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FLORIANÓPOLIS
2007
2
Orientadora:
Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos
FLORIANÓPOLIS
2007
3
Banca Examinadora:
_______________________________
Profa. Dra. Tânia Regina Oliveira Ramos
Orientadora e Presidente
_______________________________
Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC)
_______________________________
Prof. Dr. Wladimir Antonio Garcia (UFSC)
_______________________________
Profa. Dra. Alai Garcia Diniz (UFSC)
4
5
AGRADECIMENTOS
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7
RESUMO
Este estudo se dedica a investigar a “escrita de si” de Caio Fernando Abreu, tendo como
objeto de pesquisa a coletânea Cartas — seleção de correspondências redigidas pelo escritor
publicada pela editora Aeroplano, em 2002. Tais cartas são, então, tomadas como lugar de
memória do autor, numa leitura que se propõe, a partir do movimento de lembranças e
apontamentos, do narrar do prosador acerca das suas histórias pessoais e dos acontecimentos
que se fixaram em sua existência, identificar como a subjetividade do escritor é construída,
por que caminhos se guia, com base em que produções discursivas fertiliza seu fazer literário
e amparado em que experiências conduz seu viver, administra dramas e conflitos íntimos,
gerencia amizades e alimenta influências no tempo vivido. Além disso, prevê contribuir para
redimensionar o repertório das reflexões já tecidas por pesquisadores de diferentes campos do
conhecimento acerca das “narrativas de si” e da “carta enquanto lugar de memória” — reduto
de subjetividades, fonte documental que mapeia, de certo modo, aquele que a redige e seu
círculo social, por meio de pistas e indiciamentos ofertados pelo missivista.
ABSTRACT
This study investigates the “Writing about oneself” of Caio Fernando Abreu. The object of
research is the collection Cartas — a selection of correspondence written by the writer and
published by Aeroplano, in 2002. These letters are understood as a place of memory of the
author, in a proposed reading which is based on the movement of memories and notes, of the
act of narrating of the prose writer, on his personal history and the events that have
established themselves in his existence, identifying how the subjectivity of the writer is
constructed and the paths by which he is guided, based on which discursive productions he
fertilizes his literary art, and supported by what experiences he conducts his life, administrates
his dramas and intimate conflicts, manages friendships and feeds influences in his time
experienced. It also seeks to contribute to widening the repertoire of reflections already made
by researchers from different areas of knowledge on the "self narrative" and the "letter as a
place of memory" — shelves to subjectivity, a documentary source which maps, in a certain
way, the one who writes and his social circle, by means of trails and clues offered by the
writer of missives.
Key words: fictional artifice, Caio Fernando Abreu, correspondence, epistolary discourse,
memory, self narrative.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10
2 O EPISTOLÁRIO ............................................................................................................... 37
2.1 O ARTIFÍCIO FICCIONAL ................................................................................. 38
2.2 [MÁS]CARA[S] & ADEREÇOS ......................................................................... 56
3 A MEMÓRIA EM SI .......................................................................................................... 66
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 89
OBRAS DE CAIO FERNANDO ABREU ................................................................. 89
OUTROS REFERENCIAIS ........................................................................................ 89
ANEXOS ................................................................................................................................ 95
10
INTRODUÇÃO
“O que parece óbvio nem sempre é verdade”1
Prezada leitora,
Prezado leitor:
Para dar início a esta trama discursiva que se pretende acadêmica, sugiro que
travemos dois ou três dedos de prosa, seja lá o que isso signifique de fato. É um convite. E por
que razão? Quero dizer/pensar, minimamente que seja, timidamente que pareça, do escritor
escreveu muito3 — talvez pela impossibilidade de viver como gostaria: “‘a vida só é possível
vividos. Fez da tessitura ficcional sua correspondência com o mundo e os pares e ainda
1
GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000. Cultura,
p. 3.
2
Autor nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1948, sob o signo de
virgem, ascendente em escorpião e Lua em capricórnio, como gostava de declarar [provocar]: “Sou de Virgem,
como Cortazar... Quero ser um grande mago...” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de
1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 352). Filho de um casal da classe média urbana, teve quatro irmãos, dois
homens e duas mulheres — uma delas, Cláudia, aparece entre os destinatários da coletânea Cartas, corpus deste
estudo.
3
“A primeira vez que eu escrevi um negócio eu tinha seis anos de idade. Eu tinha aprendido a ler e escrever e
tal, em um mês, e a primeira coisa que eu fiz foi escrever um conto. Depois, sei lá, foi indo, assim, por
necessidade de escrever.” (ABREU, 2005a, p. 350).
4
Declara ao jornal O Estado de S. Paulo, em entrevista concedida em 23 de março de 1988, reportando-se a
poema de Cecília Meirelles, quando perguntado sobre o caráter confessional da sua literatura (In: ABREU, Caio
Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260).
5
XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em:
http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005. Caio Fernando Abreu não
compactuava com a idéia de exibir os “rótulos” a ele atribuídos com freqüência: gay, depressivo, introspectivo,
hippie etc.
6
Caio Fernando Abreu desempenhou várias funções na imprensa brasileira. Foi repórter da revista Veja, redator
das revistas Manchete, Pais & Filhos e Pop e dos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo, além de editor da
Leia Livros e da revista A-Z e colaborador da IstoÉ.
11
encontrou espaço e motivação para se embrenhar por outro matiz escritural: a narrativa de
definição de Libânio7 para a natureza das cartas, postados, em especial, a amigas e amigos das
“Amigos são também para escrever cartas enormes e um tanto idiotas como esta, cheia de
carências, porque gostam de outros amigos e não querem que as relações de amizade tombem
com toda multiplicidade de sentidos que lhe possa ser atribuída. Afinal, diante do papel fino
da carta, Caio Fernando Abreu parece fazer mais que vomitar segredos e subjetividades, indo
devora a “confissão pública” do missivista escritor. “S´as que desisti do amor? Que alívio. É
um processo que vem se arrastando há uns quatro anos, desde o que chamo de The Big
composição deste discurso —, sobretudo acerca das questões que perpassam o teor
documental das cartas, quando tomadas como “lugar” de memória(s) do emissor, dispondo de
Caio Fernando Abreu e tornadas públicas ao(à) leitor(a) com a edição da coletânea Cartas11,
discernimento e amparo teórico, com o limite pueril que se situa entre a indecidibilidade de
recebedor, passando pelo artifício ficcional, entre outros aspectos que se delineiam no
enquanto memória do autor, deste eu que constrói uma narrativa sobre/para si mesmo ou que
missivista e perpassando pelo viés erótico da escritura referida, além de sinalizar de que forma
essas questões pessoais tendem a se refletir na escrita de Caio Fernando Abreu, sem descartar
o intento de justificar até que ponto esta pesquisa se reveste de importância para a história da
literatura — para, assim, pôr em prática esta leitura, este deslizamento, ao que preferiria
por que não?, neste percurso, um dos imperativos presentes na produção crítica de Ana
Cristina Cesar13, ao considerar que “quem fala de literatura acaba redefinindo literatura”14.
11
ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
12
“O fragmento barthesiano desliza sem parar e o seu sentido se situa não nos pedaços de conteúdo que vão
aparecer aqui e ali, mas pelo contrário no próprio fato do deslizamento”, assinala Alain Robbe-Grillet (In:
ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 33), postulando que a estrutura
de deslizamento abandona, continuamente, as posições que dá a impressão de terem sido conquistadas.
13
Mesmo não figurando entre os destinatários da coletânea Cartas, a poeta carioca transitou pelos papéis de
remetente, recebedor e “personagem” no repertório epistolar de Caio Fernando Abreu.
14
CESAR, Ana Cristina. Literatura, documentário e política cultural, mimeo (In: Apud VIEGAS, Ana Cláudia.
Bliss & Blue: segredos de Ana C.. São Paulo: Annablume, 1998, p. 77).
13
pesquisa —, sem deixar de dialogar, ainda, com as argüições realizadas ao longo desta
trajetória investigativa.
“Você nunca escreve histórias felizes? O conto que eu mais gosto desse livro é um
conto feliz. É irônico, mas também é uma história iluminada. [...] É uma autocrítica, mas
15
Enuncia Caio Fernando Abreu, referindo-se ao conto Mel & girassóis, em entrevista ao periódico O Estado de
S. Paulo, em 23 de março de 1988 (In: ABREU, 2005b, p. 261). Mel & girassóis tem por objeto o encontro entre
um homem e uma mulher: “Como naquele conto de Cortázar — encontraram-se no sétimo ou oitavo dia de
bronzeado. Sétimo ou oitavo porque era mágico e justo encontrarem-se, Libra, Escorpião, exatamente nesse
ponto, quando o eu vê o outro. Encontraram-se, enfim, naquele dia em que o branco da pele urbana começa a
ceder território ao dourado, [...] a pele entranhada de sal começa a desejar sedas claras, algodões crus, linhos
brancos, e a contemplação do próprio corpo nu revela espaços sombrios de pêlos onde o sol não penetrou.”
(ABREU, 2005b, p. 89).
14
1 CARROSSEL EPISTOLAR
“Às vezes, quando você lê um texto,
você pode cair que nem um patinho também.”16
My dear: Sempre que te escrevo, faço como agora. Imagino-te abrindo esta carta
como quem recolhe, na “praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”17, uma garrafa
nesse objeto alguma confissão — um ou outro segredo trocado entre remetente e destinatário.
“domínio imperioso das palavras”18 e afastados, pelo ofício mesmo, de enlaces com a
sinceridade19. Ou seria, de fato, viável pensar que, ao compor uma missiva, o escritor consiga
[ou deseje] realmente se despir do seu viés literário para tecer uma outra prática de escrita,
isenta de ficção, puramente biográfica? Que dizer a respeito? Que olhar empreender acerca da
representação”20?
a exemplo de como sintetiza Marcelo Xavier: “Além do caráter literário, as cartas possuem
artista, podem significar muito”21. A partir disso, salutar é percebê-la num contexto
interdisciplinar, em que se torna possível cruzar, e mesmo aproximar, olhares distintos acerca
16
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 263.
17
Título de conto de Caio Fernando Abreu integrante da coletânea Caio 3D: O essencial da década de 1980.
18
CESAR, 1999b, p. 202.
19
Alusão ao discurso de Beatriz Resende (Cf: RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a
correspondência de Ana Cristina César. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes
Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa
Rui Barbosa, 2003. p. 301-309.).
20
Ibid., p. 301.
21
XAVIER, Marcelo. Cartas do viajante intrépido. Disponível em:
http://www.rabisco.com.br/colunas/latim/latim05.htm. Acesso: 19 jul. 2005.
15
“E você, como vai? Detesto perguntar ‘tem escrito?’. Soa sempre como cobrança, e
quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca
demais para que se possa responder ‘sim’ ou ‘não’”22, exprime Caio Fernando Abreu em
correspondência a Charles Kiefer23. “Mesmo que não se esteja escrevendo realmente, a gente
Mais que escrever cartas, Caio Fernando Abreu dizia gostar de cartas nas cartas —
“foi uma surpresa e uma alegria receber tua cartinha”25, externa à irmã caçula, Cláudia
Abreu26 — e as guardar27 — “Não jogo cartas fora. Remexendo gavetas, pastas, encontrei
pelo menos umas 300 de escritores (nos escrevíamos muito nos anos 7028, lembra?)”29.
Enunciava-se leitor de cartas escritas por outros autores, como a correspondência de Clarice
22
Trecho de carta escrita em 14 de abril de 1983. (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo
(Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 42).
23
Escritor também gaúcho. Conhece Caio Fernando Abreu no início da década de 80, no Sul do país.
24
ABREU, 2002, p. 42.
25
Fragmento de missiva redigida em 21 de dezembro de 1992 (In:ABREU, 2002, p. 253).
26
Cláudia Abreu é dentista. Vive em Porto Alegre.
27
Caio Fernando Abreu parece ter imputado prática semelhante aos produtos ficcionais. Não costumava rasgar e
descartar seus escritos. Pelo contrário, apostava na “revisão” da sua literatura, como o fez para o relançamento
de Inventário do Ir-remediável (de 1970), Morangos Mofados (de 1982) e Triângulo das Águas (de 1983). Em
nota datada de 1995 para a reedição de Morangos Mofados, o escritor declara: “Por saber que textos, como as
pessoas, são vivos e sempre podem melhorar na sua contínua transformação, submeti Morangos Mofados a uma
severa revisão de forma. [...] O resultado me parece mais limpo, menos literário no mau sentido, mais claro e
quem sabe definitivo. Trabalhando pelo menos doze anos distanciado da emoção cega da criação [...], depurar
estes morangos foi como voar sobre uma rede de segurança. Só espero não ter errado o salto.” (ABREU, 2005c,
p. 13). Ainda em vida, o autor organizou Ovelhas Negras, reunindo contos até então “engavetados”. A edição lhe
rendeu, no ano de sua morte (1996), o prêmio Jabuti de melhor livro de contos do ano.
28
Conforme Luiz Costa Lima, a década de 70 consolidou o vazio crítico encampado pelos suplementos de jornal
e perpetuado pela produção universitária graças à deficiência dos corredores institucionais somada à “degola
promovida pelo Estado e o clima de terror estabelecido” (In: SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária:
polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 31).
29
Escreve à escritora mineira, Lucienne Samôr, em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 338).
16
Lispector, de quem tanto gostava e a quem várias vezes prestou homenagem30, para Lucio
Cardoso e a de Camille Claudel a Rodin — que lhe emprestou a frase “Il y a toujours quelque
chose d´absente qui me tourmente”31 de inspiração para “tentar escrever quelque chose que
ainda não sei bem o que é”32. E se dizia feliz com as missivas que recebia, pedindo, em muitas
delas, ao receptor afastado pela extensão geográfica, que lhe escrevesse — “Please, send me a
letter”33, assinala, ao final de carta a Maria Lídia Magliani34, ou mais delicadamente: “Te
apresentada em Cartas37, desde a saída da casa dos pais, em 1965, ainda na adolescência, para
cursar o colegial na capital gaúcha — como aluno interno do Instituto de Porto Alegre —,
De fato, de onde estivesse, Caio Fernando Abreu redigia cartas ou postais, iniciando
a escrita quase sempre pela data [ritual]: a cidade que viria com o carimbo do correio — como
Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, Londres, Paris e Berlim, e suas variantes
“ficcionalizadas” (Gay Port, Portinho, Porto Alegríssimo, Sampa) —, o dia, o mês e o ano.
“Te escrevo de frente para o mar dramático de Bretagne, coberto de bruma, num 10º andar —
é a tal de ‘Maison des Écrivains Étrangers’, onde fico até 31.12. Toda Benedita tem seu dia
30
Como exemplifica na apresentação da edição revista pelo autor em 1991 de Triângulo das Águas: “Clarice
Lispector repetia sempre que não queria ser ‘um profissional da literatura’. Como minha mestra, eu também
não...” (ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 13).
31
Retalho de carta endereçada a Maria Adelaide Amaral, em 10 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p.
239).
32
Id.
33
Fração de correspondência composta em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 181).
34
Maria Lídia Magliani é pintora. Vive no Rio de Janeiro. Torna-se amiga de Caio Fernando Abreu nos anos 70,
em Porto Alegre. Trabalha com ele no jornal Zero Hora.
35
Trecho de carta escrita em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 466).
36
Vera Antoun é psiquiatra. Conhece Caio Fernando Abreu em 1970, aos 14 anos, quando o escritor lança
Limite branco, no Rio de Janeiro, onde vive.
37
ABREU, 2002.
38
Fragmento de missiva redigida em 19 de novembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 243).
17
estrangeiro, tem outro gosto. Muito melhor. Um tanto Jane Austen, concordo. E receber
então?” [...] Hoje me senti perdido. Queria consultar búzios, runas, pai, mãe, de santo ou não,
autor julgar-se melhor entendido ao ser lido. É uma impressão. “Quando eu escrevo eu
consigo ordenar tudo aquilo que eu penso. Agora, quando eu falo ou quando eu sou,
simplesmente, não consigo ordenar nada. Eu sou da maneira mais caótica possível”41,
confessa em depoimento concedido na década de 70. Além disso, o ato de lidar com a ficção,
segundo ele, equivalia ao de lidar com a emoção [porção biográfica?] e, desse modo,
aproximar-se do mistério, com o qual não se podia mexer [pose discursiva?]. “Talvez seja
sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida recriada, nunca na própria
vida real — como as pessoas que não criam costumam ter. E deve estar certo assim, deve
assunto um ano à frente (1988), em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ao declarar que
o impulso de escrever se dava por “uma espécie de deficiência de viver a vida real, objetiva,
apenas ela”44 — quem sabe numa sutil referência à escrita como reação ao peso de viver, para
Para além de produto de rituais viscerais, a escrita de Caio Fernando Abreu o fazia
39
Guilherme de Almeida Prado é cineasta. Conhece Caio Fernando Abreu na década de 80, em São Paulo.
40
Extrato de epístola escrita a Jacqueline Cantore, em 05 e 06 de janeiro de 1991 (In: ABREU, 2002, p 197).
41
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p. 350.
42
Trecho de missiva escrita em 27 de janeiro de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 149-150).
43
Sérgio Keuchgerian é escritor e fotógrafo de moda. Conhece Caio Fernando Abreu nos anos 80, em São Paulo.
44
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 260.
45
No capítulo Leveza, o autor pondera: “Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a
literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.” (CALVINO, Ítalo. Seis
propostas para o próximo milênio: lições americanas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 39).
18
o que lhe permitia burlar o vácuo que supunha existir entre a vida que tinha e a que
vislumbrava para si, como se estivesse em um carrossel, de mãos dadas com o brinquedo e
das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de
Keuchgerian. “Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos. Não
absorvido com distinção entre pesquisadores da História e das Letras. Enquanto estes
preferem apostar cada vez mais numa percepção menos ingênua da correspondência enquanto
esfera de memória e subjetividades, aqueles parecem investir com mais ênfase no teor
sujeitos históricos acerca do seu campo vivencial — como reconhece Marlon Salomon, ao
pontuar que o historiador comumente é levado a se utilizar dos conteúdos das cartas e a
46
Fragmento de correspondência composta em 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 141).
47
Id..
48
Cf: BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.
49
Cf: DELEUZE, Gilles. A imanência: uma vida... Educação & Realidade, Porto Alegre: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, v. 27, n. 2, p. 10-19, jul./dez. 2002.
50
SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí.
Florianópolis: UFSC, 2002, p. 59.
19
de realidades”51. Para ele, toda análise voltada única e exclusivamente ao conteúdo das
correspondências está fadada a cair em uma rede de estratégias daqueles que as escrevem, por
vezes de resistência, por vezes de dissimulação. Difícil não lhe dar ouvidos.
sujeito dessa enunciação. Sophia Angelides53, mais cautelosa, pondera que as cartas de um
escritor podem figurar como objeto de fruição estética, no qual literário e extraliterário se
que, de modo geral, as missivas nascidas das mãos de um escritor “constituem fragmentos
valiosos que refletem a personalidade do seu autor, o seu ambiente e as circunstâncias que
material lingüístico é submetido ao crivo altamente seletivo do escritor, que recria a sua
não ficcional que comunica uma metarrealidade — a qual se presta a fornecer nada mais que
uma versão ficcionada daquilo que o remetente pretende dizer e o que realmente escreveu e,
mais tarde, será lido pelo destinatário. “Escrever cartas é assim um pequeno ofício ‘literário’
no sentido mais restritivo e convencional desse termo, pois ao escrever uma carta não se pode
fugir a um código que modela e altera o que tão simplesmente queremos e gostaríamos de
51
Id..
52
HAMBURGER, 1975 apud ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e
Górki. São Paulo: USP, 2001.
53
Cf: Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001.
54
ANGELIDES, Sofhia. Carta e Literatura: Correspondência entre Tchékhov e Górki. São Paulo: USP, 2001, p.
13.
55
Ibid., p. 23.
20
dizer”56 — entender que, dito de outra forma, ganha sustentação no postulado crítico de
definamos, com [Jacques] Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao
verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem
Neste sentido, para Sophia Angelides, tanto a linguagem poética quanto a linguagem
particular, misto de documento informativo e texto literário”59 — assertiva que ganha relevo
se combinada a fragmentos como este em que Caio Fernando Abreu tempera o simples relato
biográfico de transitar por uma via paulista com condimentos ficcionais para se reportar a
Jacqueline Cantore60: “Vim descendo a Augusta. Marilene, estou todo INTENSO. Minha
epígrafe agora seria: ‘Pode deixar que eu seguro’. [...] Sofri tanto, fiquei de cama, sabias? Pois
hoje emergi calçando salto 15, ombros muito para trás, porte ereto e saia justíssima”61.
À leitura de tal trecho epistolar, viável me parece aliar alerta perspicaz assinado por
56
CASTRO, E. M. de Melo e. Odeio cartas. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas.
GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 15.
57
BARTHES, Roland. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 22.
58
Id..
59
ANGELIDES, op.cit, p. 23-24.
60
Jacqueline Cantore é produtora executiva da Fox, em Los Angeles. Mantém intensa amizade com Caio
Fernando Abreu, iniciada por meio de cartas, depois que escreve para ele motivada pela admiração pelos textos
do autor.
61
Extrato de carta redigida em 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 128-129). A destinatária ganha nova
identidade ao ser tratada por Caio Fernando Abreu como Marilene. Segundo Italo Moriconi, Marilene é um dos
apelidos mais usados pelo ficcionista nas cartas a Jacqueline Cantore. O mesmo codinome é adotado por Caio
Fernando Abreu em missivas destinadas a outros recebedores.
21
colocadas a serviço de um verdadeiro game [esconder para mostrar, revelar para ocultar] — e
são regidas por normativas “de boas maneiras e de apresentação de uma imagem pessoal”63
que regulam, ao mesmo tempo, sua natureza informativa e seu estatuto ficcional.
uma zona intermediária entre o ficcional e o histórico, a ficção e o documento, podem ser
tomadas como fonte privilegiada ao desvendamento dos universos público e privado, pois
também figuram como auto-retratos e decalques de relações pessoais e sociais. Para Nádia
Battella Gotlib, a epistolografia, enquanto gênero híbrido, constitui campo fértil às diferentes
há quem sustente que aquele que abre “um livro de correspondência arromba uma gaveta atrás
do publicamente inconfessável”66 ou, ainda, que “a carta sempre possui um algo a mais, um
62
PERROT, Michelle. Introdução. In: História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra.
PERROT, Michelle (Org.).Tradução: Denise Bottmann (partes 1 e 2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 11.
63
Id..
64
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia
Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
65
GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239.
66
PILAGALLO, Oscar. Carta ao leitor. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jan. 2004. Sinapse. p. 4.
22
uma reles correspondência pode ser uma janela aberta ao infinito”68. Será?
Em missiva a Luciano Alabarse69 — na qual afirma: “Tua carta me fez muito bem. E
muito mal. Compreendo tudo que você diz. São coisas que me digo, também”70 —, Caio
Fernando Abreu discorre, aparentemente sem timidez, sobre questões do foro privado,
conduzindo a narrativa com apontamentos notadamente reflexivos: “há uma diferença entre
conseguir passar isso para o seu comportamento — tornar ato o que é pensamento abstrato.
Sendo assim, se, de fato, e como quero crer, toda escritura se reveste de marcas e
perpetua “rastros” de seu autor — como ilustra o fragmento anterior —, aceitável é admitir a
potência intrínseca a esta narrativa não ingênua, não neutra, não livre de sinais autorais, que
se origina à moda dos demais gêneros narrativos, de uma relação erótica com o papel — para
recorrer a Roland Barthes e à idéia de jogo com as palavras, sobre a qual teoriza, designando
escritura e teatro enquanto instâncias inseparáveis —, efetivando, desse modo, este lugar de
celebração, espetáculo, que é o texto: “Quarta cheirei toneladas [...] e hasta hoy no me
recuperei. Não puedo me drogar. Questã de saúde, infelizmente: desequilíbrio total. Fico
depois comendo e vomitando sem parar, linha Petra von Kant. Mas tchê, vai tudo de vento em
67
XAVIER, loc.cit.
68
Id..
69
Luciano Alabarse é diretor de teatro. Vive em Porto Alegre. Foi grande amigo de Caio Fernando Abreu, a
quem admirava pelo temperamento forte, pela língua afiada, pela generosidade e pela afinidade com o tempo em
que vivia.
70
Trecho de missiva escrita em 1º de agosto de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 91).
71
Id..
72
Fração de carta redigida em 25 de junho de 1984 (In: ABREU, 2002, p. 80). Trecho transcrito como no
original, a exemplo dos demais.
23
Ao assegurar que “o apelo irresistível das cartas”74 reside no fato de os autores não
pela certeza de que serão lidos apenas pelo destinatário — confiantes de não correr o risco de
circular de mão em mão, feito um objeto familiar —, Oscar Pilagallo apimenta a discussão
sobre a natureza epistolar. Tal entender, de certo modo e com todas as ressalvas cabíveis,
Ofélia de Queiroz: “Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como
Sobre essa questão, Maria Lucia de Barros Camargo estabelece que, em princípio,
trecho de carta postada por Caio Fernando Abreu à mãe, Nair de Abreu77, na qual sustenta que
Triângulo das Águas78 é seu melhor e mais terrível livro: “porque é preciso falar claramente
sobre certas coisas, é preciso alertar as pessoas para as vidas erradas que levam, a alimentação
o fato de não querer se posicionar como dono da verdade e o desejo de colocar a nu alguns de
seus aprendizados: “pode parecer ambicioso, mas de repente gostaria de ajudar a transformar
este mundo numa coisa melhor”80, confidencia —, ao mesmo tempo em que partilham o
73
Luiz Arthur Nunes é diretor teatral e professor de teatro no Rio de Janeiro. Conhece Caio Fernando Abreu
ainda no Rio Grande do Sul. Assina com o ficcionista a autoria de várias peças teatrais.
74
PILAGALLO, loc.cit.
75
Id..
76
PESSOA apud PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In:
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella
(Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 183.
77
Professora e orientadora educacional. Morre pouco tempo depois de Caio Fernando Abreu.
78
Publicado em 1983, um ano depois de Morangos Mofados, reúne três novelas sobre o tema da solidão e
conquista o prêmio Jabuti no ano seguinte. “Triângulo está nas ruas e o que vai acontecer com ele depende agora
dele mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei dizer se ‘gosto’ — sei que doeu muito para nascer, foi o que mais
exigiu, foi o que mais trabalhei”, narra Caio Fernando Abreu a João Silvério Trevisan (ABREU, 2002, p. 70).
79
Fragmento de missiva datada de 15 de setembro de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 62-63).
80
Id..
24
Nesse viés, Maria Lucia de Barros Camargo esclarece que o teor das
específico, “ancora-se no real e nas circunstâncias e quase sempre trata da intimidade, tendo,
por isso mesmo, um cunho íntimo e, até, confessional”81. Além disso, a pesquisadora observa
que, ao ultrapassar o ambiente privado, a carta assume também função documental — sempre
que passa a “ser esclarecedora sobre os costumes de uma época, representando assim uma
verdadeira documentação histórica”82, ao que compendia Lucette Petit —, legitimada pela sua
alude à de que “não é realmente de surpreender que nos deixemos cair em tentação pelas
nossas próprias narrativas biográficas, ou que pensemos que as narrativas contadas por outras
pessoas sobre seu passado sejam críveis e convincentes”83. Afinal, “o que se passa na cena da
escritura não se oferece assim tão facilmente à decifração”84, embora deixe o convite ao leitor.
Ao examinar as cartas redigidas por Sylvia Plath à mãe, Aurélia Plath, entre 1950 e
1963 — e publicadas sob o título Letters home, em 1975, a partir de seleção feita pela
matriarca —, Janet Malcolm85 não dispensa luvas de perito e lentes de sobreaviso para
depreender que o rosto[a máscara?] exibido(a) pela escritora à mãe se diferenciava daquele(a)
apresentado(a) por ela ao leitor. A publicação do livro, segundo Janet Malcolm, com o
conforme Sylvia Plath desejava ser percebida —, não obteve o resultado esperado, servindo
interessasse, tormentos pessoais vividos pela filha e entre ela e a própria mãe.
A esse respeito, ao se deter na análise das cartas enviadas por cidadãos “comuns” ao
memorialista Pedro Nava, Marília Rothier Cardoso atenta para o papel mediador das
memórias... É o grande circuito dos discursos, onde se pode observar a inscrição das
Cardoso e exercita, na escrita de si, um outro papel peculiar às missivas: o de banir distâncias,
conforme formulação feita por Eliane Robert Moraes — em estudo sobre as epístolas do
marquês de Sade, que, em reclusão, fez desse lugar de discurso instrumento de comunicação
com o mundo: “Sensual ou enfermo, a evocar delícias ou suplícios, o corpo do marquês se faz
presente com tal intensidade em sua correspondência que acaba por convocar fisicamente o
leitor”87, numa espécie de cumplicidade muito ao gosto de Michel Foucault, para quem a carta
torna o emissor presente àquele a quem se remete, numa “espécie de presença imediata e
quase física”88. Inferência cujo cerne se evidencia em correspondência expedida por, por
exemplo, Franz Kafka a Felice Bauer, no extrato em que afirma: “o que confere a importância
que aquela carta tomou para mim. É que você a respondeu por uma outra que agora tenho em
86
CARDOSO, Marília Rothier. Carta de leitor. Reflexões a partir de uma seção do arquivo de Pedro Nava. In:
Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella
(Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 339.
87
MORAES, Eliane Robert. A cifra e o corpo: as cartas de prisão do marquês de Sade. In: Prezado senhor,
Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 58.
88
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3. ed. [s.l.: Vega, 1997?], p.150.
26
mãos, por esta carta que me causa uma felicidade ridícula e sobre a qual eu coloco a mão para
sentir que ela é totalmente minha.”89. E é de Ana Cristina Cesar este outro fragmento que dá
“Cheguei em casa e tinha a tua carta. É ótimo como uma carta reata, esquenta, anima. Eu
vinha com a garganta apertada na viagem, cercada da família e triste de deixar o mato. E tua
que o escritor insinua manter uma relação de fetiche com as missivas a ele endereçadas — a
guardado pelo recebedor; corpo que abriga um eu que se fraciona em outros eus para se
movimento freqüente no qual a estrutura íntima do discurso migra para a estrutura ficcional
Percepções cabíveis se amparadas na sentença que assegura que o fingimento [e suas formas
irmãs] é o único meio de o sujeito se processar na escritura. E quem avisa é Roland Barthes91.
Acerca disso, Michel Foucault pondera que as cartas viabilizam, de certo modo, o
face to face, sendo uma forma de o remetente se entregar ao olhar do destinatário pelo que lhe
considerar que o missivista redige a carta “como retrato de seu próprio ânimo, sendo ela a
forma de composição literária em que mais se pode ver o caráter do escritor”92, registra,
89
KAFKA, Franz. Cartas a Felice. 2. ed. Rio de Janeiro: Anima, 1985, p. 14.
90
Fragmento de missiva remetida a Ana Cândida Perez e datada de 18 de abril de 1976 (In: CESAR, Ana
Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.).
Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 203).
91
Cf: BARTHES, 1996.
92
TIN, Emerson. Introdução. In: TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo
de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005, p.19.
27
lembrando juízo emitido também por Cícero93, que acredita que a correspondência manifesta
o caráter de quem a escreve, permitindo que o destinatário veja, nesse objeto — nessa prática
Em carta escrita aos pais, Zaél94 e Nair de Abreu, Caio Fernando Abreu narra a
alegria contagiante que é, para ele, estar no Rio de Janeiro, entre artistas badalados, como
Clarice Lispector e Nélida Pinõn, e novas perspectivas profissionais e pessoais, que passa a
reunir no baú privado dos afetos e das emoções: “Estou no quarto que pertenceu a Lúcio
Cardoso, o grande escritor irmão de Maria Helena. Isso me comove: fico pensando na minha
infância, tão perdida no tempo e no espaço, e não compreendo [...] como de repente me tornei
desculpem, estou escrevendo como se falasse comigo mesmo. Não sei ainda se fico ou não
aqui. [...] é esta a cidade que eu queria, é esta a vida que eu amo e procuro — embora vocês,
Chandler se rende à exibição das expressões do íntimo e do seu entorno social ao explorar a
escrita de si, conforme aponta ensaio de Michael Hall98. Segundo ele, é no gênero epistolar
93
Cf: TIN, 2005.
94
Militar reformado. Falece pouco tempo depois do filho.
95
Trecho de carta datada de 21 de agosto de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 375).
96
ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula. In: TIN, Emerson. A arte de escrever
cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Unicamp, 2005.
97
ABREU, 2002, p. 375.
98
HALL, Michael. Raymond Chandler. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO,
Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 69-75.
99
Ibid., p. 73.
28
esmiuçando no papel facetas de si até então preservadas do olhar alheio, já que as narrativas
privado do autor.
despojamento de si, Ana Cristina Cesar — interlocutora de Caio Fernando Abreu, para quem
depositaria um espio ingênuo sobre o epistolário de Raymond Chandler ou de quem quer que
fosse. Ao analisar coletânea de cartas de Álvares de Azevedo, a poeta alerta para o perigo de
frisa Ana Cristina Cesar. “No entanto, quem se debruçar com mais atenção sobre essa prática
De fato, como previne, com expertise, a poeta, na prática epistolar, à medida que o
narrador não é fictício, supostamente não deveria haver lugar para dissimulações literárias,
com essa contradição: desconfia da sinceridade da pena e do cristalino das superfícies; entra a
fingir para poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero — mesmo que a
literatura”104, assim como o escritor, para Caio Fernando Abreu, “sempre é um fraudulento”105
100
Único livro publicado por Ana Cristina Cesar via editora comercial em vida, reunindo três outros livros
publicados independentemente: Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica.
101
CESAR, 1999b, p. 202.
102
Id..
103
Id..
104
Ibid., p. 203.
105
ABREU, 2005b, p. 259.
29
publicação das cartas do autor põe fim também a todo pacto de sigilo existente entre emissor e
[de uma suposta intimidade] que, com freqüência, sequer evoca a possível falta de verdade
sobre o verdadeiro do corpus epistolar — que fonte de literatura. E se, para Caio Fernando
Abreu, “tudo é passível de uma outra interpretação”107, na medida em que “toda formulação
linguageira implica uma retórica, mesmo que mínima”108 — ao que Michel Riaudel
concordaria, pautando-se na linguagem enquanto falsa moeda, dadas as confusões “que cria,
empecilho para o leitor que busca, no epistolário, desenovelar o fio das individualidades do
epistológrafo. “Ando bem, mas um pouco aos trancos. Como costumo dizer, um dia de salto
sete, outro de sandália havaiana. É preciso ter muita paciência com esse vírus do cão. E fé em
Abreu a Mario Prata112, em carta-resposta enviada em 1995, reportando-se à doença que lhe
106
CESAR, 1999b.
107
ABREU, 2005a, p. 347.
108
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Sinceridade e ficção nas cartas de amor de Fernando Pessoa. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 179.
109
RIAUDEL, Michel. Correspondência secreta. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado
senhor, Prezada senhora. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 99.
110
Id..
111
ABREU, 2002, p. 334.
112
O escritor conhece Caio Fernando Abreu em 1982, em São Paulo, num jantar feito para Ana Cristina Cesar.
Desenvolve trabalhos com ele.
30
tiraria, no ano seguinte, a vida e fazendo exibir um pouco do misticismo113 de que tanto se
AIDS — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique)”114, conta a Maria Lídia Magliani
polifônico: “Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente.
Ligando pra família e amigos, no 3º dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de
mais graça, na seqüência, dos exames a que é submetido em razão do vírus — num fazer que
literatura, enquanto brinca e/ou teatraliza com a própria condição116. “Tiraram líquido da
minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram
canos (tenho I no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de ‘Callas’, em
preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a
113
Em entrevista publicada no jornal Zero Hora, no dia 24 de dezembro de 1972, Caio Fernando Abreu declara
praticar ioga, ser rosacruz e estudar astrologia, quiromancia e numerologia, além de ter como maior ambição o
desejo de ser um grande mago. A abertura da matéria exibe as seguintes impressões a repeito do escritor: “Quero
ser um mago. Um grande mago. Caio Fernando não está fazendo charme. Pelo menos, não totalmente. Não é
difícil imaginá-lo com seu rosto estranho, seu corpo comprido e fino, seus olhos enormes, sua fala lenta e
embebedida de sentidos, como o sacerdote de uma seita esotérica e extremamente abstrata” (ABREU, 2005a, p.
351).
114
Trecho de missiva escrita em 16 de agosto de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 311).
115
Id..
116
Em decorrência da doença, Caio Fernando Abreu morre aos 47 anos de idade, em 25 de fevereiro de 1996, de
infecção em múltiplos órgãos, no Hospital Moinhos de Ventos, em Porto Alegre (RS). De fato, conforme relatos
de vários amigos que o acompanharam durante a fase das internações hospitalares, para espantar o tédio, Caio
Fernando Abreu inventava jingles para os medicamentos a que era submetido no tratamento contra a Aids.
117
ABREU, 2002, p. 312.
31
minha cara! [...] convenhamos que é muito moderno, muito in... Só choro às vezes porque a
O vigor do discurso realimenta parecer de Michel Riaudel, quando pontua que a carta
é, por excelência, “o lugar da retórica do desvio, em que a literatura finge desaparecer atrás de
uma voz gerando um sujeito, em que se trata de seduzir, deixando acreditar que quem escreve
atreve a garantir que não seria exatamente este o eixo do repertório epistolar de Caio
Fernando Abreu, que — e por que não? —, à semelhança de Emily Dickinson, conforme
aponta pesquisa de Lucia Castello Branco sobre a escritura da poeta, “não se deixaria ver
assim tão facilmente, interpondo, entre sua presença e o mundo, uma ‘door ajar’”120? Afinal,
a correspondência, como também credita Michel Riaudel, dada a sua natureza híbrida, confere
Em carta a “La Moreira”121, Caio Fernando Abreu faz questão de dar a ver uma face
corada de vida, de planos e expectativas felizes, apesar da condição já sabida de HIV positivo:
“honey, ando muito feliz. Não é insensato? E Marina canta ‘e eu? Sigo latindo’. Eternamente
Laika, mas sabe que todo esse bode me forçou a tomar decisões que adiava há anos, como se
Menino Deus, em Porto Alegre, “esta ilha verde separada do resto pela ponte da Ipiranga”123,
e colocar em prática outros intentos protelados ao longo da vida nômade que levava, como
manter um jardim, escrever o dia todo e “bem tia — acompanhar o crescimento dos meus
118
Ibid., p. 313.
119
RIAUDEL, op. cit, p. 99.
120
BRANCO, op. cit., p. 53.
121
A cantora Cida Moreira conhece Caio Fernando Abreu em Porto Alegre, na década de 70. Torna-se vizinha
do escritor na década seguinte, em São Paulo.
122
Fragmento de carta de 18 de novembro de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 319). Laika é outro codinome usado
pelo autor na escrita das correspondências.
123
ABREU, 2002, p. 319.
32
Laurinha, um sex symbol de quatro anos, que fala corretissimamente com todos os esses e
erres, desenha muito bem e adora Frida Kahlo”125, a quem se dirige como “aquela mulher de
bigode”126; além de Felipinho, o sobrinho caçula louco por frangas. “Criança, descobri, é mais
curativo que AZT. Então estou assim, muy tia, e daquelas tias solteironas carentes exploradas
pelos sobrinhos, a quem cobre de presentes e estraga completamente a educação dos pais.”127
Sob o signo da carta e o peso da pena sobre o papel, o eu que se escreve, além de
denominar, a exemplo do trecho anterior, “tia” — por ora a face, a identidade e a voz
escolhidas pelo destinador que se oferece ao olhar quase sempre míope do recebedor, que
carteio sob a designação tia, tia solteirona carente, e ao final se assina “Caio F.” aos olhos do
combinação autoral, tendo em vista o caráter de persona apresentado por Sergio Vilas Boas,
trato com outros indivíduos. “Como máscara, o arquétipo da persona refere-se ao que é
esperado socialmente de um sujeito e à maneira como ele acredita que sua imagem deva
124
Id..
125
Id..
126
Id..
127
Id..
128
PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 179.
33
parecer publicamente”129 — numa preocupação que parece combinar muito mais com uma
decifração, obrigando o dito a sugerir um pouco mais ou um pouco menos do que aquilo que
enuncia e aquele que lê a interpretar além daquilo que está dito: “ando meio fatigado de
procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis, e a minha saída (uma saída gostosa) tem sido
essa: a literatura. Claro que me dá um puta medo de estar me transformando numa criatura
intoxicada de palavras escritas”130, resume Caio Fernando Abreu em missiva a João Silvério
Trevisan, deixando entrever frames típicos dos bastidores emocionais do autor ou de sua
persona artística.
E se a saída para as procuras inúteis está na literatura, não a esmo poderia estar
zonas de contágio entre os gêneros e a suplência do gozo sexual — possível graças ao tecer
textual [de si para si mesmo e de si para o outro], para reportar a Lucia Castello Branco131
lendo Jacques Lacan —, sem falar no ato de se dirigir e/ou se projetar ao recebedor, firmando
uma relação com ele e esperando deste a recepção do objeto, sua leitura e a resposta a ele, por
Sob esse prisma, aceitável é conduzir à baila juízo expresso por Renato Mezan — em
análise da produção epistolar de Freud —, que confere à carta o estatuto de “mescla muito
físico de escrever, e também gozo na formulação das próprias palavras) e relação verdadeira
129
VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p.
125.
130
Fração de correspondência datada de 20 de novembro de 1977 (In: ABREU, 2002, p. 496).
131
Conforme Lucia Castello Branco, sob “o viés da psicanálise lacaniana, tanto a letra quanto o amor
funcionarão como suplência para a inexistência da relação sexual” (BRANCO, 2003, p. 60), ou, em outras
palavras, “digamos, com Lacan, que a escrita serve ao gozo” (BRANCO, 2003, p. 58).
34
missivas.
qual as palavras são costuradas, uma a uma, com euforia, impedindo a entrada pelas vias
oficiais na intimidade do emissor e oferecendo, desse modo, pistas nem sempre confiáveis
sobre o bio que é grafado nas teias da escrita epistolográfica do autor — que a transcende para
virar excesso, sobra, rasura, ausência, trapaça discursiva, esquiva —, levando o leitor, muitas
vezes, a esbarrar nas máscaras do sujeito autoral, enquanto fareja suas pegadas sem perceber
que a trilha fora desenhada com as mesmas tintas escolhidas para grafar verdades forjadas.
“Tô morando, trabalhando, estudando e amando. Esses são os quatro foles da minha vida, no
não existem para ser desvelados — afinal, a intimidade “não é comunicável literariamente”134,
já decretava Ana Cristina Cesar, salientando que “o que a gente chama de subjetivo não se
coloca na literatura. [...] Eu queria jogar a minha intimidade, mas ela foge eternamente. Ela
tem um ponto de fuga”135. Para a poeta, o ato de transpor para o papel uma história pessoal
prevendo fazer dela literatura acaba por modificá-la, transmutando sua essência e seu teor.
“Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção,
ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É
oposição ao de postular fúrias biografistas, elejo a correspondência ativa e seu conteúdo como
132
MEZAN, Renato. As cartas de Freud. In: Prezado senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO,
Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 171.
133
Carta a Vera Antoun, datada de 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 451).
134
CESAR, 1999b, p. 259.
135
Id..
136
Ibid., p. 273.
35
matéria-prima de leitura [labial137] nas páginas a seguir, levando em conta, sempre que viável,
determinar”141. Ao que aproveito fração de missiva redigida por Franz Kafka, a qual parece
corroborar com alguns dos aspectos citados: “Minha memória é muito ruim, mas se ela for a
melhor de todas, não me ajudará a transcrever exatamente nem mesmo um pequeno parágrafo
concebido e anotado anteriormente, pois [...] há mudanças que, antes de serem colocadas por
personas pública e privada. “Muito ascendente em Libra, Caio preferia revelar apenas o que
supunha ser agradável ao outro”143, segreda a amiga de longa data, Márcia Denser144, para
quem o escritor gaúcho “é mestre — de dizer pelo não dito, significar pelo oposto ou pelo
137
Com o sentido que lhe emprega Maria Lucia de Barros Camargo: leitura enquanto prática da hermenêutica da
suspeita. Cf: CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina
Cesar. Chapecó: Argos, 2003.
138
SALOMON, op. cit., p. 15.
139
Id..
140
VILAS BOAS, op. cit, p. 60.
141
Id..
142
KAFKA, op. cit., p. 14.
143
DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial
da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 12.
144
Escritora e jornalista paulista.
36
implícito, pelo subtexto e pela elipse — suas ilhas de silêncio”145. E não é exatamente Caio
Fernando Abreu quem diz que “com o mistério não se pode mexer”146?
A partir disso, como localizar a narrativa epistolar de Caio Fernando Abreu, flanar
um percurso validável e avistar mais que arcanos e dizeres de si, pessoais e/ou ficcionais, em
meio a zonas de sombra, sobrepondo o desejo recorrente de, a todo momento, lançar olhos de
“Ando feliz, feliz-clichê: amo Paris. Acho que nunca disse isso para cidade nenhuma.
As cidades, você sabe, são falsas e traiçoeiras. Paris, você quer casar comigo?”147, relata Caio
Fernando Abreu, com pretensiosa malícia discursiva. “Acampei na sala de Alexandre, a falta
de espaço é terrível, para qualquer movimento preciso abrir malas e bagagens, e nunca sei
nunca sei exatamente aonde está a cuia, onde está a calcinha... Males de um viajante.”148
145
DENSER, op. cit., p. 10.
146
ABREU, 2005b, p. 255.
147
Extrato de correspondência escrita a Maria Lídia Magliani, em 26 de março de 1994, durante estada do autor
na França (In: ABREU, 2002, p. 292).
148
Id..
37
2 O EPISTOLÁRIO
“Para mim são muito mais verdadeiras
as coisas que não são reais.”149
uma zona híbrida, na qual é possível experimentar uma outra espécie de narrativa — que
nesse entremeio que procuro me inscrever com a pretensão de sinalizar alguns “excessos” —
como o compromisso com a linguagem, num fazer escritural que a dispõe em revelo,
lentes de aumento para, assim, verter um olhar aguçado e, sobretudo, cauteloso sobre o
continente epistolar do escritor mencionado — que firma pactos biográficos com o leitor até
mesmo quando produz literatura, como ao recomendar: “Descobre, desvenda. Há sempre mais
Com base nisso, que leitura seria possível travar acerca da escrita de si reunida em
ficcionalizado(s), a fim de alçar vôos performáticos? Lança mão da prática confessional para
149
FELLINI apud COSTA, Vidal A. A.. A pertinência do irreal: reconhecendo faces inexploradas na ficção
especulativa. Revista Letras, Curitiba, n. 62, p. 81-95, jan./abr. 2004, p. 81.
150
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 40.
151
ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
38
documentar, de fato, a escrita de si e/ou se rende ao estatuto ficcional para gerar uma
“MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito.
Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela.
Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu)”152, descreve Caio Fernando
Abreu. O fragmento, ao contrário do que se possa pensar, não diz respeito ao legado ficcional
O trecho, que relata contato travado com Ana Cristina Cesar — companheira
geracional do escritor, com quem manteve intensa amizade153 nos idos de 80 —, integra
Fernando Abreu parece incrementar o “real”, ora imprimindo humor à construção textual —
“Conversando com GM, somos mais por uma terapia bageense, tipo te fresqueia, prenda,
come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula, uma tirana do lenço, te joga nua
no açude na hora da sesta”154, complementa —, ora comparando Ana Cristina Cesar, mais à
frente na carta, à Isabelle Adjani — “em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. Linda,
naturalmente, mas troppo morbo”155 —, característica que se repete também ao adotar para si
“Cheguei na editora rindo: meu Deus, a Laika de São Paulo, a negra sem ter onde
morar, vivendo com 500 dólares por mês, lavando roupa num balde sob o chuveiro, fazendo a
152
Trecho de carta escrita a Jacqueline Cantore em 20 de maio de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 46).
153
Cf: MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará;
RioArte, 1996. (Perfis do Rio).
154
ABREU, 2002, p. 46.
155
Id..
39
Prado. “Mas te juro que perdi o pique: Marilene já não é mais a mesma, quem diria. Acordei
às quatro da tarde com aquele gosto de tabuleiro de xadrez na boca (o da alma é pior) e recebi
Ana Maria para longas sessões de I-Ching, cores & Tarot”157, segreda a Jaqueline Cantore —
mesma destinatária dos extratos seguintes, nos quais o missivista escritor se enuncia na
“S´as que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE MORREU QUEIMADA? Estava ela
no fogão, mui lépida, assando umas coxas de franga, quando eis senão que sente um odor
estranho vindo das bandas do dito fogão”158, relata à interlocutora. “Ela estava, mui
poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela pêxa grávida no aquário, que não se
decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu esperava pêxes de Pêxes, s´as?)”159, estende.
“Então me viro (observe a mudança espontânea & natural da tercêra para a primêra pessoa) e
eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS ENORMES ATÉ QUASE O TETO. [...] Marilene,
prosador, explicando que a motivação para o ato heróico estava em evitar a carbonização do
Tal postura, assumida pelo autor na escrita de si, à medida que lustra o discurso de
comicidade — “Preciso ter uma ilusão de segundo mundo — você sabe que, embora Laika,
tenho uma alminha très chic”161 — e impregna a linguagem com termos gauchescos e códigos
idiossincráticos — “Gerd Alberto da Silva Hilger, como o senhor é guloso! Já pedindo foto da
156
Fração de missiva de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299).
157
Fragmento de correspondência de 5 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 112).
158
Extrato de epístola de 26 de março de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 115).
159
ABREU, 2002, p. 115.
160
Id..
161
Trecho de carta escrita em 30 de julho de 1993 e postada ao tradutor alemão de Dulce Veiga e de outros
trabalhos de Caio Fernando Abreu, Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 272).
40
apelo dos seus verdes olhos foi mais forte que a najice. Agora planejamos falsificar várias
cartas de leitores nervosos querendo a todo custo saber quem, afinal, é esse casal maravilhoso
nas sombras?”164.
bicha); lasanha (= homão bonito); rodenir (= coisa brega)”165, Italo Moriconi aposta no caráter
lúdico das cartas de Caio Fernando Abreu, reconhecendo a existência de um jogo vertiginoso
por preferir tomá-la enquanto estratégia discursiva operada a partir da experiência do autor.
Vida reinventada pelo discurso — ora para gerar literatura, ora para engendrar confissão —,
escritura, teoricamente, biográfica — “Hoje estou torcendo pela queda final da besta Collor e
— pour quoi pás? — pela entrada do nosso país num tempo de astral melhor”170, redige a
Quel, dispõe-se a teorizar, desviando-se serenamente das questões que não deseja responder,
como quem se afasta, de fininho, na ponta dos pés, deixando o campo livre?
Para Márcia Denser, as cartas de Caio Fernando Abreu apontam, entre outras
dominantes, a “absoluta necessidade que tinha de mentir para os outros”174, ocultando sua
169
SOUZA, Pedro de. Escrita e imagem de si: subjetivação inconclusa em narrativas homoeróticas. In: LOPES,
Denílson [et al.], (Org.). Imagem e Diversidade Sexual – estudos da homocultura. São Paulo: Nojosa edições,
2004, p. 190.
170
Fragmento de carta redigida em 29 de dezembro de 1992 (In: ABREU, 2002, p. 258).
171
Escritora consagrada, dramaturga e autora de novelas. Conhece Caio Fernando Abreu em 1979, na Editora
Abril, em São Paulo.
172
Pela leitura das “escrevinhações” do autor, é possível perceber o diálogo com o contexto político-social e o
período vivido. Ainda mais para alguém como Caio Fernando Abreu, que fez questão de mergulhar nas correntes
culturais da sua época, aderindo ao movimento hippie — “Vivi como hippy no Rio durante um certo tempo.
Cheguei a passar uma semana sem fazer nada, sem comer — só tomando cafezinho e comprimido para passar a
sensação de fome. Dormia na praia do Leme. De noite, ia ao Conservatório de Teatro para fazer um curso sobre
Alquimia.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005a, p.
352) —, submetendo-se ao regime ditadorial e experimentando, por conseqüência, a censura e o exílio. “Dentro
da engrenagem, ser hippy é a única forma digna de sobreviver”, expõe o prosador, em depoimento concedido na
década de 70 (ABREU, 2005a, p. 347). “Eu acho que poderia comparar os hippies brasileiros com os dos países
desenvolvidos. Dentro de um certo limite, claro. Na Europa, os hippies são revoltados contra uma sociedade
superdesenvolvida. No Brasil, não se pode dizer que eles são revoltados contra uma sociedade subdesenvolvida,
porque o Brasil não é um país subdesenvolvido. É um país mal desenvolvido [...] um hippy paulista é igual a um
hippy inglês ou parisiense, mas ninguém consegue imaginar um hippy amazonense. No Amazonas ele não tem
por que se marginalizar, se ele já é um marginal.” (ABREU, 2005a, p. 347).
173
Realizada em 1963. Cf: BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
174
DENSER, op. cit., p. 11.
42
natureza privada. “Caio era cheio de mistérios, segredos”175, situa a escritora, esclarecendo
que o autor sempre silenciava suas ligações com o Rio Grande do Sul para o grupo176 de
escritores com o qual conviveu nos anos passados em São Paulo, “supondo que o julgássemos
televisão, as quais também eram mantidas em segredo, o que, segundo Márcia Denser, dava-
se porque Caio Fernando Abreu temia parecer menor aos olhos dos pares178, “uma vez que o
vida/obra. “O Caio que fala nas cartas é mais o Caio pessoa, embora, claro, o Caio-pessoa
fosse integralmente, 24 horas por dia, o mesmo Caio escritor”180, pontua, constatando a
inteiros, cartas inteiras que são pura literatura, puro vôo criativo e poético”181. É fácil entender
por quê.
175
Id..
176
Segundo Márcia Denser, faziam parte do grupo, além dela, Lygia Fagundes Telles, Marcos Rey, Raduan
Nassar, Ignácio de Loyola e Ivan Ângelo, entre outros escritores.
177
DENSER, op. cit, p. 12.
178
A aparente autocensura do escritor talvez encontre justificativa no cenário vigente no período: “Em meados
dos 80, o Brasil do nacional-desenvolvimentismo descrito por Roberto Schwarz cai na real. Os planos Cruzado
(1986) e Collor (1990) são entremeados por uma inflação de 300 por cento ao ano. Sob tais condições, não existe
futuro, mas é nesse contexto que os heróis anônimos de Caio Fernando Abreu fazem todo o sentido. Abstraindo-
se a aids, o contexto econômico da época era tão adverso que por si só explicaria a ausência de projeto
existencial e prospecção futura dos seus personagens”, assinala Márcia Denser (DENSER, op.cit, p. 10), com
quem Caio Fernando Abreu compartilhou a ambição de vencer na carreira literária. Nessa época, em
correspondência remetida a Jacqueline Cantore em 24 de junho de 1981, o escritor comenta ligação com Márcia
Denser: “Raramente saio à noite, praticamente nunca vou a lançamentos literários: — tenho medo e desgosto do
astral competitivo, fofoqueiro. Mas tinha ontem duas pessoas que gosto muito: Márcia Denser, lançando O
animal dos motéis (você ficou assustada com o título? a Márcia é assim, meio atrevida, mas no fundo uma
Luluzinha querendo fingir de Messalina — como me dirijo mais à Luluzinha e ignoro as messalinices dela,
costumo dizer que temos um relacionamento muito especial).” (ABREU, 2002, p. 32).
179
DENSER, op.cit, p. 12.
180
In: MOSCOVICH, Cíntia. Um poeta nos passos de Caio. Entrevista concedida por Italo Moriconi. Zero Hora.
Porto Alegre, 21 dez. 2002. Cultura - Segundo Caderno, p. 4.
181
Id..
43
“Não te enfosses com os editores. Tem um poema da Florbela Espanca que diz
assim: ‘As coisas vêm a seu tempo/quando vêm, essa é a verdade’. Um dia a coisa sai. E eu
acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça na hora exata”182, profere
em carta a Hilda Hilst183, legitimando parecer de Italo Moriconi no que toca ao fazer escritural
de Caio Fernando Abreu, visto pelo pesquisador enquanto labor: “na medida em que o
trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que
brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais, suas resenhas e matérias jornalísticas,
assim como presumivelmente seu diário”184 — ou seja, tudo fruto “de um mesmo processo de
assertiva que retoma análise travada por Félix Guattari e Gilles Deleuze acerca da literatura de
Franz Kafka, quando sinalizam que, se as cartas fazem plenamente parte da obra, “é porque
são uma engrenagem indispensável, uma peça motriz da máquina literária tal como Kafka a
presumir que artistas jamais são ingênuos. Ingenuidade seria admitir que vida e obra,
Dentro dessa esfera, salutar é apresentar adendo de Caio Fernando Abreu, no qual se
182
Missiva de 29 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 369).
183
A escritora conhece Caio Fernando Abreu nos anos 60. Exerce forte influência na formação literária do autor.
184
MORICONI, Italo. Introdução. In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 15.
185
Id..
186
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p.
58.
187
RESENDE, Beatriz. “Ah, eu quero receber cartas”: a correspondência de Ana Cristina César. In:
SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes Femininas: Gênero, mediações e práticas
da escrita. Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003. Neste ensaio, a autora
certifica que: “O que [Roland] Barthes faz ao negar a sinceridade de seu diário é reivindicar para a condição
literária uma ingenuidade tão impossível quanto inútil. Condenando o diário como simulação, termina por
garantir sua literaridade, sua importância como escritura, autorizando sua publicação” (p. 308-309).
44
confidencia, em depoimento à Gazeta do Povo. “Bob Dylan, numa entrevista, disse: ‘Minhas
influências vêm de tudo o que vi, ouvi e vivi’. É mais ou menos isso”189, acrescenta o
textual — “Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas
como aquelas dos almanaques de antigamente”190, escreve Caio Fernando Abreu, dirigindo-
se, diferentemente do que se possa, numa primeira leitura, deduzir, não a um determinado
S. Paulo.
O extrato integra a crônica Última carta para além dos muros191 — misto de escrita
mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mas claramente.
Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo” 192, amplia o
escritor. A “carta-crônica”193 encerra uma série de três. Na primeira delas, à qual chama Carta
para além dos muros194, o autor decide dar viva-voz à doença que lhe tiraria, mais tarde, a
vida, disseminando, ao revelar estar internado com Aids num hospital paulista, a verdade
privilegia o segundo sem se descolar do primeiro. Elege o espaço público do periódico para
188
In: FERNANDES, José Carlos. Um lugar para plantar morangos. Gazeta do Povo. Curitiba, 3 jul. 1995.
Caderno G, p. 3.
189
Id..
190
ABREU, Caio Fernando. Última carta para além dos muros. Zero Hora. Porto Alegre, 26 fev. 1996. Segundo
Caderno – Especial, p. 3.
191
Publicada em 21 de agosto de 1994. Cf.: MACHADO, Cassiano Elek. Cartas do escritor narram amor nos
tempos da Aids. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 dez. 2002. Ilustrada, p. 4.
192
ABREU, 1996, loc.cit.
193
Tomo a liberdade de chamá-la “carta-crônica” tendo como justificativa o seu caráter público privado e o seu
teor documental ficcional. Publicada em 18 de setembro de 1994. Cf.: Segundo Caderno – Especial do jornal
Zero Hora de 26 de fevereiro de 1996, p. 3.
194
Um dos contos de Caio Fernando Abreu integrantes de Caio 3D: O essencial da década de 1970 se chama
Carta para além do muro. In: ABREU, 2005a, p. 249-251.
45
explicitar sua condição íntima ao leitor e à leitora, que parecem figurar na narrativa como
velhos confidentes, destinatários de longa data, caso pondere-se que particularidades como
essa seriam trocadas apenas, e tão apenas, com pessoas a quem se quer bem. “Não parei e
pensei: ‘Vou tornar isso público’ (imitando voz lenta e tenebrosa)”195, declara à Gazeta do
Povo. “Eu estava no hospital e deveria mandar uma crônica para o Estado. Tinha passado três
dias inconsciente. E só poderia escrever sobre aquilo. [...] Sempre fui muito pessoal naquilo
pauta na experiência mais imediata e, num ato de cumplicidade com o leitor e a leitora, sai do
confusão: Por que se enunciar desse modo? Há quem garanta que o ficcionista “acreditava nos
mistérios, nas transcendências, nas divindades”197. A justificativa pode estar aí — “sempre fui
ligado à filosofia oriental, ao budismo. Por isso creio que esta vida é ilusão. Acho que a coisa
está ali. Do outro lado. O que nós chamamos de morrer é como nascer para outros planos. [...]
Abreu com cada um de seus leitores, amigos ou não — “Conto para você porque não sei ser
senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo.
Sei que você compreende. Sei também que, para outros, esse vírus de science fiction só dá em
195
In: FERNANDES, 1995, loc.cit.
196
Id..
197
ALABARSE, Luciano. O ousado viajante do Menino Deus. Zero Hora. Segundo Caderno Especial. 26 fev.
1996. p. 4.
198
Trecho de depoimento concedido ao Jornal da Tarde e originalmente publicado em 11 de outubro de 1994.
Cf.: ABREU, 2006, p. 277.
46
gente maldita”199, registra. A forma encontrada lhe permite, assim, o tom de conversa, o
que lhe concedia o face to face com os destinatários queridos das cartas “verdadeiras”.
deitadas sobre tapetes que pareciam ser sempre de cor púrpura desbotada, mirando tetos
Sendo assim, como não desconfiar da sinceridade da pena? Como não reconhecer a
qualquer trajetória discursiva, é preciso observar, ao que alerta Maria Helena Werneck, que o
“corpo, sujeito ao olhar alheio, amarelece como o papel, encarquilha, range e se rói, mas não
cuidados de si”202 — narrar este que favorece a “percepção de si”203 do autor, que a transfere
Acerca disso, prudente é considerar também o desejo expresso por Caio Fernando
Abreu de que as correspondências tomassem os rumos públicos depois de sua morte — sem
199
ABREU, 1996, loc.cit.
200
In: GUTKOSKI, Cris. Cartas de Caio F. saem do ineditismo. Zero Hora. Porto Alegre, 27 maio 2000.
Cultura, p. 3.
201
Id.. No conto referido, Caio Fernando Abreu narra, logo na abertura: “Só depois de apertar muitas vezes a
campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura,
depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor?” (In: ABREU, 2005b, p. 21).
Mais à frente na narrativa, um dos personagens faz, então, referência ao tal teto de que trata Luciano Alabarse:
“Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto
manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão.” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da
década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 26).
202
WERNECK, Maria Helena. “Veja como ando grego, meu amigo.” Os cuidados de si na correspondência
machadiana. In: GALVÃO, Walnice; GOTLIB, Nádia (Org.). Prezado senhor, Prezada senhora. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 141.
203
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos &
abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 170.
204
Id..
47
divagações: “nós nos escrevemos dezenas de cartas. Não sei se você guardou as minhas como
guardei as suas. Se você guardou, uma idéia [...] é você publicá-las. Vamos que eu me torne
referência muito próxima ao desejo de ter o epistolário também lido por destinatários
diferentes daqueles referenciados no alto da carta de origem — instigando quem atenta para a
prática epistolográfica do autor: “Já leste carta tão besta? Pois é, vai saindo. Nas minhas obras
forjada ou não, policiando-se enquanto missivista que emite pareceres sobre si e seu círculo
Tingindo revelações — à sombra de Roland Barthes, que, com freqüência, “deu a seus
sinceridade não passava de “um imaginário de segundo grau”208? “De qualquer forma, se você
as tem, são suas. É a minha herança para você”209, enfatiza o missivista, colocando a
recebedora a par da doação de cartas remetidas por outros escritores, as quais mantinha
205
Fragmento de epístola redigida em 27 de novembro de 1995 (In: ABREU, 2002, p. 340).
206
Retalho de carta escrita a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 127).
207
Cf.: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 18.
208
BARTHES, Roland. Deliberação. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. 447.
209
ABREU, 2002, p. 340.
210
Em correspondência redigida em 1º de dezembro de 1995 a Flora Süssekind, Caio Fernando Abreu informa
que lhe está encaminhando as cartas preciosas da poeta Ana Cristina Cesar [ainda não publicadas]. Nela, sugere
48
“Ontem fez uma manhã linda. Apanhei horrores de sol na piscina, o verde da tez vai
esmaecendo. Tenho feito muita ginástica e yoga. [...] Na verdade estou ótimo. E vou ficar
melhor ainda”211, narra Caio Fernando Abreu, promovendo uma verdadeira fusão entre as
estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido
correspondência remetida a uma velha amiga, poderia perfeitamente sinalizar a tensão entre a
“não depurável”?
que qualquer coisa se torna tema quando o que está em jogo é a literatura. “Para um
romancista, tudo é tema, todos são personagens, inclusive o próprio escritor”214, propõe. A
preferências sexuais e literárias, como o escritor Reinaldo Arenas, cuja literatura Caio
Fernando Abreu insere na novela Bien Loin de Marienbad, segundo José Castello215 —
ganham voz na produção ficcional do autor, que não obstrui a entrada de referências
a publicação da produção epistolar: “Tive uma idéia: essas cartas, na minha opinião, são tão belas que mereciam
ser publicadas” (ABREU, 2002, p. 341).
211
Em extrato de missiva escrita em 20 de maio de 1983 a Jacqueline Cantore (In: ABREU, 2002, p. 45).
212
ROTTERDAM, Erasmo de. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar. In: TIN, Emerson
(Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam e Justo Lípsio. Campinas: Editora
da Unicamp, 2005, p. 112.
213
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 69.
214
SILVA, Deonísio. O escritor se defende com a palavra. Zero Hora. Porto Alegre, 7 jan. 1995. Segundo
Caderno, p. 5.
215
CASTELLO, José. A condenação que virou alegria de viver. O Estado de São Paulo. São Paulo, 11 dez.
1994. Caderno 2 - Especial Domingo, p. 3.
216
Neste entremeio, vale trazer à cena discursiva formulação esclarecedora de Ecléa Bosi: “A memória não é
49
do lugar do fictício nos textos ficcionais: “Os textos ficcionados serão de fato tão ficcionais e
os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?”217. E é, então, com desconfiança
que Wolfgang Iser deposita um olhar [de soslaio] no senso comum que postula, enquanto
opostos, conceitos como realidade e ficção, colocando em xeque todo “repertório de certezas
De fato, validar qualquer raciocínio sob esse prisma seria mero reducionismo,
ficcional de Caio Fernando Abreu, como estes: “não fui eu quem mentiu, mas uma parte de
mim, e se quiserem perguntar também a essa parte de mim que desconheço quase tanto
dissesse: [...] nada do que acontecia aqui [...] até que minha mentira nos ameaçasse
aconteceria realmente se minha mentira não fosse verdade e nada tivéssemos a defender além
Partindo desse viés, recorro mais uma vez ao aparato teórico de Roland Barthes para
lançar luzes sobre tais inquietações e, então, especular: Se, à leitura das cartas de Caio
Fernando Abreu, o crítico aplicasse percepção semelhante à com que tomou a novela
Sarrasine — ambas figurando como texto —, plausível seria apostar na verdade lúdica da
sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado ‘tal como foi’, e que se faria no
inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.” (In: BOSI, Ecléa. Memória e
sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 55).
217
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da
literatura em suas fontes. 2. ed. vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 384.
218
Id..
219
ABREU, 2005d, p. 52.
220
Id..
50
produção epistolar em pauta, já que, segundo o autor221, cada texto contém seu jogo de
verdades — recordando que a verdade, para Roland Barthes, somente existe na sua forma
qual opera o conceito de efeito de real — “fundamento desse verossímil inconfesso que forma
comportamento reside naquilo que há de concreto, “como uma máquina de guerra contra o
sentido”223.
Com base nesse entender, o crítico adota a noção pontual de “ilusão referencial”224,
que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que
significá-lo”225. E o que vem a ser o real? Há o real? Para Roland Barthes, “não o conhecemos
nunca senão sob a forma de efeitos (mundo físico), de funções (mundo social) ou de
fantasmas (mundo cultural)”226, sintetiza, acertadamente, sinalizando que o real é sempre uma
inferência: “quando se declara copiar o real, isto quer dizer que se escolhe tal inferência e não
tal outra”227.
Sendo assim, aceitável é reconhecer que este efeito de real do discurso de que trata
Roland Barthes nada mais fornece do que variantes de verdade, pois é preciso considerar que
a linguagem não dá e não pode dar conta do real, mas, sim, de representações do real. Ou
221
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
222
Ibid., p. 163.
223
Id..
224
Ibid., p. 164.
225
Id..
226
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 78.
227
Id..
51
ainda: “A linguagem constitui e articula uma realidade”228, conforme alerta, com perspicácia,
Marcio Markendorf, na espreita de Jean Baudrillard, para quem a realidade não passa de um
conceito ou um princípio, ao qual se conecta todo o sistema de valores. “O Real enquanto tal
implica uma origem, um fim, um passado e um futuro, uma cadeia de causas e efeitos, uma
continuidade e uma racionalidade. Não há real sem estes elementos, sem uma configuração
objetiva do discurso.”229
Neste sentido, mais que vislumbrar a verdade lúdica como a única possibilidade
salutar de leitura, Roland Barthes oferece uma outra leitura edificante: a que visualiza o efeito
de real. “A narrativa mais realista que se possa imaginar desenvolve-se segundo as vias
[mais] irrealistas”230, reflete o teórico, remetendo, a meu ver, a uma missiva um tanto
melancholic escrita por Caio Fernando Abreu durante estada na Inglaterra, em 1991, na qual
se mostra saudoso pela pátria deixada para trás: “Quando saí daí, saí gritando ‘gentalha,
gentalha!’ em todas as direções (Marcos Breda [...] que o diga). Então vem o inverno, e a
neve (as temperaturas do início de fevereiro aqui foram literalmente siberianas), e essa gente
fria, e essa língua”231, relata a Guilherme de Almeida Prado, admitindo se deixar invadir por
um amor desesperado por esse país de “gentalhas” e emendando, mais à frente, a resposta
encontrada para abrandar a saudade que o acometia — “com aquele accent de João Gilberto, a
música que mais cantei aqui — baixinho, só para mim mesmo — nesse tempo todo foi ‘isso
aqui ôôô, é um pouquinho de Brasil iáiá’, quando via algo ou alguma coisa que me lembrava
o Brasil”232.
228
MARKENDORF, Marcio. Autobiografia como artifício ficcional. In: Encontro Internacional Fazendo
Gênero, 6., 2004, Florianópolis. Ensaio cedido pelo autor (pesquisador do Doutorado em Teoria Literária da
Universidade Federal de Santa Catarina).
229
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Tradução: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,
p. 69.
230
BARTHES, 1988, p. 164.
231
Trecho de missiva redigida em 9 de marco de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 211).
232
Id..
52
e, diante desse aspecto, não desprezar que esta esteja incrustada nas representações
trabalhadas por Caio Fernando Abreu quando a serviço da expressão epistolar, podendo recair
escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. [...] De
qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade”233, crava
ficção, também lhe rende matéria-prima epistolar, como este extrato remetido a Vera Antoun:
“Homero quis ir ainda a uma livraria. Fomos. Aí fiquei alucinado por uma biografia de
Virginia Woolf, com fotos belíssimas, dois volumes. Apanhei um, Homero outro. Saímos.
Dois caras nos viram, nos seguiram. Nos apanharam na esquina”234. Resultado [válido para
vida e arte]: passar a noite na prisão. Na manhã seguinte, conta na carta, Homero e ele foram
“Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court. Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando
uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf [...]. Ficamos rondando, eram dois volumes
deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira,
nossa fada-madrinha. E que anyway era um roubo muito digno”237, amplia o prosador,
233
ABREU, 2005a, p. 193.
234
Fragmento de carta escrita a Vera Antoun, em abril de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 469).
235
Id..
236
ABREU, 2005a, p. 209.
237
ABREU, 2005a, p. 209-210.
53
pontuando na narrativa literária, como o fizera na narrativa epistolar, que o parceiro do furto e
ele foram obrigados a dormir cada um em uma cela e, a seguir, submetidos a um julgamento
leitura “biográfica” das correspondências de Caio Fernando Abreu, nem deixar de perceber
escreve, recordando assertiva de Marlon Salomon, quando dispõe que o missivista, por meio
da escrita de si, “se define, articula ou rearticula a si”239 próprio — proposição à qual
emendaria: “o que quer que escrevamos transmite sentidos que não estavam ou possivelmente
não podiam estar na nossa intenção, e as nossas palavras não podem transmitir o que
quando escreve é determinado pelo inconsciente. Há coisas que acontecem na escrita sobre as
quais não há como ter controle, coisas que desembarcam no papel e surpreendem”241. Efeitos
de leitura.
referente ao transpor experiências da vida pessoal para o papel fino da carta, via linguagem
escrita, numa atividade discursiva que se serve da fabricação de “cópias da realidade” [entre
muitas aspas]. “Eu andava cheio de suspeitas, pintaram muitas estórias paranóicas na minha
238
ABREU, 2005a, p. 210.
239
SALOMON, Marlon. As correspondências: uma história das cartas e das práticas de escrita no Vale do Itajaí.
Florianópolis: UFSC, 2002, p. 58.
240
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 54.
241
TABET apud MILAN, Betty. O jardim secreto da escrita. Entrevista concedida por Paul Tabet. Folha de São
Paulo. São Paulo, 24 ago. 2003. Mais!, p. 3.
54
cabeça — com base no real, infelizmente (se fosse demência pura seria mais fácil). [...]
porque a realidade dos meus textos é tão ou mais (?) terrível do que o real dia-a-dia.”242
Diante de tais abordagens, Anatol Rosenfeld, numa postura respeitável, pondera que
a intenção de verdade é fator vigorante nos enunciados de um texto científico e na maioria das
notícias, das correspondências e dos diários. Para ele, os enunciados “constituem juízos, isto
aos seres reais [...] referidos”243 — sentença que se assimila ao caráter de inatingível
conferido à questão da verdade por Lucia Santaella, que insiste, na carona de Peirce, que se
está “sempre a meio caminho da verdade”244, motivada pela convicção de que é impossível
nutrir certeza absoluta sobre coisa alguma. Para a pesquisadora, se houvesse a possibilidade
de “atingir a verdade, ela coincidiria com o real, seria a revelação manifesta do real, ponto de
Nesta direção, é interessante pensar com David Harvey, que, ao teorizar a respeito do
vida cultural é uma série de textos em intersecção com outros textos, gerando novos
texto, tendo em vista que “o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora de nosso
controle; a linguagem opera através de nós”247. Impossível não lhe atribuir razão ou deixar de
242
Trecho de carta remetida ao também escritor Luiz Fernando Emediato, em julho de 1977 (In: ABREU, 2002,
p. 489).
243
CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Salles. A
personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva,1968, p. 18.
244
SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 155.
245
Ibid., p. 191.
246
HARVEY, op. cit, p. 54.
247
Id..
55
derridiano, que toda linguagem “encerra esse ‘excedente’ em relação ao significado exato,
De fato, como corifeu da escrita a frio, Caio Fernando Abreu não se privava da
literatura e das demais formas de arte249, pelas quais nutria cumplicidade, quando no exercício
social250 [e o caldo cultural] em que estava imerso — fator que se aproxima do viés
documental a que se referem, para exemplificar, Maria Lucia de Barros Camargo e o próprio
diário: “Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente
esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana”251.
E é em torno desses apontamentos que repouso meu olhar para arrematar este
detém-se não em postular verdades absolutas ou conceitos fixos e normativos, mas indicar
validades da linguagem [em sua natureza escorregadia], numa ousadia nutritiva e infindável:
“Anotar na agenda mental: reler Fernando Pessoa, principalmente Alberto Caeiro (em anexo,
poema de Ricardo Reis); re-ouvir Terra de Caetano; reler aqueles poemas zen póstumos de
248
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997, p. 185.
249
A cumplicidade com todas as formas de arte parece ter acompanhado o escritor por toda a vida, estando
presente até mesmo nos momentos de dor extrema. Pouco antes de morrer, Caio Fernando Abreu brincou com o
amigo e produtor musical, Marcelo Sebá, que reproduz o chiste queer do prosador: “Quando chegava uma visita
no hospital, ele dizia: ‘Welcome to Philadelfia (alusão ao filme sobre a Aids, com Tom Hanks)’” (In: BARROS,
André Luiz; MITCHELL, José; PAIVA, Anabela. Com a Aids, a descoberta real da vida. Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 27 fev. 1996. Caderno B, p. 5).
250
A exemplo de como narra, em carta redigida a Guilherme de Almeida Prado, algumas impressões dos
ingleses a respeito do Brasil: “Brasil aqui é uma coisa tão por baixo. Semana passada, no channel 4, passou Na
avenue called Brazili, um documentário horripilante de Otávio Bezerra, filmado na Av. Brasil do Rio. Parecia
filme de horror. Mas é a visão inglesa sobre o mundo. Todo o dia leio coisas sobre as adolescentes prostitutas de
Calcutá, as criancinhas com Aids da Romênia, os refugiados da Albânia. Estive em Liverpool, falando na
Universidade (o melhor foi ver o ‘Cavern Club’, onde os Beatles começaram), e sobre o Brasil, as pessoas só
querem saber desse tipo de baixaria. Tenho que rebolar para explicar que o Brasil são muitos Brasis (...)”
(ABREU, 2002, p. 214).
251
ABREU, 2005a, p. 214.
56
Cecília Meireles. Ou não reler nem ouvir nada”252, redige Caio Fernando Abreu a Maria Lídia
fortemente, apertá-las contra o peito, comprimir a cabeça e o corpo inteiro contra as árvores,
pisar descalço na terra, colocar balas e doces (sempre em número ímpar) ao pé das árvores
grandes para os duendes e devas e erês comerem”254, emenda o autor, confirmando o caráter
estimava: “e ficarem teus amigos, deixar na cabeceira toda noite copos de água com açúcar
para as fadas virem beber de madrugada. Acender velas para chamar Luz, jogar rosas
amarelas nas águas dos rios para Oxum. [...] ritualizar, para dialogar com O Mistério.”255.
“Et voilá: sou também um pouco tolo, um pouco naive, um pouco pêra — e
eternamente Bambi. Quando a barra pesa, compro flores e ouço Mozart. [...] Que enorme
distintas para distintos personagens. Intercâmbio de papéis: arte/vida. Teatro mental. “Toda
carta é encenação, a própria sinceridade na carta é uma encenação”257, avisa Italo Moriconi,
no embalo de outro alerta, este de Alai Garcia Diniz: “a linguagem existe tanto para mostrar
252
Trecho de correspondência escrita em 10 de setembro de 1991 (In: ABREU, 2002, p. 223).
253
ABREU, 2002, p. 220.
254
ABREU, 2002, p. 223.
255
Id..
256
Fração de missiva escrita em 12 de abril de 1994 a Guilherme de Almeida Prado, durante período em que
estava na França (In: ABREU, 2002, p. 298-299).
257
MORICONI, op. cit., p. 19.
57
como para ocultar”258, num movimento que tanto cala no que enuncia quanto revela no que
esconde — sem demarcações: “Virei uma mulher misteriosa, reclusa, raramente vista,
something between Garbo e Jackie O.”259, dramatiza Caio Fernando Abreu em trecho de
epístola.
gênero epistolar? Como distinguir cada estratégia, decodificar suas nervuras e entender seus
outros escritores — como Ana Cristina Cesar [“parece que em cada carta transmito uma coisa
diferente. Essa instabilidade intensa também é real, é cotidiana”260], que instiga o olhar de
sobreaviso de Italo Moriconi, para quem a poeta jamais teria escrito cartas inocentes: “As que
enviou a Caio [Fernando Abreu] são pura pose, pura malícia, como convém à boa literatura.
No entanto delas é possível extrair verdades fortes da vida, mais cruéis que qualquer intenção
documental”261; e Sylvia Plath, que velava sua vivência ao narrá-la para a mãe, manejando
relação mantida com ele, regulam o tom do discurso, economizando e/ou exagerando nas suas
reafirmando o entender de que se está diante de uma prática de escrita peculiar a um gênero
mestiço que se tece [sem disciplinas], com elasticidade, segundo “as múltiplas instâncias
258
DINIZ, Alai Garcia. Máquinas, corpos, cartas: imaginários da Guerra do Paraguai. Tese de doutorado em
Literatura Espanhola e Hispano-americana do Departamento de Línguas Modernas da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1997, p. 176.
259
Escrita em 03 de fevereiro de 1994 e remetida a Gerd Hilger (In: ABREU, 2002, p. 285).
260
CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloisa
Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 116.
261
MORICONI, Italo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta. n. 14. Rio de Janeiro: Relume-Dumará;
RioArte, 1996. (Perfis do Rio), p. 11.
58
passado com as experiências ao longo da vida, tendo em vista que “rumar ao passado é
destinatários e fases da vida. Enquanto sujeito narrador, brinca com o próprio nome próprio264
assinatura ficcionalizada “Caio F.” para encerrar mais de 80 correspondências, entre as 104
epístolas escritas e postadas entre 1980 e 1996266 e reunidas na edição, numa declarada alusão
produção oficialmente literária: “Hoje estou passando pelo AUGE da posição Urano-Urano.
Stadenervos perde. Não durmo há uns cinco dias. Mas estou pegando a coisa pelo lado
fazendo o possível, à noite, para ficar na base dos chás, jogando coisas repousantes como
262
GOTLIB, Nádia Battella. Correspondências: a condessa de Barral e o imperador D. Pedro II. In: Prezado
senhor, Prezada senhora: estudos sobre cartas. GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Battella (Org.).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 239.
263
DINIZ, op.cit, p. 2.
264
Acerca disso, é fundamental visitar o ensaio A ilusão biográfica para extrair dele os seguintes apontamentos
firmados por Pierre Bourdieu: “O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos
tempos e dos espaços sociais, [...] ele só pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade
socialmente construída, à custa de uma formidável abstração.” (BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Usos & abusos da história oral. 6. ed. Rio de
Janeiro: FGV, 2005, p. 187).
265
ABREU, 2002, p. 120.
266
Em 1980, Caio Fernando Abreu recebe o prêmio Status de literatura pelo conto Sargento Garcia. No ano
seguinte, passa a editor da Leia Livros. Em 1982, lança Morangos Mofados pela editora Brasiliense. Em 1983,
volta a viver na capital fluminense, onde trabalha como colaborador da revista IstoÉ. Publica Triângulo das
Águas — vencedor do prêmio Jabuti no ano seguinte, quando tem a peça Pode ser que seja só o leiteiro encenada
em Porto Alegre, com a direção de Luciano Alabarse. Em 1985, volta a São Paulo. Trabalha como editor da
revista A-Z, escreve roteiro para a série de TV Joana Repórter, protagonizada por Regina Duarte, e tem
Morangos Mofados adaptado para o teatro. Em 1986, passa a integrar a equipe de redatores do Caderno 2 do
jornal O Estado de S. Paulo. Em 1988, volta para a revista A-Z. Lança Os dragões não conhecem o paraíso,
também premiado com o Jabuti, e Mel e girassóis e recebe o prêmio Moliére de melhor autor. Em 1994, tem
publicada em Paris a novela Bien loin de Marienbad e retorna a Porto Alegre, depois de assumir publicamente
ter a doença que o vitimaria dois anos depois (Cf.: ABREU, 2005b.)
267
Segundo Italo Moriconi, o escritor gostava de se assinar Caio F. e, nas cartas, “faz jogos entre essa assinatura
e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos,
drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982 (...)” (ABREU, 2002, p. 53).
268
ABREU, 2002, p. 156-157.
59
Schuman, Mozart, Nana Caymmi (surpreendentemente relax) ou Nara Leão. Acho que
máscara(s)270. “Em vez de o sujeito de enunciação se servir da carta para anunciar a sua
própria chegada, é o sujeito de enunciado que vai assumir inteiramente um movimento que se
torna fictício ou aparente.”271 Pois é assim, muito ao enlevo de Franz Kafka, que Caio
Fernando Abreu enreda seu duplo — ora Marilene, ora Laika — antes de o endereçar ao
mesmo que inocentemente, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Maquinar cartas:
sujeito este que talvez exista apenas no papel [e dentro das cartas]: “Mas eu, quietíssima.
Santa. Mais que santa: deusa. A Europa acaba com o meu libido. A periquita sossega”273,
provoca o contista, estampando “uma verdade”, a verdade tramada para se reportar ao então
elaborada por Jacques Lacan a respeito do conto A carta roubada274, quando aponta que o
registro da verdade reside “onde o sujeito não pode apreender nada mais do que a própria
subjetividade que constitui um Outro em absoluto”275. Reflexão que vem reforçar o olhar
depositado sobre o sujeito dual ou o sujeito plural, como prefere Jacques Lacan, para quem o
269
Id..
270
Assertiva que facilmente remete à definição feita por Flora Süssekind a respeito do poeta como “máscara
capaz de se desdobrar em muitas outras” (SUSSEKIND, Flora. Literatura e Vida Literária: polêmicas, diários &
retratos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 81).
271
DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 61.
272
DELEUZE; GUATTARI, op. cit., p. 58.
273
Trecho de correspondência de 24 de abril de 1994, postada a Gilberto Gawronski (In: ABREU, 2002, p. 302).
274
The Purloined Letter (no original) foi escrito por Edgar Allan Poe e traduzido por Charles Baudelaire.
275
LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 26.
60
Nesta fase da seleta epistolar, que acompanha e mapeia, em certo grau, a faceta
destinatários não seria exagero]: grandes amigos, colegas de profissão, gente de teatro,
televisão, música, familiares. “Essa persistência em conquistar um lócus pessoal fê-lo desde
cedo estabelecer uma rede afetiva/espiritual com diversos intelectuais e artistas, sobretudo
Caio Fernando Abreu, são os principais interlocutores desta faixa da coletânea, cuja maioria
dos destinatários é escritor ou trabalha com arte e/ou cultura. Com eles, o missivista troca
figurinhas sobre assuntos que vão muito além da literatura — da qual se serve enquanto leitor
e da qual é pai, crítico, refém. Faz confidências, fala de política, arte, cultura, misticismo,
astrologia, discorre sobre as crises da idade e a eterna penúria financeira, divide gostos
musicais e impressões teatrais e atualiza o recebedor a respeito das viagens, das mudanças de
cidade e de emprego, dos planos pessoais, das paixões, dos amores, dos flertes e das
desilusões: “Ando me sentindo extremamente bem. O romance trancou um pouco [...] vou
tentar trabalhar nele no Rio e em Porto Alegre. Nessas aí, pari outro conto, uma versão para
adultos de Os sapatinhos vermelhos, de Andersen. Nunca escrevi nada tão obsceno”278, relata
a Luciano Alabarse, a quem também segreda affair com Cazuza: “Sa´s que ele me dedicou Só
as mães são felizes no show aqui em SP? Fiquei num exibimento insuportável: foi o maior
elogio de toda mi perra vida. Aí fui dar uns amassinhos nele, no final. Luciano, Cazuzinha
está com no máximo 50 quilos. Lindo”279, explana o prosador, reconhecendo, mais à frente, a
proximidade da morte ao encarar o cantor. E é com intimidade semelhante que tece cada
276
PEN, Marcelo. Quem tem medo de Caio F.? In: ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de
1990. Rio de Janeiro: Agir, 2006, p. 09.
277
Crítico literário e tradutor paulista.
278
Fragmento de carta de 29 de julho de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 136).
279
Trecho de epístola de 31 de agosto de 1988 (In: ABREU, 2002, p. 161).
61
conversa epistolar com Jacqueline Cantore, a quem também nomina Anthea e M’r’lene
[brincando com o nome próprio alheio], conforme é possível verificar ao longo desta longa
carta tomada como exemplo: “Preciso me sentar contigo e tomar uns bons mates.
estar aqui em férias, de estar de passagem. E culpas: que tenho mais é que ir pro tanque e me
punir um pouco”280 — fragmento que poderia perfeitamente estar dirigido a Maria Lídia
Magliani, com quem o missivista desenovela o mesmo fio de intimidade, em especial aquele
que envolve as miudezas de si, dos pedaços de vida que insiste em colar e colar e colar
seguidamente enquanto há sopro de vida: “No meio da aflição objetiva de sobreviver nesta
cidade, neste país, neste planeta, neste tempo — ando também bastante sereno. [...] Desisti de
achar que o príncipe vai achar o sapatinho (ou sapatão) que perdi nas escadarias. Não sinto
mais impulsos amorosos”281, partilha, relatando que, apesar de ter deixado de sentir os tais
não me parece falso, mas ao contrário: normal. Era assim que deveria ter sido desde sempre. E
não se trata de evitar a dor, é que esse tipo de dor é inútil, é burra, é apego à matéria”282,
escrevendo, cozinhando, ouvindo música (a Laurie Anderson [...] linda) e falando — cada vez
mais — sozinho. Acertei uma alta com meu terapêutico, mas não consigo evitar de pensar que
Duarte e Bruna Lombardi, ainda nesta etapa, a quem o prosador reserva certa formalidade,
280
Extrato de missiva com data de 05 de junho de 1983 (In: ABREU, 2002, p. 58).
281
Fração de correspondência de 19 de março de 1990(In: ABREU, 2002, p. 180).
282
Id..
283
ABREU, 2002, p. 180-181.
62
televisivas: “amei seu livro [...] Acho corajoso, bonito, forte. Principalmente quando você
solta o emocional. Várias vezes, me comovi, li em voz alta para amigos, para mim mesmo.
Gostava, e muito, do primeiro, mas acho que você cresceu ainda mais”284, exprime, com
coletânea. Neste período285, as cartas exibem dez destinatários e têm os pais de Caio Fernando
Abreu, Zaél e Nair de Abreu, mais Hilda Hilst e a “amiga namorada”286 Vera Antoun entre os
principais interlocutores: “aqui estou, novamente, [...]. Por enquanto, às mil maravilhas.
Quando o ônibus entrou no chão do Rio Grande quase tive uma coisa: era tão diferente da
loucura paulista, tão sem asfalto, tão não sei como, aquele céu dum azul como nunca vi em
outro lugar”287, comunica a Hilda Hilst, dizendo-se aliviado por retornar às origens, apesar do
acompanhariam o regresso: “minha mãe [...] achando geniais os meus cabelos, a minha barba,
os meus colares [...]. Pai, tu sabes como é: a gente nunca consegue perceber exatamente o que
eles estão pensando. Mas desde que não perturbem com críticas, a gente vai levando”288.
284
Trecho datado de 16 de fevereiro de 1981 (In: ABREU, 2002, p. 29). O livro a que alude o missivista se
chama Gaia (Ed. Codecri, 1980).
285
Em 1967, Caio Fernando Abreu inicia os cursos de Letras e Arte Dramática na UFRGS. Não os conclui. No
ano seguinte, passa a viver em São Paulo e participa como repórter da primeira equipe de Veja. Ganha menção
honrosa do prêmio José Lins do Rego com o conto Três tempos mortos. Em 1969, conquista o prêmio Fernando
Chinaglia, da União Brasileira de Escritores, com o livro Inventário do ir-remediável, publicado em 1970,
juntamente com Limite branco e a antologia Roda de fogo. Em 1971, Caio Fernando Abreu se muda para o Rio
de Janeiro. Trabalha como redator na revista Manchete. No ano seguinte, de volta a Porto Alegre, trabalha no
jornal Zero Hora e recebe premiação do Instituto Estadual do Livro pelo conto A visita. Em 1973, viaja à Europa
e conquista menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção com O ovo apunhalado. Em 1977, lança Pedras de
Calcutá. Em 1978, volta a São Paulo, onde trabalha como redator da revista Pop (Cf.: ABREU, 2005a.).
286
“Não ia ser legal você vir agora porque eu não sei exatamente o que sinto por você. Eu gosto de ficar ao seu
lado, gosto quando você me escreve. Quer dizer, a sensação geral é boa, é clara. Mas eu não sei se posso dizer
que te amo, que gostaria de ficar para sempre com você.”, escreve Caio Fernando Abreu em fração de missiva a
Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (ABREU, 2002, p. 478).
287
Fragmento de correspondência de 13 de abril de 1969 (In: ABREU, 2002, p. 359).
288
Id..
63
literatura (lida e produzida) e o desfolhar da carreira como escritor —, estão as idas e vindas
“o Fascismo tem um SENHOR pau, e não se contenta em botar um pouquinho, quer empurrar
tudo”289, escreve a Hilda Hilst, referindo-se à censura militar do período. “O Povo Brasileiro
começa a se sentir incomodado, pensa vagamente em reclamar, mas conclui que, afinal,
homossexualismo é uma coisa válida e se tantos suportam (pensa rapidamente no seu amigo
Povo Espanhol [...]) ele pode também suportar”290, exprime à escritora, acrescentando, na
seqüência: “Aí, de repente, o Fascismo empurrou tanto que não é mais possível tirar. Ficou
entalado. E goza trezentas e quarenta e cinco vezes seguidas enquanto o Povo Brasileiro
[prática também adotada na produção literária oficial292] — estampado nas cartas remetidas a
Hilda Hilst, nas quais o autor parece exercitar sua escritura livremente, sem se preocupar com
expedidas aos pais de Caio Fernando Abreu e à amiga Vera Antoun revela certo “controle
289
Trecho de carta de 04 de março de 1970 (In: ABREU, 2002, p. 402).
290
Id..
291
Id..
292
“Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago o cigarro (americano). But sometimes, yo hablo también un
poquito de español, e if it faut, aussi un peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon Ciy,
depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encontro de Carmenmiranda com uma rumbeira-from-Kiúba.
Perhaps pelas origens tropicais e respectivas back-grounds comunicam-se através de requebros brejeiros, e quizá,
pelo tom dourado das folhas de outono”, narra no conto London, London ou Ajax, Brush and Rubbish (ABREU,
2005a, p. 239-240).
64
É, portanto, com fino trato, contenção e polidez discursiva que Caio Fernando Abreu
se reporta aos consangüíneos — dos quais o contista também preserva sua natureza
homossexual [nesta faixa da seleta] — e a Vera Antoun, a quem presenteia, de certa forma,
com fragmentos essencialmente belos, sensíveis e intimistas — “te amei muito. Nunca disse,
como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas
confusas não saibam amar. Pena que também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não
devia ter vergonha do que é bonito”293, segreda o prosador —: “só queria que você soubesse
do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber
biográfico, objeto de pesquisa fidedigno, retrato fiel de pares e épocas e elemento legitimador
confissões ficcionais e ficções documentais, num flerte contínuo: “Ouvi hoje várias vezes:
você está com a cara tão boa! S´as que Marilene desespera, mas não perde o tino, não? Entre
registra Caio Fernando Abreu, sob a faceta de Marilene — borrando o “verdadeiro” retrato de
si para construir um outro desenho de si que é postado ao recebedor, que não deixa de obter
um retrato do emissor, pois a máscara acaba por dissimular a própria dissimulação de si,
293
Extrato de missiva postada em 21 de março de 1972 (In: ABREU, 2002, p. 425).
294
Ibid., p. 426.
295
ABREU, 2002, p. 125.
65
recordando assertiva lacaniana sobre o jogo da verdade [no qual preconiza que justamente por
discursiva que se fertiliza neste lugar sem fronteiras, neste “espaço de conversões, de
Fluxo discursivo — no que se aplica à tal força motriz que as correspondências, por
meio “do sangue que elas trazem, fazem disparar completamente a máquina”298, a “máquina
literatura “menor”] de Franz Kafka. “Talvez seja em função das cartas, das suas exigências,
das suas potencialidades e insuficiências que as outras peças são montadas”301, refletem os
epistolar como fruto e [re]fluxo da escrita, seja da obra ou para além dela — “as coisas
passando eu quero é passar com elas: é mais do que isso aí. Por enquanto estou nessa batalha
de abrir as cucas alheias porque é impossível a minha fluir sozinha cercada de caretice.”302.
296
Cf: LACAN, 1996.
297
SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 48.
298
DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 68.
299
Ibid., p. 63.
300
Id..
301
Ibid., p. 58.
302
Fração de epístola escrita por Caio Fernando Abreu a Vera Antoun com data de 18 de janeiro de 1973 (In:
ABREU, 2002, p. 434).
66
3 A MEMÓRIA EM SI
“Desmascaramos a farsa
para continuarmos a existir no meio dela.”303
“Querida mãe, querido pai, não sei mais conviver com as pessoas. Tenho medo de
uma casa cheia de pais e mães e irmãos e sobrinhos e cunhados e cunhadas. Tenho vivido tão
só durante tantos — quase 40 — anos. Devo estar acostumado.”304 Mise en scène. É com esse
tom, eminentemente performático, que Caio Fernando Abreu introduz conversa epistolar com
“Estou me transformando aos poucos num ser humano meio viciado em solidão. E que só
sabe escrever. Não sei mais falar, abraçar, dar beijos, dizer coisas aparentemente simples
como ‘eu gosto de você’. Gosto de mim. Acho que é o destino dos escritores”305.
apontariam para a solidão essencial gozada pelo autor do discurso no exercício da escrita. O
que equivale a afirmar que, ao escrever sobre si, Caio Fernando Abreu experimenta, na cena
individualismo, mas a solidão essencial [na qual o silêncio habita] e, ao mesmo tempo, uma
realidade que não é “real”306 — seja sobre si e/ou sobre o outro, seja do mundo exterior e/ou
da própria linguagem. “Quando estou só, não estou aí. Isso não significa um estado
303
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 192. O
fragmento integra a obra ficcional do autor.
304
O trecho, voltado aos pais do escritor, tem data de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, Caio Fernando. Cartas.
MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 153).
305
Id..
306
O que, segundo formulação de Maria Gabriela Llansol citada por Lúcia Castello Branco, pode também ser
compreendido desta forma: “Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada
para abrir caminho a outros.” (BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan.
Belo Horizonte: Autêntica; Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 11). A citação foi extraída de Maria Gabriela
Llansol em Um falcão no punho (Lisboa: Rolim, 1985).
67
“O que vem ao meu encontro não é que eu seja um pouco menos eu mesmo, é o que existe
Desse modo, ao olhar para dentro de si prevendo captar memórias e/ou recolher traços
da intimidade e do privado de si, num movimento que precede o ato da escrita, o missivista
vai preenchendo o lapso, o vazio, a ausência, o esquecimento, com uma realidade por vezes
também, uma identidade forjada, postiça, estrangeira e/ou até desejada, possível graças ao
exercício da linguagem — enquanto pura dissimulação: “por que eu falaria mais de ‘mim’, já
que ‘mim’ não é mais ‘si’?”309 —, à fluência lingüística [e o seu “traquejar”] e à sintonia do
epistoleiro com o mundo310. Pois, nesse entremeio, é necessário considerar, conforme postula
Sigmund Freud311, a aversão da memória em recordar tudo que remonta aos sentimentos de
desprazer e à reprodução daquilo que renova o desprazer. Além do quê, é preciso ter clareza
de que “cada instante é único e jamais será resgatado em seu inteiro teor”312, segundo propõe
307
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 253.
308
Id..
309
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Cultrix, 1975, p. 179.
310
Artista pop, Caio Fernando Abreu exibia a falta de rédeas e rejeitava convenções. Citizen do mundo, viajou
muito — “estou perdido: feliz na estrada, alone as always” (ABREU, 2002, p. 195) —, feito um andarilho,
sempre que pôde e, em especial, à custa da literatura que produzia — seja pelos lançamentos no exterior, mais ao
final da carreira e da vida — “London 10.12.90/ Jacklie C./Rapidinho entre um conhaque e um Chet Baker.
Aaaaaaaaaiiiiiiiiiii — (sta´d´nervos) Lancei livro, dei entrevista pra Time, pro Independent, saí na Time Out, falei
da BBC. Agora estou aqui waiting for a Nobel, claro.” (ABREU, 2002, p. 194) —, seja pelos prêmios que ia
arrebatando, ainda no início da trajetória como escritor. Os períodos de “exílio” da terra mãe podem ser
conferidos em várias correspondências reunidas na primeira fase da coletânea Cartas, por meio da identificação
do local de onde são redigidas pelo missivista [no alto da página] e do próprio teor das epístolas: “Hoje tive
medo. Estou vivendo numa espécie de Harlem londrina. É muitíssimo Sammy and Rose, embora eu preferisse
que fosse mais para Beautiful Laundrette. Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! I´ll kill
you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que não entendo, mas me soam mais para David Lynch do que
para T.S. Eliot.” (ABREU, 2002, p. 197).
311
FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Comentários e notas de: James Strachey e Anna Freud. Direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
c1969, v. 15.
312
AMARAL, Adriana Cörner Lopes do. Sobre a memória em Jacques Derrida. In: NASCIMENTO, Evando;
GLENADEL, Paula (Org.). Em torno de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 38.
68
cópia que nunca será perfeita, e já sempre diferente, em diferença (sempre ficção e não a cena
como acredita Sigmund Freud315, o passado de uma pessoa está sujeito à distorção e à
Tal questionamento — “por que eu falaria mais de ‘mim’, já que ‘mim’ não é mais
‘si’?”316, “indaga” Roland Barthes —, que talvez não se proponha realmente o questionar de
si, dada a natureza do texto em que se localiza, originalmente, o trecho citado, dialoga com a
própria escrita de si do teórico, sobre a qual ele externa: “tudo se joga aqui, estou fechado
para sempre na liça pronominal: o ‘eu’ mobiliza o imaginário [...] o ‘eu’ pode não ser o mim
[...]; posso me chamar de ‘você’, como Sade o fazia, para destacar em mim o operário, o
[dramatis personae].
outros espaços discursivos. Escrita para além do gênero. Eu(s) para além da biografia e da
fidedignidade da paisagem íntima. Eu(s) performático(s): “Não sei fazer ‘jogo social’. Até
saberia, mas não me interessa, tenho preguiça. Como Dulce V., eu sempre quis só ‘outra
coisa’, e vou chegando a um ponto em que tenho pensado se essa ‘coisa’ não será a solidão
313
Id..
314
Para Marilena Chauí, por exemplo, a memória não apenas guarda impressões do passado, mas ressignifica, a
todo instante, as lembranças do passado com as experiências ao longo da vida (Cf: CHAUÍ, Marilena.
Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986).
315
FREUD, op.cit, v. 17.
316
BARTHES, op. cit., p. 179.
317
Id...
69
[Dulce V.] e adicionando, a seguir: “e se não ela, essa solidão idealizada, porrada de gatos,
rosas, Mozart e livros, será quem sabe somente a morte. Há que ter paciência para esperar por
ela, que é a única certeza entre todas as nossas ilusões tolas.” 320.
modelando a encenação de si, alargando suas margens e transindo suas linhas de fuga — pela
erupção de uma subjetividade [polifônica] que se desvela pela razão, pela crítica e, sobretudo,
pelo pathos literário322, que passa a orquestrar o ritmo, a intensidade e a dicção desta escrita
acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”323, segundo
pontua, com habitual pertinência, Michel Foucault, pois, além de se vincular a um gesto de
escrita e/ou à articulação de um vocábulo, um enunciado “abre para si mesmo uma existência
Extensão identitária. Margem que se quer corpo. Prolongamento de si. “Amo vocês
como quem escreve para uma ficção: sem conseguir dizer nem mostrar isso. O que sobra é o
318
Fração de correspondência com data de 12 de abril de 1994 (In: ABREU, 2002, p. 299).
319
Guilherme de Almeida Prado.
320
ABREU, 2002, p. 299.
321
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 84. “O
imaginário é a imagem-cristal. [...] O que se vê no cristal é o falso, ou melhor, a potência do falso. A potência do
falso é o tempo em pessoa, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo
como devir põe em questão todo modelo formal de verdade.”, explica o autor (DELEUZE, 1992, p. 85).
322
Enquanto criação, produto discursivo, que se origina pela convergência das linhas de fuga, conforme trata
Gilles Deleuze, ao teorizar acerca da subjetividade, que, segundo ele, além de ser um campo de possibilidades,
de invenção, é composta por linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga (Cf: DELEUZE, 1992).
323
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6. ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense, 2000, p. 32.
324
Id..
70
áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco — todas
as pessoas são loucas [...]. Mas amor de verdade”325, profere aos pais, acrescentando, mais
Está ficando tarde, e eu tenho medo de ter desaprendido o jeito. É muito difícil ficar
adulto”326.
Ao teatralizar com a condição de adulto que é, Caio Fernando Abreu amplia a sua
inventiva328. Com base nisso, dá “asas” ao conteúdo presente, formado de traços da memória,
retranscrição331. Ao que recorro a Henri Bergson para frisar que toda consciência é memória
diferença.
325
Retalho de correspondência de 12 de agosto de 1987 (In: ABREU, 2002, p. 153).
326
Id.. Na ocasião, Caio Fernando Abreu conta com 38 anos de idade.
327
FREUD, op.cit, v. 6.
328
Em trecho de carta postada a Hilda Hilst em 14 de junho de 1970, Caio Fernando Abreu exibe uma de suas
facetas performáticas: “Ando deprimido, agressivo cansado — perdi uns cinco quilos: pareço um fantasma,
tenho insônia e pesadelos horrendos, idéias negras durante a noite. [...] tenho participado de festas louquíssimas,
na base da maconha, da nudez, jogo da verdade, bacanais surubas. [...] Ando muito sozinho, nessas festas se
reúnem artistas plásticos, atores atrizes, escritores — todos jovens, perdidos, desesperados — é uma coisa
terrível. Chega a ser comovente a maneira errada como eles buscam a pureza, como eles tentam se convencer
que os bacanais são a forma mais absoluta de comunicação: finjo o tempo todo, rio, sou alegre, dispersivo, com
aquele brilho superficial e ridículo. E em cada fim de noite me sinto um lixo.” (ABREU, 2002, p. 407). Ao final
da missiva, o escritor inclui o seguinte “PS — Depois de reler — não é tão grave assim. Fui muito dramático.
Faça boas vibrações por mim.” (ABREU, 2002, p. 409).
329
Para Roland Barthes, a recusa à realidade por meio de uma fantasia configura o próprio irreal. Cf.:
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. 5. ed. Tradução de Hortência dos Santos. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1985.
330
FREUD, op.cit, v. 17.
331
FREUD, op.cit, v. 1.
332
BERGSON, Henri. Cartas, conferências e outros escritos. 2. ed. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva e
Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 71.
71
Mais que narrativa de si, re[a]presentação de si, escrita para si333 — “escrevendo-me
[...] sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”334, exterioriza
Colagem. Decolagem. Gozo. Gozo de linguagem e, por essa razão, genuinamente literária:
“Pensam que vão acabar comigo? Nunca. Marilene foi às compras — como é uma intelectual,
no fundo, comprou outro Isherwood — essa paixão vai me levar à ruína — e o final daquela
por Adriana Cörner Lopes do Amaral acerca da memória em Jacques Derrida, a qual
estabelece que “o ser se inscreve em se apagando”336 ou, noutros termos, que “o ser se apaga e
que, por intermédio da escrita, o sujeito que deveria mesmo se apagar se inscreve na escrita e
Por essa razão é que a escritura passa a responder por aquele que a originou, “torna-
se a memória dele, em nome dele”338 — seja ela um sopro biográfico ou um esforço ficcional
ou o imbricar de ambos, dado que a memória tem como característica fundante o processo
333
A esse respeito é interessante pensar com Sergio Vilas Boas, para quem “o ato de narrar e de recordar é uma
arma contra a solidão e a dor, memória formada de saberes, um saber transmitido e compartilhado” (VILAS
BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo: Summus, 2002, p. 59).
334
BARTHES, 1975, p. 64.
335
Fragmento de carta remetida a Jacqueline Cantore com data de 18 de abril de 1985 (In: ABREU, 2002, p.
129).
336
AMARAL, op.cit, p. 37.
337
Id..
338
Id..
72
reativo que a realidade provoca no sujeito, como bem exprime Antonio Torres Montenegro:
“Ela se forma e opera a partir da reação, dos efeitos, do impacto sobre o grupo e o indivíduo,
Metamorfose. Contágio.
neste lugar de memórias que mais parece um repositório de trapaças discursivas, jogos de
e conjetural, aproxima-se do mesmo universo de representação que a ficção, muito mais que
qualquer outro discurso, é capaz de tramar: “Agora ando mais calmo. Não muito, verdade.
Mas desde que ganhei meu PhD em desilusão amorosa, aos 40 anos, tenho me divertido como
nunca. Ai, que maravilha arrebentar o mito do Amor Eterno!”341, compartilha Caio Fernando
Abreu com José Márcio Penido342. “Me associei ao Zé Simão na campanha ‘sem medo de
biscate’, e assim vou indo, até que algum Richard Burton resolva me dar um diamante do
tamanho do Ritz (o hotel, não o bar, please). Pouco provável. Até lá, tento ser
339
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3. ed. São Paulo:
Contexto, 1994, p. 19.
340
“Com pessoas, essa forma de criação mais imperfeita que Deus colocou sobre a Terra, tenho deixado pra lá.
Minha energia é para o texto, as plantas, os passarinhos que alimento com sementes de girassol. A minha
autocura no braço, na raça, na solidão que ninguém compreende, e por isso mesmo não dói. Me dóem as feridas
físicas, as queimaduras de nitrogênio líquido pelo corpo. Tenho visto anjos, sa´s?/E as fadas também existem,
baby.”, narra Caio Fernando Abreu em fragmento de carta dirigida a Jacqueline Cantore com data de 09 de
março de 1995 (ABREU, 2002, p. 331).
341
Trecho de missiva datada de 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 190).
342
Jornalista. Amigo de Caio Fernando Abreu desde os anos 70, quando o conhece, em São Paulo. Trabalha com
o escritor no jornal O Estado de S. Paulo.
343
Fração de correspondência postada a José Márcio Penido em 2 de novembro de 1990 (In: ABREU, 2002, p.
190-191).
344
“Guilherme, mon cher, precisamos — eu e você e todo mundo — tomar muito cuidado com esses tempos.
São tempos de horror. Tudo fica ainda mais grave neste país de là-bas, como é o Brasil, e mais ainda numa
cidade como São Paulo — onde a crise econômica, a corrupção, a violência, a falta de futuro, a miséria material
foi gerando sem que as pessoas percebessem também uma histeria psicológica, uma miséria espiritual ainda mais
73
limites entre a memória e a fabulação. “Quando escrevo para você é como se escrevesse pra
mim mesmo — às vezes o jeito me escapa, e [...] as cartas ficam parecendo bestas. Tento ler,
não consigo. Uma carta é difícil — imagine um conto. [...] Não consigo ser verdadeiro o
Espelho de si. Reflexo que deseja de si. Imagem que quer para si. Fabulação que, ao
verdade [mesmo que transitória, relativa, pela metade] do sujeito emissor, que revive seus
enraizado no próprio enganar de si diluído na narrativa epistolar, que, muitas vezes, assume-
“Quando você estetiza, quer dizer quando você mexe num material inicial, bruto, você já
constrói alguma coisa. [...] você finge, é a questão do fingimento novamente. Aí você sai do
âmbito da Verdade [...] saca que ela nem existe, que ela nem pode ser transmitida.”349. Tudo
porquê, conforme preceitua Maria Esther Maciel, com distinta validade, “as palavras podem
deflagrar realidades imprevistas, fingir um mundo que não existe senão apenas dentro delas
terrível e mais patética.”, redige Caio Fernando Abreu em trecho de epístola remetida a Guilherme de Almeida
Prado, em 12 de abril de 1994 (ABREU, 2002, p. 298).
345
“Se foram duros? Foram, foram duros. Mas foram também cheios de sonhos e encontros e pequenas e grandes
esperanças. Foram anos em que não se podia viver muito para fora: a repressão política nos empurrava para
dentro.” (ABREU, 2005b, p. 141).
346
Fragmento de carta escrita a Vera Antoun em 19 de outubro de 1973 (In: ABREU, 2002, p. 455).
347
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa
Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 130.
348
“Reli hoje cartões-postais que mandava da Europa, todos literatura”, cita a poeta em fragmento de carta
remetida a Ana Candida Perez (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO,
Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 217).
349
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 273.
74
ou a partir delas”350. Trata-se, portanto, seguindo argüição acertada de Bruno Souza Leal, de
um ritual literário que se esgota em si mesmo: “Quando o texto se arma para trair o leitor [que
é o próprio emissor], portanto, ele o faz para desviá-lo de sua verdade. Acena, então, com um
segredo, com uma outra verdade que não se revela, se apresenta”351 — lacuna esta que acaba
por deixar “o leitor só, com o texto, com seu próprio olhar, diante de um engano, de seu
Neste contexto, Bruno Souza Leal reforça que o engano referido faz parte da própria
narrativa — traiçoeira por natureza, “acena com uma outra versão de si mesma, com uma
outra possibilidade, em que se expõe, ela mesma como artifício, como algo arbitrário e/ou
aleatório, colocando-se sob suspeita”353. Com base nisso e sob a tutoria de Jean Baudrillard, o
pesquisador identifica o caráter sedutor da escrita — enquanto jogo com o real, os signos e o
outro — como estratégia para desviar o leitor de qualquer intenção de verdade. “Assim, ‘eu
serei seu espelho’ significa não ‘serei seu reflexo’ mas ‘serei seu engano’. Seduzir é morrer
Desse modo, é importante considerar que a sedução de que trata Jean Baudrillard
opera sobre “a intuição do que no outro permanece eternamente secreto a si mesmo, sobre o
que nunca saberei dele e que, entretanto, me atrai sob o selo do segredo”355, ou seja, a sedução
desvelado, ao que se mantém secreto, fantasioso, enganoso, à medida que joga com o estatuto
350
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004, p. 120. O fragmento integra ensaio sobre o poeta mineiro, Altino Caixeta de Castro.
351
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e
sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 62.
352
Id..
353
LEAL, 2002, p. 63.
354
BAUDRILLARD, 1992, p. 73 apud LEAL, 2002, p. 62.
355
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução:
Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papipus, 2004, p. 177.
75
como alegoria. “A gente tem tantas memórias. Eu fico pensando se o mais difícil no tempo
que passa não será exatamente isso. O acúmulo de memórias, a montanha de lembranças que
você vai juntando por dentro”356, insere Caio Fernando Abreu, em prosa ficcional.
necessidade que [Caio Fernando Abreu] tinha de mentir para si próprio, auto-enganar-se, seja
nos seus amores, seja na sua morte”357 — na contramão da escrita ficcional, na qual, segundo
ela, o escritor jamais mentiria, tendo em vista que é justamente no espaço da ficção358 que há
possível. O parecer encontra esteio, por exemplo, na introdução do conto Anotações sobre um
amor urbano, na qual o escritor revela que o texto em questão passara por várias versões e
que, apesar disso, ele nunca o sentira, de fato, concluído: “Mas talvez o jeito meio sem jeito
destes pedaços mais parecidos com fragmentos de cartas ou diário íntimo afinal seja a sua
356
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. Porto Alegre: L&PM, 2005d, p. 187.
357
DENSER, Márcia. A crucificação encarnada nos anos 80. In: ABREU, 2005b, p. 11.
358
No conto Uma história confusa, Caio Fernando Abreu desenvolve o enredo com base no recebimento de
cartas anônimas por um dos personagens, explorando, na narrativa em forma de diálogo, a dúvida do recebedor
das correspondências quanto à veracidade do teor da escrita: “— E ele pode estar mentindo. Essa data, por
exemplo, essa data pode ser inventada” (ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio
de Janeiro: Agir, 2005a, p. 188). Além disso, o destinatário comenta com o interlocutor o fato de ter ido a um
astrólogo para se informar a respeito do emissor das missivas sem identificação: “Ele nasceu a 22 de setembro de
1954 [Caio Fernando Abreu em 12 de setembro]. Entre mais ou menos dez e meio-dia. É de Virgem [...] Pelos
meus cálculos, o ascendente deve ser Escorpião” (ABREU, 2005a, p. 188) — narra o prosador para, na
seqüência, comentar que isso tudo credita ao missivista oculto predicados como inteligente, secreto, misterioso,
intenso. “Só pelas cartas qualquer um percebe que ele tem certa... estrutura” (ABREU, 2005a, p. 189).
359
ABREU, 2005a, p. 155.
76
somenos, ridícula, menor, tola, como qualquer mulher inculta e ávida por mexericos”360,
sintetiza, frisando que a ânima à qual se refere nada mais é que um arquétipo, “um resumo da
experiência da mulher que existe no inconsciente masculino, logo não é (nunca foi) uma
Fernando Abreu enquanto lugar para os modos de ser do autor e/ou do personagem autoral
que o representa, e aqui caberia, de certa forma, uma aproximação com a natureza terapêutica
de que trata Márcia Denser — no que as cartas, enquanto território clínico, conservam de uma
eus guardados e seus desdobramentos privados, que se colocam em movimento nesta suposta
“conversa sem fim”, estabelecida pelo desejo de manter o vaivém das prosas entre os
“Não ando bem. Como não ando bem há exatos 41 anos e quatro meses, concluo que nada de
direções, trabalho mal pago, suado, sofrido. Contas, contas & contas.”362, dramatiza o escritor
em missiva a Maria Lídia Magliani. “Nenhum amor, há tanto tempo, ando até pensando que
amor é como uma espécie de fantasia com Papai Noel, só que dura até os 40. Será? Por favor,
me desmente.”363
linguagem é uma pele e, como tal, pode ser esfregada no outro — “Minha linguagem treme de
360
Ibid., p. 12.
361
Ibid., p. 13.
362
Trecho de correspondência escrita em 10 de janeiro de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 171).
363
Continuação do fragmento anterior, em que Caio Fernando Abreu se reporta a Maria Lídia Magliani (In:
ABREU, 2002, p. 171-172).
77
desejo”364 —, remetendo ao caráter erótico da escrita epistolar e à intenção de, por seu
formulação, se combinada ao fato de a linguagem, segundo indica Henri Bergson366, ter por
epistolar se institui pelo desejo do próprio fluxo comunicacional entre emissor e receptor —
“é a carta (letra) e seu desvio que rege suas entradas e seus papéis”367. A correspondência
como instrumento de comunicação. Meio e fim de expressão [fática, estética]. Por vezes
porque tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de
Nietzsche, comparando o diálogo à troca epistolar, na qual o sujeito que se enuncia dispõe de
feito com a produção da cineasta Chantal Akerman, Ivone Margulies371 acaba fornecendo
364
BARTHES, 1985, p. 64.
365
Id..
366
BERGSON, op. cit.
367
LACAN, Jacques. Escritos. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 37.
368
“Parei um pouco mas estou com a cabeça a mil. Deito entre as cobertas para escrever. Reli a carta e achei um
modelo de confusão epistolar. Finja que é literário! Controlando o intempestivo desfiar de palavras”, redige Ana
Cristina Cesar em trecho de correspondência dirigida a Maria Cecilia Fonseca (CESAR, 1999a, p. 147).
369
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 196.
370
Id.
371
MARGULIES, Ivone. A fala em Chantal Akerman: performance epistolar, monólogo e blablablá. In: Vozes
Femininas: Gênero, mediações e práticas da escrita. SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito
(Org.). Rio de Janeiro: Sette Letras; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003, p. 285-292.
78
entre o eu e o outro, dado que um se define por meio do outro: “No diálogo há uma única
refração do pensamento: ela é produzida pelo interlocutor, como o espelho no qual desejamos
A partir disso, viável é partilhar parecer sustentado por Jacques Lacan, quando
assegura que o emissor “recebe do receptor sua própria mensagem sob uma forma
invertida”373, impulsionado pelo fato de que “uma carta chega sempre à sua destinação”374,
conforme adverte — como se a epístola fosse escrita para si mesmo [feito uma mentira que se
quer verdade refletida no espelho] e para nenhum outro alguém além de si mesmo. “Detesto
ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A
calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. [...] Tão bom ator que
ninguém percebe minha péssima atuação”375, redige Caio Fernando Abreu em carta postada a
comunicar376 a mim mesmo — ação que repercute novamente na noção de solidão essencial
sustentada por Maurice Blanchot: “Escrever é fazer-se eco do que não se pode parar de falar
— e, por causa disso, para vir a ser seu eco, devo de uma certa maneira impor-lhe silêncio [...]
Esse silêncio tem sua origem no apagamento a que é convidado aquele que escreve”377.
Mago da prosa breve, Caio Fernando Abreu não [se] escreve para ser compreendido.
Nem para salvaguardar verdades a respeito de si. Escreve pelo ato de escrever [e se inscrever].
Pelo fluxo da escrita. Pelo jorro das palavras que desembarcam no papel — caixas de
372
NIETZSCHE, op. cit , p. 196.
373
LACAN, op. cit, p. 48.
374
Id..
375
Trecho de missiva de 10 de agosto de 1985 (In: ABREU, 2002, p. 140).
376
Communicare, do latim, é difundir, tornar comum a.
377
BLANCHOT, 1987, p. 17.
79
está sempre sendo enredado pelas reminiscências inconscientes do passado, que está,
próprio passado — recordando que subjetivo e objetivo não são categorias isoladas, existem
na própria interação, e que a memória trapaceia o próprio eu. “Sou terrivelmente tímido e, na
verdade, acho que tenho mais é um ar de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada,
passou fome, dormiu ao relento. [...] Tenho um passado hippie que me deixou muitas coisas
Fernando Abreu, que pode estar para o interlocutor de modo semelhante ao estar do objeto
artístico para o espectador — num contato inicial que é sempre permeado de sensualidade —,
e que, neste caso, resulta da sedução da memória, da sedução textual. Por essa razão, a
comunicação estabelecida entre um e outro por força das correspondências exibe uma carga
continuidade da sua expressão artística, da sua comunicação com outrem — que é, também,
para si próprio — num vaivém discursivo, num balé de linguagem. Por meio dela, o
missivista se nutre do gozo estético e/ou do gozo erótico. Viabiliza o prazer pelo prazer. O
friccionar das peles. A sensação de completude — pois é graças ao erotismo que o desejo
permanece, ganha em extensão, fusão com o outro. “Os magnetismos das pessoas cruzam-se e
descruzam-se, acho, meio que aleatoriamente, por algum tempo, por nenhum tempo, por
378
Fração de correspondência postada a Guilherme de Almeida Prado, em 12 de abril de 1994 (In: ABREU,
2002, p. 296).
80
muito tempo. É mais complexo que isso, mas anyway: não deve doer. E não deve porque no
Dessa maneira e mais que pelo erotismo do gesto de introduzir o envelope selado na
caixa de correio, Caio Fernando Abreu aparenta manter uma relação de fetiche com a
existência — corpo que se torna presente e é tocado, contemplado e guardado pelo recebedor
enquanto se desdobra em outros eus: “A pluralidade dos sujeitos não pode, evidentemente, ser
uma objeção para todos aqueles que irromperam desde há muito nas perspectivas que nossa
de atuar como uma das muitas possibilidades de comunicação e descrição das experiências de
si. Pois é pela existência da verdade, da experiência, que a ficção é elaborada. “Pensando (ou
lembrando) bem, não foram tão verdes assim. A memória tem sempre essa tendência otimista
de filtrar as lembranças más para deixar só o verde, o vivo. Antigamente, sempre era melhor,
ainda que não fosse”381, ressalta Caio Fernando Abreu em crônica publicada no jornal Zero
justamente para aqueles que ainda não guardavam marcas de morte e tortura, mas exibiam
motivação para lutar, mesmo que sem aparentar —, dos quais sobrevive a lição de que
“quando a barra pesa, gosto de pensar que dentro do agora talvez exista também um verde
379
Fragmento de carta remetida a Maria Lídia Magliani, em 19 de março de 1990 (In: ABREU, 2002, p. 180).
380
LACAN, op. cit., p. 22.
381
ABREU, 2005b, p. 141. O trecho abre a crônica Pequenas e Grandes Esperanças, originalmente publicada no
jornal Zero Hora, em 04 de abril de 1984, na qual trata dos anos 70.
382
ABREU, 2005b, p. 141-142.
81
Ademais, se a literatura, como bem manifesta Bruno Souza Leal, “dialoga com o
por sua diferença, estará e não estará onde está, aonde quer que ela vá384 — inscrevendo-se e
dar força, escrevi no espelho do meu quarto: ‘Tá certo que o sonho acabou, mas também não
383
LEAL, 2002, p. 45.
384
LACAN, op. cit..
385
“Tem coisas, tem coisas que ele escreve que parecem. Não sei, parecem verdade, entende? Ele me toca, mexe
comigo”, narra Caio Fernando Abreu em prosa ficcional (ABREU, 2005a, p. 189).
386
Fragmento de epístola destinada a Vera Antoun, com data de 09 de julho de 1974 (In: ABREU, 2002, p. 474).
82
binária: o estatuto do isto ou aquilo. Agora, ao chegar à etapa final do percurso investigativo
proposto e validável, o que me parece mais sensato pensar ou pôr em questão nesta prosa que,
pelo visto, não vê final a traçar é: Seria realmente possível aplicar uma taxonomia à
correspondência?
Por um lado, sim. Por outro, não. A classificação ou uma classificação, por si só,
— condizentes com uma pedagogia “clássica” —, pode limitar o olhar [e estampar uma aura
de reducionismo caducante]. Para quem ainda deseja alcançar o sublime, dentro do ambiente
Fernando Abreu leva a pensar que o que se tem nas mãos é mais que um produto da expressão
387
BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 15.
83
ademais, não há porque alimentar qualquer imprecisão quanto a sua natureza, pelo menos não
quando o epistolário de Caio Fernando Abreu está em jogo: “Magli Magoo, menina loba,
devidamente empacotado, sem entender grande coisa, mas no meu duríssimo caso acho que
não faz mesmo diferença, eis que sento para te escrever às oito da matina. Toca Lulu Santos
e dela é fruto — para aproveitar pormenor gerado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. E aí
reside seu poder e sua potência discursiva. A escrita epistolar passa a conviver com a escrita
literária, numa contaminação típica dos limiares contemporâneos de que trata Jean
que lê uma coisa na outra, prevendo seus imbricamentos sem fim, no que representam de livre
Ao escrever sobre si, Roland Barthes, por exemplo, testemunha ser ele mesmo seu
próprio símbolo e sua própria história391 — “Quando finjo escrever sobre o que outrora
escrevi, acontece [...] um movimento de abolição, não de verdade. Não procuro pôr minha
388
Extrato epistolar remetido à Maria Lídia Magliani com data de 19 de março de 1990 (In: ABREU, Caio
Fernando. Cartas. MORICONI, Italo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 178).
389
“Você se grila de receber cartas datilografadas? Eu acho legal porque bato rápido e não tenho muito tempo de
pensar, sai quase como um papo. É claro que eu estou sabendo da pouquíssima falta de inocência de uma carta.
Mas os papos também não são inocentes.”, redige Ana Cristina Cesar em correspondência a Ana Cândida Perez,
datada de 03 de dezembro de 1976 (CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. FREITAS FILHO,
Armando; HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999a, p. 238).
390
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução:
Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 2004.
391
“O fato (biográfico, textual) se abole no significante, porque ele coincide imediatamente com este:
escrevendo-me, apenas repito a operação extrema pela qual Balzac, em Sarrasine, fez ‘coincidir’ a castração e a
castratura: sou eu mesmo meu próprio símbolo, sou a história que me acontece”, observa o teórico (BARTHES,
Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 64).
392
BARTHES, 1975, p. 64.
84
Dispenso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo
e Félix Guattari ao agenciamento de vida e arte, experiência e escrita, as quais somente “se
opõem do ponto de vista de uma literatura maior”394, pois é graças ao status de uma literatura
menor, que Franz Kafka, mesmo “moribundo”, [sobre]vive enquanto potência narrativa:
“Kafka é transido por um fluxo de vida invencível que lhe vem tanto das cartas, das novelas,
dos romances como de seu inacabamento mútuo por razões diferentes, comunicantes e
Souza Leal à medida que o pesquisador sustenta que o texto trabalhado enquanto documento
“se torna um rico material que pode, e deve ser recortado, reorganizado, burilado, fazendo
com que venham à tona não só as brechas e os hiatos de sua tessitura interna, como também
leitura que Michel Foucault propõe a respeito do intérprete em Friedrich Nietzsche — para
quem o intérprete é o verídico, o verdadeiro, não por se apropriar de uma verdade adormecida
a fim de proferi-la, “mas porque ele pronuncia a interpretação que toda verdade tem por
função velar”397 —, arrisco pontuar que este percurso acerca da escrita epistolar de Caio
393
Id..
394
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003, p.
78.
395
Id.
396
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e
sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002, p. 45. A assertiva está alicerçada em Michel Foucault e
seu Microfísica do poder, do qual Bruno Souza Leal retoma o conceito de documento.
397
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA, Manoel
Barros da (Org.). 2. ed. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 48.
85
que se incrustam neste gênero híbrido fora do sistema e da busca ilusória pela verdade
objetiva. Caminho de leitura que permite, neste trabalho dissertativo, o enamorar das
associações livres, da verdade lúdica — tendo em vista que “ler é meio puxar fios, e não
decifrar”398, conforme designa Ana Cristina Cesar399, com peculiar sagacidade, e que é
necessário supor, a todo momento, a existência da linguagem para além da própria linguagem,
Sendo assim [e até o arremate deste diálogo], mais que apostar numa “literatura de
Caio Fernando Abreu como tudo isso e mais: como documento e como texto, escritura, trama
amorosa, tessitura plural, travessia401 que não cessa de se realizar — num gesto de
generosidade com o destinatário que, neste caso, é o próprio leitor a “espiar” [mesmo que não
propriamente pelo buraco da fechadura] um Caio Fernando Abreu missivista que nutre apenas
uma [pre]ocupação: a prática da escrita. Escrita esta que se reescreve a partir de si mesma,
veracidade biográfica da escrita epistolográfica do prosador seria o mesmo que esvaziar seu
jogo de verdades transitórias e alegóricas, seu fluxo de dizeres de viés, despejando fora sua
potência e plenitude — seu estatuto de uma literatura [de cartas] que se quis menor, sim, e,
398
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999b, p. 264.
399
Em missiva remetida a Ana Candida Perez em 29 de maio de 1980, Ana Cristina Cesar relata que acaba de ler
uma biografia de Katherine Mansfield, a qual tem, então, confrontado com outras fontes documentais, como a
correspondência completa da autora biografada: “estou fascinada pelo conflito entre as versões, e pelo conflito
entre as cartas de KM para diferentes interlocutores, e pela tentativa de fazer da literatura um lugar menos
obsceno que toda essa aparente confusão da verdade — higher up. Sei que alguns modernos já brincaram com
isso, as várias versões por onde se filtra ou escapa a verdade, os mosaicos e focos narrativos da vida”,
testemunha a poeta (CESAR, 1999a, p. 283).
400
Cf: FOUCAULT, 2005.
401
Como neste exemplo extraído de correspondência expedida à amiga pintora, Maria Lídia Magliani, em 1991:
“Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres
continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso
mesmo, I love it.” (ABREU, 2002, p. 203).
86
De fato, impossível seria sequer imaginar apreender Caio Fernando Abreu fora da
literatura sem se render a um exercício fátuo, assim como igualmente falível seria identificar,
na leitura das cartas de Cartas, na sua textualidade, um traçado biográfico que descartasse a
de um artista letrado.
Com base nisso, coerente me parece atestar que o impulso do narrar de si do autor
esteve sempre além dos limites do gênero — afinal, o escritor desconhecia até mesmo o
significado do termo limite [e a sua dimensão física], a começar pelos limites originários da
fronteiriça cidade natal, Santiago do Boqueirão —, prevendo, por meio da liberdade narrativa
condição menor.
prosador. Transida de intenções infraliterárias — num fazer muito alinhado ao que Lúcia
Castello Branco identifica em Maria Gabriela Llansol, quando prescreve que esta inventa não
exatamente uma história ou um produto ficcional, mas “uma memória dos ‘existentes-não-
reais’, em que o sujeito que escreve destitui-se da literatura e passa para a margem da
língua”402, margem esta que é a morada do texto403 enquanto outra modalidade de escrita —,
“Procuro deixar à parte essa compreensão muito intelectual do que estou fazendo. Deixo as
teorias sempre de lado. Fiz Faculdade de Letras durante dois anos e fiquei intoxicado, com
Correio Brasiliense.
402
BRANCO, Lúcia Castello. Os absolutamente sós – Llansol – A letra – Lacan. Belo Horizonte: Autêntica;
Faculdade de Letras/UFMG, 2000, p. 42.
403
Para Lúcia Castello Branco, “o texto é capaz de promover encontros inesperados do diverso e de lançar a
escrita ao exterior de si mesma” (BRANCO, 2000, p. 42).
404
ABREU, Caio Fernando. Caio 3D: O essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005b, p. 255.
87
Ao se desnudar ao olhar alheio ou, o que é ainda melhor, ao simular uma possível
nudez biográfica ao destinatário [seu interlocutor, num primeiro momento, nominado], Caio
Fernando Abreu se beneficia da sua condição de escritor, manejando, com excelência, pares
publicação póstuma]. Construção artística que impede a separação entre joio e trigo, pois tudo
enquanto memória, o caótico ordenado pela linguagem, a mentira como verdade, a verdade
enquanto mentira —, ao que é determinante reconsiderar que realidade e verdade não deixam
Conserva-se secreto sob o envelope selado com segredo e carimbado com sedução discursiva.
Puro vestígio. Pura vertigem. Puro artifício. Imaginar sem fim: “Toda a verdade está além, na
ordem das coisas, numa equação intuída, incompleta e inapreensível, a não ser através da
405
Como diria Ana Cristina Cesar, em trecho de missiva destinada a Ana Cândida Perez: “Ninguém escreve uma
poesia e bota junto: isto é uma poesia, não me peçam pra explicar! Até que seria engraçado. É que em carta fica
difícil o limite entre o arbitrário, o gratuito, o vôo e a correspondência, a significação, a comunicação. Ou
melhor, a gente tem medo de desembestar para o vôo. De dizer coisas que não sabe explicar. A leitora pedirá
explicações, sutilmente exigirá que se desfaça o feitiço, o jogo. Só por insegurança. Ou como ajuizada medida
pra não receber de volta cartas em que a literatura vá ocupando cada vez mais terreno, até que não sobre nada,
mas a literatura.” (CESAR, 1999a, p. 197).
406
LIMA, Luiz Costa. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 339.
407
LEAL, op. cit., p. 86.
88
de plenitude possível no ato de escrever do autor que, por meio dele, ao que apontaria
Ficcionais ou não. De que importam? Fico com a escritura e o desejo dela, ao que Roland
Barthes certamente emendaria: “Não se discorre para ser mais preciso, mais verdadeiro,
discorre-se para exibir metáforas, isto é, felicidades de expressão, ainda isto é, expressões
Sem mais, viável é ponderar, ainda, que a literatura nunca é resultado somente de
uma competência, seja ela lingüística e/ou estilística, a exemplo do que elege o crítico há
pouco referendado — “a literatura não é uma graça, é o corpo dos projetos e das decisões
paetês discursivos. Sua escritura habita num entrelugar. É fruto de amor. Pela palavra
escrita411 — como entendo e quero crer, prevendo mais que fantasmar esta condição, mesmo
que minha suposição não ultrapasse a categoria de um biografema412 emprestado [por mim]
ao escritor estudado.
Por fim, antes de avançar, lacrar o envelope e postá-lo ao seu destino, coloco-me à
espreita. Pensativa. Lamparina na mão, é na ponta dos pés guarnecidos pelos “sapatinhos
408
Cf: CIORAN, Emile M. Exercícios de admiração: Ensaios e perfis. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.
409
BARTHES apud ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 37-38.
410
BARTHES, 2003, p. 35.
411
“Escrevi essas histórias porque elas exigiram que eu as escrevesse. Vivo em um tempo e tento compreendê-lo
através da palavra escrita” (ABREU, 2005b, p. 255).
412
De acordo com Leyla Perrone-Moisés, biografemas “são pequenas unidades biográficas” (PERRONE-
MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. 2. ed. Coleção Encanto Radical. O saber com sabor. São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 09) pertencentes ao campo do imaginário afetivo e, por isso, não se prestam a ser verdades objetivas, o
que, de forma alguma, não os invalida ou os diminui.
89
REFERÊNCIAS
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95
ANEXOS
ANEXO A
Prefácio ................................................................................................................................. 9
Introdução ........................................................................................................................... 11
Todas as horas do fim: 1980-1996 ...................................................................................... 23
Começo: o escritor: 1965-1979 ......................................................................................... 349
Sobre os destinatários ........................................................................................................ 525
96
ANEXO B
Destinatários:
• Adriana Calcanhotto;
• Albert von Brunn;
• Bruna Lombardi;
• Charles Kiefer;
• Cida Moreira;
• Cláudia, Nair e Zaél de Abreu;
• Déa Martins;
• Flora Süssekind;
• Gerd Hilger;
• Gilberto Gawronsky;
• Guilherme de Almeida Prado;
• Hilda Hilst;
• Jacqueline Cantore;
• João Silvério Trevisan;
• José Márcio Penido;
• Luciano Alabarse;
• Lucienne Samôr;
• Luiz Arthur Nunes;
• Luiz Fernando Emediato;
• Marcelo Sebá;
• Marcos Breda;
• Maria Adelaide Amaral;
• Maria Lídia Magliani;
• Mário Prata;
• Myriam Campello;
• Regina Duarte;
• Sérgio Keuchgerian;
• Sonia Coutinho;
• Stella Miranda;
• Suzana Saldanha;
• Thereza Falcão;
• Vera, Henrique e Maria Augusta Antoun.
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