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Maurice Leblanc

ARSÈNE LUPIN:
O SEGREDO DE EUNERVILLE

Tradução de PAULO DE MEDEIROS E ALBUQUERQUE


Título original em francês
ARSÈNE LUPIN: LE SECRET D'EUNERVILLE
Copryght (c) Arsène Lupin, Claude Leblanc et Libraires
des Champs-Elysees, 1973

Revisão: REGINA STELA

Direitos adquiridos somente para o Brasil pela


EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
R. Barão de Itambi, 28 - Botafogo - ZC-01 - Tel.: 266-7474
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro
COLEÇÃO ARSÈNE LUPIN

O Segredo de Eunerville é uma aventura inédita de Arsène Lupin, publicada


recentemente pelos herdeiros de Maurice Leblanc.
Dando continuidade à Coleção desse grande personagem, a Editora Nova
Fronteira lança O Segredo de Eunerville história de mistério, dos melhores da
novela da literatura de suspense.
Raul estava exausto. Apesar disso, ficou na galeria e sonhou um momento
diante dos quadros de Jacó e São João. Mas aquele relâmpago que
iluminara o seu espírito, quando descobrira as telas, estava extinto.
Por desencargo de consciência, pesquisou ainda uma vez as paredes, com a
palma da mão. Depois refugiou-se na biblioteca, fumou um cigarro na
poltrona, refletiu lentamente com toda a concentração de que era capaz:
"São João sucede a Jacó...
D'Artagnan conquista glória e fortuna a ponta de espada... Em seguida
vinha o sangue... Bernardin falara de sangue... De quem o velho Bernardin
ouvira a frase mágica?
1
O CASTELO DA BELA ADORMECIDA

Raul d'Apignac reconheceu, ao fim de uma longa subida, os telhados sombrios


das casas de Eunerville e suas mãos relaxaram-se ao volante. Diante dele o
campo se estendia tranqüilo. À direita, de quando em quando, podia vislumbrar o
Sena. À esquerda, elevava-se um obscuro penhasco que repercutia o ruído do seu
quarenta cavalos. Quatro horas desde que saíra de Paris, apesar de um pneu
furado! Raul mudou de velocidade, alcançou a curva da entrada de Eunerville,
com os pneus cantando. Durante um instante, as pacatas ruas do vilarejo
encheram-se de tumulto. Mas logo o auto tomava um caminho transversal,
dançava num trecho de lama endurecida por um precoce verão. Raul apagou os
faróis, desligou o motor, rolou ainda alguns metros na sombra de um arvoredo e
parou.
Desembaraçou-se então, rapidamente, dos óculos, capacete, cachecol e saltou.
— Deus — murmurou ele, — como isto faz bem! Deves estar com uma aparência
divertida, meu artista!
Ajeitou o colarinho, endireitou o casaco, bocejou. A lua em quarto crescente
iluminava fracamente através do arvoredo.
— Entremos em cena para o primeiro ato — monologou. Internou-se num atalho
que escalava uma colina ao cimo da qual se recortava, num céu cheio de estrelas,
a silhueta de uma torre em ruínas. À medida que subia, o Sena se estendia,
brilhante, apenas coberto aqui e ali por ligeira névoa. Um pouco contra a
correnteza, na margem oposta, piscavam algumas luzes de Tancarville. Honfleur
lá estava atrás do espigão bizarramente coberto dessa torre em ruínas. Raul subiu
sem esforço. Atingiu o muro externo semidestruído, insinuou-se num pátio interno
e acendeu duas vezes seu isqueiro. No fundo da escuridão, que envolvia a base da
torre, outra chama minúscula brilhou duas vezes. Raul esperou e logo surgiu a seu
lado um vulto.
— É o senhor, patrão?
— Em carne e osso.
— O senhor não deveria chegar ontem à noite?
— Atrasei-me. Um duelo, um almoço na Embaixada da Inglaterra, um vernissage
na Galeria Mocquet.... Noblesse oblige, meu caro. Tu deves saber.
Raul tomou o braço de seu companheiro; sua voz tornou-se mais dura:
— E tu, durante esse tempo, tiveste medo, hem, condenado! Pensaste: "O patrão
hesita. Julga a caça muito grande. Vai perder o ânimo." Confessa que não sentirias
muito se eu houvesse desistido! Dize, vamos!
— Eu lhe asseguro, patrão...
— Mas claro, meu pequeno Bruno. Nunca vacilaste um instante sequer. Não
pensaste: "O patrão está indo longe demais. Uma dessas manhãs será apanhado e
acabaremos os dois atirados a uma cela úmida."
Deu uma gargalhada jovial, fresca, e Bruno, intimidado pela energia prodigiosa
que emanava de Raul d'Apignac, sorriu também.
— É verdade — murmurou. — Algumas vezes chego a ter minhas dúvidas.
A mão fechou-se em seu braço como uma garra de aço.
— Proíbo-te duvidares. Mesmo que eu desapareça... um dia, um mês, um ano,
pouco importa... Estarei por aqui, entendes?... Perto de ti... Nada poderá te
acontecer... Vá, anda, meu jovem. Faça-me as honras de anfitrião... Eu te seguirei,
meu senhor.
Obedientemente, Bruno dirigiu-se para o fundo do pátio.
— Atenção com a porta, patrão. É preciso abaixar-se... E agora, há noventa e um
degraus.
Acendeu uma lanterna elétrica e passeou o feixe luminoso pelas velhas pedras.
— Caramba! — disse Raul. — O lugar é elegante. Um pouco rústico, talvez.
Subiu alegremente à frente de Bruno cujo resfolegar se acelerava.
— Vamos ao relatório, soldado. Quantos homens no castelo?
— Três, dos quais um me parece muito velho, uma espécie de guarda, de
mordomo...
— Os dois outros?
— Na força da idade. O proprietário e seu chofer.
— E depois?
— Vamos com calma, patrão... Não sei como estão suas pernas, mas não posso
segui-lo... Há uma cozinheira, de quarenta a cinquenta anos, e duas mocinhas. Ou
melhor, uma mocinha e uma menina... Dezessete e doze anos, mais ou menos...
— Duas irmãs? Filhas do castelão?
— Não, certamente não, A mocinha, sim... Mas a menina deve ser parenta do
velho. Ela passa todo tempo a seu lado.
— Não há castelã?
— Não. Acredito que o homem seja viúvo.
— E onde dorme toda essa gente?
— No primeiro andar, o castelão, e a mocinha na parte central. O chofer e a
cozinheira — sem dúvida marido e mulher — na ala esquerda... O velho e a
menina num pequeno pavilhão isolado...
— Está bem — disse Raul entrando numa vasta sala com o teto parcialmente
destruído. — Falemos qualquer coisa de ti.
— Meu quartel-general — brincou Bruno.
Iluminou as cobertas atiradas sobre os azulejos e os restos de uma refeição.
Depois, empostando a voz como se fora um guia, prosseguiu:
— O caminho ao redor se abre...
Raul tirou-lhe a lanterna da mão e apagou-a.
— Devagar, rapaz... Nada de luzes inoportunas... Tens a luneta?
— Ei-la.
Raul d'Apignac saiu para o caminho circular e orientou-se. O castelo de
Eunerville encontrava-se à sua direita. Seu tamanho imponente fez-se logo notar,
com seus telhados complicados que o luar prateava. Regulou a luneta e olhou
algum tempo.
— Que é aquilo que brilha, à esquerda do gradil?
— É o poço — respondeu Bruno. — Há um poço no próprio muro. O senhor
deve, sem dúvida, estar vendo um cântaro em sua borda.
Raul, com as sobrancelhas franzidas, prosseguia em seu exame.
— Há cachorros?
— Apenas um buldogue que acompanha sempre a mocinha.
— Fica solto à noite?
— Não.
— Tens certeza?
— Eu o teria visto. Posso afirmar que dorme na casa. A voz abrandou-se
imperceptivelmente.
— Vamos — resmungou Raul. — Noto que ainda tens medo. O que temes?
— Nada... Somente gostaria mais que terminássemos esta noite. Quando penso
que será preciso recomeçar!
— Medroso! Se eu te deixasse fazer, tu levadas não importa o que, não é? Sem
mesmo escolher... Meter a mão e fugir com a prataria e as jóias como um vulgar
ventanista... Bolas, por quem me tomas? Eu sou um colecionador. Há mais de três
semanas que estudo este negócio, que o preparo, que o ponho no ponto que
desejo. Cheguei a solicitar informações ao Ministério das Belas-Artes. E sabes o
que apurei no Ministério das Belas-Artes... Que há dúvida sobre a autenticidade
de certas peças. O Nattier é provavelmente falso... A secretária, assinada Percier-
Fontaine, não passa de uma imitação... Tive em mãos o relatório do perito; isto te
espanta, fedelho! Um relatório detalhado, com uma planta, pois o Estado esteve
para comprar o castelo... Queres que te diga onde se encontra a vitrina de
medalhas?... Ao fundo da galeria... diante do Fragonard e do La Tour. Eis como se
trabalha, quando temos gosto pela pintura e pelas escaladas.
O rosto de Raul, voltado para Bruno, exprimia uma audácia tranqüila, despida de
ironia. Raul passou o braço pelos ombros do jovem.
— Vês, garoto, quando nos chamamos Arsène Lupin procuramos, selecionamos.
Não nos contentamos com qualquer velharia, como os milionários americanos.
Primeiro eu visito. Depois eu carrego.
Ele sorria, calmo, de tal forma confiante e seguro de si que Bruno exclamou:
— Pois bem, patrão, vamos em frente! Raul apertou-o contra si.
— Está em tempo ainda, meu jovem. Se tu preferes a outra vida, se quiseres ser o
rapaz que empurra o carro da viúva e que faz a coleta de Saint-Hubert, és livre.
— Não, patrão, o que dizia...
— Quando temos a chance, como tu, de ser um verdadeiro gentil-homem,
compreendo que hesites.
— Não hesito, garanto.
Então, com uma força contida que envolveu Bruno como um fluido, Raul
murmurou:
— Neste caso, está bem. Vamos.
Desceram rapidamente a escada e atravessaram uma espécie de charneca, onde
apenas crescia uma vegetação rala, crestada pelo sol. De quando em quando, as
nuvens passavam envolvendo-os em sombras.
— Acredito que seja o velho que fecha as grades e tranca os ferrolhos.
— É.
— E ele é cuidadoso com seu serviço?
— Ele? É mais provável que feche duas vezes do que apenas uma. Tive bastante
tempo para observá-lo e podes crer que estou certo.
— Vem muita gente ao castelo?
— Ninguém, a não ser os fornecedores.
— E os do castelo... costumam sair?
— O castelão, sim. Sai regularmente de auto com seu chofer. Os outros não se
mexem.
Os dois homens prosseguiram o caminho em silêncio. Com o rabo do olho, Bruno
examinava Raul. Este, em traje da cidade, uma flor na lapela, parecia estar saindo
de algum hotel de Saint-Germain. Este passeio noturno, em companhia desse
dândi, era algo tão extraordinário, tão fantástico, que Bruno esfregou os olhos.
Não, a cena era bem real. O castelo de Eunerville lá estava, diante deles, eriçado
de chaminés, cataventos e pára-raios.
— Renascença — disse Raul. Uma bela obra. Agrada-me menos esta ala Luís
XIII.
Andaram colados ao muro que confinava com o gradil monumental e descobriram
o poço, um antigo poço, localizado na espessura da muralha de tal forma que tanto
poderia ser usado do interior como do exterior. Uma grade de ferro o separava
em dois. Raul não hesitou. Subiu nas bordas do poço e, com a ponta dos dedos,
tocou o alto do muro. Então, com uma agilidade incrível, elevou-se sem ruído e
desapareceu do outro lado. Um leve assobio preveniu Bruno de que o caminho
estava livre e o jovem, por sua vez, venceu o obstáculo.
— Algum ferimento? — sussurrou Raul.
— Não, patrão.
Agora viam melhor a disposição das construções. Ao fundo de um vasto pátio se
estendia o corpo da construção, cercado por duas alas que avançavam para o
gradil, como os dois lados de um retângulo. O pátio de honra, com suas grandes
lajes brilhantes, parecia um pequeno lago tranqüilo. Raul abandonou o abrigo do
muro e apareceu em plena luz.
— Assim vão nos ver — murmurou Bruno.
— E daí? Não temos más intenções. Viemos visitar as coleções como turistas.
Raul dirigiu-se para a escadaria de entrada.
— Entremos, pelo menos, pela entrada de serviço — insistiu Bruno.
— Entrada de serviço! Como o vendeiro ou o rapaz do açougue! Vamos, meu
jovem, tenha um pouco de classe. Levanta a cabeça, Bruno. Não esqueça teu
meio. Nem o meu. Tu estás com um d'Apignac.
Riu daquele jeito moleque que sempre perturbava seu companheiro, estalou os
dedos com desenvoltura e galgou os degraus. Seus dedos tocaram num segundo
uma fechadura.
— Não haverá problemas — disse.
Um momento depois estavam no vestíbulo e Raul guardava a gazua em seu
chaveiro.
— Ponha a mão no meu ombro — murmurou ele. Lentamente, passo a passo, se
aventuraram no escuro, no meio de um solene silêncio. Não ouviam nem mesmo o
obscuro trabalho dos vermes atrás dos velhos lambris. Tudo estava -adormecido,
de um sono pesado, um pouco úmido. Raul parou e sussurrou na orelha de Bruno:
— Atenção! Eis a escada.
Pôs um pé no primeiro degrau, sentiu que ele cedia ligeiramente e, de repente, a
uma distância que parecia infinita, uma campainha aguda pôs-se a vibrar,
insistente.
— E essa agora! — disse Raul. — Uma campainha de alarma!
Escutaram, imóveis. Em cima, a sineta continuava a tocar de forma abafada,
semelhante ao som de um pequeno despertador.
— Fujamos! — balbuciou Bruno.
— Cala-te, imbecil!
O cérebro de Raul funcionava a toda velocidade. Músculos tensos, punhos
fechados, refletia, enquanto o sinal, cruelmente, continuava a tilintar através de
todas as grandes peças silenciosas.
— Partamos — insistiu Bruno.
— Queres ser apanhado como um coelho? — disse Raul friamente.
— Mas... na certa virá alguém.
— Ainda não. Estão com mais medo do que tu. Antes que se decidam...
Raul acendeu sua lanterna elétrica e apontou-a para a porta do vestíbulo.
— Espera-me na soleira da porta. Na soleira, entendes-te?... De cima ninguém
pode te ver. Ao passar a primeira nuvem, deslizarás colado ao muro até o poço
onde ficarás vigiando. Se perceberes, seja o que for de anormal, emite um aviso
qualquer e foge.
— O pio da coruja?
— Se preferes. Eu te encontrarei na torre.
— E quanto ao senhor, patrão... o cachorro?
— Encontrarei um jeito. Vá! Ande depressa!
Bruno, em alguma passadas chegou à extremidade do vestíbulo. Raul apagou a
lanterna. A campainha vibrava sem descanso, obsessivamente. Mas não havia o
menor movimento. O cão não ladrava. Se alguém estivesse andando no pavimento
superior, os assoalhos antigos teriam certamente rangido. Além disso, o castelão
teria acendido as luzes, se fosse tirado bruscamente do sono. Logicamente,
alguma coisa deveria acontecer. Não importa o que. Um ruído... Mas nunca este
silêncio pavoroso que o tilintar obstinado da campainha tornava ainda mais
terrível.
Raul subiu a escada com infinitas precauções. Onde estava o cão? Não iria ele
surgir bruscamente e saltar à garganta do intruso? Que armadilha o esperava nos
cômodos do pavimento superior, onde a campainha continuava a soar fina e
obstinadamente? Raul enxugou o rosto. Era loucura continuar! Continuou, os
ombros um pouco curvados, esperando, a cada segundo, receber em plena face
uma carga de chumbo. Suas mãos encontraram uma porta, depois outra. O patamar
era grande; essa exploração, às cegas, não terminava.
— Vamos, marquês — escarneceu Raul. — Um sorriso nos lábios em face do
inimigo!
Reacendeu a lanterna e passou o facho luminoso em torno de si em todas as
direções. O patamar estava deserto. Pouco a pouco apossava-se de Raul uma
raiva fria. A campainha ressoava em seu crânio, em seus nervos. Andou, batendo
com os saltos, para a porta atrás da qual ouvia-se o sinal e abriu-a. O facho
luminoso mostrou uma cama imensa, subiu para o travesseiro e deteve-se sobre
um rosto imóvel e lívido.
— Diabo! Não é exatamente belo, esse cliente.
O homem era calvo, com enormes sobrancelhas avermelhadas que escondiam
pela metade seus olhos fechados e lhe davam uma extraordinária impressão de
rudeza. Raul avançou:
— Permita-me, meu príncipe?
Abaixou a coberta descobrindo um peito cabeludo e subitamente desatou a rir,
sem se conter. Toda aquela tensão nervosa o abandonava. Teve que segurar o
ventre, tão forte o riso.
— Desculpe-me — escarneceu ele enquanto apertava o botão de uma lâmpada de
cabeceira. — Permita-me que me apresente: Raul d'Apignac, tradicional nobreza
da Gasconha... Não conhece?... E Arsène Lupin, lembra-lhe alguma coisa? Essa
campainha de alarma é bem desagradável, não acha? Poderíamos talvez fazer com
que se calasse... Não, não. Não se incomode, caro amigo. Já estou habituado a
campainhas de alarma... Ah! Assim é melhor... e continuemos dormindo para não
atrapalhar este bom Lupin!
Agora que a campainha deixara de vibrar, sua voz ressoava no aposento de uma
estranha maneira e Raul, instintivamente, baixou o tom:
— Mas se nós não despertarmos, para que serve um tal dispositivo? Não é muito
lógico.
Com o polegar levantou a pálpebra do homem adormecido.
— Narcótico... Compreendo. Temos aborrecimentos íntimos. Buscamos o
esquecimento.
Ele gracejava, mas seu olhos esquadrinhavam o quarto, anotavam qualquer
detalhe: as peles de urso no assoalho, os móveis de estilo, o cronômetro de ouro
na mesa de cabeceira, ao lado de uma grande carteira de couro da Rússia. Abriu-
a.
Não, não. Não abusarei de vossa hospitalidade. Além de tudo, o dinheiro não me
interessa mais.
Encontrou cartões de visita, cartas, papéis, em nome de Hubert Ferranges.
— É delicado, Hubert — disse ele, olhando o homem grande de ferozes
sobrancelhas. — Os Hubert, regra geral, são de caráter fácil e humor agradável.
Recolocou a carteira onde estava e abriu a gaveta da mesa de cabeceira.
— Eles são acolhedores e alegres — prosseguiu, tirando da gaveta um enorme
revólver, um Smith & Wesson de cano curto. — Mas são algumas vezes um tanto
misteriosos e é melhor tê-los como amigos do que como adversários... Que diabo
queria fazer com este brinquedo, meu bom amigo? A estação da caça está fechada
e Guilherme{1} ainda não nos declarou guerra.
Recolocou a arma na gaveta, voltou-se para a porta aberta, procurando ouvir
atentamente.
— Não ouviste algo, Hubert? Pareceu-me...
Apagou a lâmpada de cabeceira. Fora Bruno que gritara? Teve uma intuição
brutal, aguda, ofuscante, de que não estava só no castelo, que um outro visitante se
movia em algum lugar, nas trevas dos corredores e dos cômodos. Alguém que
tomara a precaução de, antes de se aventurar no local, narcotizar todo mundo, do
castelão aos empregados.
— Não se mexa — sussurrou.
Silencioso como uma sombra, voltou ao patamar, debruçou-se sobre o corrimão
de pedra da escada, mas não ouviu mais nada a não ser seu próprio sangue
correndo nas artérias. Reacendeu a lanterna e abriu a porta de um outro quarto.
Recuou. O cão... o buldogue...
O animal deitado, o focinho entre as patas, não fazia qualquer movimento. Raul se
abaixou, coçou-lhe a cabeça, entre as orelhas.
— Bom cachorrinho, reconhece seu senhor.
Sob a pálpebra ligeiramente congestionada, a pupila dilatada estava imóvel. O
cão, atingido pela droga, ficara em posição de vigia, os beiços mostrando suas
presas. Raul levantou, passou o facho luminoso pelas paredes, o tapete, o velador,
a cama e, pela segunda vez, ficou surpreso. Um sorriso incrédulo apareceu em
seus lábios. Deu três passos, parou, maravilhado. A claridade azulada da lanterna
iluminava um rosto encantador, pousado como num ninho de cabelos louros. Que
idade teria ela? Dezessete anos, segundo Bruno. Ninguém lhe daria mais de
quinze. Os cílios morenos estavam delicadamente abaixados e Raul teve a
impressão de que eles iam, de repente, levantar-se e que dois grandes olhos
violeta iriam pousar nele e olhá-lo com amizade. Um braço muito branco havia
escorregado e pendia ao longo da coberta. Raul, fascinado, ficara debruçado
sobre a cama.
— Lupin! — suspirou. — Na tua idade!
Procurou gracejar, mas uma forte emoção fazia com que sua voz tremesse. Será
que depois de tantas aventuras, tantos encontros...
— Vejamos, Lupin! Estás vendo que não passa de uma mocinha!
Um perfume sutil emanava do travesseiro. Raul nunca contemplara tanto viço,
mocidade e graça. Timidamente estendeu a mão.
— Jovem desconhecida — murmurou —, tu és bela. Gostaria, neste momento, de
estar em teus sonhos.
E acrescentou:
— Tens um ar maligno, marquês. Tu podes arrulhar com teus cabelos que já se
tornaram grisalhos e teus pés de galinha ao canto dos olhos.
Confuso, não podia afastar os olhos daquele rosto radioso. Finalmente, não
aguentando mais, inclinou-se.
— Ajoelha-te, Lupin, diante da inocência e da virtude. A Bela e a Fera!
Tomou a mão da mocinha, levou-a aos lábios; depois, apagando a lanterna,
recuando, suavemente saiu do quarto.
— Se eu encontro o brutamontes que teve a ousadia... Porque era impossível
duvidar, havia um outro no castelo.
Um colecionador, também! Mas como poderia ele ter escapado à vigilância de
Bruno?... O poço, é claro!... Qualquer um, sem trabalho nenhum, poderia jogar um
narcótico no cântaro. E agora, o bandido deveria estar fazendo sua escolha na
galeria...
Raul seguiu o corredor que, começando no patamar, conduzia à ala direita. A
claridade cinzenta que se filtrava através das altas janelas bastava para guiar seus
passos. Por onde o desconhecido havia entrado? Provavelmente pela adega ou
pela entrada de serviço, depois por outra escada, uma vez que a campainha de
alarma não soara. Ele deveria conhecer todos os segredos da casa.
A galeria abria-se na extremidade do corredor. Raul iluminou a porta de dois
batentes, e bruscamente virou a maçaneta. Os gonzos rangeram,
desagradavelmente. Imediatamente a lanterna iluminou as profundezas da galeria.
Ninguém!
Raul aventurou-se na sala imensa e, subitamente, esqueceu toda sua inquietude.
Que maravilhas se ofereciam a ele, à medida que avançava!
— Mas seriam necessárias várias horas, para avaliar tudo isso! Este Mantegna!...
E este Largillière!... Em compensação este São João Batista, assinado Vinci, me
parece um tanto discutível... Acredito que sejamos um tanto céticos em matéria de
Belas-Artes.
Dirigiu sua lanterna para uma cômoda, acendendo preciosos reflexos.
— Ah! Eis aqui o famoso cibório... e o relicário do século XV.
O sentimento de seu poder tornava-o exaltado. Em seu apartamento em Paris
planejara tudo, sem nada ver, simplesmente consultando catálogos e mapas. E
agora, era o dono dessas riquezas. A um simples gesto seu, elas tomariam novos
destinos, mais dignos para as mesmas.
Sobressaltou-se de repente. Desta feita não havia erro possível. Era bem o pio da
coruja. Apurou o ouvido e novamente percebeu o pio nitidamente. Bruno,
embaixo, devia ter percebido o misterioso visitante.
Raul colou o rosto na janela mais próxima e perturbou-se à vista do espetáculo
espantoso que se lhe deparava, através das venezianas. Três sombras
atravessavam o pátio, em direção ao gradil. Pareciam vir da ala esquerda do
castelo e se moviam rapidamente. Uma delas caminhava à frente; as duas outras
carregavam um pesado pacote: uma forma humana enrolada numa coberta. Raul
sentiu que sua testa se cobria de suor. Diabo! Enquanto estava contemplando a
coleção, os outros raptavam...
Lançou-se pelo corredor, empurrou a porta do quarto de Hubert de Ferranges. O
castelão dormia tranqüilamente. A mocinha, então?... Não, ela repousava, o braço
na mesma posição de abandono. Então quem?... Um empregado?...
Desceu a escada, atravessou o vestíbulo. O grupo desaparecia na sombra do
muro, perto do gradil. Raul fechou a porta atrás de si. Uma nuvem no céu, lançava
uma sombra providencial. Aproveitou-a e seguiu.
Os três homens, em vez de irem para a estrada, costeavam o gradil. Ultrapassando
a ala direita, internaram-se no parque. Raul imediatamente perdeu-os de vista,
mas foi fácil segui-los pelo ruído de seus passos. Por sua vez, ultrapassou o
ângulo do castelo, orientou-se entre as moitas e as árvores. Vislumbrou os.
misteriosos desconhecidos quando deixavam a propriedade por uma pequena
porta dissimulada. Atrás deles, atravessou um atalho, internou-se num pequeno
bosque que se inclinava para o Sena. Não havia caminho desse lado. Somente o
rio.
— Contanto que não fujam de barco!
O solo acentuava sua inclinação e, bruscamente, o pequeno bosque terminou.
Além da orla, começava um declive no qual era impossível se aventurar, sem o
risco de ser descoberto.
— Vão atravessar para a outra margem — pensou Raul. Ouviu a batida de um
remo no fundo de um barco, seguido do retinir de uma corrente e percebeu,
propagando-se na água brilhante, ondulações concêntricas. Quase ao mesmo
tempo a embarcação destacou-se da margem. Um homem remava na popa;
seguindo a correnteza; uma silhueta maciça, uma cabeça quadrada, parecendo
encravada entre os ombros. Um outro homem estava sentado na proa. Parecia
pequeno e disforme. O terceiro permanecia debruçado no fundo do barco.
Raul soltou um suspiro de alívio. O barco não atravessava; apenas margeava o
rio. Uma testemunha que o visse não se admiraria. Em junho, honestos pescadores
não eram raros, em busca de um bom local antes da aurora.
Raul avançou por um estreito caminho que serpenteava pelo flanco da colina. De
quando em quando o barco desaparecia, encoberto por um tufo de vegetação ou
um acidente do terreno. Mas não demorava a reaparecer, massa sombria que se
destacava nitidamente no lençol prateado do rio. A vereda se elevava cada vez
mais e a distância aumentava entre Raul e a embarcação.
— Talvez eu esteja errado — monologou Raul. — Quem sabç se eu deveria
intervir agora, sem esperar tanto?
Adiante, o barco aproximava-se de um grupo de três salgueiros, à sombra dos
quais embrenhou-se, pouco a pouco. Raul correu, mas logo parou.
— Ora esta! Mas... que estarão eles tramando? O barco não reaparecia.
Desconcertado, deu alguns passos e parou novamente esticando o pescoço o mais
que podia. E, bruscamente, reprimiu uma praga. Afastando-se lentamente da
sombra das três árvores, o barco voltava a aparecer. Mas estava vazio.
Totalmente vazio. Acabou por imobilizar-se, retesando sua amarra.
Os homens? Por onde teriam passado? Não poderiam ter desembarcado, pois a
margem era a pique. Os salgueiros tinham suas raízes no flanco da colina e
dominavam o Sena do alto. Abandonando o atalho, Raul avançou até o local onde
o platô descia abruptamente para o rio. Desse ponto de observação, ele distinguia
nitidamente, através dos ramos das árvores, a pálida cintilação da água.
— O que será esta diabrura? — murmurou ele.
Mesmo supondo que o misterioso trio houvesse conseguido desembarcar em terra,
por onde teria passado? A margem abrupta se estendia por uma centena de metros,
nua, lisa como a palma da mão, vagamente iluminada pelo luar. E que fim teria
levado o corpo? Se o tivessem atirado à água, Raul teria ouvido o ruído do
mergulho. Então? Os três homens e sua vítima não podiam se encontrar senão sob
os três salgueiros e no entanto Raul tinha certeza de que sua folhagem não
escondia ninguém. Ladeou, lentamente, a borda do platô, hesitando na forma de se
conduzir. Se tentasse descer até o rio, arriscava-se a levar um tiro dos
desconhecidos, a quem ofereceria um maravilhoso alvo. E, além disso, qual a
vantagem em contemplar de mais perto esse barco vazio?
Sentou-se sobre uma grande pedra chata que se projetava além do platô. O barco
estava mais ou menos a uns cinquenta metros; podia ver distintamente o reflexo da
corrente e uma pequena poça d'água entre os bancos.
Seu sangue subitamente gelou. Acabara de ouvir bem perto de si um lamento, uma
espécie de grito abafado. Voltou a cabeça. Ninguém! Tão longe quanto o olhar
podia alcançar, o platô estava deserto. Teria sido o vento, talvez?... Não, não
soprava a mais leve brisa.
— Decididamente, tenho pena de ti, marquês. Estás tendo alucinações, ouvindo
coisas estranhas... Mas que é isso?
O grito ecoava ainda, longo, doloroso, cheio de uma angústia inexplicável. Raul
levantou-se. Seria possível? O grito não provinha das árvores. Era muito mais
próximo. Parecia sair de dentro da terra. O lamento de uma alma aflita.
— Nada disso. Não vou, sem mais aquela, começar a... Agora um murmúrio de-
vozes. A impressão foi tão forte que Raul voltou-se bruscamente. Um medo
sorrateiro, que não podia conter, começava a mexer com seus nervos. Durante sua
existência aventurosa havia enfrentado muitos perigos, mas talvez nunca se
encontrara numa situação tão estranha.
— Basta! — suplicava a voz. — Basta!... Socorro!... Parecia longínqua, perdida
no fundo de um espaço irreal, como uma voz na outra extremidade de um fio
telefônico e, ao mesmo tempo, ela estava ali, bem próxima. Ela nascia no ar,
inexplicavelmente.
— Acudam-me! — gritou ela. — Parem! Parem!
Raul pálido, com os punhos fortemente apertados, girava sobre si mesmo,
sentindo as têmporas úmidas. Um horrível estertor, medonho, flutuou ao rés do
chão e logo após, outra vez, rude, brutal, fez-se ouvir:
— Fale, e depressa! Senão... Raul então compreendeu tudo.
— Ora, francamente, custei a entender!
Curvado na encosta, andando quase de gatinhas, pôs-se a descer lentamente.
— Estás decidido?... Não queres falar?
— Não.
— Prossiga, Grégoire{2}!
Um grito animalesco partiu de um grupo de pequenas e baixas rochas.
— Perfeito — disse Raul. — Aí estamos.
Afastou com os pés algumas sarças e agachou-se. Uma fenda abria-se à sua frente
e ele iluminou seu interior com a lanterna. Ora vejam! Um poço de ventilação!
Devia haver uma pedreira.
— Acudam-me — suplicava a voz.
— Grita quanto quiseres... Não, ainda? Vamos, Grégoire.
Colado às rochas, Raul não perdia uma palavra do pavoroso interrogatório que
tinha lugar abaixo de si. E os acontecimentos voltavam a seu pensamento com uma
lógica, uma precisão que o atormentavam e enchiam de horror. Os moradores do
castelo narcotizados... assaltados, desenvolvendo um plano cuidadosamente
elaborado e raptando um empregado... o barco chegando à entrada de alguma
galeria abandonada... E agora, a tortura... E amanhã, um cadáver apodrecendo,
servindo de pasto aos roedores.
— Basta — gemeu a voz. — Basta... Vou falar. Raul, com a cabeça metida na
abertura, colava-se à colina. Ele respirava um ar enjoado, cheirando a mofo. Mas
havia também um outro odor, que reconheceu com um arrepio, um odor de
queimado.
— Apressa-te e tudo estará acabado.
— Quero algo para beber.
— Fala primeiro.
— Quero beber.
— Eu te previno. Vamos recomeçar tudo... Vamos, Grégoire!
Novamente o pavoroso grito. Raul abafou uma praga e suas unhas enterraram-se
nas palmas das mãos. Houve um momento de silêncio embaixo e depois a voz
rude falou novamente:
— Creio que ele desmaiou... Grégoire, o cantil!
Raul voltou atrás. Ainda não era tarde demais. Com um pouco de sorte e
aproveitando o fator surpresa... Um contra três, era até fácil. Lançou-se pela
encosta. E, agora, não era apenas o simples desejo de arrancar o prisioneiro ao
suplício, que o animava. Compreendia que o velho castelo de Eunerville devia
esconder, além de suas coleções, algum segredo prodigioso. Ora, esse segredo,
prometia... Corria agora num ressalto pedregoso acima do Sena, repetindo
baixinho, como se sua vontade pudesse penetrar através do solo até o cérebro do
moribundo: "Resista, amigo... Resista apenas cinco minutos e serás salvo...
Agüenta! Sou eu, Lupin. Chegarei já!"
Os salgueiros lá estavam, quase sob seus pés. Agarrou-se à beirada e sentiu os
galhos mais altos roçando seus tornozelos. Abriu os dedos, caiu por entre a
folhagem, segurou-se um segundo, a tempo de perceber abaixo de si uma margem
estreita, lodosa, e a corrente que prendia o barco. Logo caiu, pousando agilmente
num terreno fofo. Não ficou surpreendido, descobrindo a abertura de um
subterrâneo que mergulhava no coração do penhasco. Acendeu rapidamente a
lanterna: viu os trilhos enferrujados de um Decauville{3}. Antigamente as
embarcações deveriam atracar ali para carregar diretamente. Bem, agora era só
seguir o caminho indicado.

A prudência mais elementar mandava que Raul não usasse a lanterna e por isso
tropeçou nos dormentes. O mesmo pensamento obsessivo palpitava em sua
cabeça: "Contanto que ele se cale!" Parou para escutar. Apenas um silêncio
úmido, insustentável. Lembrou-se de que debaixo da terra os sons se propagavam
de forma caprichosa. Talvez ainda estivesse muito longe dos bandidos. Vamos!
Tudo estava terminado. Chegaria tarde demais. Esbarrou num poste e quase caiu.
Durante uma fração de segundo acendeu a lanterna. Droga! Adiante havia uma
encruzilhada, uma ramificação. Impossível saber. Tomou à direita. E de repente,
do fundo da noite, uma pequena claridade vermelha apareceu, aumentou. Raul
avançou mais lentamente, encontrou uma segunda ramificação. A via da esquerda,
depois de um volta, reencontrava-se com aquela que ele havia seguido e os trilhos
atravessavam uma espécie de vasta sala, em rotunda, onde os reflexos de um
punhado de brasas delineavam vagamente os contornos. Os torturadores haviam
desaparecido. Sem dúvida haviam se retirado pela galeria da esquerda, cruzando
com Raul sem que se encontrassem. Mas não haviam levado sua vítima. O homem
jazia junto ao fogo, seus pés ainda voltados para as brasas. Raul acendeu a
lanterna: um grande velho, de barba branca, seco, musculoso, sólido, com um
nobre rosto ainda crispado pela dor. Raul levantou-o, afastou-o da fogueira.
— Você não morreu, meu gentil-homem?... Não vá me fazer uma coisa dessas...
Você, gentilmente, voltará à vida e então conversaremos.
Enquanto falava, focalizou com o facho de luz da lanterna os pés do infeliz. Fez
uma careta, tocou com um dedo, cuidadosamente, a carne queimada e inchada.
— Ainda bem! Está menos ferido do que aparentava. O velho torceu-se,
encolheu-se.
— Piedade — gemeu. — Eu já disse tudo.
Pôs-se a balbuciar palavras ininteligíveis. Raul ajoelhou-se, o ouvido colado aos
lábios descorados.
— Repita — ordenou. — Como? São João?... O que fez ele, São João?... Hem?...
São João sucede a Jacó?... Perfeitamente. Está perfeitamente claro! E depois?...
D'Artagnan... Sim, entendi bem. D'Artagnan... Não fique agitado, vovô.
D'Artagnan conquista glória e fortuna... Um pouco mais alto, pelo amor de
Deus!... Glória e fortuna à ponta da espada... É isso?... Evidentemente, está
perfeitamente claro! Tem certeza de que não há mais nada?... Algo mais
esclarecedor, afinal de contas?
Com os olhos brilhando de excitação, tomou o velho pelos ombros e o sacudiu
levemente.
— Mais um esforço, papai. Desabafa e estará livre de tudo. O velho levantou-se,
num último esforço, fez um esgar.
— Hem? — disse Raul. — O sangue?... Você quis mesmo dizer o sangue?
O velho bateu as pálpebras e tornou a cair ao solo. Raul agarrou-se a ele, pálido,
cheio de contida violência.
— Responda!... Responda logo!... Depois, poderás morrer... O sangue de quem...
Vamos, homem, faz um esforço... O que vem a ser esse sangue?
Mas o velho não se mexia mais. Ele não diria a palavra, essa palavra que deveria
ser a chave de todo o resto. Desfalecera e sua figura cor-de-rosa tornara-se
horrível de se olhar.
— Que azar! — resmungou Raul. — Está sem sentidos... Três segundos a mais e
ele teria contado tudo.
Enxugou a testa suada do desconhecido.
— Não tenha mais medo, Matusalém. Estás salvo... Peço-te apenas um minuto.
Agora de pé, perto das brasas fumegantes, no fundo de um obscuro subterrâneo,
tão à vontade como se estivesse no Jóquei Clube, Raul examinava a situação com
esse prodigioso sangue-frio, esse extraordinário espírito de decisão, que lhe
permitia dominar as circunstâncias mais difíceis. Subitamente sorriu com um ar
brincalhão.
— Vamos, vovô; vamos andando. Eu te levarei à minha clínica... E posso
prometer-te que, dentro de quinze dias, estarás saltando e correndo como um
coelho.
Pôs o velho às costas.
— És pesado, meu velho... Como pesas!
Curvado sob a carga, voltou pelo mesmo caminho, parando para tomar fôlego na
saída da galeria. O barco não estava mais sob os salgueiros. Sem dúvida, os três
homens haviam pensado que sua vítima morrera. Raul deu um sorriso de
escarninho e, reunindo suas forças continuou com sua carga.
— Ainda bem vivo!... Velho, mas forte como uma rocha... Que bela geração a tua!
Reiniciou a caminhada. O dia despontava, do lado de Quilleboeuf, mas o campo
ainda estava deserto. Do alto de sua torre, Bruno devia esquadrinhar com a luneta
todos os cantos do terreno. Certamente, correria a prestar ajuda, logo que visse o
insólito grupo. A fadiga começava a fazer com que as pernas de Raul tremessem.
— Não posso mais cansar-me desse jeito — pensava Raul. — Tu não tens mais
vinte anos, meu caro.
Dois bons quilômetros separavam a pedreira do automóvel. Raul levou perto de
uma hora a percorrê-los. Felizmente Bruno estava lá, o fiel Bruno, o bom
Samaritano. Raul deixou-se cair, estendido, sobre a relva.
— Estava assustado — explicava Bruno. — Eu me perguntava...
— Está bem, vai tudo bem. Ocupa-te dele... Tu o conheces?
— É o velho do castelo — disse Bruno transtornado.
— Diga-me, tu não estudaste medicina antes de enveredar pelo mau caminho?
— Sim, apenas fracassei. Foi mesmo, de certa forma, por causa disso que...
— Eu sei. Coloca o velho no carro.
— Vai levá-lo ao hospital?
— Nem pense nisso. Eu o guardarei. É um cliente muito valioso. Viste seus pés?...
Acreditas que tenham raptado um homem dessa idade e o deixado nesse estado
lastimável por alguma bagatela?
— O que vai fazer?
— Eu, nada... És tu que farás alguma coisa. Tratá-lo, curá-lo rapidamente...
Depois, veremos. Compreendido, doutor?
— Mas onde quer que eu?...
— Saiba que tenho algumas relações na vizinhança... E, além disso, estás me
aborrecendo com tuas perguntas... Estás pronto? Então, vamos em frente.
Levantou-se, ágil, repousado, transbordando de vida. De um salto sentou-se ao
volante do Léon-Bollée{4}.
— Senta-te atrás. Estou com pressa.
Alguns instantes mais tarde atravessavam Honfleur adormecida. Raul cantarolava
e com as pontas dos dedos marcava o ritmo ao volante... São João... Jacó...
D'Artagnan... São João...
O auto fez a curva na estrada de Trouville arrancando pedras do calçamento
lateral. São João... Jacó....São João, que sucede a Jacó... e D'Artagnan que
conquista... "Francamente — sonhava Raul, — esse velho é um Nostradamus...
Qual foi o imbecil que disse que a vida não vale a pena ser vivida?... Mas o
sangue... o sangue... Mas afinal, que diabo de sangue é esse, sangue de quem?" As
sebes, ladeando o caminho, pareciam afastar-se rapidamente à passagem do
carro, para fechar-se logo após. "Ele falará... É necessário que ele fale... Ele dirá,
a mim... E quando eu estiver de posse do segredo..."
Raul parou diante de uma pequena casa em pleno campo. Havia uma cerca
branca, diante de um alegre e bem tratado jardim. As janelas estavam fechadas.
Desceu, empurrou a cancela e bateu à porta. Uma vez, duas vezes. Começava a
aborrecer-se.
— Então, não há ninguém em casa?
Uma janela abriu-se no sobrado e uma voz cansada, de mulher idosa, perguntou:
— Quem está aí?
— Ê o papa.
— Meu Deus! Tu... Tu, meu pequeno! Um momento depois a porta se entreabria.
— Sou eu, Victoire. Venho apenas dar-te bom dia. Victoire olhava-o assustada.
Ele fez sinal a Bruno que adiantou-se, carregando o corpo inerte do velho.
— Trago-te uma criança — disse Raul.
— Não! — protestou Victoire. — Não. Não quero. Estou cheia de todos os teus
truques, tuas artimanhas. Está terminado, entendeste? Estou muito velha para isso.
— Tu, velha... Ora vamos! Ninguém te daria mais de setenta anos... Minha boa
Victoire, não me recusarás um pequeno serviço... O último.
Empurrou Bruno para o corredor e guiou-o para um pequeno quarto que dava para
o campo, do outro lado da casa.
— Grades nas janelas e uma boa fechadura na porta. Perfeito! Ê sempre bom ser
cuidadoso... Deita-o na cama... Ficarás aqui, Bruno. Tu o tratarás, Victoire irá à
cidade buscar os remédios que forem necessários. Os dois serão os responsáveis
por ele. E nem uma palavra a quem quer que seja ou eu arrancarei a língua de
ambos... Se tenho boa memória, no sobrado há outro quarto... Victoire vai levar-te
até lá. Precisas dormir.
— Mas tu, meu pequeno — disse Victoire. — Estás com uma aparência de fazer
medo... Necessitas dormir também.
Raul apanhou uma cadeira, sentou-se a cavaleiro na mesa, perto da cama.
— Dormir?... Não brinque!... Tu não fazes idéia, minha velha... O Segredo de
Eunerville!...
2
UM PONTO DA HISTÓRIA

Apesar de minhas amigáveis relações com Arsène Lupin e a confiança que ele,
em várias ocasiões, demonstrou-me de maneira particularmente lisonjeira,
existem alguns mistérios em sua vida que nunca pude esclarecer completamente.
Particularmente sua aptidão extraordinária não só em adotar qualquer disfarce,
mas, mais importante ainda, em praticamente entrar na pele de qualquer
personagem a ponto de tornar-se outro. Teria ele, como pretendia, trabalhado com
Fregoli? Ou teria, segundo afirmara, seguido os cursos do Conservatório? Seria
exato que Meliès o iniciara nos segredos da prestidigitação? Quando lhe faziam
perguntas diretas, nosso grande aventureiro nacional limitava-se a sorrir. Ou
então, respondia como fez um dia ao Juiz Formerie: "Eu sou muitos, Sr. Juiz. E sei
muito pouco sobre o curriculum vitae dos meus diferentes eus."
O certo é que Ernestine, a empregada de Maître{5} Frenaiseau, notário em
Honfleur, introduziu nessa manhã, na sala de espera, um velho senhor de roupa
antiquada e maneiras encantadoras que lhe pediu anunciasse o Conde Honoré de
Bressac, e beliscou-lhe a face de forma tão graciosa e delicada que era difícil
sentir-se aborrecida. E Maître Frenaiseau, por sua vez, sentiu pelo Conde de
Bressac, desde que o viu, uma verdadeira onda de simpatia. Simpatia que se
transformou em verdadeira ternura quando compreendeu que seu nobre visitante
partilhava de sua ardente paixão pela história.
— Soube, por um primo, que o castelo de Eunerville estava à venda — começou
o conde, depois que se instalou na melhor cadeira do escritório. — E não
esconderei que ficaria feliz em poder comprá-lo...
Deu um risinho faceiro, como se fosse o primeiro a divertir-se com seus próprios
caprichos e prosseguiu:
—... Não somente por sua admirável arquitetura, nem tampouco por sua magnífica
situação, mas também, e irei mais além, principalmente por motivos puramente
sentimentais... Sim, sou um velho conservador, e não ignoro quantas lembranças, a
maioria gloriosas, estão ligadas ao nome de Eunerville.
— Lembranças, algumas das quais, que não estão assim tão distantes. Duas
gerações! — retomou vivamente o tabelião, encantado de haver encontrado,
finalmente, um ouvinte diante do qual podia abandonar-se à sua inocente mania,
sem receio de ser a cada instante interrompido por um — "Vamos aos fatos, por
favor", tão seco, quanto desagradável.
— O senhor sabe que nosso infortunado soberano Louis-Phillipe hospedou-se
alguns dias no castelo, quando de sua fuga para a Inglaterra, durante o funesto
inverno de 1848?
— Creio, com efeito, já haver lido qualquer coisa a esse respeito — disse o
conde. — Mas existem tantos relatos contraditórios a propósito desse deplorável
acontecimento... Pois bem, Maitre, tudo isso só serviu para avivar meu desejo de
possuí-lo...
— É que... O senhor foi mal informado. O castelo de Eunerville não está mais à
venda.
— De verdade?... Pode julgar a que ponto fico aborrecido com tal fato!
— Acredito que me sinto também desolado. Fui eu quem fez a última venda, há
uns três anos. Meu cliente era um engenheiro, Jacques Ferranges. Um homem de
bem, muito inteligente, muito ativo... Eu diria mesmo excessivamente ativo. Pode
imaginar que meteu na cabeça modernizar todo o domínio?
O conde levantou os braços, com ar abatido.
— Sim — disse o notário. — Penso como o senhor a esse respeito, senhor conde.
Em certos casos, a audácia das novas gerações chega a raiar o vandalismo.
Jacques Ferranges começou instalando eletricidade... Até aí, nada a dizer. Afinal
de contas é preciso vivermos com o nosso tempo... Mas ele queria demolir uma
parte da ala direita, aumentar o pátio de honra, instalar água, como se não
bastasse o poço... E também substituir as estrebarias, por uma garagem... Nesse
ponto, não estou de acordo.
— Nem eu — afirmou impetuosamente Honoré de Bressac. — Mas eu não
poderia visitar esse Sr. Ferranges?
— Infelizmente não! Ele morreu de uma forma trágica. Maitre Frenaiseau tocou
um tímpano e Ernestine entrou.
— Dar-me-á a honra de provar meu licor de framboesa, senhor conde. Uma pura
maravilha, permita-me que o diga... Ernestine, dois copos, por favor.
Aproximando sua cadeira da de seu visitante, continuou:
— Jacques Ferranges e sua mulher morreram apenas dois meses depois de se
instalarem no castelo, num estúpido acidente. Faziam um passeio marítimo, perto
daqui. O barco virou. O castelo não traz boa sorte. Imagine que os dois
proprietários anteriores morreram também de forma trágica. O primeiro faleceu
num acidente de caça... Um tiro perdido de fuzil, cujo autor jamais foi encontrado.
O segundo caiu do penhasco... Tudo isso é muito triste.
— E voltando aos Ferranges?
— Bem, eles deixaram uma filha menor, Lucile.
— Mas então? — disse o conde.
— Espere! Jacques Ferranges tinha dois irmãos. Hubert, o mais velho, tornou-se
tutor da órfã. É ele quem atualmente mora no castelo.
O notário levantou seu copo e ambos beberam lentamente, saboreando o licor.
— Como é lamentável — retrucou o conde. — Mas dessa forma sou obrigado a
renunciar a meu projeto... Creia, apesar de tudo, que não me arrependo de minha
vinda, pois espero não se recuse a contar-me em que circunstância o rei encontrou
refúgio...
— Claro — disse Maitre Frenaiseau. — Sobretudo porque é um ponto da história
sobre o qual tenho um especial interesse... Não é preciso lembrar-lhe, senhor
conde, as causas da Revolução de 48...
— É, com efeito, inútil — suspirou Honoré de Bressac, que acrescentou
pensativamente: — Meu falecido pai falou-me muitas vezes da rebelião, da
abdicação, da fuga dos esposos reais para Trianon, depois para Dreux...
— O senhor seu pai disse-lhe que o rei, para não ser reconhecido, cortara os
cabelos? E que ele chegou a Dreux em charrete, vestido com uma sobrecasaca
gasta, e com os olhos disfarçados por óculos? Disse-lhe ele que em Evreux um
guarda nacional, apesar de seu disfarce, reconheceu-o e quase o denunciou?
— Ignorava tais detalhes — confessou o conde que não procurava dissimular sua
curiosidade.
— O senhor não é o único — disse o notário com satisfação. — Depois de uma
longa noite de alarme, Louis-Phillipe chegou ao castelo de Eunerville, onde a
rainha veio juntar-se a ele algumas horas mais tarde. O lugar era ideal para vigiar
de um lado o campo onde a tropa poderia aparecer a qualquer momento e, de
outro lado, o mar que ficava como o último meio de salvação. O derradeiro conde
de Eunerville era muito idoso, mas tinha um jovem mordomo, Evariste, que, como
ele, era inteiramente devotado à causa da monarquia... O governo provisório
havia lançado severas advertências para a vigilância do litoral. Foi Evariste
quem teve a idéia de fretar uma pequena barca em Trouville. O patrão da barca,
chamado Hullot, recebeu três mil francos para deixar o rei na costa inglesa. Foi
ainda Evariste quem conduziu o rei, numa carroça, até Trouville.
— Apaixonante! — murmurou o conde que, sem sentir, debruçara-se e devorava o
notário com o olhar.
— E o que se seguiu ainda foi mais excitante — continuou Maitre Frenaiseau. —
Eis o rei em Trouville. Tudo pronto. E no entanto ele não embarcou. Pelo
contrário, voltou na noite de 2 de março ao castelo de Eunerville. Por quê?...
Alguns pretenderam que o mar estava muito revolto. Outros, que o patrão da
barca, temendo uma denúncia, havia falhado no último momento. Tais razoes não
me parecem convincentes. Existe algo de inexplicável na conduta do velho rei
perseguido, que deveria ter apenas em mente a sua salvação. Sabe, como é de
domínio público, que Louis-Phillipe embarcou, finalmente, essa mesma noite de 2
de março, em Honfleur, no pequeno navio Le Courrier, posto à sua disposição
pelo cônsul da Inglaterra no Havre. Ora, o mar estava igualmente revolto. Por
outro lado, o Procurador da República em Pont-Audemer e sua polícia vigiavam
rigorosamente os portos e as estradas. Por que o rei que, de certa forma, se
encontrava com tudo resolvido em Trouville, decidiu, bruscamente, voltar para
onde estivera, afrontando um perigo tão terrível quanto inútil?... Para mim, a
decisão do fugitivo só tem uma explicação: a necessidade imperiosa e súbita de
voltar ao castelo, seja para apanhar algo que deixara guardado com seus amigos,
seja, ao contrário, para encarregá-los de alguma missão secreta, missão essa que
até o último minuto hesitara em confiar-lhes. Mas não serei eu quem esclarecerá
esse pequeno mistério histórico — concluiu Maitre Frenaiseau.
— O senhor já alcançou resultados notáveis — disse o conde. — Permita-me que
o felicite por sua erudição.
— Oh! Não exageremos meus méritos — protestou o notário modestamente. —
Encontrei a maioria de tais informações nas Memórias deixadas por esse bravo
Conde de Eunerville. O pobre homem quase não sobreviveu ao seu amado
soberano. Morreu em 1851. Poderá ver seu túmulo no pequeno cemitério de
Eunerville, ao lado de seus antepassados.
O Conde de Bressac parecia, de repente, haver remoçado. Muito teso em sua
cadeira, os dedos tamborilando nervosamente os braços da mesma, parecia presa
de uma agitação surda.
— Um homem que viveu a Revolução, o Império, a Restauração.— murmurou. —
Essas Memórias devem ter um interesse extraordinário.
— Pois, francamente não. Antes de mais nada sua leitura é das mais
desagradáveis. Esses cadernos têm cerca de seiscentas páginas, cobertas por uma
escrita miúda, algumas vezes indecifrável... Seria preciso, para chegar ao fim,
uma paciência que não possuo. Seria preciso, sobretudo, muito tempo livre... O
manuscrito é cheio de pesadas digressões, de insípidos detalhes. Em
compensação tudo serve a vazias declamações... Nosso conde era, o que
chamaríamos hoje, um fanático. Por outro lado, os acontecimentos que acabei de
narrar devem ter de certa forma abalado sua razão, porque a última parte das
Memórias tem passagens completamente incoerentes.
— Por exemplo? — disse vivamente o Conde de Bressac.
— Como eu me lembrarei?... Mas nada lhe impede de consultar pessoalmente
esses cadernos. Jacques Ferranges doou-os à Sociedade de História e de
Arqueologia da Normandia, em Paris.
— E acredita que possam existir no castelo outras peças, outros documentos,
relativos ao período a que nos referimos?
— Não. Penso que não. Ê bem verdade que não conheço todos os livros da
biblioteca... Há talvez quinze ou vinte mil, e nunca foram catalogados. Jacques
Ferranges se propunha a fazer um catálogo... Tudo que posso afirmar é que as
Memórias são, seguramente, apesar das reservas que possamos fazer às mesmas,
a mais preciosa fonte de informações sobre os acontecimentos de fevereiro e
março de 48.
O conde havia retornado a seu ar um pouco frívolo. Levantou-se.
— Lastimarei a perda do castelo de Eunerville — disse amavelmente. — Mas
guardarei a melhor lembrança de minha visita a Honfleur.
O notário conduziu-o até a porta da rua. Na soleira, trocaram alguns
cumprimentos e o conde afastou-se, um pouco curvado, mas o passo firme e a
bengala em riste. Assim que dobrou a esquina, empertigou-se e passou a andar
mais rápido. Um carro estava parado. Duas voltas na manivela e o motor roncou.
— Um velho imbecil — suspirou o conde tomando o volante. — Mas seu licor
era divino... Se eu somente soubesse o sangue de quem?...

A tarde já ia adiantada quando Raul d'Apignac. que durante a viagem abandonara


o disfarce de Conde de Bressac e retomara seu elegante aspecto esportivo, desceu
do carro diante de seu apartamento do Boulevard Péreire. Durante todo o trajeto,
não cessara de repassar em pensamento as confidencias do Maitre Frenaiseau e
sentia-se profundamente perturbado. Que golpe genial essa visita ao tabelionato!
E como agira bem inspirado, adulando a paixão do velho notário!
Certamente nada provava que havia um elo qualquer entre o misterioso sequestro
da noite precedente e os acontecimentos históricos que tiveram como palco o
velho castelo sessenta e seis anos antes. Nada havia nas inexplicáveis palavras
pronunciadas pelo velho torturado que parecesse ter uma relação com a breve
estada de Louis-Phillipe em Eunerville. No entanto, a prodigiosa intuição de
Lupin avisava-o de que era nesse sentido que deveria procurar. Além disso, não
dispunha, no momento, de nenhum outro elemento que lhe permitisse orientar-se
para outro lado. Inicialmente, era necessário procurar, custasse o que custasse, o
famoso manuscrito, tão apressada e ligeiramente lido pelo notário. Fervia de
impaciência. Mas Lupin sabia que não devemos nunca ir com muita pressa quando
queremos algo. Por isso sentou-se tranqüilamente diante de sua escrivaninha e
calmamente acendeu um charuto. Depois, apertando um botão dissimulado numa
gaveta do móvel, pôs à mostra a abertura de um pequeno cofre secreto, de onde
tirou uma volumosa pasta. Era o catálogo da caligrafia e assinatura de todas as
personalidades contemporâneas célebres. Havia, nesse enorme fichado, milhares
de modelos de letras e assinaturas; desde a de Lili Amour, até a de Valenglay,
antigo Presidente do Conselho, passando pela do inspetor-chefe Ganimard, de
Bergson, do deputado Daubrecq e de Sua Santidade Pio X. Várias vezes haviam
elogiado o prodigioso dom de improvisação de Arsène Lupin. Mas suas mais
belas vitórias, seus mais curiosos resultados eram devidos a um método sem
defeitos. Lupin, antes de tudo, sabia trabalhar.
Tomando uma ficha com o nome de Gabriel Tabaroux, membro do Instituto,
estudou-a um instante, a testa enrugada com o esforço. Num golpe de vista, notou
as particularidades mais significativas do modelo, as letras separadas uma das
outras, os tês cortados com um traço empastado, os ês semelhantes aos is. Depois,
numa folha de papel em branco, treinou alguns minutos, reproduzindo a fina e
nervosa escrita. Afinal, abrindo sobre a escrivaninha um anuário, procurou o
endereço da Sociedade de História e de Arqueologia da Normandia. Então, de um
jato, com uma tranqüilidade que faria empalidecer de angústia um grafólogo,
começou a escrever:

Ao Sr. Gaston Seyroles,


Secretário da Sociedade de História…

Meu caro confrade.

Tomo a liberdade de recomendar à vossa benevolência meu protegido, Raul


d'Apignac, jovem cartista com um futuro que promete ser brilhante.
Especializou-se ele na história de vossa pequena pátria e prepara uma tese
sobre a arte normanda, cujo interesse, estou seguro, compreenderá. Espero
que poderá facilitar suas buscas e peço aceitar meus agradecimentos, meu
caro confrade...

Raul acabou a carta sorrindo e assinou-a. Ele teria, enfim, esse manuscrito!
Prometeu que o estudaria cuidadosamente, página por página. Talvez estivesse
perdendo tempo. Mas também talvez descobrisse alguma coisa, precisamente o
que havia escapado às investigações de Maître Frenaiseau.
O prédio onde a Sociedade de História e de Arqueologia estava instalada era na
Rua Bonaparte. Era uma dessas velhas casas tranqüilas como poderíamos
encontrar em Caen ou Lisieux.
— O Sr. Seyroles? — perguntou Raul.
— Primeiro, acima da sobreloja — respondeu a porteira sem mesmo se voltar.
— Espero — pensou Raul subindo a escada — que ele não vá me deitar muita
falação sobre a arte normanda. Se assim for, o protegido do ilustre Tabaroux se
arrisca muito a desacreditar seu mestre...
Na porta havia um simples cartão, preso por quatro percevejos. Raul puxou a
cordão da sineta. Como seria esse Seyroles? Raul o imaginava pequeno, um
pouco sujo, com um gorro de seda negra e algodão nos ouvidos. No momento, o
Secretário da Sociedade não dava o menor sinal de vida. Teria ele escutado, pelo
menos? Raul puxou novamente a sineta sem resultado.
— Que pena! — pensava Raul. — Uma carta tão caprichada! Tanto pior. Eu
mesmo terei que me servir. Afinal de contas, estou habituado.
A porta, levemente empurrada, abriu-se sem dificuldade. Raul entrou, viu o
escritório que se abria à direita da antecâmara. Deu alguns passos e encontrou-se
numa vasta peça cujas paredes, forradas de estantes até ao teto, desapareciam
cobertas por livros. No meio da sala estendia-se uma comprida mesa coberta por
uma imensa toalha que caía até o chão. Em cima da mesa, fichários, pastas,
tinteiros.
— Nada de luxo — murmurou Raul. — Decididamente a erudição não rende
muito. Vamos ver.
Subiu num banquinho colocado justamente em frente à letra E. Ao primeiro olhar,
descobriu a falta. As Memórias do Conde de Eunerville estavam faltando.
Raul não pôde conter um gesto de cólera. Então! Alguém tomara a liberdade... No
entanto o notário havia esclarecido que o manuscrito quase não oferecia interesse.
Ainda se o bibliotecário não houvesse escolhido esse momento para ausentar-se...
Raul desceu de seu poleiro e sobressaltou-se violentamente. Depois aproximou-
se lentamente da mesa e levantou a toalha. Dois pés apareceram, calçados com
pantufas. O bibliotecário não fora longe!
Raul não perdeu um segundo. A qualquer momento poderia chegar alguém.
Ajoelhou-se e afastou a toalha. O velho homem lá estava, bem como o imaginava.
Apenas seu gorro havia caído e havia sangue no peito da camisa. À altura do
coração, a bala tinha aberto um orifício minúsculo. O cadáver estava frio.
Raul baixou a toalha, levantou-se. Certamente mataram Seyroles para roubar o
manuscrito. Era de uma evidência ofuscante. O livro de registro dos pedidos de
empréstimos estava aberto sobre a mesa. Raul percorreu com o dedo a coluna das
obras pedidas.
Memórias do Conde de Eunerville: 6, junho, Barão Galceran.
Olhou a coluna de obras devolvidas.
Memórias do Conde de Eunerville: 14, junho, Barão Galceran.
O manuscrito devia estar ali!
Raul sabia bem o perigo que corria demorando-se. No entanto era incapaz de
mover-se. Esse crime o transtornava e sentia, confusamente, que estava prestes a
enfrentar um adversário poderoso, resoluto e selvagem. Passou a mão na testa e
no rosto.
— Vejamos — murmurou, — talvez seja apenas uma coincidência. Não tenho
motivos para exagerar.
Debruçou-se sobre o registro. 14, junho, Barão Galceran.
Seu dedo passou à outra coluna: 6, junho, Barão Galceran.
Subitamente teve uma exclamação de surpresa. As letras... As letras não eram
exatamente iguais, se bem que, necessariamente, as duas inscrições deveriam ter
sido feitas pela mão do bibliotecário. A primeira, sem dúvida, fora escrita por
ele, mas a segunda, a do dia 14, era uma imitação. Os caracteres eram mais
grossos e ligados muito mal.
Daí em diante, toda a cena se refez no espírito de Raul, com a nitidez de uma
reconstituição; o homem matando o secretário, depois escondendo o cadáver
apressadamente e registrando a devolução do manuscrito, para esconder o
verdadeiro móvel do crime.
— E por pouco eu caio no laço! — exclamou Raul. — Não estava mal pensado.
Acontece, apenas, que eu também tenho o hábito de imitar assinaturas e escrituras,
compreendes, barão? Eu também tenho minha pequena habilidade, meus pequenos
truques... Desta forma, queres guardar o manuscrito contigo. Tens receio de que
ele venha a cair em mãos indignas... Bravo homem! Talvez mesmo faças coleção!
O Sr. barão interessa-se pela história. O Sr. barão tem suas boas leituras!
A cólera, o ódio, a alegria se misturavam no coração de Raul, alteravam suas
feições, cerravam seus punhos. Respirou fundo e tomou o fichário contendo o
endereço dos assinantes da Sociedade.
— G... Gadois... Gaffner... Galabert... Eis aqui... Galceram... Barão Galceran...
14 bis, Rua Cambacères, Paris...
Saiu do escritório na ponta dos pés, atravessou a ante-câmera e fechou
cuidadosamente a porta atrás de si.
— E agora, a questão é entre nós, meu aristocrata!
Raul não se tinha enganado. A residência do barão, ao fundo de um pequeno
jardim, parecia ser de um homem opulento. O caminho que levava à escadaria
externa era coberto de areia fina e ladeado por roseiras. À direita percebia-se,
por trás de uma cortina de arbustos, os vidros de um jardim de inverno. Raul
bateu à entrada e um empregado, mais parecendo um lutador mas envergando
uniforme e luvas brancas, veio abrir. Teve um pequeno choque. Essa silhueta
maciça, essa cabeça quadrada, ele já havia visto de longe, à margem do rio, no
barco. Dessa forma, suas suspeitas não eram falsas. Estava na boa pista.
— Faça-me o favor de entregar meu cartão ao Sr. Barão Galceran — disse ele. —
Gostaria de tratar com ele de um assunto urgente.
— O senhor tem entrevista marcada?
— Não.
— Nesse caso, creio que o Sr. barão não poderá recebê-lo. Além de tudo, ele está
se preparando para o jantar.
Raul agarrou o empregado fortemente pelo uniforme.
— Não gaste sua saliva à toa, lacaio. Vá levar meu cartão a seu amo. Diga-lhe,
simplesmente, que acabo de chegar da Rua Bonaparte.
— Mas senhor...
— Despacha-te!
Mortificado, o homem praguejou qualquer coisa e dirigiu-se para a casa. Raul
seguiu-o indolentemente e, de passagem colheu uma rosa que, depois de cheirar,
colocou na lapela. O empregado já retornava:
— Se o senhor quiser fazer o favor de entrar... Conduziu Raul, através dum salão
ricamente decorado, à sala de refeições, de onde chegava um ligeiro ruído de
prataria, e afastou-se. Raul inclinou-se cerimoniosamente. O barão, talheres na
mão, olhava-o. Era um homem de uns trinta anos, pesadão, sangüíneo, com o rosto
completamente barbado, como um ator. Procurava mostrar-se frio, mas o rosto
traía um certo nervosismo.
— Confesso, senhor — disse ele — que sua insistência me espanta. Mesmo
porque não vejo verdadeiramente...
Levantou os ombros e serviu-se de um pedaço de frango. Raul tomou uma cadeira
e sentou-se diante dele.
— Espanta-me, meu caro barão. Não terá nem mesmo uma vaga idéia?... Por que,
então, me receber?
— Eu lhe peço — cortou o outro, — terminemos com isso. O senhor forçou minha
porta. Entrou aqui como... como...
Procurou um termo de comparação, careteou e lançou raivosamente:
— Explique-se!
Seus olhos encontraram os de Raul e, durante um momento, os dois homens se
estudaram. O barão baixou os seus primeiro e, controlando-se, voltou a comer.
Raul apanhou uma perna de frango no grande prato no centro da mesa.
— Permita-me?... Imagine que não comi nada desde a manhã de hoje. Estou
comendo com as mãos... sem boas maneiras!
Pela primeira vez o barão teve um breve sorriso. Ele aderia ao jogo.
— Albert! — chamou. — Traga mais um talher para o cavalheiro.
O empregado de luvas brancas trouxe, solícito, pratos e talheres.
— Ora muito bem! — retomou Raul. — E ainda há quem afirme que as tradições
de hospitalidade estão se perdendo... Não, não, Albert. Nada de rabanetes. Por
causa do meu fígado!... Um dedo apenas de Pomerol... Obrigado... Meus
cumprimentos, barão. Seu cozinheiro é um artista e esta ave está uma pura
maravilha.
O barão havia parado de comer. Contra a vontade, observava com assombro o
homem sentado à sua frente que, neste momento, parecia transbordar de gentileza,
de bom humor, de indiferença.
— Pois bem, barão, será que sou eu quem lhe tira o apetite? Não acredito que
tenham sido apenas estas simples palavras Rua Bonaparte que o perturbaram a
esse ponto.
Raul olhou seu copo e aspirou-o.
— Que buquê!... À sua saúde, meu caro amigo,.. Ao bom êxito dos seus projetos.
— Quer me dizer...? começou o barão.
— Pois bem, eis aqui. Sou enviado pelo Sr. Seyroles... Conhece-o?
O barão fazia, com os dedos, uma bola de miolo de pão. Levantou a cabeça.
— Perfeitamente. Nosso excelente secretário da Sociedade de História e de
Arqueologia...
— Ele mesmo. Pois bem, esse excelente Sr. Seyroles encarregou-me, ainda há
pouco, de pedir-lhe um livro, um manuscrito melhor dizendo: as Memórias, do
Conde de Eunerville... Mas está me parecendo que isso o espanta, barão. Julga
porventura que o Sr. Seyroles não poderia confiar-me tal encargo?
Galceran cruzou os braços e a carne de sua nuca fez um inchaço acima do
colarinho.
— Não — murmurou ele — não acredito nisso.
— E por quê?
— Pela excelente razão de que levei pessoalmente esse manuscrito a Seyroles...
Uma obra monótona, além de tudo. Só a conservei alguns dias. O pouco que pude
decifrar tem um tal estilo!... Curioso o fato desse bom Seyroles não se haver
recordado. É bem verdade que em sua idade...
— E justo — concedeu Raul. — Ele é bem velho... E, além disso, com o que
acaba de lhe acontecer!
— O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa?
— Um ligeiro acidente.
— Nada de grave, espero.
— Uma simples bala no peito. Mas no bom lugar. Assim sendo não é,
propriamente falando, o bom Seyroles quem me envia, mas antes o seu fantasma...
Um fantasma extremamente simpático, de resto. Espirituoso, erudito... Mas
tagarela! É espantoso, tudo que nos pode contar um fantasma!
Raul comeu uma asa do frango. Mas mantinha-se sempre alerta e desenvolto. O
barão descansou os talheres.
— Afinal, senhor...
— Meu pequeno d'Apignac — disse-me o fantasma; — não terei repouso no outro
mundo, enquanto não souber que os negócios da Sociedade estão em ordem e
minha querida biblioteca completa. Portanto, vá buscar com esse desmiolado
Barão Galceran...
— Ah! É assim — disse o barão. — Não vejo bem aonde pretende chegar. Chega
de brincadeiras, se me faz o favor! Repito que devolvi as Memórias. Além disso,
a data da entrada deve figurar no livro de registro de empréstimo. Seyroles não
deixava nunca...
— Sim, ela ali figura.
— Então?
— Então, é simplesmente lamentável que essa data não tenha sido escrita pela
mão do Sr. Seyroles.
— Pela mão de quem, então?
— Do assassino desse bom Sr. Seyroles.
— E conhece-o?
— Sim.
— Pertence à polícia?
— Eu? Que pergunta desagradável! Será que tenho aparência disso?
— Foi uma idéia que tive. Mas qual a razão de ter vindo contar-me tudo isso?
Deveria dirigir-se à polícia, meu caro senhor.
Galceran tornava-se confiante e olhava de alto a baixo, com imprudência, Raul,
que sorria sempre, devorando com apetite o seu pedaço de frango.
— Pensei que a história o interessaria — disse Raul.
— Com efeito, ela me interessa. Eu tinha, por Seyroles, a mais profunda estima e
confesso que sua morte, sobretudo assim tão brutal... Mas repito mais uma vez,
não vejo razão para ter sido o escolhido...
— Se não vê é que me enganei. Desculpe-me, barão. Vou seguir, seus conselhos.
Falou-me em polícia. A idéia não é má. Aposto que o final da aventura
apaixonará esses senhores. Meu Deus, como o fantasma foi tagarela!
— O que tem, de especial, o final da aventura?
— Não, não creia ser obrigado a insistir.
O barão cerrou os punhos.
— Fale!
— Pois bem; imagine que esse fantasma, o fantasma de nosso amigo Seyroles,
mostrou-me a existência de uma impressão digital: um polegar ensangüentado a
um canto de um mata-borrão... Confesso que, sozinho, não teria descoberto tal
impressão. Nosso assassino, depois de haver colocado o cadáver sob a mesa, ao
levantar-se, apoiou-se maquinalmente. Mas estou falando, falando... Mais uma
vez minhas desculpas, barão, e obrigado. Excelente, esta ave...
— Espere! Ainda não comeu a sobremesa... E, além disso, devo reconhecer que
conseguiu despertar minha curiosidade. Tudo que me conta é tão inesperado, tão
estranho... Quase ouso dizer... tão original!
— Ouse, barão, ouse. A palavra justa é... tão original!
— Eu me pergunto, até onde pretende levar essa originalidade?
— Até confiar-lhe o nome do assassino, se assim o desejar.
— Digamos que eu desejo.
Raul encostou-se na cadeira e deu uma gargalhada e, quanto mais ria, mais
Galceran se enfurecia.
— É muito engraçado — murmurava Raul. — Não, és impagável... Como se não
conhecesses o assassino. Mas és tu, barão. Quem tu quedas que fosse{6}?
— Magnífico! Ousa sugerir...
— Não.
— Ah! Ainda bem que não chegaria a tanto.
Raul parou de rir bruscamente e, com voz cortante, a cabeça ligeiramente
inclinada, lançou:
— Não tenho hábito de sugerir. Eu afirmo... e provo. O primeiro perito a chegar,
comparando um espécime de sua caligrafia com a falsificação que figura no livro
de obras emprestadas, concluirá que as duas são idênticas.
— Ainda que fosse verdade, seria necessário que alguém sugerisse a idéia de um
tal confronto.
— Alguém fará a sugestão.
— Quem?
— Eu.
— E pensas que isso bastará?
— Não.
— E então?
— Um outro perito terá apenas o trabalho de comparar a impressão do seu
polegar esquerdo com a impressão sangrenta deixada no mata-borrão.
— E essa comparação ainda será uma sugestão sua.
— Certamente.
— Dito de outra forma, tudo depende de ti, apenas de ti. Sr. Raul d'Apignac faz,
acordo com sua vontade, que a chuva caia ou que o sol apareça. Sr. Raul
d'Apignac, ao que tudo indica, julga-se o próprio Bom Deus.
— Por minha fé, quase.
O barão havia-se debruçado por sua vez e ambos se olhavam fixamente por cima
da mesa. Lentamente, os dedos do barão amarrotavam a toalha, torciam, enquanto
seu pescoço se congestionava pouco a pouco. Finalmente, numa voz rouca, gritou:
— Quanto?
— Quanto o quê?
— Teu preço?
— Meu preço! Que preço? Por quem me tomas? Meu preço?... Nada,
absolutamente nada. Sou apenas um mensageiro. Se fosse somente eu... Acontece
que há o fantasma desse escrupuloso Sr. Seyroles. E ele é intransigente.
Intransigente, mas razoável, note bem. Façamos as pazes! Ele apenas exige a
restituição do manuscrito a fim de poder dormir em paz. "Que esse crápula me
devolva o manuscrito — disse-me ele — e passarei uma esponja em tudo. Afinal
de contas não estou pior aqui do que estava no outro mundo!"
— É uma chantagem.
— Cada um luta com as suas armas.
— Prefiro mais as minhas.
O barão apertou uma campainha. O empregado apareceu. A um sinal de seu amo,
abriu uma gaveta, enfiou a mão enluvada de branco e retirou-a com uma pistola
automática apontada para Raul.
— Não faça o menor gesto, meu caro — disse o barão.
Tocou uma segunda vez e Raul reconheceu, no recém-chegado, a figura do gnomo
cambeta que também havia visto no barco.
— Felicitações! Foram cuidadosamente escolhidos, não resta dúvida, no Jardin
des Plantes{7}. — E ao ver os bandidos avançarem: — Abaixo as patas, lacaios!...
Albert, tu nos servirás o café no salão.
Depois, consultando o relógio:
— Dez horas e meia. Como o tempo passa! Não se poderá nunca dizer que nos
aborrecemos em sua casa, barão. Ah! Podemos afirmar que sabe distrair suas
visitas. Pena que eu tenha que partir dentro de um quarto de hora.
— De verdade?
— Sim, às onze menos um quarto, exatamente. Tenho um encontro.
— Com uma mulher?
— Não, desta vez não... Com um amigo a quem não quero deixar esperando.
— Ele esperará.
— Não, esteja certo de que não! Se eu não sair de tua casa dentro de um quarto de
hora, ele irá entregar uma encomenda em certo endereço... Ora, adivinhe só o que
há nessa encomenda?... Não?... Falta de imaginação, barão... Simplesmente o
pedaço do mata-borrão, com a maneira certa de se servir do mesmo.
Raul pôs um dedo de Bordeaux em seu copo e, cruzando as pernas, um braço
passado acima do espaldar da cadeira, bebeu lentamente, como conhecedor. O
barão estava transfigurado.
— Tu és estúpido — disse Raul. — Meu Deus, como és infantil! Não podias
pensar, de forma alguma, que eu viria, sem mais aquela, atirar-me na boca do
lobo... Saiam, vocês!
Os empregados olharam Galceran. Este assentiu com a cabeça. Albert depositou o
revólver diante dele e os dois serviçais retiraram-se resmungando.
— Tu controlarás os rapazes — disse Raul. — Então, esse manuscrito?... Só me
restam sete minutos. Tomara que o relógio de meu amigo não esteja adiantado.
— Canalha!
— Não estou pedindo uma confissão... O manuscrito! O barão olhava a pistola.
Pareceu, durante um momento, hesitar; depois levantou-se, atirando o guardanapo
no chão. Raul estendeu o braço e pegou a arma.
— Não deves brincar com estes brinquedos. Um acidente pode acontecer sem
querer!
Descarregou a arma, onde faltava uma bala, e recolocou a pistola sobre a toalha.
Na peça vizinha Galceran remexia num móvel, praguejando. Sem uma palavra
lançou o volume sobre a mesa, um grande volume em marroquim, tendo na capa, a
enfeitá-la, uma coroa condal. Raul, rapidamente, folheou-o. As páginas estavam
cobertas por uma escrita miúda, apertada, correndo até às margens.
— Perfeito! Que os manes desse bom Seyroles descansem em paz... E agora,
barão, um pequeno conselho... Evite a Normandia... O clima é úmido... Muito
ruim para os reumatismos.
Apertou o manuscrito debaixo do braço e saiu batendo as portas para evitar
qualquer surpresa. Mas os empregados haviam desaparecido. Na escadaria parou
e gritou como se fosse para os bastidores de um teatro:
— Quanto àquela impressão sangrenta, sabes... Uma brincadeira!
Depois partiu pelo jardim, rindo.
Cerca de meia hora mais tarde, despia-se em seu apartamento do Boulevard
Péreire.
— Não agüento mais. Mas, de qualquer forma, der-roteio-o, barão. Fiz com que
ficasses enraivecido. Cozinhei-te a fogo lento. Ah! Tu cozinhas os pés dos
patriarcas! É a minha vez de cozinhar, a fogo brando!
Bocejou longamente e ensaiou, de camisola, dois ou três passos de dança, fazendo
bater imaginárias castanholas.
— Olé! O passo do fantasma... À forca, os aristocratas! De repente pensou na
criança loura, lá longe, no castelo da Bela Adormecida.
— Ah! Princesa — murmurou. — Se você visse agora o seu Príncipe Encantado!
Suspirou, deitou-se e abriu o manuscrito. Mas os rabiscos, as emendas, as
escritas superpostas fizeram com que se cansasse e terminasse sua curiosidade.
— Amanhã, me atirarei ao trabalho, meu pequeno Lupin. Por hoje chega.
Apagou a luz e dormiu logo a seguir.
Acordou com dia claro. Seu primeiro gesto foi estender a mão para a mesa de
cabeceira. Não pôde reter um grito. O manuscrito havia desaparecido.
3
A JOVEM EM DIFICULDADES

A cólera fez com que Raul saltasse da cama. Correu à porta; esta nem estava
fechada; como também a do vestíbulo. Tremendo de raiva voltou ao quarto. Havia
sido enganado e não era o roubo que o punha fora de si, mas a facilidade como o
mesmo fora cometido. Perdera aquela cartada, vá! Eram os riscos do negócio.
Mas que tenham retomado o manuscrito debaixo do seu nariz, isto ele não podia
aceitar. Ao mesmo tempo um surdo temor apossava-se dele. Pesava novamente a
audácia, a fria determinação do adversário. O jogo seria rude, perigoso,
impiedoso. Procurou forçar o riso e, enquanto fazia algumas flexões, pensava num
contra-ataque. O manuscrito estava agora fora do seu alcance. Restava o velho.
Ah! Este! Ia obrigá-lo a falar e o mais rápido possível!
O telefone tocou. Raul já esperava por isso. Atendeu: — Alô?... Reconheces
minha voz?... Sim, caro amigo, sou eu. Devo-te desculpas... Eu o recebi tão mal
ontem à noite. Um jantar medíocre!... Sinto vergonha. Nem consegui dormir. Então
disse a mim mesmo — "E se eu fosse fazer uma visitinha a esse caro Raul?"...
Tinha o teu cartão, teu endereço,.. Era um pouco tarde, mas na guerra, como na
guerra, não é?... De passagem, um conselho. Deverias mudar as fechaduras.
Qualquer um entra em tua casa com a mesma facilidade com que se entra num
moinho... Entrei. E que vejo? Esse bom d'Apignac dormindo como um anjo. Não
tive coragem de acordar-te. Não gosto de me tornar desagradável. Contentei-me
em trazer uma lembrança, uma ninharia, apenas para marcar a minha visita. Se o
manuscrito te houvesse realmente interessado, eu te encontraria a estudá-lo... Eu
te juro, no entanto, que vale a pena ser lido... Ele contém muitas coisas!... Assim,
se me permitas, eu o guardarei... E tu, sabes o que vais fazer... O tom da voz do
barão tornou-se áspero.
— Tu vais tornar um trem para a Itália e repousarás algum tempo longe de Paris...
O Lago de Como, que tal?... Ou, quem sabe, prefiras Veneza...
— E se eu recusar? — perguntou Raul.
— Creio que te arrependerás. Sou bom vencedor. E ficaria desolado se te
acontecesse alguma coisa... Não, não precisas agradecer... e a próxima vez que
venhas para jantar, previna com antecedência.... Sei que és um autêntico
gastrônomo...
— Qual o quê! — disse Raul. — Tenho gostos muito simples... Eu te pedirei
apenas para fazer-me um prato em que és um verdadeiro mestre.
— Sim, e qual é?
— Pés grelhados.
Raul desligou. Afinal, a palavra final fora sua. Era um bem pobre consolo. Se o
velho persistisse em seu mutismo... mas não! Ele, certamente, gostaria de vingar-
se de seus agressores. Não resistiria a um interrogatório bem conduzido, com
gentileza, com deferência... Revelaria o segredo a seu salvador, e o barão seria
obrigado a ajoelhar-se. Nesse minuto, Raul zombava do segredo; via apenas o
meio de triunfar sobre seus adversários e fazer com que engolissem seus
sarcasmos.
Vestiu-se rapidamente. Não podia ficar parado. O motor pegou à primeira volta
da manivela, e Raul saltou ao volante. O carro era bom; esse dia, foi excelente.
Nem uma pane, nem um pneu furado. Apenas algumas charretes, de quando em
quando, no caminho para a Normandia. O automóvel ultrapassou-as como um
furacão, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. Ao fim da manhã, Raul
vislumbrou o campanário de Nossa Senhora das Graças.
— Então, minha boa Victoire? O ferido?
Já estava no quarto levado pela vontade de agir, de se consumir, empurrado pela
necessidade de saber logo, agora, o quanto antes.
— Chut — murmurou Bruno. — Ele está dormindo.
— Falou?
— Ainda não.
— As queimaduras?
— Bem melhores.
— Então, molenga, vamos ao relatório. É preciso arrancar-te as palavras. O que
contam de novidade, na terra?
— Nada. Apenas algumas linhas no Eco de Trouville. Pensam que o velho, o pai
Bernardin como eles dizem... tenha fugido, vítima de um ataque de amnésia.
Raul segurou o pulso de Bruno.
— Não diga essa palavra — disse. — Sobretudo essa, não... Caramba, tu és
supersticioso!... E depois? Ninguém falou do castelo, do sono de seus moradores?
Bruno balançou a cabeça.
— De verdade? — disse Raul. — Ninguém então se apercebeu de nada...
— Os guardas vieram à procura do velho — retomou Bruno. — É o que contam
na estalagem. Andei passeando por aí, como um inofensivo turista. Mas, por aqui,
desconfiam de estranhos.
— Prossiga — murmurou Raul. — Diga qualquer coisa. Ele observava o velho
Bernardin. Acabara de surpreender um leve movimento revelador nas pálpebras.
O homem não dormia mais; ele escutava e Raul resolveu fazer o seu jogo,
compreendendo que Bernardin não se renderia tão facilmente. Seqüestrado do
castelo, ele via inimigos por todos os lados e, recobrando as forças, trancava-se
em seu mutismo, aí se fortificava, se entrincheirava, com toda sua teimosia de
camponês normando.
— Está bem, Bruno. Deixe-nos!
Raul sentou-se à beira da cama e com uma delicadeza inesperada, pousou a mão
sobre o ombro do velho.
— Vamos! Chegou o momento de abrir os olhos, vovô. Raul d'Apignac,
conheces?... Este nobre coração que te salvou com perigo da própria vida... Mas
que não poderá, talvez, salvar-te sempre... Até o presente, consegui aparar os
golpes. Coloquei-te ao abrigo. Dei-te um doutor e uma enfermeira... Mas, de
agora em diante, tu deves me ajudar.
Os olhos cinzentos do homem, meio escondidos pelas pálpebras caídas,
observavam esse desconhecido debruçado sobre ele e do qual sentia emanar uma
autoridade como a reverberação de uma fornalha.
— Deves ajudar-me — continuou Raul. — O que te digo não é por mim. Ê por ti.
Deves imaginar que teus três amiguinhos da pedreira não estão, no momento,
tranqüilamente sentados rodando os polegares.
Pegou Bernardin pelos ombros e, curvado sobre ele, como um lutador sujeitando
o adversário ao solo, acrescentou num tom estranhamente grave:
— Eu os conheço bem... Sei bem o que vale seu chefe... Por melhor que eu faça,
eles acabarão por te encontrar... e, dessa vez, poderei chegar tarde demais... Mas,
se tu falas, tudo ainda pode ser salvo... Vamos, então: o sangue de quem?
O velho respirava mais depressa. Abriu a boca. Raul compreendeu que um
obscuro trabalho desenvolvia-se naquele espírito, ainda meio entorpecido pelo
sofrimento e cansaço.
— O sangue de quem?
Lentamente, Bernardin baixou as pálpebras. Seu rosto pareceu se congelar sob as
rugas, como o de um morto. Ele se entrincheirava em sua noite, se recolhia com
seu segredo. Raul esperou um pouco, depois levantou-se sem ruído. Com o lenço,
enxugou o suor que lhe molhava a fronte.
— Eu sou paciente — murmurou. — Tu não podes imaginar a que ponto vai minha
paciência. Esperarei o tempo que se fizer necessário... Aqui, não estás mal... Eu
te guardarei. Não és meu prisioneiro. Estás, simplesmente, em observação.
Quando desejares falar, basta um pequeno sinal e logo estarei a teu lado... E
então, nós dois faremos grandes coisas, tu verás. Mas, pelo amor de Deus, abra os
olhos. Olha-me. Pensas que d'Apignac não é ninguém. E tens razão. Mas, atrás de
Raul, há dez outros personagens, há vinte lendas. Ê a História da França que está
neste quarto. Cumprimenta-a Bernardin!... Tens sorte de que eu me ocupe de ti... E
eu te juro que iremos juntos até o fim desta aventura... E vou confiar-te uma
coisa...
Raul interrompeu-se. A respiração do velho tornara-se regular. Adormecera.
— Tu pareces espertinho — censurou-se Raul. — Tu podes bancar o
engraçadinho e lançar a tua grande tirada. Tua platéia está adormecida. Acabou.
Cai o pano.
Saiu na ponta dos pés. Bruno o esperava no corredor.
— Então?
— É duro, o velho. Mas acabará por abrir o jogo. Continue a montar guarda. Vou
lavar-me rapidamente e irei ao castelo.
Raul tirou do carro uma pesada mala de viagem. Vinte minutos mais tarde,
transformado em repórter, vestido esportivamente, máquina fotográfica a tiracolo,
beijava Victoire.
— Voltarei esta noite, minha boa Victoire... Não comeces desde já a te queixares.
Afirmo que não corro nenhum risco. E a prova disso é que, em meu retorno, quero
comer uma grande, uma gigantesca omelete, como só tu sabes preparar tão bem.
Instalou-se no Léon-Bollée e, em velocidade reduzida, tornou a caminho para
Eunerville.
Gostava de dirigir quando precisava traçar planos para alguma batalha. Mas,
desta vez, devia confessar que a situação fugia ao seu controle. O manuscrito nas
mãos do barão, o velho recusando-se a repetir o que fora obrigado a confessar
levado pela dor, para onde dirigir a ofensiva? Essa visita ao castelo levaria a
quê? Raul tateava e se exasperava ao sentir-se impotente quando um formidável
segredo estava em vias de ser descoberto por bandidos vulgares que não
hesitariam em empregar o terror. E era preciso que tal segredo fosse mesmo
extraordinário, para que o barão não hesitasse em torturar, matar, como se o
tempo fosse pouco, como se, passada uma data fatídica, seria muito tarde para
decifrar o enigma. Nada poderia apaixonar mais Raul. A pergunta girava em sua
cabeça no ritmo de um motor: o sangue de quem?... o sangue de quem?... Era um
mistério de sangue, de violência e de morte.
Guardou o carro na entrada de Eunerville e dirigiu-se em rápidas passadas para o
castelo, insensível ao calor do verão. A meio caminho foi obrigado a esconder-se
ao lado da estrada, para deixar passar um automóvel que rodava a toda
velocidade. Teve, porém, tempo de reconhecer o homem que estava ao lado do
motorista. Essas sobrancelhas raivas e cerradas, esse rosto rabugento...
Lembrava-se do rosto que havia descoberto, no feixe luminoso de sua lanterna, a
noite passada no castelo... Hubert Ferranges. Tanto melhor! Ausente Ferranges,
teria o caminho livre. Alegre, pôs-se em marcha. Um guarda conversava diante do
gradil com uma mulher forte que carregava um cântaro de água. Raul aproximou-
se, mais jornalista do que nunca.
— Bom dia — disse ele com desenvoltura e amabilidade. — Richard Dumont, do
Eco de França.
Impressionados os outros se calaram. A mulher pousou o cântaro e enxugou as
mãos. O guarda cumprimentou-o.
— Ouvi falar de um desaparecimento — prosseguiu o jornalista. — Estava de
passagem, em Honfleur. Antes de retornar a Paris, gostaria de esclarecer o
assunto.
Parecia tão franco, inspirava de tal forma simpatia, que o guarda não se conteve.
— Oh! — disse ele. — É apenas o pai Bernardin que deve ter ido dar uma volta.
Não é verdade, Apolline?
Apolline assentiu, um pouco sem jeito por haver sido chamada pelo sobrenome na
frente de um estranho.
— Não devem dar tanta importância — respondeu ela. — Ele não está bom da
cabeça. Saberá, sozinho, encontrar o caminho de volta. Seus leitores parisienses
devem ter algo mais importante para ler.
— Se eu pudesse lhe dar um conselho — retomou o guarda, — boca fechada. O
Sr. Ferranges não ficará contente se a imprensa der destaque ao que não passa de
um caso corriqueiro. O Sr. Ferranges tem o braço longo.
— Eu não conhecia esse castelo. É notável! Apolline ruborizou-se de prazer e o
guarda torceu os bigodes.
— Com efeito — disse ele, — vem gente de longe para vê-lo. Mas o Sr.
Ferranges não permite visitas. E o pai Bernardin é quem mais protestará! Seu
castelo! Porque devo explicar-lhe que o castelo é um pouco dele, pelo tempo que
vive no mesmo!
— Nasceu aqui — interveio Apolline.
Raul tirou do estojo sua máquina fotográfica, abriu-a e olhou pelo visor.
— Ê pena — murmurou. — Estamos um pouco distantes. Talvez eu pudesse
aproximar-me um pouco?
Como resistir a um sorriso tão jovem, tão gentil?
— Preciso pedir permissão à senhorita — disse Apolline.
— Srta. Lucile — precisou o guarda. — A pupila do Sr. Ferranges.
E, enquanto Apolline se afastava, continuou orgulhoso por mostrar a um jornalista
de Paris, que um guarda pode ser outras coisas além de um simples personagem
de canções populares.
— Uma encantadora jovem, que teve muitos dissabores. Perdeu os pais, há perto
de dois anos, de uma forma estúpida... Ele se afogaram, durante um passeio
marítimo. Jacques Ferranges era, ao que parece, um engenheiro de grande futuro.
Tinha vendido numerosas patentes, sobretudo aos americanos, e fez fortuna em
poucos anos. O castelo estava à venda. Ele comprou-o. Parece, no entanto, que
este castelo não traz felicidade a seus proprietários... Fizeram buscas por toda a
costa. Não encontraram nem mesmo os restos do barco. Era um pequeno veleiro
de seis metros. O Sr. Jacques era um fanático pela navegação à vela. E veja a
coincidência... Habitualmente, quando saíam a passear, os pais da Srta. Lucile
sempre a levavam consigo... Lembro-me bem do relatório do brigadeiro e esse
detalhe chamou-me a atenção, na época. £ curioso, não acha?... Eles a levavam
sempre e justamente nesse dia a deixaram no castelo...
Raul escutava atentamente. Seu cérebro registrava cada detalhe, examinava-o,
analisava-o e o classificava no prodigioso fichário que era sua memória.
— E nunca encontraram os corpos? — insistiu. — O mar, geralmente, devolve
seus cadáveres.
— Não dessa feita. Mas o mais doloroso é que a infeliz jovem caiu doente após
essa desgraça. Não se sabe bem o que ela tem... Não come; não dorme mais,
segundo conta Apolline... Passa dias inteiros estendida numa espreguiçadeira, no
parque... A casa não é muito alegre, é bem verdade. O Sr. Hubert, o tutor, passa
todo o tempo na usina. Ele possui um curtume em Pont-Audemer. Dessa forma a
pobre menina fica sempre só. Há seu tio Alphonse, mas esse nunca ninguém o vê.
No entanto, até que ele não mora tão distante daqui. Herdou a propriedade onde o
engenheiro estava instalado, antes de comprar o castelo.
— Mas o senhor sabe mais do que um notário — disse Raul rindo.
O guarda sorriu, por sua vez.
— Ê meu serviço — disse ele. — Além de tudo os Ferranges são importantes.
Assim, forçosamente, ficamos um pouco ao corrente de tudo que lhes acontece.
— E essa menina, ali adiante, que se esconde atrás daquelas roseiras? Quem é
ela?
— Ah! É Valerie, a neta do velho Bernardin. Mais uma órfã! Seu avô a trata com
aspereza mas a adora. Por isso não consigo compreender como e por que ele
partiu sem dizer aonde ia.
Apolline regressava.
— Se o senhor quiser ter a bondade de seguir-me — disse ela. — A senhorita terá
prazer em recebê-lo.
— O senhor está com sorte — comentou o guarda. O falso jornalista estendeu a
mão.
— Obrigado, mais uma vez. E não tenha nenhum receio. Serei discreto.
Apanhou o cântaro com água e disputou-o com Apolline que queria tomá-lo.
— Deixe... Deixe.... Eu o devolverei ao fim da alameda.
Era perfeito esse repórter, tão obsequioso, tão afável. Como deixar de responder
com solicitude à suas perguntas? Todos sabem que um repórter deve ser curioso.
Dessa forma, Apolline entregou-se às confidencias. Sim, ela era ao mesmo tempo
criada de quarto e cozinheira, e seu marido, Achille, era jardineiro e chofer.
Quanto ao velho Bernardin, suas funções eram as mais vagas possíveis. Gostava
que o chamassem de mordomo, porque essa palavra lembrava os velhos tempos.
— Um tipo curioso! Ê preciso ver como ele se leva a sério!... E se o senhor o
ouvisse discutir! Uma miséria!... Sua neta, por exemplo, ele consegue quase
sempre que ela falte à escola. Diz ele que lá ensinam apenas mentiras. Um velho
maluco!... Agora, devolva meu cântaro; já chegamos.
Um caminho, que contornava o castelo, conduzia ao parque. Lá estava Lucile, sob
o copado castanheiro, estendida na espreguiçadeira, o cão a seus pés. Lia um
jornal. Raul reconheceu-a com uma estranha emoção. Era ainda mais bela, mais
comovente, do que na noite em que a vira adormecida. O buldogue levantou-se e
pôs-se a rosnar.
— Quieto... Pollux!
Ela tinha a voz fatigada, de uma pessoa cansada de lutar, sem esperança de cura.
Colocou o jornal sobre os joelhos e dirigiu ao visitante um sorriso cheio de uma
perturbadora melancolia. Raul inclinou-se.
— Richard Dumont, do Eco de França.
— Apolline, vá buscar uma cadeira — disse Lucile.
— Oh! Não é necessário — protestou Raul. — Quando se encontra uma relva tão
convidativa, é bom aproveitá-la.
E sem cerimônia, sentou-se na relva, aos pés da jovem. Depois, negligentemente,
cocou o buldogue, entre as orelhas, e o animal, satisfeito, ofereceu a cabeça às
carícias. Lucile observava com espanto.
— É incrível! — murmurou. — Pollux não costuma ser muito dado.
— É necessário jeito. Mas eu sei falar aos animais e aos homens. Sou apenas
inábil com as senhoritas.
Riram juntos e as faces de Lucile coloriram-se um pouco. Raul pensava: "Ria,
minha bela, esqueça um pouco os dias ruins. Quero que ames a vida, quero que
fiques maravilhada com ela e que continues, por muito tempo, a ter para comigo
esse olhar de amizade."
Colheu uma bonina e prendeu-a entre os dentes.
— Eu me sentiria feliz em cumprimentá-la por esta bela moradia — disse ele. —
Mas soube que ela abrigou mais tristezas do que alegrias... Por isso, falemos de
preferência, a seu respeito.
— Oh! Eu... Eu não sou ninguém. Já que sabe tudo, deve também saber...
Sua voz fraquejou.
— Vamos — disse o pretenso Richard Dumont, — sejamos fortes!... Nós temos
dezessete anos... Não vemos ninguém a não ser um tutor rabugento, empregados
assustados e esse velho louco Bernardin... Nós não temos mais passado e ainda
não temos futuro e nos aborrecemos tanto que preferimos dizer que estamos
doentes para sentir à nossa volta, à falta de ternura, um pouco de atenção.
Lucile escutava-o com um espanto crescente.
— Mas eu sou a mais infeliz... — interrompeu Lucile. Lágrimas surgiram em seus
olhos.
— Oh, meu Deus — balbuciou. — Por que não me levaram aquele dia com eles?
Por quê? Estaríamos os três mortos... Nós éramos tão felizes!
— Fale... Fale mais... — disse ele. — Eu sou seu amigo.
Tomou-lhe a mão, apertou-a suavemente, para transmitir-lhe um pouco de calor.
— Eles morreram a 19 de agosto — retomou ela mais calma. — Dezenove anos,
dia a dia, depois do seu primeiro encontro... um encontro de tal forma
dramático!... Meu pai, bem antes de seu casamento, comprara, atrás de Saint-
Adresse, uma propriedade com uma casa de pescador, pendurada no penhasco,
diante de uma pequena enseada onde nunca aparece ninguém Ele aí descansava,
pintava um pouco, dava vazão a seu talento. Um dia ouviu um pedido de socorro...
Era uma jovem... minha futura mamãe... quem chamava. Ela se banhava numa
praia vizinha; fora arrastada pela correnteza. Se meu pai não tivesse chegado a
tempo, ela teria morrido afogada. O que não os impediu entretanto... dezenove
anos depois... Acredita que tenha sido a fatalidade, Sr. Dumont?
— Certamente. Como todos esses cuja vida é feita de aventuras. E essa pequena
casa, esse casebre, que fim levou? Foi vendida?
— Não. Meu pai conservou-a como lembrança. Mas não ia mais lá. Deve estar
num estado lastimável.
Ele refletia. Com a extraordinária intuição que lhe permitira vencer tantas
batalhas, começava a sentir, por trás das coincidências, algo de sombrio, de
tortuoso, algo que lembrava fortemente uma conspiração.
—Eu poderia visitá-la? — perguntou.
Lucile, imediatamente, assustou-se.
— Confiei-lhe um segredo — disse ela. — É preciso que ninguém saiba...
— Ninguém saberá.
Havia uma tão doce persuasão em suas palavras, que Lucile sentiu-se mais
tranqüila.
— Depois de Saint-Adresse, deve seguir o penhasco durante pouco mais de três
quilômetros. Há um atalho, uma vereda, que desce; a casa se chama Gros Galet{8}.
— Ainda uma pergunta. Sua mãe... suponho que fosse muito sentimental, muito
romântica.
— Era. Eu me pareço muito com ela.
— Certamente — pensou Raul. — Começo a compreender...
Levantou-se impetuosamente, fervendo de impaciência. Tinha vontade de
maravilhar a jovem, bater-se em sua defesa, a fim de devolver-lhe o sorriso. E,
ao mesmo tempo, sentia que um misterioso perigo rondava em sua volta. A
impressão foi tão forte que olhou em redor, mas o cão teria latido se alguém se
escondesse ali por perto deles.
— Será que tens confiança em mim? — perguntou a Lucile.
Ela olhou-o com o olhar triste de seus olhos violeta.
— Eu não o conheço, senhor — disse ela, sonhadora, — mas é tão diferente dos
outros! Sim, tenho confiança.
— Pode ter; pode ter... Agora, escute-me... Vai voltar para casa. Não dirá nada de
minha visita ao seu tutor. E amanhã, às três horas, nós nos encontraremos... Não
aqui, fora da propriedade... na esquina do parque com a estrada... Terei, talvez,
muita coisa a dizer-lhe... Não... Não me pergunte nada. Ainda é muito cedo. Até a
vista, minha jovem... E a partir de agora, aconteça o que acontecer, repita consigo
mesma que não está só, que há alguém, bem perto, que vela, escondido e que não
permitirá que se toque nem mesmo num fio de seu cabelo.
— Acredita, portanto, que eu estou em perigo? Ele pôs um dedo nos lábios.
— Amanhã. Às três horas.

Berville, a balsa do Sena, a estrada do Havre... Raul poderia correr esses


caminhos de olhos fechados, tão familiares pareciam ser! Talvez, por essa razão,
se sentia tão alegre! "Vamos — dizia a si mesmo — sejas franco. Não procures
iludir-me. Confesses que estás feliz, absurdamente feliz, porque desejas salvar
essa pobre órfã, porque ela é tão bela e tu és Lupin... porque és tolo,
incuravelmente, e apesar de tudo, gosto de ti assim como és!"
Atravessou a aldeia numa revoada de aves domésticas apavoradas e retomou o
monólogo: "Todos os proprietários de Eunerville, morrendo tragicamente, um
após o outro, não pode ser uma coincidência. E, para finalizar, o barão torturando
Bernardin. Haverá uma ligação entre essas duas séries de acontecimentos?...
Devia haver alguma, mas qual?... E a que perigo Lucile estava exposta? Tu não
sabes nada. Não é necessário encouraçar-se. Não é a mim que virão contar
histórias! Tu possuis apenas um pequeno ponto de partida: os Ferranges foram
assassinados. Como? Por quê? Mistério! São João sucede a Jacob, D'Artagnan...
Bem. é inútil insistir!"
Chegou ao penhasco de Saint-Adresse. Uma velha camponesa indicou-lhe a
enseada do Gros Galet. Mais dois quilômetros e encontraria o atalho... Mas
deveria ter cuidado pois haviam ocorrido alguns desmoronamentos no último
inverno. Raul deixou o carro numa entrada da estrada e prosseguiu o caminho a
pé. Lembranças vinham à sua memória, que não podia afugentar. Ele então
acreditara não muito distante, quando procurava um refúgio para esconder sua
dor, que tudo estava acabado, que a vida, daí por diante, não lhe traria nenhuma
alegria. Mas um homem como ele era capaz de viver, numa única existência, uma
série de existências sucessivas. E ele se sentia milagrosamente novo,
transbordante de energia. O enigma do castelo de Eunerville não lhe resistiria
mais tempo do que os inúmeros que já havia resolvido.
O penhasco descia. Descobriu o atalho que serpenteava através a vegetação
rasteira.
— Diabo! — pensou. — O Sr. Ferranges devia ter uma queda pelas escaladas.
Porém, logo adiante, observou que o caminho se apoiava, nas passagens mais
delicadas, nas ondulações do terreno, tornando-o sem perigo, apesar do abismo
que parecia, sem cessar, atrair quem por ali passasse, e não demorou a chegar a
uma estreita praia, apertada entre duas rochas que a dominavam do alto. A
impressão de solidão era quase opressiva. Os numerosos seixos estendiam-se até
as primeiras ondas. À esquerda, havia uma pequena casa apoiada ao penhasco.
Era preciso chegar perto para descobri-la. Fez a volta, tentou com a mão as
janelas fechadas; ainda estavam sólidas. A porta estava trancada. Marcas
esverdinhadas de umidade manchavam as paredes, mas a casa, apesar de um ar de
sinistro abandono, havia resistido bem às intempéries. Entre a parede do fundo e
o penhasco, abria-se um estreito espaço cheio de despejos: velhas ferramentas,
remos, uma escada corroída pelo sai, redes para pesca. Com as mãos na cintura,
Raul examinou pensativamente aquela insólita decoração. "Estranho —
murmurou. — Estranho! Mas, de certa formai, sedutor! Tirou do bolso um estojo
chato contendo hastes metálicas de formas variadas e atacou a fechadura que,
atingida pela corrosão, resistiu bastante. Finalmente a porta se abriu.lançando no
rosto do visitante um bafo de mofo. Entrou ê encontrou uma sala que devia ter
servido, noutros tempos, de sala de refeição e quarto de dormir, porque tinha à
esquerda um largo diva. No fundo estava armado um cavalete de pintor e algumas
telas se encontravam ainda encostadas à parede. À direita, uma mesa para dois:
pratos e talheres estavam postos, talos de flores haviam apodrecido. Na lareira,
um recipiente de cozinha estava derrubado sobre as cinzas. "Ê Pompéia!" —
disse Raul. Tudo estava cinzento, pegajento, horrivelmente morto. Mas o fato
mais espantoso era essa mesa servida, como se um amor aí se houvesse refugiado
e durasse, desafiando o tempo.
Num gesto maquinal, Raul descobriu-se. Deu alguns passos sobre o chão coberto
de poeira onde apareciam ainda pegadas de passos anteriores. Não podia haver
engano: lado a lado as marcas de sapatos de um homem e uma mulher. "Os
Ferranges — pensou. — Para celebrar o aniversário de seu encontro voltaram
aqui. Por isso não quiseram trazer a filha. Era sua festa particular, só para dois! O
passeio de barco não passava de um pretexto. Haviam preparado amorosamente
esse encontro a sós... E..." Raul examinou o chão de mais perto. "Eles não saíram.
É curioso!"
As pegadas se cruzavam, da porta à mesa, da mesa à lareira, depois se dirigiam
para a outra peça, disfarçada por uma cortina; sem dúvida uma cozinha. Mas não
regressavam. Existiria uma outra saída por ali?
Raul avançou, o coração palpitando. O que esconderia aquela cortina? Afastou-a.
E de repente, o chão cedeu. Foi tão rápido que Raul não teve tempo de estender
os braços, de procurar um ponto de apoio. Caiu pesadamente. Mas a queda foi
curta e amortecida pela areia. Logo o alçapão, movido por alguma mola invisível,
fechava-se com um estalo, tal os dentes de uma armadilha.
4
O CÁRCERE

A escuridão era total. Raul sentou-se e apalpou-se. Não se ferira. Tateou em sua
volta. Estava numa cava. A casa havia sido construída com alicerces não muito
firmes, e aos poucos, dissimuladamente, a areia durante algum tempo contida,
havia começado a se infiltrar, assim como o mar nos restos de um naufrágio.
Levantou-se, esticou-se o mais possível na ponta dos pés, levantou um braço
acima da cabeça e encontrou apenas o vazio. A lanterna, da qual nunca se
separava, resistira ao choque. Apesar de emitir somente um pequeno feixe
luminoso, era o suficiente para iluminar em volta do alçapão. Nem uma argola,
nem a menor aspereza. As poderosas molas que fechavam a armadilha de
madeira, ao nível do assoalho, estavam localizadas no fundo de uma cavidade
inacessível na alvenaria.
Raul passeou em volta o facho de luz de sua lanterna. O fosso era vasto e
rigorosamente vazio. Nem uma caixa sobre a qual pudesse subir para atingir a
abertura do alçapão; o que, aliás, não serviria de coisa alguma pois a mão não
teria onde apoiar-se. No entanto a claridade mostrou algo brilhando num canto
mais afastado. Raul aproximou-se e um suor de angústia molhou-lhe as têmporas.
O que brilhava era a cabeça de um morto, um crânio branco como ossos de peixe
que encontramos na beira da praia. E, sob a fina camada de areia que se havia
acumulado, Raul adivinhou a forma de um outro esqueleto, menor, cujo crânio,
meio enterrado, estava voltado para o que havia sido um rosto muito querido. Os
dois amantes estavam mortos um nos braços do outro e sorriam para a eternidade.
Raul apagou a lanterna. Esse homem que havia enfrentado tantos perigos e
zombado tantas vezes da morte, esteve por pouco a entregar-se a uma crise de
nervos. Num segundo compreendeu a verdade que havia pressentido. O casal
Ferranges havia sido assassinado. Alguém, pacientemente, metodicamente, havia
transformado o ninho de amor numa armadilha mortal. Suas vítimas vindo ao Gros
Galet apenas uma vez por ano, teve tempo bastante para preparar essa armadilha
mortal. Suas vítimas vindo ao Gros Galet apenas sobre suas vítimas. E a
abominável esperteza fora eficaz. Infelizmente uma terceira vítima viera oferecer-
se e, certamente, partilharia a mesma sorte dos outros dois. Que adiantaria gritar,
bater, clamar por socorro? Que adiantaria fazer o mesmo que os dois anteriores
na certa teriam feito em vão?
Raul estendeu-se na areia úmida, cruzou as mãos sob a nuca e procurou refletir
calmamente. Ninguém sabia que ele viera visitar a casa. Portanto ninguém teria
idéia de descer a essa praia e explorá-la. É bem verdade que havia a Leon-
Bollée, abandonada no caminho do penhasco. Na certa avisariam a polícia da
presença insólita daquele carro, mas o inquérito não levaria a nada. Restava,
talvez, tentar furar um túnel. Com quê? Com as mãos...
Raul tirou o paletó, dobrou-o cuidadosamente e, ajoelhado junto ao muro
começou a cavar. Mas bem cedo rendeu-se ã evidência. A areia era muito fina.
Quanto mais cavasse mais ela corria pela escavação. Seria necessário molhá-la.
Raul, no entanto, insistiu. A areia que tirava com as duas mãos, atirava para longe
de si, por cima do ombro. Conseguiu fazer um buraco e parou, cansado. Na
escuridão tinha a impressão de que esse buraco era bastante profundo. Tateou à
procura do paletó. Onde o tinha colocado? Avançou ajoelhado, uma das mãos
estendida adiante de si, temendo, a todo instante, apalpar os esqueletos.
Terminou encontrando a vestimenta e acendeu a lanterna. O buraco media sessenta
ou setenta centímetros de profundidade. E havia trabalhado durante longo tempo
para alcançar apenas esse irrisório resultado. Sem alguma ferramenta não iria
adiante. Esse homem tão enérgico, sabia, melhor do que ninguém, quando
começava o impossível. Enxugou a testa, procurou brincar. "Cuidado, o momento
não é próprio para apanhar um resfriado. Brrr! Um grogue seria bem-vindo!" Mas
o silêncio era tão espesso que ele estremeceu e sentou-se, com as costas na
parede, paralisado pela fadiga. E pouco a pouco foi surgindo o medo. Pela
primeira vez seu espírito, tão fértil em estratagemas de todas as formas, não
encontrava uma solução. Pela primeira vez, Lupin não era mais Lupin.
Quem seria o criminoso que enfrentava agora? Quem havia tramado essas atroz
vingança, havia condenado dois inocentes a morrer lentamente de fome, sede e
desespero? E as-1 sim mesmo, até o último momento, os dois se ampararam um ao
outro. Mas ele, ele estava só... Apurou o ouvido. Um barulho surdo vinha de
muito longe... o mar... A maré subia. Não havia mais ninguém na praia. O medo
estava lá, em sua volta, no próprio ar que respirava. Ele era forte. Resistiria
vários dias. Sua agonia não acabaria assim.
Apertou as mãos e esteve a pique de gritar. O que o obrigou a guardar a
dignidade, foi o absurdo pensamento de que os dois esqueletos que ali estavam
eram, apesar de tudo, um público assistente. E ele imaginou que o observavam,
que pensavam: "Lupin não está mais o mesmo. Ele se acovarda." "Estão com a
razão — pensou ele — estou quase me acovardando. Mas se me derem uma
pequena, por menor que seja, razão de esperar, verão do que sou capaz.
Desgraçadamente, não há nenhuma. Até mesmo meus inimigos desconhecem o fato
de que estou aqui. Foi um acidente tolo, imprevisível e irremediável. Desculpa-
me pequena Lucile. Não poderei comparecer ao encontro."
E subitamente ficou assombrado. Viva! Existia, sim, essa mínima razão para
esperar... Lucile! Mas logo afastou a idéia. Lucile iria esperá-lo às três horas e
talvez ficasse algum tempo... depois voltaria para casa tristemente. Por que iria
ela caminhar até a casa que deveria trazer-lhe lembranças tão tristes? Mas a
esperança é como uma pequena fogueira que se mantém acesa com pequenos
gravetos. Os mais fracos argumentos bastam para alimentá-la. Primeiro, o
caminho não era tão longo assim. E no castelo deveria haver, com toda certeza,
uma bicicleta. Depois, Lucile gostaria de apurar porque esse homem, que parecia
temer algum perigo, não havia comparecido ao encontro. E, como esse homem a
perturbara, como quisesse revê-lo de qualquer forma, ela, com a ajuda da
imaginação e da energia, pensaria: "Ele precisa de mim, É por minha culpa que
ele está em perigo; por causa do que eu lhe disse a respeito de meus pais". Ela
então se lembraria de sua conversa, das perguntas a respeito do Gros Galet... Se
esse jornalista tão simpático faltasse à sua palavra, teria como causa,
provavelmente, a casa ao pé do penhasco... E se lhe houvesse acontecido um
acidente? Se ele houvesse caído?... Iria precisar de alguém que o socorresse. Ela
sairia do castelo... Ela viria... E, por sua vez, cairia na armadilha. Meu Deus!
Raul levantou-se, fez a volta de sua prisão, com a cabeça em fogo. Não. Nunca,
sobretudo isso. Mais valia morrer. Certamente ele preferia tombar à luz do sol,
por alguma causa elevada, em lugar de agonizar como um rato, rto fundo de um
buraco. Mas aceitava morrer ignominiosamente, como um ser nocivo, contanto
que Lucile ficasse a salvo.
De repente, foi invadido pela certeza de que ela partiria à sua procura e estendeu
as mãos como para dissuadi-la, afastá-la para longe dessa fossa atroz, onde a
esperavam os esqueletos de seus pais. Tropeçou, caiu ajoelhado, a repetia
baixinho: "Não você, Lucile. Sobretudo, você, não!"
Vencido pela fadiga, a angústia, a noite, deitou-se e ficou longo tempo prostrado.
Cochilou diversas vezes, sempre assaltado por pesadelos. E depois, já que nele o
desânimo não conseguia nunca fincar pé, saiu desse estado de torpor que
substituía o sono. Ficou lúcido, alerta, pronto a enfrentar os obstáculos. Olhou o
relógio. Oito horas. Forçosamente, oito horas da manhã.
— Diabo! — disse ele. — Passar sem um jantar, ainda vá. Mas o desjejum!...
Não se trata mais de higiene. É puro ascetismo!
Falara em voz alta, para fazer um pouco de ruído, rompendo o silêncio, do qual
nenhum outro silêncio poderia dar uma pálida idéia. Não renovou sua tentativa
mas, como um desafio, mesmo no escuro, obrigou-se a fazer sua ginástica matinal.
"Pelo menos que eu morra com boa saúde!" Depois, voltou para perto do buraco e
tateou o chão. A areia havia retomado posse da escavação que não passava,
agora, de um buraco sem profundidade. Não tinha, verdadeiramente, meios para
cavar um túnel. O alçapão? Nada a fazer. Recaiu no círculo vicioso dos mesmos
projetos e das mesmas derrotas. "E agora — pensou — vou invocar Lucile. Vejam
só!... Imbecil! Como se essa menina se preocupasse contigo."
Sentou-se novamente, encostado à parede, e retomou seu monólogo: "Ela não se
preocupa contigo, apenas porque não pensas nela com bastante intensidade. Ora,
tu não tens outra escolha. Ou ela, ou nada. Portanto, esforça-te. Lembra que os
insetos se reconhecem à distância de vários quilômetros. Tu vales mais do que um
inseto! Se te esforçares bastante, ela acabará por sentir tua presença ao seu lado e
obedecerá; tu atuarás nela, como um instinto. Traga-a até aqui. Quando a ouvires
gritarás para que tenha cuidado. Não há outro meio. Mas te previno: não será
fácil. Jura-me que não dormirás novamente."
Raul estendeu o braço e praguejou. Depois, procurou concentrar-se. Não era
muito difícil. Bastava acompanhar Lucile em imaginação, segui-la de seu quarto à
sala de jantar, de ajudá-la a apanhar a espreguiçadeira, chamar Pollux, atravessar
as imensas peças do térreo para chegar ao pátio, instalar-se à sombra e sonhar
com o desconhecido que surgira no justo momento em que sua vida se tornara
pesada demais para suportar...
Raul beliscou-se nas costas da mão. "Então é a isso que tu chamas transmissão de
pensamento... Mas estás cochilando, meu velho... Anda, de pé! Ela se levanta. Ela
vai colher flores... Ela está vagamente inquieta. Por tua causa. Porque tu parecias
compreender como seus pais morreram... E agora, ela passa seu tempo a repetir:
ele sabe alguma coisa. E sem cessar olha a hora.
Raul acendeu a lanterna e tirou o relógio. Ficou espantado. "Meio-dia! Já! Ela vai
sentar-se à mesa com seu tutor..." Ela está sentada à sua frente, na sala imensa.
Não tinha fome. Raul podia vê-la com uma nitidez prodigiosa. Fazia uma bola
com miolos de pão, com os finos dedos. Apolline trazia um prato de peixe pois
era sexta-feira, e o aroma da fritura fazia-o desfalecer. Há vinte e quatro horas
que não comia nada. E murmurava. "Vamos, um pequeno esforço. Está delicioso
esse peixe. Além disso tens necessidade de todas as tuas forças, se puderes
pedalar até aqui..." A refeição prolongava-se. O tutor, de quando em quando,
falava alguma coisa... Um relógio bateu uma hora. Foi a vez do café. Raul tinha a
boca seca. Estava completamente entregue a esse terrível jogo. Lucile subia ao
quarto. Escutava os ruídos do castelo, o ronco do auto que levava seu tio; dentro
em pouco Apolline estaria ocupada com a lavagem da louça... Duas horas... Duas
horas e meia...
Raul se encolhia. Era agora, que tudo ia ser decidido. Lucile sairia do castelo.
Ninguém a veria sair. Chegaria ao lugar do encontro. Três horas... Ah! Lucile! É
tua vez de pensar em mim, bem fortemente, ainda mais fortemente... Se não
compareci foi porque não pude... Se não pude, é que estou prisioneiro... É preciso
que minhas palavras voem através do espaço... Pri-si-o-nei-ro... como um
telegrama... Se Lucile chegasse a captá-lo, ela viria. Prisioneiro! Estou
prisioneiro! Raul, terrivelmente tenso, movia os lábios. Ele ouvia a palavra fluir
de si e, pouco a pouco, fraquejava; ele se esvaziava de toda energia. Chegou um
momento em que teve que parar, como um ferido completamente sem forças. E
agora, cabia a Lucile tomar a iniciativa... Não adiantava tentar guiá-la... Ou ela
estaria a caminho, ou era a morte que se aproximava... Mas, com toda certeza, ela
estava a caminho, porque as coisas não poderiam se passar de outra forma,
porque um Arsène Lupin não fora feito para morrer enterrado, como uma toupeira.
Era necessário querer, querer... Não olhar mais a hora, não achar o tempo longo
demais... Era preciso andar como um velho cavalo de tirar água do poço, que
anda em círculos, sem pensar em coisa alguma...
E ele andou, casmurro, os pés afundando na areia, uma das mãos tocando as
paredes, afastando-se dos esqueletos. Ele era todo vontade de andar. Se, por
desgraça se abatesse, tudo estaria acabado. Não teria mais força de gritar quando
Lucile, em cima, caminhasse para a armadilha. Porque não tinha nenhuma dúvida
de que, dentro de alguns instantes, ela estaria ali... Talvez não agora, mas daqui a
pouco. Respirava forte. Mascava a areia que fazia seus dentes rangerem. Seus
tornozelos tremiam. Caiu sobre um joelho, massageou-se demoradamente. Não
olhar a hora. Esta era a pior tentação. O resto, a fome, a sede, ainda eram
toleráveis. Mas se fraquejasse, se tirasse o relógio, se descobrisse, por exemplo,
que já eram seis horas... Então só lhe restaria deitar-se e aguardar o fim... porque,
sem confessar, já havia calculado o tempo necessário para vir de Eunerville, de
bicicleta, até ali. Com um impulso, pôs-se novamente de pé.
Foi então que ouviu um ruído e ficou imóvel, maravilhado, incrédulo. Essa
espécie de estalido era de passos sobre os seixos. Com a mão na boca,
paralisado, os olhos fechados, concentrou-se para melhor analisar esse ruído tão
tênue, que talvez fosse apenas seu próprio sangue circulando nas artérias. Mas o
ruído ficou mais nítido. E trouxe com ele a luz, o vento do exterior, a promessa de
vida, como o choque longínquo de uma batida anuncia ao mineiro soterrado, que a
salvação está próxima. Mas, sobretudo, ela marcava o triunfo de Raul. Só,
perdido, sem socorro, sem a menor esperança de salvação, apenas pelo poder de
sua vontade, ou talvez de seu orgulho, Raul, uma vez mais, forçara o Destino.
Inundou-o um sentimento de intensa alegria. Lágrimas apareceram em seus olhos.
E esse homem, tão dono de si, chorou.
A porta rangeu acima de sua cabeça e o assoalho estalou levemente. Então, com
todas as forças, ele gritou com um nó na garganta:
— É você Lucile?... É você, não é?...
De muito longe a voz da mocinha respondeu:
— Sou eu.
— Bem. Não se mexa. Onde você está exatamente?
— Diante da mesa.
A coitada! Ela olhava para os dois talheres e procurava compreender..,
— Está vendo a cortina, Lucile?... A armadilha est aí, bem atrás... Sim, um
alçapão que se abre quando se pisa em cima.
— Está ferido?
Adorável Lucile. Em sua voz já havia a inquietação de uma mulher, uma angústia
de que ela ignorava o sentido, mas que Raul, trêmulo, decifrava.
— Não, não tenho nada. Mas estou preso. É preciso que me ajude... Dê a volta
por fora da casa. Atrás, encontrará uma velha escada. Você a trará para a sala.
Depois então explicarei o que há a fazer.
Os passos afastaram-se e logo um rebuliço de coisas se entrechocando, avisava a
Raul que o suplício estava perto do fim. Teve, então, um gesto que espantou a si
mesmo. Cansado, esfomeado, machucado, limpou a areia de sua roupa, escovou-
se, verificou a gravata e o friso da calça. "Mantenhamos a linha, velho camarada
— disse ele. — Evidentemente se pudéssemos nos barbear seria melhor... E
apruma-te, caramba! Não te esqueças de que és um jovem repórter!"
Acima, a escada se chocava com os móveis, arranhava o assoalho.
— Está pronta? — gritou ele.
— Estou.
Da forma como respondeu era fácil compreender que o esforço havia sido maior
do que suas forças.
— Está bem... Você está no fim de seus tormentos, Lucile. Você vai levantar a
extremidade da escada que está do seu lado e aí empurrar a outra extremidade,
deslizando sob a cortina. A escada irá passar sobre o alçapão e seu peso o abrirá.
Entende como deve proceder?... Vamos... Lentamente!
Os pés da escada arranharam o assoalho e, subitamente, o alçapão abaixou-se,
deixando entrar uma claridade oblíqua
— Pare!... Espere um instante.
Raul, aproveitando-se do pouco de claridade, aproximou-se dos esqueletos.
— Desculpe-me — murmurou. — Mas nunca mais ninguém os aborrecerá.
A mãos cheias, cobriu-os de areia.
— É para que ela não os veja — explicou. — Durmam em paz. Eu me ocuparei
dela. Eu lhes prometo. Sei o que pensam! Estão enganados! Eu me ocuparei dela
como um velho amigo, paternalmente e um pouco amoroso... Eu é que serei seu
tutor. O outro, é um pateta. Adeus!
— O que faço agora? — perguntava Lucile.
— Bem, você levantará a escada e fará com que ela desça lentamente...
Três minutos mais tarde, Raul retomava pé no mundo dos vivos. Levantou a
escada e o alçapão fechou-se. Tomou a mão de Lucile.
— Vamos sair daqui de uma vez. Lá dentro, é sufocante.
O sol ia alto. A maré subia. Não havia ninguém à vista.
— Sem você disse ele — eu estava condenado... Mas graças a você, descobri
algo de capital, de muito importante... Vejamos... Lembre-se... Durante os últimos
meses você nunca se sentiu ameaçada?... Não se passou alguma coisa que a tenha
assustado?
— Não... Não vejo o que... ouve o acidente com o cabriolé...
— Ah!
— Mas foi um simples acidente. Uma roda quebrou-se, num sulco do terreno. Fui
atirada ao chão. Se o cavalo disparasse, eu estava perdida... Mas ele ia a passo,
contra seu hábito.
— Quando aconteceu?
— Há três meses. Acredita que...
— Claro! O acidente foi provocado... como os outros... Não é por acaso que os
proprietários do castelo desapareceram sucessivamente... Seus pais foram as
últimas vítimas... Tenha coragem, Lucile.
A mão da jovem apertou a sua.
— Eles estão lá, não estão?
— Sim. Sabiam que eles vinham todos os anos, na data do aniversário do seu
primeiro encontro. Prepararam cuidadosamente a armadilha. E depois, deram
sumiço ao barco. Quem deixaria de acreditar num naufrágio?... E agora é a sua
vez.
Lucile agarrou-se ao braço de Raul.
— É abominável — disse ela.
— E depois de você — continuou ele — atacarão sem dúvida seu tutor... sempre
com a mesma astúcia e a mesma paciência, para que ninguém possa suspeitar da
verdade. Você, como eu pressentia, está correndo perigo.
— Mas por quê? por quê?... Não fizemos mal a ninguém.
Raul ficou um instante pensativo.
— Ah! Se eu pudesse viver no castelo, a seu lado, saberia rapidamente o por quê.
— Se você ao menos tivesse aparecido mais cedo oito dias — disse Lucile. —
Você deve saber que existe no castelo uma biblioteca muito importante. É mesmo
célebre. Meu tutor contratou, na semana passada, um secretário para pôr um
pouco de ordem em todos esses livros, catalogá-los... Resumindo: ele chegará
dentro de quatro dias.
— Mas é maravilhoso! — exclamou Raul. — Seu tutor conhece esse homem?
Eles já se viram?
— Não. Entraram em contato através 'um anúncio aparecido numa revista
literária. O Sr. Léonce Catarat procura um emprego de...
— Você se recorda do endereço desse senhor?
— Lembro. Fui eu mesma quem escreveu as cartas... Léonce Catarat, 13 Rue des
Batignolles, em Paris.
— E você disse que ele deve chegar quando?
— Terça-feira.
Lupin passou seu braço sob o da moça e levou-a pela vereda do penhasco.
— Pois bem — disse ele, — com a colaboração dessa jovem, de quem conheço a
gentileza, vamos organizar nossa defesa. Daqui em diante não teremos mais
acidentes em cabriolé, eu lhe garanto.
— Mas — disse Lucile, subitamente intimidada, — quem é você, exatamente?
Raul deu uma gargalhada.
— Adoro esse "exatamente". Que homenagem! Imagine, minha cara Lucile, que eu
não sei nada de mim mesmo. Um jornalista é um homem de cem caras. Ê preciso,
para vencer nesse duro mister... Eu vou, eu venho, eu farejo, me disfarço... Eu me
perco um pouco, para ser franco... Assim, esse Léonce Catarat, sinto que vou
entrar em sua pele, mesmo contra sua vontade, por mimetismo, e pelo prazer de
viver perto de você.
Lucile ruborizou-se de uma forma que agradou sobremodo a Raul.
— Você tem oportunidade — murmurou ela. — Você é livre! Não tem que prestar
contas a ninguém dos seus atos... Parece-me que eu nunca mais me sentiria doente,
se também tivesse o poder... Mas estou dizendo bobagens.
— Bobagens! Ora vamos! Você nunca teve tanta razão. É o tédio que a devora,
minha cara Lucile. Mas, ao meu lado, você não corre perigo de aborrecer-se, eu
lhe juro. Veja hoje, por exemplo, que aventura!...
Lucile parou na primeira curva do atalho e voltou-se para a casa que iria ficar
fora de vista. Raul, suavemente, cobriu-lhe os olhos com a mão.
— É preciso nunca olhar para trás, menina... Seus pais têm a sepultura que eles
mesmo desejariam... Além disso é preciso que o inimigo não saiba o que
descobrimos... Vamos! Venha! Eu a deixarei na porta de Eunerville.
Procurou seu carro, guardou a bicicleta em seu interior e instalou Lucile a seu
lado.
— Você teve medo? — perguntou ela.
— Tinha certeza de que você viria.
— E se eu não tivesse vindo?
— Sou eu quem coloco os se. Nunca me sujeito a eles.

Raul retomou a estrada para Paris segundo seu hábito, devorando o espaço.
Depois de deixar Lucile, parará numa estalagem e comera uma fatia de presunto,
uma torta de maçã e tomara três xícaras de café. Sentia-se maravilhosamente bem
disposto e feliz. Apenas uma sombra no quarto: o barão, ou melhor, o mistério do
barão. Porque, atrás do barão, havia certamente alguém que se escondia... O
barão era apenas um homem de ação, capaz das piores brutalidades, mas bastante
limitado para idealizar "acidentes" como o de Eunerville, a sutileza do suplício
imposto ao casal Ferranges. Isso denotava uma inteligência aguda, implacável, e
uma paciência monstruosa, qual a da aranha preparando sua teia, da serpente
aguardando sua presa, desses animais noturnos que atacam sem ruído, assim que a
vigilância da vítima afrouxe. Ele mesmo, se não tomasse cuidado, seria atacado,
ou em sua própria carne, ou naquilo que agora ele tinha de mais precioso: Lucile.
"Não a toque — rosnou ele. — A mim, não tem importância. Eu sempre
encontrarei um jeito de me desenredar. Mas ela... se alguma vez lhe acontecer
qualquer coisa, nada poderá me deter." E deixando-se levar pela cólera, lançou
seu carro pela estrada como uma bala. Chegou a Paris perto de uma hora da
manhã, foi ao seu apartamento do Boulevard Périere, tomou uma ducha e depois
de fazer uma refeição, deitou-se, murmurando antes:
— Durma bem, pequena Lucille. Seu anjo da guarda não está longe... Ele vai
descansar também. De quando em quando os anjos também dormem!

No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, Léonce Catarat, após um medíocre


almoço, saiu do restaurante onde sempre comia. Enxugando os bigodes, pensava
melancolicamente em todos os modestos almoços que deveria comer, ao longo de
uma vida sem atrativos, e estava de humor sombrio quando atravessou a rua para
comprar um jornal. Uma freada brusca sobressaltou-o. Um poderoso carro parará,
quase o atingindo. Estava tão perto dele que perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos.
Levantou-se, apoiado no quente radiador. O motorista precipitou-se amparando
Catarat.
— Desculpe, sinto muito!
— Não se preocupe — balbuciou Catarat. — Sou um tanto distraído...
— Desculpe! Era eu que ia com muita pressa.
— De qualquer forma, não tenho nada.
— Não estou assim tão certo.
— Pode ver... Nem um arranhão.
— Pode haver ferimentos internos, justamente os mais graves. Venha!
— Onde?
— Ao meu médico. Quero ficar absolutamente tranqüilo a esse respeito.
O desventurado Catarat, apesar de seus tímidos protestos, foi levado por uma mão
de ferro para o carro. Seu companheiro demonstrava sempre as maiores atenções,
o que não o impedia de dirigir com arrojo que fazia tremer de medo o infortunado
secretário. Num piscar de olhos haviam chegado a Neuilly. O automóvel parou
com uma freada diante de uma clínica. Um atlético enfermeiro abriu a grade.
Catarat foi retirado do assento num instante, levado para o interior do prédio. Em
vão protestava:
— Eu não tenho nada... lamento estar dando tanto trabalho... Ê muita bondade
sua...
Ele se encontrava numa sala pouco iluminada, cheia de complicados aparelhos,
enquanto o enfermeiro, autoritariamente, começava a despi-lo.
Durante esse tempo, o motorista entrava na sala do médico. Levantou para a testa
os óculos de automobilista e, sem cerimônia, sentou-se numa cadeira, com um
sorriso encantador.
— Trago-te um cliente fresquinho, hein, meu velho... Engessa-o durante três
semanas... E sobretudo, um regime especial! Champanha, galinha, tudo que ele
queira... e mesmo o que não queira... Todos os seus desejos serão ordens, mas
como ele é muito pobre para desejar muito, trata de escolher em seu lugar.
Abrindo a carteira, tirou dois maços de notas que depositou a um canto da mesa.
— Isto é para a nova instalação de Raios X... e isto, é para teu cliente, quando
estiver curado... Da parte de seu atropelador. Ele será bastante cretino para
procurar recusar, mas insiste até que ele acabe recebendo.
Levantou-se; depois', debruçando-se, acrescentou em voz baixa:
— Meu Deus! Ia esquecendo o essencial. Ele escreverá uma carta para Hubert de
Ferranges, no castelo de Eunerville. Essa carta não deve, de forma alguma, ser
enviada. Toma nota: castelo de Eunerville... Queime a carta!
5
O RAPTO

O artigo publicado pelo Eco de França fez algum barulho. Todos descansavam
nessa véspera de férias. Apesar do mal-estar político, apesar do ruído de armas
que se ouvia um pouco, em toda Europa, os jornalistas não tinham mais nada a
oferecer a seus leitores, a não ser as notícias corriqueiras, sem importância, a tal
ponto que renderam comoventes homenagens a Gaston Seyroles, quando de seu
enterro. Lembraram as etapas de sua obscura carreira; celebraram suas humildes
virtudes; afirmaram que brevemente seria vingado.
"O Inspetor-chefe Ganimard teria uma importante pista — escrevia o jornal. —
Interrogado num corredor da Prefeitura de Polícia, adiantou que teria
novidades dentro de quarenta e oito horas. "Talvez, voltemos a falar de um
personagem um pouco esquecido, mas sobre o qual sempre mantive vigilância",
acrescentou ele de maneira um tanto sibilina. E como alguém perguntasse se,
por acaso, queria aludir a seu velho inimigo Arsène Lupin, o inspetor
contentou-se em pôr um dedo diante dos lábios e dizer: "Quem sabe?".
Os maledicentes exclamaram: "Estão querendo que esqueçamos o rearmamento da
Alemanha!" Os mais bem informados, levantaram os ombros: "Esse pobre
Ganimard! Desde que ele se sente desarvorado, acusa Arsène Lupin." Mas um
grande número de curiosos estremeceu de prazer. Finalmente! Iriam rir um pouco.
Bem que tinham necessidade disso. E foi sussurrado de um a outro, num vasto
murmúrio através de todo o país: "Arsène Lupin não morreu! Arsène Lupin está
de volta!"
Raul d'Apignac amarrotou o jornal e atirou-o aos pés da cama. O inspetor-chefe
Ganimard teria uma importante pista... Qual o quê! Já teria ele descoberto a
pista do barão? Impossível! "Eu, Lupin, precisei de um quarto de hora — pensou
Raul — e possuía alguns elementos que ele não possui. Ele precisará, no mínimo,
de seis meses. E assim mesmo, se tiver sorte. Não, não. Ele está blefando.
Procura aparecer, tornar-se interessante. Isso não pega mais!"
Mas estava de mau humor quando chamou seu empregado. Estava de mau humor
quando comeu, sem apetite, seus ovos com presunto e quando cortou um dos
pequenos charutos holandeses fabricados especialmente para si, não havia ainda
voltado ao seu estado normal. A polícia não tinha nada que a levasse a envolver-
se no caso de Eunerville. Era grande demais para ela. Quanto ao barão, que
tirassem as mãos de cima. A caça era sua e de mais ninguém. Assim, resolveu
escrever ao Eco de França. A declaração de Ganimard ferira seu amor próprio.
Um personagem um pouco esquecido... Ah! Ele usaria o mesmo tom. Pois bem,
iriam ver. Personagem um pouco esquecido, que topete! Por mais que repetisse:
"Dentro de três dias estarei no castelo, junto dela." nada adiantava. Era um dia
ruim, um desses dias cinzentos, quando nada dá certo, a ducha está muito quente,
perdemos um botão da botina, ou o espelho reflete um rosto envelhecido.
Raul pôs um chapéu de panamá, escolheu uma bengala para passeio e saiu. Fora,
ele estaria mais à vontade para dar uma resposta áspera ao Sr. Ganimard. Dirigiu-
se para o Bois. No fundo, esse velho imbecil tinha razão. Há muitos meses que o
público estava sem ter os saborosos artigos que"tanto haviam servido para criar a
lenda de Arsène Lupin "Antigamente — sonhava Raul — eu anunciava meus
golpes. Eu os comentava. Numa palavra: divertia-me. Deus, como era jovem!
Mas também a época se prestava mais a isso. Eram todos mais alegres. É preciso
que encontre um meio de recomeçar uma dessas aventuras que mantinham o
público em suspense..."
Estava tão absorvido por tais reflexões que não prestou atenção a dois homens
que andavam atrás de si e que, pouco a pouco, chegavam mais próximos e o
enquadravam. Raul parou.
— Ah! Isso...
Um terceiro personagem surgiu diante dele. Um quarto veio juntar-se ao grupo e
encostou o cano de um revólver nas costas de Raul.
— Nem um gesto, Raul d'Apignac. Em nome da lei eu o prendo.
A cena fora tão rápida; ela correspondia tanto às preocupações de Raul, que este
estourou de riso, reencontrando todo o seu bom humor.
— Ora viva, Ganimard, estás verdadeiramente fazendo uma cena! Sim, sou eu,
Raul d'Apignac. Sou eu mesmo, tu sabes, esse personagem um tanto esquecido.
Mas ria, velho camarada. Ganhaste... Assim, por uma vez pelo menos, alegra-te!
E sacudindo-se de riso, prosseguiu para grande espanto dos policiais que
acompanhavam Ganimard:
— Ah! Tu me imitarás! Maldito Ganimard! Nós nos colocamos às costas dos
outros. Não estando muito seguro, é melhor irem quatro. De repente, o grande
momento, a voz sepulcral: "Raul d'Apignac, esteja preso!" Então o senhor se
volta. Surpresa! Ei-lo. D'Apignac; é Lupin... Segurem-no bem. Estão vendo que
ele está prestes a desmaiar. Não é mais um jovem, vocês sabem. E eu lhe fiz cada
uma... Como? As algemas! Em mim? Mas se o meu maior desejo é segui-lo.
Estava justamente pensando: "É preciso valorizar um pouco esse bom Ganimard.
Talvez isso possa ajudá-lo a ser promovido..."... Tenho sua permissão para
enxugar os olhos? Não tenho culpa se chego a ponto de chorar de rir... Ah! Tinha
também um táxi a seguir-nos? Ele pensa em tudo, o sabidão. Aprendam,
senhores... Pois bem, passem à frente! Não?... É verdade, o convidado desta feita,
sou eu... Chofer! À Torre Pontuda{9}!
— Canalha! — resmungou Ganimard. — Daqui a pouco te mostrarás menos
fanfarrão. Eu te ensinarei, pessoalmente, a matar bibliotecários.
— Então tu pensas que... Qual! É engraçado demais. E naturalmente tens uma
prova. E quando falo em prova quero dizer prova definitiva, inatacável.
— Não apenas uma! Duas!

Essas duas provas Raul foi conhecê-las no dia seguinte, quando compareceu
diante do juiz de instrução Formerie. Estava perfeitamente descansado e sentia-se
remoçado dez anos. Dessa forma, foi com a melhor boa vontade que se prestou ao
interrogatório. Porém, antes de nada fez questão de esclarecer uma questão.
— Não falemos mais de Arsène Lupin — disse ele. — É do conhecimento
público que suas impressões digitais desapareceram há muito tempo dos arquivos
da Polícia Judiciária e, assim sendo, ninguém tem o direito de pretender, ainda
que tal fato me pareça sumamente lisonjeiro...
— Mas o inspetor-chefe Ganimard...
— Cá entre nós, Sr. juiz, ele está delirando. Lupin está morto. Todo mundo sabe
disso.
— Vá lá... Bem, quero dizer, admitamos. Você não é Lupin... O que não impede de
ter assassinado esse infeliz bibliotecário. Antes de mais nada, tenho aqui uma
carta de apresentação assinada por Gabriel Tabaroux, recomendando
calorosamente Raul d'Apignac ao secretário de História e de Arqueologia da
Normandia... Será preciso acrescentar que Gabriel Tabaroux, Membro do
Instituto e Oficial da Legião de Honra jamais escreveu essa carta?
— Mas...
— Espere! A arma do crime, a pistola do assassino, foi encontrada perto do
corpo. Faltava uma bala. A mesma que foi extraída do cadáver de Gaston
Seyroles. O relatório do perito é categórico a esse respeito. Ora, a coronha dessa
pistola, traz magníficas impressões... As suas impressões, Sr. d'Apignac.
— Como?
— Estou dizendo que as impressões tomadas ontem, após sua prisão, são
idênticas àquelas encontradas na arma... Dessa forma, é indiscutível que o senhor
é o assassino.
— Estou ficando seriamente aborrecido.
— Perdão?
— Por um lado está o senhor persuadido de que eu não sou Raul d'Apignac.
— Certo.
— Por outro lado, não hesita em acusar-me de assassinato.
— Certo!
— Então, não sei a quantas andamos. Porque eu juro que não matei ninguém.
Como Lupin, não tenho sangue nas mãos. Assim estou quase a perguntar-me se
não sou Lupin.
— Não permito que faças brincadeiras — exclamou o juiz.
— Escute — disse Raul conciliadoramente. — Estou de acordo que as provas
apresentadas são perturbadoras. Mas, das duas uma: ou sou Lupin ou não sou
Lupin. Está me seguindo?... Ora, se eu sou Lupin, sabe o senhor que não posso
permanecer preso. De acordo?... Amanhã, já estarei longe daqui... Mas, se fujo,
fica evidentemente provado que sou Lupin. E como Lupin não mata, terei assim
demonstrado minha inocência... Evidentemente o raciocínio é um pouco
complicado... Vejo, Sr. Juiz, que esta um pouco perdido...
— Basta! — gritou o Juiz Formerie.
— Vamos, vamos. Não nos aborreçamos!
— Ah! Agora não me resta mais nenhuma dúvida. Vós sois mesmo Lupin.
— Nesse caso sentirei muito mas, dentro em breve, eu me despedirei com uma
reverência.
— É o que nós veremos.
— Então, será uma prova de que não sou Raul d'Apignac.
O juiz espumava de raiva, Raul sorria. O escrivão escutava, de boca aberta. Raul
ali sou delicadamente o friso de suas calças e cruzou as mãos sobre os joelhos.
— Sr. Juiz, peço que me escute. Afinal de contas estou aqui para ajudar a justiça.
Nesse momento, com essa prisão ridícula, está me impedindo de encontrar o
verdadeiro culpado e de entregá-lo em suas mãos. Eu não tenho tempo de mofar
numa cela. Não pretende, realmente, soltar-me?
— Levem-no daqui, — disse o Juiz Formerie sufocado.
— Um minuto. Pense bem que tomei minhas precauções, Sr. Juiz; sinto que lhe
devo prevenir: tenho uma fuga planejada. Portanto, reflita!
Como os guardas já o segurassem, Raul libertou-se com uma sacudidela e gritou:
— Escolho como meu advogado, Maître Henri Bornade.

... Uma hora mais tarde, em sua cela da Santé, tinha tempo bastante para refletir e
devia confessar que, uma vez mais, a situação não era das melhores. O adversário
conduzia brilhantemente o jogo, aproveitando suas menores falhas. A primeira
fora manusear a pistola na casa do barão. O empregado usava luvas. E a coronha
deveria ter sido previamente limpa. O golpe havia sido montado? Haviam
aproveitado a situação?... Resumindo, de alguma forma roubaram suas impressões
digitais. O inimigo via longe e manobrava de forma superior. A segunda falha fora
ter conservado a carta assinada por Tabaroux, em vez de destruí-la. Bastou ao
barão apanhá-la, na noite em que retomou o manuscrito e examinou os bolsos de
Raul. Em seguida voltara ao local do crime que ainda não fora descoberto e aí
deixara a carta e a pistola. O assassinato estando devidamente assinado, a polícia
faria o resto. Dessa forma, em algumas horas Lupin, batido por suas próprias
armas, fora posto fora de combate e obrigado a recorrer a soluções desesperadas.
E dentro de dois dias deveria apresentar-se no castelo de Eunerville, com a
identidade de Léonce Catarat! Se Ma\tre Bornade se omitisse, tudo estaria
perdido...
Mas Lupin não se assustava ao sentir-se encurralado. Tirando da bainha do paletó
um pedaço de papel e um minúsculo lápis que escaparam à revista, escreveu uma
carta para o Eco de França:

Apodrecendo ainda uma vez na palha úmida dos cárceres, encontro na minha
inocência a força para gritar minha indignação a todo o país. Eis que me
acusam, a mim, Arsène Lupin, de haver assassinado o infortunado Gaston
Seyroles, como se, morto há tantos anos, eu não me houvesse transformado
num inofensivo fantasma.

Mas o inspetor-chefe Ganimard, sem conseguir prender os verdadeiros


culpados, não hesita em encarcerar fantasmas. Assim, apesar de minha
repugnância em usar minhas prerrogativas de espectro, serei forçado a
atravessar as muralhas e deixar o além, de onde não demorarei a abater-me
sobre o criminoso, para obrigá-lo a confessar seu crime. Não deixarei de
manter o público informado dos progressos de minha campanha em prol da
salubridade.

Arsène Lupin, alma do outro mundo.

À hora da sopa, Raul passou a carta ao primeiro guarda que apareceu, juntamente
com uma boa nota. O outro escondeu carta e dinheiro e afastou-se. Nas mesmas
circunstâncias, Raul já havia usado tal processo. Mas, desta feita, estava jogando
com a venalidade do homem. Ganhou. E no dia seguinte pela manhã, foi uma
imensa gargalhada.
Na rua os transeuntes disputavam o jornal. Sem se conhecerem, trocavam idéias,
cumprimentavam-se. "É bem ele". E ainda havia quem duvidasse de que estivesse
vivo!... Isso vai mudar as coisas! E havia em todos os olhares uma excitação que
traduzia, ingenuamente, a alegria popular. O Aventureiro estava de volta. De
repente, a vida cotidiana, com suas intrigas e suas misérias, tornava-se mais fácil
de ser vivida. Alguém lá estava, inatingível e todo-poderoso, que punha a serviço
da justiça os imensos recursos de sua inteligência e sua energia. E logo as apostas
apareceram, nas fábricas, no metrô, nos cabarés e até mesmo na classe média.
"Fugirá... Não fugirá..." As apostas não subiram muito porque um comunicado
lacônico informava, naquela mesma noite, que o Sr. Raul d'Apignac, suspeito de
ser Arsène Lupin, havia inexplicavelmente desaparecido da Santé. Sua detenção
havia durado quarenta e oito horas. Em seu lugar, fora encontrado seu advogado,
Maître Henri Bornade, devidamente espancado, e incapaz, o coitado, de explicar
o que havia acontecido.
Então, foi o delírio. Tudo foi esquecido: a tensão internacional, as façanhas dos
primeiros aviadores, o escândalo Caillaux... Ah! Todos reconheciam bem a
maneira provocante de Lupin, sua desenvoltura espiritual, seus tesouros de
astúcia e sua fertilidade de imaginação. Mas como diabo conseguira ele? Quais
os cúmplices que havia conseguido recrutar num tempo assim tão curto? Com que
passe de mágica conseguira burlar a ativa vigilância de que era objeto? Foi
apenas muito mais tarde, depois da morte de Maître Bornade, que Lupin explicou
sua fantástica evasão. Parece que ainda o ouço dizer-me:
— Até então estava impossibilitado de revelar a verdade. Além disso, sou como
os ilusionistas. Não gosto de explicar meus truques. E esse era tão banal, que
envergonhava-me falar no mesmo.
Via seu perfil fino se animar e sorrir destacando o pequeno pé de galinha no canto
dos olhos. Debruçou-se para mim com um ar maroto e deu-me um tapa amigável
no joelho.
— Vamos! Não me digas que nunca compreendeste! Essa fuga estava preparada
há muito tempo, por pura precaução. Bem que eu preveni o velho gagá do juiz.
Verdadeiramente, eu tramara uma fuga adiantadamente, assim como se toma
adiantado um dinheiro que se tenha guardado para atender um caso de urgência.
Sou obrigado a prevenir-me cuidadosamente, até mesmo das asneiras da polícia.
Portanto Maître Bornade sabia o que devia fazer, desde o momento em que lhe
pedi ajuda.
Lupin esticou-se na cadeira e abriu-se num riso jovem, tão jovem que dava prazer
ouvi-lo. Recomeçou, com a voz de quando em quando cortada ainda por um
acesso de riso.
— O infeliz Bornade, que não podia recusar-me coisa alguma — mas isso é outra
história — usava, obedecendo minhas ordens, um espesso bigode e uma magnífica
barba, longa, sedosa, um verdadeiro acessório teatral. Era, talvez aborrecida para
ele, mas indispensável para mim... Ele entrou em minha cela aquela manhã, de
impermeável já que estava chovendo e de chapéu enterrado até os olhos. E uma
meia hora mais tarde, os guardas viram sair um bigode, uma barba, um chapéu
enterrado e um impermeável, sem duvidar, um instante sequer, que eles escondiam
este seu criado. Em sua pasta, ele simplesmente havia levado bigode e barba
postiços. Pura mágica!
— E ele?
— Bem, antes de sair, amigavelmente, fiz com que dormisse com um soco no
queixo. Estava combinado. Ninguém devia desconfiar que ele fosse um cúmplice.
É por isso que até hoje Ganimard se pergunta como eu consegui disfarçar-me...
Com essa, Lupin despediu-se. Eu deveria ficar vários anos sem o tornar a ver.

No dia seguinte da fuga de Raul d'Apignac, um homem de silhueta delgada, de


aspecto seco, vestido com uma jaqueta lustrosa e de óculos, apresentou-se na
grade do castelo de Eunerville. Foi Achille, o chofer, quem veio atendê-lo.
— Sou Léonce Catarat — disse timidamente o visitante.
— Por que veio a pé da estação? — comentou Achille secamente. — Nós iríamos
buscá-lo. O patrão o espera na biblioteca. Siga-me. Dê-me sua mala.
Conduziu o secretário ao castelo e levou-o à presença do Sr. Ferranges, que
examinou o recém-chegado com uma certa condescendência.
— Sabe o que esperamos de si, Sr. Catarat? Minha sobrinha deve ter explicado.
Conhece bem esse tipo de trabalho?
— Creio... sim... bem, enfim me parece que não é muito difícil.
— Eu quero um catálogo alfabético por autores e outro catálogo por assuntos...
— Perfeitamente. Talvez seja... desculpe-me... um pouco demorado.
— Não importa. O senhor está em sua casa, Sr. Catarat. Não tenho tempo de
mostrar-lhe o castelo, pois devo ir para a usina, mas minha sobrinha terá prazer
em guiá-lo... Lucile! Venha aqui um instante.
A jovem surgiu, saindo do salão. À vista do secretário, pareceu profundamente
desiludida... estendeu molemente a mão, enquanto seu tio acabava as
apresentações.
— Pois bem, eu o deixo, Sr. Catarat... Lucile vai conduzi-lo a seu quarto.
E com uma saudação seca o Sr. Ferranges afastou-se.
— Por aqui — disse Lucile, dirigindo-se para a escada. Lupin quase comentou:
— Eu sei. Já estive aqui...
Era para ele uma profunda satisfação subir a nobre escadaria, atrás de Lucile.
Alguns dias antes, ele lá estivera, dominando o medo, enquanto soava a sineta de
alarme; hoje ele entrava na bela mansão, ccmo convidado. Adorava tais
contrastes, essas mudanças de situações que eram o sal e pimenta de sua agitada
vida. E, travesso por temperamento, ele antecipava alegremente a surpresa que
iria causar a Lucile, quando revelasse que não era Catarat e sim Richard Dumont.
repórter.. Subia atrás dela, fingindo olhar em volta de si com olhares de
admiração e respeito.
— Eis seu quarto, Sr. Catarat... Ele dá para o parque.
— Obrigado... É magnífico. Dá para escutar o canto dos pássaros... Adoro
pássaros... Se tivesse meios, gostaria de ter um viveiro, um imenso viveiro...
Procurava mostrar-se bem insignificante, vagamente ridículo, e divertia-se
intensamente em sentir que aborrecia a jovem, porque não era aquele que ela
esperava, porque pensava que o misterioso jornalista que ocupava seu
pensamento não viria mais.
— Deseja visitar agora o castelo, ou prefere repousar um pouco?
— Desejo conversar com você.
Lucile, que se dirigia para a porta, parou e voltou-se para esse personagem
ridículo cuja voz acabara de se modificar. E ela assistiu a um espetáculo
espantoso. O pequeno secretário emproava-se; subitamente, a jaqueta usada que
vestia tomava um aspecto elegante; retirava os óculos; seus olhos brilhavam de
malícia; fez uma reverência à antiga, varrendo o chão com um chapéu imaginário.
— Richard Dumont, para servir-lhe.
Desatinada, ela não sabia se devia rir ou aborrecer-se. As mãos apertadas sobre
o colo, examinava quase medrosamente esse novo visitante que surgia assim,
respondendo a seu apelo mudo, como o príncipe encantado de uma história de
fadas.
— Pois então — disse o jornalista, — eu não havia prometido que viria?...
Pareceu-me mais prudente tomar um aspecto inofensivo. Não tenha dúvida de que
nossos inimigos nos vigiam. Mas quem desconfiaria de um Catarat?
— Costuma sempre disfarçar-se... Sr. Dumont?
— Muitas vezes. Atendendo a obrigações de meu trabalho. E ouso dizer que tenho
alcançado excelentes resultados. Você vai ver.
Num piscar de olhos pareceu encolher; seu olhar apagou-se atrás dos óculos; a
jaqueta saía de seus ombros como de um espantalho; sua voz tomou um tom rouco,
voltou a gaguejar com timidez para perguntar:
— Será que eu... se me pudesse permitir... hum... a palavra, estou bastante
insignificante?
Lucile aplaudiu e exclamou como uma jovem que estivesse assistindo a um
espetáculo:
— Outra vez!
— Não — disse Richard Dumont. — Está esquecendo que estou aqui para
trabalhar. Sejamos sérios!
— Mas que fim deu ao verdadeiro Léonce Catarat?
— Psiu!... Na naftalina... Aprenda, Lucile, que é necessário que nunca me faça
perguntas. Não se inquiete a meu respeito.
— E saberá fazer o seu trabalho?
— É infantil. Já tive ocasião de fazer algumas coisas bem mais difíceis!
Ele sorria. Estava absurdamente feliz. Uma vozinha que pie bem conhecia,
segredava-lhe ao ouvido: "Velho cabotino! Tu não acabaste ainda de bancar o
Marivaux{10} com essa criança que o admira tão ingenuamente! Plante uma
bananeira para impressioná-la. Ou suba pelas paredes". E ele replicava: "As
coisas não irão assim tão longe, eu juro. Apenas é preciso compreender que a
pobre menina estava doente de solidão. Eu lhe devolvo, neste momento, a saúde,
o sorriso, o amor à vida... E, além disso, tu me aborreces!"
— Continuemos com a visita — disse Lucile.
— Não se preocupe em acompanhar-me. Desculpe-me. Prefiro ficar só para
conhecer melhor o castelo. A propósito, e Bernardin?
— Ainda não retornou — disse Lucile. — Estamos começando a ficar aflitos. Se
sua ausência se prolongar, meu tio avisará a polícia. Talvez tenha acontecido
alguma coisa. Sei bem que ele estava habituado a ir e vir à sua vontade. Foi
sempre muito cioso de sua independência...
— Justamente. E ficará furioso se colocarem a polícia à sua procura. Acredite-
me, é preferível esperar um pouco mais. Use sua influência sobre o Sr. Ferranges.
Do meu lado, verei o que posso fazer... Ah! Ainda uma coisa. Na minha presença,
mantenha sempre uma atitude distante, É bem simples, como se eu não existisse
para você. Aqui eu não passo de um vulto, de uma sombra... E agora, vamos nos
separar.
Entrou na biblioteca e examinou as paredes cobertas de livros melancolicamente.
Arredondando, deveria ter de quatorze a quinze mil volumes a examinar! Não
pretendia perder semanas redigindo fichas; tinha algo mais importante a fazer.
Mas como? Não sabia bem o que deveria procurar. Para chegar a um resultado,
era necessário, sem dúvida, ter a seu dispor não só o velho Bernardin, como
também o manuscrito. Portanto, logicamente, o barão apareceria pelas
vizinhanças e então... Raul passou para a galeria. Ficou agradavelmente
surpreendido por suas proposições harmoniosas. Era uma sala enorme, iluminada
por uma fileira de altas janelas, todas dando para o pátio. Como um detalhe
original, havia ao fundo uma parte um pouco mais alta, como se fosse um palco de
teatro. Sem dúvida deveria ter sido destinado, antigamente, aos músicos, quando o
castelão dava seus bailes. A coleção de quadros prendia longamente a atenção do
mais exigente colecionador. Com o auxílio da lanterna elétrica, Raul já percebera
telas de grande beleza, mas agora podia observar a riqueza do conjunto. Riqueza
que justificava plenamente a instalação de um sistema de alarme e a posse do
Smith & Wesson. Maravilhado, avançou lentamente, procurando abafar o ruído de
seus passos nos quadrados de mármore, alternadamente pretos e brancos, como
um imenso tabuleiro de xadrez. Diversos retratos, sobretudo de homens, prelados
de mãos juntas, cortesãos de espada ao lado, magistrados; passeava o olhar por
todas aquelas fisionomias recolhidas e severas, que pareciam acrescentai ao
silêncio uma nota de vaga reprovação. Felizmente, uma imensa tapeçaria,
admiravelmente bem conservada, quebrava a monotonia desse desfile de solenes
figuras. Tecida em tons azulados característicos da Escola Francesa, ela
representava a corte do Rei Francisco I. No primeiro plano, diante de um
tabuleiro de xadrez, o Rei estendia o braço para apanhar uma pedra, enquanto seu
adversário refletia. O gesto era gracioso. Aos pés do Rei, reconhecia-se
Triboulet, brincando com um galgo. E em volta, gentis-homens de mãos dadas
com damas em trajes furta-cores. Os franzidos dos vestidos eram um pouco
pesados, a perspectiva estava ainda atravessada. O estilo Renascença libertava-
se levemente do estilo Medieval, mas essa mistura de rigidez e natural formava
um quadro de rara poesia.
Raul tomou distância para admirar melhor o equilíbrio da composição, depois
examinou a variedade de cores e a minúcia quase incrível dos detalhes. Era uma
peça soberba que, em outros tempos, lhe teria tirado o sono. Suspirou e afastou-se
um pouco, para deter-se em frente a um São João Batista... Muito convencional...
sem grande interesse. A seu lado um mosqueteiro, sentado à mesa de uma taverna,
bebendo alegremente com dois companheiros. Ao quadro não faltava movimento,
mas Raul não apreciava as grandes composições, os assuntos muito ambiciosos.
Preferia pinturas de cavalete, como por exemplo, esse pequeno Jacob lutando
contra o Anjo...
— Meu Deus!... São João... Jacob... D'Artagnan...
As palavras do velho Bernardin voltaram à sua memória. Seria possível? "São
João sucede a Jacob." Raul reparou que em torno do quadro representando São
João, a cor da parede estava mais clara. Recuou. Não havia dúvida.
Anteriormente, um outro quadro cobrira uma superfície maior. Raul fechou os
olhos. Já, por diversas vezes, a verdade surgira como um sinal luminoso e ele
sentia que ela estava ali, naquele instante, e que iria revelar-se como a inspiração
para o Artista. Era preciso apenas não se mover, deixar que acontecesse, em
misteriosas profundezas, um obscuro trabalho de procura...
"São João sucede a Jacob... São João sucede a Jacob... "Bem! E depois?... Ah! Já
percebo!"
Despendurou os dois quadros, colocou o Jacob no lugar do São João. A tela
cobria, exatamente, a parte clara da parede. Dessa forma era o Jacob que ocupava
anteriormente aquele lugar, São João sucedeu-o.
E agora?... E o mosqueteiro? D'Artagnan? Que papel representava ele?... O
vislumbre de luz que, durante um segundo, havia iluminado as trevas, extinguiu-
se. Raul, com todos os nervos tensos, procurava compreender... Era estúpido
demais! Ter chegado a tocar com o dedo em algo de essencial e retornar para
andar às apalpadelas!...
De repente seu instinto preveniu-o de que não estava mais só. Caminhou
despreocupadamente até uma vitrine que mostrava uma coleção de
condecorações, mas sem olhar as medalhas, as placas, as comendas, observou o
reflexo da galeria e descobriu, atrás de si, perto da porta de entrada, uma fina
silhueta que reconheceu imediatamente. Valerie! A neta de Bernardin. A criança,
se tinha medo de Richard Dumont, nada temia de Léonce Catarat que pertencia a
seu mundo, também tímido como ela e que talvez tivesse necessidade de sua
ajuda, pois parecia um pouco perdido nessa imensa galeria. Raul voltou-se
lentamente.
— Valerie!
O tom de sua voz era o mais persuasivo. Ela veio ao seu encontro de mão
estendida.
— Bom dia, Valerie. Como vês, passeio um pouco. Admiro. E trabalho também...
Não tenho um belo caderno como o teu, mas guardo as coisas de memória...
Queres mostrar-me?
Ela trazia sob o braço esquerdo um caderno de cem páginas, azul, com o seu
nome caprichosamente escrito: Valerie Vauterel. Ele continha ditados, problemas,
resumos.
— Aposto que és uma boa aluna.
— Sou — disse a menina confiante.
— Aprendes bem as lições... Tens boa memória.
— Oh! Sim.
— Vejamos... Olha em tua volta... Alguma coisa mudou de lugar recentemente?
Ela concentrou-se, subitamente séria, desejando deixar nesse senhor tão atencioso
uma impressão favorável.
— Não — respondeu ela. — Está tudo como antes.
— Teu avô vem muitas vezes a esta galeria?
— Vem.
— Ele mexe nas vitrines, nos quadros?
— Claro. É ele quem faz a limpeza.
— E além disso? O que é que ele faz mais?
Ela hesitou, ruborizou-se e baixou a voz.
— Algumas vezes ele anda no telhado.
— Como? Anda no telhado, tens certeza?
— Sim. Ele anda de quatro, de gatinhas.
Ela observava Raul, de olhos baixos, receando ter revelado alguma coisa que
poderia dar de seu avô uma impressão desagradável, mas sorriu quando viu que
esse senhor acolhia sua confidencia com grande interesse.
— E quando ele anda no telhado?
— À noite. Uma vez eu estava acordada. Eu o vi. Ele ficou aborrecido e quase me
bateu.
— Valerie!
Era a voz de Lucile. Quase simultaneamente a jovem chegava à entrada da galeria
e parava.
— Ah! Valerie, estás aí. Por que não respondes quando te chamam?... Desculpe-a,
Sr. Catarat É curiosa como uma gatinha.. Venho buscá-la para trabalhar um
pouco...
Aproximou-se e acrescentou baixinho:
— Habitualmente, é seu avô que se ocupa dela, mas agora é necessário que eu
tome seu lugar.
O pequeno bibliotecário pôs a mão na cabeça de Valerie.
— Ela cumpre com suas obrigações?
— Cumpre. É muito séria.
— Então, se me permite, vamos dar-lhe um dia de descanso.
Fez um afago no rosto da menina. — Vá brincar, Valerie... Os negócios mais
sérios podem ficar para amanhã.
— Obrigado, senhor. Afastou-se correndo.
— Está se perguntando qual o motivo dessa minha atitude? — indagou Raul,
retomando a voz de Richard Dumont. — Pois bem, é necessário inspirar
confiança à pequena. Ela sabe algumas coisas...
— Que coisas?
— Ignoro. Mas vou interrogá-la pouco a pouco. Não se esqueça de que ela
acompanhava seu avô quase a toda parte, que ela o ouvia falar... Talvez mesmo
ele confiasse nela, algumas vezes... Ela sente a sua ausência?
— Não creio. Ela é muito fechada. Mas Bernardin a educa com certa rudeza. Nós
lhe dissemos que ele partira em viagem e, sinceramente, ela até ficou contente.
— Quer mostrar-me o parque — retomou Dumont. — Temos bastante tempo e,
para sua empregada, devo continuar a ser aquele simplório vindo de Paris, a
quem é preciso se mostrar toda propriedade.
Andando dois passos atrás de Lucile, respeitoso, timidamente, curvando-se um
pouco numa atitude habilmente servil, Raul percorreu o térreo do castelo, passou
diante das peças de serviço onde trabalhava Apolline, e saiu no parque. De
passagem reconheceu a pequena porta por onde haviam saído o barão e seus
cúmplices na noite em que raptaram o velho Bernardin. Quando ficou fora de
vista do castelo, Raul estirou-se e ficou da altura de Lucile.
— Este passeio tem outro fim — disse ele. — Tudo me leva a crer que vocês
todos estão sendo observados... não me pergunte por quem... É muito cedo para
responder... Devo conhecer a fundo a topografia do castelo, do parque e suas
vizinhanças, porque é aqui, tenho certeza, que será travada a batalha definitiva.
Não... Não tenha medo.. Nada lhe acontecerá... Olhe, mais uma porta! Onde nos
leva ela?
— A parte alguma, É uma vereda do outro lado, que vai até o campo. Antigamente
esta porta dava acesso a um pequeno cemitério que pertencia ao castelo. Sob a
Revolução, o cemitério tornou-se da comuna; os muros foram postos abaixo e ele
hoje pertence ao cemitério de Eunerville.
Raul abriu a porta e ainda conseguiu perceber uma sombra que desaparecia numa
curva do muro. Para não assustar Lucile, ficou imóvel, contentando-se em escutar.
Algumas pedras rolaram. O homem devia estar se afastando correndo.
— Todos os Eunerville estão aí — disse Lucile que não notara coisa alguma. —
Quer dar uma olhada?... A entrada do cemitério é bem perto daqui.
Seguiram a vereda, dobraram à esquerda e desembocaram na estrada que vinha da
cidade e conduzia à grande porta do cemitério. Raul lançou rápidos olhares em
sua volta. O homem, possivelmente, ainda rondava por ali. Certamente um
empregado do barão... Lucile caminhou por uma longa aléia, margeada de teixos e
tomou um caminho secundário que os levou diante uma fila de velhos túmulos.
Raul, sempre alerta, esquadrinhava os arredores. Um grande silêncio pesava
sobre as lousas, as cruzes, as coroas, as flores fanadas. Um pouco distraidamente,
leu a inscrição gravada na última lousa:

Hector d'Eunerville
1772 — 1851
Ele foi bom para os infelizes
Orai por ele
Hector d'Eunerville! O castelão de quem Maître Frenaiseau havia falado... A
conversa voltava-lhe à memória... A fuga de Louis-Phillipe... Seu retorno a
Eunerville... E de repente ele viu, junto da pedra tumular, uma outra, bem mais
modesta:

Evariste Vauterel
1816 — 1901

Como?... Vauterel?... O nome de família de Valerie?... Evariste Vauterel esse


servidor devotado cegamente, a quem o notário aludira. Portanto, Valerie era a
descendente direta do jovem mordomo do Conde de Eunerville, de Evariste, que
conduzira o Rei a Trouville! Mas então, o velho Bernardin?...
Raul tomou o braço de Lucile.
— Diga-me... Bernardin?... Ele é parente desse Evariste Vauterel?
— É seu filho.
Raul sentiu novamente o deslumbramento que o iluminara na galeria e, uma vez
mais, a escuridão caiu sobre si. Certamente, a ligação era mais do que evidente
entre o segredo e Vauterel... Mas que segredo?
— Bernardin sempre viveu no castelo — prosseguiu Lucile. — Em criança
brincou aqui, como hoje brinca Valerie. Quase que poderíamos indagar se não
seria ele o verdadeiro castelão. Os Eunerville desaparecem, mas os Vauterel
continuam.
— Repita! — disse violentamente Raul. — Repita isso!
Lucile olhou-o espantada.
— Mas é verdade. Os Eunerville morreram mas os Vauterel os sucederam, de pai
a filho, de filho em filha.
— Ah! — murmurou Raul. — É isso! É isso! É isso mesmo!
E bruscamente, com essa extraordinária vivacidade de espírito que o fazia saltar
às conclusões de um raciocínio, sem deter-se em etapas intermediárias, soube que
Valerie também estava, por sua vez, ameaçada; que os bandidos que não haviam,
sem dúvida, nada conseguido do velho, não podiam deixar de tentar a captura de
Valerie. Reviu a sombra fugidia numa curva do muro.
— Não — disse ele. — Eu não me perdoaria nunca...
— Que se passa? — perguntou Lucile, transtornada pela angústia que lia, de
repente, no rosto de seu companheiro.
Mas Raul já lhe pegava a mão e a conduzia para a saída. Seus olhos examinavam
as alei as, os sentidos alerta, procurando registrar o menor ruído. Claro! Se
vigiavam o castelo, era para garantir o caminho livre. O barão estava lá, pertinho
talvez. Ele não adivinhara quem se escondia sob os traços do novo empregado, de
aspecto tão pouco assustador, e ninguém atacaria Léonce Catarat. Mas seus vigias
já deviam ter assinalado que Lucile, que só saía raramente, estava nesse momento
fora do parque.
Raul quase corria e a jovem tinha dificuldade em segui-lo. A pequena porta ainda
estava aberta.
— Bernardin mora no castelo? — perguntou Raul.
— Não. Ele usa um pequeno pavilhão que você pode ver, lá adiante, à esquerda...
Deixe-me... Creio que vou cair.
Raul abandonou-a e pôs-se a correr. Atravessou velozmente o pátio de honra,
cruzando com Apolline.
— Viu Valerie?
— Ela estava por aí não faz cinco minutos. Brincava diante da porta. Deve ter
entrado.
Ele não a escutava mais. Em alguns saltos alcançou o pavilhão.
— Valerie!... Responda, Valerie!
Abriu a porta, parou para tomar alento. Mas já sabia...
— Valerie!
Entrou, correu rapidamente a cozinha, a sala, dois quartos. Valerie desaparecera.
Fora raptada. Em seu nariz! Em sua barba! Com uma determinação e uma rapidez
que bem mostravam a insultante audácia do inimigo. "Eu temia algo assim —
pensava Raul. — Mas não tanto. Ah! Que bandido! Ele é capaz de torturá-la
também!" Suas unhas se entranhavam nas palmas das mãos. Estava desarvorado,
incerto, procurando uma defesa, humilhado por se ter deixado apanhar, entregue a
uma amargura que lhe apertava a garganta. A pequena Valerie! Tão confiante! Tão
sedutora, com suas trancas de boa menina e seu caderno tão gentilmente cuidado.
Problema: Dois Trens... "Ah! Eu o matarei!" — rosnou Raul.
Lucile chegava, aflita.
— E então, o que procura?
Raul recuperou o sangue-frio. ,
— Valerie desapareceu — disse ele.
Lucile empalideceu e Raul adiantou-se para sustentá-la.
— Lucile! Você pode ajudar. Não é muito tarde... Ela, certamente, não está
longe... Procuremos! Deve haver em alguma parte um indício... Vamos
esquadrinhar esta casa, tranqüilamente, metodicamente... Comecemos pela
cozinha.
Mais tranqüilizada, Lucile acompanhou-o à cozinha e começou a tirar as cadeiras
do lugar.
— Não — disse Raul. — Assim não. Esquadrinhar, significa olhar, para ver se
alguma coisa foi mudada. As coisas falam.
Ele avançava, recuava, como um pintor diante de uma tela. Sentia cada detalhe e
Lucile nem ousava mexer-se.
— Eis aqui! — exclamou ele.
Abaixou-se e apanhou ao pé do relógio uma bola de papel que desamarrotou e
alisou com a mão espalmada. Lucile aproximou-se e ambos leram:

Traga-me a carta que está escondida na capa da Bíblia. Eu espero em frente


à Capela do Bosque.

Avô

Eles não quiseram empregar a violência — pensou Raul. — Recearam que


houvesse gritos. Assim, apenas trouxeram este bilhete. Eles a atraíram a uma
cilada. Ê muito pior. A Bíblia está sem dúvida no quarto de Bernardin.
Atravessou a sala de refeições. A Bíblia encontrava-se na mesa de cabeceira; era
um in-quarto, maciço, encadernado em couro. O interior da capa apresentava uma
fenda delgada, na qual poderia ser introduzido um papel. Mas o esconderijo
estava vazio.
Dessa forma o barão, retomando a ofensiva quando bem entendera, marcara um
ponto decisivo. Na pedreira, sob tortura, o velho revelara a seus carrascos a
existência da Bíblia e o segredo que ela escondia. Cinco minutos antes, esse
segredo ainda lá estava inviolado. Apolline dissera: "Cinco minutos!" Raul olhou
seu relógio. Cinco minutos, o que são cinco minutos! Com um carro ele os
alcançaria facilmente. Ah! Por que levara a prudência a ponto de fazer Léonce
Catarat viajar de trem?...
Esforçava-se por aparentar estar seguro de si e dono da situação, mas ouvia as
batidas dos segundos, que passavam, inexoravelmente.
— Lucile... O que podemos encontrar aqui como meios de locomoção?
— O automóvel de meu tio. Mas ele saiu nele.
— E outra coisa?... Nada mais?
— Sim... minha bicicleta e uma motocicleta, ou melhor, um side-car. Meu pai
usava-o quando ia pintar.
— Onde está?
— Na garagem. Mas há muito tempo que não é usado!
— Ele funcionará. Escute-me bem, Lucile... Durante minha ausência... oh! eu não
demorarei muito... você esquecerá tudo que se passou agora... Você passeará,
lera, colherá flores. Mas não pensará... Está me entendendo bem?... E eu trarei de
volta a garota. Estamos de acordo?
Emanava uma tal força desse homem que a jovem sorriu tranqüilizada.
— Conte comigo, Sr. Dumont... E boa sorte.
Raul segurou-a pelos ombros, olhou-a profundamente, e garantiu:
— Esta noite, ela estará aqui.
Depois correu à garagem e aí abençoou Achille que, como um escrupuloso
servidor, havia tratado cuidadosamente da máquina. Mas o tanque estava vazio.
Felizmente latas de gasolina não faltavam. Encheu-o, sempre meticuloso, apesar
dos minutos que passavam. Em seguida arrastou para fora o pesado side-car e
ligou-o. Como se obedecesse à sua vontade o motor, depois de ratear um pouco,
pegou e Raul saltou sobre o assento. Freou perto de Lucile que olhava suas
manobras com certo receio.
— Essa Capela do Bosque — perguntou, — é longe?
— Não... a uns quatrocentos metros, sempre a direita, depois do parque.
Ele partiu levantando poeira. Apesar da gravidade do momento, gozava da
velocidade como amante da mecânica. Pouco adiante, percebeu os muros
cobertos de hera da capela. Desligar o motor, saltar e avançar ao longo da
estrada, examinando a poeira espessa naquela época do ano, tomou-lhe apenas
alguns segundos. Imediatamente deparou com um rastro que reconheceu
facilmente: uns Dunlop! Estavam bem claros, perfeitamente reconhecíveis devido
às estrias paralelas dos pneumáticos. Havia mesmo uma pequena poça de óleo
marcando o lugar onde o carro dos seqüestradores havia estacionado. A cena
surgia desses indícios com a nitidez de um filme cinematográfico: a menina
chegando emocionada: "Onde está vovô?" "Ele está aqui. Ele te espera." Ela
avança sem desconfiar. É amordaçada por uma misteriosa mão. Um braço a
levanta e carrega. E o carro segue caminho.
— Canalhas? — resmungou Raul.
Um olhar ao relógio. O atraso era de um quarto de hora. Retomou a estrada,
olhando o solo onde, de quando em quando apareciam os traços dos Dunlop, entre
as marcas de algumas carroças. Felizmente os automóveis eram raros nesse canto
da Normandia e, em Pont-Audemer um trabalhador da estrada, informou-lhe que
um carro negro passara pouco tempo antes. Havia tomado a bifurcação para
Rougemontiers.
— Ia muito rápido?
— Não muito. Parisienses, sem dúvida. Não pareciam conhecer bastante a região.
Ou talvez — pensou Raul — não quisessem chamar a atenção.
Continuou a toda velocidade forçando o motor. Rougemontiers!... As marcas dos
pneumáticos apareciam numa curva. O carro havia derrapado deixando um rastro
na relva do passeio. Os bandidos dirigiam-se para Bourg-Achard. Cabelos
revoltos, com os olhos ardendo com a poeira e o vento da corrida, Raul olhava a
estrada, procurando evitar buracos, poças de lama, apertando entre os joelhos o
tanque para evitar ser atirado fora do veículo. De longe avistou o campanário de
La Bouille.
Maldição! No meio da estrada havia um agrupamento em torno de um cavalo
caído, preso aos varais de uma carroça. Vagarosamente contornou o obstáculo,
observou, de passagem, os olhos brancos do animal e o rosto do carreteiro,
trepou na calçada e parou junto a um garoto.
— Viste um automóvel por aqui há um quarto de hora?
— Um carro preto?
— Sim.
— Com as janelas arriadas?
— Sim.
— Tem menos de um quarto de hora, senhor. Não mais do que três ou quatro
minutos... Pudera! Ele foi obrigado a parar.
O garoto ficou espantado por receber uma moeda de cinco francos e seguiu com
olhar, por muito tempo, esse personagem meio louco, cujos olhos lacrimejavam e
que tirava de sua máquina um ruído tão sedutor. E logo Raul alcançava o caminho
em ziguezague que descia em direção ao Sena. De repente ele o avistou, descendo
com precaução, devido às inúmeras curvas.
— Ele agora é meu!
Atirou-se sobre ele, como a águia sobre sua presa. Sua intenção era ultrapassá-lo
a preço de qualquer acrobacia e colocar-se atravessado na estrada. Mas
certamente havia sido visto, pois o carro acelerou. Um braço apareceu numa das
janelas. Um pequeno fio de fumaça. Raul não ouviu a detonação mas sentiu o
zunido da bala. Curvou-se sobre o volante, diminuiu a marcha e passou a
ziguezaguear.
O homem esvaziou sua arma ao acaso, depois o braço desapareceu e a limousine
aumentou de velocidade. Raul teve o brusco pressentimento do que iria ocorrer.
Ele freou, derrapou de um lado para outro do caminho, enquanto o pesado carro
subia o anteparo, ricocheteava numa árvore e, completamente desequilibrado,
com uma cambalhota caiu embaixo, no rio.
O esguicho da água chegou até o rosto de Raul que já se debruçava na alta
margem e começava a despir o paletó. Um enorme redemoinho branco apareceu
ao centro do qual emergiu uma cabeça, depois uma outra, menor. Raul mergulhou
e em vigorosas braçadas dirigiu-se para Valerie que ia afundar. Segurou-a no
justo momento em que ia desaparecer. O outro náufrago, sem se ocupar de sua
vítima, dirigia-se para a margem.
— Nós nos encontraremos! — gritou-lhe Raul.
Bebeu um grande gole de água e espirrou. A correnteza levava-o para uma
espécie de pequena praia e deixou-se levar, sustentando Valerie que não perdera
os sentidos. Felizmente, o calor de junho tornava esse banho forçado menos
penoso. Tomou pé sem trabalho e encontrou uma vereda abrupta que o levou à
estrada, não distante do side-car. Valerie passara o braço pelo pescoço desse
curioso senhor que ela vira pequeno e tímido empregado e que, de repente, a
colocava com uma suavidade quase maternal, no assento de vime ligado à velha
moto da qual Achille falava sempre com desprezo.
— Vás te secar, minha queridinha. Depois vou levar-te para tua casa.
Ela também não reconhecia mais sua voz, mas se sentia bem. Encolheu-se; tinha
sono apesar do frio. Talvez que o Papai Noel, quando jovem, fosse semelhante a
esse estranho homem que agora ligava o ensurdecedor ruído do motor. Ela dormia
quando Raul parou diante de uma fazenda e explicou que sofrerá um acidente sem
gravidade. Ela não ouviu a fazendeira apiedar-se dela, preparar uma coberta bem
quente e acender um fogo. Bebeu um leite quente sem mesmo abrir os olhos. Um
pensamento. Restava-lhe apenas um pensamento, como uma pequena chama de
alegria: "Estou ao abrigo. Estou em segurança!"
Apenas acordou no caminho de volta. Seu companheiro rodava a uma velocidade
moderada, de passeio, e era maravilhoso viver, depois das angústias daquela
horrível corrida de carro.
— Tudo bem, soldadinha? — perguntou Raul.
Ela sorriu sem responder, mas estendeu-lhe a mão e ele apertou-a como só um
amigo sabe fazer.
— Cortaram tua língua?
— Oh! Não senhor.
— Quantos homens havia contigo?
— Três.
Diabo! As tropas do barão haviam saído dizimadas da aventura!
— O que te disseram eles?
— Que iam levar-me onde estava meu avô.
— A carta que retiraste da Bíblia?
— Eles a tomaram.
— Tu a leste?
— Não. Mas algumas vezes, à noite, vovô a relia e chorava.
— Como era ela?
A garota hesitou. Pediam-lhe algo muito difícil.
— Era velha? — perguntou Raul.
— Era. Isso se notava pelo papel. O envelope também estava amarelado.
— Ah! Havia um envelope!... Com um nome?... Um endereço?
— Sim... O Sr. Conde de Eunerville.
— O Sr. Conde...
Raul diminuiu mais a marcha. Desta feita ele chegava mais perto.
— De onde vinha ela?... Procure lembrar. Como era o selo?
— Oh! Era um velho selo... com a cabeça de uma senhora... Vovô dizia que era a
Rainha Vitória.
Meu Deus! A Rainha Vitória! Uma carta enviada da Inglaterra ao Conde de
Eunerville... Na escuridão em que Raul avançava às apalpadelas, isso era como
um ponto luminoso indicando a longínqua saída do túnel.
— Vovô dizia que ele me daria quando eu crescesse — continuou Valerie. — Que
era um talismã. Que eu não deveria nunca separar-me dela.
— Nós a recuperaremos — resmungou Raul. — E eu trarei também teu avô.
— Vão talvez brigar comigo? — disse Valerie. — Eu não posso sair sem pedir
licença.
— Não. Eu arranjarei isso...
Consultou o relógio.
— Além de tudo, nós chegaremos ao castelo antes do retorno do Sr. Ferranges.
Portanto...
A garota calou-se tranqüilizada. Raul refletia. Essa nova tentativa do barão
mostrava que ele não tinha todos os trunfos na mão. Sem dúvida, de nada lhe
valera o manuscrito do Conde de Eunerville. Já que havia um segredo, tudo
levava a crer que o mesmo fosse protegido por um código, código que o barão
não conseguira decifrar, assim como as palavras chaves: Jacob... São João...
D'Artagnan... Restava a carta da Inglaterra!
— Estamos em igualdade — monologou Raul. — Ele tem a carta mas eu tenho o
velho. E o velho conhece a carta de cor e ele me recitará a mesma, ou então eu
não terei mais nada a fazer do que transformar-me em guarda de praça pública.
Vamos, meu bom homem! A vida é bela!
6
A QUINTA SÃO JOÃO

Raul retomara, sem esforço, o personagem de secretário bibliotecário e começara


seu trabalho, para alegria do castelão. Assim que Hubert Ferranges partia para a
usina, Lucile vinha ao encontro daquele que ela considerava sempre como um
jornalista. Ela o ajudava da melhor forma. Percorrendo a galeria superior, ele
soletrava os títulos, os nomes dos autores e ela os anotava cuidadosamente num
grande livro de registro. Algumas vezes, debruçado na balaustrada, olhava a
jovem graciosamente inclinada e depois, um pouco embaraçado, recomeçava o
trabalho. Não perdia de vista sua missão, porque sentia que o inimigo rondava
Eunerville, mas sempre encontrava um pouco de repouso junto à encantadora
jovem que, por seu lado, não podia passar sem a sua presença.
Dois dias se passaram desde o seqüestro de Valerie e nenhum acontecimento
desagradável ocorrera. À noite Raul, acompanhado do buldogue que se tornara
seu amigo, efetuava secretamente uma ronda depois de todos estarem deitados.
Verificava as fechaduras, os ferrolhos. Muitas vezes, durante a noite, levantava-
se, percorria os imensos corredores, ou então vinha sonhar diante dos quadros da
galeria. Com pancadas com o nó do indicador, auscultava as paredes, procurando
não sabia bem o que, talvez uma passagem secreta, talvez um esconderijo.
Deveria retornar aonde se encontrava Bruno, pressionar o velho Bernardin. Mas
dizia a si mesmo que era mais sábio deixar que o velho amansasse; ele acabaria
por compreender que seu interesse seria falar. E depois, descendo ao fundo de si
mesmo, com um aperto no coração, olhava a verdade de frente: "Tu a amas. Sê
franco. Ela te excita com a sua juventude... e tu!... Tu me fazes vergonha! Mas
abre os olhos. Tu és o primeiro homem que ela encontra. Tu és misterioso. Ao
mesmo tempo tu a divertes. Portanto, nada mais natural que ela se mostre agitada
em tua presença. Não te entusiasmes, Lupin! Assim que este caso estiver
terminado, desaparecerás discretamente, na ponta dos pés. Ficará apenas uma
bela recordação!"
Logo após surgiu um incidente que transtornou Raul. Numa extremidade da
biblioteca, revolvendo algumas pastas, descobriu um grande envelope amarelo e
se preparava para abri-lo quando Lucile correu em sua direção ruborizada.
— Não. Eu lhe peço. Não olhe o que tem aí dentro.
— Está bem! — disse ele um pouco sem jeito. — Não tenho o hábito de ser
indiscreto.
— Está zombando de mim!
— Lucile. Acha que eu poderia, verdadeiramente, zombar de você?
— Adivinhe o que é, você que adivinha tudo.
— Não sei bem. Parecem recortes de jornais.
— Certo. Eu os cortei de velhas coleções... E depois, tanto faz. Não quero
esconder nada de você... Vamos, abra.
Raul obedeceu e levou um susto. Ele conhecia bem esses recortes de jornais.
Todos os artigos que lhe tinham sido dedicados! Todas as cartas que enviara ao
Eco de França, ao Figaro, ao Gaulois, para zombar de suas vítimas, para
anunciar suas intenções ou defender sua reputação... Comovidíssimo, ele
declamou uma a uma; e, entrando no jogo ela também fechou os olhos e por sua
vez recitou outra. E eles se desafiavam, citavam datas... Você se recorda esta
enviada a Valenglay... E esta que prevenia Panimard... 1911... Não, 1912.
Setembro de 1912... Era Lucile que mais acertava. Por pouco ele deixava
escapar: "Eu me esqueci... Tantas coisas se passaram depois!" Gargalhavam
como duas crianças.
— Você então também o admira! — comentou Lucile.
— E como!...
— Eu — continuou ela com uma adorável confusão — tenho por ele... tenho por
ele...
— Diga — murmurou Raul, que empalidecera.
— Ele é de tal forma sedutor! De tal forma engraçado! Meu do recebe todos os
jornais de Paris, como meu pai recebia. Foi assim que eu consegui... Não é
proibido sonhar, não é mesmo?
— Claro que não.
— Eu imaginava que... Oh! é ridículo... Eu imaginava que um dia, talvez ele
viria... Aqui está cheio de coisas para serem roubadas. No entanto ele nunca veio.
— Calma! — disse ele. — Arsène Lupin não é assim como você acredita. Eu sei
bem pois já o encontrei.
— Você o encontrou!
Seus olhos brilhavam de curiosidade, de emoção e Raul teve que se conter para
não tomá-la nos braços. Afastou-se um pouco dela.
— Sim, muitas vezes. Em seu trabalho encontramos um pouco de todo o mundo.
— Como é ele?
— Qual! Afinal de contas ele não tem nada de extraordinário.
— Oh! não! — disse Lucile juntando as mãos. — Para mim que vivo aqui como
uma prisioneira, esse homem que passou por tantas aventuras, é... é... eu não sei
explicar... Se ele aparecesse em minha frente, de sopetão, acredito que perderia
os sentidos ou que faria algo inconveniente.
O retorno do castelão pôs fim, bruscamente, a essa conversa e passaram à sala de
refeições onde puseram-se à mesa. Mas Raul estava distraído. Furtivamente,
olhava Lucile, que ainda parecia emocionada. Ferranges falava, falava... Afinal,
de que falava ele? De caça.
— Antigamente — dizia — o parque era muito maior. Era, na verdade, uma
floresta que se estendia além de Point Audemer. Os Condes d’Eunerville
possuíam uma matilha que ficou famosa. Vinham de longe assistir a suas caçadas.
Ainda hoje existe, na ala Luiz XIII, um vasto terraço, de onde as damas podiam
assistir ao desenrolar da caçada. Exatamente como em Chambord.
— É muito curioso — disse polidamente Raul que estava com o pensamento a
cem léguas dali.
— Não acha?... Nós subiremos até lá, já que isso o interessa.
— Com todo prazer!
Assim, depois do café, Ferranges tomou familiarmente o braço do pequeno
Catarat.
— Ora essa! — disse ele. — Previno desde já que a escadaria que levava ao
terraço bichou e veio abaixo. É preciso, provisoriamente, "servir-se de uma
escada de mão. Mas você não terá que fazer uma ginástica muito complicada. Eu,
que sou muito mais pesado, subo sem nenhum esforço. De quando em quando vou
a esse terraço de onde se descortina um panorama excepcional. Ficará surpreso,
eu garanto.
Chegaram à extremidade do longo corredor que levava aos quartos, atualmente
vazios, do segundo andar e o castelão abriu uma porta. Encontraram-se numa
espécie de água furtada circular.
— A torre de Oeste — anunciou Hubert Ferranges. — E eis aqui a escada.
— Caramba! — disse Catarat com um ar assustado. — É alto!
— Eu lhe mostro o caminho.
Dizendo isso o castelão, apoiando-se nos paus laterais da escada, começou a
subir.
Representando admiravelmente seu papel, o pequeno bibliotecário manifestava
tal receio que divertia grandemente Ferranges.
— Evidentemente, ela se curva um pouco. Mas eu asseguro...
Ferranges atingia o topo da escada. Ouviu-se um estalo e Raul teve apenas tempo
de saltar de lado. O castelão abateu-se a seus pés, numa nuvem de poeira. Raul
debruçou-se sobre ele. Ferranges estava desmaiado. Sangrava de um ferimento na
orelha e sua perna esquerda estava dobrada de forma bizarra. Raul subiu
agilmente a escada. Os dois degraus superiores haviam cedido e um exame rápido
deu para constatar que tinham sido serrados bem rente aos paus laterais. As
marcas da serra estavam bem aparentes. Raul desceu inquieto. Não fora um
acidente e sim uma hábil sabotagem. O inimigo, uma vez mais, passava à sua
frente, atacava dissimuladamente, de surpresa. E uma vez mais, encontrava na
implacável astúcia, algo que não parecia o modo de agir do barão, hábil, mas
brutal. Então quem?... Quem seria esse alguém inatingível, invisível e cruel? E
que aliança monstruosa acertara ele com Galceran?
Raul hesitou. Deveria deixar só o infeliz castelão para ir buscar socorro?
Pensando bem, persuadiu-se de que a armadilha fora armada há muito tempo, por
alguém que esperava pacientemente, em lugar seguro, como ocorrera com o
alçapão no Gros Galet. Poderia, dessa forma, abandonarão castelão por alguns
minutos.
Assumindo um ar assustado, correu em busca de socorro, trouxe Achille e
Apolline e, enquanto os servidores carregavam o patrão ainda desfalecido para o
quarto, preveniu Lucile, procurando tranqüilizá-la da melhor maneira. Depois
mandou Achille à vila procurar o médico. Graças a ele, em alguns instantes
estava tudo em ordem; o infortunado Ferranges, despido com todo cuidado,
repousava em seu leito e voltava a si; Lucile instalava-se à sua cabeceira;
Apolline secava suas lágrimas. O insignificante secretário estava em toda parte,
fazendo prova, discretamente, do mais espantoso espírito de iniciativa; tão bem
que, enquanto preparava as talas, o castelão tomou-lhe a mão.
— Obrigado... Muito obrigado... Eu lhe devo muito. Não esquecerei nunca...
— Quieto!... Não se agite.
— Como ocorreu o desastre?
— O mais simplesmente do mundo. Com o seu peso, dois degraus quebraram-se...
Ah! Eis o médico.
Afastou-se com Lucile e esperaram, no corredor, o fim da consulta.
— Acredita que tenha sido um acidente? — perguntou a jovem.
— Infelizmente, não. Os degraus foram serrados.
— Meu Deus! Quando este pesadelo terá um fim?
— O mais cedo possível, eu prometo.
— Talvez fosse melhor nos queixarmos à polícia!
— Nem pense nisso. Primeiro, ela não disporia de indícios suficientes e depois
estamos tratando com adversários sutis, para os quais um inquérito policial pouco
importaria e não os aborreceria. Não. Precisamos apenas redobrar nossa
precauções. Do meu lado, não ficarei inativo, pode crer.
A porta abriu-se e o médico chamou-os. Foi absolutamente franco.
— Levo comigo o Sr. Ferranges — disse ele. — Seu estado me inquieta. Sua
perna quebrada não nos dará trabalho. Mas o coração não está bem. Em sua idade
não se pode fazer coisas de rapaz. Achile vai me ajudar. Vamos transportá-lo para
a clínica de Honfleur e colocá-lo em observação durante alguns dias. Em minha
opinião ele se sairá bem dessa. Mas é sempre bom ser prudente.
O bibliotecário foi saudar o Sr. Ferranges, desejou-lhe rápido restabelecimento e
retirou-se, como exigiam as circunstâncias. Mas, em lugar de se dirigir à
biblioteca, voltou para a torre de Oeste. Demorou alguns segundos para virar a
escada, a parte destruída ficando, agora, embaixo. Segurando acima de sua
cabeça os degraus bons, fez uma rápida flexão e, com uma agilidade de
consumado ginasta, subiu até o terraço.
O castelão não mentira: a vista era esplêndida. Mas Raul não estava ali como
turista. Depois de um rápido olhar para o campo dourado pelo verão, para o
parque, o cemitério, a velha torre desmantelada de onde observara pela primeira
vez o castelo de Eunerville, após um olhar mais atento sobre o pátio de honra
onde Achille, ajudado por sua mulher e Lucile, instalava o ferido no carro,
calçando-o cuidadosamente com almofadas, interessou-se pelo próprio terraço. A
frase da pequena Valeria soava a seus ouvidos — "Ele anda de gatinhas no
telhado." Que telhado? Aqui não havia utilidade em andar de quatro. Poderia
andar à vontade, passeando. E além disso era impossível deslocar-se, pois as
ardósias se apresentavam em forte declive. Mas de que valia a afirmativa da
menina?
Raul encostou-se no fino parapeito que cercava o terraço e seguiu, com um olhar
pensativo, o carro que levava o ferido. Certamente um balanço poderia ser
facilmente feito. Jacques Ferranges e sua mulher, assassinados. Huber Ferranges,
no hospital e em grande perigo de sucumbir, também, por sua vez. Lucile, que
escapara de um "acidente" mas sempre sob o risco de uma horrível ameaça.
Então?... Então restava o terceiro dos irmãos Ferranges: Alphonse. Esse tio de
quem Lucile falara acidentalmente e que poderia tornar-se herdeiro de Eunerville!
Curioso! Não haveria uma pista por esse lado?... Mas, de toda maneira, que
relação entre esses atentados e a morte dramática dos dois precedentes
proprietários do castelo?... Que relação com Jacob, São João e D'Artagnan?... E o
sangue?... Seria esse de todas estas vítimas?
Foi nesse instante que Raul, que observava uma vez mais os telhados, buscando
convencer-se de que apenas um pássaro aí poderia caminhar, reparou num detalhe
que imediatamente prendeu sua atenção: um dos inúmeros cataventos, não se
movia. Enquanto todos apontavam o nordeste — e que havia de diversos
formatos, auriflamas, monstros fabulosos com cabeça de leão, corpo de cabra e
cauda de dragão, ou simples flechas de metal — havia uma que estava
obstinadamente voltada para o sul, e esse catavento representava, de forma bem
grosseira, uma silhueta humana, uma espécie de espadachim, brandindo uma
espada...
De repente, Raul compreendeu. Não, não era um espadachim qualquer. Era um
mosqueteiro! "Vejamos, vejamos, estás com alucinações, irmão Lupin —
resmungou ele. — Se isso continua, acabarás vendo mosqueteiros até nas nuvens
que passam! "No entanto!... O catavento estava enferrujado, roído pelas
intempéries e pela fumaça: devia estar ali há muitos anos. Mas a capa com as
pregas duras que se ofereciam ao vento como a vela de um navio, a espada
apontada para o horizonte, as botas... Sim, era um mosqueteiro. E Raul
desesperava-se porque esses indícios que um destino irônico semeava em seu
caminho, com as migalhas de pão do Pequeno Polegar, não o levavam a parte
alguma. D'Artagnan conquista glória e fortuna à ponta da espada. Pois bem, lá
estava D'Artagnan e a ponta de sua espada mostrava o quê? O campo? O céu? O
vazio?... Além disso ele, D'Artagnan, estava também na galeria. E depois... basta!
Não valia a pena quebrar a cabeça. Chegaria um momento em que os pedaços
esparsos daquele puzzle se juntariam. O que fazia a força desse homem fora do
comum é que ele não se obstinava nunca, diante de um obstáculo. Sabia
reconhecer melhor do que ninguém o instante em que a simples dedução
permitiria abrir uma brecha no muro das aparências contrárias. Mas, se o caminho
apresentasse obstáculos em demasia, mudava de direção e procurava em outra
parte, outra, passagem. Ora, por enquanto, a porta chamava-se Alphonse
Ferranges.
Raul desceu sem dificuldades e pôs-se à procura de Lucile. Encontrou-a na
biblioteca. Quando ela o viu, enxugou rapidamente as lágrimas.
— Assim não está certo — disse ele. — Basta que eu volte as costas e você
aproveita para chorar! Como se eu fosse incapaz de defendê-la!
— Tenho tanto medo — murmurou ela. — Eles farão mal a você também.
— É então por minha causa que você se atormenta, minha querida Lucile! Se eu
lhe contasse minha vida, você veria que passei, sem maiores sofrimentos, por
diversos perigos...
Estava comovido e, com um gesto casto, passou o braço pelos ombros da jovem.
— Nada tema, Lucile. Eu sou como as salamandras. O fogo é o meu elemento.
Ela sorriu através das lágrimas.
— Você se assemelha a ele — disse ela.
— A quem?
— A Ele!
Ela apontava o envelope que continha os recortes de jornais.
— Eu bem que gostaria — brincou Raul. — Mas sei que não chego nem a seus
pés. Entretanto sei bem o que ele faria se estivesse aqui.
— O quê?
— Faria uma porção de perguntas. Por exemplo, ele pediria o maior número
possível de informações sobre seu tio Alphonse.
O tom era brincalhão. Essa voz tão jovem, um pouco risonha, com um nada de
ternura, tinha o poder de tranqüilizar. Lucile, esquecendo suas angústias, replicou
alegremente.
— Eu lhe diria: "Interrogue-me, Sr. Lupin. Ao senhor eu nada poderei esconder."
— Bem, então comecemos! Antes de mais nada por que motivo esse tio nunca é
visto? Normalmente ele deveria inquietar-se um pouco com seu irmão, vir visitá-
lo, ou convidá-los a que o visitassem.
— Meu tutor não se dá bem com ele. E realmente deve-se confessar que não é
amável com ninguém. Além disso vive só, como um selvagem.
Ela suspirou.
— No entanto meus pais se davam bem com ele. Sobretudo meu pai.
— Onde mora ele?
— Não muito distante daqui. Logo acima de Sainte-Adresse. Passamos diante de
sua casa, quando regressamos da enseada do Gros Galet... Não me lembro se já
lhe expliquei... O Gros Galet fazia parte de um terreno que meu pai comprara
muito antes de seu casamento. Na base do penhasco há... a casa que você conhece.
Ela estremeceu e Raul murmurou:
— Vamos adiante! Deixe essa parte de lado... Eu sei.
— Um pouco atrás do penhasco, no alto, existe a propriedade propriamente dita...
Uma herdade que meu pai comprou por uma bagatela e que transformou num
agradável retiro... Quando meus pais se instalaram em Eunerville, meu pai deu
essa propriedade a seu irmão Alphonse, reservando para si o Gros Galet.
— Foi generoso!
— Meu pai era muito bom.
— E o que faz esse senhor?
— Temo que nada ou quase isso. Meteu na cabeça que seria escritor. Em sua
juventude publicara algumas poesias, coisas na escola de Hérédia{11} a quem
admirava muito. Depois atirou-se a um grande romance cíclico e pouco a pouco
foi perdendo a coragem.
— Um fracassado, se entendo bem. E enquanto isso ele via seus irmãos
prosperarem. Essa propriedade tem algum nome?
— Sim. Quinta São João.
Raul, que fizera a pergunta maquinalmente, sobressaltou-se.
— Quinta São João?
— O que há de tão espantoso? — perguntou Lucile.
— Nada... Certamente nada.
Mas logo a necessidade de ação fez com que um sangue ,novo corresse em suas
veias.
—i Foi ele quem o batizou assim? — indagou.
— Não. Já era o nome da pequena herdade quando meu pai a comprou.
Raul baixou a voz.
— Onde está seu cachorro?
— Em meu quarto. Dormindo.
— De agora em diante quero que ele a siga por toda parte. Pôs um dedo nos
lábios e, em três passadas chegou à porta da galeria que abriu violentamente.
Ninguém. O ruído repercutiu cavamente como na abóbada de uma catedral. Voltou
sobre seus passos, procurando assumir um ar negligente.
— Desculpe-me... Pareceu-me ouvir... É ridículo, evidentemente. Apolline deve
ter coisas mais importantes a fazer do que escutar às portas.
— Oh! Respondo por ela. E por seu marido também. Ambos nos são muito
devotados. Achille, aliás, até agora ainda não retornou.
Não era nem em Apolline nem em Achille que Raul pensava, mas no outro... o que
serrara os degraus da escada, que anteriormente sabotara o carro da jovem e, lá
longe, preparara o alçapão... Seria ele quem nesse instante estaria na galeria?
Porque Raul tinha certeza de que havia alguém na galeria. Poderia ser o barão?
Olhou a hora.
— Você vai subir para seu quarto e quando sair, depois do retorno de Achille,
será sempre acompanhada por Pollux. Está entendendo?... Eu tenha algumas
coisas a verificar que me obrigarão a ficar fora bastante tempo. Quero ter o
espírito tranqüilo... A propósito, terei necessidade de uma chave. Não tenho a
menor intenção de, em plena noite tocar a sineta da porta da grade.
— É fácil. Eu lhe dou a minha, da qual nunca me sirvo. Venha. Está em minha
secretária.
Saíram da biblioteca.
— Sobretudo — disse Raul,— não vá imaginar sabe lá Deus o quê. Você não está
em perigo... pelo menos em perigo imediato. Nós estamos enfrentando alguém que
tem tempo e que age como um caçador furtivo. Ele espalha as armadilhas,
pacientemente, nos lugares onde passamos sem desconfiança... Mas, se ficarmos
sempre alerta, creio que não arriscamos nada. Em minha ausência, proíbo-a que
tenha medo.
— Não terei medo.
Ela estendeu-lhe as mãos, inocentemente, e ele sentiu que seu sangue-frio ia
abandoná-lo.
— Vá rápido — murmurou. — Dê-me essa chave e eu partirei. Ah! Ia
esquecendo: levarei também o side-car. Você dará uma desculpa qualquer a
Achille.
Esperou diante de uma dessas monumentais janelas que se abriam sobre o pátio
de honra. Quanto mais refletia, mais se persuadia de que o inimigo era muito
matreiro, muito prudente, para atirar-se imediatamente a uma nova tentativa. E
cada vez mais lhe parecia também que o tio Alphonse tomava parte nesse obscuro
drama. Mas como? Não podia se mostrar sem ser imediatamente reconhecido.
Ora, esse que Raul já apelidara o Monstro parecia viver na sombra dos Ferranges
e circular no castelo como uma criatura invisível. Existia aí um mistério
espantoso!
— Eis a chave — disse Lucile. — Seja prudente.
Ela estava à sua frente, cândida, confiante, com o rosto de mulher e seus olhos de
criança.
— Estarei sempre me lembrando de você — ajuntou ela espontaneamente.
Ele esteve prestes a gritar:
— Cale-se, por favor! Não está vendo, que está me torturando e que não posso
agüentar mais!
Tomou a chave e saiu. E foi sobre a moto que descarregou toda a cólera que
fervia dentro de si e que não era de raiva e sim de pesar. Pensou, um instante, em
desviar-se um momento para ir interrogar o velho Bernardin e arrancar-lhe, por
bem ou por mal, o segredo de Eunerville. Mas desistiu, com medo de perder um
tempo precioso. Mas, nos arredores do Havre, uma pane fez com que procurasse
uma garagem, onde um mecânico sebento pôs-se a mexer no motor sem muita
convicção, e a repetir com um ar obstinado: "É a vela. Certamente é a vela."
Quando o side-car ficou em condições de voltar à estrada, a noite começava a
cair. Mais um minuto de demora e o mecânico seria estrangulado.
Raul tomou o caminho de Sainte-Adresse e, sem se importar com os solavancos,
avançou até o começo da trilha que do alto do penhasco ia desembocar junto ao
Gros Galet. A Quinta São João devia encontrar-se à sua direita. Abandonou a
máquina atrás de uma moita e orientou-se rapidamente. A Quinta São João lá
estava. Um muro a cercava, um velho muro quase escondido por uma cobertura de
trepadeiras, fazendo com que sua escalada fosse uma brincadeira de criança. Raul
o transpôs e viu a casa. Lucile falara de uma velha herdade. Ele esperava ver um
construção antiga e espantou-se ao descobrir uma habitação quase moderna, cuja
porta principal estava encimada por uma magnífica glicínia.
As janelas estavam completamente fechadas. Nenhuma luz, nem no térreo, nem no
andar superior. No entanto havia uma espécie de halo em volta do telhado. Raul,
deslocando-se sem ruído, fez a volta da casa e, tomando o campo, compreendeu
logo que a pálida claridade que o intrigara provinha de uma claraboia. Por Deus!
O pai de Lucile construíra um atelier. Quando o tempo não permitia descer até o
Gros Galet, ele pintava ali; e nesse momento seu irmão lá estava, lendo ou
escrevendo;
Um celeiro erguia-se junto ao muro. Subir em seu teto não era nenhum problema.
Raul, como uma sombra, escalou o obstáculo e, apoiando-se numa forte
trepadeira, içou-se- até a cumeeira da casa. Só faltava agora arrastar-se até a
claraboia. Com mil precauções esticou a cabeça e subitamente imobilizou-se.
Via, abaixo de si, um homem que reconheceu imediatamente: o empregado do
barão que o havia ameaçado com a pistola. O homem, com as mãos nos bolsos,
fumava um cigarro sem olhar para o lado do atelier que Raul ainda não
vislumbrava. Tinha que avançar um pouco mais e por azar Uma brilhante lua de
verão se elevava no céu, recortando nítidas sombras. Ela ameaçava projetar sua
silhueta no chão do atelier. Com a ajuda dos cotovelos, ganhou alguns
centímetros. À medida que se movia, abarcava melhor a cena. Nas paredes,
muitos livros. Numa pequena mesa, uma revista ainda aberta. Mas onde estava
Alphonse Ferranges?
Percebeu-o de repente e seus maxilares se crisparam. Porque só podia ser
Alphonse, o infeliz que aparecia amarrado a uma cadeira. E esse que lhe
encostava um revólver na têmpora era o barão Galceran. Tudo recomeçava com a
precisão e a incoerência do sonho. Dessa feita, Raul não estava deitado no
campo, mas no telhado de uma casa, e não queimavam os pés da vítima, mas era
pior, contavam os segundos de vida. Raul via o barão agitar os dedos. E era fácil
compreender suas palavras, mesmo não as ouvindo. Um... dois... três... Fale!
Rápido! O segredo ou eu te fuzilo.
Ferranges sacudia a cabeça ruiva, suas enormes sobrancelhas que faziam lembrar
Hubert. Ele dizia: não... Cinco, seis, sete... O outro ia atirar. Um grito subiu à
garganta de Raul. "Pare!... Não vai assassiná-lo, debaixo dos meus olhos, a
sangue-frio!" Rastejou um pouco mais.
Então, foi a catástrofe. A lâmina de vidro em que se apoiava rompeu-se
bruscamente. Só teve tempo de se atirar de lado, depois recuar até a parte sólida
de tal cobertura. O vidro se quebrava em mil pedaços, que ao alcançar o solo,
quebravam-se por sua vez. Fugir! Era preciso fugir para afastar os bandidos de
sua presa. Uma vez em campo aberto eles se entenderiam. Dois contra um, a luta
era desigual. O barão e seu cúmplice podiam considerar-se perdidos. "Contanto
— pensou Raul — que não me atinjam com uma bala. Com desajeitados desse
tipo, tudo pode acontecer!"
Saltava já sobre o teto do alpendre mas, apesar de seguro de si e de sua
extraordinária faculdade de improvisação, maldizia-se pelo fato de ter saído sem
ter tido o cuidado de armar-se. O enorme revólver que o castelão guardava em
sua mesa de cabeceira bem que poderia ajudá-lo! No momento em que tocou o
solo, ouviu alguém gritar: "Por aqui... por aqui..." Correu para o muro curvado em
dois.
Um tiro soou. "Péssimo atirador!" — resmungou. Uma rápida flexão com auxílio
dos punhos. Saltou o muro mas desta vez a bala veio se achatar na pedra, a menos
de um metro de distância. O campo se estendia deserto, plano como a palma da
mão e a lua cheia lançava uma luz tão direta, que Raul via sua sombra, deitada a
seus pés, como em pleno dia. Escapuliu para o penhasco, saudado por duas novas
detonações. Enquanto corria ia refletindo. "Não há perigo que me apanhem. Mas
se correr com muita velocidade eles desistirão. Fique... Fique... Pois bem, resta
uma solução, uma apenas!" Mudou o trajeto fazendo um movimento oblíquo em
direção ao mar. Os outros, certos agora de encurralá-lo no vazio, não atiravam
mais. Encontrou rapidamente a trilha que levava ao Gros Galet. Acima dele, seus
perseguidores cansavam-se no péssimo caminho. Pedras rolavam. Raul chegou à
praia sem se apressar, caminhou para a casa.
— Renda-se — gritou o barão. — Foi apanhado.
Na soleira Raul voltou-se, depois de ter aberto a porta e levantando os braços.
Eles chegavam juntos, respirando forte, arquejando, mas tendo sempre suas armas
firmemente apontadas.
— Está bem — disse Raul. — Vocês ganharam.
E, como um homem decidido a conversar, recuou para dentro da casa onde os
outros o seguiram. A claridade do luar entrava pelos interstícios das venezianas,
mas o empregado acendeu uma lanterna elétrica.
— Perfeito! — disse o barão. — Ninguém virá nos incomodar aqui. Meu caro
amigo temos, verdadeiramente, muitos assuntos a tratar... Sente-se.
— Não farei nada. Primeiro o senhor.
— Ora, deixa-te disso, Lupin. Compreendeste?... Sente-se nessa cadeira!
— Oh! Já que me pede com essa cortesia que lhe vai tão bem, seja.
Raul sentou-se, cruzou descuidadamente as pernas. O barão sentou-se na outra
cadeira.
— Agora sou eu quem faz as perguntas — recomeçou ele brutalmente.
— Não.
— O quê?
— Não. Enquanto seu ferrabrás não guardar sua artilharia, não falarei.
— É o que nós iremos ver.
— Não há nada para ver; está tudo visto.
Mais uma vez o barão sofreu a ascendência de seu adversário. Fez um sinal. O
empregado guardou o revólver.
— A propósito — comentou Raul, — teu macaco não está tomando parte na
festa?... Ele ficou na casa... a menos que esteja no fundo do Sena?...
Pela crispação no rosto do barão, viu que tocara no ponto justo. Delicadamente,
por trás da mão, bocejou.
— Não tens sede?... Correr dessa maneira, depois do jantar, isso me altera.
— Dentro em pouco — zombou o barão — não terás mais vontade de beber.
— É possível! Mas nesse instante, uma taça de champanha seria bem-vinda. Há
algumas garrafas na cozinha. Talvez não esteja muito fresca, mas à falta de outra
melhor...
Voltou-se para o empregado.
— Põe tuas luvas brancas e vai buscar-me uma garrafa. Terei o maior prazer em
fazer um brinde.
— Já que é tua última vontade — decidiu o barão com um riso grosseiro. —
Vamos ao champanha!
O empregado afastou a cortina que tapava a entrada da cozinha.
— É aqui?
— Sim — disse Raul. — Está logo à esquerda. As garrafas estão sobre a mesa.
Eu sei, pois já estive aí.
E para distrair a atenção do barão, acrescentou negligentemente :
— Eu tinha a intenção de trazer para cá o velho Bernardin. Mas imagina...
— Ah! Justamente — começou o barão.
Um brusco estrondo cortou-lhe a palavra. O empregado acabara de ser tragado
pelo alçapão. O barão pôs-se de pé de um salto.
— Que é isso?... O que estás inventando?
Afastou a cortina e ficou petrificado descobrindo a peça vazia. Raul não lhe deu
tempo de recuperar-se da surpresa. Atirou-se com as mãos para diante,
empurrando-o, e o barão foi precipitado na armadilha. Desapareceu gritando.
Raul enxugou as mãos no lenço.
— Ufa! Ê fatigante essa entrega a domicílio. Ainda bem que beberei um gole pelo
trabalho que tive.
Contornando a abertura do alçapão e apanhando, de passagem, a lanterna deixada
cair pelo empregado, entrou na cozinha e aí, apesar da tensão nervosa, estourou
de riso. Não! Era impagável! Sem saber, dissera a verdade. As garrafas de
champanha lá estavam, não alinhadas sobre a mesa, mas deitar das no chão. Havia
seis. Ah! Barão, esta tu me deves. A mim, as delícias de Cápua! A mim,
Sardanapalo!... Saúde, senhores. Jamais alguém apreciou algo mais delicioso...
Mas logo deixou de lado tf brincadeira. Essas garrafas?... Lembrou-se da refeição
de aniversário, tão amorosamente preparada outrora, por Jacques Ferranges... E
sentiu, no champanha, um gosto de sangue. Silenciosamente voltou para a cortina
e escutou. Sob seus pés havia grande agitação. Curvado para o assoalho gritou:
— Não se cansem, amigos. Ninguém virá soltá-los... Mas eu, eu posso...Tu me
ouves, barão?... Então, responda... O que perguntavas tão gentilmente a Alphonse
Ferranges?... Vamos, resolve... Estou com sono. Lembra-te de que não tenho
necessidade de ti. Vou retornar à Quinta e soltar aquele caro homem. Ele terá todo
prazer em prestar-me informações... Então, nada?... Bem, seja como tu quiseres.
Falemos da carta... tu sabes, a bela carta da Inglaterra. Aquela que traz o selo da
Rainha Vitória. Cá entre nós, uma bela peça para um filatelista... Se tu quiseres
entregá-la, eu entreabrirei o alçapão.
Duas detonações surdas sacudiram o solo e dois orifícios apareceram na madeira
do alçapão.
— Está bem — disse Raul. — Vejo que nossas relações ainda estão um tanto
tensas. É uma pena! Mas, devo preveni-lo, se por acaso não souber... Não estão
sós nessa cava... Ambos têm, como companhia... dois esqueletos. Tateando
suavemente em sua volta, não custarão a encontrá-los... E esses mortos, barão,
creia-me... Não terás o menor interesse em despertá-los.
Fez-se um grande silêncio.
— Queres que eu faça as apresentações — continuou Raul. — Jacques Ferranges
e sua esposa... Barão Galceran e Companhia... brevemente mortos.
Em alguma parte ergueu-se um urro de terror, depois ouviu-se a voz do barão
transtornada pela emoção.
— Não fui. eu — gritou ele. — Não fui eu. Abra... Abra...
— Então, quem? — perguntou Raul.
— Não sei. Eu juro.
— Não tens a menor idéia?
Não teve resposta. Raul não insistiu. A noite seria boa conselheira para o barão.
Saiu, fechou cuidadosamente a porta. Os seixos brilhavam ao luar, até as
primeiras vagas que. batiam ao longe. Raul sentiu cansaço. Mas não podia
repousar agora, nem mesmo sentar-se um minuto para admirar esse céu cheio de
estrelas. "O velho, com Victoire — pensou ele. — O barão, o cárcere... Alphonse
amarrado na cadeira... Quantos prisioneiros!... A continuar assim, terei que abrir
uma penitenciária!" Lentamente, parando de quando em quando para tomar alento,
subiu a trilha, prosseguindo com seus pensamentos. O barão, sem dúvida, não
mentira quando declarara que ignorava quem fora o assassino do casal Ferranges.
Sua queda na armadilha provava que não conhecia a existência da mesma. E sem
dúvida também não tinha ele a menor cumplicidade no atentado contra.Lucile,
nem naquele contra o tutor da jovem. Alguém mais agia na sombra, planejando
minuciosamente os crimes e executando-os impiedosamente, permanecendo
anônimo como a noite.
Raul estremeceu. Detestava lutar às cegas e esse homem tão corajoso, tão forte,
tão cheio de recursos, tinha medo daquele que feria à traição, de todo aquele que
atacasse mascarado, sem ruído, golpeando como um bandido comum. Chegou ao
alto do penhasco. Vamos! Mais um esforço e Alphonse Ferranges falará. Porque
ele deveria saber alguma coisa pois, caso contrário, o barão não o atacaria.
Ninguém à vista. Os tiros não haviam sido ouvidos. Somente a canção dos grilos
se ouvia no silêncio reinante. Não havia necessidade, desta feita, de escalar o
muro nem trepar no alpendre. Todas as portas estavam abertas, mostrando que os
bandidos tinham saído precipitadamente. Raul percorreu rapidamente o vestíbulo,
decorado com diversos quadros, ao fundo do qual tinha início uma curta escada
em caracol. Subiu alguns degraus e atingiu o atelier.
Alphonse Ferranges lá estava, seguro pelas cordas que o prendiam, com a cabeça
furada por uma bala.
7
O MASSACRE

O monstro atacara. Talvez mesmo ainda estivesse na casa, pois o corpo de


Alphonse Ferranges ainda estava quente. Raul afastou-se do cadáver,
esmigalhando barulhentamente cacos de vidro, apesar de suas precauções.
Colocou-se num ponto morto, de onde ficava invisível tanto do exterior, como do
alto da escada. Rápido! Era preciso imaginar um contragolpe, retomar a
iniciativa, caso contrário outros crimes poderiam ocorrer. Mas Raul não podia
afastar os olhos do corpo amarrado. Estava acabrunhado. Entregue,
completamente, à sua luta contra o barão, não pensara que o Outro pudesse. estar,
ao mesmo instante, no campo de batalha. E, no momento em que se acreditava
dono das ações, era irremediavelmente derrotado, achincalhado, dominado por
uma inteligência mais aguda, mais rápida do que a sua, por uma criatura feroz que
aproveitava toda ocasião que se lhe deparava, para matar.
Raul, de repente, hesitava incerto quanto à conduta que devia adotar, aturdido
pela surpresa, e furioso por sentir-se em inferioridade. Imóvel, com as mãos nos
bolsos, procurava analisar a situação. Enganara-se ao suspeitar de Alphonse
Ferranges. Certamente fora mais um inocente que pagara. Mas a que levaria esse
massacre?... Evidentemente, os Ferranges eram os depositários — talvez sem
saber — de um segredo. Era para descobrir esse segredo que o barão
primeiramente apropriou-se do manuscrito do Conde de Eunerville; depois, tal
manuscrito não tendo servido a coisa alguma, raptara o velho. Em seguida,
astuciosamente, obtivera a carta da Inglaterra. Mas também essa não devia ser
muito explícita, uma vez que decidira atacar Alphonse, talvez por causa da Quinta
São João... Tudo isso aparecia bastante claro. O que não acontecia e era vaga,
inconsistente, cheia de furos e contradições, era a espantosa atividade dó Outro.
O atentado no Gros Galet, bem como o atentado contra Lucile, ou o que acabara
de ser vítima seu tutor, tantas emboscadas armadas talvez há semanas. Por que
essa sorrateira lentidão? E sobretudo, a que fim se propunha o criminoso?
Descobrir, ele também, o segredo? Mas através de que meios esperava chegar a
tanto? Tinha ele conhecimento do manuscrito, da carta e das palavras-chave,
palavras que a dor e o sofrimento haviam arrancado a Bernardin?... Teria ele ido
mais longe do que o barão na descoberta da verdade?...E, se o segredo ainda
fosse desconhecido, não se deveria isso apenas ao fato dele ter que efetuar,
baseado em dados enigmáticos, um trabalho de síntese do qual não era capaz?
—"Eu, eu deveria encontrar — repetia Raul a si mesmo. — Mais ainda! Já
deveria ter encontrado. Talvez me falte apenas um pequeno detalhe... Talvez não
tenha estudado suficientemente os elementos que possuo." Esquecendo a cena
sangrenta à sua frente, repassava na memória as palavras do velho Bernardin e as
de Maitre Frenaiseau... Que dissera o notário? "Por que o Rei Louis-Phillipe, em
fuga, decidira bruscamente retornar ao castelo de Eunerville, desafiando, dessa
forma, um perigo mortal?" Isso também era uma frase-chave. O rei voltara por
alguma razão imperiosa. Ele fizera algo que fora testemunhado por Evariste
Vauterel, o fiel mordomo, o pai de Bernardin. A família dos Condes de Eunerville
se extinguira, mas os Vauterel ainda estavam vivos... Daí o rapto do velho... As
ações do barão eram lógicas... Mas por que o Outro atacou os Ferranges?...
Voltava o nada, a escuridão completa.
Raul suspirou e pareceu despertar. Revistar o corpo? Não havia motivo. Se o
desgraçado tivera algo importante, o inimigo já se apoderara do mesmo. Mas
Raul tinha duas cartas de trunfo e era baseado nelas que convinha jogar. Primeiro,
o barão... Quando ele houvesse passado algum tempo pensando, metido naquele
buraco, e soubesse que Alphonse Ferranges fora morto, ele se tornaria mais
comunicativo. Não importava como, Raul retomaria a carta da Inglaterra. Depois,
restava apenas obrigar o velho a confessar...
Raul desceu a pequena escada. Recuperara o ânimo e sentia que era novamente
levado pela vida, como um barco que a maré carrega pouco a pouco. Antes de
deixar a casa, por hábito olhou com um olhar de conhecedor para alguns dos
quadros assinados: Jacques, Ferranges.
— Sem esperança! — murmurou. — Pobre Lucile. Teu pai não passava de um
borrador de telas!
Antes de sair, lembrou-se e passou pela cozinha, onde apanhou um pão redondo e
uma terrina de patê.
— É preciso lançar a isca, se queremos que eles mordam!
Sorriu porque havia no vestíbulo um alto espelho que refletia sua imagem, a quem
fez um pequeno sinal de cabeça animador. Certamente a hora não se prestava a
brincadeiras mas, há muito tempo, aprendera a controlar seus sentimentos diante
da morte. Retomou o caminho do Gros Galet; maquinalmente arrancou um pedaço
do pão e comeu-o, apressando-se. E era um espetáculo tão inusitado, esse
pequeno empregado de escritório, vestido de alpaca preta, comendo ao luar,
apertando contra si uma terrina de patê, que se dirigiu à sua própria sombra que
se projetava, enorme, e caminhava ao mesmo passo.
— Salve, Dom Quixote! Encantado por encontrá-lo pois estás cada vez mais
difícil... Permita-me que eu te alimente um pouco. Nunca te vi tão magro!...
Certamente pelo muito que tens visto, não?... Ah! Não é engraçado, diariamente,
ter que defender uma pequena órfã. E isso tanto bate de um lado como bate do
outro!... Mas, confessa, tu não serias o mesmo se o inferno não mandasse contra ti
os seus mais negros agentes. Venham, demônios, que os farei em pedaços! Meu
Deus! Este patê tem uma aparência divina... Prove, para ver. Trate de aproveitar a
vida, ora bolas!... Estarão nos esperando... Não? Estás sempre apressado?...
também, acredite... Atenção! Tu serias capaz de te aborreceres... E eis aí tua
vereda!
Raul desceu a trilha estreita e parou diante da casa. Apenas movimentos das
ondas do mar, ao longe, perturbavam o silêncio. Raul entrou.
— Boa noite, rapazes!... Eu trago a ceia; uma dessas pequenas refeições, apenas...
Ei! Podem responder-me. Estão aborrecidos?
Desajeitadamente apalpou-se procurando a lanterna elétrica, sem largar a comida;
finalmente acendeu-a, afastou a cortina e praguejou. O alçapão estava entreaberto
e a extremidade da escada saía do assoalho. Fugiram! Desapareceram!... Mas
libertados por quem? Pelo Outro?... O Outro que deveria ter ficado espionando e
se precipitara para a casa logo que ele saíra. Pôs o pão e a terrina sobre a mesa e
iluminou o interior da cava.
Um soluço de horror sacudiu-o. Estavam lá, todos dois, ao lado da escada, a
cabeça ainda levantada para a salvação... Cobertos de sangue... os olhos fixos
mostrando um terror sem nome. Haviam sido fuzilados à queima-roupa.
E Raul, mesmo contra a vontade, imaginava esse último minuto... a escada
fazendo baixar o alçapão... o barão se precipitando à frente... e o braço armado
de um revólver, aparecendo de repente... os traços de fogo... os estertores...
depois o silêncio do túmulo.
Raul não tinha mais força para se mover. Não se enganara pensando que o barão e
seus homens fossem cúmplices do monstro. O barão jogara sua própria partida e
perdera... O Outro, depois de ter-se desembaraçado de Alphonse Ferranges,
prosseguira em sua obra de morte na cava e só tivera o trabalho de descer para
apanhar a carta da Inglaterra no bolso do morto. E agora?...
O barão eliminado, restavam, face a face, dois inimigos. Raul e uma sombra
impalpável, que estava em toda parte e em parte nenhuma, e que atacava ora
lentamente, com pérfida habilidade, ora selvagemente, com a rapidez de uma
serpente. Uma idéia terrível atravessou, de repente, o espírito de Raul.
Bernardin?... Já que o Outro sabia de tudo, já que ele tomava a dianteira como se
lesse o pensamento do adversário, talvez já conhecesse o esconderijo do velho?
Talvez nesse mesmo momento... Ah! Não! Seria horrível demais... Como
deplorava os dois dias perdidos no castelo, inativo, na doce companhia de Lucile;
quanto ele poderia...
Raul levantou-se, os punhos cerrados, decidido. Atacar! Era preciso atacar,
vencer o Outro em rapidez, enquanto ainda houvesse tempo. Saiu correndo da
casa. Da derrota saía o homem das grandes ocasiões, a quem nada podia conter.
Correu até o alto do penhasco e logo encontrou o side-car. O motor, lançado em
toda a sua força, fez com que o veículo arrancasse com um furioso salto. Não, não
podia ser muito tarde. O outro não dispunha de meios sobrenaturais. Mas talvez
usasse um automóvel? Então, agora seria uma competição de velocidade e tais
competições, Raul sabia como vencê-las.
A máquina dava o máximo; os buracos na estrada sacudiam Raul horrivelmente.
Felizmente o luar iluminava bastante a estrada, pois o side-car não tinha farol.
Raul conduzia como um louco, dentes fortemente apertados, e o vento da corrida
gelava o suor em sua testa. Várias vezes, derrapando numa parte da relva, quase
foi atirado fora do veículo. Obstinadamente voltava ao caminho e voava dentro da
noite. Quando percebeu ao longe a pequena casa branca de Victoire, não havia
cruzado com ninguém, nem fora ultrapassado por ninguém. Estava só e certo de
que chegaria em primeiro lugar.
Sua freada foi tão seca que derrapou e ficou atravessado. Não tinha importância.
Cambaleou um pouco, caminhando para a cancela. Era idiotice apressar-se dessa
forma. Em outras oportunidades entrara em pânico? Mas não era pânico. Apenas
prudência. Talvez um excesso de prudência. E havia agido um pouco
levianamente até agora. Dessa forma, prometeu a si mesmo, depois de empurrar a
cancela, não baixar mais a guarda. Bateu três vezes na porta. Victoire tinha um
sono leve. Ela iria aparecer na janela do sobrado e atirar-lhe a chave.
— Victoire! — chamou ele a meia-voz. — Victoire, sou eu!
Brutalmente a angústia apertou-lhe a garganta.
— Victoire!
Ele gritara. Estava prestes a arrombar a porta. Sacudiu furiosamente o trinco. Este
rodou e a porta se abriu. Não estava trancada a chave.
— Meu Deus!
Acendeu sua lanterna e subiu, impetuosamente, a escada. Victoire estava estirada
na cama, amarrada, com uma venda sobre os olhos e amordaçada. Raul não
perdeu tempo em soltá-la. Correu ao quarto vizinho. Bruno estava, ele também,
devidamente amarrado. Um lenço amordaçava sua boca.
— Droga!
Raul tropeçou num degrau, quase degringolou escada abaixo, segurou-se no
corrimão e caiu ajoelhado. Levantou-se mancando e precipitou-se para o quarto
de Bernardin. A peça estava vazia. O velho desaparecera.
Acabrunhado, Raul deixou-se cair sobre a cama e tomou a cabeça entre as mãos.
Desta vez, o Outro estava, certamente, com o segredo em seu poder. Ele tinha a
carta e Bernardin! Mas qual seria esse segredo pelo qual tantas vítimas haviam
sucumbido?... Raul sofria. Sentiu necessidade de refugiar-se ao lado de Victoire.
Foi libertá-la das cordas, de sua mordaça. Enterrou a cabeça em seu colo.
— Victoire!... Minha boa Victoire!...
Ficou imóvel por largo tempo, como se quisesse buscar, nesse contato, novas
forças. Ela calava-se; nem pensava em se lamentar com um braço passado em
torno do pescoço daquele que ela criara e que havia enchido sua vida de tumulto
e de dramas. Finalmente, ele levantou a cabeça.
— Explica-me...
— Eu não sei nada. Estava na cozinha. Ouvi uns passos atrás de mim. Pensei que
fosse Bruno e não me voltei. Jogaram-me qualquer coisa sobre a cabeça que me
cegou. Em minha idade, somos fracas. Tive tanto medo... Imediatamente perdi os
sentidos. Quando voltei a mim estava aqui, amarrada como um embrulho.
— Quando foi isso?
— Bem, um pouco antes do almoço. Eu ia fazer um omelete, porque Bruno os
adora... como tu. Ele estava no jardim, colhendo cebolinhas... Mas o que lhe
aconteceu?
— Ele está ao lado, transformado num salsichão. Deve estar cansado... Espere um
pouco aqui, minha boa Victoire. Vou trazê-lo.
Raul foi cortar as cordas do infeliz Bruno e restituir-lhe o uso da palavra.
— Ah! É o senhor, patrão... O velho? O que aconteceu com ele?
— Raptado!
É minha culpa. Eu deveria ter desconfiado. Mas tudo estava tão tranqüilo! Além
disso eu sabia que o senhor estaria pelas vizinhanças... Eu estava no jardim.
Deram-me uma pancada na cabeça...
— Bernardin falou?
— Ele? Mais teimoso do que uma mula. Nem mesmo um bom dia ou uma boa
noite.
— Ele falará, agora. É claro que quem o raptou está certo disso, pois não o
assassinou como...
Raul calou-se. Não havia necessidade de colocar Bruno ao corrente. Ele já estava
bastante transtornado.
— Patrão! Estou desolado. Ah! A culpa, eu sei, foi minha. A culpa foi minha.
— Não, meu jovem. Não foi tua culpa se nos deparamos com um verdadeiro
demônio. E mesmo você teve bastante sorte. Ele poderia matá-los também. Eu me
pergunto por que razão ele não fez isso.
Apertou violentamente o braço de Bruno.
— Veja bem, é isso que me assusta. Há uma lógica que não compreendo. A
fraqueza dos que eu venci, é que eles raciocinavam como eu, e eu raciocinava
mais rápido do que eles. Mas ele, este... me confunde.
— E Victoire?
— Tranqüiliza-te. Ela está bem. Tem mais medo do que outra coisa. Esse monstro
sabe, quando quer, controlar seus golpes... Venha vê-la.
Os três se reencontraram no quarto de Victoire. A velha mulher já estava
completamente recuperada.
— Descansa, agora — disse ela a Raul. — Tu nunca achas que o que fazes é
bastante?... Já não estás bastante rico?
— Não ando atrás de dinheiro — disse Raul sombriamente. — Nem atrás de
glórias. Nem atrás de coisa alguma. Eu me defendo. Bem! Tu, Victoire, ficas aqui.
Eu prometo que te deixarei tranqüila... E tu, Bruno, voltas a Paris. Se tiver
necessidade de ti, eu chamarei.
— De. verdade, patrão?... O senhor não está me despedindo?... Porque eu acho
que ainda sou capaz de prestar-lhe algum serviço... Se não fosse agredido pelas
costas...
Esfregou pensativamente a cabeça.
— Quando penso que nem o senti aproximar-se!
— Quer café? — perguntou Victoire.
— Sim, obrigado, minha boa velha. Pessoalmente estou mesmo precisando de um
bom estimulante.
8
SÃO JOÃO SUCEDE A JACOB

Uma hora mais tarde, Raul, depois de ter guardado o side-car na garagem, entrava
no castelo; mas em lugar de voltar ao seu quarto, foi diretamente ao de Huber
Ferranges. O revólver estava no lugar, na gaveta da mesa de cabeceira. Verificou
o tambor e guardou a arma no bolso. Depois, efetuou uma ronda.
Assim, o infortunado Bernardin estava há perto de doze horas nas mãos de seu
raptor e Raul não queria nem imaginar as sevícias que teria que enfrentar. Pobre
patriarca! Sem dúvida nunca mais o veriam. O Outro, depois de haver conseguido
as informações que desejava, faria com que desaparecesse. E essas informações,
podia apostar, estavam agora em seu poder. Ora, o segredo de Eunerville estava
forçosamente ligado a alguma coisa que se encontrava no castelo. Era, portanto,
entre estes muros que o último ato da comédia deveria ter lugar. Sim, qualquer
coisa iria acontecer, algo de terrível. Mas o quê?...
Raul estava exausto. Apesar disso esteve na galeria e sonhou um momento diante
dos quadros de Jacob e São João. Mas aquele relâmpago que iluminara seu
espírito, quando descobrira as telas, estava extinto. Por desencargo de
consciência, auscultou ainda uma vez as paredes, com a palma da mão. Depois
refugiou-se na biblioteca, fumou um cigarro na poltrona do castelão, repetiu
lentamente, com toda concentração de que era capaz: "São João sucede a Jacob...
D'Artagnan conquista glória e fortuna à ponta da espada..." Em seguida... havia o
sangue... Bernardin falara de sangue... Não! O maior gênio do mundo não poderia
tirar dessas palavras um significado coerente. Ele adormeceu, de um mau sono
que lhe inteiriçava dolorosamente os membros. De quando em quando abria os
olhos e uma voz murmurava em si mesmo: "Eu devo encontrar... Eu devo
encontrar..." mas sua cabeça repousava novamente.
Foi Lucile quem o sacudiu.
— Hem? Que é que há?... Lucile!
Imediatamente retornando a si, levantou-se envergonhado de ter sido visto à
vontade, como o rosto desfeito.
— Mas que horas são?
— Oito horas.
— Você tinha razão em me acordar. Eu esperava descansar apenas um instante...
Adormeci. Regressei muito tarde. Tive muito o que fazer; muitas ocupações.
— Que você não quer me contar!...
— Oh! Não há nada para contar ainda. Estou às apalpadelas; procuro juntar as
peças... Se me permite vou fazer uma rápida toalete e a encontrarei na sala de
refeições.
Deixou precipitadamente a jovem e foi com volúpia que mergulhou, minutos mais
tarde, a cabeça na água. Uma ducha seria melhor, mas o castelo, quanto a isso,
deixava muito a desejar. "Bah! na guerra, como na guerra, — murmurou ele
barbeando-se. — O essencial é não parecer muito amarrotado!" E com a ciência
de um ator, devolveu ao seu rosto o esplendor e a frescura da mocidade.
Entretanto Raul estava bem cansado, mas se habituara há muito tempo a não ouvir
as reclamações do seu corpo. Escovou cuidadosamente o traje de secretário, pôs
um colarinho de pontas viradas e uma gravata plastron que lhe dava um aspecto
douto. À medida que renascia o pequeno Catarat, voltava a Raul o prazer do jogo.
Certamente não esquecia que o perigo aumentava de minuto a minuto, mas
recusava>-se a enfrentá-lo com uma cara de quarta-feira de cinzas. Nunca ficava
tão forte como quando estava alegre e, como um desafio, apanhou um botão nas
flores que enfeitavam a lareira e colocou-o à lapela. Depois olhou-se uma última
vez ao espelho do armário.
— Pelo menos — brincou — estou com um ar positivamente basbaque! Vamos,
Pequena Coisa, vá fazer tua corte! Balbucia-lhe que seus olhos acenderam em teu
coração brasas que ninguém poderá nunca extinguir. Seja pedante. Faça com que
se divirta. Trata de fazer com que esqueça que a Morte já bateu à porta... E, se
puderes, diverte também a Morte!
Desceu à sala de refeições. Apolline, que servia o desjejum, mostrava-se furiosa.
— Essa menina — dizia ela, — depois que o avô partiu, tornou-se impossível.
— E de que é ela culpada? — interrogou Raul.
— É uma pequena ladra. Ainda ontem, pegou uma caixa de biscoitos. No entanto
não temos o hábito de contar a comida que estamos dando. Que boas maneiras!...
Oh! Mas eu vou ensiná-la, ora se vou.
— Vamos — disse Lucile, — deixe-a com essa pequena mania. Ela está infeliz, a
pobre menina. Tem direito a um pouco de indulgência, não acha, Sr. Catarat?
— Estou persuadido disso. Feche um pouco os olhos, Madame Apolline. Mas se
o caso se repetir será necessário chamar-lhe a atenção.
— O incidente está encerrado — concluiu Lucile. Quando Apolline saiu ela
suspirou.
— Vai tudo às avessas, Sr. Dumont. Felizmente está aqui. Senão eu não saberia
como estaria... As buscas para encontrar Bernardin foram em vão. Todo mundo,
agora, está persuadido de que lhe aconteceu alguma desgraça... Acredita que
exista uma relação entre o seu desaparecimento e... o que ocorreu aqui?
— Não sei — mentiu Raul. — Tudo que posso afirmar é que nos aproximamos do
desenlace. Qual desenlace? Ignoro. Mas os acontecimento estão em andamento...
E devemos estar sempre prontos.
Acariciou a cabeça de Pollux que estava deitado junto a Lucile.
— Mantenha-o sempre perto... e não creia que estou delirando. A propósito, eu
me proponho a trabalhar um pouco na biblioteca. Nada como um trabalho bem
enfadonho para acalmar o espírito.
— Nesse caso, vou ajudá-lo.
Raul não ousou recusar. Poderia ele dizer à jovem: "Evite-me. Não vê que essa
intimidade, por menor que seja, é perigosa tanto para você como para mim?
Desde que estou aqui você encontra pretextos para acompanhar-me a toda parte.
Se você fosse menos inocente saberia o que isso significa. E eu, que sou de certa
forma mais culpado do que você, deixo as coisas prosseguirem... porque você é
bela e porque eu me sinto tão só quando a Aventura me abandona!"
Foram para a biblioteca e voltaram a classificar livros. Ela tagarelava, numa
pausa entre dois títulos escritos com sua bela caligrafia.
— Como conseguiu — perguntou ela — uma licença de seu jornal?... Eu sempre
pensei que um jornalista ficasse preso à redação, vinte e quatro horas por dia.
— Como consegui... Bem...
Raul que estava com o pensamento voltado para Jacob e São João, improvisou
uma resposta no momento.
— Eu trabalho como colaborador. Sou um jornalista independente.
— Que quer dizer colaborador?
— Pois bem, eu proponho, ofereço um artigo e me pagam esse artigo, se prefere
assim.
— Como é interessante! Como eu gostaria de ser jornalista. Pagam qualquer
artigo?
— Claro. Desde que trate de um assunto que possa apaixonar os leitores.
— Quando ele envia um artigo ou uma carta, ele também é pago?
— Quem?
— Arsène Lupin.
— Ora essa, mas você só pensa em Arsène Lupin. Chego a estar com ciúmes.
Ela corou e debruçou-se sobre o registro para escrever aplicadamente: Arquivos
da Normandia, mas não demorou a levantar a cabeça.
— Por que não lhe escreve?... Já li que ele ama decifrar mistérios. E aqui, existe
um belo mistério, pois não?
Raul a olhava, tão loura, tão frágil, tão tentadora. Meneou a cabeça.
— Talvez eu lhe escreva mesmo.
— Sabe onde ele mora?
— Creio que sei.
— Oh! Ele não iria se incomodai por minha causa — murmurou tristemente
Lucile. — Eu não sou ninguém.
— Quer fazer o favor de calar-se!... Mas, acredite-me, o mistério de Eunerville,
nós dois, terminaremos, agindo juntos, por descobri-lo... Ah! atenção. Antes de
Arquivos, há Arcanos. Anote.
As horas passaram. Raul, de repente, lembrou-se de que havia completamente
esquecido o infortunado Hubert Ferranges e corou, por sua vez, como um garoto
apanhado em falta.
— Desculpe-me, Lucile. Seu tutor?... Não perguntei notícias dele?
O médico tranqüilizou-nos. Uma simples fratura. Devo ir hoje almoçar na clínica.
— Eu a acompanharei.
Achille levou-os. O estado do ferido era bom. Sua perna estava enorme, depois
de engessada. Ficou feliz por ver a sobrinha e ainda mais satisfeito por saber que,
graças aos cuidados diligentes de seu secretário, o trabalho de classificação
avançava favoravelmente.
— É preciso que avises teu tio Alphonse — disse ele a Lucile. — Por delicadeza.
Sei bem que ele não se ocupa conosco, mas certamente ficaria aborrecido se não
o preveníssemos que sofri um acidente.
Raul lembrou-se que o infeliz proprietário da Quinta São João vivia só. Sem
dúvida o crime não seria descoberto antes de vários dias. Isso lhe daria um bom
prazo e os acontecimentos que ele temia aconteceriam provavelmente muito antes.
Conversaram amavelmente e despediram-se à tarde muito satisfeitos uns com os
outros.
— Você vai agora trabalhar sem mim — disse Lucile quando o automóvel
transpunha a grade do castelo. — Devo colher umas flores... Mas não tenha
cuidado, pois Pollux me acompanhará ao jardim.
— Flores? Para quem essas flores?
— Para mamãe.
Foi no pátio que essa resposta despertou suspeitas em Raul por sua estranheza.
Mas desde que vivia obcecado, tendo na cabeça a todo momento as palavras
mágicas que continham a solução do enigma, tornara-se um tanto distraído.
— Para sua mãe? — repetiu ele.
— Sim, será amanhã sua festa. Ela se chamava Jeanne.
— Ali! Ela se chamava Jeanne — concordou polidamente.
De repente segurou o pulso da jovem.
— O quê?... Sua mãe se chamava Jeanne?... Será amanhã o dia de Santa Jeanne?
— Claro!
Deixando Lucile correu à cozinha onde Apolline descascava algumas batatas.
— Você tem' um calendário?
Ele esquecia seu personagem. Do pequeno Catarat, surgia um desconhecido
imperioso que enchia a cozinha com sua presença e que mostrava claramente sua
impaciência. Apolline enxugou as mãos no avental e, perturbada, murmurou:
— Está aqui... Está aqui...
— Estamos em que dia?
— A 24 de junho, me parece... Eu nem sei mais como se vive hoje.
O dedo de Raul já percorria as colunas dos meses. 24 junho... São Jacob...
Fechou os olhos, esperando que seu coração se acalmasse, voltasse ao ritmo
normal. 24 junho. São Jacob... 25 junho. São João... O 25 sucede ao 24. São
João sucede a Jacob. Raul beijou Apolline que levou um susto.
— Tenha modos, senhor!...
— Mas você não compreende — exclamou ele. — São João sucede a Jacob. E
em que momento preciso, hem?... Você não sabe? É necessário que eu lhe
explique tudo. A que horas passamos de um dia para o outro?... Não precisa ter
um diploma para responder a essa questão: meia-noite, caramba! E à meia-noite
de 24 de junho, que D'Artagnan conquista glória e fortuna. Hem? Não precisa
dizer mais nada. Maldito D'Artagnan!
— Mas ele ficou louco! — balbuciou a empregada.
— Completamente louco! — afirmou Raul. — Ah, a boa, a sadia loucura! Eu
esperava há tanto tempo! Morria de tédio, minha brava Apolline. Não é muito
alegre este teu castelo! Felizmente existe o Santo Jacob! O quê? O que isso
significa?... Ora, dê-me tempo de respirar. Vocês são extraordinários, todos
vocês. Apenas a história começa e vocês já querem conhecer o fim! É D'Artagnan
que a excita! Pois bem, eu também estou assim, acredite. O que pode ele nos
trazer, o 24 de junho? Justamente na noite do solstício!
Recobrou a seriedade e devolveu o calendário a Apolline.
— Não ligue para isso. Eu brincava. Fiz uma aposta... É isso... Uma aposta... e
creio que vou ganhá-la.
Voltava à pele do pequeno bibliotecário e a desconfiança de Apolline começava a
dissipar-se.
— Não se deve brincar assim, Sr. Catarat. Se o Sr. Ferranges soubesse ele
poderia até mesmo despedi-lo!
— Não farei mais — prometeu Raul.
Foi encontrar Lucile e ajudou-a a colher as mais belas flores. Foi preciso um
esforço extraordinário para controlar seu nervosismo. Afinal! O primeiro raio de
luz nas trevas. Ele, agora, tinha uma das pontas do fio. O primeiro elemento do
mistério era uma data. E era provavelmente por esse motivo que os
acontecimentos se aceleravam dramaticamente nos últimos dias. Alguma coisa de
capital ia acontecer. E o inimigo iria, enfim, se mostrar. Passada a chama do
entusiasmo, Raul se concentrava, fazia apelo a suas forças mais profundas,
mobilizava todas as suas energias para enfrentar o desconhecido. Quando estavam
com os braços cheios de cravos, rosas, peônias, voltaram silenciosamente ao
castelo. Lucile conduziu seu companheiro ao salão e parou em frente a uma
grande fotografia colocada no aparador.
— Mamãe — disse ela.
Raul viu uma mulher jovem verdadeiramente mais tocante pelo seu vasto chapéu
florido. A mão pousada sobre uma cadeira de marfim, um leve sorriso nos lábios,
estava de pé diante de um fundo representando uma cerca viva.
— Ela não era bonita? — perguntou Lucile.
— Muito!
Mas ele já esquecera a mãe de Lucile. Uma pergunta fervia em sua cabeça. Onde
teria lugar o Acontecimento? No terraço?... Na galeria?... E em que consistiria
ele? A frase: D'Artagnan conquista glória e fortuna só poderia ter um único
sentido. Tratava-se de algum objeto, sem dúvida extremamente precioso,
escondido em algum lugar. E todo o passado de Raul agitava-se. Glória e
fortuna!... Como tais palavras não o haviam abalado até suas profundezas? Uma
vez mais seu destino aprontava-se a fazer-lhe alguma formidável revelação. Uma
vez mais, mostrava-se fiel ao encontro! E provavelmente um encontro histórico, já
que o rei dormira em Eunerville, havia retornado, apesar dos perigos que o
ameaçavam, e finalmente afastara-se contra a vontade...
Deixando Lucile arrumando seu buquê, dirigiu-se para a galeria e, andando
lentamente, esforçou-se por examiná-la sob uma nova perspectiva. Mas nem os
quadros nem a tapeçaria, nem as panóplias, sugeriam qualquer idéia interessante.
Coincidência, o São João sucedendo a Jacob. As duas telas nada significavam e
somente o acaso, sem dúvida, fora o culpado da troca. Coincidência o
mosqueteiro sentado à mesa. Ou então talvez falsos indícios ali deixados para
confundir quem os visse. Seus pensamentos seguiram outro curso. Se alguma
coisa deveria acontecer no justo momento em que o 24 terminava e o 25 ia lhe
suceder, poderia ser levado a concluir que, movido por algum movimento de
relojoaria, um esconderijo se abrisse à meia-noite. Mas seria crível que cada ano,
na mesma data, à mesma hora, esse esconderijo se abrisse? Curioso esconderijo,
na verdade. Não, não era isso. Mas ele não conseguia afastar a idéia de um
esconderijo. Obstinava-se, percorrendo a galeria em todos os sentidos. E sua
aventurosa existência descobrira a chave de tantos outros enigmas, que se irritava
por ser mantido em xeque por um mistério que afinal talvez fosse bem simples,
mas do qual não possuía todos os dados. Isso não era uma razão para renunciar.
Em outros tempos, teria imaginado os elementos que faltavam. Se na noite
precedente não houvesse tido tanto trabalho, se a fadiga não tivesse, de tal forma,
tomado conta de suas forças, ele teria se plantado ao centro da galeria e aí, num
esforço sobre-humano, faria com que surgisse a verdade, uma vez que era um
mágico do impossível. Sentia-se à beira da descoberta. Mas, à falta de algumas
horas de repouso, seu cérebro negava-se a auxiliá-lo. Era inútil forçar.
Raul tirou o relógio e sobressaltou-se. Já era hora de jantar. E não teria tempo de
dormir um pouco! Pelo contrário, era preciso vigiar, chegar ao meio da noite no
auge da atenção, estar pronto para tudo. Num caso assim, Raul recorria a um
método bem simples: comia muito bem, mas sem excesso. E, felizmente, a
refeição no castelo era sempre copiosamente servida. Assim, quando ouviu bater
o relógio, apressou-se em busca de Lucile na sala de refeições. Reencontrara seu
bom humor, com um último esforço de sua vontade; e para afastar a inquietação da
jovem, desdobrou todos os seus dons de bom conversador. Quando era
necessário, sabia contar maravilhosamente algum caso curioso, engraçado ou
pitoresco e para isso bastava mergulhar em sua prodigiosa memória para
alimentar indefinidamente a mais agradável das conversações. Lucile, de olhos
arregalados, perguntava de vez em quando:
— Isso aconteceu com você?
— Não, comigo não — dizia Raul. — Mas com um amigo muito querido. Quer
mais um pouco deste excelente peixe... Para agradar-me!... E permita-me que lhe
ofereça ainda um copo deste delicioso Muscadet.
— Conte outra história.
— Mas você está me tomando por Sherazade, minha jovem! Pois bem, vou
revelar-lhe a parte secreta de um caso que fez com que se gastasse muita tinta...
Evidentemente você nunca ouviu em sua vida falar de Madame Imbert. Saiba
portanto...
O monumental relógio escandia os segundos. A noite começava a entrar pelas
janelas abertas para o parque. Apolline acendeu o lustre. Lucile permanecia
enfeitiçada. O queixo apoiado nas mãos cruzadas, esquecendo de comer, olhava
esse homem que se dizia jornalista e que... ela agora tinha certeza... era alguém
bem diferente, porque as aventuras que ele contava tinham todas um caráter
excepcional e a um jornalista, um personagem comum, não poderia ocorrer nada
comparável. Ora, era ele o herói dessas histórias e não como dizia, "um amigo
muito querido".
— Tomarei um café — concluiu Raul. — Apolline, por favor, me dê um café bem
forte.
— Por que você me esconde a verdade — disse Lucile. — Esse amigo de quem
você fala não existe.
O falso jornalista pareceu perturbado.
— Eu lhe garanto, Lucile... Mas, vá lá... enfeitei um pouco alguns detalhes. Em
nossa profissão, somos obrigados a dar uma pequena ajuda... porque o grande
público ama sempre o sensacional.
Apolline trouxe uma bandeja e serviu as xícaras.
— Um pouco de café não lhe fará mal — retomou Raul. — Não? É uma pena!
Lucile esperou que a empregada se afastasse. Quando Apolline desapareceu,
perguntou bruscamente:
— Quem é você?
— Eu? Mas vejamos, Lucile! Como se você não soubesse!... Certamente não sou
bem igual a meus confrades. Quis o acaso que eu me visse envolvido,
pessoalmente, em vários casos bizarros. Mas até aí não existe nada que possa
espantá-la.
A cabeça de Lucile balançava um pouco. Ela estava com os olhos muito
brilhantes. Por Deus! O Muscadet! Ele deveria tê-lo cortado com um pouco de
água.
— Quem é você?
Sua voz estava sutilmente modificada. Estava mais grave, com uma ponta de
angústia. Raul levantou-se e inclinou-se para a jovem.
— Venha!... Ficará melhor sentada numa poltrona. Amparou-a; guiou-a até a sala
vizinha. Pollux os acompanhava. Raul ajudou Lucile a sentar-se.
— Estou com a cabeça rodando — murmurou ela.
— Isso não é nada. Vai passar já.
Lucile encolheu-se. Sua mão direita pendeu para o lado e ficou como morta.
Raul, inquieto, quis voltar para apanhar a garrafa e sentiu o chão ondulado
mansamente. "A droga!" — pensou ele num instante. — Ele nos drogou... O
Muscadet... Fechou a porta, voltou à sala de refeições, com um gesto lento encheu
sua xícara de café.
— Apolline!
Acreditava ter gritado, mas proferira apenas uma espécie de soluço. Bebeu de um
trago o café sem açúcar e sua consciência despertou. Apoiando-se nas paredes
chegou à cozinha cambaleando. Apolline, Achille e Valerie dormiam, com a
cabeça sobre a mesa. Tudo se passava como na noite em que o barão raptara o
velho Bernardin.
— Ah! o patife! — murmurou Raul. — Eu deveria... eu deveria... Mas não podia
desconfiar do Muscadet...
Perdia o fio do pensamento. Voltou à sala de refeições à custa de um esforço
extraordinário. O relógio marcava nove horas.
— Dentro de três horas... em três horas... Tropeçava nas palavras. Sabia que,
dentro de três horas, alguma coisa teria lugar mas não sabia o quê. Estendeu o
braço para a cafeteira mas não a alcançou. Seus dedos agarraram a toalha da
mesa, que deslizou lentamente e um prato espatifou-se no chão. O ruído
despertou-o. Se pudesse agarrar a garrafa, aspergir-se com água fria... Caiu sobre
um joelho. Seus dedos tatearam um pouco, depois se imobilizaram.
— Não posso dormir!... Não posso dormir!...
Era uma voz poderosa que gritava dentro de si e ele procurava responder:
— Certamente que não dormirei!
Seus lábios moviam-se. Caiu e depois sentiu que estava deitado de costas. Estava
bem. Suspirou beatificamente.
— Um minuto — prometeu ele. — Apenas um minuto... Depois eu me levantarei.
Seus olhos se fecharam.
9
A NOITE DO SOLSTÍCIO

Raul lutava como um prisioneiro, um enclausurado. Gemia. De quando em quando


suas unhas arranhavam o assoalho. Suas pernas de repente se agitaram, como se
houvesse corrido. Pronunciava palavras sem nexo. Em algum lugar, no fundo de
sua consciência, tremeluzia um clarão de lucidez. Depois cessava de mover-se.
Depois chamava com uma voz estranha, irreconhecível: "Lucile! Lucile!" E pouco
a pouco foi entendendo um monólogo. Alguém falava... murmurava bem longe:
"Está em tempo... É preciso abrir os olhos. Não é difícil abrir os olhos... Depois,
estarás salvo... Conta! Quando chegar a três, levantarás as pálpebras... Um...
dois... três...
Obedeceu para procurar descobrir quem falava. Um pesado silêncio o envolvia
por todos os lados. Algo tocava-lhe o rosto. Com um gesto hesitante, depois de
várias tentativas, levou a mão à face e encontrou um pano. Não compreendia
ainda, tateava. Parecia uma toalha de mesa... E havia, acima dele, uma mesa. Era
bem uma mesa pois podia ver seus pés - maciços. Então, estava deitado? O que
fazia no chão? Estava doente? Ferido?... Não. Não sentia nada. Tinha mesmo
vontade de se espreguiçar, como um dorminhoco entorpecido por uma longa noite
de sono.
O relógio começou a bater horas. Maquinalmente contou as batidas e acabou por
confundir-se. Eram onze ou doze?..'. Era preciso saber... a qualquer preço...
porque se fossem doze... se fosse meia-noite... Havia algo a ser feito à meia-noite.
Mas o que era?... Levou a mão aos olhos... Ela estava pesada, como uma luva de
ferro. E a angústia, de repente, invadiu-o. Ia ficar lá, inútil, estendido no chão,
enquanto...
Mexeu os joelhos. Estava pesando mais do que um cadáver. Apesar disso
conseguiu deitar-se sobre o ventre, depois encolheu uma perna debaixo de si e
apoiou-se num cotovelo. O suor lhe escorria pela testa. Quando conseguiu ficar
de quatro, retomou alento. E a reflexão de Valerie voltou-lhe à memória: "Vovô
anda no telhado de gatinhas!" A imagem do velho, equilibrando-se sobre as
ardósias pareceu-lhe de um cômico tão irresistível que deu uma gargalhada. Caiu
novamente sobre o ventre e ria de tal forma que sufocou-se. "O velho... ah! ah!...
como num circo... ai... Não posso mais..." Respirava com dificuldade. Chorava de
alegria. E, ao mesmo tempo, no fundo de si mesmo, sabia que esse riso, esse
ataque de riso, era um efeito da droga, que o momento era dramático e que ele
devia, custasse o que custasse, levantar-se, andar, agir, Depois... seu pensamento
entrava numa espécie de nevoeiro. Mais tarde, seria sem dúvida testemunha de
alguma coisa... desde que se apressasse.
O relógio recomeçou a bater, num som grave que ecoava pela sala. Contou, com
uma aplicação dolorosa, pois cada batida repercutia em seu crânio. Doze! Desta
feita não se enganara. Por um milagre de energia conseguiu levantar-se, apoiado à
mesa. A cafeteira estava junto à sua mão. Não perdeu tempo em encher uma
xícara. Bebeu mesmo no bico, avidamente, e sentiu-se um pouco mais firme nas
pernas. Se pudesse abrir a janela, respirar um pouco de ar fresco...
Caminhou para a janela, como um bêbado, e apoiou a testa fria contra o vidro que
lhe pareceu gelado. Mas estava bom. Isso acalmava o fogo que o queimava por
dentro. Fora, o luar clareava, delicadamente, um mundo desconhecido de sombras
bizarras, de regiões claras, de formas fantásticas... Não. Não eram formas
fantásticas mas apenas a silhueta deformadas das chaminés, dos cataventos, que
se recortavam como um desenho de criança na calçada do pátio de honra. E
alguma coisa se movia.
No primeiro instante Raul pensou que ainda estivesse sonhando. Essa paisagem,
ao mesmo tempo geométrica e curiosamente alongada, parecia uma visão de
pesadelo. No entanto, qualquer coisa se movia... Era um animal? A sombra se
alongou; era um homem, indiscutivelmente. E ele andava no alto do telhado; ele
seguia o traço de sombra que marcava o limite entre o negro e o azul. Avançava
como um funâmbulo. Onde estava ele? No alto, no terraço? Ou no pátio? Dava
grandes passadas lentas, como se estivesse contando-as. Depois parou e ficou
alguns instantes imóvel.
"Vovô caminha no telhado". Raul soube, instintivamente, que estava vendo o velho
Bernardin. Era maluco, impossível, um delírio. Como o bom homem poderia estar
nesse momento no castelo, se ele fora aprisionado pelo Outro?... Lá embaixo a
silhueta curvou-se e uma lâmina cintilou. Por Deus! A cena se passava no pátio e
não no telhado! Havia alguém, Bernardin ou o diabo, que se preparava para
cavar... na base do catavento... da sombra do catavento... a que representava um
mosqueteiro... Raul encostou a cabeça em outro lugar procurando uma zona fria.
Precisava de todas as suas faculdades e a frescura da vidraça o ajudava a
concatenar as idéias; porque ele começava a orientar-se no labirinto de
suposições e hipóteses.
Quando admitira que havia um esconderijo, não se enganara. E esse esconderijo
era mostrado pela ponta da espada do mosqueteiro, quando São João sucedia a
Jacob, que dizer, no momento em que a lua recortava, de certa maneira, a silhueta
complicada dos telhados sobre o pátio de honra. "Isto não pode ser — murmurou
Raul. — E se o tempo estivesse encoberto... E se chovesse..." Mas era obrigado a
aceitar o testemunho de seus próprios olhos. E o que via nesse momento era um
homem procurando arrancar uma laje.
Lentamente, Raul abriu a janela e logo ouviu o ruído do metal na pedra. A
curiosidade, a excitação da descoberta acabaram por despertá-lo. Seu corpo
ainda não obedecia muito bem, mas seu pensamento voava e não cessava de fazer
perguntas. Fora Bernardin quem narcotizara as garrafas?... Mas por quê?... E se
ele estava livre, num golpe de astúcia, por que não viera imediatamente se
refugiar no castelo?... Mas talvez ele estivesse justamente escondido no castelo!
Onde?... Deveria haver alguma passagem secreta permitindo entrar e sair sem que
ninguém soubesse?...
Raul, desajeitadamente, pulou a janela. Abaixo, o homem trabalhava. A sombra
dos telhados recuara imperceptivelmente, à medida que a lua subia no céu, e
Bernardin se encontrava agora em plena luz, porque era ele mesmo. Curvado
sobre a laje, que acabara de soltar, mostrava seus cabelos brancos, que brilhavam
em volta da cabeça como uma leve espuma. Ele pegou a laje e suspendeu-a.
Depois, com uma das mãos na cintura olhou em torno de si. Raul, colado ao muro,
não fazia o menor movimento. O velho ajoelhou-se. Iria rezar? Não. Meteu a mão
no buraco deixado pela laje. O que podia estar escondido ali? Um cofre real?...
Muito grande. Um saco?... Também não. Mas talvez uma chave.
E a chave não estava lá pois Bernardin retirava a mão e examinava-a como se não
acreditasse no que via. Depois, com uma espécie de fúria, explorou novamente a
cavidade e cavoucou com desespero. Finalmente, jogando o busto para trás,
pareceu tomar o céu como testemunha do desastre. A luz passou pelo rosto do
patriarca, iluminou suas órbitas fundas, sua boca aberta num grito que não saía.
Pesadamente, como uma árvore que é abatida, Bernardin caiu ao lado do buraco e
não se moveu mais.
Raul gostaria de correr, mas só podia avançar com um passo de convalescente.
Não tinha ainda a cabeça muito sólida e suas pernas ainda tremiam. Por sua vez
ajoelhou-se ao lado do buraco e acendeu a pequena lanterna que nunca o
abandonava. Viu a terra negra e úmida, e um verme que se escondia. O velho
estava louco. Esta laje nunca ocultara coisa alguma...
Raul iluminou o rosto do ancião. Fulminado! O pobre homem sucumbira a uma
crise cardíaca; a surpresa e o desespero ainda se liam em seus traços. Raul
procurou nos punhos e nos tornozelos marcas de cordas. Mas Bernardin, ao que
tudo indicava, não fora amarrado. De onde então teria ele saído?... E subitamente
Raul compreendeu. O Outro deixara o prisioneiro escapulir e o acompanhara,
certo de que o velho ia levá-lo, diretamente, ao esconderijo. O Outro, por
conseguinte, não devia estar longe. Raul agachou-se ainda mais e procurou varar
com os olhos as trevas ao pé das muralhas. A sombra saía, pouco a pouco; a lua
ia passar no zênite do castelo e logo todo o pátio estaria iluminado. Onde se
esconderia o Inimigo? Sem dúvida ele fora testemunha da vã procura de
Bernardin e pensava em algum novo ardil para apropriar-se.do objeto que o velho
esperara desenterrar...
Esse pensamento levou Raul a novas reflexões. Agora, seu cérebro trabalhava a
todo vapor, como se, por um efeito secundário e imprevisível, a droga houvesse
decuplicado seu poder, enquanto, apesar disso, ela ainda mantinha seu corpo
dominado. Não havia dúvida alguma de que alguma coisa fora escondida sob uma
laje, num 24 de junho, à meia-noite, numa noite de lua cheia e, nesse momento,
alguém idealizara a fórmula: São João sucede a Jacob, D'Artagnan conquista a
glória e fortuna à ponta da espada. Era uma boa maneira de guardar a cena na
memória. E de quem o velho Bernardin ouvira a frase mágica? De seu pai, é
claro! Desse Evariste, o fiel mordomo que devia estar presente no momento em
que o esconderijo foi escolhido. Porque o acontecimento retroagia muito longe no
passado... Até o último Conde de Eunerville... até a breve estada do Rei Louis-
Phillipe no castelo. Quem levara o rei a Trouville? Evariste. Era ele que se
ocupava de tudo, que tratava de tudo. E provavelmente a idéia de esconder um
certo objeto sob uma laje do pátio era dele. O rei, no último minuto, julgara
imprudente levar tal objeto para o exílio. Retornara ao castelo e o confiara ao
Conde de Eunerville, cuja lealdade não punha em dúvida. E o conde, com auxílio
de Evariste, havia posto a coisa em lugar seguro. Mas devia ser algo muito
precioso para que o rei corresse o risco de adiar seu embarque e voltar ao
castelo.
Raul, sempre ajoelhado, dava a impressão de ser uma estátua de pedra. Mas
estava tão profundamente mergulhado em seus pensamentos, que não ousava
mexer-se. Porque percebia uma falha em seu raciocínio. Um furo!... Um erro
monumental!... O rei fugira na noite de 2 de março e o conde esperara perto de
quatro meses para enterrar o objeto?... Por que essa espera?... A rigor, era
explicável. O conde contara com um pronto retorno de Louis-Phillipe e esperava
restituir o que lhe fora confiado. O tempo passando, a esperança se diluindo,
procurava um esconderijo seguro. Mas como arriscar-se dependendo de um
hipotético luar para localizar uma certa laje, entre milhares de outras?... O conde
não era ignorante, devia saber bem que seriam necessários cálculos extremamente
complicados quando quisessem, mais tarde, determinar a posição exata em que
estava a sombra do mosqueteiro nessa noite de 24 de junho de 48. E se uma
tempestade derrubasse o catavento?... Não! Era impossível que houvessem
escondido um objeto de tão grande valor com essa ingenuidade.
— Vejamos — monologava Raul — eu sou o Conde de Eunerville. Recebo algo
que tem tanta importância para o rei como sua própria vida e vou escondê-lo,
como um vulgar saco de moedas, sob uma laje sujeita a todas as intempéries! Ora
vamos! Eu, na verdade, fingiria fazer isso! Tomaria como testemunha meu fiel
mordomo. Criara, ao acaso, uma pista falsa. E depois, sem o conhecimento de
Evariste, retomaria o objeto e o colocaria fora de perigo; em outro lugar bem ao
abrigo. E o mais notável é que tal precaução fora eficaz. Evariste legou a seu
filho a formula inútil. E este conservou-a religiosamente. Tornou-se o guardião de
um tesouro que não se encontrava mais no lugar onde, um dia, um gênio malfazejo
procuraria desenterrá-lo. Ele morreu à toa, o infeliz! Sim, mas o conde que
pensava em tudo — pelo menos tenho o direito de assim julgar — deve ter
tranqüilizado seu soberano e revelado as precauções que tomara. È o que eu,
Lupin, não deixaria de fazer... Meu Deus! Tudo se esclarece. O rei respondeu... A
carta!... A carta escondida na Bíblia... O selo da Rainha Vitória... E, com a morte
do conde, Evariste herdara essa carta e a escondera na Bíblia, como uma
relíquia... E tão precioso legado chegara às mãos de Bernardin, depois da morte
de seu pai... Mas essa carta, a resposta do rei, que diria ela?... Agradecimentos, é
claro, mas talvez também...
Raul sentia as têmporas latejando. Seu raciocínio o levava a um impasse. Não! A
carta do rei não podia mostrar claramente a chave do enigma. Era evidente. Bem
como as indicações contidas nas Memórias do conde. A prova é que o barão
havia raptado Bernardin, tivera consigo as Memórias e a carta e fracassara. O
segredo estava bem guardado de mais. Estava perdido!
— Ele está perdido — disse a si mesmo Raul. — Mas atenção! O herdeiro do rei
agora sou eu!
Ah! Se ele pudesse dispor de todas as suas energias e refletir tranqüilamente,
racionalmente como sabia fazer tão bem! Mas a droga minava suas forças e uma
dolorosa enxaqueca começava a comprimir, como um torno, seu crânio. Porém,
devia esforçar-se, ir até o fim do seu raciocínio... O barão... Como o barão
soubera da existência do segredo?... Questão provisoriamente insolúvel. Havia
outra, bem mais urgente, a resolver. Como o velho pudera fugir à vigilância de
seu carcereiro?... Raul lembrou-se de que já se havia proposto essa questão e
encontrara mesmo uma resposta. Era o Outro que havia dado, habilmente,
possibilidade a seu prisioneiro para fugir... e que, sem dúvida, também devia ter
permitido que ele recobrasse a carta. Nesse caso a carta estava ali..; no bolso de
Bernardin... Sim, a carta estava ali... logicamente, fatalmente... Bastava revistá-
lo... Eis aqui!... Este envelope estalando... Raul acendeu a lanterna. Tinha
acertado. Era mesmo a carta!
Levantou-se abafando um gemido, e uma vertigem fez com que vacilasse. Lançou
a sua volta um olhar perturbado. A sombra continuava a recuar. Ficar mais tempo
no meio do pátio inundado de luz era o cúmulo da imprudência. Mas suas pernas
recusavam-se a mover. Respirou lentamente, à beira de um desmaio. Reunindo
suas forças numa prova de sua férrea vontade, dirigiu sobre a carta o facho
luminoso da lanterna, reconheceu o selo azul que os filatelistas disputavam, \ tirou
do envelope uma folha e abriu. Viu a data:

1º julho 1848

e soube que acertara em seu raciocínio.

Caro Eunerville,

Nas desgraças que me acabrunham, vossa fidelidade representa para mim


um penhor de esperança. Como perder a coragem quando deixamos para
trás companheiros de luta tão devotados! Apresso-me em dizer-vos que
aprovo todas as disposições que tomastes. Elas são sagazes e seguras.
Assim, alegrando a galeria, o louco{12} vela sobre um grandioso destino.
Vedes assim que vos compreendi e que encontro, em vossa engenhosidade, a
oportunidade de sorrir.

Granjeastes minha gratidão. Minha afeição já a tendes há muito tempo,


como sabeis. Que Deus vos proteja e guarde Eunerville intacto.

Louis-Phillipe

P.S. — Não esquecerei os serviços que vosso mordomo prestou à minha


causa.

Raul dobrou a carta e guardou-a no bolso. Alegrando a galeria, o louco vela


sobre um grandioso destino. Era essa, evidentemente, a frase-chave. O conde
explicara ao seu soberano a precaução que tomara para pôr em lugar seguro o que
lhe fora confiado e, por conseguinte, a alusão do rei era precisa e clara e também
alegre, sem dúvida, para quem conhecesse o segredo. Mas, para qualquer outro,
ela continuava impenetrável. O louco?... Onde havia um louco?...
— Aqui — escarneceu Raul. — O louco sou eu!
Seus joelhos dobraram e desabou sobre o corpo do velho Bernardin.
Não perdera completamente o conhecimento, mas seu pensamento,
sobrecarregado, vagava em limbos estranhos. De quando em quando uma frase
inteligível se formava em seu espírito. "Ele forçou a dose... Não é normal uma
fadiga tão grande assim! Não se mexer... Respirar fundo... Isso vai voltar..."
Pareceu sentir, de repente, que o cadáver se movia sob ele e o terror arrancou-lhe
um gemido. Que estava acontecendo?... Quem o empurrava- de lado?...
O Outro! O Outro! Ele estava ali... Ele podia dispor de sua presa... Suas mãos
corriam ágeis, corriam... Mas não buscavam a garganta. Elas não tinham vindo
para matar. Somente para roubar... para retomar a carta... Ah! Abrir os olhos...
nem que fosse um segundo... Apenas o tempo de poder ver o Inimigo!...
Mais um esforço. O último. Raul estava estendido de costas e acima de si havia
um céu palpitante de estrelas... Em algum lugar, passos se afastavam. O
desfalecimento se dissipava. Os músculos recomeçaram a obedecer. Rolou sobre
si mesmo e, com os olhos quase encostados ao calçamento, percebeu, dirigindo-
se para o castelo, uma silhueta que lhe pareceu gigantesca. O Monstro ia entrar na
moradia adormecida. E poderia, tranqüilamente, terminar sua obra mortal.
Lucile! Onde a vontade de Raul falhara, o amor venceu. Pôs-se de pé; apertou as
mãos; correr, nem pensar nisso. Não daria dez passadas. Andar? Talvez. Mas o
outro já teria entrado no castelo. Restava o revólver, o grande Smith & Wesson do
castelão. Pois o Outro não o levara, quando retirara a carta. Desprezaria ele a tal
ponto seu adversário? Ele iria ver.
Raul sacou a arma, levantou o braço. Este ainda tremia muito. Dobrou o cotovelo
esquerdo em frente ao rosto, apoiou nele o cano do revólver e mirou longamente a
sombra que ia desaparecer na noite. A detonação fez um barulho enorme e Raul
recuou dois passos. Lá adiante, o vulto vacilou, avançou ainda um pouco, caiu
sobre os joelhos, levantou-se e desapareceu junto às muralhas.
Raul pôs-se a caminhar lentamente. Tinha na cabeça o ruído do tiro do revólver.
O chão parecia macio e instável. Não tinha certeza de chegar ao castelo, mas pela
primeira vez em muito tempo corria por seu corpo a alegria da vitória, como um
benéfico fluido, sustendo-o, em sua incerta caminhada. Atingiu o lugar onde o
vulto se ajoelhara. A luz da lanterna iluminou algumas marcas de sangue. E as
gotas apareciam mais adiante, marcando o caminho da Besta. Bastava seguir a
pista vermelha. Raul subiu a escadaria e, por via das dúvidas e para fechar um
caminho de fuga, trancou os ferrolhos e retirou a chave da porta. No meio do
vestíbulo, havia uma pequena poça de sangue... depois outras gotas marcavam o
caminho em direção à cozinha. Raul atingiu uma porta baixa e em arco, a entrada
da adega, e parou para escutar. Ouviu, perdido na escuridão, uma respiração
rouca. Acendeu a lanterna e descobriu um lance de degraus manchados de sangue.
Apoiando-se à parede, começou a descer. A escada dava voltas sobre si mesma.
Raul procurou pisar na parte mais larga dos degraus para não tropeçar e
censurou-se, por não ter, quando percorrera o castelo, visitado as adegas. Mesmo
ferido como estava, o Outro poderia armar-lhe uma cilada. Nesse instante mesmo
ele prendia a respiração e talvez preparasse alguma coisa... Raul desceu ainda
alguns degraus. Agora, podia ver a entrada de um corredor. E de repente, mais
adiante, ao fundo do subterrâneo, recomeçou o estertor, irregular, lastimável. Raul
entrou na passagem sombria. Guardara o revólver no bolso porque tinha
necessidade do auxílio das mãos, uma para segurar a lanterna, a outra para
apoiar-se à parede, pois ainda sentia as pernas bambas. E a perseguição
prosseguiu, o moribundo um pouco à frente do doente. O corredor desembocava
numa sala espaçosa, ocupada num dos lados por uma fila de toneis. Agarrando-se
aos barris, o vulto arquejante se esforçava por continuar. Ele aparecia,
confusamente, no limite do raio luminoso. Usava suas últimas forças para fugir e
sua respiração cansada fazia um ruído horrível na imensa adega.
— Renda-se! — gritou Raul.
O Outro desapareceu e de repente tudo ficou em silêncio. Raul tropeçou num
obstáculo invisível e quase caiu. Iluminou o chão e viu alguns toros de lenha que
haviam rolado de um monte, a um canto. Andou com cuidado até os toneis,
examinou bem o local antes de aventurar-se mais longe; reconheceu, pendurados
no muro, arreios, selas, velhas prateleiras para garrafas. Ouviu um longo gemido
no fim da fila de toneis. Raul, com a planta da adega nitidamente gravada na
memória, pronto para a batalha final, deu os últimos passos.
O homem estava caído sob uma antiga roda de charrete, colocada junto ao muro
como o leme de um navio. Não se movia, mas ainda vivia. Pela sua respiração
sibilante, compreendeu que o atingira no pulmão. Abaixou-se, pegou o ferido pelo
ombro e voltou-o de costas.
— Bruno!
10
O GUARDIÃO DO TESOURO

A lanterna tremeu em sua mão. Durante um momento que foi curto mas que lhe
pareceu uma eternidade, ficou aniquilado. Era de tal forma contrário à lógica, de
tal forma impossível. Bruno mortalmente atingido!... Mas à custa de que tremendo
erro Bruno atravessara-se no seu caminho? Raul ajoelhou-se.
— Bruno, meu pequeno Bruno... Tu não vais morrer... Tu não vais fazer uma coisa
dessas.
Os lábios do jovem mexeram. Raul debruçou-se sobre ele.
— Perdão... patrão...
— Mas vejamos. Perdão de quê?... Tu não és culpado. Tu não podes ser culpado.
Fui eu quem tive a idéia de roubar o castelo. Fui eu quem organizou tudo. Tu não
sabias nada mais do que eu. Tu sabias até muito menos... Então?... Ordenei-te que
voltasses a Paris depois do rapto do velho. Por que me desobedeceste?... Que
fazes aqui?... Por que retomaste essa carta?... Quem te pôs ao corrente?...
Raul calou-se bruscamente. A verdade explodira dentro dele como um fogo de
Bengala e derramava-se por todo lado, lançando sobre o caso grandes clarões e
centelhas insuportáveis, alternadas com grandes sombras... Bruno tentou erguer-
se.
— Acalma-te... Agora, eu sei! Eu sei! Quem te pôs ao corrente, na verdade, foi
Bernardin... Cala-te!... Como fui imbecil! Evidentemente tu o trataste durante
vários dias, tu o curaste... Ele acabou por se explicar. Converteu-te. Virou-te a
cabeça... Tu, o antigo aristocrata... Entretanto eu deveria ter desconfiado. E tu
mudaste... a fuga de Louis-Phillipe... seu retorno clandestino... o famoso pacote...
Tudo isso subiu-te à cabeça! Ah! Eu gostaria de ver os dois, o velho mocho e o
jovem aristocrata não realizado... Ele contou-te tudo, não é?... Não esquecerei os
serviços que vosso mordomo prestou à minha causa... A citação real à família
dos Vauterel! Sua honraria! Seu talismã!... E tu, tu escutavas. Oh, como
escutavas!... Porque no fim tu sabias que o velho deixaria escapar o segredo! E
ele te revelou a natureza do pacote?... Responde! Desta vez tu deves falar.
Bruno fechou os olhos em sinal de assentimento. Uma espuma avermelhada
aparecia no canto de sua boca. A respiração tornava-se irregular.
— Eu te suplico — disse Raul. — Do teu lado, está tudo terminado. Mas eu, eu
posso ir ainda até o final. Trata-se de um segredo qu enos venceu a todos, hem?...
que interessa talvez à França?... Então?... Um tal segredo não pode se perder. Em
nome do Rei, Bruno!
Aproximou o ouvido dos lábios do moribundo.
— O quê?... O sangue... Ainda esse sangue! Mas que sangue? Bruno!... Eu te
rogo... Mais um esforço e, juro, tudo ficará perdoado.
Bruno jogou a cabeça para a frente, como se tomasse um último alento e formou
uma palavra que Raul adivinhou mais do que ouviu. A emoção foi tão grande que
ele se levantou e pôs-se a sapatear como um homem que procura disfarçar uma
grande dor.
— O Sancy... Tu disseste o Sancy!... Bruno... Sabes bem o que é o Sancy?... O
diamante dos diamantes! Uma pedra de sonho que pertenceu a Carlos, o
Temerário... a Jacques I, da Inglaterra... a Mazarin... a Luís XIV... a Luís XV...
Esse diamante tem uma lenda e que lenda!... Chegaram a afirmar que ele levava a
desgraça a todos os seus possuidores, que eles foram todos vítimas dos mais
trágicos perigos!...
Muito emocionado, calou-se mas seu pensamento continuava a voar... Luís XVI...
sua morte no cadafalso... O desaparecimento misterioso, a seguir, da jóia
maravilhosa. E após... Aí ele não se recordava bem... Apesar de conhecer de cor
o que ele chamava o curriculum vitae de toda as jóias famosas, sua memória o
traía. Tudo que sabia era que o Sancy reaparecera nas mãos de um ministro
espanhol... Galceran, qualquer coisa... Galceran! Caramba! Tudo se esclarecia. O
barão?... Um bisneto, sobrinho, descendente enfim do ministro! Quando este
morreu, o Sancy foi comprado por Charles X. Novamente ele voltava ao tesouro
da França. Eis por que Louis-Phillipe, no momento de deixar sua pátria, quis
guardar em lugar seguro a fabulosa jóia. Eis por que o Conde de Eunerville
tomara precauções tão extraordinárias. E a razão pela qual os Vauterel vigiaram,
tão ciumentamente, o que eles acreditavam que fosse o esconderijo. Sem dúvida
os descendentes do ministro espanhol haviam mantido contato com os monarcas
franceses; sem dúvida tiveram a honra de ouvir certas confidencias; confidencias
suficientes para despertar, três gerações mais tarde, a curiosidade e a avidez do
barão.
Com que facilidade tudo se tornava claro! Para o velho Bernardin, o Sancy era o
símbolo da monarquia. Enquanto o diamante permanecesse em Eunerville, o rei
teria suas possibilidades. A República passaria e a Realeza reviveria um dia. E
ele montava guarda ao tesouro como o dragão da lenda. E quando um usurpador
tornou-se dono do castelo... o velho atacou. Era a única explicação possível. Os
dois proprietários que precederam Jacques Ferranges desapareceram
tragicamente. E Jacques Ferranges, por sua vez, fora condenado com sua jovem
esposa... Jacques Ferranges que desejava fazer grandes obras no castelo e, dessa
forma, se preparava para cometer um sacrilégio... Em resumo, quem vivesse no
castelo deveria morrer... Lucile... Hubert... o cabriolé... a escada... Alphonse
também, herdeiro presuntivo, devia desaparecer...
Bruno fechara os olhos. Raul o olhava sem vê-lo. Continuava arrasado pelo que
descobrira e, mesmo execrando o velho servidor, não podia deixar de ter por ele
um complexo sentimento, onde havia o respeito e o medo. De todos os seus
adversários, este fora o mais nobre, em sua loucura.
— Tiremos o chapéu — murmurou ele. — E honra, apesar de tudo, à Felicidade!
Um gemido de Bruno arrancou-o de sua meditação. Ajoelhou-se, enxugou com seu
lenço o suor do rosto do agonizante.
— Não procure falar — disse ele. — Não precisa explicar nada. Tudo é tão
simples! Acreditaste, libertando Bernardin, montando com ele toda essa
comédia... Victoire amordaçada, a pobre velha!... tu amarrado... que ele iria
voltar ao castelo unicamente para recuperar o Sancy... e que seria fácil, em
seguida, roubá-lo... Pobre criatura!.. Ele retornou ao castelo mas para prosseguir
com sua obra de morte. Estava furioso e desesperado. Nós o havíamos acossado,
o barão e eu. Ele se defendia, tu compreendes! Ele fazia frente, como um javali
atacado por uma matilha. Sem dúvida, muito simplesmente, escondeu-se em sua
própria casa, onde sua neta lhe levava comida. Ele nos observava, a Lucile e a
mim. Ouviu nossa conversa; soube que eu iria à casa de Alphonse Ferranges.
Chegou à Quinta São João no momento exato para encontrar sua vítima amarrada
a uma cadeira e pronta para o sacrifício. Matou-o com um tiro, à queima-roupa,
com o revólver que tu lhe emprestastes... Porque emprestaste um a ele, não foi?
Um ricto de dor retorcendo a boca, Bruno escutava. A lanterna, posta de pé no
chão, iluminava o teto e destacava da penumbra o vulto inclinado de Raul e a
massa confusa do corpo de Bruno. O silêncio e a umidade da adega
assemelhavam-se aos de um túmulo. Bruno não ignorava que estava perdido.
Escutava com todas as suas forças o murmúrio desse que ele havia traído, depois
de tanto tê-lo admirado. E sentia que, se o patrão falava, era uma prova de que
não lhe queria mal e que continuava a tratá-lo como seu confidente. Esta voz o
acompanharia até às portas da morte e era bom assim, era como se fora uma
absolvição.
— Depois de Alphonse Ferranges — prosseguiu Raul — ele desceu, seguindo
nossas pegadas, até o Gros Galet. Deve ter agradecido ao céu que lhe
presenteava, um a um, seus adversários prisioneiros. Matou o barão e seu
empregado recuperando a preciosa carta de Louis-Phillipe. Confesso que em seu
lugar eu talvez fizesse o mesmo... Mas eis que São João sucede a São Jacob... Era
preciso desenterrar o diamante que não estava mais em segurança, e escondê-lo
em outro lugar... Valerie, mais tarde, saberia do segredo e um dia, quando o rei
voltasse ao trono, ela lhe restituiria o Sancy. Seria uma nova Joana D'Arc... Pobre
velho louco!... Então ele drogou o Muscadet ou mandou que a menina o drogasse;
e, à meia-noite, como Valerie já o vira fazendo, ele segue a linha de sombra
projetada pelo telhado no pátio, pára na laje que d'Artagnan aponta... Mas, desta
feita, ele retira a laje... Tu, é claro, estavas ao corrente... estavas escondido em
algum lugar... Ele marcara-te um encontro... Não duvides, desgraçado, que teria te
executado tão friamente como executara os outros... E o velho descobre que o
esconderijo está vazio. Que se passa nessa pobre cabeça já cheia de fantasmas?...
Ele é um mau servidor... Não soube, apesar dos seus esforços, preservar o
sagrado pacote... A emoção o fulmina. Ele cai morto... Em seguida... Oh! Bruno...
a seguida é lamentável... Se tu houvesses confiado em mim!
Bruno agitou-se num tremor, abriu a boca para lutar contra a sufocação. Seu olhar
se velava. Raul tomou sua mão.
— Estou aqui, Bruno.
Mas compreendeu que o moribundo queria ainda dizer alguma coisa. Levantou-
lhe a cabeça.
— Patrão... a polícia... Ele preveniu-a...
Uma golfada de sangue cobriu-lhe o queixo. Estirou-se numa última convulsão.
Suavemente, Raul fechou-lhe os olhos deitando-o no chão.
— Pobre garoto! — suspirou. — Tu não tinhas tutano para tanto! Mesmo para
mim, sei que vai ser difícil!
Apanhou a lanterna e olhou o relógio. Três horas. Em menos de duas horas a
polícia estaria lá. O velho Bernardin, apesar de morto, obrigava-o a agir.
Descobrira seu adversário e o denunciara. Ganimard não devia estar longe.
— Vamos, Lupin! É chegado o momento de mostrares que tu és o mais forte!
Revistou Bruno rapidamente, recuperou a carta, releu-a, guardou-a no bolso e
subiu, depois de um último olhar para o corpo estendido. O Sancy,
decididamente, fazia jus à sua reputação de diamante amaldiçoado.
Lucile continuava a dormir encolhida na poltrona. Depois de trancar a parte
central do pavimento térreo, subiu ao primeiro e entrou na galeria.
Cuidadosamente, levantando a ponta de uma tapeçaria, escondeu-se um minuto no
vão de uma das janelas. O cadáver de Bernardin continuava estendido no meio do
pátio. Ninguém à vista! Entretanto Raul não demorou a reparar, ao longe, fora do
gradil, movimentos suspeitos. Chegou a ver uma luz, rapidamente apagada, de
uma lanterna elétrica. Depois, uma sombra atravessou a estrada. Ganimard
distribuía sua tropa em seus lugares, para o assalto final, que teria lugar na hora
legal, ou seja, desde que aparecesse o primeiro raio de sol. Em torno do castelo
policiais e guardes deviam estar estendendo um cordão de isolamento
intransponível. A aproximação do combate reanimou Raul.
— Você acredita que me apanhará facilmente — escarneceu ele. — É o que
veremos. Mas, antes de mais nada, o Sancy... Resta-me exatamente uma hora e
meia para descobri-lo. Creio que há uma hora de mais... Mas, sinceramente,
desejaria saber por onde devo começar!
Deixou a janela, baixou a tapeçaria e acendeu o lustre central. Depois colocou-se
ao centro da imensa peça, com as mãos na cintura e no mesmo momento esqueceu
Bernardin, Bruno e a polícia. Transformou-se então apenas num olhar tão agudo
quanto o de um gavião e num pensamento concentrado desenvolvendo uma energia
fora do comum. Lentamente repetiu a frase escrita pelo rei: Alegrando a galeria,
o louco vela sobre um grandioso destino. Simples alusão, evidentemente, e não
uma frase de código. Mas alusão precisa. O rei dissera de forma disfarçada,
qualquer coisa que nem Evariste nem Bernardin, nem o barão souberam
interpretar.
— A galeria... Aqui estou — murmurou Raul. — Mas o que alegra esta peça que
me parece mais sinistra?... A tapeçaria... E quem é que brinca aos pés de François
I... Triboulet, seu bufão{13}.
Aproximou-se da tapeçaria, levantou-a, apalpou a parede coberta de poeira no
lugar onde se encontrava Triboulet quando a tapeçaria ficava esticada. Não havia
a menor aspereza. Nenhum esconderijo cavado na pedra. E no entanto, o bufão
indicava seguramente o local onde se encontrava o Sancy. Ele vela sobre ela...
Raul tateou com a ponta dos dedos o tecido rugoso, depois recuou para abarcar
num só golpe de vista a cena representada na tapeçaria. A mão de Triboulet
estaria apontando numa determinada direção?... Não. Ela cocava o pescoço de um
cachorro, num gesto completamente natural, que excluía qualquer subentendido.
Não podia tratar-se de Triboulet. Mas talvez houvesse na galeria um outro louco
ou outro bufão?
Raul começou a examinar, mais atentamente do que fizera, os retratos que se
alinhavam de um lado e outro da tapeçaria. Mas qual! Essas cabeças solenes,
essas vestimentas severas, pertenciam a nobres magistrados e a prelados em
recolhimento. Nada que se assemelhasse a um louco!... O segredo escapulia
sempre.
Nas janelas, a claridade da lua empalidecia. Já se misturavam com ela os
primeiros traços do dia. Ganimard devia, agora, de relógio na mão, estar andando
de um lado para o outro na estrada.
— Com a breca! — exclamou Raul. — Eu devo encontrar.
Voltou à tapeçaria, levantou-a de novo, sacudiu-a, puxou, esperando mesmo sem
esperança que algo acontecesse. Um ligeiro ruído sobressaltou-o. Voltou-se e
reconheceu, na soleira da porta da galeria, a delicada silhueta de Lucile.
Esquecendo seu problema, precipitou-se ao encontro da jovem.
— Lucile!... Como está se sentindo? Ela passou as finas mãos no rosto.
— Por que dormi assim? — murmurou.
— Nós fomos narcotizados... Eu explicarei mais tarde... Saiba que agora todo
perigo já está afastado.
Passou um braço pelos ombros de Lucile e levou-a para o centro da peça.
— Venha... Eu procuro um louco ou um bufão. E tenho apenas alguns minutos para
encontrá-lo... Mas você está aí, e isso muda tudo. Eu sei, eu sinto que estou com a
verdade... Por você, eu farei um milagre.
Uma estranha exaltação apossou-se dele. Apertou um pouco mais o braço de sua
companheira.
— Um louco — repetiu. — ou um bufão. Olhemos melhor... Um louco ou um
bufão! Isso devia se ver facilmente... Não! Sobretudo nada de perguntas. Você
está comigo e é o quanto basta... Ah! Compreendi... Você o vê, desta vez?
Lucile apontou um dedo para Triboulet.
— Nada disso!... Tenho certeza de que não é Triboulet. O outro... Olhe o rei... não
seu rosto... siga a linha de seu ombro, a espádua, o braço... Chegou à sua mão...
Ele vai apanhar o quê?... Vamos, Lucile. Um pouco de observação... Que vai ele
apanhar no tabuleiro de xadrez... Não? Não adivinha?... O Bispo{14}, caramba! E
repare que só resta um neste jogo. O adversário do rei perdeu o seu. Desta vez,
descobrimos!...
Deixando Lucile, precipitou-se, levantou a tapeçaria e na ponta dos pés, com o
braço esticado, bateu na parede sob o tabuleiro. Mas a parede repetiu o som
maciço. Falsa alegria. Voltou para o lado de Lucile que não se movera.
— No entanto eu estou certo de que estamos chegando ao ponto certo — disse
ele.
— Estou ouvindo barulho lá fora — murmurou Lucile.
— Não é nada. É a polícia.
— A polícia?
— Sim. Também explicarei isso... Vejamos! O louco, o bufão ou Bispo vela sobre
um grandioso destino...
Pôs-se a andar de um lado para outro. De quando em quando batia com os
calcanhares no chão. Lucile via transformar-se pouco a pouco o homem que ela
tomara tanto tempo como se fora o repórter Richard Dumont. Esse rosto marcado
pelo esforço, essa agitação surda que atravessava o personagem como uma
corrente elétrica... Retornou para seu lado e parou para olhá-la. Um pálido raio
de sol se filtrava por uma pequena abertura nos cortinados e aureolava a jovem
que permanecia imóvel, no chão de quadrados brancos e pretos, como a Rainha
de um jogo de xadrez... Um jogo de xadrez! Levou a mão aos olhos como se
estivesse cego por uma luz muito viva.
— Você é Arsène Lupin! — exclamou ela com uma espécie de medo na voz.
— Cale-se... sim!... Sim, sou Arsène Lupin... O que importa! Você está vendo,
esta galeria. É um tabuleiro de xadrez.
Do lado do parque veio um brusco estrondo.
— Cinco minutos para derrubar a grade — disse ele. — Tenho tempo... É um
tabuleiro... Não, tem casas de mais... Mas estou chegando perto, graças a você...
O que é que pode, nesta sala, ser tomado como um tabuleiro?
Ele rodopiou sobre um calcanhar e estalou os dedos.
— O estrado, caramba!... O estrado para os músicos...
Pegou Lucile pela mão e levou-a para a parte mais elevada da galeria. Três
degraus.
— Conte — disse ele — oito casas de um lado, oito casas do outro. Sessenta e
quatro casas! A conta está certa! Li, não sei onde, que antigamente os castelões
jogavam xadrez usando pedras vivas... Pois bem, estamos de pé, neste momento,
sobre o tabuleiro dos Condes de Eunerville... Começa a compreender?... Vamos
Lucile! Não me olhe desse jeito. Está com um ar tristonho. Ê a polícia que lhe faz
medo? Você pensa que ela poderá me prender?
Golpes violentos sacudiam o gradil. Ele suspendeu os ombros.
— Gostaria de ter um pouco mais de silêncio, de calma, de recolhimento —
prosseguia ele. — Mas Ganimard tem a velha mania de estragar tudo. Cá entre
nós, Lucile, trata-se de um espírito grosseiro. Por causa dele estou ameaçado de
falhar em minha representação... Tanto pior!... Vejamos uma coisa, Lucile, você
sabe jogar xadrez?
— Não.
— Que pena, porque Francisco I prepara uma jogada difícil... Mas daqui você
está vendo a posição do seu Bispo, não está?... Do lado direito, a duas casas do
fundo, quase na frente da Rainha adversária... Não tenho nada mais a fazer do que
chegar ao lado direito do estrado... pronto... e avançar para o muro em frente e
parar depois de duas casas... Aqui estou.
Bateu no chão com o calcanhar.
— Você ignora, naturalmente, o que se esconde aqui embaixo. Vou dizer. Um
diamante fabuloso, lendário, que vale não uma fortuna, mas cem fortunas. O
tesouro do rei Louis-Phillipe. O tesouro da França... E graças a mim...
Tirou um canivete do bolso, abriu-o, baixou-se e introduziu a lâmina entre a casa
branca e a casa preta.
— Uma camada de cimento colocada há mais de sessenta anos... Mas trabalho de
amador... O conde não entendia bastante da profissão de pedreiro...
O portão do gradil, cedendo de repente, abriu-se com grande barulho e o ruído de
passos de muita gente encheu logo o pátio de honra.
— Oh! Oh! — disse Raul placidamente. — Eles estão chegando! Mas ainda falta
muito para chegar até aqui... As portas e as venezianas já passaram por outras!...
Não trema, Lucile... Eis o momento que eu esperava. O Bispo vela sobre um
grandioso destino... Pronto!
Com a lâmina do canivete havia feito a volta do quadrado; pisou com força numa
das extremidades e a placa se moveu alguns centímetros. Acabou de levantá-la,
descobriu uma escavação de paredes lisas, como uma caixa. Mergulhou a mão e
trouxe de volta um pesado escrínio de prata. Lucile, assustada, cruzara os braços
sobre o peito, num gesto maquinai de prece. Raul levantou-se.
— O Sancy! — murmurou ele.
Sua voz tremia um pouco. Abriu o escrínio e logo a pedra de sonho brilhou. Ele a
fez rolar na palma da mão. Era enorme e brilhava com mil cintilações
intensamente.
— O Sancy!
No silêncio, ouviram o ranger de uma ferramenta, forçando a porta de entrada.
— Você está chorando? — perguntou suavemente Raul.
— Estou chorando — murmurou Lucile — porque você veio expressamente ao
castelo para roubar este diamante... E algo mais forte do que você mesmo, não?
Ele deu uma risada feliz.
— Roubar o Sancy, eu!... Mas que idéia!
— Então... por quê?...
— Mas para devolvê-lo a quem de direito, menina... Você é adorável!
Abraçou-a num gesto cheio de ternura.
— Lucile!... Não creia em tudo que leu sobre mim. Tive, é certo, alguns pecados
na juventude. Como todo mundo!... mas o Sancy, ele é outra coisa. Não pertence a
ninguém. E ninguém tem o direito de tocá-lo... Olhe mais um pouco!
Segurou-o entre o indicador e o polegar, levantou-o em direção à luz e o diamante
inflamou-se como uma fogueira.
— Cinco séculos de história — disse ele. — Outro tanto de mortes, violências,
desgraças... Um dia, Lucile, eu lhe contarei a história do Sancy!
Ela agarrou-se a ele.
— Você então voltará?
— Se voltarei!... Que pergunta!... Pois não temos que classificar todos os volumes
da biblioteca?... Ainda não dei férias ao pequeno Catarat... Mas, no momento,
devo pôr-me ao abrigo... Escute os vândalos... Eles vão demolir o castelo.
Recolocou a jóia no escrínio que fechou cuidadosamente, guardando-o no bolso.
— Lucile, você tem minha palavra. Amanhã, o Sancy será devolvido à França... E
agora, até breve Lucile... Até já, eu lhe prometo... Você é o meu Sancy, só meu!
Pousou delicadamente os lábios nas mãos da jovem e depois conduziu-a à
biblioteca, fazendo com que se sentasse numa poltrona.
— Finja que está dormindo... Quando Ganimard a interrogar, você não saberá de
nada... Não viu ninguém. Está saindo de um pesado sono... Durma! Eu ordeno.
Ela fechou os olhos. Quando os reabriu, alguns segundos mais tarde, seu
companheiro desaparecera. Um tropel de pesados passos abalava a escadaria. No
salão, Pollux latia desesperado.
Raul, na porta da adega, escutava o tumulto.
— Caramba! São pelo menos cinco! E agora, vamos arejar... Já que Bruno
procurava fugir pela adega é que havia desse lado uma passagem que o velho
Bernardin lhe indicara. A passagem através da qual eles voltaram ao castelo... A
mesma passagem que deve ter servido a Louis-Phillipe...
Desceu os degraus, percorreu o subterrâneo e parou diante do cadáver de Bruno.
A roda, por Deus! A roda pregada na parede. Segurou os raios e tentou girá-los.
Sentiu uma certa resistência, girou com mais força. Houve um ruído de correntes
na espessura da muralha, as pedras parecerem se separar e surgiu uma abertura;
de onde saía uma corrente de ar frio. Raul hesitou um pouco apurando o ouvido.
Surdamente, o barulho da perseguição parecia estar mais próximo. Abaixou-se e
levantou o morto colocando-o no ombro.
— Venha, pequeno... Não terás uma sepultura indigna... E ninguém saberá nunca
que um dia traíste teu único amigo!
Epílogo
O PORTADOR DE DESGRAÇAS

O empregado, assustado, levou o cartão de visitas sobre uma salva.


— Pois bem — disse Valenglay, antigo Presidente do Conselho, — o que se
passa?
Tomou o cartão, leu-o e arqueou as sobrancelhas.
— Faço com que ele entre? — perguntou o empregado.
— Evidentemente.
Um instante mais tarde, Arsène Lupin aparecia na soleira da porta do gabinete de
trabalho do deputado. Este levantou-se e cumprimentou cortesmente seu visitante.
— Faça o favor de sentar-se.
— Sr. Presidente — disse Lupin, — eu serei breve, Tirou do bolso um escrínio
que abriu.
Valenglay recuou como se tivesse sido esbofeteado. Contemplou o enorme
diamante com os olhos dilatados pelo espanto.
— O que é isso?
— O Sancy.
Valenglay, aos poucos, recuperava-se da surpresa.
— O Sancy — repetiu. — Esse diamante que pertencia à Coroa? Esse diamante
que...
— Ele mesmo.
— E por que o trouxe aqui?
— Para entregá-lo.
Valenglay voltou a sua mesa e sentou-se.
— Onde o encontrou?
— Pouco importa! De agora em diante ele pertence à França. Conto com o senhor,
Presidente, para que providencie o necessário.
Valenglay examinou esse homem diabólico, que surgia do nada, trazendo-lhe um
tesouro.
— Agradeço o presente — disse num tom entre o forçado e o alegre. — Mas eu
me pergunto se devo aceitá-lo... Não deve ignorar a reputação desse diamante.
Deve saber que ele é um portador de desgraças... Assim, veja bem diante de que
responsabilidade me coloca.
— Não pensei que fosse supersticioso, Sr. Presidente. Mas por quê?... Teme que
a França seja devastada por um terremoto... ou seja coberta pelas águas?
Houve um silêncio. Valenglay, finalmente, continuou:
— Pois bem, eu me arrisco... Aceito... Em troca, que posso fazer pelo senhor,
senhor, senhor...
— Raul d'Apignac. Desculpe-me, Sr. Presidente. Tive que usar um velho cartão
de visitas. Arsène Lupin está morto...
— Se houvesse alguma dúvida, teria esta manhã uma prova evidente.
Valenglay estendeu a mão. Lupin entregou-lhe o escrínio.
— Desejo — disse ele — que o inspetor-chefe Ganimard arquive seu inquérito.
Digam isso a ele. Ordenem. Acontece, Sr. Presidente, que tenho necessidade de
paz, de esquecimento.
Debruçou-se e acrescentou num tom confidencial:
— Tenho necessidade de ser feliz.
— Tratarei disso — disse Valenglay.
Os dois homens se levantaram juntos e, durante um segundo, pareceram medir-se
com o olhar.
— Que pena — suspirou o antigo Presidente do Conselho. — Se quisesse, Sr.
d'Apignac... Poderia prestar-nos tantos serviços...
Baixou os olhos um instante, sonhadoramente.
— Vamos — disse. — Nada de arrependimentos. Eu lhe agradeço em nome da
Pátria. Os altos poderes ficarão sabendo o que o senhor acaba de fazer.
Apesar de seu ceticismo, o velho parlamentar, que assistira a tantas batalhas
políticas, escândalos e retratações, estava emocionado.
— Obrigado — disse ainda. — Permita-me que lhe aperte a mão.

Lupin mandou parar um táxi.


— À estação Saint-Lazare.
Estava feliz. Voltava a Eunerville. Aprontava-se a ser novamente Léonce Catarat
e prometia a si mesmo fazer com que seu trabalho durasse muito, muito tempo...
— Lucile — monologou ele. — Hoje, eu tenho apenas vinte anos para você.
Nem ouviu o jornaleiro gritando e brandindo um jornal, onde se destacava uma
imensa manchete:
— Assassinato do Arquiduque François-Ferdinand!... O atentado de Serajevo!...

FIM
{1}
Guilherme II — A ação desenrola-se em junho de 1914, como veremos a seguir (Nota do editor francês).
{2}
Os nomes próprios bem como de locais foram mantidos em francês. (Daqui em diante todas as notas serão
do tradutor.)
{3}
Decauville, caminho de ferro, de bitola estreita, 40 a 60 cm de largura, inventada pelo industrial Paulo
Decauville, usada para transporte de minério ou pedras nas minas ou pedreiras.
{4}
Léon-Bollée — marca famosa de carro esporte do início do século XX.
{5}
Maître, tratamento que se dá na França a advogados e notários.
{6}
Consta, no original, a mudança de tratamento: vós, você, tu.
{7}
Zoológico de Paris.
{8}
As propriedades rurais na França são mais conhecidas por nomes com que seus proprietários as batizam.
Gros Galet, seria, "Grande Seixo". Mas preferimos guardar o nome original como nas demais.
{9}
Apelido de La Santé, famosa prisão parisiense.
{10}
Referência a Pierre Cariet de Chamblain de Marivaux, teatrólogo francês, nascido em 4 de fevereiro de
1688 e morto a 12 de fevereiro de 1763.
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José Maria de Hérédia, poeta francês de origem cubana (1842-1905).
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A palavra "fou", tomada por Arsène Lupin como "louco", constante na carta de Louis-Phillipe, tem, no
entanto, outros significados que aparecerão no decorrer do romance, como veremos.
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Além de louco, a palavra francesa "fou" significa bufão.
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A palavra francesa "fou", além dos significados de louco e bufão, pode ser também Bispo, pedra do jogo
de xadrez.

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