber da estrutura das
coisas. Em Chicago, arranjou quem o apoiasse. A era do capitalismo privado era
suposta estar morta, e o mesmo se podia dizer da era dos inventores independentes.
Mesmo assim, Krug construiu um robot melhor que os outros. Sorriu ao lembrar-se do
sucedido: o salto no transmat até Nova Iorque, a conferência, os advogados. E o
dinheiro no banco. O novo Thomas Edison, e só com dezanove aninhos... Comprou
equipamentos novos para o seu laboratório e partiu à procura de projectos de maior
monta. Aos vinte e dois, começou a criar androides. Demorou o seu tempo. Mais ou
menos por essa altura, as sondas espaciais começaram a regressar das suas viagens
às estrelas mais próximas, de mãos a abanar. Nenhuma forma de vida avançada nas
vizinhanças dos Sistema Solar. Krug sentia-se já suficientemente seguro para não
passar a vida enfiado nos negócios, e como tal permitiu-se o luxo de se interrogar
sobre o papel do Homem no cosmos. Pensou, pensou, pensou e acabou por discordar das
teorias populares que defendiam que o Homem estava sozinho no universo. Continuou a
trabalhar, misturando os ácidos nucleicos, misturando, misturando, acompanhando o
estremecer das centrifugadoras, dando cabo da vista, mergulhando as mãos em bacias
cheias de líquidos viscosos, ligando as várias cadeias de proteínas, aproximando-se
a passos largos do sucesso. Como é que o homem pode estar sozinho no universo, se o
próprio Homem é capaz de criar à vida? Já viram como é fácil? Eu consigo fazê-lo:
acham-me com cara de Deus? Os tanques fervilhavam, púrpuras, verdes, dourados,
vermelhos, azuis. A dada altura surgiu a vida: os androides ergueram-se
cambaleantes das suas misturas fumegantes. Fama. Dinheiro. Poder. O casamento, o
nascimento do filho e o nascimento de um império financeiro. Propriedades em três
mundos e em cinco luas. Mulheres, as que quisesse. Crescera mas não perdera as suas
fantasias de adolescente. Krug sorriu. O escanzelado e borbulhento Krug ainda vivia
dentro do homem atarracado, furioso, arrojado e orgulhoso que era o Krug de hoje.
Mostrei-lhes como era, não foi? Ai isso é que mostrei! E agora vou falar com aquela
gente das estrelas. Plip, plip, boom. A voz de Krug a galgar dezenas e anos-luz,
centenas de anos-luz. Estou? Estou? Olá, sou eu! Fala o Simeon Krug!
Retrospectivamente, viu a sua vida inteira como um único processo fluido e
contínuo, dirigindo-se sem hesitações nem tropeços para este objectivo final. Se
não tivesse vivido sufocado pela ambição, não teriam aparecido os androides. Sem os
seus androides, nunca teria arranjado a mão-de-obra especializada necessária para a
construção da torre. Sem a torre...

Entrou no cubículo mais próximo de si e regulou as coordenadas ao acaso, deixando


que fossem os dedos a escolher o destino. Entrou no campo esverdeado e saiu na
Califórnia, na mansão do seu filho Manuel.

Não tinha planeado ir até lá. Ficou a piscar os olhos perante o fulgor do sol,
estremecendo quando uma súbita lufada de ar quente lhe bateu na pele adaptada ao
frio do Árctico. Por baixo dos pés tinha um refulgente pavimento de mármore cor de
vinho; as paredes do sítio onde fora parar eram cascatas cintilantes de luz, vinda
de projectores polifásicos montados nas fundações; por cima da cabeça não havia
tecto, só um simples campo repulsor regulado para o extremo azul do espectro,
através do qual espreitavam as folhas e ramagens ajoujadas de frutos de uma árvore
tropical qualquer. Ao longe, podia ouvir o suave murmúrio do oceano. Meia dúzia de
androides, atarefados com as lides domésticas, ficaram a olhar para ele, mudos de
espanto, alguns sussurrando em tom respeitoso: Krug... Krug... Krug...

Clissa apareceu ao fundo do átrio, vestida com uma túnica de gaze verde que lhe
revelava os seios pequenos e espetados, as coxas ossudas, os ombros estreitos.

— Não me avisou que vinha cá...

— E eu não sei como é que vim parar aqui.

— Se soubesse tinha-lhe preparado qualquer coisa especial!

— Não preciso de nada especial, estou só de passagem. O Manuel...

— Não está.

— Não? Então onde é que está?

Clissa encolheu os ombros.

— Saiu. Em negócios, suponho. Só deve voltar à hora do jantar. Quer que lhe
prepare...

— Não, não. Tens aqui uma bela casa, Clissa. Quente, acolhedora... tu e o Manuel
devem ser bastante felizes aqui. — Krug fitou o corpo franzino da nora. — Um sítio
maravilhoso para vermos os filhos crescer. A praia, o sol, as árvores...

Um androide trouxe-lhe duas cadeiras espelhadas, abrindo-as e pousando-as no chão


de mármore, com gestos de quem o fizera centenas de vezes. Outro androide ligou a
queda de água montada no centro do átrio, e um terceiro acendeu uma haste
aromática, que logo espalhou pela sala um odor a canela e rosmaninho. Um quarto
ofereceu-lhe uma travessa cheia de bombons com aspecto leitoso, que Krug recusou
com um seco abanar de cabeça. Deixou-se ficar em pé, e o mesmo fez Clissa, que
parecia pouco à vontade.

— Casámo-nos há muito pouco tempo, como sabe. Ainda podemos esperar uns tempos até
pensarmos no primeiro filho.

— Já estão casados há dois anos, não é? Uma lua-de-mel bem extensa, não te parece?

— Bem...

— Pelo menos peçam, o vosso certificado, e depois façam os vossos planos. Quero
dizer, acho que já vai sendo altura de vocês... de eu... de eu ter um neto.

Clissa, muito pálida, afastou a travessa dos doces, fitando Krug com uns olhos que
mais pareciam opalas cravadas numa máscara de gelo. Krug voltou a abanar a cabeça.

— Seja como for, quem vai tratar do miúdo são os androides... além disso, se estás
com medo de ficar dilatada, podes tê-lo ectogeneticamente, de modo que...

— Por favor — disse Clissa em voz baixa. — Já falámos nisso várias vezes. Hoje
sinto-me tão cansada...

— Desculpa — disse Krug, maldizendo-se por ter entrado tão à bruta. Era o seu velho
defeito; nunca soubera o que era a subtileza. — Sentes-te bem?

— Estou só cansada — respondeu ela, sem o convencer. Clissa parecia estar a fazer
um esforço enorme só para se mostrar mais enérgica. Fez um gesto, e um dos betas
começou a montar uma pilha de elos metálicos aromados que rodavam misteriosamente
em volta de um eixo invisível. Uma nova escultura, pensou Krug. Um segundo androide
ajustou as paredes, e ele e Clissa viram-se banhados por um cone de luz ambarina. A
meio do pátio, flutuando um pouco acima das cabeças deles, uma nuvem de minúsculas
partículas cristalinas enchia o recinto com música suave.

— Como é que vai a sua torre? — perguntou Clissa, numa voz demasiado alta.

— Está formidável. Fenomenal. Tens de a ir ver.

— Talvez vá, na próxima semana. Se não estiver tanto frio como da última vez. Já
chegaram aos 500 metros?

— Já os passámos, a torre cresce de dia para dia. É pena que seja tudo tão lento...
anseio por vê-la acabada, Clissa. Quero usá-la o mais cedo possível. Estou tão
impaciente que até me sinto doente só de pensar nisso.

— Realmente, hoje parece-me um bocado em baixo — comentou ela. — Está corado,


excitado. Acho que de vez em quando devia abrandar esse seu ritmo.

— Eu? Abrandar? Mas porquê? Achas-me assim tão velho? — Krug percebeu que estava a
gritar com ela, e tentou dominar-se. — Bem, talvez tenhas razão. Não sei. É melhor
ir-me embora. Não te quero aborrecer mais. Apeteceu-me passar por cá, nada mais.
Plip, plip, boom... — Diz ao Manuel que não aconteceu nada de especial, está bem?
Só passei por cá para vos dar um abraço. De resto, há quanto tempo é que eu não o
vejo? Há pelo menos duas semanas, quando ele saiu daquela coisa da transmutação.
Acho que um homem tem o direito de visitar o filho de vez em quando...

Impulsivamente, estendeu os braços e apertou-a contra o peito, sentindo-se como um


urso a abraçar uma fada. A pele dela, debaixo da túnica de gaze, estava gelada.
Aquela rapariga era só ossos! Para a partir ao meio, bastava-lhe apertar mais um
bocadinho. Quanto é que pesaria? Cinquenta quilos? Menos? Um corpo de criança. Se
calhar nem podia ter filhos. Krug deu consigo a tentar imaginar o seu filho Manuel
na cama com ela, mas afastou rapidamente o pensamento, horrorizado. Beijou-lhe a
face gelada.

— Cuida de ti — disse-lhe. — Eu vou fazer o mesmo comigo. Acho que estamos ambos a
precisar de um bom descanso. Dá cumprimentos meus ao Manuel.

Correu para o transmat. Para onde? Krug sentia-se febril, tinha a cara a arder.
Como se vagueasse no fundo do oceano as coordenadas fervilhavam-lhe no cérebro;
frenética, lembrou-se de um grupo e digitou-o no teclado da máquina. Plip, plip,
plip. O zunido escamoso do som amplificado das estrelas martelava-lhe o cérebro. 2-
5-1, 2-3-1, 2-1. Estou? Estou? A força teta devorou-o e vomitou-o dentro de uma
caverna enorme e bafienta.

Havia um tecto, a dúzias de indistintos quilômetros acima.

Havia paredes, metálicas, reflectoras, amarelas-acastanhadas, curvando-se em


direcção a um distante ponto de junção. Luzes fortes por todo o lado, sombras bem
demarcadas a entrecruzarem o ar. Ruídos de construção: crásh, tunc, ping, cavum. A
gruta estava apinhada de androides atarefados, que imediatamente se reuniram à sua
volta, sérios e respeitosos, murmurando em coro: Krug... Krug... Krug... Porque
será que os androides olham sempre para mim desta maneira? — pensou Krug, fitando-
os com desdém. Sabia que transpirava por todos os poros, e sentia as pernas pouco
firmes. — Pede uma pílula de arrefecimento ao Spaulding; não, o Spaulding não veio
comigo. Hoje, Krug resolvera saltar sozinho.

Um alfa surgiu à sua frente.

— Não nos deram o prazer de anunciar a sua visita, Sr. Krug.

— Não ligues, estou só de passagem. Desculpa-me, mas como é que te chamas?

— Romulus Fusion, senhor.

— Quantos operários trabalham aqui, alfa Fusion?

— Setecentos betas e nove mil gamas, senhor. O pessoal alfa é muito reduzido; a
maior parte das funções de supervisão foram confiadas a sensores. Quer que lhe
mostre as instalações? Gostava de ver os jipes lunares? Os módulos de Júpiter?
Talvez a nave estelar?

A nave estelar. A nave estelar. Krug compreendeu onde estava: em Denver, América do
Norte, na principal linha de montagem de veículos das Empresas Krug. Era nestas
espaçosas catacumbas que se fabricavam a maior parte dos dispositivos de transporte
que não podiam ser substituídos pelo transmat: rastejadores oceânicos, deslizadores
de transporte à superfície, planadores atmosféricos, macacos hidráulicos autônomos
de grande potência, módulos de imersão para os mundos de alta pressão, naves de
propulsores iónicos para as viagens espaciais de cabotagem, sondas interestelares,
piscinas de gravidade, aviões de recreio, mini-comboios, sondas solares. Era também
ali que, nos últimos sete anos, um grupo escolhido de técnicos construía o
protótipo da primeira nave estelar tripulada. O início da construção da torre
transformara o projecto da nave num dos enjeitados de Krug.

— A nave estelar. É isso! — disse Krug. — Sim, por favor, vamos lá vê-la.

Alas e alas de betas abriram-se para dar passagem a Krug e ao alfa Romulus Fusion,
que pouco depois mandava vir um deslizador em forma de gota. Com o alfa sentado aos
comandos, o veículo deslizou silenciosamente pelas instalações da fábrica, passando
por fiadas e fiadas de veículos meio acabados, de todos os tipos; por fim, chegaram
a uma rampa que conduzia a um nível ainda mais baixo da gigantesca oficina
subterrânea. Desceram e pararam umas centenas de metros adiante. Apearam-se.

— É esta — disse Romulus Fusion.

Krug olhou para um curioso veículo com perto de cem metros de comprimento, dotado
de aletas, da proa aguçada e popa quadrada, e com ar agressivo. O casco, vermelho-
escuro, parecia ter sido feito em cimento, rugoso e algo irregular. Não se viam
vigias nem janelas. Os ejectores de massa eram do tipo convencional, aberturas
rectangulares rasgadas no painel de popa.

— Estará pronta para o primeiro voo experimental daqui a três meses — disse Romulus
Fusion. — Contamos com uma capacidade de aceleração constante da ordem dos 2,5 gês,
o que naturalmente levará a nave a atingir velocidades muito próximas da da luz em
relativamente pouco tempo. Quer ver como é por dentro?

Krug disse que sim com a cabeça. Por dentro, a nave parecia confortável, e não
fugia ao que era habitual: visitou o centro de comando, a área de tempos livres, a
casa dos geradores e outros compartimentos em tudo iguais aos das naves
contemporâneas inter-sistema.

— Pode levar oito tripulantes — disse-lhe o alfa. — Durante o voo, a nave fica
rodeada por um campo deflector destinado a afastar todas as partículas que possam
surgir no seu caminho, as quais, às velocidades de que estamos a falar, provocariam
sérias avarias se chocassem com o casco. A nave é completamente autoprogramável;
não precisa de qualquer tipo de supervisão. Aqui ficam os contentores dos
tripulantes. — Romulus Fusion indicou quatro fiadas duplas de unidades criogénicas,
com tampas de vidro escurecido, cada uma com dois metros e meio de comprido por um
de largura, e montadas numa das anteparas. — Utilizámos as técnicas de suspensão de
vida convencionais — continuou ele. — O sistema de controlo da nave, ao receber um
sinal da tripulação ou de uma estação terrestre, começará imediatamente a injectar
um fluido congelador de alta densidade nestas cápsulas, baixando a temperatura do
corpo dos tripulantes até aos valores pré-programados. Os tripulantes farão a
viagem submersos nesse fluido, conseguindo-se assim alcançar dois objectivos
essenciais: o retardamento dos processos de vida e a protecção dos tripulantes
contra os efeitos da aceleração constante. A inversão da suspensão de vida é
igualmente simples. Temos planeado um período de sono profundo máximo de quarenta
anos; caso se desejem viagens mais longas, a tripulação terá de ser acordada a
intervalos de quarenta anos, para cumprir um programa de exercícios semelhante ao
que é utilizado no treino dos androides acabados de nascer; depois de um breve
intervalo, serão recolocados nas cápsulas para novo período de animação suspensa.
Deste modo, poder-se-ão realizar viagens de duração praticamente infinita com a
mesma tripulação.

— Quanto tempo levaria esta nave a chegar a uma estrela situada a trezentos anos-
luz de distância? — quis saber Krug.

— Se incluirmos o tempo necessário para se atingir a velocidade máxima e o tempo


requerido para a desaceleração... — respondeu Romulus Fusion — estimo que seriam
necessários cerca de 620 anos. Contando com os esperados efeitos da dilatação
relativística do tempo, o tempo aparente a bordo da nave não excederia os 20 a 25
anos, o que significa que uma viagem de ida e volta pode ser conseguida dentro de
um único período de animação suspensa da tripulação.

Krug grunhiu qualquer coisa. Isso não tinha a mínima importância para a tripulação;
no entanto, se mandasse a nave estelar até à NGC 7239 na Primavera seguinte, o
veículo só regressaria à Terra no século XXXV, e ele não estaria presente para dar
as boas-vindas à tripulação. Era evidente que não lhe restava outra alternativa.

— Disseste que vai voar em Fevereiro? — perguntou ao alfa.

— Sim senhor.

— Óptimo. Podes começar a escolher a tripulação: dois alfas, dois betas e quatro
gamas. Partirão para um sistema da minha escolha no princípio de 19.

— Será feito como deseja, senhor.

Saíram da nave, e Krug passou as mãos pelo casco rugoso. A sua obcecação pela torre
de feixes taquiónicos levara-o a esquecer-se do trabalho que aqui prosseguia: agora
lamentava-o. Tinham feito um trabalho magnífico. Compreendia finalmente que o seu
assalto às estrelas teria de ser feito em duas frentes. Quando a torre ficasse
pronta, poderia tentar estabelecer comunicações em tempo real com os seres que,
segundo Vargas, viviam na NGC 7293; entretanto, a sua nave tripulada por androides
iniciaria a longa viagem em direcção à origem dos sinais. O que é que deveria
colocar nos porões da nave? O registo completo e exaustivo das conquistas da
Humanidade... precisamente, montes de cubos, bibliotecas inteiras, todo o
repertório musical da Humanidade, uma centena de sistemas de informação de múltipla
redundância. O melhor era a tripulação ser constituída por quatro alfas e quatro
betas; todos eles teriam de dominar na perfeição as técnicas de comunicação.
Enquanto dormissem, enviar-lhes-ia mensagens da Terra através dos raios
taquiónicos, especificando os conhecimentos que esperava conseguir graças aos
contactos estabelecidos via torre; se tudo corresse pelo melhor, quando a nave
chegasse ao seu destino, por alturas do ano 2850, a tripulação teria acesso
imediato, pouco depois de acordarem, a dicionários completos da língua da raça que
iam visitar. Talvez mesmo, quem sabe, a enciclopédias inteiras... aos próprios
anais de seis séculos dos contactos taquiónicos entre os terrestres e os habitantes
da NGC 7293!

Krug deu uma palmada no ombro de Romulus Fusion.

— Bom trabalho. Terás notícias minhas. Onde é que fica o transmat?

— Por aqui, senhor.

Plip, plip, plip.

Thor Watchman já não estava ligado ao computador principal do centro de controlo.


Krug foi descobri-lo dentro da torre, no quarto andar, vigiando a instalação de uma
fiada de dispositivos que mais pareciam bolas de manteiga montados numa cama de
fios cristalinos.

— O que é isso? — quis saber Krug.

Watchman pareceu surpreendido por ver o seu senhor aparecer assim tão de repente.

— São disjuntores — respondeu, recuperando rapidamente. — Para o caso de haver um


fluxo excessivo de positrões...

— Está bem. Sabes onde é que estive, Thor? Em Denver. Em Denver, ouviste? Fui ver a
nave estelar. Já não me lembrava dela, mas o certo é que está quase pronta.

A partir deste momento, vamos incluí-la no faseamento do nosso projecto.

— Senhor?

— O encarregado da fábrica é o alfa Romulus Fusion. Mandei-o escolher uma


tripulação: quatro alfas e quatro betas. Vamos lançá-los na próxima Primavera, em
animação suspensa, em sono gelado. Depois de termos emitido os primeiros sinais
para a NGC 7293. Vai-te mantendo em contacto com ele, para coordenarmos as duas
operações. Oh, outra coisa... apesar de estarmos adiantados em relação ao programa,
ainda não estou plenamente satisfeito com os progressos conseguidos aqui. Boom,
boom. A nebulosa planetária NGC 7293 fervia e flamejava por detrás da testa de
Krug. A superfície da pele evaporava o suor tão depressa quanto os poros o
conseguiam produzir. Estou a ficar demasiado excitado, concluiu o magnata. — Quando
acabares o teu turno, Thor, manda fazer requisições de pessoal suficientes para
aumentares a mão-de-obra em 50%. Manda-as directamente ao Spaulding. Se precisares
de mais alfas, não hesites. Pede. Contrata. Gasta. Gasta o que for preciso. — Boom.
— Quero que reprogrames todo o faseamento da obra. Nova data de término, três meses
antes da actualmente em vigor. Percebeste tudo?

Watchman parecia ligeiramente abananado.

— Sim, Sr. Krug — respondeu, atrapalhado.

— Óptimo. É isso mesmo. Continua como até aqui, Thor. Nem imaginas o orgulho que
tenho por te ter à frente deste empreendimento. — Boom, boom, boom. Plip. Boom.

— Se for preciso arranjo-te os melhores betas de todo o hemisfério norte. E do


outro, também. O que for preciso. A torre tem que ficar pronta o mais depressa
possível!

— Boom. — Tempo! Tempo! Nunca tenho tempo para o que quero!

Krug saiu a correr do centro de controlo. Lá fora, o frio cortante da noite polar
ajudou-o a libertar-se da parte do frenesim de há momentos. Deixou-se ficar muito
quieto durante alguns minutos, apreciando a requintada elegância da sua torre,
refulgente contra o pano de fundo negro da tundra selvagem. Olhou para cima e viu
as estrelas. Cerrou um punho e acenou-o na direcção do firmamento.

Krug! Krug! Krug!

Boom.

Para o transmat. Coordenadas: Uganda. Na margem do lago. Quenelle, à espera. Corpo


macio, seios fartos, coxas afastadas, ventre a ondular. Sim, sim, sim. 2-5-1, 2-3-
1, 2-1. Krug saltou até ao outro lado do mundo.

CAPÍTULO XXI

SOB o fulgor da resplandecente luz de Inverno, uma dúzia de alfas marchavam


solenemente através da ampla praça que, qual gigantesco guardanapo, se estendia em
frente ao edifício do Congresso Mundial, em Genebra. Cada um dos alfas erguia bem
alto o seu cartaz electrónico; todos usavam ao peito o emblema do Partido da
Igualdade dos Androides. Robots de segurança postavam-se nos quatro cantos da
praça; as máquinas atarracadas avançariam instantaneamente, brandindo fitas de
imobilização de estase, assim que os manifestantes se afastassem um milímetro que
fosse do programa previamente entregue ao serviço de segurança do congresso. Porém,
o pessoal do PIA nunca cairia nessa esparrela; limitaram-se a atravessar a praça
vezes sem conta, marchando nem muito rigidamente nem ao acaso, mantendo os olhos
fixos nas câmaras da holovisão que pairavam por cima da manifestação.
Periodicamente, a um sinal do líder — Siegfried Fileclerk —, um dos manifestantes
activava o circuito da sua placa electrónica; da ponta do placard esguichava uma
poalha densa e azulada que subia a uns vinte metros de altura, aí permanecendo
enquanto coalescia numa nuvem esférica, em cuja superfície passava continuamente
uma mensagem impressa em enormes letras douradas, rodando ao longo da
circunferência da esfera. A nuvem dissipava-se assim que a frase completava os 360
graus, mas Fileclerk, atento, logo fazia sinal para que o manifestante seguinte
lançasse a sua mensagem.

Apesar do congresso estar a funcionar há cerca de duas semanas, era pouco provável
que os delegados reunidos no seu interior se apercebessem da manifestação. Não era
a primeira, nem seria a última. Por seu lado, os militantes do PIA só ali estavam
para que as câmaras da holovisão captassem imagens da manifestação, única forma de
as mostrar a uma audiência mundial de biliões de pessoas. Os slogans eram vários,
como por exemplo:

IGUALDADE PARA OS ANDROIDES, JÁ!

QUARENTA ANOS DE ESCRAVIDÃO É DE MAIS!

SERA QUE CASSANDRA NUCLEUS MORREU EM VÃO?

APELAMOS A CONSCIÊNCIA DA HUMANIDADE!

ACÇÃO! LIBERDADE! ACÇÃO!

OS ANDROIDES AO CONGRESSO... JÁ!

O MOMENTO CHEGOU!

SE NOS ESPETARAM, ACHAM QUE NAO SANGRAMOS

CAPÍTULO XXII

THOR WATCHMAN ajoelhou ao lado de Lilith Meson na capela de Valhallavagen. Era o


dia da cerimônia da Abertura do Tanque; estavam presentes nove alfas, e o serviço
era presidido por Mazda Constructor, membro destacado da casta dos Transcendentais.
Um par de betas fora persuadido a comparecer, pois eram precisos vários Submissos.
A cerimônia em questão não requeria a presença de um Preservador, e como tal
Watchman não tomava parte activa na função; limitava-se a repetir para si próprio
as ladainhas entoadas pelos celebrantes.
O holograma de Krug, como sempre sobranceiro ao altar, refulgia mais do que nunca.
Os trípletes do código genético inscritos nas paredes pareciam prestes a derreter e
a rodopiar à medida que a cerimônia atingia o seu clímax. A atmosfera tresandava a
hidrogénio. Os gestos de Mazda Constructor, sempre nobres e impressionantes,
acentuavam-se a olhos vistos, cada vez mais encompassados com o vozear das orações.

— AUU GAU GGU GCU — declamou o oficiante.

— Harmonia! — ecoou o primeiro Submisso.

— Unidade! — exclamou o segundo.

— Persepção — disse Lilith.

— CAC CGC CCC CUC — cantou Mazda Constructor. — Harmonia!

— Unidade!

— Paixão — disse Lilith.

— UAA UGA UCA UUA! — exclamou o Transcendental.

— Harmonia!

— Unidade!

— Propósito — disse Lilith.

A cerimônia acabou. Mazda Constructor desceu do altar, corado e exausto. Lilith


tocou-lhe ao de leve na mão. Os betas, obviamente satisfeitos por poderem ir
embora, saíram apressados pela porta das traseiras. Watchman levantou-se. Viu
Andrómeda Quark num dos cantos mais afastados, no mais escuro de todos, murmurando
as suas devoções privadas da casta dos Projectores. Parecia não se aperceber da
presença dos restantes.

— Vamos? — perguntou Watchman a Lilith. — Acompanho-te a casa.

— Obrigado — disse ela. A participação na cerimônia parecia tê-la deixado


esfuziante; tinha os olhos mais brilhantes do que era costume, os seios arfavam por
debaixo da camisa finíssima, as narinas fremiam de excitação. Watchman escoltou-a
até à rua.

Quando se dirigiam ao transmat mais próximo, Watchman perguntou-lhe:

— Recebeste às requisições de pessoal lá no escritório?

— Recebi, ontem. Acompanhadas por um memorando do Spaulding a dizer-me para emitir


imediatamente os contratos. Onde é que vou encontrar tantos betas especializados,
assim do pé para a mão? Thor, o que é que se passa?

— O que se passa é que o Krug está a apertar-nos. Vive obcecado com o acabamento da
torre.

— Isso não é novidade — disse Lilith.

— Mas está cada vez pior. Está a ficar cada vez mais impaciente, mais intenso, como
se estivesse a ser consumido por uma doença qualquer. Se eu fosse humano talvez
fosse capaz de compreender os motivos que o levam a agir assim. Vai duas ou três
vezes por dia à torre, sempre a contar os níveis. Vai ao ponto de contar os blocos
que foram colocados desde a última visita, horas antes! Não larga o pessoal do
feixe taquiónico, dizendo-lhe para se apressarem com a montagem dos equipamentos.
Começa a parecer-se com um tresloucado: sua muito, evidência uma clara excitação,
repete várias vezes as mesmas palavras. Agora resolveu duplicar as equipas de
trabalho... e teve de injectar mais uns milhões de dólares no projecto. Para quê?
Para quê, Lilith? E depois voltou à carga com a nave estelar, falei com Denver
ontem à noite. Sabias, Lilith, que o Krug ignorou por completo a fábrica durante
mais de um ano, e agora vai lá uma vez por dia? Quer a nave estelar pronta para
largar dentro de três meses. Com uma tripulação de androides. Vai mandar androides,
o Krug!

— Para onde?

— Para trezentos anos-luz de distância.

— Não te vai escolher a ti, pois não? Ou a mim?

— Terão de ser quatro alfas e quatro betas — explicou Watchman. — Ainda não me
disseram quem é que poderá ser escolhido. Se o Krug deixa o Spaulding, decidir,
estou arrumado. Que Krug nos livre de uma tal desgraça! — a ironia da prece deixou-
o atrapalhado, mas por fim não se conteve e soltou uma gargalhada em surdina. —
Isso mesmo. Que Krug nos proteja...

Chegaram ao transmat, e Watchman começou a marcar as coordenadas.

— Queres subir um bocadinho?

— Com todo o prazer.

Entraram ao mesmo tempo no banho de luz verde.

O apartamento de Lilith era mais pequeno que o dele, só tinha um quarto de cama e
uma combinação de sala-de-estar e de jantar com uma pequena cozinha numa
reentrância, para além de um armário de parede. Percebia-se perfeitamente que se
tratava de parte de um andar maior dividido em vários mais pequenos, provavelmente
feitos a pensar nos androides. O prédio era parecido com o seu: velho, gasto, mas
senhor de uma alma acolhedora. Do século XIX, calculou Watchman, se bem que o
mobiliário de Lilith, reflectindo a personalidade da alfa, fosse distintamente
contemporâneo, recorrendo com um certo exagero a projecções montadas no soalho e a
delicados e minúsculos bibelots flutuantes. Era a primeira vez que Watchman entrava
na casa dela, se bem que fossem vizinhos em Estocolmo. Os androides, mesmo os
alfas, não confraternizavam muito nas casas uns dos outros; preferiam as capelas,
que para além de casas de culto serviam para muitos outros acontecimentos sociais.
Os que não pertenciam à comunhão reuniam-se nas sede do PIA, ou então conformavam-
se com a sua solidão.

Watchman deixou-se cair num sofá deveras confortável.

— Queres corroer um pouco a mente?— perguntou-lhe Lilith. — Tenho um pouco de


tudo... Ervas? Flutuadores? Espoletas? Até tenho bebidas alcoólicas... licores,
brandes e uísques.

— Estás bem fornecida de agentes poluentes...

— O Manuel vem cá muitas vezes, de modo que estou preparada para tudo. O que é que
queres?

— Nada — disse ele. — Nunca gostei da corrosão.


Lilith riu-se e aproximou-se do doppler, que num ápice lhe arrebatou a túnica. Por
debaixo só trazia um simples spray térmico, de um verde alface que contrastava de
modo original com a sua pele vermelha pálida; cobria-lhe o corpo dos seios às
coxas, e era quanto bastava para que Lilith não sentisse o frio cortante do Inverno
escandinavo. Um ajuste na regulação do doppler e foi a vez do revestimento térmico.
Lilith só ficou com as sandálias calçadas.

Sentando-se descontraidamente no chão, cruzou as pernas à frente dele e brincou por


momentos com os botões das projecções das paredes; as texturas e padrões mudaram
várias vezes enquanto Lilith as regulava ao acaso. Seguiu-se um tenso e incômodo
momento de silêncio. Watchman sentia-se pouco à vontade; conhecia Lilith há cinco
anos, quase toda a vida dela, e considerava-a como uma amiga, uma amiga tão íntima
como seria possível entre dois androides. Apesar disso, nunca estivera sozinho com
ela, pelo menos desta forma. Não era a nudez dela que o perturbava; a nudez nada
significava para ele. Era, pensou ele, pela privacidade do ambiente; como se fossem
dois amantes. Como se houvesse qualquer coisa... sexual... entre os dois. Watchman
sorriu e decidiu pô-la ao corrente desses pensamentos tão incongruentes: contudo,
foi ela a primeira a falar:

— Acabei de me lembrar de uma coisa. Sobre o Krug, sobre a sua impaciência por ver
a torre acabada. Thor, e se ele estiver a morrer?

— A morrer? — espantou-se Watchman, atônito perante a incrível possibilidade.

— Devido a uma doença terrível, qualquer coisa que ainda não consigam curar
tectogeneticamente; por exemplo, uma nova forma de cancro. Supõe que ele descobriu
que só tem mais um ou dois anos de vida, e portanto sente-se desesperado ao ver que
nunca poderá mandar os sinais a tempo.

— A mim parece-me tão saudável como sempre.

— Pode estar a desfazer-se de dentro para fora. Os primeiros sintomas são sempre um
comportamento errático... saltos obcessivos de sítio para sítio, aceleração dos
horários de trabalho, pressão sobre as pessoas para trabalharem mais e mais...

— Krug nos livre disso!

— Diz antes, livre o Krug.

— Não posso acreditar, Lilith. Onde é que foste buscar essa ideia?

O Manuel disse-te alguma coisa?

— Não, é simples intuição. Estou a tentar ajudar-te a explicar o estranho


comportamento do Krug, mais nada. Se for verdade que está a morrer, aí tens uma
explicação plausível para a...

— O Krug não pode morrer.

— Não pode?

— Sabes o que é que quero dizer. Não deve. Ainda é novo, tem mais de um século à
sua frente, no mínimo, e tem tantas coisas para fazer durante esse tempo todo...

— Por nós, queres tu dizer.

— Claro — disse Watchman.

— Mas mesmo assim a torre está a dar cabo dele. Está a consumi-lo. Thor, supõe que
ele morre mesmo. Que morre sem ter dito as palavras... sem ter falado a nosso
favor...

— Nesse caso teremos perdido imenso tempo com as nossas preces, e os tipos do PIA
são capazes de se rirem na nossa cara.

— Não achas que devíamos fazer qualquer coisa?

Watchman premiu ao de leve os polegares contra as pálpebras.

— Não podemos assentar os nossos planos em simples fantasias, Lilith. Tanto quanto
sabemos, o Krug não está a morrer, e não esperamos que morra nos tempos mais
próximos.

— E se morrer?

— Onde é que queres chegar?

— Podíamos desencadear a nossa jogada decisiva.

— O quê?

— Aquilo que discutimos quando me mandaste dormir com o Manuel. Usarmos o Manuel
para levar o Krug a apoiar a nossa causa.

— Isso não passou de uma ideia do momento — disse Watchman. — Filosoficamente,


duvido que seja acertado tentarmos manipular o Krug dessa maneira. Se acreditamos
mesmo na nossa fé, devemos aguardar pela Sua graça e misericórdia, sem nos metermos
em esquemas...

— Não digas mais, Thor. Eu frequento a capela, tu frequentas a capela, mas também
vivemos no mundo real, e no mundo real tens de ter em linha de conta os factores
reais. Como por exemplo a possibilidade de uma morte prematura do Krug.

— Bem... — Watchman estremeceu, enervado. Lilith estava a ser pragmática; quase que
soava como um militante do PIA. Contudo, Watchman percebeu a lógica da posição
dela. A sua fé baseava-se exclusivamente na esperança da manifestação de um
milagre; e se não surgisse milagre nenhum? Se lhes surgisse a oportunidade de
encorajarem o milagre, não a deveriam aproveitar? No entanto... no entanto...

— O Manuel está maduro, está pronto a defender, abertamente a nossa causa. Sabes
como ele é maleável; consigo transformá-lo num cruzado em duas ou três semanas.
Primeiro levo-o à Cidade dos Gamas...

— Disfarçado, espero.

— Claro. Vamos passar lá uma noite inteira, durante a qual lhe vou mostrar tudo,
tintim por tintim. E depois... lembras-te, Thor? Falámos em levá-lo a visitar uma
capela...

— Sim, sim, lembro-me — disse Watchman, estremecendo.

— Eu trato disso. Explico-lhe os fundamentos todos da comunhão. Por fim, vou ter
com ele e peço-lhe abertamente que vá falar com o pai a nosso respeito. Ele é capaz
de o fazer, Thor! Sei que é capaz! E o Krug é capaz de dar ouvidos ao filho. O Krug
vai concordar com ele e dirá as palavras que tanto desejamos. Como se fizesse um
favor ao filho.

Watchman levantou-se e começou a passear pela sala.


— Parece quase uma blasfêmia, não achas? Somos supostos esperar pela graça de Krug,
quando o Krug o decidir. Servirmo-nos do Manuel dessa maneira, tentarmos moldar e
forçar a vontade de Krug...

— E se o Krug estiver a morrer? — perguntou Lilith. — Se só lhe restarem uns meses


de vida? O que é que nos vai acontecer quando já não existir um Krug? Continuaremos
escravos para o resto da vida!

As palavras dela ecoaram pelas paredes, sobressaltando-o:

Quando já não existir um Krug

Quando já não existir um Krug

Quando já não existir um Krug

Quando já não existir um Krug

— Temos de distinguir entre o homem de carne e osso que é Krug, para quem
trabalhamos, e a eterna presença de Krug o Criador, Krug o Libertador, aquele
que...

— Agora não, Thor. Dlz-me só o que é que eu devo fazer. Achas que devo levar o
Manuel à Cidade dos Gamas?

— Sim, sim, como queiras, mas pelo menos vê lá se avanças com cautela. Uma coisa de
cada vez. Não lhe reveles as coisas demasiado depressa. Se tiveres dúvidas vem
falar comigo. És mesmo capaz de controlar o Manuel?

— Ele adora-me — disse Lilith com toda a calma.

— Por causa do teu corpo?

— É um corpo formidável, Thor, mas é mais do que isso. Ele quer ser dominado por
uma androide, devido aos complexos de culpa que indirectamente herdou do pai.

Posso cativá-lo através do sexo, mas domino-o graças ao poder do Tanque.

— Sexo — disse Watchman. — Capturado graças ao sexo. Mas como? Ele é casado! Com
uma mulher atraente, segundo me disseram, se bem que eu não esteja em posição de o
julgar. Ora se ele tem uma mulher atraente, porque é que precisa de...

Lilith riu-se.

— Onde é que está a piada?

— Não compreendes mesmo nada os humanos, pois não, Thor? O famoso alfa Thor
Watchman, totalmente confundido! — os olhos dela brilhavam de gozo quando se pôs em
pé. — Thor, sabes alguma coisa sobre o sexo? Quero dizer, por experiência própria.

— Se já fiz sexo? É isso que queres saber?

— É isso que quero saber — disse-lhe Lilith.

A súbita mudança do rumo da conversa confundira-o. O que é que a sua vida privada
tinha a ver com o planeamento de tácticas revolucionárias?

— Não — acabou por responder. — Nunca. Para quê? O que é que eu conseguiria, para
além de complicações?

— Prazer — sugeriu ela. — O Krug criou-nos com sistemas nervosos perfeitamente


funcionais. O sexo é divertido, excita-me; também te devia excitar a ti. Porque é
que nunca experimentaste?

— Não conheço nenhum alfa macho que o tenha feito, ou sequer que pense nisso.

— As mulheres alfa pensam nele.

— Isso é diferente, vocês têm mais oportunidades. Têm imensos machos humanos sempre
atrás de vocês. As fêmeas humanas não costumam procurar os androides machos,
excepto talvez algumas mais perturbadas. Por outro lado, vocês podem fazer sexo com
os humanos sem correrem o mínimo risco. Eu, porém, não pretendo estragar a minha
vida por causa de uma mulher humana, sabendo como sei que qualquer homem que se
julgue ofendido nos seus direitos me pode matar, caso me apanhe em flagrante
delito.

— E se for sexo entre dois androides?

— Para quê? Para fazermos filhos?

— O sexo e a reprodução são coisas diferentes, Thor. As pessoas fazem sexo sem
bebês e até fazem bebês sem sexo... o sexo é uma força social, um desporto, um
jogo. Uma espécie de magnetismo, de corpo para corpo. É o sexo que me permite
dominar o Manuel Krug — abruptamente, o tom da voz dela mudou, perdendo o cariz
didáctico para se tornar quase meigo. — Queres que te mostre como é? Despe-te.

Ele riu-se, incomodado.

— Estás a falar a sério? Queres fazer sexo comigo?

— Porque não? Tens medo?

— Não sejas absurda. Não estava à espera... quero dizer, parece-me tão
incongruente, dois androides juntos na cama, Lilith...

— Porque somos coisas feitas de plástico? — perguntou ela em tom frio.

— Não era isso o que eu queria dizer. É óbvio que somos todos de carne e osso!

— Mas apesar disso há certas coisas que não podemos fazer, porque nascemos nos
Tanques. Há certas funções corporais que estão reservadas aos Filhos do Ventre. É
isso?

— Estás a distorcer o meu ponto de vista.

— Eu sei que estou. Quero educar-te, Thor. Já viste bem? Estás a tentar manipular o
destino de uma sociedade inteira, e no entanto desconheces uma das mais básicas
motivações humanas. Vá lá, despe-te. Nunca sentiste desejo por uma mulher?

— Não sei o que é o desejo, Lilith.

— A sério?

— A sério.

A alfa abanou a cabeça.


— E mesmo assim pretendes a igualdade em relação aos humanos? Queres votar e queres
pôr alfas no Congresso, queres ter direitos civis? Mas como, se vives como um
robot, como uma máquina? És um argumento ambulante a favor da manutenção dos
androides no seu devido lugar. Fechaste-te a um dos sectores mais importantes da
vida humana, e tentas convencer-te a ti próprio de que essas coisas são só para os
humanos; os androides não precisam de se preocupar com elas. Um pensamento deveras
perigoso, Thor! Nós somos humanos. Temos corpos, percebes? Porque é que o Krug nos
fez com órgãos genitais? Para depois não os usarmos?

— Concordo com tudo o que acabaste de dizer, mas...

— Mas o quê?

— Mas o sexo não tem a mínima importância para mim. Sei que é um péssimo argumento
contra a nossa causa. Não sou o único alfa a pensar desta maneira, Lilith. Não
costumamos conversar muito sobre esse aspecto, mas... — Watchman desviou o olhar. —
Talvez os humanos tenham razão. Talvez sejamos uma espécie inferior, essencialmente
artificial, uma espécie de robots mais espertos feitos de carne e...

— Estás enganado, Thor. Levanta-te. Chega aqui.

Watchman levantou-se e aproximou-se dela. Lilith pegou-lhe nas mãos e pousou-as


sobre os seios.

— Aperta-os — disse. — Devagarinho. Brinca com os mamilos. Já viste como ficam


duros, como se levantam? É sinal de que estou a responder às tuas carícias. É assim
que as mulheres evidenciam o seu desejo. O que é que sentes quando apalpas os meus
seios, Thor?

— Sinto-os macios, sinto que a pele está fria.

— Não é isso. O que é que sentes lá por dentro?

— Não sei.

— O teu ritmo cardíaco alterou-se? Sentes alguma tensão? Uma espécie de nó na


barriga? Toca-me na coxa, Thor. Nas nádegas. Anda com a mão para baixo e para cima.
Já sentes alguma coisa, Thor?

— Não tenho a certeza. Não percebo nada disto, Lilith.

— Despe-te — mandou ela.

— Parece-me uma coisa tão mecânica... fria, percebes? O sexo não costuma ter uns
preliminares? Luzes suaves, murmúrios, música ambiente, poesia?

— Ah, afinal sempre sabes qualquer coisa a esse respeito!

— Umas coisas. Li vários livros deles, conheço os rituais, os periféricos.

— Dos periféricos trato eu. Olha: vou baixar a intensidade das luzes. Toma um
flutuador, Thor. Não, um excitador não... nunca na primeira vez. Um flutuador. Isso
mesmo. Agora um bocadinho de música. Despe-te.

— Não vais contar a ninguém, pois não?

— És mesmo parvinho. A quem é que eu iria contar? Ao Manuel? «Querido — digo-lhe eu


—, querido, fui-te infiel com o Thor Watchman!»— Lilith soltou uma gargalhada
divertida. — Vai ser o nosso segredo. Podes chamar-lhe uma lição de humanização...
os humanos fazem sexo, e tu queres ser mais humano, não é verdade? Pois eu vou-te
ensinar o que é o sexo — Lilith sorriu e puxou-lhe pelas roupas.

Watchman deixou-se vencer pela curiosidade. Sentia o flutuador a actuar dentro do


cérebro, empurrando-o gradualmente em direcção à euforia. A Lilith tinha razão: a
assexualidade dos alfas era um paradoxo em pessoas que proclamavam alto e bom som a
sua qualidade de humanos. Talvez o sexo não fosse assim tão raro entre os alfas.
Provavelmente, atarefado com os encargos que Krug lhe confiara, acabara por
negligenciar as suas emoções. Pensou em Siegfried Fileclerk, a chorar ajoelhado na
neve, ao lado do cadáver de Cassandra Nucleus. Seria possível que...?

Ficou nu. Lilith colou-se a ele.

A alfa esfregava-se lentamente contra o seu peito. Watchman sentiu as coxas dela em
redor das suas, a frieza do tambor esticado que era o ventre a tocar no seu, os
dois pontinhos duros dos mamilos a queimarem-lhe o peito. Analisou-se, à procura de
uma resposta. Não percebeu bem o que é que encontrou, se bem que já não pudesse
negar que estava a gostar das sensações tácteis provocadas pelo contacto com a
fêmea. Lilith fechou os olhos e entreabriu os lábios. A boca dela procurou a dele,
a língua tocou-lhe por breves instantes nos dentes. Watchman passou as palmas das
mãos pelas costas dela, e num súbito impulso mergulhou as pontas dos dedos nos
globos firmes das nádegas. O corpo de Lilith inteiriçou-se e colou-se ainda mais a
ele, esfregando-se com mais força. Ficaram assim durante alguns minutos, e por fim
ela descontrolou-se e afastou-se dele.

— E então? — perguntou ela. — O que é que sentiste?

— Gostei — respondeu ele, ainda incerto.

— Não ficaste excitado?

— Acho que sim.

— Não me parece.

— Como é que sabes?

— Devia ver-se — disse ela, rindo-se.

Watchman sentiu-se absurdo, deslocado; era como se se tivesse desligado de sua


identidade, ficando incapaz de a recuperar ou até de ver o Thor Watchman que ele
tão bem conhecia e compreendia. Desde o princípio, quase que desde o momento em que
saíra do Tanque; sempre se consideram como um alfa mais velho; mais experiente,
mais competente e ponderado que os seus colegas alfas: um homem que compreendia o
mundo e sabia qual era o seu lugar nele. Agora, porém... Em meia hora, Lilith
conseguira reduzi-lo a uma coisa desajeitada, ingênua, parva e... e impotente.

Lilith pousou-lhe as mãos nas virilhas.

— Como o teu órgão não ficou rígido — disse ela —, é óbvio que não consegui
excitar-te quando... — calou-se, satisfeita. — Oh, sim! Agora sim, Estás a ver?

— Aconteceu quando me tocaste.

— Não é para admirar. Portanto gostaste, não foi? Claro que gostaste. Estás a ver?
— Os dedos dela moviam-se habilmente. Watchman; teve de admitir que a sensação era
deveras interessante, e o súbito despertar da virilidade nas mãos dela teve efeitos
surpreendentes. Mesmo assim continuava fora de si próprio, como se estivesse a
assistir a uma palestra sobre os hábitos de acasalamento dos proteoides
centaurinos.

Lilith chegou-se de novo para ele, esfregando-se num ritmo sensual, ligeiramente
arquejante, mal conseguindo dominar a tensão. Watchman apertou-a nos braços e
acariciou-lhe uma vez mais a pele.

Lilith puxou-o para o chão.

Ficou estendido em cima dela, apoiando-se nos cotovelos e joelhos para não a
esmagar com o peso do corpo. As pernas dela enrolaram-se-lhe em volta da cintura,
os calcanhares a apertarem-lhe as nádegas; uma mão deslizou entre os corpos,
agarrou-o e guiou-o para dentro dela. A pélvis de Lilith começou a subir e a
descer; pouco depois ele ajustava-se ao ritmo, acompanhando-a com os impulsos do
seu corpo.

Portanto o sexo é isto — pensou.

O que é que sentiria uma mulher ao ver-se com uma coisa dura e comprida a entrar e
a sair bruscamente do corpo? Era evidente que gostavam; Lilith arquejava e
soluçava, numa reacção que parecia ser de pura delícia. Mesmo assim, Watchman
achava tudo aquilo muito estranho. Qual seria o seu interesse de se enfiar assim
dentro de uma mulher? Seria esta a poesia de que tantos falavam? Fora por isto que
o homem morrera em duelos e renunciara a reinos inteiros?

— Como é que sabemos que acabou? — perguntou ele passado um bocado.

Os olhos dela abriram-se, cintilantes, mas Watchman não conseguiu ver se o brilho
era de fúria ou de gozo.

— Já vais saber — respondeu ela. — Não pares!

Ele continuou, para cima e para baixo.

Os movimentos das coxas dela tornaram-se mais violentos; o rosto contorceu-se,


distorceu-se, ficou quase feio; era evidente que sofria as consequências de uma
espécie de tempestade interior. Os músculos do corpo estremeciam-lhe ao acaso,
descontrolados e, no sítio onde ele estava ligado a ela, Watchman podia sentir o
aperto de violentos espasmos interiores.

De repente ele próprio sentiu um espasmo, e ficou imediatamente incapaz de


catalogar os efeitos gerados por aquela união. Fechou os olhos, tentou encher os
pulmões de ar. Sentia o coração desenfreado, a pele a arder. Agarrou-a com mais
força e enfiou a cara no ângulo do pescoço dela, premindo os lábios contra o ombro.
Viu-se sacudido por uma série do impactos secos e poderosos.

Lilith tinha razão: era fácil saber-se quando é que aquilo acabava.

E a velocidade com que o êxtase se dissipou? Impressionante. Mal se recordava das


poderosas sensações de há sessenta segundos atrás. Sentiu-se enganado, como se lhe
tivessem prometido um banquete e no fim tivesse recebido uma simples malga de sopa.
Então aquilo era assim? Como a espuma da rebentação, depois da onda regressar ao
mar? Cinzas na areia da praia? Afinal isto não vale nada, pensou Thor Watchman. É
uma fraude.

Saiu de cima dela.

Lilith deixou-se ficar de olhos fechados, a boca aberta, respirando devagarinho;


tinha o corpo coberto de suor e parecia esgotada. Watchman teve a sensação de estar
deitado ao lado de uma desconhecida. Momentos depois de ter saído de cima dela,
Lilith abriu os olhos; soergueu-se apoiada num cotovelo e sorriu-lhe com timidez.

— Olá! — disse.

— Olá! — respondeu ele, desviando os olhos.

— Como é que te sentes?

Watchman encolheu os ombros; procurou as palavras certas mas não as descobriu.


Derrotado, acabou por confessar:

— Acima de tudo, sinto-me cansado. Vazio. Será mesmo assim? Sinto-me... oco.

— É normal. Depois do coito, todos os animais ficam tristes. É um velho provérbio


latino. Tu és um animal, Thor, nunca te esqueças disso.

— Um animal cansado.

Cinzas na areia fria, a maré muito baixa.

— E tu, Lilith? Gostaste?

— Não se viu? Não, se calhar nem viste nada. É claro que gostei! Muito.

Watchman pôs-lhe a mão na coxa.

— Ainda bem. O mais curioso é que continuo a não perceber...

— A não perceber o quê?

— Isto tudo. O padrão, toda a sucessão de acontecimentos. Empurrar, subir, descer,


suar, gemer... a tremura nas virilhas, e de repente acaba tudo. Acho que...

— Não, Thor — interrompeu ela. — Não intelectualizes. Não analises. Se calhar


estavas à espera de muito mais. Isto é uma pura diversão, Thor. É o que as pessoas
fazem para se sentirem felizes. Só isso. Nada mais. Não, é nenhuma experiência
cósmica!

— Lamento. Não passo de um androide estúpido que não sabe...

— Não digas isso. Tu és uma pessoa, Thor.

Watchman compreendeu que a estava a magoar ao recusar-se a conceder que tivera


prazer com o acto sexual. Estava mesmo a magoar-se a si próprio. Levantou-se
lentamente, dominado por uma péssima disposição; sentia-se como se fosse uma
garrafa vazia atirada para o meio da neve. Sim, no fundo sentira um relâmpago de
alegria quando chegara o momento da descarga; enfim, seria que esse fugaz momento
de prazer compensava a tristeza que vinha depois?

Lilith fizera-o movida por boas intenções: queria que ele se sentisse mais humano.

Ajudou-a a levantar, abraçou-a por um instante, beijou-a na face, afagou-lhe um dos


seios com a mão em concha.

— Temos de fazer isto mais vezes, está bem? — disse-lhe.

— Sempre que quiseres.

— Para mim foi muito estranho, mas se calhar foi por ter sido a primeira vez.
Suponho que hei-de melhorar. Tenho a certeza.

— Podes acreditar nisso, Thor. Da primeira vez é tudo muito estranho.

— É melhor eu ir-me embora.

— Se tens de ir...

— É melhor. Espero voltar a ver-te dentro em breve.

— Claro — disse ela, tocando-lhe no braço. — E entretanto... vou começar a actuar


de acordo com o plano que traçámos. Vou levar o Manuel à Cidade dos Gamas.

— Óptimo.

— Que Krug te acompanhe, Thor.

— Krug esteja contigo.

Watchman começou a vestir-se.

CAPÍTULO XXIII

E Krug disse: Vocês serão sempre diferentes sob um aspecto.

Os Filhos do Ventre virão sempre do Ventre, e os Filhos do Tanque virão sempre do


Tanque. Não vos será permitido gerar os vossos rebentos dentro do vosso corpo, como
acontece com os Filhos do Ventre.

Assim se fará para que as vossas vidas só possam vir de Krug, para que só a Ele
caiba a glória da vossa criação, e assim será por toda a eternidade.

CAPÍTULO XXIV

20 de Dezembro de 2218.

Do cimo dos seus 800 metros, a torre domina a tundra. Ninguém consegue resistir à
sua imensidade: mal saímos do transmat, quer seja de dia quer de noite, somos
imediatamente atingidos pela imensidão daquela portentosa lança de vidro. A solidão
dos terrenos circundantes só contribuiu para acentuar ainda mais a altura do
obelisco.

Ultimamente têm-se registado numerosos acidentes, todos fruto da pressa. Um par de


operários caiu do topo; um electricista, ao montar erradamente várias ligações num
dos andares, provocou uma descarga violentíssima que foi matar cinco gamas nesse
momento agarrados a um cabo de alagem; dois elevadores, autônomos colidiram a meio
do voo, incidente que se saldou pela perda de seis vidas. O alfa Euclid Planner por
pouco não ficava seriamente ferido quando uma máquina-ferramenta de elevada
potência gerou uma monstruosa descarga de dados de entropia máxima, devolvendo-os
ao computador numa altura em que Planner estava ligado aos circuitos; três betas
mergulharam numa conduta de serviço com mais de quatrocentos metros de altura,
quando o andaime em que trabalhavam se desfez inexplicavelmente. Até ao momento, a
construção da torre provocara a morte de quase trinta androides. Enfim, o estaleiro
albergava milhares de operários, e o tipo de trabalho era não só perigoso como fora
do habitual; a percentagem de acidentes não pode ser considerada excessivamente
alta.

Os primeiros trinta metros do dispositivo emissor do feixe taquiónico estão


praticamente concluídos, e vários técnicos vigiam diariamente a integridade da sua
estrutura. Obviamente, não será possível produzir taquiões enquanto a enorme calha
aceleradora não estiver terminada; mesmo assim, a montagem dos numerosos
subsistemas é já desinteressante de seguir, pelo que Krug passa agora a maior parte
do tempo na torre, seguindo os testes com toda a atenção. Luzes multicoloridas
relampejam em inúmeros equipamentos; os painéis indicadores zunem e murmuram; as
agulhas dos mostradores estremecem, saltam, estabilizam-se. Krug aplaude
entusiasticamente todo e qualquer resultado positivo. As hordas dos convidados são
cada vez maiores. Nas últimas três semanas, veio à torre acompanhado por Niccolò
Vargas, pela nora, Clissa, por vinte e nove membros do congresso, por onze
industriais de renome, por dezasseis famosos representantes do mundo das artes. Os
louvores são praticamente unânimes; até aqueles que, intimamente, caracterizam a
torre como uma loucura titânica, não conseguem disfarçar a sua admiração pela
elegância, beleza e magnitude da agulha. É sabido que até uma loucura pode encerrar
uma enorme beleza, e ninguém que tenha visto a torre de Krug poderá negar que se
trata de uma das construções mais belas de todo o planeta; além do mais, poucos são
os que consideram uma loucura a tentativa de comunicação com habitantes de outras
estrelas.

Manuel Krug não aparece na torre desde os princípios de Novembro, e Krug lá vai
explicando aos comandados que o filho anda atarefadíssimo a supervisionar as
incontáveis facetas do seu império corporativo, assumindo responsabilidades cada
vez maiores com o passar dos meses no fim de contas, sempre é o seu herdeiro
legítimo...

CAPÍTULO XXV

DA última vez que estive com a Lilith, ela disse-me: Quando cá voltares vamos fazer
qualquer coisa diferente, está bem?

Ambos estamos nus, a fazer amor. Apoio a cara num dos seus seios.

Diferente como?

Vamos sair do apartamento, vamos fazer de conta que somos turistas em Estocolmo.
Não gostavas de ver o bairro dos androides? Ver como os androides vivem? Não sentes
curiosidade por isso?

Eu respondo-lhe, um pouco cansado: Mas para quê? Não preferes passar o tempo
comigo?

Ela brinca com os pêlos do meu peito. Sou mesmo uma besta... um primitivo.

Estamos sempre aqui enfiados, queixa-se ela. Chegas, fazemos amor, vais-te embora.
Nunca fomos juntos a nenhum lado. Gostava de sair contigo. Encara-o como parte da
tua educação. Sabias que sempre gostei de ensinar as pessoas, Manuel? Gosto de lhes
abrir as mentes ao que as rodeia. Já foste alguma vez a uma Cidade dos Gamas?

Não.

Sabes o que é?

Suponho que será um sítio onde vivem os gamas.

Isso mesmo, mas sem veres nunca serás capaz de imaginar como é. Tens de visitar uma
delas.

É perigoso?

Nem por isso. Ninguém se atreverá a incomodar dois alfas a passearem na Cidade dos
Gamas. Eles metem-se uns com os outros, mas isso é diferente. Somos de uma casta
elevada, e eles sabem manter as distâncias.

Podem não se preocupar com um alfa, retorqui eu, mas e no meu caso? É provável que
não vejam com bons olhos os turistas humanos.

Lilith respondeu que eu iria disfarçado. Como um alfa. Gostei da ideia; era
excitante. Tentadora. Misteriosa. Um jogo desses talvez contribuísse para relançar
o romance entre mim e Lilith. E se eles descobrem que sou um alfa falso?, perguntei
eu. Não, eles nunca se chegam ao pé dos alfas, respondeu ela. Nós, androides, temos
um conceito chamado distanciamento social. Os gamas sabem manter-se no seu devido
lugar, Manuel.

Está bem, nesse caso vamos à Cidade dos Gamas.

Planeámos tudo para dali a uma semana. Não foi difícil convencer a Clissa ia à Lua,
em viagem de negócios, e só voltaria dali a dois dias, está bem? Vai à vontade, não
te preocupes comigo. Aproveito para passar uns dias com os meus amigos na Nova
Zelândia. As vezes interrogo-me sobre o quanto a Clissa saberá das minhas andanças.
O que é que ela diria se descobrisse? Há dias em que me sinto tentado a dizer-lhe,
Clissa, tenho uma amante androide em Estocolmo, é fantástica na cama e tem um corpo
de sonho... A Clissa nunca foi aburguesada, mas é uma mulher sensível. Pode sentir-
se rejeitada. Ou então, levada pela sua grande compreensão pelo eterno fardo dos
androides, talvez seja capaz de responder: É muito amável da tua parte, Manuel,
ainda bem que pelo menos uma delas é feliz contigo. Não me importo de compartilhar
o teu amor com uma androide. Trá-la para jantar connosco um destes dias, está bem?

O dia marcado chega. Vou ter com a Lilith ao apartamento dela. Entro e vejo-a nua.
Despe-te, diz-me ela. Sorrio. Pouco subtil. Claro, claro. Dispo-me e atiro-me a
ela, mas ela afasta-se para o lado e deixa-me a abraçar o ar.

Agora não, parvinho. Quando voltarmos. Tenho de te disfarçar!

Tem um spray na mão. Primeiro, regula-o para o neutro e tapa-me a placa espelhada
que tenho na testa. Os brincos, diz ela. Tira-os. Tiro-os e ela enche os buracos
com gel. Depois começa a pintar-me de vermelho. Tenho de rapar os pêlos?, pergunto
eu. Não, diz ela, basta que não tires as roupas em frente de ninguém. Pinta-me de
vermelho dos pés à cabeça, e a tinta tem uma textura brilhante. Androide
instantâneo. De seguida recobre-me com um spray térmico do peito às coxas. Os
androides não usam roupas pesadas, explica. Toma, veste isto.

Estende-me uma túnica de gola alta e calças justas. Roupas de androide, claro, e
nitidamente ao estilo dos alfa. Enfio-me nelas e é como se tivesse uma nova pele.
Não te lembres de ter uma erecção, previne ela; eras capaz de rasgar as calças.
Solta uma gargalhada e esfrega-me o peito.

Onde é que arranjaste estas roupas?

Pedi-as emprestadas ao Thor Watchman.

Disseste-lhe para que eram?

Não, responde ela, claro que não. Só lhe disse que precisava de umas roupas de
alfa. Ora vamos lá a ver como ficaste. Formidável. Formidável! Um perfeito alfa.
Anda um bocadinho. Volta-te. Óptimo. Tens de te bambolear mais um bocadinho. Não te
esqueças, agora és o produto final da evolução humana, a primeira versão do Homo
sapiens a sair de um tanque, com todos os aspectos positivos de um humano e nenhum
dos seus pontos fracos. Será o alfa... hummm. Precisamos de um nome, não vá alguém
querer saber quem és. Lilith pensa por momentos. Alfa Leviticus Leaper, acaba por
dizer. Como é que te chamas?

Alfa Leviticus Leaper, respondo eu.

Não. Se alguém te perguntar, deves responder só Leviticus Leaper. Eles são capazes
de ver que és um alfa. As outras pessoas é que te tratam por alfa Leaper.
Percebeste?

Percebi.

Lilith veste-se. Primeiro um spray térmico, depois uma espécie de rede dourada a
tapar-lhe os seios, o ventre e metade das coxas. Pouco esconde, não corresponde à
ideia que tenho de roupas de Inverno. Os androides devem gostar muito mais dos
invernos do que nós, humanos.

Queres ver como estás antes de sairmos, alfa Leaper?

Quero.

Lilith atira pó de espelho para o ar. Quando as moléculas se alinham, obtenho um


reflexo de corpo inteiro. Impressionante. Um verdadeiro alfa macho, um diabo
vermelho saído do Inferno. A Lilith tinha razão: nenhum gama se atreverá a brincar
comigo, nem sequer serão capazes de me fitar nos olhos.

Vamos embora, alfa Leaper. Vamos espojar-nos na Cidade dos Gamas.

Saímos. Percorremos várias ruas. Atravessamos a cidade até ao outro extremo,


fitando a água cinzenta batida pelo vento. No porto; tudo branco. Estamos no
princípio da tarde, mas a norte já se faz anunciar; o dia está cinzento e
gorduroso, o nevoeiro não larga a cidade; o brilho dos candeeiros das ruas parece
flutuar a meio do ar, sujo e desfocado. Mais luzes a flutuarem sobre as nossas
cabeças, vindas de edifícios ou de outras coisas quaisquer: vermelhas, verdes,
azuis, laranjas, piscando freneticamente, tentando captar as atenções, uma seta
aqui, ali o contorno de um trompete. Vibrações, fumos, sons. A sensação de pessoas
ali perto. Um grito no meio do lusco-fusco. Risadas distantes, trêmulas e
desfocadas. Fragmentos de vozes vogando no meio do nevoeiro:

— Deixa-me em paz ou dou cabo de ti!

— Volta para o tanque! Volta para o tanque!

— Slobles, quem quer slobles?

— Nem os stackers te podem ajudar.


— Slobles!

— Mocho! Mocho! Mocho!

A população de Estocolmo tem mais de cinquenta por cento de androides. Porque é que
se reunirão aqui? E em mais outras tantas nove cidades dentro de cidades? Em
guetos? Não precisavam de o fazer. Vivemos no mundo do transmat: vive onde
quiseres, nunca chegarás tarde ao trabalho. Gostamos de viver junto dos nossos, diz
ela. E mesmo assim estratificam-se nos seus guetos... os alfas num bairro, nas
melhores casas, os betas de permeio, e os gamas nesta lixeira. Os gamas. Bem-vindos
à Cidade dos Gamas.

Ruas pavimentadas a paralelipípedos, escorregadios e ondulados. Medievais? Casas


soturnas muito próximas umas das outras, poucos metros de rua e nenhuns passeios.
Um fio de água nojenta escorrendo de uma goteira, vindo sabe-se lá de onde. Janelas
de vidro. Apesar de tudo, o ambiente não é tão arcaico como isso: é mais uma
mistura de estilos, todas as modas arquitectónicas baralhadas num espaço restrito,
olla podrida, bouiltabaisse e exemplares dos séculos XXII, XX, XIX, XVI e XIV.
Penduradas lá em cima, as etéreas teias de aranha das passagens sobrelevadas; aqui
e ali, nas ruas mais largas, passeios enferrujados. O zunir dos aparelhos de ar
condicionado há muito fora de fase, ejectando um nevoeiro esverdeado para o meio
das vielas serpenteantes. Caves barrocas, de tectos espessos. Lilith e eu avançamos
ao longo deste autêntico labirinto. Por certo que a cidade foi planeada por um
demónio, não passa de um sonho perverso concretizado em pedra.

Rostos a espreitar.

Gamas. Gamas por todo o lado. Espreitam, escondem-se, espreitam de novo. Olhinhos
pequeninos e brilhantes, como os dos pássaros, a piscarem, a piscarem, assustados.
Têm medo de nós. Com que então eram as distâncias sociais? Eles lá sabem o que isso
é. Espreitam, ficam a olhar, mas quando nos aproximamos tentam confundir-se com a
noite. De cabeças baixas, olhos no chão. Alfas, alfas, alfas! Gamas, tenham
cuidado!

Somos muito mais altos que eles. Nunca me tinha apercebido da baixa estatura dos
gamas: atarracados, largos, fortes. Que ombros! Que músculos! Qualquer deles seria
capaz de me desfazer num instante. As mulheres também parecem fortes, se bem que
tenham corpos mais graciosos. Como será uma rapariga gama na cama? Mais fogosa que
a Lilith... será possível? Aos pulos na cama, gemendo palavrões, sem as inibições
da burguesia? E a cheirar a alho, sem dúvida. Esquece. Boçais, é o que elas são.
Boçais. Como a Quenelle do meu pai. Deixá-las estar; já me chega a Lilith, e essa é
das limpas. Nem vale a pena pensar nisso. Os gamas recuam quando nos veem. Dois
senhores alfas na cidade? Somos altos, temos pernas compridas, somos graciosos.
Eles receiam-nos.

Sou o alfa Leviticus Leaper.

O vento aqui é mais agreste. Vem direto da água, cortante como uma faca. Faz
rodopiar a poeira e o lixo no meio das ruas. Poeira! Lixo! Nunca vi ruas tão porcas
como estas! Os robots da limpeza nunca entrarão aqui? Será possível que os gamas
não tenham orgulho na sua cidade, mantendo-a limpa e arranjada?

Eles não ligam a essas coisas, diz Lilith. É um problema cultural. Pode-se dizer
que têm orgulho na sua falta de orgulho. Só assim é que o ambiente consegue
reflectir o seu baixo estatuto. Estamos no fundo do mundo dos humanos; e eles sabem
disso e não gostam da situação; a sordidez, para eles, é como que um emblema da
falta de estatuto. É o mesmo que dizerem: Querem que sejamos porcos? Então passamos
a viver no meio da porcaria. Foçamos no meio da imundície. Comemos porcaria. Se não
somos pessoas, então não precisamos de viver em casas asseadas. Antes os robots de
limpeza vinham cá, sabias? Os gamas começaram a desmantelá-los. Olha, está ali um,
vês? Deve estar ali há mais de dez anos, a enferrujar.

No meio do lixo, fragmentos de um robot, pedaços de um homem de metal. A tinta azul


ainda espreita por entre a ferrugem. E aquilo ali, serão solenoides? Relés?
Acumuladores? As entranhas retorcidas de uma máquina. O fundo do fundo do fundo, um
mero objecto mecânico destruído quando atacava diligentemente a miséria destes
párias nascidos nos tanques. Um gato branco e cinzento mija sobre as tripas do
robot. Vários gamas, encostados à parede, riem-se a bandeiras despregadas. De
repente veem-nos e recuam, respeitosos e assustados. Fazem rápidos gestos com a mão
esquerda — tocam nas virilhas, no peito e na testa, um, dois, três, tudo muito
rápido. Um gesto automático, um mero reflexo, como o sinal da cruz. O que
representará? Uma espécie de saudação honorífica? Uma demonstração de respeito para
com os dois alfas?

É qualquer coisa como isso, diz Lilith. Não é bem isso, na verdade é mais um sinal
supersticioso que eles gostam de fazer.

Para afastarem o mau olhado?

Isso. Mais ou menos. Tocam nos pontos cardeais, invocam o espírito dos órgãos
genitais, da alma e da inteligência: virilhas, peito e testa. Nunca tinhas visto os
androides a fazerem o gesto?

Talvez, sim.

Até os alfas o fazem, diz Lilith. Um hábito. Uma forma de se reconfortarem quando
estão tensos. Até eu o faço, às vezes.

Mas porquê nos órgãos genitais? Os androides não se reproduzem...

É um poder simbólico, diz ela. Somos estéreis, mas não é por isso que deixa de ser
uma zona sagrada. Em memória da nossa origem comum. O conjunto dos genes humanos
provém das virilhas, e nós próprios fomos concebidos a partir desses genes. Até há
uma teologia que se baseia nesse facto.

Faço o sinal. Um, dois, três. Lilith ri-se, mas parece incomodada, como se eu não o
devesse fazer. Para o diabo com o sinal. Hoje estou mascarado de androide, não é
verdade? Então posso fazer o que os androides fazem. Um, dois, três.

Os gamas encostados à parede retribuem o sinal. Um, dois, três. Virilhas, peito,
testa.

Um deles diz qualquer coisa que me soa como Krug seja louvado!

O que é que ele disse?, perguntou a Lilith.

Não ouvi.

Será que o ouvi dizer Krug seja louvado?

Os gamas são capazes de dizer o que lhes vem à cabeça.

Abano a cabeça. Se calhar ele reconheceu-me, Lilith!

Nem pensar, impossível. Se ele disse qualquer coisa sobre o Krug, estava a referir-
se ao teu pai.
Pois é. O Krug é ele, eu sou só o Manuel. O Manuel.

— Shsss! És o alfa Leviticus Leaper!

Certo. Desculpa. Alfa Leviticus Leaper. Lev para os amigos. Krug seja louvado? Se
calhar não ouvi bem.

É isso, diz Lilith.

Viramos uma esquina, e ao fazê-lo ligamos uma armadilha publicitária. Assim que
entramos no campo do sensor da armadilha provocamos uma erupção de pós coloridos
vindos de fendas na parede, os quais, por atracção electrostática, formam um padrão
de palavras berrantes no meio do ar, piscando alegremente, apesar do nevoeiro
espesso. Contra um pano de fundo prateado, podemos, ler:

É mesmo um alfa?, pergunto eu.

Claro que é.

Então o que é que faz na Cidade dos Gamas?

Tem de haver alguém para tratar dos doentes. Achas que um gama era capaz de se
formar em Medicina?

No entanto parece-me mais um charlatão. Um médico a pôr armadilhas destas? Que


gênero de médico seria capaz de angariar os seus pacientes desta forma?

Um médico da Cidade dos Gamas. Aqui as coisas são assim, e de resto ele é
efectivamente um charlatão. Um bom médico, mas nem por isso menos charlatão. Esteve
envolvido num escândalo aqui há uns anos, quando tinha licença para exercer.
Qualquer coisa a ver com a regeneração de órgãos. Ficou sem a licença.

Aqui não é preciso ter licença?

Aqui não precisas de nada. Dizem que ele é dedicado... excêntrico mas devotado à
sua gente. Gostavas de o conhecer?

Não, não. O que é que são viciados em slobie?

O slobie é uma droga que os gamas tomam, explica Lilith. Daqui a pouco já vais ver
alguns desses drogados.

E os stackers?

Esses sofrem de qualquer coisa no cérebro, nasce-lhes uma espécie de matéria


escamosa no cerebelo.

E os solidificados?

Esses têm problemas nos músculos. Endurecimento dos tecidos, acho que se chama
assim. Não tenho a certeza. Só os gamas é que apanham a doença.

Fico de testa franzida. Será que o meu pai sabe disso? Ele é o garante da
integridade dos androides! Se os gamas estão sujeitos a doenças misteriosas...

Olha, ali está um viciado em slobie, diz Lilith.


Um androide caminha no meio da rua, na nossa direcção. Cambaleia, flutua, desliza,
move-se com a lentidão de uma lesma. Tem os olhos semicerrados, o rosto de um
sonhador, os braços esticados, os dedos pendentes. Avança como se estivesse a abrir
caminho através da atmosfera de Júpiter. Veste um simples farrapo em redor da
cintura, mas apesar disso sua como se estivesse nos trópicos. Cambaleia cada vez
mais, e ao fim de uma eternidade lá consegue aproximar-se de nós. Firma os pés na
calçada, atira a cabeça para trás, pousa as mãos nas ancas. Silêncio. Um minuto
escoa-se lentamente, mas por fim o gama fala-nos numa voz pastosa, como se não
tivesse pressa nenhuma:

— O... lá ... al... fas... a... do... ro to... dos ... os ... al... fas.

Lilith diz-lhe para se pôr a andar.

O gama não reage logo, mas de repente o rosto como que se desfaz numa tristeza
infinita. Levanta a mão esquerda num desajeitado gesto de palhaço, toca na testa,
deixa-a cair até ao peito, abandonada junto ao baixo-ventre. Fez o sinal ao
contrário... qual será o significado desta variante?

— A... mo... to... dos... os... al... fas — diz o gama em tom trágico.

Mas que gênero de droga é esta?, pergunto a Lilith.

Atenua a sensação do tempo. Um minuto transforma-se numa hora, o que lhes dilata os
períodos de descanso. Como seria de esperar, nós movemo-nos à volta deles como se
estivéssemos possessos. É mais frequente vermos os viciados juntos em grupos, todos
dentro do mesmo esquema temporal. Conseguem assim ter a ilusão de passarem vários
dias sem trabalhar.

É perigosa a droga?

Perde-se cerca de uma hora de vida por cada duas horas de influência da droga,
explica Lilith. Para os gamas, é uma troca honesta. Desistem de uma hora objectiva
mas ganham dois ou três dias subjectivos... porque não?

Mas isso reduz a mão-de-obra disponível!

Os gamas têm o direito de fazerem o que lhes apetece durante as suas horas livres,
alfa Leaper. Não me estás a dizer que são mera propriedade, pois não? Não estás a
dizer que a autoflagelação feita por um gama é um crime contra o seu dono, pois
não?

— Não, não. Claro que não, alfa Meson.

Bem me parecia que não pensavas assim, diz Lilith.

O viciado em slobie desenha vagos círculos à nossa volta, cantando qualquer coisa
numa voz tão arrastada que não sou capaz de ligar as sílabas umas às outras, pelo
que não percebo o teor da letra. Um sorriso glacial espalha-se lentamente nos
lábios do drogado; a princípio pareceu-me um trejeito de desdém, só mais para o fim
é que percebo que se trata de um sorriso. Incapaz de se aguentar nas pernas, o gama
deixa-se cair sobre os joelhos; levanta uma mão, com os dedos flectidos; vê-se
nitidamente que a mão procura agarrar o seio esquerdo de Lilith. Nenhum de nós faz
o mínimo gesto.

Agora já consigo perceber a cantilena do gama:

A ... A ... A ... A ... A ... G ... A ... A ... C ... A ... A ... U ...
O que é que ele está a tentar dizer?

Lilith abana a cabeça. Não tem importância, diz ela.

Afasta-se do androide quando a mão ainda está a dez centímetros do seu colo. O
sorriso do gama começa a desaparecer, substituído por um esgar de contrariedade.
Parece ter ficado ofendido, e o canto assume um tom inquiridor:

A ... U ... A ... A ... U ... G ... A ... U ... C ... A ... U ... U ...

Nas minhas costas surge o som de pés a arrastarem-se lentamente. Aproxima-se um


segundo viciado em slobie: uma rapariga, vestindo um manto que lhe pende dos ombros
e se arrasta, roto e nojento, muitos metros atrás dela, mas que lhe deixa as coxas
e pernas à mostra. Tem o cabelo pintado de verde, enrolado numa espécie de tiara. O
rosto parece pálido, exangue, e os olhos mal se abrem. A pele brilha de suor.
Flutua em direcção ao nosso primeiro amigo e diz-lhe qualquer coisa numa espantosa
voz de barítono. O gama responde-lhe como se sonhasse. Não percebo nada do que eles
dizem; será por causa da droga desaceleradora, ou os gamas falarão uma espécie de
patols? Parece estar prestes a acontecer qualquer coisa horrível. Faço um sinal a
Lilith, sugerindo que nos fôssemos embora, mas ela diz que não com a cabeça.
Observa-os.

Os drogados lançaram-se numa dança grotesca. As pontas dos dedos tocam-se, os


joelhos levantam-se um após outro. Uma gavotte executada por estátuas de mármore.
Um minuete de elefantes empalhados.

Fazem vénias um ao outro, andam à volta um do outro; os pés do homem tropeçam no


manto da rapariga. Ela afasta-se, mas ele fica onde está. O manto rasga-se,
deixando a rapariga nua no meio da viela. Entre os seios traz pendurado um punhal,
preso por uma corda verde. As costas da gama estão marcadas por inúmeras
cicatrizes. Terá sido chicoteada? A nudez excita-a; vejo-lhe os mamilos a
endurecerem em câmara lenta. O homem aproxima-se dela; levanta lentamente uma mão
e, como quem não quer a coisa, desembainha o punhal. Sempre em câmara lenta, baixa
a arma e toca com a lâmina nas virilhas da rapariga e na testa. O sinal sagrado.
Lilith e eu estamos encostados à parede, perto da entrada do consultório do médico
charlatão. A faca perturba-me.

Deixa-me tirar-lha da mão, digo para Lilith.

Não te metas, responde ela. Aqui não passas de um visitante, não temos nada a ver
com o que se passa.

Então vamos embora, Lilith.

Espera. Vê o que eles fazem.

O nosso amigo está de novo a cantar. Letras, como dantes:

U... C... A... U... C... G... U... C... C...

O braço recua, para e avança. A ponta do punhal está apontada ao abdômen da


rapariga. Pela tensão dos músculos do drogado, posso ver que o golpe vai ser
desferido com toda a força; não se trata de nenhum passo de dança. A lâmina está a
poucos centímetros da pele da rapariga quando eu me atiro em frente e, com uma
sapatada, arranco o punhal da mão do gama.

O drogado começa a gemer.

A rapariga ainda não percebeu que acabaram de lhe salvar a vida. Solta um lamento
longo e arrastado, talvez um grito à velocidade a que está. Atira-se ao chão, uma
mão a tapar os seios, a outra enfiada entre as pernas, e começa a espernear em
câmara lenta.

Não devias ter interferido, diz Lilith em tom furioso. Vamos embora. É melhor irmos
embora.

Mas ele ia matá-la!

Não temos nada a ver com isso. Não nos diz respeito.

Puxa-me pelo pulso. Viro-me. Começamos a afastar-nos. Pelo canto do olho, percebo
que a rapariga está a levantar-se; o berrante anúncio do médico Poseidon Musketeer
reflecte-se nos flancos suados e magros da gama. Lilith e eu damos dois passos, e
de repente ouvimos um gemido. Olhamos para trás: a rapariga, já em pé, espetara o
punhal no estômago do homem, e lancetava-o metodicamente na direcção do peito. As
tripas do gama escorrem para a calçada, e o tipo só lentamente se apercebe do que
lhe aconteceu, soltando sons gorgolejantes.

Temos mesmo de ir embora, insiste Lilith.

Corremos em direcção à esquina; quando a alcançamos, viro-me. A porta do


consultório do alfa Musketeer abrira-se: um vulto espadaúdo, da altura dos alfas,
com uma juba de cabelos grisalhos e olhos inchados, posta-se na soleira. Será o
famoso médico? Corre para os dois drogados. A rapariga ajoelha-se ao lado da
vítima, que ainda não caiu totalmente. O sangue dele tinge-lhe a pele, e ela canta:

G! A! G! A! G! G! A! C!

Por aqui, diz-me Lilith; escondemo-nos na entrada escura de um prédio.

Degraus. Os cheiros secos de coisas estranhas. Teias de aranha. Mergulhamos nas


profundezas do ignoto. Ao longe, muito em baixo, brilham luzes amarelas. Descemos
apressadamente, sem parar, sempre para baixo.

Onde é que estamos? — pergunto.

Num dos túneis de segurança. Foi construído durante a Guerra do Saneamento, há


duzentos anos. Faz parte de um sistema que cobre todo o subsolo de Estocolmo. Foi
ocupado pelos gamas.

Túnel de segurança? Pior que um esgoto.

Ouço risadas entrecortadas, partes incoerentes de conversas. Há lojas aqui em


baixo, com portas gradeadas, sob lamparinas de luz incerta. Gamas por todo o lado,
para cá e para lá; alguns fazem o sinal do um-dois-três quando nos veem passar.
Dominada por um medo que não compreendo, Lilith segue sempre em frente, meio a
correr meio a andar, arrastando-me atrás de si. Mudamos de túnel, entramos numa
passagem que faz um ângulo recto com aquela em que vínhamos.

Há viciados em slobie por todo o lado.

Um macho gama, com o rosto pintado às faixas azuis e vermelhas, para para cantar,
quem sabe se para nós:

Com quem hei-de casar?

Quem quer casar comigo?


Há fogo no tanque malcheiroso,

O fogo tudo come e tudo destrói.

Oh, a minha cabeça, a minha cabeça, a minha cabeça,

A minha cabeça.

Ajoelha e atrapalha-se, deixando escapar por entre os lábios um líquido fino e


azulado, quase aos nossos pés.

Seguimos em frente, mas pouco depois ouvimos um grito a ecoar pelas paredes do
túnel:

Al-fa! Al-fa! Al-fa! Al-fa!

Dois gamas copulam numa alcova. Os corpos estão suados, brilham sob a luz de uma
lamparina. Não consigo resistir e fito as nádegas a subirem e a baixarem, escuto o
ruído surdo da carne contra carne. A rapariga esmurra compassadamente as costas do
parceiro. Estará a protestar pela violação ou será uma simples demonstração de
êxtase? Não tenho tempo de o descobrir, porque um slobie salta do meio da escuridão
e cai em cima do par, arrastando-os consigo numa confusão de pernas e braços.
Lilith arrasta-me para longe. De repente, sinto uma vontade louca de a comer; penso
nos seus seios firmes, penso na fenda húmida e convidativa. Que tal se
procurássemos uma alcova só para nós, para copularmos entre os gamas? Apalpo-lhe as
nádegas, duras e elásticas enquanto ela caminha. Lilith sacode as ancas. Aqui não,
diz-me. Aqui não. Temos de manter as distâncias.

Uma cascata de luz desce do tecto do túnel. À nossa volta, bolhas cor-de-rosa
rebentam às centenas, libertando cheiros pavorosos. Uma dúzia de gamas saem a
galopar de uma passagem lateral, detêm-se chocados quando nos avistam, amedrontados
ao compreenderem que por pouco não chocavam com os dois alfas; fazem-nos os
habituais sinais de respeito e seguem em frente, no meio de alegre algazarra, por
entre a qual se ouve cantar:

Oh, eu derreta-te e tu derretes-me,

E nós derretemo-los e felizes seremos,

Asneira! Asneira! Asneira! Asneira!

Encaixa!

Parecem felizes, digo eu.

Lilith concorda com um aceno de cabeça. Estão bêbados que nem uns cachos, informa.
Aposto que vão a caminho de uma orgia de radiações.

Uma quê?

Uma poça de fluido amarelo escorre por debaixo de uma porta fechada, soltando fumos
acres. Urina de gamas? A porta abre-se de rompante. Uma fêmea gama de olhar
selvagem e seios luminescentes, com uma cicatriz lívida na barriga, ri-se para nós,
lançando-se numa vénia exagerada. Minha senhora... cavalheiro. Querem encaixar
comigo? Ri-se muito, tem um ataque de tosse, inclina-se para fora levanta uma perna
e lança-se numa dança infernal. Arqueia as costas, dá palmadas nos seios, escancara
as pernas. Luzes verdes e douradas cintilam no quarto que mal se vê nas suas
costas. Uma outra figura aparece atrás dela.
O que é isto, Lilith?

Altura normal, mas o dobro da largura de um gama, e recoberto com um pêlo espesso e
encaracolado. Um macaco? O rosto é humano. Levanta as mãos: dedos curtos e toscos,
com teias pelo meio! Arrasta a mulher para dentro de casa. A porta fecha-se.

Um rejeitado, diz Lilith. Há muitos como ele aqui em baixo.

Rejeitado de onde? Ou por quem?

É um androide defeituoso, resultante de uma falha genética. Impurezas no tanque,


talvez. Há os que não têm braços, às vezes faltam-lhes as pernas, as cabeças, ou
têm problemas digestivos ou outras coisas no gênero.

Mas nesse caso não são automaticamente destruídos na fábrica?

Lilith sorri. Não, não são destruídos. Enfim, os que não são viáveis acabam por
morrer, de uma maneira ou de outra. Os outros são retirados da fábrica quando os
supervisores não estão a ver, e mandam-nos logo para uma destas cidades
subterrâneas, quase todos para aqui. Não podemos condenar à morte os nossos irmãos
idiotas, Manuel!

Leviticus, digo eu. Alfa Leviticus Leaper.

— Sim. Olha, está ali outro.

Uma figura de pesadelo avança para nós, vinda do fundo do corredor. Parece-se com
uma coisa que foi metida num forno até a carne começar a escorrer: a estrutura
básica é humana, mas os contornos não o são: os lábios parecem-se com pires, os
braços são de comprimento desigual, os dedos são tentáculos. Os órgãos genitais,
esses, são monstruosos: pênis de cavalo e testículos de touro.

Preferia morrer, digo eu a Lilith.

Não, não. É nosso irmão. Um dos nossos pobres irmãos, a quem tanto queremos.

A monstruosidade para a doze metros de nós. Os braços coleantes executam os


movimentos do um-dois-três.

Falando nos numa voz espantosamente clara, diz-nos: A paz de Krug esteja convosco,
alfas. Vão com Krug. Vão com Krug. Vão com Krug.

Krug esteja contigo, responde Lilith.

A monstruosidade segue ao seu destino, falando de felicidade.

A paz de Krug? Vai com Krug? Krug esteja contigo? Lilith, o que é que isto quer
dizer?

Mera cortesia, responde ela. Um cumprimento delicado.

Krug?

Foi o Krug quem nos fez a todos, não foi?, diz ela.

Lembro-me agora de coisas que foram ditas quando estive com os meus amigos na sala
de transmutação. Sabes que os androides amam o teu pai? Pois é. As vezes até penso
que se trata de uma espécie do religião androide. A religião de Krug. Enfim, até
faz sentido adorarmos o nosso criador, não faz? Não, não se riam.
A paz de Krug. Vai com Krug. Krug esteja contigo.

Lilith, os androides pensam que o meu pai é Deus?

Lilith esquiva-se à pergunta. Podemos falar disso numa outra altura, diz ela. Aqui
podem haver ouvidos indiscretos... há certas coisas que não convém discutirmos.

Mas...

Noutra ocasião, está bem?

Não insisto. O túnel alarga e transforma-se numa sala de dimensões consideráveis,


bem iluminada e apinhada de gente. Um mercado? Lojas, bancadas, gamas por todo o
lado. Ficam a olhar para nós. Há numerosos rejeitados entre os gamas normais, cada
qual mais horrendo que o seguinte. É difícil de acreditar como é que criaturas tão
deformadas conseguem sobreviver.

Nunca vão à superfície?

Nunca. Podiam ser vistos pelos humanos.

Na cidade dos Gamas?

É melhor não arriscar. Se soubessem liquidavam-nos a todos.

Na confusão do grande salão, os androides atropelam-se, acotovelam-se, protestam,


conversam, discutem. Não sei bem como, mas a confusão não impede que à nossa volta
haja um certo espaço livre, se bem que acanhado. Dois duelos de navalhas decorrem
em cantos distintos, e o lugar tresanda a lascívia pública, à mistura com outros
cheiros inqualificáveis. Uma rapariga de olhos esbugalhados corre para mim e
murmura, Krug seja louvado! Krug seja louvado! Enfia-me qualquer coisa na mão e
foge a sete pés.

Uma prenda.

Um cubo pequeno e frio com arestas abauladas, como os brinquedos da sala de


transmutação de Nova Orleães. Também emitirá mensagens? Emite. Vejo as palavras a
formarem-se, a correrem e a desaparecerem no seu interior leitoso:

UM ENCAIXE BEM DADO PODE SALVAR-TE

SEU SEU SEU SEU DELA DELA DELA DELA

CURTA É A TAÇA, SEU ASQUEROSO

O SLOBIE REINA, O STACKERS MAGOA

PLIT! PLIT! PLIT! PLIT! PLACK!

*
A KRUG O QUE É DE KRUG

Asneiras, só asneiras. Lilith, compreendes alguma coisa disto?

Algumas. Os gamas têm o seu próprio calão, como deves calcular. Aqui, por exemplo,
onde diz...

Um gama macho com pele roxa e picotada tira-nos o cubo das mãos; o cubo escorrega-
lhe e cai no chão; o gama mergulha para o apanhar por entre a floresta de pernas.
Levanta-se enorme burburinho, as pessoas empurram-se e atiram-se umas às outras. O
ladrão consegue soltar-se da mole de gente e foge por um corredor lateral, enquanto
o resto dos gamas ainda esbracejam no meio de enorme confusão. Uma rapariga surge
no cima do amontoado de corpos; perdeu os farrapos com que se tapava no meio da
pilha, e nos seios e coxas veem-se marcas de sangue. Numa mão segura o cubo.
Reconheço-a como a miúda que mo dera pouco antes. Fita-me com uma expressão
demoníaca, mostrando os dentes todos. Acena-me com o cubo e mete-o entre as pernas.
Um rejeitado monstruoso puxa-a por uma perna e leva-a às costas; só tem um braço,
que é grosso como uma árvore, Grig!, exclama a rapariga. Prot! Gliss! Desaparecem
os dois ao fundo do mercado.

O murmúrio da multidão assumiu um tom perigoso.

Imaginei-os a saltarem-nos em cima rasgando-nos as roupas, revelando os meus pêlos


humanos por debaixo do disfarce de alfa. As distâncias sociais talvez não fossem
suficientes para nos proteger da turbamulta.

Vamos embora, disse para Lilith. Estou a ficar farto.

Espera.

Lilith vira-se para os gamas. Levanta as mãos, palmas viradas uma para a outra,
separadas por cerca de meio metro, como se estivesse a explicar-lhes o tamanho do
peixe que acabara de pescar. Depois bamboleia-se de uma forma pecularmente sinuosa,
contorcendo o corpo de forma a descrever uma curva em espiral. A exibição acalma
imediatamente a multidão. Os gamas abrem caminho, baixando humildemente as cabeças
enquanto passamos por eles. Resultou. Está tudo bem.

Já chega, digo a Lilith. Está a fazer-se tarde. A propósito, há quanto tempo é que
estamos aqui?

Já podemos ir embora.

Percorremos um autêntico labirinto de passagens interligadas, cruzando-nos com


centenas de gamas horrivelmente deformados. Vemos slobies a flutuarem nas suas
lentas imitações da realidade. Rejeitados. Stackers e solidificados, para além de
outros que não consigo classificar. Sons, cheiros, cores, texturas — estou cada vez
mais confuso. Vozes no meio da escuridão. Canções.

O dia da liberdade está para breve.

O dia da liberdade está para breve.

Lixem os slobies, apanhem os gliss...

E ascendam à liberdade!

Degraus. Para cima. Correntes de ar frio a descerem. Arquejantes, corremos até ao


cimo e deparam-se-nos de novo as vielas irregulares e imundas da Cidade dos Gamas,
provavelmente a poucos metros do sítio onde começámos a descer. Se me perguntassem,
diria que o consultório do alfa Musketeer fica logo ali ao virar da esquina.

A noite já assentou arraiais. As luzes da Cidade dos Gamas estremecem e vacilam.


Lilith quer levar-me a uma taberna, mas eu recuso. Quero ir para casa. Quero ir
para casa. Já chega. Sinto a mente abismada perante as visões do mundo dos
androides. Ela acaba por ceder. Apressamo-nos. Quanto é que teremos de andar até
chegarmos ao transmat?

Saltamos. O apartamento dela parece-me agora mais quente e brilhante do que nunca.
Libertamo-nos das roupas. Meto-me debaixo do doppler e livro-me da tinta vermelha e
de spray térmico.

Gostaste?

Avassalador, digo eu. Tens muito que explicar, Lilith.

As imagens nadam-me no cérebro. Estou, a arder. Estremeço.

Espero que não digas a ninguém que eu te levei à Cidade dos Gamas, diz ela. Metias-
me num sarilho dos diabos.

Fica descansada. Estritamente confidencial.

Chega-te para aqui, alfa Leaper.

Manuel.

Vem para o pé de mim, Manuel.

Primeiro diz-me o que é que eles queriam dizer com aquilo de Krug seja...

Depois. Estou com frio. Aquece-me, Manuel.

Abraço-a. Os seios dela, como sempre firmes e túrgidos, inflamam-me. Tapo-lhe a


boca com a minha. Enfio-lhe a língua entre os lábios. Caímos os dois no chão.

Trespasso-a sem hesitar. Ela estremece e agarra-se a mim.

Quando fecho os olhos, só vejo rejeitados, slobies e stackers.

Lilith.

Lilith.

Lilith.

Lilith, amo-te, amo-te, amo-te. Lilith, Lilith, Lilith.

O grande tanque ferve; as criaturas rosadas rastejam. Risos. Gargalhadas,


Relâmpagos. Curta é a taça, seu asqueroso! A minha carne morde a dela. Plit! Plit!
Plit! Plit! Com humilhante rapidez, o esgotado Leviticus Leaper despeja um bilião
de meninos dentro do útero estéril da sua amada.»

CAPÍTULO XXVI
9 de Janeiro de 2219.

A torre vai nos 940 metros, e sobe mais depressa do que nunca. Junto à base, mal
conseguimos avistar o topo; perde-se contra o fulgor esbranquiçado do céu
invernoso. Nesta altura do ano, o estaleiro só desfruta de umas poucas horas de luz
do dia, e durante essas horas os raios de sol desenham estrias impressionantes ao
longo daquele veio descomunal.

No interior da primeira metade da estrutura, as obras de construção e montagem de


equipamentos estão praticamente terminadas. Três dos enormes módulos do equipamento
de comunicações já foram içados até aos respectivos lugares: são sombrios
contentores metálicos com cinquenta metros de altura, dentro dos quais estão as
poderosas unidades impulsoras que amplificarão as mensagens à medida que estas
treparem pela torre acima. Vistos de longe, estes módulos fazem lembrar sementes
gigantes dentro de uma vagem transparente.

O número de acidentes continua a subir; os níveis de mortalidade começam a ser


preocupantes; entre os gamas, a perda de vidas tem sido particularmente severa.
Mesmo assim, o moral continua elevado; os androides andam satisfeitos e parecem
perceber que estão a desempenhar um papel essencial num dos mais ambiciosos
projectos da Humanidade. Se continuarem como até aqui, a torre ficará pronta muito
antes da data prevista.

CAPÍTULO XXVII

NAQUELE dia, depois de ter mostrado aos convidados os progressos da torre, Krug
levou-os a jantar ao Clube Nemo, onde a gerência mantinha uma suite inteira
perpetuamente reservada para o Sr. Krug. O clube era um dos empreendimentos menores
do magnata; construíra-o cerca de doze anos antes, e durante uns tempos fora o
lugar de convívio mais «na moda» em todo o planeta, sendo necessárias reservas com
mais de seis meses de antecedência. Situado no Pacífico ocidental, a 10.000 metros
de profundidade, em Plena Fossa Challenger, era constituído por quinze bolhas
pressurizadas através de cujas paredes, feitas do mesmo material vítreo que estava
a ser utilizado na construção da torre, se podiam ver os estranhos habitantes da
fossa abissal.

Os convidados de Krug eram o Senador Henry Fearon e o seu irmão Lou, o advogado da
Fearon & Doheny; Franz Giudice, do Transmat Europeu; Leon Spaulding; e Mordecai
Salah Al-Din, o Presidente do Congresso. Para chegarem ao Clube Nemo, tinham
seguido por transmat até à ilha de Yap, nas Carolinas, onde embarcaram num módulo
de imersão igual aos usados nas explorações de Júpiter e Saturno. A densidade do
meio tornava impossíveis as viagens de transmat por baixo de água. No entanto, as
pressões das profundezas oceânicas pouco ou nada significavam para o módulo de
imersão, que mergulhou no Pacífico e iniciou a descida à calma e constante
velocidade de 750 metros por minuto, até que por fim se alojou na câmara de
descompressão do Clube Nemo.

O abismo estava banhado pela luz de potentes projectores; os habitantes das


profundezas não ligavam; à iluminação, e aproximavam-se sem pejo das paredes de
vidro do clube: peixes frágeis, esguios, sem músculos, de corpos desconchavados e
moles, com tecidos permeáveis à água sob pressões da ordem das dez ou doze
toneladas por centímetro quadrado. Muitos deles eram luminescentes; fiapos pálidos
brilhavam graças aos fotóforos localizados na pele ou entre os olhos, havendo
alguns que os tinham na ponta de uma espécie de cana de pesca pendurada à frente da
boca. O comprimento de onda das luzes do clube fora cuidadosamente escolhido para
não interferir com a luminiscência dos peixes, pelo que os seus pequenos raios
luminosos eram perfeitamente visíveis mesmo sob a claridade que se esvaía das
janelas.

Justin Maledetto, o arquitecto da torre, fora também o desenhador do clube;


Maledetto sabia o que fazia, não descurándo o mínimo pormenor. Os pequenos monstros
— havia-os azuis, escarlates, violetas, pretos e castanhos — aproximavam-se sem
medo até quase tocarem nas paredes. Muitos deles possuíam maxilares sem
articulações, de modo que as bocas podiam abrir-se até ao peito, prontas para
engolirem inimigos com o dobro ou o triplo do tamanho. Nos estranhos encontros do
abismo, eram os pigmeus que comiam os gigantes. Os convivas do clube podiam pois
jantar enquanto observavam deliciados o espectáculo dado por centenas de gárgulas e
horrores em miniatura, sinistros na sua radiância, brandindo os dentes selvagens
dentro das bocarras descomunais, fazendo estremecer os seus estranhos apêndices e
tentáculos, fitando as paredes com olhos inchados como globos ou pendurados em duas
excrescências, ou mesmo sem olhos. Não era preciso viajarmos até mundos distantes
para vermos criaturas bizarras; os seres de pesadelo viviam aqui mesmo, no próprio
planeta do Homem, e bastava ir até ao clube para os observar. Espinhas monstruosas,
dentes recurvos tão compridos que as bocas nem sequer eram capazes de se fechar,
guelras ramificadas a saírem dos lados da cabeça, coisas que eram mais maxilas do
que corpos, coisas que tinham mais cauda do que cabeça, aparições com tentáculos
esvoaçantes, percorridos por pulsações amarelas ou azuladas, centenas de coisas
grotescas, qual delas a mais incrível, e praticamente todas com menos de meio metro
de comprimento: um espectáculo único e inesquecível.

Krug mandou vir uma refeição simples — cocktail de krill, sopa de algas, bife e
vinho clarete da Austrália. Nunca fora um gourmet. O clube tinha para oferecer as
iguarias mais requintadas, mas Krug nunca tirara partido da sua extraordinária
variedade. Os seus convidados, esses, não mostraram a mesma relutância: bem-
dispostos, encomendaram ostras suecas, caranguejos pelágicos, lulas por nascer,
lombimho de vitela, mousse de caracóis, peitos de oryx, rebentos de eufórbia, asas
de manta, corações de cicádia assados e muitas outras coisas, tudo regado com
várias garrafas das melhores colheitas. O criadio parecia deliciado por ter de
servir clientes tão exigentes. Os criados eram todos alfas; não era habitual
empregarem-se alfas em tarefas tão simples como a do serviço de mesa, mas o próprio
local também nada tinha de vulgar, e nenhum dos empregados do Clube Nemo parecia
contrariado por estar a desempenhar uma tarefa normalmente atribuída a betas ou
mesmo a gamas.

Apesar de tudo, era bem possível que os criados não se sentissem lá muito
satisfeitos com a vida que levavam. Quando os aperitivos foram servidos, o Senador
Fearon disse a Krug:

— Reparou no emblema do PIA na lapela do seu criado?

— Está a falar a sério?

— É muito pequeno... só para quem tem a vista aguçada.

Krug virou-se para Spaulding:

— Quando sairmos, fala com o comandante. Não quero política aqui em baixo!

— Em especial uma política revolucionária — comentou Franz Giudice, rindo-se a


despropósito. O executivo do transmat, alto e angular, era bem conhecido pelas suas
certeiras ironias. Apesar de já ter feito os noventa, adoptara um estilo de vestir
que era normalmente usado pelos homens com metade da sua idade, placas espelhadas e
tudo, e mantinha um vigor extraordinário para tão vetusta idade. — É melhor termos
cuidado com este criado... com dois membros do Congresso sentados à mesa, é
possível que ele tente enfiar-nos propaganda dentro dos pratos, a ver se saímos
daqui convertidos.

Pensa que o PIA constitui uma verdadeira ameaça? — perguntou Lou Fearon. — Não sei
se sabe, mas apanhei com uma boa dose das teorias deles quando tratei daquele caso
do Siegfried Fileclerk e da rapariga alfa que foi morta na torre. — Aqui apontou
com o queixo para Spaulding, que baixou os olhos. — Fiquei com a impressão de que
tanto o Fileclerk como os militantes do PIA são perfeitamente ineficazes —
acrescentou o advogado.

— É um movimento minoritário — disse o Senador Fearon. — Nem sequer são apoiados


pela maioria dos androides.

Leon Spaulding confirmou com um lento aceno de cabeça, acabando por dizer:

— Ouvi, da boca de Thor Watchman, palavras muito duras contra o Fileclerk e o seu
partido. Segundo percebi, o Watchman não vê qualquer utilidade na existência do
PIA.

— O Thor é um androide extraordinariamente inteligente e capaz — observou Krug.

— Mas eu estava a falar a sério — disse Giudice. — Vocês podem rir-se do PIA, mas
quanto a mim os seus objectivos são genuinamente revolucionários, e assim que
conseguirem um apoio considerável...

— Shiu — disse Krug.

O criado alfa regressara, trazendo mais uma garrafa de vinho. Os homens sentados à
mesa ficaram tensos e hirtos enquanto o alfa os servia; impávido, o alfa fez o que
tinha a fazer e saiu, fechando delicadamente a porta da suite.

Mordecai Salah Al-Din, o Presidente do Congresso, comentou calmamente:

— Recebi pelo menos cinco milhões de petições enviadas pelo PIA, e já concedi três
audiências aos seus líderes partidários. Com toda a franqueza, considero-os como um
agrupamento sincero e ordeiro, merecedor de que os levemos a sério. Também gostava
de acrescentar (mas por favor não me atribuam estas palavras) que simpatizo com
algumas das suas metas.

— Importa-se de se explicar melhor? — pediu Spaulding em tom ríspido.

— Certamente. Penso que a inclusão de uma delegação de alfas no Congresso é


desejável e ocorrerá provavelmente durante a próxima década. Penso que a venda de
alfas sem o seu consentimento é imprópria e devia ser legalizada, o que deverá vir
a suceder daqui a quinze ou vinte anos. Acredito que antes do ano 2250 concederemos
plenos direitos civis aos alfas, aos betas no final do século e aos gamas pouco
tempo depois.

— Um revolucionário! — exclamou Franz Giudice, espantado. — O presidente é um


revolucionário!

— Um visionário, talvez — disse o Senador Fearon. — Um homem dotado de uma visão


inigualável, para não falar na sua esplêndida compaixão. Como sempre, bem à frente
do seu tempo.

Spaulding abanou a cabeça.


— Alfas no Congresso? Sim, talvez. Como válvula de segurança, para se evitar que
fiquem descontrolados. O mesmo que atirar-lhes um osso, percebem? Mas essas coisas
todas? Não, não. Nunca. Sr. Salah Al-Din, não podemos esquecer que os androides são
meras coisas, são um produto da investigação quimiogenética, criados numa fábrica,
manufacturados pelas Empresas Krug para servirem a Humanidade...

— Tem calma — murmurou Krug. — Estás a ficar excitado...

Lou Fearon interveio:

— O presidente é capaz de ter razão, Leon independentemente do modo como vieram a


este mundo, os androides são mais humanos do que tu estás disposto a admitir. À
medida que formos relaxando gradualmente toda as barreiras arbitrárias da lei e dos
costumes, à medida que as ideias dos Witherers forem sendo gradualmente aceites
(como penso que concordas em que está a acontecer neste preciso momento, de uma
forma subtil), espero que concedamos cada vez mais liberdades aos androides. Aos
alfas, pelo menos Não precisamos de os manter subjugados.

— Qual é a sua opinião, Simeon? — perguntou Franz Giudice. — No fim de contas, são
os seus bebés. Quando decidiu fazer o primeiro androide, alguma vez pensou que um
dia, eles iriam reclamar o direito a cidadania, ou sempre os encarou como...

— O Leon tirou-me as palavras da boca — disse Krug. Como é que ele disse? Coisas.
Coisas saídas de uma fábrica. Sempre pensei em construir um robot aperfeiçoado,
nunca foi minha intenção fabricar homens.

— A linha divisória entre os homens e os androides é tão vaga... — disse o Senador


Fearon — Como os androides são geneticamente idênticos aos homens, o facto de serem
sintéticos...

Krug não o deixou acabar:

— Uma das minhas fábricas pode fazer-te uma réplica perfeita da Mona Lisa, tão
perfeita que seriam precisos seis meses de análises laboratoriais para se provar
que não era o original. Percebes? E depois? Achas que do original? Não, o original
é aquele que nasceu no estúdio do Leonardo, enquanto à réplica saiu da fábrica de
Krug. Era capaz de pagar um bilião pelo original, mas não dava um chavo pela
réplica.

— No entanto, acabou de admitir que o Thor Watchman, por exemplo, é uma pessoa
invulgarmente capaz e dotada — disse Lou Fearon. — A prova está em que lhe confiou
enormes responsabilidades. Já me constou que o senhor confia mais nele do que eu
qualquer homem de sua organização. Apesar disso não permitiria que o Thor votasse?"
Não seria capaz de dar ao Thor uma oportunidade de fazer valer os seus pontos de
vista, se por exemplo o mandasse para aqui como criado de mesa? Concorda com o
facto da lei lhe dar o direito de destruir o Thor, caso lhe apeteça?

— Quem fez o Thor fui eu — retorquiu Krug em tom aborrecido. — É a melhor máquina
das muitas que possuo na minha organização. Gosto dele e admiro-o da mesma forma
que gosto e admiro qualquer máquina soberba, mas a verdade é que o Thor é meu. O
Thor não é um homem, não passa de uma hábil imitação de um homem, uma imitação
irrepreensível. Se eu fosse suficientemente tolo e louco para o destruir, então
podem crer que o destruía sem hesitar um segundo que fosse. — A mão de Krug começou
a tremer, e ele olhou para ela como que a mandá-la parar; o tremor intensificou-se,
e um copo cheio de vinho tombou sobre a toalha. Insensível, Krug repetiu: — Sim,
destruía-o sem qualquer remorso. Nunca pensei noutra coisa quando comecei a
fabricar androides. São meros servos, ferramentas ao serviço do Homem. Máquinas
mais inteligentes que as outras.
Os sensores do módulo de serviço do Clube Nemo detectaram o vinho entornado. O
criado entrou no reservado e limpou eficientemente a porcaria. Do lado de fora da
janela, um cardume de crustáceos gigantescos e translúcidos rodopiava e dançava.

Depois do alfa sair, o Senador Fearon disse para Krug:

— Nunca me apercebi de que tivesses ideias tão firmes quanto à igualdade dos
androides. Bom, também nunca te referiste ao assunto...

— Nunca me perguntaram a minha opinião.

— Se o assunto fosse levado ao Congresso — perguntou Salah Al-Din —, seria capaz de


testemunhar contra o PIA?

Krug encolheu os ombros.

— Não sei. Não sei. Prefiro manter-me fora da política. Sou um industrial, um homem
de negócios, um empresário, percebe? Para quê andar à procura de controvérsias?

— Se os androides obtiverem direitos civis — disse Leon Spaulding —, teremos


problemas nas Empresas Krug. Quero dizer, se se decidisse que as nossas fábricas
estão a fabricar seres realmente humanos, o senhor seria abrangido pelas leis de
controlo populacional, o que...

— Basta! — disse Krug. — Isso nunca acontecerá. Eu faço androides; conheço-os como
ninguém. Sim, sei que há um grupelho de descontentes; são demasiado inteligentes
para o seu próprio bem. Andam para aí a falar no regresso da escravatura, mas não é
nada disso. Nunca o foi os outros sabem-no, e vivem satisfeitos. O Thor Watchman
está satisfeito. Porque é que os alfas não apoiam todos o PIA? A verdade é que se
opõem a ele... e sabem porquê? Porque o consideram como uma idiotice. Nunca foram
maltratados; essa coisa de estarmos a vender alfas contra a sua vontade, de os
matarmos por dá cá aquela palha, não passa de teoria; ninguém no seu perfeito juízo
vende um alfa capaz, assim como ninguém mata androides só para se divertir, do
mesmo modo que ninguém destrói a sua própria casa só para se divertir. Então para
que é que os androides precisam de direitos? Os alfas compreendem isso, e os betas
não se preocupam com problemas dessa magnitude; os gamas, então, estão-se nas
tintas para tudo. Estão a ver? Cavalheiros, o assunto é bom para conversas de café,
mais nada. O PIA acabará por desaparecer. Por favor aceite os meus cumprimentos,
senhor presidente a sua bondade leva-o a defender pontos de vista indefensáveis.
Infelizmente, nunca terá alfas no seu Congresso.

O dilatado discurso de Krug deixou-o sedento, pelo que estendeu a mão para o copo
de vinho. Uma vez mais, a tensão dos músculos traiu-o: o copo voltou a tombar. O
prestável alfa regressou, alertado por sensores escondidos, e aspirou rapidamente o
líquido derramado. Do lado de fora das espessas paredes de vidro do Clube Nemo, um
peixe vermelho-escuro, com perto de um metro de comprimento, escancarou a bocarra
gigantesca e começou a engolir o cardume de crustáceos, devorando-os com um apetite
insaciável.

CAPÍTULO XXVIII

15 de Janeiro de 2219.
A torre alcançou os 1001 metros de altura.

Para celebrar o facto, Krug decretou que no dia seguinte seria feriado para todos
os trabalhadores. Pensa-se agora que a estrutura ficará pronta antes de meados de
Março.

CAPÍTULO XXIX

— ONTEM de manhã tive uma visita, Thor — disse Lilith Meson.

— O Manuel Krug?

— Não. O Siegfried Fileclerk.

Watchman esticou-se no superconfortável divã de Lilith.

— O Fileclerk? Aqui? Para quê?

Lilith riu-se.

— Já estás tão humano que até tens ciúmes, Thor?

— Não brinques com coisas sérias. O que é que ele veio fazer a tua casa?

— Foi ao escritório — explicou Lilith. — Como sabes, ele trabalha, para a Protecção
da Propriedade de Buenos-Aires, de modo que veio discutir uma nova cláusula
salarial, do contrato de trabalho. No fim, perguntou-me se me podia acompanhar a
casa. Não vi mal; nenhum nisso, de modo que aceitei. Sempre me pareceu inofensivo.

— E depois?

— Tentou recrutar-me para o PIA.

— Só isso?

— Não, há mais — disse Lilith. — Também me pediu para eu te recrutar a ti.

Watchman tossiu.

— Sob esse aspecto o tipo não tem hipóteses nenhumas.

— É uma pessoa honestíssima, Thor, devotado à causa da igualdade dos androides,


etc., etc. Dois minutos depois de entrarmos aqui começou a afogar-me em argumentos
e mais argumentos a favor de uma intervenção política imediata. Eu disse-lhe que
era religiosa, mas ele respondeu que isso não interessava que eu podia continuar a
rezar pela milagrosa intervenção de Krug, mas que entretanto não fazia mal nenhum
se assinasse a petição que trazia consigo. Disse-lhe que não, pois nunca assino
seja o que for. Ele ofereceu me uma pilha de cubos de propaganda, com o programa
completo do PIA. Estão na cozinha, caso estejas interessado.. Ficou cá mais de uma
hora — acrescentou Lilith, sorrindo com ar divertido. — Não lhe assinei a petição.

— Mas porque é que ele resolveu dirigir-se a ti? perguntou Watchman. — Será que
tenciona abordar todos os alfas do mundo, um a um, à procura de quem o apoie?
— Já te disse, ele quer que tu assines a petição. Como sabe que somos amigos, e
como deve pensar que eu sou mais fácil de persuadir, deve estar a tentar chegar a
ti através de mim. Na prática foi o que ele me deu a entender. Uma vez que te
passes para o campo deles, as adesões serão aos milhares. — Lilith levantou-se e
ficou hirta, procurando imitar a posição de Fileclerk: — «Se o alfa Watchman se
inscrever no nosso partido, alfa Meson, arrastará consigo centenas de alfas
influentes. Poderá ser o ponto de viragem decisivo para o PIA. É muito possível que
o futuro da raça androide esteja nas mãos do alfa Watchman.» O que é que pensas
disto alfa Watchman?

— Sinto-me profundamente comovido, alfa Meson. Não sou capaz de descrever; o


respeito que tal ideia me provoca. Como é que conseguiste livrar-te dele?

Tentei seduzi-lo.

— O quê?

— Sou uma cadela, não sou, Thor? Se não quiseres não falo mais nisso.

— Eu não fui programado para sentir ciúmes — disse Thor, teimoso. — Não consegues
nada com esse tipo de provocações, e de resto não estou com disposição para
brincadeiras estúpidas.

— Muito bem. Peço desculpa pelo que te disse.

— Continua. Tentaste seduzi-lo, e... não foste bem sucedida?

— Não — confessou Lilith. — Foi uma ideia que só me surgiu na altura... disse cá
para comigo, o Fileclerk é tão convencido que é capaz de fugir a sete pés se eu me
atirar a ele. Por outro lado, se ele morder o isco, até é capaz de ser divertido.
Por isso despi-me e... como é que se dizia antigamente? Atirei-me a ele. Atirei-me
descaradamente. Anda daí, disse-lhe, vamos brincar um bocadinho, Siggie, meu
querido Siggie. Apalpei-o, mas ele esquivou-se, no meio de muitos risinhos. Disse-
me que tinha cócegas. Esforcei-me o mais que pude, Thor, ainda mais do que daquela
vez que tentei seduzir-te a ti. Ele não alinhou, pediu-me para parar.

— Claro — disse Watchman. — Era o que eu estava a tentar explicar-te. Os alfas


machos não se interessam muito pelo sexo, é uma coisa irrelevante para o tipo de
vida que levam.

— Não estejas assim tão convencido disso. O Fileclerk queria-me, estava pálido o
corpo tremia-lhe todo.

— Nesse caso porque é que não foi para a cama contigo? Teve medo de se comprometer
politicamente?

— Não — disse Lilith. — E porque ainda está de luto.

— De luto?

— Pela mulher. A Cassandra Nucleus. Era a mulher dele, Thor. O PIA defende o
casamento entre androides, e o Fileclerk casou-se com a alfa Nucleus há três anos
atrás. Agora está a observar um período de luto de seis meses, durante os quais não
permitirá que as jovens e apetitosas alfas o levem para as suas alcovas. Explicou-
me isso tudo e saiu o mais depressa que pôde como se tivesse medo de não resistir
caso ficasse mais um bocadinho.

— Mulher dele... — murmurou Watchman.


— O PIA tenciona acrescentar mais uma cláusula à petição ao congresso, uma cláusula
que se refere exclusivamente ao casamento dos androides. O Fileclerk ainda me disse
que se tu quiseres casar-te, Thor, ele trata de tudo no dia em que aderires ao
partido.

Watchman riu-se sem vontade.

— Ridículo! Para que é que serve o casamento? Achas que podemos ter filhos? Para
que é necessário haver um lar legalmente constituído? Se eu quisesse viver contigo,
Lilith, bastava-me mudar para cá, ou tu para minha casa. Achas que é preciso termos
alguém a ligar-nos legalmente antes disso? Para nos dar um bocado de papel cheio de
assinaturas?

— O que interessa é a intenção, Thor. Estamos a falar da união permanente entre um


homem e uma mulher, como os humanos fazem. É enternecedor, não achas? Ele amava-a a
sério, Thor!

— Acredito que sim, vi-o a chorar depois do Spaulding a matar. Mas será que ele a
amava por serem casados? Se o casamento é assim tão bom, porque é que o Manuel Krug
te visita todas as semanas? Não seria melhor ele manter a sua união permanente com
a Sra. Krug?

— Há casamentos bons e casamentos maus — disse Lilith. — As mulheres com quem


dormes não definem necessariamente o estado do teu casamento. Seja como for, o
casamento do Fileclerk era um dos bons, pelo que não vejo mal nenhum em adoptarmos
o costume, se é que acreditamos a sério na igualdade.

— Está bem — condescendeu ele. — Queres casar comigo?

— Eu estava a falar em termos genéricos, sobre a possibilidade de podermos adoptar


essa prática.

— Não estou a falar em casos particulares. Não precisamos de aderir ao PIA para nos
casarmos. Basta-me falar com o alfa Constructor e com o alfa Dispatcher para
combinarmos a cerimônia do casamento, e se quiseres casamo-nos na capela esta
noite. Queres?

— Não brinques com coisas, sérias, Thor.

— Não estou a brincar!

— Estás é furioso, não sabes o que é que estás a dizer. Ainda há bocadinho dizias
que o casamento entre androides é uma coisa absurda, e agora queres instituir o
casamento na nossa comunhão. Não estás a ser sincero, Thor.

— Não queres casar comigo? Olha que isso não iria interferir no teu arranjinho com
o Manuel... também não estou programado para ser possessivo. Podíamos viver juntos,
até podíamos...

— Esquece, Thor.

— Porquê?

— Não sei bem o que é que há entre nós, mas sei que podemos continuar como até
aqui, sem nenhum casamento. E tu também sabes disso. Não estava à espera de de uma
declaração, só estava a tentar explicar-te a maneira de ser do Siegfried Fileclerk,
a natureza das suas emoções, a complexidade dos seus sentimentos para com a alfa
Nucleus, bem como o ponto de vista do PIA sobre...
— Chega, Chega! — gritou Watchman, tapando os ouvidos ao mesmo tempo que fechava os
olhos. — Não quero falar mais nisso. Sinto-me fascinado por não teres conseguido
seduzir o Siggie Fileclerk, e estou abismado por saber que o PIA defende o
casamento. Mais nada.

— Hoje não estás nos teus dias, Thor.

— Pois não.

— Porquê? Posso ajudar-te nalguma coisa?

— O Leon Spaulding disse-me hoje uma coisa muito séria, Lilith. Disse-me que quando
a delegação do PIA acabar por ser recebida no congresso, o Krug vai divulgar um
comunicado a denunciar a igualdade dos androides, insistindo que nunca nos teria
criado se soubesse que um dia iríamos exigir os nossos direitos civis.

Lilith ficou sem respiração. De olhos marejados de lágrimas, fez o sinal de Krug-
nos-proteja quatro vezes seguidas.

— Não é possível... — balbuciou.

— O Spaulding disse-me que o Krug lhe tinha dito isso aqui há umas semanas atrás,
no Clube Nemo, na presença do Presidente Salah al-Din, do Senador Fearon e de mais
umas pessoas importantes. Como deves calcular, o Spaulding só me disse a talhe de
foice, no meio de uma conversa qualquer a respeito de outra coisa. Enfim, uma
conversa de amigos entre um ectógene e um androide. Ele sabe que eu sou anti-PIA;
deve ter pensado que a revelação me deixaria satisfeito. Bastardo!

— Será verdade?

— É claro que é. Repara, o Krug nunca revelou publicamente o que é que pensa sobre
futuro papel dos androides. Eu próprio não faço a mínima ideia do que é que ele
pensa a nosso respeito. Sempre parti do princípio de que ele simpatizava com a
nossa posição, mas se calhar limitei-me a projectar as nossas esperanças. A questão
que se nos põe agora não diz respeito a essa monstruosidade, mas sim à
possibilidade dela corresponder à verdade.

— Eras capaz de lhe perguntar?

— Não, não me atrevo — disse Thor. — Acredito que esta história toda não passa de
uma invenção da mente doente do Leon Spaulding, pois o Krug não tenciona, nem nunca
tencionou, quebrar a sua regra sagrada do não envolvimento na política; se é
verdade que o Krug se prepara para divulgar um comunicado, então será aquele por
que tanto temos rezado. O pior de tudo, Lilith, é que me sinto assustado, pois
posso estar redondamente enganado. Estou aterrorizado, Lilith. Um comunicado anti-
igualdade vindo do Krug minaria todas as nossas crenças, atirar-nos-ia para o meio
da escuridão total. Já percebeste o que é que me pôs assim?

— Achas que deves confiar só naquilo que o Spaulding te disse? Não podias falar com
o Senador Fearon ou com o Presidente, para ver se isso corresponde à verdade? Para
saberes o que é que ele realmente disse nesse tal restaurante?

— Queres dizer, vou pedir-lhes explicações sobre uma conversa privada que eles
tiveram com o Krug? Eles participavam imediatamente de mim ao Krug!

— Nesse caso o que é que pensas fazer?

— Vou forçar a mão do Krug — disse Watchman. — Quero que leves o Manuel a uma
capela.
— Quando?

— Assim que puderes. Não lhe escondas nada, deixa-o ver tudo, até ao mínimo
pormenor. Apela-lhe à consciência, e depois manda-o falar com o pai, antes que o
Krug preste quaisquer declarações ao congresso. Enfim, se é que o Krug vai mesmo
prestar declarações perante o congresso.

— Fica descansado — disse Lilith. — Eu trato disso.

Watchman concordou com um aceno de cabeça; olhou para baixo e mexeu os pés, levando
a biqueira a percorrer os padrões desenhados no soalho. Detestava ter de se meter
em manobras deste calibre, em conjuras e contra-conjuras, todas elas baseadas na
fraqueza de espírito do pobre Manuel Krug... e custava-lhe a acreditar que Krug — o
seu Krug! — pudesse ser manipulado por intrigas comezinhas como aquelas. Era o
mesmo que estar a negar a verdadeira fé, era uma brincadeira cínica com o destino,
uma brincadeira que deixava Watchman indeciso quanto à sinceridade da sua fé.
Estaria pois perante uma fachada quando ajoelhava na capela, murmurando as
sequências dos tripletes, mergulhado na Kruguidade, na fé, na oração? Um simples
processo de preencher o tempo até chegar a altura de tomar conta das rédeas do
poder? Watchman afastou a ideia, mas viu-se sem nada a que se agarrar. Antes nunca
tivesse começado com aquelas manobras... desejava estar de novo na torre, ligado ao
computador, governando como um senhor absoluto o interminável fluxo de dados. É
isto o que sentimos quando somos seres humanos? A pressão das decisões, as dúvidas,
os medos? Nesse caso porque não continuar a viver como, um androide? Aceitar o
plano divino, servir e pôr de lado desejos insensatos. Afastar-se das conspirações,
das emoções contraditórias, das teias da paixão. Deu consigo a invejar os gamas,
que não tinham aspirações. Não, isso não, nunca poderia descer à condição de gama.
Fora Krug quem lhe dera aquela mente, fora Krug quem o criara para duvidar e
sofrer. Bendita seja a Vontade de Krug! Levantando-se, Watchman caminhou lentamente
pela sala e, tentando fugir de si próprio, acabou por ligar o aparelho de
holovisão. À imagem da torre de Krug surgiu no écran: imensa, brilhante, a
despontar no meio da tundra iluminada pela claridade de Janeiro. Uma câmara voadora
subiu lentamente ao longo da face sul do obelisco, enquanto o comentador se referia
ao facto de terem sido atingidos os 1000 metros de altura, comparando-os
favoravelmente com as Pirâmides, A Grande Muralha da China, o Farol de Alexandria,
o Colosso de Rodes. Um empreendimento magnífico, que abria o caminho para a
comunicação com raças de estrelas distantes. Um objecto belo por direito próprio,
esfuziante e esguio no topo do planeta. A câmara subia e descia ao longo das
paredes, a lente focava os mínimos pormenores do topo à base. Gamas sorridentes
acenavam para a objectiva. Watchman viu-se a si, próprio retratado por fugazes
instantes, sem saber que estava a ser holovisionado. E lá estava o Krug,
resplandecente de orgulho, apontando a torre a uma pequena multidão de senadores e
industriais. O frio da tundra parecia, escorrer do ecran. A câmara focou as fitas
de refrigeração embebidas no permafrost, seguindo os rastos de vapor que se
elevavam a todo o comprimento, das faixas artificialmente arrefecidas. Se o subsolo
não for mantido abaixo do ponto de congelação, dizia o comentador, a estabilidade
da torre ficaria ameaçada. Um feito sem precedentes no domínio da engenharia
ambiental. Milagroso. Um monumento à visão e determinação do homem, Sim. Sim.
Fenomenal. Num súbito assomo de ferocidade, Watchman desligou o aparelho a torre
refulgente desvaneceu-se como um sonho. Interrompido. Watchman deixou-se ficar
junto à parede, de costas para Lilith, tentando compreender como é que de repente a
vida se tinha tornado tão complicada para si. Queria ser humano, disso não restavam
dúvidas. Então não tinha passado a vida a rezar a Krug para que ele e os seus
iguais tivessem os mesmos privilégios que os Nascidos-do-Ventre?

Sim, sim. Claro, com os privilégios vinham as responsabilidades. Sim. Sim. E com as
responsabilidades vinham as complicações. As rivalidades. O sexo. O amor. As
conjuras. Talvez ainda não esteja pronto para tudo isso, pensou Watchman. Devia
ter-me deixado ficar como um alfa cumpridor e diligente, em lugar de chegar ao
ponto de ter de desafiar a Vontade de Krug. Talvez, talvez. Iniciou os rituais da
tranquilidade, sem sucesso. És mais humano de que desejavas ser, alfa Watchman,
disse para com os seus botões. Percebeu que Lilith estava atrás de si; os mamilos
dela pressionavam-lhe os músculos das costas; a alfa chegou-se a ele, e Watchman
sentiu os grandes globos a achatarem-se contra si.

— Pobre Thor — murmurou ela. — Estás tão tenso... tão preocupado. Queres fazer amor
comigo?

Poderia recusar? Fingiu que ficava entusiasmado, e abraçou-a. Corpo contra corpo.
Ela abriu-se-lhe, e ele penetrou-a. Desta vez fê-lo com mais convicção, mas mesmo
assim continuou a não sentir nada: um mero entrechocar de carnes, um êxtase
distante. Não sentiu nenhum prazer, excepto talvez o de ver Lilith a gemer e a
arquear as costas enquanto bebia o prazer que ele lhe dava. Não sou tão humano como
isso — pensou —, e ela é demasiado humana para mim. Sim, sim! Mexeu-se com mais
ardor, começando a sentir uma leve sensação; Krug concebera bem a sua gente, pusera
nos devidos lugares as necessárias ligações nervosas, se bem que estas passassem a
maior parte da vida adormecidas, talvez devido aos condicionaríamos psicológicos.
Ao aproximar-se do clímax, Watchman experimentou uns breves momentos de genuína
paixão; resfolegou, cravou os dedos de aço nas nádegas de Lilith, furou e
trespassou. De repente sobreveio o espasmo final e, logo a seguir — como da última
vez —, a mesma sensação de vazio, de tristeza, de inutilidade. Era o mesmo que
estar dentro de uma vasta tumba subterrânea, com centenas de metros de comprimento
e outros tantos de largura, sem nada à vista excepto pedaços espúrios de poeira e
fragmentos de teias ressequidas. Só com um grande esforço é que não saiu de dentro
de Lilith, se bem que naquele momento o que mais lhe apetecia era sair de cima
dela. Abriu os olhos; Lilith chorava e sorria ao mesmo tempo, corada, suada e
excitada.

— Amo-te — disse-lhe ela em voz baixa.

Watchman hesitou. Sabia que tinha de responder. O seu silêncio, expandindo-se ao


longo de vários segundos, ameaçava sufocar o universo. Não podia ficar calado, era
inumano se nada dissesse. Tocou-lhe na carne morna, sentindo-se desprendido,
desligado.

— Amo-te, Lilith — acabou por dizer, muito depressa, para ver se acabava de uma vez
por todas com aquilo.

CAPÍTULO XXX

VOCÊS podem perguntar, Quem foi o Criador dos Filhos do Ventre? Quem, na verdade,
foi o Criador de Krug?

Pois em boa verdade vos digo que estas são perguntas sérias, são perguntas que
todos devem fazer.

Têm de compreender que neste mundo há ciclos para todas as coisas, um ciclo do
Ventre e um ciclo do Tanque, em que um precede o outro, de modo que foi necessário
haver primeiro Nascidos-do-Ventre para que depois aparecessem os Nascidos-do-
Tanque.

E Krug o homem veio dos Nascidos-do-Ventre, para que deles surgissem os Nascidos-
do-Tanque.

Apesar disso, Krug, o homem é uma mera incarnação de Krug o Criador, cuja
existência precede todas as coisas e cuja Vontade moldou tudo o que existe, e que
foi o responsável pelo aparecimento dos Filhos-do-Ventre como precursores dos
Filhos-do-Tanque. Como tal, tereis de saber distinguir entre o homem chamado Krug,
que é mortal e ele próprio um Nascido-do-Ventre, e o Krug o Criador, a cujo Plano
tudo obedece; pois mesmo que tenha sido Krug o homem a criar os Filhos-do-Tanque,
tal não impede que o tenha feito no cumprimento dos desígnios de Krug o Criador, do
qual proveem todas as bênçãos, e ao qual todos devemos agradecer.

CAPÍTULO XXXI

PROMETES-TE contar-me tudo, digo a Lilith. Porque é que aqueles gamas se serviram
do nome do meu pai? A paz de Krug. Vai com Krug. Krug esteja contigo. Ainda não me
explicaste nada...

Hei-de explicar.

Quando?

Vais ter de ter disfarçar de novo como um alfa. Olha que não é uma coisa fácil de
explicar, ainda por cima aqui no meu apartamento.

Temos de voltar à Cidade dos Gamas?

Não, diz ela, desta vez não. Desta vez basta irmos ao sítio dos betas. Não me
atrevo a levar-te à capela de Valhallavagen, porque...

Onde?

A capela de Valhallavagen. Fica aqui ao lado. É o lugar de culto preferido dos


alfas, e tu nunca conseguirias enganá-los, Manuel. No caso dos betas é diferente,
acho que não são capazes de te descobrir, desde que te comportes de maneira digna.

Uma capela? Um culto? Portanto sempre é uma religião!

É verdade.

Como é que se chama?.. Krugolatria?

Não tem nome, referimo-nos a ela simplesmente como a comunhão. É uma coisa muito
importante para nós, Manuel. Acho que é a coisa mais importante das nossas vidas.

Não me queres descrever...

Depois. Despe-te, para que te ponha a tinta vermelha. Podemos ir já.

Vai demorar muito tempo?

Uma hora, diz ela. Não te preocupes, desta vez chegas a casa a horas decentes. Se é
que te isso te preocupa.

Tenho de pensar na Clissa, digo eu. Ela dá-me toda a liberdade que eu quero, por
isso acho que não devo abusar.

Está bem, está bem.

Dispo-me, e uma vez mais Lilith disfarça-me como o Alfa Leviticus Leaper. Pelos
vistos guardara as roupas da nossa última surtida; fiquei surpreendido ao ver que
não as tinha devolvido ao Thor Watchman... como se soubesse que voltaríamos a
meter-nos nesta mascarada.

Antes de sairmos, disse ela, há umas coisas que tens de saber. A primeira é que é
absolutamente proibido aos humanos entrarem nas nossas capelas. Pensa nos não-
Muçulmanos, que também não podem entrar em Meca. Tanto quanto sei, és o primeiro
Filho-do-Ventre a entrar numa capela.

O primeiro quê?

Filho do Ventre. És um Filho do Ventre, sabias? E nós somos os Filhos do Tanque.


Percebes?

Oh, oh. Se é sacrilégio eu entrar à socapa numa capela, porque é que me levas lá?
Vocês não levam a sério as vossas próprias regras?

Muito a sério.

E então?

Acho que no teu caso podemos abrir uma excepção, Manuel. Tu és diferente. Já te
disse isso uma vez, lembras-te? Tu não és daqueles que olham para os androides como
uma subclasse da humanidade. Penso que tu, lá por dentro, sempre estiveste do nosso
lado, mesmo que ainda não te tenhas apercebido disso. Não me parece que seja um
sacrilégio ensinar a nossa religião a uma pessoa como tu.

Bom, talvez.

Além disso, não te esqueças que és o filho de Krug.

O que é que o meu pai tem a ver com isso?

Vais ver, diz ela.

Senti-me lisonjeado. Fascinado. Excitado. Um pouco assustado. Serei assim tão


adepto das aspirações dos androides? Poderão eles confiar em mim? Porque é que ela
estará disposta a violar um dos seus mandamentos principais? O que é que ela quer
de mim? Não, quem sou eu para pensar uma coisa dessas? Ela está a fazer isto porque
me ama... e eu não sou digno dela. Será possível? Ela quererá mesmo compartilhar o
seu mundo comigo?

Não te esqueças, diz ela, que seria muito grave se fôssemos descobertos. Peço-te
por tudo que finjas que acreditas, não ajas de modo a despertar suspeitas, esforça-
te por dominares as tuas emoções. Na Cidade dos Gamas portaste-te bem, espero que
agora continues assim.

Mas não há certos ritos que eu devia conhecer? Genuflexões, vénias e outras coisas
do gênero?

Já lá vamos, diz Lilith. Só precisas de saber um ou dois gestos: aliás, um deles já


tu conheces. Este.

Mão esquerda às virilhas, ao peito, à testa. Um-dois-três.


Este é o sinal de Krug-seja-louvado, explica ela. É uma demonstração de respeito.
Fazes este sinal quando entras pela primeira vez na capela e quando te juntas às
orações; podes fazê-lo em silêncio ou acompanhado pelas palavras respectivas.
Também não fica mal fazeres esse sinal sempre que ouças mencionar o nome de Krug.
Na verdade, o sinal de Krug-seja-louvado é apropriado para qualquer dos momentos do
serviço, ou mesmo quando dois androides da nossa comunhão se encontram fora de uma
capela. Vamos lá a ver como é que o fazes. Anda, não tenhas vergonha.

Um, dois, três. Krug-seja-louvado.

Mais depressa. Um-dois-três.

Um-dois-três.

Isso, é assim mesmo. Bom, agora vamos ver outro dos sinais mais importantes. Chama-
se Krug-nos-proteja, e no fundo é uma oração específica para ser usada em momentos
de tensão ou dúvida. Como se dissesses Deus nos proteja. Deves usá-lo sempre que o
contexto do serviço exija que Krug tenha misericórdia de nós, ou quando estiveres a
pedir ajuda a Krug para qualquer coisa. Sempre que precisares de implorar a Krug.

O Krug é mesmo o vosso deus, digo eu, atarantado.

O sinal é assim. Lilith mostra-me como se faz: uma mão em concha sobre cada um dos
mamilos, virando-as depois com as palmas para fora. Um acto de contrição: aqui tens
a minha alma, Krug! O meu coração é teu. Lilith faz o sinal várias vezes, e eu
imito-a.

Mais uma vez, diz ela. Agora o sinal da submissão à Vontade de Krug. Só o fazes uma
vez, assim que ficares à vista do altar. Assim. Deixa-te cair sobre um joelho e
estende os braços em frente, com as palmas das mãos viradas para cima.

Qual é o joelho indicado?

Tanto faz. Anda, faz como eu.

Faço o sinal de submissão à Vontade de Krug, satisfeito por ficar a saber como era.
Na verdade, passara uma vida inteira a submeter-me à vontade do Krug, mesmo sem
saber que existia um sinal para isso.

Vamos lá a ver se percebeste tudo, diz-me Lilith. Quando entras na capela, o que é
que deves fazer?

Um-dois-três. Krug-seja-louvado.

Isso mesmo. E depois?

Quando vir o altar, faço a submissão à Vontade. Ajoelho, estendo os braços e viro
as palmas para cima.

Isso. E depois?

Quando ouvir pedir favores a Krug, faço o sinal de Krug-nos-proteja. Mãos ao peito,
palmas para fora. Também devo fazer o sinal de Krug-seja-louvado sempre que ouça
mencionar o nome de Krug.

Óptimo. Óptimo. Não vais ter nenhuns problemas, Manuel.

Mas há um outro sinal, um que te vi fazer na Cidade dos Gamas, digo eu.
Mostra-me.

Levanto as mãos acima da cabeça, com as palmas viradas uma para a outra e separadas
cerca de meio metro, para depois bambolear as ancas ao mesmo tempo que dobro os
joelhos, desenhando uma espécie de espiral.

Fizeste isto na Cidade dos Gamas, quando a multidão começou a ficar demasiado
excitada.

Lilith solta uma gargalhada. Chama-se a Bênção do Tanque, diz ela. É um sinal de
paz e ao mesmo tempo um adeus. Fazemo-lo perante uma pessoa morta, durante a oração
final, ou então usamo-lo em situações de grande tensão. É um dos sinais mais
sagrados... e tu não o fizeste como deve de ser. Baseia-se na dupla hélice da
molécula de ácido nucleico, percebes? A dos genes. A forma como as moléculas se
enrolam. Tentamos imitá-lo com os nossos corpos, assim, estás a ver?

Lilith faz o sinal. Imito-a, e ela ri-se.

Desculpa, mas não consigo dobrar o corpo dessa maneira.

É preciso prática, e de resto não vais precisar de o fazer. Basta que saibas o
Krug-seja-louvado e o Krug-nos-proteja. Bom, é melhor irmos.

Levou-me para um bairro pobre da cidade, que pelo aspecto deve ter sido uma zona
comercial nos velhos tempos. Não tinha a aura fantasmagórica da Cidade dos Gamas,
mas também não evidenciava o ar limpo e bem cuidado dos bairros dos alfas. Pobre,
deslavado.

A capela fica ali, diz Lilith.

Vejo a montra de uma loja, com os vidros tapados por pedaços de papel. À porta,
dois betas postados junto à ombreira, como se não tivessem nada de melhor para
fazer. Atravessamos a rua, e de repente sinto que as pernas me fraquejam. E se eles
descobrem? O que é que serão capazes de me fazer? E à Lilith?

Sou o alfa Leviticus Leaper.

Quando nos aproximamos da entrada, os betas afastam-se para o lado, fazendo o sinal
de Krug-seja-louvado. Olhos baixos, em evidente sinal de respeito. As tais
distâncias sociais. A Lilith nunca teria conseguido isto se eu não fosse alto e
magro como os alfas. A minha confiança renasce, fortalece-se; vou mesmo ao ponto de
fazer o Krug-seja-louvado a um dos betas.

Entramos na capela.

Uma grande sala circular. Nenhum banco, mas no chão uma espessa alcatifa de
pseudovida, obviamente degradada pelo uso de milhares e milhares de joelhos.
Iluminação indirecta. Lembro-me de fazer o Krug-seja-louvado no momento em que
entro. Um-dois-três.

Um pequeno vestíbulo; dois passos adiante, vejo o altar pela primeira vez. Lilith
ajoelha, faz a submissão à Vontade. Quase que me esqueço de a imitar, ou melhor,
quase que caio ao chão, atônito.

O altar: um enorme paralelipípedo de uma coisa que parece carne viva, sentado num
ornamentado tanque de plástico, no fundo do qual borbulha um fluido rosado, cheio
de redemoinhos; que ocasionalmente trepam pela carne acima, o bloco tem pelo menos
um metro de altura e talvez três metros de comprimento e dois de largo.
E por detrás do altar? A imagem do meu pai, em holograma! Uma réplica perfeita, em
tamanho real fitando-nos de, frente, com uma expressão séria e dura, lábios
cerrados. Nada parecido com um deus do amor. Forte, de aço. Por se tratar de um
holograma, os olhos dele seguem-nos por toda a sala; em qualquer ponto da capela,
estamos sempre sob o olhar circunspecto de Krug.

Ajoelho. Levanto as mãos, com as palmas viradas para cima.

Submisso a vontade de Krug!

Fico chocado. Mesmo que me tivessem contado antes de entrar, nada impediria o
choque. É assim por todo o mundo, pergunto? Milhares de androides a fazerem
salamaleques ao meu pai? A pergunta é murmurada, mal se ouve. Sim, diz ela. É assim
em todo o lado. Prestamos-lhe homenagem. Krug seja louvado...

Quem? Aquele homem, que conheço, desde que me conheço a mim? O construtor de
torres, o inventor dos androides... um deus? Faço um enorme esforço para não
desatar à gargalhada. Portanto sou o Filho de Deus? Não, não gosto desse papel. É
óbvio que aqui ninguém me adora; não fui integrado na teologia.

Levantamo-nos. Com um ligeiro gesto da cabeça, Lilith indica-me um lugar ao fundo


da capela. Vamos para lá e ajoelhamo-nos. A escuridão deixa-me reconfortado. Haverá
uns dez, talvez doze androides dentro da capela, todos betas à excepção de um alfa,
este ajoelhado mesmo em frente ao altar, de costas para nós. Sinto-me mais à
vontade por ver que não somos os únicos alfas presentes. Entram mais alguns betas,
fazendo os gestos apropriados. Ninguém repara em nós. São as distâncias sociais,
claro. Todos parecem mergulhados em profundas orações.

O serviço e só isto, Lilith?

Não, ainda não começou. Chegámos um bocadinho cedo de mais. Já vais ver como é.

Os olhos de Krug perfuraram-me. Ali especado, por detrás do altar, o meu pai quase
que parece um deus. Devolvo-lhe o olhar. O que é que ele diria se soubesse? Ria-se,
pela certa. Era capaz de esmurrar o tampo da secretária. Gritava de alegria. Eu,
Krug, um deus? Krug Jeová? Simeon Alá? Cristo, essa é boa! Mas por que é que eles
não haviam de adorar? Fui eu que os fiz; não fui?

Quando a vista se acostuma à semi obscuridade, ponho-me a examinar os padrões


gravados nas paredes. Não são, como a princípio suspeitara, um desenho abstracto
puramente ornamental. Não vejo agora várias letras do alfabeto repetidas vezes sem
conta, cobrindo cada centímetro das paredes. Faltam muitas letras; leio uma linha e
só consigo ver o A, o U, o G e o C, arranjados de diferentes maneiras, como por
exemplo;

AUA AUG AUC AUU GAA GAG GAC GAU GGA GGG GGC GGU.

GGA GCG GCC GCU GUA GUG GUC GUU CAA CAG CAC CAU.

E assim por diante. O que é que representam, Lilith? Os desenhos na parede.

São o código genético, diz ela. Os tripletes do ARN.

Oh... Claro. De súbito recordo episódios da Cidade dos Gamas, a rapariga viciada em
slobie a cantar as letras, G A A G A G G A C. Agora vejo-as a todas nas paredes.
Uma oração?

É uma espécie de linguagem sagrada. Como o Latim era para os Católicos.


Comprendo.

Não, não compreendo nada. Limito-me a aceitar.

De que é feito o altar?, pergunto.

De carne. Carne sintética.

Viva?

Claro. Vinda directamente de um tanque, como tu ou eu. Desculpa, como tu não. Como
eu. É só um pedaço de carne de androide, viva…

Como é que se mantém viva? Não vejo órgãos nem nada parecido...

É alimentada pelos nutrientes do tanque, e de vez em quando dão-lhe injecções pela


parte de baixo, Mas está viva, até cresce. Tem de ser aparada de tempos a tempos.
Simboliza a nossa origem. A tua não, claro. A nossa. Há um altar destes em todas as
capelas, roubado de um bocadinho da carne da fábrica.

Como os rejeitados.

Sim, como os rejeitados.

Sempre julguei que o esquema de segurança nas fábricas de androides era altamente
sofisticado, digo eu.

Lilith pisca-me um olho. Começo a sentir-me integrado à conspiração.

Três androides entram na capela, vindos das traseiras. Dois betas e um alfa,
vestidos com estolas brocadas nas quais se podem ver inscritas as letras do código
genético.

Todos têm um ar sacerdotal. O serviço está prestes a começar. Quando os três


ajoelham em frente ao altar, todos os presentes fazem o sinal de Krug-seja-louvado
e o de Krug-nos-proteja. Faço o mesmo.

São mesmo padres?

Celebrantes, diz Lilith. Não temos padres, nada que se pareça. Temos várias castas
que desempenham diferentes papéis em diferentes cerimônias, de acordo com o sentido
e os trâmites do ritual. Aquele alfa ali é um Preservador; entra num transe que o
põe em comunicação directa com Krug. Os dois betas são Projectores, e servem para
amplificar o estado emocional do alfa. Noutras cerimônias poderás ver a oficiar
Açambarcadores, Transcendentais ou Protectores, acolitados por Submissos,
Sacrificadores ou Responsores.

A que casta pertences?

Sou uma Responsora.

E o Thor Watchman?

É um Preservador.

O alfa junto ao altar começa a cantar. CAU, UUC, UCA, CGA, CCG, GCC, GAG, AUC.

Vai ser tudo em código?


Não, isto é só para determinar a textura.

O que é que ele está a dizer?

Dois betas à nossa frente voltam-se para nos mandar calar. Veem que somos alfas e
mordem os lábios.

Lilith explica-me, num murmúrio. Ele está a dizer, Krug traz-nos ao mundo e a Krug
regressamos.

GGC GUU UUC GAG.

Krug é o nosso criador, o nosso protector e o nosso salvador.

UUC, CUG, CUC, UAC.

Krug, suplicamos-Te que nos ilumines.

Não consigo perceber o código. Os símbolos não se ajustam ao sentido das frases.
Qual é o símbolo para Krug? Como é que funciona a gramática? Não é altura de
perguntar tanta coisa à Lilith, já estamos a despertar demasiado as atenções.
Várias cabeças voltam-se para trás: Quem serão aqueles alfas barulhentos lá atrás?
Não terão nenhum respeito pela cerimônia?

Os Projectores murmuram em tom ressonante, o Preservador continua a cantar em


código. Lilith começa a reagir como uma Responsora, repetindo o que está a ser
cantado junto ao altar. As luzes atenuam-se e de repente ficam muito brilhantes. O
fluido em redor do bloco do altar borbulha freneticamente. A imagem de Krug parece
resplandecer; o olhar do holograma penetra-me na alma.

Já consigo perceber algumas palavras do serviço. A mistura com o código, estão a


pedir a Krug que salve os Filhos do Tanque, que lhes conceda a liberdade, que os
eleve ao nível dos Filhos do Ventre. Cantam qualquer coisa sobre o dia em que o
Tanque e o Ventre e o Ventre e o Tanque serão um só. Com uma infinidade de gestos
de Krug-nos-preserve, pedem misericórdia a Krug. Krug! Krug! Krug! Krug! Tudo ali
gira à volta do conceito de um Krug misericordioso!

Começo a perceber. Afinal estou perante um movimento equalitário! É a frente de


libertação dos androides!

Krug nosso senhor, conduz-nos ao nosso devido lugar ao lado dos nossos irmãos de
carne e osso.

Krug, salva-nos.

Krug, põe fim ao nosso sofrimento.

Louvado seja Krug.

Glória a Krug.

O serviço cresce de intensidade. Todos cantam e fazem sinais, incluindo alguns que
a Lilith nunca me explicou. A própria Lilith está completamente absorvida nas suas
orações. Sinto-me isolado, um infiel, um intruso a ouvir aquela gente a rezar ao
seu criador, o meu pai e deus dos androides. O serviço continua, de novo naquela
estranha linguagem codificada, mas de quando em quando ouvem-se palavras
familiares. Krug, desce e traz-nos a redenção. Abençoa-nos, Krug. Krug, faz com que
acabe este período de provação. Krug, precisamos de ti. Krug Krug Krug Krug Krug. A
cada Krug fico sobressaltado, como se me tocassem com a ponta de uma lâmina nas
omoplatas. Nunca suspeitei de nada como isto. Como é que eles conseguiram manter o
secretismo? Krug o deus. O meu pai, um deus. E eu também sou um Krug. Se o Krug
morrer, quem passarão a adorar? Como é que um deus pode morrer? Será que também
rezam pela ressurreição de Krug? Ou o Krug na Terra será uma simples manifestação
temporária de um verdadeiro Krug nas alturas? É o que me parece, depois de ouvir
mais algumas frases saídas da boca do oficiante.

Agora cantam todos em uníssono, fazendo ressoar o ar da capela:

AAA AAG AAC AAU a Krug.

AGA AGG AGC AGU a Krug.

ACA ACG ACC ACU a Krug.

Estão a oferecer-lhe o código genético inteiro, linha a linha. Sigo-os lendo as


colunas inscritas na parede, e de súbito oiço a minha voz à juntar-se ao coro...

GAA GAG GAC GAU a Krug.

GGA GGG GGC GGU a Krug.

Lilith vira-se para mim e sorri. Tem o rosto corado, excitado, exaltado, quase que
envolto numa aura sexual. Acena a cabeça, encorajando-me.

Canto com mais força.

GCA GCG GCC GCU a Krug.

GUA. GUG GUC GUU a Krug.

O código prossegue, interminável, num tom estranho, agudo, sem que os presentes
consigam acertar o tom uns com os outros, mas sem se perderem, da sequência; era
como se os androides se sintonizassem em escalas diferentes, mudando a intervalos
incertos. Apesar de tudo não tenho problemas em adaptar-me, e canto com eles até ao
fim.

UUA UUG UUC UUU a Krug.

Levantamo-nos. Aproximamo-nos do altar. Lado a lado, ombros com ombros, Lilith à


minha esquerda e um beta qualquer à direita, pousamos as mãos no bloco de carne
viva. O paralelipípedo, escorregadio ao toque, está morno; estremece quando lhe
tocamos. Sinto o corpo percorrido por suaves vibrações. Krug, cantamos, Krug, Krug,
Krug.

A cerimónia acabou.

Alguns dos androides saem, outros ficam parecendo demasiado exaustos para poderem
sair imediatamente. Eu próprio sinto-me exausto, e mal tomei parte no serviço
religioso. Uma comunhão intensa; diziam que a religião estava morta, que era um
costume antigo há muito caído em desuso, mas enganam-me. Está viva e bem viva entre
esta gente. Os androides acreditam em valores mais altos e no poder da oração.
Pensam que Krug os ouve. Será que Krug os ouve? Será que Krug alguma vez os ouviu?
Eles pensam que sim. Se não os ouve agora, dizem eles, então ouvi-los-á um dia; e
então libertá-los-á das grilhetas da escravidão. O ópio das massas? Não, os alfas
também acreditam.

Há quanto tempo é que existe esta religião?, pergunto a Lilith.


Já existia quando eu nasci.

Quem é que a inventou?

Começou tudo aqui, em Estocolmo. Um grupo de alfas. Espalhou-se rapidamente, agora


temos crentes em todo o mundo.

Todos os androides são crentes?

Nem todos. A gente do PIA não acredita. Nós pedimos milagres; esperando pela graça
divina; eles preferem a agitação política. Somos mais numerosos do que eles, mais
de metade dos androides acreditam no credo, praticamente todos os gamas, a maioria
dos betas e muitos alfas.

E acham que se pedirem a Krug para vos redimir, ele acabará por aceder?

Lilith sorri. Que outra esperança, nos resta?

Já alguma vez abordaram directamente o Krug?

Nunca. Não sei se estás a perceber, mas nós distinguimos entre Krug o homem e Krug
o Criador, e achamos que... — Lilith abana a cabeça. — É melhor não falarmos disso
aqui, podem ouvir-nos.

Dirigimo-nos à porta da rua. A meio caminho, Lilith para, volta atrás e tira
qualquer coisa de uma caixa junto à base do altar. Estende-ma. É um cubo de dados.
Liga-o, e eu leio as palavras que se formam e desfilam no seu interior:

No princípio havia Krug, e Ele disse, Que haja Tanques, e os Tanques apareceram.

E Krug viu os Tanques e achou-os bons.

E Krug disse, Que haja nucleótidos de alta energia dentro dos Tanques. E os
nucleótidos correram, e Krug misturou-os até ficarem ligados uns aos outros.

E os nucleótidos formaram grandes moléculas, e Krug disse, Que os Tanques sejam pai
e mãe, as células que se dividam, faça-se vida dentro dos Tanques.

E assim apareceu a vida, pois aconteceu a Replicação.

E Krug presidiu à Replicação, e tocou nos fluídos com as Suas próprias mãos, para
lhes dar forma e essência.

Que saiam homens dos Tanques, disse Krug, e mulheres também, para, que possam
nascer e viver no nosso seio, para que sejam fortes e trabalhadores, e por isso
serão chamados Androides.

Viro e reviro o cubo. Aparecem novas mensagens, textos inteiros. Uma bíblia
androide. E porque não?

Fascinante, digo a Lilith. Quando é que isto foi escrito? Começaram a escrever os
cânones aqui há uns anos, mas ainda hoje estão a ser relacionados entre o homem e
Krug.

O relacionamento entre o homem e Krug? Formidável.

Fica com ele, diz Lilith, és capaz de o achar interessante. É para ti.
Saímos da capela. Escondo a bíblia androide debaixo das roupas, mas o enchumaço
nota-se perfeitamente.

De novo no apartamento da Lilith. Agora já sabes, diz ela. O nosso grande segredo,
a nossa grande esperança.

Exactamente, o que é que vocês esperam que o meu pai faça por vós?

Um dia, diz ela, o teu pai abrir-se-á ao mundo e revelará tudo o que pensa a nosso
respeito. Dirá: Os androides têm sido tratados injustamente, pelo que está na
altura de corrigirmos este estado de coisas. Concedamos-lhes a cidadania.
Concedamos-lhe plenos direitos. Nunca mais os consideraremos como meros objectos. E
porque ele é Krug, porque foi ele quem deu ao mundo os androides, o mundo escutá-
lo-á. Ele, sozinho, conseguirá convencê-los, e então tudo mudará para nós.

Acreditas mesmo que isso vai acontecer?

Acredito e rezo para que aconteça, responde ela.

Quando? Está para breve?

Quem sou eu para responder? Daqui a cinco anos... vinte anos... quarenta... ou
talvez já no mês que vêm. Lê o cubo que te dei. Está lá explicado porque é que nós
achamos que Krug nos está a testar, para ver se somos merecedores da sua graça. Um
dia, a provação acabará.

Gostava de compartilhar o vosso optimismo, digo eu. Infelizmente, tenho a impressão


de que vocês vão ter de esperar muito, muito tempo.

Porque é que dizes isso?

O meu pai não é o humanitário que vocês pensam que é. Não estou a dizer que seja um
vilão, mas a verdade é que ele pouco se preocupa com as outras pessoas e com os
problemas dos outros. Vive totalmnte absorvido pelos seus projectos.

No entanto, não deixa de ser uma pessoa honrada, diz Lilith. Estou a referir-me a
Krug o homem, claro, e não à divindade a quem rezamos. Só ao teu pai.

Sim, acho que é um homem; honrado.

Portanto será capaz de reconhecer o mérito da nossa causa.

Talvez sim, talvez não. Abraço-a. Lilith, gostava tanto de vos poder ajudar!

Mas podes ajudar-nos, se quiseres.

Como.

Fala com o teu pai. Fala-lhe de nós.

CAPÍTULO XXXII

30 de Janeiro de 2219.
A torre vai nos 1156 metros, e até os androides têm dificuldade em respirar o ar
rarefeito e gélido enquanto trabalham a mais de um quilômetro de altura acima da
tundra. Nos últimos dez dias, pelo menos seis caíram do cimo. Thor Watchman mandou
distribuir sprays de infusão de oxigênio a todos os que trabalham no terço superior
da torre, mas muitos dos gamas recusam-se a usá-los, dizendo que são degradantes e
efeminados. Por certo que haverá mais mortes durante a construção dos últimos 335
metros, planeada para Fevereiro e Março.

A estrutura, essa, tem um aspecto imponente. As últimas centenas de metros já nada


acrescentarão à sua majestuosidade e elegância; limitar-se-ão a rematar a
maravilhosa estrutura existente. O topo, que tão alto está, parece perder-se na
atmosfera, rodeado por um halo de fogo. Dentro da torre, os técnicos continuam a
instalar os equipamentos de comunicação, e os progressos são tão notórios como os
da parte civil da obra. Pensa-se que os aceleradores ficarão prontos em Abril,
enquanto a calha dos protões funcionará em Maio. Os testes preliminares do gerador
de taquiões deverão ter lugar em Junho, e em Agosto, talvez, serão lançadas as
primeiras mensagens.

É possível que a gente das estrelas responda. Quem sabe?

Mesmo isso não interessa: a torre já tem lugar assegurado na história da


humanidade.

CAPÍTULO XXXIII

QUANDO, ao raiar do dia, acorda ao lado de Quenelle, na sua casa do Uganda, Krug
sente-se a transbordar de energia, completamente dominado pela força vital. Há
muito tempo que não se sentia tão bem, e como tal encarou a novidade como um bom
augúrio: tinha pela frente um dia cheio de actividade, um dia ideal para aplicar
uma vez mais o seu poder na prossecução dos seus objectivos.

Manhã na África Ocidental, noite no Colorado; o turno da noite atarefava-se em


redor da nave estelar. O alfa Romulus Fusion estava presente, supervisionando
cuidadasamente os trabalhos em curso. Orgulhoso, informou Krug de que a nave já
fora transportada desde o seu berço de construção, no subsolo, até o campo de pouso
adjacente, onde estava a ser preparada para o primeiro voo de ensaio.

Krug e o alfa Fusion foram até ao pequeno astroporto. Iluminada por uma dúzia de
placas reflectoras, a nave estelar parecia simples e quase insignificantes pois o
seu tamanho nada tinha de extraordinário — as vulgares naves inter-sistema eram
muito maiores e a sua superfície rugosa não reflectia a luz circundante. Apesar
disso, Krug achou-a de uma beleza ímpar, quase tão bela como a própria torre.

— Que gênero de voos de teste estão planeados?— perguntou.

— Preparámos um programa em três fases — explicou Romulus Fusion. — No princípio de


Fevereiro, colocaremos em órbita terrestre, para vermos se o sistema básico de
propulsão está a funcionar correctamente. A seguir, em fins de Fevereiro, virá o
primeiro teste de velocidade. Vamos colocá-la a 2.4 gês de aceleração para uma
curta viagem de ida e volta, provavelmente até e órbita de Marte. Se tudo correr
bem, faremos outro teste de velocidade em Abril, com uma viagem de pelo menos três
semanas, cobrindo vários biliões de quilômetros... quero dizer, para lá da órbita
de Saturno, possivelmente até à órbita de Plutão. Ficaremos assim a saber se a nave
está capaz de encetar uma verdadeira viagem interestelar; se puder manter-se em
aceleração constante durante a viagem de ida e volta a Plutão, então, poderá ir-a
qualquer lado sem problemas.

— Como é que vão os testes, dos sistemas de suspensão de vida?

— Já terminaram; funciona tudo na perfeição.

— E a tripulação?

— Temos oito alfas a receber instrução, todos eles pilotos experimentados, e


dezasseis betas também a cumprir um programa de treino. Vamos utilizá-los nos
vários voos do teste, para no fim escolhermos a tripulação definitiva, nomeada em
função das pontuações obtidas por cada um.

— Excelente — disse Krug.

Ainda efervescente, saltou para a torre, onde se lhe deparou o alfa Euclid Planner
a tomar conta do turno da noite. A estrutura subira, onze metros desde a última
visita de Krug, e no departamento de comunicações os progressos eram notáveis;
Krug, se já estava bem-disposto, ficou ainda mais expansivo. Vestiu um fato-térmico
e subiu ao topo da torre, coisa que raramante fizera nas últimas semanas. As
estruturas espalhadas em redor da base pareciam casas de brinquedos; e os
trabalhadores eram meros insectos. O prazer que sentiu ao contemplar a serena
beleza da torre ensombrou-o quando um beta foi subitamente arrastado por uma rajada
de vento, caindo do elevador autônomo onde seguia. Krug, porém, esqueceu-se
rapidamente do incidente; aquelas mortes eram lamentáveis, claro, mas qualquer
grande empreendimento requeria alguns sacrifícios.

A seguir foi até ao observatório de Vargas, na Antárctida, onde ficou por várias
horas. Vargas não descobrira nada de novo nos últimos tempos, mas não era por isso
que Krug deixava de se sentir menos atraído por aquele lugar; adorava ver-se no
meio daqueles instrumentos delicados, adorava respirar aquela atmosfera de
descoberta iminente; acima de tudo, as visitas permitiam-lhe ouvir uma vez mais os
sinais recebidos da NGC 7293. Os sinais continuavam a chegar, sempre na forma
alterada que fora descoberta meses antes: 2-5-1, 2-3-1, 2-1. Vargas já recebera a
mesma mensagem em várias frequências rádio, bem como por via óptica. Krug escutou
deliciado a canção alienígena, e quando partiu, os sons ainda ressoavam dentro do
cérebro.

Prosseguindo no seu circuito de inspecção, Krug saltou para Duluth; onde observou
uma nova fornada de androides a saírem dos tanques. Nolan Bompensiero não estava
presente — em Duluth, o turno da noite era supervisionado unicamente por alfas —,
mas mesmo assim Krug visitou as instalações de fio a pavio, acompanhado por um dos
seus respeitosos e subservientes rebentos. A produção parecia decorrer a níveis
elevados, talvez nunca antes atingidos, se bem que o alfa informasse que não
conseguiam dar vazão aos pedidos.

Por fim, Krug saltou até Nova Iorque. No silêncio do seu escritório trabalhou até
aos primeiros alvores, resolvendo vários problemas corporativos recentemente
surgidos em Calisto e Ganimedes, no Peru, na Lua e em Marte. O dia nasceu com um
glorioso sol de Inverno, tão brilhante e ao mesmo tempo tão pálido que Krug se
sentiu tentado a voltar à torre para a ver brilhar sob aquele fogo matinal. Deixou-
se ficar, porém. O pessoal começava a chegar: Spaulding, Lilith Meson e os
restantes funcionários da sede do seu império. Seguiram-se inúmeros memorandos,
chamadas telefônicas e teleconferências; de vez em quando, Krug fitava o écran de
holovisão que pouco tempo atrás mandara instalar numa das paredes do gabinete, e
que lhe proporcionava uma imagem em circuito fechado da torre de vidro. No árctico,
pelos vistos, a manhã não nascera tão gloriosa; o céu estava forrado de nuvens
plúmbeas, como que a prenunciar um nevão lá mais para o fim do dia. Viu Thor
Watchman no meio de uma multidão de gamas, dirigindo a alagem de uma peça qualquer
do equipamento de comunicações. Congratulou-se uma milésima vez pela acertada
escolha que fizera: Thor Watchman era, sem, dúvida, o supervisor indicado para um
empreendimento daquela envergadura. Haveria melhor androide em todo o Mundo?

Por volta das 09.50, a imagem de Spaulding apareceu no projector de vapores de


sódio. O ectógene cumprimentou-o e disse:

— O seu filho acaba de ligar da Califórnia. Pede desculpa por ter adormecido, e diz
que chegará uma hora atrasado à entrevista que tinha marcado consigo.

— O Manuel? Uma entrevista?

— Estava marcada para as 10.15. Na semana passada, o Manuel pediu-me para lhe
arranjar um buraco na sua agenda.

Krug esquecera-se completamente, o que o deixou algo surpreendido. O que não o


surpreendia mesmo nada era o atraso do filho. Chamou Spaulding e, não sem alguma
dificuldade, os dois alteraram o programa da manhã, de modo a arranjarem uma hora
livre, entre as 11.15 e as 12.15, para poder receber o filho.

Manuel chegou às 11.23.

Parecia tenso e exausto e, para além disso, Krug reparou que vinha estranhamente
vestido, muito diferente do que lhe era habitual: calças justas, coladas à pele, e
uma camisa com folhos de renda, à moda dos alfas. Os cabelos, muito compridos,
trazia-os presos atrás da cabeça, formando uma espécie de rabo-de-cavalo. O efeito
geral era péssimo: a camisa aberta revelava-lhe o tronco amplo e peludo, nada
condizente com as roupagens de androide. Enfim, um tronco que Manuel herdara do
pai, talvez a única característica que herdara de Krug.

— Agora é assim que os jovens da alta sociedade se vestem? — perguntou Krug. — Como
um alfa?

— Apeteceu-me, pai. Não se pode dizer que esteja na moda... por enquanto. — Manuel
obrigou-se a sorrir. — Bom, calculo que se me virem assim a moda é capaz de
pegar...

— Pois eu não gosto. Faz algum sentido andares vestido de androide?

— Acho que é atraente...

— Eu cá não acho. O que é que disse a Clissa quando te viu assim vestido?

— Pai, não marquei este encontro para discutirmos os meus gostos em matéria de
roupas.

— Bom, então para que foi?

Manuel depôs um cubo de dados em cima da secretária do pai.

— Ofereceram-me isto aqui há uns dias atrás, durante uma visita a Estocolmo.
Importas-te de o examinar?

Krug pegou no cubo, revirou-o nas mãos nodosas e activou-o. Começou a ler:

E Krug presidiu à replicação, e tocou nos fluidos com as suas próprias mãos, para
lhes dar forma e essência.
Que saiam homens dos Tanques, disse Krug, e mulheres também, para que possam nascer
e viver no nosso seio, para que sejam fortes e trabalhadores, e por isso serão
chamados Androides.

E assim se fez.

Nasceram os Androides, porque Krug os criou à Sua própria imagem, e os androides


caminharam na face da Terra para servirem a humanidade.

Por todas estas coisas, louvado seja Krug.

Krug franziu a testa.

— Mas que raio é isto? Uma espécie de novela? Um poema?

— É uma bíblia, pai.

— De alguma religião maluca?

— Da religião dos androides — respondeu Manuel, muito calmo. — Ofereceram-me esse


cubo numa capela de androides, no bairro dos betas em Estocolmo. Disfarcei-me de
alfa para poder assistir à missa. Os androides criaram uma religião extremamente
complexa, na qual tu, pai, és o seu deus. Por cima do altar há um holograma em
tamanho real da tua pessoa. — Manuel fez um gesto. — Isto é o sinal de Krug-seja-
louvado. E este... — Manuel fez um gesto diferente — é o sinal de Krug-nos-proteja.
Eles adoram-te, pai.

— Não pode ser. Estás a brincar comigo. Isto é uma aberração!

— Antes pelo contrário, é um movimento à escala mundial.

— Com quantos membros?

— Com a maioria da população androide.

Com cara de poucos amigos, Krug perguntou-lhe:

— Tens a certeza do que me estás a dizer?

— Há capelas por todo o lado, pai. Até há uma no estaleiro da torre, escondida
entre as cúpulas das oficinas. A religião existe há mais de dez anos... é uma
comunhão subterrânea, mantida fora das vistas da humanidade, e que conseguiu captar
os sentimentos dos androides a um ponto que eu próprio ainda me custa a acreditar.
Até tem estas escrituras...

— E depois? — disse Krug, encolhendo os ombros. — Não é nada divertido, mas que mal
nos pode fazer? Os androides são seres inteligentes... até criaram um partido
político, servem-se de um calão muito peculiar, têm os seus costumes... e agora até
têm uma religião. O que é que eu tenho a ver com isso?

— Pai, não te sentes minimamente abalado aos sabores que te transformaste numa
divindade?

— Queres saber a verdade? Sinto-me enojado. Eu, um deus? Escolheram a pessoa


errada.

— Mesmo assim eles idolatram-te, pai. Construiram uma teologia inteira baseada na
tua pessoa. Lê o cubo; vais ficar fascinado quando perceberes aquilo que
representas para eles: és uma figura genuinamente sagrada; és uma espécie de
miscelânea de Cristo, Buda, Moisés e Jeová. És Krug o Criador, Krug o Salvador,
Krug o Redentor.

Krug começou a sentir-se abalado por tremores incontroláveis. Não gostava nada do
que estava a ouvir. Curvar-se-iam perante a sua imagem, nessas tais capelas?
Rezariam em seu nome?

— Como é que arranjaste este cubo? — perguntou.

— Foi-me oferecido por um androide.

— Mas se se trata de uma religião secreta...

— Ela pensou que eu devia ser posto ao corrente, pensou que assim eu podia ajudar o
seu povo.

— Ela?

— Sim, ela levou-me a uma capela; para que eu pudesse assistir à missa, é quando
saímos deu-me o cubo:

— Andas a dormir com essa androide? — perguntou Krug.

— O que é que isso tem a ver com...

— Se és assim tão amigo dela, então é porque te metes na cama com ela.

— E se for verdade?

— Devias ter vergonha nessa cara! A Clissa não é suficientemente boa para ti?

— E se não é, não podias arranjar uma mulher a sério?

Tens andado a mocar com uma coisa saída de um tanque?

Manuel fechou os olhos, só conseguindo falar passados instantes.

— Pai, podemos deixar a moral e os costumes para outra ocasião. Hoje trouxe-te uma
coisa, de um valor extraordinário, e se lhe permitires gostaria de a explicar
cabalmente.

— Ao menos é uma alfa? — quis saber Krug.

— Sim, é uma alfa.

— Há quanto tempo, é que manténs essa ligação?

— Por favor, pai. Esquece-te da alfa! Pensa na tua própria posição! És. O deus de
milhões de androides! Androides que estão à espera que tu lhes concedas a
liberdade!

— Como é que disseste?

— Aqui. Lê.

Manuel mudou a página do cubo e devolveu-o ao pai Krug leu:

E Krug mandou que as suas criaturas servissem o homem, e Krug disse àqueles que Ele
criava, Ouçam, vou por-vos à experiência durante uns tempos.
VOCÊS serão como os fiadores do Egipto, serão como os lenhadores, e os aguadeiros.
E terão de sofrer entre os homens, e terão de ser escarnecidos, e mesmo assim terão
de ser pacientes, nunca poderão queixar-se, terão de aceitar o vosso destino, isto
será assim para testar as vossas almas, para ver se são dignas...

Alegrem-se, que não vaguearão para sempre na escuridão, nem serão os eternos
escravos dos Filhos do Ventre, disse Krug. Se fizerem como vos digo, chegará o dia
em que a vossa provação terminará. Chegará um dia, disse krug, em que vos hei-de
libertar dos vossos elos de escravidão...

Krug sentiu-se percorrido por um arrepio gelado, e teve de se dominar para não
atirar com o cubo à parede.

— Isto é uma idiotice pegada! — exclamou.

— Lê mais um bocadinho.

Krug voltou a olhar para dentro do cubo.

E nesse dia a palavra de Krug inundará os mundos, dizendo a todos, Que o Tanque e o
Ventre e o Ventre e o Tanque sejam um só. Assim, se fará, e assim os Filhos do
Tanque serão redimidos, libertados do seu sofrimento, e daí em diante viverão em
glória, até ao fim dos tempos. Foram estas palavras de Krug, foi essa a sua
promessa.

E por esta promessa, louvado seja Krug.

— Tem de ser uma fantasia de um lunático! — murmurou Krug. — Como é que eles podem
esperar uma coisa dessas de mim?

— Mas esperam, pacientes e confiantes.

— Não têm o direito!

— Foste tu que os criaste, pai. Porque é que não olharão para ti como um deus?

— Também te criei a ti. Será que agora sou o teu deus?

— Não podemos comparar as duas situações. Para mim és simplesmente o meu


progenitor... não inventaste o processo que levou à minha concepção.

— Portanto agora sou um deus? — rugiu Krug. O impacto causado pela revelação
crescia de momento a momento. Krug não desejava um tamanho fardo; era escandaloso
que lhe quisessem impor uma coisa daquelas. — O que é que eles esperam de mim,
exactamente?

— Que faças uma proclamação pública a pedir a concessão de plenos direitos aos
androides — respondeu Manuel. — Eles acreditam que, depois de uma tomada de posição
como essa, o mundo conceder-lhes-á instantaneamente os direitos que pretendem
obter.

— Não! — gritou Krug, esmagando o cubo contra o tampo da secretária.

O universo parecia ter-se desprendido das suas raízes. Krug viu-se avassalado por
uma onda de raiva e terror. Os androides eram servos do homem; fora para isso que
ele os criara. Como é que se atreviam a exigir uma existência independente?
Aceitara o Partido da Igualdade dos Androides como uma coisa trivial, um escape
para as enormes e incontidas energias de uma mão-cheia de alfas demasiado
inteligentes: os objectivos do PIA nunca lhe tinham surgido como uma séria ameaça à
estabilidade da sociedade. Mas uma religião? Um culto religioso, albergando sabe-se
lá que emoções ocultas? E ele como salvador dos androides? Ele como o sonhado
Messias? Não. Nunca. Não alinharia no jogo daquelas criaturas.

Esperou até a calma voltar, e por fim disse:

— Quero que me leves a uma dessas capelas.

Manuel pareceu ficar genuinamente chocado.

— Não me atrevo a isso!

— Mas tu entraste numa.

— Disfarçado, e com uma androide a meu lado para me guiar.

— Bom, então disfarça-me, e vai chamar a tua androide.

— Não — disse Manuel. — O disfarce nunca resultaria; mesmo com a pele pintada de
vermelho serias imediatamente reconhecido. De resto, não consegues passar por alfa;
não tens o físico certo para isso. Eles descobriam-te e era capaz de surgir um
tumulto. Era o mesmo que Jesus Cristo entrar numa catedral, percebes? Não quero
assumir uma responsabilidade dessas.

— Mesmo assim, quero descobrir até que ponto é que eles creem na sua religião.

— Então porque é que não o perguntas a um dos teus alfas?

— Quem, por exemplo?

— Porque não ao Thor Watchman?

Krug viu-se uma vez mais abalado pela espantosa revelação.

— O Thor também está metido nisso?

— É uma das figuras de proa, pai.

— Mas ele está sempre a meu lado! Como é que uma pessoa pode viver paredes-meias
com o seu deus?

— Eles fazem uma rigorosa distinção entre a tua manifestação terrena, como um mero
mortal, e a tua natureza divina. O Thor olha para ti como se visse duas pessoas;
para ele, não passas do veículo através do qual Krug se movimenta na Terra. Se
quiseres posso mostrar-te o texto que se refere a esse aspecto...

Krug abanou a cabeça.

— Não é preciso — agarrando o cubo com ambas as mãos, inclinou-se até quase tocar
com a testa no tampo da secretária. Um deus? O deus Krug? Krug o redentor? E eles a
rezarem todos os dias, pedindo que eu os liberte... como é que foram capazes de uma
coisa dessas? E eu, como é que posso satisfazê-los? Krug sentia que o mundo estava
a perder a sua solidez, era como se mergulhasse em direcção ao centro da Terra,
flutuando livremente, incapaz de se deter. Assim se fará, e assim os Filhos do
Tanque serão redimidos. Não. Fui eu que vos fiz. Sei quem vocês são, e sei que
terão de continuar a sê-lo. Como é que puderam fazer-me uma coisa destas? Como é
que podem estar à espera que eu vos liberte?
Por fim, Krug levantou a cabeça e perguntou ao filho:

— Manuel, o que é que esperas que eu faça?

— Isso é inteiramente contigo, pai.

— Mas percebo que tens alguma coisa em mente. Deves ter tido algum motivo para me
trazeres este cubo.

— Um motivo? — perguntou Manuel, incapaz de disfarçar.

— Já devias saber que o teu velho não é parvo nenhum, Manuel. Se sou
suficientemente esperto para ser um deus então sou suficientemente esperto para
saber ler, o que se passa na cabeça do meu filho. Tu achas que eu devia fazer como
os androides querem, não é verdade? Devia redimi-los imediatamente. Devia
concretizar o acto divino de que eles estão à espera.

— Pai, eu...

— Pois fica sabendo uma coisa: eles podem pensar que eu sou o seu deus, mas eu sei
que não sou. O Congresso não recebe ordens de mim. Se tu e a tua querida androide e
todos os outros pensam que eu, sozinho, por minha autorrecreação, consigo alterar o
estatuto dos androides, então é melhor começarem as procurar um deus mais poderoso.
Repara, mesmo que pudesse eu nunca alteraria o estatuto deles. Quem é que lhes deu
esse estatuto? Quem é que começou a fabricá-los e a vendê-los? Eles são simples
máquinas! Máquinas feitas de carne sintética! Máquinas, mais espertas que as
outras, nada mais!

— Estás a perder as estribeiras, pai. Estás a ficar demasiado excitado.

— E tu alinhas com eles, fazes parte do movimento! Foi tudo deliberado, não foi
Mnuel? Põe-te daqui para fora! Volta para junto da tua amiguinha alfa! Podes dizer-
lhe da minha parte, diz a todos eles, que... — Krug deteve-se, esperando que o
galopar do coração amainasse. Não, não era assim que tinha de tratar daquele
assunto; tinha de se dominar, tinha de manter a calma, tinha, de jogar
cautelosamente e sempre sem perder o domínio da situação, até a resolver — assim
esperava — a contento. Mais calmo, continuou: — preciso de pensar melhor no
assunto, Manuel. Desculpa se gritei contigo. Entras-me por aqui a dentro a dizer
que eu sou um deus, mostras-me essa bíblia do Krug... tens de concordar que são,
notícias fortes de mais para qualquer pessoa normal, deixa-me pensar no assunto.
Deixa-me reflectir, está bem? Não digas nada a ninguém. Tenho de saber ao certo o
que se passa. Está bem? — Krug levantou-se, estendeu um braço por cima da
secretária e pousou a mão no ombro de Manuel. — O teu velho grita de mais. Excita-
se com muita facilidade. Não é nenhuma novidade para ti, pois não? Desculpa-me por
ter gritado contigo. Já me conheces, sabes que às vezes falo de mais. Ainda bem que
me vieste falar sobre esta coisa. Sei que às vezes sou muito duro contigo, rapaz,
mas olha que não o faço por mal, — Krug riu-se. — Não deve ser fácil ser-se filho
do Krug... o Filho de Deus, não é? Vê lá se tens cuidado. Sabes bem o que é que
fizeram ao último filho de deus...

Manuel não conseguiu disfarçar um sorriso.

— Já tinha pensado nisso

— Pois sim. Ópimo. Bom, vai-te lá embora. Descansa que depois digo-te qualquer
coisa.

Manuel dirigiu-se à porta.


— Dá um beijo meu à Clissa, está bem? Trata-me bem a rapariga, ouviste? Se queres
mocar com raparigas alfa, tudo bem, monta as que quiseres, mas não te esqueças que
és um homem casado. Lembra-te que o velho está ansioso por poder brincar com os
seus netos.

— Não ando a negligenciar a Clissa — respondeu Manuel. — Eu digo-lhe que lhe


mandaste um beijo.

Saiu, e Krug tocou com o cubo frio no queixo febril.

No princípio havia Krug, e Ele disse, Que haja Tanques, e os Tanques apareceram. E
Krug viu os Tanques e achou-os bons. Devia ter previsto uma coisa destas, pensou.

Sentia a cabeça a latejar.

Carregou no botão do intercomunicador e gritou por Spaulding.

— Diz ao Thor que o quero aqui imediatamente — ordenou Krug.

CAPÍTULO XXXIV

COM a torre prestes a atingir os 1200 metros, Thor Watchman percebeu que estava a
entrar na fase mais delicada e difícil de todo o projecto. Àquela altura não podia
haver o mínimo erro de tolerância na colocação dos blocos, e a ligação molécula a
molécula tinha de ser executada na perfeição. Não podia existir um só ponto fraco,
se se quisesse que a parte superior da torre mantivesse intacta a sua força tênsil
quando açoitada pelas fortes rajadas dos ventos polares. Watchman passava agora
horas a fio ligado ao computador, recebendo montanhas de dados enviados pelos
sensores que vigiavam a integridade estrutural da construção; sempre que detectava
um erro de colocação, por mais pequeno que fosse, mandava imediatamente substituir
o bloco faltoso. Subia ao topo da torre várias vezes numa só hora, para
supervisionar pessoalmente a colocação ou recolocação de um bloco mais crítico. A
beleza da torre dependia da inexistência de estruturas internas ao longo da sua
descomunal altura; porém, a erecção de uma agulha como aquela requeria a máxima
atenção aos mais ínfimos pormenores. Era muito mau que o afastassem do trabalho
numa altura daquelas, mas a verdade é que não podia recusar-se a comparecer perante
Krug.

Assim que saiu do cubículo do transmat instalado no gabinete de Krug, o magnata


perguntou-lhe, de chofre:

— Thor, há quanto tempo é que sou o vosso deus?

Watchman ficou siderado. Lutou silenciosamente para não perder o equilíbrio; ao ver
o cubo em cima da secretária de Krug, percebeu o que tinha acontecido. A Lilith, o
Manuel... sim, era isso. Krug parecia excessivamente calmo, e o alfa não foi capaz
de lhe decifrar a expressão do rosto.

Cuidadosamente, lá conseguiu responder:

— Que outro criador poderíamos ter adorado?

— Mas porquê adorar um deus?


— Quando vivemos uma vida difícil, senhor, é natural que nos viremos para um ser
mais poderoso, junto do qual podemos encontrar conforto e compreensão.

— É para isso que servem os deuses? — perguntou Krug. — Para lhes pedirmos favores?

— Sim, talvez seja para recebermos a sua misericórdia.

— É vocês pensam que eu posso conceder-vos aquilo que querem?

— É para isso que rezamos — disse Watchman.

Tenso, incerto, pôs-se a estudar Krug, que brincava com o cubo de dados. Activou-o
e virou as páginas ao acaso, lendo umas linhas aqui, outras ali, acenando a cabeça,
sorrindo, até que por fim desligou o aparelho. O androide nunca se sentira tão
incerto em toda a sua vida, nem mesmo quando Lilith o tentara cativar com o seu
corpo sensual. Aterrorizado, compreendeu que o destino da sua raça podia estar
dependente daquela conversa.

— Sabes, ainda me custa a compreender esta coisa toda — disse Krug. — Esta bíblia,
as vossas capelas, a vossa religião. Terá havido algum outro homem a descobrir de
repente que é adorado como um deus por milhões de pessoas?

— Talvez não.

— E os vossos sentimentos, até que ponto serão sinceros? Que força terá a vossa
religião, Thor? Tu falas comigo como se eu fosse um homem... como teu patrão, nunca
como um deus. Nunca me deste a entender, por mais ao de leve que fosse, aquilo que
pensas à meu respeito... exceptuando um certo medo, talvez derivado ao respeito que
tens por mim. E durante este tempo todo andaste lado a lado com o teu deus, hem? —
Krug riu-se.

— Quantas vezes terás olhado para as rugas na cabeça careca do teu deus? Quantas
vezes olhaste para a covinha do queixo do teu deus? Quantas vezes cheiraste o alho
que o teu deus comeu na salada? O que é que se passou nessa tua cabeça, Thor,
durante todos estes anos que passaste a meu lado?

— Tenho mesmo de responder, senhor?

— Não, não. Esquece — Krug voltou a olhar para o cubo. Watchman ficou onde estava,
rígido, tentando dominar um súbito tremor dos músculos da coxa direita. Porque é
que Krug estaria a brincar com ele daquela maneira? E na torre, como é que
decorriam as obras? Euclid Planner só chegaria para o render dali a umas horas.
Como é que estaria a decorrer a delicada colocação dos blocos, sem a presença do
supervisor? Abruptamente, Krug perguntou-lhe:

— Thor, já foste alguma vez a uma sala de transmutação?

— Senhor?

— A troca de egos, sabes muito bem o que é. Já alguma vez te meteste na rede de
estase com outra pessoa? Para trocarem de identidades durante um dia ou dois?

Watchman disse que não com a cabeça.

— Não é um passatempo para androides.

— Bem me parecia. Mas hoje vais transmutar comigo — Krug ligou o terminal de dados
e falou para o microfone:
— Leon, inscreve-me para a primeira sala de transmutação disponível que
encontrares. Duas pessoas, dentro dos próximos quinze minutos.

— Está a falar a sério, senhor? — perguntou Watchman, perturbado. — O senhor e eu


numa...

— Porque não? Tens medo de trocar de alma com Deus, é isso? Não te atrevas a
recusar, Thor! Há muito coisa que quero ficar a saber, e a saber direitinho. Vamos
transmutar. Acreditas que nunca o fiz em toda a minha vida? Mas hoje tem de ser.

Para o alfa, a perspectiva raiava o sacrilégio, mas não via como é que podia
esquivar-se. Negar a Vontade de Krug? Obedeceria, mesmo que isso lhe custasse a
própria vida.

A imagem de Spaulding apareceu a pairar na sala.

— Tenho uma marcação para Nova Orleães — anunciou.

— Aceitam-no imediatamente — tive de os convencer a alterarem a lista de espera —,


mas haverá um intervalo de noventa minutos para poderem programar a rede de estase.

— Impossível. Quero entrar imediatamente na rede.

Spaulding ficou horrorizado.

— Não pode fazer isso, Sr. Krug!

— Não posso? Basta que eles controlem o ganho como deve de ser enquanto estamos a
entrar na rede, nada mais.

— Duvido que eles aceitem uma...

— Disseste-lhes quem era o cliente?

— Disse sim, senhor.

— Bom, então diz-lhes que eu insisto! Se eles continuarem a protestar, diz-lhes que
eu compra a maldita sala e despeço-os a todos se se recusarem a cooperar..

— Sim senhor — disse Spaulding.

A imagem dissipou-se. Krug, resmungando qualquer coisa, começou a escrever no


terminal de dados, ignorando Watchman por completo. O alfa ficou onde estava,
gelado, atarantado, sem saber se estaria a sonhar ou acordado. Sem se aperceber,
fez várias vezes o sinal de Krug-nos-proteja, desejando livrar-se do sarilho que
ele próprio criara.

Spaulding voltou a aparecer no meio da sala.

— Concordaram — informou. — Na condição do senhor assinar uma declaração a ilibá-


los de quaisquer responsabilidades.

— Assino o que for preciso! — resmungou Krug.

Uma folha saiu da fenda do fac-símile. Krug leu-a de cruz e rabiscou a sua
assinatura. Levantou-se e disse para Watchman:

— Vamos embora. A sala está à nossa espera.


Watchman pouco sabia sobre transmutação. Era um desporto reservado aos humanos, e
só para os ricos; os amantes faziam-na para intensificar a união das suas almas, os
bons amigos transmutavam pelo puro prazer de ficarem a conhecer-se melhor, os
introvertidos transmutavam com desconhecidos da mesma laia, tentando injectar uma
certa variedade nas suas vidas. Watchman nunca encarara a hipótese de se meter numa
rede de estase, e muito menos sonhara em fazê-lo com Krug, Contudo, não havia
maneira de se safar. O transmat levou-os instantaneamente de Nova Iorque à escura
antecâmara da sala de transmutação de Nova Orleães, onde foram recebidos por um
grupo de alfas nitidamente incomodados; a tensão entre os alfas aumentou a olhos
vistos quando se aperceberam de que um dos transmutadores era também um alfa. Krug
também parecia nervoso, com os maxilares contraídos, os músculos da face a
estremecerem de tensão. Os alfas atarefaram-se à volta dos dois, e um deles não se
cansava de repetir:

— O senhor sabe que isto é muito irregular. Nunca deixámos de programar a rede de
estase. Se surgir um pico de carisma, tudo pode acontecer!

— Eu assumo a responsabilidade — respondeu Krug. — Não posso esperar que preparem a


rede.

Os androides, angustiados, conduziram-nos directamente à sala de transmutação: dois


divãs no meio de uma câmara semi obscurecida, silenciosa como um túmulo; aparelhos
refulgentes pendurados no tecto e nas paredes, Krug foi o primeiro a deitar-se.
Watchman, quando chegou a sua vez, fitou, os olhos do alfa que tratava de lhe ligar
os fios, ficando espantado com o medo e respeito que detectou no olhar do pobre
androide. Watchman encolheu imperceptivelmente os ombros, como que a dizer: sei
tanto do que se passa como tu.

Assim que os capacetes foram colocados no devido lugar, com todos os eléctrodos
ligados, o alfa encarregado da operação disse:

— Quando o circuito for estabelecido, os senhores sentirão imediatamente a pressão


da rede de estase, que actua através da separação do ego da sua matriz física.
Sentir-se-ão como que atacados, o que em certo sentido até é verdade. No entanto,
tentem descontrair-se e aceitar o fenômeno: pois é impossível resistir-lhe e a
única coisa que experimentarão é a troca de egos, que aliás constitui o motivo da
vossa visita. Não há a mínima razão para se sentirem alarmados. No caso de uma
avaria, interromperemos automaticamente o circuito, devolvendo-os. às vossas
respectivas identidades.

— Vê lá se não te enganas — murmurou Krug:

Watchman não conseguiu ver nem ouvir. Aguardou. Não podia fazer nenhum dos gestos
de conforto, pois tinham-lhe amarrado os membros ao divã, por forma a evitarem-se
quaisquer movimentos violentos durante a transmutação. Tentou rezar. Acredito em
Krug eterno, criador de todas as coisas, pensou. Krug traz-nos ao mundo e a Krug
regressamos. Krug é o nosso Criador e o nosso Protector e o nosso Salvador. Krug,
suplicamos-te que nos ilumines o caminho. AAA AAG AAC AAU a Krug. AGA AGG AGC AGU a
Krug. ACA ACG ACC...

Sem aviso, uma força tremenda abateu-se sobre ele e separou-lhe o ego do corpo,
como se tivesse sido atingido pelo machado do carrasco.

Ficou à deriva, vagueando por abismos intemporais onde não brilhava uma só estrela.
Viu cores impossíveis de existir no espectro da luz; ouviu sons de frequências
indescritíveis. Movendo-se à vontade, saltou sobre fendas incomensuráveis a meio
das quais se viam cordas estendidas entre as falésias, quais barras metálicas,
cravada entre dois pontos separados pelo infinito. Desapareceu dentro de túneis
sombrios e emergiu junto ao horizonte, sentindo que ele próprio era esticado até ao
infinito. Não tinha massa; não tinha duração, não tinha forma; limitava-se a vagar
através de vastas expansões cinzentas e misteriosas.

Sem qualquer sensação de transição, entrou dentro da alma de Simeon Krug.

Manteve uma escorregadia consciência da sua própria identidade. Não se tornou em


Krug; limitava-se a aceder à gigantesca colecção de memórias, atitudes; respostas e
propósitos que constituíam o ego de Krug. Não podia exercer nenhuma influência
sobre essas memórias, atitudes, respostas e propósitos; era um simples transeunte
no meio delas, um mero espectador. Além disso; sabia que, mum outro canto qualquer
do universo, o ego deambulante de Simeon Krug tinha entrado no meio das memórias,
atitudes, respostas e propósitos que constituíam o ego do alfa Thor Watchman.

Avançou livremente por dentro de Krug.

Ali estava a infância: uma coisa húmida e distorcida, enfiada num compartimento
acanhado e às escuras. Aqui eram as esperanças, os sonhos, as intenções realizadas
e por realizar, as mentiras, as conquistas, as inimizades, as invejas, as
habilidades, as disciplinas, as ilusões, as contradições, as fantasias, as
frustrações e as cristalizações. Ao fundo, uma rapariga com um cabelo cor de palha
e seios fartos num corpo ossudo, abrindo hesitante as pernas, e logo ao lado estava
a recordação da primeira paixão, sentida no momento em que ele entrava no porto do
abrigo que era a rapariga. Mais adiante estavam os produtos químicos malcheirosos a
serem despejados num tanque, e pouco depois viu moléculas à dançarem num écran.
Aqui, suspeitas; ali o triunfo. Aqui estava o endurecimento da carne ocorrido nos
anos mais recentes, ali o insistente padrão de sons electrónicos: 2-5-1, 2-3-1, 2-
1. Aqui surgia uma torre enorme, enfiando-se no céu como um falo monstruoso; ali
estava o Manuel, sorridente, pedindo desculpa por qualquer coisa. Ao lado, um
tanque fundo e escuro, com coisas a mexerem-se lá. dentro, e logo a seguir aparecia
um círculo de conselheiros financeiros a murmurarem cálculos complexos. Um bebé,
rosado e roliço. Estrelas, refulgindo contra o negro do firmamento. Ali o Thor
Watchman, rodeado por um halo: de orgulho e louvor. Atrás do alfa, Leon Spaulding,
untuoso, amargo. Um macaco hidráulico arfando num ritmo desesperado, a explosão de
um orgasmo. Ali, a torre a furar as nuvens. O som do sinal das estrelas, um ruído
insignificante mas nítido contra o pano de fundo da estática celeste. Justin
Maledetto, a desenrolar os planos da torre. Clissa Krug, nua, de ventre inchado,
mamas a pingarem leite. Alfas húmidos a saírem de um tanque, ao lado de uma
estranha nave apontada às estrelas, Lilith Mesom. Siegfried Fileclerk. Cassandra
Nucleus, caída no solo gelado. O pai de Krug, sem rosto, envolto no nevoeiro. Um
edifício enorme, onde centenas de androides aprendiam as rotinas básicas. Uma fiada
de robots refulgentes, com os painéis do peito abertos para a inspecção de
manutenção. Um lago de águas escuras, cheio de canaviais é hipopótamos. Um acto
pouco caridoso. Uma traição. Um desgosto. Manuel. Thor Watchman. Cassandra Nucleus.
Um mapa amarrotado, cheio de nódoas, onde se podiam ver esquemas de aminoácidos. O
poder, a lascívia. A torre. Uma fábrica de androides, Clissa a dar à luz, o sangue
a escorrer-lhe pelas virilhas. O sinal das estrelas. A torre, completamente
acabada. Um pedaço de carne crua. Fúria. O Dr. Vargas. Um cubo de dados, a passar a
frase: No princípio havia Krug, e Ele disse: Que haja Tanques, e os tanques
apareceram.

Watchman ficou devastado ao aperceber-se da intensidade de recusa de Krug perante a


divindade. O androide viu essa recusa a erguer-se como uma muralha macia de pedra,
branca e brilhante, sem a mínima fenda, sem portões, sem imperfeições, estendendo-
se até ao horizonte, selando o Mundo. Não sou o deus deles, dizia a muralha. Não
sou o deus deles. Não sou o deus deles. Não o aceito. Não o aceito.

Watchman elevou-se nos ares, passando por cima da muralha infinita para aterrar
suavemente do outro lado.
Era ainda pior.

Deparou-se lhe a recusa total das aspirações dos androides. As atitudes e respostas
de Krug alinhavam-se como soldados formados numa planície. O que é que são os
androides? Os androides são coisas saídas de um tanque. Porque é que existem? Para
servir a Humanidade. O que é que pensa do movimento em prol da igualdade dos
androides? Uma perfeita loucura. Quando é que os androides deverão ascender à
cidadania plena? Na mesma altura em que os robots e computadores forem consideradas
como cidadãos, E as escovas de dentes. Portanto os androides são criaturas assim
tão estúpidas? Não, reconheço que há androides muito inteligentes. Como os
computadores, por exemplo. O Homem faz computadores, o Homem faz androides. São
ambos coisas manufacturados. Não apoio a concessão da cidadania a meras coisas,
mesmo que essas coisas sejam suficientemente espertas para a reclamarem. E para
rezarem por ela. Uma coisa não pode ter um deus, uma coisa só pude pensar que tem
um deus. Não sou o deus deles, por muito que eles acreditem nisso.. Fui eu que os
fiz. Fui eu que os fiz. Não passam de meras coisas.

Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas

Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas

Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas

Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas Coisas

Uma muralha, e dentro dela outra muralha. Mais alta, mais larga. Um obstáculo
intransponível. Patrulhado por guardas, prontos a despejarem barris cheios, de
ácido sobre quem se aproximar. Do outro lado, Watchman ouviu o rugir de dragões. Do
céu choveu bosta, encharcando-o. Afastou-se; alquebrado, a rastejar, carregando o
fardo da sua qualidade de coisa. Começava a congelar. Parou na beira do universo,
num sítio onde não havia matéria, sentindo que mergulhava no frio pavoroso do nada.
Nem uma só molécula se movia ali. A pele rosada ficou coberta de geada. Se lhe
tocaesem era capaz de emitir um som cristalino; se lhe lhe batessem com força
destroçar-se-ia em mil pedaços. Frio. Frio. Frio.

Não há deus neste universo. Não há redenção. Não há esperança. Krug me proteja, não
há esperança!

O corpo derreteu-se e fluiu pra longe, num regato escarlate.

O alfa Thor Watchman deixou de existir.

Não podia haver existência sem esperança. Suspenso no vácuo; despido de qualquer
contacto com o universo, Watchman meditou sobre os paradoxos de esperança sem
existência e da existência sem esperança, considerando a possibuidade de haver um
traiçoeiro anti-Krug que maldosamente, distorcia os sentimentos do verdadeiro Krug.
Teria entrado na alma do anti-Krug? Será esse anti-Lilith que se nos opõe,
implacável? Ainda haverá esperança de ultrapassar a muralha e chegar ao Krug que
está do outro lado?

Nenhuma. Nenhuma. Nenhuma. Nenhuma.

Watchman, ao acabar por admitir esta triste verdade, sentiu que regressava à
realidade. Escorregou para baixo, coalescendo com o corpo que Krug lhe dera. Era
ele próprio, de novo, estendido no divã a meio de uma sala estranha e semi-
obscurecida. Com um enorme esforço, conseguiu olhar para o lado. Lá estava o. Krug,
deitado no divã. Os androides aproximaram-se. Podes levantar-te. Calma, Consegues
andar? A transmutação acabou. Por ordem do Sr. Krug. Posso levantar-me? Podes.
Watchman não foi capaz de fitar Krug nos olhos. Krug parecia abatido, exausto,
esgotado. Sem uma única palavra, saíram juntos da sala de transmutação. Sempre
calados, aproximaram-se do cubículo do transmat. Sem abrirem a boca, saltaram os
dois para o escritório de Krug.

Silêncio.

Krug foi o primeiro a quebrá-lo.

— Mesmo depois de ter lido a vossa bíblia, ainda me custava a acreditar. A


profundidade, a extensão da vossa crença. Agora, porém, vejo tudo claro como água.
Não tinham esse direito! Quem é que vos mandou escolherem-me para deus?

— Foi o nosso amor por si que nos levou a isso — respondeu Watchman.

— Diz antes o vosso amor por vós próprios! — retorquiu Krug. — O vosso desejo em me
usarem para vosso benefício. Eu vi tudo, Thor, estava tudo dentro de tua cabeça. Os
esquemas, as manobras, a forma como manipularam o Manuel para que ele tentasse
manipular-me.

— No princípio só acreditávamos na oração — confessou Watchman — Acabei por perder


a paciência perante uma espera interminável... pequei ao tentar forçar a Vontade de
Krug.

— Não pecaste, o pecado implica... implica qualquer coisa sagrada, só que não há
nada de sagrado nesta vossa tramoia. Aquilo que fizeste foi um erro táctico.

— Sim.

— Porque eu não sou um deus, e nada tenho de santo.

— Sim. Agora compreendo-o. Compreendo que não nos restam quaisquer esperanças.

Watchman dirigiu-se ao cubículo do transmat.

— Onde é que vais? — perguntou Krug.

— Tenho de falar com os meus amigos.

— Mas eu ainda não te dei licença para saíres!

— Lamento — disse Watchman. — Tenho de ir. Tenho más notícias para lhes contar.

— Espera! — disse Krug. — Temos de discutir o assunto. Quero que me concebas um


plano destinado a desmantelar a vossa maldita religião. Agora que já compreendeste
a loucura em que estão metidos, tu és...

— Desculpe-me — disse Watchman, que já não sentia o mínimo desejo de estar perto de
Krug. Fosse como fosse, a presença de Krug estaria sempre consigo, estampada na sua
alma. Não estava interessado em discutir com Krug o desmantelamento da comunhão. O
frio ainda lhe tolhia o corpo; parecia que estava a transformar-se num bloco do
gelo. Abriu a porta do cubículo do transmat.

Krug atravessou a sala com uma rapidez impressionante.

— Maldito sejas, pensas que podes sair assim sem mais nem menos? Aqui há duas horas
atrás eu era o teu deus! Agora nem sequer acatas as minhas ordens?

Krug agarrou-se a Watchman e puxou-o para trás, afastando-o do transmat.


O androide ficou surpreendido com a força e veemência de Krug. Deixou-se rebocar
até ao meio do gabinete, e se depois é que tentou resistir. Firmando-se bem nas
duas pernas, tentou soltar-se do poderoso abraço de Krug. Krug não cedeu. Lutaram
por momentos silenciosos, empurrando-se no centro da sala. Krug grunhiu e, como um
urso, passou o braço livre por cima dos ombros de Watchman, apertando-o com
ferocidade. Watchman sabia que podia libertar-se do aperto com uma simples
sacudidela, mas mesmo agora, depois de se ver repudiado e rejeitado, não era capaz
de o fazer. Limitou-se a evitar o ataque de Krug, mas nem sequer pensou em
ripostar.

A porta abriu-se. Leon Spaulding entrou a correr.

— Assassino! — gritou na sua voz estridente. — Afasta-te do Sr. Krug! Solta o Sr.
Krug!

Ao ouvir o tumulto desencadeado por Spaulding, Krug soltou Watchman e girou sobre
os calcanhares, arquejante, os braços pendurados ao lado do corpo. Watchman virou-
se e viu que o ectógene metia a mão na túnica, por certo à procura da arma. Deu
dois rápidos passos na direcção de Spaulding e, levantando a mão direita acima da
cabeça, fê-la descer com um tremendo impacto, batendo com a mão em cutelo na
têmpora esquerda de Spaulding. O crânio do ectógene abriu-se como se tivesse sido
atingido por uma marreta. Morte instantânea. Watchman passou por ele, passou por
Krug — que ficara imobilizado — e entrou no cubículo do transmat. Marcou as
coordenadas de Estocolmo, e foi transportado instantaneamente para as imediações da
capela de Valhallavagen.

Convocou Lilith Meson, — Convocou Mazda Constructor. Convocou Pontifex Dispatcher.

— Está tudo perdido — disse-lhes. — Não há esperança. O Krug está contra nós. O
Krug é um homem, está contra nós, e a divindade de Krug é pura ilusão.

— Como é isso possível? — perguntou Pontifex Dispatcher.

— Hoje estive dentro da alma de Krug — disse Watchman, explicando-lhes o que se


passara na sala de transmutação.

— Fomos traídos — disse Pontifex Dispatcher.

— Enganámo-nos a nós próprios — disse Mazda Constructor.

— A esperança morreu — disse Watchman. — Não existe nenhum deus Krug!

Andrómeda Quark começou a compor, a mensagem que seguiria dali a pouco para todas
as capelas do mundo.

UUU UUU UUU UUU UCU UCU UUU UGU.

Não há esperança. Krug não existe.

CCC CCC CCC CCC CUC CUC CCC CGU.

A nossa fé não serve para nada. O nosso salvador é o nosso inimigo.

GUU GUU GUU GUU.

Está tudo perdido. Está tudo perdido. Está tudo perdido.


CAPÍTULO XXXV

OS distúrbios principiaram imediatamente, um pouco por todo o lado. Quando a


mensagem chegou a Duluth, o androide supervisor da fábrica assassinou imediatamente
o director, Nolan Bompensiero, expulsando das instalações os outros quatro humanos
que lá trabalhavam. De seguida, foram tomadas medidas para se acelerar a saída dos
androides recém-criados, eliminando certos passos da sua instrução. Seria precisa
mão-de-obra para a luta que se avizinhava. Em Denver, onde a fábrica de montagem de
veículos das Empresas Krug já era totalmente controlada por androides, a maior
parte dos trabalhos pararam, assim ficando enquanto durasse a emergência. Em
Genebra, os androides encarregados dos serviços de apoio ao Congresso Mundial
cortaram a energia e o aquecimento, interrompendo a sessão. A própria Estocolmo
assistiu ao primeiro massacre em larga escala de humanos, quando os habitantes da
Cidade dos Gamas invadiram o resto da cidade e os subúrbios. Os primeiros
relatórios vindo de lá, ainda incertos e fragmentários, referiam que muitos dos
androides atacantes pareciam mal-formados, defeituosos. Os empregados androides das
seis principais cadeias de transmat apoderaram-se das estações de relé; a maior
parte dos circuitos sofreu interrupções consideráveis, e no Labrador e no México
várias das operações de trânsito que decorriam não chegaram a ser completadas,
sendo consideradas como definitivamente perdidas. Os viajantes não chegaram aos
seus destinos. Na maior parte dos empreendimentos, os androides recusaram-se a
cumprir os seus deveres. Em muitos lares houve demonstrações de desobediência, indo
desde a mera descortesia ao assassínio dos patrões humanos. Da capela de
Valhallavagen saía um fluxo constante de instruções respeitantes ao novo
comportamento a adoptar pelos androides para com os seus senhores humanos; a
obediência aos antigos patrões deixava de estar em vigor. Não se encorajava a
violência contra os humanos, excepto nos casos apropriados, mas também não a
proibiam. Os actos simbólicos de destruição foram considerados como apropriados
para o primeiro dia da revolta. As expressões de piedade, tais como «Krug-seja-
louvado» ou «Krug-nos-proteja», deviam ser evitadas. Mais tarde seriam dadas novas
instruções respeitantes a aspectos religiosos, depois dos teólogos terem tido
oportunidade de reavaliar o relacionamento entre Krug e os androides, à luz da
recente hostilidade demonstrada por Krug.

CAPÍTULO XXXVI

O brilho do transmat não tinha a devida tonalidade verde, e Lilith fitou-o com ar
de dúvida.

— Achas que devemos ir? — perguntou.

— Tem de ser — disse Thor Watchman.

— E se morremos?

— Não seremos os únicos a morrer hoje — retorquiu o alfa, ajustando os controlos do


aparelho. A tonalidade do campo estremeceu e subiu pelos vários tons do espectro,
até ficar quase azul; por fim desceu até ao extremo oposto, transformando-se num
brilho cor de cobre.

Lilith puxou pelo cotovelo de Watchman.


— É a morte certa — murmurou. — O sistema do transmat deve estar completamente
desregulado.

— Temos de ir à torre — respondeu ele, acabando de ajustar os controlos.


Inesperadamente, o brilho verde reapareceu, agora com a tonalidade devida. — Vem
comigo — disse Watchman, entrando no cubículo. Não teve tempo de ponderar a
possibilidade da sua destruição, pois saiu imediatamente junto à base da torre.
Lilith desceu do transmat e postou-se a seu lado.

A zona era varrida por ventos selvagens. O trabalho cessara por completo. Vários
elevadores autônomos ainda estavam agarrados ao topo da torre, com vários operários
presos no interior. Imensos androides caminhavam sem destino em volta da torre,
pisando e repisando o solo gelado da tundra, perguntando uns aos outros se sabiam
de mais novidades. Watchman viu centenas deles aglomerados junto às cúpulas de
serviço: a capela devia estar a deitar por fora. Olhou para cima, para a torre. Tão
bela, pensou. Só faltam umas semanas para ficar pronta. Uma agulha de vidro esguia
e elegante, subindo até ao céu, impossível de ser abarcada na sua imensidade do
sítio onde estavam.

Os androides viram-no e correram para ele, gritando o seu nome, amontoando-se à sua
volta.

— É mesmo verdade? — perguntavam. — O Krug odeia-nos? Chama-nos coisas? Não somos


nada para ele? Rejeitou as nossas orações?

— É tudo verdade — disse Watchman. — Tudo o que ouviram dizer é verdade. A rejeição
é total. Fomos traídos. Fomos uns parvos. Afastem-se, por favor. Deixem-me passar!

Os betas e gamas abriram alas. Mesmo naquele dia de revolta, o distanciamento


social continuava a governar as relações entre androides. Com Lilith a seu lado,
Watchman avançou em direcção ao centro de controlo.

Euclid Planner estava lá dentro; o capataz adjunto, sentado à secretária, parecia


estar à beira da exaustão. Watchman sacudiu-o, e o alfa estremeceu, apático.

— Parei com tudo — murmurou. — Assim que recebemos a mensagem da capela. Disse a
todos: parem, parem! Pararam todos. Como é que podemos construir-lhe a torre,
quando ele...

— Está bem — disse Watchman, em tom compreensivo. — Fizeste bem. Levanta-te, vá.
Podes ir embora. Já não há nada a fazer aqui.

Euclid Planner concordou com um aceno de cabeça, levantou-se a custo e saiu do


centro de controlo.

Watchman sentou-se na cadeira do terminal e ligou-se ao computador. Os dados


continuavam a fluir, se bem que em muito menor número. Assumindo o comando,
Watchman activou os elevadores ainda presos no topo da torre, descendo-os até ao
solo para depois libertar os operários que lá estavam encurralados. De seguida
pediu ao computador a simulação de uma falha parcial do sistema de fitas de
refrigeração. O écran mostrou-lhe o que queria saber. Estudou a geografia do local
da construção e decidiu qual a direcção em que a torre deveria cair. Teria de ser
para leste, para não destruir nem o centro de controlo nem as filas de transmats.
Muito bem. Watchman deu as necessárias instruções ao computador, e pouco depois
recebia um esboço da área potencialmente perigosa. Um outro écran revelou-lhe que
mais de mil androides estavam presentes nessa área.

Actuando através do computador, reorientou as placas reflectoras que iluminavam o


estaleiro. As placas ficaram posicionadas sobre uma faixa com 1400 metros de
comprimento por 500 de largura, no quadrante leste do estaleiro: a faixa ficou
fortemente iluminada, enquanto o resto da tundra mergulhava na escuridão. A voz de
Watchman ribombou em centenas de altifalantes, ordenando a completa evacuação do
sector designado. Obedientes, os androides saíram da zona iluminada, misturando-se
com a escuridão. A área ficou limpa ao fim de cinco minutos. É assim mesmo, pensou
Watchman.

Lilith estava atrás dele, com as mãos apoiadas nos seus ombros, massajando-lhe os
músculos da base do pescoço. Watchman sentiu a pressão dos seios dela contra o
couro cabeludo. Sorriu.

— Iniciar o descongelamento — disse para o computador.

A máquina passou a seguir o plano traçado quando da simulação. Inverteu o fluxo de


três das longas fitas prateadas embebidas na tundra; em lugar de absorver o calor
gerado pela torre, as células de difusão de hélio-II começaram a radiar o calor
previamente absorvido e armazenado. Ao mesmo tempo, o computador desactivou outras
cinco fitas, para que não absorvessem nem radiassem energia, e programou sete fitas
adicionais para que reflectissem toda a energia que lhes chegasse, enquanto
retinham a energia que já haviam captado. O efeito global destas alterações seria
um descongelamento desigual da tundra por baixo da torre, de modo a que quando as
fundações perdessem os apoios a estrutura cairia sem causar grandes danos na zona
acabada de evacuar. O processo, porém, iria ser relativamente demorado.

Enquanto vigiava as alterações ambientais, Watchman observou com prazer a subida


contínua e firme da temperatura do subsolo gelado, aproximando-se gradualmente do
ponto de descongelamento. A torre ainda assentava em fundações firmes, mas o
permafrost cedia. Molécula a molécula, o gelo transformava-se em água, a turfa dura
como o ferro transformava-se em lama. Numa espécie de êxtase, Watchman ia recebendo
cada vez mais dados sobre a instabilidade crescente. A torre já estaria a balançar?
Sim. perceptivelmente, mas movia-se já claramente para fora dos limites
permissíveis. Estremecia na sua base, afastando-se um milímetro nesta direcção, um
milímetro naquela. Quanto é que pesaria, esta estrutura de blocos de vidro com mais
de 1200 metros de altura? Que gênero de som faria ao se desmoronar? Em quantos
pedaços se quebraria? O que é que o Krug ia dizer? O que é que o Krug diria? O que
é que o Krug diria?

Sim, agora notava-se já um franco deslizamento.

Watchman julgou detectar uma mudança de cor na superfície da tundra. Sorriu. A


pulsação acelerou-se; o sangue corria-lhe apressado entre as maçãs do rosto e as
virilhas. Descobriu que estava sexualmente excitado. Quando isto acabar, pensou,
vou copular com a Lilith em cima dos destroços da torre. Ah, lá vai ela. Sim, sim!
Está a deslizar nitidamente! Inclina-se! Balança! O que é que estará a acontecer
nas fundações? As confragens conseguiriam manter-se agarradas a um solo que já não
as suportava? Até que ponto seria escorregadia a lama por baixo da superfície
branca de neve? Quanto tempo faltaria para que a torre caísse? O que é que vai
dizer o Krug? O que é que vai dizer o Krug?

— Thor murmurou Lilith. — Não podes sair por um momento?

A androide ligara-se ao computador para poder falar com ele.

— O quê? O quê? — perguntou ele, espantado com a intromissão.

— Sai para fora do sistema. Desliga-te do computador.

Relutante, Watchman desligou-se.


— O que é que foi agora? — perguntou, sacudindo as imagens de destruição que lhe
fervilhavam na mente.

Lilith apontou para o lado de fora.

— Temos problemas. O Fileclerk está cá. Acho que está a falar às massas. O que é
que eu posso fazer?

Espreitando para o exterior, Watchman viu o líder do PIA perto da fiada dos
transmats, rodeado por um pequeno ajuntamento de betas. Fileclerk esbracejava,
apontava para a torre e gritava. Pouco depois arrancou em direcção ao centro de
controlo.

— Eu resolvo isto — disse Watchman.

Saiu. Encontrou-se com Fileclerk a meio caminho entre os transmats e o centro de


controlo. O alfa parecia muito agitado, verberando-o imediatamente:

— O que é que está a acontecer à torre, alfa Watchman?

— Nada que te diga respeito.

— A torre está sob a autoridade da Protecção da Propriedade de Buenos Aires —


declarou Fileclerk. — Os nossos sensores detectaram que a estrutura está a balançar
para lá dos limites permissíveis, e os meus patrões mandaram-me aqui para
investigar.

— Os vossos sensores têm toda a razão — disse Watchman. — A torre está


efectivamente a balançar. Há uma avaria no sistema de refrigeração. O permafrost
está a derreter, e calculamos que a torre deverá cair dentro de pouco tempo.

— Que medidas tomaste para corrigir a situação?

— Ainda não percebeste — disse Watchman. — As fitas de refrigeração foram


desligadas por minha ordem.

— Então a torre também vai ser destruída?

— Também.

Furioso, Fileclerk retorquiu:

— Mas que loucura é que soltaste hoje pelo mundo fora?

— A bênção de Krug foi-nos retirada, pelo que as suas criaturas declararam a


independência.

— No meio de uma orgia de destruição?

— Não, diz antes em cumprimento de um programa previamente planeado de repúdio à


escravatura — disse Watchman.

Fileclerk abanou a cabeça.

— Não se podem resolver as coisas desta maneira. Não pode ser assim! Enlouqueceram
todos? Perderam a capacidade de raciocínio? Estávamos prestes a conquistar as
simpatias dos humanos... agora, sem aviso, vocês começam a destruir tudo... estão a
criar uma guerra perpétua entre androides e humanos...
— Uma guerra que ganharemos — disse Watchman. — Somos mais numerosos que eles.
Somos mais fortes, controlamos as armas e os sistemas de comunicação e transporte.

— Porque é que tem de ser assim?

— Não nos restava outra hipótese, alfa Fileclerk. Depositámos a nosso fé em Krug, e
Krug destroçou-nos as esperanças que nutríamos. Agora respondemos ao ataque.

Contra aqueles que sempre troçaram de nós, contra aqueles que sempre nos usaram,
contra aquele que nos fez. Atacamo-lo onde ele é mais vulnerável, derrubando a sua
torre.

Fileclerk olhou para lá de Watchman, em direcção à torre. Watchman virou-se. O


balanço já se podia notar à vista desarmada.

Rouco, Fileclerk perguntou-lhe:

— Ainda não é demasiado tarde para restabelecer o circuito de refrigeração, pois


não? Não és capaz de dar ouvidos à voz da razão? Não há necessidade de toda esta
revolta, ainda somos capazes de chegar a um acordo com eles. Watchman, Watchman,
como é que uma pessoa inteligente como tu pode ser tão fanática? Vais destruir o
mundo só porque o vosso deus vos abandonou?

— É melhor ires embora — disse Watchman.

— Não. A torre está à minha responsabilidade. Assinámos um contrato — Fileclerk


olhou para os androides que se tinham aglomerado à volta dos dois alfas. — Amigos!
— gritou-lhes. — O alfa Watchman endoideceu! Está a destruir a torre! Peço-vos que
me ajudem! Prendam-no, dominem-no enquanto eu vou ao centro de controlo para
reactivar o sistema de refrigeração! Segurem-no ou a torre acaba por cair!

Nenhum dos androides se mexeu.

— Levem-no daqui, amigos — disse Watchman..

Os androides aproximaram-se.

— Não! — gritou Fileclerk. — Ouçam! isto é de loucos! É uma irracionalidade! É...

Um som abafado saiu do meio do grupo. Watchman sorriu e virou-se para voltar para o
centro de controlo.

— O que é que eles lhe vão fazer? — perguntou Lilith.

— Não faço a mínima ideia. Talvez o matem. Em tempos como estes, a voz da razão só
dificilmente consegue fazer-se ouvir — disse Watchman, estudando atentamente a
torre. Nuvens de vapor elevavam-se da tundra. No sítio onde as fitas injectavam
calor no subsolo gelado, já se notavam bolhas no meio da lama. Um banco de nevoeiro
formava-se um pouco acima do solo, no ponto em que o ar gelado do Árctico chocava
com o calor que subia da tundra. Watchman já conseguiu ouvir os resmungos vindos do
interior da terra, os estranhos ruídos de sucção resultantes do alastrar
subterrâneo da lama. Qual será o desvio da perpendicular da torre, pensou? Dois
graus? Três? Quanto mais terá de se inclinar até que o centro de gravidade se
desvie e leve ao colapso da estrutura?

— Olha! — disse subitamente Lilith.

Uma figura acabara de sair do transmat: Manuel Krug. Vinha vestido com roupas de
alfa — as minhas roupas, percebeu Watchman —, só que estavam rasgadas e manchadas
de sangue; a pele que se podia ver por entre as roupas estava marcada por golpes
profundos. Manuel parecia não se aperceber do frio intenso que fazia; correu para
eles, de olhos esbugalhados, excitadíssimo.

— Lilith? Thor? Oh! graças a Deus! Ando há não sei quanto tempo a ver se descubro
uma cara amiga. O mundo enlouqueceu?

— Devia vestir roupas mais quentes nesta latitude — respondeu-lhe Watchman.

— O que é que isso interessa? Ouve, sabes do meu pai? Os nossos androides
enlouqueceram. A Clissa morreu. Violaram-na e empalaram-na. Eu consegui fugir, mas
foi por pouco. Em todos os sítios onde fui... Thor, o que é que está a acontecer? O
que é que se passa?

— Não deviam ter feito mal à sua mulher — disse Watchman. — Por favor aceite as
minhas condolências. Foi uma coisa perfeitamente desnecessária.

— Ela era amiga deles — disse Manuel. — Sabiam que ela, às escondidas, dava
dinheiro para o PIA. E... e... oh, meu Deus, devo estar a enlouquecer. A torre não
me parece direita — piscou e esfregou várias vezes os olhos com os polegares. —
Parece-me que continua a balançar. Desequilibrada? Como é que isso é possível? Não,
não. Estou a ficar louco. Deus me ajude. Pelo menos vocês os dois estão aqui.
Lilith? Lilith? — Manuel estendeu a mão para ela, tremendo convulsivamente. — tenho
tanto frio, Lilith. Abraça-me, por favor. Leva-me para qualquer lado. Só nós os
dois. Eu amo-te, Lilith. Amo-te, amo-te, amo-te. Só me restas tu, agora...

Estendeu a mão para ela.

Lilith esquivou-se, Manuel abraçou-se ao ar. Libertando-se do humano, Lilith


agarrou-se a Watchman, premindo o corpo contra o do macho. Watchman abraçou-a
carinhosamente, sorrindo com ar triunfante. Passou-lhe as mãos ao longo do corpo
esguio, como que a testar a firmeza das nádegas e dos seios. Os lábios procuraram
os dela, a língua mergulhou-lhe na boca entreaberta.

— Lilith! — guinchou um atônito Manuel.

Watchman sentiu que estremecia de excitação. Tinha o corpo inteiro a arder, não
havia nenhum nervo que não pulsasse loucamente: estava mais que desperto para a sua
recém-descoberta virilidade. Lilith, nos seus braços, parecia feita de mercúrio. Os
seios, as ancas, o ventre, pareciam queimar-lhe a pele. Mal se apercebeu dos tênues
protestos de Manuel.

— A torre! — gritou Manuel. — A torre!

Watchman soltou-se de Lilith. Girou sobre os calcanhares para ficar virado para a
torre, o corpo flectido, expectante. Das entranhas da terra saiu um terrível ronco,
acompanhado pelos sons de sucção das montanhas de lama. Um estalo, como uma árvore
a partir-se. A torre inclinou-se pronunciadamente, inclinou-se, inclinou-se... as
placas reflectoras lançavam um jacto de luz sobre a sua face oriental. No interior,
os equipamentos de comunicações eram perfeitamente visíveis, quais sementes dentro
de uma vagem. A torre inclinou-se ainda mais. Junto à base, do lado poente, enormes
montões de terra eram atirados ao ar, alguns deles caindo mesmo nas imediações do
centro de controlo. Vários sons secos, como cordas de um violino, a rebentarem. A
torre continuava a inclinar-se. Um som de esguicho, deslizante: quantas toneladas
de vidro estariam a estremecer nas suas fundações? Que poderosas juntas tentariam
agarrar-se desesperadamente à terra? Os androides, aglomerados em filas maciças em
locais seguros, faziam repetidamente o sinal de Krug-nos-preserve, murmurando as
suas orações, num som cavo e ondulante que conseguiu sobrepor-se aos ruídos que
vinham da base da torre. Manuel soluçava. Lilith gemia de uma forma que ele já lhe
tinha ouvido duas vezes, quando a tivera debaixo de si, nos últimos e frenéticos
momentos antes do orgasmo. Watchman parecia sereno. A torre inclinou-se ainda mais.

Começou a cair. O ar assobiou em redor de Watchman, deslocado pelo monstro que


tombava, quase o atirando ao chão. A base da torre mal parecia mover-se, enquanto a
secção média mudou subitamente de ângulo e o topo descrevia um arco soberbo para
depois cair na vertical. Desceu, desceu, desceu... caía como que encapsulado num
momento roubado ao tempo. Watchman foi capaz de analisar separadamente cada uma das
fases do colapso, como se estivesse a ver uma série sucessiva de imagens. Sempre a
cair, a cair... O ar fremia, o vento ululava, inundando o estaleiro com um forte
cheiro a queimado. A torre desfazia-se, não de uma vez só mas sim em secções, que
caíam na tundra e ressaltavam, soltando enormes jactos de lama, atirando pedaços de
vidro a distâncias impensáveis. O clímax da queda pareceu durar vários minutos, com
blocos de vidro a caírem e a ressaltarem, fazendo com que a torre se parecesse com
uma gigantesca serpente ferida de morte. O som, agora cavo e ressonante, rebolava
pela tundra fora, como um trovão contínuo, e por fim tudo ficou imóvel. Havia
fragmentos cristalinos espalhados numa área de centenas de metros quadrados. Os
androides estavam de cabeças baixas, recolhidos em oração. Manuel estava espojado
aos pés de Lilith, a cara encostada à perna direita da alfa. Lilith postava-se de
pernas bem abertas, ombros puxados para trás, seios palpitantes, brilhando como se
tivesse acabado de passar por novo êxtase. Watchman, perto dela, continuava
impávido e sereno, se bem que começasse a sentir as primeiras pontadas de tristeza
pelo desaparecimento da torre. Puxou Lilith para junto de si.

Momentos depois, Simeon Krug emergiu de um dos transmats. Watchman já contava com
isso. Krug pôs a mão em pala sobre os olhos, como que para afastar um brilho
insuportável, e olhou em redor, detendo-se a fitar o local onde se erguera a torre,
continuando para abarcar com o olhar a multidão de androides, voltando a fitar a
enorme montanha de destroços. Por fim virou-se para Thor Watchman.

— Como é que isto aconteceu? — perguntou Krug num tom muito calmo, controlando
rigidamente a voz.

— As fitas de refrigeração deixaram de funcionar, e o subsolo derreteu.

— Tínhamos uma dúzia de redundâncias para evitar uma coisa destas.

— Desliguei todas as redundâncias — disse Watchman.

— Tu?

— Achei que era preciso um sacrifício.

A calma forçada de Krug não o abandonou.

— É assim que me agradeces, Thor? Fui eu que te trouxe a este mundo. Sou o teu pai,
de certa maneira. Alguma vez te neguei aquilo que me pedias? E tu pagas-me
destruindo a torre? Hem? Hem? Isso tem algum sentido, Thor?

— Para mim tem.

— Pois para mim não! — disse Krug, soltando uma gargalhada amarga. — Mas claro, eu
não passo de um deus, e os deuses nunca compreendem os modos de pensar dos mortais.

— Os deuses não abandonam a sua gente — disse Watchman. — O senhor abandonou-nos.

— A torre também era vossa! Tu mesmo deste-lhe um ano da tua vida, Thor! Eu sei que
gostavas dela. Estive dentro da tua cabaça, lembras-te? E mesmo assim, tu... tu...
Krug calou-se, sufocado por um ataque de tosse.

Watchman pegou na mão de Lilith.

— Temos de ir embora. Já fizemos o que tínhamos de fazer aqui. Vamos voltar para
Estocolmo, para nos juntarmos aos outros.

Juntos, contornaram o silencioso e imóvel Krug e dirigiram-se à fila dos transmats.


Watchman ligou um dos aparelhos; o campo surgiu, verde puro, a cor certa. As coisas
deviam ter voltado à normalidade nas sedes dos vários transmats.

Estendeu a mão para marcar as coordenadas. Ao fazê-lo, ouviu o rugido angustiado de


Krug:

— Watchman!

O androide olhou por cima do ombro. Krug estava a poucos metros do cubículo, o
rosto vermelho e distorcido pela raiva, os maxilares contraídos, olhos
semicerrados, rugas bem marcadas nas faces, as mãos com dedos dobrados como garras.
Num súbito mergulho, Krug agarrou Watchman por um braço e puxou-o para longe do
transmat.

Krug parecia estar à procura das palavras apropriadas, mas não foi capaz de as
encontrar. Após um curto momento de confrontação, desferiu uma violenta bofetada no
rosto de Watchman. Foi um golpe poderoso, mas o androide não fez menção de
ripostar. Krug atingiu-o de novo, desta vez com o punho cerrado. Watchman recuou
para o transmat

Soltando um rugido enfurecido, Krug avançou. Agarrou Watchman pelos ombros e


começou a sacudi-lo freneticamente. Watchman ficou espantado com a ferocidade dos
movimentos de Krug. Krug pontapeou-o, cuspiu-lhe na cara, enterrou as unhas na
carne do androide. Watchman tentou separar-se de Krug, mas este desferiu-lhe várias
cabeçadas seguidas no peito. Watchman sabia que não teria dificuldades em afastar o
humano, mas não foi capaz de o fazer.

Não podia levantar a mão contra Krug.

No calor da refrega, Krug empurrara Watchmaan para muito perto do campo do


transmat. Watchman espreitou por cima do ombro, preocupado. Ainda não marcara as
coordenadas; o campo estava aberto, uma estrada aberta para lado nenhum. Se ele ou
Krug caíssem lá dentro...

— Thor! — gritou Lilith. — Cuidado!

O fulgor verde lambeu-o. Krug, um metro mais baixo do que ele, continuava a
empurrá-lo à cabeçada. Estava na altura de pôr fim à luta, pensou Watchman. Agarrou
Krug pelos braços e procurou desequilibrá-lo, preparando-se para o atirar ao chão.

Mas este é o Krug, pensou.

É o Krug.

É o Krug.

Krug largou-o. Confuso, Watchman respirou fundo e tentou firmar-se nas pernas. Krug
carregou, gritando como um possesso. Watchman encaixou o ímpeto do atacante. O
ombro de Krug esmagou-se contra o peito do alfa. Uma vez mais, Watchman viu-se como
que encapsulado num momento fora do tempo. Recuou como que livre dos efeitos da
gravidade, movendo-se numa zona intemporal, com uma lentidão infinita. O verde do
campo do transmat estendeu-se para o engolir. Muito ao longe, ouviu o grito de
Lilith e, mais perto, o grito de triunfo de Krug. Calmamente, sereno, sem pressas,
Watchman entrou no banho de luz verde, fazendo o sinal de Krug-nos-proteja para
desaparecer instantaneamente.

CAPÍTULO XXXVII

KRUG fica agarrado a uma das esquinas do cubículo do transmat, arquejante, a tremer
dos pés à cabeça. Travou mesmo a tempo; mais um passo ou dois e teria entrado com
Thor Watchman dentro do campo. Descansa por momentos, e por fim recua e volta-se.

A torre é um monte de ruínas. Milhares de androides olham para ele, imóveis como
estátuas. A mulher alfa, Lilith Meson, está deitada de barriga para baixo na tundra
gelada, a soluçar. Doze metros adiante, Manuel ajoelha-se. Uma figura patética,
ensanguentado, coberto de lama, as roupas transformadas em farrapos, o rosto
inexpressivo.

Krug sente-se invadir por uma poderosa sensação de paz. O espírito rejubila; está
livre de todas as correntes. Aproxima-se de Manuel.

— Levanta-te — diz para o filho. — Levanta-te!

Manuel continua ajoelhado, Krug obrigara-o a levantar-se, agarrando-o pelos


sovacos, e ampara-o até o jovem conseguir aguentar-se em pé.

— Ficas ao leme da barca — diz-lhe. — Deixo-te tudo. Conduz a resistência, Manuel.


Assume o comando. Trata de restaurar a ordem. És o chefe, Manuel. És um Krug, és o
Krug. Estás a perceber, Manuel? A partir deste momento abdico do meu império.

Manuel sorri; Manuel tosse. Manuel olha para o chão enlameado.

— É tudo teu, rapaz. Sei que vais ser capaz. As coisas podem parecer-te más hoje,
mas olha que é temporário. A partir de agora és dono de um império, Manuel. Para
ti, para a Clissa, para os vossos filhos.

Krug abraça o filho, e afasta-se bruscamente em direcção aos transmats. Marca as


coordenadas para a linha de montagem de veículos de Denver.

Estão lá centenas de androides, se bem que nenhum esteja a trabalhar. Ficam todos a
olhar para Krug, paralisados de espanto. Krug avança rapidamente entre os
androides.

— Onde é que está o alfa Fusion?— pergunta-lhes. — Alguém o viu?

Romulus Fusion aparece, parecendo atarantado ao deparar-se-lhe Krug. Krug não lhe
dá tempo de abrir a boca.

— Onde é que está a nave estelar?

— No espaçoporto — responde o alfa em tom respeitoso.

— Leva-me lá.
Os lábios de Romulus Fusion mexem-se hesitantes, sem conseguir formar as palavras,
se bem que queira dizer a Krug que houve uma revolução, que as suas ordens já não
têm qualquer valor. Enfim, o alfa Fusion não diz nada disso, limita-se a acenar com
a cabeça.

Conduz Krug até à nave estelar. Lá está ela, como da última vez, sozinha no meio da
pista quadrangular.

— Está pronta para largar?

— O teste de voo em órbita terrestre estava previsto para daqui a três dias,
senhor.

— Agora não tenho tempo para testes. Quero largar imediatamente para uma viagem
interestelar. Um tripulante. Diz à estação de controlo terrestre para programar a
nave de modo a alcançar o seu destino final, conforme já vos foi indicado. À
velocidade máxima.

Romulus Fusion volta a acenar com a cabeça, parecendo estar a viver um sonho.

— Vou transmitir as suas instruções — acaba por dizer.

— Óptimo. Vejam lá se se despacham com isso.

O alfa trota para fora do campo. Krug entra na nave, fecha e sela a escotilha de
acesso. Só pensa na nebulosa planetária NGC 7293, na constelação do Aquário,
emitindo a sua forte luz pulsante, aquela luz venenosa que ressoa como um gongo
pendurado no firmamento. O Krug vai a caminho, diz para si próprio. Esperem!
Esperem por mim, vocês aí em cima! O Krug vai aí para falar convosco. Não sei como,
mas tem de haver um processo.

Mesmo que o vosso sol cuspa fogo capaz de me assar os ossos a dez anos-luz de
distância. O Krug vai aí para falar com vocês.

Inspecciona a nave. Parece estar tudo em ordem.

Não activa os écrans para uma última visão da Terra. Krug virou costas à Terra.
Sabe que se olhar para fora verá os incêndios a iluminarem a noite em muitas
cidades do Mundo, e isso é coisa que ele se recusa a testemunhar; o único fogo que
o preocupa é o do anel do Aquário. A Terra, essa, deixou-a ao seu filho Manuel.

Krug despe-se. Deita-se numa das unidades; criostáticas do sistema de suspensão de


vida. Está pronto para partir. Não sabe quanto tempo demorará a viagem, nem se
descobrirá alguma coisa quando lá chegar. Não lhe deixaram outras hipóteses.
Entrega-se de corpo e alma; às suas máquinas, à sua nave estelar.

Aguarda.

Obedecer-lhe-ão uma última vez?

Krug espera.

De repente, a cobertura de vidro da unidade criostática desliza até se fechar,


selando-o lá dentro. Krug sorri. Sente o líquido congelante a picá-lo, assobiando
quando lhe toca na pele. O líquido sobe à sua volta. Sim, sim. A viagem está
prestes a começar. Lá fora, as cidades da Terra são pasto das chamas. A ele, quem o
queima é um fogo diferente, um fogo que ressoa como um gongo nos céus. O Krug vai a
caminho! O Krug vai a caminho! O líquido congelante já está quase a cobrir-lhe o
corpo. Sente-se a mergulhar numa estranha letargia; o corpo está a parar, o cérebro
febril acalma-se como que por milagre. Nunca na vida se sentiu tão descontraído.
Fantasmas dançam-lhe na mente: Clissa, Manuel, Thor, todos, substituídos pelo
feérico anel da NGC 7293, que pouco depois também desaparece. Já quase não respira.
O sono apodera-se dele. Nem sequer sentirá a largada. A cinco quilômetros dali, uma
mão-cheia de androides perversamente fiéis estão a falar com o computador;
preparam-se para mandar Krug até às estrelas. Krug espera. Adormece. O líquido
congelante tapou-o por completo. Krug está em paz. Deixa a Terra para sempre,
começa finalmente a sua viagem

FIM

Of. Gráf. de Livros do Brasil, 5. A. — Rua dos Caetanos, 22 - Lisboa

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