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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE RORAIMA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E INOVAÇÃO


MESTRADO PROFISSIONAL EM SEGURANÇA PÚBLICA,
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

LINHA DE PESQUISA I: CONFLITOS, CRIME, VIOLÊNCIA E


DIREITOS HUMANOS

MEDIDA DE SEGURANÇA DETENTIVA: desafios para a


Execução Penal no Estado de Roraima

JOANA SARMENTO DE MATOS

Dissertação/Produto Final

BOA VISTA/RR
2023
JOANA SARMENTO DE MATOS

MEDIDA DE SEGURANÇA DETENTIVA: desafios para a


Execução Penal no Estado de Roraima

BOA VISTA/RR
2023
TERMO DE CIÊNCIA E AUTORIZAÇÃO PARA PUBLICAÇÃO DE TCC, TESES E
DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS NO SITE DA UERR

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Estadual de Roraima –


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Lei nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura,
impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta
data.

1. Identificação do material bibliográfico:


( ) Trabalho de Conclusão de Curso ( X ) Dissertação ( ) Tese
2. Identificação da Dissertação
Autor: Jaqueline Pereira Oliveira E-mail: jackieliveira@gmail.com
Agência de Fomento:
Título: Inserção Laboral das Mulheres Venezuelanas via Interiorização da Operação
Acolhida - 2018 a 2020
Área de Concentração: Humanas Aplicadas
Grau: Mestrado
Programa de Pós-Graduação: Mestrado Profissional em Segurança Pública, Direitos
Humanos e Cidadania - MPSPDHC
Orientador(a):
E-mail:
Co-orientador(a):
E-mail:
Membro da Banca:
Membro da Banca:
Membro da Banca:
Data de Defesa: __/___/____
Instituição de Defesa: Universidade Estadual de Roraima - UERR

DECLARAÇÃO DE DISTRIBUIÇÃO NÃO-EXCLUSIVA


O referido autor: 1. Declara que o documento entregue é seu trabalho original, e que detém o
direito de conceder os direitos contidos nesta licença. Declara também que a entrega do
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Assinatura do(a) autor(a): __________________________________ Data: __/__/___.
JOANA SARMENTO DE MATOS

MEDIDA DE SEGURANÇA DETENTIVA: desafios para a


Execução Penal no Estado de Roraima

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação
como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título
de Mestre em Segurança Pública,
Direitos Humanos e Cidadania
pela Universidade Estadual de
Roraima.

Orientadora: Profª. Drª. Leila


Chagas de Souza Costa

BOA VISTA / RR

2023
JOANA SARMENTO DE MATOS

MEDIDA DE SEGURANÇA DETENTIVA: desafios para a Execução


Penal no Estado de Roraima

Dissertação apresentada ao Mestrado Profissional em Segurança Pública Direitos Humanos


e Cidadania a Universidade Estadual de Roraima, como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Segurança Pública Direitos Humanos e Cidadania.

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em 06/12/2023, perante a Banca


Examinadora, constituída pelos seguintes membros:

_______________________________________
Prof. Drª. Leila Chagas de Souza Costa (UERR)
(Presidente da Banca)
Universidade Estadual de Roraima – UERR

______________________________________
Prof. (a) Dr. (a) Fernando Cesar Costa Xavier
Universidade Estadual de Roraima
Membro Interno
_____________________________________
Prof. Dr. Regys Odlare Lima de Freitas
Universidade Estadual de Roraima -UERR
- Membro Titular

. ______________________________________
Prof. Dr. Rildo Dias da Silva - Membro Titular
Universidade Estadual de Roraima -UERR
- Membro Titular

_____________________________________________
Prof. Dr. Edgard Vinícius Cacho Zanette –

Universidade Estadual de Roraima-UERR

Suplente
À minha família e ao Henrique: luz em
momentos de escuridão.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos a várias pessoas


que contribuíram de maneira significativa para a realização deste trabalho
acadêmico. Primeiramente, agradeço a Deus por me proporcionar a
oportunidade e a capacidade de realizar esta pesquisa.
Minha gratidão também se estende à minha família, cujo apoio
incondicional tem sido fundamental ao longo desta jornada acadêmica. Seu
encorajamento e compreensão foram pilares essenciais para a conclusão deste
projeto.
Não posso deixar de mencionar meu querido Henrique, cuja colaboração
e insights foram inestimáveis durante a elaboração deste trabalho. Sua
perspicácia e orientação foram cruciais para a qualidade deste estudo.
Além disso, sou grato à minha mãe e à minha amiga Vanda, que
participaram de conversas inspiradoras e muitas vezes desafiadoras, fornecendo
ideias e perspectivas valiosas que enriqueceram a pesquisa.
Por fim, quero expressar minha profunda gratidão a todos os
mencionados por seu apoio e contribuições, que desempenharam um papel
crucial na realização deste trabalho acadêmico.
RESUMO
Este estudo concentrou-se no exame de medida de segurança detentiva (ou ambulatorial), para
pessoas com transtornos mentais e alta periculosidade: desafios para a execução penal no
estado de Roraima. O objetivo geral consistiu em um voo panorâmico sobre as implicações da
medida de segurança detentiva: temporária, limitada ao quantum da condenação in concreto, ou
in abstrato, ou vitalícia, para não se utilizar a palavra perpétua. Buscou-se organizar os
fundamentos para uma proposta a utilização de mecanismos de direito civil (como a interdição,
prevista no Código Civil), em complemento aos mecanismos de internação psiquiátrica
compulsória (prevista na Lei nº 10.216/2001), como solução processual capaz de contornar a
impossibilidade de aplicação sucessiva de medidas de segurança detentivas (internações
compulsórias) para pessoas portadoras de transtorno mental e com periculosidade persistente,
sem se desrespeitar a dignidade humana dessas pessoas e também em proteger esta mesma
dignidade dos familiares dessas pessoas, tantas vezes atingidas e sem, sequer, serem vistas
pelos sistemas de segurança e de saúde pública. Em relação aos objetivos específicos, podem
ser enumerados os seguintes: a) realizar um levantamento do quantitativo de dados sobre as
medidas de segurança aplicadas no âmbito da Vara de Execução Penal da Comarca de Boa
Vista; b) analisar os limites de aplicação do paradigma da não-intervenção – previsto na Lei nº
10.216/2001 – nos casos em que a periculosidade de pessoas com transtorno mental persiste
mesmo após o cumprimento integral de medida de segurança detentiva; e c) apresentar o “caso
Kalberg” como um caso-referência, para a partir dele se discutir em detalhes quais são os
desafios mais palpáveis para o sistema de execução penal envolvendo pessoas com transtornos
mentais e periculosidade persistentes. A metodologia utilizada para alcançar os referidos
objetivos foi a pesquisa qualiquantitativa, com utilização de pesquisa bibliográfica e documental,
além de entrevista semiestruturada. Como resultados parciais, pode-se concluir que o sistema
de execução penal pode lidar com pessoas com doenças mentais e alta periculosidade através
de diversas medidas de proteção e tratamento, incluindo a internação em unidades psiquiátricas
especializadas, o acompanhamento médico regular e o tratamento psicológico. No entanto, a
aplicação dessas medidas deve ser feita de forma equilibrada, respeitando os direitos humanos
e a dignidade da pessoa.

Palavras-chave: transtornos mentais. Alta periculosidade. Medida de segurança.


ABSTRACT
This study focused on the examination of detention security measures (or ambulatory) for
individuals with mental disorders and high dangerousness: challenges for the execution of penal
law in the state of Roraima. The overall objective is a panoramic overview of the implications of
detention security measures: temporary, limited to the quantum of the sentence in concrete terms,
or in abstract terms, or lifelong, to avoid using the word "perpetual". Efforts were made to organize
the foundations for a proposal to use civil law mechanisms (such as interdiction, provided in the
Civil Code), in addition to compulsory psychiatric internment mechanisms (provided in Law
10.216/2001), as a procedural solution capable of overcoming the impossibility of successive
application of detention security measures (compulsory internment) for individuals with mental
disorders and persistent dangerousness, without disrespecting the dignity of these individuals,
and also protecting the dignity of these individuals' family members, who are often affected and
without even being seen by public security and health systems. Regarding the specific objectives,
the following can be listed: a) to carry out a data collection on the security measures applied in
the scope of the Execution Penal Court of the Comarca of Boa Vista; b) to analyze the limits of
the non-intervention paradigm - provided in Law 10.216/2001 - in cases where the dangerousness
of individuals with mental disorders persists even after the full completion of a detention security
measure; and c) to present the "Kalberg case" as a reference case, in order to discuss in detail
the most palpable challenges for the penal execution system involving individuals with mental
disorders and persistent dangerousness. The methodology used to achieve these objectives was
qualitative and quantitative research, using bibliographic and documentary research, as well as a
semi-structured interview. As partial results, it can be concluded that the penal execution system
can deal with individuals with mental illness and high dangerousness through various measures
of protection and treatment, including internment in specialized psychiatric units, regular medical
follow-up and psychological treatment. However, the application of these measures must be done
in a balanced manner, respecting human rights and the dignity of the person.

Keywords: Mental disorders. High danger. Safety measure.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Noite Estrelada ................................................................................ 65


Figura 2- A vila ................................................................................................ 66
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10
2 CASOS QUE MERECEM SER LEMBRADOS PARA NÃO SEREM REPETIDOS:
BREVE HISTÓRICO DO CONTEXTO .......................................................................... 14
3 TEORIAS SOBRE AS DOENÇAS MENTAIS NO SISTEMA DE SAÚDE ................. 24
3.1 MAIS UMA VEZ COUTURE: ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA ........................... 28
3.2 MEDIDAS CÍVEIS E CRIMINAIS ............................................................................. 32
4 O PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................. 47
4.1 METODOLOGIA ....................................................................................................... 48
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO............................................................................................ 52
5.1 CONSIDERAÇÕES PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS ...................................... 57
5.2 MÉDICO LEGAIS, FILOSÓFICAS E LITERÁRIAS ................................................. 65
5.3 O SISTEMA PENAL E AS DOENÇAS MENTAIS ................................................... 79
5.4 MOVIMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL..........................................................84
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 91
ANEXO A- A RESOLUÇÃO N. 487, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2023 do CNJ...........95
10

1. INTRODUÇÃO

Marginal errante
Desejo vago
Perpassa
em vaga nuvem
o desespero do agora

Angústia indescritível
povoa por completo
o existente
na procura
do instante verdadeiro

Não sei que


de formas várias
sentidos diversos
nuances leves
coloridos gritantes
notas harmoniosas
dissonantes acordes

Perguntas e problemas
definitivamente lançados
ao resto da caminhada
do marginal errante

Não há trilhas marcadas


na crosta de neve
e pouco valem
as seguras referências
do magnetismo corriqueiro

Pesado é o fardo
alçado às costas
com os famintos do mundo
as injustas estruturas sociais
os monopólios ideológicos
a liberdade de fazer o que mandam
o direito de buscar o impossível

Ser das planícies


Ser dos abismos
Ser do tudo
Ser do nada
(Álvaro Acioli)

José Carlos de Alcântara escreveu um artigo denominado “O homem é


um animal político”, baseado na concepção Aristotélica de que o “homem é um
animal político por natureza (...), a cidade é natural e (...) o fim do homem é a
felicidade. Essa felicidade, contudo, só se atinge plenamente na cidade (pólis).
Assim, concebe-se o homem como um animal político porque ele vive
11

conjuntamente com o seu semelhante, ainda que dele não necessite. Com isso,
é possível parafrasear Maurice Druon, em o “O menino do dedo verde”, para se
afirmar: estar-se-á pensando demais.
Nesse contexto, abre-se um parêntese para a reflexão de que enquanto
não houver vontade política, políticas públicas com interesses inconfessáveis,
responsabilidade e seriedade com o dinheiro público, não haverá solução para
a questão do acolhimento, internação e tratamento humanizado para doentes
mentais ou portadores de transtornos mentais.
Se formos refletir acerca dos estágios da humanidade, precisamos nos
lembrar que há cerca de alguns bilhões de anos, a matéria, a energia, o tempo
e o espaço surgiram naquilo que é conhecido como o Big Bang, recebendo a
denominação de física. Aproximadamente 300 mil anos depois, a matéria e a
energia começaram a se aglutinar em estruturas complexas, denominadas
átomos, que se combinaram em moléculas e a isso deu-se o nome de química.
Na sequência, podemos citar ainda que pouco mais de 3 bilhões de anos,
certas moléculas formaram estruturas grandes e complexas, recebendo o nome
e organismos e a isso deu-se o nome de biologia. Em torno de 70 mil anos, esses
organismos, já pertencentes à espécie Homo Sapiens, se desenvolveram em
estruturas, denominadas culturas. O desenvolvimento dessas culturas foi
recepcionado com o nome de História.
O interessante é que em quaisquer desses estágios da origem do mundo,
contemplou-se o homo com problemas mentais e, como sabemos, essa
singularidade é intrínseca do próprio ser humano no mundo. A esse respeito,
Lombroso, muito tempo depois, elaborou teorias para categorizar os criminosos.
A princípio, endeusado. Depois, repudiado. Atualmente, far-lhe-ia muito bem
uma outra leitura de suas observações. Tivesse ele os instrumentos tecnológicos
hoje existentes, como eletroencefalograma, tomografia computadorizada, do
cérebro mapeado com cores diferentes, para diferentes funções, provavelmente
a história das doenças mentais, em criminosos, poderia ser, radicalmente,
diferente.
Nesse contexto, este estudo concentrar-se-á no exame de medida de
segurança detentiva (ou ambulatorial), para pessoas com transtornos mentais e
alta periculosidade: desafios para a execução penal no estado de Roraima. O
objetivo geral consiste em um voo panorâmico sobre as implicações da medida
12

de segurança detentiva: temporária, limitada ao quantum da condenação in


concreto, ou in abstrato, ou vitalícia, para não se utilizar a palavra perpétua.
Busca-se organizar os fundamentos para uma proposta a utilização de
mecanismos de direito civil (como a interdição, prevista no Código Civil), em
complemento aos mecanismos de internação psiquiátrica compulsória (prevista
na Lei nº 10.216/2001), como solução processual capaz de contornar a
impossibilidade de aplicação sucessiva de medidas de segurança detentivas
(internações compulsórias) para pessoas portadoras de transtorno mental e com
periculosidade persistente, sem se desrespeitar a dignidade humana dessas
pessoas e também em proteger esta mesma dignidade dos familiares dessas
pessoas, tantas vezes atingidas e sem, sequer, serem vistas pelos sistemas de
segurança e de saúde pública.
Em relação aos objetivos específicos, podem ser enumerados os
seguintes: a) Realizar um levantamento do quantitativo de dados sobre as
medidas de segurança aplicadas no âmbito da Vara de Execução Penal da
Comarca de Boa Vista; b) Analisar os limites de aplicação do paradigma da não-
intervenção – previsto na Lei nº 10.216/2001 – nos casos em que a
periculosidade de pessoas com transtorno mental persiste mesmo após o
cumprimento integral de medida de segurança detentiva; e c) Apresentar o “caso
Kalberg” como um caso-referência, para a partir dele se discutir em detalhes
quais são os desafios mais palpáveis para o sistema de execução penal
envolvendo pessoas com transtornos mentais e periculosidade persistentes.
A pergunta da pesquisa, portanto, é a seguinte: como o sistema de
execução penal pode lidar com pessoas com doenças mentais de alta
periculosidade, sob o pressuposto defendido por alguns de que a aplicação de
medidas de segurança passou a ser limitada pela Lei nº 10.216/2001?
Não se pode perder de vista, como objetivo geral a contribuição de outras
áreas do conhecimento humano, no exame das doenças mentais que levem, ou
não, a comportamentos criminosos e/ou antissociais. Dessa forma, esse trabalho
está dividido em cinco capítulos. O primeiro capítulo consiste nessa introdução.
O segundo capítulo traz alguns casos envolvendo ofensores de alta
periculosidade e suas repercussões. O terceiro capítulo traz teorias sobre as
doenças mentais no sistema de saúde prisional. O quarto capítulo contém o
percurso metodológico adotado para a realização desse estudo. O quinto
13

capítulo traz algumas análises e discussões por fim, o quinto capítulo consiste
na análise e discussão dos dados obtidos. Por fim, o sexto capítulo traz as
considerações finais, com alguns apontamentos e direcionamentos.
14

2 CASOS QUE MERECEM SER LEMBRADOS PARA NÃO SEREM


REPETIDOS: BREVE HISTÓRICO DO CONTEXTO

Para o desenvolvimento dos objetivos específicos deste trabalho, lançar-


se-á mão de estudo de casos, tanto no estado de Roraima quanto Brasil à fora.
Começar-se-á por um processo que ocorreu na cidade e Comarca de Juiz de
Fora, Minas Gerais, em que um agente, sistematicamente oprimia sua
companheira, e depois, ex-companheira, com os reflexos da Lei Maria da Penha.
O referido agente a humilhou, reduziu-lhe a autoestima, fez ameaças as
mais diversas, até chegou ao ataque físico, quando a ofendida resolveu pela
separação. Tinham um filho em comum, para sustentar. Ela era o dinheiro, o
afeto, o teto, enfim, tudo que uma família precisa para sobreviver. Cabeleireira,
trabalhava de segunda a sábado, para fazer o seu ganha pão.
Certa noite, deixando o salão muito cansada, pois havia trabalhado o dia
inteiro, ao chegar em seu carro, todos os quatro pneus haviam sido rasgados e
ele, com uma chave de fenda, violara a pintura do carro, em todos os lados,
escrevendo a palavra “puta”.
A polícia, chamada ao local, logrou êxito em prender em flagrante o
opressor, o que aconteceu pela primeira vez. Formado o Inquérito Policial e
remetido para a Justiça, ele veio a ser denunciado. A Justiça manteve-lhe a
prisão. Sob a égide do Código de Processo Penal da época, o interrogatório era
o primeiro ato da Instrução Criminal e as partes não podiam intervir por qualquer
modo.
Terminado o ato, quando o agente foi assinar o termo, a Promotora de
Justiça, que já havia observado seus olhos ejetados, viu que ele tremia ao
extremo, e que os tremores lhe afetavam as duas mãos. Neste momento, antes
que a escolta o levasse, com a permissão da Juíza, a Promotora de Justiça fez
algumas indagações tais como: o senhor está tomando algum remédio? Qual
tipo de remédio? Tem assistência médica na unidade em que se encontra
recolhido?
A Promotora de Justiça então solicitou à Magistrada, no que foi
prontamente atendida, que se realizasse nele alguns exames, sendo a principal
pesquisa destinada aos hormônios tiroidianos. Com os resultados, positivado
ficou que ele estava sofrendo de severo hipertireoidismo, que já havia
15

desencadeado o mal de Graves. Chamada a família ao gabinete, foram


providenciados todos os medicamentos, e o agente, com pouco tempo de
tratamento apresentou melhoras significativas.
Ao final da terapia estava-se diante de um outro homem: o homem que
ele sempre foi antes do acometimento da disfunção tireoidiana. Deixou o
estabelecimento prisional, onde já estava agendado e deferido, a pedido de seu
defensor, um exame para verificação de sua saúde mental. O casal não voltou a
conviver, pois o estrago de quase dois anos já estava feito, mas ele se tornou
um homem produtivo, sem incidentes outros de violência, nem para com a
mulher, nem para com o filho, nem para com a sociedade.
Com este exemplo, não se pretende, uma visão simplista da complexa
questão da saúde mental, mas apenas dizer que é preciso um olhar diverso do
que seja, exclusivamente, insanidade mental. Outro exemplo, que foi bem
explorado pela mídia nacional, ficou conhecido como “o caso Champinha”. Uma
adolescente, de classe média alta, com 16 anos de idade, enamorou-se de um
colega de escola, com 18 anos de idade, e resolveram passar, juntos, um fim de
semana romântico.
Claro que os pais da adolescente, à época casados, não iriam permitir tão
inusitada e perigosa aventura. Então ela aos genitores disse que iria a uma
excursão do colégio e que voltariam na tarde-noite de domingo. Os pais, que
confiavam na filha, acreditaram e o casal partiu para a “excursão colegial”, cada
um levando uma mochila e algumas poucas roupas e pouco dinheiro. Felizes e
apaixonados, adentraram em uma mata e, em uma picada que encontraram,
montaram uma barraca. Estavam a poucos metros de uma casa abandonada.
Então, se aproximam, “Champinha”, que na época tinha 16 anos e mais
três homens adultos. “Champinha”, apesar de sua tenra idade, era o líder do
bando, que abordou o casal apaixonado da maneira mais apavorante possível.
O rapaz, levado para a casa abandonada, viria a ser executado, como de fato
foi, com um tiro na nuca, depois de se prostrar de joelhos e implorar para sua
vida. Enquanto isso, o pai dedicado foi ao colégio buscar a sua filha, quando
soube que não houve excursão alguma e que sua filha estava desaparecida.
Em franco desespero, comunicou o desaparecimento à polícia, que fez
intensas buscas para encontrar o casal. O pai chegou a imprimir 5.000 folhetos
com foto da filha, implorando por qualquer informação que levasse ao paradeiro
16

dela. Enquanto isso, o grupo se voltava para a adolescente aterrorizada. Ela foi
estuprada, sodomizada e espancada durante cinco longos dias, e ao final deles,
“Champinha” ordenou que ela caminhasse pela mata, porque ele iria soltá-la.
Logo em seguida, alguns disparos e a garota foi morta.
Encontrado o casal, “Champinha” foi encaminhado para a fundação casa,
com medida detentiva por sua idade, onde deveria ficar até os 18 anos. Os
agentes penalmente responsáveis foram todos condenados, uma vez que
mentalmente capazes.
Ocorre que “Champinha” se tornou um grande problema jurídico:
legalmente, deveria ser posto em liberdade aos 18 anos, mas do ponto de vista
de sua periculosidade, e alta periculosidade, já que ele declarava a todo instante
que, uma vez solto, iria voltar a matar, foi diagnosticado com doença mental e
sua soltura era temerária.
Os trabalhadores do Direito sabem que não se pode aplicar duas penas
para o mesmo fato gerador. O que fazer então? Foi construída uma casa de
custódia e tratamento para doentes mentais e, coincidência ou não,
“Champinha”, já com 18 anos, foi seu primeiro interno, onde se encontra até os
dias atuais.
A esse respeito, o psiquiatra forense, chamado Guido Palomba,
renomado em todo país, cunhou a seguinte expressão para definir a nova
situação de “Champinha”: uma verdadeira gambiarra jurídica. Prefere-se o
amparo de Eduardo Juan Couture: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia
encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”.
Até onde se sabe, a casa de Custódia e Tratamento que abrigou
“Champinha” possui boas acomodações e bons profissionais para acompanhá-
lo. Os pais da adolescente, destroçados, se separaram pouco tempo depois. É
isso que acontece no mais das vezes: o ato criminoso não afeta apenas o
ofendido, mas todo o universo que gravita em torno dele.
O Art. 5o da Lei de Saúde mental diz que:
O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize
situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro
clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política
específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob
responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de
instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a
continuidade do tratamento, quando necessário (Brasil, 2002, p. 16).
17

Pode ser citado, como ilustração, o caso de Chico Picadinho ou Francisco


Costa Rocha, que é responsável pela morte de duas mulheres entre os anos de
1966 e 1976. Seus delitos foram tão cruéis que chegaram a ser colocados pelo
G1 de São Paulo, em 2014, como os "9 casos de assassinos que chocaram o
país com seus crimes”.
Ele nasceu do caso que seu pai teve com uma amante. A mulher, dona
Nancy, em outras ocasiões já havia cometido o aborto, mas, diferentemente dos
exemplos anteriores, resolveu ser mãe pela primeira vez em 27 de abril de 1942,
do homem que seria conhecido como Chico Picadinho.
Ainda foi mandado por seu pai para morar em uma casa de empregados,
em razão de uma enfermidade que acometeu sua esposa. Ele se sentiu
desamparado pela família, e foi abandonado, também, pelo casal, que a ele não
destinava qualquer afeto, o que o levou a ficar com animais na mata, com porcos,
algumas galinhas e gatos. Foi assim que iniciou seus rituais sádicos, matando
os gatos de diferentes formas. Ao cabo de 2 anos, sua mãe, Nancy, reapareceu
para buscá-lo.
Jornalistas afirmam que logo em seguida começou os estudos em uma
escola católica, onde presenciou um caso de pedofilia com um colega, o que
levaria a seu isolamento social. Foi reprovado naquele ano, e deixou os estudos.

Quando jovem, fez parte de um grupo chamado “senta pua”, onde foi
abusado sexualmente. Assim, tanto o sexo, quanto a violência foram
introduzidas na sua biografia. Por não conseguir ser aprovado nem na
Escola Naval, nem na Aeronáutica e nem na Polícia Militar (Fagundes,
2020).

Decidiu ser corretor de imóveis. A disponibilidade de horários o fez


participar da conhecida “boca do lixo”, lugar marcado pela prostituição e
consumo de drogas. Naquela oportunidade, ele compartilhava um apartamento
com um amigo e cirurgião médico, de quem era amante. E foi naquela residência
que Chico Picadinho cometeu seu primeiro crime, em agosto de 1966, matando
uma bailarina austríaca, de 38 anos de idade, convidada por ele para sua casa
onde, durante o sexo, a enforcou com um cinto, partindo, a seguir para o
espostejamento do corpo.
A polícia foi informada por seu próprio amante e ele foi preso em 05 de
agosto de 1966 e ele, a fim de justificar o crime afirmou que “a vítima se parecia
com sua mãe, pois ambas se envolveram com homens por dinheiro e status
18

(Fagundes, 2020). Assim, ficou preso por 18 anos, em razão do homicídio


qualificado aos quais foram somados mais 2 anos e 6 meses pela desintegração
do cadáver. Sua condenação, mais tarde, foi substituída por 14 anos e 4 meses.
No estabelecimento prisional, trabalhou estudou e até se casou, sendo solto em
1974, oito anos após o ocorrido.
Separou-se da esposa quando ela ainda se encontrava grávida. Casou-
se novamente, tendo outro filho, mas novamente se separou. Desse modo, livre
ficou para retornar para a “boca do lixo”, local onde conheceu sua primeira vítima,
e passou a viver como se nada tivesse acontecido: bebidas, drogas, sexo e
prostituição.
Apenas dois anos e cinco e meses depois de ser solto viria a matar, como
de fato matou, de novo. A vítima tinha o prenome de Ângela, outra prostituta,
com 34 anos de idade, que foi levada para o apartamento de um colega dela e,
quando da relação sexual, foi estrangulada. Fazendo uso de uma faca, um
canivete e um serrote, procedeu a outro espostejamento de cadáver. Quando
deixava o local, depois de um sono reparador, foi preso novamente.
Desta feita, foi condenado a 22 anos e 6 meses de reclusão, mas foi
considerado portador de personalidade psicopática de tipo complexo. Em 1994,
Francisco foi internado na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté parar ser
tratado de sua insanidade mental. É interessante observar que com o
cumprimento integral de sua pena, no ano de 2017 ele teve sua soltura
determinada por uma Juíza de primeira instância. Contudo, em maio daquele
mesmo ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela manutenção da
Custódia.
Na decisão de segundo grau, o Julgador constatou que a casa de custódia
era "melhor local para albergar civilmente Francisco, com registro que está
adaptado à rotina diária, à disciplina, recebe tempestiva e eficazmente a
medicação psiquiátrica”. Isto somente foi possível porque, em 1970, Chico
Picadinho foi diagnosticado como portador de personalidade sádica e
psicopática, tendo laudo médico legal nesse sentido.
Em recurso datado de 25 de novembro de 2015, o Tribunal de Justiça de
São Paulo entendeu “que a interdição de doente mental com gravíssima
patologia não se iguala à prisão perpétua, uma vez que não visa punir pela
prática de infrações, mas sim privar do convívio social aquele que sofre
19

gravíssima doença mental. In casu, entenderam os magistrados que haveria


segura comprovação da personalidade dissocial do interditando, bem como
grave histórico de violência, mantendo, portanto, a internação.
Saliente-se, porque necessário, que ele precisava ser tratado de sua
insanidade mental, e não de transtorno mental. Examinar-se-á agora o caso, de
repercussão também nacional, que ficou conhecido como “o maníaco da
Cantareira”.
Crianças e adolescentes saíam de bicicleta para percorrer as trilhas a
Serra da Cantareira, no estado de São Paulo, e simplesmente desapareciam. As
famílias encetavam buscas por conta própria e ao final de mais ou menos tempo,
encontravam seus entes queridos mortos. Eram meninos, e adolescentes do
sexo masculino, estabelecendo um padrão de preferência bem nítido do agente.
Foram muitos, até que foi identificada a autoria. O agente foi processado. Ao
passar por incidente de insanidade mental, constataram os peritos que ele era
plenamente irresponsável por responder por seus atos, incapacidade mental
plena.
A ele foi imposta medida de segurança detentiva e os desaparecimentos
e as mortes cessaram, mas deixaram uma trilha de sofrimento e dor para as
famílias que tiveram seus filhos vítimas de sodomia e homicídio. O tempo
transcorreu, e em determinado dia, dois irmãos, completamente seguros com o
afastamento do “Maníaco da Cantareira” saíram, de bicicleta, para uma trilha.
Não retornaram para casa. E o terror voltou a reinar. Seria um imitador?
Com uma investigação até superficial, descobriu-se que o Hospital
Psiquiátrico em que o “Maníaco da Cantareira” estava internado, tinha recebido
“saída temporária” para visitar seus familiares. E ele logo confessou os crimes.
Este ato de “humanidade” custou a vida dos dois irmãos. Como equacionar esta
questão?
Na época o Código de Processo Penal não obrigava as autoridades a
comunicar aos familiares da vítima a colocação, em liberdade, a qualquer título,
dos ofensores. Embora seja algo doloroso de se afirmar, é a mais pura realidade:
é mais fácil falar em favor de quem está vivo do que quem está morto. É mais
“solidário” falar em favor dos ofensores, do que dos ofendidos.
Assim, passamos para o caso de um estudante de engenharia, que
protagonizou homicídio em massa na cidade de São Paulo. Ele escolheu com
20

antecedência e meticulosamente as armas e munições que usaria no ataque. Foi


para um quarto de hotel, onde fez uso da substância entorpecente denominada
vulgarmente de cocaína, e se dirigiu para um cinema localizado no Morumbi
Shopping onde era exibido o filme denominado “Clube da Luta”. Disparou rajadas
de metralhadora na assistência, matando três pessoas, ferindo quatro e levando
pânico a todos os presentes.
A defesa adotou a tese de sua inimputabilidade e que ele era portador de
distúrbios mentais, agravado pelo uso de substância entorpecente e de uso
proscrito no Brasil. No entanto ele foi sentenciado a 48 anos e 9 meses de
reclusão, e recolhido ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de
Salvador, na capital baiana.
Atente-se para a fundamental diferença: o agente não era portador de
doença mental, mas de distúrbios mentais. Exatos dez anos após o crime, o
mesmo agente, que seria considerado apto para a desinternação, esfaqueou um
companheiro de cela na Penitenciária Lemos Brito, na capital baiana. Foi
submetido a exame para verificação de cessação de periculosidade, objetivando
sua liberdade. Terá sido uma promiscuidade jurídica? O laudo assegurou que
ele “encontrava-se compensado, funcional, sem qualquer alteração de
comportamento” que indicasse periculosidade, e assim foi considerado apto a
desinternação.
Celso Teixeira, diretor de comunicação da Record TV, que cobriu o caso
à época, declarou: “Espero que as vítimas e os familiares tenham vivido em paz
todos estes anos para superar o trauma”, pois pessoa alguma poderia imaginar
que em um cinema, poderia ser alvo de um crime tão brutal quanto inimaginável”.
Impactando ainda o país, tem-se o caso do cartunista Glauco e de seu
filho Raoni, mortos a tiros por um frequentador da Igreja Céu de Maria,
fundadores e mantenedores dela, que utilizavam da substância psicoativa
conhecida como Santo Daime. O criminoso foi preso alguns dias depois. Seu
defensor alegou que ele era esquizofrênico e que passou a ter alucinações
depois do uso do chá do Santo Daime. Ele foi considerado inimputável e acabou
internado em hospital psiquiátrico para tratar, esta sim, sua doença mental.
Estranhamente, no ano de 2014, ele matou mais duas pessoas em Goiás,
onde foi preso e condenado como um criminoso comum, e no curso do
cumprimento de sua pena, em 2016, foi morto por um colega de cela. Considera-
21

se necessário se indagar novamente: promiscuidade processual ou médico


legal? A viúva de Glauco, Senhora Bia, chegou a afirmar: “Essas duas mortes
após a do Glauco, a culpa é da Justiça. A culpa é de quem soltou o criminoso”.
Passar-se-á, a partir de agora, ao circuito doméstico, de Roraima, em que
as constatações não são muito diversas. Cita-se como exemplo o “caso
Kalberg”1. Sem dúvida, um dos mais instigantes dos anos recentes, com um
sentenciado portador de doença mental, pela prática de vários crimes, inclusive,
com violência doméstica contra sua mãe e sua filha menor. Entradas e saídas
do sistema de Justiça penal, ao longo de anos, representaram um círculo
perverso para suas vítimas.
Em 2014, Kalberg Magalhães cumpria pena na Penitenciária Agrícola do
Monte Cristo pelos crimes de furto, roubo e ameaça com violência doméstica,
quando foi espancado por outros detentos sob a acusação de praticar ato
obsceno no cárcere2. Tempos depois, exames periciais atestaram transtornos
mentais com surtos, agravados pelo consumo frequente de substâncias
entorpecentes. Para Kalberg, a medida adequada então seria a internação em
hospital de custódia; porém, não há estabelecimentos desse tipo em Roraima.
De novo, o diagnóstico não foi de doença mental, mas de transtornos
mentais, “com surtos, agravados pelo consumo frequente de substâncias
entorpecentes”. A manutenção da pena de reclusão, de outra parte, constituiria
um abuso de autoridade por parte de agentes estatais e excesso na execução
penal ante a sua condição psiquiátrica.
Em 2002, a medida de segurança que havia sido decretada contra ele
estava em vias de ser extinta, considerando que se entende os tribunais,
atualmente, que a medida de segurança não pode ser perpétua e que deve se
balizar pelo tipo penal em que incurso a pessoa sujeita a medida de segurança.
O Ministério Público já havia se manifestado favoravelmente ao pedido de

1 Assim se convencionou chamar o caso de Kalberg da Silva Magalhães, cujo processo principal
tramitou na Vara de Execuções Penais, na comarca de Boa Vista, sob o número 0011104-
55.2014.8.23.0010.
2 MARQUES, Marcelo. Preso é agredido após ser visto em ato obsceno com foto de mulher, em
RR. G1 RR, de 20 mar, 2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2014/03/preso-e-agredido-apos-ser-visto-em-ato-
obsceno-com-foto-de-mulher-em-rr.html
22

extinção formulado pela defesa, a despeito da personalidade do agente indicar


a alta probabilidade de reiteração de práticas criminosas.
No mês de maio daquele ano, às vésperas do Dia das Mães, a própria
mãe de Kalberg dirigiu-se à Vara de Execução Penal para implorar à juíza que
não devolvesse a liberdade ao filho. Mais do que com a sua segurança ou a de
sua neta, ela estava preocupada com a integridade e a vida de seu filho: “prefiro
ele preso do que morto”.
A súplica da mãe de Kalberg esbarra no chamado paradigma da não-
internação psiquiátrica involuntária defendido pela Lei 10.216/01 (Lei da Reforma
Psiquiátrica), que teria derrogado a parte geral do Código Penal e da Lei de
Execuções Penais na parte relativa às medidas de segurança detentivas. Com
o advento dessa lei, a internação, para casos como o de Kalberg, estaria limitada
aos casos de surtos violentos e teriam a duração limitada ao tempo de
permanência do surto (Mendes; Faria, 2018).
No capítulo XVI de seu clássico “O Espírito das Leis”, o barão de
Montesquieu afirma que as leis, por serem feitas para pessoas com uma
capacidade mediana de entendimento, deveriam corresponder ao “raciocínio
simples de um chefe de família”. Mas a Lei nº 10.216/01, com seus paradigmas
inovadores, não pareciam compreensíveis para a mãe de Kalberg, uma senhora
humilde, franzina, baixa estatura e voz tímida.
Após a decretação da extinção da medida de segurança que mantinha
detido o seu filho violento, ela foi uma vez mais até a Vara de Execução Penal,
inconformada, compartilhar as suas angústias com os serventuários daquela
unidade: “Por favor vão matar meu filho, ou ele vai nos matar. Só tivemos
sossego no tempo em que a juíza o manteve na Unidade” 3. Embora tenham lhe
explicado que a soltura dele era decorrência da imposição de uma lei, isso não
pareceu fazer a ela qualquer sentido.
O caso Kalberg é ilustrativo das respostas que são buscadas não apenas
por alguns membros da sociedade que sofrem diretamente com a
impossibilidade de internação de pessoas com transtorno mental e perfil voltado
para prática de fatos descritos pela lei penal como crime, mas também pelos

3 As falas atribuídas aqui à mãe de Kalberg (que convém não ser identificada) são reais, embora
adaptadas, e foram obtidas a parte do testemunho de servidores do Poder Judiciário que
estiveram presentes no atendimento prestado a ela.
23

próprios atores que gerenciam o sistema de execução penal. Embora haja


respostas possíveis, a forma como pessoas com transtornos mentais e de alta
periculosidade pode ser segregadas, para a sua própria segurança e a dos
demais, é ainda uma questão em aberto e de difícil equacionamento da prática
diária.
Assim, o caso Kalberg é um exemplo das questões que são enfrentadas
não apenas por indivíduos na sociedade que são afetados diretamente pela
incapacidade de internar pessoas com transtornos mentais e comportamento
perigoso, mas também pelos responsáveis pelo sistema de justiça criminal.
Embora existam possíveis soluções, como as pessoas com transtornos mentais
e alta periculosidade, podem ser isoladas para proteção própria e de outros,
ainda é uma questão em aberto e desafiadora de se resolver na prática cotidiana.
É importante discutir esse assunto e buscar soluções para garantir a segurança
de todos.
24

3 TEORIAS SOBRE AS DOENÇAS MENTAIS NO SISTEMA DE SAÚDE

A classificação de transtornos mentais tem como objetivo categorizar e


descrever as diferentes formas de sofrimento mental que uma pessoa pode
apresentar. Esse processo é importante para ajudar no diagnóstico, tratamento
e compreensão dos transtornos mentais.
A distinção entre doença mental e transtorno mental é uma questão que
vem sendo debatida há muito tempo na área da saúde mental. Enquanto alguns
autores entendem a doença mental como uma variação mórbida do normal,
outros enfatizam a importância de compreender o sofrimento mental como uma
construção social e cultural.
Por exemplo, o psicanalista Franco Basaglia (1988), argumenta que a
distinção entre normalidade e patologia é uma construção social que se reflete
na forma como a sociedade entende e trata as pessoas com sofrimento mental.
O referido psiquiatra defende a ideia de que o sofrimento mental deve ser
compreendido como uma resposta humana diante de situações adversas e não
como uma patologia.
Por outro lado, o psiquiatra Thomas Szasz (1977), defende que a doença
mental é uma construção cultural e social que se reflete na forma como a
sociedade entende e trata as pessoas com sofrimento mental. Szasz (1977),
argumenta que a doença mental não é uma entidade real, mas sim uma
descrição cultural da forma como a sociedade entende e trata o sofrimento
mental.
Em resumo, a classificação de transtornos mentais é uma questão
complexa e multifacetada que envolve diferentes perspectivas teóricas e
culturais. Alguns autores enfatizam a importância de compreender o sofrimento
mental como uma construção social e cultural, enquanto outros destacam a
importância de classificar os transtornos mentais para fins diagnósticos e
terapêuticos.
Considera-se importante, também, se fazer a distinção entre doença
mental e transtorno mental, até porque esta diferenciação tem efeitos práticos
relevantes no quotidiano jurisdicional. Senão, veja-se: doença mental é uma
25

variação mórbida do normal, capaz de produzir prejuízo no comportamento


global do indivíduo, citando-se como exemplo os campos social, ocupacional,
familiar e pessoal.
Segundo a teoria biopsicossocial, desenvolvida por George L. Engel
(1977), a doença mental é entendida como um processo interativo entre fatores
biológicos, psicológicos e sociais. Essa teoria destaca que a doença mental é
resultado da interação complexa entre fatores biológicos, tais como
predisposições genéticas ou desequilíbrios químicos no cérebro, fatores
psicológicos, como o estresse ou a ansiedade, e fatores sociais, como o
ambiente de trabalho ou as condições sociais adversas. A teoria biopsicossocial
argumenta que a doença mental é uma condição real e persistente que requer
tratamento médico e psicológico.
Já o transtorno mental fica em uma área cinzenta entre a normalidade e
a patologia. São síndromes ou padrões de comportamentos psicológica e
clinicamente importantes. Essa síndrome não deve constituir meramente uma
resposta previsível e culturalmente aceita diante de um determinado evento. Um
engano frequente consiste em pensar que uma classificação de transtornos
mentais classifica pessoas, quando na verdade o que se classifica são os
transtornos que as pessoas apresentam.
A definição de transtorno mental também pode variar dependendo do
autor ou da perspectiva teórica. No entanto, a seguinte é uma definição de
transtorno mental baseada no DSM-5, um dos manuais de referência mais
influentes na psiquiatria. Segundo o referido manual, um transtorno mental é
definido como "uma condição clínica que afeta a maneira como uma pessoa
pensa, se sente, comporta-se ou interage com outras pessoas".
O DSM-5 fornece critérios diagnósticos para vários transtornos mentais,
incluindo transtornos de ansiedade, transtornos afetivos, transtornos psicóticos
e outros. O transtorno mental é entendido como uma condição persistente e
clinicamente significativa que requer tratamento. O DSM-5 enfatiza que o
transtorno mental é diferente de reações normais a eventos estressantes ou
condições temporárias, como o luto ou a ansiedade social.
Esses breves conceitos são imprescindíveis para o exame dos objetivos
geral e específicos desse estudo, a justificativa, a revisão da literatura e
metodologia empregada. Não se pode perder de vista que a aplicação prática
26

destes conceitos a cada caso concreto será, sempre, uma “espada de Dâmocles”
pendente sobre a cabeça do julgador.
Nesse contexto, decisões respeitáveis se voltam no sentido de que a
medida de segurança detentiva não pode ser perpétua. Antes, o contrário, deve
estar jungida à pena aplicada ao ofensor da norma, e, numa aplicação mais dura,
à pena máxima cominada ao delito cometido. Dessa maneira, há que se indagar:
como dar “alta”, juridicamente, para ofensores extremamente perigosos, se é
sabido que doença mental não tem cura? A outra visão, a qual filiar-se-á é a de
que, como doença incurável, o transgressor não deverá ser colocado em
liberdade.
Faz-se necessário considerar que a decisão de conceder uma alta
depende de vários fatores, incluindo a avaliação da equipe médica sobre a
condição da pessoa e se ela é considerada segura para ela mesma e para a
sociedade. No caso de ofensores extremamente perigosos com problemas de
saúde mental, a decisão de conceder uma alta é ainda mais complexa e envolve
considerações de saúde pública, direitos humanos e segurança.
A equipe médica pode trabalhar com órgãos de justiça criminal e outros
profissionais da saúde para avaliar o risco e determinar o melhor curso de ação.
Entretanto, considera-se que em casos de ofensores extremamente perigosos,
o mais recomendável é que necessário se mantenha a pessoa em um ambiente
institucional por questões de segurança, mesmo que sua doença mental não
tenha cura.
Considera-se que as decisões sobre a liberação de ofensores
extremamente perigosos precisam ser muito cuidadosas e baseadas em
avaliações rigorosas e revisões frequentes. É importante que sejam tomadas
medidas eficazes para garantir a segurança da sociedade e dos indivíduos
envolvidos. Assim, também serão oferecidas, humildemente, alternativas, ou
soluções, ainda que paliativas, para que o sentenciado permaneça em casa de
recolhimento para doentes mentais, porque sua insanidade há de colocar a ele,
a sua família e a toda comunidade, em perigo: iminente, real e concreto.
Feitas essas considerações, há de se trazer a questão da doença de
Graves, provocada por uma hiperatividade da tireoide. A origem exata da doença
de Graves ainda é desconhecida. No entanto, é amplamente aceito que é uma
condição autoimune, ou seja, ocorre quando o sistema imunológico ataca o
27

próprio corpo. Em casos de hipertireoidismo de Graves, o sistema imunológico


ataca a tireoide, resultando na produção excessiva de hormônios tireoidianos.
Fatores genéticos e ambientais podem desempenhar um papel na
formação do mal de Graves. Algumas evidências sugerem que a doença pode
estar relacionada a fatores como o estresse, infecções virais ou a exposição a
certos produtos químicos. No entanto, ainda não foi estabelecida uma causa
clara e única para a doença de Graves.
Além disso, a doença é mais comum em mulheres e geralmente ocorre
na idade adulta. No entanto, pode afetar pessoas de qualquer idade ou gênero.
É importante lembrar que a referida doença é uma condição complexa e que a
pesquisa sobre sua origem ainda está em andamento.
A glândula pituitária, na base do cérebro, tornou-se, mais tarde, “a
regente da orquestra endócrina", um conjunto de sete instrumentos. Foi Harvey
Williams Cushing (1869-1939), professor de cirurgia no Hospital Johns Hopkins
e em Harvard, quem iniciou a orquestra. Ele começou identificando a pituitária
em 1912 e descreveu a síndrome de Cushing em 1932, na qual o doente
apresenta o rosto redondo como a lua.
Quaisquer destes exames, ao que se sabe, não são realizados quando se
pesquisa uma doença mental em agressores e ela, uma vez comprovada,
poderia poupar dinheiro aos cofres públicos e muito sofrimento ao examinando,
que receberia o tratamento adequado, fazendo cessar sua agressividade ou até
mesmo sua periculosidade.
De igual modo, as características hereditárias, que podem ser assim
sintetizadas: a genética é uma matéria tão opaca e tediosa quanto a filosofia
teológica, mas como essa filosofia contém o segredo da vida eterna, o que pode
ser traduzido pelo dito popular: “a fruta só cai debaixo do pé”, ou “filho de peixe,
peixinho é”. Nada disso pode escapar ao observador com objetivo geral, muito
embora, como geral, não se possa descer a peculiaridades de caso a caso.
A esse respeito, cumpre mencionar que a biologia tem uma compreensão
limitada sobre as características hereditárias que podem estar relacionadas a
comportamentos violentos ou criminosos. Embora algumas pesquisas tenham
encontrado uma ligação entre certos genes e predisposições para
comportamentos agressivos, essas associações são geralmente fracas e muito
complexas.
28

A maioria dos especialistas concorda que o comportamento humano é


influenciado por uma combinação de fatores biológicos, ambientais e sociais. Por
exemplo, problemas de saúde mental, como transtornos de personalidade ou
psicopatia, podem contribuir para comportamentos violentos, mas esses
problemas geralmente estão relacionados a uma combinação de fatores
genéticos e ambientais, incluindo traumas na infância ou abuso de substâncias.
Além disso, a pesquisa em genética criminal ainda é uma área muito
controversa e não há consenso sobre sua validade ou utilidade. Portanto, é
importante ter cautela ao interpretar e utilizar as informações sobre as
características hereditárias em relação a comportamentos criminosos ou
violentos.
Enfim, a biologia pode contribuir para o entendimento da complexidade
das causas subjacentes a comportamentos criminosos, mas é importante levar
em consideração uma ampla variedade de fatores e evitar simplificações
excessivas ou explicações únicas para comportamentos violentos ou criminosos.
Após esta visão panorâmica geral, pretende-se que ao final, e que elas se
encontrem soluções humanas, para o doente mental infrator e para a sociedade
como um todo e, principalmente, para as famílias de cada um, sustentado pelo
dogma jurídico de que a pena não pode ir além da pessoa do criminoso.

3.1 MAIS UMA VEZ COUTURE: ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA

Lembramos mais uma vez a afirmação de Couture: “Teu dever é lutar pelo
Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela
Justiça” que nos sugere que existe uma diferença entre o conceito de Direito e
Justiça, e que em algumas situações, esses conceitos podem entrar em conflito.
O dever da pessoa é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrar o Direito em
conflito com a Justiça, então a escolha deve ser pela Justiça.
Assim, a Justiça é entendida como uma questão moral e eticamente
correta, enquanto o Direito é uma questão de regras e leis estabelecidas.
Embora seja importante seguir as regras e leis, às vezes, essas regras podem
ser injustas ou não levar em consideração todas as circunstâncias. Nessas
situações, é importante lutar pela Justiça e buscar fazer o que é certo e justo,
mesmo que isso signifique questionar ou ignorar o Direito.
29

Em resumo, lembramos esta afirmação para destacar a importância de


equilibrar a obediência às regras e leis com a busca pelo que é moralmente
correto e justo, e sugere que, se houver conflito entre esses conceitos, a escolha
deve ser sempre pela Justiça.
Surge, no presente estudo, o nascimento apresentado às etapas, claro,
em linhas gerais, de como foi o desenvolvimento humano até chegar ao homo
sapiens. Hoje o desempenho da seleção natural vem encontrando grandes
desafios: seres vivos criados em laboratório, a substituição da seleção natural
pelo design inteligente, que pode ocorrer de três maneiras: por meio de
engenharia biológica; por meio de engenharia cyborg, que são seres que
combinam partes orgânicas e inorgânicas e utilizando-se da engenharia de vida
inorgânica.
Por que se fala nestes temas? Porque o mesmo homem que cresce em
conhecimentos científicos e tecnológicos é refém da própria ignorância, ou
insanidade, ou descaso, no trato do ser humano como ser humano. Embora a
crise do modelo prisional brasileiro se torne um problema perceptível para a
sociedade somente em alguns momentos mais extremos, como rebeliões com
execuções em larga escala em presídios, para os gestores públicos e
acadêmicos ele é realmente um problema e aponta para diversos impasses.
Um desses impasses é o aqui destacado: quais as formas de restringir a
liberdade e deter pessoas com transtorno mental e comportamento desviante,
que, no convívio social, sejam propensas a praticar condutas lesivas a si mesmo
e aos outros? Não se pode deixar de pontuar que a restrição da liberdade de
pessoas com transtornos mentais ou comportamento desviante é uma questão
complexa e polêmica, que envolve questões éticas, legais e de saúde pública.
Alguns autores que discutem essa questão como Thomas Szasz (1977), que
argumenta que a restrição da liberdade de pessoas com transtornos mentais é
invasiva e viola os direitos humanos, e defende a ideia de que a pessoa com
transtorno mental deve ter o direito de escolher seu próprio tratamento.
Já Michel Foucault (1905), aborda a questão da restrição da liberdade em
seu livro "Vigiar e Punir", onde argumenta que a restrição da liberdade de
pessoas com transtornos mentais é uma forma de controle social exercido pelo
Estado. American Psychiatric Association (APA) defende a ideia de que a
restrição da liberdade deve ser usada como último recurso, e apenas quando a
30

pessoa representa perigo iminente a si mesma ou aos outros. Além disso, a APA
defende que a restrição da liberdade deve ser implementada de forma justa e
equilibrada, respeitando os direitos humanos e garantindo o bem-estar da
pessoa em questão.
Enfim, compreendemos que a restrição da liberdade de pessoas com
transtornos mentais ou comportamento desviante é uma questão complexa, que
envolve questões éticas, legais e de saúde pública e a importância de se abordar
essa questão de forma cuidadosa e equilibrada, respeitando os direitos humanos
e garantindo o bem-estar da pessoa em questão.
Por isso, frisamos e pontuamos que quaisquer medidas tomadas, devem
estar de acordo com a lei e a Constituição e os direitos humanos devem
representar uma limitação: quaisquer que sejam as soluções propostas, elas não
devem violar a dignidade de quaisquer dos envolvidos, inclusive a dessas
pessoas com transtornos de ordem mental.
Em Roraima, a aplicação da lei penal para elas é um desafio
especialmente preocupante. Há um número de presos com transtornos mentais
ainda não levantado e tornado público. Até o levantamento dos dados é
impreciso. Nos anos de 2017 a 2022 em busca junto ao Sistema Prisional pela
busca junto ao SEEU- Sistema de Execução Penal Unificado tramitou-se por
volta de 40 processos com o agrupador de medida de segurança.
De outra parte, a infraestrutura disponível para esses pacientes judiciários
apresenta inúmeras irregularidades: até hoje, não há um hospital de custódia
onde essas pessoas possam ser internadas e monitoradas; e interná-las “em
outro estabelecimento adequado” também não é uma tarefa fácil, pois em
qualquer outro estabelecimento há riscos para os profissionais que vão lidar com
esses sujeitos e que não possuem capacitação adequada.
O ideal seria, a partir de uma cooperação permanente entre o sistema de
justiça e o sistema de saúde, que o paradigma da não intervenção delineado na
lei de saúde mental fosse respeitado; porém, ao mesmo tempo, que a
identificação clínica de surtos violentos pudesse ser antevista a tempo de haver
uma intervenção das forças de segurança, com o auxílio do sistema de saúde.
Entretando, isso certamente seria muito custoso e demandaria mais recursos
humanos e mais especializados do que o que existe atualmente no Sistema da
arte em Roraima.
31

A situação de atendimento à saúde mental em Roraima é preocupante, já


que o número de 26 leitos de internação psiquiátrica é insuficiente para atender
à população tanto do interior quanto da capital do Estado. Além disso, a
transferência dos leitos de internação para o CAPs (Centro de Atenção
Psicossocial) pode ter impactado na qualidade do atendimento, já que a unidade
pode não estar preparada para lidar com a demanda por internações
psiquiátricas.
O caso dos detentos com problemas de saúde mental é ainda mais
preocupante, já que a Cadeia Pública de Boa Vista funciona como um anexo ao
HGR (Hospital Geral de Roraima), pode não estar preparada para lidar com a
demanda por atendimento à saúde mental. Além disso, é importante destacar
que o ambiente de uma prisão pode agravar o quadro de saúde mental de uma
pessoa, o que requer uma atenção especial por parte das autoridades.
Em suma, a falta de leitos de internação psiquiátrica e a situação dos
detentos com problemas de saúde mental em Roraima são preocupantes e
requerem uma atenção imediata por parte das autoridades. É necessário que
sejam investidos recursos para ampliar o número de leitos de internação
psiquiátrica e para garantir que as unidades de saúde estejam preparadas para
lidar com a demanda por atendimento à saúde mental. Além disso, é importante
garantir que as pessoas com problemas de saúde mental, incluindo os detentos,
recebam o atendimento adequado e respeitem-se os seus direitos humanos.
Dessa maneira, é necessária uma criação ou aprimoramento da rede de
saúde mental com auxílio e capacitação da rede de segurança para que sejam
capazes de oferecer a essas pessoas os cuidados necessários exigidos pela
saúde mental de cada agente, sem descurar do fator de segurança da
sociedade.
É de conhecimento público e notório, na cidade e Comarca de Juiz de
Fora, a existência de uma professora que lecionou, por alguns anos, em cursos
preparatórios para os mais variados concursos na seara do Direito, que afirmava:
O Direito, como um todo, é de papel, agora os direitos Constitucional, Processo
Penal e Penal, são de papel mais fino que os demais.
Fala-se isso porque toda vez que surge um problema, os “doutores” em
lei, latu e strictu sensu, afirmam: é preciso mudar a lei ou é preciso criar uma lei.
A lei é boa, enquanto freio para o mau operador do Direito, mas como solução
32

dos conflitos desafiadores da sociedade, se aparenta desidratada. É fato: na falta


do cenário ideal, o sistema de justiça tem que atuar dentro dos limites da lei, mas
de uma forma um tanto criativa.

3.2 MEDIDAS CÍVEIS E CRIMINAIS

Uma dessas formas, como aqui se propõe, é conjugar medidas cíveis e


criminais, de modo a limitar ou minimizar o potencial lesivo do comportamento
daquelas pessoas com transtornos mentais que demandem preocupação ao
Poder Judiciário, ainda, o fortalecimento da rede de saúde mental com busca
ativa dessas pessoas para que não abandonem os tratamentos e os
medicamentos prescritos pela equipe médica.
A preocupação com as pessoas que apresentam transtornos mentais e
que demandam atenção do Poder Judiciário é um assunto relevante e importante
para a sociedade. Nesse sentido, é necessário que as medidas cíveis e criminais
sejam conjugadas de forma a limitar ou minimizar o potencial lesivo do
comportamento dessas pessoas.
O fortalecimento da rede de saúde mental é uma das medidas mais
eficazes para prevenir e tratar os transtornos mentais. É importante que haja
uma busca ativa pelas pessoas que precisam desse tipo de atendimento, para
que elas não abandonem os tratamentos e os medicamentos prescritos pela
equipe médica.
Em relação às medidas cíveis e criminais, é importante destacar que elas
devem ser aplicadas de forma justa e equilibrada. O objetivo é proteger tanto as
pessoas que apresentam transtornos mentais quanto a sociedade. Por exemplo,
em casos de comportamento lesivo, pode ser necessário aplicar medidas de
proteção, como a internação compulsória, mas sempre de forma respeitosa e
humanizada. Em resumo, é fundamental que as medidas cíveis e criminais sejam
conjugadas com o fortalecimento da rede de saúde mental, para garantir a
proteção e o bem-estar das pessoas que apresentam transtornos mentais.
É nesse contexto que trazemos a Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001
(abaixo), conhecida como a "Lei de Internação Compulsória de Portadores de
Transtornos Mentais e de Condutas Perigosas". Ela foi criada para regulamentar
33

a internação compulsória de pessoas que apresentam transtornos mentais


graves e cujos comportamentos colocam em risco a si mesmas ou a terceiros.

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001.
Dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e
redireciona o modelo
assistencial em saúde mental.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno


mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião,
opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao
grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou
qualquer outra.
Art. 2o Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a
pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente
cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno
mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo
às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção
na família, no trabalho e na comunidade;
III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer
a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença
e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos
possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde
mental.
Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de
saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos
portadores de transtornos mentais, com a devida participação da
sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de
saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que
ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos
mentais.
Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será
indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
insuficientes.
§ 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção
social do paciente em seu meio.
§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma
a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos
mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social,
psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
34

§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos


mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas
desprovidas dos recursos mencionados no § 2 o e que não assegurem
aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2 o.
Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se
caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de
seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de
política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial
assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e
supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo,
assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação
psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do
usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Art. 7o A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a
consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de
que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por
solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico
assistente.
Art. 8o A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada
por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina
- CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta
e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo
responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido,
devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva
alta.
§ 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação
escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo
especialista responsável pelo tratamento.
Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a
legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as
condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do
paciente, dos demais internados e funcionários.
Art. 10. Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e
falecimento serão comunicados pela direção do estabelecimento de
saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente,
bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de
vinte e quatro horas da data da ocorrência.
Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos
não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do
paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação
aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de
Saúde.
Art. 12. O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação,
criará comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei.
Art. 13. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 6 de abril de 2001; 180o da Independência e 113o da
República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Jose Gregori José Serra Roberto Brant
35

Examinar-se-á, com de detalhes, cada artigo da Lei no 10.216, de


6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental. Pela justificativa da lei já se verifica algo estranho: ela fala em
“transtornos mentais” e não em doença mental, o que pode levar ao aplicador da
lei a dar uma interpretação restritiva a seu texto.

Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno


mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião,
opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao
grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou
qualquer outra.

A escolha do termo "transtornos mentais" ao invés de "doenças mentais"


pode ser vista como uma opção terminológica que busca refletir a natureza
multifatorial e complexa dos distúrbios mentais, que envolvem interações entre
fatores biológicos, psicológicos e sociais.
No entanto, a utilização do termo "transtornos mentais" pode levar a uma
interpretação restritiva da lei por parte de seus aplicadores, o que pode limitar o
alcance e a efetividade da lei na proteção de pessoas com problemas de saúde
mental. Além disso, o termo "transtornos mentais" pode ser interpretado de
maneira diferente por diferentes profissionais da saúde e pode não ser
uniformemente compreendido pela sociedade. Assim, é prescrição legislativa
que pode ser considerada inócua, pois este tipo de direitos deve ser destinado a
qualquer pessoa, com ou sem doença mental ou transtornos mentais.
O Art. 2o afirma: “nos atendimentos em saúde mental, de qualquer
natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente
cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.” Este
artigo é importante, pois além de proteger o paciente, protege também os
profissionais da saúde da acusação de alguma negligência, imprudência ou
imperícia.

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer


a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença
e de seu tratamento;
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos
possíveis;
36

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde


mental.

O acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às


suas necessidades; o tratamento com humanidade e respeito, visando a
recuperação; e a proteção contra qualquer forma de abuso e/ ou exploração, são
exigências destinadas a todo e qualquer paciente, e não apenas ao doente
mental ou com transtornos mentais. É meio paradoxal assegurar, por exemplo,
“sigilo nas informações prestadas”, quando se sabe que estas informações vão
direto para um processo, que no caso penal, é essencialmente público.
Quando se consulta um profissional da medicina, norteiam essa decisão
dois fatores importantes: a confiança nele depositada, exercida pela escolha do
paciente e o sigilo àquele imposto, garantia da privacidade das informações e
detalhamento das consultas e exames contidos na anamnese.
Uma vez instaurado um incidente de sanidade mental, estes dois fatores
se esvanecem: o paciente não tem escolha, pois o médico é indicado pelo
Magistrado, dentro dos quadros profissionais que ele possui, e o sigilo
profissional cai por terra, com publicidade de tudo que foi visto, revisto,
examinado e documentado no paciente. Presença médica, em qualquer tempo
para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária é outro
dispositivo que, com certeza, vai gerar interpretação pelo Magistrado:
A quem será ofertada a possibilidade de hospitalização involuntária? Ao
paciente, presumidamente incapaz, e, como tal sem possibilidade de consentir
ou negar, ou aos familiares, que por ele decidirão? O acesso aos meios de
comunicação disponíveis, pelo paciente, poderá ter interpretação restritiva: para
com seus familiares, para com seus advogados, mas com a mídia em geral,
tradicional ou digital, não se afigura produtivo: vai expor o paciente e seus
familiares desnecessariamente.
A mesma coisa se diga ao recebimento do maior número de informações
a respeito de sua doença e de seu tratamento: incapaz, total ou parcialmente, a
quem é destinada a norma? E finalmente, o direito de ser tratado em ambiente
terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, o que deve ocorrer com todo
e qualquer paciente, doente mental, portador de transtorno mental ou não.
A História da Medicina nem sempre foi generosa com o ser humano,
principalmente com o paciente psiquiátrico. Freud via a origem dos “males”
37

mentais no sexo. Young, seu admirador, seguiu pelo mesmo caminho. As


mulheres foram as que mais sofreram, pois, todo inconformismo e inclinação
para uma certa e pouca independência, eram diagnosticadas como “histéricas”,
histeria causada pela não resolução de suas mal elaboradas questões sexuais.
O filme “Um método perigoso” (Dirigido por Pedro Arantes, Santiago Fernández
Calvete e Denis Nielsen) bem demonstra esse tipo de “tratamento”.

Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de


saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos
portadores de transtornos mentais, com a devida participação da
sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de
saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que
ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos
mentais.

A designação de responsabilidade do Estado no desenvolvimento de


políticas de saúde mental é uma medida importante para garantir o direito à
saúde para todos, incluindo pessoas com transtornos mentais. No entanto, é
preciso considerar que o Estado não pode realizar essa tarefa sozinho. A
participação da sociedade e da família é fundamental para garantir a efetividade
dessas políticas e para oferecer suporte e assistência às pessoas com
transtornos mentais.
A inclusão da família e da sociedade nesse processo é importante porque
muitas vezes as pessoas com transtornos mentais dependem de seus
cuidadores e familiares para obter ajuda e apoio. Além disso, a sociedade como
um todo tem um papel importante na conscientização e no combate aos
estereótipos e discriminação enfrentados por pessoas com transtornos mentais.
No entanto, é preciso reconhecer que a parceria entre o Estado, a
sociedade e a família, pode ser utópica em algumas situações, especialmente
devido aos desafios sociais, econômicos e culturais enfrentados pelos
portadores de transtornos mentais. Alguns fatores, como a falta de recursos
financeiros e de profissionais de saúde capacitados, podem impedir a
implementação eficaz dessas políticas. Além disso, a discriminação e o estigma
em torno de transtornos mentais ainda são problemas sérios que precisam ser
abordados para garantir a efetividade dessas políticas.
Por fim, é importante reconhecer que a responsabilidade do Estado no
desenvolvimento de políticas de saúde mental é fundamental, mas que a
participação da sociedade e da família é tão importante quanto. No entanto, é
38

preciso considerar que esse tipo de parceria pode ser utópica em algumas
situações e que é necessário abordar desafios sociais, econômicos e culturais
para garantir a efetividade dessas políticas. Assim, no modesto entender de
quem redige, é muito mais útil nessa situação toda que que os gestores sejam,
efetivamente gestores.
Voltando ao caso “Champinha”, a casa de acolhimento foi construída para
ele em tempo recorde e funciona até hoje. Por que em outros casos não haveria
de acontecer a mesma coisa? E mais uma vez se misturam, “doença mental”
com transtornos mentais que, conforme já demonstrado, são coisas diversas,
muito embora possam ser abrigados sob o mesmo teto e administração.
Como decorrência de uma luta antimanicomial, a Lei 10.216/2001,
proposta pelo deputado mineiro Paulo Delgado, objetivou um novo modelo de
tratamento às pessoas com sofrimento mental, e pretendeu criar estruturas de
atendimento à saúde mental, como os Centros de Atendimento Psicossociais
(Caps), que deveriam se espalhar por todo o país, dando ênfase ao profissional
psicólogo, que passou a ser uma referência.
Com todo respeito aos profissionais que trabalharam arduamente para
que esta lei viesse a luz, há de se perguntar: 20 anos depois, qual a mudança,
significativa, para a sociedade e para os familiares que ela representou?
Não se atreverá a dizer nada, mas pode-se assegurar que, para melhor,
quase nada. Os doentes mentais, ou com transtornos mentais somente
conseguem ficar isolados mediante internação. Fora dela, existe um mundo
atraente e sedutor, composto por amigos, não tão amigos, familiares esgotados,
drogas lícitas e ilícitas que, unidas aos medicamentos prescritos, transformam o
paciente em verdadeiras bombas relógio, prontas para explodir. E com certeza
e com frequência explodem.
Citar-se-á o seguinte exemplo, mas não o único: uma jovem que trabalhou
por alguns anos em um Hospital Psiquiátrico em Belo Horizonte. Sempre era,
nos dias de visitação, designada para recepcionar os familiares dos internos e
verificar se o que estava sendo levado poderia ou não entrar no estabelecimento.
Por repetidas vezes interceptou o ingresso de garrafas e café, com fundo falso,
que continha significativa quantidade de bebida alcoólica, frutas, com o miolo
retirado, e no oco deixado, substância entorpecentes.
39

Certa tarde, logo após o término da visita, um interno surtou


violentamente, quebrando a ala em que se encontrava instalado, vários objetos
que guarneciam seu quarto e agrediu, ferozmente a 2 colegas internos. Como
ela tinha realizado a revista nos pertences dele, achou quase impossível que ele
tivesse uma regressão tão rápida. Vasculhou tudo de novo, e quando já ia se dar
por vencida, olhou para uma inocente penca de bananas, parcialmente
consumida. Ciosa de seus deveres, descascou uma das frutas e nelas sentiu o
gosto forte e característico de aguardente.
Há de se perguntar: é com este tipo de familiar que os governantes
pretendem trabalhar em harmonia? A família, modo geral, quer o agressor longe,
internado, porque com ele se vão todos os problemas que ele pode criar, do mais
inofensivo ao mais agressivo. A questão da família e da sociedade em relação
aos portadores de transtornos mentais é, sem dúvida, complexa e multifacetada.
Em muitos casos, a falta de informação e compreensão acerca da doença mental
pode levar à marginalização e rejeição dos portadores destes transtornos.

Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se


caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de
seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de
política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial
assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e
supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo,
assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário .

Aqui pode-se suscitar alguns questionamentos, tais como: se o paciente


possui grave dependência institucional, o que fundamenta sua alta planejada,
por mais planejada que o seja? Sob qual supervisão ficará assegurada a
continuidade do tratamento?
A esse respeito, trazemos alguns apontamentos. Compreende-se que o
referido artigo se preocupa com pacientes que estão há muito tempo
hospitalizados ou que apresentam uma situação de grave dependência
institucional. Acredita-se que o objetivo é garantir que estes pacientes recebam
uma política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida,
com o objetivo de proporcionar-lhes uma reintegração à sociedade com o mínimo
de dificuldades.
O artigo destaca a importância da responsabilidade da autoridade
sanitária competente para assegurar a continuidade do tratamento, quando
40

necessário. Entretanto, ainda não se compreendeu completamente o que é o


alcance deste artigo, ou seja, como ele será implementado na prática e quem
será responsável por garantir a continuidade do tratamento. Além disso, a
supervisão de instância mencionada é deixada a cargo do Poder Executivo, sem
detalhamentos específicos sobre quem será responsável por essa supervisão.
Desse modo, é importante que haja uma compreensão clara e detalhada
sobre o alcance e a implementação deste artigo, para garantir que pacientes com
dependência institucional grave possam ter acesso a um tratamento de saúde
mental de qualidade e à reabilitação psicossocial assistida.

Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo


médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação
psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do
usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

A exigência e laudo médico para a internação é perfeitamente


compreensível: segurança do paciente, segurança dos familiares e segurança
de todos os demais atores envolvidos no processo.
A internação voluntária, que somente ocorrerá com o “consentimento do
usuário” é de aplicação extremamente duvidosa. Qual doente mental ou portador
de transtornos mentais há de se apresentar em uma clínica, ou hospital
psiquiátrico, para sua internação? Se ele possui esse discernimento e força de
vontade, fará o tratamento ambulatorial sem maiores problemas.
Frisa-se aqui a importância do artigo 6º, que é, indubitavelmente, uma
medida importante para garantir que a internação psiquiátrica seja realizada de
forma adequada, considerando as necessidades e o bem-estar do paciente. A
exigência do laudo médico circunstanciado, além de proteger o paciente,
também contribui para a transparência e a responsabilidade dos profissionais de
saúde envolvidos na decisão de internação.
No entanto, a internação voluntária pode ser uma questão controversa.
De fato, muitas vezes, as pessoas com transtornos mentais não têm a
capacidade ou o desejo de procurar ajuda ou internação por conta própria. É
41

importante levar em consideração as circunstâncias específicas de cada caso,


pois a internação voluntária pode ser uma opção viável em algumas situações.
Por outro lado, é preciso considerar que existem limitações na aplicação
da internação voluntária. Muitas vezes, as pessoas com transtornos mentais não
têm acesso a informações adequadas sobre tratamento e cuidados, ou não têm
suporte familiar e social. Além disso, muitas vezes, as condições de saúde
mental e financeiras dificultam a procura por tratamento.
Diante disso, é importante que o Estado garanta acesso a informações
claras e precisas sobre saúde mental e tratamentos, bem como forneça suporte
financeiro e psicológico para que as pessoas possam procurar tratamento de
forma adequada.
A internação involuntária é a que ocorre sem o consentimento do usuário
e a pedido de terceiro. Isso ocorre, quase sempre quando o paciente está em
surto, podendo ferir ou matar familiares, amigos ou aleatoriamente. A internação
compulsória é aquela determinada pela Justiça, quando o dano já foi causado.
Já tem previsão legal no ordenamento jurídico pátrio.

Art. 7o A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a


consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de
que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por
solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico
assistente.

Quem não tem capacidade para “consentir” não tem capacidade para
“desconsentir”. Noção elementar do direito. Nesta situação, a decisão de
internação voluntária ou a descontinuação desta, deve ser tomada por uma
pessoa legalmente autorizada a representá-las, como um representante legal ou
um tutor.
Além disso, é importante lembrar que a internação voluntária é uma
questão muito delicada e que envolve uma série de direitos e garantias. Por esta
razão, é fundamental que as pessoas que desejam solicitar ou descontinuar a
sua internação voluntária estejam cientes dos seus direitos e tenham acesso a
um advogado ou a um profissional de saúde mental para auxiliá-los na tomada
de decisões.
Mais um exemplo prático: um paciente, a pedido da própria mãe, foi
internado em um Hospital Psiquiátrico na cidade de Juiz de Fora, quando eles
42

ainda existiam. O paciente, ao final de menos de 2 meses solicitou o término de


sua internação, que de voluntária não tinha nada, pois foi sua mãe, sugada por
tanta humilhação e lesões corporais, algumas que lhe chegaram a quebrar um
determinado número de costelas, quem solicitou a internação.
O médico, não se sabe por que, atendeu ao pedido do paciente e mais,
como ele alegasse que não tinha dinheiro para nada, ainda lhe deu uma nota de
R$ 50,00, que há mais de 20 anos atrás era muito dinheiro. O paciente comprou
uma passagem para uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro, na divisa
com Minas Gerais. Dentro do ônibus, acendeu um cigarro que incomodou
profundamente a um senhor idoso que estava assentado ao seu lado e reclamou.
Dele recebeu, como resposta, algumas palavras grosseiras e ameaças.
Em determinado ponto da viagem, o paciente desceu e, logo em seguida
desceu o senhor idoso. Bem idoso mesmo. Só que ele estava armado, e
descarregou toda a carga do revólver 38 que portava no paciente, que morreu
na hora.
Era o fim de uma vida, mas não o fim de uma irresponsabilidade médica,
porque o Psiquiatra era adepto da desinternação voluntária. A mãe passou a ser
assombrada com visões do filho morto. Ela se refugiou na “loucura”, o que de
nada ou quase nada adiantou, porque não reconhecia qualquer familiar ou
amigo. Apenas o filho opressor. Enquanto conseguiu falar, somente dele falava.
Depois deixou de falar, mas seus olhos demonstravam verdadeiro pavor, até que
se fecharam para sempre.

Art. 8o A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada


por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina
- CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta
e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo
responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido,
devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva
alta.
§ 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação
escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo
especialista responsável pelo tratamento.

O texto desde artigo vale por sua literalidade: se somente o médico pode
proceder a internação, somente ele pode se valer da desinternação. A inovação
da comunicação ao Ministério Público é salutar, seja quando da internação
43

quanto da alta, sempre precedido de solicitação escrita do familiar, ou o


responsável legal, ou quando estabelecida pelo médico responsável.
Assim, esse artigo estabelece as regras para autorização e término da
internação psiquiátrica, tanto voluntária quanto involuntária, em um
estabelecimento de saúde mental. Conforme o texto, somente médicos
registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde se localiza
o estabelecimento podem autorizar a internação. Além disso, o artigo estabelece
a obrigação de comunicação da internação involuntária ao Ministério Público
Estadual, no prazo de setenta e duas horas, pelo responsável técnico do
estabelecimento.
O parágrafo 2º estabelece que o término da internação involuntária deve
ser solicitado por escrito pelo familiar ou responsável legal, ou pelo médico
especialista responsável pelo tratamento. Essa regra é importante para garantir
que a internação psiquiátrica involuntária seja realizada com a máxima
transparência e respeito aos direitos dos pacientes e de suas famílias.
A inovação da comunicação à autoridade competente é uma medida
salutar, pois ela permite que sejam tomadas as medidas necessárias para
garantir a proteção dos direitos dos pacientes e a transparência do processo de
internação. Além disso, a exigência da solicitação escrita pelo familiar ou
responsável legal reforça a importância de envolver os pacientes e suas famílias
na tomada de decisões importantes sobre o seu tratamento.
Dessa maneira, o artigo 8º do texto estabelece as regras para a
autorização e término da internação psiquiátrica, incluindo a obrigação de
comunicação ao Ministério Público e a exigência de solicitação escrita pelo
familiar ou responsável legal. Estas regras são importantes para garantir a
proteção dos direitos dos pacientes e a transparência do processo de internação.

Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a


legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as
condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do
paciente, dos demais internados e funcionários.

O grande problema em Roraima é: em qual estabelecimento, com


segurança a salvaguarda do agressor, dos demais internados e, principalmente,
dos funcionários, poderá existir a internação compulsória? Não existe.
44

Os espaços destinados a ala psiquiatra é “porteira” aberta, sem grades


para aparato para contra eventuais fugas. Não se deveria dizer, mas não raro,
por deficiência de estrutura e falta de efetivo, o “paciente” deixa a Unidade,
notadamente aqueles que possuem problemas com a drogadição para além dos
problemas de ordem mental.
A dita internação compulsória, pelo menos no Estado de Roraima, é um
faz de conta. Há uma determinação pelo Juiz da internação. Esta é feita no
Hospital (CAPZ perto da 2.90 que possui os leitos psiquiátricos). E por falta de
estrutura finge-se que internou.

Art. 10. Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e


falecimento serão comunicados pela direção do estabelecimento de
saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente,
bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de
vinte e quatro horas da data da ocorrência.

Este artigo parece oferecer, em parte, a solução para a inexistência de


estabelecimento adequado para o paciente com doença mental ou portador de
transtornos mentais quando acena com a possibilidade de transferência. E não
há falar em transferência quando os reclamos são de natureza clínica, não
psiquiátrica, à luz do disposto logo a seguir: intercorrência clínica grave.
Assim, poder-se-á transferir este tipo de doente para qualquer hospital
psiquiátrico ainda existente no país, o que atenderia a demanda dele, paciente,
dos demais internos e dos familiares. Pode parecer cruel, mas é uma boa saída
prática até que políticas públicas sejam desenvolvidas em Roraima, voltadas
para esta exigência.
Efetivamente, a possibilidade de transferência de pacientes com doenças
mentais ou transtornos mentais para estabelecimentos mais adequados é uma
solução prática, que pode oferecer tratamentos mais eficazes e condições mais
seguras para o paciente, além de preservar a saúde e segurança dos demais
internos e dos funcionários. No entanto, é importante destacar que a
transferência deve ser realizada de forma criteriosa e planejada, garantindo que
o paciente tenha acesso às melhores condições possíveis e às mais adequadas
para o seu tratamento.

Art. 11. Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos


não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do
paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação
45

aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de


Saúde.

Saudável dispositivo, porém ele também se aplica a qualquer paciente,


doente mental, com transtorno mental ou não. Art. 12: “O Conselho Nacional de
Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para acompanhar a
implementação desta Lei”. Este é o dispositivo que comprova toda a inoperância
do Estado gestor: mais de 20 anos do nascimento desta lei, não se sabe da
implementação destas medidas, pelo menos, não no estado de Roraima.
Mas para além disso, o artigo 11 mostra a importância de proteger os
direitos do paciente em relação à sua privacidade e às suas informações
médicas. O paciente deve ser informado e dar seu consentimento antes que
qualquer pesquisa científica seja realizada, e essa pesquisa precisa estar
registrada nos conselhos profissionais competentes e no Conselho Nacional de
Saúde.
No entanto, a inoperância do Estado gestor em implementar medidas para
garantir o cumprimento desta lei é preocupante. Ainda existem muitos problemas
no sistema de saúde mental, especialmente em Roraima, onde apenas 16 dos
26 leitos psiquiátricos estão na Cadeia Pública do São Vicente. Isso sugere que
há uma falta de recursos e uma falta de prioridade por parte do estado em
resolver este problema, o que é um indicativo de uma falha sistêmica na área de
saúde mental. A implementação desta lei deve ser monitorada e as medidas
necessárias devem ser tomadas para garantir que os direitos dos pacientes
sejam respeitados e que eles tenham acesso à saúde mental de qualidade. E,
por fim, o Art. 13 afirma: “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”. E
ela foi publicada em 6 de abril de 2001, e como toda boa lei de papel, continua
no papel, sem efeito prático na vida dos jurisdicionados.
Infelizmente, é comum que muitas leis sejam publicadas sem que sejam
devidamente implementadas e cumpridas, levando a uma descrença na
efetividade das políticas públicas. No caso da Lei de Saúde Mental, apesar de
ter sido publicada há mais de 20 anos, sua efetividade tem sido questionada,
especialmente no estado de Roraima, onde há falta de estrutura adequada para
o atendimento de pacientes com doenças mentais ou transtornos mentais.
A falta de implementação da lei pode ser atribuída a uma série de fatores,
como falta de recursos financeiros, falta de equipe de profissionais capacitados
46

e falta de políticas públicas eficazes. Além disso, pode haver falta de vontade
política para abordar este tema, o que é uma questão grave que precisa ser
endereçada para garantir que a lei seja implementada e efetiva.
A implementação da lei de saúde mental é fundamental para garantir o
atendimento adequado de pacientes com doenças mentais ou transtornos
mentais. É necessário que o estado gestor invista em recursos financeiros, em
equipes de profissionais capacitados e em políticas públicas eficazes para
garantir a efetividade da lei e a proteção dos direitos dos pacientes.
47

4 O PERCURSO METODOLÓGICO

Muitas são as influências intangíveis sobre a descoberta científica –


curiosidade, intuição, criatividade. Grande parte delas desafia a análise racional
do pesquisador (National Academy of Sciences, 1995). E é esta efervescência
de saber que impulsionou, em grande parte, a escolha do tema. Definido o tema
e objeto da pesquisa, foi procedida revisão da bibliografia atinente à temática,
com o objetivo de embasar os pressupostos constitutivos do projeto. Esta revisão
bibliográfica objetivou compreensão adequada de qual o estado do objeto
estudado e o que já foi feito no mesmo sentido.
Há inúmeros trabalhos publicados que abordam os principais conceitos
que foram utilizados nesta pesquisa, por exemplo, sobre os novos mecanismos
e paradigmas trazidos com a Lei nº 10.216/01: “Saúde Mental e Direitos
Humanos: 10 Anos da Lei 10.216/2001”, de Pedro Gabriel Godinho Delgado;
“Um outro olhar sobre a loucura: a luta antimanicomial no Brasil e a Lei
10.216/2001”, de Joyce Finato Pires e Laura Lemes de Resende; e “Política de
saúde mental no Brasil: reflexões a partir da lei 10.216 e da portaria 3.088”, de
Gabriela Lemos de Pinho Zanardo, Loiva dos Santos Leite e Eliane Cadoná.
Em outra linha, há também trabalhos que discutem as formas como o
direito e a saúde podem cooperar para fazer frente a desafios comuns
relacionados à aplicação da lei penal para semi-imputáveis, como “Princípios de
uma política alternativa aos manicômios judiciais”, de Pedro Afonso Cortez,
Marcus Vinícius Rodrigues de Souza e Luís Fernando Adas Oliveira; e “Direito e
saúde mental: percurso histórico com vistas à superação da exclusão”, de Ana
Flávia Ferreira de Almeida Santana, Tânia Couto Machado Chianca e Clareci
Silva Cardoso.
Há ainda trabalhos publicados em anos recentes sobre medida de
segurança que podem ajudar a compreender os limites desse instituto em certos
casos: “Medida de Segurança: a violação do direito à saúde a partir do conceito
de periculosidade”, de Valéria Rondon Rossi; “Direito à saúde mental e evolução
da medida de segurança à luz da reforma psiquiátrica”, Gustavo D'Andrea,
Emanuele Seicenti de Brito e Carla Arena Ventura; e “A medida de segurança
na contramão da Lei de Reforma Psiquiátrica: sobre a dificuldade de garantia do
48

direito à liberdade a pacientes judiciários”, de Alessandra Rapacci Mascarenhas


Prado e Danilo Oitaven Schindler. Esses artigos acima são uma mostra
significativa dos trabalhos que compõem o estado da arte já publicado sobre as
palavras-chave da presente pesquisa.
A revisão da literatura, à exceção das obras concernentes à metodologia,
foi caminho tão novo, quanto árduo, demandando muito trabalho, foi
relativamente tranquila, com a releitura de muitos textos, em face ao
conhecimento acumulado de quem escreve. Entretanto, mesmo aquelas obras
conhecidas, se apresentaram, com o novo olhar, um viés bem diferente do
anterior, o que comprova que todo conhecimento, científico ou não, é movimento,
porque o ser humano está em constante movimento. Conversar, de novo, com
autores já conhecidos, alguns até com certa intimidade, constituiu uma trajetória
mágica. Descobrir-se em comunhão, com alguns deles foi muito prazeroso.

4.1 METODOLOGIA

Enise Barth Teixeira, Mestre em Administração pela Universidade Federal


do Rio Grande do Norte (UFRN), e doutoranda em Engenharia de Produção na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Departamento
de Estudos da Administração da Unijuí, sobre a Análise de Dados na Pesquisa
Científica, sua importância e desafios em estudos organizacionais, escreveu: a
ciência, entendida como conhecimento da natureza e exploração desse mesmo
conhecimento, envolve três aspectos básicos: uma história, um método de
investigação e uma comunidade de investigadores (Kneller, 1980). A ciência
apresenta-se, então, como uma sucessão de ações dentro do movimento
histórico mais amplo da própria civilização.
Ao longo da História revelam-se diferentes ciências, a partir das diversas
civilizações, resultando em distintas tradições culturais da ciência. (...) A ciência
é intrinsecamente histórica, haja vista que é uma atividade e um corpo de
conhecimentos que mudam no tempo em função da busca permanente da
compreensão da realidade. A ciência é, também, inerentemente histórica na
medida em que tende a ser cumulativa, uma vez que toda investigação é uma
tentativa para resolver um problema decorrente da solução de um problema
49

anterior. Nessa sucessão de problemas resolvidos por meio de soluções, a


ciência avança”.
Corroborando Demo (1994), a ciência não deve ser uma acumulação de
resultados definitivos, mas sim o questionamento inesgotável e sistemático de
uma realidade reconhecida também como inesgotável, sobretudo as Ciências
Sociais. Neste sentido fazer ciência é, na essência, questionar com rigor, na
acepção precisa de atitude sistemática cotidiana, não de resultado esporádico,
estereotipado, especial.
A pesquisa em questão teve como objetivo avaliar e criticar o modelo de
tratamento de pessoas com transtornos mentais no sistema de justiça penal,
após a edição da Lei nº 10.216/2001. Para tal, ela utiliza uma metodologia que
combina elementos qualitativos e quantitativos.
A parte qualitativa da pesquisa descreveu o modelo de tratamento como
insuficiente para impedir comportamentos lesivos por parte dessas pessoas,
especialmente em unidades federativas com infraestrutura precária em saúde,
como é o caso de Roraima. Nesta etapa, foram coletados relatos de experiência
e realizada uma análise de caso para compreender as implicações práticas da
atual situação.
Já a parte quantitativa da pesquisa buscou-se levantar dados numéricos
sobre o número de pessoas com transtornos mentais que estão presas
provisoriamente ou já foram apenadas, bem como aquelas que estão
aguardando perícia de insanidade. Esses dados permitirão estimar a magnitude
do problema de saúde mental no sistema prisional de Roraima.
Em resumo, a metodologia empregada nesta pesquisa teve como objetivo
combinar uma avaliação crítica e descritiva do modelo de tratamento de pessoas
com transtornos mentais no sistema de justiça penal, com informações
quantitativas que permitam mensurar a dimensão do problema na região de
Roraima. Foi selecionado um caso-referência (caso “Kalberg”) que se como o
fio-condutor para situar o problema de pesquisa. A pesquisa comprometeu-se a
obedecer a todos os requisitos exigidos para estudos de caso desse tipo.
Entende-se por metodologia “o caminho percorrido pelo pensamento e a
prática exercida na abordagem da realidade” (Minayo, 2010, p.14). Segundo
Minayo (2010), a metodologia inclui, simultaneamente, o método (que é a teoria
da abordagem adotada), as técnicas (que são instrumentos e a forma de
50

operacionalização do conhecimento) e a criatividade do pesquisador (sua


experiência, capacidade pessoal e sensibilidade).
Na mesma toada: entendemos por metodologia o caminho do
pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade. Neste sentido, a
metodologia ocupa um lugar central no interior das teorias e está sempre referida
a elas. Dizia Lênin (1965, p. 148) que "o método é a alma da teoria", distinguindo
a forma exterior com que muitas vezes é abordado tal tema (como técnicas e
instrumentos) do sentido generoso de pensar a metodologia como a articulação
entre conteúdos, pensamentos e existência.
É um conflito aparente de saberes, pois o fim a ser alcançado é a
explicação dos princípios do conhecimento científico, e sua objetividade. Isto se
torna claro à vista do que ensinam Eva Maria Lakatos e Marina de Andrade
Marconi:

A Metodologia Científica, mais do que uma disciplina, significa


introduzir o discente no mundo dos procedimentos sistemáticos e
racionais, base da formação tanto do estudioso quanto do profissional,
pois ambos atuam, além da prática, no mundo das idéias. Podemos
afirmar até: a prática nasce da concepção sobre o que deve ser
realizado e qualquer tomada de decisão fundamenta-se naquilo que se
afigura como o mais lógico, racional, eficiente e eficaz (Marconi;
Lakatos, 2003, p. 17).

Enfim, a Metodologia Científica é uma parte fundamental da formação


tanto dos estudiosos quanto dos profissionais. Ela permite que eles avaliem
questões, problemas e hipóteses de forma objetiva e rigorosa, chegando a
conclusões baseadas em evidências e construindo conhecimento confiável.
Assim se buscou identificar os aspectos problemáticos mais persistentes em
todos esses casos, se servindo da técnica da pesquisa bibliográfica e
documental, buscando textos acadêmicos, atos normativos e decisões judiciais
atualizados e cuja referência seja indispensável para o encaminhamento da
pesquisa.
De acordo com o sociólogo Max Weber (1905), "a pesquisa bibliográfica
é a base da investigação social, pois permite o acesso a informações já
coletadas e registradas por outros pesquisadores." Além disso, a pesquisa
bibliográfica permite ao pesquisador verificar a consistência e a validade de suas
hipóteses e argumentos, bem como estabelecer relações entre seu trabalho e o
conhecimento existente na área.
51

O antropólogo Clifford Geertz (1973), afirma que "a pesquisa documental


é uma ferramenta valiosa para compreender a dinâmica social, pois permite
acessar informações e perspectivas que seriam difíceis de obter por meio de
outras técnicas." A pesquisa documental inclui não apenas a revisão de
literatura, mas também a análise de fontes como relatórios, registros históricos,
registros oficiais e outros documentos que possam fornecer informações
relevantes para a pesquisa.
Em resumo, a pesquisa bibliográfica e documental é uma técnica
fundamental para as pesquisas científicas, pois permite estabelecer o panorama
geral da área de estudo, identificar lacunas no conhecimento, verificar a
consistência e a validade das hipóteses e argumentos e estabelecer relações
com o conhecimento existente na área. Além disso, a pesquisa documental é
uma ferramenta valiosa para compreender a dinâmica social, pois permite
acessar informações e perspectivas que seriam difíceis de obter por meio de
outras técnicas.
Nesse contexto, foi realizado um levantamento quantitativo de dados
sobre as medidas de segurança aplicadas o âmbito do Sistema de Justiça da
Comarca de Boa Vista. É importante relembrar que a questão da periculosidade
de pessoas com transtornos mentais é uma problemática que tem gerado
preocupação tanto na sociedade quanto nos atores que gerenciam o sistema de
execução penal. A Lei 10.216/2001 prevê a não internação de pessoas com
transtornos mentais, mas isso tem sido questionado em casos em que a
periculosidade dessas pessoas é evidente.
A busca é por uma melhor compreensão da rede de apoio para pessoas
que tenham transtornos mentais e tenham cometido violações à lei, sujeitas a
medidas de segurança, mas que apresentem periculosidade elevada. Além
disso, busca-se aprimorar e modificar a Lei de Saúde Mental para superar o
primado da não internação em casos de violência grave e periculosidade
elevada.
Em resumo, a questão da periculosidade de pessoas com transtornos
mentais é complexa e requer uma resposta satisfatória. A metodologia quali-
quantitativa aplicada no caso Kalberg, em Roraima, buscou avaliar os limites da
aplicação da Lei 10.216/2001 e propor soluções para aprimorar a proteção da
sociedade e dessas pessoas que precisam de apoio.
52

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO

Medidas de segurança para pessoas com transtorno mental e alta


periculosidade são desafiantes para a execução penal no Estado de Roraima
devido à falta de recursos e infraestrutura adequados para atender às
necessidades específicas destes indivíduos. O sistema de justiça penal é
desafiado a garantir a segurança da sociedade, enquanto também assegura o
tratamento adequado e humanitário para as pessoas com transtornos mentais.
Em Roraima, como em muitas outras unidades federativas, as instituições
responsáveis pelo tratamento de saúde mental são frequentemente
sobrecarregadas e subfinanciadas, o que pode levar a uma falta de atenção
adequada para as pessoas com transtornos mentais e alta periculosidade. Além
disso, a falta de recursos para treinamento e capacitação dos profissionais
envolvidos na execução penal pode levar a uma falta de compreensão e
habilidade para lidar com estas situações.
Outro desafio é o acesso limitado à informação e à avaliação clínica para
determinar o grau de periculosidade dos indivíduos. Sem informações
adequadas, é difícil para as instituições de justiça penal tomar decisões
informadas sobre como garantir a segurança da sociedade, ao mesmo tempo
em que garante o tratamento adequado para as pessoas com transtornos
mentais.
Por fim, a falta de colaboração entre as instituições responsáveis pelo
tratamento da saúde mental e o sistema de justiça penal pode levar a uma falta
de coordenação na implementação de medidas de segurança e tratamento para
pessoas com transtornos mentais e alta periculosidade.
Em resumo, a execução penal no Estado de Roraima enfrenta vários
desafios na implementação de medidas de segurança para pessoas com
transtornos mentais e alta periculosidade. É importante que sejam feitos
investimentos em recursos, infraestrutura, treinamento e colaboração entre as
instituições responsáveis para garantir que as pessoas com transtornos mentais
recebam o tratamento adequado e que a sociedade esteja segura.
É chamada de medida de segurança a que tem como objetivo tratar os
inimputáveis e semi-imputáveis com periculosidade, a fim de evitar que cometam
53

infrações penais no futuro. De acordo com Cleber Masson, autor de "Direito


Penal esquematizado", a medida de segurança é uma sanção penal com
finalidade exclusivamente preventiva e de caráter terapêutico. Isso significa que
ela não visa punir a pessoa, mas sim tratá-la para que não venha a cometer
infrações penais no futuro. É uma medida que visa proteger não apenas a
pessoa com transtornos mentais, mas também a sociedade como um todo.
A importância da medida de segurança reside no fato de que, em muitos
casos, a pessoa com transtornos mentais e alta periculosidade é incapaz de
entender ou controlar seus atos. Assim, a medida de segurança é uma forma de
garantir a proteção da pessoa e da sociedade, ao mesmo tempo em que oferece
tratamento para que a pessoa possa superar seus problemas mentais.
No entanto, a execução da medida de segurança apresenta desafios para
o Estado de Roraima, que precisa garantir infraestrutura adequada para o
tratamento desses pacientes. Além disso, é necessário o aprimoramento de
políticas públicas para garantir a efetividade da medida de segurança como um
todo.
Em resumo, a medida de segurança é uma forma importante de tratar
pessoas com transtornos mentais e alta periculosidade, a fim de prevenir a
prática de futuras infrações penais. No entanto, a execução dessa medida
apresenta desafios que precisam ser superados para garantir a eficácia dessa
modalidade de sanção penal.
O problema central em relação a pessoas com transtornos mentais e alta
periculosidade que cometem crimes é como lidar com essas situações de forma
eficaz e justa. A lei 10.216/01, conhecida como Reforma Psiquiátrica, trabalha
com o paradigma da não internação involuntária, o que significa que a internação
deve ser a última opção, tendo em vista que o objetivo é a reintegração social
dessas pessoas.
O Código Penal, por sua vez, estabelece que para delitos menos graves
com pena de detenção o tratamento deve ser ambulatorial, enquanto para delitos
mais graves com pena de reclusão é prevista a internação. No entanto, o STJ
(Superior Tribunal de Justiça) tem adotado uma postura mais flexível em relação
a essas regras, tendo em vista que a periculosidade do agente deve ser
considerada como critério decisivo para a escolha da medida de segurança.
54

Assim, a aplicação da medida de segurança deve ser pautada pela


adequação, razoabilidade e proporcionalidade, e não necessariamente pela
natureza da pena privativa de liberdade aplicável. É importante que o julgador
tenha a faculdade de optar pelo tratamento que melhor se adapte ao inimputável,
mesmo que o crime cometido seja punível com reclusão.
Dessa forma, o tratamento adequado para pessoas com transtornos
mentais e alta periculosidade é um desafio constante para a execução penal,
exigindo uma análise cuidadosa e sensível das condições específicas de cada
caso, a fim de garantir a proteção da sociedade e, ao mesmo tempo, a
reabilitação e reinserção social desses indivíduos.
A hipótese central que se pode formular a respeito do sistema de
execução penal e a forma como ele lida com pessoas com transtornos mentais
e alta periculosidade é a de que existe ainda muito a ser feito para que essas
pessoas sejam tratadas de forma adequada e humana.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o sistema de execução penal é,
em sua essência, uma resposta à criminalidade e, portanto, tem como objetivo
principal a punição dos infratores. No entanto, é importante que ele também
atenda às necessidades de aqueles que apresentam transtornos mentais e que
representam alto grau de periculosidade para a sociedade.
Infelizmente, a realidade é que muitas vezes essas pessoas são
simplesmente encarceradas, sem que sejam oferecidos tratamentos adequados
e eficazes para a resolução de seus problemas. Isso acaba por perpetuar um
ciclo de violência e criminalidade, sem que se busque a verdadeira solução para
o problema.
Por outro lado, existem hoje em dia diversas iniciativas que visam a
integração desse público aos serviços de saúde mental, com o objetivo de
proporcionar tratamento adequado e eficaz, além de ressocialização. Essas
iniciativas incluem programas de terapia, atividades terapêuticas e até mesmo a
possibilidade de reinserção social de forma gradativa e controlada.
Em suma, a hipótese central que se pode formular é a de que o sistema
de execução penal ainda tem muito a evoluir em relação à forma como trata
pessoas com transtornos mentais e alta periculosidade. Porém, é importante
destacar que existem iniciativas positivas que visam a melhoria desse quadro e
que é fundamental continuar a investir em soluções que promovam a saúde
55

mental e a ressocialização dessas pessoas, a fim de garantir uma sociedade


mais justa e segura para todos.
A medida de segurança é uma forma de proteção à sociedade contra
pessoas perigosas que cometem crimes. Porém, há controvérsias quanto ao
prazo máximo dessa medida. De acordo com o STF (Supremo Tribunal Federal),
o tempo máximo de duração da medida de segurança é de 30 anos, sendo que
o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior
a esse período. Já o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entende que o tempo de
duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena
abstratamente cominada ao delito praticado.
Em caso de periculosidade efetiva da pessoa envolvida, mas com a
impossibilidade de internação, a interdição civil pode ser utilizada. Nesse caso,
o MP (Ministério Público) poderá pedir ao Poder Judiciário que decrete a
interdição civil da pessoa em virtude de sofrer de doença mental grave. Além
disso, o Ministério Público poderá pedir também a internação compulsória da
pessoa com base na lei de proteção e direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais.
Portanto, a medida de segurança é uma forma de proteção à sociedade,
porém há controvérsias quanto ao prazo máximo dessa medida. O STF e o STJ
possuem posições diferentes sobre o assunto. Em caso de periculosidade
efetiva da pessoa envolvida, mas com a impossibilidade de internação, a
interdição civil pode ser utilizada. O MP poderá pedir tanto a interdição civil
quanto a internação compulsória da pessoa com base na lei de proteção e
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.
A restrição da liberdade de pessoas com transtornos mentais e
comportamento desviante que representam perigo à sociedade é uma questão
complexa e delicada, que requer uma abordagem humanitária e respeitosa aos
direitos fundamentais dessas pessoas. Nesse sentido, existem diversas formas
de restringir a liberdade dessas pessoas, que visam preservar a segurança dos
outros e garantir o tratamento adequado para a recuperação da saúde mental da
pessoa.
A primeira forma é a prisão, que é a restrição mais rigorosa da liberdade
e é reservada para situações em que o comportamento da pessoa é altamente
perigoso e há risco iminente de prática de novos crimes. No entanto, a prisão
56

pode ser desadaptada para pessoas com transtornos mentais, que muitas vezes
requerem tratamento especializado e não respondem bem à privação da
liberdade.
A segunda forma é o hospital de custódia, que é uma instituição destinada
ao tratamento de pessoas com transtornos mentais e comportamento desviante
que representam perigo à sociedade. Nesse tipo de estabelecimento, a pessoa
é submetida a tratamento médico e psicológico, além de ter sua liberdade restrita
para preservar a segurança dos outros. O hospital de custódia é uma alternativa
mais adequada do que a prisão para pessoas com transtornos mentais, pois
oferece um ambiente mais propício para o tratamento e recuperação da saúde
mental.
Por fim, existe a possibilidade de restrição da liberdade em outro
estabelecimento adequado, que pode ser um hospital psiquiátrico ou uma clínica
especializada, por exemplo. O importante é que o estabelecimento escolhido
seja adequado para o tratamento da pessoa com transtorno mental, ofereça
condições adequadas de segurança e garanta o respeito aos direitos
fundamentais da pessoa.
O conceito de medida de segurança é um instituto dos Direitos Penal e
Processual Penal, que tem como objetivo proteger a sociedade de indivíduos
que apresentam comportamentos desviantes e representam ameaça para o
bem-estar coletivo. A medida de segurança é aplicada ao indivíduo que tenha
praticado crime, mas não tenha sido condenado a uma pena privativa de
liberdade.
Apenas para fins de comparação, as penas são medidas impostas pelo
Estado a quem praticou crime e foram condenadas, já as medidas de segurança
são aplicadas a indivíduos que, apesar de não terem sido condenados,
representam perigo à sociedade. Os princípios penais se aplicam tanto às penas
quanto às medidas de segurança, garantindo a proteção aos direitos e garantias
fundamentais.
Para que a medida de segurança seja aplicada, é necessário que existam
requisitos que justifiquem sua aplicação, tais como a periculosidade efetiva do
indivíduo, ou seja, a probabilidade de ele envolver-se em condutas criminosas.
Além disso, a medida de segurança só pode ser aplicada após um juízo de
57

prognose, que consiste em avaliar a situação individual do indivíduo e sua


capacidade de reincidência.
Existem duas espécies de medida de segurança, sendo a restritiva, que
consiste na imposição de limitações ao comportamento do indivíduo, e a
detentiva, que implica em sua privação de liberdade. Quanto ao prazo da medida
de segurança, este não pode ser eterno e é limitado por lei. Existe um prazo
mínimo para sua aplicação, e um prazo máximo, que é de trinta anos, conforme
entendimento firmado pelo STF e STJ. O objetivo é garantir que a medida de
segurança seja aplicada somente enquanto necessário para proteger a
sociedade, sem prejudicar os direitos e liberdades do indivíduo.
Em resumo, a medida de segurança é uma ferramenta importante para
proteger a sociedade de indivíduos que apresentam comportamentos desviantes
e representam ameaça para o bem-estar coletivo. Entretanto, é necessário que
sejam respeitados os requisitos e princípios penais para sua aplicação, bem
como o prazo máximo estabelecido em lei.

5.1 CONSIDERAÇÕES PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS

O Caput do artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, apresenta os


direitos fundamentais no Brasil, e seus incisos detalham cada um deles. É marco
para os valores nacionais, enquanto sociedade, e muito importante para um
Estado justo e próspero. Abaixo dele, as leis infraconstitucionais, sejam de que
natureza for, estabelecem as minúcias para o exercício desses valores e direitos.
Código Penal, Artigo 26 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940,

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento


mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Redução de pena
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o
agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por
desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente
capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)
58

Verifica-se que o legislador estabeleceu diferença entre “doença mental


ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado” e “perturbação da saúde
mental”. Em qualquer dos casos, o agente precisa ser submetido a exame
psiquiátrico, que dará origem a um laudo, comprovando ou não a sua higidez
mental.
A legislação penal reconhece que algumas pessoas podem ser
penalmente inimputáveis devido à sua doença mental ou condição de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado. De acordo com o Artigo 26 do
Código Penal, é isento de pena o agente que, por essas razões, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato
ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Já o Parágrafo Único deste artigo estipula que a pena pode ser reduzida
de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental,
não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-
se de acordo com esse entendimento. Ou seja, mesmo que a pessoa não seja
considerada penalmente inimputável, se ela apresentar uma perturbação da
saúde mental, sua pena pode ser reduzida.
A diferença entre “doença mental ou desenvolvimento mental incompleto
ou retardado” e “perturbação da saúde mental” é que a primeira se refere a
condições mais graves e estruturais, enquanto a segunda se refere a transtornos
mais leves e temporários.
Em ambos os casos, é importante destacar que é necessário que o agente
seja submetido a um exame psiquiátrico, que dará origem a um laudo,
comprovando ou não a sua condição de saúde mental. Esse procedimento é
fundamental para garantir a justiça e a equidade na aplicação da pena. Assim, a
legislação penal reconhece que algumas pessoas podem apresentar condições
que as tornam penalmente inimputáveis ou que mereçam uma redução de pena.
O exame psiquiátrico é uma ferramenta importante para avaliar a condição de
saúde mental do agente e garantir a justiça e a equidade na aplicação da pena.
A imputabilidade penal é o critério que define a capacidade da pessoa de
ser responsável pelos seus atos, considerando sua capacidade de compreender
a ilicitude do seu comportamento e de agir de acordo com esse entendimento.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, o artigo 26 dispõe que é imputável o
autor de infração penal, maiores de 18 anos, que não se encontrem em estado
59

de perturbação mental que os torne incapazes de entender o caráter ilícito do


fato ou de agir de acordo com esse entendimento.
Assim, o Código De Processo Penal em seu Capítulo VIII – Da Insanidade
Mental do Acusado, afirma:

Art. 149. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do


acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério
Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão
ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.
§ 1o O exame poderá ser ordenado ainda na fase do inquérito,
mediante representação da autoridade policial ao juiz competente.
§ 2o O juiz nomeará curador ao acusado, quando determinar o exame,
ficando suspenso o processo, se já iniciada a ação penal, salvo quanto
às diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento.
Art. 150. Para o efeito do exame, o acusado, se estiver preso, será
internado em manicômio judiciário, onde houver, ou, se estiver solto, e
o requererem os peritos, em estabelecimento adequado que o juiz
designar.
§ 1o O exame não durará mais de quarenta e cinco dias, salvo se os
peritos demonstrarem a necessidade de maior prazo.
§ 2o Se não houver prejuízo para a marcha do processo, o juiz poderá
autorizar sejam os autos entregues aos peritos, para facilitar o exame.
Art. 151. Se os peritos concluírem que o acusado era, ao tempo da
infração, irresponsável nos termos do art. 22 do Código Penal, o
processo prosseguirá, com a presença do curador.
Art. 152. Se se verificar que a doença mental sobreveio à infração o
processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça,
observado n§ 2o do art. 149.
§ 1o O juiz poderá, nesse caso, ordenar a internação do acusado em
manicômio judiciário ou em outro estabelecimento adequado.
§ 2o O processo retomará o seu curso, desde que se restabeleça o
acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de reinquirir as
testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua presença.
Art. 153. O incidente da insanidade mental processar-se-á em auto
apartado, que só depois da apresentação do laudo, será apenso ao
processo principal.
Art. 154. Se a insanidade mental sobrevier no curso da execução da
pena, observar-se-á o disposto no art. 682.TÍTULO VII – Da Prova
CAPÍTULO I – Disposições Gerais. Art. 155. O juiz formará sua
convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as
provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão
observadas as restrições estabelecidas na lei civil.

A lei brasileira, ao tratar da imputabilidade penal, se orientou pelo critério


biopsicológico. Nela a causa biológica é indispensável. Nesse sentido, a lei
brasileira se orientou pelo critério biopsicológico na definição da imputabilidade
penal. Isso significa que a lei considera a existência de causas biológicas e
psicológicas que possam afetar a capacidade da pessoa de entender e agir de
acordo com a ilicitude de seus atos.
60

A causa biológica é referida como a existência de uma doença ou distúrbio


mental que afete a capacidade de compreender e agir de acordo com o
entendimento da ilicitude do ato. Já a causa psicológica refere-se aos fatores
emocionais, sociais e psicológicos que possam afetar a capacidade de
compreender e agir de acordo com o entendimento da ilicitude do ato.
O Código de Processo Penal prevê a possibilidade de realização de
exame médico-legal para determinar a existência de perturbação mental no
acusado, que pode ser requerido pelo Ministério Público, defensor, curador,
ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado. O resultado desse
exame poderá ser utilizado pelo juiz para decidir se o acusado é imputável ou
não. Caso os peritos concluam que o acusado era irresponsável ao tempo da
infração, o processo continuará com a presença de um curador. Caso a doença
mental tenha sobrevindo à infração, o processo será suspenso até que o
acusado se restabeleça.
Desse modo, a lei brasileira considera a existência de causas biológicas
e psicológicas na imputabilidade penal e prevê a realização de exame médico-
legal para determinar a capacidade de compreender e agir de acordo com a
ilicitude do ato. O resultado desse exame será utilizado pelo juiz na formação da
sua convicção na decisão do processo.
Ensina o sempre atual professor Hélio Tornaghi (1991, p. 256), que:

Quando o Código Penal não adotou um critério puramente biológico, o


que se quer dizer é apenas que ele considerou inimputáveis todo os
doentes mentais, desde que a doença tenha impedido o uso das
faculdades psíquicas no momento da ação. ( ) Ora, o pronunciamento
sobre a doença mental ou sobre o desenvolvimento mental acerca de
suas consequências no psiquismo do agente é tema pericial, assunto
que escapa ao conhecimento normal do jurista”. (O destaque consta
no próprio original).

E continua o mesmo educador:

Se se verificar que a doença mental sobreveio à infração, o processo


continuará suspenso até que o acusado se restabeleça, observado o §
2º soo art. 149 do Código de Processo Penal”. É a denominada
incapacidade de sujeição.

E arremata o respeitável doutrinador:


61

O laudo psiquiátrico deve manter-se dentro do campo biopsíquico. Não


há de ser teórico nem se perder em generalidades. Convém usar
linguagem acessível a leigos (juízes, promotores, advogados, deve ser
claro e preciso, singelo e despido de todo pedantismo. Os peritos não
devem utilizar os laudos para fazer exibição de conhecimentos” (grifos
do autor).

É sabido que a literatura médica apresenta experimentos médicos e


desumanos para o tratamento de todo e qualquer tipo de doença. Entretanto, o
doente mental foi o que mais sofreu ao longo dos tempos. Tratamentos
experimentais, sem a mais mínima comprovação científica foram empregados,
para desespero do paciente e para o malogro total das técnicas empregadas.
Nesse sentido, focar-se-á em apenas três exemplos, dos quais a camisa
de força é o primeiro. Ela é uma veste projetada para conter alguém e foram
usadas para controlar pacientes em instituições para doentes mentais. Em
estabelecimentos superlotados, com funcionários nada treinados, elas
costumavam ser usadas em excesso. Hoje já não possuem o apoio da
comunidade médica como um todo. Isto porque a veste é feita de material
pesado, com mangas compridas, e confinam as mãos. Depois de colocada no
corpo, ela é firmemente fechada e fitas são fixadas para que não escorregue.
Os braços são amarrados na frente do corpo, tornando muito difícil de se
soltar. Além da questão puramente inumana, no sentido mental, a camisa de
força pode restringir os movimentos do paciente que, apesar de poder andar, ela
pode prejudicara circulação e a respiração de seu usuário. A palavra certa a ser
usada é: angustiante! A partir do momento em que se constatou que a camisa
de força passou a ser usada mais como aplicação penal, do que terapêutica, seu
uso passou a ser desaprovado.
A camisa de força é parte inegável da história da Psiquiatria, que abrangia
um conjunto de medidas de repressão, impregnadas nas práticas dos “asilos”,
“hospícios”, “hospitais de alienados” e, mais tarde, dos “hospitais psiquiátricos”,
denominações dadas a instituições que albergavam pessoas com doenças
mentais (Pereira, 2015).
A implementação desse tipo de medidas era amplamente aceita, com o
objetivo de conter os pacientes em estado de excitação ou furor, agitação
psicomotora, agressividade, que agrediam os outros ou se autoagrediam e
quando existia a necessidade de estabelecer limites (Pereira, 2015).
62

No Brasil ela não é mais utilizada. O Conselho Federal de Medicina


através da Resolução de n° 1.408 em 1994, é explícito em seu art. 5°, parágrafo
2°:

Em qualquer estabelecimento de saúde onde se presta assistência


psiquiátrica é vedado o uso de "celas fortes", "camisa de força" e outros
procedimentos lesivos à personalidade e à saúde física ou psíquica dos
pacientes, sendo dever do médico assistente denunciar ao Conselho
Regional de Medicina sempre que tiver conhecimento do desrespeito
a esta norma.

Eletroconvulsoterapia (ECT) popularmente conhecida como eletrochoque


continuam desconhecidos da própria comunidade médica, ainda incapaz de
compreender seus efeitos no cérebro, muito embora tenha surgido entre as
décadas de 1930 e 1940. Ela foi fruto da observação de pacientes em clínicas
psiquiátricas que apresentavam “melhora” após passarem por um surto psicótico
ou de um episódio epilético, levando os médicos a métodos capazes de causar
convulsões controladas através de correntes elétricas aplicadas na cabeça.
Como todo processo experimental, no início, as convulsões tinham
intensidade imprevista, e, não raro, provocavam machucados durante o
procedimento, inclusive fraturas, bem como confusão mental e desorientação
por algum tempo. Apesar de seu quase desaparecimento nas décadas de 1960
e 1970, no Brasil ela ainda perdurou.
Conversando com uma atendente de enfermagem, foi relatado que nos
anos de 1973 a 1.975 ela preparava os pacientes para o procedimento da
eletroconvulsioterapia em um Hospital de Belo Horizonte. Já era um tratamento
“humanizado”, com o paciente sedado, e com a introdução de espumas em sua
boca, depois que ele “dormia”, para que não quebrasse dentes ou cortasse a
própria língua. Somente o médico poderia fazer o procedimento. Depois, a
enfermagem ficava encarregada de controlar os sinais vitais do paciente até seu
retorno à “normalidade possível”, ou relatar alguma intercorrência, que era
imediatamente controlada pelo médico responsável. O interessante, segundo
aquela atendente de enfermagem, era que na sala destinada ao eletrochoque
havia uma pomposa frase onde se lia: SONOTERAPIA.
Dos anos 1980 em diante, os pesquisadores buscaram métodos mais
seguros e fazer a eletroconvulsitoerapia, com mínimo de desconforto e efeitos
63

colaterais para os pacientes. Até os dias atuais a ECT é realizada em muitos


serviços públicos e particulares ao redor do mundo, mas utiliza baixas correntes
elétricas que podem ser aplicadas apenas de um ou dos dois lados da cabeça e
sempre com o paciente anestesiado e acompanhado por uma equipe
multidisciplinar.
Por fim, tem-se a Lobotomia: Do grego λοβός [cérebro] e τομή [cortar], a
palavra significa, literalmente, "secção cerebral" e foi desenvolvida pelo
neurologista português Antônio Egas Moniz, em 1935. Obteve sucesso em
alguns tratamentos, mas angariou diversos efeitos colaterais graves: depressão,
esquizofrenia, síndrome de pânico, aumento da temperatura corporal, vômitos,
incontinência urinária e intestinal graves, problemas oculares, apatia e letargia.
Apesar de criticada pela comunidade médica, ela foi usada em vários países do
mundo, inclusive no Brasil.
Os primeiros procedimentos de lobotomia envolviam fazer um buraco no
crânio e injetar etanol para destruir as fibras que conectavam o lobo frontal a
outras partes do cérebro. Posteriormente, passaram a usar um instrumento
cirúrgico denominado leucótomo, que, ao ser girado, fazia uma lesão circular no
tecido cerebral. O psiquiatra italiano Amarro Fiamberti desenvolveu um
procedimento que envolvia acessar o lobo frontal através das órbitas oculares.
Somente em 1945, surgiu a lobotomia transorbital, um método em que o
médico inseria a ferramenta na órbita do paciente com o auxílio de um martelo.
O instrumento era movido de um lado para outro para separar o lobo frontal do
tálamo, a parte do cérebro que recebe e transmite informações sensoriais. As
lobotomias transorbitais não exigiam anestesia e eram mais rápidas. Já
pensaram no horror disso?
O tempo revelou que a cirurgia causava efeitos negativos na
personalidade do paciente, atrapalhando sua autonomia. Na época havia muitos
sanatórios, superlotados e caóticos, realizando lobotomias a pacientes
indisciplinados, os médicos podiam manter o controle da instituição.
O caso mais famoso de lobotomia é protagonizado por Rosemary
Kennedy, irmã de John F. Kennedy, o 35º presidente dos Estados Unidos. Ela
nasceu em 13 de setembro de 1918 em meio a um parto cheio de complicações,
o que a levou a apresentar dificuldades de aprendizado. Apesar de ter
64

frequentado várias escolas especiais, teve problemas para ler e escrever até a
idade adulta.
Em sua fase adulta, Rosemary protagonizou diversos episódios violentos
e ataques de raiva, atingindo quem estivesse por perto. Em um dos incidentes,
por exemplo, Rosemary chegou a atacar subitamente seu avô materno, Honey
Fitz. A família Kennedy chegou a interná-la em um convento, mas ela fugia
diversas vezes. Quando as freiras relataram que Rosemary fugia para se
encontrar com homens nos bares, o pai (Joseph Kennedy) decidiu tomar uma
providência.
Em novembro de 1941, sem consultar a esposa, Joseph autorizou que
Rosemary fosse lobotomizada. Na época, ela tinha 23 anos. No entanto, depois
da cirurgia, Rosemary nunca conseguiu mais andar ou falar. Durante a maior
parte do tempo, sua existência foi um segredo.
A cidade de Barbacena, no interior de Minas Gerais, em 1903 ficou
conhecida como a “Cidade dos Loucos”, por abrigar sete instituições
psiquiátricas, sendo a mais famosa o “Hospital Colônia”. No entanto, 70% dos
internados não apresentavam simplesmente nenhum registro de doença mental.
Eram homossexuais, alcoólatras, militantes políticos, mães solteiras, mendigos,
negros, pobres, índios, pessoas sem documento.
Os internos viviam mal, nus, forçados a trabalhar como suposta terapia
em pátios ou em celas. Faltavam água encanada e alimentos. Muitos internos
bebiam e se banhavam no esgoto a céu aberto. Cerca de 60 mil internos
morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento do
Hospital Colônia, que aconteceu na década de 1990. Os "tratamentos" envolviam
choques e torturas físicas/psicológicas.
A lobotomia diminuiu na década de 1950, uma vez que boa parte dos
“médicos que realizavam o procedimento não era formada por neurocirurgiões,
e muitos dos lobotomizados eram submetidos a este “tratamento” sem
consentimento próprio, ou de seus familiares ou de algum representante legal.
Foi justamente nessa época que os cientistas desenvolveram medicamentos
psicoterapêuticos, muito mais eficazes e seguros no tratamento de transtornos
mentais do que a lobotomia. Em 1960, o psiquiatra italiano Franco Basaglia
(1988), revolucionou o tratamento relacionado a transtornos mentais, investindo
uma abordagem de reinserção territorial e cultural do paciente na comunidade,
65

em vez de isolá-lo num manicômio à base de fortes medicações, vigilância


ininterrupta, choques elétricos e camisas de força.
Devido aos resultados positivos que alcançou na Itália, a abordagem de
Basaglia passou a ser recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS)
a partir de 1973. A posição da OMS tornou o debate mundial. Atualmente, as
operações psicocirúrgicas ainda existem, mas são realizadas raramente. A
remoção de áreas cerebrais específicas é reservada para o tratamento de
pacientes para os quais todos os outros tratamentos falharam.

5.2 MÉDICO LEGAIS, FILOSÓFICAS E LITERÁRIAS

Agora, deixando de lado as disciplinas das ciências penais, processuais


penais e psiquiátricas, vamos nos dirigir ao universo da literatura e das artes em
geral, que estão intimamente relacionados com os princípios positivistas.
Trazemos o quadro “A Noite Estrelada, de Vincent Van Gogh que foi pintado em
1889. É um óleo sobre tela, com 74 cm X 92 cm, e se encontra no Museu de Arte
Moderna de Nova York (MoMA). A pintura retrata a paisagem da janela do quarto
do artista enquanto esteve no hospício de Saint-Rémy-de-Provence, sendo
considerada uma das obras mais significativas do artista holandês. Ele teve uma
vida tempestuosa, sofrendo de depressão e surtos psicóticos.

Figura 1- Noite Estrelada

Fonte: Wikipédia, 2022.


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Quando se afirmou, neste trabalho, que muito depende de um gestor


interessado, Van Gogh é a prova viva disto. Ao longo de anos de internação, ele
realizou muitas observações sobre os lugares do Hospital, até os corredores e a
entrada. Mas ele não tinha autorização para pintar.
O diretor, contemplando o seu comportamento, a ele disse que poderia
pedir qualquer coisa, menos sair do estabelecimento, ao que Van Gogh
prontamente respondeu: quero telas, tintas e pincéis. E o diretor atendeu a seu
pedido, mas ele somente poderia pintar de dia. O gênio da pintura contemplava,
de sua cela para onde era recolhido à noite, e fixava em sua mente a “Noite
Estrelada”, indo direto, ao amanhecer, para o andar térreo, onde se encontrava
com seu material de pintura.
E assim foi concebida a “Noite Estrelada”, vista pelos olhos da cela em
que dormia, e onde se utilizava de carvão e papel para elaborar os esboços e,
ao depois, finalizar a obra. Este quadro é considerado um dos mais importantes
de sua criação, porque contém pequenas abstrações, o que não ocorria em
outras de suas telas.
Foi também por meio dela que ele transmitiu seu estado psicológico
agitado, através dos movimentos retratados na obra, com pinceladas rápidas,
em sentido horário, e em espirais, permitindo a sensação de profundidade e
movimento do céu, aspirais estas que se tornaram característica de toda a sua
produção, traduzindo suas próprias perturbações mentais.

Figura 2- A vila

Fonte: Wikipédia, 2022


67

A vila, incluída no quadro, pode ser uma nostálgica lembrança de sua


infância e juventude na Holanda. Os pontos de luz nas casas se relacionam às
estrelas no céu, criando um diálogo entre a humanidade e a grandeza da via
láctea. O cipreste é um elemento comum nas obras de Van Gogh. Esta árvore
está associada à morte em diversas culturas europeias. Elas eram usadas nos
sarcófagos egípcios e nos caixões dos romanos. O cipreste passou a ser comum
para ornamentar cemitérios e quase sempre está relacionado ao fim da vida.
À meia noite de 20 de julho 2012, o Century 16 (em Aurora, no Colorado)
estava lotado. Era a estreia do filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Naquela noite, o Cinemark foi palco de um violento ataque: um homem
fortemente armado, fantasiado de Coringa, invadiu uma das salas de exibição e
lançou bombas de gás e abriu fogo contra o público que assistia ao filme.
James Eagan Holmes, o atirador de 24 anos, agiu sozinho, depois de
comprar munição pela internet, quatro meses antes do ataque. Se “armou”
também com colete à prova de balas e máscara contra gases até um fuzil. Na
noite de estreia do filme, James comprou uma entrada para a sessão entrando
normalmente, como se fosse um espectador comum. Fantasiado de coringa, não
chamou a atenção das pessoas, vez que, nos Estados Unidos é comum as
pessoas comparecerem fantasiadas nas estreias de filmes.
Aproximadamente 40 minutos depois do início do filme, ele começou a
lançar bombas de gás e a efetuar diversos disparos, não em antes deixar a saída
de emergência entreaberta. Ele não demonstrava qualquer emoção.
Simplesmente atirava. As vítimas demoraram a se dar conta da situação. Os tiros
efetuados na sala de exibição escolhida ultrapassaram suas paredes e atingiram
outras pessoas que assistiam ao filme em outros ambientes. Doze pessoas
morreram e 70 ficaram feridas dentre elas um bebê de 3 meses, lesionado, e
uma menina de 6 anos, que faleceu no local.
Ocorre que sua arma travou, e ele, em fuga, pela saída de emergência
devidamente preparada, tentou chegar a seu carro, que estava no
estacionamento em local estrategicamente escolhido. Ali ele foi cercado pela
polícia e não resistiu à prisão. No veículo foram encontradas mais armas e
munições, supostamente destinadas a fazer mais vítimas no shopping. Ele
afirmava ser o Coringa. Com a prisão, constatado ficou que em seu apartamento
havia diversos explosivos programados para acionar em eventual invasão no
68

local, o que demandou uma equipe especializada em desarmar explosivos, após


evacuação do prédio em que ele residia. A equipe, com o auxílio de robôs,
conseguiu detonar os explosivos sem deixar feridos.
Interessante salientar que James Eagan Holmes nascido em 13 de
dezembro de 1987, na Califórnia, vinha de uma família bem estruturada e
simples. Seu pai, Robert Holmes era matemático e cientista e sua mãe, Arlene
Holmes era enfermeira. Apesar de introspectivo na infância, segundo sua família,
nunca demonstrou qualquer tipo de agressividade ou violência. Pelo contrário,
era tranquilo e afeito a esportes. Possuía um histórico acadêmico invejável.
Ele se graduou em medicina em 2010 pela Universidade da Califórnia e
foi considerado um dos melhores alunos da sala. Em 2011, iniciou seu PhD em
neurociência na Universidade do Colorado, no campus de Aurora. Ao tempo do
massacre, James residia em um apartamento dentro do próprio campus da
universidade. O prédio era habitado, essencialmente, por estudantes da área da
saúde.
O desempenho do jovem era tamanho que ele recebeu uma doação de
21.600 dólares dos Institutos Nacionais de Saúde, de acordo com registros da
agência, que foi desembolsado em parcelas de julho de 2011 a junho de 2012.
Holmes também recebeu uma bolsa de 5.000 dólares da Universidade do
Colorado. Tristemente, nos primeiros meses de 2012, James foi diagnosticado
com febre glandular e seu desempenho na universidade caiu vertiginosamente.
Com a saúde fragilizada, com sua dificuldade em socialização, o atirador viveu
um momento sofrido.
A saúde debilitada, somada a sua dificuldade em socialização, levaram o
jovem a enfrentar um momento tão delicado academicamente, que o levou a
abandonar o curso, aproximadamente um mês antes do ataque ao cinema. O
término de seu relacionamento amoroso com uma estudante também o abalou.
Ela teria aconselhado James a buscar auxílio psicológico. Uma vez preso, ele foi
vigiado o tempo todo, a fim de ser evitado um possível suicídio.
Desde o início, a defesa de James alegou que o acusado tinha distúrbios
mentais, o que o tornaria menos culpável. Em razão disso, em 05 de agosto de
2013 James foi transferido para o Instituto de Saúde Mental Colorado em Pueblo,
Colorado. É essa parte que torna atraente o estudo esta pesquisa. Ele foi
avaliado por vários psiquiatras e psicólogos forenses. Todos de renome no
69

estado da Califórnia, e a comunidade médico-pericial ficou dividida: uns o


declararam portador de esquizofrenia e, como tal, incapaz de entender o caráter
criminoso de seus atos ou de autodeterminar-se e outros o afirmaram
plenamente capaz. Há de se indagar; como isso é possível?
Na primeira audiência com o Juiz, lidos os seus direitos, e com a
nomeação de um defensor público, James manteve-se calado o tempo todo e
não olhou para o magistrado. A acusação pretendeu a condenação de James
pelo cometimento de vários crimes, entre homicídios consumados, homicídios
tentados e porte de explosivo, totalizando 165 infrações penais. Finalmente, em
janeiro de 2013, depois de algumas audiências, o juiz do caso entendeu que o
atirador deveria responder pelos crimes atribuídos pela acusação. Em março do
mesmo ano, os promotores pugnaram pela pena de morte ao acusado.
O julgamento de James foi adiado diversas vezes pela defesa. Somente
em 2015 os jurados decidiram pela condenação, mas não tiveram consenso
sobre a aplicação da pena de morte. O Juiz do caso o sentenciou a 12 prisões
perpétuas, 3.312 anos por 70 tentativas de homicídio e 6 anos pela posse de
explosivos, tudo sem direito a liberdade condicional.
Voltar-se-á ao exame de eventuais tratamentos psiquiátricos. Ele fazia
uso de um antidepressivo denominado sertralina, conhecido como Zoloft nos
Estados Unidos, um inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), tudo
sob prescrição de uma psiquiatra. O referido psiquiatra o atendeu James a partir
de março de 2012, que alegou que, mesmo após o início do tratamento com esta
medicação, não reconheceu melhoras na saúde mental dele, o que foi assim
descrito em suas anotações: “Pensamento de nível psicótico. Pensamento
reservado, paranoico e hostil, sobre o qual não se dá detalhes”.
A mesma médica afirmou em Juízo que havia aumentado a dose da
medicação, por acreditar que a nova dosagem seria apropriada para James.
Entretanto, David Healy, psicofarmacêutico contratado como perito para defesa
de James, em entrevista para um programa investigativo da BBC Panorama foi
categórico: “Essa matança nunca teria acontecido se não fosse pelo
medicamento receitado a James Holmes”.
Não há um consenso entre os pesquisadores da área para afirmar que os
efeitos dos medicamentos ISRS são de fato negativos e causam distúrbios
mentais, mas especula-se que pode potencializar alguma doença ou distúrbio
70

mental. Outra coisa interessante a ser observada foi a sensibilidade e o poder


do Magistrado. Ele aceitou, não explicitamente, e em parte, o argumento da
defesa de que o agente era portador de distúrbios mentais. Chega-se a esta
conclusão pelo fato dele não ter aplicado a pena de morte e sim a de prisão
perpétua. A Justiça penetrou nos meandros da mente humana aonde nem
mesmo o agente foi capaz de se encontrar.
Do real, passar-se-á a literatura pura. William Shakespeare (1564-1616)
foi dramaturgo e poeta inglês. Autor de tragédias famosas como "Hamlet",
"Otelo", "Macbeth" e "Romeu e Julieta, dentre outras. Assentar-se-á o exame
sobre Macbeth, ganancioso, sedento de poder, que foi capaz de cometer
grandes atrocidades em cumplicidade com sua esposa.
Seu tormento, sua loucura e de sua esposa chegou a tal pondo que, por
mais que lavassem as mãos, elas eram sempre vistas manchadas de sangue.
Somado a isso, o casal não mais conseguia dormir. O sono simboliza paz de
espírito e eles ouviam as vozes das pessoas a quem torturaram e mataram sem
piedade, por ganância pelo poder, o que levou o rei a afirmar: “Macbeth acaba
de assassinar o sono”. Este assunto é introduzido no Ato 2.2 da peça, quando o
monarca passa a ouvir vozes dizendo que ele não dormirá mais, o que ocorre
logo depois dele matar o Rei Duncan, para assumir o seu lugar.
Esta peça, que chegou a se tornar filme, é uma das mais belas e diretas
afirmações da doença mental: “Macbeth acaba de assassinar o sono”. Não se
há de resistir a citar um outro filme: Laranja mecânica. O título original do filme é
A Clockwork e foi para as telas no ano de 1971, dirigido e adaptado para o
cinema por Stanley Kubrick, o filme é baseado do romance homônimo de
Anthony Burgess, publicado em 1962. O personagem Alexander Delarge, o
protagonista, lidera uma gangue de jovens marginais e violentos ao extremo.
A película coloca em relevo questões sociais, delinquência juvenil,
psiquiatria, o livre arbítrio e a corrupção moral das autoridades. O filme é cheio
de imagens muito violentas, perturbadoras, e se tornou um filme cult, aclamado
pelo público e pela crítica.
O filme começa com Alex, Pete, Georgie e Dim bebendo leite misturado
com drogas no bar da predileção deles. Logo a gangue, em busca de violência,
espanca um velho mendigo que está caído na rua. Em seguida, roubam um carro
71

e invadem a casa de um escritor e sua esposa, estuprando e matando a mulher


enquanto espancam o marido e o líder canta "Singing in the Rain".
A gangue retorna ao bar, onde Alex e Dim acabam brigando por uma
mulher. Dim e Georgie começam a desafiar a autoridade de Alex, o que os joga
no rio. Os companheiros fingem perdoar. Alex invade, sozinho, uma residência
conhecida como a casa da "mulher dos gatos" e a mata. O resto da gangue o
esperava na porta, à traição, quebra uma garrafa no seu rosto, deixando-o
temporariamente cego. Assim, ele não consegue fugir e acaba sendo preso.
O Ministro da Defesa estava procurando cobaias para um tratamento
experimental que deixaria um criminoso reabilitado em duas semanas, e se ele
aceitasse, o resto de sua pena seria cancelada. Alex aceita e nele são injetadas
drogas e ele é forçado a assistir imagens de extrema violência, aonde ele chega
até a passar mal. O processo de condicionamento funciona e Alex se torna
inofensivo. Exibido em um palco, como um animal selvagem que foi
domesticado, o próprio Ministro demonstra o caráter sua submissão, chamando
um homem que o agride e obriga a lamber a sola do seu sapato.
Na rua, e expulso da casa dos pais, fica sem rumo, e reencontra o velho
mendigo que tinha espancado no início do filme. O mendigo e seu grupo batem
e humilham Alex, que não consegue se defender. A polícia interrompe a cena.
Os policiais levam Alex para o mato, onde o torturam. Ele consegue fugir e acaba
pedindo ajuda na casa do escritor, uma de suas vítimas, agora paraplégico e
este, lhe oferece hospedagem.
Quando escuta Alex cantando "Singing in the Rain", o velho paraplégico
o reconhece pela voz e descobre que durante o tratamento Ludovico (nome dado
em razão da música tocada horas a fio e em som muito alto), momento em que
descobre que, durante o tratamento, Alex começou a odiar sua música favorita,
a Nona Sinfonia de Beethoven, ficando com desejos suicidas quando a escuta.
O escritor coloca droga na sua comida e ele apaga. Quando acorda, está
trancado em um quarto, escutando a música num volume ensurdecedor.
Desnorteado, Alex se joga pela janela e fica gravemente ferido. Alex acorda no
hospital livre das marcas do condicionamento. Ao saber da sua tentativa de
suicídio, a mídia culpa o governo e exige justiça para o jovem.
O Ministro da Defesa, por meio de boa soma em dinheiro, consegue apoio
de junto da opinião pública. Seu quarto é invadido por flores, decorações,
72

jornalistas e fotógrafos. Alex e o Ministro são fotografados juntos e sorrindo, para


os jornais.
Poder-se-ia pensar em uma “lobotomia” sem qualquer tipo de incisão?
Poder-se-ia pensar que a música de Beethoven, quando ouvida, fazia com que
o paciente não expressasse qualquer tipo de agressividade, como nos reflexos
dolorosos condicionados utilizados por domadores de ursos, mundo afora?
A sua “apresentação” triunfal para um número de médicos e agentes
penais foi um “sucesso”. Contudo, ele, ao ouvir a música, se tornava permeável
a qualquer tipo de agressividade do mundo circundante. Era um sociopata a
solta, para a vaidade de muitos.
O filme explora questões sociais e políticas intemporais, reflete sobre
temas como a delinquência juvenil, psiquiatria, livre arbítrio e corrupção moral
das autoridades. Isto foi um resumo de um texto publicado por Carolina Marcello,
Mestre em Estudos Literários e Interartes e do assistir ao filme por algumas
vezes.
Caminhar-se-á, agora, pela poesia, que também empresta sua
contribuição para os doentes mentais, seja por eles mesmos seja pela
observação de terceiros:

METADE

Que a força do medo que tenho


Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe


Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade...
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo...
73

Que essa minha vontade de ir embora


Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão...
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria


para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço...
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção...
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade... também.
(Oswaldo Montenegro).

Mais incisivo ainda é: Um homem chamado Alfredo:

O meu vizinho do lado


Se matou de solidão
Abriu o gás, o coitado
O último gás do bujão
Porque ninguém o queria
Ninguém lhe dava atenção
Porque ninguém mais lhe abria
As portas do coração
Levou com ele seu louro
E um gato de estimação
Há tanta gente sozinha
Que a gente mal adivinha
Gente sem vez para amar
Gente sem mão para dar
Gente que basta um olhar
Quase nada
Gente com os olhos no chão
Sempre pedindo perdão
Gente que a gente não vê
Porque é quase nada
Eu sempre o cumprimentava
Porque parecia bom
74

Um homem por trás dos óculos


Como diria Drummond
Num velho papel de embrulho
Deixou um bilhete seu
Dizendo que se matava
De cansado de viver
Embaixo assinado Alfredo
Mas ninguém sabe de quê
(Vinícius de Morais e Toquinho - Tonga Editora Musical LTDA).

Após essas considerações, finalmente, a filosofia. Ah, a filosofia! Sempre


ela, perpassando todas as atividades do ser humano, ainda que de modo
inconsciente. “O século XX inaugura-se com a morte de F. Nietzsche, que se
revela como o seu pensador mais significativo”, escreveram, como
organizadores, Giorgio Penzo e Rosino Gibellini (1993, p. 23), na obra
denominada “Deus na filosofia do século XX”.
Nietzsche nasceu em uma família de pastores protestantes e deveria
seguir a missão do pai, pastor. Seu pai. Entretanto, morre, de derrame cerebral,
subitamente quando ele tinha apenas 5 anos de idade, e ele viveu atormentado
pela hipótese de ter o mesmo destino.
Nietzsche conviveu com o músico Wagner e via seu espírito romântico
desenvolver-se através da música, que sentia como “a síntese das experiências
físicas, pondo o homem diante de uma dimensão de verdade que constitui o seu
fundamento” (Penzo; Gibellini, 1993, p. 24).
Por questões de saúde, abandonou o ensino universitário, iniciando seu
período de pensador individual e errante. Apesar de doente e solitário, conseguiu
transforar em fenômeno literário não apenas a dor física, mas também as suas
desilusões afetivas. Sua vida errante tem fim em 1889, em Turim, quando, como
o pai, também cai ao chão, já sem consciência. Na obra já mencionada se lê,
desta feita, na página 26: “Nietzsche permanecerá até a morte trancado no
mistério da loucura”.
E a morte de Deus atribuída a Nietzsche está assim clarificada na obra
mencionada, na p. 31: “Assim, é revertida a concepção metafísica do conhecer
como segurança e a de Deus como causa última de segurança. Segundo
Nietzsche, a raiz metafísica do conhecer como necessidade de segurança leva
o homem a ver Deus como último horizonte de segurança e de verdade absoluta.
Para o homem metafísico, a morte de Deus é vivida de modo dramático,
justamente porque marca o fim de um longo desejo que é necessário ao homem
75

para viver com uma consciência de segurança. Nietzsche faz sua essa angústia
“desesperada” do homem metafísico diante do “avanço do niilismo”. Supera,
porém, tal angústia, quando observa que a morte de Deus é um acontecimento
cultural e existencial necessário para purificar a face de Deus e, por conseguinte,
a fé em Deus”.
Este ensinamento filosófico explica, por si mesmo, todas as angústias
pelas quais passa um doente mental ou um portador de transtorno mental com
uma diferença: estes não possuem discernimento de todo o seu entorno, ou,
quando o possuem, é de modo limitado pela autodeterminação. Bergson, outro
grande filósofo do século XX, declarou: “Captar o ritmo da evolução criadora, ou
seja, a caracterização qualitativa do desenvolvimento temporal dos organismos,
é uma possibilidade de razão intuitiva.
A intuição é a alma da metafísica e é função complementar em relação à
ciência. O saber total, que é a forma de sabedoria sintética e equilibradora da
existência humana, deve conjugar análise e intuição, quer para poder exprimir a
unidade da vida no jogo múltiplo das suas formas e dos seus nexos intrínsecos,
quer para captar como que sob forma de musicalidade e de amor inefável o “elã
vital” que se abre no universo e o caracteriza como potência e sabedoria divinas”
(Penzo; Gibellini, 1993, p. 77 e 78).
Não se aprofundará muito no fascinante mundo filosófico para não fugir
ao tema do presente estudo. O pouco que foi dito já sintetiza a razão da filosofia:
do homem e para o homem; do ser humano, para o ser humano, doente mental
ou não, portador de distúrbios mentais ou não.
Penetrar-se-á agora um ponto que pode ser tido e havido como o mais
intrincado a ser resolvido, dirimido e interpretado pelos operadores do direito.
Este ponto diz respeito a conflito de normas e aos princípios da anterioridade da
lei penal, da reserva legal, da legalidade e da generalidade das leis versus a
especificidade das leis.
Em poucas palavras, o princípio da anterioridade da Lei Penal resulta na
irretroatividade da lei penal, que não alcançará os fatos praticados antes de sua
vigência, ainda que venham a ser futuramente tidos como crime. Já o “princípio
da reserva legal ocorre quando uma norma constitucional atribui determinada
matéria exclusivamente à lei formal (ou a atos equiparados, na interpretação
76

firmada na praxe), subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquelas


subordinadas” (Crisafulli, apud Silva, 2000, p. 421.).
O princípio da legalidade, por sua vez, está suportado pelo artigo 5º, nº II
da Carta Maior, quando estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O que leva à conclusão de que
as obrigações, ou seja, o fazer e o não fazer somente podem ser instituídas por
espécies normativas produzidas em conformidade com o devido processo
legislativo.
Pois bem, como conciliar: 1º) as disposições da Lei nº 10.216, de 6 de
abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental; 2º)
com as disposições do artigo 26 do Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de
1940, que diz:
É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento (Redação dada pela
Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o
agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por
desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente
capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984)

E as disposições dos artigos 149 e seguintes do Código de Processo


Penal, que instrumentalizam o proceder de quem maneja essa parte do direito?
O processo penal é o instrumento garantidor da realização da prestação
jurisdicional, de modo geral, sem descer a especificidades. É bem verdade que
existem leis formais e materiais, mas isto não é tema deste trabalho. Antes dele,
tem-se a Constituição Federal, com o seguinte comando no artigo 5º, LIV:
"ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal". É por meio do Código de Processo Penal que se detectará se uma ação
ou omissão estão abstratamente descritas na lei substantiva penal como
proibidas, e, também se ocorreu uma justificativa ou exculpante. É garantidor de
todo e qualquer agente.
Pela ementa justificativa da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, verifica-
se que não existe qualquer conflito entre ela e o disposto na Constituição
77

Federal, e muito menos nos códigos Penal e de Processo Penal, por uma razão
que pode passar despercebida: aquela Lei dispõe sobre a proteção e os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental. (sem o negrito no original).
E os Códigos Penal e de Processo penal, afinados com a Constituição da
República são taxativos ao afirmar que seus dispositivos contemplam agentes
que praticaram, em tese crimes, e que são doentes mentais ou portadores de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Os diplomas legais já mencionados funcionarão como amalgama da
construção do direito, em cada caso concreto. Tudo se afina, tudo se completa,
tudo se interlaça, perpassando o raciocínio do Magistrado ao dizer o direito.
Se acaso pairar alguma dúvida no que respeita a aplicação harmoniosa
destes três diplomas legais, qual seja, a Constituição de 1988, o Código Penal e
o Código de Processo Penal, através dos artigos já mencionados, ainda resta o
artigo 3º da Lei substantiva penal, interpretação extensiva e aplicação da
analogia, quando assim prescreve: “A lei processual penal admitirá interpretação
extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais
de direito”. Observe-se que não se invoca qualquer tipo de ativismo judicial, mas
de aplicação destes institutos naquilo que for pertinente.
Hélio Tornaghi (1991, p. 91), tem um ensinamento a respeito de toda e
qualquer interpretação, que vale a pena a reprodução: “Intérprete era o
intermediário entre o vendedor e um comprador de uma mercadoria e que lhe
fixava o preço (pretium). Daí, isto é, de inter e pretium, lhe adveio o nome:
intérprete. Acontece que, para desempenhar sua missão, ele precisava falar as
línguas das partes. Por isso chamava-se interpretação o ato de tornar manifesto
par cada uma delas o que a outra diz. A expressão generalizou-se e passou a
significar o ato de manifestar o sentido de alguma coisa. Fala-se em
interpretação do contrato, do testamento, da lei e assim por diante” (grifo do
autor).
Constata-se, sem muita dificuldade, que interpretar é a manifestação do
sentido de alguma coisa, não a “criação” de alguma coisa, como tem acontecido
com muita frequência com o ativismo judicial. E para tornar isto bem mais
explícito, continua-se com o ensinamento de Hélio Tornaghi, na mesma página
“Interpretar a lei é tornar-lhe claro o sentido.
78

Toda interpretação é meramente declaratória, isto é, esclarecedora. O


intérprete nada acrescenta à lei e dela nada retira: apenas a elucida e explica
(...). Por isso, não se deve supor que na interpretação extensiva alguma ideia
nova se acrescente à lei; ou que na interpretação restritiva algo se lhe retire. O
que realmente se passa é que a lei se exprimi por palavras: algumas vezes nela
se encontram sinédoques, isto é, o emprego do todo em vez da parte, o plural
pelo singular, o gênero em lugar da espécie, ou vice-versa” (grifo do autor).
Caminhando com o jurista Hélio Tornaghi, porque sua jornada é
fascinante, muito se há de aprender, agora, sobre a aplicação analógica
(Tornaghi, 1991, p.26):

(...) Por mais previdente que seja o legislador, a lei poderá ter lacunas:
é possível que não haja regulado algo que devia regular. A aplicação
dela exige, então, o preenchimento da lacuna porque a lei pode ser
lacunosa, mas o Direito não. Uma das maneiras de preencher as falhas
da lei é a analogia. Se a razão de disciplinar uma situação jurídica
prevista é a mesma que existiria para ordenar a não prevista, então é
legítimo aplicar (analogicamente) à segunda o que é que é dito da
primeira. A própria origem da palavra analogia (aná=segundo +
lógos=razão) mostra sua função: onde existe a mesma razão aí deve
aplicar-se o mesmo preceito (ubi eadem ratio ibi idem jus) (grifo do
autor).

Finamente, os princípios gerais do Direito, que segundo o mesmo


doutrinador (Tornaghi, 1991, p.26 e 27), deve ser entendido de duas maneiras:
1ª) “para designar os dogmas que se inferem do estudo de determinada
legislação” (..); 2ª) “para indicar os princípios do Direito natural (para quem o
admite)”. E seu ensinamento sobre este tema, princípios gerais do direito, é
arrematado da seguinte forma (Tornaghi, 1991, p.27): “Na realidade os dois
entendimentos terminam coincidindo, pois os princípios de Direito natural que se
chocassem com a ordem estabelecida pelo Direito positivo não poderiam ter
aplicação sem transformá-lo”.
Assim, a teoria dos princípios gerais do direito é baseada em uma
compreensão dos dois entendimentos de direito: direito natural e direito positivo.
De acordo com essa visão, os princípios de direito natural e os princípios
estabelecidos pelo direito positivo tendem a coincidir, pois aqueles princípios de
direito natural que entrariam em conflito com a ordem estabelecida pelo direito
positivo não poderiam ser aplicados sem transformá-lo.
79

Isso significa que, em teoria, o direito positivo deve ser harmonizado com
os princípios do direito natural, de forma a garantir que a ordem jurídica seja justa
e equitativa. No entanto, em alguns casos, o direito positivo pode ser
inconsistente com os princípios do direito natural, o que requer uma revisão ou
reformulação das leis existentes.
Além disso, é importante perceber os princípios de direito natural como
uma referência para avaliar a validade das normas jurídicas positivas. Dessa
forma, os princípios do direito natural fornecem uma base ética e moral para o
direito, ajudando a garantir que as leis sejam justas e compatíveis com a
consciência moral da sociedade. Enfim, destaca-se a importância da harmonia
entre os princípios do direito natural e o direito positivo, e a necessidade de que
o direito positivo seja compatível com os princípios do direito natural para garantir
a justiça e a equidade na ordem jurídica.

5.3 O SISTEMA PENAL E AS DOENÇAS MENTAIS

O sistema de execução penal pode lidar com pessoas com doenças


mentais e alta periculosidade através de diversas medidas de proteção e
tratamento, incluindo a internação em unidades psiquiátricas especializadas, o
acompanhamento médico regular e o tratamento psicológico. No entanto, a
aplicação dessas medidas deve ser feita de forma equilibrada, respeitando os
direitos humanos e a dignidade da pessoa. A Lei nº 10.216/2001 estabeleceu
regras para o tratamento de pessoas com transtornos mentais em instituições de
saúde, incluindo a obrigação de garantir um tratamento adequado e humanitário,
sempre baseado em evidências científicas e princípios éticos.
Sabe-se que a psicologia forense é o ramo da Medicina Legal que estuda
os problemas da psicologia normal ou patológica, sendo esta chamada de
psicopatologia forense. É através da Medicina Legal que os profissionais do
direito terão o norte para saber o que é doença mental, desenvolvimento mental
incompleto ou retardado e transtorno mental. Também é através dela, com
laudos fundamentados, é que o Juiz decidirá sobre a capacidade penal do
agente, seja ela total ou parcial.
Os laudos médico legais também poderão conter a afirmação de que o
agente é tão somente portador de transtorno mental, o que faz dele um ser capaz
80

de responder por seus atos criminosos. Se o agente for plenamente capaz, ele
receberá pena, conforme o mínimo e o máximo pelo delito por ele praticado.
Se o agente for relativamente incapaz, receberá pena, que será reduzida
na proporção em que fixada pelo parágrafo único do artigo 26 do Código Penal:
“de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental
ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente
capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com
esse entendimento (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Se o agente
for inimputável por completo, receberá pedida de medida de segurança, que,
dependendo do caso poderá ser detentiva ou ambulatorial.
A medida de segurança é aplicada ao agente que não possuía, ao tempo
da ação ou omissão típica e antijurídica, capacidade mental de entender a
ilicitude de sua ação, ou de autodeterminar-se de acordo com o caráter ilícito do
fato. Para aplicação da Medida de Segurança o Magistrado deve estar convicto
da periculosidade do agente devido, diretamente relacionada à sua doença
mental, permitindo deliberar sobre sua internação em instituição psiquiátrica para
tratamento de sua patologia. Sempre bom lembrar o disposto no artigo 182 do
Código de Processo Penal, para as perícias e laudos em geral: “O juiz não ficará
adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”
É o denominado sistema liberatório. Por óbvio que, para refutar qualquer
laudo, o juiz, além de ter de fundamentar, à exaustão, a sua decisão, seja no
todo seja em parte, militará em favor dele a presunção de vasto conhecimento
médico legal e de patologias mentais, sob pena de ser uma decisão facilmente
desfeita. Ainda seguindo Hélio Tornaghi ( 1991, p.255), aprende-se:
Na lei brasileira a causa biológica é indispensável: é preciso que a
incapacidade decorras de doença mental, ou de desenvolvimento
mental retardado ou incompleto (de perturbação da saúde mental, diz
também o parágrafo único do art. 26 do CP). Mas não basta que ocorra
a causa, porque pode acontecer que o doente mental tenha podido
compreender inteiramente o ocará ter ilícito do fato e dirigir a própria
vontade na conformidade do que entendeu.

Mais uma vez fica claro: não se fala, em momento algum, em transtorno
mental, o que reforça a unidade das legislações já citadas, a partir da
Constituição Federal, fazendo um todo harmônico com a Lei 10.216/2001, que
trata da periculosidade de pessoas com transtorno mental que desafia medida
81

de segurança. O grande desafio aberto com a Lei 10.216/2001, não é de


interpretação legislativa, mas de operacionalidade,
E além da operacionalidade física, estatal, há que se registrar a
operacionalidade humana. Retorna-se a Van Gogh: se o diretor do “hospício” em
que ele se encontrava confinado não tivesse tido a sensibilidade que teve, o
mundo teria sido privado de um grande artista e de grandes obras.
Como pequeno exemplo disso, reprisar-se-á o artigo quinto desta Lei:

Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se


caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de
seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de
política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial
assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e
supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo,
assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.

A operacionalidade do que foi disposto na Lei 10.216/2001 é o grande


pondo de dificuldade da aplicação dela em sua plenitude. O estado de Roraima
não possui estabelecimentos físicos capazes de abrigar o público destinatário.
Ao depois, o Estado de Roraima não possui, ainda, profissionais capacitados e
multidisciplinares, que são muitos pela exigência desta Lei específica, para
oferecer o tratamento adequado.
A Constituição Federal, por óbvio, não foi alterada com o surgimento de
uma lei que lhe é inferior. O artigo 26 e seus incisos do Código Penal e 149 e
seguintes do Código de Processo Penal não foram revogados ou sequer
derrogados pela Lei posterior e sua especificidade. O máximo que poderá ser
alcançado pelo aplicador da Lei é o artigo 3º da Lei adjetiva penal. Não é
permitido, à vista de tudo que foi estudado, aplicação ou imposição de ativismo
judicial a qualquer título ou por qualquer razão. O transtorno mental é muito mais
difícil de ser diagnosticado do que a doença mental ou o desenvolvimento mental
incompleto ou retardado.
A mente humana é insondável até para o detentor dela, seja criminoso,
suicida ou hígida. O mecanismo de que se vale o ser humano para suportar os
revezes da vida, quando já não nasce doente, são de matizes tão diversos, que
não se tem como catalogá-los por inteiro.
No estágio atual da medicina, até a detecção de doenças mentais, de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado ou de transtornos mentais, é
82

difícil, complexo e não raro, falho. A medicina não dispõe de um diagnóstico


preciso, que dirá de um prognóstico, o que atalharia muitas sendas e
empreitadas criminosas.
Aqui, abrimos um parêntese para pontuar, de forma sintética, o que já
mencionamos em algum momento anterior a esse (no texto) que para
alcançarmos nosso objetivo geral nesse intento, precisaremos de:
1. Análise das leis atuais: é importante entender as leis atuais que regem
a medida de segurança detentiva, incluindo o Código Civil e a Lei nº
10.216/2001, bem como suas implicações e limitações.
2. Revisão de casos anteriores: é importante estudar casos anteriores
relacionados a esse tema para entender como as medidas de
segurança detentivas foram aplicadas e quais foram os resultados.
3. Consulta a especialistas: é importante consultar especialistas no
campo da saúde mental, direito e segurança pública para obter uma
visão ampla e abrangente sobre o tema.
4. Elaboração de uma proposta: com base nas informações coletadas, é
importante elaborar uma proposta que combine os mecanismos de
direito civil (como a interdição) com os mecanismos de internação
psiquiátrica compulsória para oferecer uma solução processual mais
eficaz e justa.
5. Divulgação e diálogo: por fim, é importante divulgar a proposta e
buscar o diálogo com os envolvidos, incluindo as autoridades
competentes, profissionais da saúde mental e familiares das pessoas
afetadas.
Lembramos ainda que a implementação de uma proposta desse tipo pode
ser um processo complexo e demorado, mas é importante persistir e continuar
lutando pelos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e pela
proteção da dignidade humana de todos os envolvidos.
Finaliza-se com Florbela Espanca, reproduzida a primeira estrofe de seu
poema “Tortura”:

Tirar dentro do peito a emoção,


A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento1...
83

A primeira estrofe do poema "Tortura" de Florbela Espanca destaca a


importância da emoção, da verdade e do sentimento como parte integrante da
nossa identidade e da nossa humanidade. É por meio desses aspectos que
expressamos nossas emoções e sentimentos, e é por meio deles que
conseguimos nos conectar com os outros e construir relacionamentos
significativos.
No entanto, a ideia de "tirar" esses aspectos de nós mesmos é descrita
como uma tortura, uma forma de violência contra nossa identidade e
humanidade. É como se fôssemos privados daquilo que nos torna únicos e
humanos, reduzidos a um "punhado de cinza esparso ao vento". Esse poema
reflete a importância da preservação da dignidade humana e da proteção dos
direitos humanos. É fundamental que as pessoas portadoras de transtornos
mentais sejam tratadas com respeito e dignidade, e que seus direitos sejam
protegidos. Não podemos permitir que eles sejam privados daquilo que os torna
únicos e humanos, como descrito no poema.
A implementação da proposta que mencionamos anteriormente é,
portanto, uma forma de proteger a dignidade humana dessas pessoas e garantir
que seus direitos sejam respeitados. É uma luta constante, mas é importante
persistir na busca pela justiça e pela igualdade. Finalizando, por mais atento que
se esteja aos sinais de transtornos mentais, que são de difícil diagnóstico, só
resta o consolo dos poetas:

Atentou contra a existência


Num humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João
Depois de medicada
Retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão
O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste que errou
Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal
a dor da gente não sai no jornal”.
(Chico Buarque de Hollanda)
84

A poesia retrata a triste realidade de muitas pessoas que sofrem de


transtornos mentais e que muitas vezes são abandonadas pelo sistema de saúde
e pela sociedade. A falta de atenção e de tratamento adequado para essas
pessoas pode levar a uma piora da condição e até mesmo a um final trágico,
como o descrito na poesia.
É importante lembrar que a saúde mental é tão importante quanto a saúde
física e que é necessário investir em políticas públicas eficazes para prevenir e
tratar os transtornos mentais. Além disso, é importante que a sociedade se
conscientize da importância da prevenção e do tratamento desses transtornos e
se mobilize para exigir políticas mais eficazes e acessíveis.
O tratamento dos transtornos mentais deve ser baseado em uma
abordagem interdisciplinar, incluindo a participação de médicos, psicólogos e
outros profissionais da saúde, e deve ser adaptado às necessidades individuais
de cada paciente. Além disso, é importante garantir acesso a tratamentos
eficazes, incluindo medicamentos e terapias, e apoio aos familiares e aos
cuidadores.
Apoiar e tratar as pessoas com transtornos mentais é uma questão de
direitos humanos e de responsabilidade social. Não podemos deixar que mais
pessoas siga o caminho de Joana, descrito na poesia. Devemos agir agora para
mudar essa realidade.
Por mais divulgação que se tenha da “dor” daqueles que padecem de
distúrbios mentais, doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, ela será apenas “mais” uma notícia: “quem, como, quando, onde e
porque”. É o que é ensinado nas Faculdades de Comunicação já no primeiro
semestre. Fora disso... Essa dor e principalmente, das vítimas, dos familiares
das vítimas, dos agentes, e dos familiares do agente, é matéria prima para o
Direito, latu sensu.

5.4 MOVIMENTO DA LUTA ANTIMANICOMIAL

O Movimento da Luta Antimanicomial se caracteriza pela luta pelos direi-


tos das pessoas com sofrimento mental. Dentro desta luta está o combate à ideia
de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de pretensos
85

tratamentos, ideia baseada apenas nos preconceitos que cercam a doença men-
tal. O Movimento da Luta antimanicomial faz lembrar que como todo cidadão
estas pessoas têm o direito fundamental à liberdade, o direito a viver em socie-
dade, além do direto a receber cuidado e tratamento sem que para isto tenham
que abrir mão de seu lugar de cidadãos” (Associação De Volta pra Casa - Blog
da Saúde/Ministério da Saúde).
Não se trata de preconceitos, mas de pós conceitos. A literatura jurídica e
médico legal está cheia de exemplo vivos do sofrimento de familiares e cuidado-
res, profissionais ou não, que não conseguem contornar situações de grave e
real risco às próprias integridades físicas e de terceiros.
Escreveu Joana Domingos Vargas, In FAMILIARES OU DESCONHECI-
DOS? A relação entre os protagonistas do estupro no fluxo do Sistema de Justiça
Criminal:

(...) os agressores conhecidos são identificados principalmente como


pais de meia idade, que agem repetidamente em casa quando a mãe
não está presente. A queixa que envolve familiares também adquire
uma caracterização que lhe é própria: "muitas vezes a mãe tenta retirar
a queixa, por medo, por não querer que o marido perca o emprego,
então diz que mentiu [...] são casos e mais casos em que é a palavra
da criança contra a família inteira".11 Irei sustentar que, ainda que o
grau de relacionamento entre as partes seja fundamental para definir
as estratégias dos operadores do Sistema de Justiça Criminal, já que
se pode constituir em circunstância agravante do estupro, tal relação,
por sua vez, acaba dificultando as decisões, na medida em que con-
grega conflitos pessoais, de conteúdo emociona.

Estes criminosos estarão no seio familiar, em função da política antimani-


comial e, com certeza, farão estragos irreversíveis em toda a comunidade do-
méstica, podendo se espraiar para terceiros próximos, como vizinhos ou paren-
tes mais distantes, por falta de policiamento e contenção adequados. Com os
crimes contra a vida, tentados ou consumados, acontece a mesma coisa. Mari-
ana Zylberkan (2013), já documentava:

Para uma modalidade de homicídio considerada rara, que ocupa, se-


gundo especialistas, fatia de 1% a 4% de todos os assassinatos come-
tidos, a matança em família tem se mostrado um crime bastante recor-
rente no Brasil. Só neste ano, o país registrou, pelo menos, trinta casos
parecidos ao dos Pesseghini, investigado pela polícia sob a tese de
que o menino Marcelo, de 13 anos, matou os pais, a avó e a tia-a-avó
e se suicidou no dia seguinte, em 5 de agosto. Boa parte desses casos
aconteceu nas semanas subsequentes à tragédia na casa no bairro de
Brasilândia, em São Paulo.
86

E a mesma doutrinadora continua:

Pelos olhos da psiquiatria, todo assassinato cometido entre membros de


uma mesma família é determinado pela presença de um quadro de psi-
copatologia em quem mata. Os psiquiatras são reticentes em elencar as
doenças mentais mais comuns nesses casos, para evitar o preconceito
contra os doentes, mas as de espectro psicótico, em que a percepção
da realidade é distorcida, estão no topo da lista das mais recorrentes,
além de alcoolismo e vício em drogas (Zylberkan, 2013).

Na mesma toada, continua a escritora: “É mais provável matar uma pes-


soa do seu convívio próprio do que um total desconhecido” (Zylberkan, 2013). A
banalização da violência e a sensação de impunidade contribui para a maior in-
cidência de crimes em geral. No caso dos homicídios em família, é o que faz
uma discussão se transformar em uma tragédia. E arremata:

Aliado a todos esses fatores – histórico de maus tratos na infância,


componente genético e doenças mentais – há mais um determinado
pela criminologia. O estudo do crime acredita que as chances de al-
guém matar outra pessoa aumentam consideravelmente de acordo
com o tempo em que elas passam juntas cotidianamente. Isso explica-
ria os crimes cometidos entre casais e parentes que moram na mesma
casa (Zylberkan, 2013).

Mais uma vez a lógica está sendo desafiada. A gênese da política antima-
nicomial remonta ao Projeto de Lei, transformado na Lei Ordinária 10216/2001,
de autoria do então Deputado mineiro Paulo Delgado, e data de 12/09/1989.
Sua ementa “dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua
substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiqui-
átrica compulsória. Nova Ementa do Substitutivo do Senado: dispõe sobre a pro-
teção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental. Em resumo, estabelecido ficou que “a
internação psiquiátrica só será indicada quando os recursos extra-hospitalares
se mostrarem insuficientes”.
Há de se perguntar: quem irá determinar essa hipossuficiênia dos recur-
sos extra hospitalares? O Magistrado? Uma junta de psiquiatras? Uma comissão
multidisciplinar? A vida é dinâmica. A doença mental e os transtornos mentais
bem mais dinâmicos o são. Como equacionar todas estas questões? A respostas
a estas questões vai fazer efervescer, ainda mais o ativismo judicial, que já se
87

estendeu além das fronteiras do direito positivo e se tornou bastante perigoso.


Tudo chega a dar “arrepios”. Um voo rasante sobre um problema constante.
A maconha está presente em 30% dos casos de esquizofrenia em homens
jovens que estão ligados ao uso contínuo da cannabis, segundo uma pesquisa
realizada pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos envol-
veu análise de cerca de sete milhões de pessoas (O Globo, 2023).
O estudioso do assunto, José Elias Murad, mineiro da gema, com vários
livros publicados, é natural de Ribeirão Vermelho/MG. Graduou-se em Farmácia
pela Universidade Federal de Minas Gerais e depois em Medicina, sendo pós-
graduado, com Especialização em Psicotrópicos, pela Faculdade de Medicina
de Paris, França, e Especialização em Bioquímica Cerebral, pela Faculdade de
Medicina do Texas, também Professor e Diretor da Faculdade de Ciências Mé-
dicas de Minas Gerais e Diretor do Colégio Estadual Central sempre teve como
tema prioritário a defesa da saúde pública e, em particular, uso abusivo de dro-
gas.
Sempre se posicionou favorável ao uso racional de medicamentos, como
presidente da – Associação Brasileira Comunitária para a Prevenção do Abuso
de Drogas, por ele fundado, assim se posiciona:
“AON, um jovem de 19 anos, procurou-nos no Centro de Orientação So-
bre Drogas José Elias Murad (COSDJEM) encaminhado pela mãe. Perguntei-
lhe que droga estava usando, ele respondeu:
__ “Boi”.

__ “Boi”?, o que é isso?__ Perguntei.


__ Uai, professor, o senhor não sabe o que é o “Boi”?
É o xarope.
__ Xarope? E por que você chama o xarope de “Boi”?
__
Porque você toma e fica… “pastando”…4
É chocante. A esquizofrenia e os denominados transtornos esquizofrêni-
cos constituem um grupo de distúrbios mentais graves, sem sintomas patogno-
mônicos, mas caracterizados por distorções do pensamento e da percepção, por

4
Texto: José Elias Murad, Drogas: o que é preciso saber, editora lê,1997. Imagem: homem
ganha prêmio por viver pastando como um bode.
88

inadequação e embotamento do afeto sem prejuízo da capacidade intelectual


(embora ao longo do tempo possam aparecer prejuízos cognitivos).
Seu curso é variável, aproximadamente 30% dos casos apresentam recu-
peração completa ou quase completa, cerca de 30% com remissão incompleta
e prejuízo parcial de funcionamento e cerca de 30% com deterioração importante
e persistente da capacidade de funcionamento profissional, social e afetivo.
E o que é mais aflitivo: O tratamento da esquizofrenia não tem tempo
determinado. O período de reavaliação é de 6 meses, ocasião em que o médico
avaliará a efetividade e a segurança do tratamento. A duração indeterminada
segue apoiada por um estudo de meta-análise avaliando o efeito da sus-
pensão do uso da clorpromazina em pacientes esquizofrênicos estáveis.
Estudos prévios mostravam que 25% dos pacientes com apenas um quadro psi-
cótico não têm mais episódio depois de tratada a crise. (Sem o negrito no origi-
nal).
Isso exigirá do Magistrado um ativismo judicial que vai causar muitos ar-
repios. Um esquizofrênico, principalmente se a doença foi induzida pelo uso de
maconha, em surto, será sempre um perigo, para si e para terceiros. O socorro
chegaria a tempo de evitar-se uma tragédia? E como fazer o diagnóstico se o
médico legal estiver dispensado de agir, nos termos da resolução?
Outra fonte revela: segundo estudo da Universidade de Copenhague,
quem faz uso de maconha tem 5,2 vezes mais risco de desenvolver a esquizo-
frenia. Por outro lado, o álcool tem índice menor, de 3,4 vezes. Existe ainda o
termo “condutopata”, criado pelo renomado psiquiatra Guido Palomba, para de-
finir transtornos mentais, e não doenças mentais e que foi bem analisado por
Dhara Pires Pereira Brandão, Ghiany Paula Loss, Saara Shandy Duarte Ma-
chado Ferraresi e pela Prof.ª Layara Mota Gerhardt, que foi assim analisado In
“Condutopatas encarcerados: análise dos perfis que matam com requintes de
crueldade”.
89

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que foi discutido nesse trabalho perpassa as implicações da Resolução


n. 487 de 15 de fevereiro de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que
estabelece a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. E aqui, demonstra-se
uma preocupação com as consequências dessa resolução, especialmente no
que diz respeito ao tratamento de pessoas com transtorno mental ou deficiência
psicossocial envolvidas em processos criminais.
A resolução propõe uma série de diretrizes para garantir os direitos dessa
população, incluindo a criação de redes de atenção psicossocial e equipes
multidisciplinares de acompanhamento. Enfatiza-se que a implementação
dessas medidas exigirá a participação de profissionais especializados, como
médicos, psicólogos e assistentes sociais, para garantir o tratamento adequado.
Questiona-se, também, a inclusão de grupos específicos, como a
população negra, LGBTQIA+, mulheres, mães, pais, pessoas idosas, migrantes,
entre outros, no contexto da resolução. Propomos refletir acerca do porquê
dessas categorias serem destacadas e se isso representa uma mudança nas
normas tradicionais do Direito Processual Penal, que geralmente se concentra
na saúde mental.
Argumenta-se, ainda, que a resolução proíbe métodos de contenção
física, mecânica ou farmacológica desproporcionais ou prolongados, o
isolamento compulsório e a eletroconvulsoterapia, seguindo os protocolos
médicos. No entanto, ele levanta questões sobre a aplicabilidade dessas
restrições em casos em que o tratamento prolongado pode ser necessário, como
em outras doenças não mentais.
Além disso, critica-se a proibição da internação em instituições de caráter
asilar, argumentando que pessoas com doença mental ou transtorno mental
também podem precisar desse tipo de tratamento especializado, assim como
pacientes com outras condições médicas são encaminhados para hospitais
especializados.
É válido mencionar a importância da laicidade e liberdade religiosa,
destacando que qualquer restrição a esses direitos é inaceitável. Assim como,
ressaltar que a resolução visa manter os pacientes em seus ambientes sociais,
90

mas alerta para os riscos de autoagressão e heteroagressão, especialmente


quando se trata de transtornos mentais.
Por fim, busca-se trazer uma reflexão hipotética sobre a responsabilidade
civil e penal dos familiares de indivíduos com transtorno mental que cometem
crimes, quando não têm condições de pagar por cuidadores especializados, bem
como questionar quem será responsabilizado nesses casos e destaca a
complexidade das questões que envolvem essa política antimanicomial.
Enfim, são manifestas nossas preocupações sobre a implementação da
política antimanicomial proposta pela Resolução n. 487 do CNJ, destacando
questões relacionadas à necessidade de profissionais especializados, o
tratamento de pessoas com transtorno mental, a inclusão de grupos específicos,
a proibição de métodos de contenção, a internação em instituições asilares e a
responsabilidade dos familiares.
91

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2022.
95

ANEXO A- A RESOLUÇÃO N. 487, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2023 do CNJ.

Esta resolução institui a “Política Antimanicomial do Poder Judiciário e es-


tabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacio-
nal dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito
do processo penal e da execução das medidas de segurança”.

RESOLUÇÃO N. 487, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2023.


Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e
diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das
medidas de segurança.

A PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas


atribuições legais e regimentais, CONSIDERANDO os princípios da República
Federativa do Brasil, fundada na dignidade da pessoa humana e, especialmente, os
direitos fundamentais à saúde, ao devido processo legal e à individualização da pena
(CF, arts. 1º, III; 5º, XLVI, LIV e 6º, caput);

CONSIDERANDO a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006),


pela qual o Estado brasileiro comprometeu-se a promover o pleno exercício de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, sem qualquer
tipo de discriminação;

CONSIDERANDO a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas


Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e seu Protocolo Facultativo (2002) e a
necessidade de combater a sua prática nas instituições de tratamento da saúde mental,
públicas ou privadas, bem como a Resolução CNJ n. 414/2021, que estabelece
diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de delito nos casos
em que haja indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes, conforme os parâmetros do Protocolo de Istambul;Num. 5029601 - Pág.
1Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616
96

CONSIDERANDO o Ponto Resolutivo 8 da sentença da Corte Interamericana de Direito


Humanos proferida no Caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que determinou ao Estado
brasileiro continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o
pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem
e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre
os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental,
conforme os padrões internacionais sobre a matéria;

CONSIDERANDO que a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da


Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF Corte IDH/CNJ), instituída no âmbito
do Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução CNJ n. 364/2021, acompanha
o cumprimento das determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos em
relação ao Estado brasileiro;

CONSIDERANDO a Lei n. 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das


pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental;

CONSIDERANDO a Lei n. 13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com


Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que assegura e promove, em
condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por
pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania;

CONSIDERANDO a Resolução n. 32/18, adotada pela Assembleia Geral das Nações


Unidas em julho de 2016, que reafirma as obrigações dos Estados Membros em
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais e garantir
que políticas e serviços relacionados à saúde mental cumpram as normas internacionais
de direitos humanos;

CONSIDERANDO o Relatório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das


Nações Unidas, apresentado na 34ª Sessão da Assembleia Geral da ONU Num.
5029601 - Pág. 2Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER -
24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 em janeiro de 2017, que expõe um conjunto de
recomendações voltadas à qualificação dos serviços de saúde mental, a acabar com a
prática do tratamento involuntário e da institucionalização e para criação de um
97

ambiente político e legal que assegure a garantia dos direitos humanos das pessoas
com deficiências psicossociais;

CONSIDERANDO a Resolução n. 8/2019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos


(CNDH), destinada à orientação das políticas de saúde mental e uso problemático de
álcool e outras drogas em todo o território nacional, e as Resoluções n. 04/2010 e
05/2004 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), para a
aplicação da Lei n. 10.216/2001 à execução das medidas de segurança;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 113/2010 e a Recomendação CNJ n. 35/2011,


publicadas com o objetivo de adequar a atuação da justiça penal aos dispositivos da Lei
n. 10.216/2001, privilegiando-se a manutenção da pessoa em sofrimento mental em
meio aberto e o diálogo permanente com a rede de atenção psicossocial;

CONSIDERANDO o art. 9º, § 3º, da Resolução CNJ n. 213/2015, que dispõe sobre a
realização de audiência de custódia, disciplinando sobre a garantia de acesso aos
serviços médico e psicossocial, resguardada sua natureza voluntária, para pessoas que
apresentem quadro de transtorno mental ou dependência química;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 288/2019, que define a política institucional do


Poder Judiciário para a promoção da aplicação de alternativas penais, com enfoque
restaurativo, em substituição à privação de liberdade, bem como a Resolução n.
2002/2012 do Conselho Econômico e Social da ONU, destinada à orientação dos
princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativa em matéria
criminal, além da Resolução CNJ n. 225/2016, que dispõe sobre a Política Nacional de
Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário;Num. 5029601 - Pág. 3Assinado
eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 425/2021, que institui, no âmbito do Poder


Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e
suas interseccionalidades;
98

CONSIDERANDO a atenção às minorias com vulnerabilidades acrescidas e suas


interseccionalidades, bem como os atos normativos do CNJ sobre a temática em relação
à privação de liberdade, como a Resolução CNJ n. 287/2019 (indígenas); Resolução
CNJ n. 348/2020 (LGBTI); Resolução CNJ n. 405/021 (migrantes); Resolução CNJ n.
369/2021 (gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com
deficiência);

CONSIDERANDO a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas


Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS), instituída por meio da Portaria Interministerial n. 1/2014, dos Ministérios
da Saúde e da Justiça, bem como a Portaria n. 94/2014, do Ministério da Saúde, que
institui o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à
pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS);

CONSIDERANDO as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da


Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Pequim);

CONSIDERANDO o art. 112, § 3° do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),


instituído pela Lei n. 8.069/1990, que dispõe que adolescente com sofrimento mental ou
transtorno psíquico deverão receber tratamento individual e especializado, em local
adequado às suas condições;

CONSIDERANDO o art. 64, em especial, § 7° da Lei n. 12.594/2012, que institui o


Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que dispõe que o
tratamento a que se submeterá o adolescente com sofrimento mental ou transtorno
psíquico deverá observar o previsto na Lei n. 10.216/2001; Num. 5029601 - Pág.
4Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616

CONSIDERANDO, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes


em Conflito com a Lei (PNAISARI) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
regulamentada pelas Portarias Consolidadas/MS n. 2/2017 (Anexo XVII) e n. 6/2017
(Seção V, Capítulo II);
99

CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ, no Procedimento de Ato


Normativo n. 0007026-10.2022.2.00.0000, 1ª Sessão Virtual, realizada em 10 de
fevereiro de 2023;

RESOLVE:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Instituir a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, por meio de procedimentos
para o tratamento das pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência
psicossocial que estejam custodiadas, sejam investigadas, acusadas, rés ou privadas
de liberdade, em cumprimento de pena ou de medida de segurança, em prisão
domiciliar, em cumprimento de alternativas penais, monitoração eletrônica ou outras
medidas em meio aberto, e conferir diretrizes para assegurar os direitos dessa
população.

Art. 2º Para fins desta Resolução, considera-se:


I – pessoa com transtorno mental ou com qualquer forma de deficiência psicossocial:
aquela com algum comprometimento, impedimento ou dificuldade psíquica, intelectual
ou mental que, confrontada por barreiras atitudinais ou institucionais, tenha inviabilizada
a plena manutenção da organização da vida ou lhe cause sofrimento psíquico e que
apresente necessidade de cuidado em saúde mental em qualquer fase do ciclo penal,
independentemente de exame médico-legal ou medida de segurança em curso;

II – Rede de Atenção Psicossocial (Raps): rede composta por serviços e equipamentos


variados de atenção à saúde mental, tais como os Centros de Atenção Psicossocial
(Caps), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros deNum. 5029601 -
Pág. 5. Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023
21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 Convivência e Cultura, as Unidades de
Acolhimento (UAs) e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos Caps III),
presentes na Atenção Básica de Saúde, na Atenção Psicossocial Estratégica, nas
urgências, na Atenção Hospitalar Geral, na estratégia de desinstitucionalização, como
as Residências Terapêuticas, o Programa de Volta para Casa (PVC) e estratégias de
reabilitação psicossocial;
100

III – Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à


Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP): equipe multidisciplinar que
acompanha o tratamento durante todas as fases do procedimento criminal com o
objetivo de apoiar ações e serviços para atenção à pessoa com transtorno mental em
conflito com a lei na Rede de Atenção à Saúde (RAS) e para viabilizar o acesso à Rede
de Atenção Psicossocial (Raps);

IV – equipe conectora: equipe vinculada ao Sistema Único de Saúde (SUS) que exerça
função análoga à da EAP;

V – equipe multidisciplinar qualificada: equipe técnica multidisciplinar que tenha


experiência e incursão nos serviços com interface entre o Poder Judiciário, a saúde e a
proteção social; do Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec); do Serviço de
Acompanhamento de Alternativas Penais; da EAP ou outra equipe conectora;

VI – Projetos Terapêuticos Singulares (PTS): conjunto de propostas de condutas


terapêuticas articuladas para um indivíduo, uma família ou comunidade, resultado da
discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar e centrado na singularidade da pessoa
em tratamento, de modo a contribuir para a estratégia compartilhada de gestão e de
cuidado, possibilitando a definição de objetivos comuns entre equipe e sujeito em
acompanhamento em saúde; e

VII – Modelo Orientador: modelo elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça com o
objetivo de instruir o Poder Judiciário acerca dos fluxos a serem adotados para o
cuidado da pessoa com transtorno mental submetida a procedimento criminal, em local
adequado à atenção em saúde a fim de adotar os parâmetros dispostos na presente
Resolução.

Parágrafo único. Estão abrangidas por esta Resolução, nos termos do caput deste
artigo, as pessoas em sofrimento ou com transtorno mental relacionado ao Num.
5029601 - Pág. 6Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER -
24/02/2023 21:03:38
101

https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 uso abusivo de álcool e outras drogas, que serão
encaminhadas para a rede de saúde, nos termos do art. 23-A da Lei n. 11.343/2006,
garantidos os direitos previstos na Lei n. 10.216/2001.

Art. 3º São princípios e diretrizes que regem o tratamento das pessoas com transtorno
mental no âmbito da jurisdição penal:

I – o respeito pela dignidade humana, singularidade e autonomia de cada pessoa;

II – o respeito pela diversidade e a vedação a todas as formas de discriminação e


estigmatização, com especial atenção aos aspectos interseccionais de agravamento e
seus impactos na população negra, LGBTQIA+, mulheres, mães, pais ou cuidadores de
crianças e adolescentes, pessoas idosas, convalescentes, migrantes, população em
situação de rua, povos indígenas e outras populações tradicionais, além das pessoas
com deficiência;

III – o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e o acesso à justiça em


igualdade de condições;

IV – a proscrição à prática de tortura, maus tratos, tratamentos cruéis, desumanos ou


degradantes;

V – a adoção de política antimanicomial na execução de medida de segurança;

VI – o interesse exclusivo do tratamento em benefício à saúde, com vistas ao suporte e


reabilitação psicossocial por meio da inclusão social, a partir da reconstrução de laços
e de referências familiares e comunitárias, da valorização e do fortalecimento das
habilidades da pessoa e do acesso à proteção social, à renda, ao trabalho e ao
tratamento de saúde;

VII – o direito à saúde integral, privilegiando-se o cuidado em ambiente terapêutico em


estabelecimentos de saúde de caráter não asilar, pelos meios menos invasivos
possíveis, com vedação de métodos de contenção física, mecânica ou farmacológica
desproporcional ou prolongada, excessiva medicalização, impedimento de acesso a
102

tratamento ou medicação, isolamento compulsório, alojamento em ambiente impróprio


e eletroconvulsoterapia em desacordo com os protocolos médicos e as normativas de
direitos humanos;Num. 5029601 - Pág. 7Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA
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VIII – a indicação da internação fundada exclusivamente em razões clínicas de saúde,


privilegiando-se a avaliação multiprofissional de cada caso, pelo período estritamente
necessário à estabilização do quadro de saúde e apenas quando os recursos extra-
hospitalares se mostrarem insuficientes, vedada a internação em instituição de caráter
asilar, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) e
estabelecimentos congêneres, como hospitais psiquiátricos;

IX – a articulação interinstitucional permanente do Poder Judiciário com as redes de


atenção à saúde e socioassistenciais, em todas as fases do procedimento penal,
mediante elaboração de PTS nos casos abrangidos por esta Resolução;

X – a restauratividade como meio para a promoção da harmonia social, mediante a


garantia do acesso aos direitos fundamentais e a reversão das vulnerabilidades sociais;

XI – atenção à laicidade do Estado e à liberdade religiosa integradas ao direito à saúde,


que resultam na impossibilidade de encaminhamento compulsório a estabelecimentos
que não componham a Raps ou que condicionem ou vinculem o tratamento à conversão
religiosa ou ao exercício de atividades de cunho religioso; e

XII – respeito à territorialidade dos serviços e ao tratamento no meio social em que vive
a pessoa, visando sempre a manutenção dos laços familiares e comunitários.

CAPÍTULO II
DAS DIRETRIZES DA POLÍTICA ANTIMANICOMIAL
Seção I
Das audiências de custódia
103

Art. 4º Quando apresentada em audiência de custódia pessoa com indícios de


transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial identificados por equipe
multidisciplinar qualificada, ouvidos o Ministério Público e a defesa, caberá à autoridade
judicial o encaminhamento para atendimento voluntário na Raps voltado à proteção
social em políticas e programas adequados, a partir de fluxos pré-estabelecidos com a
rede, nos termos da Resolução CNJ n. 213/2015 e do Modelo Orientador CNJ. Num.
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Parágrafo único. Será assegurada à pessoa com indícios de transtorno mental ou


qualquer forma de deficiência psicossocial a oportunidade de manifestar a vontade de
ter em sua companhia pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das
redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim
de assisti-la durante o ato judicial.

Art. 5º Nos casos em que a autoridade judicial, com apoio da equipe multidisciplinar e
após ouvidos o Ministério Público e a defesa, entender que a pessoa apresentada à
audiência de custódia está em situação de crise em saúde mental e sem condições de
participar do ato, solicitará tentativas de manejo de crise pela equipe qualificada.

§ 1º Para efeitos deste artigo, entende-se por manejo da crise o imediato acionamento
de equipe de saúde da Raps para a tomada de medidas emergenciais e referenciamento
do paciente ao serviço de saúde, além da realização de ações de escuta, compreensão
da condição pessoal, produção imediata de consensos possíveis, mediação entre a
pessoa e as demais presentes no ambiente e a restauração do diálogo, bem como, o
quanto antes, a identificação dos fatores que possivelmente desencadearam a crise.

§ 2º Caso exauridas sem sucesso as tentativas de manejo de crise, a autoridade judicial


realizará o encaminhamento da pessoa para atendimento em saúde por meio do Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou outros serviços da Raps, e providenciará
o registro da não realização da audiência de custódia, por meio de termo no qual
constará:
104

I – a determinação para elaboração de relatório médico acompanhado, se for o caso, de


informes dos demais profissionais de saúde do estabelecimento ao qual a pessoa presa
em flagrante for encaminhada, a fim de documentar eventuais indícios de tortura ou
maus tratos, a ser remetido ao juízo em 24 (vinte e quatro) horas;

II – a requisição imediata de informações às secretarias municipal ou estadual de saúde


sobre a atual condição da pessoa e indicação de acompanhamento em saúde mais
adequado, que poderá compor o PTS, com descrição de eventual tratamento que esteja
em curso, a serem prestadas em 48 (quarenta e oito) horas, com a finalidade de
subsidiar a tomada de decisão judicial.Num. 5029601 - Pág. 9Assinado eletronicamente
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§ 3º Caso a pessoa não receba alta médica para ser apresentada em juízo no prazo
legal, a autoridade judicial poderá realizar o ato no local em que a pessoa se encontrar
e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá providenciar a
condução para a realização da audiência de custódia imediatamente após restabelecida
sua condição de saúde ou de apresentação.

Art. 6º A autoridade judicial, quando da análise da legalidade da prisão em flagrante,


avaliará se o uso de algemas ou instrumentos de contenção física atendeu aos
princípios da proporcionalidade e não discriminação, considerada a condição de saúde
mental da pessoa, ou se ocorreu de maneira a causar deliberadamente dores ou lesões
desnecessárias, o que poderia configurar hipótese de tortura ou maus tratos, conforme
os parâmetros elencados pelo CNJ no Manual de Algemas e Outros Instrumentos de
Contenção em Audiências Judiciais.

Art. 7º Nos casos dos art. 4º ou 5º, não sendo hipótese de relaxamento da prisão, a
autoridade judicial avaliará a necessidade e adequação de eventual medida cautelar,
consideradas as condições de saúde da pessoa apresentada e evitando a imposição
de:
I – medida que dificulte o acesso ou a continuidade do melhor tratamento disponível, ou
que apresente exigências incompatíveis ou de difícil cumprimento diante do quadro de
saúde apresentado; e
105

II – medidas concomitantes que se revelem incompatíveis com a rotina de


acompanhamento na rede de saúde.

§ 1º Será priorizada a adoção de medidas distintas do monitoramento eletrônico para


pessoas com transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial, sem que
isso enseje a aplicação de medidas que obstem o tratamento em liberdade.

§ 2º A autoridade judicial levará em consideração as condições que ampliem a


vulnerabilidade social, bem como os aspectos interseccionais, no caso de pessoas em
situação de rua, população negra, mulheres, população LGBTQIA+, mães, pais ou
cuidadores de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas convalescentes,
migrantes, povos indígenas e outras populações tradicionais, para que a aplicação de
Num. 5029601 - Pág. 10Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER -
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23022421033876500000004565616 eventual medida seja condizente com a realidade
social e o referenciamento aos serviços especializados da rede de proteção social.
Art. 8º Nos casos em que a autoridade judicial substituir a prisão preventiva pela
domiciliar, nos termos do art. 318 do Código de Processo Penal, serão garantidos a
possibilidade de tratamento adequado na Raps e o exercício de outras atividades que
reforcem a autonomia da pessoa, como trabalho e educação.

Seção II
Da necessidade de tratamento em saúde mental no curso de prisão preventiva ou outra
medida cautelar

Art. 9º No caso de a pessoa necessitar de tratamento em saúde mental no curso de


prisão processual ou outra medida cautelar, a autoridade judicial:

I – no caso de pessoa presa, reavaliará a necessidade e adequação da prisão


processual em vigor ante a necessidade de atenção à saúde, para início ou continuidade
de tratamento em serviços da Raps, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério
Público e a defesa;

II – no caso de pessoa solta, reavaliará a necessidade e adequação da medida cautelar


em vigor, observando-se as disposições do artigo anterior.
106

Parágrafo único. O encaminhamento para os serviços da Raps ou rede de proteção


social será apoiado pelas equipes mencionadas no art. 2º, III, IV e V, considerando a
interlocução entre esses serviços e os equipamentos responsáveis pelo tratamento em
saúde, de modo que eventuais subsídios sobre a singularidade do acompanhamento da
pessoa sejam aportados ao processo visando a priorização da saúde.

Art. 10. A análise sobre a imputabilidade da pessoa, quando necessária, poderá ser
qualificada com requisição de informações sobre o atendimento e o tratamento
dispensado nos serviços aos quais a pessoa esteja vinculada, respeitado o sigilo de
informações pessoais e médicas.

Parágrafo único. Considerando que o incidente de insanidade mental que subsidiará a


autoridade judicial na decisão sobre a culpabilidade ou não do réu é prova pericial
constituída em favor da defesa, não é possível determiná-la compulsoriamente em caso
de oposição desta.Num. 5029601 - Pág. 11Assinado eletronicamente por: ROSA
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2421033876500000004565616 Número do documento:
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Seção III
Da medida de segurança
Art. 11. Na sentença criminal que imponha medida de segurança, a autoridade judicial
determinará a modalidade mais indicada ao tratamento de saúde da pessoa acusada,
considerados a avaliação biopsicossocial, outros exames eventualmente realizados na
fase instrutória e os cuidados a serem prestados em meio aberto.

Parágrafo único. A autoridade judicial levará em conta, nas decisões que envolvam
imposição ou alteração do cumprimento de medida de segurança, os pareceres das
equipes multiprofissionais que atendem o paciente na Raps, da EAP ou outra equipe
conectora.

Subseção I
Do tratamento ambulatorial
107

Art. 12. A medida de tratamento ambulatorial será priorizada em detrimento da medida


de internação e será acompanhada pela autoridade judicial a partir de fluxos
estabelecidos entre o Poder Judiciário e a Raps, com o auxílio da equipe multidisciplinar
do juízo, evitando-se a imposição do ônus de comprovação do tratamento à pessoa com
transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial.

§ 1º O acompanhamento da medida levará em conta o desenvolvimento do PTS e


demais elementos trazidos aos autos pela equipe de atenção psicossocial, a existência
e as condições de acessibilidade ao serviço, a atuação das equipes de saúde, a
vinculação e adesão da pessoa ao tratamento.

§ 2º Eventuais interrupções no curso do tratamento devem ser compreendidas como


parte do quadro de saúde mental, considerada a dinâmica do acompanhamento em
saúde e a realidade do território no qual a pessoa e o serviço estão inseridos.
§ 3º A ausência de suporte familiar não deve ser entendida como condição para a
imposição, manutenção ou cessação do tratamento ambulatorial ou,ainda, para a
desinternação condicional.Num. 5029601 - Pág. 12Assinado eletronicamente por:
ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
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2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616

§ 4º Eventual prescrição de outros recursos terapêuticos a serem adotados por equipe


de saúde por necessidade da pessoa e enquanto parte de seu PTS, incluindo a
internação, não deve ter caráter punitivo, tampouco deve ensejar a conversão da
medida de tratamento ambulatorial em medida de internação.

§ 5º A autoridade judicial avaliará a possibilidade de extinção da medida


de segurança, no mínimo, anualmente, ou a qualquer tempo, quando requerido pela
defesa ou indicada pela equipe de saúde que acompanha o paciente, não estando
condicionada ao término do tratamento em saúde mental.

Subseção II
Da medida de internação
Art. 13. A imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória
ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes
108

outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso


terapêutico momentaneamente adequado no âmbito do PTS, enquanto necessárias ao
restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescritas por equipe de saúde da
Raps.

§ 1º A internação, nas hipóteses referidas no caput, será cumprida em leito de saúde


mental em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da
Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno
mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou
seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os
HCTPs ou equipamentos congêneres, assim entendidas aquelas sem condições de
proporcionar assistência integral à saúde da pessoa ou de possibilitar o exercício dos
direitos previstos no art. 2º da Lei n. 10.216/2001.

§ 2º A internação cessará quando, a critério da equipe de saúde multidisciplinar, restar


demonstrada a sua desnecessidade enquanto recurso terapêutico, caso em que,
comunicada a alta hospitalar à autoridade judicial, o acompanhamento psicossocial
poderá continuar nos demais dispositivos da Raps, em meio aberto.

§ 3º Recomenda-se à autoridade judicial a interlocução constante com a equipe do


estabelecimento de saúde que acompanha a pessoa, a EAP ou outra equipeNum.
5029601 - Pág. 13Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER -
24/02/202321:03:38https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/list
View.seam?x=23022421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 conectora, para que sejam realizadas avaliações
biopsicossociais a cada 30 (trinta) dias, a fim de se verificar as possibilidades de
reversão do tratamento para modalidades em liberdade ou mesmo para sua extinção.

Art. 14. Serão proporcionadas ao paciente em internação, sem obstrução administrativa,


oportunidades de reencontro com sua comunidade, sua família e seu círculo social, com
atividades em meio aberto, sempre que possível, evitando-se ainda sua exclusão do
mundo do trabalho, nos termos do PTS.

Seção IV
Da necessidade de tratamento em saúde mental no curso da execução da pena Art. 15.
Nos casos em que a pessoa submetida ao cumprimento de pena necessitar de
tratamento em saúde mental, a autoridade judicial avaliará a necessidade e adequação
109

da prisão em vigor ante a demanda de atenção à saúde, para início ou continuidade de


tratamento em serviços da Raps, ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público
e a defesa.

Parágrafo único. O encaminhamento para os serviços da Raps e à rede de proteção


social será apoiado pelas equipes de saúde das unidades prisionais, pela EAP e demais
equipes conectoras, a partir de constante interlocução com os equipamentos da Raps
responsáveis pelo tratamento, de modo que subsídios sobre a singularidade do
acompanhamento da pessoa sejam aportados ao processo com a finalidade de
priorização da saúde.

Seção V
Da desinstitucionalização

Art. 16. No prazo de até 6 (seis) meses, contados a partir da entrada em vigor desta
Resolução, a autoridade judicial competente revisará os processos a fim de avaliar a
possibilidade de extinção da medida em curso, progressão para tratamento ambulatorial
em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, nos casos
relativos:

I – à execução de medida de segurança que estejam sendo cumpridas em HCTPs, em


instituições congêneres ou unidades prisionais;Num. 5029601 - Pág. 14Assinado
eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616

II – a pessoas que permaneçam nesses estabelecimentos, apesar da extinção da


medida ou da existência de ordem de desinternação condicional; e

III – a pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial que estejam em prisão
processual ou cumprimento de pena em unidades prisionais, delegacias de polícia ou
estabelecimentos congêneres.

Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, o Comitê Estadual Interinstitucional de


Monitoramento da Política Antimanicomial previsto no art. 20, VI, e as equipes
110

conectoras ou multidisciplinares qualificadas apoiarão as ações permanentes de


desinstitucionalização.

Art. 17. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a autoridade judicial competente
para a execução penal determinará a elaboração, no prazo de 12 (doze) meses
contados da entrada em vigor desta Resolução, de PTS para todos os pacientes em
medida de segurança que ainda estiverem internados em HCTP, em instituições
congêneres ou unidades prisionais, com vistas à alta planejada e à reabilitação
psicossocial assistida em meio aberto, a serem apresentadas no processo ou em
audiência judicial que conte com a participação de representantes das entidades
envolvidas nos PTSs.

Art. 18. No prazo de 6 (seis) meses contados da publicação desta Resolução, a


autoridade judicial competente determinará a interdição parcial de estabelecimentos,
alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com
proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 (doze) meses a
partir da entrada em vigor desta Resolução, a interdição total e o fechamento dessas
instituições.

CAPÍTULO III
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 19. Recomenda-se, sempre que possível, em qualquer fase processual, a derivação
de processos criminais que envolvem pessoas com transtorno mental ou qualquer forma
de deficiência psicossocial para programas comunitários ou judiciários de justiça
restaurativa, a partir da utilização de vias consensuais alternativas,Num. 5029601 - Pág.
15Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 visando à desinstitucionalização, em consonância
com os princípios norteadores da justiça restaurativa presentes na Resolução CNJ n.
225/2016.

Art. 20. Os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs) dos


tribunais poderão:

I – realizar inspeções judiciais, de modo conjunto com as autoridades judiciais da


execução penal, nos estabelecimentos em que estejam internadas pessoas em
111

cumprimento de medida de segurança, bem como aquelas internadas provisoriamente,


podendo, para tanto, articular-se com as secretarias de saúde, conselhos profissionais
com atuação na área da saúde, como os Conselhos Regional ou Federal de Serviço
Social e de Psicologia, e instâncias paritárias e organizações da sociedade civil, para
verificar as condições dos referidos espaços à luz da Lei n. 10.216/2001;

II – mobilizar a Raps, juntamente com a EAP, visando a integração entre as práticas


inerentes à justiça criminal e à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das
Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) e o direcionamento de
formas de atenção segundo as premissas consignadas nesta norma e nos moldes
previstos no art. 4º, § 4º da Portaria n. 94/GM/MS, de 14 de janeiro de 2014;

III – fomentar a atuação do Poder Judiciário de modo articulado com a EAP e demais
equipes conectoras para a identificação de pessoas com transtorno mental ou qualquer
forma de deficiência psicossocial em unidades de custódia potencialmente destinatários
de medidas terapêuticas;

IV – fomentar a instituição e o fortalecimento da PNAISP e da EAP junto às Secretarias


Estadual e Municipais de Saúde;

V – fomentar e colaborar com a construção de fluxos de atenção à pessoa com


transtorno mental em conflito com a lei, envolvendo os órgãos e instâncias responsáveis
pelas políticas de administração penitenciária, saúde e assistência social, com base no
paradigma antimanicomial e no Modelo Orientador CNJ; e

VI – instituir ou participar de Comitê Estadual Interinstitucional de Monitoramento da


Política Antimanicomial no âmbito do Poder Judiciário, o qual contará com
representantes do GMF, da Vara de Execução Penal, da Saúde Mental-Raps, da
Assistência Social, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate àNum. 5029601
- Pág. 16Assinado eletronicamente por: ROSA MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023
21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616 Tortura, onde houver, dos Conselhos Regionais de
Serviço Social, Psicologia e Medicina, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do
Conselho da Comunidade, onde houver, da Equipe de Saúde da Secretaria responsável
pela gestão prisional, podendo contar ainda com outros Conselhos de Direitos,
112

Organizações da Sociedade Civil afetas ao tema, usuários da Política de Saúde Mental,


entre outros.

Art. 21. Para o cumprimento do disposto nesta Resolução, os tribunais poderão


promover, em colaboração com as Escolas de Magistratura, cursos destinados à
permanente qualificação e atualização funcional de magistrados e servidores no tema
da saúde mental em consonância com os parâmetros nacionais e internacionais dos
Direitos Humanos.

Art. 22. Esta Resolução também será aplicada aos adolescentes com transtorno ou
sofrimento mental apreendidos, processados por cometimento de ato infracional ou em
cumprimento de medida socioeducativa, no que couber, enquanto não for elaborado ato
normativo próprio, considerando-se a condição de pessoa em desenvolvimento, o
princípio da prioridade absoluta e as devidas adaptações, conforme previsão do Estatuto
da Criança e do Adolescente.

Art. 23. O Conselho Nacional de Justiça, por meio do Departamento de Monitoramento


e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas
Socioeducativas (DMF), dará suporte permanente às ações dos tribunais e de
magistrados e magistradas no cumprimento desta Resolução.
Parágrafo único. O DMF elaborará, no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias, Manual
com Modelo Orientador CNJ voltado à orientação dos tribunais e magistrados quanto à
implementação do disposto nesta Resolução.

Art. 24. Esta Resolução entra em vigor em 90 (noventa) dias após sua publicação.
Ministra ROSA WEBER. Num. 5029601 - Pág. 17Assinado eletronicamente por: ROSA
MARIA PIRES WEBER - 24/02/2023 21:03:38
https://www.cnj.jus.br:443/pjecnj/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=2302
2421033876500000004565616 Número do documento:
23022421033876500000004565616.

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