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Formar Leitores para Ler o Mundo

Carlos Ceia

Professor da Universidade Nova de Lisboa


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

“O mundo anda fora dos eixos! Oh! Fatalidade maldita! Para que nasceria eu? para
endireitar o mundo? Vamos, partamos juntos."
William Shakeaspere, Hamlet, I,V

Como contraponto ao que diz o cavaleiro da eterna Figura “quero que saiba Vossa
Reverência, que eu sou um cavaleiro da Mancha chamado D. Quixote; e é meu ofício e
exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos"
Miguel de Cervantes, D.Quixote, XIX

Chegados a este momento, já para além da modernidade, não devíamos


provavelmente tentar justificar a importância da formação de leitores, mas antes
tentar compreender por que temos hoje necessidade de tal justificação. Tudo hoje
convida a não ler livros e, sem darmos por isso, arriscamos a uma morte prematura do
intelecto. O tipo de isolamento interior que o acto de ler convida não é aprendível de
qualquer forma e talvez por isso se abandone demasiado cedo o ímpeto para ler livros.
Insisto em escrever ler livros e não apenas ler, porque é dos livros que nos esquecemos
e não propriamente do acto de ler, que está presente em tantas actividades
contemporâneas que não perderam a capacidade de convocar a nossa atenção. Ler
livros é que é difícil e único, e é isso que estamos a desperdiçar, por isso exige-se a
quem ainda acredita nesse privilégio de aprendizagem que seja capaz de convencer os
outros descrentes.
Os mundos apontados nas duas epígrafes não estão separados: são o mundo a
que se acede quando lemos e quando ensinamos a ler. Jorge Luis Borges ligou os
heróis Hamlet e Quixote de uma forma que pode ajudar a explicar o que se ganha com
a descoberta da literatura. No ensaio "Magias Parciais do Quixote", Borges conclui:
"...Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador
de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os
personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou
espectadores, podemos ser fictícios...". As duas figuras (Quixote e Hamlet) são duas
representações clássicas do desmoronamento do muro que separa a ficção da
realidade, isto é, o mundo que vemos e em que vivemos do mundo que sonhamos ver
ou em que sonhamos viver. Em El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, o
mundo que está dentro do livro, com as suas peripécias e invenções fantásticas, e o
outro mundo que está fora, onde supostamente nos colocamos, acabam por ser
fundidos pela nossa imaginação num único mundo. No breve relato de Júlio Cortázar,
“Continuidad de los Parques”, o leitor transforma-se em vítima da história que estava a
ler, porque um livro de ficção é um retrato do mundo real e este muitas vezes parece
não passar de uma pura ficção. Ler o Don Quijote de la Mancha, por exemplo, é
aprender a conhecer os limites da representação do mundo, porque só assim
saberemos verdadeiramente quem somos para além de indivíduos letrados. Em
“Magias Parciais do Quixote”, Jorge Luis Borges pergunta por que é inquietante que
Dom Quixote seja leitor do Quixote (ou Hamlet espectador de Hamlet), e responde que
“tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou
espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”. Os livros
funcionam como fábulas do mundo porque o nosso mundo não funciona sem essa
capacidade de fabulação do que somos ou do que vemos em redor. Por isso é que é
importante formar leitores para ler o mundo: são esses que melhor se conhecerão a si
próprios e que estarão sempre um passo à frente de quem nunca leu um livro.

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