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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

CAMILA MORGANA LOURENÇO

FLORIANÓPOLIS
2007
2

CAMILA MORGANA LOURENÇO

Dissertação apresentada ao Curso de


Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal de Santa Catarina
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Literatura – Área de
concentração em Teoria Literária

Orientadora:
Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos

FLORIANÓPOLIS
2007
3

Banca Examinadora:

_______________________________
Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos
Orientadora e Presidente

_______________________________
Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC)

_______________________________
Prof. Dr. Wladimir Antonio Garcia (UFSC)

_______________________________
Profa. Dra. Alai Garcia Diniz (UFSC)
4
5

AGRADECIMENTOS

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RESUMO
Este estudo se dedica a investigar a “escrita de si” de Caio Fernando Abreu, tendo como
objeto de pesquisa a coletânea Cartas — seleção de correspondências redigidas pelo escritor
publicada pela editora Aeroplano, em 2002. Tais cartas são, então, tomadas como lugar de
memória do autor, numa leitura que se propõe, a partir do movimento de lembranças e
apontamentos, do narrar do prosador acerca das suas histórias pessoais e dos acontecimentos
que se fixaram em sua existência, identificar como a subjetividade do escritor é construída,
por que caminhos se guia, com base em que produções discursivas fertiliza seu fazer literário
e amparado em que experiências conduz seu viver, administra dramas e conflitos íntimos,
gerencia amizades e alimenta influências no tempo vivido. Além disso, prevê contribuir para
redimensionar o repertório das reflexões já tecidas por pesquisadores de diferentes campos do
conhecimento acerca das “narrativas de si” e da “carta enquanto lugar de memória” — reduto
de subjetividades, fonte documental que mapeia, de certo modo, aquele que a redige e seu
círculo social, por meio de pistas e indiciamentos ofertados pelo missivista.

Palavras-chave: artifício ficcional, Caio Fernando Abreu, correspondência, discurso


epistolar, memória, narrativa de si.
8

ABSTRACT
This study investigates the “Writing about oneself” of Caio Fernando Abreu. The object of
research is the collection Cartas — a selection of correspondence written by the writer and
published by Aeroplano, in 2002. These letters are understood as a place of memory of the
author, in a proposed reading which is based on the movement of memories and notes, of the
act of narrating of the prose writer, on his personal history and the events that have
established themselves in his existence, identifying how the subjectivity of the writer is
constructed and the paths by which he is guided, based on which discursive productions he
fertilizes his literary art, and supported by what experiences he conducts his life, administrates
his dramas and intimate conflicts, manages friendships and feeds influences in his time
experienced. It also seeks to contribute to widening the repertoire of reflections already made
by researchers from different areas of knowledge on the "self narrative" and the "letter as a
place of memory" — shelves to subjectivity, a documentary source which maps, in a certain
way, the one who writes and his social circle, by means of trails and clues offered by the
writer of missives.

Key words: fictional artifice, Caio Fernando Abreu, correspondence, epistolary discourse,
memory, self narrative.
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

1 CARROSSEL EPISTOLAR ............................................................................................... 14

2 O EPISTOLÁRIO ............................................................................................................... 37
2.1 O ARTIFÍCIO FICCIONAL ................................................................................. 38
2.2 [MÁS]CARA[S] & ADEREÇOS ......................................................................... 56

3 A MEMÓRIA EM SI .......................................................................................................... 66

4 ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA: EMBARALHAR-SE ......................................... 82

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 89
OBRAS DE CAIO FERNANDO ABREU ................................................................. 89
OUTROS REFERENCIAIS ........................................................................................ 89

ANEXOS ................................................................................................................................ 95
10

INTRODUÇÃO
“O que parece óbvio nem sempre é verdade”1

Prezada leitora,
Prezado leitor:

Para dar início a esta trama discursiva que se pretende acadêmica, sugiro que

travemos dois ou três dedos de prosa, seja lá o que isso signifique de fato. É um convite. E por

que razão? Quero dizer/pensar, minimamente que seja, timidamente que pareça, do escritor

Caio Fernando Abreu2 (1948-1996).

A exemplo de tantos outros companheiros geracionais, Caio Fernando Abreu

escreveu muito3 — talvez pela impossibilidade de viver como gostaria: “‘a vida só é possível

se reinventada’. Acho que é um pouco isso.”4. Multifacetado — “Ácido, lisérgico, bruxo,

esotérico, sexualmente liberado, lixeiro londrino, paulistano perpétuo, gaúcho exilado,

viajante intrépido e cosmopolita”5 —, foi jornalista6, crítico, colunista, roteirista, escritor,

dramaturgo, missivista. Adotou diferentes “máscaras” para diferentes personagens e períodos

vividos. Fez da tessitura ficcional sua correspondência com o mundo e os pares e ainda

1
GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000. Cultura,
p. 3.
2
Autor nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1948, sob o signo de
virgem, ascendente em escorpião e Lua em capricórnio, como gostava de declarar [provocar]: “Sou de Virgem,
como Cortazar... Quero ser um grande mago...” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de
1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 352). Filho de um casal da classe média urbana, teve quatro irmãos, dois
homens e duas mulheres — uma delas, Cláudia, aparece entre os destinatários da coletânea Cartas, corpus deste
estudo.
3
“A primeira vez que eu escrevi um negócio eu tinha seis anos de idade. Eu tinha aprendido a ler e escrever e
tal, em um mês, e a primeira coisa que eu fiz foi escrever um conto. Depois, sei lá, foi indo, assim, por
necessidade de escrever.” (ABREU, 2005a, p. 350).
4
Declara ao jornal O Estado de S. Paulo, em entrevista concedida em 23 de março de 1988, reportando-se a
poema de Cecília Meirelles, quando perguntado sobre o caráter confessional da sua literatura (In: ABREU, Caio
Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260).
5
XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em:
http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005. Caio Fernando Abreu não
compactuava com a idéia de exibir os “rótulos” a ele atribuídos com freqüência: gay, depressivo, introspectivo,
hippie etc.
6
Caio Fernando Abreu desempenhou várias funções na imprensa brasileira. Foi repórter da revista Veja, redator
das revistas Manchete, Pais & Filhos e Pop e dos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo, além de editor da
Leia Livros e da revista A-Z e colaborador da IstoÉ.
11

encontrou espaço e motivação para se embrenhar por outro matiz escritural: a narrativa de

si — da qual se originaram inúmeros colóquios, esses de ausente a ausente, para remeter à

definição de Libânio7 para a natureza das cartas, postados, em especial, a amigas e amigos das

artes, com os quais estabeleceu laços afetivos, espirituais e intelectuais, e a familiares.

“Amigos são também para escrever cartas enormes e um tanto idiotas como esta, cheia de

carências, porque gostam de outros amigos e não querem que as relações de amizade tombem

nesse poço nojento de brutalidade e vulgaridade que viraram os anos 90.”8

E é a respeito desta fatia da produção textual do autor que me interessa pensar. A

escrita epistolar — tradicionalmente caracterizada como “menor”9 na hierarquia literária —,

com toda multiplicidade de sentidos que lhe possa ser atribuída. Afinal, diante do papel fino

da carta, Caio Fernando Abreu parece fazer mais que vomitar segredos e subjetividades, indo

além do biografismo inerente ao gênero epistolográfico e instigando quem, supostamente,

devora a “confissão pública” do missivista escritor. “S´as que desisti do amor? Que alívio. É

um processo que vem se arrastando há uns quatro anos, desde o que chamo de The Big

Disaster, agora parece que con-so-li-dou-se. Será que é da idade?”10

A partir disso, procuro, na primeira parte deste trabalho, dedicar-me a uma

abordagem da teoria epistolar e de alguns de seus principais aparatos — essenciais à

composição deste discurso —, sobretudo acerca das questões que perpassam o teor

documental das cartas, quando tomadas como “lugar” de memória(s) do emissor, dispondo de

elementos conceituais interdisciplinares como referenciais.


7
Apud TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo
Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
8
Escreve Caio Fernando Abreu a Guilherme de Almeida Prado, em extrato de missiva de 12 de abril de 1994
(In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 297).
9
Apesar de o “menor” aqui se referir a uma literatura menor, de qualidade “inferior”, prefiro creditar ao termo o
estatuto de uma escrita singular, conforme apontam Gilles Deleuze e Félix Guattari, a qual seria tomada
enquanto potência criativa e criadora, com condições eminentemente revolucionárias (Cf.: DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003.).
10
Narra Caio Fernando Abreu a Maria Lídia Magliani, em trecho de correspondência de 16 de junho de 1992
(In: ABREU, 2002, p. 235). Aproveito para informar que todas as citações reunidas neste trabalho respeitam a
grafia e as marcações adotadas pelo autor e reproduzidas na edição de Cartas.
12

Na seqüência, busco promover uma “leitura” das correspondências assinadas por

Caio Fernando Abreu e tornadas públicas ao(à) leitor(a) com a edição da coletânea Cartas11,

apontando constantes e variáveis, refletindo a respeito da(s) assinatura(s) do missivista frente

seus distintos interlocutores e contextos temporais e tentando lidar, com propriedade,

discernimento e amparo teórico, com o limite pueril que se situa entre a indecidibilidade de

real/irreal e verdade/mentira nesta narrativa de si que se engendra para se entregar ao olhar do

recebedor, passando pelo artifício ficcional, entre outros aspectos que se delineiam no

exercício do narrar de si para o outro.

A seguir, apresento algumas considerações pertinentes sobre o discurso epistolar

enquanto memória do autor, deste eu que constrói uma narrativa sobre/para si mesmo ou que

se [re]constrói por meio desta escrita de si [sendo espelho/refração/invenção], tecendo breves

enunciações em torno de possíveis subjetividades, valores e referenciais “revelados” pelo

missivista e perpassando pelo viés erótico da escritura referida, além de sinalizar de que forma

essas questões pessoais tendem a se refletir na escrita de Caio Fernando Abreu, sem descartar

o intento de justificar até que ponto esta pesquisa se reveste de importância para a história da

literatura — para, assim, pôr em prática esta leitura, este deslizamento, ao que preferiria

Roland Barthes12, experimental do pensar sobre um campo livre de amarras, observando, e

por que não?, neste percurso, um dos imperativos presentes na produção crítica de Ana

Cristina Cesar13, ao considerar que “quem fala de literatura acaba redefinindo literatura”14.

11
ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
12
“O fragmento barthesiano desliza sem parar e o seu sentido se situa não nos pedaços de conteúdo que vão
aparecer aqui e ali, mas pelo contrário no próprio fato do deslizamento”, assinala Alain Robbe-Grillet (In:
ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 33), postulando que a estrutura
de deslizamento abandona, continuamente, as posições que dá a impressão de terem sido conquistadas.
13
Mesmo não figurando entre os destinatários da coletânea Cartas, a poeta carioca transitou pelos papéis de
remetente, recebedor e “personagem” no repertório epistolar de Caio Fernando Abreu.
14
CESAR, Ana Cristina. Literatura, documentário e política cultural, mimeo (In: Apud VIEGAS, Ana Cláudia.
Bliss & Blue: segredos de Ana C.. São Paulo: Annablume, 1998, p. 77).
13

Na continuação, à luz do contexto teórico pós-moderno, exponho algumas reflexões

empreendidas a respeito da escrita epistolográfica de Caio Fernando Abreu contemplada neste

estudo — tendo como amparo principal os referenciais adotados no desenvolvimento da

pesquisa —, sem deixar de dialogar, ainda, com as argüições realizadas ao longo desta

trajetória investigativa.

“Você nunca escreve histórias felizes? O conto que eu mais gosto desse livro é um

conto feliz. É irônico, mas também é uma história iluminada. [...] É uma autocrítica, mas

também é um assumir meu lado comovido, verdadeiro, derramado.”15

15
Enuncia Caio Fernando Abreu, referindo-se ao conto Mel & girassóis, em entrevista ao periódico O Estado de
S. Paulo, em 23 de março de 1988 (In: ABREU, 2005b, p. 261). Mel & girassóis tem por objeto o encontro entre
um homem e uma mulher: “Como naquele conto de Cortázar — encontraram-se no sétimo ou oitavo dia de
bronzeado. Sétimo ou oitavo porque era mágico e justo encontrarem-se, Libra, Escorpião, exatamente nesse
ponto, quando o eu vê o outro. Encontraram-se, enfim, naquele dia em que o branco da pele urbana começa a
ceder território ao dourado, [...] a pele entranhada de sal começa a desejar sedas claras, algodões crus, linhos
brancos, e a contemplação do próprio corpo nu revela espaços sombrios de pêlos onde o sol não penetrou.”
(ABREU, 2005b, p. 89).
14

1 CARROSSEL EPISTOLAR
“Às vezes, quando você lê um texto,
você pode cair que nem um patinho também.”16

My dear: Sempre que te escrevo, faço como agora. Imagino-te abrindo esta carta

como quem recolhe, na “praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”17, uma garrafa

lançada ao mar recém-aportada e a abre com delicadeza, apesar da curiosidade de encontrar

nesse objeto alguma confissão — um ou outro segredo trocado entre remetente e destinatário.

No mínimo, pueril. Minimamente sugestivo tal apontamento. Ainda mais quando se

trata de escritores, sempre comprometidos com a construção textual e a submissão ao

“domínio imperioso das palavras”18 e afastados, pelo ofício mesmo, de enlaces com a

sinceridade19. Ou seria, de fato, viável pensar que, ao compor uma missiva, o escritor consiga

[ou deseje] realmente se despir do seu viés literário para tecer uma outra prática de escrita,

isenta de ficção, puramente biográfica? Que dizer a respeito? Que olhar empreender acerca da

narrativa de si encontrada nas cartas de um escritor, voltado, em sua essência, à “questão da

representação”20?

A epistolografia é terreno fecundo para investigações biográficas e estudos literários,

a exemplo de como sintetiza Marcelo Xavier: “Além do caráter literário, as cartas possuem

um enorme espólio autobiográfico e afetivo que, se associadas à vida de um determinado

artista, podem significar muito”21. A partir disso, salutar é percebê-la num contexto

interdisciplinar, em que se torna possível cruzar, e mesmo aproximar, olhares distintos acerca

16
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 263.
17
Título de conto de Caio Fernando Abreu integrante da coletânea Caio 3D: O essencial da década de 1980.
18
CESAR, 1999b, p. 202.
19
Alusão ao discurso de Beatriz Resende (Cf: RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a
correspondência de Ana Cristina César. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes
Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa
Rui Barbosa, 2003. p. 301-309.).
20
Ibid., p. 301.
21
XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em:
http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005.
15

deste lugar de discurso: documento extraliterário, fiel reduto da memória, ou fragmento de

literatura, instância performática — como classificar a correspondência?

“E você, como vai? Detesto perguntar ‘tem escrito?’. Soa sempre como cobrança, e

quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca

demais para que se possa responder ‘sim’ ou ‘não’”22, exprime Caio Fernando Abreu em

correspondência a Charles Kiefer23. “Mesmo que não se esteja escrevendo realmente, a gente

sempre está escrevendo por dentro”24, emenda, esboçando um contorno biográfico de si ao

destinatário companheiro de profissão.

Mais que escrever cartas, Caio Fernando Abreu dizia gostar de cartas nas cartas —

“foi uma surpresa e uma alegria receber tua cartinha”25, externa à irmã caçula, Cláudia

Abreu26 — e as guardar27 — “Não jogo cartas fora. Remexendo gavetas, pastas, encontrei

pelo menos umas 300 de escritores (nos escrevíamos muito nos anos 7028, lembra?)”29.

Enunciava-se leitor de cartas escritas por outros autores, como a correspondência de Clarice

22
Trecho de carta escrita em 14 de abril de 1983. (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo
(Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 42).
23
Escritor também gaúcho. Conhece Caio Fernando Abreu no início da década de 80, no Sul do país.
24
ABREU, 2002, p. 42.
25
Fragmento de missiva redigida em 21 de dezembro de 1992 (In:ABREU, 2002, p. 253).
26
Cláudia Abreu é dentista. Vive em Porto Alegre.
27
Caio Fernando Abreu parece ter imputado prática semelhante aos produtos ficcionais. Não costumava rasgar e
descartar seus escritos. Pelo contrário, apostava na “revisão” da sua literatura, como o fez para o relançamento
de Inventário do Ir-remediável (de 1970), Morangos Mofados (de 1982) e Triângulo das Águas (de 1983). Em
nota datada de 1995 para a reedição de Morangos Mofados, o escritor declara: “Por saber que textos, como as
pessoas, são vivos e sempre podem melhorar na sua contínua transformação, submeti Morangos Mofados a uma
severa revisão de forma. [...] O resultado me parece mais limpo, menos literário no mau sentido, mais claro e
quem sabe definitivo. Trabalhando pelo menos doze anos distanciado da emoção cega da criação [...], depurar
estes morangos foi como voar sobre uma rede de segurança. Só espero não ter errado o salto.” (ABREU, 2005c,
p. 13). Ainda em vida, o autor organizou Ovelhas Negras, reunindo contos até então “engavetados”. A edição lhe
rendeu, no ano de sua morte (1996), o prêmio Jabuti de melhor livro de contos do ano.
28
Conforme Luiz Costa Lima, a década de 70 consolidou o vazio crítico encampado pelos suplementos de jornal
e perpetuado pela produção universitária graças à deficiência dos corredores institucionais somada à “degola
promovida pelo Estado e o clima de terror estabelecido” (In: SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária:
polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 31).
29
Escreve à escritora mineira, Lucienne Samôr, em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 338).
16

Lispector, de quem tanto gostava e a quem várias vezes prestou homenagem30, para Lucio

Cardoso e a de Camille Claudel a Rodin — que lhe emprestou a frase “Il y a toujours quelque

chose d´absente qui me tourmente”31 de inspiração para “tentar escrever quelque chose que

ainda não sei bem o que é”32. E se dizia feliz com as missivas que recebia, pedindo, em muitas

delas, ao receptor afastado pela extensão geográfica, que lhe escrevesse — “Please, send me a

letter”33, assinala, ao final de carta a Maria Lídia Magliani34, ou mais delicadamente: “Te

espero em carta”35, em resposta a Vera Antoun36.

O tecer epistolar acompanha a trajetória de vida do autor, conforme a seleção

apresentada em Cartas37, desde a saída da casa dos pais, em 1965, ainda na adolescência, para

cursar o colegial na capital gaúcha — como aluno interno do Instituto de Porto Alegre —,

prosseguindo com ele até o falecimento, em 1996.

De fato, de onde estivesse, Caio Fernando Abreu redigia cartas ou postais, iniciando

a escrita quase sempre pela data [ritual]: a cidade que viria com o carimbo do correio — como

Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, Londres, Paris e Berlim, e suas variantes

“ficcionalizadas” (Gay Port, Portinho, Porto Alegríssimo, Sampa) —, o dia, o mês e o ano.

“Te escrevo de frente para o mar dramático de Bretagne, coberto de bruma, num 10º andar —

é a tal de ‘Maison des Écrivains Étrangers’, onde fico até 31.12. Toda Benedita tem seu dia

Maria Antoinette: me deram um ap. com três quartos”38, detalha em correspondência a

30
Como exemplifica na apresentação da edição revista pelo autor em 1991 de Triângulo das Águas: “Clarice
Lispector repetia sempre que não queria ser ‘um profissional da literatura’. Como minha mestra, eu também
não...” (ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 13).
31
Retalho de carta endereçada a Maria Adelaide Amaral, em 10 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p.
239).
32
Id.
33
Fração de correspondência composta em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 181).
34
Maria Lídia Magliani é pintora. Vive no Rio de Janeiro. Torna-se amiga de Caio Fernando Abreu nos anos 70,
em Porto Alegre. Trabalha com ele no jornal Zero Hora.
35
Trecho de carta escrita em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 466).
36
Vera Antoun é psiquiatra. Conhece Caio Fernando Abreu em 1970, aos 14 anos, quando o escritor lança
Limite branco, no Rio de Janeiro, onde vive.
37
ABREU, 2002.
38
Fragmento de missiva redigida em 19 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 243).
17

Guilherme de Almeida Prado39, postada em Saint-Nazaire. “Escrever cartas é algo que, no

estrangeiro, tem outro gosto. Muito melhor. Um tanto Jane Austen, concordo. E receber

então?” [...] Hoje me senti perdido. Queria consultar búzios, runas, pai, mãe, de santo ou não,

qualquer coisa que me APONTASSE O RUMO, caralho.”40

A relação de proximidade com o narrar de si talvez encontre justificativa no fato de o

autor julgar-se melhor entendido ao ser lido. É uma impressão. “Quando eu escrevo eu

consigo ordenar tudo aquilo que eu penso. Agora, quando eu falo ou quando eu sou,

simplesmente, não consigo ordenar nada. Eu sou da maneira mais caótica possível”41,

confessa em depoimento concedido na década de 70. Além disso, o ato de lidar com a ficção,

segundo ele, equivalia ao de lidar com a emoção [porção biográfica?] e, desse modo,

aproximar-se do mistério, com o qual não se podia mexer [pose discursiva?]. “Talvez seja

sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida recriada, nunca na própria

vida real — como as pessoas que não criam costumam ter. E deve estar certo assim, deve

haver ordem e um sentido nisso”42, registra em carta a Sérgio Keuchgerian43, retomando o

assunto um ano à frente (1988), em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ao declarar que

o impulso de escrever se dava por “uma espécie de deficiência de viver a vida real, objetiva,

apenas ela”44 — quem sabe numa sutil referência à escrita como reação ao peso de viver, para

remeter a Ítalo Calvino45.

Para além de produto de rituais viscerais, a escrita de Caio Fernando Abreu o fazia

sentir-se intensa e declaradamente vivo. Ao transcender a palavra, o prosador buscava

39
Guilherme de Almeida Prado é cineasta. Conhece Caio Fernando Abreu na década de 80, em São Paulo.
40
Extrato de epístola escrita a Jacqueline Cantore, em 05 e 06 de janeiro de 1991 (In: ABREU, 2002, p 197).
41
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 350.
42
Trecho de missiva escrita em 27 de janeiro de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 149-150).
43
Sérgio Keuchgerian é escritor e fotógrafo de moda. Conhece Caio Fernando Abreu nos anos 80, em São Paulo.
44
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260.
45
No capítulo Leveza, o autor pondera: “Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a
literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.” (CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio: lições americanas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 39).
18

compreender o próprio tempo e exercitava a possibilidade de experimentar uma outra vida —

o que lhe permitia burlar o vácuo que supunha existir entre a vida que tinha e a que

vislumbrava para si, como se estivesse em um carrossel, de mãos dadas com o brinquedo e

vertendo, em meio ao binômio vida/arte, um terceiro elemento: a máscara. “O escritor é uma

das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de

espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável”46, redige noutra missiva a Sérgio

Keuchgerian. “Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos. Não

há nenhum subtexto nisto que te escrevo”47, acrescenta, conduzindo o interlocutor à

compreensão/confusão pretendida para a narrativa — esta mesma que se insere na condição

impura do discurso, lembrando a impossibilidade do grau zero da escritura teorizado por

Roland Barthes48 e operado por Gilles Deleuze49 enquanto plano de imanência.

Com base nisso, importante é considerar que o discurso epistolar é normalmente

absorvido com distinção entre pesquisadores da História e das Letras. Enquanto estes

preferem apostar cada vez mais numa percepção menos ingênua da correspondência enquanto

esfera de memória e subjetividades, aqueles parecem investir com mais ênfase no teor

documental das missivas, tomando-as como objeto não-literário, fruto da enunciação de

sujeitos históricos acerca do seu campo vivencial — como reconhece Marlon Salomon, ao

pontuar que o historiador comumente é levado a se utilizar dos conteúdos das cartas e a

examiná-los sem se preocupar em problematizar as possibilidades de sua produção,

“questionando os diferentes regimes de escrita”50, pois se detém na identificação dos “reflexos

46
Fragmento de correspondência composta em 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 141).
47
Id..
48
Cf: BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.
49
Cf: DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade, Porto Alegre: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 10-19, jul./dez. 2002.
50
SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí.
Florianópolis: UFSC, 2002, p. 59.
19

de realidades”51. Para ele, toda análise voltada única e exclusivamente ao conteúdo das

correspondências está fadada a cair em uma rede de estratégias daqueles que as escrevem, por

vezes de resistência, por vezes de dissimulação. Difícil não lhe dar ouvidos.

Acerca desse aspecto, Käte Hamburger52 entende que a correspondência é sempre

um documento histórico que abriga testemunhos pessoais, sendo igualmente histórico o

sujeito dessa enunciação. Sophia Angelides53, mais cautelosa, pondera que as cartas de um

escritor podem figurar como objeto de fruição estética, no qual literário e extraliterário se

alternam [feito o movimento de “subir-descer” das peças de um carrossel], embora admita

que, de modo geral, as missivas nascidas das mãos de um escritor “constituem fragmentos

valiosos que refletem a personalidade do seu autor, o seu ambiente e as circunstâncias que

envolveram seu trabalho criativo”54 — enfatizando o caráter fluido predominante entre a

criação literária e a afirmação lingüística não-literária, mesmo que o discurso se volte ao

relato de um acontecimento ou à expressão de um sentimento, ambos não ficcionais, “o

material lingüístico é submetido ao crivo altamente seletivo do escritor, que recria a sua

experiência pessoal”55. Trata-se, conforme elucida E. M. de Melo e Castro, de uma narrativa

não ficcional que comunica uma metarrealidade — a qual se presta a fornecer nada mais que

uma versão ficcionada daquilo que o remetente pretende dizer e o que realmente escreveu e,

mais tarde, será lido pelo destinatário. “Escrever cartas é assim um pequeno ofício ‘literário’

no sentido mais restritivo e convencional desse termo, pois ao escrever uma carta não se pode

fugir a um código que modela e altera o que tão simplesmente queremos e gostaríamos de

51
Id..
52
HAMBURGER, 1975 apud ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e
Górki. São Paulo: USP, 2001.
53
Cf: Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001.
54
ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001, p.
13.
55
Ibid., p. 23.
20

dizer”56 — entender que, dito de outra forma, ganha sustentação no postulado crítico de

Roland Barthes, no que se refere à impossibilidade de se representar o “real”: “quer o

definamos, com [Jacques] Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao

discurso”57, reconhecendo, assim, a incompatibilidade da linguagem ao real, “quer se

verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem

pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem).”58.

Neste sentido, para Sophia Angelides, tanto a linguagem poética quanto a linguagem

informativa permeiam o gênero epistolar e lhe são inerentes. “A passagem da simples

comunicação não-literária para a linguagem literária, e vice-versa, confere à carta um aspecto

particular, misto de documento informativo e texto literário”59 — assertiva que ganha relevo

se combinada a fragmentos como este em que Caio Fernando Abreu tempera o simples relato

biográfico de transitar por uma via paulista com condimentos ficcionais para se reportar a

Jacqueline Cantore60: “Vim descendo a Augusta. Marilene, estou todo INTENSO. Minha

epígrafe agora seria: ‘Pode deixar que eu seguro’. [...] Sofri tanto, fiquei de cama, sabias? Pois

hoje emergi calçando salto 15, ombros muito para trás, porte ereto e saia justíssima”61.

À leitura de tal trecho epistolar, viável me parece aliar alerta perspicaz assinado por

Michelle Perrot, para quem as correspondências, “embora sejam testemunhos insubstituíveis,

56
CASTRO, E. M. de Melo e. Odeio cartas. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas.
GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 15.
57
BARTHES, Roland. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 22.
58
Id..
59
ANGELIDES, op.cit, p. 23-24.
60
Jacqueline Cantore é produtora executiva da Fox, em Los Angeles. Mantém intensa amizade com Caio
Fernando Abreu, iniciada por meio de cartas, depois que escreve para ele motivada pela admiração pelos textos
do autor.
61
Extrato de carta redigida em 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 128-129). A destinatária ganha nova
identidade ao ser tratada por Caio Fernando Abreu como Marilene. Segundo Italo Moriconi, Marilene é um dos
apelidos mais usados pelo ficcionista nas cartas a Jacqueline Cantore. O mesmo codinome é adotado por Caio
Fernando Abreu em missivas destinadas a outros recebedores.
21

nem por isso constituem os documentos ‘verdadeiros’ do privado”62. Ademais, conforme

salienta ela, as cartas nada têm de espontâneo — originam-se de manipulações discursivas

colocadas a serviço de um verdadeiro game [esconder para mostrar, revelar para ocultar] — e

são regidas por normativas “de boas maneiras e de apresentação de uma imagem pessoal”63

que regulam, ao mesmo tempo, sua natureza informativa e seu estatuto ficcional.

Olhar semelhante é apresentado por Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella

Gotlib, ao mencionarem, na coletânea Prezado Senhor, Prezada Senhora64, que as

correspondências — ou a literatura epistolar, como preferem nomear —, apesar de ocupar

uma zona intermediária entre o ficcional e o histórico, a ficção e o documento, podem ser

tomadas como fonte privilegiada ao desvendamento dos universos público e privado, pois

também figuram como auto-retratos e decalques de relações pessoais e sociais. Para Nádia

Battella Gotlib, a epistolografia, enquanto gênero híbrido, constitui campo fértil às diferentes

instâncias das experiências do relato e se presta ao cumprimento da tarefa de aproximar

remetente e destinatário, “tendo em vista, fundamentalmente, a incontrolável necessidade de

contato e de mútua aproximação, durante a ausência do outro”65.

Pareceres distintos. Emaranhado teórico. Proposições instigantes. Neste entremeio,

há quem sustente que aquele que abre “um livro de correspondência arromba uma gaveta atrás

do publicamente inconfessável”66 ou, ainda, que “a carta sempre possui um algo a mais, um

62
PERROT, Michelle. Introdução. In: História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra.
PERROT, Michelle (Org.).Tradução: Denise Bottmann (partes 1 e 2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 11.
63
Id..
64
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia
Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
65
GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239.
66
PILAGALLO, Oscar. Carta ao leitor. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jan. 2004. Sinapse. p. 4.
22

elemento transcendente”67 — sobretudo quando quem a escreve é um escritor, quando “então

uma reles correspondência pode ser uma janela aberta ao infinito”68. Será?

Em missiva a Luciano Alabarse69 — na qual afirma: “Tua carta me fez muito bem. E

muito mal. Compreendo tudo que você diz. São coisas que me digo, também”70 —, Caio

Fernando Abreu discorre, aparentemente sem timidez, sobre questões do foro privado,

conduzindo a narrativa com apontamentos notadamente reflexivos: “há uma diferença entre

você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade [...] do corpo e

conseguir passar isso para o seu comportamento — tornar ato o que é pensamento abstrato.

Os caminhos são individuais/intransferíveis”71.

Sendo assim, se, de fato, e como quero crer, toda escritura se reveste de marcas e

perpetua “rastros” de seu autor — como ilustra o fragmento anterior —, aceitável é admitir a

potência intrínseca a esta narrativa não ingênua, não neutra, não livre de sinais autorais, que

se origina à moda dos demais gêneros narrativos, de uma relação erótica com o papel — para

recorrer a Roland Barthes e à idéia de jogo com as palavras, sobre a qual teoriza, designando

escritura e teatro enquanto instâncias inseparáveis —, efetivando, desse modo, este lugar de

celebração, espetáculo, que é o texto: “Quarta cheirei toneladas [...] e hasta hoy no me

recuperei. Não puedo me drogar. Questã de saúde, infelizmente: desequilíbrio total. Fico

depois comendo e vomitando sem parar, linha Petra von Kant. Mas tchê, vai tudo de vento em

popa”72, exprime o prosador em correspondência a Luiz Arthur Nunes73, exibindo graça e

pompa ao tecer, com digitais tipicamente literárias, a narrativa.

67
XAVIER, loc.cit.
68
Id..
69
Luciano Alabarse é diretor de teatro. Vive em Porto Alegre. Foi grande amigo de Caio Fernando Abreu, a
quem admirava pelo temperamento forte, pela língua afiada, pela generosidade e pela afinidade com o tempo em
que vivia.
70
Trecho de missiva escrita em 1º de agosto de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 91).
71
Id..
72
Fração de carta redigida em 25 de junho de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 80). Trecho transcrito como no
original, a exemplo dos demais.
23

Ao assegurar que “o apelo irresistível das cartas”74 reside no fato de os autores não

policiarem a escrita de si, “deixando correr a pena de um jeito ‘desenfeitado’”75, motivados

pela certeza de que serão lidos apenas pelo destinatário — confiantes de não correr o risco de

circular de mão em mão, feito um objeto familiar —, Oscar Pilagallo apimenta a discussão

sobre a natureza epistolar. Tal entender, de certo modo e com todas as ressalvas cabíveis,

aproxima-se do discurso de Fernando Pessoa em missiva de rompimento com a namorada

Ofélia de Queiroz: “Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como

memória viva de um passado morto”76.

Sobre essa questão, Maria Lucia de Barros Camargo estabelece que, em princípio,

emissor e destinatário compartilham espaços de privacidade e segredo — o que se insinua em

trecho de carta postada por Caio Fernando Abreu à mãe, Nair de Abreu77, na qual sustenta que

Triângulo das Águas78 é seu melhor e mais terrível livro: “porque é preciso falar claramente

sobre certas coisas, é preciso alertar as pessoas para as vidas erradas que levam, a alimentação

errada, as emoções erradas, os relacionamentos errados”79, justifica, ressaltando, na narrativa,

o fato de não querer se posicionar como dono da verdade e o desejo de colocar a nu alguns de

seus aprendizados: “pode parecer ambicioso, mas de repente gostaria de ajudar a transformar

este mundo numa coisa melhor”80, confidencia —, ao mesmo tempo em que partilham o

mesmo tempo histórico em que estão, irremediavelmente, inseridos.

73
Luiz Arthur Nunes é diretor teatral e professor de teatro no Rio de Janeiro. Conhece Caio Fernando Abreu
ainda no Rio Grande do Sul. Assina com o ficcionista a autoria de várias peças teatrais.
74
PILAGALLO, loc.cit.
75
Id..
76
PESSOA apud PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In:
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella
(Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 183.
77
Professora e orientadora educacional. Morre pouco tempo depois de Caio Fernando Abreu.
78
Publicado em 1983, um ano depois de Morangos Mofados, reúne três novelas sobre o tema da solidão e
conquista o prêmio Jabuti no ano seguinte. “Triângulo está nas ruas e o que vai acontecer com ele depende agora
dele mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei dizer se ‘gosto’ — sei que doeu muito para nascer, foi o que mais
exigiu, foi o que mais trabalhei”, narra Caio Fernando Abreu a João Silvério Trevisan (ABREU, 2002, p. 70).
79
Fragmento de missiva datada de 15 de setembro de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 62-63).
80
Id..
24

Nesse viés, Maria Lucia de Barros Camargo esclarece que o teor das

correspondências pessoais, escritas por um sujeito e encaminhadas a um destinatário

específico, “ancora-se no real e nas circunstâncias e quase sempre trata da intimidade, tendo,

por isso mesmo, um cunho íntimo e, até, confessional”81. Além disso, a pesquisadora observa

que, ao ultrapassar o ambiente privado, a carta assume também função documental — sempre

que passa a “ser esclarecedora sobre os costumes de uma época, representando assim uma

verdadeira documentação histórica”82, ao que compendia Lucette Petit —, legitimada pela sua

inserção na história e pelo caráter de “sinceridade” de suas confissões — interpretação que

alude à de que “não é realmente de surpreender que nos deixemos cair em tentação pelas

nossas próprias narrativas biográficas, ou que pensemos que as narrativas contadas por outras

pessoas sobre seu passado sejam críveis e convincentes”83. Afinal, “o que se passa na cena da

escritura não se oferece assim tão facilmente à decifração”84, embora deixe o convite ao leitor.

Janet Malcolm que o diga.

Ao examinar as cartas redigidas por Sylvia Plath à mãe, Aurélia Plath, entre 1950 e

1963 — e publicadas sob o título Letters home, em 1975, a partir de seleção feita pela

matriarca —, Janet Malcolm85 não dispensa luvas de perito e lentes de sobreaviso para

depreender que o rosto[a máscara?] exibido(a) pela escritora à mãe se diferenciava daquele(a)

apresentado(a) por ela ao leitor. A publicação do livro, segundo Janet Malcolm, com o

propósito de levar ao público o lado amoroso, gentil e subserviente da filha, em oposição à

conduta imperante entre as personas de suas composições literárias — tingidas[maquiadas]


81
CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar.
Chapecó: Argos, 2003, p. 223.
82
PETIT, Lucette. A propósito de A correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 118.
83
RUSCH, Gebhard. Teoria da história, historiografia e diacronologia. In: OLINTO, Heindrun Krieger (Org.).
Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 155-156.
84
BRANCO, Lucia Castello. A branca dor da escrita: três tempos com Emily Dickinson. Rio de Janeiro:
7Letras; Belo Horizonte: UFMG, Programa de Pós-graduação em Letras, 2003, p. 17.
85
MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. Tradução: Sérgio
Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
25

conforme Sylvia Plath desejava ser percebida —, não obteve o resultado esperado, servindo

para violar a privacidade da autora, ao expor, ao voyeurismo irrestrito de quem se

interessasse, tormentos pessoais vividos pela filha e entre ela e a própria mãe.

A esse respeito, ao se deter na análise das cartas enviadas por cidadãos “comuns” ao

memorialista Pedro Nava, Marília Rothier Cardoso atenta para o papel mediador das

correspondências — entre os espaços público e privado, a recordação espontânea e o seu

registro formal, a experiência e a linguagem — para intuir que as mesmas “produzem

memórias, que se desdobram em críticas, que desencadeiam cartas, que engendram

memórias... É o grande circuito dos discursos, onde se pode observar a inscrição das

trajetórias de leitor e autor, de remetente e destinatário”86.

Caio Fernando Abreu oferece inúmeros exemplos ao parecer de Marília Rothier

Cardoso e exercita, na escrita de si, um outro papel peculiar às missivas: o de banir distâncias,

conforme formulação feita por Eliane Robert Moraes — em estudo sobre as epístolas do

marquês de Sade, que, em reclusão, fez desse lugar de discurso instrumento de comunicação

com o mundo: “Sensual ou enfermo, a evocar delícias ou suplícios, o corpo do marquês se faz

presente com tal intensidade em sua correspondência que acaba por convocar fisicamente o

leitor”87, numa espécie de cumplicidade muito ao gosto de Michel Foucault, para quem a carta

torna o emissor presente àquele a quem se remete, numa “espécie de presença imediata e

quase física”88. Inferência cujo cerne se evidencia em correspondência expedida por, por

exemplo, Franz Kafka a Felice Bauer, no extrato em que afirma: “o que confere a importância

que aquela carta tomou para mim. É que você a respondeu por uma outra que agora tenho em

86
CARDOSO, Marília Rothier. Carta de leitor. Reflexões a partir de uma seção do arquivo de Pedro Nava. In:
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella
(Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 339.
87
MORAES, Eliane Robert. A cifra e o corpo: as cartas de prisão do marquês de Sade. In: Prezado senhor,
Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 58.
88
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. [s.l.: Vega, 1997?], p.150.
26

mãos, por esta carta que me causa uma felicidade ridícula e sobre a qual eu coloco a mão para

sentir que ela é totalmente minha.”89. E é de Ana Cristina Cesar este outro fragmento que dá

conta de ilustrar o caráter suplementar da correspondência enquanto objeto corporal:

“Cheguei em casa e tinha a tua carta. É ótimo como uma carta reata, esquenta, anima. Eu

vinha com a garganta apertada na viagem, cercada da família e triste de deixar o mato. E tua

carta me devolve várias alegrias.”90

Leitura semelhante é possível de ser empregada em Caio Fernando Abreu à medida

que o escritor insinua manter uma relação de fetiche com as missivas a ele endereçadas — a

correspondência como suplemento da existência; corpo que se faz presente e é tocado e

guardado pelo recebedor; corpo que abriga um eu que se fraciona em outros eus para se

apresentar ao destinatário, originando, muitas vezes, máscaras plurais, ou seja, novas

moldagens de si mesmo [ora autor do discurso, ora personagem da narrativa], num

movimento freqüente no qual a estrutura íntima do discurso migra para a estrutura ficcional

da narrativa e vice-versa. Carrossel de palavras. Jogo discursivo. Artimanha autoral.

Percepções cabíveis se amparadas na sentença que assegura que o fingimento [e suas formas

irmãs] é o único meio de o sujeito se processar na escritura. E quem avisa é Roland Barthes91.

Acerca disso, Michel Foucault pondera que as cartas viabilizam, de certo modo, o

face to face, sendo uma forma de o remetente se entregar ao olhar do destinatário pelo que lhe

diz a respeito de si — prerrogativa que se assemelha à proposição apontada por Demétrio, ao

considerar que o missivista redige a carta “como retrato de seu próprio ânimo, sendo ela a

forma de composição literária em que mais se pode ver o caráter do escritor”92, registra,

89
KAFKA, Franz. Cartas a Felice. 2. ed. Rio de Janeiro: Anima, 1985, p. 14.
90
Fragmento de missiva remetida a Ana Cândida Perez e datada de 18 de abril de 1976 (In: CESAR, Ana
Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.).
Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 203).
91
Cf: BARTHES, 1996.
92
TIN, Emerson. Introdução. In: TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo
de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005, p.19.
27

lembrando juízo emitido também por Cícero93, que acredita que a correspondência manifesta

o caráter de quem a escreve, permitindo que o destinatário veja, nesse objeto — nessa prática

não canônica do terreno literário —, seu emissor.

Em carta escrita aos pais, Zaél94 e Nair de Abreu, Caio Fernando Abreu narra a

alegria contagiante que é, para ele, estar no Rio de Janeiro, entre artistas badalados, como

Clarice Lispector e Nélida Pinõn, e novas perspectivas profissionais e pessoais, que passa a

reunir no baú privado dos afetos e das emoções: “Estou no quarto que pertenceu a Lúcio

Cardoso, o grande escritor irmão de Maria Helena. Isso me comove: fico pensando na minha

infância, tão perdida no tempo e no espaço, e não compreendo [...] como de repente me tornei

um escritor.”95. O tom da narrativa esboça, de fato, o deslumbramento do autor com as

experiências travadas na capital fluminense, confirmando, ainda, o status de simplicidade e

espontaneidade do estilo epistolar caracterizado por Erasmo de Rotterdam96: “Bem,

desculpem, estou escrevendo como se falasse comigo mesmo. Não sei ainda se fico ou não

aqui. [...] é esta a cidade que eu queria, é esta a vida que eu amo e procuro — embora vocês,

as pessoas que eu amo, estejam tão longe”97.

Assim como Caio Fernando Abreu e outros “escritores missivistas”, Raymond

Chandler se rende à exibição das expressões do íntimo e do seu entorno social ao explorar a

escrita de si, conforme aponta ensaio de Michael Hall98. Segundo ele, é no gênero epistolar

que Raymond Chandler encontra brechas para desvelar características da própria

personalidade — “não sempre cativante na sua ranzinzice e no seu esnobismo”99 —,

93
Cf: TIN, 2005.
94
Militar reformado. Falece pouco tempo depois do filho.
95
Trecho de carta datada de 21 de agosto de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 375).
96
ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula. In: TIN, Emerson. A arte de escrever
cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005.
97
ABREU, 2002, p. 375.
98
HALL, Michael. Raymond Chandler. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO,
Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 69-75.
99
Ibid., p. 73.
28

esmiuçando no papel facetas de si até então preservadas do olhar alheio, já que as narrativas

escritas para a publicação contemplavam versões distorcidas, rearranjadas ou cifradas do foro

privado do autor.

Perita na arte de dissimular confissões e conduzir a vida sob o falso signo do

despojamento de si, Ana Cristina Cesar — interlocutora de Caio Fernando Abreu, para quem

o ficcionista redigiu o texto da contracapa de A teus pés100, publicado em 1983 — jamais

depositaria um espio ingênuo sobre o epistolário de Raymond Chandler ou de quem quer que

fosse. Ao analisar coletânea de cartas de Álvares de Azevedo, a poeta alerta para o perigo de

uma leitura inocente da publicação, repudiando a certeza de que as correspondências seriam o

reflexo fiel do autor e salientando a ineficácia de cotejar literário e extraliterário a fim de

detectar a “insinceridade” autoral. “Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa”101,

frisa Ana Cristina Cesar. “No entanto, quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática

perceberá suas tortuosidades. A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a

superfície tranqüila do eu.”102

De fato, como previne, com expertise, a poeta, na prática epistolar, à medida que o

narrador não é fictício, supostamente não deveria haver lugar para dissimulações literárias,

pois o eu da carta corresponderia, pela lógica, ao eu “verdadeiro” — mas a “literatura mexe

com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e do cristalino das superfícies; entra a

fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero — mesmo que a

afirme explicitamente”103. E o fingimento, para Ana Cristina Cesar, “é próprio da

literatura”104, assim como o escritor, para Caio Fernando Abreu, “sempre é um fraudulento”105

100
Único livro publicado por Ana Cristina Cesar via editora comercial em vida, reunindo três outros livros
publicados independentemente: Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica.
101
CESAR, 1999b, p. 202.
102
Id..
103
Id..
104
Ibid., p. 203.
105
ABREU, 2005b, p. 259.
29

— um feitor de simulacros, arredio “à verdade”, para aproveitar diagnóstico de Ana Cristina

Cesar106 a respeito dos poetas.

Ao romper o lacre que originalmente separava apenas remetente e destinatário, a

publicação das cartas do autor põe fim também a todo pacto de sigilo existente entre emissor e

receptor, oferecendo-se ao leitor antes como objeto de voyeurismo — delivery à “devoração”

[de uma suposta intimidade] que, com freqüência, sequer evoca a possível falta de verdade

sobre o verdadeiro do corpus epistolar — que fonte de literatura. E se, para Caio Fernando

Abreu, “tudo é passível de uma outra interpretação”107, na medida em que “toda formulação

linguageira implica uma retórica, mesmo que mínima”108 — ao que Michel Riaudel

concordaria, pautando-se na linguagem enquanto falsa moeda, dadas as confusões “que cria,

com a sua indecifrabilidade”109 e a “ausência de referência certa”110 —, nada se afigura

empecilho para o leitor que busca, no epistolário, desenovelar o fio das individualidades do

emissor, crente de estar desnudando lembranças, conhecendo ecos de leituras, projetos,

vivências e subjetividades e entrando na privacidade e na memória mais íntima do

epistológrafo. “Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto

sete, outro de sandália havaiana. É preciso ter muita paciência com esse vírus do cão. E fé em

Deus. E falanges de anjos-da-guarda fazendo hora extra”111, [in/per]forma Caio Fernando

Abreu a Mario Prata112, em carta-resposta enviada em 1995, reportando-se à doença que lhe

106
CESAR, 1999b.
107
ABREU, 2005a, p. 347.
108
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 179.
109
RIAUDEL, Michel. Correspondência secreta. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado
senhor, Prezada senhora. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 99.
110
Id..
111
ABREU, 2002, p. 334.
112
O escritor conhece Caio Fernando Abreu em 1982, em São Paulo, num jantar feito para Ana Cristina Cesar.
Desenvolve trabalhos com ele.
30

tiraria, no ano seguinte, a vida e fazendo exibir um pouco do misticismo113 de que tanto se

servia, na vida e na literatura.

E se o autor se refere à saúde pessoal — “Pois é, amiga. Aconteceu — estou com

AIDS — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique)”114, conta a Maria Lídia Magliani

—, tocando o biográfico de si, apimenta a narrativa epistolar com tom genuinamente

polifônico: “Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente.

Ligando pra família e amigos, no 3º dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de

‘um quadro de dissociação mental’. Pronto-Socorro na bicha”115, acrescenta, extraindo ainda

mais graça, na seqüência, dos exames a que é submetido em razão do vírus — num fazer que

amplia as margens da experiência, ao verter rascunhos de subjetividade e rabiscos de

literatura, enquanto brinca e/ou teatraliza com a própria condição116. “Tiraram líquido da

minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram

canos (tenho I no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de ‘Callas’, em

homenagem a Tom Hanks), etc, etc”117, detalha, dramatizando o espelho de si e se mostrando

preocupado com a reação da interlocutora, ao apresentar no “PS” o seguinte teor: “Não se

preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a

113
Em entrevista publicada no jornal Zero Hora, no dia 24 de dezembro de 1972, Caio Fernando Abreu declara
praticar ioga, ser rosacruz e estudar astrologia, quiromancia e numerologia, além de ter como maior ambição o
desejo de ser um grande mago. A abertura da matéria exibe as seguintes impressões a repeito do escritor: “Quero
ser um mago. Um grande mago. Caio Fernando não está fazendo charme. Pelo menos, não totalmente. Não é
difícil imaginá-lo com seu rosto estranho, seu corpo comprido e fino, seus olhos enormes, sua fala lenta e
embebedida de sentidos, como o sacerdote de uma seita esotérica e extremamente abstrata” (ABREU, 2005a, p.
351).
114
Trecho de missiva escrita em 16 de agosto de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 311).
115
Id..
116
Em decorrência da doença, Caio Fernando Abreu morre aos 47 anos de idade, em 25 de fevereiro de 1996, de
infecção em múltiplos órgãos, no Hospital Moinhos de Ventos, em Porto Alegre (RS). De fato, conforme relatos
de vários amigos que o acompanharam durante a fase das internações hospitalares, para espantar o tédio, Caio
Fernando Abreu inventava jingles para os medicamentos a que era submetido no tratamento contra a Aids.
117
ABREU, 2002, p. 312.
31

minha cara! [...] convenhamos que é muito moderno, muito in... Só choro às vezes porque a

vida me parece bela [...]. Mas é de emoção, não de dor.”118.

O vigor do discurso realimenta parecer de Michel Riaudel, quando pontua que a carta

é, por excelência, “o lugar da retórica do desvio, em que a literatura finge desaparecer atrás de

uma voz gerando um sujeito, em que se trata de seduzir, deixando acreditar que quem escreve

poderia estar se esquecendo de si mesmo e se voltando todo para o outro”119. E quem se

atreve a garantir que não seria exatamente este o eixo do repertório epistolar de Caio

Fernando Abreu, que — e por que não? —, à semelhança de Emily Dickinson, conforme

aponta pesquisa de Lucia Castello Branco sobre a escritura da poeta, “não se deixaria ver

assim tão facilmente, interpondo, entre sua presença e o mundo, uma ‘door ajar’”120? Afinal,

a correspondência, como também credita Michel Riaudel, dada a sua natureza híbrida, confere

à escrita um estatuto ambivalente e ambíguo entre o biográfico e o literário, a confissão e a

ficção, o segredo e a revelação.

Em carta a “La Moreira”121, Caio Fernando Abreu faz questão de dar a ver uma face

corada de vida, de planos e expectativas felizes, apesar da condição já sabida de HIV positivo:

“honey, ando muito feliz. Não é insensato? E Marina canta ‘e eu? Sigo latindo’. Eternamente

Laika, mas sabe que todo esse bode me forçou a tomar decisões que adiava há anos, como se

fosse imortal”122, relata, revelando, na continuação da narrativa, o desejo de voltar a morar no

Menino Deus, em Porto Alegre, “esta ilha verde separada do resto pela ponte da Ipiranga”123,

e colocar em prática outros intentos protelados ao longo da vida nômade que levava, como

manter um jardim, escrever o dia todo e “bem tia — acompanhar o crescimento dos meus

118
Ibid., p. 313.
119
RIAUDEL, op. cit, p. 99.
120
BRANCO, op. cit., p. 53.
121
A cantora Cida Moreira conhece Caio Fernando Abreu em Porto Alegre, na década de 70. Torna-se vizinha
do escritor na década seguinte, em São Paulo.
122
Fragmento de carta de 18 de novembro de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 319). Laika é outro codinome usado
pelo autor na escrita das correspondências.
123
ABREU, 2002, p. 319.
32

sobrinhos”124, aos quais atribui uma série de características “intertextuais”, depois de os

nominar gremlins: “Rodrigo, um Virgo-corpio de 11 anos, very enfrentative e informático;

Laurinha, um sex symbol de quatro anos, que fala corretissimamente com todos os esses e

erres, desenha muito bem e adora Frida Kahlo”125, a quem se dirige como “aquela mulher de

bigode”126; além de Felipinho, o sobrinho caçula louco por frangas. “Criança, descobri, é mais

curativo que AZT. Então estou assim, muy tia, e daquelas tias solteironas carentes exploradas

pelos sobrinhos, a quem cobre de presentes e estraga completamente a educação dos pais.”127

Sob o signo da carta e o peso da pena sobre o papel, o eu que se escreve, além de

obedecer às regras de persuasão características dos gêneros escritos — “e a persuasão de

sinceridade, numa carta afetiva, é o imperativo maior”128, certifica Leyla Perrone-Moisés —,

também se dramatiza, ao passo que conserva, na tessitura, o viés criativo e criador, ao se

denominar, a exemplo do trecho anterior, “tia” — por ora a face, a identidade e a voz

escolhidas pelo destinador que se oferece ao olhar quase sempre míope do recebedor, que

nunca se sabe estar realmente vis-à-vis da [in]fidelidade biográfica e sua densidade

[emo/fic]cional —, turvando qualquer tentativa segura de caracterizar este eu que se dá ao

carteio sob a designação tia, tia solteirona carente, e ao final se assina “Caio F.” aos olhos do

interlocutor. Camuflagem autoral?

Mais que especular, viável é observar o emprego notório de personas nesta

combinação autoral, tendo em vista o caráter de persona apresentado por Sergio Vilas Boas,

que a entende enquanto canal de expressão de si especialmente útil na adaptação social e no

trato com outros indivíduos. “Como máscara, o arquétipo da persona refere-se ao que é

esperado socialmente de um sujeito e à maneira como ele acredita que sua imagem deva

124
Id..
125
Id..
126
Id..
127
Id..
128
PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 179.
33

parecer publicamente”129 — numa preocupação que parece combinar muito mais com uma

“publicização” do teor privado do eu na escrita de si.

Para além da falta de intencionalidade, os retalhos epistolares muitas vezes resistem à

decifração, obrigando o dito a sugerir um pouco mais ou um pouco menos do que aquilo que

enuncia e aquele que lê a interpretar além daquilo que está dito: “ando meio fatigado de

procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis, e a minha saída (uma saída gostosa) tem sido

essa: a literatura. Claro que me dá um puta medo de estar me transformando numa criatura

intoxicada de palavras escritas”130, resume Caio Fernando Abreu em missiva a João Silvério

Trevisan, deixando entrever frames típicos dos bastidores emocionais do autor ou de sua

persona artística.

E se a saída para as procuras inúteis está na literatura, não a esmo poderia estar

também na epistolografia, enquanto exercício similar de escrita, admitindo-se a existência das

zonas de contágio entre os gêneros e a suplência do gozo sexual — possível graças ao tecer

textual [de si para si mesmo e de si para o outro], para reportar a Lucia Castello Branco131

lendo Jacques Lacan —, sem falar no ato de se dirigir e/ou se projetar ao recebedor, firmando

uma relação com ele e esperando deste a recepção do objeto, sua leitura e a resposta a ele, por

mais breve que for.

Sob esse prisma, aceitável é conduzir à baila juízo expresso por Renato Mezan — em

análise da produção epistolar de Freud —, que confere à carta o estatuto de “mescla muito

bem-sucedida de proximidade e distância, de atividade auto-erótica (sexualização do ato

físico de escrever, e também gozo na formulação das próprias palavras) e relação verdadeira

129
VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p.
125.
130
Fração de correspondência datada de 20 de novembro de 1977 (In: ABREU, 2002, p. 496).
131
Conforme Lucia Castello Branco, sob “o viés da psicanálise lacaniana, tanto a letra quanto o amor
funcionarão como suplência para a inexistência da relação sexual” (BRANCO, 2003, p. 60), ou, em outras
palavras, “digamos, com Lacan, que a escrita serve ao gozo” (BRANCO, 2003, p. 58).
34

com o outro”132 — avivando o caráter de aplacador de saudade comumente atribuído às

missivas.

Nesse viés, a impressão que se configura é a de que se está diante de um game no

qual as palavras são costuradas, uma a uma, com euforia, impedindo a entrada pelas vias

oficiais na intimidade do emissor e oferecendo, desse modo, pistas nem sempre confiáveis

sobre o bio que é grafado nas teias da escrita epistolográfica do autor — que a transcende para

virar excesso, sobra, rasura, ausência, trapaça discursiva, esquiva —, levando o leitor, muitas

vezes, a esbarrar nas máscaras do sujeito autoral, enquanto fareja suas pegadas sem perceber

que a trilha fora desenhada com as mesmas tintas escolhidas para grafar verdades forjadas.

“Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da minha vida, no

momento, e sobre cada um deles eu teria milhares de páginas a preencher.”133

E se o tom da narrativa é privado, os segredos são preservados [fora dali]. Segredos

não existem para ser desvelados — afinal, a intimidade “não é comunicável literariamente”134,

já decretava Ana Cristina Cesar, salientando que “o que a gente chama de subjetivo não se

coloca na literatura. [...] Eu queria jogar a minha intimidade, mas ela foge eternamente. Ela

tem um ponto de fuga”135. Para a poeta, o ato de transpor para o papel uma história pessoal

prevendo fazer dela literatura acaba por modificá-la, transmutando sua essência e seu teor.

“Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção,

ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É

uma impossibilidade até.”136 Art as life? Life as art?

Motivada a validar um trabalho de scholar, com a prudência de um autopsiador, em

oposição ao de postular fúrias biografistas, elejo a correspondência ativa e seu conteúdo como

132
MEZAN, Renato. As cartas de Freud. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO,
Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 171.
133
Carta a Vera Antoun, datada de 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 451).
134
CESAR, 1999b, p. 259.
135
Id..
136
Ibid., p. 273.
35

matéria-prima de leitura [labial137] nas páginas a seguir, levando em conta, sempre que viável,

este lugar de discurso enquanto refúgio da memória, do inconsciente, da intimidade e do

cotidiano do autor, o qual viabiliza, de certa forma, ao pesquisador, “pensar as ligações

sociais”138 do destinador e “a constituição de uma esfera de privacidade em seu entorno, bem

como a constituição do indivíduo como sujeito”139 — reconhecendo, entretanto, o teor

ficcional potencialmente presente na percepção e na projeção do eu que se enuncia na escrita

de si e, ao mesmo tempo, admitindo que o “filtro da memória impede a objetividade”140 no

relato da experiência e as “fronteiras entre imaginação e memória são difíceis de

determinar”141. Ao que aproveito fração de missiva redigida por Franz Kafka, a qual parece

corroborar com alguns dos aspectos citados: “Minha memória é muito ruim, mas se ela for a

melhor de todas, não me ajudará a transcrever exatamente nem mesmo um pequeno parágrafo

concebido e anotado anteriormente, pois [...] há mudanças que, antes de serem colocadas por

escrito, devem ficar em suspenso.”142.

Ademais, enquanto continente favorável ao borramento entre os gêneros, num

contínuo aproximar-se distanciando-se, a epistolografia não se esquiva de fornecer um retrato

de Caio Fernando Abreu ou fragmentos biográficos do autor, apesar da imbricação entre as

personas pública e privada. “Muito ascendente em Libra, Caio preferia revelar apenas o que

supunha ser agradável ao outro”143, segreda a amiga de longa data, Márcia Denser144, para

quem o escritor gaúcho “é mestre — de dizer pelo não dito, significar pelo oposto ou pelo

137
Com o sentido que lhe emprega Maria Lucia de Barros Camargo: leitura enquanto prática da hermenêutica da
suspeita. Cf: CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina
Cesar. Chapecó: Argos, 2003.
138
SALOMON, op. cit., p. 15.
139
Id..
140
VILAS BOAS, op. cit, p. 60.
141
Id..
142
KAFKA, op. cit., p. 14.
143
DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial
da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 12.
144
Escritora e jornalista paulista.
36

implícito, pelo subtexto e pela elipse — suas ilhas de silêncio”145. E não é exatamente Caio

Fernando Abreu quem diz que “com o mistério não se pode mexer”146?

A partir disso, como localizar a narrativa epistolar de Caio Fernando Abreu, flanar

um percurso validável e avistar mais que arcanos e dizeres de si, pessoais e/ou ficcionais, em

meio a zonas de sombra, sobrepondo o desejo recorrente de, a todo momento, lançar olhos de

furor sobre este lugar de memória?

“Ando feliz, feliz-clichê: amo Paris. Acho que nunca disse isso para cidade nenhuma.

As cidades, você sabe, são falsas e traiçoeiras. Paris, você quer casar comigo?”147, relata Caio

Fernando Abreu, com pretensiosa malícia discursiva. “Acampei na sala de Alexandre, a falta

de espaço é terrível, para qualquer movimento preciso abrir malas e bagagens, e nunca sei

nunca sei exatamente aonde está a cuia, onde está a calcinha... Males de um viajante.”148

145
DENSER, op. cit., p. 10.
146
ABREU, 2005b, p. 255.
147
Extrato de correspondência escrita a Maria Lídia Magliani, em 26 de março de 1994, durante estada do autor
na França (In: ABREU, 2002, p. 292).
148
Id..
37

2 O EPISTOLÁRIO
“Para mim são muito mais verdadeiras
as coisas que não são reais.”149

A epistolografia permite, ao missivista, borrar a fronteira entre os gêneros e habitar

uma zona híbrida, na qual é possível experimentar uma outra espécie de narrativa — que

ultrapassa suas características subjacentes: [auto]biográfica, confessional, documental. É

nesse entremeio que procuro me inscrever com a pretensão de sinalizar alguns “excessos” —

como o compromisso com a linguagem, num fazer escritural que a dispõe em revelo,

segregando a fidelidade das impressões do íntimo ao pano de fundo — que se incrustam na

narrativa de si de Caio Fernando Abreu quando na [re/a]presentação de si ao destinatário. É

uma tentativa. E um amparo.

Para dar conta de trilhar o percurso investigativo sugerido, sob o escrutínio

acadêmico, este movimento de leitura não se furtará ao direito de se beneficiar do uso de

lentes de aumento para, assim, verter um olhar aguçado e, sobretudo, cauteloso sobre o

continente epistolar do escritor mencionado — que firma pactos biográficos com o leitor até

mesmo quando produz literatura, como ao recomendar: “Descobre, desvenda. Há sempre mais

por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real”150.

Com base nisso, que leitura seria possível travar acerca da escrita de si reunida em

Cartas151? Ao tecer a escrita epistolográfica, o prosador se guarnece de máscaras,

desdobrando-se em vários eu(s)? Esconde-se por trás de sujeitos “construídos”, eu(s)

ficcionalizado(s), a fim de alçar vôos performáticos? Lança mão da prática confessional para

149
FELLINI apud COSTA, Vidal A. A.. A pertinência do irreal: reconhecendo faces inexploradas na ficção
especulativa. Revista Letras, Curitiba, n. 62, p. 81-95, jan./abr. 2004, p. 81.
150
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 40.
151
ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
38

documentar, de fato, a escrita de si e/ou se rende ao estatuto ficcional para gerar uma

literatura que se disfarça de correspondência [pastiche de gênero]?

2.1 O artifício ficcional

“MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito.

Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela.

Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu)”152, descreve Caio Fernando

Abreu. O fragmento, ao contrário do que se possa pensar, não diz respeito ao legado ficcional

do escritor. Trata-se, à primeira vista, de outro gênero. O epistolar.

O trecho, que relata contato travado com Ana Cristina Cesar — companheira

geracional do escritor, com quem manteve intensa amizade153 nos idos de 80 —, integra

correspondência remetida a Jacqueline Cantore. Nela, ao detalhar a condição da poeta, Caio

Fernando Abreu parece incrementar o “real”, ora imprimindo humor à construção textual —

“Conversando com GM, somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda,

come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua

no açude na hora da sesta”154, complementa —, ora comparando Ana Cristina Cesar, mais à

frente na carta, à Isabelle Adjani — “em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. Linda,

naturalmente, mas troppo morbo”155 —, característica que se repete também ao adotar para si

codinomes femininos, como Marilene ou Laika.

“Cheguei na editora rindo: meu Deus, a Laika de São Paulo, a negra sem ter onde

morar, vivendo com 500 dólares por mês, lavando roupa num balde sob o chuveiro, fazendo a

152
Trecho de carta escrita a Jacqueline Cantore em 20 de maio de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 46).
153
Cf: MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará;
RioArte, 1996. (Perfis do Rio).
154
ABREU, 2002, p. 46.
155
Id..
39

feira toda sexta — dando autógrafo em Saint-Germain!”156, redige a Guilherme de Almeida

Prado. “Mas te juro que perdi o pique: Marilene já não é mais a mesma, quem diria. Acordei

às quatro da tarde com aquele gosto de tabuleiro de xadrez na boca (o da alma é pior) e recebi

Ana Maria para longas sessões de I-Ching, cores & Tarot”157, segreda a Jaqueline Cantore —

mesma destinatária dos extratos seguintes, nos quais o missivista escritor se enuncia na

terceira [Marilene] e na primeira pessoas do singular para narrar um pormenor doméstico:

“S´as que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela

no fogão, mui lépida, assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente um odor

estranho vindo das bandas do dito fogão”158, relata à interlocutora. “Ela estava, mui

poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela pêxa grávida no aquário, que não se

decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, s´as?)”159, estende.

“Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da tercêra para a primêra pessoa) e

eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. [...] Marilene,

ousadíssima, queria avançar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO”160, esmiúça o

prosador, explicando que a motivação para o ato heróico estava em evitar a carbonização do

assado, dada a então escassez de recursos para comer.

Tal postura, assumida pelo autor na escrita de si, à medida que lustra o discurso de

comicidade — “Preciso ter uma ilusão de segundo mundo — você sabe que, embora Laika,

tenho uma alminha très chic”161 — e impregna a linguagem com termos gauchescos e códigos

idiossincráticos — “Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor é guloso! Já pedindo foto da

156
Fração de missiva de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299).
157
Fragmento de correspondência de 5 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 112).
158
Extrato de epístola de 26 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 115).
159
ABREU, 2002, p. 115.
160
Id..
161
Trecho de carta escrita em 30 de julho de 1993 e postada ao tradutor alemão de Dulce Veiga e de outros
trabalhos de Caio Fernando Abreu, Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 272).
40

MINHA lasanha completamente pelado(a)...”162, exprime, exibindo graça ao tecer a conversa

escrita —, conforme inferência de Italo Moriconi, vai apresentar-se, notadamente, em

correspondências dirigidas também a outros recebedores, como Marcos Breda163: “Mas o

apelo dos seus verdes olhos foi mais forte que a najice. Agora planejamos falsificar várias

cartas de leitores nervosos querendo a todo custo saber quem, afinal, é esse casal maravilhoso

nas sombras?”164.

De posse dessas particularidades e amparado no uso de termos como “jacira (=

bicha); lasanha (= homão bonito); rodenir (= coisa brega)”165, Italo Moriconi aposta no caráter

lúdico das cartas de Caio Fernando Abreu, reconhecendo a existência de um jogo vertiginoso

de máscaras e de um vocabulário criado pelo autor e introduzido não apenas na produção

epistolar, como também em crônicas166 e ficções — concebendo, desse modo, uma

modalidade de “‘humor bicha’ ou ‘queer’”167/168, com a qual, particularmente, não compactuo

por preferir tomá-la enquanto estratégia discursiva operada a partir da experiência do autor.

Vida reinventada pelo discurso — ora para gerar literatura, ora para engendrar confissão —,

ao que aproveito análise pertinente de Pedro de Souza a respeito de produção de Caio


162
Fragmento de correspondência redigida em 18 de novembro de 1994 a Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p.
322).
163
Ator. Conhece Caio Fernando Abreu em São Paulo, na década de 80.
164
Extrato de missiva de 22 de abril de 1988 (In: ABREU, 2002, p. 158).
165
Cf: MORICONI. In: ABREU, 2002, p. 44. Italo Moriconi presta o esclarecimento em nota de rodapé.
166
Na crônica As quatro irmãs (psicoantropologia fake), Caio Fernando Abreu brinca com os nomes Jacira,
Telma, Irma e Irene, que, na narrativa, são quatro irmãos que atendem por nomes femininos que também
caracterizam grupos distintos de homossexuais: “Vírus e suas saias-justas sem nesga à parte, na verdade a aids
não mudou muito o comportamento das quatro. Elas são arquetípicas, atávicas, eternas. Freud, por exemplo, na
opinião geral era irmésima. Já Platão parece ter sido uma boa Irene. Ninguém colocaria em dúvida a jacirice de
Oscar Wilde. Rimbaud, por sua vez, dá a impressão de ter começado como Jacira (quando chegou a Paris) para
transformar-se — o que é raro — em Telma (Abissínia). Já Verlaine, teria sido uma Irma que se ajacirou. [...] O
que pode acontecer (vide Rimbaud & Verlaine) são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência
etílica) que viram Telmas; Telmas que — bem comidas — se irenizam ou mesmo ajaciram, etc.” (ABREU, Caio
Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 144-145).
167
Cf: MORICONI. In: ABREU, 2002, p. 44. Italo Moriconi presta o esclarecimento em nota de rodapé.
168
Em estudo de parte da produção literária de Caio Fernando Abreu, Bruno Souza Leal apresenta a noção de
“espaço queer” enquanto espaço virtual resultante “da comunicação com outro, ou seja, de exposição de um
desejo, de um sentimento íntimo a alguém, e da redefinição de espaços públicos [...] pelo trânsito que resulta
desse contato” (LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos,
identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 26). Para ele, os “territórios queer” são
potencialmente compostos pelo movimento de “estrangeiros”, sujeitos sempre em trânsito, à procura de uma
forma de contato com o outro que o identifica.
41

Fernando Abreu: “os ornamentos na escrita cumprem a finalidade de o narrador, cometendo

maneirismos estilísticos em sua escrita, construir a imagem de si como protagonista da cena

no ato mesmo de narrar/escrever”169.

Nesse viés, inquietante é tentar vislumbrar a apresentação de “verdades” nesta

escritura, teoricamente, biográfica — “Hoje estou torcendo pela queda final da besta Collor e

— pour quoi pás? — pela entrada do nosso país num tempo de astral melhor”170, redige a

Maria Adelaide Amaral171, cutucando [com vara] o panorama político brasileiro172 e

conduzindo à reflexão: Afinal, Caio Fernando Abreu se dedica a narrar/escrever o “real” —

ou a não-ficção — nas correspondências ou se mantém construindo, performando,

ficcionalizando — muito ao gosto de Roland Barthes, quando, em entrevista173 à revista Tel

Quel, dispõe-se a teorizar, desviando-se serenamente das questões que não deseja responder,

como quem se afasta, de fininho, na ponta dos pés, deixando o campo livre?

Para Márcia Denser, as cartas de Caio Fernando Abreu apontam, entre outras

dominantes, a “absoluta necessidade que tinha de mentir para os outros”174, ocultando sua

169
SOUZA, Pedro de. Escrita e imagem de si: subjetivação inconclusa em narrativas homoeróticas. In: LOPES,
Denílson [et al.], (Org.). Imagem e Diversidade Sexual – estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa edições,
2004, p. 190.
170
Fragmento de carta redigida em 29 de dezembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 258).
171
Escritora consagrada, dramaturga e autora de novelas. Conhece Caio Fernando Abreu em 1979, na Editora
Abril, em São Paulo.
172
Pela leitura das “escrevinhações” do autor, é possível perceber o diálogo com o contexto político-social e o
período vivido. Ainda mais para alguém como Caio Fernando Abreu, que fez questão de mergulhar nas correntes
culturais da sua época, aderindo ao movimento hippie — “Vivi como hippy no Rio durante um certo tempo.
Cheguei a passar uma semana sem fazer nada, sem comer — só tomando cafezinho e comprimido para passar a
sensação de fome. Dormia na praia do Leme. De noite, ia ao Conservatório de Teatro para fazer um curso sobre
Alquimia.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p.
352) —, submetendo-se ao regime ditadorial e experimentando, por conseqüência, a censura e o exílio. “Dentro
da engrenagem, ser hippy é a única forma digna de sobreviver”, expõe o prosador, em depoimento concedido na
década de 70 (ABREU, 2005a, p. 347). “Eu acho que poderia comparar os hippies brasileiros com os dos países
desenvolvidos. Dentro de um certo limite, claro. Na Europa, os hippies são revoltados contra uma sociedade
superdesenvolvida. No Brasil, não se pode dizer que eles são revoltados contra uma sociedade subdesenvolvida,
porque o Brasil não é um país subdesenvolvido. É um país mal desenvolvido [...] um hippy paulista é igual a um
hippy inglês ou parisiense, mas ninguém consegue imaginar um hippy amazonense. No Amazonas ele não tem
por que se marginalizar, se ele já é um marginal.” (ABREU, 2005a, p. 347).
173
Realizada em 1963. Cf: BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
174
DENSER, op. cit., p. 11.
42

natureza privada. “Caio era cheio de mistérios, segredos”175, situa a escritora, esclarecendo

que o autor sempre silenciava suas ligações com o Rio Grande do Sul para o grupo176 de

escritores com o qual conviveu nos anos passados em São Paulo, “supondo que o julgássemos

provinciano”177 — mesmo procedimento adotado com as peças teatrais e as produções para a

televisão, as quais também eram mantidas em segredo, o que, segundo Márcia Denser, dava-

se porque Caio Fernando Abreu temia parecer menor aos olhos dos pares178, “uma vez que o

‘núcleo duro’ de escritores desconsiderava tal produção enquanto arte”179.

Ao comentar a publicação das missivas, Italo Moriconi não afasta a associação

vida/obra. “O Caio que fala nas cartas é mais o Caio pessoa, embora, claro, o Caio-pessoa

fosse integralmente, 24 horas por dia, o mesmo Caio escritor”180, pontua, constatando a

qualidade poético-literária da escrita epistolar do prosador: “no meio de descrições do

cotidiano e observações sobre comportamentos e sentimentos, emergem parágrafos, trechos

inteiros, cartas inteiras que são pura literatura, puro vôo criativo e poético”181. É fácil entender

por quê.

175
Id..
176
Segundo Márcia Denser, faziam parte do grupo, além dela, Lygia Fagundes Telles, Marcos Rey, Raduan
Nassar, Ignácio de Loyola e Ivan Ângelo, entre outros escritores.
177
DENSER, op. cit, p. 12.
178
A aparente autocensura do escritor talvez encontre justificativa no cenário vigente no período: “Em meados
dos 80, o Brasil do nacional-desenvolvimentismo descrito por Roberto Schwarz cai na real. Os planos Cruzado
(1986) e Collor (1990) são entremeados por uma inflação de 300 por cento ao ano. Sob tais condições, não existe
futuro, mas é nesse contexto que os heróis anônimos de Caio Fernando Abreu fazem todo o sentido. Abstraindo-
se a aids, o contexto econômico da época era tão adverso que por si só explicaria a ausência de projeto
existencial e prospecção futura dos seus personagens”, assinala Márcia Denser (DENSER, op.cit, p. 10), com
quem Caio Fernando Abreu compartilhou a ambição de vencer na carreira literária. Nessa época, em
correspondência remetida a Jacqueline Cantore em 24 de junho de 1981, o escritor comenta ligação com Márcia
Denser: “Raramente saio à noite, praticamente nunca vou a lançamentos literários: — tenho medo e desgosto do
astral competitivo, fofoqueiro. Mas tinha ontem duas pessoas que gosto muito: Márcia Denser, lançando O
animal dos motéis (você ficou assustada com o título? a Márcia é assim, meio atrevida, mas no fundo uma
Luluzinha querendo fingir de Messalina — como me dirijo mais à Luluzinha e ignoro as messalinices dela,
costumo dizer que temos um relacionamento muito especial).” (ABREU, 2002, p. 32).
179
DENSER, op.cit, p. 12.
180
In: MOSCOVICH, Cíntia. Um poeta nos passos de Caio. Entrevista concedida por Italo Moriconi. Zero Hora.
Porto Alegre, 21 dez. 2002. Cultura - Segundo Caderno, p. 4.
181
Id..
43

“Não te enfosses com os editores. Tem um poema da Florbela Espanca que diz

assim: ‘As coisas vêm a seu tempo/quando vêm, essa é a verdade’. Um dia a coisa sai. E eu

acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça na hora exata”182, profere

em carta a Hilda Hilst183, legitimando parecer de Italo Moriconi no que toca ao fazer escritural

de Caio Fernando Abreu, visto pelo pesquisador enquanto labor: “na medida em que o

trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que

brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, suas resenhas e matérias jornalísticas,

assim como presumivelmente seu diário”184 — ou seja, tudo fruto “de um mesmo processo de

vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita

alimentando-se da vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza”185 —

assertiva que retoma análise travada por Félix Guattari e Gilles Deleuze acerca da literatura de

Franz Kafka, quando sinalizam que, se as cartas fazem plenamente parte da obra, “é porque

são uma engrenagem indispensável, uma peça motriz da máquina literária tal como Kafka a

concebe”186, e que se combina, de certa forma, à percepção de Beatriz Resende187, ao

presumir que artistas jamais são ingênuos. Ingenuidade seria admitir que vida e obra,

confissão e ficção não possam integrar a mesma trama narrativa.

Dentro dessa esfera, salutar é apresentar adendo de Caio Fernando Abreu, no qual se

reporta às influências que incidiram na formação como escritor: “Tenho um excesso de

182
Missiva de 29 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 369).
183
A escritora conhece Caio Fernando Abreu nos anos 60. Exerce forte influência na formação literária do autor.
184
MORICONI, Italo. Introdução. In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 15.
185
Id..
186
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p.
58.
187
RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a correspondência de Ana Cristina César. In:
SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes Femininas: Gênero, mediações e práticas
da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003. Neste ensaio, a autora
certifica que: “O que [Roland] Barthes faz ao negar a sinceridade de seu diário é reivindicar para a condição
literária uma ingenuidade tão impossível quanto inútil. Condenando o diário como simulação, termina por
garantir sua literaridade, sua importância como escritura, autorizando sua publicação” (p. 308-309).
44

fantasia e a necessidade de sempre criar um mundo imaginário, paralelo ao mundo real”188,

confidencia, em depoimento à Gazeta do Povo. “Bob Dylan, numa entrevista, disse: ‘Minhas

influências vêm de tudo o que vi, ouvi e vivi’. É mais ou menos isso”189, acrescenta o

prosador, ressaltando a honestidade mantida com o leitor e a pessoalidade na sua expressão

textual — “Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas

como aquelas dos almanaques de antigamente”190, escreve Caio Fernando Abreu, dirigindo-

se, diferentemente do que se possa, numa primeira leitura, deduzir, não a um determinado

interlocutor, mas a vários interlocutores. Leitores de suas crônicas publicadas em O Estado de

S. Paulo.

O extrato integra a crônica Última carta para além dos muros191 — misto de escrita

confessional e profissional, correspondência e crônica. “Gosto sempre do mistério, mas gosto

mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mas claramente.

Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo” 192, amplia o

escritor. A “carta-crônica”193 encerra uma série de três. Na primeira delas, à qual chama Carta

para além dos muros194, o autor decide dar viva-voz à doença que lhe tiraria, mais tarde, a

vida, disseminando, ao revelar estar internado com Aids num hospital paulista, a verdade

sobre seu estado de saúde.

Neste caso, entre o mascaramento e o despojamento de si, Caio Fernando Abreu

privilegia o segundo sem se descolar do primeiro. Elege o espaço público do periódico para

188
In: FERNANDES, José Carlos. Um lugar para plantar morangos. Gazeta do Povo. Curitiba, 3 jul. 1995.
Caderno G, p. 3.
189
Id..
190
ABREU, Caio Fernando. Última carta para além dos muros. Zero Hora. Porto Alegre, 26 fev. 1996. Segundo
Caderno – Especial, p. 3.
191
Publicada em 21 de agosto de 1994. Cf.: MACHADO, Cassiano Elek. Cartas do escritor narram amor nos
tempos da Aids. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 dez. 2002. Ilustrada, p. 4.
192
ABREU, 1996, loc.cit.
193
Tomo a liberdade de chamá-la “carta-crônica” tendo como justificativa o seu caráter público privado e o seu
teor documental ficcional. Publicada em 18 de setembro de 1994. Cf.: Segundo Caderno – Especial do jornal
Zero Hora de 26 de fevereiro de 1996, p. 3.
194
Um dos contos de Caio Fernando Abreu integrantes de Caio 3D: O essencial da década de 1970 se chama
Carta para além do muro. In: ABREU, 2005a, p. 249-251.
45

explicitar sua condição íntima ao leitor e à leitora, que parecem figurar na narrativa como

velhos confidentes, destinatários de longa data, caso pondere-se que particularidades como

essa seriam trocadas apenas, e tão apenas, com pessoas a quem se quer bem. “Não parei e

pensei: ‘Vou tornar isso público’ (imitando voz lenta e tenebrosa)”195, declara à Gazeta do

Povo. “Eu estava no hospital e deveria mandar uma crônica para o Estado. Tinha passado três

dias inconsciente. E só poderia escrever sobre aquilo. [...] Sempre fui muito pessoal naquilo

que produzo, honesto com o leitor”196, esclarece o prosador.

Ao assumir-se enquanto figura pública [que noticia o privado de si], o escritor se

pauta na experiência mais imediata e, num ato de cumplicidade com o leitor e a leitora, sai do

confinamento hospitalar para travar um tête-à-tête — ao mesmo tempo “íntimo”, a carta, e

“público”, o jornal; “documental”, a correspondência, “ficcional não ficcional”, a crônica —

com esse interlocutor [des]conhecido, desvelando a “novidade biográfica” e plantando a

confusão: Por que se enunciar desse modo? Há quem garanta que o ficcionista “acreditava nos

mistérios, nas transcendências, nas divindades”197. A justificativa pode estar aí — “sempre fui

ligado à filosofia oriental, ao budismo. Por isso creio que esta vida é ilusão. Acho que a coisa

está ali. Do outro lado. O que nós chamamos de morrer é como nascer para outros planos. [...]

morrer deve ser algo prazeroso”198.

A intenção das “cartas-crônicas” talvez estivesse na aproximação de Caio Fernando

Abreu com cada um de seus leitores, amigos ou não — “Conto para você porque não sei ser

senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo.

Sei que você compreende. Sei também que, para outros, esse vírus de science fiction só dá em

195
In: FERNANDES, 1995, loc.cit.
196
Id..
197
ALABARSE, Luciano. O ousado viajante do Menino Deus. Zero Hora. Segundo Caderno Especial. 26 fev.
1996. p. 4.
198
Trecho de depoimento concedido ao Jornal da Tarde e originalmente publicado em 11 de outubro de 1994.
Cf.: ABREU, 2006, p. 277.
46

gente maldita”199, registra. A forma encontrada lhe permite, assim, o tom de conversa, o

desnudamento, ao pé do ouvido, da intimidade e das miudezas cotidianas, da mesma forma

que lhe concedia o face to face com os destinatários queridos das cartas “verdadeiras”.

“Caio buscava a verdade na palavra”200, exprime Luciano Alabarse. “Verdades duras,

deitadas sobre tapetes que pareciam ser sempre de cor púrpura desbotada, mirando tetos

invariavelmente manchados de mofo e solidão, como no conto Linda, uma História

Horrível”201, complementa, em entrevista ao jornal Zero Hora, tangendo o caráter visceral da

escrita de Caio Fernando Abreu e encontrando na ficção exemplo evidente disso.

Sendo assim, como não desconfiar da sinceridade da pena? Como não reconhecer a

viabilidade de confissão e ficção habitarem a mesma trama narrativa? Antes de ensaiar

qualquer trajetória discursiva, é preciso observar, ao que alerta Maria Helena Werneck, que o

“corpo, sujeito ao olhar alheio, amarelece como o papel, encarquilha, range e se rói, mas não

se oferece em suplício. Ao contrário, revigora-se ao tornar visível no abatimento, ao narrar os

cuidados de si”202 — narrar este que favorece a “percepção de si”203 do autor, que a transfere

para o papel fino da carta, no lugar do “personagem social”204. Será?

Acerca disso, prudente é considerar também o desejo expresso por Caio Fernando

Abreu de que as correspondências tomassem os rumos públicos depois de sua morte — sem

199
ABREU, 1996, loc.cit.
200
In: GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000.
Cultura, p. 3.
201
Id.. No conto referido, Caio Fernando Abreu narra, logo na abertura: “Só depois de apertar muitas vezes a
campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura,
depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor?” (In: ABREU, 2005b, p. 21).
Mais à frente na narrativa, um dos personagens faz, então, referência ao tal teto de que trata Luciano Alabarse:
“Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto
manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da
década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 26).
202
WERNECK, Maria Helena. “Veja como ando grego, meu amigo.” Os cuidados de si na correspondência
machadiana. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado senhor, Prezada senhora. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 141.
203
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos &
abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 170.
204
Id..
47

arrombamentos invasivos à “intimidade” do autor —, numa postura que desencadeia inúmeras

divagações: “nós nos escrevemos dezenas de cartas. Não sei se você guardou as minhas como

guardei as suas. Se você guardou, uma idéia [...] é você publicá-las. Vamos que eu me torne

um mito literário (melancolicamente póstumo...)”205, sugere a Lucienne Samôr, numa

referência muito próxima ao desejo de ter o epistolário também lido por destinatários

diferentes daqueles referenciados no alto da carta de origem — instigando quem atenta para a

prática epistolográfica do autor: “Já leste carta tão besta? Pois é, vai saindo. Nas minhas obras

póstumas, você jura que elimina as mais imbecis?”206.

Afinal, estaria, Caio Fernando Abreu, a partir do escancaramento dessa vontade,

forjada ou não, policiando-se enquanto missivista que emite pareceres sobre si e seu círculo

de relações pessoais e profissionais? Estaria, ele, utilizando-se de máscaras quando na

[re/a]presentação de si e dos pares nesta escrita dita confessional? Lustrando o discurso na

confecção e na ambientação da narrativa de si? Maquiando experiências cotidianas, sob o

signo do artifício? Construindo “rasgos de verdade”, simulacros e/ou pastiches de confissão?

Tingindo revelações — à sombra de Roland Barthes, que, com freqüência, “deu a seus

fragmentos auto-narrativos um leve tom de farsa”207, amparado pela certeza de que a

sinceridade não passava de “um imaginário de segundo grau”208? “De qualquer forma, se você

as tem, são suas. É a minha herança para você”209, enfatiza o missivista, colocando a

recebedora a par da doação de cartas remetidas por outros escritores, as quais mantinha

guardadas em gavetas e pastas, à Fundação Casa de Rui Barbosa210.

205
Fragmento de epístola redigida em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 340).
206
Retalho de carta escrita a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 127).
207
Cf.: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 18.
208
BARTHES, Roland. Deliberação. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 447.
209
ABREU, 2002, p. 340.
210
Em correspondência redigida em 1º de dezembro de 1995 a Flora Süssekind, Caio Fernando Abreu informa
que lhe está encaminhando as cartas preciosas da poeta Ana Cristina Cesar [ainda não publicadas]. Nela, sugere
48

“Ontem fez uma manhã linda. Apanhei horrores de sol na piscina, o verde da tez vai

esmaecendo. Tenho feito muita ginástica e yoga. [...] Na verdade estou ótimo. E vou ficar

melhor ainda”211, narra Caio Fernando Abreu, promovendo uma verdadeira fusão entre as

linguagens literária e extraliterária — na contramão de Erasmo de Rotterdam, para quem “o

estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido

planejado [...], quase improvisado e sem preparação”212. O trecho, extraído de

correspondência remetida a uma velha amiga, poderia perfeitamente sinalizar a tensão entre a

“mentira do documento e a verdade da ficção”213. Armadilha discursiva? Como depurar o

“não depurável”?

Neste entremeio, viável é recorrer às impressões de Deonísio da Silva, que entende

que qualquer coisa se torna tema quando o que está em jogo é a literatura. “Para um

romancista, tudo é tema, todos são personagens, inclusive o próprio escritor”214, propõe. A

partir disso, se aspectos da vida pessoal — a exemplo da Aids e das experiências e

preferências sexuais e literárias, como o escritor Reinaldo Arenas, cuja literatura Caio

Fernando Abreu insere na novela Bien Loin de Marienbad, segundo José Castello215 —

ganham voz na produção ficcional do autor, que não obstrui a entrada de referências

autobiográficas, descartar o indicativo de que o contrário — que recursos ficcionais seriam

adotados na escrita das cartas, potencialmente no preenchimento de lacunas residentes na

memória216 e no esquecimento — poderia se verificar na sua escritura epistolar tomaria

a publicação da produção epistolar: “Tive uma idéia: essas cartas, na minha opinião, são tão belas que mereciam
ser publicadas” (ABREU, 2002, p. 341).
211
Em extrato de missiva escrita em 20 de maio de 1983 a Jacqueline Cantore (In: ABREU, 2002, p. 45).
212
ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar. In: TIN, Emerson
(Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Editora
da Unicamp, 2005, p. 112.
213
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 69.
214
SILVA, Deonísio. O escritor se defende com a palavra. Zero Hora. Porto Alegre, 7 jan. 1995. Segundo
Caderno, p. 5.
215
CASTELLO, José. A condenação que virou alegria de viver. O Estado de São Paulo. São Paulo, 11 dez.
1994. Caderno 2 - Especial Domingo, p. 3.
216
Neste entremeio, vale trazer à cena discursiva formulação esclarecedora de Ecléa Bosi: “A memória não é
49

dimensões de ingenuidade. Afinal, trata-se de um espaço de subjetividade igualmente fértil ao

missivista enquanto zona de contágio e enovelamento entre biográfico e literário.

A esse respeito, interessante se afigura questionamento de Wolfgang Iser a respeito

do lugar do fictício nos textos ficcionais: “Os textos ficcionados serão de fato tão ficcionais e

os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?”217. E é, então, com desconfiança

que Wolfgang Iser deposita um olhar [de soslaio] no senso comum que postula, enquanto

opostos, conceitos como realidade e ficção, colocando em xeque todo “repertório de certezas

que se mostra tão seguro a ponto de parecer evidente por si mesmo”218.

De fato, validar qualquer raciocínio sob esse prisma seria mero reducionismo,

especialmente diante de fragmentos tomados de empréstimo da produção oficialmente

ficcional de Caio Fernando Abreu, como estes: “não fui eu quem mentiu, mas uma parte de

mim, e se quiserem perguntar também a essa parte de mim que desconheço quase tanto

quanto vocês, se eu conseguisse localizá-la”219, narra no conto Dodecaedro, “talvez ela

dissesse: [...] nada do que acontecia aqui [...] até que minha mentira nos ameaçasse

aconteceria realmente se minha mentira não fosse verdade e nada tivéssemos a defender além

da verdade inteira de um próximo momento mais verdadeiro”220.

Partindo desse viés, recorro mais uma vez ao aparato teórico de Roland Barthes para

lançar luzes sobre tais inquietações e, então, especular: Se, à leitura das cartas de Caio

Fernando Abreu, o crítico aplicasse percepção semelhante à com que tomou a novela

Sarrasine — ambas figurando como texto —, plausível seria apostar na verdade lúdica da

sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado ‘tal como foi’, e que se faria no
inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.” (In: BOSI, Ecléa. Memória e
sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 55).
217
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da
literatura em suas fontes. 2. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 384.
218
Id..
219
ABREU, 2005d, p. 52.
220
Id..
50

produção epistolar em pauta, já que, segundo o autor221, cada texto contém seu jogo de

verdades — recordando que a verdade, para Roland Barthes, somente existe na sua forma

lúdica, inexistindo, assim, uma verdade objetiva ou subjetiva da leitura.

O discurso acima realimenta e redimensiona incursão teórica anterior do autor, na

qual opera o conceito de efeito de real — “fundamento desse verossímil inconfesso que forma

a estética de todas as obras correntes da modernidade”222. Na análise, Roland Barthes intui

que, na ideologia imperante, o fator de ordem nas ciências humanas, na literatura e no

comportamento reside naquilo que há de concreto, “como uma máquina de guerra contra o

sentido”223.

Com base nesse entender, o crítico adota a noção pontual de “ilusão referencial”224,

cuja verdade, informa, é a seguinte: “suprimido da enunciação realista a título de significado

de denotação, o ‘real’ volta a ela a título de significado de conotação: no momento mesmo em

que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que

significá-lo”225. E o que vem a ser o real? Há o real? Para Roland Barthes, “não o conhecemos

nunca senão sob a forma de efeitos (mundo físico), de funções (mundo social) ou de

fantasmas (mundo cultural)”226, sintetiza, acertadamente, sinalizando que o real é sempre uma

inferência: “quando se declara copiar o real, isto quer dizer que se escolhe tal inferência e não

tal outra”227.

Sendo assim, aceitável é reconhecer que este efeito de real do discurso de que trata

Roland Barthes nada mais fornece do que variantes de verdade, pois é preciso considerar que

a linguagem não dá e não pode dar conta do real, mas, sim, de representações do real. Ou

221
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
222
Ibid., p. 163.
223
Id..
224
Ibid., p. 164.
225
Id..
226
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 78.
227
Id..
51

ainda: “A linguagem constitui e articula uma realidade”228, conforme alerta, com perspicácia,

Marcio Markendorf, na espreita de Jean Baudrillard, para quem a realidade não passa de um

conceito ou um princípio, ao qual se conecta todo o sistema de valores. “O Real enquanto tal

implica uma origem, um fim, um passado e um futuro, uma cadeia de causas e efeitos, uma

continuidade e uma racionalidade. Não há real sem estes elementos, sem uma configuração

objetiva do discurso.”229

Neste sentido, mais que vislumbrar a verdade lúdica como a única possibilidade

salutar de leitura, Roland Barthes oferece uma outra leitura edificante: a que visualiza o efeito

de real. “A narrativa mais realista que se possa imaginar desenvolve-se segundo as vias

[mais] irrealistas”230, reflete o teórico, remetendo, a meu ver, a uma missiva um tanto

melancholic escrita por Caio Fernando Abreu durante estada na Inglaterra, em 1991, na qual

se mostra saudoso pela pátria deixada para trás: “Quando saí daí, saí gritando ‘gentalha,

gentalha!’ em todas as direções (Marcos Breda [...] que o diga). Então vem o inverno, e a

neve (as temperaturas do início de fevereiro aqui foram literalmente siberianas), e essa gente

fria, e essa língua”231, relata a Guilherme de Almeida Prado, admitindo se deixar invadir por

um amor desesperado por esse país de “gentalhas” e emendando, mais à frente, a resposta

encontrada para abrandar a saudade que o acometia — “com aquele accent de João Gilberto, a

música que mais cantei aqui — baixinho, só para mim mesmo — nesse tempo todo foi ‘isso

aqui ôôô, é um pouquinho de Brasil iáiá’, quando via algo ou alguma coisa que me lembrava

o Brasil”232.

228
MARKENDORF, Marcio. Autobiografia como artifício ficcional. In: Encontro Internacional Fazendo
Gênero, 6., 2004, Florianópolis. Ensaio cedido pelo autor (pesquisador do Doutorado em Teoria Literária da
Universidade Federal de Santa Catarina).
229
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Tradução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,
p. 69.
230
BARTHES, 1988, p. 164.
231
Trecho de missiva redigida em 9 de marco de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 211).
232
Id..
52

Acerca disso, coerente é levar em conta também a essência ideológica da linguagem

e, diante desse aspecto, não desprezar que esta esteja incrustada nas representações

trabalhadas por Caio Fernando Abreu quando a serviço da expressão epistolar, podendo recair

sobre a [re/a]presentação de si e/ou do outro na escritura referida. “De vários fragmentos

escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. [...] De

qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade”233, crava

Caio Fernando Abreu na dedicatória do conto Lixo e purpurina.

A referida estada em Londres, além de ser aproveitada como matéria-prima para a

ficção, também lhe rende matéria-prima epistolar, como este extrato remetido a Vera Antoun:

“Homero quis ir ainda a uma livraria. Fomos. Aí fiquei alucinado por uma biografia de

Virginia Woolf, com fotos belíssimas, dois volumes. Apanhei um, Homero outro. Saímos.

Dois caras nos viram, nos seguiram. Nos apanharam na esquina”234. Resultado [válido para

vida e arte]: passar a noite na prisão. Na manhã seguinte, conta na carta, Homero e ele foram

julgados e obrigados a pagar multa no valor de 30 libras — equivalentes “a mais ou menos

500 contos”235, informa, exagerando na dimensão discursiva para a punição.

No espaço da ficção, o suposto relato pessoal ganha a seguinte configuração:

“Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court. Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando

uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf [...]. Ficamos rondando, eram dois volumes

cheios de fotos [...]. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos”236, pormenoriza no

conto mencionado. “Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos

deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira,

nossa fada-madrinha. E que anyway era um roubo muito digno”237, amplia o prosador,

233
ABREU, 2005a, p. 193.
234
Fragmento de carta escrita a Vera Antoun, em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 469).
235
Id..
236
ABREU, 2005a, p. 209.
237
ABREU, 2005a, p. 209-210.
53

pontuando na narrativa literária, como o fizera na narrativa epistolar, que o parceiro do furto e

ele foram obrigados a dormir cada um em uma cela e, a seguir, submetidos a um julgamento

que determinou o pagamento de multa no valor de 30 libras — “todo o dinheiro que eu

pretendia levar para o Brasil”238.

De posse desses e de outros tantos exemplos, não há como se esquivar de uma

leitura “biográfica” das correspondências de Caio Fernando Abreu, nem deixar de perceber

este lugar de discurso como instância de intimidade e confissão, do cotidiano de quem a

escreve, recordando assertiva de Marlon Salomon, quando dispõe que o missivista, por meio

da escrita de si, “se define, articula ou rearticula a si”239 próprio — proposição à qual

emendaria: “o que quer que escrevamos transmite sentidos que não estavam ou possivelmente

não podiam estar na nossa intenção, e as nossas palavras não podem transmitir o que

queremos dizer”240, em concordância com outra exposição igualmente bem-vinda: “A gente

quando escreve é determinado pelo inconsciente. Há coisas que acontecem na escrita sobre as

quais não há como ter controle, coisas que desembarcam no papel e surpreendem”241. Efeitos

de leitura.

Sob esse ponto de vista, a impressão que se configura é a de que o prosador, ao

escrever sobre si nas correspondências, confecciona um efeito de realidade ou um efeito de

referente ao transpor experiências da vida pessoal para o papel fino da carta, via linguagem

escrita, numa atividade discursiva que se serve da fabricação de “cópias da realidade” [entre

muitas aspas]. “Eu andava cheio de suspeitas, pintaram muitas estórias paranóicas na minha

238
ABREU, 2005a, p. 210.
239
SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí.
Florianópolis: UFSC, 2002, p. 58.
240
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 54.
241
TABET apud MILAN, Betty. O jardim secreto da escrita. Entrevista concedida por Paul Tabet. Folha de São
Paulo. São Paulo, 24 ago. 2003. Mais!, p. 3.
54

cabeça — com base no real, infelizmente (se fosse demência pura seria mais fácil). [...]

porque a realidade dos meus textos é tão ou mais (?) terrível do que o real dia-a-dia.”242

Diante de tais abordagens, Anatol Rosenfeld, numa postura respeitável, pondera que

a intenção de verdade é fator vigorante nos enunciados de um texto científico e na maioria das

notícias, das correspondências e dos diários. Para ele, os enunciados “constituem juízos, isto

é, as objectualidades puramente intencionais pretendem corresponder, adequar-se exatamente

aos seres reais [...] referidos”243 — sentença que se assimila ao caráter de inatingível

conferido à questão da verdade por Lucia Santaella, que insiste, na carona de Peirce, que se

está “sempre a meio caminho da verdade”244, motivada pela convicção de que é impossível

nutrir certeza absoluta sobre coisa alguma. Para a pesquisadora, se houvesse a possibilidade

de “atingir a verdade, ela coincidiria com o real, seria a revelação manifesta do real, ponto de

encontro (nó górdio) do passado com o futuro”245.

Nesta direção, é interessante pensar com David Harvey, que, ao teorizar a respeito do

pós-modernismo, partilha a opinião de que os sentidos operam fora do controle e de que a

vida cultural é uma série de textos em intersecção com outros textos, gerando novos

entreteceres — condição da qual os escritores não estão excluídos. “Esse entrelaçamento

intertextual tem vida própria”246, sintetiza, postulando a inutilidade de se tentar dominar um

texto, tendo em vista que “o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora de nosso

controle; a linguagem opera através de nós”247. Impossível não lhe atribuir razão ou deixar de

lembrar, conforme adverte Terry Eagleton, a partir de reflexão do postulado teórico

242
Trecho de carta remetida ao também escritor Luiz Fernando Emediato, em julho de 1977 (In: ABREU, 2002,
p. 489).
243
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Salles. A
personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva,1968, p. 18.
244
SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 155.
245
Ibid., p. 191.
246
HARVEY, op. cit, p. 54.
247
Id..
55

derridiano, que toda linguagem “encerra esse ‘excedente’ em relação ao significado exato,

está sempre ameaçando ultrapassar e escapar do sentido que tenta limitá-la”248.

De fato, como corifeu da escrita a frio, Caio Fernando Abreu não se privava da

literatura e das demais formas de arte249, pelas quais nutria cumplicidade, quando no exercício

da suspensão da emoção possível na tessitura epistolar — improvável seria tal possibilidade.

Ao se dedicar à prática epistolográfica, o escritor não rejeitava, por exemplo, o contexto

social250 [e o caldo cultural] em que estava imerso — fator que se aproxima do viés

documental a que se referem, para exemplificar, Maria Lucia de Barros Camargo e o próprio

escritor, na dedicatória do conto Lixo e purpurina, cujo formato e linguagem remetem a um

diário: “Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente

esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana”251.

E é em torno desses apontamentos que repouso meu olhar para arrematar este

movimento de leitura — e retomá-lo novamente a seguir — que, na esteira de Roland Barthes,

detém-se não em postular verdades absolutas ou conceitos fixos e normativos, mas indicar

validades da linguagem [em sua natureza escorregadia], numa ousadia nutritiva e infindável:

“Anotar na agenda mental: reler Fernando Pessoa, principalmente Alberto Caeiro (em anexo,

poema de Ricardo Reis); re-ouvir Terra de Caetano; reler aqueles poemas zen póstumos de

248
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997, p. 185.
249
A cumplicidade com todas as formas de arte parece ter acompanhado o escritor por toda a vida, estando
presente até mesmo nos momentos de dor extrema. Pouco antes de morrer, Caio Fernando Abreu brincou com o
amigo e produtor musical, Marcelo Sebá, que reproduz o chiste queer do prosador: “Quando chegava uma visita
no hospital, ele dizia: ‘Welcome to Philadelfia (alusão ao filme sobre a Aids, com Tom Hanks)’” (In: BARROS,
André Luiz; MITCHELL, José; PAIVA, Anabela. Com a Aids, a descoberta real da vida. Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 27 fev. 1996. Caderno B, p. 5).
250
A exemplo de como narra, em carta redigida a Guilherme de Almeida Prado, algumas impressões dos
ingleses a respeito do Brasil: “Brasil aqui é uma coisa tão por baixo. Semana passada, no channel 4, passou Na
avenue called Brazili, um documentário horripilante de Otávio Bezerra, filmado na Av. Brasil do Rio. Parecia
filme de horror. Mas é a visão inglesa sobre o mundo. Todo o dia leio coisas sobre as adolescentes prostitutas de
Calcutá, as criancinhas com Aids da Romênia, os refugiados da Albânia. Estive em Liverpool, falando na
Universidade (o melhor foi ver o ‘Cavern Club’, onde os Beatles começaram), e sobre o Brasil, as pessoas só
querem saber desse tipo de baixaria. Tenho que rebolar para explicar que o Brasil são muitos Brasis (...)”
(ABREU, 2002, p. 214).
251
ABREU, 2005a, p. 214.
56

Cecília Meireles. Ou não reler nem ouvir nada”252, redige Caio Fernando Abreu a Maria Lídia

Magliani, a quem chama “Maglim, menina-loba”253, na abertura da carta. “Pegar as pedras

fortemente, apertá-las contra o peito, comprimir a cabeça e o corpo inteiro contra as árvores,

pisar descalço na terra, colocar balas e doces (sempre em número ímpar) ao pé das árvores

grandes para os duendes e devas e erês comerem”254, emenda o autor, confirmando o caráter

de confidência da epístola e penetrando no plano dos afetos e do misticismo que tanto

estimava: “e ficarem teus amigos, deixar na cabeceira toda noite copos de água com açúcar

para as fadas virem beber de madrugada. Acender velas para chamar Luz, jogar rosas

amarelas nas águas dos rios para Oxum. [...] ritualizar, para dialogar com O Mistério.”255.

2. 2 [Más]Cara[s] & adereços

“Et voilá: sou também um pouco tolo, um pouco naive, um pouco pêra — e

eternamente Bambi. Quando a barra pesa, compro flores e ouço Mozart. [...] Que enorme

desgaste trocar najices — gastar um cartão lindo daqueles [...].”256

Diferentes destinos, intimidades com diferentes adereços e “graus” de sinceridade e

[re/a]presentação de si, enquanto remetente, e do mundo. Baile de máscaras. Caracterizações

distintas para distintos personagens. Intercâmbio de papéis: arte/vida. Teatro mental. “Toda

carta é encenação, a própria sinceridade na carta é uma encenação”257, avisa Italo Moriconi,

no embalo de outro alerta, este de Alai Garcia Diniz: “a linguagem existe tanto para mostrar

252
Trecho de correspondência escrita em 10 de setembro de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 223).
253
ABREU, 2002, p. 220.
254
ABREU, 2002, p. 223.
255
Id..
256
Fração de missiva escrita em 12 de abril de 1994 a Guilherme de Almeida Prado, durante período em que
estava na França (In: ABREU, 2002, p. 298-299).
257
MORICONI, op. cit., p. 19.
57

como para ocultar”258, num movimento que tanto cala no que enuncia quanto revela no que

esconde — sem demarcações: “Virei uma mulher misteriosa, reclusa, raramente vista,

something between Garbo e Jackie O.”259, dramatiza Caio Fernando Abreu em trecho de

epístola.

A partir disso, como enfrentar o jogo de verdades desta tessitura pertencente ao

gênero epistolar? Como distinguir cada estratégia, decodificar suas nervuras e entender seus

excessos literários e/ou suas incursões no veio ficcional?

Dosagens variadas de comicidade, alteridade, sinceridade e honestidade

acompanham a prática da escrita de si de Caio Fernando Abreu, numa postura comum à de

outros escritores — como Ana Cristina Cesar [“parece que em cada carta transmito uma coisa

diferente. Essa instabilidade intensa também é real, é cotidiana”260], que instiga o olhar de

sobreaviso de Italo Moriconi, para quem a poeta jamais teria escrito cartas inocentes: “As que

enviou a Caio [Fernando Abreu] são pura pose, pura malícia, como convém à boa literatura.

No entanto delas é possível extrair verdades fortes da vida, mais cruéis que qualquer intenção

documental”261; e Sylvia Plath, que velava sua vivência ao narrá-la para a mãe, manejando

verdades sob o signo do travestimento e da efabulação —, que, conforme o interlocutor e a

relação mantida com ele, regulam o tom do discurso, economizando e/ou exagerando nas suas

construções discursivas, para se ajustar a expectativas e/ou se adequar a ditames sociais —

reafirmando o entender de que se está diante de uma prática de escrita peculiar a um gênero

mestiço que se tece [sem disciplinas], com elasticidade, segundo “as múltiplas instâncias

258
DINIZ, Alai Garcia. Máquinas, corpos, cartas: imaginários da Guerra do Paraguai. Tese de doutorado em
Literatura Espanhola e Hispano-americana do Departamento de Línguas Modernas da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1997, p. 176.
259
Escrita em 03 de fevereiro de 1994 e remetida a Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 285).
260
CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa
Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 116.
261
MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará;
RioArte, 1996. (Perfis do Rio), p. 11.
58

abrigadas pelas experiências do relato”262, pautada na ressignificação das impressões do

passado com as experiências ao longo da vida, tendo em vista que “rumar ao passado é

sempre um ato provisório carregado de sentidos do presente”263.

Em Cartas, Caio Fernando Abreu assume diferentes assinaturas para diferentes

destinatários e fases da vida. Enquanto sujeito narrador, brinca com o próprio nome próprio264

— “Caio F. ou Marilene, a Incendiária”265, ele assina — e vira personagem de si, ao adotar a

assinatura ficcionalizada “Caio F.” para encerrar mais de 80 correspondências, entre as 104

epístolas escritas e postadas entre 1980 e 1996266 e reunidas na edição, numa declarada alusão

à personagem Christiane F.267, e ao se expressar no feminino — prática também vigente na

produção oficialmente literária: “Hoje estou passando pelo AUGE da posição Urano-Urano.

Stadenervos perde. Não durmo há uns cinco dias. Mas estou pegando a coisa pelo lado

profissional, do pique (trabalha-trabalha-nêga)”268, narra em missiva a Jacqueline Cantore, “e

fazendo o possível, à noite, para ficar na base dos chás, jogando coisas repousantes como

262
GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239.
263
DINIZ, op.cit, p. 2.
264
Acerca disso, é fundamental visitar o ensaio A ilusão biográfica para extrair dele os seguintes apontamentos
firmados por Pierre Bourdieu: “O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos
tempos e dos espaços sociais, [...] ele só pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade
socialmente construída, à custa de uma formidável abstração.” (BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos & abusos da história oral. 6. ed. Rio de
Janeiro: FGV, 2005, p. 187).
265
ABREU, 2002, p. 120.
266
Em 1980, Caio Fernando Abreu recebe o prêmio Status de literatura pelo conto Sargento Garcia. No ano
seguinte, passa a editor da Leia Livros. Em 1982, lança Morangos Mofados pela editora Brasiliense. Em 1983,
volta a viver na capital fluminense, onde trabalha como colaborador da revista IstoÉ. Publica Triângulo das
Águas — vencedor do prêmio Jabuti no ano seguinte, quando tem a peça Pode ser que seja só o leiteiro encenada
em Porto Alegre, com a direção de Luciano Alabarse. Em 1985, volta a São Paulo. Trabalha como editor da
revista A-Z, escreve roteiro para a série de TV Joana Repórter, protagonizada por Regina Duarte, e tem
Morangos Mofados adaptado para o teatro. Em 1986, passa a integrar a equipe de redatores do Caderno 2 do
jornal O Estado de S. Paulo. Em 1988, volta para a revista A-Z. Lança Os dragões não conhecem o paraíso,
também premiado com o Jabuti, e Mel e girassóis e recebe o prêmio Moliére de melhor autor. Em 1994, tem
publicada em Paris a novela Bien loin de Marienbad e retorna a Porto Alegre, depois de assumir publicamente
ter a doença que o vitimaria dois anos depois (Cf.: ABREU, 2005b.)
267
Segundo Italo Moriconi, o escritor gostava de se assinar Caio F. e, nas cartas, “faz jogos entre essa assinatura
e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos,
drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982 (...)” (ABREU, 2002, p. 53).
268
ABREU, 2002, p. 156-157.
59

Schuman, Mozart, Nana Caymmi (surpreendentemente relax) ou Nara Leão. Acho que

funciona. Trata-se, principalmente, de aquietar a periquita”269.

Sujeito dual. Sujeito de papel. Desdobramento(s) de si. Movimento de pôr e retirar

máscara(s)270. “Em vez de o sujeito de enunciação se servir da carta para anunciar a sua

própria chegada, é o sujeito de enunciado que vai assumir inteiramente um movimento que se

torna fictício ou aparente.”271 Pois é assim, muito ao enlevo de Franz Kafka, que Caio

Fernando Abreu enreda seu duplo — ora Marilene, ora Laika — antes de o endereçar ao

recebedor, firmando uma espécie de pacto diabólico — produto da máquina literária —,

mesmo que inocentemente, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Maquinar cartas:

não é de todo uma questão de sinceridade ou não, mas de funcionamento”272, situam os

autores, apostando na conservação da dualidade do sujeito emissor no fluxo epistolar —

sujeito este que talvez exista apenas no papel [e dentro das cartas]: “Mas eu, quietíssima.

Santa. Mais que santa: deusa. A Europa acaba com o meu libido. A periquita sossega”273,

provoca o contista, estampando “uma verdade”, a verdade tramada para se reportar ao então

interlocutor, Gilberto Gawronski, e, não ao acaso, colando o produto narrativo à análise

elaborada por Jacques Lacan a respeito do conto A carta roubada274, quando aponta que o

registro da verdade reside “onde o sujeito não pode apreender nada mais do que a própria

subjetividade que constitui um Outro em absoluto”275. Reflexão que vem reforçar o olhar

depositado sobre o sujeito dual ou o sujeito plural, como prefere Jacques Lacan, para quem o

inconsciente é próprio discurso do outro.

269
Id..
270
Assertiva que facilmente remete à definição feita por Flora Süssekind a respeito do poeta como “máscara
capaz de se desdobrar em muitas outras” (SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: polêmicas, diários &
retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 81).
271
DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 61.
272
DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 58.
273
Trecho de correspondência de 24 de abril de 1994, postada a Gilberto Gawronski (In: ABREU, 2002, p. 302).
274
The Purloined Letter (no original) foi escrito por Edgar Allan Poe e traduzido por Charles Baudelaire.
275
LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 26.
60

Nesta fase da seleta epistolar, que acompanha e mapeia, em certo grau, a faceta

adulta de Caio Fernando Abreu, o corpo de carteadores é extenso [falar em constelação de

destinatários não seria exagero]: grandes amigos, colegas de profissão, gente de teatro,

televisão, música, familiares. “Essa persistência em conquistar um lócus pessoal fê-lo desde

cedo estabelecer uma rede afetiva/espiritual com diversos intelectuais e artistas, sobretudo

com representantes das letras paulistas”276, assegura Marcelo Pen277.

Luciano Alabarse, Jacqueline Cantore e Maria Lídia Magliani, grandes amigos de

Caio Fernando Abreu, são os principais interlocutores desta faixa da coletânea, cuja maioria

dos destinatários é escritor ou trabalha com arte e/ou cultura. Com eles, o missivista troca

figurinhas sobre assuntos que vão muito além da literatura — da qual se serve enquanto leitor

e da qual é pai, crítico, refém. Faz confidências, fala de política, arte, cultura, misticismo,

astrologia, discorre sobre as crises da idade e a eterna penúria financeira, divide gostos

musicais e impressões teatrais e atualiza o recebedor a respeito das viagens, das mudanças de

cidade e de emprego, dos planos pessoais, das paixões, dos amores, dos flertes e das

desilusões: “Ando me sentindo extremamente bem. O romance trancou um pouco [...] vou

tentar trabalhar nele no Rio e em Porto Alegre. Nessas aí, pari outro conto, uma versão para

adultos de Os sapatinhos vermelhos, de Andersen. Nunca escrevi nada tão obsceno”278, relata

a Luciano Alabarse, a quem também segreda affair com Cazuza: “Sa´s que ele me dedicou Só

as mães são felizes no show aqui em SP? Fiquei num exibimento insuportável: foi o maior

elogio de toda mi perra vida. Aí fui dar uns amassinhos nele, no final. Luciano, Cazuzinha

está com no máximo 50 quilos. Lindo”279, explana o prosador, reconhecendo, mais à frente, a

proximidade da morte ao encarar o cantor. E é com intimidade semelhante que tece cada

276
PEN, Marcelo. Quem tem medo de Caio F.? In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de
1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 09.
277
Crítico literário e tradutor paulista.
278
Fragmento de carta de 29 de julho de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 136).
279
Trecho de epístola de 31 de agosto de 1988 (In: ABREU, 2002, p. 161).
61

conversa epistolar com Jacqueline Cantore, a quem também nomina Anthea e M’r’lene

[brincando com o nome próprio alheio], conforme é possível verificar ao longo desta longa

carta tomada como exemplo: “Preciso me sentar contigo e tomar uns bons mates.

Astrológicos, principalmente. [...] No meio dessas turbulências emocionais, uma sensação de

estar aqui em férias, de estar de passagem. E culpas: que tenho mais é que ir pro tanque e me

punir um pouco”280 — fragmento que poderia perfeitamente estar dirigido a Maria Lídia

Magliani, com quem o missivista desenovela o mesmo fio de intimidade, em especial aquele

que envolve as miudezas de si, dos pedaços de vida que insiste em colar e colar e colar

seguidamente enquanto há sopro de vida: “No meio da aflição objetiva de sobreviver nesta

cidade, neste país, neste planeta, neste tempo — ando também bastante sereno. [...] Desisti de

achar que o príncipe vai achar o sapatinho (ou sapatão) que perdi nas escadarias. Não sinto

mais impulsos amorosos”281, partilha, relatando que, apesar de ter deixado de sentir os tais

impulsos amorosos, ainda se permite experimentar impulsos afetivos e eróticos. “É estranho, e

não me parece falso, mas ao contrário: normal. Era assim que deveria ter sido desde sempre. E

não se trata de evitar a dor, é que esse tipo de dor é inútil, é burra, é apego à matéria”282,

esclarece, na sucessão da narrativa, arrematando com a seguinte novidade: “Tenho passado

escrevendo, cozinhando, ouvindo música (a Laurie Anderson [...] linda) e falando — cada vez

mais — sozinho. Acertei uma alta com meu terapêutico, mas não consigo evitar de pensar que

engambelei o pobre com a minha sanidade-teresinha”283.

Trato epistolar diferenciado é conferido a renomadas estrelas “globais” como Regina

Duarte e Bruna Lombardi, ainda nesta etapa, a quem o prosador reserva certa formalidade,

prestando-se à emissão de pareceres “técnicos” sobre trabalhos literários e produções

280
Extrato de missiva com data de 05 de junho de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 58).
281
Fração de correspondência de 19 de março de 1990(In: ABREU, 2002, p. 180).
282
Id..
283
ABREU, 2002, p. 180-181.
62

televisivas: “amei seu livro [...] Acho corajoso, bonito, forte. Principalmente quando você

solta o emocional. Várias vezes, me comovi, li em voz alta para amigos, para mim mesmo.

Gostava, e muito, do primeiro, mas acho que você cresceu ainda mais”284, exprime, com

comedimento, em correspondência a Bruna Lombardi.

Rumo ao passado, “Caio” é a assinatura favorita para encerrar 42 das 50 cartas

selecionadas para compor o conjunto epistolar de 1965 a 1979 — a segunda fatia da

coletânea. Neste período285, as cartas exibem dez destinatários e têm os pais de Caio Fernando

Abreu, Zaél e Nair de Abreu, mais Hilda Hilst e a “amiga namorada”286 Vera Antoun entre os

principais interlocutores: “aqui estou, novamente, [...]. Por enquanto, às mil maravilhas.

Quando o ônibus entrou no chão do Rio Grande quase tive uma coisa: era tão diferente da

loucura paulista, tão sem asfalto, tão não sei como, aquele céu dum azul como nunca vi em

outro lugar”287, comunica a Hilda Hilst, dizendo-se aliviado por retornar às origens, apesar do

receio de retomar a convivência ao lado da família e das circunstâncias todas que

acompanhariam o regresso: “minha mãe [...] achando geniais os meus cabelos, a minha barba,

os meus colares [...]. Pai, tu sabes como é: a gente nunca consegue perceber exatamente o que

eles estão pensando. Mas desde que não perturbem com críticas, a gente vai levando”288.

284
Trecho datado de 16 de fevereiro de 1981 (In: ABREU, 2002, p. 29). O livro a que alude o missivista se
chama Gaia (Ed. Codecri, 1980).
285
Em 1967, Caio Fernando Abreu inicia os cursos de Letras e Arte Dramática na UFRGS. Não os conclui. No
ano seguinte, passa a viver em São Paulo e participa como repórter da primeira equipe de Veja. Ganha menção
honrosa do prêmio José Lins do Rego com o conto Três tempos mortos. Em 1969, conquista o prêmio Fernando
Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, com o livro Inventário do ir-remediável, publicado em 1970,
juntamente com Limite branco e a antologia Roda de fogo. Em 1971, Caio Fernando Abreu se muda para o Rio
de Janeiro. Trabalha como redator na revista Manchete. No ano seguinte, de volta a Porto Alegre, trabalha no
jornal Zero Hora e recebe premiação do Instituto Estadual do Livro pelo conto A visita. Em 1973, viaja à Europa
e conquista menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção com O ovo apunhalado. Em 1977, lança Pedras de
Calcutá. Em 1978, volta a São Paulo, onde trabalha como redator da revista Pop (Cf.: ABREU, 2005a.).
286
“Não ia ser legal você vir agora porque eu não sei exatamente o que sinto por você. Eu gosto de ficar ao seu
lado, gosto quando você me escreve. Quer dizer, a sensação geral é boa, é clara. Mas eu não sei se posso dizer
que te amo, que gostaria de ficar para sempre com você.”, escreve Caio Fernando Abreu em fração de missiva a
Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (ABREU, 2002, p. 478).
287
Fragmento de correspondência de 13 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 359).
288
Id..
63

Entre os assuntos abordados no carteio do período, além dos não atípicos — a

literatura (lida e produzida) e o desfolhar da carreira como escritor —, estão as idas e vindas

na vida acadêmica, as crises emocionais e espirituais — que perpassam todas as fases do

conjunto epistolar —, as tentativas de sobreviver nos grandes centros urbanos, os projetos

pessoais e profissionais e as percepções a respeito dos contextos político e social brasileiros:

“o Fascismo tem um SENHOR pau, e não se contenta em botar um pouquinho, quer empurrar

tudo”289, escreve a Hilda Hilst, referindo-se à censura militar do período. “O Povo Brasileiro

começa a se sentir incomodado, pensa vagamente em reclamar, mas conclui que, afinal,

homossexualismo é uma coisa válida e se tantos suportam (pensa rapidamente no seu amigo

Povo Espanhol [...]) ele pode também suportar”290, exprime à escritora, acrescentando, na

seqüência: “Aí, de repente, o Fascismo empurrou tanto que não é mais possível tirar. Ficou

entalado. E goza trezentas e quarenta e cinco vezes seguidas enquanto o Povo Brasileiro

morre de hemorragia anal. The end.”291.

Diferentemente do “gingado narrativo” — descontraído e ao mesmo tempo pop,

tendo em vista a freqüente utilização de vocábulos pertencentes a idiomas estrangeiros

[prática também adotada na produção literária oficial292] — estampado nas cartas remetidas a

Hilda Hilst, nas quais o autor parece exercitar sua escritura livremente, sem se preocupar com

pré-julgamentos ou conclusões equivocadas ou não desejadas, a leitura das correspondências

expedidas aos pais de Caio Fernando Abreu e à amiga Vera Antoun revela certo “controle

lingüístico”. Ao relatar assuntos comuns aos contemplados em cartas dirigidas à ficcionista

289
Trecho de carta de 04 de março de 1970 (In: ABREU, 2002, p. 402).
290
Id..
291
Id..
292
“Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago o cigarro (americano). But sometimes, yo hablo también un
poquito de español, e if it faut, aussi un peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon Ciy,
depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de Carmenmiranda com uma rumbeira-from-Kiúba.
Perhaps pelas origens tropicais e respectivas back-grounds comunicam-se através de requebros brejeiros, e quizá,
pelo tom dourado das folhas de outono”, narra no conto London, London ou Ajax, Brush and Rubbish (ABREU,
2005a, p. 239-240).
64

mencionada, o missivista se serve de rédeas curtas para poupar, da mira alheia, o

defrontamento com termos comumente reconhecidos como vulgares e expressões

notoriamente julgadas chulas e inapropriadas para a composição de uma conversa entre

familiares e sujeitos afeitos a uma convivência mais conservadora.

É, portanto, com fino trato, contenção e polidez discursiva que Caio Fernando Abreu

se reporta aos consangüíneos — dos quais o contista também preserva sua natureza

homossexual [nesta faixa da seleta] — e a Vera Antoun, a quem presenteia, de certa forma,

com fragmentos essencialmente belos, sensíveis e intimistas — “te amei muito. Nunca disse,

como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas

confusas não saibam amar. Pena que também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não

devia ter vergonha do que é bonito”293, segreda o prosador —: “só queria que você soubesse

do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber

que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.”294.

Neste sentido, para além de um lugar de fonte documental — foro confessional e

biográfico, objeto de pesquisa fidedigno, retrato fiel de pares e épocas e elemento legitimador

—, as correspondências podem assumir a propriedade de uma armadilha discursiva, à medida

que se dispõem a burlar a própria autenticidade ao gosto do remetente, passando a entretecer

confissões ficcionais e ficções documentais, num flerte contínuo: “Ouvi hoje várias vezes:

você está com a cara tão boa! S´as que Marilene desespera, mas não perde o tino, não? Entre

duas cachoeiras de lágrimas, há sempre espaço para um pouquinho de creme Nívea”295,

registra Caio Fernando Abreu, sob a faceta de Marilene — borrando o “verdadeiro” retrato de

si para construir um outro desenho de si que é postado ao recebedor, que não deixa de obter

um retrato do emissor, pois a máscara acaba por dissimular a própria dissimulação de si,

293
Extrato de missiva postada em 21 de março de 1972 (In: ABREU, 2002, p. 425).
294
Ibid., p. 426.
295
ABREU, 2002, p. 125.
65

recordando assertiva lacaniana sobre o jogo da verdade [no qual preconiza que justamente por

se esconder é que a verdade se oferece do modo mais verdadeiro296], numa atividade

discursiva que se fertiliza neste lugar sem fronteiras, neste “espaço de conversões, de

transformações e disfarces: o espaço da linguagem”297.

Fluxo discursivo — no que se aplica à tal força motriz que as correspondências, por

meio “do sangue que elas trazem, fazem disparar completamente a máquina”298, a “máquina

de escrever”299 —, por isso pensá-las enquanto produtos da “máquina de expressão”300, como

ponderariam Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao investigar o corpus epistolográfico [ou a

literatura “menor”] de Franz Kafka. “Talvez seja em função das cartas, das suas exigências,

das suas potencialidades e insuficiências que as outras peças são montadas”301, refletem os

teóricos, ampliando e reativando a necessidade e a viabilidade de examinar a narrativa

epistolar como fruto e [re]fluxo da escrita, seja da obra ou para além dela — “as coisas

passando eu quero é passar com elas: é mais do que isso aí. Por enquanto estou nessa batalha

de abrir as cucas alheias porque é impossível a minha fluir sozinha cercada de caretice.”302.

296
Cf: LACAN, 1996.
297
SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 48.
298
DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 68.
299
Ibid., p. 63.
300
Id..
301
Ibid., p. 58.
302
Fração de epístola escrita por Caio Fernando Abreu a Vera Antoun com data de 18 de janeiro de 1973 (In:
ABREU, 2002, p. 434).
66

3 A MEMÓRIA EM SI
“Desmascaramos a farsa
para continuarmos a existir no meio dela.”303

“Querida mãe, querido pai, não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de

uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão

só durante tantos — quase 40 — anos. Devo estar acostumado.”304 Mise en scène. É com esse

tom, eminentemente performático, que Caio Fernando Abreu introduz conversa epistolar com

os progenitores, engendrando pormenores autobiográficos ao longo da correspondência:

“Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só

sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples

como ‘eu gosto de você’. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores”305.

Numa leitura compartilhada com Maurice Blanchot, os retalhos de si mencionados

apontariam para a solidão essencial gozada pelo autor do discurso no exercício da escrita. O

que equivale a afirmar que, ao escrever sobre si, Caio Fernando Abreu experimenta, na cena

discursiva, não o isolamento ou o recolhimento, enquanto produtos derivados do

individualismo, mas a solidão essencial [na qual o silêncio habita] e, ao mesmo tempo, uma

realidade que não é “real”306 — seja sobre si e/ou sobre o outro, seja do mundo exterior e/ou

da própria linguagem. “Quando estou só, não estou aí. Isso não significa um estado

psicológico, indicando o desaparecimento, a supressão desse direito de sentir o que sinto a

303
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 192. O
fragmento integra a obra ficcional do autor.
304
O trecho, voltado aos pais do escritor, tem data de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas.
MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 153).
305
Id..
306
O que, segundo formulação de Maria Gabriela Llansol citada por Lúcia Castello Branco, pode também ser
compreendido desta forma: “Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada
para abrir caminho a outros.” (BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan.
Belo Horizonte: Autêntica; Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 11). A citação foi extraída de Maria Gabriela
Llansol em Um falcão no punho (Lisboa: Rolim, 1985).
67

partir de mim mesmo como de um centro”307, prescreve Maurice Blanchot, complementando:

“O que vem ao meu encontro não é que eu seja um pouco menos eu mesmo, é o que existe

‘atrás do eu’, o que o eu dissimula para ser em si.”308

Desse modo, ao olhar para dentro de si prevendo captar memórias e/ou recolher traços

da intimidade e do privado de si, num movimento que precede o ato da escrita, o missivista

vai preenchendo o lapso, o vazio, a ausência, o esquecimento, com uma realidade por vezes

imaginária, quebrada em sua veracidade, desdobrando-se sobre si mesmo para conceber,

também, uma identidade forjada, postiça, estrangeira e/ou até desejada, possível graças ao

exercício da linguagem — enquanto pura dissimulação: “por que eu falaria mais de ‘mim’, já

que ‘mim’ não é mais ‘si’?”309 —, à fluência lingüística [e o seu “traquejar”] e à sintonia do

epistoleiro com o mundo310. Pois, nesse entremeio, é necessário considerar, conforme postula

Sigmund Freud311, a aversão da memória em recordar tudo que remonta aos sentimentos de

desprazer e à reprodução daquilo que renova o desprazer. Além do quê, é preciso ter clareza

de que “cada instante é único e jamais será resgatado em seu inteiro teor”312, segundo propõe

Adriana Cörner Lopes do Amaral em leitura empreendida a respeito da memória em Jacques

307
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 253.
308
Id..
309
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Cultrix, 1975, p. 179.
310
Artista pop, Caio Fernando Abreu exibia a falta de rédeas e rejeitava convenções. Citizen do mundo, viajou
muito — “estou perdido: feliz na estrada, alone as always” (ABREU, 2002, p. 195) —, feito um andarilho,
sempre que pôde e, em especial, à custa da literatura que produzia — seja pelos lançamentos no exterior, mais ao
final da carreira e da vida — “London 10.12.90/ Jacklie C./Rapidinho entre um conhaque e um Chet Baker.
Aaaaaaaaaiiiiiiiiiii — (sta´d´nervos) Lancei livro, dei entrevista pra Time, pro Independent, saí na Time Out, falei
da BBC. Agora estou aqui waiting for a Nobel, claro.” (ABREU, 2002, p. 194) —, seja pelos prêmios que ia
arrebatando, ainda no início da trajetória como escritor. Os períodos de “exílio” da terra mãe podem ser
conferidos em várias correspondências reunidas na primeira fase da coletânea Cartas, por meio da identificação
do local de onde são redigidas pelo missivista [no alto da página] e do próprio teor das epístolas: “Hoje tive
medo. Estou vivendo numa espécie de Harlem londrina. É muitíssimo Sammy and Rose, embora eu preferisse
que fosse mais para Beautiful Laundrette. Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! I´ll kill
you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que não entendo, mas me soam mais para David Lynch do que
para T.S. Eliot.” (ABREU, 2002, p. 197).
311
FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Comentários e notas de: James Strachey e Anna Freud. Direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
c1969, v. 15.
312
AMARAL, Adriana Cörner Lopes do. Sobre a memória em Jacques Derrida. In: NASCIMENTO, Evando;
GLENADEL, Paula (Org.). Em torno de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 38.
68

Derrida. Afinal, o testemunho da memória fornece, ao recordador, “uma mera reprodução,

cópia que nunca será perfeita, e já sempre diferente, em diferença (sempre ficção e não a cena

em si)”313 da lembrança evocada, tendo em vista que o exercício de rememorar, operado no

tempo presente, atualiza e modifica a lembrança sob a batuta da ressignificação314 — ou,

como acredita Sigmund Freud315, o passado de uma pessoa está sujeito à distorção e à

reelaboração, sempre que observado na perspectiva de um período posterior.

Tal questionamento — “por que eu falaria mais de ‘mim’, já que ‘mim’ não é mais

‘si’?”316, “indaga” Roland Barthes —, que talvez não se proponha realmente o questionar de

si, dada a natureza do texto em que se localiza, originalmente, o trecho citado, dialoga com a

própria escrita de si do teórico, sobre a qual ele externa: “tudo se joga aqui, estou fechado

para sempre na liça pronominal: o ‘eu’ mobiliza o imaginário [...] o ‘eu’ pode não ser o mim

[...]; posso me chamar de ‘você’, como Sade o fazia, para destacar em mim o operário, o

fabricante, o produtor de escritura”317 — assertiva que facilmente alude às personas exibidas

no epistolário de Caio Fernando Abreu, como as nomeadas Marilene, Laika, Caio F.

[dramatis personae].

Eu(s) da escrita. Pela escrita. Escrita contaminada por alteridades pertencentes a

outros espaços discursivos. Escrita para além do gênero. Eu(s) para além da biografia e da

fidedignidade da paisagem íntima. Eu(s) performático(s): “Não sei fazer ‘jogo social’. Até

saberia, mas não me interessa, tenho preguiça. Como Dulce V., eu sempre quis só ‘outra

coisa’, e vou chegando a um ponto em que tenho pensado se essa ‘coisa’ não será a solidão

313
Id..
314
Para Marilena Chauí, por exemplo, a memória não apenas guarda impressões do passado, mas ressignifica, a
todo instante, as lembranças do passado com as experiências ao longo da vida (Cf: CHAUÍ, Marilena.
Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986).
315
FREUD, op.cit, v. 17.
316
BARTHES, op. cit., p. 179.
317
Id...
69

mais completa”318, “escrevinha” ao destinatário Guila319, em epístola postada com selo e

carimbos parisienses, comparando um desejo seu ao de uma de suas personagens da ficção

[Dulce V.] e adicionando, a seguir: “e se não ela, essa solidão idealizada, porrada de gatos,

rosas, Mozart e livros, será quem sabe somente a morte. Há que ter paciência para esperar por

ela, que é a única certeza entre todas as nossas ilusões tolas.” 320.

De fato, o imaginário — enquanto “indiscernibilidade entre o real e o irreal”321 — do

missivista se reveste de diferentes máscaras, conforme o palco do discurso [e a platéia],

modelando a encenação de si, alargando suas margens e transindo suas linhas de fuga — pela

erupção de uma subjetividade [polifônica] que se desvela pela razão, pela crítica e, sobretudo,

pelo pathos literário322, que passa a orquestrar o ritmo, a intensidade e a dicção desta escrita

de si tecida a partir de um processo retórico norteado, essencialmente, pela dramatização da

experiência de si. Ao que é indispensável observar que “um enunciado é sempre um

acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”323, segundo

pontua, com habitual pertinência, Michel Foucault, pois, além de se vincular a um gesto de

escrita e/ou à articulação de um vocábulo, um enunciado “abre para si mesmo uma existência

remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e

de qualquer forma de registro”324.

Extensão identitária. Margem que se quer corpo. Prolongamento de si. “Amo vocês

como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o

318
Fração de correspondência com data de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299).
319
Guilherme de Almeida Prado.
320
ABREU, 2002, p. 299.
321
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 84. “O
imaginário é a imagem-cristal. [...] O que se vê no cristal é o falso, ou melhor, a potência do falso. A potência do
falso é o tempo em pessoa, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo
como devir põe em questão todo modelo formal de verdade.”, explica o autor (DELEUZE, 1992, p. 85).
322
Enquanto criação, produto discursivo, que se origina pela convergência das linhas de fuga, conforme trata
Gilles Deleuze, ao teorizar acerca da subjetividade, que, segundo ele, além de ser um campo de possibilidades,
de invenção, é composta por linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga (Cf: DELEUZE, 1992).
323
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6. ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, p. 32.
324
Id..
70

áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco — todas

as pessoas são loucas [...]. Mas amor de verdade”325, profere aos pais, acrescentando, mais

à frente na narrativa epistolográfica: “Perdoem o silêncio, o sono, a rispidez, a solidão.

Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar

adulto”326.

Ao teatralizar com a condição de adulto que é, Caio Fernando Abreu amplia a sua

memória “consciente” invocando sua memória “inconsciente”327 — muito mais rica e

inventiva328. Com base nisso, dá “asas” ao conteúdo presente, formado de traços da memória,

fios de reminiscências, lapsos de experiências passadas, rearranjando-os, de maneira

diferenciada a cada processo de rememoração, de acordo com as circunstâncias vigentes e,

muitas vezes, distanciando-se da realidade [ou a recusando] para se servir da fantasia329 ao

lidar com o material extraído do passado330, o qual é submetido a um processo de

retranscrição331. Ao que recorro a Henri Bergson para frisar que toda consciência é memória

— “conservação e acumulação do passado no presente”332, mesmo que numa chave de

diferença.

325
Retalho de correspondência de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 153).
326
Id.. Na ocasião, Caio Fernando Abreu conta com 38 anos de idade.
327
FREUD, op.cit, v. 6.
328
Em trecho de carta postada a Hilda Hilst em 14 de junho de 1970, Caio Fernando Abreu exibe uma de suas
facetas performáticas: “Ando deprimido, agressivo cansado — perdi uns cinco quilos: pareço um fantasma,
tenho insônia e pesadelos horrendos, idéias negras durante a noite. [...] tenho participado de festas louquíssimas,
na base da maconha, da nudez, jogo da verdade, bacanais surubas. [...] Ando muito sozinho, nessas festas se
reúnem artistas plásticos, atores atrizes, escritores — todos jovens, perdidos, desesperados — é uma coisa
terrível. Chega a ser comovente a maneira errada como eles buscam a pureza, como eles tentam se convencer
que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com
aquele brilho superficial e ridículo. E em cada fim de noite me sinto um lixo.” (ABREU, 2002, p. 407). Ao final
da missiva, o escritor inclui o seguinte “PS — Depois de reler — não é tão grave assim. Fui muito dramático.
Faça boas vibrações por mim.” (ABREU, 2002, p. 409).
329
Para Roland Barthes, a recusa à realidade por meio de uma fantasia configura o próprio irreal. Cf.:
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 5. ed. Tradução de Hortência dos Santos. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1985.
330
FREUD, op.cit, v. 17.
331
FREUD, op.cit, v. 1.
332
BERGSON, Henri. Cartas, conferências e outros escritos. 2. ed. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva e
Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 71.
71

Mais que narrativa de si, re[a]presentação de si, escrita para si333 — “escrevendo-me

[...] sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”334, exterioriza

Roland Barthes, ao edificar uma suposta biografia de si ou viabilizar a própria desconstrução

de uma concepção de autobiografia. Bailar do desejo. Identidade que se quer escritura.

Colagem. Decolagem. Gozo. Gozo de linguagem e, por essa razão, genuinamente literária:

“Pensam que vão acabar comigo? Nunca. Marilene foi às compras — como é uma intelectual,

no fundo, comprou outro Isherwood — essa paixão vai me levar à ruína — e o final daquela

Doris Lessing/Martha Quest.”335, relata Caio Fernando Abreu, apresentando-se ao interlocutor

com dicção genuinamente feminina e tom de brincadeira — é Marilene quem aparece no

diálogo epistolar para autenticar a ficção [documental]. Espaço documental maquinado de

espaço ficcional [ou “conficcional”] ou vice-versa, no qual convergem personagens e viveres,

invenções e ações, registros e apagamentos — ao que aproveito, novamente, análise oferecida

por Adriana Cörner Lopes do Amaral acerca da memória em Jacques Derrida, a qual

estabelece que “o ser se inscreve em se apagando”336 ou, noutros termos, que “o ser se apaga e

a escrita se inscreve”337, respaldando-se no postulado freudiano, à medida que este propaga

que, por intermédio da escrita, o sujeito que deveria mesmo se apagar se inscreve na escrita e

para além da escrita.

Por essa razão é que a escritura passa a responder por aquele que a originou, “torna-

se a memória dele, em nome dele”338 — seja ela um sopro biográfico ou um esforço ficcional

ou o imbricar de ambos, dado que a memória tem como característica fundante o processo

333
A esse respeito é interessante pensar com Sergio Vilas Boas, para quem “o ato de narrar e de recordar é uma
arma contra a solidão e a dor, memória formada de saberes, um saber transmitido e compartilhado” (VILAS
BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p. 59).
334
BARTHES, 1975, p. 64.
335
Fragmento de carta remetida a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p.
129).
336
AMARAL, op.cit, p. 37.
337
Id..
338
Id..
72

reativo que a realidade provoca no sujeito, como bem exprime Antonio Torres Montenegro:

“Ela se forma e opera a partir da reação, dos efeitos, do impacto sobre o grupo e o indivíduo,

formando todo um imaginário que se constitui em uma referência permanente de futuro”339.

Justaposição de técnicas, recursos, intenções, dicções340. Intercâmbio. Travestimento.

Metamorfose. Contágio.

Nesse viés, notoriamente [e sem prenúncios], missivista e ficcionista se [con]fundem

neste lugar de memórias que mais parece um repositório de trapaças discursivas, jogos de

engano e embustes confessionais — fazeres mais emergentes que a emergência de qualquer

verdade no delinear de si do autor. A representação de si e do meio, de tão subjetiva, arbitrária

e conjetural, aproxima-se do mesmo universo de representação que a ficção, muito mais que

qualquer outro discurso, é capaz de tramar: “Agora ando mais calmo. Não muito, verdade.

Mas desde que ganhei meu PhD em desilusão amorosa, aos 40 anos, tenho me divertido como

nunca. Ai, que maravilha arrebentar o mito do Amor Eterno!”341, compartilha Caio Fernando

Abreu com José Márcio Penido342. “Me associei ao Zé Simão na campanha ‘sem medo de

biscate’, e assim vou indo, até que algum Richard Burton resolva me dar um diamante do

tamanho do Ritz (o hotel, não o bar, please). Pouco provável. Até lá, tento ser

profissional.”343, apimenta o prosador, dialogando com o entorno social344 — como de

339
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3. ed. São Paulo:
Contexto, 1994, p. 19.
340
“Com pessoas, essa forma de criação mais imperfeita que Deus colocou sobre a Terra, tenho deixado pra lá.
Minha energia é para o texto, as plantas, os passarinhos que alimento com sementes de girassol. A minha
autocura no braço, na raça, na solidão que ninguém compreende, e por isso mesmo não dói. Me dóem as feridas
físicas, as queimaduras de nitrogênio líquido pelo corpo. Tenho visto anjos, sa´s?/E as fadas também existem,
baby.”, narra Caio Fernando Abreu em fragmento de carta dirigida a Jacqueline Cantore com data de 09 de
março de 1995 (ABREU, 2002, p. 331).
341
Trecho de missiva datada de 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 190).
342
Jornalista. Amigo de Caio Fernando Abreu desde os anos 70, quando o conhece, em São Paulo. Trabalha com
o escritor no jornal O Estado de S. Paulo.
343
Fração de correspondência postada a José Márcio Penido em 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p.
190-191).
344
“Guilherme, mon cher, precisamos — eu e você e todo mundo — tomar muito cuidado com esses tempos.
São tempos de horror. Tudo fica ainda mais grave neste país de là-bas, como é o Brasil, e mais ainda numa
cidade como São Paulo — onde a crise econômica, a corrupção, a violência, a falta de futuro, a miséria material
foi gerando sem que as pessoas percebessem também uma histeria psicológica, uma miséria espiritual ainda mais
73

costume nas narrativas ficcionais345 —, numa espécie de extensão ficcional, franqueando os

limites entre a memória e a fabulação. “Quando escrevo para você é como se escrevesse pra

mim mesmo — às vezes o jeito me escapa, e [...] as cartas ficam parecendo bestas. Tento ler,

não consigo. Uma carta é difícil — imagine um conto. [...] Não consigo ser verdadeiro o

tempo todo. Mas você me saca, eu sei.”346

Espelho de si. Reflexo que deseja de si. Imagem que quer para si. Fabulação que, ao

invadir o teor privado da narrativa, amplifica-se e se projeta ao olhar do recebedor enquanto

verdade [mesmo que transitória, relativa, pela metade] do sujeito emissor, que revive seus

artifícios ficcionais [auto]biográficos no processo da escrita de si — no qual a ação “atenua os

perigos da solidão: dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o fato de se obrigar a

escrever desempenha o papel de um companheiro”347 —, mantendo a salvo o segredo

enraizado no próprio enganar de si diluído na narrativa epistolar, que, muitas vezes, assume-

se enquanto experimentação lingüística, laboratório literário, termômetro do exercitar

artístico, como já esmiuçava Ana Cristina Cesar348, ao trabalhar a estetização do olhar.

“Quando você estetiza, quer dizer quando você mexe num material inicial, bruto, você já

constrói alguma coisa. [...] você finge, é a questão do fingimento novamente. Aí você sai do

âmbito da Verdade [...] saca que ela nem existe, que ela nem pode ser transmitida.”349. Tudo

porquê, conforme preceitua Maria Esther Maciel, com distinta validade, “as palavras podem

deflagrar realidades imprevistas, fingir um mundo que não existe senão apenas dentro delas

terrível e mais patética.”, redige Caio Fernando Abreu em trecho de epístola remetida a Guilherme de Almeida
Prado, em 12 de abril de 1994 (ABREU, 2002, p. 298).
345
“Se foram duros? Foram, foram duros. Mas foram também cheios de sonhos e encontros e pequenas e grandes
esperanças. Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a repressão política nos empurrava para
dentro.” (ABREU, 2005b, p. 141).
346
Fragmento de carta escrita a Vera Antoun em 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 455).
347
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 130.
348
“Reli hoje cartões-postais que mandava da Europa, todos literatura”, cita a poeta em fragmento de carta
remetida a Ana Candida Perez (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO,
Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 217).
349
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 273.
74

ou a partir delas”350. Trata-se, portanto, seguindo argüição acertada de Bruno Souza Leal, de

um ritual literário que se esgota em si mesmo: “Quando o texto se arma para trair o leitor [que

é o próprio emissor], portanto, ele o faz para desviá-lo de sua verdade. Acena, então, com um

segredo, com uma outra verdade que não se revela, se apresenta”351 — lacuna esta que acaba

por deixar “o leitor só, com o texto, com seu próprio olhar, diante de um engano, de seu

próprio engano” 352.

Neste contexto, Bruno Souza Leal reforça que o engano referido faz parte da própria

narrativa — traiçoeira por natureza, “acena com uma outra versão de si mesma, com uma

outra possibilidade, em que se expõe, ela mesma como artifício, como algo arbitrário e/ou

aleatório, colocando-se sob suspeita”353. Com base nisso e sob a tutoria de Jean Baudrillard, o

pesquisador identifica o caráter sedutor da escrita — enquanto jogo com o real, os signos e o

outro — como estratégia para desviar o leitor de qualquer intenção de verdade. “Assim, ‘eu

serei seu espelho’ significa não ‘serei seu reflexo’ mas ‘serei seu engano’. Seduzir é morrer

como realidade e produzir-se como engano” 354.

Desse modo, é importante considerar que a sedução de que trata Jean Baudrillard

opera sobre “a intuição do que no outro permanece eternamente secreto a si mesmo, sobre o

que nunca saberei dele e que, entretanto, me atrai sob o selo do segredo”355, ou seja, a sedução

funciona sob o signo do segredo, que é sempre o do artifício.

Sendo assim, a sedução da escrita de si estaria sempre associada ao segredo, ao não

desvelado, ao que se mantém secreto, fantasioso, enganoso, à medida que joga com o estatuto

350
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004, p. 120. O fragmento integra ensaio sobre o poeta mineiro, Altino Caixeta de Castro.
351
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e
sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 62.
352
Id..
353
LEAL, 2002, p. 63.
354
BAUDRILLARD, 1992, p. 73 apud LEAL, 2002, p. 62.
355
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução:
Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papipus, 2004, p. 177.
75

da verdade, do real, do autêntico, que aparecem, na narrativa, apenas como possibilidade,

como alegoria. “A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo

que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que

você vai juntando por dentro”356, insere Caio Fernando Abreu, em prosa ficcional.

Ao depositar o olhar sobre a escrita epistolar de Caio Fernando Abreu, Márcia

Denser oferece percepções acuradas e elucidativas a respeito, apostando na “absoluta

necessidade que [Caio Fernando Abreu] tinha de mentir para si próprio, auto-enganar-se, seja

nos seus amores, seja na sua morte”357 — na contramão da escrita ficcional, na qual, segundo

ela, o escritor jamais mentiria, tendo em vista que é justamente no espaço da ficção358 que há

o desenrolar do questionamento de si, bem como a revelação e o desnudamento do autor. É

possível. O parecer encontra esteio, por exemplo, na introdução do conto Anotações sobre um

amor urbano, na qual o escritor revela que o texto em questão passara por várias versões e

que, apesar disso, ele nunca o sentira, de fato, concluído: “Mas talvez o jeito meio sem jeito

destes pedaços mais parecidos com fragmentos de cartas ou diário íntimo afinal seja a sua

própria forma informe e inacabada”359 — uma escrita sempre em reelaboração.

Além do exposto, Márcia Denser acredita na função terapêutica que as cartas

assumem para o missivista, cumprindo o papel de “manter sob controle — ‘ocupada’ no

sentido positivo — aquela ‘ânima desocupada’, fútil, atenta a banalidades e coisas de

356
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 187.
357
DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, 2005b, p. 11.
358
No conto Uma história confusa, Caio Fernando Abreu desenvolve o enredo com base no recebimento de
cartas anônimas por um dos personagens, explorando, na narrativa em forma de diálogo, a dúvida do recebedor
das correspondências quanto à veracidade do teor da escrita: “— E ele pode estar mentindo. Essa data, por
exemplo, essa data pode ser inventada” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio
de Janeiro: Agir, 2005a, p. 188). Além disso, o destinatário comenta com o interlocutor o fato de ter ido a um
astrólogo para se informar a respeito do emissor das missivas sem identificação: “Ele nasceu a 22 de setembro de
1954 [Caio Fernando Abreu em 12 de setembro]. Entre mais ou menos dez e meio-dia. É de Virgem [...] Pelos
meus cálculos, o ascendente deve ser Escorpião” (ABREU, 2005a, p. 188) — narra o prosador para, na
seqüência, comentar que isso tudo credita ao missivista oculto predicados como inteligente, secreto, misterioso,
intenso. “Só pelas cartas qualquer um percebe que ele tem certa... estrutura” (ABREU, 2005a, p. 189).
359
ABREU, 2005a, p. 155.
76

somenos, ridícula, menor, tola, como qualquer mulher inculta e ávida por mexericos”360,

sintetiza, frisando que a ânima à qual se refere nada mais é que um arquétipo, “um resumo da

experiência da mulher que existe no inconsciente masculino, logo não é (nunca foi) uma

mulher real, mas um esquema, um estereótipo feminino”361.

Acerca desse enfoque, prefiro tomar as correspondências [públicas] de Caio

Fernando Abreu enquanto lugar para os modos de ser do autor e/ou do personagem autoral

que o representa, e aqui caberia, de certa forma, uma aproximação com a natureza terapêutica

de que trata Márcia Denser — no que as cartas, enquanto território clínico, conservam de uma

provável psicanálise de si que permite o extravasar do inconsciente do sujeito emissor, de seus

eus guardados e seus desdobramentos privados, que se colocam em movimento nesta suposta

“conversa sem fim”, estabelecida pelo desejo de manter o vaivém das prosas entre os

interlocutores, de aguardar a chegada de uma nova carta, de alimentar entredizeres, de

apimentar a experiência de si transformada em linguagem e compartilhada com o recebedor:

“Não ando bem. Como não ando bem há exatos 41 anos e quatro meses, concluo que nada de

grave. Mas — digamos — problemas brasileiros. Trabalho demais, trabalho em todas as

direções, trabalho mal pago, suado, sofrido. Contas, contas & contas.”362, dramatiza o escritor

em missiva a Maria Lídia Magliani. “Nenhum amor, há tanto tempo, ando até pensando que

amor é como uma espécie de fantasia com Papai Noel, só que dura até os 40. Será? Por favor,

me desmente.”363

A esse respeito, ao dissertar a respeito da conversa, Roland Barthes intui que a

linguagem é uma pele e, como tal, pode ser esfregada no outro — “Minha linguagem treme de

360
Ibid., p. 12.
361
Ibid., p. 13.
362
Trecho de correspondência escrita em 10 de janeiro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 171).
363
Continuação do fragmento anterior, em que Caio Fernando Abreu se reporta a Maria Lídia Magliani (In:
ABREU, 2002, p. 171-172).
77

desejo”364 —, remetendo ao caráter erótico da escrita epistolar e à intenção de, por seu

intermédio, seduzir o interlocutor: “toda uma atividade do discurso vem, discretamente,

indiretamente, colocar em evidência um significado único que é ‘eu te desejo’, e liberá-lo,

alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma)”365. Tal

formulação, se combinada ao fato de a linguagem, segundo indica Henri Bergson366, ter por

função primitiva o estabelecimento de uma comunicação, permite supor que o diálogo

epistolar se institui pelo desejo do próprio fluxo comunicacional entre emissor e receptor —

“é a carta (letra) e seu desvio que rege suas entradas e seus papéis”367. A correspondência

como instrumento de comunicação. Meio e fim de expressão [fática, estética]. Por vezes

codificada368, seja na forma, seja no trânsito de envio. “O diálogo é a conversa perfeita,

porque tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de

acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala”369, precisa Friedrich

Nietzsche, comparando o diálogo à troca epistolar, na qual o sujeito que se enuncia dispõe de

inúmeras maneiras de se exprimir, orientado “conforme escreva a este ou àquele indivíduo”370

— sem ingenuidades ou purezas discursivas.

Ao apresentar contribuições pontuais a respeito da performance epistolar, em estudo

feito com a produção da cineasta Chantal Akerman, Ivone Margulies371 acaba fornecendo

outros elementos para a leitura da narrativa epistolográfica de Caio Fernando Abreu, ao

assinalar que as correspondências abarcam um escambo contínuo entre texto e informação

364
BARTHES, 1985, p. 64.
365
Id..
366
BERGSON, op. cit.
367
LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 37.
368
“Parei um pouco mas estou com a cabeça a mil. Deito entre as cobertas para escrever. Reli a carta e achei um
modelo de confusão epistolar. Finja que é literário! Controlando o intempestivo desfiar de palavras”, redige Ana
Cristina Cesar em trecho de correspondência dirigida a Maria Cecilia Fonseca (CESAR, 1999a, p. 147).
369
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 196.
370
Id.
371
MARGULIES, Ivone. A fala em Chantal Akerman: performance epistolar, monólogo e blablablá. In: Vozes
Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito
(Org.). Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003, p. 285-292.
78

extratextual e que o “real” da carta é definido pelas identidades “reais” do remetente e do

destinatário. O que valida um outro entender — aquele que pressupõe a interdependência

entre o eu e o outro, dado que um se define por meio do outro: “No diálogo há uma única

refração do pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, como o espelho no qual desejamos

ver nossos pensamentos refletidos do modo mais belo possível.”372

A partir disso, viável é partilhar parecer sustentado por Jacques Lacan, quando

assegura que o emissor “recebe do receptor sua própria mensagem sob uma forma

invertida”373, impulsionado pelo fato de que “uma carta chega sempre à sua destinação”374,

conforme adverte — como se a epístola fosse escrita para si mesmo [feito uma mentira que se

quer verdade refletida no espelho] e para nenhum outro alguém além de si mesmo. “Detesto

ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A

calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. [...] Tão bom ator que

ninguém percebe minha péssima atuação”375, redige Caio Fernando Abreu em carta postada a

Sérgio Keuchgerian, rendendo-se a um jogo comunicativo. Comunico a outrem o que quero

comunicar376 a mim mesmo — ação que repercute novamente na noção de solidão essencial

sustentada por Maurice Blanchot: “Escrever é fazer-se eco do que não se pode parar de falar

— e, por causa disso, para vir a ser seu eco, devo de uma certa maneira impor-lhe silêncio [...]

Esse silêncio tem sua origem no apagamento a que é convidado aquele que escreve”377.

Mago da prosa breve, Caio Fernando Abreu não [se] escreve para ser compreendido.

Nem para salvaguardar verdades a respeito de si. Escreve pelo ato de escrever [e se inscrever].

Pelo fluxo da escrita. Pelo jorro das palavras que desembarcam no papel — caixas de

ressonâncias dispostas à interpretação do leitor. Afinal, o eu que se escreve no tempo presente

372
NIETZSCHE, op. cit , p. 196.
373
LACAN, op. cit, p. 48.
374
Id..
375
Trecho de missiva de 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 140).
376
Communicare, do latim, é difundir, tornar comum a.
377
BLANCHOT, 1987, p. 17.
79

está sempre sendo enredado pelas reminiscências inconscientes do passado, que está,

recorrentemente, sendo reescrito, repensado, reconstruído, por traços inconscientes do seu

próprio passado — recordando que subjetivo e objetivo não são categorias isoladas, existem

na própria interação, e que a memória trapaceia o próprio eu. “Sou terrivelmente tímido e, na

verdade, acho que tenho mais é um ar de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada,

passou fome, dormiu ao relento. [...] Tenho um passado hippie que me deixou muitas coisas

boas. Estou sempre preocupado com a ética [...].” 378

Sendo assim, salutar é tocar na questão do erotismo da escrita epistolar de Caio

Fernando Abreu, que pode estar para o interlocutor de modo semelhante ao estar do objeto

artístico para o espectador — num contato inicial que é sempre permeado de sensualidade —,

e que, neste caso, resulta da sedução da memória, da sedução textual. Por essa razão, a

comunicação estabelecida entre um e outro por força das correspondências exibe uma carga

também erótica, colada ao desejo, ao impulso, à conexão, à união, à tentativa de permanência

para além da efemeridade.

Ao urdir a narrativa de si, Caio Fernando Abreu experimenta a sensação de

continuidade da sua expressão artística, da sua comunicação com outrem — que é, também,

para si próprio — num vaivém discursivo, num balé de linguagem. Por meio dela, o

missivista se nutre do gozo estético e/ou do gozo erótico. Viabiliza o prazer pelo prazer. O

friccionar das peles. A sensação de completude — pois é graças ao erotismo que o desejo

permanece, ganha em extensão, fusão com o outro. “Os magnetismos das pessoas cruzam-se e

descruzam-se, acho, meio que aleatoriamente, por algum tempo, por nenhum tempo, por

378
Fração de correspondência postada a Guilherme de Almeida Prado, em 12 de abril de 1994 (In: ABREU,
2002, p. 296).
80

muito tempo. É mais complexo que isso, mas anyway: não deve doer. E não deve porque no

fundo não tem importância, como todo o resto.”379

Dessa maneira e mais que pelo erotismo do gesto de introduzir o envelope selado na

caixa de correio, Caio Fernando Abreu aparenta manter uma relação de fetiche com a

correspondência. O corpo como extensão da própria memória. A carta como suplemento da

existência — corpo que se torna presente e é tocado, contemplado e guardado pelo recebedor

enquanto se desdobra em outros eus: “A pluralidade dos sujeitos não pode, evidentemente, ser

uma objeção para todos aqueles que irromperam desde há muito nas perspectivas que nossa

fórmula resume: o inconsciente é o discurso do Outro.”380

Assim, da mesma forma que a literatura, as correspondências desempenham o papel

de atuar como uma das muitas possibilidades de comunicação e descrição das experiências de

si. Pois é pela existência da verdade, da experiência, que a ficção é elaborada. “Pensando (ou

lembrando) bem, não foram tão verdes assim. A memória tem sempre essa tendência otimista

de filtrar as lembranças más para deixar só o verde, o vivo. Antigamente, sempre era melhor,

ainda que não fosse”381, ressalta Caio Fernando Abreu em crônica publicada no jornal Zero

Hora, na qual registra algumas “rememorações” sobre os anos 70 — período verde

justamente para aqueles que ainda não guardavam marcas de morte e tortura, mas exibiam

motivação para lutar, mesmo que sem aparentar —, dos quais sobrevive a lição de que

“quando a barra pesa, gosto de pensar que dentro do agora talvez exista também um verde

qualquer, que não estamos vendo”382.

379
Fragmento de carta remetida a Maria Lídia Magliani, em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 180).
380
LACAN, op. cit., p. 22.
381
ABREU, 2005b, p. 141. O trecho abre a crônica Pequenas e Grandes Esperanças, originalmente publicada no
jornal Zero Hora, em 04 de abril de 1984, na qual trata dos anos 70.
382
ABREU, 2005b, p. 141-142.
81

Ademais, se a literatura, como bem manifesta Bruno Souza Leal, “dialoga com o

mundo: inscrita na escrita da história, a literatura é prenhe de histórias”383, a narrativa de si,

por sua diferença, estará e não estará onde está, aonde quer que ela vá384 — inscrevendo-se e

escrevendo-se sem alianças com a lucidez biográfica ao proceder ao registro do tempo e ao

evocar a matéria-prima da memória, o cintilar da intimidade, um esboço de si. Memória

contaminada pela fabricação da literatura. Memória inventada. Memória inventiva. Trajetória

discursiva efabulada e sedutora. Enlear narrativo que, permanentemente, desperta suspeitas

quanto à veracidade385 do privado e os estados de alma exibidos pelo recordador: “Para me

dar força, escrevi no espelho do meu quarto: ‘Tá certo que o sonho acabou, mas também não

precisa virar pesadelo, não é?’ é o que estou tentando vivenciar.”386.

383
LEAL, 2002, p. 45.
384
LACAN, op. cit..
385
“Tem coisas, tem coisas que ele escreve que parecem. Não sei, parecem verdade, entende? Ele me toca, mexe
comigo”, narra Caio Fernando Abreu em prosa ficcional (ABREU, 2005a, p. 189).
386
Fragmento de epístola destinada a Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 474).
82

4 ENTRE O ARROUBO E A ESQUIVA: EMBARALHAR-SE

“Escrever implica calar-se,


escrever é, de certo modo,
fazer-se ‘silencioso como um morto’”387

Ao introduzir esta conversa, eu indagava-me essencialmente a respeito de como

classificar a correspondência — se documento, se literatura. Vislumbrava uma condição

binária: o estatuto do isto ou aquilo. Agora, ao chegar à etapa final do percurso investigativo

proposto e validável, o que me parece mais sensato pensar ou pôr em questão nesta prosa que,

pelo visto, não vê final a traçar é: Seria realmente possível aplicar uma taxonomia à

correspondência?

Por um lado, sim. Por outro, não. A classificação ou uma classificação, por si só,

embora figure como instrumento facilitador à aplicação de estratégias de ensino “tradicionais”

— condizentes com uma pedagogia “clássica” —, pode limitar o olhar [e estampar uma aura

de reducionismo caducante]. Para quem ainda deseja alcançar o sublime, dentro do ambiente

acadêmico [nos fazeres da docência e da pesquisa] e além dele, a classificação, pura e

simples, faz broxar os ânimos mais efusivos. E é fácil vislumbrar o motivo.

Uma leitura mais atenciosa do conjunto epistolar publicado/publicizado de Caio

Fernando Abreu leva a pensar que o que se tem nas mãos é mais que um produto da expressão

do inconsciente do autor — prática discursiva que coloca em xeque o estatuto documental da

correspondência e o próprio conceito de literatura, provocando, particularmente,

questionamentos aos estudos literários.

Enquanto lugar de memória, universo de afetos e emoções, esfera de efabulação e

confissão, “real” e ficcional, arroubo e esquiva, a epistolografia se [re]apresenta como um

gênero originalmente mestiço, ambíguo, polissêmico e polifônico por conveniência —

387
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 15.
83

ademais, não há porque alimentar qualquer imprecisão quanto a sua natureza, pelo menos não

quando o epistolário de Caio Fernando Abreu está em jogo: “Magli Magoo, menina loba,

devidamente empacotado, sem entender grande coisa, mas no meu duríssimo caso acho que

não faz mesmo diferença, eis que sento para te escrever às oito da matina. Toca Lulu Santos

no rádio. Adoro rádio de manhã cedo”388.

Nesse sentido, é coerente depreender também que a correspondência — de modo

geral389 e, especificamente, no caso de Caio Fernando Abreu — pertence plenamente à escrita

e dela é fruto — para aproveitar pormenor gerado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. E aí

reside seu poder e sua potência discursiva. A escrita epistolar passa a conviver com a escrita

literária, numa contaminação típica dos limiares contemporâneos de que trata Jean

Baudrillard390 — numa percepção muito barthesiana de contemplação deste objeto, aquela

que lê uma coisa na outra, prevendo seus imbricamentos sem fim, no que representam de livre

orquestração da palavra e formação de alianças que favorecem o avançar da ciência.

Ao escrever sobre si, Roland Barthes, por exemplo, testemunha ser ele mesmo seu

próprio símbolo e sua própria história391 — “Quando finjo escrever sobre o que outrora

escrevi, acontece [...] um movimento de abolição, não de verdade. Não procuro pôr minha

expressão presente a serviço de minha verdade anterior”392, exprime o teórico, salientando

que, ao se escrever, não se dispõe a se restaurar: “‘Escrevo um texto e o chamo de R.B.’.

388
Extrato epistolar remetido à Maria Lídia Magliani com data de 19 de março de 1990 (In: ABREU, Caio
Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 178).
389
“Você se grila de receber cartas datilografadas? Eu acho legal porque bato rápido e não tenho muito tempo de
pensar, sai quase como um papo. É claro que eu estou sabendo da pouquíssima falta de inocência de uma carta.
Mas os papos também não são inocentes.”, redige Ana Cristina Cesar em correspondência a Ana Cândida Perez,
datada de 03 de dezembro de 1976 (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO,
Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 238).
390
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução:
Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 2004.
391
“O fato (biográfico, textual) se abole no significante, porque ele coincide imediatamente com este:
escrevendo-me, apenas repito a operação extrema pela qual Balzac, em Sarrasine, fez ‘coincidir’ a castração e a
castratura: sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”, observa o teórico (BARTHES,
Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 64).
392
BARTHES, 1975, p. 64.
84

Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo

do sujeito não há referente?”393 —, viabilizando a certificação concedida por Gilles Deleuze

e Félix Guattari ao agenciamento de vida e arte, experiência e escrita, as quais somente “se

opõem do ponto de vista de uma literatura maior”394, pois é graças ao status de uma literatura

menor, que Franz Kafka, mesmo “moribundo”, [sobre]vive enquanto potência narrativa:

“Kafka é transido por um fluxo de vida invencível que lhe vem tanto das cartas, das novelas,

dos romances como de seu inacabamento mútuo por razões diferentes, comunicantes e

permutáveis. Condições de uma literatura menor.”395.

A legitimidade de tais apontamentos, reconhecida por mim, é corroborada por Bruno

Souza Leal à medida que o pesquisador sustenta que o texto trabalhado enquanto documento

“se torna um rico material que pode, e deve ser recortado, reorganizado, burilado, fazendo

com que venham à tona não só as brechas e os hiatos de sua tessitura interna, como também

as fissuras e interrogações inerentes à sua condição de estar-no-mundo”396.

A partir disso, ancorada num contexto eminentemente pós-moderno e amparada na

leitura que Michel Foucault propõe a respeito do intérprete em Friedrich Nietzsche — para

quem o intérprete é o verídico, o verdadeiro, não por se apropriar de uma verdade adormecida

a fim de proferi-la, “mas porque ele pronuncia a interpretação que toda verdade tem por

função velar”397 —, arrisco pontuar que este percurso acerca da escrita epistolar de Caio

Fernando Abreu procurou operar entre e além de um movimento infinito. Deslizante.

Desafiando-se, sempre, na tentativa de experimentar a liberdade de entender o(s) sentido(s)

393
Id..
394
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p.
78.
395
Id.
396
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e
sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 45. A assertiva está alicerçada em Michel Foucault e
seu Microfísica do poder, do qual Bruno Souza Leal retoma o conceito de documento.
397
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA, Manoel
Barros da (Org.). 2. ed. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 48.
85

que se incrustam neste gênero híbrido fora do sistema e da busca ilusória pela verdade

objetiva. Caminho de leitura que permite, neste trabalho dissertativo, o enamorar das

associações livres, da verdade lúdica — tendo em vista que “ler é meio puxar fios, e não

decifrar”398, conforme designa Ana Cristina Cesar399, com peculiar sagacidade, e que é

necessário supor, a todo momento, a existência da linguagem para além da própria linguagem,

como tão bem dimensiona Michel Foucault400.

Sendo assim [e até o arremate deste diálogo], mais que apostar numa “literatura de

cartas” ou admitir a composição de “cartas literárias”, salutar é tomar a produção epistolar de

Caio Fernando Abreu como tudo isso e mais: como documento e como texto, escritura, trama

amorosa, tessitura plural, travessia401 que não cessa de se realizar — num gesto de

generosidade com o destinatário que, neste caso, é o próprio leitor a “espiar” [mesmo que não

propriamente pelo buraco da fechadura] um Caio Fernando Abreu missivista que nutre apenas

uma [pre]ocupação: a prática da escrita. Escrita esta que se reescreve a partir de si mesma,

intercambiando pormenores viscerais, aproveitando “escrevinhações” literariamente “menores

ou vulgares”, alimentando fantasmas e provocações autobiográficas. Atentar para a

veracidade biográfica da escrita epistolográfica do prosador seria o mesmo que esvaziar seu

jogo de verdades transitórias e alegóricas, seu fluxo de dizeres de viés, despejando fora sua

potência e plenitude — seu estatuto de uma literatura [de cartas] que se quis menor, sim, e,

por essa razão, singular.

398
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 264.
399
Em missiva remetida a Ana Candida Perez em 29 de maio de 1980, Ana Cristina Cesar relata que acaba de ler
uma biografia de Katherine Mansfield, a qual tem, então, confrontado com outras fontes documentais, como a
correspondência completa da autora biografada: “estou fascinada pelo conflito entre as versões, e pelo conflito
entre as cartas de KM para diferentes interlocutores, e pela tentativa de fazer da literatura um lugar menos
obsceno que toda essa aparente confusão da verdade — higher up. Sei que alguns modernos já brincaram com
isso, as várias versões por onde se filtra ou escapa a verdade, os mosaicos e focos narrativos da vida”,
testemunha a poeta (CESAR, 1999a, p. 283).
400
Cf: FOUCAULT, 2005.
401
Como neste exemplo extraído de correspondência expedida à amiga pintora, Maria Lídia Magliani, em 1991:
“Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres
continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso
mesmo, I love it.” (ABREU, 2002, p. 203).
86

De fato, impossível seria sequer imaginar apreender Caio Fernando Abreu fora da

literatura sem se render a um exercício fátuo, assim como igualmente falível seria identificar,

na leitura das cartas de Cartas, na sua textualidade, um traçado biográfico que descartasse a

malícia retórica do escrevente, as oscilações da memória, o discurso planejado, as pinceladas

de um artista letrado.

Com base nisso, coerente me parece atestar que o impulso do narrar de si do autor

esteve sempre além dos limites do gênero — afinal, o escritor desconhecia até mesmo o

significado do termo limite [e a sua dimensão física], a começar pelos limites originários da

fronteiriça cidade natal, Santiago do Boqueirão —, prevendo, por meio da liberdade narrativa

e da desterritorialização das formas discursivas, agora geminadas, o transbordar inerente a sua

condição menor.

Pois é exatamente assim que se apresenta, a meu ver, a escritura epistolográfica do

prosador. Transida de intenções infraliterárias — num fazer muito alinhado ao que Lúcia

Castello Branco identifica em Maria Gabriela Llansol, quando prescreve que esta inventa não

exatamente uma história ou um produto ficcional, mas “uma memória dos ‘existentes-não-

reais’, em que o sujeito que escreve destitui-se da literatura e passa para a margem da

língua”402, margem esta que é a morada do texto403 enquanto outra modalidade de escrita —,

permeada de artifícios ficcionais — elementos colocados a serviço deste corifeu da escritura:

“Procuro deixar à parte essa compreensão muito intelectual do que estou fazendo. Deixo as

teorias sempre de lado. Fiz Faculdade de Letras durante dois anos e fiquei intoxicado, com

medo de elucubrações”404, avisa Caio Fernando Abreu, performático, em entrevista ao jornal

Correio Brasiliense.

402
BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan. Belo Horizonte: Autêntica;
Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 42.
403
Para Lúcia Castello Branco, “o texto é capaz de promover encontros inesperados do diverso e de lançar a
escrita ao exterior de si mesma” (BRANCO, 2000, p. 42).
404
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 255.
87

Ao se desnudar ao olhar alheio ou, o que é ainda melhor, ao simular uma possível

nudez biográfica ao destinatário [seu interlocutor, num primeiro momento, nominado], Caio

Fernando Abreu se beneficia da sua condição de escritor, manejando, com excelência, pares

conceituais bastante discutíveis, ambíguos e contraditórios — como real/irreal,

verdade/mentira, documental/ficcional —, os quais não se apresentam devidamente

delimitados na narrativa epistolar405, urdida com artimanha e segundas intenções [como a

publicação póstuma]. Construção artística que impede a separação entre joio e trigo, pois tudo

se torna substrato literário. E nada é espelhamento — a memória como fantasia, a fantasia

enquanto memória, o caótico ordenado pela linguagem, a mentira como verdade, a verdade

enquanto mentira —, ao que é determinante reconsiderar que realidade e verdade não deixam

de ser abstrações, representações, arranjos lingüísticos, ressonâncias: “escrever não é

‘traduzir’ um referente em um nome, é sim introduzir uma diferença, um suplemento”406. E é

justamente nessa impossibilidade, na própria incapacidade de transformar a intimidade do

sujeito em linguagem, vertê-la em palavras, que a escrita de si é gerada. O privado de si se

mantém, dessa forma, em suspenso — condicionado ao erotismo da prática narrativa.

Conserva-se secreto sob o envelope selado com segredo e carimbado com sedução discursiva.

Puro vestígio. Pura vertigem. Puro artifício. Imaginar sem fim: “Toda a verdade está além, na

ordem das coisas, numa equação intuída, incompleta e inapreensível, a não ser através da

forma oblíqua e efêmera da tessitura, do delírio, do sonho, da ficção”407.

405
Como diria Ana Cristina Cesar, em trecho de missiva destinada a Ana Cândida Perez: “Ninguém escreve uma
poesia e bota junto: isto é uma poesia, não me peçam pra explicar! Até que seria engraçado. É que em carta fica
difícil o limite entre o arbitrário, o gratuito, o vôo e a correspondência, a significação, a comunicação. Ou
melhor, a gente tem medo de desembestar para o vôo. De dizer coisas que não sabe explicar. A leitora pedirá
explicações, sutilmente exigirá que se desfaça o feitiço, o jogo. Só por insegurança. Ou como ajuizada medida
pra não receber de volta cartas em que a literatura vá ocupando cada vez mais terreno, até que não sobre nada,
mas a literatura.” (CESAR, 1999a, p. 197).
406
LIMA, Luiz Costa. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 339.
407
LEAL, op. cit., p. 86.
88

O desafio, portanto, reside em exatamente experimentar o sabor desse sentimento

de plenitude possível no ato de escrever do autor que, por meio dele, ao que apontaria

Emile Cioran408, liberta-se de remorsos e rancores e vomita segredos. Verdadeiros ou não.

Ficcionais ou não. De que importam? Fico com a escritura e o desejo dela, ao que Roland

Barthes certamente emendaria: “Não se discorre para ser mais preciso, mais verdadeiro,

discorre-se para exibir metáforas, isto é, felicidades de expressão, ainda isto é, expressões

como felicidades, para usar as palavras de [Maurice] Blanchot”409.

Sem mais, viável é ponderar, ainda, que a literatura nunca é resultado somente de

uma competência, seja ela lingüística e/ou estilística, a exemplo do que elege o crítico há

pouco referendado — “a literatura não é uma graça, é o corpo dos projetos e das decisões

que levam um homem a se realizar (isto é, de certo modo, a se essencializar) somente na

palavra”410. O bálsamo de Caio Fernando Abreu eram as letras, as fantasias, as plumas e os

paetês discursivos. Sua escritura habita num entrelugar. É fruto de amor. Pela palavra

escrita411 — como entendo e quero crer, prevendo mais que fantasmar esta condição, mesmo

que minha suposição não ultrapasse a categoria de um biografema412 emprestado [por mim]

ao escritor estudado.

Por fim, antes de avançar, lacrar o envelope e postá-lo ao seu destino, coloco-me à

espreita. Pensativa. Lamparina na mão, é na ponta dos pés guarnecidos pelos “sapatinhos

vermelhos” que sigo em frente. Obrigada, Caio[s].

408
Cf: CIORAN, Emile M. Exercícios de admiração: Ensaios e perfis. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.
409
BARTHES apud ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 37-38.
410
BARTHES, 2003, p. 35.
411
“Escrevi essas histórias porque elas exigiram que eu as escrevesse. Vivo em um tempo e tento compreendê-lo
através da palavra escrita” (ABREU, 2005b, p. 255).
412
De acordo com Leyla Perrone-Moisés, biografemas “são pequenas unidades biográficas” (PERRONE-
MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 09) pertencentes ao campo do imaginário afetivo e, por isso, não se prestam a ser verdades objetivas, o
que, de forma alguma, não os invalida ou os diminui.
89

REFERÊNCIAS

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95

ANEXOS

ANEXO A

A edição da coletânea Cartas está estruturada conforme sumário a seguir:

Prefácio ................................................................................................................................. 9
Introdução ........................................................................................................................... 11
Todas as horas do fim: 1980-1996 ...................................................................................... 23
Começo: o escritor: 1965-1979 ......................................................................................... 349
Sobre os destinatários ........................................................................................................ 525
96

ANEXO B

Ao final da seleção de correspondências de Cartas, o organizador da coletânea, Italo


Moriconi, apresenta, em ordem alfabética, o rol de destinatários presentes na edição,
pontuando, individualmente, a atividade profissional do(a) recebedor(a) na época da
publicação do livro (2002) e o vínculo dele(a) com Caio Fernando Abreu.

Destinatários:
• Adriana Calcanhotto;
• Albert von Brunn;
• Bruna Lombardi;
• Charles Kiefer;
• Cida Moreira;
• Cláudia, Nair e Zaél de Abreu;
• Déa Martins;
• Flora Süssekind;
• Gerd Hilger;
• Gilberto Gawronsky;
• Guilherme de Almeida Prado;
• Hilda Hilst;
• Jacqueline Cantore;
• João Silvério Trevisan;
• José Márcio Penido;
• Luciano Alabarse;
• Lucienne Samôr;
• Luiz Arthur Nunes;
• Luiz Fernando Emediato;
• Marcelo Sebá;
• Marcos Breda;
• Maria Adelaide Amaral;
• Maria Lídia Magliani;
• Mário Prata;
• Myriam Campello;
• Regina Duarte;
• Sérgio Keuchgerian;
• Sonia Coutinho;
• Stella Miranda;
• Suzana Saldanha;
• Thereza Falcão;
• Vera, Henrique e Maria Augusta Antoun.
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