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ALGUNS POEMAS AINDA INÉDITOS EM LIVRO – PEDRO

FERNANDES DE ALMEIDA

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TEOLOGIA NEGATIVA

Escapas às palavras.
Cegas ainda mais
quem julga ver-Te a face por inteiro.

Espantas quem Te prende


à estreiteza das regras,
sopras ar casto às madalenas,
dás retidão aos dimas.

Calas Teus doutores eloquentes:


fá-los nomear qual "palha"
obras mais fulgentes
que catedrais e estrelas.

Após a morte,
surpr'endes mesmo Teus profetas
(em vida de tal modo expectantes
que deram suas cabeças de bom grado).

Inundas c'o perfeito sol da eternidade


quem Te sabe treva inabarcável,
quem mira, nu, o próprio precipício;

Quem assume a espada do desprendimento


e se cinzela aos gumes do vazio
— cavado à expulsão do mundo
e ao emudecimento.
SONETO A SANTO AGOSTINHO

Te vejo: és como um Sócrates de Cristo


a andares de pés nus, não por Atenas,
mas dentro da tua alma não pequena,
criando mil questões com teu juízo;

E enquanto o grego andando, de imprevisto,


achava alguém que em si retinha apenas
erudição opaca, só pretensa,
te encontras c'o Imutável Erudito;

A Ele tu interrogas, abundante


de amor que mais e mais teu peito expande,
até pulsares junto da Verdade!

E dás — já conhecendo-te a ti mesmo —


à história universal dos belos textos
uma inauguração na intimidade.
VÊS, DEUS?

Vês, Deus?
Nada de novo sob quem sou
levo os mesmos membros lassos
(malgrado a rigidez que o corpo finge);

Vês? Carrego o mesmo modo,


de passar por Teus sinais incandescentes
como quem passa e pega (e larga) um panfleto
desses arautos, falsos, do Teu nome;

Vês? Mantenho o mesmo jeito,


de sonhar o abraço nos desesperados,
e o trovejar tão justo dos profetas,
e a vista intrépida dos santos... sonho
sonho, apenas, sonho...

Mas morre mais alguém por esses dias


e engasgo n’um silêncio
em que as lágrimas não cabem

Oh, exausto estou...


deste-me alvedrio?
Já me vali dele o bastante!

Devolvo-Te em aulido último:


"transforma-me, pois eu não posso!"
transforma-me — custe a tempestade que custar.
NÃO SABES? A PAIXÃO NUNCA PASSOU

Não sabes? A Paixão nunca passou:


É o ponto que traspassa todo o tempo
e o teu pecado de hoje o prorrogou...

Não penses, no entretanto, com tormento


por seres uma fibra do madeiro
que Deus vai suportando contra o vento;

Mas tira, de pesares no Cordeiro,


algo bem contraposto ao que é remorso:
o impulso pra voares de joelhos,

e lavares com Sangue esses teus olhos...


ESTRANHO, ESTRANHO HOMEM

Contemplo um homem andando à praia


(Estranho, estranho homem!),
vai lentamente, gravemente.

Mais espontâneo parece


que uma criança;
porém mais ponderado
que qualquer senil.

No olhar a flama
de quem vai reformar o mundo;
No gesto o frio
de quem vai conservar
a luz mais velha.

D'um cósmico leão a força emana


e romperia o espaço n'um rugido;
Contudo expressa qualquer cousa
de quem se curvaria aos nossos pés.

Que aspecto distante!


Mas se contempla os grãos de areia
ou saltitantes gotas das marés;
Se olha as escamas dos peixes
ou as escamas no olhar dos homens,
que atenção tamanha!
Como só visse irmãos, só visse centros,
e tudo amasse, como a si mesmo...

Estranho, estranho homem!


(Vai lentamente, gravemente);
é feito um sol em pleno eclipse
auto-imposto
e é muito triste, muito triste...

Qual se ofertasse o fim do desespero


e assim sofresse, eternamente,
pelos que o recusam.
INSCRIÇÃO - portões do COF

"Aqui não lograrás nenhum diploma,


não acharás muletas carreiristas
que às massas brasileiras impressionam;

Mas, vindo, voltarás à tua lida


mais forte, mais sereno, mais ciente,
que a morte tem de ser, na breve vida,

Memória crucial — como uma lente


pela qual deves ver, de cada passo,
como ele há de ecoar eternamente...

E à cata do teu eu inalienável


(expresso em vastidão catedralícia)
terás por teu padrão um vulto raro,

que se esculpiu co'a forma que devia."


SEGUNDO SONETO A LOUIS LAVELLE

São modulações de um fogo vivo


as serenas frases que nos vertes,
derretem as fronteiras da epiderme,
revelam as paisagens do invisível;

Aclaram nosso fundo, e é incrível


que o mundo interior, outrora incerto,
teu ser nos mostra límpido e aberto:
És voz do que pensamos indizível.

És ressonância aos cosmos que mui ora,


és crepitar do Todo dentro d'hora,
és homem-anjo dando anunciações

— Vieste (sob vestes de erudito),


nos consumir a fome do finito,
incendiar o nu dos corações.
SOPRAMOS PRA DEPOIS...

Somos nós o misto o d'anjo e besta,


o Mar Celestial e a rude terra,
o recusar constante das ofertas,
a sanha que o cerúleo se ofereça...

Somos como um sono sob a guerra


que travam nossas duas naturezas
— d'um lado a carne avara, a incerteza,
do outro a essência pura sobre as eras...

Sopramos pra depois (e é sempre urgente!)


que o Mar traspasse as margens temporais
e apague desta areia impermanente
as formas de mil torres sepulcrais;

Que o ir-e-vir das vagas sazonais


faça da areia espelho em que se estende
a face das distâncias imortais...
IGREJA

Tu és, por dois mil anos, novidade!


E as ondas contra ti, recém nascidas,
declinam na mais vã senilidade;

És noiva incendiada, prometida,


esperando o vestido esplendoroso
composto do que tecem santas vidas;

És tal qual descrevera um sábio gordo:


corrida perigosa e estimulante
mantida em equilíbrio gracioso;

És corpo do além-tempo que, no instante,


vai declamando aos homens toda a glória
de serem as imagens semelhantes

— subimos se curvados sob as hóstias:


pilares desde o mais sanguíneo seixo,
escudeiros do Céu dentro da história

sonhando, após o véu, o Eterno beijo...


Ó MONGE EM MODOS RUDES DISFARÇADO

*A Olavo de Carvalho

Deitavam-se, pomposos, entre escombros,


semi-homens, se entretendo com "problemas"
e ante a nação estéril, dando de ombros;

Tratando feito mero teorema,


a luz que o grande Sócrates pariu
quando morreu ereto, lá em Atenas...

Que destroçado estava este Brasil,


ao jugo de Beemote e Leviatã!
Mas tua voz sincera aqui surgiu:

Foi contra a espessa treva uma manhã!


enfim um'alma reta, emancipada
perante grana, cargo e glória vã.

O ódio que lançaram-te? Foi nada!


zoada d'uma turba só de atores,
vivendo uma comédia involuntária

— Mas quem há de parar os esplendores


do teu vulto nas almas ecoado,
do fruto dos teus cândidos labores?

Ó monge em modos rudes disfarçado:


teu eu há de ser mito fundador
d'um Brasil nobremente devotado

ao Deus que confessaste teu Senhor.


A UM CACHORRO

Quanta linguagem viva em tua forma!


Espelhas mil pecados sem pecares,
Espelhas mil virtudes sem lograres
o dom que dos humanos é a norma.

A ira simbolizas quando cortas


algo com teus colmilhos singulares;
e da humildade contas quando trazes
a devoção nos olhos que nos voltas.

Ainda que não tenhas dom do arbítrio,


Deus fez-te com instinto tão amigo
que serves quem te cria, nobre cão

— Quem sabe ler-te torna-se perplexo


com quanto és expressivo, ó rico verso
do poema estupendo da criação.
À PORNOGRAFIA

Olhares habituas
aos abismos da carne,
sinistro cinema
que espectros conduzem;

Aquém mesmo do instinto


fazes o homem
— e assim sacias teus senhores,
e assim que incitas os teus servos
ao fundo esquecimento
da própria realeza
da onírica beleza
d'um jardim perdido.

Mas tão logo de ti seus olhos saem


e eles bem sabem-se
já por entre escombros e desabamentos
(há neles recônditos que não enganas).

Sugadora umbrosa,
ladra do tempo em que o homem
para o além se esculpe:
a Graça há de arrancar-te as garras
repletas de peçonha!

— essas com que consomes almas


e marcas de discretas mortes
as memórias.
À SANTIDADE

Estás muito mais perto que a riqueza,


que os aplausos efêmeros do mundo,
que as delícias da pele malfazejas
(tentações d'um perene moribundo);

És um mar transbordante de pureza!


És um sol pra alumbrar cada segundo!
Congelamos, porém, tua correnteza...
Enterramos teus raios tão fecundos...

Pela falsa beleza das distâncias


esquecemos tua porta, sempre dentro,
que nos leva à mais fulva das infâncias

— Sob a morte discreta, sob o tempo


que se come a si mesmo enquanto avança,
só caçamos o fumo solto ao vento...
ÀS PALAVRAS - ou "A PESCARIA"

Procuro-vos no mar do inconsciente,


sois peixes sem matéria, cintilando
à cata de emergir já plenamente

Ao lápis com que, quieto, vou pescando,


pra vos deitar à luz do tempo-espaço
e ver na vossa escama se espelhando

Imagens pra ampliar o imaginário


— Fazei-me ver as cousas impossíveis!
meus mortos n'uma relva, a rir descalços,

Cantando como o peso, n'outros níveis,


desfaz-se sob um Sol que não descansa
e já irradia todos os matizes...

Fazei-me ver na casa (em que, criança


vivia eu olvidado de que há tempo),
a vó que já se embota na lembrança...

Deixai-me concentrar todo o lamento


das almas que partiram sem pescar,
trancando-vos no peito com tormento

— Deixai-me as ver em vós! transfigurar


a dor por vossos corpos coruscantes
de fogo paciente ao fundo mar:

Dai-me um olor eterno em pleno instante.


O CAVALEIRO DE CRISTO

Rasgai as nuvens tenebrosas, ó raios em cruz!


Irrompei, vulcões! vivos feito o sangue do Cordeiro,
que a luz tem muito inimigos;

Alguns me apodrecem por dentro,


outros maculam o mundo, desde fora
— Vençamos os do peito por primeiro:
Tornemo-nos um só, potências que carrego!

(É preciso que o ar puro volva aos corações,


e que o perdão se espraie
como a aurora nos empedernidos vales)

As lágrimas da Virgem
serão nosso escudo.

As chagas do Cristo
nossa armadura.

A retidão dos mártires


nossa espada.

Vibrai, ó raios!
Transbordai, vulcões!

Sejamos capazes, mesmo se a vitória for remota,


de morrer pelo Princípio
que confrontando qualquer lógica
nos soprou a estranha,

a dadivosa vida!

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