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Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/83133
ISBN 9788582781715
27/08/2019 04/09/2019
A todos os que se dedicam a fazer o bem.
Irmã Dulce Lopes Pontes, que deixou atrás de si um prodigioso rasto de caridade
ao serviço dos últimos, levando o Brasil inteiro a ver nela a mãe dos
desamparados...
— PAPA BENTO XVI, 22 DE MAIO DE 2011
SUMÁRIO
Breve introdução
Sem clausura
Encarte
—Hotel Pestana, por favor.
Depois de muitos, muitos anos, eu chegava novamente a Salvador.
Havia acabado de gravar uma entrevista com um político e de
enfrentar duas horas de atraso no aeroporto de Congonhas. Estava um
caco. Ao ouvir para onde eu desejava ir, o motorista Balbino não
hesitou:
— Oh, mas como é bom a gente voltar a ouvir esse nome,
madame! O Pestana está fechado há três anos. A senhora vai para o
Pestana Lodge, uns bangalôs que eles ainda mantêm. Mas o hotel
mesmo está fechado, assim como tantos outros aqui em Salvador.
De fato, o Pestana estava fechado, e, ainda no táxi, a visão dele era
desoladora, mesmo à noite. Os funcionários eram ainda muito
atenciosos e gentis, mas a decadência se podia perceber já no
gigantesco saguão vazio. O antigo sofá circular de veludo vermelho-
vivo estava agora desbotado e puído. Os elevadores ostentavam um
aviso de “Perigo”. A estrutura metálica do prédio de 23 andares em
frente ao mar enferrujava. A maresia corroía um investimento símbolo
da pujança de outrora.
Passei pela piscina até a entrada dos bangalôs. A pintura cor de
laranja estava bastante manchada pelo mofo. O prédio de três andares
estava sem forro no teto dos corredores por causa da renovação da
fiação elétrica e da instalação de novo sistema de ar-condicionado. Se
era feio de olhar, era também animador. “Estão investindo
novamente”, pensei.
O quarto, por outro lado, era maravilhoso. Grande, com dois
banheiros, uma sala enorme com varanda, confortável e muito limpo.
Eu poderia comer alguma coisa, mas o serviço de quarto não
funcionava depois das 23h. Melhor dormir. No dia seguinte, o estado
do Pestana seria apenas mais uma de minhas muitas descobertas.
E começou já no táxi:
— Moço, o senhor sabe chegar ao Hospital da Irmã Dulce? Se não
souber, eu boto no Waze.
— Dona, aqui na Bahia, se o cara não souber onde é o Hospital da
Irmã Dulce e onde mora a Ivete Sangalo, de duas, uma: ou ele não é
motorista, ou não é baiano.
— E o senhor conheceu Irmã Dulce?
— Todo mundo conheceu. Ela andava esmolando por aí, sempre
carregando uma criança no colo. Eu vim do interior e fui vender
banana quando era menino. Conforme fiquei mais velho, bati lá na
Irmã Dulce para pedir um emprego de verdade. Ela ajudava todo
mundo. Eu já sabia dirigir, queria ser motorista. Ela escreveu uma
cartinha para o dono de uma empresa de transporte, e eu fui
contratado. Tenho 75 anos e nunca parei de dirigir pelas ruas de
Salvador, agora com táxi.
“Todo mundo conheceu.”
Isso me espantava. A ideia de uma santa brasileira me deixava
desconcertada, por alguma razão. Uma santa num lugar como... o
Brasil! Talvez fossem os anos lidando com a realidade política do país
no jornalismo, talvez fosse aquele ceticismo natural dos brasileiros já
cansados... Mas, sim, tínhamos uma santa pelas ruas da Bahia, uma
santa que agora será canonizada e venerada em todo o mundo. Que
terá seu nome pronunciado no Vaticano. E era essa santa que eu tinha
vindo conhecer. E que conheci. E que me provou que, sim, santo de
casa pode fazer milagres. Muitos milagres.
Meu taxista ia me mostrando tudo. Fomos passando pelos bairros
de Salvador, pelo estádio da Fonte Nova, pelas estátuas dos orixás na
lagoa, por igrejas. Tudo me parecia meio abandonado, confesso. Meio
largado. Mas era bem como me dissera um baiano nos bons tempos
do hotel Pestana: “Na Bahia, até quando tá ruim, tá bom.”
E chegamos ao hospital.
Muita gente. Muita gente na rua em frente à instituição. Muitos
vendedores ambulantes, muitos doentes chegando, muitos visitantes
colocando flores na estátua de Irmã Dulce, muita gente simples, muita
gente humilde. Médicos, enfermeiros, doentes. Muita gente.
O lugar acolhia a todos, sem cobrar nada. Sobrevivia de doações,
de caridade. Era o maior contribuidor do banco de sangue da Bahia,
tinha grandes enfermarias para idosos, alas infantis bem equipadas,
fonoaudiologia, abrigos para pessoas abandonadas. E muita gente. De
um lado para outro: enfermos, profissionais de saúde — um
formigueiro. E, ainda assim, o clima não estava nem perto de ser
pesado.
Muito pelo contrário.
Era um clima de amor.
De família.
De uma enorme família.
Em todas as paredes, por toda parte, uma foto de Irmã Dulce com
o olhar doce trazia os dizeres: “Tenha fé. Continuo presente.”
Foi essa presença que pude sentir na própria pele quando estive na
Bahia: uma presença que não é mero sentimentalismo abstrato, mas
que já se concretizava, e com força, desde a infância da pequena Maria
Rita e que, hoje, continua ainda mais latente com sua intercessão no
céu. Eis, então, o motivo destas páginas: são, sim, uma espécie de
biografia, mas não qualquer biografia, dessas repletas de frieza e rigores
acadêmicos. Não. Trata-se de uma biografia verdadeira, do coração,
fruto do deslumbramento e da esperança que vêm de experimentar a
presença de uma santa em tantos testemunhos, tantas comoções e
tantas alegrias. Por isso, segue mais os ritmos do coração e da
memória do que uma cronologia tão rigorosa, daquelas que talvez
aprouvessem a um coração que se fecha para as graças da fé.
Posso dizer que encontrei e vi muita gente em que a Irmã Dulce
ainda vive, mesmo tantos anos depois de sua morte. Posso dizer que,
depois de ir à Bahia, passou a viver um pouco em mim essa nossa Irmã
Dulce.
Nossa Santa Dulce.
Santa Dulce dos Pobres.
“Se fosse preciso, começaria tudo outra vez do mesmo jeito, andando pelo mesmo caminho de
dificuldades, pois a fé, que nunca me abandona, me daria forças para ir sempre em frente.”
1 G. Passarelli. Irmã Dulce: o anjo bom da Bahia. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 45-46.
“Se Deus viesse à nossa porta, como seria recebido? Aquele que bate à nossa porta, em busca de
conforto para a sua dor, para o seu sofrimento, é um outro Cristo que nos procura.”
Sou um menino pobre e por isso não posso lhe ajudar muito. Esses
vinte cruzeiros são pra senhora comprar pão e dar para os pobres.
A carta com o dinheiro chegou às mãos de Irmã Dulce. Quem a
enviara havia sido um menino de dez anos, de Minas Gerais. Tivera
de pedalar alguns quilômetros para chegar à agência dos Correios.
Tratava-se de uma contribuição modesta, mas de coração.
De uma contribuição entre muitas, muitas, muitas.
De fato, milhares de pessoas ajudavam as Obras Sociais Irmã
Dulce, fosse por meio de doações, fosse dedicando parte de seu tempo
livre a algum trabalho voluntário. Depois de aparecer na televisão, a
religiosa passara a receber muitas cartas e doações de todo o Brasil.
“Quando cada um faz um pouco, o pouco de muitos se soma”, dizia.
Era o milagre da multiplicação, dos corações que se iam
amolecendo diante do sofrimento alheio.
E essa multiplicação poderia assumir formas curiosas. Muitas
instituições, por exemplo, também passaram a contribuir para aquele
trabalho social. A empresa de água só cobrava a taxa mínima; a
companhia de eletricidade parou de cobrar pela energia consumida no
Hospital Santo Antônio; as padarias doavam pães amanhecidos;
peixarias, açougues e supermercados davam bons descontos, e muitas
vezes nem sequer cobravam pelas mercadorias.
Sim, é bem verdade que alguns comerciantes reclamavam quando
ela simplesmente pegava uma caixa de leite em pó e saía sem pagar.
— Mas, irmã, assim eu vou à falência!
— Deus lhe dará em dobro, meu filho!
Ainda assim, compadecidos ou indignados, todos viam os frutos de
seu trabalho. Por isso, mais e mais empresários e comerciantes a
ajudavam, bem como trabalhadores e gente mais humilde, com muito
pouco para dar. Ou melhor: muito pouco do ponto de vista humano;
sobrenaturalmente, decerto Irmã Dulce poderia dizer deles o que
Jesus dissera da viúva que entrara no Templo de Jerusalém e, como
oferta, dera apenas duas moedinhas: “Em verdade vos digo: esta pobre
viúva deitou mais do que todos os que lançaram no cofre, porque
todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de
sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento” (Mc 12, 43-44).
Maria Rita Pontes recorda que as crianças costumavam enviar
brinquedos, roupas, parte da mesada e até o bolo de aniversário para
ser repartido entre os meninos do Centro Educacional fundado por
Dulce. Os jovens também faziam a sua parte, realizando feiras de arte
e artesanato com fundos revertidos às obras sociais, além de
campanhas de arrecadação de alimentos e roupas. Um grupo de
evangelização até hoje trabalha junto aos doentes do Hospital Santo
Antônio, levando esperança, espiritualidade e alegria por meio de
intervenções artísticas que animam os enfermos.
Quem estranhará que, em situações assim, Irmã Dulce tenha feito
grandes amigos? Não são as situações difíceis a pedra de toque da
amizade verdadeira?
O dr. Edgard Mayer foi um desses amigos. Consta como um dos
primeiros a se juntar a ela, na época em que atendiam os pobres,
batendo de porta em porta, na favela de Alagados. Ambos contavam,
ainda, com Bernardino Nogueira, que estava se formando em
medicina, mas já auxiliava o dr. Edgar. Os dois faziam a consulta, e
Irmã Dulce providenciava os medicamentos, pedindo ajuda a
doadores. Os atendimentos eram feitos numa casa abandonada que
tinha caixotes como móveis e cuja iluminação se resumia a uma
lamparina.
As contribuições chegavam. O bem se difundia como costuma se
difundir — sem alardes, com ternura, discreto. Irmã Dulce tinha
grande capacidade de mobilizar pessoas e convencer benfeitores.
Depois da peregrinação com os doentes desde as casinhas
abandonadas na Ilha dos Ratos até o galinheiro do convento, ela
mobilizou muita gente para transformar aquele lugar num albergue.
Com as galinhas, fizeram caldo para os doentes famintos; em seguida,
foram convocados os operários de um canteiro de obras vizinho para
que limpassem o galinheiro, levantassem umas paredes e as cobrissem
com um teto. Irmã Dulce foi até o carpinteiro, a fim de conseguir
madeiras; ao construtor, para pedir cimento e tijolos; ao vendedor de
cobertas, aos comerciantes e também aos estudantes, para que
arrecadassem tudo o que poderia ser aproveitado: colchões, copos,
pratos, talheres, madeiras, ferramentas...
Enquanto se arrumava tudo, os doentes esperavam no antigo
prédio do Mercado de Peixes. Quando da mudança, o abrigo tinha
algumas lamparinas de querosene, baldes e materiais de limpeza, meia
dúzia de toalhas, cinquenta ou sessenta lençóis, alguns cobertores e os
colchões que ficavam em cima dos suportes de madeira que serviam
como camas. O lugar acolheu setenta pessoas, que se dividiam em
dois ambientes: um, masculino, e outro, feminino.
As condições do hospital improvisado no galinheiro não eram das
melhores. E, por isso, muita gente se compadeceu daqueles doentes,
pobres demais para ter o luxo de um tratamento médico. Alguns se
voluntariaram a ajudar: profissionais de saúde, religiosos, organizações
civis que mandavam remédios, alimentos, roupas... Muitos médicos
também consumiam seu tempo livre ali, junto aos renegados pela
sociedade. “Quando nenhum hospital quiser algum paciente, nós o
aceitaremos. Esta é a última porta, e por isso eu não posso fechá-la.”
Irmã Dulce.
Ela e suas portas abertas...
E era mesmo abrindo portas que ela ia pedindo doações. Os que
conviveram com Dulce se recordam da maneira peculiar com que
fazia isso. Passava de porta em porta deixando uma sacola, onde as
pessoas poderiam contribuir com o que lhes aprouvesse. Dentro havia
pétalas de rosas, e ninguém resistia àquela delicadeza: ficavam
comovidos e sempre contribuíam com um pouco mais.
No entanto, como já dissera o próprio Cristo, “a messe é grande,
mas os operários são poucos” (Mt 9, 37). Mesmo com a ajuda que
recebia, as dificuldades eram imensas. E de tal maneira que até o
governador da Bahia à época, Juracy Magalhães, interveio para ajudar
a construir um albergue com 150 leitos. Irmã Dulce ficou responsável
por conseguir os donativos para a construção.
— Eu rezei e recebi a confirmação de que vocês me ajudarão a
pagar as despesas — disse para um grupo de amigos e autoridades que
se reuniu para auxiliá-la.
De fato, Dulce costumava dizer que “Deus provê e o povo ajuda”.
Mas é preciso ir além de sua santa humildade e reconhecer que
também ela potencializava a graça divina. Dulce era mulher obstinada,
a ponto de muitos dizerem que não era possível fugir daquela freirinha
com olhar pidão. Era sempre objetiva e direta, mesmo com as mais
altas autoridades.
Quando o presidente Eurico Gaspar Dutra visitou a Bahia, em
1947, Irmã Dulce cercou sua comitiva com mais de trezentas crianças
em frente à Igreja do Bonfim.
— Quem é a freira?
Seu ministro da Fazenda, o baiano Clemente Mariani, tentou
explicar tudo no meio da confusão. No entanto, o carro não podia
avançar com aquela criançada toda na frente. O presidente, então,
decidiu descer e verificar o que estava acontecendo. Irmã Dulce
aproveitou a oportunidade e puxou conversa:
— Presidente, o senhor não quer ser meu avô?
Ele se virou e viu que era aquela freira pequenina. Sorriu e disse:
— Aceito! Pois avô é pai duas vezes!
Gaspar Dutra acabou tirando o dia para conhecer o trabalho social
de Irmã Dulce. Alguns dias depois, o governo federal liberava a verba
que ela havia solicitado.
Outro que não passou incólume diante dela foi o general Ernesto
Geisel, quarto presidente do regime militar. Em 1976, ele visitou a
Bahia.
Estimado Presidente,
Paz e bem!
Irmã Dulce.
E caridade era uma coisa que não faltava a ela. O Albergue Santo
Antônio recebia tantos doentes que já não tinha mais espaço nem para
andar nos corredores. Uma ampliação era urgente.
E, mais uma vez, foi Dulce mobilizando autoridades políticas,
empresários, gente mais simples...
Maria Rita Pontes declarou que um dos momentos mais
comoventes da campanha foi ver um mutirão de 750 alunos do
Centro Educacional Santa Rita em fila pelas ruas do bairro de Roma,
em Salvador, levando seus tijolos na cabeça até Irmã Dulce.
Somavam-se aos caminhões que chegavam cheios de tijolos e cimento
doados de maneira anônima, àqueles que modestamente mandavam
uma telha, um saco de areia...
O antigo Banco Econômico fez uma campanha nacional: “Deus
lhe pague — Irmã Dulce precisa de você.” Dessa maneira, conseguiu
levantar boa parte dos recursos necessários para erguer o hospital.
“Deus provê e o povo ajuda”, como ela costumava dizer.
Mas esse povo não se resumia só ao povo brasileiro. Como sói
acontecer com os santos, a fama de Irmã Dulce esteve longe de ser
apenas local. É bem verdade que ela já havia recebido muitas doações
de organizações humanitárias dos quatro cantos do planeta, mas em
1962 vieram em seu auxílio os doutores norte-americanos Frank
Raila, de Chicago, e John Curns, de Waukegan, que fecharam suas
clínicas por um ano a fim de trabalharem voluntariamente no
Albergue. Não era apenas dinheiro, mas presença, tempo, carinho.
Bem-sucedidos, eles ajudaram a organizar os procedimentos para
atender os doentes e separar a parte hospitalar dos setores de
internação. Irmã Dulce achou aí uma oportunidade para ampliar o
Albergue de Santo Antônio — o pontapé para a construção do novo
hospital.
Ao lado do Albergue havia um terreno cujo proprietário era
português: senhor Martins. Dulce, incansável e sempre atenta, foi
procurá-lo, é claro. Martins, porém, não pareceu empolgado com a
ideia. A freirinha não se deu por vencida e reuniu outras freiras e cada
uma de suas colaboradoras. Queria dar a cartada certeira: todas se
juntaram na capela e começaram a rezar a Santo Antônio.
Irmã Dulce sabia que poderia contar com a intercessão do seu
santo padroeiro. Quando estive na Bahia, pude ver a imagem diante
da qual rezava, dentro de uma redoma de vidro, todo quebradinho:
faltavam pedacinhos nas pernas do menino Jesus, uma das mãos do
santo já se fora, a cabeça ostentava mais do que uma simples careca...
Mas era aquele o santo com que Dulce sempre partilhara tudo, a
imagem que ela botava sempre de cabeça para baixo (“A irmã podia
porque era íntima do santo!”, disse-me uma das religiosas que
convivera com ela) e da qual sempre conseguia o que pedia. No dia
seguinte, portanto, o senhor Martins a procurou por iniciativa própria
e, comovido diante do trabalho feito com aqueles pobres doentes,
disse:
— Irmã, eu lhe darei este pedaço de terra. É seu!
Sim, é verdade: tudo é graça. Deus sempre nos precede em
bondade, nada podemos sem Ele. Mas... Não é verdade que a graça
muitas vezes precisa de um canal, de alguém que ajude a tornar os
corações menos duros às dificuldades alheias? E era assim com Irmã
Dulce: muita gente de boa vontade se colocava à disposição por ver
nela uma capacidade de ação extraordinária. Enquanto muitos
discutiam as causas da miséria, ela estava trabalhando para minimizá-
la. “Miséria é a falta de amor entre os homens”, dizia. E mais: “Não
há nada mais forte que um povo inspirado pela fé. Às vezes amanheço
sem nada em casa e, quando volto, tenho sempre o necessário para
aquele dia.” Na vida de Irmã Dulce, cumpria-se precisamente a
promessa de Cristo: “Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos?
Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se
preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais
de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça
e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo. Não vos preocupeis,
pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações
próprias. A cada dia basta o seu cuidado” (Mt 6, 31-34).
Dulce também contava com o apoio da família. O pai, dr.
Augusto, além de inspiração para o seu trabalho de caridade, foi
também um grande apoiador das obras sociais da filha. Viajava o país
inteiro para se encontrar com políticos, comerciantes e empresários
que poderiam se tornar doadores. Logo ele, que por duas vezes não
deixou a filha entrar para o convento, agora via maravilhado todo
aquele projeto.
Já Dulcinha, além de irmã, foi uma companheira fiel por toda a
vida. Obviamente, jamais imaginou que a ajuda aos pobres chegaria
tão longe, quanto mais que aquele silêncio enigmático de Santo
Antônio, quando perguntara sobre a vocação da irmã, guardava coisas
tão grandes. Mesmo quando se casou e foi morar no Rio de Janeiro,
ambas se falavam todos os domingos por telefone. Não obstante,
tinham temperamentos bem diferentes: Irmã Dulce era introvertida;
Dulcinha, expressiva, do tipo “festeira”, que sempre deixava saudades
quando tinha de voltar para o Rio. Chegou a passar madrugadas
trabalhando pelos pobres com a irmã. Depois que ficou viúva, dividiu
seu tempo entre sua casa no Rio e o quartinho, sempre pronto a
recebê-la, no Convento Santo Antônio. Quando Irmã Dulce ficava
muito doente, Dulcinha a substituía até que recuperasse a saúde. Eram
“dois corpos, mas uma só alma”, como costumava dizer Irmã Dulce.
Além do pai e de Dulcinha, Dulce via em outro religioso uma das
figuras mais importantes de sua vida. O frei — e padre — franciscano
Hildebrando Kruthaup, nascido na cidade de Borringhausen, na
Alemanha, em 1902, era filho de camponeses e já havia decidido pela
vida religiosa com apenas 14 anos. Também já demonstrara certa
disposição para ajudar os pobres, e por isso sentiu-se chamado à
Ordem Franciscana em 1923. Atraía-o o ideal de pobreza
representado por São Francisco de Assis. Um ano depois, já estava no
Brasil em missão evangelizadora. Sua visão apostólica da vida religiosa
era bastante ampla: fundou a rádio Excelsior, uma rede de cinemas,
um mosteiro carmelita na Bahia, a Casa de Retiro São Francisco, as
Obras Sociais Franciscanas e, junto com Irmã Dulce, o Círculo
Operário da Bahia.
Essas eram duas vidas que se complementavam desde o princípio,
tendo como ponto de contato as obras de caridade. No entanto, por
trás da aparente seriedade e solenidade dessa amizade santa, Deus quis
exercer um pouco de seu senso de humor. Afinal, Frei Hildebrando e
Irmã Dulce só tiveram essa história em virtude de uma briga — uma
briga entre irmãs. Irmã Dulce, quando ainda a jovem Maria Rita,
havia se desentendido com Dulcinha. Depois da bronca que ambas
receberam da tia Madaleninha, foram obrigadas a ir se confessar na
Igreja de São Francisco. Era uma quarta-feira, e quem atendeu as
confissões foi... Frei Hildebrando, o alemão grandalhão recém-
chegado ao Brasil. Felicíssima coincidência! Ou melhor: santa
Providência! Irmã Dulce criou afeição por aquele frade, que acabou se
tornando o seu diretor espiritual.
Mais do que as estatísticas dos atendimentos nos hospitais, escolas,
abrigos de crianças e idosos, as quais poderiam preencher algumas
páginas, o que mais vale são os testemunhos de pessoas que foram
beneficiadas pelas Obras Sociais Irmã Dulce. Desde o menino
jornaleiro que não queria morrer na rua, foram tantos e tantos os que
pediram a sua intercessão... Os doentes que encontraram abrigo no
antigo galinheiro, as crianças que deixaram as ruas para ter a
oportunidade de um futuro mais digno, os idosos que foram acolhidos
com carinho...
Lá na periferia, pelos Alagados, onde Irmã Dulce ia se
equilibrando até chegar os mais necessitados, a miséria era
indescritível. E ela não apenas teve compaixão daquelas pessoas, mas
se identificou com eles, com os seus “irmãos mais pequeninos”. Via
neles o Cristo, era neles o Cristo, agia para com eles como o Cristo.
No dia da inauguração, que logo veremos, do tão sonhado
Hospital Santo Antônio, em 8 de fevereiro de 1983, Frei Hildebrando
deu um testemunho que resume bem a obra de Irmã Dulce. São
palavras de um pai espiritual, decerto, mas também de um irmão na
caridade:
No mesmo ano, foi eleita uma nova superiora: madre Maria Pia
Nienhaus. Irmã Dulce enviou-lhe uma carta comunicando tudo o
que havia feito, com dados detalhados:
Temos 305 doentes internados no nosso pequeno hospital, que já é
também hospital-escola, com 12 cirurgiões e 170 estudantes que
trabalham para os pobres. A nossa despesa mensal é de 35 mil cruzeiros,
no entanto, a Divina Providência nunca nos abandonou. (…) Fique
tranquila em relação a mim. Serei Irmã da Imaculada Conceição até o
fim, com a graça de Deus!
Quando estive muito mal por vários dias, pensei muito no futuro do nosso
trabalho: quando Deus me chamar, quem ficaria com a incumbência dos
doentes e dos pobres?
(…) Passados alguns meses, veio uma moça que desejava se dedicar
inteiramente aos pobres. Já que precisava de ajuda com os nossos órfãos,
levei-a para lá. Ela gostou muito e ficou nos ajudando.
Depois veio uma outra moça, catequista, professora aposentada que
possuía o mesmo ideal. Levei-a também. Tendo aparecido uma terceira
moça, procurei Dom Avelar e lhe comuniquei o que estava acontecendo e
que, se Deus permitisse, aquelas moças gostariam de se tornar religiosas no
futuro, consagrando-se a este apostolado em favor dos jovens pobres.
Sei perfeitamente que, quando Deus me chamar, as nossas irmãs não
estarão mais aqui, uma vez que nossa congregação não quis assumir (como
responsabilidade) a Obra.
Algum tempo atrás, Irmã Querubina me falou sobre a dificuldade de
encontrar irmãs para os nossos colégios e hospitais, pois as jovens de hoje
querem viver apenas em fraternidade. E disse que seria ótimo se
conseguisse encontrar alguém para me substituir. Agora, com quem posso
contar para o futuro?
Então, a decisão foi tomada depois que rezei muito para o Divino
Espírito Santo pensar em fazer alguma coisa pelo futuro das crianças, dos
velhos e dos doentes.
(…) Tenho necessidade de tanta ajuda, já que estamos com 1.129
pessoas em casa, por isso, não posso recusar essa oferta da Providência. No
momento não é preciso, mas no futuro, se houver necessidade, pedirei a
aprovação para que essa associação se torne uma nova congregação, porque
agora é apenas uma associação de moças que desejam dedicar-se a Deus,
servindo aos pobres.
Essa ideia não parte de mim. Sei que o Espírito Santo, a quem tanto
peço que me ajude e ilumine, é quem está guiando as coisas. Pois é obra de
Deus para Deus. Afinal, sou uma débil e vil criatura, sem mérito e
sempre doente; é Ele quem faz tudo.
Tenha fé
Continuo presente
Em vida, segundo ouvi de quem com ela conviveu, o Anjo Bom
da Bahia costumava dizer que teria a eternidade inteira para descansar.
Nisso, estou certa de que se enganou. Do céu, Irmã Dulce trabalha
como nunca, intercedendo por nós, pelos seus pobres, pela sua Igreja,
pelo seu país, por aqueles que têm fome de comida, por aqueles que
têm fome de Deus.
Há muitos, é claro, a quem agradecer. Eu não me perdoaria, porém,
se deixasse de mencionar a querida Maria Rita Pontes e Osvaldo
Gouveia, que tão bem me receberam nas Obras Sociais Irmã Dulce e
tantas histórias partilharam comigo. Essa experiência modificou
minha vida para sempre: não há um dia, desde então, em que não
pense em algo relacionado ao Anjo Bom da Bahia.
Para isso contribuíram também os frades capuchinhos e as irmãs
Josefa e Gorette, da Associação Filhas de Maria Serva dos Pobres: elas
me ofereceram cartas, lembranças, depoimentos e um delicioso café
com biscoitos. A vocês, toda a minha gratidão.
Um encontro inesquecível...
Relíquia de um dia especialíssimo...
Uma freirinha tão frágil... tocando este acordeão enorme!
Irmãs Gorette e Josefa, uma alegria só!
Maleta com remédios utilizada por Irmã Dulce.
A famosa imagem de Santo Antônio.
Seu Raimundo, lembrando-se de quando Irmã Dulce o acordava de manhã.
O terço que São João Paulo II deu a Santa Dulce dos Pobres.
Aqui um santo rezou por uma santa...
Eis o hábito com que Santa Dulce foi enterrada e que ficou consigo até 2011.
Com Osvaldo Gouveia e Maria Rita, sobrinha de Santa Dulce.
A cestinha com pedidos.
O cartaz afixado nas paredes do Hospital Santo Antônio.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITOR RESPONSÁVEL
Hugo Langone
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Thaís Entriel
Mariana Bard
REVISÃO
Ana Grillo
André Marinho
DIAGRAMAÇÃO
Letícia Fernandez Carvalho
PRODUÇÃO DO EBOOK
Ranna Studio