Você está na página 1de 3

AUTO DA LUSITÂNIA, DE GIL VICENTE

25 de September de 2015

O Auto da Lusitânia, uma das últimas peças de Gil vicente, foi escrito em 1531 e
representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu
seu filho, D. Manuel.
A peça trata das bodas de Lusitânia e Portugal (personagens mitológicos), mas Gil
Vicente, como muitas vezes faz, mistura no enredo e nos diálogos muitos temas,
personagens, e cenas que constituem como “diversões” à margem do tema maior.

Lusitânia é filha de Lisibea (Lisboa) e do Sol, e por ela se apaixonou um caçador grego
de nome Portugal. Quando os amores parecem desencaminhar-se, acorrem às deusas
(diesas) gregas, com cuja proteção se decide então o casamento. Este o tema, que se
desenrola da seguinte maneira: comça o auto com vários diálogos e recitativos de
pessoas comuns acerca dos assuntos de amor e outros, alguns picarescos como
convém a uma farsa, até que entra em cena o Licenciado, que faz o papel de narrador
e representa Gil Vicente; ele introduz o tema das bodas dizendo que o Sol viu
Lisibea nua sem nenhuma cobertura (…) e houve dela uma filha tão ornada se sua luz, que
lhe puseram nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta Província. Passados tempos,
um famoso cavaleiro grego de nome Portugal ouviu falar da boa caça na serra de
Sintra (serra da Solércia), e como este Portugal, todo fundado em amores, visse a
formosura sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se achou perdido por ela.
O texto tem ressonâncias no presente de Gil Vicente, que busca formar um panorama
de sua terra, apreendendo a totalidade de suas raízes culturais.

O Auto da Lusitânia classifica-se como uma fantasia alegórica. A peça é dividida em


duas partes distintas:
– na primeira parte, assiste-se às atribuições de uma família judaica;

– na segunda parte, assiste-se ao casamento de Portugal, cavaleiro grego, com a


princesa Lusitânia. Dois demônios, Belzebu e Dinato, que aparecem no texto vêm
presenciar o casamento e escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.

O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais


desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de
ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na
terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém,
para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.

“Todo o Mundo” era um rico mercador, e “Ninguém”, um homem pobre. Belzebu e


Dinato tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar
temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.

Vejamos:

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que
perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?


Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu’esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.

Fonte: https://www.passeiweb.com/auto_da_lusitania/

Você também pode gostar