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ARSÈNE LUPIN:
O SEGREDO DE EUNERVILLE
A prudência mais elementar mandava que Raul não usasse a lanterna e por isso
tropeçou nos dormentes. O mesmo pensamento obsessivo palpitava em sua
cabeça: "Contanto que ele se cale!" Parou para escutar. Apenas um silêncio
úmido, insustentável. Lembrou-se de que debaixo da terra os sons se propagavam
de forma caprichosa. Talvez ainda estivesse muito longe dos bandidos. Vamos!
Tudo estava terminado. Chegaria tarde demais. Esbarrou num poste e quase caiu.
Durante uma fração de segundo acendeu a lanterna. Droga! Adiante havia uma
encruzilhada, uma ramificação. Impossível saber. Tomou à direita. E de repente,
do fundo da noite, uma pequena claridade vermelha apareceu, aumentou. Raul
avançou mais lentamente, encontrou uma segunda ramificação. A via da esquerda,
depois de um volta, reencontrava-se com aquela que ele havia seguido e os trilhos
atravessavam uma espécie de vasta sala, em rotunda, onde os reflexos de um
punhado de brasas delineavam vagamente os contornos. Os torturadores haviam
desaparecido. Sem dúvida haviam se retirado pela galeria da esquerda, cruzando
com Raul sem que se encontrassem. Mas não haviam levado sua vítima. O homem
jazia junto ao fogo, seus pés ainda voltados para as brasas. Raul acendeu a
lanterna: um grande velho, de barba branca, seco, musculoso, sólido, com um
nobre rosto ainda crispado pela dor. Raul levantou-o, afastou-o da fogueira.
— Você não morreu, meu gentil-homem?... Não vá me fazer uma coisa dessas...
Você, gentilmente, voltará à vida e então conversaremos.
Enquanto falava, focalizou com o facho de luz da lanterna os pés do infeliz. Fez
uma careta, tocou com um dedo, cuidadosamente, a carne queimada e inchada.
— Ainda bem! Está menos ferido do que aparentava. O velho torceu-se,
encolheu-se.
— Piedade — gemeu. — Eu já disse tudo.
Pôs-se a balbuciar palavras ininteligíveis. Raul ajoelhou-se, o ouvido colado aos
lábios descorados.
— Repita — ordenou. — Como? São João?... O que fez ele, São João?... Hem?...
São João sucede a Jacó?... Perfeitamente. Está perfeitamente claro! E depois?...
D'Artagnan... Sim, entendi bem. D'Artagnan... Não fique agitado, vovô.
D'Artagnan conquista glória e fortuna... Um pouco mais alto, pelo amor de
Deus!... Glória e fortuna à ponta da espada... É isso?... Evidentemente, está
perfeitamente claro! Tem certeza de que não há mais nada?... Algo mais
esclarecedor, afinal de contas?
Com os olhos brilhando de excitação, tomou o velho pelos ombros e o sacudiu
levemente.
— Mais um esforço, papai. Desabafa e estará livre de tudo. O velho levantou-se,
num último esforço, fez um esgar.
— Hem? — disse Raul. — O sangue?... Você quis mesmo dizer o sangue?
O velho bateu as pálpebras e tornou a cair ao solo. Raul agarrou-se a ele, pálido,
cheio de contida violência.
— Responda!... Responda logo!... Depois, poderás morrer... O sangue de quem...
Vamos, homem, faz um esforço... O que vem a ser esse sangue?
Mas o velho não se mexia mais. Ele não diria a palavra, essa palavra que deveria
ser a chave de todo o resto. Desfalecera e sua figura cor-de-rosa tornara-se
horrível de se olhar.
— Que azar! — resmungou Raul. — Está sem sentidos... Três segundos a mais e
ele teria contado tudo.
Enxugou a testa suada do desconhecido.
— Não tenha mais medo, Matusalém. Estás salvo... Peço-te apenas um minuto.
Agora de pé, perto das brasas fumegantes, no fundo de um obscuro subterrâneo,
tão à vontade como se estivesse no Jóquei Clube, Raul examinava a situação com
esse prodigioso sangue-frio, esse extraordinário espírito de decisão, que lhe
permitia dominar as circunstâncias mais difíceis. Subitamente sorriu com um ar
brincalhão.
— Vamos, vovô; vamos andando. Eu te levarei à minha clínica... E posso
prometer-te que, dentro de quinze dias, estarás saltando e correndo como um
coelho.
Pôs o velho às costas.
— És pesado, meu velho... Como pesas!
Curvado sob a carga, voltou pelo mesmo caminho, parando para tomar fôlego na
saída da galeria. O barco não estava mais sob os salgueiros. Sem dúvida, os três
homens haviam pensado que sua vítima morrera. Raul deu um sorriso de
escarninho e, reunindo suas forças continuou com sua carga.
— Ainda bem vivo!... Velho, mas forte como uma rocha... Que bela geração a tua!
Reiniciou a caminhada. O dia despontava, do lado de Quilleboeuf, mas o campo
ainda estava deserto. Do alto de sua torre, Bruno devia esquadrinhar com a luneta
todos os cantos do terreno. Certamente, correria a prestar ajuda, logo que visse o
insólito grupo. A fadiga começava a fazer com que as pernas de Raul tremessem.
— Não posso mais cansar-me desse jeito — pensava Raul. — Tu não tens mais
vinte anos, meu caro.
Dois bons quilômetros separavam a pedreira do automóvel. Raul levou perto de
uma hora a percorrê-los. Felizmente Bruno estava lá, o fiel Bruno, o bom
Samaritano. Raul deixou-se cair, estendido, sobre a relva.
— Estava assustado — explicava Bruno. — Eu me perguntava...
— Está bem, vai tudo bem. Ocupa-te dele... Tu o conheces?
— É o velho do castelo — disse Bruno transtornado.
— Diga-me, tu não estudaste medicina antes de enveredar pelo mau caminho?
— Sim, apenas fracassei. Foi mesmo, de certa forma, por causa disso que...
— Eu sei. Coloca o velho no carro.
— Vai levá-lo ao hospital?
— Nem pense nisso. Eu o guardarei. É um cliente muito valioso. Viste seus pés?...
Acreditas que tenham raptado um homem dessa idade e o deixado nesse estado
lastimável por alguma bagatela?
— O que vai fazer?
— Eu, nada... És tu que farás alguma coisa. Tratá-lo, curá-lo rapidamente...
Depois, veremos. Compreendido, doutor?
— Mas onde quer que eu?...
— Saiba que tenho algumas relações na vizinhança... E, além disso, estás me
aborrecendo com tuas perguntas... Estás pronto? Então, vamos em frente.
Levantou-se, ágil, repousado, transbordando de vida. De um salto sentou-se ao
volante do Léon-Bollée{4}.
— Senta-te atrás. Estou com pressa.
Alguns instantes mais tarde atravessavam Honfleur adormecida. Raul cantarolava
e com as pontas dos dedos marcava o ritmo ao volante... São João... Jacó...
D'Artagnan... São João...
O auto fez a curva na estrada de Trouville arrancando pedras do calçamento
lateral. São João... Jacó....São João, que sucede a Jacó... e D'Artagnan que
conquista... "Francamente — sonhava Raul, — esse velho é um Nostradamus...
Qual foi o imbecil que disse que a vida não vale a pena ser vivida?... Mas o
sangue... o sangue... Mas afinal, que diabo de sangue é esse, sangue de quem?" As
sebes, ladeando o caminho, pareciam afastar-se rapidamente à passagem do
carro, para fechar-se logo após. "Ele falará... É necessário que ele fale... Ele dirá,
a mim... E quando eu estiver de posse do segredo..."
Raul parou diante de uma pequena casa em pleno campo. Havia uma cerca
branca, diante de um alegre e bem tratado jardim. As janelas estavam fechadas.
Desceu, empurrou a cancela e bateu à porta. Uma vez, duas vezes. Começava a
aborrecer-se.
— Então, não há ninguém em casa?
Uma janela abriu-se no sobrado e uma voz cansada, de mulher idosa, perguntou:
— Quem está aí?
— Ê o papa.
— Meu Deus! Tu... Tu, meu pequeno! Um momento depois a porta se entreabria.
— Sou eu, Victoire. Venho apenas dar-te bom dia. Victoire olhava-o assustada.
Ele fez sinal a Bruno que adiantou-se, carregando o corpo inerte do velho.
— Trago-te uma criança — disse Raul.
— Não! — protestou Victoire. — Não. Não quero. Estou cheia de todos os teus
truques, tuas artimanhas. Está terminado, entendeste? Estou muito velha para isso.
— Tu, velha... Ora vamos! Ninguém te daria mais de setenta anos... Minha boa
Victoire, não me recusarás um pequeno serviço... O último.
Empurrou Bruno para o corredor e guiou-o para um pequeno quarto que dava para
o campo, do outro lado da casa.
— Grades nas janelas e uma boa fechadura na porta. Perfeito! Ê sempre bom ser
cuidadoso... Deita-o na cama... Ficarás aqui, Bruno. Tu o tratarás, Victoire irá à
cidade buscar os remédios que forem necessários. Os dois serão os responsáveis
por ele. E nem uma palavra a quem quer que seja ou eu arrancarei a língua de
ambos... Se tenho boa memória, no sobrado há outro quarto... Victoire vai levar-te
até lá. Precisas dormir.
— Mas tu, meu pequeno — disse Victoire. — Estás com uma aparência de fazer
medo... Necessitas dormir também.
Raul apanhou uma cadeira, sentou-se a cavaleiro na mesa, perto da cama.
— Dormir?... Não brinque!... Tu não fazes idéia, minha velha... O Segredo de
Eunerville!...
2
UM PONTO DA HISTÓRIA
Apesar de minhas amigáveis relações com Arsène Lupin e a confiança que ele,
em várias ocasiões, demonstrou-me de maneira particularmente lisonjeira,
existem alguns mistérios em sua vida que nunca pude esclarecer completamente.
Particularmente sua aptidão extraordinária não só em adotar qualquer disfarce,
mas, mais importante ainda, em praticamente entrar na pele de qualquer
personagem a ponto de tornar-se outro. Teria ele, como pretendia, trabalhado com
Fregoli? Ou teria, segundo afirmara, seguido os cursos do Conservatório? Seria
exato que Meliès o iniciara nos segredos da prestidigitação? Quando lhe faziam
perguntas diretas, nosso grande aventureiro nacional limitava-se a sorrir. Ou
então, respondia como fez um dia ao Juiz Formerie: "Eu sou muitos, Sr. Juiz. E sei
muito pouco sobre o curriculum vitae dos meus diferentes eus."
O certo é que Ernestine, a empregada de Maître{5} Frenaiseau, notário em
Honfleur, introduziu nessa manhã, na sala de espera, um velho senhor de roupa
antiquada e maneiras encantadoras que lhe pediu anunciasse o Conde Honoré de
Bressac, e beliscou-lhe a face de forma tão graciosa e delicada que era difícil
sentir-se aborrecida. E Maître Frenaiseau, por sua vez, sentiu pelo Conde de
Bressac, desde que o viu, uma verdadeira onda de simpatia. Simpatia que se
transformou em verdadeira ternura quando compreendeu que seu nobre visitante
partilhava de sua ardente paixão pela história.
— Soube, por um primo, que o castelo de Eunerville estava à venda — começou
o conde, depois que se instalou na melhor cadeira do escritório. — E não
esconderei que ficaria feliz em poder comprá-lo...
Deu um risinho faceiro, como se fosse o primeiro a divertir-se com seus próprios
caprichos e prosseguiu:
—... Não somente por sua admirável arquitetura, nem tampouco por sua magnífica
situação, mas também, e irei mais além, principalmente por motivos puramente
sentimentais... Sim, sou um velho conservador, e não ignoro quantas lembranças, a
maioria gloriosas, estão ligadas ao nome de Eunerville.
— Lembranças, algumas das quais, que não estão assim tão distantes. Duas
gerações! — retomou vivamente o tabelião, encantado de haver encontrado,
finalmente, um ouvinte diante do qual podia abandonar-se à sua inocente mania,
sem receio de ser a cada instante interrompido por um — "Vamos aos fatos, por
favor", tão seco, quanto desagradável.
— O senhor sabe que nosso infortunado soberano Louis-Phillipe hospedou-se
alguns dias no castelo, quando de sua fuga para a Inglaterra, durante o funesto
inverno de 1848?
— Creio, com efeito, já haver lido qualquer coisa a esse respeito — disse o
conde. — Mas existem tantos relatos contraditórios a propósito desse deplorável
acontecimento... Pois bem, Maitre, tudo isso só serviu para avivar meu desejo de
possuí-lo...
— É que... O senhor foi mal informado. O castelo de Eunerville não está mais à
venda.
— De verdade?... Pode julgar a que ponto fico aborrecido com tal fato!
— Acredito que me sinto também desolado. Fui eu quem fez a última venda, há
uns três anos. Meu cliente era um engenheiro, Jacques Ferranges. Um homem de
bem, muito inteligente, muito ativo... Eu diria mesmo excessivamente ativo. Pode
imaginar que meteu na cabeça modernizar todo o domínio?
O conde levantou os braços, com ar abatido.
— Sim — disse o notário. — Penso como o senhor a esse respeito, senhor conde.
Em certos casos, a audácia das novas gerações chega a raiar o vandalismo.
Jacques Ferranges começou instalando eletricidade... Até aí, nada a dizer. Afinal
de contas é preciso vivermos com o nosso tempo... Mas ele queria demolir uma
parte da ala direita, aumentar o pátio de honra, instalar água, como se não
bastasse o poço... E também substituir as estrebarias, por uma garagem... Nesse
ponto, não estou de acordo.
— Nem eu — afirmou impetuosamente Honoré de Bressac. — Mas eu não
poderia visitar esse Sr. Ferranges?
— Infelizmente não! Ele morreu de uma forma trágica. Maitre Frenaiseau tocou
um tímpano e Ernestine entrou.
— Dar-me-á a honra de provar meu licor de framboesa, senhor conde. Uma pura
maravilha, permita-me que o diga... Ernestine, dois copos, por favor.
Aproximando sua cadeira da de seu visitante, continuou:
— Jacques Ferranges e sua mulher morreram apenas dois meses depois de se
instalarem no castelo, num estúpido acidente. Faziam um passeio marítimo, perto
daqui. O barco virou. O castelo não traz boa sorte. Imagine que os dois
proprietários anteriores morreram também de forma trágica. O primeiro faleceu
num acidente de caça... Um tiro perdido de fuzil, cujo autor jamais foi encontrado.
O segundo caiu do penhasco... Tudo isso é muito triste.
— E voltando aos Ferranges?
— Bem, eles deixaram uma filha menor, Lucile.
— Mas então? — disse o conde.
— Espere! Jacques Ferranges tinha dois irmãos. Hubert, o mais velho, tornou-se
tutor da órfã. É ele quem atualmente mora no castelo.
O notário levantou seu copo e ambos beberam lentamente, saboreando o licor.
— Como é lamentável — retrucou o conde. — Mas dessa forma sou obrigado a
renunciar a meu projeto... Creia, apesar de tudo, que não me arrependo de minha
vinda, pois espero não se recuse a contar-me em que circunstância o rei encontrou
refúgio...
— Claro — disse Maitre Frenaiseau. — Sobretudo porque é um ponto da história
sobre o qual tenho um especial interesse... Não é preciso lembrar-lhe, senhor
conde, as causas da Revolução de 48...
— É, com efeito, inútil — suspirou Honoré de Bressac, que acrescentou
pensativamente: — Meu falecido pai falou-me muitas vezes da rebelião, da
abdicação, da fuga dos esposos reais para Trianon, depois para Dreux...
— O senhor seu pai disse-lhe que o rei, para não ser reconhecido, cortara os
cabelos? E que ele chegou a Dreux em charrete, vestido com uma sobrecasaca
gasta, e com os olhos disfarçados por óculos? Disse-lhe ele que em Evreux um
guarda nacional, apesar de seu disfarce, reconheceu-o e quase o denunciou?
— Ignorava tais detalhes — confessou o conde que não procurava dissimular sua
curiosidade.
— O senhor não é o único — disse o notário com satisfação. — Depois de uma
longa noite de alarme, Louis-Phillipe chegou ao castelo de Eunerville, onde a
rainha veio juntar-se a ele algumas horas mais tarde. O lugar era ideal para vigiar
de um lado o campo onde a tropa poderia aparecer a qualquer momento e, de
outro lado, o mar que ficava como o último meio de salvação. O derradeiro conde
de Eunerville era muito idoso, mas tinha um jovem mordomo, Evariste, que, como
ele, era inteiramente devotado à causa da monarquia... O governo provisório
havia lançado severas advertências para a vigilância do litoral. Foi Evariste
quem teve a idéia de fretar uma pequena barca em Trouville. O patrão da barca,
chamado Hullot, recebeu três mil francos para deixar o rei na costa inglesa. Foi
ainda Evariste quem conduziu o rei, numa carroça, até Trouville.
— Apaixonante! — murmurou o conde que, sem sentir, debruçara-se e devorava o
notário com o olhar.
— E o que se seguiu ainda foi mais excitante — continuou Maitre Frenaiseau. —
Eis o rei em Trouville. Tudo pronto. E no entanto ele não embarcou. Pelo
contrário, voltou na noite de 2 de março ao castelo de Eunerville. Por quê?...
Alguns pretenderam que o mar estava muito revolto. Outros, que o patrão da
barca, temendo uma denúncia, havia falhado no último momento. Tais razoes não
me parecem convincentes. Existe algo de inexplicável na conduta do velho rei
perseguido, que deveria ter apenas em mente a sua salvação. Sabe, como é de
domínio público, que Louis-Phillipe embarcou, finalmente, essa mesma noite de 2
de março, em Honfleur, no pequeno navio Le Courrier, posto à sua disposição
pelo cônsul da Inglaterra no Havre. Ora, o mar estava igualmente revolto. Por
outro lado, o Procurador da República em Pont-Audemer e sua polícia vigiavam
rigorosamente os portos e as estradas. Por que o rei que, de certa forma, se
encontrava com tudo resolvido em Trouville, decidiu, bruscamente, voltar para
onde estivera, afrontando um perigo tão terrível quanto inútil?... Para mim, a
decisão do fugitivo só tem uma explicação: a necessidade imperiosa e súbita de
voltar ao castelo, seja para apanhar algo que deixara guardado com seus amigos,
seja, ao contrário, para encarregá-los de alguma missão secreta, missão essa que
até o último minuto hesitara em confiar-lhes. Mas não serei eu quem esclarecerá
esse pequeno mistério histórico — concluiu Maitre Frenaiseau.
— O senhor já alcançou resultados notáveis — disse o conde. — Permita-me que
o felicite por sua erudição.
— Oh! Não exageremos meus méritos — protestou o notário modestamente. —
Encontrei a maioria de tais informações nas Memórias deixadas por esse bravo
Conde de Eunerville. O pobre homem quase não sobreviveu ao seu amado
soberano. Morreu em 1851. Poderá ver seu túmulo no pequeno cemitério de
Eunerville, ao lado de seus antepassados.
O Conde de Bressac parecia, de repente, haver remoçado. Muito teso em sua
cadeira, os dedos tamborilando nervosamente os braços da mesma, parecia presa
de uma agitação surda.
— Um homem que viveu a Revolução, o Império, a Restauração.— murmurou. —
Essas Memórias devem ter um interesse extraordinário.
— Pois, francamente não. Antes de mais nada sua leitura é das mais
desagradáveis. Esses cadernos têm cerca de seiscentas páginas, cobertas por uma
escrita miúda, algumas vezes indecifrável... Seria preciso, para chegar ao fim,
uma paciência que não possuo. Seria preciso, sobretudo, muito tempo livre... O
manuscrito é cheio de pesadas digressões, de insípidos detalhes. Em
compensação tudo serve a vazias declamações... Nosso conde era, o que
chamaríamos hoje, um fanático. Por outro lado, os acontecimentos que acabei de
narrar devem ter de certa forma abalado sua razão, porque a última parte das
Memórias tem passagens completamente incoerentes.
— Por exemplo? — disse vivamente o Conde de Bressac.
— Como eu me lembrarei?... Mas nada lhe impede de consultar pessoalmente
esses cadernos. Jacques Ferranges doou-os à Sociedade de História e de
Arqueologia da Normandia, em Paris.
— E acredita que possam existir no castelo outras peças, outros documentos,
relativos ao período a que nos referimos?
— Não. Penso que não. Ê bem verdade que não conheço todos os livros da
biblioteca... Há talvez quinze ou vinte mil, e nunca foram catalogados. Jacques
Ferranges se propunha a fazer um catálogo... Tudo que posso afirmar é que as
Memórias são, seguramente, apesar das reservas que possamos fazer às mesmas,
a mais preciosa fonte de informações sobre os acontecimentos de fevereiro e
março de 48.
O conde havia retornado a seu ar um pouco frívolo. Levantou-se.
— Lastimarei a perda do castelo de Eunerville — disse amavelmente. — Mas
guardarei a melhor lembrança de minha visita a Honfleur.
O notário conduziu-o até a porta da rua. Na soleira, trocaram alguns
cumprimentos e o conde afastou-se, um pouco curvado, mas o passo firme e a
bengala em riste. Assim que dobrou a esquina, empertigou-se e passou a andar
mais rápido. Um carro estava parado. Duas voltas na manivela e o motor roncou.
— Um velho imbecil — suspirou o conde tomando o volante. — Mas seu licor
era divino... Se eu somente soubesse o sangue de quem?...
Raul acabou a carta sorrindo e assinou-a. Ele teria, enfim, esse manuscrito!
Prometeu que o estudaria cuidadosamente, página por página. Talvez estivesse
perdendo tempo. Mas também talvez descobrisse alguma coisa, precisamente o
que havia escapado às investigações de Maître Frenaiseau.
O prédio onde a Sociedade de História e de Arqueologia estava instalada era na
Rua Bonaparte. Era uma dessas velhas casas tranqüilas como poderíamos
encontrar em Caen ou Lisieux.
— O Sr. Seyroles? — perguntou Raul.
— Primeiro, acima da sobreloja — respondeu a porteira sem mesmo se voltar.
— Espero — pensou Raul subindo a escada — que ele não vá me deitar muita
falação sobre a arte normanda. Se assim for, o protegido do ilustre Tabaroux se
arrisca muito a desacreditar seu mestre...
Na porta havia um simples cartão, preso por quatro percevejos. Raul puxou a
cordão da sineta. Como seria esse Seyroles? Raul o imaginava pequeno, um
pouco sujo, com um gorro de seda negra e algodão nos ouvidos. No momento, o
Secretário da Sociedade não dava o menor sinal de vida. Teria ele escutado, pelo
menos? Raul puxou novamente a sineta sem resultado.
— Que pena! — pensava Raul. — Uma carta tão caprichada! Tanto pior. Eu
mesmo terei que me servir. Afinal de contas, estou habituado.
A porta, levemente empurrada, abriu-se sem dificuldade. Raul entrou, viu o
escritório que se abria à direita da antecâmara. Deu alguns passos e encontrou-se
numa vasta peça cujas paredes, forradas de estantes até ao teto, desapareciam
cobertas por livros. No meio da sala estendia-se uma comprida mesa coberta por
uma imensa toalha que caía até o chão. Em cima da mesa, fichários, pastas,
tinteiros.
— Nada de luxo — murmurou Raul. — Decididamente a erudição não rende
muito. Vamos ver.
Subiu num banquinho colocado justamente em frente à letra E. Ao primeiro olhar,
descobriu a falta. As Memórias do Conde de Eunerville estavam faltando.
Raul não pôde conter um gesto de cólera. Então! Alguém tomara a liberdade... No
entanto o notário havia esclarecido que o manuscrito quase não oferecia interesse.
Ainda se o bibliotecário não houvesse escolhido esse momento para ausentar-se...
Raul desceu de seu poleiro e sobressaltou-se violentamente. Depois aproximou-
se lentamente da mesa e levantou a toalha. Dois pés apareceram, calçados com
pantufas. O bibliotecário não fora longe!
Raul não perdeu um segundo. A qualquer momento poderia chegar alguém.
Ajoelhou-se e afastou a toalha. O velho homem lá estava, bem como o imaginava.
Apenas seu gorro havia caído e havia sangue no peito da camisa. À altura do
coração, a bala tinha aberto um orifício minúsculo. O cadáver estava frio.
Raul baixou a toalha, levantou-se. Certamente mataram Seyroles para roubar o
manuscrito. Era de uma evidência ofuscante. O livro de registro dos pedidos de
empréstimos estava aberto sobre a mesa. Raul percorreu com o dedo a coluna das
obras pedidas.
Memórias do Conde de Eunerville: 6, junho, Barão Galceran.
Olhou a coluna de obras devolvidas.
Memórias do Conde de Eunerville: 14, junho, Barão Galceran.
O manuscrito devia estar ali!
Raul sabia bem o perigo que corria demorando-se. No entanto era incapaz de
mover-se. Esse crime o transtornava e sentia, confusamente, que estava prestes a
enfrentar um adversário poderoso, resoluto e selvagem. Passou a mão na testa e
no rosto.
— Vejamos — murmurou, — talvez seja apenas uma coincidência. Não tenho
motivos para exagerar.
Debruçou-se sobre o registro. 14, junho, Barão Galceran.
Seu dedo passou à outra coluna: 6, junho, Barão Galceran.
Subitamente teve uma exclamação de surpresa. As letras... As letras não eram
exatamente iguais, se bem que, necessariamente, as duas inscrições deveriam ter
sido feitas pela mão do bibliotecário. A primeira, sem dúvida, fora escrita por
ele, mas a segunda, a do dia 14, era uma imitação. Os caracteres eram mais
grossos e ligados muito mal.
Daí em diante, toda a cena se refez no espírito de Raul, com a nitidez de uma
reconstituição; o homem matando o secretário, depois escondendo o cadáver
apressadamente e registrando a devolução do manuscrito, para esconder o
verdadeiro móvel do crime.
— E por pouco eu caio no laço! — exclamou Raul. — Não estava mal pensado.
Acontece, apenas, que eu também tenho o hábito de imitar assinaturas e escrituras,
compreendes, barão? Eu também tenho minha pequena habilidade, meus pequenos
truques... Desta forma, queres guardar o manuscrito contigo. Tens receio de que
ele venha a cair em mãos indignas... Bravo homem! Talvez mesmo faças coleção!
O Sr. barão interessa-se pela história. O Sr. barão tem suas boas leituras!
A cólera, o ódio, a alegria se misturavam no coração de Raul, alteravam suas
feições, cerravam seus punhos. Respirou fundo e tomou o fichário contendo o
endereço dos assinantes da Sociedade.
— G... Gadois... Gaffner... Galabert... Eis aqui... Galceram... Barão Galceran...
14 bis, Rua Cambacères, Paris...
Saiu do escritório na ponta dos pés, atravessou a ante-câmera e fechou
cuidadosamente a porta atrás de si.
— E agora, a questão é entre nós, meu aristocrata!
Raul não se tinha enganado. A residência do barão, ao fundo de um pequeno
jardim, parecia ser de um homem opulento. O caminho que levava à escadaria
externa era coberto de areia fina e ladeado por roseiras. À direita percebia-se,
por trás de uma cortina de arbustos, os vidros de um jardim de inverno. Raul
bateu à entrada e um empregado, mais parecendo um lutador mas envergando
uniforme e luvas brancas, veio abrir. Teve um pequeno choque. Essa silhueta
maciça, essa cabeça quadrada, ele já havia visto de longe, à margem do rio, no
barco. Dessa forma, suas suspeitas não eram falsas. Estava na boa pista.
— Faça-me o favor de entregar meu cartão ao Sr. Barão Galceran — disse ele. —
Gostaria de tratar com ele de um assunto urgente.
— O senhor tem entrevista marcada?
— Não.
— Nesse caso, creio que o Sr. barão não poderá recebê-lo. Além de tudo, ele está
se preparando para o jantar.
Raul agarrou o empregado fortemente pelo uniforme.
— Não gaste sua saliva à toa, lacaio. Vá levar meu cartão a seu amo. Diga-lhe,
simplesmente, que acabo de chegar da Rua Bonaparte.
— Mas senhor...
— Despacha-te!
Mortificado, o homem praguejou qualquer coisa e dirigiu-se para a casa. Raul
seguiu-o indolentemente e, de passagem colheu uma rosa que, depois de cheirar,
colocou na lapela. O empregado já retornava:
— Se o senhor quiser fazer o favor de entrar... Conduziu Raul, através dum salão
ricamente decorado, à sala de refeições, de onde chegava um ligeiro ruído de
prataria, e afastou-se. Raul inclinou-se cerimoniosamente. O barão, talheres na
mão, olhava-o. Era um homem de uns trinta anos, pesadão, sangüíneo, com o rosto
completamente barbado, como um ator. Procurava mostrar-se frio, mas o rosto
traía um certo nervosismo.
— Confesso, senhor — disse ele — que sua insistência me espanta. Mesmo
porque não vejo verdadeiramente...
Levantou os ombros e serviu-se de um pedaço de frango. Raul tomou uma cadeira
e sentou-se diante dele.
— Espanta-me, meu caro barão. Não terá nem mesmo uma vaga idéia?... Por que,
então, me receber?
— Eu lhe peço — cortou o outro, — terminemos com isso. O senhor forçou minha
porta. Entrou aqui como... como...
Procurou um termo de comparação, careteou e lançou raivosamente:
— Explique-se!
Seus olhos encontraram os de Raul e, durante um momento, os dois homens se
estudaram. O barão baixou os seus primeiro e, controlando-se, voltou a comer.
Raul apanhou uma perna de frango no grande prato no centro da mesa.
— Permita-me?... Imagine que não comi nada desde a manhã de hoje. Estou
comendo com as mãos... sem boas maneiras!
Pela primeira vez o barão teve um breve sorriso. Ele aderia ao jogo.
— Albert! — chamou. — Traga mais um talher para o cavalheiro.
O empregado de luvas brancas trouxe, solícito, pratos e talheres.
— Ora muito bem! — retomou Raul. — E ainda há quem afirme que as tradições
de hospitalidade estão se perdendo... Não, não, Albert. Nada de rabanetes. Por
causa do meu fígado!... Um dedo apenas de Pomerol... Obrigado... Meus
cumprimentos, barão. Seu cozinheiro é um artista e esta ave está uma pura
maravilha.
O barão havia parado de comer. Contra a vontade, observava com assombro o
homem sentado à sua frente que, neste momento, parecia transbordar de gentileza,
de bom humor, de indiferença.
— Pois bem, barão, será que sou eu quem lhe tira o apetite? Não acredito que
tenham sido apenas estas simples palavras Rua Bonaparte que o perturbaram a
esse ponto.
Raul olhou seu copo e aspirou-o.
— Que buquê!... À sua saúde, meu caro amigo,.. Ao bom êxito dos seus projetos.
— Quer me dizer...? começou o barão.
— Pois bem, eis aqui. Sou enviado pelo Sr. Seyroles... Conhece-o?
O barão fazia, com os dedos, uma bola de miolo de pão. Levantou a cabeça.
— Perfeitamente. Nosso excelente secretário da Sociedade de História e de
Arqueologia...
— Ele mesmo. Pois bem, esse excelente Sr. Seyroles encarregou-me, ainda há
pouco, de pedir-lhe um livro, um manuscrito melhor dizendo: as Memórias, do
Conde de Eunerville... Mas está me parecendo que isso o espanta, barão. Julga
porventura que o Sr. Seyroles não poderia confiar-me tal encargo?
Galceran cruzou os braços e a carne de sua nuca fez um inchaço acima do
colarinho.
— Não — murmurou ele — não acredito nisso.
— E por quê?
— Pela excelente razão de que levei pessoalmente esse manuscrito a Seyroles...
Uma obra monótona, além de tudo. Só a conservei alguns dias. O pouco que pude
decifrar tem um tal estilo!... Curioso o fato desse bom Seyroles não se haver
recordado. É bem verdade que em sua idade...
— E justo — concedeu Raul. — Ele é bem velho... E, além disso, com o que
acaba de lhe acontecer!
— O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa?
— Um ligeiro acidente.
— Nada de grave, espero.
— Uma simples bala no peito. Mas no bom lugar. Assim sendo não é,
propriamente falando, o bom Seyroles quem me envia, mas antes o seu fantasma...
Um fantasma extremamente simpático, de resto. Espirituoso, erudito... Mas
tagarela! É espantoso, tudo que nos pode contar um fantasma!
Raul comeu uma asa do frango. Mas mantinha-se sempre alerta e desenvolto. O
barão descansou os talheres.
— Afinal, senhor...
— Meu pequeno d'Apignac — disse-me o fantasma; — não terei repouso no outro
mundo, enquanto não souber que os negócios da Sociedade estão em ordem e
minha querida biblioteca completa. Portanto, vá buscar com esse desmiolado
Barão Galceran...
— Ah! É assim — disse o barão. — Não vejo bem aonde pretende chegar. Chega
de brincadeiras, se me faz o favor! Repito que devolvi as Memórias. Além disso,
a data da entrada deve figurar no livro de registro de empréstimo. Seyroles não
deixava nunca...
— Sim, ela ali figura.
— Então?
— Então, é simplesmente lamentável que essa data não tenha sido escrita pela
mão do Sr. Seyroles.
— Pela mão de quem, então?
— Do assassino desse bom Sr. Seyroles.
— E conhece-o?
— Sim.
— Pertence à polícia?
— Eu? Que pergunta desagradável! Será que tenho aparência disso?
— Foi uma idéia que tive. Mas qual a razão de ter vindo contar-me tudo isso?
Deveria dirigir-se à polícia, meu caro senhor.
Galceran tornava-se confiante e olhava de alto a baixo, com imprudência, Raul,
que sorria sempre, devorando com apetite o seu pedaço de frango.
— Pensei que a história o interessaria — disse Raul.
— Com efeito, ela me interessa. Eu tinha, por Seyroles, a mais profunda estima e
confesso que sua morte, sobretudo assim tão brutal... Mas repito mais uma vez,
não vejo razão para ter sido o escolhido...
— Se não vê é que me enganei. Desculpe-me, barão. Vou seguir, seus conselhos.
Falou-me em polícia. A idéia não é má. Aposto que o final da aventura
apaixonará esses senhores. Meu Deus, como o fantasma foi tagarela!
— O que tem, de especial, o final da aventura?
— Não, não creia ser obrigado a insistir.
O barão cerrou os punhos.
— Fale!
— Pois bem; imagine que esse fantasma, o fantasma de nosso amigo Seyroles,
mostrou-me a existência de uma impressão digital: um polegar ensangüentado a
um canto de um mata-borrão... Confesso que, sozinho, não teria descoberto tal
impressão. Nosso assassino, depois de haver colocado o cadáver sob a mesa, ao
levantar-se, apoiou-se maquinalmente. Mas estou falando, falando... Mais uma
vez minhas desculpas, barão, e obrigado. Excelente, esta ave...
— Espere! Ainda não comeu a sobremesa... E, além disso, devo reconhecer que
conseguiu despertar minha curiosidade. Tudo que me conta é tão inesperado, tão
estranho... Quase ouso dizer... tão original!
— Ouse, barão, ouse. A palavra justa é... tão original!
— Eu me pergunto, até onde pretende levar essa originalidade?
— Até confiar-lhe o nome do assassino, se assim o desejar.
— Digamos que eu desejo.
Raul encostou-se na cadeira e deu uma gargalhada e, quanto mais ria, mais
Galceran se enfurecia.
— É muito engraçado — murmurava Raul. — Não, és impagável... Como se não
conhecesses o assassino. Mas és tu, barão. Quem tu quedas que fosse{6}?
— Magnífico! Ousa sugerir...
— Não.
— Ah! Ainda bem que não chegaria a tanto.
Raul parou de rir bruscamente e, com voz cortante, a cabeça ligeiramente
inclinada, lançou:
— Não tenho hábito de sugerir. Eu afirmo... e provo. O primeiro perito a chegar,
comparando um espécime de sua caligrafia com a falsificação que figura no livro
de obras emprestadas, concluirá que as duas são idênticas.
— Ainda que fosse verdade, seria necessário que alguém sugerisse a idéia de um
tal confronto.
— Alguém fará a sugestão.
— Quem?
— Eu.
— E pensas que isso bastará?
— Não.
— E então?
— Um outro perito terá apenas o trabalho de comparar a impressão do seu
polegar esquerdo com a impressão sangrenta deixada no mata-borrão.
— E essa comparação ainda será uma sugestão sua.
— Certamente.
— Dito de outra forma, tudo depende de ti, apenas de ti. Sr. Raul d'Apignac faz,
acordo com sua vontade, que a chuva caia ou que o sol apareça. Sr. Raul
d'Apignac, ao que tudo indica, julga-se o próprio Bom Deus.
— Por minha fé, quase.
O barão havia-se debruçado por sua vez e ambos se olhavam fixamente por cima
da mesa. Lentamente, os dedos do barão amarrotavam a toalha, torciam, enquanto
seu pescoço se congestionava pouco a pouco. Finalmente, numa voz rouca, gritou:
— Quanto?
— Quanto o quê?
— Teu preço?
— Meu preço! Que preço? Por quem me tomas? Meu preço?... Nada,
absolutamente nada. Sou apenas um mensageiro. Se fosse somente eu... Acontece
que há o fantasma desse escrupuloso Sr. Seyroles. E ele é intransigente.
Intransigente, mas razoável, note bem. Façamos as pazes! Ele apenas exige a
restituição do manuscrito a fim de poder dormir em paz. "Que esse crápula me
devolva o manuscrito — disse-me ele — e passarei uma esponja em tudo. Afinal
de contas não estou pior aqui do que estava no outro mundo!"
— É uma chantagem.
— Cada um luta com as suas armas.
— Prefiro mais as minhas.
O barão apertou uma campainha. O empregado apareceu. A um sinal de seu amo,
abriu uma gaveta, enfiou a mão enluvada de branco e retirou-a com uma pistola
automática apontada para Raul.
— Não faça o menor gesto, meu caro — disse o barão.
Tocou uma segunda vez e Raul reconheceu, no recém-chegado, a figura do gnomo
cambeta que também havia visto no barco.
— Felicitações! Foram cuidadosamente escolhidos, não resta dúvida, no Jardin
des Plantes{7}. — E ao ver os bandidos avançarem: — Abaixo as patas, lacaios!...
Albert, tu nos servirás o café no salão.
Depois, consultando o relógio:
— Dez horas e meia. Como o tempo passa! Não se poderá nunca dizer que nos
aborrecemos em sua casa, barão. Ah! Podemos afirmar que sabe distrair suas
visitas. Pena que eu tenha que partir dentro de um quarto de hora.
— De verdade?
— Sim, às onze menos um quarto, exatamente. Tenho um encontro.
— Com uma mulher?
— Não, desta vez não... Com um amigo a quem não quero deixar esperando.
— Ele esperará.
— Não, esteja certo de que não! Se eu não sair de tua casa dentro de um quarto de
hora, ele irá entregar uma encomenda em certo endereço... Ora, adivinhe só o que
há nessa encomenda?... Não?... Falta de imaginação, barão... Simplesmente o
pedaço do mata-borrão, com a maneira certa de se servir do mesmo.
Raul pôs um dedo de Bordeaux em seu copo e, cruzando as pernas, um braço
passado acima do espaldar da cadeira, bebeu lentamente, como conhecedor. O
barão estava transfigurado.
— Tu és estúpido — disse Raul. — Meu Deus, como és infantil! Não podias
pensar, de forma alguma, que eu viria, sem mais aquela, atirar-me na boca do
lobo... Saiam, vocês!
Os empregados olharam Galceran. Este assentiu com a cabeça. Albert depositou o
revólver diante dele e os dois serviçais retiraram-se resmungando.
— Tu controlarás os rapazes — disse Raul. — Então, esse manuscrito?... Só me
restam sete minutos. Tomara que o relógio de meu amigo não esteja adiantado.
— Canalha!
— Não estou pedindo uma confissão... O manuscrito! O barão olhava a pistola.
Pareceu, durante um momento, hesitar; depois levantou-se, atirando o guardanapo
no chão. Raul estendeu o braço e pegou a arma.
— Não deves brincar com estes brinquedos. Um acidente pode acontecer sem
querer!
Descarregou a arma, onde faltava uma bala, e recolocou a pistola sobre a toalha.
Na peça vizinha Galceran remexia num móvel, praguejando. Sem uma palavra
lançou o volume sobre a mesa, um grande volume em marroquim, tendo na capa, a
enfeitá-la, uma coroa condal. Raul, rapidamente, folheou-o. As páginas estavam
cobertas por uma escrita miúda, apertada, correndo até às margens.
— Perfeito! Que os manes desse bom Seyroles descansem em paz... E agora,
barão, um pequeno conselho... Evite a Normandia... O clima é úmido... Muito
ruim para os reumatismos.
Apertou o manuscrito debaixo do braço e saiu batendo as portas para evitar
qualquer surpresa. Mas os empregados haviam desaparecido. Na escadaria parou
e gritou como se fosse para os bastidores de um teatro:
— Quanto àquela impressão sangrenta, sabes... Uma brincadeira!
Depois partiu pelo jardim, rindo.
Cerca de meia hora mais tarde, despia-se em seu apartamento do Boulevard
Péreire.
— Não agüento mais. Mas, de qualquer forma, der-roteio-o, barão. Fiz com que
ficasses enraivecido. Cozinhei-te a fogo lento. Ah! Tu cozinhas os pés dos
patriarcas! É a minha vez de cozinhar, a fogo brando!
Bocejou longamente e ensaiou, de camisola, dois ou três passos de dança, fazendo
bater imaginárias castanholas.
— Olé! O passo do fantasma... À forca, os aristocratas! De repente pensou na
criança loura, lá longe, no castelo da Bela Adormecida.
— Ah! Princesa — murmurou. — Se você visse agora o seu Príncipe Encantado!
Suspirou, deitou-se e abriu o manuscrito. Mas os rabiscos, as emendas, as
escritas superpostas fizeram com que se cansasse e terminasse sua curiosidade.
— Amanhã, me atirarei ao trabalho, meu pequeno Lupin. Por hoje chega.
Apagou a luz e dormiu logo a seguir.
Acordou com dia claro. Seu primeiro gesto foi estender a mão para a mesa de
cabeceira. Não pôde reter um grito. O manuscrito havia desaparecido.
3
A JOVEM EM DIFICULDADES
A cólera fez com que Raul saltasse da cama. Correu à porta; esta nem estava
fechada; como também a do vestíbulo. Tremendo de raiva voltou ao quarto. Havia
sido enganado e não era o roubo que o punha fora de si, mas a facilidade como o
mesmo fora cometido. Perdera aquela cartada, vá! Eram os riscos do negócio.
Mas que tenham retomado o manuscrito debaixo do seu nariz, isto ele não podia
aceitar. Ao mesmo tempo um surdo temor apossava-se dele. Pesava novamente a
audácia, a fria determinação do adversário. O jogo seria rude, perigoso,
impiedoso. Procurou forçar o riso e, enquanto fazia algumas flexões, pensava num
contra-ataque. O manuscrito estava agora fora do seu alcance. Restava o velho.
Ah! Este! Ia obrigá-lo a falar e o mais rápido possível!
O telefone tocou. Raul já esperava por isso. Atendeu: — Alô?... Reconheces
minha voz?... Sim, caro amigo, sou eu. Devo-te desculpas... Eu o recebi tão mal
ontem à noite. Um jantar medíocre!... Sinto vergonha. Nem consegui dormir. Então
disse a mim mesmo — "E se eu fosse fazer uma visitinha a esse caro Raul?"...
Tinha o teu cartão, teu endereço,.. Era um pouco tarde, mas na guerra, como na
guerra, não é?... De passagem, um conselho. Deverias mudar as fechaduras.
Qualquer um entra em tua casa com a mesma facilidade com que se entra num
moinho... Entrei. E que vejo? Esse bom d'Apignac dormindo como um anjo. Não
tive coragem de acordar-te. Não gosto de me tornar desagradável. Contentei-me
em trazer uma lembrança, uma ninharia, apenas para marcar a minha visita. Se o
manuscrito te houvesse realmente interessado, eu te encontraria a estudá-lo... Eu
te juro, no entanto, que vale a pena ser lido... Ele contém muitas coisas!... Assim,
se me permitas, eu o guardarei... E tu, sabes o que vais fazer... O tom da voz do
barão tornou-se áspero.
— Tu vais tornar um trem para a Itália e repousarás algum tempo longe de Paris...
O Lago de Como, que tal?... Ou, quem sabe, prefiras Veneza...
— E se eu recusar? — perguntou Raul.
— Creio que te arrependerás. Sou bom vencedor. E ficaria desolado se te
acontecesse alguma coisa... Não, não precisas agradecer... e a próxima vez que
venhas para jantar, previna com antecedência.... Sei que és um autêntico
gastrônomo...
— Qual o quê! — disse Raul. — Tenho gostos muito simples... Eu te pedirei
apenas para fazer-me um prato em que és um verdadeiro mestre.
— Sim, e qual é?
— Pés grelhados.
Raul desligou. Afinal, a palavra final fora sua. Era um bem pobre consolo. Se o
velho persistisse em seu mutismo... mas não! Ele, certamente, gostaria de vingar-
se de seus agressores. Não resistiria a um interrogatório bem conduzido, com
gentileza, com deferência... Revelaria o segredo a seu salvador, e o barão seria
obrigado a ajoelhar-se. Nesse minuto, Raul zombava do segredo; via apenas o
meio de triunfar sobre seus adversários e fazer com que engolissem seus
sarcasmos.
Vestiu-se rapidamente. Não podia ficar parado. O motor pegou à primeira volta
da manivela, e Raul saltou ao volante. O carro era bom; esse dia, foi excelente.
Nem uma pane, nem um pneu furado. Apenas algumas charretes, de quando em
quando, no caminho para a Normandia. O automóvel ultrapassou-as como um
furacão, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. Ao fim da manhã, Raul
vislumbrou o campanário de Nossa Senhora das Graças.
— Então, minha boa Victoire? O ferido?
Já estava no quarto levado pela vontade de agir, de se consumir, empurrado pela
necessidade de saber logo, agora, o quanto antes.
— Chut — murmurou Bruno. — Ele está dormindo.
— Falou?
— Ainda não.
— As queimaduras?
— Bem melhores.
— Então, molenga, vamos ao relatório. É preciso arrancar-te as palavras. O que
contam de novidade, na terra?
— Nada. Apenas algumas linhas no Eco de Trouville. Pensam que o velho, o pai
Bernardin como eles dizem... tenha fugido, vítima de um ataque de amnésia.
Raul segurou o pulso de Bruno.
— Não diga essa palavra — disse. — Sobretudo essa, não... Caramba, tu és
supersticioso!... E depois? Ninguém falou do castelo, do sono de seus moradores?
Bruno balançou a cabeça.
— De verdade? — disse Raul. — Ninguém então se apercebeu de nada...
— Os guardas vieram à procura do velho — retomou Bruno. — É o que contam
na estalagem. Andei passeando por aí, como um inofensivo turista. Mas, por aqui,
desconfiam de estranhos.
— Prossiga — murmurou Raul. — Diga qualquer coisa. Ele observava o velho
Bernardin. Acabara de surpreender um leve movimento revelador nas pálpebras.
O homem não dormia mais; ele escutava e Raul resolveu fazer o seu jogo,
compreendendo que Bernardin não se renderia tão facilmente. Seqüestrado do
castelo, ele via inimigos por todos os lados e, recobrando as forças, trancava-se
em seu mutismo, aí se fortificava, se entrincheirava, com toda sua teimosia de
camponês normando.
— Está bem, Bruno. Deixe-nos!
Raul sentou-se à beira da cama e com uma delicadeza inesperada, pousou a mão
sobre o ombro do velho.
— Vamos! Chegou o momento de abrir os olhos, vovô. Raul d'Apignac,
conheces?... Este nobre coração que te salvou com perigo da própria vida... Mas
que não poderá, talvez, salvar-te sempre... Até o presente, consegui aparar os
golpes. Coloquei-te ao abrigo. Dei-te um doutor e uma enfermeira... Mas, de
agora em diante, tu deves me ajudar.
Os olhos cinzentos do homem, meio escondidos pelas pálpebras caídas,
observavam esse desconhecido debruçado sobre ele e do qual sentia emanar uma
autoridade como a reverberação de uma fornalha.
— Deves ajudar-me — continuou Raul. — O que te digo não é por mim. Ê por ti.
Deves imaginar que teus três amiguinhos da pedreira não estão, no momento,
tranqüilamente sentados rodando os polegares.
Pegou Bernardin pelos ombros e, curvado sobre ele, como um lutador sujeitando
o adversário ao solo, acrescentou num tom estranhamente grave:
— Eu os conheço bem... Sei bem o que vale seu chefe... Por melhor que eu faça,
eles acabarão por te encontrar... e, dessa vez, poderei chegar tarde demais... Mas,
se tu falas, tudo ainda pode ser salvo... Vamos, então: o sangue de quem?
O velho respirava mais depressa. Abriu a boca. Raul compreendeu que um
obscuro trabalho desenvolvia-se naquele espírito, ainda meio entorpecido pelo
sofrimento e cansaço.
— O sangue de quem?
Lentamente, Bernardin baixou as pálpebras. Seu rosto pareceu se congelar sob as
rugas, como o de um morto. Ele se entrincheirava em sua noite, se recolhia com
seu segredo. Raul esperou um pouco, depois levantou-se sem ruído. Com o lenço,
enxugou o suor que lhe molhava a fronte.
— Eu sou paciente — murmurou. — Tu não podes imaginar a que ponto vai minha
paciência. Esperarei o tempo que se fizer necessário... Aqui, não estás mal... Eu
te guardarei. Não és meu prisioneiro. Estás, simplesmente, em observação.
Quando desejares falar, basta um pequeno sinal e logo estarei a teu lado... E
então, nós dois faremos grandes coisas, tu verás. Mas, pelo amor de Deus, abra os
olhos. Olha-me. Pensas que d'Apignac não é ninguém. E tens razão. Mas, atrás de
Raul, há dez outros personagens, há vinte lendas. Ê a História da França que está
neste quarto. Cumprimenta-a Bernardin!... Tens sorte de que eu me ocupe de ti... E
eu te juro que iremos juntos até o fim desta aventura... E vou confiar-te uma
coisa...
Raul interrompeu-se. A respiração do velho tornara-se regular. Adormecera.
— Tu pareces espertinho — censurou-se Raul. — Tu podes bancar o
engraçadinho e lançar a tua grande tirada. Tua platéia está adormecida. Acabou.
Cai o pano.
Saiu na ponta dos pés. Bruno o esperava no corredor.
— Então?
— É duro, o velho. Mas acabará por abrir o jogo. Continue a montar guarda. Vou
lavar-me rapidamente e irei ao castelo.
Raul tirou do carro uma pesada mala de viagem. Vinte minutos mais tarde,
transformado em repórter, vestido esportivamente, máquina fotográfica a tiracolo,
beijava Victoire.
— Voltarei esta noite, minha boa Victoire... Não comeces desde já a te queixares.
Afirmo que não corro nenhum risco. E a prova disso é que, em meu retorno, quero
comer uma grande, uma gigantesca omelete, como só tu sabes preparar tão bem.
Instalou-se no Léon-Bollée e, em velocidade reduzida, tornou a caminho para
Eunerville.
Gostava de dirigir quando precisava traçar planos para alguma batalha. Mas,
desta vez, devia confessar que a situação fugia ao seu controle. O manuscrito nas
mãos do barão, o velho recusando-se a repetir o que fora obrigado a confessar
levado pela dor, para onde dirigir a ofensiva? Essa visita ao castelo levaria a
quê? Raul tateava e se exasperava ao sentir-se impotente quando um formidável
segredo estava em vias de ser descoberto por bandidos vulgares que não
hesitariam em empregar o terror. E era preciso que tal segredo fosse mesmo
extraordinário, para que o barão não hesitasse em torturar, matar, como se o
tempo fosse pouco, como se, passada uma data fatídica, seria muito tarde para
decifrar o enigma. Nada poderia apaixonar mais Raul. A pergunta girava em sua
cabeça no ritmo de um motor: o sangue de quem?... o sangue de quem?... Era um
mistério de sangue, de violência e de morte.
Guardou o carro na entrada de Eunerville e dirigiu-se em rápidas passadas para o
castelo, insensível ao calor do verão. A meio caminho foi obrigado a esconder-se
ao lado da estrada, para deixar passar um automóvel que rodava a toda
velocidade. Teve, porém, tempo de reconhecer o homem que estava ao lado do
motorista. Essas sobrancelhas raivas e cerradas, esse rosto rabugento...
Lembrava-se do rosto que havia descoberto, no feixe luminoso de sua lanterna, a
noite passada no castelo... Hubert Ferranges. Tanto melhor! Ausente Ferranges,
teria o caminho livre. Alegre, pôs-se em marcha. Um guarda conversava diante do
gradil com uma mulher forte que carregava um cântaro de água. Raul aproximou-
se, mais jornalista do que nunca.
— Bom dia — disse ele com desenvoltura e amabilidade. — Richard Dumont, do
Eco de França.
Impressionados os outros se calaram. A mulher pousou o cântaro e enxugou as
mãos. O guarda cumprimentou-o.
— Ouvi falar de um desaparecimento — prosseguiu o jornalista. — Estava de
passagem, em Honfleur. Antes de retornar a Paris, gostaria de esclarecer o
assunto.
Parecia tão franco, inspirava de tal forma simpatia, que o guarda não se conteve.
— Oh! — disse ele. — É apenas o pai Bernardin que deve ter ido dar uma volta.
Não é verdade, Apolline?
Apolline assentiu, um pouco sem jeito por haver sido chamada pelo sobrenome na
frente de um estranho.
— Não devem dar tanta importância — respondeu ela. — Ele não está bom da
cabeça. Saberá, sozinho, encontrar o caminho de volta. Seus leitores parisienses
devem ter algo mais importante para ler.
— Se eu pudesse lhe dar um conselho — retomou o guarda, — boca fechada. O
Sr. Ferranges não ficará contente se a imprensa der destaque ao que não passa de
um caso corriqueiro. O Sr. Ferranges tem o braço longo.
— Eu não conhecia esse castelo. É notável! Apolline ruborizou-se de prazer e o
guarda torceu os bigodes.
— Com efeito — disse ele, — vem gente de longe para vê-lo. Mas o Sr.
Ferranges não permite visitas. E o pai Bernardin é quem mais protestará! Seu
castelo! Porque devo explicar-lhe que o castelo é um pouco dele, pelo tempo que
vive no mesmo!
— Nasceu aqui — interveio Apolline.
Raul tirou do estojo sua máquina fotográfica, abriu-a e olhou pelo visor.
— Ê pena — murmurou. — Estamos um pouco distantes. Talvez eu pudesse
aproximar-me um pouco?
Como resistir a um sorriso tão jovem, tão gentil?
— Preciso pedir permissão à senhorita — disse Apolline.
— Srta. Lucile — precisou o guarda. — A pupila do Sr. Ferranges.
E, enquanto Apolline se afastava, continuou orgulhoso por mostrar a um jornalista
de Paris, que um guarda pode ser outras coisas além de um simples personagem
de canções populares.
— Uma encantadora jovem, que teve muitos dissabores. Perdeu os pais, há perto
de dois anos, de uma forma estúpida... Ele se afogaram, durante um passeio
marítimo. Jacques Ferranges era, ao que parece, um engenheiro de grande futuro.
Tinha vendido numerosas patentes, sobretudo aos americanos, e fez fortuna em
poucos anos. O castelo estava à venda. Ele comprou-o. Parece, no entanto, que
este castelo não traz felicidade a seus proprietários... Fizeram buscas por toda a
costa. Não encontraram nem mesmo os restos do barco. Era um pequeno veleiro
de seis metros. O Sr. Jacques era um fanático pela navegação à vela. E veja a
coincidência... Habitualmente, quando saíam a passear, os pais da Srta. Lucile
sempre a levavam consigo... Lembro-me bem do relatório do brigadeiro e esse
detalhe chamou-me a atenção, na época. £ curioso, não acha?... Eles a levavam
sempre e justamente nesse dia a deixaram no castelo...
Raul escutava atentamente. Seu cérebro registrava cada detalhe, examinava-o,
analisava-o e o classificava no prodigioso fichário que era sua memória.
— E nunca encontraram os corpos? — insistiu. — O mar, geralmente, devolve
seus cadáveres.
— Não dessa feita. Mas o mais doloroso é que a infeliz jovem caiu doente após
essa desgraça. Não se sabe bem o que ela tem... Não come; não dorme mais,
segundo conta Apolline... Passa dias inteiros estendida numa espreguiçadeira, no
parque... A casa não é muito alegre, é bem verdade. O Sr. Hubert, o tutor, passa
todo o tempo na usina. Ele possui um curtume em Pont-Audemer. Dessa forma a
pobre menina fica sempre só. Há seu tio Alphonse, mas esse nunca ninguém o vê.
No entanto, até que ele não mora tão distante daqui. Herdou a propriedade onde o
engenheiro estava instalado, antes de comprar o castelo.
— Mas o senhor sabe mais do que um notário — disse Raul rindo.
O guarda sorriu, por sua vez.
— Ê meu serviço — disse ele. — Além de tudo os Ferranges são importantes.
Assim, forçosamente, ficamos um pouco ao corrente de tudo que lhes acontece.
— E essa menina, ali adiante, que se esconde atrás daquelas roseiras? Quem é
ela?
— Ah! É Valerie, a neta do velho Bernardin. Mais uma órfã! Seu avô a trata com
aspereza mas a adora. Por isso não consigo compreender como e por que ele
partiu sem dizer aonde ia.
Apolline regressava.
— Se o senhor quiser ter a bondade de seguir-me — disse ela. — A senhorita terá
prazer em recebê-lo.
— O senhor está com sorte — comentou o guarda. O falso jornalista estendeu a
mão.
— Obrigado, mais uma vez. E não tenha nenhum receio. Serei discreto.
Apanhou o cântaro com água e disputou-o com Apolline que queria tomá-lo.
— Deixe... Deixe.... Eu o devolverei ao fim da alameda.
Era perfeito esse repórter, tão obsequioso, tão afável. Como deixar de responder
com solicitude à suas perguntas? Todos sabem que um repórter deve ser curioso.
Dessa forma, Apolline entregou-se às confidencias. Sim, ela era ao mesmo tempo
criada de quarto e cozinheira, e seu marido, Achille, era jardineiro e chofer.
Quanto ao velho Bernardin, suas funções eram as mais vagas possíveis. Gostava
que o chamassem de mordomo, porque essa palavra lembrava os velhos tempos.
— Um tipo curioso! Ê preciso ver como ele se leva a sério!... E se o senhor o
ouvisse discutir! Uma miséria!... Sua neta, por exemplo, ele consegue quase
sempre que ela falte à escola. Diz ele que lá ensinam apenas mentiras. Um velho
maluco!... Agora, devolva meu cântaro; já chegamos.
Um caminho, que contornava o castelo, conduzia ao parque. Lá estava Lucile, sob
o copado castanheiro, estendida na espreguiçadeira, o cão a seus pés. Lia um
jornal. Raul reconheceu-a com uma estranha emoção. Era ainda mais bela, mais
comovente, do que na noite em que a vira adormecida. O buldogue levantou-se e
pôs-se a rosnar.
— Quieto... Pollux!
Ela tinha a voz fatigada, de uma pessoa cansada de lutar, sem esperança de cura.
Colocou o jornal sobre os joelhos e dirigiu ao visitante um sorriso cheio de uma
perturbadora melancolia. Raul inclinou-se.
— Richard Dumont, do Eco de França.
— Apolline, vá buscar uma cadeira — disse Lucile.
— Oh! Não é necessário — protestou Raul. — Quando se encontra uma relva tão
convidativa, é bom aproveitá-la.
E sem cerimônia, sentou-se na relva, aos pés da jovem. Depois, negligentemente,
cocou o buldogue, entre as orelhas, e o animal, satisfeito, ofereceu a cabeça às
carícias. Lucile observava com espanto.
— É incrível! — murmurou. — Pollux não costuma ser muito dado.
— É necessário jeito. Mas eu sei falar aos animais e aos homens. Sou apenas
inábil com as senhoritas.
Riram juntos e as faces de Lucile coloriram-se um pouco. Raul pensava: "Ria,
minha bela, esqueça um pouco os dias ruins. Quero que ames a vida, quero que
fiques maravilhada com ela e que continues, por muito tempo, a ter para comigo
esse olhar de amizade."
Colheu uma bonina e prendeu-a entre os dentes.
— Eu me sentiria feliz em cumprimentá-la por esta bela moradia — disse ele. —
Mas soube que ela abrigou mais tristezas do que alegrias... Por isso, falemos de
preferência, a seu respeito.
— Oh! Eu... Eu não sou ninguém. Já que sabe tudo, deve também saber...
Sua voz fraquejou.
— Vamos — disse o pretenso Richard Dumont, — sejamos fortes!... Nós temos
dezessete anos... Não vemos ninguém a não ser um tutor rabugento, empregados
assustados e esse velho louco Bernardin... Nós não temos mais passado e ainda
não temos futuro e nos aborrecemos tanto que preferimos dizer que estamos
doentes para sentir à nossa volta, à falta de ternura, um pouco de atenção.
Lucile escutava-o com um espanto crescente.
— Mas eu sou a mais infeliz... — interrompeu Lucile. Lágrimas surgiram em seus
olhos.
— Oh, meu Deus — balbuciou. — Por que não me levaram aquele dia com eles?
Por quê? Estaríamos os três mortos... Nós éramos tão felizes!
— Fale... Fale mais... — disse ele. — Eu sou seu amigo.
Tomou-lhe a mão, apertou-a suavemente, para transmitir-lhe um pouco de calor.
— Eles morreram a 19 de agosto — retomou ela mais calma. — Dezenove anos,
dia a dia, depois do seu primeiro encontro... um encontro de tal forma
dramático!... Meu pai, bem antes de seu casamento, comprara, atrás de Saint-
Adresse, uma propriedade com uma casa de pescador, pendurada no penhasco,
diante de uma pequena enseada onde nunca aparece ninguém Ele aí descansava,
pintava um pouco, dava vazão a seu talento. Um dia ouviu um pedido de socorro...
Era uma jovem... minha futura mamãe... quem chamava. Ela se banhava numa
praia vizinha; fora arrastada pela correnteza. Se meu pai não tivesse chegado a
tempo, ela teria morrido afogada. O que não os impediu entretanto... dezenove
anos depois... Acredita que tenha sido a fatalidade, Sr. Dumont?
— Certamente. Como todos esses cuja vida é feita de aventuras. E essa pequena
casa, esse casebre, que fim levou? Foi vendida?
— Não. Meu pai conservou-a como lembrança. Mas não ia mais lá. Deve estar
num estado lastimável.
Ele refletia. Com a extraordinária intuição que lhe permitira vencer tantas
batalhas, começava a sentir, por trás das coincidências, algo de sombrio, de
tortuoso, algo que lembrava fortemente uma conspiração.
—Eu poderia visitá-la? — perguntou.
Lucile, imediatamente, assustou-se.
— Confiei-lhe um segredo — disse ela. — É preciso que ninguém saiba...
— Ninguém saberá.
Havia uma tão doce persuasão em suas palavras, que Lucile sentiu-se mais
tranqüila.
— Depois de Saint-Adresse, deve seguir o penhasco durante pouco mais de três
quilômetros. Há um atalho, uma vereda, que desce; a casa se chama Gros Galet{8}.
— Ainda uma pergunta. Sua mãe... suponho que fosse muito sentimental, muito
romântica.
— Era. Eu me pareço muito com ela.
— Certamente — pensou Raul. — Começo a compreender...
Levantou-se impetuosamente, fervendo de impaciência. Tinha vontade de
maravilhar a jovem, bater-se em sua defesa, a fim de devolver-lhe o sorriso. E,
ao mesmo tempo, sentia que um misterioso perigo rondava em sua volta. A
impressão foi tão forte que olhou em redor, mas o cão teria latido se alguém se
escondesse ali por perto deles.
— Será que tens confiança em mim? — perguntou a Lucile.
Ela olhou-o com o olhar triste de seus olhos violeta.
— Eu não o conheço, senhor — disse ela, sonhadora, — mas é tão diferente dos
outros! Sim, tenho confiança.
— Pode ter; pode ter... Agora, escute-me... Vai voltar para casa. Não dirá nada de
minha visita ao seu tutor. E amanhã, às três horas, nós nos encontraremos... Não
aqui, fora da propriedade... na esquina do parque com a estrada... Terei, talvez,
muita coisa a dizer-lhe... Não... Não me pergunte nada. Ainda é muito cedo. Até a
vista, minha jovem... E a partir de agora, aconteça o que acontecer, repita consigo
mesma que não está só, que há alguém, bem perto, que vela, escondido e que não
permitirá que se toque nem mesmo num fio de seu cabelo.
— Acredita, portanto, que eu estou em perigo? Ele pôs um dedo nos lábios.
— Amanhã. Às três horas.
A escuridão era total. Raul sentou-se e apalpou-se. Não se ferira. Tateou em sua
volta. Estava numa cava. A casa havia sido construída com alicerces não muito
firmes, e aos poucos, dissimuladamente, a areia durante algum tempo contida,
havia começado a se infiltrar, assim como o mar nos restos de um naufrágio.
Levantou-se, esticou-se o mais possível na ponta dos pés, levantou um braço
acima da cabeça e encontrou apenas o vazio. A lanterna, da qual nunca se
separava, resistira ao choque. Apesar de emitir somente um pequeno feixe
luminoso, era o suficiente para iluminar em volta do alçapão. Nem uma argola,
nem a menor aspereza. As poderosas molas que fechavam a armadilha de
madeira, ao nível do assoalho, estavam localizadas no fundo de uma cavidade
inacessível na alvenaria.
Raul passeou em volta o facho de luz de sua lanterna. O fosso era vasto e
rigorosamente vazio. Nem uma caixa sobre a qual pudesse subir para atingir a
abertura do alçapão; o que, aliás, não serviria de coisa alguma pois a mão não
teria onde apoiar-se. No entanto a claridade mostrou algo brilhando num canto
mais afastado. Raul aproximou-se e um suor de angústia molhou-lhe as têmporas.
O que brilhava era a cabeça de um morto, um crânio branco como ossos de peixe
que encontramos na beira da praia. E, sob a fina camada de areia que se havia
acumulado, Raul adivinhou a forma de um outro esqueleto, menor, cujo crânio,
meio enterrado, estava voltado para o que havia sido um rosto muito querido. Os
dois amantes estavam mortos um nos braços do outro e sorriam para a eternidade.
Raul apagou a lanterna. Esse homem que havia enfrentado tantos perigos e
zombado tantas vezes da morte, esteve por pouco a entregar-se a uma crise de
nervos. Num segundo compreendeu a verdade que havia pressentido. O casal
Ferranges havia sido assassinado. Alguém, pacientemente, metodicamente, havia
transformado o ninho de amor numa armadilha mortal. Suas vítimas vindo ao Gros
Galet apenas uma vez por ano, teve tempo bastante para preparar essa armadilha
mortal. Suas vítimas vindo ao Gros Galet apenas sobre suas vítimas. E a
abominável esperteza fora eficaz. Infelizmente uma terceira vítima viera oferecer-
se e, certamente, partilharia a mesma sorte dos outros dois. Que adiantaria gritar,
bater, clamar por socorro? Que adiantaria fazer o mesmo que os dois anteriores
na certa teriam feito em vão?
Raul estendeu-se na areia úmida, cruzou as mãos sob a nuca e procurou refletir
calmamente. Ninguém sabia que ele viera visitar a casa. Portanto ninguém teria
idéia de descer a essa praia e explorá-la. É bem verdade que havia a Leon-
Bollée, abandonada no caminho do penhasco. Na certa avisariam a polícia da
presença insólita daquele carro, mas o inquérito não levaria a nada. Restava,
talvez, tentar furar um túnel. Com quê? Com as mãos...
Raul tirou o paletó, dobrou-o cuidadosamente e, ajoelhado junto ao muro
começou a cavar. Mas bem cedo rendeu-se ã evidência. A areia era muito fina.
Quanto mais cavasse mais ela corria pela escavação. Seria necessário molhá-la.
Raul, no entanto, insistiu. A areia que tirava com as duas mãos, atirava para longe
de si, por cima do ombro. Conseguiu fazer um buraco e parou, cansado. Na
escuridão tinha a impressão de que esse buraco era bastante profundo. Tateou à
procura do paletó. Onde o tinha colocado? Avançou ajoelhado, uma das mãos
estendida adiante de si, temendo, a todo instante, apalpar os esqueletos.
Terminou encontrando a vestimenta e acendeu a lanterna. O buraco media sessenta
ou setenta centímetros de profundidade. E havia trabalhado durante longo tempo
para alcançar apenas esse irrisório resultado. Sem alguma ferramenta não iria
adiante. Esse homem tão enérgico, sabia, melhor do que ninguém, quando
começava o impossível. Enxugou a testa, procurou brincar. "Cuidado, o momento
não é próprio para apanhar um resfriado. Brrr! Um grogue seria bem-vindo!" Mas
o silêncio era tão espesso que ele estremeceu e sentou-se, com as costas na
parede, paralisado pela fadiga. E pouco a pouco foi surgindo o medo. Pela
primeira vez seu espírito, tão fértil em estratagemas de todas as formas, não
encontrava uma solução. Pela primeira vez, Lupin não era mais Lupin.
Quem seria o criminoso que enfrentava agora? Quem havia tramado essas atroz
vingança, havia condenado dois inocentes a morrer lentamente de fome, sede e
desespero? E as-1 sim mesmo, até o último momento, os dois se ampararam um ao
outro. Mas ele, ele estava só... Apurou o ouvido. Um barulho surdo vinha de
muito longe... o mar... A maré subia. Não havia mais ninguém na praia. O medo
estava lá, em sua volta, no próprio ar que respirava. Ele era forte. Resistiria
vários dias. Sua agonia não acabaria assim.
Apertou as mãos e esteve a pique de gritar. O que o obrigou a guardar a
dignidade, foi o absurdo pensamento de que os dois esqueletos que ali estavam
eram, apesar de tudo, um público assistente. E ele imaginou que o observavam,
que pensavam: "Lupin não está mais o mesmo. Ele se acovarda." "Estão com a
razão — pensou ele — estou quase me acovardando. Mas se me derem uma
pequena, por menor que seja, razão de esperar, verão do que sou capaz.
Desgraçadamente, não há nenhuma. Até mesmo meus inimigos desconhecem o fato
de que estou aqui. Foi um acidente tolo, imprevisível e irremediável. Desculpa-
me pequena Lucile. Não poderei comparecer ao encontro."
E subitamente ficou assombrado. Viva! Existia, sim, essa mínima razão para
esperar... Lucile! Mas logo afastou a idéia. Lucile iria esperá-lo às três horas e
talvez ficasse algum tempo... depois voltaria para casa tristemente. Por que iria
ela caminhar até a casa que deveria trazer-lhe lembranças tão tristes? Mas a
esperança é como uma pequena fogueira que se mantém acesa com pequenos
gravetos. Os mais fracos argumentos bastam para alimentá-la. Primeiro, o
caminho não era tão longo assim. E no castelo deveria haver, com toda certeza,
uma bicicleta. Depois, Lucile gostaria de apurar porque esse homem, que parecia
temer algum perigo, não havia comparecido ao encontro. E, como esse homem a
perturbara, como quisesse revê-lo de qualquer forma, ela, com a ajuda da
imaginação e da energia, pensaria: "Ele precisa de mim, É por minha culpa que
ele está em perigo; por causa do que eu lhe disse a respeito de meus pais". Ela
então se lembraria de sua conversa, das perguntas a respeito do Gros Galet... Se
esse jornalista tão simpático faltasse à sua palavra, teria como causa,
provavelmente, a casa ao pé do penhasco... E se lhe houvesse acontecido um
acidente? Se ele houvesse caído?... Iria precisar de alguém que o socorresse. Ela
sairia do castelo... Ela viria... E, por sua vez, cairia na armadilha. Meu Deus!
Raul levantou-se, fez a volta de sua prisão, com a cabeça em fogo. Não. Nunca,
sobretudo isso. Mais valia morrer. Certamente ele preferia tombar à luz do sol,
por alguma causa elevada, em lugar de agonizar como um rato, rto fundo de um
buraco. Mas aceitava morrer ignominiosamente, como um ser nocivo, contanto
que Lucile ficasse a salvo.
De repente, foi invadido pela certeza de que ela partiria à sua procura e estendeu
as mãos como para dissuadi-la, afastá-la para longe dessa fossa atroz, onde a
esperavam os esqueletos de seus pais. Tropeçou, caiu ajoelhado, a repetia
baixinho: "Não você, Lucile. Sobretudo, você, não!"
Vencido pela fadiga, a angústia, a noite, deitou-se e ficou longo tempo prostrado.
Cochilou diversas vezes, sempre assaltado por pesadelos. E depois, já que nele o
desânimo não conseguia nunca fincar pé, saiu desse estado de torpor que
substituía o sono. Ficou lúcido, alerta, pronto a enfrentar os obstáculos. Olhou o
relógio. Oito horas. Forçosamente, oito horas da manhã.
— Diabo! — disse ele. — Passar sem um jantar, ainda vá. Mas o desjejum!...
Não se trata mais de higiene. É puro ascetismo!
Falara em voz alta, para fazer um pouco de ruído, rompendo o silêncio, do qual
nenhum outro silêncio poderia dar uma pálida idéia. Não renovou sua tentativa
mas, como um desafio, mesmo no escuro, obrigou-se a fazer sua ginástica matinal.
"Pelo menos que eu morra com boa saúde!" Depois, voltou para perto do buraco e
tateou o chão. A areia havia retomado posse da escavação que não passava,
agora, de um buraco sem profundidade. Não tinha, verdadeiramente, meios para
cavar um túnel. O alçapão? Nada a fazer. Recaiu no círculo vicioso dos mesmos
projetos e das mesmas derrotas. "E agora — pensou — vou invocar Lucile. Vejam
só!... Imbecil! Como se essa menina se preocupasse contigo."
Sentou-se novamente, encostado à parede, e retomou seu monólogo: "Ela não se
preocupa contigo, apenas porque não pensas nela com bastante intensidade. Ora,
tu não tens outra escolha. Ou ela, ou nada. Portanto, esforça-te. Lembra que os
insetos se reconhecem à distância de vários quilômetros. Tu vales mais do que um
inseto! Se te esforçares bastante, ela acabará por sentir tua presença ao seu lado e
obedecerá; tu atuarás nela, como um instinto. Traga-a até aqui. Quando a ouvires
gritarás para que tenha cuidado. Não há outro meio. Mas te previno: não será
fácil. Jura-me que não dormirás novamente."
Raul estendeu o braço e praguejou. Depois, procurou concentrar-se. Não era
muito difícil. Bastava acompanhar Lucile em imaginação, segui-la de seu quarto à
sala de jantar, de ajudá-la a apanhar a espreguiçadeira, chamar Pollux, atravessar
as imensas peças do térreo para chegar ao pátio, instalar-se à sombra e sonhar
com o desconhecido que surgira no justo momento em que sua vida se tornara
pesada demais para suportar...
Raul beliscou-se nas costas da mão. "Então é a isso que tu chamas transmissão de
pensamento... Mas estás cochilando, meu velho... Anda, de pé! Ela se levanta. Ela
vai colher flores... Ela está vagamente inquieta. Por tua causa. Porque tu parecias
compreender como seus pais morreram... E agora, ela passa seu tempo a repetir:
ele sabe alguma coisa. E sem cessar olha a hora.
Raul acendeu a lanterna e tirou o relógio. Ficou espantado. "Meio-dia! Já! Ela vai
sentar-se à mesa com seu tutor..." Ela está sentada à sua frente, na sala imensa.
Não tinha fome. Raul podia vê-la com uma nitidez prodigiosa. Fazia uma bola
com miolos de pão, com os finos dedos. Apolline trazia um prato de peixe pois
era sexta-feira, e o aroma da fritura fazia-o desfalecer. Há vinte e quatro horas
que não comia nada. E murmurava. "Vamos, um pequeno esforço. Está delicioso
esse peixe. Além disso tens necessidade de todas as tuas forças, se puderes
pedalar até aqui..." A refeição prolongava-se. O tutor, de quando em quando,
falava alguma coisa... Um relógio bateu uma hora. Foi a vez do café. Raul tinha a
boca seca. Estava completamente entregue a esse terrível jogo. Lucile subia ao
quarto. Escutava os ruídos do castelo, o ronco do auto que levava seu tio; dentro
em pouco Apolline estaria ocupada com a lavagem da louça... Duas horas... Duas
horas e meia...
Raul se encolhia. Era agora, que tudo ia ser decidido. Lucile sairia do castelo.
Ninguém a veria sair. Chegaria ao lugar do encontro. Três horas... Ah! Lucile! É
tua vez de pensar em mim, bem fortemente, ainda mais fortemente... Se não
compareci foi porque não pude... Se não pude, é que estou prisioneiro... É preciso
que minhas palavras voem através do espaço... Pri-si-o-nei-ro... como um
telegrama... Se Lucile chegasse a captá-lo, ela viria. Prisioneiro! Estou
prisioneiro! Raul, terrivelmente tenso, movia os lábios. Ele ouvia a palavra fluir
de si e, pouco a pouco, fraquejava; ele se esvaziava de toda energia. Chegou um
momento em que teve que parar, como um ferido completamente sem forças. E
agora, cabia a Lucile tomar a iniciativa... Não adiantava tentar guiá-la... Ou ela
estaria a caminho, ou era a morte que se aproximava... Mas, com toda certeza, ela
estava a caminho, porque as coisas não poderiam se passar de outra forma,
porque um Arsène Lupin não fora feito para morrer enterrado, como uma toupeira.
Era necessário querer, querer... Não olhar mais a hora, não achar o tempo longo
demais... Era preciso andar como um velho cavalo de tirar água do poço, que
anda em círculos, sem pensar em coisa alguma...
E ele andou, casmurro, os pés afundando na areia, uma das mãos tocando as
paredes, afastando-se dos esqueletos. Ele era todo vontade de andar. Se, por
desgraça se abatesse, tudo estaria acabado. Não teria mais força de gritar quando
Lucile, em cima, caminhasse para a armadilha. Porque não tinha nenhuma dúvida
de que, dentro de alguns instantes, ela estaria ali... Talvez não agora, mas daqui a
pouco. Respirava forte. Mascava a areia que fazia seus dentes rangerem. Seus
tornozelos tremiam. Caiu sobre um joelho, massageou-se demoradamente. Não
olhar a hora. Esta era a pior tentação. O resto, a fome, a sede, ainda eram
toleráveis. Mas se fraquejasse, se tirasse o relógio, se descobrisse, por exemplo,
que já eram seis horas... Então só lhe restaria deitar-se e aguardar o fim... porque,
sem confessar, já havia calculado o tempo necessário para vir de Eunerville, de
bicicleta, até ali. Com um impulso, pôs-se novamente de pé.
Foi então que ouviu um ruído e ficou imóvel, maravilhado, incrédulo. Essa
espécie de estalido era de passos sobre os seixos. Com a mão na boca,
paralisado, os olhos fechados, concentrou-se para melhor analisar esse ruído tão
tênue, que talvez fosse apenas seu próprio sangue circulando nas artérias. Mas o
ruído ficou mais nítido. E trouxe com ele a luz, o vento do exterior, a promessa de
vida, como o choque longínquo de uma batida anuncia ao mineiro soterrado, que a
salvação está próxima. Mas, sobretudo, ela marcava o triunfo de Raul. Só,
perdido, sem socorro, sem a menor esperança de salvação, apenas pelo poder de
sua vontade, ou talvez de seu orgulho, Raul, uma vez mais, forçara o Destino.
Inundou-o um sentimento de intensa alegria. Lágrimas apareceram em seus olhos.
E esse homem, tão dono de si, chorou.
A porta rangeu acima de sua cabeça e o assoalho estalou levemente. Então, com
todas as forças, ele gritou com um nó na garganta:
— É você Lucile?... É você, não é?...
De muito longe a voz da mocinha respondeu:
— Sou eu.
— Bem. Não se mexa. Onde você está exatamente?
— Diante da mesa.
A coitada! Ela olhava para os dois talheres e procurava compreender..,
— Está vendo a cortina, Lucile?... A armadilha est aí, bem atrás... Sim, um
alçapão que se abre quando se pisa em cima.
— Está ferido?
Adorável Lucile. Em sua voz já havia a inquietação de uma mulher, uma angústia
de que ela ignorava o sentido, mas que Raul, trêmulo, decifrava.
— Não, não tenho nada. Mas estou preso. É preciso que me ajude... Dê a volta
por fora da casa. Atrás, encontrará uma velha escada. Você a trará para a sala.
Depois então explicarei o que há a fazer.
Os passos afastaram-se e logo um rebuliço de coisas se entrechocando, avisava a
Raul que o suplício estava perto do fim. Teve, então, um gesto que espantou a si
mesmo. Cansado, esfomeado, machucado, limpou a areia de sua roupa, escovou-
se, verificou a gravata e o friso da calça. "Mantenhamos a linha, velho camarada
— disse ele. — Evidentemente se pudéssemos nos barbear seria melhor... E
apruma-te, caramba! Não te esqueças de que és um jovem repórter!"
Acima, a escada se chocava com os móveis, arranhava o assoalho.
— Está pronta? — gritou ele.
— Estou.
Da forma como respondeu era fácil compreender que o esforço havia sido maior
do que suas forças.
— Está bem... Você está no fim de seus tormentos, Lucile. Você vai levantar a
extremidade da escada que está do seu lado e aí empurrar a outra extremidade,
deslizando sob a cortina. A escada irá passar sobre o alçapão e seu peso o abrirá.
Entende como deve proceder?... Vamos... Lentamente!
Os pés da escada arranharam o assoalho e, subitamente, o alçapão abaixou-se,
deixando entrar uma claridade oblíqua
— Pare!... Espere um instante.
Raul, aproveitando-se do pouco de claridade, aproximou-se dos esqueletos.
— Desculpe-me — murmurou. — Mas nunca mais ninguém os aborrecerá.
A mãos cheias, cobriu-os de areia.
— É para que ela não os veja — explicou. — Durmam em paz. Eu me ocuparei
dela. Eu lhes prometo. Sei o que pensam! Estão enganados! Eu me ocuparei dela
como um velho amigo, paternalmente e um pouco amoroso... Eu é que serei seu
tutor. O outro, é um pateta. Adeus!
— O que faço agora? — perguntava Lucile.
— Bem, você levantará a escada e fará com que ela desça lentamente...
Três minutos mais tarde, Raul retomava pé no mundo dos vivos. Levantou a
escada e o alçapão fechou-se. Tomou a mão de Lucile.
— Vamos sair daqui de uma vez. Lá dentro, é sufocante.
O sol ia alto. A maré subia. Não havia ninguém à vista.
— Sem você disse ele — eu estava condenado... Mas graças a você, descobri
algo de capital, de muito importante... Vejamos... Lembre-se... Durante os últimos
meses você nunca se sentiu ameaçada?... Não se passou alguma coisa que a tenha
assustado?
— Não... Não vejo o que... ouve o acidente com o cabriolé...
— Ah!
— Mas foi um simples acidente. Uma roda quebrou-se, num sulco do terreno. Fui
atirada ao chão. Se o cavalo disparasse, eu estava perdida... Mas ele ia a passo,
contra seu hábito.
— Quando aconteceu?
— Há três meses. Acredita que...
— Claro! O acidente foi provocado... como os outros... Não é por acaso que os
proprietários do castelo desapareceram sucessivamente... Seus pais foram as
últimas vítimas... Tenha coragem, Lucile.
A mão da jovem apertou a sua.
— Eles estão lá, não estão?
— Sim. Sabiam que eles vinham todos os anos, na data do aniversário do seu
primeiro encontro. Prepararam cuidadosamente a armadilha. E depois, deram
sumiço ao barco. Quem deixaria de acreditar num naufrágio?... E agora é a sua
vez.
Lucile agarrou-se ao braço de Raul.
— É abominável — disse ela.
— E depois de você — continuou ele — atacarão sem dúvida seu tutor... sempre
com a mesma astúcia e a mesma paciência, para que ninguém possa suspeitar da
verdade. Você, como eu pressentia, está correndo perigo.
— Mas por quê? por quê?... Não fizemos mal a ninguém.
Raul ficou um instante pensativo.
— Ah! Se eu pudesse viver no castelo, a seu lado, saberia rapidamente o por quê.
— Se você ao menos tivesse aparecido mais cedo oito dias — disse Lucile. —
Você deve saber que existe no castelo uma biblioteca muito importante. É mesmo
célebre. Meu tutor contratou, na semana passada, um secretário para pôr um
pouco de ordem em todos esses livros, catalogá-los... Resumindo: ele chegará
dentro de quatro dias.
— Mas é maravilhoso! — exclamou Raul. — Seu tutor conhece esse homem?
Eles já se viram?
— Não. Entraram em contato através 'um anúncio aparecido numa revista
literária. O Sr. Léonce Catarat procura um emprego de...
— Você se recorda do endereço desse senhor?
— Lembro. Fui eu mesma quem escreveu as cartas... Léonce Catarat, 13 Rue des
Batignolles, em Paris.
— E você disse que ele deve chegar quando?
— Terça-feira.
Lupin passou seu braço sob o da moça e levou-a pela vereda do penhasco.
— Pois bem — disse ele, — com a colaboração dessa jovem, de quem conheço a
gentileza, vamos organizar nossa defesa. Daqui em diante não teremos mais
acidentes em cabriolé, eu lhe garanto.
— Mas — disse Lucile, subitamente intimidada, — quem é você, exatamente?
Raul deu uma gargalhada.
— Adoro esse "exatamente". Que homenagem! Imagine, minha cara Lucile, que eu
não sei nada de mim mesmo. Um jornalista é um homem de cem caras. Ê preciso,
para vencer nesse duro mister... Eu vou, eu venho, eu farejo, me disfarço... Eu me
perco um pouco, para ser franco... Assim, esse Léonce Catarat, sinto que vou
entrar em sua pele, mesmo contra sua vontade, por mimetismo, e pelo prazer de
viver perto de você.
Lucile ruborizou-se de uma forma que agradou sobremodo a Raul.
— Você tem oportunidade — murmurou ela. — Você é livre! Não tem que prestar
contas a ninguém dos seus atos... Parece-me que eu nunca mais me sentiria doente,
se também tivesse o poder... Mas estou dizendo bobagens.
— Bobagens! Ora vamos! Você nunca teve tanta razão. É o tédio que a devora,
minha cara Lucile. Mas, ao meu lado, você não corre perigo de aborrecer-se, eu
lhe juro. Veja hoje, por exemplo, que aventura!...
Lucile parou na primeira curva do atalho e voltou-se para a casa que iria ficar
fora de vista. Raul, suavemente, cobriu-lhe os olhos com a mão.
— É preciso nunca olhar para trás, menina... Seus pais têm a sepultura que eles
mesmo desejariam... Além disso é preciso que o inimigo não saiba o que
descobrimos... Vamos! Venha! Eu a deixarei na porta de Eunerville.
Procurou seu carro, guardou a bicicleta em seu interior e instalou Lucile a seu
lado.
— Você teve medo? — perguntou ela.
— Tinha certeza de que você viria.
— E se eu não tivesse vindo?
— Sou eu quem coloco os se. Nunca me sujeito a eles.
Raul retomou a estrada para Paris segundo seu hábito, devorando o espaço.
Depois de deixar Lucile, parará numa estalagem e comera uma fatia de presunto,
uma torta de maçã e tomara três xícaras de café. Sentia-se maravilhosamente bem
disposto e feliz. Apenas uma sombra no quarto: o barão, ou melhor, o mistério do
barão. Porque, atrás do barão, havia certamente alguém que se escondia... O
barão era apenas um homem de ação, capaz das piores brutalidades, mas bastante
limitado para idealizar "acidentes" como o de Eunerville, a sutileza do suplício
imposto ao casal Ferranges. Isso denotava uma inteligência aguda, implacável, e
uma paciência monstruosa, qual a da aranha preparando sua teia, da serpente
aguardando sua presa, desses animais noturnos que atacam sem ruído, assim que a
vigilância da vítima afrouxe. Ele mesmo, se não tomasse cuidado, seria atacado,
ou em sua própria carne, ou naquilo que agora ele tinha de mais precioso: Lucile.
"Não a toque — rosnou ele. — A mim, não tem importância. Eu sempre
encontrarei um jeito de me desenredar. Mas ela... se alguma vez lhe acontecer
qualquer coisa, nada poderá me deter." E deixando-se levar pela cólera, lançou
seu carro pela estrada como uma bala. Chegou a Paris perto de uma hora da
manhã, foi ao seu apartamento do Boulevard Périere, tomou uma ducha e depois
de fazer uma refeição, deitou-se, murmurando antes:
— Durma bem, pequena Lucille. Seu anjo da guarda não está longe... Ele vai
descansar também. De quando em quando os anjos também dormem!
O artigo publicado pelo Eco de França fez algum barulho. Todos descansavam
nessa véspera de férias. Apesar do mal-estar político, apesar do ruído de armas
que se ouvia um pouco, em toda Europa, os jornalistas não tinham mais nada a
oferecer a seus leitores, a não ser as notícias corriqueiras, sem importância, a tal
ponto que renderam comoventes homenagens a Gaston Seyroles, quando de seu
enterro. Lembraram as etapas de sua obscura carreira; celebraram suas humildes
virtudes; afirmaram que brevemente seria vingado.
"O Inspetor-chefe Ganimard teria uma importante pista — escrevia o jornal. —
Interrogado num corredor da Prefeitura de Polícia, adiantou que teria
novidades dentro de quarenta e oito horas. "Talvez, voltemos a falar de um
personagem um pouco esquecido, mas sobre o qual sempre mantive vigilância",
acrescentou ele de maneira um tanto sibilina. E como alguém perguntasse se,
por acaso, queria aludir a seu velho inimigo Arsène Lupin, o inspetor
contentou-se em pôr um dedo diante dos lábios e dizer: "Quem sabe?".
Os maledicentes exclamaram: "Estão querendo que esqueçamos o rearmamento da
Alemanha!" Os mais bem informados, levantaram os ombros: "Esse pobre
Ganimard! Desde que ele se sente desarvorado, acusa Arsène Lupin." Mas um
grande número de curiosos estremeceu de prazer. Finalmente! Iriam rir um pouco.
Bem que tinham necessidade disso. E foi sussurrado de um a outro, num vasto
murmúrio através de todo o país: "Arsène Lupin não morreu! Arsène Lupin está
de volta!"
Raul d'Apignac amarrotou o jornal e atirou-o aos pés da cama. O inspetor-chefe
Ganimard teria uma importante pista... Qual o quê! Já teria ele descoberto a
pista do barão? Impossível! "Eu, Lupin, precisei de um quarto de hora — pensou
Raul — e possuía alguns elementos que ele não possui. Ele precisará, no mínimo,
de seis meses. E assim mesmo, se tiver sorte. Não, não. Ele está blefando.
Procura aparecer, tornar-se interessante. Isso não pega mais!"
Mas estava de mau humor quando chamou seu empregado. Estava de mau humor
quando comeu, sem apetite, seus ovos com presunto e quando cortou um dos
pequenos charutos holandeses fabricados especialmente para si, não havia ainda
voltado ao seu estado normal. A polícia não tinha nada que a levasse a envolver-
se no caso de Eunerville. Era grande demais para ela. Quanto ao barão, que
tirassem as mãos de cima. A caça era sua e de mais ninguém. Assim, resolveu
escrever ao Eco de França. A declaração de Ganimard ferira seu amor próprio.
Um personagem um pouco esquecido... Ah! Ele usaria o mesmo tom. Pois bem,
iriam ver. Personagem um pouco esquecido, que topete! Por mais que repetisse:
"Dentro de três dias estarei no castelo, junto dela." nada adiantava. Era um dia
ruim, um desses dias cinzentos, quando nada dá certo, a ducha está muito quente,
perdemos um botão da botina, ou o espelho reflete um rosto envelhecido.
Raul pôs um chapéu de panamá, escolheu uma bengala para passeio e saiu. Fora,
ele estaria mais à vontade para dar uma resposta áspera ao Sr. Ganimard. Dirigiu-
se para o Bois. No fundo, esse velho imbecil tinha razão. Há muitos meses que o
público estava sem ter os saborosos artigos que"tanto haviam servido para criar a
lenda de Arsène Lupin "Antigamente — sonhava Raul — eu anunciava meus
golpes. Eu os comentava. Numa palavra: divertia-me. Deus, como era jovem!
Mas também a época se prestava mais a isso. Eram todos mais alegres. É preciso
que encontre um meio de recomeçar uma dessas aventuras que mantinham o
público em suspense..."
Estava tão absorvido por tais reflexões que não prestou atenção a dois homens
que andavam atrás de si e que, pouco a pouco, chegavam mais próximos e o
enquadravam. Raul parou.
— Ah! Isso...
Um terceiro personagem surgiu diante dele. Um quarto veio juntar-se ao grupo e
encostou o cano de um revólver nas costas de Raul.
— Nem um gesto, Raul d'Apignac. Em nome da lei eu o prendo.
A cena fora tão rápida; ela correspondia tanto às preocupações de Raul, que este
estourou de riso, reencontrando todo o seu bom humor.
— Ora viva, Ganimard, estás verdadeiramente fazendo uma cena! Sim, sou eu,
Raul d'Apignac. Sou eu mesmo, tu sabes, esse personagem um tanto esquecido.
Mas ria, velho camarada. Ganhaste... Assim, por uma vez pelo menos, alegra-te!
E sacudindo-se de riso, prosseguiu para grande espanto dos policiais que
acompanhavam Ganimard:
— Ah! Tu me imitarás! Maldito Ganimard! Nós nos colocamos às costas dos
outros. Não estando muito seguro, é melhor irem quatro. De repente, o grande
momento, a voz sepulcral: "Raul d'Apignac, esteja preso!" Então o senhor se
volta. Surpresa! Ei-lo. D'Apignac; é Lupin... Segurem-no bem. Estão vendo que
ele está prestes a desmaiar. Não é mais um jovem, vocês sabem. E eu lhe fiz cada
uma... Como? As algemas! Em mim? Mas se o meu maior desejo é segui-lo.
Estava justamente pensando: "É preciso valorizar um pouco esse bom Ganimard.
Talvez isso possa ajudá-lo a ser promovido..."... Tenho sua permissão para
enxugar os olhos? Não tenho culpa se chego a ponto de chorar de rir... Ah! Tinha
também um táxi a seguir-nos? Ele pensa em tudo, o sabidão. Aprendam,
senhores... Pois bem, passem à frente! Não?... É verdade, o convidado desta feita,
sou eu... Chofer! À Torre Pontuda{9}!
— Canalha! — resmungou Ganimard. — Daqui a pouco te mostrarás menos
fanfarrão. Eu te ensinarei, pessoalmente, a matar bibliotecários.
— Então tu pensas que... Qual! É engraçado demais. E naturalmente tens uma
prova. E quando falo em prova quero dizer prova definitiva, inatacável.
— Não apenas uma! Duas!
Essas duas provas Raul foi conhecê-las no dia seguinte, quando compareceu
diante do juiz de instrução Formerie. Estava perfeitamente descansado e sentia-se
remoçado dez anos. Dessa forma, foi com a melhor boa vontade que se prestou ao
interrogatório. Porém, antes de nada fez questão de esclarecer uma questão.
— Não falemos mais de Arsène Lupin — disse ele. — É do conhecimento
público que suas impressões digitais desapareceram há muito tempo dos arquivos
da Polícia Judiciária e, assim sendo, ninguém tem o direito de pretender, ainda
que tal fato me pareça sumamente lisonjeiro...
— Mas o inspetor-chefe Ganimard...
— Cá entre nós, Sr. juiz, ele está delirando. Lupin está morto. Todo mundo sabe
disso.
— Vá lá... Bem, quero dizer, admitamos. Você não é Lupin... O que não impede de
ter assassinado esse infeliz bibliotecário. Antes de mais nada, tenho aqui uma
carta de apresentação assinada por Gabriel Tabaroux, recomendando
calorosamente Raul d'Apignac ao secretário de História e de Arqueologia da
Normandia... Será preciso acrescentar que Gabriel Tabaroux, Membro do
Instituto e Oficial da Legião de Honra jamais escreveu essa carta?
— Mas...
— Espere! A arma do crime, a pistola do assassino, foi encontrada perto do
corpo. Faltava uma bala. A mesma que foi extraída do cadáver de Gaston
Seyroles. O relatório do perito é categórico a esse respeito. Ora, a coronha dessa
pistola, traz magníficas impressões... As suas impressões, Sr. d'Apignac.
— Como?
— Estou dizendo que as impressões tomadas ontem, após sua prisão, são
idênticas àquelas encontradas na arma... Dessa forma, é indiscutível que o senhor
é o assassino.
— Estou ficando seriamente aborrecido.
— Perdão?
— Por um lado está o senhor persuadido de que eu não sou Raul d'Apignac.
— Certo.
— Por outro lado, não hesita em acusar-me de assassinato.
— Certo!
— Então, não sei a quantas andamos. Porque eu juro que não matei ninguém.
Como Lupin, não tenho sangue nas mãos. Assim estou quase a perguntar-me se
não sou Lupin.
— Não permito que faças brincadeiras — exclamou o juiz.
— Escute — disse Raul conciliadoramente. — Estou de acordo que as provas
apresentadas são perturbadoras. Mas, das duas uma: ou sou Lupin ou não sou
Lupin. Está me seguindo?... Ora, se eu sou Lupin, sabe o senhor que não posso
permanecer preso. De acordo?... Amanhã, já estarei longe daqui... Mas, se fujo,
fica evidentemente provado que sou Lupin. E como Lupin não mata, terei assim
demonstrado minha inocência... Evidentemente o raciocínio é um pouco
complicado... Vejo, Sr. Juiz, que esta um pouco perdido...
— Basta! — gritou o Juiz Formerie.
— Vamos, vamos. Não nos aborreçamos!
— Ah! Agora não me resta mais nenhuma dúvida. Vós sois mesmo Lupin.
— Nesse caso sentirei muito mas, dentro em breve, eu me despedirei com uma
reverência.
— É o que nós veremos.
— Então, será uma prova de que não sou Raul d'Apignac.
O juiz espumava de raiva, Raul sorria. O escrivão escutava, de boca aberta. Raul
ali sou delicadamente o friso de suas calças e cruzou as mãos sobre os joelhos.
— Sr. Juiz, peço que me escute. Afinal de contas estou aqui para ajudar a justiça.
Nesse momento, com essa prisão ridícula, está me impedindo de encontrar o
verdadeiro culpado e de entregá-lo em suas mãos. Eu não tenho tempo de mofar
numa cela. Não pretende, realmente, soltar-me?
— Levem-no daqui, — disse o Juiz Formerie sufocado.
— Um minuto. Pense bem que tomei minhas precauções, Sr. Juiz; sinto que lhe
devo prevenir: tenho uma fuga planejada. Portanto, reflita!
Como os guardas já o segurassem, Raul libertou-se com uma sacudidela e gritou:
— Escolho como meu advogado, Maître Henri Bornade.
... Uma hora mais tarde, em sua cela da Santé, tinha tempo bastante para refletir e
devia confessar que, uma vez mais, a situação não era das melhores. O adversário
conduzia brilhantemente o jogo, aproveitando suas menores falhas. A primeira
fora manusear a pistola na casa do barão. O empregado usava luvas. E a coronha
deveria ter sido previamente limpa. O golpe havia sido montado? Haviam
aproveitado a situação?... Resumindo, de alguma forma roubaram suas impressões
digitais. O inimigo via longe e manobrava de forma superior. A segunda falha fora
ter conservado a carta assinada por Tabaroux, em vez de destruí-la. Bastou ao
barão apanhá-la, na noite em que retomou o manuscrito e examinou os bolsos de
Raul. Em seguida voltara ao local do crime que ainda não fora descoberto e aí
deixara a carta e a pistola. O assassinato estando devidamente assinado, a polícia
faria o resto. Dessa forma, em algumas horas Lupin, batido por suas próprias
armas, fora posto fora de combate e obrigado a recorrer a soluções desesperadas.
E dentro de dois dias deveria apresentar-se no castelo de Eunerville, com a
identidade de Léonce Catarat! Se Ma\tre Bornade se omitisse, tudo estaria
perdido...
Mas Lupin não se assustava ao sentir-se encurralado. Tirando da bainha do paletó
um pedaço de papel e um minúsculo lápis que escaparam à revista, escreveu uma
carta para o Eco de França:
Apodrecendo ainda uma vez na palha úmida dos cárceres, encontro na minha
inocência a força para gritar minha indignação a todo o país. Eis que me
acusam, a mim, Arsène Lupin, de haver assassinado o infortunado Gaston
Seyroles, como se, morto há tantos anos, eu não me houvesse transformado
num inofensivo fantasma.
À hora da sopa, Raul passou a carta ao primeiro guarda que apareceu, juntamente
com uma boa nota. O outro escondeu carta e dinheiro e afastou-se. Nas mesmas
circunstâncias, Raul já havia usado tal processo. Mas, desta feita, estava jogando
com a venalidade do homem. Ganhou. E no dia seguinte pela manhã, foi uma
imensa gargalhada.
Na rua os transeuntes disputavam o jornal. Sem se conhecerem, trocavam idéias,
cumprimentavam-se. "É bem ele". E ainda havia quem duvidasse de que estivesse
vivo!... Isso vai mudar as coisas! E havia em todos os olhares uma excitação que
traduzia, ingenuamente, a alegria popular. O Aventureiro estava de volta. De
repente, a vida cotidiana, com suas intrigas e suas misérias, tornava-se mais fácil
de ser vivida. Alguém lá estava, inatingível e todo-poderoso, que punha a serviço
da justiça os imensos recursos de sua inteligência e sua energia. E logo as apostas
apareceram, nas fábricas, no metrô, nos cabarés e até mesmo na classe média.
"Fugirá... Não fugirá..." As apostas não subiram muito porque um comunicado
lacônico informava, naquela mesma noite, que o Sr. Raul d'Apignac, suspeito de
ser Arsène Lupin, havia inexplicavelmente desaparecido da Santé. Sua detenção
havia durado quarenta e oito horas. Em seu lugar, fora encontrado seu advogado,
Maître Henri Bornade, devidamente espancado, e incapaz, o coitado, de explicar
o que havia acontecido.
Então, foi o delírio. Tudo foi esquecido: a tensão internacional, as façanhas dos
primeiros aviadores, o escândalo Caillaux... Ah! Todos reconheciam bem a
maneira provocante de Lupin, sua desenvoltura espiritual, seus tesouros de
astúcia e sua fertilidade de imaginação. Mas como diabo conseguira ele? Quais
os cúmplices que havia conseguido recrutar num tempo assim tão curto? Com que
passe de mágica conseguira burlar a ativa vigilância de que era objeto? Foi
apenas muito mais tarde, depois da morte de Maître Bornade, que Lupin explicou
sua fantástica evasão. Parece que ainda o ouço dizer-me:
— Até então estava impossibilitado de revelar a verdade. Além disso, sou como
os ilusionistas. Não gosto de explicar meus truques. E esse era tão banal, que
envergonhava-me falar no mesmo.
Via seu perfil fino se animar e sorrir destacando o pequeno pé de galinha no canto
dos olhos. Debruçou-se para mim com um ar maroto e deu-me um tapa amigável
no joelho.
— Vamos! Não me digas que nunca compreendeste! Essa fuga estava preparada
há muito tempo, por pura precaução. Bem que eu preveni o velho gagá do juiz.
Verdadeiramente, eu tramara uma fuga adiantadamente, assim como se toma
adiantado um dinheiro que se tenha guardado para atender um caso de urgência.
Sou obrigado a prevenir-me cuidadosamente, até mesmo das asneiras da polícia.
Portanto Maître Bornade sabia o que devia fazer, desde o momento em que lhe
pedi ajuda.
Lupin esticou-se na cadeira e abriu-se num riso jovem, tão jovem que dava prazer
ouvi-lo. Recomeçou, com a voz de quando em quando cortada ainda por um
acesso de riso.
— O infeliz Bornade, que não podia recusar-me coisa alguma — mas isso é outra
história — usava, obedecendo minhas ordens, um espesso bigode e uma magnífica
barba, longa, sedosa, um verdadeiro acessório teatral. Era, talvez aborrecida para
ele, mas indispensável para mim... Ele entrou em minha cela aquela manhã, de
impermeável já que estava chovendo e de chapéu enterrado até os olhos. E uma
meia hora mais tarde, os guardas viram sair um bigode, uma barba, um chapéu
enterrado e um impermeável, sem duvidar, um instante sequer, que eles escondiam
este seu criado. Em sua pasta, ele simplesmente havia levado bigode e barba
postiços. Pura mágica!
— E ele?
— Bem, antes de sair, amigavelmente, fiz com que dormisse com um soco no
queixo. Estava combinado. Ninguém devia desconfiar que ele fosse um cúmplice.
É por isso que até hoje Ganimard se pergunta como eu consegui disfarçar-me...
Com essa, Lupin despediu-se. Eu deveria ficar vários anos sem o tornar a ver.
Hector d'Eunerville
1772 — 1851
Ele foi bom para os infelizes
Orai por ele
Hector d'Eunerville! O castelão de quem Maître Frenaiseau havia falado... A
conversa voltava-lhe à memória... A fuga de Louis-Phillipe... Seu retorno a
Eunerville... E de repente ele viu, junto da pedra tumular, uma outra, bem mais
modesta:
Evariste Vauterel
1816 — 1901
Avô
Uma hora mais tarde, Raul, depois de ter guardado o side-car na garagem, entrava
no castelo; mas em lugar de voltar ao seu quarto, foi diretamente ao de Huber
Ferranges. O revólver estava no lugar, na gaveta da mesa de cabeceira. Verificou
o tambor e guardou a arma no bolso. Depois, efetuou uma ronda.
Assim, o infortunado Bernardin estava há perto de doze horas nas mãos de seu
raptor e Raul não queria nem imaginar as sevícias que teria que enfrentar. Pobre
patriarca! Sem dúvida nunca mais o veriam. O Outro, depois de haver conseguido
as informações que desejava, faria com que desaparecesse. E essas informações,
podia apostar, estavam agora em seu poder. Ora, o segredo de Eunerville estava
forçosamente ligado a alguma coisa que se encontrava no castelo. Era, portanto,
entre estes muros que o último ato da comédia deveria ter lugar. Sim, qualquer
coisa iria acontecer, algo de terrível. Mas o quê?...
Raul estava exausto. Apesar disso esteve na galeria e sonhou um momento diante
dos quadros de Jacob e São João. Mas aquele relâmpago que iluminara seu
espírito, quando descobrira as telas, estava extinto. Por desencargo de
consciência, auscultou ainda uma vez as paredes, com a palma da mão. Depois
refugiou-se na biblioteca, fumou um cigarro na poltrona do castelão, repetiu
lentamente, com toda concentração de que era capaz: "São João sucede a Jacob...
D'Artagnan conquista glória e fortuna à ponta da espada..." Em seguida... havia o
sangue... Bernardin falara de sangue... Não! O maior gênio do mundo não poderia
tirar dessas palavras um significado coerente. Ele adormeceu, de um mau sono
que lhe inteiriçava dolorosamente os membros. De quando em quando abria os
olhos e uma voz murmurava em si mesmo: "Eu devo encontrar... Eu devo
encontrar..." mas sua cabeça repousava novamente.
Foi Lucile quem o sacudiu.
— Hem? Que é que há?... Lucile!
Imediatamente retornando a si, levantou-se envergonhado de ter sido visto à
vontade, como o rosto desfeito.
— Mas que horas são?
— Oito horas.
— Você tinha razão em me acordar. Eu esperava descansar apenas um instante...
Adormeci. Regressei muito tarde. Tive muito o que fazer; muitas ocupações.
— Que você não quer me contar!...
— Oh! Não há nada para contar ainda. Estou às apalpadelas; procuro juntar as
peças... Se me permite vou fazer uma rápida toalete e a encontrarei na sala de
refeições.
Deixou precipitadamente a jovem e foi com volúpia que mergulhou, minutos mais
tarde, a cabeça na água. Uma ducha seria melhor, mas o castelo, quanto a isso,
deixava muito a desejar. "Bah! na guerra, como na guerra, — murmurou ele
barbeando-se. — O essencial é não parecer muito amarrotado!" E com a ciência
de um ator, devolveu ao seu rosto o esplendor e a frescura da mocidade.
Entretanto Raul estava bem cansado, mas se habituara há muito tempo a não ouvir
as reclamações do seu corpo. Escovou cuidadosamente o traje de secretário, pôs
um colarinho de pontas viradas e uma gravata plastron que lhe dava um aspecto
douto. À medida que renascia o pequeno Catarat, voltava a Raul o prazer do jogo.
Certamente não esquecia que o perigo aumentava de minuto a minuto, mas
recusava>-se a enfrentá-lo com uma cara de quarta-feira de cinzas. Nunca ficava
tão forte como quando estava alegre e, como um desafio, apanhou um botão nas
flores que enfeitavam a lareira e colocou-o à lapela. Depois olhou-se uma última
vez ao espelho do armário.
— Pelo menos — brincou — estou com um ar positivamente basbaque! Vamos,
Pequena Coisa, vá fazer tua corte! Balbucia-lhe que seus olhos acenderam em teu
coração brasas que ninguém poderá nunca extinguir. Seja pedante. Faça com que
se divirta. Trata de fazer com que esqueça que a Morte já bateu à porta... E, se
puderes, diverte também a Morte!
Desceu à sala de refeições. Apolline, que servia o desjejum, mostrava-se furiosa.
— Essa menina — dizia ela, — depois que o avô partiu, tornou-se impossível.
— E de que é ela culpada? — interrogou Raul.
— É uma pequena ladra. Ainda ontem, pegou uma caixa de biscoitos. No entanto
não temos o hábito de contar a comida que estamos dando. Que boas maneiras!...
Oh! Mas eu vou ensiná-la, ora se vou.
— Vamos — disse Lucile, — deixe-a com essa pequena mania. Ela está infeliz, a
pobre menina. Tem direito a um pouco de indulgência, não acha, Sr. Catarat?
— Estou persuadido disso. Feche um pouco os olhos, Madame Apolline. Mas se
o caso se repetir será necessário chamar-lhe a atenção.
— O incidente está encerrado — concluiu Lucile. Quando Apolline saiu ela
suspirou.
— Vai tudo às avessas, Sr. Dumont. Felizmente está aqui. Senão eu não saberia
como estaria... As buscas para encontrar Bernardin foram em vão. Todo mundo,
agora, está persuadido de que lhe aconteceu alguma desgraça... Acredita que
exista uma relação entre o seu desaparecimento e... o que ocorreu aqui?
— Não sei — mentiu Raul. — Tudo que posso afirmar é que nos aproximamos do
desenlace. Qual desenlace? Ignoro. Mas os acontecimento estão em andamento...
E devemos estar sempre prontos.
Acariciou a cabeça de Pollux que estava deitado junto a Lucile.
— Mantenha-o sempre perto... e não creia que estou delirando. A propósito, eu
me proponho a trabalhar um pouco na biblioteca. Nada como um trabalho bem
enfadonho para acalmar o espírito.
— Nesse caso, vou ajudá-lo.
Raul não ousou recusar. Poderia ele dizer à jovem: "Evite-me. Não vê que essa
intimidade, por menor que seja, é perigosa tanto para você como para mim?
Desde que estou aqui você encontra pretextos para acompanhar-me a toda parte.
Se você fosse menos inocente saberia o que isso significa. E eu, que sou de certa
forma mais culpado do que você, deixo as coisas prosseguirem... porque você é
bela e porque eu me sinto tão só quando a Aventura me abandona!"
Foram para a biblioteca e voltaram a classificar livros. Ela tagarelava, numa
pausa entre dois títulos escritos com sua bela caligrafia.
— Como conseguiu — perguntou ela — uma licença de seu jornal?... Eu sempre
pensei que um jornalista ficasse preso à redação, vinte e quatro horas por dia.
— Como consegui... Bem...
Raul que estava com o pensamento voltado para Jacob e São João, improvisou
uma resposta no momento.
— Eu trabalho como colaborador. Sou um jornalista independente.
— Que quer dizer colaborador?
— Pois bem, eu proponho, ofereço um artigo e me pagam esse artigo, se prefere
assim.
— Como é interessante! Como eu gostaria de ser jornalista. Pagam qualquer
artigo?
— Claro. Desde que trate de um assunto que possa apaixonar os leitores.
— Quando ele envia um artigo ou uma carta, ele também é pago?
— Quem?
— Arsène Lupin.
— Ora essa, mas você só pensa em Arsène Lupin. Chego a estar com ciúmes.
Ela corou e debruçou-se sobre o registro para escrever aplicadamente: Arquivos
da Normandia, mas não demorou a levantar a cabeça.
— Por que não lhe escreve?... Já li que ele ama decifrar mistérios. E aqui, existe
um belo mistério, pois não?
Raul a olhava, tão loura, tão frágil, tão tentadora. Meneou a cabeça.
— Talvez eu lhe escreva mesmo.
— Sabe onde ele mora?
— Creio que sei.
— Oh! Ele não iria se incomodai por minha causa — murmurou tristemente
Lucile. — Eu não sou ninguém.
— Quer fazer o favor de calar-se!... Mas, acredite-me, o mistério de Eunerville,
nós dois, terminaremos, agindo juntos, por descobri-lo... Ah! atenção. Antes de
Arquivos, há Arcanos. Anote.
As horas passaram. Raul, de repente, lembrou-se de que havia completamente
esquecido o infortunado Hubert Ferranges e corou, por sua vez, como um garoto
apanhado em falta.
— Desculpe-me, Lucile. Seu tutor?... Não perguntei notícias dele?
O médico tranqüilizou-nos. Uma simples fratura. Devo ir hoje almoçar na clínica.
— Eu a acompanharei.
Achille levou-os. O estado do ferido era bom. Sua perna estava enorme, depois
de engessada. Ficou feliz por ver a sobrinha e ainda mais satisfeito por saber que,
graças aos cuidados diligentes de seu secretário, o trabalho de classificação
avançava favoravelmente.
— É preciso que avises teu tio Alphonse — disse ele a Lucile. — Por delicadeza.
Sei bem que ele não se ocupa conosco, mas certamente ficaria aborrecido se não
o preveníssemos que sofri um acidente.
Raul lembrou-se que o infeliz proprietário da Quinta São João vivia só. Sem
dúvida o crime não seria descoberto antes de vários dias. Isso lhe daria um bom
prazo e os acontecimentos que ele temia aconteceriam provavelmente muito antes.
Conversaram amavelmente e despediram-se à tarde muito satisfeitos uns com os
outros.
— Você vai agora trabalhar sem mim — disse Lucile quando o automóvel
transpunha a grade do castelo. — Devo colher umas flores... Mas não tenha
cuidado, pois Pollux me acompanhará ao jardim.
— Flores? Para quem essas flores?
— Para mamãe.
Foi no pátio que essa resposta despertou suspeitas em Raul por sua estranheza.
Mas desde que vivia obcecado, tendo na cabeça a todo momento as palavras
mágicas que continham a solução do enigma, tornara-se um tanto distraído.
— Para sua mãe? — repetiu ele.
— Sim, será amanhã sua festa. Ela se chamava Jeanne.
— Ali! Ela se chamava Jeanne — concordou polidamente.
De repente segurou o pulso da jovem.
— O quê?... Sua mãe se chamava Jeanne?... Será amanhã o dia de Santa Jeanne?
— Claro!
Deixando Lucile correu à cozinha onde Apolline descascava algumas batatas.
— Você tem' um calendário?
Ele esquecia seu personagem. Do pequeno Catarat, surgia um desconhecido
imperioso que enchia a cozinha com sua presença e que mostrava claramente sua
impaciência. Apolline enxugou as mãos no avental e, perturbada, murmurou:
— Está aqui... Está aqui...
— Estamos em que dia?
— A 24 de junho, me parece... Eu nem sei mais como se vive hoje.
O dedo de Raul já percorria as colunas dos meses. 24 junho... São Jacob...
Fechou os olhos, esperando que seu coração se acalmasse, voltasse ao ritmo
normal. 24 junho. São Jacob... 25 junho. São João... O 25 sucede ao 24. São
João sucede a Jacob. Raul beijou Apolline que levou um susto.
— Tenha modos, senhor!...
— Mas você não compreende — exclamou ele. — São João sucede a Jacob. E
em que momento preciso, hem?... Você não sabe? É necessário que eu lhe
explique tudo. A que horas passamos de um dia para o outro?... Não precisa ter
um diploma para responder a essa questão: meia-noite, caramba! E à meia-noite
de 24 de junho, que D'Artagnan conquista glória e fortuna. Hem? Não precisa
dizer mais nada. Maldito D'Artagnan!
— Mas ele ficou louco! — balbuciou a empregada.
— Completamente louco! — afirmou Raul. — Ah, a boa, a sadia loucura! Eu
esperava há tanto tempo! Morria de tédio, minha brava Apolline. Não é muito
alegre este teu castelo! Felizmente existe o Santo Jacob! O quê? O que isso
significa?... Ora, dê-me tempo de respirar. Vocês são extraordinários, todos
vocês. Apenas a história começa e vocês já querem conhecer o fim! É D'Artagnan
que a excita! Pois bem, eu também estou assim, acredite. O que pode ele nos
trazer, o 24 de junho? Justamente na noite do solstício!
Recobrou a seriedade e devolveu o calendário a Apolline.
— Não ligue para isso. Eu brincava. Fiz uma aposta... É isso... Uma aposta... e
creio que vou ganhá-la.
Voltava à pele do pequeno bibliotecário e a desconfiança de Apolline começava a
dissipar-se.
— Não se deve brincar assim, Sr. Catarat. Se o Sr. Ferranges soubesse ele
poderia até mesmo despedi-lo!
— Não farei mais — prometeu Raul.
Foi encontrar Lucile e ajudou-a a colher as mais belas flores. Foi preciso um
esforço extraordinário para controlar seu nervosismo. Afinal! O primeiro raio de
luz nas trevas. Ele, agora, tinha uma das pontas do fio. O primeiro elemento do
mistério era uma data. E era provavelmente por esse motivo que os
acontecimentos se aceleravam dramaticamente nos últimos dias. Alguma coisa de
capital ia acontecer. E o inimigo iria, enfim, se mostrar. Passada a chama do
entusiasmo, Raul se concentrava, fazia apelo a suas forças mais profundas,
mobilizava todas as suas energias para enfrentar o desconhecido. Quando estavam
com os braços cheios de cravos, rosas, peônias, voltaram silenciosamente ao
castelo. Lucile conduziu seu companheiro ao salão e parou em frente a uma
grande fotografia colocada no aparador.
— Mamãe — disse ela.
Raul viu uma mulher jovem verdadeiramente mais tocante pelo seu vasto chapéu
florido. A mão pousada sobre uma cadeira de marfim, um leve sorriso nos lábios,
estava de pé diante de um fundo representando uma cerca viva.
— Ela não era bonita? — perguntou Lucile.
— Muito!
Mas ele já esquecera a mãe de Lucile. Uma pergunta fervia em sua cabeça. Onde
teria lugar o Acontecimento? No terraço?... Na galeria?... E em que consistiria
ele? A frase: D'Artagnan conquista glória e fortuna só poderia ter um único
sentido. Tratava-se de algum objeto, sem dúvida extremamente precioso,
escondido em algum lugar. E todo o passado de Raul agitava-se. Glória e
fortuna!... Como tais palavras não o haviam abalado até suas profundezas? Uma
vez mais seu destino aprontava-se a fazer-lhe alguma formidável revelação. Uma
vez mais, mostrava-se fiel ao encontro! E provavelmente um encontro histórico, já
que o rei dormira em Eunerville, havia retornado, apesar dos perigos que o
ameaçavam, e finalmente afastara-se contra a vontade...
Deixando Lucile arrumando seu buquê, dirigiu-se para a galeria e, andando
lentamente, esforçou-se por examiná-la sob uma nova perspectiva. Mas nem os
quadros nem a tapeçaria, nem as panóplias, sugeriam qualquer idéia interessante.
Coincidência, o São João sucedendo a Jacob. As duas telas nada significavam e
somente o acaso, sem dúvida, fora o culpado da troca. Coincidência o
mosqueteiro sentado à mesa. Ou então talvez falsos indícios ali deixados para
confundir quem os visse. Seus pensamentos seguiram outro curso. Se alguma
coisa deveria acontecer no justo momento em que o 24 terminava e o 25 ia lhe
suceder, poderia ser levado a concluir que, movido por algum movimento de
relojoaria, um esconderijo se abrisse à meia-noite. Mas seria crível que cada ano,
na mesma data, à mesma hora, esse esconderijo se abrisse? Curioso esconderijo,
na verdade. Não, não era isso. Mas ele não conseguia afastar a idéia de um
esconderijo. Obstinava-se, percorrendo a galeria em todos os sentidos. E sua
aventurosa existência descobrira a chave de tantos outros enigmas, que se irritava
por ser mantido em xeque por um mistério que afinal talvez fosse bem simples,
mas do qual não possuía todos os dados. Isso não era uma razão para renunciar.
Em outros tempos, teria imaginado os elementos que faltavam. Se na noite
precedente não houvesse tido tanto trabalho, se a fadiga não tivesse, de tal forma,
tomado conta de suas forças, ele teria se plantado ao centro da galeria e aí, num
esforço sobre-humano, faria com que surgisse a verdade, uma vez que era um
mágico do impossível. Sentia-se à beira da descoberta. Mas, à falta de algumas
horas de repouso, seu cérebro negava-se a auxiliá-lo. Era inútil forçar.
Raul tirou o relógio e sobressaltou-se. Já era hora de jantar. E não teria tempo de
dormir um pouco! Pelo contrário, era preciso vigiar, chegar ao meio da noite no
auge da atenção, estar pronto para tudo. Num caso assim, Raul recorria a um
método bem simples: comia muito bem, mas sem excesso. E, felizmente, a
refeição no castelo era sempre copiosamente servida. Assim, quando ouviu bater
o relógio, apressou-se em busca de Lucile na sala de refeições. Reencontrara seu
bom humor, com um último esforço de sua vontade; e para afastar a inquietação da
jovem, desdobrou todos os seus dons de bom conversador. Quando era
necessário, sabia contar maravilhosamente algum caso curioso, engraçado ou
pitoresco e para isso bastava mergulhar em sua prodigiosa memória para
alimentar indefinidamente a mais agradável das conversações. Lucile, de olhos
arregalados, perguntava de vez em quando:
— Isso aconteceu com você?
— Não, comigo não — dizia Raul. — Mas com um amigo muito querido. Quer
mais um pouco deste excelente peixe... Para agradar-me!... E permita-me que lhe
ofereça ainda um copo deste delicioso Muscadet.
— Conte outra história.
— Mas você está me tomando por Sherazade, minha jovem! Pois bem, vou
revelar-lhe a parte secreta de um caso que fez com que se gastasse muita tinta...
Evidentemente você nunca ouviu em sua vida falar de Madame Imbert. Saiba
portanto...
O monumental relógio escandia os segundos. A noite começava a entrar pelas
janelas abertas para o parque. Apolline acendeu o lustre. Lucile permanecia
enfeitiçada. O queixo apoiado nas mãos cruzadas, esquecendo de comer, olhava
esse homem que se dizia jornalista e que... ela agora tinha certeza... era alguém
bem diferente, porque as aventuras que ele contava tinham todas um caráter
excepcional e a um jornalista, um personagem comum, não poderia ocorrer nada
comparável. Ora, era ele o herói dessas histórias e não como dizia, "um amigo
muito querido".
— Tomarei um café — concluiu Raul. — Apolline, por favor, me dê um café bem
forte.
— Por que você me esconde a verdade — disse Lucile. — Esse amigo de quem
você fala não existe.
O falso jornalista pareceu perturbado.
— Eu lhe garanto, Lucile... Mas, vá lá... enfeitei um pouco alguns detalhes. Em
nossa profissão, somos obrigados a dar uma pequena ajuda... porque o grande
público ama sempre o sensacional.
Apolline trouxe uma bandeja e serviu as xícaras.
— Um pouco de café não lhe fará mal — retomou Raul. — Não? É uma pena!
Lucile esperou que a empregada se afastasse. Quando Apolline desapareceu,
perguntou bruscamente:
— Quem é você?
— Eu? Mas vejamos, Lucile! Como se você não soubesse!... Certamente não sou
bem igual a meus confrades. Quis o acaso que eu me visse envolvido,
pessoalmente, em vários casos bizarros. Mas até aí não existe nada que possa
espantá-la.
A cabeça de Lucile balançava um pouco. Ela estava com os olhos muito
brilhantes. Por Deus! O Muscadet! Ele deveria tê-lo cortado com um pouco de
água.
— Quem é você?
Sua voz estava sutilmente modificada. Estava mais grave, com uma ponta de
angústia. Raul levantou-se e inclinou-se para a jovem.
— Venha!... Ficará melhor sentada numa poltrona. Amparou-a; guiou-a até a sala
vizinha. Pollux os acompanhava. Raul ajudou Lucile a sentar-se.
— Estou com a cabeça rodando — murmurou ela.
— Isso não é nada. Vai passar já.
Lucile encolheu-se. Sua mão direita pendeu para o lado e ficou como morta.
Raul, inquieto, quis voltar para apanhar a garrafa e sentiu o chão ondulado
mansamente. "A droga!" — pensou ele num instante. — Ele nos drogou... O
Muscadet... Fechou a porta, voltou à sala de refeições, com um gesto lento encheu
sua xícara de café.
— Apolline!
Acreditava ter gritado, mas proferira apenas uma espécie de soluço. Bebeu de um
trago o café sem açúcar e sua consciência despertou. Apoiando-se nas paredes
chegou à cozinha cambaleando. Apolline, Achille e Valerie dormiam, com a
cabeça sobre a mesa. Tudo se passava como na noite em que o barão raptara o
velho Bernardin.
— Ah! o patife! — murmurou Raul. — Eu deveria... eu deveria... Mas não podia
desconfiar do Muscadet...
Perdia o fio do pensamento. Voltou à sala de refeições à custa de um esforço
extraordinário. O relógio marcava nove horas.
— Dentro de três horas... em três horas... Tropeçava nas palavras. Sabia que,
dentro de três horas, alguma coisa teria lugar mas não sabia o quê. Estendeu o
braço para a cafeteira mas não a alcançou. Seus dedos agarraram a toalha da
mesa, que deslizou lentamente e um prato espatifou-se no chão. O ruído
despertou-o. Se pudesse agarrar a garrafa, aspergir-se com água fria... Caiu sobre
um joelho. Seus dedos tatearam um pouco, depois se imobilizaram.
— Não posso dormir!... Não posso dormir!...
Era uma voz poderosa que gritava dentro de si e ele procurava responder:
— Certamente que não dormirei!
Seus lábios moviam-se. Caiu e depois sentiu que estava deitado de costas. Estava
bem. Suspirou beatificamente.
— Um minuto — prometeu ele. — Apenas um minuto... Depois eu me levantarei.
Seus olhos se fecharam.
9
A NOITE DO SOLSTÍCIO
1º julho 1848
Caro Eunerville,
Louis-Phillipe
A lanterna tremeu em sua mão. Durante um momento que foi curto mas que lhe
pareceu uma eternidade, ficou aniquilado. Era de tal forma contrário à lógica, de
tal forma impossível. Bruno mortalmente atingido!... Mas à custa de que tremendo
erro Bruno atravessara-se no seu caminho? Raul ajoelhou-se.
— Bruno, meu pequeno Bruno... Tu não vais morrer... Tu não vais fazer uma coisa
dessas.
Os lábios do jovem mexeram. Raul debruçou-se sobre ele.
— Perdão... patrão...
— Mas vejamos. Perdão de quê?... Tu não és culpado. Tu não podes ser culpado.
Fui eu quem tive a idéia de roubar o castelo. Fui eu quem organizou tudo. Tu não
sabias nada mais do que eu. Tu sabias até muito menos... Então?... Ordenei-te que
voltasses a Paris depois do rapto do velho. Por que me desobedeceste?... Que
fazes aqui?... Por que retomaste essa carta?... Quem te pôs ao corrente?...
Raul calou-se bruscamente. A verdade explodira dentro dele como um fogo de
Bengala e derramava-se por todo lado, lançando sobre o caso grandes clarões e
centelhas insuportáveis, alternadas com grandes sombras... Bruno tentou erguer-
se.
— Acalma-te... Agora, eu sei! Eu sei! Quem te pôs ao corrente, na verdade, foi
Bernardin... Cala-te!... Como fui imbecil! Evidentemente tu o trataste durante
vários dias, tu o curaste... Ele acabou por se explicar. Converteu-te. Virou-te a
cabeça... Tu, o antigo aristocrata... Entretanto eu deveria ter desconfiado. E tu
mudaste... a fuga de Louis-Phillipe... seu retorno clandestino... o famoso pacote...
Tudo isso subiu-te à cabeça! Ah! Eu gostaria de ver os dois, o velho mocho e o
jovem aristocrata não realizado... Ele contou-te tudo, não é?... Não esquecerei os
serviços que vosso mordomo prestou à minha causa... A citação real à família
dos Vauterel! Sua honraria! Seu talismã!... E tu, tu escutavas. Oh, como
escutavas!... Porque no fim tu sabias que o velho deixaria escapar o segredo! E
ele te revelou a natureza do pacote?... Responde! Desta vez tu deves falar.
Bruno fechou os olhos em sinal de assentimento. Uma espuma avermelhada
aparecia no canto de sua boca. A respiração tornava-se irregular.
— Eu te suplico — disse Raul. — Do teu lado, está tudo terminado. Mas eu, eu
posso ir ainda até o final. Trata-se de um segredo qu enos venceu a todos, hem?...
que interessa talvez à França?... Então?... Um tal segredo não pode se perder. Em
nome do Rei, Bruno!
Aproximou o ouvido dos lábios do moribundo.
— O quê?... O sangue... Ainda esse sangue! Mas que sangue? Bruno!... Eu te
rogo... Mais um esforço e, juro, tudo ficará perdoado.
Bruno jogou a cabeça para a frente, como se tomasse um último alento e formou
uma palavra que Raul adivinhou mais do que ouviu. A emoção foi tão grande que
ele se levantou e pôs-se a sapatear como um homem que procura disfarçar uma
grande dor.
— O Sancy... Tu disseste o Sancy!... Bruno... Sabes bem o que é o Sancy?... O
diamante dos diamantes! Uma pedra de sonho que pertenceu a Carlos, o
Temerário... a Jacques I, da Inglaterra... a Mazarin... a Luís XIV... a Luís XV...
Esse diamante tem uma lenda e que lenda!... Chegaram a afirmar que ele levava a
desgraça a todos os seus possuidores, que eles foram todos vítimas dos mais
trágicos perigos!...
Muito emocionado, calou-se mas seu pensamento continuava a voar... Luís XVI...
sua morte no cadafalso... O desaparecimento misterioso, a seguir, da jóia
maravilhosa. E após... Aí ele não se recordava bem... Apesar de conhecer de cor
o que ele chamava o curriculum vitae de toda as jóias famosas, sua memória o
traía. Tudo que sabia era que o Sancy reaparecera nas mãos de um ministro
espanhol... Galceran, qualquer coisa... Galceran! Caramba! Tudo se esclarecia. O
barão?... Um bisneto, sobrinho, descendente enfim do ministro! Quando este
morreu, o Sancy foi comprado por Charles X. Novamente ele voltava ao tesouro
da França. Eis por que Louis-Phillipe, no momento de deixar sua pátria, quis
guardar em lugar seguro a fabulosa jóia. Eis por que o Conde de Eunerville
tomara precauções tão extraordinárias. E a razão pela qual os Vauterel vigiaram,
tão ciumentamente, o que eles acreditavam que fosse o esconderijo. Sem dúvida
os descendentes do ministro espanhol haviam mantido contato com os monarcas
franceses; sem dúvida tiveram a honra de ouvir certas confidencias; confidencias
suficientes para despertar, três gerações mais tarde, a curiosidade e a avidez do
barão.
Com que facilidade tudo se tornava claro! Para o velho Bernardin, o Sancy era o
símbolo da monarquia. Enquanto o diamante permanecesse em Eunerville, o rei
teria suas possibilidades. A República passaria e a Realeza reviveria um dia. E
ele montava guarda ao tesouro como o dragão da lenda. E quando um usurpador
tornou-se dono do castelo... o velho atacou. Era a única explicação possível. Os
dois proprietários que precederam Jacques Ferranges desapareceram
tragicamente. E Jacques Ferranges, por sua vez, fora condenado com sua jovem
esposa... Jacques Ferranges que desejava fazer grandes obras no castelo e, dessa
forma, se preparava para cometer um sacrilégio... Em resumo, quem vivesse no
castelo deveria morrer... Lucile... Hubert... o cabriolé... a escada... Alphonse
também, herdeiro presuntivo, devia desaparecer...
Bruno fechara os olhos. Raul o olhava sem vê-lo. Continuava arrasado pelo que
descobrira e, mesmo execrando o velho servidor, não podia deixar de ter por ele
um complexo sentimento, onde havia o respeito e o medo. De todos os seus
adversários, este fora o mais nobre, em sua loucura.
— Tiremos o chapéu — murmurou ele. — E honra, apesar de tudo, à Felicidade!
Um gemido de Bruno arrancou-o de sua meditação. Ajoelhou-se, enxugou com seu
lenço o suor do rosto do agonizante.
— Não procure falar — disse ele. — Não precisa explicar nada. Tudo é tão
simples! Acreditaste, libertando Bernardin, montando com ele toda essa
comédia... Victoire amordaçada, a pobre velha!... tu amarrado... que ele iria
voltar ao castelo unicamente para recuperar o Sancy... e que seria fácil, em
seguida, roubá-lo... Pobre criatura!.. Ele retornou ao castelo mas para prosseguir
com sua obra de morte. Estava furioso e desesperado. Nós o havíamos acossado,
o barão e eu. Ele se defendia, tu compreendes! Ele fazia frente, como um javali
atacado por uma matilha. Sem dúvida, muito simplesmente, escondeu-se em sua
própria casa, onde sua neta lhe levava comida. Ele nos observava, a Lucile e a
mim. Ouviu nossa conversa; soube que eu iria à casa de Alphonse Ferranges.
Chegou à Quinta São João no momento exato para encontrar sua vítima amarrada
a uma cadeira e pronta para o sacrifício. Matou-o com um tiro, à queima-roupa,
com o revólver que tu lhe emprestastes... Porque emprestaste um a ele, não foi?
Um ricto de dor retorcendo a boca, Bruno escutava. A lanterna, posta de pé no
chão, iluminava o teto e destacava da penumbra o vulto inclinado de Raul e a
massa confusa do corpo de Bruno. O silêncio e a umidade da adega
assemelhavam-se aos de um túmulo. Bruno não ignorava que estava perdido.
Escutava com todas as suas forças o murmúrio desse que ele havia traído, depois
de tanto tê-lo admirado. E sentia que, se o patrão falava, era uma prova de que
não lhe queria mal e que continuava a tratá-lo como seu confidente. Esta voz o
acompanharia até às portas da morte e era bom assim, era como se fora uma
absolvição.
— Depois de Alphonse Ferranges — prosseguiu Raul — ele desceu, seguindo
nossas pegadas, até o Gros Galet. Deve ter agradecido ao céu que lhe
presenteava, um a um, seus adversários prisioneiros. Matou o barão e seu
empregado recuperando a preciosa carta de Louis-Phillipe. Confesso que em seu
lugar eu talvez fizesse o mesmo... Mas eis que São João sucede a São Jacob... Era
preciso desenterrar o diamante que não estava mais em segurança, e escondê-lo
em outro lugar... Valerie, mais tarde, saberia do segredo e um dia, quando o rei
voltasse ao trono, ela lhe restituiria o Sancy. Seria uma nova Joana D'Arc... Pobre
velho louco!... Então ele drogou o Muscadet ou mandou que a menina o drogasse;
e, à meia-noite, como Valerie já o vira fazendo, ele segue a linha de sombra
projetada pelo telhado no pátio, pára na laje que d'Artagnan aponta... Mas, desta
feita, ele retira a laje... Tu, é claro, estavas ao corrente... estavas escondido em
algum lugar... Ele marcara-te um encontro... Não duvides, desgraçado, que teria te
executado tão friamente como executara os outros... E o velho descobre que o
esconderijo está vazio. Que se passa nessa pobre cabeça já cheia de fantasmas?...
Ele é um mau servidor... Não soube, apesar dos seus esforços, preservar o
sagrado pacote... A emoção o fulmina. Ele cai morto... Em seguida... Oh! Bruno...
a seguida é lamentável... Se tu houvesses confiado em mim!
Bruno agitou-se num tremor, abriu a boca para lutar contra a sufocação. Seu olhar
se velava. Raul tomou sua mão.
— Estou aqui, Bruno.
Mas compreendeu que o moribundo queria ainda dizer alguma coisa. Levantou-
lhe a cabeça.
— Patrão... a polícia... Ele preveniu-a...
Uma golfada de sangue cobriu-lhe o queixo. Estirou-se numa última convulsão.
Suavemente, Raul fechou-lhe os olhos deitando-o no chão.
— Pobre garoto! — suspirou. — Tu não tinhas tutano para tanto! Mesmo para
mim, sei que vai ser difícil!
Apanhou a lanterna e olhou o relógio. Três horas. Em menos de duas horas a
polícia estaria lá. O velho Bernardin, apesar de morto, obrigava-o a agir.
Descobrira seu adversário e o denunciara. Ganimard não devia estar longe.
— Vamos, Lupin! É chegado o momento de mostrares que tu és o mais forte!
Revistou Bruno rapidamente, recuperou a carta, releu-a, guardou-a no bolso e
subiu, depois de um último olhar para o corpo estendido. O Sancy,
decididamente, fazia jus à sua reputação de diamante amaldiçoado.
Lucile continuava a dormir encolhida na poltrona. Depois de trancar a parte
central do pavimento térreo, subiu ao primeiro e entrou na galeria.
Cuidadosamente, levantando a ponta de uma tapeçaria, escondeu-se um minuto no
vão de uma das janelas. O cadáver de Bernardin continuava estendido no meio do
pátio. Ninguém à vista! Entretanto Raul não demorou a reparar, ao longe, fora do
gradil, movimentos suspeitos. Chegou a ver uma luz, rapidamente apagada, de
uma lanterna elétrica. Depois, uma sombra atravessou a estrada. Ganimard
distribuía sua tropa em seus lugares, para o assalto final, que teria lugar na hora
legal, ou seja, desde que aparecesse o primeiro raio de sol. Em torno do castelo
policiais e guardes deviam estar estendendo um cordão de isolamento
intransponível. A aproximação do combate reanimou Raul.
— Você acredita que me apanhará facilmente — escarneceu ele. — É o que
veremos. Mas, antes de mais nada, o Sancy... Resta-me exatamente uma hora e
meia para descobri-lo. Creio que há uma hora de mais... Mas, sinceramente,
desejaria saber por onde devo começar!
Deixou a janela, baixou a tapeçaria e acendeu o lustre central. Depois colocou-se
ao centro da imensa peça, com as mãos na cintura e no mesmo momento esqueceu
Bernardin, Bruno e a polícia. Transformou-se então apenas num olhar tão agudo
quanto o de um gavião e num pensamento concentrado desenvolvendo uma energia
fora do comum. Lentamente repetiu a frase escrita pelo rei: Alegrando a galeria,
o louco vela sobre um grandioso destino. Simples alusão, evidentemente, e não
uma frase de código. Mas alusão precisa. O rei dissera de forma disfarçada,
qualquer coisa que nem Evariste nem Bernardin, nem o barão souberam
interpretar.
— A galeria... Aqui estou — murmurou Raul. — Mas o que alegra esta peça que
me parece mais sinistra?... A tapeçaria... E quem é que brinca aos pés de François
I... Triboulet, seu bufão{13}.
Aproximou-se da tapeçaria, levantou-a, apalpou a parede coberta de poeira no
lugar onde se encontrava Triboulet quando a tapeçaria ficava esticada. Não havia
a menor aspereza. Nenhum esconderijo cavado na pedra. E no entanto, o bufão
indicava seguramente o local onde se encontrava o Sancy. Ele vela sobre ela...
Raul tateou com a ponta dos dedos o tecido rugoso, depois recuou para abarcar
num só golpe de vista a cena representada na tapeçaria. A mão de Triboulet
estaria apontando numa determinada direção?... Não. Ela cocava o pescoço de um
cachorro, num gesto completamente natural, que excluía qualquer subentendido.
Não podia tratar-se de Triboulet. Mas talvez houvesse na galeria um outro louco
ou outro bufão?
Raul começou a examinar, mais atentamente do que fizera, os retratos que se
alinhavam de um lado e outro da tapeçaria. Mas qual! Essas cabeças solenes,
essas vestimentas severas, pertenciam a nobres magistrados e a prelados em
recolhimento. Nada que se assemelhasse a um louco!... O segredo escapulia
sempre.
Nas janelas, a claridade da lua empalidecia. Já se misturavam com ela os
primeiros traços do dia. Ganimard devia, agora, de relógio na mão, estar andando
de um lado para o outro na estrada.
— Com a breca! — exclamou Raul. — Eu devo encontrar.
Voltou à tapeçaria, levantou-a de novo, sacudiu-a, puxou, esperando mesmo sem
esperança que algo acontecesse. Um ligeiro ruído sobressaltou-o. Voltou-se e
reconheceu, na soleira da porta da galeria, a delicada silhueta de Lucile.
Esquecendo seu problema, precipitou-se ao encontro da jovem.
— Lucile!... Como está se sentindo? Ela passou as finas mãos no rosto.
— Por que dormi assim? — murmurou.
— Nós fomos narcotizados... Eu explicarei mais tarde... Saiba que agora todo
perigo já está afastado.
Passou um braço pelos ombros de Lucile e levou-a para o centro da peça.
— Venha... Eu procuro um louco ou um bufão. E tenho apenas alguns minutos para
encontrá-lo... Mas você está aí, e isso muda tudo. Eu sei, eu sinto que estou com a
verdade... Por você, eu farei um milagre.
Uma estranha exaltação apossou-se dele. Apertou um pouco mais o braço de sua
companheira.
— Um louco — repetiu. — ou um bufão. Olhemos melhor... Um louco ou um
bufão! Isso devia se ver facilmente... Não! Sobretudo nada de perguntas. Você
está comigo e é o quanto basta... Ah! Compreendi... Você o vê, desta vez?
Lucile apontou um dedo para Triboulet.
— Nada disso!... Tenho certeza de que não é Triboulet. O outro... Olhe o rei... não
seu rosto... siga a linha de seu ombro, a espádua, o braço... Chegou à sua mão...
Ele vai apanhar o quê?... Vamos, Lucile. Um pouco de observação... Que vai ele
apanhar no tabuleiro de xadrez... Não? Não adivinha?... O Bispo{14}, caramba! E
repare que só resta um neste jogo. O adversário do rei perdeu o seu. Desta vez,
descobrimos!...
Deixando Lucile, precipitou-se, levantou a tapeçaria e na ponta dos pés, com o
braço esticado, bateu na parede sob o tabuleiro. Mas a parede repetiu o som
maciço. Falsa alegria. Voltou para o lado de Lucile que não se movera.
— No entanto eu estou certo de que estamos chegando ao ponto certo — disse
ele.
— Estou ouvindo barulho lá fora — murmurou Lucile.
— Não é nada. É a polícia.
— A polícia?
— Sim. Também explicarei isso... Vejamos! O louco, o bufão ou Bispo vela sobre
um grandioso destino...
Pôs-se a andar de um lado para outro. De quando em quando batia com os
calcanhares no chão. Lucile via transformar-se pouco a pouco o homem que ela
tomara tanto tempo como se fora o repórter Richard Dumont. Esse rosto marcado
pelo esforço, essa agitação surda que atravessava o personagem como uma
corrente elétrica... Retornou para seu lado e parou para olhá-la. Um pálido raio
de sol se filtrava por uma pequena abertura nos cortinados e aureolava a jovem
que permanecia imóvel, no chão de quadrados brancos e pretos, como a Rainha
de um jogo de xadrez... Um jogo de xadrez! Levou a mão aos olhos como se
estivesse cego por uma luz muito viva.
— Você é Arsène Lupin! — exclamou ela com uma espécie de medo na voz.
— Cale-se... sim!... Sim, sou Arsène Lupin... O que importa! Você está vendo,
esta galeria. É um tabuleiro de xadrez.
Do lado do parque veio um brusco estrondo.
— Cinco minutos para derrubar a grade — disse ele. — Tenho tempo... É um
tabuleiro... Não, tem casas de mais... Mas estou chegando perto, graças a você...
O que é que pode, nesta sala, ser tomado como um tabuleiro?
Ele rodopiou sobre um calcanhar e estalou os dedos.
— O estrado, caramba!... O estrado para os músicos...
Pegou Lucile pela mão e levou-a para a parte mais elevada da galeria. Três
degraus.
— Conte — disse ele — oito casas de um lado, oito casas do outro. Sessenta e
quatro casas! A conta está certa! Li, não sei onde, que antigamente os castelões
jogavam xadrez usando pedras vivas... Pois bem, estamos de pé, neste momento,
sobre o tabuleiro dos Condes de Eunerville... Começa a compreender?... Vamos
Lucile! Não me olhe desse jeito. Está com um ar tristonho. Ê a polícia que lhe faz
medo? Você pensa que ela poderá me prender?
Golpes violentos sacudiam o gradil. Ele suspendeu os ombros.
— Gostaria de ter um pouco mais de silêncio, de calma, de recolhimento —
prosseguia ele. — Mas Ganimard tem a velha mania de estragar tudo. Cá entre
nós, Lucile, trata-se de um espírito grosseiro. Por causa dele estou ameaçado de
falhar em minha representação... Tanto pior!... Vejamos uma coisa, Lucile, você
sabe jogar xadrez?
— Não.
— Que pena, porque Francisco I prepara uma jogada difícil... Mas daqui você
está vendo a posição do seu Bispo, não está?... Do lado direito, a duas casas do
fundo, quase na frente da Rainha adversária... Não tenho nada mais a fazer do que
chegar ao lado direito do estrado... pronto... e avançar para o muro em frente e
parar depois de duas casas... Aqui estou.
Bateu no chão com o calcanhar.
— Você ignora, naturalmente, o que se esconde aqui embaixo. Vou dizer. Um
diamante fabuloso, lendário, que vale não uma fortuna, mas cem fortunas. O
tesouro do rei Louis-Phillipe. O tesouro da França... E graças a mim...
Tirou um canivete do bolso, abriu-o, baixou-se e introduziu a lâmina entre a casa
branca e a casa preta.
— Uma camada de cimento colocada há mais de sessenta anos... Mas trabalho de
amador... O conde não entendia bastante da profissão de pedreiro...
O portão do gradil, cedendo de repente, abriu-se com grande barulho e o ruído de
passos de muita gente encheu logo o pátio de honra.
— Oh! Oh! — disse Raul placidamente. — Eles estão chegando! Mas ainda falta
muito para chegar até aqui... As portas e as venezianas já passaram por outras!...
Não trema, Lucile... Eis o momento que eu esperava. O Bispo vela sobre um
grandioso destino... Pronto!
Com a lâmina do canivete havia feito a volta do quadrado; pisou com força numa
das extremidades e a placa se moveu alguns centímetros. Acabou de levantá-la,
descobriu uma escavação de paredes lisas, como uma caixa. Mergulhou a mão e
trouxe de volta um pesado escrínio de prata. Lucile, assustada, cruzara os braços
sobre o peito, num gesto maquinai de prece. Raul levantou-se.
— O Sancy! — murmurou ele.
Sua voz tremia um pouco. Abriu o escrínio e logo a pedra de sonho brilhou. Ele a
fez rolar na palma da mão. Era enorme e brilhava com mil cintilações
intensamente.
— O Sancy!
No silêncio, ouviram o ranger de uma ferramenta, forçando a porta de entrada.
— Você está chorando? — perguntou suavemente Raul.
— Estou chorando — murmurou Lucile — porque você veio expressamente ao
castelo para roubar este diamante... E algo mais forte do que você mesmo, não?
Ele deu uma risada feliz.
— Roubar o Sancy, eu!... Mas que idéia!
— Então... por quê?...
— Mas para devolvê-lo a quem de direito, menina... Você é adorável!
Abraçou-a num gesto cheio de ternura.
— Lucile!... Não creia em tudo que leu sobre mim. Tive, é certo, alguns pecados
na juventude. Como todo mundo!... mas o Sancy, ele é outra coisa. Não pertence a
ninguém. E ninguém tem o direito de tocá-lo... Olhe mais um pouco!
Segurou-o entre o indicador e o polegar, levantou-o em direção à luz e o diamante
inflamou-se como uma fogueira.
— Cinco séculos de história — disse ele. — Outro tanto de mortes, violências,
desgraças... Um dia, Lucile, eu lhe contarei a história do Sancy!
Ela agarrou-se a ele.
— Você então voltará?
— Se voltarei!... Que pergunta!... Pois não temos que classificar todos os volumes
da biblioteca?... Ainda não dei férias ao pequeno Catarat... Mas, no momento,
devo pôr-me ao abrigo... Escute os vândalos... Eles vão demolir o castelo.
Recolocou a jóia no escrínio que fechou cuidadosamente, guardando-o no bolso.
— Lucile, você tem minha palavra. Amanhã, o Sancy será devolvido à França... E
agora, até breve Lucile... Até já, eu lhe prometo... Você é o meu Sancy, só meu!
Pousou delicadamente os lábios nas mãos da jovem e depois conduziu-a à
biblioteca, fazendo com que se sentasse numa poltrona.
— Finja que está dormindo... Quando Ganimard a interrogar, você não saberá de
nada... Não viu ninguém. Está saindo de um pesado sono... Durma! Eu ordeno.
Ela fechou os olhos. Quando os reabriu, alguns segundos mais tarde, seu
companheiro desaparecera. Um tropel de pesados passos abalava a escadaria. No
salão, Pollux latia desesperado.
Raul, na porta da adega, escutava o tumulto.
— Caramba! São pelo menos cinco! E agora, vamos arejar... Já que Bruno
procurava fugir pela adega é que havia desse lado uma passagem que o velho
Bernardin lhe indicara. A passagem através da qual eles voltaram ao castelo... A
mesma passagem que deve ter servido a Louis-Phillipe...
Desceu os degraus, percorreu o subterrâneo e parou diante do cadáver de Bruno.
A roda, por Deus! A roda pregada na parede. Segurou os raios e tentou girá-los.
Sentiu uma certa resistência, girou com mais força. Houve um ruído de correntes
na espessura da muralha, as pedras parecerem se separar e surgiu uma abertura;
de onde saía uma corrente de ar frio. Raul hesitou um pouco apurando o ouvido.
Surdamente, o barulho da perseguição parecia estar mais próximo. Abaixou-se e
levantou o morto colocando-o no ombro.
— Venha, pequeno... Não terás uma sepultura indigna... E ninguém saberá nunca
que um dia traíste teu único amigo!
Epílogo
O PORTADOR DE DESGRAÇAS
FIM
{1}
Guilherme II — A ação desenrola-se em junho de 1914, como veremos a seguir (Nota do editor francês).
{2}
Os nomes próprios bem como de locais foram mantidos em francês. (Daqui em diante todas as notas serão
do tradutor.)
{3}
Decauville, caminho de ferro, de bitola estreita, 40 a 60 cm de largura, inventada pelo industrial Paulo
Decauville, usada para transporte de minério ou pedras nas minas ou pedreiras.
{4}
Léon-Bollée — marca famosa de carro esporte do início do século XX.
{5}
Maître, tratamento que se dá na França a advogados e notários.
{6}
Consta, no original, a mudança de tratamento: vós, você, tu.
{7}
Zoológico de Paris.
{8}
As propriedades rurais na França são mais conhecidas por nomes com que seus proprietários as batizam.
Gros Galet, seria, "Grande Seixo". Mas preferimos guardar o nome original como nas demais.
{9}
Apelido de La Santé, famosa prisão parisiense.
{10}
Referência a Pierre Cariet de Chamblain de Marivaux, teatrólogo francês, nascido em 4 de fevereiro de
1688 e morto a 12 de fevereiro de 1763.
{11}
José Maria de Hérédia, poeta francês de origem cubana (1842-1905).
{12}
A palavra "fou", tomada por Arsène Lupin como "louco", constante na carta de Louis-Phillipe, tem, no
entanto, outros significados que aparecerão no decorrer do romance, como veremos.
{13}
Além de louco, a palavra francesa "fou" significa bufão.
{14}
A palavra francesa "fou", além dos significados de louco e bufão, pode ser também Bispo, pedra do jogo
de xadrez.